segunda-feira, 24 de março de 2014 By: Fred

{clube-do-e-livro} Livros Espíritas em TXT - O Amor Enxuga Lagrimas,Marcelo Cezar etc



Título: O Amor Enxuga as Lágrimas
Autor: Espírito Irmão Ivo
Médium: Sônia Tozzi




Sinopse:
Com "O Amor Enxuga as Lágrimas", o espírito Irmão Ivo nos ensina, com sensibilidade e emoção, que as perdas de entes queridos, principalemente filhos, não devem ser encaradas como castigo ou injustiça de Deus que conosco, mas sim como sublimes oportunidades de elevação espiritual e trabalho, pois a vida continua, ninguém morre e esses espíritos tão queridos estarão sempre ao nosso lado, compartilhando alegrias e conquistas para uma vida feliz.


Dedicatória
Este livro é dedicado especialmente àquelas pessoas que sofreram separações dolorosas e que encontraram ou encontram dificuldades em aceitar a vontade de Deus; e também aos irmãos que, obedecendo às leis divinas, não sofreram ainda separações marcantes e, em conseqüência disso, não podem avaliar o tamanho dessa dor.
Com certeza aqui encontrarão ensinamentos que os ajudarão a compreender o sofrimento alheio e a aceitar a própria dificuldade.
Dentro dessa conscientização, entenderão que nossa vida se desvia da rota traçada por nós, sem que possamos impedir isso, cumprindo a lei de causa e efeito.
Aceitar essas mudanças é o grande aprendizado da vida, e essa aceitação está relacionada à aceitação do amor universal.
Que Jesus abençoe a humanidade.
Irmão Ivo



Para um filho ausente


Como vai você, que partiu sem me dizer adeus.
Quisera neste instante saber da sua vida
Na Espiritualidade;
Seu trabalho... Suas conquistas... Sua paz!
Ah! Se eu pudesse lhe dizer agora
Que fui o alvo perfeito da dor;
Meu peito atingido só pôde encontrar alívio
Nas palavras mansas do Cristo,
E na certeza da continuação da vida.
Como vai você, parte de mim?
Que distância é essa que maltrata e parece não ter fim!
Que dor é essa que cresce a cada instante
Sem dar trégua ao meu coração sofrido,
E fere minhas entranhas!
O que faço com esse vazio que teima em me envolver!
Como vai você, filho da minha alma?
Eu... Você... Quer saber de mim?
Ah! Eu sou alguém ferido que mal suporta a fúria desses
Vendaval,
Mas se segura no amor de Deus,
Para continuar existindo.
Eu sou alguém que se apaga... Para que você brilhe;
Que se curva ante a vontade suprema de Deus
E espera com fé e confiança
A chegada do reencontro
Que se dará... Em algum lugar do futuro!
Homenagem da médium Sônia Tozzi para seu filho Ricardo Luiz, desencarnado no dia 11 de outubro de 1989.



SUMÁRIO

Prefácio
Separação dolorosa
Muita saudade
A caminho do esclarecimento
Vencendo a melancolia
Laís e Isabela
Problemas com André
No mundo das drogas
Segredo descoberto
Arrependimento
Em busca do perdão
Conversa franca
A passagem de Isabela
Ainda as drogas
Orientação espiritual
Medo e decepção
De volta ao lar
Conselhos de amigo
Marcos se complica...
Dia de festa
No limite da dor
Ausência de Deus
Noite de Natal
Novos tempos
Uma nova vida
Reencontro
Rubens e Júlia
A vida prossegue...
Palavras da médium



Prefácio


Sinto-me profundamente lisonjeado por ter a possibilidade de prefaciar este livro. Trata-se de uma deferência muito importante dada por Sônia Tozzi, minha sogra. Essa escolha deve-se mais ao vínculo familiar que à qualidade pessoal, pois todos somos aprendizes no que diz respeito aos ensinamentos da Doutrina Espírita.
Quero, primeiramente, falar sobre as qualidades pessoais da autora. Ela passou a se dedicar mais intensamente às letras mediúnicas após ter sofrido a grande perda de sua vida, seu filho amado — Ricardo Luiz —, na época com apenas vinte e seis anos de idade. Essa perda transformou totalmente sua vida como acontece com a personagem Marília. Até então, Sônia colaborava na qualidade de voluntária em entidades que atendiam às gestantes desamparadas. A partir do desencarne de seu filho amado, ela fundou sua própria entidade — Lar de Amparo à Gestante Ricardo Luiz — com sede em sua residência, proporcionando amparo a centenas de gestantes com cursos, enxovais e cestas básicas. Entregou-se completamente a esse trabalho de fraternidade e solidariedade com a colaboração de vários amigos. Tal trabalho vem sendo acompanhado pelas sessões espirituais realizadas semanalmente, também em sua residência, com o ensino da Doutrina Espírita segundo Alan Kardec. Suas obras sempre falam de amor. Ela procura efetivamente aplicar seus ensinamentos na vida prática. Trata-se de pessoa abnegada, que está sempre pronta para amparar seus familiares, proporcionando-lhes todos os recursos necessários.
Este livro — O Amor Enxuga as Lágrimas — alcançará, com certeza, um grande sucesso. Tal romance narra à história de uma mãe que também perdeu seu filho. Ela se vê diante de um sofrimento invencível e profundo. Irmão Ivo nos ensina como superar esse sofrimento. Não se trata de uma dor física, mas dor da própria alma. Como superar a dor da alma? Como transformar a tristeza em alegria? Somente o amor ao próximo poderá enxugar as lágrimas de nosso coração por meio do exercício da fraternidade e da solidariedade. E o trabalho incessante e contínuo que nos proporcionará a paz e o equilíbrio para continuar na caminhada da vida. Irmão Ivo nos ensina ainda que haja várias formas de amor, mas que uma não anula a outra, se verdadeira. É o encontro com Deus que nos fará compreender esse amor sublime. A perda permite-nos crescer aos olhos de Deus. "Tudo o que existe vem de Deus: nós viemos de Deus e é para Ele que retornaremos; o Pai nos une e nos separa por um curto espaço de tempo comparado à eternidade." Assim, quem não vem pelo amor, vem pela dor. Só que a dor é o caminho mais longo para se chegar a Deus. Mas é Ele que nos proporcionará a tão necessária evolução. Além disso, não basta sonhar com um mundo melhor; é preciso participar de todos os movimentos coletivos. É necessária a prática do amor fraternal (universal). É necessário o desapego aos bens materiais e a transformação deles em amor verdadeiro.
Precisamos, não há dúvida, realizar obras. Não estamos aqui para nos servir dos prazeres do mundo, mas devemos ficar em constante sintonia com o plano espiritual para melhor desenvolver nossos trabalhos que nos propusemos a realizar quando para cá viemos. É preferível errar pela ação que pela omissão. A médium, como se vê, conseguiu aliar a fé à suas obras, observando que esse binômio indissociável deve pautar a obra de Deus.
Aprendi muito com a leitura contemplativa e refletida deste maravilhoso romance. Ensinou-me o valor da vida. Esta vida relaciona-se com as demais vidas que, por sua vez, transforma-se em uma intensa luz que nos iluminará para toda a eternidade.
Luís Paulo Sirvinskas


SEPARAÇÃO DOLOROSA




Quando a morte vem ceifar nas vossas famílias levando sem moderação as pessoas jovens ao invés das velhas, dizeis freqüentemente: Deus não é justo, uma vez que sacrifica esse que é forte e pleno de futuro, para conservar aqueles que viveram longos anos plenos de decepções; uma vez que leva aqueles que são úteis e deixa aqueles que não servem mais para nada; uma vez que parte o coração de uma mãe privando-a da inocente criatura que fazia toda a sua alegria. Crede-me, a morte é preferível para a encarnação de vinte anos, a esses desregramentos vergonhosos que desolam famílias honradas, partem o coração de uma mãe e fazem, antes do tempo, branquear os cabelos dos pais. A morte prematura, freqüentemente, é um grande benefício que Deus concede àquele que se vai, e que se encontra, assim, preservado das misérias da vida, ou das seduções que teriam podido arrastá-lo à sua perdição. Aquele que morre na flor da idade não é vítima da fatalidade, mas Deus julga que lhe é útil não permanecer por mais tempo na Terra.
(Evangelho Segundo o Espiritismo — Capítulo V, item 21)


Madrugada fria de inverno.
A névoa envolvia toda a cidade emprestando-lhe um ar melancólico. Apenas poucos transeuntes se arriscavam a caminhar por aquelas ruas desertas, madrugada adentro agasalhados por grossos casacos de lã.
As luzes dos postes pouco ou nada clareavam sufocadas pelo forte nevoeiro. Era a paisagem típica do inverno rigoroso da cidade que todos os anos era o responsável pela morte de muitas pessoas que viviam ao relento.
Paulo estacionou o carro em frente ao hospital, e do veículo saíram apressadas duas senhoras. Marília, a mais nova, esposa de Paulo e mãe de três filhos - o mais velho internado com pneumonia dupla e o motivo pelo qual entravam no hospital àquela hora da madrugada -, e Inês, mãe de Marília.
Sem demora estavam em frente à recepção solicitando informações. Paulo, adiantando-se à mulher e à sogra, e mal disfarçando a enorme ansiedade que lhe maltratava o peito, perguntou à recepcionista:
— Por favor, fomos chamados pelo Dr. Rubens, em virtude do agravamento da saúde de nosso filho internado no CTI; poderia dar-nos maiores informações sobre o estado dele?
— Qual o nome do paciente? - perguntou a recepcionista sem nenhuma emoção, apresentando imunidade ao sofrimento que presenciava todos os dias.
— Fábio! - exclamou Paulo com voz trêmula.
— Fábio de quê, senhor?
— Fábio Dias...
— Um instante - respondeu a moça que os atendia.
Levantando-se foi ao telefone pelo qual se informou sobre o estado do garoto. Assim que obteve a informação desejada, tornou a dirigir-se a Paulo.
— Por favor, queiram se encaminhar até o CTI onde o médico os aguarda.
— Obrigado! É no quinto andar, não?
— Sim. Sigam pelo corredor à direita até o elevador; assim que saírem do elevador verão Dr. Rubens no saguão.
Subiram sem conseguir esconder uns dos outros a dor e o medo que os assaltavam. Assim que chegaram, o médico foi ao encontro deles. Não puderam deixar de perceber o ar consternado do médico que, sabendo o profundo desgosto que iria provocar naqueles corações aflitos, tentava ser o mais prudente e cuidadoso possível.
— Boa noite, doutor!
— Boa noite, Paulo.
— Então, doutor, o que está acontecendo com o nosso menino?
— Ele... Ele... Morreu? - perguntou Marília abatida.
— Não - respondeu o médico — ainda não, mas o estado dele se agravou muito e devemos esperar pelo pior.
— Por favor, doutor, não fale assim - sussurrou Marília, que mal conseguia disfarçar as lágrimas.
— Dona Marília, sinto muito causar-lhe tanto sofrimento, mas não posso omitir a gravidade do estado de saúde de seu filho. Estamos fazendo todo o possível para salvá-lo.
— Então faça o impossível! - gritou Marília sem se controlar.
— Senhora, não podemos lutar contra a vontade de Deus. A medicina está muito adiantada, mas, mesmo assim, às vezes, somos impotentes para solucionar determinados casos e situações. Acreditávamos que Fábio iria se salvar, que conseguiríamos reverter o quadro, mas, infelizmente, seu organismo não responde mais às medicações e tememos o pior.
— Por que, doutor, por quê? - falou Inês.
— Porque os médicos podem muito, senhora, mas não podem tudo. A medicina não é uma ciência exata, ela trabalha com seres humanos, e cada criatura, cada paciente, é um ser exclusivo e responde ao tratamento de acordo com essa exclusividade. A senhora me entende?
— Tento, mas não consigo; não quando meu coração não quer aceitar a razão.
Marília, adiantando-se, perguntou ao médico:
— Podemos vê-lo, doutor, só por uns instantes?
Dr. Rubens, tocado em sua sensibilidade, respondeu quase paternalmente:
— Sim. Podem vê-lo, mas, por favor, um de cada vez. Será necessário que vistam as roupas adequadas. Venham!
Acompanharam doutor Rubens. Marília foi a primeira a entrar. Aproximou-se do leito de seu filho querido e chorou copiosamente. Fábio estava em coma; os aparelhos ligados mantinham-no ainda no mundo dos encarnados. Ela sentiu que era só uma questão de poucas horas e seu filho querido partiria sem que nada se pudesse fazer. Olhando aquele rosto amado, as lembranças começaram a saltar ante seus olhos marejados de lágrimas. Marília transportou-se para anos atrás, quando Fábio, chorando muito, entrava para o mundo dos encarnados.
— Veja Paulo, como é lindo; perfeito e lindo!
— É verdade, querida, hum... Vamos ver: vai ser engenheiro como o pai!
— Não senhor, nada disso: vai ser médico! Sempre achei linda a medicina. O homem fica tão lindo de branco!
— Mas o que é isso? - dizia Dona Inês — A criança mal acabou de nascer e vocês estão decidindo o que vai ser na vida! Que tal deixar que ela mesma resolva essa questão no momento certo, heim, papai e mamãe corujas e apressados?
Todos riram felizes!
Marília olhava aquele corpo quase sem vida e parecia não acreditar no que estava acontecendo. Revia Fábio alegre e expansivo; outras vezes sério, triste, ou então contando suas histórias e seus ideais, sonhando com suas vitórias, e não conseguia entender nem aceitar a realidade que estava vivendo:
— Meu Deus, ele é uma criança, quinze anos apenas. Não conseguiu viver nenhum dos seus sonhos, realizar seus ideais de vida; enfim, não viveu nada ainda e o Senhor o chama! Por que, meu Deus, por quê?
— Dona Marília, a senhora está aí há muito tempo, é melhor sair para que seu marido possa entrar - dizia a enfermeira.
Marília parecia nada ouvir. Apenas conseguia ver seu filho crescendo, correndo alegre pela casa, gesticulando; enfim, negava-se a encarar a realidade dos fatos.
— Dr. Rubens, é melhor o senhor falar com ela, parece não ouvir nada do que digo.
— Vou vê-la - respondeu o médico.
Aproximou-se de Marília e colocou lentamente o braço em seu ombro. Ao perceber a presença do médico, Marília o interrogou:
— Dr. Rubens, pelo amor de Deus, diga-me por que não deu certo o tratamento, tantas pessoas se curam de pneumonia, por que justamente meu filho não se curou, o que faltou a ele?
Medindo bem as palavras e respeitando o momento de intensa dor daquela mãe, Dr. Rubens respondeu:
— Dona Marília, nada faltou a seu filho. Tudo o que podíamos fazer, fizemos, mas a doença se complicou agravando seu estado e perdemos o controle sobre ela, isso acontece. Os médicos não podem tudo, temos limitações apesar do avanço da medicina, e, além disso, acima da nossa vontade está a vontade de Deus e, acredite, será sempre como Ele quiser, não importa se queremos ou não.
— Mas não é justo, doutor!
— Deus é sempre justo. Dona Marília, e um dia saberemos o porquê do nosso sofrimento.

— Ele é apenas uma criança, um adolescente cheio de sonhos e expectativas de vida, e agora... O nada para ele.
— O que disse Dona Marília, o nada?!
— Sim, o nada!
— Não fale assim. Sabemos que existe algo mais forte que o corpo físico que, de verdade, é a essência, o ser em si. Temos de respeitar essa entidade, pois é a nossa alma que, por graça divina, não morre, é imortal. Esse ser, ao deixar o corpo físico, volta para seu lugar de origem, o lugar onde fez por merecer. Não é o nada que aguarda nosso querido Fábio, mas sim a vida em uma das muitas moradas na casa de Deus. O nada não existe, Dona Marília, a vida ocupa todos os lugares.
— Mas nada vemos!
— Porque são vidas microscópicas, e nossa visão é muito limitada. Nada é vazio ou inútil na natureza, pois a vida se expande por todos os lugares; nossa visão não a alcança porque temos a limitação da matéria. Mas, por favor, Dona Marília, vamos sair para que seu marido também possa vir vê-lo.
Como uma criança, Marília deixou-se conduzir até a sala de espera. Não suportando mais a dor imensa que sentia, abraçou sua mãe e entregou-se às lágrimas que caíram em um choro convulsivo, Dona Inês tentava consolar a filha com palavras doces e confortadoras, mas para Marília nada do que ouvia parecia fazer sentido, tudo soava vago e inútil.
Paulo, seguindo o médico, foi até Fábio. Ao ver o filho naquela situação desesperadora, não se importou com a presença do médico e dos enfermeiros, cobriu o rosto com as mãos e chorou.
— Sinto muito, Sr. Paulo, mas ninguém pode ir contra a vontade de Deus. Se nosso Pai quer assim, temos de nos curvar à Sua vontade e aceitar.
Paulo, ouvindo uma voz de mulher, virou-se e pôde observar uma enfermeira de porte pequeno, olhos claros e rosto suave que transparecia a bondade que lhe ia à alma. Experimentando o sentimento de confiança, perguntou-lhe com a voz entrecortada pela emoção:
— Diga-me: o que eu poderia ter feito para merecer castigo tão cruel?
— Não sei Sr. Paulo, realmente não sei. Eu mesma me pergunto por que um garoto tão jovem passa por momentos tão angustiantes; acho que a resposta só Deus é quem sabe.
— É muito difícil aceitar a vontade de Deus nesses momentos, senhora...
— Mirtes! - Exclamou a jovem enfermeira, olhando penalizada para aquele pai torturado pelo sofrimento.
Dr. Rubens, interferindo, pediu a Paulo que se retirasse e fosse juntar-se à esposa na sala de espera. Concordando com a cabeça, Paulo foi ter com Marília. As horas passavam lentas para aqueles corações entristecidos que viviam a expectativa da separação.
A madrugada dera lugar ao amanhecer.
— Por que não vão para casa descansar um pouco, devem estar exaustos - disse Mirtes.
— Obrigada - respondeu Marília. — Preferimos ficar aqui mais perto do nosso filho.
— Pelo menos vão até a cantina do hospital tomar um café quentinho ou um chocolate, vai fazer-lhes bem.
— Mais tarde iremos - respondeu Inês.
— Se precisarem de alguma coisa, saber notícias, é só tocar a campainha que alguém virá atendê-los.
— Obrigada - responderam a uma única voz.
— Filha, vamos orar entregar nosso sofrimento nas mãos de Jesus. Somente Ele poderá nos confortar.
— Mãe, por favor, nem Ele poderá tirar a dor que tenho dentro do peito, ferindo meu coração.
— Não diga isso, filha, confie e ore para que a paz possa envolvê-la, não permitindo pensamentos negativos que aumentarão ainda mais seu sofrimento.
— Por favor, mãe, deixe-me quieta; só quero ficar quieta, só isso.
— Está bem, minha filha.
As horas foram passando, e nenhum dos três encontrava ânimo para se levantar do lugar onde estavam. Dr. Rubens, aproximando-se, chamou-os.
Levantaram-se ao mesmo tempo. Marília tremia toda, esperando ouvir a terrível notícia, o que de fato aconteceu.
— Sinto muito dar-lhes essa notícia. Fábio deixou-nos e foi encontrar-se com nosso Pai.
Sem que nada pudessem fazer, ouviram um grito, e Marília caiu desfalecida no chão. Com presteza, Dr. Rubens atendeu-a. Compreendia a dor alheia e respeitava a maneira com que cada um respondia às agressões da vida, principalmente um sofrimento como esse. Apesar de viver situações como essa desde que se formara médico, há vinte anos, ainda vivia momentos de emoção sempre que se fazia necessário comunicar fatos dessa natureza. Aprendera, em todos esses anos, que não se pode tratar apenas um corpo físico, mas, sim, também da alma, da essência divina que fazia parte daquele corpo; assim, com essa consciência, cuidava dos seus pacientes com muito respeito e atenção, para não cometer nenhum engano. Era estimado por todos que o conheciam, principalmente por aqueles que dividiam com ele a bendita tarefa de salvar vidas.
— Dona Marília, a senhora já se sente melhor?
— Sim, doutor, ou melhor, não, doutor, quer dizer... Não sei. Minha cabeça está rodando e tenho a impressão de que vivo um pesadelo.
— Vou dar-lhe um remédio que vai auxiliá-la. Ficará bem.
— Meu filho, doutor! Não quero remédio, quero meu filho aqui comigo - gritava Marília completamente descontrolada.
Usando de toda sua experiência como médico, acostumado a situações como aquela, e compreensão, como espírita que era Rubens sentou-se ao lado de Marília, Paulo e Inês. Sem deixar que ninguém percebesse, por um segundo elevou o pensamento a Deus e solicitou, do Mais Alto, proteção. Confiando que o auxílio viria, iniciou:
— Não quero tirar de vocês o direito de chorar e sofrer pela separação de seu filho sei que é doloroso demais, mas também sei que, se entregarem o coração machucado por essa dor, que fere e consome a alma, a Jesus, com certeza sentirão força e coragem para suportar o peso da ausência física.
— Não quero ouvir nada! Não me diga nada e, principalmente, não me venha falar de Deus, de Jesus e sei lá o quê. O senhor fala assim porque nunca perdeu um filho e não sabe o que é sofrimento de verdade.
Os olhos do doutor brilharam por conta das lágrimas que quase rolaram por sua face, mas achando não ser o momento adequado preferiu nada dizer sobre ele próprio, a dor que trazia dentro do peito. Segurou as mãos de Marília e continuou.
— Por favor, Dona Marília, acalme-se e permita ser ajudada por aqueles que lhe querem bem. Nosso Pai Maior não quer o sofrimento de ninguém; se ofertar seu coração a Ele sentirá alívio para seu sofrimento e esperança para continuar vivendo.
— Dr. Rubens, se Deus se importasse com o meu sofrimento, não teria deixado morrer meu filho, um jovem de apenas quinze anos, na flor da idade. Que Deus é esse, diga-me, que Deus é esse que fere sem dó o coração de uma mãe?
— Querida - interveio Paulo — não blasfeme contra Deus. Você está sob forte emoção, é melhor se calar e esperar seu coração se acalmar. Como o doutor acabou de dizer, eu também acredito na bondade de Deus e na Sua justiça.
— Deixem-me vocês todos; se não sofre pelo Fábio, Paulo, eu sofro e minhas lágrimas demonstram o que sinto aqui dentro - dizendo isso, Marília bateu com força em seu peito.
— Querida, pelo amor de Deus, não duvide do meu amor pelo nosso filho nem do sofrimento que está queimando como brasa a minha alma, mas nem por isso vou me voltar contra aquele que nos criou, porque sei que somente Ele poderá me amparar nesse momento de tanta angústia.
Dona Inês, que até então tudo escutara calada, permitindo que lágrimas sentidas descessem pelo seu rosto, abraçou a filha e lhe disse com voz embargada pela emoção:
— Filha querida, confie em Deus. Precisamos confiar Nele para não morrermos de dor; acalme-se e vamos orar pelo nosso querido menino.
— Não consigo nem quero orar, mãe. Já disse que quero meu filho, quero meu filho, será que podem me entender! - exclamava Marília completamente descontrolada.
Rubens sentiu que não era hora de falar mais nada, pois nada que falasse Marília ouviria. Dirigindo-se a Paulo, disse-lhe constrangido:
— Podem ver seu filho, logo o levarão para o necrotério e o prepararão para o velório. Se precisarem de mim é só mandar me chamar.
Fazendo um sinal, chamou Mirtes para que os acompanhasse. Paulo, Marília e Inês aproximaram-se do corpo inerte de Fábio. A dor e o desespero eram tão grandes que nem conseguiram perceber a fisionomia serena do jovem. Marília, absolutamente desorientada, debruçou-se sobre ele e deu vazão a sua imensa dor.
— Fábio, filho querido, volte para sua mãe, não me deixe, eu imploro não me deixe sem você, ou então me leve com você...
Marília perdera completamente o controle de seu sofrimento e de sua emoção. Por mais que Paulo e Inês tentassem, era inútil, pois ela não os escutava. Mirtes delicadamente pegou-a pelo braço e pediu-lhe que a acompanhasse, o que, inexplicavelmente, Marília o fez seguida pelo marido e pela mãe. Seus olhos inchados e vermelhos traduziam sua dor.
Já na sala de espera, Mirtes perguntou-lhe se não queria ir até a capela do hospital para conversar um pouco com Deus e pedir-lhe que a confortasse naquele momento doloroso de sua vida.
— Já disse que não quero ir à capela alguma! - Marília respondeu aos gritos. — Como pedir conforto a Deus se foi ele mesmo que me jogou no fundo desse poço, tirando meu filho de mim sem a menor piedade, dando-me tamanho sofrimento! Esse Deus é injusto, já disse, e não se importa com o sofrimento de uma mãe!
— Não fale assim, minha filha, não se volte contra nosso Criador. Deus é Pai misericordioso, devemos ter fé sempre, principalmente agora que sofremos tanto.
— Não, mãe, não tenho fé. Não posso ter fé ou gratidão; tentei ser caridosa, a minha vida inteira me esforcei para ser boa, orei com fé e gratidão; enfim, tentei viver como uma cristã de verdade, e de que adiantou se hoje sofro a dor pior que alguém pode sentir? Não quero mais saber desse Deus impiedoso!
Paulo, apesar de padecer a mesma dor da esposa, tentava suportar com coragem o difícil momento que vivia. Reunindo forças, disse-lhe.
— Querida, o fato de sermos bons e caridosos não nos isenta de passarmos pelas provas da vida, de experimentarmos o sofrimento para fortalecer a nossa fé e aprender a ser sensível ao sofrimento alheio. Você foi tudo isso que acaba de dizer, mas foi tudo superficial.
— Superficial?! Por que diz isso, Paulo?

— Porque agiu como cristã enquanto sua vida transcorria sem nenhuma anormalidade, nenhum sofrimento ou desgosto maior, e é muito fácil acreditar e confiar em Deus quando temos a felicidade. O cristão de verdade, aquele que crê realmente em nosso Pai que está no céu, jamais o culpa pelo sofrimento que passa e, sim, apóia-se na fé e no amor de Deus para suportar os grandes acontecimentos que marcam nossa vida e enchem nossa alma de cicatrizes. O amor e a fé são reais quando continuam existindo no instante em que Deus nos experimenta e nos coloca à prova. Por favor, meu amor, mais uma vez eu lhe digo não se volte contra nosso Pai, mas, sim, para Ele, com o coração aberto e esperançoso, consciente de que somente o amor infinito de Deus poderá acalmar nosso coração nos momentos difíceis. Mas lembre-se de que isso só será possível se dermos essa chance para nós mesmos.
Paulo não percebia quanto estava amparado pelos espíritos benfeitores, verdadeiros tarefeiros de Cristo que trabalhavam anônimos e incansáveis nos hospitais, beneficiando com energia salutar os sofredores.
Marília ia responder, quando Mirtes veio informar-lhes que o corpo de Fábio estava pronto, apenas aguardando as providências legais para ser transportado ao velório. Foi então que Paulo se deu conta de que não tinha providenciado nada nem avisado a família. Deixando sua esposa e a sogra, saiu para tomar as medidas necessárias.
Dr. Rubens, em sua casa, tentava descansar um pouco para recuperar-se da longa noite que passara no hospital. Homem que conhecia e vivia a Doutrina Espírita, entregou-se silenciosamente ao Pai Maior e orou por aquela mãe cujo sofrimento a impedia de raciocinar com lucidez e permitia que o desespero envolvesse sua alma com a descrença. "Como é fácil", pensava, "orar e dizer ao Pai: 'seja feita a vossa vontade aqui na terra como no céu'; mas, quando a vontade divina vem se opor à nossa esquecemos facilmente tudo que dizemos, que acreditamos e nos entregamos à revolta e à descrença. É simples viver o Evangelho e seguir as leis divinas quando todas as coisas acontecem conforme nosso desejo, quando nada interfere na felicidade que vivemos, mas ao primeiro sinal de que nossa vida pode mudar e percebemos que somos impotentes para interferir e impedir os acontecimentos negamos tudo que dizíamos acreditar. Que Jesus se apiede de nós, de todos nós", - orava Rubens, "e que nos auxilie na compreensão da justiça divina". Terminando suas reflexões, levantou-se, tomou um refrescante banho para afastar o cansaço e seguiu no cumprimento de seu dever de médico e de cristão.
Regozijai-vos ao invés de vos lamentar, quando apraz a Deus retirar um de seus filhos desse vale de misérias. Não há egoísmo em desejar que ele aí permanecesse para sofrer convosco? Ah! Essa dor se concebe naquele que não tem fé, e que vê na morte uma separação eterna, mas vós, espíritas, sabeis que a alma vive melhor desembaraçada de seu envoltório corporal; mães sabeis que vossos filhos bem amados estão perto de vós; sim, bem perto; seus corpos fluídicos vos cercam, seus pensamentos vos protegem, vossa lembrança os embriaga de alegria; mas também vossas dores desarrazoadas os afligem, porque elas denotam uma falta de fé e são uma revolta contra a vontade de Deus. Vós que compreendas a vida espiritual, escutai as pulsações de vosso coração chamando esses entes bem amados, e se pedirdes a Deus para os abençoar, sentires em vós essas poderosas consolações que secam as lágrimas, essas aspirações maravilhosas que vos mostrarão o futuro prometido pelo soberano Senhor (Evangelho Segundo o Espiritismo — Capítulo V, § 21)


MUITA SAUDADE


Inês abriu a porta do quarto de Marília e o que viu deixou-a chocada e apreensiva. A filha, ainda com a roupa de dormir, permanecia sentada em sua cama, despenteada e olhando com um ar perdido a foto de Fábio. Tão absorta estava que não se deu conta da presença da mãe. Aproximando-se cautelosamente de Marília, Inês, apoiada pelo enorme carinho materno, disse-lhe baixinho, tendo o cuidado de não assustá-la:
— Filha, minha querida filha, não fique assim; volte para o seu mundo, para sua família. Paulo, André e Laís precisam de você, do seu carinho e da sua atenção.
Soluçando, Marília respondeu:
— Não posso! Não posso viver sem o Fábio. Ele se foi há quatro meses, são cento e vinte dias sem vê-lo, e isso está acabando comigo. Só tenho vontade de morrer, ir me encontrar com ele. Por que Deus fez isso comigo, mãe? Nada fiz para merecer castigo tão cruel.
— Marília, não fale em morte, fale em vida. Está se esquecendo de André e Laís, são seus filhos também. Querem o seu amor e têm direito a ele. Todos nós sabemos quanto é dolorosa a separação, mas temos de continuar vivendo. O fato de tentarmos retomar nossas tarefas, nossa rotina, não quer dizer que nos esquecemos do nosso Fábio. Ele está presente em nosso coração e estará sempre, porque faz parte da nossa vida, da nossa história, do nosso amor e nunca deixará de fazer. Se Deus não nos levou, é porque ainda não acabamos nossa missão aqui na Terra; o que necessitamos fazer é nos curvarmos ante a vontade de Deus e aceitá-la, mesmo com o coração sangrando de dor.
— Não penso assim, mãe. Não me conformo e não quero ouvir nada, quero apenas ficar com a minha dor e a minha saudade. Minha vida acabou não tem mais sentido, e gostaria que parassem de tentar me convencer que tudo é normal, que tudo será como antes, porque sei que não será. Nunca mais volto a sorrir, ou melhor, a viver.
— Marília, já se passaram quatro meses e você nem um dia pensou em André e Laís, em quanto os dois estão sofrendo e necessitam do seu carinho de mãe, do seu abraço. Eles estão tristes e inseguros. O Paulo, então, você não lhe dá a mínima atenção, não repara no esforço que ele faz para que a paz volte a este lar. Está destruindo seu casamento, sua família; não se arruma, não faz comida, enfim, parece mais morta que o Fábio.
Marília sobressaltou-se:
— O que disse?
— O que você ouviu Marília; você parece mais morta que o Fábio.
— Por que está me falando desse jeito, mãe?
— Paulo e eu temos conversado muito com o Dr. Rubens, e ele nos explicou muitas coisas que desconhecíamos. Tudo tão lógico, tão coerente, que nós estamos nos apoiando nesses conhecimentos para conseguirmos caminhar para o futuro.
— Quando a senhora diz que pareço mais morta que o Fábio está querendo me convencer de que o Fábio ainda vive em outro plano, como algumas pessoas acreditam?
— Exatamente, filha, é isso que estamos aprendendo com o Dr. Rubens, que nos explica tudo como um verdadeiro pai.
— Mãe, isso não é coisa de gente ignorante?
— Não, Marília, isso é coisa de gente que confia e acredita no poder absoluto de Deus e sabe que o Criador não iria destruir suas criaturas, porque, se assim fizesse, não faria sentido tê-las criado.
— Mãe, vamos admitir que isso seja verdade; o que adianta existir em outro plano se não posso vê-lo ou tocá-lo?
— Mas pode se confortar sabendo que seu filho amado continua existindo, que não se acabou como algo sem importância.
— Fale um pouco mais - pediu Marília.
— Minha filha, não me sinto apta para lhe esclarecer muita coisa, falar mais sobre o assunto, estou só começando, engatinhando nessa Doutrina; somente Dr. Rubens poderia lhe esclarecer melhor sobre suas dúvidas. Por que não se achega a nós para aprender também?
— Não sei mãe, essa religião me parece tão absurda tão doida.
— Engano seu, Marília, seus ensinamentos são baseados no Evangelho de Jesus; Paulo e eu percebemos tanta coerência que estamos dispostos a aprender cada vez mais.
— Mas o que ela ensina de tão importante?
— Vou lhe responder com o pouco que sei, mas esse pouco já penetrou em meu coração. Ela nos ensina que somos seres imperfeitos e que viemos ao mundo para aprender a amar, por isso devemos lutar contra nossas imperfeições por meio do amor ao semelhante, da prática da caridade, da solidariedade com nossos irmãos que passam por situações difíceis e conflitantes; enfim, devemos

tentar nos harmonizar com as leis divinas.
— Mas o que tem isso com o fato de a senhora dizer que o Fábio existe em outro plano?
— Marília, vamos fazer o seguinte: não estou pronta para esclarecer nada porque o que aprendi é ainda muito pouco para que eu cometa a imprudência de tentar ensinar alguma coisa a você ou a qualquer outra pessoa. Amanhã é sábado, o dia em que o Dr. Rubens nos visita desde a partida do Fábio; por que você não participa desse encontro?
— Dr. Rubens vem aqui todos os sábados?
— Sim!
— Como nunca soube disso, mãe?
— Porque há quatro meses você não sai desse quarto, não presta atenção em nada do que acontece em seu lar; enfim, não se preocupa a não ser com você mesma e com essa dor que você teima em achar que é exclusiva sua. Se notasse um pouquinho mais seu marido, perceberia quanto ele está magro e abatido, mas, ao contrário de você, luta para dar ao André e à Laís o lar de que eles precisam e têm direito.
— Mãe, não fale assim comigo, eu deixei de viver!
— Marília, ouça-me: não se mede a dor com fita métrica. Ela não é maior só porque quem a sente se entrega à apatia, à melancolia e ao medo de enfrentar a realidade; isso é fraqueza, falta de fé. Nem sempre aquele que chora copiosamente é o que mais sofre; devemos respeitar a maneira de cada um de vivenciar sua dor, portanto respeite seu marido e seus filhos.
— A senhora nem parece minha mãe, não me compreende!
— Ao contrário, por ser sua mãe e amá-la tanto é que quero ajudá-la a voltar à vida, entregar-se de novo àqueles que a amam e sofrem com sua distância.
— Está bem, mãe, sábado, quando o Dr. Rubens estiver aqui, pode me chamar, quero participar desse encontro, vou ouvir o que ele lhes diz.
— Filha! Que alegria me dá!
— Mas agora, por favor, deixe-me com minhas lembranças e com minhas lágrimas.
— Outra vez trancada no quarto, vó?
— Venham cá - e Inês abraçou os netos — Não chorem, tudo vai dar certo. Jesus há de trazer sua mãe de volta para nós.
—Tomara vó, tomara que isso aconteça - disse André.
— Mamãe só pensa no Fábio, esquece que eu e a Laís estamos aqui ao seu lado e precisando muito dela. Também estamos sofrendo.
— Eu sei meus queridos, a vovó sabe!
— Tenho pena do papai - falou Laís com sua vozinha doce. — Outro dia eu o vi chorando no escritório.
— Por que mamãe é tão diferente do papai?
— Porque não somos iguais, André. Não vamos julgar as atitudes de sua mãe, ela precisa de ajuda e nós vamos ajudá-la. Devemos respeitar as limitações e as fraquezas dos outros. Tudo dará certo. Vamos confiar em Deus.
— É, vó, mas vou lhe dizer uma coisa, não é porque não choro o dia inteiro que não sinto saudades do meu irmão - exclamou André. — Ele me faz muita falta.
— Eu também, vó - repetiu Laís —, sinto muita saudade do Fábio.
— Eu sei meus netinhos, todos nós estamos sofrendo muito, mas temos de ter muita fé em Deus e confiar que esse sofrimento vai se acalmar um dia. Agora, digam-me, o que querem para o lanche?
— Eu quero cachorro-quente! - exclamou André.
— Eu também, com bastante molho e coca-cola, ta bom?
— Ta bom - repetiu Inês — imitando a vozinha de Laís. Abraçou-os com muito carinho e levou-os para a cozinha para servir-lhes. — Quem comer tudo, sem confusão, poderá tomar sorvete. Que tal?
— Oba! - exclamaram juntos André e Laís.
Passaram-se alguns instantes, e Paulo apareceu à porta:
— Por favor. Dona Inês, a senhora poderia vir até o meu escritório? - perguntou com voz cansada.
— Claro, Paulo, estou indo! Crianças sirvam-se à vontade, mas não desperdicem. Evitem fazer barulho, papai parece cansado. Vovó não demora.
— Entre, Dona Inês, e sente-se.
Aceitando a sugestão do genro, Inês muito à vontade entrou e se acomodou em uma cadeira em frente a ele.
— Diga-me: o que está preocupando você, Paulo?
— Dona Inês, não sei mais o que fazer. Marília não melhora, e, o que é pior, não faz nenhum esforço para isso. Não quer ajuda, ignora a mim e aos filhos, não se importa com a casa nem com a aparência pessoal; enfim, construiu um mundo só para ela e não nos permite participar. Estou preocupado e sem saber como agir.
— Concordo com você, Paulo. Hoje mesmo tive uma conversa com ela. Falei-lhe dos nossos encontros com o Dr. Rubens e pedi-lhe que participasse conosco, quem sabe assim ela não consegue ir aos poucos superando essa melancolia e voltando para nós.
— Fez muito bem em conversar com ela. Dona Inês. Ela aceitou?
— Para minha surpresa, sim. Disse para chamá-la assim que ele chegasse. Estou esperançosa; hoje ela me fez muitas perguntas, mas infelizmente eu não soube respondê-las adequadamente.
— Não importa. Dr. Rubens saberá aconselhá-la. Vamos deixar as respostas para ele que é experiente e conhecedor do assunto. Mas que bom que a senhora tocou nessas reuniões com Marília e ela aceitou. Perdi meu filho e não quero perder também minha esposa.
— Tudo vai melhorar Paulo, vamos acreditar nisso.
— Acredito Dona Inês, e lhe agradeço por tudo que está fazendo por nós.
— Não me agradeça Paulo, vocês são minha família, sofro com vocês e sou feliz quando os vejo sorrir.
Paulo levantou-se e com carinho e profundo respeito depositou um beijo nas faces de sua sogra. Esta, emocionada, só conseguiu dizer:
— Obrigada, meu filho, pelo seu carinho.
Os dois, sentindo-se amparados um pelo outro, foram ter com as crianças.






A CAMINHO DO ESCLARECIMENTO


É comum nos sentirmos perdidos, sem coragem e, em muitos casos, desesperados, quando somos visitados por acontecimentos que ferem a nossa alma de maneira profunda. Deus atua em nosso benefício sempre, principalmente nos momentos de muita dor e sofrimento. Devemos lembrar que, se algum dia nosso coração estiver desalentado, sofrido e desesperado, é necessário prestar muita atenção porque, de alguma forma, chegará até nós a graça divina. Para cada pensamento negativo que cultivamos em nossa mente Deus terá sempre uma resposta positiva. É importante tomar cuidado para perceber a bênção de Deus em nossa vida, porque Ele virá em nosso auxílio por diversas maneiras.
Com Marília não foi diferente. Deus estava presente nas palavras de conforto, esclarecimento e esperança ditas por Dr. Rubens a todas as pessoas que, por um motivo ou outro, o procuravam. O importante é que ela aprendesse a ouvir e abrisse o coração, em vontade e fé, para ser agraciada com a Bênção da paz.
Sábado chegou, Inês e Paulo esperavam sempre com ansiedade os momentos que passavam conversando com o médico e amigo, pois era nesses momentos que a paz voltava a seus corações machucados e a seu lar entristecido. Assim que Rubens chegou, foi recebido com alegria, e mais felizes ficaram quando Marília desceu e se juntou a eles para participar do encontro.
Assim que todos se acomodaram, Marília, precipitando, dirigiu-se de imediato ao médico:
— Quero lhe dizer que o fato de eu estar aqui para lhe ouvir não quer dizer que aceito tudo o que fala, vim mais para atender um pedido de minha mãe.
Rubens esboçou ligeiro sorriso. Confiava na providência divina e sabia que era um bom começo para Marília.
— De início gostaria de fazer uma consideração sobre esse Deus que vocês dizem ser justo.
— Querida, por favor, mais cautela. Nosso amigo acabou de chegar - disse Paulo à esposa.
— Não se preocupe Paulo, estou aqui para isso, esclarecê-la em suas dúvidas. Pode dizer. Dona Marília, estou ouvindo.
— Vou provar a vocês quanto Ele é injusto. Vejam: deu para todos nós a memória, mas tira da nossa vida o ser que amamos, sabendo que iríamos recordar e sofrer. Não seria melhor não termos memória, assim não sofreríamos tanto, pois não recordaríamos o passado?
Rubens, com toda prudência e compreensão, respondeu a Marília.
— Dona Marília, vou responder-lhe narrando um conto chinês, cujo autor me é desconhecido. Por favor, preste atenção. Um velho sábio chinês caminhava por um campo de neve quando viu uma mulher chorando. "Por que choras?", perguntou ele. "Porque me lembro do passado, da minha juventude, da beleza que via no espelho, dos homens que amei; eu ia recordar a primavera da minha vida e chorar." O sábio ficou contemplando o campo de neve, com o olhar fixo em determinado ponto. A certa altura, a mulher parou de chorar e perguntou: "O que estás vendo aí?" "Um campo de rosas", disse o sábio. "Deus foi generoso comigo porque me deu memória. Ele sabia que, no inverno, eu poderia sempre recordar a primavera e sorrir."
Rubens continuou:
— Dona Marília, se a senhora não tivesse memória, não poderia recordar-se de seu filho, dos momentos felizes que passaram durante todos esses anos em que estiveram juntos; seu sorriso, sua voz, seus olhos que a olhavam com carinho.
Hoje, que o físico de seu filho não existe mais, não é gratificante e consolador poder lembrar-se dele? Deus não foi bom e generoso, permitindo que ele ainda permaneça em sua lembrança, trazendo-lhe de volta os momentos felizes? E mais sozinho aquele que não tem nada para recordar.
Calou-se e percebeu que os olhos de Marília encheram-se de lágrimas. Com um jeito quase de criança assustada, aquela mulher sofrida disse-lhe como um pedido de ajuda:
— Ainda não havia pensado dessa maneira. Talvez o senhor tenha razão. Cada vez que me lembro do Fábio, sinto um misto de tristeza e felicidade, e incomoda-me não conseguir entender o porquê da mistura desses dois sentimentos, principalmente a felicidade. É possível isso?
— É natural que isso aconteça, Dona Marília. A separação ocorreu há muito pouco tempo; a tristeza é fruto dessa separação dolorosa, e a felicidade é sua essência, trazendo para o consciente os momentos passados com ele, como a dizer-lhe: "essa é a felicidade que agora pode ter, agarre-se à lembrança que lhe pertence, que é sua, traga-a junto ao coração e encontrará a paz e o equilíbrio", mas tudo há seu tempo. Dona Marília, porque o tempo é o melhor consolo.

— Mas eu não quero me esquecer do Fábio!
— Não queira nem corra atrás do esquecimento, porque não conseguiria, mas, para que tudo possa acontecer com equilíbrio, para que a senhora e Fábio possam se harmonizar é preciso que a lembrança ocupe o lugar nobre do coração; sentir a saudade que nasce do coração e do amor, e não do apego, da teimosia, do desespero; somente assim, somente por meio do amor permitimos ao ser amado que se foi buscar da própria evolução e encontrar a paz. Quem ama deixa livre o ser amado para que ele não sofra, e entende que não temos a posse de ninguém. O que une as pessoas realmente é a afinidade espiritual e o amor que se tem. O amor quando verdadeiro não se retrai diante da distância, continua existindo pela eternidade.
— Desculpe-me, Dr. Rubens, mas fico pensando se o senhor não fala assim porque nunca passou por um tormento como esse.
O rosto do médico se contraiu em uma expressão de angústia, mas, mantendo a calma e o controle que lhe eram peculiares, respondeu a Marília.
— Senhora, quem sabe um dia não lhe conto a minha história; talvez, quando souber, merecerei mais credibilidade em minhas palavras.
— Por que não hoje?
— Desculpe-me, hoje não, outro dia qualquer, quem sabe.
Inês, tentando aliviar a tensão que percebeu no rosto do amigo, perguntou.
— Dr. Rubens, o senhor não aceita uma bebida, café, suco?
— Se não for causar-lhe incômodo, aceito um café.
— Incômodo nenhum, é só um instante.
Assim que saiu para buscar o café, Inês olhou para o médico e pensou no quanto era uma alma nobre. Paulo, demonstrando a grande simpatia que sentia por esse homem generoso, e disse-lhe:
— Dr. Rubens...
— Por favor, Paulo, apenas Rubens.
— Obrigado. Rubens, não posso esconder a grande admiração que sinto por você e cada vez interesso-me mais por essa Doutrina que o fez um homem tão especial.
— Agradeço-lhe, Paulo, mas não sou tão especial assim. Gostaria que me vissem como um homem perfeitamente comum, assim como você, com defeitos e qualidades, e que tenta melhorar a si mesmo. Quanto à Doutrina, faz muito bem em se interessar por ela, porque, quando ela entra de verdade no coração do homem, leva-o a repensar seus valores e suas atitudes diante da vida e promover a reforma interior.
— Pronto, aqui está o cafezinho, sirvam-se!
— Hum! Que aroma gostoso!
— Obrigada, Paulo!
Marília permanecera calada até então. Ignorou o café de Inês e, assim que viu Rubens terminar e elogiar o café saboroso, perguntou-lhe sem fazer cerimônia.
— Dr. Rubens, posso fazer-lhe uma última pergunta?
— Claro, faça quantas quiser.
— É que, desde que Fábio se foi, escuto falarem dele como se ele existisse em outro lugar. Poderia explicar-me por que e como alguém pode existir se seu corpo foi enterrado aqui, e que lugar é esse de que falam?
— Tenho enorme satisfação em poder esclarecer suas dúvidas, mas é necessário que seja uma de cada vez para que tudo fique bem compreendido. Para que todos possam entender, é necessário explicar quem somos nós.
Todos sabemos e aceitamos que Deus criou o homem à Sua imagem e semelhança. Ninguém nunca viu o Criador e, no entanto, cremos que Ele seja um Espírito puro, único, perfeito, onipotente, onipresente, soberano, infinitamente bom e justo. Como espírito, não possui um corpo de matéria como nós encarnados; para que sejamos à semelhança do Criador é fundamental que
tenhamos também um espírito, infinitamente menor e imperfeito, mas um espírito. Pois bem, para que esse espírito pudesse vir a Terra e ser visto, era necessário que se revestisse de um envoltório visível, que é o corpo de carne, nosso corpo físico. A partir do instante em que se realiza a junção do espírito com a matéria densa de carne, tornamo-nos seres encarnados, mas sem perder a condição de espíritos eternos criados à imagem e semelhança do Criador.
O corpo físico, assim como qualquer matéria, se acaba, volta à terra um dia quando acontece o desencarne, ou a morte como preferir; mas é somente a morte do corpo, porque o espírito não morre, volta para uma das muitas moradas no Reino de Deus, pois como espírito é eterno. Uma vez criado, jamais perecerá ou perderá sua individualidade, continuará existindo pela eternidade. Voltará a vestir o envoltório carnal sempre que Deus achar necessário para sua evolução retornar à vida física, por meio da reencarnação.
Fábio existe sim, somente seu corpo físico acabou; sua essência, seu espírito, está vivendo a vida real na espiritualidade. Todos voltaremos um dia para nossa verdadeira pátria. Consegui me fazer entender?
— Sim, acho que consegui compreender. Apesar de achar um pouco fantasioso, devo reconhecer que existe lógica em tudo o que esclareceu. Mas queria saber em que lugar ele está vivendo agora!
— Dona Marília, como já disse, existem muitas moradas na casa de Deus, e cada um será atraído para aquela cuja afinidade for maior. A colheita é sempre proporcional ao plantio; a morada de cada um será mais ou menos feliz de acordo com o que cada um fez com a oportunidade bendita de viver na Terra. Devemos nos esforçar para que nossa existência na Terra tenha êxito.
— Eu sei, eu sei, mas o que quero saber é do Fábio, onde ele está agora, o senhor não me disse.
— Não disse por que não sei. Acredito que em algum lugar de paz ao lado de seus familiares que o antecederam. Era um jovem e vivia dentro dos parâmetros da juventude saudável e cristã. Creio eu que possuía merecimentos para isso; mas nós aqui na Terra não temos de nos preocupar muito com isso, e sim orar para que ele perceba a claridade divina e não entre na revolta por ter desencarnado tão jovem. Nossas lágrimas desarrazoadas tumultuam o espírito daquele que amamos e que partiu, trazendo-lhe desconforto e desequilíbrio; em compensação, as orações sinceras sempre produzem bem-estar e alívio para os espíritos.
— Mas o que devemos fazer? - perguntou Inês.
— Dona Inês, sempre que oramos para alguém que se foi e dizemos "Deus te abençoe", promovemos paz para aquele que partiu e para nós mesmos.
— Nossa, doutor, sinto-me tão aliviada escutando suas palavras, nunca pensei que conseguiria.
— Isso é muito bom e fico feliz pela senhora, mas tudo precisa ser muito bem compreendido e não simplesmente aceito. Aconselharia a senhora a ler o Evangelho Segundo o Espiritismo, com certeza vai lhe fazer muito bem, trazendo-lhe conforto, consolação e, principalmente, entendimento. Compreenderá melhor que para aquele que fica a tarefa não terminou e é necessário fazer bom uso dessa oportunidade de ainda estar no mundo físico.
— Sim, farei isso!
— Rubens, você poderia elucidar-nos quanto às lembranças naquele que partiu; o Fábio se lembra de nós, continua nos querendo bem?
— Com certeza, Paulo, não só se lembra como sente saudades também, "essa lembrança aumenta-lhes a felicidade, se são felizes, e se são infelizes serve-lhes de alívio"

(Livro dos Espíritos — Capítulo VI — item IX — pergunta 320). O conhecimento disso deve trazer alívio e consolação a todos que se separarem de seus entes queridos, principalmente as mães que choram por seus filhos que partiram; eles continuam vivos e amando seus pais terrenos, e esperam também com ansiedade o dia do reencontro.

— Essa sua Doutrina é muito interessante - disse Paulo. Realmente é a única que traz conforto aos corações amargurados pela separação.
— A consolação está na palavra de Deus, dita aos homens por meio de seu filho Jesus; basta prestar atenção nas máximas de Jesus para presentear a alma, libertando-a dos pensamentos e sentimentos negativos. Quem se entrega à prática do bem e do amor ao próximo caminha em direção à felicidade.
— Gostei muito de ouvi-lo, doutor, fez-me muito bem, sinto meu coração mais aliviado.
— Agradeço-lhe, mas na realidade isso aconteceu porque seu coração já ansiava por um alívio e a senhora permitiu que minhas palavras tocassem sua alma.
— Tenho ainda dificuldade em entender por que o Fábio foi embora tão jovem.
— Porque todos nós viemos cumprir uma tarefa aqui na Terra e, ao terminar essa tarefa, o retorno se processa para cumprir a lei. A causa real, só nosso Pai que está no Céu tem conhecimento; para Fábio pode ter sido um benefício, e para vocês, uma prova. Para que se passe no teste é importante aceitar com dignidade, humildade e respeito à vontade de Deus, e a aceitação vem na continuação do cumprimento do nosso dever em relação às pessoas que nos rodeiam e à própria vida, não se esquecendo jamais de que todos têm direito à casa de Deus. A lei de causa e efeito se cumpre sempre. Dona Marília, mesmo contra nossa vontade.
Marília ia novamente questionar, quando este, levantando-se, disse aos presentes:
— Bem, já se faz tarde, preciso ir. Obrigado por esta tarde agradável que passei junto a vocês. Semana que vem se desejarem estarei aqui novamente para trocarmos idéias e conhecimentos. Até lá que Jesus os proteja para que tenham uma semana tranqüila.
— Nós que agradecemos ao senhor pela amizade e pa¬ciência com que nos ouve e socorre - disse Paulo. — Saiba que esta casa é sua e só nos causa alegria sua presença.
— Muito obrigado, Paulo!
Despediu-se dos amigos e se retirou.
Ao alcançar a rua, Rubens, com as mãos metidas nos bolsos da calça, andava pensativo, chutando o nada, tentando afastar as lembranças que, às vezes, teimavam em machucar seu coração.
— Meu Deus - pensava —, dai-me equilíbrio para aceitar sempre a vossa vontade sem lamentar, e sustentar junto à Isabela a prova penosa que me deste. Tenho medo de cair no desânimo, socorre-me!
O coração sensível de Rubens clamou por misericórdia. Seu espírito protetor aproximou-se e lhe inspirou ao ouvido: "O que é isso, meu amigo! Aquele que possui o coração cheio de amor para dar ao próximo, sem nada pedir em troca, jamais viverá sem a misericórdia de Jesus. Seus pensamentos nobres e suas atitudes dignas o tornam merecedor do amparo divino e da companhia dos amigos espirituais que lhe querem bem. O perfume do respeito com que trata as pessoas, pacientes ou não, transforma seu lar em um oásis na Terra, para que os espíritos do bem possam descansar de suas tarefas na crosta. Siga em frente, querido amigo, continue presenteando seu semelhante com esse amor que transborda de seu coração generoso.".

Rubens, sentindo alívio e retomando seu bem-estar, dirigiu-se alegre para sua casa.
Enquanto isso, na casa de Paulo:
— Querida, o que achou? Gostou de ouvir as explicações de Rubens? Não faz bem para nossa alma o que ele diz?
— Sim, Paulo, sinto-me mais leve e mais confortada.
— Ótimo querida! - exclamou Paulo sem esconder seu contentamento. — Sofro muito em vê-la apática e infeliz.
— Você poderia trazer para mim o livro que o doutor mencionou como é mesmo o nome?
— O Evangelho Segundo o Espiritismo! Com que prazer vou trazê-lo para você, meu bem.
Os olhos de Marília brilharam agradecidos pela paciên¬cia e pelo amor de seu marido. Pela primeira vez desde a desencarnação de Fábio, deu-se conta do quanto havia relegado ao segundo plano o bem-estar de Paulo, André e Laís. Seu coração apertou ao pensar nos filhos que ficaram, na maneira como os rejeitara, pensando só em si mesma. Percebeu que não soubera se dividir, a ela importara apenas o que sentia o que sofria e o que queria, sem se preocupar com os desejos e as necessidades de André e Laís, duas crianças ainda, que sofriam pela perda do irmão e pela indiferença da mãe.
— Meu Deus, o que fiz com a minha família! Quanto sofrimento causei a essas crianças que não têm qualquer culpa do que aconteceu; são meus filhos, e eu praticamente os aban¬donei. Meu Deus... meu Deus ajude-me a encontrar forças para recuperar meu equilíbrio e fazer felizes as pessoas que eu amo e que me querem bem.
Dizendo isso, ajoelhou-se e, sentindo novamente a con¬fiança no Pai Maior, orou pela primeira vez desde a separação de seu filho. Seu pensamento fluía naturalmente em direção ao Pai Celestial, confiante e angustiado. Assim que terminou, levantou-se e caminhou em direção ao quarto das crianças. Vendo-os tão tristes, deixou seu amor de mãe explodir e correu a abraçá-los, beijando-os com ternura. Mãe e filhos choraram e sorriram juntos, certos de que a partir daquele dia sofreriam muito, sim, mas estariam unidos pelo amor e esse amor daria suporte para conviverem com a grande saudade que sentiam do querido Fábio. Assim que os deixou, Marília foi até o escritório de Paulo. Ele estava sentado em frente a sua escrivaninha; o rosto entre as mãos escondia a tristeza imensa que lhe ia à alma. Marília aproximou-se devagar e com voz tímida e insegura disse ao marido:
— Paulo, me perdoe. Não fui capaz de compreendê-los nem perceber quanto vocês também sofriam, mas hoje, depois de ouvir o Dr. Rubens dizer todas aquelas coisas, fui perce¬bendo pouco a pouco quanto sou egoísta. Abandonei você e as crianças, não me importei com o que minha mãe me dizia; nunca perguntei a nenhum de vocês como estavam, do que necessitavam; enfim, abandonei minha casa e, creia, aban-donei a mim mesma. Hoje consegui orar a Deus pela primeira vez, senti alívio, uma paz acarinhou meu coração como se
fosse o Fábio a me beijar e me pedir que eu continuasse vi¬vendo. Tenho certeza agora de que Jesus vai me auxiliar a passar por entre os espinhos sem destruir minha alma.
Paulo interrompeu dizendo:
— Não se martirize Marília. Nós vamos ficar bem, todos ficam. Não somos os únicos a passar por esse tormento e não seremos os últimos. O tempo se encarregará de devolver-nos a paz perdida, e a alegria voltará ao nosso lar. André e Laís me¬recem isso, devemos isso a eles que precisam de nós. Nosso tão amado Fábio ocupará para sempre seu lugar em nosso coração e receberá sempre nosso amor e nossa saudade, onde ele estiver.
— Só lhe peço que me perdoe e que tenha um pouco mais de paciência comigo. Não me abandone, dê-me mais algum tempo; eu amo você e as crianças!
— Querida, nunca duvidei disso; darei o tempo de que você precisar. Nunca passou nem vai passar pela minha cabeça abandoná-la, jamais faria isso, e se o fizesse, o que faria com todo esse amor que sinto por você, diga-me? Só quero que lute por você mesma, para vencer essa melancolia, esse desespero, para não cair na revolta nem na depressão. Lembre-se de que o Fábio ficará feliz em nos ver bem e a felicidade dele continua a ser importante para nós, não acha?
— Acho sim, Paulo. Agora aprendi que o equilíbrio daqueles que ficam é importante para aquele que se vai, e nós queremos nosso menino indo em direção a Deus. Mas, se eu cair novamente, ajude-me a levantar e me perdoe, sim?
— Venha aqui, minha querida!
Abriu os braços e colocou Marília sentada em seu colo. Abraçou-a com ternura e os dois deixaram suas emoções, suas dores, suas angústias saírem de seus corações em forma de lágrimas que se misturavam nos rostos de cada um. Inês, que viera chamá-los para o jantar, parou e ficou olhando aqueles filhos queridos. Elevou o pensamento ao Alto e orou ao Senhor, agradecida pelo reencontro daquele casal, ainda jovem, mas tão machucado pelo sofrimento.






VENCENDO A MELANCOLIA


A vida na casa de Marília e Paulo continuava seguindo a rotina costumeira. Embora Marília tivesse percebido o erro no qual caíra, e despertado pelas palavras de Rubens, ainda não conseguia se equilibrar completamente. Paulo e Inês tratavam-na com paciência e muito carinho; respeitavam suas limitações, sua insegurança e sua brusca mudança de humor; passava do sorriso para as lágrimas com uma rapidez que impressionava a todos. André e Laís, embora ainda crianças, cobriam-na de carinho, falando-lhe palavras de amor e se esforçando para que a mãe sentisse o menos possível a falta de Fábio. Inventavam brincadeiras, cantavam, enfim, faziam o máximo que podiam para distrair a mãe, ajudando-a a sofrer menos.
Paulo olhava-os e pensava em quanto eram jovenzinhos e, no entanto, possuíam tamanha força espiritual. Agradecia a Deus, em silêncio, por tê-los premiado com filhos tão amorosos. Marília, por sua vez, sempre que os tinha por perto, abraçava-os tão forte como se temesse perdê-los também.
— Mãe - dizia Laís nesses momentos —, a senhora vai me quebrar toda - o que fazia Marília sorrir e beijar seu rostinho.
A menina, então, virava para seu irmão e dizia:
— Viu, fiz a mamãe sorrir!
Paulo e Inês conversavam sobre o comportamento de Marília, que os deixava preocupados. Embora ela já tivesse assumido suas tarefas como mãe, esposa e dona-de-casa, assustava-os a maneira diferente como passara a agir desde o triste acontecimento.
— Sabe, Dona Inês, estou pensando em falar com o Rubens sobre esse assunto; talvez ele recomendasse uma terapia para a Marília, não sei. O que a senhora acha?
— Concordo com você, Paulo. Sei que tudo faz para o bem de minha filha e sou grata por isso. Pode ser que ela precise mesmo de alguém especializado para ajudá-la. Faça isso, afinal, Dr. Rubens tornou-se nosso amigo e é um homem muito generoso.
— Tem razão. Dona Inês, é um homem no qual podemos confiar, vou procurá-lo no hospital hoje mesmo. Se eu me atrasar à noite, não se preocupe, estarei com ele.
— Vá sossegado, Paulo, tudo aqui estará bem.
— Obrigado, não sei o que teria sido de nós, principalmente das crianças, se não fosse à senhora estar conosco esses meses todos.
— Por favor, não me agradeça, Paulo. Já lhe disse uma vez e repito novamente, vocês são minha família e eu os amo.
Paulo, sensibilizado com o grande coração de sua sogra, deu-lhe um beijo afetuoso e saiu para o trabalho.
Após a saída do genro, Inês subiu até o quarto da filha e encontrou-a lendo o Evangelho Segundo o Espiritismo com o qual Paulo a presenteara, sob a indicação de Rubens.
— Filha, não vai descer para tomar seu desjejum?
— Já vou mãe, um instante só.
Inês sentou-se ao seu lado e aguardou. Em dado momento Marília fechou o livro, sem antes marcar com cuidado a página que lia e disse à sua mãe:
— Mãe, não sei o que faço!
— Sobre o quê, filha?
— Estava lendo no Evangelho sobre a melancolia, e aqui diz que devemos lutar contra ela, mas, mãe, eu não consigo! Ela me bate tão forte que não tenho vontade de fazer nada a não ser me entregar a esse sentimento que me deprime cada vez mais.
— Por favor, filha, leia para mim o que está escrito aí, vamos pensar juntas.
— Está bem, mãe.
Marília iniciou a leitura. Percebendo o nervosismo da filha, Inês a interrompeu.
— Marília, leia mais pausadamente, sem ansiedade, para que possamos compreender bem o ensinamento.
Marília respirou fundo e recomeçou.
— Sabeis por que uma vaga tristeza se apodera por vezes dos vossos corações e vos faz achar a vida tão amarga! E o vosso espírito que aspira à felicidade e à liberdade e que, preso ao corpo que lhe serve de prisão, se extenua em vãos esforços para dele sair.
Mas, vendo que são inúteis, cai no desencorajamento, e o corpo, suportando sua influência, a languidez, o abatimento e uma espécie de apatia se apoderam de vós, e vos achais infelizes.
Crede-me, resisti com energia a essas impressões que enfraquecem a vossa vontade. Essas aspirações para uma vida melhor são inatas no espírito de todos os homens, mas não as procureis neste mundo; e, atualmente, quando Deus vos envia seus espíritos para vos instruírem sobre a felicidade que vos reserva, esperai pacientemente o anjo da libertação que deve vos ajudar a romper os laços que mantêm vosso espírito cativo.
Lembrai-vos que tendes a cumprir, durante vossa prova na Terra, uma missão da qual não suspeitais, seja em vos devotando à vossa família seja cumprindo os diversos deveres que Deus vos confiou. E se, no curso dessa prova, e desempenhando vossa tarefa, vedes os cuidados, as inquietações, os desgostos precipitarem sobre vós, sede fortes e corajosos para os suportar afrontai-os francamente, eles são de curta duração e devem vos conduzir para perto dos amigos que chorais que se regozijarão com a vossa chegada entre eles e vos estenderão os braços para vos conduzir a um lugar onde os desgostos da terra não têm acesso. (Evangelho Segundo o Espiritismo — Capítulo V, §25). Então, mãe, o que achou?
— Marília, está tão claro, filha! Devemos lutar contra a melancolia, a tristeza e aceitar nossa estada aqui, sem perder a fé em nosso Criador, mesmo, e principalmente, quando somos atingidos por sofrimentos gigantescos, como o seu, minha filha. A luta para o equilíbrio deve ser constante, ininterrupta, a consciência sobre o porquê de estarmos na Terra e o que devemos fazer aqui, qual é a nossa tarefa, não deve ser abafada por nossos desgostos, ao contrário, deve nos dar forças para prosseguirmos na construção da nossa perfeição. Como diz o Evangelho é necessário ter coragem e força para suportarmos as dores do caminho.
— Mas por que para mim é tão difícil?
— Por que você vai e volta Marília, ou melhor, dá para si mesma a oportunidade de se melhorar, mas quando começa a galgar os primeiros degraus, recua e volta, com medo de ser feliz novamente. As coisas quando se repetem é porque não as aprendemos ainda, de verdade.
— Entendi o que a senhora quer dizer, mãe, mas o que devo fazer então?
— Ocupar-se, Marília, o trabalho é ótimo conselheiro. A ocupação dá alívio à nossa mente e ao nosso coração, pois nos impede de achar que somos os únicos a sofrer no mundo e tira de nós a tendência que o homem tem de se achar vítima. Quando nos ocupamos, preenchemos nosso coração com a lei do trabalho e nos protegemos de nós mesmos.
Marília, tentando mudar o assunto, perguntou:
— E Paulo, mãe?
— Já foi para o trabalho, avisou que chegará mais tarde hoje.
— Por quê?
— Irá até o hospital procurar o Dr. Rubens, deseja se aconselhar com ele.
— Aconselhar?! Sobre o quê, mãe?
— Não sei filha, assim que ele chegar com certeza dirá a você.
— Está bem!
— Você não vai descer tomar seu café, ajudar-me nos afazeres?
— Vou, mãe, vou sim. Espere só um instante que já desço.
— Aguardo você lá em baixo.
Dizendo isso, Inês desceu e foi até a cozinha.
Marília, aproveitando a ausência da mãe, retirou da gaveta da cômoda uma linda foto de Fábio e, apertando-a contra o peito, chorou. Assim ficou perdida em suas lembranças até que ouviu a voz de Inês chamando-a:
— Marília, desça!
— Estou indo, mãe!
Enxugou suas lágrimas, colocou a foto no lugar em que estava e desceu.
O dia passou sem novidades.
Assim que André e Laís chegaram da escola, Marília empregou todos os seus esforços e se dedicou inteiramente aos filhos que, recebendo o carinho da mãe, sentiram-se felizes. Enquanto Inês preparava a mesa para o jantar, o telefone tocou e Marília o atendeu.

— Querida, estou aqui com o Dr. Rubens e o convidei para jantar conosco, algum problema?
— Paulo, claro que não há problema algum, é um grande prazer para todos nós. A que horas chegam?
— Por volta das vinte e trinta - e, brincando, concluiu: — coloca mais água no feijão!
— Vou colocar - respondeu Marília também sorrindo. — Mãe, o Paulo vai trazer o Dr. Rubens para jantar conosco, tudo bem?
— Claro, minha filha, não se preocupe, temos peixe para o jantar, acho que estará bem para ele.
Organizaram melhor a mesa e aguardaram a chegada de Paulo e Rubens.
As vinte e quarenta e cinco, Paulo e Rubens chegaram e foram recebidos com alegria. André e Laís já tinham se acostumado com a presença do amigo de seus pais e demonstraram isso dando um gostoso abraço em Rubens, que retribuiu com satisfação.
O jantar transcorreu com harmonia. Todos se deliciaram com o peixe tão bem preparado por Inês.
— Parabéns, Dona Inês, a senhora é uma ótima cozinheira, todos aqui devem passar muito bem - brincou Rubens.
— Isso é verdade - concordou Paulo. — Minha sogra cozinha como ninguém!
Assim que terminaram, reuniram-se na sala de estar e Paulo, sem nenhum constrangimento, disse à esposa:
— Querida, fui procurar nosso amigo Rubens e pedi-lhe que viesse vê-la, porque ando muito preocupado com você.
— Comigo, Paulo?
— Sim, Marília, com você!
Paulo exclamou com voz firme, mas dirigindo um olhar carinhoso para a esposa.
— Paulo, diga-me, o que foi que eu fiz para você se preocupar assim comigo?
— Querida, ouça-me com atenção: não é o que você fez, especificamente, mas a maneira como vem se comportando. As suas variações constantes e repentinas de humor, enfim, penso que você necessita ainda ter uma atenção especial; não quero que adoeça.
— Como você é exagerado!
— Pode ser! Dr. Rubens poderá me dizer se minhas preocupações têm fundamento ou não. Você se importa de conversar com ele?
— Evidente que não! Sinto-me bem quando o ouço falar, gosto de sua maneira generosa de nos esclarecer.
— Pois bem. Dona Marília - disse Rubens — gostaria que me dissesse o que sente de verdade, enfim, o que a faz mudar de humor tão repentinamente.
Marília abaixou a cabeça e permaneceu assim por alguns minutos. Após esse tempo, olhou para o amigo e lhe disse timidamente:
— Dr. Rubens, eu mesma não sei. Tento me controlar, mas não posso, é mais forte do que eu é como se algo me impedisse. Sinto um vazio tão grande dentro de mim que mal consigo raciocinar direito.
Calou-se e Rubens percebeu um leve tremor em seus lábios. Sentiu quanto àquela mulher ainda sofria a falta de seu filho. Apiedou-se dela e, com sensatez, lhe disse:
— Dona Marília, imagino quanto à senhora ainda sofre. Sei da dificuldade que todos sentem quando se separam de seus entes queridos, mas não se pode entregar à melancolia e ao desânimo, pois, se assim o fizer, logo estará caindo em depressão. É importante manter a esperança e a fé no nosso Pai que está no céu, porque é nele que se deve buscar a fonte da vida, a água cristalina que equilibra nosso corpo e acalma nossa alma. Quando nos afastamos dessa fonte de amor, estamos impedindo a nós mesmos a possibilidade de alcançar a felicidade. Marília ouvia com atenção as palavras do amigo. Assim que ele deu uma pausa, tornou a interrogá-lo.
— Dr. Rubens, tenho-lhe muito respeito, carinho mesmo pela pessoa boníssima e generosa que o senhor sempre demonstrou ser, mas, às vezes, penso que, se o senhor tivesse passado por um sofrimento tão grande como o meu, é possível que não falasse ou pensasse assim. Perdoe-me, mas é o que penso.
— Não precisa se desculpar. Dona Marília, não a culpo por pensar dessa forma, mas, quando me dirijo à senhora ou qualquer outra pessoa que sofre a dor da separação, faço-o com muito respeito ao sentimento que existe em seu coração. Acredite se falo todas essas coisas é porque sei por experiência própria que é possível recobrar o equilíbrio, a paz e mesmo a felicidade quando nos entregamos ao Criador com confiança e certeza do auxílio. Passamos, então, a observar as outras pessoas e conseguimos perceber que a dor não é propriedade nossa e sempre haverá um caso mais grave e alguém com uma carga de sofrimento mais pesado que o nosso.
— Como assim, doutor, não entendi quando o senhor disse por experiência própria. Poderia explicar melhor?
— Claro Dona Marília! Uma vez lhe disse que, quando chegasse o momento certo, lhe contaria minha história; acho que a hora é esta.
— Verdade!
— Sim, se tiverem paciência para me ouvir!
Paulo se dirigiu ao médico:
— Rubens, faça se achar necessário, afinal, é sua vida íntima que estará expondo para nós. Quanto a ter paciência para lhe ouvir, por favor, tudo que queremos e necessitamos é aprender com o senhor.
— Pois bem, vou contar a vocês minha história de vida, creio que poderá auxiliar Dona Marília a superar suas ansiedades e angústias; é bom quando conseguimos aprender e aliviar nossas tensões com as experiências e atitudes alheias.
Rubens ajeitou-se na cadeira, serviu-se de um pouco de água que tinha à sua frente e, acreditando realmente que poderia ajudar Marília a suportar com mais valentia e coragem o momento delicado que passava, iniciou seu relato.
— Casei-me muito jovem com a mulher que amava e que sentia também por mim um grande e sincero amor. Fomos felizes durante muitos anos; construímos nossa casa com o esforço de ambos. Júlia era fisioterapeuta e trabalhávamos no mesmo hospital, esse mesmo no qual trabalho até hoje. Nosso sonho de construirmos uma família de verdade se realizou com a chegada de Francisco, Carlos e a pequena e meiga Isabela. Supúnhamos que ninguém poderia ser mais feliz que nós dois. Amávamo-nos como no primeiro dia em que nos conhecemos; nossos filhos eram lindos e saudáveis; davam-nos todas as alegrias que os pais esperam receber de seus filhos e por essa bênção agradecíamos a Deus por toda felicidade concedida a nós.
Quando completamos quinze anos de casamento, resolvemos promover uma festa e compartilhar nossa ventura com todos aqueles que queríamos bem e que sabíamos nos querer também. Júlia organizou a festa com o maior cuidado e expectativa, queria tudo perfeito para receber nossos amigos e familiares. No final da tarde, disse-me que iria até a casa da doceira buscar o bolo e os doces encomendados, e levaria os meninos para que a ajudassem com a bandeja do bolo, pois era grande e não queria correr o risco de quebrá-lo. Prontifiquei-me para ir, o que ela recusou dizendo que gostaria de verificar se estava tudo conforme o combinado. Preferia que eu ficasse e fosse colocando as bebidas e os refrigerantes no gelo, e assim foi feito. Passou-se mais ou menos uma hora, uma hora e meia e a campainha tocou.
— Dr. Rubens, por favor!
— Sou eu mesmo - exclamei já um pouco apreensivo. O que deseja senhor...
— Sargento Tomás, sou da polícia e infelizmente não lhe trago boas notícias.
— Pelo amor de Deus - disse já completamente assustado —, diga-me o que aconteceu, por favor!
— Sua esposa sofreu um acidente.
— Acidente?
— Sim, infelizmente seu carro chocou-se com um caminhão que ultrapassava um ônibus. Não sabemos ainda o que aconteceu, mas seu carro ficou espremido entre os dois veículos, causando a destruição total do automóvel.
— Minha esposa e meus filhos... eles... se machucaram muito?
— Sinto muito lhe informar, doutor, mas houve três mortes, sua senhora e dois meninos; a menina conseguimos tirar com vida e já foi encaminhada para o hospital.
Nesse ponto Rubens mostrou uma feição sofrida, transtornada, transpirava muito e parecia estar vivendo de novo toda aquela situação de completo sofrimento.
— Dr. Rubens - disse Inês —, não seria melhor parar, essas lembranças machucam muito. Aceita um café, uma água?
Rubens parecia não ouvir as palavras de Inês. Passou um lenço sobre o rosto e continuou:
— Esta é minha história. Dona Marília, perdi minha esposa e dois filhos na mesma hora e no dia em que imaginávamos ser só alegria.
— Desculpe-me, o senhor nos disse ter tido três filhos, e a menina?
— Minha pequena Isabela nunca mais pôde andar, vive hoje em uma cadeira de rodas; ficou paralítica.
Paulo não conseguiu esconder sua emoção, abraçou o grande homem que via à sua frente e sem esconder a admiração lhe disse:
— E pensávamos ser os únicos sofredores da Terra; que pessoa nobre é o senhor!
Marília não pôde conter as lágrimas.
— Diga-me, doutor, qual é a idade de Isabela?
— Minha menina está hoje com dez anos, Dona Marília, tinha apenas cinco aninhos quando tudo aconteceu; Francisco estava com treze e Carlos com dez.
— Ela mora com o senhor ou está internada?
— Dona Marília, jamais a internaria, ela mora comigo e uma senhora que cuida dela desde a época do acidente; não poderia viver longe de minha pequena Isabela, ela é o meu referencial de felicidade.
— Referencial de felicidade?
— Sim, Dona Inês, somos felizes os dois porque nos amamos muito e descobrimos que a nossa felicidade apenas mudou de roupagem e que poderíamos voltar a pensar em felicidade e em paz se continuássemos a acreditar na vida. Deus decidiu que continuássemos apenas os dois aqui na Terra, alguma razão há de ter. Acatamos a vontade Dele e procuramos viver da melhor maneira que podemos, sem deixar a revolta se instalar em nosso coração.
— Meu Deus, Dr. Rubens, o senhor é realmente uma pessoa especial! Estou envergonhada, ensine-me a reconquistar a minha paz - disse Marília lacrimosa.
— Não precisa se sentir envergonhada. Dona Marília, cada um de nós tem um tempo para se reequilibrar e sair do lamaçal da dor. A senhora reconquistará sua paz se aprender que o amor enxuga as lágrimas, e que é o único sentimento que nos mantém de pé e que nos faz enxergar além de nós mesmos. Nos primeiros momentos após a trágica separação de minha esposa e de meus filhos, também me senti perdido, angustiado, como se me faltasse o chão para pisar. Meu coração estava machucado e cada vez que olhava minha pequena Isabela presa em uma cadeira de rodas, sem nenhuma chance de voltar a andar, alimentava o desânimo, a inconformação, enfim, não entendia por que a felicidade escapara de minha vida como a água escorre por entre os dedos, mas após quatro meses do acontecido surgiu em minha vida uma luz e eu me agarrei a ela confiante, segui de coração aberto a orientação de amor e reencontrei a paz.
Cada vez mais interessada, Marília perguntou:
— Como assim, doutor, uma luz, poderia explicar que luz é essa?
— Claro que sim!
Fez uma pausa tentando novamente controlar sua emoção e retornou à narrativa.
— Passados quatro meses da separação, estávamos eu e Isabela sentados na varanda de nossa casa, recordando os dias de intensa ventura que havíamos vivido junto de Júlia, Francisco e Carlos, quando Isabela com os olhos tristes me disse: "Papai, sinto saudade da mamãe, queria ficar no colo dela!" "Querida,
vem, fica no colo do papai!" "Peguei-a com carinho e cuidado e coloquei-a em meu colo abraçando-a com profundo amor. Isabela aconchegou sua cabecinha em meu peito, e eu, vendo aquela criança tão pequena ainda, frágil e presa a uma cadeira, senti uma tristeza tão intensa, como se todo o meu ser estivesse mutilado, sem vida; meus olhos não seguraram as lágrimas e chorei copiosamente agarrado à minha filha. "Chora não papai, eu "tô" aqui com você e não vou te deixar nunca mais!"Isabela demonstrava uma força inexplicável para seus cinco aninhos. Abracei-a mais forte ainda e ela, encostando novamente sua cabecinha em mim, adormeceu em seguida. Orei a Deus pedindo força e coragem para suportar tamanha dor; de repente senti uma leve vertigem e ouvi uma voz que não sabia de onde vinha me dizer: "Transforme sua tristeza em alegria"! "Minha tristeza em alegria, impossível, jamais terei alegria novamente", exclamei mentalmente. "Não falo de sua alegria e sim da alegria de outras pessoas, de seu semelhante; vá à busca daquele que sofre e que não consegue enxergar nenhum caminho e ajude quanto puder. "Por meio da felicidade que proporcionar ao próximo encontrará a sua própria e construirá novamente a sua vida de paz e equilíbrio; lembre-se, somente o amor enxuga as lágrimas."
— Que lindo doutor! - exclamou Inês impressionada. E o senhor, o que fez?
— Deixei de sentir pena de mim e fui à busca dos sofredores para ajudá-los como médico e como irmão em Cristo.
— E o senhor é feliz?
— Sim, Dona Marília, meu coração se aquietou e vivo em harmonia usufruindo da felicidade que posso ter. Aprendi que Deus foi bom e generoso comigo, deixando-me Isabela que é a razão da minha vida; entreguei minha dor ao amor que posso sentir pelo meu próximo. A cruz ficou mais leve para eu carregar e o coração adquiriu a paz.
— Estou impressionada, doutor, quem o conhece não faz idéia do drama que o senhor viveu; por meio de seus conselhos, de suas palavras de puro otimismo e fé, imaginamos que está sempre de bem com a vida! - exclamou Marília. — Mais uma vez digo que me sinto envergonhada por minha descrença, minha revolta, enfim, envergonho-me da minha fraqueza e de minha pouca fé.
— Repito-lhe, não se envergonhe. Cada um de nós possui um tempo para compreender e aceitar o acontecimento que nos machuca e fere nossa alma, o importante é ir à busca do entendimento para conseguir ser feliz novamente e deixar que nossos entes queridos que partiram também possam ir à busca da sua evolução e serem felizes na espiritualidade. Quanto a estar de bem com a vida, estou sim, aprendi que a vida não maltrata ninguém, ela apenas responde às nossas agressões e imprudências cometidas, se não nessa, em encarnações passadas. Para tudo existe um por que, uma razão; Deus não quer nenhum de seus filhos sofrendo, mas nossa imperfeição nos faz cometer enganos dos quais teremos de prestar contas mais tarde.
— O senhor acha que eu poderia fazer alguma coisa pelos necessitados, isso me traria alívio?
— Se a senhora se deixar tocar pelo amor e pela fé. Dona Marília, com certeza sim; mas não se afobe, comece aos poucos, devagar, e vá deixando que o mais nobre dos sentimentos ocupe um lugar no seu coração, aí, então, verá como se tornará gigante para exercitar a lei do amor e da caridade. Ficará tão envolvida em espalhar a paz e a fraternidade à sua volta que não terá tempo para sentir pena de si mesma. É isso que nossos entes queridos que partem esperam de nós, a reformulação da nossa alma, para que eles possam seguir sua evolução em paz e com equilíbrio.
— O senhor acha conveniente Marília fazer uma terapia?
— A melhor terapia para esses casos, Paulo, é a terapia do amor, em que se coloca em atividade o abraço, o toque das mãos e a fraternidade; preencher a mente e o coração com o trabalho edificante, essa é a melhor terapia.
— Não sei o que dizer, nem como me expressar - falou Paulo. Nunca estive perto de alguém tão nobre; jamais ouvi palavras como as que o senhor diz; nunca poderia supor que alguém pudesse emergir de um sofrimento tão grande, conservando a alma tão pura e limpa. O senhor é, sim, uma pessoa especial, e nós o admiramos por isso e somos muito gratos pela atenção e pelo carinho com que nos presenteou. O senhor nos indicou um caminho, acendeu a chama da esperança em nossos corações e não sabemos como agradecer-lhe por isso.
— É verdade, doutor - completou Marília — minha alma está ansiando pela calmaria e vou encontrar meu equilíbrio aceitando suas palavras sensatas, admirando sua postura perante os vendavais da vida. O senhor me fez ver a importância de estar vivo, e agora compreendo que a missão de Fábio na Terra terminou e a minha, agora eu sei, mal começou.
— Alegra-me ouvi-la falar assim, Dona Marília, rogo a Jesus que a auxilie a encontrar seu caminho e que lhe dê coragem para percorrê-lo com força e consciência de todo o bem que se pode fazer a outrem, quando se deseja realmente; mas, por favor, não dê a mim maior importância do que mereço.
— Eu poderia lhe fazer um pedido?
— Claro, faça!
— É que... bem... eu gostaria de conhecer Isabela, o senhor permitiria que eu e a Laís fôssemos visitá-la?
— Por favor. Dona Marília, quem fica agradecido com seu interesse sou eu, vá quando desejar. Isabela ficará muito contente e feliz, tenho certeza disso.
— Obrigada, Dr. Rubens, muito obrigada!
Inês levantou-se e em seguida retornou trazendo um café fresquinho para servir aos presentes.
— O senhor deve estar cansado, doutor, e um cafezinho irá lhe fazer bem; reviveu muitas emoções.
— Obrigado, a senhora tem razão, estou precisando realmente.
— Faz bem em aceitar, ninguém faz um café como minha sogra.
— Está vendo, doutor, estou com ciúmes, ele nem se lembra do meu café!
Laís, que naquele momento entrava na sala, disse naturalmente:
— Também, mamãe, há quanto tempo a senhora não faz um café para o papai!
Marília, um pouco desconcertada, abraçou a filha e lhe disse:
— Isso vai acabar filha, a partir de agora tudo vai mudar, eu lhe prometo, a mamãe ama muito vocês, a vovó e o papai. Jesus vai ajudar a mamãe a fazer vocês felizes novamente.
— Que bom, mamãe, eu e o André gostamos mais do jeito que a senhora era antes!
— Eu também, filha, eu também!
Olhou para Paulo e se deu conta do marido bom e generoso que Deus tinha colocado ao seu lado.


LAÍS E ISABELA




Após a revelação de Rubens, alguma coisa mudou no coração de Marília. Sentia-se envergonhada por sua fraqueza, principalmente da desconfiança em relação ao Dr. Rubens, imaginando-o sem o menor conhecimento da intensidade da dor de perder um filho. Entendera finalmente que as pedras estão no caminho para serem retiradas. Tinha sido incrédula na justiça divina; culpara o Criador por todo o sofrimento que atingira seu lar e agora compreendia que nada acontece de importante na vida das criaturas sem que haja uma causa e com ela não poderia ser diferente.
— Deus é sempre justo — dizia para si mesma. Hoje eu sei com certeza que na justiça de Deus não há dois pesos e duas medidas. Se foi da vontade de Deus que Paulo e eu nos separássemos de nosso querido filho, sem sombra de dúvida foi para que aprendêssemos algo que ainda não sabemos, ou quitássemos alguma dívida que, como diz Dr. Rubens, pode ter sido contraída em vidas passadas.
Marília, ao mencionar o nome do médico amigo, percebeu crescer dentro de si a grande admiração que sentia por ele. Ouvindo passos, voltou-se deparando com sua mãe que a observava.
— Oi, mãe, não reparei que estava aí!
— Cheguei há pouco, filha, estava tão pensativa que não quis incomodá-la. Em que pensava?
— Venha, mãe, sente-se aqui ao meu lado, quero conversar uma coisa com a senhora.
Inês sentou-se perto da filha e docemente incentivou-a a dizer o que pretendia.
— Pronto, Marília, diga-me o que deseja.
— Mãe, pensava nas coisas que o Dr. Rubens nos disse e não consegui entender como pode alguém que tanto sofreu conservar o coração limpo, sereno e confiante em Deus e na vida. Não perder a esperança nem se revoltar contra tudo e contra todos; pode-se dizer mãe, foi e ainda é três vezes maior que o meu e de Paulo. Nós perdemos um filho e quase nos desesperamos, entretanto ele perdeu no mesmo dia a esposa e dois filhos, tendo ainda que conviver diariamente com essa situação conflitante que é ver sua única filha presa a uma cadeira de rodas, para sempre, pois não existe nenhuma possibilidade de reverter esse quadro. Como ele consegue força para suportar tanto sofrimento? Diga-me, como é possível?
— É verdade, filha, ele é um homem admirável, especial mesmo. Não permitiu que a tristeza o separasse de Deus, ao contrário, uniu-se mais a Ele, e essa união o levou a amar o próximo, trazendo paz para sua alma.
— É... enquanto eu me escondia usando a dor como escudo, ele se mostrava para o mundo como uma pessoa que aspira a paz e luta para que não só ele, mas todos possam conquistá-la por meio da união e da amizade entre as pessoas.
— Ele acreditou que o amor enxuga as lágrimas e viveu essa crença com intensidade, e o que pudemos notar é que essa máxima é verdadeira.
— Sabe mãe, estive pensando muito desde aquele dia que tomamos conhecimento da história dele; raciocinei com cuidado sobre tudo o que foi dito e cheguei à conclusão de que também quero me dedicar ao amor fraternal. Só não sei como começar.
— Não se precipite Marília, ore a Jesus e peça que os bons espíritos a ajudem nessa nova fase da sua vida. Como dizem os espíritas, "quando o trabalhador está pronto, o trabalho aparece". Confia e espera.
— Estava pensando em ir visitar Isabela!
— Ótimo, faça isso; será bom para você e para ela.
— A senhora acha mesmo?
— Claro que sim, Marília!
— Vou fazer o seguinte, telefono para a senhora... como é mesmo o seu nome?
— Ana!
— Isso mesmo. Dona Ana. Telefono para ela e marco para hoje à tarde a minha visita. Irei com Laís; a senhora nos acompanha?
— Não, filha, uma próxima vez irei com muito gosto.
— Está bem!
Assim que Inês desceu para cuidar dos seus afazeres, Marília, mais animada, aprontou-se, telefonou para Dona Ana e desceu ao encontro da mãe.
— Hum! Já está pronta, que ânimo, me agrada vê-la assim.
— Sim! Assim que Laís chegar da escola, iremos à casa de Isabela. Marquei às quatorze horas.
Dizendo isso, dirigiu-se até a sala de estar, sentou-se em frente a uma bela foto de Fábio e iniciou com serenidade uma "conversação" com o filho querido.
— Fábio, que Jesus o abençoe. Hoje sei que pode me ouvir e me entender, por isso me dirijo a você, saudosa, mas tranqüila. Quero que receba em sua nova vida a minha saudade, fruto do grande amor que sinto e sempre sentirei por você. Não quero que sofra, deixe o sofrimento para mim, porque, apesar de intenso, é ele que está me fazendo perceber outros lados da vida. Nessa percepção nasce em meu coração o desejo, até então inativo, de me aproximar das pessoas sem me importar com o que vestem ou onde moram, tendo como alvo apenas a vontade de ser útil e fraterna. Não quero mais lhe enviar lágrimas, mas, sim, trabalho digno em favor do meu semelhante. Só lhe peço paciência, pois na realidade não sei ainda como iniciar essa tarefa. Mas confio em Jesus, que por meio de uma luz me mostrará a direção. Siga seu caminho de evolução no Reino de Deus, que eu também seguirei o meu. Como diz o Dr. Rubens, um dia nos encontraremos novamente e é essa possibilidade que me faz colocar com firmeza os pés na estrada da vida, em busca da minha saúde espiritual.
Os olhos de Marília lacrimejavam, mas seu coração, apesar de machucado, começava a se abrir para o amor que consola.
— Querida, o que faz tão pensativa.
— Oi, Paulo, não o vi chegar!
— Faz algum tempinho que a observo. Em que pensava assim tão distraída?
— "Conversava" com o Fábio... Ei... espere não me interprete mal, nada fiz de errado, apenas lhe dizia o que pretendo fazer para me tornar uma pessoa útil.
— E o que pretende, posso saber?
— Na verdade ainda não sei Paulo. A minha intenção é me aconselhar com o Dr. Rubens. Ele tem experiência e muito conhecimento, acredito que poderá orientar-me.
— Faça isso, querida, com certeza ele poderá ajudá-la. Dizem que, quando nos ocupamos com algo útil em favor do próximo, nosso sofrimento vai se tornando sonolento e acaba adormecendo, propiciando-nos encontrar a paz e o equilíbrio. O trabalho não deixa sobrar tempo para tristeza.
— Mas, Paulo, jamais vou me esquecer de Fábio!
— Eu não disse esquecer, Marília, disse adormecer. Esse adormecimento é que permite a todos que sofrem grandes dores continuar vivendo dentro do equilíbrio. Se assim não fosse, todos os pais que se separam de seus filhos pela desencarnação destes enlouqueceriam.
— Você tem razão, querido, é insensato ir a busca do esquecimento daqueles que amamos, mas é prudente ir a busca da compreensão e aceitação da vontade de Deus.
— Assim que se fala meu amor. Nós vamos nos fortalecer e cumprir nossa tarefa aqui na Terra, principalmente junto ao André e à Laís.
— Paulo, logo após o almoço vou com Laís visitar Isabela.
— Que bom Marília. Traz-me muita satisfação vê-la novamente acordando para a vida.
— Então vamos. Mamãe deve estar nos esperando; quero chegar no horário combinado com Dona Ana.
— Será que as crianças já chegaram da escola?
— Penso que sim!
— Vamos então!
Marília e Laís seguiram rumo à casa de Rubens.
Assim que chegaram, foram recebidas com gentileza, por Dona Ana que, de imediato, levou-as à presença de Isabela. Marília, ao vê-la, não pôde disfarçar a surpresa. Acomodada em sua cadeira de rodas, ela mais parecia uma pintura pelos belos traços de seu rosto. Os cachos loiros de seus cabelos harmonizavam-se com o brilho de seus expressivos olhos azuis. Suas pernas estavam cobertas por uma manta branca, e Isabela trazia em suas mãos um colorido livro de histórias. Notando a aproximação de Marília e Laís, abriu os braços e lhes disse sorrindo:

— Sejam bem-vindas. Não as conheço, mas soube que são amigas de meu pai, por isso minhas amigas também!
Marília, correspondendo à gentil recepção, abriu também os braços e enlaçou-a com um carinhoso abraço.
— Meu nome é Marília e esta é minha filha Laís. Queria muito conhecê-la, Isabela. Em minha casa todos admiramos e queremos muito bem a seu pai. Como você é linda! Estou realmente impressionada com a beleza do seu rosto.
— Obrigada, Dona Marília. Mas não deveria se surpreender tanto tem uma filha tanto ou mais bela do que eu! - exclamou Isabela suavemente.
— Vem, Laís, sente-se bem perto de mim, gosto muito de ter amigos e gostaria que ficasse minha amiga.
Timidamente Laís se aproximou mais de Isabela, sentando-se ao seu lado.
— Também quero muito ficar sua amiga, Isabela!
— Então... já somos! Mas tem uma coisa, Laís, que gostaria de lhe dizer: não vou poder sair correndo por aí com você, no entanto, se tiver paciência posso acompanhá-la em minha cadeira de rodas. Já sei manejá-la muito bem, não é mesmo. Dona Ana?
— Com certeza, Isabela, muito bem!
— Não se aflija por isso - disse Marília. — Laís adora ler histórias, conversar, afinal, existem muitas coisas que podem fazer sem ter de sair correndo por aí. Duas jovenzinhas sempre têm o que conversar.
— Claro, Isabela, somos praticamente da mesma idade, podemos passar algumas horas nos divertindo, é só você querer.
— Eu quero Laís, quero muito. Apesar de toda atenção e carinho que recebo de papai e de Dona Ana, sinto falta de estar com pessoas da minha idade.
— Então, "tá" combinado, outro dia venho passar a tarde inteira com você, "tá bem"?
— Outro dia! Por que não hoje... agora?
— Agora?!
— Sim! Por que não pode ficar aqui comigo? Podemos lanchar juntas, tomar sorvete. Que tal?
— Posso ficar mamãe?
— Se você quiser e não incomodar Dona Ana, pode sim.
Ana, mais que depressa, respondeu:
— Ela não incomodará em nada. Dona Marília. Isabela sente muita falta de companhia da sua idade. Acredito que as duas vão se dar muito bem.
— Se é assim, pode ficar Laís.
As duas crianças se afastaram. Marília sentiu um aperto no coração vendo Laís empurrar a cadeira de Isabela. Sentiu um carinho grande por aquela criança tão bela e condenada há passar seus dias na Terra presa a uma cadeira de rodas.
Dona Ana, como se adivinhasse o pensamento de Marília, lhe disse:
— Ela é feliz. Dona Marília, não briga com o seu destino; possui um espírito elevado.
— Ela é realmente encantadora! Diga-me, Dona Ana, Isabela freqüenta a escola?
— Claro Dona Marília! Todos os dias pela manhã, o motorista vem pegá-la. É uma aluna dedicada, gosta de aprender e se esforça bastante para isso.
— Que bom; pela maneira como ela se expressa percebe-se sua instrução, e o modo como fala cativa as pessoas.
— A senhora tem razão. Nunca se queixa e está sempre alegre; para mim é como se fosse uma filha.
— Desculpe-me perguntar, mas Isabela sofre algum tipo de preconceito na escola?
— Ostensivamente, não. Mas sempre existem aquelas pessoas que vêem os deficientes físicos como se fossem deficientes mentais. Algumas vezes, Isabela voltou para casa um pouco triste em virtude de comentários a seu respeito e que a deixaram magoada. As pessoas às vezes esquecem que Isabela é uma criança como qualquer outra, a única diferença é que não pode andar, e como as outras crianças gosta de ser tratada com carinho, respeito e dedicação.
— Não sei por que as pessoas nutrem no coração tanto preconceito. Julgam imprudentemente qualquer que seja a deficiência apresentada por uma pessoa, criança ou não. Imaginam que são contagiosas; escondem o orgulho e o preconceito atrás de atitudes que ousam chamar de prudência. Geralmente esquecem que todos estamos sujeitos a sofrer agressão ou mutilação do nosso corpo quando menos esperamos.
— A senhora disse uma verdade. Dona Marília, nunca sabemos quando a vida vai nos pregar uma peça.
— Bem, Dona Ana, preciso ir. Vou despedir-me das crianças.
Aproximando-se de Laís e Isabela, afagou seus cabelos e disse à filha:
— Virei buscá-la no final da tarde. Dirigindo-se a Dona Ana, completou:
— Por volta das dezoito horas, virei buscá-la.
— Vá tranqüila, Laís estará bem.
Marília despediu-se, entrou em seu carro e tomou o caminho de casa.
Ao parar em um semáforo, olhou para o lado e assustou-se ao ver uma mulher grávida deitada no chão com quatro crianças ainda pequenas sentadas junto a ela. Deu o sinal e virou-se para a direita parando o carro próximo ao local. Sem se dar conta do que fazia, aproximou-se da mulher e ao saber da proximidade do parto, colocou a gestante em seu carro com as crianças e partiu rapidamente para o hospital.
No caminho tomou conhecimento de toda a dificuldade que aquela mulher passava junto a seus filhos.
— Fique calma, logo estaremos no hospital. Tudo dará certo.
Chegando à recepção de um hospital público, Marília colocou a recepcionista a par do que acontecia.
— A gestante podemos atender senhora; quanto às crianças, nada podemos fazer, elas não poderão ficar aqui. A senhora terá de levá-las para um orfanato ou coisa parecida.
— Mas eu não as conheço como poderei interná-las?
— Faça o seguinte: vá com a mãe delas até um orfanato e após a internação das crianças volte para que possamos internar a mãe. Certo?
— Mas não conheço nenhum orfanato!
— Tem um próximo daqui, na verdade são quatro quarteirões. Vá até lá, eles vão recebê-las, acredito eu.
Meio temerosa Marília respondeu afirmativamente. Acomodou todos novamente em seu carro e dirigiu-se ao local indicado.
— Por gentileza, poderia falar com a diretora deste abrigo?
— Um instante, por favor, vou chamá-la.
Assim que a diretora chegou, Marília explicou-lhe detalhadamente a situação.
— Gostaria que ficassem com as crianças provisoriamente para que sua mãe pudesse se internar para o parto que se aproxima. É possível? Assim que ela obtiver alta, virá buscá-las.
— Ficaremos por quinze dias. Dentro desse prazo a mãe terá de vir buscá-las, caso contrário serão encaminhadas para o Juizado da Infância e Juventude para que o Juiz decida o que fazer. Certo assim. Dona...
— Gertrudes! Não quero me separar de meus filhos, eles são a minha vida, as únicas coisas boas que tenho. Sou pobre e nada tenho na verdade, mas o amor de meus filhos me faz viver - respondeu com lágrimas nos olhos.

— Olhe Gertrudes, seus filhos só serão encaminhados para o Juizado se você não vier buscá-los após quinze dias; se vier dentro do prazo, eles estarão aqui à sua espera. Tenha certeza de que o que queremos é entregá-los a você, que é a
mãe deles. Esteja certa disso.
Marília estava perplexa. Admirava a coragem que tivera em socorrer Gertrudes. Nem se dava conta do adiantado da hora. Jamais pensara ter coragem de se envolver dessa maneira com pessoas completamente estranhas. Assim que as crianças foram recolhidas, Marília levou Gertrudes novamente até o hospital onde esta ficou internada para a realização do parto.
Depois de tudo resolvido, lembrou-se de avisar Paulo de seu atraso e ir buscar Laís na casa de Isabela.
Quando Paulo a viu chegar, correu ao seu encontro preocupado; afinal, não se lembrava de uma única vez em que chegara a casa sem encontrar a esposa esperando.
— Querida, onde você estava? Deixou-nos todos preocupados. Dona Ana ligou-nos apreensiva com sua demora em ir pegar a Laís.
— Desculpe-me, Paulo, se o preocupei; já me desculpei com Dona Ana. Venha, vou contar-lhe o que aconteceu talvez você nem acredite.
Pegou o marido pela mão e levou-o até a sala onde se sentou ao seu lado. Chamou sua mãe e contou-lhes tudo que acontecera. Inês, antecipando-se ao genro, disse à sua filha:
— Filha, que atitude generosa a sua! Sinto-me feliz e orgulhosa de ver minha filha abrindo o coração para minimizar a dor alheia. Sinto que Jesus lhe enviou uma mensagem, Marília, seria muito bom que você compreendesse.
— Dona Inês, tenho a impressão de que pensamos a mesma coisa.
— Por Deus, digam-me o que estão planejando?
— Planejando?! Nada, querida; apenas Dona Inês e eu tivemos a mesma impressão.
— Impressão! De quê?
— Seu coração descobrirá e dirá para você mesma, é só aguardar. Mas saiba que me orgulho muito de você.
Marília não conseguia ainda se centralizar diante dos fatos. Tinha a sensação de que tudo acontecera com outra pessoa, não com ela. Apesar disso trazia em seu coração uma tranqüilidade que lhe causava bem-estar. Resolvendo mudar os rumos da conversa, disse ao marido:
— Paulo, Laís e eu fomos visitar Isabela.
— Eu já sei querida, e fiquei muito contente.
— Ah! É verdade. Dona Ana ligou aqui para casa.
— Sim, e disse-nos que Laís e Isabela se deram muito bem. Conversaram bastante, leram livros de história, enfim, descobriram-se uma à outra e se divertiram muito. E você, o que achou de Isabela?
— Ah! Paulo é um amor de garota. Não se faz de vítima, ao contrário, enfrenta sua invalidez com coragem e alegria. É um exemplo para todos nós. Sabe querido, quando penso em mim, no desânimo, na melancolia, no quanto eu me isolei de vocês todos por conta da minha tristeza, sinto-me envergonhada do meu comportamento. Uma garota de dez anos com sua determinação exemplificou o que seu pai durante todo esse tempo tentou me ensinar e eu não fui capaz de compreender.
— Filha, não se entristeça nem sofra mais por isso. Sempre é tempo para aprender e você, creio eu, encontrou hoje o caminho; é necessário apenas enxergar o que está tão claro.
— Mãe, a senhora me confunde o que quer dizer?
— Calma, Marília, calma. Você estava a procura de um trabalho edificante por meio do qual pudesse exercitar o amor ao semelhante, será que essa tarefa não apareceu?
— Olha mãe, não sei realmente o que a senhora quer me dizer, mas, não importa, agora quero apenas tomar um banho e me preparar para o jantar.
Dizendo estar cansada, subiu para o quarto.
Paulo e Inês sorriram. Sabiam que algo muito importante aconteceria na vida de Marília, motivando-a a trabalhar e ser útil ao próximo.
— Dona Inês, que Jesus abençoe a todos nós para que possamos retomar nossa vida, senão com toda a alegria que tivemos, mas com a que podemos ter agora se cultivarmos a esperança e a fé no futuro.
— Tranqüilize-se, Paulo, Jesus não vai nos desamparar. Nossa vida sofreu uma mudança dolorosa que criou feridas em nosso coração, mas com a graça de Jesus descobriremos outros motivos para sermos felizes nessa nova fase de nossa existência.
— Dona Inês, às vezes me surpreendo pensando que Rubens tem razão, realmente deve existir a reencarnação que tanto ele tenta nos esclarecer, porque, se não existisse, se fosse apenas uma fantasia, não encontraríamos motivos ou respostas para tanto sofrimento pelo qual nós e tantas outras pessoas passam, sem compreender o porquê.
— Tem razão, Paulo, por meio dessa oportunidade de retornarmos à vida física animando outro corpo, em outra época, é que nos faz ter certeza da justiça divina.
— Tem muita lógica, Dona Inês, caso contrário, o Criador seria injusto com uma parte de sua criação. Quando me questiono sobre o porquê da nossa separação do Fábio, não encontro aqui e agora uma explicação que justifique tanta dor.
— E como diz o Dr. Rubens, alguma coisa desprezamos em uma época anterior e que se faz necessário aprender nessa encarnação. Só não posso entender o que poderia ter sido feito para perdermos nosso Fábio dessa maneira, sendo ele tão jovem.
Paulo pensou um pouco e respondeu:
— Não sou entendido no assunto, mas talvez para que aprendêssemos, com a separação drástica, a desenvolver o amor de verdade; o Rubens poderia nos esclarecer melhor.
— É, pode ser Paulo, mas o que importa é o aprendizado do bem e do amor. O sofrimento doloroso deve se tornar, para quem o sente, uma alavanca a impulsionar para o conhecimento de verdade e para a prática do bem, fazendo emergir das cinzas a fé e a confiança em Cristo, para que se possa ir a busca da luz e da paz.
— A senhora tem razão, vamos nos esforçar para que isso aconteça conosco.




PROBLEMAS COM ANDRÉ


Após o incidente vivido por Marília, tudo começou a tomar novos rumos em sua vida. Sentindo um grande vazio em seu coração e incentivada por Paulo e Inês, deu um considerável salto para iniciar sua reforma interior e armazenar em sua alma princípios de grande fé, confiança e conhecimento que lhe dariam suporte para enfrentar novas dificuldades que aconteceriam em sua vida.
Procurando o médico amigo, este lhe orientou como iniciar o trabalho pelo qual seu coração ansiava; assim, apoiada pelo amor fraternal que nascera em seu íntimo, permitiu que esse mesmo amor enxugasse suas lágrimas e transformasse esse pranto em estímulo para iniciar sua caminhada rumo ao Criador, fundado uma casa de amparo às gestantes carentes da periferia.
Tudo era muito simples. Suas mãos com habilidade confeccionavam as roupinhas que formavam os enxovais, doados às futuras mamães que freqüentavam os cursos ministrados por ela e Rubens.
Nunca deixava de ouvir as explicações de Rubens e a cada dia se interessava mais pelos ensinamentos da Doutrina Espírita. Convicta estava que só por meio do bem praticado sem interesse algum poderia encontrar a paz para seu coração e força para superar com dignidade cristã os revezes da vida.
Em uma de suas palestras, Rubens dissera:
— Jesus também caminha na Terra procurando certa categoria de doadores difíceis de encontrar — doadores de suor que trabalhem desinteressadamente na construção do reino de Luz. Irmãos, o Divino Amigo nos bate à porta do coração nos pedindo serviço; sigamos adiante, guardando a felicidade de sermos, com Ele, os doadores de suor. (Fonte: Ideal Espírita — Aura Celeste — Chico Xavier)
Essa mensagem calara fundo no coração de Marília. Entendera a importância de se doar ao trabalho edificante sem esperar nada em troca; mas sabia também que não seria o fato de trabalhar em favor dos necessitados que a impediria de viver futuras preocupações e sofrimentos.
O bom médico sempre explicara que devemos fazer o bem pelo bem, sem achar ou esperar que com isso nos tornemos isentos de qualquer contrariedade ou prova que estivessem relacionadas com a nossa história. Nada se consegue de bom e duradouro se não se empenhar em compreender o amplo significado desse sentimento tão nobre que é o amor.
O coração de Marília se aquietara em relação ao sofrimento da separação de Fábio; não que a ferida tivesse cicatrizado, mas o sangramento da dor não lhe impedia de continuar vivendo e nutrindo sua alma com os ensinamentos evangélicos de Jesus, e isso levava paz ao seu coração e serenidade para continuar o trabalho que abraçara.
O tempo, sem se importar com as tristezas ou alegrias dos encarnados, seguiu sua rota e três anos se passaram desde a desencarnação de Fábio.
O trabalho de Marília ganhara força. Além dos enxovais, as gestantes passaram também a receber alimentos, a freqüentar cursos em que aprendiam a tratar seus filhos, física e espiritualmente, além das consultas ginecológicas quinzenais.
Tudo transcorria dentro do previsto pela espiritualidade amiga. Marília conseguira realmente enxugar suas lágrimas exercitando o amor.
Certa tarde, regressando ao lar, Marília encontrou sua mãe esperando-a com ansiedade e assim que entrou percebeu a aflição de Inês ao dizer-lhe:
— Graças a deus você chegou Marília!
— O que foi mãe, por que esse nervosismo todo?
— Filha, soube de algo que me deixou impressionada e, para falar a verdade, com muito medo.
— Diga-me o que foi!
— Sabe o Marcos, o amigo do André que nunca se separa dele?
— Sim, claro que sei quem é, mas o que tem ele?
— Dona Gracinda me disse hoje que ele faz uso da maconha e não tem o menor pudor ou preocupação de esconder isso.
— Lamento mãe, mas o que tem isso que ver conosco? Entendo que se torna um problema para os pais dele e não nosso. Espero que saibam solucionar essa questão da melhor forma.
— Você não entendeu Marília; o meu receio é que, como o André é muito amigo dele, possa se influenciar e cair no mesmo erro, isso se já não aconteceu o pior.
— Mãe! - exclamou Marília indignada.
— Por que o espanto, Marília? Nos tempos de hoje ninguém pode dizer que está totalmente seguro quanto à questão das drogas.
— Mãe, estou segura porque dei a ele uma boa educação e não acredito que caia nessa armadilha. Por Deus, acho que ele jamais faria isso!

— Também penso como você, mas acho prudente ficarmos atentas, André está com quinze anos, idade em que os adolescentes questionam, exigem e quando não encontram respostas que lhes satisfaçam ou as que querem ouvir procuram nos lugares errados, com pessoas erradas, costumes e práticas que só trazem enganos e desgostos.
— A senhora pensa isso mesmo, mãe? Acha que o André poderia se envolver com drogas?
— Filha, não estou afirmando, estou apenas dizendo que precisamos ficar atentas e observar as atitudes do André, afinal, ele é igual a muitos adolescentes e geralmente todos eles sofrem certa influência dos amigos mais chegados. Não custa ficarmos atentas.
— Vou conversar com o Paulo e ver o que ele pensa a esse respeito.
— Faça isso, Marília, faça isso!
Assim que sua mãe se afastou, Marília subiu para seu quarto com a intenção de tomar um banho e esperar a hora do jantar. Passou pelo quarto de André e sentiu desejo de entrar para abraçar o filho. Parou em frente à porta e sem vacilar segurou a maçaneta e empurrou. Ao verificar a porta trancada por dentro, estranhou. Bateu levemente e com carinho chamou o filho:
— André, sou eu, filho, abra a porta para que eu possa entrar.
— O que quer mãe?
— Nada, filho, apenas abraçar você e saber do seu dia, só isso. Posso entrar? - perguntou Marília.
— Para com isso, mãe, que "mico" é esse? Quer entrar no meu quarto só para me abraçar?
— Claro, filho, que mal há nisso?
— Não vou abrir mãe, estou ocupado, mais tarde a senhora me abraça.
Marília abafou seu desapontamento e dirigiu-se para seu quarto.
Lembrou-se de Fábio, e a saudade bateu forte em seu peito.
— Que Jesus abençoe você, filho. Que sua caminhada rumo à evolução espiritual seja sedimentada no amor ao nosso pai e a seus semelhantes. A saudade que sinto de você é grande demais, torna-se quase uma dor física, mas procuro transformá-la em estímulo para continuar trabalhando e amparando
as mãezinhas necessitadas. Creio eu que agindo assim fico cm harmonia com você e com minha própria evolução. Fique com Deus, meu filho.
Marília sentiu uma sensação agradável percorrer-lhe o corpo.
— Dr. Rubens tem razão - disse para si mesma —, cada um é responsável por sua vida. Se teimamos em preencher nossos dias com lamentações, revolta e desespero, torna-se impossível encontrar a paz para nosso coração. Mas, se a fé e a confiança em Deus forem o estandarte a abrirem o caminho por onde
devemos passar, com certeza enfrentaremos todas as dificuldades e transtornos trabalhando com dignidade e fraternidade, encontrando assim a paz para nossa alma. Somente o amor exercitado pode amenizar a dor que dilacera nosso coração quando vemos um filho querido partir. A alegria proporcionada
ao semelhante traz ao nosso coração a paz e o equilíbrio como recompensa pelo esquecimento de nós mesmos. É Dr. Rubens tem razão, vou a frente ao meu trabalho.
Marília não se dava conta, mas espíritos amigos energizavam aquela mãe sofrida para que seu espírito se fortalecesse e se preparasse para nova provas e dor.
— Cale gemidos e suspiros frustrados, decidindo realmente servir. O amor puro é a síntese de todas as harmonias conhecidas. A fraternidade é o pacto do Amor Universal entre todas as criaturas perante o Criador. Nossa alegria somente viceja em conjunto com a alegria de muitos. De que vale a alguém o título de herói numa tragédia. Onde estará o benefício de uma santidade que terá brilhado no deserto, sem ser útil a ninguém?
Com o Espiritismo nasceu na Terra a fé raciocinada.
Você, portanto, interiormente, está livre para ajudar a você mesmo, consciente qual se encontra de que auxiliar com desinteresse aos outros é interpretar vivamente a filosofia de Cristo, é consolidar a segurança do próprio bem. (Fonte Ideal Espírita, André Luiz/Chico Xavier).


NO MUNDO DAS DROGAS




Marília colocou o marido ciente do que sua mãe lhe contara. Paulo, como era de esperar, ficou preocupado e não descartou a possibilidade de André estar realmente envolvido com maconha, assim como seu amigo Marcos.
— Sua mãe tem razão, Marília. É necessário ficarmos atentos com as atitudes de André.
— Mas, Paulo, você acha que nosso filho se envolveria com algo dessa natureza?
— Querida, André tem apenas quinze anos. Os adolescentes são influenciáveis pelos amigos, pelo consumo, enfim, não possuem ainda uma personalidade bem definida, madura, segura, em razão disso tudo é possível. Convém ficar vigilante.
Os olhos de Marília encheram-se de lágrimas. O medo tomou conta de sua alma. Era como se uma porta se abrisse à sua frente e ela temesse ultrapassá-la por não saber o que encontraria do outro lado. Incerteza, insegurança e receio foram os sentimentos que rapidamente tomaram conta de seu coração. Paulo, percebendo o estado em que ficara sua esposa, abraçou-a afetuosamente dizendo:
— Querida, não fique assim. Para que sofrer por antecipação, se não temos certeza de nada porque nada sabemos? Vamos ficar vigilantes, bem atentos, nos aproximarmos mais do nosso filho, enfim, tentar ajudá-lo se alguma coisa realmente estiver acontecendo. Se mantivermos a calma, poderemos perceber a situação como ela realmente é.
Mais tranqüila Marília respondeu:
— É, Paulo, você tem razão. Não sei o que seria de mim se não tivesse você ao meu lado, sempre me apoiando, confortando. Você é um grande companheiro e eu sinto um amor muito grande por você.
— Eu também, querida, eu também a amo muito.
Delicadamente, abraçou-a beijando-a nos lábios.
Quinze dias se passaram. Conforme o combinado não se descuidaram de André. Atentos às mínimas reações do jovem procuravam dar atenção e se aproximavam cada vez mais.
— André, está tão quieto, filho, nem se alimentou direito. O que há com você, o que o preocupa?
— Nada me preocupa mãe, pode me deixar em paz?
— Não é o que me parece, sinto-o tenso.
— É coisa minha, mãe, dá licença?!
— Por que a agressão, André? Feri você com minha observação?
Empurrando a cadeira, André levantou-se e saiu da sala indo trancar-se em seu quarto. Laís correu a abraçar a mãe.
— Não fique triste, mamãe, André anda muito nervoso!
— E você sabe por quê?
— Talvez seja porque não está indo bem na escola.
— Não está indo muito bem no colégio?! O que é isso, Laís, não pode ser, ele mostrou-me a caderneta escolar, suas notas estão muito boas.
— É que...
— Diga Laís, o que você está me escondendo? O que sabe que ainda não sei?
— Bem, mãe, é que ele e o Marcos falsificaram as notas.
Marília empalideceu.
— Ele o quê?
— É isso mesmo, mãe, o André falsificou as notas.
— O que você está afirmando, Laís, torna-se inacreditável para mim. André falsificando notas na caderneta?! Não nisso, não posso!
— Fique calma, mãe, afinal isto não é tão grave assim.
— Engano seu, Laís, é grave sim, e o mais grave é o que deve estar por trás dessa atitude leviana e perigosa do seu irmão.
— Como assim, mãe?
— Veja filha: se André está indo tão mal na escola ao ponto de falsificar suas notas, alguma coisa mais grave está acontecendo que motivou o seu desleixo com os estudos e o induziu a cometer esse ato perigoso e reprovável de falsificar o boletim.
— É... a senhora tem razão, mãe!
Marília decidida a esclarecer o fato, bateu na porta do quarto de André.
— Abra filho, por favor.
— O que a senhora quer, mãe?
— Falar com você, André.
— Eu não quero falar com a senhora, me deixa quieto.
— Por favor, André, abra essa porta e vamos conversar um pouco. Não tenha receio, quero apenas conversar com você.
— Outra hora, mãe, agora não quero, e pára de ficar pegando no meu pé.
Desanimada, Marília respondeu:
— Está bem, como você quiser.
Virou-se e foi até seu quarto. O medo tomou conta de seu coração. Sentiu-se perdida e insegura diante da maneira como André a tratara. Elevou seu pensamento até Deus e suplicou ao Pai ajuda para resolver com sabedoria o que a atormentava. Com a voz da alma orou ao senhor:
— Senhor, conheces minhas dúvidas e meus medos. Sabes o quanto sou ainda imperfeita, mas mesmo assim... me amas! Não posso esconder de Ti a fraqueza que muitas vezes atinge a minha alma e é nessa hora, Senhor, que meu coração, procurando-te para se acalmar, enche-se de certeza do Teu amor por mim; então... desabafo e choro! Nem sempre tenho forças para lutar, mas em todos os momentos procuro-te para falar de mim e mostrar o que me aflige. Quantas vezes perdida e pedindo-te ajuda, sinto Tua presença na paz que me invade e me leva ao descanso das minhas dores; nessa hora, Senhor, consigo perceber as flores da primavera desabrochando no amanhecer de um novo dia e fazendo-me lembrar que nenhuma dor pode ser maior que o Teu amor por mim.
Entrego-me a esse amor divino e, amparada pela fé que se renova em meu ser, levanto-me e prossigo.
A emoção de Marília fez-se presente nas pequenas gotinhas de lágrimas que desciam pelo seu rosto e transformavam-se em uma brilhante luz azul que a envolvia dando-lhe paz e confiança no futuro. Mais uma vez Deus demonstrara Seu amor pelos seus filhos; era o Criador amparando Sua criatura, era a resposta vinda do Mundo Maior direto para o coração de Marília.
A porta de seu quarto se abriu e Paulo entrou.
— Querida, Laís me contou o que aconteceu. Como você está, e André?
— Agora estou bem, Paulo. Mais uma vez consegui acalmar meu coração conversando com Deus, e mais uma vez Deus entendeu minha alma.
— Fico feliz por você. É bom vê-la forte e confiante, disposta a lutar pela nossa felicidade e a de nossos filhos.
— É, mas estou muito preocupada com o André. Não tenho mais dúvida de que alguma coisa está acontecendo com ele e não é coisa boa. Onde já se viu Paulo, falsificar notas da escola!
— Vamos ver isso, Marília, vou agora mesmo conversar com ele.
Sem demora foi direto bater na porta do quarto de André.
Assim que ouviu a voz segara e enérgica de seu pai, André abriu a porta do quarto e permitiu que ele entrasse. Paulo sentou-se ao pé de sua cama e, com prudência e carinho, mas sem perder a autoridade incentivou o filho a falar.
— O que acontece com você, meu filho, que provoca comportamento que não condiz com o que você sempre foi um filho amoroso e educado?
— Não está acontecendo nada, pai!
— Penso que esteja sim, André, e nós, sua mãe e eu, não estamos gostando nada disso. Se você se abrir conosco, seja o que for, faremos tudo para ajudá-lo a resolver o problema.
— Mas, pai, não há problema algum comigo e...
— E...?
— Se eu disser com certeza vocês não vão entender.
— Experimente filho!
— Você e mamãe, como a maioria das pessoas, dos pais, principalmente, são preconceituosos quanto a isso, não compreendem realmente o que seja e vão julgando erroneamente.
— Por favor, André, seja mais claro e não ponha palavras em nossa boca.
— Pois bem, já que o senhor quer saber, eu estou fumando maconha!
— Você... o quê?
— O que o senhor ouviu pai, estou fumando maconha. Mas já vou dizendo que não é ela que está mudando meu comportamento como o senhor disse. A maconha não faz mal algum.
Paulo empalideceu. Recuperando seu autocontrole disse ao filho:
— Mas é claro que é por causa disso que você anda tão diferente. Por Deus, meu filho, por que procurou a droga? O que esperava encontrar? Por que foi em busca do sofrimento seu e nosso, já não bastou o que passamos? Por que e para que andar na corda bamba e comprometer sua vida, sua saúde e seu futuro?
— Está vendo? Não disse que não entenderiam que são como a maioria, preconceituosos!
— Não se trata de preconceito e sim de algo que você acende hoje e te apaga amanhã.
— Pai, o senhor não sabe o que está dizendo. A maconha não é uma droga e, ao contrário do que se pensa, não faz mal algum.
— Engano seu, filho, a maconha é uma droga sim e, na maioria dos casos, é a porta de entrada para outras drogas mais pesadas que sempre levam seus adeptos à morte.
— Mas o que é isso, pai, estou só me divertindo, zoando, e fique o senhor sabendo que a hora que eu achar que devo parar, eu paro numa boa. O senhor está levando tudo isso muito a sério.
— Temos de levar isso a sério, porque é sério.
— Já disse que quando quiser eu paro.
— Será, filho?
— Claro, pai, claro! O Marcos sempre diz que, quando ele enjoar e quiser, ele pára. Comigo será a mesma coisa, os jovens fumam apenas para curtir, zoar, o senhor consegue entender?
— Não quero e nem posso entender como alguém pode comprometer sua vida apenas para curtir e zoar como você diz. Não é arriscar demais?
— Pai, não estou arriscando nada!
— Está sim, André. Se a maconha fosse algo bom, por que se fuma escondido? Por que é proibida pela lei? Se fosse tão inofensiva, como diz, não induziria seus usuários a mentir, a esconder esta prática, a agredir a família e relaxar nos estudos chegando ao extremo de falsificar notas como você fez, enfim, não os levaria a abandonar seus ideais de moral e honestidade e passar a viver escravo desse vício nocivo, dessa inimiga que age lentamente, mas que deixa seqüelas, com certeza.
— Vou dizer mais uma vez para ver se o senhor consegue entender: maconha não é droga, portanto não vicia.
— Vou insistir que é um grande engano seu, filho, é droga sim e raramente não provoca danos naquele que dela faz uso. Vamos fazer o seguinte, André, telefono para o Dr. Rubens e peço-lhe que venha conversar com você. Ele, melhor do que eu poderá lhe explicar o mal que essa droga faz ao corpo humano.
— O senhor acha mesmo necessário colocar o Dr. Rubens nessa história?
— Acho! Sua mãe e eu podemos dar-lhe nosso amor, ampará-lo para que possa pular fora dessa canoa furada e perigosa enquanto é tempo; mas o Dr. Rubens poderá mostrar-lhe cientificamente os danos que poderá sofrer seu corpo, sua mente e, principalmente, seu espírito. Você concorda em ouvi-lo?
— Vou fazer isso para satisfazer o senhor, mas garanto que ele não mudará minha opinião a respeito.
— Vamos aguardar André.
Paulo levantou-se retirando-se do quarto do filho. Seus ombros curvados eram um sinal evidente da dor que ia à sua alma.
— Então, querido, como foi a conversa?
— Não sei dizer-lhe, Marília, mas, enfim, conversamos - respondeu Paulo.

— E aí, diga-me! O que achou a que conclusão chegou?
— Cheguei à conclusão de que devemos procurar nosso amigo Rubens, mais uma vez, e pedir-lhe ajuda.
— Por quê, é tão sério assim?
— Preste atenção, Marília, nosso filho é usuário de maconha e não nega acha normal e defende esta erva como se fosse a coisa mais natural usá-la.
— Não é possível!
— Sim, é possível e real, minha querida.
— E o que vamos fazer Paulo?
— Já disse pedir ajuda, sem constrangimento, à única pessoa que conhecemos e que nos ajudara com conhecimento e amizade.
— Faça isso o quanto antes, Paulo, pelo amor de Deus, faça isso! — disse Marília angustiada.


SEGREDO DESCOBERTO


— Por que me chamou mãe?
— Não vou nem lhe responder. Marcos, porque tenho motivos para acreditar que você sabe a razão.
— Motivo?! Motivo do quê, mãe?
— O motivo pelo qual o chamei aqui.
— Se você me disser, ficarei sabendo.
— Não se faça de bobo. Marcos, o que você fez com o relógio de ouro que ganhei de aniversário de seu pai?
— Relógio de ouro? O que fiz? O que é isso, mãe, está me acusando de roubo?
— Gostaria que tudo fosse um engano, filho, mas creio que foi você quem o pegou.
— E o que faria com um relógio de ouro?
— Venderia Marcos!
— Pode me dizer para que venderia seu relógio?
— Para pagar ou para comprar alguma coisa que nem ouso dizer, meu filho.
— Quer saber, e você já me encheu o saco! Não sei por que fico aqui ouvindo suas bobagens!

Virou as costas para sua mãe e ia saindo apressado, quando a voz de Laura soou alto e firme.
— Fique onde está e não ouse me desafiar!
— Por quê? - gritou Marcos. — Vai me bater?
— Por que sou sua mãe e me deve respeito.
Marcos, com um sorriso sarcástico, respondeu:
— Respeito? Eu lhe devo respeito? Justamente você que não me respeitou quando eu era indefeso, quando apenas iniciava minha vida?
Laura, empalidecendo, respondeu:
— O que está dizendo, enlouqueceu?
— Não, Dona Laura, não enlouqueci, mas para ser franco não sei como isso não aconteceu quando soube do que fez comigo quando apenas começava a existir.
— Meu Deus, mas o que foi que fiz de errado com você?
— Tentou me matar!
Laura sentou-se. Cobriu o rosto com as mãos e perguntou ao filho quase num sussurro:
— Por que diz isso, Marcos?
— Por que sei que foi assim.
— Mas quem lhe disse isso?
— Você!
— Eu!
— Sim, você mesma!
— Quando, Marcos, quando foi isso?
— Quando contou essa história para tia Elvira.
— Você... escutou?
— Sim, mãe, escutei e nunca a perdoei. Já que você nunca me quis, resolvi lhe dar motivos para que tivesse razão.
Laura, pela primeira vez, se assustou diante do que fizera no passado. Percebeu que as conseqüências do ato que imaginava ter caído no esquecimento estavam mais presentes do que nunca em sua vida. Com voz trêmula e medrosa perguntou ao filho:
— Por favor, Marcos, conte-me o que sabe.
— Para que reviver isso agora?
— Por favor, conte-me!
— Quer mesmo que eu fale Dona Laura?
— Sim!
— Pois bem, você pediu. Foi em um dos encontros seu e da tia Elvira. Recorda que naquela época, uns anos atrás, vocês se encontravam todas as quintas-feiras para tomar chá aqui em casa? Pois bem, em uma dessas visitas ouvi uma conversa de vocês.
— Então, Laura, como está a questão do seu ciúme em relação ao Pedro?
— Ah! Elvira, o ciúme que eu sinto do Pedro já está fora do meu controle. Sofro só de pensar que ele pode estar sorrindo para outra pessoa. Quero-o só para mim, só para mim.
— Você precisa se controlar, Laura, foi por causa desse ciúme que nunca mais quis ter outros filhos, não foi?
— Claro já basta dividi-lo com o Marcos, é mais que suficiente; por mim não teria tido nem ele, mas nada do que fiz para interromper a gravidez deu certo, lembra? O jeito foi aceitar.
— Santo Deus, no início de sua gravidez você parecia uma louca tentando evitar a qualquer preço que fosse para frente.
— É verdade, Elvira. Tomei tudo o que me ensinaram, fiz tudo que podia e que não devia, mas nada adiantou. Cheguei ao extremo de enfiar em mim mesma agulha de tricô para provocar o aborto, só que mesmo assim Marcos vingou, e o remédio foi aceitá-lo e dividir com ele o amor de Pedro.
— É, Laura, tudo na nossa vida será sempre como Deus quiser e Ele quis que Marcos vivesse e hoje é um lindo menino.

— Aí está Dona Laura, o grande respeito que teve pela minha vida e ainda tem coragem de exigir que eu a respeite?
Laura não emitia nenhum som. Seu coração batia acelerado, o suor cobria seu corpo e um nó parecia apertar-lhe a garganta. Com muito esforço conseguiu dizer ao filho:
— Há quanto tempo sabe desse episódio?
— Há cinco anos!
— E... foi por isso que entrou para as drogas, por minha culpa?
— Não sei se por sua culpa ou por minha própria culpa. O que sei é que perdi o respeito por você; a frustração de não ser esperado, não ser amado, fez-me buscar outro caminho.
— Marcos, pelo que vejo você não escutou o fim da conversa entre Elvira e eu. Se eu lhe disser que o amo muito, meu filho, você acredita?
— Gostaria de acreditar. Queria muito acreditar, mas não consigo.
— Por quê?
— Porque não me lembro de ter recebido um beijo seu no meu rosto ou uma palavra que pudesse me estimular crescer e ser feliz. Suas palavras sempre foram de críticas que me afundavam mais e mais.
— Filho, isso foi há muito tempo, eu mudei, você é que não percebeu. Saiba que eu o amo, meu filho, muito!
— Mas eu não entendo sua maneira de amar, pelo menos não é a maneira que eu entendo o amor maternal. E fique sabendo que não fui eu que tirei seu relógio, não cheguei a este ponto ainda.
Dizendo isso, saiu deixando sua mãe com o rosto entre as mãos, amargando as lágrimas de arrependimento. Dirigiu-se à casa de André.
— Por favor. Dona Marília, poderia falar um instante com o André?
— O que deseja falar com ele. Marcos?
— Nada de importante, só conversar um pouco. Diante do olhar indagador de Marília, acrescentou;
— Não se preocupe, vou realmente apenas conversar.
— Conversar sobre o quê, Marcos?
— É que briguei com minha mãe. Preciso conversar com alguém, sabe como é Dona Marília, desabafar com um amigo.
— Olha Marcos, vou deixá-lo entrar, mas, por favor, se é mesmo amigo de André, queira o bem dele, já que não está preocupado com o seu próprio.
Marília levou-o até o quarto de André.


ARREPENDIMENTO




Assim que Marcos saiu, Laura não se conteve e caiu em copioso pranto. Pela primeira vez, em tantos anos, começava a ter noção da extensão do mal que fizera ao filho que rejeitara no passado. Sua cabeça rodava, impedindo-a de raciocinar com clareza sobre a situação que vivia.
— Que faço meu Deus! Que louca fui a comentar com Elvira, mais uma vez, esse fato que só me causa vergonha. Não sei com quem me aconselhar a quem recorrer nesse momento. Não posso falar com Pedro. Ele nunca soube o que
fiz; imagino que se souber, vai me odiar.
Laura mergulhou em profundo abatimento.
Seus sentimentos eram confusos. Não conseguia definir com exatidão por que sofria se por ela ou por Marcos. De repente lembrou-se de Elvira.
— Elvira! Claro! Por que não me lembrei antes dela! - exclamava para si mesma.
Levantou-se e sem demora ligou para a cunhada.
— Elvira.
— Sim! - ouviu-se do outro lado da linha.

— Elvira, sou eu, Laura.
— Oi, Laura, tudo bem com você?
— Não, amiga, nada bem comigo. Você não imagina o que aconteceu hoje, ou melhor, agora há pouco. Estou perdida!
— Conte-me, Laura. O que aconteceu para deixá-la assim tão ansiosa?
— Não posso falar por telefone. Poderia vir até aqui? Por favor, Elvira, diga que sim!
— Está bem, quando quer que eu vá?
— Hoje, agora! Por favor!
— Agora, Laura?
— Sim! Por tudo que é mais sagrado, venha agora.
— Está bem. Dentro de uma hora mais ou menos estarei aí.
Laura sentiu-se mais aliviada. Confiava em Elvira e sabia que ela poderia ajudá-la com seus conselhos.
Enquanto isso, Marcos desabafava com André.
Sentia-se magoado. Não furtara o relógio de sua mãe como ela havia acusado. Fazia muita coisa errada, sim, mas nunca furtara nada em sua vida.
— Mas ela o acusou mesmo. Marcos?
— Sim, André, acusou. Disse claramente que sabia por que eu furtara. Acreditava que para comprar ou pagar dívida de droga.
— Ela disse "droga", com todas as letras?
— A palavra em si não. Mas deixou bem claro que era o que pensava.
— É, Marcos, estamos em uma enrascada. Meus pais também descobriram que fumamos maconha.
— Verdade?!
— E o que pretendem fazer?
— Levar-me para conversar com um médico amigo deles, o Dr. Rubens. Eu já lhe falei sobre ele.
— Essa não!
— E tem mais!
— Diga!
— Já têm conhecimento da falsificação das notas.
— André, como você foi deixar que descobrissem?
— Foi a linguaruda da Laís que contou para minha mãe.
— E agora, o que vai fazer?
— Nada! Fazer o que eles querem. Falar com o tal médico.
— Que "mico", hein, André?
— Não, Marcos, "mico" nenhum. Graças a Deus descobrimos tudo a tempo de poder ajudá-los.
Os dois olharam espantados para Marília que, sem que eles percebessem, entrara no quarto levando uma bandeja de suco.
— Mãe!
— Desculpem-me, esqueceram de fechar a porta e não pude deixar de ouvir a conversa de vocês. Entristece-me ver dois jovens saudáveis, com famílias bem constituídas, tendo todas as oportunidades de conquistar uma vida digna de estudo, trabalho, enfim, vivendo em um lar de verdade onde recebem carinho e amor, enveredarem para o caminho da droga.
— Mãe, já disse que maconha não é droga.
— É sim, André! É uma droga traiçoeira que ataca e destrói lenta e sorrateiramente seus adeptos.
— Mas, Dona Marília, não sentimos nada de diferente! - exclamou Marcos.
— Ainda não Marcos. Mas se continuarem com essa prática leviana, imprudente e enganosa, logo vão sentir os primeiros efeitos, e as conseqüências fatalmente virão.
— Dona Marília, pode ser que o André não tenha motivos para isso, mas eu tenho, e motivo sério.
— Verdade, Marcos? Eu poderia saber qual é? Quem sabe posso ajudá-lo.

Marcos olhou para André. Incentivado pelo olhar do amigo relatou a Marília todo o seu drama, sem nada omitir. Marília sentiu um aperto em seu coração por imaginar quanto devia sofrer aquele coração ainda jovem que sabia ter sido rejeitado e acreditava não ser amado por sua mãe. De maneira maternal, segurou suas mãos e lhe disse:
— Marcos, imagino quanto deve sofrer, mas penso que não devemos nos desviar do caminho do bem, violentando nosso corpo, estragando nossa saúde, por não conseguirmos compreender e muito menos aceitar as fraquezas dos outros, mesmo que seja nossa mãe. Um erro nunca vai justificar o outro. Você já tentou conversar com sua mãe, conhecer os motivos, as fragilidades que a fizeram agir desse modo?
— Acabei de ter uma conversa com ela, mas foi a pior possível. Não existem motivos que justifiquem o que ela fez. Não sei Dona Marília, acho que não valeria a pena tentar conversar de novo.
— Pode ser Marcos, mas lembre que somos fracos e imperfeitos e acredito que ela também deve sofrer remorso pelo que fez. Dê-lhe oportunidade de desabafar e dizer-lhe que te ama. Esses anos todos não foi uma boa mãe?
— Devo reconhecer que sim. Quando era pequeno não me recordo de receber seus carinhos, mas, a partir dos sete anos, quando entrei para a escola, realmente foi carinhosa e muito boa mãe para mim.
— Então, Marcos, converse com ela, saiba o caso por inteiro, assim poderá avaliar com mais justiça.
— E, ela me disse que eu não tinha escutado o fim da conversa dela com minha tia Elvira.
— Está vendo? Mais uma razão para voltar a conversar seriamente com sua mãe. Faça isso!
— A senhora acredita que ela me ama?
— Acredito, acredito sim! - exclamou Marília com firmeza.
— Eu vou pensar. Prometo que vou pensar.
— Que bom Marcos. Por falar nisso, já que falamos de franqueza, por que não acompanha o André no encontro com o Dr. Rubens? Poderá lhe fazer muito bem e com certeza ajudá-lo bastante.
— É, pode ser talvez eu vá.
— Seria o ideal se vocês resolvessem essa questão juntos; um daria força para o outro. Agora, se me dão licença...
Marília saiu deixando os dois amigos sozinhos.
— Puxa, sua mãe é esperta, heim, cara?
— Sabe, cara, eu falei para eles tudo o que você disse para mim, mas não consegui convencê-los. Estão apavorados. Têm receio que eu me envolva com as drogas pesadas.
— Mas você não explicou que maconha não é droga, que não vicia!
— Expliquei cara, mas eles não acreditam e não aceitam. Estão convencidos que é droga sim e querem a todo custo me afastar disso.
— "Sujou", heim, cara! Por falar nisso, estou precisando. Topa?
— Sei não Marcos!
— Deixa de ser molenga, André!
— "Tá" bom, "vamo" lá.
Saíram sem avisar Marília.
Acreditavam poder resolver seus problemas e não conseguiam perceber quanto iam se afundando no caminho incerto e perigoso do vício.
Marília da janela de seu quarto pôde vê-los saindo. Seu coração apertou e seus olhos encheram-se de lágrimas.
— Meu Deus, o que será que nos espera? Por qual sofrimento ainda teremos de passar, Paulo e eu?

Fechou as cortinas, cerrou os olhos e orou ao Senhor por aqueles dois adolescentes que mal começavam a viver e já comprometiam suas vidas com a inconseqüência.




EM BUSCA DO PERDÃO



Assim que Elvira chegou, Laura correu a abraçá-la.
— Obrigada por ter vindo, estou desesperada.
— Por Deus, Laura, estou ansiosa para saber o que aconteceu de tão grave que a deixou nesse nervosismo todo.
— O Marcos, Elvira, ele descobriu tudo o que aconteceu quando engravidei dele.
— Tudo?! Mas tudo o quê?
— Tudo mesmo, Elvira.
— Como ele conseguiu saber disso se nem o Pedro sabe?
— Pois é! Em uma de nossas conversas aqui em casa ele ouviu tudo o que dissemos a esse respeito.
— Há quanto tempo foi isso?
— Mais ou menos cinco anos.
— E nesse tempo todo ele não disse nada para você?
— Nada! Mas eu já havia percebido a mudança de comportamento do Marcos. Somente agora ele disse que desde aquela época ficou revoltado. Hoje está metido com maconha, e não acredita que eu possa amá-lo e ter me arrependido do que fiz.

— Meu Deus, Laura, ele jamais deveria ter tomado conhecimento dessa loucura sua.
— Eu sei, mas o que posso fazer? Não foi de propósito que falei para ele escutar. Agora não sei o que fazer Elvira. Ajude-me, pelo amor de Deus!
— Veja você, Laura: pensamos que as coisas que fazemos se perdem no passado, acreditamos que tudo não passa de lembranças tristes e nada mais, ou então que são fatos que jogamos no canto do nosso coração e os esquecemos. Mas esses mesmos fatos ressurgem no nosso presente e ameaçam-nos de maneira muitas vezes assustadora.
— Mas o que faço agora? Estou confusa e temerosa com o que possa acontecer aqui em casa.
— Agora, Laura, é encarar os fatos e tentar resolvê-los da melhor maneira possível. Acho que deve começar com uma conversa séria, adulta e franca com o Marcos.
— Mas dizer o quê, se ele já sabe de como tudo aconteceu, e pelo visto não me perdoou?
— Laura, controle-se e pense: o Marcos ouviu apenas uma parte da história, como você mesma disse. Conte-lhe o que falta, o que aconteceu depois. Abra seu coração para ele e deixe seus sentimentos saírem livremente. É disso que ele está precisando nesse momento: ouvi-la. Quanto ao perdão, se não for de imediato, virá posteriormente. Dê-lhe o tempo de que ele precisar.
Laura ficou pensativa por uns minutos e em seguida disse à cunhada:
— Você tem razão! Preciso enfrentar a situação, não dá mais para fugir. Só espero que ele tenha boa vontade para me ouvir.
— Talvez esteja esperando por isso.
— E Pedro? O que faço quanto ao Pedro?
— Escute Laura, Pedro é outra história. Você sustentou esse casamento com este segredo entre vocês, e nada é verdadeiro entre duas pessoas quando existe mentira entre elas. Faça uma coisa de cada vez.
— Tem razão, Elvira. Vou seguir seu conselho, eu estraguei, eu devo consertar.
— É verdade, só você poderá tirar do coração do Marcos o mal que causou a ele, a dor que dilacera seu coração. Mas faça rápido, pois o tempo que desperdiçamos que perdemos, jamais poderá voltar.
Laura permaneceu pensativa por alguns instantes.
Lembrou-se do momento em que começou a perceber quanto amava seu filho e quanto ele passara a ser a pessoa mais importante na sua vida. "Fora uma tola, uma inconseqüente", dizia para si mesma.
— Ei, Laura, acorda! - exclamou Elvira.
— Desculpe-me. Estava pensando no amor que sinto pelo meu filho e nunca soube demonstrá-lo da maneira como ele precisava.
— Então demonstre agora. Devemos sempre acariciar e dizer palavras de afeto para as pessoas que amamos, no presente, no hoje, porque amanhã elas poderão partir e nós também.
— E aí a oportunidade se quebra e o momento passa, não é isso?
— Exatamente, Laura!
— Você tem razão. Mais uma vez você tem razão, Elvira. Eu lhe agradeço pelo auxílio que me deu no momento de maior angústia, obrigada. Amanhã mesmo chamarei o Marcos e tentarei ter uma conversa com ele.
— Por que não hoje?
— Hoje ele chega tarde. Vai assistir ao show de um amigo dele que toca em uma banda. Possivelmente quando chegar estarei dormindo.

— Pensando bem, é melhor mesmo que seja amanhã, assim você terá esfriado sua cabeça e estará em melhores condições para se entender com ele. Mas, por favor, Laura, já que tudo veio à tona, não lhe esconda mais nada.
— Não, Elvira, não pretendo esconder nada, acredite.
Dizendo isso, Laura levantou-se e foi até a cozinha buscar um refresco para ambas.
— Pobre, Laura - pensou Elvira —, está sendo vítima dela mesma. Quantos dissabores podemos evitar se agirmos com mais prudência, sem nos atropelarmos no nosso próprio egoísmo.
O som da voz de Laura chamando-a fez com que Elvira fosse ter com a cunhada.
A prudência deve ser constante em nossa vida. Agir com leviandade traz conseqüências que vão nos machucar posteriormente, e nem sempre podemos consertar o estrago feito nos corações das pessoas e no nosso próprio.
Temos de ser fortes para viver.
Temos de acreditar que tudo está envolvido dentro de uma programação muito bem elaborada para nosso progresso espiritual.
Deus não nos dá o que pedimos, mas sempre o que precisamos. Se nos rebelarmos contra a vontade do nosso Criador, um dia, em algum lugar do futuro ou da eternidade, perceberemos que, como sempre, nosso Pai estava certo e justo e nos envergonharemos de nossas atitudes.
Nossas ações devem controlar nossos pensamentos, as marés avançam para as praias e recuam novamente para o mar, assim também será nossa tristeza que se tornará o ontem, se permitirmos que a alegria se torne o hoje.
Devemos sempre nos esforçar para aprender a amar e, por que não, nos comportar de uma maneira que possamos ser amados.
Mais que tudo é adquirir serenidade e paz para nosso espírito. Só conquistamos a paz quando não manchamos nosso coração com o mal causado pelo desamor. O cuidado para não ofender ninguém, seja qual for o motivo, deve ser criterioso, porque nem sempre conseguimos eliminar dos ouvidos das pessoas o som de nossa voz que pronunciou o mal, ou mesmo a dor que foi causada por leviandade nossa.
O hábito de sorrir para a vida deve ser cultivado apesar de todas as dificuldades e violências que a humanidade está sofrendo por conta de alguns que vivem sem Deus. Quando conseguimos sorrir, os nossos problemas são reduzidos ao seu tamanho real.
Se a tristeza nos visitar e demorar em se retirar, é importante nos mantermos ocupados para não termos tempo de ficar tristes.
Tudo passará um dia! É importante nós nos lembrarmos disso!






CONVERSA FRANCA




No dia seguinte, Laura amanheceu animada. Conseguira dormir bem à noite e sentia-se confiante.
— Farei tudo como de costume - pensou. Não vou deixar que minha ansiedade atrapalhe minha rotina caseira.
— Tudo bem com você, Laura? - perguntou Pedro, assim que sentou à mesa para o desjejum.
— Claro, Pedro, tudo bem! Por que a pergunta?
— Não sei. Pareceu-me um tanto ansiosa, apesar de sua aparente animação. Aconteceu alguma coisa que não é do meu conhecimento?
— Não aconteceu nada, Pedro! - exclamou Laura demonstrando impaciência.
— Está bem, apenas preocupei-me com você. Já que está bem...
Tomou o café servido pela esposa e dirigiu-se ao trabalho. Em seguida Marcos apareceu pronto para ir ao colégio.
— Marcos, gostaria de ter uma conversa com você.
— Para quê, mãe? O que tem a me dizer?
— Muita coisa, meu filho, ou melhor, tenho tudo a lhe dizer e gostaria que me ouvisse.
— Sem essa, mãe, não "tô" a fim. Já sei o que vai falar, vai tentar explicar o que não tem explicação e procurar diminuir sua culpa.
— Meu filho, não vou tentar explicar nem diminuir minha culpa, porque concordo com você; não tem explicação que justifique o que fiz e sei que sou culpada sim. Quero apenas me abrir com você, dizer da minha insegurança daquela época, da minha fraqueza e da total falta de maturidade. Dizer também o final da conversa que você não ouviu e é muito importante que saiba.
Percebendo a franqueza e humildade de sua mãe. Marcos sentiu seu coração se enternecer. Sem o sarcasmo costumeiro disse a Laura:
— Pois bem, mãe, podemos conversar, mas não agora. Tenho prova e não posso me atrasar.
— Quando chegar do colégio, após o almoço, pode ser?
— Pode. Vamos combinar assim: às quinze horas, está bem?
— Está, filho, para mim está ótimo.
Laura mal podia acreditar que Marcos concordara. Era a grande oportunidade para se harmonizar com seu filho. Era o que mais queria e precisava. Abriria seu coração sem reservas - pensava —, sem medo ou constrangimento e tudo nos mínimos detalhes seria dito. Posteriormente teria com Pedro a mesma conversa que evitara por tantos anos.
A manhã transcorreu lenta em relação à ansiedade de Laura. Mal conseguia se concentrar em seus afazeres domésticos. Temia perder de maneira irreparável o amor de seu único filho.
— Por que caímos em erros tão graves? - dizia para si mesma. Matar um filho inocente por meio de um aborto, como pude ser tão mesquinha e insensível ao tentar realizar ato tão vil?
A cada pensamento seu coração acelerava os batimentos e o medo se agigantava em seu peito.
O toque do telefone trouxe-a de volta à realidade.
— Alô!
— Laura, sou eu, Elvira.
— Oi, amiga! Que bom falar com você, estou tão ansiosa que tenho a impressão de que as horas pararam e o tempo não sai do lugar.
— Nossa o que está acontecendo?
— Combinei com o Marcos hoje às quinze horas para termos a conversa que há muito tempo evitei, mas que agora é necessária e não dá mais para adiar. Estou nervosa e temerosa com o que poderá acontecer após nosso encontro.
— Coragem, minha amiga. A verdade é sempre preferível que a mentira. Você já não ouviu falar que a mentira tem pernas curtas? Sabe por quê? Porque a verdade tem voz e um dia todos escutarão a voz da verdade, não importa quanto tempo passe. Mas muito cuidado, não conserte um erro cometendo outro. Conte-lhe toda a verdade, limpe sua alma e acalme a dele.
— É o que pretendo fazer. Vou tirar dos meus ombros este peso que carrego há tantos anos.
— E Pedro?
— Farei o mesmo com Pedro. Já o enganei demais, agora chega, quero passar minha vida a limpo.
— Faça isso, Laura. Estou torcendo por você. Jesus vai iluminá-la, porque Ele nunca condenou ninguém. No que precisar conte comigo.
— Obrigada, Elvira.
— Então boa sorte. Amanhã nos falamos de novo.
— Tudo bem. Um beijo.
Assim que desligou o telefone, Laura sentiu um desejo enorme de se comunicar com Deus. Fez silêncio em sua alma e entregou-se à prece, confiando e suplicando auxílio Àquele que ampara sempre os que erram e se arrependem.
A hora esperada e temida por Laura finalmente chegou.
Sentada em frente ao filho, torcia nervosamente as mãos enquanto buscava palavras que explicassem o que tanto queria dizer.
— Vamos, mãe, diga logo o que tem para me falar, estou esperando! - exclamou Marcos também nervoso, mas tentando dar um ar irônico à sua voz.
— Não é fácil para mim, filho, dizer para você quanto eu errei; quanto fui mesquinha e egoísta.
— E... não deve ser mesmo! Vamos ser práticos; diga apenas o motivo que fez com que você me rejeitasse não me quisesse em sua vida, tentasse me matar. É só isso que quero saber, o porquê de tudo.
— Preste atenção no que vou lhe dizer e faça um esforço para me compreender, embora eu admita que tenha motivo suficiente para não aceitar.
— Fale!
— Quando eu era ainda bem nova pequena mesmo, comecei a perceber a diferença com que minha mãe me tratava em relação aos meus irmãos. Tudo de melhor, de mais bonito, de mais caro, era para eles. O carinho, os abraços, a atenção, enfim, cresci sentindo-me rejeitada, preterida, e não conseguia entender o porquê dessa atitude de minha mãe, até que um dia descobri que era adotada.
— Que é isso, mãe! Quem adota uma criança age por um ato de amor; não faz sentido tratar mal um filho que adotou porque quis. Não tem nenhuma lógica.
— Concordo com você. Marcos. Mas nem sempre os motivos que levam a essa adoção são de amor.
— Como assim? Não entendi.
— Na realidade, sou filha de meu pai com outra mulher que morreu no parto quando nasci. Não tendo outra saída, meu pai foi obrigado a contar à esposa dele que tinha uma filha, enfim, contou toda a história de sua infidelidade. Não tendo com quem deixar-me, obrigou-a a aceitar-me como filha e ela legalmente tornou-se minha mãe. Mas ela nunca me perdoou por ter entrado em sua vida sem ser esperada ou desejada. Ela já tinha dois filhos e considerava-me uma intrusa que usufruía do amor de meu pai e dos meus irmãos sem ter direito algum.
— E por que então ela aceitou?
— Por medo de perder meu pai.
— E o vovô não fazia nada?
— Durante algum tempo lutou muito para que eu fosse aceita e amada de verdade por sua esposa, mas depois desistiu. Tratava-me bem, mas sem nenhuma atenção ou carinho especial. Talvez movido pelo remorso de ter traído a esposa, não queria magoá-la ainda mais e deixou que as coisas corressem como mamãe determinava.
— Mas o que tudo isso tem que ver comigo?
— Quando conheci seu pai, apaixonei-me perdidamente por ele e fui correspondida. Nunca ninguém me tratara com tanto amor e carinho. Quando nos casamos decidi que não queria ter filhos para não dividir com ninguém o amor que recebia pela primeira vez em minha vida. Tinha receio de agir como minha mãe e começar a achar que meu filho era um intruso e que iria roubar de mim o amor do homem que eu amava. Entrei praticamente em uma obsessão pelo amor de seu pai e tinha convicção que com um filho perderia o que tanto custara para receber.
— E papai, também não queria ter filhos?
— Queria, sempre quis desde que casamos, mas eu sempre inventava motivos para que isso não acontecesse. Quando engravidei de você, entrei em pânico e não preciso dizer o que fiz porque você já sabe.

— É essa parte sei muito bem.
— Então vai saber agora o que ainda não sabe. Durante seus primeiros anos de vida reconheço ter sido uma mãe displicente, fria, sem dar maior atenção a você. Quanto mais seu pai o amava, mais minha cabeça se confundia e eu achava que perdia o amor que ele sentia por mim Quando você completou sete anos, foi acometido de uma doença muito séria que o levou a ficar internado no hospital por um mês. Foi aí, filho, quando corri o risco de perdê-lo que percebi quanto eu também amava você, o quanto queria que você vivesse e pedi a Deus do fundo da minha alma que não o tirasse de mim, que me perdoasse e permitisse que você ficasse comigo, mesmo que eu perdesse o amor de Pedro. Eu só queria tê-lo junto de mim. Deus me concedeu a graça de sua recuperação, e se você fizer um esforço. Marcos, puxar pela memória, vai lembrar que a partir daí eu mudei totalmente em relação a você. Fui uma boa mãe, dei carinho e passei a valorizar a bênção de um filho em nossa vida. Eu te amo, meu filho! Acredite em mim, eu te amo! - repetiu Laura. — Perdoe-me! Ás vezes a gente chega ao amor pelo caminho mais sofrido e hoje só quero que saiba quanto é amado por mim.
Os olhos de Marcos encheram-se de lágrimas. Abriu os braços e aconchegou sua mãe em seu peito, em um gostoso abraço.
— Eu a perdôo, mãe! Perdôo sim, porque senti em suas palavras e vejo no brilho dos seus olhos a emoção do seu coração. Sinto que me ama, sim, e era só isso que precisava saber.
Laura, como uma criança, deixou-se levar pelo sentimento de bem-estar e paz que invadiu sua alma e, aconchegada ao filho, chorou.
Após extravasar toda sua emoção, disse:
— Você não imagina o peso que eu carregava em meu peito. Marcos, e agora, o alívio que sinto por limpar meu coração dessa inconseqüência que cometi no passado. Obrigada, filho querido!
— Eu te amo também, mãe - respondeu Marcos não menos emocionado.
Lembrando-se do pai, perguntou a Laura:
— E papai, sabe dessa história?
— Não! Ainda não, mas saberá hoje mesmo. Não quero mais nenhuma mentira entre nós. Hoje entendo que o amor tem diversas formas e uma não anula a outra, se for verdadeiro.
— É isso aí, mãe. Bem, tudo foi esclarecido. Fica "fria". Dona Laura, vamos continuar nossa vida sem mágoas, cobranças ou julgamentos. Com o papai quem tem de resolver é você, quanto a mim, "tá limpo"; "tô" indo nessa.
Levantou-se e quando ia saindo, ouviu a voz de Laura:
— Ei, mocinho, hoje finalizamos uma questão, mas tem outra para resolvermos, lembra?
— Qual?
— A questão do seu envolvimento com a maconha.
— Podemos falar disso outra hora?
— Podemos, mas sem demora, porque é uma questão importante.
— Ok. Uma coisa de cada vez, mãe - respondeu
Marcos saindo.
Laura permaneceu no mesmo lugar. Seu pensamento divagava. Não acreditava que tudo que mais temia chegara ao fim e, o que era mais importante, de uma maneira que ela jamais imaginara que aconteceria.
Marcos entendera e a perdoara, e o que era melhor, dissera que a amava.
O tempo passou sem que ela percebesse. Somente deu-se conta quando ouviu a voz de Pedro chamando-a.
— Laura, o que faz sentada aí com esse ar tão absorto? Aconteceu alguma coisa?

Nesse instante, Laura lembrou-se de que ainda teria de vencer outra batalha: Pedro.
— Oi, querido, não chegou mais cedo hoje?
— Não, sabe que horas são? Quase dezenove horas, você não percebeu?
— Meu Deus, perdi a noção do tempo! - exclamou.
— O que aconteceu para deixá-la assim. Onde está o Marcos, brigaram outra vez?
— Saiu, e ao contrário do que pensa não brigamos, nos encontramos.
— Explique-me.
— Pedro, por favor, sente-se aqui ao meu lado, preciso contar-lhe uma coisa.
— Nossa quanto mistério!
— É sério, Pedro, muito sério. Gostaria que me ouvisse com atenção e depois sinta-se livre para resolver fazer o que seu coração mandar.
Pedro sentou-se ao lado da esposa. Laura, bem mais tranqüila, narrou-lhe tudo o que contara a Marcos, sem nada omitir. Pedro a tudo escutava com uma expressão de surpresa e incredulidade no rosto. Quando a esposa terminou, disse-lhe:
— Estou realmente perplexo com tudo isso. Por que você nunca me contou? Escondeu esse sentimento por tanto tempo, se martirizando, quase cometendo o ato vil do aborto, quase impedindo de termos nosso filho do nosso lado. Por que não se abriu comigo? Poderia ter evitado toda essa história, para você e para o Marcos.
— Por medo de perder você, se descobrisse a coisa horrível que tinha feito.
— Mas, se tivesse confiado no meu amor por você, saberia que nosso filho não iria nos separar, ao contrário, iria nos unir mais, pois era o fruto, a prova do nosso amor. O amor de um pai jamais sufoca o amor de um homem por sua esposa, se ele a amar de verdade, e eu sempre a amei de verdade, Laura. O amor é um sentimento elástico, quanto mais damos, mais ele cresce. Devia ter confiado mais em mim, no meu sentimento por você.
— Me perdoa Pedro, por favor!
— Não sou eu quem tem de perdoá-la, é você mesma que deve tirar a culpa do seu coração, se harmonizar com Deus pelo cumprimento de Suas leis.
— Você... não vai me deixar?
— Não, Laura, eu não vou deixá-la, porque meu coração ainda sente o mesmo amor por você, mas gostaria que aprendesse a confiar em mim, entender as diversas formas de amar. Devemos desejar a felicidade de nossos entes queridos e a felicidade só é possível por meio da sinceridade e do amor que se exercita naturalmente, sem egoísmo, sem apego e sem nos colocar como o centro do Universo. Todos temos o direito de amar e ser amados.
Laura levantou-se, e sentando-se no colo do marido, beijou-lhe delicadamente o rosto e lhe disse emocionada.
— Obrigada, Pedro. Hoje sei quanto fui tola, inconseqüente e fraca. Tão tola que nem pude perceber o homem maravilhoso que tenho ao meu lado.
— Já passou Laura, o importante é que o Marcos compreendeu e a perdoou; isto quer dizer que daqui para frente voltamos a ter paz aqui em casa.
Os dois continuaram abraçados por algum tempo, até que escutaram a batida da porta e a voz de Marcos gritando:
— Mãe, estou com fome!






A PASSAGEM DE ISABELA




Naquela manhã de outono, Isabela acordou sentindo-se um pouco indisposta.
Assim que Dona Ana entrou no quarto, estranhou o fato de Isabela estar ainda dormindo. Abriu as cortinas e se aproximou da menina para ajudá-la a se levantar. Olhou a cadeira de rodas ao lado de sua cama e, sem ter explicação, sentiu um aperto no coração.
— Isabela, acorde, está na hora de levantar-se para ir à escola.
— Não estou dormindo Dona Ana - respondeu Isabela —, estou apenas com os olhos fechados.
— Não está se sentindo bem, querida?
— Não sei dizer direito o que sinto, mas estou sem forças, sem vontade, parece que meu corpo pesa e não quer sair da cama.
— Não é um pouco de preguiça, sua mimadinha?! - exclamou Dona Ana brincando e dando um beijo em seu rosto.
— Não, não é Dona Ana, estou mesmo indisposta. Será que vou ficar gripada?

— Pode ser! Quer que eu lhe traga o café aqui no quarto?
— Não sinto vontade de comer. Não estou com fome.
— Nem um chá ou um suco de laranja de que você gosta tanto?
— Obrigada, Dona Ana, mas não quero nada mesmo, a não ser ficar quieta.
Fechou novamente os olhos.
Dona Ana começou a ficar preocupada. Nunca vira Isabela assim desanimada. Olhou mais atentamente para a menina e percebeu seu rosto pálido e a feição triste. "Vou chamar Dr. Rubens", pensou; pode ser que ela esteja mesmo doente.
— Por favor. Dona Ana, feche novamente as cortinas e deixe-me ficar mais um pouco na cama. Não vou à escola hoje.
Dona Ana atendeu ao pedido de Isabela. Fechou as cortinas, cobriu a menina com extremo carinho e foi direto ao telefone falar com Rubens.
— Por favor, senhorita, aqui é a governanta da casa do Dr. Rubens, preciso falar com ele com urgência.
— Um momento senhora - ouviu-se do outro lado da linha. Dona Ana esperou com um pouco de impaciência.
— Alô! Dona Ana, aconteceu alguma coisa com Isabela?
— Não sei, mas estou preocupada com ela.
— Diga-me por quê!
— Não quer se levantar da cama, disse que não vai à escola porque está indisposta e também não quis aceitar o desjejum.
— A senhora notou em Isabela alguma alteração significativa?
— Notei que está muito pálida um pouco febril e um olhar muito triste. Gostaria que o senhor viesse vê-la.
— Fique tranqüila, em quinze minutos estarei aí.
Dona Ana voltou novamente ao quarto de Isabela. A menina continuava na mesma posição, de olhos fechados e a palidez acentuara um pouco mais. Colocou a mão na testa de Isabela e verificou que continuava febril.
— O que será que tem essa menina, meu Deus. Ontem ela estava tão bem!
Sentou-se na poltrona ao lado de sua cama e ficou aguardando a chegada do Dr. Rubens.
— É a senhora que está aí Dona Ana? - perguntou Isabela com voz fraca e sem abrir os olhos.
— Sim, querida, sou eu. Chamei seu pai para vir vê-la. Deve estar chegando. Fique tranqüila, não vou sair de perto de você.
Passado um curto espaço de tempo, Rubens entrou no quarto. Com carinho aproximou-se de sua filha e depositou um beijo em sua face.
— Então, meu anjo, o que você está sentindo?
— Não sei explicar, papai. Sinto uma fraqueza muito grande, é como se não tivesse força para nada. Quero apenas ficar quieta e dormir.
Rubens com delicadeza e carinho examinou a filha minuciosamente. Constatou que realmente ela estava febril. Fez-lhe algumas perguntas e optou em levá-la até o hospital para fazer alguns exames e chegar ao diagnóstico correto.
— Não quero ir ao hospital, papai!
— Filha, é o hospital onde o papai trabalha. Gostaria que o Dr. Alex a examinasse. Estarei com você a maior parte do tempo. São necessários alguns exames para saber o que exatamente você tem.
— Está bem!
Rubens ligou pedindo que a ambulância viesse buscá-la. Instalada no quarto de hospital, Isabela pediu ao pai que buscasse sua amiga Laís para ficar com ela.
— Por favor, papai, gostaria muito de conversar com ela. Ela é minha amiga, traga-a aqui.

— Filha, você veio apenas para fazer alguns exames, eu já lhe expliquei. Ficará pouco tempo aqui. Amanhã ou depois estará em casa novamente, aí sim, buscarei a Laís para lhe fazer companhia.
— Pai, sinto algo muito estranho em mim. Não sei explicar, mas pressinto que não voltarei mais para casa.
Rubens espantou-se. Abraçando a filha com emoção lhe disse:
— Filhota, não fale assim. São apenas alguns exames. Você ficará boa logo, acredite no que estou lhe dizendo.
— Está bem, papai, acredito. Mas, por favor, traga a Laís aqui, quero ficar perto dela, é minha única amiga.
— Se é o que você quer, mandarei o motorista buscá-la.
— Obrigada, pai. O senhor sabe quanto eu amo o senhor, não sabe?
— Sei filha. Mas saiba que é o meu amor por você que dá sentido à minha vida; o seu sorriso é que traz alegria ao meu coração e a sua força é o exemplo que eu tento seguir. Papai ama você, filha, mais que tudo nessa vida.
Os dois se abraçaram de uma maneira surpreendente. Isabela experimentou a sensação de despedida, como se fosse a última vez que abraçava seu pai.
Dona Ana presenciava tudo sem entender nada nem por que Isabela estava tão aflita se ainda não tinha feito nenhum exame e nada sabiam a respeito do que ela poderia ter.
— Vocês se comportam como se fossem se separar definitivamente. O que é isso, Isabela? E o senhor, Dr. Rubens, não são apenas exames que ela vai fazer?
— Claro Dona Ana, é que Isabela é muito amorosa; é assim desde a mais tenra idade. Bem, agora vou chamar o Dr. Alex para vê-la e posteriormente fazermos os exames que ele julgar necessário. Com licença.
— Não se esqueça da Laís! - exclamou Isabela.
— Dona Ana, por favor, diga ao motorista que vá até a casa da Dona Marília e peça-lhe permissão para trazer a Laís.
— Voltarei em um instante, Isabela.
Saiu e Isabela se viu sozinha. Sentiu uma dor forte no peito e teve medo. Pensou em sua mãe, seus irmãos e orou a Jesus para que a amparasse.
— Meu Deus, não sei o que tenho nem o que vai me acontecer, mas seja o que for, confio em Vós e sei que não estou sozinha. Venha em meu auxílio. Assim seja.
Tudo aconteceu muito rápido. Uma dor mais forte, outra, e uma parada cardíaca transportou Isabela para o mundo dos Espíritos.
Isabela desencarnara na flor de sua adolescência.
— Dr. Rubens, o senhor precisa reagir se alimentar. Por tudo o que já passou o que já sofreu sem nunca se desesperar, confie mais uma vez em nosso Pai que está no céu.
— Ele tirou, mais uma vez, um ente querido meu.
— Não, Dr. Rubens, Deus não nos tira nada e o senhor sabe tão bem disso porque foi o senhor mesmo quem me ensinou. Como o senhor sempre diz, a resposta vamos encontrar um dia em algum lugar do futuro.
— Dona Ana, não é desespero nem revolta o que sinto, mas uma tristeza tão grande que tira de mim todas as minhas forças. Separei-me de minha mulher e de meus filhos no dia que era para ser um dos mais felizes para nós. Sou um homem só, tive tudo e agora nada tenho. O que fazer de minha vida se não possuo mais objetivo, ideal? O que fazer com essa casa enorme, com o fruto do meu trabalho? O que faço com tudo isso? Encontrei força da primeira vez, mas será que conseguirei novamente?
— Posso imaginar Dr. Rubens; pelo tamanho da minha dor, posso imaginar a do senhor. Mas é preciso reagir, ter fé e esperança. Tudo o que nos acontece nasce de uma causa o senhor me ensinou isso. Hoje não conhecemos a resposta, mas futuramente, no retorno, tudo será compreendido. O senhor sempre foi uma pessoa boa, nosso Pai dará um jeito de lhe trazer forças. O senhor aceita um café?
— Prefiro um chá. Se puder trazer-me, fico agradecido. Enquanto isso vou dar uma olhada nas coisinhas de Isabela.
Dona Ana saiu. Rubens, dirigindo-se ao quarto de Isabela, começou a mexer nos objetos da filha, com a saudade cortando-lhe a alma. Após alguns instantes, observou em cima da cama, ao lado do travesseiro, um envelope branco. Pegou-o e leu: "Papai".
O coração de Rubens disparou e ele empalideceu.
Dona Ana, ao entrar trazendo a bandeja com o chá, encontrou-o ainda segurando o envelope, sem coragem de abrir.
— O que é isso?
— Dona Ana, veja! Encontrei perto do travesseiro de Isabela.
— Que estranho! - exclamou Ana. — Abra Dr. Rubens, vamos ver o que tem aí dentro.
Com mãos trêmulas, Rubens abriu o envelope. Em uma folha perfumada e cheia de florzinhas miúdas desenhadas, estava escrito:
Papai, nunca esqueça que eu te amo! Há dois dias sonhei com um anjo e no sonho ele me disse que viria me buscar porque era chegada a hora do meu retomo. Que eu não tivesse medo, pois a bênção de Jesus iria me amparar. Sou ainda uma criança, não entendo dessas coisas nem sei se o que a gente sonha acontece. Pensei, então, em escrever para o senhor caso seja verdade e isto aconteça realmente, queria lhe pedir que não se desespere nem sofra tanto, porque como disse o anjo estarei amparada pelo amor de Jesus. Sou muito feliz porque o senhor é o melhor pai do mundo, eu o amo e, com certeza, se eu partir, sentirei muita saudade. Mas maior que a nossa dor e a nossa saudade é o amor de Deus por nós. O senhor me ensinou que o amor enxuga as lágrimas e, se eu não estiver mais aqui, é porque chegou a hora do grande amor que o senhor tem nesse coração enorme enxugar suas lágrimas mais uma vez.
A Laís me contou que a mãe dela trabalha como voluntária em uma entidade que cuida de gestantes carentes, ajudando na confecção dos enxovais. Nossa casa é tão grande, transforme-a em um abrigo maternal. O senhor melhor do que eu sabe como fazer isso. Faria bem a mim, ao senhor e às mãezinhas que não têm um teto para se abrigar e ter seus filhos com segurança.
O desespero não soluciona problema algum; a dor não vai impedir o sol de brilhar; a tristeza não evitará que a luz da verdade e do amor fraternal deixe de iluminar os caminhos daqueles que acreditam no Pai; enfim, papai, troque suas lágrimas pelo suor vertido em benefício da felicidade do próximo para que encontre a sua paz e a sua harmonia. Tudo o que existe vem de Deus; nós viemos de Deus e é para Ele que retornamos; o Pai nos une e nos separa por um curto espaço de tempo, comparado à eternidade. O senhor deve estar estranhando uma menina escrever tudo isso, mas é o anjo que está me dizendo e eu acredito muito nele. Ele é lindo, papai!
Sabe, papai, acho que é verdade o que ele me disse, é possível que eu vá mesmo me encontrar com ele, mas onde eu estiver o meu amor estará com o senhor. Diga à Dona Ana que gosto muito dela e agradeço todos os seus cuidados comigo. Não se esqueça de dizer para a Laís que ela foi a única amiga de verdade que eu tive.
Se nesse momento suas lágrimas estiverem embaçando seus olhos, demonstrando toda a sua dor, lembre-se do que o Dr. Rubens ensina para todos aqueles que sofrem: "O amor enxuga as lágrimas". É chegada a hora de mais uma vez o senhor enxugar as suas por meio do amor Eu te amo! Isabela.
— Veja Dr. Rubens, o auxílio divino veio pela própria Isabela. Ela mesma lhe deu a resposta do que fazer com sua casa tão grande, com seus objetivos e com sua vida, e isso o senhor vem fazendo há anos.
— Deus colocou ao meu lado um anjo para me ajudar a caminhar, agora, Ele quer que eu caminhe sozinho. Que meus pés tenham força para prosseguir.
Os soluços de Rubens e Ana ecoavam no quarto sobrepondo a qualquer som que pudesse existir. Naquele momento não estavam ali governanta e patrão, mas, sim, dois seres que sofriam a penosa dor da separação.
— As pessoas que amamos vão embora e nós não podemos impedir, o que podemos e devemos compreender é que a vida jamais se extingue, sofre mudanças, transformação, mas sempre existirá de alguma maneira e em algum lugar.
Quando o sol se põe, e a noite desce, na verdade ele não acabou apenas está iluminando outra parte do mundo. Os seres que amamos quando nos deixam não significa que deixaram de existir. A nossa veste carnal acaba, sim, mas o nosso espírito nasce do outro lado da vida para prosseguir a sua evolução. O amor quando verdadeiro une as pessoas, não importa onde estejam nem o tamanho da distância.
Francisco de Assis disse: "A nossa vida é como o sol, nasce e se põe, obedecendo a um determinado espaço de tempo para tornar a nascer. Nada morre eis aí a nossa alegria."
Vós que compreendeis a vida espiritual, escutai as pulsações de vosso coração chamando esses entes bem-amados, e se pedirdes a Deus para os abençoar, sentireis em vós essas poderosas consolações que secam as lágrimas, essas aspirações maravilhosas que vos mostrarão o futuro prometido pelo Soberano Senhor. (Evangelho Segundo o Espiritismo — Capítulo V, item 2)


AS DROGAS






Marília entrou nervosa no quarto de André. Pela primeira vez faria algo que contrariava seus princípios de respeito em relação aos pertences dos outros.
Sem conter seu nervosismo começou a mexer nas coisas dele, procurando o que, na realidade, tinha medo de encontrar. "Não é possível que ele não consegue entender o perigo a que está se expondo", pensava, enquanto mexia desordenadamente em tudo o que encontrava. "Tantas vezes conversamos, mostrei a ele o mal que a maconha pode trazer ao corpo e à alma. Quando me acalmo, pensando que ele finalmente entendeu, cai essa bomba sobre minha cabeça."
O quarto parecia ter sido atingido por um vendaval, tamanha confusão feita por Marília.
— O que está fazendo no meu quarto? - perguntou André encostado na porta.
Marília virou-se rapidamente e por alguns instantes teve medo da reação do filho. Ia responder quando novamente André gritou:

— Quem te deu o direito de entrar no meu quarto e mexer nas minhas coisas?
— O fato de ser sua mãe me dá esse direito quando percebo que você está se envolvendo com prática perigosa.
— Engano seu. Nem a senhora tem esse direito; a senhora é minha mãe, não minha dona, e da minha vida cuido eu!
Marília um pouco descontrolada respondeu quase gritando:
— Enquanto viver sustentado pelo seu pai e aqui na nossa casa, você tem deveres para conosco e um deles é nos respeitar!
— O que quer dizer com isso? Quer que eu vá embora?
Marília sentou-se na cama e cobrindo o rosto com a mãos chorou.
— Filho, não quero que vá embora daqui, nós amamos você, queremos o seu bem, que seja feliz. Por que você não larga o vício? Veja o mal que está fazendo a você, a nós que somos sua família. Tornou-se irônico, agressivo, enfim, mudou seu comportamento conosco.
— Que mal, do que a senhora está falando?
— Fui chamada na escola e me disseram que você e o Marcos foram suspensos por uma semana porque foram pegos fumando maconha no pátio na hora do recreio. A diretora me disse que se acontecer novamente serão os dois expulsos do colégio. O que você me diz?
André perdeu a valentia.
Sabia que não teria mais nenhum argumento e que não conseguiria enganar e mentir mais para sua mãe.
— Por que faz isso, filho? O que procura? O que pensa que vai conseguir entregando-se ao vício? Não percebe que a maconha poderá levá-lo à perdição, à desgraça, ao sofrimento e até à prisão? O seu pai e eu deixamos de fazer alguma coisa que provocou essa sua atitude? Diga-me o que falta a você?
André continuava cabisbaixo. Não tinha o que responder porque sabia que não existiam motivos para levá-lo a essa imprudência. Sempre fora amado e respeitado por seus pais, nem ele mesmo sabia por que tinha entrado nessa loucura. Lembrava apenas que fora Marcos quem apresentara a maconha para ele. Diante do silêncio do filho, Marília aproximou-se dele e dentro do possível tentou ser calma e prudente.
— André, pelo visto você não vai conseguir se livrar sozinho, você precisa de ajuda e o Marcos também. Gostaria que o chamasse aqui com seus pais para conversarmos e ver o que podemos fazer para salvá-los enquanto é tempo.
Dizendo isso, Marília saiu do quarto deixando para ele a tarefa de recolocar tudo no lugar.
Assim que Paulo chegou, tomou conhecimento pela esposa de tudo o que acontecera.
— Marília, parece-me mais sério do que supúnhamos. Você fez muito bem em chamar os pais do Marcos; nós quatro teremos mais condições de encontrar uma solução para o problema.
Na casa de Marcos a mesma cena se repetia. Laura e Pedro, temerosos com o mesmo fato de que tomaram conhecimento na escola, tentavam encontrar uma solução quando Laura teve a mesma idéia de Marília.
— Boa idéia, Laura. Juntos poderemos encontrar o melhor caminho para resolver essa situação.
— Eu havia dito ao Marcos que precisávamos ter uma conversa sobre esse assunto, mas ele sempre fugia dizendo ter de ir para a escola, fazer isto ou aquilo, enfim, nunca tinha tempo.
— Bem, agora é concentrar nossa atenção nesse fato concreto: nosso filho é um dependente da maconha. Vamos tentar ajudá-lo.
— Vou ligar para a Marília e combinar o dia e horário para nos encontrarmos.

— Faça isso, Laura!
A imprudência do homem faz com que ele traga para si mesmo os motivos da infelicidade e da doença. Afunda-se nos vícios do alcoolismo, das drogas, do tabagismo, enfim, cai na inconseqüência que mutila o perispírito e aniquila o corpo físico. Esta atitude enganosa projeta-o na inconsciência de que um dia, mais cedo ou mais tarde, pagará muito caro para aprender. Esses vícios prejudicam o espírito por várias encarnações. Aquele que compreende a energia da vida, a bênção do corpo físico, dá a ele somente o que ele necessita, ou seja, alimentação saudável e correta; preza suas horas de sono, de descanso, participa da vida com prudência e equilíbrio, em troca conquista a felicidade verdadeira que é o cultivo das virtudes que nos aproximam do Criador (Irmão Ivo).
Marcos e André, sentados na sala ao lado de seus pais, mantinham a cabeça baixa como se quisessem dizer com essa postura que nada tinham a declarar. Paulo, adiantando-se aos demais, disse:
— Gostaria que nos dissessem o que aconteceu que fez com que trouxessem a droga para a vida de vocês, causando-nos preocupação e medo.
— Não houve nada, Sr. Paulo - respondeu Marcos. — Apenas aconteceu.
— Como aconteceu Marcos? - indagou Pedro. — Foi por causa do problema que enfrentava com sua mãe?
— Não sei pai, pode ser eu não sei.
— E você, André, que motivos teria para desprezar os ensinamentos que nós demos a você e enveredar por um caminho perigoso?
— Mãe, depois que o Fábio morreu a senhora se esqueceu de todo mundo. Vivia chorando pelos cantos, nem se lembrava de mim ou da Laís, ou mesmo do papai. Eu comecei a me sentir sem importância alguma para vocês, sei lá, só sei que aconteceu. Experimentei uma vez e gostei, é isso.
— Não culpe sua mãe ou a mim, André. Ela pode ter errado, mas foi a maneira que ela encontrou de passar por aquele sofrimento, e nem por isso foi se afundar na maconha para esquecer. Você entrou porque quis várias vezes alertamos você e sua irmã sobre o perigo dessa droga, só que parece que
você não compreendeu nada.
— Sr. Paulo - disse Marcos —, a maconha não é droga e a gente pára a hora que quiser.
— Quem lhe disse isso Marcos, que maconha não é droga?
— Ora, pai, todo mundo sabe disso.
— Qual todo mundo, André? - disse Marília nervosa. O todo mundo a que você se refere são as mesmas pessoas que pensam como vocês, que fumam como vocês e que não têm nenhum limite do que é certo ou errado. Estas pessoas não são "todo mundo". As pessoa lúcidas, inteligentes, que têm objetivo de vida, corajosas e querem uma vida de saúde, paz e progresso tanto material como espiritual, não pensam nem agem como este "todo mundo".
— Vocês estão fazendo uma tempestade sem razão. Todo jovem hoje fuma ou já fumou maconha! - exclamou André.
— E você acha certo isso, filho? Os inteligentes, os espertos, com certeza já largaram porque perceberam o mal a que estavam se expondo. Os que continuam é porque já estão atolados no regime pernicioso do vício e não conseguem vislumbrar quanto podem ser felizes vivendo dentro da
normalidade e do bom senso.
Pedro, percebendo que os dois jovens necessitavam realmente de uma ajuda especializada, de alguém mais capacitado para orientá-los, disse a Paulo:

— Paulo, sei que você tem amizade com o Dr. Rubens. Eu não o conheço pessoalmente, mas já ouvi falar muito bem desse médico, da sua capacidade e da boa vontade em auxiliar as pessoas. Não poderíamos encaminhar os dois para uma consulta com ele?
Marília, adiantando-se ao marido, respondeu de pronto:
— Há um tempo eu tinha planejado e combinado com o André que o levaria para uma entrevista com ele, convidei até o Marcos para nos acompanhar.
— E por que razão não foram não quiseram?
— Na realidade não foi isso. O fato é que o Dr. Rubens sofreu a perda de sua única filha, de uma maneira estranha e completamente imprevista. A menina amanheceu indisposta e em menos de vinte e quatro horas, sem que nada ainda tivesse sido feito, ela desencarnou.
— Meu Deus! - exclamou Laura.
— Foi realmente muito triste - continuou Marília. Tínhamos um carinho enorme pela menina. Era a melhor amiga da Laís, que até hoje sofre pela separação da amiga. Enfim, devido a esse lamentável acontecimento, achei melhor adiar e respeitar o momento de dor de um pai. Sei quanto é difícil e dolorosa a separação de um filho e sei também quanto esse bondoso médico já sofreu.
— Nesse ponto você tem razão, Marília. Vamos aguardar um pouco mais, está ainda muito recente - disse Paulo.
— O que fazemos, então? - perguntou Laura, medrosa e insegura.
Paulo, com voz firme, dirigiu-se aos dois jovens.
— O que vamos fazer é ficar cada vez mais atentos com vocês, prestar atenção em tudo que fazem e aonde vão, e não vamos desistir de orientá-los quanto ao risco que estão correndo, enfim, esperamos que tenham um pouco mais de
juízo. Saibam que serão cobrados quanto aos seus deveres para conosco e com a escola. Assim que meu amigo Rubens retornar ao seu trabalho rotineiro, marcarei uma entrevista com ele. Certo estou de que ele não se negará a auxiliar-nos.
A maconha, ao contrário do que muitos dizem, faz muito mal e tem um poder viciante muito forte, sim, e a dependência psíquica varia de pessoa para pessoa. Suas substâncias cancerígenas são 60% mais fortes que as encontradas no cigarro; sem dizer de todas as outras alterações que produz no corpo e na mente daquele que dela faz uso. A sensação de prazer e de bem-estar é ilusória. Camufla o que o dependente realmente é dando-lhe uma falsa impressão de que é o que desejaria ser. É uma viagem com muitos perigos pelo caminho e deixa marcas, na maioria das vezes, graves; como, por exemplo, alterações eletroence-falográficas, com lentidão das ondas cerebrais; aumenta a freqüência cardíaca podendo dobrar a pulsação; pode produzir ilusões e alucinações; altera noções de tempo e espaço, perdendo a noção de distância, enfim, são apenas alguns efeitos que a maconha pode exercer sobre a pessoa que dela faz uso. Se o uso for prolongado, acontece não raro diminuição de testosterona e de espermatozóides no homem, e na mulher pode chegar à inibição da ovulação por meio das alterações hormonais.
(Poderíamos enumerar várias alterações provocadas pelo THC (tetraidrocanabinol) - substância química fabricada pela própria maconha) no corpo físico e, principalmente, no corpo perispiritual do usuário, mas não é essa a finalidade deste livro, aqui apenas uma breve consideração a respeito, na tentativa de alertar aqueles que pensam que maconha não faz mal e que conseguem parar no momento que quiserem. É importante que saibam que terão sérias dificuldades quando decidirem parar de fumar a maconha; nem todos conseguem.
Os pais devem estar atentos às atitudes dos filhos; prestar mais atenção no comportamento, em suas feições, em seus olhos, enfim, nas mudanças que poderão ocorrer na conduta deles, em casa, na escola ou na rua. Somente assim terão condições de perceber se algum traficante está adotando seus filhos.
Pedro e Laura despediram-se dos amigos e retornaram à sua casa levando amargura no coração. Marcos os acompanhava sem emitir uma única palavra.
Na casa de André, a mesma sensação de desconforto e amargura incomodava o coração de Paulo e Marília. André subiu para seu quarto, enquanto sua mãe fora ter com Laís que muito sofria com a saudade de Isabela.
Paulo, aproveitando o momento de silêncio e tranqüilidade aparente, entrou em seu escritório e orou ao Pai suplicando ajuda para conseguir vencer mais essa batalha em sua vida.


ORIENTAÇÃO ESPIRITUAL


Tanto na residência de Marília quanto na de Laura, o clima era tenso e de muita ansiedade.
Esperavam com expectativa o dia em que seus filhos pudessem se encontrar com Rubens, pois acreditavam que ainda poderiam salvá-los de prática tão nociva.
Por insistência de Inês começaram a freqüentar com regularidade uma casa espírita, com a esperança de encontrar alívio para seus corações e coragem para enfrentar o que ainda poderia vir.
Laura e Marília tornaram-se grandes amigas. Uma tentava apoiar a outra. Perceberam que ficavam mais fortes e corajosas sempre que iam assistir às palestras ministradas na casa espírita.
— Marília, às vezes quando estamos na reunião sinto muita vontade de perguntar ao mentor espiritual o porquê de tudo que estamos passando com nossos filhos.
— E por que não pergunta Laura?
— Você acha que devo?
— Claro, por que não? Pode ser que "Ele" nos esclareça e possamos compreender melhor essa situação.

— É verdade, existem coisas que não conseguimos entender e temos muita dificuldade em aceitar.
— Laura, tudo o que atinge diretamente nosso coração temos dificuldade em aceitar.
— Uma coisa que não entendo Marília, é a atitude do Dr. Rubens. Pelo que me contaram, de tudo que vocês falam dele, sempre foi uma pessoa de fé, sempre ajudando o próximo. Superou com tanta coragem a perda da esposa e dos filhos, de um modo violento, e agora caiu no desânimo. Por quê? Já se passaram quatro meses da morte da filha, e parece que ele não conseguiu retomar suas atividades como fazia antes.
— Às vezes me pergunto a mesma coisa, Laura. Ele me ajudou tanto quando perdi o Fábio e agora ele não quer ver ninguém.
— Pode ser que ele se sinta culpado.
— O que é isso, Laura? Culpado de quê?
— Sei lá! Talvez por não ter podido fazer nada para salvar a filha, não sei Marília, mas alguma coisa deve estar acontecendo.
— Isso é verdade. Ele sempre foi muito forte, corajoso. Enfrentou tudo com dignidade e amor no coração. O que será que acontece com as pessoas, mesmo as fortes, para caírem assim?
— É uma boa pergunta - exclamou Laura!
No Mundo Espiritual
— Jacob, o que leva uma pessoa a mudar de atitude após passar por determinado sofrimento?
— Horácio, quando não temos firmeza para impedir que a dor modifique nossos conceitos, nossas atitudes produtivas, é sinal evidente de pouca fé. Aquele que conhece, respeita e segue as leis divinas de verdade se fortalece na dor porque se entrega ao amor de Deus e no amor de Deus encontra o bálsamo para todo o sofrimento.
— Mas no caso do nosso irmão Rubens. Conhecemos sua trajetória na Terra, pois o acompanhamos há muito tempo, sabemos de sua capacidade de compreender e amar o próximo, levando-o a conhecer o amor de Deus e merecer esse amor por meio da caridade e da fraternidade vivida. Sofreu dor maior que a atual e, no entanto, é agora que se fragiliza ao ponto de não encontrar ânimo para reagir.
— Horácio, não podemos querer avaliar qual dor é a maior quando não vivemos a situação, só quem sabe é aquele que sente. A alma humana é uma caixinha de surpresas, nem sempre sabemos o que está guardado dentro dela. Nosso querido Rubens conseguiu superar mais rapidamente da primeira vez porque a ligação dele com Isabela vem de muito longe. São dois espíritos que estão ligados há muitos séculos pela afeição sincera. Ele colocou no coração o agravante da culpa por não ter feito nada para salvá-la, o que não conseguiria, porque o momento era aquele. A vida de Isabela foi curta porque sua missão ao lado de Rubens chegou ao fim. Quando na erraticidade, aceitou vir como filha de Rubens, passar pelo que passou para ajudá-lo a vencer. Mesmo quando criança era ela quem levava força ao coração paterno. Quando sofreu o acidente deu o exemplo de que, mesmo paralítica, podia ser feliz, pois tinha o coração sadio, forte e amoroso, e mostrou que para amar não precisamos de braços e pernas, mas somente de um coração bondoso e sincero.
Depois que esse espírito retornou à espiritualidade, Rubens, inconscientemente, sentiu-se sozinho, perdido e acha que sua força vinha da força da filha; pensando assim, enfraqueceu. Mas esta situação não demorará muito. Sua índole é de um homem bom e generoso, é apenas uma fase, uma adaptação, logo estará novamente enxugando suas lágrimas por meio do amor.
Em breve perceberá que sua força espiritual vem dele mesmo e a ele pertence. Prosseguirá sozinho na Terra, mas amparado por todos os amigos espirituais que conquistou ao longo dos tempos, inclusive Isabela. A partir desse momento nada poderá enfraquecê-lo de novo, pois o amor possui alicerces fortes e se sustenta por si só. Ele só necessita de um tempo, como ser humano que é.
— Por que sofreu uma dor tão grande, perder a esposa e os filhos de uma vez só?
— A resposta ele terá no retorno e no momento certo. Só posso dizer que não houve injustiça ou castigo divino, apenas conseqüência. Ele não é vítima, mas está sendo um vencedor.
— Tantos encarnados desejam melhorar o mundo, mas entregam essas mudanças só nas mãos dos governantes, não é verdade, irmão Jacob?
— Sim, Horácio, é verdade. Eles esquecem que fazem parte de um todo e que devem ser a transformação que desejam no mundo.
— É certo alguns espíritas solicitarem dos espíritos que resolvam seus problemas?
— Não! Podem pedir orientação e coragem para prosseguir, mas nunca esquecer que a caminhada é sua. A tarefa que lhe foi confiada é de sua inteira responsabilidade, cabe a você cumpri-la. Os espíritos podem, sim, abrir uma janela por meio dos conselhos, indicando o caminho seguro que será sempre o do bem e da verdade; agora, permitir que o sol entre e brilhe depende de cada um.
— Existem muitos enganos!
— Sim, existem. Mas isso acontece na maioria dos casos porque o homem está mais interessado em adquirir bens materiais, desprezando os bens morais e espirituais. Cabe ao dirigente espiritual incentivar a leitura edificante, para que os freqüentadores de uma casa espírita possam conhecer a verdade da vida futura, a que sobrepõe a vida terrena. Nas obras de Kardec encontramos essa verdade que clareia e conforta os corações.
Dia virá em que os homens entenderão o porquê real do soprar dos ventos; que nossas tristezas são como as vindas e idas das marés, vão e dão espaço para as alegrias, se permitirem. A noite escura se transforma em dia ensolarado trazendo esperança e redescobrimento da vida, enfim, entenderão de verdade que a vida é algo maior do que alguns anos passados na Terra e será nesse dia que começará a transformação do homem por meio do amor.
— Laura, estive pensando que poderíamos fazer uma visita ao Dr. Rubens, levar-lhe um abraço, uma palavra de esperança. O que você acha?
— Acho ótima idéia, Marília!
— Tantas vezes ele me fez enxergar que a nossa alegria está em saber que ninguém morre, sofremos apenas uma transformação livrando-nos do envoltório carnal e nascendo no Reino de Deus com nosso corpo fluídico. Pode ser que nesse momento ele necessite de alguém que o faça lembrar-se disso.
— Iremos quando quiser.
— Vou telefonar para Dona Ana e marcar o melhor dia e horário.
No dia combinado, lá estavam Marília e Laura em frente ao Dr. Rubens.
Mais magro, abatido, mal lembrava o médico forte, cheio de energia e de coragem para trabalhar e enfrentar as dificuldades que Marília conhecera e aprendera a admirar.
Feita a apresentação de Laura, sentaram-se próximas ao médico e foi Marília a primeira a falar.
— Dr. Rubens, não nos leve a mal, mas preocupamo-nos com o senhor e quisemos vir até aqui para dizer-lhe da nossa amizade, do quanto o respeitamos e que somos solidárias à sua dor.
— Eu agradeço muito, Dona Marília, a preocupação que têm comigo, mas não há necessidade, eu estou bem - respondeu sem muita convicção.
Dona Ana, que permanecera no recinto, interveio:
— Dona Marília, ele não está bem. Não se alimenta direito, dorme mal e quase não tem ido ao hospital, enfim, perdeu completamente o gosto pela vida. Não sei mais o que fazer, foi muito bom a senhora ter vindo.
Marília olhou para Laura. Incentivada pelo olhar da amiga respondeu:
— Dr. Rubens, o senhor conseguiu me fazer ver e querer a vida novamente por ocasião da partida do Fábio. Hoje sou quem gostaria de lembrá-lo que possui dentro do seu coração todas as ferramentas necessárias para reconstruir a sua vida e deixar que sua sabedoria e seu amor possam ir ao encontro daqueles que sofrem e não conseguem enxergar uma réstia de esperança.
— Dona Marília, não é só a saudade que está me atormentando, mas saber que não fiz nada para tentar salvar a vida da Isabela. Ela se foi sem que eu tivesse tido tempo sequer de saber o que realmente estava acontecendo. Sei que minha querida Isabela está bem e feliz junto aos seus entes queridos, mas a culpa me consome, sem dizer que ela era a minha força e a minha alegria.
Laura continuava calada por não se achar no direito de dizer qualquer coisa. Acabara de conhecer Rubens e não se sentia à vontade de dizer nada. Mas Marília, como se estivesse sendo inspirada por alguém, continuou mais segura ainda:
— Pelo que sei Dr. Rubens, o senhor não teve culpa de nada. A rapidez como aconteceu mostra que tudo seguia os desígnios de Deus. A tarefa dela na Terra e junto ao senhor terminava ali, foi o senhor mesmo quem me ensinou isso. Quanto a sua força vir totalmente dela, também é questionável. Vocês tinham afinidades, afeição sincera; a força dela apenas encontrava parceria na sua força própria, nesta força que eu sei que possui e jamais perderá porque nasce do seu grande coração cristão. Foi essa força que me fez amar a vida novamente. O senhor só não descobriu ainda que pode lutar e vencer sozinho, sem a presença física de Isabela. Talvez o senhor não tenha se dado conta ainda do bem que faz para todas as pessoas que se aproximam do senhor.
Rubens olhava Marília com surpresa.
Jamais esperara ouvir dela essas palavras, sensatas e lógicas. A firmeza com que expunha seu pensamento em nada lembrava a Marília que conhecera tempos atrás.
— A senhora poderia me dizer o que fez com a saudade do seu filho, e o que faço com a minha?
— Posso Dr. Rubens, posso sim. E o que vou dizer não fui eu que descobri sozinha, foi o senhor quem me ensinou, vou apenas lembrar-lhe. Sabe o que fiz? Guardei bem o rosto do Fábio dentro do meu coração e, cada vez que a saudade apertava, eu o tirava do coração e trazia seu rosto aos meus olhos e o admirava com o mais puro amor que meu coração pudesse sentir. E como o senhor falou várias vezes, agradecia a Deus por ter me dado memória para poder lembrar-se do meu filho. Percebi, então, que me sentia em paz cada vez que me lembrava dele porque aprendi e acreditei que para o amor não existe distância; a distância existe para os olhos, não para o coração.
Rubens estava estupefato. Custava a crer em tudo o que ouvia. Marília continuou:
— E as suas lágrimas, Dr. Rubens, vai enxugá-las por meio do amor que me ensinou, ou vai continuar permitindo que elas consumam sua alma impedindo-o de viver e ser útil aos seus semelhantes?
Dona Ana e Laura olhavam Marília com admiração. Dona Ana saiu e instantes depois voltou e entregou a carta de Isabela para Marília. Voltando-se para Rubens, disse-lhe:
— Ela precisa saber. Leia Dona Marília.
Assim que Marília terminou a leitura, virou-se para Rubens e com alegria na alma falou:
— Querido amigo, a própria Isabela lhe deu a solução. Por que não cumpre seu pedido. Transforme esta casa que tantas alegrias lhe deu no "Lar de Isabela", um abrigo para gestantes carentes. Permita que essas mulheres, que pouco ou nada possuem, possam ter um pouco de alegria, cuidado e orientação para melhorar sua condição de vida. Aprender as noções básicas da higiene do corpo e da alma, cuidar da dignidade e da integridade de seu corpo físico.
— A senhora acha isso mesmo, Dona Marília?
— Claro! Já não fazemos esse trabalho confeccionando enxovais? O senhor não atende às gestantes necessitadas? Por que não fundar o Lar de Isabela, como ela mesma pediu? Conte comigo como voluntária!
— Se o senhor permitir, conte comigo também-disse Laura. Adoraria trabalhar com o senhor no auxílio às mãezinhas carentes.
— Quanto a mim, não preciso nem dizer, não é, Dr. Rubens?
— Minha boa Ana, eu sei de sua afeição por Isabela e do seu cuidado comigo. E a senhora é muito bem vinda. Dona Laura. Agradeço a vocês o carinho.
— O senhor talvez não tenha percebido, mas a Isabela deixou claro que sabia que a sua hora do retorno havia chegado. O senhor não poderia fazer nada, não conseguiria mudar a vontade de Deus.
Rubens parecia outra pessoa. O brilho dos seus olhos voltava timidamente na forma da esperança que enchera seu coração. Marília não se dava conta do peso que tirara dos ombros do médico. Após alguns minutos de silêncio, ele disse:
— Dona Marília, se um dia eu lhe fiz algum bem, hoje a senhora me fez um maior ainda. Trouxe a esperança de volta ao meu coração e não sei como poderei pagá-la por isso.
— Pagar-me?! Eu não fiz nada. Apenas repeti o que ouvi do senhor tempos atrás e que me devolveu a vida. Sempre haverá um dia em que precisaremos que alguém nos recorde o que sempre acreditamos.
Dona Ana, feliz, disse entusiasmada:
— Vou buscar um refresco bem geladinho, hoje está muito quente.
— Faça isso, Dona Ana, e obrigado. Dona Marília, vou começar a pensar nesse projeto. Assim que tiver algo de concreto nos encontraremos para discutir o assunto. Quando vier traga meu amigo Paulo, e a senhora também Dona Laura, terei muito prazer em conhecer seu marido.
— Obrigada, ele virá, com certeza.
— Viremos todos - completou Marília.
— Jacob, Marília não percebeu que estava sendo inspirada por você.
— Não, Horácio, não percebeu. Mas isso só foi possível porque encontrei em seu coração a vontade real e sincera de ajudar o amigo. Não lhe disse que logo ele iria perceber a inutilidade do desânimo e das lamentações? Era só uma questão de tempo, e pouco tempo por sinal.
— Mas o sofrimento continua, não?
— Sim! Mas trabalhando em favor do próximo conseguirá descansar seu coração dessa dor que dilacera a alma, porque não terá tempo para lamentar, mas terá todo o tempo para amar.



MEDO E DECEPÇÃO




André entrou ofegante em sua casa.
Subiu correndo para seu quarto e trancou a porta.
Jogou-se de qualquer jeito na cama e cobriu o rosto com as mãos; seu nervosismo era tanto que provocava tremor em suas mãos.
— Estou perdido! - exclamava para si mesmo. — O que fui fazer meu Deus! Perdi realmente o juízo. Marcos e eu extrapolamos dessa vez e não temos saída. Daqui a pouco, tenho certeza, a polícia estará batendo na porta e vou causar mais decepção aos meus pais.
— Marília, que furacão é esse que passou por aqui? - brincou Inês dirigindo-se à filha.
— Foi o André, mãe. Estava nervoso, tão agitado que nem prestou atenção em mim. Deve ser mais uma crise natural dos adolescentes.
— Por que não vai ao seu quarto saber o que aconteceu para ele estar assim tão agitado? — insistiu Inês.
— Está bem, eu vou. Com certeza não deve ser nada de grave, é criancice mesmo.

Começara a subir a escada quando a campainha da porta tocou. Ia voltando para atender, mas a voz de Laís soou bem alto:
— Deixa mãe, eu atendo!
Laís abriu a porta e assustou-se ao ver parados à sua frente dois policiais e junto a eles, Marcos. Empalidecendo chamou a mãe.
— Mãe, venha aqui depressa!
Marília, em um segundo, estava parada diante dos policias. Ao avistar Marcos, seu coração disparou como pressentindo desgosto. Quase gaguejando, perguntou;
— Em que posso ser útil?
— Boa tarde, senhora. É aqui a casa do André?
— Meu filho chama-se André, mas...
— Poderia chamá-lo?
— Claro, claro, entrem, por favor. Vou chamá-lo e se permitirem telefonar para meu marido para que venha até aqui. Com licença.
Saiu apressada e foi direto ter com André em seu quarto.
— André, abra esta porta!
— Me deixe em paz, mãe, não me enche.
— Deixaria você em paz se não houvesse dois policiais na minha sala, acompanhados do Marcos e pedindo para falar com você.
André por pouco não desfaleceu. Silenciosamente foi até a porta e abriu.
— Pelo amor de Deus, André, o que vocês dois fizeram dessa vez?
— Nada, mãe!
— Nada! E o que fazem dois policias procurando por você, tendo o Marcos com ele? Responda!
— Não sei, deve ser outro André.
— Isto nós vamos ver. Vou telefonar para seu pai e já descemos.
Não demorou dez minutos e Paulo já estava na sala de sua casa, em meio a dois policiais. Marcos, André e Marília que sem se conter entregava-se às lágrimas.
— Marcos, onde estão seus pais? Eles já sabem que você está aqui?
— Não, Sr. Paulo, fui pego antes de chegar a casa - exclamou envergonhado.
Paulo dirigiu-se aos policiais.
— Se me dão licença, vou avisar os pais desse garoto para que venham até aqui. Sua casa é bem próxima.
— Fique à vontade, senhor.
Assim que Laura e Pedro chegaram. Marcos correu ao encontro dos pais, gritando:
— Eu não fiz nada, isto tudo é um engano. Eles estão nos confundindo com outros garotos.
Paulo e Pedro, ao mesmo tempo olharam para os policias esperando uma reação, ou talvez uma palavra que os tirasse daquela situação angustiante.
— Perdoe senhores, mas não há engano nenhum. Foram eles mesmos. Este - dirigindo-se a Marcos — foi pego em flagrante, o outro conseguiu correr, mas o seguimos até aqui.
— Por Deus, o que eles fizeram?
— Assaltaram o mercadinho da rua de cima e furtaram R$ 200,00 do caixa. Além do mais, estão de posse de certa quantia de maconha que o Marcos disse ser para consumo próprio.
Marília e Laura não suportando a notícia desabaram em copioso pranto. Um misto de angústia, medo e decepção sufocava o coração dessas mães.
Pedro, que parecia estar um pouco mais equilibrado, perguntou:
— Eles estavam armados?
— Sim! Portavam canivetes.
— E o que vão fazer?
— Levá-los para a delegacia de polícia. Se quiserem poderão acompanhá-los e chamar um advogado porque eles têm direito a defesa.
Marcos e André foram enquadrados em roubo qualificado por estarem portando arma branca e pelo porte de droga.
Tanto os pais de Marcos como os de André sofriam a dor de ver seus filhos enveredando por um caminho que, com certeza, os levaria à destruição.
Perguntavam-se em que haviam falhado o que deixaram de ensinar que provocou mudança tão radical de comportamento. Não encontravam respostas para este questionamento.
Enquanto o tempo passava, Marília e Laura dividiam-se entre as visitas aos filhos e a elaboração do projeto do Lar de Isabela. Aos poucos Rubens retomara suas atividades normais e se dedicava com afinco aos preparativos para a inauguração do Lar.
Rubens mudara para um apartamento, levando consigo apenas os objetos pessoais, retratos e algumas recordações de sua esposa e filhos. Dona Ana e a cozinheira seguiram o patrão, pois se recusaram a deixá-lo só. Com alegria foi vendo o projeto se tornar realidade e se aproximar o dia da inauguração.
Paulo e Marília, Pedro e Laura, Rubens, Dona Ana e Inês se tornaram uma grande família. Uniram-se pela dor e continuaram unidos pelo amor.
— Paulo - disse Rubens ao amigo, — assim que os garotos estiverem em liberdade, traga-os para conversarem comigo. Pretendo, se permitirem, fazer um trabalho de recuperação e conscientização desses garotos.
— Rubens, é tudo que mais queremos encaminhá-los a você.
— As vezes penso Paulo, que se eu tivesse reagido mais rapidamente, talvez nada disso tivesse acontecido.
— Nem pense nisso, Rubens. Eles sabiam o que estavam fazendo. Não existe culpa de ninguém, pode ser que agora eles aprendam que inconseqüência, brincar de bandido e fazer o papel do adolescente rebelde só traz sofrimento. O importante nesse momento é ajudá-los, para que consigam superar essa tendência e fortalecê-los para vencerem as tentações.
Se o adolescente já se envolveu com a droga, não desista dele, lute para salvá-lo impedindo o avanço do vício, e trate das complicações, se houver.
A maconha pode alterar o estado de consciência de quem dela faz uso, provocando acidentes, principalmente de carro. É importante insistir junto aos usuários da maconha que esta é uma droga, sim, tem poder viciante e provoca danos tanto no corpo físico quanto no perispírito. Aquele que se entrega a essa droga perceberá cedo ou tarde os danos e as alterações causados por ela. A desistência é sempre sofrida e nem todos conseguem. Quem entrar para essa prática nociva pagará muito caro por ocasião do seu retorno ao mundo espiritual. Se o jovem já usou a maconha algumas vezes e não sentiu nada, passa a consumir com mais freqüência e a achar que outras drogas também não lhe farão mal e daí a consumi-las é uma questão de tempo. As drogas, inclusive a maconha, alteram o comportamento e os pensamentos e levam os jovens a defendê-las, dificultando a percepção de que a droga consumida, seja ela qual for, já está fazendo mal e o impede de reconhecer que já está viciado. Todas ás drogas atingem o cérebro, impedindo-o de funcionar naturalmente. Os pais devem estar alertas, já o disse, e empregar todos os esforços para reconduzir os filhos para o caminho seguro, se ele já estiver envolvido com droga ou outras práticas nocivas à integridade física, moral e espiritual. Muitas vezes a prova é dura, mas Deus não permite uma carga maior que os ombros possam agüentar.
Apresente desde cedo o Evangelho para seus filhos, mostrando-lhes por meio do exemplo de sua conduta digna e coerente na família e na sociedade que o bem-estar, a saúde e a felicidade só poderão conquistar a partir do momento que assumirem também posturas equilibradas e sensatas perante a vida.
— Está certo - respondeu Rubens, só posso agradecer a amizade que recebo de todos vocês.
— Você conquistou amigos. Nada fizemos que você não mereça, e nada que fizermos será o bastante para retribuir tudo que fez por nós, e principalmente por Marília.
— Você tem ido regularmente visitá-los, não?
— Sim! E da última vez que lá estivemos recebemos a notícia de que talvez saiam antes de cumprir toda a pena, por bom comportamento.
— Isto é muito bom, pois é um sinal de que estão pensando no que fizeram, e com certeza já devem estar arrependidos. Como eles estão?
— Abatidos, envergonhados, enfim, sofridos.
— Não se entristeça meu amigo. Pode ser que durante este tempo tenham consciência da importância da liberdade e isso os fará reconhecer e valorizar a família e o aconchego do lar, e saberão que não vale a pena brincar de delinqüente. Voltarão mais maduros, acredito nisso. Eles têm boa índole, família bem estruturada, pais que os amam. Saberão reconhecer isso. Tenham fé em Deus.
— Temos fé e acreditamos nisso também. Mas vou ser sincero, Rubens, nosso coração está muito machucado.
— São marcas da vida, Paulo. E marcas, quem não as tem? De uma forma ou de outra todos nós, homens comuns marcamos nosso coração com tristezas, amarguras e decepções. Mas nosso esforço deve estar concentrado no que restou de bom dentro de nós e trocar esses sentimentos por esperança, coragem e fé. Saber que nenhum sofrimento dura para sempre e que, em algum momento ele vai terminar, e entender que enquanto não chegar o fim, é porque não chegou o momento certo, determinado por Deus.
— Rubens, alegra-me vê-lo novamente como sempre foi, forte, corajoso, amigo e fraterno, colocando seu conhecimento e sua bondade em benefício do próximo.
— É, Paulo, mas tive também meu momento de fraqueza. Devo à sua esposa. Dona Marília, a reconquista da minha vida, a volta ao meu trabalho, enfim, ela ajudou-me a retomar o curso da minha tarefa junto à sociedade.
— Marília mudou muito, Rubens. Lutou e conseguiu vencer; enxugou suas lágrimas vivendo o amor e a caridade que Jesus tão bem exemplificou.
— É! As lágrimas são nossas e no coração devemos guardá-las; ao próximo devemos mostrar e ofertar o sorriso da amizade que o levará a acreditar cada vez mais na vida.


DE VOLTA AO LAR




O dia amanheceu chuvoso.
No coração de Marília e Laura, assim como no de Paulo e Pedro, o dia era de sol, céu azul e muita vida.
Iam apanhar Marcos e André que, devido ao bom comportamento, foram agraciados com a liberdade.
Se no coração de seus pais existia a alegria, no coração de Marcos e André existiam a culpa, o arrependimento e a sensação de que, apesar da liberdade, jamais se sentiriam livres, pois estavam presos ao passado que lhes trazia vergonha.
Os pais aguardavam com ansiedade a chegada dos garotos. Marília trazia ao pensamento os dias felizes que tivera com seus filhos, até que sua vida mudara e o sofrimento fizera-se presente a partir do desencarne de Fábio. Agora - pensava — tinha medo do futuro, da sua incerteza, do seu desconhecido.
— Meu Deus, tantas lágrimas chorei, reserve para mim a alegria de ver o André recuperado, longe da delinqüência e das drogas. Dai-me o entendimento e a condição de ajudá-lo.
— Mãe! Pai!
A emoção daqueles pais era tanta que se uniram aos filhos em um longo abraço, misturando suas lágrimas às deles. Saíram abraçados, tentando dizer aos filhos com este gesto que estariam ali, junto a eles, firmes e fortes para auxiliá-los na retomada da sua vida aqui fora.
— André - disse Marília assim que chegaram a casa —, suba e tome um banho demorado para relaxar, enquanto isso sua avó e eu vamos preparar um lanche bem gostoso para saborearmos todos juntos.
— Hoje é um grande dia, meu filho, sua mãe e eu estamos emocionados em tê-lo novamente em casa. Faça o que ela sugeriu, sem pressa. Você se sentirá melhor.
André até então não dissera uma palavra. Abraçara a todos sem nada dizer.
Olhava sua casa, seus pais, sua avó e sua irmã, com carinho, mas não tinha coragem de encará-los de frente.
Sentia-se um estranho naquela casa onde crescera e recebera amor, e ele, por leviandade, colocara tudo a perder e fora amargar meses dentro de uma prisão.
Marília, percebendo o desconforto do filho, aproximou-se dele, beijou-lhe o rosto e lhe disse:
— Filho, o que o detém? Está na sua casa, com sua família, o que está preocupando você?
— Meu quarto ainda existe?
Marília espantou-se.
— Claro filho! É claro que ainda existe e existirá sempre. Você tinha dúvidas quanto a isso? Todas as suas coisas estão lá, do jeito que você deixou. Ele é seu, esta é sua casa e nós somos sua família. Suba e tome seu banho, troque esta roupa. Vamos aguardar nosso filho para lanchar.
André não se conteve mais. Abraçando seus pais chorou como só um coração machucado e sofrido pode chorar.
— Pai, mãe, me perdoem! Pelo amor de Deus me perdoem! Eu não mereço vocês, nem estar aqui. Como pude magoá-los tanto, depois de terem sofrido a dor de ter perdido o Fábio? Como pude maltratar ainda mais seus corações?
— Calma, filho, somos seus pais e nunca deixamos de amar você. Você errou, é verdade, mas nem por isso deixou de ser nosso filho, nem por isso deixou de ser importante para todos nós. Agora, estamos juntos novamente e o momento é de recomeçar, retomar seus estudos, enfim, não cair de novo no mesmo erro.
— Obrigado, pai!
— Agora vá, filho, suba!
André subiu as escadas de dois em dois degraus. Entrou em seu quarto e a emoção misturada ao remorso o fez jogar-se na cama e chorar.
Para que o mundo possa sofrer uma melhora, o equilíbrio e a paz que todos almejam, é necessário que toda a humanidade se una e passe a se preocupar uns com os outros. E preciso que aprendam a amparar aqueles que erram e auxiliá-los a encontrar sustentação para não errar de novo. O homem dá muito carinho para as pessoas que ama, mas, para aqueles que diz não conhecer, nem o necessário para que possam viver com dignidade. Existem dores muito penosas, e uma delas é o abandono e o descaso.
O coração deve estar preparado para reconhecer um arrependimento sincero e dar as mãos àqueles que realmente querem se regenerar. Nem sempre se consegue levantar do tombo sozinho, mas, se puder contar com a mão amiga, o ombro solidário e o coração generoso, fica mais fácil se reerguer e voltar aos bons costumes. A vida é cheia de desafios e não devemos fugir deles, porque grandes obras e grandes atos de amor nascem da superação desses desafios.

Laís, ao se dirigir para seu quarto, viu a porta do quarto de André semi-aberta. "Aproximou-se e viu seu irmão sentado no chão, encostado na cama com olhar pensativo. Pediu licença e entrou.
— André, desde que você chegou noto seu ar tristonho, quieto. Você não está bem?
André olhou para a irmã e pela primeira vez notou que Laís crescera. Já não era mais uma menina. Tornara-se uma adolescente bonita e meiga.
— Vem, senta aqui do meu lado.
Mais que depressa, Laís fez a vontade do irmão. Sentia-se feliz em estar com ele e poder voltar ao tempo em que os dois, crianças ainda, eram tão unidos e amigos.
— Se abra comigo meu irmão; o que você tem?
— Laís, eu estou muito feliz em estar de volta, estar junto de vocês, receber o amor de nossos pais, mas...
— Mas! O que, André?
— Não suporto a vergonha que sinto, cada vez que olho para o papai e para a mamãe, por ter me comportado como um bandido. Eu não sou um marginal, Laís. Eu não sei o que deu em mim.
— Claro que não é André!
— Mas eu e o Marcos nos comportamos como se fôssemos. É o arrependimento que está acabando comigo. Não sei como me livrar disso, Laís, dessa vergonha. E o pior é que fiquei marcado para o resto da vida.
Os olhinhos de Laís encheram-se de lágrimas. Sofria com o sofrimento do irmão. Abraçou-o, dizendo com carinho:
— André, agora é preciso esquecer. O sofrimento maior acabou. O que conta é a sua vontade de não errar outra vez.
— Você tem razão, Laís, estou determinado; não quero mais agir de maneira leviana, agressiva até, mas sinto que preciso de ajuda; não sei se conseguirei sozinho.
— Quanto a isso não se preocupe. Papai disse que vai levar você e o Marcos para conversarem com o Dr. Rubens. Você se lembra dele?
— Claro!
— Ele se propôs a ajudá-los. Por falar nele, você ainda não soube o que lhe aconteceu!
— O que foi?
Laís narrou ao irmão, nos mínimos detalhes, tudo o que acontecera com Rubens, inclusive a transformação de sua casa no Lar de Isabela.
— Puxa, Laís, coitado do Dr. O que me impressionou mais foi a mamãe ajudá-lo dessa maneira. Como ela mudou!
— Isso é verdade. Ela disse que ele só precisava se lembrar das coisas que tinha dito para ela.
— Como assim?
— Lembra quando o Fábio morreu o jeito que a mamãe ficou? Então, foi o Dr. Rubens quem a ajudou, esclarecendo um monte de coisas, falando da vida espiritual, ah! sei lá, André, eu não entendo dessas coisas. Quando Isabela morreu, ele caiu em um sofrimento tão grande que se esqueceu das coisas que ele mesmo dizia e acreditava, e entregou-se ao desânimo que o impedia de reagir. Mamãe diz que apenas falou para ele as mesmas coisas que ele falou para ela, entendeu?
— Que barato!
— Que coisa boa ver meus dois filhos juntos como antigamente, conversando animadamente como bons irmãos! - exclamou Marília, entrando no quarto.
— Mãe, Laís me disse que o papai vai marcar com o Dr. Rubens para eu e o Marcos irmos, falar com ele.
— É verdade, André. Seu pai telefonará para ele hoje mesmo. Você não quer ir?
— Ao contrário. Estava dizendo para a Laís que preciso de ajuda. Quero e preciso ir.

— Que bom ouvir isso, meu filho. Bem, eu entrei aqui no seu quarto porque me lembrei que daqui a vinte dias é seu aniversário. Dezoito anos, meu filho! Eu e seu pai queremos comemorar.
— Não precisa mãe, não quero festa.
— Posso saber por quê?
— Tenho vergonha de encontrar as pessoas.
— Isso passa André! Vamos comemorar sim, há quanto tempo não damos uma festa aqui em casa.
— Mas como vou olhar nos olhos dos meus antigos colegas, da nossa família, mãe?
— Da mesma maneira e com os mesmos olhos que você está me olhando agora. Meu filho, você já pagou pelo seu erro, deixe-o para traz, não o traga a todo instante para seu presente. Você não deve mais nada para a sociedade. O que você deve é para as leis divinas, mas você pode trazer para sua consciência que atos levianos, imprudentes e fora da moral cristã só causam dissabores. Harmonize-se com Deus trazendo amor para o seu coração e vivendo todo o bem que pode. Agora vamos descer, o lanche será servido.
Enquanto saboreavam os deliciosos quitutes feitos cuidadosamente por Inês, todos conversavam e sorriam dando vazão à alegria que sentiam.
— Pai, o senhor conversou com o Dr. Rubens?
— Sim, filho. Marcamos para daqui a dois dias uma consulta para você.
— E o Marcos, ele não vai?
— André, assim que falei com o Rubens, liguei para o Pedro e o coloquei a par do que tínhamos combinado, informando-lhe o dia e a hora. Passados alguns minutos Pedro tornou a me ligar, muito aborrecido, dizendo que tinha dito ao Marcos e este disse-lhe que não iria.
— Não iria?
— Sim, disse ao pai que não vai porque da vida dele quem cuida é ele.
— Não acredito!
— É verdade, filho. Fiquei tão chocado quanto você. Laura e Pedro não se conformam.
— Mas isso não é possível, pai. Conversamos tanto enquanto estivemos presos, ele me falou que também estava envergonhado, arrependido do que tínhamos feito, do mesmo modo que eu. O que o fez mudar de idéia? Será que esqueceu o que é ficar preso?
— Não sei André. Só o que posso achar é que seu arrependimento e sua vergonha não eram sinceros. Parece que ele não tem intenção nenhuma de mudar de vida.
— Pai, posso falar com ele?
— Pode André. Mas cuidado para não se envolver na sua conversa e se desviar do seu propósito.
— Pode deixar pai. Quando digo que me arrependo do que fiz, que preciso de ajuda para ser o filho que o senhor e a mamãe merecem, estou sendo sincero.
— Nós acreditamos filho!
André pediu licença, levantou-se e foi até a sala telefonar para Marcos.
— Aí, Marcos, papai me disse que você não quer mais ir falar com o Dr. Rubens. Por que mudou de idéia?
— Não vou mesmo, André. Desisti. Eu não tenho nada que ver com esse médico. Nem o conheço em que ele pode me ajudar?
— Marcos, caia na real; precisamos de ajuda, sozinhos não vamos conseguir. Você disse que tinha se arrependido.
— E você acreditou André? Você é babaca mesmo, já vi que com você não dá. Nós tivemos azar da primeira vez, mas agora, com a experiência que temos, a gente faz a coisa bem-feita, e por falar nisso, tenho aqui uma da boa, topa?

— Não, Marcos, não quero mesmo. Para mim chega. Não tenho a intenção de passar a minha vida em uma cela de cadeia ou então fugindo da polícia. O que eu falei para você é sincero, quero sair dessa e vou procurar ajuda.
— Então mano, a gente termina aqui.
— Marcos, pense. Que futuro tem quem vive na delinqüência, na droga, fugindo da polícia e fazendo a família sofrer?
— Não penso no futuro, vivo o presente.
— Marcos, tudo é uma ilusão, é engano; e seus pais, não pensa neles?
— Penso em mim. Já "tô" com um lance aí, uma parada legal. Topa?
— Nem pensar. Terminamos aqui. Siga seu caminho e eu sigo o meu. Boa sorte.
— Tchau!
André desligou o telefone. Pela primeira vez em muito tempo, lembrou-se de Jesus e pediu:
— Me dá força, eu preciso de força!


CONSELHOS DE AMIGO


Sentado em frente a Rubens, André mantinha a cabeça baixa, olhos assustados e coração descompassado. Paulo deixara-o sozinho com o médico e preferira passar mais tarde, no horário combinado, para apanhá-lo.
Rubens, com toda a sua experiência, percebera o acanhamento de André e procurava colocá-lo à vontade.
— Então, André, por onde você quer começar? Não fique constrangido, considere-me um amigo porque o sou e quero ajudá-lo a superar esta fase difícil, mas não impossível, que você está vivendo. Porém, para que eu possa auxiliar você, é importante que seja sincero e não minta para mim. A transparência do nosso contato é que me fará entender melhor e analisar o melhor jeito de ajudá-lo.
— Sei que é meu amigo e confio no senhor. O senhor já deve saber tudo o que me aconteceu. Pois bem, Doutor, eu quero muito largar de fumar, de fazer as bobagens que andei fazendo, enfim, não quero ser mais motivo de lágrimas para meus pais.
Rubens gostou do que ouviu.
— Você já tem uma grande vantagem, André; você quer! A partir dessa sua vontade, da sua decisão de mudar, fica bem mais fácil sua recuperação. Quando nós compreendemos que nossas atitudes estão ficando perigosas e queremos sair fora, passamos a ter nas mãos a força que nos empurrará para o sucesso: nossa vontade.
— Mas por onde devo começar?
— Diga-me primeiro o porquê, o que o levou a experimentar a maconha.
— Quando meu irmão morreu tudo lá em casa desmoronou. Eu me senti rejeitado, pois não consegui fazer com que mamãe olhasse para mim ou para a Laís. Para ela passamos a não existir, a não ter importância. Eu sofria muito. Sofria pela perda do meu irmão e da minha mãe. Passei a ir mal à escola, falsifiquei a assinatura da minha mãe, fiz um monte de asneiras. Passei a andar com o Marcos e sabia que ele fumava maconha. Daí para começar também a fumar foi só um passo. Quando a mamãe já estava recuperada, graças ao senhor, tentei parar, mas não consegui. O resto não preciso dizer o senhor já sabe.
Rubens se envolvia com as palavras do rapaz. Com bondade e tendo o cuidado para não feri-lo em sua suscetibilidade foi explicando e respondendo a todas as perguntas feitas por ele. Deixou bem claro a André que tudo que fazemos na nossa vida é de inteira responsabilidade nossa, embora muitas vezes joguemos a culpa em uma terceira pessoa, na maioria das vezes nossos pais. Abafamos nossas fraquezas, escondemos nossas imperfeições e passamos a analisar e julgar as atitudes dos outros, não se dando ao menor trabalho e boa vontade de tentar compreender a maneira como cada passa pelo sofrimento.
O corpo não deve ser considerado nem tratado como se fosse um depósito de lixo, onde jogamos tudo o que não presta. Ao contrário, como foi dito, é importante que se dê ao corpo somente o que ele necessita para se fortalecer, ser saudável e dar condições de prosseguir a jornada no plano físico.
Ora, se com a imprudência de hábitos nocivos à saúde saturarmos o corpo material, o que se pode esperar, além dos distúrbios dos órgãos físicos e também do perispírito? A importância da preservação da vida pela conscientização de que todo ser é aquilo que pensa que ingere que age e que pratica deve ser constante na compreensão da vida. Drogar-se, alcoolizar-se, é tirar o funcionamento normal e natural dos órgãos do corpo de matéria, sem dizer do estrago no corpo fluídico, e a conseqüência dessa imprudência virá, com certeza, tanto no plano terrestre como no plano espiritual. O Criador, ao presentear seus filhos com o livre-arbítrio, deu-nos condições de discernir o que é bom e o que é ruim para nossa integridade física, moral e espiritual. Cabe a cada um perceber e definir o que quer para sua vida, se a felicidade ou o sofrimento. Cada um deve saber quanto vale a sua vida; qual a importância que tem para si a experiência abençoada da reencarnação e o que pretende viver no futuro por ocasião do seu retorno. Geralmente o homem exige paz e solicita da Vida Maior esta tão sonhada paz, esquecendo-se de que ela só pode ser encontrada dentro de nós e não fora. Seu nascimento se faz na alma de cada um, e todos os seres devem ter consciência de que somente eles poderão fazer com que a paz envolva o planeta. E isso que Deus espera que os homens compreendam, que o mundo poderá se tornar melhor quando eles perceberem que podem modificá-lo somente por meio de seus hábitos, de suas virtudes e de sua integração com o semelhante.
Sonhar é equilíbrio quando colocamos o sonho dentro da realidade saudável e produtiva, isto é, sonhar e querer a paz para o mundo só é válido a partir do momento em que se luta para que ela aconteça, e se compreende que somente o amor transforma o homem, e onde existir o amor existirá a paz.
Após duas horas de diálogo entre André e Rubens, este encerrou a conversa deixando marcado outro encontro na semana seguinte.
André retornou ao lar mais confiante e esperançoso. Chegou com Paulo, alegre e mais descontraído. Sentia-se mais seguro com a ajuda de Rubens.
— Que bom vê-lo assim feliz, meu filho!
— Mãe, Dr. Rubens é o máximo. Tivemos uma conversa muito boa, com explicação sobre tudo o que me incomodava. Estou confiante de que vou conseguir.
— Claro que vai, André.
— Ele agendou outra consulta para a semana que vem. É uma espécie de terapia. Não vou faltar, mãe, quero muito melhorar e me salvar.
— André, você não imagina como eu e seu pai estamos felizes. Acreditamos em você porque sabemos que sua intenção é boa e sua vontade, verdadeira.
— Mãe! É verdadeira! Só uma coisa me deixa triste.
— O quê, filho?
— Marcos! Por que ele não quer ajuda, mãe?
— André, não podemos mudar as convicções de ninguém. Podemos e devemos, sim, orientar, mas as mudanças acontecem quando a pessoa as deseja e as permite. Os pais de Marcos já fizeram tudo que podiam, mas nada conseguiram. Ninguém muda pela vontade do outro, mas sim pela própria vontade. O Marcos não quer, prefere a vida de riscos e incertezas que o levará ao sofrimento e à dor, tanto sua como de sua família.
— Dr. Rubens aconselhou-me a não ficar inativo em casa. Como estamos no final do ano e só voltarei a estudar no ano que vem, orientou-me a praticar algum esporte. Sabe, mãe, ele me convidou para ajudar nos últimos preparativos para a inauguração do Lar de Isabela, que está prevista para 24 de dezembro.
— E você, filho, aceitou?
— Claro mãe. Ele disse que quando ficamos muito tempo sem fazer nada, sem ocupar nossa mente com algo produtivo, somos alvo fácil de pensamentos prejudiciais que nos levam a cometer atos dos quais podemos nos arrepender mais tarde.
— Que bom André! Que bom saber que vai nos ajudar. Precisamos mesmo de pessoas jovens que têm mais disposição para certos trabalhos mais pesados. Fico muito feliz.
— A Laís está ajudando também?
— Está! Ela e Laura estão providenciando toda a parte de cama, mesa e banho das gestantes que ficarão internadas, assim como dos enxovais que receberão aquelas que freqüentarem o curso.
— Bonito esse trabalho, mãe!
— É, André, é um trabalho muito bonito. Quiçá a maioria das pessoas se conscientizasse da importância dele, quanto podem colaborar para tornar o mundo melhor e as pessoas mais felizes.
— A senhora encontrou seu equilíbrio, não, mãe?
— Sim! Consegui perceber que, quando secamos nossas lágrimas com revolta, desespero e descrença, elas passam a nos queimar como brasas, mas, ao contrário, se elas forem secas com atos de amor e olhar de compaixão com o próximo, encontramos a paz, porque nosso coração estará repousando no amor de Deus. Foi o que fiz, entreguei minha dor ao amor de Deus e hoje sou feliz da maneira que posso ser.
— A senhora nunca desanimou, mesmo depois que eu a fiz sofrer.

— Escute André, devemos lutar contra o desânimo, a melancolia, enfim, contra tudo que possa nos impedir de prosseguir na fé em nosso Criador. A prática do bem, a sensibilidade em perceber o sofrimento alheio nos faz esquecer-se do nosso problema e nos torna pessoas melhores.
André, como há muito tempo não acontecia, olhando para sua mãe chorou de emoção.
— Mãe, eu te amo! — e abraçou-a com carinho.


MARCOS SE COMPLICA


Laura, ao desligar o telefone, sentiu uma vertigem e desfaleceu. Pedro que se encontrava na sala, próximo a esposa, correu a socorrê-la, atônito sem entender o porquê do desfalecimento e o que teria escutado no telefone que a fez sentir-se mal. Após breves instantes, Laura se reanimou.
— Querida, o que aconteceu de tão grave que a deixou assim tão abalada? Diga-me!
— Pedro, sinto-me morrer.
— Pelo amor de Deus, Laura, conte-me logo! - exclamou Pedro, demonstrando total nervosismo.
— O Marcos!
— O que tem o Marcos?
— O que fizemos Pedro? Onde erramos? Ou melhor, eu errei e agora pago pelo meu erro do passado.
— Laura, o que é isso agora. Acalme-se e conte-me o que aconteceu com o Marcos para deixá-la nesse estado.
— Ligou um tal de Nestor procurando pelo Marcos.
— E o que queria com ele?

— Disse que era a última vez que cobrava a dívida, se ele não pagasse em vinte e quatro horas, ele o apagava.
— Ele disse isso, que o apagava?
— Disse!
— E você, o que respondeu?
— Nada. Não deu tempo. Ele falou assim e desligou antes que eu tivesse qualquer reação. Aí, senti-me mal e desmaiei.
— Meu Deus, que dívida será essa, Laura? Onde o Marcos está se metendo?
— Não sei. Mas só pode ser dívida de droga, Pedro. Ele não quis receber ajuda assim que voltou para casa, e não largou de fumar maconha. Tenho medo de falar, mas acho que nosso filho se envolveu com drogas mais pesadas.
— Será, Laura? Será que Marcos é tão inconseqüente a esse ponto?
— Infelizmente acredito que sim. Há quanto tempo ele e André fumavam maconha? Envolveram-se até em assalto, ficaram recolhidos em um reformatório. André se arrependeu e procurou ajuda, mas Marcos se negou. Desde que retornou para casa parou de andar com André e se envolveu com péssimas companhias.
— É ele me disse um dia que não andava mais com o André porque ele tinha ficado babaca.
— Ele me disse isso também.
— Paulo me contou que até hoje o André se trata com o Dr. Rubens, pratica esporte e continua ajudando vocês no Lar de Isabela. Pena que nosso filho não quis seguir seu exemplo.
— É, e cada vez se afunda mais. Tenho medo, Pedro, medo do que possa acontecer com ele.
— Assim que Marcos chegar, falarei com ele.
— É bom que fale, mas acredito que não adiantará.
— Mas sempre vale a pena tentar, Laura.
— Isso é verdade.
As horas passaram. Pedro e Laura não continham mais a ansiedade. Os dois sentados na cozinha tomavam uma xícara de café quando ouviram o barulho da porta da frente. Laura, impaciente, gritou:
— Marcos, é você?
— Sim, mãe, sou eu.
— Por favor, filho, venha até aqui. Precisamos falar com você.
Marcos desconfiado, e já colocando no rosto uma expressão de defesa, aproximou-se dos pais e lhes disse:
— Algum problema?
Foi Pedro quem respondeu:
— Sim, Marcos, problemas!
— E posso saber quais?
Pedro continuou:
— Claro que pode, porque eles são seus, você é o responsável por eles.
— Sermão há esta hora, estou fora.
Ia saindo da cozinha quando ouviu a voz enérgica do pai.
— Marcos! Sente-se aqui porque vamos conversar.
— Outra hora, pai.
— Agora!
Marcos nunca tinha visto uma atitude tão severa de seu pai. Pela expressão de seu rosto achou melhor obedecer. Sentou-se em frente a sua mãe.
— Pronto. Estou sentado, o que o senhor quer?
— Primeiro que tenha uma postura mais educada. Pedro respirou fundo e abrandou a voz:
— Marcos, você nos preocupa. Em que você está metido? Com quem está andando?
— O que é isso agora, pai? Vai começar a me controlar? Esqueceu que dentro de poucos dias completo dezoito anos? Eu e o André temos a mesma idade, lembra? Nossa diferença é de apenas uma semana.
— Marcos, não estamos falando do André, estamos preocupados é com você. Você é nosso filho.
— Preocupado com quê? Não fiz nada!
— Quem é Nestor?
Pedro perguntou tão de repente que Marcos, empalidecendo, ficou sem reação.
— Responda-me quem é Nestor? - repetiu Pedro.
— Eu... eu sei lá. Não conheço nenhum Nestor.
— Conhece sim! - gritou Laura
Pedro, observando o descontrole da esposa, pediu:
— Fique calma, Laura. Deixe-me resolver isso com ele.
Voltando-se para Marcos continuou:
— Você sabe, sim. Quem é Nestor? Ele ligou para cá cobrando uma dívida. Que dívida é esta?
Marcos não sabia o que dizer. Percebeu que não conseguiria mais enganar seu pai e receava sua reação.
— Uma dívida boba, pai.
— Não me enrola, Marcos. Quero saber que dívida é essa, de quanto é e quem é Nestor?
— O senhor não vai entender!
— Entender o quê? Que você se envolveu com droga pesada e ele está cobrando porque é um traficante? É isso?
— Tudo bem, já que vocês querem saber, é isso sim. Eu me drogo sim e devo a ele o dinheiro da droga que comprei. E isso é problema meu.
Pedro e Laura sentiram-se como se lhes faltasse o chão. Enquanto Laura chorava, Pedro tentava o mais que podia controlar o nervosismo e o medo.
De repente Marcos lhe pareceu um estranho.
Nada lembrava o menino que criara e que o acompanhava ao jogo de futebol aos domingos. Não conseguia emitir nenhuma palavra. Apenas olhava seu filho e internamente se perguntava: por quê?
As vicissitudes da vida não são sempre punição das faltas atuais. São provas impostas por Deus ou escolhidas por vós mesmos quando no estado de espírito e antes da vossa reencarnação, para expiar as faltas cometidas numa outra existência. Porque jamais a infração das leis de Deus, e, sobretudo da lei da justiça, fica impune; se a punição não é falta nessa vida, será necessariamente em outra. É por isso que aquele que é justo aos vossos olhos vê se freqüentemente tingido pelo seu passado. (Livro dos Espíritos - Capítulo 1
- (item V - pergunta 984).
Pedro dirigiu-se até a geladeira, pegou um copo com água e tomou-o de um gole só. Estava dando a ele mesmo um tempo para conseguir assimilar o que o filho lhe dissera. Laura não conseguia conter o pranto. Marcos, impaciente, quase gritou:
— Então! Vão ficar aí sem dizer nada? Digam alguma coisa, reclamem, briguem, ou estão esperando que eu caia de joelhos e peça perdão? É isso?
Pedro e Laura estavam atônitos. Não acreditavam ser o filho que tanto amavam quem os afrontava daquela maneira. O brilho dos seus olhos estava embaçado pelas lágrimas. Pedro, recuperando o autocontrole, respondeu:
— Escute aqui. Marcos, por maior que seja o amor que temos por você, exigimos que nos respeite. Abaixe seu tom de voz, aqui não existe ninguém surdo, mas pessoas educadas, e eu não estou brincando!
A valentia de Marcos enfraqueceu ao ouvir a voz enérgica e segura do pai. Sentiu que eles não estavam realmente brincando.
— É que vocês ficam me regulando, "poxa"!

Laura, um pouco mais calma, dirigiu-se ao filho e com esforço falou de maneira mais terna:
— Meu filho, acho que você já entendeu que o meu amor por você é um sentimento real e verdadeiro. Tudo foi explicado há tempo e eu senti que você me perdoou. Eu lhe pergunto então: por que você nos agride dessa maneira? Por que não quer se tratar, se cuidar e voltar a ser a pessoa que era tempos atrás? Podemos refazer tudo, recomeçar de novo, reconstruir nossa família trazendo harmonia e felicidade para todos.
— Mãe, eu sou assim!
— Não, filho, você não é assim. Você ficou assim porque relutou e reluta ainda em aceitar os ensinamentos que nos tornam pessoas melhores. Mas você pode deixar de ser, basta que queira se modificar.
Pedro, apoiando a esposa, continuou:
— Reconheça que você é um viciado Marcos. A partir daí aceite a ajuda de quem está lhe oferecendo.
— Pai, eu não sou um viciado. Paro a hora que eu quiser.
— Então queira e pare pelo amor de Deus! - gritou Laura.
— Calma, Laura, controle-se!
— Não posso Pedro, não agüento mais!
Pedro fez um carinho na esposa e continuou dirigindo-se a Marcos:
— De quanto é essa dívida?
— É "porcaria", pai, pouca coisa.
— Pouca coisa, quanto? - insistiu Pedro.
— R$ 200,00!
— E onde pretende conseguir esse dinheiro?
— Não pretendo, já consegui.
— Como?
— Não importa pai. Fica "frio" que já tenho o dinheiro para pagar. Já disse que isso é um problema meu, e depois o Nestor não tinha nada que ligar para cá.
— Marcos - insistiu Pedro —, como você conseguiu esse dinheiro?
— Fiz um serviço aí para um cara amigo meu e ele me pagou. Agora chega! Não sou mais criança para ter que dar tanta satisfação. Sei comandar minha vida.
— Não é criança, mas age como tal, metendo-se sempre em enrascadas - disse Laura.
— Dá um tempo, vai, vou sair.
Virou as costas e saiu, deixando seus pais boquiabertos com sua atitude.
— Pedro, isso não vai acabar bem.
— Eu sei Laura. Também estou angustiado e temeroso como você, mas para ser sincero não sei mais o que fazer.
Quando relutamos em reconhecer nosso erro, toma-se difícil sair dele. Sofremos e fazemos sofrer nossa família e as pessoas que nos amam. Nem sempre temos condições de sair sozinhos do lamaçal no qual nos metemos, é hora de pedir ajuda e aceitá-la com a certeza de que somente assim teremos condições de renovar nossa vida. Muitos se envolvem em um emaranhado de enganos, confusões e ilusões, e se torna muito difícil achar a ponta desse novelo e encontrar de novo o bom caminho. A droga é o que o nome diz: uma droga! No início leva seus adeptos à euforia, ao êxtase, à sensação de poder e depois atira-os no inferno, transformando-os em farrapos humanos, sem dignidade e sem noção de respeito e de responsabilidade. Rouba-se, mata-se e violenta-se em nome da droga. Passam a viver como servos dessa substância alucinógena, cometendo barbaridades e machucando os corações sensíveis e amorosos dos pais. O estrago feito no corpo físico é grande, mas nada comparado ao estrago no perispírito. A dor acompanhará esses insensatos além-túmulo, e a conseqüência virá por meio do sofrimento que experimentaram na espiritualidade. As lágrimas virão e o arrependimento também ao perceberem que deformaram seu corpo fluídico com entorpecentes e que desperdiçaram a bênção da encarnação na Terra, por conta da satisfação de desejos vis; corromperam-se em nome de algo desprezível e inútil.
Portanto, pensem muito antes de se entregarem a algo perigoso, porque poderão não conseguir sair. Se quiserem que uma coisa dê certo lá na frente, têm de começar a cuidar dela agora.
Como disse Jesus: "Orai e vigiai", para que seus passos possam levá-lo ao encontro da verdade e, conseqüentemente, da felicidade.


DIA DE FESTA


Marília não se cansava com os preparativos para a festa de André. Tudo fora cuidadosamente organizado.
A alegria de Marília e Paulo só era embaçada, às vezes, pela saudade de Fábio e o desejo de que ele estivesse ali, naquele momento junto ao irmão no dia em que este completava dezoito anos. Mas, com a força da fé que os amparava, logo tomavam a satisfação de poder, não tanto pelo aniversário do filho, mas pela graça recebida por sua recuperação. Fábio - sabiam — com certeza estaria protegendo o irmão e feliz em ver sua família retomando a paz perdida.
Tudo o que lhes acontecera fizera-os amadurecer na fé e na crença de que, quando se sofre com Jesus no coração, a possibilidade de permanecer de pé é bem maior e mais segura. Jesus fortalece aquele que O recebe.
— Mãe, não precisava tanta preocupação com o meu aniversário, afinal, é só um aniversário, mais um ano de minha vida. Não justifica tanto trabalho.
— Justifica sim, André. Nós sabemos que é só mais um ano de sua vida, mas para nós é como se estivéssemos recebendo você de novo, pequenininho, em nossos braços. Jamais nos cansaremos de agradecer ao Pai por ter permitido que você voltasse para nós da maneira que sempre foi gentil, educado e digno. Isso para nós, filho, não tem preço. O que estamos fazendo hoje é apenas externar o que nos vai à alma: felicidade!
— Está bem, mãe, façam tudo como quiserem; queria apenas poupá-los.
— Você convidou o Marcos?
— Desde aquele dia que falei com ele no telefone, lembra, no início do tratamento com o Dr. Rubens, ele não falou mais comigo. Cada um seguiu seu caminho.
— É uma pena. Laura e Pedro têm sofrido tanto por causa dele.
— A senhora sabe de alguma coisa?
— O que sei vem por meio do desabafo de Laura. Ele continua se drogando, se envolveu com traficantes e ela desconfia que deve até praticar algum furto ou coisa parecida.
— Por quê?
— Porque ele não trabalha, e eles não sabem onde ele arruma dinheiro para sustentar o vício.
— E não procuraram saber?
— Inúmeras vezes. Muitas mesmo, mas em todas elas só conseguiram gritos, brigas e agressões verbais como resposta. André, se os filhos soubessem a grande dor que causam no coração de seus pais quando assumem posturas inadequadas e perigosas, teriam mais controle e cautela na vida.
— E eu já causei esta dor, não é, mãe?
— Filho, não se culpe mais, pois nós já lhe dissemos várias vezes que já lhe perdoamos e admiramos você pela luta que travou consigo mesmo. Uma luta que, graças a Deus e ao Dr. Rubens, você venceu. Hoje nos proporciona muita alegria; pela sua mudança, seu trabalho voluntário no Lar de Isabela, enfim, por voltar a ser o filho que criamos e amamos tanto.
— Obrigado, mãe. Por falar no Lar de Isabela, falta pouco para a inauguração. Sabe que estou ansioso.
— Eu também. Todos nós estamos. Dr. Rubens escolheu uma data bonita para inaugurar: véspera de Natal.
— É verdade, não podia ter escolhido data melhor e mais bonita.
— Bem, agora vamos nos apressar; logo mais seus amigos e nossa família estarão aqui para abraçar você.
— Tem razão. Quer que eu arrume as mesas e as cadeiras?
Marília, feliz como uma criança, aceitou.
— Faça isso, André, por favor. Chegando próximo à escada gritou:
— Laís, venha nos ajudar, filha.
Ao cair da noite, tudo estava pronto.
Os primeiros convidados começaram a chegar trazendo mais alegria para Marília e Paulo.
André, ao contrário do que pensava, estava descontraído e feliz.
Recebia os convidados com cortesia e agradecia a todos o carinho da amizade.
Tudo transcorria em perfeita harmonia. Para Marília a noite estaria perfeita, se não fosse a preocupação com os amigos Laura e Pedro, ao notar a tristeza nos olhos deles.
— Não fique assim, amiga. Tudo irá se resolver. Um dia Marcos perceberá o inferno em que está se metendo e sua razão voltará. Confie, Deus sabe o momento certo de intervir.
— Eu sei Marília. Se não fosse a amizade de vocês, do Dr. Rubens e nosso trabalho social, não sei, acho que tanto eu quanto Pedro já teríamos sucumbido. Há momentos em que pensamos não agüentar mais, aí, lembramos do que o Dr. Rubens sempre diz: "nenhuma dor pode ser maior que o amor de Deus por nós", e, segurando nesse amor, prosseguimos.

— É assim que deve ser Laura, mas hoje é dia de festa. Dê uma trégua para sua cabeça e seu coração e divirta-se.
A reunião prosseguia animada e descontraída. No momento em que André se preparava para soprar suas dezoito velas e servir o bolo, o inesperado aconteceu. Marcos, descontrolado, drogado e agressivo, apareceu. Entrando na sala, gritou para o antigo amigo, tomando uma postura inadequada e provocativa:
— Parabéns, babaca! Que cena mais comovente, o filhinho da mamãe apagando as velinhas, Não tem vergonha "meu"? - gritou mais alto ainda. — Vai ficar eternamente agarrado na saia da mamãe, é? Vim te trazer um presente,
olha, tenho aqui uma da boa, "tá ligado"?
Laura, estupefata e mal podendo se controlar aproximou-se do filho e, tentando segurá-lo, lhe disse:
— Pelo amor de Deus, Marcos, pare!
— Parar? Eu mal comecei!
— Vamos embora!
Sem que Laura esperasse, recebeu do filho um empurrão e teria caído no chão se Pedro não fosse rápido e a tivesse segurado.
— Que embora que nada, acha que vou perder essa cena patética? Meu antigo companheiro dando uma de bonzinho? Qual é "mano"?
Pedro, assim que atendeu a esposa, voltou-se para o filho e, segurando-o firme pelo braço, puxou-o levando-o para fora.
Paulo imediatamente acompanhou o amigo.
André, sem se importar com o que pudessem dizer, chorou.
Marília e Inês estavam atônitas. Não sabiam como agir, se davam continuidade à festa ou se davam por encerrada aquela noite que prometia ser uma das mais felizes para elas.
Assim que Laura se recompôs, levantou-se. Enfrentando os olhares indagadores dos presentes, disse de uma maneira que surpreendeu a ela própria:
— Por favor, perdoem-nos. Como vocês todos puderam presenciar, eu e meu marido estamos passando por um momento difícil de nossa vida. Não posso mais esconder nem negar: meu filho é viciado em drogas. Pedro e eu não sabemos mais o que fazer para ajudá-lo. Ele não quer ajuda. Gostaria que os jovens aqui presentes pensassem muito bem antes de entrar pelos caminhos perigosos das drogas. A volta é sofrida para todos. Não sigam o exemplo do meu filho, mas sim o exemplo de André, que mostrou que tudo é possível quando existe vontade. Peço que me desculpem.
Olhando diretamente para Marília, disse com voz suplicante:
— Para que eu não me sinta pior do que estou me sentindo, por favor, continue a festa; o André merece vocês merecem. Vocês têm o que comemorar. Com licença.
Virou-se para sair.
Marília, visivelmente emocionada, abraçou-a com carinho.
— Um dia isso vai passar minha amiga. Não desanime.
— Eu sei Marília. São vocês que nos dão força, com amizade sincera. Eu estou bem. Por favor, continue a sua festa, eu lhe peço, e não se zangue comigo, eu vou me retirar, vou ver o que podemos fazer com o Marcos.
— Eu compreendo Laura. Rogo a Deus que os ampare.
Laura retirou-se acompanhada por Rubens. A festa continuou, mas sem o brilho anterior.
Pedro, com a ajuda de Paulo, levou Marcos para casa. Mal conseguiam segurá-lo tamanha a força com a qual ele lutava com os dois.
Assim que chegaram, colocaram-no no quarto e saíram trancando a porta. No andar de baixo podia-se ouvir os gritos de Marcos.

Pedro sentou-se, cobriu o rosto com as mãos e chorou.
— Meu amigo, estamos todos nós solidários com a sua dor. Em que podemos ajudá-lo? Não se intimide, conte sempre conosco.
— Não sei mais o que fazer Paulo. É como se estivesse acorrentado e vendo o fogo destruir meu lar.
Passados poucos instantes, Laura chegou com Rubens. Ao ver o marido naquele estado correu a abraçá-lo. Rubens e Paulo olhavam os dois amigos, juntos, abraçados, sofrendo a mesma dor e não puderam deixar de se sensibilizar até as lágrimas.
De repente perceberam o silêncio.
— Será que ele dormiu Rubens? - indagou Pedro.
— Pode ser talvez tenha se apagado sob o efeito da droga. Vamos vê-lo.
Ao abrir a porta do quarto, a surpresa: Marcos havia pulado a janela do quarto, no andar de cima da casa, e fugido. Diante do espanto dos dois amigos, Laura disse:
— Ele já fez isso antes. Da janela, segura-se no galho dessa árvore que é bem próximo e desce por ela.
— Por que não me lembrei disso? - culpou-se Pedro.
— Porque você é humano - disse Rubens, para aliviar a tensão de Pedro. — Estava sob forte pressão emocional, é bastante compreensível.
— E agora, Laura, o que será do nosso filho?
— Não sei Pedro, não sei mesmo; vamos aguardar.
Rubens e Paulo despediram-se dos amigos, deixando-os mergulhados em profunda dor. No caminho Paulo perguntou ao médico:
— Rubens, diga-me, até quando sofrerão com isso?
—Não sei lhe dizer, Paulo. Só posso afirmar que se Marcos não quiser ser ajudado, pouco eles poderão fazer. Na dependência química, para que o tratamento surta o efeito desejado é necessário que o dependente cumpra sua parte através da sua vontade e determinação em ficar limpo. A volta é muito sofrida. É comum aos usuários de droga serem internados contra a vontade, porém, assim que se desintoxicam e voltam ao lar, a primeira coisa que procuram é a droga. Mas quando reconhecem e aceitam que são dependentes e procuram ajuda, tudo fica mais fácil e a recuperação é mais segura. Na realidade não existe cura, e sim, abstinência; é vencer cada dia, como o alcoolismo. Cada dia é uma etapa vencida, mas sabem que se experimentarem novamente tudo voltará. A internação contra a vontade do dependente se faz em casos graves, realmente necessários.
— Meu Deus, por que os jovens hoje andam tão loucos ao ponto de comprometerem sua saúde, seu futuro e sua vida por conta de prazeres fictícios? Vivem a ilusão por algum tempo e, posteriormente, voltam à dura realidade de quem é viciado.
— É, Paulo, os jovens deveriam ser mais prudentes consigo próprios. Não colocar a perder nem arriscar uma vida que poderá ser promissora.
A festa de André, por não mais ter mantido o brilho do início, logo terminou. Ninguém ousava falar mais nada. Preparavam-se para dormir quando André entrou no quarto de seus pais e lhes disse:
— Pai, mãe, obrigado. Valeu!
Sem esperar resposta, virou-se e dirigiu-se para seu quarto.
Marília e Paulo olharam-se e, cada um, sem nada dizer, agradeceu mais uma vez a Deus a graça recebida.
Passaram-se doze dias após o aniversário de André.
— E aí, Laura, Marcos apareceu?
Marília não podia ver o abatimento no rosto da amiga.
— Obrigada por me ligar, Marília. Não, ele não apareceu ainda. Pedro já deu queixa na delegacia; estamos desesperados, não sabemos o que fazer, estamos perdidos e assustados.
— Temos orado muito por ele, amiga. Ele vai aparecer, vivo você vai ver.
— Deus a ouça! - exclamou Laura, demonstrando uma tristeza que mal conseguia esconder. — Imploro a Deus que ele esteja vivo e que volte para nós.
— Ele vai voltar Laura, confie em Deus. Assim que ele aparecer, por favor, nos avise. Se precisarem de alguma coisa nos procure.
— Obrigada, Marília, sabemos que podemos contar com vocês. O Dr. Rubens também tem ligado todos os dias para saber notícias. Assim que ele voltar, nós avisamos.
Laura, desligando o telefone, sentou-se e pegando o Evangelho Segundo o Espiritismo leu:
— Os sofrimentos por causas anteriores são, freqüentemente, como 05 das faltas atuais, a conseqüência natural da falta cometida; quer dizer, por uma justiça distributiva rigorosa, o homem suporta o que fez os outros suportarem; se foi duro e desumano, ele poderá ser, a seu turno, tratado duramente e
com desumanidade; se foi orgulhoso, poderá nascer em uma condição humilhante; se foi avarento, egoísta, ou se fez mal uso da sua fortuna, poderá ser privado do necessário; se foi mau filho, poderá sofrer com os próprios filhos etc. (Evangelho Segundo o Espiritismo — Capítulo V — item VII).
Laura fechou o livro e, elevando o pensamento até Nosso Pai, orou:
— Senhor, não sei o que fui ou o que fiz na minha vida passada, mas sei que não sofro injustamente porque confio no amor e na tua justiça. Peço perdão pelo que possa ter feito e suplico auxílio para que saiba, pela paciência e pela aceitação dos teus desígnios, consertar o que estraguei e suportar com coragem e fé tudo que possa estar ainda por vir. Ajude-me a vencer.
Ainda estava com o pensamento direcionado ao Pai, quando voltou à realidade ao ouvir o barulho da porta fechando bruscamente. Olhou assustada e ficou perplexa com o que viu.
Marcos estava ali, parado, sujo e malcheiroso. Olhar espantado, mostrando pelo seu aspecto fraco e cambaleante que nada tinha comido até então. Suas roupas estavam rasgadas e seus pés, descalços.
Laura, cedendo aos seus impulsos e sem tirar os olhos do filho, pegou o telefone e ligou para Pedro.
— Pedro, por Deus, venha correndo. Marcos está aqui e eu estou assustada.
— Calma, querida, estou indo.
Laura realmente estava sem ação, tamanho era seu espanto com a figura do filho. Sentia um misto de alegria e tristeza, e não saberia definir qual sensação era mais forte. Marcos continuava olhando-a sem nada dizer. Parecia dementado. Com passos imprecisos, Laura foi se aproximando receosa. Tinha medo do que poderia acontecer.
— Filho, por onde andou? Por que está nesse estado?
Marcos continuava em silêncio. Laura, seguindo o impulso natural nas mães, enlaçou-o em seus braços, sem se importar com o odor fétido que exalava. Foi assim que Pedro os encontrou.
— Marcos! O que aconteceu, meu filho, que estado é esse tão deplorável?
— Ele está assim, Pedro, desde que chegou. Não saiu do lugar e não disse uma palavra. Veja o estado dele, estou assustada.
— Laura, melhor chamar o Rubens. Ele precisa de atendimento médico.

Enquanto aguardavam a chegada de Rubens, levaram Marcos para o banheiro, despiram-no e colocaram-no embaixo do chuveiro. Os dois tentavam controlar a emoção de ver o filho, o único filho, naquele estado quase de demência.
Após o banho, vestiram-no com pijama limpo e o acomodaram em sua cama confortável e cheirosa.
Marcos deixava-se conduzir sem ter nenhuma reação ou emitir nenhum som.
Assim que Rubens chegou, colocaram-no ciente de como ele chegara e o levaram até ele. Marcos, deitado, olhava para o teto com os olhos parados, dando a impressão que nada via. A proximidade de Rubens, ele teve um leve tremor.
Rubens examinou-o com cuidado.
— Ele está em estado de choque - disse. — É preciso levá-lo para o hospital. Necessita de atendimento médico e só terá o que precisa dentro de um hospital.
— Mas como vamos saber o que aconteceu com ele, Dr. Rubens?
— Dona Laura, ele agora não tem a mínima condição de explicar nada. Precisamos tratar dele com urgência. Mais tarde, quando melhorar e tiver condições de falar, explicará tudo. Tenham paciência, é necessário aguardar. Vou chamar o resgate para levá-lo.
— Faça o que achar melhor, Rubens.
— Fiquem calmos, ele ficará bom.
— Podemos ir com ele?
— Claro, é mesmo necessário que estejam com ele.
Laura e Pedro discretamente enxugaram uma lágrima que teimava em cair.
Assim que o resgate chegou, acompanharam o filho até o hospital.


NO LIMITE DA DOR


Sentados na sala de espera, Laura e Pedro dividiam um com o outro a dor que machucava seus corações. De repente tudo se confundia em suas mentes, e o mundo parecia desmoronar. A vida tranqüila que levavam fora derrubada por um furacão e eles, perdidos e ainda confusos, não conseguiam se posicionar e saber qual a melhor atitude a tomar.
— Pedro, sinto medo, muito medo! Medo do que está por vir.
— Laura, confesso que também sinto medo e não sei o que fazer. Estou temeroso como você, é como se me faltasse o chão para pisar.
— É, sei bem como é isso.
Deram-se as mãos como que tentando adquirir um com o outro a força que faltava em seus corações. Por um longo tempo ficaram assim, juntos, calados, mas cada um sentindo a dor dilacerar o coração. Tão absortos estavam que nem perceberam a presença de Marília e Paulo. Ao toque suave da mão de Marília em seus cabelos, Laura reagiu como se saindo de um mundo longínquo.

— Marília, é você! - exclamou quase num sussurro.
— Minha amiga, que momento doloroso este que estão passando. Viemos aqui para saber de Marcos e verificar se não precisam de alguma coisa.
— É verdade - complementou Paulo. — Sabem que podem contar conosco para tudo o que precisarem.
— Meus amigos - disse Pedro emocionado —, estamos precisando mesmo de alguém que nos dê forças e não nos deixe cair na desesperança.
— Viemos porque Rubens nos ligou informando o que tinha acontecido, até então não sabíamos de nada.
— Ele achou que vocês precisariam de amigos que pudessem ampará-los nesse momento.
— Já avisaram a família de vocês?
— Não, Paulo, Laura e eu achamos melhor não preocupá-los, já que moram tão longe e pouco poderiam fazer.
— É verdade, íamos fazê-los sofrer. Minha mãe, assim como a de Pedro, já tem idade avançada, meu sogro está doente. Achamos melhor poupá-los.
— Rubens imaginou que agiriam assim, por isso colocou-nos a par da situação para que pudéssemos estar junto de vocês.
— É sempre bom termos alguém do nosso lado quando enfrentamos situações difíceis.
— Obrigada. Vocês fizeram muito bem em vir. A dor que sentimos está difícil de suportar sozinhos.
— Tranqüilize-se, Laura, Deus vai ampará-los, com certeza, fortalecendo-os para que não percam a esperança e a fé nesse momento crítico. É necessário prosseguir com valentia. É o instante em que Marcos mais precisará de vocês.
— Sabemos disso, mas nem sempre agimos em conformidade com a nossa razão.
— Vão conseguir, amiga, vão conseguir, com certeza.
Nesse instante Rubens entra trazendo notícias.
— Se quiserem, podem entrar para vê-lo. Ele está dormindo, nesse momento é muito importante o sono, portanto não o acordem, deixem que ele desperte sozinho.
— Mas o que aconteceu, Dr. Rubens?
— Dona Laura, como já foi dito, ele não tem condições ainda de explicar nada. Está emocionalmente muito abalado. Por causa disso é fundamental que descanse bastante. Fique tranqüila, ele não corre risco algum de vida.
— Então, o que acontece? - perguntou Pedro.
— Seu filho deve ter passado por momentos de tensão intensa, muito sofrimento e, em vista disso, abalou-se emocionalmente. É uma reação comum nesse tipo de situação.
— Mas ele ficará bem, não terá nenhuma seqüela?
— Fisicamente sim, não terá problema algum. Com certeza deverá ter um acompanhamento psicológico e um tratamento desintoxicante, isto é, limpar seu corpo dos efeitos das drogas.
Os olhos de Laura umedeceram. Sensível à dor da amiga, Marília abraçou-a.
Quantos pais são infelizes com seus filhos, porque não combateram suas más tendências no princípio! Por fraqueza ou indiferença, deixaram desenvolver neles os germes do orgulho, do egoísmo e da tola vaidade que secam o coração; depois, mais tarde, recolhendo o que semearam, se espantam e se afligem da sua falta de respeito e ingratidão. Que todos aqueles que são atingidos no coração pelas vicissitudes e decepções da vida interroguem friamente sua consciência; que remontem progressivamente à fonte dos males que os afligem, e verão se, o mais freqüentemente, não podem dizer: se eu tivesse, ou não tivesse feito tal coisa eu não estaria em tal situação. (Evangelho Segundo o Espiritismo — Capítulo V, item 4)


Pedro e Laura entraram no quarto do filho. Pararam próximo ao leito e, emocionados, observaram Marcos que dormia. Pedro segurou a mão da esposa pedindo-lhe, com este gesto, que lhe desse força.
— Vai ser difícil, Pedro, muito difícil. Ás vezes me pergunto o porquê de tudo isso estar acontecendo conosco. Será que somos tão ruins assim; será que ainda não me redimi do meu erro, ao ponto de experimentar tanta dor?
— Eu também me pergunto e não encontro resposta, Laura. Mas algum motivo deve ter; deve existir alguma explicação, só não conseguimos entender qual.
Todo efeito tem uma causa. Ora, a causa precedendo sempre o efeito, uma vez que não está na vida atual, deve ser anterior a ela, quer dizer, pertencer a uma existência precedente. Por outro lado. Deus não poderia punir pelo bem que se fez, nem pelo mal que não se fez, se somos punidos, é porque fizemos o mal; se não fizemos o mal nesta vida, o fizemos em outra. É uma alternativa da qual é impossível escapar, e na qual a lógica diz de que lado está a justiça de Deus.
Entretanto, não seria preciso crer que todo sofrimento suportado neste mundo seja, necessariamente, o indício de uma falta determinada; são freqüentemente simples provas escolhidas pelo espírito para acabar sua depuração e apressar seu adiantamento. Assim, a expiação serve sempre de prova, mas a prova não é sempre uma expiação, mas prova ou expiação são sempre sinais de uma inferioridade relativa, porque o que é perfeito não tem mais necessidade de ser provado. (Evangelho Segundo o Espiritismo — Capítulo V — item VI e VIX).
Rubens, entrando no quarto, condoeu-se com a situação dos amigos.
— Ele está dormindo, não se preocupem!
— Rubens, o que nos aguarda no futuro? - Pedro fez a pergunta com ansiedade na voz.
— Não vou enganá-los dizendo que tudo se resolverá facilmente, Pedro. Mas o fato de Marcos ter voltado sozinho para casa pode ser um indício da sua vontade em se tratar. Se ele quiser realmente ajuda e aceitar o tratamento, acredito eu, voltará a se relacionar bem com a sociedade e consigo próprio.
— É muito bom poder contar sempre com sua amizade, Rubens, nos estimula a continuar lutando. Vamos acreditar que Marcos vai renascer.
— É verdade, doutor, Pedro tem razão. Sozinhos não teríamos condições de suportar a tristeza que se abateu sobre nós. Somos muito gratos.
— Não se faz necessário me agradecer. Vocês são meus amigos e estão sofrendo, para mim isto basta, é motivo mais que suficiente para estar perto de vocês e auxiliar quanto puder.
— Quando ele poderá nos explicar o que aconteceu?
— Assim que ele acordar vamos verificar suas condições psicológicas e emocionais. O importante é não pressioná-lo, deixar que as explicações venham no momento que ele se sentir pronto e seguro para isso, tenham calma.
A palavra calma soava aos ouvidos de Pedro e Laura como algo impossível de conseguir. Seus corações pulsavam acelerados, talvez não suportando o peso da emoção contida. Foi Pedro quem, segurando as mãos de Laura, lhe disse:
— Querida, nossos amigos estão lá fora nos esperando. Vamos ter com eles.
— E deixar Marcos sozinho?!
— Laura, ele está dormindo, não vai perceber nossa ausência. Assim que ele despertar, viremos ter com ele. Nós apenas vamos aguardar lá fora.

— Está bem, vamos.
Paulo e Marília, ao vê-los sair do quarto, se aproximaram de imediato.
— Como ele está?
— Dormindo. Rubens disse que temos de esperar que ele acorde espontaneamente.
— O que poderá ter acontecido que o deixou nesse estado? - perguntou Laura, que não escondia sua aflição.
— Laura, é difícil imaginar, mas seja o que for que tenha acontecido impediu que ele voltasse morto - respondeu Marília. — Isto é na verdade o que, dentro do contexto, mais importa.
— Concordo com você - disse Pedro. — Deus está nos dando uma nova chance, para nós e para o Marcos, e é o que devemos fazer: recomeçar! Como já nos foi dito antes, não importa o que tiraram do Marcos ou de nós, mas sim o que faremos com o que sobrou. Que Deus nos dê sabedoria.
— Gosto de vê-lo falar assim, Pedro - falou Rubens, que acabara de chegar. — Tenho certeza de que saberão o que fazer, porque já aprenderam que só o amor enxuga as lágrimas, e amor vocês têm forte e sincero em seus corações.
— Obrigado, Rubens. Se temos alguma sentimento bom dentro de nós, com certeza foi você quem nos ajudou a descobrir e a expandir ao ponto de crer que o sol sempre brilhará, não importa quanto tempo durar a tempestade.
— Realmente, gosto de ouvi-lo falar assim, Pedro.
As horas se passaram sem que na realidade Pedro e Laura percebessem. Só se deram conta quando ouviram a voz da enfermeira dizendo:
— Dr. Rubens, Marcos acordou.
— Vamos até lá - respondeu o médico.
Antes que entrassem no quarto de Marcos, Paulo e Marília se despediram, deixando-os na companhia de Rubens, e à vontade para conversar com o filho.
Marcos ostentava uma aparência melhor e mais tranqüila. Os medicamentos ministrados surtiram o efeito desejado.
— Você está melhor? Filho, o que aconteceu que o deixou naquele estado?
Marcos olhou para sua mãe com uma expressão triste no rosto. Era um misto de arrependimento, vergonha, decepção consigo mesmo. Diante do seu silêncio, Rubens interferiu:
— Marcos, o que nos importa agora é vê-lo bem. Se não quiser conversar agora, não fale. Seus pais respeitarão sua vontade e seus limites. Tem o tempo que achar conveniente para acalmar suas idéias e retomar a posse de si mesmo. As explicações virão mais tarde, no momento que você julgar oportuno.
— É verdade, meu filho - disse Pedro segurando-lhe as mãos. — Agora é importante que descanse bastante e alimente-se bem. Para mim basta saber, por enquanto, que está bem. As explicações, como disse Rubens, virão ao seu tempo.
Marcos não conseguia dizer uma só palavra.
Laura sentou-se próxima ao filho, enlaçou-o, colocando sua cabeça em seu colo. Passando suavemente a mão sobre seus cabelos, falou com carinho:
— Filho, tudo o que aconteceu com você já passou. Está agora com seus pais que o amam e tudo farão para que recobre seu equilíbrio e sua vontade de viver. Não iremos lhe cobrar nada. Posteriormente conversaremos para concluirmos qual o melhor caminho para sua recuperação. Tudo vai dar certo, é só ficarmos juntos, unidos, nos apoiando um no outro, nos fortalecendo e acreditando no amparo divino. Como disse, tudo vai dar certo!
Marcos, absorvendo todo o amor que seus pais lhe dedicavam, esboçou um leve sorriso e falou com voz ainda fraca e quase imperceptível:
— Obrigado, pai, obrigado, mãe!

Entregando-se como uma criança aos carinhos de sua mãe, fechou os olhos e adormeceu novamente.
O olhar indagador de Laura fez com que Rubens se apressasse a explicar.
— Não se assustem ele apenas adormeceu novamente.
Lembrem-se de que ele está sob o efeito de medicamentos. Volto a repetir, é necessário que tenham muita paciência. O processo é esse, vamos aguardar.
Passaram-se quatro dias desde a internação de Marcos. Laura acordou sentindo uma alegria inexplicável. Olhou para Marcos que ainda dormia e disse para si mesma:
— Filho querido, tenho a sensação que hoje será um dia especial. Alguma coisa me diz que você vai acordar bem disposto e pronto para enfrentar a situação. Desconfio que hoje saberemos como tudo aconteceu, tenho certeza de que você vai se recuperar e voltar a ser feliz.
Durante o sono, os liames que unem o espírito ao corpo se afrouxam e o corpo não necessita do espírito. Então ele percorre o espaço e entra em relação mais direta com os outros espíritos. (Livro dos Espíritos — Capítulo VIII — item 401).
Foi o que aconteceu com Laura. Durante seu sono Jacob veio ter com ela e pôde orientá-la quanto a Marcos. Fortaleceu seu espírito na esperança e na crença de que tudo se resolveria com o tempo. Fez com que seu espírito compreendesse que a situação poderia se modificar se ela contribuísse de maneira efetiva para isso. Ao acordar, Laura não se lembrava conscientemente de seu encontro com Jacob, mas trouxe a recordação do colóquio espiritual pela sensação e pela intuição que sentia de que tudo se modificaria a partir daquele dia.
Após uma hora e meia, mais ou menos, Marcos despertou.
Laura, sentada ao lado de sua cama, lia atentamente, quando ouviu chamá-la:
— Mãe!
Rapidamente voltou-se para o filho e seu rosto se iluminou de alegria.
— Marcos!
De um salto abraçou-o ternamente.
— Filho, filho querido; você está com um ótimo aspecto. Dormiu bem?
— Sim, mãe. Sinto-me muito bem e estou faminto.
— Vou chamar a enfermeira e pedir-lhe que providencie seu café.
Enquanto esperava o desjejum, Marcos levantou-se, tomou banho e, sentado em uma cadeira do quarto, conversava com sua mãe.
— Mãe, quanta tristeza trago em meu coração. Quantas marcas cravei em meu peito por ter sido teimoso, inconseqüente, leviano e imaturo o suficiente para não perceber quanto eu estava me afundando e perdendo todos os meus valores.
— Filho, não fale agora, isto poderá fazê-lo reviver e sofrer mais.
— Não, mãe, eu preciso falar; tirar de dentro de mim essa angústia... dividir com as pessoas que amo os meus erros e procurar me curar. Preciso de ajuda, mãe, realmente muita ajuda.
— Você terá meu filho, estaremos sempre do seu lado ajudando-o a se reerguer.
— Isso é possível?
— Claro filho! Agora será possível porque você tem o ingrediente principal: a vontade. E você quem quer e é isso que faz toda a diferença.
— Com licença, trouxe seu café, senhor Marcos.

Agradecendo, Laura apressou-se a servir seu filho.
— Marcos, tome seu café, você se sentirá melhor ainda.
— Obrigado, mãe, mas eu preciso falar desabafar.
— Eu sei filho, e você o fará. Tome seu café e vamos aguardar um pouco, logo seu pai e o Dr. Rubens estarão aqui. Você não acha que seria bom que eles o ouvissem? Seu pai ama tanto você!
— Eu sei mãe.
— O Dr. Rubens, não preciso nem falar quanto ele é nosso amigo, e seu também; seria prudente que ele o escutasse para saber como conduzir seu tratamento, e ajudá-lo caso houvesse necessidade.
— Está bem, mãe, vamos aguardá-los.
Olhou para sua mãe como se pela primeira vez a visse como realmente era. Esboçou um leve sorriso e voltou a tomar seu café.


AUSÊNCIA DE DEUS


Rubens estava satisfeito com o estado geral de Marcos. Tudo indicava que ele teria êxito no seu propósito de cura.
— Está pronto para falar sobre o assunto? - perguntou, olhando atentamente para o rapaz.
— Estou Dr. Rubens; acredito que estou - repetiu.
— Pois bem; comece à hora que quiser. Lembre-se de que estamos aqui para ajudá-lo, não para recriminá-lo. Não nos cabe julgá-lo, fique certo disso.
— É verdade, filho. Queremos o seu bem e lutaremos ao seu lado para que você se recupere.
— Obrigado, pai.
— É importante que saibamos o que aconteceu com você, filho, para melhor compreendê-lo. Todos nós erramos, é necessário se conscientizar do erro e partir em busca dos acertos. Conte sempre conosco.
— Eu sei mãe. Sei que posso contar com vocês. Quero apenas preveni-los de que o que vão ouvir não é nenhuma história da carochinha, com final feliz, muito pelo contrário, o final é triste, promíscuo e traumático.

Laura olhou para Pedro e Rubens com expressão assustada. Pedro adiantou-se:
— Não importa filho, estamos preparados para ouvi-lo. Seja o que for que tenha acontecido, conte-nos sem receio e sem nada esconder. O que está feito não tem volta, mas o que está por vir depende de cada um de nós.
— Seu pai tem razão, Marcos - disse Rubens —, agora é se esforçar e tentar consertar o estrago que o vendaval fez, recuperando o bom senso. Somos todos adultos e sabemos que a vida é o cenário do bem e do mal. Por algum tempo você se incorporou no cenário do mal, mas, agora, percebendo a inutilidade e sofrendo a conseqüência dessa ilusão nefasta, pode retornar e se integrar no cenário do bem. Todos nós estamos aqui prontos para ajudá-lo a se ajustar e fazer parte novamente desse cenário, portanto confie na Providência Divina que o auxiliará nessa tarefa de adequação.
— Acredito no que diz Dr. Rubens. Estou ansioso para tirar de mim este peso que quase me levou à loucura.
— Então fale!
Marcos respirou fundo. Reportando o dia do aniversário de André, iniciou a narrativa:
— Naquela noite, quando fui à casa do André, já tinha me drogado com maconha e cocaína. Nem sei direito o que fiz e o que falei. Só me lembro que, quando me trancaram no quarto, fiquei louco. Era como se um bicho enorme e poderoso tomasse conta de todo o meu corpo. A única coisa que eu sabia era que precisava de mais droga. Pulei a janela do meu quarto e fui à boca onde sempre conseguia a "muamba". Já era conhecido de lá, pois sempre ia buscar o que queria. Cheguei dizendo que tinha conseguido muito dinheiro e que eles poderiam me abastecer porque no final pagaria tudo de uma só vez. Como sempre pagava a eles, não desconfiaram que eu estava mentindo e que não tinha dinheiro algum. Forneceram-me sem economia o que eu queria. Quando atingi o auge do delírio, caí ali mesmo e ali fiquei até que o dia amanheceu e o efeito da droga aliviou. Quando me preparei para ir embora, o chefe se aproximou de mim e me cobrou o que devia. Ao saber que não existia nenhum dinheiro, ordenou que seus capangas me batessem ao ponto de quase me quebrarem todo, trancou-me em um quarto malcheiroso e disse-me que só me soltaria após alguém vir pagar a minha dívida. Não conseguiram me obrigar a dizer onde meus pais moravam, então mantiveram-me preso dando-me somente pão duro e água, sem direito algum, muito menos tomar banho.
Marcos calou-se e limpou o suor que molhava seu rosto.
Rubens, percebendo seu abalo emocional, lhe disse:
— Marcos, não prefere continuar outra hora? Talvez seja melhor parar por hoje.
— Não, doutor, comecei e vou até o fim. Deixe-me terminar, por favor, nem que o senhor tenha que me sedar depois.
— Faça como quiser.
Marcos pediu um copo com água e continuou:
— Após quatro dias de prisão e sem conseguir meu endereço para cobrar a dívida pressionando os meus pais, alguém teve a idéia de fazer com que eu pagasse trabalhando para eles e me prostituísse para satisfazer seus desejos sexuais anormais e imorais.
Ao ouvir isso, Laura escondeu o rosto entre as mãos e soltou um gemido de dor. Foi como um punhal cravando no peito de Marcos. Pela primeira vez tomava consciência da proporção do mal que fizera a seus pais.
— Perdoe-me, mãe - disse quase chorando —, nunca quis e nunca fiz isso por motivo algum. Obrigaram-me com uma violência física e moral que é melhor nem comentar. Me drogava sim, mas nunca violentei meu corpo.
Rubens, na tentativa de poupar os pais de Marcos de tamanho sofrimento, interveio de imediato.

— Marco não é necessário contar-nos os detalhes; já sabemos o suficiente, tanto que podemos imaginar o resto. Diga-nos apenas como conseguiu fugir dessa situação.
— Entre eles havia um rapaz que sempre foi meu camarada. Tínhamos uma amizade boa; depois de dias vendo o sofrimento que estava me levando à demência, condoeu-se da minha situação humilhante e ajudou-me a fugir. Pediu-me que nunca mais voltasse àquele lugar ou me deixasse encontrar pelo chefe, pois com certeza ele me mataria.
— Meu Deus! - exclamou Pedro.
— Essa é a lei dos traficantes, pai. Não são amigos, nunca querem perder e jamais se sensibilizam com os problemas dos outros. Para eles só vale o dinheiro, o lucro. Pena que descobri isso muito tarde e a duras penas.
— Olha onde você foi se meter, filho!
— Eu sei mãe, eu sei! Conheci o inferno, mas não quero voltar para ele; é por isso que peço ajuda. Voltando-se para Rubens, perguntou:
— O senhor, que é um homem com conhecimento profundo da vida, conhecimento adquirido pelos seus estudos e de sua vivência de fraternidade, diga-me: por que existe tanto mal e por que caímos nele?
— Tanto para uma como para a outra pergunta Marcos, só existe uma resposta: ausência de Deus! O mal existe pela ausência de Deus no coração daquele que o pratica, assim como aquele que cai na sua armadilha o faz pelo mesmo motivo. É importante colocarmos Deus em nosso coração, Marcos; Ele é a bússola, a direção que nos leva ao porto seguro.
— Doutor, tenho alguma chance de recuperação?
— Claro Marcos! Mas precisará ter muita força de vontade, fazer o tratamento de maneira séria, terapia e acreditar que pode. Querer é fundamental, e todos vamos ajudá-lo nessa batalha.
— Sim, filho, confie em nós, em você e, principalmente, em nosso Pai que está no céu. Tudo vai se resolver. Voltaremos a ser felizes.
— Coloquei tudo a perder, não é verdade, mãe?
— Agora é pensar no futuro, ver o que de bom sobrou em você e resgatar sua auto-estima, seu valor. Juntos conseguiremos vencer a estrada árdua da volta.
— É melhor descansar agora Marcos - disse Rubens. — Vou dar-lhe um medicamento para relaxar e dormir. Amanhã provavelmente poderá voltar para casa.
— Antes quero responder a uma pergunta que, tenho certeza, todos vocês estão se fazendo.
— Qual filho?
— Onde conseguia dinheiro para sustentar meu vício, já que nunca me viram trabalhar.
— Sim, na verdade gostaríamos de saber.
— Mãe, acredite, por favor, nunca me prostituí. Fazia alguns serviços para o senhor José, aquele do mercadinho da rua de cima, lembra dele? Entregava suas encomendas, limpava o chão, enfim, tudo o que ele precisava. Com o dinheiro que ele me pagava comprava a droga. Depois daquele envolvimento com a polícia, no qual eu e o André fomos presos, confesso que duas ou três vezes me envolvi em confusão com uma turma aí. Fizemos algumas besteiras, mas logo percebi que era gente da pesada e caí fora. Acredite em mim, eu imploro!
Pedro, enquanto ouvia o filho relatar suas experiências, pensava no grande carrasco que é a droga. Enlaça sua vítima, aperta o cinto aprisionando-a e depois joga-a na sarjeta, tirando sua dignidade, sua esperança e desgraçando sua vida e de toda sua família. Não conseguia imaginar seu filho, que tinha tudo em casa, trabalhando em um mercadinho para servir a esse carrasco. Jogara fora seus princípios, seus estudos e sua integridade física.

— Pai, o senhor ouviu o que eu disse?
— Claro, filho, claro. Fique certo de que acreditamos em você. O que nos importa agora é saber que você caiu na realidade e percebeu a necessidade de se recuperar, reestruturar sua vida. Vamos confiar em você, na sua sinceridade. Sabemos que não será fácil, mas vamos lutar colocando Jesus à frente, nos mostrando o caminho e firmando nossos pés na longa jornada.
— Vamos ficar aqui com você no hospital - disse Laura. Se Deus quiser, será só mais esta noite.
— Mãe, não se preocupe. Vão para casa e descansem. Eu estou bem e o doutor disse que vou dormir. Não precisarei de nada. Ficaria mais tranqüilo se soubesse que estão em casa descansando. Quero mesmo ficar um pouco sozinho, pensar um pouco.
Pedro e Laura olharam para Rubens esperando seu parecer.
— Ele tem razão. Podem ir. Ele ficará bem e depois hoje é meu dia de plantão, estarei aqui no hospital toda a noite. Virei vê-lo, fiquem tranqüilos.
— Bem, se é assim, nós vamos. Amanhã bem cedo estaremos aqui.
Aproximando-se do filho, beijaram-no.
— Fique com Deus, filho!
— Vão com Deus também - respondeu Marcos.
Assim que seus pais saíram. Marcos recostou em sua cama e, enquanto aguardava a medicação prescrita por Rubens, deixou-se navegar em suas reflexões. Tudo passava como um filme em sua mente.
— Quanta bobagem e irresponsabilidade pratiquei! - exclamava para si mesmo. — Meu Deus, o que fiz da minha vida. Tendo tudo para ser um vencedor, consegui me transformar em um jovem completamente arrasado, destruído e sem esperanças. Larguei meus estudos, afastei-me das pessoas que me queriam bem e o que é pior, magoei meus pais e a mim mesmo, transgredindo com total leviandade as leis dos homens e até as leis de Deus. Não posso nem culpar a falta de orientação e informação porque as tive todas e várias vezes. Pensou no amigo André.
— André foi mais esperto do que eu. Percebeu mais cedo a furada em que tínhamos nos metido e a inutilidade da rebeldia dos jovens quando essa rebeldia vem destruir nossas próprias oportunidades de crescer; quando esses atos insanos e irresponsáveis vêm acabar com nossa moral, nossa dignidade
e caráter, trazendo apenas frustrações, mágoas e sofrimentos para aqueles que dizemos amar e para nós mesmos. Nada disso vale a pena, hoje bem sei.
— Por que esse olhar tão absorto, Marcos?
Marcos levou um susto.
— Oi, Dr. Rubens, o senhor me assustou!
— Desculpe-me! Vim ver como estava e o encontro tão pensativo. Como diz o dito popular, "um níquel pelos seus pensamentos" - brincou.
Marcos sorriu.
— É bom vê-lo sorrir!
— O senhor poderia dispor de alguns minutos para conversar um pouco comigo?
— Claro!
Animado, Marcos colocou Rubens a par de todas as suas reflexões, seus medos, seu arrependimento, enfim, ressaltou com veemência a dor que sentia em seu peito pela experiência nociva de ter vivido por alguns dias na promiscuidade, em contato direto com uma violência que até então ele próprio desconhecia.
Rubens compadeceu-se com a aflição daquele jovem que pagara bem caro por sua imprudência. Lembrou-se de seus filhos mortos anos atrás em plena juventude e pensou:

"Meu Deus, poderia ser um filho meu. Quem pode afirmar com certeza que jamais passará por esta ou outra situação conflitante?"
Paternalmente aproximou-se mais de Marcos, sentando bem próximo à sua cama.
— Marcos, vamos conversar sim. Temos a noite toda se quiser, salvo se eu for chamado para alguma emergência. Diga-me sem constrangimento o que o aflige dentre todas as aflições que apertam seu coração.
— Não saberia enumerá-las por ordem de importância, porque todas machucam meu coração com a mesma intensidade, mas gostaria muito que me respondesse a uma pergunta específica: terei algum futuro? Poderei esperar e acreditar em uma nova chance de vida?
— Marcos, é claro que tem e deve acreditar no seu futuro que, com certeza, poderá ser promissor se você quiser e se esforçar para isso.
— Mas o senhor acha mesmo que depois de tudo valerá a pena? Com todas essas cicatrizes, essas marcas que deixei por onde passei?
— Preste atenção, Marcos: um velhinho de setenta anos queria aprender violino, regressar ao mundo espiritual com noções musicais. O professor, surpreso, disse não valer a pena, pois o estudo do violino era muito longo e ele não teria idade suficiente para completar o curso. O velhinho respondeu: "Sempre vale a pena. Se conseguir aprender apenas seis meses, chegarei ao mundo espiritual com um conhecimento a mais, noções de música. Na realidade andei um passo em direção ao meu sonho." Isso quer dizer. Marcos, que na vida é hora de aprender com qualquer idade independentemente do que fizemos ou do que deixamos de fazer, se erramos ou acertamos. O que importa é melhorar sempre, sem cansar nunca.
— O senhor falando assim parece fácil!
— Não, Marcos, não é fácil, aliás, é até difícil. Sabe por quê? Porque nós homens temos a tendência em cair na auto-compaixão, damos muita atenção ao orgulho; nos afundamos no egoísmo e na vaidade em admitir que estamos errados, enganados. É preciso muita coragem para se conscientizar que errou e pedir ajuda. Os que agem com coragem e esperança no futuro aumentam muito a chance de conquistar a felicidade. Os que percebem que são fracos e assumem esta fragilidade perante si mesmo aceitam a necessidade de ir a busca do fortalecimento de seu espírito, de sua personalidade e de seu caráter.
— O que tenho de fazer, então, doutor?
— Se adequar às leis divinas e às leis dos homens. Ter consciência que nenhum de nós é o centro do universo e acreditar que suas chances de progresso são as mesmas dos outros, desde que se esforce para isso. Nada adquirimos se não for por esforço próprio; essa é a lei.
— E os meus pais, estão sofrendo tanto.
— Estão! Realmente estão! Mas não se esqueça Marcos, de que eles amam você, e a sua felicidade é a felicidade deles. Como já disseram, vão ajudá-lo, depende só de você aceitar essa ajuda e passar a valorizar a vida como uma bênção maior que o nosso Criador nos concede.
— Uma última pergunta, doutor: a rebeldia dos jovens é válida?
— É válida se for uma não-aceitação, sem violência do preconceito, das injustiças e das misérias; se for uma não aceitação que leva aquele que sente a lutar pelos oprimidos e sofredores, com prudência, fraternidade e generosidade. É válida. Marcos se for uma rebeldia que constrói e que mostre pelo exemplo do trabalho e da honestidade que podemos melhorar o mundo se nos esforçarmos para isso, permitindo que cada um viva e tenha sua chance de aprendizado. Esta é válida! Mas rebeldia que corrompe que se entrega aos desvarios aniquilando aquele que sente aqueles que estão a sua volta e a sociedade em geral, esta não é válida e deve-se trabalhar para que desapareça, porque na realidade só está satisfazendo os interesses falsos e nocivos daqueles que se dizem rebeldes porque a vida os fez assim.
Marcos chorava. A emoção tomou conta de todo o seu ser. Nunca pudera imaginar que seria agraciado com tanta compreensão. Na realidade nunca dera valor à ami¬zade, nunca enxergara os verdadeiros amigos, aqueles que querem sempre o nosso bem; aquela amizade que acolhe, mas educa; que enxerga o bom caminho quando nossos olhos são incapazes de ver.
Segurou as mãos de Rubens e apertou-as com força. Com voz trêmula, disse baixinho:
— Eu vou vencer!
— Claro que vai - respondeu Rubens.
Rubens notou a emoção forte que tomava conta de Marcos. Achou que era hora de parar.
— É melhor descansar. Vou pedir à enfermeira que lhe traga agora a medicação. Terá um sono reparador. Por hoje chega de emoções.
Levantou-se e, desejando boa noite, retirou-se do quarto.
Marcos, voltando a se recostar na cama, esperou a enfer¬meira, com a certeza de que teria uma boa noite de sono, como lhe desejara seu amigo.


NOITE DE NATAL


Os preparativos para a inauguração do Lar de Isabela chegaram ao fim.
Tudo ficara de acordo com os desejos de Rubens e com as necessidades das crianças. Os quartos, cuidadosamente enfeitados e coloridos, aguardavam apenas os sorrisos dos pequenos que iriam habitá-los.
Rubens não cabia em si de contente.
— Dona Marília, não sei como agradecer toda a ajuda que a senhora, assim como Paulo, Dona Laura e Pedro me deram. Tenho certeza de que sem essa ajuda nada estaria como está. Muito obrigado.
— Por favor, não nos agradeça, Dr. Rubens. Foi o senhor quem nos ajudou permitindo que participássemos deste projeto que se tornou muito importante para todos nós.
— Isso aconteceu porque foi ao encontro dos anseios de seus corações. Entenderam que, além das gigantes montanhas que se colocam à nossa frente, existem vales imensos esperando apenas semeadores dispostos a trabalhar.
— É bem verdade o que está dizendo. Houve um tempo em que tudo parecia escuro e sombrio na minha vida, e o senhor sabe disso. Não enxergava nenhuma possibilidade de saída, mas, hoje, depois de tudo o que aprendi, olho para trás e mal acredito que consegui sobreviver às amarguras.
— A possibilidade de isso acontecer foi a senhora quem propiciou ao entender o que é o amor na sua essência verdadeira. Existem formas e formas de viver esse sentimento, e todas elas se entrelaçam se o amor for simplesmente amor; verdadeiro, forte e limpo. E esse sentimento que nos transforma e nos fortalece Dona Marília. Quando compreendemos que tudo depende de nós, da maneira como conduzimos nossa vida, da aceitação das coisas fortes que não estão ao nosso alcance mudar, com certeza encontramos o equilíbrio que nos leva à paz.
— Como o senhor fala bonito, Dr. Rubens!
— Não falo bonito, falo o que sinto. Passei por muitos sofrimentos. Dona Marília, e alguns deles a senhora presenciou. Tive meus momentos de angústia e de desânimo; nem sempre fui esta fortaleza que vocês dizem admirar. Sou humano e tenho fraquezas, mas aprendi nesses anos todos que somente quando nos entregamos ao amor, e vivemos esse sentimento ao lado de nossos semelhantes, companheiros de jornada na Terra, é que nossas lágrimas secam e dão lugar ao trabalho edificante e à conduta que resgatam nossa paz.
— Atrapalho!
— Laura, que bom vê-la! Você nunca atrapalha - respondeu Marília.
— É verdade, Dona Laura, jamais sua presença vai nos incomodar, é um prazer.
— Vocês são mesmo amigos - disse Laura sorrindo.
— Faltam apenas dois dias para iniciarmos nosso trabalho Dona Laura. Se Deus quiser, na noite de vinte e quatro para vinte e cinco de dezembro estaremos recolhendo nossos filhos do coração que estarão conosco, dia após dia, aprendendo a viver e a ser feliz.
Emocionada, Marília falou ao amigo:
— É a maneira mais linda de passar a noite de Natal. Só mesmo o senhor para ter idéias como essa.
— É verdade, Marília, nunca tinha me ocorrido que se pudesse fazer da noite de Natal a noite do encontro entre as criaturas.
— É, Laura, a noite do encontro das almas que, à frente dos presentes e das guloseimas, conseguem ver de verdade é o amor de Jesus, o aniversariante muitas vezes esquecido.
Laura ficou pensativa. Uma lágrima fortuita escapou de seus olhos.
— O que foi amiga? Ficou triste de repente. O que está sucedendo, o Marcos não está bem?
— Marcos está indo muito bem, Marília, melhor do que eu e o Pedro esperávamos, apesar de sabermos que ainda tem um longo caminho pela frente.
— Então, o que a preocupa Dona Laura?
— Lembram-se daquele rapaz que ajudou Marcos a fugir naquela ocasião?
— Sim, o que tem ele? - perguntaram ao mesmo tempo Rubens e Marília.
— Pois bem, dias atrás, ao sairmos com o Marcos do consultório do Dr. Jaques, onde ele faz terapia, encontramos com esse rapaz. Ele de pronto reconheceu o Marcos. Ficaram contentes de se encontrarem e, durante a conversa que tiveram, ele contou que o tal de Alfredo, que é o chefe daquele bando de traficantes, não esqueceu o Marcos e ainda o procura para cobrar a dívida e se vingar. Diante do nosso espanto e receio, ele nos aconselhou a tirar o Marcos daqui, deixar a cidade, antes que ele o encontre, o que acontecerá mais dia menos dia, assim poderemos evitar uma desgraça.

— Meu Deus, Laura, isso é muito sério e perigoso! - exclamou Marília.
— É verdade, Dona Laura - concordou Rubens. Com essa gente não se brinca.
— Nós sabemos. É por isso que decidimos nos mudar daqui.
— Mas quando e para onde vocês pretendem ir?
— Logo após a inauguração do Lar de Isabela, vamos para a cidade onde moram nossos pais, enfim, toda a nossa família. Acreditamos que lá o Marcos estará a salvo desse bandido, e mais tranqüilo para prosseguir seu tratamento.
Marília enlaçou a amiga em um gostoso abraço.
— Não fique tão triste, Laura. O importante é resguardar seu filho, afastando-o desse risco.
— Sentiremos muita saudade de vocês, do nosso trabalho que na verdade nem cheguei a fazer aqui no Lar; dos seus sábios conselhos, Dr. Rubens, enfim, há anos moramos aqui e agora vamos ter de começar tudo de novo.
— Não se lastime Dona Laura, foi uma bênção ter encontrado esse rapaz, e ter a oportunidade de recomeçar com seu filho ao seu lado, pior seria se fosse sem ele.
— Eu sei Dr. Rubens e até me envergonho de dizer isso, mas Pedro e eu estamos tão fragilizados.
— Isso vai passar Dona Laura. Nenhum sofrimento dura para sempre. Pensem que estarão novamente juntos com a família de vocês e que o Marcos está se recuperando. Se Deus quiser, verão seu filho feliz novamente.
— Mas o nosso trabalho social, como fica?
— Dona Laura, quando trabalhamos movidos pelo sentimento de fraternidade, não importa o lugar, sempre acharemos o que e onde realizar nossa tarefa de amor, se realmente a desejamos. Tanto a senhora quanto Pedro possuem dentro do coração a semente da caridade e ela germinará se vocês permitirem, independentemente do lugar onde estejam. Jesus está perto de nós sem se importar com o lugar onde estejamos, porque a Ele interessa nosso coração limpo e verdadeiro.
— Obrigada por suas palavras, Dr. Rubens. O senhor sempre consegue acalmar nosso coração. Poderia me dizer se tudo o que Pedro e eu estamos passando é uma prova? Foi Deus quem nos impôs todo esse castigo?
— Dona Laura, veja bem: Nada acontece sem a permissão de Deus, porque foi Ele quem estabeleceu todas as leis que regem o universo. Perguntareis por que Ele fez tal lei em vez de outra. Dando ao espírito a liberdade de escolha, deixa-lhe toda a responsabilidade dos seus atos e das conseqüências; nada lhe estorva o futuro; o caminho do bem está à sua frente, como o do mal. Mas, se sucumbir, ainda lhe resta uma consolação, a de que nem tudo se acabou para ele, pois Deus na Sua bondade permite-lhe recomeçar o que foi mal feito. É necessário distinguir o que é obra da vontade de Deus e o que é da vontade do homem. Se um perigo vos ameaça, não foste vós que o criaste, mas Deus tivestes, porém, a vontade de vos expordes a ele, porque o considerastes um meio de adiantamento; e Deus o permitiu. (Livro dos Espíritos — Capítulo VI — item V — pergunta 258a).
— Isso quer dizer que somos culpados e merecemos este castigo?
— Isso quer dizer que Deus não nos impõe castigo, mas respeita a lei de ação e reação. Por tudo que fazemos de bom somos agraciados com a paz; mas, também, por tudo que fazemos de imprudente, leviano e inconseqüente sofreremos as conseqüências. Nós escrevemos nossa história, Dona Laura. Deus não permite o sofrimento ao inocente e quem de nós pode dizer e afirmar ser completamente inocente, ser uma vítima da injustiça divina?
Marília interveio.
— Dr. Rubens, e se não nos lembramos de nada que tenhamos feito para ocasionar nossas dores?

— Se a causa não está nesta vida, Dona Marília, há de estar no pretérito. Deus é justo, jamais devemos nos esquecer ou duvidar da Sua justiça.
— Mas também podemos estar em uma situação conflitante, com a finalidade de ajudar entes queridos, não é mesmo, Dr. Rubens?
— É verdade. São espíritos que se submetem aos espinhos para auxiliar aqueles que amam, e são mais fracos, a vencerem as provas. É o exercício do amor altruísta.
André e Laís aproximaram-se entusiasmados, interrompendo a conversa:
— Dr. Rubens, mãe e Dona Laura, venham ver a beleza que ficou o quarto de lazer das crianças. Terminamos agora de arrumar, montamos todos os brinquedos, selecionamos os jogos por idade, enfim, está uma graça. Ficou lindo!
Todos seguiram André e Laís, participando da contagiante alegria dos jovens.
Noite de 24 de dezembro.
O entusiasmo se estampava no rosto de Rubens; Pedro e Laura; Paulo e Marília, seguidos de André, Laís, Inês, Marcos e Ana. A imensa alegria que sentiam ao recolher os futuros moradores do Lar de Isabela se misturava com as luzes, bolas coloridas, fitas vermelhas e Papai Noel, que enfeitavam as ruas da cidade, embalados por músicas natalinas que levavam aos corações dos transeuntes a mensagem de Natal.
Uma a uma foram sendo recolhidas as crianças que, abandonadas, jaziam dormindo nas calçadas, indiferentes ao reboliço que o "Espírito de Natal" causava a todos.
— Rubens, podemos recolher essas crianças e levá-las para o Lar? Não teremos problemas com o Juízo da Vara da Infância e da Juventude?
— Tranqüilize-se, Paulo. O Lar de Isabela está legalmente habilitado para receber estas crianças. Foi-nos concedida uma autorização especial para que fosse dessa maneira, mas, assim que estiverem devidamente instaladas, limpas e alimentadas a assistente social nos visitará para iniciar todo o procedimento legal para que elas permaneçam internas.
— Foi muito bom o juiz ter nos dado permissão para que fosse assim, não, Rubens?
— De fato, Paulo. Este era o meu grande sonho, passar a noite de Natal ao lado dos nossos irmãozinhos carentes de afeto.
— Não só de afeto, Rubens, mas carentes de vida, de esperança e de saúde.
— É, tenho certeza de que nossos entes queridos que se foram vão nos amparar e auxiliar nessa tarefa que iniciamos hoje: devolver os sonhos, a esperança e a vontade de viver a estes irmãozinhos.
— Dr. Rubens, Paulo, não podemos demorar - disse Marília. — Até chegarmos ao Lar, dar banho em todas essas crianças, aprontá-las para a ceia que as espera, vamos demorar. Vamos!
— Marília tem razão, Rubens, vamos nos apressar.
— Vamos. Quero que a nossa oração de Natal seja feita pontualmente à meia-noite.
Após mais ou menos quatro horas de contato e diálogo, conseguiram retornar ao lar acompanhados de vinte crianças.
Meia-noite do dia 24 de dezembro.
A mesa do grande refeitório, cuidadosamente arrumada para a ocasião, acolhia todos aqueles seres que, esquecidos de suas dores, tormentos e angústias pessoais, se uniam como uma grande família e se entregavam inteiros e felizes à tarefa do amor fraternal.
Rubens, emocionado, levantou-se e iniciou o colóquio com Deus:
— Meu Pai e meu Criador, somos gratos por nos ter mostrado a luz da verdade e do amor. Para nós nesse momento não nos machuca o passado de dor e tristezas, porque conseguimos enxergar através dos olhinhos infantis a esperança no futuro promissor. Se somos escolhidos para impedir que essa esperança se desfaça nos corações de nossos irmãozinhos, agradecidos estamos por esta oportunidade única de servir. Sabemos que as lágrimas se secam com o trabalho edificante e nobre feito desinteressadamente em favor daqueles que necessitam de amparo, de alguém que lhes mostre o caminho e as possibilidades existentes dentro deles mesmos. Aprendemos Senhor, que aquele que serve acima do dever encontrou o caminho da verdadeira felicidade, e é esta felicidade que almejamos. Que o amor possa sempre enxugar as nossas lágrimas para que nossos olhos e nosso coração possam ver e sentir onde o Senhor está, por meio do esquecimento do nosso próprio sofrimento, cumprindo a difícil, mas sublime tarefa da caridade em todas as suas formas. Com a vossa bênção, meu Pai, iniciamos hoje, na noite de Natal a nossa caminhada.
Pequenos flocos de luzes desciam sobre as cabeças daquelas pessoas, que, fortalecidas pelo desejo autêntico de servir, viviam a plenitude do amor. As crianças limpas, vestidas com cuidado e bem penteadas, não conseguiam desviar os olhinhos daquela mesa farta, com comida quente e guloseimas saborosas.
A grande jornada se iniciava.
Nascia o Lar de Isabela.


NOVOS TEMPOS


Marília e Paulo caminhavam lado a lado por entre as alamedas do Parque Municipal.
O tempo passara rápido.
Seis anos desde a inauguração do Lar de Isabela.
Experimentavam em seus corações sentimentos contraditórios, que se misturavam, causando emoções intensas.
Tudo mudara.
Laura e Pedro realmente se transferiram para outra cidade a fim de preservar a vida de Marcos e hoje, sabiam, viviam em harmonia por conta da recuperação do filho que, completamente restabelecido, voltara a estudar e trabalhar sem nunca mais ter dado motivos da lágrimas para seus pais.
André prestou vestibular em uma cidade próxima e cursava o segundo ano de Medicina, com a intenção de se especializar em Psiquiatria.
Laís, noiva de Renato, não quisera fazer nenhum curso universitário e empregava seu tempo auxiliando Marília na administração do Lar de Isabela, tarefa que sua mãe assumira desde a desencarnação de Rubens há seis meses.

O Lar contava com trinta crianças, e tudo seguia conforme o desejo e a orientação de seu fundador: Dr. Rubens. Marília fazia questão de continuar o trabalho de seu grande e inesquecível amigo e se esforçava ao máximo para que o lar não se desviasse do propósito traçado por Rubens: amor... simplesmente amor!
— Hoje, sinto-me um pouco triste, Paulo. A saudade de todas as pessoas que amo dói em meu coração; machuca minha alma e, às vezes, me fragilizo.
— Eu sei querida, sei muito bem como é isso. De repente nos vimos sozinhos, mas não podemos nos esquecer das palavras sensatas do nosso querido amigo que partiu tão cedo e tantos ensinamentos nos deixou: "a distância existe para os olhos, não para o coração".
— Isso mesmo. Temos sempre de agradecer a Deus por ter colocado em nosso caminho pessoas que amamos e que nos amam também, não importa se neste ou no reino de Deus; importa que nos amam, tenho certeza disso.
— Sem esquecer o carinho que recebemos das crianças e dos funcionários do Lar.
— Paulo, quando vejo minha mãe e Dona Ana, já com idade avançada, mas felizes por estarem cooperando no atendimento às crianças, não posso deixar de me sentir feliz.
Paulo delicadamente segurou as mãos de sua esposa.
Marília olhou-o com ternura e seu coração sensível agradeceu ao Criador por ter colocado ao seu lado companheiro tão amoroso.
Os dois não podiam ver nem sentir, mas ao lado deles caminhavam felizes dois espíritos que agradeciam ao Pai o fato de pessoas tão queridas terem aprendido e conseguido enxugar suas lágrimas por meio do amor: Fábio e Isabela.
Muitas vezes acreditamos estar completamente sós, e, no entanto, temos mais companhia do que podemos imaginar.
Se nosso coração se nutre de sentimentos generosos, bons e edificantes, é natural que atraia para junto de si espíritos também generosos e bons, que são sensíveis a esses sentimentos. É a lei da afinidade. Estas companhias, esta proximidade de espíritos elevados, que sentem e espalham o bem por onde passam, traz-nos uma sensação gostosa de paz e tranqüilidade. Inspiram-nos pensamentos nobres, conduzindo-nos sem que possamos perceber, para atitudes dignas, elevadas e fraternas.
Os bons espíritos nos aconselham sempre o bem e lamentam, tentando nos ajudar quando estamos prestes a cair em atos inconseqüentes. Nosso comportamento digno frente à vida faz com que conquistemos a simpatia dos bons espíritos.
Mas também é verdade que, assim como atraímos os bons espíritos com nossa prudência e amor, atraímos os levianos, os inconseqüentes e os maus, quando praticamos ações desastrosas, levianas e inconseqüentes. Assim como Fábio e Isabela amparam Paulo e Marília, todos os encarnados recebem de Deus a bênção de ter ao seu lado espíritos protetores que os auxiliam. Cabe a cada um atrair a companhia que se afina com sua maneira de pensar e de agir (Irmão Ivo).
Os bons espíritos não aconselham senão o bem; cabe a vós distinguir.
Os espíritos imperfeitos são os instrumentos destinados a experimentar a fé e a constância dos homens no bem. Tu, sendo espírito, deves progredir na ciência do infinito, e é por isso que passas pelas provas do mal até chegar ao bem. Nossa missão é a de te pôr no bom caminho, e quando más influências agem sobre ti, és tu que a chamas, pelo desejo do mal, porque os espíritos inferiores vêm em teu auxílio no mal, quando tem a vontade de o cometer; eles não podem ajudar-te no mal senão quando tu desejas o mal. Se és inclinado ao assassínio, pois bem, terás uma nuvem de espíritos que entreterão esse pensamento em ti; mas também terás outros, que tratarão de influenciar para o bem, o que faz que se reequilibre a balança e te deixe senhor de ti. É assim que Deus deu à nossa consciência a escolha da rota que devemos seguir, e a liberdade de ceder a uma ou outra das influências contrárias que se exercem sobre nós. (Livro dos Espíritos — Capítulo IX — item 464 e 466).
Marília e Paulo prosseguiam em seu passeio. Muitas cenas do passado desfilavam em suas mentes. Lágrimas, sorrisos, esperanças e desesperos. Quantas histórias no grande livro da vida.
— Quanto sofremos, não, Paulo?
— Sim, Marília! Mas não é Hora de trazermos de volta nossas angústias passadas; agora é hora de nos conscientizar de que conseguimos enxugar nossas lágrimas. Veja querida, nossos olhos estão secos, e nosso amor está vivo, dando-nos forças para continuar o trabalho de um grande homem e de um grande amigo.
— Tem razão, meu amor, para mim não resta a menor dúvida. Cada criança que abracei, cada mão que estendi em direção ao meu próximo corresponde a uma lágrima que sequei e são esses olhos secos da lágrima da dor que posso umedecer com as lágrimas da emoção.
— Querida, você fala como nosso querido amigo Rubens! Fico feliz em ouvi-la.
— Dr. Rubens! Com certeza hoje goza a alegria dos justos, a paz dos sensatos e o amor dos sensíveis. Vou lhe dizer uma coisa, Paulo, todo aquele que de uma forma ou de outra conviveu com o Dr. Rubens jamais conseguiu permanecer o mesmo. Ninguém conseguiu ficar indiferente às suas demonstrações de amor fraternal e aos seus exemplos de generosidade.
— E sem olhar para os espinhos que lhe sangravam os pés. Vamos querida. Vamos continuar seguindo seu exemplo; é hora de passarmos no Lar e conferir se tudo está indo bem.
— Sim, vamos.
Paulo e Marília seguiram de mãos dadas rumo ao dever que os chamava.
O sol se escondia e projetava ainda naquelas alamedas seus últimos raios aquecendo o planeta como que acariciando todas as criaturas, filhos de Deus.
Para que o mundo possa sofrer uma melhora, o equilíbrio e a paz que todos nós almejamos, é necessário que todos estejamos juntos e preocupados também com o bem-estar do semelhante.
Damos carinho para as pessoas que amamos, mas, para os outros que dizemos não conhecer nem o necessário para que possam viver com dignidade, existem dores muito penosas, e uma delas é o abandono e o descaso.
A vida é cheia de desafios e não devemos fugir deles, porque grandes obras nascem da superação desses desafios. Amparar os desvalidos, ser doador de suor trabalhando em prol de uma comunidade necessitada, dos irmãos que padecem de fome, frio, sem ter o mínimo necessário para uma vida digna e menos sofrida, é um desafio que precisa ser vencido se quisermos realizar o sonho de um mundo melhor.
Deus nos deu, por meio de Jesus, todos os ensinamentos e esclarecimentos que nos levam ao encontro da luz & da verdade.
Por que fugimos deles?
Qual a razão que nos impede de vencer a nós mesmos, extirpando da nossa alma os sentimentos mesquinhos que nos transformam em seres pequenos, seres que se colocam no centro do universo e esperam que o mundo gire em tomo mesmo:

É hora de reflexão!
É hora de repensar e enxugar as próprias lágrimas, e redescobrir a vida e as belezas com as quais ela nos presenteia quando aprendemos a amar de verdade, transformando nosso coração na grande casa de Deus.


UMA NOVA VIDA


No Mundo Espiritual
— Como está passando, Rubens?
— Sinto-me muito bem, irmão Jacob. Tão bem que gostaria de solicitar do Mais Alto autorização para poder me dedicar a algum trabalho.
— Ainda é muito cedo, Rubens; você tem somente seis meses de retorno da Terra, é prudente que aguarde um pouco e se fortaleça mais. Tudo no seu devido tempo.
— Compreendo - exclamou Rubens um pouco desapontado.
— Não fique desapontado, Rubens; compreenda e confie. Tudo na espiritualidade é bem planejado e feito com a finalidade de levar benefício a quem faz e a quem recebe.
— Desculpe-me! Só uma questão me angustia, trazendo-me às vezes um certo desconforto.
— E qual é Rubens?
— A razão pela qual ainda não me encontrei com meus entes queridos: minha esposa, meus filhos e, principalmente, Isabela; e mesmo Fábio, que é filho de dois grandes amigos meus. Por que ninguém veio ainda me ver?
— Alguns deles já vieram lhe ver, Rubens, inclusive lhes deram boas-vindas assim que chegou.
— Mas não me recordo!
— Como já lhe disse tudo aqui acontece no momento exato que deve acontecer. Você estava ainda sonolento, por esta razão não se recorda. Mas virão ter com você novamente, é só aguardar com paciência. Neutralize sua ansiedade e, como já disse, confie.
— Mas todos estão bem?
— Claro, Rubens, todos estão bem, seguindo seu caminho de evolução; trabalhando na seara de Jesus, enfim, dentro do equilíbrio e da paz, cada um no lugar que deve estar.
— Obrigado, irmão Jacob. Suas palavras me tranqüilizam.
— Agora descanse Rubens. Ore a Jesus, entregue-se sem reservas ao Divino Amigo; tudo segue seu curso normal. Você fez por merecer um retorno tranqüilo; sempre foi justo e bom, chegou o momento da colheita.
Assim que Jacob saiu, Rubens deixou-se vagar em seus pensamentos.
Sempre acreditara na vida futura, mas não imaginava que tudo fosse tão "real". Olhava-se e via seu corpo igual ao que tinha na Terra, quando encarnado, mas havia algo diferente: era mais leve, etéreo, sutil e admirava-se de não poder apalpá-lo.
— Lembro-me da doutrina espírita, especialmente do Livro dos Espíritos - dizia para si mesmo. — Este deve ser o perispírito. Realmente é verdade, sinto-me vivo: penso, sinto e raciocino, meus sentimentos são os mesmos. Tudo é
verdade!
Durante a vida o espírito está ligado ao corpo pelo seu envoltório semi-material ou perispírito; a morte é apenas a destruição do corpo, e não desse envoltório, que se separa do corpo quando cessa a vida orgânica.
A observação prova que no instante da morte o desprendimento do espírito não se completa subitamente; ele se separa gradualmente, com lentidão variável, segundo os indivíduos. Para uns é bastante rápido e pode dizer-se que o momento da morte é também o da libertação, que se verifica logo após. Em outros, porém, sobretudo naqueles para quem a vida foi toda material e sensual, o desprendimento é muito mais demorado, e dura às vezes alguns dias, semanas e até mesmo meses, o que não implica a existência no corpo de nenhuma vitalidade, nem a possibilidade de retorno à vida, mas a simples persistência de uma afinidade entre o corpo e o espírito, afinidade que está sempre na razão da preponderância que, durante a vida, o espírito deu à matéria.
É lógico admitir que, quanto mais o espírito estiver identificado com a matéria, mais sofrerá para separar-se dela. Por outro lado, a atividade intelectual e moral e a elevação dos pensamentos operam um começo de desprendimento, mesmo durante a vida corpórea, e quando a morte chega é quase instantânea.
Este é o resultado dos estudos efetuados sobre todos os indivíduos observados no momento da morte. Essas observações provam ainda que a afinidade que persiste, em alguns indivíduos, entre a alma e o corpo é às vezes muito penosa, porque o espírito pode experimentar o horror da decomposição. Este caso é excepcional e peculiar a certos gêneros de morte, verificando-se em alguns suicídios. (Livro dos Espíritos — Capítulo III — item II — pergunta 155a).
Fábio e Isabela acabavam de sair de uma palestra do irmão Jeremias, e comentavam com outros espíritos afins o teor dos ensinamentos contidos na grande sabedoria de Jeremias.

— Nestes anos todos que me encontro na erraticidade, aprendi muitas coisas; me fortaleci e estou me preparando para uma nova encarnação; mas, hoje, ouvindo a explanação do querido irmão Jeremias, tomei a consciência definitiva da importância do amor na construção da nossa evolução espiritual. Espero não me esquecer disso na minha nova experiência na Terra.
— É verdade, Fábio; se não existir amor, não existirá transformação, pois somente este sentimento traz consigo a compreensão, o altruísmo, a generosidade e acima de tudo a bondade e a benevolência em relação ao convívio com o semelhante - disse Isabela.
— Anos atrás, por ocasião do meu retorno da Terra, sofri muito com o desespero de minha mãe, sua inconformação e seu afastamento de Deus. Esta sua atitude impedia-me de me adequar a minha nova vida. A cada lamento queria voltar e ajudá-la, mas não tinha ainda condições de fazer nada por ela, então me desequilibrava no afã de querer retornar ao meu lar terreno.
Carla, uma garota de dezessete anos, desencarnada por causa de uma leucemia, confidenciou aos amigos:
— O que você esta dizendo é bem verdade, Fábio. Comigo aconteceu algo parecido. Meus pais não se conformaram com a separação e se afastaram de Deus, completamente, culpando-o pelo sofrimento que passavam. Gritavam, blasfemavam contra o Criador, enfim, cada vez mais impediam-me de encontrar a paz com a aceitação do meu desencarne. Sofri muito, até que, por misericórdia do Divino Amigo, fui agraciada com a bênção divina. Isolaram-me para que nenhum grito de desespero ou chamamento de meus pais pudessem chegar até meu espírito.
— Como fizeram isso?
— Não sei Isabela; como se faz isso eu não sei. O que sei é que fui recebendo tratamento, orientação, aos poucos fui me entregando à prece, aceitando minha nova situação e encontrei meu equilíbrio e minha paz.
— Quanto tempo durou a inconformação de seus pais? - perguntou Fábio.
— Cinco anos, Fábio. Cinco longos anos. Somente há dois anos é que eles se conformaram e seguem a vida em harmonia. E como aconteceu esta aceitação, veio a compreensão de que precisamos aceitar a vontade de Deus, que a separação acontecerá um dia para todos.
— É a única certeza que temos quando estamos encarnados, que o retorno acontecerá para todos.
— Bem, uma vizinha de meus pais é espírita, conhecedora e praticante da Doutrina Espírita em toda a sua pureza. Com paciência e carinho, deu-lhes assistência até que um dia conseguiu levá-los ao Centro Espírita que freqüenta. Devagar foram tomando conhecimento da vida futura; que a morte não existe, que a chama da vida não se extingue, apenas se transforma. Deus não iria criar seus filhos para posteriormente acabar com eles. O espírito é eterno e aqueles que partem continuam existindo em alguma morada da casa do Pai, nutrindo o mesmo sentimento de amor para com seus entes queridos que na Terra ficaram. O reino de Deus é infinito e nele existem muitas moradas.
— Com minha mãe também foi assim, Carla. Ela caiu no desespero e na depressão. Se não fosse o pai de Isabela, o querido e bondoso Dr. Rubens, minha mãe não teria encontrado o caminho de volta. É por isso, Isabela, que quando soube do retorno de seu pai, quis logo estar com você, para junto com você agradecer a ele o bem que fez a minha mãe e a mim. Solicitei autorização para isso, no que fui atendido.
— Veja você, Fábio. Meu pai ajudou tanto a sua mãe e, no entanto, quando retornei, foi sua mãe quem o auxiliou a retomar sua esperança e sua vida de amor.
— É verdade, eles conseguiram enxugar suas lágrimas baseados no amor que constrói. O ser humano sempre desequilibra quando o coração é atingido. É por isso que necessitamos prestar muita atenção em nossas reações diante de um grande sofrimento. Nunca se deve fechar as portas para o amor de Deus, pois somente esse amor nos traz a consolação e o entendimento para os desígnios divinos.
— Entregar-se ao desespero desarrazoado é negar a fé que se diz ter; é permitir a ausência de Deus em seu coração - disse Isabela. — Nossos parentes que ficam se esquecem de que, quando enviam para nós pensamentos de amor e saudade, esta lembrança nos deixa mais felizes, aumenta o nosso bem-estar e, para aqueles que ainda não encontraram a felicidade no reino de Deus, e sofrem, serve-lhes de alívio, e é um bálsamo para suas dores.
A alma no instante da morte volta a ser espírito e retorna ao mundo dos espíritos, que ela havia deixado temporariamente. A sua individualidade, ela não a perde jamais. Esta individualidade ela constata por meio de um fluido que lhe é próprio, que tira da atmosfera do seu planeta e que representa a aparência da sua última encarnação: seu perispírito.
O espírito leva a lembrança e o desejo de ir para um mundo melhor. Essa lembrança é cheia de doçura ou de amargor, segundo o emprego que tenha dado à sua vida. Quanto mais pura ela for, mais compreenderá a futilidade daquilo que deixou na Terra.
A prova da individualidade da alma, nós a temos pelas comunicações que obtemos. Se não estiverdes cegos, vereis; e se não estiverdes surdos, ouvireis; pois freqüentemente uma voz vos fala e vos revela a existência de um ser que está ao vosso redor.
A separação da alma e do corpo não é dolorosa; o corpo, freqüentemente sofre mais durante a vida do que no momento da morte; neste a alma nada sente. Os sofrimentos que às vezes se provam no momento da morte são um prazer para o espírito, que vê chegar o fim do seu exílio.
A partir do momento que se desligam os liames que a retinham, a alma se desprende gradualmente e não escapa como um pássaro cativo que fosse liberto. Os dois estados se tocam e se confundem, de maneira que o espírito se desprende pouco a pouco dos seus liames; eles se soltam e não se rompem. (Livro dos Espíritos — Capítulo III — item II — pergunta 154 e seguintes).
— O irmão Jacob autorizou que fossemos visitar seu pai, Isabela. Disse-me que ele se encontra preparado para o encontro com você.
Isabela sentiu uma imensa alegria tomar conta de todo o seu ser.
— Fábio, você não sabe quanto esperava por este encontro! Vamos?
— Antes preciso lhe dizer que o irmão Jacob pediu que controlasse sua ansiedade, e não comentasse nada sobre sua mãe e seus dois irmãos.
Uma sombra de tristeza abateu o semblante risonho de Isabela.
— Por quê, Fábio?
— Não sei lhe responder, Isabela, mas devemos sempre acatar e respeitar as orientações dos nossos superiores. Sempre existe uma causa justa.
— Está certo! Vamos, então?
— Quer nos acompanhar, Carla? - perguntou delicadamente Fábio.
— Obrigada amigos, mas não posso; tenho uma tarefa a cumprir.
— Então, até mais tarde!

— Até mais tarde!
Fábio e Isabela seguiram ao encontro de Rubens. Isabela esforçava-se para se equilibrar, controlando sua ansiedade e expectativa.


REENCONTRO


Rubens imerso em suas reflexões.
A paz reinava naquele quarto onde abrigava um espírito que, vencendo todas as provas às quais fora submetido na sua trajetória na Terra, conseguira se firmar como um vencedor.
Demonstrara amor e generosidade; não questionara os desígnios de Deus e, mesmo quando seu coração abatido por mais uma prova de separação se inclinara ao desânimo, conseguira mais uma vez se reerguer e secar suas lágrimas sempre em favor do semelhante.
Isabela sentiu uma ternura imensa invadir todo o seu ser. Fora aquele espírito que estivera ao seu lado nos seus anos terrenos; que a amara e auxiliara a superar as limitações de seu corpo físico preso a uma cadeira de rodas.
Fábio conseguia compartilhar de toda a sua emoção, afinal, fora ele quem levantara sua mãe e mostrara-lhe as maravilhas da fé e da aceitação da vontade de Deus, quando tomamos consciência de que esta vontade é soberana e que jamais poderemos mudar. Esta é a grande sabedoria, tomar consciência do que podemos e devemos fazer para modificar certas situações que estão ao nosso alcance e aceitar com fé e subserviência ao Criador, quando não conseguimos entender as razões e os porquês das dores que sofremos, e nas quais não podemos interferir.
Rubens percebeu a presença dos dois espíritos e virou-se.
Todo o seu ser iluminou-se de alegria e emoção ao ver a filha querida.
— Isabela!
— Sou eu sim, papai! Graças ao Senhor nos reencontramos! Esta é a grande bênção, poder estar novamente junto daqueles que amamos e que deixamos na Terra.
Ao olhar indagador de Rubens, Isabela disse:
— Este é Fábio, pai. Lembra-se dele? O filho de Marília e Paulo? Somos grandes amigos - e voltando-se para Fábio perguntou-lhe: Não somos Fábio?
— Claro Isabela!
— Que prazer reencontrá-lo, Fábio. Tenho grande estima por seus pais terrenos. São espíritos lutadores e que estão dando continuidade à tarefa que deixei na Terra. Posso dizer-lhe que sinto por você a mesma estima e afeto que cresce ao saber de sua amizade por Isabela. É uma bênção que recebo neste instante.
O espírito encontra imediatamente aqueles que conheceu na Terra e que morreram antes dele?
Sim, segundo a afeição que tinham mantido reciprocamente. Quase sempre eles o vêm receber na sua volta ao mundo dos espíritos, e o ajudam a libertar-se das faixas da matéria. Vê também muitos que havia perdido de vista durante a passagem pela Terra; vê os que estão na erraticidade, bem como os que se encontram encarnados, que vai visitar. (Livro dos Espíritos — Capítulo III — item II — pergunta 160).
Enquanto os três espíritos se deliciavam com o encontro tão esperado, entrou no quarto de Rubens um irmão até então desconhecido para ele.
— Posso fazer parte deste momento de união e afeto? - perguntou sorrindo.
— Claro - apressou-se Rubens a responder. — Hoje é um dia muito feliz para mim. Jesus está me agraciando com uma bênção ao permitir meu encontro com Isabela e Fábio.
— Sinto a felicidade de vocês pela paz reinante neste recinto.
Percebendo o desejo de Rubens de identificá-lo, apressou-se a se apresentar.
— Sou Horácio, discípulo do irmão Jacob. Acompanhei ao lado do meu querido mestre a sua trajetória de lutas e vitórias, Dr. Rubens. Solicitei aos superiores a permissão de acompanhá-lo na sua caminhada terrena, no que fui atendido.
Conheci-o quando encarnado e sabia que poderia aprender muito com o senhor. A sua generosidade, o seu amor espontâneo pelo semelhante atingiram meu coração e nunca o esqueci.
Rubens surpreendeu-se. Não se lembrava de tê-lo conhecido na Terra.
— Não se questione nem se sinta embaraçado; não se lembra mesmo de mim. Esta é a característica do bem feito por um impulso generoso. Aquele que o faz nada cobra, não exige recompensa e esquece o ato de bondade praticado, não por descaso, mas por saber que foi um dever cumprido, o amor executado por conta da aceitação e da compreensão dos ensinamentos de Jesus. Só age assim aquele que se sente seguro na fé. Hoje vim agradecer-lhe.
Rubens estava estupefato. Realmente não se lembrava de nenhuma situação em que Horácio estivesse envolvido.
— Perdoe-me, mas poderia me dizer de onde me conhece?
— Claro! Vim aqui para agradecer-lhe.
Diante da interrogação de Rubens, Horácio iniciou sua narrativa.

— Quando da minha estada na Terra, contraí matrimônio com Lucila. Moça de classe média, bonita, estudada, simpática, enfim, para mim possuía todas as qualidades com as quais eu sonhava na mulher que iria ser minha companheira e mãe de meus filhos. Apaixonei-me perdidamente. Namoramos durante um ano e meio e nos casamos. No início tudo parecia caminhar de acordo com os meus sonhos, e me sentia o homem mais feliz e afortunado do mundo. Todos os meus desejos pareciam se realizar e para que meu universo de felicidade se completasse só faltava uma criança me chamar de pai. Lucila parecia comungar com minha aspiração. Após oito meses de casamento, comecei a notar em Lucila uma irritação notoriamente visível. Questionada sobre a razão desta mudança de comportamento, respondeu-me estar grávida. Quase enlouqueci de tanta felicidade, meu maior sonho iria se tornar realidade. Peguei-a no colo e a beijei com carinho e profundo amor. Não podia imaginar que o mesmo não acontecia com Lucila. Passou-se um mês. Certo dia, ao regressar do trabalho, encontrei-a acamada, pálida e fraca. Assustado, quis inteirar-me do que acontecera para deixá-la naquele estado.
— Perdi o bebê - respondeu-me.
Com o rosto entre as mãos chorei como uma criança, mas logo tentei acalmá-la dizendo que Deus enviaria outra criança para nos alegrar.
Lucila piorou. Sem demora levei-a ao hospital mais próximo onde, internada, recebeu o atendimento necessário, mas, apesar da habilidade do médico, seu estado piorou. Meu desespero era quase incontrolável.
— Senhor Horácio - disse-me o médico —, como foi permitir que sua esposa fizesse o aborto?
— Aborto?!
— Sim! É com mãos incapazes, curiosas, que matam sem escrúpulos. Seu estado é grave - completou.
Diante da minha perplexidade o doutor percebeu que de nada eu tinha conhecimento. Lucila pressentiu seu fim. Chamando-me disse-me com voz fraca, mas sem demonstrar nenhum arrependimento ou emoção:
— Não sofra, não chore nem se desespere Horácio; o filho não era seu!
Meu mundo desmoronou mais uma vez, levando com ele minha alegria, minha esperança e a minha fé na vida e em Deus. Quase num sussurro perguntei:
— Por quê, Lucila?
— Porque conheci outro homem e me apaixonei perdidamente por ele.
— Em oito meses você deixou de me amar?
— Eu nunca fui apaixonada por você, Horácio; casei-me porque vi em você um porto seguro.
Naquele momento foi como se meu coração se petrificasse.
A revolta e o ódio se instalaram em mim, impedindo-me de sentir qualquer outro sentimento que não fosse o rancor. Lucila desencarnou e levou com ela qualquer possibilidade de vida em mim. Comecei a beber. Perdi o emprego, a dignidade e os amigos. Em uma das minhas insanidades alcoólicas, encaminharam-me para seu hospital, Dr. Rubens. Foi o senhor, com seu conhecimento médico e sua grande capacidade de compreender as fraquezas do próximo e amá-lo mesmo assim, quem me "adotou" como filho. Tratou-me como a uma criança perdida, mostrou-me o rumo a seguir; devolveu-me com sua generosidade a consciência de que necessitamos prosseguir mesmo, e principalmente, quando a dor nos visita. Ensinou-me que é nessa hora que damos testemunho de que nossa fé é real; que a presença de Deus em nós é verdadeira. Foi o senhor quem me mostrou tudo isso; quem me acompanhou e me reergueu no momento em que me faltou o estímulo. Voltei a trabalhar, reconquistei minha auto-estima e reconstruí minha vida. Dediquei-me a aprender o Evangelho de Cristo e consegui ver a vida com olhos de esperança e otimismo. Sou-lhe muito grato por isso.
— Você se casou de novo?
— Não, Isabela. Após seis anos desse acontecimento, desencarnei por causa de um acidente de carro. Hoje sei o porquê de tudo o que me aconteceu e agradeço a Deus e ao querido Mestre Jesus ter permitido que eu tivesse um mestre como o irmão Jacob.
Rubens se emocionou.
— Não me agradeça Horácio, o mérito é todo seu. Tudo o que lhe disse estava intrínseco em seu ser.
— Mas foi o senhor quem me fez enxergar. Foi o senhor quem tirou de dentro de mim o que sufoquei com meu ódio. Enquanto muitos criticavam e me chamavam de bêbado, o senhor se apiedou de mim e auxiliou para que eu me reencontrasse.
— Bem - disse Fábio —, mais uma vez tomamos consciência do poder de Jesus em nossa vida, quando permitimos a entrada desse amor infinito no nosso coração.
— Obrigado, Horácio, fico feliz por ter de alguma forma colaborado com você no momento difícil pelo qual passou.
Rubens calou-se.
Diante do silêncio do pai, Isabela lhe perguntou:
— O que foi pai, ficou pensativo? Não se sente bem? Quer descansar?
— É que ainda não entendi por que minha esposa e meus outros filhos não vieram ainda me ver.
Foi Horácio quem respondeu:
— Meu amigo, nada acontece antes do momento certo.
As leis são respeitadas. Nosso querido Jacob se encarregará de tudo; as coisas na espiritualidade acontecem, não para satisfazer curiosidades, mas para trazer benefícios. Tenha calma e confiança. Nós vamos nos retirar, aproveite e se entregue à prece que nos acalma e equilibra.
Assim que Fábio, Isabela e Horácio se retiraram, Rubens ajoelhou-se em frente a um lindo quadro de Maria de Nazaré e orou:
— Graças vos dou. Mãe de Jesus, e ajoelhado aos vossos pés entrego meu coração agradecido pelas bênçãos recebidas durante a minha estada na vida física e agora que me encontro de volta à Pátria Espiritual. Curvo-me diante de vossa grandeza e, humilde, vos suplico, permita meu reencontro com aquela que foi minha companheira na vida terrena, assim como com meus dois filhos que com ela retornaram à casa do Senhor. Sinto meu espírito inquieto e ansioso, mas, se ainda não for o momento propício, aceito a vossa vontade como soberana e aguardo a hora do chamado como o menor de vossos filhos. Assim seja!
Todo o quarto estava inundado por uma luz violeta que envolvia Rubens e acalmava seu espírito.


RUBENS E JÚLIA


Rubens estudava o Evangelho, usufruindo da doce paz, reinante no parque arborizado e florido. O sussurrar da água descendo pela cascata convidava à meditação.
Dois meses se passaram desde o encontro com Isabela. Rubens aguardava com paciência a realização de seu sonho de se reencontrar com Júlia e os filhos, Francisco e Carlos.
Sabia, por meio de Fábio e Isabela, que na Terra todos os amigos estavam bem.
O Lar de Isabela a cada dia se firmava como um exemplo de amor e fraternidade, graças aos esforços de todos que ali trabalhavam especialmente Marília e Paulo.
Somente a saudade de Júlia e dos filhos perturbava ainda seu espírito.
— Posso me sentar?
Rubens olhou e esboçou um largo sorriso.
— Claro irmão Jacob, sua presença só me traz alegria.
— Tenho boas notícias para você.
— Quais?
— Vou levá-lo ao encontro de Júlia.

Rubens sentiu uma leve vertigem. Mal podia controlar sua emoção.
— Quando? - perguntou timidamente.
— Agora!
— Agora?!
— Sim. Por que não? A não ser que não queira ir.
— Não brinque comigo, irmão Jacob. Sabe que é meu sonho, desde que aqui cheguei encontrar Júlia.
— Se estiver preparado, podemos ir.
— Espere! Como ela está?
Jacob percebeu tremor e ansiedade em Rubens.
— É como eu pensava - exclamou. — É melhor que saiba a história de Júlia antes de encontrá-la; creio que assim manterá o equilíbrio para seu próprio benefício. Sente-se, vamos conversar.
Rubens, obedecendo, sentou-se e aguardou.
— Meu caro amigo - iniciou Jacob —, nem tudo ocorre da maneira que imaginamos. A cabeça de cada um responde à crença que cada um agasalha em seu ser. O que acreditamos ser verdade nem sempre é, e se não damos nenhuma chance a nós mesmos para que esta pseudo verdade se desmistifique, fechando nossos ouvidos às explicações que poderiam trazer a consciência de que estamos errados, caímos em um engano destrutivo e perigoso, que pode nos levar a anos de sofrimento e amargura. Isto aconteceu com nossa querida irmã Júlia. O acidente que a trouxe com seus filhos de volta à casa espiritual seguiu apenas o curso natural do planejamento espiritual.
— Não consigo entender, irmão Jacob!
— Júlia, assim como Francisco e Carlos, foi logo socorrida e levada para o hospital Maria de Nazaré. Ficou adormecida por quatro meses. Assim que acordou, apesar de todo o acompanhamento necessário, desequilibrou-se e recusou qualquer auxílio. Sentia-se responsável pelo acidente; culpou-se de uma maneira tão severa que nada conseguia penetrar seu coração. Começou a sentir medo, principalmente de você, pois acreditava que iria castigá-la por ter matado seus filhos. Quis ir embora de nossa colônia e se perdeu vagando por muitos anos, tentando se punir por um mal de que não tinha culpa nenhuma. Entrou em demência profunda e mais parecia uma andarilha; sem rumo, sem destino, sem Deus.
Quando Isabela retornou, assim que tomou conhecimento do estado deplorável da mãe, e se sentiu capaz, solicitou permissão para acompanhar uma equipe socorrista e com ela foi a busca de Júlia.
Júlia não a reconheceu de imediato, mas, cansada, e tocada pela vibração terna e amorosa de Isabela, pediu ajuda. Foi recolhida e trazida novamente ao hospital onde começou um tratamento para fazê-la voltar à sua realidade. Tudo foi muito lento, respeitando o tempo de Júlia. Posteriormente reconheceu a filha e docilmente entregou-se ao amor de Jesus, aceitando com passividade todas as orientações, os passes que a fortaleciam, enfim, os medicamentos para recobrar seu equilíbrio.
Já estava fortalecida e em paz, quando soube do seu retorno. O antigo medo voltou. Estes meses todos Isabela e Fábio, assistidos pelo Dr. Danilo, querido irmão colaborador eficiente do hospital, cuidaram dela com dedicação e desvelo. Hoje ela se sente segura para encontrar você, mas é muito importante a maneira como você se comportará com ela.
— Eu a amo, irmão Jacob, e jamais a acusei de culpa alguma.
— Eu sei. Mas ela não sabe que em nenhum momento você a culpou. Quero apenas que não passe para ela nenhum sentimento de frustração ou qualquer outro que possa desencadear seu desequilíbrio novamente. Júlia é um espírito fraco, Rubens, e você já aprendeu a compreender as fragilidades e fraquezas dos outros.

— Mas porque se culpou tanto? Na perícia ficou provado que a culpa tinha sido toda do motorista do caminhão, que transitava na contramão. Ela não teve culpa de nada, foi uma vítima.
— Você sabe disso e nós também, Rubens. As mortes violentas trazem freqüentemente perturbações muito grandes para o espírito que é surpreendido com a separação inesperada. Júlia culpou-se da morte de Francisco e Carlos, foi a maneira que ela mesma encontrou de se punir. E por isso que devemos ter muito cuidado com nossas crenças, nosso cérebro sempre encontra um jeito de nos satisfazer
— Irmão Jacob, Francisco e Carlos, quando poderei estar com eles?
— Você poderá vê-los em outro corpo físico, Rubens, encontram-se reencarnados.
— Reencarnados?!
— Sim. Reencarnaram em um lar espírita; família simples, que tem como ideal de vida exercitar o amor fraternal. Moram em uma cidade pequena do interior de Santa Catarina e são novamente irmãos consangüíneos. Francisco hoje se chama Gabriel e está com quatro anos de idade; Carlos é Rafael e conta dois aninhos. Vivem felizes e levaram como proposta de vida uma importante tarefa social junto à comunidade de sua cidade.
— Entristeço-me por não poder estar com eles, vê-los mais uma vez como meus filhos, mas alegro-me pelo fato de terem conseguido nova oportunidade de se reencarnar, relativamente em um curto espaço de tempo e preparados para uma tarefa importante junto ao Evangelho de Jesus. Eles sofreram muito quando retornaram com Júlia?
— Não, Rubens. São dois espíritos esclarecidos, firmes em seus propósitos do bem e muito bem alicerçados na fé. Não tardaram a se equilibrar e a recordar o porquê de tudo acontecer daquela forma. Ficaram felizes por terem cumprido de maneira satisfatória a proposta daquela encarnação, que era auxiliar um grande e estimado amigo: você!
Jacob percebeu a expressão de Rubens e captou seu pensamento.
— Diga-me sem constrangimento, amigo, o que gostaria de saber?
— Ocorreu-me então que tudo era uma prova para mim e não para eles.
— É verdade. Alegro-me que tenha percebido sozinho.
— Mas e Júlia? Se ela também se propôs a me auxiliar, por que no retorno entrou em desequilíbrio?
— Júlia é um espírito bom, porém fraco. A atitude dela foi inesperada também para nós, ficamos surpresos. Ela mesma solicitou permissão para ajudá-lo nesta prova, antes de se reencarnar. Em uma encarnação passada foi sua mãe terrena e, por conta do grande amor que sentia por você, quis ajudá-lo a vencer suas más tendências, tendências essas que ela mesma alimentou com uma educação fraca e sem pulso. Não combateu os germes dos sentimentos mesquinhos que corroíam sua alma, e você muito errou. Por esta razão quis estar novamente com você e fazê-lo feliz dentro do amor e da sensatez, o que conseguiu, pois como marido e mulher viveram a felicidade plena.
— É verdade, fui muito feliz ao lado dela. Mas por que o desequilíbrio?
— Infelizmente, ao retornar Júlia, não entendeu e não aceitou a separação súbita, sofreu pela teimosia de não querer compreender. Culpou-se por infligir ao ser que amava tanto sofrimento, e a partir dessa crença entrou em demência. Por esta e outras razões, volto a dizer que é importante vigiar a nossa mente, o que agasalhamos dentro de nós, o que acreditamos como verdade absoluta. Todos são passíveis de erro; por isso não se pode ser fanático nem radical demais.

— E como ela está agora?
— Feliz equilibrada e ansiosa por ver você.
— Explique-me o que deveria aprender para que me fosse imposta uma prova tão dura e penosa.
— Esta prova não lhe foi imposta, mas escolhida por você mesmo. Quis que seu coração se sensibilizasse pelas perdas. A partir de todo esse sofrimento seu coração se abriu para entender a razão da vida. Aprendeu a perder, a amar e a compreender as fraquezas humanas. Tomou consciência da importância da fraternidade; amparou e auxiliou quantos se aproximaram de você; tornou-se melhor e mais justo, enfim, fortaleceu seu espírito na fé e extirpou a semente do orgulho e do egoísmo e, sendo assim, pôde retornar como um vencedor.
— Falta-me apenas uma explicação!
— Pergunte!
— Isabela, minha doce e querida Isabela.
— Rubens, Isabela já esteve ao seu lado em outras encarnações e sempre se gostaram muito. É um espírito forte e vencedor. Por meio dessa força, ajudou-o a enxergar que sempre vale a pena viver; que nenhum sofrimento ou dor pode superar o amor de Deus. Criança ainda se viu presa em uma cadeira de rodas, mas, mesmo assim, mostrou-lhe a alegria e o otimismo. Ensinou-lhe que se pode ser feliz mesmo quando os sonhos não se realizam, porque a felicidade é um estado da alma.
— Realmente ela foi um anjo em minha vida. Julgava que era eu quem a amparava e na realidade era ela quem me ensinava a mágica do amor.
— Rubens, a humanidade sofre porque insiste em idolatrar o poder e a riqueza; as conquistas e as aquisições materiais estão sempre em primeiro plano. Não consegue perceber os valores reais que se devem cultivar e insiste nos enganos que fatalmente nos levam ao sofrimento futuro.
— E quando isso mudará irmão Jacob?
— Quando o homem aprender a amar seu semelhante como Jesus amou e exemplificou. Quando aprender a respeitar a liberdade e a limitação do seu próximo, enfim, quando entender que a casa de Deus pertence a todas as criaturas e todos têm igualmente direito a um lugar ao sol. Mas o homem não quer compartilhar, dividir; ao contrário, acostumou-se tanto a enganar, a tirar vantagem em benefício próprio que o caminho de volta cada vez se distancia mais.
— Tem razão! Como sou feliz e agradeço a Deus por ter conseguido vencer.
— É, Rubens, ninguém consegue vencer se não se preparar e semear para isso, e a preparação se inicia conhecendo e praticando o Evangelho de Jesus.
Rubens sentia-se leve e em paz. Pensava em como tudo na espiritualidade é lógico, justo e planejado.
Jacob, tirando-o de suas reflexões, chamou-o para irem ao encontro de Júlia. Rubens seguiu-o.
Encerrava-se ali a trajetória de um espírito que fez da Terra sua escola de amor. Sofreu, amou, evoluiu. Aprendeu a se depurar por meio da vivência do amor; enxugou suas lágrimas nos lenços sedosos do amor; acreditou que ninguém se torna sensível ao sofrimento alheio se não vivê-lo; ninguém sabe a dor de uma lágrima se suas faces nunca foram molhadas por uma, enfim, ninguém sabe o valor da luz se não conhecer a sombra.
Este é o desfecho de uma história, de uma etapa na imensa trajetória de uma alma; mas também o início de um novo aprendizado para que a evolução se faça no infinito universo de Deus.
Necessário se faz compreender a importância do amor em todas as suas formas; da fé raciocinada e da ligação plena e verdadeira com Deus para que possamos promover a nossa reforma íntima que nos aproximará mais do Criador.

Não se deve ter apenas a aparência da piedade ou da bondade, mas ser realmente bom e piedoso. Nossa conduta deve ser coerente com o que se diz se prega se assim não for, será apenas um fingimento. Deus quer que seus filhos o adorem com sinceridade, do fundo do coração e fazendo todo o bem que se pode fazer.
Aquele que se vangloria de adorar o Cristo, mas que é orgulhoso invejoso e ciumento, que é duro e implacável para com os outros ou ambicioso de bens mundanos, eu vos declaro que só tem a religião nos lábios e não no coração.
Deus que tudo vê dirá: aquele que conhece a verdade é cem vezes mais culpável do mal que faz do que o selvagem ignorante e será tratado de maneira conseqüente, no dia do juízo. Se um cego vos derruba ao passar, vós o desculpais, mas se é um homem que enxerga bem, vós o censurais e com razão.
Os homens que se entregam à vida contemplativa, não fazendo nenhum mal e só pensando em Deus, não têm nenhum mérito aos Seus olhos, pois, se não fazem o mal, também não fazem o bem e são inúteis. Aliás, não fazer o bem já é um mal. Deus quer que se pense Nele, mas não que se pense apenas Nele, pois deu ao homem deveres a serem cumpridos na Terra. Aquele que se consome na meditação e na contemplação nada faz de meritório aos olhos de Deus, porque sua vida é toda pessoal e inútil para a humanidade. Deus lhe pedirá contas do bem que não se tenha feito.
Os cânticos não chegam a Deus senão pela porta do coração. (Livro dos Espíritos — Capítulo II — pergunta 654 e seguintes).


A VIDA PROSSEGUE...


Marília brincava com a netinha no jardim de sua casa. Marina, com apenas um aninho, respondia às demonstrações de carinho de sua avó. Esperta, alegre e saudável, era a alegria de Paulo e Marília.
Laís, ao se casar com Renato, optara em continuar morando com seus pais, fato que proporcionou a eles uma grande satisfação.
André fazia residência no hospital e, apesar da distância da cidade onde estava não ser tão grande, vinha pouco visitar os pais devido aos compromissos como médico residente.
Desde a desencarnação de Inês, vítima de um enfarto, Paulo e Marília sentiam-se um pouco sós em uma casa tão espaçosa, razão pela qual Laís e Renato preferiram ficar com eles.
Tudo era harmonia naquele lar que já havia experimentado o sofrimento, mas que continuara de pé, por conta do esforço e da fé existentes naquele casal.
Muitas vezes o desânimo tentara encobrir a disposição com que Paulo e Marília enfrentavam seu dia-a-dia, mas baseados nos esclarecimentos recebidos de Rubens, esforçavam-se para não acrescentar mais problemas aos que já existiam, e logo retomavam a disposição e o ânimo para enfrentá-los.
Aprenderam que não se deve acrescentar mais miséria à miséria já existente e que a pior de todas elas é a miséria espiritual, é o coração vazio de fé, pela ausência de Deus.
Continuava com seu trabalho social no Lar de Isabela, que a cada dia acrescentava mais luz na sua grande fraternidade.
Marília, durante esses anos, enfrentara duas cirurgias, mas, se seu corpo físico se enfraquecia, sua alma mais e mais se fortalecia pela caridade que aprendera a exercitar.
Soubera pelas cartas de Laura, que chegavam regularmente, que Marcos se formara técnico em computação e estava de casamento marcado com Priscila, moça que, segundo Laura, dava demonstrações de ótimo caráter, o que deixava Laura e Pedro felizes com a escolha do filho.
Muitas vezes Marília em suas reflexões revivia seu passado, todos os acontecimentos que lhe trouxeram dor e que tanto ela quanto Paulo haviam enfrentado. Percebia que na superação desses fatos ruins e conflitantes sempre fora o amor a mola mestra que os impulsionara para as soluções acertadas.
Lembrava-se sempre do querido amigo Rubens, que tanta importância tivera em sua vida. A cada pensamento enviava vibração de carinho e agradecimento por todo o bem que tinha feito, tanto para ela quanto para toda a sua família.
— Querido amigo - pensava -, foi uma grande bênção ter convivido com você, aprendido com você há valorizar cada minuto vivido e ser feliz pelo simples fato de poder respirar. Que Jesus o abençoe na sua caminhada espiritual que, acredito eu, deve estar sendo de glórias.
— Mãe! Mãe! - exclamou Laís.
— Que foi filha?
— Há tempos estou chamando e a senhora não responde, estava tão absorta.
— É que Marina adormeceu em meu colo e entreguei-me aos meus pensamentos. O que deseja Laís?
— Nada, mãe. É que vim ver como estava Marina, só isso. Já que ela dormiu, vou colocá-la no berço.
— É melhor mesmo, filha, ela dormirá mais confortável.
Laís entrou, carregando a filha no colo.
Marília também resolvera entrar quando foi surpreendida por uma voz sofrida que a chamava no portão de sua casa.
Aproximou-se e educadamente perguntou:
— Eu a conheço?
— Não, Dona Marília, mas eu a conheço.
— Em que posso ajudá-la?
— Posso entrar?
Dizendo isso, percebeu o ar indeciso de Marília e complementou:
— Não tenha receio, não vim para fazer-lhe mal algum, ao contrário, vim pedir-lhe ajuda. Moro a três quadras daqui e estou passando pelo pior momento da minha vida. Total desespero! Sei que somente a senhora poderá entender o meu
sofrimento e me ajudar.
Marília enterneceu-se com a visível angústia estampada no rosto e nos olhos tristes daquela mulher. Abriu o portão e a convidou a entrar. Sentaram-se no mesmo banco no qual momentos antes brincava com sua netinha.
— Qual o seu nome?
— Iolanda!
— Em que posso ajudá-la, Iolanda?
— Dona Marília...
— Marília! Por favor.

— Está bem, Marília - repetiu. — Estou vivendo, como já disse o pior momento da minha vida, o fundo do poço, como todos dizem, e não vejo a tão famosa luz no final do túnel.
— Mas o que aconteceu de tão grave assim?
— Perdi meu filho! - exclamou quase gritando. — E não posso aceitar isso. Ele era tão jovem, tão cheio de vida, de esperança, de ideais, e morrer assim, de uma maneira tão brutal, sem nenhuma razão.
Por segundos Marília se ausentou e viu a si própria quando se separou de Fábio. O mesmo desespero, a mesma revolta, a mesma angústia e a mesma falta de fé.
"A situação se repete", pensou. Movida pela força dos sentimentos que assaltaram seu coração naquela época, e compreendendo toda a dor, todo o redemoinho que com certeza estava aprisionando o coração daquela pobre mulher, condoeu-se ainda mais de Iolanda, pois pôde se identificar com ela e compreender ainda mais a dor que ela estava sentindo.
Notou uma leve brisa envolvê-la e foi como se uma voz amiga lhe dissesse em um sussurro: "Marília, ajude-a a sair desse desespero, mostre-lhe a única forma de encontrar novamente a esperança e a fé; fale-lhe do amor de Deus e da necessidade de redescobrir a vida em meio à tristeza que a está sufocando. Você conseguiu, auxilie para que ela consiga também. Todos um dia sofrerão a dor da separação, mostre-lhe como passar por essa dor e sair ileso, sem colocar ranço e mofo no coração."
Voltando à realidade, Marília segurou as mãos de Iolanda com carinho maternal.
— Ele estava doente?
— Não, foi brutalmente assassinado por um assaltante que reduziu o valor de sua vida a um par de. Eu sei que você também passou por este sofrimento, perdeu um filho. Diga-me, pelo amor de Deus, o que fez para continuar vivendo?
Marília respirou fundo. Não queria que sua ferida sangrasse novamente.
Pensou em Jesus e respondeu:
— Aprendi com um grande amigo que jamais devemos acrescentar mais sofrimento ao nosso sofrimento. Que, se fechamos o coração para todas as possibilidades de superação dessa dor, dificilmente nos livraremos dela. Aprendi que não era a única a sofrer no mundo, que existiam mães que já haviam se separado de dois ou três filhos, e que se confiasse em Deus, na Sua sabedoria e justiça, se me entregasse ao amor para com ela enxugar as minhas lágrimas, poderia encontrar, senão a felicidade antiga, pelo menos a paz que se pode ter quando sofremos com Jesus.
Iolanda se entregava às palavras de Marília como um náufrago se apega a uma tábua de salvação. Com voz mais contida disse:
— Mas, Marília, eu sou mãe!
— Eu sei. Eu também sou e sobrevivi a este vendaval, outras mães também sobreviveram. Demorei, mas aprendi que se pode viver apesar da dor que nos sufoca. Gostaria que você não demorasse tanto como eu demorei, a perceber a presença de Deus em sua vida, principalmente nesta situação de angústia. Lembre-se de que você sofre a separação de um filho digno e bom, mas a mãe daquele que levianamente tirou a vida do seu filho sofre tanto quanto você e ainda com o agravante de saber da maldade, da leviandade, da imprudência e mesmo da insanidade espiritual do coração do seu filho. Sofre por perceber a completa ausência de amor e de Deus naquele ser que saiu de suas entranhas. Por isso, Iolanda, não alimente sentimentos de vingança, a reação vem por si só.
Iolanda continuava pensativa.

— Iolanda, no Evangelho Segundo o Espiritismo, Capítulo V - item 19, nós encontramos a saída para nossas aflições:
Um só remédio é infalível para aqueles que estão atravessando males cruciantes: a fé, o olhar para o céu. Se no acesso dos vossos mais cruéis sofrimentos, vossa voz cantar ao Senhor, o anjo à vossa cabeceira, de sua mão vos mostrará o sinal de salvação e o lugar que deveis ocupar um dia...
É a fé o remédio certo do sofrimento; ela mostra sempre os horizontes do infinito, diante dos quais se apagam os poucos dias sombrios do presente. Não vos pergunteis mais, pois, qual o remédio é preciso empregar para curar tal úlcera ou tal chaga, tal tentação ou tal prova; recordai que aquele que crê é forte pelo remédio da fé. E aquele que duvida um segundo da sua eficácia, é logo punido, porque experimenta no mesmo instante as pungentes angústias da aflição.
— Marília, como suas palavras me acalmam! É como se eu conseguisse ver, fraca, mas existente a luz do fim do túnel.
— Que bom, Iolanda, poder ajudá-la neste momento. É importante que saiba que nada vai desaparecendo como em um passe de mágica. Esta luz fraca vai aumentando, brilhando e se tornando forte gradativamente, a cada dia, a partir do momento que você quiser acalmar sua dor e se entregar ao amor de Deus, se esforçando para compreender Seus desígnios.
A nossa alegria é saber que nenhum sofrimento é eterno, e não dura um só dia a mais que o necessário; um dia ele adormece e conseguimos nos sentir felizes novamente.
— Você é realmente tudo aquilo que as pessoas falam de você, amiga e fraterna. É realmente uma pessoa especial.
— Você está exagerando, Iolanda. Posso ser um pouco melhor do que fui tempos atrás; apenas tento passar para você o que meu grande amigo me ensinou no meu momento de desespero: sem amor não existe paz. Tudo o que aprendemos devemos compartilhar com o nosso próximo e não trancafiar o que sabemos em nosso coração, impedindo que o semelhante tenha acesso à informação edificante e, conseqüentemente, diminuindo-lhe a chance de renovação.
— Obrigada, Marília, sinto-me em condições de refletir em tudo o que me disse.
— Faça isso, reflita! E lembre-se de que a distância não existe para aqueles que amam. Seu filho continua amando você e espera prosseguir recebendo o mesmo amor e carinho com os quais você o criou. Este amor chegará até ele como um bálsamo, aliviando a saudade e estimulando sua estrada de evolução.
— Posso lhe fazer uma pergunta?
— Claro!
— Teria algum inconveniente se eu me tornasse uma voluntária no Lar de Isabela que você dirige?
— Nenhum Iolanda, ao contrário, iria lhe fazer muito bem e traria uma grande alegria para todos nós. Apareça por lá um dia, assim tomará conhecimento do trabalho que fazemos. Inicie no dia que quiser e se sentir preparada para assumir esta tarefa. Será muito útil, creia.
— Eu vou pensar em tudo o que você me disse, e se Deus quiser conseguirei sair da auto-compaixão, do papel de vítima, de sofredora.
— Isso mesmo, Iolanda, você conseguirá. Transforme seu sofrimento na alegria de muitos irmãozinhos que necessitam. Guarde seu filho no lugar mais nobre de seu coração, deixe o amor que sente por ele existir sempre, sem anular o amor que pode sentir pelo seu semelhante. Verá como a paz retornará ao seu coração e à sua vida.
Delicadamente, Marília perguntou:
— Aceita um café, um suco?

— Não, obrigada. O a que vim buscar você me deu: o ombro amigo e a palavra de incentivo que me faltavam. Bem, eu já vou indo, minha amiga. Posso chamá-la de amiga?
— Claro, Iolanda, isto só me alegra, ganhar uma nova amiga!
Despediram-se.
Marília olhou aquela mulher se afastando, ombros levemente curvados pelo peso da dor e pensava em como nossa vida é cíclica. Tudo que recebemos podemos dar de volta se nossos olhos enxergarem, nossos ouvidos ouvirem e nosso coração se abrir para o amor fraternal. Esta capacidade todos nós possuímos, mas às vezes nós mesmos não sabemos.
Com o bem-estar que só sentem aqueles que têm puro o coração, Marília entrou feliz por ter sido útil a alguém.
Dirigiu-se ao quarto de Marina e olhou-a ternamente adormecida em seu berço.
— Querida netinha, que você aprenda que nossa vida está sempre borbulhando, criamos situações e nem sempre as resolvemos a contento, mas o que jamais poderá faltar em nosso coração é a fé no Criador e a certeza de que um dia
retornaremos para a casa do Pai que está no Céu, e nesse retorno levaremos somente as nossa obras, nossos sentimentos e o que fizemos da oportunidade concedida por Deus para evoluirmos em direção à plenitude do amor.
Devemos viver cada dia como se fosse o último, fazendo todo o bem que se pode fazer.


PALAVRAS DA MÉDIUM


A grande sabedoria de Deus se faz presente em todas as situações da nossa vida, muito embora todos nós nos sintamos e julguemos estar sozinhos quando nosso coração é atingido pela flecha da dor.
Nem sempre percebemos as possibilidades que se apresentam em nossa vida para a superação deste sofrimento, porque nos acostumamos a olhar somente para nós mesmos, esquecendo que o auxílio pode vir, não raro, por meio de um aperto de mão.
Nunca estamos sós, senão vejamos: você leitor que se entregou ao deleite desse livro e eu, que durante um certo tempo o escrevi ao lado do grande amigo Irmão Ivo, provavelmente nascemos em dia, hora e lugar diferentes, mas nos envolvemos nesta leitura, vivendo a mesma emoção e talvez a mesma identificação com a narrativa tão consoladora deste Espírito amigo. De alguma maneira fazemos parte dessa energia e não deixa de ser um encontro, o encontro do desejo único de aprender a viver com equilíbrio.
Qual a razão?
Talvez seja a ânsia de encontrar um motivo para viver quando a dor nos sufoca, ou recuperar a esperança perdida, ou mesmo e principalmente aprender a exercitar o sentimento maior do amor.
Amor!
Que sentimento mágico é este que une as pessoas seca as lágrimas e renova nossa alma.
Se aprendemos por meio de todos os ensinamentos e exemplos deixados por Jesus que somente o amor transforma o homem e que nele abre caminho para a conquista espiritual, por que é tão difícil vivê-lo?
Será por medo, fraqueza ou egoísmo?
Relutamos tanto em amar o próximo porque dizemos não conhecê-lo, entretanto somos filhos do mesmo Pai que está no Céu.
Afundamos no desespero por não termos coragem de enfrentar a dor e acalmá-la com a força da fé. Não raro preferimos a mentira, a ilusão e os enganos porque eles nos proporcionam a vã felicidade e, no entanto, esta mesma felicidade se esvai ao primeiro sopro da decepção.
Não estamos acostumados a perder; queremos sempre ganhar e muitas vezes não nos importamos com os caminhos que nos trazem esta vitória. Nada queremos repartir, e nossa fé em Deus é forte e indestrutível quando nada vem abalar o nosso sossego, a nossa saúde e a nossa condição social - percebem como tudo é nosso. — Aí sim ostentamos a aparência de piedoso, fraterno e dizemos contritos: "Seja feita a vossa vontade. Senhor, assim na Terra como no Céu".
Mas, se a vontade de Deus for contrária à nossa e a Ele apraz tirar do nosso lado o ser que amamos, nossa fé se desmorona como uma casa edificada na areia e, para nós, Deus passa a não existir.
Por que somos assim?
Porque somos homens comuns que viemos à Terra, não para passear, mas para aprender; aprender a amar e não ser amado. Viemos para depurar nosso espírito, evoluir e alcançar o Céu.
Pode ser que você, leitor amigo, não conheça nada do que seja uma separação. Ela dói, machuca e sangra. Rasga nosso coração como uma lâmina afiada, causa-nos a dor mais profunda que um ser humano pode agüentar, mas também é verdade que o amor de Deus por nós encobre esta dor, nos acolhe e nos agasalha; ampara-nos e levanta-nos dando-nos condições de prosseguir e ostentar um sorriso nos lábios, que no início se mostra tímido, mas com o coração abrigando Jesus ele se torna franco, aberto e por que não feliz.
Quantas possibilidades existem de enxugar nossas lágrimas, e em todas elas o agente principal é o amor, mas também em quantas delas nos negamos a enxergar e continuamos na auto-piedade.
Deus não impõe a seus filhos nenhuma prova que seus ombros não possam suportar e nenhum sofrimento sem causa justa. É na hora da dor que devemos abaixar nossa cabeça e dizer: "seja feita a vossa vontade, assim na Terra como no Céu".
É hora de começarmos a pensar na importância de se propagar o bem, não dar tanta ênfase ao mal e se conscientizar de que não se chega ao Pai senão pelo caminho do amor.
O amor é verdade!
O amor é esperança!
O amor é a paz que tanto a humanidade almeja!
Os nossos sentidos possuem outras funções que não as que estamos acostumados a usar, ou seja, olhar o próximo... falar com o próximo e amparar o próximo com mãos laboriosas e fraternas.
Viver é ser!
A vida é o bem mais precioso que o Criador concede a todas as criaturas, por isso não devemos apagar a chama de amor fraternal que nos leva à vida, pois somente por meio da fraternidade haverá a união dos povos.
É necessário estar em harmonia com as leis divinas.
Deus coloca em abundância tudo o que precisamos para evoluir, até o sofrimento. É necessário primeiro curar a alma para depois curar o corpo físico.
É importante aprender a fazer a terapia do amor, usar as mãos como ferramentas que constroem e salvam aqueles que se encontram perdidos.
Necessário se faz prestar atenção para não mutilarmos nossa alma permitindo que o desamor se apodere dela; estar sempre atentos para melhorar como pessoas humanas que somos empregando todos os esforços para compreender os desígnios divinos e aceitar as dores e aflições que não podemos mudar.
A vida é responsabilidade exclusivamente nossa; nossos erros e acertos, nosso equilíbrio, saúde e felicidade estão diretamente ligados ao que abrigamos em nosso coração.
Querer a felicidade é lutar com dignidade cristã para consegui-la; é tentar sempre mais uma vez, mas tentar... tente, e conquiste o amor que eleva e nos faz feliz.
Sônia Tozzi
FIM
O VÔO DA GAIVOTA
Copyright by © Petit Editora e Distribuidora Ltda. 1996/1997
la edição/impressão: Julho/96 - 100.000 exemplares
2a edição/impressão: Maio/97 - 50.000 exemplares


Capa:
Criação e execução: Flávio Machado
Ilustração: Daniel Zolyomi
Fotolito da capa: Stap - Stúdio Gráfico
Editoração eletrônica: Petit Editora e Distribuidora Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP Brasil)
Patrícia (Espírito)
O vôo da gaivota / Patrícia ; psicografia
de Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho. - São
Paulo : Petit, 1996.

ISBN 85-7253-032-0

1. Espiritismo 2. Psicografia I. Carvalho,
Vera Lúcia Marinzeck de. II. Título
96-2032 CDD: 133.93

Índices para catálogo sistemático:
1. Mensagens psicografadas : Espiritismo
133.93




Direitos autorais reservados. É proibida a reprodução total ou parcial; de
qualquer forma ou por qualquer meio, salvo com autorização da editora.
Ao reproduzir este ou qualquer livro pelo sistema de fotocopiadora ou
outro meio, voce estará prejudicando a editora, o autor e a você mesmo.
Existem outras alternativas, caso voce não tenha recursos para
adquirir a obra. Informe-se, é melhor do que assumir débitos.



Impresso no Brasil / Presita er Brazilo


Com muita alegria volto à literatura, motivada pelo
carinho dos leitores.

E é a você, amigo leitor, que dedico esta obra com
imensa ternura.

Também o faço a desencarnados e, principalmente, a
encarnados que são úteis por sua capacidade e têm
como meta o progresso no aprendizado.

Estendo-me aos anônimos, desconhecidos dos encar-
nados, mas conhecidos do Plano Maior, que fazem o
Bem por amor, sem sequer se importar com nomes
célebres.
Patrícia

São Sebastião do Paraíso, MG


Palavras de um amigo




Patrícia, nossa jovem escritora, que nos tem presenteado
com sua literatura simples, sincera, que nos traz bons e profundos
ensinamentos, vem novamente nos brindar com mais este
livro.
Fala-nos da caminhada em que assume novas e diferentes
tarefas, do seu desprendimento e desapego.
Patrícia trabalha e estuda no Plano Espiritual, mas aceitou
mais esta tarefa de escrever aos encarnados, na intenção de
alertá-los quanto ao engano de cultuar personagens famosas. A
Doutrina Espírita não está nas mãos de poucos, sejam encarnados
ou desencarnados. São muitos os espíritos que trabalham
para o Bem da Humanidade.
A nossa alegre escritora, na sua humildade, se acha pequena,
mas com vontade de aprender, não querendo que a
cultuem e que lhe dêem maior valor do que se acha merecedora.
O enredo deste livro é muito interessante. Participando do
socorro a um desencarnado toxicômano, ela nos narra importantes
fatos que trazem muitos esclarecimentos sobre o prejuízo
causado pelos tóxicos, o grande mal da atualidade. O desenrolar
atraente desta história faz deste livro mais um marco na
Literatura Espírita.

Antônio Carlos


Índice




Introdução ... .. ... ... ... ... .. .... ... .. .... .. ... .. .. ... ... ... ..11
Assumindo uma Tarefa..... ... .. ... .. ... ... ... .. ... ... ... .. ..13
Ouvindo uma História ...... ... ... .... .. ... ... ... .. ... ... ... .. ..17
Colóquio Interessante ... ... ... ... ... .. .. ···· ··· ·· ··· ··· ··· .. ..31
Amor e Desapego ..... ... .... .. ... ... ... ... .. ... ... ... .. .... ...37
Um Pedido Diferente .... ... ... .. .... .. ... ... ... .. .. .... .. ... ..46
O Mandante do Crime ... ... ... .. .... .. ···· ·· ··· ··· ···. ..55
Túnel Negro ....
.65
Na Sala de Aula... ... .. .... ... ·· ···· ·· .72
Desencarnações ...... ... .. .... ... ... ... ... .. ... .. ... .... . .... .. 77
Numa Reunião Espírita·.. .... ... .. ... ... ... ... ... .. ... ... ... ...90
Recuperação dos Socorridos... ... ... ... ... ··· ·· ··· ·· ···· ·· ····
Natan ...... .. .. ... ... ... .. ... ... ... . . ... .. ... ... ... .. ... ......106
O Médico Nazista·.... ... ... ... ... .. .... ... .. ... .. ... ... ... ....115
A História de Elisa .... ... ... .. ... ... ... ... ... ... .. ... ... ... ...127
O Vôo da Gaivota .... ... ... ... ... ... ... ... ... ... .. ... ... .. ....135



Introdução




Quando encarnada, por muitas vezes olhava maravilhada
as gaivotas voando. Encantava-me com seus vôos, que me trans-
mitiam a sensação de liberdade. São tão livres! À tarde, andando
pela praia, acompanhava suas movimentações pelos ares. Livres
e felizes, faziam acrobacias oferecendo um espetáculo de
rara beleza.
O espaço imenso é o ambiente preferido das gaivotas. Mas
elas não podem deixar de pousar na areia da praia, para completar
a alimentação necessária à manutenção do seu corpo.
Mesmo pressentindo a possibilidade de encontrar predadores
inimigos, essa corajosa ave não se intimida e, muito vigilante,
pousa na praia. Se falhar na sua precaução, infeliz terá sido sua
descida, pois será presa fácil de algum inimigo natural. Se cuidadosa
e atenta, feliz será seu pouso. Pegará o que precisa e
novamente alçará vôo, ficando na areia, até a próxima onda,
apenas a marca de seus delicados passos, a indicar que ali
passou uma gaivota, realizando com prazer e alegria a função
de viver e participar, com a vida, do anseio de ser e existir.

Sabendo que venho raramente ao plano físico, naquele
dia Elisa me comparou com uma gaivota.
- Gaivota, por que desce à Terra? Procura alimento?
Não respondi de imediato. Olhei para a amiga que me viu
como tão belo pássaro. Seus olhos negros, meigos e bonitos
brilhavam. Sorriu. Seu sorriso maravilhoso contagiava aqueles
que a rodeavam, além de deixar à vista as fileiras de dentes


12 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

perfeitos. Elisa é uma negra linda, a beleza dos seus sentimentos
mostra e embeleza ainda mais seu perispírito.
Fiquei a pensar no que me levava a voltar à Terra. O que
estaria fazendo ali? Ajuda? Tarefa? Trabalho? O Bem que fazemos
é um crédito, uma necessidade ou um alimento?
Volitei e vi que a gaivota deixou marcas dos seus pezinhos
no chão arenoso. Voltei o pensamento ao passado recente
e me certifiquei de que, ao tentar ajudar os que ficaram na
Terra, acabei por fazer muitos afetos. O Bem realizado deixaria
marcas?





1 - Volitar, na literatura espírita, é a denominação do ato de os espíritos
pesencarnados se movimentarem no espaço, quando o fazem sem que os
pés toquem o chão. Nos livros espíritas, principalmente nos do espírito An-
 N.A.E ) hé ncontáveis exemplos nesse sentido. (Nota da Autora Espiritual



Assumindo uma Tarefa



Encarnados nossas ações estão condicionadas a um fim
pessoal, qual seja a aquisição monetária ou um diploma que
nos habilitará a exercer funções bem remuneradas entre nossos
companheiros de caminhada. Aqui, no Plano Espiritual,
para aqueles que compreendem e vivem a unidade do Universo,
trabalhar ou estudar não significa oportunidade de
remuneração pessoal, mas sim ocasião propícia para não ficar
à margem da evolução. A beleza da existência está na sua
dinâmica atividade. Ela nunca é monótona. A vida se parece
com imenso rio que, apesar de estar no mesmo lugar, nunca é o
mesmo, pois se renova a cada segundo. Nossa personalidade é,
por natureza, ociosa. Se não acordarmos para uma melhoria
em nossa maneira de ser, correremos o risco de ver o rio da
vida passar e ficarmos à sua margem, perdendo a oportunidade
de irmos juntos daqueles que com ele caminham rumo ao
infinito. Aceitar novas incumbências de trabalho, de maiores
responsabilidades, é motivo de alegria para todos nós que desejamos
participar, em nome de Deus, da manutenção e do
progresso de todos os seres humanos. Fui chamada a lecionar
num curso de Reconhecimento do Plano Espiritual, no qual a
professora titular, Marcela, se ausentara porque havia também
aceitado incumbência de trabalhos superiores. Apesar de feliz
por ter sido lembrada, e radiante por me sentir útil, não pude
deixar de ter momentos de preocupações, pois estariam vários
espíritos sob minha responsabilidade.


14 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

Como de outras vezes, fui em busca de conselhos de meus
amigos. Ao ver Maurício, dirigi-me alegre ao seu encontro.
Meu amigo sorriu. Como é agradável vê-lo assim. Sempre
me lembro de seu doce e confiante sorriso. Respondeu aos
meus anseios, tranqüilo, transferindo-me belos ensinamentos.
- Patrícia, como começa o aprendizado de um professor
universitário na Terra? Nos primeiros anos escolares, aprende
as primeiras letras. Estudioso, cursa todas as séries exigidas.
Um dia, a escola terrena dá por encerrados seus estudos e o
classifica apto a lecionar - às vezes até na própria escola em
que se preparou. Se for sensato, reconhecerá, com certeza, que
sabe apenas "o razoável" do assunto em que se especializou e,
então, continuará estudando a vida toda. Mas o conhecimento
adquirido é patrimônio seu, conseguido por seu esforço. Querendo
lecionar, pode e deve fazê-lo, porque muitos nem têm
este saber que você considera moderado. E felizes os qup passam
aos outros seus conhecimentos. Quantos se indagam: terei
capacidade de lecionar? Se têm conhecimento da matéria em
questão, terão capacidade, sim. Aqui também é assim. Todos
temos que aprender para saber. Que tristeza seria sentir que
não há mais nada para aprender. O aluno não deve ficar muito
tempo na mesma série. Seu estudo deve render até que passe
de aluno a mestre. Tenho acompanhado seus estudos: você
aprendeu com amor e já está apta a ensinar o que adquiriu.
- Mas, Maurício - insisti -, e se não estiver?
- Está! O que pensa você que é um instrutor aqui no Plano
Espiritual? É somente um espírito dedicado, estudioso, que começou
seu aprendizado como todos. Não se deve ser avaro de
conhecimentos, não se julgar incapaz e nem ser presunçoso
com o que pensa saber. Necessário e indispensável é o bom
senso; porque através dele temos a exata medida de nosso
cabedal, sem entretanto chegar à vaidade. Depois, Patrícia,
não se devem querer sumidades para ensinar, mas sim querer
os que transmitem com amor os conhecimentos que possuem.
Se a chamaram, é porque a julgam apta. Aqui não existe o
"jeitinho" que leva muitos a terem cargos imerecidos. Depois,
os cursos vêm prontos à sua mão. E verdade que terá de


O VÔO DA GAIVOTA 15

responder a muitas questões. Confio em você. Aceite o encargo
e tire bom proveito da experiência.
Também fui conversar com vovó Amaziles. Gosto muito de
visitá-la e a suas amigas, de suavizar a saudade que sinto da
casa em que moram e que foi minha primeira acomodação,
após a desencarnação. Após os abraços, falei da minha dúvida.
- Patrícia - respondeu vovó -, esse curso é muito importan-
te. Nele se aprende muito do Plano Espiritual, na teoria e na
prática. Aquisição teórica ou intelectual são apenas arquivos de
informações e conhecimentos. As excursôes feitas durante o
curso são a vivência do fato. Com compreensão, todo aquele
que viveu sabe como tomar a melhor atitude diante de cada
problema. A intenção do curso é que todos que o freqüentem,
tenham esta compreensão. Pois somente a vivência desses fatos
ou conhecimentos será transmitida às nossas células
perispirituais e, conseqüentemente, impressionará as células
físicas. E, quando reencarnarmos, essas vivências aflorarão em
nossa mente como dom nato ou como mente inconsciente.
Aceite, você é capaz! Você tem estudado tanto! Coloque em
prática o que aprendeu e ainda aprende.
De Antônio Carlos, ouvi:
- Não fazer, por julgar-se incapaz, não é aceito como des-
culpa nem aqui no Plano Espiritual, nem como encarnado. Se
não é, torne-se. Todos somos capazes. Principalmente, se não
nos é exigido o impossível. Agiu certo, de modo prudente, consultando
os amigos. Quando nos sentimos inseguros, devemos
pedir opiniões a amigos que consideramos, e por quem somos
considerados. Com as sugestões recebidas, devemos então optar
pelo que é melhor para nós mesmos e para os outros. Não é
certo fazer o que não somos capazes, no momento. Às vezes,
imprudentemente, prejudicaremos a nós e aos outros, fazendo
algo por ambição, poder e vaidade. Não é o seu caso. Aceite e
lembre-se: aprendemos muito mais quando transmitimos co-
nhecimentos.
Também me aconselhei com papai e dele recebi preciosa
lição.
- Filha, a vida sabe melhor o que é bom a cada um de nós.
Estamos sempre sendo convidados a assumir alguma tarefa.


PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARvAi un

Para mim, o melhor lugar é aquele em que somos mais úteis.
Ao esquecermos de nós mesmos, vivendo entregues ao bem
alheio, criamos condições para que Deus possa agir através da
nossa humilde personalidade. E, nunca se esqueça, tudo o que
fizer, faça bem feito.
E, ali estava eu, numa sala de estudo, ministrando uma
aula sobre as Colônias. Sentindo-me perfeitamente à vontade.
A sala apresentava-se muito agradável. Talvez não tivesse
ta por
para os outros, a mesma beleza vis mim. "Lugar de ensino
deve ser um lugar diferente. O local onde se aprende precisa
ser respeitado como um templo", dissera uma vez um amigo.
Concordava com ele. Todas as escolas deveriam ser educandários,
que preparam para a vida útil. A classe era pequena, tinha
uma lousa e mesinhas confortáveis, e duas grandes janelas
com vista para o jardim que contornava a escola. O que a
tornava tão agradável para mim era que ali nos reuníamos para
estudo. E aprender ensinando me fascina.
- Por que esta Colônia tem o nome de Vida Nova? - per-
guntou Terezinha.
- Todas as Colônias, Postos de Socorro, Casas de Auxílio
têm uma designação pela qual são conhecidas. É como na
Terra, onde todos os lugares têm nome. Quando esta Colônia
foi fundada, um dos seus idealizadores lhe deu este nome, na
esperança de que todos que viessem para cá tivessem realmente
um reinício de esperança e mudanças para melhor, o
que os levaria a uma vida nova. Daí o nome.
Os vinte e dois alunos prestaram muita atenção, e depois
voltaram para as suas tarefas: descrever a Colônia que os abrigava.
A Colônia Vida Nova fica no Plano Espiritual de uma cidade
brasileira, pitoresca e de porte médio. É linda! Que
interessante é o amor incondicional. Quanto mais uma mãe
olha seu filho, mais o acha bonito, não importando quantas
vezes o faça. Assim acontece comigo. Todas as vezes que chego
a uma Colônia, esta é para mim maravilhosa. Emociono-me e
alegro-me. Como é agradável estar no convívio de uma cidade
no Plano Espiritual.
E, assim, a aula transcorria tranqüilamente.


OuVindo uma História




As dissertações ficaram muito boas. Após a leitura de algumas,
pelos próprios alunos, concluímos que nem todos têm a
mesma impressão do Plano Espiritual. Albertina até me indagou:
- Patrícia, como pode haver tantos modos de ver, sentir e
ter sensações diferentes, diante de um mesmo objeto ou lugar?

- Realmente - respondi. - Podem existir muitas formas de
sentir os acontecimentos pelos quais somos envolvidos. Estou
lembrando agora de algo que ilustra bem este fato. Há algum
tempo, ouvi uma estorinha interessante. "Uma florzinha branca
e mimosa floresceu à beira da estrada. Por esse caminho, passavam
muitas pessoas e muitas nem sequer a viam. Uma
mulher, ao defrontar-se com ela, disse: Veja, uma flor à beira
da estrada! Ela é medicinal, muito boa para dores. É bom saber
que aqui existe, quando precisar, virei buscar. Um poeta que
cantava as alegrias e tristezas, as belezas do mundo, também
passou pela estrada, e ao ver a flor parou e exclamou comovido:
Que linda flor! É digna de enfeitar os mais lindos cabelos de
uma mulher apaixonada! Mas, infelizmente, no momento não
estou amando, senão a levaria para enfeitar minha querida!
Em seguida passou pela estrada uma jovem que, ao ver a delicada
flor, parou para admirá-la. Que florzinha mais
encantadora! Que perfeição em seus contornos! Como é bonito
ver uma flor a enfeitar uma estrada, suavizando a visão talvez
tão cansada e preocupada dos que passam por ela. Com um


PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

gesto meigo, beijou a flor e seguiu seu caminho. Passou por ali
também um materialista que, ao ver a flor, falou revoltado e
furioso: Flor imbecil, por que veio florir nesta estrada poeirenta?
Seu branco não combina com a sujeira do lugar. É uma
inútil! Chutou-a e foi embora. Um senhor, de quem o tempo
havia branqueado os cabelos, ao ver a flor ali solitária, à beira
da estrada, exclamou: Como a obra de Deus é perfeita! Como
o Senhor do Universo é bondoso conosco, dando-nos belezas
assim para nos alegrar! Seja bendita, florzinha branca! Obrigado
por você existir e nos alegrar! Sabiamente continuou seu
caminho. E a singela flor continuou sendo a mesma para todos.
Só que, conforme a compreensão, o interesse, o estado
de espírito, viam-na de maneiras diversas.
Todos esses personagens, ao verem a flor, reagiram de
com seu condicionamento. A mulher, preocupada
com enfermidades físicas, viu na flor seus dotes curativos.
Para o poeta, a flor foi a causa ou o motivo para aflorar em sua
mente os devaneios. O senil, já desiludido com as ilusões mundanas,
ansioso por unir-se a Deus, viu ali a manifestação Daquele
que tanto procurava.
Se falarmos a respeito disso com um mestre Espiritual, ele
nos dirá que o belo ou o feio que possamos sentir e ver é
conseqüência de nossa escolha pessoal. A vida não fez discriminações
nas suas manifestações. O bem e o mal estão restritos
ao âmbito hominal, assim como o belo e o feio. Cosmicamente,
eles não existem, pois nada há em que nâo haja a
Onipresença Divina. Cada ser ou criatura tem sua razão de ser
na cadeia das relações em que a vida se manifesta. Toda manifestação
tem os dotes que necessita, para desempenhar sua
função. É muito importante que possamos aprender a ver as
coisas como são e não como queremos que sejam.
As Colônias, Albertina, são lugares que abrigam muitos
temporariamente, como no Plano Físico. E, dependendo de
muitos fatores, cada qual as vê como consegue ou quer. Este
fato também acontece com os encarnados. Muitos se deslumbram
diante de um jardim florido, da visão de um rio, de
montanhas, enquanto que alguns nem os vêem e para outros
tudo isto é indiferente. Considero as Colônias encantadoras.


O VÔO DA GAIVOTA

Quando estava encarnada, maravilhava-me com os lugares belos
da Terra. Achava lindo o mar, gostava de olhar o céu, as flores,
deslumbrava-me e deslumbro-me ainda com tantas belezas.
Nossa Terra é bela!
Descreverei, para melhor ilustrar este fato, uma redação
escrita sobre o assunto. Quase todos a fizeram. Vou comentar o
que achei mais interessante.
Que coisa fantástica é a vida, e por mais que a observemos,
parece-nos sempre nova. Quando ouvimos a história da
vida de alguém, sentimos a nossa própria, pois ela nos traz
notícias de um ser humano, portanto, a história da própria humanidade.
Mas, normalmente, não ouvimos muito as pessoas,
pois quase sempre vivemos fechados em nosso mundo interior
de tal forma que, mesmo dando-lhes aparentemente atenção,
não chegamos a entendê-las. Para compreender uma história,
é necessário viver as emoções de quem narra os acontecimentos,
seu estado psíquico, de alegria, esperança, angústia, rancor,
mágoa, gratidão ou qualquer outra expressão emocional. Escutando
com atenção a história de Genoveva, uma pessoa comum,
como a maioria dos encarnados ou desencarnados, teremos a
oportunidade de entender o porquê de muitas vezes fazermos
de nossas existências uma verdadeira tragédia, da qual desfrutamos
pequenos momentos de alegria e um tempo sem conta
de desespero, frustrações, angústias e dores. A personagem
possui a manifestação Divina. Amando a presença de Deus,
que é o autor de todas as manifestações em cada criatura,
teremos compaixão por todos os seres humanos que no momento
representam, como atores, no palco da vida. Imbuídos
desses sentimentos, podemos ver a enormidade de nossa ignorância.
Como ela começou não importa, o que interessa é tirá-la
de nós. Isto está em nossas mãos realizar. Portanto, não convém
aplaudir ou censurar os erros ou os acertos de uma pessoa,
mas compreender o que a humanidade tem feito com o privilégio
de viver, ciente daquilo que somos: seres humanos.

Genoveva começa contando sua desencarnação. Comento-a,
porque chegamos à conclusão que está muito relacionada
à nossa maneira de viver encarnados, à nossa desencarnação e


20 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MpRINZECK DE CARVALHO
à nossa vivência aqui, no Plano Espiritual. A própria Genoveva
leu sua redação para toda a classe.

" Desencarnei jovem" - começou Genoveva-
tão jovem. Tinha trinta e sete anos , isto é não
Amava a vida, possuía lá
meus problemas como todo mundo, mas estava satisfeita. Casada,
com dois filhos adolescentes, vivia feliz no meu lar. Um
dia, como fazia sempre, saí para comprar roupas. Estava de
carro, d ri do pór as e, distraída, atravessei a rua, quando um
corria além do um jovem embriagado, me atropelou. Ele
ermitido e eu estava entretida: não deu para
evitar o acidente. Desencarnei no ato. Se as pessoas que viram
ficaram abaladas e confusas, imaginem eu. Senti-me jogada no
chão e escutei meus ossos se quebrarem. Não senti dor, mas
fiqueiatordoada. Sentei-me, com dificuldade, na calçada. Não
conseguia ver direito e, então, perdi os sentidos. Acordei num
lugar escuro, úmido, com cheiro nada agradável. Esfreguei os
olhos. Tive a certeza de estar acordada
uma senhora a uns dois metros
de mim, que me observava
calada. Era bem feia, estava suja, cabelos brancos es etados
ou q
achei-a horrível. Ela fic
quieta, enquanto eu a olhava detalhadamente.
Concluí, como sempre fazia, que nem todos eram
bonitos como eu".
Resolvi indagar-lhe.
A senhora sabe por que estou aqui neste lugar estranho?"
"Não é estranho" - respondeu ela, séria-
como outro qualquer." , "é um lugar
"Mas como vim parar aqui? Não me lembro..."
- perguntei-lhe.
Mas onde Vi, então,
delicadeza, tentando ser gentil com aquela estranha mulher
"Uma tumza das que andam por aqui, a trouxe"
após um instante em silêncio. - disse ela
Escutei eles dizerem que a encontraram
sem sentidos, após o acidente. Como não havia
ninguém ao seu lado, pegaram-na e a deixaram aí."
"O acidente!" - exclamei. "
aquele maluco! Lembro-me bem! O carro da-
Mas não era para eu estar num hospital?"
"Se não tivesse morrido, acho que sim, - respondeu a
senhora com sua voz rouca, o que para mim, naquele momento
era muito desagradável.


O VÔO DA GAIVOTA 21

"O que a senhora está me dizendo? Se não tivesse morrido?
Por quê? Morri?"
"Que acha? Claro que morreu!" - respondeu dando um
sorriso cínico.
"Não e não! Não morri!" - gritei.

"Morreu! Morreu e morreu! - gritou ela mais do que eu. "O
"carro passou em cima de você e seu corpo morreu. Mas, como
ninguém morre de fato, aqui estamos vivas em espírito."

"Faz tempo que estou aqui?" - perguntei assustada.

"Um bom tempo. Estava aí deitada sem sentidos.

"Mas que lugar é este?" - indaguei desesperada.

"Pelo que vê, não é muito bom" - respondeu a senhora
após uns minutos calada. "Você não deve ter sido boa coisa,
senão teria sido levada para outro lugar."

"Como se atreve?" - falei sentida.

"Ora, ora, falo como quero. Você é morta! Morta!"
"Não e não!"
Repetia já duvidando. Chorei muito, revoltei-me, dei mur-
ros no chão até que cansei. A mulher saiu de perto de mim.
Dormi. Acordei e senti-me pior, e ainda estava com sede, fome
e me sentindo suja, de um jeito que detestava ficar. Pensei no
acidente e tive ódio do imprudente motorista, e comecei a
sentir meu corpo doer. Percebi que era só pensar no acidente
para ter dores, e assim esforcei-me para não pensar mais. Re-
polvi saber onde estava. Arrastando, locomovi-me alguns metros,
e vi que me encontrava em pequena abertura de uma rocha.
Perto, achei um filete dágua que, com nojo, tomei para amenizar
a sede. Vi que outros, ali, a tomavam, além de comerem
pequenas ervas. Comi também. Não me atrevi a ir mais longe;
e
, quando saía, voltava sempre rápido para a abertura. Aquela
senhora igualmente se abrigava ali, só que saía e demorava a
voltar, pois andava pelo Umbral. Às vezes conversava comigo, e
era a única pessoa com quem eu falava. Sentia-me terrivel-
mente só."
Faço uma parada na narrativa de Genoveva para explicar
alguns detalhes. Muitos não vivem como parte integrante do


22 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO
Universo, agem como entes separados da vida. A lagarta nos dá
um bom exemplo de como agir. Como lagarta, realiza com
eficiência sua função, vive para se empanturrar de folhas, adquirindo
energia suficiente para que possa acontecer sua
metamorfose. Muitos encarnados esbanjam energias insensatamente,
de tal forma que, no momento da desencarnação, estão
tão defasados que o espírito não consegue abandonar a matéria.
Não devemos negar as funções do viver, mas sim estarmos
conscientes de que somos transeuntes; não fazer da existência
um acúmulo de sensações e prazeres como se isto fosse a
finalidade única para a qual reencamamos. Identifico Genoveva
com muitos de nós. Nossa narradora se identificou com o
que representava, um elemento feminino cheio de dotes e beleza
física diante do sexo oposto, sentindo-se segura e confiante
pois tinha mais que as outras
. Nada lhe interessava a não ser
ela mesma. Tudo o mais, até o marido e os filhos, era apenas
apêndice do seu "status". Meditando, conseguimos olhar o Universo
como um todo orgânico, vendo a unidade de Deus. Assim
compreendemos sua Onipresença em tudo e em todos entendendo,
então, que para a natureza não há nem bonito nem feio
mas simplesmente um conjunto de manifestações ou indivíduos
que juntos compõem o Universo manifestado. Vemos
que, assim
o bonito e o feio fazem arte de nossa preferência pessoal.
Se conseguimos ver isto como um fato, nos libertamos do apego,
desejos e sensações de sermos melhores que os outros. O
início da verdadeira humildade é não se sentir melhor que
ninguém. Entre milhares de desencarnações que ocorrem diariamente,
cada desencarnado tem uma sensação diferente da
passagem do estado físico
para o espiritual. Mesmo em acidentes
parecidos com o de Genoveva, cada qqual a sente de um
modo. A desencarnação é um fato comum e natural, mas que
se diferencia de uma pessoa para outra. Genoveva foi desligada
bruscamente com o choque. Ao perder os sentidos, ficou em
seguida foidlevado na calçada, já que seu corpo
físico logo em
para o necrotério. Como não se afeiçoara a
ninguém de bem, isto é, trabalhadores ou socorristas, para lhe
velar e s não apósnvamsirizar nados que vagavam, a pegaram.
Levaram p seus fluidos vitais, e a deixaram


O VÔO DA GAIVOTA 23

lá no Umbral. Se Genoveva tivesse adquirido afetos espirituais,
através de sua vivência física, teria sido levada para um posto
de socorro. No exercício da fraternidade incondicional, que é o
servir sem desejar nada em troca, nem mesmo recompensa da
parte de Deus, emanamos boas vibrações. Essas vibrações atraem
os bons espíritos, como também impedem o assédio dos
maus à nossa volta. Tenho visto muitos acontecimentos, em
que desencarnados perversos aprisionam recém-desencarna-
dos imprudentes e os fazem escravos ou os levam para seus
agrupamentos. No caso de Genoveva, porém, sugaram-lhe as
energias e a deixaram num canto do Umbral. Voltemos à sua
narração.
"Não sabia há quanto tempo estava ali, naquele lugar horroroso.
Só mais tarde soube que foram seis meses, os quais
para mim pareceram ser mais de seis anos. Sentia, às vezes,
meus filhos me chamarem. Respondia alto:
- Já vou filho, já vou!"
Mas não ia. Não sabia como fazer e nem tinha forças para
me locomover. Sentia que oravam por mim e, nesses instantes,
ficava mais calma. Comecei então a me lembrar muito de
Dona Rita, minha vizinha. Recordei que ela era aposentada,
viúva, e seu filho que morava longe, não lhe dava atenção.
Passava por muitas necessidades. Dava-lhe muitas coisas, in-
clusive comida pronta, ora o almoço, ora o jantar, comprava-lhe
remédios, além de propiciar-lhe carinho. la vê-la quase todos
os dias e, agora, ela orava muito por mim. Escutava-a dizer:
"Genoveva, peça ajuda a Deus. Ele é nosso Pai e nos ama.
Peça perdão! Queira ajuda!"
Fiquei a pensar no que escutava. "peça ajuda, peça perdão".
Mas eu estava revoltada, pois não queria ter morrido. Era
bonita, cheia de vida e saúde e, agora, estava sofrendo. E não
queria continuar naquele estado, tinha que mudar, só que não
sabia como. As orações de Dona Rita fizeram diminuir minha
revolta, acalmei-me e comecei a meditar. Nunca pensei que a
morte viesse para mim, mas só para os outros. Ainda mais que
me achava jovem para morrer... e eu não queria a morte nem
na velhice. Então percebi que por ali passavam outras pessoas,


24 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO
diferentes, limpas e com semblantes tranqüilos. Já haviam tentado
conversar comigo, porém não lhes dei atenção. Talvez
vocês achem incoerente essa minha atitude, pois me incomodavam
a sujeira e aquele lugar horrível e
dava atenção para aquelas pessoas assim mesmo,
limpas e saudáveis
Mas
Sentia-me inferior a eles e isso me
magoava. Também estava envergonhada por estar em estado
tão deprimente. É que, quando encarnada
agora era apenas um farrapo. Mas depois a e sentia rainha e
poderiam me ajudar e acreditei que eles
quando os vi de novo, os chamei, pensando
firme nos dizeres da minha ex-vizinha.
perdão!" "Peça ajuda! Peça
"Senhores por
favor, me dêem atenção!"
Aproximaram-se e, perto deles, percebi como eram feli-
zes. Olhei-os emocionada.
"O
que quer?" - indagou um deles.
Ajuda, perdão..."
- respondi envergonhada.
"Venha conosco.

explicáções. Ao pedir o e d oração de Genoveva para alguns, não
demonstrou que reconhecia
os erros cometidos e que desejava mudar para melhor. Deus
nunca se  ende conosco, apenas nos ama. O que precisamos é
da renovação interior, para participarmos da renovação da humanidade.
Normalmente, quando os familiares chamam os
que desencarnaram, eles os atendem, indo para perto deles, se
não tiverem conhecimentos da vida no Plano Espiritual. E Genoveva
não os tinha. São muitos os que abandonam os Postos
de Socorro, para atender aos chamados dos seus. O desconforto
impele o desencarnado a voltar ao estado anterior, isto é a
sentir a vida que tinha, quando encarnado. A
leva para onde o desejo os guia, vontade forte os
perto de seus afetos quase sempre ao antigo lar ou
nas Colônias · Os recém-socorridos
que estão abrigados
maiores não saem, porque elas ficam mais longe
da crosta e não é tão fácil saírem sem
permissão. Mas muitos
para atender insistentes chamados, pedem
para


O VÔO DA GAIVOTA 25

ir, mesmo sabendo o risco que correm ao voltarem sem estar
preparados. Desencarnados que vagam pelo Umbral, costumam
também atender a esses chamados. Mas nem todos voltam,
como no caso de Genoveva. Primeiro, porque os chamados não
teriam sido muito insistentes, segundo, por causa do medo de
sair do lugar em que se está. Depois, Genoveva não amava
ninguém mais do que a ela mesma. Também, porque ela se
sentia enfraquecida, sem forças psíquicas. Quanto à ajuda que
recebeu de Dona Rita, foi uma reação de uma de suas ações. É
como meu pai sempre diz: "O Bem que fazemos, a nós mesmos
fazemos." E ele lembra sempre das palavras do Nazareno, que
é como gosta de se referir a Jesus, nosso Grande Mestre. "Granear
amigos com as riquezas da iniqüidade, para que, quando
vierdes a precisar, vos recebam nos tabernáculos eternos." (Lucas,
XVI:9).z Quando fazemos o Bem, fazemos amigos. Se um
deles nos for grato, ele nos ajudará quando necessitarmos. Genoveva
fez algumas boas ações. E Dona Rita, grata, não a
esqueceu. Orou com sinceridade e fé para ela. Oração sincera
não fica sem resposta. Genoveva recebeu o carinho de sua ex-vizinha
da forma que precisava no momento.Ela recebia seus
tluidos de ânimo e conforto, embora sua ex-vizinha fizesse ora-
ções decoradas que lhe ensinara a religião que seguia. Orações
envolvem o beneficiado com energias benfazejas, de modo a
ajudá-lo no que necessita. E para Genoveva seriam para seu
arrependimento; para que pedisse perdão e perdoasse, que
chamasse por ajuda, mudando assim seu padrão vibratório e
possibilitando o socorro. E foi isto o que aconteceu.

Continuemos com a interessante narrativa de Genoveva.

"Fui amparada com delicadeza, quando um senhor e uma
moça me levaram para uma casa enorme, um Posto de Socorro
no Umbral. A moça me ajudou a tomar banho. Deliciei-me.
Com roupas limpas, tomei um prato de sopa quente, que achei
muito saborosa. Depois acomodei-me num leito perfumado e
dormi tranqüila. Não estava doente, nem sentia dores, estava


2 - As citações do Evangelho contidas neste livro foram tiradas da Biblia -
Tradução Vulgata.


26 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

só desorientada e com fraqueza. Recuperei-me logo. E fui trans-
ferida para esta Colônia.
"Você vai para a Colônia Vida Nova. Verá como ela é
linda."
Ouvi muitos comentários parecidos. E fiquei curiosa para
vê-la. Fui conduzida à Colônia junto com outros que também se
dirigiam a uma cidade no Plano Espiritual pela primeira vez.
Lá, nos separamos, e fui conduzida para uma casa, onde fiquei
hospedada. Que decepção! Não vi nada das maravilhas que
disseram. A casa, sem arranjos e enfeites, era simples demais.
Só tinha o necessário.
"Que beleza de jardim!
"Que flores lindas!
Tentava prestar atenção e descobrir onde estava a beleza
do que ouvia. O jardim para mim parecia como outro qualquer
da Terra. Só
que talvez mais cuidado e respeitado. As flores
eram flores como sempre foram. Havia algumas diferentes
mas eram plantas... Estava apática. Tentava ser gentil com as
pessoas que moravam comigo, porque era tratada com extrema
delicadeza. Carinhosamente me levaram para conhecer a
Colônia. Nada me entusiasmou. Achei-a extremamente sem
atrativos, pois as belezas e sensações de que gostava, não eram
ali cultivadas. Havia muitas mulheres bonitas, mas elas agiam
como se este fato não lhes importasse. Para mim, a minha
beleza era um patrimônio importante. Gostava dessa aparência,
quando encarnada, pois sentia-me superior à maioria das
mulheres. A Colônia era um lugar como outro qualquer. Bem,
como outro qualquer, não! Para ser sincera, comparando com o
lugar em que fiquei, no Umbral, naquela abertura da rocha, ali
era o paraíso. Os novos amigos muito me aconselhavam. Consideravam-me
como amiga deles, mas eu não pensava assim:
para mim eram somente pessoas boas que tentavam me ajudar
Tudo fizeram para me tirar da apatia, sendo até convidada
a fazer pequenas tarefas. Não era preguiçosa. Muito fútil e
vaidosa, sim, mas ociosa, não. Aceitei, porque senti que deveria
ocupar meu tempo. Fui trabalhar na Biblioteca, onde Maura,
uma senhora alegre e extrovertida, me orientava.


O VÔO DA GAIVOTA 27

"Genoveva, querida, coloque estes livros em ordem alfabética."

Fazia tudo direitinho.

"Muito bem!" - incentivava ela. "Você tem trabalhado com
vontade. Você não é curiosa? Não tem interesse no conteúdo
destes livros? Não gosta de ler? Não a vejo nem folheá-los."

Acabei por pegar um. Abri e li uma página. Era um livro
que os encarnados têm também o privilégio de conseguir para
leitura. Levei-o, emprestado.

Minha apatia foi desaparecendo aos poucos com a ajuda e
alegria dos meus amigos - agora sim, considero-os como ami-
gos - e de lições ouvidas e lidas. Com o estudo e atenção fui
compreendendo que meu corpo e tudo o que me rodeava não
existiam para meu prazer e sensações, mas sim como parte de
um todo que é a manifestação de Deus. Então aconteceu o que
não esperava, pois antes eu via e ouvia, mas nãu todas as
coisas. Agora vejo e ouço o que antes me passava despercebido.
Comecei a esquecer de mim, para prestar atenção à minha
volta. Tempos depois, olhei para tudo novamente e encontrei
as belezas que todos admiravam. Amo muito a Colônia, mas
beleza para mim, por muito tempo, foram outras coisas: vestidos
novos da moda, luxo e beleza física. Só a compreensão faz
vermos a beleza nas coisas simples. Aprendo a vê-las. Estudei e
estudo, trabalho e tenho Paz, e agora estou bem.

Depois de um tempo por aqui, pedi permissão para visitar
meus familiares. Pedidos esses, feitos por quase todos os que
vêm para cá. Alguns dias após ter solicitado, o responsável do
departamento que cuida desse atendimento, chamou-me para
entrevista.

"Tenho saudades dos meus familiares" - disse -, "quero
vê-los e saber como estão."

Meu pedido foi aceito e, ao marcar dia e hora, lembrei de
Dona Rita, e pedi outro favor.

"Será que não posso ir só um pouquinho à casa de minha
ex-vizinha?"
"Pode" - responderam.


28 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

Vamos parar um pouquinho com a narrativa para uma
elucidação.
Nessas primeiras visitas, os desencarnados seguem algumas
normas da Casa, onde estão abrigados e que nem sempre
são as mesmas para todos. Elas têm o objetivo de preservar o
equilíbrio do novato em sua nova maneira de viver. Para cada
visitante é determinado um tempo, conforme suas necessidades.
Mas é costume, nas primeiras vezes, irem com um
companheiro experiente, que nem sempre fica junto durante a
visita, mas que o acompanha para trazê-lo de volta à Casa em
que está abrigado.
Voltemos à narrativa.
"Emocionei-me ao ver meu esposo e meus dois filhos.
Percebi que os amava de forma egoísta. Tanto que, ao desencarnar,
só pensei em mim. Não julguei que eles sofreriam pela
nossa separação. Os três estavam muito unidos. Arrumaram
uma empregada e tentavam ajudar um ao outro, levantando o
ânimo. Fiquei por horas esforçando-me para seguir os ensina-
mentos e recomendações que recebi, tais como ficar ale re
orar por eles e não interferir em suas ações. Quase na hora de ir
embora, fui ver Dona Rita e, para meu espanto, ela me sentiu
por ser sensitiva, percebeu minha presença. Não que tenha me
visto, mas pensou em mim de maneira tema.
Genoveva tá Ob Deus a proteja onde esteja. Que seja feliz!
Sou-lhe tão gra rigada.
Orou e me disse coisas carinhosas pelas quais me animei.
Soube, também, que meu esposo continuou lhe dando, em
minha intenção, todo mês, uma quantia em dinheiro. Eu os
achei maravilhosos, ele e meus filhos.
Na hora de voltar, aguardei meu acompanhante para retornarmos
à Colônia. Abracei-o e chorei. Afagou-me somente. Meu
pranto era diferente. Fora muito feliz encarnada e queria voltar
a ser... Mudei, tornei-me mais alegre e entusiasmada."
Genoveva terminou a leitura e, como sempre, após havia
perguntas. Essas redações não são obrigatórias e nem a sua
leitura. Faz quem quer, podendo também o aluno, se preferir
,


O VÔO DA GAIVOTA 29

falar sobre o assunto. Mas, desta vez, foi Genoveva quem indagou:
- Patrícia, ao visitar Dona Rita, quando ela me agradeceu,
saíram dela raios lindos, coloridos, que vieram até mim. Foi
muito agradável. Percebi que aquela sensação de carinho que.
recebia dela, eu já a tinha recebido outras vezes, principalmente
quando estava no Umbral. Também agradeci a Dona Rita,
pois estava ali para isto. E vi que ao fazê-lo também saíram de
mim esses raios, que lhe foram também muito agradáveis.
Como você explica isto?
- Quando estamos carentes - respondi -, é que mais senti-
mos as vibrações de carinho, como aconteceu a você no Umbral.
Dona Rita orava, desejando-lhe que estivesse bem. O ato de
agradecer é muito bonito. A gratidão sincera sai da alma e
envolve a pessoa que agradece, com raios de suave colorido,
os quais depois vão para quem estamos agradecendo, beneficiando
a ambos. Muitos pensam que bons e harmoniosos fluidos
só acontecem em esferas elevadas e que só espíritos superiores
são portadores de tais vibrações. É que ainda não perceberam
que, por Deus, fomos dotados em estado potencial com a capacidade
de amar e de sermos fraternos, cabendo-nos somente
dinamizar este estado de vida. O estado psíquico de gratidão é
uma faculdade do ser humano. Somos filhos do amor. Mas não
devemos nos importar com agradecimentos e, sim, compreender
o que realmente somos, para que, ultrapassando o egoísmo
cheguemos ao estado de fraternidade, em que o reconhecimento
seja uma situação natural de se viver. Beneficiamos a
nós mesmos, quando cultivamos o sentimento sincero da gratidão.
Ninguém fez mais perguntas e saímos, para um pequeno
intervalo. Fiquei a meditar. Muitos temem a desencarnação por
não terem o preparo para essa continuação de vida. Muitos
sofrem com essa mudança, que a vida nos impõe, sem que
tenhamos outra escolha. Outros a acham maravilhosa, pois,
pela lei da afinidade, gostam muito do lugar para onde foram
atraídos. A natureza não dá saltos, nada é excepcional e a
beleza está na simplicidade. Muito se tem falado da continuação
da vida depois da morte física, mas cabe a cada um fazer


30 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

seu preparo, sem descuidar do tempo presente. Pois é nele que
construímos nosso futuro. Devemos viver bem e no Bem, sempre.
A desencarnação pode ocorrer a qualquer momento. Que
ela nos surpreenda, então, de tal modo que possamos estar
aptos a continuar a viver bem e felizes.


Colóquio Interessante


Numa aula especial, trocamos idéias sobre diversos assuntos
do interesse da maioria. Lena, nossa querida colega, alegre
como sempre, indagou:

- Patrícia, por que uns se deslumbram tanto com as Colôni-
as e outros, não?

- Nada deve acontecer em excesso - expliquei. - O equilí-
brio precisa existir sempre. Colônias servem de lar a muitos
desencarnados, mas temporariamente. É necessário amar, respeitar
e dar valor a todas as formas de lar. Muitos, pela vibração,
se afinam mais com estes lugares de Paz e Harmonia que, para
outros, são monótonos e sem atrativos. Quando aprendemos a
ver Deus em tudo e dentro de nós, qualquer lugar é maravilhoso,
pois não existem lugares ruins. Se estamos satisfeitos conosco,
so ada nos para
seremos felizes onde estivermos, se insatisfeito

rece suficientemente bom.

Josefino perguntou para elucidar-se.

- Patrícia, as Colônias progridem?

- Sim e muito. As Colônias estão sempre progredindo pelo
trabalho de seus moradores. Sempre se modificam para melhorar
a vivência temporária de todos que aqui vêm.

- Elas aumentam de tamanho? Quem as constrói? - inda-
gou Josefino novamente.
- Normalmente - respondi -, as Colônias são criadas e
quenas
pelos seus fundadores. Vão sendo ampliadas conforme

32 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARIlVZECK DE CARVALHO

a necessidade. Seus fundadores são sempre desencarnados que
amam o Bem e o próximo. Muitas vezes, após a fundação,
permanecem eles trabalhando nelas, para o Bem comum. Cada
Colônia tem os seus fundadores; são eles orientados por espíritos
superiores, que trabalham como construtores, no Plano
Espiritual.
- Patrícia, nunca tive uma profissão, nem quando encarna-
do, nem quando vagava desencarnado - disse Josefino. - Aqui
aprendi muito e, após o curso, vou estudar enfermagem.

- Fico contente por você, porque conhecimentos só nos
fazem bem e, quanto mais sabemos, mais podemos ser úteis.
- Patrícia - replicou Marília -, continuaremos a exercer
aqui a profissão que tínhamos quando encarnados? Fui advogada.
Poderei trabalhar na advocacia? Quando encarnada
preocupei-me tanto com isso!
- Marília, profissões devem ser temporárias. Encarnados,
as temos também para a sobrevivência. Aqui devemos ser úteis,
aprendendo as muitas formas de assim ser. Os conhecimentos
que teve ao estudar e ao exercer sua profissão, fizeram que
desenvolvesse sua inteligência, pois, os conhecimentos que nos
esforçamos para obter, nos pertencem. Os encarnados não devem
preocupar-se com o exercício de suas profissões, no Plano
Espiritual, ou inquietarem-se por não terem alguma. Quando
queremos, achamos sempre um modo de ser útil e de trabalhar.
Aqui é uma continuação de vida, mas muda-se muito, de
vez que coisas que fazíamos quando encarnados não há, muitas
vezes, como e por que fazê-las no Plano Espiritual. Aqui, nas
Colônias, fazemos rodízio de muitas tarefas para aprender mais
e também para escolher da que mais gostamos para a ela nos
dedicarmos. Você, Marília, poderá fazer muitas tarefas e muito
lucrará com o aprendizado.
- E no Umbral? - perguntou Marília novamente. - Traba-
lham, por lá? Exercem os desencarnados as profissões que
tinham quando encarnados?
- Os que sofrem no Umbral - elucidei - não fazem nada, a
não ser os que são obrigados, como escravos. Os moradores,
principalmente das regiões umbralinas, trabalham, só que de


O VÔO DA GAIVOTA 33

modo muito diferente dos desencarnados que o fazem para o
bem comum. No Umbral, tudo é feito com egoísmo, vaidade e
para o mal. Consideram estar trabalhando, quando estão vingando
obsediando e destruindo. Lá muitos têm conhecimentos,
mas os usam de forma errada. Quanto às profissões que tinham
, quando encarnados, quase sempre não têm como
exercê-las, já que a vida física difere muito da que vivemos no
Plano Espiritual.
- Patrícia - disse Marília -, quando eu ainda estava encar-
nada, um amigo meu desencarnou e, na ocasião, fiquei muito
impressionada. Comecei a sentir muitas dores, como ele as
sentia. Meu esposo me levou ao Centro Espírita e lá me falaram
que ele não estava comigo como julgávamos, mas sim num
hospital no Plano Espiritual. Fui aconselhada a não pensar nele
e, á sim, melhorei. Lembrando agora deste fato, gostaria de
entender o que se passou.
- Vou lhe responder o que pode ter ocorrido. Porém não se
pode dar uma resposta categórica para algo, sem se analisar
bem o que aconteceu. Para cada fato há várias explicações.
Esse seu amigo desencarnado não estava perto de você, mas,
ao
pensar múito nele, você se ligou mentalmente a ele. Quando
isso acontece, o que pode suceder é uma transmissão de
vibrações, e até mesmo uma transfusão de energias. Por isso,
somos incentivados pelos instrutores a fazer coisas boas e a nos
ligar a pensamentos elevados ou a espíritos bons, pois, assim
procedendo, absorvemos suas vibrações. Aquele que tem mais,
dá ao que tem menos. Ao pensarmos coisas ruins, prendemo-nos
a espíritos afins e deles recebemos as más vibrações, quando
não, somos por eles vampirizados, principalmente se estivermos
encarnados. Podemos também permutar vibrações de
desarmonia e angústias. Você, encarnada na época e pensando
forte, se ligou ao seu amigo desencarnado que, mesmo socorrido
num hospital, estava ainda enfermo, e assim ocorreu a troca
de fluidos. Ao não pensar mais nele tão insistentemente, desligou-se
e melhorou. Devemos orar para todos, sem atrair para
nós nada que o outro esteja sentindo. É preciso orar, mas somente
enqar à pessoa a querri oramos, bons fluidos, ânimo,
paz e alegria.


34 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

- Patrícia, por que há tantos desequilíbrios? São muitos os
desencarnados, perturbados, e também vemos encarnados com
cérebros danificados, portando doenças mentais. Este assunto
me intriga - falou Olavo.
- Você, Olavo, deu a designação certa: desequilíbrio - fa-
lei. - Encarnados, quando se alimentam demasiado
,
desequilibram o aparelho digestivo, e a má digestão certamente
os incomodará. Do mesmo modo, podemos nos equilibrar ou
não, como resultado de nossos atos. Ações boas nos equilibram,
harmonizando-nos com a perfeição. Ações más danificam o que
está bem, desequilibram, trazendo sempre a doença e o sofrimento.
E quando sofremos sem nos revoltar, acabamos por
entender que foram nossos atos negativos que motivaram essa
situação. Ao mudarmos nossa maneira de viver, teremos aprendido
mais uma lição. E, se não aprendemos pelo amor
,
acabaremos aprendendo pela dor. A mente e o corpo não são criados
por nós, apenas os desenvolvemos. Tanto a mente como o
corpo anseiam pela harmonia, que compõe a natureza. Essa harmonia
só é possível quando não há interesse pessoal e quando
todos trabalham com um único objetivo, o do Bem comum. Agindo
egoisticamente, nós nos separamos espontaneamente do
movimento da vida. É como se o feto recusasse o sangue da mãe
que o sustenta. A mente ou um corpo privados dos fluidos cósmicos,
pelo egoísmo, entram em estado de perturbação. O
remorso destrutivo também desequilibra bastante. Muitos, ao desencarnarem,
percebem o tanto que erraram, perturbando-se
demasiado e depois, sem um preparo especializado das Colônias,
uma compreensão, ao reencarnar passam para o corpo
esse desajuste. Essas deficiências também podem ocorrer quando
abusam do corpo saudável, danificando-o com drogas ou
suicidando e, então, se ressentirâo, em outra encarnação, de um
corpo perfeito. Igualmente, o desequilíbrio mental será causado
por abuso da inteligência, ao se prejudicar os outros. As
anomalias físicas não existem como punição de Deus, mas sim
como conseqüências do nosso remorso destrutivo, advindo de
vivência com tins egoísticos, como se não participássemos da humanidade.
Reconhecer que erramos é fundamental, mas
punirmo-nos, por incrível que pareça, é uma atitude de egoísmo.


O VÔO DA GAIVOTA 35
Que seria mais agradável a Deus: ser um aleijado, representando
um peso para a sociedade, ou reconhecer nossos desacertos
e preparar-nos convenientemente para ser daqueles que constroem
e enobrecem a humanidade? certamente, a segunda
hipótese.
Helena pediu para falar e, atendida, propiciou-nos valiosa
lição.
- Encarnada, tive uma deficiência mental. Meu cérebro
não funcionava normalmente. Doenças? Foram várias, e a medicina
tinha muitas explicações. Tomei muitos medicamentos.
Desencarnei após sofrer muito. Que fiz para ter vivido assim?
Este fato veio a me incomodar, depois de eu ter melhorado no
hospital desta Colônia. As lembranças do passado vieram fácil
à minha mente, entretanto, quando encarnada, também as tinha
e não as entendia, e elas vinham como sensações
desagradáveis a me incomodar. Meus erros foram muitos, e me
marcaram profundamente as recordações que me vinham ao
cérebro, de forma difusa, levando-me a me perturbar ainda
mais. Não quero e não vou falar dos erros do passado. Contarei
a vocês a minha vida como doente mental, sem generalizar, só
narrando minha experiência particular. Reencarnei, por afinidade,
numa família de classe média, tendo assim assistência
material e também afetiva. Desde criança, já era considerada
estranha e esquisita. Quando entrava em crise, falava coisas
desconexas, afirmando ser outra pessoa, com outro nome, alguém
desconhecido. Sentia-me realmente assim: duas
personalidades. Na adolescência, piorei muito e fui internada
em hospitais, onde sofria bastante com a separação dos meus e
com os medicamentos. Em algumas vezes, agia como sendo
uma pessoa, em outras, agia diferente. Havia também períodos
de melhora, quando conseguia reconhecer ser ora doente, ora
normal. Queria me curar, pois envergonhava-me dos vexames
que causava, me irritava e sofria com as chacotas e risos dos
outros. Aborrecia-me dizer coisas tolas, ser ridícula. Não era
agressiva, a não ser quando me irritava, aí eu xingava as pessoas.
Sendo católica, ia sempre à igreja, quando estava calma. Se
me via nervosa, minha mãe não me deixava ir, porque não
parava quieta, incomodando as pessoas. Gostava de ver Nossa


36 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARIIVZECK DE CARVALHO

Senhora Aparecida, a quem chamava de Parecidinha. Não rezava
de forma decorada, e minha contemplação representava
minha oração. Familiares e conhecidos, para me chatear, mexer
comigo, diziam que iam bater na imagem de Nossa Senhora,
então eu chorava desesperada e só parava quando me garantiam
que não bateriam na minha Santinha. Fugia muito de casa
para passear pelas ruas, andando de um lado a outro e, quando
me cansava, voltava para casa. Dei muitos vexames e sofri por
isso, porque não queria ser daquele jeito. Para meu orgulho era
um enorme ridículo. Aprendi muito, só que desencarnei doente,
com muitas dores e, nessa ocasião, uma equipe, que
trabalhava em nome de Maria, veio me socorrer. Sarei após um
bom e longo tratamento espiritual, neste hospital da Colônia, e
digo-lhes que agora também perdi o orgulho, que foi minha pior
doença.
Completei com a explicação:
- Quando o desequilíbrio mental é muito grande, pode-se
perder a capacidade de ser uma pessoa sadia. A recuperação
só se faz com o auxílio de outros espíritos e através de reencarnações,
ocasiões em que se recebe novo cérebro, mas que
pode novamente ser danificado enquanto persistir a causa. O
reequilíbrio vem pouco a pouco, como a água limpa em caixa
suja, que, renovada, acaba por limpar todo o ambiente. E é
pela bondade de Deus, concedendo-nos a reencarnação, que
acontece a recuperação. Muitas são as causas que levam os
encarnados a terem doenças mentais, e suas sensações diferem
de uma pessoa a outra. Tenho escutado muitas narrativas
diferentes de pessoas que, encarnadas, tiveram deficiências
mentais. Não existem duas experiências iguais, e, normalmente,
são recuperações difíceis, pela dor, quando se poderia muito
bem tê-las feito pelo amor. Temos, para meditar, a narrativa de
Helena, lembrando que não devemos ironizar o doente, porque
poderia sermos nós a passar por essa experiência de recuperação.
Não tendo mais comentários, a aula terminou com muito
proveito para todos.


Amor e Desapego

Paula tudo escutava e ficava pensativa. Não tinha muito
tempo de desencarnada. Saindo de suas reflexões, indagou:

- Será que um dia irei gostar da vida de desencarnada?
Sinto muita falta de tudo que era meu.

Carlos Alberto demonstrou vontade de responder à colega
e, notando isso, dei-lhe permissão para falar.
- Paula, também já me senti assim. Fiquei revoltado ao
desencarnar. Não aceitava, pois fui tirado da vida física cheio
de vitalidade, sonhos, planos, estava casado e com duas filhinhas
para criar. Pensei muito: por que eu? Com tantos querendo
morrer e continuando encarnados, e eu que gostava tanto da
vida física, desencarnei. Minha avó com muita paciência tentava
me confortar. Dizia-me sempre:
"Carlos Alberto, aqui você não terá a competição de um
trabalho estafante, não ficará doente, não sentirá frio ou calor.
A vida aqui é tão boa!"

"Gosto do trabalho competitivo, aprecio a luta pela sobrevivência,
gosto do frio e nada mais agradável que sentir calor, e
ainda: as doencinhas quebram a rotina" - respondia, sincero.

Com o tempo, acabei conformado com o inevitável. Após
muitos anos, entendi o porquê de ter-me sentido desse modo.
Foi por não estar preparado e não ter informações verdadeiras
da desencarnação. Amava muito e de maneira incorreta a vida
material, para entender a vida espiritual. E, quando me tornei


38 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

útil, é que passei a amar a vida, sem me importar se estava
encarnado ou desencarnado. Paula, por que você não aprende
a amar? Todas as etapas de nossas existências, no Plano Físico
ou Espiritual, nos são úteis."
- Achei muito válida a opinião de Carlos Alberto - falei à
Paula, querendo ajudá-la, como também para elucidar a turma
sobre essa questão de interesse de todos, e que nâo estava no
plano de aula.
- Paula, tenho notado que você se queixa muito. Agia assim,
quando encarnada?
- Acho que sim, tinha reumatismo, a me incomodar muito,
morava com meu filho e não me dava bem com a nora...
- Paula - interrompi -, muitos de nós costumamos reclamar
por não aceitar o que temos e o que somos. Quando
encarnada, você se queixava de muitas coisas, e não mudou ao
desencarnar. Ninguém muda de imediato. Para nos transformarmos,
necessitamos de muita compreensão. Temos sempre
muitas possibilidades de ser felizes, só que quase sempre não
as percebemos. Às vezes, prefere-se desejar algo que não se
tem, na ilusão de ser, ou ter. Consideramos estar nos atos externos
ou em terceiros a nossa tão falada felicidade. E, na maioria
das vezes, ao conseguir o que almejamos, a euforia passa logo,
e voltamos a desejar outras coisas. Todavia a tão sonhada felicidade
está dentro de nós, não importando onde vivemos e o que
fazemos; os atos externos não devem influir em nossa Paz interior.
Muitos pensam que só serão felizes desencarnados. Outros,
que só a vida física lhes trará alegrias. Ao colocar fatos externos
como condição para sermos felizes, não seremos. E também
não devemos esperar que outros resolvam, para nós, a dificuldade.
Enquanto não solucionarmos nossos conflitos de ter e ser,
permaneceremos insatisfeitos em qualquer lugar. A felicidade
duradoura está na Paz conquistada, na harmonia, no equilíbrio,
na alegria de ser útil, no Bem e ao caminhar para o progresso.
Creio, Paula, que irá gostar da vida aqui, quando sua felicidade
não depender de coisas ou de pessoas; não esperar recompensas,
retorno; não exigir nada; quando você amar a si mesma, a
vida e a todos que a rodeiam.


O VÔO DA GAIVOTA 39

- Patrícia, por que não falamos um pouco sobre o amor?-
disse Heloísa. - Sobre o Amor e o desapego.
O assunto era deveras fascinante, tentei elucidar a turma.
-Amar, de forma egoísta, todos os seres humanos o fazem,
nem que seja a si mesmos. Mas o amor de forma verdadeira,
sem egoísmo e posse, é que demonstra que aprendemos. Ao
amar verdadeiramente, anulamos erros e irradiamos alegrias
em nossa volta.
Amar e desapegar-se dos seres que amamos não é fácil.
Os encarnados, no aprendizado para se desprender do que lhes
é caro, chegam a ter sensações de dor, porque sentem sufocada
sua ilusão de ter. É necessário amar tudo, mas sabendo que isso
nos é emprestado. E por quem? Pelo nosso Criador. Lembremos
que com objeto emprestado, cuidado dobrado. Sim, realmente,
o que temos, nos é emprestado, já que não somos donos das
coisas materiais, não possuímos nada. Nosso amor pelas coisas
deve ser sensato, para usar o que nos é permitido, sem abusar.
E também dar valor à casa que nos serve de lar, às roupas que
vestem o corpo, ao local em que trabalhamos, onde recebemos
o necessário para o sustento material, enfim, a todos os objetos
que nos são úteis. Porém, teremos um dia que deixar isso para
outros, e que os deixemos da melhor forma possível, a fim de
que eles possam desfrutar dos objetos emprestados tanto quanto
nós. Até o corpo físico temos que devolver à natureza. E essa
devolução como é difícil para muitos.
Até aí, parece fácil, embora saibamos que muitos, possuídos
pelo desejo de ter, se esquecem desse fato e se apegam a
coisas, objetos, julgando ser deles, mas, quando desencarnam,
não querem deixá-los e a eles ficam presos. Há uma parte mais
difícil, que é amar nossos entes queridos sem apego. Quase
sempre nos julgamos insubstituíveis junto daqueles que amamos,
pensando amá-los mais que ninguém, e ser indispensáveis
na vida deles. Apegamo-nos assim às pessoas, esquecendo que
elas também são amadas por Deus e que somos companheiros
de viagem, cabendo a cada um caminhar com seus próprios
passos. E, ainda, muitas vezes nessas caminhadas, somos levados
a nos distanciar um do outro, embora afetos sinceros não se
separem. Podem estar ausentes, não separados. Deixar que


40 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

nossos afetos sigam sozinhos, sem nós, é algo que devemos
entender. É o desapego. Ao desencarnar, ausentamo-nos do
convívio de nossos entes queridos e, se não entendermos isso,
consideraremos essa ausência como separação definitiva. É
preciso aprender a amar com desapego, ampliar o número de
nossos afetos, sem a ilusão da posse. Se formos chamados a
nos ausentar, pela desencarnação, continuemos a valorizá-los,
respeitando-os, ajudando-os. Estaremos no caminho do desapego,
e continuaremos a amá-los da mesma forma.
Terminei de falar e lembrei-me de Luiz, de sua história,
que poderia bem ilustrar este assunto. Convidei-o a falar de si,
para toda a classe, sabendo que sua narrativa seria importante
para todos nós. Luiz começou a falar:
- Minha vida transcorria com normalidade. Minha família
e eu vivíamos numa propriedade rural, onde ganhávamos o
pão com trabalho honesto. Apesar de muitas dificuldades, éramos
felizes, pois aprendemos com nossos pais a trabalhar e
confiar em Deus. Estava com cinqüenta anos, ao desencarnar.
Quando me dei conta, sem saber quanto tempo havia passado,
vi-me num ambiente agradável e fraterno. Passados uns dias,
senti, lá no fundo, preocupação com minha família, e isso aumentava
a cada instante.
Quando o médico que nos atendia, chegou para a visita
diária, externei minhas preocupações, que se transformavam
numa grande angústia quase insuportável. Com muita atenção
e carinho, esclareceu-me que eu havia morrido, desencarnado,
e que estava num Posto de Socorro, salientando que aquilo era
percepção psíquica do estado mental por que passava minha
família, naquele momento difícil. Eu sentia daquele modo, porque
era como se vivesse cada um dos pensamentos e angústias
da minha esposa companheira e de meus filhos. Explicou-me
também que todo sentimento muito forte, em relação a uma ou
mais pessoas, nos une mentalmente a elas, e que estamos
ligados pelo amor ou pelo ódio. Eu estava ligado aos meus, por
afeto. Ensinou-me também que eu, no momento, não podia
fazer nada por eles a não ser orar, pedindo a Deus que lhes
concedesse paz, amor, harmonia e a aceitação do ocorrido,
pois a morte de um ente querido é quase sempre muito dolorida.


O VÔO DA GAIVOTA 41

É um fato que irá acontecer em todas as famílias, não por
estarmos sendo punidos, mas sim por circunstâncias naturais
do ciclo da vida. E, para que haja vida, é necessário o nascimento
e a morte. Deveríamos aceitar o fato assim como ele é,
não como queríamos que fosse.
Aquele ensino dirigido a mim, com palavras tão carinhosas,
não foi suficiente para aplacar minha angústia e
preocupação, que aumentaram por saber que estava morto,
desencarnado. Minha decepção e frustração eram terríveis, pois
fora, durante toda a vida física, muito religioso e "temente" a
Deus. Obedecia sem questionar, como lei, a catequese de minha
religião e acreditava nas palavras daquele que se dizia
digno da possibilidade de doar bens divinos. E agora! - pensava
aflito. - Estava morto e não estava no céu, em paraíso nenhum!
Não vira Jesus Cristo! Mas, ponderava para mim mesmo, estava
sendo bem tratado num local muito limpo e com carinho. O
enfermeiro de plantão, Antônio, do qual me tornei amigo, dava-me
toda assistência e nada me faltava. Mas tudo aquilo não foi
suficiente para aplacar minha decepção e desejo de estar junto
dos meus.
Pensei muito, encontrei aqui tudo muito diferente do que
imaginava. Mas, se existisse céu como acreditava, as pessoas
que fossem para lá, teriam, para ser felizes, que perder a individualidade.
Porque, para mim, nenhum lugar seria um paraíso,
separado dos meus. Achava que tudo que desfrutei, quando
encarnado, eram posses minhas: casa, sítio e família. Os bens
materiais, adquiri-os com trabalho honesto, mas eles não me
importavam, ainda mais que os deixei para os que amava.

Chamei o enfermeiro e perguntei se poderia falar com o
responsável por aquele hospital. Logo ele voltou com a resposta
que, como eu estava bem, iria ter alta no dia seguinte e nessa
ocasião o diretor falaria comigo. Não consigo descrever como
senti lento o tempo que esperei até o momento da minha liberação
do hospital.

O que agravou bastante meu estado emocional foi o conflito
de pensamentos, a preocupação com a família. Eu estava
morto, sem estar preparado para o mundo que encontrei. Não
sabia onde me encontrava, nem o que ia fazer na nova vida.


42 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

Sentia os familiares em dificuldade e não tinha mais o corpo
físico. Como ajudá-los?
Foi em meio a todo este contlito e perguntas sem respostas
que chegou Antônio, com roupas novas para mim, pedindo que
me trocasse, pois o diretor do hospital estava à minha espera
para a entrevista tão desejada.
Aquelas palavras caíram como bomba em cima de mim,
pois até então eu estava sendo bem atendido. As minhas dificuldades
eram somente os contlitos dos meus pensamentos.
Depois dessa entrevista, seria liberado, e para onde iria? Iria
fazer o quê? O que um morto faz? Onde realmente estava? Foi
com uma sensação indescritível de desamparo, que me pus a
caminho, com Antônio.
Mas qual não foi minha surpresa, quando fui recebido pelo
diretor. Se me sentia desamparado por Deus, ao ver aquela
pessoa bondosa e atenciosa, senti logo o amor que emanava
dele. O mal estar desaparecia à medida que conversávamos,
chegando a ponto de não me sentir mais decepcionado por não
ter me encontrado com Jesus Cristo, pois encontrava ali um
representante Dele.
Com muito amor, o diretor foi me explicando tudo e delineando
a minha recente maneira de viver, com nova
acomodação e afazeres. Passado um tempo, acostumei, assumi
a nova vida e gostei muito do local em que vivia. Era deveras
bom, lugar de muita harmonia e fraternidade. Mas continuava a
sentir minha família em dificuldades.
Explicaram-me que, em breve, minha família se acomodaria
com a nova situação. Com o passar do tempo, sentia
minha companheira mais conformada com a falta, porém ela
estava angustiada e o motivo não era a minha desencarnação,
mas uma de minhas filhas.
Como eu não estava suportando senti-los com dificuldades,
comecei a ter remorso que, aos poucos, foi aumentando.
Que esposo, que pai fora eu? Enquanto eles sofriam, eu vivia
num lugar extraordinariamente bom. Fui falar com meu superior
e confessei minhas preocupações. Ouvi dele conselhos e
explicações, pois eu não tinha conhecimentos suficientes para


O VÔO DA GAIVOTA 43

ajudá-los. Mas, apesar de todas as recomendações, não mudei
de atitude, achei que, se nada pudesse fazer por eles, iria sofrer
junto. Não queria ter aquela vida maravilhosa e saber que eles
sofriam. Seria solidário com eles: se chorassem, queria abraçá-los
e chorar também; se eram perseguidos, que me perseguissem;
se machucados, que sentisse a dor de suas feridas.

Pedi, insisti para voltar ao lar. Diante de minha atitude,
meu superior autorizou a volta. Nossos desejos são sempre
respeitados, quis voltar e o fiz. Apesar das explicações e recomendações,
pensei estar preparado. Mas não estava. As
dificuldades foram muito maiores do que esperava.3

Chegando em casa, deparei com dois mal encarados, espíritos
perturbados na maldade. Ao me verem, perguntaram-me
se viera ver os familiares sofrerem. Eles obsediavam uma de
minhas filhas e estavam prejudicando, infernizando toda a família.
Quis impor a minha autoridade, pois era o chefe daquele
lar, dono daquela propriedade. Quis expulsá-los, porém eles se
recusaram a sair. Isto me levou a ficar nervoso e era o que eles
precisavam para que eu me perturbasse, ao contato com a
vibração ambiente. Senti primeiro uma violenta dor de cabeça
e logo em seguida uma agonia, como se tivesse desencarnado
naquele instante. Perturbei-me por algum tempo, mas não sei
precisar quanto, e esse meu estado só piorou a situação dos
meus. Voltei ao equilíbrio depois, numa reunião espírita, onde
me senti unido a uma pessoa, havendo outra conversando comigo,
explicando-me que eu precisava de auxílio e que Deus,
através de seus enviados, estava me socorrendo.

"Preciso ajudar os meus" - respondi.

"Para auxiliar é preciso ter condições" - esclareceu o
orientador encarnado dessa reunião. "Não se preocupe, os seus

- É normal querer auxiliar os que amamos. Mas só ajudamos quando preparados
e, para esse preparo, não temos tempo determinado. Dependendo
de muitos fatores, é rápido para uns e demorado para outros. Podemos
ajudar com conhecimentos e segurança, quando os orientadores do local
que nos abriga, nos julgam capazes. Mas, mesmo assim nossa ajuda é limitada,
pois cada qual tem a lição que lhe cabe fazer. (N.A.E.)


44 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE (Arzvnr un

também estão sendo atendidos e, assim também, os agressores
de sua família. Se não se quiser ter inimigos, é necessário
tomá-los, amigos. Estamos providenciando para que isso seja
um fato.

Senti-me melhor e o orientador me convidou:
"Amigo, queira o socorro oferecido, vá viver uma vida digna
de um desencarnado. Será que é este o tipo de vida que seus
familiares desejam para você?"
"Não" - falei -, "eles me querem bem, pensam que estou
no céu e que sou feliz."
"Por que você não faz o que eles querem? Por que não
aprender a amar com desapego? O amigo não está esquecendo
que eles são, como você, filhos de Deus? Se você foi chamado a
viver de outro modo, é porque findou seu tempo como encarnado.
E não será egoísmo a felicidade que se desfrutar numa casa
de auxílio no Plano Espiritual, se a conseguiu por merecimento
e afinidade. Faça o que tem que ser feito. No momento é viver
num abrigo para desencarnados, estudar e trabalhar, sendo útil
como fez quando encarnado. Vai, amigo, fazer o que lhe é
devido, não se envergonhe de ser feliz, porque, ao estarmos
bem, irradiaremos alegrias que beneficiarão os outros."
Mais tarde, na Colônia, já adaptado, é que vim a saber que
minha outra filha namorava o filho de um senhor, dirigente de
um Centro Espírita, e o rapaz, vendo o que acontecia em minha
casa, pediu ajuda ao seu genitor e esse auxílio não se fez demorar.
Naquela ocasião, fomos todos orientados no Centro, os dois
espíritos que os atormentavam e eu. Com nosso afastamento, a
situação melhorou muito. Minha esposa pensou ter alcançado
uma graça que pedira a uma santa e a uma senhora desencarnada
na cidade, tida como milagreira, por ter sido boa quando
encarnada. Soube, mais tarde, que essa senhora não pôde na
época ajudá-los. E meus familiares nem ficaram sabendo que
receberam tanto de desconhecidos, de um Centro Espírita.
Hoje, estou bem, visito-os sempre e tento ajudá-los dentro
dos meus limites. Uma família grande sempre tem problemas,
mas não me desespero quando não tenho como auxiliá-los.
Luiz deu por finda sua narrativa, deixando-nos silenciosos.


O VÔO DA GAIVOTA 45

Talvez porque todos nós já tivéssemos passado por problemas
parecidos e estávamos dispostos a aprender a amar sem
apego.
Após a aula, meditei sobre o assunto. Muitos encarnados
me têm pedido ajuda, talvez por acharem que posso muito, ou
pelo que escrevo, através de livros. Porém nada sou, pouco
posso. Esforço-me, isso sim, para aprender e trabalhar, pois
almejo caminhar no Bem, rumo ao progresso. Devido às minhas
tarefas, não posso atender a esses pedidos, porém eles
não ficam sem resposta. A personalidade, aqui, não é cultuada.
Os bons espíritos atendem em nome da fé, da sinceridade, sem
se importar de quem vem o pedido. Muitos, que os encarnados
nem conhecem, são ativos no Plano Espiritual e atendem essas
solicitações. Constituem-se em obreiros, samaritanos, humildes
trabalhadores dos Centros Espíritas, desencarnados amigos
e protetores dos que pedem. Fazem por amor, apenas pelo
prazer de servir.
Deve-se pedir a Deus, a Jesus, ao anjo protetor, que os
bons desencarnados atendam e ajudem no que seja possível.

Concluí meus pensamentos com a certeza de que amo
muito e que minha família aumenta constantemente, pois quero
amar toda a humanidade. Mas tenho, pelos meus, imenso e
infinito carinho, só que com desapego. Amo-os sem posse. É o
que todos nós devemos fazer: amar com desapego.



Um Pedido Diferente


Ao sair da classe, fui informada que havia uma visita para
mim e me aguardava no jardim em frente da escola. Ao aproximar-me
do local, veio ao meu encontro uma moça
extremamente agradável.
- Patrícia! Sou Elisa! Gostaria de conversar com você.
- Oi, Elisa, como está? Sentemos aqui.
Convidei-a e nos acomodamos num banco embaixo de
uma frondosa árvore. Minha recém-conhecida falou de modo
delicado.
- Patrícia, vim lhe pedir uma ajuda muito especial. Na
Casa do Escritor, me informaram que a acharia aqui. Antes
,
porém, fui procurá-la num Centro Espírita, em que, disseram-
me, você se manifestava. E, lá, me decepcionei, porque a
manifestante não era você.
Sorri, compreendendo.
- Elisa, isso tem ocorrido. Gosto de Centros Espíritas e
muito mais ainda da Doutrina, que já abraçara encarnada. Após
meus estudos de Reconhecimento do Plano Espiritual, só fui a
alguns Centros Espíritas para conhecer e estudar, não os tenho
visitado mais. Quando vou à Terra, apenas vejo meus familiares
e, quando dá, visito somente o Centro Espírita que meus
familiares freqüentam, para estar com eles e rever amigos. Isto
porque optei por estudar e trabalhar com desencarnados em
Colônias.


O VÔO DA GAIVOTA 47

- Pensei que você estivesse ditando mensagens por outros
médiuns - falou Elisa.
- Tudo o que faço e que farei é com muito amor - repliquei.
- Não é meu trabalho desenvolver médiuns, pois é tarefa
que exige muito preparo e paciência. Também não tenho como
incumbência ser protetora de ninguém, nem escrevo por outros
médiuns, a não ser por minha tia Vera. Isto porque nós duas nos
rearamos durante anos, quando estávamos desencarnadas,
pará esse trabalho. Reencarnamos e tivemos, na vida física,
grande afinidade, conseguia transmitir a ela o que pensava.4
Após programar nosso trabalho, nós o executamos com dedicação,
para que saia o melhor possível. Tenho recebido muitas
manifestações de carinho por estes livros, e meu afeto por todos
é sincero e profundo. Gostaria de estar perto daqueles que
desejam minha presença, mas é impossível, porque meu trabalho
é nas Colônias e não tenho condições de estar em muitos
lugares ao mesmo tempo.5

- Você vai visitar muito seus pais? Comunica-se no Centro
Espírita que eles freqüentam

- Estou com eles sempre que me é possível. Meus familiares
e eu somos espíritos afins, unidos por um afeto puro e
desinteressado. Na reunião que eles freqüentam, não se valoriza
o nome do comunicante, mas, sim, o bem que sua presença
ou comunicação proporciona aos que estão presentes, sejam
encarnados ou desencarnados. Quem organiza a parte espiritual


4 - Fato presenciado pelos familiares. (N.A.E.)

5 - Eu, Patrícia, autora dos livros Violetas na Janela, Vivendo no Mundo dos
Espiritos, A Casa do Escritor e este O Vôo da Gaivota, afirmo que não me
manifestei e nem tenho me manifestado em nenhum lugar ou Centro Espírita
nem por nenhum outro médium, seja pela psicografia ou pela
psicofonia. Recomendo muita cautela a esse respeito. Para que entendam
bem o processo, sugiro que leiam e meditem sobre o capítulo "O Engano"
do livro Aconteceu, de Antônio Carlos. (N.A.E.)

6 - Agora que trabalhamos neste livro, como sempre com muito carinho,
vou só nos horários certos para ditar à tia Vera. Continuo a estudar e a lecionar
nas Colônias de Estudo. Por opção, volto à Terra só para este trabalho.
(N.A.E.)


48 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

é nosso grande amigo Artur e seus colaboradores que são uma
quantidade enorme de Josés, Anas, Joaquins, Marias, Antônios
e muitos outros nomes comuns esquecidos dos homens, mas
conhecidos de Deus. Meu pai nunca me invocou nem dei comunicação
de forma espontânea. Reconheço que, nessas reuniões,
sou aprendiz e que meu pai, encarnado, sabe muito mais do
que eu. E, quando lá vou, o faço para escutar e aprender. Mas
você veio pedir ajuda. De que se trata?
- Sei que os trabalhadores da Colônia Casa do Escritor têm
atendido, em seu nome, inúmeras pessoas. Estou ciente também
que ao pedirmos nem sempre seremos atendidos por
a quem fizemos as rogativas, pois muitas vezes são
outros espíritos que nos socorrem. Entretanto, me foi permitido
vir até você. Moro na Colônia Perseverança, trabalho como
enfermeira em um dos hospitais, mas estou de licença, para
cuidar de um assunto particular. Porém, analisando bem o problema
que quero resolver, compreendi que não tenho como
fazê-lo sozinha. Conversei com um socorrista do Umbral e ele
me informou que, para esse tipo de trabalho, seria aconselhável
pedir ajuda a um Centro Espírita, a uma pessoa que possua
preparo especializado para a tarefa. Ouvi, surpresa, ele me
dizer que seu pai poderia me ajudar. Em vez de ir logo ao
Centro Espírita onde ele trabalha, vim primeiro até você. Se
considerar conveniente e me encaminhar a eles, o grupo do
qual seu pai faz parte certamente me ajudará.
- Certamente - respondi rindo. - O que não fazem os pais
pelos filhos? Você pensou bem...
Achando que me devia mais explicações, Elisa continuou
a falar.

- Fui, quando encarnada, muito doente. Logo que desencarnei,
socorreram-me. Recuperei-me rápido e gostei da nova
vida e da Colônia para onde fui levada. Era ainda jovem, vinte e
três anos, e deixei na Terra meus pais e dois irmãos, que muito
me amam e que me ajudaram muito com suas orações. Estava
contente, estudava e trabalhava. Foi então que algo começou a
me inquietar, de vez que sentia grande necessidade de recordar
minha encarnação anterior, por certo ligada a acontecimentos


O VÔO DA GAIVOTA 49

 talvez, tivesse que solucionar, por isso sentia muita vontade
lembrar. Fui, então, procurar ajuda no departamento

róprio e pedi para recordar meu passado. Estudando meu
pedido, o pessoal especializado me atendeu e pude recordar.
wmpreendi que minha preocupação era com um espírito, a
,quem sou muito ligada; pois inquietava-me por ele, só que não
sabia onde estava, e quis encontrá-lo. Após algumas pesquisas,
tomei conhecimento de que Walter está desencarnado e em
um local do Umbral. Sinto culpa por ele ter caído no erro e
estou triste por ele estar lá.
Elisa enxugou as lágrimas, aquietando-se por alguns segundos;
respeitei seu silêncio, aguardei e logo ela continuou:

- Walter está no Umbral, numa fortaleza, e o chefe do local
é muito perigoso.
- Ele pediu ajuda? - indaguei.
- Não, não tem condições para isso. Se tivesse pedido, um
socorrista já o teria tirado de lá. Ele está muito iludido, completamente
perturbado. Sofre, esquece do Pai Maior e julga-se
também esquecido.
- Socorrer alguém sem que ele queira é difícil - falei.

- É por isso que venho pedir para você me ajudar. Se o
tirarmos de lá e o levarmos ao Centro Espírita, para receber
orientação, através de um médium de incorporação, ele irá
querer o socorro - falou Elisa esperançosa.

- Elisa, por que Walter está perturbado?

- Resgate, Patrícia, mas também pelos tóxicos. Sei que é
uma ajuda difícil. Drogados dão muito trabalho, ainda mais os
que não querem socorro. Mas eu o amo tanto!

Seus olhos meigos encheram-se novamente de lágrimas.
Sorri, animando-a e pedi:
- Conte-me tudo.
- Sabendo onde Walter estava, fui à Colônia a que aquela
região do Umbral está vinculada. Pedi a eles informações,

7 - O Umbral é separado, para melhor haver socorro, por regiões que estão
vinculadas a uma Colônia. Ex.: uma cidade de encarnados tem seu
Umbral, Postos de Socorro e Colônia. As regiões como as cidades do Umbral
têm nomes e essas designações são muito repetidas. (N.A.E.)


50 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

inclusive por "vídeo"s, para conhecer o lugar. Entristeci-me
mais ainda. O local era horrível. Chama-se Túnel Negro, e consiste
numa construção que tem só um portão de entrada. O
chefe desse lugar chama-se Natan e, juntamente com outros
desencarnados afins, ou seja, um bando, fazem experiências
com os toxicômanos desencarnados que vão lá. Muitos ali sofrem
horrores. Indaguei aos instrutores como faria para libertá-lo
de lá e eles me disseram que, num ambiente trevoso daquela
espécie, seria necessário algum espírito ou espíritos que tivessem
conhecimentos em manipular forças primárias. E um
encarnado o faria com mais facilidade, pois os desencarnados,
mesmo sendo bons, teriam limitações já que não mais possuem
vibrações primárias.9 Também não bastaria só tirá-lo
daquele lugar ruim, porque, liberto, não se poderia trazê-lo
para um socorro que não quer, por estar revoltado, abobalhado
e perturbado. Não poderia deixá-lo vagando no Umbral, porque
seria novamente enturmado a seus afins e talvez ficasse em
condições piores ou, então, cairia em outras armadilhas que só
lhe trariam sofrimentos, e poderia também vagar entre os encarnados,
da sua mesma espécie, prejudicando-se mais. Para
ajudá-lo a querer regenerar-se, aconselharam-me que teria que
orientá-lo, fazendo com que entendesse que estava errado. Mas,
no estado em que se encontra, não irá me escutar. Tendo o
choque da incorporação, receberá do médium e dos orientadores,
encarnados e desencarnados, que sustentam a reunião, o
equilíbrio de energias psíquicas de que necessita. Receberá
mais, se o médium for equilibrado, e compreenderá seu estado


8 -A palavra "vídeo" foi usada apenas como identificação, para que o leitor
tenha uma idéia aproximada do que seja o aparelho. (N.A.E.)
9 - Vibrações ou energias primárias são mais materiais, as quais espíritos
ligados à matéria possuem e encarnados também, por terem o corpo físico.
Espíritos bons e esclarecidos normalmente não as possuem, pois estão
mais voltados para o plano espiritual, mas podem comandar os que as têm.
Elisa se referiu a quem lhe deu informações, a ela e a mim, já contando
com minha ajuda. Para auxiliar espíritos trevosos é necessário saber, e nós
duas não havíamos aprendido. E quem manipula as forças primárias são os
que já se libertaram dos condicionamentos do mundo físico, pois a natureza
obedece as suas ordens. (N.A.E.)


O VÔO DA GAIVOTA 51

desencarnado. Também, recebendo uma boa orientação,
rá querer o socorro e assim eu o ajudarei. o Como vê, seu
e encaixa bem na ajuda de que preciso.
Fez uma pausa e continuou:
- Walter desencarnou jovem, completamente dominado
tóxico. Foi assassinado após uma briga com outro companheiro
de vício, e está tão perturbado que nem sabe o que lhe
aconteceu. Patrícia, você poderia pedir por mim esse favor a
eu pai?
- O chefe não irá gostar se o tirarmos de lá - eu disse.
- É... Não irá gostar - Elisa respondeu preocupada.
- Você e eu não podemos - expliquei -, não temos conhecimentos
e nem sabemos como abordar esse chefe e seus
seguidores. Para enfrentar desencarnados trevosos, não basta
só ser bom, é preciso saber como manipular o elemento primário
que compõe a estrutura física da Terra. Essa força é uma só
,
e os bons a usam para o Bem, porém os maus, para dominar,
destruir e se impor. Esse chefe possui tais conhecimentos, é
inteligente e, assim, precisamos de alguém que o enfrente à
altura. Vou levá-la até meu pai, certamente ele e seus companheiros
desencarnados poderão orientá-la. Meu pai, antes de
reencarnar, trabalhou muitos anos como socorrista no Umbral,
e conhece a região muito bem. E agora, encarnado, ele vai
muito lá prestar socorro, quando está desligado do corpo físico
pelo sono. Com certeza, irá conosco tirar seu ente querido, do
Túnel Negro. Como a equipe que trabalha no Centro Espírita
também é laboriosa e dedicada, ela poderá nos acompanhar e
ajudar nesse socorro.
- Patrícia, foi difícil para mim entender que um encarnado
tem condições de ajudar a desencarnados que necessitam. Antes
pensava que os encarnados só poderiam ajudar, em reuniões
de desobsessões, no Centro Espírita. Achava que só os desencarnados
pudessem ir ao Umbral.

10 - Para muitos desencarnados, chegar perto de um médium orientado
no Bem, receber seus fluidos, é como receber um choque que o faz despertar
do seu torpor. (N.A.E.)


52 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVAr.un

- Claro que não - respondi. - Muitos desencarnados trabalham
socorrendo e ajudando; no Umbral. Como também muitos
encarnados, desligados do corpo físico pelo sono, vão ao Umbral
e às suas cidades, para confabular com espíritos afins suas maldades,
brigas, vinganças e, também, vão muito às suas festas.
- Os socorristas não têm medo? - perguntou Elisa se assustando.
- Não. Todos nós, não importando se estamos vivendo
num corpo físico ou não, quando queremos e sabemos, somos
muito úteis no trabalho de socorro, no Umbral. Aqueles que
sabem, devem fazê-lo, pois lá temos muitas oportunidades de
praticar o bem. Quem sabe é porque aprendeu, e os conhecimentos
são tesouros adquiridos. Não é certo pensar que só
desencarnados têm como ajudar no campo espiritual. Muitos
encarnados também o têm, e o fazem. Devemos pensar que os
desencarnados, que hoje ajudam com eficiência, serão os encarnados
de amanhâ. E dos que estão no Plano Físico, muitos
foram os que socorreram com êxito anteriormente. Meu pai
nesta encarnação é um homem comum, com todos os problemas
de uma pessoa vinculada às necessidades da vida física,
mas também trabalha espiritualmente. Vai muito ao Umbral
embora seu tempo seja limitado pelo corpo físico. Ele é conhecido
pelos maus, na região umbralina onde trabalha, como
feiticeiro. Talvez porque, durante centenas de anos, trabalhou
no Umbral, onde adquiriu muitos conhecimentos.
- Patrícia, Natan, o chefe do Túnel Negro, é rancoroso.
Conosco ele não poderá fazer nada, por estarmos fora do espaço
de sua ira, mas e seu pai? Certamente esse chefe do mal
ficará sabendo que foi o Sr. José Carlos quem nos ajudou. Estando
seu pai encarnado, Natan poderá atingi-lo.
- Meu pai ama de forma especial esses desencarnados
que temporariamente estão no caminho do mal. E, quanto mais
espíritos trevosos o pressionam, mais ele se lembra do passado,
aperfeiçoando-se pouco a pouco na forma de lidar e
ajudá-los. Com ele trabalha uma equipe de desencarnados afns
que lhe darão suporte. São companheiros de trabalho e tenho
certeza de que a ajuda será bem maior do que você pensa.


O VÔO DA GAIVOTA. 53

Elisa sorriu, esperançosa. Mas, por ter que voltar aos meus
afazeres, despedimo-nos. Nessa época em que trabalhava na
Colônia Vida Nova, tinha muito tempo livre e fui com ela aventurar-me
na ajuda que, para mim, constituiu um trabalho
diferente.
No horário marcado, encontrei-me com Elisa e volitamos
até meu lar terreno. Lar é sempre o lugar onde somos amados,
e eu me sinto muito amada. Ali era minha ex-casa terrena, mas
sempre o meu lar. Na sala, chamei por meu pai e, ele, desprendido
do corpo físico, veio ao meu encontro.

- Papai...
- Patrícia, minha filha!
Abraçamo-nos. E vendo que tínhamos visita, sorriu cumprimentando-a.
- Papai, esta é Elisa. Necessita de sua ajuda.

- Sim...
Contei-lhe tudo. 
- Vamos ajudá-la. Patrícia, prócure saber de todos os detalhes
sobre esse lugar e, amanhã à noite, iremos lá, para que
possamos planejar como libertar Walter. Agora, necessito continuar
um trabalho...
- Amanhã mesmo traremos Walter? - perguntou Elisa.

- Não - respondeu meu pai. - Amanhã visitarei o local e
prepararei o Posto de Socorro que temos no Centro Espírita,
para receber os que traremos do Túnel Negro, e também comunicarei
aos meus companheiros desencarnados que trabalham
conosco, para que também venham nos ajudar.

- Mas não vamos socorrer um só, o Walter? - Elisa perguntou
novamente.
- Como ir lá e libertar um só? - disse meu pai. - E os
outros? Como deixá-los? Se vamos socorrer, traremos todos os
que querem ser libertados daquele lugar e os que estão, como
Walter, incapazes de decidir.
- Elisa - eu disse -, quando temos ocasião de socorrer,
devemos sempre fazer, tanto com os que sofrem como com os
que se perderam no caminho do erro.


54 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO
- Sr. José Carlos - Elisa falou novamente com sinceridade
-, Natan, o chefe, é mau e...
- Mas é nosso irmão - respondeu meu pai
m aqui ai
- Amanhá
esteja neste horário.
Despedimo-nos de meu pai. E, na Colônia des edi
Elisa, pois tinha uma reunião na escola. Combinamos de nos
en contrar logo de manhâ para irmos ao Umbral. Chegaríamos às
ce o ó ádes do Túnel Negro para obter informações e conhe-
- Ainda bem que vamos durante o dia! - exclamou Elisa.
- É - respondi rindo -, mas à noite voltaremos.
Fui à reunião, onde os instrutores do curso trocaram idéias
sobre o resultado obtido. Essas trocas de informações são muito
átdor e átnltores aproveitam muito. Depois, fui até ao orien-
da Colônia Vida Nova, onde eu estava
temporariamente trabalhando, e pedi autorização para fazer
te autorizada.aE o' nos horários de folga, no que fui prontamen-
sse outro trabalho seria a a uda prometida a
Elisa. O orientador geral de que
falei, é o responsável pela
govemador, instdrutorem muitas outras qualificações, tais como:
p etc. Trabalhando por pouco tempo ou por
períodos indeterminados em um lugar, deve-se seguir as normas
da casa, e tudo o que
ser comunicado ou que for fazer, além do ro ramado, deve
pedir permissão.
No dia seguinte, encontrei-me
com Elisa e partimos para a


Como combinamos, pela manhã, Elisa e eu fomos ao Umbral.
O local que íamos observar ficava num vale enorme e
muito sujo. Nós duas conhecíamos aquela região, pois tínhamos
ido lá para estudo e algumas tarefas. Mas sempre temos
algo novo para conhecer, todas as vezes que vamos a uma das
suas áreas. O Umbral difere muito de uma região para outra. E
nunca havíamos estado naquela parte. Elisa, como já tinha
estado ali, me guiou. Nenhum espírito que já tenha algum conhecimento
do Plano Espiritual, se perde no Umbral. Pode não
achar o que procura e, se por acaso acontecer de não saber
onde se encontra, é só pensar na Casa em que trabalha, a que
está vinculado, para receber ajuda de um socorrista ou entrar
em sintonia com os que estão lá e, em instantes, acha o caminho
de volta. Pode também receber orientação no local em que
se encontra.
Como era de dia, o local tinha claridade, embora escassa,
à maneira do entardecer na Terra. Naquela região, havia muitas
pedras com, mais ou menos, um a dois metros de diâmetro,
a maioria cinza-escuro. O lugar era de pouca vegetação, com
algumas árvores pequenas e tortas, pelo vento forte que costumava
ter o lugar. Alguns filetes de água corriam pelo chão, de
cor marrom e, às vezes, era somente barro.

Logo que chegamos às proximidades do Túnel Negro, vimos
uma grande e sólida construção. Não encontramos nenhum
desencarnado por perto, de vez que por ali não vagava


54 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

ninguém. Isso era mau sinal, significava que o local era temido;
em lugares assim, sofredores e moradores que não pertencem
ao bando, nem passam perto.
Túnel Negro está localizado no Umbral, na parte fácil de
visitar, ou seja, no local mais ameno. Muitos dos socorristas
para se locomoverem melhor pela região umbralina, e terem
facilitados seus trabalhos, classificam o Umbral de três modos:
lugares amenos, medianos e profundos, de difícil acesso, onde
estão os abismos, os buracos e onde existem quase só trevas.
Nós nos acautelamos, porque tudo estava muito silencioso,
embora, às vezes, ouvíssemos gritos alucinantes ou gargalhadas
perturbadoras. Não posso deixar de pensar que, se quando
encarnada visse o Umbral, pensaria estar vivendo um filme de
extremo horror. Entretanto, é uma das Moradas do Pai, e onde
tantos irmãos nossos fizeram sua moradia. Alguns ali sofrem,
outros reinam, mas existem aqueles que de lá gostam, pois se
iludem, enfim são todos infelizes. A criatura só é ser infeliz
quando se distancia do seu Criador.

Uma trilha, um caminho, liga o Túnel Negro a uma cidade
dos encarnados. Era de terra batida, contomando as pedras
maiores. Íamos, assim, em ziguezague.

Qualquer um no Umbral nos veria, por vibrarmos diferente,
porém, se quiséssemos, não seríamos vistas. Os socorristas,
quando trabalham na zona umbralina, se tornam visíveis aos
seus moradores, porque, assim, podem ser solicitados, facilitando
os socorros. E, em visitas ao Umbral, temos sempre muitas
oportunidades de ajudar e aprender.

De repente, ouvimos vozes e, para melhor observar o grupo
que passava, ficamos atrás de uma pedra maior perto da
trilha. Como eles estavam distraídos, não nos viram. Não queríamos
que percebessem nossa presença. O bando que passou
pela trilha, era de seis espíritos, todos de aspecto ruim, armados,
com roupas de couro e de tecido grosso, e alguns enfeitados
com colares. As mulheres estavam muito maquiadas. Gargalhavam
e falavam alto. Passavam rumo à cidade dos encarnados.

Bem perto de nós, dois deles, um casal, distanciaram-se
do grupo, pararam para conversar. E nós os escutamos confabular:


O VÔO DA GAIVOTA 57

- Nenê - disse o homem -, vamos ver se o garoto toma a
eira dose. Você sabe que é importante para mim vingar-
o pai dele. Orgulhoso e arrogante, sentirá, vendo o único
homem viciar-se e se tornar um nada, um inútil como a
iria dos viciados.
- Você não gosta mesmo de viciados - falou, rindo, a mulher...
- São uns fracos, uns bobos! - replicou ele. - Preste atenção,
você tem que fazer com que alguma das mocinhas viciadas
se aproxime dele e namore o garoto. E daí, apaixonado, ele
éstará a um passo de se drogar.

- O garoto costuma orar e não se afina com as meninas
que se drogam. Será um tanto difícil...

- Não se queixe, trabalhe - falou ele autoritário -, fiz um
grande favor a você e me deve este.

- Estou tentando...
Foram embora. Elisa não pôde deixar de comentar:

- Será que irão conseguir? Tomara que não!

- Como ela disse, é difícil forçar alguém que não se afina
com as drogas, a usá-las - respondi. - E, se o garoto tem hábito
de orar, acredito que não iráo conseguir. Os encarnados devem
estar sempre atentos a todas as tentações, e seguir sempre o
bom caminho, que é seguro e não traz o arrependimento que
machuca tanto.
- É certo ele se vingar de alguém querendo atingir seu
filho? - indagou Elisa.
- Vingança nenhuma é certa ou justa. O melhor é sermos
sempre bons e ficarmos longe do alcance destes desencarnados,
ainda com esses impulsos. E, como percebemos, não será
fácil eles se vingarem daquele indivíduo atingindo o filho: Mas,
se o filho se afinasse com as drogas, não precisaria nem incentivos.
Depois, quem ora com sinceridade, tem sempre alguém
bom .a ajudá-lo e protegê-lo.
- Uá... á... - gritou alguém com voz soturna atrás de nós.
Elisa e eu voltamo-nos calmamente e ouvimos outro grito:


- Ai!..
58 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARIfVZECK DE CARVALHO

Defrontamos com um desencarnado todo sujo, com os cabelos
espetados e com as roupas em farrapos:
- Satanás três vezes! - falou ele repetindo a frase depressa.
- Que susto! Quis assustar e vocês me assustam. Vocês são
horrorosas! Moças, estou só brincando, não me peguem.
Estava realmente assustado. Elisa me indagou:
- Patrícia, o que está acontecendo?
- Acho que ele tem o costume de assustar os outros, pelo
Umbral.
- É isto aí! - falou-nos olhando com medo. - Sou o rei dos
sustos. Hoje me dei mal...
- Assustou-se conosco? - perguntou Elisa.
- Como não? É difícil ver duas senhoras assim...
Pensou em dizer feias, mas não disse. Saiu correndo. Rimos.
Elisa comentou:

- Quem assusta, um dia acaba assustado.
- Ele confundiu-se - falei. - Vendo-nos achou que tinha
tudo para passar um belo susto. Conversávamos distraídas atrás
da pedra e, ao nos ver de perto, se decepcionou. Normalmente
brincalhões não costumam brincar com socorristas, pois os temem
porque não querem, no momento, sair de onde estão e
sabem que eles podem pôr fim às suas brincadeiras de mau
gosto. Confuso, assustou-se.
Saímos de trás da pedra e voltamos à trilha, para logo
chegarmos às proximidades do Túnel Negro. Escondemo-nos
perto e ficamos observando. Não demorou muito, e dois sujeitos
esquisitos, parecidos com o grupo que vimos, entraram na
fortaleza sem problemas. Aproximamo-nos atentas e com cautela,
pois estávamos observando e não queríamos alertá-los.
Se, entretanto, algo saísse errado, eles não nos atacariam, pois
temos alguns recursos para sair bem dessas situações, como
nos tornar invisíveis, volitar rápido e outros, que não devem ser
mencionados no momento, para que não venham a ser do
conhecimento de desencarnados moradores do Umbral.
Ficamos perto do muro do Túnel Negro, que é todo cercado
por essa parede forte, larga e com, talvez, uns vinte metros


O VÔO DA GAIVOTA 59

de altura. É um muro de tom marrom-escuro. A fortaleza só tem
um portão e, na frente dele, havia dois vigias, os quais pelo que
vimos não estavam atentos, conversavam e, às vezes, iam para
a parte de dentro. Conseguimos ver que após o portão havia
uma sala onde uma mulher, atendente, dava informações e
recebia a todos que chegavam.

Não fomos lá para entrar, por isso cautelosamente só observamos
tudo. Deu também para ver que, no meio da
construção, existia uma torre bem alta, certamente o local de
observação.

O movimento era bem pequeno, talvez pelo horário e também
porque Túnel Negro não é lugar de muitas visitas e, sim,
restrito aos moradores e viciados.

Depois de ver tudo o que nos interessava, saímos sem
sermos notadas, não voltando pela trilha, mas, perto dela, a
alguns metros ao lado.
- Patrícia - falou Elisa - vai ser difícil!
- Que nada, ânimo! Tiraremos Walter de lá.

Foi quando escutamos:

- Ei, sua branquela! Ei, neguinha! Podem me ajudar.

- Quê? - Elisa indagou.
- Por favor - corrigiu a voz -, as senhoras podem me ajudar?
No Umbral, escutam-se muitas coisas desagradáveis e às
vezes obscenas, para as quais não se deve dar importância. Era
voz, que nos parecia de alguém sofrendo, e fez minha companheira
responder. Voltamos para o local de onde veio a voz e
nos deparamos com um homem sentado no chão.

- O senhor está nos pedindo ajuda? - indaguei.

- Queiram me desculpar, pensei que não iam me ouvir ou
atender.
- Está desculpado - disse Elisa. - Mas o que quer?

- São espíritos bons? Pela aparência e roupas só podem
ser. Estou preso aqui e quero sair.

Nós o examinamos. Era um homem de uns sessenta anos,
deveria ter essa idade quando desencarnou. Apresentava-se


60 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

sujo, descabelado, machucado e permanecia sentado, porque
estava acorrentado por uma pema, a direita, a uma estaca no
solo.
Seria para nós bem fácil libertá-lo, pois a corrente, como
tudo que existe no Plano Espiritual, é do mesmo material que o
nosso perispírito. Poderíamos arrebentar a corrente com nossa
força mental, porém devemos analisar sempre antes de conceder
ajuda desse tipo, porque não basta só libertar. Temos de
prestar atenção, para não prejudicar mais ainda o desencarnado
preso. Se o libertássemos para onde iria? Que faria? Seria
aprisionado novamente? Nesse caso, seria pior, porque sofreria
mais ainda.
- Quem o prendeu? - Elisa indagou.
Olhei-o fixamente e convidei-o mentalmente a não mentir.
Se o fizesse, logo saberia, lendo também seus pensamentos, eu
teria a verdade. Fazemos isto facilmente com desencarnados
fracos e com os que sofrem. Com os moradores do Umbral,
com os que são maus e fortes, é bem mais difícil, porque para
fazer isso com esses desencarnados trevosos tem que se treinar
muito e saber usar bem esta habilidade.
O homem nos olhou bem, suspirou, enxugou algumas lágrimas
e respondeu:
- Meu genro, ou melhor, meu ex-genro... Quando encarnado,
fomos sogro e genro... Chamo-me Jacy e estou há tempos
preso aqui.
- Não sai para nada? - perguntou Elisa.
- Não, meu genro vem sempre aqui, ora me bate, ora me
traz o que comer e água. Ele é violento e mau.
- Por que ele o prendeu? - indaguei.
- É uma longa história. Soltem-me e, estando num lugar
seguro, conto a vocês.
Elisa me olhou e me disse mentalmente:
"Vamos libertá-lo e, se não pudermos socorrê-lo,. o deixaremos
em outra área do Umbral. Por favor, Patrícia!". - rogou,
notando que eu hesitava.
- Vamos soltá-lo - concordei:


O VÔO DA GAIVOTA 61

Arrebentamos fácil a corrente e, como a perna dele estava
inchada, ajudamo-lo a ficar de pé, mas ele gemia de dor. Apoiando-se
em nós, retornamos à trilha rumo à cidade dos
encarnados. Logo chegamos e nos sentamos na relva, num
terreno vago, e Jacy, como prometera, contou sua história.

- Encarnado, fui um homem rico, não milionário, porém
com muitas posses. Tinha cinco filhos, e uma das minhas filhas
foi casada com esse que me prendeu. Ele tratava muito mal
minha menina, batia nela, além de manter muitas amantes,
gastando tudo o que possuía. Pensando ficar livre de tal peste,
mandei matá-lo, pagando bem caro um assassino que o eliminou
com um tiro. Ninguém descobriu, nem ficaram sabendo
que eu fora o mandante. Mas ele, depois de desencarnar, ficou
sabendo e esperou que eu também desencarnasse, para me
maltratar. Já lhe pedi perdão, mas ele não me atende...

- Pediu, de coração? - Elisa indagou.

- Sim, mas logo que desencarnei, sentia que, se voltasse
ao passado, mandaria fazer tudo novamente. Depois, com o
tempo, lá sozinho e preso, fiquei a pensar e entendi que estava
errado. Não tinha o direito de tirar a vida física de ninguém.

- De fato, Jacy, não temos o direito de cortar a existência,
num corpo de físico, de ninguêm. Agora você está livre e o
convido para se voltar ao bem, a pedir perdão a Deus e recomeçar
a vida, auxiliando a si mesmo e a outros irmãos. Aceita?

- Vamos levá-lo a um lugar onde será hospitalizado, para
sarar de todos seus machucados - falou Elisa delicadamente.

- Este lugar é bonito? - perguntou ele. - Ouvi dizer que
onde os bons moram é fantástico.

- Sim - repliquei -, é maravilhoso para aqueles que querem
mudar, mas desinteressante para quem cultiva os prazeres
materiais. Você irá para um Posto de Socorro aqui perto.

- Obrigado - falou com sinceridade.

Nós o levamos para um Posto de Socorro da região localizado
perto do Umbral. Tocamos a campainha, apesar de que
esses Postos de Socorro têm sempre vigias e locais de observação,
podendo ver quem se aproxima e, pelas vibrações, sabem


62 PATRÍCIA / VERA LÚClA MARINZECK DE CARVALHO

também quem é. Os portões dos Postos normalmente são
trancados, mas poderiam, só pela vibração, ser abertos, não
necessitando bater ou tocar a sineta que existe em alguns. Porém
esse bater é costume no Plano Espiritual, porque, ao parar
no portão ou porta, o visitante é observado melhor. Em muitos
Postos, quando o portão é aberto, defrontamo-nos com um hall
ou sala, onde são normalmente atendidos quem os visita. Em
casos de emergência, quando se está para chegar a essas casas
de auxílio, pede-se mentalmente e o portão se abre ao se estar
perto. Há casos também, em que os trabalhadores da casa vão
encontrar-se com quem pede ajuda, para auxiliar. Esse bater é
mais uma forma educada de visitar uma casa.
O portão foi aberto e fomos convidados a entrar. Explicamos
para a senhora que nos atendeu, o porquê de nossa
presença, e pedimos abrigo para Jacy. Atenderam-nos prontamente
e, já no pátio, Jacy nos indagou:
- Vocês não iam me levar para um lugar lindo? Aqui é tão
simples!
Entendi-o. Lugares bonitos se diferenciam pelo gosto. Para
muitos, lugares lindos são de luxo e ostentação. Para outros, os
que se afinam com a simplicidade, a maior beleza é a vibração
de harmonia emitida por seus sustentadores. Para Elisa e eu, o
Posto é muito bonito, com canteiros floridos a enfeitar o pátio, e
árvores arredondadas de um verde muito agradável estavam
entre os canteiros, cobrindo bancos nísticos, num convite às
pessoas a se sentarem. O prédio, em formato de U, de três
andares, é majestoso e tem janelas grandes, com flores no
beiral em quase todas.
- O quê?! - falou Elisa, espantada. - Não acha aqui bonito?
- Pensei que fosse diferente - respondeu Jacy.
Deixamos Jacy acomodado numa enfermaria e voltamos
aos nossos afazeres. Dias depois, fomos visitá-lo e nos informaram
que Jacy saiu sem licença e foi para sua ex-casa terrena.
Agradecemos e partimos.
- Patrícia, vamos procurar Jacy?
- Elisa, ele fez sua escolha.


O VÔO DA GAIVOTA 63

- Vamos ver o que ele está fazendo. Talvez esteja precisando
de ajuda. E se o genro o pegou novamente?
- Está bem, vamos - respondi.
Foi fácil achá-lo. Quando ele nos contou sua história, deu
todos os detalhes e até mostrou a casa onde morou. Nós o
encontramos triste, a chorar na sala de sua ex-casa terrestre. Ali
fora sua casa, mas não um lar, porque lar é união de moradores
com afeto. É, para nós desencarnados, todo o lugar onde somos
amados. Ao nos ver, chorou mais alto. Ele sofria realmente.
- Sou tão infeliz! Saí daquele lugar de luz e paz e vim para
casa. Só encontrei erros e problemas.
- E por que saiu? - quis saber Elisa.
- Quis vê-los, tinha saudades.
- Deveria ter esperado. Quando pudesse, teria permissão.
- falou minha amiga.
- E agora, o que faço? Tenho medo! Quero voltar e não sei.
Será que vocês me levariam de volta? Por favor, ajudem-me de
novo! Sei que não mereço, sou um mandante de crime. Mas
vocês são tão boazinhas!
- Podemos levá-lo - disse séria -, mas se prometer que
será obediente, comportado e, logo que possível, deverá passar
de servido a servidor. E tem mais: ser agradecido.
- Prometo fazer isso tudo.
Levamo-lo de volta.
Como é triste cometer erros e ter a própria consciência a
nos cobrar, e não os que prejudicamos a fazê-lo. Consciência
tranqüila e sem erros significa nossa tranqüilidade, porque a
dor do remorso é terrível. Quem faz o mal, é insensato.
Vendo-me pensativa, Elisa disse:
- Patrícia, é para alertar as pessoas que você estuda tanto
e deseja ensinar?
- Sim, por isso e por muitas outras coisas também. Porque,
Elisa, aquele que sabe tem mais chance de acertar, e conhecer
representa fazer com sabedoria. Somos livres por tudo por aquilo
que sabemos e escravos pelo que não sabemos. Não devemos


64 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

compactuar com o erro, mas amar a presença de Deus no
pecador. Esclarecendo, educando, enfraquecemos o erro e fortalecemos
o Bem nos que erram.
- Patrícia, admiro você!
Sorrimos. Viver tentando acertar é maravilhoso.

Túnel negro




Na noite seguinte, fomos, Elisa e eu, encontrar com meu
pai. Minha amiga foi logo lhe passando os dados do Túnel Negro,
com informações que obteve no Posto de Socorro do Umbral,
das imediações do local onde Walter estava.

- Obtive os dados com o orientador do Posto de Socorro
Caminheiros de Jesus - explicou Elisa.

Colônias ou Postos de Auxílio têm quase sempre a previsáo
exata de quantos desencarnados vagam pelo Umbral, e de
quantos moradores existem em suas cidades. Isso, no seu espaço
espiritual, para facilitar socorros e orientar socorristas. Assim,
tínhamos nas mãos um mapa do local, com as medidas de
todos os compartimentos do Túnel Negro. Seu chefe era mesmo
o Natan. Estavam anotados quantos colaboradores eIe tinha,
quantos escravos e abrigados, como também todos os detalhes
importantes da fortaleza, por dentro. Meu pai leu todos os dados
e entregou a folha a Elisa. E nos convidou:

- Vamos!
Volitamos até o Umbral e, lá, fomos andando. Observamos
tudo. Perto do Túnel Negro, paramos e examinamos bem o
local. Ficamos ali poucos minutos e voltamos.

- Amanhã voltaremos - disse meu pai -, só que um pouco
mais tarde, e de lá tiraremos os que quiserem sair. Agora, vou
ao Posto, junto ao Centro Espírita, para organizar tudo.

Estávamos caminhando, Elisa e eu mais próximas, e meu
pai a uns dois metros de distância, quando ouvimos:


66 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHn

- Café com leite! Uma branca, outra negra! Leite com café!
O desencarnado que falou, riu alto, gostando do que dizia.
Elisa o observou e dirigiu-se a meu pai.
- Sr. José Carlos, por que tanto preconceito? Ontem mesmo,
por aqui, nos chamaram de branquela e negrinha.
- Muitos ainda dão valor ao exterior de tudo, até das pessoas.
Preconceito racial tem sido a causa de muitas desavenças
terrenas, pois longe estão de entender o que a pessoa é realmente,
vendo somente o exterior, criticam tentando ofender.
Esse indivíduo tanto quis ofender a uma como a outra. Tivemos
e teremos com certeza muitas existências, vidas físicas, pertencendo
a várias raças. A cor da pele muda conforme nossa
necessidade de aprendizado, ou por reencarnarmos em determinado
local da nossa Terra. Podemos ter sido vermelhos,
amarelos, negros e brancos. Aqui no Umbral também há preconceitos
e muitos. Existirão preconceitos até que entendam
ser temporário a pessoa vestir um corpo branco ou amarelo.
Nosso espírito é e será o mesmo. Devemos tirar lições dos
diferentes modos de ser externamente, para nosso aprendizado
e progresso.
Meu pai fez pequena pausa e concluiu:
- Muitos têm medo de olhar para dentro de si mesmos,
porque só irão encontrar inferioridade e o grande vazio do nada.
E, sem a comunhão com a vida, quase sempre o preconceito
racial vem à tona. Assim, não gostam de olhar os mais evoluídos
que eles, pois, ao vê-los, confirmam sua própria pobreza.
Eis a razão da maledicência. Ao denegrir a imagem do próximo,
sentem-se melhores que os alvos de suas críticas. Ainda
não conseguem ver, reconhecer todos como irmãos.
- Eu, se quisesse - disse Elisa -, poderia, agora que possuo
um corpo perispiritual, ser diferente. Modificá-lo e ser branca
ou com feições orientais, mas a cor não me faz diferença. Amo
todas as raças e permaneço como fui em minha última encarnação.
- Para os que compreendem, o exterior não faz diferença-
disse rindo meu pai. - Uma de minhas encarnações que recordo
com carinho foi na Índia, em que fui bem escuro, quase negro.


O VÔO DA GAIVOTA 67

Eu também já recordei muitas de minhas existências. Também
já vesti um corpo físico negro e isso não me fez diferença,
pois tive nessa encarnação alegrias. tristezas e problemas comuns
de encarnada, como em todas as outras oportunidades.
Senti-me bem em ser negra! Meu pai tem razão, tudo é temporário,
tudo passa e nós ficamos com o proveito de cada
encarnação.
Despedimo-nos. Cada um voltou aos seus afazeres. Eu voltei
à Colônia Vida Nova, Elisa, ao hospital da Colônia
Perseverança e meu pai, ao Posto do Centro Espírita. No outro
dia, nos encontramos e nos juntamos a um grupo de vinte desencarnados,
trabalhadores da equipe do Centro Espírita, da
equipe de meu pai. Conhecia quase todos. Cumprimentamo-nos
alegres e rumamos para o Túnel Negro. Sabíamos que
Natan estava sempre ausente à noite, quando se dirigia com
freqüência para perto dos viciados encarnados, dizendo que
pesquisava o efeito das drogas nos corpos físicos. Saía sempre
com seus colaboradores diretos.
Logo chegamos. Íamos entrar meu pai, Elisa e eu, além de
cinco da equipe, os demais nos esperariam por perto. O Túnel
Negro por fora parecia mais com um castelo, desses europeus
antigos, cor cinza e com algumas janelas pequenas. Natan não
confinava seus moradores, que ali entravam e saíam quando
quisessem, havendo prisões só para os que o desobedeciam.
Mesmo os que ali estavam, e que eram usados para experiências,
entravam conscientes do que ia acontecer, e muitos viciados
procuravam o Túnel Negro em busca de drogas para uso próprio.
É claro que, para conseguir o que desejavam, tinham que
se submeter às regras da casa.
A entrada do hospital, assim eles gostavam de chamar o
lugar, era vigiada. Natan não admitia falhas, e seus ajudantes o
temiam. Os drogados desencarnados e também os encarnados
desprendidos pelo sono físico, entravam ali facilmente. Muitos
encarnados transitam pelo Umbral: uns, trabalhadores do Bem,
para ajudar, outros à procura de seus objetos de prazer. Os
encarnados viciados são bem-vindos em muitos lugares parecidos
com o Túnel Negro, isso porque lá recebem incentivos para
continuarem no vício e também orientação para viciar outros.


68 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

São instruídos para continuar no erro e fazer o que eles querem.
Pensam, esses encarnados, que estão com amigos e acabam
como fantoches nas mãos deles. Os drogados vêm sempre ao
Túnel Negro em busca das sensações que o tóxico lhes proporciona,
e Natan, por aquela área do Umbral, tinha fama de
alimentá-los no objetivo de seus desejos.
Ficamos rentes à parede externa, perto da porta da frente.
Os guardas estavam, no momento, do outro lado, quando meu
pai, representando um viciado, entrou na saleta como se procurasse
drogas. Veio atendê-lo uma enfermeira, ou atendente,
uma desencarnada que anotava tudo o que se passava por ali.
Acostumada a receber encarnados, atendeu-o normalmente
sem desconfiar de nada.
- Quero falar com Dr. Natan - disse meu pai.
- Ele não está no momento - respondeu a mulher.
- Chame-o para mim - insistiu papai.
- Não posso importuná-lo e não sei onde ele está. Você vai
ter de aguardar.
- Vá chamá-lo, moça - falou meu pai -, trouxe um material
que há tempos ele procura.
A mulher virou-se e entrou por uma porta indo à outra sala.
Rapidamente papai nos deu sinal para entrar. Passamos da sala
para um corredor e por muitas outras salas ou cômodos. Ali não
havia enfeites como costumamos ver nas cidades umbralinas.
Existiam muitos corredores e, para iluminar a casa por dentro,
colocaram archotes nas paredes. Viam-se também alguns quadros
com desenhos alucinantes, que tiravam a monotonia do
cinza de suas paredes. Havia ali poucas cadeiras, parecia só ter
o essencial. A casa possuía área de lazer e acomodações garticulares
aos seus moradores, eram cômodos parecidos uns com
os outros. As prisões eram celas pequenas e individuais.
Logo após, entramos numa grande sala e nos separamos
em grupos; meu pai entrou no laboratório, olhando tudo sem
mexer em nada. Possuía bons equipamentos, demonstrando
que Natan e sua equipe eram estudiosos. As salas em que
entramos, eram chamadas de enfermarias e sabíamos que numa
delas Walter estava. Esses locais em nada lembravam os da


O VÔO DA GAIVOTA 69

Colônia de Socorro, ou mesmo os que existem em hospitais
terrenos. Estávamos perto do laboratório, quando, pegos de
surpresa, os guardas que estavam dentro da casa não reagiram,
pois foram imobilizados pela força mental de nossos amigos.

Quando entramos na enfermaria, a visão que tivemos foi
tão patética, quanto horripilante. Não havia leitos, só umas
espécies de cabides nas paredes e com vários desencarnados
eomo que dependurados, como se fossem roupas velhas. Elisa
e eu ficamos perplexas diante de tão triste visão. Minha amiga
sufocou um grito, quando viu Walter entre eles... Correu ao seu
encontro, tirou-o de lá e ele caiu em seus braços. Meu pai veio
até nós e, em fração de segundos, foi tirando todos e colocando-os
diante da porta, para que nós duas os encaminhássemos
para a saída. Não conseguíamos movê-los. Apavorada, indaguei
a meu pai:

- Que faço?
- Empurre-os!
No corredor havia carrinhos, talvez para transportá-los. Colocamos
todos dentro, pois não conseguiam andar, e os levamos
para fora. Quando passamos pela saleta da entrada, um alarme
tocou forte e estridente, parecendo uma buzina alta. A
fortaleza foi vasculhada por nós, e todos os que quiseram sair,
foram tirados de lá. Fizemos, então, uma fila, dando as mãos, e
os puxamos até o vale, perto do Túnel Negro, onde os outros da
equípe nos esperavam. Alguns dos desencarnados que estavam
presus, foram amparados. O castigo para eles era ficar sem o
hipnotismo de Natan e, sem isso, privados da droga, mostravam-se
desesperados. Tínhamos pressa, porque os guardas
imobilizados logo voltariam ao normal e poderiam vir atrás de
nós ou chamar por Natan, e não queríamos um confronto agora
com ele. Precisávamos auxiliar todos os que queriam ajuda, e
os socorridos estavam assustados, sendo que alguns não sabiam
direito o que estava acontecendo e nos olhavam com medo.
Meu genitor faiou para eles:

- Aqui estamos em nome de Jesus para ajudar os que
querem. Levaremos vocês a um local de socorro, onde seráo
tratados com bondade e curados de seus males. Os viciados


PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARIZNK DE CARVALHO

receberão tratamento especial e ajuda para se livrarem do
vício. Convidamos todos a nos acompanhar, porque tiramos
vocês de lá, mas levaremos só os que quiserem. Vamos prosseguir
e os que não desejarem ir conosco, podem voltar.
Levaremos, porém, os que não estão em condições de decidir.
Muitos voltaram, inclusive alguns que estavam presos. Trinta
desencarnados ficaram conosco e, juntos, fomos para o Posto
do Centro Espírita. Já nos esperava a equipe médica, com os
enfermeiros, e nos pusemos a trabalhar. Seriam feitos os primeiros
socorros em muitos deles. Walter e seus companheiros,
que estavam dependurados, permaneciam inconscientes e completamente
dependentes das sensações das drogas
administradas a eles através do hipnotismo de Natan.
Desencarnados viciados iam ao Túnel Negro em busca das
drogas, mas Natan hipnotizava-os, fazendo-os sentir como se
tivessem desfrutando o objeto do seu desejo, como maconha,
cocaína, heroína etc. Hipnotizados, esses imprudentes desencarnados
serviam para experiências desse médico, que lhes
sugava os fluidos vitais, para si e seus companheiros. Os viciados
pensavam que tomavam as drogas, e assim também os que
vagavam por ali. Julgavam que lá havia tóxicos. Natan náo
tinha nenhuma droga no Túnel Negro. E suas experiências eram
cruéis.
Os desencarnados se alucinam e se degeneram muito mais
que os encarnados, com os tóxicos. Deformam seus perispíritos,
sendo muito triste vê-los. Todos estavam muito magros,
pálidos, sem energias psíquicas, abobalhados e com o pensamento
fixo nas drogas. Walter era louro, de cabelos curtos, mas
de olhos fundos, vidrados, e os lábios roxos. Elisa o reconheceu
mais por senti-lo do que visualmente. Isso acontece muito no
Plano Espiritual, de uma pessoa reconhecer a outra apenas
sentindo, pois o perispírito muda muito.
Todos os inconscientes e os semi-inconscientes foram medicados
e colocados nos leitos. Os outros também tiveram os
primeiros cuidados. Alguns dos colaboradores que serviam a
Natan também ali estavam, mas desconfiados. Não eram viciados.
Trocaram de roupa e ficaram conversando com os


O VÔO DA GAIVOTA 71

trabalhadores desencarnados do Centro Espírita que, gentilmente,
os elucidaram em suas dúvidas.

Meu pai trabalhou na ajuda por duas horas e, após, voltou
ao corpo físico. Muitos dos socorridos que não necessitavam
passar por uma incorporação mediúnica, foram levados do Posto.
Os viciados conscientes seguiram para hospitais no Plano
Espiritual, próprio para eles. Alguns se dirigiram para suas Colônias
de origem. Os servidores de Natan que pediram ajuda
foram encaminhados para a Colônia na Escola de Regeneração
para adaptarem-se à nova vida que lhes era oferecida. Permaneceram
no Posto do Centro Espírita só os que precisavam
passar por um trabalho mediúnico de incorporação, quando
teriam a consciência retomada, inclusive com a transfusão de
tluidos, e então poderiam escolher se queriam ou não a ajuda
oferecida. Muitos desses desencarnados se mostravam com os
perispíritos deformados pelo vício, pelos castigos e pelas experiências.
Encaminharam-se rapidamente os socorridos para as Colônias,
por dois motivos: para começar imediatamente o
tratamento que necessitavam, e para iniciar o aprendizado que
os libertaria daquela subjugação. E, também, porque sabíamos
que, se Natan os chamasse, acostumados que estavam a obedecê-lo,
voltariam ao Túnel Negro e, nas Colônias, essa volta
seria mais difícil, por estarem mais longe da Crosta e fora do
alcance das mentes trevosas. Os que precisavam ficar no Posto,
foram acomodados em quartos isolados, e aqueles que ainda
não tinham consciência de sua situação, ficaram em leitos,
amarrados, não podendo sair.

Agora, teríamos de esperar o dia certo em que encarnados
e desencarnados se reuniriam para o trabalho de equipe, onde
os nossos socorridos seriam orientados em uma sessão, junto
aos médiuns da casa.
Elisa ficou no Posto, cuidando de Walter e de todos os que
ali estavam, ajudando os trabalhadores desencarnados da casa.
Voltei aos meus afazeres nas salas de aula do curso que ajudava
a administrar, esperando, ansiosa, o desenrolar dos
acontecimentos.




a Sala áe Ala



Enquanto aguardava a assistência para o Walter, dediquei
ainda mais tempo ao meu trabalho. Estava me dando bem
como instrutora do Curso de Reconhecimento do Plano Espiritual.
Estava gostando muito de lecionar. Numa das aulas, Norio, o
japonês, me fez algumas perguntas sobre matéria que não constava
do currículo. Percebi com satisfação que estava apta a
responder, e isto me tranqüilizou.
No Plano Espiritual, principalmente onde se pratica o bem
perdemos aos poucos o costume de reparar na aparência física
dos outros. Na classe onde trabalhava havia idosos, negros,
brancos e, como temos muitos orientais nas terras brasileiras, é
claro que os temos no Plano Espiritual. Norio é muito agradável,
risonho, inteligente, e de olhos puxados. Quando encarnado
era chamado "Norio, o japonês", e continuou sendo depois
de desencarnado, orgulhando-se muito do tratamento carinhoso.

- Patrícia - replicou Norio -, admiro muito Allan Kardec
como também a equipe que o ajudou a escrever os livros que
nos legou. Onde eles estão? No momento estão encarnados ou
desencarnados?
- Norio, poucos sabem sobre isso no Plano Espiritual. Eu
não sei. Só sabem os desencarnados mais elevados e que têm
como tarefa a orientação da Terra. Nós, a maioria, não sabemos
deles e nem do destino de espíritos considerados santos ou
que foram importantes, de alguma forma, quando encarnados.


O VÔO DA GAIVOTA 73

Essa situação acontece por precaução, porque, se os desencarnados
souberem, logo os encarnados saberão. E, como
há muitos imprudentes, se falarmos que estão encarnados, rapidamente
centenas de Allans Kardec irão surgir, como também
cada um de sua valiosa equipe. Se dissermos que estão desencarnados,
poderão acontecer muitas supostas manifestações,
por via mediúnica, em lugares que não têm a devida cautela
com mensagens assinadas por pessoas famosas. Assim sendo,
só posso responder que eles continuam firmes nos seus propósitos,
rumo ao progresso, preocupados com todos os espíritos que
trabalham para a sua evolução, e ajudam com bondade a todos.
Se estão encarnados, nem cogitam em pesquisar o que
foram no passado, porque isso não preocupa os espiritos bons.
Se desencarnados, muitas vezes se escondem em pseudônimos,
porque reconhecem que não fizeram mais do que lhes
competia fazer.
- Patrícia, já estou volitando, mas não o faço com rápidez,
será que aprenderei logo? - perguntou Norio novamente.

- Certamente - respondi. - Aprendemos primeiro a volitar
devagar para depois fazê-lo rápido. A última forma que aprendemos
é a de fazê-lo com a rapidez do pensamento. O curso de
volitação nas Colônias é aberto a todos, e aprende quem o
deseja.
- Muitos encarnados se desprendem de seus corpos e volitam.
É porque já sabiam? São danadinhos... - disse Norio.

- Aquele que sabe, faz! Se desencarnados sabiam, ao encarnar
recordam-se facilmente e, quando desprendidos do corpo
carnal, seja consciente ou pelo sono físico, utilizam-se da capacidade.
Mas encarnados também aprendem, se alguém os
ensinar.
- Patrícia, quem tem medo de altura, como faz para volitar?
- indagou Norio, todo sério.
Rimos.
- Se desencarnado - elucidei-o -, deve procurar o porquê

11- Esta resposta aqui registrada, eu a dei sob orientaçáo da equipe da
Colônia Casa do Escritor. (N.A.E.)


74 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE C'ARvAr un

do medo e superá-lo. Quando encarnados, usam-se alguns truques.
No corpo carnal o medo de altura é mais forte, porque se
sabe que, ao cair, irá no mínimo se machucar. Desencarnados
não correm esse risco. Minha mãe está encarnada, é acrófoba e
volita e vai a muitos lugares. No começo, tinha cautela, e não
olhava para baixo, agora o faz mais facilmente, e certamente
um dia irá superar esse trauma, causado por acontecimento
em outra existência.
- Patrícia - falou Ernani -, tenho uma prima que é espírita
e sua filha mais velha, Lilian, desencarnou. Ela está bem e feliz
aqui no Plano Espiritual, mas seus pais querem ter outro filho e
que Lilian volte a reencarnar. Ontem nos encontramos e ela
está num dilema, reencarnar ou não.
- Se os pais querem ter outro filho, tudo bem, mas não
devem proceder como seus primos querem, com o retorno da
filha. Existe essa possibilidade, em alguns casos, quando desencarnados
podem reencarnar em curto espaço de tempo entre
familiares e, às vezes, com os mesmos pais. Mas cada caso
deve ser estudado com atenção. Os encarnados não devem
fazer desse desejo algo que incomode o desencarnado, pois
isto significa ser egoísta. E o desencarnado, se não tiver planos
de reencarnar logo, não deve fazê-lo só porque os pais querem.
Aconselhe Lilian a conversar com um orientador e pedir ajuda
para resolver esse problema. E, se ela se achar sem condições
de retomar à carne, não deve fazê-lo agora.
O assunto da aula passou a ser obsessão.
Geralda nos contou que teve uma existência física muito
difícil. Órfã, casou-se jovem e sofreu muito com o marido, que
bebia. Querendo se ver livre do esposo, planejou e o assassinou,
sem que ninguém ficasse sabendo. Trabalhou muito e
criou seus cinco filhos. Mas o esposo, em espírito, querendo
vingar-se, obsediou-a por anos, até que os filhos moços procuraram
um Centro Espírita que a ajudou. Falou emocionada do
muito que sofreu e que, por causa da obsessão, conheceu o
Espiritismo que veio elucidá-la e auxiliá-la bastante.
Marcílio teve uma experiência diferente, desencarnou em


O vô DA GAIVOTA 75

acidente no trabalho. Desencarnado, descobriu que a esposa o
traía com seu sobrinho. Com raiva, passou a obsediá-la, não
deixando ninguém se aproximar dela com intenção amorosa.
Com a vida conturbada, a esposa foi a um lugar, onde pagou
para ficar livre da influência negativa, no caso, ele. Os desencarnados
que lá trabalhavam, pegaram-no e o levaram preso
para um lugar do Umbral. Marcílio ficou muito tempo prisioneiro,
quando fez amizade com um outro desencarnado que
também estava preso. Esse amigo contou-lhe porque estava
cativo. Desencarnara, deixando a esposa com seis filhos e, preocupado
com eles, voltou a sua antiga casa terrena, sem saber
que os prejudicava. A esposa, sem entender bem a situação,
procurou ajuda erradamente e ele foi preso por espíritos maldosos.
Por isso, devemos buscar auxílio só em lugares bons,
que fazem caridade, principalmente quando se trata de entes
queridos desencarnados. Socorristas vieram e ajudaram este
seu amigo, levando-o para um lugar melhor. Tempos depois ele
voltou e o socorreu. Marcílio disse-nos que foi uma experiência
muito triste não ter perdoado e ficar obsediando os seus. Esqueceu
de si para infernizar a esposa e sofreu muito.

Concluímos que é muito penoso tanto obsediar como ser
obsediado. Aquele que obsedia perde tempo precioso, pára no
seu caminho, para atormentar os outros. O melhor é viver de tal
modo que não mereçamos raiva e ódio de ninguém. Mas, se
pelo passado, alguém nos cobrar, é nosso dever ajudá-lo, e
assim pararemos de sofrer pelo que fizemos. Do contrário, se
permitirmos que o outro nos faça mal, é o mesmo que continuar
prejudicando os outros. Deve, portanto, o obsediado orar, ter
vida decente e procurar num Centro Espírita o auxílio para si e
para o outro. Todos devem ser tratados como irmãos e como
gostariam que fossem tratados. O obsessor e o obsediado merecem
o mesmo respeito.
Muitos foram os comentários sobre a obsessão. Albertina
nos narrou:
- Tenho um tio que é uma pessoa muito difícil. Vive irritado,
enfermo e, nas suas crises, atormenta toda a família. Muitos
diziam que estava obsediado. Até a família, embora descrente,
foi em busca de auxílio. Mas nada. Ele melhorava pouco e logo


PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

voltava ao seu mau humor. Logo que desencarnei, procurei
ajuda para meu tio, pensando que era obsediado. Mas, para
minha surpresa, ao visitá-lo não vi nenhum desencarnado com
ele. Querendo aprender, perguntei a um orientador que, para
esclarecer-me, foi comigo vê-lo.
"Albertina" - disse o orientador -, "esse senhor não é obsediado.
Ele não se educou, é uma pessoa nervosa e
consequentemente doente, pois quem não aprende a controlarse,
quase sempre se torna enfermo. É pessimista, eoísta,
gerando assm muitos fluidos negativos, que o tornam mais
irritado ainda. É pessoa difícil e que nada faz para se melhorar.
Nem tudo o que acontece aos encarnados é culpa dos desencarnados.
E nem sempre situações difíceis acontecem por
obsessões. Estas existem, mas deve-se analisar se o encarnado
sofre mais por suas próprias ações, por sua maneira errada de
ser e agir. Como também se não é física a origem do distúrbio
como seu tio, que é pessoa difícil.
Realmente, concluímos que muitos encarnados colocam a
culpa nos outros, porque isso é mais fácil do que reconhecer os
próprios erros.
- Patrícia - perguntou Marília -, um encarnado pode obsediar
um desencarnado?
- Pode. Se o encarnado ficar pensando no desencarnado,
chamando-o, com choro e desespero, não se conformando com
sua desencarnação, pode atrapalhá-lo. Mesmo se estiver abrigado
em Colônias, sentirá esses chamamentos, que o
incomodarão. Se estiver vagando, quase sempre vem e fica
perto do encarnado, numa troca doentia de tluidos. Os encarnados
devem ajudar os desencarnados que amam, sendo otimistas
orando por eles, desejando que estejam bem e felizes, e que
aceitem a desencarnação. O amor deve sempre nos levar a
querer o melhor para o ser amado.
- Bendito seja o Amor! - exclamou Terezinha, sorrindo.
Finalizamos a aula.


Desenrzoes



Nosso grupo de estudo foi com os outros dnis instrutores
aprender, na prática, e tentar ajudar algumas desencarnações.
Já havíamos visto, na teoria, as muitas formas de deixar o corpo
físico. Agora iríamos ver, para ter conhecimentos sobre os desligamentos
de algumas pessoas.

Fomos avisados que estava havendo um tiroteio entre grupos
rivais e nos dirigimos imediatamente para lá. Ao chegarmos,
ainda trocavam tiros e algumas pessoas corriam com medo. Os
assassinos fugiram, deixaram caídos dois feridos: um, na perna;
outro, no abdome, mão e perna. Havia três mortos.

Rápidos, também, vieram para ajudar quatro socorristas
que trabalhavam na região, e também um bando de desencarnados
trevosos, que chegaram tocando tambores e fazendo
barulho.

- Por que esta algazarra? - indagou Terezinha.
Alberto, um outro instrutor, respondia a todos, esclarecendo.

- Grupos assim, de desencarnados que vagam, estão sempre
à cata de novidades e confusões. Deliciam-se com brigas,
chegando até a apostar e torcer por um desfecho macabro.
Temos visto alguns batucando, andando por aí, como estes que
têm esta preferência. Muitos grupos possuem conduta elevada,
mas são muitos os oufros .que gostam de algazarra.

Muitos do bando trevoso nos viram, outros nos sentiram.


78 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

Pararam perto e esperaram, porém continuavam a batucada.
Alguns gritaram dirigindo-se a nós.
- Ei, vocês do Cristo, andem logo!
- Peguem os que são de vocês e se mandem!
- Queremos os nossos!
Voltamos a atenção e os cuidados para os feridos. O que
tinha levado três tiros, estava mal e perdia muito sangue. O
dono do bar onde aconteceu o tiroteio chamou a polícia e a
ambulância, o socorro para os feridos veio rápido e os dois
foram levados para o hospital. Cleusa, que foi médica encarnada,
acompanhou-os fazendo tudo ao seu alcance, para ajudá-los.
Os três, cujos corpos físicos estavam mortos, mostravam-se
confusos e sofriam.

- Este - disse um dos socorristas - é bom moço, trabalhador,
correto, e atiraram nele só porque conversava com este
outro, seu primo, que era traficante.
Observamos melhor os três: eram todos jovens, adolescentes.
O apontado pelo socorrista, via-se, pela sua aura, que
era boa pessoa, todavia o que notamos nos outros dois, não foi
nada agradável. A aura deles estava suja, pastosa e tinha tonalidade
escura.
- Este - disse o outro socorrista, esclarecendo nossa turma
- já assassinou três pessoas, é traficante e sádico. Tem dezessete
anos. E o outro é um viciado em drogas e costuma roubar
carros.
Estes dois debatiam-se, desencarnados, já que os corpos
mortos estavam inertes. Ficamos em sua volta e oramos. Depois,
aproximamo-nos do que era bom. Um dos socorristas lhe
falou bondosamente:
- Jairo, você está ferido, vamos ajudá-lo. Calma! Fique
tranqüilo!
O garoto acalmou-se e o processo de desligamento foi
rápido. Alberto esclareceu ao grupo:
- Logo a polícia estará aqui e levará os cadáveres. Precisamos
desligar Jairo depressa para levá-lo daqui, evitando assim
cenas desagradáveis a este jovem.

O VÔO DA GAIVOTA 79

s Jairo, espírito, adormeceu tranqüilo e logo os socorristas
experientes o desligaram, levando-o para um Posto de Auxílio,
ali perto. Seu cadáver ficou com muitos ferimentos, mas o rosto
demonstrava tranqüilidade. O socorrista que ficou, dispersou os
fluidos vitais de seus restos mortais, para evitar que fossem
sugados, vampirizados.
Quando o socorrista terminou, afastamo-nos alguns metros,
nada mais tínhamos a fazer. Agora, porém, seria a vez do
outro grupo. Ficamos observando em silêncio e a cena trágica
nos chocou.
Eles se aproximaram dos outros dois, e vimos um deles,
parecia o chefe do grupo, especialista em desligamento, ficar
bem próximo dos jovens mortos. Ele falou rindo, talvez imitando
com deboche os socorristas.

- Calma aí, Negrão! Fique tranqüilo, Tenho! tiro vocês daí!
Estão mortinhos! Ou melhor, mortões!
Alguns pararam a batucada para olhar melhor, outros continuaram.
Com rapidez, o desencarnado, demonstrando que
sabia fazer e bem feito, desligou os dois sem qualquer delicadeza,
jogando-os para os do bando, que os seguraram rindo e
fazendo piadas. Os dois estavam abobalhados, assustados e
com medo. O grupo avançou sobre os restos mortais deles, já
que o socorrista vigiava o do que fora socorrido. Como feras,
vampirizavam os fluidos vitais, sugando o que escorria pelo
chão.
Alguns encarnados rodearam o local, olhando curiosos. Foi


12 - É cena deprimente ver espíritos vampirizando encarnados. Socorro na
desencarnação depende só do merecimento. Espíritos que vagam necessitam
muito de fluidos e, como não conseguem absorvê-los naturalmente,
os roubam, vampirizando dos recém-desencarnados, como também o fazem
dos encarnados. Quando isso acontece, o desencarnado sente esvair
suas forças, suas energias psíquicas. As energias físicas voltam à natureza,
sendo sugadas as energias psíquicas ou mentais. Assim, quando os socorristas
fazem isso, eles retêm para o corpo perispiritual as energias que o
recém-desencarnado necessita, e fazem também retomar rápido as energias
que são da natureza. (N.A.E.)


PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

quando uma senhora se aproximou chorando, era a mãe de
Jairo. Nós a rodeamos, tentando confortá-la.
- Jairo estará melhor agora! - disse Albertina, nossa companheira
de grupo
Uma mulher que acompanhava a mãe de Jairo, sentiu a
expressão forte e comovida de Albertina, abraçou-a e lhe falou:
- Neuzinha, não se desespere, Jairo estará melhor agora
longe desta vida ruim!
- Estará! Falou a mãe comovida. Ele era tão bom, que só
pode estar bem.
Veio outra senhora chorando desesperada. Era a mãe de
um dos outros dois.
- Meu filho, avisei tanto que não era para se meter com
esses bandidos.
Afagamo-las, confortando. Sofriam muitíssimo.
Os desencarnados do bando continuaram até que se saciaram,
depois se afastaram alguns metros, observando, talvez
porque também fazíamos o mesmo. Lourival, da nossa turma,
querendo aprender, indagou ao socorrista que estava ali olhando,
com tranqüilidade:
- O senhor não se entristece com essas cenas?
- Certamente, mas faz dez anos que trabalho no Posto de
Serviço aqui perto e, infelizmente, estas cenas são comuns por
aqui.
- E os outros dois - quis saber Marília -, que acontecerá
com eles?
- Não foi possível socorrê-los porque insensatamente se
afinam com o outro grupo. Pelo que tenho visto, logo estarão a
farrear com o bando, ou planejando se vingar dos seus assassinos.
- E o Jairo? - perguntou Lourival. - Aceitará o socorro
oferecido?
- Acredito que sim - replicou o socorrista pacientemente.-
É um bom garoto, afeiçoa-se ao bem e gostará do nosso Posto.
Mas ele é livre, poderá sair se quiser.
A polícia chegou e começou o seu trabalho. Os do bando


O VÔO DA GAIVOTA 81

riam, ora xingando os policiais, ora um ao outro. Mas não se
aproximaram. Quando os cadáveres foram levados, o socorrista
despediu-se de nós. O bando também se afastou, fazendo
muito barulho, levando os dois amparados, que estavam quase
inconscientes e não entendendo o que acontecia.

Afastamo-nos silenciosos, vimos a desencarnação de três
jovens, de modo violento e doloroso.
Deixo claro que nem todos os que são assassinos têm a ,
mesma maneira de desencarnar. Às vezes, quando há um tiroteio
com desencarnação, o bando trevoso não comparece, nem
os socorristas. Tenho visto alguns terem uma morte violenta e o
desligamento ser compulsório, rápido, e o desencarnado ficar
perto do corpo morto, sem entender o que ocorreu. E, em outros,
o desligamento acontecer tempos depois. O socorro
depende muito do merecimento, como no caso de Jairo, ou de
muitos fatores, como o desencarnado pedir ajuda a alguém
ligado a ele, seja encarnado ou desencarnado. Claro que, depois
dos primeiros socorros, ele ficará abrigado, se quiser.

Fomos ver outro desligamento. Dirigimo-nos a um cemitério
e, lá, visitamos um velório, na sala sete, onde éramos
esperados. Fomos estudar o desligamento de uma mulher, cujo
corpo físico completava cinco horas sem as funções vitais. Estava
num caixão lacrado e sua desencarnação aconteceu em
decorrência da AIDS. Dois socorristas esperavam para começar
o processo de desligamento. Logo após nos acomodarmos, eles
se puseram a trabalhar. Havia poucos encarnados no velório e
o enterro iria acontecer logo.
- Esta mulher - explicou um dos socorristas - teve uma
vida degenerada. Mas, ao descobrir que estava doente, foi em
busca de cura num Centro Espírita. Não teve a cura do corpo,
mas a Doutrina muito fez por ela. Passou a ler livros espíritas, a
ouvir palestras e mudou sua vida, modificando-se interiormente
para melhor. Aceitou a doença e, nos últimos tempos, orava
muito para ter socorro quando desencarnasse. Por isso, aqui
estamos. Ela dorme e não está sentindo nada. Antes de seu
corpo morrer, deram-lhe medicamento para dormir, e desencarnou
adormecida.


82 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

Alguns dos alunos, já esclarecidos, foram ajudá-los e em
pouco menos de uma hora estava desligada. Dormia tranqüila.
- Pronto - disse o socorrista -, agora vamos levá-la para
um hospital no Plano Espiritual, onde se recuperará.
Na sala ao lado desta, no velório, havia muito barulho e
muitas pessoas choravam desesperadas. Aproveitando a oportunidade
de aprender, fomos lá ver o que ocorria.
De fato, vários encarnados ali presentes choravam sofrendo
muito. Velavam o corpo de um adolescente. Um dos
socorristas, que trabalhava com outros, naquele cemitério,
acompanhou-nos e nos elucidou:
- Este garoto ia fazer dezesseis anos, mas suicidou-se dando
um tiro no ouvido. Foi levado ferido para o hospital, onde
ficou seis dias em coma, acabando por desencarnar.
Ouvimos muitos comentários de encarnados.
- Dizem que foi por causa da namorada.
- Falam que se matou por ser homossexual.
E foram muitas os comentários maldosos. Não se devem
fazer observações negativas de ninguém, principalmente num
velório, pois devemos nos comportar como gostaríamos que
procedessem no nosso.
Mas o que nos levou a ficar, para observar, foi que o garoto
já estava desligado, só que perturbado, aflito e agoniado. Permanecia
perto do corpo morto, sem se afastar, mas gritando
desesperado, a querê-lo de volta, ou revivê-lo para continuar
sua vida, como encarnado.
- Que imprudência! - exclamou Genoveva emocionada.-
Quis se matar e, após fazê-lo, quer o corpo de volta.
- Certamente - esclareceu Alberto -, o garoto não pensou
nas conseqüências do seu ato. Vendo seus pais e irmãos sofrerem
tanto por ele, desesperou-se. Como também, vendo o corpo
morto e ele vivo, enche-se de medo do desconhecido, da nova
vida que agora terá.
Perto dele, tentando acalmá-lo e ajudá-lo, estava um senhor
desencarnado, seu avô. Porém o garoto não queria
afastar-se dali e não aceitava ajuda. Os encarnados choravam


O VÔO DA GAIVOTA 83

e ele chorava também. Nisso, um tio do menino entrou no
velório. Era um senhor espírita, com modos educados, que,
com frmeza, recomendou aos pais e familiares:
- Por favor, sei que a dor é grande neste momento, mas
vamos orar todos juntos. Vamos dar nossa ajuda a ele que tanto
amamos, perdoando-o por seu ato insensato, pois não nos cabe
julgá-lo, mas sim auxiliá-lo. Iniciemos, rogando ao nosso Pai-
Maior a ajuda que ele precisa, para que possa ser socorrido
pelos bons espíritos.
Quietaram-se todos e o senhor fez uma oração muito bonita,
no que foi acompanhado por todos, inclusive nós,
desencarnados. O garoto parou de chorar e tentou orar, mas
não conseguiu acompanhar as palavras do tio. Muitos tluidos o
envolveram e, por momentos, ele se equilibrou e, após a oração,
escutou claramente as palavras do tio, que lhe falou
mentalmente:
"Calma! Não se desespere! Nada acabou com a morte do
seu corpo. Somos eternos! Peça perdão! Aceite o socorro! Dura na!
Calma!"
Ele aceitou a ajuda do avô desencarnado. Refugiou-se nos
seus braços e dormiu. Só que seu sono era agitado e seu avô o
levou para o abrigo, um pequeno Pronto-Socorro Espiritual daquele
cemitério. O socorrista nos disse, explicando:
- Ele ficará em nosso abrigo até acordar. E, quando o fizer,
seu avô e um orientador falarão com ele, e a ele caberá escolher
se quer ou não o socorro. Se aceitar, será levado a um
hospital no Plano Espiritual, próprio para suicidas, se não, sofrerá
muito mais. Mesmo num hospital, demorará a se recuperar,
porque lesou o seu próprio corpo. Logo farão seu enterro e,
como vimos, a atitude do senhor espírita foi de grande valia,
demonstrando como as pessoas boas e com compreensão podem
ajudar nos velórios.
Fiquei impressionada com a expressão de terror e desespero
do garoto. Sei que é bem triste e de muito sofrimento, para
os familiares, a ocorrência do suicídio. Mas não devem se desesperar,
nem blasfemar e, sim, tentarem ajudar um ao outro,
esforçando-se todos para auxiliar o suicida. Que vejam nele um


84 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

imprudente que fez muito mal a si mesmo, e a necessitar do
perdão de todos e de muitas orações, colocando nelas o incentivo
para que ele peça perdão, que rogue socorro e que aceite a
ajuda oferecida, como também desejar-lhe paz e felicidade.
Isto vindo dos entes queridos o auxilia muito, pois os familiares
do suicida não devem pensar que ele será infeliz e que sofrerá
pela eternidade. Nada na espiritualidade se faz automaticamente,
pois cada caso é visto com carinho especial. Não se
deve matar ou tirar a vida física de quem quer que seja e,
embora, as conseqüências do erro sejam penosas para quem o
cometeu, o agressor sempre é perdoado, quando pede perdão
com sinceridade e repara a falta. O carinho dos que nos amam
significa conforto, a facilitar as coisas. E, quem pensa em se
suicidar, que não o faça, por pior que seja a dificuldade do
momento, lembrando que tudo passa, e o tempo trará as soluções.
Continuamos a existência após a morte do corpo e, para o
suicida, essa continuação não é agradável, porque ele acaba
sofrendo bastante.
O socorrista nos acompanhou para uma visita ao cemitério.
- Veja - disse Josefino -, dois desencarnados trevosos guardando
este túmulo.
- Aqui está enterrada há nove dias uma senhora - esclareceu
o socorrista. - Como ela ainda está ligada ao corpo, os
desencarnados fazem rodízio para vigiá-la. São muitos os que
querem vingar-se dela.
- Eles não poderiam desligá-la? - indagou Marília. - Pelo
que vimos, muitos desencarnados maus sabem fazer isto.
- Claro que poderiam - respondeu o socorrista. - Mas já
viram vocês como é triste o sofrimento de uma pessoa que fica,
após o desenlace, ligada ao corpo por dias? Sente a decomposição
e os vermes a devorando. É por este sofrimento que eles
não a desligam. Só vigiam para que ninguém o faça ou, se ela o
fizer por si mesma, saia e eles a percam de vista. Certamente,
quando eles sentirem que ela já está parando de sofrer no
corpo em decomposição, a levarão para o Umbral.
- Ela deve ter sido muito má para ter despertado tanto ódio


O VÔO DA GAIVOTA 85

assim - comentou Hugo -, tenho pena dela. Será que vocês
socorristas não poderiam desligá-la? Socorrê-la?

Alberto, querendo que todos entendessem bem o que acontecia,
nos convidou:
- Vamos nos aproximar para estudar e entender melhor
este fato.

Os dois desencarnados que vigiavam, não arredavam o pé
do lugar, embora se inquietassem com nossa presença. Um
deles, depois de gaguejar, esforçou-se para falar.

- Esta não é de vocês! E, depois, não estamos fazendo
nada.
- Sei - respondeu o socorrista -, viemos só para estudar.
Vimos a senhora, seu corpo se decompunha e ela, espírito
estava desesperada, revoltada e indignada. Blasfemava contra
Deus achando injusto seu sofrimento.

- É por isto, Hugo, que os socorristas não podem ajudá-la.
Vamos orar por ela - esclareceu Alberto.

Todos do grupo recolheram-se em orações. Fluidos nossos
foram até ela, porém não a atingiram devido ao seu bloqueio
negativo. Fluidos bons ou ruins não são impostos, são lançados,
e recebidos quando queremos e, ainda, podemos repelir qualquer
energia que nos seja lançada. Quando oramos, ela por
segundos pensou em Deus, mas não aceitou nossos pensamentos
e sugestões de voltar ao Bem. De forma que, pelas oraçôes,
recebem-se fluidos benéficos, mas se pensarmos negativamente,
não se conseguem recebê-los. Enquanto orávamos, os dois
vigias afastaram-se alguns metros, ficaram nos olhando e Cleusa
dirigiu-se a eles:
- Vocês dois não querem orar conosco? Não querem ajuda?
Não precisam de auxílio? Por que não a perdoam?

- Calma aí, moça! - respondeu um deles. - Perdoar por
quê? Ela nem pediu! E por que se preocupa conosco? Não queremos
nada de vocês. Não queremos orar. Ajuda? - riu. - Uma
garrafa de pinga seria de bom gosto.

Afastamo-nos e nos despedimo dos socorristas, agradecendo.
Estávamos sendo aguardados num apartamento, e para lá


86 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARIlVZECK DE CARVALHO

fomos, para estudar o desencarne de uma senhora. Alberto
explicou à turma:
- Esta senhora é muito boa, teve uma vida digna fazendo
do seu dia-a-dia um ato de amor. Ama a Deus profundamente,
ama a si mesma com muito respeito pela vida e ao próximo
como a si mesma.
Entramos no apartamento. A senhora que viemos observar
morava sozinha, estava no quarto, deitada, e lhe fazia companhia
a filha, que estava na cozinha preparando o jantar. Muitos
desencarnados bons ali permaneciam, e vieram para estar com
ela, porque a amavam. Alguns deles comentaram:
- Ao saber que minha benfeitora ia desencarnar, pedi licença
para vir ficar perto dela, para transmitir-lhe o arnor que
lhe devoto.
- Ela é tão boa! Vou vibrar com carinho para que não sinta
nada.
A senhora estava acamada e naquele dia sentia-se indisposta.
Ao pegar o copo de água para beber, um socorrista
colocou um remédio na água, que ela tomou, ficando sonolenta.
Três socorristas especializados começaram, com delicadeza,
o desligamento. Após alguns minutos, o coração físico parou, e
também a respiração. O corpo carnal morreu, o perispírito separou-se
dele, e ela sorriu meigamente. Recebeu bons fluidos
de todos os presentes e adormeceu tranqüila. Os que ali estavam
por amizade e carinho começaram a cantar canções
bonitas que escutávamos nas Colônias e Postos. O ambiente se
mostrava radiante e com vibrações de muita paz.
O trabalho dos socorristas terminou e ela foi conduzida
para uma Colônia. Alguns a acompanharam, outros permaneceram
ali.

- Vamos ficar até o enterro - disse um senhor.
A filha veio dar uma olhada na mâe e pensou que dormia,
ao vê-la quieta. Uma senhora desencarnada aproximou-se da
filha e lhe pediu para ver melhor a mãe. Ela, então, notou que a
mâe não respirava e entendeu que desencarnara. Ajoelhou-se,
começou a orar e lágrimas escorreram abundantes pela sua


O VÔO DA GAIVOTA 87

face. Após acalmar-se, sustentada pelos fluidos dos desencarnados
presentes, levantou-se e foi tomar as providências que
cabiam no momento.
Afastamo-nos comovidos e Lourival comentou:

- Que diferença! Vimos uma desencarnada, de quem muitos
queriam vingar-se. E esta senhora, com tantos a ajudar.

Alberto elucidou-nos:

- A desencarnação é a continuação real da vida que tivemos,
pois ligamo-nos através de nossos atos. Presenciamos duas
formas de viver diferentes e não precisamos saber o que fez
uma ou a outra, mas concluímos como deve ter sido a via
delas. Diretrizes para o bem-viver não nos faltam. Os ensinamentos
de Jesus estão aí para todos, e não é difícil segui-los.
Felizes os que fazem do Bem o objetivo de suas existências!
- Por que umas pessoas se apavoram tanto com a desencarnação
e outras não? - Hugo indagou.

Meditei por uns instantes, a pergunta era realmente interessante.
Respondi tentando esclarecê-lo do melhor modo
possível:
- Muitos realmente temem a desencarnação. O que normalmente
acontece com alguns encarnados é que eles vivem
as projeções, esperanças e idéias que preenchem seus pensamentos.
Outros, masoquistas, ruminam insensatamente ofensas,
dores e angústias, gostando até de se sentirem doentes para
serem alvo de atenção. Têm medo de olhar a vida como ela é,
porque, se conseguissem ver a realidade da vida, teriam que
mudar radicalmente seus pensamentos, modos e atitudes,
por que a vida não está delineada como os seus desejos e recusas.
Ela é o que é.
Vejamos um exemplo. Quase sempre, diante da desencarnação
de um ente querido, preocupamo-nos conosco, nos
primeiros instantes, quando pensamos: "Ai, meu Deus, que será
de mim agora?" Depois, diante da dureza da separação, ficamos
preocupados e vemos que deveríamos ter tido atitudes
bem mais amorosas e benfazejas com aquele ente querido que
se foi.


8g PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

Jesus nos advertiu que estivéssemos vigilantes. Recomendou
aos apóstolos: "Estejam cingidos os vossos rins."3
Isto é,
com cintos cingidos. Naquele tempo, viajavam colocando nos
cintos os pertences mais importantes da viagem. Recomendou-nos,
assim, que estivéssemos sempre prontos para a viagem,
referindo-se à desencarnação, porque a vida física não nos dá
aviso prévio sobre isso e, assim, passamos do Plano Físico para
o Espiritual muitas vezes desprevenidos. Muitos encarnados não
vivem esse ensinamento, essa verdade, daí haver tanta vaidade,
orgulho e prepotência. Porque, se todos percebessem que
nada somos por nós mesmos, e que nada temos de absolutamente
nosso, a simplicidade e humildade seriam a base de
nossas relações.
Nas grandes catástrofes do mundo físico, os homens se
ajudam mutuamente com simplicidade e fraternidade, porque
com o acontecido tudo perderam e naquele instante são iguais.
Passados os momentos dolorosos, vão aos poucos voltando as
suas ilusões e a se explorar mutuamente.
A humildade cultivada externamente representa vaidade e
pretensão. A verdadeira modéstia somente existe, quando não
agimos com egoísmo e estamos totalmente conscientes de nossa
pequenez. Se procedermos assim, veremos a realidade
daquilo que somos e o que a vida é. Isso é fundamental, para
não nos perdermos nos caminhos das pretensões e vaidades
humanas.
Aqueles que seguem os ensinamentos de Jesus esquecem-se
de si e não se apavoram com a desencarnação, encarando-a
como um prosseguimento da vida. Têm eles, como ponto fundamental,
a glória de Deus manifestada na vida e não nos seus
desejos pessoais. Agem como a lagarta que está sempre pronta
a aceitar com amor as transformações que a vida quer operar
em sua existência: de lagarta faminta, transformar-se em bela
borboleta, sustentada pela energia do néctar das flores. Mas
para isso é preciso que amemos a Deus acima de tudo, acima
de nós mesmos. Não o Deus distante e, sim, o Onipresente.

13 - Lucas, XII:3S. (N.A.E.)


O VÔO DA GAIVOTA g9

o é, E necessário pensar seriamente na desencarnação, como
nos felzon amento da vida e se quisermos ter uma continuação,
que o façamos por merecer.
Vimos muitas desencarnações e todos nós, do grupo, aprendemos
a desligar o perispírito do corpo físico. Lourival e Cleusa
se emocionaram tanto, que escolheram trabalhar, após o curso
socorrendo recém-desencarnados.
Meu amigo Antônio Carlos tem razão: aprendemos muito
quando ensinamos aos outros o que sabemos. Gostei imensamente
de participar deste curso!


uma Reunião Espírita



No dia e hora marcados para a orientação dos socorridos
do Túnel Negro, fui ao Centro Espírita e lá me encontrei com
Elisa.
- Patrícia - disse ela -, estou ansiosa e também preocupada.
Será que Walter irá aceitar a ajuda oferecida?
- Espero que sim - respondi. - Como estão eles? Como
está Walter?
- Mostram-se como os deixamos, somente alguns mais
agitados. Serão trazidos do Posto para o salão logo mais.
Construído da mesma substância do perispírito, o Posto de
Socorro está acima da construção material do Centro Espírita.
Muitos Centros têm um pequeno hospital assim, um lugar de
emergência, representando a continuação da construção material.
Quase sempre essa continuação de auxílio tem um pequeno
ou mini-hospital para os primeiros socorros e, também, locais
para moradia de alguns desencarnados que lá trabalham. São
muito úteis, mas sempre singelos e acolhedores. Quando o
Centro Espírita tem Posto de Socorro, os socorridos ficam provisoriamente
nesse lugar e são trazidos ao local da reunião
mediúnica, pouco antes de seu início. O Posto do Centro em
que estávamos é muito bonito, com quadros de lindas paisagens,
além de flores, alegrando a entrada.
Enquanto aguardava, fui rever amigos desencarnados. Após
muitos abraços e conversas, tomamos nossos lugares, porque


O VÔO DA GAIVOTA

logo começariam os trabalhos programados. Meu pai sempre
chega bem antes da hora e lá fica orando e meditando. Porém,
muitas pessoas chegam também antes, para conversar com ele
e sanar dúvidas, no que procura ele atender a todas. Os encarnados
foram chegando e me sentia bem em vê-los, pois convivi
com muitos deles e alegrava-me por tê-los como amigos. Emocionada,
escutei meu pai:

"Muito se tem dito sobre o significado das parábolas do
Mestre Nazareno. No Ocidente, quase a totalidade das pessoas
se dizem cristãs. É indiscutível ter sido Jesus o maior espírito de
que temos notícia, expoente em valores e qualidades dentre
todos os instrutores conhecidos pela nossa humanidade. E nós,
cristãos, conhecemos e deveríamos compreender os ensinos
de Jesus e ter seu exemplo como meta de vida. Vangloriamo-nos
sempre de ser seus seguidores, porém, a maioria de nossas
atitudes, nossas reações diante das relaçôes que a vida nos
impôe, não diferem muito das pessoas ditas não cristãs. Não
estaria algo errado? Admitindo-se que sim, não seriam naturalmente
os ensinamentos de Jesus mas, somente, a nossa maneira
de entendê-los ou traduzi-los em nossa forma de viver.

Criamos uma complexidade enorme em nossa estrutura
psíquica, em nosso patrimônio espiritual, e nos consideramos
repletos de créditos, de conhecimentos e posições, que apenas
existem por uma autovalorização de nossos próprios atos. Nossas
ações estão, erradamente, baseadas na reciprocidade, de
vez que não sabemos fazer nada sem esperarmos retorno ou
ganho pelos nossos atos. Não costumamos gravitar em torno do
centro da vida, que é Deus. Com exceção de poucos, o ponto
em torno do qual gravitamos é o nosso próprio ego. Nossos
pensamentos e ações têm o próprio benefício como fim. Aprendemos
a somente adorar a Deus, o que nos é muito fácil, porque
não nos exige nem esforço físico e nem gastos financeiros e,
assim, não sabemos ainda vê-Lo e amá-Lo nas suas manifestações
mais simples. Amá-Lo na sua onipresença requer
sensibilidade e visão acurada da realidade dos fatos da vida.
Temos conhecimento, através dos relatos de desencarnados,
que esse sentimento de ganho e perda nos acompanha após a


92 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

desencarnação. Instituem-se, então, nas Colônias, o bônus-hora
para que os recém-chegados, condicionados ao ganho, não se
sintam desestimulados para o trabalho. O bônus-hora é um
incentivo ao espírito ocioso, ou, em outras palavras, ao espírito
que ainda vive em função da sua própria pessoa e que ainda
não conhece o valor do bem coletivo. Recebem provisoriamente
esse tipo de ganho, para que tenham estímulos no trabalho
em seu benefício e de seu próximo, até que entendam o trabalho
desinteressado.
Amar a Deus é tê-Lo como centro da própria vida, vê-Lo,
senti-Lo, ter afeto por Ele em todas as suas manifestações. Jesus
disse: "Senhor, graças te dou por ter ocultado isto aos sábios
e prudentes e revelado aos simples e pequeninos". Sábio não é
o mesmo que erudito, o que muito conhece, que tem a qualquer
momento de cor as citações do patrimônio intelectual e
religioso da humanidade. Não condenamos o conhecimento
dos livros sacros, pois eles nos são necessários, mas reprovamos
a maneira como muitos o utilizam. O conhecimento
representa um meio para que conheçamos a experiência dos
que nos antecederam. Esses arquivos ajudam o ser humano na
evolução, mas devemos crescer pela conduta reta, pelo espírito.
E para que esses ensinos façam parte de nossa vida, é
necessário que o exemplo do Nazareno seja compreendido e
não decorado, como temos feito há quase dois mil anos. Ao
compreendê-los veremos que Jesus via e vivia, assim já não
mais faremos a Sua vontade e sim a nossa, que passa a ser
como a Dele, porque veremos como Ele o que é falso e o que é
verdadeiro.
Disse Jesus aos seus apóstolos: "Ide, ensinai, curai para
que quando os homens virem suas boas obras glorifiquem o Pai
que está nos céus". Quanta simplicidade, quanta humildade!
Praticar os maiores benefícios à humanidade e esquecer não só
do ganho pecuniário e, também, de qualquer agradecimento
ou reconhecimento do beneficiado. Fazer por amor à vida que
se manifesta no necessitado e em si mesmo, e agir de tal forma
que possamos ver em cada ser humano a imagem e a
manifestação de Deus. E não devemos incentivar o culto da


O VÔO DA GAIVOTA 93

idolatria da personalidade de José, Sebastiana, Maria, Antônio
"(14)

Um freqüentador indagou a meu pai:
- Por que tenho tantos conflitos? Como poderei eliminá-los?
- O maior drama do homem não está na pressão do meio,
nem nas dores externas. A própria morte física é passageira
- respondeu meu genitor. - O grande drama, a grande dor é o
conflito que existe entre o que somos e o que nos ensinaram
que deveríamos ser. Temos aprendido que necessitamos reprimir
os impulsos egoístas, para poder viver bem com nosso
próximo. Enquanto estivermos valorizando mais a vontade de
outros, seja quem for, o conflito permanece e não haverá mudança
radical em nosso relacionamento com a vida. Porque,
apesar de achar certo fazer o que eles querem, e disto esperar
créditos e ganhos, a realidade é que ainda permanece a vontade
de fazer o que se gosta.
Temos nosso ego quase sempre colocado como o centro
do Universo, devendo girar tudo em torno de nosso prazer e
satisfação. Essa é geralmente nossa conduta, mas a vida não
sabe e não se importa com nada disso, porque ela tem seu
próprio caminho. E aí, insatisfeitos, nos frustramos, ficamos inconformados
e, às vezes, nos revoltamos com o desenrolar dos
acontecimentos. Assim, batemos de frente com a realidade e
perdemos todo o interesse de nos importarmos com a vida. Por
isso, precisamos aprender a aceitar a vida como ela é, sem
querer que seja diferente. Mudar para melhor está em nossas
mãos, como também aceitar sem contestações o que a vida
nos proporciona, mesmo aparentemente em situações e circunstâncias
desfavoráveis, pois é nos momentos difíceis que
nos superamos, isso se não tivermos dó de nós mesmos. Precisamos
compreender que não somos somente filhos de Deus,


14 - As passagens citadas do Evangelho não estão na íntegra e nem cito
capítulo ou versículo. Escrevendo os ditos de meu pai, fiz como ele costuma
fazer, nada decorado, sim compreendido. (N.A.E.)


94 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVAI.Hn

mas muito mais, pois que fazemos parte de Sua própria manifestação.
Compreendendo isto, entenderemos a diferença
existente nos dois filhos, na parábola evangélica do Filho Pródigo.
O mais velho nunca saiu de casa, sempre fez a vontade do
Pai, mas viveu sempre insatisfeito, porque no seu íntimo não
sentia as coisas do Pai como suas. E o Pai não o sentia perto de
si, apesar de amá-lo muito. O mais novo, depois de se afastar,
de esbanjar o que lhe pertencia, conheceu a si próprio e compreendeu
que ele e o Pai eram um só. E, se eram um só
extinguiram-se aí todas as cobranças, todos os conflitos, permanecendo
somente uma única coisa, a unidade com Deus, em
todas suas manifestações.
Agora, se pretendermos amenizar os conflitos e as dificuldades
que possam nos perturbar, lembremo-nos das palavras
de nosso Mestre, diante de circunstância semelhante: "Vinde a
mim todos vós que andais cansados e sobrecarregados, que eu
vos aliviarei, pois meu jugo é suave e meu peso é leve". O
amado Mestre era viril em todas suas respostas, não no sentido
de machismo, mas de pureza, simplicidade e inocência austera.
Dificuldades sempre as teremos, porque relacionamento é
atrito de interesses. E toda cadeia de vida é um constante atrito
de funções das manifestações de Deus. E o conjunto harmônico
de todas suas funções compõe a sintonia do Universo. Particularmente,
esse atrito se traduz pelo conflito entre o que queremos
que seja e o que realmente é. Esta resposta é para aqueles que
querem mais profundamente ter a visão do que realmente somos.
Se você não compreender - falou referindo-se ao jovem
que o indagara -, fique com a primeira parte, que vai amenizar
muito sua maneira de viver seus conflitos.
Uma médium que há tempo freqüenta a casa, trabalhando
regularmente, relatou seu drama íntimo, reclamando que Deus
foi e tem sido injusto com ela.
- Minha filha - respondeu meu pai, tratando-a de forma
carinhosa -, pensarei no seu caso e verei como amenizar seu
drama.
Isso acontece em algumas situações que requerem um
estudo maior, com a procura de soluções para os inúmerosos
problemas que lhe encaminham, mas nunca deixando de


O VÔO DA GAIVOTA j5

atender a quem quer que seja. Quase sempre responde de
imediato, mas, nesse caso, ele teria que meditar para achar a
melhor maneira de ajudá-la.
A reunião começou e transcorreu tranqüilamente, conforme
narrarei no capítulo seguinte. Tempos depois me encontrei
com Elisa que, curiosa, me indagou sobre esse fato:
- Patrícia, qual foi o conceito do Sr. José Carlos sobre Deus
ser justo ou injusto? Tenho certeza que ele resolveu a questão
junto à médium, mas gostaria de saber a opinião dele sobre tão
delicada questão: Justiça ou Injustiça Divina.
- Elisa, não posso responder por ele. Hoje, papai está em
viagem de negócios e, pelo que sei, o assunto somente poderá
ser resolvido à tarde. Neste momento, está almoçando. Vamos
até ele!
Elisa me acompanhou, contente e, em instantes, estávamos
ao seu lado. Papai acabara de almoçar e, não tendo nada
para fazer sicamente, entrou no seu costumeiro fluxo de pensamento.
Isto acontece normalmente quando está só e sem
obrigações físicas. Então carinhosamente lhe perguntei:
- Papai, Deus é justo para uns e injusto para outros?
Como sempre faz, comparou um relacionamento físico entre
as pessoas e o assunto questionado, simbolizando como
deveria ser o relacionamento entre Deus e nós, e nós e Deus.
Pedi a ele novamente que gravasse seus pensamentos e
ele o fez em guardanapos de papel. Agora que escrevemos este
trecho, pedi à médium, Tia Vera, que solicitasse a ele esses
guardanapos. Gentilmente nos cedeu, e os transcrevo na íntegra.
Aí está sua resposta:
"Normalmente, quando tudo dá certo conosco, achamos
que é merecimento e que Deus nos faz justiça. Quando nos são
negados nossos anseios de preechimento mental e satisfação
física, ou seja, quando não está acontecendo o que queremos,
sentimo-nos injustiçados, principalmente ao nos compararmos
com outras pessoas. Por que ele tem e eu não? Achamos que
Deus não está fazendo justiça conosco e que estamos sendo
punidos. É que trazemos cargas negativas do passado, que ocasionam
frustrações no momento, existindo também atos desta


96 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

encarnação que podem ser o motivo de muitas decepções
Normalmente, não enxergamos a realidade da vida e sim
a projeção das nossas ilusões, por considerarmos a vida física
como fim e não como meio.
Muitas vezes, o justo ou o injusto baseia-se, de acordo coom
nossa compreensão, no que damos e no que achamos que
devemos receber em troca.
Sentimo-nos injustiçados, porque quase sempre temos
como meta nossa distração e o preenchimento da vida com
prazer. Transformamos as funções e necessidades do corpo físico
e a capacidade de pensar como fim da nossa existência. Não
chegamos a olhar a vida como um todo e a desempenhar eficientemente
nossa parte neste conjunto. Já imaginaram se o
coração se sentisse injustiçado por não ter folga e nem descanso
físico? Que seria do homem? Diante desse exemplo,
aprendemos que cada um deve fazer o que lhe compete, sem
esperar recompensas, e sempre consciente de que deve utilizar
o potencial nobre que a vida lhe concedeu. Apesar de insignificantes
diante do cosmo, fazemos parte dele. Portanto, precisamos
desempenhar nossa função como parte da vida e não viver
para os nossos prazeres e conquistas, materiais ou espirituais.
Deus não cria os seres, para puni-los ou premiá-los. Cada
qual tem sua função e utilidade, assim como o grão de areia
tem sua função no deserto ou na praia.Punir uma manifestação,
seria reconhecer Sua própria falha.
Ao comprarmos uma máquina nova, o fabricante nos dá
garantia da mesma, e qualquer falha no seu funcionamento
não significa a intenção do fabricante em nos punir, pois a
garantia dela fará com que ele lhe restaure as funções. E, no
caso, ele é o maior prejudicado, porque, além dos gastos de
reposição, teria seu nome comercial prejudicado e posta em
dúvida sua idoneidade. Não somos uma máquina, é certo, e a
falha nunca está em Deus, e sim em nossa maneira de nos
relacionarmos com suas Leis, com a vida. Na maioria das vezes,
nossos ânimos e desejos não encontram ressonância nos
planos traçados pela vida, por causa de nossas existências anteriores.
Às vezes o que desejamos não é o que podemos ter.
Quase sempre nossos desejos são saturados de egoísmo. Os da


O VÔO DA GAIVOTA 97

vida são saturados de grandeza, de amor e de realização plena
do homem.
Na Terra, cada variedade de raça recebe, com maior ou
menor intensidade, o que necessita para desempenhar e enobrecer
a espécie a que pertence. O grupo humano não foge à
regra geral e natural, somente foi acrescentada em nós a faculdade
da liberdade de escolha, para cumprirmos a tarefa para a
qual fomos chamados. Se nos harmonizamos com as Leis Divinas,
nos sentiremos felizes a caminho do progresso, enquanto
que, se as desprezamos, criamos um ambiente vibratório individual
de desarmonia, que poderá atingir aqueles que nos
cercam, e terá ressonância de vibrações inferiores. Será que
Deus criou a Terra, com todo seu aparato animal e vegetal,
somente para o desfrute do homem? O ser humano foi criado
para usufruir de tudo à custa dos que caminham com ele? Não!
Pelos seus atos de abuso, cuja conseqüência não compreende,
presume que Deus lhe está sendo injusto.
Temos quase sempre, em nossas existências, buscado o
significado da vida, tentando adivinhar por que razão Deus criou
o homem. Talvez façamos isso, por darmos importância demais
em pensar o que somos, ou pelos sentimentos que nos
transmitiram, de tão importante questão. Deus é profundamente
simples. Para que possamos ouvi-Lo e senti-Lo, é preciso
antes de tudo ser simples como Ele. Um exemplo da simplicidade
de Deus é sua onipresença tanto em nosso Cristo, quanto
num verme desprezado por todos. Devemos nos despojar do
cultivo da autovalorização: vaidade, orgulho e presunção, para
nos tornarmos melhores. Se não assumirmos nossa participação
no conjunto do orbe terráqueo, nos sentiremos excluídos de
obrigações e responsabilidades. E aí, o que acontece com os
habitantes da Terra? A conseqüência é esta que estamos vendo:
destruição e devastação do que a natureza levou milhões de
anos para realizar. Não nos sentindo parte do Universo, parece
que estamos no mundo somente para usar e desfrutar as coisas,
não tendo nada a responder, sem responsabilidades com o que
acontece com tudo e com todos, alheios aos que sofrem dores e
misérias.
Não podemos compreender Aquele do qual estamos separados


98 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARIIVZECK DE CARVALHO

e, enquanto assim estivermos, não faremos parte do todo,.
Ao contrário, se participarmos do todo, seremos um só. Náo
haverá nem o maior, nem o menor, porque nosso pequenino eu
se perderá, diante da grandeza e importância do Universo.
Que restará, então, para nós e para nossa espécie? Viver e
neste viver, conhecer e compreender nossas funções e as dos
que nos cercam, compondo assim um todo harmônico. Aquilo
que os irracionais fazem instintivamente, o homem deverá fazer
consciente e espontaneamente. Os irracionais não têm
escolha, o homem pode escolher. Pode recusar ou participar do
Banquete Divino, que é a própria vida, refletindo assim a simplicidade
e o equilíbrio do macro, refletido no micro. Não
teremos, então, nenhuma pretensão, por situações anteriores
posteriores, ou do momento presente, pois elas são produtos do
egoísmo oriundo da mente temporal. E Deus é atemporal.
Deus é, também, profundamente justo. Não há desvios
nem preferências em suas leis. Recebemos de acordo com o
que fazemos, sendo que nossas vibrações são resultados de
nosso estado interior, e que nos proporcionarão ligações com
vibrações harmoniosas ou perturbadas, a causar dor e angústia,
ou a felicidade. Conhecendo a Lei da Reencarnação, entenderemos
melhor a Justiça Divina. Compreendendo Deus, veremos
que tudo que Ele faz é justo, pois nada deve a ninguém. Tudo o
que recebemos é graça e de graça, nada temos feito para ter
crédito com Deus. E, por mais que façamos, procede d'Ele o
potencial da vida, a capacidade e a oportunidade de agir Se
vivermos esta verdade, nunca se abrigará em nossa mente a
questão de Deus ser justo ou injusto.
"Meu pai é meu mestre. Alegro-me muito aprendendo com
o que ele diz.


Recuperação dos Socorridos



Após a oração, começou o trabalho de desobsessão. Para
nós, desencarnados, os trabalhos começaram bem antes, pois
tudo é muito bem organizado. Elabora-se a lista dos desencarnados
que vão ser orientados, para que eles sejam trazidos do
Posto para o salão onde é feita a reunião. Eles ficam alguns
metros acima dos encarnados, sendo que o forro e o telhado da
construção material desaparecem para eles. Os desencarnados
trabalhadores e eu vemos as barreiras materiais, como se fossem
um desenho que não atrapalha em nada. Com a previsão
de quantos médiuns virão, é feita a programação para que o
trabalho tenha o melhor proveito possível. Muitos dos que vão
receber a orientação, atraves da incorporação, ao verem o trabalho
dedicado dos trabalhadores, ao escutarem as conversas
edificantes e a leitura do Evangelho com sua explicação, já se
sentem inclinados a mudar, e vários deles nem precisam mais
da incorporação.
No sentido espiritual, para a alma em evolução, a vida
material constitui ambiente hostil. Justificamos, quase sempre,
nossas falhas, com a desculpa de que a maioria age da mesma
forma, e alegamos que não somos santos e, assim, não se pode
exigir de nós uma maneira de agir mais elevada. Dessa forma,
criamos uma distância entre o que fazemos e o que deveríamos
ter feito. É como o aluno que freqüenta a escola e não se aplica
no exercício do aprendizado e, no final do ano, ao fazer as
provas, vê-se reprovado. Quando um desencarnado se depara,


100 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

frente a frente, com um encarnado de atitudes dignas, sem a
aura de santo, sente o estímulo de imediato. A presença de
alguém elevado dispensa comentários. Palavras ensinam, exemplos
arrastam.
Mas a maioria dos socorridos necessitava de incorporação,
como era o caso de Walter e de seus companheiros que, agitados,
mostravam sentir falta da sensação das drogas e não
conseguiam entender o que realmente estava acontecendo.
Foram todos conduzidos à incorporação. Narrarei a incorporação
de Walter, por ter sido muito importante para mim e Elisa.
Walter foi colocado perto da médium que lhe serviria de
intérprete. Na simbiose da incorporação, há uma permuta entre
os dois, desencarnado e encarnado. O médium sente os
dramas do desencarnado e este absorve parte do equilíbrio do
médium. Isto já fez Walter retornar um pouco à realidade. Mas
não conseguiu falar direito, só balbuciou algumas palavras:
"Natan... cocaína... preciso... socorro...
"
Nos dois dias que Walter ficou no Posto, meu pai e a equipe
dos desencarnados, principalmente os médicos interessados
no socorro dos espíritos, presos no vício, estudavam o melhor
modo de orientar os irmãos imprudentes e infelizes. Iriam testar
uma nova forma de ajudá-los, e todos os trabalhadores do
Centro estavam esperançosos, aguardando resultados positivos.
Meu pai foi falando a ele, enquanto os desencarnados reforçavam
o que lhe era dito. Acalmaram-no. Walter foi induzido a
voltar no tempo, modificando seu perispírito. Sabemos bem que
isto é possível. Os encarnados têm notícias desse processo, através
de muitos livros. O perispírito é modificável e há muitos que
sabem fazê-lo. Vimos, no livro Libertação, de André Luiz, psicografia
de Francisco Cândido Xavier, um desencarnado das trevas
modificar o perispírito de muitos, na sua cidade umbralina. Existem,
pelo Umbral, desencarnados com aparência monstruosa e
muitos, com aparência modificada por eles mesmos, para
melhor assustar os outros. Sabemos também de muitos desencarnados
que dão nova forma a seus perispíritos, para ficarem
com a aparência de outros espíritos, para enganar e mistificar. Todavia,
conhece-se a árvore pelos frutos. Conhece-se o


O VÔO DA GAIVOTA 101

encarnado por seus fluidos, os quais eles nunca conseguirão
modificar. Nos estágios elevados do Plano Espiritual também se
modifica o perispírito, seja a aparência dos bons, com a finalidade
de ajudar, ou a de outros que, no momento, não têm por si mesmo
como mudar. Recuperam inúmeros socorridos, cujas
aparências se transformaram em figuras monstruosas, animalescas
e deformadas, para os deixar com aspecto normal. Também
podem rejuvenescer, ou tomar a aparência de antigas encarnações.
Os desencarnados bons só usam esse processo com alguma
utilidade. Mas, basta saber, para mudar de aparência em qualquer
lugar e por motivos os mais diversos; se são bons, para
ajudar; se, maus e brincalhões, para enganar, confundir e assustar.
Porém continuam a ser os mesmos, em relação à elevação
normal, só mudam a forma.
Com Walter foi usado esse processo. Fez-se uma regressão
de memória, até que ficasse com a aparência da idade de
meses antes de começar a se drogar. Forçando mais um pouquinho,
conseguiram, com êxito, fazê-lo se sentir mentalmente
como estava na aparência. Tornou-se, então, um garoto de catorze
anos, gorducho, rosado de olhar esperto. Com o semblante
de quando era jovem, não foi difícil fazer com que assumisse
sua vida daquela época, mesmo porque no seu inconsciente
havia um desejo enorme de fugir de sua atual situação. Consolidado
seu equilíbrio, assumida estava a situação. O doutrinador
tem que adquirir, nessas horas, a confiança e a amizade do
socorrido. Através do carinho e da compreensão, convidaram-no
para ver a vida de um amigo seu que muito errou e que
precisava de auxílio - neste caso, a vida dele mesmo. Então
mostrando sua auto-escravização no vício e seu consinte
sofrimento. Quase sempre, ao ter alguém as primeiras
de seu passado, já drogado, há também recusa instintiva
ver aquelas atitudes, como também a recusa de admitir
fora ele próprio a viver determinadas passagens. O doutrinador
deve, então, insistir para que se concentre no personagem
 assistência. Em poucos instantes, ele se reconheceu e começou
a se desesperar, tentando assumir novamente seu estado
de drogado. Nesse momento é preciso muito esforço


102 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

dos trabalhadores desencarnados, para lhe manter o equilíbrio.
O doutrinador deve ter autoridade direta sobre ele, mantendo-o
no estado em que foi levado, pela regressão, isto é, permanecer
com a aparência física e mental de antes de se drogar. Deve
agir com muita autoridade, afeto e carinho, insistindo na sua
recuperação. Com Walter que já havia sentido a harmonia do
estado anterior, antes de se drogar, encontrou base para não se
desesperar e assumir de novo o equilíbrio, já na sua personalidade
atual. Não se deve esquecer também que, durante todo o
socorro, nesse processo o equilíbrio do médium é fundamental
pois naqueles momentos os dois agem como um só. Também o
médium deve estar em sintonia com o doutrinador, respeitando-o
e confiando na sua capacidade de dirigir os trabalhos.
Walter se analisou e meu pai, como orientador encarnado orientou-o,
até que ele passou a entender
a situação:
perfeitamente sua
- Meu filho, você está numa reunião de Amor e Caridade.
Aqui tentamos ajudá-lo, para que seja livre. Estamos a lembrá-lo
do que aconteceu, dos fatos vividos por você. Você é um
garoto sadio que foi experimentar drogas e a elas ficou preso.
Recorde! Uma dose, a segunda, mais outra e veja como ficou.
Desencarnado, você continuou, em espírito, ligado às drogas
porque a morte não nos liberta de nossos vícios.
Walter ficou assustado. Lembrou-se de tudo e lágrimas escorreram
abundantes de seus olhos.
- Perdão, meu Deus! Perdão! - falou emocionado.
- Tenho
horror em ver como fiquei! Não quero ser um trapo humano!
quero ficar assim, sadio e com raciocínio. Nunca mais me
viciarei!
- Então aceita nosso auxílio? - indagou meu pai.
- Peço-o em nome de Deus! - falou Walter chorando.
- Será acolhido e orientado!
Walter foi tirado de perto da médium, quando Elisa pegou
na sua mão e lhe disse com carinho:
- Walter, meu filho! Meu anjo!
- Mãe - disse ele. - Minha mãe!


O VÔO DA GAIVOTA 103

Olhou para Elisa e não a reconheceu, mas sentiu que ela
era, ou melhor, fora sua mãe. Elisa fora sua genitora em encarnação
anterior.
- Sim, sou eu, sua mãe Gertrudes - disse Elisa (nome que
sua mãe adotara no plano espiritual).

Walter, cansado pelas emoções, adormeceu nos braços de
Elisa que se pôs a chorar baixinho, com emoção e gratidão.
Finalmente a mãe recuperara seu ente querido.

O processo utilizado tem êxito, em recuperação de desencarnados
viciados, pois tomando a forma perispiritual de antes
de se viciar, adquire-se mais força para dominar a situação.
Alguns, nesses processos, não recordam o período de viciado,
mas é bom que o façam para que saibam e entendam o tanto
que sofreram. Todos os socorridos do Túnel Negro pediram
ajuda e foram acolhidos, por isso o tratamento continuaria,
sendo eles encaminhados a hospitais próprios, onde a ajuda
psicológica seria a mais importante, juntamente com a Evangelização.
Em algumas doutrinações, como a de Walter, pode acontecer
de o socorrido ver tudo o que se passou com ele e não
querer a ajuda oferecida, preferindo continuar no vício. A escolha
é do socorrido, pois todos nós temos o livre-arbítrio a ser
respeitado. Nesses casos, o doutrinador ainda deve argumentar
tentando ajudar na recuperação. Se houver ainda recusa, deve-se
deixar que se comporte como escolheu e ser retirado do
local do Centro Espírita. Sem sustento de bons fluidos, é costume
voltar logo ao estado deplorável de drogado. Será, entretanto,
em outra ocasião, socorrido novamente e, quando estiver cansado
das drogas, aceitará a ajuda.

Também o doutrinador deve ficar atento para não deixar o
socorrido ter remorsos destrutivos, incentivando-o a ter esperanças
de vida no futuro e reparar seus erros através do trabalho
útil e no Bem.
Uma convidada, desencarnada, que assistia à reunião indagou
a Maurício, que estava ao meu lado:

- aurício o drogado é responsável por todos seus atos
errados? Como, por exemplo, aquele rapaz que, ao discutir

104 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

com sua mãe, a empurrou com força, levando-a a cair e bater
com a cabeça e desencarnar. Agindo assim sob o efeito da
droga, ele é culpado?
- A intenção, em um ato errado, é pior às vezes que o
próprio ato - respondeu o interpelado. - Ele não teve a intenção,
não queria a morte física da mâe, mas foi a causa da sua
desencarnação, daí a sua culpa. É muito difícil um drogado náo
saber que age erradamente e que poderá provocar, por isso,
acontecimentos trágicos em sua vida. Em todos nossos atos, o
que importa é a intenção e, assim, notamos que aquele jovem
tinha na mente este propósito, que lhe trazia muitos sofrimentos.
Vimos também que a recuperação total dos viciados que
não praticaram outras faltas, é mais fácil, o mesmo não acontecendo
com alguns que, além do vício, cometem outros erros.
Deve o encarnado pensar bem nisso, antes de seguir o
caminho das drogas. Nas conseqüências tristes que advirão,
como aconteceu a este rapaz que, mesmo amando a mãe, foi a
causa de sua desencarnação.
A reunião terminou após a oração, quando os orientadores
espirituais energizaram beneficamente todo o ambiente e, também,
as pessoas presentes.
Os encarnados conversavam trocando idéias, e os mentores
espirituais estavam contentes com o êxito da experiência.
Todos os socorridos do Túnel Negro passavam relativamente
bem. Elisa levaria Walter para a Colônia Perseverança, onde
trabalhava, pois, desde que soube ser ele viciado em tóxicos,
pediu para trabalhar naquele setor do hospital, onde os internos
se recuperavam das drogas. Agora iria também cuidar dele.
Despediu-se de nós emocionada e chegando perto do meu pai,
agradeceu; ele sentiu uma vibração diferente, carinhosa, que
só os gratos conseguem emitir, e sorriu em resposta.
Dois trabalhadores desencarnados do Centro Espírita ajudaram
Elisa a transportar Walter, ainda adormecido, para a
Colônia. Terminados os trabalhos todos foram embora, e os
espíritos socorridos conduzidos para novas acomodações. Após
as despedidas, voltou a rotina no Centro Espírita, até a próxima
reunião.


O VÔO DA GAIVOTA

Também retornei à Colônia e aos meus afazeres. Porém
surpreendi-me com as notícias. Natan já havia descoberto quem
entrara nos seus domínios e, raivoso, queria acertar contas.
Acompanhei os acontecimentos.

Natan


Sempre que possível, ia às reuniões no Centro Espírita,
para me inteirar dos acontecimentos. Quando não podia, Artur,
um dos orientadores do Centro, amigo de muitas encarnações
de meu pai, me colocava a par da situação.
No Umbral, os chefes sabem de tudo o que lá acontece,
com relativa facilidade. Natan, ao voltar ao Túnel Negro naquela
noite em que lá estivemos, cientificou-se de tudo. Disseram-lhe
que vários espíritos, comandados por um ainda encarnado, entraram
em sua fortaleza, levando com eles os que quiseram ir.
Nada danificamos com nossa excursão ao Túnel Negro, só
tiramos alguns sofredores de lá. Porém, como Elisa previu, Natan
logo soube o nome do encarnado, onde ele morava, seus
familiares e o Centro Espírita que freqüentava. Dois de seus
servidores, espíritos ligados a ele no trabalho no Túnel, foram
observar meu pai e o Centro Espírita.
Na reunião seguinte, foram os dois servidores ao Centro
Espírita levar um recado de Natan. Entraram como convidados,
sem se despojarem de suas armas e aguardaram o início da
reunião em silêncio. Um dos orientadores da casa lhes explicou
como deveriam proceder. Como queriam falar pela incorporação,
tiveram que aguardar na fila, e só seria permitida a
comunicação deles no momento previsto. Um deles ao observar
o ambiente, curioso, conteve-se para não chorar, ao ouvir a
explicação do Evangelho e as orações e, quando foi chamado
para se incorporar, pediu ao companheiro que o fizesse. O


O VÔO DA GAIVOTA 107


quieto e o tempo
no Centro, estava ar que era
desde que entraraforçando-se para dem E erto do
e a baixa onstr

ordens recebidas de Natan , P
cado, seguindo as ondeu ao cumprim

ara a in
corporação, resp a. Depois, a e'ist do e
ss
dium, p ipida a pala o que veio como
i-noite, quando lhe f áe Natan falou
ara '
uenciado pela mente ' do Tú el Negro estivesse ali.
róprio, como se o chefe que fizeram nos
fosse o p n não gostou da invasão os reparação.
- Meu chefe Natan violação e exigi
os uma tender um pedido
us domínios. Sofrem ão foi para a o sei por
mos também que essa inv lle ela estava junto


s ua filha desencarnada, e gtáveis, já que foram lá só para
a
por impre
ue se interessam
sgatá-los· anos de imp  - meu

- Por que chama os toxicôm restáveis.
iai inda ou.
- Nem racioci-
 - respondeu ele rindo.
- São outra coisa.
para experiências. Drogados são encarnam
mais! Só servem quando se quer vingar de algu
inúteis. Não é à toa que, q ele tiver tendência, perde-se
nado, incentiva-se-o ao  mpletamente escravo da droga e
nos tóxicos, tornando s · Viciados são fantoches, farrapos
presa fácil de seus vingadores m terem levado de lá os impres-
Natan não achou rui
humanos m entrado lá sem permissão.
táveis. Irritou-se por tere permissâo, ele consentiria? - indagou
- Se eu tivesse pedido
meu pai d ria os imprestáveis - respondeu

- Entrar lá não! Mas lhe a
le rindo cinicamente. istiu meu pai, que
com
e  - ins
- Daria mesmo. conversava
orientador encarnado da casa.
ele como - não todos ou nem tantos,
talvez
- Ora - respondeu ele  me atormentar mais ainda os
lhe liberasse alguns. É nosso costu
que são do interesse dos bons.

Fez uma pausa. infelizmente, é o que
o desencarnado falou, ue costu-
não é regra geral.
Sendo assim, ao notar
ma acontecer, porém, do interesse dos socor-
seus domínios é



107 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

presumindo que, desse modo, vingam-se dos interessados. Por
isso, sempre se faz com cautela a demonstração desse interesse.
Logo após a pausa, em que ele observou bem o local,
continuou a falar calmamente.
- Deixemos de conversas! Natan exige a devolução de
todos e desculpas com pompas. Quer a reparação! Você com
seus comparsas devem ir ao Umbral em horário marcado e,
na frente dos convidados dele, se desculparem.
- Volte e diga a Natan que não quisemos afrontá-lo
. Mas,
por circunstâncias articulares e justas, tivemos que ir lá. Não
devolveremos nenhum dos que nos pediram abrigo e infelizmente
não faremos o que ele quer.
Todos nós presentes, tanto os encarnados
quanto os desencarnados, sabíamos que Natan através de uma
ligação com o seu enviado, estava vendo e ouvindo o
que ocorria na reunião.
Mas, como ele mandou recado recebeu resposta
para que o portador a levasse até ele. O desencarnado irritou-se
com o que ouviu, porém controlou-se e respondeu:
- Quero deixar claro que ninguém estava lá obrigado. Se
existiam alguns presos foi por não cumprirem obrigações. Vocês
estão arrumando confusão. Vou embora e darei o recado.
Afastou-se da médium. O desencarnado falava a verdade
ois nos domínios do Túnel Negro ninguém permanecia obrigado.
Os viciados iam lá à procura da droga e submetiam-se aos
piores vexames e situações humilhantes para conseguir o sustento
para seus vícios.
O outro que viera junto e que observava tudo
chegou perto e
companheiro falava, c , n uanto o
Centro e pediu:
o de um dos trabalhadores do
- Será que vocês não me abrigariam? Gostei daqui, quero
ficar.
- Certamente que sim.
Ao se afastar da médium, o enviado de Natan
pelo amigo e o viu na fila dos que iam p Procurou
socorridos. Olhou p ara a Colônia, como
para ele e não falou nada. Saiu do Centro
Espírita e foi cumprir a tarefa que lhe impusera o chefe.
Como previsto, Natan não gostou da resposta e, no dia

O VÔO DA GAIVOTA 109

seguinte, preparou bem seus servidores, armou-os e ordenou
que fossem ao Centro Espírita e o invadissem. Deu instrução
para expulsarem todos que lá se encontrassem e quebrarem
tudo, mas não foi junto, ficou no Túnel Negro.

Artur, prevendo o ataque, organizou a defesa do Posto e do
Centro Espírita, para que todos os aguardassem tn áqalm perto,
taram realmente invadir, mas, quando se enco

Artur e os companheiros foram ao encontro deles, dominando-os
pela força mental, imobilizando-os. Levaram-nos, em seguida,
para o pátio, já desarmados, e depois os encaminharam para o
Posto, acomodando-os numa sala própria. Tudo normalizado,
Artur conversou com eles, durante horas. Perguntavam sobre
tudo e Artur os esclarecia. Viram a Colônia, pela tela, e lhes foi
oferecido socorro médico e abrigo. Após, Artur abriu a porta da
sala e disse:
- Podem sair os que quiserem, só que irão sem as armas.
Os que desejam ficar conosco serão bem-vindos.

Muitos se mostravam indecisos. Se voltassem, seria como
fracassados, não tendo cumprido a tarefa que lhes fora confiada.
Temiam o chefe, mas gostavam da vida que levavam, e não
queriam mudar. Foram poucos os que gostaram do que lhes foi
oferecido por Artur, em nome de todos os trabalhadores do
Centro. Muitos dos desencarnados que vagam pelo Umbral, não
têm idéia de outra forma de vida na espiritualidade e, ao conhecer,
geralmente aceitam, querem a mudança. Outros,
indiferentes, preferem mesmo é continuar como estão. Do grupo
de Natan, alguns ficaram na sala, mas a maioria saiu. Muitos
se dirigiram para o Umbral, onde iriam vagar sem rumo, pois
não tinham disposição de voltar ao Túnel Negro, de vez que
temiam Natan. Outros, mais corajosos, voltaram, e ficamos
sabendo depois que não foram castigados. Os que permaneceram
e aceitaram socorro, foram encaminhados para a Colônia,
para a Escola de Regeneração. As armas deles, feitas do mesmo
material que constitui nosso perispírito, foram destruídas.

Natan mandou dois de seus servidores, os de sua confiança
para ficarem perto de meu pai e eles trouxeram outros dois

que foram induzidos a pensar que
desencarnados, viciados


110 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

meu pai ia lhes dar drogas. Desencarnados nesse estado têm
fluidos pesados e angustiantes. Por isso, Artur levou os dois
viciados para o Posto do Centro, onde receberam os primeiros
socorros, sendo depois orientados em reunião, da mesma forma
que Walter, e obtiveram o mesmo êxito. Artur fez um
esquema especial de proteção aos médiuns e freqüentadores
do Centro, para que não fossem atingidos pelas vibrações dos
seguidores de Natan, como também para as pessoas que sempre
estão com meu pai, inclusive os familiares. Os outros dois,
os servidores de Natan, meu genitor convidou-os para ficarem
com ele. Seguiram-no de perto, por dias.
Natan, vendo seus dois melhores auxiliares em perigo,
chamou-os de volta. O perigo, para ele, era o de se converterem.
Meu pai ora, medita, lê e faz com que os desencarnados
que estão junto dele, escutem. Trata-os com bondade, porém
com firmeza e não aceita suas interferências. Apesar de cansá-lo
muito essa conduta, ele sabe que tem de estar vigilante vinte
e quatro horas por dia. E esse tipo de pressão o tem feito crescer,
porque o "orar e vigiar" o coloca constantemente em vibração
maior, que atinge os desencarnados de forma diferente, levando-os
a refletirem e a pensarem em Deus.
Natan veio encontrar-se com meu pai. Esperou-o à noite,
perto do Centro Espírita, e disse a um dos guardas que queria
falar-lhe. Meu pai foi ao seu encontro.
- Você é um feiticeiro terrível! - disse Natan. - Não quero
que nenhum dos meus companheiros sofra sua influência. Exijo
uma reparação sua e tudo ficará por isto mesmo, mas que vá
ao Túnel Negro e me peça desculpas. Abro mão do resto.
A palavra "feiticeiro" foi empregada por ele, para definir
aquele que tem força mental e que a usa tanto para o bem
como para o mal. E o tom de desprezo seria para ofender.
Desencarnados que, temporariamente estão seguindo o mal,

15 - Anteriormente, o Sr. José Carlos havia convidado dois espíritos para
ficarem ao seu lado e agora convidou Natan. Para fazer isto, é necessário
ter muitos conhecimentos e moral elevada. Alerto os encarnados, para não
agirem assim, sem o preparo devido. (N.A.E.)


O VÔO DA GAIVOTA 111


gostam de chamar meu pai assim, como também de indiano,
porque ele, em muitas encarnações, teve a Índia como berço.
- Você tem me observado - respondeu meu pai -, deve
saber que sempre que erro, peço perdão de coração. Nunca
peço por orgulho, pois levo muito a sério o ato de me desculpar.
Quando o faço, é porque entendi que errei e procuro não mais
incidir nessa falta, para não ter que me desculpar pela segunda
vez pelo mesmo ato. Isto porque, reconhecendo meu erro, me
esforço para melhorar. Não me arrependi por ter ido ao Túnel
Negro e libertado não só o desencarnado, que foi o motivo de
socorro, mas todos os que quiseram nosso auxílio. Faria de
novo, por isso, em respeito a você, não posso me desculpar.
Para nos reconciliarmos com alguém, mesmo não sendo
culpado, não nos custa pedir desculpas. Meu pai com sua atitude
estava querendo ajudar Natan. Tentava fazer que esse espírito
se voltasse para Deus.
- Atormentarei você! - exclamou ele.
- É um direito seu - respondeu meu pai. - Convido-o a ficar
comigo.'5 Só que eu também tenho direitos. Você tentará me
atormentar, atingir-me, eu me esforçarei para não receber sua
influência negativa, como também tentarei transmitir-lhe as
minhas sugestões. Terá que me escutar! Será só entre nós dois.
O mais forte irá influenciar o outro. E o mais forte será aquele
que tiver a vida, os pensamentos e as atitudes baseados na
verdade. E a verdade nunca será produto de nosso desejo, esperança
ou ambição, mas, sim, sempre a mesma, infinitamente,
no tempo e no espaço.
- Não sou de fugir de desafio. Vou agora ao Túnel Negro
tomar algumas providências e voltarei. Aguarde-me!
- Não o estou desafiando. Será um prazer conviver com
você! Vamos aprender muito um com o outro.
Natan afastou-se, já havia perdido muitos dos seus seguidores
e achou que só ele estaria apto a dar uma lição merecida
naquele que, em sua opinião, o desafiara. Estava com raiva de
todos do grupo, e com os desencarnados, sabia por antecipação
que não podia com eles. Com meu pai era, porém, diferente,
ele estava na came, sujeito a muitos condicionamentos e me

112 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

lindres devido às necessidades e funções do corpo, sendo assim
mais fácil de atingir e prejudicar. Entendia que, atingindo um
encarnado, atingiria todo o grupo. Organizou, então, o Túnel
Negro para que continuasse a funcionar sem ele e, assim, no
outro dia, foi ao encontro de meu pai e começou a acompanhá-
lo de perto. Meu genitor continuou com sua vida normal, de
trabalhador no plano físico e espiritual. Natan não ficou, de
imediato, como obsessor de meu pai, mas sim curioso, e com
raiva daquele momento, quis conhecer como era o dia-a-dia de
uma pessoa tão diferente das com que convivera.
Natan pressionava meu pai. Forçava-o a pensar em coisas
mundanas, para que baixasse a vibração. Meu pai, por outro
lado, meditava em coisas superiores e Natan era forçado naturalmente
a sentir as mesmas coisas. Percebia as sugestões e
desejos terrenos. Porém, mostrava mentalmente a Natan a estupidez
e a mediocridade daqueles que usam as necessidades
e funções do mundo físico, como propósito de vida. À noite,
meu pai desligado do corpo físico se dirigia para o trabalho
espiritual e Natan ia junto. Encaminhava-se ao Posto do Centro
para cuidar dos doentes, conversava com os socorridos, e ele
ao seu lado. E foi assim, por muito tempo, até que Natan começou
a se interessar pelo trabalho realizado no Posto, e começou
a falar de si, e meu pai atenciosamente o escutou.
Natan foi médico, quando encarnado. Ambicionando enriquecer,
usou a medicina somente como profissão para ganhar
dinheiro. É preciso lembrar que o trabalhador faz jus ao seu
salário, mas nenhum profissional deve só visar o lucro, mas sim
fazer também, através de seu trabalho, todo o bem possível.
Médicos lidam com dores e por isso devem, também, ser humanitários.
Trabalharem pelo sustento material, sim, mas sem
se esquecerem de fazer aos outros o que queiram que lhes
façam. Natan fez muitos abortos e receitou remédios proibidos,
desde que lhe pagassem. Mas a desencarnação chegou e se viu
diante de muitos inimigos que queriam vingança. A situação o
apavorou demais, primeiro porque era ateu, segundo, porque
aquele bando o atormentava sem poder destruí-lo. Vingavam-se
por tê-los impedido de reencarnar, ou por não terem sido
atendidos, porque não podiam remunerá-lo. Estava irado


O VÔO DA GAIVOTA 113

quando o tiraram de seus perseguidores. Eram espíritos, moradores
de uma cidade umbralina, que vieram e o levaram. O
chefe dessa cidade sabia quem ele era, mas deixou que sofresse
por uns tempos, para que ficasse lhe devendo obrigação.
Natan não é o nome verdadeiro dele, tendo escolhido esse
cognome tempos depois, talvez para impor mais respeito a
seus inferiores. Levado à cidade umbralina, o chefe conversou
com ele e lhe ofereceu abrigo em troca de seu trabalho como
médico. Natan não era ocioso, sempre foi trabalhador, por isso
aceitou e se aliviou por ficar livre do bando que o perseguia,
mas com o qual aprendera tantas maldades. O chefe daquele
local, no intuito de organizar um lugar especializado em tóxicos,
fundou o Túnel Negro e o colocou para administrá-lo. Com
o passar dos anos,  chefe se desinteressou pelo lugar e Natan
ficou sendo o senhor absoluto.
O Túnel Negro não forçava ninguém a ficar lá e nem seus
moradores saíam à procura de desencarnados para irem lá. Os
viciados desencarnados é que o procuravam, em busca das
drogas. Só que, depois de serem abrigados, tinham que seguir
as normas da casa e trabalhar para eles. Existem muitos lugares,
abrigos, cidades no Umbral, para onde os desencarnados
viciados são levados como prisioneiros. Como também há outros
lugares, como o Túnel Negro, onde os desencarnados não
são obrigados a ir e nem a permanecer. É lugar de livre acesso.
Mas Natan era insatisfeito e isso lhe doía e o atormentava.

Instalou-se, então, a troca de fluidos entre eles. Meu pai
começou a sofrer os de Natan, sentindo doer-lhe por dentro,
como um vazio profundo. Certo dia, meu pai estava meditando
e Natan perto dele, quando meu genitor lhe disse:

"Natan, é falta de Deus! É a ausência do Pai em você que
lhe dói tanto. Você era ateu, mas não pode dizer agora que
ainda o é. Por que, então, não se aproxima do Pai?"

Natan não respondeu e se afastou. Depois de meses, era a
primeira vez que se afastava. Recolheu-se num canto no Umbral
e pôs-se a pensar. No dia da reunião, quase no horário de
começar, ele entrou no Centro, pediu licença e se colocou na
fila dos que iam receber orientação, pela incorporação. Estava
diferente, sem seus colares e suas armas.


114 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK nR f auvnr un

Na sua vez de se comunicar, aproximou-se educadamente
de uma médium, cumprimentou meu pai e disse:
- Você me venceu!
- Não! Natan, você não lutou comigo. Mas lutou consigo
mesmo. Era a ausência de Deus que o atormentava. Você é
infeliz e apenas o convidamos a aprender a ser feliz. Fico contente
por você querer mudar. Gosto de você! Venha viver uma
vida digna de um espírito.
- Quero ser seu amigo! - exclamou Natan emocionado.
- Sejamos então amigos! Preciso muito de amigos.
Natan foi levado para a Escola de Regeneração. Após ter
feito o curso, foi trabalhar num Posto de Socorro do Umbral
onde exerce seus conhecimentos de Medicina, em socorro aos
necessitados. Sempre que pode vai visitar meu pai e assistir às
reuniões do Centro. Trabalha muito. Artur, sempre que o vê,
costuma dizer de forma carinhosa:
"Ama muito, porque foi muito perdoado!
Artur falou, modificando o texto do Evangelho de Lucas
VII:47. "São lhe perdoados muitos pecados, porque muito amou."

O Médico nazista



Quando fomos assistir à recuperação de Walter, na reunião
do Centro Espírita, defrontamos com um caso muito interessante
que me chamou atenção e, por isso, acompanhei o desenrolar
do drama.
Estávamos aguardando o início, quando chegaram três pessoas:
um casal com a filha adotiva. O casal, principalmente a
senhora, queixou-se que a mocinha, a filha, continuava tendo
suas crises.
Artur me explicou que Joana, assim se chamava a jovem,
era médium e estava sendo obsediada por alguns espíritos,
suas vítimas no passado. Tinha crises, em qualquer hora e lugar,
e procurava meu pai, em horários inoportunos, para lhe dar
passes, porque só assim se acalmava.

Minha mãe foi sentar-se ao lado dela, porque, conforme
me explicaram, logo que entrava no Centro, começavam suas
crises, e era necessário alguém perto que a controlasse. Seus
obsessores possuíam sobre ela o domínio psíquico, mesmo à
distância. Queriam que sofresse, pois ela os havia prejudicado.

Gosto muito de ver minha mãe, pois amamo-nos muito. É
a pessoa de quem mais gosto, e sempre que me é possível vou
visitá-la, ficar ao seu lado, porque me é prazeroso.

Joana é uma mulata forte, de olhar malicioso, demonstrando
não estar a fim nem de orar, nem de melhorar. Ali está
por imposição dos pais e para ficar livre de suas crises, que
considera ridículas e que lhe fazem passar vergonha. O seu


116 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

obsessor chefe era inteligente e sutil e, como ela tinha má
índole, passou a incentivá-la a fazer uso da maldade, chegando
a ponto de incorporar, utilizando-a como médium, e tentar matar
a mãe e o pai. Fazia com que descuidasse completamente
da disciplina pessoal e dos compromissos próprios de sua idade,
para envolvê-la no seu ardil. O desencarnado transmitia-lhe
acontecimentos do passado das pessoas para que, assim, dominasse
as mais fracas que a cercavam.
Quando foi levada até a casa de meu pai, o obsessor aceitou,
porque confiava que iria dominar qualquer encarnado com
que defrontasse, sentindo-se assim forte no seu orgulho e pretensão.
Vencidos os primeiros embates, o obsessor sentiu-se
admirado pela força que desconhecia e quis, então, aprender
com eles, com o grupo do Centro, não para melhorar, mas para
ficar mais poderoso.
" Artur me pôs a par dos acontecimentos. Joana, em sua
encarnação anterior, fora um médico nazista e praticara muitas
maldades e experiências com os judeus. Reencamou longe da
Alemanha, num corpo feminino e mulato, mas mesmo assim
foi encontrada pelos que não a perdoaram. Sabiam que ela
comparecia ao Centro para se livrar deles, os obsessores. Sorrindo
e com seu modo agradável, Artur comentou:
- Patrícia, seu pai, por ajudar a jovem, está sofrendo com o
rancor desses obsessores. Mesmo assim, está ajudando-a, embora
sabendo que ela não gosta daqui nem dele e que, assim
que se sentir livre dos desafetos, não voltará mais. Socorremos
para mostrar aos encarnados a força espiritual de que dispôe
um Centro Espírita, desde que se trabalhe em prol do bem
comum, e também dos que vêm pedir ajuda.
Prestamos atenção na orientação que meu pai deu aos três
encarnados: pai, mãe e filha.
- Só ficamos livres do nosso passado trabalhando no bem,
no presente. Para nos livrarmos de obsessores, devemos pedir
perdão, perdoar e nos harmonizar com as Leis Divinas. Precisamos
entender que os espíritos têm seus motivos para perseguir
as pessoas, por isso devemos entendê-los e tentar amá-los,
porque eles também necessitam de ajuda. Para não sermos


O VÔO DA GAIVOTA

atingidos pelos obsessores, devemos mudar nossa vibração,
sair da faixa mental deles, isto é, pensar em coisas boas e
superiores e agir de modo digno, trabalhar no Bem e amar
muito. Vocês aqui estão em busca de auxílio, porém devem
ajudar a si mesmos. Certamente, quando você se sentir bem,
Joana, não voltará mais aqui. Porém, quero lhe dizer uma coisa,
você é médium e necessita aprender a lidar com sua
faculdade e trabalhar muito no bem, para viver tranqüila e sem
essas crises. Mas, se você se afastar do Centro Espírita e não se
modificar, a situação que vive agora voltará sempre. Os Centros
Espíritas estão melhor preparados para ajudar nos casos de
obsessão, ensinando a lidar com a mediunidade para o bem, e
em suas reuniões ouvirá ensinamentos que ajudarão a sua renovação
interior.
Joana não gostou muito do que ouviu, mas ficou quieta.
Quando começou o trabalho de desobsessão, três dos que
a estavam importunando, se comunicaram. Os três, dois homens
e uma mulher, foram judeus, ou ainda eram, pois o fator
raça se mostrava ainda forte neles. O primeiro estava sem um
braço e sem o olho esquerdo. Cumprimentou mal-humorado,
não queria conversar com ninguém, foi perto do médium contra
sua vontade e falou com raiva:

- Por que interferem no que é justo? Embora tenham outra
religião, vocês amam a Deus. Nunca ouvi falar de religião deste
jeito. Oram, dizem fazer o bem, conversam com os mortos,
mas ajudam os criminosos. Isto não está certo. Por que o ajudam,
esse monstro sanguinário?

O desencarnado desconhecia o Espiritismo, estranhando o
intercâmbio mediúnico e o ensinamento de que todos somos
filhos de Deus e, por isso, irmãos uns dos outros.

- Se eu lhe disser que queremos é ajudar você... - começou
a dizer meu pai, porém foi interrompido por ele.

- Ah, mas por que não nos avisaram logo que querem se
unir a nós. Quanto mais, melhor!
- Você não entendeu, queremos ajudá-lo a se recuperar, a
tomar-se sadio, a viver de modo digno, num lugar propício.

- Quem lhe falou que quero ser sadio? - indagou nervoso.


118 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

- Já me propuseram isto uma vez e não aceitei. Quero ficar
como ele me deixou, para ter sempre motivo para odiá-lo.
- Você sofre e faz sofrer - disse meu pai.
- Nem começamos. É melhor dizer: sofre e faremos sofrer
cada vez mais - respondeu ele.
- Não vale a pena! Você já pesquisou por que sofreu assim?
Se sabe que continuamos a viver após a morte do corpo,
que reencarnamos e, por isso, é que você o está perseguindo
reencarnado em outro corpo? Então sabe que viveu encarnado
outras vezes. Vamos, irmão, recordar seu passado?
A equipe desencarnada, já pronta, colocou à sua frente a
"tela", que é como na espiritualidade chamam este aparelho.
Ele é denominado de muitas maneiras, havendo alguma diferença
de um local para outro, mas é sempre o mesmo e muito
útil. O espírito que se comunicava fora, na encarnação anterior
também judeu e, numa guerra, havia trucidado muitás pessoas,
entre elas jovens e crianças. Ao recordar, deu gritos lancinantes,
mas o médium, treinado, só alterou um ouco a voz isso
porque não é necessário gritar. Acalmaram o desencarnado
que, com dificuldade, voltou a falar.
- Olho por olho...
- Não, meu amigo - disse meu pai. - É a lei do retorno:
você plantou, você colhe. Não precisaria sofrer assim, se tivesse
entendido a lei do Amor e feito o bem.
- Ela também pagará pelo que fez? Pelo que entendi, se
ela não Fizer o bem, sofrerá o que me fez sofrer. Você não irá
conseguir fazer dela uma pessoa boa. Que será dela?
- Deixe-a, irmão, deixe-a! Cuide de você. Vamos ajudá-lo,
pense em Deus. O Pai é bondoso e nos ama.
A equipe médica entrou em ação e com os fluidos doados
pelos encarnados e também pela vontade do espírito que, agora,
queria tornar-se sadio. O braço se curou e ficou perfeito,
como também o olho.
- Perdoe, irmão, para ser perdoado!
- Como não perdoar, se devo tanto? Perdôo e peço perdão
a Deus. Queria ir para junto dos meus, lá na minha terra.


O VÔO DA GAIVOTA 119

- Atenderemos seu pedido.

Ele saiu de perto do médium e passou para outra fila, a dos
que iam para a Colônia. Após a reunião, seria levado à Colônia
São Sebastião por uns dias e, depois, seria transferido para
onde quisesse. Uma equipe o levaria.
Normalmente reencarnamos em diferentes raças, para
aprender amar a todas. Mas, sem ser regra geral, alguns judeus
mais radicais ainda têm preferido vir sempre como judeus, a
esperar o Messias, pois se julgam os filhos escolhidos, o povo de
Deus, mas são, realmente, como todos nós, porque não somos
privilegiados pela raça. Aqueles desencarnados, totalizando
onze, estavam há algum tempo, nas regiôes espirituais do Brasil,
à procura, para vingar, deste espírito, que fora um médico
nazista. Já começavam a dominar o idioma português, pois o
médium que o auxiliou, sempre consciente, não precisou se
expressar com sotaque. Devemos esclarecer que o médium
transmite o pensamento do espírito e, nestes casos, sentem
mais do que propriamente repetem o que escutam. A mediunidade,
quando educada, é maravilhosa, e assim possibilitou que,
ele, judeu, transmitisse pensamentos que o médium traduziu
por palavras.
O outro judeu se incorporou em outra médium e foi doutrinado
por uma integrante encarnada, do grupo. Lídia conversou
com ele e o fez entender a necessidade de perdoar e seguir seu
caminho. Ele, porém, quis ficar em nossa Colônia e, quando
fosse reencarnar, preferia que fosse aqui. Não gostaria mais de
ser judeu, porque, segundo comentou, os judeus sofriam muito
com a segregação. Normalmente esses pedidos são atendidos,
porém o departamento próprio da Colônia é que estuda cada
caso.
A mulher também incorporou. Parecia fria, porém ao sentir
o afeto dos trabalhadores da casa, encarnados e
desencarnados, conteve-se para não chorar, e disse com voz
comovida:
- Não sou má, ele, sim, é maldoso. - referindo-se à jovem
Joana. -Esconde-se em outro corpo, mas é ele. Pensa você que
ele é bom? Não! Nos enfrenta e, se pudesse, nos faria sofrer


120 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARvAl.un

tudo novamente. Você acha que é por persegui-lo que somos
maus? Somos vítimas! Vou falar o que ele fez comigo e, então
me dará razão.
Fez uma pausa e como se criasse coragem para recordar e
começou:
- Estava casada e feliz, tínhamos uma pequena fortuna e
dois filhos lindos. Quando a Segunda Guerra Mundial começou,
nos apavoramos, porque sabíamos muito bem que os nazistas
perseguiam os judeus. Meu esposo alistou-se no exército, na
tentativa de impedir que eles nos oprimissem, no país em que
vivíamos e, por isso, morreu lutando. Quando houve a invasão
de nossa cidade, fomos presos e nossos bens confiscados. Da
prisão partimos para o Campo de Concentração, onde sofremos
muito: frio, fome e humilhações. Naquele Campo havia um
laboratório onde este médico medonho e outros faziam experiências
com os presos, ou simplesmente os torturavam pelo
prazer de vê-los sofrer.
Ao ver meus filhos chorarem de fome e frio, e com muito
desconforto, resolvi pedir clemência. Solicitei para falar com o
comandante e, para minha surpresa, ele me atendeu e me
levou à sua sala. Quem me atendeu foi esse aí, o médico
nazista, que me olhou de cima a baixo e me indagou:
"Então, judia, que reivindica?"
Pensando que ele ia me ajudar, falei rápido para não perder
a coragem:
"Por favor, senhor, aqui estou com meus dois filhos pequenos,
passamos fome e frio."
"Se você se entregar a mim, intercederei por vocês" - disse
rindo.
Sempre fui muito direita, fiel ao meu esposo, porém, pelos
meus filhos, aceitei a proposta indecente. Depois, ele mandou
que um soldado fosse buscar meus filhos. Achei que, pela felicidade
dos meus, teria valido o sacrifício. E, esperançosa, quando
pensei que fosse me dar ajuda, meus dois filhos chegaram
assustados e correram ao meu encontro. O mais velho estava
com quase sete anos e o outro, com quatro. Gelei quando ouvi
a ordem.


O VÔO DA GAIVOTA 121


"Leve-os ao laboratório!"
Era no mesmo prédio, na sala ao lado. E cada soldado
pegou um de nós e para lá fomos arrastados. Amarraram-me
fortemente numa cadeira e ele, cínico, me olhou sorrindo:
"Idiota! Judia imbecil! Pensou que eu ia me encantar por
você? Verá para que serviu sua astúcia em me pedir auxílio."
Pedi a ele por piedade, pelo amor de Deus, para fazer o
que quisesse comigo, sem maltratar meus filhos, porém ele ria.
O que me fez ver foi horrível. Torturou meus filhos, cortou-os
em pedaços até que morressem. Eles gritavam apavorados,
olhando para mim e eu gritava também. Quando os dois não
tinham mais vida, veio me torturar. Começou, extraindo minhas
unhas. Fiquei alucinada e, aí, perdi o controle, pois a dor
era demais. Mas ele não me torturou muito, desencarnei, pois
meu coração não agüentou. Fui socorrida e fiquei muito tempo
como louca e, quando voltei ao normal, alguns espíritos me
disseram da possibilidade de vingança. Aceitei e agi, com todas
as minhas forças, para me desforrar.
Faço uma pausa nesta narrativa, para algumas explicações.
Nos Campos de Concentração, como em qualquer lugar
de aniquilamento humano, há muitos socorristas, como também
há muitos desencarnados que agravam os acontecimentos.
Do mesmo modo, costumam ficar outras vítimas a socorrerem
suas companheiras de sofrimento. Esta senhora foi socorrida
por outros judeus, que ali haviam desencarnado. Não foi, assim,
socorrida por espíritos bons, porque ela estava com muito
ódio. As crianças e aqueles que perdoavam, eram levados às
Colônias ou a outros lugares de socorro. Os que eram vítimas,
tanto quanto ela, a socorreram, levando-a para um pequeno
abrigo no Campo de Concentração, no Plano Espiritual e, quando
ela aparentemente estava melhor, foi convidada a se vingar.
A guerra é por demais triste, pelas atrocidades que se cometem.
Esforcemo-nos, pois, para que haja Paz, começando com
a tolerância e a concórdia com os que nos cercam. A Paz começará
em pequeno círculo, mas se a cultivarmos irá se ampliando
e atingirá muitos outros e, dessa forma, um dia teremos a Paz
por toda a Terra. E fatos como esses, tão tristes, ficarão apenas
na história e não mais se repetirão:


122 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARIN7.Rrr nF rnnvn u,

A senhora emocionada, continuou a falar.
- Ficávamos perto dele sem, contudo, conseguir nossos
propósitos e ele ficava mais nervoso e revidava nos prisioneiros.
Mas a desencarnação chegou para ele, quando foi atingido
por uma granada. Sofreu bastante. Aí, sim, começamos nossa
vingança. Nós o perseguíamos por onde ia, e ele vagava urrando
pelo Umbral, até que se pôs a gritar por socorro e sumiu da
nossa frente. Vim a saber que espíritos bons o tinham levado
para ajudá-lo. Nós não fomos socorridos, não queríamos, porque
nosso objetivo era fazê-lo sofrer. Durante esse tempo, muitos
desencarnados bons conversaram conosco, aconselhando-nos
a desistir, mas escutávamos somente nossos companheiros.
Entretanto, vários do grupo desistiram e os acompanharam. Por
outro lado, ninguém se esconde de seus erros e nem dos que
não o perdoaram. E assim, enquanto procurávamos o perverso,
aprendemos como nos vingar. Anos se passaram, mas conseguimos
descobri-lo. Agora querem que eu desista Por acaso
aqui há mães e pais? Será que podem imaginar o que é ver o
que eu vi? Sofrer o que sofri? Dá para imaginar ver seus filhos
amarrados, gritando de dores e desespero? Odeio-o! Odeio-o!
Fez-se um silêncio total. Todos os desencarnados prestaram
atenção, muitos, ao ouvi-la, conseguiram ver suas
lembranças. Alguns choraram. Os encarnados também se comoveram.
Ela sentiu os fluidos de amor e compaixão de todos.
E, em dado momento, uma das trabalhadoras da casa, em
espírito, aproximou-se dela, abraçou-a e falou emocionada:
- Minha filha, pare de sofrer! Por favor, recomece sua vida.
Também sou mãe e entendo seu sofrimento. Compreendo seu
desejo de vingança, porém, digo-lhe que dessa forma você vai
perpetuar seu sofrimento. Venha para junto de seus amados e
não sofra mais! Chega! Perdoe e venha conosco. Amarei você
como uma filha! Venha!
- Minha irmã! - falou meu pai. - Ele reencarnou, e você
parou no tempo só para se vingar! Por que não recomeça e
tenta ser feliz? Devemos esquecer os momentos que nos foram
cruéis e só lembrá-los para tirarmos alguma lição. É bem melhor
pensar somente nos bons momentos. Você é infeliz! E
recordando sempre esses fatos, prolonga mais seu sofrimento.


O VÔO DA GAIVOTA 123

Você acredita em Deus, e se Ele nos perdoa por que não perdoa,
nosso próximo? Sabe que nada que acontece fica escondido
ou impune. Deixe seu algoz, agora Joana, em seu novo corpo, e
cuide de você. Perdoe para ser perdoada!

- Quero esquecer! Esquecer!..

Aninhou-se nos braços da trabalhadora da casa que a abraçou
e, após, foi levada adormecida para a Colônia. A reunião
terminou com todos comovidos pelo sofrimento daquela senhora,
e eram muitas as orações em seu favor. Emocionei-me,
também, ao acompanhar suas lembranças, realmente duras
cenas de horror.
Talvez possam vocês pensar que retrato muitas tristezas
neste livro. É que as tristezas e as alegrias existem e devemos
ser realistas, tirando de fatos tristes lições preciosas que nos
impulsionarão com otimismo para o caminho do Bem e para a
felicidade. Ao tomar conhecimento de fatos assim, conseguimos
entender ambas as partes, e ajudar sem condenar. Por isso
como sou alegre, passo minha alegria aos que me rodeiam. A
alegria nos fortalece, nos anima e nos dá compreensão da dor
do próximo.
Aquela senhora foi internada num hospital da Colônia onde
recebeu, por tempos, tratamento, carinho e ensinamentos. A
equipe da Colônia encontrou seus dois filhos e esposo, encarnados
na Europa, e a levou para vê-los. Estavam os três bem.
Depois de algum tempo, ela pediu para ser transferida para a
Colônia, na espiritualidade, onde estavam seus entes queridos.
Estando bem melhor e com planos para reencarnar, porque só
assim esqueceria tanto sofrimento, foi transferida. Despedi-me
dela desejando-lhe boa sorte.
Mas ainda faltavam oito obsessores. Sete receberam orientação
e ajuda, nas reuniões seguintes. Com cada um deles,
uma história triste. Desses onze que obsediavam Joana, com
desejo de vingança, dez foram socorridos e só um pediu para
trabalhar no Plano Espiritual. Os demais pediram para reencarnar,
pois queriam a misericórdia do esquecimento. E todos foram
atendidos.
Contudo o chefe dos dez obsessores, de nome Josef, era


124 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHn

um judeu rude que, ao ver os três primeiros se afastarem, voltou-se
furioso contra meu pai, que, como sempre acontece,
sentiu-lhe a vibração e tentou, também, orientá-lo.
Artur soube que o grupo tinha seu núcleo na Europa e foi
lá, para conversar com eles. Eram vingadores dos criminosos
de guerra, que se intitulavam: "Os Ofendidos da Guerra". Constituíam-se
em vários grupos, todos unidos entre si. Artur pediu
uma audiência com o chefe, um judeu de muitos conhecimentos.
Após cumprimentos, Artur começou o diálogo. E nos contou,
depois, que o chefe tinha total conhecimento do que
acontecia com seus subordinados, junto a Joana, e não deixou
que ele, Artur, falasse muito. Citava com exatidão pedaços do
Antigo Testamento. Sabia a Biblia quase que de cor Falava de
muitas passagens para justificar a vingança.
"É olho por olho, dente por dente!" - falou demonstrando
calma.
Artur replicou com os ensinamentos de Jesus. Ele disse
não acreditar num profeta que se deixou matar. Mas, após alguns
minutos de conversa, confessou que reconhecia a força e
a presteza dos trabalhadores de Jesus. Artur lhe pediu, então,
que parasse com as vinganças; ele riu, se aquietou por momentos,
e falou decidido:
"Não é nosso interesse o confronto com ninguém. Temos
tempo. Vou suspender a vingança dele por enquanto. Chamarei
Josef, o único que ficou, e que é o mais decidido em seus
objetivos. Só faço um aviso: teremos outra oportunidade. O
mais difícil já conseguimos, pois sabemos onde ele está, que se
esconde num corpo de mulher quase negra. É castigo para ele,
orgulhoso de sua raça, ter sido loiro e rico, agora quase pobre,
mulher, mulata e filha adotiva. Acharemos outros que o odeiam.
Ele certamente não ficará para sempre na guarda de vocês,
porque não mudou sua conduta."
De fato, Josef foi embora e Joana ficou livre dos seus obsessores,
não porém de seus erros. Meu pai chamou-a e a seus
pais também, para uma conversa.
- Vocês vieram à procura de ajuda espiritual e a receberam.


O VÔO DA GAIVOTA 125

Analisem o ocorrido e tirem boas lições de tudo o que lhes
aconteceu. Esses fatos são, em parte, conseqüência do passado
e o resultado da maneira de viver sem esforço para a melhoria
íntima. Você, Joana, está com sua sensibilidade completamente
aflorada, isto quer dizer que você tem a porta aberta para
receber influência do mundo astral, sem, entretanto, agora,
poder discipliná-la. Só terá influência e sintonia com espíritos
bons, por meio de boas atitudes e de bons propósitos. E ficará
ligada aos maus, se descuidar do seu aprimoramento espiritual.
Se você se afastar do Bem, da oração sincera, e não se
esforçar para mudar para melhor, não nos responsabilizaremos
pelos acontecimentos futuros. Afastando-se também da ajuda,
tudo que passou mais facilmente se repetirá.

Joana não estava preocupada com o aprimoramento espiritual.
Queria era força e poder. Dominar. Mas indagou a meu
pai.
- Sr. José Carlos, posso aprender com o senhor.
- Claro que pode. Deve!
- Vou ter essa força que o senhor tem?
- Poderá ter esta e muito mais. Mas, para isso, deve primeiramente
educar-se na boa conduta e fazer por merecer a
companhia dos trabalhadores desencarnados que convivem conosco.
Mude para melhor e queira com vontade fazer o Bem,
porque agindo assim aprenderá e muito.

Joana não respondeu. Sentindo-se melhor, afastou-se do
Centro. Sua mãe ainda voltou outras vezes, mas também fez o
mesmo. Artur me disse:
- Patrícia, nesse socorro, ajudamos mais os desencarnados
que essa jovem. Ela, agora, não quer mais saber de seu pai
e, quando o vê de longe, se afasta para nem cumprimentá-lo. A
figura dele a faz recordar os ensinamentos que escutou, e que
ela quer esquecer.
- Como ficará ela? - indaguei.

-Vamos aguardar. Os erros, Patrícia, não conseguimos jogá-los
fora, porque nos pertencem, e um dia a reação virá. Quando
o grupo de vingadores perceber que ela não está mais sob a
proteção dos bons, voltará, talvez, como tenho visto em casos


126 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHn

assim, com mais sutileza e cautela. Ela, não vindo aqui e nem
recebendo outro auxílio, não estará vinculada a uma proteção
e, como não faz por merecer nenhuma ajuda, será fácil eles
voltarem e se vingarem. Ele, ao desencarnar como médico
nazista, foi socorrido, no Umbral, livrando-se daqueles que queriam
dele se vingar, sendo levado na ocasião para um Posto de
Socorro e logo em seguida reencarnou. Socorro não quer dizer
que o indivíduo tenha mudado, porque, mesmo que receba
orientação, para mudar será necessária uma transformação
interior muito grande.
Fiquei a pensar como a crueldade faz mal ao que a pratica.
Quanta imprudência em cometer erros. E a reação desses
atos pedirá reajuste no caminho, mas como Deus é misericordioso
sempre dá novas oportunidades.
Ao findar esta narrativa, posso concluir que todos nós, encarnados
e desencarnados, tivemos um grande ensinamento
com os fatos ocorridos. Que todos nós temos que aprender a
amar, a ser úteis para termos Paz e sermos felizes. E que a
alegria interna virá quando superarmos nossos traumas íntimos
e ajudarmos outros a fazê-lo. Alegria!


A -istória de Elisa


Numa das minhas folgas, fui visitar Elisa. Queria rever minha
amiga e tinha muito interesse
pela
recuperação de Walter. O des f rá profunda o perispírito do
uso das drogas traumatiza de o arte dos nossos
esse vício atinge boa p
usuário. Atualmente, rporal e levando
jovens encarnados, trazendo-lhes muitas mazelas. O caso de
os a voltar à espiritualidade com
Walter era de meu particular interesse, pelo socorro de que
participei e pelo muito que apreônlcomro delanp ntro em meu
ara podermos

horário livre, de lazer, coincidin osto muito de
conversar calmamente, trocando idéias, pois

diálogos edificantes. Elisa esperava-me na portaria do hospital
em que, no momento, trabalhava e onde Walter estava internado.
Alegramo-nos quando nos vimos. ir vê-la. Que
- Patrícia - exclamou Elisa feliz -, programava

bom tê-la conosco! Quero agradecer-lhe. Foi muito atenciosa
conosco. s osta e minha amiga como boa cicerone,
Sorri em re p '
mpanhou-me para conhecer o hospital. 1 próprio para
aco um hospita
Quase todas as Colônias t émóxico. Em algum
as outras

viciados em álcool taba ismo 1 se aradas, em hospita
Colônias, esses doentes ficam em a as p is
tradicionais.
Na Colônia Perseverança, o hospital é separado, grande e
com muitos trabalhadores dedicados que ajudam na recuperação


28 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

de desencarnados viciados.'6 Lugar calmo, com muitos jardins,
salôes para palestras e encontros; suas principais terapias
são o trabalho, a música e o teatro. Suas enfermarias são
separadas por alas masculinas e femininas e pelo tipo de vício
que o infermo possui.
Primeiramente, vimos a parte central onde se situam as
salas de orientações, os alojamentos de seus trabalhadores, a
biblioteca e os salões. Após, Elisa me levou para conhecer o
atendimento aos desencarnados que, no corpo físico, foram
fumantes. Estes, se tinham só esse vício, não ficam internados,
só vêm ao hospital para serem ajudados a se libertar da vontade
de fumar. Só em casos raros é que um ex-fumante se interna,
e isso se pedir, mas, mesmo assim, sempre por pouco tempo. O
tabagismo intoxica bastante o perispírito e, nessa parte, fazem
tratamento para que o assistido se liberte da dependência, sendo
assim, ele recebe conhecimentos sobre  assunto, orientação
e apoio que o ajudarão a resolver o problema. Mas só o conseguirão
se, novamente reencarnados e tendo oportunidade, não
fumarem. Ressalvo o termo oportunidade, porque, se estiver
encarnado e, por algum motivo, não puder fumar, não quer
dizer que tenha solucionado a questão. Isso acontece com todos
os vícios, e só podemos dizer que os vencemos, quando
temos oportunidade de voltar a eles e os ignoramos.
A ala dos alcoólatras é grande. O álcool danifica o cérebro,
e o aparelho digestivo, sendo muitos os doentes a se recuperar
em vários estágios nessa parte do hospital. Os infermos, quando
melhoram, assistem a muitas aulas, fazem terapia de grupo e
avaliam todos os acontecimentos passados por eles, decorrentes
do vício, e apreciam as oportunidades de melhora oferecidas.
A parte que nos interessava, era a que Elisa se dedicava
com todo carinho, a ala dos toxicômanos. Infelizmente esse
local do hospital e os de todas as Colônias têm sido ultimamente
ampliadas. São muitos os imprudentes que desencarnam

16 - Muitos desencarnados estão tão agarrados à matéria, que se sentem
por muito tempo como encarnados, daí a minha referência a "desencarnados
viciados". (N.A.E.)


O VÔO DA GAIVOTA 129

vítimas, direta ou indiretamente, das drogas. Os que estão ali
socorridos, têm aspecto bem melhor dos que os que vagam ou
os que estão no Umbral. Nas Colônias, são separados pelo grau
de perturbação em que se encontram e o tratamento normalmente
é longo, requerendo esforço do internado, e muita
dedicação e amor dos trabalhadores.

Não pensem os leitores que nesses hospitais só se vêem
tristezas. Nada disso. Tristeza é sentimento negativo. Não ajuda
e para nada serve, pois só construímos e progredimos com o
trabalho alegre. Os trabalhadores dali tinham sempre no rosto
o sorriso bondoso e agradável, a palavra amiga e o amor que
irradiava e contaminava os internos e, assim, os temporariamente
abrigados se sentiam seguros, incentivados, amados, e
com disposição para se recuperarem.

O hospital da Colônia Perseverança é muito bonito e acolhedor.
Elisa me levou à ala onde Walter estava abrigado, e ele
nos esperava no jardim interno que circunda a parte de sua
morada provisória. Recebeu-nos sorrindo e estava com aparência
sadia, com normal equilíbrio.

- Patrícia - disse sorrindo -, queria tanto conhecê-la e
agradecer. Obrigado!
- De nada - respondi. - Como tem passado?
- Melhoro, graças a Deus e ao pessoal do hospital. Vou
ficar bom logo.
Walter estava com a aparência de adolescente, como aparentava
naquela reunião do Centro Espírita. E continuaria assim
porque queria essa aparência, a que tinha antes de se drogar.
Isso lhe dava mais confiança. Outros, após o tratamento no
hospital, podem retomar, se quiserem, a aparência de quando
desencarnaram, só que com aspecto sadio.

Sentamos os três num banco e fizemos alguns comentários.
Elisa falou alegremente:

- Estou gostando muito de trabalhar neste hospital. Aqui
vim por Walter, mas agora não penso em deixá-lo. Quando
Walter tiver alta, ficarei, de vez que já decidi e obtive autorização.
Estudarei, para aprender e melhor servir neste campo de
ajuda. E você, Patrícia, quais são seus planos para o futuro.


130 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

- Como você sabe, gosto muito de ensinar. Logo, Marcela,
a quem substituo, retomará a seus afazeres. Devo, então, voltar
à Colônia Casa do Saber, continuar os estudos e trabalhar transmitindo
meus conhecimentos a outros desencarnados."
Admirei o banco em que nos sentávamos, muito bonito e
de contornos diferentes. Notando, Walter explicou:
- Esses bancos são feitos por internos em nossas oficinas.
- O trabalho é de grande ajuda e uma das melhores terapias
para nossos abrigados - disse Elisa, olhando carinhosamente
para Walter. - Mas não só para eles e, sim, para todos nós,
encarnados e desencarnados. O trabalho é bênção. Corpos e
mentes ociosos estão com as portas abertas aos vícios, enquanto
que o trabalho nos mantém ocupados e nos abre outras
portas opostas a eles. Aqui em nossas oficinas se faz muita
coisa.

No Plano Espiritual, tudo pode ou poderia ser plasmado.
Mas os que sabem dar formas às coisas são poucos, pois necessita-se
de tempo e de muito aprendizado para a tarefa. O trabalho
é uma bênção que ajuda intensamente a todos nós e, na espiritualidade,
representa importante benefício, existindo trabalho,
do mais simples ao mais difícil, para todos os que quiserem.
Inúmeros desencarnados ainda estão muito apegados ao modo
de vida na Terra e, assim, quando trabalham, lhes é dado o
bônus-hora. Os que já superaram esse apego, entendem o porquê
do trabalho e não mais necessitam esse tipo de
remuneração. Pessoas que já trabalham sem esse apego, quando
chegam ao Plano Espiritual, participam da vida aqui,
exercendo suas tarefas pelo Amor ao trabalho, não exigindo
nada em troca. No hospital, os internos que ali auxiliam, rece

17 - A Colônia Casa do Saber, que descrevi no terceiro livro, A Casa do
Escritor, é onde moro atualmente, ao escrever este livro. E tenho planos
de ficar aqui por muito tempo, sendo que virei raramente à Terra, para o
contato com os encarnados. Foi uma opção que fiz, atendendo convite de
superiores. É tarefa que faço com muita alegria, porque somos sempre os
beneficiados pelas responsabilidades que nos oferecem. Devemos, pois,
participar de todas elas com muito regozijo e amor, e dessa forma tudo o
que realizarmos ficará bem feito. (N.A.E.)


O VÔO DA GAIVOTA 131

bem os bônus-hora, mas são poucos os trabalhadores que servem
no hospital e que os recebem. Há muito tempo que não os
necessito, mas lembro-me de minha alegria, quando obtive
meu primeiro bônus-hora. Foi uma euforia trabalhar e ter uma
compensação. Agora, minha alegria é somente ser útil. Não
almejo recompensas.
Quietamo-nos por alguns segundos. Meus pensamentos vagaram
pela trajetória vivida por pessoas como Walter. Suas
existências, até serem socorridos, são uma verdadeira tragédia.
Elisa quebrou o silêncio.
- Patrícia, você não pode imaginar o tanto que sonhei, por
todos estes anos de desencarnada, com este momento. Estar
assim com meu Walter, em plena recuperação. Sou muito grata
a Deus por esta oportunidade.

Fechou os olhos por momentos e depois começou a falar
com sua voz suave.
- Tudo começou em nossas encarnações anteriores, em
que fomos unidos pelo afeto maternal. Fui mãe dele, meu nome
era Gertrudes. Nasci e cresci num bordel de uma cidade pequena,
onde me tornei prostituta logo mocinha. Aos vinte anos, tive
um filho, José, que é o Walter de agora. Até os seis anos, minha
avó, que morava perto, cuidou dele. Quando ela desencarnou,
ele veio morar comigo. Mimei-o demais, dando-lhe tudo o que
queria e, muitas vezes, eu justificava minhas atitudes, falando
que isso era bom para ele. Menino ainda, começou a tomar
bebidas alcoólicas, e achei linda sua atitude.

O tempo passou rápido e ele tornou-se moço, foi então que
percebi que ele andava se embriagando demais e tentei fazê-lo
parar, só que não consegui. Quando chamava sua atenção, me
respondia grosseiramente:

"Bebo por você ser o que é. Gostaria de ter uma mãe
trabalhadeira e honesta!"

Isto me feria muito. E ele se embriagava cada vez mais,
até que passou a ficar quase que somente bêbado. Desencarnamos
quase que na mesma época. Fiquei doente e desencarnei
após muito sofrimento. Ele ficou pelo bordel, onde todos o conheciam
e lhe davam de comer, além de bebidas. Desencarnou


132 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

ao cair de uma ponte alta e bater a cabeça nas pedras. Sofremos,
vagando juntos, pelo Umbral. Ele, sempre me culpando,
dizia:

"Se tivesse me batido na primeira vez que bebi e não
achado graça, eu não teria me tornado um bêbado."
Depois de muitos sofrimentos, fomos auxiliados e levados
para um Posto de Socorro, onde ficamos por um período. Aconselhados
a reencarnar, pedimos para renascer em famílias de
costumes rigorosos que nos ajudassem a superar nossos vícios.
Atenderam-nos e reencarnamos, e viemos somente como conhecidos,
nem amizade tivemos.
A família que me abrigou, educou-me com costumes rígidos,
o que achava certo, pois me sentia segura. Queria acertar,
queria vencer o vício e consegui. Fui uma moça honesta e
trabalhadeira e, por ser bonita, fui assediada por muitos rapazes,
mas não dei importância a nenhum. Não desejava namorar,
pois sentia que ia desencarnar logo e não queria deixar ninguém
mais a sofrer por minha causa. E, realmente, tive câncer
e desencarnei. Meus pais e meus irmãos sentiram bastante
minha falta, mas não me atrapalharam e muito me ajudaram
com suas preces. O resto você já sabe.
Walter prestou muita atenção no que ouvia e, após uma
pausa, disse:
- Ao ouvir Elisa falar, as cenas vieram-me à memória.
Recordo... Era pequeno e já gostava de bebidas alcoólicas, e
como minha mãe não proibia, passei a tomar muito, prejudicando-me.
Gostava do bordel, porque ali todos me tratavam
bem. Depois me tornei tão dependente do álcool, que só ficava
embriagado e, assim, quando desencarnei, sofri muito. Reencarnado,
nesta última vez, como Walter, tive outra oportunidade,
mas logo o gosto pela bebida aflorou forte em mim. Bebia
escondido, porque meus pais me proibiam e, como a bebida
deixava cheiro, dificultava-me dissimular. Eles me vigiavam,
regulavam meus horários e, percebendo minha tendência para
a bebida, cheiravam minha boca sempre que voltava para casa.
Então, enturmei-me com colegas na escola e experimentei a
maconha e, depois de algum tempo, a cocaína. Comecei a tirar


O VÔO DA GAIVOTA 133

notas baixas, sendo ainda aprovado naquele ano, mas no ano
seguinte, em que já me viciara pesado, as notas pioraram e
meu comportamento estava péssimo. Meus pais foram chamados
pela diretora e souberam de tudo. Levei uma surra,
tiraram-me da escola e passaram a me vigiar mais ainda. Desesperado
com a falta da droga, fugi de casa e fui morar com
viciados e traficantes num barraco. Meus familiares sofreram
muito e meu pai, que era o mais rígido, mandou me dizer que
ele ainda me aceitava em casa, se largasse o tóxico. Se quisesse
ficar entre os criminosos, que os esquecesse, porque eu
estava morto para eles. Como queria a droga, fiquei naquela
vida. Minha mãe vinha me visitar, às escondidas, e trazia roupas,
alimentos e dinheiro, mas chorava sempre quando me via.
Continuei me drogando cada vez mais...

Ao recordar esses momentos dolorosos, Walter começou a
gaguejar, falando com dificuldade as últimas frases. Começou a
ter uma crise. Elisa e eu lhe demos um passe, que o acalmou,
provocando-lhe sono e nós o levamos para o leito na enfermaria.
Elisa, então, terminou a narração do que aconteceu com
Walter.
- Ele contraiu dívidas por causa das drogas e, como não
conseguiu pagá-las, foi assassinado. Desencarnou e continuou
desesperado, alucinado pelas drogas, quando procurou o Túnel
Negro. Naquele local eles ensinavam os desencarnados viciados
a vampirizar encarnados para satisfazerem o vício e,
também, o hipnotismo de Natan os fazia sentir como se tivessem
usando drogas.
Nós ajeitamos Walter no leito e ele, sonolento, virou-se
para mim e disse:
- Elisa não é culpada! Ninguém é responsável pelos nossos
erros a não ser nós mesmos. Se antes eu a acusava, foi na
tentativa de culpar alguém, de colocar em outros a responsabilidade
que era só minha. Nesta última encarnação tive pais que
se importaram comigo, honestos, exemplificaram o Bem e não
tive a quem culpar a não ser a sorte, sendo que nossa sorte nos
mesmos é que a fazemos. Não venci meu vício!

- Mas vencerá! - exclamei.


134 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

Walter dormiu.
- Como o tóxico prejudica a tantos imprudentes - disse
Elisa. - Walter fará o tratamento muito tempo ainda, e só estará
bem quando lembrar-se de tudo o que lhe aconteceu e não
sentir nada. Ele tem aula de Evangelização, faz orações, tem
terapia e acompanhamento psicológico. E também, Patrícia,
como foi boa a regressão para Walter, a doutrinação que ele
recebeu, na reunião Espírita.
Elisa ajeitou o lençol do leito dele com carinho de mãe e,
em seguida, saímos silenciosas do quarto.


O VÔO da gaivota.


Elisa me acompanhou até outro jardim, que fica na frente
do hospital. É um recanto mais bonito, cheio de flores coloridas
e palmeiras frondosas. Ali muitos internos passeiam em horário
de lazer, por ser um lugar agradável. Minha amiga convidou-me
para sentar e falou:
- Patrícia, tenho, na espiritualidade, trabalhado em muitos
lugares, entrando em contato com muitos trabalhadores e socorridos.
Aprendi que aquele que ajuda, trabalha, está se
exercitando no bem para que, pelo hábito, possa ter melhor
disposição na conquista de sua evolução.
No meu convívio com você e com os integrantes do Centro
Espírita, percebi que pode haver diferença. Quando Walter e eu
estávamos sendo amparados, em nenhum momento me senti
necessitada, como aquela que estava sendo ajudada. Pelo contrário,
todos da equipe realizaram o socorro como se estivessem
fazendo algo para eles mesmos, com naturalidade e atitudes
rotineiras. E eles não estavam lidando com desencarnados perturbados
comuns, mas sim com espíritos trevosos e um mago
maléfico ou um satanás, se assim podem-se designar Natan e
sua equipe. Você pode me explicar o estado espiritual daqueles
trabalhadores?
- Elisa, quase todos aqueles espíritos atingiram o chamado
autoconhecimento e, aqueles que não o atingiram, estão se
esforçando para tal. Não necessitam de estímulos externos,
para fazerem o que fazem, nem pagamento ou recompensas


136 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

de qualquer espécie. Sabem que são pequenos, espiritualmente,
conhecem todos os meandros da personalidade, com todas
suas misérias, conflitos, condicionamentos, ilusôes, e a nossa
peculiar ignorância quanto à verdade daquilo que realmente
somos. Não estão estacionados, vivem plenamente a onipresença
Divina, e se sentem unos com ela, porque vivem como
parte integrante do Universo. E, assim, trabalham, responsabilizando-se
com tudo, como se a casa fosse deles.
Tudo o que fazem é por amor à vida, que está presente
tanto neles como em qualquer manifestação Divina, daí a naturalidade
e desprendimento que você sentiu em seu convívio.
- Patrícia, posso chamá-la de Gaivota?
Com meu consentimento, Elisa continuou:
- Então, Gaivota, como me explica o socorro prestado a
mim. Ajuda? Trabalho? Bem realizado?
- Por que me chama de Gaivota? - perguntei.
- Gaivota é um pássaro muito bonito - respondeu ela -,
quase todo clarinho, elegante e de voar preciso. Depois sempre
deixa sinal de seus pezinhos na areia, mostrando que passou
por ali. Deixa marcas. E você deixou marcas em nossas vidas,
na minha e na de Walter.
Agradeci, sorrindo e, após pensar uns momentos, respondi
que sabemos porque escutamos, repetidamente, o que deveríamos
colocar em prática em nosso dia-a-dia.
- Ajudar é favorecer, facilitar, fazer alguma coisa a alguém,
prestar auxílio. É necessário esquecermos de nós mesmos quando
ajudamos a alguém. E quando ajudamos alguém a melhorar,
melhoramos o mundo em que vivemos. Temos o dever de
auxiliar, do melhor modo possível, aqueles que surgem no nosso
caminho.
Trabalho é aplicação na atividade, por isso devemos trabalhar
por amor ao trabalho, não para cobrar pelos seus resultados.
Com nosso exemplo nas tarefas úteis, podemos fazer outros nos
seguirem, embora cada um deva fazer o que lhe compete, sem
medo, tentando aprender cada vez mais. O amor precisa estar
presente em tudo o que fazemos, porque nos torna mais eficientes.
E assim trabalharemos com alegria e gratidão, realizando


O VÔO DA GAIVOTA

bem as pequenas tarefas, quando demonstraremos ser dignos
das randes. Ao ajudar o próximo descobriremos o caminho da
fraternidade e do amor. O que fazemos no presente, nos mostrará
o que realizaremos no futuro. Sobre esse assunto, é muito
interessante ler O Liuro dos Espiritos, de Allan Kardec, Parte
Terceira, capítulo III, "Da Lei do Trabalho".

O Bem é praticado com Amor, pois ao fazê-lo nos tornamos
melhores e estamos colaborando para melhorar a
humanidade. É preciso fazer o Bem, expandindo os ensinamentos
de Jesus, lembrando a todos sua doutrina de Amor. Mas sem
confundir sentimentalismo com Amor, que deve ser benéfico e
nos impulsionar na evolução. O Amor nos ajuda a vencer os
obstáculos do caminho, e é o único capaz de nos redimir e nos
levar ao progresso. Os resultados do Bem praticado só a Deus
pertencem. Esqueçamos de créditos, nas tarefas da bondade,
de vez que somos os primeiros beneficiados. O Bem nos alimenta?
Sim, alimenta a todos nós e nos fortalece, levando-nos
ao aprendizado do Amor.

Fiz uma pausa, o assunto é fascinante, embora tenha muito
para colocá-lo
to que aprender ainda sobre esse é tos e minha amiga
plenamente em prática. Pensei por mo

aguardou ansiosa que eu retornasse às elucidações.

- Elisa vamos mudar o enfoque de sua pergunta. Por que
motivo alguém faz alguma coisa a outra pessoa? Mesmo sendo
crente, de alguma seita ou religião, ou mesmo descrente? Qual
o motivo que leva um ato a ter resultado bom ou mau? Será
sempre necessário existir algum motivo para se praticar alguma
ação? Observemos as diferentes motivações que envolvem
Que motivo leva o
as ações da maioria dos seres humanos p
avarento a trabalhar tanto e a explorar, quase sempre, seus
semelhantes? O egoísmo, certamente. Que motivo leva o ladrão a
agredir e roubar suas vítimasteinadá eligiões, para
leva a maioria dos seguidores de de

deixar de fazer o que gosta e somente obedecer os outros. Não
pelo anseio de ter posse de uma situação sem problemas,
á egoísmo?
será ? Isso também não ser
mesmo que seja no Além s se a dos homens,
ao fazermos algo esperarmos recompensa, )

seja de Deus, estaremos agindo com egoísmo, embora dessa


138 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

forma ajudemos muito outras pessoas e a nós mesmos, porque
quem faz o bem trilha o caminho para se libertar desse sentimento,
que é o egoísmo. O Bem sempre beneficia, enquanto a
maldade prejudica. O dia em que não mais agirmos negativamente,
estejamos encarnados ou desencarnados, haverá Paz e
Harmonia na Terra, pois todos iremos fazer o que deve ser feito.
Não haverá mais explorações nem comparações, pois isso é a
causa de muitos conflitos, dores, sofrimentos e angústias na
convivência dos seres humanos. Cada um de nós estará feliz
com a vida que tem e fará todo esforço para melhorar seu
trabalho físico e seu aprimoramento espiritual. O desejo de
posse, seja qual for, desaparecerá e teremos equilíbrio e
Paz.
Você, Elisa, me perguntou o que concluo da experiência
que tivemos juntas. Prefiro dizer que foi um período agradável
em que aprendi muito e que poderei passar a outros a experiência.
Fazer o Bem estando desencarnado é muito mais fácil,
pois podemos trabalhar horas seguidas em determinada tarefa,
seja no Plano Espiritual, até mesmo no Umbral, ou entre os
encarnados, e, ao terminá-la, ou vencendo nosso horário de
trabalho, temos o equilíbrio das Casas de Socorro, do nosso
cantinho nas Colônias ou dos nossos Abrigos. Nós nos recompomos
rápido. E os encarnados? Eles têm seus afazeres físicos,
têm a preocupação com a sua manutenção e de sua família.
Têm o corpo para cuidar, higienizar, conservar sadio e, quando
não, tentar sanar suas deficiências físicas. São muitos, Elisa, os
encarnados que fazem o Bem apesar de todas essas dificuldades
e, embora alguns ainda o façam por recompensa, um dia
se libertarão dessa conduta. Outros, e são inúmeros, fazem-no
por Amor, tendo como recompensa o prazer de servir. Como
admiro os que fazem o Bem! E esse fazer deve ser no presente,
agora, no momento. Não deixe, você, agora encarnado,
para
fazê-lo depois. No Plano Espiritual certamente terá oportunidade,
mas é aí no corpo físico que se tem o grande aprendizado
do bem. E ele deve ser feito sem se cultuarem nomes famosos


O VÔO DA GAIVOTA 139

de desencarnados. Há muita sabedoria em praticar o bem com
Amor e simplicidade.
Terminei minha explanação, trocamos ainda alguns comentários
sobre o hospital. Elisa tinha que voltar ao trabalho, e
nos despedimos com um abraço fraterno.
- Patrícia, tudo o que aconteceu ficará gravado na minha
memória - disse ela com simplicidade.
Deixei o hospital, a Colônia Perseverança. Ainda estava no
meu horário livre, a aula que eu daria só começaria mais tarde
e, então, fui ver meus pais, que passavam uns dias no litoral,
para descansar.
Não estava totalmente satisfeita com a resposta que dera a
Elisa. Meditei sobre o assunto. Veio-me à mente a questão 642
de O Livro dos Espiritos, Parte Terceira, capítulo I, cuja resposta
é: "É preciso fazer o Bem no limite de suas forças, porque cada
um responderá por todo mal que tiver ocorrido, por causa do
Bem que deixou de fazer."'s Aí está a grande responsabilidade
de não se aproveitar o momento.
Menina e adolescente, estudei num colégio católico e gostava
muito de uma frase escrita no altar da capela: "liolontá di
Dio - Paradiso mio."'9 Compreendi-a assim: "Fazer a vontade
de Deus é minha alegria." Qual é a vontade de Deus em relação
a nós? Penso que é que cresçamos rumo ao progresso, que
sejamos bons, que compreendamos, amemos uns aos outros, e
que façamos todo o bem possível ao próximo e a nós mesmos
pelo trabalho e Amor. Quanta fé possuía quem pronunciou essa
frase e que exemplo nos deixou de resignação, ânimo e coragem.
Também sobre o assunto, lembrei-me de um ensinamento
de Jesus, contido no Evangelho de Lucas, XVII:7-10, quando o
Mestre Nazareno nos ensina que o senhor não fica devendo
obrigações ao servo, que fez o que ele mandou, e conclui dizendo:


18 - Citação tirada da tradução de Salvador Gentile, revisão de Elias Barbosa-IDE.
(N.A.E.)
19 - Copiamos na íntegra esta frase, é assim que está grafada em uma das
paredes de sua pitoresca Capela. [N.A.E.)


140 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

"Somos servos inúteis; fizemos o que deveríamos fazer". Que
temos que fazer? Seguir os mandamentos? Viver com dignidade
e honradez? Não fazer o mal? Acredito que sim. E se não fizermos?
Não seremos considerados nem servos. E para sermos
servos úteis? Além de fazer o que nos compete, não praticar o
mal, seguir os mandamentos, fazendo mais, muito mais. Trabalhar
com Amor ultrapassando nossas obrigações, para o nosso
bem, para o bem do próximo e, mais ainda, nada esperar em
troca.
Encontrei meus pais caminhando na praia. A tarde quente
de verão estava maravilhosa. É sempre encantador ver o mar
com seu verde-azulado e com suas ondas a se desfazerem na
areia. Caminhavam eles tranqüilos desfrutando a calma do local.
Aproximei-me. Amo-os tanto! Querendo obter mais
informações sobre este assunto interessante, perguntei a meu
pai, porque sua opinião foi, é e será sempre muito importante
para mim.
"Como é, papai" - disse-lhe de mente para mente -, "o que
me diz sobre um trabalho realizado, o fazer o Bem, o porquê de
o fazermos..."
Papai pensou e acompanhei seus pensamentos.
"Jesus em certa ocasião disse: O Pai age até hoje, eu também
ajo. A vida é ação. Na natureza física tudo o que entra no
estado de letargia apodrece e se desintegra. Semelhante é a
nossa mente, que, se não for usada, petrifica e embrutece. Se
canalizada para o mal, embora não regrida, produz dores e
dívidas para si mesmo, pois quem prejudica se imanta ao prejudicado.
E aí viverá, no ambiente que construiu agredindo a
tudo e a todos. O homem sábio, conhecendo as implicações da
ação, caminha em sintonia com a natureza que, de momento
em momento, aperfeiçoa sua manifestação. Faz das suas ações
a razão de sua vida e, ao agir beneficamente, sente participar
com Deus do seu perpétuo agir.
Não há vida sem relacionamento, e é no aprimoramento
das relações que construímos, que está um novo céu e uma
nova Terra.
Portanto, uma tarefa realizada que resulta no bem de


O VÔO DA GAIVOTA 141

alguém não deve ser olhada como uma ajuda, tampouco como
trabalho, muito menos para aquisição de crédito junto do beneficiado
ou de Deus, mas sim como o próprio exercício de viver.
Pois, se Deus age, eu também preciso agir.

Jesus disse muitas vezes: Eu e o Pai somos um, só que Ele
é maior que eu.
Quando chegarmos a compreender que o universo é nossa
família, tudo o que venhamos a fazer, é para nós que estaremos
fazendo ois tanto a casa como a família é nossa. Cuidemos de

quando encarnados, sem espe
nossa casa e de nossa família

rar que alguém nos elogie por algo que é nossa obrigação
Fazer dessa forma é como compreendo e como procuro fazer.

"Papai! Mas muitos encarnados não zelam bem por suas
casas e nem cuidam bem de seus filhos".

"Fazer só a obrigação não dá merecimento, nem crédito, e
nem deve ser alvo de elogios. Mas, se não cumprimos as obrigações,
somos devedores, pois não realizamos o que era de
nó sa responsabilidade. Quando ultrapassarmos o tempo e o
espaço, não mais existindo em nós créditos e débitos, iremos
fazer todo o Bem pelo simples prazer de comungar com a vida
pelo profundo Amor a todas as manifestações Divinas.

Viver a certeza da onipresença de Deus é diferente do
chamado crer, ou de ter fé. Aqui residem dois opostos; o crer é
volutivo, incerto, mutável de acordo com a emoção do momento
e o viver na onipresença é sólido. Vamos exemplificar em
nossa família consangüínea: Pai e filha é parentesco, não é
crença, é um fato de que não há dúvida. Vivemos plenamente o
fato do vínculo que nos une aos parentes mais próximos. Da
mesma forma, como viver na onipresença de Deus não é um
ato de momento, ou atitude de crença, é a visão plena e total
que estou em Deus e Ele está plenamente em mim. Portanto,
de foi Dele. Mas,
to, o que é Dele é meu e o que é meu s Ele eu recaria-
apesar de não existir separação entre mim e , P
mente existo, só Deus é plenitude total."

O horário me chamava ao regresso. Beijei-os. Volitei a alguns
metros do solo e olhei-os. À sua frente estava uma gaivota


142 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

que, ao sentir a proximidade deles, voou tranqüila, ganhando
com seu vôo, espetacular altura, deixando desenhados na areia
seus pezinhos...
Meus pais se afastaram e suas pegadas ficaram...
Há pessoas que passam pela vida e deixam marcas...






Se você gostou deste livro o que acha de fazer com que outras pessoas
venham a conhecê-lo também? Poderia comentá-lo com as pessoas do seu
relacionamento, dar de presente à alguém que você sinta estar precisando
ou até mesmo emprestar àquele que não tenha condições de comprar. O
importante é a diwlgação da boa leitura, principalmente a literatura Espírita.
Entre nessa corrente!


VIOLETAS NA
JANELA ESpItIItOS A casa do Escritor

Primeiro livro da - é um local fas-
Agorajá ambienta

série, onde ajovem da à nova ` vida, cinante onde se re-
autora, que desen- patrícia nos leva, únemtodosaqueles
carnou com apenas através dos cursos 9ue de uma forma
1 g anos, conta co- ou de outra traba-
mo isso ocorreu e 9ue realiza, conhe- lham com literatura
sua adaptação no cer e entenderPvá- moralizante, princi-
Mundo Espiritual. ria is egás como lo Palmente a literatu-
Você irá apreciar o tua , ra Espírita. Lá, o es-
relato, descrevendo n á b postos deoSo- parl tex órs ná s mé-
as descobertas do
outro lado da vida. corros e outras lo- diuns, aprende tam-
Como é o dia-a-dia calidades. Muitos bém técnicas de re-
temas são transmi- dação. Patrícia ain-
do espírito, como se 1 dos, da arruma tempo
vestem suas ne- tidos e ana isa

cessidades físicas, sempre com a sau- para contar o seu
Você irá se dável curiosidade passado, uma boni-
etc que é a p
encantar com este eculiari- ta história de final
livro. dade da autora. romântico.

Todos psicografados pela médium

Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

s livr
os da Patrícia já
são best sellers


RECONCIlIAÇÃO
Fascinante, comovente
e esclarecedora
narrativa, um livro
que agrada a todos.
Sua trama envolvente,
começa com um
duplo assassinato, o
pai matando a golpes
de faca, sua esposa e
seu filho. Mas após
todo este drama, o leitor viverá uma profunda
lição de amor,
solidariedade, abnegação e ternura num
relato maravilhosamente comovente,
você irá se apaixonar
por ele!

coPos QUE ANDAM
Um livro que em função
do próprio tema,
todos devem ler e divulgar, pois aborda os
perigos de invocar
espíritos por meio de
objetos tais como:
copos, pêndulos, etc.
Muitas são as histórias que entremeiam
a narrativa, destacando a da garota Nely
que é induzida pelos espíritos inferiores, a matar o próprio
pai e suicidar-se
posteriormente.

FILHO ADOTIVO
Além de exaltar a caridade e a grandeza de
pais que conseõuem
amar filhos alheios,
este livro traz uma
trama muito envolvente, enfocando dois
irmãos, que, sem o saberem, namoram e
pretendem se casar.
Mas, a intervenção da
mãe,já falecida, aliada a espíritos amigos
tentam de todos os
meios evitar o matrimônio, trazendo a
cada página, gratas
surpresas, fazendo
deste livro, excelente
leitura e sahoroso
aprendizado.

PAlCO DAS ENCARNAÇÕES
Eis uma história realmente interessante. Augusto,
é o personagem principal de duas encarnações
diferentes, uma como filho de dono
de engenho e senhor de escravo e depois como
negro, escravo no mesmo engenho. Você irá
se emocionar com suas tentativas de ajudar seus
entes queridos. A luta num tempo em que a lei
era do mais forte!

Livros de Antônio Carlos
Psicografados pela médium
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

O VÔO DA GAIVOTA 101

encamado por seus fluidos, os quais eles nunca conseguirâo
ificar. Nos estágios elevados do Plano Espiritual também se
ifica o perispírito, seja a aparência dos bons, com a finalidade
ajudar, ou a de outros que, no momento, nâo têm por si mes-
como mudar. Recuperam inúmeros socorridos, cujas
parências se transformaram em figuras monstruosas, animales-
as e deformadas, para os deixar com aspecto normal. Também
Odem rejuvenescer, ou tomar a aparência de antigas encarna-
gôes. Os desencamados bons só usam esse processo com alguma
tilidade. Mas, basta saber, para mudar de aparência em qual-
quer lugar e por motivos os mais diversos; se são bons, para
ajudar; se, maus e brincalhões, para enganar, confundir e assus-
.tar. Porém continuam a ser os mesmos, em relação à elevação
noral, só mudam a forma.
Com Walter foi usado esse processo. Fez-se uma regressão
de memócia, até que ficasse com a aparência da idade de
meses antes de começar a se drogar. Forçando mais um pou-
quinho, conseguiram, com êxito, fazê-lo se sentir mentalmente
como estava na aparência. Tornou-se, então, um garoto de ca-
torze anos, gorducho, rosado de olhar esperto. Com o semblante
de quando era jovem, não foi difícil fazer com que assumisse
sua vida daquela época, mesmo porque no seu inconsciente
havia um desejo enorme de fugir de sua atual situação. Conso-
lidado seu equilíbrio, assumida estava a situaçâo. O doutrinador
tem que adquirir, nessas horas, a confiança e a amizade do
socorrido. Através do carinho e da compreensão, convidaram-
no para ver a vida de um amigo seu que muito errou e que
cecisava de auxílio - neste caso, a vida dele mesmo. Então
mostrando sua auto-escravizaçâo no vício e seu conse-
nte sofrimento. Quase sempre, ao ter alguém as primeiras
s de seu passado, já drogado, há também recusa instintiva
ver aquelas atitudes, como também a recusa de admitir
fora ele próprio a viver determinadas passagens. O doutri-
r deve, então, insistir para que se concentre no personagem
 assistência. Em poucos instantes, ele se reconheceu e co-
ou a se desesperar, tentando assumir novamente seu estado
'or, de drogado. Nesse momento é preciso muito esforço


102 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

dos trabalhadores desencarnados, para Ihe manter o equilíbrio.
O doutrinador deve ter autoridade direta sobre ele, mantendo-o
no estado em que foi levado, pela regressâo, isto é, permane-
cer com a aparência física e mental de antes de se drogar. Deve
agir com muita autoridade, afeto e carinho, insistindo na sua
recuperaçâo. Com Walter que já havia sentido a harmonia do
,
estado anterior, antes de se drogar, encontrou base para não se
desesperar e assumir de novo o equilíbrio, já na sua personali-
dade atual. Não se deve esquecer também que, durante todo o
socorro, nesse processo o equilíbrio do médium é fundamental
P ,
ois naqueles momentos os dois agem como um só. Também o
médium deve estar em sintonia com o doutrinador, respeitan-
do-o e confiando na sua capacidade de dirigir os trabalhos.
Walter se analisou e meu pai, como orientador encarnado ori-
entou-o, até que ele passou a entender p ,
situação:
erfeitamente sua
- Meu filho, você está numa reunião de Amor e Caridade.
Aqui tentamos ajudá-lo, para que seja livre. Estamos a lembrá-
lo do que aconteceu, dos fatos vividos por você. Você é um
garoto sadio que foi experimentar drogas e a elas ficou preso.
Recorde! Uma dose, a segunda, mais outra e veja como fcou.
Desencarnado, você continuou, em espírito, ligado às dro as
porque a morte não nos liberta de nossos vícios.
Walter ficou assustado. Lembrou-se de tudo e lágrimas es-
correram abundantes de seus olhos.
- Perdão, meu Deus! Perdâo! - falou emocionado.
- Tenho '
hQorror em ver como fquei! Não quero ser um trapo humano!
uero icar assim, sadio e com raciocínio. Nunca mais me
viciarei!
- Então aceita nosso auxílio? - indagou meu pai.
- Peço-o em nome de Deus! - falou Walter chorando.
- Será acolhido e orientado!
Walter foi tirado de perto da médium, quando Elisa pegou
na sua mão e lhe disse com carinho:
- Walter, meu filho! Meu anjo!
- Mãe - disse ele. - Minha mãe!


O VÔO DA GAIVOTA 103

Olhou para Elisa e não a reconheceu, mas sentiu que ela
rra, ou melhor, fora sua mãe. Elisa fora sua genitora em encar-
iação anterior.
- Sim, sou eu, sua mãe Gertrudes - disse Elisa (nome que

ua mãe adotara no plano espiritual).

Walter, cansado pelas emoções, adormeceu nos braços de

Elisa que se pôs a chorar baixinho, com emoçâo e gratidão.
Finalmente a mãe recuperara seu ente querido.

O processo utilizado tem êxito, em recuperação de desen-
carnados viciados, pois tomando a forma perispiritual de antes
de se viciar, adquire-se mais força para dominar a situaçâo.
Alguns, nesses processos, não recordam o período de viciado,
mas é bom que o façam para que saibam e entendam o tanto
que sofreram. Todos os socorridos do Túnel Negro pediram
ajuda e foram acolhidos, por isso o tratamento continu ria,
sendo eles encaminhados a hospitais próprios, onde a a uda
psicológica seria a mais importante, juntamente com a Evange-
lização.
Em algumas doutrinaçôes, como a de Walter, pode aconte-
cer de o socorrido ver tudo o que se passou com ele e não
querer a ajuda oferecida, preferindo continuar no vício. A esco-
lha é do socorrido, pois todos nós temos o livre-arbítrio a ser
respeitado. Nesses casos, o doutrinador ainda deve argumentar
tentando ajudar na recuperação. Se houver ainda recusa, deve-
se deixar que se comporte como escolheu e ser retirado do
local do Centro Espírita. Sem sustento de bons fluidos, é costu-
me voltar logo ao estado deplorável de drogado. Será, entretanto,
em outra ocasião, socorrido novamente e, quando estiver can-
sado das drogas, aceitará a ajuda.

Também o doutrinador deve ficar atento para não deixar o
socorrido ter remorsos destrutivos, incentivando-o a ter espe-
ranças de vida no futuro e reparar seus erros através do trabalho




i
útil e no Bem.
Uma convidada, desencarnada, que assistia à reunião in-
dagou a Maurício, que estava ao meu lado:

- aurício o drogado é responsável por todos seus atos
M ,
errados? Como, por exemplo, aquele rapaz que, ao discutir


104 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

com sua mãe, a empurrou com força, levando-a a cair e bater
com a cabeça e desencarnar. Agindo assim sob o efeito da
droga, ele é culpado?
- A intençâo, em um ato errado, é pior às vezes que o
próprio ato - respondeu o interpelado. - Ele não teve a inten-
ção, não queria a morte física da mâe, mas foi a causa da sua
desencarnação, daí a sua culpa. É muito difícil um drogado náo
saber que age erradamente e que poderá provocar, por isso,
acontecimentos trágicos em sua vida. Em todos nossos atos, o
que importa é a intenção e, assim, notamos que aquele jovem
tinha na mente este propósito, que lhe trazia muitos sofrimen-
tos. Vimos também que a recuperaçâo total dos viciados que
não praticaram outras faltas, é mais fácil, o mesmo nâo aconte-
cendo com alguns que, além do vício, cometem outros erros.
Deve o encarnado pensar bem nisso, antes de seguir o
caminho das drogas. Nas conseqüências tristes que advirão,
como aconteceu a este rapaz que, mesmo amando a mãe, foi a
causa de sua desencamação.
A reuniâo terminou após a oração, quando os orientadores
espirituais energizaram beneficamente todo o ambiente e, tam-
bém, as pessoas presentes.
Os encamados conversavam trocando idéias, e os mento-
res espirituais estavam contentes com o êxito da experiência.
Todos os socorridos do Túnel Negro passavam relativamente
bem. Elisa levaria Walter para a Colônia Perseverança, onde
trabalhava, pois, desde que soube ser ele viciado em tóxicos,
pediu para trabalhar naquele setor do hospital, onde os intemos
se recuperavam das drogas. Agora iria também cuidar dele.
Despediu-se de nós emocionada e chegando perto do meu pai,
agradeceu; ele sentiu uma vibraçâo diferente, carinhosa, que
só os gratos conseguem emitir, e sorriu em resposta.
Dois trabalhadores desencarnados do Centro Espírita aju-
daram Elisa a transportar Walter, ainda adormecido, para a
Colônia. Terminados os trabalhos todos foram embora, e os
espíritos socorridos conduzidos para novas acomodaçôes. Após
as despedidas, voltou a rotina no Centro Espírita, até a próxima
reunião.


O VÔO DA GAIVOTA

Também retornei à Colônia e aos meus afazeres. Porém
surpreendi-me com as notícias. Natan já havia descoberto quem
entrara nos seus domínios e, raivoso, queria acertar contas.
Acompanhei os acontecimentos.


' l atan




Sempre que possível, ia às reuniôes no Centro Espírita,
para me inteirar dos acontecimentos. Quando não podia, Artur,
um dos orientadores do Centro, amigo de muitas encarnações
de meu pai, me colocava a par da situação.
No Umbral, os chefes sabem de tudo o que lá acontece,
com relativa facilidade. Natan, ao voltar ao Túnel Negro naque-
la noite em que lá estivemos, cientificou-se de tudo. Disseram-lhe
que vários espíritos, comandados por um ainda encamado, en-
traram em sua fortaleza, levando com eles os que quiseram ir.
Nada danificamos com nossa excursão ao Túnel Negro, só
tiramos alguns sofredores de lá. Porém, como Elisa previu, Na-
tan logo soube o nome do encamado, onde ele morava, seus
familiares e o Centro Espírita que freqüentava. Dois de seus
servidores, espíritos ligados a ele no trabalho no Túnel, foram
observar meu pai e o Centro Espírita.
Na reunião seguinte, foram os dois servidores ao Centro
Espírita levar um recado de Natan. Entraram como convidados,
sem se despojarem de suas armas e aguardaram o início da
reunião em silêncio. Um dos orientadores da casa lhes explicou
como deveriam proceder. Como queriam falar pela incorpora-
ção, tiveram que aguardar na fila, e só seria permitida a
comunicação deles no momento previsto. Um deles ao obser-
var o ambiente, curioso, conteve-se para nâo chorar, ao ouvir a
explicação do Evanelho e as orações e, quando foi chamado
i para se incorporar, pediu ao companheiro que o fizesse. O
,


O VÔO DA G

107


quieto e o tempo
no Centro, estava ar que era
, desde que entraraforçando-se para dem · E erto do
e a baixa onstr

 de cab ç , es
ordens recebidas de Natan , P
cado, seguindo as ondeu ao cumprim

ara a in
corporação, resp a. Depois, a e'ist do e
ss
dium, p ipida a pala o que veio como
i-noite, quando lhe f áe Natan falou
ara '
uenciado pela mente ' do Tú el Negro estivesse ali.
róprio, como se o chefe ue fizeram nos
fosse o p n não gostou da invasão os reparação.
- Meu chefe Nata violação e exigi
os uma tender um pedido
us domínios. Sofrem ão foi para a o sei por
mos também que essa inv lle ela estava junto
. Nã

s ua filha desencarnada, e gtáveis, já que foram lá só para
a
por impre
ue se interessam
sgatá-los· anos de imp  - meu

- Por que chama os toxicôm restáveis.
iai inda ou.
- Nem racioci-
 - respondeu ele rindo.
- São outra coisa.
para expenências. Droados sãomfr encar-
nam mais! Só servem uando se quer vingar de algu
inúteis. Não é à toa que, q ele tiver tendência, perde-se
nado, incentiva-se-o ao  mpletamente escravo da droga e
nos tóxicos, tornando s · Viciados são fantoches, farrapos
presa fácil de seus vingadores m terem levado de lá os impres-
. Natan não achou rui
humanos m entrado lá sem peissão.
táveis. Irritou-se por tere permissâo, ele consentiria? - inda-
- Se eu tivesse pedido

gou meu pai· d ria os imprestáveis - respondeu

- Entrar lá não! Mas lhe a
,
le rindo cinicamente. istiu meu pai, que
com
! e  - ins
' - Daria mesmo. conversava
orientador encamado da casa.
ele como - não todos ou nem tantos,
talvez

- Ora - respondeu ele  me atormentar mais ainda os
lhe liberasse alguns. É nosso costu

que são do interesse dos bons.

Fez uma pausa. infelizmente, é o q
ue o desencarnado falou, ue costu-
não é regra g
eral. Sendo assim, ao notar
ma acontecer, porém, do interesse dos socor-
seus domínios é








I g PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO
presumindo que, desse modo, vingam-se dos interessados. Por
isso, sempre se faz com cautela a demonstração desse interes-
se. Logo após a pausa, em que ele observou bem o local
,
continuou a falar calmamente.
- Deixemos de conversas! Natan exige a devoluçâo de
todos e desculpas com pompas. Quer a reparação! Você com
seus comparsas devem ir ao Umbral em horário marcado e
, na
frente dos convidados dele, se desculparem.
- Volte e diga a Natan que não quisemos afrontá-lo
p p . Mas,
or circunstâncias articulares e justas, tivemos que ir lá. Não
Ihe devolveremos nenhum dos que nos pediram abrigo e infe-
lizmente nâo faremos o que ele quer.
Todos nós presentes, tanto os encarnados fre
q
quanto os desencamados, sabíamos que Natan atrav s de uma
ligação com o seu enviado, estava vendo e ouvindo o
ria na reunião que ocor-
. Mas, como ele mandou recado recebeu res osta
para que o portador a levasse até ele. O desencamado irrpitou-
se com o que ouviu, porém controlou-se e respondeu:
- Quero deixar claro que ninguém estava lá obrigado. Se
existiam al uns presos foi por não cumprirem obrigações. Vo-
cês estâo arrumando confusão. Vou embora e darei o recado.
Afastou-se da médium. O desencarnado falava a verdade
P
,
ois nos domínios do Túnel Negro ninguém pemzanecia obriga-
do. Os viciados iam lá à procura da droga e submetiam-se aos
piores vexames e situações humilhantes ara conseguir o sus-
tento para seus vícios. p
O outro que viera junto e que observava tudo
hegou pert e q
companheiro falava, c , n uanto o
Centro e pediu:
o de um dos trabalhadores do
- Será que vocês não me abrigariam? Gostei daqui, quero
ficar.
- Certamente que sim.
Ao se afastar da médium, o enviado de Natan
pelo amigo e o viu na fila dos que iam p Procurou
socorridos. Olhou ara a Colônia, como
para ele e não falou nada. Saiu do Centro
Espírita e foi cumprir a tarefa que lhe impusera o chefe.
Como previsto, Natan não gostou da resposta e, no dia


O VÔO DA GAIVOTA 109

seguinte, preparou bem seus servidores, armou-os e orde Ç u
que fossem ao Centro Espírita e o invadissem. Deu instru ão
para expulsarem todos que lá se encontrassem e quebrarem
tudo, mas não foi junto, ficou no Túnel Negro.


Artur, prevendo o ataque, organizou a defesa do Posto e do
Centro Espírita, para que todos os aguardassem tn áqalm perto,
taram realmente invadir, mas, quando se enco

Artur e os companheiros foram ao encontro deles, dominando-
os ela força mental, imobilizando-os. Levaram-nos, em seguida,
pa á o átio, já desarmados, e depois os encaminharam para o
Posto, acomodando-os numa sala própria. Tudo normalizado,
Artur conversou com eles, durante horas. Perguntavam sobre
tudo e Artur os esclarecia. Viram a Colônia, pela tela, e lhes foi
oferecido socorro médico e abrigo. Após, Artur abriu a porta da
sala e disse:
- Podem sair os pue quiserem, só que irão sem as armas.
Os que desejam ficar conosco serão bem-vindos.

Muitos se mostravam indecisos. Se voltassem, seria como
fracassados, não tendo cumprido a tarefa que lhes fora confia-
da. Temiam o chefe, mas gostavam da vida que levavam, e não
queriam mudar. Foram poucos os que gostaram do que lhes foi
oferecido por Artur, em nome de todos os trabalhadores do
Centro. Muitos dos desencarnados que vagam pelo Umbral, não
têm idéia de outra forma de vida na espiritualidade e, ao co-
nhecer, geralmente aceitam, querem a mudança. Outros,
indiferentes, preferem mesmo é continuar como estão. Do gru-
o de Natan, alguns ficaram na sala, mas a maioria saiu. Muitos
pe dirigiram para o Umbral, onde iriam vagar sem rumo, pois
não tinham disposição de voltar ao Túnel Negro, de vez que
temiam Natan. Outros, mais corajosos, voltaram, e ficamos
sabendo depois que não foram castigados. Os que permanece-
ram e aceitaram socorro, foram encaminhados para a Colônia,
para a Escola de Regeneração. As armas deles, feitas do mes-
mo material que constitui nosso perispírito, foram destruídas.

Natan mandou dois de seus servidores, os de sua confian-
ça ara ficarem perto de meu pai e eles trouxeram outros dois

' p , que foram induzidos a pensar que
desencarnados, viciados


110 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

meu pai ia lhes dar drogas. Desencamados nesse estado têm
fluidos pesados e angustiantes. Por isso, Artur levou os dois
viciados para o Posto do Centro, onde receberam os primeiros
socorros, sendo depois orientados em reunião, da mesma for-
ma que Walter, e obtiveram o mesmo êxito. Artur fez um
esquema especial de proteçâo aos médiuns e freqüentadores
do Centro, para que nâo fossem atingidos pelas vibrações dos
seguidores de Natan, como também para as pessoas que sem-
pre estâo com meu pai, inclusive os familiares. Os outros dois
,
os servidores de Natam, meu genitor convidou-os para ficarem
com ele. Seguiram-no de perto, por dias.
Natan, vendo seus dois melhores auxiliares em perigo,
chamou-os de volta. O perigo, para ele, era o de se converte-
rem. Meu pai ora, medita, lê e faz com que os desencamados
que estâo junto dele, escutem. Trata-os com bondade, porém
com firmeza e nâo aceita suas interferências. Apesar de cansá-
lo muito essa conduta, ele sabe que tem de estar vigilante vinte
e quatro horas por dia. E esse tipo de pressão o tem feito cres-
cer, porque o "orar e vigiar" o coloca constantemente em vibraçâo
maior, que atinge os desencarnados de forma diferente, levan-
do-os a retletirem e a pensarem em Deus.
Natan veio encontrar-se com meu pai. Esperou-o à noite,
perto do Centro Espírita, e disse a um dos guardas que queria
falar-lhe. Meu pai foi ao seu encontro.
- Você é um feiticeiro terrível! - disse Natan. - Não quero
que nenhum dos meus companheiros sofra sua influência. Exijo
uma reparação sua e tudo ficará por isto mesmo, mas que vá
ao Túnel Negro e me peça desculpas. Abro mão do resto.
A palavra "feiticeiro" foi empregada por ele, para definir
aquele que tem força mental e que a usa tanto para o bem
como para o mal. E o tom de desprezo seria para ofender.
Desencarnados que, temporariamente estâo seguindo o mal,

15 - Anteriormente, o Sr. José Carlos havia convidado dois espíritos para
ficarem ao seu lado e agora convidou Natan. Para fazer isto, é necessário
ter muitos conhecimentos e moral elevada. Alerto os encarnados, para não
agirem assim, sem o preparo devido. (N.A.E.)


O VÔO DA GAIVOTA 111


gostam de chamar meu pai assim, como também de indiano,
porque ele, em muitas encamações, teve a Índia como berço.
- Você tem me observado - respondeu meu pai -, deve
saber que sempre que erro, peço perdão de coração. Nunca
peço por orgulho, pois levo muito a sério o ato de me desculpar.
Quando o faço, é porque entendi que errei e procuro não mais
incidir nessa falta, para não ter que me desculpar pela segunda
vez pelo mesmo ato. Isto porque, reconhecendo meu erro, me
esforço para melhorar. Não me arrependi por ter ido ao Túnel
Negro e libertado não só o desencarnado, que foi o motivo de
socorro, mas todos os que quiseram nosso auxílio. Faria de
novo, por isso, em respeito a você, não posso me desculpar.
Para nos reconciliarmos com alguém, mesmo não sendo
culpado, não nos custa pedir desculpas. Meu pai com sua atitu-
de estava querendo ajudar Natan. Tentava fazer que esse espírito
se voltasse para Deus.
- Atormentarei você! - exclamou ele.
- É um direito seu - respondeu meu pai. - Convido-o a ficar
comigo.'5 Só que eu também tenho direitos. Você tentará me
atormentar, atingir-me, eu me esforçarei para não receber sua
influência negativa, como também tentarei transmitir-lhe as
minhas sugestões. Terá que me escutar! Será só entre nós dois.
O mais forte irá influenciar o outro. E o mais forte será aquele
que tiver a vida, os pensamentos e as atitudes baseados na
verdade. E a verdade nunca será produto de nosso desejo, es-
perança ou ambição, mas, sim, sempre a mesma, infinitamente,
no tempo e no espaço.
- Não sou de fugir de desafio. Vou agora ao Túnel Negro
tomar algumas providências e voltarei. Aguarde-me!
- Não o estou desafiando. Será um prazer conviver com
você! Vamos aprender muito um com o outro.
Natan afastou-se, já havia perdido muitos dos seus segui-
dores e achou que só ele estaria apto a dar uma liçâo merecida
naquele que, em sua opiniâo, o desafiara. Estava com raiva de
todos do grupo, e com os desencarnados, sabia por antecipaçâo
que nâo podia com eles. Com meu pai era, porém, diferente,
ele estava na came, sujeito a muitos condicionamentos e me-


112 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

lindres devido às necessidades e funções do corpo, sendo assim
mais fácil de atingir e prejudicar. Entendia que, atingindo um
encamado, atingiria todo o grupo. Organizou, então, o Túnel
Negro para que continuasse a funcionar sem ele e, assim, no
outro dia, foi ao encontro de meu pai e começou a acompanhá-
lo de perto. Meu genitor continuou com sua vida normal, de
trabalhador no plano físico e espiritual. Natan nâo ficou, de
imediato, como obsessor de meu pai, mas sim curioso, e com
raiva daquele momento, quis conhecer como era o dia-a-dia de
uma pessoa tão diferente das com que convivera.
Natan pressionava meu pai. Forçava-o a pensar em coisas
mundanas, para que baixasse a vibraçâo. Meu pai, por outro
lado, meditava em coisas superiores e Natan era forçado natu-
ralmente a sentir as mesmas coisas. Percebia as sugestões e
desejos terrenos. Porém, mostrava mentalmente a Natan a es-
tupidez e a mediocridade daqueles que usam as necessidades
e funçôes do mundo físico, como propósito de vida. À noite
,
meu pai desligado do corpo físico se dirigia para o trabalho
espiritual e Natan ia junto. Encaminhava-se ao Posto do Centro
P ,
ara cuidar dos doentes, conversava com os socorridos, e ele
ao seu lado. E foi assim, por muito tempo, até que Natan come-
çou a se interessar pelo trabalho realizado no Posto, e começou
a falar de si, e meu pai atenciosamente o escutou.
Natan foi médico, quando encarnado. Ambicionando enri-
quecer, usou a medicina somente como profissâo para ganhar
dinheiro. É preciso lembrar que o trabalhador faz jus ao seu
salário, mas nenhum profissional deve só visar o lucro, mas sim
fazer também, através de seu trabalho, todo o bem possível.
Médicos lidam com dores e por isso devem, também, ser hu-
manitários. Trabalharem pelo sustento material, sim, mas sem
se esquecerem de fazer aos outros o que queiram que lhes
façam. Natan fez muitos abortos e receitou remédios proibidos,
desde que lhe pagassem. Mas a desencarnação chegou e se viu
diante de muitos inimigos que queriam vingança. A situação o
apavorou demais, primeiro porque era ateu, segundo, porque
aquele bando o atormentava sem poder destruí-lo. Vingavam-
se por tê-los impedido de reencarnar, ou por não terem sido
atendidos, porque não podiam remunerá-lo. Estava irado


O VÔO DA GAIVOTA 113

quando o tiraram de seus perseguidores. Eram espíritos, mora-
dores de uma cidade umbralina, que vieram e o levaram. O
chefe dessa cidade sabia quem ele era, mas deixou que sofres-
se por uns tempos, para que ficasse lhe devendo obrigação.
Natan não é o nome verdadeiro dele, tendo escolhido esse
cognome tempos depois, talvez para impor mais respeito a
seus inferiores. Levado à cidade umbralina, o chefe conversou
com ele e lhe ofereceu abrigo em troca de seu trabalho como
médico. Natan não era ocioso, sempre foi trabalhador, por isso
aceitou e se aliviou por ficar livre do bando que o perseguia,
mas com o qual aprendera tantas maldades. O chefe daquele
local, no intuito de organizar um lugar especializado em tóxi-
cos, fundou o Túnel Negro e o colocou para administrá-lo. Com
o passar dos anos,  chefe se desinteressou pelo lugar e Natan
ficou sendo o senhor absoluto.
O Túnel Negro não forçava ninguém a ficar lá e nem seus
moradores saíam à procura de desencamados para irem lá. Os
viciados desencarnados é que o procuravam, em busca das
drogas. Só que, depois de serem abrigados, tinham que seguir
as normas da casa e trabalhar para eles. Existem muitos luga-
res, abrigos, cidades no Umbral, para onde os desencarnados
viciados são levados como prisioneiros. Como também há ou-
tros lugares, como o Túnel Negro, onde os desencamados não
sâo obrigados a ir e nem a permanecer. É lugar de livre acesso.
Mas Natan era insatisfeito e isso lhe doía e o atormentava.

Instalou-se, então, a troca de fluidos entre eles. Meu pai
começou a sofrer os de Natan, sentindo doer-lhe por dentro,
como um vazio profundo. Certo dia, meu pai estava meditando
e Natan perto dele, quando meu genitor lhe disse:

"Natan, é falta de Deus! É a ausência do Pai em você que
lhe dói tanto. Você era ateu, mas não pode dizer agora que
ainda o é. Por que, então, não se aproxima do Pai?"

Natan não respondeu e se afastou. Depois de meses, era a
primeira vez que se afastava. Recolheu-se num canto no Um-
bral e pôs-se a pensar. No dia da reunião, quase no horário de
começar, ele entrou no Centro, pediu licença e se colocou na
fila dos que iam receber orientação, pela incorporaçâo. Estava
diferente, sem seus colares e suas armas.


114 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK nR f auvnr un

Na sua vez de se comunicar, aproximou-se educadamente
de uma médium, cumprimentou meu pai e disse:
- Você me venceu!
- Nâo! Natan, você não lutou comigo. Mas lutou consigo
mesmo. Era a ausência de Deus que o atormentava. Você é
infeliz e apenas o convidamos a aprender a ser feliz. Fico con-
tente por você querer mudar. Gosto de você! Venha viver uma
vida digna de um espírito.
- Quero ser seu amigo! - exclamou Natan emocionado.
- Sejamos então amigos! Preciso muito de amigos.
Natan foi levado para a Escola de Regeneração. Após ter
feito o curso, foi trabalhar num Posto de Socorro do Umbral
onde exerce seus conhecimentos de Medicina, em socorro aos
necessitados. Sempre que pode vai visitar meu pai e assistir às
reuniôes do Centro. Trabalha muito. Artur, sempre que o vê,
costuma dizer de forma carinhosa:
"Ama muito, porque foi muito perdoado!
Artur falou, modificando o texto do Evanelho de Lucas
VII:47. "São lhe perdoados muitos pecados, porque muito amou."


O Médico 1`azista




Quando fomos assistir à recuperação de Walter, na reunião
do Centro Espírita, defrontamos com um caso muito interessan-
te que me chamou atenção e, por isso, acompanhei o desenrolar
do drama.
Estávamos aguardando o início, quando chegaram três pes-
soas: um casal com a filha adotiva. O casal, principalmente a
senhora, queixou-se que a mocinha, a filha, continuava tendo
suas crises.
Artur me explicou que Joana, assim se chamava a jovem,
era médium e estava sendo obsediada por alguns espíritos,
suas vítimas no passado. Tinha crises, em qualquer hora e lu-
gar, e procurava meu pai, em horários inoportunos, para Ihe dar
passes, porque só assim se acalmava.

Minha mãe foi sentar-se ao lado dela, porque, conforme
me explicaram, logo que entrava no Centro, começavam suas
crises, e era necessário alguém perto que a controlasse. Seus
obsessores possuíam sobre ela o domínio psíquico, mesmo à
distância. Queriam que sofresse, pois ela os havia prejudicado.

Gosto muito de ver minha mãe, pois amamo-nos muito. É
a pessoa de quem mais gosto, e sempre que me é possível vou
visitá-la, ficar ao seu lado, porque me é prazeroso.

Joana é uma mulata forte, de olhar malicioso, demons-
trando nâo estar a fim nem de orar, nem de melhorar. Ali está
por imposição dos pais e para ficar livre de suas crises, que
considera ridículas e que lhe fazem passar vergonha. O seu


116 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

obsessor chefe era inteligente e sutil e, como ela tinha má
índole, passou a incentivá-la a fazer uso da maldade, chegando
a ponto de incorporar, utilizando-a como médium, e tentar ma-
tar a mãe e o pai. Fazia com que descuidasse completamente
da disciplina pessoal e dos compromissos próprios de sua ida-
de, para envolvê-la no seu ardil. O desencamado transmitia-lhe
acontecimentos do passado das pessoas para que, assim, domi-
Ì
nasse as mais fracas que a cercavam.
Quando foi levada até a casa de meu pai, o obsessor acei-
tou, porque confiava que iria dominar qualquer encamado com
que defrontasse, sentindo-se assim forte no seu orgulho e pre-
tensão. Vencidos os primeiros embates, o obsessor sentiu-se
admirado pela força que desconhecia e quis, então, aprender
com eles, com o grupo do Centro, não para melhorar, mas para
ficar mais poderoso.
" Artur me pôs a par dos acontecimentos. Joana, em sua
encarnação anterior, fora um médico nazista e praticara muitas
maldades e experiências com os judeus. Reencamou longe da
Alemanha, num corpo feminino e mulato, mas mesmo assim
foi encontrada pelos que não a perdoaram. Sabiam que ela
comparecia ao Centro para se livrar deles, os obsessores. Sor-
rindo e com seu modo agradável, Artur comentou:
- Patrícia, seu pai, por ajudar a jovem, está sofrendo com o

"
rancor desses obsessores. Mesmo assim, está ajudando-a, em-
G: bora sabendo que ela nâo gosta daqui nem dele e que, assim
que se sentir livre dos desafetos, não voltará mais. Socorremos
i para mostrar aos encarnados a força espiritual de que dispôe
;
um Centro Espírita, desde que se trabalhe em prol do bem
comum, e também dos que vêm pedir ajuda.
Prestamos atenção na orientação que meu pai deu aos três
encamados: pai, mãe e filha.
- Só ficamos livres do nosso passado trabalhando no bem,
no presente. Para nos livrarmos de obsessores, devemos pedir
perdâo, perdoar e nos harmonizar com as Leis Divinas. Precisa-
mos entender que os espíritos têm seus motivos para perseguir
as pessoas, por isso devemos entendê-los e tentar amá-los,
porque eles também necessitam de ajuda. Para nâo sermos


n vô0 DA GAIVOTA

atingidos pelos obsessores, devemos mudar nossa vibraçâo,
sair da faixa mental deles, isto é, pensar em coisas boas e
superiores e agir de modo digno, trabalhar no Bem e amar
muito. Vocês aqui estão em busca de auxílio, porém devem
ajudar a si mesmos. Certamente, quando você se sentir bem,
Joana, não voltará mais aqui. Porém, quero lhe dizer uma coi-
sa, você é médium e necessita aprender a lidar com sua
faculdade e trabalhar muito no bem, para viver tranqüila e sem
essas crises. Mas, se você se afastar do Centro Espírita e não se
modificar, a situação que vive agora voltará sempre. Os Centros
Espíritas estão melhor preparados para ajudar nos casos de
obsessão, ensinando a lidar com a mediunidade para o bem, e
em suas reuniôes ouvirá ensinamentos que ajudarão a sua re-
novação interior.
Joana não gostou muito do que ouviu, mas ficou quieta.
Quando começou o trabalho de desobsessão, três dos que
a estavam importunando, se comunicaram. Os três, dois ho-
rr.ens e uma mulher, foram judeus, ou ainda eram, pois o fator
raça se mostrava ainda forte neles. O primeiro estava sem um
braço e sem o olho esquerdo. Cumprimentou mal-humorado,
não queria conversar com ninguém, foi perto do médium con-
tra sua vontade e falou com raiva:

- Por que interferem no que é justo? Embora tenham outra
religião, vocês amam a Deus. Nunca ouvi falar de religião deste
jeito. Oram, dizem fazer o bem, conversam com os mortos,
mas ajudam os criminosos. Isto não está certo. Por que o aju-
dam, esse monstro sanguinário?

O desencarnado desconhecia o Espiritismo, estranhando o
intercâmbio mediúnico e o ensinamento de que todos somos
filhos de Deus e, por isso, irmãos uns dos outros.

- Se eu lhe disser que queremos é ajudar você... - come-
çou a dizer meu pai, porém foi interrompido por ele.

- Ah, mas por que nâo nos avisaram logo que querem se
unir a nós. Quanto mais, melhor!
- Você nâo entendeu, queremos ajudá-lo a se recuperar, a
tomar-se sadio, a viver de modo digno, num lugar propício.

- Quem lhe falou que quero ser sadio? - indagou nervoso.


118 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

- Já me propuseram isto uma vez e não aceitei. Quero ficar
como ele me deixou, para ter sempre motivo para odiá-lo.
- Você sofre e faz sofrer - disse meu pai.
- Nem começamos. É melhor dizer: sofre e faremos sofrer
cada vez mais - respondeu ele.
- Não vale a pena! Você já pesquisou por que sofreu as-
sim? Se sabe que continuamos a viver após a morte do corpo,
que reencarnamos e, por isso, é que você o está perseguindo
reencarnado em outro corpo? Então sabe que viveu encamado
outras vezes. Uamos, irmão, recordar seu passado?
A equipe desencarnada, já pronta, colocou à sua frente a
"tela", que é como na espiritualidade chamam este aparelho.
Ele é denominado de muitas maneiras, havendo alguma dife-
rença de um local para outro, mas é sempre o mesmo e muito
,'; útil. O espírito que se comunicava fora, na encamação anterior
também judeu e, numa guerra, havia trucidado muitás pessoas,
entre elas jovens e crianças. Ao recordar, deu gritos lancinan-
P ,


,.
tes, mas o médium, treinado, só alterou um ouco a voz isso
porque não é necessário gritar. Acalmaram o desencarnado
que, com difculdade, voltou a falar.
- Olho por olho...
- Não, meu amigo - disse meu pai. - É a lei do retorno:
você plantou, você colhe. Não precisaria sofrer assim, se tives-
f.
se entendido a lei do Amor e feito o bem.
- Ela também pagará pelo que fez? Pelo que entendi, se
ela não Fzer o bem, sofrerá o que me fez sofrer. Você não irá
conseguir fazer dela uma pessoa boa. Que será dela?
- Deixe-a, irmâo, deixe-a! Cuide de você. Vamos ajudá-lo,
pense em Deus. O Pai é bondoso e nos ama.
A equipe médica entrou em açâo e com os fluidos doados
P
; pelos encarnados e também ela vontade do espírito que, ago-
ra, queria tornar-se sadio. O braço se curou e ficou perfeito,
como também o olho.
i' - Perdoe, irmão, para ser perdoado!
- Como nâo perdoar, se devo tanto? Perdôo e peço perdão
a Deus. Queria ir para junto dos meus, lá na minha terra.


n vÔ0 DA GAIVOTA 119


- Atenderemos seu pedido.

Ele saiu de perto do médium e passou para outra fila, a dos
que iam para a Colônia. Após a reunião, seria levado à Colônia
São Sebastião por uns dias e, depois, seria transferido para
onde quisesse. Uma equipe o levaria.

Normalmente reencarnamos em diferentes raças, para
aprender amar a todas. Mas, sem ser regra geral, alguns judeus
mais radicais ainda têm preferido vir sempre como judeus, a
esperar o Messias, pois se julgam os filhos escolhidos, o povo de
Deus, mas são, realmente, como todos nós, porque não somos
privilegiados pela raça. Aqueles desencarnados, totalizando
onze, estavam há algum tempo, nas regiôes espirituais do Bra-
sil, à procura, para vingar, deste espírito, que fora um médico
nazista. Já começavam a dominar o idioma português, pois o
médium que o auxiliou, sempre consciente, não precisou se
expressar com sotaque. Devemos esclarecer que o médium
transmite o pensamento do espírito e, nestes casos, sentem
mais do que propriamente repetem o que escutam. A mediuni-
dade, quando educada, é maravilhosa, e assim possibilitou que,
ele, judeu, transmitisse pensamentos que o médium traduziu
por palavras.
O outro judeu se incorporou em outra médium e foi doutri-
nado por uma integrante encamada, do grupo. Lídia conversou
com ele e o fez entender a necessidade de perdoar e seguir seu
caminho. Ele, porém, quis ficar em nossa Colônia e, quando
fosse reencarnar, preferia que fosse aqui. Não gostaria mais de
ser judeu, porque, segundo comentou, os judeus sofriam muito
com a segregação. Normalmente esses pedidos são atendidos,
porém o departamento próprio da Colônia é que estuda cada
caso.
A mulher também incorporou. Parecia fria, porém ao sen-
tir o afeto dos trabalhadores da casa, encarnados e
desencarnados, conteve-se para não chorar, e disse com voz
comovida:
j
- Não sou má, ele, sim, é maldoso. - referindo-se à ovem
Joana. -Esconde-se em outro corpo, mas é ele. Pensa você que
ele é bom? Não! Nos enfrenta e, se pudesse, nos faria sofrer


120 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARvAl.un

tudo novamente. Você acha que é por persegui-lo que somos
maus? Somos vítimas! Vou falar o que ele fez comigo e, então
me dará razão.

Fez uma pausa eomo se criasse coragem para recordar e
começou:
- Estava casada e feliz, tínhamos uma pequena fortuna e
dois flhos lindos. Quando a Segunda Guerra Mundial começou,
nos apavoramos, porque sabíamos muito bem que os nazistas
perseguiam os judeus. Meu esposo alistou-se no exército, na
tentativa de impedir que eles nos oprimissem, no país em ue
vivíamos e, por isso, morreu lutando. Quando houve a invasão
q
de nossa cidade, fomos presos e nossos bens confiscados. Da
prisão partimos para o Campo de Concentração, onde sofremos
muito: frio, fome e humilhaçôes. Naquele Campo havia um
laboratório onde este médico medonho e outros faziam experi-
ências com os presos, ou simplesmente os torturavam pelo
prazer de vê-los sofrer.
Ao ver meus filhos chorarem de fome e frio, e com muito
desconforto, resolvi pedir clemência. Solicitei para falar com o
comandante e, para minha surpresa, ele me atendeu e me
levou à sua sala. Quem me atendeu foi esse aí, o médico
nazista, que me olhou de cima a baixo e me indagou:
"Então, judia, que reivindica?"
q P P P
Pensando ue ele ia me ajudar, falei rá ido ara não er-
der a coragem:
"Por favor, senhor, aqui estou com meus dais filhos peque-
nos, passamos fome e frio."
"Se você se entregar a mim, intercederei por vocês" - disse
rindo.
Sempre fui muito direita, fiel ao meu esposo, porém, pelos
meus 6lhos, aceitei a proposta indecente. Depois, ele mandou
que um soldado fosse buscar meus filhos. Achei que, pela felici-
dade dos meus, teria valido o sacrifício. E, esperançosa, quando
pensei que fosse me dar ajuda, meus dois filhos chegaram
assustados e correram ao meu encontro. O mais velho estava
com quase sete anos e o outro, com quatro. Gelei quando ouvi
a ordem.


O VÔO DA GAIVOTA 121


"Leve-os ao laboratório!"
Era no mesmo prédio, na sala ao lado. E cada soldado
pegou um de nós e para lá fomos arrastados. Amarraram-me
fortemente numa cadeira e ele, cínico, me olhou sorrindo:
"Idiota! Judia imbecil! Pensou que eu ia me encantar por
você? Verá para que serviu sua astúcia em me pedir auxílio."
Pedi a ele por piedade, pelo amor de Deus, para fazer o
que quisesse comigo, sem maltratar meus filhos, porém ele ria.
0 que me fez ver foi horrível. Torturou meus filhos, cortou-os
em pedaços até que morressem. Eles gritavam apavorados,
olhando para mim e eu gritava também. Quando os dois não
tinham mais vida, veio me torturar. Começou, extraindo mi-
nhas unhas. Fiquei alucinada e, aí, perdi o controle, pois a dor
era demais. Mas ele não me torturou muito, desencamei, pois
meu coração não agüentou. Fui socorrida e fiquei muito tempo
como louca e, quando voltei ao normal, alguns espíritos me
disseram da possibilidade de vingança. Aceitei e agi, com todas
as minhas forças, para me desforrar.
Faço uma pausa nesta narrativa, para algumas explica-
çôes. Nos Campos de Concentração, como em qualquer lugar
de aniquilamento humano, há muitos socorristas, como tam-
bém há muitos desencamados que agravam os acontecimentos.
Do mesmo modo, costumam ficar outras vítimas a socorrerem
suas companheiras de sofrimento. Esta senhora foi socorrida
por outros judeus, que ali haviam desencarnado. Não foi, as-
sim, socorrida por espíritos bons, porque ela estava com muito
ódio. As crianças e aqueles que perdoavam, eram levados às
Colônias ou a outros lugares de socorro. Os que eram vítimas,
tanto quanto ela, a socorreram, levando-a para um pequeno
abrigo no Campo de Concentração, no Plano Espiritual e, quan-
do ela aparentemente estava melhor, foi convidada a se vingar.
A guerra é por demais triste, pelas atrocidades que se come-
tem. Esforcemo-nos, pois, para que haja Paz, começando com
a tolerância e a concórdia com os que nos cercam. A Paz come-
çará em pequeno círculo, mas se a cultivarmos irá se ampliando
e atingirá muitos outros e, dessa forma, um dia teremos a Paz
por toda a Terra. E fatos como esses, tão tristes, ficarão apenas
na história e não mais se repetirão:


122 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARIN7.Rrr nF rnnvn u,

A senhora emocionada, continuou a falar.
'
- Ficávamos perto dele sem, contudo, conseguir nossos
, propósitos e ele 6cava mais nervoso e revidava nos risionei-
ros. Mas a desencamação chegou para ele, quando foi atingido
P
por uma granada. Sofreu bastante. Aí, sim, começamos nossa
vingança. Nós o perseguüamos por onde ia, e ele vagava urran-
do pelo Umbral, até que se pôs a gritar por socorro e sumiu da
nossa frente. Vim a saber que espíritos bons o tinham levado
para ajudá-lo. Nós nâo fomos socorridos, nâo queríamos, por-
que nosso objetivo era fazê-lo sofrer. Durante esse tempo, muitos
i:
desencarnados bons conversaram conosco, aconselhando-nos
I a desistir, mas escutávamos somente nossos companheiros.
Entretanto, vários do grupo desistiram e os acompanharam. Por
outro lado, ninguém se esconde de seus erros e nem dos que
não o perdoaram. E assim, enquanto procurávamos o perverso,
;
aprendemos como nos vingar. Anos se passaram, mas conse-
q ?
guimos descobri-lo. Agora querem ue eu desista Por acaso
aqui há mães e pais? Será que podem imaginar o que é ver o
que eu vi? Sofrer o que sofri? Dá para imaginar ver seus filhos
amarrados, gritando de dores e desespero? Odeio-o! Odeio-o!
Fez-se um silêncio total. Todos os desencarnados presta-
ram atenção, muitos, ao ouvi-la, conseguiram ver suas
lembranças. Alguns choraram. Os encarnados também se co-
moveram. Ela sentiu os fluidos de amor e compaixão de todos.
E, em dado momento, uma das trabalhadoras da casa, em
espírito, aproximou-se dela, abraçou-a e falou emocionada:
- Minha flha, pare de sofrer! Por favor, recomece sua vida.
Também sou mãe e entendo seu sofrimento. Compreendo seu
desejo de vingança, porém, digo-lhe que dessa forma você vai
perpetuar seu sofrimento. Venha para junto de seus amados e
í não sofra mais! Chega! Perdoe e venha conosco. Amarei você
como uma filha! Venha!
- Minha irmã! - falou meu pai. - Ele reencamou, e você
parou no tempo só para se vingar! Por que não recomeça e
tenta ser feliz? Devemos esquecer os momentos ue nos foram
cruéis e só lembrá-los para tirarmos alguma lição. É bem me-
q
Ihor pensar somente nos bons momentos. Você é infeliz! E
;j recordando sempre esses fatos, prolonga mais seu sofrimento.
t'


O VÔO DA GAIVOTA 123

llocê acredita em Deus, e se Ele nos perdoa por que não perdo-
a,rá nosso próximo? Sabe que nada que acontece fica escondido
ou impune. Deixe seu algoz, agora Joana, em seu novo corpo, e
cuide de você. Perdoe para ser perdoada!

- Quero esquecer! Esquecer!..

Aninhou-se nos braços da trabalhadora da casa que a abra-
çou e, após, foi levada adormecida para a Colônia. A reunião
terminou com todos comovidos pelo sofrimento daquela senho-
ra, e eram muitas as orações em seu favor. Emocionei-me,
também, ao acompanhanhar suas lembranças, realmente du-
ras cenas de horror.
Talvez possam vocês pensar que retrato muitas tristezas
neste livro. É que as tristezas e as alegrias existem e devemos
ser realistas, tirando de fatos tristes lições preciosas que nos
impulsionarão com otimismo para o caminho do Bem e para a
felicidade. Ao tomar conhecimento de fatos assim, consegui-
mos entender ambas as partes, e ajudar sem condenar. Por isso
como sou alegre, passo minha alegria aos que me rodeiam. A
alegria nos fortalece, nos anima e nos dá compreensão da dor
do próximo.
Aquela senhora foi intemada num hospital da Colônia onde
recebeu, por tempos, tratamento, carinho e ensinamentos. A
equipe da Colônia encontrou seus dois filhos e esposo, encama-
dcs na Europa, e a levou para vê-los. Estavam os três bem.
Depois de algum tempo, ela pediu para ser transferida para a
Colônia, na espiritualidade, onde estavam seus entes queridos.
Estando bem melhor e com planos para reencarnar, porque só
assim esqueceria tanto sofrimento, foi transferida. Despedi-me
dela desejando-lhe boa sorte.
Mas ainda faltavam oito obsessores. Sete receberam orien-
tação e ajuda, nas reuniões seguintes. Com cada um deles,
uma história triste. Desses onze que obsediavam Joana, com
desejo de vingança, dez foram socorridos e só um pediu para
trabalhar no Plano Espiritual. Os demais pediram para reencar-
nar, pois queriam a misericórdia do esquecimento. E todos foram
atendidos.
Contudo o chefe dos dez obsessores, de nome Josef, era


124 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHn

um judeu rude que, ao ver os três primeiros se afastarem, vol-
tou-se furioso contra meu pai, que, como sempre acontece,
sentiu-lhe a vibração e tentou, também, orientá-lo.
Artur soube que o grupo tinha seu núcleo na Europa e foi
lá, para conversar com eles. Eram vingadores dos criminosos
de guerra, que se intitulavam: "Os Ofendidos da Guerra". Cons-
tituíam-se em vários grupos, todos unidos entre si. Artur pediu
uma audiência com o chefe, um judeu de muitos conhecimen-
tos.
Após cumprimentos, Artur começou o diálogo. E nos con-
tou, depois, que o chefe tinha total conhecimento do que
acontecia com seus subordinados, junto a Joana, e não deixou
que ele, Artur, falasse muito. Citava com exatidão pedaços do
Antio Testamento. Sabia a Biblia quase que de cor Falava de
muitas passagens para justificar a vingança.
"É olho por olho, dente por dente!" - falou demonstrando
calma.
Artur replicou com os ensinamentos de Jesus. Ele disse
não acreditar num profeta que se deixou matar. Mas, após al-
guns minutos de conversa, confessou que reconhecia a força e
a presteza dos trabalhadores de Jesus. Artur lhe pediu, então,
que parasse com as vinganças; ele riu, se aquietou por momen-
tos, e falou decidido:
"Não é nosso interesse o confronto com ninguém. Temos
tempo. Vou suspender a vingança dele por enquanto. Chamarei
Josef, o único que ficou, e que é o mais decidido em seus
objetivos. Só faço um aviso: teremos outra oportunidade. O
mais difícil já conseguimos, pois sabemos onde ele está, que se
esconde num corpo de mulher quase negra. É castigo para ele,
orgulhoso de sua raça, ter sido loiro e rico, agora quase pobre,
mulher, mulata e flha adotiva. Acharemos outros que o odei-
am. Ele certamente não fcará para sempre na guarda de vocês,
porque não mudou sua conduta."
De fato, Josef foi embora e Joana ficou livre dos seus ob-
sessores, não porém de seus erros. Meu pai chamou-a e a seus
pais também, para uma conversa.
- Vocês vieram à procura de ajuda espiritual e a recebe-


O VÔO DA GAIVOTA 125

ram. Analisem o ocorrido e tirem boas lições de tudo o que lhes
aconteceu. Esses fatos são, em parte, conseqüência do passado
e o resultado da maneira de viver sem esforço para a melhoria
íntima. Você, Joana, está com sua sensibilidade completamen-
te aflorada, isto quer dizer que você tem a porta aberta para
receber influência do mundo astral, sem, entretanto, agora,
poder discipliná-la. Só terá influência e sintonia com espíritos
bons, por meio de boas atitudes e de bons propósitos. E ficará
ligada aos maus, se descuidar do seu aprimoramento espiritu-
al. Se você se afastar do Bem, da oração sincera, e não se
esforçar para mudar para melhor, não nos responsabilizaremos
pelos acontecimentos futuros. Afastando-se também da ajuda,
tudo que passou mais facilmente se repetirá.

Joana não estava preocupada com o aprimoramento espi-
ritual. Queria era força e poder. Dominar. Mas indagou a meu
pai.
- Sr. José Carlos, posso aprender com o senhor.

- Claro que pode. Deve!

- Vou ter essa força que o senhor tem?

- Poderá ter esta e muito mais. Mas, para isso, deve pri-
meiramente educar-se na boa conduta e fazer por merecer a
companhia dos trabalhadores desencamados que convivem co-
nosco. Mude para melhor e queira com vontade fazer o Bem,
porque agindo assim aprenderá e muito.

Joana não respondeu. Sentindo-se melhor, afastou-se do
Centro. Sua mãe ainda voltou outras vezes, mas também fez o
mesmo. Artur me disse:
- Patrícia, nesse socorro, ajudamos mais os desencarna-
dos que essa jovem. Ela, agora, não quer mais saber de seu pai
e, quando o vê de longe, se afasta para nem cumprimentá-lo. A
figura dele a faz recordar os ensinamentos que escutou, e que
ela quer esquecer.
- Como ficará ela? - indaguei.

-Vamos aguardar. Os erros, Patrícia, não conseguimos jogá-
los fora, porque nos pertencem, e um dia a reação virá. Quando
o grupo de vingadores perceber que ela não está mais sob a
proteção dos bons, voltará, talvez, como tenho visto em casos


126 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHn

assim, com mais sutileza e cautela. Ela, nâo vindo aqui e nem
recebendo outro auxílio, não estará vinculada a uma proteção
e, como não faz por merecer nenhuma ajuda, será fácil eles
voltarem e se vingarem. Ele, ao desencarnar como médico
nazista, foi socorrido, no Umbral, livrando-se daqueles que que-
riam dele se vingar, sendo levado na ocasião para um Posto de
Socorro e logo em seguida reencarnou. Socorro não quer dizer
que o indivíduo tenha mudado, porque, mesmo que receba
orientação, para mudar será necessária uma transformação
interior muito grande.
Fiquei a pensar como a crueldade faz mal ao que a prati-
ca. Quanta imprudência em cometer erros. E a reaçâo desses
atos pedirá reajuste no caminho, mas como Deus é misericordi-
oso sempre dá novas oportunidades.
Ao findar esta narrativa, posso concluir que todos nós, en-
carnados e desencarnados, tivemos um grande ensinamento
com os fatos ocorridos. Que todos nós temos que aprender a
amar, a ser úteis para termos Paz e sermos felizes. E que a
alegria interna virá quando superarmos nossos traumas íntimos
e ajudarmos outros a fazê-lo. Alegria!


A -Iistória de Elisa



Numa das minhas folgas, fui visitar Elisa. Queria rever mi-
nha amiga e tinha muito interesse s uiconcá sado p a
p elo

recuperação de Walter. O des f rá profunda o perispírito do
uso das drogas traumatiza de o arte dos nossos
esse vício atinge boa p
usuário. Atualmente, rporal e levando-
jovens encamados, trazendo-lhes ú tas mazelas. O caso de
os a voltar à espiritualidade com

Walter era de meu particular interesse, pelo socorro de que
participei e pelo muito que apreônlcomro delanp ntro em meu
ara podermos

horário livre, de lazer, coincidin osto muito de
conversar calmamente, trocando idéias, pois g

diálogos edificantes. Elisa esperava-me na portaria do hospital


em que, no momento, trabalhava e onde Walter estava interna-
do. Alegramo-nos quando nos vimos. ir vê-la. Que
- Patrícia - exclamou Elisa feliz -, proramava


bom tê-la conosco! Quero agradecer-lhe. Foi muito atenciosa
conosco. s osta e minha amiga como boa cicerone,
Sorri em re p '
mpanhou-me para conhecer o hospital. 1 próprio para
aco um hospita
Quase todas as Colônias t émóxico. Em algum
as outras

viciados em álcool taba ismo 1 se aradas, em hospita
Colônias, esses doentes ficam em a as p is
tradicionais.
Na Colônia Perseverança, o hospital é separado, grande e
com muitos trabalhadores dedicados que ajudam na recuperaçáo


I 28 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

de desencarnados viciados.'6 Lugar calmo, com muitos jar-
dins, salôes para palestras e encontros; suas principais terapias
sâo o trabalho, a música e o teatro. Suas enfermarias sâo
separadas por alas masculinas e femininas e pelo tipo de vício
que o intemo possui.
Primeiramente, vimos a parte central onde se situam as
salas de orientaçôes, os alojamentos de seus trabalhadores, a
biblioteca e os salões. Após, Elisa me levou para conhecer o
atendimento aos desencamados que, no corpo físico, foram
fumantes. Estes, se tinham só esse vício, não ficam intemados
,
só vêm ao hospital para serem ajudados a se libertar da vonta-
de de fumar. Só em casos raros é que um ex-fumante se interna,
e isso se pedir, mas, mesmo assim, sempre por pouco tempo. O
tabagismo intoxica bastante o perispírito e, nessa parte, fazem
tratamento para que o assistido se liberte da dependência, sen-
do assim, ele recebe conhecimentos sobre  assunto, orientação
e apoio que o ajudarão a resolver o problema. Mas só o conse-
guirão se, novamente reencarnados e tendo oportunidade, não
fumarem. Ressalvo o termo oportunidade, porque, se estiver
encarnado e, por algum motivo, não puder fumar, não quer
dizer que tenha solucionado a questão. Isso acontece com to-
dos os vícios, e só podemos dizer que os vencemos, quando
temos oportunidade de voltar a eles e os ignoramos.
A ala dos alcoólatras é grande. O álcool danifica o cérebro,
e o aparelho digestivo, sendo muitos os doentes a se recuperar
em vários estágios nessa parte do hospital. Os intemos, quando
melhoram, assistem a muitas aulas, fazem terapia de grupo e
avaliam todos os acontecimentos passados por eles, decorren-
tes do vício, e apreciam as oportunidades de melhora oferecidas.
A parte que nos interessava, era a que Elisa se dedicava
com todo carinho, a ala dos toxicômanos. Infelizmente esse
local do hospital e os de todas as Colônias têm sido ultimamen-
te ampliadas. São muitos os imprudentes que desencamam

16 - Muitos desencarnados estão tão agarrados à matéria, que se sentem
por muito tempo como encamados, daí a minha referência a "desencar-
nados viciados". (N.A.E.)


O VÔO DA GAIVOTA 129

vítimas, direta ou indiretamente, das drogas. Os que estão ali
socorridos, têm aspecto bem melhor dos que os que vagam ou
os que estão no Umbral. Nas Colônias, são separados pelo grau
de perturbação em que se encontram e o tratamento normal-
mente é longo, requerendo esforço do internado, e muita
dedicação e amor dos trabalhadores.

Não pensem os leitores que nesses hospitais só se vêem
tristezas. Nada disso. Tristeza é sentimento negativo. Nâo ajuda
e para nada serve, pois só construímos e progredimos com o
trabalho alegre. Os trabalhadores dali tinham sempre no rosto
o sorriso bondoso e agradável, a palavra amiga e o amor que
irradiava e contaminava os internos e, assim, os temporaria-
mente abrigados se sentiam seguros, incentivados, amados, e
com disposição para se recuperarem.

O hospital da Colônia Perseverança é muito bonito e aco-
lhedor. Elisa me levou à ala onde Walter estava abrigado, e ele
nos esperava no jardim intemo que circunda a parte de sua
morada provisória. Recebeu-nos sorrindo e estava com aparên-
cia sadia, com normal equilíbrio.

- Patrícia - disse sorrindo -, queria tanto conhecê-la e
agradecer. Obrigado!
- De nada - respondi. - Como tem passado?

- Melhoro, graças a Deus e ao pessoal do hospital. Vou
ficar bom logo.
Walter estava com a aparência de adolescente, como apa-
rentava naquela reunião do Centro Espírita. E continuaria assim
porque queria essa aparência, a que tinha antes de se drogar.
Isso lhe dava mais confiança. Outros, após o tratamento no
hospital, podem retomar, se quiserem, a aparência de quando
desencarnaram, só que com aspecto sadio.

Sentamos os três num banco e fizemos alguns comentári-
os. Elisa falou alegremente:

- Estou gostando muito de trabalhar neste hospital. Aqui
vim por Walter, mas agora não penso em deixá-lo. Quando
Walter tiver alta, fcarei, de vez que já decidi e obtive autoriza-
ção. Estudarei, para aprender e melhor servir neste campo de
ajuda. E você, Patrícia, quais são seus planos para o futuro.


130 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

- Como você sabe, gosto muito de ensinar. Logo, Marcela
,
a quem substituo, retomará a seus afazeres. Devo, então, voltar
à Colônia Casa do Saber, continuar os estudos e trabalhar trans-
mitindo meus conhecimentos a outros desencamados."
Admirei o banco em que nos sentávamos, muito bonito e
de contornos diferentes. Notando, Walter explicou:
- Esses bancos são feitos por intemos em nossas oficinas.
- O trabalho é de grande ajuda e uma das melhores terapi-
as para nossos abrigados - disse Elisa, olhando carinhosamente
para Walter. - Mas não só para eles e, sim, para todos nós
,
encarnados e desencarnados. O trabalho é bênção. Corpos e
mentes ociosos estão com as portas abertas aos vícios, enquan-
to que o trabalho nos mantém ocupados e nos abre outras
portas opostas a eles. Aqui em nossas oficinas se faz muita
coisa.

No Plano Espiritual, tudo pode ou poderia ser plasmado.
Mas os que sabem dar formas às coisas são poucos, pois neces-
sita-se de tempo e de muito aprendizado para a tarefa. O trabalho
é uma bênção que ajuda intensamente a todos nós e, na espiri-
tualidade, representa importante benefício, existindo trabalho
,
do mais simples ao mais difícil, para todos os que quiserem.
Inúmeros desencamados ainda estão muito apegados ao modo
de vida na Terra e, assim, quando trabalham, Ihes é dado o
bônus-hora. Os que já superaram esse apego, entendem o por-
quê do trabalho e não mais necessitam esse tipo de
remuneração. Pessoas que já trabalham sem esse apego, quan-
do chegam ao Plano Espiritual, participam da vida aqui,
exercendo suas tarefas pelo Amor ao trabalho, nâo exigindo
nada em troca. No hospital, os intemos que ali auxiliam, rece-
17 - A Colônia Casa do Saber, que descrevi no terceiro livro, A Casa do
Escritor, é onde moro atualmente, ao escrever este livro. E tenho planos
de ficar aqui por muito tempo, sendo que virei raramente à Terra, para o
contato com os encarnados. Foi uma opção que 6z, atendendo convite de
superiores. É tarefa que faço com muita alegria, porque somos sempre os
beneficiados pelas responsabilidades que nos oferecem. Devemos, pois,
participar de todas elas com muito regozijo e amor, e dessa forma tudo o
que realizarmos ficará bem feito. (N.A.E.)


O VÔO DA GAIVOTA 131

bem os bônus-hora, mas são poucos os trabalhadores que ser-
vem no hospital e que os recebem. Há muito tempo que não os
necessito, mas lembro-me de minha alegria, quando obtive
meu primeiro bônus-hora. Foi uma euforia trabalhar e ter uma
compensação. Agora, minha alegria é somente ser útil. Não
almejo recompensas.
Quietamo-nos por alguns segundos. Meus pensamentos va-
garam pela trajetória vivida por pessoas como Walter. Suas
existências, até serem socorridos, são uma verdadeira tragédia.
Elisa quebrou o silêncio.
- Patrícia, você não pode imaginar o tanto que sonhei, por
todos estes anos de desencamada, com este momento. Estar
assim com meu Walter, em plena recuperação. Sou muito grata
a Deus por esta oportunidade.

Fechou os olhos por momentos e depois começou a falar
com sua voz suave.
- Tudo começou em nossas encarnações anteriores, em
que fomos unidos pelo afeto maternal. Fui mãe dele, meu nome
era Gertrudes. Nasci e cresci num bordel de uma cidade peque-
na, onde me tomei prostituta logo mocinha. Aos vinte anos, tive
um filho, José, que é o Walter de agora. Até os seis anos, minha
avó, que morava perto, cuidou dele. Quando ela desencamou,
ele veio morar comigo. Mimei-o demais, dando-lhe tudo o que
queria e, muitas vezes, eu justificava minhas atitudes, falando
que isso era bom para ele. Menino ainda, começou a tomar
bebidas alcoólicas, e achei linda sua atitude.

O tempo passou rápido e ele tomou-se moço, foi então que
percebi que ele andava se embriagando demais e tentei fazê-lo
parar, só que não consegui. Quando chamava sua atençáo, me
respondia grosseiramente:

"Bebo por você ser o que é. Gostaria de ter uma mãe
trabalhadeira e honesta!"

Isto me feria muito. E ele se embriagava cada vez mais,
até que passou a ficar quase que somente bêbado. Desencarna-
mos quase que na mesma época. Fiquei doente e desencarnei
após muito sofrimento. Ele ficou pelo bordel, onde todos o co-
nheciam e lhe davam de comer, além de bebidas. Desencarnou


132 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

ao cair de uma ponte alta e bater a cabeça nas pedras. Sofre-
mos, vagando juntos, pelo Umbral. Ele, sempre me culpando,
dizia:

"Se tivesse me batido na primeira vez que bebi e não
achado graça, eu não teria me tomado um bêbado."

Depois de muitos sofrimentos, fomos auxiliados e levados
para um Posto de Socorro, onde ficamos por um período. Acon-
selhados a reencarnar, pedimos para renascer em famílias de
i'.'. costumes rigorosos que nos ajudassem a superar nossos vícios.


,,.
Atenderam-nos e reencarnamos, e viemos somente como co-
nhecidos, nem amizade tivemos.
A família que me abrigou, educou-me com costumes rígi-
dos, o que achava certo, pois me sentia segura. Queria acertar,
queria vencer o vício e consegui. Fui uma moça honesta e
trabalhadeira e, por ser bonita, fui assediada por muitos rapa-
zes, mas não dei impo-tância a nenhum. Não desejava namorar,
pois sentia que ia desencamar logo e não queria deixar nin-
guém mais a sofrer por minha causa. E, realmente, tive câncer
i e desencarnei. Meus pais e meus irmãos sentiram bastante

minha falta, mas não me atrapalharam e muito me ajudaram
com suas preces. O resto você já sabe.
Walter prestou muita atenção no que ouvia e, após uma

i
pausa, disse:

j
- Ao ouvir Elisa falar, as cenas vieram-me à memória.


ì
Recordo... Era pequeno e já gostava de bebidas alcoólicas, e
como minha mãe não proibia, passei a tomar muito, prejudi-
cando-me. Gostava do bordel, porque ali todos me tratavam
bem. Depois me tomei tão dependente do álcool, que só ficava
embriagado e, assim, quando desencamei, sofri muito. Reen-
carnado, nesta última vez, como Walter, tive outra oportunidade,
mas logo o gosto pela bebida aflorou forte em mim. Bebia
escondido, porque meus pais me proibiam e, como a bebida
deixava cheiro, dificultava-me dissimular. Eles me vigiavam,
regulavam meus horários e, percebendo minha tendência para
a bebida, cheiravam minha boca sempre que voltava para casa.
Então, enturmei-me com colegas na escola e experimentei a
maconha e, depois de algum tempo, a cocaína. Comecei a tirar


O VÔO DA GAIVOTA 133

notas baixas, sendo ainda aprovado naquele ano, mas no ano
seguinte, em que já me viciara pesado, as notas pioraram e
meu comportamento estava péssimo. Meus pais foram chama-
dos pela diretora e souberam de tudo. Levei uma surra,
tiraram-me da escola e passaram a me vigiar mais ainda. De-
sesperado com a falta da droga, fugi de casa e fui morar com
viciados e traficantes num barraco. Meus familiares sofreram
muito e meu pai, que era o mais rígido, mandou me dizer que
ele ainda me aceitava em casa, se largasse o tóxico. Se quises-
se ficar entre os criminosos, que os esquecesse, porque eu
estava morto para eles. Como queria a droga, fiquei naquela
vida. Minha mãe vinha me visitar, às escondidas, e trazia rou-
pas, alimentos e dinheiro, mas chorava sempre quando me via.
Continuei me drogando cada vez mais...

Ao recordar esses momentos dolorosos, Walter começou a
gaguejar, falando com dificuldade as últimas frases. Começou a
ter uma crise. Elisa e eu lhe demos um passe, que o acalmou,
provocando-lhe sono e nós o levamos para o leito na enferma-
ria. Elisa, então, terminou a narração do que aconteceu com
Walter.
- Ele contraiu dívidas por causa das drogas e, como não
conseguiu pagá-las, foi assassinado. Desencarnou e continuou
desesperado, alucinado pelas drogas, quando procurou o Túnel
Negro. Naquele local eles ensinavam os desencarnados vicia-
dos a vampirizar encarnados para satisfazerem o vício e,
também, o hipnotismo de Natan os fazia sentir como se tives-
sem usando drogas.
Nós ajeitamos Walter no leito e ele, sonolento, virou-se
para mim e disse:
- Elisa não é culpada! Ninguém é responsável pelos nossos
erros a não ser nós mesmos. Se antes eu a acusava, foi na
tentativa de culpar alguém, de colocar em outros a responsabi-
lidade que era só minha. Nesta última encarnação tive pais que
se importaram comigo, honestos, exemplificaram o Bem e não
tive a quem culpar a não ser a sorte, sendo que nossa sorte nos
mesmos é que a fazemos. Não venci meu vício!

- Mas vencerá! - exclamei.


134 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

Walter dormiu.
- Como o tóxico prejudica a tantos imprudentes - disse
Elisa. - Walter fará o tratamento muito tempo ainda, e só estará
bem quando lembrar-se de tudo o que Ihe aconteceu e não
sentir nada. Ele tem aula de Evangelização, faz oraçôes, tem
terapia e acompanhamento psicológico. E também, Patrícia
,
como foi boa a regressão para Walter, a doutrinação que ele
recebeu, na reuniâo Espírita.
Elisa ajeitou o lençol do leito dele com carinho de mãe e
,
em seguida, saímos silenciosas do quarto.


O Võo da Caivota.




Elisa me acompanhou até outro jardim, que fica na frente
do hospital. É um recanto mais bonito, cheio de flores coloridas
e palmeiras frondosas. Ali muitos internos passeiam em horário
de lazer, por ser um lugar agradável. Minha amiga convidou-me
para sentar e falou:
- Patrícia, tenho, na espiritualidade, trabalhado em muitos
lugares, entrando em contato com muitos trabalhadores e so-
corridos. Aprendi que aquele que ajuda, trabalha, está se
exercitando no bem para que, pelo hábito, possa ter melhor
disposição na conquista de sua evolução.
No meu convívio com você e com os integrantes do Centro
Espírita, percebi que pode haver diferença. Quando Walter e eu
estávamos sendo amparados, em nenhum momento me senti
necessitada, como aquela que estava sendo ajudada. Pelo con-
trário, todos da equipe realizaram o socorro como se estivessem
fazendo algo para eles mesmos, com naturalidade e atitudes
rotineiras. E eles não estavam lidando com desencamados per-
turbados comuns, mas sim com espíritos trevosos e um mago
maléfico ou um satanás, se assim podem-se designar Natan e
sua equipe. Você pode me explicar o estado espiritual daqueles
trabalhadores?
- Elisa, quase todos aqueles espíritos atingiram o chamado
autoconhecimento e, aqueles que nâo o atingiram, estâo se
esforçando para tal. Nâo necessitam de estímulos externos,
para fazerem o que fazem, nem pagamento ou recompensas


136 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

de qualquer espécie. Sabem que são pequenos, espiritualmen-
te, conhecem todos os meandros da personalidade, com todas
suas misérias, conflitos, condicionamentos, ilusôes, e a nossa
peculiar ignorância quanto à verdade daquilo que realmente
somos. Não estâo estacionados, vivem plenamente a onipre-
sença Divina, e se sentem unos com ela, porque vivem como
parte integrante do Universo. E, assim, trabalham, responsabili-
zando-se com tudo, como se a casa fosse deles.
Tudo o que fazem é por amor à vida, que está presente
tanto neles como em qualquer manifestação Divina, daí a natu-
ralidade e desprendimento que você sentiu em seu convívio.
- Patrícia, posso chamá-la de Gaivota?
Com meu consentimento, Elisa continuou:
- Então, Gaivota, como me explica o socorro prestado a
mim. Ajuda? Trabalho? Bem realizado?
- Por que rne chama de Gaivota? - perguntei.
- Gaivota é um pássaro muito bonito - respondeu ela -,
quase todo clarinho, elegante e de voar preciso. Depois sempre
deixa sinal de seus pezinhos na areia, mostrando que passou
por ali. Deixa marcas. E você deixou marcas em nossas vidas
,
na minha e na de Walter.
Agradeci, sorrindo e, após pensar uns momentos, respondi
que sabemos porque escutamos, repetidamente, o que deverí-
amos colocar em prática em nosso dia-a-dia.
- Ajudar é favorecer, facilitar, fazer alguma coisa a alguém,
prestar auxílio. É necessário esquecermos de nós mesmos quan-
do ajudamos a alguàm. E quando ajudamos alguém a melhorar,
melhoramos o mundo em que vivemos. Temos o dever de
auxiliar, do melhor modo possível, aqueles que surgem no nos-
so caminho.
Trabalho é aplicaçâo na atividade, por isso devemos traba-
lhar por amor ao trabalho, não para cobrar pelos seus resultados.
Com nosso exemplo nas tarefas úteis, podemos fazer outros nos
seguirem, embora cada um deva fazer o que lhe compete, sem
medo, tentando aprender cada vez mais. O amor precisa estar
presente em tudo o que fazemos, porque nos torna mais efici-
entes. E assim trabalharemos com alegria e gratidão, realizando


O VÔO DA GAIVOTA

bem as pequenas tarefas, quando demonstraremos ser dignos
das randes. Ao ajudar o próximo descobriremos o caminho da
fratemidade e do amor. O que fazemos no presente, nos mos-
trará o ue realizaremos no futuro. Sobre esse assunto, é muito
interes ánte ler O Giuro dos Espiritos, de Allan Kardec, Parte
Terceira, capítulo III, "Da Lei do Trabalho".

O Bem é praticado com Amor, pois ao fazê-lo nos torna-
mos melhores e estamos colaborando para melhorar a
humanidade. É preciso fazer o Bem, expandindo os ensinamen-
tos de Jesus, lembrando a todos sua doutrina de Amor. Mas sem
confundir sentimentalismo com Amor, que deve ser benéfico e
nos impulsionar na evolução. O Amor nos ajuda a vencer os
obstáculos do caminho, e é o único capaz de nos redimir e nos
levar ao progresso. Os resultados do Bem praticado só a Deus
pertencem. Esqueçamos de créditos, nas tarefas da bondade,
de vez que somos os primeiros beneficiados. O Bem nos ali-
menta? Sim, alimenta a todos nós e nos fortalece, levando-nos
ao aprendizado do Amor.

Fiz uma pausa, o assunto é fascinante, embora tenha mui-
ara colocá-lo
to que aprender ainda sobre esse é tos e minha amiga
plenamente em prática. Pensei por mo ç

aguardou ansiosa que eu retornasse às elucida ões. q

- Elisa vamos mudar o enfoque de sua pergunta. Por ue

motivo alguém faz alguma coisa a outra pessoa? Mesmo sendo
crente, de alguma seita ou religião, ou mesmo descrente? Qual
o motivo ue leva um ato a ter resultado bom ou mau? Será
sem
pre necessário existir algum motivo para se praticar algu-
ma a ão? Observemos as diferentes motivaçôes que envolvem
ç . Que motivo leva o
as ações da maioria dos seres humanos p
avarento a trabalhar tanto e a explorar, quase sem re, seus
semelhantes? O egoísmo, certamente. Que motivo leva o la-
. Que motivo
drão a agredir e roubar suas vítimasteinadá eligiões, para
leva a maioria dos seguidores de de

deixar de fazer o que gosta e somente obedecer os outros. Nâo
elo anseio de ter posse de uma situação sem problemas,
P á egoísmo? S
será ? Isso também não ser
mesmo que seja no Além s se a dos homens,
ao fazermos algo esperarmos recompensa, )

seja de Deus, estaremos agindo com egoísmo, embora dessa


138 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

forma ajudemos muito outras pessoas e a nós mesmos, porque
quem faz o bem trilha o caminho para se libertar desse senti-
mento, que é o egoísmo. O Bem sempre beneficia, enquanto a
maldade prejudica. O dia em que não mais agirmos negativa-
mente, estejamos encamados ou desencarnados, haverá Paz e
Harmonia na Terra, pois todos iremos fazer o que deve ser feito.
Não haverá mais exploraçôes nem comparaçôes, pois isso é a
causa de muitos conflitos, dores, sofrimentos e angústias na
convivência dos seres humanos. Cada um de nós estará feliz
com a vida que tem e fará todo esforço para melhorar seu
trabalho físico e seu aprimoramento espiritual. O desejo de
posse, seja qual for, desaparecerá e teremos equilíbrio e
Paz.
Você, Elisa, me perguntou o que concluo da experiência
que tivemos juntas. Prefiro dizer que foi um período agradável
em que aprendi muito e que poderei passar a outros a ex eri-
ência. P
Fazer o Bem estando desencarnado é muito mais fácil,
pois podemos trabalhar horas seguidas em determinada tarefa
,
seja no Plano Espiritual, até mesmo no Umbral, ou entre os
encarnados, e, ao terminá-la, ou vencendo nosso horário de
trabalho, temos o equilíbrio das Casas de Socorro, do nosso
cantinho nas Colônias ou dos nossos Abrigos. Nós nos recompo-
mos rápido. E os encarnados? Eles têm seus afazeres físicos
,
têm a preocupação com a sua manutenção e de sua família.
Têm o corpo para cuidar, higienizar, conservar sadio e, quando
não, tentar sanar suas deficiências físicas. São muitos, Elisa, os
encarnados que fazem o Bem apesar de todas essas dificulda-
des e, embora alguns ainda o façam por recompensa, um dia
se libertarão dessa conduta. Outros, e são inúmeros, fazem-no
por Amor, tendo como recompensa o prazer de servir. Como
admiro os que fazem o Bem! E esse fazer deve ser no presente
,
agora, no momento. Não deixe, você, agora encarnado, p
ara
fazê-lo depois. No Plano Espiritual certamente terá oportunida-
de, mas é aí no corpo físico que se tem o grande aprendizado
do bem. E ele deve ser feito sem se cultuarem nomes famosos


O VÔO DA GAIVOTA 139

de desencarnados. Há muita sabedoria em praticar o bem com
Amor e simplicidade.
Terminei minha explanaçâo, trocamos ainda alguns co-
mentários sobre o hospital. Elisa tinha que voltar ao trabalho, e
nos despedimos com um abraço fratemo.
- Patrícia, tudo o que aconteceu ficará gravado na minha
memória - disse ela com simplicidade.
Deixei o hospital, a Colônia Perseverança. Ainda estava no
meu horário livre, a aula que eu daria só começaria mais tarde
e, então, fui ver meus pais, que passavam uns dias no litoral,
para descansar.
Não estava totalmente satisfeita com a resposta que dera a
Elisa. Meditei sobre o assunto. Veio-me à mente a questão 642
de O Livro dos Espiritos, Parte Terceira, capítulo I, cuja resposta
é: "É preciso fazer o Bem no limite de suas forças, porque cada
um responderá por todo mal que tiver ocorrióo, por causa do
Bem que deixou de fazer."'s Aí está a grande responsabilidade
de nâo se aproveitar o momento.
Menina e adolescente, estudei num colégio católico e gos-
tava muito de uma frase escrita no altar da capela: "liolontá di
Dio - Paradiso mio."'9 Compreendi-a assim: "Fazer a vontade
de Deus é minha alegria." Qual é a vontade de Deus em rela-
ção a nós? Penso que é que cresçamos rumo ao progresso, que
sejamos bons, que compreendamos, amemos uns aos outros, e
que façamos todo o bem possível ao próximo e a nós mesmos
pelo trabalho e Amor. Quanta fé possuía quem pronunciou essa
frase e que exemplo nos deixou de resignação, ânimo e cora-
gem.
Também sobre o assunto, lembrei-me de um ensinamento
de Jesus, contido no Evangelho de Lucas, XVII:7-10, quando o
Mestre Nazareno nos ensina que o senhor não fica devendo
obrigações ao servo, que fez o que ele mandou, e conclui dizendo:


18 - Citação tirada da tradução de Salvador Gentile, revisão de Elias Barbo-
sa-IDE. (N.A.E.)
19 - Copiamos na íntegra esta frase, é assim que está grafada em uma das
paredes de sua pitoresca Capela. [N.A.E.)


140 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

"Somos servos inúteis; fizemos o que deveríamos fazer". Que
temos que fazer? Seguir os mandamentos? Viver com dignidade
e honradez? Não fazer o mal? Acredito que sim. E se não fizer-
mos? Não seremos considerados nem servos. E para sermos
servos úteis? Além de fazer o que nos compete, não praticar o
mal, seguir os mandamentos, fazendo mais, muito mais. Traba-
lhar com Amor ultrapassando nossas obrigações, para o nosso
bem, para o bem do próximo e, mais ainda, nada esperar em
troca.
Encontrei meus pais caminhando na praia. A tarde quente
de verão estava maravilhosa. É sempre encantador ver o mar
com seu verde-azulado e com suas ondas a se desfazerem na
areia. Caminhavam eles tranqüilos desfrutando a calma do lo-
cal. Aproximei-me. Amo-os tanto! Querendo obter mais
informações sobre este assunto interessante, perguntei a meu
pai, porque sua opinião foi, é e será sempre muito importante
para mim.
"Como é, papai" - disse-lhe de mente para mente -, "o que
me diz sobre um trabalho realizado, o fazer o Bem, o porquê de
o fazermos..."
Papai pensou e acompanhei seus pensamentos.
"Jesus em certa ocasião disse: O Pai age até hoje, eu tam-
bém ajo. A vida é ação. Na natureza física tudo o que entra no
estado de letargia apodrece e se desintegra. Semelhante é a
nossa mente, que, se não for usada, petrifica e embrutece. Se
canalizada para o mal, embora nâo regrida, produz dores e
dívidas para si mesmo, pois quem prejudica se imanta ao pre-
judicado. E aí viverá, no ambiente que construiu agredindo a
tudo e a todos. O homem sábio, conhecendo as implicaçôes da
ação, caminha em sintonia com a natureza que, de momento
em momento, aperfeiçoa sua manifestação. Faz das suas ações
a razão de sua vida e, ao agir beneficamente, sente participar
com Deus do seu perpétuo agir.
Não há vida sem relacionamento, e é no aprimoramento
das relações que construímos, que está um novo céu e uma
nova Terra.
Portanto, uma tarefa realizada que resulta no bem de


O VÔO DA GAIVOTA 141

alguém não deve ser olhada como uma ajuda, tampouco como


,
trabalho, muito menos para aquisição de crédito junto do bene-
ficiado ou de Deus, mas sim como o próprio exercício de viver.
Pois, se Deus age, eu também preciso agir.

Jesus disse muitas vezes: Eu e o Pai somos um, só que Ele

é maior que eu.
Quando chegarmos a compreender que o universo é nossa
família, tudo o que venhamos a fazer, é para nós que estaremos
fazendo ois tanto a casa como a família é nossa. Cuidemos de

' p , quando encamados, sem espe-
nossa casa e de nossa família

rar que alguém nos elogie por algo que é nossa obrigação
Fazer dessa forma é como compreendo e como procuro fazer.

"Papai! Mas muitos encarnados não zelam bem por suas
casas e nem cuidam bem de seus filhos".

"Fazer só a obrigação nâo dá merecimento, nem crédito, e
nem deve ser alvo de elogios. Mas, se nâo cumprios as obri-
a ões, somos devedores, pois não realizamos o que era de
nó sa responsabilidade. Quando ultrapassarmos o tempo e o
espaço, não mais existindo em nós créditos e débitos, iremos
fazer todo o Bem pelo simples prazer de comungar com a vida
pelo profundo Amor a todas as manifestações Divinas.

Viver a certeza da onipresença de Deus é diferente do
chamado crer, ou de ter fé. Aqui residem dois opostos; o crer é
volutivo, incerto, mutável de acordo com a emoçâo do momen-
to e o viver na onipresença é sólido. Vamos exemplificar em
nossa família consangüínea: Pai e filha é parentesco, nâo é
crença, é um fato de que não há dúvida. Vivemos plenamente o
fato do vínculo que nos une aos parentes mais próximos. Da
mesma forma, como viver na onipresença de Deus não é um
ato de momento, ou atitude de crença, é a visão plena e total

ue estou em Deus e Ele está plenamente em mim. Portan-
q empre
de foi Dele. Mas,
to, o que é Dele é meu e o que é meu s Ele eu recaria-
apesar de não existir separaçâo entre mim e , P
mente existo, só Deus é plenitude total."

O horário me chamava ao regresso. Beijei-os. Volitei a al-
guns metros do solo e olhei-os. À sua frente estava uma gaivota


142 PATRÍCIA / VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

que, ao sentir a proximidade deles, voou tranqüila, ganhando
com seu vôo, espetacular altura, deixando desenhados na areia
seus pezinhos...
Meus pais se afastaram e suas pegadas ficaram...
Há pessoas que passam pela vida e deixam marcas...



tllt





Se você gostou deste livro o que acha de fazer com que outras pessoas
venham a conhecê-lo também? Poderia comentá-lo com as pessoas do seu
relacionamento, dar de presente à alguém que você sinta estar precisando
ou até mesmo emprestar àquele que não tenha condições de comprar. O
importante é a diwlgação da boa leitura, principalmente a literatura Espíri-
ta. Entre nessa corrente!


VIOLETAS NA MN S ÉSCtl T0R tor
JANECA ESpItIItOS A casa do Escn

Primeiro livro da - é um local fas-
Agorajá ambienta

série, onde ajovem da à nova ` vida, cinante onde se re-
autora, que desen- patrícia nos leva, únemtodosaqueles
carnou com apenas através dos cursos 9ue de uma forma
1 g anos, conta co- ou de outra traba-
mo isso ocorreu e 9ue realiza, conhe- lham com literatura
sua adaptação no cer e entenderPvá- moralizante, princi-
Mundo Espiritual. ria is egás como lo Palmente a literatu-
Você irá apreciar o tua , ra Espírita. Lá, o es-
relato, descrevendo n á b postos deoSo- parl tex órs ná s mé-
as descobertas do
outro lado da vida. corros e outras lo- diuns, aprende tam-
Como é o dia-a-dia calidades. Muitos bém técnicas de re-
temas são transmi- dação. Patrícia ain-
do espírito, como se 1 dos, da arruma tempo
vestem suas ne- tidos e ana isa

cessidades físicas, sempre com a sau- para contar o seu
. V ocê irá se dável curiosidade passado, uma boni-
etc que é a p
encantar com este eculiari- ta história de final
livro. dade da autora. romântico.

Todos psicografados pela médium

Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

s livr
os da Patrícia já
são best sellers


RECONCIlIAÃO
Fascinante, comoven-
te e esclarecedora
narrativa, um livro
que agrada a todos.
Sua trama envolven-
te, começa com um
duplo assassinato, o
pai matando a golpes
de faca, sua esposa e
seu filho. Mas após
todo este drama, o lei-
tor viverá uma pro-
funda lição de amor,
solidariedade, abne-
gação e ternura num
relato maravilhosa-
mente comovente,
você irá se apaixonar
por ele!

coPos cvE
ANDAM
Um livro que em fun-
ção do próprio tema,
todos devem ler e di-
vulgar, pois aborda os
perigos de invocar
espíritos por meio de
objetos tais como:
copos, pêndulos, etc.
Muitas são as histó-
rias que entremeiam
a narrativa, destacan-
do a da garota Nely
que é induzida pe-
los espíritos inferio-
res, a matar o pró-
prio pai e suicidar-se
posteriormente.

FIHO ADOTIVO
Além de exaltar a ca-
ridade e a grandeza de
pais que conseõuem
amar filhos alheios,
este livro traz uma
trama muito envol-
vente, enfocando dois
irmãos, que, sem o sa-
berem, namoram e
pretendem se casar.
Mas, a intervenção da
mãe,já falecida, alia-
da a espíritos amigos
tentam de todos os
meios evitar o matri-
mônio, trazendo a
cada página, gratas
surpresas, fazendo
deste livro, excelente
leitura e sahoroso
aprendizado.

PAlCO DAS ENCARNAÕES
Eis uma história realmente interessante. Au·-
gusto, é o personagem principal de duas en-
carnações diferentes, uma como filho de dono
de engenho e senhor de escravo e depois como
negro, escravo no mesmo engenho. Você irá
, se emocionar com suas tentativas de ajudar seus
entes queridos. A luta num tempo em que a lei
era do mais forte!

Livros de Antônio Carlos
Psicografados pela médium
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
Reconciliação
Copyright by © Petit Editora e Distribuidora Ltda. 1990.
22-10-03-3.000-144.500
Direção editorial: Flávio Machado Capa (criação): Flávio Machado Assistente editorial: Fernanda Rizzo Sanchez
Chefe de arte: Mareio da Silva Barreto
Diagramação: Ricardo Brito
Revisão: Sheila T. Fabre
Letícia Castello Branco Braun Sandra Regina Fernandes
Fotolito da capa: Digigraphic
Impressão: Edelbra Indústria Gráfica e Editora Ltda.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
133.9 Carlos, Antônio (espírito)
Reconciliação / romance do espírito Antônio Carlos; psicografado pela médium Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho. São Paulo : Petit, 1995.
ISBN 85-7253-014-2
1. Espiritismo 2. Romance brasileiro I. Carvalho, Vera Lúcia Marinzeck de II. Título.
98-2565 CDD-133.9
índices para catálogo sistemático:
1. Romances mediúnicos : Espiritismo 133.9
Direitos autorais reservados. É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio, salvo com autorização da Editora. Ao reproduzir este ou qualquer livro pelo sistema de fotocopiadora ou outro meio, você prejudicará a Editora, o autor e você mesmo. Existem outras alternativas, caso você não tenha recursos para adquirir a obra. Informe-se, é melhor do que assumir débitos espirituais.
Traduções para outro idioma, somente com autorização por escrito da Editora.
Impresso no Brasil, na primavera de 2003.






f/í Ss-
Romance do Espírito
Antônio Carlos
Psicografado pela médium
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
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*"' ^---i ._..... '
editora
Rua Atuai, 383/389 - Vila Esperança/Penha CEP 03646-000 - São Paulo - SP
Fone: (Oxxll) 6684-6000
Endereço para correspondência:
Caixa Postal 67545 - Ag. Almeida Lima
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Outros livros psicografados pela médium Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho:
Com o espírito Antônio Carlos
• Cativos e Libertos
• Copos que Andam
• Filho Adotivo
• Reparando Erros de Vidas Passadas
• A Mansão da Pedra Torta
• Palco das Encarnações
• Aconteceu
• Muitos são os Chamados
• O Talismã
• Aqueles que Amam
• O Diário de Luizinho (infantil)
• Novamente Juntos
• A Casa do Penhasco
• O Mistério do Sobrado
• O Último Jantar
• O Jardim das Rosas
Com o espírito Patrícia
• Violetas na Janela
• Vivendo no Mundo dos Espíritos
• A Casa do Escritor
• O Vôo da Gaivota
Com o espírito Rosângela
• Nós, os Jovens
• A Aventura de Rafael (infantil)
• Aborrecente, não. Sou Adolescente!
• O Sonho de Patrícia (infantil)
• Ser ou não Ser Adulto
• O Velho do Livro (infantil)
• O Difícil Caminho das Drogas
• Flores de Maria
Com o espírito Jussara
• Cabocla
Com espíritos diversos






• Valeu a Pena!
• O que Encontrei do Outro Lado da Vida
• Deficiente Mental: Por
que Fui Um?
Livros em outros idiomas
• Violets by my Window
• Violetas en Ia Ventana
• Reconciliación
• Deficiente Mental: ^Por que Fui Uno?
• Viviendo en ei Mundo de los Espíritus






l ortanto, se estás para fazer a tua oferta
diante do altar e te lembrares aí que teu irmão
tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta
diante do altar, e vai reconciliar-te primeiro
com teu irmão, e depois vem fazer a tua oferta.
MATEUS, V: 23, 24







AGRADECIMENTO
v^om todo o respeito, quero pedir permissão a todos aqueles que tiverem conhecimento desta obra a oportunidade de agradecer.
Em primeiro lugar, ao Espírito Antônio Carlos.
E depois, pelo esforço, dedicação, trabalho e interesse que tiveram para a concretização desta obra, no sentido de que viesse a público:
• ao prof. João Duarte de Castro
• a Antonina Barbosa Negro
• a Leila F. S. Sotta
A mim coube somente o prazer e a alegria de por um longo tempo estar em contato com o autor espiritual, usufruindo seus conhecimentos e sua enobrecedora companhia.
A Deus, que na Sua Misericórdia permitiu este trabalho e que tudo cria, meu sincero reconhecimento de amor.
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO







ínARIl
Prefácio. 11
O Poço 17
O Socorro 30
Aprendendo 45
tscutando Amigos 54
Ajudando Minha Mãe 79
O Louco 93
O Perdão 104
O Passado 116
A Decisão 136
9






Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
Reencarnado 155
De Regresso 174
Ajudando Meu Pai 188
Novas Responsabilidades 200
Aprendendo a Servir 214
No Conforto do Espiritismo 228
Aleluia 243
Glossário 251
w






PREFACIO
POR JOÃO DUARTE DE CASTRO
O
v^x médium é um instrumento do Alto na intermediação de tarefas provindas do plano espiritual. O médium espírita sabe que o futuro está sendo projetado, modelado e definido pelo presente; sabe também que o dia de hoje é conseqüência do ontem. Tem consciência de que assumiu esse compromisso e que não pode fugir de suas responsabilidades para não pôr em risco seus resgates, seu aperfeiçoamento, seu progresso moral/espiritual.
O médium fez a rogativa de servir de elemento de conexão entre as duas dimensões para mais depressa saldar seus débitos e contabilizar merecimentos. É dando que se recebe. É o médium um instrumento, apenas, mas de primordial importância; nós todos, cada qual em seu setor, somos instrumentos, mas deve-se procurar ser sempre o melhor instrumento. Sem vaidade, sem presunção, o médium-psicógrafo deve exercer sua atividade porque sabe que o trabalho não é dele, que apenas realiza
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Vera Líicia Marinzeck de Carvalho
o papel do telefone ou a função do lápis. A Vera Lúcia está enquadrada exatamente nesta categoria de médiuns cônscios de sua natureza, de sua responsabilidade. É simples, humilde, mas dedicada, consciente e responsável.
A missão dos bons espíritos, guias, amigos e protetores, ao fazer manifestações na Terra, é de educação, de amor, de justiça e de trabalho evangélico. Conhecemos os bons espíritos pelos frutos de sua manifestação; seus textos são direcionados tanto para a revelação da realidade espiritual como para a promoção da pessoa humana. Em suma, com o objetivo de facilitar a evolução do espírito, fazendo-o sentir que aqui ou do lado de lá, ora num plano, ora no outro, somos sempre os mesmos e a estrada que percorremos rumo à perfeição é uma só, sempre.
Os espíritos bons, guias, amigos e protetores não se manifestam por acaso nem são escolhidos para atuar por privilégios. Os médiuns não são manipuladores nem donos da verdade. A missão mediúnica é santa e tem caráter socializante. Seu objetivo é o de confraternizar pela revelação, pelo conhecimento, pelo amor.
A Doutrina Espírita é verdade trabalhada, humildade compreendida, amor exemplificado porque é o Cristianismo redivivo e autêntico; é caridade, justiça e fraternidade lecionadas aos indivíduos na trajetória educativa ascensional. Tudo isso está contido no trabalho do Espírito Antônio Carlos.
Este é um romance que impressiona e agrada por muitos motivos: a história é envolvente e sugestiva, o tema é empolgante, o estilo é simples, mas atraente, a leitura é dinâmica, os ensinamentos são profundos, oferecendo uma visão magnífica da vida no plano espiritual.
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Reconciliação
O escritor desencarnado leva uma vantagem significativa sobre o trabalho de seus colegas encarnados: a de poder atuar com desenvoltura e simultaneamente nos dois planos da realidade espiritual. Enquanto nós aqui permanecemos com os pés no chão e com uma visão muito limitada, o espírito liberto participa da vida material e da existência espiritual, ao mesmo tempo. Nós, do lado de cá, dependemos muito da intuição, da inspiração e das informações que nos chegam do outro mundo para poder informar sobre a vida na outra dimensão; já o informante desmaterializado tanto vê lá como aqui, tanto faz suas observações no plano invisível como no universo material, de forma direta, própria e objetiva.
Tudo neste romance impressiona, agrada e esclarece. Contudo, ainda mais impressionante me pareceu a descrição do trabalho desenvolvido por uma equipe de espíritos socorristas num centro espírita. Enquanto os encarnados apenas sabem da tarefa que eles próprios desenvolvem, acontece uma ampla atividade simultaneamente realizada pelo plano espiritual. Raul (Ricardo) descreve minuciosamente sua participação, numa dessas equipes de assistência junto a um centro espírita, primeiramente na função de guarda, atuando preventivamente contra espíritos maus, perturbados e perturbadores; de vigia, passa a integrar a tarefa de auxilio à prática mediúnica, socorrendo, organizando e encaminhando desencarnados aos médiuns; depois, integrando equipes de socorro que atendem a solicitações de auxílio a desencarnados que ficam vagando pela cidade, em hospitais assistindo a enfermos encarnados e desencarnados; visitando cemitérios e confortando tanto a encarnados inconsoláveis como a
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
desencarnados que se apegam em desespero a seus restos mortais; encaminhando espíritos necessitados para atendimento em um pronto-socorro espiritual, e assim por diante.
Quando minha querida amiga Antonina Barbosa Negro, da cidade de Leme (SP), grande incentivadora de meus modestos trabalhos, ligou solicitando-me os préstimos para a apreciação dos originais de um romance que lhe haviam sido encaminhados, coloquei-me a sua disposição. É freqüente e natural a um escritor receber semelhantes solicitações. Dizia Antonina saber de minhas ocupações e da escassez de meu tempo, mas que fazia questão de que fosse eu a realizar a tarefa. Tratava-se esclareceu ela - de material psicografado por sua amiga Vera Lúcia, da cidade de Jaú (SP), autoria espiritual de Antônio Carlos, de um romance intitulado Reconciliação, que lera e muito apreciara. Como sempre faço ao ser solicitado para prestar tal colaboração, não deixei de também esclarecer a Antonina que meu parecer seria dado de conformidade com o valor do texto, independentemente de amizade ou consideração. Que ela me remetesse os ditos originais, eu arrumaria tempo para sua leitura e apreciação...
Como se tratasse de material mediúnico, não deixei de "torcer o nariz" intimamente, dada a grande inflação de obras psicografadas de qualidade medíocre existentes por aí. Infelizmente, muitos editores publicam seja lá o que for, desde que seja trabalho espiritual. É livro ditado por desencarnado? Então "Amém", e assina-se embaixo...
E foi com este espírito que recebi os originais deste livro e iniciei sua leitura. Para encurtar a história, confesso que me envolvi tanto desde o seu princípio, e gostei tanto do enredo, da linguagem, do estilo, dos ensinamentos,
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Reconciliação
de tudo, enfim, que, ao chegar ao seu final, não encontrei outras palavras para traduzir meu entusiasmo, senão "Lindo! Magnífico!" E isto escrevi ao final do texto.
Que escritor exuberante é o nosso Antônio Carlos, e que instrumento mediúnico fiel e competente é a nossa Vera Lúcia!
Ligando novamente para saber a minha opinião, foi dito a Antonina que não apenas havia gostado muito do livro como iria fazer tudo o que estivesse ao meu alcance para vê-lo publicado. E para me penitenciar de minha pontinha de prevenção inicial, comprometia-me a fazer seu prefácio e os dizeres da contracapa. Daí que os originais foram encaminhados com nossa entusiástica recomendação ao Flávio e à Carmen, idealistas tarefeiros da PETITEditora, e o livro aqui está, inclusive com o cumprimento de minha promessa quanto ao prefácio.
Sem querer fazer predição, acredito que este romance do Antônio Carlos estará ocupando muito brevemente um lugar de destaque na literatura espírita. Com inteira justiça, diga-se.
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
desencarnados que se apegam em desespero a seus restos mortais; encaminhando espíritos necessitados para atendimento em um pronto-socorro espiritual, e assim por diante.
Quando minha querida amiga Antonina Barbosa Negro, da cidade de Leme (SP), grande incentivadora de meus modestos trabalhos, ligou solicitando-me os préstimos para a apreciação dos originais de um romance que lhe haviam sido encaminhados, coloquei-me a sua disposição. É freqüente e natural a um escritor receber semelhantes solicitações. Dizia Antonina saber de minhas ocupações e da escassez de meu tempo, mas que fazia questão de que fosse eu a realizar a tarefa. Tratava-se esclareceu ela - de material psicografado por sua amiga Vera Lúcia, da cidade de Jaú (SP), autoria espiritual de Antônio Carlos, de um romance intitulado Reconciliação, que lera e muito apreciara. Como sempre faço ao ser solicitado para prestar tal colaboração, não deixei de também esclarecer a Antonina que meu parecer seria dado de conformidade com o valor do texto, independentemente de amizade ou consideração. Que ela me remetesse os ditos originais, eu arrumaria tempo para sua leitura e apreciação...
Como se tratasse de material mediúnico, não deixei de "torcer o nariz" intimamente, dada a grande inflação de obras psicografadas de qualidade medíocre existentes por aí. Infelizmente, muitos editores publicam seja lá o que for, desde que seja trabalho espiritual. É livro ditado por desencarnado? Então "Amém", e assina-se embaixo...
E foi com este espírito que recebi os originais deste livro e iniciei sua leitura. Para encurtar a história, confesso que me envolvi tanto desde o seu princípio, e gostei tanto do enredo, da linguagem, do estilo, dos ensinamentos,
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O POÇO
Ac
/\cordei com um torpor estranho, por uns instantes não sabia onde estava, tudo parecia confuso, os últimos acontecimentos desorientaram-me. Fui tomando consciência aos poucos; com muito esforço comecei a abrir os olhos, tentei ver onde estava, no alto vi luz, a claridade do Sol. Tentei mover-me, não consegui, senti dores agudas, doía-me todo o corpo. Só consegui mover os olhos, mas a claridade do alto tonteava-me. Esforcei-me por falar.
- Ai, ai. - consegui balbuciar baixinho, doendo mais ainda com o esforço que fiz.
Lembrei-me então do poço. Estava dentro dele, conhecia-o bem, costumava brincar sempre
'te






Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
perto dali com meus amigos; era um seco e velho poço abandonado. Deveria ter uns cinco metros de profundidade e não era estreito, tendo uns dois metros de diâmetro; agora, dentro dele, parecia-me muito fundo e assustador. Com muito esforço, devagarzinho, consegui virar a cabeça um pouquinho para o lado direito, aumentando a dor que sentia, e então a vi.
Mamãe ali estava, caíra em cima dela, o seu corpo amortizara minha queda. Vi-a do busto para cima, estava toda suja de sangue, imóvel e com os olhos fechados. Vendo-a, além das dores horríveis, senti medo e desespero. Concentrei-me, reuni todas as minhas forças e consegui sussurrar:
-Mãe...
Ela não se mexeu. "Deve estar desmaiada" - pensei. "Quando acordar me ajudará."
Não me mexi mais, preferi ficar olhando para ela, dava-me mais segurança; depois as dores eram muito fortes, quando me esforçava para me mexer, elas pioravam, e sentia como se arrebentasse, devia ter fraturado alguns ossos!
Lembrei-me de meu amigo Joãozinho, que fraturou a perna, chorou, gritou, dizia que parecia estar arrebentado. Agora, com a cabeça mais virada, não vi mais a boca do poço, e sim as paredes de terra e pedra, e minha mãe, que não se mexia, demorando para acordar do desmaio.
"Nos momentos difíceis, ore." - Parecia-me que escutara minha avó. Vovó Margarida sempre me dizia isso. Lembrei-me dela, recordei com perfeição como era ela, senti mais saudade ainda, senti falta do seu carinho, do seu jeito meigo de consolar-me quando me doía algo.
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Reconciliação
Procurei lembrar as orações, as que repetia sempre, mas não consegui recordá-las.
- Ah! Meu Menino Jesus, fazei que nos achem, que alguém nos tire daqui, por Maria, sua Mãe, eu lhe peço. Ave Maria... - não conseguia nem começar, meus pensamentos estavam descoordenados, tinha dificuldade de me concentrar para repetir as orações que decorara. As dores eram contínuas e fortes, sentia o suor molhar-me e deveria estar também ensangüentado, como minha mãe. Abri os olhos e olhei-a, era tão bonita! Agora estava esquisita, os cabelos soltos em desordem, toda suja e não se mexia. "Oh, meu Deus! Fazei com que nos encontrem" - pensei firme. Era de tarde, logo viria a noite, ficaria escuro e seria bem pior, esfriaria, à noite ninguém passaria por ali e ainda mais olhar para o poço. Se ao menos pudesse gritar!
Sentia que estava em cima do corpo de mamãe e não notava nela nenhum movimento. Caiu primeiro, vi quando ele a pegou, enfiou a faca no seu peito e depois a jogou dentro do poço; ficara olhando assustado, não entendi, não queria acreditar, quis gritar, não consegui, fiquei parado. Olhou para mim, estremeci de medo, veio em minha direção, tentei escapar, comecei a correr, mas logo me alcançou; segurou-me com força pelo braço, arrastou-me alguns metros, levando-me para perto do poço.
"É preciso!" - falou forte e baixo. - "Você também."
Quis gritar, não consegui, estava horrorizado, vi-o erguer a outra mão, sua direita, e a faca veio em minha direção; aflito, desesperei-me para escapar, mas sua mão, que parecia uma garra de ferro, não me largou. Errou o alvo, a faca feriu-me o ombro esquerdo em lugar do coração. Que dor horrível, uma dor aguda que me tonteou.
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
Senti quando retirou a faca/ erguendo-me pela cintura; eu quis fazer algo, gritar, soltar-me, não consegui, e então me jogou no poço. Senti-me cair, desmaiei na queda, devo ter ficado alguns minutos inconsciente. Uma estranha fraqueza foi se apoderando de mim, parecia que tudo rodava. Abri os olhos que teimavam em se fechar, mamãe continuava do mesmo modo.
- Faça, Jesus, com que ele se arrependa e venha buscar-me; se não conseguir gritar, dificilmente alguém nos achará. É tão raro alguém olhar dentro do poço!
Tentei repetir as orações novamente. "Ave Maria...", não queria pensar, queria orar e os pensamentos vinham independentemente de minha vontade. Fatos acontecidos comigo invadiam minha memória, recordava minha infância, ainda estava nela, ia completar doze anos no mês vindouro. Sempre pensei que não tinha muito o que contar de minha vida e agora lembrava tantos fatos, acontecimentos, e com tantos detalhes que pensara ter esquecido; recordava-os como se os vivesse. A fisionomia de minha avó enchia-me a mente, amava-a muito. Chamava-se Margarida, era minha avó materna, fora ela a pessoa que mais carinho e amor me dera. Morei com ela até meus oito anos, foi ela quem me criou, ensinou-me a orar. Era tão boa, tão meiga e tão querida por todos que a conheciam. Enquanto morei com ela fui muito feliz, raramente ia à casa dos meus pais e só recebíamos visitas da mamãe e das minhas irmãs.
Minhas irmãzinhas! Que vontade de vê-las! Era o mais velho, depois vinham Tais e Telma, que moraram sempre com meus pais. Vovó morreu de repente. Não entendia bem o que significava morrer, senti que nos
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Reconciliação
separávamos e que minha felicidade acabara. Fui morar com meus pais.
A fazenda, como era gostosa a fazenda onde passei a minha primeira infância com vovó! Era o lugar mais lindo do mundo, para mim! Vovó dizia-me que sempre achamos lindos os lugares onde somos felizes. Depois da morte de vovó, voltei lá só duas vezes. Recordava tudo como se acontecimentos de anos antes tivessem acontecido ontem, lembrava-me dos meus brinquedos, das árvores, dos animais, da casa. A fazenda ficava perto da cidade onde residiam meus pais e foi vendida depois que vovó se foi.
Fiquei muito triste por ter de deixar a fazenda para ir morar com meus pais; fui assustado, meu coração saltava no peito. A casa era grande e boa e a cidade, pequena, onde todos se conheciam. Meu pai tinha um armazém não longe de casa, perto da igreja. Mamãe era bonita e delicada, seus olhos grandes e azuis estavam sempre tristes. Tais e Telma eram uns amores, quietas, delicadas, obedientes. Morava conosco também Maria, a empregada que chamávamos de Pretinha por ser de cor negra, bem negra mesmo, e miúda. Gostei dela logo que a vi, era muito amiga de mamãe e ambas trabalhavam muito.
Logo percebi que meu pai não gostava de mim. Quando ele chegava em casa, Tais e Telma corriam para abraçá-lo e ele mimava-as, pegava-as no colo, ria para elas. Não ousava me aproximar, ficava olhando, ele não me dirigia a palavra; ignorava-me, parecia que não gostava nem de me ver.
Comecei a ter medo dele, parecia que o irritava e passou a me xingar, a surrar-me por qualquer motivo e, até mesmo, sem motivo. Não entendia, não conseguia
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
entender por que ele procedia assim; mamãe, carinhosamente, tentava explicar-me: "Raul, seu pai está cansado. Manuel trabalha muito. Evite vê-lo, ele fica tão pouco em casa. Quando ele estiver, saia você, filho, vá brincar com seus amigos; quando ele sair, volte. Essa implicância passa, devemos ter paciência, compreendê-lo, e nunca faça nada para chateá-lo".
Fiquei muito triste, mas tratei de obedecer à mamãe, sem fazer perguntas para não deixá-la mais triste ainda. Às vezes ficava pensando sobre o porquê de ele ficar nervoso só comigo. Se estava cansado, por que brincava com minhas irmãs e comigo não? Por que surrava-me tanto, se não lhe desobedecia em nada? Na verdade era minha mãe quem trabalhava muito, passava o dia todo na cozinha fazendo quitutes para serem vendidos no armazém. Nunca fui ao armazém, sempre tive vontade de ir, mas meu pai proibira-me. Passava sempre por perto e via-o à toa a conversar com outros homens e pensava: "Mamãe diz que ele está cansado, não o vejo fazendo nada, será que ela sabe que ele fica à toa?" Nunca tive coragem de comentar com ela o que via.
Na fazenda, dormia no quarto com vovó: como era gostoso desfrutar de sua companhia, receber seu beijo de boa-noite! Com meus pais, não quis dormir no quarto, sozinho; queria dormir com minhas irmãs, e meu pai não deixou. Fui dormir com Pretinha no quartinho perto da cozinha. Estranhei no começo, porém ela era tão boazinha e logo nos tornamos bons amigos. Pretinha ficara órfã de mãe bem pequena, e o pai colocou-a para trabalhar como doméstica, morando no emprego. Antes, morava com minha avó e veio com mamãe, quando ela se casou.
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Reconciliação
Ela via pouco o pai, tinha irmãos da parte do pai com outra mulher, contara sua história uma vez, depois não tocara mais no assunto. Não gostava de falar de sua vida, para ela sua família éramos nós, de quem muito gostava.
Eu tinha muitos amigos, gostava de todos e era muito querido por eles, brincávamos por todos os lados. Ia à escola de manhã e à tarde fazia minhas lições; gostava de ajudar mamãe e Pretinha a fazer doces. E, quando meu pai chegava, saía rápido, indo brincar, ou até ficava em algum canto do quintal esperando que saísse novamente. Por isso, brincava muito pela redondeza, não importando se estava frio ou chovendo. Conhecia todos os meninos da vizinhança. Em casa, tornou-se hábito vigiar as chegadas de meu pai. Pretinha e minhas irmãs avisavam-me: "Raul, papai já vem!"
Ele costumava entrar pela porta da frente, e eu saía pelos fundos. Ia brincar, nadar no rio, pescar, brincar de pião, com bolinhas, corria por toda parte. Não comentava com ninguém que papai implicava comigo, como mamãe recomendava. O chato era que ia dormir muito cedo, após o jantar; papai chegava e raramente saía, eu ia para o meu quarto e lá ficava. Sem ter com quem brincar, ia dormir.
Papai comprava roupas bonitas e brinquedos para Tais e Telma, nunca me dera nada e não deixava mamãe comprar nada para mim. Não sentia inveja de minhas irmãs, achava merecido elas ganharem presentes, ainda mais que elas deixavam que eu brincasse com eles, só que não achava graça em brinquedos de meninas. Minhas roupas, eu as ganhava de minha tia, de meu primo mais velho. Eu não me aborrecia com essas diferenças; sentia, sirn, a falta do amor dele.
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Vera Lúcia Marínzeck de Carvalho
entender por que ele procedia assim; mamãe, carinhosamente, tentava explicar-me: "Raul, seu pai está cansado. Manuel trabalha muito. Evite vê-lo, ele fica tão pouco em casa. Quando ele estiver, saia você, filho, vá brincar com seus amigos; quando ele sair, volte. Essa implicância passa, devemos ter paciência, compreendê-lo, e nunca faça nada para chateá-lo".
Fiquei muito triste, mas tratei de obedecer à mamãe, sem fazer perguntas para não deixá-la mais triste ainda. Às vezes ficava pensando sobre o porquê de ele ficar nervoso só comigo. Se estava cansado, por que brincava com minhas irmãs e comigo não? Por que surrava-me tanto, se não lhe desobedecia em nada? Na verdade era minha mãe quem trabalhava muito, passava o dia todo na cozinha fazendo quitutes para serem vendidos no armazém. Nunca fui ao armazém, sempre tive vontade de ir, mas meu pai proibira-me. Passava sempre por perto e via-o à toa a conversar com outros homens e pensava: "Mamãe diz que ele está cansado, não o vejo fazendo nada, será que ela sabe que ele fica à toa?" Nunca tive coragem de comentar com ela o que via.
Na fazenda, dormia no quarto com vovó: como era gostoso desfrutar de sua companhia, receber seu beijo de boa-noite! Com meus pais, não quis dormir no quarto, sozinho; queria dormir com minhas irmãs, e meu pai não deixou. Fui dormir com Pretinha no quartinho perto da cozinha. Estranhei no começo, porém ela era tão boazinha e logo nos tornamos bons amigos. Pretinha ficara órfã de mãe bem pequena, e o pai colocou-a para trabalhar como doméstica, morando no emprego. Antes, morava com minha avó e veio com mamãe, quando ela se casou.
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
entender por que ele procedia assim; mamãe, carinhosamente, tentava explicar-me: "Raul, seu pai está cansado. Manuel trabalha muito. Evite vê-lo, ele fica tão pouco em casa. Quando ele estiver, saia você, filho, vá brincar com seus amigos; quando ele sair, volte. Essa implicância passa, devemos ter paciência, compreendê-lo, e nunca faça nada para chateá-lo".
Fiquei muito triste, mas tratei de obedecer à mamãe, sem fazer perguntas para não deixá-la mais triste ainda. Às vezes ficava pensando sobre o porquê de ele ficar nervoso só comigo. Se estava cansado, por que brincava com minhas irmãs e comigo não? Por que surrava-me tanto, se não lhe desobedecia em nada? Na verdade era minha mãe quem trabalhava muito, passava o dia todo na cozinha fazendo quitutes para serem vendidos no armazém. Nunca fui ao armazém, sempre tive vontade de ir, mas meu pai proibira-me. Passava sempre por perto e via-o à toa a conversar com outros homens e pensava: "Mamãe diz que ele está cansado, não o vejo fazendo nada, será que ela sabe que ele fica à toa?" Nunca tive coragem de comentar com ela o que via.
Na fazenda, dormia no quarto com vovó: como era gostoso desfrutar de sua companhia, receber seu beijo de boa-noite! Com meus pais, não quis dormir no quarto, sozinho; queria dormir com minhas irmãs, e meu pai não deixou. Fui dormir com Pretinha no quartinho perto da cozinha. Estranhei no começo, porém ela era tão boazinha e logo nos tornamos bons amigos. Pretinha ficara órfã de mãe bem pequena, e o pai colocou-a para trabalhar como doméstica, morando no emprego. Antes, morava com minha avó e veio com mamãe, quando ela se casou.
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Reconciliação
Ela via pouco o pai, tinha irmãos da parte do pai com outra mulher, contara sua história uma vez, depois não tocara mais no assunto. Não gostava de falar de sua vida, para ela sua família éramos nós, de quem muito gostava.
Eu tinha muitos amigos, gostava de todos e era muito querido por eles, brincávamos por todos os lados. Ia à escola de manhã e à tarde fazia minhas lições; gostava de ajudar mamãe e Pretinha a fazer doces. E, quando meu pai chegava, saía rápido, indo brincar, ou até ficava em algum canto do quintal esperando que saísse novamente. Por isso, brincava muito pela redondeza, não importando se estava frio ou chovendo. Conhecia todos os meninos da vizinhança. Em casa, tornou-se hábito vigiar as chegadas de meu pai. Pretinha e minhas irmãs avisavam-me: "Raul, papai já vem!"
Ele costumava entrar pela porta da frente, e eu saía pelos fundos. Ia brincar, nadar no rio, pescar, brincar de pião, com bolinhas, corria por toda parte. Não comentava com ninguém que papai implicava comigo, como mamãe recomendava. O chato era que ia dormir muito cedo, após o jantar; papai chegava e raramente saía, eu ia para o meu quarto e lá ficava. Sem ter com quem brincar, ia dormir.
Papai comprava roupas bonitas e brinquedos para Tais e Telma, nunca me dera nada e não deixava mamãe comprar nada para mim. Não sentia inveja de minhas irmãs, achava merecido elas ganharem presentes, ainda mais que elas deixavam que eu brincasse com eles, só que não achava graça em brinquedos de meninas. Minhas roupas, eu as ganhava de minha tia, de meu primo mais velho. Eu não me aborrecia com essas diferenças; sentia, sirn, a falta do amor dele.
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Vera Lúcia Marínzeck de Carvalho
As dores estavam fortes, muito fortes, e não passavam. Tentei orar novamente, queria e não conseguia repetir as que sabia de cor, pensei nas imagens que via sempre na igreja, a de Maria, com expressão de sofrimento, e a de Jesus, coroado de espinhos e todo machucado. Jesus deve ter sofrido muito, como eu agora. Mamãe não se mexia, estava demorando demais para acordar: será que morreu? Apavorado, quis chorar, não consegui, meus olhos estavam secos e as lembranças teimavam em vir.
Aquela pedra! Observei bem na parede do poço uma pedra com formato quadrado, e lembrei do meu carrinho. Fora presente de vovó, era de madeira, uma cópia perfeita do carro que os bois puxavam na fazenda. Tinha muito cuidado com ele, guardava no meu quarto, dentro do armário, tinha-o como lembrança de minha avó.
Um dia, estava chovendo, não vimos papai chegar, voltara mais cedo, estava começando a jantar. Ao me ver, começou a ralhar comigo, senti muito medo, não sabia o que fazer, se ficava ou se saía da sala. Ele mandou que olhasse para ele, olhei, e xingou-me mais ainda. Até que escutei com certo alívio: "Hoje não come mais! Vá para seu quarto". Saí quase a correr, fiquei no meu quarto, peguei meu carrinho como se pedisse proteção. Escutei vozes na cozinha, papai discutia com mamãe.
"Não devia tratá-lo assim" - disse mamãe.
"Aqui mando eu e faço o que quero. Se está achando ruim achará mais!"
Entrou no meu quarto empurrando a porta. Assustado, fiquei olhando sem conseguir mover-me. Chutou meu carrinho e pisou em cima, depois tirou a cinta e começou a surrar-me. Gritei. Mamãe e Pretinha acudiram-me e acabaram apanhando também.
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Reconciliação
Saiu furioso e choramos todos: mamãe, Pretinha, minhas irmãs e eu. Mamãe teve que me banhar com salmoura. Doía-me o corpo todo, mas o que me machucava realmente era ver meu carrinho todo quebrado.
"Por que, mamãe, por quê?"
Ela não respondeu, estava tão triste quanto eu. Ajudou-me a consertar meu carrinho. Não ficou como antes, não rodava mais. Guardei-o então bem escondido e só o pegava quando tinha a certeza de que papai não estaria em casa. Após esse dia, tomamos mais cuidado, evitava ver meu pai, passando meses sem vê-lo e, quando o fazia, era de longe.
Nos últimos tempos, mamãe estava mais triste e abatida. Pretinha dissera-me que ela estava sofrendo, Telma a vira chorar e contara que papai havia gritado com ela.
Naquela semana, pareceu-me que ele estava mudando: nos últimos dias, estava mais atencioso. Encontrou-me almoçando, tremi assustado, sem saber se saía ou ficava, só rne olhou e disse: "Coma, menino".
Saiu da cozinha, indo para a sala. Suspiramos aliviados, acabei de almoçar e saí rápido de casa. Engraçado que, quando ele se referia a mim, nunca me chamava pelo nome, sempre de "menino" ou "moleque".
Dois dias atrás, trouxe doces, as meninas correram para pegar, já estava saindo da cozinha quando ele me chamou: "Moleque, venha cá!" Ficamos todos com medo, tremi assustado, parei e voltei, ele estava entrando na cozinha.
"Tome isto!" Deu-me doces, o mesmo tanto que dera Para as meninas; fiquei contente, mamãe alegrou-se, esforcei-me e consegui dizer: "Obrigado".
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
Ontem, quando íamos jantar, Pretinha avisou que ele estava chegando. Corri para meu quarto, lugar em que ele nunca mais entrara. Da cozinha, gritou: "Menino, venha jantar!"
Não saí do lugar, mamãe veio buscar-me e disse: "Venha, ele está calmo". Fui com medo, sentamos todos e jantamos. Não ousei levantar a cabeça e não conversei. Olhei-o disf arçadamente algumas vezes, pareceu-me tranqüilo. O jantar pareceu-me longo: quando acabamos, ficamos sentados e eles conversaram. Até que nos mandou dormir; fui, aliviado.
Hoje pela manhã, papai mandou que Pretinha levasse as meninas ao ensaio do coral da igreja à tarde e ficasse esperando para traze-las de volta. Logo que Pretinha e as meninas saíram, estávamos na cozinha, eu fazendo minhas tarefas escolares e mamãe fazendo bolinhos, quando papai entrou de surpresa; nessa hora não costumava vir para casa.
Ao vê-lo entrar pela porta da cozinha, fiquei quietinho, mas virou-se para mim e indagou:
"Menino, está bem na escola?"
"Estou sim, senhor" - respondi.
"Manuela, estive pensando, acho que já é tempo de acabar com algumas coisas desagradáveis aqui em casa. Raul não precisará mais sair de casa quando eu chegar, isso traz comentários e não you surrá-lo mais, vamos procurar viver em paz."
"Manuel!" - exclamou mamãe. - "Quer isso mesmo? Que bom!"
"Vamos começar dando um passeio. Estou com vontade de andar um pouco pelo campo, está bonito nesta época do ano. Venha comigo, Manuela."
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Reconciliação
"Mas, Manuel, you fritar os bolinhos!"
"Deixe isso para depois. Está trabalhando muito, o armazém ficará hoje sem seus bolinhos, vamos aproveitar esta tarde bonita para conversar e nos entender. As meninas só voltam lá pelas dezessete horas. E venha você também, moleque. Vamos os três. Feche a casa, Manuela, enquanto you ao armazém dar ordens para o Oswaldo. Vá indo na frente com o menino, encontro vocês logo, vão pela estrada da Capoeira."
Papai saiu e mamãe sorriu, feliz.
"Vamos, Raul, vamos passear com seu pai. Feche a casa para mim, you arrumar-me, acho que Manuel está mudando, tratou-nos tão bem..."
Logo saímos e fomos para o lado da estrada da Capoeira, que não era longe de casa, era caminho de diversas fazendas para a cidade.
íamos de mãos dadas. Mamãe soltara seus cabelos, penteando-os, ficara muito bonita, estava perfumada e risonha. Recomendou-me:
"Raul, meu filho, preste bem atenção, seja obediente. Não deve irritar seu pai, fale pouco, fique quietinho, obedeça-lhe em tudo para agradá-lo. Fique perto de mim, não se distancie, entendeu? Estou tão contente, tenho fé em Deus e esperança no coração de que nossa vida irá mudar. Acho que ele me ama, está contente e tranqüilo. Quis passear conosco. Isso é bom, não acha?"
Fomos andando pela estrada, o campo estava florido e a tarde, morna e agradável. Olhava mais para mamãe, alegre, estava mais bonita ainda e era tão meiga e tão boa! Papai alcançou-nos, veio apressado olhando para trás, sorriu ao nos ver.
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
Reconciliação
Passou a mão na minha cabeça, querendo ser agradável, mas não estava contente como minha mãe. Senti medo, não sabia por que, sentia uma ansiedade, como se a qualquer momento ele fosse tirar a cinta e surrar-me.
Continuamos a caminhar.
"Vamos até lá embaixo?" - sugeriu papai.
"Não é longe? As meninas podem voltar" - respondeu mamãe.
"Ora, Manuela, elas estão com Pretinha e não demoraremos, estou hoje com vontade de andar. Não acha agradável andar pelo campo?"
"Está mesmo muito agradável. Vamos."
Foram conversando, papai pareceu-me um tanto estranho, olhava muito para os lados, enquanto mamãe ia feliz com a atenção recebida. Ela se recordava de sua infância na fazenda, de seus pais, de quando namoravam, da coincidência de nomes. Saímos da estrada, descemos um pequeno morro. Eu ia calado, ao lado de mamãe, como ela recomendara, catava pedrinhas e jogava-as.
"Aqui está. O velho poço abandonado" - disse meu pai.
"Não acha perigoso, Manuel, deixar um buraco assim aberto em pleno campo?"
"Foi aberto porque julgaram achar água, como não deu em nada, abandonaram-no. Venha, vamos vê-lo. Manuela, você disse a alguém que íamos sair? Encontrou com alguém no caminho?"
"Não, ninguém."
Muitas e muitas vezes, brincara por ali; mas, por recomendações, não chegávamos muito perto do poço porque sabíamos que poderíamos cair. Papai aproximou-se e chamou-nos.
"Venham vê-lo. Curioso, é bonito, não tem perigo, é só ter cuidado."
Aproximamo-nos, mamãe chegou bem perto dele, eu fiquei a uns dois passos dela. Aí, tudo aconteceu. Meu pai feriu-nos e jogou-nos ali dentro do poço.
Eu indagava: "Por quê? Por quê?" Não entendia, não conseguia entender; pensando nele, não sentia raiva, parecia-me que ele tinha motivos para fazer o que fez. Nem medo dele tinha mais, não achava ruim o que nos fizera e não sentia nem um pouco de ódio. Lembrei que, uma vez no catecismo, fiquei bravo com os homens que mataram Jesus, após ouvir a história da crucificação.
"Ah, se estivesse lá" - exclamei -, "mataria todos eles sem piedade!" - Fechei o punho, ameaçador, e dona Mariana, a catequista, respondeu-me com brandura:






"Raul, Jesus passou por muitos sofrimentos, ingratidões e até traição; compreendeu a maldade deles, aceitou tudo com muito amor. Perdoou-lhes e pediu para o Pai perdoar-lhes, deixando-nos o exemplo a ser seguido. Por que não perdoamos também? Não devemos ter raiva de ninguém, mas compreender as maldades que nos fazem."
Senti-me mais tonto ainda, estava estranho, as dores suavizavam e um frio invadiu-me. Pensei nele, lembrei com detalhes o rosto de meu pai, sua expressão ao me segurar; odiava-me e eu não sabia o porquê. Tentou matar-nos, ferindo-nos tanto, e eu o perdoava, perdoava de coração.
"Perdôo-lhe, papai" - disse em prece. - "Perdôo-lhe e não you querer mal ao senhor, não you!"
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Reconciliação
Olhei para baixo, percebi que estava de pé e deitado também ao mesmo tempo. Vi-me com nitidez, virado, todo sujo de sangue e imóvel.
- Não olhe para baixo, venha para meus braços.
Vi então que com minha avó estavam mais duas pessoas que não conhecia e também não consegui vê-las direito. Parecia que elas me soltavam de alguma coisa e esta coisa parecia ser eu mesmo, meu corpo.
Olhei com muito amor para vovó, era bom demais tê-la comigo nessa hora em que sofria e necessitava de l carinho e proteção.
- Vovó! É a senhora mesmo? - falei com facilidade. Incrível, não sinto mais dores, a senhora veio ajudar-me? Não está morta?
- Ninguém acaba no mundo só porque teve seu corpo morto. Quando amamos, estamos sempre juntos, e eu amo você. Tem medo?
- Não, senhora, nunca iria ter medo da minha avozinha.
- Meu netinho, venha comigo.
- Não posso andar, até há pouco nem me mexia, as | dores passaram, mas...
r - De agora em diante, não terá mais dores, venha
para meus braços.
Fui sem medo, amava demais minha avó, sentira sempre tanta saudade dela. Senti seus lábios na minha testa num beijo suave, cheio de carinho, como sempre fazia nos tempos em que morava com ela. Confortado, confiante, fiquei por uns instantes desfrutando a paz que me transmitia. Lembrei-me então de mamãe, que também carecia de socorro, olhei para baixo e estava
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O SOCORRO
l araram as lembranças; por uns instantes, fiquei como que vazio.
- Venha, querido, dê-me sua mão.
Pareceu-me ser a voz de minha avó, escutava de um modo estranho, senti como se alguém me protegesse. Quis obedecer, esforcei-me e ergui a mão com mais facilidade do que pensava poder fazer. Virei a cabeça, já sem esforço, para cima e a vi.
Vovó estava sorrindo ao meu lado, segurava uma das minhas mãos que estendi e ela estendia-me também sua mão. Senti-me tonto, com a sensação de que ficara leve de repente e que me erguera do chão, do fundo do poço.
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho Reconciliação
mamãe do mesmo modo, como eu também. Nós dois, imóveis, quietos, machucados.
- Sou dois agora, vovó? - indaguei assustado.
- Não, Raul, você é um só. Você é este que sente, que conversa comigo, que está nos meus braços. O outro que está imóvel é só seu corpo. Não se assuste, meu neto, uma nova vida começa para você. Não quer ficar comigo?
- Sim, quero, o que mais quero é morar com a senhora novamente.
- Sabe que morri para o mundo físico, material, moro em outro lugar agora?
-Não faz mal, se eu morri, quero estar com a senhora.
- you carregá-lo, vamos sair do poço.
- E mamãe? Vem conosco? A senhora e seus amigos vão tirá-la do poço?
- Raul, sua mãe virá mais tarde, não se preocupe com ela.
Não me preocupei, sempre confiei em vovó, senti-me bem, acomodei-me nos seus braços carinhosos e um suave sono invadiu-me; ainda tentei abrir os olhos, não consegui, adormeci.
Acordei bem disposto, espreguicei, sentindo-me muito bem, depois olhei para os lados procurando por Pretinha. Pensei estar acordando no meu quarto, mas era um quarto grande com várias camas, lugar claro, agradável. Respirei fundo, senti-me leve e disposto. Olhei pelo quarto todo, não conhecia aquele lugar, olhei-me, não estava com minhas roupas e sim com uma de dormir, limpa e perfumada. Apalpei-me, estava como sempre, sem nenhum machucado. Lembrei-me do poço, dos acontecimentos, de mamãe, senti medo. Quis gritar, mas não o fiz, encolhi-me
na cama, cobrindo-me todo com o lençol. Acabei por conseguir dizer: "Valha-me, Deus! Será que é sonho, eu sonhei?"
- Como está meu homenzinho? Dormiu bem? Descobri só um pouquinho o lençol, o tanto que
deu para ver a dona da voz, olhei-a curioso. Era uma moça muito bonita, risonha e alegre. Senti-me mais tranqüilo, ela pareceu-me boa. Sorriu para mim e sentou-se na minha cama.
- Não fique assustado, sou sua amiga. Como se sente?
- Eu? Bem, não sei. Poderia dizer-me se sonho?
- Claro que não, veja, you beliscá-lo.
Apertou minha bochecha direita, riu alto e acabei por descobrir-me, soltei mais meu corpo e sorri também.
- Raul, meu querido! - Escutei a voz de vovó que chegava.






- Vovó, avozinha! Abraçamo-nos, beijamo-nos.
- Raul, meu neto, estaremos sempre juntos agora. O medo passou, sentei-me na cama, passei meus
braços em torno do corpo dela como se a segurasse para sempre junto a mim.
A moça, minha nova amiga, fez um adeusinho com a mão e saiu, deixando-nos sozinhos.
- Estamos no céu, vovó? Mora aqui? Que é dos amigos? Conhece o anjo Gabriel? Gostaria de vê-lo, acho-o tão lindo!
Vovó sorriu.
- Saberá de tudo aos poucos, meu neto. O céu como Pensa não existe, aqui é uma das moradas espirituais, linda e acolhedora. Anjos são espíritos bons que trabalham em ajuda a todos. Mas como se sente?
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
Pulei da cama, sentia-me muito feliz com a presença de vovó. Não senti medo ou receio, a nova forma de vida estava encantando-me, ainda mais sabendo que agora ficaria com vovó Margarida. Mas lembrei-me de mamãe, se estava viva no corpo, deveria estar machucada, ou, se estava morta, deveria estar também ali.
- Vovó, e mamãe? Não está aqui?
- Aqui, Raul, é morada dos mortos da matéria.
- Morri mesmo? Nem acredito. Tinha impressão de que a morte era complicada.
- A morte do corpo é um fenômeno simples que acontece a todos nós. Sim, seu corpo morreu.
- Mamãe não morreu? Foi mais ferida, caiu primeiro. Ainda está lá? Está sozinha?
Vovó entristeceu-se por uns instantes, voltando a sorrir em seguida.
- Ninguém está sozinho, estarei sempre que possível com minha filha, não se aflija, por favor. Deus é bom demais, Manuela ficará boa.
- Eles a acharam? Deve ser noite, está escuro.
- Claro que a acharam, não deve se preocupar com isso, agora. O importante é você estar bem.
- E vovô? A senhora dizia que quando morresse queria ficar com ele!
- Aqui não é bem como pensava que fosse. Não ficamos todos no mesmo lugar. Há muita justiça e uns, como seu avô, necessitam ficar em outros lugares para compreender e se arrepender dos erros cometidos.
Lembrei que vovô, nas conversas que eu escutara, fora mandão e genioso:
- Está no inferno? - indaguei ressabiado.
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Reconciliação
- Não, Raul, o inferno eterno não existe, mas há lugares feios e tristes onde ficam os imprudentes, por certos períodos, até se arrependerem. Compreenderá aos poucos.
- Vovó - acenei para que se aproximasse e disse-lhe, baixinho: - Sabe quem nos jogou no poço? Foi meu pai, foi ele mesmo.
- Vamos esquecer isso também, por enquanto.
- Não tenho raiva dele, já o perdoei, como ensinou Jesus no Pai-Nosso.
- Raul, orgulho-me de você, procede do modo mais certo: quem perdoa limpa-se e torna-se leve; foi por isso que pôde vir para cá e estar comigo.
Mudamos de assunto, começamos a falar do tempo em que vivíamos juntos, de fatos interessantes. Senti-me tão feliz ao lado dela que não pensei mais nos acontecimentos tristes.
Vovó acomodou-me no leito, orou comigo, agradecendo por estarmos juntos. Beijou-me, senti sono, dormi tranqüilo.
Devo ter dormido muito, porque acordei com vovó me chamando:
-Raul!
Acordei, pulei nos braços dela, beijando-a.
- Está muito bem, menino. you levá-lo para minha casa.
- Não mora aqui, vovó?
- Aqui é um hospital, onde ficou uns dias se recuperando. A vida continua e não é só dormir. Conhecerá linhas amigas que moram comigo. Venha, mostrarei a colônia a você.
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Vera
Lúcia Marinzeck de Carvalho Reconciliação
Vovó ajudou-me, mas eu sentia que mamãe chorava por mim. Estranho, eu sabia que ela me chamava. Eu disse
para minha avó:
- Vovó, é mamãe, sinto que está chorando e que
chama por mim!
- Manuela sabe que você morreu, está triste e chora, mas isso passa. Quando sentir isso, ore e se distraia. Não deve se preocupar com ela, as mães sempre choram por
seus filhos.
- Que bobagem, vovó! Se mamãe pudesse ver-me
não iria chorar por mim.
Não falei mais nada, mas pensei: "Acharam mamãe e ela sabe por que morri. Papai deve estar arrependido e tudo ficará bem, lembro que sofremos e choramos quando vovó morreu e agora eu a vejo viva em espírito e estou
junto dela".
- Raul - disse vovó -, não deve dizer que morreu,
use o termo certo, você desencarnou, isto é, está vivo, sem o corpo carnal. Ninguém acaba, Raul, vivos sempre estamos, no corpo dizemos que estamos encarnados ou reencarnados; sem o corpo de carne, estamos desencarnados.
- Que interessante!
Saí do quarto e vi que o hospital era grande, limpo e agradável, rodeado por um grande jardim com árvores e muitas flores. De mãos dadas com vovó, ia olhando tudo, encantado! Passamos por um portão, chegando a uma rua toda limpinha e arborizada.
Tudo é tão lindo, vovó, mais parece uma cidade, ruas,
casas, que coisa! Vovó sorriu.
- É uma cidade, Raul, só que no plano espiritual; a
vida continua!
sorri ao falar o
- Por que, vovó, os encarnados - sorri ao falar o termo aprendido - não sabem disso?
- Muitos sabem, Raul; outros preferem complicar
algo tão simples e perfeito.





- Como é bom morrer, digo, desencarnar! - Rimos. Chegamos à frente de uma casa rodeada de um pequeno jardim, cheio de flores.
- Aqui é meu lar e seu também de agora em diante;
venha, entremos.
A casa era limpinha, agradável; as amigas de vovó, quatro senhoras simpáticas e bondosas, receberam-me alegres e logo fiquei à vontade.
- Este é seu quarto, você ficará comigo.
Em pouco tempo, conheci tudo e tornei-me amigo das companheiras de vovó. Despediram-se de mim, dizendo que iam trabalhar, achei estranho e corri para indagar.
- Vovó, vovó, elas foram trabalhar? Aqui não se descansa pela eternidade? Vejo-as felizes, e vão trabalhar?
-Raul, será que pessoas dinâmicas seriam felizes sem fazer nada? O trabalho é a alavanca do progresso espiritual. Há muito o que fazer aqui. Será que você não se cansará de ficar à toa? Não irá querer saber como é aqui? Poderá aprender, estudar. Não foi auxiliado? Ajudamos você a desencarnar, foi atendido no hospital, isso é trabalho, é o que fazemos aqui. O céu que muitos imaginam ^a Terra não é o da realidade, não ficamos ociosos pela eternidade. Desencarnar é como mudar, muda-se a forma de viver. Somos eternos, a vida continua e não se cresce
Sern estudo e trabalho.
- A senhora falou que nem todos que desencarnam
Vem para cá; podem ir para onde?
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho veconcüiação
- Muitos lugares, lindos e agradáveis como este; feios
e tristes, para os maus.
- Vovó, se papai desencarnar, irá para um lugar feio?
- Não sei, Raul, se não se arrepender, irá. Mas você não deve se preocupar com isso agora.
- Vovó, se you morar aqui, quero conhecer, aprender,
não gosto de ficar à toa.
- Como me alegro em vê-lo disposto! you levá-lo amanhã a uma escola onde aprenderá com outros jovens o que necessita saber.
-Escola?!
- Não é só porque desencarnou que se tornará sábio e saberá de tudo. Para saber é necessário aprender e estudar. Agrupam-nos em escolas, em salas de aula. Quem sabe ensina para os que querem aprender. A escola para onde irá é para crianças e jovens, tendo também adultos, é grande e espaçosa. Fará muitos amigos, jovens como você; lá passará o dia todo e só virá encontrar-se comigo
à noite.
- Não ficaremos o tempo todo juntos?
- Raul, estaremos juntos, mas não o tempo todo. Você estudará e eu tenho minhas tarefas, meu trabalho. Não posso ir à escola com você, nem você comigo ao meu trabalho. Cada um de nós tem uma ocupação e não podemos estar o tempo todo juntos. Isso acontece com os encarnados também; a vida continua.
Aguardei ansioso o dia seguinte e logo cedo fui conhecer a escola com vovó. Andamos pelas avenidas, onde as pessoas nos cumprimentavam contentes. Vi um senhor de mãos dadas com um garoto que, como eu, olhava tudo, encantado. Pareceu-me ser o pai dele, e lembrei-me do meu.
- Vovó, é melhor não dizer a ninguém o motivo de j^eu desencarne. Não quero que meu pai venha a ser preso e depois me envergonhar.
- Raul, os acontecimentos aqui não são iguais aos da Terra. Não podemos esconder os fatos e não tem por que se envergonhar, verá isso com o passar do tempo. Creio que ninguém o interrogará e não precisa contar, se não quiser. Quanto a ser preso, está entre desencarnados que não efetuam prisões.
- Vovó, sinto que meu pai teve motivos para fazer o que fez, só que não o entendo, eu esforcei-me por gostar dele. Às vezes, sentia que ele também,




só que não conseguia. Qual o motivo do ódio dele, vovó? A senhora sabe? Se há motivos, gostaria de conhecê-los.
- Raul, o progresso exige mudanças, transformações, nosso modo de viver não é eterno, como nós. Estamos sempre mudando, ora vivemos revestidos do corpo carnal, encarnados, ora estamos aqui, no plano espiritual, desencarnados. Vivemos muitas vezes na Terra, renovando os corpos.
- Que legal! Já fui outras pessoas?
- Não, querido, você é sempre o mesmo; já teve, sim, outros corpos, conseqüentemente, outros nomes, viveu em nuiitos lugares, teve acertos, erros, aprendendo e crescendo espiritualmente.
- Erros. Vovó, é isso, sinto que errei muito e minha niorte, quer dizer, meu desencarne violento se deu em razão de meus erros do passado.
- Sofremos, Raul, o que fizemos outros sofrerem.
- Parece que sei disso, a senhora fala e parece que recordo. É estranho, sinto que tive realmente outras exis-
4-A -*- s
^ncias, e junto com meu pai. É possível?
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
- Sim, Raul, é possível. Laços de amizade ou de ódio são fortes. E a Justiça Divina sempre coloca juntos nas encarnações os que se odeiam para pôr fim a esse sentimento inferior.
- Da minha parte, acabou; gosto do meu pai, amo mamãe. Se meu pai nos odeia, coitado dele...
- Sim, é verdade, quem odeia é digno de dó. Chegamos ao Educandário, assim era chamada a
escola de jovens e crianças. O prédio, muito grande, era rodeado de jardins floridos e parques com brinquedos espalhados.
- Como é grande! Como é maravilhoso! - exclamei, admirado.
- Este lugar, Raul, é local de estudo e também morada para aqueles que não têm parentes aqui. Do lado direito estão as classes dos jovens e do outro lado, as das crianças. Há muitos professores e todos vivem felizes.
Após atravessarmos o portão, entramos na recepção, onde fomos atendidos por uma senhora simpática, que abraçou vovó e depois a mim.
- Veio acompanhar o netinho, Margarida? Que mocinho lindo! Como está?
- Bem, obrigado - disse, um tanto encabulado.
- Gostará daqui, Raul, conhecerá hoje toda a escola, levarei você à classe que freqüentará.
A escola, ou melhor, o Educandário, muito limpo, pintadinho e cheio de plantas floridas, encantou-me. A senhora que nos recebeu deu algumas explicações à vovó.
- Margarida, Raul estudará em classe especial. São vinte meninos da mesma faixa etária que tiveram desencarne incomum. São espíritos inteligentes e com conhecimentos
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Reconciliação
anteriores. Terá só um professor nesse período, é o professor Eugênio, dedicado e amigo, mestre de quem seu neto muito gostará. Aqui é a Direção, venham conhecê-la. São muitas pessoas que aqui trabalham visando ao bem de todos os nossos jovens e crianças.
Olhava tudo, maravilhado, nunca vira lugares tão lindos e grandes. A nossa cicerone continuou:
- Aqui ficam as moradias, masculinas e femininas, o pátio, a ala das crianças, que são repartidas por idades, ali está o berçário.
Vi crianças de todos os jeitos e muitas brincavam felizes pelos parques.
- Terá tempo, Raul, para conhecer tudo. Venham, nesta parte estão as salas de aula; aqui está a sua.
- Devo ir agora, Raul - disse vovó, beijando-me na testa.
Nossa condutora bateu na porta e um senhor agradável, risonho, abriu-a e deu-me um abraço.
- Você é Raul? Esperávamo-lo, venha conhecer seus colegas.
Despedi-me com um aceno de mão da senhora que me acompanhou. Fiquei encabulado, mas o professor não me deixou sentir receio; tomou-me pela mão e observou-me de modo agradável. Corri o olhar pela classe, grande, confortável, limpa e bonita. Meus novos colegas eram só meninos de onze a quatorze anos, olharam-me sorrindo, dando-me boas-vindas.
- Este é Raul, recém-chegado do lar terrestre - disse
0 professor. - Este é... - Foi dizendo o nome de todos, um P°r um.
- Não se preocupe, Raul, logo saberá o nome de todos.

u o único professor de vocês, irá estudar gramática,
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho Reconciliação
matemática, matérias de conhecimentos gerais, como também moral cristã e o Evangelho. Sente-se aqui; depois, se quiser, troque e sente-se onde achar melhor, porém não incomode ninguém. Continuemos nossa aula.
Meu coração bateu forte, observei tudo, curioso e maravilhado. Os meninos, interessados, prestavam atenção, i senti que eram amigos e gostei do meu novo mestre. \
- Estamos falando, Raul, da imensa Bondade e Sabe- j doria de Deus, nosso Pai, que nos dá sempre oportuni- « dades a cada reencarnação de melhorarmos e progredirmos. \
"Nem todos os encarnados crêem na reencarnação. São muitas as formas de crença. Porque para os ateus, que não crêem em nada, o mundo surgiu ao acaso, como nós também surgimos. Não sabem explicar como tudo surgiu, têm muitas teorias; não crêem em Deus, mas no acaso. E, dentro desse acaso, há formas complicadas, chegando a um ponto em que não têm mais explicações. Para outros crentes, a maioria, Deus criou tudo e a nós também, só que acreditam que somos criados na concepção, juntamente com o corpo, tendo uma só existência. Fazem de Deus um carrasco, porque as diferenças ficam para o acaso: sorte ou azar. Uns são perfeitos, ricos, inteligentes; outros, defeituosos, débeis. Temos as oportunidades de renascer no corpo muitas vezes. O Pai nos criou iguais, somos nós que fazemos as diferenças. Criou-nos livres, temos o livrearbítrio de plantar e, obrigatoriamente, temos de colher o que se plantou. Assim, as diferenças são explicadas pelas reencarnações e pela Lei de Causa e Efeito."
- Professor Eugênio - disse um dos meus colegas -, o desencarne precoce, ou seja, a morte do corpo, quando este é jovem, é uma colheita?
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- Mário, nem sempre, não há regra geral na espiritualidade sobre esse assunto. A reencarnação é necessária ao nosso crescimento espiritual, estar revestido do corpo carnal não é fácil. Para uns espíritos é necessário passar pouco tempo encarnado para seguir às esferas superiores. Podemos comparar a Terra a uma prisão e a pena de cada um é diferente; uns têm algum tempo; outros, muito tempo. Findando, partem para sua libertação. Para outros, o desencarne no corpo jovem é aprendizado, colheita.
- Para mim foi uma colheita - disse Mário. - Achei tudo interessante!
O professor respondia às indagações com paciência e dedicação. Pensei: "you




gostar mais desta escola que da outra que cursava como encarnado". O professor continuou:
- Para a maioria, é aprendizado, Mário. Estão aqui reunidos vocês que deixaram corpos de carne como jovens, mas que são espíritos adultos e de muitas existências, com erros e propósitos de acertos, tanto que todos têm histórias interessantes vividas e uma encarnação de colheitas de outras existências.
Olhei-o um tanto desconfiado e pensei: "Tomara que não saibam que meu pai matou meu corpo!"
O professor, entretanto, pareceu nem notar minha Preocupação e continuou a aula falando da beleza da reencarnação, das oportunidades que cada um tem de reparar seus erros e aprender a amar a todos como uma grande família. Quando terminou a aula, os meninos Cearam conversando e, para meu alívio, ninguém me Perguntou como desencarnei.
- Ei, Raul, conhece a biblioteca? Não? Venha conosco, Poderá pegar os livros que quiser, todos nós estamos
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
adquirindo o hábito de ler. Tem urna quantidade enorme de livros aqui.
A biblioteca fica na ala das salas de aula, é grande, espaçosa, com muitas estantes, todas cheias de livros.
- Já leu este? - indagou Tião. - Leia, que gostará. É a história de Jesus para jovens. É lindo!
Pelo corredor, vi que outras salas tinham professores diferentes, e Tião explicou-me:
- Somos orientados aqui conforme nossas necessidades. As salas de aula são agrupadas de acordo com as necessidades básicas de cada um.
No pátio despedimo-nos, a maioria seguiu para os alojamentos e outros seguiram para o portão. Vovó esperava-me.
- Então, Raul, gostou?
- Muito, vovó, gostei demais.
- Vim buscá-lo somente hoje. Tenho muito o que fazer, você é esperto, virá sozinho amanhã.
- Virei, sim, vovó, não quero incomodá-la, estou tão bem!
De mãos dadas, senti-me feliz, e estar desencarnado para mim era maravilhoso, eu queria agora aprender e conhecer.
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APRENDENDO
l assei a ficar o dia todo na escola, assistia às aulas, com grande interesse, aprendendo gramática, matemática e outras matérias, como também as que nos davam explicações do plano espiritual, íamos muito à biblioteca, e meu interesse cresceu em relação aos livros, passei a lê-los com gosto. Conversávamos no pátio e eu ia aos parques brincar com outros meninos. E quase todos sentiam saudade de seus antigos lares e de seus familiares. As horas de lazer eram agradáveis e eu me sentia sempre feliz. Amávamos o professor Eugênio, que para tudo e todos tinha uma resposta delicada e sábia. Aprendi com facilidade, como se recordasse;





Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
uma das partes de que mais gostava era quando um dos colegas contava fatos ou mesmo a história de sua vida. E, aos poucos, fui percebendo que não tinha do que me envergonhar e esconder sobre meu desencarne.
Cada um de nós naquela classe tinha uma história incomum, conseqüências de erros de outras experiências.
Naquele dia, escutara Marcílio, que contara, comovido:
- Desencarnei assassinado. you narrar a vocês a história de minha vida. Meu pai desencarnou, deixando minha irmãzinha e eu bem pequenos. Logo após, minha mãe casou-se novamente. Meu padrasto nunca nos aceitou, minha irmã e eu passamos por momentos difíceis, mas fomos vivendo. Nasceram mais quatro irmãos. Morávamos num sítio, estava com onze anos, havia nesta época um potro bravo que ninguém conseguia montar. Naquele dia, estava a sós com meu padrasto no curral, vi-o laçar o potro e me desafiar:
"'Monte neste cavalo, menino/ :
"'Eu não, ele é bravo!'
"'Tem medo? É covarde como seu pai/
"Enfureci-me, mas nada respondi, aí ele me pegou e me jogou em cima do potro, que saiu pulando como doido. Ainda o escutei rir, fiquei apavorado, tentei me segurar, não consegui e caí. Senti ser pisoteado pelo potro, nada mais vi ou senti, acordei e soube que desencarnara. Aqui me senti feliz, o tempo foi passando e tudo parecia normal.
"Mas minha irmãzinha, um ano mais nova que eu, enfrentando dificuldades, começou a pedir-me socorro, chamando-me para ajudá-la. Como isso é normal por aqui,
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
uma das partes de que mais gostava era quando um dos colegas contava fatos ou mesmo a história de sua vida. E, aos poucos, fui percebendo que não tinha do que me envergonhar e esconder sobre meu desencarne.
Cada um de nós naquela classe tinha uma história incomum, conseqüências de erros de outras experiências.
Naquele dia, escutara Marcílio, que contara, comovido:
- Desencarnei assassinado. you narrar a vocês a história de minha vida. Meu pai desencarnou, deixando minha irmãzinha e eu bem pequenos. Logo após, minha mãe casou-se novamente. Meu padrasto nunca nos aceitou, minha irmã e eu passamos por momentos difíceis, mas fomos vivendo. Nasceram mais quatro irmãos. Morávamos nurn sítio, estava com onze anos, havia nesta época um potro bravo que ninguém conseguia montar. Naquele dia, estava a sós com meu padrasto no curral, vi-o laçar o potro e me desafiar:
'"Monte neste cavalo, menino.'
'"Eu não, ele é bravo!'
"Tem medo? É covarde como seu pai/
"Enfureci-me, mas nada respondi, aí ele me pegou e me jogou em cima do potro, que saiu pulando como doido. Ainda o escutei rir, fiquei apavorado, tentei me segurar, não consegui e caí. Senti ser pisoteado pelo potro, nada mais vi ou senti, acordei e soube que desencarnara. Aqui me senti feliz, o tempo foi passando e tudo parecia normal.
"Mas minha irmãzinha, um ano mais nova que eu, enfrentando dificuldades, começou a pedir-me socorro, chamando-me para ajudá-la. Como isso é normal por aqui,
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
auscultou-a e soubemos que ela temia meu padrasto, que já tentara violentá-la e a queria como amante. Chorei ao saber disso, mas o professor Eugênio lembrou-me de que o momento exigia confiança e eu deveria estar tranqüilo para ajudá-la. Não sabia o que fazer, orei com fé, pedi a Jesus que protegesse Leninha. Mas, se não sabia como socorrê-la, o professor, sabia. Vendo que meu padrasto tinha uma úlcera no estômago, colocou algumas gotas de um medicamento que trouxera na água que ele tomou, fazendo com que doesse. Com dores, teve de ficar acamado e não sentiu disposição para fazer o que planejara.
"Vamos agora, Marcílio" - disse o professor -, "ver quem poderá ajudar Leninha".
Visitamos meus poucos parentes, inclusive uma tia, irmã de meu pai, que enviuvara recentemente e estava morando sozinha. O professor Eugênio, pacientemente, fez com que ela se lembrasse de Leninha para sua companhia. Minha tia gostou da lembrança e achou que foi Deus que a ajudou. Foi no outro dia à casa de minha mãe. Assim, pediu a minha mãe para Leninha morar com ela; minha mãe hesitou, o professor interferiu e ela deixou. O professor ajudou-me a resolver o problema de Leninha, que está feliz com minha tia e não me chamou mais. Hoje, conto tudo para agradecer ao professor pela ajuda que deu a mim e a minha irmã.
O professor sorriu e iniciou uma outra aula. Achei fantástico Marcílio ter voltado à sua casa e ter ajudado sua irmã, e pela primeira vez deu-me vontade de rever minha casa, sentia saudade de Pretinha, de Tais, de Telma, dos amigos e muita, muita saudade de mamãe.
Voltei para casa pensando nela. Como estaria?





Reconciliação
Quando vovó me viu, foi logo dizendo:
- Que o preocupa, Raul?
- Minha mãe, estou pensando nela. Como estará ela? A queda foi forte e ela foi ferida com a faca. Estará bem? Difícil pensar que está encarnada. Sinto, vovó, ela chamar-me, parece que está chorando e que diz: "Raul, Raul, onde está você?" Faço o que o professor recomenda, oro por ela, procuro distrair-me. Acho que ela está sofrendo, vovó. Por favor, se a senhora sabe, diga-me como está ela.
- Raul, nestes poucos meses aqui, já aprendeu muito. Toma consciência da vida espiritual, desencarnou tendo o corpo de um menino, quase adolescente. Entretanto, seu espírito é adulto e aceitou bem a desencarnação. Você, Raul, foi um privilegiado, viu seu desencarne, isso é raro; viu, sentiu, por não ficar com medo, porque estava tranqüilo, sem raiva, sem fluidos negativos. Tantas pessoas de conhecimento querem ver seu desencarne e não o conseguem, perturbam-se com pequenas coisas, acontecimentos, com alguns erros, apegados à matéria. Até se libertarem desses sentimentos, passam pela desencarnação quase sempre dormindo e não a vêem. Você viu ser desligado, seu desencarne, aceitou, adaptou-se fácil e está feliz. Isso não ocorre com todos, não ocorreu com sua mãe. Minha filha Manuela desencarnou antes de você.
- Desencarnou? Por que não a vi? Não a vejo? Não está aqui?
- O desencarne pode ser de muitos modos. Não é !§ual para todos. Tudo é muito justo, temos que receber o ^ue fizermos por merecer.
"Poucos encarnados pensam na morte do corpo, vivem nas facilidades e errando. Entretanto a religião
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
ensina-nos o bem. Todas as religiões, Raul, pregam a necessidade de sermos bons, para que evitemos as más ações, e sobretudo perdoar, perdoar sempre. As religiões cristãs dão-nos grandes exemplos nos Evangelhos, na vida de Jesus, que perdoou na cruz aos que lhe quiseram mal. Esses ensinos maravilhosos são muito esquecidos e os orgulhosos se ofendem muito com as más ações que recebem, e não perdoam. O rancor, o ódio, são pesos que os seguram na Terra; não perdoando, não podem vir para cá. Manuela não perdoou. Ao cair, seu corpo morreu, seu espírito ficou junto ao corpo, não como aconteceu com você. Seu corpo ficou horas vivo, quando acordou do desmaio, tomou consciência de tudo. Manuela, não; dormiu para acordar mais tarde."
- Perguntei à senhora se haviam nos achado, e disse que sim. Como foi?
- Quando desapareceram, houve buscas, dois dias depois os encontraram e os enterraram. Manuela, ao acordar, achou que estava ferida. Viu seu corpo e entendeu que você morrera, porém ela não. Quando os tiraram do poço, conseguimos tirá-la de seu corpo. Ficou confusa. Para ela, está encarnada e chora por você que morreu. Não menti a você, dormiu por dias no hospital. Quando lhe respondia, já haviam tirado vocês do poço. Você achou que Manuela estava encarnada, deixei que pensasse assim para não preocupá-lo e para que pudesse se adaptar bem aqui.
Não consegui falar mais, senti-me triste e chorei. Vovó abraçou-me, consolando-me, percebi que também sofria e estava preocupada com mamãe, que era sua filha e a quem amava muito. Esforcei-me, parei de chorar, beijei vovó.
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Reconciliação
- Vovó, eu estava tão feliz. Agora como continuar sendo? Sabendo que mamãe sofre, não conseguirei ser
alegre-
- Raul, estar aqui é uma graça que devemos agradecer sempre. Estar aqui não é um privilégio, é merecimento. Se você não tivesse perdoado a seu pai, se não tivesse sido bom, não estaria aqui. A Lei do Universo é que semelhantes se atraem, somos levados após a morte do corpo para onde fizermos por merecer. Manuela conhece a lei do perdão, conhece o Evangelho, a vida do Mestre Jesus, entretanto, não segue seus ensinos, recusa-se a seguir os bons exemplos. Não pode ser socorrida, não aceitou o socorro, não quis perdoar e não pude traze-la. Todos nós que estamos aqui, Raul, temos entes queridos que nos preocupam, a vida continua. Aqui estudamos, trabalhamos, continuamos a educar-nos, porém não perdemos a individualidade, a consciência de nossa última encarnação. Não deixamos de amar e nos preocupar com nossos entes queridos. Sua preocupação é normal, ama sua mãe; entretanto, não deve se entristecer, porque tristeza nada resolve. Vibre com carinho, ore por ela, mande-lhe pensamentos de otimismo, que conseguiremos ajudá-la. Sempre que posso you até ela, procurando fazer com que compreenda e perdoe."
- Como está ela, vovó? Seu aspecto? Eu desencarnei, eixei o corpo machucado e fiquei sadio. E ela?
~ Manuela está como desencarnou. Sente dores nos
erirnentos, está suja e com o ferimento da faca a sangrar.
u perispírito machucou-se com a carne por não ter per-
ado, por não querer ser humilde. Ela vaga pela redon-
2a/ repete sem parar que quer se vingar, que odeia o
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
esposo por tentar matá-la e por ter matado você. Não quer nem pensar em perdoar. Para perdoar temos de ser humildes; orgulhosa, acha que foi muito ofendida. Está ferida pelo reflexo da morte do corpo, que lhe foi muito forte. Isso é comum, muitos desencarnam assim, ou por culpa pelos muitos defeitos, sofrem anos e anos, só sendo socorridos quando clamam por socorro e reconhecem seus erros. Nesse sofrimento pedem a morte, sem saber que já têm essa graça. Socorridos, têm necessidade de fazer um tratamento para refazer seu perispírito nos núcleos de socorro, nos hospitais daqui.
- Vovó, quando a senhora vai até mamãe, ela a vê?
- Não, Raul, Manuela não me vê, está obcecada pela idéia de vingança, não vê mais nada. Sua vibração é baixa e inferior pelo ódio que sente; julgando-se encarnada e sabendo que desencarnei, terá medo de me ver. Raul, para sermos felizes, basta-nos tão pouco e, como depende de nós, às vezes basta perdoar com sinceridade e pedir perdão.
- Vovó, a senhora foi ajudar-nos. A senhora sabia antes, ou ficou sabendo na hora em que caímos? Aqui a gente sabe das coisas que vão acontecer?
-Não nos tornamos adivinhos, Raul. Do futuro só podemos entender os resultados; vendo as ações, sabemos das reações. Não sabemos o que vai acontecer, mas sabemos das intenções. Sabia pelos pensamentos do seu pai o que ele planejava; ficou dias pensando como fazê-lo. Tentei, de todos os modos possíveis ao meu alcance, mudar seus pensamentos. Temos o nosso livre-arbítrio e não podemos interferir na liberdade do próximo. No passeio, tentei ajudá-los, fazendo com que outras pessoas os vissem,
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Reconciliação
fossem com vocês; não consegui, só você desconfiou, mas inocente como era, não entendeu as atitudes de seu pai. "Acompanhei sua agonia e, graças a Deus, pude retirá-lo do corpo logo que este morreu."
- Foi corajosa, vovó. A senhora dizia que queria desencarnar para ter sossego, para não saber dos muitos problemas dos filhos e netos. Aqui se preocupa com todos nós, sabe de todos os problemas e dificuldades, vê vovô sofrendo, mamãe neste estado e está sempre alegre a sorrir. Admiro-a!
- Raul, aqui aprendi a confiar, sei com certeza que nenhum estado é eterno; ora estamos aqui desencarnados, ora revestidos da carne, encarnados. As oportunidades de melhorar são para todos. Sei que chegará um dia em que meu esposo se arrependerá de seus erros, que minha filha perdoará, e que os terei junto de mim, novamente. Lembre, Raul, que tristezas não ajudam, só atrapalham; devemos ser alegres, alegria é um estado, é um modo de ser que devemos conquistar.
Vovó calou-se. Necessitando ainda de descanso, despedi-me dela, abraçando-a carinhosamente. Fui para meu quarto e orei, orei muito por nós e dormi. A prece sincera nos dá a tranqüilidade necessária.
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ESCUTANDO AMIGOS
.Tui à escola pensando na conversa que tivera na véspera com vovó. Será que eu não posso ajudá-la? Será que não há um modo de ajudar mamãe?
O professor Eugênio iniciou a aula. Tentei esquecer minhas preocupações e prestar atenção às suas explicações, mas não consegui, só pensava em mamãe sofrendo, andando de um lado para o outro, machucada e chorando por mim.
Logo, o professor Eugênio indagou:
- Que se passa com você, meu rapaz? Que o preocupa a ponto de estar tão distraído e pensativo? Podemos ajudá-lo?
- Não - respondi de imediato.
*fe





Reconciliação
Olhei para meus colegas, eles observavam-me carinhosamente, ninguém estava curioso, vi nas suas fisionomias compreensão. Lembrei que estávamos reunidos naquela sala de aula, considerada especial no Educandário, por termos problemas incomuns. Nesse tempo em que freqüentara a escola, só recebi amizade, carinho, ninguém indagara minha vida, como desencarnei. Confiava neles, respeitava a sabedoria e a simplicidade do professor Eugênio, gostava muito de todos. Naquele momento senti vontade de falar, mas estava indeciso. O professor esperou pacientemente por minha resposta; vendo-me tão incerto, continuou:
- Se não quiser falar o que o preocupa, não precisa; não tenho a intenção de ser indiscreto. Aqui estou para ajudá-los, sou amigo de todos vocês, de você, Raul, e amigos são para ajudar quando necessitamos. Todos nós passamos por experiências várias, dificuldades que, repartidas, são mais bem suportadas, ou, se esclarecidas as incertezas, torna-se mais fácil a solução, e aqui estou para esclarecê-los.
Deu-me um sorriso tão cheio de carinho que levantei da minha mesinha, corri para seus braços, emocionado, deixei que as lágrimas molhassem meu rosto. Meus colegas davam-me força com seus olhares; desprendendo dos braços do professor, falei:
- Minha vida encarnada foi diferente, assim pensava até que ouvi as narrações de vocês. Confesso que temi ^e soubessem como desencarnei. Agora quero narrar minha vida.
Fui falando, contei toda minha vida, ninguém ousou
faz,
er nenhum comentário, todos estavam silenciosos
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
prestando atenção. Ao falar do meu desencarne, senti-me meio engasgado, mesmo entre amigos não era fácil dizer que fora meu próprio pai quem matara meu corpo físico. Ao terminar, já me senti bem melhor, fiz uma pausa. O professor Eugênio olhou-me, incentivando-me a continuar. Sabia que não era meu desencarne o motivo de minha preocupação.
- Continue, Raul - disse carinhoso, e senti que todos me compreendiam e estavam com vontade de ajudar.
- Mamãe não perdoou, ela odeia meu pai, quer se vingar. Eu fui socorrido, ela não tem condições, vibra com ódio e rancor. Amo mamãe, amo a todos os meus, ela sofre e eu me preocupo com ela. Vovó está tentando ajudá-la, queria poder fazer algo por ela. Sei com certeza que, se pudesse falar com mamãe, ela me escutaria. Ela me quer bem, sofre porque morri, e não sabe que desencarnou. Se ela me visse, faria com que entendesse, pediria para que perdoasse; ela, perdoando, poderia ser trazida para cá. Sinto-me triste por isso. Por minha vida, não; gosto daqui e para mim tudo está bem. Meu pai matou-nos, mas sinto que ele deve ter seus motivos, talvez nenhum que se justifique, mas quero-lhe bem e ele não me preocupa, perdoei-o de coração. Mamãe é diferente, sempre foi boa, trabalhadeira, religiosa. Desencarna e fica sofrendo assim, por que não consegue perdoar?! Vovó disse-me que está como desencarnou, suja, machucada, ensangüentada, falando em se vingar, com ódio. Meus amigos, professor, eu queria ajudá-la, queria tanto, sinto que conseguirei; desencarnamos juntos do mesmo modo, sofrendo dores parecidas, terei argumentos para convencê-la...
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Reconciliação
Dei por finalizada minha narrativa e fui sentar-me no meu lugar. O professor Eugênio continuava tranqüilo, ele conhecia detalhes da vida de cada um de nós; sendo discreto, esperava que nós mesmos disséssemos, e sabia como nos ajudar. Mas, sabiamente, ensinava-nos a mais bela lição, a de nos ajudarmos uns aos outros.
- Compreendo você, Raul; vamos ajudá-lo. Quem de vocês quer dizer algo ao amigo que nos confia seus problemas?
Três dos meus companheiros levantaram a mão.
- Muito bem, vamos escutá-los, apresentem-se um de cada vez, e prestemos atenção.
- Raul - disse Mário -, foi triste o que aconteceu com você. Episódios tristes só devem ser lembrados para servir de estímulo e nos manter firmes na estreita porta do bem. Porque agora compreendemos que a dor é reação das más ações. O que deve importar a você é seu futuro, o que pretende fazer e ser. Quanto à sua preocupação, mantenha a esperança, os períodos de sofrimento não são eternos e passam. O tempo trará melhoras à sua mãezinha e ela progredirá.
"Raul, falarei de mim para dar-lhe conforto e esperança. Não faz muito que estou aqui, tinha três anos de desencarnado quando fui trazido para cá.
"Ah! Minha vida encarnada! Fui criado solto nos arrabaldes de minha cidade natal, meu pai estava sempre bebado e minha mãe constantemente envolvida com más c°mpanhias, só tive maus exemplos. Cresci vendo margiriais/ tendo dinheiro fácil, sendo, por medo, respeitado Petos moradores e tendo amigos ladrões. Com dez anos, Participei de pequenos furtos, e minha mãe, incentivando, ^ia que eu ia longe.
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
"Sentia às vezes que estava errado, que deveria ir embora, trabalhar, ter vida honesta. Tantas vezes sentia insatisfação daquela vida, porém passava rápido, aquela era a única forma de viver que eu conhecia.
"Estava com treze anos, fomos assaltar uma padaria, o assalto não saiu bem como planejamos. O dono conseguiu chamar a polícia e fomos perseguidos, fugimos, resistimos à ordem de prisão, jogando pedras nos soldados; eles atiraram, uma bala atingiu-me e desencarnei. Não usava armas, roubar para mim era aventura, ganho fácil, nunca pensava em matar ninguém e nunca pensei em morrer. Desencarnei sofrendo muita dor e, por muito tempo, continuei sentindo. Nem minha família nem amigos se importaram com o que aconteceu comigo; logo todos me esqueceram. Ao meu enterro, só foram minha mãe e umas amigas, nenhuma oração. Revoltei-me, não quis acreditar quando espíritos zombadores disseram que meu corpo morrera; socorristas conversaram comigo, pedi socorro, levaram-me a um posto de socorro, onde curaram meu ferimento. Não quis ficar lá, tinha disciplina demais para mim. Vaguei, inconformado com minha sorte, fui ter nos umbrais, sofrendo mais ainda entre os maus. Cansei, arrependi-me e quis ter outro tipo de vida, quis com sinceridade ser bom e fui trazido para cá. Entendi que sem disciplina não há ordem nem organização e que é gostoso ser ordeiro. Hoje, estou bem. Preocupo-me com meus pais, com antigos companheiros, todos no caminho do mal, mas sei com certeza que voltarão ao bem um dia. Os sofrimentos, Raul, são lições que aprendemos pela dor, quando nos recusamos a aprender pelo amor. Sua mãe sofre por não ser humilde, por não aceitar
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^conciliação
Q que lhe aconteceu, julgando-se não-merecedora da infelicidade que lhe ocorreu.
"Para tudo há explicações, embora não entendamos as causas dos sofrimentos por que passamos. Devemos aceitá-los acreditando serem certos, porque Deus é justo e devemos n'Ele confiar."
- Você, Mário, sendo criança, vagou? Sofreu o que irdnha mãe sofre? - indaguei curioso.
- Não confunda criança com inocência. Meu corpo era novo, não eu, propriamente; sou espírito milenar, de inocência nada tinha. Sabia que procedia errado, achei mais fácil seguir os exemplos dos que me rodeavam do que me corrigir. Inocentes, estes não vagam. Como fui socorrido e agora sou orientado, sua mãe também será um dia. Não tenho vergonha de minha vida, quero mesmo é modificar-me. Você, Raul, desencarnou sem culpa; eu, com muitos erros e vícios. Você não deve ter dó de você mesmo, fuja da autopiedade, muito tem de aprender e construir. Eu tenho me esforçado, aconselho você a fazer o mesmo.
- Obrigado, Mário - disse comovido -, acho que você não deve se aborrecer por seus erros, afinal, foi a educação que recebeu. Isso foi levado em conta, Jesus disse: "A quem muito foi dado, muito será pedido. O servo que não sabe das coisas do seu senhor e errou é ^igno de poucos açoites".
- Por isso fui socorrido, meu amigo, mas, se encarnei a*i foi por afinidades, por merecer. Recebemos no presente
0 que fizemos no passado.
Mário finalizou, o professor Eugênio sorriu, apro^do seu pupilo, e disse:
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
- Fale você agora, Adão.
- Raul, todos nós aqui, moradores ou hóspedes deste Educandário, temos histórias interessantes referentes ao nosso desencarne. Já observou, meu amigo, que somos um grupo um pouco diferente dos demais jovens daqui? Os outros têm vários professores, são mais saudosos de seus lares, mais infantis. Nós, aqui, parecemos mais adultos e conscientes de nossos erros e acertos. Temos um professor especial, sábio, amoroso, a ajudar-nos sempre com sua experiência e bondade. Não deve se preocupar nem se envergonhar com sua desencarnação. Desencarnações trágicas acontecem sempre, todos os dias, e você não é o único a ter o corpo morto pelo pai. Há muitas dessas infelicidades, pais que matam filhos, filhos que matam pais. Deve esquecer, não pensar neste episódio triste. Admiro você, Raul, sua capacidade de perdoar e sua compreensão; sua coragem é lição para todos nós. Mas, se não tivesse perdoado, estaria sofrendo. Pelo que aprendi, o algoz também sofre. Plantou e terá de colher. Sofre também a
vítima que não perdoa.
- É verdade, Adão - interferiu o professor com delicadeza. - Quem odeia e não perdoa sofre muito. O perdão é o refrigério das almas perseguidas e ofendidas. Perdoando, desligamo-nos de quem nos ofendeu, ódio é vínculo que prende um ao outro, trazendo muitos infortúnios. Estou contente a escutá-los, por favor, continue.
- Raul - prosseguiu Adão -, aceitamos melhor o que compreendemos e para cada uma destas desencarnações trágicas há uma explicação. Você sente isso ao nos dizer que lhe parece justo. Entretanto, não havia necessidade de ! seu pai ser o assassino, de cometer esse duplo crime. Ameu
veJ-, sua mãezinha, sendo boa e honesta, acabará entendendo, mas deve ajudá-la; acho-o bondoso por preocupar-se com ela, pois, se ela não conseguir perdoar, o círculo não se quebra e talvez, no futuro, será ela a assassina. Após pequena pausa, indagou:
- Professor, o "não perdoar" é conseqüência do ódio? Por que teria o pai de Raul assassinado tão friamente se não os odiasse? - Sem esperar pela resposta, concluiu: Nada fez ele nessa existência que o ofendesse, deduzo. Na Terra estivemos revestidos do corpo carnal, muitas vezes; assim, já estiveram juntos, ele pode ter sido ofendido e não perdoou. Se não se quebrar esse círculo,




teremos sempre um algoz e uma vítima. Vejo a necessidade de ajudar sua mãe e de você se preocupar com seu pai, sim, porque ele odeia, e esse ódio deve acabar. Ele também não perdoou e deve perdoar.
- Sinto isso, Adão. Disse-me o que necessitava ouvir. Quando estou às vezes sozinho, lendo ou meditando, parece-me que sou outro. Ou há outro em mim, não sei bem. Vejo-me como um homem, um adulto muito mau que planeja matar; ora sinto que matei! São cenas que não Atendo, mas que tenho certeza de que as vivi. Seriam *einbranças do passado? Vovó diz que sim, mas também ^2 para não me preocupar agora com isso. É com mamãe ^e me preocupo. Você, Adão, tem razão, se mamãe não Perdoar, acabará se vingando e este laço de ódio não cabará. É necessário acabar com as mágoas e reconci^r-se. Queria tanto que ela entendesse, perdoasse e estiVesse aqui comigo.
- Deve confiar, Raul - continuou Adão -, aqui estamos Cados de pessoas boas demais. O professor Eugênio
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
ajuda-nos sempre, leva-nos a visitar parentes, pais que choram aflitos, chamando-nos desesperados, deixando-nos inquietos, angustiados aqui. Ajuda-nos a consolá-los, lembrando-os da Misericórdia Divina, que Deus é Pai de todos nós, que antes de sermos filhos deles somos filhos de Deus e que somos todos realmente irmãos. Ajuda-nos a conviver com a saudade, não deixando que ela nos entristeça. Todos nós, aqui, temos problemas, solucionados com a ajuda do professor. Confie, Raul, confie, ore e terá sua mãezinha aqui, muito em breve, se Deus quiser."
- Obrigado - disse-lhe agradecido.
Comecei a mudar. Preocupações contadas a amigos são repartidas. Senti-me aliviado, reconfortado e esperançoso. Passei a entender que estávamos presos, papai, mamãe e eu, pelo ódio. O círculo se desvincularia com o perdão e cabia a mim ajudá-los. Confiava na ajuda que teria e que estava tendo ali, escutando colegas e amigos.
Levantou-se meu terceiro companheiro.
- Raul, meu amigo.
Começou a narrar o risonho Tião. Seu aspecto era franzino, moreno-claro, com olhos inteligentes e expressivos. Pensei: "Deve ter sido feio quando encarnado, mas simpático". Todos nós gostávamos dele. Simples e leal, cativava a todos e talvez por isso me parecesse tão bonito. Deixei para lá minhas impressões e prestei atenção a ele, que continuou a se expressar com sua voz harmoniosa.
- Sinto muito por você estar sofrendo e triste, embora ache que estar preocupado com quem ama é sinal de amadurecimento, o começo para que no futuro se preocupe com a humanidade, já que todos somos irmãos. you contar-lhe minha história, para que você entenda que
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^conciliação
ajuda sempre temos, que todo sofrimento é justo e, se soubermos sofrer, aprenderemos muitas lições.
"Desencarnei meninote, doze anos, com câncer generalizado. Meu corpo carnal apodrecia, cheirando mal, fazendo-me sofrer muito. As pessoas que me viam comentavam penalizadas: 'Menino ainda, sofrendo assim!'
"Éramos muito pobres, tinha sete irmãos, meu pai era lavrador e minha mãe lavava roupas de freguesas para ajudar nas despesas de casa. Morávamos numa cidade pequena, sem recursos, e nosso lar ficava no subúrbio, era pequeno: quarto, sala e cozinha. Fiquei doente com nove anos, mamãe primeiramente deu-me os chás caseiros, sem resultado. Como não havia médico na cidade, levou-me ao farmacêutico. O senhor Zezinho da farmácia não tinha estudos, mas entendia bem de doenças.
"Não sabia o que eu tinha, entendeu que era grave, deu-me remédios, mas fui piorando, até que, sem forças, não me levantei mais do leito e a vida física foi se extinguindo aos poucos. Sentia muitas dores, nas crises pensava sempre que ia morrer, chorava e gemia, e minha mãe, sempre comigo, chorava junto. Minha mãe, caro amigo °aul, foi sempre um anjo de ternura e carinho, tudo fez Para amenizar meu sofrimento; entendendo que sofria por mirn, para não vê-la triste e chorando, suportava as dores sem me queixar e tudo fazia para não gritar.
"Uns dias antes de desencarnar, senti-me diferente,
stava tonto, confuso, parecia ver outras pessoas e ouvi-las
°nversar. As dores foram amenizando, estivera em es-
®° de coma por dias e me desliguei devagarzinho da
„ a*éria. Dormi e acordei aqui no hospital, dias depois.
c°rristas trouxeram-me e muito me ajudaram. Acordei
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
e senti-me aliviado sem as dores. Disseram-me que desencarnara, suspirei agradecido por estar livre do meu padecimento. Recuperei-me rápido, queria sarar e minha resignação e fé em Deus ajudaram-me muito. Tendo alta do hospital, fui trazido para o alojamento da escola, pois não tenho parentes aqui. Fiz logo muitas amizades. Meses depois, passei a sentir imensa saudade de casa, de minha mãe, comecei a sentir-me abandonado e sozinho. Trazido para estudar nesta classe, o professor Eugênio tudo fez para que me integrasse na nova forma de viver e prestasse atenção às aulas. Mas a saudade que alimentava doía e a vontade de estar perto de minha mãe atormentava-me. O professor Eugênio bondosamente me levou para visitá-los, para que pudesse vê-los. Fiquei contente, emocionado volitei com o professor pelos campos e pela minha cidade. Ao avistar meu antigo lar, meu coração bateu forte.
'"Professor Eugênio, como mamãe ficará contente em me ver curado!' - disse-lhe, comovido.
"'Tião, não se esqueça do que aprendeu, nenhum dos seus familiares poderá vê-lo/
"Achei impossível, claro, pensei que iam ver-me. Entrei confiante e alegre no meu antigo lar. Ninguém estava em casa. Notei pela primeira vez como éramos pobres, tínhamos tão pouco, mas tudo era limpinho. Minha cama não estava mais no canto da sala. Papai, mamãe e meus irmãozinhos dormiam no quarto e os maiores, na sala. As camas eram poucas e dormiam dois ou três numa cama só; eu, desde que fiquei doente, dormia sozinho no canto da sala, por ser mais arejado. Logo escutei conversas, estavam chegando; alegre, esperei que entrassem.
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^conciliação
"Mamãe e meus irmãos entraram, ela havia ido entregar roupas com os pequenos e os maiores voltavam da escola.
"Agiram normalmente. Em pé fiquei na frente deles a sorrir. Que desilusão! Não me viram, senti doer o peito, o meu sorriso apagou-se. Via-os perfeitamente, escutava-os e eles não me viam nem me ouviam. Olhei para o professor Eugênio e ele sorriu, animando-me; entendi, ele me avisara, eu não quisera entender.
"Tião' - disse bondosamente -, 'ao ter seu corpo de carne morto, é um espírito revestido de perispírito e os encarnados não o vêem, exceto os médiuns encarnados e videntes, o que não é o caso de nenhum de seus familiares. Poderá vê-los, saber deles, mas não lhes falar, nem eles a você'.
"Suspirei e pensei que, já que era assim, eu devia aproveitar para saber deles e matar minha saudade.
"Mamãe tirou um dinheiro do bolso e colocou dentro de um jarro, como sempre fazia, dizendo, cansada: 'Teremos este mês dinheiro para pagar o senhor Zezinho da farmácia, homem bom aquele, vendeu-me fiado para que meu Tião tivesse remédio. Ainda bem que não pagamos para morar nesta casinha e o dono do terreno não nos incomoda. Ainda mais agora sem o dinheiro de seu pai. Faz Quatro meses que ele foi embora e não deu mais notícias'.
"'Foi embora no dia em que Tião morreu' - disse um d°s meus irmãos.
"'Que saudade do meu filho!' - exclamou mamãe C°m tágrimas nos olhos.
"Mamãe, não chore' - disse Vanda, minha irmã Is velha. - 'Tião estava tão doente, coitadinho! Era tão
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Vera Lúcia Marínzeck de Carvalho
bonzinho, ele foi morar com os amigos no céu. Padre Anselmo disse que ele está fazendo milagres. Muitas pessoas já cumprem promessa na sua cova'.
'"Meu filhinho santo!' - disse minha mãe a sorrir.
"'Se ele ajuda a estranhos, vai ajudar-nos também, ele fará com que eu e Mane arrumemos emprego para podermos ajudar aqui em casa' - falou meu irmão.
"Pelas conversas deles, soube que meu pai, há tempos, abandonara minha mãe, fora morar com outra mulher e proibira que me dissessem; ele ia ver-me e dava dinheiro para mamãe, mas, com minha desencarnação, mudou-se de cidade e ninguém mais soube dele.
"Fiquei com eles duas horas, o tempo que me foi permitido. Voltei chorando, queria ficar, ajudá-los, queria ficar com minha mãe... Aqui, colegas ajudaram-me, aconselharam-me, procurando fazer com que entendesse que minha vida agora era diferente e que deveria aproveitar as lições que recebia.
"Mas, qual o que, estava triste, aborrecido, chorava atoa.
"Passados uns dias, o professor Eugênio me disse:
"Tião, conselhos, conversas não adiantam para você; verá aqui nesta tela imagens projetadas dos acontecimentos de sua casa'.
"Todos na classe assistiram, acompanharam com respeito a lição que eu recebia. Emocionado, vi minha casa, minha mãe e irmãos, e eu doente na cama. Eram cenas que eu vivera na carne.
"'Observe, Tião' - disse o professor Eugênio, esclarecendo os acontecimentos que víamos -, 'sua mãe está exausta, veja suas mãos, grossas, cheias de calos, trabalha
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^conciliação
muito, levanta cedo, tem muito o que fazer; além do serviço de casa, lava roupas para freguesas. Faz a comida e há pouco o que comer, primeiro ela leva para você. O farmacêutico disse que você precisava comer bem, seus irmãos olham você comer com água na boca, eles têm fome, repartem o que sobra. Você sofre, sofreu, porém ela sofreu mais, ama você, mas ama também os outros filhos. Chega a noite e ela vai se deitar, há tempos não dorme direito, você amola, quer água, tem dores, ela levanta-se muitas vezes durante a noite, não se queixa, procura na prece coragem para continuar. Seu pai, espírito fraco, saiu de casa, está cansado, quer aventuras, foi morar com outra mulher, mas vem lhe visitar e você nem percebe que ele foi embora. Você está preocupado com suas dores, em ser servido, não agiu errado não, Tião. Teve realmente dores atrozes, menino ainda, queria a mãe para si, e ela, abnegada, largava tudo o que estava fazendo para estar com você, para atendê-lo.
"'Desencarnou menino nesta encarnação, puro de sentimentos, sem erros, foi socorrido, logo estava curado e bem. Porque o sofrimento do corpo suportado com resignação é cura do espírito. Continuemos agora, Tião. Observe seus irmãos, são desnutridos, fracos, anêmicos e sempre o atenderam de boa vontade; embora crianças, respeitaram seu sofrimento.
"'Sua mãe trabalha muito, lava roupa o dia todo, sua
rrr>ã mais velha está empregada como doméstica. O di-
^eiro é pouco, não dá para sustentá-los, sua mãe recebe
^ue sobra da comida de suas freguesas, a quem agra-
Ce> comovida. Necessita de dinheiro para pagar dívidas
J- e contraiu com sua doença, para que não lhe faltassem
ecüos, para amenizar suas dores. Após seu desencarne,
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Vera Lúcia Marínzeck de Carvalho
passaram a alimentar-se melhor, sua mãe já não necessita levantar-se à noite e não tem mais suas roupas para lavar, porque você sujava sempre a cama. Não acha, Tião, que já deu muito trabalho a ela? Por que voltar lá?
"'Sabe bem que voltando sem autorização, sem uma preparação adequada e sem os fluidos salutares daqui, logo se perturbaria e se sentiria doente; necessitando de energias, passaria a vampirizar seus familiares. Nessa troca de energias você só lhes faria mal. Tião, eles têm de continuar vivendo e você também. Liberto da carne, você foi chamado a viver aqui, eles têm de continuar encarnados até chegar a hora de cada um voltar. Você viu que a vida não está fácil para eles, não queira prejudicá-los com sua presença sem preparo. Procure, sim, viver bem aqui, aprender para poder ser útil a você mesmo, aos seus e a todos os que o cercam/
"O professor Eugênio desligou a tela, sentando-se, e na sala se fez completo silêncio. Entendi que o professor mostrou os acontecimentos para alertar-me e, não podendo conter-me, chorei, porém meu choro foi diferente, não era mais com dó de mim, era de vergonha. Ninguém me interrompeu; por alguns minutos as lágrimas caíram abundantes, reagi, tentando sorrir, disse: 'Não quero mais dar trabalho aos meus. Não quero! Entendo agora que só tenho de agradecer, you ser compreensivo e não you chorar mais, prestarei atenção às aulas e, só quando puder ajudar, pedirei para voltar a vê-los'.
"'Muito bem' - disse o professor Eugênio, - 'ter vontade de ajudar é maravilhoso, incentiva-nos a aprendei. Você não sabe, mas eu sei e poderei ajudá-los por você. Voltaremos ao seu lar, Tião, e ajudaremos sua mãe e irmãos''
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho ., • ~ Reconciliação
passaram a alimentar-se melhor, sua mãe já não necessita levantar-se à noite e não tem mais suas roupas para lavar, porque você sujava sempre a cama. Não acha, Tião, que já deu muito trabalho a ela? Por que voltar lá?
"'Sabe bem que voltando sem autorização, sem uma preparação adequada e sem os fluidos salutares daqui, logo se perturbaria e se sentiria doente; necessitando de energias, passaria a vampirizar seus familiares. Nessa troca de energias você só lhes faria mal. Tião, eles têm de continuar vivendo e você também. Liberto da carne, você foi chamado a viver aqui, eles têm de continuar encarnados até chegar a hora de cada um voltar. Você viu que a vida não está fácil para eles, não queira prejudicá-los com sua presença sem preparo. Procure, sim, viver bem aqui, aprender para poder ser útil a você mesmo, aos seus e a
todos os que o cercam.'
"O professor Eugênio desligou a tela, sentando-se, e na sala se fez completo silêncio. Entendi que o professor mostrou os acontecimentos para alertar-me e, não podendo conter-me, chorei, porém meu choro foi diferente, não era mais com dó de mim, era de vergonha. Ninguém me interrompeu; por alguns minutos as lágrimas caíram abundantes, reagi, tentando sorrir, disse: 'Não quero mais dar trabalho aos meus. Não quero! Entendo agora que só tenho de agradecer, you ser compreensivo e não you chorar mais, prestarei atenção às aulas e, só quando puder ajudar, pedirei para voltar a vê-los'.
"'Muito bem' - disse o professor Eugênio, - 'tei
vontade de ajudar é maravilhoso, incentiva-nos a aprendei
l Você não sabe, mas eu sei e poderei ajudá-los por você.
Voltaremos ao seu lar, Tião, e ajudaremos sua mãe e irmãos'•
"Raul, não sei explicar a alegria e gratidão que senti naquele momento, aguardei ansioso o dia marcado para nossa volta. O dia esperado chegou, prometi a mim mesmo não chorar e obedecer em tudo ao professor, e o fiz. O professor Eugênio fizera antes um balanço da situação financeira dos meus, de quanto mamãe recebia, de quanto devia, e quanto minha irmã, a única que trabalhava, ganhava.
"'Vamos, Tião, ao emprego de Vanda, comecemos ajudando-a.'
"Fomos ao seu emprego. A mulher para quem Vanda trabalhava era de meia-idade, bem vestida, naquela hora almoçava com o esposo. O professor Eugênio aproximou-se dela, intuiu-a e, como que por encanto, ouvimo-la dizer ao marido: 'you aumentar




o ordenado de Vanda e ajudá-la mais, ensinando o serviço. Também you dar-lhe roupas, anda tão mal vestida, minhas amigas podem comentar. Também you logo mais perguntar a Zenira se ela quer ficar com a irmã dela para pajem, a meninota procura emprego'.
"Acabou o almoço e saiu, fomos juntos à casa da amiga e acertaram o emprego para a minha outra irmã.
"'Pronto' - disse o professor -, 'mais uma de suas lrmãs está empregada, isso significa que comerão bem, gabarão roupas, sapatos, e ajudarão sua mãe. Vamos agora Ver emprego para os outros irmãos. Vamos à farmácia, vi-
1 arernos o senhor Zezinho, que muito ajuda sua mãe'.
"Ao chegarmos à farmácia encontramos dois desenhados que nos cumprimentaram, e o professor escla.Ceu-me: 'São dois amigos, socorristas que trabalham na a]uda aos encarnados'.
Sorri, admirando-os, um deles dirigiu-se a mim:
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l/
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
"'Você é Tião? Acabamos de fazer um auxílio em seu nome. A filha do farmacêutico estava doente, ele pensou que fosse um câncer. Ele e a esposa fizeram uma promessa, pediram a você que a ajudasse, se não fosse câncer ele perdoaria a dívida de sua mãe. Viemos ajudá-los, era somente um espírito trevoso atormentando-a, afastamo-lo sem problemas, a menina melhorou. Levaram-na ao médico na cidade próxima, fez os exames e hoje chegaram os resultados: a menina nada tem/
"'Que bom!' - exclamei, contente. - 'Como lhes agradeço. Grande ajuda deram também à minha mãe, melhora a vida dos meus. Obrigado. Olhem, lá vem ela'.
"Mamãe muito sem jeito entrou na farmácia, torcia as mãos, envergonhada. Antes que o senhor Zezinho lhe dissesse algo, foi explicando:
'"Mandou me chamar, senhor Zezinho? Não tenho o dinheiro agora para dar ao senhor, no fim do mês dou-lhe mais, you pagar tudo ao senhor/
"'Dona Cida' - disse o farmacêutico -, 'a senhora não me deve mais nada'.
"Contou tudo a mamãe, a promessa, a filha curada. Mamãe chorou emocionada. O senhor Zezinho pegou o caderno, abriu na página da conta de minha mãe e escreveu bem grande: Pago!
"'Obrigada, senhor Zezinho, fica o favor, este não se paga, só Deus!' - disse mamãe, agradecida.
"O professor Eugênio aproximou-se do senhor Zezinho, olhou-o profundamente e ele, calmamente, pegou na prateleira uns fortificantes e vermífugos e deu a mamãe.
"'Aqui estão, dona Cida, estes remédios; dê para os outros filhos/
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Vera
Lúcia MarinzeckdeCarvalho_
'"Você é Tião? Acabamos de fazer um auxílio em seu nome. A filha do farmacêutico estava doente, ele pensou que fosse um câncer. Ele e a esposa fizeram uma promessa, pediram a você que a ajudasse, se não fosse câncer ele perdoaria a dívida de sua mãe. Viemos ajudá-los, era somente um espírito trevoso atormentando-a, afastamo-lo sem problemas, a menina melhorou. Levaram-na ao médico na cidade próxima, fez os exames e hoje chegaram os resultados: a menina nada tem.'
'"Que bom'.' - exclamei, contente. - 'Como lhes agradeço. Grande ajuda deram também à minha mãe, melhora a vida dos meus. Obrigado. Olhem, lá vem ela'.
"Mamãe muito sem jeito entrou na farmácia, torcia as mãos, envergonhada. Antes que o senhor Zezinho lhe dissesse algo, foi explicando:
'"Mandou me chamar, senhor Zezinho? Não tenho o dinheiro agora para dar ao senhor, no fim do mês dou-lhe mais, you pagar tudo ao senhor.'
'"Dona Cida' - disse o farmacêutico -, 'a senhora não
me deve mais nada'.
"Contou tudo a mamãe, a promessa, a filha curada. Mamãe chorou emocionada. O senhor Zezinho pegou o caderno, abriu na página da conta de minha mãe e escreveu bem grande: Pago!
'"Obrigada, senhor Zezinho, fica o favor, este não se paga, só Deus'/ - disse mamãe, agradecida. l "O professor Eugênio aproximou-se do senhor Ze-
zinho, olhou-o profundamente e ele, calmamente, pegou na prateleira uns fortificantes e vermífugos e deu a mamãe. "'Aqui estão, dona Cida, estes remédios; dê para oS outros filhos.'




í li
Reconciliação
"'O senhor é um homem bom. Obrigada.'
"'De nada, dona Cida, foi seu filho quem curou, com a graça de Deus, minha filha. Sou grato a ele, sofreu tanto aqui, é santo lá no céu.'
"'Senhor Zezinho, estou procurando emprego para meus dois meninos maiores, são pequenos ainda, mas precisam aprender a trabalhar e ajudar-me. O senhor sabe, depois que meu marido foi embora, o que ganho não dá nem para nos alimentar.'
"'No armazém da esquina estão precisando de um menino.' O professor Eugênio continuou olhando-o, procurando intuí-lo a ajudar-nos e o senhor Zezinho, pessoa boa, honesta, bom cristão, recebeu a intuição e mais, atendeu. 'you lá com a senhora, sou amigo do dono, pedirei a ele. Vamos.' \
"Foram. Deu certo; num instante acertaram tudo, meu irmão não ia ganhar muito, mas almoçaria no emprego e aprenderia a trabalhar.
"Mamãe estava muito contente e o senhor Zezinho fez mais ainda:
"'Vamos passar por minha casa, dona Cida, seu menino precisa vir ao emprego bem vestido, you dar-lhe umas r°upas dos meus filhos para a senhora vesti-lo melhor.'
"Mamãe voltou para casa muito contente, esperançosa, e eu me senti feliz, em paz, grato, muito grato, ao Pr°fessor Eugênio. Aquela noite foi de festa em minha Sa- Ganharam roupas, Vanda foi aumentada e mais dois Suariam. Mamãe reuniu todos após o jantar, orou §radecida, e disse no final da prece:
"'A/r
fij Meu Tiãozinho está fazendo milagres, curou a ^° senhor Zezinho, e também nos ajudou. Tudo o
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
que recebemos hoje é ajuda dele que, lá no céu, não se esqueceu de nós. Obrigada, meu Deus, e obrigada também a Santo Antônio.'
"Segurei as mãos do professor, procurando equilibrar minhas emoções. Não chorei, presenciando todos aqueles acontecimentos, queria mais era crescer, ser útil, e falei ao professor: 'Regressemos, professor, as aulas nos esperam'.
"'Ainda não, Tião, receberemos um amigo. Ei-lol E um dedicado médico espiritual, ele medicará a todos os seus e com os remédios que ganharam ficarão mais fortes e sadios.'
"O doutor Aníbal era simpático e risonho; após cumprimentá-lo agradeci, e ele logo passou a trabalhar.
"'Vamos, Tião' - disse o professor Eugênio. - 'Jairo, seu irmão, pode trabalhar também, vamos pedir mais esta ajuda'.
"Saímos de casa e logo encontramos os dois socorristas e o professor pediu-lhes:
"'Será que não podem ajudar o outro irmão de Tião a achar um trabalho?'
'"Claro que sim, faremos o possível, com satisfação.'
"'Então, Tião? Como se sente agora?' - indagou o professor.
"'Estou feliz e grato. Mudei, melhorei meu comportamento, aprendi a confiar e com boa vontade passei a estudar; quero logo que possível ser um socorrista, ajudar encarnados, não só meus familiares, mas todos os que pedem e necessitam.'
"Na minha última visita a eles, a diferença era grande. Com o tratamento do doutor Aníbal e os remédios que
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Reconciliação
Q farmacêutico deu, e agora mais bem alimentados, estão sadios, fortes, mamãe até remoçou. Com a ajuda do professor, escutei-a orar, dizia: 'Estou tão feliz agora, sei que é meu Tião que nos ajudou juntamente com Santo Antônio. Sofri tanto vendo meu filhinho sofrer, pedaços difíceis passamos, agora tudo melhora, graças a Deus'.
"Ajuda, Raul, sempre temos e você a terá, não se entristeça, e acredite, seus problemas serão solucionados, peça ajuda e confie."
Tião deu por finalizada sua história, todos o ouviram com atenção. Foi quando Pedro indagou ao professor:
- Professor Eugênio, por que diziam que Tião fazia milagres se ele nem estava lá? E Santo Antônio? Ninguém o viu por lá e nós nem o vemos por aqui. Não foram os dois socorristas e o senhor que os ajudaram? Por que dizem ser Tião e Santo Antônio?
A curiosidade foi geral e o professor esclareceu-nos:
- Todos nós estamos na Terra para aprender, amar e crescer, caminhar para o progresso. Infelizmente, uns param no caminho, negando-se a aprender, outros teimam em praticar o mal. Há porém os que, aproveitando as oportunidades que oferecem as encarnações, engrandecem no °em e passam a trabalhar, ajudando, tornam-se missionári°s de luzes e bênçãos. Há, queridos alunos, muitas moedas na casa do Pai, neste imenso universo, são muitos
08 planetas habitados e também há as diversas formas de
lver, após o corpo carnal ter morrido. Cada espírito mora
ncle seu fluido o atrai, onde se faz merecedor. No plano
r- P^itual da Terra há os umbrais, onde moram tempora-
co]naente os maus- Há os locais de estudo como aqui, nesta
°nia, e há esferas superiores onde estão os grandes
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Vera Lúcia
Marinzeck de Carvalho Recoriciliação
missionários em ajuda constante aos necessitados da Terra. Como Antônio de Pádua, Santo Antônio, que tantas ajudas faz e muitos fazem em seu nome. Os diversos milagres acontecidos entre encarnados nada mais são que trabalhos para aqueles que fazem o bem, não interessa a quem se peça, interessa somente ajudar.
O professor Eugênio fez uma pequena pausa, entreo-
Ihamo-nos, admirados. Exclamamos:
- Milagres, trabalhos, professor!
- Sim - continuou a elucidar -, milagres são trabalhos, trabalhos dos espíritos bons, dos socorristas que auxiliam sempre, como os dois amigos que Tião e eu
encontramos.
Entre uma e outra encarnação, os espíritos passam
um período no plano espiritual, é o que se designa por erraticidade: os maus perturbam, os bons fazem o bem e aproveitam para aprender sempre. Chamamo-los de socorristas, porque muito trabalham e não querem outro pagamento a não ser a vontade de serem bons e servos de Jesus. Trabalham em toda parte, nos umbrais, nos postos de socorro e também ajudam os encarnados; muitas vezes, atendem aos chamados de fé em nome das diversas entidades conhecidas na Terra. Há grande concentração de socorristas em lugares de romaria onde muitos oram e fazem pedidos. Esses abnegados trabalhadores atendem em nome de Nossa Senhora, dos diversos santos, de Jesus etc. Os bons açodem sempre.
1 Querem um exemplo? Se uma pessoa em perigo pede socorro por Nossa Senhora, um bom espírito por perto/ se puder, a socorre. Sempre estão procurando atendei | aos que pedem. Se os pedidos são mais complexos, são
ncaminhados a ministérios próprios e analisados pelos Q lá trabalham. Para serem atendidos, são levados em conta alguns critérios. "O que pede é bom para ele?" Às vezes, pede-se uma graça que seria um bem no momento, mas causa de dor no futuro. Pedem fim de sofrimentos, doenças e às vezes não se pode interromper o curso de geu resgate. Também é levado em conta, se recebida a graça, o pedido feito, a pessoa melhora se voltando mais para o Pai. Se aprovado, vão os socorristas e ajudam a pessoa, não importando para quem foi feito o pedido, embora haja equipes que trabalham atendendo aos pedidos



a Nossa Senhora, santos do lugar etc., e podendo também ser atendidos pelos próprios santos, que nada mais são que servos de Jesus. Tudo é trabalho e para isso vocês aqui aprendem a fazer o bem, porque é necessário saber para fazer. Nem todos aqui serão socorristas em trabalho a encarnados, poderão escolher este ou aquele estudo, estudar mais, ser professores, reencarnar etc., mas para onde formos teremos oportunidades de servir, ajudar.
- Professor - disse Henrique, aluno aplicado e estudioso -, há também as promessas, minha tia vivia fazendo Promessas. É errado?
- Promessa é troca, faça isso que eu faço aquilo. Aqui, n°s não necessitamos de trocas, tudo é feito com carinho e amor. Deus, Jesus, os socorristas não estão interessados
m Pagamento, mas sim em fazer o bem e melhorar espiritualmente os encarnados.
, O pagamento de promessas fica na consciência luem as fez e há tantas pessoas que por não as cuml6ln se consideram devedoras e, desencarnando, não
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Vera Lúcia Marínzeck de Carvalho
conseguem ter paz por se sentirem ingratas, em dívida com as graças recebidas. Todos nós somos carentes de graças e auxílios; devemos pedir o que necessitamos em orações, com humildade, não com trocas. Se quiserem ir a lugares, fazer orações, façam, mas não condicionando a receber isto ou aquilo. O que os bons espíritos querem realmente, quando ajudam, é a melhoria de cada um, aumentar a fé, a confiança, e torná-los mais conscientes das forças do bem. Mas, Henrique, algumas pessoas que fazem promessas ignoram quase sempre esse ato de trocas, fazem promessas com fé, por isso são tão atendidas. No futuro, amadurecidos e conscientes do que é o milagre, não existirão mais promessas. É o que acontece em relação ao Tião, que aqui conosco, em aprendizado, não pode fazer o que lhe pedem. É que as pessoas que o conheceram viram o quanto sofreu com resignação, pedem-lhe graças, confiantes de serem atendidas, e os trabalhadores do bem as atendem, conforme fazem jus, como os dois amigos socorristas que encontramos."
Satisfeitos com a explicação, tendo outra visão, a real, dos milagres, ninguém mais fez perguntas e o professor Eugênio deu por terminada a aula. Mas Tião levantou-se novamente e pediu para falar.
- Quero ser socorrista quando tiver concluído meu estudo, quero ir ajudar os encarnados. Quero também dizer mais algumas coisas a você, Raul. Se tem leves recordações de seu passado e sente que não lhe foi feita injustiça, você está certo. O passado está em nós, somos conseqüência dele, das diversas existências que tivemos encarnados na Terra. Comigo não houve injustiça, nunca há. Sofri muito, apodreci na carne, senti dores atrozes num
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Reconciliação
corpo de criança, inocente nesta vida de agora, mas não no passado. Não me foi difícil recordar tudo. Fui no passado um sacerdote católico e tive por amante aquela que depois me serviu de mãe. Não estava muito convicto de minha fé e amava-a como mulher, não quis deixar o sacerdócio, que me proporcionava boa vida e respeito; nós nos encontrávamos às escondidas. Eu tomava, na época, conta de uma instituição de caridade, um abrigo de crianças doentes, principalmente leprosas ou filhos de leprosos que não podiam viver com os pais e que ninguém queria. Minha amante, ambiciosa, queria dinheiro, muito dinheiro, e para satisfazê-la desviei as verbas da instituição para dar a ela. Deixei as crianças sem conforto, sem remédios, até sem alimentos, enquanto ela se tornou rica, senhora de escravos e luxo.
"Desencarnamos, sofremos horrores por nossos atos, acabamos culpando um ao outro pelo sofrimento e passamos a nutrir grande ressentimento. Depois de muito tempo, fomos socorridos, orientados,entendemos a amplitude dos nossos erros e pedimos para reencarnar. Viemos juntos para que o rancor acabasse, como dois irmãos, filhos de leprosos; e, por não termos com quem ficar, contraímos a lepra e desencarnamos crianças. Não nos sentimos, porém, quites com nossa consciência; outra encarnação benéfica nos foi concedida, e voltamos. Vencemos nesta, aprendendo a amar com pureza, sofremos, resignados, dando valor a todos os benefícios recebidos e resgatamos ceitil por ceitil. Senti, Raul, no corpo o que lz os outros sofrerem, tirando por ambição o que poderia .er alívio para doentes de outrora. Como vê, tudo é muito ' sto. E ter oportunidade de quitar, reparar nossos erros,
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AJUDANDO MINHA MÃE
l ião calou-se, estávamos todos emocionados com a narrativa do nosso companheiro. Aproveitei o incentivo, olhei para o professor e disse em torn de súplica:
- Ajude minha mãe, professor. Deixe-me ajudá-la! Mesmo se com essa ajuda tiver de sofrer! Não sofrerei mais que agora, sabendo que ela não está bem.
- Raul, o estado de sofrimento é conseqüência do nosso livre-arbítrio, os bons não gostam de ver sofrimento, mas nosso livre-arbítrio é respeitado, assim como o sofrimento.




Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
é a bondade infinita de Deus, que não nos condena, mas faz com que, resgatando, aprendamos pelo amor ou pela dor. Raul, coragem, peça com fé o que almeja receber, peça ajuda e confie. E poderá ajudar sua mãezinha."
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AJUDANDO MINHA MÃE
l ião calou-se, estávamos todos emocionados com a narrativa do nosso companheiro. Aproveitei o incentivo, olhei para o professor e disse em torn de súplica:
- Ajude minha mãe, professor. Deixe-me ajudá-la! Mesmo se com essa ajuda tiver de sofrer.' Não sofrerei mais que agora, sabendo que ela não está bem.
- Raul, o estado de sofrimento é conseqüência do nosso livre-arbítrio, os bons não gostam de ver sofrimento, mas nosso Jivre-arbítrio é respeitado, assim como o sofrimento.




Vera Lúcia Marínzeck de Carvalho
A ajuda que socorristas fazem é respeitando a liberdade de cada um. Podemos aconselhar sua mãe a perdoar, mas não obrigá-la. Entendeu?
- Sim, senhor, entendo e acho justo; mas, se puder falar com ela, saberei fazer com que entenda.
- Raul, sua mãe acha-se em estado de perturbação. Julga-se encarnada, sabe que você desencarnou e pode ter medo ao vê-lo.
- De mim, seu filho?
- Tantas pessoas, Raul, que muito amam, sofrem terrivelmente com a separação, mas temem e não querem ver os entes queridos que desencarnaram. Com sua mãe, pode ocorrer o mesmo.
- Sim, se mamãe ficasse com medo de mim, não saberia o que fazer - respondi, sincero. -Não sei o que fazer se ela me temer. Entendo como são certos os dizeres que, para ajudar, é necessário saber, vontade não basta. Farei qualquer sacrifício por ela, professor, mas nada conseguirei sem ajuda.
O professor Eugênio sorriu, com aquele sorriso que nos cativava tanto, olhando-me cheio de carinho.
- Levarei você, Raul, até sua mãe. Pedirei para que amanhã mesmo o professor Lourenço me substitua no tempo em que me ausentar; levarei você e procuraremos ajudar sua mãe.
Senti-me contente, confiante, minha vontade era de abraçá-lo; contive-me e falei, emocionado:
- Agradeço seu carinho, professor Eugênio, confio em sua sábia ajuda, tanto que prometo na volta contar a todos como foi. E tenho a certeza de que traremos minha mãe. Mas prometo não me entristecer nem desanimar, se não o conseguirmos.
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Reconciliação
- Oraremos e vibraremos por vocês - disseram em coro meus colegas.
A aula terminou, corri para perto de vovó, contei contente tudo o que se passou na classe, vovó sorriu, orientando-me:
- Raul, o professor Eugênio é bondoso demais, interessadíssimo nos problemas de seus pupilos, ele é conhecedor dos sentimentos humanos, confio que poderá ajudar minha Manuela. Mas, meu neto, não se decepcione se não for positiva a primeira tentativa. Tenho estado sempre com ela, quero ajudá-la e ela não quer receber ajuda. Vá, meu querido, faça tudo conforme o professor orientar. Lembro a você que sua vida continuou, e conte com a certeza de que continuou para os familiares encarnados. Não queira ficar no antigo lar.
- Claro que não, sei que eles não me verão, depois nada lá me prende. Gosto de minhas irmãs, de Pretinha, e sei do perigo que representaria para elas se lá ficasse sem o devido preparo. Quero ir mesmo para convencer mamãe a perdoar e prometo à senhora que seguirei com fidelidade as ordens dele. E, se não conseguirmos desta vez, não desistirei, até tê-la conosco.
- Que Deus os abençoe!
Esperei ansioso pelo dia seguinte, não consegui esconder a emoção. Logo pela manhã fui ao encontro do Professor e, ao vê-lo, senti meu coração bater forte.
- Tudo pronto, Raul? Está bem?
~ Sim, mas sinto meu coração bater forte, como se estivesse encarnado.
"~ O perispírito serve de modelo ao corpo. Necessi^os de tempo para nos desvincular das coisas a que
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
estamos acostumados. Temos o reflexo do que somos, e a impressão do corpo carnal acompanha-nos. Observe, Raul, que vamos nos desprendendo aos poucos da necessidade de comer, de dormir, e tantos como sua mãe sentem ainda frio, calor e dores. O perispírito é matéria rarefeita, perfeita, belíssima; é natural que, emocionado, sinta como se o coração do corpo físico batesse; é que acelerado está o coração do seu perispírito. Vamos? Avisou sua avó?
- Avisei, sim. Está torcendo por nós.
O professor Eugênio pegou nas minhas mãos, conduzindo-me, e volitamos. Vi do alto a colônia e achei-a enorme, achei-a ainda mais encantadora com seus jardins e prédios.
Logo vi a Terra e deslumbrei-me com a visão dos sítios que conhecia; chegamos às proximidades de meu antigo lar, entre as árvores do campo. Suspirei contente, observei tudo e logo a vi. Embaixo de uma árvore, sentada no chão, estava mamãe, triste e pensativa. Ao vê-la, lembrei-me do poço, estava com o mesmo vestido, toda suja, com manchas de sangue, cabelos despenteados. No peito sangrava o ferimento da faca. Esperava vê-la assim, mas não deixei de me afligir, olhei para o professor, pedindo ajuda.
- Por que, professor, sangra seu ferimento?
- Não perca a confiança nem a serenidade, Raul. O ferimento sangra porque ela o alimenta e conserva com
seu rancor.
Olhei para minha mãe com todo o meu carinho. Pensei: "Por que ela não consegue perdoar?" Não a entendia, é tão fácil entender as ofensas quando queremos. Ela era vítima e sofria mais que o agressor, no momento,
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Reconciliação
por não fazer o que Jesus tanto recomendou: perdoar sempre. Indaguei meu mestre:
- Ela não nos vê?
- Raul, nossa vibração é muito diferente da dela. Nós podemos vê-la/ ela não. Manuela vê encarnados e desencarnados da mesma faixa vibratória dela. Nos maus, espíritos perturbados e sofredores, a vibração é mais grosseira, quase material, enquanto nos bons, nós que aprendemos, moradores de planos mais elevados, a vibração é mais rarefeita, suave. Espíritos como o de sua mãe, no momento, não vêem os bons, por isso são levados a centros espíritas para uma incorporação, e ao se confrontarem com o corpo carnal vêem que estão diferentes, entendem que estão desencarnados e vêem, então, os bons que querem ajudá-los. Podemos também agora descer à vibração dela e tornarmo-nos visíveis, já que ela não consegue chegar a nós.
- Como poderei fazer isso?
- Ajudá-lo-ei: antes de se tornar visível a ela, lembre-se, Raul, de que poderá Manuela aceitá-lo, ou temê-lo. Agora, vamos, é só pensar forte com atenção em você, no estado em que estava no poço, procure sentir-se daquele modo, sujo, machucado, queira.
Pensei firme e fui me transformando, senti-me mais pesado.
- Vamos, Raul, pense, o perispírito pode ser maleável, você pela vontade pode transformá-lo.
Sentindo-me diferente, abri os olhos, olhei para meu c°rpo. Estava com as roupas rasgadas, sujas, as mesmas do dia em que desencarnei, estava ferido e com uma sensação de autopiedade invadindo-me. Pensei: "Fiquei todo
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
machucado, coitado de mim!" Bastou isso para que começasse a sentir dores. O professor interferiu, enérgico.
- Não, Raul, não deixe a autopiedade o dominar; vamos, reaja, esse não é o seu estado, está assim só para ajudar.
Respirei fundo e pensei na figura do Mestre Jesus, ensinando no monte, na linda pintura que tínhamos na sala de aula. Relaxei e nada mais senti; sabia que minha transformação era só para ficar visível à minha mãe, minha forma externa não deveria mudar-me interiormente e eu não poderia ter dó de mim: nada do que me acontecera fora injusto.
Tranqüilo, aproximei-me dela, o professor Eugênio acompanhou-me; como não abaixou sua vibração, só a mim mamãe veria.
Ficando a alguns passos dela, disse baixinho:
- Mãe, mamãe!
Ela levantou a cabeça, levou um susto ao ver-me. Arregalou os olhos e ficou com eles parados, a olhar-me. Torcia as mãos, nervosa, disse em torn aflito, falando rápido:
- Raul, meu filho! Vejo sua alma! Você morreu naquele maldito dia. Por que eu não? Tive que ficar! Procuro ajuda e não acho. Que sofrimento, meu filho! Vê meu estado? Ele proibiu que me ajudassem. Falo a todos que foi ele. Ninguém acredita nem me ouve. Raul! Você está sujo e machucado! Não está no céu? Sofre, meu filho?
Aproveitei a pausa que fez e tentei explicar, falando docemente:
-Mãe, mamãe querida. Não sofro, estou bem e queria que também estivesse. Esqueça as maldades que lhe fizeram, perdoe. Todos nós somos carentes de perdão.



Reconciliação
perdoe, mamãe, peça ajuda a Deus, a Jesus, e faça como Ele, que na cruz perdoou os que lhe mataram o corpo, por favor, mamãe, perdoe!
Mamãe agitou-se, parecia mais assustada e gritou.
- Não, você não é meu Raul! Não tem sossego por não estar vingado?
- Mamãe, quando caímos no poço morremos nós dois.
- Cruz-credo! Você morreu, vi seu corpo frio; o meu, não. Olhe! Vê? Estou viva. Sempre tive medo de alma do outro mundo, de morto. Ai... you vingar você, Raul. Manuel irá pagar.
Saiu correndo desesperada, com medo.
- Volte a ser o Raul do Educandário - ordenou com voz firme o professor Eugênio. - Pense em você lá na nossa classe.
Rapidamente me transformei, suspirei aliviado e esforcei-me para não desanimar; tentei sorrir.
- Ela teve medo de mim!
O professor sorriu, confortando-me.
- Vamos procurá-la novamente, serei eu a conversar com ela. Não me conhecendo, julgará que sou encarnado e pode ser mais fácil.
- Mamãe está muito perturbada, professor. Foi sempre gentil, educada. Expressa-se de modo estranho!
- Sua mãe está temporariamente perturbada, pelo que lhe aconteceu, pelo sofrimento.
- Será que ela perdoará?
- Claro que sim. Manuela sofre e sente-se só, abandonada, não será difícil fazê-la entender. Não é má, não Procurou ajuda de vingadores nem se uniu a espíritos trevosos.
~ Vingadores? - Estranhei.
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
- Sim, denominam-se vingadores os grupos que se reúnem nos umbrais, que se dedicam com todo o ódio e rancor a vingar as ofensas e ajudam os supostos ofendidos que os procuram. Em casos assim, nossa interferência é mais trabalhosa, mas realizável. Manuela não está bem certa se quer realmente se vingar.
- Vamos, vamos até ela. Não a vejo, sumiu, sabe onde está?
Ele sorriu, entendi que sim. Se viemos da colônia e achamo-la facilmente, sabia sem dúvida aonde ela fora.
- Andemos agora, Raul.
Estar novamente naqueles campos, onde brinquei tanto com meus amigos, fez com que parasse e olhasse tudo com saudade. Não podemos fugir da saudade, mas sim controlá-la; não devemos deixar que ela nos machuque e entristeça nossos dias. Quando queremos bem a alguém, gostamos de certos lugares; é humano sentir saudades. Mas devemos lutar para não deixar esse sentimento nos prejudicar o crescimento espiritual.
- Um dia, Raul, terá igualmente saudade do Edu,- candário, quando de lá se ausentar. Poderá até estar encarnado e não saberá ao certo do que tem saudade, seu espírito é que estará saudoso. Acostume-se já a dominar esse sentimento, dê mais lugar no seu coração ao amor, deixe que esse sentimento puro domine todos os outros. Olhe para esses lugares e os ame. Não pense que os perdeu, pense que os ama, ama muito cada lugar, cada pessoa, e a saudade se tornará suave. Aprendendo, estamos fazendo nosso presente, e o futuro é esperança.
Sorri agradecido, fiz o que ele me sugeria, não me foi difícil, amava tudo, só que não sabia. Deixei transbordar
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Reconciliação
meu amor e não senti mais saudade. Os acontecimentos materiais estavam no passado, o presente para mim era importante e enchi-me da esperança de conseguir ajudar minha mãe.
- Professor - indaguei enquanto caminhávamos -, existem muitos desencarnados sofrendo como minha mãe?
- Infelizmente, Raul, existem sim. São os imprudentes que, encarnados, construíram sua casa, seus valores, na areia. Vem a morte do corpo e tudo lhes parece ter desmoronado, é grande a ruína. Todas as religiões orientam para que sigam o caminho do bem, do amor, mas a estrada é estreita e, não tendo coragem para abandonar a vida fácil, as muitas ilusões da carne, ao desencarnarem sofrem no plano espiritual, seja pelas maldades que fizeram, seja pelo orgulho e egoísmo, ou, ainda, pelo bem que deixaram de fazer e por não terem coragem e confiança suficientes para perdoar as ofensas recebidas.
- Sinto pena deles!
- São as más obras, maus atos, que causam sofrimentos. Somos livres para escolher. Muitos sofrem, mas o bem está em toda parte e ninguém fica sem socorro se pedir com sinceridade, com o propósito sincero de melhorar.
Aproxirnamo-nos do meu antigo lar; estava modificado, fora pintado recentemente, feito muro em volta, posto portão. Mamãe muitas vezes pedira a meu pai para fazer essas modificações, mas ele respondia que a casa estava bem desse jeito. Estava agora mais bonita, parecia-rne maior. O professor pegou na minha mão, atraVessamos o portão fechado e a porta da sala, achei mteressante.
~ Que legal! - exclamei. - Posso fazer de novo?
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
- Sim, pode. Nossos corpos, agora, Raul, são de urna matéria rarefeita. Corpos carnais e esta casa são de matéria condensada. Facilmente nós, desencarnados, podemos atravessá-la, é só ter consciência disso e querer.
- Mamãe consegue atravessar paredes?
- Não, sua mãe se julga encarnada e encarnados não atravessam paredes, portas fechadas.
Da sala fomos à cozinha, onde encontramos Pretinha preparando o jantar. Pondo em prática a lição do amor, olhei-a com muito carinho, desejei sinceramente felicidade a ela. Minha amiga encarnada suspirou aliviada, sorriu e continuou sua tarefa com mais satisfação.
Fomos ao quarto de minhas irmãs. Telma e Tais estavam bem, com roupas novas e muitos brinquedos; mas pareceram-me tristonhas, brincando caladas, sentadas no chão.
- Suas irmãs estão bem; vamos, Raul, sua mãe chora na escada que dá para o quintal.
Mamãe estava sentada toda encolhida num canto da escada. Chorava e dizia: "Elas não me reconheceram. É porque estou suja e machucada. Deveria ir ao médico. Nem Pretinha falou comigo. Por quê? Por quê? Fingiram que não me viram. Deve ser isso, Manuel deve ter falado que estou louca e que fui eu quem matou Raul. Deve ter inventado uma boa história para que elas não conversem comigo. Todos devem ter medo de mim".
Olhei para o professor, ele orava em silêncio, e foi se modificando. Mudou suas roupas, ficou parecendo um lavrador pobre. Ficou na frente de mamãe, na escada, falou-lhe com voz harmoniosa e com muito carinho.
-Por que chora, filha? Está muito machucada, não dói?



Reconciliação
Minha mãe levantou a cabeça e viu-o; curiosa, observou-o bem e indagou:
- Quem é o senhor? Não o conheço, nunca o vi.
- Sou um peregrino. Ando por este mundo de Deus. Quer ajuda?
- Quero! Ou é o senhor quem quer? Não tenho nada para dar-lhe e...
- Não quero nada, senhora, tenho tudo do que necessito.
- Sinto que o senhor é bom. Mas como poderá me ajudar? Nem sei como começar, sofro tanto. Perdi meu filho há poucos dias.
Minha mãe perdera a noção do tempo; aqueles meses pareceram-lhe dias. Isso é comum a espíritos perturbados. O professor, mostrando-se amável, continuou a conversar normalmente.
- Sei avaliar a dor de uma mãe. Tudo é mais fácil para os que têm fé. Não acredita em Deus, senhora? Ele é Pai de todos nós, meu, da senhora, de seu filhinho. Não diga que o perdeu, não pertencemos a ninguém, filhos não são propriedades nossas, guardamo-los por um tempo que o Pai determina, encontrará com ele um dia. Não fique triste assim, senhora, venha comigo, cuidarei dos seus ferimentos.
- Não posso ir, não devo sair daqui, esta é minha casa. Não choro só pela morte dele. Tudo me é tão triste. Meu filhinho morreu e foi o próprio pai quem o matou. Não se espanta? Não acredita?
- Acredito, sim, senhora, sei que fala a verdade. Não acha, porém, que se pode matar só o corpo e não a alma? k que seu filhinho vive em outro lugar?
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
Mamãe relaxou mais, sentou-se direito, ignorou a indagação que o professor lhe fizera e começou a falar. Muito confusa, às vezes não terminava a frase, mudava de assunto, mas contou sua história, revelando episódios que eu desconhecia.
- Nasci perto daqui, numa bonita fazenda. Meu pai era muito enérgico e estava sempre distante. Mamãe, não, pessoa bondosa, deu-me muito carinho. Fui prometida em casamento mocinha ainda, me alegrei. Logo amei Manuel, meu noivo, e sentia que era correspondida. Faltava pouco tempo para nosso casamento, quando um dia, ao voltar de visita que fizera a uma doente, mulher de um dos nossos empregados, fui atacada por um homem; sem conseguir reagir, fui violentada. Encontraram-me toda machucada. Mamãe cuidou de mim com carinho, meu pai quis saber quem fora. Não o conhecia, mas o descrevi e ele foi procurar o tal homem com mais dois empregados; encontrando-o, matou-o com dois tiros de espingarda. Não conseguimos esconder o fato e passei de vítima a uma pessoa marcada, como se tivesse errado. Meu pai chamou meu noivo e contou-lhe tudo; porém, para meu alívio, ele ainda quis casar comigo. Meu pai não conversou mais comigo, evitava-me, só mamãe continuou a tratar-me como sempre. Dois meses depois, casei. Logo engravidei e Raul nasceu após nove meses de casada. Manuel mudou comigo, não era o noivo prometido que conhecia. Não gostou do filho, torturava-me dizendo que ele era do tarado e eu jurava-lhe que não. Dizia-lhe: existe criança de sete meses, mas não de onze! Era brusco, grosseiro comigo. Nem olhava para o filho e, se o menino chorava à noite, tinha de sair do quarto. Quando fiquei grávida
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Reconciliação
novamente, apavorei-me/ porém Manuel agiu diferente, com as meninas tinha paciência, chegando a levantar-se à noite para me ajudar a cuidar delas. Meu pai morreu. Vim a saber por mamãe que Manuel casara comigo por ter recebido uma rica recompensa, papai pagou-lhe para que se casasse comigo. Minha mãe, com dó do meu Raul, pediu-nos para que o deixássemos com ela. Minha mãe levou-o e criou-o. Manuel nunca foi vê-lo ou quis saber dele.
"Minha vida nesses anos transcorreu mais tranqüila, até que mamãe morreu e meu filho retornou ao lar. Manuel logo demonstrou a raiva que sentia por ele, passou a maltratá-lo, a surrá-lo, sem nenhum motivo. Minha vida toda de casada foi tentando agradar meu esposo; trabalhei muito, tornei-o mais rico e cada vez tratava-me pior. Até que se apaixonou por outra, por uma moça que mudou com a família para nossa cidade. A desavergonhada queria casar, e ele, com medo de perdê-la, armou um plano. Começou a tratar-me melhor e também ao filho. Numa tarde chamou-nos para um passeio, feriu-me com a faca, jogando-me no poço abandonado e, depois, fez o mesmo com o próprio filho. Este, coitadinho, não resistiu e morreu. E, não satisfeito, sabe o que ele fez? Disse a todos que fui eu a matá-lo, que estou louca, e todos fogem de mim, não conversam comigo. Só o senhor me escutou e estou abusando, falando, falando."
- Não, irmãzinha, não está abusando, gostei de escutá-la. A senhora precisa de ajuda. Não se lembra de ueus? Não ora? Não recorda os ensinos de Jesus, esse grande missionário? Sofreu tanto, perdoou a todos e Pediu que fizéssemos isso também. Por que a senhora não Perdoa a seu esposo? Raul já perdoou.
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
- Raul? Como sabe o nome de meu filho?
- A senhora mesma falou. Se ele era bom como diz, um anjinho, perdoou. Os bons perdoam sempre, faça isto, perdoe também.
Minha mãe ficou quieta por alguns instantes, parecia pensativa. De repente levantou-se e disse:
- A polícia! O delegado! you dar queixa dele, terão de prendê-lo.
Saiu apressada, nem se despediu, olhei triste para o professor e disse:
- Não sabia dessa história, agora entendo o porquê de meu pai não gostar de mim.
- Sua mãe disse a verdade: você, Raul, é realmente filho de Manuel. Esse ódio não é por isso, está ligado ao passado de vocês. Vamos acompanhá-la.
Mamãe andava rápido, seguimo-la de perto, ia repetindo que tinha de contar ao delegado. Perto da delegacia dois desencarnados, com jeito de poucos amigos, cercaram-na, segurando-a pelo braço.
- Venha cá, belezura! - disse um deles.
- Vamos passear um pouco - disse o outro. - Somos todos assombrações.
Mamãe apavorou-se com o assédio dos dois, começou a debater-se. O professor Eugênio aproximou-se, os dois pararam desconfiados olhando um para o outro, saíram correndo.
- Está protegida pelos bons, vamos embora! Mamãe chorava baixinho, assustada, com dores e
fraqueza, não quis ir mais para a delegacia; vagarosamente, de cabeça baixa, voltou para nosso antigo lar.
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O LOUCO

IVIamãe ficou novamente na escada chorando, aproximamo-nos dela.
- Raul, estenda suas mãos sobre ela e pense que quer vê-la tranqüila a dormir.
Fiz isso, o professor também; mamãe parou de chorar. Foi se acalmando, deitou-se no chão e dormiu. O professor Eugênio pegou-a no colo e acomodou-a num leito que tinha no porão de minha ex-casa.
Entramos em casa, meu pai estava na sala,
l tranqüilo, pareceu-me feliz, ao seu lado uma
moça bonita que tentava cativar minhas irmãs,
Tais e Telma, que a olhavam desconfiadas e
aborrecidas.



Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
- Será esta a mulher de que mamãe falou? Ela o ajudou a nos matar?
- Esta é Margareth, amante de seu pai, candidata a esposa. Ela não é má, somente ambiciosa e frívola. Não sabe de nada, no começo desconfiou de seu pai, porque ele pediu que dissesse, se alguém lhe perguntasse, que passara com ela a tarde do crime. Explicou que andava desconfiado de que a esposa o traía e que a seguira naquela tarde. Logo, porém, perdera-a de vista. Mas depois que prenderam o "Louco", Margareth acreditou nele e ficou muito contente por Manuel estar livre, e tudo faz para que se case com ela.
Margareth levantou-se, dirigiu-se à cozinha; seguimo-la. Pretinha lavava a louça; Margareth, procurando ser amável, disse-lhe:
- Pretinha, qual o seu salário?
Pretinha gaguejou, falou a quantia meio encabulada.
- Só?! Se você me ajudar fazendo com que as meninas gostem de mim, casarei com Manuel e dobro seu ordenado. Terei outra empregada para lavar roupas e não farei quitutes para o armazém, seu serviço diminuirá. Se fizer o que lhe peço, falando bem de mim a elas, dar-lhe-ei roupas minhas, tratá-la-ei sempre bem.
- Sim, sim, senhora.
Ela saiu e Pretinha enxugou do rosto as lágrimas que caíam, resmungando baixinho: "Nem fez um ano que dona Manuela e o menino Raul morreram e ele já fala em casar-se. Se não tivessem prendido o Louco e este confessado, julgaria que fora ele, o patrão, que matara os dois. Até hoje não entendo o porquê de dona Manuela ter largado de fazer os bolinhos e ter saído com Raul; ela nunca fizera isso".
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Reconciliação
Abracei Pretinha com muito carinho, desejei-lhe tranqüilidade e esperança para o futuro. Após alguns segundos, o professor tocou-me o ombro.
- Vamos, Raul, viemos ajudar sua mãe, não deve se preocupar com eles aqui. Pretinha é bondosa e trabalhadeira. Margareth gosta mais é de ter alguém para trabalhar por ela, agradará Pretinha para tê-la fazendo isso. Para suas irmãs, será boa madrasta, as meninas são boazinhas, seu pai as ama e não permitirá que ninguém as maltrate.
- Professor Eugênio, ele não tem remorso? Está como se não tivesse feito nenhum mal.
- Quem faz o mal um dia cairá em si, lembrará o mal feito. A vez dele chegará.
- E ele vai casar com Margareth?
- Sim, estão apaixonados.
- Professor, é incrível como o senhor sabe tudo, descobriu onde mamãe estava, conhece tudo.
- Não pense, Raul, que sou adivinho. Nada é impossível. Ontem à noite estive aqui e sua avó deu-me as informações precisas, analisei tudo para melhor ajudá-lo. Saber de todos os detalhes e onde uma pessoa se encontra não é difícil. Como sua avó, dona Margarida, me informou, sua mãe só fica por aqui e basta-me pensar nela para localizá-la, foi fácil. Para os desencarnados nada é impossível, tudo é trabalho e dedicação.
- Escutei, por duas vezes, falar do Louco. Prenderam
0 Louco que nos matou. Quem é ele? Por que está preso se não foi ele?
~ Sua mãe dormirá por horas, descansará, aproveiernos para conhecer o Louco. Vamos à prisão.
A prisão da cidade era pequena e antiga, quatro celas,
três
presos, um em cada uma. Não era um lugar agradável
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Vera Líícia Marinzeck de Carvalho
de visitar, não a conhecia, nunca tinha estado numa cadeia. Ambiente triste e pesado, alguns desencarnados ali estavam vampirizando com ódio um dos presos por este ter-lhes tirado a vida física. Não nos viram, lembrei-me da explicação do professor: nossa vibração era diferente. Entramos numa das celas, não havia nenhum desencarnado, estava ali um homem, barba por fazer, magro, cabelos louros encaracolados, andava de um lado para outro, inquieto.
A camisa aberta deixava ver suas costelas, usava sandálias de couro cru e calças nas canelas. Seus olhos azuis pareciam duas contas, bonitos, tristes, demonstrando pelo olhar sua agitação interior. Simpatizei com ele, indaguei ao meu mestre:
- Quem é este homem?
- Este é o Louco - respondeu meu instrutor. - Será inocente? Nem tanto como se pensa. É um doente mental. Seu espírito culpado perturbou-se e ao encarnar transmitiu à matéria sua perturbação.
O Louco começou a falar: "Matei-os, matei-os, enfiei a faca neles, matei-os!"
Assustei-me ao ouvir o que dizia.
- Este pobre irmão fala sempre isso, Raul, repete a todo instante. Recorda partes de acontecimentos do passado. Matou, sim, não agora nesta encarnação, mas na sua outra existência. Vamos auscultá-lo, contarei a você a história dele, quer?
- Sim, quero.
O professor Eugênio deu-lhe um passe, vi das suas mãos saírem raios prateados. O Louco aquietou-se, parou de andar, pegou um prato de comida que estava na mesa e comeu; depois se deitou na cama e ficou olhando para o
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Reconciliação
teto com os olhos muito abertos. Sentamo-nos perto dele, meu instrutor começou a falar:
-João Felipe/ é este seu nome. Em 1712 estava encarnado, era oficial da corte; imponente, orgulhoso, julgava-se bonito, honesto e com a certeza de uma brilhante carreira. Esperava uma promoção, que julgava merecida e justa, para logo.
"Um dia, estando de folga, passeava pelo campo a cavalo, ia admirando a estradinha toda arborizada que era caminho de alguns sítios, onde pessoas endinheiradas tinham casas para passar o verão, sonhando um dia em residir ali. De repente, uma criança saiu do meio das árvores atravessando à sua frente. Seu cavalo assustou-se, empinou, e o menino, amedrontado, parou também. Sem que João Felipe pudesse evitar, o cavalo pisoteou a cabeça do garoto. Conseguindo finalmente dominar o animal, desceu do cavalo, amarrou-o numa das árvores e aproximou-se da criança. Percebeu que estava morta, batera com a cabeça numa pedra, além das pisadas do cavalo.
"Ajoelhado estava junto ao menino quando escutou um barulho. Virou-se e viu que atrás do garoto vieram uma mulher e uma menina de uns seis anos. A mulher estava muito bem vestida. Ao chegar à estrada parou, assustada, depois se debruçou sobre o menino, que tinha três anos, começando a chorar baixinho. João Felipe reconheceu-a, era a esposa de seu comandante. Sentiu um frio pelo corpo e exclamou: 'Estou perdido!'
"Procurou dominar-se. Pensou rápido, não poderia Deixar que contassem o que viram. Ele não tivera culpa, ^uern, porém, iria acreditar nele? E conhecia bem o co^ndante, era vingativo e mau.
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Reconciliação
"O débil ria. João Felipe indagava-o balançando a cabeça de cima para baixo e o maluco imitava-o, dando a parecer que respondia de forma afirmativa.
'"Homens, é este o assassino, ele afirma, vamos matá-lo, está com a faca. Não há mais dúvidas, é o criminoso/
"Exaltou os companheiros e eles acreditaram. Pegou uma corda e colocou-a numa árvore.
" 'Enforquemo-lo!'
"'Não é melhor levá-lo preso?' - disse um do grupo.
'"Há uma recompensa e o comandante deixou bem claro que queria o assassino morto. Poupemos mais isso ao pobre pai, ter de matar este monstro. Enforquemo-lo nós.'
"O débil ria. Colocaram-no em cima de um cavalo, ficou encantado, achando que brincavam com ele. Colocaram-lhe a corda no pescoço, ele continuava a rir, até que a corda o sufocou, olhou assustado para os oficiais, desencarnou. Socorristas desligaram-no logo do corpo e levaram-no para um posto de socorro, onde foi orientado, perdoando e entendendo que resgatara erros de seu passado.
"O grupo recebeu a recompensa. João Felipe, por ter descoberto o assassino, foi cumprimentado pelo comandante, que se sentia arrasado com a morte da esposa e filhos. João Felipe logo foi promovido.
"O assunto foi esquecido, em breve ninguém mais comentava o caso. João Felipe procurou aplacar sua consciência pensando sempre que fora melhor para o débil ter morrido, parado de sofrer. E que não tivera culpa da morte do menino, fora ele que atravessara à sua frente, e que a mulher e a menina tiveram de ser mortas, para que ele



Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
"Tirou sua faca da cinta e friamente golpeou a mulher pelas costas. Retirando a faca, rápido avançou sobre a menina, que estava a alguns passos parada, não entendendo o que acontecia; estava mesmo olhando para o outro lado e nem vira a mãe morrer. Enfiou a faca no peito da menina, retirou-a e limpou-a nas roupinhas da criança. Montou no seu cavalo, retornou rápido para a cidade, deixando os três mortos na estrada. Três horas depois só se falava nos crimes cometidos e todos os oficiais saíram à caça do assassino ou assassinos. João Felipe, de licença, apresentou-se, como muitos outros, procurou acalmar-se, chefiou um grupo de buscas. Ninguém vira nada, empregados da casa, preocupados com a demora da senhora e das crianças, saíram para procurá-los, achando-os mortos depois de horas de procura. Era tudo o que se sabia. As buscas ao autor do crime hediondo continuavam. O grupo de João Felipe encontrou um débil mental sentado numa pedra, era um andarilho.
"'É ele! Parece um assassino!' - gritou João Felipe, exaltado.
'"É só um louco inofensivo' - disse um de seus colegas.
"'Vamos revistá-lo!'
"João Felipe desceu do seu cavalo e os outros ficaram conversando. Começou a revistar as coisas do pobre homem, que os olhava e ria se divertindo. João Felipe, vendo que ninguém o observava, com cuidado tirou a faca de sua bota, lugar onde a escondera, e, fingindo tê-la tirado dos pertences do débil, gritou:
"'Olhem! Olhem o que encontrei! Uma faca suja de sangue! Foi você, seu monstro, quem matou a mulher e as crianças?'



Reconciliação
"O débil ria. João Felipe indagava-o balançando a cabeça de cima para baixo e o maluco imitava-o, dando a parecer que respondia de forma afirmativa.
"'Homens, é este o assassino, ele afirma, vamos matá-lo, está com a faca. Não há mais dúvidas, é o criminoso/
"Exaltou os companheiros e eles acreditaram. Pegou uma corda e colocou-a numa árvore.
" 'Enf orquemo-1 o!'
'"Não é melhor levá-lo preso?' - disse um do grupo.
"'Há uma recompensa e o comandante deixou bem claro que queria o assassino morto. Poupemos mais isso ao pobre pai, ter de matar este monstro. Enforquemo-lo nós/
"O débil ria. Colocaram-no em cima de um cavalo, ficou encantado, achando que brincavam com ele. Colocaram-lhe a corda no pescoço, ele continuava a rir, até que a corda o sufocou, olhou assustado para os oficiais, desencarnou. Socorristas desligaram-no logo do corpo e levaram-no para um posto de socorro, onde foi orientado, perdoando e entendendo que resgatara erros de seu passado.
"O grupo recebeu a recompensa. João Felipe, por ter descoberto o assassino, foi cumprimentado pelo comandante, que se sentia arrasado com a morte da esposa e olhos. João Felipe logo foi promovido.
"O assunto foi esquecido, em breve ninguém mais
comentava o caso. João Felipe procurou aplacar sua cons-
Ier>cia pensando sempre que fora melhor para o débil ter
Orrido/ parado de sofrer. E que não tivera culpa da morte
Menino, fora ele que atravessara à sua frente, e que a
u«ier e a menina tiveram de ser mortas, para que ele
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
não fosse prejudicado, senão seria enforcado. Mas, não tinha sossego, estava sempre intranqüilo, amargurado, descontava nos subalternos sua insatisfação. Tornou-se um comandante duro e implacável. Não casou, não conseguiu gostar de ninguém, poderia até ter comprado uma casa naqueles sítios que tanto queria, preferiu outro lugar. Nunca mais passeara no lugar do crime. Seu antigo comandante achava sempre que lhe devia favor, muito o ajudou. A mulher, pessoa boa, e as crianças que ele assassinou foram logo socorridas e perdoaram-lhe, crescendo espiritualmente. Anos depois, seu antigo comandante desencarnou e, ao saber da verdadeira história, voltou-se para ele com ódio feroz. Obsediou João Felipe que, aos poucos, foi perdendo a razão, foi afastado de seu cargo e acabou louco. Um de seus irmãos veio tomar conta dele, apossou-se de seus bens e trancou-o num porão, onde viveu por dois anos e desencarnou. Mas seu obsessor não deu por terminada a vingança, tirou-o do corpo carnal, levou-o para as furnas e muito o maltratou. A mulher e os filhos do obsessor tudo fizeram para que ele perdoasse e mudasse de vida, até que um dia, cansado de sofrer, desistiu da vingança e retirou-se com seus familiares...
"Pois, meu caro Raul, a vingança é como diz o dito popular: uma faca de dois gumes. Fere-se e se é ferido, faz sofrer, mas sofre. João Felipe ficou só, sentiu-se um pouco aliviado com a ausência de seu inimigo e aos poucos foi recordando sua vida, seus erros. O remorso o corroía e foi aumentando com o tempo, até que se arrependeu sinceramente. Chorou muito, pediu perdão a Deus e clamou por socorro. Socorristas piedosos o levaram a um posto
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de socorro, sentia-se perturbado; se todos o perdoaram, não se perdoava a si mesmo.
"João Felipe não se conformava por ter sido tão mau e impiedoso, chorava angustiado. Todos nós, Raul, devemos perdoar sempre a todos e a nós mesmos; as obras más nos pertencem, como as boas; ninguém tira a vida física de outrem e fica impune. Reconhecido o erro e arrependidos, não devemos cultivar o remorso destrutivo, mas sim o firme propósito de acertar e reparar os erros. Com tratamento e com muitos conselhos, João Felipe melhorou e pediu para reencarnar. Queria esquecer, resgatar suas dívidas, que para ele eram imensas."
- E não eram?
- Sim, Raul. Lembro-o, porém, de que todos nós somos ou fomos carentes de perdão, não devemos focalizar só nossos erros e ser pessimistas. Devemos ser otimistas e aproveitar as oportunidades que nos são dadas para melhorarmos e ajudar àqueles a quem prejudicamos ou a todos os que nos cercam. O amor, como Jesus ensinou a Pedro, cobre multidões de pecados; devemos cultivar, fortalecer a esperança em construir, realizar e crescer para o progresso.
"Voltou João Felipe, encarnou tendo pais pobres e humildes, sofreu privações com resignação, mas seu espírito não se perdoou, e logo na adolescência conseguiu passar para seu cérebro físico algumas recordações, as principais, de seus erros. Perturbou-se, adquirindo uma doença mental. Saiu de casa, seus familiares sentiram até alívio, e ficou andando de um lugar para outro, esmolando para sobreviver. Passava por aqui quando o crime aconteceu, acharam-no perto do poço dizendo que havia matado, que
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esfaqueara. Não estava sujo de sangue, não encontraram a faca, mas prenderam-no.
"Interrogaram-no muitas vezes, tentaram, para que dissesse mais coisas, mas ele só repetia que havia matado. Quando o interrogatório demorava, gritava: 'Matei-os, cortei-os com a faca!'
"Não tendo outro suspeito, levaram em conta sua confissão, pararam de atormentá-lo e, como ninguém sabe seu nome e ele não diz, apelidaram-no de o Louco, e ficará preso até sua desencarnação. Está preso, Raul, por um crime que não cometeu nesta existência, mas pelo que fez no passado e não pagou. Estar prisioneiro não é fácil e muitos com resignação resgatam seus débitos, encarcerados. João Felipe fugiu de suas responsabilidades e culpou outro; hoje acontece com ele o que fez no passado.
"As Leis Divinas são muito justas e podemos ter consciência disso, conhecendo a Lei de Causa e Efeito. Ninguém pode dizer que é injusto seu sofrimento, como não é o de João Felipe."
O professor silenciou e pensei no meu pai, o que fizera não fora diferente de João Felipe; indaguei preocupado:
- Professor, que será de meu pai?
- De nossos atos teremos que dar conta um dia. Agravou seus erros, deixando que um inocente pagasse em seu lugar. Pagará ceitil por ceitil, como nos disse Jesus, ou pelo amor, ou pela dor; não se preocupe com ele agora, terá como todos nós oportunidades de resgate nesta existência ou em outras.
Senti muito dó de João Felipe, o Louco; passei a mão sobre seus cabelos e desejei ajudá-lo.
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Reconciliação
- Doe, Raul, deseje-lhe calma, paz, tranqüilidade e doe-lhe amor.
Desejei ardentemente que ele esquecesse seus erros, seu passado culposo e que agora, resgatando, sentisse paz. Orei com fervor um Pai-Nosso.
João Felipe aquietou-se e adormeceu tranqüilo, seu rosto descontraiu-se, suavizando a fisionomia.
- Dorme tranqüilo! Você, Raul, ajudou-o com seu carinho. Oremos sempre por ele para que quite seus débitos com resignação, porque sofre a reação de seus atos por sua própria escolha. Que possa, ao desencarnar, sentir a paz tão necessária ao nosso progresso e ter a consciência tranqüila para recomeçar bem a existência no plano espiritual.
Era a primeira vez que ajudava alguém; senti uma alegria infinita, lembrei-me dos comentários que surgiam sempre na escola: "Quem faz a outro para si faz". Confiante, sorri para meu mestre e não consegui conter as lágrimas que, abundantes, desciam por minhas faces. Saímos dali.
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O PERDÃO
- V oltemos para perto de Manuela disse o professor.
Já passava da meia-noite; mamãe dormia do mesmo modo que a deixamos. O professor deu-lhe um passe. Ela acordou, não nos viu, sentou-se no leito. Intuiu-a a subir e entrar em casa; assim o fez. Passou pelas portas fechadas com a ajuda do meu mestre e nem percebeu. Levamo-la ao quarto das meninas, que dormiam lado a lado. Mamãe parou diante das camas e ficou observando-as com muito amor.
O professor Eugênio foi até Tais, deu-lhe um passe, segurou-a pela mão, chamou-a baixinho e retirou seu espírito cuidadosamente do
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O PERDÃO
- V citemos para perto de Manuela disse o professor.
Já passava da meia-noite; mamãe dormia do mesmo modo que a deixamos. O professor deu-lhe um passe. Ela acordou, não nos viu, sentou-se no leito. Intuiu-a a subir e entrar em casa; assim o fez. Passou pelas portas fechadas com a ajuda do meu mestre e nem percebeu. Levamo-la ao quarto das meninas, que dormiam lado a lado. Mamãe parou diante das camas e ficou observando-as com muito amor.
O professor Eugênio foi até Tais, deu-lhe um passe, segurou-a pela mão, chamou-a baixinho e retirou seu espírito cuidadosamente do



Reconciliação
corpo, ficando ligado somente por um cordão. Tais olhou seu corpo adormecido, sorriu/ olhou pelo quarto, viu mamãe e levou um susto.
- Mãe! Por que está aqui? Não deveria estar no céu? Por que está toda suja? A senhora morreu, beijei seu corpo frio e fétido. Não está com a vovó? E Raul? Morreram juntos. Que faz aqui? Quer orações?
Tais falava depressa, cada vez mais assustada e com medo. Mamãe ficou parada, não conseguiu falar nada, olhava Tais com admiração e espanto. Minha irmã quis chorar, tremia toda. O professor Eugênio aproximou-se de Tais, transmitiu-lhe um passe de paz, tranqüilidade, fez com que retornasse ao corpo. Nós, como mamãe, vimos Tais como duas, seu corpo e seu espírito; mamãe teve um choque ao presenciar esse fato e, pelo que escutara, saiu correndo do quarto. O professor ficou com Tais e acalmou-a com passes, até que serenou.
- Tais está bem, Raul, não deverá lembrar-se do fato.
- Se lembrasse, seria triste para ela recordar a mãezinha neste estado.
Fomos encontrar com mamãe, voltara para a escada. O professor se fez visível novamente a ela e recomendou-me:
- Não interfira, Raul, fique perto, ore, vibre, conversarei novamente com ela.
Fiquei a dois degraus dela e orei com fé, pedi a Deus que nos inspirasse e fizesse com que meu mestre a convencesse, a doutrinasse. O professor falou-lhe, calmamente:
- Filha, ainda por aqui?
Mamãe assustou-se, quis fugir. Depois, reconheceu o confidente que encontrara à tarde, acomodou-se novamente, não respondeu. Nisto, passou meu pai em espírito,
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desligado pelo sono físico, embaixo da escada. Estava tranqüilo, parecia que passeava. Mamãe escondeu-se no vão da escada.
- É ele! Não quero que me veja. Tenho medo!
- Como quer se vingar dele se tem medo?
- Ele matou e pode matar de novo.
- Está morta, então? >
- Não sei, é tão confuso. Primeiro sinto a presença de minha mãe, que morreu há tanto tempo. Depois, vi meu Raul, o meu filhinho querido que morreu. Aqui ninguém fala comigo, parece que nem me vêem. Agora mesmo, minha filha virou duas, uma deitada na cama e a outra estava como eu, falou comigo, disse que morri. Mas o senhor me vê, não é? Fala comigo.
- Sim, vejo-a e falo com a senhora, somos iguais, observe bem. Contudo, não somos iguais à Pretinha ou à Tais e à Telma. Há diferença.
Mamãe ficou pensando por uns instantes, encolheu-se no seu canto.
- Você é morto?
- Meu corpo morreu há tempos, sou vivo, somos eternos. O espírito continua a viver sem o corpo físico.
- Eu também morri?
- Contudo, está falando, sofrendo e chorando. Está viva pelo espírito. Seu corpo morreu ao cair no poço e não se deu conta disso, pelo ódio que sentia.
- Oh! Como é ruim morrer!
- Ter o corpo morto não é ruim, ruim é ter sentimentos de ódio, rancor e vícios como companhia.
Mamãe chorou. Desta vez seu choro era diferente, era de alívio, tristeza, sem mágoas. Suas lágrimas foram j
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desligado pelo sono físico, embaixo da escada. Estava tranqüilo, parecia que passeava. Mamãe escondeu-se no vão da escada.
- É ele! Não quero que me veja. Tenho medo!
- Como quer se vingar dele se tem medo?
- Ele matou e pode matar de novo.
- Está morta, então?
- Não sei, é tão confuso. Primeiro sinto a presença de minha mãe, que morreu há tanto tempo. Depois, vi meu Raul, o meu filhinho querido que morreu. Aqui ninguém fala comigo, parece que nem me vêem. Agora mesmo, minha filha virou duas, uma deitada na cama e a outra estava como eu, falou comigo, disse que morri. Mas o senhor me vê, não é? Fala comigo.
- Sim, vejo-a e falo com a senhora, somos iguais, observe bem. Contudo, não somos iguais à Pretinha ou à Tais e à Telma. Há diferença.
Mamãe ficou pensando por uns instantes, encolheu-se no seu canto.
- Você é morto?
- Meu corpo morreu há tempos, sou vivo, somos eternos. O espírito continua a viver sem o corpo físico.
- Eu também morri?
- Contudo, está falando, sofrendo e chorando. Está viva pelo espírito. Seu corpo morreu ao cair no poço e não se deu conta disso, pelo ódio que sentia.
- Oh! Como é ruim morrer!
- Ter o corpo morto não é ruim, ruim é ter sentimentos de ódio, rancor e vícios como companhia.
Mamãe chorou. Desta vez seu choro era diferente, era de alívio, tristeza, sem mágoas. Suas lágrimas foram
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como um bálsamo e o professor esperou pacientemente que chorasse por uns bons minutos.
- Manuela, você não se recorda dos ensinos de Jesus? Ele nos disse que o que pedirmos com fé receberemos. Que quer você, filha?
- Já que morri e meu filhinho também, queria estar com ele.
- Raul perdoou e esqueceu todo o mal que o pai lhe fez. Se quiser estar com ele, deve fazer isso também.
- Perdoar, não sei. Manuel foi tão cruel conosco. Ajude-me, senhor. Morrer parece-me tão estranho, tenho medo, muito medo. Não quero ficar assim.
- Filha, o perdão é importante, está na prece dominical, no Pai-Nosso, oração ensinada pelo maior Mestre que esteve encarnado na Terra. Oremos, vamos juntos orar.
O professor orou com tanta convicção e fé que me emocionei e não pude novamente segurar as lágrimas; mamãe acompanhou-o na prece, encantada. Pela primeira vez depois de seu desencarne sentiu-se melhor, seu ferimento parou de sangrar. Quando terminou, disse, emocionada:
- Que linda é essa prece! Diga-me, senhor, se eu não castigar Manuel ele ficará impune? Acho que deve receber um castigo, não tanto por mim, mais pelo meu Raul.
- Dona Manuela, somos donos dos nossos atos. O bem que fazemos são tesouros que adquirimos, ninguém nos tira, como também o mal fica em nós e um dia teremos de dar conta dele ao Pai maior. Ninguém tem o direito de se vingar, de fazer justiça; vingança é ação má que não fica sem reação. O sofrimento virá para seu esposo, fazendo
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com que se arrependa, mas não cabe à senhora castigá-lo. Se não perdoa, pensando no Raul, está equivocada; Raul está bem, é feliz, porque perdoou e não quer mal algum ao pai.
Mamãe vacilava. Orei com fé, pedi a Deus forças para ela. Lembrei que pude ajudar o Louco e que podia ajudá-la. Olhei-a fixamente, estendi as mãos sobre ela e desejei que perdoasse, que quisesse ir conosco. Emocionado, vi mamãe ajoelhar-se, olhou para o céu, coberto naquele momento de estrelas, uniu as mãos, falou alto, compassado. Desta vez, com seqüência, com sentimento:
- Oh, Jesus! Oh, meu Pai Celeste! Se morri, quero ir para o lugar aonde vão os mortos. Quero estar com meu filhinho. Perdoa meus erros, eu perdôo ao meu marido, perdôo e quero ser perdoada. Pai Nosso que estais no céu...
Orou o Pai-Nosso soluçando baixinho; quando terminou, o professor estendeu as mãos sobre ela.
- Filha, sincero e justo é seu pedido, ajudá-la-ei. Fique calma, descanse, durma, levarei você até seu filhinho; quando acordar, estará com ele.
Mamãe, cansada, adormeceu tranqüila, ainda de joelhos, apoiada nele, meu mestre e amigo, e ele a pegou como se fosse um simples bebê.
- Vamos, Raul, apóie-se em mim e voltemos à colônia. Engasgado pela emoção, não consegui dizer nada,
beijei minha mãe na testa e partimos. Na colônia, o professor deixou mamãe no hospital, ficaria numa enfermaria para se recuperar.
- Raul - disse-me - portou-se corajosamente. Voltemos aos nossos afazeres, eu com minhas aulas, você com seus estudos. Manuela dormirá por algum tempo/
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se recuperando. Seus ferimentos sararam e, quando estiver para acordar, avisarão você e dona Margarida para estarem com ela. Agora vá para casa, vá descansar e contar à sua avó do êxito de nossa ajuda. Tenho de ir, até logo.
Saiu rápido, tentei agradecer-lhe, mas ele já ia longe; voltei para casa, vovó esperava-me, abracei-a feliz e contei-lhe tudo. Choramos agradecidos e emocionados.
- Como meu professor é sábio e bondoso! - exclamei. i
- Quero ser como ele.
- Espelhe-se no seu exemplo, meu neto. Se você estudar e se esforçar, poderá ser como ele. Alegro-me tanto por você desejar crescer e ser útil.
No dia seguinte, na classe, todos me olharam, curiosos, adivinhando por meu contentamento que tudo dera certo. Após a prece inicial, levantei a mão pedindo para falar. Com permissão, narrei todos os acontecimentos e terminei assim:
- Ao Pai Celeste já agradeci. Aqui na classe fiz um pedido e é perante vocês que quero agradecer. Agradecer ao mestre, que tudo fez com seu trabalho e faz mais, ensina-nos com seu exemplo. Sem sua ajuda, nada conseguiria fazer; graças a Deus, mamãe repousa aqui neste l instante e estou muito feliz. Quero agradecer a vocês, meus l colegas, por terem me ajudado com seus conselhos e terem " Vlbrado por nós. Professor Eugênio, muito obrigado e...
Engasguei emocionado e o professor finalizou: ~ Continuemos nossa aula e que os acontecimentos
4ue envolveram Raul nos sirvam de exemplo. Devemos P rdoar sempre, infinitamente, a todos e com o esquecimento de todo o mal.
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Algum tempo se passara, tudo voltara ao normal. Vovó com seu trabalho, eu, atento, cada vez mais interessado nos meus estudos. Fora ver mamãe por instantes; algumas vezes ela dormia, no começo um tanto agitada, depois foi se acalmando e, com o tratamento que recebia, seus ferimentos sumiram.
Fomos, vovó e eu, avisados de que mamãe estava para acordar. Fomos para seu lado. Com passes de um abnegado médico, mamãe acordou de mansinho. Abriu os olhos e se olhou, apalpou-se, depois olhou ao redor de si e nos viu.
- Raul, mamãe! - exclamou, emocionada. Unimo-nos os três em comovente abraço, choramos
felizes. Com muito carinho enxuguei as lágrimas do rosto de mamãe.
- Não choremos mais! - exclamei. - Alegremo-nos, estamos juntos agora.
- Onde estou, Raul, que lugar é este?
- Recuperando-se dos abalos sofridos, em um lugar de fraternidade - respondeu vovó. - Como se sente, minha filha?
- Sinto-me bem. Raulzinho, meu filho querido, como está lindo!
Vovó conduziu a conversa para assuntos agradáveis, lembranças felizes, logo estávamos sorrindo, desfrutando a alegria de estarmos juntos.
Deixamo-la novamente a dormir.
Desde que trouxemos mamãe, pensava muito no passado, na Lei de Causa e Efeito, Ação e Reação. Meditava em todos os acontecimentos de minha vida e então se dava um fato estranho, via-me como uma outra pessoa,
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com outro aspecto, diferente fisicamente; sabia porém que era eu. Eram imagens que surgiam em meus pensamentos do passado, em que planejava um crime com ódio e rancor, e executava-o. Naquele dia, na aula, comentei.
- Tenho tido visões estranhas, julgo serem do meu passado, sinto ser eu, porém com fisionomia diferente. Vejo-me a planejar um crime e assassinar. Penso que a ação que fiz resultou em reação nesta encarnação. E sinto que no meu passado estão também papai e mamãe. Talvez seja no passado que encontrarei as respostas para tanto ódio de meu pai. Tenho pensado, professor Eugênio, que mamãe e eu estaríamos melhor se pudéssemos compreender. Não é certo que é preciso entender para perdoar?
- Raul, não é necessário entender motivos para perdoar. Perdoar é um ato de amor. Jesus sofreu aqui conosco encarnado e não foi por reação, visto que sofreu para consolidar e fazer frutificar seus ensinamentos. Entretanto, compreendendo a pequenez humana, disse que os seus algozes não sabiam o que estavam fazendo, e lhes perdoou. Quanto a você, por agora, recordar o passado não é bom. Estas visões são realmente de outra existência sua. Recordar o passado não é para todos, não é fácil recordar nossos erros, para isso é necessário estarmos recuperados. Porque lembrar fatos bons é agradável, mas erros, crimes, não. Mas, caros alunos, o passado está dentro de nós, o espírito não esquece. Num corpo infantil somos agraciados pelo recomeço, pelo esquecimento temporário, mas mesmo assim temos sempre vagas intuições de outras existências. São fobias, pessoas que achamos desagradáveis, outras que amamos logo, sensação de conhecer lugares, saber fazer coisas que nos eram desconhecidas naquelas existências etc.
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Há pessoas que recordam mais, às vezes existências inteiras, pessoas, locais, erros e acertos. Recordações espontâneas de espíritos equilibrados são demonstrações de amadurecimento. Não são todos os desencarnados que se recordam de suas outras existências; nem todos estão aptos a recordar, muitos não conseguem e outros não o querem. Às vezes, para o momento, o passado não nos traz nada de bom, porque devemos construir no presente e ter esperanças no futuro. É equivocado o conceito de que basta desencarnar para saber tudo sobre o passado. Para isso é necessário estar apto para enfrentar a realidade, que pode ser de erros, ou recordar para ajudar-nos, ou ajudar aos outros. Quando ela vem espontânea, Raul, é porque chegou o momento, e sabemos que há algo a ser feito em reparação ao passado.
- O Louco recordou? - indaguei. - Que se passou com ele?
- João Felipe não recordou com equilíbrio, só passou para o cérebro físico o crime cometido e este ficou na sua mente, como um disco defeituoso. Há muitos encarnados que se desequilibram com lembranças do passado criminoso, vindo às vezes a se tornar doentes mentais. Alguns vivem o passado e o presente numa confusão desordenada e sofrida. Como João Felipe não se perdoou, perturbou-se e tornou-se doente. Recordou-se do passado, mas somente daquilo que o marcou muito. Não é o caso de pessoas equilibradas que, conhecendo seu passado, ao recordar seus erros, entendem que o sofrimento é a cura de que necessitam ou um grande incentivo para fazer o bem, reparar com amor pela caridade os erros do passado. Quem se sabe devedor sabe também que muito tem de fazer para reparar.
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Reconciliação
O professor continuou:
- Mas, meus alunos, não devemos querer saber do passado só por curiosidade ou para saber de nossos erros. Temos erros no passado, mas também tivemos acertos, afetos; não devemos nos concentrar só nos erros, para todos eles há reparação, seja pelo amor ou pela dor, sábia amiga que nos faz voltar a Deus. Conhecer nossos erros e amargurar-nos é imprudente, pode levar-nos à autopunição, como fez o Louco. E pode ser que até já os tenhamos resgatado.
- O senhor tem razão, professor - interferiu Jofre. Tião já pagou por seus erros e Raul também pode ter pagado. Sua morte violenta pode ter sido reação de uma ação má.
O professor sorriu, todos havíamos aprendido a lição.
Pensei: "Recordar meu passado pode ser doloroso, achava assassinatos tão tristes e poderia ter sido um assassino no passado. Precisaria estar apto para enfrentar este fato".
Aproveitei para fazer mais uma pergunta sobre o assunto ao mestre:
- Professor, será que eu me perdoaria, mesmo se soubesse ter sido um criminoso? Não poderei fazer como João Felipe?
- Raul, meu menino, o perdão, como nos ensina Jesus, é para todos, também para nós mesmos. O remorso não deve ser negativo, nosso arrependimento deve ser positivo, não de autopunir, e sim de reparar, construir. Devemos saber perdoar a nós mesmos, tirar, dos nossos erros, acertos; fazer o propósito de melhorar-nos, de ajudar aqueles a quem prejudicamos, se for possível. Caso não necessitem, ajudar a outros que sofrem. Você, Raul, deve
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pôr em prática os ensinos recebidos e entender que aquele que deseja o perdão com sinceridade é perdoado. Se você perdoou a todos, perdoará a você também, e pense no que Jofre disse: talvez já tenha pagado pelo que fez! Pense também se quer ou não recordar todo o seu passado. As decisões importantes devem ser ponderadas e pensadas.
- Assim farei, professor, pensarei em todos os exemplos que aqui foram narrados e em tudo o que o senhor nos disse.
Passaram-se dias, orei bastante e pensei muito. Não chegara ainda a conclusão nenhuma, só que tinha cada vez mais lembranças do passado. Mamãe ia melhorando devagar, vovó disse-me que ela perdera muita energia no período em que ficara a vagar e ia demorar algum tempo no hospital. Ia visitá-la todos os dias, conversamos muitas coisas. Aquele dia encontrei-a triste, pensativa, sentada no jardim do hospital. Aproximei-me, abraçando-a.
- É você, meu filho?
- Sua bênção, mãezinha querida.
- E tão bom vê-lo.
- Está triste, mamãe. Por quê?
- Aqui tenho você que adoro, mas há suas irmãs, Pretinha, minha casa. Tenho saudade e preocupo-me com elas. Manuel casará e minhas filhas terão madrasta, que será delas?
- Mamãe, Margareth não é má, Tais e Telma já estão grandinhas e Pretinha estará com elas, ajudando-as. Papai as ama muito e não deixará ninguém maltratá-las.
- É isso o que não entendo, como pode um homem lúcido, inteligente como Manuel, fazer tanta distinção de filhos?! Ama tanto as duas, e a você, não.
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Reconciliação
~ Mamãe, antes de sermos vítimas podemos ter sido algozes. Meu pai não conseguiu amar-me, mas isso não deve preocupá-la. Alegre-se e esforce-se por melhorar. As meninas serão felizes.
Mudei de assunto, fiz com que se distraísse. Despedi-me dela com um beijo e com uma certeza: o passado estava dentro de mim, já não podia fugir dele, queria recordá-lo. Senti-me aliviado pela decisão tomada e orei tranqüilo.
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Reconciliação
assim, ajudá-lo-ei. Irei ao Departamento do Ministério da Reencarnação, marcarei dia e hora para você ser ajudado a recordar.
Na aula seguinte, o professor deu-me um cartão de apresentação. Seria recebido na seção encarregada dois dias depois; esperei com tranqüilidade, tinha certeza de que era isso que deveria fazer. A meu pedido, o professor Eugênio acompanhou-me.
Já conhecia o Ministério da Reencarnação, excursionando por lá com meus colegas. Era circundado por belas árvores e graciosos canteiros de flores. O edifício muito grande, estilo clássico, impressionou-me muito. Havia sempre muito movimento, na recepção entravam e saíam várias pessoas.
O professor conduziu-me à ala esquerda, onde atravessamos um corredor e entramos numa saleta. Estranhei, só nós dois aguardávamos. O professor Eugênio, conhecendo meus pensamentos, instruiu-me:
- Este departamento tem horário respeitado, chegamos alguns minutos adiantados. Não se perde tempo aqui com esperas inúteis. Logo seremos atendidos pelo doutor Sallus, trabalhador deste departamento. Encarnado, doutor Sallus foi médico e dedicou-se à psiquiatria, muito estudou e pesquisou sobre reencarnação. Agora, desencarnado, continua seu estudo e pesquisas com grande dedicação e o ajudará a recordar seu passado.
Na parede da saleta, havia um quadro enorme mostrando a pintura de várias existências encarnadas de um espírito. Analisei-o, achei muito bonito.
- Boa tarde!
Era Sallus, muito simpático, cumprimentou o professor Eugênio com alegria e depois a mim.
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O PASSADO
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Conversei naquela tarde, após o término das aulas, com o professor Eugênio, em particular, nos jardins agradáveis do Educandário.
- Professor, queria que me ajudasse, quero recordar meu passado. Sinto que tenho de fazer algo para reparar, e não sei o que é. Mamãe às vezes se entristece, não consegue entender o ódio de meu pai. E tenho pensado: será que não cabe a mim acabar com este ódio? Será que não fui eu quem mais errou? Preocupei-me com mamãe quando vagava, ela, que fora vítima. Será que não devo me preocupar também com nosso algoz?
- Raul, pensa certo. Nossa intuição sempre nos mostra a melhor solução a seguir. Se quer
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Reconciliação
assim, ajudá-lo-ei. Irei ao Departamento do Ministério da Reencarnação, marcarei dia e hora para você ser ajudado a recordar.
Na aula seguinte, o professor deu-me um cartão de apresentação. Seria recebido na seção encarregada dois dias depois; esperei com tranqüilidade, tinha certeza de que era isso que deveria fazer. A meu pedido, o professor Eugênio acompanhou-me.
Já conhecia o Ministério da Reencarnação, excursionando por lá com meus colegas. Era circundado por belas árvores e graciosos canteiros de flores. O edifício muito grande, estilo clássico, impressionou-me muito. Havia sempre muito movimento, na recepção entravam e saíam várias pessoas.
O professor conduziu-me à ala esquerda, onde atravessamos um corredor e entramos numa saleta. Estranhei, só nós dois aguardávamos. O professor Eugênio, conhecendo meus pensamentos, instruiu-me:
- Este departamento tem horário respeitado, chegamos alguns minutos adiantados. Não se perde tempo aqui com esperas inúteis. Logo seremos atendidos pelo doutor Sallus, trabalhador deste departamento. Encarnado, doutor Sallus foi médico e dedicou-se à psiquiatria, muito estudou e pesquisou sobre reencarnação. Agora, desencarnado, continua seu estudo e pesquisas com grande dedicação e o ajudará a recordar seu passado.
Na parede da saleta, havia um quadro enorme mostrando a pintura de várias existências encarnadas de um espírito. Analisei-o, achei muito bonito.
- Boa tarde!
Era Sallus, muito simpático, cumprimentou o professor Eugênio com alegria e depois a mim.
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Nós três entramos numa confortável sala ao lado daquela em que aguardávamos. Não era grande, decoração simples, com alguns vasos de flores. Sua claridade era pouca, quase na penumbra.
Tinha uma escrivaninha e, num canto, um sofá, onde se acomodou meu professor. Doutor Sallus acomodou-me num confortável diva e sentou-se ao meu lado em uma banqueta.
Estava à minha frente uma tela fina de uns vinte centímetros de diâmetro. Conhecia bem essas telas que usávamos sempre para projetar imagens, ainda me lembrei do comentário que ouvi, quando vi uma delas pela primeira vez: "Logo, na Terra, inventarão algo parecido que transportará imagens pelos canais construídos, será um aperfeiçoamento do cinema".
Senti vontade de começar e doutor Sallus, pacientemente, explicou:
- Raul, há muitos modos de recordar o passado. Você só necessita de uma pequena ajuda, já que por si só recorda os fatos.
Creio que você recordará normalmente. As cenas vividas, registradas em sua memória, passarão à tela. Agora relaxe e queira lembrar. Não deve exaltar-se, caso aconteça, teremos de parar, para recomeçar outro dia. Se ficar calmo, recordará tudo hoje mesmo.
Doutor Sallus falava compassado, dando-me a seguir suas instruções; relaxei, e minhas existências vieram-me à mente nitidamente, projetando as imagens na tela. Mas nem necessitava vê-las, estavam em mim, surgiam na mente como se tudo tivesse acontecido havia poucas horas.
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Reconciliação
Foram erros, acertos, recusas ao chamado do bem. Foram-me importantes as três últimas encarnações. (Todos os envolvidos tinham nomes diferentes, mas, para facilitar a narração, darei os mesmos nomes já conhecidos.)
Estávamos num bando de ladrões. Ali conheci Manuel e nos dávamos bem. Fazíamos pequenos roubos, vivendo mais como andarilhos e mendigos. Vieram juntar-se a nós algumas mulheres, entre elas uma muito bonita, Manuela. Apaixonamo-nos ambos por ela. Manuela não correspondia, brincava conosco. Tivemos muitas brigas por causa dela e nasceu o rancor.
Desencarnamos e ficamos na erraticidade, a vagar; bondosamente, benfeitores nos levaram a reencarnar.
Renascemos na Inglaterra, no ano de 1615. Manuel era filho de um fazendeiro, e eu era simples empregado. Apesar de termos a mesma idade e morarmos perto, não fomos amigos, chegamos a nos evitar. Com a morte dos pais, Manuel, muito jovem, herdou a fazenda. Um dia, para surpresa de todos, voltou da cidade onde fora negociar, casado. Manuel era gordo, feio, e eu nascera com defeito na perna direita e coxeava. Quando criança, acidentara o olho esquerdo com uma pedra e ficara cego deste olho, que ficara branco, deixando-me bem feio nessa encarnação.
A esposa de Manuel, meu patrão, chamava-se Manuela, não era bonita, magra, muito loura, logo demonstrou que era frívola, preguiçosa, não tinha modos educados e dava escandalosas risadas. Ao vê-la, meu coração bateu forte e senti que a amava e que a queria. Passei a segui-la sempre que me era possível e olhava-a muito. Manuela logo percebeu meu interesse, gostava de se sentir admirada, ou talvez pela ligação do passado começou a
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corresponder a meus olhares, fazendo-me sofrer, porque, indeciso, não sabia o que fazer. Assim se passaram anos. Manuela gostava de estar bem arrumada, gastava muito com roupas, e Manuel não era bom administrador; sua situação financeira começou a declinar. Ouvia sempre os dois brigarem, achava que Manuela era infeliz e que me amava. Contudo nunca tivera coragem de aproximar-me dela para uma conversa mais íntima.
Manuel, percebendo que eu amava sua esposa, passou a exigir que trabalhasse mais e pagava-me menos. O administrador e eu cuidávamos de tudo. Invejava meu patrão, comecei a ter raiva dele, que, aos poucos, foi se transformando em ódio. Poderia ter ido embora, mudado dali, mas não queria deixar de ver Manuela.
Um dia, meu patrão, percebendo que a esposa correspondia aos meus olhares, ficou furioso; depois de discutir com ela, veio encontrar-se comigo. Estava transportando pedras em um carrinho de mão. Ao vê-lo raivoso, exaltei-me também e discutimos, trocamos ofensas. Manuel nunca me vira revidar suas ofensas, enervou-se muito e me deu um empurrão com força; caí e bati a cabeça na quina do carrinho, vindo a desencarnar instantaneamente.
Manuel entristeceu-se, não quisera me matar. Muito aborrecido, contou a todos que eu morrera vítima de um ataque de coração. Minha morte foi dada como acidente. Minha desencarnação confundiu-me muito. Quando tomei consciência do meu estado, voltei para a fazenda, perto de Manuel, a quem passei a odiar ainda mais.
Encontrei o ambiente propício: Manuel e Manuela não tinham religião, brigavam muito e ele tinha muitas dívidas. Passei a odiá-la também, porque vi como era
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realmente, não gostava de ninguém e tinha feito muita chacota do empregado coxo apaixonado. Manuela era mais fraca e foi mais fácil vampirizá-la, obedecia-me mais. Fiquei muitos anos com eles, ajudei Manuel a perder tudo, ficaram na miséria e não tiveram paz, brigavam o tempo todo.
Desencarnaram. Entendendo que o prejudicara muito, voltou-se contra mim e passamos a brigar com furor nos umbrais. Anos se passaram. Cansados, desiludidos, fomos socorridos. Após um certo período, viemos a saber que voltaríamos a reencarnar, seríamos irmãos carnais, tendo assim uma oportunidade de sermos parentes e nos reconciliarmos, acabando com os desentendimentos. A Inglaterra foi novamente nossa pátria. Encarnamos, fomos os únicos filhos de uma família de bons costumes e muito religiosa. Nossa mãe era bondosa e tudo fazia para acalmar nossas brigas, que tínhamos desde pequenos. Crescemos e, por mais que nossos pais nos motivassem, não fomos religiosos, gostando muito de farras e bebedeiras. Manuel era dois anos mais velho, começou a namorar uma moça de situação financeira razoável, casou-se ainda jovem e logo tiveram três filhos. Eu permaneci solteiro, tendo sempre muitos amigos para farrear. Quando Manuel se casou, passamos a nos dar melhor, ele foi morar com o sogro, numa chácara perto da cidade. Logo após ter casado, o sogro morreu e ele passou a administrar toda a chácara, plantando hortaliças e frutas - o que estava lhe rendendo bom dinheiro.
Nosso pai era ferreiro e fiquei trabalhando com ele.
Nesta época, mudou-se para nossa cidade uma familia que tinha uma filha que se chamava Manuela.
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Apaixonei-me logo por ela, comecei a cortejá-la e ela correspondeu. Pensei pela primeira vez em namorar e casar. Mas meu irmão conheceu-a e também se apaixonou por ela. Manuela, frívola, correspondeu à corte dos dois, embora sabendo que meu irmão era casado e tinha filhos.
O ódio reapareceu e começamos a nos agredir e a brigar. Meus pais sofriam muito com nossas desavenças e minha cunhada, pessoa boa e honesta, começou a desconfiar. Minha mãe foi falar com Manuela, que, cinicamente, disse que não amava ninguém e que se alegrava e se orgulhava de ter os dois a brigar por ela, que não se decidira com quem ia ficar. Mamãe chorou muito, às vezes odiava Manuela por momentos, mas eu a amava e a queria, e ficar com ela era questão de honra para mim; porém não a queria como esposa e sim como amante.
Minha cunhada soube que Manuela queria conquistar seu marido e, num acesso de raiva, insultou-a na saída da igreja. Como Manuel era mais rico, para retribuir a ofensa recebida decidiu ficar com ele. Manuel passou a encontrar-se com Manuela na casa dela e seus pais não se importavam, desde que recebessem dinheiro. Tornaram-se amantes sem mesmo se importar em esconder o fato. Fiquei com muito ódio deles e minha vontade era matá-los. Meus pais sofriam com o procedimento de meu irmão e minha cunhada passou a ser triste, sentindo-se humilhada.
Manuela teve um filho, um menino, e Manuel disse ser seu filho. Logo após o nascimento da criança, Manuela começou a olhar-me com insistência, não deixando esquecer a paixão.
Um dia, fui à casa dela, recebeu-me amável e acabou por dizer: "Raul, arrependo-me da escolha que fiz. Amo
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você, sei disso agora com certeza, mas temo Manuel, ele é violento, ameaça-me sempre dizendo que se o abandonar me mata. Penso em deixá-lo, fugir dele, sei que me perseguirá".
"Se ele não existisse, Manuela, você ficaria comigo?" indaguei.
"Claro, é tudo o que quero."
Beijou-me, passei a noite na casa dela. Fui embora de manhãzinha, pensando como ia fazer para tirar Manuela de meu irmão. Meu ódio fazia-me ver como perdedor. Meu irmão me roubava tudo, sempre. Casara bem, tinha dinheiro e roubara a mulher com quem pensei em casar. Tinha de tirá-la dele. Achei então que a melhor solução era matá-lo, assim não continuaria a roubar-me. Pensei em fugir com Manuela, mas conhecia-o, acabaria nos perseguindo e aí seria eu a morrer. Teria de matá-lo e fazer parecer um acidente, não queria ser preso. Arquitetei com cuidado, pensei num plano perfeito. Minha primeira atitude foi arrumar uma namorada, uma moça de família amiga, e disse a meus pais que esquecera Manuela. Procurei fazer as pazes com meu irmão e ele pensou que eu desistira de sua amante. Meus pais alegraram-se com nossa reconciliação, prometi à minha mãe aconselhar o quanto possível meu irmão a desistir da amante e dedicar-se ao lar.
Mas passei a encontrar-me com Manuela regularmente, indo à sua casa às escondidas.
Três meses se passaram e friamente planejei com cuidado o crime que cometeria. Achando que tudo ia dar certo, executei-o.
Escolhi um dia em que meu irmão não costumava ir a cidade, escrevi um bilhete imitando a letra de Manuela,
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que pouco sabia escrever. Fiz um bilhete com poucas palavras, pedindo para Manuel ir vê-la com urgência. Paguei a um moleque que fazia esse tipo de serviço para levá-lo à casa de meu irmão e entregar a ele; também instruí o garoto para, se perguntasse, dizer que fora o pai de Manuela quem lhe entregara o bilhete.
Voltei rápido para casa e disse para minha mãe:
"you à chácara visitar meus sobrinhos, estou com vontade de dar um passeio. Manuel já me convidou várias vezes e não quero que fique com raiva de mim por não ir."
"Vá sim, filho, é tão bom vê-los em paz."
Peguei meu cavalo e parti.
A verdade mesmo era que Manuel não me convidara, e sim sua esposa. Fui bem recebido, agradei as crianças. Logo após, o garoto chegou para entregar o bilhete. Manuel recebeu, leu e queimou-o. Observei tudo disfarçadamente; após se desfazer do bilhete veio até mim.
"Raul, necessito ir à cidade logo após o almoço."
"Pensava em almoçar e ir embora, tenho serviço para fazer. Quer que dê uma desculpa para sua esposa?"
"Agradeceria" - sorriu ele.
Entramos e logo que Maria, sua esposa, veio ter conosco, disse:
"Manuel, o senhor Swill está vendendo umas ótimas cabras, por que não vai vê-las?"
Trocamos idéias e Manuel decidiu ir comigo à cidade assim que almoçássemos. Almoçamos e Manuel mandou arrumar o trole para ir, como eu esperava que fizesse. Manuel raramente andava a cavalo, detestava, preferia usar a carroça. Tudo ia dando certo, despedimo-nos. O filho mais velho dele, meu sobrinho, com cinco anos, quis ir junto e fez tanta choradeira que meu irmão resolveu
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deixá-lo ir. Tentei persuadi-lo para que não levasse o garoto, mas, não querendo que desconfiasse, não insisti.
"Raul" - disse meu irmão -, "you deixar meu filho com mamãe: passo lá em casa antes de ir ver as cabras".
"Sendo assim, Manuel, you na frente, meu cavalo gosta de galopar, ela se alegrará com a presença de William."
Despedi-me de todos e saí na frente; já longe da casa, observei e vi meu irmão e sobrinho partirem. A chácara não era distante da cidade, a casa de meu irmão estava situada num vale muito bonito. Havia um caminho, feito pelo seu sogro, que encurtava a distância, mas subia um morro, era uma estradinha cheia de curvas, rodeada de árvores, tendo passagens perigosas onde havia barrancos e precipícios.
Era pouco usada, passavam por ali apenas os moradores da chácara e alguns sitiantes. Subi o morro a galope. Numa curva perigosa, tomei um atalho, deixei meu cavalo e subi uns metros a pé. Conhecia bem o lugar, já ali estivera antes e preparara tudo. Logo vi meu irmão se aproximar, estava no alto de um barranco e, do outro lado da estrada, um buraco fundo, cheio de pedras. Escolhera com atenção o local, naquela hora ainda pensei: "Matarei também meu sobrinho". Mas seria difícil planejar outro acidente, depois Manuel iria acabar sabendo de tudo, quando se certificasse de que não fora Manuela a lhe mandar o bilhete. Não vacilei, quando meu irmão passou embaixo de onde eu estava, traiçoeiramente levantei um pau com que escorei urna grande pedra, esta rolou e com ela muitas outras, caindo em cima do trole. Vi com frieza os cavalos se assustarem; Manuel protegeu o filho e tentou pular com ele d° trole, mas as pedras violentamente lhes caíram em Clrna. Fugi dali rapidamente, peguei meu cavalo e fui para
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casa. Naquele momento só senti pelo meu sobrinho. Disfarcei, procurei ficar no meu natural, cheguei em casa, dei notícias aos meus pais e disse à minha mãe:
"Manuel vem vindo, irá ver umas cabras, William está com ele, vai deixá-lo aqui."
Como meu irmão demorava a chegar, meus pais começaram a se preocupar.
"Ora, pode ser que Manuel tenha resolvido levar William junto" - disse.
As horas foram passando e meu pai resolveu ir até a casa de meu irmão.
"Pode ser que tenha resolvido não passar por aqui, então you vê-los, estou preocupado, com pressentimento ruim. Acho que estou é com saudade das crianças."
"Não vá só, meu velho" - disse mamãe -, "leve Criolo junto".
Criolo era nosso empregado e saíram os dois, fiquei a trabalhar normalmente.
Logo depois, voltou Criolo aos gritos:
"Raul, aconteceu um deslizamento na estrada. Seu pai pede que vá com algumas pessoas para ajudar. Vimos um cavalo soterrado, achamos que é do Manuel."
Mamãe já começou a chorar. Tratei logo de procurar ajuda, em instantes reuni dez homens, amigos e vizinhos e partimos.
Encontramos meu pai lutando por tirar as pedras do caminho, suas mãos sangravam, estava desesperado. Começamos sem demora a tirar as pedras e a terra; duas horas depois, achamos e tiramos dois cadáveres, do meu irmão e do meu sobrinho. Acompanhava o nosso trabalho o médico de nossa cidade. Disse ao examiná-los: "O menino
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deve ter morrido na hora; Manuel, não, ficou vivo por um bom tempo aí embaixo das pedras".
Foi um acontecimento triste. Todos sentiram a morte deles. Minha cunhada chorou demais pelo filhinho, as crianças pelo pai e pelo irmão e meus pais sofreram muito. Ninguém desconfiou de nada, a estrada foi desativada e para ir à casa de minha cunhada tinha de se dar uma grande volta por outra estrada, porém segura. Mamãe foi a única que me interrogou, querendo saber com detalhes o que acontecera naquele dia, o porquê de ter vindo na frente, se não escutara nenhum barulho. Contei algumas vezes a história que decorara. Ela nada comentava, mas passou a olhar-me diferente e comecei a inquietar-me com sua presença.
Fiquei aborrecido ao ver Manuela, ela pareceu-me sofrer com a morte de meu irmão; continuamos a nos ver às escondidas.
Contudo, não consegui ficar mais tranqüilo em minha casa. O sofrimento dos meus pais incomodava-me e não conseguia encarar minha mãe; sentia que ela desconfiava de alguma coisa. Nada me falava sobre o assunto, parou de interrogar-me. Minha cunhada continuou a morar na chácara, agora com o caminho mais longo pouco nos visitava e meus pais passaram a ver pouco os netos de quem tanto gostavam.
Estava cada vez mais inquieto e nervoso, queria ir embora, partir para longe de casa, achava que longe dali teria novamente sossego. Tinha um tio, irmão de meu pai, que morava em Portugal, decidi ir para lá. Combinei com Manuela de irmos viver lá, ela gostou da idéia; também Queria se ver livre dos pais que a exploravam, vivendo à
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custa de seus amantes. Dei-lhe dinheiro e ela partiu com o filho às escondidas para Portugal; iria primeiro, eu partiria logo em seguida.
Após o almoço, falei com meus pais da minha decisão:
"Pai, quero ir a Portugal, you a passeio visitar tio Jack. Quero que me dê dinheiro, sempre trabalhei com o senhor e tive só meu ordenado."
"Meu filho, deixar-nos, agora que sofremos tanto?"
"Deixe-o ir" - interferiu minha mãe -, "dê-lhe o que é justo, não o prenda aqui".
Nesta hora tive a certeza de que mamãe sabia que de alguma forma fora culpado da morte de meu irmão. Ela nada dizia para poupar a meu pai e a mim, poderiam investigar e eu ir para a prisão.
Meu pai deu-me todo o dinheiro que tinha guardado e o que apurou com a venda de alguns cavalos. Parti aliviado, despedi-me somente de meus pais, fiz uma boa viagem e fui para Lisboa, onde me encontrei com Manuela. Alugamos uma casa mobiliada e Manuela quis casar, porém eu não quis, preferi tê-la como amante. Vendo que não queria casar com ela, não insistiu, esperava me convencer.
Procurei meu tio, ele trabalhava negociando no porto, estava bem financeiramente e ajudou-me a arrumar um bom emprego.
Melhorara da inquietação, estava mais calmo, procurava nem lembrar o passado. Fui trabalhar num armazém, onde conheci Vitória, a filha do dono. Era feia, alta e magra, logo que me viu interessou-se por mim e passei a dar-lhe atenção.
Meu interesse por Manuela foi acabando, porém ela engravidou e tivemos um filho. Tratava bem as crianças,
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mas não as amava. Comecei a ter pesadelos, sonhava que estava caindo, estava enterrado vivo. Via nos sonhos meu sobrinho a pedir socorro e Manuel a perseguir-me; acordava aflito. Fui tomando raiva de Manuela, achando que sonhava por causa dela.
Escrevia pouco a meus pais. Eles mandavam três a quatro cartas para que respondesse a uma. Contavam eles tudo o que acontecia lá, davam notícias da minha cunhada e dos sobrinhos que estavam bem, isso me tranqüilizava um pouco. Cobravam sempre minha volta, pediam para retornar. Passei a namorar Vitória e seu pai exigiu que largasse minha amante. Quando Manuela soube do meu namoro, brigamos muito. Ela entendeu que não a amava e, para não nos separarmos, aceitou que eu casasse. Passei a morar sozinho perto do armazém, indo sempre ver Manuela e as crianças, sustentando-as.
Vitória amava-me muito, tentava agradar-me em tudo, eu tratava-a bem. Achava que tinha de casar e esquecer de vez o passado; marquei meu casamento. Escrevi a meus pais contando, eles abençoaram-me. Eles não souberam que Manuela estava comigo.
Na véspera do nosso casamento, Vitória recebeu uma herança. Uma tia solteira deixara uma razoável quantia para ela e seus dois irmãos, mais para ela por ter sido sua madrinha.
Meu cunhado, irmão de Vitória, quis vir para o Brasil comprar terras, aventurar-se. Vitória e eu decidimos vir junto.
Generosa, Vitória deu-me dinheiro para que desse a Manuela, deixando-a para sempre. Comprei uma pequena Ca§a em um bom lugar, no nome de Manuela. Dei-lhe o título da propriedade, comuniquei a ela nossa decisão de
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partir e me despedi deles. Manuela ficou desesperada, abracei rápido os meninos e saí, deixando-os.
Não queria mais saber deles, queria riscá-los de minha vida. Não queria nada perto de mim que me recordasse o passado.
Meu casamento foi simples e bonito; quinze dias após partiríamos para o Brasil. Escrevi aos meus pais contando, prometi que, logo que nos estabelecêssemos, escreveria mandando o endereço.
Faltavam três dias para nossa partida, Manuela procurou-me, não quis recebê-la. Vitória o fez, esperei no quarto e minha esposa veio dizer-me: "Raul, Manuela disse que a criança menor, seu filho, morreu".
"Melhor assim, Vitória. Nada mais tenho a ver com ela agora."
"Ela quer que você vá ver o menino. Espera você lá embaixo. Vá atendê-la, parece que sofre."
Fui à sala. Manuela, chorosa, contou-me que o menino teve uma forte infecção e morreu, ia ser enterrado naquela tarde. Disse rudemente a Manuela que não queria ver o garoto morto, que tinha o outro filho, que se conformasse e que não me incomodasse mais. Manuela saiu triste. Tratei de esquecer o ocorrido e concentrar-me na viagem que me encantava.
A viagem foi maravilhosa, parei de ter pesadelos, enchi-me de esperança quanto ao futuro. No Brasil, desembarcamos no Rio de Janeiro, tudo me era maravilhoso. Meu cunhado e eu acomodamos nossas esposas num hotel e fomos sem demora à procura de terras para comprar. Ele logo encontrou uma fazenda perto do Rio, comprou-a e fomos morar com eles, até que eu achasse algo que nos conviesse.
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Aí, comecei a ter novamente os pesadelos; inquieto, tratei de ir mais longe, fugi, como se mudando de lugar parasse a tormenta dos sonhos. Fui para o interior, achei uma boa fazenda com preço que convinha e comprei-a. Fomos, Vitória e eu, para lá. Minha esposa esperava um filho, agradava-a muito e tudo fiz para tratá-la bem. Os pesadelos espaçavam-se e com muito trabalho e gosto fui ajeitando a fazenda.
Vitória escrevia muito para os seus, lembrava-me sempre que escrevesse para os meus pais. Depois de muito tempo escrevi-lhes, responderam-me que estavam doentes e muito saudosos. Sentia culpa por eles estarem sozinhos, escrevi-lhes por obrigação e as cartas deles cheias de carinho doíam-me; não gostava de recebê-las, nem de recordar o passado.
Os pesadelos voltaram a ser freqüentes. Comecei a me retrair, não gostava de fazer amigos, não gostava realmente de ninguém. Passei a deixar minha esposa muito sozinha, parei de dar-lhe atenção, por mais que tentasse entender o porquê, não conseguia. Tivemos cinco filhos, três meninos e duas meninas. Por mais que me esforçasse não conseguia conviver bem com os meus.
Ficando um tempo sem receber notícias de meus pais, não me preocupei, até que recebi uma carta de um tio dizendo que eles haviam morrido, meu pai primeiro; três meses depois, minha mãe. Senti um certo alívio, nem mesmo orei por eles.
Fui me fechando, não me importava com ninguém, Os pesadelos atormentavam-me tanto que tinha horror a dormir.
Sentia que meu irmão estava sempre comigo, todos °s instantes lembrando-me do crime que cometi. Achava


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um pouco de sossego só no trabalho. Trabalhava na fazenda de sol a sol. Tratava bem os empregados, tinha poucos escravos, que viviam como empregados, trabalhava mais que qualquer um deles e tornei-me rico.
Quatorze anos se passaram desde que cometera os assassinatos de meu irmão e sobrinho. Veio um dia à minha procura uma mulher andarilha. Como insistiu em ver-me, fui até a porteira da fazenda.
"Que deseja? Já não lhe deram esmola?"
Indaguei, porque todos que pediam esmolas recebiam; os empregados, por minha ordem, faziam isso. A mulher olhou-me, de seus olhos escorreram lágrimas. Ela falou, emocionada:
"Sou Manuela, Raul, Manuela."
Nada mais tinha da mulher que levara meu irmão e eu a brigar. Magra, mal vestida, com muitos cabelos brancos, pálida e com dentes estragados. Levei um susto.
"Manuela! Você?"
Abri a porteira para que ela entrasse, pedi para um empregado levá-la a uma casa que estava desocupada.
Fui para casa e mandei que levassem cama, roupa e comida para ela. À tarde fui vê-la. Agora estava limpa, vi logo que estava doente.
"Manuela, que lhe aconteceu? Como veio parar aqui? Como me achou?"
"Raul, nada para mim deu certo, acho mesmo que mereço o que passo. Sempre tive amantes. Quando mudei para a cidade onde vocês moravam, tratei logo de arrumar um e escolhi Manuel, que sustentava a mim e aos meus. Queria mesmo era ficar com vocês dois, nunca pensei em deixá-lo. Quando ele morreu, pensei em mudar de vida e
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ir embora com você. Deixei os meus, nunca mais soube deles. Quando você me deixou, fiquei triste e senti muito a morte de nosso filho; você partiu, deixou-me a casa. Logo tratei de arranjar quem me sustentasse, porque não queria trabalhar. Tive muitos amantes. Lembrava-me sempre de você e resolvi vir para o Brasil à sua procura, vendi a casa e partimos, eu e seu sobrinho, meu filho com Manuel. Desembarquei no Rio de Janeiro e logo vi que não seria fácil achá-lo. Deixei meu filho com uma senhora, pagando-lhe por mês para que cuidasse dele, e fui trabalhar numa casa de prostituição. Tive outro filho, que nasceu morto; logo fiquei grávida novamente e expulsaram-me do prostíbulo, porque estava com suspeita de estar doente dos pulmões. Sem saber o que fazer, andei pelas ruas, desesperada, aí encontrei seu cunhado, que não me reconheceu. Contei-lhe então que fora amiga de seus pais, que os conheci quando criança e que queria revê-lo, fazer-lhe uma visita. Ele ensinou-me a vir aqui. Vim, então, atrás de você, não pedir por mim, e sim por seu sobrinho; está com quinze anos, não sabe fazer nada, se não pagar à senhora que cuida dele, ela o porá na rua. Ajude-me, Raul, ajude-me!"
Manuela chorou muito, vi então que estava com febre alta e que estava grávida de seis meses; ajeitei a casa para que ela ficasse ali, ordenei a uma empregada que cuidasse dela. Não tinha médico por perto, demos medicação caseira. Visitava-a todos os dias, ela foi piorando, prometi que iria ao Rio de Janeiro e cuidaria de seu filho. Oito dias após Manuela ter chegado à fazenda, morreu. Enterrattto-la logo após. No outro dia fui para o Rio de Janeiro e Jevei a família para passear.
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Logo que cheguei fui à procura do filho de Manuela. Encontrei-o, paguei à mulher e revi o garoto. James era franzino, calado, pareceu-me assustado. Contei a ele que a mãe morrera, pareceu não se importar. Conversei com ele, tinha pouco estudo e queria estudar. Achei a solução. Internei-o num colégio, onde estudaria e se formaria. Combinei mandar pagamento anual e por carta. Deixei-o lá, nem me despedi. Por cinco anos, mandei o pagamento. A diretora escrevia-me. James era um bom aluno, estudara e saíra de lá com um bom emprego. Nunca escrevi a ele, nem ele a mim. Depois que saiu do colégio, não soube mais dele.
Eu vivia sozinho, pouco conversava, só trabalhava e me agoniava com os pesadelos. Muitas vezes, quis ir embora, às vezes pensava em voltar para Portugal ou ir para a Inglaterra, ou outras províncias do Brasil - queria fugir. Vitória foi contra, depois os filhos também; não querendo ir sozinho, fiquei. Nunca fui feliz, nem tive paz. Agora, recordando, vi que Manuel perseguiu-me com ódio feroz. Ele não se conformara com sua morte, com minha traição, com o modo e o motivo pelos quais lhe tirei a vida física. Obsediou-me sem descanso. Meu corpo não agüentou o ritmo de vida que levava, senti-me mal na lavoura, meus empregados trouxeram-me para casa, desencarnei no caminho; estava somente com quarenta e
nove anos.
Deixei os meus familiares bem, financeiramente. Não sentiram minha morte, não os amei, mas também não fui amado.
Quando meu corpo morreu, senti muita dor, pensei ter desmaiado, adormeci. Acordei, estavam me velando, tive uma sensação horrível. Senti alguém me chacoalhar e, apavorado, reconheci meu irmão Manuel.
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Reconciliação
"Saia daí, seu cachorro! Agora poderei castigá-lo como merece e não terá mais o corpo para se esconder. Você morreu! Seu corpo morreu! Espanta-se, por quê? Achou que ia ficar para sempre escondido nesse corpo?"
Apavorei-me tanto que saí, levantei-me e vi meu corpo ali deitado, sendo velado. Olhei para Manuel que me observava rancoroso. Fugi, saí a correr.
Ai, meu Deus, foge-se de tudo, menos de nós mesmos! Não tinha coragem de revidar as ofensas e castigos que Manuel me infligia, só fugia, fugia, corria sem sossego, escondia-me e ele achava-me. Manuela reuniu-se a nós. Meu irmão também a castigava e nós éramos três figuras tristes a vagar pelo umbral.
Acabei enlouquecido de dor e remorso. Muitos anos se passaram. Meus pais conseguiram acalmar Manuel e fazer com que me perdoasse. Meus genitores socorreram-nos e fomos nós três levados a um posto de socorro. Com tantas lições de amor, fizemos as pazes. Necessitamos de um longo tratamento para nos recuperarmos, principalmente eu, que estava em estado de muita perturbação. Pedi perdão a Manuel com toda a sinceridade e arrependimento, ele disse ter me perdoado. Meus pais nos fizeram prometer que esqueceríamos os rancores do passado e que aproveitaríamos a oportunidade de encarnação para aprendermos a amar. Manuel e Manuela reencarnaram, prometendo casar e receber-me por filho.
Recuperado, agradeci a reencarnação no posto de socorro, estudando e trabalhando, ajudando os necessitados que ali estavam. Fiz um firme propósito de emendar-me e viver só no bem.
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A DECISÃO
r\s lembranças pararam, escutei a voz carinhosa do doutor Sallus:
- Está bem, Raul?
- Sim, estou. Agradeço-lhe comovido por tudo.
Deixou-me novamente tão à vontade, nada censurou, nada comentou. Ajudou-me a levantar, conversou com o professor Eugênio sobre amigos comuns. Após nos despedirmos, saímos, estava calado, o professor respeitou meu silêncio. Sentei-me num banco do edifício e o professor sentou-se ao meu lado.
- É estranho, professor, estou muito aborrecido... Sabia que errara, mas, ao ver meus


Reconciliação
erros confirmados, deu-me uma vontade de chorar e tive vergonha do doutor Sallus.
- Sallus respeita, meu aluno, a dor do próximo; ali está para ajudar, não para julgar. Lembro a você neste momento, Raul, que o evangelista Lucas (VIL43-50) nos narra tão bem a passagem da pecadora que lavou os pés do Mestre com lágrimas e enxugou-os com seus cabelos! Sabendo Jesus que eram observados e o recriminariam por permitir que uma pecadora fizesse isso, o Mestre deu-nos a lição tão bela: Pelo que te digo: lhe são perdoados os muitos pecados, porque muito amou!
- Recomenda-me, professor, que devo amar muito?
- Todos nós, Raul, devemos amar. Amar ao Pai, ao Mestre Jesus e a todos como irmãos. A falta de amor nos afasta do bem. Vocês três muito erraram por não amarem. Voltaram às vestes carnais, você conseguiu perdoar; Manuela também se regenerou, amou, foi honesta, trabalhadeira e boa mãe. Manuel não conseguiu. Por quê? Porque não conseguiu amá-los, realmente; não lhes perdoou.
- Professor, será que amo meu pai? Amo minha mãe, amo agora de modo puro Manuela. Perdoei meu pai, quero que seja feliz, mas só isso bastará? Será que não necessito amá-lo? Que será dele? De nós três, só ele ficou para trás. Plantou a má semente, como será sua colheita?
- Raul, a Misericórdia de Deus é para todos nós. Seu pai terá oportunidade de corrigir-se, como você teve. Mas cabe a nós, que já conseguimos compreender, ajudar os irmãos que estacionam no ódio e no rancor.
- Professor, e as outras pessoas que conviveram coligo nas outras existências, onde estão? Meus pais, que sofreram tanto por minha causa. Vitória e os filhos, minha cunhada e sobrinhos, William, que assassinei?
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Nesse instante chorei, doía-me a recordação em que vi meu sobrinho morto entre as pedras, com cinco anos somente.
O professor ignorou meu choro, falou-me como sempre com voz agradável e calmamente.
- Raul, tivemos, temos sempre ocasião de amarmos a todos como irmãos. Muitas famílias tivemos e muitas famílias teremos, fazendo-nos encontrar sempre afetos e desafetos. Pelas suas recordações só vocês três aparecem unidos. Os outros foram companheiros de viagem. Seus pais demonstraram superioridade em relação a vocês, os ajudaram e socorreram. Vocês necessitaram desse sofrimento, desse aprendizado. Encarnaram no País de Gales para continuar seu progresso. Sua cunhada e sobrinhos, assim como Vitória e os filhos, não se mantiveram unidos a vocês, não foram amados, não os amaram, não se sentiram prejudicados, perdoaram. Não deve preocupar-se com eles, caminham para o progresso. Quanto a William, foi o primeiro a perdoá-lo e aceitou o fato como uma colheita de sua semeadura. Aprenderá, meu caro Raul, a amar a todos como sua família de agora em diante.
- É tão estranho, filhos, pais, esposa, nada a eles me prende, só me preocupo com Manuel.
- Não é tão estranho assim; você se sente reconciliado com todos; com Manuel, não. Deixo-o sozinho, deve meditar em tudo o que recordou e orar pedindo a Deus que o ilumine. Recomendo-lhe não ficar triste, tristezas não pagam dívidas, mas sim o amor e o trabalho.
Fiquei horas ali. Aquele lugar era tão lindo e agradável. Pensei em como Deus é misericordioso e como a Lei da Reencarnação é de infinita bondade. Pensei também
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Reconciliação
no que o professor me falara. Da mulher que muito amou e que foi perdoada. Eu tinha recebido o perdão, fora perdoado e muito tinha de amar e fazer este amor dar frutos. Agradecido, profundamente agradecido ao Pai Celeste pelas oportunidades que me foram dadas, orei muito e me senti tranqüilo, em paz.
Fui encontrar com vovó e contei-lhe tudo. Vovó Margarida animou-me, compreendendo-me; senti-me outro. Nada tinha de criança, sentia-me adulto, responsável, e sabia que tinha muito a fazer.
Fui visitar mamãe, contei-lhe suavizando tudo, principalmente o que se referia a ela. Pareceu-me que escutava uma história de que não participara. Nada recordava.
- É tão estranho, Raul, pensar que já voltamos à Terra em corpos diferentes. Embora só entendendo isso é que compreendemos tanta coisa. Acredito em tudo o que você disse, acho triste saber que fui tão leviana. As nossas desavenças do passado não nos importam e sim que agora somos amigos e nunca mais brigaremos, porque aprendemos a nos amar com pureza.
- Tem razão, mamãe, nunca mais brigaremos, nos amaremos sempre. Mamãe, que pensa fazer? Logo estará boa e sairá do hospital.
- you morar com minha mãe. Quero estudar, entender todas essas coisas que vim a conhecer agora e trabalhar.
- Sentiria minha falta se me ausentasse?
- Raul, está a pensar em quê? Quer se ausentar? Sentiria a separação, não a ausência. Quem ama não se separa, eu amo você e não quero, por egoísmo, prendê-lo.
- Obrigado, mãezinha, amo-a muito também. Tem razão, quando amamos, não nos separamos, podemos ficar sem a presença um do outro, mas não separados.
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
Beijei-a com todo o carinho.
Compareci à aula na manhã seguinte. Éramos todos tão amigos que nos preocupávamos e participávamos dos problemas uns dos outros como se fossem os nossos próprios. Quando o professor Eugênio saía com um de nós, individualmente, era para ajudar, e todos os outros da classe orávamos e vibrávamos para que tudo desse certo. Participávamos com interesse sincero dos acontecimentos que envolviam cada um. A curiosidade às vezes nos envolvia, aprendemos a controlá-la, ninguém indagava, o relato era espontâneo. Todos sabiam o que eu fora fazer no dia anterior, aguardavam ansiosos meu pronunciamento.
Começávamos a aula com uma prece, feita quase sempre por um de nós. Naquele dia pedi para fazê-la. Com emoção recitei uma prece com profundo sentimento de gratidão:
"Graças eu te dou, Pai Celeste
Pelas oportunidades das reencarnações,
Nesta escola terrena
Onde aprendemos a amar, a perdoar,
Onde podemos tirar lições de erros
Para acertos futuros...
Porque de existência em existência,
De degrau em degrau,
O progresso nos espera com bênçãos
Para que alcancemos a felicidade
E a paz que tanto almejamos,
Felizes daqueles que amam sem sofrer
E abençoados os que sofrem e aprendem a amar..."
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Reconciliação
Em seguida pedi para falar e contei tudo o que recordara. Ninguém me interrompeu e, pela sala de aula, só se escutava minha voz. Nada escondi, descrevi a eles a dor do remorso, a sensação dolorida de me sentir culpado.
- Sentir-se culpado, meus colegas, é horrível, a dor é tanta que nos dilacera em agonia. Como é bom, maravilhoso, ter paz para orar, que felicidade é não ter por que se envergonhar dos próprios atos. Assassinei meu irmão por motivos fúteis, tanto que abandonei Manuela logo após. Arrependi-me e queria fugir dos meus atos sem o conseguir. Poderia ter pedido perdão, ter sido religioso, orado. Envergonhava-me de orar, parecia que profanava a religião se o fizesse. Não tive o refrigério da prece. Queria fugir, afastar-me de tudo o que recordava meu crime. Fugi dos meus pais, dos sobrinhos, que deixei órfãos, fugi do país, de Manuela, porém não tive sossego, não consegui fugir das responsabilidades de minhas obras. Estas estavam em mim, acompanharam-me sempre. Não podia pensar em Deus, temia-o e envergonhava-me. Que tristeza é querer fugir dos nossos próprios atos, que amargura é nos envergonharmos de nós mesmos! O remorso é um fogo que queima sem destruir, é ter um inferno dentro de nós, é ter a sensação de que nunca passará! Desencarnado, continuei em pior condição de sofrimento, o que fiz, minhas obras, acompanharam-me além-túmulo. Que tristeza é ter erros e remorso por companhia! Sentia-me tão culpado que nem perdão conseguia pedir por achar que nem isso merecia. O remorso dói, dói tanto que agora entendo o Porquê de muitos espíritos pedirem a encarnação para esquecer, não se importando com os sofrimentos que terão de passar, porque nada lhes parece pior que a dor
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
do remorso. Aprendi, meus amigos, que fugir não nos leva a nada; temos, sim, que assumir a responsabilidade que nos compete, com esperanças de acertos!
"Não quero mais fugir de nada, principalmente do Mestre Jesus, dos seus ensinamentos. E quero ser um servo útil da seara do Pai. Mas, estive a pensar, como aprender a ser uma pessoa útil, continuar a estudar e trabalhar, deixando um adversário para trás? Será que não tenho primeiro que me reconciliar? Será que não cabe a mim procurar fazer esta reconciliação? Com o perdão e a resignação dos sofrimentos, venci o ódio. Não odeio; mas meu pai, Manuel, continua a odiar-me. Que será dele? Matou a esposa leal e um filho, não terá nós dois a persegui-lo, terá, porém, seus atos, sua consciência, e disso não terá como fugir. Nós três nos ligamos por erros e rancores; Manuela e eu nos entendemos e estamos procurando acertar, ele ficou odiando. Será justo deixá-lo sem ajuda? Não estarei tranqüilo sabendo que ele me odeia e que não me perdoou. Queria ter a oportunidade novamente de pedir-lhe perdão. Sei que oportunidades não faltarão, o Pai sempre no-las dá. Terei de esperar no futuro uma reencarnação com ele? Meu pai tem somente trinta e quatro anos. Será que não poderei agora me reconciliar com ele?
Fiz uma pausa, estava emocionado, olhei para meu professor e continuei:
- Ajude-me, professor, o senhor que tanto já me ajudou, ajude-me novamente. Quero reencarnar, voltar agora para a Terra, ser filho de Manuel outra vez. Ele vai casar-se novamente, poderei voltar junto dele e fazer tudo para conquistá-lo e ser amado por ele.
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Reconciliação
- Raul, o que você pede não cabe a mim decidir. Contudo levarei seu pedido à seção encarregada e advogarei por você. Como na prece que você fez, a reencarnação é uma oportunidade que é dada a todos, igualmente. São muitos os que querem e necessitam reencarnar. Muitos esperam anos para o regresso à carne. Quem tem pouco tempo de desencarnação só pode reencarnar com permissão especial. Quero, Raul, que saiba que não poderá ter lá uma fácil estada como encarnado. Terá de lutar para conseguir o que quer e poderá não alcançar o objetivo. Depois, Manuel plantou má semente e tem uma colheita dolorosa. Terá de sofrer para reajustar-se, já que recusou a lição pelo amor. Sente-se você bastante forte para enfrentar isso, Raul?
Pensei por uns instantes e respondi com firmeza:
- Sim, sinto-me forte para voltar para o lado dele. É justo que sofra com quem já fiz sofrer. Quero ter a oportunidade de ser filho de Manuel novamente.
Meus colegas opinaram, a maioria achava que eu estava certo, outros achavam que deveria esperar.
- Meus alunos - interferiu o professor Eugênio -, Jesus nos recomendou que procurássemos sempre a reconciliação, que perdoássemos sempre e que pedíssemos perdão, que amássemos a todos e que fizéssemos tudo para sermos amados.
Educadamente, meu mestre deu por encerrado o assunto e iniciou a aula.
Uma semana depois, o professor deu-me a notícia.
- Raul, seu pedido foi atendido, deve acompanhar-me logo após a aula ao Ministério da Reencarnação.
Sorri, feliz.
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Vera Líicia Marinzeck de Carvalho
Novamente o Ministério pareceu-me grande e majestoso. Atravessamos a recepção e entramos no Departamento das Reencarnações.
- Aqui, Raul - explicou meu mestre -, organizam-se num trabalho incansável as reencarnações dos moradores desta colônia.
Tudo muito limpo, decorado com cores claras. Havia muitos sendo atendidos e explicações eram dadas sobre diversos aspectos da reencarnação.
Estávamos num imenso salão e logo o professor Eugênio localizou a pessoa que nos atenderia. Fomos apresentados. Mariana, alegre, simpática, cativou-me:
- Raul, analisamos seu pedido e pergunto-lhe: é realmente o que quer?
- Sim, é o que quero.
- Muito bem, dentro de três meses volta à Terra como único filho varão do casal Manuel e Margareth. O casal terá outra filha, é um espírito doente, internado em nossas enfermarias. Sua irmãzinha não será perfeita, errou muito e destruiu um corpo perfeito; agora, volta para harmonizar-se e reconciliar-se com sua futura mãe carnal. Raul, deve saber também que reencarna para um objetivo: reconciliar-se com seu pai! Estará encarnado poucos anos, devendo voltar logo. Está bem para você?
- Sim, está. Tudo o que quero, Mariana, é reconciliar-me com Manuel, para depois me oferecer com trabalho e gratidão a Deus.
- Muito bem, marcarei outra entrevista para discutirmos alguns detalhes, porque logo deverá internar-se aqui.
Despedimo-nos como bons amigos.
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Reconciliação
Contei para vovó e decidimos falar com jeito para mamãe. Meus colegas ficaram contentes e recebi muito incentivo.
Sete dias depois, fui para a entrevista marcada. Não fora à aula, deveria ficar algum tempo no Departamento. Fui mais cedo, fiquei no salão observando as pessoas.
- Será que Cecília me aceitará agora? Já fui abortado três vezes! Parto agora com tantas esperanças...
- E não deve perdê-las, João - animava-o a atendente. - Ela está bem de saúde. Vibraremos para que tudo dê certo.
- Tenho orado muito para que dê certo - continuou o senhor. - Sabe a senhora que na minha última passagem pela Terra fui médico e fiz muitos abortos. Aqui aprendi a dar valor à vida encarnada em todas as suas fases, quero voltar e lutar contra este ato cruel. Entendo, porém, que recebo a colheita do que plantei.
Suspirou triste, nem deu tempo para escutar mais, porque dois senhores me abordaram.
- Psiu! - disse um deles.
- Não o conheço - disse o outro.
- Não é Mário? - indagou o primeiro.
- Não, senhores, chamo-me Raul.
- Confundi, prazer em conhecê-lo, sou Jonas e este é Jair. Vai reencarnar?
- Sim, pretendo - respondi.
-Já pensou em como vai ser seu corpo físico? Estamos a discutir isso.
- Eu, não.
Sentamo-nos numa das laterais e Jonas esclareceu-me:
- you pedir para ter, em tenra idade, bronquite. Sim, meu rapaz, bronquite, isto me manterá afastado do fumo.
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
Fumei muito na encarnação passada, não fui mau, tive uma vida tranqüila e honesta graças a Deus. Mas fui escravo do vício, arruinei minha saúde, embora desconhecesse o mal que me fazia. Desencarnei, que tormento! Fiquei desesperado para fumar. Fui socorrido e logo após meu desencarne fui para um posto de socorro, não quis ficar lá e passei a vampirizar para ter a sensação de que fumava. Como fui infeliz, era um trapo humano, sofri nas mãos de espíritos maus, vaguei sem sossego, sofri dores e humilhações! Um dia, cansado, orei muito e senti necessidade de abandonar de vez o fumo. Fiz um firme propósito de deixar meu vício, não vampiri/ei mais ninguém, fortaleci-me nas orações e consegui.
Espantei-me com o que ouvia, e meu simpático confidente continuou:
- Vícios não acabam como nosso corpo carnal, nos acompanham além-túmulo, digo que é mais fácil abandoná-los encarnado. Para livrar-nos dos vícios necessitamos lutar com muita vontade e vencê-los, senão somos vencidos. Quando temos algum vício, não somos livres, somos escravos dele. Ao conseguir deixar de fumar, fui socorrido. Agora, volto a reencarnar, e, temendo uma recaída, you pedir a graça de ser doente. Com bronquite, me manterei afastado do fumo.
Achei genial a idéia dele, Jair interferiu:
- Acho que seu pedido, amigo Jonas, será aceito. O meu, não sei. Sabe, Raul, também sou vicioso. Há muito luto contra o vício de roubar. É verdade, pertences alheios me fascinam. Já fui pobre, rico, e não venci o vício. Na pobreza dou sempre desculpas de que me falta tudo. Mas, encarnado rico, roubei, apoderei-me de bens de minha
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Reconciliação
mãe, irmãos, organizei quadrilha e roubei muito. Ainda bem que distribuí muita esmola e ajudei a muitos, porém não anulei minhas faltas. Minha vida tem sido assim, roubo, sofro, arrependo-me, faço propósito de corrigir-me; volto à carne e tudo recomeça. Aqui, tive uma orientação caridosa e sinto-me mais fortalecido. Mas, temo; no corpo se esquece muito. Como numa das minhas encarnações tive por castigo meu braço direito cortado, em vista de ter sido apanhado roubando, não roubei mais naquela encarnação. Estive a pensar: Jesus não disse que era melhor entrar na vida sem braço ou algo que lhe servisse de motivo de erro? you pedir - e espero conseguir - para reencarnar sem os dois braços físicos. Sei que não provarei que estou curado do vício se não puder fazê-lo. Mas acredito que, se ficar uma encarnação sem os braços, darei valor a eles para o uso do bem.
- Não será muito duro? Não é fácil viver sem os braços - disse, admirado!
- Meu rapaz, poderei viver quanto tempo encarnado? Sessenta, setenta anos, sem braços. Certamente não é mais que cem anos a sofrer pelos umbrais como já fiquei. Temo mais sofrer no umbral. Sei que encarnado não me lembrarei do que falo agora. Tenho a certeza, porém, de que sentirei que é justa minha deficiência e que é melhor para mim.
- Talvez os senhores tenham razão, you pedir também para ter um físico que me facilite o que me proponho a fazer.
Mariana chamou-me, tive que deixar os dois senhores c°m uma ligeira despedida. Após cumprimentá-la, não contive a curiosidade e disse-lhe:
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
podendo escolher ao reencarnar o que melhor lhes pareça. Há os que não conseguem recuperar-se aqui, então a reencarnação no corpo deficiente é o remédio de que necessitam. Os piores casos, Raul, são os que danificam pelo remorso destrutivo seu perispírito e querem reencarnar assim. São quase sempre dementes, com falta de membros etc.; nesses casos, benfeitores levam-nos a reencarnar compulsoriamente. Tantas vezes, Raul, sofrem bem menos reencarnados do que na espiritualidade e saram,
na carne.
- Embora seja um assunto tão sério, Mariana, encanta-me pela justiça que todos nós recebemos. Só que os pais de deficientes na Terra não sofrem também?
- A verdade, Raul, é que para tudo há explicação. Você terá uma irmã, como já lhe disse, deficiente mental. Está internada conosco há tempos e não se recuperou, sente muito remorso. Margareth contribuiu em existência passada para seu suicídio. Agora, além de reconciliarem-se, vão resgatar erros comuns. E seu pai matou um filho perfeito, pode bem receber um deficiente. Muitos casos estão nessas circunstâncias, erraram juntos. Outros tudo fazem por amor. Amam tanto a um espírito que necessita ser deficiente, que por escolha pedem para serem pais dele para ajudá-lo e estarem juntos.
- Que sentimento lindo é o amor! Se pudesse, Mariana, queria ser parecido com meu pai. Se me parecesse com ele, seria mais fácil amar-me, poderia ter o mesmo jeito de andar, de falar, gostar das mesmas coisas.
Mariana sorriu:
- Pode, sim, Raul, vamos providenciar para que você, encarnado, seja parecido com Manuel.
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Reconciliação
Combinamos alguns detalhes. Deveria ir mais vezes ao Departamento e marcamos o dia em que lá ficaria para reencarnar.
- Não se preocupe, Raul, dormirá, seu perispírito tomará a forma de um feto e será levado para junto de sua futura mãe.
Saí do departamento convicto de que teria de conversar com minha mãe e contar-lhe minha decisão. Fui visitá-la. Após agrados, contei que voltaria à carne.
- Raul, Margareth ficou com tudo o que era meu, até você vai ser filho dela!
- Mamãe, não pense assim! Vamos nos esforçar para amar Margareth. A maior culpa dela foi ser amante de meu pai, com a senhora ainda encarnada. E sua colheita não será fácil. Desencarnarei na adolescência e ela, como mãe, muito sofrerá, terá uma outra filha, que será deficiente. A dor ensinará Margareth tornando-a mais humana. Depois, mamãe, Margareth está sendo boa para as meninas, vovó sempre os visita e nos tem dado notícias. Tais, Telma e Pretinha gostam dela. E o que é que é nosso realmente? Que coisa material nos pertence? A casa foi sua, agora é de Margareth, e no futuro de quem será?
- Tem razão, meu filho, vamos amar Margareth como irmã. Você a amará mais do que me ama?
- you pronto a amar a todos, não amarei ninguém mais do que a senhora.
- Não posso dizer que estou feliz com sua decisão, mas procuro entendê-lo. Será que Manuel não fará mal a você novamente?
- Não creio, you confiante e tudo dará certo. Manuel e eu seremos amigos.
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
Abraçamo-nos comovidos.
Passei a ir pouco à escola, era com pesar que a deixava. Queria reconciliar-me primeiro com meu próximo, para depois estudar e me preparar para oferecer-me ao Criador e ser um servidor de Cristo. Fui a palestras que falavam sobre reencarnação, perdão, amor e li muito sobre estes assuntos.
O tempo passou rápido, a véspera de meu internamente no Departamento chegou. Dediquei o dia para me despedir de amigos queridos. Conversei longamente com vovó, ela prometeu-me seguir meus passos quando encarnasse, olhar sempre por mim e incentivar-me nos períodos difíceis. Despedi-me de mamãe, não pude resistir à emoção e chorei. Ela, porém, incentivou-me.
- Raul, o tempo passará logo, estará conosco novamente dentro de alguns anos e aqui estarei a esperá-lo. Estudarei, trabalharei, me modificarei para melhor, orgulhar-se-á de mim, quando voltar. Abençôo você, meu filho, Deus o proteja.
Fui à minha escola querida. A minha classe, que surpresa, estava toda enfeitada com cartazes, desejando-me êxito, receberam-me em festa. Um dos meus colegas, Hugo, em nome da turma fez um discurso, animando-me, e finalizou:
- Raul, quando temos bons propósitos o Alto nos abençoa. Sei, sabemos todos nós, que revestir um corpo físico não é fácil para os que têm consciência da luta que os espera. A ilusão da carne é prova difícil. Mas nenhuma circunstância da vida deve nos entristecer. Escolheu o caminho que julga ser o melhor, vá e seja feliz. Aqui lembraremos de você como um amigo corajoso, um colega exemplar!
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Reconciliação
Abracei a todos e ouvi palavras carinhosas e amigas. O professor abraçou-me rápido, quis lhe falar, agradecer, mas ele saiu da classe. Tinha ainda duas horas, fui a um local da escola que chamávamos de Recanto do Recolhimento e fiquei a orar.
Este recanto fazia fundos com a lateral, onde havia uma quadra coberta com flores muito bonitas, muitos bancos e muita paz. Meditei sobre os ensinamentos e agradeci comovido a Deus.
Ao levantar-me, vi o professor Eugênio a me esperar.
- Quero acompanhá-lo, Raul.
Minha intenção era a de ir sozinho, já me despedira de todos, mas não pude negar a companhia de meu mestre querido.
Falamos de assuntos que nada tinham a ver com o que ia fazer, recordamos fatos engraçados e nos pusemos a rir.
Logo que chegamos ao jardim do Ministério, paramos.
- Raul, a vida não pára, continua sempre. Entendi agradecido o que ele quis dizer-me. Partiria
para reencarnar, tinha muitos planos cuja realização dependeria também da vontade e do livre-arbítrio de outros. Mas nada pára, tudo continua. A vida desencarnada era para mim maravilhosa, porém necessitava de um período reencarnado como continuação de vida.
- Sei, professor, que não gosta de muitos agradecimentos; sou-lhe grato, o senhor ajudou-me sempre que necessitei. Obrigado!
- Minha recompensa é ver meu ensino dar frutos nas ações dos meus pupilos queridos. Estou orgulhoso de você, Raul, faz o que eu faria se estivesse em situação Parecida. Foi um prazer conviver com você.
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
Abraçamo-nos ternamente, saí quase a correr pelo jardim e, ao chegar à porta, olhei para trás, o professor Eugênio não estava mais lá. Esperançoso, entrei. Mariana estava a esperar-me alegre como sempre, foi receber-me.
Logo mais, adormeci.
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Abraçamo-nos ternamente, saí quase a correr pelo jardim e, ao chegar à porta, olhei para trás, o professor Eugênio não estava mais lá. Esperançoso, entrei. Mariana estava a esperar-me alegre como sempre, foi receber-me.
Logo mais, adormeci.
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REENCARNADO
/xguardava ansioso a chegada de meu pai para acompanhar-me à escola, era meu primeiro dia de aula. Completara sete anos na semana anterior e recordava com alegria minha festa de aniversário, em que recebi meus amiguinhos e ganhei lindos presentes.
Estávamos na sala, sentara-me no tapete para esperar meu pai, Pretinha arrumara-me cuidadosamente e eu ficara pronto bem antes da hora. Mamãe Margareth e Pretinha estavam sentadas no sofá conversando, e Valquíria, minha irmã, estava deitada no chão, quieta, com uma de suas bonecas quebradas. Valquíria quebrava I todos os seus brinquedos, até os meus se os J
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
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pegasse/ parecia que gostava de vê-los quebrados/ principalmente as bonecas.
- Ricardo é lindo, dona Margareth! Ao ouvir Pretinha dizer meu nome prestei atenção no que conversavam, sem deixar, entretanto, de continuar a mexer no meu estojo novo.
- É verdade, Pretinha - disse mamãe, toda orgulhosa -, não é só bonito, como educado e bondoso; só escuto elogios quando as pessoas se referem a ele, sou
orgulhosa do meu filho.
- É tão parecido com o senhor Manuel, tem o mesmo jeito de andar, de falar, gosta das mesmas coisas de que
o pai gosta.
- Pretinha, quando fiquei grávida de Ricardo, Manuel ficou nervoso, não queria menino. Quando Ricardo nasceu, até temi que ele não gostasse do filho; Tais e Telma gostaram tanto do irmão, lembra-se, Pretinha? Não ficaram com ciúme e todos, ao ver o nenê, diziam que era parecidíssimo com o pai. Manuel ficou tão estranho, descon-
, fiado, não conseguia entendê-lo, não queria nem pegar o menino. De tanto insistir, ele o pegou. Ricardo chorava
i e ficou quieto no colo do pai: Manuel gostou de ter o
l menino nos braços. E assim foi, toda vez que Ricardo cho-
| rava, o pai o pegava, ele parava. Sorria sempre para o pai,
| a primeira vez que bateu palminha foi para ele, como as
it primeiras sílabas foram pá-pá. Graças a Deus, Manuel
i| esqueceu a antipatia pelo menino e, com o tempo, passou
IA a gostar de Ricardo. Também Ricardo agrada tanto ao pai,
l| faz tudo o que ele quer!
H - Ricardo é assim com todos. Não tenha ciúme, dona
H Margareth. Ricardo a ama muito também.
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Reconciliação
- Sei disso, Pretinha, e não tenho ciúme. Queria que Valquíria fosse como ele. Ainda bem que ela está quieta hoje, assim terminarei esta toalha do enxoval de Tais.
- Tais casará no mês que vem. Ela será feliz, Márcio a ama tanto! Dona Margareth, quando a senhora casou com o senhor Manuel, temi pelas meninas, pensei que não fosse dar certo. Bobagem minha, somos todos tão felizes! Tais e Telma gostam tanto da senhora e dos irmãos! A senhora é boa madrasta e vivemos bem todos esses anos...
- Tem razão, Pretinha, deu certo. Gosto das meninas como se fossem minhas filhas e tenho feito tudo o que posso por elas. Com você também deu certo, não é, Pretinha? Não casou, mora conosco como se fosse da família, gosto de você e sei que nos ama muito. E feliz conosco, não é? O que nos impede de sermos totalmente felizes é Valquíria; é tão feia, esquisita, débil mental. Confesso, Pretinha, que às vezes tenho vergonha dela. Tantos médicos consultados, nenhuma esperança de cura, dizem que irá melhorar, poderá falar sílabas. Sílabas, Pretinha, não frases; e que com exercícios andará! Acho que irá ficar cada vez mais feia. Olho para ela e dói-me o coração.
- A senhora não deve se envergonhar de sua filha, dona Margareth. Valquíria é doente, Deus sabe o porquê, não entendemos e perguntamos tanto por quê. Deve ser justo e para o bem dela. Eu gosto dela como é, e acho que devemos amá-la mais por ser assim!
Observei Valquíria; era feia, realmente. Tinha quatro anos, balbuciava somente, gritava muito e também babava. Não andava, ficava onde a colocávamos, gostava de ficar no chão, às vezes se arrastava, deitada. Era loura, tinha cabelos ralos, cabeça pequena, olhos puxados e
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Vera Lúcia
MannzeckdeCarv^
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^s^.^ffi^s:
l roamãe, e «a* m^f^e Por aí.
l '«rtóS^-^^ pte
i s^t^s^*s£.-sss:
J patamta.Depoisbe^inam^

Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
lábios grossos. Não fazia nada sozinha, só brincava e quebrava suas bonecas. Pretinha cuidava dela, trocava-lhe as fraldas, dava-lhe banho e alimento na boca. Valquíria tinha crises nervosas, chorava e gritava batendo as pernas e braços, e não conseguíamos nunca saber o porquê. Quando começava a chorar, tínhamos que acudir, senão ela acabava se machucando.
Mamãe e Pretinha passaram a falar do bordado da toalha. Observei minha mãe; era linda, estava sempre bem arrumada e bem vestida. Ia freqüentemente ao cabeleireiro e à costureira, saía para visitar amigas e participava de festas. Pretinha era quem administrava a casa, tomava conta de tudo, principalmente de nós, minha irmã e eu. Tínhamos três empregadas para fazer todo o serviço e, mesmo com Valquíria fazendo muita bagunça, a casa era muito bem arrumada.
Em casa, não havia brigas, tinha duas irmãs mais velhas a quem amava muito, eram lindas e bondosas. Tais, a mais velha, ia se casar logo, e meu cunhado, Márcio, era bom moço, trabalhador, papai gostava muito dele, tinha um posto de gasolina. Telma namorava firme Carlos, que estudava medicina, e iam casar logo que ele se formasse. Elas não eram filhas de minha mãe, só de meu pai com sua primeira esposa, que havia morrido.
Elas chamavam minha mãe de Margareth, não de mamãe, e eram muito amigas, nem pareciam madrasta e enteadas das histórias que se ouve por aí.
- Ricardo, está pronto? Vamos?
Era papai que viera para levar-me à escola.
Corri e fui beijar Valquíria, ela sorriu, sorria sempre para mim. Depois beijei mamãe e Pretinha e segurei firme
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Reconciliação
a mão que meu pai carinhosamente me estendera. De mãos dadas, percorremos o curto trajeto até a escola, senti-me confiante e orgulhoso dele. Deixou-me na porta da escola e despediu-se, beijando-me a testa.
- Ricardo, comece hoje, meu filho, a aprender para ser alguém importante no futuro.
Entrei na classe confiante, a escola parecia satisfazer todas as minhas expectativas de aprender. Decepcionei-me com o passar do tempo, ela não era bem o que ansiava encontrar. Mas amava estudar, aprender, e fazia tudo com facilidade.
O tempo passou, crescia forte e sadio, em casa tudo ia bem. Tais e Telma casaram. Tais morava perto de casa, estava sempre conosco e tinha dois filhos lindos. Telma fora morar em outra cidade e vinha visitar-nos sempre. Valquíria não fizera progresso, não aprendera a caminhar bem, andava muito pouco, com dificuldades, e caía muito; gostava muito dela e ela de mim. Quando tinha crises, eu corria e abraçava-a, falava com ela, contava histórias. Ela abraçava-me forte e muitas vezes batia em mim, dando pontapés, tapas. Não importava, nunca me machucou, não tinha forças, abraçava-a mais forte e acabava por acalmá-la. Só eu conseguia fazer isso, acalmá-la com carinhos. Sempre que ela me via, sorria e chamava-me de "Ri-Ri".
Ia completar dez anos, meu pai perguntou-me o que queria ganhar de presente. Há tempos tinha vontade de ter um carrinho e respondi, sem hesitar: - Um carro de boi!
- Carro de boi? - exclamou mamãe. - Que presente estranho, nem se usa mais esse tipo de transporte!
Expliquei como queria e meu pai prometeu procurar e dar-me de presente. No dia do meu aniversário, ganhei-o
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
logo cedo, agradeci contente, porque sabia que meu pai havia procurado muito. Sentei-me no chão e pus-me a brincar com ele.
Quando meu pai saiu, deixei-o de lado e Pretinha me disse:
- Não era isso o que você queria, Ricardo?
- Sonhava com um diferente, Pretinha.
- Tenho um no meu quarto, que guardo de lembrança. you mostrá-lo, venha comigo.
Pretinha dormia num quarto ao lado da cozinha. Entramos.
- Pretinha, lembra-se de quando eu dormia aqui?
- Ricardo, que idéia, nunca dormiu aqui.
- Nem quando estava doente, Pretinha? Lembro que dormi aqui.
- Nunca dormiu aqui, nem quando estava doente ou era pequeno. Você está imaginando. Está confundindo. Olha, aqui está o carro de boi.
- Que lindo, Pretinha! Puxa, é bem assim que eu queria, mas não anda, foi quebrado e consertado. Queria um como este, mas que andasse. Por que guarda como lembrança, de quem era?
- Este carrinho era de seu irmão que morreu, foi presente da avó dele. Raul gostava tanto dele que, quando morreu, guardei-o de lembrança. Estranho, Ricardo, não sei, gosto dos dois da mesma forma, não sei dizer de quem gosto mais. Embora Raul tenha morrido há tanto tempo, sinto-o perto de mim e continuo a querer bem a ele.
- Sou parecido com ele, Pretinha? Como era Raul? Ninguém daqui de casa gosta de falar dele.
- Raul era fisicamente diferente de você, porém você tem algo dele que não sei bem o que é.
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Reconciliação
- Tome-o, Pretinha, guarde-o novamente, lembrança é lembrança! Depois, acho que foi tolice minha querer um carro de boi, nem nunca vi um de verdade...
Naquela tarde, escutei Tais comentar que ia ao cemitério visitar o túmulo de sua mãe. Insisti com ela para que me levasse.
Acompanhei Tais na visita ao cemitério e achei tudo muito estranho, nunca tinha ido lá. Paramos na frente de um túmulo e li os dizeres da placa de bronze. Ali estavam sepultados Manuela e Raul. Tais colocou flores e orou. Observei tudo, curioso.
- Por que vem aqui, Tais? Nada tem aí, só esqueletos.
- Ora, Ricardo, é costume, venho orar.
- Não é melhor orar em casa?
Tais não respondeu e pensei: "Não volto mais aqui, que lugar sem graça, acho que nem a mãe de Tais, nem Raul, estão por aí".
- Tais, conte-me o que aconteceu com eles.
- Ricardo, papai não gosta que falemos desse assunto.
- Por quê?
- Acho que sofreu muito e não gosta de recordar. Ele fez tudo para que Telma e eu sofrêssemos o menos possível, foi uma tragédia. Ele sempre fez tudo para que não sentíssemos a falta deles e tem sido tão bom!
- Papai não está aqui, nem precisará saber. Tais, conte, vamos!
- Está bem, you contar. Era muito pequena nem lembro direito. Um dia, Telma e eu fomos ao ensaio do coral e Pretinha foi levar-nos. Mamãe ficou com Raul. Não sei por que, ninguém sabe o que pode ter acontecido, eles saíram, foram mortos e jogados num poço.
J
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
- Que poço, Tais? - interrompi.
- Não existe mais, tamparam-no logo após. Quando o ensaio terminou, não os encontramos em casa, procuramos por toda parte e não encontramos. Chamamos papai no armazém, já era de noite, ele chamou a polícia e todos saíram a procurá-los, os vizinhos, parentes e amigos. Por dois dias consecutivos de aflição, procuramo-los. Eles haviam fechado a casa, não levaram nada. Em casa não havia sinais de violência, não faltava dinheiro e não tínhamos pista alguma. Até que um lavrador, ao passar perto do poço, sentiu um cheiro desagradável, olhou para dentro dele e os viu; foi tudo muito triste.
- E o assassino, foi o danado do Louco?
- Sim, ele os matou e jogou-os ali, no poço.
- Você o conhece, Tais? /
- Eu! Que pergunta, Ricardo, claro que não, elejé um assassino cruel! !
- É também um homem, filho de Deus. -Ricardo!
- Não tem curiosidade de saber como é ele, odeia-o?
- Não odeio, perdoei como todo cristão deve perdoar. Não tive vontade de conhecê-lo, e por que o faria? Ele matou friamente minha mãe e nosso irmão. Raul seria um homem, agora.
- Se ele não morresse, eu não estaria aqui.
- Por que, Ricardo?
- Ora, se meu pai não ficasse viúvo, não casaria de novo e eu não nasceria.
- É. De fato é isso.
Não falei mais nada, sabia que o Louco estava preso na cadeia da cidade e fiquei curioso em conhecê-lo, tanto
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Reconciliação
que por semanas fixou-se em mim essa idéia, só pensava nela. Até que surgiu uma oportunidade. Por ter faltado uma professora, fomos dispensados. Não hesitei, fui à delegacia que era no mesmo prédio onde ficavam os condenados. O senhor Antônio, o delegado, era um senhor simpático, bondoso, e os comentários sobre ele eram de que era muito humanitário com todos. Gaguejei ao falar o que queria:
- Senhor Antônio, vim visitar, ou melhor, conhecer o Louco.
- Sabe, menino, que ele matou seu irmão?
- Sei sim, senhor. Só quero vê-lo, saber como é.
- Venha comigo, mostro-o a você.
Não gostei nada da cadeia. Lugar triste, cômodos pequenos e fechados, com grades grossas. O sol não entrava muito por ali, o ar era úmido e não havia muita claridade.
- Aqui está o Louco - disse o senhor Antônio. Olhei bem, a cela era pequena e tinha poucas coisas:
uma cama, uma mesa e uma cadeira. Ele estava sozinho. O Louco era um homem magro, abatido, louro e barbudo, estava vestido com roupas velhas, porém limpas. Olhou-me, seus olhos eram azuis, muito azuis. Não sei por que senti que ele sofria e não me pareceu mau, nem assassino.
- Olá, como vai? - disse-lhe.
Ele não respondeu e virou-me as costas.
- Ele não fala? - indaguei ao senhor Antônio.
- Logo que veio para cá, falava muito, às vezes por horas seguidas, depois foi se aquietando, hoje fala muito pouco.
- Ele recebe visitas?
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- Não, nunca recebeu, foi abandonado por todos, nunca soubemos se ele tem família.
- Coitado! - exclamei e logo me arrependi.
Que pensamento faria de mim o delegado ouvindo dizer que era "coitado" o assassino de meu irmão! Levantei a cabeça e encarei-o. O senhor Antônio sorriu para mim. Nos seus olhos vi que ele também partilhava do meu sentimento.
- Obrigado, senhor Antônio. Se pudesse fazer mais um favor, não diga a ninguém que estive aqui, vim escondido.
- Não falarei a ninguém.
Conheci o Louco, mas não sosseguei. Ficava a pensar nele lá, sozinho, talvez passasse frio, tendo falta de roupas e de alimentos, como doces e frutas; fiquei a planejar como faria para visitá-lo de novo e ajudá-lo. Meu pai trabalhava muito e não ficava em casa durante o dia, mamãe saía muito e, quanto a Pretinha, era fácil enganá-la. Tinha o costume de dizer sempre aonde ia e só saía com permissão. Não queria mentir, sabia que nunca iam deixar-me ajudar o Louco e estava cada vez mais com vontade de fazê-lo.
- Pretinha! - disse e virei-me de costas para ela, para que não desconfiasse. - Tenho um colega na escola bem pobre, coitado, é maior que eu, bem magro, resolvi ajudá-lo. Você arruma umas coisas para dar a ele, um cobertor, roupa de cama, toalha de banho e roupas? Só que as minhas não servem, nem as do papai, só se você as encurtasse; you levar doces e frutas para ele hoje à tarde.
- Tantas coisas assim? Que idéia estranha, Ricardo, levar doces e roupas de cama. Já falou com sua mãe?
- Meu colega vai ficar envergonhado se os outros souberem que o estou ajudando, gostaria de dar-lhe um
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Reconciliação
agasalho e um cobertor. Não precisa dizer nada à mamãe, é só arrumar para mim.
- Sem ordem de sua mãe, não arrumo!
Insistia com ela, quando papai entrou e levei um susto:
- Que quer, Ricardo, amolar Pretinha?
- Não senhor, papai, estou pedindo para arrumar umas coisinhas para eu dar a um menino pobre da minha escola.
Nem sei como consegui mentir, e meu pai nem percebeu que falara meio engasgado.
- Como você é bom, filho! Quer ajudar um coleguinha? Pode dar a ele o que quiser. Pretinha, deixe-o ajudar os pobres. Se quiser, Ricardo, vá ao armazém e pegue um agasalho, recebemos uns bons, porém simples.
- Obrigado, pai.
Papai saiu e eu disse a Pretinha:
- Papai deixou, agora arrume tudo o que lhe pedi. Pretinha olhou-me desconfiada, conhecia-me bem,
sabia que mentia e que a história que contava não devia ser bem assim.
Fui à escola e após a aula passei pelo armazém e peguei um agasalho grosso do tamanho que achei que serviria nele.
Ao chegar em casa, Pretinha tinha arrumado tudo o que pedira, menos o cobertor.
- Não temos em casa para dar, Ricardo, usamos muitos para Valquíria.
Nada respondi. Entrei no meu quarto, peguei então um do meu armário, era grosso, bom e o esquentaria naquele lugar frio. Escondi-o no saco com as outras roupas. Não queria que Pretinha visse que ia levar meu cobertor novo.
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Às duas horas, resolvi levar.
- Ricardo - disse Pretinha -, não é muita coisa para você levar sozinho? Quer que vá junto?
- Levo fácil, Pretinha, não é muito.
Andei depressa, olhando para os lados, certificando-me de que nenhum conhecido me veria.
- Boa tarde, senhor Antônio, vim trazer algumas coisas para o Louco. Se autorizar, fico-lhe agradecido.
- Puxa, quanta coisa! Seus pais sabem disso?
- Bem, mais ou menos, sabem que isto é para um pobre; só não contei quem é o pobre, também não perguntaram. Só o senhor sabe, mas guardará este segredo, não é?
O senhor Antônio riu.
- Está bem, será um segredo nosso. Venha, abro a porta para você entrar na cela, aliás, ela nunca fica trancada.
- Não fica?
- O Louco nunca quis fugir. Com a porta aberta ou fechada, não chega perto da grade.
Entrei na cela com o senhor Antônio.
- Boa tarde, "seu" Louco!
Ele virou-se para mim, sua fisionomia não se alterou. Olhou-me somente, continuei a falar, todo prosa:
- Chamo-me Ricardo, vim visitá-lo e trouxe umas coisas para você. Goiabada, bolachas e frutas, gosta? Aqui está, lençóis, toalhas e um cobertor, é quente! Veja estas roupas!
O Louco olhava para tudo o que eu tirava do saco e sorria para mim. Fiquei tão feliz com seu sorriso que me senti recompensado e achando que a mentira não fora assim um ato ruim. Pegou um pedaço de doce e comeu educadamente.
- Bem, agora tenho de ir, até logo.
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Reconciliação
E para espanto do delegado, ele falou:
- Obrigado.
Fui embora feliz, tão feliz que Pretinha logo notou!
- Puxa, Ricardo, levar aquelas coisas para seu amigo fez-lhe bem, faz tempo que não o vejo tão alegre. Às vezes sinto-o triste, não sei por quê. Você sabe?
- Não sei, Pretinha, sinto falta de um lugar e não sei nem onde é. Queria ir para uma escola diferente, mas não sei explicar como. Anseio por ir embora e nem sei para onde.
- Complicação de menino, isso passa, deve repetir o que fez hoje, é tão bom vê-lo contente.
"Repetir!" Pretinha deu-me uma idéia, ia voltar a visitar o Louco e levar-lhe alimentos e doces, muitos doces.
- O que tem de fazer, Ricardo, é estudar muito, se quiser ser doutor, e um dia irá estudar em outra cidade disse Pretinha, saindo da sala, deixando-me sozinho.
Pensei: "Por que será que sinto saudade de coisas que não entendo bem o que são? Queria freqüentar uma escola cheia de amigos, com professores que entendessem seus alunos, onde houvesse respeito e não existissem brigas. Será que existe uma escola assim? Onde? Por que será que sinto saudade e não consigo saber de onde? Acho que é melhor não pensar mais nisso e sim saber como fazer para visitar o Louco novamente".
Pensei, pensei e achei que na quinta-feira seria o ideal: à tarde mamãe ia tomar chá com suas amigas, era dia de fisioterapia de Valquíria e Pretinha ficava muito ocupada. Sairia de casa sem problemas.
Pretinha logo descobriu a falta do meu cobertor, tive que contar a ela que o dera ao meu amigo; ela ralhou comigo, mas não contou à mamãe, atendendo a meu pedido.
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Na quinta-feira fui visitá-lo novamente e levei o que tinha pronto na minha casa: bolo, bolacha, doces e frutas. Conversei, ou melhor, falei, ele escutava-me somente, pareceu gostar de me ver. Quase todas as quintas-feiras ia visitá-lo, parecia que alguém me ajudava a sair, pensava, era Deus que aprovava o que fazia, parecia até que tudo me era facilitado em minhas saídas!
Ninguém contara aos meus e eles nunca se interessaram por meu amigo pobre para quem levava ajuda. Dizia em casa, em tempo de aula, que ia fazer trabalho em grupo, ou ia à biblioteca; nas férias, que ia à casa de amigos e até mesmo que ia brincar no fundo do quintal, desculpando-me que não queria ver Valquíria fazer exercícios, depois acertara na escolha do dia. Mamãe saía e Pretinha ficava ocupada com Valquíria; minha irmã dava um trabalhão para fazer os exercícios. O senhor Antônio e os poucos soldados comprometeram-se em não dizer nada a ninguém.
E, assim, fui visitando o Louco. Papai dava-me dinheiro, dava-me tudo o que pedia e com minha mesada comprava o que achava que fazia falta a ele. Às vezes levava também algum agrado aos outros presos, mas os outros estavam sempre a reclamar, não me interessava em conversar com eles e sim com meu amigo.
Nas primeiras visitas, meu estranho amigo respondia com a cabeça ou com monossílabos e eu falava por nós dois, contava-lhe acontecimentos ocorridos comigo. Uma vez perguntei:
- Gosta de mim, Louco? - Respondeu que "sim"/ afirmando com a cabeça. Continuei: - Somos amigos então, diga-me seu nome, não se chama Louco, não é?
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Reconciliação
Ele olhou-me triste, arregalou mais os olhos e não respondeu. "Talvez não saiba, não se recorda" - pensei.
- Não faz mal, amigo, deve ter esquecido, todos o chamam de Louco e esse apelido não é tão ruim assim. Ele sorriu e indaguei mais: - Louco, sabe rezar? Não! Quer aprender? you ensinar-lhe.
Recitei devagar a prece do Pai-Nosso, ele gostou, então resolvi ensiná-lo não só a orar, mas também uma religião, a que freqüentava, a católica.
Passei a levar livros e ler para ele, contei-lhe a vida de Jesus muitas vezes, lia um Evangelho para crianças, com lindas gravuras. Acabei dando o livro para ele, porque meu amigo gostava muito e, como me disseram, passava horas a folheá-lo. Quando me via, ele sorria feliz, prestava muita atenção em tudo o que eu lhe dizia. Um dia me fez uma surpresa: logo que entrei na sua cela, disse devagar, com sua voz estranha, desafinada:
- Ricardo, sei orar sozinho.
E recitou, com emoção, a prece do Pai-Nosso e da Ave-Maria!
- Que beleza, Louco! Rezou direitinho!
Não falou mais e nunca mais repetiu alto as orações. Com gestos ele me fez entender que orava todos os dias.
Três anos se passaram...
Encontrei-o gripado naquela semana; achei-o desanimado e triste, mas pensei que logo sararia. Mas, na segunda-feira, quando ia para o colégio, encontrei na esquina o senhor Antônio, o delegado. Ele me chamou. Fui até ele.
- Ricardo, estava à sua espera. O Louco está doente e quer ver você, não está bem seu amigo. Chamamos o
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médico, está medicado, porém não reage à medicação. Pediu-me para chamá-lo, avisar você.
- Obrigado, senhor Antônio, you logo que puder.
Entrei na sala de aula aborrecido e preocupado, segunda-feira era um dia difícil de sair de casa, tinha de inventar uma boa desculpa. Não conseguia prestar atenção à aula.
- Ricardo, que tem? Está doente? - indagou o professor logo após o recreio.
Sem muito pensar, respondi: - Sim, estou, quero ir embora.
A diretora foi comunicada e deu-me autorização na hora.
- Pode ir, Ricardo, você quer que o acompanhe?
- Não, senhora, you sozinho.
Ser um bom aluno, aplicado, tinha lá suas vantagens, ninguém duvidou de mim. Senti um pouco de remorso por mentir, mas como contar que ia visitar o assassino de meu irmão e que era amigo dele? Saí rápido do colégio e, para que ninguém desconfiasse, contornei o quarteirão e fui rápido para a delegacia.
- Senhor Antônio, que tem o Louco? - indaguei.
- O estado dele é grave, começou como se fosse uma gripe, comprei remédios, mas não adiantou. Ontem, chamei um médico para examiná-lo e foi constatada uma pneumonia em estado avançado. Recomendou-nos que o internássemos num hospital, porque está fraco e debilitado. Ao escutar que era para o levarmos ao hospital, ele chorou e, para nosso espanto, falou frases e pediu-nos: "Senhor Antônio, por favor, não me leve ao hospital. Aqui vivi tanto tempo e aqui quero morrer. Tenha dó de mim, deixe-me aqui, não quero ir para outro lugar".
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Reconciliação
- O médico disse-me que dificilmente ele sobreviverá, porque seu coração está fraco e falhando. Aqui é seu lar, ficou preso tanto tempo que quer ser liberto na sua cela. Sim, Ricardo, liberto do corpo e da prisão.
Corri pelo corredor para ver meu amigo, a porta estava aberta, como sempre. Estava deitado e, ao ver-me, sorriu e exclamou:
- Amigo!
Estava vermelho pela febre e respirava com dificuldade.
- Louco, como está? Vai melhorar logo, amigo. Ore! Orei, contei alguns pedaços da vida de Jesus que
sabia de que mais gostava, o nascimento do Mestre em Belém, a parábola do "Senhor da Vinha" e a do "Lázaro e o Rico".
Fiquei com ele, até a hora em que terminava minha aula. Despedi-me dele, sorriu e nos seus olhos havia gratidão. Nem consegui almoçar direito, só pensava nele, tive vontade de vê-lo novamente e acabei dizendo à Pretinha:
- you à casa de um colega levar um caderno, ele faltou à aula hoje e tenho de passar-lhe a lição.
- Está bem, Ricardo.
Fui depressa ver meu amigo.
Senhor Antônio, ao ver-me, foi dizendo:
- Ricardo, que bom que você voltou! O médico acabou de sair, chamei-o novamente, porque logo que você saiu, ele piorou e está mal. Esperamos que venha a morrer a qualquer instante.
Entrei na sua cela e chamei-o:
- Louco, Louco, sou eu, Ricardo.
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Com esforço ele abriu os olhos, olhou-me, desta vez não sorriu, duas lágrimas correram por seu rosto. Sentei-me na sua cama e o senhor Antônio na cadeira. Peguei a mão dele, tentou olhar-me novamente, suas pálpebras abriram só um pouquinho para depois se fechar novamente.
Sua mão estava gelada e ele respirava com muita dificuldade. Alguns minutos se passaram e, de repente, parou de respirar, aquietou-se suavemente. Olhei para o senhor Antônio.
- Ele morreu, Ricardo, foi libertado.
Estava com treze anos, nunca vira ninguém morrer, mas não me impressionei. Doeu-me, porém, a idéia de que não ia ver mais meu amigo. Comecei a chorar e fui consolado pelo delegado.
- Ricardo, não chore, foi melhor para o Louco, deixe seu amigo partir em paz. Não devemos chorar quando a vida de um amigo melhora...
Acalmei-me.
-you embora e não volto mais aqui. Obrigado, senhor Antônio, obrigado por tudo.
-Não quer ficar com alguma coisa dele de lembrança?
"Lembranças... Basta-nos o que fica no coração" pensei.
- Não, senhor, não quero, obrigado.
Fui embora aborrecido e só me senti melhor após ter orado muito por ele. No outro dia, meu pai comentou:
- Ontem morreu o Louco, foi enterrado hoje. O delegado e os soldados compraram um caixão e fizeram-lhe o enterro.
Ninguém comentou nada. Senti meu coração doer, porém naquela hora tive certeza de que meu amigo
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Reconciliação
estava bem. Corpo, caixão, enterro, isso não devia interessá-lo, nem a mim tampouco.
Depois de um tempo, Pretinha comentou:
- Ricardo, não vai ajudar mais aquele seu amigo? Não sai mais às quintas-feiras, o que aconteceu?
- Meu amigo, Pretinha, mudou-se. Para onde foi não necessita mais de minha ajuda, e o grupo de estudo das quintas-feiras foi desfeito.
- Que bom, Ricardo, poderá ajudar-me nos exercícios que dona Eliza vem fazer com Valquíria, ela só se acalma com você!
O tempo passou, vivíamos felizes, tendo problemas comuns, solucionáveis, como todos os encarnados têm.
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DE REGRESSO
"»*!*.
V^ompletei dezesseis anos, meus pais fizeram uma grande festa e a casa encheu-se de amigos. Gostava de todos e era querido por eles. Era motivo de alegria e orgulho para meus pais, principalmente para meu pai. Sentia uma alegria que não conseguia entender ao sentir que meu pai me amava e não entendia bem o porquê de querer tanto que ele me amasse e de ter sempre necessidade de agradá-lo e de fazer tudo o que ele queria, com carinho.
Às vezes minha mãe comentava esse fato, agradava-a também, mas era meu pai a pessoa a quem mais tinha vontade de agradar e alegrar. As aulas iam começar logo, cursava o segundo

Reconciliação
ano do curso técnico em contabilidade. Aproveitava os últimos dias de férias; porém, não ficava à toa, ajudava meu pai no armazém; nas férias ia o dia todo; no tempo de aula, ia à tarde. Trabalhava no escritório do armazém e já fazia trabalho de responsabilidade. Papai sempre dizia, orgulhoso:
- Você, Ricardo, é o filho que todos os meus amigos queriam ter.
Tomávamos café naquela manhã de sábado, estava contente, acordara feliz e tranqüilo. Pretinha disse:
- Ricardo, já é tempo de pensar o que irá estudar, terá de ir para outra cidade.
- Você deve estudar para ser doutor - disse mamãe. É estudioso e inteligente, que tal ser médico como Carlos, filho?
- Não sei - respondi, desinteressado.
- Não sabe nada este menino - resmungou Pretinha.
- Ora, não resolvi, não sei se continuo a estudar ou fico ajudando papai.
Papai sorriu:
- Ricardo, meu filho, estou forte ainda, e não sendo velho posso tomar conta de tudo sozinho. Você tem de pensar no seu futuro e fará o que achar melhor. Quando minha primeira esposa morreu, reparti o que era dela entre as meninas, elas estão bem financeiramente e muito bem casadas. Valquíria nunca poderá ter nada. O que é meu será seu, o armazém, esta casa. Se gosta deste trabalho fique comigo, mas se quiser ser doutor, vá estudar, a escolha deve ser sua.
- Obrigado, pai. Quero pensar bem para resolver.
- Tem tempo, faltam dois anos para se formar.
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
Meus pais saíram e Pretinha voltou a insistir:
- Ricardo, não consigo entendê-lo, às vezes você parece tão estranho! Já notou que não fala no futuro? E como se ele não existisse para você, não faz planos, não quer casar, nem pensa em namorar. Por quê?
- Sei lá, não queira respostas que não sei dar. Por que acha estranho? Só porque não sei se you continuar a estudar ou não? É como papai disse, tenho este ano e o outro ainda, tenho tempo para pensar. Quanto a namorar, acho, Pretinha, que não me convém agora, sinto-me menino ainda; depois, quando for embora, não quero deixar garota nenhuma sofrendo por mim.
- For embora? Vai então estudar em outra cidade? Por que diz sempre isso, Ricardo: "you embora", "quando partir"?
- Eu sei lá, Pretinha, você está me confundindo com tantas perguntas!
Saí da cozinha, fiquei na varanda esperando pelo meu pai para irmos ao armazém. Aos sábados abríamos o escritório só pela manhã, à tarde estaria de folga. Fiquei a pensar: "Será que Pretinha tem razão? Seria eu diferente dos outros garotos porque não gostava de pensar no futuro, nem de fazer planos? Por que essa sensação de que ia partir, de que ia embora e não sabia para onde? Às vezes, principalmente nos últimos meses, parecia que me despedia de tudo e de todos. Tinha a impressão de que ia mudar. Para onde?" Indagava-me confuso. Achei melhor esquecer essas esquisitices e pensar noutra coisa, isso só poderia ser crise de adolescência, como dizia Tais, bem-humorada.
Fomos ao escritório, regressamos para o almoço, estava um dia muito quente que prenunciava tempestade.
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Reconciliação
Papai almoçou, saiu e logo voltou.
- Ricardo - disse ele -, you a um sítio aqui perto, quer vir também? Ofereceram-me para que o compre, quero ver o local e se as terras são boas, ajudará a opinar, voltaremos logo. Joaquim e Pedro irão conosco, venha!
Joaquim e Pedro eram empregados de papai e amigos, gostavam de passear, sair com ele. Eu também gostava de sair com meu pai, apreciava o campo, e o convite entusiasmou-me.
- Quero, you sim.
- Cuidado, devemos ter tempestade logo mais, está tão quente! - disse mamãe, quando nos despedimos.
Fomos de jipe, conversávamos animados. Logo chegamos, demos uma volta pelo local, papai observava tudo o que o sítio possuía, a qualidade da terra, e eu, a beleza das árvores, o capim verdinho. O calor aumentava, o ar, que parecia parado, começou a se movimentar com o vento, que ficava cada vez mais forte; grossas e escuras nuvens cobriam o céu.
Paramos na sede. Havia pouca coisa ali, parecia tudo abandonado fazia tempo. Havia uma casa, uma estranha e velha casa, pintada de amarelo, era uma construção comprida e, de onde estávamos, só víamos uma porta e poucas janelas, todas fechadas.
- Esta é uma velha casa de sítio - disse Joaquim -, não dá para aproveitá-la, está em ruínas.
- you vê-la antes da chuva - disse meu pai -, tenho a chave da porta.
- you junto - disse.
- Não, Ricardo, você fica, está de tênis e com tanto mato perto dela pode ter bichos, cobras. Fique aqui e não
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
saia do jipe, volto logo. Que falta de gosto construir uma casa comprida assim!
Papai entrou na casa e relâmpagos fortes começaram a riscar o céu, seguidos do barulho dos trovões.
Um relâmpago clareou-nos mais forte e fez com que estremecêssemos.
- Caiu perto, Ave Maria - disse Pedro. ••' • - Fogo, fogo! - disse Joaquim.
O trovão nos ensurdeceu. O raio caíra na parte da frente da casa e o fogo se alastrava rápido pelo telhado.
- Meu pai! - gritei.
Pulei do jipe e corri, entrei na casa, vi as labaredas no telhado e a fumaça tomando conta do local, impedindo-me de enxergar direito. Aflito, gritando por meu pai, fui passando de um cômodo a outro, observando se papai não estava caído no chão. A casa não estava totalmente vazia, havia móveis antigos, cestas, ferramentas, e para meu desespero ele não respondia.
Nem sei bem por quantos cômodos passei. Quando o vi, estava tentando levantar-se, um pedaço do telhado caíra sobre ele. Estava sujo, empoeirado, ferira a cabeça e seu ferimento sangrava. Ajudei-o a levantar-se.
- Vamos, pai, saiamos rápido daqui, logo o telhado vai desabar. A porta dos fundos? Podemos ir por ela?
- Não, está trancada. Temos que ir pela frente - falou papai com dificuldade, a fumaça começava a sufocar-nos.
Abracei papai, coloquei seu braço esquerdo nos meus ombros, com meu braço direito firmei a sua cintura e fui arrastando-o para a saída. Esforçava-me ao máximo; meus olhos ardiam e eu tossia. A fumaça me impedia de ver direito, tropeçava pelos escombros. Papai era alto e forte,
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Reconciliação
estava com alguns quilos a mais, contudo não chegava a ser obeso. Comecei a sentir-me tonto e vi que papai se esforçava para andar e respirar; aqueles poucos metros me pareciam quilômetros, as chamas já desciam do telhado para as janelas e pelos objetos que estavam no chão. Procurando ter cautela, fomos andando, tentando desviar do fogo e chegar à porta. Quando chegamos ao cômodo da frente, senti-me quase aliviado e tive medo. O fogo ali era maior, reuni minhas forças e gritei:
- Joaquim, Pedro!
Estávamos quase chegando à porta, faltavam poucos passos, uma parte do telhado em chamas desabou, só tive tempo de dobrar o corpo e proteger meu pai. Senti a pancada de uma viga cair em chamas sobre minhas costas e cabeça. Não consegui me mover, mas não perdi os sentidos. No mesmo instante em que senti a pancada, ouvi dizerem:
- Aqui estão, vamos tirar as vigas de cima deles, apaguemos o fogo.
Joaquim e Pedro chegaram em nosso socorro. Ao escutar meu grito entraram para ajudar-nos, pois esperavam que saíssemos pelos fundos da casa. Senti que tiravam os pedaços de telhas e as vigas de cima de mim e com suas roupas apagaram o fogo das minhas. Arrastaram-nos para fora.
Deixaram-nos deitados no chão a poucos metros da casa. Estava virado para a vivenda e podia ver o fogo alto, e muita fumaça subindo, lembrando uma grande chaminé. O fogo sempre me pareceu lindo e, naquele momento, apesar de tudo, achava-o lindo, as chamas fortes, vivas, devorando tudo.
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
O ar fresco acabara com meu sufoco, embora minha respiração não estivesse normal; ouvi meu pai tossir e sentia que se mexia, recompondo-se ao meu lado.
Começou a chover. Grossos pingos refrescaram meu rosto e comecei a sentir dores, dores atrozes nas costas e cabeça.
Senti que papai se ajoelhara ao meu lado, vi-o, estava sujo e ensangüentado, a água da chuva ajudara-o a sair do torpor em que se achava momentos antes. Notei-o preocupado, olhava-me aflito e pôs-se a gritar.
- Ricardo, Ricardo, responda-me filho, está bem? Esforcei-me, descontraí meu rosto, lutando contra a
dor que sentia e a vontade de gritar, consegui sorrir para ele. "Ele está bem - raciocinei -, é isso o que me importa, fala, levantou-se, ele está bem!"
Tentei mover-me, não consegui, senti que estava muito queimado. A chuva fresca que me molhava era uma bênção; compreendi que tudo acontecera em poucos minutos.
Algo estranho foi então acontecendo comigo, parecia que me desdobrava, parecia que eu estava me transformando em dois, estava tendo uma visão e ao mesmo tempo via e escutava meu pai ao meu lado.
- Meu filho, meu Ricardo, salve-o, meu Deus, por quê? Não devia ter ido me socorrer, meu filho. Sente dor? Fale!
Joaquim e Pedro, chocados, hesitaram no que fazer, mas decidiram:
- Vamos tirar os bancos de trás do jipe, vamos deitar Ricardo com cuidado, eu you dirigindo e vamos direto ao hospital.
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Reconciliação
E a visão nítida foi passando como num filme, estava ferido dentro de um poço, sentia dores também, estava agonizando. Fora assassinado, agora eu era o assassino, meu Deus, matara alguém, era eu com outra fisionomia e matara meu pai.
- Ricardo, Ricardo - chamava meu pai, chorando em soluços.
A visão acabara e as dores também. Escutava-o, quis dizer algo a meu pai e esforcei-me, concentrei toda minha vontade, toda força que me restava, meus lábios me obedeceram e consegui balbuciar:
- Perdão, perdão!
Meu pai calara-se e vi-o ainda a olhar-me aflito, agoniado. Pareceu-me então que levara um choque, depois nada mais vi ou senti: adormeci.
Acordei depois de algum tempo, abri os olhos devagarzinho e me senti perdido. Não consegui saber onde estava e como estava. Apalpei-me lentamente, os braços e pernas, mexendo só com as mãos, vi o teto branco, olhei receoso para os lados, movendo só os olhos, e vi que estava deitado num leito.
Lembrei-me do raio, das chamas, de papai, das queimaduras e da dor, ah, a dor! Estranho, não sentia agora dor nenhuma!
- Ricardo - disse uma voz harmoniosa e desconhecida -, como se sente?
Instintivamente movi a cabeça e olhei para o lado de onde viera a voz. Vi duas senhoras simpáticas a sorrir para mim. Não as conhecia, porém senti que as amava.
- Você pode se mover, está bem e se quiser pode sentar-se. Chamo-me Margarida e esta é Manuela.
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
Observei a outra senhora e achei-a parecidíssima com minha irmã Tais; nem sei por que falei:
- Manuela? Mãe de Tais?
Ela sorriu, eu sentei-me, movi-me com facilidade e também a voz saía sem esforço. Apalpei-me todo e alegrei-me, não tinha ferimento nenhum, fiz um rápido exame da minha situação e falei o que pensava:
- Estou perfeito, não tenho dores, apesar de estar tão queimado. Por que estou bem, será que morri? - indaguei. - Morri?
- Seu corpo queimado e com fraturas, sim; você, não. Está aqui conosco e o amamos muito.
Tive vontade de chorar, senti medo do desconhecido e da situação diferente que enfrentaria, mas não chorei. Fiquei olhando para elas, eram tão simpáticas, pude sentir que me amavam e confiei nelas; fiquei quieto e adormeci novamente.
Acordei, desta vez melhor, senti-me muito bem e mais tranqüilo. Ao meu lado Margarida e Manuela confortavam-me carinhosamente. Observei o local em que estava, pareceu-me familiar e já não senti medo. Logo estava fora do leito a passear pelos lindos jardins no hospital, depois pela colônia, e me encantei com tudo. Entendi que era daquele lugar que sentia tanta saudade. Bem rápido, entendi que estava vivendo sem o corpo físico, e que ali, a colônia, era uma das moradas da casa do Pai.
Dias passaram e me sentia feliz, recebi uma grata visita.
Reconheci-o mais por afinidade, era o Louco, estava mudado, vestido de branco, simples e elegante, estava com aparência sadia e inteligente. Deu-me as boas-vindas e nos abraçamos, felizes.

Reconciliação
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- Chamo-me João Felipe, estou alegre por estar abraçando você, meu amigo, quero agradecer-lhe por tudo o que fez por mim, foi meu amigo, ajudou-me e ensinou-me orações. Orar, Ricardo, deu-me tanto conforto, consolou-me tanto e aprendi muito. Ouvir o Evangelho iluminou meu espírito, dando-me outra compreensão da vida, fez com que perdoasse a mim mesmo e aos outros. Voltei em paz e grato. Obrigado, amigo.
Conversamos muito, alegrei-me em vê-lo bem.
Dona Margarida era minha cicerone, levou-me a conhecer todos os lugares permitidos da colônia, assim como respondia a todas as indagações que lhe fazia. Aquele dia, perguntei:
- Dona Margarida, será que não poderia ver meu irmão que há tempos desencarnou? Chama-se Raul, dona Manuela é mãe dele, ela deve saber onde está. Como gostaria de tê-lo comigo!
Minha amiga sorriu e mudou de assunto, dando explicações sobre as flores que eu achava lindas.
Fui levado a freqüentar aulas, numa escola de jovens e crianças, muito bonita, bem-arrumada e organizada. Encantei-me, finalmente encontrara a escola que sempre almejei. As crianças estudavam separadas dos jovens, as classes eram agradáveis e os professores simpáticos e bondosos. As lições eram instruções de ensino evangélico e o entendimento da vida sem o corpo físico. Era para iniciantes; soube que ali os ensinos eram vastos, abrangendo conhecimentos sobre todas as matérias.
Passei a morar no alojamento da escola, quartos coletivos com jovens da mesma faixa etária. Ali todos se respeitavam, e só de vez em quando tinha saudade do meu quarto no lar terreno, porém muitos companheiros
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
sentiam muita falta de seus lares e objetos, como também de um quarto só para si. Reuníamo-nos e conversávamos muito, contávamos, então, como desencarnamos, falávamos de nossos pais, de nossa ex-casa, de amigos e parentes.
Contava meu desencarne com uma pontinha de orgulho e sempre escutava dos colegas:
- Como foi herói! Que coragem! Salvou seu pai! Porém todos nós tínhamos um problema em comum:
sentíamos muita saudade, e os entes queridos a chorar e a chamar por nós incomodavam-nos, fazendo-nos sofrer. Às vezes, parecia que choravam dentro de nós e necessitávamos do auxílio dos mestres para não ficarmos perturbados. Muitas vezes, chorávamos desesperados, só acalmando com passes, até mesmo adormecendo-nos, usando o sono como terapia.
Muitas vezes acontecera comigo, escutava me chamarem, ficava inquieto e aflito, pensava: "Com certeza, se pudesse, nestas horas iria para junto deles", tal era o desespero que me dava.
E comentávamos:
- Será que os pais não sabem que a morte do corpo também virá para eles? E que vamos nos encontrar novamente? A separação não é eterna!
Por que me chamam tanto? Às vezes tenho vontade de ir para junto deles. Choram tanto, estão me fazendo mal e nem sabem. Tínhamos, porém, uma certeza: éramos amados. A escola proporcionava música e muita recreação para nos entreter. Esforçava-me para não me abater com as sensações dos familiares encarnados, orando com fé ao sentir que chamavam por mim. Fui melhorando e acostumei-me facilmente no meu novo lar. Mas nem todos
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Reconciliação
se adaptavam facilmente. Ali havia muita disciplina, horário, ordem, mas nem todos se davam bem com os novos costumes. Demorando mais para se acostumarem, sentiam não só falta dos familiares, mas de pertences materiais, de passeios e dos amigos. Os ensinos eram claros, explicados com sabedoria e simplicidade; quando tive aula sobre reencarnação, senti-me fascinado pelo assunto e entendi que sabia muito, que estava só recordando e que as reencarnações eram oportunidades dadas pela bondade do Pai.
Após a aula, fiquei no jardim pensando no assunto, enquanto aguardava a visita de dona Margarida e de dona Manuela. Acabei andando, indo para outra ala da escola que não conhecia; ali, porém, tudo me era familiar, recordava com precisão cada detalhe.
-Ricardo!
- Professor Eugênio!
Abraçamo-nos, porém fiquei em dúvida se o conhecia bem ou não, indaguei timidamente:
- De onde conheço o senhor?
Ele sorriu, já não me importei se o conhecia ou não. Entendi que ele me era querido.
- De outros tempos. O que importa é que se recordou do seu velho mestre, até me chamou pelo nome!
- Foi meu mestre antes que eu reencarnasse como Ricardo, não foi? Por que não é meu mestre agora?
- Oriento, meu caro, meninos que tiveram desencarnes não tão comuns e que poderiam não se sentir muito à vontade entre jovens como você, agora.
- Faz tempo que orienta jovens assim?
- Faz um bom tempo, amo muito o que faço e tive a graça de poder ajudar a encaminhar muitos jovens para
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
a vida, tanto aqui, desencarnado, como quando no corpo, encarnado.
- Foi meu mestre, então! Lembro-me do senhor; que lhe quero bem, e é só. Que nome tive?
- Raul.
Bastou ouvir o nome e recordei: "Fora Raul, sim, Raul, meu irmão!"
- Que legal, fui meu irmão!
- Teve duas existências tendo o mesmo pai. Reencarnou e teve o nome de Raul, depois de Ricardo.
Abracei-o novamente; sim, lembrava agora, o professor Eugênio muito me ajudou e, como Raul, freqüentei uma sala especial; como Raul não choraram tanto por mim.
- Lembro-me agora, porém não com detalhes.
- As lembranças virão com o tempo.
- Professor Eugênio, fui e sou-lhe muito grato, ajudou-me tanto! Queria que soubesse que me encontrei com a pessoa que me assassinou, quando era Raul, e fui amigo dele. Desencarnou antes de mim, veio visitar-me. Alegro-me tanto em vê-lo, professor, gostaria de ser seu aluno novamente, não posso?
- Ricardo, está muito bem acomodado com estes jovens, agora são afins. Seus problemas são os mesmos de todos: saudade dos seus, dos amigos, sentem os familiares sofrerem por vocês. E você, Ricardo, é tido como herói, salvou corajosamente seu pai. Estudar comigo seria desaconselhável, minha turma sente e age diferente de você.
- Sabe o que aconteceu comigo? - indaguei.
- Sim, interesso-me sempre pelos meus alunos. Fiquei contente por você ter tido êxito como Ricardo e um retorno tão feliz entre nós.
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Reconciliação
- Ao senhor devo isso. Se não posso ser seu aluno, serei sempre seu amigo e orgulho-me de que esteja ajudando outros como ajudou a mim, quando voltei assassinado juntamente com minha mãe, como Raul. Agora me sinto bem junto de jovens com quem convivo como Ricardo. Agradeço novamente; engraçado que pareço dois, Raul e Ricardo.
- Com o tempo, com todas as lembranças, será só você, um espírito eterno, recordando suas existências.
- Todos recordam assim, como eu?
- Não, recordações espontâneas são conquistas, aprendeu no passado e será fácil para você agora.
O professor Eugênio foi chamado e nos despedimos, com a promessa de nos reencontrar. Voltei para a ala em que morava e senti-me feliz. Se não sentisse os meus a sofrerem tanto por mim, seria completamente feliz. No jardim onde nos encontrávamos todos os dias, dona Margarida e dona Manuela esperavam-me e senti meu coração bater mais forte. Emocionado, gritei:
- Vovó Margarida! Mamãe Manuela! Como as amo! Abraçamo-nos felizes e não conseguimos segurar as
lágrimas.
- Você lembrou, filhinho?
- Sim, lembrei-me de que fui Raul, logo, a senhora é Manuela, minha mãe, e a senhora, minha avó.
Conversamos animados por muito tempo. Convidaram-me então para ir morar com elas; aceitei e iria logo que recebesse autorização.
Sentindo-me muito bem, contei aos meus amigos que descobrira que tinha avó e mãe na colônia; aguardei ansioso a permissão para ficar com elas.
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AJUDANDO MEU PAI
l NI o outro dia, aguardava a visita de vovó e mamãe, mas só vovó Margarida veio. Após cumprimentar-nos, disse séria:
- Ricardo, seus pais estão sofrendo muito. Manuel está precisando de auxílio e achamos que só você pode ajudá-lo.
- Precisa de ajuda? Por quê?
- Você é muito amado e todos sentem muito sua desencarnação.
- Sei disso, sinto-os chorando por mim, a chamar-me, mas todos da minha turma enfrentam esse problema. Não passará com o tempo?
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AJUDANDO MEU PAI
l\l o outro dia, aguardava a visita de vovó e mamãe, mas só vovó Margarida veio. Após cumprimentar-nos, disse séria:
- Ricardo, seus pais estão sofrendo muito. Manuel está precisando de auxílio e achamos que só você pode ajudá-lo.
- Precisa de ajuda? Por quê?
- Você é muito amado e todos sentem muito sua desencarnação.
- Sei disso, sinto-os chorando por mim, a chamar-me, mas todos da minha turma enfrentam esse problema. Não passará com o tempo?

Reconciliação
- Ricardo, you contar-lhe uma história. Era uma vez três espíritos que, de rancor em rancor, odiaram-se e erraram muito.
Vovó foi narrando e passei a ver, a sentir, e logo entendi que os personagens da história eram papai, mamãe e eu.
Quando narrou a cena do poço, estremeci e interrompi:
- Chega, vovó, por favor, já recordei tudo ao desencarnar. Enquanto agonizava todo queimado, tive uma visão, vi minha desencarnação como Raul, no poço, e vi que na vida anterior matei meu pai. Agora entendo essa visão, como também compreendo o porquê de ter me esforçado tanto para que papai me amasse; pobre Louco, não foi ele quem me assassinou.
- Se recorda, sabe a história dele.
- Sei, sim, ao visitar-me disse que se perdoara e perdoou a todos; ele, vovó, não guarda mágoa do papai, alegro-me por ter podido ajudá-lo.
Silenciamos por minutos. Pensei, então, que o que passou, passou, e tentei alegrar-me.
- Vovó, quando ia visitar João Felipe na prisão, sentia que alguém me ajudava e que foi muita sorte ninguém descobrir. Foi a senhora quem rne ajudou, não foi?
- Sim, Ricardo, prometi acompanhar seus passos, enquanto encarnado, e fiz tudo o que pude para ajudá-lo.
- Obrigado, vovó, nossa história é triste, mas com final feliz: reconciliamo-nos e, de inimigos, tornamo-nos amigos.
- Ricardo, a história ainda não terminou. Se Manuela está em paz e você retornou ao nosso convívio, tendo cumprido o que se propôs, o mesmo não acontece com seu pai.
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l

Vera Lúcia Marínzeck de Carvalho
Manuel sofre muito e não se perdoa. No acidente ficou ferido, teve queimaduras graves, porém a isso não deu importância. A dor dele foi tão grande ao ver você morto que o resto não significa nada mais para ele. E muitos, querido Ricardo, amigos e parentes, sentiram sua desencarnação, suas irmãs sofrem, seus sobrinhos sentem sua falta. Pretinha sente sua ausência como se fosse um filho que partiu, sua mãe Margareth ficou desesperada e está sofrendo muito.
- Também lhes quero muito, vovó, tenho orado por eles como oram por mim. Espero que esse sofrimento passe logo e que tudo volte ao normal. E papai agora, como se sente?
- Manuel, desde que você desencarnou nos braços dele, mudou muito; você disse-lhe "perdão" e ele achou que foi por ter desobedecido e entrado na casa. Naquela hora, chorou desesperado por alguns minutos, depois se aquietou.
"Joaquim e Pedro, que também tiveram ferimentos, levaram vocês para a cidade. Manuel foi para o hospital, onde fez os curativos, impassível.
"Com o correr dos dias ficou calado, alimentando-se pouco, não se barbeou mais e desinteressou-se pelo trabalho. Márcio, o genro, é quem está cuidando de tudo. Manuel começou a ir muito ao cemitério e ficar horas diante de seu túmulo, depois vai visitar o mausoléu de Manuela e Raul, roído pelo remorso. Passou a pensar que fora castigo, matara um filho de quem não gostava e Deus tirara-lhe o que amava, e pensou que merecia receber sua punição. Depois de muito pensar, resolveu assumir seu crime e foi à delegacia. Recebido pelo delegado, contou chorando que assassinara sua primeira esposa e o filho.
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Reconciliação
"O delegado não acreditou nele, fez com que um soldado fosse chamar Márcio e, quando este chegou, falou carinhosamente a seu pai:
'"Senhor Manuel, vá para casa e descanse, esqueça tudo isso/
'"Não vai me prender? Estou confessando meu crime. Tem de me prender!' - gritou furioso, dando murros na mesa.
"Márcio e dois soldados o levaram para casa.
"O delegado, como todos, não acreditou nele. O crime do poço tinha sido solucionado, o criminoso confessara na época por livre vontade e pagara, preso até a morte. Acharam, então, que Manuel ficara com a saúde abalada com tanto sofrimento, perdera seus dois filhos de maneira trágica. Carlos passou a acalmá-lo com remédios; mas, quando ele desconfiou, não quis mais tomá-los."
- Puxa, vovó, que tristeza! Papai sofre muito, mas arrependeu-se, e isto é bom, não é?
- Sim, arrepender-se é sinal de que se reconhecem os erros que foram praticados. E se os erros podem ser reparados, faz muito bem! Mas Manuel não tem esse consolo. Pensa no Louco, que deixou ficar preso em seu lugar, pensa em Manuela, esposa boa, trabalhadeira, que assassinou friamente, e em Raul, uma criança que odiara e não sabia o porquê; o que fizera não tinha justificativa e merecia castigo; porém, até ser preso foi-lhe negado. João Felipe plantou e colheu, seu pai plantou e colhe, de nada adiantaram as lições de amor que Manuel ouviu. Fora às pregações na igreja, foi-lhe oferecido tantas vezes o Evangelho. Manuela e eu tantas vezes tentamos instruí-lo. Tendo se negado as lições do amor, só lhe resta a dor. Por ela, ele reconheceu seus erros e arrependeu-se.
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
Vovó fez uma pausa, compreendia muito bem o sofrimento de papai. Lembrei-me do tempo em que vaguei na erraticidade sentindo remorso, a dor profunda de ter errado. Papai era e fora culpado, assassinara a esposa e o filho, agora já não nos odiava mais, não odiava ninguém, matara, errara, fizera uma ação má e era dele a obra; não tinha como, no momento, desfazer-se dela.
- Ricardo, meu neto - continuou vovó -, seu pai acha que não é possível viver mais, pensa em suicidar-se; sim, quer matar-se, seu remorso pesa-lhe muito. Seus erros parecem-lhe irremediáveis, julga-se o pior dos seres humanos, espera uma oportunidade para pôr fim à sua vida física.
- Vovó, ele não pode fazer isso, vimos em filmes, aqui na escola, como os suicidas sofrem, nada se compara com a dor daqueles que destroem seu corpo físico. Mata-se o corpo, porém não se mata a alma. Mesmo depois, no futuro, após muito tempo em sofrimento, com a bênção de uma nova reencarnação, poderão ter o corpo carnal deformado, pois destruíram, pela sua vontade, um que era perfeito.
- Por tudo isso, Ricardo, estou a lhe contar o que ocorre com ele. A preocupação é de todos, nossa e da família. Manuel está sendo vigiado, preso no quarto, longe de qualquer objeto que possa utilizar para ferir-se.
Comecei a chorar. Vovó abraçou-me, consolando-me.
- Não chore, Ricardo, vamos ajudá-lo.
- Como?
- Foi permitido irmos para junto dele e lá ficarmos até que consigamos tirar essa idéia de sua mente. Manuel ama-o, chama você, quer você, achamos que a você, pé" dindo-lhe, atenderá.
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Reconciliação
- E se não conseguirmos, vovó?
- Não podemos predizer se iremos ou não conseguir. Sei de muitos amigos que tentaram ajudar encarnados a não se suicidar e não o conseguiram, como também sei do sucesso de muitos outros. Todos nós temos o livrearbítrio e somos respeitados nas nossas decisões. Se Manuel quiser realmente se suicidar, não conseguiremos impedir, mas ele poderá ouvi-lo. Você é determinado, Ricardo, conseguiu fazer com que Manuel o amasse e conseguirá impedi-lo de fazer mais este erro. Sejamos otimistas e vamos ao seu encontro, esperançosos. Vamos, Ricardo?
- Agora?
- Sim, agora, nossa ajuda não pode esperar.
- Mamãe Manuela não irá?
- Manuel agita-se muito ainda com a presença dela, por enquanto só vamos nós dois. Não se preocupe, aja com amor e simplicidade, estarei com você o tempo todo.
Saímos da colônia, vovó levou-me em seus braços. É maravilhoso volitar, locomover-se com rapidez; vi emocionado a colônia de longe, depois a Terra e, por fim, estranhei. Minha casa estava coberta de uma névoa cinzenta. E vovó explicou:
- São fluidos de tristeza, de desesperança.
Tudo estava no mesmo lugar, tudo igual e ao mesmo tempo diferente. Tudo me pareceu triste. Entramos na sala, mamãe Margareth estava numa poltrona, quieta, pensativa. Estava diferente, não pintava mais os cabelos, estava pálida, sem a costumeira maquiagem, magra, envelhecida. Ajoelhei-me aos seus pés, beijei suas mãos, seus olhos urnedeceram e passei a ouvir o que pensava.
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
"Ricardo, meu Ricardinho, que saudade! Onde está você? Será que está junto de Raul, seu irmão? Será que Raul o ama? Seu pai está doente, meu filho, ninguém acredita em Manuel. Eu, porém, não sei, às vezes acho que fala a verdade. Tive muita culpa em tudo isso. Se Manuel matou, foi por minha causa, queria casar e ele era rico, correspondia ao meu ideal. Não liguei se ia destruir um lar, na época era amante dele e forcei-o para que se separasse da esposa. Manuel ter matado a esposa para ficar comigo até que entendo, mas o filho! Ele sempre foi tão bom pai, tão amoroso, parece-me impossível ter assassinado o filho. Embora nunca me falasse de Raul, pensei que era para não sofrer com as recordações. Tudo é tão triste, sofremos tanto, nosso lar desmoronou. Acho que construímos nossa felicidade sobre a areia, na ilusão de que não podia ser destruída, e foi."
- Não fique assim, mamãe, por favor! - disse. Mas ela não percebeu minha presença, não me sentiu. Vendo-a assim, senti doer em mim, senti sua amargura, e vovó, sabiamente, ajudou-me.
- Ânimo, Ricardo, não se envolva na tristeza de sua mãe. Margareth é forte, sofre, mas suportará, melhorará com o tempo, ela aprende muito na dor. Sabendo o que pensa, vimos que ela reconhece a ilusão falsa em que sempre viveu e me parece pronta a procurar e encontrar a paz no caminho do bem. Jesus ensinou-nos com muita sabedoria que o homem prudente constrói sua felicidade eterna nos rochedos da verdade espiritual e não na matéria passageira.
Neste instante Valquíria começou a ter uma crise, começou a gritar e a se debater. Corri instintivamente até
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Reconciliação
ela, como se estivesse encarnado, abracei-a apertado e comecei a falar carinhosamente:
- Calma, Valquíria, calma, minha irmãzinha, Ricardo conta-lhe uma história.
- Ri-Ri - gritou ela.
Diante do olhar assustado de Pretinha, que viera correndo acudir Valquíria, percebi que minha irmãzinha conseguira perceber minha presença. Sentara-se e balançava o corpo, parou de gritar, apertava os braços como se eles pudessem abraçar-me fisicamente. Pretinha não me viu, mas viu Valquíria como se abraçasse alguém acalmando-se logo, como acontecia quando eu estava encarnado, e a repetir "Ri-Ri", como me chamava.
Pretinha também estava abatida e triste. Passado o susto, vendo Valquíria acalmar-se, afastou-se, e fiquei com minha irmãzinha, até que, como sempre fazia, desinteressou-se de mim e pegou sua boneca.
Vovó sorriu.
- Venha, Ricardo, vamos ver seu pai. Acompanhei-a até o quarto de papai. O local estava
na penumbra, a porta estava trancada e nas janelas pedaços de madeira estavam pregados para que não se abrissem. O quarto estava sujo, na cama só o colchão, e papai estava sentado nele.
Fiquei por minutos olhando-o, parecia outra pessoa, magro, braços e pescoço estavam marcados pelas queimaduras e, na fronte, uma grande cicatriz do ferimento que recebera. Seus cabelos estavam crescidos, estava barbudo e com os olhos vermelhos de tanto chorar. Vestia um pijama curto, rasgado e sujo.
Chorei ao vê-lo assim e, pela primeira vez, senti-me culpado por desencarnar; vovó elucidou-me com energia:
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
- Ricardo, não se sinta assim, não provocou sua morte física, não se sinta culpado, se Manuel sofre é por sua própria colheita; veio para ajudá-lo e não para sofrer junto.
Vovó tinha razão. Envergonhado, enxuguei rápido meu rosto, cheguei perto dele. Começou a falar baixinho:
- Ricardo, por que morreu para salvar-me? Não merecia seu sacrifício, deveria eu ter morrido e você ficado. Se você não pode voltar, eu posso ir. Acharei algo que agüente meu peso e me enforcarei, irei encontrar com você.
- Não! - gritei. Não me ouviu com os ouvidos físicos, porém meu grito emocionado fez com que se calasse e sentiu algo estranho. Continuei a falar-lhe com firmeza e emocionado: - Não, não pense em se matar, não deve livrar-se do corpo físico, só aumentaria seu sofrimento. Matando-se não poderá ficar comigo, não me verá. Morri, tive a morte do meu corpo para salvá-lo, para que ficasse e se arrependesse, para que viva, não para que se mate. Pelo amor de Deus, não se mate!
Papai se pôs a chorar baixinho; eu, já mais calmo, abracei-o, amávamo-nos, choramos por algum tempo juntos. Seu choro aliviou-o por algum tempo e minhas lágrimas eram em prece, pedindo ao Pai Maior consolo e orientação. Papai adormeceu, vovó com passes tirou seu corpo perispiritual do corpo físico. Estava tonto, vovó continuou a dar-lhe energias, então conseguiu ver-me.
- Ricardo, Ricardo! - gritou desesperado.
- Acalme-se, papai! Acalme-se, pelo amor de Deus! Abraçou-me, beijou-me, acariciava meu rosto sem
tréguas. Segurei fortemente suas mãos e disse-lhe, enérgico, como nunca o fizera:
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Reconciliação
- Meu pai, estou vivo em espírito, rnorre somente o corpo, somos eternos. Estou bem, como vê, perfeito, sadio, nem sequer tenho cicatrizes. Mas estou aborrecido e preocupado, porque está pensando em se matar. Nada consertará com esse seu gesto, nem melhorará sua situação. Piorará, sim, e muito, e não poderá ficar comigo.
- Ricardo, meu filho, sofro tanto, por que foi salvar-me?
- Porque o amo!
- Não mereço, sou um assassino!
- E quer continuar sendo, matando mais um corpo, o seu? Papai, papaizinho, se me ama, se me quer, não pense mais em suicídio, por Deus, peço-lhe. Nunca me negou nada, atenda-me, por favor, viva, ore, perdoe-se, faça isso por mim. Se morri para salvar o senhor, quero-o vivo na carne até que Deus o chame. Prometa-me!
- Se ficar comigo... Fique comigo, filho, fique... Vovó colocou-o no corpo adormecido e ele acordou,
falando:
- Ricardo, por favor fique comigo, por caridade! Lembrou-se papai parcialmente do nosso encontro
como um sonho e, pela primeira vez, sentiu um certo alívio e falou alto:
- Meu Deus, sonhei com meu Ricardo, pareceu-me tão real! Foi como se ele estivesse aqui, disse que está preocupado comigo, que me ama apesar de todos os meus erros e que quer que eu viva; morreu para me deixar vivo!
Pensei que fosse chorar, mas, para minha alegria, gritou:
- Margareth, Pretinha, venham, podem limpar o Quarto, quero tomar banho!
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
A porta se abriu. Mamãe, Pretinha e uma outra empregada entraram e mamãe perguntou, timidamente:
- Manuel, quer cortar o cabelo e fazer a barba? Quer ir um pouco ao quintal?
- Sim - respondeu.
Mamãe deu-lhe o braço. Saíram para o quintal, andando devagar por entre as árvores.
Logo chegou Márcio, que a outra empregada fora chamar, e ele ficou observando papai e mamãe de longe, temendo que o sogro atentasse de algum modo contra sua vida física. Papai estava tranqüilo, quieto, não respondia as indagações de mamãe. Depois de ter caminhado um pouco se sentou numa cadeira. Fiquei com eles, animando-os com carinho; chegou o barbeiro, cortou-lhe o cabelo, barbeou-o. Foi tomar banho. Márcio acompanhou-o, papai pareceu ignorar sua presença, lavou-se, colocou as roupas que lhe ofereceram, foi para a cozinha e alimentou-se.
Depois, foi para seu quarto, agora limpo, e disse:
- Podem fechar a porta, estou bem e you dormir.
- Que legal, vovó! - exclamei. - Acho que estamos conseguindo ajudá-lo!
- De início está ótimo. Como pensávamos, Manuel atendeu-o. Devemos fortalecê-lo mais e nos certificar de que não pensa mais em suicídio.
- Chama por mim, quer a mim, queria que prometesse que ficaria com ele, estranho, não é, vovó?
- Nem tanto! Estranho é pensar que é o desencarnado que está obsediando, porém muitas vezes é o encarnado quem segura o desencarnado perto de si.
- Entendi bem, se não tivesse sido socorrido ao desencarnar, estaria em perturbação vivendo entre eles,
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Reconciliação
talvez nem quisesse ir embora, e, se quisesse ir, eles me segurariam.
Papai adormeceu, seu corpo refazia as energias. Vovó e eu saímos, sentamo-nos na área em frente da casa.
- Ricardo, está agora a par de tudo o que acontece no seu antigo lar.
- Quero ajudá-los, vovó, porém não quero ficar muito tempo aqui. Tudo me parece estranho; disse bem, aqui é meu antigo lar.
- Ricardo, você estava consciente de que deveria partir, mudou-se sem problemas ao ter o corpo morto, adaptou-se facilmente no plano espiritual. Orgulho-me de sua coragem!
- Nunca pensei que iriam sofrer tanto com a minha desencarnação. Aborreço-me, vendo-lhes a falta de fé, porque tudo isso, consolar-se, conformar-se, não é tão difícil.
- O tempo ajudará, ser religioso em tempo de sofrimento é confortador. Infelizmente não são religiosos a ponto de confiar no Pai Amoroso. Vamos ficar aqui por uns dias e ajudar a todos, em especial a seu pai.
Vovó e eu tudo fizemos nos dias em que lá permanecemos para instruí-los, para que se conformassem, lembrando da prece sincera para o alívio. O desespero foi sendo substituído pela calma e todos me pareceram melhores.
Papai não falou nem pensou mais em se matar, passou a se alimentar regularmente.
Achando que havíamos obtido êxito, retornamos à colônia e senti-me feliz entre os colegas do Educandário.
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NOVAS RESPONSABILIDADES
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l rês dias depois comecei a sentir uma forte inquietação; incomodava-me muito, sentia-os a me chamar. Parecia tê-los dentro de mim e o desespero de papai amargurava-me muito. Fiquei distraído, não conseguia prestar atenção às aulas e, quando em desespero, papai chamava-me. Não conseguia me concentrar nem para orar e tinha de receber ajuda dos mestres do Educandário. Estava diferente, não conseguia conversar alegremente com os amigos, estava mesmo calado e triste. Tinha esperanças de que essa fase passasse logo, que fosse por pouco tempo.

Reconciliação
Fazia vinte e oito dias que regressara do lar terreno e vovó veio visitar-me, acompanhada de um senhor.
- Ricardo, este é Lourenço, um dos orientadores do Educandário.
Cumprimentamo-nos e vovó foi direto ao assunto que a preocupava.
- Ricardo, sabemos que está a sentir muito os sofrimentos de seus familiares. Que está triste e tem estudado pouco. Entretanto, graças a Deus, Manuel não pensa mais em suicídio, mas devemos ajudá-lo ainda, Ricardo.
- Desculpe-me, vovó, se a preocupo. Estou me esforçando, mas está difícil. Antes, sem saber o que ocorria, era mais fácil isolar-me, não receber estas vibrações; agora tenho deixado me abater pelas preocupações.
- Não precisa se desculpar. O que ocorre com você é comum aqui, por isso mesmo Lourenço e eu temos uma proposta a fazer.
- Ricardo - disse Lourenço -, estou a par de todos os acontecimentos de sua vida. Sei que seu ideal é estudar aqui, conhecer o mundo espiritual e ser útil com conhecimento. Mas a Terra é uma escola e, trabalhando entre encarnados, aprende-se muito. Seus familiares necessitam do seu auxílio e você pode fazê-lo. Certamente não poderá ficar somente no seu antigo lar, mas ajudará aos seus, como também poderá trabalhar num centro espírita.
- Centro espírita?
- Sim, Ricardo, na sua cidade há bons locais onde se pratica a caridade e equipes de obreiros do bem trabalham em ajuda a encarnados e desencarnados. Escolhi um destes locais, um centro espírita, onde o mentor espiritual é urn grande amigo e o receberá, se quiser, como a um filho
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querido. Será auxiliar dele, terá de dedicar algumas horas por dia ao trabalho de equipe e as outras restantes estará no seu lar consolando aos seus.
Suspirei tristemente; Lourenço enumerara bem meus objetivos, meus sonhos. Sentia, entretanto, que, se os meus não se consolassem, não iria realizá-los, não conseguiria. Vovó animou-me.
- A escolha é sua, Ricardo, só fará o que quiser. Se quiser trabalhar entre encarnados, não precisará determinar tempo, ficará o tanto que julgar necessário. Poderá experimentar, dedicará horas ao trabalho e o restante passará no seu ex-lar. Poderá ajudar a todos e, como comprovante, eles melhorarão com sua presença. Pretinha se animará, Valquíria poderá ter você para acalmá-la, sua mãe vendo todos melhorarem ficará calma também, e seu pai, com você ao seu lado, melhorará. Depois, Ricardo, será uma experiência maravilhosa trabalhar num centro espírita; aprenderá muito, tenho certeza de que^gostará.
- Ricardo - completou Lourenço -, não é a todos que podemos fazer esse convite, você sabe que são inúmeros os jovens aqui com o mesmo problema seu, que sofrem o desespero dos seus familiares. Analisamos e achamos que você poderá realizar esta ajuda, você é responsável, fortaleceu-se muito nas suas últimas reencarnações, retornou ao plano espiritual sem erros, sem revolta e com muito amor. É obediente, quer melhorar e deseja ajudar o próximo. Também levamos em conta os fatos que envolveram e envolvem a vida de vocês. Não precisa resolver agora, tem o tempo que quiser para pensar.
- Vovó, acha que todos lá em casa ficarão sofrendo por muito tempo?
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Reconciliação
- Não sei, Ricardo, antes de contar a você o que se passava com eles, Manuela e eu tudo fizemos para ajudá-los. Nestes dias, tenho estado muito lá e não consigo ajudá-los, nada parece confortá-los. O que sentem, para eles não existe nada pior; sinto por você, meu neto.
Silenciamos. À minha mente veio a imagem de Valquíria, minha irmã deficiente que tinha crises nas quais se machucava muito. Com a minha presença se acalmaria. Mamãe Margareth, que se amargurava, definhando-se. Conseguindo fortalecê-la, ajudaria o esposo e a filha. Pretinha, minha querida amiga, mãe de coração que me amara muito como Raul e Ricardo, merecia que eu a confortasse e animasse. E meu pai, meu ex-adversário, que sofria o remorso de ter sido um assassino e se desesperava com a perda do filho que aprendera a amar. Se consegui que me amasse, devia agora ajudá-lo na sua colheita; não queria que, por não suportar o sofrimento, ele o agravasse, provocando a própria morte física. Se me era oferecida a oportunidade de ajudá-lo, aceitaria com gratidão.
- Lourenço, vovó, agradeço o carinho de vocês e a preocupação para com os meus. Não será sacrifício ajudar os que amo e, no centro espírita, os que aprenderei a amar. Adiarei a realização dos meus sonhos, terei tempo para realizá-los. Não necessito de tempo para pensar, quero ajudá-los e estou pronto para ir.
- Sendo assim - disse vovó -, iremos à tardinha. Vá agora e se despeça dos seus amigos, eles poderão visitá-lo e você poderá vir aqui sempre que quiser.
Assim fiz. Despedi-me de meus mestres e colegas, procurei o professor Eugênio e dele ouvi carinhosos incentivos.
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- Gostará muito, com certeza, desse trabalho-estudo, aprenderá muito com os encarnados.
Acompanhado de Lourenço e vovó, à tardinha estávamos no meu antigo lar terreno. Aproximei-me de mamãe, que, triste e abatida, chorava num canto da sala; ela tentava orar:
"Ricardo, meu filho, por Deus, venha ajudar-nos, já nem sei mais o que faço, sentimos tanto sua falta. Por que tudo isso teve de acontecer, por que você morreu? Por que não morreu Valquíria? Entenderíamos, ela só sofre, retardada como é. Você não, meu filho, era lindo, forte, inteligente, todos nos orgulhávamos de você. Venha nos ajudar, filho, Carlos quer internar seu pai no hospício, sabe, ele está bem atrapalhado, Ave Maria..."
Conscientizado de que viera ajudar e não atrapalhar, fortaleci-me também na prece, abracei-a docemente e disse:
-Acalme-se, mamãe, tranqüilize-se, tenha fé, ore com sinceridade. Deus é justo, sabe o que faz e por que faz.
Lourenço e vovó aplicaram-lhe um passe, mamãe acalmou-se e pôde orar mais tranqüila.
Após, fomos ver todos: Tais, Telma, as crianças; elas estavam bem e tudo faziam para ajudar meus pais. Vi Valquíria toda machucada, deveria ter tido crises constantes, e ela novamente percebeu a minha presença, estendeu os braços em minha direção e gritou: - Ri-Ri!
Abracei-a e ela sentiu meu abraço e carinho. Assim ficamos por algum tempo.
- Não you deixá-la mais, Valquíria, estarei sempre ao seu lado.
Valquíria sorria, feliz, e repetia: - Ri-Ri!
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Reconciliação
Deixando-a alegre e tranqüila, fomos até o papai. O quarto estava como da primeira vez em que o visitei, sujo, cheirando mal. Papai estava mais magro, barbudo e descabelado, estava de pé num dos cantos do quarto e batia a cabeça na parede; não me contive e gritei: - Papai!
Ele voltou-se instantaneamente e vi que o rosto e a cabeça estavam machucados.
- Ricardo, Ricardo, venha para mim, fique comigo, filho, fique!
Abracei-o, transmitindo todo o meu amor, e ele de alguma forma, sentiu minha presença. Sentou-se na cama, falando sem parar sobre fatos acontecidos com Raul, com Ricardo, com ele, até que adormeceu com os passes de Lourenço e vovó.
- Manuel dormirá por um bom tempo - disse vovó.
- Não podemos tirá-lo do corpo como da outra vez, vovó?
- Não, Ricardo, Manuel está muito fraco, acalmou-se só com sua presença e o ajudaremos dessa forma. Deixemos que ele agora descanse e vamos conhecer o local onde você trabalhará.
- Vovó, não sei ajudar.
- Tendo vontade, aprenderá logo. Depois, Ricardo, não seria possível você ficar só em seu ex-lar, há muitos que sofrem e necessitam de auxílio. Terá como instrutores amigos nossos. Isaías, um bondoso orientador do plano espiritual, e Antônio, orientador encarnado do centro espírita. Ficarei com você por uns dias até se ambientar, fará outros amigos.
O centro espírita era perto do meu lar terreno. O local, fisicamente falando, era somente um cômodo, ao lado da
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casa do orientador Antônio. Era simples, limpo, tinha somente o indispensável, uma mesa com oito cadeiras à sua volta. Em cima dela, uma toalha branca, uma jarra de flores e um volume de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Completando a decoração, mais cadeiras e bancos, que supus serem para a assistência. Entrei constrangido e cinco desencarnados muito simpáticos vieram cumprimentar-nos. Após a apresentação, vovó explicou-me:
- Estão em serviço, guardam o ambiente. Depois chegou Isaías e abraçou-me alegremente.
Disse, dirigindo-se a Lourenço:
- Meu afilhado, que prazer revê-lo! Então, este é Ricardo, que trabalhará conosco?
Conversaram animados e felizes por um bom tempo, até que vovó interferiu:
- Isaías, permita-me que fique com meu neto por uns dias. Tenho licença do meu trabalho e gostaria de estar com Ricardo, pois se sente encabulado por julgar que não sabe fazer nada.
Isaías sorriu e olhou-me docemente.
- Claro, Margarida, fique conosco o tempo que quiser, para nós será somente prazeroso. Quanto a aprender, Ricardo, quando você foi à escola pela primeira vez, também não sabia nada, entretanto aprendeu. Todos nós aqui teremos prazer em ensiná-lo. Apresente-se ao trabalho amanhã às oito horas. Não se acanhe de nos contar suas preocupações; espero que tenha uma proveitosa estada conosco - falou, abraçando-me.
Despedimo-nos, Lourenço acompanhou-nos até a rua e despediu-se também.
- Até logo, Ricardo, verá que este centro espírita é uma escola para encarnados e desencarnados, onde se
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casa do orientador Antônio. Era simples, limpo, tinha somente o indispensável, uma mesa com oito cadeiras à sua volta. Em cima dela, uma toalha branca, uma jarra de flores e um volume de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Completando a decoração, mais cadeiras e bancos, que supus serem para a assistência. Entrei constrangido e cinco desencarnados muito simpáticos vieram cumprimentar-nos. Após a apresentação, vovó explicou-me:
- Estão em serviço, guardam o ambiente. Depois chegou Isaías e abraçou-me alegremente.
Disse, dirigindo-se a Lourenço:
- Meu afilhado, que prazer revê-lo! Então, este é Ricardo, que trabalhará conosco?
Conversaram animados e felizes por um bom tempo, até que vovó interferiu:
- Isaías, permita-me que fique com meu neto por uns dias. Tenho licença do meu trabalho e gostaria de estar com Ricardo, pois se sente encabulado por julgar que não sabe fazer nada.
Isaías sorriu e olhou-me docemente.
- Claro, Margarida, fique conosco o tempo que quiser, para nós será somente prazeroso. Quanto a aprender, Ricardo, quando você foi à escola pela primeira vez, também não sabia nada, entretanto aprendeu. Todos nós aqui teremos prazer em ensiná-lo. Apresente-se ao trabalho amanhã às oito horas. Não se acanhe de nos contar suas preocupações; espero que tenha uma proveitosa estada conosco - falou, abraçando-me.
Despedimo-nos, Lourenço acompanhou-nos até a rua e despediu-se também.
- Até logo, Ricardo, verá que este centro espírita é uma escola para encarnados e desencarnados, onde se
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Reconciliação
aprende trabalhando, e será muito bom você poder aiuc aos seus.
Caminhamos, vovó e eu, rumo ao meu ex-lar. I noite, poucas pessoas encarnadas transitavam pela n Admirei-me, entretanto, dos muitos desencarnados que p ali passavam, uns aflitos, desesperados e doentes, outi tranqüilos, como se passeassem. Vovó esclareceu-me:
- Ricardo, existimos sempre, ou como encarnados ( como desencarnados, e semelhantes se afinam, se atraei Temos livre-arbítrio para escolher a forma de viver, ou i bem ou no mal, e temos também a conseqüência da vi( que escolhemos. No plano físico da Terra, onde ena nados vivem, há muitos desencarnados vivendo tambéi Há os que vagam em sofrimento, os que por ignorânc tudo fazem para prejudicar seus semelhantes e há < que trabalham ajudando aos que sofrem e recuperaru os que se julgam maus.
- Acho, vovó, que irei aprender muito!
- Vai, sim, fará um grande aprendizado que não e tava incluído nos seus sonhos; entretanto, um dia ter de fazê-lo para complementar o seu conhecimento. C acontecimentos o farão concluí-lo antes, porém con em você, tenho a certeza de que, das duas tarefas qi lhe competem, realizará ambas a contento.
Chegamos em casa, vovó e eu fomos a cada um d meus familiares dando-lhes conforto e alegria.
Às oito horas em ponto, apresentamo-nos no centi espírita; Isaías, o mentor, cumprimentou-nos, sorrident
- Ricardo, conosco deverá trabalhar todos os dia em média quarenta e oito horas por semana. Terá seu tr; balho pela manhã, mudando de horário a cada quinzen

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e fará um trabalho de rodízio, para aprender tudo o que fazemos. Normalmente, tudo por aqui é tranqüilo, tendo mais labores nos dias de trabalho de desobsessão, que são realizados nas segundas e sextas-feiras, e nas terças-feiras, quando fazemos o estudo evangélico. Começará ficando de guarda com outros companheiros nossos.
Isaías chamou-os e apresentou-nos. Gostei deles e logo em seguida ficamos a guardar o centro espírita. Vovó ficou comigo, isso me dava muita segurança. Pensei que seria maçante ficar ali oito horas e vigiar sem saber o porquê, mas logo vi que não era bem como pensara.
Um desencarnado bêbado veio incomodar-nos:
- Ei, vocês aí! Dêem-me uma pinga! Não querem dar? Onde está a caridade de vocês? Não dão a quem pede?
Espantei-me, já vira encarnado bêbado, mas desencarnado, não. Mário, um dos companheiros, disse, enérgico:
-Juvenal, sabe muito bem que aqui não temos bebida alcoólica. Temos e lhe oferecemos um tratamento para que deixe o vício e mude de vida.
- Não quero mudar de vida e não vim aqui pedir conselhos.
- Então siga em frente, que Deus o acompanhe! Juvenal tentou entrar e com atrevimento de bêbado
queria que bebêssemos com ele. Mário teve de usar autoridade, e Juvenal resolveu ir embora. Achando tudo muito estranho, indaguei com o olhar sem ter coragem de perguntar verbalmente. Mário, demonstrando ter compreendido minha curiosidade, esclareceu-me:
- Ricardo, indague-nos sempre o que quiser, será um prazer elucidar. Ninguém está livre de seus vícios só porque o corpo morreu. Juvenal sabe que desencarnou,
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sabe que aqui trabalhamos com a caridade. Sóbrio, evita passar aqui perto, teme-nos; quando embriagado, costuma passar por aqui e fazer estas cenas que presenciou. Não quer mudar a forma de viver, não quer ser livre de seu vício. Vampiriza encarnados e tenta induzi-los a embriagar-se. Fica perto de outros viciados encarnados e, quando estes bebem, suga-lhes os fluidos e embriaga-se também.
- Só se embriaga? - indaguei, admirado.
- Embriagar-se já seria muito; porém, como quase todos os viciados, prejudica a si mesmo e a outros. Quer sempre beber e induzir invigilantes encarnados a fazê-lo; como também faz pequenos favores a espíritos maldosos, em troca da bebida. Cada vez mais vai ficando escravo de seu vício.
- Não podemos prendê-lo, ajudá-lo? -Ajudá-lo como, se ele não quer receber nossa ajuda?!
Respeitamos seu livre-arbítrio, esperamos que se canse desta forma de viver e queira mudar.
- E se um encarnado que ele vampiriza aqui vier em busca de socorro, que farão?
- Se o encarnado quiser, realmente, não ter companhias como Juvenal, é só não se afinar com ele. E, se aqui vier buscar socorro, um de nós o acompanhará e não deixará que Juvenal ou outros iguais o perturbem.
Logo em seguida, vi aproximar-se, como se fosse uma nuvem de poeira, um grupo arruaceiro. Mário foi até um pequeno aparelho, que estava conectado do plano espiritual ao centro espírita, e vi admirado uma luz azulada cercar todo o local.
- É o nosso campo magnético, ele impedirá de recebermos ataque de irmãos inferiores.

Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
O grupo era demasiado estranho para mim. Estavam vestidos de maneira exótica, predominando a cor preta. Eram doze, todos feios, sujos, tipos que, quando encarnados, diria serem mal-encarados. Todos eles estavam armados, uns com pedaços de pau, outros com correntes, chicotes, e riam, gargalhando. Os primeiros que chegaram bateram com a cabeça no círculo magnético e foram jogados alguns metros para trás. Pararam e ficaram observando-nos. Meus companheiros estavam tranqüilos, e também procurei ficar. O que me pareceu chefe deles dirigiu-se a nós:
- Então, tem notícias de Catarina? Ela voltará para nós?
- Catarina está bem e não deve voltar ao convívio de vocês. Se alguns de vocês quiserem mudar a forma de viver, venham até nós, que os ajudaremos.
Riram.
- Ora, ora, aqui temos sempre o que queremos, para que mudar nossa forma de vida? Mudar para ficar como vocês, trabalhando de guardas?
- Somos felizes, temos paz, usufruímos tranqüilidade, somos amigos e irmãos. E vocês o que têm?
Fingiam que eram felizes, rindo, gargalhando, fazendo barulho, tudo fazendo para demonstrar externamente a alegria que não sentiam. Mesmo na minha pouca experiência senti que eles viviam um conflito e longe estavam de conhecer a paz.
Novamente, Mário elucidou-me:
- Não fechamos a nossa porta aos irmãos inferiores, estes são os muitos doentes que necessitam de socorro e aos poucos temo-los orientado. É uma pequena falange,
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Reconciliação
conhecida nossa, e se os deixássemos entrar teríamos de prendê-los, porque só querem bagunçar. No momento certo entrarão e receberão por meio de uma incorporação a doutrinação de que precisam e eles sabem que, se quiserem ajuda, a terão. Catarina, uma ex-componente do grupo, foi por nós orientada e está em um posto de socorro recebendo ajuda e orientação.
O campo magnético foi novamente desligado.
- Socorro! Socorro! Por favor!
Era o pedido de um senhor de pele escura, desencarnado, que se esforçava para caminhar até o portão.
Mário fez um sinal para que eu o ajudasse, corri até ele e o carregamos para dentro do centro espírita. Vi maravilhado que, como no plano espiritual, havia no local um pequeno laboratório, um pronto-socorro. O senhor foi colocado num leito. Mário, pacientemente, deu-lhe água, ele falava sem parar. Percebi que ele não sabia que desencarnara, julgava-se no corpo físico. Mário adormeceu-o e o acomodamos no leito; notei que havia mais duas pessoas adormecidas.
- Ricardo, são irmãos que não sabem que desencarnaram e não adiantaria nada lhes contar, porque iam achar que estamos loucos ou algo parecido. Aqui, ficarão adormecidos até o próximo trabalho, em que, por meio de uma incorporação, poderão notar a diferença que existe entre eles e o encarnado; receberão a orientação e o socorro para seus males. E, ao acordarem, nem perceberão que estiveram dormindo.
Voltamos ao nosso posto. Três mocinhas encarnadas, ao passar pelo centro espírita, exclamaram com medo:
- Cruzes! Credo!
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Vera Líicia Marinzeck de Carvalho
E uma delas fez o sinal-da-cruz. Uma outra exclamou:
- Se tiver um espírito comigo, que fique aí!
Para minha surpresa, um desencarnado que a acompanhava exclamou:
- Eu não fico! Se quiser se livrar de mim, belezoca, venha você trazer-me.
E lhe deu um tremendo soco na cabeça; ela sentiu, levou a mão ao local e disse às outras:
- Ai, que pontada na cabeça!
Novamente esperei as elucidações de Mário, que, sorrindo, me disse:
-Amocinha só se livrará do acompanhante desagradável da forma que ele mesmo disse, se ela vier e pedir ajuda. E não pense você que todas as pontadas que encarnados sentem sejam provocadas por desencarnados. Vimos uma das possibilidades.
O tempo passou e nem percebi. Não era nem um pouco maçante como pensara no início; o trabalho era movimentado e apresentava casos interessantes. Cheguei ao final de meu trabalho diário e com vovó fui para casa.
- Ricardo - disse-me vovó -, esteve muito bem, logo estará participando mais e saberá, em qualquer situação, o que fazer.
Meu lar terreno estava envolvido pela névoa de tristeza e preocupação. Procuramos fortalecê-los e convidá-los à prece. A única que percebia minha presença era Valquíria. Papai acalmava-se quando eu estava ao seu lado; alimentava-se e após alguns dias tomou banho, barbeou-se, deixou que limpassem o quarto e não bateu mais com a cabeça na parede. Carlos ainda queria levá-lo para se tratar num sanatório, mas mamãe, vendo-o melhor, foi contra.
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Reconciliação
Ao mudar de horário de trabalho, continuando como vigia, conheci Antônio, o orientador encarnado do centro espírita. Jovem, bem apresentável, veio com a esposa fazer a limpeza física do local. Gostei dele, transmitia simpatia e bondade, era tranqüilo e estava sempre a sorrir.
Chegou a hora de vovó voltar ao seu trabalho, despediu-se de mim. Por instantes me senti triste e temi ficar sem saber o que fazer. Ela incentivou-me:
- Ricardo, prometo-lhe que virei vê-lo sempre. Passarei todas as minhas horas livres com você e não se acanhe em pedir ajuda a Isaías e a Mário, que já são tão seus amigos.
Vovó Margarida sempre estava a ajudar-me com tanto amor. Abraçamo-nos e dei-lhe um beijo com toda a minha gratidão.
Com amor e carinho concentrei-me nas minhas novas responsabilidades, fortalecendo-me, orando com fervor, estudando os Evangelhos e confiando na amizade dos nossos companheiros.
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Reconciliação
Ao mudar de horário de trabalho, continuando como vigia, conheci Antônio, o orientador encarnado do centro espírita. Jovem, bem apresentável, veio com a esposa fazer a limpeza física do local. Gostei dele, transmitia simpatia e bondade, era tranqüilo e estava sempre a sorrir.
Chegou a hora de vovó voltar ao seu trabalho, despediu-se de mim. Por instantes me senti triste e temi ficar sem saber o que fazer. Ela incentivou-me:
- Ricardo, prometo-lhe que virei vê-lo sempre. Passarei todas as minhas horas livres com você e não se acanhe em pedir ajuda a Isaías e a Mário, que já são tão seus amigos.
Vovó Margarida sempre estava a ajudar-me com tanto amor. Abraçamo-nos e dei-lhe um beijo com toda a minha gratidão.
Com amor e carinho concentrei-me nas minhas novas responsabilidades, fortalecendo-me, orando com fervor, estudando os Evangelhos e confiando na amizade dos nossos companheiros.
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APRENDENDO A SERVIR
o
\^J rodízio do horário de trabalho fora muito bom para mim, primeiro na ajuda aos meus. Perto de trocar de horário, papai começava a sentir minha ausência, ficando emburrado e triste. Também como aprendizado no centro espírita, cada período tinha um tipo diferente de socorro. No período noturno tinha mais trabalho e, nos dias de sessões, o trabalho de vigia mudava por completo. O campo magnético era completamente desligado e todos os desencarnados entravam livremente. Vários grupos de socorristas voltavam das excursões

Reconciliação
com muitos necessitados. O movimento era imenso e tinha sempre muito o que fazer. Mário, para minha alegria, mudara comigo de rodízio, só conseguia elucidar-me de madrugada.
No primeiro dia de sessão em que fiquei de guarda, minutos antes do início, espantei-me com os muitos desencarnados que vinham acompanhando os encarnados.
Eles se apresentavam de diversas formas, uns adoentados e tristes, outros autoritários e orgulhosos e muitos brincalhões; estranhei quando vi um montado nas costas de um senhor encarnado e este queixava-se de dores lombares.
A maioria dos desencarnados não sabia de seu estado. Acompanhavam os encarnados certos de que ainda possuíam o corpo carnal. Vinham conversando, reclamando de seus males, participando da conversa de seus acompanhantes.
Muitos espíritos que se julgavam maus, perturbados e perturbadores, eram recebidos educadamente e, se na entrada demonstravam que ali estavam para enfrentar-nos, eram presos por forças magnéticas e conduzidos ao interior do prédio para assistir à sessão.
Querendo aprender, prestava muita atenção em tudo, assim mesmo acabei por fazer ações precipitadas, até mesmo engraçadas. Como em um dia em que Mário me pediu:
- Corra, Ricardo, pegue-o!
Dois desencarnados seguiam ao lado de uma senhora e um deles, ao ver que estava sendo conduzido ao centro espírita, correu em sentido contrário. Obedecendo à ordem que me foi dada, corri atrás, alcançando-o. Rápido segurei-o, ele se debatia querendo escapulir e me assustei.
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Vera Lúcia Marínzeck de Carvalho
- Que faço, Mário? Peguei-o, e agora?
Mário calmamente veio até nós, olhou-o simplesmente, ele aquietou-se e foi conduzido ao interior do centro espírita.
- Urra! - suspirei. - Que aperto passei!
- Você poderia tê-lo apanhado, usando sua força magnética, mental; aqui, não usamos disputar, lutar corporalmente. Veja, é assim que se faz.
Mário elucidou-me a usar a vontade, a usar nossa força interna. Mas fiquei curioso para saber o que ocorria lá dentro, nas sessões mediúnicas, e Mário disse-me:
- Não se apresse, Ricardo, para conhecer tudo. Chegará o tempo em que você trabalhará nas sessões.
No final das sessões, encantava-me com o aérobus que partia levando os desencarnados socorridos e orientados que vira entrar para os postos de socorro ou para a colônia, à qual o centro espírita era filiado.
Também iam embora os encarnados, sempre tranqüilos, acompanhados de seus guias espirituais; iam conversando amigavelmente, trocando idéias sobre o trabalho da noite.
Percebi logo a dedicação do senhor Antônio, que, com paciência e bondade, ouvia as queixas desses irmãos e elucidava sobre tudo o que indagavam. Notei também a freqüência de quase todos eles e vim a saber que se tratava dos médiuns, os trabalhadores encarnados.
- Você, Ricardo, é um bom vigia.
Foi o primeiro elogio que ouvi do orientador Isaías, que me deixou contente e incentivou-me a melhorar.
O meu ex-lar melhorara muito, minhas irmãs Tais e Telma eram dedicadas e boas, como também o eram seus esposos.
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Reconciliação
Márcio administrava os negócios de papai com precisão e honestidade, meus sobrinhos cresciam sadios e fortes e para mim - "tio coruja" - eram lindos. Pretinha cuidava da casa e de todos com a mesma dedicação, o que me comovia. Mamãe Margareth melhorara muito: com meu incentivo passou a dedicar-se mais à Valquíria e ao papai. Era outra pessoa, como comentavam, não saía mais de casa, não se arrumava como fazia antes e, atendendo a meus pedidos, orava mais e passou a ir com mais freqüência à igreja.
Valquíria definhava, estava magra e mais feia fisicamente. Carlos temia que não agüentasse passar a puberdade e morresse. Mas, para mim, ela melhorava, acalmara-se e, com mamãe mais ao seu lado, se sentia contente. Percebia minha presença e suas crises escassearam. Sempre estava a lhe pedir paciência e que se acalmasse, ela sentia-me espiritualmente e atendia.
Papai melhorava aos poucos, insistia muito com ele para que orasse; ele relutava, não se sentia digno e, quando começou a orar, sentiu-se muito melhor, passou a ter momentos de paz e começou a pedir perdão a Deus, à mamãe Manuela, a Raul e ao Louco.
Pensava sempre sobre o que o levara a achar que Manuela o traía ou que iria traí-lo. Sabia, no entanto, que ela fora fiel e que era honesta e boa. E na razão de não ter conseguido amar Raul. Era seu filho e naquela época queria que ele fosse filho do tarado. Ao pensar em Raul, chorava sentido, amava agora o filho que antes odiava e que assassinara, e o remorso doía-lhe profundamente.
Já não ficava preso no quarto, porém saía muito pouco de lá.
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
Um dia, acompanhando papai e mamãe que andavam pelo quintal, ouvi-os:
- Margareth, sinto que melhoro, porém carrego comigo uma dor tão grande que nunca mais serei como antes. A perda do nosso Ricardo é irreparável, porém é o remorso que me corrói.
Mamãe estremeceu e papai, após uma pausa, continuou:
- Estou calmo, lúcido e gostaria de que pelo menos você acreditasse em mim, fui eu que matei Manuela e Raul e deixei que um pobre louco pagasse pelo meu crime.
- Manuel, não diga isso, pelo amor de Deus, como pode?
- Como gostaria que tudo isso fosse mentira, mas não é. Matei minha esposa para me casar com você. Não a amava, não sei por que achava sempre que ela ia me trair e não suportava vê-la fiel e honesta. Queria me casar, ter você, bonita e alegre. Raul era um garoto assustado pela minha maldade, não o amava, não o queria como filho, livrei-me deles, ou pensei que me livraria. Agora, o remorso me destrói.
Mamãe chorou, papai abraçou-a.
- Você também, Margareth, sofre muito. Como tenho sido egoísta, só percebo minha dor.
- Manuel, prometa que não irá contar essa história a mais ninguém. Pensarão que está louco e o internarão num sanatório. Não quero me separar de você, esqueça esse crime. O Louco já morreu; Manuela, Raul e nosso Ricardo não voltarão mais. Não se martirize assim, esqueça isso. Valquíria e eu necessitamos tanto de você!
- Valquíria...
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- Sabe, Manuel, tenho cuidado mais dela, é tão frágil! Carlos acha que ela morrerá logo.
- Nunca liguei para ela nem para Raul. Calaram-se e, para minha alegria, entraram e foram
até Valquíria. Papai pegou-a no colo, conversou com ela. Minha irmãzinha estranhou, não quis receber os afagos dele. Papai entendeu que errara com ela, porém podia reparar o seu erro, e, com paciência, passou a agradá-la. Valquíria começou a aceitar seus afagos e a se sentir feliz com a atenção que recebia dos pais; deixou definitivamente de ter suas crises.
Eu recebia muitas visitas, eram amigos do Educandário, dos ex-mestres, como também do professor Eugênio e de mamãe Manuela; era gratificante escutá-los, receber notícias do Educandário. Raramente ia à colônia, dedicava-me com todo o carinho ao meu trabalho e estava realmente aprendendo a servir, emocionava-me até as lágrimas com meus pequenos êxitos.
João Felipe viera também visitar-nos. Abraçou papai em espírito, fora do corpo físico, e respondeu ao seu pedido de perdão.
- Perdôo sim, Manuel. O que sofri foi por minha colheita, tenha paz, meu irmão.
Papai, naquela noite, dormiu tranqüilo. Vovó Margarida sempre que podia visitava-nos, estava sempre nos ajudando. Um dia comentei com ela:
- Vovó, sei que Valquíria e mamãe Margareth já estiveram juntas em outra existência, e encabulo-me às vezes com Pretinha, tão boa, tão dedicada, terá ela motivos para servir assim? Conhece o passado delas, vovó?
- Sim, Ricardo, conheço e you contar a você. Pretinha na outra existência certamente tinha outro nome, este
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detalhe não importa. Pretinha foi muito bonita, caprichosa, fugiu de seu lar mocinha, deixando seus pais desesperados, a sofrer, para ter uma vida mundana de festas e muitos parceiros. Teve uma filha, Margareth, que manteve consigo, pagando a uma mulher para que tomasse conta dela. Ensinou a filha desde menina a ser vaidosa, a ter ambição e, adolescente ainda, a iniciou na forma de vida que levava. Nesse período, Margareth deu à luz uma menina, Valquíria, linda, de uma beleza exótica. Com oito anos, Margareth a colocou num convento para que tivesse outra educação, desejando que esta casasse bem, de preferência com um homem rico. Quando a filha saiu do convento, Margareth conseguiu casá-la com um homem mais velho e rico.
Valquíria apaixonou-se pelo marido e viviam felizes. A avó e a mãe a visitavam com freqüência, porém Margareth apaixonou-se pelo genro, sentiu uma paixão forte, tudo fez para conquistá-lo e tornaram-se amantes.
Valquíria acabou descobrindo o romance dos dois, ficou desesperada e prometeu que se vingaria. O esposo arrependeu-se, jurou parar de fazer todos sofrerem. Valquíria fora educada entre religiosas, conhecia e seguia uma religião. Planejou e, conscientemente, para vingar a traição, suicidou-se, jogando-se do alto de uma torre, desencarnando na hora, antes de completar dezenove anos.
Conseguiu fazer com que todos sofressem, o esposo sentiu muito sua morte, a mãe desesperou-se em sofrimento e ela também sofre até hoje seu ato de vingança. Margareth, arrependida, culpava a mãe por tê-la ensinado a ser devassa, e as duas, tristes, amarguradas, viveram ainda por muitos anos.
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Pretinha foi a que sentiu mais, teve lar e não deu valor a ele, teve uma filha e a fez infeliz.
Reencarnadas, a bondade de Deus reuniu-as novamente. Pretinha, órfã de mãe, meninota, o pai colocou-a em lar alheio para que trabalhasse. Serve Margareth, ajuda Valquíria, dedica-se agora a elas sem ser parente carnal. Agora é mãe e avó, amorosamente.
- Vovó, Pretinha trabalhou para mamãe e, antes, para a senhora?
- Sim, dedicada e trabalhadeira, fez por merecer ter boas patroas e amigas. Se não tivesse ocorrido o desencarne de Manuela, Pretinha iria por instinto do amor achar Margareth e servi-la, ajudá-la. As duas, em espírito, sabiam que Valquíria viria diferente e, sentindo-se culpadas, queriam estar com ela e ajudá-la.
- Puxa, vovó, vendo Valquíria agora, gostaria de poder gritar a todos os que pensam em suicídio para não fazê-lo. Destruir o corpo traz sempre sofrimentos maiores.
- O importante, Ricardo, é que as três estejam vencendo suas más tendências, aprendam a amar e a se respeitar. E Pretinha aprende muito nesta existência, serve, ajuda a antigos parentes carnais e ama muito.
- De fato, Pretinha ama, ajudou tanto a Tais, a Telma e a mim. Também recebe amor, já notou como ela é amada? Tais e Telma a têm como uma segunda mãe, seus filhos a chamam de "Tia Pretinha". É tratada como se fosse da família, e eu também a amo muito.
Era verdade, Pretinha amava e amor sincero é uma força poderosa, dá-se e se recebe. Amava Pretinha, e pensei: "Somos no presente o que construímos no passado e
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seremos no futuro o que fizermos no presente". Construir, realizar o bem, era muito importante, comecei a planejar como faria para ajudá-los a pensar neste assunto.
Meu trabalho no centro espírita era gratificante, qualquer pequena ajuda que fazia a outrem era eu o primeiro a receber; sentia-me tão bem e alegre que logo os amigos estavam me chamando de "Ricardo Alegria".
De vigia, passei a integrar as equipes de socorro, primeiramente ajudando os que vagavam na crosta. Atendíamos a pedidos de socorro emitidos da cidade e vê-la agora era bem interessante; conhecia a cidade muito bem na sua forma física, e conhecer seu lado espiritual foi de grande aprendizado.
Via muitas tristezas e sofrimentos, mas isso não me abalava; visitávamos muito o hospital e o número de desencarnados doentes era às vezes maior que o de encarnados. Gostei de consolar e animar os doentes e muitos deles se alegravam e resignavam-se com nossa presença. Quando não queriam receber nosso conforto, orávamos por eles e por minha vez tinha-lhes pena; é tão ruim negar-se a se conformar!
Visitávamos muito também o cemitério, confortando os encarnados que lá iam e procurando ajudar os desencarnados que, inconsoláveis, se prendiam a seus restos mortais sem querer abandonar o corpo. Andávamos pelas ruas, procurando ajudar aos necessitados, orientando, aconselhando desencarnados e instruindo para o bem os encarnados. Sabíamos que estávamos oferecendo ajuda e não obrigando ninguém a aceitar. Entendia agora que o Pai não deixa nenhum de seus filhos sem socorro. Num grande aprendizado, para que amemos a todos
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corno irmãos, deixou-nos a lição: que nos ajudemos uns aos outros.
Interessei-me muito pelo trabalho que as equipes do centro espírita faziam no umbral, íamos em excursão socorrista às partes mais próximas da crosta, onde ajudávamos sempre espíritos escravizados das falanges do mal e socorríamos também os que sofriam de remorso e os que clamavam por clemência. Estávamos sempre preparados contra os ataques dos irmãos inferiores que não queriam invasões nos seus domínios. Nas minhas primeiras excursões temi, depois aprendi a confiar e entendi que aquele que sabe faz com confiança.
Voltávamos ao centro espírita, carregando irmãos deformados, em farrapos, em grandes sofrimentos, para o socorro necessário.
Sabia que já havia sido como eles, recebera socorro e agora tinha a graça de socorrer. Sabia também que aquele sofrimento lhes era necessário como aprendizado, eram os invigilantes em que a morte física destruíra a ilusão construída sobre a areia.
- Agora, Ricardo - disse Isaías -, trabalhará diretamente com o encarnado, ajudará os protetores de médiuns no seu trabalho. Um médium ativo trabalha muito.
Primeiramente, acompanhei Nelson, que protegia dona Ana, e ele logo me informou:
- Ricardo, dona Ana e eu somos amigos e companheiros, não estou aqui para fazer a tarefa dela, e sim para ajudá-la e incentivá-la a fazê-la bem feita.
A dona Ana era uma pessoa boa e agradável. A tarefa era fácil porque ela era uma espírita fervorosa, lia e meditava sobre os Evangelhos todos os dias, orava com
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fé e tinha uma forma de vida honesta e simples. O trabalho que nos cabia fazer era socorrer os desencarnados que ela bondosamente pedia a Nelson para levar ao centro espírita e encaminhá-los. Toda vez que ajudava aos outros, ela os via; dona Ana estava sempre ajudando, e eram várias as pessoas que lhe pediam auxílio. Foi um período no qual aprendi que com fé e honestidade se constrói muito e que a alegria do encarnado ao fazer o bem é incomparável.
Depois fui ficar com Anacleta, que protegia dona Nívea, uma médium iniciante que longe estava de ter sido por amor a aceitação da tarefa mediúnica. Fora a dor que a trouxera para o centro espírita e para os trabalhos práticos. Indisciplinada, nunca achava tempo para estudar a Doutrina Espírita e vivia reclamando; tinha um vício bem desagradável: comentar a vida do próximo e contar piadas de baixa moral. Com grande bondade, Anacleta tudo fazia para orientá-la. Quase todos os dias, reunia-se com as amigas para sua conversa habitual. Anacleta e eu nos afastávamos, não dava para ficar perto e ouvir tantas coisas desagradáveis. Entretanto, outros desencarnados, que se afinam com esse tipo de conversa, reuniam-se a elas e gargalhavam, trocando fluidos negativos. Dona Nívea recebia esses fluidos, clamava pelo anjo da guarda, seu guia-protetor, e reclamava a todo instante: "Estou mal, you reclamar ao senhor Antônio, tenho ido às sessões e aí está, é o que recebo, estou pesada, com fluidos ruins; you tomar passes".
Dei graças a Deus por mudar de trabalho. Não é agradável ser protetor daquele que acha que merece receber alguma coisa em troca da sua mediunidade, e pensa estar fazendo favores a outrem e não a si mesmo.
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Fui acompanhar o senhor Antônio. Ele, além de Isaías, tinha sempre consigo dois a três trabalhadores, e estar com eles foi muito gratificante. O senhor Antônio trabalhava muito materialmente para seu sustento e dos seus e todos os dias, à tardinha ou à noite, dava passes em várias pessoas e visitava doentes.
A nós cabia o socorro dos desencarnados que acompanhavam os encarnados que vinham até ele em busca de auxílio. Também estávamos sempre atentos para o ataque de desencarnados mal-intencionados; muitas vezes tínhamos que prender alguns e deixá-los no centro espírita para que, na próxima sessão, fossem orientados.
Nesse período excursionei com Isaías pela parte mais trevosa dos umbrais. No começo fiquei chocado com as condições em que viviam tantos irmãos, lugar muito triste com fluidos pesados, tantos sofrem lá e outros se vangloriam de lá estar e de ter no umbral sua morada. Fizemos socorros fantásticos e impressionava-me o modo com que Isaías tratava nossos irmãos trevosos na sua ignorância, mudando muitos deles e encaminhando-os para o bem.
- Ricardo, cada um faz por merecer estar num lugar, afinamo-nos a grupos semelhantes.
Ouvi essa explicação de Isaías, quando vi que muitos desencarnados que socorríamos não queriam ir para os postos de socorro nem para as escolas do plano espiritual. Queriam, sim, ficar livres de seus males e dores, sem mudar a forma de viver.
Curados de seus males, recebiam orientação, eram levados para o posto de socorro do qual o centro espírita fazia parte, para logo mais voltar quase sempre para seus
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lares ou lugares afins. Tempos depois, pediam novamente socorro; seus males, quase sempre, tinham voltado. Isaías continuou a elucidar-me:
- Ricardo, nas nossas escolas e nos postos de socorro há muita disciplina. Para que nosso trabalho dê resultado não podemos fugir da regra: "Ordem para progredir". Lá não são permitidos vícios, não há bebida alcoólica, fumo, não podemos permitir fofocas e palavreado baixo. Há horário para tudo, e esses lugares de socorro e aprendizado são simples e sem luxo. Muitos não gostam disso, não se adaptam lá, querem somente a cura dos males externos; mesmo no perispírito, há a parte externa. Não curado o interno, não havendo modificações íntimas, com fluidos pesados da crosta, logo estão novamente com seus males. E sofrem até que realmente desejem mudar, sendo a dor maior que o orgulho, até que aceitem nosso lugar de socorro como bênção e com respeito. Muitos, entretanto, não conseguem ficar num posto de socorro pela saudade que sentem dos seus. Desejam tão intensamente estar com eles que acabam vindo e depois não sabem voltar.
Completara quatro anos que trabalhava no centro espírita, meus familiares melhoraram muito. Papai, para nossa felicidade, pensava em assumir os negócios.
- Ricardo - disse vovó -, se você quiser pode voltar ao Educandário, não creio que Manuel possa recair.
Pensei por momentos e respondi:
- you ficar, vovó. Se posso escolher, quero continuar aqui, quero encaminhar para uma compreensão maior os meus familiares e dedicar mais horas de trabalho a esse grupo tão amigo. Ainda não participei das sessões e desejo muito fazê-lo!
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- Orgulho-me de você, meu neto, acho que fez a melhor escolha.
Abraçamo-nos contentes. Sentia-me realmente muito feliz, estava aproveitando a oportunidade que me fora oferecida, aprendia a servir.
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Dores, o sacrifício dos exercícios, as medicações, nada disso fazia papai reclamar. Estava contente com tudo, em casa ninguém reclamava, e um dia ouvi papai comentar com mamãe:
- Margareth, a sociedade não quis prender-me, não me deixaram pagar por meu crime na prisão. Às vezes me pergunto se não estou preso. Não saio mais de casa, fico quase o tempo todo no quarto e com minha doença quase não ando e falo tão enrolado!
- Manuel, não fale assim, sofremos sem reclamar, talvez este sofrimento seja fruto do nosso erro; não toque mais neste assunto, por favor, você prometeu. Tenho medo de que suas filhas ouçam, elas pensam com certeza que foi uma alucinação momentânea que teve.
Se papai não falava, pensava muito, todos os dias orava e pedia perdão.
Chegou a minha vez de servir nas sessões práticas no centro espírita. Vibrei de contentamento. A primeira vez em que participei foi para o estudo evangélico e doutrinário. Não havia muitos encarnados. Por mais que o senhor Antônio convidasse e orientasse para a necessidade de todos aprenderem, principalmente os médiuns, para servirem com mais precisão e com sabedoria, eram poucos os que freqüentavam as reuniões de estudo.
Muitos desencarnados tinham a permissão de ficar para aprender. Isaías e outros colaboradores procuravam instruir e orientar o estudo da noite. Iniciava-se com uma prece, feita a cada dia por uma pessoa, o senhor Antônio abria O Evangelho Segundo o Espiritismo e lia um texto; após, comentava-o e as pessoas presentes podiam dar sua opinião, ou mesmo falar sobre o texto lido.
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Os desencarnados somente escutavam e, se quisessem esclarecer alguma dúvida, esperavam o término da reunião, e Isaías elucidava-os com prazer.
Após, O Livro dos Espíritos foi aberto no lugar marcado, estava sendo estudado desde o início; gostei muito da forma como estudavam, uma pergunta ou mais era lida e discutiam o assunto até que todos entendessem. Era muito interessante, trocavam idéias, comentavam fatos ocorridos com eles, também liam nas reuniões artigos sobre a Doutrina Espírita, páginas de revistas e jornais espíritas.
No horário marcado, terminavam com a Prece de Cáritas e agradeciam a oportunidade de aprendizado.
Os encarnados iam embora conversando. Nós ficávamos por mais tempo desfrutando da companhia de Isaías. Agora éramos nós que conversávamos trocando idéias, comentando fatos, tirando dúvidas com as elucidações de Isaías.
O trabalho de desobsessão começava para nós, desencarnados, horas antes, tudo bem organizado; várias equipes participavam, para que aprendêssemos com precisão, era feito também o rodízio. Uma equipe tomava conta dos desencarnados sofredores, outra, dos irmãos ignorantes do bem; uma equipe auxiliava os encarnados, os médiuns, outra visitava os lares dos presentes, como também os pedidos que o centro espírita recebia, quase sempre de socorro, solicitações de ajuda, anotados no caderno que ficava sobre a mesa. Também tínhamos a equipe de médicos e nós, leigos em medicina, participávamos como ajudantes de enfermeiros. Sempre havia muito trabalho. Os espíritos adormecidos eram despertados e reunidos
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aos que chegavam para ouvir a leitura do Evangelho e as preces. Todos os desencarnados tinham que ficar quietos, respeitando o ambiente. Os insubordinados, para não tumultuar os trabalhos, eram presos por forças magnéticas e esperavam, numa fila, sua incorporação. Os médiuns chegavam e sentavam-se à mesa. O responsável pelas incorporações começava a organizar a fila dos que recebiam orientação pela incorporação, e por qual dos médiuns.
Quando um médium não ia, fazia muita falta, às vezes não era possível despertar todos os que esperavam adormecidos e muitos tinham que aguardar pela oportunidade na próxima vez. E muitos iam sofrer por mais alguns dias ou semanas. Com todos acomodados e em silêncio tinha início a sessão com uma prece feita por um dos que se sentavam ao redor da mesa.
O senhor Antônio lia um texto do Evangelho e fazia breve comentário. A luz branca apagava-se e era ligada uma outra bem suave.
Com todos participando da prece, o ambiente ficava confortador, levando muitos desencarnados a chorar emocionados. Muitos, como previa Isaías, nem necessitavam de uma incorporação, compreendiam e aceitavam nossa ajuda. Os protetores dos médiuns ficavam ao lado deles, ajudando na incorporação. Os desencarnados aproximavam-se dos médiuns, que recebiam suas idéias e começavam a falar. É um fenômeno maravilhoso. Ao se aproximar o desencarnado do médium, este percebe a grande diferença que há nos seus corpos, logo que o doutrinador compara sua situação. Ele fala quase sempre de sua situação, de suas mágoas e de suas dores; podendo
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falar e ser escutado por encarnados, recebe de um doutrinador orientação e, conseqüentemente, sua melhora. Afastado do médium, espera em outra fila. Os desencarnados perturbados, maus, ficam quase sempre inquietos, desejando incorporar logo, não tendo paciência para esperar, ou não querendo conversar com ninguém, ainda mais com encarnados. Eles têm a consciência intranqüila e não gostam de dar contas de seus atos. Com sabedoria, o senhor Antônio, ajudado por Isaías, conversava com eles, procurando fazer com que entendessem a necessidade de melhorar e mudar a forma de viver.
Orávamos com fé para que esses irmãos tomassem consciência de seus erros e voltassem ao bem.
Perto do horário de encerramento, os socorridos eram levados para um aérobus e conduzidos ao local devido; Isaías sempre orientava seus colaboradores.
Nem todos os centros espíritas trabalham dessa maneira. São diversas as maneiras de realizar a tarefa e, se os componentes de um grupo estão com boa vontade e determinação de fazer o bem, ele é realizado. Contudo, os que estudam, aprendem, sabendo, realizam-no com mais segurança.
Procurava fazer as tarefas que me cabiam com segurança e da melhor forma. Entretanto, sempre que possível, prestava atenção às incorporações. Gostava muito. Cada desencarnado tinha uma história interessante. A morte do corpo, a desencarnação, não é igual para todos, não segue regra geral, e a maioria das pessoas sofre por mudar a forma de viver e por não aceitar esta mudança.
Comovia-me por ver tantas pessoas passarem anos e anos iludidas, sem sequer perceber que tinham desencarnado. Muitas delas acreditavam que a morte seria
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diferente, e não pelo processo simples por que passaram. Outros julgavam-se credores por terem feito muitas orações, algumas caridades e participado de cultos externos. Honraram com os lábios e não com o coração. Muitas e muitas vezes, chorei junto deles, apiedando-me com seus sofrimentos.
Vendo tantos imprudentes, Isaías, por intermédio do senhor Antônio, repetia sempre, tanto para os desencarnados como para os encarnados que ali aprendiam:
-Aproveitemos a oportunidade que o Pai Maior nos está oferecendo para melhorarmos interiormente, trocando nossos vícios por virtudes, aprendendo para compreender as verdades eternas. E a nós, encarnados, o que é mais importante é voltarmos ao plano espiritual com boas obras, com nossos talentos multiplicados; e desde já tudo devemos fazer para que nos afinemos com o bem para merecermos ficar em bons lugares.
E suas orientações vinham ao encontro de nossas necessidades. Nós, desencarnados, meditávamos em profundo silêncio e muitas vezes escutei no término da sessão encarnados trocando idéias:
- Não quero desencarnar e ficar no umbral. Meu Deus, como é triste!
- Viva de maneira que mereça ser socorrida, Marisa!
- Como é ruim desencarnar e ficar iludido, julgando que o corpo não morreu!
Compreendi que o principal objetivo das reuniões era educar, instruir, doutrinar, sanar o espírito.
Após os socorridos terem se retirado, um dos presentes orava a Prece de Cáritas. Os orientadores desencarnados espargiam fluidos salutares sobre todos os
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encarnados que oravam e estes recebiam energias puras, forças para o espírito e o corpo.
Com a saída dos encarnados nosso trabalho não terminava. Organizávamos tudo, deixando o centro espírita, no plano espiritual, limpo e organizado.
Equipes nossas também acompanhavam os socorridos para o posto de socorro. Fui lá muitas vezes, era grande e muito bonito. Acomodávamos os doentes nas enfermarias, quase sempre eles indagavam sobre suas dúvidas e conversávamos por horas, motivando-os, explicando onde estavam, o que de fato se passara com eles. Quase todos se sentiam felizes por estarem curados e faziam promessas de melhorar e se adaptar à nova forma de viver. Pena, pensava, que a maioria logo esquecia esse propósito.
Gostava muito de participar dos trabalhos da equipe médica como ajudante de enfermagem, ajudando a encarnados e a desencarnados; ficava sempre atento às explicações que os médicos nos davam:
- As doenças têm diversas origens: as carmáticas, que às vezes só podemos suavizar para animar os doentes; as que conseguimos curar são as doenças que criamos pelos vícios, pela alimentação errada e exagerada, e tantas outras doenças comuns, como gripe, sarampo etc., que são simples conseqüências de vivermos nos fluidos da Terra.
Fluir a água era de muita responsabilidade. Doutor Jamil, nosso companheiro desencarnado, organizava a medicação, cuidadosamente a colocava nos frascos particulares e fluía com energia a água que todos tomariam.
No centro espírita não havia trabalhos sociais. Senhor Antônio sempre dizia que a caridade material ficava a
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cargo de cada um; e ele dava o exemplo, socorria a todos os que lhe pediam e estava distribuindo sempre mantimentos pelos subúrbios da cidade.
Pessoalmente conhecia e participava de todos os trabalhos e, se podia escolher, ajudava nas incorporações. Nessa ajuda, aprendi muito, entendi que é muito mais fácil desencarnar conhecendo o fenômeno da morte física e ter a compreensão de como vai ser a vida após a morte do corpo carnal. Todas as religiões são boas; pessoas religiosas são ligadas ao Pai; ser bom é ter um tesouro de felicidade no plano espiritual, afinar-se com a vida simples e pura e amar os locais de socorro.
Mas o Espiritismo ensinava a amar com compreensão e entender com raciocínio lógico os ensinamentos de Jesus. Os encarnados espíritas ganhavam muito aprendendo o que muitos de nós fazíamos agora, desencarnados. Pensava como seria bom se os meus familiares conhecessem e entendessem o Espiritismo. Sabendo que o senhor Antônio visitava tantos doentes, pedi a Isaías:
- Isaías, o senhor Antônio poderia visitar meus pais, o Espiritismo fará tanto bem a eles!
- Podemos pedir-lhe.
O senhor Antônio recebeu sem entusiasmo meu pedido. "Como iria a um lar - pensou - sem ser convidado? Como seria recebido, se apenas os conhecia?"
Não desanimei, insisti; dois dias depois, ao sair para suas visitas, acompanhei-o, instruído por Isaías; passou em frente à casa de meus pais, por minutos ficou indeciso, aproximei-me dele e pedi:
- Senhor Antônio, por favor, vá, eles necessitam de orientação, de ajuda, vá, por favor.
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Senhor Antônio bateu palmas no portão e em instantes foi atendido por Pretinha. Meu amigo falou um tanto encabulado:
- Vim visitar o senhor Manuel.
- Entre, senhor, estamos na sala neste momento, o senhor Manuel ficará contente. Recebe tão poucas visitas, acha-se esquecido pelos antigos amigos.
O senhor Antônio entrou, papai cumprimentou-o e reconheceu-o como um antigo freguês do armazém. Era, contudo, pouco o conhecimento para uma visita, e meus pais ficaram curiosos.
O senhor Antônio, agradável, simpático, encaminhou a conversação para assuntos alegres e os minutos passaram rapidamente. Querendo que conversassem sobre a Doutrina Espírita, intuí Pretinha a indagar:
- Senhor Antônio, o senhor é espírita?
- Sim, senhora, sou espírita.
- O que é o Espiritismo, senhor Antônio? - indagou mamãe.
- Uma religião codificada por Allan Kardec, que nos dá a compreensão da vida nas suas diversas formas de vivê-la, seja no corpo físico, seja no Além, tendo o corpo morto.
A resposta simples veio diretamente a eles e todos silenciaram e pensaram em mim. Mamãe indagou, novamente curiosa:
- Acha o senhor que nosso Ricardo vive de outro modo? Ele está vivo?
- Sim, vivo em espírito, e Ricardo muito os ama. Muitas perguntas fizeram ao senhor Antônio, que
pacientemente respondia, e a visita prolongou-se.
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- Já é tarde - disse meu amigo -, devo ir-me.
- Por favor, não vá, há tanto tempo que não tínhamos uma conversa tão agradável! - disse mamãe.
- Senhor Antônio - disse papai no seu jeito confuso, às vezes sendo ajudado por mamãe ou Pretinha -, sua religião deve dar muitas esperanças a seus seguidores. Se o senhor puder, volte, interessei-me profundamente, gostaria de conhecer e entender seus ensinamentos.
- É com prazer que volto e, se quiser, trago alguns livros nos quais encontrarão esses ensinos.
- Poderia comprá-los para nós? Gostaria de ter alguns
- disse mamãe, entusiasmada. - Que maravilhoso é poder saber como está vivendo Ricardo, como é a continuação da vida no Além.
- Sim, posso comprá-los, tenho alguns exemplares para serem vendidos, que adquiri na Feira do Livro do ano passado.
Mamãe pediu licença, saiu da sala e voltou com uma quantia de dinheiro que entregou ao senhor Antônio.
- Compre-os para nós, por favor, senhor Antônio. Aqui está o dinheiro, traga-nos o que achar melhor, assim desfrutaremos novamente de sua companhia, quando vier traze-los.
Quando o senhor Antônio se retirou, conversaram animados sobre o assunto ouvido e, como esperava, gostaram muito do orientador do centro espírita.
Agradeci ao senhor Antônio. Ele sorriu para mim, sentiu meus fluidos e disse baixinho:
- Foi você, hem, Ricardo, que me fez vir visitá-los. Valeu, meu amigo, foi uma visita de proveito.
O senhor Antônio foi logo separar os livros para levar à mamãe, e exclamou ao contar o dinheiro:
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- Ora veja, a senhora Margareth pensa que os livros espíritas são caros como os comuns. Comprará muitos livros!
Dois dias depois, o senhor Antônio levou os livros, explicou o que encontrariam em cada um deles e conversaram por muito tempo sobre Espiritismo. Comovi-me quando papai pediu-lhe:
- Senhor Antônio, seria possível dar-me um passe? O senhor Antônio bondosamente aplicou-lhes um
passe de energia e todos se sentiram bem. O dirigente espírita passou a ser um amigo sempre bem-vindo àquela casa.
Começaram a ler os livros, trocar idéias, falar de textos e, como o senhor Antônio sugerira, todos os dias, à tardinha, reuniam-se, e mamãe lia um texto de O Evangelho Segundo o Espiritismo e oravam juntos.
O clima de minha casa mudou, a tristeza já não deixava fluidos cinzentos, começaram a pensar na caridade e, o mais importante, a praticá-la.
Valquíria acomodara-se bem, agora ficava muito com meus pais, escutava quieta a leitura, as preces, gostando de sentar ao lado de papai.
Papai sofreu seu segundo derrame cerebral, que lhe deixou seqüelas mais graves. Falava poucas coisas e só se locomovia com ajuda. Agora, passava quase o tempo todo deitado ou sentado; passou a meditar nos ensinos que adquirira.
Valquíria fazia-lhe agora companhia constante, ficavam sentados pertinho, silenciosos, porém comungando carinho e resignação.
Os quatro se reuniam por mais tempo e, para não cansar papai, era mamãe ou Pretinha quem lia alto os livros; por vezes, paravam para comentar o texto.
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E, como Carlos previra, Valquíria não estava bem fisicamente, seu organismo fraco logo expulsaria sua alma.
Foi durante uma dessas reuniões, em que mamãe lia, que Valquíria simplesmente se desligou. Seu corpinho estremeceu e deixou de respirar.
Seu enterro foi simples e papai não pôde ir, sentiu muito sua ausência. Mas desta vez, com a compreensão espírita, evitaram chorar e esforçaram-se por se conformar.
Mamãe arrependeu-se muito por ter, anos antes, desejado que ela morresse e comentou isso com o senhor Antônio, logo que ele os visitou.
- O que importa, dona Margareth, são seus sentimentos agora, não deve pensar mais nisso. Deu-lhe tanto carinho nestes últimos anos e tornaram-se amigas, amaram-se. Valquíria teve o tempo que lhe foi necessário para reajustar-se; a morte de seu corpo foi uma libertação. Onde está agora, terá a cura de seus males. Pensemos nela, feliz e em paz, e oremos para que ela se adapte lá.
O senhor Antônio tinha razão. Valquíria foi desligada carinhosamente por socorristas, levada para um local de socorro ao qual estava filiada como ex-suicida e lá continuou a ser orientada. Foi com grande alegria que recebi permissão para visitá-la.
-Valquíria!
- Ricardo! Meu Ri!
Abraçamo-nos ternamente, Valquíria estava sadia, falava perfeitamente, seu aspecto modificara-se, estava tranqüila. Ela explicou-me:
- Tive permissão para modificar meu aspecto, poderia até ter a aparência que tive em outra existência, porém não quero ser bonita como fui antes nem tão feia
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como fui nesta; mas, ao ficar sadia, obtive esta aparência e you ficar assim. Ricardo, meu irmão, alegro-me tanto em vê-lo e conversar com você!
Valquíria tinha uma voz agradável e doce, estava feliz por conversar, andar com segurança, correr.
- Valquíria, eu que me alegro vendo-a assim.
- Você amou-me, ajudou-me, sou-lhe grata.
- Quero amar e ajudar sempre. Valquíria, por que você não tenta amar a todos também?
- you aprender, Ricardo, os ensinos que ouvi sobre a Doutrina Espírita ajudaram-me tanto! O meu cérebro físico podia não entender, mas espiritualmente sim, recordo-os com carinho, you estudá-los e firmar-me no bem. É tão bom amar a todos e não ter mágoa de ninguém!
- O amor, minha irmã, é o remédio para todos os males, força pura que nos aproxima do Pai. Que Deus a proteja, Valquíria.
E, sempre que me era permitido, ia visitá-la, conversávamos muito e contente acompanhei Valquíria, que com determinação começou a estudar, trabalhar e logo, dentro da instituição, passou a fazer parte de uma equipe de ajuda aos suicidas socorridos.
Minha casa terrena modificara-se, sem Valquíria. Diminuíram os trabalhos, ficou vazia e silenciosa sem seus gritos e choros.
Mamãe e Pretinha, seguindo os conselhos do senhor Antônio, doaram os pertences todos de Valquíria, e até mesmo alguns meus que estavam guardados, para uma escola que orientava crianças excepcionais. Com a permissão de papai, passaram as duas a ir às reuniões de estudos. Passaram também a confeccionar roupinhas e
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distribuí-las nos lugares pobres da cidade. Defrontaram com muitos sofrimentos, comentavam com papai. Vendo que muitos sofriam mais que eles, entenderam que é ajudando que se é ajudado, é confortando que se é confortado.
Papai, por ficar muito tempo deitado e sentado, começou a ficar com o corpo ferido. Às vezes chorava de dor, porém não reclamava, orava muito, pedia perdão e, o mais importante, perdoara a si mesmo.
O senhor Antônio convidou mamãe e Pretinha para assistirem aos trabalhos práticos de incorporações, elas foram.
Isaías disse-me, ao vê-las entrar no salão:
- Ricardo, prepare-se. No término dos trabalhos, antes da Prece de Cáritas e da oração final, incorporará e falará aos seus familiares presentes por meio do aparelho mediúnico de dona Ana.
Emocionado, pensei no que falaria e aguardei ansioso minha vez.
Quando acabou a doutrinação dos socorristas da noite, o senhor Antônio, instruído por Isaías, viu-me ao lado de dona Ana e disse:
- A dona Ana receberá mais uma vez, é um amigo que dará uma comunicação à sua mãe presente.
Estava maravilhado; era a primeira vez que desfrutava a graça desse intercâmbio. Falei e, como um disco gravado, a dona Ana repetiu alto para os encarnados escutarem.
Emocionei-me, segurei as lágrimas. Não querendo abusar, procurei ser breve e disse:
- Mamãe, Pretinha, peço-lhes a bênção. Estou muito bem, vivo feliz, estou agradecido pela oportunidade de
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
falar a vocês, como também por vocês terem aceitado a graça do consolo que o Espiritismo dá a todos nós. Peço-lhes paciência e firmeza na caminhada a que foram chamadas a seguir. Trago notícias de Valquíria, minha irmãzinha está linda, sadia e muito feliz. Transmita ao papai meu pedido de bênção e digam também que o amo muito. Eu amo demais todos vocês.
Afastei-me. Não só mamãe e Pretinha choravam como muitos dos presentes e até eu. Isaías abraçou-me.
- Isaías, sou grato a todos.
- Ricardo, a mediunidade é maravilhosa quando se serve ao bem, agradeçamos ao Pai.
Acompanhei-as, estavam as duas contentes, agradecidas, e ao chegarem foram contar ao papai.
- Meu Ricardo vive, é feliz - exclamou ele -, graças a Deus!
Choraram de emoção, de saudade e as lágrimas de resignação os aliviaram; tranqüilos, oravam em agradecimento.
Passei a dedicar mais horas de trabalho ao centro espírita. As restantes, ficava com os meus para animá-los. Agora, minha tarefa em casa estava fácil. Se via papai sofrer fisicamente, por outro lado ele se fortalecia espiritualmente e isso era o mais importante. Sabia que iria desencarnar e seu sofrimento estava curando seu espírito.
E trabalho num centro espírita não falta; o aprendizado era diário e o tempo passou.
m2

ALELUIA
l apai não estava bem, tanto que Isaías permitiu que passasse mais tempo com ele. Ia completar naquela manhã quinze anos que eu desencarnara. Como sempre, fizeram a higiene diária em papai e ele pacientemente suportara as dores que sentia ao serem medicados seus ferimentos causados pela imobilização. Tinha feridas pelo corpo, principalmente nas costas, nádegas e pernas, que exalavam odores desagradáveis. Sentia muitas dores e cansaço.
Lembraram-se os três da data, comentaram os tristes fatos ocorridos há quinze anos. Éramos felizes e este dia marcou a todos, levando-os a conhecer a dor, o sofrimento.

Vera Lúcia Marínzeck de Carvalho
Deixaram papai no leito, ele começou a recordar os acontecimentos daquele dia com clareza. Depois passou a recordar acontecimentos, sem ordem, de sua vida. Seu corpo enfraquecia, respirava com dificuldade, logo ia ter seu terceiro derrame cerebral. Mamãe e Pretinha, ao vê-lo, preocuparam-se e pediram que buscassem o médico. Logo o facultativo chegou e examinou-o:
- Senhor Manuel não está bem, dona Margareth. Mandaram chamar Tais e Telma e eu chamei Isaías.
- Ricardo - disse-me Isaías carinhosamente -, seu pai desencarna. Os socorristas logo estarão aqui para desligá-lo do corpo, o senhor Manuel será levado para um posto de socorro. Seu pai muito errou, muito sofreu, aprendeu a amar e, o mais importante, aproveitou seu sofrimento para aprender e modificar-se, suportou o sofrimento físico, como medicamento para seu espírito.
A família em prece acompanhou sua agonia, estavam silenciosos. Isaías adormeceu o espírito de papai, que parou de sofrer; os socorristas o desligaram e o retiraram do corpo, e este morreu.
Acompanhei tudo calmamente, orando com fé, vibrando com carinho, para que eles tivessem força, diante de mais esse sofrimento. Sabendo que papai ia ficar dormindo algum tempo, permaneci ali para consolar mamãe.
Quando o médico deu a notícia, mamãe chorou baixinho, tentou orar, rogava por meu auxílio, pedia-me para encaminhar papai.
Tais e Telma tudo fizeram para consolar mamãe. Foram ao enterro juntas, sentiam sem revolta a desencarnação de papai. Continuaram a ir a casa, agora de mamãe, e tudo faziam para agradá-la e confortá-la.
244

Reconciliação
Após a missa de sétimo dia que Tais mandou celebrar, foram todos da família ao cemitério. No mesmo túmulo estavam os restos mortais de papai, de Valquíria e os meus, como Ricardo.
- Margareth - disse Tais ~, Márcio e eu queremos que você e Pretinha venham morar conosco.
- Também é este o nosso desejo - disse Telma. Mamãe chorou comovida, agradecida, e abraçou as
enteadas.
- Obrigada, minhas filhas, Pretinha e eu queremos ficar no nosso canto, não queremos mudar, lá é o nosso lugar, mas quero pedir a vocês para que nos enterrem aqui, junto deles, quando nosso corpo morrer. Queremos ficar os cinco juntos.
Todos foram embora, só ficaram mamãe e Pretinha, orando.
- Pretinha, como Tais e Telma são boas!
- Dona Margareth, a senhora também sempre foi boa para elas.
- É, Pretinha, recebo uma pequena parte de minha colheita, a parte boa. Já pensou se tivesse sido má com elas, agora sozinha, com quem contaria? Tive dois filhos, tenho-os, porém partiram mais cedo, só me restam elas.
- Não está sozinha, tem a mim; eu, sim, não tenho ninguém.
- Queixamo-nos à toa, temos muito e teremos mais se fizermos por merecer. Se eu tenho você, você tem a mim. Que tal pensarmos que somos duas irmãs? Para começar, não me chame mais de dona!
- Será que me acostumo?
As duas voltaram de braços dados e com muitos planos. Iam ser membros ativos dos trabalhos assistenciais
245

Vera Liicia Marínzeck de Carvalho
e freqüentar todas as sessões do centro espírita. Eram, de agora em diante, espíritas assumidas.
À noite, reuniram-se para tratar dos negócios, mamãe disse:
- Márcio, quero que cuide do testamento, você e Carlos. Quero somente ficar com esta casa e já passe em usufruto das meninas. Quero, também, passar a casa que temos na esquina em nome de Pretinha; se eu morrer primeiro, quero que ela fique pelo menos com uma casa boa e que o aluguel a sustente, juntamente com a aposentadoria que logo irá receber. Com a aposentadoria que receberei de Manuel, eu e Pretinha viveremos bem.
- Dona Margareth, tem certeza de que é isso mesmo que quer? A metade de tudo o que o senhor Manuel tinha é da senhora.
- É assim que quero, Márcio, tudo o que era de Manuel deve ser de Tais e Telma.
- Farei como quiser, porém temo que a aposentadoria não possa sustentá-las no futuro. Passarei as casas de aluguel que o senhor Manuel tinha no seu nome em usufruto de Tais e Telma. Terá assim mais uma renda e nós teremos a certeza de que estarão bem, financeiramente. E reafirmamos: nossos lares estarão à disposição de vocês duas, venham ter conosco quando quiserem. Podem ter a certeza de poderem contar conosco sempre, a família continua. A senhora, dona Margareth, foi sempre como mãe para Tais e Telma, avó de nossos filhos, nós a amamos e nossa amizade deve continuar.
Ao receber o recado de que papai acordara, quase um mês depois, fui visitá-lo. Estava num posto de socorro perto da crosta, um lugar de amor, pequeno, simples e bonito.
246

Reconciliação
Abraçamo-nos comovidos, choramos e ele exclamou:
- Desencarnei mesmo!
- Papai, está num posto de socorro recuperando-se, logo poderá levantar-se, deve esforçar-se para sarar. São, pode ser útil; doente, terá de receber ajuda.
- Esforçar-me-ei, meu filho, tantos anos doente, alegro-me em sarar, já não sinto mais dores.
- Papai, é um hóspede desta casa de caridade, aqui fica quem quiser. Querendo poderá voltar ao lar/ basta desejar ardentemente, mas não deve fazer isso, não deve desejar voltar lá, agora é um desencarnado e deve desejar somente viver como tal em espírito, sem o corpo carnal.
- Entendo, filho; you sentir saudade das pessoas, mas não de estar encarnado. Ainda sinto o odor desagradável das minhas feridas. Sinto-me tão bem aqui, nada farei sem ordem ou permissão, quero ser e you ser obediente. Sou grato a Deus e a todos os que me socorreram.
Voltei tranqüilo. Em casa, Pretinha e mamãe estavam bem. Colocando seus planos em prática, faziam, animadamente, suas tarefas.
Agora, poderia voltar aos meus estudos, poderia concluí-los nas esferas superiores, e levaria uma grande bagagem de conhecimentos, adquiridos nesses anos que passei em trabalho e aprendizagem entre amigos no centro espírita.
Comuniquei minha decisão a Isaías.
- Ricardo, fico contente por ter tido você conosco nesses anos, e fico mais contente ainda por saber que você está querendo estudar, progredir.
Isaías reuniu todos os trabalhadores e, após a reunião da noite, despedi-me de todos eles, abraçando um
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
por um. Éramos amigos e amigos sabem se despedir, era um "até logo!" com votos de felicidade. Parti.
Após quinze anos, o tempo passara, envelhecemos quando reencarnados, porém eu estava como minutos antes do acidente. Não me modificara, os encarnados que me amavam pensavam em mim assim, fora bom papai ver-me assim, com fisionomia de adolescente, mas com o amadurecimento de um adulto. Passara, agora, pelo tempo.
Fui primeiramente ver papai e encontrei vovó Margarida e mamãe Manuela visitando-o.
Papai segurava a mão de mamãe Manuela:
- Manuela, seu perdão me faz tanto bem, obrigado.
- Manuel, há tanto tempo que lhe perdoei. Esqueçamos os fatos tristes. Alegremo-nos com o presente e esperançosos devemos estar quanto ao futuro.
- Papai! Mamãe! - exclamei.
Abraçamo-nos. Mamãe Manuela levantou-se e foi ficar perto de vovó que estava em pé do outro lado da cama. Sentei-me onde ela estava, numa cadeira ao lado da cabeceira de seu leito, e segurei sua mão.
- Como está, papai?
- Bem, filho, Manuela veio visitar-me e perdoou-me! Papai apertou-me a mão, fechou os olhos e, emocionado, continuou a falar:
- Só falta ver meu Raul, queria tanto vê-lo, pedir, implorar seu perdão, meu filhinho Raul, amo-o tanto agora!
Quis ser Raul, concentrei-me e modifiquei minha imagem. Adquiri as feições que tinha antes, meu perispírito mudou-se na aparência que tinha como Raul.
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Reconciliação
Papai abriu os olhos, olhou-me e exclamou, assustado:
- Raul? Você é Ricardo?
Vovó tranqüilamente esclareceu:
- Raul e Ricardo são um só espírito; teve duas reencarnações como seu filho, porque muito o ama. Você, Manuel, entende a Lei da Reencarnação e sabe ser isso possível.
- Meu Deus! Raul e Ricardo são uma só pessoa, ou seja, um só espírito! Como pode? Matei você, Raul, e voltou como meu filho novamente?
- Perdoei-lhe como Raul e, como Ricardo, fiz com que me perdoasse.
- Perdoar-lhe? Por que quis meu perdão? Não fui eu a matar seu corpo como Raul?
- Em outras reencarnações estivemos juntos, meu pai, isso recordará mais tarde. Odiava-me, porque o ofendi muito.
- Que nos importa o passado? Não quero recordá-lo ou pensar nele, há muitas tristezas. O importante para mim é saber que todos os que eu ofendi me perdoaram, e a prova tenho de Raul, que até voltou para ser meu filho novamente. Amo você, Raul, Ricardo!
Modifiquei-me novamente, tendo a imagem perispiritual de Ricardo, e nos abraçamos.
- Ricardo, meu filho - disse emocionado meu pai -, dona Margarida e Manuela contaram-me o que fez por mim durante todos esses anos, sou-lhe grato. Quero que saiba, Ricardo, que não lhe darei mais preocupações. Quero, no mínimo espaço de tempo possível, passar a servir e deixar de ser servido. Obedecerei, cumprirei com precisão as ordens que me derem, estou bem e estarei
249

Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
melhor a cada dia. Não quero que se preocupe comigo. Já fez muito por mim, preciso agora seguir seu exemplo, não quero mais ser um necessitado. Vá, filho, e cuide agora de você, de seus sonhos e objetivos.
- Papai, como é bom vê-lo assim, determinado e com vontade de melhorar-se! Virei sempre visitá-lo, quero sempre escutar do senhor palavras de otimismo.
- Agradeço, filho. Sabe, recebi a visita de nossa Valquíria e ela também sempre virá ver-me.
Vovó e mamãe Manuela despediram-se, fiquei a conversar por mais algum tempo com papai. Contente, ele contou-me seus planos e o incentivei.
Realizaria meu sonho.
Anoitecia, do jardim do posto de socorro olhei o firmamento, a imensidão do universo.
Tenho muito o que aprender! Acho-me agora pronto para fazê-lo e ser útil. A fazer minha obra de amor, minha oferta ao altar da vida, de reconhecimento ao Senhor, meu Pai Eterno, Criador de todas as coisas.
Reconciliara-me com meu próximo.
Aleluia!
Ao terminar a leitura deste livro, provavelmente você tenha ficado com algumas dúvidas e perguntas a fazer, o que é um bom sinal. Sinal de que está em busca de explicações para a vida. Todas as respostas que você precisa estão nas Obras Básicas de Allan Kardec.
Se você gostou deste livro, o que acha de fazer com que outras pessoas venham a conhecê-lo também? Poderia comentá-lo com aquelas do seu relacionamento, dar de presente a alguém que talvez esteja precisando ou até mesmo emprestar àquele que não tem condições de comprá-lo. O importante é a divulgação da boa leitura, principalmente a literatura espírita. Entre nessa corrente!
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GLOSSÁRIO
Aérobus: carro aéreo utilizado pelos socorristas para transportar os desencarnados que ainda não sabem volitar.
Fluidif icação da água: é uma prática ensinada pelos mentores espirituais. Assim, nas reuniões do Evangelho do Lar e nos centros espíritas é costume colocar sobre a mesa uma jarra com água à qual eles acrescentam energias revitalizantes. Ao fim da reunião a água é servida a todos.
Incorporação: é utilizada nos centros espíritas para proporcionar aos espíritos uma comunicação com o mundo material e dessa forma possibilitar aos médiuns conversar com eles, doutrinando-os ou fazendo com que eles compreendam que já não estão mais no corpo físico, ou seja, que já desencarnaram.
Lei de Causa e Efeito: lei de retorno, pela qual cada um recebe de volta aquilo que tem dado.
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

CATIVOS E LIBERTOS

EsteLivro foi Digitalizado por Emanuel Noimann dos Santos e Corrigido por
Fabiana Martins.
Copyright by (c) Petit Editorae Distribuidora Ltda.
l1 Edição/impressão: Abril/91 3.000 exemplares Reimpressão: Agosto/91 - 3.000
exemplares
3a Reimpressão: Agosto/92 - 3.000 exemplares
41 Reimpressão: Agosto/93 5.000 exemplares
53 Reimpressão: Outubro/94 5.000 exemplares
6a Reimpressão: Janeiro/95 10.000 exemplares T Reimpressão: Setembro/95 - 10.000
exemplares
8a Reimpressão: Março/97 10.000 exemplares
Capa: Criação e arte final:
Flávio Machado Foto: Élio Oliveira da Silva
Revisão: <
João Duarte de Castro Composição: :
Fukuart Artes Gráficas S/C. Ltda. Fotolito da capa:
Pró-Chapas Fotolito S/C. Ltda. Fotolito do miolo:
Petit Editora e Distribuidora Ltda.
1991.

cativos e Libertos / pelo Espírito Antônio Carlos
psicografado por Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho. - São Paulo : Petit, 1993. -
207 p.
ISBN 85725301 77

1. Espiritismo 2. Romance mediúnico Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho. .
Título
CDU: 133.9
índices para catálogo sistemático:
1. Romances mediúnicos : Espiritismo 133.9
Direitos autorais reservados. É proibida a reprodução total ou parcial, de
qualquer forma ou por qualquer meio, salvo com autorização da editora. Ao
reproduzir este
ou qualquer livro pelo sistema de fotocopiadora ou outro meio, você estará
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caso você
não tenha recursos para adquirir a obra. Informe-se, é melhor do que assumir
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São Paulo - SP
Outros livros psicografados pela médium Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho:
Com o Espírito Antônio Carlos:
-Reconciliação
Copos que Andam
Filho Adotivo
Reparando Erros
A Mansão da Pedra Torta
Palco das Encarnações

Aconteceu
Muitos São os Chamados
O Talismã Maldito

Com o Espírito Patrícia:

Violetas na Janela
Vivendo no Mundo dos espíritos
A Casa do Escritor
O Vôo da Gaivota
Com espíritos diversos:

Valeu a Pena
Perante a Eternidade

Prefácio

O regresso 9
Fazenda Sant'Ana 22
Amigos e inimigos 33
Ordem e disciplina 44
Meditando sobre diferenças 59
Marcina 72
Os mortos do corpo 87
O Resgate 101

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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

Acontecimentos em Morro Vermelho 114
Encontros 130
A revolta 146

Fazenda Santa Luzia 161
Pai Tomás 182
Os casamentos 198

PREFÁCIO
É este mais um romance excelente de Antônio Carlos, que confirma todo seu
talento literário e sua capacidade narrativa, revelados com Reconciliação.
Esta história está ambientada no Brasil Colonial e traz todos os ingredientes
indispensáveis a prender a atenção do leitor. É uma leitura realmente agradável.
A
trama é toda pródiga em ação, romantismo, aspectos históricos do período da
escravidão em nosso país.

Tudo se inicia com o retorno de Jorge à fazenda paterna após cinco anos passados
em Paris, França, para onde fora complementar seus estudos. Retornava com o
diploma
de Engenharia, saudoso e com mil sonhos de trabalhar pela libertação dos negros.
Ansiava por reencontrar o pai, a mãe, o irmão mais novo e suas duas irmãs.
Principalmente,
desejava reencontrar-se com Laurinda, jovem que lhe estava prometida para
casamento desde quando eram ainda crianças.
Jorge em todo esse tempo recebera poucas notícias dos seus pais, da noiva e da
situação da fazenda.
Ao desembarcar no Rio de Janeiro, planejava ficar na fazenda somente até seu
casamento, depois voltaria à Capital onde sonhava ter muitos filhos e participar
do
movimento abolicionista.
Entretanto, foram muitas e desagradáveis as novidades que o esperavam em seu
retorno. Seu pai, Coronel Joaquim de Castro, havia falecido algum tempo antes e,
a seu
próprio pedido, temendo que o filho desistisse dos estudos, não lhe fora
revelada a infausta ocorrência. Laurinda, sua noiva, havia se casado com José,
irmão mais
novo de Jorge. No próprio instante de sua chegada, ocorre uma tragédia: o irmão
José é assassinado a mando do fazendeiro
8 VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
vizinho, homem mau e rancoroso que tinha uma pendência com a família de Jorge. O
rapaz vê-se, assim, na difícil situação de chefe da familia, com sérios
problemas
pela frente. É obrigado a permanecer na fazenda e assumir negócios e
responsabilidades. A polícia nada fez para apurar qual o responsável pelo crime,
Jorge investiga
por sua própria conta. E a partir daí são muitos os lances de ação e emoção que
ocorrem na história. Inclusive, Jorge vem a se apaixonar, por ironia do destino,
justamente por Marcina, jovem filha de seu inimigo! João Duarte de Castro.

Capítulo I
O REGRESSO
A manhã estava maravilhosa, naquele verão do início de janeiro no ano 1826.
Sentia-me como embriagado com as belezas naturais do Rio de Janeiro. Passeava,
andava
beirando a praia de Copacabana. Voltara da França no dia anterior. Cinco anos
longe do Brasil, dos meus, fizeram-me regressar saudoso. Olhava tudo encantado,
notando

o progresso que esses anos de ausência operaram na Cidade Maravilhosa. Respirava
a todo pulmão, o clima quente enchia-me de preguiça. Deixara a França com neve.
"Que beleza é a neve! Mas não se compara com as maravilhas do Brasil, deste
clima tropical."
Deveria ficar no Rio por cinco a seis dias, esperando condução de minha casa,
que me levaria ao lar. Ansiava por vê-los. Resolvi passear, distrair-me para
fazer
a espera menos longa.
Regressara com o diploma de engenharia e mil sonhos. Queria contribuir para o
progresso de meu país, ajudando a construir escolas, pontes, hospitais.
Página 2


Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

Idealizara

lutar pela liberdade da raça negra. Assunto tão ventilado, discutido na França,
entre estudantes.
"Escravidão é mancha negra neste país!" - exclamei alto, não ligando para os
poucos pedestres que me olhavam curiosos. "Lutarei por meu ideal. O Brasil será
uma
grande potência e um lugar de irmãos."
Sabia que minha luta não seria fácil, meu pai custeou-me na França, mas era um
escravagista. Possuía uma enorme fazenda na Província de São Paulo; embora fosse
excelente
pessoa e
10 VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
seus escravos tratados com bondade, não deveria querer-me como
abolicionista.

"Muito há que fazer em favor dos escravos no Brasil!" Meus olhos iam até o
horizonte onde o céu se unia com as águas num acasalamento perfeito; nada
parecia difícil
para os meus vinte e dois anos.
Com gritos, assustei. Voltei a cabeça.

-Pega! Pega o fujão! Pega o negrinho!
Vi um negrinho assustado correndo em minha direção. Antes que chegasse até mim,
dois guardas o pegaram e seguraram. O terceiro, que o perseguia, corria mais
lentamente,
deveria ser o dono: era alto, bem vestido e não demorou a se reunir a eles.
Estava ofegante, irritado.
-E este mesmo! Seu negrinho fujão! Leôncio, seu moleque malvado, vai aprender a
não fugir mais. Vai levar uma grande surra!
Não achei o senhor nada simpático e minha primeira reação foi pensar em defender
o negrinho. Mas não era assim que deveria começar a defender esta raça, que pelo
seu pigmento tornara-se escrava neste país que eu amava. Iria usar as letras,
astúcia, meus estudos para ajudá-los, e arrumar encrencas não era bom princípio.
O
negro tremeu de medo e rancor sob a ameaça do castigo; era jovem, deveria ter
dezesseis anos, calculei; olhava seu senhor assustado, com olhos arregalados e
expressivos,
parecia pedir clemência. Os guardas estavam impassíveis, sorriam pensando na
recompensa que receberiam.
Estavam a poucos passos de mim. Aproximei-me, procurando demonstrar pouco
interesse, cumprimentei-o gentil e sorrindo. bom dia! - respondeu o senhor,
observando-me.
Estava também muito elegante com roupas francesas da
moda. Devo tê-lo agradado, voltou sorrindo a explicar:
-Este aqui é meu escravo. Negro vagabundo e fujão. Vai para o tronco.
CATIVOS E LIBERTOS
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Sorri, observei o moleque, tentei demonstrar orgulho, para esconder o dó que deu
de ver aquele mocinho tratado como um animal, só porque teve a infelicidade e o
destino de ter nascido num país onde o racismo era cruel.
-Estou precisando de um escravo - disse, fazendo pose de arrogante -, de um
jovem negro. Ia mesmo ao mercado para adquirir. Gostei deste. Não me assustam
fujões,
sei lidar com eles. Podemos fazer negócio. Não quer vendê-lo, senhor?
-Hum... - olhou-me o senhor curioso mas aliviado; passar um negro rebelde para
a frente, seria bom negócio. É um prazer servi-lo, senhor, chamo-me João, a seu
dispor.
Podemos negociálo, não preciso vendê-lo, mas já que lhe agrada, é um prazer
cedêlo. Ele é bom, fugiu, mas com bom castigo não terá mais idéias de
liberdades, com
certeza. E esperto e inteligente.
O senhor começou a enumerar as qualidades do negrinho que minutos atrás
amaldiçoava, tratou-me com gentilezas, querendo fazer bom negócio.
-Vendo-o por uma pechincha, bem barato para um senhor tão jovem, bonito e
simpático.
Falou a quantia, pedi abatimento e fechamos o negócio.
Dei-lhe a quantia, mentalizei minhas finanças, tinha o mínimo para ficar no Rio,
até que meu pai ou um empregado de nossa casa viesse buscar-me. Teria de
privar-me
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

de algumas diversões, e até mesmo de refeições.

-Onde quer que leve os documentos da transação e em que nome, senhor?
-Jorge Correia de Castro e Alves. No Hotel Aurora, por favor.
-Pois não, senhor. Logo mais levo-os lá. Faça bom proveito de sua compra,
senhor Jorge.
O ex-dono do negrinho pagou os guardas que esperavam pacientemente o negócio ser
feito, contaram o dinheiro satisfeitos, olharam para mim e um deles falou:
-Quer, senhor, que o castiguemos? Faremos barato para o senhor.
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
Engoli a vontade de xingá-los, e respondi:
-Obrigado, senhores, cuido eu mesmo dos meus negros. Podem deixá-lo agora.
Queiram soltá-lo.
Olharam desconfiados, um para o outro.

-Se o largarmos, senhor, ele foge. Não vai amarrá-lo ou prendê-lo?
-Pode deixá-lo, por favor!
Os guardas largaram-no e afastaram-se, certamente pensando que logo iriam atrás
do moleque novamente.
O mocinho, de cabeça baixa, continuou parado, impassível com a negociação, a sua
negociação, sua venda como uma coisa qualquer. Com o dedo no seu queixo,
levantei-lhe
a cabeça. Olhoume tristemente, seus olhos eram vivos e demonstravam revolta. Seu
rosto estava com sinais de espancamento, tinha os lábios feridos, inchaço nas
bochechas
e um corte na testa, do lado esquerdo.

-Pronto, não se assuste - disse-lhe -, está livre agora. Quero conversar com
você. Não precisa ter medo. Como se chama?
-Leôncio.
-Quantos anos tem?
-Dezessete anos, sinhozinho.
-Bonita idade. É quase homem. Por que fugiu?
-Olhe para minhas costas - disse, levantando a camisa. Suas costas estavam
cheias de cicatrizes.
-Pelo visto é rebelde e gosta de fugir. Não tem medo?
-Tenho sim, às vezes; ser castigado não é bom. Não tenho é sorte, sempre me
pegam.
-Por que quer tanto fugir?
Olhou-me e uma leve ironia brilhou nos olhos negros, como se não bastasse ser
escravo para querer ser livre! Mas respondeu com respeito:
-Não gosto de chicote. Um dia consigo fugir e então não apanharei mais.
Ri, acabei rindo alto. Leôncio olhou-me, assustado.
-Leôncio, por que quer fugir? Não tem outra razão? Parece inteligente, esperto,
e foge sem planejar, já que o pegam sempre.
CATIVOS E LIBERTOS
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O moleque olhou-me, curioso; devo ter parecido bem diferente dos seus outros
senhores que dificilmente conversavam com um escravo, e respondeu:
-Não gosto de ser escravo, não quero ser, nem sei por que sou. Por que nasci
negro? Só por isso? Não tenho culpa. Mas tenho uma idéia, uma vontade de
encontrar
minha mãe e irmãs, fujo sempre com esta esperança.
Como não o interrompi, Leôncio continuou falando, tristemente:
-Morávamos em uma fazenda, éramos uma família. Meu pai morreu com uma picada de
cobra venenosa. Minha mãe, logo após, foi vendida com minhas duas irmãs. Tinha
oito
anos, separamos-nos e nunca-mais as vi. Não esqueci delas, minha mãe era tão
boa, tão bonita. Quero mesmo é encontrá-las e sermos todos livres.
Fiquei sério, senti o trauma do garoto. Estava há cinco anos separado dos meus
para estudar, mas sabia deles. Correspondíamo-nos, sentia-me saudoso e com
imensa
vontade de estar com eles. E os sentimentos de Leôncio não eram diferentes dos
meus. Senti raiva de todos os escravagistas que, para seus lucros, não poupavam
famílias.
Fechei as mãos, exaltei-me por segundos, controlei-me; se quisesse usar as armas
que preparara, que idealizara, não poderia me descontrolar; para todos deveria
ser
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

um escravagista, um almofadinha. Continuei a conversar com meu escravo

recém-comprado: indagava e ele respondia, curioso, não entendendo aonde queria
chegar e o
que queria.

-Você sabe onde elas estão? Podem ter sido levadas para longe.
-Sei sim, senhor. O capataz disse-me para onde foram quando compradas. Guardei
na cabeça, não me esqueci.
-Muito bem, Leôncio, demonstra bons sentimentos querendo bem sua família,
assim.
-Sou homem sinhô, mas choro de saudade, queria tanto saber delas...
14 VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-Que faço de você, ai meu Deus! - disse, porque Leôncio olhava-me assustado
esforçando-se por entender o que dizia. - Mas, pela lei, faço de você um homem
livre.
É isto, menino, vou dar-lhe sua carta de alforria, assim que seu antigo dono me
trouxer os documentos. Realizará seu sonho, sem fugir mais. Poderá ir atrás de
sua
família e trabalhar para ter dinheiro e comprá-las. Vai ser livre, moleque!
-Fala a verdade, sinhozinho?
-Falo. Darei a você a liberdade, não será mais escravo. Leôncio ficou por
segundos parado, com os olhos estatelados. Em seguida, ajoelhou-se, agarrou
minha mão
e a beijou.
-Oh, sinhô! Deus lhe pague! Obrigado!
Retirei a mão e lhe sorri, retornei a andar, com ele atrás de mim.
-Venha comigo, ficará no alojamento dos escravos no hotel, até que faça a sua
carta. Aí, pode ir para onde quiser.
Como prometera, o senhor, ex-dono de Leôncio, levou-me os documentos da
transação, à tarde; embora tendo-o recebido educadamente, não lhe dei
intimidades, conversando
só o necessário. Após ter-se despedido, fiz a carta de alforria de Leôncio e
fiquei um pouco constrangido. Parecia-me ridículo que, só por ser branco e ter
dinheiro,
pudera adquirir um outro ser humano e também dele fazer o que quisesse. Estava
resolvendo um pequeno problema, dando a liberdade a um ser. Pensei mesmo se
haveria
uma razão para ter presenciado a prisão dele, e ter podido ajudá-lo. Ou seria só
o acaso?
"Fazei a outrem o que desejaria que lhe fosse feito" - resmunguei o ensinamento
do Mestre Jesus, repetido tantas vezes, a nós, seus discípulos, pelo Pastor
Germano,
da Igreja Protestante, tão meu amigo. Se meus pais souberem, não irão ficar nada
contentes. Eram todos fervorosamente católicos. Aprendi a nada ter contra
religiões,
vê-las todas como cristãs e verdadeiras. Ainda jovem, intrigava-me o fato de a
Igreja Católica predominar no Brasil e ter ela escravos que serviam a padres e
conventos,
e não combater
CATIVOS E LIBERTOS
15
a escravidão. Isto fez-me discutir com o velho sacerdote da cidade perto de
nossa fazenda e na França. Um amigo de Faculdade levou-me a conversar com o
Pastor Germano,
pessoa de quem gostei de imediato, passando a freqüentar os cultos e a estudar a
Bíblia. Fiquei em contato com os Evangelhos e tive a certeza de que todos somos
irmãos e tornei-me assim mais abolicionista ainda.
Mandei chamar Leôncio, e ele veio assustado e muito desconfiado.
-Sabe ler, Leôncio?
-Não, sinhozinho - respondeu, animado.
Que ingenuidade a minha, saber ler e escrever era para brancos e ricos. Muito
poucos negros sabiam ler.
-Aqui está sua carta de alforria; neste papel, moleque, está sua liberdade,
guarde-a com muito cuidado, não vá perdê-la. Aconselho-o a dar para alguém
guardá-la
para você. É livre, agora. Tome-a.
Leôncio pegou-a, tremendo, abaixou a cabeça e chorou, no começo de mansinho,
após chorou alto. Deixei passar a emoção. Depois, baixinho ele agradeceu-me de
muitas
Página 5


Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

formas.

-Está bem, Leôncio, pode ir. Que seja feliz!
Mas o negrinho não arredou o pé, ali ficou na minha frente.
-Que é, moleque? Que há? Não entendeu? Quer que lhe explique? Falta algo? Não
está contente?
Leôncio a cada indagação movia a cabeça, retrucando. Na última, respondeu:
-Estou contente sim, sinhô. Grato ao sinhô e ao Deus dos brancos. Mas não sei
para onde ir. Estou com muita fome.
Sorri diante da ingenuidade dele. Queria tanto fugir, ser livre, agora que o
era, não sabia para onde ir nem como conseguir alimentos.
-Acho que não basta só ser livre, necessita o negro de ter condições dignas de
sobreviver; marcarei isto no meu caderninho de notas, é um bom assunto a ser
ventilado.
-Fala comigo, sinhô? Não entendi.
16
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
Sorri novamente, falara em francês. Dominava tão bem o francês, aprendi tão
fácil, que parecia que recordava. Falava sem sotaque, era confundido com
franceses. E
meu caderninho de notas era onde copiava tudo o que planejara fazer no Brasil.
-Não, não falo com você. Não tem para onde ir nem como conseguir, comida, hein?
Se quiser, fica aqui esta noite. Mandarei que cuidem de você, que lhe dêem
roupas
limpas e comida. Amanhã veremos o que fazer.
Sorriu contente e, quando acabei de dar as ordens, ele surpreendeu-me novamente,
beijando-me a mão, exclamando em agradecimento sincero.
Após o jantar, fui para o quarto: gastara muito dinheiro na compra do negrinho e
tinha que economizar. Meus passeios iam ser agora a pé pela bela cidade do Rio
de
Janeiro. Mas estava contente, lembrei-me do que dizia o Pastor Germano:


"O bom gesto traz paz e tranqüilidade que o ouro não compra!"
Os ensinos desse sábio homem iriam acompanhar-me pela vida. Muitas vezes pensava
no que diriam os meus, se soubessem que nos últimos anos não mais havia ido a
uma
Igreja Católica e sim a outra religião?! Estava disposto a seguir os conselhos
bondosos do Pastor Germano, suas palavras sob este assunto estavam vivas na
memória:
'"Jorge, todas as religiões são caminhos e os Evangelhos são as setas. Porém,
cabe a nós caminhar. Pouco significa encontrar o rumo, ter uma religião, saber
do Evangelho,
e não seguir, não viver os ensinos do Mestre. Quem não exemplifica em Jesus,
pára no caminho e perde a oportunidade de evoluir. Leia, continue lendo a
Bíblia, estude
com carinho e viva os Evangelhos; estão neles a sabedoria de um crente. Lá na
sua cidade, não há Igreja Protestante, siga a Católica com seus familiares. Tire
as
coisas boas que ela oferece. Caminhe, oriente-se pelo Evangelho, não pare,
cresça em amor e sabedoria. Principalmente, recorde-se da "parábola do
semeador': não
deixe seus sonhos, ideais, serem sufocados pelos espinhos do egoísmo e pelas
facilidades da riqueza."
CATIVOS E LIBERTOS
17
"Que saudade já sinto da velha França! Dos amigos, da Igreja Protestante, dos
estudos bíblicos, dos companheiros de ideal e fé. Talvez, um dia, volte. Mas é
no Brasil
que devo servir, trabalhar, lutar pela liberdade. Minha Pátria não pertence mais
a Portugal, D. Pedro é impulsivo e na Europa comenta-se a frágil saúde de D.
João


VI. Será que D. Pedro voltará para Portugal com a morte de seu pai? Ou ficará no
Brasil? Era muito pouco tempo de Brasil liberto e parecia ele um nenê a
gatinhar."
Dormi cedo e sonhei com minha avó paterna; acordei de madrugada e fiquei no
leito recordando o sonho. Sonhava sempre com pessoas mortas e no sonho
conversava com
elas. Mas com sinhazinha Ana, minha avó, ocorria sempre. Às vezes, tinha a
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
impressão de vê-la; era tão forte a visão, parecia-me tão verdadeira, que me
incomodava.
Amava muito minha avó, lembrava dela, do seu jeito meigo e bondoso, de sua morte
e enterro. Tinha onze anos e me marcou muito ver enterrá-la, deixá-la só, na
terra
fria. Ficara tão triste na época que recusei a alimentar-me. Minha mãe levoume
para conversar com Padre Simão, que me explicou que fora só o corpo sem vida de
minha
avó que enterraram, sua alma estava no Céu, e minha atitude de tristeza não
estava certaQuem acredita na Vida Eterna, Jorge, não enterra seus mortos. Só
enterra
mortos aquele que nada crê, ou não entende no que deve crer. O corpo é perecível
e vira pó, a alma é eterna e vive em outra parte. Sua avó foi muito boa e deve
estar
feliz! disse-me ele.
"Por que não posso saber se ela está bem, o que faz no Céu?" - indaguei. "O
senhor disse para crer, por que não saber e entender?''
O velho sacerdote coçou a cabeça, deu-me doces e mudou de assunto. Acabei
distraído, voltando à vida normal de menino de fazenda. Mas o tempo passou e não
me esqueci
da bondosa sinhazinha Ana, e sempre sonhava com ela e, por tantas vezes, via-a,
mas não materializada. Via. ou melhor, sentia-a, julgava então ser só forte
impressão.
Cheguei mesmo a conversar sobre isso com o Pastor Germano e ele esclareceu-me:
18VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS Jorge, este fenômeno é
antigo; na Bíblia narram-se vários episódios em que os mortos da carne, vivos em
espírito,
falam, comunicam-se com os vivos no corpo físico. Moisés proibiu estes eventos
pelos absurdos que cometiam na época. E recentemente a Inquisição perseguiu
cruelmente
quem era dotado desta capacidade, destas visões. Mas nem por isso tal fato
deixou de existir. Acredito, Jorge, que voltarão a entender e a aceitar estes
fenômenos.
Deus mandará alguém, se for de Sua Vontade, para estudá-los e a eles dar
explicações científicas. Eu também vejo sempre minha mãezinha que morreu na
minha mocidade
e dela tenho recebido inúmeros conselhos e orientações. E muitas outras pessoas
dignas de confiança narram fatos assim. Não deve se preocupar com isto e
aconselho
a só deles falar com pessoas confiáveis A Inquisição já passou, não persegue
mais as pessoas que vêem mortos!" - eu disse a rir.
"Mortos da carne, filho, vivos sempre estamos. Não há perseguição como antes,
mas há o preconceito, o perigo de ser taxado de louco ou até de pensarem
que
se está possuído pelo demônio."
Voltei ao meu sonho, estranho e que tanto me impressionou. Sonhei que estava em
casa e minha mãe chorava de luto, estava triste e vi minha avó envolta de luz;
disse-me:
"Jorge, meu neto, está em suas mãos, está em você a responsabilidade da nossa
família. Aja com justiça, mas com firmeza. A autoridade deve sempre servir para
manter
a ordem e a disciplina. Quem vacila no bem, dá oportunidade aos maus."
Desapareceu, deixando-me triste e acordei. Lembrei com detalhes do sonho e de
outro que tivera na França, meses antes de partir.
Estava com minha avó num jardim bonito e falava ela de coisas que eu não
conseguia entender, e entristeci. Pedi todavia que repetisse, então ela disse,
meigamente:

"Cada coisa tem sua hora. É jovem e forte, confio em você. Tantas coisas mudaram
na nossa terra!..."
CATIVOS E LIBERTOS

Na época não me preocupei. Sim, tantas coisas mudaram no Brasil. D. Pedro
proclamara a Independência e ou o Brasil se renovava e se fazia uma linda nação,
ou teríamos
novas mudanças? Mas agora, ligando os dois sonhos, preocupei-me. Será que a
mudança era em minha casa? Alguma notícia triste esperava-me? Vi minha mãe
chorar de

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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
luto... Que podia significar este fato? Com estranha impressão, com o corpo
dolorido, levantei.
Após o desjejum, Leôncio veio até mim: estava diferente, cortara o cabelo,
estava limpo, os ferimentos com melhor aspecto demonstrando que foram cuidados.
Vestia
roupas novas e sorria a todo momento.

-Vamos sair, Leôncio, vamos andar por aí.
Saímos, procurei distrair-me e esquecer minhas preocupações. Andava a passos
lentos, observando tudo, curioso, desde as pessoas à paisagem. Leôncio ia ora a
meu
lado. ora atrás, pulava e ria, contente. Às vezes, olhava-me desconfiado com
medo de estar se excedendo. Achei normal sua alegria.
-Pela primeira vez, sinhozinho Jorge, ando sem medo deles me pegarem. Parece
que sonho. Estou muito feliz por estar livre.
-Já pensou no que vai fazer? Para onde vai?
Leôncio aquietou por segundos. A sobrevivência de um liberto não era fácil. Para
comer e vestir tem que trabalhar. E onde arranjar trabalho? Por que pagar a um
negro,
se se pode tê-lo como escravo?
-Leôncio, onde estão sua mãe e irmãs? Em que lugar? Longe? Leôncio falou o
lugar. Quê?! exclamei. Incrível coincidência ou força do destino: era a cidade
perto
de nossa fazenda.
-Está com sorte, moleque! Ou Deus quer ajudá-lo e colocou-me no seu caminho
como instrumento.
-Que é, sinhô Não precisa entender. Moro perto dessa cidade, conheço-a de ponta
a ponta, meu pai é homem importante lá. Parto para lá. 20 VERA LÚCIA MARINZECK
DE
CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS aqui estou somente esperando condução de casa. Se
quiser, levo-o comigo e poderá ficar na fazenda até achar sua família.
Leôncio pulou, ria e chorava, olhava-me como se fosse algo sublime. Sua alegria
contagiou-me. Esqueci o estranho sonho e fiquei feliz por estar na minha Pátria.
Deixei Leôncio alojado na ala dos escravos, ele parecia um bichinho desfrutando
sua liberdade. Nos dias que esperei, passeávamos durante as tardes e manhãs
ensolaradas,
conversando e então nasceu uma amizade sincera entre nós. Estranhava a muitos,
chamávamos a atenção. Um jovem branco, bem vestido, estudado, bonito e um ser
negro,
feio e ex-escravo. Notei que Leôncio era inteligente, esperto e determinado.
Rio de Janeiro, a Capital do Império, era um lugar que tinha de tudo.
Conversavam muito sobre política em rodas de senhores nas tabernas. Como não
tinha dinheiro
para ir a tabernas, saía à noite, sozinho, procurando escutar, e até mesmo
apresentar-me a grupos de estudantes para estar informado. Não foi muito fácil
saber algo
novo, desconfiavam muito de estranhos. Mas o que comentavam muito era de uma
revolta de escravos em que se mataram muitos brancos. Uns diziam que os negros
foram
mortos, outros, que se achavam foragidos.
"Violência gera violência!" - pensei. Muitos se revoltam no cativeiro. Desde
pequeno escutava histórias de assassinatos cometidos por negros.
Finalmente chegou a condução de casa. Vieram Manoel, um empregado de meu pai, de
confiança, já beirava os sessenta anos, mas era muito robusto, e Tião. um negro
alto, forte, esperto, um escravo contente como eram todos os de casa.
Cumprimentei-os sorrindo e eles permaneceram acanhados.
-Que há? Não me dá um abraço, Manoel? Não abraça seu menino?
-E que sinhozinho Jorge já é um homem, formado e importante.
CATIVOS E LIBERTOS
-Continuo o mesmo, Manoel. Dê cá meu abraço. Diga-me, como estão todos lá em
casa? Como estão as meninas? José? Papai e mamãe?
-Todos bem, graças ao Pai - sorriu, demonstrando no olhar como me queria bem e
a alegria de ver-me. Continuou a falar, alegre: - Sinhá Catarina, sua mãe, quer
vê-lo
e logo. Recomendou-nos que, se o sinhozinho já tivesse chegado, era para partir
logo.
-E vamos, acomodarei vocês aqui esta noite para que descansem. Amanhã cedinho,
partiremos. Ah! Este é Leôncio, um liberto, que procura sua mãe e duas irmãs.
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

Pela
informação que teve, estão elas por nosso lado. Parte conosco.


Conversamos mais um pouco e fomos dormir cedo. Ansiávamos por partir. Queria
voltar ao lar. Capítulo II FAZENDA SANT'ANA
O dia amanheceu chuvoso, nuvens carregadas escondiam o sol; acomodamo-nos na
carruagem e partimos.


-Adeus, Rio, até breve! - acenei um adeus.
Meu plano era voltar após meu casamento, que deveria ser logo. Amava a fazenda,
onde viviam papai e José, que não quis estudar. Depois havia me formado e era
justo
trabalhar e usar o que estudara. Lá na fazenda e na pequena cidade, onde também
tínhamos casa, não ia ter muito o que fazer. Residir na Capital... às vezes,
ficava
em dúvida se moraria em São Paulo ou Rio. O Rio além de ser mais bonito, era a
Capital do Império, facilitaria entrar para a política e trabalhar para o
governo,
planejando construções importantes. E, às ocultas, iria participar de movimentos
abolicionistas e lutar pela liberdade da raça negra.
Sonhos não me faltavam, acomodei-me na carruagem onde iam Manoel e Leôncio. Tião
ia dirigindo os cavalos. A chuva marcava compasso com o trotar dos cavalos: um
som
cadenciado convidando a dormir. Mas o sono não vinha e fiquei a pensar, a
refazer planos. Lembrei-me de Laurinda.
"Minha esposa prometida!" - balbuciei.
Olhei para meus companheiros, dormiam.
"Ainda bem" - pensei -, "não é bom falar sozinho."
"Laurinda, como estará? Será bonita?" Não conseguia lembrar de como era ela.
Filha de amigos de meu pai. combinaram nosso casamento quando eu estava com
quinze anos
e ela com onze. Víamo-nos sempre, nas festas, na missa, quando sua família nos
visitava ou quando íamos a sua casa. Quando me despedi ao
CATIVOS E LIBERTOS
23
partir, combinamos não escrever. Sabia dela pelas poucas notícias nas cartas de
minhas irmãs. "Laurinda está bem, ou esteve gripada etc". Ultimamente, não
falaram
mais dela e eu também, não. Não a procurei, sabia que era minha prometida e que
íamos casar, embora não nos víssemos há cinco anos. Minhas idéias modernas não
se
encaixavam bem com a do casamento combinado, porém aceitava, não importava
casar-me com Laurinda. Deveria estar bonita, era educada, tinha estudos, era de
boa e
amiga família. Tinha a certeza de que viveríamos bem, era de paz e ela fora
educada para obedecer o marido. Nunca me interessara por ninguém, achava mesmo
que amor,
paixão, não existia e sim amor por convivência, por afinidades e pensava que eu
e Laurinda nos daríamos bem e talvez viéssemos a nos querer bem. Ficaria na
fazenda
até o casamento, depois voltaria ao Rio, onde sonhava ter meus filhos.
A viagem foi cansativa, parou a chuva e fez muito calor. Pernoitamos por duas
vezes em estalagens já conhecidas. Leôncio demonstrava interesse e vontade de
ajudar
e tornou-se amigo também de Tião e Manoel.
Manoel e Tião falavam da fazenda, o que tinha de novo. Dos casamentos de
empregados e de escravos, das minhas irmãs, às vezes de mamãe. Ao escutá-los,
parecia ver
tudo, o cafezal, os animais, os amigos.
No quarto dia aproximamo-nos da fazenda. Lá pelas doze horas, Manoel disse:
-Logo, sinhô Jorge, chegaremos. Mais duas horas e estaremos com sinhá Catarina.
Sorri, contente, mas o meu corpo estava todo dolorido da viagem. Desejava
descansar e abraçar a todos: meu pai, o sinhô Coronel Joaquim de Castro e Alves,
minha
mãe, sinhá Catarina, meu irmão José e minhas irmãs Carlota e Maria da Glória, a
Glorinha, a caçula. Era o mais velho dos irmãos e meus pais eram jovens ainda.
"Como vão gostar dos presentes que lhes trouxe da França!" - pensei, alegre.
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

Quando entramos em nossas terras, meu coração disparou feliz. O cafezal verdinho
e bem cuidado que se perdia de vista, enchia o vale de beleza e tranqüilidade.
As
terras eram boas de cultura, e meu pai aproveitava-as bem, estavam localizadas
num lugar bonito e não longe da cidade, com água de fontes e de um rio de porte
médio.

-Meu Deus! Como é bom estar em casa! - falei rindo, respirando o ar puro do
campo. - Fazenda Sant'Ana, como amo estas terras!
Teríamos que subir uma pequena elevação para chegarmos em casa. Mesmo sem
avistar a casa-grande, escutei a sineta. Alguém vira e avisara a todos do meu
regresso.
A sineta era um prato de bronze, dependurado na varanda da casa. Mamãe usava-a
para chamar a mim e a José para as refeições ou para dar avisos, marcar hora
etc.
Após a curva, lá estava meu lar, a casa-grande da Fazenda Sant'Ana, toda branca
em meio do verde das árvores e folhagens. Nos fundos, o pomar com muitas
espécies
de frutas; na frente um bem cuidado jardim, sempre com flores.
De longe, vi figuras femininas na varanda. Reconheci mamãe, que acenava a mão
com alegria.
Nem bem a carruagem parou, pulei; o portão já estava aberto, corri para os
braços de minha mãe, que chorava, emocionada.
Abracei-a com força, rodopiei com ela nos meus braços, após beijei-lhe a mão,
pedindo a bênção.
Três moças olhavam-nos emocionadas. Duas se adiantaram, eram Carlota e Glorinha
que chorando também pularam no meu pescoço.
-Que lindas moças estão vocês! Deixei-as meninas ainda, encontro-as moças e
lindas!
Olhei para a terceira moça e a reconheci:
-Laurinda!
Laurinda estava muito bonita, mais bonita do que esperava encontrá-la, encostara
na parede e observava com certa indiferença nossa alegria. Vestia-se
simplesmente,
tinha cabelos presos, eram
CATIVOS E LIBERTOS
25
louros de um torn muito bonito; ainda tinha sardas pelo rosto enfeitado, o nariz
arrebitado. seus olhos verdes fortes eram sombreados por longos cílios.
Sorri, satisfeito, aproximei-me dela, estendeu-me as duas mãos que
respeitosamente conduzi aos lábios para beijar, e levei um susto. No dedo anular
da mão esquerda,
uma brilhante aliança de casada.
Mamãe interferiu, tirando-me do espanto em que ficara.
-Jorge, meu filho, lembra de Laurinda a filha do compadre Amadeu? É esposa do
José há dois anos. Linda cunhada você ganhou, não acha?
Balbuciei um "Ah, heim!" e mamãe empurrou-me para dentro. Olhei a sala,
emocionado. Pensei: "Sem noiva e com cunhada! As explicações virão, não devo me
incomodar
com isto. Noivas não são difíceis de arrumar ou, quem sabe, papai não tivesse já
arrumado outra". Sorri, feliz-, e rodopiei pela sala.
-Não mudou nada, que bom estar em casa.
-Sinhozinho Jorge, fiz um café do jeito que gosta.
-Bárbara! Joana! Dêem cá o meu abraço.
As duas negras ficaram paradas olhando-me. Bárbara ajudara mamãe a criar-nos, e
Joana era uma governanta de casa, ambas de confiança da mamãe.
Abracei-as alegre.
-Seu café, Bárbara, é o mais gostoso do mundo, ninguém o faz como você!
Laurinda não falava nada, ficara só me olhando; sorri para ela, querendo
demonstrar que estava tudo bem.
-José teve muito bom gosto casando com você. Está muito bonita, Laurinda! Mas
por que não escreveram contando? Teria trazido um presente especial.
Ninguém respondeu e também não esperei muito pela resposta, olhei para minhas
irmãs que me examinavam curiosas e satisfeitas.
-Vocês não casaram, heim?
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

-Não - respondeu Carlota -, estou prometida a Pedro e amo-o. Vamos nos casar
logo e Glorinha é prometida do Abelardo.
Abraçaram-me novamente.
-Que trouxe para mim? Quero meus presentes! Trouxe o xale que pedi?
Rimos, contentes.
Manuel colocou na sala minhas malas e abri a maior delas, que continha os
presentes.
Dei um embrulho para Bárbara, outro para Joana, para mamãe e para Laurinda. Para
esta, para quem havia trazido muitos outros presentes, acabei por dar somente
uma
mantilha negra, e reservei alguns deles para repartir depois entre minhas irmãs,
guardando outros.
-E os meus? - disse Glorinha. - Se não me trouxe, voltará para buscar.
Ri com prazer, fizera de propósito deixando-a ansiosa, esperando.
-Desculpe-me, maninha, não deu para trazer e...
Sob ameaças de bater-me, entreguei os muitos presentes que lhe trouxera.
Na mala estava uma garrucha moderna e bonita para papai e um relógio suíço
moderno para José.
-Mamãe, onde está papai? E o José? Mande chamá-los, anseio por revê-los.
Foi como se jogasse água no fogo na alegria delas. Minhas irmãs se calaram,
Bárbara e Joana afastaram-se e mamãe começou a chorar.
Fiquei sem saber o que fazer, olhei para mamãe e esperei a resposta, ela falou,
compassadamente:
-José foi ver o cafezal do outro lado. Só esperávamos você amanhã...
Parou de falar, e um pressentimento ruim invadiu-me:
-E papai?
Mamãe enxugou os olhos novamente, respirou, percebi que procurava forças.
CATIVOS E LIBERTOS
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-Há três anos, ele morreu...
Senti minhas pernas ficarem bambas.
-Morreu?!! Não me avisaram? Meu Deus! Papai morreu! Ficaram loucos por aqui?
Meu irmão casa, papai morre e não me avisam. Por quê? Por quê?
-Jorge, meu filho, não nos culpe. Seu pai ficou meses doente, acamado. Nos fez
prometer que não iríamos escrever a você, contando. Fez jurarmos que, se
morresse,
não diríamos a você. Não queria, meu Joaquim, que voltasse, que interrompesse
seus estudos. Orgulhava-se tanto de tê-lo estudando na França. Nós prometemos a
ele
e cumprimos.
Peguei a garrucha que trouxera para ele, comprara há tempos e sonhara em lhe
dar. Imaginava-o com seu jeitão sério a examiná-la. Amava meu pai, homem justo,
trabalhador,
honesto, leal, bom esposo, bom pai, bom patrão e bom senhor-de-escravos.
Parecia que o via em minha frente. Lembrei-me da nossa despedida. Acompanhou-me
orgulhoso até o Rio de Janeiro, levou-me até o navio. Abraçou-me, comovido:
"Abençôo-o, filho. Estude, aproveite para aprender bastante na França. Que
aprender é ser realmente, do resto não se tem tanta certeza. Volte formado mas
estude
muito."
Ficou no cais, abanando um lenço branco, até que não o vi mais.
Sua imagem altiva, seu sorriso franco, seu chapéu negro, sempre o usara. Seu
bigode largo, deixando quase escondidos os lábios, veio-me à memória, fazendo a
saudade
doer. Quando estamos saudosos, mas esperamos ver, ou temos a certeza de rever, é
diferente da saudade de alguém que sabemos que não veremos mais durante a vida
física.
-De quê? - indaguei. -Hum?
Todos ficaram em silêncio, compartilhando minha dor. Papai tinha razão, se eu
soubesse que estava doente ou morto, voltaria. Teria voltado sem concluir os
estudos.
Repeti a pergunta:
-De que ele morreu?
28 VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-Ficou doente, o médico disse que estava com feridas por dentro. Ao morrer,
abençoou-nos, abençoou você.
Levantei, caminhei lentamente até a janela. Vi as árvores frutíferas, alvo de
brincadeiras minhas e de José; minha volta tornou-se triste. Não consegui
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

segurar o
pranto. Queria tanto que visse meu diploma, minhas boas notas. Tantas vezes
pensei na alegria dele, ao ver-me formado, do orgulho que sentiria. Via-o nos
meus pensamentos,
alisando o bigode, sorrindo a encontrarme na festa dos formandos. Era parecido
com ele fisicamente e de gênio, orgulhava-me disto; agora, um adulto, achava-me
mais
parecido com ele. Era jovem ainda e estava morto. Nunca me escrevera, quem fazia
isso eram mamãe e as meninas, e nas cartas, diziam sempre: "Estão todos bem,
saudosos,
mandam abraços, bênçãos".

-Que é isto? - voltei com a indagação de Carlota. Era galope de cavalo, alguém
chegando, apressado. Mamãe foi a primeira a correr para a varanda, as três
acompanharam-na
assustadas. Enxuguei meu rosto e fui atrás.
Era Nércio, marido de Joana, negro amigo, de confiança de meu pai. Ia
cumprimentá-lo, quando notei que estava aflito, suado, olhos estatelados. Pulou
do cavalo e
gritou:
-Uma desgraça sinhá, uma desgraça. Feriram sinhô José no cafezal.
Mamãe caiu desmaiada nos braços de Carlota, Laurinda deu um grito e as três
começaram a chorar. Senti tudo rodar, parecia que sonhava, mas fui o primeiro a
sair
do estupor.
-Aonde Nércio? Onde estão? É grave?
-Não sei, sinhô Jorge - disse o negro chorando. - Sinhô José recebeu um tiro,
quando passávamos pelo Barranco das Antas. Está desacordado. Benedito colocou-o
na
carroça e vem vindo devagar. Vim na frente para avisar.
-Joana, cuide da mamãe.
Pulei sobre o cavalo que Nércio deixara na cerca da varanda e saí em disparada,
rumei para o lado do Barranco das Antas.
CATIVOS E LIBERTOS
29
Um riacho atravessava nossas terras. Pequeno regato de águas cristalinas; ao
sul, margeava-o um alto barranco, lugar de muita beleza, que chamávamos de
Barranco
das Antas. Alguns minutos de galope, avistei a carroça. Benedito dirigia-a e
Samuel, filho de Benedito, também nosso empregado, tinha no seu colo o corpo de
José.
Apeei do cavalo e olhei José. Meu coração acelerou, senti uma dor enorme. José
estava um homem, era dois anos mais novo que eu, deixei-o, ao partir, mocinho
ainda.
Tinha os olhos fechados, expressão suave no rosto, e todo seu corpo, suas
roupas, estavam encharcadas de sangue.

-José, meu irmão!
Procurei o pulso, nada! Procurei a pulsação no pescoço, passei a mão pelas
narinas, nada! Examinei o ferimento, a bala atravessara o coração, José estava
morto.
Procurei ver se estava armado, e Samuel esclareceu-me:


-Sinhozinho Jorge, não estávamos armados, nenhum de nós. Atiraram do lado
esquerdo, onde o barranco é mais alto, não deu para ver nada.
Beijei a testa do meu irmão, peguei-o de Samuel. Seu corpo ainda quente no meu
colo, chamava-me à realidade, tão diferente do que esperava no meu regresso. Meu
pranto
foi alto, emocionado; comigo choraram Benedito e Samuel.
-Vamos, Benedito, vamos para a casa-grande.
A carroça foi devagar e, procurando me acalmar, parei de chorar. Na fazenda o
alarme foi dado sem parar, os negros e todos os empregados aglomeraram-se na
frente
da varanda.
A carroça parou, peguei meu irmão nos braços e entrei em casa.
Carlota esperava, aflita, indagando com o olhar.
-José está morto - disse à meia-voz. Laurinda que estava atrás, caiu desmaiada.
Parecíamos todos sonâmbulos, arrumando-nos para ir à cidade. Vários, negros
saíram
Página 12


Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

para avisar os amigos. Manoel com

VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS

algumas negras foram abrir a casa na cidade e receber-nos no velório.

Tirei a roupa ensangüentada, lavei-me e coloquei uma roupa discreta que não
pensava que usaria um dia.
Chamei Benedito e Samuel.


-Têm a certeza de que não viram quem matou José? - com as negativas deles,
continuei: - Fiquem vocês aqui, tomem conta da fazenda e peguem armas no
armário.
Partimos para a cidade, as mulheres chorosas, uma consolando a outra, iam na
carruagem de festa e, na carruagem simples, íamos, eu, José, Bárbara e Joana. As
negras
haviam limpado José e vestiram-lhe uma roupa nova. Deitaram-no no banco da
frente e nós três nos sentamos no outro. Fiquei olhando para ele. Esforçava-me
para acreditar
no que via.
"Ah, José" - pensei -, "nem mesmo pude abraçá-lo com vida! Parece dormindo. Está
tão elegante. Mesmo morto, pálido, está bonito. Sempre foi lindo, parecido com
nosso
avô materno. Queria tanto ter dito a você que não me importei por ter casado com
Laurinda. Que queria que fossem felizes". Sempre nos demos tão bem. Éramos
diferentes,
tanto na aparência física como de gênio. José era acomodado, falava pouco,
enquanto eu era explosivo; não quis continuar a estudar, amava a fazenda e
queria viver
ali para sempre. Era mais alto que eu, mais forte, parecia mais velho e era ele
quem cuidava de mim. Nas nossas aventuras era ele o mais ajuizado. Protegia-me
sempre,
até dos castigos de mamãe. Tantas vezes, lembrava, era ele que me tirava de
apuros e eu o pagava fazendo as lições para ele. Nunca me lembrava de ter
brigado com
José, éramos diferentes, mas amigos e companheiros. Escrevera poucas vezes,
entendia-o, não gostava de escrever. Nunca duvidara do seu carinho por mim e eu
ali,
vendo-o morto, sentia que era mais que um irmão de sangue que perdera, era um
amigo.
Examinei-o, mudara nesses anos. Ficara mais alto, media talvez 1,90m. Seu rosto
parecia o de uma criança inocente, testa
CATIVOS E LIBERTOS
31 longa, lábios pequenos e bem feitos, não usando barba nem bigodes, cabelos
lisos, castanho-claros caíam sobre a testa.
Chegamos à cidade, muitas pessoas nos esperavam: uns curiosos, outros amigos e
parentes.
O velório foi triste, na sala da nossa casa na cidade. Sentime abraçado,
cumprimentado por tantos conhecidos e amigos. Encontro que sonhara ser tão
diferente...


Passamos a noite toda ao lado de José. Mamãe sofria muito, era o retrato da dor.
Laurinda muito pálida, chorava de mansinho, minhas irmãs estavam desconsoladas;
todos os amigos e parentes mais afastados estavam tristes, sentindo realmente a
perda de uma pessoa, de um homem de bem.
Às três horas, no outro dia, enterramo-lo junto de papai. Uma dor aguda varou-me


o peito. Perdi os dois no mesmo dia, mesma hora, foi como se enterrassem os dois
naquele momento. Controlei-me para não chorar. Ali, era questão de honra, homem
não chorar, tinha que esconder que era humano, que tinha sentimentos. Evitei
falar,
parecia ter um nó na garganta.
Após o enterro, as despedidas e cumprimentos dos amigos e parentes. Mamãe quis
voltar para a fazenda e partimos na carruagem de festa: atrás, três carroças com
empregados
e escravos.
Fizemos o trajeto em silêncio, onde a dor era vitoriosa, todos sofriam.
Sentia-me cansado e nem o cafezal, nem as belezas do caminho agora chamavam-me a
atenção.
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
Nem parecia que, há vinte e quatro horas, passara por ali, cheio de sonhos e
felicidade.

Chegamos: já entardecia, desci e ajudei as mulheres a descerem. Leôncio
aproximou-se de mim e falou baixinho:

-Sinhozinho Jorge, carecemos de nos armar. Dê-me uma arma, atiro bem. aprendi
com um sinhozinho, filho de um dos meus donos. Aqui tem briga, e das feias.
Morro
pelo sinhò se for preciso, mais precisamos ter armas para nos defender.
Concordei com a cabeça. Nunca pensei que necessitaria um dia, armar-me na
fazenda, no meu lar. Esconderam-me muitas coisas nestes anos de ausència. 33
Vera LÚCIA
MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
alguma briga estava havendo. Tristemente, dei por mim, que agora era o chefe da
casa, o único varão dos Castro e Alves.
-Manuel, distribua as armas que temos em casa para os empregados e dê uma ao
Leôncio. Monte guarda pela fazenda, vigie a casa e que ninguém se ausente
sozinho.
Amanhã cedo, reúna a todos.
-Sim, sinhô Jorge - disse Manuel tristemente. - Eu cuido de tudo.
-Obrigado, Manuel, precisarei muito de você.
Com passos largos, subi as escadas, pois as senhoras esperavam-me na sala.
-Quero saber de tudo. Tudo o que me esconderam nestes anos. Que acontece aqui?
Por que mataram meu irmão?
-Estou cansada, meu filho, amanhã...
-Não, mamãe. Quero saber agora! Ordens precisam ser dadas e eu nem sei o que se
passa. Lutamos com alguém? Temos inimigos? Por Deus, é agora que deve falar.
Conta-me
tudo.Capítulo In AMIGOS E INIMIGOS
Sentamos perto um do outro na sala e mamãe começou a narrar, sendo interrompida
as vezes, por Carlota ou Glorinha, quando omitia algum detalhe.
-Graças a Deus, nossa família tem sido honesta e caridosa. Somos cristãos e
aplicamos a lei que Jesus nos recomendou: "Faça com os escravos, como gostaria,
se você
fosse escravo, que fosse tratado"'. Nem todos vêem com agrado nossa maneira de
ser. Como seu avô, seu pai ensinou-nos a ser assim, não se importando com o que
muitos
pensem de nós. Muitas pessoas julgam-nos mesmo maus exemplos para os seus
escravos e tantas vezes escutamos que somos estranhos, que nosso modo de
proceder é estranho
porque nossos escravos vivem como empregados, soltos pela fazenda, sem castigos,
bem vestidos, bem alimentados e felizes. Nunca tivemos problemas maiores que
simples
falatórios, somos bons vizinhos, tratamos bem a todos e somos respeitados. Até
que... Lembra-se do Coronel Silas, o dono da fazenda Morro Vermelho?
Concordei com a cabeça, era uma grande e boa fazenda que fazia divisa conosco ao
Sul. pelo rio. Após uma pausa, que aguardamos em silêncio, mamãe continuou:
-Com a morte do Coronel Silas, logo após sua partida, Morro Vermelho ficou para
seu filho, Coronel Francisco de Souza. Lembra-se dele? Possuía terras do outro
lado
da cidade, tem. casa na cidade, não longe da nossa. Nunca fomos amigos, por ter
ele idéias diferentes das do meu querido Joaquim. Mas, na cidade tão pequena,
todos
se conhecem.
-Lembro - disse -, tinha ele filhos da nossa idade. Era arrogante e orgulhoso.
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
Lembrei-me de sua filha Marcina, a menina morena, bonita. Não sabia o porquê de
lembrar sempre dela. do seu jeito de sorrir, do seu modo acanhado e tímido.
Mamãe
olhou-me triste, estava cansada, mas eu não podia deixar de saber tudo, tentar
entender o que acontecia. Vendo meu interesse, retornou à narrativa.

-O Coronel Francisco vendeu sua fazenda e veio residir na Morro Vermelho com a
família. Logo, passou a implicar conosco. O Coronel Silas era desumano, mau, mas
o filho é mil vezes pior. Proibiu a ida de negros nossos a suas terras, expulsou
um grupo que lá foi. No tempo do Coronel Silas, visitavam-nos e nossos escravos
tinham amizade com os dele. Um dia bateu em um negro nosso que teimou e foi lá
e. por ele, mandou-nos recado que não queria nenhum de nós em suas terras.
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

Na ocasião, seu pai já estava bem doente, foi ele à cidade consultar o médico e
encontrou o Coronel Francisco no armazém onde acabaram por discutir. O coronel
ofendeu
seu pai, chamando-o de mau exemplo, de frouxo, moleza, que não sabia cuidar e
pôr ordem nos escravos.
Seu pai engoliu os insultos, voltou aborrecido para casa. José então reforçou as
cercas na divisa e proibiu nossos negros de se aproximarem das terras do Coronel
Francisco. Seu pai morreu e pensamos que não íamos mais ter problemas com esse
homem. Mas, há seis meses, Joé, filho da Maria parteira, lembra?

-Sim, brincamos juntos - balbuciei, lembrando dele.
Joé era boa pessoa, alegre, sorridente e Maria era parteira, uma negra que sabia
curar com ervas; poderia mesmo dizer que era uma enfermeira nata, sem nunca ter
estudado.
-Bem, Joé foi encontrado morto com um tiro no peito, em nossas terras, na
divisa com Morro Vermelho, perto da ponte do rio. Foi morto à noite. José
averiguou, não
conseguiu provar nada, mas tudo indicou na época que fora pelos empregados do
Coronel Francisco. Joé, segundo amigos, estava apaixonado por uma das escravas
de lá.
Maria acha que tinha ido encontrar-se com ela. Enterramos Joé sem dar queixas e
José proibiu que aproximassem
CATIVOS E LIBERTOS
35
da divisa, mostrando Joé como exemplo. Para não levar a rixa em frente, o caso
acabou aí.
Há cerca de quatro meses, Chico, o filho mais velho do Coronel Francisco, foi
morto na estrada, além da ponte, nas terras deles. Perseguia um grupo de
escravos foragidos.
Os seus empregados contam que já era noite e Chico adiantou-se deles e foram
achá-lo minutos após, já morto, ferido a facadas. Para todos, para o delegado,
Chico
foi morto por um dos escravos foragidos. Chico era odiado pelos escravos, agia
tão mau quanto o pai.
No enterro do filho, o Coronel Francisco falou alto do ódio que nutria por nós e
que era culpa nossa a morte do filho. Duvidou que fora um escravo e, se fosse,
seguira
ele os maus exemplos que dávamos.
José preocupou-se, pensou mesmo até em ir lá tirar satisfações. Eu e Laurinda
não deixamos. José então resolveu esperar sua volta para estudarem juntos o
melhor
modo de agir. Teríamos represálias da parte desse coronel endiabrado. Mas a
vingança deles chegou antes de sua volta, ou na sua volta. Tudo indica que foram
eles
que mataram ou mandaram matar seu irmão. Não vejo outra possibilidade. José era
querido de todos, só tinha amizades, e inimigos declarados só eles mesmos que
nos
odiavam. Que vingança, meu Deus! Nem mesmo os ofendemos!
Mamãe finalizou, chorando, e as três acompanharam-na. Senti vontade de chorar
também, senti-me cansado, tinha que acordar cedo no outro dia e levantei-me.
-Vamos descansar. A bênção, minha mãe. Boa noite, Laurinda; durmam bem.
Carlota, Glorinha.
Fui para o quarto, peguei a garrucha que trouxera para meu pai. coloquei as
balas, deixei-a ao meu alcance, perto do leito. Iria de agora em diante andar
com ela
na cintura.
Deitei e adormeci logo, acordando com Joana de manhãzinha a chamar-me. Levantei
apressado e fui para o pátio, onde estavam acabando de reunir todos os moradores
da Fazenda Sant'Ana, escravos e empregados. Falei a eles:
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-Não quero briga, não queremos briga. Nós, os Castro e Alves, somos pacíficos,
porém não covardes, não fugiremos da luta, mas faremos tudo para evitá-la. Não
desejo
mortes, não quero mais sangue derramado. Deixaremos o delegado apurar a morte de
meu irmão José. Aqui na fazenda tudo deve continuar como antes, o trabalho é o
mesmo,
as ordens também. Deve continuar como José ordenava, como se fosse ele vivo.
Tudo farei para o bom andamento da fazenda, não quero mudar nada no trabalho e
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

aqui
estarei para cuidar de tudo e dar novas ordens se forem necessárias. Peço a
todos para tomarem muito cuidado, que ninguém se afaste da sede sozinho, não
quero ninguém
na divisa da Fazenda Morro Vermelho. Que o trabalho seja feito em grupo e que no
grupo esteja armado de preferência o fiscal. Todos os empregados devem andar
armados
e que estejam atentos. E ao toque da sineta por três vezes, forte, que venham
todos à casa-grande, para a sede. De agora em diante, teremos guardas pela
fazenda
e na sede. Manoel cuidará desta guarda, será o chefe. Por hoje, é só, tenham um
bom dia!
Voltei devagar para casa a pensar: "Fiscal do grupo era um dos escravos, sempre
dos mais trabalhadores e responsáveis, que organizavam o serviço e tomavam conta
do grupo. Não era cargo fixo, fazia rodízio entre os melhores. Papai não usava
castigos, mas sim prêmios; os ociosos não recebiam recompensas e os mais
produtivos
ganhavam em dobro. E ser fiscal era a recompensa de que eles mais gostavam e
faziam de tudo para sê-lo. Os prêmios eram em dia a mais de folga, dinheiro,
roupas
a mais, alimentos, até aguardente. Não havia senzala em nossas terras, cada
família tinha sua casinha, e meu pai fazia questão de que fosse uma casa
decente. Tinham
dois quartos, sala, cozinha; eram arejadas e caiadas. Os escravos recebiam
mantimentos uma vez por semana e cada família fazia sua comida. Todos viviam
satisfeitos
e dificilmente nos davam algum problema e, quando algo surgia, era lá entre
eles, desavenças e brigas quase sempre por inveja e ciúme. Papai costumava ouvir
os motivos
das brigas e o culpado
CATIVOS E LIBERTOS
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ficava sem a recompensa da semana ou até do mês. E havia negros tão amigos, tão
queridos nossos, que até podíamos lhes confiar uma arma".
Olhei pela fazenda, desejei tanto revê-la, passear por todo lado; perdera a
alegria. Aquele chão tão querido, aparentava ser triste sem meu pai e meu irmão.
Nossa fazenda ficava num planalto muito fértil e bonito. A estrada morria no
pátio, do lado esquerdo da casa-grande; do direito havia um grande galpão, onde
guardávamos
ferramentas e mantimentos. Atrás do galpão, o terreiro de secagem do café; nos
fundos do terreiro, o curral, a estalagem dos animais da fazenda. Atrás do pomar
de
nossa casa estavam as casas dos empregados e, logo em seguida, as casas dos
escravos eram enfileiradas e, no centro, outro pátio onde se reuniam.


Depois das casas, um pequeno morro; na parte mais alta, entre árvores, estava o
cemitério, onde enterrávamos escravos. Fora feito por meu avô, quando, no seu
tempo,
um delegado e o padre haviam proibido enterrar negros no cemitério da cidade.
Onde também estava enterrada vovó Ana, realizando seu desejo.
A fazenda estava bem cuidada com tudo no lugar, dando lucro. Demonstrava o
imenso carinho que José tinha por ela.


-Sinhozinho Jorge - disse Leôncio despertando-me dos pensamentos,
assustando-me. - Poucos aqui sabem atirar, não adianta dar-lhes as armas se não
sabem como lidar
com elas. Se o sinhô quiser, posso ensinar-lhes.
-Pode, Leôncio. Reúna os interessados no pátio, daqui a uma hora lhes
ensinaremos a lidar com armas de fogo.
Entrei em casa, estavam mamãe e minhas irmãs na sala de refeições esperando-me
para o desjejum.
-Ouviu minhas ordens mamãe? Que achou?
-Está certo, meu filho, devemos tentar a paz e tudo fazer para tê-la, e nos
defendermos para que ninguém mais morra em nossas terras, assassinado. Iludi-o,
Jorge,
dizendo que dr. Tomás, o delegado, descobrirá alguma coisa. Deixar o caso para
ele, é deixar sem punição a morte de José. Mas não cabe a nós punir e
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

descobrir, deixaremos para a Justiça Divina. Temo por vocês, querer descobrir ou
se vingar é ver um a um morto; meu José será vingado por Deus.

-Mamãe, será certo colocar Deus nesta história de vingança? Não somos todos
irmãos, tanto José, um inocente, como o criminoso?
-Quer dizer que José não será vingado por nada, ninguém?
-Quem faz, mamãe, para si faz. Minha lógica condena a vingança. Poderia ir até
a fazenda Morro Vermelho e matar outro deles. Isto diminuiria nossa dor?
Aumentaria,
porque podemos orar em paz, temos a consciência em paz. Se nos tomarmos
criminosos, até isto perderíamos. Não penso que uma ação má fique impune:
receberá o fruto
do seu crime quem matou José e quem mandou. Não vingarei, mas defenderei.
-Se esse maldito Coronel Francisco considerar-se vingado, podemos sossegar. Tem
razão, meu filho, outra desgraça não suportarei. Você é tão jovem, acostumado a
outra vida, estudou tanto, e ter de cuidar da nossa fazenda!
-Mamãe, parece não confiar muito em mim. Sou o mais velho de seus filhos. Sou
um homem e saberei ser o chefe da casa. Estive fora, mas não esqueci os costumes
daqui.
Tudo farei para evitar mais mortes e esse coronel não nos pegará em emboscadas e
desarmados como fez com José. E se escutaram as ordens não é preciso repetir a
vocês.
Não devem sair de casa sozinhas, nem para irem ao pomar, nada de passeios a
cavalo, e a qualquer barulho devem chamar um dos guardas. Por favor, avise
Laurinda de
minhas ordens.
Tomei meu desjejum sem apetite e logo após fui para o pátio, encontrei Leôncio
examinando nossas armas.
-Sinhô Jorge, estas armas estão velhas e temos pouca munição.
Examinei-as.
-Tem razão, Leôncio, são velhas e algumas até danificadas. Tanto papai como
José não esperavam usá-las. Por enquanto, tentaremos nos defender com elas.
CATIVOS E LIBERTOS
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Fizemos o alvo, experimentei a garrucha, perfeita, acertei todos os tiros.
Leôncio atirava bem e ensinamos alguns escravos, e treinamos os empregados.
-Nércio, quero-o bom atirador, deverá ir morar na casagrande com Joana; ficará
lá o dia todo. Quero-o guarda das mulheres da casa-grande.
Nércio sorriu, satisfeito com a confiança. O treino foi rápido, como não
tínhamos muita munição, achei melhor economizar.
-Sinhozinho Jorge - disse-me baixo Leôncio -, não estamos nada bem, parecemos
ser o lado mais fraco.
Tive que concordar e fiquei muito preocupado.
Voltei para casa e fui para o escritório. Examinei todos os papéis, todas as
gavetas e o cofre. José trazia tudo muito bem organizado. Não tínhamos dividas e
estávamos
com uma quantia grande de dinheiro e ouro no cofre.
"Somos ricos" - pensei com pesar. ''Estamos bem financeiramente. Que vale isto
para nossa tristeza? Mas deve valer para vivermos bem, para nos deixar vivos."
Achei algumas letras, papai e José emprestaram dinheiro a fazendeiros da região,
a amigos. Mexi em tudo e fiquei ciente de todos os negócios.
Reunimo-nos para almoçar, comemos pouco, todos tristes e calados. Após o almoço,
recebemos a visita do sr. Amadeu, o pai de Laurinda, com a família.
O sr. Amadeu conversou gentilmente, lamentou com pesar a morte do genro. Homem
de ir direto ao assunto, foi claro.
-Vim buscar minha filha. Como viúva deve retornar a nossa casa.
-Papai, não quero voltar. Ao casar com José, a Fazenda Sant'Ana passou a ser
meu lar. Quero ficar aqui, a não ser que d. Catarina queira que eu vá embora.
Laurinda falou com voz firme, decidida. Todos se voltaram para ela, que desde
que soubera da morte de José, não falava, respondia com monossílabos as
indagações
que fazíamos. Eu desde que chegara não ouvira dela uma frase maior.
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-Laurinda é minha filha querida! Acho que aqui é seu lar, junto com a memória
do nosso José.
-Se é assim, eu fico, papai! - disse, tristemente.
-Se é assim... Aceitamos sua vontade; quando quiser voltar, será sempre bem
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

recebida e só dará alegrias. Jorge, tem condições de se defender de um ataque?

-Bem, eu... Hoje de manhã examinei nossas armas, temos pouca munição.
-Munição, você pode adquirir no armazém da cidade. Você tem dinheiro? Sei que
estão bem, principalmente. Tenho uma letra a resgatar, poderei pagar antes do
prazo
se necessitar.
-Não, sr. Amadeu, tenho dinheiro para as despesas. Pague-a quando puder, não
quero que se aperte para este resgate. Também já examinei todos os nossos
negócios
e estou a par de tudo. Agradeço-lhe, é nosso amigo e espero que o seja sempre.
Sr. Amadeu sorriu.
-Obrigado, Jorge. Vieram comigo dois dos meus capangas, meus melhores
atiradores. Permita que fiquem aqui, até que você organize tudo, pelo tempo que
quiser, poderão
ser úteis a você. E se precisar de mais gente ou auxílio, mande buscar em minha
casa. Se houver luta estarei ao lado dos Castro e Alves.
-Agradeço, emocionado. Aceito o empréstimo de seus homens, ficarão hospedados
aqui. Assim, poderá voltar tranqüilo deixando Laurinda. E tem minha palavra de
que
estará protegida, será sempre querida por nós.
Sr. Amadeu residia em sua fazenda do outro lado da cidade, distante da nossa
três horas a cavalo. Após o café da tarde, partiu e conosco ficaram os capangas,
dois
homens bem armados, destemidos, destes que matam sem dar um pingo de valor à
vida. Hospedei-os no galpão, dando-lhes a liberdade de andar pela fazenda.
Percebi logo
que o sr. Amadeu os queria mais perto de casa a proteger a filha.
Logo depois, recebemos a visita do prometido de Carlota, com seus pais. Após os
cumprimentos, sentamos para um novo café. Gostava de Pedro, era simples, educado
e trabalhador.
CATIVOS E LIBERTOS
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Ofereceram seus préstimos, reafirmaram o noivado e que o casamento seria
realizado logo após o luto da família.
Percebi, pelos olhares que Carlota e Pedro trocavam, que se amavam. Fiquei
contente, não queria forçar minhas irmãs a casamentos indesejáveis.
Quando entardecia, recebemos um mensageiro com uma carta para mim. Era de
Abelardo, o prometido de Glorinha. Pedia escusas por não poder vir pessoalmente.
E escusava-se
novamente, desfazendo o compromisso com Maria da Glória, que fora feito com meu
pai e devido às circunstâncias melhor seria desfazê-lo.
As mulheres aguardavam minha leitura.


-Interessa a você, Glorinha, é o otário do Abelardo que acha melhor abandonar o
barco que, por ele, está a afundar - disse, passando-lhe a missiva.
Glorinha leu num instante e disse, raivosa:
-Cachorro indecente! Peste! Covarde!
-Glorinha! - disse mamãe escandalizada, repreendendo-a:
-Uma senhorita não diz isto!
-Glorinha amava, ama a este idiota? Há tempos que não vejo Abelardo, mas, pelo
que recordo dele, não é animador. Se você quiser, obrigo-o a cumprir o
compromisso.
-Por Deus! - interferiu mamãe. - A família de Abelardo é amiga do Coronel
Francisco, isto já é o bastante para não querermos mais este compromisso; já
escolheu
seu lado, demonstra tão pouco caráter que não deu para esperar uns dias.
Glorinha amassou a carta, jogando-a no chão pisoteando-a e disse, desabafando:
-Tenho raiva por ter concordado com este compromisso, concordado com um
casamento arranjado. Se este "banana" estivesse na minha frente, amassaria a
cara dele.
Não deixe a carta sem resposta, Jorge, aproveite o mensageiro e responda, diz
que aceita as escusas e lhe deseja fartura e muitos filhos. Abelardo, este
cachorro,
certamente depois de sua complicada caxumba não poderá ter filhos. É algo que
teme e que o preocupa. Estaremos vingados desejando-lhe filhos, e
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-Glorinha! - gritou mamãe.
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
Olhei admirado para minha irmã, se fosse outra a ocasião, tinha dado boa
gargalhada.
Sentei à mesa e respondi conforme o desejo de Glorinha. educadamente aceitei as
escusas, desfazendo o compromisso e desejei-lhe muitos filhos. Fechei o envelope
e pedi a Nércio entregar ao mensageiro a resposta.
Na sala se fez um grande silêncio, a raiva de minha irmã passara, senti mesmo
que ficara aliviada.

-Glorinha - disse -, não vou arrumar casamento para ninguém. Carlota ama Pedro
e isto me alegra, será ótimo cunhado e amoroso esposo, é pessoa de bem. Quero-as
muito e desejo que sejam felizes, ou aqui ou casadas com quem amem. Glorinha,
terá de arranjar um marido sozinha. E olhe lá, não será fácil, com seu gênio,
mas não
tenho dúvida de que será seu esposo o mais feliz dos amados.
-Obrigado, Jorge. Também acho que devemos escolher nossos companheiros, esposo
ou esposa que agrade, se não encontrar ficarei solteira e com muito orgulho.
Sabe
por que, Jorge, mulher solteira é tão mal vista? Parece que não teve ninguém que
a quisesse e nunca se diz que foi ela que não quis ninguém. Por agora, não se
preocupe,
não quero nem ouvir falar de compromisso. Quero ajudá-lo, Jorge, não estamos lá
muito bem e quero que saiba que pode contar comigo. Jorge, deixaria eu aprender
com
os negros e empregados a atirar?
-Filha! - mamãe estava admirada com Glorinha.
-Pode. Mamãe, a luta é nossa. Acho mesmo que você também deve aprender a se
defender.
-Armas são para homens! - disse escandalizada mamãe.
-Em ocasião de paz - disse Glorinha. - Não tem nada de mais. Posso até andar
armada.
-Não sei, se Pedro concordar, aprenderei também - disse Carlota.
-Jorge, posso levar Joana ou Bárbara para me fazerem companhia? Amanhã mesmo
começo a aprender.
CATIVOS E LIBERTOS
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Jantamos em silêncio e fomos deitar cedo.
No outro dia, pela manhã, fui à cidade. Comigo foram Nércio, Benedito, Samuel e
Leôncio. Primeiramente fui à delegacia. O delegado, dr. Tomás, atendeu-nos com
cortesia,
deixando logo claro que não gostava de intervir nas diferenças dos coronéis. Ali
estava para pôr ordem, prender criminosos comuns e escravos foragidos. Fez a
ocorrência,
interrogou os três que estavam com José. Eles viram pouco e não puderam ajudar
muito, repetiram mais uma vez o que tinha acontecido.
Tinham ido ver o cafezal, José, Benedito e Samuel, de carroça, quando ouviram o
disparo e José caiu. Não viram nada e não havia como subir no barranco;
preferiram
ajudar a José. Rumaram para a fazenda e encontraram Nércio a cavalo que estava
atrás de uma novilha. Então veio na frente para avisar.
-Dr. Jorge - disse desafogado -, como vê, não viram ninguém e nem sabem de
muita coisa, será difícil achar o culpado. Mas me empenharei, e cumprirei meu
dever.
Agradeci e saí nervoso; mamãe tinha razão, dr. Tomás não ia mover uma palha para
descobrir o assassino do meu irmão. Rumei para o armazém, achei munição e
comprei
grande quantidade, mas não havia armas.
Encontrei na cidade muitos conhecidos e amigos. Cumprimentaram-me, apressados.
Entendi que não queriam tomar partido; para todos haveria luta, venceria o mais
forte,
era desaconselhável demonstrar preferência pelo mais fraco, que era eu na
opinião deles, o doutor almofadinha, cheirando a livros.
Sempre fomos amigos de muitos, em nosso cofre havia muitas letras de
empréstimos. José, como meu pai, não negava favores, ajudando a todos. Mas
muitos pareciam ser
amigos só nas necessidades deles. Com os acontecimentos, era dar uma peneirada e
ficariam só os amigos de fato. Como também não escondia que nosso inimigo era o
impiedoso Coronel Francisco de Souza. Capítulo IV ORDEM E DISCIPLINA
Depois de ter ido ao armazém, passei pelo cemitério para uma pequena visita ao
túmulo dos meus dois entes queridos. As flores ainda estavam bonitas em cima do
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

sepulcro.

Orei, porém senti ali um lugar tão frio, tão solitário e triste, que pensei:
Papai e José não podem estar aí neste lugar frio e sem vida. Somos eternos,
vivemos
além do corpo e não é aí, debaixo desta terra, que estarão."
Prometendo a mim mesmo não voltar mais ao cemitério, fui para casa. Estava
calado, não tinha vontade de conversar; nem olhava a paisagem, lugares que
achava lindos
e tão queridos. Fiquei a cismar, como faria para defender os meus. Não queria
capangas iguais aos dois homens do sr. Amadeu, criminosos, na fazenda. Teria que
treinar,
armar os homens que tinha. Martins!" - sorri, dizendo baixinho.
Que feliz lembrança. Martins estudara comigo na França, voltara para o Brasil há
dois anos. Seu pai era comerciante e entre tantas coisas que comerciava, tinha
também
armas européias que me interessavam no momento. Residia em São Paulo e seu
endereço estava anotado em meu caderno de notas. Lembrava bem de Martins: era
alegre e
fanfarrão, não gostava de estudar e voltara sem concluir seu Curso de Direito.
Gostava de armas e entendia bem delas, comprava-as e as remetia para o pai,
enquanto
estivera na França.
Não era aconselhável eu viajar no momento, mas podia mandar alguém de confiança
até ele e tinha a certeza de que me venderia as armas melhores e mais modernas
que
possuía. 45 Outra coisa que me preocupava é se não teríamos algum espião, um
traidor na fazenda, alguém que poderia passar informações ao Coronel Francisco,
por
dinheiro. Teria que usar muita precaução. Resolvi escolher alguns negros e
empregados para tarefas de confiança. Fui pensando em quem poderia mandar para
São Paulo.
Talvez Tião. Sim, Tião seria ideal, viajava sempre, conhecia toda a região. Era
forte e esperto, sabia ler e escrever, era trabalhador e eu sentia no seu olhar
o
carinho por nós, seus senhores. Tião era alegre e prosa, contava sempre sua
história e a de seus pais:
"Meus pais moravam numa fazenda e vivíamos numa imunda senzala. Éramos fechados
à tarde e só saíamos para o trabalho que era em todos os dias, sem descanso. Meu
pai era forte, trabalhador, nunca tinha dado motivo de queixa aos seus senhores.
Eu tinha nove anos e já trabalhava. Um dia, minha irmã pequena, éramos então em
seis irmãos, teve febre alta. Vendo a filha morrer à míngua, meu pai pediu,
implorou ajuda ao capataz e recebeu em troca ofensas, o que o fez se enraivecer
e dar
uns socos nele. Correram os outros e meu pai foi para o tronco para ser
castigado. Deixaram-no com as costas retalhadas pelas chibatadas e, não
satisfeitos com este
castigo, no outro dia levam-no para ser vendido, separando-o da família para
servir de exemplo. Um negro não tinha direito de levantar a mão para atingir um
branco.
Amarrando e puxaram-no numa corda; nem o deixaram despedir-se de nós. Estava
partindo e minha irmãzinha morreu, minha mãe chorava desesperada. Eu era o mais
velho,
não entendia o porquê deste castigo e fiquei com muito medo de apanhar também.
Passaram-se os dias. mamãe estava tão triste que emagrecera e enfraquecera. Um
dia, à tarde, tiraram a gente do trabalho e levaram-nos para o pátio. O capataz
disse
somente: Vão partir, foram vendidos, não devem levar nada. Todos? indagou mamãe,
abraçando-nos. Sim. Mas, e minhas irmãs e minha mãe? Por que nos vendem? 46
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
Recebi uma bofetada como resposta. Abraçados, entramos na carroça, onde fomos
amarrados, e partimos.
Saímos da fazenda e. logo após distanciar mais, um dos empregados soltou-nos e
deu-nos água e comida, que comemos esfomeados. Ele nos disse:
'A vida de vocês vai mudar. Pena não poder comprar todos os escravos desta
fazenda. Vocês não precisam ter medo, quem comprou vocês é boa pessoa, o mesmo
que comprou
Justino, porque teve dó dele. Sim, Justino, seu marido, o pai de vocês. Vão
encontrar com ele. Vamos, comam com calma, devagar. Amanhã chegaremos. Mamãe ria

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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

e chorava,

mas estava desconfiada. Eu fiquei contente, estava comendo coisas diferentes da
comida medida que tínhamos. O empregado nos dera frutas, pão, doces, carne seca.
E comemos até enfartar No outro dia, chegamos na Sant'Ana, avistamos meu pai,
limpo, bem vestido a esperar-nos na porteira. Papai e mamãe abraçaram-se
felizes, chorando
alto, emocionados, e acabei chorando também.
Acomodaram-nos numa casa, deram-nos muitas coisas e nos maravilhamos em viver
aqui.
Meu pai sempre contava a nós o que lhe acontecera. Saiu sofrendo tanto da
fazenda com o castigo, tanto física como afetivamente com a separação dos seus.
Fizeram-no
andar faminto e sedento, puxado por cordas até a cidade para ser vendido. Um
senhor comprou-o, nem se interessou em ver quem era. Foi colocado na carroça e
lhe deram
água, ao chegar à fazenda foi desamarrado, colocado num leito e vieram um negro
e Maria, que era jovem naquele tempo, a cuidar dos seus ferimentos, e deramlhe
água
e comida. Maria, curiosa, quis saber o que acontecera com ele. Meu pai,
chorando, contou tudo. Ela foi logo contar para sinhazinha Ana e esta contou ao
filho. Sínhô
Joaquim veio ver meu pai. É verdade, negro, tudo o que contou à Maria? CATIVOS E
LIBERTOS 47 Sim, sinhô, é verdade. É triste saber o que fazem certos senhores de
escravos. Comprei você porque tive pena, estava tão machucado e desanimado! Tem
razão de chorar e de estar agoniado assim, foi separado dos seus. vou ajudá-lo
novamente,
mandarei Manuel e Severino comprar sua mulher e filhos. Não se alegre ainda,
mandarei comprálos, mas não sei se eles os venderão. Se sabe rezar, homem, peça
esta
graça a Deus.'
Meu pai esperou aflito a volta dos dois empregados. Viu que a fazenda Sant'Ana
era um paraíso para quem tinha que, pela cor, ser escravo.
Meu pai morreu grato aos Castro e Alves, foram felizes aqui, tiveram mais filhos
e contava sua história sempre para os outros escravos da fazenda, para que
dessem
valor à forma de vida que tinham aqui. E todos nós somos gratos também. Meu pai
dava a vida pelo sinhô Joaquim, e eu e meus irmãos, por todos da casagrande."
Tião conhecia muitos lugares; e um dia perguntei-lhe:
"Tião, não deseja ser livre?"
"Ser livre, preto, sinhozinho? Posso ser liberto, mas livre, não. Não desejo ser
alforriado, não, sinhô. Para fazer o quê? Ser um empregado e ser tratado
miseravelmente?
Aqui estou bem."
Tião ganhava muitas recompensas e comprava coisas para sua casa, para sua mulher
e filhos. Gostava de botas e as comprava de cano alto e boas. Tião e seus irmãos
eram fortes, altos, trabalhadores e amigos. Desde mocinho viajava ele com meu
pai, fora buscar-me no Rio e tinha ido duas vezes a São Paulo com papai.
Irão Samuel e Tião, porque não era recomendável um negro viajar sozinho. E
Samuel porque era empregado nosso de confiança, nascera na fazenda, era bom e
corajoso.
Amava muito sua família, ainda há pouco contava a Nércio as artimanhas de seus
filhos. Quando falava da esposa, seus olhos brilhavam demonstrando continuar
amando-a
muito. Samuel era casado com uma
48
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS

negra, escrava da fazenda, seus pais não queriam, mas comprou-a de meu pai e
casaram, viviam tão felizes que Benedito e a esposa aceitaram a nora. E tinham
filhos
mulatos, muito bonitos. Ao chegar em casa, disse a Nércio:

-Nércio, chame Manuel, Tião e Samuel, e venham ao meu escritório. Esperei-os e,
logo que estávamos reunidos, fechei a porta.
-Vocês quatro são como meus braços, amigos em quem confio. Não quero briga,
como já disse, mas quero defender-me e defender a todos os moradores de
Sant'Ana. Estou
preocupado porque sei que somos fracos diante do Coronel Francisco, que tem sob
suas ordens capangas bem armados. Não quero, não desejo encher a fazenda desses
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

homens
do mundo, sem moral nem temor. Logo que for possível mando de volta os dois
homens do sr. Amadeu. Terei de dispor dos meus homens mesmo, são de confiança.
Armarei
um plano de defesa. Quero. Nércio, que escolha mais duas famílias, sem crianças,
para morar nos quartos dos fundos da casagrande, junto de você, Joana e Bárbara;
devem saber atirar e serem de confiança.


-Deixará a casa bem guardada, não é, sinhô? - disse Manuel. - Meus filhos se
casaram, moramos só eu e minha velha; se quiser, venho.
-Quero, e fico feliz. Também quero os empregados agora como guardas, que
trabalhem menos, observando mais. Tirem uns doze negros, dos melhores, inclusive
os irmãos
de Tião, e que lhes seja dada a tarefa de guardas.
-Guarda-costas, farão trabalho de jagunços, sinhozinho? indagou Nércio.
-Prefiro dar o nome de vigias, de guardas, mas é isto, Nércio, jagunços, porém
serão diferentes, não para saírem matando e, sim, defendendo.
-Tiraremos muitos do trabalho - disse Nércio -, aumentará o serviço.
-Já pensei nisto. Hoje no armazém escutei a conversa que o Coronel João dos
Santos está vendendo escravos para pagar
CATIVOS E LIBERTOS
49 dívidas; tenho em meu poder letras dele, atrasadas. Quero, Manuel, que você e
Nércio levem mais uns empregados, vão lá e certifiquem se é verdade. Adquiram
famílias,
famílias, entenderam? Não quero separar parentes. Escolham negros bons e
pacíficos. Assim, teremos mais gente por aqui. Manuel diga ao Coronel João dos
Santos que
venha, por favor, se fizer negócio, amanhã aqui para acertar. Quantos devo
comprar? Quantos acha que necessitamos? Tirando tantos do serviço, calculo de
vinte a
trinta. Certo, Manuel, e ao trazê-los, acomode-os no galpão, depois nas casas
disponíveis. Se necessitar, tire todos do serviço, façam mutirão e construam
outras
casas. Vamos agora ao assunto mais importante: armas! Sabem que estamos mal
armados. Lembrei de um amigo que mora em São Paulo e que comercia armas. Quero
que prometam
guardar segredo do que vão ouvir. Vou comprar armas, bem modernas e boas, e
muitas. Não posso me ausentar da fazenda, por isso chamei-os aqui, quero que
vocês, Tião
e Samuel, vão por mim. Podem recusar, é um pedido. Vou disse Tião. Quero ajudar
o sinhô, depois é justo que nos preocupemos como o sinhô. Num ataque não serão
somente
os Castro e Alves que morrerão falou Samuel, preocupado. Eu Vou.
-Levarão uma carta para esse meu amigo, comprarão as armas e voltarão. Meu
plano é este: partirão amanhã, quanto mais depressa recebermos as armas, melhor.
Sairão
na madrugada, irão a cavalo, escolham dois bons, dos melhores; lá comprarão uma
boa carroça e nela trarão as armas. Levarão uns três dias para ir, mais dois
para
acertar o negócio, na volta de carroça demorarão mais, acredito, mas logo
estarão de volta. Levarão... - disse uma quantia grande de dinheiro.
-Sinhô Jorge vai confiar a nós tanto dinheiro? - indagou assustado Samuel.
-Confio. Conheço os dois e sei o quanto são honestos. Depois, Samuel, irão só,
aqui ficarão suas famílias, será o dinheiro mais valioso que elas para vocês?
50
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-O sinhô pode confiar em mim - disse Tião. - vou e volto
com as armas.
-Em mim também, sinhozinho Jorge. Podemos esconder as armas debaixo de
mercadorias baratas. O plano é bom, um branco e um escravo não chamarão a
atenção.
-É isto, Samuel, agora o mais importante, ninguém deve descobrir! Temo que a
notícia se espalhe; o Coronel Francisco deve saber só quando tivermos as armas
em nosso
poder. Não digam nem para as pessoas da família. Partirão dizendo que irão às
vilas vizinhas, nas redondezas, conversar com os delegados e verificar se não
sabem
de criminosos que rondaram por aqui.
Discutimos mais o nosso plano, os detalhes; após, saíram os quatro para as
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

providências que teriam que tomar e fui escrever a Martins. Saudei-o, lembrando
os bons
eventos que passamos juntos e pedindo o favor de vender-me armas boas e munição.
Narrei, superficialmente, os fatos e o porquê de necessitar de armas. Temendo
que
não o encontrassem, escrevi também a seu pai, fazendo o mesmo pedido.
À tarde, vieram pegar o dinheiro que foi colocado em duas bolsas de couro, uma
Samuel levaria, outra, Tião. Dei-lhes as cartas, e fiz as últimas recomendações.

-Conheço esse lugar, sinhozinho - disse Tião. - Sinhô Joaquim foi lá comprar
tecidos para as meninas.
-Será fácil. Partam com Deus e que Ele os proteja! Saíram e pedi em oração a
Jesus que os protegesse. Iam
com muito dinheiro e isso seria grande tentação. Poderiam ser assaltados, correr
perigo. Mas o plano era bom, só os dois, não chamaria a atenção de ladrões. E
não
havia escolha, se eu não podia ir, precisava confiar neles e tinha a certeza de
que escolhera certo. De madrugada, partiram os dois, e para todos iriam às vilas
vizinhas; e mamãe comentou, desiludida:
-Jorge, será que os dois acharão alguma pista? Ilude-se assim, filho? Sabemos
quem mandou matar seu irmão. Será conveniente tirar dois homens como Samuel e
Tião
da fazenda?
CATIVOS E LIBERTOS
51
-Mamãe, pode ser que achemos uma pista, pode ser que um dos delegados se
interesse pelo caso. Todo esforço é válido, esperemos.
No outro dia, Manuel e Nércio vieram com dez negros fortes e aptos para o
trabalho. Eram seis famílias, totalizando umas trinta pessoas. O Coronel João
dos Santos
tratava bem seus escravos; não estava bem de situação, e ao enviuvar dera para
gastar, ele e seus dois filhos, com jogo e mulheres.
Recebi-os, vinham felizes, todos na redondeza sabiam como viviam os escravos em
nossa fazenda. Disse a eles o que fariam e as regras a serem obedecidas; liberei
o dia para descansarem e se ajeitarem. Dei ordens a Benedito para vigiá-los,
orientá-los e que ficariam sob suas ordens. Tínhamos lugar com as mudanças
feitas, porque
dois casais foram para as dependências da casa-grande, embora mamãe não tivesse
achado bom, mas era seguro; havia quatro casas desocupadas e as duas que
faltavam,
começariam a ser feitas no outro dia. Ficariam no galpão, alojadas, as duas
famílias.
Logo após, chegou Coronel João dos Santos para acertar a venda. Devolvi as
letras, embora a compra dos negros não cobrisse a quantia a mim devida. Mas dei
por acertado.
Agradecido, partiu Coronel João.
Todos os sábados, os negros reuniam-se no pátio no centro de suas casas, para
dançar, cantar e conversar até tarde da noite, porque no domingo não
trabalhavam.
-Sinhozinho Jorge, os negros me pediram para perguntar se podem se reunir
amanhã. Irão cantar e rezar para o sinhozinho José.
Pedi para Nércio esperar e fui consultar mamãe.
-Deixa-os, Jorge. Quando seu pai morreu, José deixou, e cantaram triste e
bonito, é o jeito de eles se despedirem, gostavam tanto de José!...
Dei a permissão. No outro dia, acordei saudoso, lembrei tanto de minha avó e fui
ao seu túmulo no cemitério da fazenda.
52 VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS Por que será que quis ser
enterrada aqui?" - pensei. "Será por que seu filho de doze anos também o fora?"
Vovó Ana, perdera um filho com doze anos. Na época meu avô brigara com o padre e
ele fez o cemitério no lugar mais alto da fazenda, rodeou de árvores e enterrou

o filho ali. Papai contáva-nos sempre que vovó sentindo-se muito doente, pedira
para ali ser enterrada e dissera: "O corpo vira pó onde quer que seja enterrado,
e quero ser pó no lugar que amo".
Lembrei dos sonhos que com ela tivera:
"Oh, vovó! A senhora tinha razão, encontrei minha terra diferente, sem meu pai,
sem meu irmão, ameaçado de uma vingança sem razão. Vovó, se me escuta, ajuda-me!
A senhora tentou prevenir-me em sonhos; se pode, auxilia-me a ser digno de
cuidar desta gente, destas terras e a defender com honra a todos."
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
Senti-me melhor, voltei para casa; o dia passou lento e logo à noitinha os
escravos começaram a cantar, tristemente. Nércio veio chamar-me, queria falar em
particular,
fomos ao escritório:

-Sinhozinho, três que estão de castigo insistem em ficar na reunião.
-Quê, Nércio! Três sem recompensas? Por que tantos assim?
-Não sei não, sinhô, são cinco, os outros dois estão em
suas casas.
-Há sempre os mais rebeldes que querem testar a autoridade dos novos donos.
Vamos lá.
Quando entrei no pátio, pararam de cantar e todos olharam-me, curiosos.
-Quem sem recompensa está aqui? - indaguei alto.
-Eu, sinhô.
Reconheci Domingos, um negro alto e forte, respondeu-me com a cabeça empinada e
olhar desafiador.
-Ordeno que volte. Como disse a todos, não mudaram os costumes da fazenda, tudo
é como antes.
-Se não quiser, sinhô? - respondeu com um risinho. Mandará bater-me? Aqui nem
tronco tem...
CATIVOS E LIBERTOS
53
-Queria que tivesse tronco aqui, Domingos? Não mando bater, bato eu! Desafio
você, braço a braço, lutemos. Se ganhar, fica, se eu ganhar, voltará para sua
casa.
Dei minha garrucha para Nércio, que me olhava, assustado. Tirei o paletó, camisa
e botas.
-Começamos, Domingos. Lutaremos como dois homens que somos.
A luta durou minutos. Domingos lutava bem e eu também. Deixei-o estendido no
chão. Todos olhavam-me com admiração.
-Levem-no para casa. E os outros dois? Nem responderam, saíram correndo.
-Vamos, Nércio.
-Lutou como um leão, sinhozinho!
-Estava precisando de um treino. Nércio, temeu por mim., heim?
-Temi, sim. Domingos luta capoeira, e eu estava pronto para interferir. Nunca
vi isto, um sinhô lutar com escravo. Mas me orgulho do sinhô, agiu bem, certo.
-Foi meu mestre, Nércio. É o melhor lutador de capoeira que já vi. Lembro dos
tempos felizes em que ensinou a mim e a José lutar.
-Isto foi há tempo, tive medo que perdera a forma. Sorri. Não só estudava
Engenharia na França, como eles
pensavam. Aprendi muitas outras coisas. O pai de um dos meus colegas era Capitão
do Exército, em Paris, e permitiu que treinassem, o filho e um grupo de amigos,
em seus ginásios. Lá ia, sempre que me era possível; aprendera a atirar, a usar
espadas e facas, e a lutar. Estudava comigo um chinês, lanchi, meu melhor amigo,
e ensinou-me formas de luta corporais que usavam no oriente. Assim, não fora
difícil vencer Domingos, lutador de capoeira, mais alto e forte que eu.
-Domingos, sinhozinho, será motivo de riso por muito tempo na fazenda, é tido
como valentão e temido pelos outros. Sinhô Jorge adquiriu autoridade sobre eles.
Duvido
que alguém mais desobedeça.
54
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-Nércio, entremos pela cozinha, não quero que mamãe me veja assim, vou pedir
para Joana me fazer uns curativos.
Ferira-me em três lugares: nos lábios do lado esquerdo, na testa e no ombro.
Joana passou remédios caseiros nos meus ferimentos, vesti minhas roupas e fui
para a sala tomar chá para dormirmos. Escondi com as mãos, meus ferimentos. As
quatro
estavam silenciosas e pensativas, não prestaram atenção em mim, nada percebendo.
Após, despediram e retiraram-se para seus quartos. Dava para ouvir-se o canto
triste
dos escravos. Não tinha sono e fiquei na sala, folheando um livro da estante.
Foi quando novamente Nércio veio chamar-me:
-Sinhozinho Jorge, temos outro problema, Dimas violentou Sarana, a filha do
Chico Parreira. Eles o amarraram e estão aqui no pátio à espera do sinhô.
-Quê, Nércio! Aquela mocinha? Ai, meu Deus! Que acontece com estes negros?
-Dimas pegou Sarana no cafezal à tardinha, na volta do trabalho, veio e agiu
como se nada acontecera, deixando-a lá, toda machucada. Como demorou a voltar, a
mãe
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
se preocupou e Chico, que está de guarda agora, foi com os filhos menores
procurá-la; encontraram-na voltando com dificuldades. O malandro ainda ameaçou-a
para não
contar a ninguém, mas ela contou ao pai. Chico pegou-o e amarrou-o; estão aí
fora.

-E a mocinha?
-Tem treze anos e é muito bonita. Está na sua casa, Maria e Joana foram cuidar
dela, a coitadinha treme e chora sem parar.
Dei um murro na mesa, que assustou Nércio.
Meu avô viera de Portugal, menino ainda, ajudou seu pai a desbravar aquele
sertão, formara a fazenda com ajuda barata dos escravos, e desde seu tempo, os
escravos
eram respeitados na sua intimidade. Viviam como famílias, casavam e as mulheres
eram respeitadas, não serviam de pasto nem para seus senhores, nem para
empregados,
nem para os negros. Meu pai nunca permitiu
CATIVOS E LIBERTOS
55
que eu ou José desrespeitássemos uma negra. Ai de nós se ousássemos
desobedecê-lo! Aprendera desde mocinho a controlar o sexo e a ter respeito pelas
mulheres, qualquer
que fosse sua cor. A raiva tonteou-me, respirei fundo, controlando-me! Vamos,
Nércio, será feito o que meu pai fazia.
Muitos dos escravos ali estavam. Chico segurava a corda1 em que Dimas estava
amarrado muito bem, pelos pulsos. Estavam todos em silêncio, esperando meu
pronunciamento.
Chico, tem a certeza da culpa de Dimas? Tenho, sim, sinhô.
-Dimas, é culpado?
Dimas estava assustado, temendo mais a Chico que a mim, mas respondeu alto:
-Sou.
Olhei com raiva para ele e minha vontade no momento era deixá-lo nas mãos de
Chico, mas não queria violência. Papai sempre dizia que violência não educa
ninguém,
só gera ódio. Controlei-me para não o surrar, disse com desprezo:
-Nem lutar com você quero, negro sujo. Não é digno de ser homem de lutar com um
homem. Poderia deixar Chico surrar você, mas por muito que apanhe, é pouco pelo
que fez. Seu crime não tem perdão. Que todos escutem: Não tem perdão! Que seja
vendido amanhã cedo.
Mamãe e minha irmãs levantaram-se assustadas, estavam na varanda abraçadas,
escutando-me. Os negros curiosos aproximaram para saber do ocorrido. Ninguém
contudo
interferiu, continuei firme:
-Que passe a noite amarrado, bem amarrado na frente do galpão! Os guardas devem
velar para que ninguém chegue até ele, se alguém quiser soltá-lo, será vendido
com
ele. Aproveito que estão todos reunidos, para afirmar que aqui estou para mandar
e ser obedecido. Empregados são livres para pedir demissão e partir. Aos
escravos,
dou a liberdade de querer ficar ou ser vendido. Se aqui tem alguém insatisfeito
que fale ou obedeça, porque não tolerarei indisciplina! 56 VERA LÚCIA MARINZECK
DE
CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS Domingos adiantou-se: Eu quero ir com Dimas.
-Que seja. Amanhã irão cedo para a cidade e que todos estejam aqui para ver.
Irão amarrados, porém a cavalo. Manuel e Benedito os levarão, peço também a um
dos
homens do sr. Amadeu para acompanhá-los.
Um deles adiantou-se, pareciam se divertir com meu procedimento, com minha luta
com o escravo e com meu estranho castigo. Na fazenda do sr. Amadeu, os escravos
eram
bem tratados, bem alimentados, tinham folgas, faziam festas moravam em senzalas
espaçosas e eram raros os castigos, mas longe de ser como na Fazenda Sant'Ana.
Com tudo resolvido, esperei que amarrassem Dimas e voltei para casa. Os escravos
também se dispersaram, foram para suas casas; com os acontecimentos a reunião
deles
acabou, perderam a vontade de cantar.
As mulheres entraram em casa comigo, nada comentaram e fomos deitar.
Demorei a dormir pensando nos episódios tumultuados da minha volta.
No outro dia cedo, levantei apressado com Joana a me chamar. Troquei de roupa e
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

fui para o pátio e lá estavam todos os que foram ver os que iam para a cidade.
Chamei
Manuel e disse-lhe baixo:


-Hoje, domingo, não será difícil vendê-los. Procure pedir preço justo por eles,
mas pode fazer abatimento. Está autorizado a fazer qualquer negócio, que sejam
vendidos
nem que seja para o sr. Miliquias. Não os quero de volta, negocia-os ainda hoje,
porque não quero você e Benedito longe da fazenda por muito tempo.
Manuel concordou com um "sim, sinhô". Espantou-se quando disse sr. Miliquias,
que nos era antipático, um velho indecente que negociava negros na vila. Dei a
ordem.
Podem partir. Ajudaram Dimas a montar no cavalo. Domingos despediu-se da
família, sua mãe e irmãs choravam muito e sua mulher estava inconsolável.
CATIVOS E LIBERTOS
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Benedito puxou-o pela corda, pois já se achava amarrado. Domingos correu para
meu lado. Ao ver seu gesto, saquei da garrucha e apontei para ele. Mas Domingos,
arrependido,
ajoelhou-se a meus pés, lágrimas corriam pelas faces: Perdão sinhô, perdão. Não
quero mais ser vendido. Deixe-me ficar, não desobedecerei mais, nunca mais.
Serei
bom. Ia responder concordando, mas esperei. Olhei para todos e disse alto: Que
seja feita uma votação, porque Domingos não está sendo castigado, foi escolha
dele
partir, e agora se arrepende e quer ficar. Que seja decidido pela maioria, se
foi bom colega, ficará. Levante a mão direita aqueles que querem que Domingos
fique.
Contei alto, foram poucos os que não levantaram a mão Desamarrem-no e que fique!
Obrigado, sinhô, obrigado! Correu para os seus, que o abraçaram, felizes. Dimas
em cima do cavalo olhava tudo cinicamente com a cabeça erguida, desafiando-me e
também a Chico, com olhares irônicos. Só sua mãe chorava; seu choro triste
apiedou-me,
mas por ela nada podia fazer. Quem manda, não pode ter dó de alguém, se este
ameaça o bem-estar de muitos. O exemplo tinha que ser dado, se não, violências
deste
tipo seriam comuns na fazenda. Olhei para Dimas, encarando-o; não olhava para
sua mãe, que chorava, parecia ou fazia de contente, com um risinho maroto, não
se despediu
de ninguém e ninguém se atreveu a se despedir dele. Olhando, entendi o porquê de
muitos senhores surrarem às vezes até a morte certos escravos como Dimas, cínico
e arrogante. Não seria eu a mandar surrá-lo, quem o comprasse saberia que os
Castro e Alves não vendiam à-toa seus escravos, e acostumar a outra forma de
vida não
seria fácil a ele. Dei a ordem: Podem partir.
Partiram a galope e logo não mais os via na estrada. Tanto os empregados, como
os escravos, olhavam-me com respeito. A reunião se desfez. Com passos largos,
voltei
para casa.
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
"Ordem para ter disciplina!" - parecia-me escutar vovó Ana e lembrei do Pastor
Germano. Pareceu-me ouvi-lo:
"Autoridade, meus filhos, deve ser exercida com sabedoria e bondade. Ser bom é
ser justo, não frouxo. Quem tem temporariamente poder sobre outros, deve
proteger
os fracos dos fortes, os bons dos maus, fazendo todos viverem bem. Se crimes e
violências acontecerem e não se tomarem providências, pagarão eles juntos com os
criminosos.
Na terra ainda uns têm que mandar, serem líderes da maioria, mas ai deles se
exercerem mal essa liderança. Felizes os que mandam com sabedoria e agem com
justiça!"
Ao entrar em casa, aguardavam-me para o desjejum; todos estavam silenciosos e
pensativos. Capítulo V MEDITANDO SOBRE DIFERENÇAS
Sentei-me num canto da varanda e fiquei meditando no que me dizia sempre lanchi.
Recordando a expressão de Dimas, dei razão a ele, a suas idéias. Falava-me
sempre:
"Jorge, não vivemos uma vez somente, não tivemos só este corpo que usamos agora,

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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
a alma, o espírito é eterno e renasce na Terra, toma o corpo fetal, encarna,
quantas
vezes forem necessárias ao seu progresso. Ao sermos criados, somos ignorantes e,
em cada passagem pela Terra, vamos aprendendo, desenvolvendo a inteligência,
adquirindo
experiência. Tudo o que fazemos a nós pertence, o bem ou o mal. Nossa obra é
nossa; nos pertence, as boas são tesouros que nos dão a fartura do conhecimento,
do
aprendizado, das virtudes adquiridas. As más obras são dívidas que contraímos,
que um dia temos que resgatar pelo bem. construindo, reparando faltas.
Oportunidades
pelo amor são dadas, mas, se nos negamos a aproveitá-las, vem a dor, esta sábia
companheira, a nos corrigir, a chamar-nos à realidade para a vida maior. Não vê
tantas
diferenças, Jorge? Tantas pessoas na fartura, outros na penúria, uns belos,
outros feios, senhores e escravos. Deus seria justo diferenciando tanto assim
seus filhos?
Não seremos nós mesmos que fazemos esta diferença? Se um caminha, e outro pára,
ocioso, não podem estar no mesmo lugar. Deus é justo, nós é que não entendemos
bem
seus desígnios."
lanchi falava-me tanto sobre o assunto, acreditava com tal fervor na Teresinha
Kawski
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teka72@terra.com.br
Teresinha Kawski
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reencarnação que fui me convencendo, cheguei até a comentar com Pastor Germano e
foi com admiração que ouvi:
60
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
"Conheço a filosofia oriental, acho-a justa e simples. Para mim, a verdade está
nos ensinos que compreendemos e acreditamos. É bem justa a lei do carma, de
causa
e efeito, da reencarnação, porque confirma a bondade do Pai, que não condena
seus filhos a castigos eternos, mas sim, dá sempre oportunidades de reparar,
construir
e de aprender aqui na Terra mesmo. Mudamos de corpo, para o recomeço, com a
sabedoria do esquecimento. Não faz muito tempo, Jorge, conheci um rapaz que, com
dezesseis
anos, matara cinco pessoas, estuprou duas meninas e acabou sendo assassinado.
Não acha que dezesseis anos de erros é pouco tempo para uma condenação eterna?
Não
merece este espírito novas oportunidades? Não posso expor estas idéias; são
contrárias à religião que sirvo. Sinto no íntimo que são verdadeiras e, se assim
forem,
espalhar-se-ão pelo mundo. A verdade, Jorge, vem devagar, é como a luz que,
forte, cega. Nascerá como a Aurora, no Ocidente, e se fortalecerá nas pessoas de
boa-vontade."
"Ai que vontade!" - resmunguei. "Que vontade de conversar com eles, trocar
idéias com o Pastor Germano". Ia escrever a eles, aos amigos, mas como o que
tinha a contar
era tanto e tão demorada a correspondência que quando recebesse a resposta
muitas coisas já teriam mudado. Entendia mamãe por não ter escrito sobre papai e

o casamento
de José.
Pensei novamente em lanchi, um oriental simpático e inteligentíssimo. Voltara
para a China na mesma semana em que eu regressara ao Brasil. Concluiu seus
estudos,
sendo admirado por colegas e mestres pela simplicidade e sabedoria. Ah! Se você,
lanchi, estivesse aqui, entre senhores e escravos confirmaria bem sua crença! As
diferenças eram muitas. Por que um espírito, um indivíduo ia ser escravo? Se
nascemos uma só vez, por que esta diferença? Recordando Dimas com sua
arrogância, parecia
mais um senhor que um escravo. Será que não o tinha sido? Será que não fora
*~'.- em outra existência um senhor cruel que voltara na cor negra para dar
valor aos
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

ensinos de Jesus: Somos todos irmãos o que quer que lhe façam CATIVOS E LIBERTOS
61 Ali, na fazenda, havia muitos casos a meditar, como o de Maria, sábia nas
curas.
Quem lhe ensinara? Ninguém, ou aprendera em outra existência?
Mesmo comigo, qual o porquê de achar a França conhecida sem nunca antes nesta
vida ter ido lá, e como recordei de tantos lugares e fatos?! A facilidade com
que aprendera

o francês e como falava corretamente, sem sotaque. Vivera na França?
Lembrava também de Tonho, um negro forte, ocioso, que não gostava de trabalhar,
estava sempre brigando, e bastava alguém chamá-lo de negro para se ofender e
revidar.
Já estava com vinte anos, não queria constituir família porque dizia sempre não
gostar de negras. Começou a rodear a casa-grande e olhar muito Carlota, que
nessa
época estava com oito anos. Meu pai o proibiu de chegar perto da casa e de nós.
Tonho teimou, olhava para Carlota com cobiça, preocupando meu pai, que lhe tirou
as recompensas e falou aos pais dele para aconselhá-lo, porque, se desobedecesse
outra vez, seria vendido. Sua mãe contou que ele achava lindas as meninas,
mulheres
brancas e que era revoltado por ser negro. Após uns dias, Bárbara contou ao
papai que Tonho se aproximara de Carlota quando brincava no quintal e que o vira
passando
a mão nos seus braços, mas fugiu logo que a notara. Meu pai chamou sua família e
lhe disse que ia vender Tonho, se quisessem poderiam ir junto. Responderam logo
que queriam ficar e meu pai admirou-se por ninguém pedir por ele, nem sua mãe.
No outro dia, foi levado e vendido longe, ninguém dele se despediu e nunca mais
soubemos
dele. Não teria sido Tonho um branco racista que, mesmo negro, não conseguia
amar a cor negra?
Sempre se ouvia falar de brigas entre negros, até crimes. E, em castigos, os
escravos nunca queriam ser surrados por outro negro, escolhiam brancos para
chicoteá-los.
Havia entre eles ódio revolta, nem todos escravos eram coitadinhos e inocentes,
send< alguns maus, mesmo. Não estariam eles num aprendizado na car ne, pela dor?
Sentia que sim, acreditava que sim, uns abnegados bons, aprendiam; outros se
revoltavam ante a oportunidade dada. 62
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
Se assim não fosse, não poderia acreditar na Bondade de Deus, Pai de todos. Eu
acreditava.
Senti um perfume, a imagem da vovó veio-me à mente. Aspirei profundamente,
reconheci o perfume que minha avó Ana usava. Aspirei, senti-me abraçado e
escutei, não
com os ouvidos físicos, mas com a alma: Jorge, meu neto, continue firme no bem e
na justiça. Se for bom, terá a mim sempre ao seu lado, eu o abençôo."
Quis falar, mas emocionado não consegui sair do lugar e foi mamãe quem me tirou
do torpor em que me encontrava:
-Jorge, meu filho, quero falar-lhe: será a missa do nosso José, queremos ir na
véspera, amanhã, e pernoitar por dois dias na casa da cidade. Você vem também?
Vamos
todos, então. Dá-me dinheiro filho, quero dar uma esmola farta na igreja.
-Mamãe, além de pagar para rezarem ao José, quer dar mais dinheiro a eles? A
igreja é rica, mamãe, muito rica, não necessita de esmolas, nem pequenas, nem
grandes.
-Jorge, a igreja é pobre e ajuda aos pobres.
-Pobres de onde?
-Eu sei lá, o vigário manda dinheiro para os pobres de longe.
-Aqui não os tem?
-Tem.
-Então daremos para os daqui, são os mais próximos. Temos muito feijão, arroz e
milho, levaremos e daremos aos pobres da vila por intenção do José. Que acha a
senhora?
-Acho bom, mas quero dar também ao vigário.
-Feijão, arroz?
-Não, dinheiro. Você me dá?
-Por que pede a mim, mamãe?
-Você é o chefe da casa. E o homem que trata deste assunto
-respondeu admirada com minha indagação.
-Quanto a senhora quer? Disse ela a quantia.
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

CATIVOS E LIBERTOS

-Tudo isto, mamãe? Darei a metade. vou tomar as providências para irmos amanhã
logo cedo.
Resolvemos, eu e Nércio, que iríamos na carruagem de visita, chamávamos assim a
melhor carruagem que tínhamos. Seríamos escoltados por doze homens que voltariam
à fazenda logo após, ficando quatro somente conosco. Na cidade não havia perigo,
e, para voltar, iriam novamente para nos escoltar. Conosco viajariam algumas
escravas
para cuidar da casa e estas iriam na outra carruagem. Manuel ficaria no comando
da fazenda durante minha ausência.
À tarde, os homens que tinham ido vender Dimas, voltaram e trouxeram com eles um
negrinho. Manuel foi explicando ao
me ver:

-Sinhô Jorge, a vila está sem movimento hoje, andei por todo lado oferecendo
Dimas, ninguém se interessou, tive que negociá-lo com o sr. Miliquias; lá estava
este
negro, apiedei-me dele. tem vinte anos, sinhô, parece ter menos. Está doente,
com febre, lá estava jogado sem cuidado. Comprei-o barato, aqui esta o troco. Se
o
sinhô quiser, fico com ele, pago com meu dinheiro, pois comprei, fiz má compra,
mas foi por dó.
-Agiu bem. Manuel, ficaremos com ele. Leve-o para o porão e peça à Maria para
cuidar dele, vê se não é contagioso o que tem.
-Sim, sinhô - disse Manuel, alegre, ajudando o negrinho a descer do cavalo e a
andar. Logo mais, veio Maria dar notícias:
-Sinhozinho, Mane, o negrinho que Manuel trouxe, tem feridas por dentro, parece
ser como a doença de seu pai. Coitado, foi vendido só porque estava doente. O
malvado
do sr. Miliquias teve lucro com ele e tratou-o mal.
-Vamos cuidar dele. Pode fazer isto, Maria?
-Claro, sinhô, gosto de cuidar de todos.
-Por que, Maria?
-Não sei, sinhô. Parece que fiz isto sempre, é algo que sei. Às vezes, tenho a
sensação de que fiz isto por dinheiro, muito dinheiro, agora, faço só por
carinho,
por gosto! 64 VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS Maria saiu e
fiquei a cismar com o que ela dissera, não tinha dúvida que Maria aprendera
Medicina
em outra existência, num outro corpo.
Durante o jantar, Glorinha e Carlota começaram a indagarme sobre a França e
conversamos mais animados.
-Deixou amores por lá? - quis saber Carlota curiosa. Pensamos que você poderia
voltar casado.
-Não escondi nada de vocês, queridas. Não tive amor nem amores, mas alguns
flertes, encontros sem importância. As mulheres parisienses são encantadoras,
mas nenhuma
tentou um namoro mais sério. Nunca voltaria casado, não daria este desgosto aos
meus pais. Depois, como uma francesa iria se acostumar aqui?
-Aqui é tão ruim assim, Jorge? - perguntou Glorinha um tanto indignada.
-Não, Glorinha, aqui é maravilhoso. Mas a vida lá é diferente, as mulheres são
mais emancipadas, e já não obedecem aos homens como aqui.
-Como é possível? Assim vira bagunça - disse mamãe.
-Mamãe, homens e mulheres são iguais perante Deus, devem ser também nas
responsabilidades. Bagunça, só se houver abusos de qualquer das partes.
Contei fatos interessantes e elas ouviram atentas e curiosas, fomos dormir mais
tarde. Animado com o calor da conversa, adormeci logo.
No outro dia, logo cedo, preparamo-nos para ir à cidade. Uma carroça grande foi
carregada de mantimentos para darmos aos pobres da vila. Após o desjejum,
partimos,
acomodamo-nos na casa da vila. Era uma casa grande, bem imobiliada, muito
bonita; um casal de escravos nela ficava para deixá-la sempre limpa e em ordem.
À noite,
recebemos visitas de amigos, mais de amigas da mamãe e das meninas. O rompimento
do noivado de Glorinha e Abelardo foi o assunto preferido. No outro dia pela
manhã
realizou-se a missa, e a Igreja ficou lotada. Após a missa, recebemos os
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

cumprimentos dos amigos. Depois, mamãe levou-me à sacristia,
CATIVOS E LIBERTOS

fez tomar a bênção do vigário, o que fiz por educação. Sempre tive o conceito de
que abençoar é dar fluidos, energias, algo de bom, de que quem abençoa, dá
espontaneamente.
Deu a ele a esmola, e o vigário não conseguiu esconder a decepção, pois esperava
mais, certamente.
Após, fomos distribuir os mantimentos pela redondeza. Mamãe e as meninas
gostaram tanto, que prometi que faríamos sempre estas distribuições. Deus lhe
pague! Obrigado!",
eram canções, voltamos para casa, leves, como acontece sempre que fazemos o bem.
Recebemos muitas visitas à tarde e à noite. As mães casamenteiras olhavam-me,
curiosas, fazendo questão de me apresentarem as filhas solteiras. Conhecia-as
quase
todas meninas, fui educado, mas dei graças, quando saiu a última visita. No
outro dia cedo, regressamos à fazenda.
Na carruagem, observando-as, vi o quanto eram indefesas, dependentes. A não ser
Glorinha, as outras não saberiam viver sem serem conduzidas. Até mamãe, mais
velha,
não pensou em tomar nenhuma atitude. Do papai ao José, agora a mim pertencia o
comando, segundo ela, que até dinheiro para esmolas me pedia. Fizeram-me o
chefe,
não teria como escapar. Como ir agora embora como planejara? Como deixar a
fazenda? Teria o direito de vendê-la? Tocar neste assunto seria ofender mamãe,
abandonar
a fazenda seria matá-la de desgosto. E minhas irmãs, iriam? Tinha a certeza de
que Carlota não, estava apaixonada demais pelo Pedro. Era melhor não pensar no
futuro,
bastavam as minhas preocupações do presente. Resolvi prestar atenção no que elas
conversavam, comentavam sobre o bonito sermão que o vigário fez na missa para
José,
e nos comentários dos amigos.
Chegamos sem problemas. Quatro dias se passaram, tranqüilos. Quase à noitinha,
regressaram Samuel e Tião com a carroça carregada de boas armas e muita munição.
Reunimos
todos no pátio para ver as armas; encantaram-se com elas. Fiquei satisfeito com
a compra, recompensei Samuel e Tião pelo bom desempenho da tarefa. Separei as
armas,
distribuí, ensinando-os a usá-las. Dei para Glorinha uma garrucha pequena muito
bonita e outra para Bárbara, ambas já atiravam bem.
Martins respondera minha carta com uma missiva alegre, dando notícias dos amigos
e colocou-se à disposição para me vender o que necessitasse.
Com o meu pessoal bem armado, fiquei mais tranqüilo. Chamei os dois homens do
sr. Amadeu e mandei-os de volta, gratificando-os bem.
Agora, todos os empregados e os escravos que separara para guardas, andavam
armados o tempo todo e também Glorinha, que prendeu sua garrucha na cintura,
escandalizando
minha mãe.

-Mamãe - disse-lhe -, Glorinha não sairá matando, fico mais tranqüilo se pelo
menos ela e Bárbara estiverem aqui em casa armadas e sabendo atirar. Deveriam
todas
fazer isto.
Planejei com todos os detalhes possíveis nossa defesa; de qualquer lugar da
fazenda que recebêssemos um ataque, estaríamos prontos a defender. Não seria
mais o Coronel
Francisco, nem qualquer outro, a tocaiar-nos, nem temeríamos qualquer ofensiva.
Tudo foi voltando ao normal, os negros novatos acostumaram-se logo ao nosso
convívio, e não tivemos mais nenhum deles sem recompensas. As duas casas foram
construídas,
ficando todos bem instalados.
Nércio me falava de Leôncio, o tanto que era trabalhador; esquecera-me dos
problemas dele e a promessa de ajudá-lo. Mandei chamá-lo.
-Leôncio, receberá seu salário como empregado na fazenda. Manuel e Nércio têm
elogiado seu trabalho. Com tantos problemas que encontrei aqui. não pude
ajudá-lo.
Descobriu o paradeiro de sua mãe?
-Não, sinhô. Perguntei a todos na fazenda e ninguém sabe.
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

-Leôncio, vá perguntar ao pai Tomás, o velho que mora na fazenda assombrada,
ele deve saber, conhece a todos por aqui.
-Na fazenda assombrada, sinhô?
CATIVOS E LIBERTOS
67
-Até você já sabe e teme. Vá durante o dia, peça a Nércio para ir junto, ele
conhece bem o pai Tomás. Aquele velho sabe das coisas, tem uma memória incrível.
Também
Leôncio, acompanhe a todos que saírem da fazenda, vá junto às compras, vá
perguntando, se ela estiver por aqui, acabará sabendo.
"Fazenda assombrada" era como chamavam a Fazenda Olho d'Água, vizinha à nossa
pela parte Leste e Norte, fazendo divisa conosco e com o Coronel Francisco. Era
uma
fazenda pequena, de terra boa, lugar muito bonito, com muita água e com duas
nascentes formando um pequeno lago, cercado de pedras e lindas árvores. Estava
abandonada
há muito tempo. Sua história era conhecida por todos na redondeza. Há muito
tempo, seu dono, um coronel de prestígio, enviuvara, casando novamente com uma
jovem,
muitos anos mais moça que ele e muito bonita. Dizem que fora obrigada ao
casamento pelo pai, em resgate por dívidas com o tal coronel. A jovem esposa era
muito infeliz
e foi mãe de duas crianças. Veio em visita à fazenda um primo do coronel, moço e
simpático, e ficou para uma temporada. Os dois jovens acabaram por se apaixonar.
O coronel acabou desconfiando e pegando os dois conversando juntinhos, trocando
juras de amor. Os dois juraram inocência, disseram não o ter traído, mas este,
louco
de ódio, amarrou-os, deixando-os dois dias no quarto, trancados. Nesses dois
dias, o coronel vendeu sua colheita, todos os animais e escravos, tirou tudo o
que tinha
de valor na casa. Mandou os três filhos do primeiro consórcio para a capital da
província. Ficaram os negros da casa e os empregados. Levou os escravos para o
quarto
e amarrou-os junto da esposa. Disse friamente que ia matá-los, os dois por
traí-lo e os negros por não lhe terem contado. Os escravos apavorados, juraram
nada saber,
pediram piedade, mas ele ria alto não se apiedando dos negros, dos choros.
Trouxe o casal de filhos pequenos e deu ordens para que os jagunços os matassem.
Como
se negassem a isso, ele mesmo matou-os com facadas, diante da esposa,
horrorizada. Depois pôs fogo na casa, dando a eles uma morte horrível! Morreram
doze, naquela
noite de terror. Quando
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
viram fogo, os vizinhos correram, porém nada mais puderam fazer. O fogo destruiu
tudo e o coronel olhava aquilo com indiferença. Pagou os empregados e os mandou
embora e partiu em seguida. Ninguém mais morou na fazenda a não ser um
ex-escravo, alforriado, o velho pai Tomás, como todos o chamavam.
Na fazenda, das construções, só restaram ruínas, o mato tomou conta de tudo e
logo começaram os comentários de que as almas da mulher do coronel e do amante
passeavam
de mãos dadas, trocando juras de amor. Diziam também que a primeira esposa
aparecia com ódio da rival. Com o tempo, muitos afirmavam que os escravos
apareciam, alguns
deles com ódio do coronel. Bastou uns jurarem que haviam visto, para o
comentário se espalhar e o lugar ficou conhecido como "Fazenda Assombrada".
Mesmo tendo se
passado tantos anos, temiam-na e poucos iam lá, e só durante o dia e até à
cabana do pai Tomás. Ninguém se aventurava ir lá à noite, principalmente
brancos, porque
os negros fantasmas os atacavam com raiva.
A estrada para ir à vila era a mesma que usava o pessoal do Coronel Francisco e
nós próprios. Para ir à Fazenda Assombrada, em sua antiga sede, nas ruínas,
tinha-se
que passar em frente da nossa fazenda. Pelo abandono a estrada acabara e só se
chegava a ela, a pé ou a cavalo.
De vez em quando, uma vez a cada dois anos, o filho mais velho do tal coronel
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
vinha ver a fazenda. Algumas pessoas se interessaram em comprá-la, mas não a
venderiam
enquanto o pai fosse vivo e este estava, como soubemos pelo filho, louco, preso
em casa.
Pai Tomás vivia ali, sozinho e feliz. Se perguntassem a ele sobre as
assombrações ele sorria e dizia:

"Almas são gente como nós, vivendo com outro corpo, e a mim, não fazem mal!"
Dava bênçãos, receitava ervas e aconselhava para o bem, todos os que o
procuravam. Lá não iam mais pessoas pelo difícil acesso e pelo medo dos
fantasmas. Olhava
a sorte com pedras,
CATIVOS E LIBERTOS
69
talvez com búzios. Tinha uma memória fantástica e de todos sabia um pouco,
parecendo conhecer a todos da redondeza.
Um dia, de tanto nós insistirmos, Nércio nos levou, eu e José, para conhecê-lo.
Foi muito simpático, tinha algo, bondade talvez, que conquistava as pessoas.
Achei-o
muito inteligente. Ao despedirmos, abençoou-nos e disse ao José:
"Breve será sua caminhada na Terra" - e a mim disse: '"Veio de outras terras,
mais instruídas e velhas. Neste estágio, fará planos que adormeceram para seu
remorso
no Céu. Mandará em muitos, será dono nestas terras. Que Deus o abençoe, menino,
e livre-o das tentações do ouro e do poder!"


"Engraçado!" - balbuciei, espantando-me da recordação com detalhes dessa visita
e do que ele dissera.
Talvez porque ele acertava quanto ao José. E eu cheio de planos e os
acontecimentos imprevistos que os tornavam irrealizáveis. Dissera que viera de
outras terras,
da Europa, talvez da França, para encarnar no Brasil? Sendo o único varão dos
Castro e Alves, não se fez que me tornasse dono de tudo, algo em que nunca
pensara
nem desejava? Acertara prevendo o futuro de nós dois!


-Sinhozinho - chamou-me Manuel. - Mane, o negrinho doente, está bem ruim, quer
ver o sinhô.
Fui com Manuel vê-lo. A entrada para o porão ficava em um canto à direita de
nosso quintal. Usávamos do porão uma parte para guardar materiais usados na
fazenda.
Na outra, mais alta e arejada, morava Maria num cômodo e. ao lado, ela fazia
seus curativos, cuidava de seus doentes, tendo dois leitos e, num deles, estava
Mane.
Maria não tinha outro trabalho a não ser cuidar de sua horta de ervas que ficava
numa parte do pomar, e dos doentes. Tinha lá seus cinqüenta anos, era forte,
robusta
e alegre, mas aparentava ser bem mais nova.
Mane estava deitado no leito limpinho e sorriu ao ver-me:
-Sinhozinho veio ver-me! Deus lhe pague por ajudar-me assim!
-Nada fiz, menino. Foram Manuel e Maria.
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-A mando do sinhô, porque deixou. A eles já agradeci.
-Não necessita agradecer. Quero que sare e sinta-se bem.
-Não vou sarar, não, sinhô. Sei que vou morrer logo. Nesta noite sonhei com
minha madrinha, uma negra boa, que morreu há muito tempo. Ela disse-me que viria
buscar-me
e que meus padecimentos iam acabar.
-E sonho - disse.
-Não, sinhô, deve ser verdade. Estava ela muito bonita no sonho, abençoou-me e
pediu para que recordasse o passado, para entender o porquê de estar sofrendo
assim.
Então me vi como branco, num navio carregando negros como prisioneiros. Eles
choravam a separação dos amigos e parentes e me vi também jogando doentes na
água, muita
água, num rio enorme onde não se via a margem. Chorei em ver tudo aquilo e a
madrinha consolou-me:
"Maneja se arrependeu de tudo. Nesta existência foi bom e justo, sofre dores
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
resignado, por isso foi encaminhado junto de pessoas boas, tudo chega ao seu
final."

-Se não tivesse sido bom, que aconteceria comigo? - perguntei a ela, que me
explicou:
"Morreria no alojamento do sr. Miliquias."
-Como vê, sinhô, vou mesmo morrer e desejo que seja logo. Queria pedir uma
coisa...
Mane narrou o sonho com dificuldades e eu escutei-o atento, acreditando que nada
era injusto no sofrimento dele, estava pela bondade do Pai tendo a oportunidade
de resgatar seus erros. Era o mar que vira em sonho. Fora ele, um traficante de
negros, e nesta vida veio como escravo, sofrendo o que fizera outros sofrerem.
Parecia
acanhado em fazer o pedido, olhei para Manuel que escutava atento, e
indaguei-lhe:
-Fale Manuel, o que ele quer?
-Ele tem mãe, pai, irmãos na Fazenda Santa Rosa, venderam-no porque não podia
trabalhar, levou até castigos, pensando ser por preguiça. Os pais ficaram
desesperados
ao vê-lo partir. Ele quer que, quando morrer, o sinhô mande alguém lá avisar sua
família que ele morreu aqui, bem cuidado.
CATIVOS E LIBERTOS
71
-Não quer que avise agora, Mane? - disse apiedando-me mais ainda do mocinho.
-Não, sinhô. deixa morrer primeiro, assim levarão a notícia toda.
-Prometo, menino. Manuel que tanto tem feito por você, irá dar notícias aos
seus, como deseja.
-Obrigado, sinhô. Deus lhe abençoe e a todos aqui. Adormeceu tranqüilo, saí sem
fazer barulho.
Logo chegaram Nércio e Leôncio e indaguei deles do pai Tomás.
-Ele vai bem - disse Nércio -, disse-nos saber do sinhô e mandou dizer-lhe que
se necessitar do favor dele, que pode contar como certo.
-E estranho este homem, sinhô Jorge - falou Leôncio. Por que acha que o sinhô
necessitará dele? Perguntei da minha mãe e ele respondeu-me: "Não conheço e é
melhor
não achar".
Aborrecido, Leôncio foi desarríar os cavalos.
-Não se chateie Leôncio - animei-o -, se elas estiverem por aqui, acharemos.
Pergunte sempre a todos que encontrar.
-Sinhozinho - falou preocupado Nércio quando Leôncio se afastou -, Pai Tomás
fala de forma estranha, mas verdadeira. Me deu um pressentimento estranho ele
ter dito
que melhor seria não achá-las.
Também senti um pressentimento ruim, mas nada disse.
Dois dias depois, Mane morreu e foi enterrado no cemitério da fazenda e no outro
dia cedo Manuel foi avisar seus pais, conforme lhe prometera.Capítulo VI MARCINA
Comecei a supervisionar o trabalho na fazenda, saía com sete a oito homens, e ia
no meio deles. Em lugares perigosos que poderiam tocaiar-nos, caminhavam três
homens
à frente, um à direita, outro à esquerda e outro na direção que seguiríamos.
Combinávamos na hora o número de tiros para o alto que dariam para informar que
não
havia ninguém escondido, que não havia perigo. Se não dessem o tiro era sinal de
perigo, outros iriam até eles para ajudá-los ou ver o que havia.
Gostava de andar pela fazenda, olhar o cafezal e os animais nos pastos. Não
tivemos mais nenhum problema, tudo estava em ordem e normal. Resolvi ir à cidade
e pressionar
o delegado para desvendar a morte do José; agora, sentia-me seguro para isto.
Bem armados, formos em doze homens. Na vila chamei a atenção, todos nos olhavam
com
respeito, admirando as armas que meus homens portavam. As notícias corriam
rápido, e curiosos, todos, queriam ver-me, pois já não era a parte fraca, não
era visto
como um almofadinha que só tinha estudado. Fui cumprimentado com respeito, até
mesmo pelo delegado, que gaguejou ao explicar que estava fazendo tudo, mas que,
sem
provas, estava difícil.
-Sr. delegado, tenho a certeza de que está fazendo muito, mas quero mais, quero
o impossível. Não se mata um Castro e Alves e se fica impune. Quero todo seu
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

empenho!

-Sim, o senhor tem razão. Mas é como procurar agulha no palheiro, já corri a
redondeza, ninguém sabe de nada, ninguém viu nada. Acharemos o assassino, o
senhor
e sua família podem estar tranqüilos.
CATIVOS E LIBERTOS
73
Sabia que nunca iríamos desvendar este mistério, o assassino ficaria impune pela
justiça dos homens, pois fizeram bem feito a tocaia. Mesmo se fosse sincero o
desejo
do delegado em pegar o assassino, seria bem difícil.
Cumprimentei-o, despedindo-me friamente e saí. Já não era o Jorge que na
primeira vez ali estivera, meio desorientado. Mudara, agora, sentia-me seguro.
Fui ao armazém fazer algumas compras. O local era também bar, lugar de fofocas,
e se quisesse saber algo, ali era o ideal. Dei algumas informações sobre as
armas,
sem dizer de onde as obtivera.
-Sr. Mendonça - disse alto ao dono do armazém -, ofereço uma fortuna para quem
der informação segura do assassino do meu irmão. Diga a todos, pago...
"Oh!" - fizeram os presentes, era realmente muito dinheiro na época.
Não demorei muito e voltamos.
A estrada cortava morros, havia curvas perigosas, subidas e descidas, íamos
tranqüilos quando vimos uma carruagem em disparada, sem controle, descendo o
morro atrás
de nós. Vi o cocheiro deitado no banco, parecia desmaiado. Galopei em sua
direção, parando os cavalos da frente. Eram quatro, num salto passei para um
deles, segurei
as rédeas dominando-os, e foram parando devagar. Meus homens vieram ao meu
encontro, vi nas suas fisionomias, o quanto estavam orgulhosos de mim. Um deles
segurou
os cavalos e desci, outro trouxe o meu, mas, antes de montar novamente, fui
cumprimentar os passageiros da carruagem. Samuel examinou o cocheiro e informou:
-O homem está desmaiado, sinhô. Abri a porta da carruagem.
Dentro estavam duas mulheres. Uma negra, dama de companhia, e a outra, uma
senhora que tremia, pálida de susto. Observei-a firmemente, sua pele era muito
clara,
seus cabelos e olhos negros, contrastavam de um modo que me fascinou. Seus
lábios eram pequenos e vermelhos, trajada simplesmente e com poucas
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS jóias, era magra. Pareceu-me
conhecê-la. Estas observações ocorreram em segundos e lembrei: "Marcina, a filha
do
Coronel Francisco. Há tempos que não a via, não mudara muito, não podia dizer
que era linda ou maravilhosa, mas tinha algo que me atraía, era doce, meiga e
delicada.
Respeitosamente, tirei o chapéu e cumprimentei-a.
-Boa tarde, senhora, seu cocheiro desmaiou. Sou Jorge Correia de Castro e
Alves, a seu dispor.
A negra desceu com muita rapidez, subiu no banco do cocheiro, Samuel teve que
sair rápido, e ela pôs os cavalos em movimento.
Marcina nada disse, ficou me olhando, espantada, e logo a carruagem tomou
distância.
Meus homens riam. E Nércio tratou de explicar:
-Sinhô Jorge, esta é Marcina, a filha do Coronel Francisco. Se tivesse
esperado, teria dito ao sinhô. Salvou a filha do nosso inimigo!
-Foi corajoso, sinhô.
-Seu pulo foi perfeito.
-Conseguiu parar a carruagem, salvou as mulheres. Na curva do Pião, na certa
iriam virar.
Meus homens comentavam entusiasmados, eu nada disse. Montei no cavalo e
pusemo-nos a caminho. Curioso, indaguei de Nércio:
-Nércio, Marcina deve ter a minha idade. É casada?
-Não, sinhô, é uma solteirona.
Ali. no sertão, nessa época, as moças se casavam bem novas, com seus treze a
dezessete anos. Após os vinte, eram tachadas de solteironas. Nércio continuou a
falar:
-Sinhá Marcina é muito boa, nem parece ser filha daquele horrível homem, porque
puxou à mãe, mulher boa. Era noiva prometida do sinhô Carlos Santana, que morreu
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
três meses antes do casamento. Dizem que foi do coração. Aí, não quis mais
casar. Sai pouco, vai à missa e anda muito a cavalo pela redondeza. CATIVOS E
LIBERTOS
75

-Parece que o coronel não se preocupa muito com ela, estava só com uma negra e
o cocheiro.
-O coronel não liga para as mulheres, parece nem gostar das filhas. A outra é
demente, segundo dizem, ele não gosta nem de vê-la.
Ao chegar, fui tomar banho e, ao sair do quarto, mamãe esperava-me.
-Jorge, que explicações me dá? Arriscou sua vida para salvar a filha do Coronel
Francisco! Eles mandam matar meu José e você se arrisca para salvar um deles?
-Calma, mamãe, não arrisquei minha vida. O que fiz foi fácil, não tinha perigo.
Depois, não sabia quem era ela.
-Que ironia! Um Castro salvando a vida de um inimigo!...
-Mamãe, a moça não é um inimigo!
-Como não é? É filha dele. Todos lá são malditos. •>
-Eu não sabia que era. Depois mamãe, mesmo que soubesse agiria do mesmo modo,
tenho a certeza de que a senhorita Marcina nada tem com as maldades do pai disse
lembrando o modo assustado de Marcina.
-Jorge! - exclamou mamãe aborrecida.
-Jorge, você é um herói, todos comentam - disse Glorinha, alegre, entrando na
sala. - Não se fala noutra coisa na fazenda.
-Glorinha! - respondeu mamãe. - Jorge salvou a filha do nosso inimigo!
-Este é um motivo para acharmos bom, ora! Pense bem, mamãe, o Coronel Francisco
deve estar bufando de ódio por ficar devendo-nos este favor. Pela redondeza,
todos
já devem estar sabendo e os comentários os ridicularizarão. As vantagens são
nossas, Jorge é visto como herói, corajoso. Comentários nada agradáveis a eles.
-É, pode ser, mas preferiria que Jorge não a tivesse salvado e que estivesse
morta. Jorge - continuou mamãe -, quanto ao dinheiro que ofereceu de recompensa,
não
é uma fortuna? É dez vezes mais o que lhe pedi para dar de esmola à Igreja!
76
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
Os comentários corriam mesmo, não me deram tempo nem de contar.
-Mamãe, temos dinheiro e resolvi usá-lo para nossa segurança. A senhora quer,
como todos queremos, descobrir quem mandou matar José, friamente! O delegado
nada
descobriu nem descobrirá. Ofereci o dinheiro e o darei por uma informação
segura. Dinheiro, mamãe, é meio de progresso, de segurança, como também de
ambição. Para
tê-lo o que muitos têm feito e farão? Trair amigos, companheiros, pela
recompensa que ofereci não é difícil. Dinheiro é tentação!
-Será - disse esperançosa - que descobriremos alguma coisa?
-Não acredito muito.
-Então?... Não o entendo filho, se não acredita por que oferecer esta fortuna?
-Com esta oferta, mamãe, traremos insegurança tanto ao criminoso, como ao
mandante. Talvez o mandante mate ou mande matar o assassino de José. Se assim
for, terá
ele seu castigo, se não, ficará com medo de que o mandante o faça. De qualquer
forma, mamãe, com esta oferta, não estarão mais tranqüilos, o mandante ficará
inseguro
temendo que o criminoso seja preso e confesse seu nome. E, intranqüilos, poderão
falhar. Criminosos, cedo ou tarde, temem ser descobertos. E a tentação de
receber
a recompensa será muita e, quem sabe, talvez alguém os traia...
-Você é inteligente meu filho. vou rezar para aparecer alguém com uma denúncia.
Aí José será vingado.
-Mamãe, será que José clama por vingança? Quem faz paga, quem planta colhe. Um
dia, terão que dar contas de seus atos a Deus.
Nos dias seguintes recebemos muitas visitas e os comentários foram muitos, a
notícia da recompensa se espalhou, mas ninguém veio até nós.
Na terça-feira, após o almoço, Joana entrou atrás de mim, no meu quarto .
CATIVOS ILIBERTOS 77
-Sinhô, trago-lhe algo - disse baixinho. - Sou muito amiga de Ana, comadre até.
Ana é uma escrava do Coronel Francisco. Serve na casa-grande, adora a sinhá
Marcina.
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

Encontramo-nos no rio, na ponte. Não fique bravo comigo, e não conte ao Nércio,
se ele souber, é capaz de surrar-me. Ana trouxe uma carta para o sinhô, disse
que
é de sua sinhá, falou-me de pés-juntos, pelo sangue de Jesus. Eu acredito nela,
por isso entrego. Acho que sinhá Marcina agradece ao sinhô.
Entregou-me um envelope.


-Joana, a senhorinha Marcina sabe escrever?
Saber ler e escrever era privilégio de senhores, de homens, raras mulheres o
sabiam. Meu pai contratou um velho professor para dar aulas às minhas irmãs,
alfabetizando-as.
Fez minha mãe aprender também, e ela o fez em obediência a ele. A Tião, moço na
época, foi dada a tarefa de guardar a sala, ou seja, vigiar o professor.
Interessado,
pediu para aprender também e meu pai consentiu. Laurinda quando casou não sabia
ler, depois Carlota e Glorinha ensinaram-na. Por ali, no interior, era raro
mulheres
alfabetizadas.
-Ana garantiu que sim, sinhô Jorge.
Abri o envelope, meu coração disparou, era um bilhete, a letra era delicada como
a dona, estava escrito e li alto:
Senhor Jorge,
Sinto não ter conseguido agradecer-lhe por seu bondoso gesto. Gostaria de
fazê-lo pessoalmente. Se me der o prazer, encontre-se comigo no Lago das Pedras,
na Fazenda
Assombrada, quarta-feira às dezesseis horas.
Marcina
Joana se benzeu.


-Pela Virgem, o sinhô não irá!
-Por que não, Joana?
-Uma moça direita não escreve bilhete marcando encontro, sinhô.
Joana tinha razão, não era costume mulheres de família marcarem encontros,
poderiam ir talvez, se convidadas.
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-Joana, Ana é mesmo sua amiga? E pessoa boa?
-Como minha irmã. Ela não é capaz de trair. Odeia o coronel, ama a sinhá.
-Acha que a senhorinha Marcina seria capaz de armar uma emboscada?
-Ela, não, seu pai, sim. Mas como ter a certeza? Não vá, sinhô. Não me
perdoarei se algo acontecer com o sinhô.
-Não se preocupe, Joana, nada me acontecerá, não serei bobo. Obrigado, pode ir
e... nada!
Ia falar para não ir mais à ponte, mas poderia necessitar desses encontros.
Ficando a sós, li e reli o bilhete. Estava perfumado suavemente. Poderia bem ser
uma
emboscada. Deveria ir, ou não? Foi no que pensei a noite toda e não cheguei a
nenhuma conclusão.
Ao meio-dia, decidi ir. Mas precaveria-me. Desenhei no papel o terreno do local
do encontro marcado. Para o pessoal da Fazenda Morro Vermelho chegar no lago, só
havia dois caminhos, subir pelo rio ou contornar uma montanha por um estreito
atalho. Chamei meus homens, separei em três grupos, deixando Tião e Samuel para
irem
comigo. O primeiro grupo ficaria desde já na curva do rio, nas nossas terras,
até às cinco horas, vigiando se passasse alguém por ali. A ordem era para não
deixar
passar ninguém. Se vissem alguém, mandariam parar, se não obedecesse: atirariam
para ferir. O segundo grupo iria esconder-se entre as margens do Atalho das
Pedras,
numa curva do caminho na montanha. O outro grupo deveria percorrer a Fazenda
Assombrada, vasculhar a parte norte do lago.
Arrumei-me todo, peguei mais outra arma e fui com Tião e Samuel.

-Por que isto só para ir ao lago?
-Tudo isto só para ir ao lago?
-Devem esperar-me aqui - disse ao avistar o lugar -, não quero comentários, e
fiquem atentos!
Segui alguns metros sozinho e atento, ali o lago acabava, estreitava-se seguindo
o rio, atravessei uma ponte velha com
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

CATIVOS E LIBERTOS
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cautela e vi Marcina. Ela estava encostada numa enorme pedra e seu cavalo
pastava ao lado. Estava distraída, observei-a por segundos. Tinha os olhos
cerrados, longos
cílios cobriam os olhos, estava mais corada, vestia roupas de montaria.

-Boa-tarde! - disse baixo, temendo assustá-la.
-Oh! Boa-tarde, senhor Jorge. Como está?
-Muito bem, e a senhorinha?
-Fui tão mal-educada no outro dia! Arriscou sua vida para salvar-me. Quero
agradecer-lhe.
-Vendo-a agora, viva e bem, arriscaria outras vezes. Está muito bonita,
senhorinha.
-Por favor, senhor Jorge, chama-me de Marcina.
-Com prazer, desde que me chame de Jorge.
-Deve ter estranhado meu bilhete. É que senti ter sido tão grosseira, não ter
dito nem obrigado.
-Estranhei e temi, mas a vontade de revê-la foi mais forte.
-Quero que saiba, Jorge, que não aprovo o procedimento de meu pai, abomino. Era
outra coisa que queria dizer-lhe. Fomos amigos. Lembra quando puxava minhas
tranças
na missa? Falava que parecia um esquilo. Nossas famílias nunca foram amigas, mas
nunca tivemos animosidades, não é mesmo? Guardo boas recordações daquele tempo.
Sorri, recordando. Via Marcina em festas e na missa aos domingos. Após a missa
era costume ficarem todos conversando na frente da Igreja, as mulheres faziam
rodas,
de amigas e parentes. E os homens também, formando vários círculos, e a meninada
aproveitava para brincar. Marcina era da minha idade, meses mais moça, sempre a
procurava e puxava suas tranças devagar e às escondidas. Engraçado, que só fazia
isso com ela. Chamava-a de esquilo, parecia-me sempre assustada e ela ria,
gostava
de vê-la sorrir. Ao tornar-se mocinha, não me atrevi mais a puxar-lhe as
tranças, também, porque não as usava mais. Ficava olhando-a sem chegar perto.
Era menino
ainda e senti muita tristeza ao vê-la com o noivo. Recordei Carlos, franzino e
muito louro, então parei de observá-la e, tempos depois, parti para a Franca.
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
Por minutos ficamos silenciosos, cada um parecia estar vivendo no passado, fui o
primeiro a falar.
-Não me parece mais um esquilo, nem tem tranças. Ela sorriu, tinha um sorriso
encantador.
-Nem você, um menino travesso. Foi por isto, Jorge, que quis vê-lo e dizer a
você que eu e João, meu irmão, nada temos a ver com estas desavenças, a mim tão
reprováveis.
-Lindo este lugar, vem sempre aqui, Marcina?
-Sim, todas as quartas à tarde, neste horário, gosto daqui, é tão tranqüilo...
-Vem só? Não tem medo?
-Cavalgo sempre sozinha. Não tenho medo, nunca vi nada de anormal. Já é tarde,
devo ir-me. Até logo, Jorge. Obrigado novamente.
Ajudei-a a montar no seu cavalo, senti seu perfume suave, igual ao do bilhete.
Fiquei olhando-a até que virou no atalho. Montei no meu cavalo e fui ter com
Samuel
e Tião que estavam sérios, preocupados, mas nada falaram, achei melhor explicar:
-Ela só queria agradecer-me, quando meninos fomos amigos.
-O sinhô arriscou - disse Tião -, agora entendo suas ordens. Sinhozinho, todos
por aqui sabem que sinhá Marcina é boa e caridosa, mas é filha do homem, do
Coronel
Francisco.
-Quero que este encontro seja segredo. Só nós três sabemos e assim deve
continuar sendo. Confio em vocês.
-Nada diremos.
Os homens regressaram à fazenda. Logo após termos chegado, só os do grupo que
vigiara o atalho da montanha, disseram ter visto sinhá Marcina passar por lá, os
outros
nada viram.
Senti que arriscara, porém, não me arrependi, e fiquei pensando nela.
No sábado, logo cedo, veio a notícia, trazida por amigos, de que chegaram
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
presos, na vila, os três negros foragidos da Fazenda Morro Vermelho e que
confessaram ter
assassinado Chico por não
CATIVOS E LIBERTOS
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gostarem dele, por odiá-lo. Os três negros haviam fugido na véspera;
perseguidos, esconderam-se perto da estrada, e ao verem Chico sozinho, um deles
pulou na frente
do cavalo e dois sobre ele, matando-o com facadas. Os homens que acompanhavam
Chico, foram socorrê-lo e na confusão os negros escaparam e foram parar num
quilombo,
onde ficaram escondidos. Sendo o quilombo invadido pelos soldados, trouxeram-nos
presos em lastimável estado, quase mortos.
Mamãe comentou:

-Jorge, todos na vila, assim como o Coronel Francisco, têm agora certeza de que
não fomos os mandantes do bárbaro crime. Será que ele não se arrependeu de ter
mandado
matar José?
-Acho que não. Ele nos odeia mais por inveja. Penso que ele preferiria termos
sido nós, a ter o filho assassinado pelos próprios escravos foragidos, é golpe
para
seu orgulho.
-Que matem rápido estes negros assassinos. Não tinham direito de matar seu
senhor.
-Ninguém tem direito de matar, mamãe, nem eles aos negros. Mas não é assunto
nosso; como estão, será melhor que morram. Dizem que foram muito torturados.
Pensei tanto em Marcina, que ansiei por chegar quarta-feira. Será que dissera
que ia ao lago, todas as quartas espontaneamente ou para eu saber? E, na quarta,
antes
da hora marcada, saí decidido a ir ao lago e comigo foram Samuel e Tião.
Ninguém estava no lago, desci do cavalo e sentei na pedra, onde nos encontramos
na quarta passada e esperei. Logo escutei galope e Marcina apareceu no caminho
do
atalho, sorriu e veio até mim, seu sorriso encantava-me. Ajudei-a a descer e
procedemos naturalmente como se fôssemos acostumados a estes encontros.

Marcina não falava dos seus, nem eu, dos meus familiares, como se não
quiséssemos colocá-los entre nós. Falávamos do passado, acontecimentos.
Contou-me que aprendera
a ler porque um professor ia ensinar os irmãos e sua mãe tinha que estar
presente e deixava ela ficar também. A mãe queria que aprendesse e pediu
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
em segredo, longe dos filhos, para o professor ensiná-la. O bondoso mestre
disfarçadamente e cauteloso, ensinara, e o pai não sabia que ela era
alfabetizada.
O tempo corria nesses encontros semanais, que passaram a ficar muito
significativos para mim e os esperava com ansiedade. Descobrimos que gostávamos
das mesmas coisas.
Tinha preferência pelos mesmos livros que Marcina lia às escondidas, emprestados
pelo padre José.
Sabia que Marcina ia à missa todos os domingos e pensei em vê-la, mesmo de
longe. Como tinha dado ordens para não sairmos da fazenda, não fomos mais à
missa, mas
tudo estava em ordem e sentia-me protegido, falei a mamãe:

-Mamãe, a senhora não quer ir novamente à missa aos domingos? Não necessitamos
ficar na cidade, podemos ir e voltar. Não vejo mais perigo e podemos ser
escoltados
por nossos homens. Manuel substitui-me na nossa ausência.
-Verdade, Jorge? Que alegria! Quero ir, sim, filho.
Saiu contente para dar a notícia às meninas. A missa não deixava de ser um
acontecimento social.
Passamos a ir todos os domingos à missa.
Revi o Coronel Francisco, pois ele ia à missa com os seus. Não nos
cumprimentamos, estava envelhecido, tinha os cabelos quase todos brancos, uma
barba rala, olhos
miúdos; para mim era tremendamente desagradável. Lucas, seu filho, era parecido
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

com ele, cínico, imitava o pai em tudo. Marcina ficava sempre ao lado de João,
eram
parecidos fisicamente, estava ele com vinte anos e pareceu-me educado e
agradável. Na Igreja, não olhava para ela nem a cumprimentava, temendo que
notassem. Após

o ato religioso, os círculos formavam-se na frente da Igreja. Assim podia vê-la,
e para mim, estava sempre bonita, conversava sempre com amigas, todas já
casadas.
Quase sempre o Coronel Francisco ia embora primeiro, dificilmente ficavam na
casa da cidade. Eu era o último a ir, dava um tempo para ele se distanciar,
porque usávamos
o mesmo caminho. Iam eles bem escoltados por seus jagunços e eu por meus homens.
CATIVOS E LIBERTOS
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Mamãe, Laurinda e as meninas adoravam ir à missa. Carlota encontrava-se com
Pedro, e Laurinda, com sua família. Passei a ser taxado de bom partido pelas
mocinhas
em idade de casar. Não me interessei por nenhuma delas, por estar com o
pensamento em Marcina. Também os coronéis sondavam-me as preferências políticas.
Por ali,
sempre tiveram desavenças ideológicas, mas sem maiores conseqüências. Meu pai
tudo fazia para ser neutro, não gostava de política. Eu era um abolicionista com
idéias
de um Brasil livre do Império. D. Pedro era um farrista e português. Mas como
ser abolicionista tendo escravos? Minhas idéias eram perigosas e eu já tinha
problemas
demais. Preferi adiar minhas idéias para o futuro e adotei a posição de meu pai.
Escutava, e falava pouco, mudava de assunto, preferindo estar bem com todos.
Passei
a ser respeitado pelos coronéis como se fosse um deles.
Mais de dois meses se passaram desde meu primeiro encontro com Marcina. Ia
sempre com Samuel e Tião que guardavam segredo, embora demonstrassem estar
preocupados
e ficassem sempre atentos com nossos encontros. Marcina os via, mas nunca
comentou nada. Na fazenda, tudo transcorria sem problemas, a colheita começava e
seria
abundante, e o café, de primeira qualidade. A vigilância era a mesma, meus
homens treinavam todos os dias e tornaram-se excelentes atiradores.
Naquela quarta, chegara ao encontro antes da hora, Marcina atrasara e eu fiquei
aflito, tive a certeza de que a amava.
"Ah, meu Deus! Pensei que nunca ia amar alguém. Aceitava a idéia de um casamento
arranjado, ria de amigos enamorados. Agora totalmente apaixonado e por quem?
Pela
filha do meu único inimigo" - resmunguei aborrecido e ansioso.
Porém, quando a vi chegar, as preocupações se foram e senti meu coração bater
alegremente.


-Marcina, como demorou!
-Lucas me prendeu com conversas, e eu não quis sair, temendo que desconfiasse.
Beijei suas mãos.
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS

-Marcina, seu atraso pareceu-me horas, fiquei aflito temendo não vê-la. Amo
você, Marcina!
-Oh, Jorge! Meu Deus! Amo-o também.
Namorados parecem ver o mundo cor-de-rosa, com facilidades, e foi assim conosco
também. Felizes, trocamos juras de amor, promessas de nos amarmos para sempre.
Neste
dia, Marcina falou sobre ela:
-Meu pai sempre foi difícil, tem um gênio terrível. Minha mãe sofreu muito com
ele, não tinha direito de optar por nada. Diz sempre que mulher é inferior e que
deveria nascer muda. Quando mudamos para a Fazenda Morro Vermelho mamãe já
estava doente e logo faleceu. Sofria muito por ver papai castigar os escravos.
Pelo menos
aqui, a senzala é longe da casa-grande e ela não viu mais os castigos, porém
sabíamos e sei que acontecem. Senti muito sua morte, amava-a muito, passei a
tomar conta
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

da casa e de Tamira. Somos em cinco irmãos: Chico, que morreu, Lucas, eu, João e
Tamira, que é doente, débil-mental. Papai tem horror a ela, quase não a vê, é
como
criança, nada sabe.

-E seu noivo, Marcina, amava-o?
-Carlos? Não, nunca o amei. Amo só a você; penso, Jorge, que o amo desde
criança. Nestes anos sempre pensei em você. Meu susto naquele dia que me salvou,
foi mais
por revê-lo. Carlos era bom, fora prometida a ele desde criança. Gostava ele de
ler, fazer poesia, era educado e de pouca saúde. Estava sempre doente e três
meses
antes de casarmos ele morreu. Senti, perdi um amigo e temi que meu pai me
forçasse a casar com outro e pedi a ele para ficar solteira e foi com alívio que
dele escutei:
"Noiva é quase esposa. Mulher viúva não é para casar mais. Ficará solteira, é
útil em casa". Por cuidar da casa, de Tamira, foi que papai não pensou em
casar-me
novamente. Ele prometeu a mamãe, no leito de morte, que cuidaria de Tamira, mas
não a suporta e sente-se aliviado por eu cuidar dela.
-Por que Marcina, este horror a ela? - indaguei intrigado.
-Não sei. Tamira é feia, toda desengonçada, age como criança, mas amo-a e ela
quer muito a mim e ao João. João é o
CATIVOS E LIBERTOS
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irmão que adoro. Estudou em São Paulo, viveu oito anos com minha tia, irmã de
minha mãe. Somos iguais, diferentes do meu pai e de Lucas e pouco tolerados.
João chegou
dois dias antes do acidente da carruagem e foi ele que me salvou de uma tremenda
surra naquele dia.
-Por quê?
-Papai, ao saber que você me salvara, ficou como louco. Eu tinha ido, naquele
dia, à costureira. E ao voltarmos, com o cocheiro desmaiado, tudo aconteceu...
Enchemo-nos
de coragem e contamos a ele, antes que soubesse por outros.
"Você, Marcina" - gritou enfurecido -, "deixar salvar-se por um Castro?! Por que
não morreu sua peste? Era preferível!"
Xingou alto, tirou a cinta para surrar-me e João interveio.
"Calma, pai, pense um pouco. O Castro salvou Marcina sem saber quem era ela,
neste instante deve estar tendo um ataque de nervos, arrependido. Pense na raiva
que
deve estar sentindo, nas gozações que receberá. Um Castro salva a filha do
Coronel Francisco, seu inimigo."
Papai riu, cínico, e guardou a cinta.
"É João" - disse -, "tem razão. Salvou a filha do inimigo sem saber."
Marcina abaixou a cabeça e pelos seus olhos passou por instantes uma profunda
tristeza.
-Sente-se só em sua casa, não é, Marcina?
-Não com João, ele é encantador, mas está de partida. Não sei por que ainda não
foi. Veio para visitar-nos. Acabou seus estudos e vai trabalhar com meu tio no
comércio
de tecidos. Resolveu ficar mais, nem sei por que está aqui ainda. Mas adoro sua
companhia.
Senti muito dó de Marcina, prometi a mim mesmo fazê-la feliz. Como? Não o sabia,
mas para mim, naquele momento, bastava a vontade.
-Marcina. que será de nós?
-Não sei, Jorge. Se meu pai descobre nem sei o que é capaz de fazer. Me mandará
para um convento ou me prenderá em casa, ou me obrigara a casar com o sr.
Amâncio.
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-Aquele velho?
-Desde que ficou viúvo, me faz assédio, e morro de medo de papai fazer casar-me
com ele.
Conhecia sr. Amando, devia-nos dinheiro, sua situação financeira não era das
melhores, talvez por isso o pai de Marcina não pensava em casá-la com ele.
-Defendo você, amor. Se for para um convento, roubo você. Se forçá-la a casar
com outro, roubo-a também, nem que seja na porta da Igreja. Já, se prendê-la em
casa,
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

ficará mais difícil, mas daremos um jeito!

-Jorge, tenho medo que descubram, devemos esconder nosso amor. Deus nos ajudará
no futuro. Vê este broche? Será sinal, nosso aviso. Olhe, ele é partido no meio,
ficarei com uma parte e você com a outra. Necessitando um do outro, ou querendo
comprovar um bilhete, um encontro, mandaremos junto a parte do broche. Deveremos
ficar atentos. Saio sempre a passear a cavalo, papai nunca se importou ou
prestou atenção, nem pergunta aonde vou. Mas não deveremos nos arriscar. Por que
não manda
seus homens ficarem no alto do atalho? Se for seguida verão e darão sinal.
-Tem razão, Marcina, Samuel e Tião ficarão no atalho. Tomaremos todo cuidado.
Não quero que sofra por mim.
-E eu, que nada de mau lhe aconteça. Despedimo-nos carinhosamente.
Pensei muito e tive a certeza de que Marcina era a mulher de minha vida e que
não ia perdê-la. Deveria ter um jeito de ficar com ela e eu o acharia. Para o
coração,
os sentimentos, tudo parecia fácil, mas para o raciocínio, não. Diante dos
olhares de Samuel e Tião, senti-me irresponsável, tantas coisas dependendo de
mim e eu
namorando às escondidas a filha de nosso terrível inimigo.
- Capítulo VII OS
MORTOS DO CORPO
Quinta e sexta-feira passaram lentamente. Por mais que pensasse, não achava um
modo de estar com Marcina a não ser nos nossos escondidos encontros. Não sabia o
que faria para ficar com ela. Estava triste e preocupado. No sábado após ter
feito meu trabalho, sentei-me na varanda, aproveitando a tarde para descansar e
pensar.
Estava só e tudo parecia-me silencioso, quando vi meu pai. Papai se mostrava
triste, abatido, fisionomia adoentada, estava encostado na parede, com a cabeça
baixa
e pensativo. Arrepiei, não me mexi, temendo afastar a visão. A sensação era
diferente de quando via minha avó e foi nela que pensei e a chamei mentalmente.
Logo
em seguida, senti d. Ana ao meu lado. Vovó , qe faço? Papai parece-me tão
esquisito, adoentado" - indaguei mentalmente.
"Jorge" - senti o sussurro de vovó -, "seu pai sofre. Está desorientado sem
entender bem o que se passa."
"Por que ele não conversa comigo, vovó?"
"Como ninguém o vê ou lhe fala, acostumou-se a ficar quieto."
"Poderei ajudá-lo?" - disse, com vontade de chorar ao vê-lo sofrendo. "Poderei
fazer algo por ele? Auxilia-me, vovó querida."
"Converse com ele."
"Como faço?"

"Chame-o mentalmente e, como se pensasse, fale com ele. Explique que teve o
corpo morto e que foi como fazer uma mudança, que necessita entender e aceitar o
corpo
ter morrido. Diz que o ama. Aqui ficarei para ajudá-lo."
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
Papai continuava no mesmo lugar, do mesmo jeito: enchime de coragem, e sem mexer
um músculo do corpo, chamei-o em pensamento:
"Pai, papai!"
Olhou-me e sorriu. Seu sorriso era triste, mas cheio de carinho.
"Você me vê, meu filho? Fala comigo!"
Lágrimas correram por seu rosto, nunca o tinha visto chorar, ia chorar também,
mas senti vovó.
"Jorge, coragem, para ajudá-lo é necessário todo seu controle, dó agora só
atrapalha!"


"Abençoe-me, papai. Sinto não tê-lo visto antes. Como está?"
"Mau, Jorge, mau. Além da doença, enlouqueço..."
"Papai, não sabe o senhor que a morte é para todos? Todos vamos morrer, para
viver em outro lugar, de outra forma. Somos eternos!"
"Acho Deus injusto comigo. Sempre fui bom, sou bom, honesto, trabalhador,
religioso, tenho a consciência tranqüila e sofro assim, desprezado, doente e
meio louco."
"Não está louco, meu pai."
"Estou, filho, penso que ninguém me vê, é terrível."


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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

"Ninguém de fato o vê."


"Quê?!"
"Papai, o senhor morreu, seu corpo morreu. Observe bem, vê como estamos
diferentes. É uma alma, um espírito, e eu sou alma num corpo. Somos vivos, só
que vestidos
com corpos diferentes. O senhor não se lembra? Ficou doente, muito doente."
"Sim, lembro. Passei muito mal e uns negros, antigos escravos, me levaram para
um local estranho, onde me curaram. Mas a fazenda, todos aqui necessitavam de
mim,
tive que voltar, e voltei."
"Fez mal, meu pai. Quando foi levado a este lugar estranho para o senhor,
deveria ter ficado, porque foi quando morreu. Observe as diferenças."
CATIVOS E LIBERTOS
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"Sim, é verdade. Somos diferentes."
Chorou alto.
"Papai, lembra-se de vovó Ana, sua mãe? Chame-a para ajudá-lo. Deve partir com
ela, e aos poucos entenderá."
"Mamãe! Mamãe!" - disse papai emocionado. "É a senhora? Então o que Jorge disse
é verdade! vou, mamãe, vou com a senhora, necessito da senhora. vou embora,
adeus,
Jorge."
"Adeus, papai. Deus o abençoe."
Não mais o vi. Fiquei impressionado e entendi que o que dissera a ele, fora dito
por vovó, não compreendi bem, orei. Lembrei do Pastor Germano que uma vez nos
explicou:
"Jorge, a morte é como o nascimento, não é igual para ninguém. Quando a
aceitamos, tudo nos é facilitado. A morte do corpo é, para todos, um processo
natural, nós
é que complicamos por não compreendê-la."
"Se papai estava sofrendo, e José?" - lembrei. Senti a resposta:
"José está bem, era desapegado dos pertences materiais. Aqui veio, desfrutou,
cuidou, mas não se deixou possuir, não ficou escravo da matéria, não se ligou a
ela."
"Ainda bem!" - suspirei.
Domingo após a missa, quando chegamos à fazenda, Leôncio veio conversar comigo.


-Sinhozinho, descobri onde estão minhas irmãs e minha mãe.
-Diz isto assim triste, Leôncio? Alegre-se. Como soube? Onde estão?
-Há alguns dias, conversei com sr. Miliquias, ficou de se lembrar, hoje lá
voltei; a conselho de Nércio, dei dinheiro para que se lembrasse. O malvado
disse que
elas passaram por lá e que as vendeu ao Coronel Francisco. Estão com aquele
horrível homem, coitadas!
Abaixou a cabeça, estava muito triste e desiludido.
-Não é boa notícia, mas não perca a esperança, poderá comprá-las. O Coronel
Francisco não venderia escravos a mim, e
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
já é você conhecido por aqui. Podemos disfarçá-lo, vestindo-o como um
cavalheiro. Deve ir tentar. Sairá daqui à noite e pela manhã se apresente a ele,
dizendo que
veio de São Paulo e quer comprar sua família. Vestirá minhas roupas e farei
outra carta de alforria a você, com outro nome.
-Comprá-las, sinhô? Não tenho dinheiro.
-Darei a você, emprestarei Leôncio, pagará aos poucos, o importante é libertar
os seus. Ofereça boa quantia a ele, o Coronel Francisco é ambicioso, não deixará
de fazer bom negócio. Comprá-las-á, e as levará para a estalagem na saída da
vila, fique lá uns três dias, depois, veremos. Poderá partir, ir embora livre, e
recomeçar
a vida em outra parte.
-Queria ficar aqui, sinhô, vivermos todos aqui.
-Vá para a estalagem, após uns dias, mandarei buscá-los.
-Será que ele me venderá as três?
-Penso que sim. Fará boa oferta. Vamos já providenciar tudo. Melhor partir já,
passe esta noite na estalagem.
-Obrigado, sinhozinho. Nunca encontrei alguém tão bom como o sinhô. Juro que eu
e elas lhe pagaremos tudo, serei fiel e nunca me esquecerei o favor que nos faz.
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
Surpreendi-me novamente com Leôncio, ele pegou-me a mão, beijou-a e suas
lágrimas molharam-na.
Ficou muito elegante com terno e chapéu de couro, saiu meio escondido e só os
guardas na casa-grande o viram. Dei o dinheiro . que me pareceu o suficiente e
desejei-lhe
boa sorte.
Ao partir, orei por ele, pedindo a Deus para tudo dar certo. Será bom vê-lo
feliz, é tão triste separar-nos de quem amamos.
Da varanda, olhei-o na estrada até sumir, quando Nércio aproximou-se de mim:

-Sinhozinho, estou preocupado com menina Glorinha, tem andado muito a cavalo
por aí, ela e a Bárbara. Hoje segui-as, foram à Fazenda Assombrada.
De fato, tinha-as visto chegar pouco tempo antes; já há al^gúm tempo que
Glorinha andava por toda a fazenda com sua ama
CATIVOS E LIBERTOS
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Bárbara e sua arma na cintura, acompanhando-a. Mas pelo jeito de Nércio, estava
minha irmã fazendo algo escondido; pensei em pedir a ele dizer o que vira, mas
preferi
indagar a minha irmã.
-Obrigado, Nércio, vou falar com ela.
Preocupado, entrei em casa e fui ao quarto dela, abri a porta e entrei. Não era
nosso costume, nunca entrara no quarto de um irmão, sem bater. Acho que a
preocupação
me fez distrair. Glorinha levou um susto enorme. Estava sentada na cama lendo um
papel e o escondeu rápido.
-Dê-me isto, Glorinha! Dê-me! - Glorinha olhou-me, assustada e negou com a
cabeça, eu insisti: - Glorinha me dê ou eu o tomo. Vamos, me dê este papel.
Tirou debaixo do vestido a folha, agora amarrotada e me deu.
Era uma carta de amor. Alguém dizendo que a amava, falava de seus sonhos, e
acabava com dois versos apaixonados. Estava assinado só pelo primeiro nome:
João.
-João! - exclamei. - Quem é?
Glorinha continuava muito assustada, tremia e olhava-me com muito medo.
Mentalizei quem poderia ser. Amigos, não, não eram; amigos não esconderiam, não
haveria motivos. Empregado? Não, não tínhamos empregados com nome de João.
Escravo?!
Não, só tínhamos Tião que sabia ler e escrever. Que motivo teria para
esconder-se? Inimigo? Só tínhamos um inimigo. De repente estranhei lembrei de
Marcina, no que
me disse: "Meu irmão João, veio para visitar-nos e ficou, não sei porquê!"
-Glorinha! Quem é este João que você esconde? Quem Não me responde? Não tem
coragem? Não é o filho do Coronel Francisco? Glorinha afirmou com a cabeça, e
lágrimas
correram- pelas faces, torcia as mãos; embora nervosa, não chorou alto.
Sentei numa banqueta, senti-me desiludido. Que será q Deus me reservara? Eu que
em sonhos planejei uma vida diferente. 92 VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO /
ANTÔNIO
CARLOS
Sem preparo, me vi chefe de uma família, tendo muitas pessoas sob minha
responsabilidade. Não me sentia em condições para tal chefia. Já era chamado por
muitos de
Coronel Castro, como meu pai. título de que não gostava, mas aceitava. Com
tantas responsabilidades, que fazer? Apaixonei-me pela filha do nosso inimigo, o
mandante
do assassinato do meu irmão! E agora, como resolver este problema de minha irmã
caçula, de quinze anos, enamorada de outro filho dele? Seria brincadeira de mau
gosto
do Cupido, ou desígnios de Deus que eu não conseguia entender?!
Glorinha olhava-me do mesmo modo, nada disse enquanto pensava. Senti-me cansado,
triste e entreguei-lhe a carta:
-Glorinha, é puro seu amor? Quero dizer, não tem conseqüências?
-Juro, Jorge. João me ama e respeita-me.
-Ainda bem...
-Jorge, nada faço por mal, não quero aborrecer ninguém. Amo-o, amo-o muito.
Vi-o naquele domingo na missa, vimo-nos, trocamos um olhar e senti-me fascinada
por
ele, amei-o logo que o vi e ele a mim. Foi como se nos amássemos há tempos, a
vida inteira. Só pensei nele, esforcei-me por não o fazer, mas não consegui. No
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

outro
domingo, um menino entregou-me um bilhete, ninguém viu e o escondi rápido,
ansiei por chegar em casa para lê-lo, era dele e marcava um encontro à tarde na
nascente
da Pedra Torta, na Fazenda Assombrada. Fiquei com medo, mas acabei indo e levei
Bárbara.

-Bárbara sabe?
-Não a castigue, Jorge, só eu sou culpada. Bárbara me ama, faz tudo o que
quero. Obriguei-a a se calar.
Glorinha era corajosa, digna, defendeu a escrava. Entendia o porquê de Bárbara
ter silenciado, as duas eram amigas e estimavam-se bastante.
-Não vou castigá-la.
-Jorge, entenda-me e ajuda-me. Foi você mesmo quem me disse que não ia arrumar
casamento para mim, que eu deveria fazer isso sozinha.
CATIVOS E LIBERTOS 93
-Disse, pensando que escolheria um dos nossos amigos.
-João não é nosso inimigo, nada tem com o pai.
-Que pretendem fazer, Glorinha? Quais são seus planos?
-De fugir para São Paulo, de casarmos, de sermos felizes. Nada temos com estas
brigas.
-Ama-o com certeza? É isto que quer, sem dúvidas?
-Sem ele, morro. Amo-o como a vida!
-Então vão ter que casar antes de fugir. Ah, isto vão! Nem que seja só eu a
assistir a cerimônia.
-Jorge! Então não é contra?
Glorinha pulou da cama, chegou perto de mim e olhou-me esperançosa. Abracei-a.
-Não é o marido que sonhei para você. Prometi não interferir nas escolhas de
vocês. Não sei se faço bem, mas não vou impedir. Mamãe sofrerá muito quando
souber.
-Jorge, meu irmão, juro que se pudesse, teria evitado. Não quero que mamãe
sofra mais, tenho esperanças de que se conformará. Se conhecer João, verá como é
bom,
amável, diferente do pai.
-Glorinha, quantas vezes se encontra com ele na semana?
-Encontramos quase todos os dias.
-Diminua. É perigoso. Nércio já viu, e já sabe, irá com vocês de agora em
diante. Devem planejar tudo, partirá com ele, se assim o deseja, porém exijo que
se casem.
Só concordo, com esta condição.
-João sempre quis casar comigo. Obrigada, Jorge. Obrigada!
-Ah, Glorinha! Não me agradeça, se pelo menos tivesse a certeza de que procedo
certo... Não se arrisque, por favor. Se acontecer algo de ruim a você, morro de
remorsos.
-Nada de mal acontecerá comigo, Jorge. Age certo, é bom e compreende-me. vou
ser feliz com ele. sem ele é que estarei mal, infeliz.
Saí para a varanda aborrecido e preocupado, e lá esperando-me, estava Nércio.
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-Já sei de tudo, Nércio, Glorinha contou-me.
-Que fez o sinhô? -Nada, concordei.
Nércio olhou-me, assustado, nada disse. Expliquei:
-Eles se amam, Nércio, não posso impedir. Ela continuará a ir encontrar-se com
ele, quero que vá junto e vigie. Por enquanto, guarde segredo.
-O sinhozinho tem certeza de que é isto o mais acertado? É perigoso, ele é
filho do nosso inimigo, do assassino do sinhozinho José.
-Eu sei, Nércio, eu sei. Que devo fazer? Responda-me. Matar João numa
emboscada? Proibir Glorinha de vê-lo, trancando-a em casa? Poderei impedir de se
verem, mas
não acabar com o amor. Casarão e irão embora.
-O sinhozinho é quem sabe e manda. Farei o que me pede. Mas, se eu fosse o
sinhô. não deixava, não. Embora João seja bom, todos falam que é ótimo moço, mas
na Fazenda
Morro Vermelho quem manda é o Coronel Francisco e seu filho Lucas. vou ficar de
olho, gosto da menina Glorinha e a defenderei com a própria vida.
-Obrigado, Nércio, obrigado.
"Ah!" - pensei. "Se Nércio soubesse que eu também amava a filha do inimigo,
chamar-me-ia de louco". Às vezes, pensava se assim estaria bem, enamorado da
filha do
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
meu inimigo. Marcina não era linda e sim bonita, simples, uma moça comum,
considerada solteirona por estar com vinte e dois anos e não se ter casado. Por
este motivo,
não tivera coragem de proibir minha irmã de amar, entendera-a.
Na segunda-feira à tarde Leôncio regressou à fazenda, sozinho. Ao vê-lo chegar,
entendi que não conseguira fazer o negócio, fui recebê-lo na varanda.
Aproximaram-se
os homens curiosos e ele explicou-nos, tristemente:

-Sinhozinho Jorge, fiz como combinamos. Estava dando certo. Deixaram-me entrar
na fazenda, fui levado ao coronel. Expliquei o que viera fazer, ele afirmou
tê-las
realmente e mandou
CATIVOS E LIBERTOS
95
buscá-las no trabalho. Ah, sinhô Jorge! Que emoção rever minha mãe Tereza,
minhas irmãs Luzia e Maria. Choramos comovidos ao abraçar-nos. Também, conheci
meus três
irmãos, nascidos na Morro Vermelho, filhos de cruzamentos. Estava a negociar com
o coronel o dinheiro que o sinhô me deu, ia dar para comprar todos. Estava
feliz,
meu peito parecia estourar. Foi quando um dos homens do Coronel Francisco o
chamou, tive um pressentimento ruim. Ao voltar, veio acompanhado com três
capangas e
mandou minha mãe e meus irmãos voltarem ao trabalho. Esperou que eles saíssem e
começou a perguntar tudo novamente com olhar ruim e sorriso cínico.
"Então o alforriado é da capital? Ganhou todo este dinheiro trabalhando? Pensa
que sou bobo, seu negro sujo? Trabalha na Fazenda Sant'Ana, é um dos jagunços
dos
Castros. Nunca venderei escravos a você e a eles, nunca, entendeu?"

-O Coronel Francisco foi se exaltando, me xingou de todos os nomes feios que
existem e finalmente disse:
"Só sai daqui vivo para dar um recado ao moleque de fraldas do Castro. Nunca ele
comprará escravos meus. Nunca! Agora vá! Fora!"
-Tentei explicar, não me deixaram falar, vigiaram-me até a saída da fazenda.
Malditos! Por que tamanha maldade?
Leôncio entregou-me o dinheiro, chorando, nenhum dos meus homens ousou fazer
comentários, todos compartilhavam da dor dele. Lembrei do que o Pai Tomás
dissera: "Antes
ele não soubesse onde estavam".
-Não desanime Leôncio - disse -, acharemos um jeito de libertá-las ou de algum
amigo comprá-las.
-Sim, sinhô, agradeço.
Afastou-se triste. Não seria fácil adquiri-las. Por pirraça do Coronel Francisco
não as venderia a ninguém, desconfiaria de qualquer um que quisesse comprá-las;
seria este um favor delicado e deveria pensar bem antes de fazer este pedido a
algum amigo, que se negaria assim evitando mais brigas.
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
Na terça à tarde, Nércio veio até mim, preocupado:
-Sinhozinho, acabo de saber que o malvado do Coronel Francisco colocou, desde
ontem à noite, as três, Tereza, Luzia e Maria, no tronco.
-Quê?! Repete.
-O Coronel Francisco as colocou no tronco.
-Por quê?
-Só porque o sinhô queria comprá-las. Por Leôncio ser seu empregado.
-Faz afronta a mim?! Que é que as coitadas têm com isto? Como soube, Nércio?
-O sinhozinho me perdoa, não fiz por mal. É que encontro às vezes com Tião, um
amigo escravo de lá, é como meu irmão. Quando temos algo importante a contar um
para
o outro, fazemos um sinal e nos encontramos no rio, ele pode fazer isto porque
serve na casa-grande, vai ao pomar catar lenha.
-Você, Nércio, desobedecendo-me, num encontro deste? Podem matá-lo!
-Não se aborreça comigo, sinhozinho, sei me cuidar, estes encontros são raros,
gosto deles e tenho tanto dó, sofrem muito por lá. Sinhozinho não conte como
ficou
sabendo, é segredo. Se Joana souber ficará brava comigo e me deixará sem comida.
Se não estivesse tão aborrecido com a notícia, daria boa gargalhada. Nércio e
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

Joana um casal que servia na casa-grande, que se amavam, que nós queríamos bem e
eles
a nós, já velhos e tendo encontros escondidos um do outro.

-Não digo a ninguém, mas prometa ter cuidado, Nércio, e evite estes encontros.
Dê a notícia na fazenda, não diga como soubemos.
-Tem outra coisa, sinhozinho, andam falando que a fazenda Morro Vermelho está
sendo assombrada por Chico. Dizem que muitos o vêem, os que têm dom de ver os
mortos
da carne. Falam que é "alma penada", que alguns negros judiam dele. Que está
acorrentado e todo machucado com as facas no corpo. O bando
CATIVOS E LIBERTOS
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anda como loucos pela fazenda. Os negros se vingam dele e ele urra com ódio de
todos os negros. Tião me contou que ele influi no pai para que judie ainda mais
dos
escravos. É uma visão horrível! Nércio se benzeu.
-É possível isto, Nércio? - indaguei, curioso.
-Como não, sinhozinho! O que plantamos, colhemos, é a lei de Deus. Só que estes
negros que perseguem o sinhô Chico, estão errados, deveriam perdoar como Jesus
nos
ensinou. Mas lá na Morro Vermelho os negros não têm religião, o coronel não
deixa que aprendam nem sequer a nossa, por tradição. Mas os bons esquecem e
perdoam,
eles sofrem juntos, mas preferem sofrer a se vingar. E. com isto, fazem os
escravos da fazenda sofrerem mais ainda.
-Conseguem judiar do Chico? Ele sente dores?
-Judiam, sim, fizeram dele um escravo, perseguem-no mesmo.
-Ele pode influenciar o Coronel Francisco?
-Dois maus se entendem, o Coronel Francisco não escuta o filho com os ouvidos
do corpo, mas sente com a alma!
-Que coisa estranha!
-Agem os negros que o perseguem como demônios, igual ao que o padre fala dos
garfos e do fogo no Inferno. Sinhô Chico fez por merecer.
Não consegui dormir naquela noite. O que Nércio me falara sobre Chico
impressionava, não vira eu o meu pai? Só que bom. antigos escravos ajudaram-no,
assim mesmo
voltara ao antigo lar. A morte do corpo tinha muitos mistérios para mim, que
gostaria de saber. Pensei muito, nas três no tronco; indiretamente era culpado,
fora
precipitado e ingênuo pensando que não reconheceriam Leôncio. Deveria ter pedido
a algum coronel, amigo nosso, para adquiri-las. Maltratar escravos era proibido
por lei. mas seria mais ingênuo ainda acreditar que alguém tomaria a defesa
delas. Ali. cada senhor ditava suas leis.
Quarta-feira passou lentamente. Fui ansioso me encontrar com Marcina, planejara
contar a ela o namoro entre João c
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS


Glorinha. Na fazenda, todos comentavam com tristeza o castigo da mãe e das irmãs
de Leôncio e ele estava triste e calado.
Marcina veio logo após eu ter chegado, estava com um véu! negro no chapéu
tampando o rosto. Estranhei, nunca a vira assim. Ao ajudá-la a descer do cavalo,
assustei:


-Marcina, que aconteceu a você?!
Marcina estava vestida, só apareciam as mãos e o rosto, este estava com
hematomas em diversos lugares, lábios inchados, olhos roxos. Tirei o véu e ela
olhou-me com
tristeza e pareceu-me a Marcina de antigamente, um esquilinho assustado.
Abracei-a penalizado, senti seu coração bater forte, delicadamente acariciei
seus machucados.
-Está machucada também pelo corpo?
-Um pouco.
-Por quê Marcina? Quem fez isto?
-Meu pai, ele está louco, Jorge, louco de maldade. Nunca foi bom pai, já
surrou-me muitas vezes. Desta vez foi por defender umas negras que colocou no
tronco. Pedi
a ele para não fazer isto e mandou-me calar. Enchi-me de coragem e implorei, nem
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
me respondeu e saiu de perto de mim. Angustiada com o castigo tão injusto das
três,
fui vê-las e a elas dei água. Contaram a meu pai e ele surrou-me para que
aprendesse a não interferir em suas ordens. Infelizmente, João não estava para
defender-me.
Não conseguia entender as atitudes desse homem, que era pior do que pensava.
Sentamos e ficamos juntinhos. Senti raiva do Coronel Francisco, tive vontade de
roubar
Marcina, levá-la já comigo. Mas não me precipitaria de novo, não deveria morrer
ninguém pelo nosso amor, e numa briga maior entre nós dois, muito sangue
inocente
se derramaria. Querendo confirmar o motivo do castigo, indaguei:

-Marcina, por que seu pai as castiga?
-Só porque você quis comprá-las.
As negras não deveriam ser castigadas para me atingir, e se era por minha causa
seus castigos, caberia a mim libertá-las.
CATIVOS E LIBERTOS 99
-Marcina, diga-me quantos homens seu pai tem? Quantos jagunços? Ficam de guarda
na fazenda? Diga-me com detalhes como é a fazenda, os lugares, onde se situa a
senzala,
a casagrande, o celeiro.
-Por que, Jorge?
Mas, antes que eu respondesse, começou a explicar. Confiava em mim e sentiu que
era para algo sério, talvez para roubá-la no futuro.
Marcina deu-me a planta toda da fazenda, os lugares de tudo, e eu prestei muita
atenção guardando-os na memória. Espantei-me, porém, ao saber que o Coronel
Francisco
tinha poucos homens e que não estava armado como pensava.
-Pensei, Marcina, que seu pai tinha mais jagunços.
-Não tem tantos porque meu pai lhes paga mal. Os escravos são presos, não são
como os seus que até andam armados, nossos escravos o odeiam.
"Melhor para mim" - pensei -, "tinha quase o triplo de homens armados e de armas
que ele. Sua avareza me facilitaria, nos dava vantagens."
-Marcina, não se preocupe, deixe os problemas comigo, vou resolvê-los. Procure
ficar longe de seu pai e não interfira mais nos assuntos dele, fique de escuta,
qualquer
perigo, avise-me.
Acariciei seu rosto machucado, já soubera de muitos senhores maus, mas bater
assim numa filha, nunca soubera.
-Devo ir-me, Jorge, está na hora.
Beijei-a nos lábios machucados; pela primeira vez a beijava.
-Amo-a, Marcina. Quero-a para minha esposa. Casaremos e seremos felizes.
-Obrigado, Jorge, amo-o muito.
Olhei-a, estava agora calma, agradecida e feliz. Pensei: "Como as mulheres
deveriam emancipar-se, dar-se o devido valor. Pelo que Marcina era, todos
deveriam respeitá-la
e ela agradeceume por respeitá-la e amá-la".
Beijamo-nos novamente. Tive a certeza de que só com ela me casaria, só com ela
seria feliz.
100 VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
Fiquei olhando-a, até virar o atalho e esperei Tião e Samuel virem até mim e
voltamos à fazenda.
Mil pensamentos matutavam-me. Ao chegar, disse a Tião:
-Tião, chame Manuel e Nércio e venham vocês quatro ao meu escritório.
Entretanto, esqueci-me de contar a Marcina sobre João e Glorinha. Capítulo VIII
O RESGATE Enquanto esperava-os, desenhei a Fazenda Morro Vermelho como Marcina a
descrevera. Quando os quatro chegaram, fechei a porta e falei:

-Resolvi assaltar Morro Vermelho e resgatar a família de Leôncio. Quero saber
se posso contar com vocês. Todos concordam? Muito bem, então ajudem-me a
planejar,
tem que ser logo, senão as negras morrem. Esta noite.
Os quatro olhavam-me, curiosos, depois olhavam-se entre si, e Nércio
aventurou-se e deu seu palpite:
-Sinhozinho, não acha perigoso?
-Não, Nércio, não se fizermos tudo bem feito. Escutem: tenho aqui o desenho da
Fazenda do Coronel Francisco. Necessito de seis homens para ir comigo.
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

Desceremos
pelo rio, olhem meu desenho. Neste local passaremos para a fazenda dele,
cortaremos a cerca, após passar a lavoura de café e chegaremos ao pomar. Um de
nós irá até

o celeiro e porá fogo, todos na fazenda correrão para apagá-lo. Leôncio e um
outro irão à senzala e pegarão os irmãos dele, e eu e mais três pegaremos as
escravas
no tronco. Voltando pelo mesmo caminho andando bom pedaço pelo rio,
despistaremos e vão ficar sem saber se subimos ou descemos o rio.
-O sinhô esquece o pessoal do coronel, tem ele homens armados lá. não acha sete
homens muito pouco para esta façanha?
-indagou Manuel, preocupado.
-O Coronel Francisco não tem tantos homens como pensamos. Tem oito jagunços e
sete empregados que, na hora do fogo, deverão ir apagá-lo ou vigiar os escravos
que
o apagarão.
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-O sinhô tem certeza? O coronel deve ter mais homens.
-Manuel, sei do que falo. Pois não tem.
Tião e Samuel confirmaram, Nércio e Manuel olharam-me, curiosos, mas não
perguntaram onde tivera a informação e eu de nada falei. Não queria por enquanto
que ninguém
mais soubesse do meu amor por Marcina. Continuei:
-Leôncio e família ficarão escondidos na Fazenda Assombrada, os negros
fantasmas não devem fazer mal nenhum a eles, seus irmãos em dificuldades.
Esconder-se-ão
nas ruínas da casagrande. Nércio vá lá, por favor, e avise Pai Tomás. Foi ele
quem me mandou dizer que se necessitasse de seu favor podia contar como certo,
ele
nos ajudará. E já leva com você mantimentos, roupas, cobertas, pois deverão
ficar muito tempo escondidos. Manuel, alguém, aqui na fazenda, conhece bem Morro
Vermelho?
-Há Lourenço, sinhô, há quatro anos trabalhou lá, tem ódio do Coronel
Francisco. Sua filha na época com doze anos, foi estuprada por Chico; quando ele
foi reclamar,
o coronel achou ruim e os expulsou. José lhe deu trabalho e veio para cá. Sua
filha agora casou e vive bem, mas ele guarda muito rancor das humilhações que
sofreu
lá, até bateram nele.
-Podemos confiar nele?
-Ele é bom, nada temos para reclamar dele, é honesto, trabalhador, só não gosto
do ódio dele. Para mim, quem tem ódio no coração, é doente da alma. Acho que
pode
ajudar, se pedirmos para esquecer o seu ódio.
-Manuel, escolha dois homens e chame Leôncio e Lourenço. Não quero ninguém indo
por ordens, diga que necessito deles para algo perigoso e que podem negar se
quiserem,
como você, Tião, e Samuel. Se não quiserem ir, eu os compreenderei.
-Eu vou.
-Eu também.
-E eu e Nércio, não iremos? - indagou Manuel.
-Ficarão a tomar conta dos cavalos.
-Somos velhos não é? Atrapalharemos - queixou-se Nércio.
CATIVOS E LIBERTOS
103
-Não é isto. De fato, teremos que ser rápidos e a caminhada será difícil. Mas
quero-os longe disto. Se algo nos acontecer, deverão cuidar da fazenda, deverão
buscar
Pedro e casá-lo com Carlota. Deverá ele assumir a fazenda e vocês a ajudá-lo.
-O sinhô não deve se arriscar assim! - disse Nércio preocupado.
-Não me arriscarei, confio no meu plano e não estou disposto a morrer, mas sim
continuar a viver. Manuel, vá, chame os homens. Nércio deve ir já à Fazenda
Assombrada.
Diga a Joana que a roupa e os alimentos são para Pai Tomás e uns necessitados
que ele abriga e não fale a ninguém sobre o que vamos fazer.
Não esperei muito, e Manuel voltou e com ele Leôncio, Lourenço, Matias e Cabral.
Olhei-os, satisfeito. O grupo estava muito bom. Falei:
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

-É arriscado o que vamos fazer, não é uma ordem, irão se quiserem - como todos
afirmaram que iriam, esclareci: - Vamos esta noite resgatar a família de
Leôncio.
-O sinhozinho Jorge fará isto?! - exclamou emocionado Leôncio. - Que Deus lhe
pague e nos ilumine!
-O Coronel Francisco afrontou-me, castigando-as só porque quisemos comprá-las.
-Creio que o Coronel Francisco não espera por essa atitude, será pego de
surpresa, acha o sinhozinho incapaz para isto.
-Por que diz isto, Cabral?
-O Coronel Francisco anda dizendo por aí que o sinhô é moleque e que tem um
bando de homens burros e uns negros fantasiados de homens.
Os outros concordaram, e senti que o coronel falava muito mal de nós, mas nada
vindo dele me surpreenderia. Só que ele ia ver o que um "moleque de fraldas"
faz,
quando tem inteligência.
-Lourenço, você conhece a Fazenda Morro Vermelho, não é? Que acha deste
desenho?
-Muito bonito, nunca vi nada igual.
-Não, o que quero saber, é se é assim mesmo Morro Vermelho.
104
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
Lourenço olhou bem e deu seus palpites:

-Aqui é maior, o celeiro é mais embaixo, nesta parte o pomar é mais estreito e
fácil de se andar, os troncos de castigo ficam mais para cá.
Fui acertando o desenho conforme Lourenço falava, depois, expliquei meu plano e
Leôncio lembrou:
-Nércio sabe despistar os rastros, sinhozinho.
-Nércio então ficará para trás e apagará as nossas pegadas. Levaremos cavalos
para todos. Neste ponto os largaremos, na volta Tião acompanhará Leôncio e os
seus
até a fazenda, nas ruínas. Os restantes devem voltar para casa. Manuel dê ordens
para os que ficarão de guardas esta noite, para estarem atentos. Ninguém deve
ficar
sabendo o que faremos esta noite e não se deve comentar nem após. A segurança da
família de Leôncio depende do segredo. Devem dizer que me acompanharam a
encontros
com mulheres e deixaram os cavalos na porteira, digam que é para d. Catarina não
saber. Aceito sugestões, palpites.
-Sinhô - falou Tião -, cada um de nós poderia levar um roliço com o qual
poderemos silenciar, caso alguém nos veja, sem entretanto matar.
Roliço era um pedaço de pau, lixado, medindo uns 20cm, que eu nem sabia por que
os tínhamos. Desde os tempos do meu avô que estavam na fazenda, ficavam
dependurados
pelo galpão.
-Boa idéia Tião. Um tiro disparado alertará de nossa presença, aí salve-se quem
puder. Como já disse, vamos em resgate, salvar pessoas e não matá-las, não quero
mortes. Armados com roliços, só em último caso, usem-no ou a faca, mas para
ferir, não para matar. Se todos agirem certo, com cautela, não necessitaremos de
usar
violência. O Coronel Francisco não espera um ataque, acha-me incapaz e medroso,
um moleque que é fraco para ele. Tanto melhor para nós, não desconfiará de nada
quando
vir o fogo no seu celeiro e mandará todos os seus homens para apagá-lo ou vigiar
os negros a fazê-lo.
-Sinhô Jorge - disse Lourenço -, conheço bem a fazenda, para mim será fácil ir
ao celeiro.
CATIVOS E LIBERTOS
105
-De fato, como conhece é mais fácil, irá, preste muita atenção, deve ser bem
cuidadoso: coloque fogo na ala sul; não quero que incendeie o celeiro todo. o
fogo
deve ser necessário para podermos agir. Colocando-o nesta parte, distanciará o
pessoal para mais longe do local do resgate e também está perto do poço e o fogo
deverá
ser apagado com mais facilidade.
-O sinhô Jorge pode confiar em mim, farei tudo como manda, com todo o cuidado e
com prazer.
Página 49


Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

-Lourenço, esqueça mágoas, o passado, não pense em vingança. Se um de nós
falhar, todos sofreremos: a Fazenda Sant'Ana, nossas famílias.
-Sirvo o sinhô, lá fui humilhado, odeio-os, mas sei das minhas
responsabilidades. Dou minha palavra que só farei o que me compete e do melhor
modo possível, ninguém
me verá. Não arriscarei minha vida. tenho filhos pequenos e somos felizes aqui,
graças ao sinhô e aos seus. E por nada arriscarei a vida de todos!
-Certo, Lourenço, leve somente uma lata pequena de querosene.
Repassamos o plano novamente, estávamos entusiasmados, e cada um sabia o que
fazer com segurança, e assim dei a última recomendação:
-Ninguém deve saber; se por acaso tiver um traidor na fazenda é morte para
todos nós. E depois Leôncio e família correrão perigo, se mais pessoas souberem.
Não
se esqueçam de vestir roupas escuras. Agora vamos.
Todos saíram e fui providenciar minha roupa, carreguei mais duas garruchas e
escolhi dois punhais para armar-me. Na gaveta em que guardava as armas, bem no
fundo,
na caixa de guarnições estavam os bilhetes que Marcina me mandava e o pedaço de
broche: peguei-os, apertei-os e beijei-os. Lembrei-me dela toda machucada.
"O Coronel Francisco merece isto!" - resmunguei.
O jantar foi servido, tudo fiz para parecer natural, e após, como de costume
ficamos conversando. Era sempre a hora em que
106
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
nos reuníamos para conversar, falar do passado, eu contava histórias de minhas
viagens e acontecimentos no período em que estivera na França. Senti-me aliviado
quando
mamãe se despediu para ir dormir e fui com ela, estava ansioso. No meu quarto
contava os minutos esperando pelas onze horas, horário marcado para irmos. Na
fazenda,
calculavam horas pelo tempo e lugar do sol, e à noite, pelas estrelas. Tentei
ler, não conseguia concentrar-me, muito antes da hora, já estava pronto. Alguns
minutos
antes das onze horas saí cuidadosamente de casa, andei até a porteira e todos já
estavam a esperar-me; sem fazer barulho, montamos nos cavalos e partimos.
Ao nos afastarmos das casas, Manuel orou alto:
-Senhor meu Deus, proteja-nos, dai-nos assistência de seus anjos e espíritos
para ajudar-nos - declamou um Pai-Nosso e três Ave-Marias e todos nós o
acompanhamos.
Fiquei a pensar no pedido sincero e simples de Manuel e me lembrei do Pastor
Germano e no que ele nos dissera a respeito da oração:
"Jorge, oração é força, uma força poderosa se tivermos fé, e por ela, devemos
pedir só o bem, não só o nosso, mas para todos. Lembre-se sempre de que todos
nós somos
irmãos e Deus é Pai de todos, dos bons e dos maus, que são temporariamente
doentes, necessitados mais ainda de carinho, de aprendizado. Nunca peça ao Pai
algo bom
a uns e algo mau a outros. Ele nos dá o exemplo, deu-nos o sol, a chuva para
todos, a bons e maus."
"Será" - pensei - "que pedindo proteção a nós nesta façanha não estaríamos a
prejudicar a outros? O fogo no celeiro trazendo prejuízo justificaria a
liberdade das
negras? Ah, meu Deus! Como estou inseguro". As responsabilidades eram muitas e
sabia que a responsabilidade em ombros invigilantes os fazem sucumbir. Orei,
orei
com fé e pedi ao Pai o melhor para nós todos, para meus companheiros e para
eles, os moradores da Morro Vermelho.
A lua era crescente, isto facilitava-nos, não era noite clara e não estava
totalmente escura. Nércio ia na frente, guiando-nos.
CATIVOS E LIBERTOS
107
Chegamos ao rio, no local combinado e descemos dos cavalos. Nércio colocou as
mãos no meu ombro e com seu jeito carinhoso, falou-me:

-Sinhozinho, se a bênção de um homem crente valer, eu lhe dou tudo de bom que
tenho. Deus lhe guarde e a todos vocês. Pai Tomás disse que os espera e que lá
ninguém
irá procurá-los, ele garante e eu acredito. Boa sorte.
Página 50


Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

-Obrigado, Nércio.
Entramos n'agua. O rio não era fundo, havendo um pedaço em que a água chegava-me
no peito. A água estava fria e andamos cautelosos evitando fazer barulho. O rio
seguia naquele pedaço em direção reta, declinando, íamos a favor da correnteza e
sabíamos que para voltar seria mais difícil. Este rio, mais um riacho, após a
ponte
a uns três quilômetros, unia-se com outro rio maior. Se fugitivos chegassem a
ele e conseguissem uma embarcação, iriam longe. Se meu plano desse certo, tudo
levaria
a crer que os fugitivos haviam descido o rio, em vez de subi-lo e como não os
achariam, pensariam que fugiram numa canoa.
Chegamos ao local combinado e saímos do rio, subimos um pequeno barranco e
entramos nas terras do Coronel Francisco. Com as ferramentas que levávamos,
cortamos a
cerca, resistente e reforçada na nossa divisa, passamos o cafezal, cortamos a
outra cerca e entramos no pomar. Segundo Marcina. na fazenda havia poucos cães,
todos
vira-latas e inofensivos, porque seu pai não tolerava seus latidos. O coronel
dormia pouco e qualquer barulho incomodava-o.
Paramos no meio do pomar, Lourenço adiantou-se, levava somente uma latinha com
querosene para iniciar o fogo. Aguardamos ansiosos e silenciosos.
"Ah. Marcina!" - pensei. "Está tão perto de mim agora, se soubesse que estou nos
fundos de sua casa, tremeria de medo. Será que um dia voltarei aqui para
buscá-la?
Só em último caso, pois tinha esperança de conseguir pacificamente Marcina para
mim, mas não hesitaria em buscá-la caso fosse necessário; sem ela é que não ia
ficar,
amava-a realmente."
108
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
O pomar era bem cuidado e de onde estávamos as árvores não nos deixavam ver nada
além. Tudo estava silencioso e o tempo que esperamos pareceu-nos horas.
"Fogo! Fogo no celeiro!"
Quando ouvimos gritos, fomos para a parte de cima do pomar, e à medida que
avançávamos ouvíamos a confusão e a gritaria. Avistamos o pátio onde estavam os
troncos,
como também vimos o fogo que me pareceu alto com muita fumaça subindo.
Aguardamos Lourenço. Não esperamos muito, ele chegou e com um sinal indicou que
tudo estava
certo.
Cautelosos saímos para cumprir as tarefas planejadas. Lourenço ia esperar
Leôncio, escondido, resguardando-o, enquanto libertava seus irmãos da senzala.
Tião seguiu-os
para resguardá-los pelo lado de cima. Samuel, Cabral e Matias seguiram em
direção ao centro do pátio para libertar as negras. Segui com eles, deveria
dar-lhes cobertura.
Como havia previsto, o pátio estava vazio, todos foram para o celeiro tentar
apagar o fogo. Chegamos ao pátio sem problemas. As três estavam imóveis. Quando
nos
viram, ficaram assustadas e expliquei baixo:

-Calma, viemos com Leôncio, ele foi buscar os irmãos na senzala. Vamos
libertá-las, confiem em nós, somos todos amigos, venham conosco e não façam
barulho. Senti
muito dó ao vê-las naquele estado de fraqueza, com as roupas rasgadas, com
ferimentos pelo rosto e corpo. Estavam presas numa posição incômoda, com os
braços para
cima, atados pelos pulsos, e estes sangravam, feridos. Embora tivesse morado
sempre em fazenda, nunca tinha visto um negro no tronco. Quando pequeno, se
estávamos
na vila e algum negro ia ser castigado no tronco, meu pai afastava-nos. Sabia
dos castigos que havia, mas saber é uma coisa, ver é outra. Comovi-me muito com
seus
olhares pedindo compaixão, auxílio. Com as facas cortamos as faixas de couro que
as prendiam. Dei graças por não ser corrente, o que nos dificultaria para
soltá-las.
Pareciam não sentir os braços e notei CATIVOS E LIBERTOS 109que sufocavam os
gemidos, estavam tão fracas que necessitamos carregá-las. Cada um carregou uma
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

delas,
a princípio fiquei atrás até atravessarmos o pomar, depois, vendo Matias um
tanto cansado, peguei a irmã de Leôncio e ele foi na frente, verificando estar o
caminho
livre. Atravessamos o cafezal, percebi que a mocinha que carregava estava
grávida. Ao chegarmos ao barranco, colocamos no chão e correram em desespero
para tomar
água.


Não houve comentário, nossos sentimentos eram os mesmos, uma compaixão profunda.
Após tomarem bastante água, deitaram na terra molhada. Matias tirou umas faixas
de pano do bolso, que trouxera, imaginando que as utilizaria, e delicadamente
foi a elas e enfaixou seus pulsos para pararem de sangrar.
Esperamos alguns minutos e chegaram Tião e Leôncio com dois meninos. Emocionado,
abraçou as três, e os seis uniram-se chorando. Leôncio disse:


-Jonas foi apagar o fogo.
-Ficou! - exclamou Tereza, a mãe de Leôncio, com uma voz tão sentida que minha
vontade foi de voltar e pegá-lo.
Jonas era o mais velho. Leôncio dissera que contava com nove anos, os que vieram
tinham sete e cinco anos, pareciam mais novos, eram magros, assustados, estavam
com medo.
Fraca, cansada. Tereza ainda tinha forças para acariciar os filhos, olhava-os
com amor e amargurando-se pelo que ficara. Eu que tanto vira minha mãe sofrer
com a
perda de José. entendia o sofrimento dela. Acaso seria Tereza diferente por ser
negra? Falei a ela encorajando-a:
-Tereza, tranqüilize-se, a vida de vocês vai mudar, ficarão bem escondidos e
ninguém os achará, serão todos livres agora. Prometo-lhe que logo que for
possível,
voltaremos e pegaremos Jonas.
Tereza observou-me e sorriu sem abrir os lábios, virou para Leôncio e perguntou:
-Quem é ele, filho?
-Meu senhor e amigo, minha mãe. Ao sinhô Jorge devo tudo, minha liberdade e,
agora, a liberdade de vocês.
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-Sinhô Jorge? O moleque de fraldas? Digo, o sinhô me desculpe, é o sinhô de
Sant'Ana?
-É ele mesmo, minha mãe.
Sorri, "moleque de fraldas", o coronel só deveria se referir a mim deste modo.
Tereza, que estava sentada, esforçou para se erguer, pensei que fosse levantar,
mas
ajoelhou-se no chão e disse, chorando:
-Obrigado, meu Deus! Deus lhe pague, sinhô Jorge, que o Pai do Alto lhe dê vida
longa, saúde e proteja meu Jonas.
Segurei as lágrimas emocionado e dei-lhe a mão ajudando a se levantar.
-Só a Deus devemos agradecer. Serão felizes todos juntos. Como Lourenço demora,
não devemos esperar mais, é perigoso, deixemo-lo para trás, vamos embora. Um de
nós leve as armas e as ferramentas e cada um ajude a um deles. Vamos!
Os meninos montaram nos ombros, um em Cabral outro em Matias, e eu apanhei uma
das mocinhas, entramos na água, quando chegou Lourenço apressado, vi que seu
braço
esquerdo sangrava, começamos a andar, indaguei-lhe:
-Preocupou-nos, Lourenço. Por que se atrasou?
-Um imprevisto, sinhô, um dos empregados me viu, ia dar o alarme, chegou a
sacar a arma para atirar em mim, tive que lutar com ele e deixei-o ferido,
arrastei-o
e deixei-o escondido.
-Tem certeza de que só feriu? Ele o viu? Devemos ir mais depressa!
-Só o feri, sinhô. Estava escuro, não deve ter me visto, se me reconheceu,
negarei.
Suspirei preocupado; aí, olhei bem para Lourenço, estava com o rosto todo negro,
ninguém diria que era branco, olhando assim, na noite.
-Sinhô - disse ele -, passei carvão no rosto, achei melhor, na Morro Vermelho
muitos me conhecem, disfarçado ninguém reconheceria. O homem que feri, achou que
eu
era negro, pois chegou a dizer:
CATIVOS E LIBERTOS
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

111
"Seu negro sujo, mato-o!"
Sorri, Lourenço fora inteligente, não poderiam acusá-lo e o resgate fora um
sucesso.
Lourenço, ferido, carregava as armas, e nos revezamos, descansando, ora cada um
de nós é que andava sozinho. As mulheres esforçavam-se, mas tínhamos que
arrastá-las.
A volta pareceu-me lenta e a água estava muito fria; quando chegamos, o alívio
foi geral. Ajudamos as mulheres a montar nos cavalos e partimos, silenciosos.
Nércio
que já tinha ramos e galhos nas mãos, ficou para trás, a pé, e começou a apagar
os rastos com perfeição. Queimava umas folhas, com que, segundo ele, até o
cheiro
sumia, nem cães nos achariam. Seguimos até a estrada. Tião e Samuel acompanharam
Leòncio e sua família até a ruína e nós seguimos para a fazenda.

-Você, Lourenço - disse a ele -, vem comigo! Vamos pedir a Maria para cuidar do
seu braço.
Seguimos, eu e ele, para os fundos e espantei-me por encontrá-la acordada,
genuflexa, orando.
-Maria, acordada? - indaguei.
-Esta noite, sinhozinho, necessitava de guardar em orações para as trevas não
atrapalharem.
Sorri e ela olhou-me com alegria.
-Orava por nós, hein, Maria? Que fica oculto a você, negra bondosa?
Sorriu contente, sorria sempre quando José chamava-a assim e ele tinha razão,
aquela mulher era muito bondosa.
-Maria, cuide do braço de Lourenço e... não fale a ninguém!
O ferimento fora feito por uma faca, o corte era fundo e grande, Maria começou
rápido a colocar suas ervas, despedi-me deles, dei a volta e entrei em casa.
Tirei
as roupas molhadas colocando-as no cesto para serem lavadas, tomei um conhaque e
fui deitar-me. Orei em agradecimento, senti-me feliz, adormeci logo.
112
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTONIO CARLOS No outro dia cedo,
Tião veio informar-me:
-Deixei-os bem instalados, sinhô. Pai Tomás esperava-nos com comida quentinha,
as crianças e as mulheres comeram com tanta gulodice, estavam com tanta fome,
que
me penalizei! Trocaram de roupas e Pai Tomás fez curativos nos ferimentos delas,
ele já havia arrumado lugares no chão para eles dormirem. Sabe, sinhô, ele
arrumou
certo, um para cada um deles, sendo que Nércio o havia avisado de que seriam
sete e ele arrumou lugar para seis. Deixamos Leôncio bem armado como o sinhô
recomendou
e Pai Tomás mandou dizer que lá estarão bem, que ninguém vai procurá-los por
ali. Ele orou fechando o pedaço, lá só irão pessoas boas.
-Orou fechando o pedaço? Que coisa estranha! Acredita nisso?
-Nunca errou em nada do que diz. Se faz oração curando pessoas, pode fazer
também para ninguém ir lá. A oração é a mesma e eu acredito, ninguém se lembrará
de ir
lá. Também perguntei baixinho a ele se os fantasmas não os incomodariam e ele
respondeu-me: "Não, Tião, eles os protegerão, são irmãos de raça".
-Melhor assim. Tião, diga para os homens ficarem atentos, se o grupo de procura
passar rumo às ruínas, devo ser avisado imediatamente, que todos fiquem
preparados.
-Se eles descobrirem Leôncio, que fará o sinhozinho?
-Torçamos para ninguém procurá-los lá, mas se acharem... Se achassem Leôncio.
onde estava escondido, com as armas
que tinha e bom atirador que era, podia defender-se muito bem. Mas, se o
apanhassem, acabariam por saber que fora eu a ajudálos, estaria complicado com a
lei. Deveria
evitar que os achassem, confiar na ajuda de Deus e torcer para que não fossem
procurá-los lá.
Logo após, Maria veio até a mim e pediu:

-Sinhô Jorge, Pai Tomás chama-me e preciso ir lá, posso?
Página 53

Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

-Chama-a? Como Maria?
-Pelo pensamento, ele necessita de mim.
-Telepatia! - exclamei.
CATIVOS E LIBERTOS
113
-Não sei se é isto que o sinhô falou, sinto, ele quer que eu vá lá e agora!
-Pois vá, mandarei selar um cavalo, irá mais rápido. Maria foi em seguida,
levando sua cesta de ervas e apetrechos. Tudo tranqüilo, ninguém subira o rio
para procurá-los.
À tarde, Maria voltou e veio informar-me.
-Pai Tomás precisou de mim para cuidar da irmãzinha de Leôncio, a Maria,
chama-se como eu. Maria. Teve a coitadinha um aborto, passou muito mal, está
muito fraca,
mas agora não corre perigo, deixei-a bem melhor, graças a Deus.
-Quem é o pai, Maria? Um amor?
-Antes fosse, é um dos jagunços do coronel. Ó gente ruim! Logo todos estarão
fortes, Pai Tomás cuida deles com carinho, necessitam de comida. Se os visse,
sinhozinho,
não duvidaria que agiu certo. É corajoso e bom!
Sorri; da varanda olhei a fazenda, tudo tranqüilo e senti-me satisfeito, não
pude deixar de me orgulhar da façanha que fizemos. De termos ido ao Morro
Vermelho e
resgatado a família de Leôncio. Capítulo IX ACONTECIMENTOS
EM MORRO VERMELHO
Glorinha chegou do seu passeio a galope. Nércio segurou seu cavalo e ela
desmontou na frente da varanda, veio rápida até a mim.
-Jorge, necessito falar com você.
Estava nervosa, inquieta, segui-a até seu quarto, entrou e fechou a porta.
-Jorge, nem sabe o que aconteceu! Encontrei com João e soube que muitas coisas
se passaram na Morro Vermelho. É melhor sentar. Assaltaram a fazenda do pai de
João,
colocaram fogo no celeiro, libertaram umas negras do tronco e...
-Calma, Glorinha! Fale devagar - disse tentando ser natural e dando a impressão
de desconhecer o assunto.
-Está bem, vou contar do começo. João está muito nervoso e triste, não quer
ficar mais por aqui, na fazenda do pai, porque acha que o coronel está maluco,
doido
de maldades, tem somente dó das irmãs. Hoje veio encontrar comigo arrasado.
Contou-me que, ontem lá pela meia-noite, começou um fogo no celeiro, todos na
fazenda
correram para apagá-lo. Ele, o pai, o irmão, os negros da senzala, os
empregados, as famílias destes. O fogo aumentou rápido, violento e demoraram
para apagá-lo,
queimou quase tudo, foi grande o prejuízo. Quando venceram o fogo, todos estavam
exaustos. João deu graças a Deus por ninguém ter ficado ferido. Disse que o
coronel
ficou furioso com o prejuízo e Lucas começou a investigar como começou o fogo,
os negros não poderiam
CATIVOS E LIBERTOS
115
ser acusados, pois todos estavam trancados na senzala. Porém nada encontrou nas
cinzas. João se espantou quando seu pai disse:
"Levem os negros de volta à senzala, tranque-os, amanhã não trabalharão."
Todos estavam sujos e cansados e seguiram silenciosos para a senzala, três
empregados acompanharam, logo voltou um gritando:
"Coronel, Coronel Francisco, as negras sumiram do tronco!"
O Coronel Francisco deu um grito e correu. João, Lucas e os outros correram
atrás.
As cordas foram cortadas e as negras desapareceram. O coronel correu para a
senzala e João disse ter ido atrás, impressionado com o pai. Este pareceu
transtornado,
tinha os olhos vermelhos e inchados pela fumaça e pelo ódio. Estava descabelado,
bufava e xingava os piores nomes, invocando o demônio para ajudar a achá-las,
horrorizando
a todos com as blasfêmias que dizia. Abriu o portão da senzala e procurou os
negrinhos, filhos de uma das escravas que estavam no castigo e só encontrou o
mais velho,
que se chamava Jonas.
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

Glorinha fez uma pausa, engoliu o choro e eu indaguei aflito:

-Conte logo, Glorinha. Por que disse chamava? Que aconteceu?
-Oh, Jorge! Que sogro fui arrumar, coitado de João, não merece esta peste por
pai. Aí o coronel pegou o negrinho pelos cabelos e perguntou furioso:
"Onde estão seus irmãos? Sua mãe? Fale, se não lhe bato." Deu uma bofetada no
rosto do menino que o sangue brotou de seus lábios. Ninguém falava nada, todos
estavam
apavorados pelo medo. Uma negra, se, enchendo de coragem, que ficara na senzala
por estar com o pé; quebrado e enfaixado, tomou a defesa do menino e disse: /
"Ele não sabe de nada, sinhô Coronel, foi com os outros apagar o fogo. Eu estava
aqui com as crianças pequenas, quando entrou um negro horroroso, armado e levou
os meninos."
O coronel olhou a mulher que tremia de medo e perguntou: "Conhece o negro? Sabe
se é o tal que quis comprá-las?"
116
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
"Não conheço, não vi o tal que quis comprá-las. Logo que saíram daqui, gritamos
eu e as crianças avisando, mas ninguém ouviu."
João acha que ela mentiu, disse ter suspirado aliviado, quando ele arrastou o
menino para fora da senzala, para o pátio na frente desta; o coronel pegou uma
faca,
tirou-a da cinta, e enfiou-a no peito do menino que morreu sem nada dizer e nem
se mexer. Foi tão rápido e ninguém esperava que não deu tempo a ninguém de
acudir.
Ai, começou a gargalhar, a xingar todos os negros, e, diante dos olhares
horrorizados de todos, ele cortou os braços, as pernas, a cabeça do menino, e
disse:
"Que fique aqui, sem ninguém enterrá-lo para dar exemplo, é isto que faço de
agora em diante com a família dos fugitivos."
Glorinha fez pausa e até engasguei com minha saliva enquanto escutava; estava
assombrado, ela continuou:
-João disse-me que acompanhou a cena petrificado! Tal como os negros da
senzala, só voltou a si, quando um empregado chamou-o:
"Sinhozinho João vai ficar aí dentro da senzala? vou fechar o portão."
João saiu e seu pai pareceu voltar ao normal, indiferente ao que fizera, parecia
ter matado uma cobra, um animal nocivo e chamou:
"Vamos à busca deles, não creio que estejam longe, devemos saber que rumo
tomaram. Lucas, reparta os homens em três grupos. Comando um e você vai pela
estrada até
o rio. João, vê se faz alguma coisa, monte, imprestável! (Sempre se refere ao
João deste modo.) Chefia o outro grupo, segue pelas montanhas, não creio que
tenham
ido para lá, mas... Quem achar pistas dê o alarme. Quítério, vá pelos fundos.
Quitério! Quitério! Onde está ele?"'
Ninguém sabia dele. Segundo João, este tal Quitério é outro demônio, o jagunço
de que o pai mais gostava, seu homem de confiança e tão mal como o coronel.
"Que procurem Quitério!"
CATIVOS E LIBERTOS
117
Os empregados saíram a chamá-lo, alertando sua família, que também saiu a
procurá-lo. Encontraram-no morto, perto do celeiro, da parte menos afetada pelo
fogo. Morto
por facadas. O coronel deu então novo vexame, gritou, xingou, chutou o cadáver.
"Seu imprestável, viu os negros fugirem e nem para dar o alarme! Deixar um negro
à toa matá-lo!"
A esposa de Quitério chegou chorando e o malvado gritou para todos ouvirem:
"Seu marido é um imprestável e agora não serve para mais nada. Não os quero mais
aqui. Amanhã cedo empresto uma carroça para que o levem daqui para ser enterrado
e também para transportar sua mudança. Devem partir amanhã cedo!"


"Não faça isto, senhor. Quitério serviu-o a vida toda. Para onde vou?" perguntou
desesperada a mulher.
"Serviu com a vida, deixou-se morrer e agora não serve para nada! O problema é
seu, se não fosse ele tão palerma isto não aconteceria. Expulso-os! Que saiam
das
minhas terras amanhã cedo e que levem este imprestável."
João disse que ficou pasmado porque Quitério e o pai eram amigos, tinham o mesmo


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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

modo de ser e de pensar.

Separou os grupos de procura, esquecendo-se do morto e gritou para que todos na
fazenda o ouvissem:
"Tonho, vá avisar o delegado da fuga e do assassinato de Quitério. Diz que foi
um negro sujo, empregado dos Castro com ajuda certamente de alguns escravos de
Sant'Ana,
que vivem soltos como gente."


-Ah, Jorge, que medo! Foi Leôncio?
-Não, não temos nada com isto. Não deve se preocupar. Sem provas, não podem
acusar ninguém.
-Ainda bem! - continuou Glorinha: - Ele gritava: "Quero-os vivos! Que procurem
bem, vasculhem tudo, e que achem. Quero os vivos, para matá-los em torturas.
Morrerão
todos aos poucos, serão queimados com ferro quente, terão as unhas, dentes e
cabelos arrancados. /Quero cortá-los em pedaços e colocar sal
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
por cima. E na frente destes meus escravos idiotas, quero que todos vejam na
fazenda. Quero-os vivos!"
Os grupos sairam à procura dos fugitivos e logo acharam cercas cortadas perto do
rio. Acharam rastos de muitos homens, pelo menos seis e tiveram a certeza de que
fugiram pelo rio.
João teve que participar das buscas e o fez com pouca vontade, temendo
encontrá-los. O delegado logo cedo chegou à fazenda com seus soldados, e
ajuntando-se a Lucas
e jagunços desceram o rio avisando a todos da fuga dos negros em todas as vilas
que circundam o rio. João acha que, se desceram o rio, serão apanhados.
Logo que o delegado saiu à procura dos escravos, seu pai mandou dois empregados
carregarem uma charrete com a mudança da viúva e o cadáver de Quitério; mandou
um
deles acompanhá-la até a vila e deixá-los por lá e voltar logo com a charrete. A
mulher e os filhos, cinco pequenos, choravam desconsolados, ela pediu dinheiro
ao
coronel e este negou-se dizendo que nada devia ao morto e sim este a ele.
Chorando, ela disse que não tinha para onde ir e ele, já sem paciência,
respondeu que não
era problema dele.
Escondida, a irmã de João, Marcina, deu dinheiro a ela; partiram logo, e na hora
do almoço, o empregado voltara dizendo que os deixou numa casinha desabitada, na
estrada que vai para a vila. E o corpo em pedaços do garoto lá está, na frente
da senzala, os negros não trabalharam, ficaram presos. Diante do espetáculo
macabro,

o coronel disse que só à tardinha mandará enterrar o menino.
João está tão triste, Jorge, ele até chorou ao contar os acontecimentos de seu
lar; está exausto, ficou comigo, só o tempo de narrar tudo. Sinto medo, Jorge,
muito
medo. João quer marcar um encontro com você para provar-lhe que sofre muito com
as atitudes do pai e muito se envergonha. Quer, com você, planejar nosso
casamento.
Ele acha melhor ir na frente, depois você me levará a São Paulo e lá casaremos.
Não confia muito no padre da vila, acha que ele pode falar do casamento, ele
também
teme o pai.
CATIVOS E LIBERTOS
119
Glorinha começou a chorar. Passei as mãos nos seus cabelos e consolei-a.
-Sogro pior não tem você jeito de arrumar, nunca ouvi nada parecido. João bem
que poderia ter sido filho de outro coronel, mas, já que é filho deste, o melhor
é
se conformar ou arranjar outro. João tem razão em temer o pai, mas não pense que
se ele mandar matar outro de nós, que ficarei de braços cruzados. Tudo tenho
feito
em nossa defesa, porém, se ele nos fizer mal, aí nem sei Glorinha, ataco a
fazenda. Pensamos no melhor e tomaremos todo o cuidado. Acalme-se, senão mamãe
acaba percebendo.
Por enquanto, é melhor que ignore. Alguém mais sabe do que acaba de contar-me?
-Bárbara e Nércio que estavam conosco. Disse a eles que não precisavam guardar
Página 56

Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

segredo, só que não deveriam contar como souberam.

-Preocupo-me com estes seus encontros, irmãzinha!
-Não vamos nos encontrar durante uma semana, não se preocupe.
-É melhor. Quando se encontrarem, marque para logo nosso encontro, quero mesmo
conversar com ele, não quero que corra perigo.
Saí do quarto de Glorinha, triste. O resgate não foi tão perfeito como pensava.
Tinha morrido um homem e resultou em mais maldades do Coronel Francisco, como a
expulsão
de uma família e a morte de um menino.
O pessoal voltava do trabalho e conversava formando grupos, comentando o
ocorrido, muitos se benziam horrorizados, dando graças por não estarem lá. Todos
saberão
em instantes" - pensei. "Ah! Manuel tinha razão em dizer que quem cultiva ódio é
doente em espírito. Não deveria ter levado Lourenço, fora novamente imprudente.
Aproveitou a ocasião para se vingar, deve ter levado mais latas de querosene
escondido nas roupas para o fogo ter se alastrado tanto. Foi Quitério quem
pegara sua
filha para Chico, como também quem o surrara a mando do coronel, quando
reclamou. Onde encontraram
120
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
o morto, deve ter Lourenço descido, voltado ao celeiro para procurá-lo e atacado
de surpresa. Quis chamá-lo, repreendê-lo, mandá-lo embora, mas seria outra
imprudência,
seria o mesmo que alertar a todos da nossa façanha, deixar a todos desconfiados.
Que motivo teria para despedi-lo? Era bom empregado, dar desculpas não
satisfaria
a curiosidade de todos e melhor seria tê-lo agora conosco, na fazenda; poderia
dizer besteiras por aí e ser preso e contar ao delegado a verdade. A
responsabilidade
maior era minha, desobedeceu-me, aproveitou para se vingar, fora eu, porém, a
levá-lo." Estava muito aborrecido, pensei em Tereza, em Leôncio, nas outras
crianças,
achei que precisavam saber, chamei Manuel:
-Manuel, sabe o que aconteceu? Estou muito aborrecido, você tinha razão, não
deveria ter levado Lourenço, desobedeceume e arriscou muito, matou um homem;
agora,
não falarei nada a ele, os outros podem desconfiar.
-Não fique chateado, sinhozinho. Devemos nos entristecer só pelo garoto. Se não
fosse assim, seriam três que morreriam, e foi melhor para ele. Jonas era um anjo
e deve agora estar bem mais feliz, agora é livre, lá sim é que era um
coitadinho. A mãe vai entender, e o fato de o coronel ter matado o menino
violentamente foi
melhor para Jonas. Quanto ao outro, foi um alívio, o sinhô não precisa se
aborrecer, o homem era mau, peçonhento, jagunço de confiança do coronel.
Lourenço teve
sorte em matá-lo, deve ter sido pego de surpresa, era o danado bom de briga e
tinha boa pontaria, atirava muito bem à distância. Talvez, Lourenço não tivesse
agido
tão mal quanto lhe parece. Quanto à mulher com os filhos enxotados é maldade
desse coronel e o sinhô não tem nada a ver com isto. É exemplo para os outros
empregados,
que agora saberão como ficarão suas famílias se vierem a morrer.
-Manuel, peça ao Tião para ir logo a noite às ruínas, dar a triste notícia ao
Leôncio e também diga a ele que o coronel pensa que desceram o rio. Peça ao Tião
para
ter cuidado e que ninguém deve vê-lo!
-Jorge! Jorge! - gritou minha mãe, vindo ao meu encontro. Manuel afastou-se
rápido.
CATIVOS E LIBERTOS
121
-Estou aqui. mamãe.
-Jorge, olhe para mim. Diga-me filho, você tem algo a ver com este assalto ao
Morro Vermelho? Tem? Joana disse-me que suas roupas, as que vestia ontem estavam
molhadas
e sujas. Foi você, filho? Foi?
-Eu...
Nunca conseguiria mentir para minha mãe. Quando ela me mandava olhar nos seus
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

olhos e dizer a verdade, acabava fazendo-o.

-Ah, filho, eu sabia! Quando Nércio me contou, senti que fora você. Como estou
orgulhosa! Só que tremo de medo em pensar o perigo que correu. Arriscou sua
vida.
filho!
-Não teve perigo mamãe, foi fácil.
-Que bom! Você é inteligente e forte. Estou contente, o Coronel Francisco teve
seu celeiro queimado e grande foi seu prejuízo. Jorge, mande vigiar bem o nosso,
aquele rato pode fazer o mesmo com o nosso. Gostei de saber que Quitério morreu.
Seu pai conhecia-o, via-o sempre, era a sombra do coronel, homem horroroso.
Sabe,
filho, sempre achei que tivesse sido ele quem matou meu José. Dizem que era
excelente atirador, o melhor jagunço do Coronel Francisco. Naquela época ninguém
viu
pessoa desconhecida, ninguém de outro lugar, foi alguém daqui mesmo e deve ter
sido ele. O coronel deve tê-lo escolhido para matar José, ele era o melhor de
seus
homens. E pelo modo certeiro do tiro e do lugar que atiraram, foi uma pessoa que
sabia o que fazia. Tem outra coisa.: promete não rir de mim. filho, algum tempo
atrás, sonhei com seu pai e lhe perguntei: "Quem. Joaquim, atirou em nosso
José?" E ele respondeu- me: "Quitério, o jagunço do Coronel Francisco. Olhei
assustado
para mamãe, que enxugava uma lágrima, Ele disse isto? No sonho, ele disse que
fora Quitério? Disse, lembro bem. ia perguntar-lhe mais coisas, mas ele foi
embora,
triste. Acho que era porque o danado estava solto. Se foi ele, teve seu castigo
e, se não foi, fez muitas e mereceu o quê recebeu esta noite. Jorge, onde
escondeu
os negros? - indagou! baixinho. 122 VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO
CARLOS Na Fazenda Assombrada, nas ruínas, mas, por favor, mamãe, não conte a
ninguém.
-Que idéia boa! Ninguém vai lá há anos, todos temem aquele lugar assombrado,
ninguém pensará que se esconderam lá. E muito inteligente e esperto, meu filho,
sinto
orgulho de você, é um Castro e Alves!
Pela primeira vez, desde a morte de José, vi minha mãe sorrir como antigamente,
ela deu-me um estalado beijo no rosto e entrou em casa, deixando-me sozinho
novamente
na varanda.
Passei a mão no rosto, amava os meus, amava demais minha mãe e, ao vê-la mais
animada, senti-me melhor e ela poderia ter razão. Se o Coronel Francisco mandou
matar
José, só pode ter sido alguém que era bom atirador! Não era difícil para
Quitério ter ficado dias esperando uma oportunidade. Deveriam saber que meu
irmão sempre
ia ver o cafezal por aqueles lados. A oferta que fiz era muito tentadora e
ninguém apareceu, dando a entender que fora uma só pessoa mais o mandante.
Quitério encaixava-se
como o assassino e, com o sonho de mamãe, eu tinha a certeza. Sabia que meu pai
estava, na ocasião, vagando por ali e bem podia ter visto o assassinato, sem
nada
ter conseguido fazer para evitar, e dissera à mamãe, enquanto ela dormia. Chamei
Manuel novamente:
-Manuel dobre a guarda, deixa uns três homens vigiando nosso celeiro.
-Sim, sinhô - disse sorrindo e tratou de cumprir as ordens. No outro dia logo
cedo. tomávamos o desjejum, Manuel
veio chamar-me:
-Sinhô Jorge, o delegado e seus soldados entraram em Sant'Ana, passaram a
porteira.
-Vamos esperá-los.
Levantei, foi até mamãe e disse-lhe baixinho:
-Não demonstre qualquer nervosismo.
-Claro, Jorge, sou uma Castro e Alves, filha do finado Coronel Correia, sei
comportar-me à altura, só quero saber o que ele quer e quero estar ao seu lado,
filho!
Ficamos na varanda, o delegado parou em frente e cumprimentou:
CATIVOS E LIBERTOS
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

-Bom-dia, Coronel Castro, bom-dia, d. Catarina. Bom-dia - respondi secamente e
tranqüilamente, olhando-o com indiferença.
-O senhor soube da fuga dos negros da Morro Vermelho, não soube, Coronel? Todas
as vilas ribeirinhas foram avisadas. O Coronel Francisco prometeu bom prêmio
pela
captura. Até agora, não sabemos deles. O senhor entende, tenho que cumprir meu
dever, são vizinhos, os negros podem ter se escondido por aí e tenho que dar uma
busca
em suas terras.
Fiquei impassível olhando-o, e o delegado, meio inquieto, fez uma pausa e
continuou:

-Embora não tendo provas, suspeitamos de um de seus empregados, um negro
chamado Leôncio.
-Ex, ex-empregado, o senhor quer dizer. Despediu-se e foi embora.
-Não sabe para onde?
-Era um empregado, sr. delegado, negro alforriado, quis ir embora, paguei o que
lhe devia e não me interessei para onde ia.
-Há dias, ele foi ao Morro Vermelho querendo comprar a mãe e as irmãs com muito
dinheiro.
-Verdade? Ignorava, afirmo, se tinha dinheiro, era porque é trabalhador. Nada
tenho a ver com as atitudes dele, sei o que acontece nas minhas terras, mas meus
empregados
cuidam cada qual de sua vida.
-Sim, claro. Mas ele deve ter tido ajuda, o senhor sabe, não deve ter feito
tudo sozinho.
-Não, não sei. Não soube os detalhes e nem me interesso por saber, não é
assunto meu. Espero que o senhor não esteja insinuando que o negro Leôncio
recebeu ajuda
daqui!
Meus homens se ajuntaram, todos bem armados, mais que o dobro dos homens do
delegado e ficaram parados como se esperassem uma ordem minha. O delegado
pareceu-me
nervoso.

-Não, senhor, nem imaginei. Melhor assim. Não me intrometo na vida de ninguém,
nem gosto que se intrometam na minha. Sei dos homens e aqui
124
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS ninguém ajudou a ninguém em
fuga nenhuma. Faça seu trabalho, delegado, tem minha autorização para procurar
pelas
minhas terras, como também pode indagar de meus homens, quase todos estão aí.
-Alguém viu os negros que fugiram da Morro Vermelho? Sabem deles? Ninguém
respondeu, somente negaram balançando a cabeça.
-Então, Coronel, vou procurá-los, com sua licença. Afirmei com a cabeça e dei a
ordem:
-Manuel, Nércio, acompanhem o delegado - o dr. Tomás nada disse, seu rosto
fechou-se de raiva e concluí, calmamente: Se quiser revistar a casa-grande, pode
começar
por aqui.
Olhei-o desafiando e sorri, debochando.

-Não é preciso - respondeu secamente. Quando saíram, chamei Tião.
-Tião, deu a notícia da morte de Jonas à Tereza? Como aceitaram?
-Dei sim, sinhô. Ninguém chorou, parecia que esperavam algo assim. Tereza disse
somente:
"Jonas morreu rápido, não sofreu, meu medo era que o coronel o matasse no
tronco. Morto, não sofre mais, entre nós muito sofreu, agora viverá melhor e de
onde estiver
olhará por nós. Como tenho sofrido, Tião ter deixado Jonas lá, foi um martírio
tão grande como o tronco, é melhor saber que está morto. Obrigado por ter vindo
nos
dar esta notícia, sinto-me melhor agora. Vamos orar por ele. Lembrei,
sinhozinho, de minha mãe e, vendo os irmãozinhos de Leôncio, lembrei de quando
criança e dos
meus irmãos. Senti muita pena deles, tomara que tudo se acalme e que possam ir
embora. Acha o sinhô que o delegado irá dar buscas na Fazenda Assombrada?
-Creio que não. Pelo que contam, teme ele os fantasmas; peço a Deus que não,
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

enquanto não forem embora não estarei tranqüilo. De longe fiquem você e Samuel
seguindo
os passos deles, quero estar informado de onde irão. Quando acabar as buscas,
CATIVOS E LIBERTOS
125
ajudarei Leôncio e família a irem para longe, para a Corte ou para São Paulo.
Farei cartas de alforria a todos. Podemos disfarçá-los e sairão à noite.

-Leôncio queria ficar por aqui.
-Não vai ser possível, o melhor é irem embora.
O dia todo, tive notícias dos passos do delegado e seus soldados. Procuraram em
volta do rio, buscaram rastros e, como esperávamos, nada acharam. Passaram pelo
cafezal,
perguntaram aos escravos, foram até o Barranco das Antas onde José foi morto,
andaram pelos pastos e à tarde voltaram à sede, cansados e suados. Era costume
nessas
buscas os fazendeiros oferecerem refrescos e alimentos à comitiva. Meu pai,
embora não gostasse destas perseguições, fazia sempre isto, mas eu não fiz. Com
a mesma
tranqüilidade, cheguei à varanda, mamãe acompanhou-me:
-Então, sr. delegado, achou-os?
-Não, nada. Não estiveram por aqui.
-Claro que não. Nada acontece nas minhas terras sem que eu saiba, sem minhas
ordens.
-Foi um dia cansativo, o sol está quente...
Nada respondi, fez um intervalo e vendo que não ia ser convidado, despediu-se:
-Obrigado, Coronel Castro e tenham uma boa-noite.
-Boa-noite a vocês também e que achem os negros! Manuel, Nércio, acompanhem-os
até a porteira e deixem-na trancada.
Saiu furioso. Mandar que os acompanhassem até a saída, era como se certificar de
que realmente saíram da fazenda e mandar trancar a porteira era ter a certeza de
que não voltariam.
Mamãe riu:
-Jorge, é isto mesmo! Este delegado sabe agora quem manda aqui e que não temos
medo dele.
-Mamãe, ele representa a lei, muito mal, mas representa. Não o tratei mal para
mostrar minha autoridade, somente por não gostar dele. Não nos consta que no
assassinato
do José, ele tenha saído para investigar, nem mesmo no local do crime esteve.
Ele é daquelas pessoas para quem a lei deve ser cumprida para os
126
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
pobres. Com os ricos e importantes não gosta de mexer. Não ia, só por cortesia,
oferecer um lanche a eles, perseguidores dos pobres coitados escravos, que nem
têm
como se defender.
-Teve o que mereceu! - disse mamãe toda orgulhosa. Esperei por Nércio e Manuel
que voltaram rindo:
-Sinhozinho Jorge, o homem nada disse, mas foi embora furioso.
-Olharam tudo por aí?
-Não só olhou como fiscalizou a margem toda do rio, perguntando a todos os que
encontrava se não viram os fujões. Eles acham mesmo que desceram o rio. E nem
passou
a eles, ir à Fazenda Assombrada.
No domingo fomos como sempre à missa. O Coronel Francisco, todo arrogante, lá
estava, parecia estar muito orgulhoso de ter matado o negrinho, orou como
sempre. Lucas
e João acompanharam-no. Marcina não fora, calculei que deveria estar com sinais
da surra que levara do pai e não devia ter querido ir. Após o ato religioso, as
rodas
se formaram e o assunto era um só, a fuga dos escravos da Morro Vermelho.
Perguntaram-me curiosos:
-Como vizinho o que nos diz, Jorge, da fuga dos negros?
-Somos vizinhos separados como todos sabem. Nada sei dessa fuga.
-Dizem ter sido um ex-empregado seu.
-Comentam somente, não têm provas. Duvido que tenha sido ele. Despediu-se dias
antes e não soube mais dele. O delegado e comitiva deram buscas por toda a
fazenda
e nada encontraram.
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

-Sabemos que nada encontraram.
-Claro, não dou abrigo a negros fujões e, se os tivesse visto, os denunciaria.
-Para mim, desceram o rio. Que acha Jorge?
-Não sei, meus negros não fogem e não me preocupo com este assunto.
Evitei falar, respondi a todas as indagações feitas diretamente com
tranqüilidade. No horário de costume voltamos para a fazenda.
CATIVOS E LIBERTOS
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Na carruagem, Glorinha desabafou:
-Que chato, só falaram da fuga dos negros! Olhei para mamãe e ela me
tranqüilizou:
-Só ouvi, nada falei.
Mudamos o assunto para o texto lido do Evangelho, da Parábola do Semeador.
-Não vejo o significado desta história - disse Carlota. - É tão estranha,
compara-nos com terrenos.
-Somos como a terra, ela tem que ser boa para plantar, se não for, nada dá. Não
sei por que Jesus, era ele o Semeador, não era? Semeou em toda parte - falou
Glorinha.
Interferi:
-Jesus é de fato o próprio Semeador, ele ensinou sem distinção e o Evangelho aí
está para todos os tipos de almas, em muitos lugares, acredito que no futuro em
toda a Terra. Não é, Carlota, a semente material que foi semeada com os ensinos
do Mestre Jesus, e sim, a semente espiritual. Os tipos de terrenos são os tipos
de
pessoas que habitam a Terra e cada um é livre para fazer de sua alma o tipo de
terreno que Jesus demonstrou tão sabiamente nesta parábola. Podemos calcular
vinte
e cinco por cento para cada tipo: não é negado o ensino da palavra Divina a
ninguém. Pensamos, com o nosso egoísmo, que as pessoas comparadas com as
estradas, os
piedosos, não a merecem. Não é assim, o Pai dá o calor do sol a todos. Somos
livres para aceitar, ou não, e para modificar nosso modo de viver, mudar o
terreno.
Ao querer progredir, ter boa terra, é necessário arrancar as pedras da
indiferença, do egoísmo, os espinhos dos vícios, dos nossos defeitos. Limparmos,
como se limpa
a terra para o plantio. Quero ser bom terreno, almejo ser boa terra e dar
frutos. Pergunto sempre a mim mesmo, se sou bom terreno. Não é fácil,
necessitamos de coragem,
esforço, vontade e trabalho. Porque não basta escutar os ensinos evangélicos,
como as sementes entre as pedras, é preciso aceitálos, compreendê-los, amá-los e
vivê-los
no dia a dia e fazer frutificar com as boas obras. E nem todos dão frutos iguais
como Jesus disse, um dará trinta, outro sessenta e outro cem por um, dependendo
de nossa boa vontade e esforço.
128
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-Que bonito, Jorge! - exclamou mamãe emocionada. - Onde aprendeu tudo isto?
-Lendo o Evangelho, mamãe.
-Você o leu? Lê? - quis saber, curiosa, Glorinha.
-Sim, li e leio, sempre e gosto muito.
-Gostaria de lê-lo - falou minha irmã caçula.
-Os padres não recomendam, como deveriam, a leitura da Bíblia, do Evangelho; é
tão bonito, ensina-nos tanto! Por que não nos reunirmos um dia na semana para
ler,
comentar e orar juntos?
-Boa idéia! - exclamou Glorinha entusiasmada.
-Podemos começar hoje à noite, após o jantar. Domingo é dia consagrado ao
Senhor, próprio para orar - opinou mamãe.
-Concordo, pode ser hoje. Não acha, mamãe, que todos os dias são do Senhor e
que devemos consagrar todos os minutos de nossa vida a Ele?
-Ficar orando o dia todo. meu filho?
-Não, mamãe, não orando, recitando preces, mas sim, tendo a consciência
tranqüila, sendo bons, adorando o Pai através do próximo.
-E muito bonito o que diz, Jorge - disse Carlota. - Vendo hoje o Coronel
Francisco orando na missa, estou pensando: "Que terreno é sua alma?"
-Carlota - disse-lhe -, não devemos nos preocupar qual terreno é o do nosso
próximo e, sim. com o que somos e no que devemos melhorar. Julgar o Coronel
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

Francisco
é ver um cisco nos olhos alheios e não ver uma trave no nosso.


-Agradecemos a Deus por não sermos como ele - replicou minha mãe. - Quando
morrer, irá direto ao Inferno!
-Não devemos pensar assim. Deus, como Pai, ama a todos e quer que sejamos bons,
porém, deixou-nos livres para sermos, ou não. Agradeçamos, sim, a oportunidade
de
nos educarmos.
-Não pensa, Jorge, que o Coronel Francisco irá para o Inferno? Se ele confessar
antes de morrer e for perdoado, não receberá nenhum castigo? Pode ir para o Céu
junto com os
CATIVOS E LIBERTOS
justos? - perguntou indignada Laurinda, que, até então, nada dissera, só
escutava.

-Acho que para sermos perdoados, Laurinda, necessitamos de estar arrependidos
com sinceridade e não só pedir perdão da boca para fora. Mesmo arrependidos,
acredito
que erros, pecados, são dívidas que contraímos e. para nosso próprio bem, devem
ser quitadas. Não se planta espinhos para colher uvas, só com o arrependimento
não
nos transformamos, mas sim com a reparação, com o trabalho. Podemos ser o
terreno com espinhos, porém, se o quisermos e tivermos coragem de arrancá-los,
preparar
a terra, seremos bons terrenos. O Coronel Francisco não planta, ao nosso
entender, algo de bom, chegará o tempo da colheita, e queira, ou não, terá de
colher o que
plantou. Devemos preocupar-nos, Laurinda, é conosco, em plantar o bem com amor.
Deixemos o Coronel Francisco com seus atos, devemos, sim, orar por ele, para que
melhore.
-Eu é que não faço isto! - disse Carlota.
-As ações dele ferem a muitos, Carlota. Tantas pessoas sofrem por ele ser mau!
-Será, Jorge, que estes que sofrem na Morro Vermelho, colhem a má semente que
plantaram?
-Acho que sim, Glorinha.
-Jorge, para modificar-nos não é fácil. Se sou um terreno de espinhos e quiser
modificar-me, sofreria em arrancá-los, pois muito trabalho teria para limpá-lo.
Sangraria
minhas mãos, meus pés - concluiu Glorinha.
-Também penso assim, minha irmã. Não existe transformação se não quisermos, sem
sacrifícios e vontade. Despertamos para as verdades ou pelo amor ou pela dor,
somos
livres.
Naquela noite, começamos a reunir-nos, comecei a ler o Evangelho desde o começo.
Li um texto, comentamos, após orarmos um Pai-Nosso em agradecimento; e fizemos
destas
reuniões um hábito familiar, um encontro carinhoso nas noites de domingo.
-CapítuloX ENCONTROS Na quarta-feira fui ao encontro de Marcina, esperei,
esperei, e ela não veio. Pensei que talvez estivesse proibida de sair, já que
Chico fora
morto por fugitivos. Voltei aborrecido.
No domingo, não foi à missa novamente.
Vigiávamos disfarçadamente a estrada desde que recebera as armas. No domingo à
tarde, Juvenal um dos guardas, veio me contar que novamente o sr. Amâncio fora à
Fazenda
Morro Vermelho. Era a segunda vez naquela semana que ia lá, senti muito ciúme.
Se ele estava interessado em Marcina, deveria ser por sua causa que ia lá; não
eram
normais suas visitas e fiquei mais preocupado ainda.
As buscas continuavam; não voltaram mais à Sant'Ana nem foram à Fazenda
Assombrada e a opinião de todos era de que haviam descido o rio,
tranqüilizando-me sobre
este assunto, mas inquietando-me mais sobre Marcina.
"Será que o coronel quer casá-los?" - indagava-me a todo instante. "Será que
obrigará Marcina a ficar noiva desse homem?"
A noite chegou e nos reunimos para a leitura do Evangelho, li um texto do Sermão
da Montanha, de Mateus, "Os Bem-aventurados". Tranqüilizei-me com os
maravilhosos
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

ensinos contidos nessa narrativa. Após, sem sono, fui para a varanda; mamãe e as
meninas retiraram-se aos seus aposentos.
Olhava a noite distraído, pensando nos ensinos de Jesus.


-Jorge!
Assustei. Era Laurinda que, silenciosamente, chegara à varanda. CATIVOS LIBERTOS
131
-Hum!
-Estou sem sono. Posso ficar aqui com você?
Queria mesmo era ficar sozinho, mas não quis ser indelicado com minha cunhada.
-Sim, claro. Está saudosa?
-Sim, lembro-me muito do passado, dos muitos acontecimentos, do nosso
compromisso, do tempo que o esperei. Todos achavam que não voltaria solteiro,
estaria fora
por muito tempo.
Olhei diretamente para Laurinda, ela abaixou a cabeça encabulada. Ainda não
sabia o que havia acontecido, pois não me explicaram; com tantos transtornos,
não me
interessei em saber, depois não queria magoar mamãe com esse assunto. O fato é
que me julgava noivo e encontrei minha prometida casada com meu irmão. Naquele
momento
quis saber e já que Laurinda tocara no assunto, indaguei curioso:
-Conta-me, Laurinda, o que se passou na minha ausência? Por que não me esperou?
-Dois anos após você ter partido, José começou a cortejarme. Senti-me
repartida, estávamos sempre juntos, em festas, minha família em visita aos seus,
e a sua,
em minha casa. Conversávamos muito. Era tão jovem quando me prometeram a você,
depois, nunca namoramos ou conversamos sobre o assunto. Achava, como todos, que
você
me esqueceria na França distante. Sem me consultar, mesmo sem eu saber, seu pai
conversou com o meu e acertaram nosso casamento, até mesmo a data. Senti-me
abalada
e assustada, nem sabia o que queria e eles resolveram por mim. Reclamei ao meu
pai e levei um tapa no rosto; falou-me exaltado:
"Que é isto? Dá esperanças ao rapaz, está sempre conversando com ele e diz não
saber o que quer?! Eu e Joaquim achamos que estavam apaixonados. Com Jorge longe
e
sabe-se lá quando volta, resolvemos casar você com José. Assim está decidido e
assim será."
Fiquei desorientada, quis me comunicar com você e não sabia como, temi até que
já estivesse comprometido. Enchi-me de
132
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
coragem e falei ao José. Ele se entristeceu, confessou amar-me muito, mesmo
assim, prometeu ajudar-me. Não sabíamos o que fazer, José sempre obedeceu a seu
pai e
eu ao meu. Com tudo preparado, casamos!

-Foram felizes? - indaguei sentido.
-José amava-me muito; sabia, porém, que eu pensava muito em você, embora
sentisse muito carinho por ele; depois não lhe dei filhos. Já havíamos decidido
que, se
você ficasse na fazenda, iríamos morar na cidade. A notícia de sua volta,
deixou-nos inseguros.
Suspirei tristemente. José era para mim especial, nunca vira ninguém mais
bondoso, inocente e puro como ele. Amava-o e respeitava-o, embora fosse mais
novo que eu,
sempre, desde criança, obedecia-o, sentia-o mais maduro, mais responsável. Se
tivesse oportunidade, teria dito a ele que não me importava de ele ter casado
com Laurinda,
que queria mesmo é que fossem muito felizes. Nem tempo para isso tive. E saber
que não foi feliz e a causa fora eu, senti-me abalado, muito triste. Assustei-me
novamente
quando Laurinda falou:
-Jorge, você não voltou casado, não parece interessado em nenhuma mulher,
voltou para casar comigo, não foi? Agora nada impede-nos de ficarmos juntos, sua
mãe me
adora e...
-Quê?!
Página 63

Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

Fez-se um silêncio desagradável, Laurinda encabulada mais ainda, torcia as mãos
nervosa e eu não consegui ocultar meu assombro, levei um choque ao escutá-la.
Nem
prestava atenção em Laurinda, convivia com ela como uma pessoa da família, uma
cunhada e nem me passou pela cabeça suas pretensões, nem acabara o período de
luto,
nem um ano fazia da morte do meu irmão, procurei acalmar-me e fui claro:

-Sinto, Laurinda. Sinto muito José não ter sido feliz e ter sido por minha
causa. Você deveria ter pensado nisso antes de aceitar o cortejo dele, de tê-lo
feito
se apaixonar. Voltei pensando em casar-me com você, sim. mas não me importei em
vê-la casada, porque de coração os queria felizes. Entristeço-me com tudo.
CATIVOS E LIBERTOS
133
Não pretendo ligar-me a você; se dei a entender isto, perdoe-me, não foi esta a
minha intenção. Quanto a interessar-me por outra, amo alguém, amo muito.
Escutei a respiração forte de Laurinda, ela indagou-me:
-Quem Jorge? Ama a quem?
Olhei-a, vi que tremia, nada respondi, entendeu que deveria ser um amor secreto.
Após uma longa pausa, mais controlada Laurinda falou:

-Desculpe-me, Jorge, não deveria ter pensado que você... Estou envergonhada,
parto, volto para a casa de meu pai.
-É melhor, Laurinda. Quero-a bem, como uma irmã, uma cunhada.
-Cuidado com esse amor, Jorge, pode levá-lo à morte. Saiu, deixando-me sozinho.
Senti um leve mal-estar. Será
que desconfiava? Será que Laurinda percebera algo? Não, deve pensar que um amor
escondido seria perigoso.
"Ah, meu Deus! Mais esta!" - resmunguei, sentando-me numa cadeira.
Fiquei pensando no que Laurinda me dissera, senti-me inquieto e muito
aborrecido. Lembrei-me do rosto de José, morto no meu colo, e lágrimas vieram
aos meus olhos.
"José! José! Perdoa-me meu irmão, por nada neste mundo o faria sofrer, nem que
sua escolhida fosse a minha Marcina."
Vi uma luz na minha frente, olhei com firmeza e vi José envolto de uma claridade
suave e lindíssima. Pareceu-me mais belo, mais alto, olhava-o fascinado e com
esforço
consegui dizer:
"José! José!"
Ele sorriu, alegre, esperei que fosse falar comigo, mas a visão foi se
desfazendo, ele desapareceu. Senti que ele me amava e que ninguém tivera culpa,
nem Laurinda
que tão jovem ainda fora prometida a alguém que se ausentara, que nem sequer
sabia se era querida e fora obrigada a casar desconhecendo seus sentimentos. Nem
ele,
José, que se apaixonara pela minha prometida, nem eu que ignorava tudo. Senti
ânimo, com a certeza de ser ouvido por ele, e disse:
134
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
"Obrigado, meu irmão, obrigado. Pelo seu sorriso, é mais feliz que eu!"
Sentindo-me bem, fui deitar, orei e dormi logo.
No outro dia, Glorinha que se encontrara com João no domingo à tarde, disse-me
que marcara um encontro para nós dois, na terça à tarde.
Na hora marcada, fomos. Ela foi comigo. A Fazenda Assombrada, era mais uma vez
palco de encontros secretos. Embora com muito mato e abandonada, era bonita,
tinha
recantos encantadores. Encontramo-nos perto de uma nascente, embaixo de umas
árvores frondosas. Minha irmã apresentou-nos, e no início ficamos encabulados
para,
logo após, conversarmos amigavelmente. João era parecido com Marcina,
inteligente, simples, educado, agradável e senti que realmente amava minha irmã.


-Jorge - disse-me -, amo Glorinha e desejo casar com ela o mais depressa
possível, agradeço seu apoio e não se arrependerá por ter consentido. Volto a
trabalhar
com meu tio em São Paulo e lá fixarei nossa residência.
-João é melhor você ir na frente, dou uns dois meses para que organize tudo,
depois, levo Glorinha até você e deixo-os casados.
Página 64


Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

-Nem sei como lhe agradecer.
João fora determinado. Se eu não consentisse com o casamento, fugiriam com
certeza, porque conhecendo minha irmã, sabia que ela o seguiria para qualquer
lugar. Achava-o
talvez um tanto fraco, não enfrentando o pai. Mas os filhos naquele tempo
obedeciam e respeitavam muito os pais e estes mandavam até a morte. Como
percebesse o que
pensava, João disse calmamente:
-Jorge, gosto de terra, de fazenda, aqui, porém, não é meu lugar. Morei muito
tempo com meus tios porque nunca aceitei o proceder de meu pai. Vim visitar
minhas
irmãs, conheci Glorinha e fui ficando. Lastimo as atitudes de meu pai, não tenho
como interferir, de impedi-lo, só se o matasse. Prefiro ir embora. O que prometo
a você é que farei Glorinha feliz!
CATIVOS E LIBERTOS
135
Combinamos os detalhes. Ele partiria dentro de um mês e aguardaria a mim e a
Glorinha. Despedimo-nos. No caminho de volta, fiquei pensando se ele tinha
dinheiro
para montar a casa e para o sustento deles. Não queria ofendê-lo oferecendo
dinheiro. Levaria na viagem, se notasse que necessitavam, fá-lo-ia aceitar.
Pensei também
em mamãe, dificilmente iria compreender, não era conveniente falar antes,
poderia dizer a todos. Teria que contar só nas vésperas de nossa partida.
Na hora do jantar, ao sentarmos à mesa, mamãe queixou-se:
-Jorge, Laurinda quer voltar para a casa de seus pais. Por favor, convença-a a
ficar.
-É sério? Laurinda quer voltar a morar com seus pais? indagou Carlota.
-Sim, quero, é o melhor. Gosto daqui, de todos, porém a casa dos meus pais é
que é a minha, lá é o meu lugar, minha mãe está um pouco adoentada, necessita de
mim.
-Acho que está certa, Laurinda - disse-lhe. - Você é livre, porém, deve cuidar
de sua mãe. Aqui sempre será seu lar também, por isso volte quando quiser.
-Jorge, meu filho, não a impedirá? - falou indignada mamãe, que amava muito
Laurinda e que também deixava claro que tinha intenções de ver-nos casados.
-Não sejamos egoístas, mamãe. Laurinda deve retornar ao lar paterno e recomeçar
sua vida. Quando parte?
-Amanhã, ou depois.
-Mamãe, porque não acompanha Laurinda e passa lá uns dias? Poderiam ir na
quinta-feira cedinho, meus homens as acompanharão.
-Venha comigo d. Catarina, passe uns dias lá conosco, se- ; ria tão bom!
-Já que é assim que quer, acompanho-a. Prometa, querida, vir sempre
visitar-nos. Laurinda estava encabulada comigo, evitava olhar-me. Era tão jovem,
bonita, tinha
o direito de refazer sua vida, casar 136 VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO /
ANTÔNIO CARLOS novamente e longe, acabaria por esquecer-me. Em nossa casa. seria
sempre
a viúva do José e não era justo. Com mamãe acompanhando-a, a partida seria
suavizada e minha mãe se distrairia com o passeio.
Esperei ansioso a tarde de quarta e fui, antes do horário, encontrar com
Marcina. Esperei em vão, já era tarde quando regressei. Sofria, estava inquieto
sem saber
o que estava acontecendo com ela e o porquê de ela não vir. Após o jantar,
retirei-me para meu quarto, alegando estar com dor de cabeça.
Peguei o broche e sem muito pensar, escrevi um bilhete com poucos dizeres,
simples, rogando que viesse ao meu encontro no sábado, no mesmo horário e local.
Fui ao
quarto de Glorinha e bati, ela logo abriu a porta e fui indagando. Glorinha,
quando encontrará novamente com João?
-Amanhã à tarde, por que Jorge? Quero que me faça um favor. Dê isto ao João e
lhe peça para entregar a Marcina.
Dei-lhe o envelope fechado. Glorinha observou-o, depois olhou-me curiosa: Que é
isto Jorge? Que significa este envelope para ser entregue a Marcina? i
-vou lhe contar.
Contei tudo a ela e me senti bem melhor, desabafado, ansiava por confiar em
alguém, repartir esses problemas com alguém. Minha irmã abraçou-me.
-Jorge, eu e você... parece brincadeira do Cupido. Tranqüilize-se, ela está
bem, embora João me dissesse que ela anda muito triste e pensativa.
Página 65


Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

-Anseio por vê-la, Glorinha. Não sei porque não vem aos encontros. Estará
proibida de sair?
-Não seria de estranhar se estivesse presa em casa, porém, João nada me disse.
O pai nem presta atenção nelas, João diz sempre que o pai nem as nota. Vai ele
levar
um bom susto ao saber. Agora entendo porque nos compreendeu.
CATIVOS E LIBERTOS 137 Como proibir você, se não mando nem nos meus sentimentos?
Não consigo deixar de pensar nela.
-Mamãe pensa em casá-lo com Laurinda. Se não morrer ao saber do meu casamento,
morre com o seu.
-Está consolando-me muito! - queixei.
-Desculpe-me, Jorge. Já pensou no que fará para casar com ela?
-Não sei. Tenho pensado muito, não cheguei à solução ainda.
-Amanhã entrego seu bilhete ao João e lhe explico tudo. Ajudaremos vocês, ele
ama tanto Marcina, quer tanto que ela seja feliz!
No outro dia bem cedo, mamãe e Laurinda já estavam prontas para partir. Tomei a
bênção de minha mãe e despedi-me educadamente de Laurinda.
-Laurinda, este é o lar de José, aqui será sempre recebida como uma parenta,
nora e cunhada. Dê recomendações nossas aos seus familiares.
Partiram acompanhadas de sete dos meus melhores homens. A fazenda do sr. Amadeu,
não era longe, lá estariam antes do almoço.
Mamãe desde o desjejum fez recomendações sem parar, e a carruagem já andava e
ela ainda gritou:

-Cuide bem de tudo, Jorge, no domingo após a missa, voltarei com vocês.
À tarde, Glorinha saiu para encontrar-se com João. Ansioso esperei-a e logo que
voltou, veio me dizer:
-João assustou-se e ficou muito preocupado com o que pode acontecer a vocês.
Prometeu ajudá-los e fazer de tudo para traze-la ao encontro. Disse para
tranqüilizá-lo
que Marcina não está proibida de sair e está bem de saúde.
Aquietei um pouco. No sábado estava ansioso e esperei aflito pela tarde, bem
antes do horário saímos, eu, Tião e Samuel. Sentia que eles não concordavam e
que estavam
muito atentos, mas nada diziam.
138
VERA LÚCIA MARNZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
Não esperei muito, Marcina também veio antes da hora, ajudei-a a descer do
cavalo e num impulso abracei-a apertado:
-Marcina que saudade! Por que não veio ver-me? Estava aflito e preocupado. Que
aconteceu?
Marcina afastou-se, deu uns passos, e voltou correndo para meus braços.
-Oh, Jorge! Não queria mais vê-lo. Decidi acabar com nosso namoro e só consegui
aumentar meu amor. Amo-o!
Beijamo-nos. Sentamos na beira do lago.
-Marcina, que aconteceu com você? Por que não queria mais ver-me?
-Jorge, nosso amor é proibido. Não sou a esposa que sua família quer para você
e meu pai não irá aceitar nunca. Tenho um medo horrível dele, não hesitará em
matar-me.
Contudo, não me importo com o que faça comigo, preocupo-me com o que possa ele
fazer com você. Nossos encontros são perigosos e não vejo outra alternativa
senão
nos separarmos. Pelo seu bem!
-Só estarei bem com você. Separar-nos, nunca!
-Agora João sabe, Jorge, levei um susto quando contou-me seu amor por Glorinha
e que vão se casar e que você os ajuda. Achei estranho ele ficar na fazenda, mas
nem desconfiei que estava amando alguém escondido. Obrigado, Jorge, por
ajudá-los, não tê-los impedido, serão felizes, João a ama tanto!
-O amor quando é grande, Marcina, não deve ser impedido. Serão felizes como nós
seremos. Ia contar a você sobre eles no último encontro, mas vendo você
machucada,
esqueci.
-Jorge, acha mesmo que seremos felizes? Não seria melhor terminar tudo e
esquecer? Temo que alguém me siga e que meu pai o mate.
-Tião e Samuel são experientes: verão tudo de onde estão e se alguém a seguir,
avisarão. Não diga mais em terminar, aborreço-me. Não sei como, mas iremos nos
casar.
Página 66


Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

-Guarde novamente a parte do broche, Jorge. Tinha tomado a decisão de não vê-lo
mais. João aconselhou-me a conversar
CATIVOS E LIBERTOS
139
com você e explicar. Senti-me tão triste, tão infeliz estes dias mas, vendo-o
com tanta certeza, mudo de idéia, virei todas as quartas e, quando der, aos
sábados,
está bem?
-Sua decisão me faz feliz, Marcina. Mas o que se passa em sua casa? Que fez o
sr. Amâncio ao visitá-los por duas vezes? Fiquei tão preocupado!
-Visitou-nos, sim, na primeira vez conversou com meu pai, na segunda propôs
casar comigo se levasse dote. Meu pai quase o expulsou da fazenda. Acho que ele
não
voltará mais - disse rindo.
Era maravilhoso vê-la rir, rimos, fiquei mais tranqüilo. Logo Marcina ficou
séria novamente.
-Muitas coisas tristes aconteceram, Jorge, é difícil viver na Morro Vermelho
vendo tantas maldades de meu pai e de Lucas...
Marcina calou-se, percebi que ela queria perguntar-me alguma coisa e não tinha
coragem, incentivei:
-Que quer saber, Marcina?
-Jorge, foi você quem roubou as escravas?
-Não as roubei, libertei-as!
-É corajoso, confio em você.
Despedimo-nos trocando juras de amor, voltei feliz e tranquilo para casa.
No domingo, após a missa, sr. Amadeu veio trazer-me mamãe.

-Obrigado, Jorge, por cuidar de minha Laurinda.
-Somos amigos, sr. Amadeu, e espero sempre ser, como também Laurinda nossa
parenta. Ela é muito jovem para ficar para sempre viúva. E o senhor, como pai
sábio e
cuidadoso que é, irá deixá-la à vontade para que resolva sua vida, não é?
-Oh, claro! Sim!
O sr. Amadeu encarou-me, notei nele, que também fazia gosto que me casasse com
ela e deu-me suas explicações:
-Jorge, devo-lhe desculpas por falhar com você. Laurinda era sua prometida, e,
se casou com José, foi porque Coronel Castro, seu pai, e eu decidimos. Foi ele
quem
propôs e eu concordei.
140
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-Não tem do que se desculpar, entendo, isto é coisa do passado.
-Jorge, não pensa em casar? Sua mãe preocupa-se com você.
-Sr. Amadeu, diante de tantos problemas, confesso que não pensei. Há tempo para
isso.
-Certamente.
Mamãe voltou conosco, disse que Laurinda fora bem recebida e que ela estava
feliz.
Na quarta-feira, Marcina dissera-me que o pai não procurava mais os negros e, se
tocava no assunto, era somente para xingálos. Achavam, ele e Lucas, que desceram
o rio e que deveriam estar em algum quilombo no litoral. Fiquei mais tranqüilo.
Leôncio e família já não corriam mais perigo e eles estavam muito bem,
recuperavam-se
e se fortaleciam. Mas ainda devíamos ser cautelosos, pois a oferta de recompensa
continuava e era tentadora.
Contara também que o pai ia viajar para a vila vizinha, passar o final de
semana. Visitaria seu amigo Coronel Gervásio e que no sábado ela viria ao
encontro. Disse
que três empregados que tinham famílias, despediram-se e mudaram e que o pai não
arranjara outros.
No sábado ela veio. Falou-me da diferença que havia entre seus irmãos. Chico e
Lucas eram iguais ao pai, ela e João eram diferentes e sofriam muito no lar.
Acabei
falando dos meus, do meu carinho por todos e por José.

-Marcina, José era tão bom e puro! Não era deste mundo! Amava-o e respeitava-o.
Marcina se entristeceu:
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

-Diferente de Chico, só meu pai sentiu sua morte. Era meu irmão, mas não
consigo sentir sua morte. Foi um alívio para os moradores da Morro Vermelho ele
morrer.
-Marcina, sabe se seu pai tem culpa na morte do José? Sabe se foi ele o
mandante? Não me esconda, nada farei, não quero vingança. Nada que fizer, trará
José ao
corpo.
CATIVOS E LIBERTOS " 141
-Sinto profundamente, Jorge, foi ele. Escutei por acaso um final de conversa
entre ele e Quitério: combinavam o local e o preço. Não deu para saber o que
iriam
fazer, mas, depois do assassinato, entendi o que combinavam. Perdoe-me, Jorge!
Abracei-a. Senti o muito que nos separava e o tanto que era forte nosso amor
para estarmos juntos. Lembrei de mamãe, ela tinha razão, papai lhe dissera. Fora
Quitério.
Não queria pensar nisto, no fundo, preferia que não fosse o mandante, agora,
tinha a certeza e não queria nutrir raiva nem rancores, seria melhor esquecer
este fato.
Despedimo-nos já com saudade. O tempo que passava com Marcina parecia minutos e
ansiava por eles.
No domingo vimo-nos na missa, evitávamos nos olhar, não queríamos que ninguém
desconfiasse. Evitava também olhar para as mocinhas que, achando-me bom partido,
procuravam
acercarse e conversar comigo. Temendo aborrecer Marcina. fugia delas, ia logo
conversar com os senhores da vila. E estes, também, cismavam
em casar-me. Temos lindas moças na vila, não acha, Jorge? Pensa em casar,
Jorge? Todo homem deve se casar, constituir família."
Respondia educadamente que era cedo, que me cabia cuidar das irmãs, e mudava de
assunto.
Recusávamos ir a festas, devido ao nosso luto e eu não queria permanecer na casa
da vila, preferindo ficar e cuidar da fazenda. Não fazíamos visitas; se mamãe e
as meninas fossem, mandava meus homens acompanhá-las e não ia. Recebíamos muitas
visitas na fazenda, era gentil, educado e se havia alguma mocinha, tomava todo o
cuidado para não lhe dar esperanças e. às vezes, desculpando, a pretexto de dar
ordens, ia ver um trabalho, saía e só voltava quando as visitas tinham ido
embora.
Tendo a certeza de que as buscas pararam, achei que era tempo de ajudar Leôncio
e os seus a partirem. Naquele domingo, à tardinha, já escurecendo, fui vê-los.
Receberam-me
contentes e muito me agradeceram.
142
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-Leôncio - disse-lhe -, é tempo de deixarem este lugar. Graças a Deus, não
vieram procurá-los aqui. Ajudo vocês a partirem, farei cartas de alforria a
todos e,
se se disfarçarem, irão para longe; darei a vocês dinheiro para a viagem e
cavalos.
-Não queria ir embora, sinhô Jorge - disse Leôncio.
-Não devem ficar, não podem ficar a vida toda aqui, escondidos. Morro Vermelho
é muito perto, acabarão sendo descobertos.
-Sinhô Jorge - disse Tereza -, Pai Tomás disse-nos para que esperássemos mais
um pouco. Disse-nos que muitas coisas vão mudar. Se o sinhô permitir, deixar-nos
ficar
aqui um pouco mais, esperaremos uns dias, depois iremos.
-Por mim, teria vocês sempre aqui. Já tivemos ajuda do Alto libertando vocês e
por ninguém procurá-los aqui. Não seria abusar em ficar? Pode alguém vê-los...
Se
Pai Tomás disse para esperar, está bem, mas devem ser cuidadosos, o perigo não
passou!
Quando íamos voltando, disse a Tião, que me acompanhava:
-Não entendo Leôncio, por que não quer ir embora? n
-É por causa de Jurema.
-Quê?!
-A filha do Rosmão, meu irmão. Estão se gostando, ela vem vê-lo todas as
noites.
-E eu que pensei que estavam escondidos! Rosmão sabe? Está de acordo?
-Sabe, ele gosta muito de Leôncio.
-Bem, se é por isto, diga a eles que alforrio ela também, que se casem e
Página 68

Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

partam.

-Rosmão tinha a certeza de que o sinhô não faria conta de a filha ir embora.
Ele teme a vida que, lá fora, sua menina poderá ter. A vida do negro alforriado
não
é fácil, nem simples. Sabemos de muitos acontecimentos tristes com negros
alforriados. Quando será, sinhozinho, que o negro será gente nesta terra? Será
que só a
liberdade basta?
-Não sei, Tião, não sei responder-lhe. Que sejam vocês a decidirem, espero mais
umas duas semanas, depois Leôncio e os
CATIVOS E LIBERTOS
143
seus terão de ir. A Fazenda Assombrada assusta a muitos, Tião! Só não assusta os
apaixonados...
Rimos.
No outro dia, segunda-feira, tudo transcorreu calmo. Já tínhamos nos retirado
para dormir, eram mais de onze horas, quando me chamaram; um dos guardas batia
na porta
do meu quarto:

-Sinhô Jorge, o sinhozinho João, da Morro Vermelho está na porteira da fazenda.
Quer falar com o sinhô.
-João a esta hora? Está sozinho?
-Sim, sinhô, e diz ser urgente!
-Deixa-o entrar e traga-o para a sala de visitas.
-Sinhozinho Jorge, o sinhô entendeu? É o sinhô João, filho do Coronel
Francisco.
-Entendi, deixa-o entrar.
Troquei rápido de roupa. Ao sair do quarto, mamãe e minhas irmãs estavam no
corredor, assustadas: "
-Que aconteceu, Jorge?
-Temos visitas, vou à sala.
Fui e as três acompanharam-me. Na sala já estavam Manuel e a esposa, Bárbara,
Joana e Nércio. Quando ia explicar o que estava acontecendo, João entrou
acompanhado
de três dos meus homens. Fiz sinal para que saíssem. Ao ver João, Glorinha
correu ao seu encontro abraçando-o. Somente eu. Nércio e Bárbara não nos
assustamos, mamãe
até gaguejou:
-Que é isto?! Você não é o João, filho do Coronel Francisco? Por que está em
nossa casa? Jorge, expulse-o daqui. Glorinha que é isto?!
-Mamãe, amo João e vou casar-me com ele! Mamãe caiu desmaiada.
Peguei-a e levei-a ao quarto, enquanto pedia para Manuel chamar Maria e Carlota
com as mulheres, para que ficassem com ela. Voltei à sala e João explicou:

-Jorge, devo partir agora, antecipo-me. Nosso plano é o mesmo, mando notícias e
por favor dê as minhas à Marcina.
-Que aconteceu, João?
144
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-Assustei d. Catarina, como ela está? Sinto muito.
-Ela está bem.
-Não podia ir sem me despedir. Resolvi ir hoje porque meu pai resolveu
casar-me. Chegou hoje de viagem com tudo combinado: deveria ficar noivo de
Marta, a filha
do Coronel Gervásio, dentro de quinze dias e casar em três meses. Minha estadia
na casa de meu pai é impossível e nunca me casarei sem vontade. Achei melhor
ir-me
logo, volto à casa dos meus tios. Lá não irá procurarme, penso que não irá atrás
de mim. É inimigo de morte de meu tio, irmão de minha mãe.
-Está fugindo, João? Sai às escondidas?!
-Sim, Jorge, saí escondido, é melhor. Meu pai tentaria impedir-me, já que deu
sua palavra de que me casaria com a filha do seu amigo.
-Necessita de dinheiro? Por favor, seria um empréstimo.
-Obrigado, Jorge, tenho o suficiente.
-Deixo-os a sós, por instantes, para se despedirem. Voltei ao quarto de mamãe,
escutei-a chorando, bati e Carlota veio abrir; mamãe lá de dentro, disse:
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

-Não quero ver nem Jorge nem Glorinha.
-Mamãe!
-Você expulsou este atrevido de casa?
-Não, eu...
-Então saia, não entre no meu quarto!
-Mamãe, posso explicar, João não é como o pai, é bom...
-bom? Nunca! Admira-me você, um Castro, defendendo um filho de assassino. Aja
como homem, mande surrá-lo e expulse-o daqui!
-Não. Eu não posso fazer isto. Glorinha e ele se amam de verdade.
-E consente? Está louco! Demente! A França o enlouqueceu? Não quero vê-lo,
aqui. Minha filha é só Carlota, e que a Glória fique presa no quarto. É isto que
dá ter
permitido que andasse por aí e com uma garrucha na cintura!
CATIVOS E LIBERTOS
145
Ficara parado na porta, vendo que seria impossível um diálogo, voltei à sala.
Despedi-me de João e ele partiu. Glorinha ficou chorando.
-Jorge, será que mamãe entenderá?
-Vamos deixar passar uns dias para que se acalme. Procure ficar no quarto, ela
quer assim.
Mamãe não saiu do quarto no outro dia, Carlota nos disse que ela chorava muito e
queixava-se de dor de cabeça.
Na quarta pela manhã, fui vê-la. Bati de leve na porta, ao escutar ''Entre!",
entrei devagar. Ao ver-me, virou o rosto. Sentei na cama e, com muito carinho,
expliquei
o que acontecera. Vi o quanto estava sentida por esconder o fato dela, mas
estava mais calma, nada falava, só me escutava. Ajoelhei-me, beijei sua mão.
-Perdão, mamãe, desculpa-nos!
-Acho, Jorge, que não o preparamos para que fosse um chefe de família! Foi
tolerante, meu filho, agiu errado! Não tinha que compreender sua irmã. Perdôo
você.
-Mamãe, compreenda-nos.
-Não, e nem os abençôo! Volte atrás e impeça este casamento, agiu errado,
acabará chorando no caixão de sua irmã. Este João quer matá-la!
-Não. mamãe, eles se amam, se quisesse matá-la, já o teria feito.
-Amar um assassino do próprio irmão! Não perdôo sua irmã!
-Mamãe, por favor.
Deixou que eu a abraçasse e beijasse. Conhecendo minha mãe, tinha certeza de que
mudaria de opinião e não guardaria mágoas por muito tempo da filha caçula.
Capítulo
XI A REVOLTA Na quarta-feira, fui ao encontro de Marcina; ela já estava à minha
espera.
-Jorge, estou tão triste com a partida de João! A casa para mim ficou vazia,
sentimos muito, Tamira e eu, a falta dele.
-Que aconteceu, realmente, Marcina?
-Papai voltou da viagem muito satisfeito, com jeito de ter resolvido um
problema. Achou um modo de João ficar aqui, resolveu casá-lo, pois nunca quis
João com meus
tios a quem odeia. O Coronel Gervásio e ele são amigos há tempo. Resolveram
casar João com Marta, uma menina de quatorze anos! Chegou em casa, contente,
chamou João
e Lucas e contou a novidade:
"João arrumei um ótimo casamento para você, filho! Linda moça, prendada, bom
dote, ficará noivo daqui a quinze dias e casará dentro de três meses."
-João rebelou-se, disse que não queria casar, porque era cedo e nem conhecia a
moça. Meu pai garantiu que era linda e que poderiam até morar na vila. João
insistiu
que não se casaria, meu pai se exaltou, aí meu irmão calou-se. Papai achou que
vencera e que tudo estava acertado. À noite, João veio ao meu quarto e
despediu-se,
partiu, deixando uma carta a meu pai. Não dormi, Jorge, temendo por meu irmão.
Pela manhã, meu pai, após o desjejum, foi ao seu escritório e viu a carta. Deu
um
grito, corremos todos, Lucas indagou aflito, já com a garrucha em punho:
"Que houve meu pai?"
"O João, aquele palerma, foi embora, despediu-se por carta, escrevendo que não
se casa obrigado! Ingrato! Está deserdado.
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

CATIVOS E LIBERTOS
147
não receberá um tostão de herança. Não vou atrás dele. Lucas, que sofra o
infeliz, tenho vontade de matá-lo. Que faço agora, Lucas? Dei minha palavra ao
Gervásio!"

''Calma, meu pai. Não sei para quem João puxou, fazer isto com o senhor, tão bom
pai!"
"Puxou por sua mãe, quem mais este palerma haveria de parecer? Como ficou mais
tempo aqui, pensei em casá-lo para que não voltasse a morar com meu horrível
cunhado.
Casando-o com Marta, ficaria por aqui, e com o dote que receberia, poderia viver
na vila e abrir um comércio. Tudo faço por ele, e o ingrato foge como um negro.
Está deserdado! Não se aborreça tanto meu pai, acharemos uma saída. João é como
se não fosse meu filho, ele que vá para o Inferno, preocupo-me é com Gervásio,
amigo
de tanto tempo. Que direi a ele? Papai, o senhor disse que seria com João o
casamento? Podemos dar uma desculpa ao Coronel Gervásio e acertar o matrimônio
de Marta
comigo."
"Lucas! Que filho maravilhoso é você! Não pensei em arranjar um casamento para
você, confio que saberá se dar bem. Conte o que pensa."
"Podemos dizer ao Coronel Gervásio que João acha-se adoentado, começando a
apresentar problema como o de Tamira, e que o mandou para um tratamento em São
Paulo em
casa de parentes. Que o senhor o estima tanto que não quer ver Marta casada com
um doente e prefere marcar esta amizade com a união do filho perfeito, mais
inteligente,
que sou eu. Nada impede, pois sou solteiro, livre de compromisso, jovem. Tudo
faço pelo senhor, meu pai, caso-me e de boa-vontade, se o senhor assim o quiser.
Mas
será que o Coronel Gervásio concordará e ficará satisfeito?"
"Tem razão, você achou uma boa desculpa, ele não iria querer um doente para
genro, e com a troca só ganhará."
"Na sexta-feira, véspera do dia marcado para o noivado, iremos e levarei de
presente para Marta o anel de esmeraldas e
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
brilhantes que era de mamãe. Ela ficará deslumbrada! Agradarei a moça e ficará
ela apaixonada em três dias."

-Aí interferi, Jorge. O anel de esmeralda fora de minha mãe, presente do meu
avô a ela, deu-me antes de morrer, guardo-o com todo o carinho, é uma jóia
lindíssima.
"Mas o anel é meu, mamãe me deu, me é uma lembrança querida."
"Cale-se Marcina" - disse Lucas. "Para que uma solteirona como você quer uma
jóia como aquela? No dedo de minha esposa ficará na família!"
"Dê o anel ao Lucas, Marcina, ele tem razão" - disse meu pai. "E na festa do
noivado você irá também."
"E Tamira, com quem ficará?" - indaguei.
"Ficará bem com a ama. Já decidi, você vai e trate de ser agradável a todos."


-Meu pai acalmou-se e Lucas ficou feliz. Sente-se dono de tudo, com João
deserdado, Tamira doente, eu solteira, tudo irá para suas mãos. Ambicioso como
é, sente-se
feliz.
-Não se entristeça, Marcina - disse-lhe. - João não teve escolha, ia mesmo
partir, só antecipou.
-Devo viajar com eles, Jorge, vamos na quinta-feira que vem.
-Já sinto saudade, espero que ninguém lhe faça a corte.
-Não se preocupe, para todos sou uma solteirona, quase viúva, que não pensa em
casar e não deixarei ninguém cortejarme, só pensarei em você. Voltarei no
sábado,
não o verei na quarta que vem, pois devo preparar-me para a viagem.
No sábado encontramo-nos, ficaríamos mais de dez dias sem nos ver, despedimo-nos
saudosos.
Em nossa fazenda, tudo estava calmo, tranqüilo, mas, na Morro Vermelho, o
Coronel Francisco partiu com Lucas, Marcina e cinco jagunços. Na fazenda ficaram
dois jagunços,
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
os mais velhos, e quatro empregados para tomarem conta de muitos negros
revoltados e famintos. Tamira ficou com a ama. CATIVOS E LIBERTOS 149 Os
escravos vendo-se
guardados por tão poucos homens e sabendo que os empregados não estavam
satisfeitos na fazenda, pois faziam o serviço com pouco caso e descuidados,
planejaram naquela
mesma noite uma revolta para o outro dia. Todos concordaram, seria matar ou
morrer.
Na sexta-feira, após o almoço, um grupo de escravos foi levado ao cafezal,
separados em dois grupos, dois vigias para cada grupo, distanciando-se um do
outro alguns
metros para vigiarem a todos os negros.
Um negro chamou calmamente um dos vigias:

-Seu Antônio! Seu Antônio! Uma cobra, parece ser venenosa, olhe aqui!
-Onde? - o vigia desceu do cavalo com a arma na mão. Que procurem...
Foi acertado na cabeça por uma pedra e desmaiou, os dois negros amarraram-no,
pegaram as chaves dele, e foram se soltando. Um escravo pegou as armas dele e as
escondeu.
Um outro negro chamou o outro vigia ao mesmo local e com a mesma desculpa:
-Seu Benedito! Seu Benedito! Uma cobra ali, parece cascavel!
-Onde? Seu negro sujo, por que não a mata? Não vejo nada, onde você a viu?
Foi acertado com uma pedra na cabeça e dois negros livres das correntes pularam
sobre ele, desarmando-o e amarrando-o. O grupo estava livre; foram cautelosos
até
aos outros, atacando os dois vigias de surpresa, dominando-os.
Livres e com os quatro vigias dominados, vieram para a sede da fazenda.
Surpreenderam os dois vigias facilmente: um estava na casa-grande, outro no
curral.
Prenderam-nos numa cela, no porão da casa-grande. Um dos empregados, muito
ferido na cabeça, morreu e foi enterrado no cemitério dos negros na fazenda.
Somente duas
famílias dos empregados moravam na fazenda. Os negros deixaram-nos em suas casas
e vigiados.
150
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
Alegrando-se com a vitória, elegeram Tobias, um negro forte, de meia-idade, bom,
sempre pacificador, para líder. Ele falou: Meus irmãos, Deus é testemunha de que
aqui só temos sofrido. Conseguimos nos libertar mas não somos livres. Ir embora?
Não conseguiremos fugir todos, há velhos, crianças e nós somos desnutridos. Não
iríamos longe e nos trariam de volta. Devemos ficar e negociar com o coronel;
que os empregados fiquem presos e a menina doente, como nossa refém. Quando o
coronel
voltar, negociaremos com ele.

-E ingênuo, Tobias - falou Genésio, outro negro mais exaltado. - O coronel não
é homem de negociar com negros. Depois negociar o quê? Ele nos matará, isso sim!
-Irmãos - continuou Tobias -, todos concordaram com a revolta, que foi um
sucesso até agora. Não somos assassinos, se um deles morreu, foi acidente, por
isso devemos
respeitar os empregados presos e as famílias.
-Não respeitam as nossas! Vamos matar a todos!
-Não! Para os revoltosos a lei é uma, para os assassinos é outra. Matando, só
vamos piorar nossa situação. Se não dá para sairmos daqui todos, ficaremos e
tentaremos
negociar; ou viveremos melhor, ou morreremos todos e juntos.
Houve votação e a maioria apoiou Tobias. Entraram nas despensas, comeram e
beberam, repartiram as armas que encontraram. Nada fizeram com Tamira, que se
sentiu feliz
com tanto movimento. Um deles propôs ir à Sant'Ana e pedir ajuda. A maioria não
concordou e lá ficaram em festa à espera de Coronel Francisco, para exigir dele
melhor
condição de vida. Se não fossem ouvidos, estariam dispostos a matar e a morrer.
Alguns deles, com medo, fugiram à noite, desertando os companheiros.
Coronel Francisco, ignorando o que se passava em sua fazenda, estava contente,
acertara com seu amigo Coronel Gervásio o compromisso de Lucas e Marta. O
noivado
da noite de sábado foi deslumbrante, com danças e com pessoas importantes. Lucas
tudo fez para ser agradável à menina Marta, que estava muito
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

CATIVOS E LIBERTOS

assustada, mas mostrou-se encantada com a jóia que ganhara. Marcina participou
socialmente, sendo agradável a todos como recomendara o pai. Após o almoço de
domingo,

o Coronel Francisco resolveu com o Coronel Gervásio todos os detalhes do
casamento e anunciou que partiria no outro dia cedo.
Na Morro Vermelho, os negros, desde domingo à noite, passaram a esperar o
coronel. Um dos jagunços presos conseguiu fugir, e os outros, com medo, ficaram
quietos
esperando pelos acontecimentos. O que fugiu, foi para a ponte, na estrada, e
ficou escondido à espera do patrão.
Já era tardinha na segunda-feira, quando a carruagem do Coronel Francisco passou
por ali. O jagunço saiu do esconderijo e parou-os na estrada.
-Mane? Que houve com você? - indagou curioso um dos homens que acompanhavam o
coronel.
O coronel e Lucas abriram a porta para ver o que ocorria e Mane explicou aflito:
-Coronel, não sabe a desgraça que aconteceu na Morro Vermelho durante sua
ausência! Os negros revoltaram-se e nos pegaram de surpresa, prendendo-nos. Eu
fugi e
vim avisar o sinhô.
O coronel Francisco exaltou-se de ódio:
-Não posso confiar em ninguém? Como deixaram alguns escravos dominá-los assim?
Bando de imprestáveis, Mane, você é um palerma!
Num impulso rápido, tirou sua arma da cintura e atirou em Mane, que, abobalhado,
caiu.
"Sinhô Coronel..." - todos ficaram espantados olhando cena como se não
acreditassem no que viam.
-Por que me olham? Para todos, digam que foram os negros que o mataram.
Seguiremos em frente! Vamos para a fazenda, entraremos lá, como se
desconhecêssemos a revolta,
e o mataremos, vamos matar os líderes e acabar com a festa deles.
-Papai - ousou falar Marcina. e Tamira? Podem matá-la
-Se o fizerem farão um favor a mim. E será mais um mártire e eles mais
criminosos, dignos de castigos. 152
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-Meu pai - aventurou Lucas -, não é melhor voltar e pedir ajuda ao delegado?
-Está com medo, filho? Só palermas têm medo de negro, que nem gente é. Vamos
surpreendê-los e matá-los e os que ficarem vivos, terão seus castigos. vou
arrancar
a orelha direita de todos para não se esquecerem nunca mais de quem manda na
Morro Vermelho. Verifiquem suas armas - disse o coronel aos seus homens -,
entraremos
no pátio e, logo que eu der a ordem, atirem para matar. Com seis a sete mortos,
os outros se renderão. Vamos, toquemos para a frente!
Esconderam o corpo de Mane no mato à margem da estrada e puseram-se a caminho. O
Coronel Francisco estava excitado, não via a hora de matar e castigar os negros
revoltosos. Lucas e Marcina se olharam, pois eram semelhantes um ao outro
naquele momento, ambos temeram o pai, não ousaram falar mais nada. Marcina
pôs-se a orar,
temia o que poderia acontecer à irmãzinha doente e com os negros revoltosos.
Eram sete homens bem armados e que sabiam atirar, com ordens para matar, contra
os negros
indefesos, porém decididos.
Entraram na fazenda, Marcina não conseguia nem se mexer, estava aflita e
angustiada. Pararam no pátio, Tobias saindo da varanda da casa-grande, alguns
metros da
carruagem, falou alto:
-Coronel Francisco, nós nos rebelamos. Aqui estamos soltos e queremos negociar
com o sinhô. Não fizemos nada a sua filha Tamira, nem queremos fazer mal ao
sinhô.
-Que querem, negros sujos? - disse o coronel dentro da carruagem com a arma na
mão, com sorriso cínico.
-Melhores condições de vida para nós. Que se acabem os castigos, que
trabalhemos menos e que sejamos melhor alimentados.
-Só isto? Nunca!
O rosto do Coronel Francisco transformou-se com o ódio que sentia. Abriu a porta
na hora em que gritou "Nunca!" deu um pulo e atirou à queima-roupa no peito de
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

Tobias,
gritando como um louco:
CATIVOS E LIBERTOS
153


-Matem! Matem estes sujos!
Os negros não estavam tão indefesos como pensavam. Apoderaram-se das armas,
embora não sabendo atirar. Desconfiando não serem aceitas suas propostas, não
temendo
matar nem morrer, se organizaram com cuidado. Esconderam-se pelo pátio,
cercando-o. Ao verem Tobias cair. atacaram todos juntos, armados além das
garruchas roubadas,
com facas, pedras e paus.
Marcina, horrorizada, olhava tudo da porta aberta da carruagem. Viu os
empregados confusos e atirando sem parar. Pessoas caindo feridas. Um negro
atingiu o pai pelas
costas com uma faca e outro atingiu Lucas na cabeça com um pedra enorme. A luta
durou minutos, quando pararam os tiros. Marcina, como impulsionada por uma
poderosa
força, saiu da carruagem e gritou:
-Parem! Parem, pelo amor de Deus!
Os escravos venceram. Muitos corpos estavam caídos pelo pátio. Marcina olhou
penalizada, apavorada, sua vontade era correr, fugir dali, estar longe daquela
cena
horrível. Com seu grito, atenderam-na e pararam, como necessitados de comando.
Resolveu Marcina vencer o medo e enfrentar a situação e continuou a gritar:
-Chega de mortes! Chega! Levem os feridos para dentro da casa e os mortos
deixem na varanda. Os que sabem lidar com ferimentos que venham ajudar a cuidar
deles!
Tião! Tião! - chamou pelos escravos da casa. - Corra a cavalo até Sant'Ana,
chame o Coronel Castro e lhe peça ajuda. Dê este broche a ele. conte o que houve
aqui
e peça para ele vir ajudar-me. Atílio, vá à vila e traga o doutor, diga que
necessitamos dele, mas não fale o que houve aqui!
Obedeceram-na, começaram a carregar os feridos para a casa, os mortos para a
varanda, silenciosos, também eles estavam assustados. Tiraram as armas dos
brancos,
acercaram-se da casagrande, esperaram, nem bem sabiam o que esperavam, confiaram
na sinhá Marcina, que sempre tão boa era para eles, resolveram fazer o que ela
ordenava.
154
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
Anoitecia. Eu estava na varanda olhando encantado o pôrdo-sol, o céu tingia-se
de vermelho. Tudo estava calmo, ouvia os pássaros aconchegando-se nas árvores.
Fui
despertado por um galope de cavalo. Levantei, meus homens alertaram-me e
puseram-se em guarda com as armas nas mãos. Foi Nércio quem gritou reconhecendo
seu amigo
da Morro Vermelho:
-Sinhozinho Jorge, é Tião, escravo da Morro Vermelho, parece aflito. Tião!
Tião! - gritou. - Que aconteceu?
O negro não conseguia nem falar, acercamo-nos e olhava assustado: Sinhozinho...
Deu-me a parte do broche de Marcina. Fiquei também aflito.
-Fale, que houve, homem de Deus! Fale!
-Uma desgraça na Morro Vermelho.
- Que houve com Marcina? - indaguei preocupado, esquecendo o tratamento usado. Que
houve?
-Sinhazinha Marcina está bem. Ela é quem pede socorro. Deu-me isto para
entregar ao sinhô e roga para que vá lá sem demora. Houve uma revolta, os negros
aproveitaram
a ausência do coronel e do sinhô Lucas para se rebelar e conseguiram se soltar,
prenderam os brancos, os empregados e esperaram o Coronel Francisco voltar.
Houve
luta, morreram muitos. O coronel está muito ferido e o sinhô Lucas está morto.
Pelo amor de Deus, sinhô Castro, vá lá ajudar minha menina Marcina! Se houver
mais
lutas, todos morrerão!
Com o alvoroço da chegada do escravo do Coronel Francisco, era grande o número
de empregados e escravos que, curiosos, rodeavam-nos. Mamãe e minhas irmãs
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

também

vieram ver o que se passava. Fiquei indeciso por instantes e mamãe interferiu:

-Não vá, Jorge! Pode ser uma armadilha e, se não for, que nos interessa o que
se passa lá? Que se matem!
-Nércio - disse -, é este o seu amigo? Pode confiar nele?
-Tião, por Deus, é verdade o que nos conta? - indagou Nércio ao negro da
fazenda vizinha. - Sabe o tanto que sinhozinho Jorge é bom. Não é armadilha, uma
emboscada?
CATIVOS E LIBERTOS
155
-Falo a verdade, juro por minha mãe!
-É verdade, sinhozinho Jorge - disse-me Nércio -, conheço Tião, ele não ia
mentir.
Olhei o broche que apertava na mão. Marcina não ia trairme, necessitava
realmente de mim. Dei a ordem.
-Doze homens vêm comigo, os outros fiquem de guarda e estejam atentos. Peça a
Maria que vá logo atrás com outras mulheres para ajudar a cuidar dos feridos.
Meu
cavalo, rápido!
Mamãe ficou furiosa, ia dizer alguma coisa, não esperei, saí rápido, entrei em
casa, armei-me melhor. Ao sair, todos estavam prontos e partimos em disparada.
Todos
pela estrada, passando pela ponte, a galope, chegamos em vinte minutos. Da
entrada, de uma inclinação mais alta, avistava-se a sede. Entendi que Tião, o
escravo
da Morro Vermelho, não mentira. Os escravos estavam unidos no pátio,
aproximamo-nos devagar, vi que estavam armados. A observação era mútua e gritei:
-Sou Coronel Castro, Jorge, a pedido da sinhá Marcina venho ajudar! Venho em
paz!
Silêncio. Após quase um minuto, um deles respondeu:
-Se vem em paz, pode se aproximar. Aproximamo-nos, o pátio estava sujo de
sangue. Os negros
observaram-nos os movimentos. Desci do cavalo, metade dos meus homens desceu,
outros ficaram montados. Segui para a casagrande. A varanda que contornava a
frente
da casa, cercada por uma mureta, estava clareada por lamparinas. Cheguei à
varanda, após subir seis degraus e passar pelo portão aberto.
Olhei a varanda cercada de vasos e flores, ensangüentada, com os mortos deitados
no chão em fila. Vi Lucas, estava com a cabeça aberta na lateral esquerda, todo
ensangüentado.
Entrei, na sala estavam os feridos, por todo lado. gemendo dolorosamente.
Procurei por Marcina e vi-a ajoelhada cuidando de um homem. Ao ver-me, correu
para mim:
-Jorge, graças a Deus! Que horror! Que desgraça! Ajude-me! Não sei o que faço!
Lucas morreu e acho que meu pai está morrendo!
156
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-Acalme-se. Vim para ajudá-la. Vamos cuidar primeiramente dos feridos.
Falei a umas escravas que pareciam desorientadas, sem saber o que fazer: Vocês,
abram as janelas, fervam água, peguem lençóis.
Rápidas, foram cumprir minhas ordens, Marcina voltou a cuidar dos feridos.
Retornei à varanda e examinei todos, certificando-me se estavam realmente
mortos. Senti
um arrepio diante da cena macabra que via, e orei. Todos estavam mortos: quatro
homens do coronel, Lucas, oito negros, entre eles dois garotos, mocinhos de seus
quinze anos!
Meus homens ajudavam e Maria com seis mulheres chegaram e foram cuidar dos
feridos. Os negros do pátio, silenciosos, observavam-nos, parecia que nem se
mexiam.
Chamei Tião, Samuel e Rosmão:
-Voltem a Sant'Ana e rápido. Você, Rosmão, vá tranqüilizar sinhá Catarina, e dê
notícia dos acontecimentos a todos na fazenda. Tião, Samuel, preciso de um favor
de vocês, devemos buscar João em São Paulo, irão? Querem ir? - com a afirmativa
deles, continuei: - Peça a Glorinha o endereço de João, como também dinheiro
para
a viagem. Arrumem-se rápido e partam, contem a ele de preferência. Esperem, ele
pode não acreditar. Marcina chamei-a, ela veio rápida até nós -, vou mandar
buscar
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

João. Ele sabe que você é alfabetizada? Sabe? Então escreva rápido um bilhete a
ele pedindo que venha, que volte rápido!
Marcina saiu da sala e voltou em instantes com um envelope e entregou-o a
Samuel, este pegou e partiram a galope. Da varanda falei aos negros:


-Acalmem-se, não se rebelem mais. Vêem quantos mortos? Violência não resolve
nada. Aqui vim como amigo de João e de sinhá Marcina e serão eles a tomar conta
de
tudo, de agora para a frente. Não pensem mais em matar, queiram viver. Chorem
pelos seus mortos e permitam que as famílias dos empregados chorem por eles.
Orem pelos
feridos e entreguem as armas.
CATIVOS E LIBERTOS 157 Um deles falou:
-Coronel Castro, sabemos que é bom e justo, respeitamos o sinhô, mas não
entregaremos as armas. Até que seja tudo definido e esclarecida nossa situação,
não entregaremos
as armas. Se um de nós for castigado pela revolta, que sejam todos. É matar ou
morrer!
-Mandei buscar João e espero que logo esteja aqui. Em Morro Vermelho já houve
tristezas demais, vamos evitar lutas. Vim aqui em paz, se quisesse dominá-los já
o
teria feito. Não sou criminoso, nunca matei e não estou disposto a matar; se vim
armado é porque ando assim e temi que fosse emboscada, vocês sabem dos fatos
ocorridos
por estas terras e como sou. Dou importância a vida humana, peço-lhes calma,
respeitem-nos e serão respeitados. Fiquem com as armas, mas não as usem!
Um deles falou:
-Sabemos pelo seus próprios escravos, Coronel Castro, que podemos confiar no
sinhô. Pedimos que nos proteja, pois se vier o delegado haverá luta.
-Não chamaremos o delegado aqui. Não permitirei que sejam massacrados; para
mim, bastam os mortos e feridos. Confiem em mim, eu os ajudarei, meus homens
aqui ficarão
e tudo farei para evitar uma outra luta!
Cochicharam entre si e o grupo pareceu relaxar mais, e algumas escravas saíram e
correram para a varanda e logo ouvi o choro alto. Pedi a meus escravos, que me
acompanharam,
para acalmá-las e aconselhá-los a esperar pacificamente.
Voltei à sala. Maria socorria com precisão os feridos, a sala estava cheia,
Coronel Francisco estava ferido, no seu quarto com um empregado. Contei
dezesseis negros
feridos. O médico chegou, e relatei a ele rapidamente o que se passara; elogiou
o trabalho de Maria que fizera quase tudo, só deixando as balas para serem
extraídas.
Um negro com uma bala no estômago estava muito mal e o médico nem a extraiu,
chamou-me. Uma das negras foi buscar-me
158
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
e atendi logo. Ao ver-me, seu rosto se suavizou e falou com dificuldades, pois
tinha hemorragia pela boca:
-Sinhozinho Jorge, sei o tanto que é bom. estou morrendo, deixo mulher e cinco
filhos. Pelo amor de Deus, sinhozinho, leve-os com o sinhô, trate deles, não os
deixe
aqui.
Comovi-me, segurei sua mão:
-Prometo, cuido dos seus. Lucas morreu e o Coronel Francisco está morrendo, e
aqui será como Sant'Ana, com João e sinhá Marcina. Fique tranqüilo, prometo
olhar
por eles e protegê-los. Não quer vê-los? Chame-os.
-Não, sinhô, não quero que me vejam morrer.
-Não pense em morrer, é tão forte e moço, o médico chegou e cuidará de você.
-Não carece, meu pai aqui está, ele veio buscar-me. Parou de falar, seu rosto
ficou tranqüilo, sorriu, o sangue
saía pela boca em grande quantidade, mas ele não deixou de sorrir, fechou os
olhos e expirou. Cruzei suas mãos.
-Os justos não temem a morte!
Olhei, fora Maria quem o dissera, concordei com a cabeça e pedi para Manuel, que
ali ajudava, para o levarmos até a varanda. Mais um morto.
A sala estava transformada, toda suja de sangue, ouviam-se gemidos e choros. Foi
aí que conheci Tamira.
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
Tamira era realmente feia, torta, andava jogando o corpo, seus braços eram
moles, olhos miúdos e boca grande, lábios grossos, ria e babava. Parecia
divertir-se com

o que via.
-Tamira, que faz ela aqui? - perguntou Marcina a uma negra, que tratou de
explicar:
-Não quer ficar no quarto, sinhazinha, conseguiu escapar e vir para cá, não
consigo controlá-la.
-Deixa Tamira ficar, deixa - falou Tamira com dificuldade, com uma voz rouca,
estranha, olhando para a irmã.
CATIVOS E LIBERTOS
159
-Promete não pôr a mão em nada? Eles estão com dói-dói, estamos passando
remédios neles. Promete ficar quietinha? - Tamira balançava a cabeça,
concordando. - Então,
fique ali encostada. Ambrosina, vigie-a.
Acabaram os curativos, todos tinham sido medicados, o médico Q Maria preparavam
remédios para amenizar as dores dos feridos. Marcina relaxou-se, suspirou
aliviada,
e chamou-me até o escritório do Coronel Francisco, que era escuro, com móveis
pesados; Marcina sentou-se, segurou minha mão, apertando-a:
-Jorge, Jorge, fique comigo e ajude-me. Que devo fazer? Não penso em chamar o
delegado aqui, nem quero que venha. Nada de represálias e de mais mortes.
-Você está certa. Os negros agiram errado, responderam com violência porque a
violência fora imposta a eles. E essa violência deve ser contida, parar por
aqui.
Ajudo você, com você ficarei. João virá logo, assumirá a administração e tudo
ficará bem.
-Obrigado, Jorge. Agora vou ver meu pai.
O Coronel Francisco, atingido nas costas por uma facada, não voltara do desmaio;
o médico afirmou ser grave seu ferimento.
Com tudo mais calmo, já de madrugada, fui para casa, acompanhado de um só homem,
deixando os outros a vigiarem os negros revoltados.
Entrei silenciosamente, mamãe estava na sala, nem se deitara, estava com o rosto
inchado de chorar. Compreendi que estava magoada comigo, fingi não perceber,
sentei
ao seu lado e narrei tudo o que vi na Morro Vermelho, as cenas macabras, o
sofrimento dos familiares dos que morreram, os gemidos dos feridos e a ansiedade
de sinhazinha
Marcina, que não sabia o que fazer. Lembrou-se de mim, o vizinho mais próximo e
uma pessoa respeitada pelos escravos, para ajudá-la e por fim à revolta e evitar
mais mortes.
Mamãe escutava-me, curiosa, ora arregalava os olhos, ora enxugava as lágrimas:
-Que horror, meu filho! Que horror!
160
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS Entendeu mamãe, por que fui?
Preciso voltar, se houver represálias, se o delegado que gosta tanto de matar
negros,
lá for, outros tantos morrerão. Os escravos revoltosos estão decididos, é matar
ou morrer! Aqui vim para tranqüilizá-la, se a senhora quiser, não voltarei mais
lá,
desculpe-me se a desobedeci e fui.
Mamãe acariciou-me:
-Com Lucas morto e o coronel à morte, não sinto mais perigo. Volte, filho,
evite mortes, sinto aqui dentro o choro das mães e o temor delas a pensar que
mais pessoas
morrerão. Elas confiam em você! Pode ir.
-Obrigado, mamãe. Para lá vou agora e só devo voltar à noite, muitas
providências terão que ser tomadas e pessoas enterradas.
Sabia fazer minha mãe compreender-me, sendo dócil e gentil. Beijou-me, deixei-a
tranqüila e prometeu-me ir dormir. Voltei para junto de minha Marcina. Capítulo
XII
-
FAZENDA SANTA LUZIA
Na Morro Vermelho, seus habitantes estavam mais calmos, o grupo no meio do pátio
desfizera-se. Alguns negros armados faziam guarda pela sede, e soltaram os
empregados
presos. No porão da casa-grande, num salão, foram colocados os mortos, e seus
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
parentes choravam junto deles. Só um dos empregados mortos tinha família. Os
feridos
na sala estavam quietos, o médico e Maria cuidavam deles.
Amanhecia, quando retornei. Marcina logo que me viu, veio até a mim:

-Jorge, lembrei agora de que meu pai matou um empregado que fugiu da prisão do
porão e foi avisá-lo da rebelião. Está na estrada, na curva da ponte, escondido
entre
a vegetação. Jorge, parece que sonho, que tenho um pesadelo. Que horror! Nunca
esquecerei esta noite!
- Que me diz, Marcina?! Seu pai matou um empregado por que foi avisá-lo? indaguei
assombrado.
-Detestava fracos, e achou que foram covardes deixando dominar, por isso matou
o homem friamente, sem ninguém esperar, não pude evitar.
-vou mandar buscá-lo.
Dei ordem a dois de meus homens para buscarem o empregado morto injustamente
pelo Coronel Francisco.
-Marcina, temos que tomar decisões, os enterros têm que ser feitos.
-Queria enterrar Lucas na vila, junto de mamãe e Chico.
-Aqui estou para ajudá-la, mas é você quem deve tomar as decisões.
162
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-Eu, Jorge? Tenho medo!
-Tem que ser você, sim, Marcina. Não deve ter medo, aqui estou ao seu lado. É
inteligente, justa, cabe a você cuidar de tudo!
-Sou mulher e...
-É uma pessoa, ninguém é inferior por ser mulher, não se desvalorize. Se você
se impuser, eles obedecerão! vou chamar os líderes dos escravos.
Um grupo de doze negros veio até nós, todos armados, os que não tinha armas de
fogo, estavam armados com facas, paus, pedras, até com ferramentas de trabalho.
Magros,
sujos, mal vestidos. Sabendo que estavam dispostos a tudo, dava um certo medo
encará-los. Meus homens rodearam-nos, disse-lhes, tranqüilo:
-D. Marcina quer falar com vocês.
-Vocês me conhecem, sabem como sou. Desaprovava o procedimento de meu pai e do
meu irmão Lucas. Quero paz no meu lar, nestas terras, e se assim não fosse, não
estaria
a cuidar de todos os feridos. Muito já sofremos, muitos morreram. Culpa não
existe, não quero culpados. Quero enterrar os mortos. Quero enterrar meu irmão
Lucas
na vila perto de minha mãe.
Marcina fez uma pausa, os negros entreolharam-se, ela continuou:
-Quero levá-los logo, daqui a umas horas.
-A sinhá irá à vila? - perguntou um deles.
-Serei a única parente a se despedir do meu irmão. Irei à vila.
-E quem nos garante que não irá a sinhá pedir ajuda ao delegado? E que ele e
outros homens não virão aqui matar-nos?
-Eu garanto! - disse Marcina decidida. - Se quisesse pedir ajuda, já o teria
feito.
-Com a sinhá aqui não atacarão temendo por sua vida, mas, sem a sinhá, fica
diferente!
Marcina olhou-me e interferi:
-Qualquer um da minha fazenda podia ter ido buscar socorro e não foi. Eu mesmo
com meus homens poderíamos tê-los dominado e não o fizemos. O que d. Marcina
propõe
é justo;
CATIVOS E LIBERTOS
163
depois, aqui ficarão Tamira e Coronel Francisco. Vocês devem enterrar seus
mortos logo à tarde. Os brancos mortos deverão ser enterrados na vila. Se a
intenção de
d. Marcina não fosse boa, não teria cuidado dos feridos. Já lhes pediu paz, e
garanto que ninguém vem aqui em represália. vou na frente, aviso no cemitério e
o padre;
posso até conversar com o delegado, explicar a situação e dizer-lhe que não
venha aqui.
Cochicharam e um deles falou:
-Sinhô Jorge, confiamos no sinhô e na sinhá Marcina. Queremos que, junto do
sinhô, vá um de nós. Na volta, lá do alto, ele acenará um lenço branco. Se não o
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

fizer,
aguardaremos com luta.


-Concordo. Dois dos meus homens irão comigo, cinco com d. Marcina e outros
ficarão aqui. Se confiam em mim, confio em vocês, devem aguardar-nos com calma e
nada
devem fazer para que recomecem outra luta.
-Certo. Porém, se nos trair, todos os brancos daqui morrerão e lutaremos
enquanto estiver um de nós em pé!
Olhei-os, abaixaram as cabeças, minha sinceridade inspirava-lhes confiança.
Logo após tomar um café em companhia de Marcina, dei ordens para o que
necessitava ser feito na Morro Vermelho. O trato dos animais, o preparo das
covas para enterrar
os escravos mortos. Chamei Nércio e Manuel e pedi que ficassem ali, enquanto
íamos à vila para o enterro. Avisei os negros de que ia partir e um deles se
apresentou
para ir comigo.
Marcina já arrumava os mortos na carroça, para serem levados à vila. Trocou a
roupa de Lucas, enfaixou sua cabeça. Estava triste, mas não chorava, e vendo que
a
observava, chamou-me:
-Jorge, venha cá! Assim parece ele melhor, não é? Será que mamãe pode ver-nos?
Deve estar muito triste! Se os mortos ficam juntos, tudo bem, mas, se somos
separados
conforme nossa obra, nem Lucas nem Chico devem estar com ela. Tenho muito dó
dele, Jorge. Lucas foi mau, nada tem de bom para acompanhar sua alma.
164
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
Estou triste por ele e por todos; sinto igualmente a morte de todos. Era meu
irmão e parecia-me tão distante!
-Marcina, você é delicada, bondosa, sabe dar valor a todos. E tudo o que
aconteceu, é tão lastimável!
-Não me acha insensível por não sentir a morte de meu irmão, como deveria?
-Não gostaria de vê-la fingir, nem sempre estimamos os parentes da carne, a uns
não conseguimos amar, parecem-nos tão distantes, entendo-a, nada tinha a ver com
Chico e Lucas. Você lamenta mais seu proceder, que sua morte.
-Você compreende-me.
-Já vou, e por favor, Marcina, tenha cuidado! Partimos, o escravo que nos
acompanhava chamava-se José,
lembrei do meu irmão, senti muita saudade e pensei: "Que faria ele se estivesse
no meu lugar?" Mais que eu, sem dúvida, era bondoso demais. Mas José, meu
acompanhante,
ia calado, observando tudo, curioso, ora parecia-me medroso, não sabendo nem
guiar seu cavalo.
Chegamos à vila, fui ao cemitério, falei ao coveiro:
-Sr. Coveiro, Lucas da Morro Vermelho faleceu. O Coronel Francisco pediu-me que
os avisasse e que preparassem o túmulo da família para recebê-lo, como também
cinco
covas para os empregados que morreram.
-Que houve, uma epidemia? - indagou-me o coveiro. Estava curioso, os negros que
no cemitério trabalhavam,
cercavam-nos e ficaram olhando-nos, expliquei, simplificando, mas ficaram
incrédulos.
-Se pensam que tenho algo a ver com estas mortes, enganam-se, aqui está José,
um escravo da Morro Vermelho para confirmar.
-É verdade, é verdade - disse José.
-Se quiser uma boa recompensa, façam logo o serviço. D. Marcina logo estará
aqui com os mortos. Nada de ir comentar o assunto pela vila. Tratem de fazer
logo o
trabalho.
CATIVOS E LIBERTOS
165
-Só uma pergunta Coronel Castro, só uma - disse o coveiro. - Todos sabem que
são inimigos, por que o Coronel Francisco, pediu este favor ao senhor?
-Porque fizemos amizade, já não somos inimigos e fui ajudá-lo como vizinho.
Saímos, deixando-o sem que compreendesse bem os fatos.
Fui à igreja procurar o padre, fiz com que José me acompanhasse. O vigário ao
ver o negro sujo em sua igreja, não gostou, nada disse, só torceu o nariz
fazendo expressão
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

de nojo. Fui direto ao assunto, contando por alto, desde o começo. O padre mudou
de cor, apavorou-se:

-Que horror! Como sofrem os senhores de escravos! Negros assassinos!
-Assassinos são todos os que matam, brancos ou negros. E pelo que aconteceu lá
é difícil dizer quem são os assassinos. Morreram muitos e d. Marcina não quer
mais
mortes. E o senhor esteja preparado para receber seus fiéis mortos.
Não gostou da minha observação e encarou-me:
-Admira-me o senhor estar aqui a tomar providências...
-É que o Coronel Francisco e eu nos tornamos amigos. Por que admira? Não é isto
o que prega? Amizade, perdão? Somos dois fiéis do seu rebanho, e resolvemos
atendê-lo!
Ensaiou um sorriso e não esperei mais perguntas, que certamente viriam, saí,
sempre acompanhado de José. Fui ver o delegado.
Este tratou-me com deferências, preferindo esquecer que não foi bem recebido em
minha casa. Sem delongas, contei tudo.
O senhor Tomás, o delegado, ficou espantado:
-Coronel Castro, o que me conta é espantoso! Tem a certeza de que foram os
negros? Quero dizer, se não foi um inimigo do Coronel Francisco a atacá-lo?
Recebi a indireta calmamente, sabia que o Coronel Francisco odiava-me e da nossa
inimizade.
-Senhor delegado, não sou homem de fugir das responsabilidades dos meus atos.
Nada tenho a ver com esta revolta. O Coronel
166
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
Francisco foi meu inimigo, não eu dele. Tenho amizade com João e d. Marcina e
foi ela a chamar-me para ajudar. Depois, o Coronel Francisco e eu não temos mais
rixas
como se pensa. Meu dever de vizinho é ajudar. Garanto ao senhor delegado que na
Morro Vermelho tudo está em ordem, e com a revolta dominada, eles pedem para que
não interfira.
-Como não interferir? Os negros se rebelaram, mataram e fica por isto mesmo?
-Mataram, mas morreram em maior quantidade. Não ficou por isto mesmo. Conhece
bem o Coronel Francisco para não duvidar disto.
-Se o Coronel Francisco quiser, posso ir com meus homens ajudar.
-Como? Matar a todos?
-Claro que não, só os negros!
-Os culpados estão mortos delegado, se vim avisá-lo foi porque d. Marcina vem
com os mortos para serem enterrados.
-O Coronel Francisco não tem muitos homens atualmente.
-Os meus estão lá, ajudei-o, por isto, fizemos as pazes.
-E este negro mal vestido? Não é da Morro Vermelho?
-Ganhei-o do Coronel Francisco em prova de amizade. Trouxe-o para ver a vila.
-O Coronel Francisco há de entender, quero os criminosos, sou a lei.
-Que lei que nada. Os negros estão mortos. E quem mais matou foi o Coronel
Francisco, vai prendê-lo? Não, não é? Não se prende coronel, só negros
indefesos, que
por injustiça são escravos. E o aviso do coronel e meu, não deve interferir.
Falei exaltado.
-Se d. Marcina vem aí, vou escutá-la, afinal Morro Vermelho nada tem a ver com
Sant'Ana. Por que o Coronel Francisco não vem ao enterro do Lucas? Amava tanto o
filho.
-Por isto mesmo, está abalado com sua morte e, no momento, castiga ainda uns
negros.
CATIVOS E LIBERTOS
167
-Parecia-me que o senhor não gostava de castigar os escravos.
-Não gosto, mas se rebelaram. Dos meus escravos cuido eu, os dos outros, nada
tenho a ver com isto!
Sai, cortando a conversa, mentira em relação ao Coronel Francisco e eu, e não os
convenci; inimizade não se desfaz assim tão depressa. E, se soubessem que o
coronel
estava entre a vida e a morte, invadiriam a fazenda, tentariam evitar. Tinha
esperança de que Marcina conseguiria convencê-los.
Com José acompanhando-me, cada vez mais assustado, fomos à saída da vila esperar
Marcina e guardar também para que ninguém fosse a Morro Vermelho. Havia ali um
pequeno
estabelecimento, que vendia miudezas, e lá ficamos.
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

Na vila, os comentários corriam, e como eram notícias ruins, voavam, como dizia,
minha mãe. Logo, um grupo de pessoas curiosas aguardava também na frente de onde
estávamos, e foi aumentando, mas não ousaram interrogar-me. Quando Marcina
chegou, vendo as pessoas da vila reunidas, parou, e as indagações vieram de uma
só vez.
Marcina ficou em pé na charrete e com calma disse a todos:


-Os negros da minha fazenda Sc. _oelaram. Não se preocupem, tudo está calmo no
momento, foram dominados. Aproveitaram-se da viagem que fizemos no final de
semana,
e se soltaram. Quando voltamos, tentaram negociar, mas meu pai, ele impaciente,
saiu da carruagem atirando, houve luta. Muitos foram mortos e muitos estão
feridos.
Lucas morreu como também estes empregados. Meu pai sentiu muito a morte de
Lucas, está abalado e lá ficou temendo que os negros se rebelassem novamente.
-Os negros foram realmente todos dominados, d. Marcina? Não houve fuga?
-Foram dominados, não fugiram, morreram muitos. Afirmo que não há mais perigo.
-Que horror! Barbaridade! Aqui estamos para dar nossos pêsames e seguir os
enterros.
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
Marcina seguiu para a igreja, a multidão acompanhava-a. Deixei os dois homens
vigiando a saída da vila, para ter certeza de que ninguém iria à Morro Vermelho.
José
e eu acompanhamos Marcina até a igreja; entraram para as bênçãos, ficamos
esperando do lado de fora. Saímos da igreja, fomos ao cemitério, tratei de ficar
bem discreto
e acompanhei tudo mais à distância. Muitas amigas de Marcina cercaram-na,
consolando-a e indagavam-lhe curiosas, Marcina respondia com monossílabos. Os
mortos foram
rapidamente enterrados. Marcina na saída do cemitério explicou novamente,
falando alto, tudo o que tinha acontecido, escondendo o fato de seu pai estar
ferido gravemente.
Agradeceu a todos e disse não estarem necessitando de nada e que voltava agora
para a fazenda, junto da irmãzinha que estava assustada.
O delegado adiantou-se c indagou:
-D. Marcina não quer que a acompanhe até a fazenda? O coronel não quer
realmente entregar-me os assassinos? Eu sou a lei e aqui estou para defender a
todos. Voltará
sozinha, é mulher e...
Marcina olhou-me, dei forças a ela, sabia o que pensava, mulher não era inferior
só por ser mulher, respondeu a ele friamente:
-Tenho, senhor delegado, tenho a certeza de que não necessito de nada. Volto
acompanhada dos que vieram comigo. Agradeço seu interesse e peço-lhe não se
preocupar
nem interferir. Relembro que meu pai já tomou todas as providências e que não há
assassinos vivos em Morro Vermelho e que tudo está em paz por lá. Com licença,
volto
à fazenda, pois acho-me muito cansada.
-Não posso nem ver o que ocorreu? Nem visitar o Coronel Francisco, tão meu
amigo? - indagou o delegado insistente. Aí interferi:
-D. Marcina está cansada. Por que insiste senhor delegado? Se o Coronel
Francisco quisesse vê-lo, teria chamado. Achase muito aborrecido para receber
visitas curiosas.
Ele nada mais disse, Marcina partiu, ele aguardou um pouco e foi embora. Dei um
tempo e parti também, alcancei-a logo na estrada e passei para a charrete.
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-Oh, Jorge! Se souberem que meu pai está gravemente ferido e que os escravos
estão soltos na fazenda e armados, atacarão Morro Vermelho!
-Foi por isto que mentimos, esconderemos que seu pai está ferido, ganharemos
tempo e, quando João chegar, tudo ficará bem.
Marcina colocou a cabeça no meu ombro e pôs-se a chorar. Passei a mão pelos seus
cabelos:
-Chore, Marcina, chore, fará bem a você... Esquecemos dos outros que nos
acompanhavam, e quando
percebi, olhavam-nos, espantados. Nada disse, continuei a consolar minha amada.
Já não importava esconder nosso amor.
Chegamos. Do alto, José fez o combinado, acenou o lenço branco. Os negros,
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
desconfiados, esperavam-nos no pátio. José desceu do cavalo e contou rápido a
eles o que
se passara na vila, como também, que a sinhazinha estava amando-me. Olharam-nos
com simpatia e respeito, por tê-los defendido.
Dr. Alfredo esperava-nos:

-Devo ir embora, senhorinha Marcina. Estou cansado, os feridos estão bem, seu
pai é que me preocupa, Maria deverá cuidar dele tão bem como eu.
Estava com o braço nos ombros de Marcina, ele olhou-nos, curioso, achei melhor
explicar:
-Dr. Alfredo, Marcina e eu nos amamos há muito tempo, isto explica estar aqui
ajudando-a, como sou amigo também de João a quem já mandei chamar. Dr. Alfredo,
conto
com sua discrição, os meus não sabem ainda, devo logo dizer a eles, porque
casaremos logo que possível.
Dr. Alfredo era uma pessoa muito estimada na região, tinha quase sessenta anos,
coçou a cabeça e acabou sorrindo:
-Ah. estes jovens de hoje! Parabenizo a ambos, souberam escolher.
-Obrigado, dr. Alfredo. Devo pedir-lhe outro favor. Na vila, todos estão muito
curiosos, sabendo que aqui esteve, não lhe darão sossego para saber o que
ocorreu.
Dissemos que tudo aqui estava tranqüilo, não contamos do ferimento do Coronel
Francisco;
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
falamos que estava chocado com a morte de Lucas e que preferiu ficar na fazenda
vigiando os negros. Esperamos que confirme o que dissemos, como também que o
ajudei
porque fizemos as pazes, que ele não quer receber visitas e que está muito
nervoso. Todos conhecem o temperamento do coronel e sabem que quando está
nervoso é melhor
deixá-lo em paz. Dr. Alfredo, poderá fazer isto por nós?
-Se o Coronel Francisco souber disto, não gostará.
-Oh! Não disse que ele está em estado grave?
-Disse e está, e se ele morrer?
-Poderemos dizer que foi do coração, teve um ataque nervoso, isto será até João
chegar e decidir o que fará. Sei que os negros o obedecerão. Se souberem, dr.
Alfredo,
que os escravos estão soltos e com armas, se reunirão e atacarão a fazenda. O
senhor não quer passar outro tanto de horas a cuidar de feridos, não é? Marcina
e Tamira
estarão aqui, com o coronel ferido. Há famílias de empregados, como meus homens;
se invadirem a fazenda, muitos morrerão. Pensando que o Coronel Francisco está
bem,
ninguém duvidará que matou os negros revoltados.
-Farei o que me pede, tem razão, Jorge, minha profissão é para prolongar vidas
e evitar mortes. Se o Coronel Francisco tratasse os escravos como seres humanos,
isto não teria acontecido. E por que não serem os negros que já morreram, os
culpados? Temo é por estarem soltos e estarem armados!
-Nada farão se não forem atacados, querem viver e sabem que numa nova luta,
morrerão todos. Se o senhor confirmar o que dissemos, acreditarão e não pensarão
em
vir aqui.
-Matarei a curiosidade deles, confirmando o que disseram. Amanhã à tarde,
voltarei. Boa-tarde e vá descansar senhorinha Marcina.
Os escravos mortos foram enterrados, Marcina e eu assistimos à cerimônia
simples, onde a dor estava presente no rosto dos familiares. Tamira andava de um
lado para
outro, alegre, gostando do movimento.
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-Marcina, vou embora, e você deve ir descansar. Maria e as mulheres da Sant'Ana
ficarão aqui para ajudá-la e também estarão aqui meus homens, que me avisarão se
alguma coisa acontecer. Mandarei vigiar a estrada para que não tenhamos
surpresas. Procure ficar tranqüila, voltarei amanhã.
-E se meu pai morrer, Jorge?
-Ocultaremos. Dr. Alfredo só virá amanhã à tarde, ganharemos tempo até João
chegar. Se ele morrer, não diga a ninguém.
-Você é inteligente, Jorge, estamos mentindo, mas, enquanto pensarem que meu
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
pai está bem, ninguém virá aqui sem ser chamado. Obrigado por tudo. Jorge.
Deixei Marcina dentro de casa, saí, chamei meus homens e dei ordem para que
ficassem atentos, descansassem fazendo rodízio de guarda e que cuidassem de
Marcina.
Chamei José, o negro que me acompanhara, falei que ia descansar em minha casa,
para que recomendasse aos outros calma. Ele tranqüilizou-me, dizendo que todos
estavam
calmos e que não queriam mais lutas, que não partiria deles novo confronto.
Estava cansado. Ao chegar em casa, coloquei meus homens de guarda na estrada,
com ordem de avisar-me se vissem alguém passar para ir à Morro Vermelho.
Confiava em Deus e pedia que ninguém fosse ver o que se passara. Tínhamos a
nosso favor o gênio forte do Coronel Francisco, conhecido de todos, que não
hesitava
em expulsar visitas incômodas. Ao entrar no pátio, vi Leôncio na varanda,
esperando-me.

-Sinhozinho Jorge.
-Leôncio, que faz aqui?
-É que soube o que se passou na Morro Vermelho e vim perguntar-lhe, preciso
ainda ficar escondido?
-A denúncia de fuga não foi retirada Leôncio. podem pegálos. O delegado pode
vir aqui e levá-los. Volte ao esconderijo e esperem um pouco mais, não
necessitam ir
embora, mas, até que João volte e tire a denúncia, há recompensa pela captura de
vocês e poderão vir pegá-los, e eu, ser taxado de cúmplice.
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VERA LÚCIA MARNZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS Vamos poder morar aqui? É bom
demais! Lá ficaremos até que o sinhozinho mande chamar-nos. Boa-noite,
sinhozinho!
Saiu pulando de contente.
Mamãe e as meninas esperaram-me, contei tudo a elas. Após tomar um banho e me
alimentar, deitei e adormeci logo. Acordei cedo. Após o desjejum, dei ordens a
meus
homens e reparti a guarda, pois queria a estrada vigiada o tempo todo. Fui para
junto de Marcina.
Encontrei-a com aspecto melhor, mais descansada. Os negros pareceram-me calmos,
uns faziam o trabalho urgente, outros montavam guarda.
Marcina veio ao meu encontro:
-Meu pai não parece bem, Jorge. Não se mexe, não fala, abriu os olhos, parece
acompanhar-me com eles. Está tão estranho!
-Se abriu os olhos é bom sinal, Marcina, veremos o que o dr. Alfredo dirá.
Conversei com Marcina, animei-a e fomos ver os feridos. O empregado ferido só no
braço direito, estava bem, nenhum negro apresentava gravidade, reagiram bem ao
medicamento
do dr. Alfredo e de Maria. Esta, tranqüila, com bondade, cuidava deles. Olhei-a
com admiração e ela sorriu-me:
-Sinhozinho Jorge, gostaria de ficar até que não necessitassem mais de mim.
-Está bem, Maria, fique o tempo que quiser, cuide dos feridos.
-É mais fácil cuidar dos feridos do corpo do que os da alma, sinhozinho!
-Acha, Maria, que eles podem se rebelar novamente?
-Se agirem com justiça com eles não, mas, se usarem violência...
-Tomei todas as providências para evitar, Maria, até menti, espero conseguir.
-O sinhô é inteligente, um chefe que sabe dominar sem violência. Conseguirá.
CATIVOS E LIBERTOS
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-Acha que o Coronel Francisco vai morrer, Maria?
-Não. creio que ficará muito tempo no corpo enfermo. Deus está lhe dando
oportunidade para que se arrependa de seus erros.
-Aceito seus conselhos, Maria, pode dar-me? Às vezes, não sei bem como agir.
-Nada deve ser feito, esperemos João chegar, os escravos confiam nele.
Suspirei, temia que o delegado reunisse homens e viesse avaliar a situação na
Morro Vermelho, o que pioraria as coisas. Certificando-me de que estava tudo
realmente
sob controle voltei à Sant'Ana e dei ordem para chamarem-me quando dr. Alfredo
ali passasse.
Em Sant'Ana nem tudo estava calmo, todos temiam nova rebelião na fazenda vizinha
e pelos meus homens que lá estavam.
A tarde quando avistaram dr. Alfredo vieram chamar-me, fui esperá-lo e segui com
ele até a Morro Vermelho.
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

-Jorge, logo que regressei ontem à vila, minha casa se encheu de visitas, todos
queriam saber o que se passava na Morro Vermelho. Acreditaram em mim, contei do
modo que me pediu. Até o delegado desistiu de vir aqui sem permissão do Coronel
Francisco.
-Obrigado, dr. Alfredo, assim evitaremos mais mortes. Temo por Marcina que não
quer deixar a fazenda; num ataque podem matá-la.
Ao chegarmos, dr. Alfredo examinou todos os feridos, achando-os bem. menos o
coronel que, segundo ele, melhorava muito pouco, podendo morrer a qualquer
momento.
Ia ver Marcina duas vezes por dia, não tinha novidades, e todos esperavam a
volta de João. Passaram-se três dias. sempre vigiando a estrada, e alegrei-me
quando
vieram avisar-me:
-Sinhô Jorge! Samuel, Tião e sinhô João descem o morro, logo estarão aqui.
Fui esperá-los na estrada.
Ao ver-me, João alegrou-se, cumprimentamo-nos. Estavam cansados, pois vieram o
mais rápido que podiam.
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-Tião e Samuel, vão para Sant'Ana descansarem, acompanho João.
No caminho, contei tudo a ele, escutou-me silencioso:
-João, você é o único varão da família, cabe a você assumir e pode contar
comigo. Está desarmado? Quer uma de minhas armas?
-Não, Jorge, não uso armas nem vou usá-las. Não quero dominá-los pela força. Se
não conseguir pelo bem não quero impor violência. Como pedir que larguem as
armas,
se estiver armado? Obrigado por tudo o que nos fez Jorge, por ter ajudado
Marcina e evitado mais mortes. Nunca esquecerei sua ajuda e me espelharei em
você, agindo
com justiça.
Ao verem João chegar, os negros reuniram-se no pátio. Marcina e Tamira vieram
abraçá-lo. Ele beijou as irmãs com muito carinho. Calmamente, subiu os degraus
da varanda
e falou aos negros, fazendo questão de mostrar que não estava armado.
-Estou assumindo a direção da fazenda, entristeço-me com os acontecimentos aqui
ocorridos. Não quero culpados, não quero castigos, não quero escravos, quero
trabalhadores
vivendo com dignidade. O que passou, passou. As mortes já foram suficientes.
Mudarei o nome desta fazenda, Morro Vermelho já não existe mais. Vermelho foi
como o
sangue derramado que deve ser esquecido. Começaremos vida nova com dignidade,
justiça, trabalho, lazer, e deveremos pensar que nascemos todos agora com Santa
Luzia.
Assim se chamarão estas terras, Santa Luzia, o nome da Santa que, tendo seus
olhos arrancados pela maldade humana, nasceram-lhe outros pela bondade de Deus.
Fazenda
Santa Luzia renasce pela bondade de Deus com nova forma de vida. Recomeçaremos
não falando mais do passado. Esqueçamos quem fez, quem matou nesta revolta.
Todos
nós ficamos feridos, ou no corpo, ou na alma, curemo-nos com o esquecimento e
com o perdão recíprocos.
João fez uma pausa, todos estavam emocionados, falava com muita sinceridade,
continuou:
-Jorge, meu amigo, peço ajuda para refazer Santa Luzia, quero construir casas,
uma para cada família, e a senzala será um
CATIVOS E LIBERTOS
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barracão, um lugar de lazer e festas. E vocês, negros de Santa Luzia, terão a
vida que tanto invejaram dos escravos de Sant'Ana: boa alimentação, dias de
descanso,
suas festas, roupas. Pedirei ao dr. Alfredo para cuidar de vocês,
restituindo-lhes a saúde. Castigos, nunca mais! Santa Luzia será aberta, aqui
ficará quem quiser
ou então poderá ir embora, que não darei queixas. E confiem, fiquem, e os que
fugiram poderão voltar quando quiserem. Não estou armado, não usarei armas, não
me
interesso por elas e vocês se quiserem coloquem-nas no canto da varanda. Armas
ferem, matam, causam dores. Se renascemos, as armas que deveremos ter são a
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

esperança
e a vontade de sermos felizes!
João calou-se, deu por findo seu discurso. Os negros cochicharam, depois, todos
juntos, levantaram as mãos e gritaram:


-Viva sinhozinho João! Viva sinhá Marcina! Viva Coronel Castro!
Nós três sorrimos, eu disse a eles:
-Ajudaremos. Estaremos presentes na reconstrução de Santa Luzia. A começar,
refaremos a pequena ponte na curva de cima, encurtando caminho entre as duas
fazendas,
agora amigas. Espero que todos vocês sejam felizes!
Estavam confiantes e animados. A esperança, esta companheira tão doce, estava
presente e o que eles mais queriam era serem tratados como os escravos de
Sant'Ana.
Fugir não seria a solução para escravo nenhum e eles sabiam disto; alcançar um
quilombo não seria fácil, acabariam capturados e voltariam em situação pior, e
nos
quilombos, estavam sempre sendo atacados. Sabiam também que ter carta de
alforria não lhes trazia facilidades: para comer tinham que trabalhar e
dificilmente se
dava trabalho para negros. Depois, nem sempre essas cartas eram respeitadas,
sabíamos de casos em que elas eram rasgadas por homens brancos e que os faziam
escravos
novamente. Não era fácil estar vivendo num corpo de cor negra. Ali juntos, com
familiares e amigos, a esperança brilhava para eles com a simplicidade e
sinceridade
de João, um moço sem maldades. sem ambição, com vontade de ser feliz e que todos
também o fossem.
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
Entramos nós três, João olhou os feridos e convidou-nos, Marcina e eu, para ir
ao escritório do pai. Abriu as gavetas trancadas de uma escrivaninha, achou os
documentos
e dinheiro, boa quantia em dinheiro.
-Com este dinheiro, ganho com o suor deles, usarei para que sejam felizes e que
tenham uma vida mais confortável.
-João - disse Marcina -, que bom você ter mudado o nome da Fazenda para Santa
Luzia, porque Luzia era o nome de mamãe!
-Nossa mãe, Marcina, merece esta homenagem e tenho certeza de que ela nos
ajudará a fazer desta fazenda um lugar de paz e justiça.
Um dos meus homens chegou interrompendo-nos aflito!
-Sinhô Jorge, vim avisá-lo que o Coronel Gervásio e seus homens, vêm para cá;
já descem o moro de Sant'Ana.
-Deixem-no passar e faça com que pense serem vocês homens do Coronel Francisco.
Acompanhem-no, tratem-no com respeito.
Meu empregado saiu rápido a cumprir minhas ordens.
-João, não devemos deixar o Coronel Gervásio desconfiado, é amigo do seu pai e
igual a ele; se não recebê-lo, é capaz de atacar-nos, melhor será recebê-lo e
muito
bem. Devo esconderme, meus homens serão seus, aja com naturalidade. Certamente,
ficou sabendo o que aconteceu e veio se certificar. Lucas era noivo de sua
filha,
deve estar querendo notícias.
-Tem razão, Jorge, vamos receber o Coronel Gervásio. Chamei Nércio:
-Nércio, explique aos negros que devemos receber uma visita, o Coronel
Gervásio, um senhor de outra vila que aqui vem só de passagem, para agirem como
se nada houvesse
acontecido. Nércio, meus homens serão de João, ajam como empregados de João.
Nércio saiu rápido e olhei para Marcina.
-Marcina, o Coronel Gervásio não deve ver os feridos na sala. Não tem outra
entrada?
CATIVOS E LIBERTOS
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-Há a porta do Salão Verde, onde recebemos visitas importantes. Fecho a porta
da sala, peço-lhes para que fiquem quietos e receberemos o coronel e seus homens
na
outra sala. vou providenciar rápido. Venha comigo, Jorge, ficará no meu quarto.
O quarto de Marcina - uma das suas janelas dava para a varanda do lado esquerdo
da casa - era simples, parecia com ela, tinha seu perfume. Ali, fiquei ansioso.
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

Escutei
chegarem. O Coronel Gervásio falava alto e grosso, entrecostado na janela,
ouvia-os.
Cumprimentaram-se.


-Seu pai está bem guardado, bons homens, boas armas? Onde está ele? Posso
vê-lo?
João respondeu calmamente:
-Obrigado, Coronel Gervásio, disponha se precisar do nosso pessoal. Meu pai
dorme no momento, sofre muito com a morte de Lucas, está muito nervoso, por isso
dr.
Alfredo deu-lhe calmantes.
-Não me parece doente, menino João.
-Não estou, Lucas mentiu porque se apaixonou por Marta, por querer muito meu
irmão, cedi-lhe a noiva.
-Ora, ora, não precisavam mentir. Marta está inconsolável com a morte do noivo.
Conta-me, menino João, o que se passou aqui. Pensei encontrar a fazenda em
pé-de-guerra.
-Falatórios Coronel, falatórios. Estamos de luto pela morte do nosso querido e
estimado irmão, sofremos muito. O que aconteceu, Coronel Gervásio, foi que uns
escravos
se aproveitaram da viagem do papai, conseguiram se soltar atacando Lucas e uns
empregados de surpresa, houve algumas perdas e, infelizmente, nosso Lucas
morreu.
-E os negros?
-Enterrados Coronel, enterrados.
-bom castigo enterrá-los vivos.
-Venha Coronel, tomemos um lanche.
Não escutei mais, João saía-se muito bem. Uma hora depois, Marcina veio ver-me:
-Jorge, só mais um pouco, o Coronel Gervásio já vai embora, ficará esta noite
na nossa casa na vila; João deu a entender
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
que há muita tristeza aqui para hospedá-lo. Viu meu pai e, graças a Deus, papai
dorme tranqüilo e o coronel gentilmente não quis acordá-lo. Tremi o tempo todo
pensando
se ele quisesse acordá-lo! Parece que acreditou. Volto a eles, espero que vá
embora agora. Logo após, ouvi conversas na varanda:
-João, se precisar de alguma coisa é só avisar. Não esqueça de falar da minha
visita ao Francisco. E espero que você vá nos visitar e conhecer minha Marta.
-Coronel Gervásio, agradeço sua consideração, sua preocupação e sua visita.
Sentimo-nos honrados com sua atenção. Iremos visitá-los, papai se distrairá em
sua agradável
companhia. Nossa casa na vila os abrigará pelo tempo que quiser, embora não
estejamos lá. Disponha dela, Coronel, como sua. Até à vista, boa viagem.
Escutei partirem e saí para encontrar com eles na sala.
-Jorge - disse João -, acho que conseguimos convencê-lo, pensou que seus homens
fossem de meu pai, e só desconfiou um pouco de ver meu pai dormindo. Espero que
não volte mais.
-Pareceu-me entusiasmado em casá-lo agora com Marta disse Marcina.
-Também percebi, vamos deixar que pense, é melhor por enquanto tê-lo como
amigo.
-João, deixo meus homens aqui, continuo a guardar a estrada, o delegado pode
querer vir aqui.
-Jorge, agradeço-lhe muito. Não necessita deixar ninguém aqui, devemos
recomeçar, confiando. Quanto a guardar a estrada, é prudente. vou agora à vila,
vou falar
com o delegado.
-É melhor, assim não terá a infeliz idéia de vir aqui. e já que vai falar com
ele, peço-lhe que retire a denúncia da fuga das escravas.
-Foi você, Jorge? Desconfiava e alegro-me de que tenha feito aquele resgate.
Retiro a denúncia sim e desde já estão livres. Jorge, por favor, peça a Glorinha
para
ir amanhã encontrar-se comigo, na mesma hora e local.
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-Não necessitam mais esconder-se, João.
-É só desta vez, Jorge, quero falar-lhe, revê-la, estou saudoso!
-Está bem, só desta vez...
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Partimos, escolhi seis dos meus homens para acompanhar João até a vila e fui
para casa.
No outro dia, João contou-me o que conversou com o delegado, garantiu que o pai
estava bem e que havia castigado os negros revoltosos e que fizera amizade com
os
Castro, por terem ajudado. E que seu pai na viagem achara as negras que fugiram
e que retirava a denúncia da fuga. O delegado achava ruim não ter sido chamado
para
ajudar e concordou em deixar o Coronel Francisco agir como quisesse, pois os
negros eram dele.
O Coronel Gervásio pernoitou na vila e depois foi embora. Dr. Alfredo dizia a
todos que o Coronel Francisco estava tendo crises nervosas, agitando-se muito,
que
necessitava descansar e que não deveria receber visitas.
No outro dia, abrimos a passagem entre Santa Luzia e Sant'Ana, encurtando o
caminho. Estávamos em época de pouco serviço no campo, e como não necessitasse
mais de
guardas, deixei-os à vontade para irem ajudar os companheiros da fazenda vizinha
e foram muitos a ir.
À tarde fui visitá-los.
Os escravos não estavam mais armados; no canto da varanda foram deixadas as
armas. Os negros estavam entusiasmados e quase todos os que fugiram, voltaram.
João marcava

o local onde se construiriam as casas. Veio ao meu encontro.
-João, prometi a um negro que morreu, cuidar de sua família, se não se importa,
levo-os para Sant'Ana.
-Já me contaram o fato, Jorge. Vamos deixar que a mulher escolha; se quiser ir,
pode levá-la, se não quiser, ficará aqui, não quero forçar ninguém em Santa
Luzia.
vou mandar chamá-la.
Logo a mulher veio até nós e me disse humilde:
-Coronel, se não importa, quero ficar. Aqui tenho meus pais, parentes e sei que
seremos felizes.
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-Está bem, se necessitar de alguma coisa, procure-me. Dr. Alfredo acabava de
examinar o Coronel Francisco, chamou-nos e deu a notícia.
-O Coronel Francisco foi ferido na coluna vertebral, ficou imobilizado. Não
corre mais perigo de morrer, porém não andará mais e não conseguirá se mexer.
Entende
tudo, ouve e enxerga. Não consegue falar, não sei o porquê, não encontro nada de
físico, acredito que seja um traumatismo.
-Ele se recuperará, dr. Alfredo? - quis saber Marcina.
-Não, Marcina, seu pai ficará para sempre inválido.
Não houve comentário, e nos sentíamos aliviados. O Coronel Francisco não
voltaria à direção da fazenda e Santa Luzia poderia renascer em paz.
Após dr. Alfredo ter ido embora, João disse-me:
-Jorge, prometi a todos que têm seus familiares separados por meu pai, tentar
recuperá-los. Será que me cederia Manuel para fazer isto por mim?
-Com prazer, escolheu bem. Manuel é bom, sensível e honesto, pode deixar com
ele, irá atrás de todos e saberá com precisão adquiri-los. Ficará feliz em fazer
isto
para você e poderá começar amanhã.
Com a denúncia retirada, mandei buscar Leôncio e família do esconderijo,
ficariam nas minhas terras, já que desejavam tanto nelas permanecer.
Já era de tardezinha, estava na varanda, muitos voltavam do trabalho, quando
Leôncio e os seus chegaram, vinham contentes.
-Sinhozinho - disse Leôncio -, posso falar-lhe?
-Sim - disse descendo os poucos degraus da varanda, indo até o pátio.
-Podemos ficar morando aqui?
-Sim, podem, João retirou a denúncia e podem escolher, ficar aqui, ou lá.
-Ficaremos aqui, queria pedir se posso casar com Jurema.
-Por mim, tudo bem, case e que sejam muito felizes, deve entretanto pedi-la ao
pai dela.
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-Ele já concordou. Sinhozinho, o sinhô só me fez o bem, devo-lhe tanto. Deus
lhe pague. Serei fiel até a morte.
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

Num impulso que não pude evitar, Leôncio pegou minha mão e beijou-a. Ia ralhar
com ele, pois nada fizera que me privasse de algo. Ajudara no que estava ao meu
alcance.
E vieram rápido em minha mente os dizeres do Mestre Jesus: Quando fizerdes tudo

o que deveríeis, dizei: Sou servo inútil. E tinha feito tão pouco! Não deveria,
entretanto,
sufocar no coração daquele espírito um dos sentimentos mais nobres que existem:
a gratidão. Leôncio me era grato, reconhecido. Lembrei que um dos dez leprosos
voltou
para agradecer a sua cura a Jesus, pois ele realmente ficara curado, não só do
corpo, também do espírito. Não, não deveria ralhar com aquele negrinho que
surgiu
na minha frente logo que retornei ao Brasil. Não teria sido eu um dos
instrumentos divinos para ajudá-lo? Fizera pouco, ele fizera mais, porém sabia
ser reconhecido.
A gratidão é uma pérola muito valiosa, tesouro do coração. Em vez de dizer algo,
coloquei a mão direita em seu ombro e deilhe umas palmadinhas amigáveis.
Olhei para ele, seu rosto estava molhado de lágrimas; emocionado também, senti
os meus lacrimejantes:
-Que bonito! - exclamei. - Dois heróis corajosos, choramingando como mulheres!
Ora, vamos! Trate Leôncio de arrumar a casa para os seus e construir outra para
você
e Jurema. A alguns passos de nós, Tereza e os filhos, já com bom aspecto,
observavam-nos emocionados, choravam, olhando-me agradecidos. Senti a energia
que me lançavam,
fluidos de gratidão de bem-aventurança. Muitos dos empregados, escravos que os
acompanhavam, contemplavam-nos. Senti que além do respeito, admiração,
olhavam-me
com carinho, com amor. Sorri para eles: espontâneos, todos sorriram. Eram
felizes. Capítulo XIII PAI TOMÁS
Em Santa Luzia, o entusiasmo tomava conta de todos; o trabalho de reconstrução
ia muito bem. O Coronel Francisco continuava do mesmo modo e inúmeros
comentários
se faziam em torno de sua saúde: ora que fora ferido, ora que estava tendo
crises nervosas, que sofrerá um derrame, que não estava bem mentalmente com a
morte dos
dois filhos. Poucos amigos da vila se aventuraram a ir visitá-lo e foram
recebidos por João e Marcina, que explicavam que o Coronel Francisco dormia com
medicamentos
do dr. Alfredo.
João trabalhava muito, não tinha se encontrado com Glorinha mais, e esta
reclamava. Também, diminui as visitas a Santa Luzia, não queria interferir no
que João fazia,
e assim ia lá só para ver Marcina.
Todos sabiam, nas duas fazendas, do nosso amor, menos mamãe. Ela sempre sabia de
tudo o que acontecia pela redondeza, mas, desta vez, ninguém tivera coragem para
dizer-lhe que Marcina e eu namorávamos. Nem eu. Rodeava-a muitas vezes com a
intenção de falar-lhe e acabava perdendo a coragem. Estava preferindo até que
contassem
a ela, pois seria mais fácil confirmar. Ela já não estava tão zangada com
Glorinha, que não estava mais no quarto e voltara a tomar as refeições conosco.
Mamãe evitava
falar no assunto, dizendo que não se interessava por esse casamento.
Quase um mês se passou desde que João voltara. Estava uma tarde no curral,
quando um dos meus homens veio avisar-me de que Abelardo, ex-noivo de Glorinha,
pedia
permissão para visitar-nos.
CATIVOS E LIBERTOS
-Deixa-o entrar, avise mamãe! - após sua saída, disse a Nércio, que me
acompanhava no trabalho de vistoria dos animais:
-Que será que este sujeito quer? Será que está interessado novamente em
Glorinha?
-Sinhozinho, a menina Glorinha é capaz de atirar nele!
-Será? E melhor irmos, Nércio. Vamos ver o que Abelardo quer.
Logo que saímos do curral, vimos Abelardo na charrete, trazia um bonito
ramalhete de flores. Mamãe o recebeu na varanda e entraram em casa. Nércio e eu,
rimos.
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-vou entrar, Nércio, se as flores forem para Glorinha. ela é capaz de jogá-las
na cabeça dele.
-O que será merecido! Entrei.
- Jorge, Abelardo está aqui e conversa com sua irmã na saleta - disse mamãe. Tomara
que fiquem noivos novamente.
-Mamãe, noivar novamente com este traidor? Quando nos julgou fracos, caiu fora,
agora que lhe parece tudo bem, volta novamente?
-É preferível ele ao filho do Coronel Francisco!
Nada mais respondi, não dava para comparar Abelardo com João. A porta da saleta
estava aberta, entrei. Abelardo estava sentado e Glorinha em pé encostada na
mesa,
e o ramalhete em cima desta. Cumprimentei-o friamente.
-Jorge - disse Glorinha -, Abelardo veio visitar-me.
Nada disse, encostei do outro lado da mesa, cruzei os braços, observei Abelardo.
Pareceu-me muito antipático, muito arrumado, parecia que ia a uma festa.
Olhou-me
e sorriu, falou afetado, querendo parecer importante e muito educado:
-Jorge, que bom que você veio até nós; ia falar a Glorinha, é melhor que escute
também. Vim para reatar o noivado, foi uma imensa bobagem ter terminado,
arrependo-me
profundamente porque descobri que a amo demais e quero casar-me com ela. Seu
pai, Coronel Castro, já dera sua permissão e certamente você, Jorge, agora no
seu lugar,
permitirá que reatemos o compromisso.
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-Abelardo, se havia um compromisso, você o desfez lembro-me muito bem. Naquele
dia mesmo disse às minhas irmãs que não interferiria na vida delas. Não é a mim
que
deve perguntar mas, sim, à interessada.
Glorinha estava séria, colocara as mãos na cintura, deixando bem a mostra sua
garrucha. Abelardo insistiu:
-Jorge, você é o varão da família, elas lhe devem obediência.
-Senhor Abelardo, já disse que não cabe a mim refazer este compromisso.
Glorinha já é bem crescidinha e saberá decidir, já que se trata da vida dela.
Vendo não conseguir nada comigo, ele dirigiu-se a minha irmã.
-Glorinha, vamos reatar nosso noivado? Casaremos logo. Senti muito sua falta
e...
-Senhor Abelardo, não quero o senhor nem para noivo e muito menos para marido.
Agora que tem minha resposta, saia da minha casa!
-Olhe aqui, menina, isto não é jeito de tratar-me...
-E por que não? Trato você como quero. E aqui estão suas flores - jogou-as na
cabeça dele. - Faça o favor de sair, se não, chamo os jagunços!
Abelardo olhou para mim, sorri-lhe. Pegou seu chapéu e saiu furioso. Glorinha e
eu caímos na risada.
-Que aconteceu? - entrou mamãe na saleta. - Abelardo passou por nós, nem se
despediu...
-Glorinha jogou as flores na cabeça dele.
-Menina, que modos! Parece não ter educação? E você, Jorge, ri?
-Mamãe - disse-lhe -, é certo que Glorinha não foi lá educada, temi que ela lhe
apontasse a garrucha. Abelardo mereceu, desfez o compromisso quando nos julgou
derrotados.
Éramos na época a parte fraca do desentendimento com o Coronel Francisco. Agiu
como um rato que, com medo do barco afundar, pulou fora. Agora as coisas
mudaram,
acabaram os desentendimentos, o Coronel Francisco está à morte, estamos bem, o
barco lhe parece
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firme e ele volta como um rato interessado em jantar. Os ratos devem ser
enxotados. Não o quero mal, tenho pena dele, mas Glorinha lhe devia esta.
-Se minhas amigas souberem da grosseria desta menina, morro de vergonha!
-E quem vai dizer a elas? Ele? Duvido! Rimos, mamãe acabou rindo também.
No outro dia, Tião, o escravo da Santa Luzia, veio avisarnos que João e sinhá
Marcina viriam visitar-nos. Tião parecia outro, bem vestido, limpo, cabelos
cortados
e muito feliz.
Glorinha e eu ficamos muito felizes com a notícia da visita, pedi a Joana que
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
arrumasse bem a casa, colocasse flores na sala e preparasse licor e docinhos.
Vim a saber também que havia muitos amores entre os escravos das duas fazendas,
apesar das proibições e das cercas, e que agora estavam felizes pensando em
unir-se,
e João e eu combinamos que a moça iria para a fazenda a que o moço pertencia.
Manuel sentia-se realmente realizado com a tarefa que João lhe pedira. Já havia
adquirido quase todos que, por maldade, o Coronel Francisco separara dos seus.
Na hora combinada, os dois chegaram, esperei-os na varanda. Mamãe, embora
aborrecida, fora educada. Após os cumprimentos entramos na sala e, por
meia-hora, a conversa
foi sobre o tempo, o trabalho em Santa Luzia. Até que comentamos a visita de
Abelardo. Rimos, e João aproveitou:

-Este fato alerta-me e não devo esperar mais. Glorinha é muito linda, tentação
para muitos solteiros. D. Catarina, Jorge, quero oficializar nosso compromisso e
peço a permissão para casarmos o mais depressa possível.
Mamãe nada disse, coube a mim responder:
-Tem a nossa permissão, sei com certeza que serão felizes. Aproveito que
estamos todos presentes para pedir a você, João, a mão de Marcina em casamento.
Pluft! Mamãe caiu desmaiada! Carlota. Joana correram a segurá-la. Nércio pegou-a
e a levou para outro quarto. Bárbara correu para chamar Maria.
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-Oh, Jorge! Sua mãe não irá aceitar-me!
-Foi emoção, somente. Quando ela a conhecer melhor, amará como eu a amo. Não se
preocupe, não é nada sério, acontece com ela sempre estes desmaios. Então, João,
não me respondeu?
-Jorge, respeito-o muito, e quero-o como a um irmão. Entrego-lhe Marcina, com a
certeza de que a fará tão feliz, como eu à Glorinha.
Brindamos à nossa felicidade! Só nós quatro estávamos na sala, fizemos nosso
brinde, estávamos felizes.
Combinamos casar juntos, em janeiro, logo após completar um ano da morte de meu
irmão José.
Mamãe não veio se despedir deles, Marcina ficou sentida, mas animei-a afirmando
que mamãe a aceitaria e que seriam muito amigas.
No outro dia, mamãe não saiu do quarto e não quis receberme, fiquei muito
aborrecido. Não veio tomar as refeições conosco, na hora do almoço. Carlota
disse-me que
mamãe estava muito triste e que dissera que ia morar com ela, quando casasse.
Nem acabei meu almoço, fui para a varanda, não queria magoar assim minha mãe e
também que saísse do seu lar por nossa causa. Não sabia o que fazer, lembrei-me
de
Pai Tomás. Deveria agradecer-lhe por ter ajudado a esconder Leôncio e família e
lhe devia uma visita; não fora vê-lo desde meu regresso.
Pedi a Nércio meu cavalo e fui sozinho visitá-lo.
A cabana em que morava parecia do mesmo modo, era uma casinha simples, com
flores e plantas à sua volta. Sem descer do cavalo, bati palmas e uma voz
harmoniosa respondeu
de lá de dentro:
-Sinhozinho Jorge, pode descer, entrar.
Desci do cavalo e então vi-o na porta, pareceu-me o mesmo de anos atrás, nada
diferente nem mais velho. Pensei: "Bem que diziam que Pai Tomás não envelhece,
ninguém
sabia com certeza informar a idade dele".
-Boa-tarde! >
CATIVOS E LIBERTOS
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Cumprimentamo-nos sorrindo e ele como se lesse meus pensamentos, respondeu-me:
-Os anos passam para mim também, sinhozinho, só que não me preocupo com eles,
nem eu sei minha idade! Entre, sinhozinho, sente aqui para conversar em paz.
A casa tinha três cômodos; onde sentei era o lugar em que recebia as pessoas,
outro onde dormia, e o último a cozinha. Tudo muito limpo, muito simples.
-Tenho só o essencial, necessito de tão pouco - sorriu, pelo jeito ele
adivinhava meus pensamentos e espantei-me quando disse: - Não, sinhozinho, não
adivinho pensamentos,
isso é o que todos pensam ao ver minha casa. Está, sinhozinho Jorge, aborrecido
com a sinhá sua mãe? Ela sofre, queria o melhor para você e acha que será
infeliz
com sua escolha!
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
Suspirei, estava realmente triste, olhei-o bem e falei com voz sentida:

-Às vezes penso, Pai Tomás, que estou errando muito, que não faço nada certo,
não queria ver os meus sofrerem, ainda mais por minha causa. Sonhei com outra
forma
de vida para mim e de repente me encontrei diante de tantas responsabilidades
para as quais não estava preparado!
-O sinhozinho tem se saído muito bem, não deve se preocupar assim! Sinhá
Catarina é boa e ama tanto os filhos, por que não conversa com ela? Por que não
lhe diz
dos seus sonhos, seus planos, o tanto que sentiu ao tomar conta de Sant'Ana.
Fale à sua mãe de sua preocupação com o bem-estar de todos, fale o que lhe vai
n'alma,
do seu grande amor pela menina Marcina. Verá que acabará compreendendo.
-A vida é estranha, não é, Pai Tomás? José, sim, sabia tomar conta de tudo com
sabedoria. Há tanto tempo, o senhor, aqui mesmo, disse que ele partiria logo.
-O sinhozinho José não veio para ficar muito. Foi bom administrador.
-Era tão inteligente, não sei como não pensou que o Coronel Francisco pudesse
tocaiá-lo.
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-Era inocente, não pensou que pudesse alguém ser tão mau! Repito, foi ele bom
administrador das coisas de Deus.
"Quê? Administrou coisas de Deus? Para mim, quem administrava coisas de Deus era
o padre. José foi muito religioso, Pai Tomás se confundiu" - pensei e ia
corrigi-lo
quando ele disse:
-Sinhozinho Jorge, a Terra, tudo o que existe nela, o Universo e seus astros,
tudo é obra do Pai, tudo pertence ao Criador, até nós. Muitos se julgam donos.
Donos
de quê? De terras, casas, engenhos, de outras pessoas? Moramos aqui por pouco
tempo e o que levamos? Nada disto, voltamos só com o que nascemos, com o
aprendizado
que fizemos. Não somos donos de nada, na verdade, somos administradores das
coisas, das obras do Pai. Sinhozinho José sentiu isto e foi um bom
administrador. Tanto
é verdade, menino Jorge, que quando seu corpo morreu, José se sentiu livre e
partiu feliz.
Olhava com atenção para Pai Tomás, pensava, era bem sábio, tinha grandes
conhecimentos, ele que era um ex-escravo e que nem sabia ler. Arrepiei quando,
calmamente,
ele disse:
-Não podemos julgar os conhecimentos de uma pessoa só pela vida atual,
sinhozinho. Não sou nenhum sábio, sou negro, fui escravo, por uma necessidade de
aprendizado
na humildade, mas nem sempre fui assim. O que sei, aprendi pelo espírito, fato
que o sinhozinho pode comprovar. Não vê o sinhô os espíritos?
-De fato, vi José feliz e meu pai bem triste!
-Sinhô Joaquim foi bom, tanto que, quando seu corpo morreu, ex-escravos dele
vieram ajudá-lo e encaminhá-lo para lugares bons. Sinhô Joaquim era orgulhoso de
ser
bom. Orgulhava-se do bem que fazia, amava mais a terra que o reino dos Céus.
Sentiu-se dono, não administrador. Lá, inquietou-se pelas coisas que julgava
serem suas,
sentiu-se preso a elas e voltou. Sofreu, vagou por aí, como dono inconsolável
por ter de deixar tudo. Agora que entendeu, acha-se bem. Isto é comum, sinhô
Jorge,
muitos julgam-se donos das coisas de Deus, são escravos, são possuídos pelo que
julgam possuir, e aos bens materiais ficam cativos. É grande a prova da riqueza
e
muitos sucumbem. Vivem na Terra, são
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homens brancos, livres da escravatura que a lei impõe aos negros e, em vez de
administrar a riqueza contribuindo para o bem de muitos, tornam-se escravos do
que
julgam possuir.
-Se é assim, ser negro, escravo não é tão ruim, como pensam - disse, e Pai
Tomás continuou a elucidar-me calmamente:
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

-Deus dá todas as oportunidades de aprender conforme necessitamos. Sinhozinho
Jorge, muitos nada têm para administrar, são até escravos, mas não são livres
como
pensa. São cativos pelo desejo de ter, são possuídos pelo desejo de possuir. São
os invejosos, sinhozinho; o desejo é tanto de possuir, de ter, que são duas
vezes
cativos. Poucos são os libertos, não têm o desejo de ter, e se têm, sabiamente
administram e entendem que têm o poder transitório, que um dia deixarão, têm que
deixar,
nada é deles, sim de Deus. E o bom administrador é aquele que tudo faz para que
o maior número de pessoas usufruam do que administra. Entenda bem, sinhozinho
Jorge,
é tão jovem e tem nas mãos o poder sobre muitos, dependendo do sinhô para viver
aqui no corpo, para viver bem ou mal. Tem muito dinheiro e, se agir como sábio,
administrará
não deixando se prender, porque nada é do sinhô. Um dia partirá, seu corpo
morrerá e não levará nada disto, pois até seu corpo ficará, nem este é do sinhô,
porque
este não lhe obedecerá. Sei que é bom, sinto grande bondade no seu espírito e
tem dois exemplos para seguir: o do seu irmão José, administrador sem se deixar
possuir,
e livre, e do seu pai que ficou cativo pelo que julgava possuir!
Parou de falar, fiquei pensando no que ouvira, nos seus sábios ensinamentos.
Sorriu para mim e serviu-me um chá cheiroso e apetitoso.
Senti-me muito bem ao lado dele, aquela simples cabana dava-me paz.
-Pai Tomás, estas terras são tão lindas e é triste vê-las em abandono, só o
senhor e os fantasmas vivem aqui.
-São lindas e férteis, gosto muito daqui. Está errado, sinhozinho, os fantasmas
foram embora, só eu vivo aqui. Dos espíritos que aqui estavam, uns foram embora,
cansaram, perdoaram, outros, rancorosos, foram atrás do coronel que abandonou o
corpo.
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VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-O coronel morreu? Como sabe?
Sorriu diante das minhas indagações, respondeu-me falando sempre calmamente:
-O coronel morreu, sim, foram os espíritos dos negros que me avisaram. Foram
vingar-se dele, a quem não perdoam. Ligados ao ódio, as terras os prendem, eles
sofrem,
mas fazem sofrer. Se temos sentimentos ruins, somos escravos deles, o perdão e o
amor nos liberta. Não quiseram escutar-me e foram atrás do coronel.
-Fala dos negros, mas morreu o casal, a esposa e o amante.
-Não foram amantes, nada fizeram, naquela época, de errado, de condenável, não
traíram. Amavam-se, é verdade, amor forte de muitas existências, tiveram que
sofrer
a separação para aprender a amar com honestidade, conseguiram. Sofreram muito,
tiveram os corpos mortos em grande sofrimento, perdoaram e pediram para
renascer,
ter novos corpos e aí estão...
Enquanto falava, vi muitas cenas, um casal jovem e bonito a se olhar, vi os dois
amarrados, o fogo. Quase gritei, reconheci-os:
-Carlota! Pedro!
-Sinhozinho sabe muito das coisas e entende porque sei delas. São os meninos,
sua irmã sinhazinha Carlota e o bom sinhô Pedro, que voltaram amando-se
novamente.
Estão tendo algumas dificuldades para ficarem juntos. E estas terras,
sinhozinho, ficaram abandonadas depois dessas mortes, mortes tão tristes! Estas
terras estão
à espera deles para haver novamente alegria; aqui foram injustiçados e aqui
deverão ser felizes. Seriam bons administradores e, com eles, tudo voltaria a
sorrir.
-Ah! Se pudesse comprá-las! Doaria a eles, seria bem merecido.
-Um dos filhos do coronel está vindo para cá. Se o sinhô oferecer preço justo,
comprará estas terras, eles querem vendê-las.
Alegrei-me, levantei-me e despedi-me dele, sentindo-me bem mais animado. Já
montara no cavalo, quando lembrei de que não agradeci e gritei: Pai Tomás!
CATIVOS E LIBERTOS
191 De nada, meu filho, de nada, foi um prazer acolher a família do menino
Leôncio aqui e conversar com o sinhozinho.
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

Sorri.

-Então, Pai Tomás, que Deus o abençoe. Vá nos visitar e, se necessitar de mim,
conta como certo.
Chegara à porta, sorriu e abanou a mão, dando adeus.
Fui pensando: "Carlota a antiga senhora daquelas terras. Tinha minha irmã muito
medo de fogo, um medo tão grande, que se apavorava ameaçada com uma simples
vela.
Não gostava de chegar perto do fogão, não acendia velas, preferia ficar no
escuro. Quando criança, por saber que tinha medo, ameacei-a por brincadeira com
um pau-de-fogo,
ela gritou tão apavorada que gritei também e correram todos. Papai ralhou comigo
e fiquei muito aborrecido. Ninguém entendia o porquê do seu medo. Agora
compreendia,
eram recordações do passado, pois ter o corpo queimado foi uma impressão muito
forte e trouxera, ao renascer, o medo do fogo. Vagas recordações trazemos de
vidas
passadas, tantos medos, antipatias que só são explicadas com a compreensão de
que o espírito volta em outro corpo, reencarna. Como também o amor, tão forte
entre
Carlota e Pedro, João e Glorinha, até o meu por Marcina. Quando a revi, senti
que a amava há muito, muito tempo. Amores de muitas existências!"
Da Fazenda Assombrada fui à Santa Luzia. Achei João trabalhando junto com os
escravos, trabalhavam iguais, estavam carregando terra, e ele estava sujo, suado
e feliz.
-João, preciso falar-lhe.
-Jorge, que bom vê-lo, venha, sentemos aqui embaixo desta árvore, aproveito
para descansar uns minutos. João, para mim, filhos são iguais, sejam homens ou
mulheres,
devem herdar igualmente. vou repartir o que temos em três partes. Você me disse
que Santa Luzia é de Marcina e sua. Venho propor-lhe, a parte de Marcina pela de
Glorinha. Você ficaria com Santa Luzia, eu com Sant'Ana.
-Não sairá prejudicado, Jorge? Lá são três a dividir.
192
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS Aqui também há Tamira. Sabe
que não é a mesma coisa. João, meu pai, deixou-nos com muito dinheiro, este
dinheiro
darei a Carlota. Se está bem a você, Jorge, está para mim.
Após conversar com Marcina um pouquinho, fui para casa, já estava um pouco
atrasado para o jantar, e foi com alegria que vi Pedro e Carlota na varanda.
-Pedro! Que bom vê-lo!
-Vim visitar Carlota, e d. Catarina convidou-me para jantar.
-Queria mesmo falar com você, venha comigo à minha saleta, venha também
Carlota.
-Pedro, vamos casar-nos, Marcina e eu, João e Glorinha, em janeiro, porque você
e Carlota não se casam também?
Pedro ficou um tanto encabulado, gaguejou:
-É que, Jorge, não estamos bem financeiramente, sabe bem, devemos-lhe muito
dinheiro. A colheita foi má e...
-Pedro, você me faria um grande favor?
-Sim.
-Estou muito preocupado com a felicidade de todos daqui de casa. Sei que
Carlota só será feliz com você; vou-lhe fazer uma proposta, se aceitar me
ajudará muito.
Não acho justo receberem heranças os filhos homens e ficar a maior parte para o
primogênito. Para mim, todos os filhos são iguais. João e eu fizemos um trato,

que ele casa com Glorinha e eu com Marcina, ele fica com Santa Luzia e eu com
Sant'Ana. E Carlota fica com o dinheiro de que dispomos. Darei a você, Pedro, o
resgate
da dívida do seu pai e desvencilhe-se dele. Não é o primogênito, tem muitos
irmãos, separe-se deles e comece vida nova aqui na Fazenda Assombrada. Comprarei
a antiga
Fazenda Olhos d'Agua em seu nome, será de vocês, morarão aqui, até que
construamos uma casa para vocês, lá.
-Eu! Jorge, não sei!
E LIBERTOS
193
-Pedro, sabe bem que seu pai, jogando como joga, não terá condições de
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
ajudá-lo. Carlota está na idade de casar, sei o tanto que se amam, devem
aceitar.

-Pedro, por favor, aceite, Jorge tem razão.
-Aceito! E agradeço-lhe de coração. Carlota abraçou-me, feliz.
-Jorge, obrigado!
-Reparto e faço-o com justiça. Ajudá-los-ei a construir a fazenda, cedendo-lhes
empregados e escravos, isto é, se tratarem bem deles.
-Sempre pensei, Jorge, se um dia tivesse escravos, seriam bem tratados,
viveriam como os daqui.
-Poderá, Pedro, criar gado, pois lá tem muita água, e formar pastos será fácil.
-Jorge, não tenho dinheiro e...
-Sei, Pedro, ajudarei vocês no começo, e sei que logo estará cuidando de tudo.
Os dois se olhavam apaixonados, estavam felicíssimos por poderem se casar logo;
saí, deixei-os sozinhos, fui preparar-me para o jantar.
Mamãe veio tomar refeição conosco, por termos visitas. Carlota, toda feliz,
contou da proposta que lhe fizera, e Glorinha indagou:
-Como é que você, Jorge, comprará a Fazenda Assombrada se eles não a vendem? Os
filhos do coronel prometeram a ele não a venderem enquanto ele for vivo!
-Pai Tomás garantiu-me que o velho coronel morreu e que um dos filhos está
vindo para cá para vendê-la.
-Pai Tomás? - estranhou Glorinha. - Se ele diz... Mas, se não for?
-vou até eles, oferto bom dinheiro e compro. Depois, minha irmãzinha. não
duvido do que fala Pai Tomás. Compraremos Olhos d'Agua.
Brindamos à felicidade deles. Mamãe sempre quis muito este casamento, brindou
também, e uma ruga marcou-lhe a testa,
194
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
isto ocorria quando estava preocupada. Se queria morar com Carlota, não daria
mais. já que eles morariam conosco algum tempo, deixando-a sem opção.
Logo após a sobremesa, fiz um sinal a eles para saírem, para que ficasse a sós
com minha mãe.
Saíram rápido, evitando que mamãe fizesse o mesmo, ajoelhei-me ao seu lado, ela
continuou sentada, deitei a cabeça no seu colo, ela afastou-me, não desanimei.
Comecei falando da minha solidão, tão mocinho ainda, longe de casa, numa terra
estranha, e o tanto que senti falta de todos. Falei dos meus planos de trabalho,
dos
meus sonhos em ajudar os negros, de morar na Corte, de casar com minha
prometida. Da dor de saber da morte do meu pai, a tristeza de rever José morto,
o medo da
responsabilidade que me coube sem que a esperasse. Do desejo de proteger as
terras e a família, e o terror de não o conseguir. E a vontade de fazer a
felicidade
das três, pois eram o que restava da família. Falei que nunca me interessara por
mulher alguma e que não me importei porque José se casara com Laurinda. Do
interesse
que senti em rever Marcina, do encontro em que ela me agradecera, da necessidade
que senti em revê-la, indo aonde sabia que passeava e do amor forte que nascera,
independente da nossa vontade. Mamãe escutava sem me dizer nada, colocara a
cabeça novamente em seu colo, e desta vez, não me afastara. E acabei por dizer:
-Mamãe, não quero que sofra, que pense em sair desta casa. Este é o seu lar,
aqui foi feliz com papai, teve seus filhos e só deve sair daqui, quando morrer.
Queria
ter contado tudo à senhora, antes de oficializar o pedido de noivado, mas não
tive coragem. Não pensei, entretanto, que sofreria assim. Volto atrás, farei o
que
a senhora quiser. Preocupo-me com vocês, tenho a certeza de que Glorinha será
feliz com João, ele é excelente pessoa, e agora que ajudarei Pedro, Carlota
estará
muito bem. Não quero a senhora magoada comigo. Se a senhora realmente quiser,
desfaço o noivado, João compreenderá.
CATIVOS E LIBERTOS
195
Estava usando, com minha mãe, de muita sinceridade, não queria me separar de
Marcina mas não queria ver minha mãe infeliz. Tentava fazê-la entender,
continuei emocionado:
-Porém, mamãe, serei infeliz. Não me casarei com ela nem com ninguém, seremos
dois solitários nesta casa. Obedecerei à senhora, só que serei infeliz, amo
Marcina,
Página 94


Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

como nunca pensei em amar alguém!
Mamãe passava a mão em minha cabeça, alisando meus cabelos, senti que me
perdoara.


-Jorge, meu filho, sou a grande culpada, sim, culpada por me sentir inferior,
incapaz, de não ter assumido a chefia de tudo, por não saber. Regressou tão
feliz
e encontrou tantos problemas: chegou, veio a saber da morte do Joaquim, que
escondemos de você, viu seu irmão morto, e não perguntei a você o que queria, o
que pretendia,
mas coloquei tudo sobre sua responsabilidade. E tão jovem, filho, ficou tanto
tempo longe de casa e volta, tendo de assumir a chefia da família e com as
ameaças
que sofríamos. Joguei os problemas sobre você, só pelo fato de ser homem. Perdoe
me, filho, fui egoísta, não pensei em você, não pensei, não indaguei se era isto
o que queria. Se lhe dei tantas responsabilidades, você tem o direito de
escolher sua companheira. Não exigirei nenhum sacrifício mais de você, não
posso. Quero
que se case e que me dê netos para continuar o nome da nossa família. Marcina
não é a nora que escolheria, porém, aceito-a. Se você fez tantos sacrifícios por
nós,
devo fazer este por você. Quero-o feliz, esforçarme-ei por esquecer o passado e
tudo farei para ser amiga de sua noiva. Que casem os três!
Mamãe soluçou, abracei-a, beijei-a e choramos juntos, e eu disse emocionado:
-Obrigado mamãe, obrigado!
Senti-me bem mais tranqüilo sem desavenças em minha casa.
Oito dias depois, veio um dos meus guardas avisar-me de que um dos filhos do
coronel da Fazenda Assombrada estava na estrada. Sorri, contente, Pai Tomás
acertara.
196
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
-Convide-o para vir aqui. vou hospedá-lo.
Serafim, assim se chamava o filho do dono da Fazenda vizinha; era agradável,
educado, aceitou de bom grado minha hospedagem. Após alimentar-se, foi
descansar. À
tarde, conversamos. Contou-me que o pai falecera com muito sofrimento, que ele e
os outros dois irmãos não tinham planos para voltar ao antigo lar, que tantas
recordações
dolorosas lhes traziam e que tinham eles se estabelecido na Capital da
província. E foi com alegria que escutei:
-Vim para vender estas terras.
Ofereci um bom preço pela fazenda. Ele sorriu, satisfeito, aceitando sem
hesitar. Três dias depois, partiu e a Fazenda Assombrada era de Pedro.
Mandei avisar Pai Tomás. Manuel disse que ele só comentou:
"Assim tinha que ser!"
Marcina e João visitaram-nos; minha noiva ficara acanhada, temia minha mãe, mas
d. Catarina cumpriu o que me prometera, tratou os dois irmãos bem, deixando
Marcina
muito feliz. Tive a certeza de que logo seriam amigas. Só que mamãe deixou bem
claro que, enquanto o Coronel Francisco vivesse, ela não iria na Santa Luzia e,
se
Glorinha quisesse vê-la, teria que vir a sua casa.
Glorinha ainda andava armada, era geniosa, mandona. João era simples, não
gostava de armas, e em pouco tempo tornou-se líder em suas terras; trabalhava
junto com
os empregados e os escravos, todos o amavam. Comentei com minha irmã:
-Glorinha, não é melhor você não usar mais armas? Ninguém anda armado em Santa
Luzia!
-vou deixar de andar com a arma na cintura, porém não me desfarei dela, terei
uma sempre ao meu alcance, já disse isto a João, ele concordou, nós nos amamos e
respeitamos
o modo de ser um do outro.
Ficou olhando-me, e pelo que conhecia dela, minha irmã queria-me pedir algo. Que
quer, menina? CATIVOS E LIBERTOS
197
-Jorge, você é tão bom, que me acanho em pedir-lhe, mas é que desejo Bárbara
para mim, queria que fosse morar comigo. Gosto tanto dela!
-Só isto? Claro, Glorinha, se ela quiser ir, pode levá-la.
-Obrigada.
Página 95

Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
Deu-me um estalado beijo no rosto e saiu correndo. Olhei-a pela janela, foi
encontrar-se com Bárbara, vi minha irmã contarlhe a novidade e as duas se
abraçaram felizes.
Para muitos, seria estranho tanto carinho entre as duas. Uma sinhá, branca,
filha de senhores de escravos e outra, negra, escrava. Não era segredo para mim,
tinha
a certeza de que o afeto entre as duas era sincero, antigo, eram espíritos
amigos de outras existências.
O Coronel Francisco não melhorava; logo acabou a curiosidade sobre ele, como
também as visitas. Marcina contou-lhe tudo que acontecera, inclusive a morte de
Lucas,
e lágrimas correram pelo seu rosto. Logo, porém, seus olhos brilharam de ódio
quando ela contou como ela e João estavam conduzindo a fazenda e falou dos
casamentos.
O Coronel Gervásio, quando soube do casamento do João, veio confirmar. Desta vez
João recebeu-o com frieza, deixou que visse seu pai. Com a afirmativa de João,
ele
entregou o anel de noivado dado por Lucas à sua filha e partiu demonstrando seu
desagrado. Marcina ficou contente em recuperar o anel que fora presente de sua
mãe.
Pela redondeza, não se falava em outra coisa, senão na reconstrução da Fazenda
Assombrada, na felicidade dos escravos de Santa Luzia e nos casamentos.
E os preparativos foram feitos com muito amor. As noivas confeccionavam seus
vestidos e mamãe acabou ajudando. A cerimônia seria simples, devido ao luto de
João
e Marcina. Haveria festa somente para os empregados e escravos das três
fazendas.
Aguardei ansioso o dia do consórcio. Capítulo XIV OS CASAMENTOSDois dias antes
dos casamentos, fomos para a casa da vila. As amigas de mamãe e das meninas,
curiosas,
foram em casa; recebemos visitas sem parar.
No dia, todos estávamos nervosos; João e Marcina tinham ido também para a casa
da vila. Não vira Marcina, mamãe, acreditando que dava azar, não me deixou ir
vê-la,
nem que os noivos viessem visitar minhas irmãs. Trocamo-nos mais cedo e mamãe
ajudava minhas irmãs. Na hora marcada, fomos para a igreja, meu coração saltava
no
peito de felicidade e sorria sem parar.
Encontramo-nos na porta da igreja. Marcina estava muito bonita, olhávamo-nos
apaixonados. João entrou com ela, e eu com minhas irmãs, Carlota de um lado e
Glorinha
do outro. No altar, Pedro veio buscar Carlota, e João e eu trocamos de
acompanhante: entregamos nossas irmãs e recebemos nossas esposas. Estávamos os
seis muito
felizes, amávamos. Até o vigário não me pareceu tão antipático. Quando a
cerimônia acabou, foi que notei que a igreja estava cheia, todos os habitantes
da vila vieram
para assistir aos casamentos.
Carlota e Pedro ficaram na vila, permaneceriam lá uns dias. João e Glorinha
passariam uns dois dias na casa deles, na vila, depois iriam para a fazenda.
Mamãe foi
passar um mês na casa de uma sobrinha na vila vizinha e Marcina e eu fomos para
a fazenda. A festa foi animada; os empregados, os escravos, passaram a noite
cantando
e dançando.
Senti-me muito feliz.
O tempo passou.
CATIVOS E LIBERTOS

Mamãe e Marcina tornaram-se amigas, e d. Catarina nunca mais pensou em sair de
casa. As duas faziam muita caridade. Como não gostavam de dar esmolas para a
igreja,
passaram a fazer elas próprias obras sociais: sustentavam famílias pobres,
confeccionavam roupas, separavam alimentos do nosso celeiro e os distribuíam,
ajudando
a muitos.
Nunca discutiram, não falavam do passado, mamãe não ia à Santa Luzia, porém nada
dizia por Marcina ir, e minha esposa nada comentava dessas visitas.


Página 96


Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
Laurinda casara-se com um bom rapaz, pareciam estar bem, só que não tinham
filhos e mamãe comentava: "Se Jorge tivesse casado com ela, não tinha me dado
netos".
Tínhamos, Marcina e eu. seis filhos, sendo os dois mais velhos, homens, que
receberam o nome do meu pai e do meu irmão, Joaquim e José. para alegria de
minha mãe.
Maria, a negra parteira, morrera, mas continuava ajudando a nós todos. Por duas
vezes tinha-a visto envolta de muita luz, parecia-me radiante e seu espírito
continuou
auxiliando a todos que lhe pediam. Todos na fazenda diziam que era uma santa
que, em nome de Jesus, ajudava a quem sofria. Para mim, Maria aprendeu nesta
encarnação,
nesta existência, a ter humildade, resgatou suas dívidas fazendo o bem; tendo o
corpo morto, sentiu-se livre, e teve a liberdade merecida. No plano espiritual
muitas
vezes continuamos a fazer o que amávamos, o que fazíamos com amor na Terra.
Assim, continuou a fazer o bem. a ajudar os que sofrem no corpo.
Pai Tomás continuava morando na sua humilde casa. Pedro insistira com ele para
que fosse morar perto da sede, numa casa melhor, mas ele agradeceu e não
aceitou.
Dizia que gostava dali e que era mais do que merecia. Parecia o mesmo de anos
atrás, e a única diferença foi que o corpo curvara-se um pouco para a frente e
alguns
cabelos branqueavam. Atendia muitas pessoas, da vila, da redondeza, receitava
seus remédios de ervas, benzia, era querido por todos e estava sempre feliz.
Nunca
fora nos visitar, não saía
200
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS de sua casinha, só se fosse
para visitar algum doente grave. Ia sempre conversar com ele, trocar idéias, e
ele
com seu modo simples elucidava-me. Falava das verdades das coisas simples, da
religião dos seus ancestrais e dos ensinamentos de Jesus. Ensinos estes que
foram esquecidos
pelos homens na ambição de possuir o mundo, os bens materiais: haviam colocado
em segundo plano o Reino dos Céus.
A Fazenda Boa Esperança, antiga Fazenda Assombrada, modificara-se, não se viam
ali mais espíritos, e os fantasmas ficaram só na história. Pedro fizera uma
fazenda
de criação de gado, e prosperava. Moraram conosco mais de um ano, depois que se
casaram; construímos uma sede muito bonita perto da divisa, ficando próxima da
nossa
casa. Reconstruíram a fazenda, eram felizes.
Estamos novamente em janeiro, era mais um aniversário da morte de José. do meu
regresso. Marcina, logo após o almoço, disse-me que ia visitar o pai, e resolvi
ir
junto. Fomos na charrete, as crianças iam atrás em algazarra. Raramente
acompanhava Marcina nas suas visitas ao pai e à irmã, e se a acompanhava ia para
a casa de
Glorinha. João construíra outra casa para eles, menor, mas confortável, perto da
outra, num lugar mais alto. Da fazenda Morro Vermelho, só a casa velha ficara,
tudo
se modificou com a fazenda Santa Luzia. João prosperava, os escravos viviam bem,
era um lugar de fartura e bem-estar.
Ao chegarmos, Tamira veio encontrar-se conosco, toda contente, ela adorava os
sobrinhos, seis, nossos filhos e dez de João. Estava mais feia ainda, gorda e
desajeitada,
mas era feliz, estava sempre rindo. Quando casamos, deixei Marcina à vontade
para levá-la conosco. Tamira não saía de casa, não gostava de ir a lugar nenhum
e, se
tentassem tirá-la, gritava, sapateava e chorava desesperada. Andava por perto da
casa no pátio, no pomar, mas bastava falar que a levaríamos a outro lugar para
ela
se desesperar pedindo para não ir. João e Marcina combinaram que tudo fariam
para que a irmãzinha doente fosse feliz, que ninguém iria ter
CATIVOS E LIBERTOS 201
vergonha dela e que sua vontade, dentro dos limites, seria respeitada. Assim,
ficou morando na casa antiga, com o pai enfermo e com as negras a cuidarem

Página 97


Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

deles.
Ajudava Marcina a descer, quando uma das amas veio dizendo:


-Sinhá Marcina, Tamira está muito inquieta. Hoje cedo, sem que víssemos, ela
pegou o prato de mingau e deu ao sinhô seu pai, sujando-o todo.
-Falarei com ela - disse minha esposa se aborrecendo.
Tamira já rolava pela grama com meus filhos. Adorava brincar, estava sempre se
divertindo com os negrinhos da fazenda, sujava-se muito, tinha boa saúde e me
parecia
muito bem.
Deixei-os e fui para a casa de minha irmã, João saíra e Glorinha estava muito
ocupada. João e minha irmã eram felizes, pareciam dois namorados rodeados de
filhos,
o lar deles era muito agradável. Para não incomodar, voltei para a antiga sede,
sentei-me na varanda. Escutei as crianças rindo, brincavam no pomar.
Lembrei-me da última vez que estivera naquela casa, fora logo após meu
casamento, quando viera visitar o Coronel Francisco. Estava um tanto
constrangido, entrei
nos aposentos do meu sogro inquieto e este, ao me ver, estremecera, suava, seus
olhos crisparam-se de ódio. Saí rápido do quarto. Marcina foi acalmá-lo e fiquei
esperando-a na sala. aborrecido por sentir-me tão odiado. Foi aí que vi os
espíritos de cinco negros. Fiquei arrepiado, não consegui me mover, e
paralisado, senti
muito medo. Estavam machucados, sangravam, estavam juntos, era uma visão
assustadora, pararam na minha frente, olhavam-me, ficando a alguns metros de
distância.
Um deles me disse:
"Sinhozinho Jorge, não queremos lhe fazer mal, queremos bem o sinhô pelo modo
que trata nossos irmãos, os negros escravos. Temos respeito ao sinhô. Nada tem a
temer
de nós, mas é melhor não se meter onde não é chamado, não interferir na nossa
vingança. Porque o sinhô se preocupa com este monstro? Ele o odeia tanto como a
nós,
se ele pudesse matava-o como fez ao sinhozinho seu irmão e a tantos outros.
Deixe-nos em paz!"
202
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
Estava do mesmo modo, quis falar, meus lábios não obedeceram, pensei: "Sofrem
também, estão feridos, será que esta vingança lhes faz algo que os ajude?"
O mesmo negro sorriu e falou:
"O sinhô é bom em ter pena de nós. Sofremos, sim. Vê minhas costas?" - virou por
segundos, suas costas sangravam com sinais de chicotadas. "Dói, sinto dores,
prefiro
senti-las e fazer este diabo sofrer, pois não dá para esquecer. Aqui vêm uns
homens, dizem ser socorristas, aconselhar-nos a perdoar para sermos curados e
para termos
paz, porém não queremos, cada sofrimento deste maldito é pouco para nós.
Sofremos, mas nos vingamos. Estamos aqui e daqui não sairemos, não fazemos mal a
quem não
merece. Ao sinhozinho João e à sinhá Glorinha até servimos. Somos em muitos, nos
repartimos: uns tomam conta do peste do sinhô Chico e outros do sinhô Lucas. O
sinhozinho
nos vê, é melhor não voltar aqui e não interferir nas nossas vidas!"
Ainda tive coragem e indaguei:
"O coronel já não sofre, inválido como está? Não existe Deus para castigar?"
"Deus existe, mas Ele não se importa em castigar, resolvemos castigá-lo nós
mesmos. Tudo o que o Coronel Francisco sofrer, é pouco. Já avisamos o sinhô, não
se meta!"
Sumiram e permaneci imóvel, suando, fui me acalmando e comecei a orar. pedindo a
Jesus proteção. Foi João quem me tirou daquele torpor:
-Vem Jorge, vem para a cozinha, Bárbara preparou-nos um cafezinho especial.
-Sinhozinho Jorge, que tem? Está branco! - disse-me Bárbara.
-Nada, não sei - respondi.
-É esta casa, ainda bem que a nova logo ficará pronta, não gosto daqui,
parece-me cheia de fantasmas, até falei com Pai Tomás.
-É? E o que ele disse?
CATIVOS E LIBERTOS
203
-Para não interferir em assunto que não seja meu. Nada que tem aqui nos fará
Página 98

Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

mal.

Desde este dia, não voltei mais a ver o Coronel Francisco. Nestes anos todos,
meu sogro estava do mesmo jeito, paralítico, só mexia um pouco com a cabeça e
com os
olhos, não falou mais.
Nunca mais vira os negros obsessores. orava sempre por eles para que perdoassem

o coronel. Nas reuniões evangélicas que continuávamos fazendo uma vez por
semana,
orávamos por eles.
Pensava sempre no que Jesus nos recomendou, que perdoássemos sempre, o perdão
nos dá paz; não perdoar é acarretar sofrimentos. Querer vingar é fazer sofrer e
padecer
junto. Pensava com certa ansiedade no coronel e nos filhos mortos, com aqueles
espíritos como companheiros, com eles cobrando o que lhes achava devido. Todos
cativos.
Uns por terem feito tanto mal, ligaram-se às trevas, e os outros cativos pelo
ódio, negando se libertarem pelo amor, pelo perdão, não esquecendo do mal que
lhes
fizeram. Deu-me vontade de ver meu sogro, naquele momento. Entrei na casa e, no
"hall" de entrada, escutei Marcina lendo o Evangelho. Ela lia sempre para o pai,
falava a ele com doçura e carinho dos ensinos de Jesus. Marcina parou de ler ao
me ver. Tirei o chapéu, aproximei-me devagar, fiquei na frente do meu sogro.
Encaramo-nos.
Ele não demonstrou nenhum sinal de repulsa. Marcina falou entusiasmada:
-Papai, Jorge é tão bom marido, me faz tão feliz! O senhor sente isto, não é?
Percebe que sou feliz. Ele é bom, amigo, todos gostam dele e... é pai dos seus
netos!
Não vi nenhum obsessor por ali: ou haviam se cansado ou afastaram-se com nossa
presença, com a leitura do Evangelho. Orei mentalmente ao Pai para que ajudasse
a
todos a perdoarem. E, lembrando que, em todo ensino, a melhor forma de fazê-lo é
dando o exemplo, disse com simplicidade:
-Coronel Francisco, sou seu genro, Marcina e eu somos felizes, temos lindos
filhos, estou muito bem. Nunca quis brigas com o senhor, não gosto de
desavenças, não
as tenho com
204 VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS ninguém. Sou amigo de
todas as pessoas da redondeza. Por que não esquecemos o passado, tantas coisas
ruins
e fazemos amizade?
O Coronel Francisco estava velho, cabeça totalmente branca, pálido, semblante
cansado, muito enrugado, pois muitos anos fazia que estava entre o leito e a
cadeira,
sempre necessitando de que outros o transportassem, tendo por companhia a filha
que desprezara tanto e os negros a lhe servir, negros que odiara tanto. Senti
que
tudo isto modificara-o.
Ele esforçou-se, afirmou levemente a cabeça, seus olhos piscaram muitas vezes.
Marcina sorriu, contente, era o que sempre queria, que fizéssemos amizade, e
falou
alto:
-Jorge, ele aceita, este é o seu sinal de sim, ele quer ser seu amigo!
Marcina deu-me um estalado beijo no rosto, senti-me satisfeito, aproximei mais
dele, coloquei a mão no seu ombro, e disselhe baixinho:
-Devemos nos aceitar, Coronel. Peço-lhe perdão se fiz algo que lhe desagradou e
perdôo o mal que nos fez. Há muito tempo, meu sogro, nós já o perdoamos. Sabemos
que mandou matar José, meu irmão. Vamos esquecer as mágoas, devemos perdoar e
também ser humildes e pedir perdão, peça perdão a Deus e também a quem ofendeu.
Olhou-me demoradamente, seu olhar já não era tão duro, já não tinha ódio.
Sentamos e Marcina continuou a ler o Evangelho, a Parábola dos Talentos.
Quando acabou, Marcina pediu-me que fizesse a oração de encerramento e a fiz,
comovido:
-Deus, nosso Pai, agradecemos todos os benefícios que recebemos. Hoje, quero
agradecer especialmente por ter feito amizade com meu sogro e permita Senhor que
nos
tornemos amigos por todo o sempre. Agradeço a oportunidade que nos dá com o
coração, esta força maravilhosa que tanto bem nos faz. Ajudando a sermos
humildes e a
Página 99


Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

aceitarmos os sofrimentos do corpo

CATIVOS E LIBERTOS 205 como remédio à nossa alma enferma. Ajuda-nos a ter paz e
a viver os ensinos que, com exemplos. Jesus nos deixou. Amém! Pai. Despedimo-nos
ffomos embora, estava me sentindo muito bem, feliz. Lembrei do que Jesus
dissera: Se está para fazer sua oferta, sua oração ao Pai, lembre se tem algo
contra seu
irmão, vai primeiro até ele, reconcilie, depois volte afazer sua oferta, sua
oração.
Meus filhos, atrás da charrete, cantavam felizes, eram lindos, sábios,
observei-os, minha caçulinha, minha doce Ambrosina, estava com o rosto todo sujo
de manga,
rindo para mim toda contente, eu os amava demais. Encontramos com três
camponeses que vinham em sentido contrário, pararam à margem da estrada, tiraram

o chapéu
e cumprimentaram-me:
-Boa-tarde, Coronel Castro, que Deus o proteja e à sua família.
Parei a charrete, tirei o chapéu e respondi gentilmente:
-Boa-tarde, senhores, que Deus os proteja também. Sorriram contentes, senti
neles a satisfação de receber atenção de alguém, para eles tão importante
naquelas terras.
Tornara-me importante, realmente. Quando dei dinheiro a Carlota, ficara somente
com Sant'Ana, que logo progrediu, tinha colheitas fartas, comprava mais terras,
vivíamos
todos com abundância. Tinha muito dinheiro que emprestava sempre. Andava sempre
com a garrucha que trouxera de presente ao meu pai, e alguns dos meus empregados
usavam armas. Saía sempre com Tião e Samuel e estes sempre bem armados. Nunca
usamos as armas, nem para nos defender, graças a Deus. Às vezes, treinávamos no
pátio
da fazenda, como distração.
Do alto da estrada, avistei as três fazendas, a divisa delas no rio. Tudo tão
bonito! Não era à toa que chamavam as três fazendas, de Triângulo da Felicidade.
Olhar
tudo, dava-me paz, tranqüilidade.
206
VERA LÚCIA MARNZECK DE CARVALHO / ANTÔNIO CARLOS
Era respeitado por toda a redondeza, e sempre convidado para entrar na política,
mas não aceitava; político nem sempre agrada a todos e não queria desavenças com
ninguém. Do meu antigo sonho, ser um abolicionista, pouco ficara. Meus escravos
viviam muito bem, eram colonos. O que fazia por eles, negros, era comprar mais
do
que necessitava, unir famílias separadas. Dava também dinheiro a dois amigos de
uma família da vila, que moravam na capital da província, para que eles
promovessem
fugas e para que comprassem escravos mal tratados para libertá-los.
Como tinha muito dinheiro, era rico, usava meu prestígio junto a outros senhores
de escravos para que os tratassem bem. E com o delegado, para que não os
perseguisse.
Embora a contragosto, muitos não ousavam desagradar-me.
Muitas vezes fugitivos apareciam nas minhas terras. Manuel escondia-os com minha
permissão e ia até seu senhor para comprá-los e às vezes trazia toda a família.
Nunca me foi negada uma compra, eu era importante demais para que me
desagradassem. Se o escravo fosse bom, ficava conosco, se fosse ruim, deixava-o
ir embora.
Olhando da estrada a beleza dos campos e das plantações, sentindo a bonança que
ali reinava, recordei o que Pai Tomás sempre me dizia:
"Sinhozinho Jorge nada tem, essa é a verdade, porque nada disto que desfruta,
que o mundo acha que é do sinhô, é realmente seu. Tudo é de Deus, do Pai, tudo a
Ele
pertence, até nós. Pode Ele nos emprestar por algum tempo e fazer-nos assim seus
administradores. Deve o sinhozinho conscientizar-se bem disto e administrar,
somente.
Veio nesta existência para administrar esta parte tão pequena da Terra. Seja
sábio! Como o sinhozinho é bom, administre com sabedoria e amor. sem se deixar
prender
a ela, sem se iludir pensando que lhe pertence". E a leitura que Marcina fizera
ao pai enfermo, deixou-me com mais argumentos para meditar. Não deveria esconder
o talento que recebera na Terra, como um avarento; tinha o dever de
multiplicá-lo em benefício de muitos. Não era
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Cativos e libertos - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

CATIVOS E LIBERTOS

fácil ter poder, riqueza material e ser livre, não sendo escravo dela. A riqueza
de bens materiais é uma prova difícil, de que Jesus nos alertou dizendo que não
era fácil um rico entrar no Reino dos Céus, e que o perigo estava em mais amar o
reino da Terra do que o Reino dos Céus. Não podemos servir a Deus e a Mamon.
Devemos
servir só ao Pai Santíssimo, porque os bens materiais são para nos servirem,
devemos administrá-los e usá-los para o bem estar do maior número de pessoas.
Essa minha
meta era também minha luta interna, só administrar e não ficar cativo pelo
poder, pela riqueza material!
Renascer no corpo, crescer em espírito, aprender com as oportunidades que nos
são oferecidas e libertar-nos, tornando-nos livres do mundo material, para
estarmos
aptos ao mundo espiritual. Este deve ser o objetivo do homem na Terra!

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SOMENTE UMA LEMBRANÇA
VERA LÚCIA M. DE CARVALHO
(ESPÍRITOS DIVERSOS, ESPÍRITO ANTÔNIO CARLOS)


SINOPSE

Maria do Rosário perdeu quatro filhos, ainda jovens, num terrível acidente. Adnison sofreu bastante: foi um deficiente. Marisa, violentada pelo pai, revoltou-se. Para Cleonando as coisas nunca deram certo. Lucy viveu desilusões amorosas. Wellynton enfrentou dolorosa possessão. Gilda acreditou que era uma assassina e, assim, incriminou-se. Adão Moreno apavorava-se, estranhamente, diante da água. Nelinha sentia medo de pessoas altas. Anita perdeu um filhinho. João D'Água, doente e atormentado pela fome, não conheceu a paz. Qual a razão de tantas amarguras? Por que Deus permitiu que tudo isso acontecesse? Em Somente uma lembrança - relatos verídicos organizados pelo Espírito Antônio Carlos - eles mesmos, agora no Além, depois de mergulharem profundamente no passado, explicam as causas de seus sofrimentos, inesquecíveis lições de espiritualidade que nos levam ao encontro da verdadeira felicidade.

ABAS DO LIVRO

Por que tantas pessoas sofrem a vi da inteira, amarguradas e desesperançadas? Como explicar a causa de males terríveis que atingem aqueles que vivem pacificamente, sem prejudicar ninguém? Qual a razão da morte de jovens que se despedem tão cedo e tragicamente de seus entes queridos? O amor e a alegria não faltam para alguns, enquanto outros corações sofrem traições e convivem com a desilusão... Em muitos lares falta o essencial, mas em luxuosas residências são servidos verdadeiros banquetes... Atormentados, uns se revoltam e acusam a Deus, enquanto outros, resignados, aceitam a companhia da dor. Por quê? Em Somente uma lembrança, o Espírito Antonio Carlos - organizador da obra, relatos de vários espíritos, oferece respostas definitivas para inúmeros questionamentos. Com essa intenção, o competente escritor espiritual reuniu depoimentos daqueles que enfrentaram incríveis aflições e, somente no Além, descobriram a causa de suas aflições. Por intermédio deles, entendemos claramente que a reencarnação é uma abençoada oportunidade de reparar nossos erros, indenizar a quem prejudicamos e, assim, conquistar a felicidade.

1 - PAI HERÓI

Chamo-me ou tive esse nome nesta minha última encarnação - Cleonando Rodolfo, nome completado com dois sobrenomes. Cleonando foi uma junção de Cléo, nome de minha mãe, e Nando, de Fernando, meu pai. Quando estava encarnado, chamavam-me de Nandinho ou Nando. Penso que não compreenderíamos certos episódios de nossa história de vida se não fossem explicados pela justa Lei da Reencarnação e, conseqüentemente, do retorno de nossas ações. Fiz planos, e, de repente, eles me foram podados, mas, quando me entristeci, escutei de um orientador:
- Será, Nando, que você não agiu assim no passado? Impediu alguém de realizar seus planos?
Pensei muito: "Será que joguei um balde de água fria em outras pessoas, apagando nelas o entusiasmo da realização de seus sonhos?". Era assim que em espírito sentia antes de desencarnar, ainda criança: entusiasmado. Queria muito realizar meus planos junto àqueles a quem amava, queria bem. Sentia entusiasmo para realizar a tarefa proposta de ajudá-los a agir corretamente. Sentia em mim um fogo que iluminava e queria que esta luz iluminasse os caminhos deles. Fui privado dessa possibilidade. Quando meu corpo físico morreu, fui trazido para a continuação de vida, para um educandário situado numa colônia. Amava viver ali. Porém, às vezes me sentia diferente, como se eu fosse um adulto, e, nesses momentos, sentia-me privado da realização de meus sonhos e planos. Embora isso me incomodasse um pouco, continuei com a minha rotina, estudava e brincava muito. Soube pelos estudos, nos cursos que estava frequentando, das leis da reencarnação e da ação e reação. Nosso espírito pode revestir um corpo carnal muitas vezes e somos herança de nós mesmos. Ao assistir às aulas, sentia que sabia tudo o que estava sendo dado. Estava recordando. Com facilidade, recordei como ler e escrever. Comecei a pensar que fora injustiça o que ocorreu comigo. Se meus planos eram bons, iria fazer o bem, não deveria ser privado disso, ainda mais porque meu pai tinha se arriscado muito para me salvar. Meu pai, meu herói! Numa tarde, estávamos, meus amiguinhos e eu, no parque, brincando. Era intervalo das aulas.
- Nando, conte para Melissa sua história - pediu Renato, meu melhor amigo.
- Renato e eu ocupávamos o mesmo quarto. Eram oito meninos ocupando um espaço grande, arejado, onde cada um de nós tinha sua cama, escrivaninha, poltrona, armário, brinquedos e objetos particulares. O espaço de Renato ficava ao lado do meu. Ele viera para o plano espiritual depois de ter ficado muito doente. Neste período, três anos em que estivera enfermo, seus pais se separaram, e o pai foi escasseando as visitas. Melissa, uma menina muito bonita, teve seu desencarne por atropelamento. Nossas conversas ainda eram sobre lembranças de nossas vidas encarnadas, sobre famílias, saudades, e sobre nossas desencarnações. Suely, uma de nossas orientadoras, afirmava que certamente iríamos nos cansar desses assuntos e apreciar outros, mais edificantes. Gostávamos também de conversar sobre as atividades dos corais em que a maioria das crianças do Educandário participava e cantava lindas canções, sobre os jogos realizados, sobre os nossos estudos e sobre os ensinamentos de Jesus. E em vez de responder ao pedido de Renato, comentei:
- Mudei muito!
- O quê? - Perguntou Renato. - Se ligue, Nando! Pedi a você para contar a Melissa como seu pai foi um herói e você diz que mudou muito.
- Sinto-me diferente - falei. - Penso, às vezes, que sou adulto. Parece até que sei ler e escrever. Lá na Terra ia somente à creche. Ás vezes, penso que sei muitas coisas.
- Não se aborreça por isso - Melissa tentou me consolar. - As coisas por aqui parecem mágicas. A Terra do Nunca! Prim-prim... e acontece! Até voamos. Ou melhor, volitamos. Estou aprendendo a plainar no ar como uma borboleta, um beija-flor. Não se preocupe se você, Nando, sente-se diferente, agora vive em outro mundo, o dos espíritos.
- Melissa, você gosta daqui? - perguntei. Se aqui estivessem comigo meu pai, mamãe, meu irmão, meus avós, tios e primos, seria perfeito. Sempre quis conhecer a Terra Mágica. Melissa - Renato tentou explicar -, aqui não é a Terra do Nunca ou Mágica. E o mundo espiritual, antigo céu dos anjos
- E por que mudou de nome? - quis saber Melissa.
- Penso que seja a mesma coisa - opinou Renato. - Aqui é um lugar maravilhoso, então é o céu. Nossas vidas não serão assim para sempre. Aqui não é lugar de ociosidade. Penso que é por isso que deram outro nome. Os anjos são as tias e tios que cuidam de nós. Eles até voam! Chamam esse processo "volitação". Não têm asas porque não precisam. Mas, como nada é perfeito, não podemos trazer para cá aqueles de quem gostamos. Estive pensando que mudamos de familiares. Podemos amar todos os moradores daqui como se fossem nossa família.
- Se vivemos muitas vezes, estamos sempre gostando de pessoas diferentes! - exclamou Melissa. - Nem sempre gostamos de todos nossos familiares. Nunca consegui gostar de minha avó paterna como gostava de minha avó materna. Penso que ela me fez alguma maldade na outra vida, ou pior, que eu fiz a ela. Tentamos ser amigas, ela me agradava, mas não era algo espontâneo. Mas, Nando, conte para mim, como foi sua desencarnação.
Suspirei, penso que fiquei como sempre ficava quando falava do assunto, com olhar sonhador e saudoso. Comecei a contar:
- Estávamos numa festa. Minha família era festeira. Comemorávamos o batizado de meu priminho. Muito barulho, música alta, muita comida e bebida. As crianças, umas dez, brincavam por entre as mesas. E não nos assustamos quando começou uma discussão. Depois de muita bebedeira, não era difícil ter alguma briga, com xingamentos e gritos. Nós, as crianças pequenas, abaixamo-nos e nos escondemos debaixo de uma mesa. Vi meu pai. Ele me pegou no colo, tampou meus olhos e senti um ardor no peito. Ouvi minha mãe gritar: "Nando! Nandinho! Não!". Aí eu apaguei. Não vi ou ouvi mais nada. Acordei aqui.
- Posso fazer umas perguntas? - Melissa pediu.
- Claro, pode perguntar - concordei.
- Por que seu pai o pegou no colo?
- Para defendê-lo - interferiu Renato. - Você não entendeu? O pai dele quis protegê-lo.
- Se era para defendê-lo, por que Nando foi morto? - Melissa indagou, curiosa.
- Vocês meninas não entendem - reclamou Renato. - Preste atenção, vou explicar: Nando estava numa festa, houve uma briga, e o pai dele o pegou no colo para que não lhe acontecesse nada de ruim. Entendeu?
- Entendi - respondeu Melissa -, essa parte compreendi. Mas por que ele não conseguiu impedir que o corpo físico de seu filho fosse morto? Não teria sido melhor deixá-lo embaixo da mesa? Nando, por favor, responda-me, estou somente querendo saber. Seu pai morreu, ou seja, desencarnou?
- Foi ferido, mas não desencarnou - respondi.
- Você se lembra de todos os detalhes do acontecido na festa? - perguntou Melissa.
Ele já contou - interferiu Renato. - O resto, Nando não viu por estar com os olhos fechados, tampados.
- Isso merece uma investigação! - exclamou minha colega, entusiasmada. - Você sabe quem atirou?
- Sim - respondi -, foi meu tio Fabiano.
- Ele o odiava tanto assim? - Melissa, curiosa, quis saber.
- Não! Meu tio Fabiano gostava de mim. Dava-me presentes, doces e balas.
- Por que será que ele o quis matar? - Melissa continuou a perguntar.
- Mas por que você quer tanto saber? - indagou Renato.
- Não quero tanto saber, é que gosto de entender. Eu desencarnei porque me distraí, atravessei a rua num entroncamento, e um ônibus me atropelou. O motorista estava correndo muito porque estava atrasado. Vocês dois não perceberam ainda que temos respostas para tudo? O condutor do ônibus já tinha sido advertido por se atrasar, então se aproveitou de uma descida para correr bastante. Eu olhei para os dois lados e me esqueci do terceiro. Vi o acidente e procurei saber do que não tinha visto. Meus pais, avós e familiares sofreram muito. O motorista também sofreu, ele sentiu culpa e até se demitiu, arrumou outro emprego e não dirige mais.
- Você pensa que ele é culpado? - Renato quis saber.
- Ele não fez isso porque quis, não planejou, mas foi imprudente: se não estivesse correndo tanto, talvez pudesse ter brecado. Seus patrões também não pensaram, ao pedir para ele não se atrasar, que ele ultrapassaria a velocidade permitida e aconteceria um acidente. Minha mãe também se culpa por ter permitido que eu fosse sozinha à mercearia. Ninguém é culpado! Aconteceu! Desta vez reencarnei para voltar ao plano espiritual ainda no período da infância. Percebem agora por que eu entendo? Sei tudo que me é explicado. É bom saber dos detalhes.
Renato concordou e me indagou:
- Nando, por que seu tio o assassinou?
- Não sei! Sinceramente, não sei! - exclamei.
- O que importa é que seu pai é herói! - Renato se exaltou.
- Penso que todos os pais são heróis! - concordou Melissa.
- O meu não é! - lamentou Renato.
- Se existem motivos para alguém ser herói, existem também para não ser - falou Melissa. - São os motivos que determinam ser ou não ser. Renato, você guarda mágoa de seu pai?
- Não, nunca senti mágoa. Somente queria que meu pai gostasse de mim, que ele fosse diferente - lamentou Renato.
- As pessoas são o que são e não podemos mudá-las. Aprendi aqui que somente conseguimos modificar a nós mesmos. Obrigada, Nando, por ter me contado sua história.
Melissa afastou-se. Renato pegou seus cadernos e me chamou:
- Nando, vamos para a aula!
- Vá indo, irei em seguida.
Porém, não fui para a sala de aula, mas sim para nosso quarto. Deitei na minha cama e fiquei pensando no que Melissa dissera. Então, questionei: "Por que será que meu pai me tirou de onde havia me escondido, debaixo da mesa? Por que me pegou no colo? Será que fui assassinado porque já fui um assassino?". Meus pensamentos não eram coerentes para um garoto de seis anos. Confuso, chorei. Passaram-se uns dez minutos, e Ivone, uma moça bonita que cuidava de nós, entrou no quarto, sentou-se ao meu lado, abraçou-me e perguntou carinhosamente:
- Posso saber o porquê dessa tristeza?
- Não sei por que estou triste!
Ela me olhou e ficou calada por uns instantes. Soube, tempos depois, que Ivone mentalmente se comunicara com um orientador, e ele pedira que me levasse até sua sala. Isso ocorreu porque Ivone ainda estava na condição de aprendiz e, naquele momento, não sabia como me orientar.
- Nando, venha comigo, por favor! Vou levá-lo para conversar com Miguel, uma pessoa sábia que poderá auxiliá-lo.
Pegou na minha mão, e eu a segui. Ivone, como todos no educandário, era alegre. Começou a cantar. A tristeza ali não fazia morada, era o que escutava de todos. A alegria é boa companheira! Cantávamos sempre. E bastava uma criança se entristecer para receber mais atenção e carinho. Tentavam distraí-la, e logo ela voltava a sorrir. Percebi que os períodos mais tristes aconteciam por causa da saudade, não tanto da nossa, mas daqueles que ficavam encarnados. Eu não tinha esse problema. Sentiram minha falta, mas nada que pudesse me incomodar. Meu pai havia se ferido e estava com outros problemas. Eu não sabia quais eram, mas sentia sua preocupação. Minha mãe tinha Roselinda - a Rosinha, minha irmã - e seu novo marido. Às vezes, senti que chorava por mim, porém também estava com muitas preocupações. Minha mãe mudou-se, foi morar em outro bairro, longe de meu pai. Tio Fabiano me pediu perdão, não quisera me matar, não sentia raiva de mim conforme Melissa pensou e dissera. Meu tio também estava preocupado, tinha fugido e se escondido. Meu pai e minha mãe sabiam onde ele estava, mas não contaram à polícia. Como eu sabia disso tudo? Não entendia como. Se pensasse no meu pai, sentia-o, como descrevi, e o mesmo acontecia em relação a outros familiares. Estava mudado, sentia-me estranho, não me compreendia. Não eram pensamentos de uma criança. Resolvi cantar com Ivone, e logo chegamos. Paramos diante de uma porta. Perguntei receoso:
- Esse senhor vai ficar bravo comigo?
- Claro que não! - respondeu Ivone. - Por que pergunta isso?
- Não fui à aula, fiquei no quarto. Aqui não é a sala da diretoria? O diretor não irá me colocar de castigo?
- Os responsáveis pelo educandário nesta parte da colônia, que é uma cidade no plano espiritual, trabalham somente visando ao bem-estar de todos. Não existem broncas ou castigos.
- Aqui é a Terra Mágica mesmo! Ivone sorriu e me esclareceu:
- Mágica! É a magia do Amor! O amor, Nando, conserta tudo, nos faz feliz, e, quando somos felizes, tudo é fácil!
Ivone bateu na porta, e, ao ouvir a ordem "entre", ela entrou, me puxando. Se sentia receio, ao ver Miguel, este sumiu. Ele é um senhor muito agradável. Recebeu-me sorrindo, olhando-me bondosamente, cumprimentou-me. A sensação que tive era a de estar diante de um avô que me amava. Ivone me beijou e saiu da sala. Chorei.
- O que você quer, Nando? - Miguel perguntou baixinho.
- Estou chorando porque não sei o que quero! - respondi. Com muita paciência e com a sabedoria de quem está acostumado a resolver qualquer tipo de problema, Miguel me indagou:
- Como tem se sentido?
- Muito estranho! Seria engraçado, se eu não estivesse confuso. Não o surpreende um garoto falar assim? Tenho seis anos!
- Seu corpinho físico estava com seis anos quando voltou para cá. Mas você, em espírito, tem mais idade. Não me surpreende e nem deve surpreendê-lo. Seja o que é! Você, Nando, é um espírito maduro e responsável.
- Está me dizendo que não devo me preocupar por ter mudado?
- Nossa mudança é constante! É maravilhoso quando mudamos para sermos um ser humano melhor. Conte-me o que está sentindo.
- Tenho visto, aqui no educandário, muitas crianças se entristecerem porque seus pais e suas famílias sofrem com suas desencarnações. A minha família sentiu, mas não muito, e eles estão preocupados.
- Ninguém deveria sofrer muito com a desencarnação. Se você sente seus familiares preocupados, é porque talvez eles estejam passando por algumas dificuldades. Ore por eles. Miguel fez uma pequena pausa e continuou a falar: - Nós, Nando, pelas nossas reencarnações, abrimos e fechamos vários compartimentos de nossas lembranças.
- São como gavetas? - perguntei.
- Para você entender, vamos pensar que cada encarnação nossa é uma lembrança que guardamos em uma gaveta, e temos muitas. Podemos fechá-las, porém estão lá, ficam aqui, guardadas conosco em nossa memória espiritual. E, às vezes, pode ocorrer da penúltima gaveta se abrir sozinha, porque, por algum motivo, não a trancamos, e as lembranças dessa gaveta se misturam com as recentes, que ainda não foram engavetadas. Você ficou pouco tempo no plano físico e, por isso, pode ocorrer de se lembrar de acontecimentos de sua encarnação anterior que ainda são recentes para seu espírito. Por este motivo se sente assim.
Entendi e pedi:
- Posso me lembrar de minha outra existência e opinar se quero continuar a ser o Nando ou o outro?
- Não existe "eu" e "o outro", somos únicos. Você é o Nando, mas já teve outros nomes, viveu de formas diferentes, porém todos os nomes que já teve são você.
- As gavetas estão num só cômodo, e este cômodo sou eu.
- É isso aí! Você compreendeu - Miguel elogiou-me.
- Então quero recordar a minha penúltima encarnação, penso que, ao me lembrar, entenderei o porquê de ter sido assassinado pelo meu tio. Teria sido um acidente?
Sempre entendemos acontecimentos de nossa vida presente pelos nossos atos do passado. Porém, aconselho recordar os acontecimentos deste curto período que esteve no Plano Físico.
- Como me sinto agora, poderei entender os acontecimentos, não é? Um adulto criança!
- Poderei ajudá-lo, se quiser - Miguel se ofereceu.
- Por favor - pedi.
- Nando, nem todos os acontecimentos de nossa vida são agradáveis. Alguns são camuflados, isto é, podem parecer ser uma coisa, mas, na realidade, são outra. Principalmente quando estamos na fase infantil.
- Está tentando me alertar? Dizer que posso entender, ao recordar, de fatos adversos ao que penso?
- Sim - respondeu o orientador do educandário.
- Quero saber!
- Então vamos analisar a família de seu pai. Sua avó... As lembranças deles vieram diferentes naquele momento. Fui lembrando e falando:
- Vovó é atenciosa com as crianças, com os netos. Tem cinco filhos, sendo quatro homens, meu pai e tios e uma tia. Meu avô está longe, mora em outro lugar. Não! Vovô está preso. Acusado de ter matado um homem para roubá-lo. Mas ele assassinou mais pessoas, a polícia não sabe. Meu Deus! Vovó sabe e concorda com o modo de vida dele e dos filhos. Meu pai não foi casado com minha mãe. Ele sempre gostou de mim: do modo dele, me ama. Não permitia que minha mãe se afastasse do bairro porque me queria por perto e ameaçava meu padrasto, ai dele se me maltratasse. Mas não precisava ameaçar, meu padrasto é boa pessoa, e eu fui um menino obediente e bondoso. Sempre gostei do meu pai. Meus tios, ele e alguns colegas discutiam, brigavam, mas eram amigos, companheiros. Eu gostava de todos. Meu pai passeava comigo, e eu gostava muito de sair com ele. Papai é forte, alegre, veste roupas que acho bonitas. Meu herói! Agora...
Comecei a chorar. Miguel deixou que eu chorasse, ficou somente me olhando. Então me acalmei. Tentei pensar e continuar lembrando. O orientador pediu:
- Fale, Nando!
- Por muitas vezes, meu pai ficava no carro, e eu ia entregar remédios a alguém necessitado. Ele me pedia: "Filho, não conte à sua mãe, ela não entende que o pobre homem doente precisa de remédios. É segredo nosso, de homem!" Contente, fazia direitinho o que ele ordenava. Eram drogas. Meu pai me usava para entregar drogas!
- E sua mãe? - Miguel perguntou.
- Percebo agora que mamãe tinha, e ainda tem muito medo de meu pai e da família dele, fazia de tudo para não criar atritos, tanto que se convidada para ir às festas, ia e me levava. Mas também gostava de festas e discussões. Morava com um moço, pai de minha irmãzinha. Com minha desencarnação, entendeu que não teria mais a proteção de meu pai e se mudaram. Ela sentiu minha partida, mas está preocupada com emprego, dinheiro e a necessidade de se protegerem. Tanto que mentiu para a polícia, afirmou que minha morte foi um acidente. Será que não foi um acidente? Não quero recordar mais.
- Por quê?
- Será que meu pai não é herói? - perguntei. - Tenho medo de que não seja.
- Nando, todos nós já tivemos momentos de covardia. É difícil alguém não ter se arrependido por ter cometido uma ação ou deixado de fazer algo por falta de coragem. Às vezes, pode ser algo importante, mas também pode ser simples. Não ter resistido a um vício, não ter enfrentado alguém, ter deixado acontecer algo que poderia ter evitado etc. Não é preciso, para ser herói, cometer uma ação extraordinária; podemos sê-lo por atos corriqueiros, no nosso dia a dia. Aconselho-o a recordar tudo. Com lembranças fragmentadas, saberá somente parte de sua história. Mas a escolha é sua.
Pensei por instantes e decidi:
- Vou recordar! Pelo que já lembrei, morava num bairro perigoso. Na família do meu pai, todos são bandidos, fora da lei, ladrões, traficantes, alcoólatras, mas são amigos e amorosos. Têm vícios e qualidades, são heróis e bandidos! Minha mãe tem medo deles, não penso que seja covarde, mas sim heroína. Mamãe trabalha como balconista, nos deixava na creche, minha irmã e eu. Ela não queria para mim uma vida de bandido. Mesmo tendo medo de meu pai, tentava me proteger e me educar.
Fiz uma pausa e continuei:
- A festa! Vou me lembrar da festa, do batizado do meu primo. Gostava de brincar, estava me divertindo quando começaram a discutir. Isso ocorria sempre: meu pai, os irmãos e até os amigos discutiam e, às vezes, trocavam socos. Quando brigavam, sabíamos, nós, as crianças, que era melhor sair de perto e procurar abrigo. Entramos debaixo de duas mesas. Agora estou vendo que a discussão era por dinheiro. Pela partilha de uma venda de drogas. Tio Fabiano acusava meu pai de ter ficado com a maior parte. Tio Fabiano pegou um revólver, meu pai recuou. Pegou-me no colo, colocando-me em sua frente como escudo, e tampou meus olhos para que não visse a cena. Os dois se equivocaram: papai tinha certeza que o irmão não atiraria em mim, e tio Fabiano, de que meu pai me largaria. Ele atirou e me acertou. Quando fui atingido, as pessoas interferiram. Minha avó determinou: todos deveriam afirmar ter sido um acidente. Chamaram a ambulância, mas meu corpo físico estava morto. Por isso, Miguel, que eu sinto papai e tio Fabiano arrependidos. Mas, infelizmente, não a ponto de se modificarem, continuam cometendo atos indevidos. A família toda está com problemas. Tio Fabiano está escondido, e eles estão receosos de que a polícia investigue o caso. Também estão com dificuldades de comprar e vender drogas por causa de outros traficantes. A preocupação deles é por esses motivos.
Chorei novamente. Miguel me consolou:
- Nando, foi bom você recordar, saber o que de fato ocorreu.
- O que irei falar ao Renato? Meu amiguinho gostava muito de me escutar falar do heroísmo do meu pai. Heroísmo que inventei. Era mentira o que falava?
- Não deve se referir a essas histórias que contava como mentiras suas - esclareceu o orientador. - Você contava o que pensava ter sido o ocorrido. Todos nós nos enganamos ou somos enganados por outras pessoas, ou até pelas circunstâncias. Pessoas podem descrever um mesmo acontecimento de formas diferentes. Pode ser que nenhuma delas esteja mentindo. As diversidades narradas dependem do local em que estavam (algumas pessoas estavam mais perto; outras mais distantes; e outras, ainda, podiam estar mais acima), se conheciam os envolvidos e prejulgam a situação. E há aqueles que preferem montar os acontecimentos imaginando-os como reais, como gostariam que fosse, que acontecesse. Você não mentiu, com seis anos no corpo físico não tinha como discernir para julgar ser um fato correto ou não.
- Meu pai não sente raiva do tio Fabiano.
- Os dois sabem que agiram errado. Acataram o que sua avó determinou. O momento não era para desunião. Iludiram-se e aceitaram que foi um acidente.
- Mas não foi não é? - quis saber.
- Foi um ato impensado.
- O que irei fazer agora?
- Vou levá-lo a um quarto onde ficará sozinho e vou ajudá-lo a adormecer. As emoções foram muitas. Quando acordar, conversaremos novamente.
Miguel me conduziu por um corredor. Abriu a porta de um quarto bonito e pequeno, com um leito, uma poltrona e uma mesinha. Senti cansaço. Acomodei-me e adormeci. Acordei. Senti que dormira por muitas horas. Estava descansado. Pensei em tudo que recordara, senti ser adulto. Como se fosse um homem que recorda sua infância.
- Foi bom saber o que ocorreu! - exclamei baixinho. Bateram à porta, um moço a abriu e me deu o recado:
- Miguel está esperando na sala dele. Esteja lá em quinze minutos.
Levantei-me, ajeitei minha roupa, cabelos, bebi água e suco, esperei passar os quinze minutos e fui à sala onde Miguel estaria me esperando.
- Como está, Nando? - Miguel me cumprimentou, abraçando-me.
- Sentindo-me bem. Como ficarei? Criança ou adulto?
- Nando, somente a você cabe a escolha. Neste momento, você está maduro, e é assim que fará sua escolha. Se optar por se sentir criança, com nossa ajuda, não irá mais se sentir como agora. Continuará morando conosco aqui no educandário. Mas não se esquecerá do que de fato aconteceu naquela festa, como foi sua desencarnação. Porém, se quiser recordar sua penúltima encarnação e saber dos acontecimentos do passado, também posso auxiliá-lo. E, se optar por isso, você se sentirá como homem, e então será transferido para outra parte da Colônia, irá para uma escola própria e aprenderá a viver como desencarnado e a ser útil aqui no plano espiritual.
Pensei por uns instantes e concluí:
- Sentindo-me criança, ficarei decepcionado. Meu pai não será mais o herói que julgava. O período da infância é importante, mas prefiro a maturidade. Depois, sempre existem os porquês para os quais queremos respostas. Penso que, como criança, irei me perguntar sobre o motivo de ter desencarnado assassinado com seis anos. Sinto que houve motivos. Esforço-me neste momento para não pensar ter sido uma injustiça. Também sinto que terei de ajudar a melhoria da família de meu pai e seus amigos. E como ajudá-los se não souber o porquê de me sentir assim? Minha escolha é: lembrar o passado e me sentir adulto.
- Ajudarei a recordar!
Relaxei na poltrona. As lembranças vieram à mente e fui falando devagar:
- Sou um homem, tenho uma vida simples, sou solteiro e tenho uma família estruturada. Estudei e fui ser militar. Até então, nada me aconteceu de marcante. Aí, começou a guerra. Fui para o campo de batalha. Ferido, fui me recuperar numa base. Estava me sentindo melhor, os ferimentos cicatrizavam e passei a fazer guarda. Protegia o comandante. Então, surgiu um problema e fui chamado a resolver1.
- Nando - disse meu comandante -, vou lhe confiar uma tarefa muito importante. Confio plenamente em você. Sei que é corajoso, honesto e de boa família. Resultado: teria de ir a uma cidade, alguns quilômetros longe da base, alertar seus habitantes que seriam atacados, deveriam fugir e ir para a base. Na cidadezinha, deveria ter umas duzentas pessoas, todas civis, a maioria crianças, mulheres e idosos. Para chegar até lá, precisaria passar por um caminho onde sabíamos haver alguns inimigos acampados. Teria de limpar o caminho, ou seja, matar os inimigos, ir à cidade e levar a ordem escrita para eles saírem e irem para a base pelo caminho limpo. Depois, deveria ficar por dois dias num ponto estratégico, num local mais alto perto da cidade, e voltar pelo caminho limpo. A permanência nesse local era para enfrentar algum grupo inimigo que invadisse a cidade e retardá-los na perseguição aos nativos, aos moradores da cidadezinha.

1. Para não confundir o leitor e fazê-lo voltar na leitura para saber quem foi quem, e como nomes não têm importância, utilizarei os mesmos que tivemos na encarnação mais recente, no meu último estágio no físico. (Nota do Autor Espiritual)

- Você será o comandante dessa ação. Confio no seu sucesso. Devo lhe dizer que solicitei auxílio, quero acreditar que o receberemos. Se meu pedido for atendido, uma tropa nossa irá ajudá-los no alto do morro. Nessa cidadezinha estão conterrâneos nossos, mas também minha esposa com meus dois filhos.
Entendi e não comentei a ordem. O motivo maior para este socorro era salvar a família dele. Sabia que dificilmente receberíamos reforço, estávamos enfrentando combates violentos e não dispúnhamos de homens para essa tarefa.
- Tenho ordens para não sair da base - continuou o comandante a explicar. - Se não fosse considerado deserção, eu iria. Nando, você irá com doze homens. Sei que é pouco, porém é do que disponho.
- Sem dúvida, comandante, faremos o melhor. Quem irá comigo? - perguntei.
- Essa é a parte mais difícil! Uns voluntários forçados. Vou explicar. Você sabe que aqui perto da base existe uma penitenciária. Os presos com penas mais brandas, que cometeram pequenos delitos, foram soltos no início da guerra para serem soldados. Deu certo. Ficaram presos somente alguns criminosos.
- Os mais perigosos - concluí.
- Ou aqueles que não são covardes! São criminosos, porém mataram sem o consentimento do governo. A diferença é que nós matamos com consentimento.
- A nossos inimigos! - nos defendi.
- A outros seres humanos - concluiu o comandante. - Esses doze homens escolhidos acreditam que mataram inimigos, seus desafetos particulares. Deixemos esses detalhes, vamos falar da ação. Sabe que não posso dispor de ninguém da base para ir com você. Estamos para receber ataques e precisamos defender a base. Nosso hospital está lotado de patriotas, de soldados jovens. Esses homens que irão com você escolheram ir pela liberdade. Não se preocupam, eles gostam de lutar, brigar, e, no fundo, são também patriotas e estão indignados com o que nossos inimigos estão fazendo com nosso país. O acordo para eles é: irão ajudá-lo, depois estarão livres para fazer o que quiserem, inclusive tornarem-se soldados.
- Tem dois acordos? Um deles e outro nosso? Qual é o nosso? - quis saber.
- Que morram todos! Nando, recebi ordem de superiores para eliminar todos os prisioneiros do presídio. Isso porque estamos tendo escassez de alimentos, e o governo não quer mais alimentar criminosos. Preferem alimentar os honestos. A ordem é para matá-los - O comandante fez uma pequena pausa, suspirou e continuou a me esclarecer. - No começo da guerra, os prisioneiros do nosso país passaram por testes com profissionais, e a maioria pôde escolher a liberdade para combater defendendo a Pátria. Os que não morrerem na guerra serão cidadãos livres. Continuaram somente dezenove na prisão perto da base. Atualmente são vinte, porque um soldado nosso foi acusado de traição e está detido. Este não irá com você, morrerá. Dentre esses dezenove, escolhemos doze. Eles não sabem que foram condenados à morte. Assim que você partir com os escolhidos, os oito que ficarem serão mortos. A ordem que recebi não especifica como e nem onde eles devem morrer. Então, no final da operação, você os matará.
- Penso, senhor, que não sou capaz de fazer isso. Atirar no inimigo da Pátria, sem rosto, sem conhecê-lo, para nos defender, é uma coisa. Matar conterrâneos e saber quem são é outra.
O comandante pensou por uns instantes e determinou:
- Está bem. Você não precisará matá-los. Talvez nem todos os doze fiquem vivos. Ordenarei ao responsável pela ajuda que os mate depois. Você deve ficar no alto do morro por dois dias: se não forem atacados, volte para a base pelo mesmo caminho pelo qual partiu, e, se alguns dos prisioneiros quiserem ir para outros lugares, você dará permissão. Afinal, penso que ninguém, nenhum dos meus superiores, irá querer saber o que ocorreu com eles.
Duas horas depois, estava preparado e conheci os doze homens que iriam comigo. O mais velho estava com trinta e cinco anos; a maioria, entre vinte e cinco e trinta anos. Pelos comentários que ouvi, soube que passaram uma noite maravilhosa, receberam a visita de prostitutas, comeram bem e beberam. Recebemos armas iguais, porém eu recebi um pequeno revólver, que escondi na cintura, e também algumas granadas. O comandante repassou os planos e respondeu às perguntas de todos. Partimos. Fomos de jipes até uma cidadezinha que estava ocupada. Acompanharam-nos todos os homens disponíveis da base. Duas horas de combate intenso e libertamos a cidade. Um dos doze ficou ferido. Falaram que ele retornaria à base. Sabia, porém, que assim que partíssemos, ele seria morto. Pegamos algumas armas dos inimigos. Os soldados retornaram à base com sete mortos e muitos feridos. Parti com os onze. Fomos caminhando. Sabíamos que, em mais dois locais, encontraríamos inimigos. Os onze estavam entusiasmados, estava sendo uma aventura para eles, e o resultado seria a liberdade. Sabia que não poderia confiar em nenhum deles e fiquei atento. O caminho era mais uma trilha na mata. Eles foram conversando. Percebi que eram amigos ou tinham feito amizade na prisão. Não falaram do que fizeram, mas de como seria a vida depois da missão. Todos tinham planos e muitos sonhos. Um jovem, Fabiano, iria para a sua cidade, onde a noiva o esperava: amava-a muito, ela sempre escrevia para ele. Prometia que seria honesto. Fernando era outro sonhador, sabia que a cidade em que morava estava ocupada, queria libertá-la e ser um herói. Outro seria soldado, lutaria contra os inimigos da Pátria, sentiu alegria em libertar aquela cidade. Escutei-os calado. Percebi que os onze eram corajosos e poderiam ser bons combatentes, porém eram insubordinados. À noite, chegamos perto de onde sabíamos estarem alguns inimigos. O local era, ou tinha sido, uma grande fazenda produtiva. Paramos para descansar. Um deles, Felipe, foi à fazenda e nos contou o que viu. Os soldados inimigos não eram muitos, estavam na casa-sede, fizeram dos proprietários seus empregados. As mulheres eram tratadas como prostitutas. Eles invadiram a fazenda, e alguns deles permaneceram ali para levar depois a colheita para alimentar seus homens combatentes. Fizemos planos. Atacamos de madrugada. Surpreendidos, os inimigos foram facilmente rendidos. Matamos todos, eram oito soldados. Nenhum de nós foi sequer ferido. Amanheceu. Nossos conterrâneos ficaram muito agradecidos por terem sido libertados. Pedi a eles que ficassem com as armas dos inimigos e fizeram planos para se defender se fossem novamente atacados. Escutamos sobre as muitas atrocidades que sofreram, e isso nos motivou a continuar com a nossa missão. Partimos logo após termos almoçado.
Após andarmos umas duas horas, surgiu uma briga por um relógio de ouro de um soldado inimigo.
- Parem! - gritei.
Em outra ocasião, esse ato seria insubordinação, mas estava lidando com insubordinados. Resolvi a questão fazendo um sorteio do relógio. Aceitaram e, minutos depois, nem parecia que haviam brigado. Gostavam de discutir e brigar. O segundo ataque foi mais difícil. Os inimigos estavam acampados num local de difícil acesso. Com eles, estavam soldados nossos e civis presos. Estudamos bem o local: à noite, cuidadosamente nos aproximamos do lugar onde estavam os prisioneiros, matamos dois guardas e libertamos nossos compatriotas. Os homens que estavam muito feridos levamos para um local onde achamos ser mais seguro e armamos aqueles capazes de nos ajudar a combater os inimigos. Ficamos quase o dia todo lutando. O combate pior foi à noite. Muitos que estavam prisioneiros e dois dos meus homens morreram. Todos os inimigos foram eliminados. Foi um ataque difícil. Mas compensou por termos libertado nossos irmãos de Pátria. Porém, eles estavam muito machucados, tinham sido torturados e estavam desnutridos. Como se cometem atrocidades em guerras! Tantas maldades desnecessárias! Determinei que os ex-prisioneiros ficassem no local e esperassem pelas pessoas da cidade que passariam por ali, para que juntos fossem para a base. Determinei também que, enquanto esperassem, jogassem os inimigos mortos numa vala e cobrissem com terra e pedras. Que enterrassem nossos mortos. E que ficassem com as armas e bens dos inimigos. Que um ajudasse o outro com os curativos. Os outros soldados tinham estoque de alimentos. Pedi que se alimentassem para se recuperarem e seguirem com os fugitivos da cidade, que passariam por ali. Embora ainda sentisse desconfiança dos nove, admirei-os. Admirei o que o patriotismo despertou neles. Para mim, tomaram-se soldados valiosos. Passamos a conversar como companheiros. Chegamos à cidade quatro dias depois de termos saído da base. Entrei sozinho, levando na mão um lenço branco. Todos os moradores estavam dentro das casas. Gritei meu nome, o do meu comandante e disse o que tinha ido fazer ali. Os homens idosos saíram, e eu expliquei tudo. Um dos moradores pediu para todos saírem, fizeram-me algumas perguntas e resolveram partir. Pedi rapidez. Eles se prepararam, levariam somente o que de fato necessitassem. Repassei todos os detalhes do caminho. Tentei adivinhar quem, entre aquelas mulheres, era a esposa do comandante, quais das crianças eram seus filhos. Não consegui saber. Alguns idosos não quiseram ir. Acharam que poderiam atrasar as mulheres e crianças e que não conseguiriam caminhar muito. Preferiram ficar juntos numa casa e aguardar o socorro ou o ataque. Os idosos que foram concordaram em ficar para trás, andando devagar. Eles iam levar algumas armas para se defender. Partiram de manhãzinha, assim que o sol despontou no horizonte. Deixei os nove dormirem bastante para descansar, alimentamo-nos e fomos ao morro. Duas horas de caminhada e chegamos ao topo, onde havia um pequeno mirante.
- Vamos nos abrigar aqui - determinei. - As paredes desta construção são resistentes e nos darão guarida. Vamos observar o local.
Concluímos que, se os inimigos viessem, seria pelo norte, pela estrada. Pelos cálculos do meu comandante, o ataque seria no dia seguinte.
- Vamos surpreendê-los, somente atacaremos quando se aproximarem. Devem ser vinte homens inimigos. Vamos nos revezar na guarda - falei.
- Vai ser fácil - entusiasmou-se Fernando. - Assaltamos onde estavam os prisioneiros, eles estavam em maior número e vencemos. Meus filhos se orgulharão de mim.
- Você tem filhos? - perguntei.
- Não tenho ainda, mas vou ter!
Depois de olhar bem todo o lugar, aguardamos no mirante. No outro dia, às doze horas, vi pelo binóculo (eu era o único que tinha um) que os inimigos se aproximavam e que eram muitos. Preocupei-me. Não poderíamos com eles. Aproximavam-se rapidamente. Logo, todos nós escutamos o barulho de caminhões e jipes.
- Creio que não são vinte. Pelo barulho, são mais! - exclamou Fernando.
- Uns a mais não fará diferença. Temos a nosso favor a surpresa, certamente não desconfiarão de que aqui estão soldados à espera - falou Fabiano.
Vi pelo binóculo que eram muitos soldados e subiam pela estrada que passaria pelo mirante, e a estrada os levaria à cidadezinha que fora desocupada.
- Você não sabia que eram muitos, não é? - Maciel me perguntou.
Não respondi, permaneci calado. Viera numa missão suicida sem saber. De fato, retardaria os soldados e ajudaria na fuga dos habitantes da cidadezinha. Eles se juntariam aos soldados libertados, que estavam armados; sem dúvida chegariam à base; e lá talvez sobrevivessem, ou não, porque certamente a base seria o próximo alvo. "Por isso", pensei, "o comandante aceitou quando falei que não queria matá-los. Sabia que não teríamos chance. Morreríamos todos. Não teremos auxílio. Esta tropa deve estar seguindo para a cidade maior. Passará pela pequena, que foi evacuada, acabando com tudo e todos que por lá ficaram". Senti uma enorme agonia com a indecisão que me invadiu a mente. Falar com eles ou não? Dar o direito de escolha de ficar ou tentar fugir? Eu não fugiria. Tentaria, nem que fosse sozinho, retardar a fuga daquelas mulheres e crianças. Eu escolhi! Por que não dar o direito de escolha a eles? "Eles são criminosos", pensei e concluí, "mas são meus irmãos em Deus e de Pátria!". Não falei e esperamos. Eles se aproximaram do local onde estávamos e atiramos. Matamos muitos de surpresa. Eles se esconderam, e o tiroteio continuou.
- Economizem munição! Atirem com pontaria! - ordenei.
- Eu que não fico aqui! - exclamou Maciel. Saiu pelo lado sul, que ia dar na cidadezinha.
- Não faça isto! - pedi. Ouvimos disparos e Fabiano falou:
- Acertaram-no com vários tiros. Com certeza, Maciel morreu. Estamos cercados. Vamos resistir, certamente nossa tropa se aproxima.
Naquele momento compreendi que não haveria auxílio. Os inimigos nos cercaram, tentavam se aproximar para jogar granadas. Defendemo-nos como pudemos. Meus homens foram morrendo. Ficamos somente Fernando e eu. Não tínhamos mais munição, e eles iam invadir o mirante. Venceram-nos rápido. Peguei duas granadas e, quando iam entrar, coloquei Fernando na minha frente. Ele recebeu tiros que atravessaram seu corpo e me atingiram. Fiquei ferido. Quando um grupo de oito homens entrou no mirante, detonei as duas granadas, e tudo voou pelos ares. Morri, morremos e também morreram muitos dos soldados que nos atacaram. A explosão ecoou na minha cabeça, o barulho foi terrível, e o fogo se alastrou. Com o impacto, em espírito, fomos arremessados para fora, a metros do mirante: eu e os outros que lá estavam. Vi tudo o que acontecia. Atordoado, fiquei sentado na grama, olhando, sem conseguir entender direito. Examinei-me, estava somente com os ferimentos que me foram feitos antes da invasão deles no mirante: eram arranhões e dois cortes; um no braço e outro na testa. O comandante dos invasores estava irado e blasfemava. Não consigo mais dizer "inimigo". Como a guerra é cruel! "Inimigo" é uma palavra de significado forte, que causa tristeza. E não éramos isso: nem nós para eles, nem eles para nós. Lutávamos por uma causa que não era nossa e talvez de ninguém. Pensávamos que havia motivos. Porém, os motivos nada mais eram do que orgulho e ganância, frutos do egoísmo e do poder.
Não esqueço as cenas que presenciei, creio que não as esquecerei. Serão sempre dolorosas recordações. O comandante dos invasores estava indignado porque perdera muitos soldados numa ação considerada simples. Um grupinho de civis lhe causou uma grande perda. Embora ele falasse outra língua, que eu conhecia muito pouco, naquele momento compreendia-o perfeitamente. Ele ordenou gritando:
- Grupo número um, vá à cidade e extermine todos os que encontrar lá. Executada a ordem, avise-nos com o sinalizador que desceremos com os feridos. Grupo dois, verifique se tem alguém pela redondeza: se encontrar, mate! Jogue este homem no fogo - referiu-se a Maciel, que estava morto fora do mirante, (a construção do mirante parecia uma grande fogueira). - Coloque nossos mortos neste local. Se tudo estiver bem na cidade, iremos para lá descansar, depois voltaremos aqui para enterrá-los.
Rapidamente, os encarnados foram cumprir as ordens. Três jipes com vários soldados foram à cidade.
- E agora, comandante Nando, o que iremos fazer? -Perguntou Maciel, sentando-se ao meu lado.
Agrupamo-nos. Ficamos os dez sentados pertinho uns dos outros. Também se agruparam os desencarnados rivais, a metros de distância de nós. Estávamos todos confusos, uns feridos, outros muito apavorados. Alguns sumiram. Nisso, vimos umas seis pessoas, espíritos limpos e tranquilos. Aproximaram-se de nós.
- Tomem água! - um deles nos ofereceu copos grandes com água cristalina.
Tomamos.
- Querem ajuda? - perguntou um socorrista. Trocamos olhares e os observamos.
- Será que morremos? - perguntou Fernando.
- Desconfio que sim - respondeu Maciel.
- Covardes! Impuros! - gritou um desencarnado dos invasores, e esmurrou Fabiano. Os grupos se misturaram, esmurrando-se, xingando-se.
- Parem! Parem! - pedi, sem ser atendido.
Um daqueles que queriam nos ajudar bateu palmas, e então obedeceram, ficaram parados e calados.
- Se alguém quer vir conosco, venha para cá! - convidou-nos.
Ninguém foi. Novo convite, e somente dois se aproximaram dos socorristas, um do meu grupo e um homem do outro. Um dos socorristas levantou a mão e nos separou. Nós ficamos de um lado do mirante, e os outros ficaram agrupados do outro lado. Um daqueles que ofereceram auxílio aproximou-se de mim e convidou:
- Nando, venha conosco!
- E eles? - indaguei.
O socorrista nos olhou e respondeu:
- Para tudo existe tempo certo!
- Se eles não podem ir, eu fico! - exclamei.
Os socorristas nos deram alimentos, garrafas d'água, fizeram alguns curativos em nós e nos outros e sumiram com os que queriam ou mereciam ser socorridos. "Sumiram", foi o que pensei naquele momento. Eles volitaram, levaram os socorridos para um Posto de Socorro. Sentado na grama, via tudo sem entender como. Vi o grupo de mulheres e crianças que saíram da cidade chegando aonde os nossos soldados os esperavam. Vi os idosos caminhando com dificuldade, eles ficaram para trás. Compreendi que não havia perigo para eles, chegariam a salvo na base. Também vi o grupo número um dos invasores na cidadezinha: pegaram os idosos que lá ficaram, os levaram para a praça e os fuzilaram. Somente três, um casal e uma mulher, que se esconderam num porão, não foram encontrados. Os soldados soltaram o sinal, e o comandante desceu com seus homens. Vi se acomodarem nas casas para descansarem. Ficaram ali somente alguns desencarnados do grupo rival, porque uns acompanharam seus companheiros encarnados. Deitamos e dormimos. Acordamos com o dia claro. Observei tudo. Ainda saía fumaça do mirante. Os corpos dos invasores estavam um ao lado do outro perto da estrada. Vimos um grupo de encarnados voltarem ao morro, fazer um grande buraco e enterrar seus soldados mortos. Ficamos olhando. Um desencarnado, ao ver que iam enterrar seu corpo físico, gritou, pediu para não ser enterrado. Tentou explicar que estava vivo. Os encarnados não o escutaram. Ele se sentou em cima do lugar onde seus restos mortais foram enterrados e chorou desesperado. Ele foi consolado pelos seus companheiros.
- Nas ruínas do mirante, estão somente uns restos de ossos que não foram queimados - disse Fabiano.
Os encarnados acabaram de enterrar os corpos de seus soldados e voltaram à cidade. Via-os sem entender os acontecimentos. O comandante dos invasores concluiu, ainda bem que erroneamente, que os habitantes da cidade haviam ido se abrigar na cidade maior. Descansados, partiram cedo no outro dia. Entristeci-me profundamente. Meu comandante deveria ter me dito que o grupo de invasores era grande e que iriam invadir esta cidade importante para nosso país, isso se ele soubesse. Se eu soubesse, teria ficado do mesmo modo no mirante. Mas teria pedido para um dos que estavam comigo avisar os habitantes desta cidade e os moradores no caminho. Aí senti que esta cidade esperava a invasão e que estava se preparando. Mas, infelizmente, não teriam êxito; se não recebessem reforços, seriam massacrados. Arrependi-me muito por não ter dito, assim que entendi o que iria ocorrer, a verdade aos meus companheiros, e por não ter lhes dado opção de escolha. Os grupos começaram a brigar. Tive até de me defender. Depois de um tempo brigando, cansávamo-nos e afastávamo-nos, para logo depois recomeçarmos a nos esmurrar. Trocávamos socos e xingamentos. Usávamos as mãos e os pés para atacar e defender. Nenhum de nós tinha armas. Esse tipo de confronto, infelizmente, vê-se em muitos lugares de lutas e guerras. Desencarnados ficam vagando e continuam duelando, sentindo ódio, raiva e rancor. Por esse motivo, o trabalho de auxílio dos socorristas é difícil, e é quase impossível serem socorridos desencarnados que vagam desejando continuar guerreando.
- Vamos nos abrigar na mata, refazer-nos e planejar o que iremos fazer - falei aos meus companheiros.
- Vamos! - concordaram.
Andamos pela mata e encontramos um abrigo. Era uma caverna. Sem sabermos, fomos para o umbral. Saíamos dali, íamos ao morro do mirante, brigávamos e voltávamos para nosso abrigo.
- Encontrei-me com um homem que me disse que morremos - falou Fernando.
- Duvido! - exclamou Maciel. - Se eu tivesse morrido, teria ido para o inferno!
- Será que não estamos no inferno? - perguntou Fabiano.
- Aqui não tem fogo. Será que acabou o combustível? -indagou Fernando.
- Ora, o inferno pode ser um pouco diferente do que os vivos falam. O que você acha, comandante? - perguntou Fabiano.
- Penso que estamos mortos, mas vivos. Morremos na invasão do mirante!
- Não sou covarde, mas estou com medo. Fui uma má pessoa! - disse Felipe.
- Ficamos sem saber o que fazer. Roguei em oração, pensando nos socorristas, e eles vieram.
- Conversem conosco - pedi a eles. - Esclareçam-nos, por favor!
O grupo todo ficou atento às explicações; um deles, eram três, esclareceu-nos:
- Somos espíritos que, ao nascer, ganham um corpo de carne, e esse corpo tem tempo para ficar encarnado, isto é, para se manifestar no físico. Quando este corpo carnal morre, continuamos vivos em espírito. Existem muitos lugares para esta continuação de vida.
- Aqui é o inferno? - Fernando quis saber.
- Este local é uma morada passageira, nada é para sempre.
- Entendi - falou Maciel - Somos eternos, nada poderá nos destruir. Não somos destruídos, nos transformamos!
- Posso levá-los para um local onde receberão orientação.
- Como é este lugar? - perguntou Felipe.
- É organizado - esclareceu um socorrista. - Tem ordem. Vocês receberão alimentos, água limpa e irão estudar e trabalhar.
Os oito resolveram não ir. Eu quis, mas não queria deixá-los. Um socorrista me disse:
- Somente ajudamos quando sabemos como. Venha conosco, aprenda, e então poderá auxiliá-los.
- Fui e gostei muito do Posto de Socorro para onde fui levado. Esforcei-me para me adaptar e aprender. A guerra acabou. Todos os envolvidos sofreram demais. Ainda no Além, grupos de desencarnados guerreavam. Sentindo-me apto, com permissão, fui tentar ajudar meus companheiros que ainda continuavam no umbral, no mesmo local.
- Não fui bem recebido.
- Você, comandante, levou-nos para a morte! - exclamou Fabiano. - Pensa que não soubemos? Saímos da prisão para morrer. Mas também soubemos que, se ficássemos, morreríamos: fomos condenados à morte.
- Resolvi contar tudo.
- Você me fez de escudo! Muito bonito! Gostaria que agisse assim com você? - Fernando me acusou.
- Não foi para não morrer que agi assim, quis detonar as granadas - defendi-me.
- Como lamentei não ter lhes dado opção e como a acusação de Fernando ficou gravada em minha mente... Foi depois de muitas visitas que fiz a eles no umbral e por tê-los levado para verem seus familiares, que meus ex-companheiros resolveram vir comigo para o posto de socorro. Mas eles não gostaram de lá. Pediram para reencarnar e se prepararam. Esse preparo foi para meus amigos algo forçado, fizeram porque não havia para eles outra opção. Foram reencarnando como irmãos, filhos de pais amigos, todos numa mesma localidade, em outro país. Eu fiquei no plano espiritual tentando ajudá-los, orientá-los. Depois reencarnei, fui ser filho de Fernando e sobrinho de Fabiano. Lembrei-me de tudo como se estivesse vivendo. Parei de falar e olhei para Miguel, que me observava com carinho. Agora eu sabia de tudo. Senti-me aliviado. Recordar esses acontecimentos importantes para mim me fez bem. Embora fossem fatos tristes, fizeram-me entender muitas coisas. Lamentei-me e disse para Miguel:
- Reencarnei esperançoso de ajudá-los e não tive chance! Porém, será que conseguiria orientá-los mesmo? Fui, em minhas outras encarnações, honesto, mas reencarnei entre pessoas do bem. Tenho estrutura para ser honesto entre desonestos? Seria uma prova? Penso agora que talvez não tivesse conseguido. Não tenho ainda condições para ser testado. Ainda mais envolvido com eles e me sentindo devedor - fiz uma pausa, suspirei e continuei a lamentar-me: - Por nenhum momento me senti assassino dos soldados rivais e nem que havia sido assassinado no mirante, porém, me senti responsável pelas desencarnações daqueles que estavam comigo.
- Nando, não lamente, por favor - Miguel me pediu. - Você não reencarnou para ser assassinado, porém, sentindo-se assassino, e, quando uma pessoa se sente assim, pode se envolver numa situação em que seu corpo físico seja morto por alguém. Ainda bem que não teve ódio. Fabiano não planejou, não quis matar. E nem quis assassinar o irmão, Fernando, seu pai. Foi uma discussão calorosa, na qual, impensadamente e imprudentemente, ele estava com uma arma na mão. Nenhum dos dois queria sua morte. Acontecimentos que nos marcam muito podem, em algumas situações, vir em nossa mente, e por isso nos levam a agir de um modo ou de outro, dependendo de nossos sentimentos. Talvez eles não o tenham perdoado com total esquecimento. Os dois irmãos não se tornaram inimigos e sentiram sua desencarnação. A tragédia foi, para eles, como algo que tinha de acontecer, por isso preferiram aceitar a sugestão da mãe, sua avó, de que foi um acidente. Um ato que ocorreu sem que eles quisessem. Se não estivessem armados, com certeza trocariam somente uns socos.
- O acidente, minha desencarnação, foi uma reação! Na minha encarnação anterior, fui enganado pelo meu superior, mas, ao perceber, deveria ter dado escolha para aqueles homens. Se eles, naquela época, tinham esperança, planos; nesta, eu também tinha. Como lhes foram cortados seus sonhos, cortaram os meus.
- Nisso você se engana! - afirmou Miguel. - Seus planos não foram cortados. Poderá ajudá-los. Não estará junto com eles encarnado, mas poderá estar desencarnado.
- Não será mais difícil? - quis saber.
- Mudar alguém sempre é difícil. Isso porque somente mudamos a nós. Penso que teria, enquanto encarnado, muito pouca chance de ajudar o grupo.
- Terei mais como desencarnado? - perguntei.
- Já disse que mudamos somente a nós. Podemos ajudar os outros com conselhos, exemplos, sendo bons.
- Por favor, aconselhe-me. O que devo fazer?
- Não se sinta mais responsável por eles, pelo grupo. Lembro-lhe que antes de você conhecê-los, eram detentos e todos culpados. Você não agiu corretamente com eles. Porém, a desencarnação desses homens, naquele momento, foi reação, como foi a sua nesta. Ajude-os, mas não se sinta mais responsável por eles. Somos somente responsáveis pelos nossos atos. Ame-os! E mais fácil ajudar amando do que se sentindo devedor. Guerra é um acontecimento muito triste. Você cumpriu ordens e não teve escolha e nem como avaliar se o cumprimento daquela ordem era ou não justo. Matar nunca é certo ou justo.
- Talvez eu não devesse ter ficado atrás de Fernando no mirante, sabendo que iria ser ferido e que teria condições de detonar as granadas matando outras pessoas. Desculpei-me pensando em salvar meus conterrâneos. E somos todos irmãos!
- Você matou e foi assassinado na reencarnação passada. Nessa recente, seu espírito foi despojado do envoltório físico bruscamente. Isso porque você não conseguiu se livrar da culpa, anular pelo amor a reação, então a recebeu.
- Aprendi a dar valor à vida! A minha e à alheia! - exclamei.
- Isso é bom! É um aprendizado importante! Você me pediu para aconselhá-lo. Deve estudar, aprender a ser útil. Quando estiver apto e souber como auxiliar encarnados, poderá pedir para trabalhar num local, seja num posto de socorro situado no plano físico ou em locais de auxílio a encarnados. Poderá orientar seus ex-companheiros combatentes. Poderá conversar com eles enquanto seus corpos carnais dormem e tentar instruí-los no bem. Porém, lembro-lhe que podemos aconselhar, mas cabe ao encarnado seguir, dar atenção a quem quiser, porque temos o nosso livre-arbítrio.
- O que faço agora?
- O que quer fazer? - Miguel me indagou, olhando-me com carinho.
- Vou seguir seus conselhos. Vou estudar e aprender a ser útil.
- O perispírito, este corpo que agora usa para viver na espiritualidade, é modificável. Se você preferir ficar como criança, terá a aparência de antes de desencarnar, mas terá seus conhecimentos e lembranças: elas são suas, não as esquecerá, e pensará com maturidade. Poderá ter a aparência que teve no passado ou ficar como se Nando menino crescesse.
- Prefiro ter a aparência de Nando crescido. Gostei muito de ter um corpo revestido de pele negra - respondi e quis saber:
- O que ocorreu comigo acontece com muitas crianças que desencarnam? Com Renato não foi assim. Ele não lembra nada do seu passado e se sente criança.
- Nando, - Miguel me esclareceu - nada na espiritualidade é regra geral. Cada um de nós tem a sua história de vida. Pelas nossas diferenças, temos necessidades diferentes. Somente em casos especiais um interno do educandário recorda suas outras encarnações. O educandário é moradia temporária. Uns moram conosco mais tempo, outros reencarnam logo, alguns voltam a ter aparência da penúltima encarnação, e a maioria dos abrigados que permanece conosco vai crescendo como se estivesse encarnada. Como disse, depende muito da necessidade de cada um.
- Como irei para a outra parte da Colônia? - perguntei.
- Vou acompanhá-lo e o deixarei instalado. Você logo se enturmará.
- Gostaria de agradecer, despedir-me dos amigos, dos professores e orientadores.
- Poderá fazer isto. Diga aos seus colegas que irá morar em outro lugar - Miguel me recomendou.
Renato me abraçou emocionado. Não queria se separar de mim. Melissa tentou saber o porquê de eu partir. Nem sentindo-me adulto foi fácil responder às suas indagações. Mas tudo deu certo. Sair da infância e ser adulto é complicado, ainda mais se isso ocorre de uma vez. No horário marcado, Miguel me levou para a outra parte da colônia. O educandário, onde moram as crianças, faz parte da colônia. Para melhor explicar, é como um bairro de uma cidade. Ali tudo é próprio para agradar crianças. Ambiente alegre, onde todos estão empenhados em serem felizes. Para ir a outra parte, onde residem os adultos, é só atravessar uma avenida arborizada e florida. As crianças não estão presas, elas podem ir a todos os lugares que quiserem, mas normalmente elas saem do educandário somente para visitas, para ir ao teatro e a festividades. O coral infantil vem muito se apresentar nesta parte da colônia. Gostei demais da morada dos adultos, embora sentisse saudades do educandário. Fui residir na escola e, com entusiasmo, recordei-me de muitas coisas e aprendi muitas outras. Fiz amigos e passei a fazer tarefas. Quando a direção da escola concluiu que estava apto, vim trabalhar num centro de umbanda na cidade em que meus familiares, desta minha última reencarnação, residem. E comecei meu trabalho de auxílio junto a eles. Não mais me sentindo responsável, porém amando-os. Tento orientá-los, conversar com eles, quando, em perispírito, afastam-se do corpo físico adormecido. Quando faço isso, aparento ser o Nando com seis anos de idade. Os resultados são poucos, mas me deixam contente. Meu trabalho na equipe umbandista também tem sido satisfatório. Isso tem uma razão: amor. Tenho gostado de auxiliar sem esperar nada em troca. É bom fazer o bem. Acabei conseguindo que alguns deles viessem ao centro umbandista, que lembrassem de orar, fazer caridades, e tenho pedido para não agirem com maldade, que não roubem e trafiquem. Não é fácil para eles. Existem vícios que se enraízam em nós, e faz sentido a expressão que diz "cortar o mal pela raiz". E, conseguindo cortar, deve-se ficar atento, orar e vigiar para que o mal não brote e cresça novamente. E essa ajuda que tento dar é de maior importância para mim. Porque a modificação maior está sendo realizada em mim.
- Planejo continuar neste trabalho até a desencarnação de Fernando e Fabiano. Depois, devo voltar a residir na Colônia, completar meus estudos, fazer outros trabalhos e reencarnar. Desta vez, livre das reações negativas, porém com provas a serem vencidas.
- Ainda bem que temos a reencarnação, o retorno de nosso espírito ao plano físico. E a graça maior é que esquecemos. Temos um recomeço e oportunidades de reparação, de ajudar e sermos ajudados, de aprendermos a nos amar e a amar os outros.
- Compreender a reencarnação é ter um entendimento maior da vida, do Criador e da Sua infinita sabedoria. E os chavões "Deus quer", "Deus quis" ficam ainda mais sem sentido quando compreendemos que o amor tenta sempre nos ensinar, e, quando nos recusamos a aprender, a dor ensina. E como aprendemos nas inúmeras vezes em que nossos espíritos se vestem de corpos físicos diferentes!
- Bendita a oportunidade da reencarnação!

2 - VENCENDO UMA TENDÊNCIA

Eu, Maria do Rosário, ou somente Rosário, como todos me chamavam, ou chamam, estou aqui para ditar minha história, afirmando que a reencarnação, no meu conceito, é a mais justa das leis de Deus, nosso Criador e Pai Amoroso. Reencarnei numa família pobre. Adolescente, precisei trabalhar para ajudar em casa. Conheci Isac, namoramos, noivamos e casamos, tínhamos ambos dezessete anos. Trabalhávamos muito, compramos nossa casa e tivemos filhos: Marcelo, William e Aline. Tivemos os problemas comuns dos encarnados, doenças e dificuldades. Com nós dois trabalhando, compramos, além da casa em que morávamos, mais duas casinhas, que alugávamos. Porém... (em nossa vida, sempre existe o "porém", o "mas", o "quase", e muitas vezes o doloroso "se"), desde pequena, tinha muitas dores de estômago, e também me doíam o esôfago e a garganta. Fiz muitos tratamentos. Tinha lembranças estranhas, que vinham como se fossem pensamentos. De uma mulher muito cansada, com lenço na cabeça, de crianças sujas e com fome. Quando estava com doze anos, um vizinho se suicidou. Ouvi minha mãe comentar e pedi para ela me contar.
- Rosário, o senhor Antônio se matou. Dizem que ele estava se embriagando, tinha muitas dívidas, a mulher queria se separar dele, e aí ele ficou desesperado e se matou.
Chorei tanto que mamãe se assustou. Fiquei acamada, triste, e orei muito, pedindo para Jesus não deixar que eu me suicidasse. Minha mãe não entendeu o porquê de minha reação e tentou conversar comigo.
- Rosário, meu bem, não se impressione, esqueça isso.
- O senhor Antônio vai sofrer muito - afirmei com convicção.
- Como sabe?
- É muito triste a vida de quem se suicida. Eu sei!
- Rosário - minha mãe tentou me consolar -, Deus é misericordioso e nos perdoa.
- Eu sei que perdoa. Mas eu sofri - falei.
Mamãe ficou preocupada, levou-me para ser benzida e para conversar com um religioso, que aconselhou a me distrair. Deu certo, e eu esqueci. Sonhava muito com um enterro. Eram quatro caixões brancos e pequenos e outro grande e roxo. O cortejo parava numa igreja, entravam os quatro caixões brancos, e o roxo esperava do lado de fora da igreja, no chão, perto da escada. Normalmente, acordava chorando ou chorava depois, de tristeza. Uma vez vi uma casinha pobre no meio de um grande terreno e senti uma tristeza tão grande que doeu meu peito. Pensei que, sem dúvida, conhecia um lugar parecido. Tonteei, desviei meu olhar da casinha, mas, assim mesmo, fiquei com a visão do casebre na mente. Com meus filhos pequenos, essas sensações diminuíram, e os sonhos também. Meu esposo ficou doente, teve câncer. Foi um período muito difícil. Ver alguém que amamos sentir dores é muito sofrimento. Isac era jovem ainda, queria muito viver, amava os filhos, desejava vê-los adultos, casados e ter netos. Lutou para continuar encarnado e ficou muito tempo internado no hospital. Eu sempre trabalhei: nesta época era empregada de uma padaria, era balconista, fazia o serviço de casa e cuidava de meu esposo. Meus filhos, mesmo pequenos, ajudavam-me. Isac desencarnou depois de muito padecer. Esforcei-me para ser forte por causa das crianças. Marcelo estava com nove anos; Willian, com sete; e Aline, com quatro. As dores de estômago ficaram muito fortes e passei a tomar vários remédios. Éramos um casal quase perfeito. Isac e eu nos amávamos e combinávamos muito. Sentia muito a falta dele e o peso da responsabilidade de criar os três filhos sozinha. Estava cansada, triste e pensei: "Por que não me mato? Assassino as crianças e me suicido. Encontraremo-nos com Isac e não sofreremos." Quando estes pensamentos vinham à minha mente, esforçava-me para repeli-los, orava e agradava as crianças. "Não vou fazer isso, não mesmo!", determinava. Pensei em me matar várias vezes. Cheguei até a comentar isso com colegas no trabalho e ouvi, graças a Deus, palavras de consolo e de ânimo. O período difícil passaria. Continuei no meu emprego na padaria e, para dar mais conforto aos meus filhos, não tirava férias e raramente pegava minha folga semanal. Meu marido não pagou plano de aposentadoria e eu não recebi pensão. Passamos a viver com meu salário e o aluguel das duas casinhas. Fazia também todo o serviço de casa. Por trabalhar muito, estava sempre cansada. Meus filhos eram obedientes e estudiosos. Sentia que deveria dar a eles mais atenção e, quando ficávamos juntos, conversava e os agradava. Apareceram em Aline manchas brancas na pele. Levei-a em médicos, ela estava com vitiligo. Fiz de tudo para minha menina receber o melhor tratamento. Tivemos problemas, mas todos solucionáveis. Continuei trabalhando na mesma padaria, no mesmo ritmo, e anos se passaram. Marcelo estudava no período da manhã e, com quinze anos, foi trabalhar numa sorveteria perto de casa, das dezesseis às vinte e duas horas. Do dinheiro que recebia, ele guardava uma parte, comprava roupas para ele e para os irmãos. Então eu pude pegar minha folga semanal. Aline não era bonita, as manchas brancas aumentaram: ela era tímida e muito delicada. Marcelo estava para completar dezoito anos, e a garota de quem ele gostava foi indelicada com ele. Cheguei em casa e o encontrei chorando.
- Mamãe - contou Marcelo -, ela simplesmente disse que não quer me namorar. Hoje me enchi de coragem e a pedi em namoro. Respondeu-me que não quer namorar com empregadinho de sorveteria. Que a mãe dela tinha razão em dizer que ela merecia alguém melhor.
Consolei-o. Marcelo estava deitado, deitei perto dele e dormi. Estava cansada. Acordei e me desculpei. Meu filho me abraçou e disse:
- Ficar pertinho de você me fez muito bem. Está cansada porque sempre se sacrificou por nós. Vive pelos filhos. Não merece sofrer por nenhum de nós três. Você dormiu, e eu a fiquei olhando. Vi rugas precoces em seu rosto e senti seu amor. Você é bonita, mamãe, e nunca se interessou por mais ninguém porque nos colocou em sua vida do primeiro ao último lugar. Obrigada, mamãe! Não se preocupe, vou esquecer essa garota.
Marcelo foi promovido a gerente no horário da tarde. Acabou o curso médio, mas, naquele ano, resolveu fazer um cursinho para entrar na faculdade e se matriculou em cursos de inglês e espanhol. Willian se transferiu para o horário noturno na escola e foi trabalhar numa banca de jornal, também perto de casa. Aline fazia quase todo o serviço de casa. De fato, nossas vidas melhoraram, e eu fiquei menos sobrecarregada. Agradecia a Deus. As pessoas que me animaram tinham razão: o período difícil passa. Mas também passam os dias tranquilos. Marcelo tirou carteira de habilitação e comprou um carro semi-novo, bonito e conservado. Ficamos todos contentes. Ele sentia muito prazer em passear conosco. Meu filho mais velho fez dezenove anos; Willian, dezessete; e Aline estava para completar quatorze anos. Os três foram convidados para uma festa, que seria no sábado, numa chácara. Seria o aniversário de um amigo e vizinho. Os três iam de carro. Saí para trabalhar e fiz recomendações, aquelas que as mães costumam fazer. Eram quatro horas da tarde quando me avisaram que meus filhos tinham sofrido um acidente. Fiquei parada e veio à mente meu sonho com os cinco caixões, os brancos e o roxo. Desmaiei. Logo que voltei do desmaio, uma colega de trabalho me levou de carro ao hospital. Uma senhora me levou, segurando minha mão, a uma sala, e delicadamente me falou que o acidente havia sido grave. Tentando amenizar a notícia, acabou dizendo que os meus filhos, os três, haviam morrido. Não disse uma palavra, fiquei imóvel, penso que nem pisquei. Ela me deu um calmante, eu tomei e continuei parada por minutos. A senhora orou em voz alta pedindo a Deus conforto e auxílio. Quando ela acabou de orar, perguntei:
- Como foi?
- Seus filhos iam a uma festa numa chácara. Num cruzamento, um carro vinha em alta velocidade. A preferencial era de seu filho, o outro carro que precisava parar. As pessoas que viram o acidente disseram que seu garoto hesitou, até diminuiu a velocidade, mas seguiu, e o outro veículo não parou. Faleceram os quatro. Seus filhos e o motorista do outro carro. Vieram à minha mente os caixões. Os brancos seriam os deles? E o roxo? Seria o meu? Fora meu sonho premonição? Foram ao hospital alguns parentes, amigos e vizinhos, que me levaram para casa e ajudaram a separar roupas para eles serem enterrados. Também troquei de roupa. Parecia um robô. Lembro-me pouco do velório. Foi de poucas horas. Demoraram para prepará-los. Meu patrão, pessoa boa e honesta, cuidou de tudo. Cedeu uma carneira, um túmulo simples que havia comprado para ele e a família, para que meus filhos pudessem ser enterrados juntos. Fiquei recebendo os pêsames sem conseguir chorar. Depois do enterro, uma vizinha me levou para a casa dela e me deu um remédio, então dormi por horas. Acordei e foi nesse momento que entendi que não ia mais ver meus filhos. Chorei, sentida. Essa vizinha me forçou a me alimentar e foi comigo à minha casa. Quis ficar sozinha. Coloquei alguns objetos no lugar, molhei as plantas e fechei os dois quartos que eles ocupavam: os meninos dormiam em um, e Aline, no outro. "Não vou mais entrar nos quartos deles", decidi. "Vou fechá-los. O que irei fazer agora? E melhor morrer. Porém, não posso morrer devendo. Preciso acertar com meu patrão. Vou procurar saber se meus filhos devem a alguém. Sei que Marcelo tem dívidas com o patrão dele. Como pessoa honesta, devo acertar." No outro dia, fui trabalhar. Assustei os colegas, ninguém me esperava. Quis falar com meu patrão.
- Não sei como lhe agradecer. Quero pagar ao senhor.
Acertamos a forma como iria pagar. Expliquei que preferia trabalhar para não ter tempo de pensar. Fui também à escola onde meus filhos estudavam, peguei tudo o que era deles e negociei a forma de pagar o ex-patrão de Marcelo. Um mês depois, fui ao cemitério e chorei muito. Esforçava-me para me alimentar e fazer meu trabalho bem feito. Recebi muita ajuda, consolo, e agradecia comovida. Numa folga, fui organizar os objetos de meus filhos. Surpreendi-me: numa gaveta de Aline, vi fotos e escritos dela sobre um colega de escola. Ela gostava de um menino que a desprezava. Senti dó dela. Meses depois, paguei as dívidas e pensei: "É hora de morrer. Mas será que quero pessoas estranhas ou parentes mexendo nas coisas que foram de meus filhos e minhas? Não quero. Vou doar." Fui à igreja e perguntei onde poderia doar. Uma moça me informou que na igreja de um bairro pobre eles atendiam jovens carentes e necessitados, e lá minha doação seria bem aproveitada. Convidou-me para conhecer esse trabalho voluntário. Aceitei o convite e lá vi muitos jovens necessitados e desajustados. Compadeci-me. Na semana seguinte, duas voluntárias, com seus carros, passaram em casa para pegar o que seria doado. Fiz isso pensando que era preferível eu doar para quem não conhecia a alguém mexer e até fazer críticas sobre esses objetos. Indo com elas me senti em paz ao ver a alegria dos que receberam minha doação. Pensei que meus filhos tinham boas roupas se comparados aos que pouco têm. Nos dias seguintes, queimei cadernos, álbuns de fotos, desfiz-me de tudo que era íntimo. Uma voluntária foi à minha casa.
- Rosário, vamos à reunião. Hoje será importante, planejaremos o que faremos nos próximos meses.
Insistiu tanto que fui. As pessoas planejaram, entusiasmadas, como auxiliariam. Convidaram-me a fazer umas visitas. Aceitei. Fomos em grupos visitar algumas famílias e pessoas com dificuldades. Foi então que conheci Maria, mãe de oito filhos: um estava preso; dois eram viciados em drogas; e duas filhas, garotas de programa. Ela lamentou os erros dos filhos e me disse que se eles não se modificassem, ao morrer iriam para o inferno. Que ela preferia tê-los mortos e bons do que maus e vivos. Refleti muito sobre o que ela me disse. Sentia saudades dos meus filhos. A falta deles chegava a doer. Mas os sentia bem, que estavam tranquilos e contentes. Calculei que Maria deveria sofrer mais do que eu. E passei a visitá-la sempre. Um dia no trabalho, tive a visão dos caixões. Tonteei, e outro empregado, distraído, esbarrou em mim. Então derrubei uma garrafa que segurava e um caco cortou minha perna. Fui ao hospital, o médico deu pontos no meu corte e me recomendou repouso. Voltei para casa. Pensei muito. "Tenho os comprimidos para dormir que o médico me receitou quando meus filhos faleceram, é só tomá-los e, pronto, morrerei. Mas será que irei para o inferno? Se for para o inferno, não ficarei com meus filhos e nem com Isac, que só podem estar no céu. O que faço? Vou orar e pedir a Deus que me ilumine." Rezei muito. Senti-me tranquila. Aproveitei meu afastamento para fazer visitas e ir ao trabalho voluntário. Quando tentamos fazer o bem a alguém, a nós o fazemos. Quando enxugamos lágrimas alheias são suavizados os motivos que nos levam a chorar. Trouxe para casa três adolescentes cujo pai estava na prisão, e a mãe, no hospital. Eles não tinham onde ficar. Mas, por mais que tenha me esforçado, não deu certo. Eles não tinham bons modos, tinham hábitos muito diversos dos meus filhos. Ficaram comigo vinte dias, a mãe saiu do hospital e preferi ajudada fazendo a compra de alimentos para eles. Fiz novas amizades e passei a fazer parte da equipe desse trabalho voluntário. Na padaria, trabalhava no horário determinado e não fiz mais horas extras: tirava minhas folgas e também as férias. Mudei para a minha casa menor depois de reformá-la. E todo o dinheiro que não gastava doava aos pobres que assistíamos. E quando pensava no meu suicídio, tinha um motivo para adiá-lo. Sempre alguém estava precisando de minha ajuda. "Agora não", pensava, "devo ajudar dona Benedita ou o senhor Raul, a neném da Sara..." Fiquei sabendo quem era o moço que dirigia o outro veículo, o que causou o acidente. Era o terceiro filho de um casal de pessoas honestas. Quis conhecê-los e dizer que não sentia mágoas. Afinal, sentíamos a mesma dor. Fui domingo à tarde visitá-los. Uma senhora me recebeu no portão.
- Boa tarde - disse. - A senhora com certeza não me conhece, mas deve ter ouvido falar de mim. Chamo-me Rosário, sou a mãe dos jovens que morreram no acidente em que seu filho faleceu.
A senhora tonteou, olhou-me assustada e senti que ela ia entrar correndo. Então pedi:
- Senhora, por favor, estamos ambas sentindo a mesma dor. Seria bom conversar e nos consolar. Posso entrar?
Laíza, assim chamava a mãe do causador do acidente, não conseguia falar, mas abriu o portão e eu entrei na casa. Sentei no sofá, e um senhor entrou na sala. Apresentei-me.
- O que veio fazer aqui? - perguntou o senhor.
- Conversar - respondi. - Num acidente, não deve existir culpa. Vocês sofreram, e eu também.
Os dois sentaram e nos calamos por segundos. Resolvi falar:
- Vim aqui porque nossos filhos faleceram juntos. A nossa dor foi, e é igual.
Laíza chorou, e o senhor, que se chamava Tales, suspirou e falou:
- É muita delicadeza sua vir nos visitar. Assustamo-nos porque sabemos o que aconteceu. Pensamos até em visitá-la e nos desculpar pelo nosso filho, mas temíamos sua reação. Tínhamos três filhos como você, mas ficamos com dois, e você, com nenhum.
- Não penso assim. Tive três filhos e ainda os tenho. Serei sempre a mãe deles.
- Para você afirmar isso, deve ter conseguido reagir bem a esta tragédia. Como conseguiu superar? - indagou Laíza.
A morte de meus filhos foi a maior dor que já senti. Porém, acredito que irei reencontrá-los um dia, e a separação é temporária. Ficamos conversando. Fui convidada a tomar café, aceitei, e continuamos falando sobre a saudade, a ausência e sobre nossos filhos.
- Posso lhe pedir perdão? - perguntou Tales a mim.
- Não tenho nada a perdoar - respondi.
- Rosário - disse Laíza -, este pedido de perdão tem razão de ser. Márcio, nosso filho, estava muito triste por alguns fatos desagradáveis que aconteceram a ele. Penso que talvez estivesse com depressão. Naquele sábado, após o almoço, despediu-se de nós de maneira diferente. Pensamos que ele poderia ter causado o acidente para morrer. Depois, mexendo nos pertences dele, encontramos alguns escritos em que Márcio demonstrava sua vontade de acabar com a própria vida.
Estremeci. Pensei em Deus, em Jesus, e roguei por forças. Se o filho fez isso, os pais não tiveram culpa. Pensei também que, se ele queria morrer, não deveria ter matado outros, que não queriam deixar a vida física.
Suspirei. Falei tranquila:
- Não importa como foi. Não faz diferença. Eles faleceram. Minha dor não aumentará por saber disto. Vocês me pedem perdão. Quem sou eu para não perdoar? Perdôo-os, perdôo Márcio e vou orar por ele.
- Será que adianta orar por ele? - perguntou Tales.
- Por que não? - indaguei admirada.
- Suicidas não precisam de preces porque estão condenados - lamentou Laíza.
- Não sei como tive a ideia de dizer o que falei. Senti dó daqueles pais e de Márcio e também vontade de confortá-los.
- Somos todos filhos de Deus. Se nós, que somos humanos e falíveis, perdoamos nossos filhos de todos os erros, por que Deus não nos perdoaria? Eu perdôo Márcio, e vocês também devem perdoá-lo e pedir para ele se perdoar. Orem por ele e lhe desejem paz.
- Às vezes penso em me matar para cuidar dele no inferno! - exclamou Laíza.
- E causar mais dores? - indaguei. - Seus outros filhos iriam sofrer, e seu marido também. Seria uma necessitada, e um necessitado não auxilia outro. Você pode ajudá-lo perdoando-o e orando por ele.
- Você tem certeza do que está falando? - perguntou Tales, esperançoso.
- Tenho, porque confio em Deus. Eu tive minha dor amenizada quando tentei amenizar as dores alheias.
Falei a eles sobre meu trabalho voluntário. Conversamos por horas. Fiz um enorme bem a eles e a mim. Senti muita tranquilidade e, naquela noite, sonhei com meus filhos e nos abraçamos demoradamente. E de manhã joguei a caixa de remédio de sonífero no vaso sanitário. Não queria tê-lo mais comigo e decididamente não me suicidaria. Morreria quando terminasse o tempo determinado para que eu ficasse no corpo físico. Passamos a nos encontrar, Tales, Laíza e eu, para conversarmos e nos consolarmos. Os dois foram ajudar como voluntários numa creche no bairro em que moravam. Perdoaram o filho e passaram a orar muito por ele. Numa tarde de domingo, recebi a visita de um dos meus sobrinhos. Creio que devo contar que eu sempre me dei bem com os familiares, mas nunca tive tempo para ajudá-los e recebi pouca ajuda deles. Meu sobrinho fez rodeios, para depois falar:
- Tia Rosário, depois que meus primos faleceram, os herdeiros da senhora somos nós, seus sobrinhos. Somos em sete. Todos nós estamos necessitados de dinheiro. A senhora não precisa de muito para viver, então venho pedir para que venda as duas casas alugadas e nos dê o dinheiro.
Assustei tanto que não consegui responder. Depois de uns segundos calada, recuperei-me e falei:
- Vou pensar. Agora tenho um compromisso. Tchau. Aborreci-me, entristeci-me e resolvi não vender nada.
Sentia prazer em ajudar os pobres. Não dei resposta e me afastei um pouco mais da família. Continuei a trabalhar na padaria porque gostava e me distraía. E o tempo passou... Doze anos se passaram depois que meus filhos faleceram. Depois de uma visita a um bairro pobre, reunimo-nos para planejar a festa que faríamos no Natal. Senti-me cansada e me sentei. Vi novamente os caixões: os quatro brancos entraram na igreja, e o roxo mudou de cor, ficou branco e também entrou na igreja. Senti uma dor muito forte no peito.
- Rosário, o que você tem?
- O que está sentindo?
Não consegui responder às minhas amigas. E vi meus três filhos e Isac sorrindo para mim, estendendo as mãos. Fui com eles. Meu espírito deixou o corpo físico morto. Acordei e fiquei em dúvida do que teria acontecido comigo. Lembrei-me de que vira Isac e meus filhos. Saudosa, quis vê-los novamente. Aquela visão foi linda. Observei o local onde estava e concluí que deveria ser um hospital muito organizado. Espreguicei-me, não senti dor e estava disposta. Resolvi aguardar, e logo uma moça bonita entrou no quarto.
- Boa tarde, Rosário! "Será que ela me conhece? Deve ser por ter o nome na ficha", pensei. E respondi:
- Boa tarde. Estou me sentindo disposta. Posso me levantar?
- Sinta-se à vontade.
- O que eu tive? - quis saber.
- Um enfarto.
- E já estou bem assim?
- Isto não é bom?
- É ótimo - respondi contente. "Isto está estranho", pensei. "Nem dor nas costas estou sentindo. Meu estômago não dói. Sofri um enfarto e acordei bem. Tenho certeza de que vi Isac e meus filhos. Será que esta enfermeira pensará que estou louca se perguntar por eles."
- Quem me trouxe para cá? - resolvi perguntar.
- Familiares - respondeu a enfermeira.
- Meu esposo e filhos?
- Sim - a enfermeira afirmou tranquilamente.
- Morri! Vou vê-los! Graças a Deus! - exclamei contente.
Levantei rapidamente da cama e pedi:
- Por favor, quero vê-los.
- Vou chamá-los.
Os minutos demoraram a passar e, quando a porta abriu e vi os quatro, pensei que fosse desmaiar de felicidade. Abraçamo-nos demoradamente, chorando emocionados. Olhei um por um. Isac estava bem, saudável e me olhou com carinho. Marcelo estava lindo como sempre, e Willian também. Minha Aline não tinha nenhuma mancha, e sua delicadeza dava-lhe um encanto especial, estava bonita minha menina. Quis saber deles. Os quatro moravam juntos numa mimosa casa onde me aguardavam. Estudavam, trabalhavam e estavam felizes. Os dias passaram como se estivessem encantados. Nem queria dormir, com medo de acordar e não ser verdade o que acontecia. Voltaram à rotina, mas sempre um deles ficava comigo e saíamos para passear: levaram-me para conhecer a cidade espiritual, uma linda colônia. Sentindo-me bem, quis trabalhar e comecei a fazer pequenas tarefas, mas logo comecei a ir às enfermarias com Aline para ajudá-la na sua tarefa. Soube o que ocorreu comigo. Um enfarto expulsou- me do meu corpo físico, causando minha desencarnação. Minhas companheiras do trabalho voluntário chamaram a ambulância, mas meu corpo carnal chegou morto no hospital. Meu patrão providenciou o enterro, e minha vestimenta física foi sepultada junto de meus filhos. Recebi muitas orações, desejando que estivesse bem. Amigos sentiram a minha falta. Houve brigas pelo que deixei. Sobrinhos de Isac acharam que também tinham de receber. Porém, foram meus irmãos os herdeiros. Venderam tudo e dividiram o dinheiro. Estranharam por eu ter poucas coisas e nenhuma foto. Meus documentos estavam numa caixa. Numa tarde, Marcelo me levou para conhecer um jardim onde há um lago maravilhoso. Sentamo-nos num banco e ficamos apreciando o lugar.
- Marcelo, vocês sabem como desencarnaram? Viram o acidente?
- Sim, mamãe, nós vimos. Senti-me culpado por não ter parado o carro. Mas foi me explicado que não tive culpa.
- O outro motorista, Márcio, provocou o acidente - falei.
- Sabemos disso, mamãe. Fomos socorridos logo após o acidente. Willian, Aline e eu ficamos juntos, vimos o papai e nos recuperamos logo, adaptando-nos rápido. Nossas desencarnações foram tranquilas e agradecemos o auxílio recebido. Quisemos saber o que aconteceu com o motorista do outro veículo. Ele estava sofrendo muito no Vale dos Suicidas. Sentimos muita pena. E aí pedimos ajuda a você para auxiliá-lo. E, bondosa como sempre, atendeu-nos e foi visitar os pais dele. Fomos juntos.
- Vocês eram a energia boa que senti. Vocês que me deram a tranquilidade? - perguntei.
- Tentamos e conseguimos. Ficamos muito contentes com sua atitude. Ajudou Tales e Laíza e muito, mas muito mesmo, o Márcio. Ele sentiu o nosso perdão, o seu, o dos pais, e pediu socorro. Está, no momento, num hospital. Nós o visitamos e o incentivamos a melhorar. Como o perdão faz bem! E o precioso remédio para as enfermidades e sofrimentos do espírito.
Fui estudar e trabalhar, porém bastava ficar sem fazer nada para lembrar do casebre. Comecei a sentir que eu fora a mulher pobre com o lenço na cabeça. Também vinha na minha mente a imagem do enterro, dos caixões. Das visões desagradáveis que tivera tantas vezes quando encarnada. Do enterro como era feito até mais ou menos a metade do século 20, principalmente em pequenas cidades. O corpo era velado na casa do falecido, e o cortejo saía de lá, pessoas acompanhavam a pé. Passava-se numa igreja para que fosse dada a bênção e depois era realizado o enterro. Numa tarde, coincidiu de estarmos todos de folga, Isac, eu e nossos filhos, então ficamos a conversar e contei a eles sobre as minhas visões.
- Mamãe - falou Marcelo -, você deve ter entendido que a morte do corpo físico nos leva a viver de forma diferente. A vida continua, e recebemos aqui, no Além, o que fizemos por merecer. Moramos no plano espiritual o tempo que nos é necessário para depois voltarmos a vestir outro corpo carnal. Isso se chama "reencarnação". Para tudo tem explicação, se compreendemos esta justa lei.
- Vocês tiveram motivos para terem desencarnado jovens? - quis saber.
- Sim, tivemos - respondeu Marcelo. - Vou contar o porquê de ter voltado jovem para o Além. Primeiro, quero explicar, mamãe, que a desencarnação não é castigo, principalmente para as pessoas boas e desapegadas. Nascer e morrer, ou seja, encarnar e desencarnar, são ciclos da vida. Na minha penúltima encarnação, era saudável e, por ter sido repelido por uma moça muito bonita, não quis continuar encarnado. Pensando estar sofrendo muito, planejei minha morte. Suicidei-me. Sofri muito porque havia aprendido conceitos religiosos e sabia que esse ato era pecado, era errado. E um erro grave se matar. Mas a bondade de Deus é infinita: fui socorrido, levado para um hospital onde fiz amizades, e recebi a bênção da reencarnação.
- Eu - contou Willian - também sou um ex-suicida. Cometi um ato de insubordinação na outra existência e, com medo das consequências, numa ação desesperada, suicidei-me. Roubei de meu pai uma grande quantia de dinheiro, fui viajar com meus amigos e gastamos tudo. Meu genitor guardava essas economias para pagar seus empregados e para plantar milho. O dinheiro que roubei acabou e fiquei com medo de voltar. Meus amigos foram para seus lares, fiquei sozinho e me matei. Também sofri muito, e o pior foi ver meus pais sofrerem. Fiquei um tempo no Vale dos Suicidas e depois fui levado a um hospital apropriado, para socorrer esses imprudentes. E, lá, fiz amigos.
- Mamãe - falou Aline -, eu também me suicidei na minha reencarnação anterior a esta. Era feia e, mocinha, apaixonei-me. O moço que amava encontrou-se comigo somente para farrear, e eu fiquei grávida. Ele viajou sem se despedir de mim. Amigos contaram-me que ele não ia mais voltar. Matei meu corpo físico. Sofri muito, mas o socorro veio, e recebi um grande aprendizado entre amigos, nesta reencarnação. De fato, aprendi a dar valor à vida em todos seus estágios, físico e espiritual.
Olhei para Isac, e ele contou:
- Também sou um ex-suicida. Na minha vivência na carne, no passado, era casado, tinha filhos e, por ter perdido muito dinheiro numa transação financeira, arruinei-me e me suicidei. Sofri muito e, pela minha morte, fiz sofrer a minha família. Socorrido, fiz amizades e decidi reencarnar para provar a mim mesmo que, diante de uma dificuldade, não mataria meu corpo físico. Como Isac, senti dores terríveis com o câncer nos ossos. Tive oportunidade de matar minha vestimenta física e não o fiz. Uma vez, no hospital, uma enfermeira esqueceu uma caixa de remédios na mesinha ao lado do meu leito. Sabia que se tomasse alguns comprimidos, desencarnaria. Não toquei neles. Em outra internação, um médico falou comigo de maneira sutil que poderia me aplicar uma injeção para não sofrer mais. Recusei e respondi: "Quero que meu corpo morra quando chegar a hora. E tive, desta vez, uma desencarnação bem diferente da outra em que me suicidei. Em paz comigo, meu retomo ao mundo espiritual foi tranquilo.
- Eu também - contei - senti, quando encarnada, vontade de me matar, mas resisti.
Ainda bem, mamãe! - exclamou Willian. - Se tivesse se suicidado, não estaria conosco.
- Encarnado, eu também pensei em me matar - falou Marcelo. - Naquela noite, mamãe, em que me encontrou chorando por ter sido desprezado, estava planejando me matar. Gostava daquela garota há tempos. Ela demonstrava me querer, ia muito à sorveteria e correspondia aos meus olhares. Quando falei com ela de namoro, disse-me coisas horríveis. Mas quando você, mamãe, dormiu ao meu lado, senti seu amor e não quis fazê-la sofrer. Escondi meu sofrimento para não preocupá-la, e esse amor de adolescente passou.
- Eu também - contou Aline - pensei em me matar. Era feia, e, na escola, a maioria dos colegas não queria se aproximar de mim, pensando que as manchas eram contagiosas. E as meninas não me aceitavam no rol de amigas por ser feia e manchada. Gostava de um colega, e ele se afastava quando eu me aproximava dele. Orei muito, pedindo ajuda para afastar de mim esses pensamentos suicidas, e consegui.
- Nunca pensei nisto - afirmou Willian. - Era feliz, desencarnei e passei a ser mais feliz ainda.
- Será que éramos amigos antes de reencarnarmos? Recordo do hospital. Estive lá? - perguntei.
- Sim, Rosário - respondeu Isac. - Conhecemo-nos no hospital, nós cinco, onde nos recuperávamos da imprudência que fizemos e nos tornamos amigos. Antes, reencarnamos você e eu, e os recebemos como filhos.
- Aprendemos juntos a amar a vida! - exclamou Aline.
- E as minhas visões? - quis saber.
Ninguém respondeu, mas não precisava. Lembrei-me sozinha do que fiz. Era muito pobre, casei jovem e tive quatro filhos. Meu marido, cansado da pobreza e por não me amar mais, passou a beber muito e não trabalhava, vivíamos miseravelmente. Eu fora aquela mulher que via em pensamento, nas minhas visões, com um lenço na cabeça. Passávamos fome. Um dia, meu marido me disse que ia embora com outra mulher e saiu. Dois dias se passaram, e ele não voltou. Desconfiei que estivesse grávida e resolvi matar meus filhos e me matar. Não vou contar como fiz, é muito deprimente. Meu marido voltou e nos encontrou mortos. Nas visões, os quatro caixões brancos eram os dos meus filhos e o roxo, o meu. Na igreja, entraram, para serem abençoados, os brancos com meus meninos, e o roxo com o meu corpo não pôde ser abençoado, por ter sido suicida, ficou aguardando nas escadas da igreja. Sofri muito no Vale dos Suicidas, mas a compaixão de Deus é infinita, e fui socorrida. Soube depois dos meus filhos assassinados por mim: assim que desencarnaram, foram levados para uma colônia, um educandário, e reencarnaram logo depois. Meu marido sofreu com meu ato, mas, meses depois, foi morar com outra e teve outros filhos. Fiquei sabendo também que o dono daquelas terras onde morava ia me ajudar. Deveria ter tido mais paciência. Não me entristeci com as lembranças. Estávamos bem agora, graças à reencarnação. Vencemos, Isac, Marcelo, Willian, Aline e eu, a tendência de fugir das dificuldades. Aprendemos a dar valor à vida. Abraçamo-nos com muito carinho. Continuamos juntos, trabalhando e aprendendo. Embora saibamos que devemos ficar muitos anos no plano espiritual, fazemos planos para quando formos reencarnar. Queremos voltar no corpo físico juntos, pertinho uns dos outros, para continuar nosso aprendizado e caminhar rumo ao progresso.

Obrigada, Maria do Rosário.


3 - O RESGATE

Minha última encarnação foi de muito sofrimento, um resgate doloroso. Pensava chamar-me Godofredo, nome que tive na penúltima vivência no físico. Demorei para entender que era chamado Niso, diminutivo de Adnison. Sentia-me preso num bloco de cimento, no qual somente me mexia se uma pessoa fizesse com suas mãos os movimentos. Enxergava muito pouco e demorei a compreender o que via. Não falava, mas escutava. Imobilizado, tinha dores, frio, sede, fome e a sensação de estar sujo. De repente, passei a ser bem tratado, não sentia mais fome, sede ou frio, porém continuei a sentir o desconforto de não conseguir me movimentar e as dores. Era franzino, meu físico não se desenvolveu. Gostava da água com que me banhavam. Uma mulher, que para mim era linda, vinha me fazer movimentar. Doía muito. Mas gostava. Sentir o contato das mãos dela sobre minha pele era reconfortador, e ela sempre cantava. Era um bálsamo escutá-la cantar. Explicando este pequeno texto: eu sofri ao nascer com paralisia cerebral. Era o segundo filho de um casal que não me aceitava e não cuidava de mim. Minha mãe teve, na terceira gravidez, gêmeos. Meus irmãos eram sadios e bonitos. Alegando não poder cuidar de mim, meus pais levaram-me para uma instituição. Lá fui bem cuidado. Moravam ali muitos doentes, a maioria crianças. Escutava-as, mas raramente as via. Não ficava mais sujo. Era alimentado na boca e fazia fisioterapia. Gostava quando me colocavam sentado no jardim para tomar sol, o ar fresco me fazia bem. Escutava música suave que me acalmava. Não gostava quando me aplicavam injeções. Às vezes, sentia-me criança; em outras, um adulto preso, incapaz de me mover. Era muito triste ter estas sensações. Comecei a melhorar quando amigos espirituais, duas vezes por semana, pegavam-me, quando meu corpo físico adormecia, e me levavam para assistir a uma reunião de orientação. Ali conseguia me ver, e meu perispírito era somente um pouquinho mais sadio que meu corpo físico. Meu corpo carnal recebeu a aparência da minha vestimenta perispiritual. Não estava doente apenas fisicamente. Pelo remorso destrutivo deformei meu perispírito, e a veste carnal estava sendo para mim um filtro, um meio de ficar novamente sadio. Nas primeiras vezes, não entendia bem o que acontecia nas reuniões de auxílio. Mas a insistência do grupo de trabalhadores desencarnados e encarnados, num processo lento, mas eficiente, começou a dar resultados. A tristeza e o remorso diminuíram. Fui me tornando resignado, confiante, comecei a ser grato às pessoas que me auxiliavam somente pelo "faça ao próximo o que gostaria que lhe fizesse." Sei que muitas daquelas pessoas recebiam remuneração pelo trabalho, elas necessitavam do salário para se manter, mas faziam suas tarefas com amor. Passei a ter momentos de alegria. Às vezes, meu espírito voltava destas reuniões para o corpo físico chorando, mas depois compreendi que vestimenta era abençoada, porque sem ela estaria sofrendo muito mais. Fui aos poucos melhorando, meu perispírito foi se tornando sadio. Afastado do corpo físico, já andava, falava, enxergava, estava me harmonizando. Comecei a pensar como seria bom ser como aquelas pessoas que cuidavam de mim, como seria bom me alimentar com as minhas próprias mãos, me banhar, coçar minha pele, passar as mãos pelos meus cabelos, andar, pular, falar e gargalhar. Meu corpo doente viveu vinte e dois anos e, após muitas complicações, desencarnei. Amigos espirituais me desligaram da matéria densa. Adormeceram-me e me levaram para um hospital no plano espiritual. Durante estes anos em que estive encarnado, pensava que me chamava Godofredo, embora soubesse que Niso também era eu. Lembrava, e isso ocorria muitas vezes, que andava por entre as árvores, via cercas e uma casa grande. Conversava com várias pessoas, elas me diziam coisas desagradáveis, eu chorava escondido e sentia muita raiva. Com nitidez, vinha em minha mente o rosto de uma mulher, minha mãe, eu pegando um pau e batendo com força em sua cabeça. Recordava-me de um quarto rústico da fazenda, local em que eu ficava muito, bebendo numa caneca um líquido com muito açúcar, na tentativa de amenizar o gosto amargo. Tomava esse suco sabendo que ia morrer. Outras vezes via alguém olhando para mim sorrindo, sabia que aquele sorriso era falso, mas não conseguia desviar o olhar. Sofria a rejeição. Às vezes, a lembrança de andar era tão forte que pensava que sairia andando. Esforçava-me e não conseguia nem me mexer. No começo chorava; depois, mais resignado pelas orientações que recebia, em espírito, nas reuniões de auxílio, comecei a entender que já andara e voltaria a fazê-lo. Deveria ter paciência. Lembrava-me também de um homem de quem gostava e sentia ser amado por ele, era meu pai. Mas ele morrera e vinha na mente papai num caixão para ser enterrado. Não recordava de nada de meus pais desta encarnação, não me interessei por eles. Lembrava-me dos outros, dos pais que tive anteriormente. Foram muitas as recordações que eu, quando encarnado, tive da minha outra vida, da minha vivência anterior. Mas a mais frequente era a de um homem sorrindo cinicamente, e eu batendo com um pau na cabeça de minha mãe. Os vinte e dois anos que eu, meu espírito, estive vestido num corpo deficiente, em que me senti preso, atormentado e com muitas dores, foi um período muito precioso para mim. Pela bondade de muitas pessoas, foi suavizado meu padecimento, e o mais importante foi o aprendizado com o exemplo que tive em relação à forma carinhosa como me trataram, dando-me o entendimento de que existem seres bons e o bem prevalece. Também foi importante a explicação de que devemos nos arrepender dos nossos erros, mas não deixar o remorso ser destrutivo. Meu sofrimento fez bem somente a mim e aprendi que o melhor seria me espelhar nas pessoas que anulam seus erros trabalhando no bem, ajudando outros irmãos. Concentrei-me, esforçando-me para me tornar sadio e, quando fiz isso, meu perispírito se harmonizou. No plano espiritual, entendi logo que meu corpinho de vinte e um quilos morrera, e uma nova fase de minha vida se iniciaria. Seguia com alegria todas as orientações, fui estudar e passei a ser útil. Comecei a fazer parte de um grupo, estudávamos e trabalhávamos juntos, tornamo-nos amigos, conversávamos sobre tudo, da vivência encarnada e da atual. Mas as lembranças da minha encarnação anterior continuavam, cada vez com mais detalhes, e estavam me incomodando. Um professor me chamou para conversar. Entendi que eles, nossos professores, sabiam muito sobre nós.
- Adnison, você não quer ajuda para recordar seu passado? Se as lembranças do passado não nos incomodarem, não tem razão para sabermos o que fomos e o que fizemos. Você, quando encarnado, talvez pelo remorso que sentiu por muitos anos, tinha muitas recordações de sua outra encarnação, e elas ainda continuam. Somente com fragmentos dessas lembranças, você não está conseguindo entender o que aconteceu. Percebo-o preocupado, e não é bom ficar incomodado nesta nova fase de sua vida.
- Aceito e agradeço - respondi.
Penso que, pelo resgate de sofrimento que tive, devo ter cometido muitos erros. Recordar atos imprudentes não é para ativar o remorso destrutivo, mas para compreender que não sofremos injustiças. Podemos sentir muita tristeza ao recordar de nossos erros, mas nos consolamos se já pagamos por eles e, quando reparamos com o bem, sentimo-nos tranquilos. É um incentivo fazermos o bem quando sabemos que já fizemos muito mal. Marcamos dia e hora. Esse professor foi comigo a um local próprio, no Departamento da Reencarnação. Um profissional iria me ajudar. Gostei de George, o senhor que me auxiliaria. O professor se despediu. Acomodei-me numa poltrona e ficamos conversando. Tranquilizei-me. Esperava recordar somente nas sessões futuras, mas aconteceu normalmente, lembrei-me de tudo que vivi na minha penúltima reencarnação, de forma clara e precisa. Chamava-me Godofredo. Sempre morei numa fazenda. Meu pai era um fazendeiro honesto e trabalhador. Tinha mais dois irmãos, uma irmã e outra, adotiva, que todos sabiam ser filha de meu pai com uma moça que fora sua amante. Meu genitor era um homem justo, bondoso, muito diferente de minha mãe, que era rancorosa e maltratava muito minha irmã adotiva, e depois a mim, por ser diferente. Fui homossexual. Desconhecíamos esse termo. Todos, principalmente minha família, referiam-se a mim com adjetivos ofensivos. Meu pai não queria que eu fosse como era e certamente sofria, mas era incapaz de me ofender, me castigar, e proibia os outros de fazê-lo. Na frente dele, meus irmãos me ignoravam, mas, com papai ausente, eles me ofendiam. Mamãe me batia muito. Quando menino eu não entendia. Para mim, era normal ser como era, não me sentia diferente por ser mais delicado, não gostar de violência, apreciar os brinquedos das minhas irmãs. Foi na adolescência que compreendi que era diferente, que queria ser mulher, ou sentia ser uma, e que meu corpo era masculino. Sofri muito. Por sermos rejeitados, minha irmã adotiva e eu nos tornamos amigos, foi a única amizade que tive. Minha irmã por parte de pai, com dezesseis anos casou-se com um viúvo de quarenta e oito anos. Tentei impedir, porém minha irmãzinha preferiu, para ficar livre de minha mãe. Após o matrimônio, ela foi morar numa cidade distante. Correspondíamo-nos sempre. Naquela época, as cartas demoravam a chegar. Ela não era feliz, não amava o marido, mas, em compensação, era bem tratada e dona da casa. O marido dela tinha três filhos do primeiro casamento. Minha irmã teve três filhos. Sem essa irmã em casa, fiquei muito solitário. Minha irmã Benedita arrumou um namorado. Gostei dele assim que ° vi, chamava-se Sebastião. Ele me tratava bem e sorria para mim cinicamente, debochado. Meus irmãos me detestavam, sentiam vergonha de mim. Seus amigos os gozavam por terem um irmão afeminado. Apaixonei-me pelo namorado de Benedita. Eles se casaram. Eu era infeliz e não sabia o que fazer e como agir. Trabalhava muito e raramente saía da fazenda. Um dia, Sebastião foi se encontrar comigo, eu estava consertando uma cerca. Educadamente, disse que estava precisando de dinheiro para saldar uma dívida antiga. Queria um empréstimo. Afirmei que lhe daria o dinheiro no outro dia. E quando lhe dei, agradeceu-me, muito gentil. Amei-o muito. Não tinha esperança e nem queria um relacionamento. Mas me alegrei em ajudá-lo. Tínhamos um ordenado, nós três, meus irmãos e eu, por trabalharmos na fazenda. Eu raramente gastava meu dinheiro, talvez por isso papai confiasse em mim. O dinheiro de meu genitor e aquele que deveria ser gasto na fazenda ficavam no banco, em meu nome. A fazenda ficava pertinho de uma cidadezinha onde minha irmã Benedita e Sebastião moravam, e, não longe, ficava uma cidade maior. Papai não gostava de ir à cidade, era eu quem ia, depositava o dinheiro ou tirava a quantia suficiente para pagar contas e fazer compras. Meu dinheiro também ficava no banco, mas em outra conta. Emprestara ao Sebastião o meu dinheiro, ou melhor, tinha dado, porque ele nunca falou em me devolver. Um ano e dois meses depois, novo empréstimo, e, em seguida, outros. Sebastião sabia que eu o amava e se aproveitou do meu sentimento. Meu pai faleceu, desencarnou de repente. Ele estava fiscalizando um trabalho de plantio quando caiu morto. Eu senti muito, talvez tenha sido somente eu a senti-lo. Dois meses antes, o esposo de minha irmã adotiva também havia falecido, depois de meses acamado. Dois dias depois da missa de sétimo dia de meu pai, reunimo-nos, mamãe e os quatro filhos, para decidir o que iríamos fazer. Embora esperasse uma discórdia, tive uma grande decepção. Primeiro ouvi meus dois irmãos conversando antes da reunião. Eles não me viram, pensavam que estavam sozinhos na sala. Quando os vi entrar, fiquei atrás de um biombo.
- Vamos ter de limitar os gastos de mamãe - disse meu irmão mais velho, o Jorge. - Não podemos deixá-la gastar muito. Devemos também ficar atentos ao Sebastião, nosso cunhado é um folgado, não é trabalhador, gasta muito, é viciado no jogo de cartas e gosta de prostitutas.
- Mas tem quitado suas dívidas - falou meu outro irmão, o Luiz.
Tenho certeza de que engana alguém. Quem é eu não sei. Alguém tem lhe dado dinheiro - afirmou Jorge.
- Será que é uma mulher? - perguntou Luiz.
- Penso que sim, nosso cunhado é um conquistador! - exclamou Jorge.
Gostava do papai, mas ficar com o dinheiro dele é bom! Veio em boa hora. Vendo-o sadio, tinha medo de ser empregado dele o resto da minha vida.
- É bom dividirmos a fazenda e nos tornamos fazendeiros. Devemos nos unir e sermos espertos. Dividirmos de modo a ficarmos nós dois como donos de tudo.
Benedita e minha cunhada entraram na sala, os dois mudaram de assunto e, minutos depois, saíram. Continuei escondido e ouvi as duas conversarem. Benedita falou:
- Não quero mamãe morando comigo! Ela quer ir para a cidade, mas, se fizer isso, deve mudar para uma casa pequena. Certamente mamãe não irá querer. Comigo não dará certo. Sebastião não irá permitir que mamãe dê palpites em nossas vidas.
Se ela souber que seu marido é viciado em jogo, irá se intrometer. Vocês têm dívidas? - Minha cunhada quis saber.
- Não temos - respondeu Benedita. - Sebastião afirmou que ganhou no jogo, enganou um trouxa.
Ainda bem que as duas saíram, e eu pude sair do meu esconderijo. Logo após o café da tarde, reunimo-nos na sala. Mamãe falou:
- Vou morar na cidade! Quero uma casa bonita e grande, não gosto de residências pequenas. A fazenda deverá ficar para Jorge e Luiz, e eles deverão me dar uma quantia razoável por mês. As casas na cidade ficarão para Benedita. Para Godofredo, uma quantia em dinheiro para ele ir embora para bem longe daqui.
- Por que isso? - perguntei.
- Godofredo - falou mamãe -, seu pai o tolerava. Tentei educá-lo, mas não consegui. Seus irmãos e eu nunca o aceitamos. É a vergonha da família! É melhor você ir embora para um lugar bem distante e não voltar mais.
Falamos todos ao mesmo tempo. Benedita achou injusta a divisão. Meus dois irmãos gostaram, mas queriam o controle de tudo e também acharam que nossa mãe não precisava de uma casa grande. Eu me indignei. Estava sendo banido. Sempre trabalhei muito. Mamãe gritou:
- Basta! Por hoje chega! O Natal será daqui a duas semanas, voltaremos a nos reunir aqui na fazenda. No dia vinte e seis decidiremos, ou eu falarei e vocês concordarão. Pois já decidi!
Minha irmã e o irmão casado foram embora com as suas famílias. Moravam numa cidadezinha ali perto. Recebi, naquela tarde, uma carta da minha outra irmã e amiga falando de suas dificuldades. Os filhos do primeiro casamento de seu marido ficaram com tudo o que o marido tinha. Ela e os filhos, que eram crianças, receberam de herança somente a casa onde moravam e uma pensão muito pequena. Ela não sabia o que iria fazer. Voltei ao trabalho e à noite planejei com detalhes o que iria fazer. No outro dia fui à cidade, ao banco, e transferi todo o meu dinheiro e o de meu pai para a conta de minha irmã adotiva. Ela era filha de meu pai e tinha direito à herança. Escrevi para ela informando que aquele dinheiro era a parte dela na herança - era uma quantia grande. Aconselhei-a a receber e planejar bem o que iria fazer com ele. Aconselhei-a a não voltar mais à fazenda e nem contar a minha mãe e irmãos o que o nosso pai lhe havia legado. Fiz as compras que mamãe pediu, voltei à fazenda e trabalhei como sempre. Vieram todos para nossa casa no dia vinte e três de dezembro. No dia vinte e quatro, jantamos como de costume, às vinte horas. Ninguém comentou sobre a reunião ou a herança, todos esperávamos pela reunião no dia vinte e seis. E passamos o Natal aparentemente tranquilos. Planejei como matar minha mãe. Depois que meu pai morreu, tive certeza do tanto que ela o fazia sofrer e como era má. Pretendia matá-la de um modo que todos seriam suspeitos. Se não sofressem pela sua morte, sofreriam por desconfiar uns dos outros e por terem de se defender. E se a culpa caísse sobre um deles, seria merecido. Essa seria minha vingança pelos maus-tratos e ofensas que sempre recebera deles. Nossa casa seguia uma rotina, principalmente com a família reunida. Tínhamos duas empregadas que moravam na fazenda. A primeira chegava de manhãzinha, acendia o fogo do fogão e ia ordenhar uma vaca para ter o leite fresquinho no desjejum. A segunda empregada ia para um cômodo separado no quintal, onde fazia pães no forno a lenha. Mamãe levantava e fazia o café. Acordei no dia vinte e seis e esperei. Quando escutei mamãe levantar e ir à cozinha, levantei sem fazer barulho e fui atrás dela. Vi minha mãe perto do fogão, peguei um pau que seria usado no fogo e a golpeei com força na sua cabeça. Ela não viu quem a atacou e não conseguiu nem gemer. Deixei-a caída e voltei silenciosamente para meu quarto e esperei. Dez minutos depois a empregada chegou à cozinha com o leite, deixou cair a vasilha e gritou desesperada. Ao escutá-la, todos se levantaram. Fui à cozinha.
- Mamãe está morta! - falou Jorge.
- Foi assassinada! - exclamou Benedita.
- Que horror! - disse.
- Não se choque tanto, maricá! - ordenou Luiz. Fiquei quieto e logo recebi uma ordem.
- Godofredo, vá à cidade e traga a polícia!
Troquei de roupa e fui. Fiquei sabendo pela empregada o que havia se passado depois. Todos ficaram inquietos, a porta da cozinha estava aberta porque a empregada já havia acendido o fogo. O criminoso poderia tanto ser uma pessoa que entrara na casa ou alguém que estava dentro dela. Ninguém sentiu muito a morte de minha mãe. Meus irmãos viram neste acontecimento mais lucro, ela não iria mais gastar dinheiro. Notei no velório uma conspiração: se duvidassem de alguém da família, acusariam a mim. Tinha motivos, ela me expulsaria da fazenda e me deserdaria. O delegado fez algumas perguntas no velório, marcou uma visita dentro de três dias para nos interrogar e determinou que todos nós ficássemos na fazenda. Depois do enterro, que foi às oito horas, voltamos todos para a fazenda. Jorge marcou uma reunião para o outro dia à tarde. Queixei-me de dor de cabeça e pedi para a empregada me fazer um chá.
- Faça uma jarra e coloque na mesinha no meu quarto, irei tomá-lo em várias vezes.
Fiz esse pedido na frente de todos. À tarde, aproveitando uma oportunidade, pedi para Sebastião ir para o celeiro porque queria falar com ele a sós. Logo depois que ele saiu, fui atrás. Resolvi que ele merecia morrer. Embora eu o amasse, era o pior de todos. Meu cunhado foi ao encontro pensando em levar vantagens, em contar comigo contra meus dois irmãos. Sebastião escolheu um lugar no celeiro em que ninguém nos visse conversar. Sorriu, cínico, ao me ver. O que aconteceu foi uma surpresa para ele. Com tudo planejado, deixara no celeiro uma faca grande e afiada ao alcance. Não falei nada e sorri também. Peguei a faca e o golpeei duas vezes. Sebastião não disse nada. Deixei-o caído e me afastei tranquilamente. Fui para o meu quarto. Peguei o veneno. Ao planejar meus crimes, lembrei-me de que papai havia comprado um veneno em pó e que, para usá-lo, tinha de diluí-lo. Era para matar pragas e bichos. Ele me avisara: "Godofredo, isto aqui, se alguém tomar, é morte na certa; por isso, guarde lá em cima, num local de difícil acesso". Tinha levado uma quantidade do veneno para meu quarto. Coloquei-o na caneca e o diluí no chá. O gosto era horrível, mas tomei tudo. Deitei e esperei a morte chegar. Senti muitas dores e fiquei quieto. A morte estava demorando muito. Escutei Benedita gritar, chorar desesperada. Ela havia encontrado Sebastião morto. Logo me acharam. Falaram que eu estava morto, eu pensava que não. Porém, meu corpo físico havia morrido, e eu continuava vivo e sofrendo muito. Não fui desligado, meu espírito continuou no meu envoltório carnal. Ouvi tudo que se passava. Para todos, alguém, um assassino, havia matado mamãe, Sebastião e eu. Mas quem? Como eu previra, um acusava o outro. Sofri muito ao ser enterrado. Se alguém soubesse o sofrimento que aguarda o suicida e o homicida, certamente não cometeria essas faltas graves. Depois de um tempo, fui para o Vale dos Suicidas no umbral. O padecimento me perturbou, senti remorso, porém destrutivo. Julguei-me condenado, sem perdão. O socorro veio, mas me recusei a melhorar. Realmente, toda a minha família sofreu muito. Ninguém ficou sabendo o que de fato acontecera, ninguém foi condenado, todos ficaram como suspeitos e com medo uns dos outros. Meus irmãos venderam a fazenda, todas as casas, dividiram o dinheiro e se mudaram para longe uns dos outros. Benedita também se mudou. Tornaram-se inimigos. Fui abençoado pela reencarnação. O corpo doente foi um filtro que me depurou. Quando as recordações terminaram, chorei sentido por alguns minutos.
- George, você sabe o que aconteceu com estes meus familiares depois que desencarnaram? Como estão eles hoje?
- Sua mãe e Sebastião sofreram muito também. Ao desencarnarem, ficaram revoltados. Eles, infelizmente, não fizeram nada para merecer socorro. Mas a dor ensina, arrependeram-se, pediram ajuda e foram socorridos. Seus irmãos desencarnaram idosos e também sofreram pelo mesmo motivo de sua mãe e cunhado. No momento, todos estão reencarnados, tentam aprender a ser bons com a nova oportunidade.
- E minha família atual?
- Seus pais, nessa última encarnação, rejeitaram uma grande oportunidade de ajudá-lo e fazer o bem. Sem dúvida iriam aprender muito ao cuidar de um filho enfermo. Estão encarnados. Você quer visitá-los?
Pensei, concluí e respondi:
- Não, estas pessoas são estranhas para mim. Mas de hoje em diante vou orar todos os dias por meus pais. Sou grato a eles por terem me dado a oportunidade de voltar ao físico.
Ficamos calados por instantes e depois quis saber:
- O que faço agora?
- Continue estudando e trabalhando - aconselhou George.
- Você tem razão. É o que farei. Aquele que muito errou é o que deve mais amar.
- É o que tenho feito. Estou me esforçando tanto nos estudos como no trabalho e sou muito grato àquela veste do corpinho enfermo onde o resgate me harmonizou novamente.
- Que Deus seja louvado nas nossas horas felizes e nas de sofrimento.

Adníson

4 - SOMENTE UMA LEMBRANÇA

Sempre fui agitada, ficava nervosa por qualquer motivo; irada, brigava, ofendia e era ofendida. Mesmo tendo, nos últimos anos de minha vida encarnada, me esforçado para mudar meu gênio, não o consegui totalmente. No plano espiritual, fiz terapias, estudei, tentei compreender as atitudes das outras pessoas e mudar meu comportamento. Quem quer e se esforça acaba por conseguir. Mas, às vezes, ainda me agito e me preocupo. Motivada a ditar a história de minha vida de médium, recebi muita ajuda para elaborar o texto, isso para ficar explicativo e fiel aos acontecimentos. Chamo-me Marisa, ou melhor, recebi este nome neste meu último estágio no plano físico. Mas meus familiares me chamavam por um apelido que eu mesma me dei. Quando pequenina, ao perguntarem meu nome, dizia:
- Nega Fuor!
Por nada respondia ser Marisa, embora atendesse por esse nome. Todos achavam graça e passaram a me chamar de Nega. Era a filha mais velha, éramos três meninas. Meu pai, James, sempre foi muito calado e trabalhador. Era pequena quando percebi que meus pais não se entendiam. Antes de completar onze anos, eles se separaram. Senti-me aliviada, não gostava de meu pai. Minhas irmãs sentiram muito. Mas eu fiquei contente por minha mãe ter um amante (esta foi a causa da separação). Mamãe, Maria Cecília, não ficou com o amante, este não quis se separar da família, e ela não o viu mais. Minhas irmãs se encontravam com papai, iam passear com ele, eu não. Evitava-o. Era um problema, brigava na escola, com as amigas, era uma pessoa difícil de conviver. Sentia-me infeliz e não sabia explicar o porquê. Meu pai, com a separação, ficou dois anos sozinho; depois foi morar com outra mulher e tiveram um filho. Ele continuou muito calado, trabalhava muito e nos dava pensão. Minhas irmãs o visitavam sempre. Minha mãe não se casou, não morou com mais ninguém. Embora tivesse namorados, não os trazia em casa. Acabei o período escolar, cursei oito anos, e fui procurar emprego. Meu primeiro trabalho foi numa sorveteria, e lá conheci um moço muito bonito e começamos a namorar. Porém, geniosa, acabei brigando com todos os meus colegas de trabalho e fui dispensada. Arrumei outros empregos, porém logo, pelo mesmo motivo, era demitida. Gostava deste meu namorado e tivemos relações sexuais. Não gostei, mas não me preocupei, pensei que iria gostar ou aceitar como algo normal, que faz parte da vida. Ele estava cansado de mim ou então já não tolerava mais minhas crises nervosas, e terminamos. Em casa, minhas irmãs me temiam e evitavam tudo que pudesse me contrariar. Mamãe ficou doente e desencarnou. Minhas irmãs anteciparam os casamentos: as duas eram noivas e se casaram. Um moço, nosso vizinho, que gostava de mim há tempos, pediu-me em namoro. Namoramos seis meses e nos casamos. Foi um período muito difícil os cinco anos que vivemos juntos. Não gostava de sexo, continuei nervosa e inquieta. Tive duas filhas: Nicete e Ivete. Nesta época, pensei muito em minha vida. Tive poucos momentos de alegria. Sempre sofri muito. Minha mãe nos tratou bem, minhas irmãs e eu, mas não tinha paciência comigo. Às vezes ficava preocupada e dizia ser por minha causa. Falava que desejava que eu fosse diferente, mais compreensiva e bondosa. Alertava-me: se continuasse agindo desse modo, iria sofrer, porque seria difícil alguém me tolerar. E, de fato, isso ocorreu. A família do meu marido não gostava de mim. A mãe dele chegou a pedir ao filho que se separasse de mim, e ela tentou várias vezes conversar comigo.
- Diga-me, Nega - pediu ela -, por que age assim? Você tem tudo para ser feliz! Por que infelicita tanto a vida do meu filho?
- Sou infeliz! - exclamei. - Não percebe que sou infeliz? Tenho motivos! Será que ninguém vê isso?
- Ninguém vê porque esses motivos não existem - disse minha ex-sogra. - Você é saudável, bonita, tem duas filhas lindas. Seu marido a ama, é trabalhador, dá a você todo o salário, não sai de casa, ajuda-a com as meninas...
- Faz a sua obrigação! - Respondia exaltada.
- E você, Nega, faz a sua?
Às vezes sentia que estava agindo errado, tentava me acalmar, não maltratar ninguém com minhas crises nervosas, mas isso durava somente poucos dias. E a separação acabou acontecendo. Meu marido saiu de nossa casa e voltou para a da mãe. Morávamos perto, ele ficava sempre que podia com as meninas, elas gostavam muito dele. Embora enfrentasse muitas dificuldades, principalmente financeiras, senti-me aliviada com a separação. Meu ex-esposo dava pensão, mas, para conseguir sustentar a casa, tive de trabalhar. Procurei emprego. Percebi que não sabia fazer nada e me matriculei em cursos profissionalizantes. Gostei do curso de manicure e me tornei uma ótima profissional. Empreguei-me em um salão de beleza. Tentava não ficar nervosa com as clientes e com as colegas de trabalho. Nessa época, procurei um médico e passei a tomar calmantes. Senti-me mais calma, mas era muito infeliz. Esforçava-me para ser boa mãe. Prometi a mim mesma não bater nas minhas filhas e tentava cumprir o prometido. Isso porque meu ex-marido me ameaçou:
- Nega, se bater na Nicete ou na Ivete, tiro as meninas de você.
"Ele conseguirá fazer isso", pensava. "É boa pessoa, trabalhador, bom pai. Se as meninas tiverem de escolher, optarão por ficar com ele." Temi ficar sem elas.
- Marisa - opinou uma colega (no meu trabalho me chamavam pelo nome) -, por que você não procura um psicólogo para saber o porquê de você não gostar de sexo e ser tão agitada?
- Faça isso, Marisa - aconselhou-me outra amiga. - Pode ser algum trauma de infância. Algo que aconteceu com você. Uma coisa terrível que sua mente preferiu esquecer, mas deixou sequelas. Você não acha estranho não gostar de seu pai?
- Será que seu genitor tem a ver com seus problemas? Será que ele fez alguma coisa para deixá-la assim? - indagou outra companheira de trabalho.
- Penso que sim!
Minha exclamação foi sincera e sentida. Pareceu naquele momento que havia encontrado a causa dos meus conflitos, agitação e infelicidade. Na maioria das vezes, gostamos e sentimo-nos aliviados quando podemos colocar a culpa da nossa maneira equivocada de agir com algo ou alguém. Comecei a pensar que alguma coisa acontecera comigo na infância e que estaria relacionada com meu pai. Talvez pudesse explicar o porquê de não gostar dele. Dias depois, comentaram no salão de beleza em que trabalhava que um homem havia sido preso por ter estuprado a filha de oito anos. Comecei a pensar que isso poderia ter ocorrido comigo. Não gostava de sexo e nem do meu pai. E essa desconfiança foi ficando cada vez mais forte. Fui a um psicólogo. As sessões eram caras para mim, então negociei o pagamento com o profissional e fiz economia para poder ir. A inconveniência de alguém fazer qualquer tratamento é que aconteça o que ocorreu comigo, já levei o diagnóstico como certo e pela poucas conversas que tivemos, deduzi que meu pai havia me estuprado na infância. Isto me chocou e fiquei revoltada. Quis matar meu pai. E não deixei o profissional concluir seu diagnostico. Fui a poucas sessões e parei de ir por dois motivos: primeiro porque era caro e não possuía dinheiro para pagar; segundo porque descobrira o motivo, o porquê de meus problemas. Errei muito naquele momento. Não deveria ter parado com as sessões. Quando se começa um tratamento, este deve ser continuado. Com toda a certeza, se tivesse continuado com as sessões, descobriria muitas outras coisas, e o resultado seria diferente. Com vontade de recomeçar, fui procurar meu ex-marido. Nós nunca nos separamos pela lei. Arrumei-me e fui à casa da mãe dele. As meninas gostavam muito de ir lá e iam bastante. Pedi para conversar com ele e ficamos a sós na sala. Contei-lhe tudo.
- Estou pasmo! - exclamou meu ex-marido. - É difícil acreditar que o senhor James tenha feito isto.
- Agora você entende por que agia daquela maneira? Tinha motivos! Estou curada! - Quero ser uma pessoa melhor. Vim aqui para lhe pedir para voltarmos, morarmos juntos novamente. Você está sozinho, ama tanto as meninas e...
- Nega - ele me interrompeu -, de fato, amo minhas filhas e vou sempre amá-las. Fiquei esse tempo sozinho, mas agora estou namorando outra pessoa. Já marcamos a data para irmos morar juntos. Senti vontade de gritar, ofender, mas me contive e falei somente:
- Tudo bem!
Saí e voltei para casa deixando minhas filhas lá. Fiquei indignada por ele não me querer mais e por ter outra pessoa. E tudo por culpa de meu pai. Não falara a ninguém sobre isso e aí resolvi falar. Contei a todos no salão e escutei várias opiniões.
- Esqueça, Marisa! Perdoe! Isso aconteceu há tanto tempo...
- Como foi que isso ocorreu? - Uma delas quis saber.
- Não me lembro direito - respondi.
- Deveria lembrar! Se continuar o tratamento com o psicólogo, com certeza lembrará. Faça isso! - aconselhou outra.
- Nem tente lembrar! Deve ser horrível! Não deveria deixar por isso mesmo. Deve contar para toda sua família - afirmou uma amiga.
- Ele merece um castigo! Pena que não consiga colocá-lo na cadeia! - a proprietária do salão falou, indignada.
- Fale a todos! Sua família não a critica por ter problemas? Eles devem saber quem é o responsável por esses problemas - alguém opinou, e todas concordaram.
Tinha certeza de que meu pai havia me estuprado. Mas não conseguia me lembrar de detalhes. De como e onde. Ao lembrar de meu pai, tinha certeza de que ele fizera isso comigo. Não tive dúvida nenhuma. Sofrera um estupro, e o estuprador era meu pai. Resolvi contar a todos. Primeiro fui à casa de minha tia, irmã de minha mãe. Ela me escutou, chorou e comentou:
- James é o pior homem que existe! Humilhou sua mãe, acusou-a de tê-lo traído, e ele era muito pior! Fez de você uma pessoa desagradável! Bandido!
E ela se encarregou de contar para toda a família. Minhas duas irmãs vieram à noite em minha casa. Confirmei a elas. Marlene, que sempre fora coerente, indagou-me:
- Nega, você tem certeza? Isso é muito grave! Sempre soubemos que você nunca gostou do papai. Porém, como você não gosta de ninguém... Márcia e eu conversamos, nunca desconfiamos de nada. Você é a mais velha. Conosco papai sempre foi respeitador.
Afirmei que sim. Elas ficaram tristes. A segunda mulher do meu pai teve então desculpa para colocá-lo para fora de casa. Ele veio à noite conversar comigo.
- Nega, minha filha, por que inventou tudo isso?
Aí eu o xinguei e gritei, ofendendo-o muito. Pus para fora toda minha revolta e raiva. Meu pai tremia de indignação. Os vizinhos vieram me socorrer. Gritei tanto, fiz um escândalo, e as pessoas ali presentes ameaçaram bater nele. Meu pai foi embora. Então, todos ficaram sabendo. Papai mudou-se do bairro. Todos o desprezaram. Os netos foram proibidos de vê-lo, minhas irmãs e meu irmão se afastaram dele, não queriam mais falar com ele. Achando-me vingada ou pensando que a justiça havia sido feita, fiquei mais tranquila. Todos os familiares tentaram se aproximar de mim. Gostei dessa aproximação. Entendi que eles sentiram dó de mim e compreenderam que eu tinha motivos para ter sido uma pessoa difícil de conviver. Tentei novamente reatar com meu ex-marido. Falei até com a moça com que namorava. Ela educadamente me escutou, disse que a decisão teria de ser dele e que ela o amava. Meu ex-esposo disse que me entendia, mas nosso relacionamento tinha acabado e gostava da outra. Aconselharam-me a desistir e tentar também recomeçar com outra pessoa. Logo a família se cansou de tentar me ajudar. A vida continuava. Meu pai ainda tentou se inocentar. Ninguém acreditou nele. Fora enxotado por todos. Achei justo, ele deveria pagar pelo que havia feito. Arrumei um namorado. Este era muito diferente do meu primeiro marido, que fora mesmo morar com a outra, vivia bem com ela e tivera mais dois filhos. Esse homem, meu namorado, já fora casado, tinha um filho que era irresponsável. Moramos juntos. Minhas filhas, que ficavam muito na casa do pai e da avó, foram morar de vez lá. Tive um filho, José Antônio. Voltei a ser difícil e acabei afastando todos de mim. O pai do meu filho, que eu considerava como marido, saía muito sozinho, ia a bares. Esforçava-me para ter uma vida sexual, porém era difícil, e ele me traía. Meu filho estava com seis anos, e minhas filhas eram adolescentes quando nos separamos. Meu filho ia muito à casa dos avós paternos, gostava muito do pai e das irmãs. Foi um período difícil. Meus filhos gostavam mais dos pais, dos avós e dos tios do que de mim. Sofria por isso, mas, para mim, era difícil aturá-los, pois não tolerava nem a mim. No trabalho, esforçava-me para não brigar e tratar a todos bem, precisava trabalhar. Resolvi não me envolver com mais ninguém. Meu pai ainda tentou conversar com minhas irmãs, mas depois não as procurou mais. Não sabíamos dele. Eu sofria, estava inquieta e voltei a tomar calmantes. Quinze anos se passaram desde que me separei do meu segundo marido. Não melhorei meu gênio, continuei sendo uma pessoa difícil de conviver. Não arrumei mais ninguém. Minhas filhas se casaram, meu filho fora morar com o pai e a avó paterna. Continuei como manicure no mesmo salão. Esforçava-me para não discutir com ninguém e trabalhar do melhor modo que conseguia. Era boa profissional, talvez por isso fosse tolerada. Foi então que tive um sonho que me pareceu ser muito real. Sonhei com minha mãe, e ela me pediu para rogar perdão. Encabulei-me: eu era a vítima que deveria perdoar e não pedir perdão. Concluí que entendera errado o sonho. Mamãe deveria ter me pedido para perdoar e me tranquilizar. Fiquei pensando novamente no assunto. Concluí que não resolvera direito meu problema. Tinha sido estuprada e esquecera todos os detalhes, talvez devesse lembrar para ter meu problema solucionado. E fiquei pensando no estupro: "Será que mamãe soube e ficou quieta? Fui machucada? Devo ter sido. Se fui, alguém me levou ao médico ou ao hospital? Se ninguém ficou sabendo, foi meu pai quem cuidou de mim? Como ele escondeu isso? Estuprou-me uma vez somente?" Indagações sem respostas que passaram a me incomodar. Queria não pensar sobre isso, mas não conseguia. Bastava ficar sem ocupar a mente para virem esses pensamentos. E estava tendo insônia. Aí, dias depois, outro sonho estranho. Eu era mulata, Pele quase negra, estava num lugar, parecia ser um quarto fechado e sentia muito medo. Estava encolhida num canto, encostada numa parede de madeira. Escutei barulho, alguém entrara, um homem que mancava. Acordei, estava encolhida no canto do quarto, suava, tremia, e meu coração estava disparado. Olhei meus braços e, por um momento, vi-me mulata. Eu tinha a pele branca, era muito clarinha, cabelos castanhos claros. Demorei a me acalmar e não dormi mais aquela noite. Durante o mês tive vários sonhos parecidos. Eu era, sentia ser, uma garota, talvez de quatorze anos, estava num quarto fechado esperando pelo homem que mancava. Quando ele se aproximava de mim, via que era velho, ou o achava velho, muito feio, e tinha mau hálito, talvez pelos dentes estragados, fumo forte e bebida alcoólica. Todas as vezes acordava agitada, suando, tremendo, o coração disparado. Tinha a sensação de que aquela mocinha era eu, e o homem era meu pai. No último sonho, escutei-o me chamar:
- Flor Negra! Nega Fuor!
Ele me pegou pelos cabelos e me levou para a cama. Acordei com meu grito. Orei muito, pedi para minha mãe me ajudar e veio em minha mente: "Peça perdão!". No outro dia, a senhora que eu estava atendendo, esmaltando suas unhas, comentava com outra sobre reencarnação. Indaguei-a curiosa:
- As pessoas podem se lembrar de suas vidas passadas?
- Não é bom recordar - respondeu a senhora. - O esquecimento nos permite um recomeço. Você já pensou se nossos pais nos tivessem feito muito mal e lembrássemos? Talvez não conseguíssemos amá-los!
- Será que não podemos nem sonhar com nosso passado? - perguntei.
- Acredito que não esquecemos de tudo. Penso que podemos sonhar, sim, com alguns fatos que nos ocorreram em outras reencarnações. Eu, desde pequena, sou boa bordadeira. Aprendi rápido, ou reaprendi. Meu irmão aprendeu com muita facilidade a língua alemã, talvez tenhamos somente reaprendido.
A outra senhora resolveu comentar:
- Às vezes olhamos para uma pessoa e não gostamos dela. Com muito esforço a tratamos bem. E de outras gostamos rapidinho. Eu tenho muito medo de cachorro. Qualquer cachorro me apavora. Somente encontro explicação na possibilidade de ter sido atacada por cães em outra existência.
Acabei, e as duas senhoras foram embora. Pensei muito no que havia escutado e, quando estávamos limpando o salão para irmos embora, perguntei às minhas colegas, éramos doze:
- Quem de vocês acredita em reencarnação? Percebi que a maioria não afirmava acreditar, mas tinha dúvidas, porque não entendia bem sobre o assunto. Uma delas disse que queria acreditar porque só assim acreditaria na justiça de Deus e compreenderia as diferenças existentes no mundo.
- Eu sou espírita e acredito - afirmou uma delas.
- Gostaria de entender mais sobre este assunto. Você explicaria? - pedi.
- Tenho de ir embora, e o assunto é abrangente, não podemos conversar sobre isso durante o trabalho. Vou lhe dar o endereço do centro espírita que frequento. Aqui está - tirou um cartão do bolso e me entregou. - Estão marcados os horários. É aqui pertinho. Peça lá para conversar com alguém e certamente será atendida. Aí pergunte o que quer saber.
Peguei o cartão. Acabamos e saímos. Li os horários. Em trinta minutos começaria uma palestra. Não hesitei e fui para lá. Era de fato perto. O local era um salão, estava com a porta aberta. Entrei, sentei e logo iniciou a palestra. Infelizmente, para mim, naquela noite, o palestrante não falou nada sobre reencarnação, mas sim de um ensinamento de Jesus. Sobre a Parábola do Samaritano. Achei muito bonita. Quando o palestrante terminou, quem quisesse ou necessitasse poderia receber o passe. Fui. Gostei muito. Senti-me tranquila. Terminou, as pessoas começaram a sair, aproximei-me de uma mulher e pedi:
- Senhora, por favor, queria saber sobre reencarnação. Tenho algumas perguntas e queria respostas.
- Amanhã, neste mesmo horário, teremos uma palestra sobre reencarnação, e, depois do passe, a palestrante ficará no salão para responder perguntas. Convido-a para voltar amanhã.
Naquela noite dormi tranquila, como há muito tempo não fazia. No outro dia, pensei em não ir, e aí por mais que me esforçasse para não fazê-lo, comecei a pensar, nos sonhos que tivera. Voltei ao centro espírita. Fiquei impressionada com a palestra. Uma mulher, ainda jovem, não deveria ter nem trinta anos, falou, levando os ouvintes a raciocinarem. Muitas coisas que a moça disse me marcaram profundamente. Ela fez indagações para as quais as respostas levaram a uma conclusão: reencarnação. Foram: "Por que nascem crianças com deficiências?", "Por que muitas crianças são abandonadas?", "Por que uns desencarnam (ouvi este termo pela primeira vez, e ainda bem que a palestrante explicou que era a morte do corpo físico) jovens e outros idosos?" "Por que uns são inteligentes e outros sentem muitas dificuldades de aprender?" E finalizou:
- Não seria muita maldade alguém castigar outra pessoa sem dar a ela a chance de melhorar? Punir para que o outro aprenda é uma coisa, porém castigar sem dar a possibilidade de aprender e melhorar é muita maldade. E a reencarnação é a oportunidade de aprendizado. Com a reencarnação podemos reparar nossas faltas graves: se não o fizermos pelo amor, a dor tentará ensinar. E aí estão explicadas as diferenças que vemos. Diferenças estas criadas por nós mesmos. Somos o que fizemos para ser.
Tive vontade de aplaudi-la. Fui receber o passe, voltei ao salão e fiquei esperando pela continuação. Ficaram algumas pessoas. E a primeira pergunta foi feita por um moço, era a mesma que eu queria fazer.
- Por que esquecemos as reencarnações que tivemos?
- Pela imensa bondade do Criador. O Pai nos dá chance mesmo! É muito difícil começar de novo sabendo que erramos, que fizemos maldades que repelimos. Saber que fomos maus e lembrar os atos maldosos deve ser algo muito triste - ela suspirou. - O presente é que deve ser, para nós, importante! Não podemos mudar o passado, mas podemos imaginar o que seremos no futuro pelo que construímos agora.
Outras perguntas foram feitas. Não tive coragem de indagar. Mas a palestrante percebeu. Finalizou com uma linda oração. Ela se aproximou de mim e disse baixinho:
- Se quiser conversar comigo, fique aqui! Continuei sentada, as pessoas saíram, ela fechou a porta e me disse:
- Tenho a chave, depois tranco tudo. Você quer me perguntar algo?
- Sim - respondi e fiz logo a pergunta: - Podemos recordar algo do passado e confundir com o presente?
- Creio que sim! - respondeu ela. - Faço um trabalho voluntário, participo de um grupo com o qual visitamos um sanatório onde várias pessoas se tratam. E algumas delas confundem a encarnação presente com outras. Dizem ter duas ou mais personalidades. Às vezes, isso ocorre por uma obsessão, ou seja, desencarnados as perseguem. Explicarei isso a você em outra ocasião. Se você quiser saber mais sobre esses assuntos, poderá encontrar respostas no Espiritismo, vou lhe emprestar os livros de Allan Kardec, que são muito explicativos - fez uma pausa e voltou ao assunto sobre o qual indagara. - Podemos, sim, ter lances de lembranças de outras vidas. Isso pode ocorrer em sonhos ou ao ver um lugar pela primeira vez e ter a certeza que já conhecíamos. Se você for mais explícita, poderei lhe explicar melhor.
- Tinha certeza de algo ter me acontecido na minha infância, e é muito grave. Cheguei a acusar uma pessoa. Agora não tenho mais certeza! Começo a desconfiar de que isso ocorreu na minha outra vida. Se isso aconteceu na minha vida passada, fiz uma coisa horrível. Fiquei nervosa e comecei a chorar.
- Marisa - disse a palestrante -, temos um companheiro espírita que é médico psiquiatra, ele poderá ajudá-la.
- O tratamento não é caro?
- Pedirei a ele para atendê-la. Volte aqui amanhã. Vamos ajudá-la.
Voltei no outro dia, e a moça palestrante me entregou um cartão. O médico espírita iria me atender na semana seguinte e não me cobraria nada. Passei a ir quase todas as noites no centro espírita. Sentia-me bem, tranquila e dormia sem remédios. Fui à consulta. Gostei do médico. Ele me pediu para contar-lhe tudo o que me afligia. Falei com sinceridade. Na primeira consulta ele me fez somente algumas perguntas. Na semana seguinte, indagou-me sobre minha infância e concluímos que não houve abusos. Na outra, contei os sonhos e senti como se estivesse revivendo aquelas cenas, tanto que suei, tremi, chorei, sentia ser negra. Nas sessões seguintes, lembrei mais do que nos sonhos. Eu fora uma moça mulata, bonita, que fora estuprada pelo senhor da fazenda. Concluí que eu tinha sido a Nega Fuor e que o senhor da fazenda tinha sido meu pai. Chorei muito. O médico me consolou.
- O que faço? - perguntei a ele.
- Se tiver oportunidade, conserte seu erro!
Agradeci muito ao médico, que me atendeu gratuitamente. Mas ainda tinha algumas dúvidas. Naquela noite assisti a uma palestra, no centro espírita, sobre o perdão. Minha mãe tinha razão quando, em sonho, mandou-me pedir perdão. Antes de tomar qualquer decisão, resolvi investigar. Visitei minha tia, a irmã de minha mãe.
- Tia - perguntei -, a senhora não se lembra de eu ter ficado doente quando pequena e ter sido levada para um hospital?
- Você nunca foi para um hospital. Sua mãe falava sempre que vocês tinham saúde. Não me lembro de você ter sido internada num hospital.
- Tia, mamãe não trabalhava fora. Ela ficava mesmo muito conosco, com as filhas?
Ficava sim - respondeu titia. - Quando ela precisava sair, vocês ficavam comigo, e, quando eu precisava sair, ela ficava com meus filhos.
- Mas traía meu pai. Será que nos deixava sozinhas para ir se encontrar com o amante?
- Não sei de detalhes, mas penso que era no horário em que vocês iam à escola. Ela teve esse amante quando vocês já eram maiores. Mas por que pergunta isso? Por que esse interesse?
- É que estou pensando em quando foi que fiquei sozinha com meu pai - respondi.
- Este assunto de novo? Você não esquece? Sabe que na época em que você me contou do estupro, fiquei pensando nisso? Mas acreditei em você. Não morava junto e não teria como saber.
Mudei de assunto e fui logo embora. No outro dia, fui à casa de minha irmã Marlene, no horário do almoço, e a ajudei a preparar a comida. Indaguei-a:
- Marlene, nosso pai não abusou de você?
- Não, Nega, papai nunca incomodou a mim ou a Márcia. Quando você falou do estupro, pensei muito, tentei lembrar. Conosco não, foi somente com você.
- Você sabe com quem mamãe nos deixava quando ia encontrar com o amante? - perguntei.
- Penso que ela se encontrava com o amante quando íamos para a escola ou no domingo, quando nos deixava com papai para ir à missa, ou dizia ir.
- Você sabe do nosso pai? Onde está ele?
- Ele foi morar no bairro... - respondeu Marlene. - Era um lugar pobre e distante. - Morava perto da Igreja... Por que pergunta, Nega? Por que não esquece isso?
Mudei de assunto, almocei com ela e voltei ao trabalho. Conversei com outros familiares e tentei me lembrar de fatos ocorridos na infância. Nenhuma dessas lembranças desabonava meu pai. Fui procurar meu ex-namorado, com quem tive meu primeiro envolvimento sexual. Ele morava no bairro, era mecânico, fui à oficina em que trabalhava. Ao vê-lo, pedi para conversar com ele. Seus colegas riram. Ele me disse que ia lavar as mãos. Falei que ia esperá-lo no bar ao lado. Fui ao bar, ocupei uma mesa num canto, sentei e pedi dois cafés. Ele sentou-se ao meu lado, sorrindo cinicamente.
- Agradeço por ter me atendido - falei. - Preciso de uma informação. Vou ser rápida. Você acha que eu era virgem quando nos envolvemos?
Ele parou de sorrir, pensou por uns instantes.
- Marisa, faz tempo, éramos jovens... Creio que sim!
- Já paguei o café. Obrigada! Até logo! Voltei para casa.
No outro dia, era minha folga. Fui logo cedo para o bairro onde minha irmã havia dito que nosso pai morava. Peguei três ônibus. Perto da igreja citada, pedi informações.
- Senhor James - disse uma senhora que varria a calçada -, penso que só existiu ele com esse nome por aqui. Nome diferente!
Quando ela falou "existiu", estremeci, pensei que ele tinha desencarnado. Cheguei até a suspirar aliviada quando ela continuou a falar:
- Ele morou nos fundos daquela casa muitos anos. Sozinho, sem família, trabalhou muito e depois se aposentou. Ficou doente e então foi para o asilo. A senhora me deu todas as informações e até os horários de visitas. Agradeci-lhe. Almocei num restaurante simples e depois fui para o asilo. Tive de esperar o horário de visita. Quando disse na recepção que queria visitar James, a moça atendente perguntou:
- O que você é dele?
- Filha!
- Nunca ninguém da família visitou o senhor James. Às vezes, ele recebe visita de ex-colegas de trabalho e até de ex-vizinhos. Infelizmente, existem familiares ingratos!
- Como ele está? - perguntei.
- Doente e sozinho! Você sabe o que é solidão? Ser desprezado por familiares? O senhor James não comenta nada da família. Vou avisá-lo que receberá visita.
Ela saiu para voltar logo depois e me disse:
- O senhor James está sentado num banco no jardim. Não acreditou quando disse que a filha está aqui. Pode ir vê-lo. É só atravessar o corredor que verá o jardim. Seu pai está perto do chafariz.
Minhas pernas tremiam, o coração disparou, e o corredor parecia não ter fim. Vi o chafariz e um homem velho, aparentava muito mais idade. Estava sozinho. Aproximei-me.
- Pai!
- Nega?! Você? O que faz aqui? Achei que era engano quando Neuzinha me disse que minha filha havia vindo me ver. Pensei que, se fosse verdade, deveria ser Marlene ou Márcia. Mas você? O que quer? Desonrar-me por aqui? Acabar com meu sossego?
- Não, pai - falei baixinho. - Não quero nada disso. Vim aqui para lhe fazer uma pergunta.
Papai abaixou a cabeça, suas mãos tremiam, sua respiração ficou ofegante. Sentei-me no banco ao seu lado e perguntei:
- O senhor me estuprou?
Pensei que ele não ia me responder, mas, com voz baixa, afirmou:
- Não!
Ficamos calados, foi depois de alguns segundos que ele voltou a falar, sem sequer se mexer ou me olhar:
- Nunca faria isso! Sempre abominei este ato. Achava e acho um ato abusivo, horroroso. Nunca faria isso! E não fiz! Filha ingrata! Mentirosa!
- Pai, escute-me, por favor! Não menti! Acreditava mesmo que isso tinha ocorrido. Mas aconteceu no passado - ele levantou a cabeça, olhou-me e voltou à posição anterior. Continuei a falar - Em nossas vidas passadas. Na nossa encarnação anterior, o senhor me estuprou...
- Basta, Nega! - ele me interrompeu. - Basta, por favor! Essa conversa de reencarnação é desculpa. Isso não existe! Aqui no asilo tem uma mulher, a Dona Clara, que está sempre falando isto: "Sou assim porque na vida passada...", "Não gosto disso porque...", "Estou aqui no asilo porque...". Desculpas! Desculpa para se justificar. Ela está aqui pelos seus atos desta vida mesmo. É muito chata e implicante. E esta casa não é castigo, é benção, mas Dona Clara tem de reclamar. Você também está fazendo isso! Está tentando se justificar. Mentiu, acabou com minha vida porque na vida passada... Você, Nega, já me fez muito mal. É mentirosa e cruel!
- Mas foi isso que aconteceu! - tentei explicar. - Pensava ser verdade, por nenhum momento julguei mentir.
- O que você quer? - papai perguntou.
- Que me perdoe!
- Fácil! Justifica sua mentira e pede perdão? Perdôo e pronto, fica tudo bem. Você fica em paz com sua consciência. Pedir perdão é outra enganação. Apronto, faço tudo errado, prejudico, maltrato... Aí peço perdão e tudo fica certo, fica tudo bem de novo. Você consegue entender o que me causou com sua mentira? Minha mulher me enxotou de casa. Meus filhos não quiseram mais me ver. No meu trabalho, todos me desprezaram, xingaram, tive de deixar o emprego de muitos anos, no qual ganhava bem. Quando saí de casa, fui morar numa pensão. Numa noite, um grupo de cinco homens me seguiu e me estuprou. Sofri tanto! Fiquei muito machucado. A dona da pensão me pediu para ir embora. Desprezado por todos, humilhado, tratado como o pior dos criminosos, afastei-me. Fui morar num bairro distante, mudei-me várias vezes. Na última, ninguém me reconheceu. Vivi sozinho, mas em paz e sempre com muita saudade.
Fez uma pausa e depois continuou a falar:
- Quando você inventou esta maldade, eu participava de um grupo que dava apoio às pessoas que haviam sido estupradas e até aos estupradores. Eles me expulsaram de lá. Jogaram pedras em mim, machucaram-me. Você sabia disso? Não! Com certeza, não!
- Pai, perdoe-me!
Ele começou a passar mal. Chamei a atendente, que me olhou reprovando e falou:
- Vou ajudá-lo! Acalme-se, senhor James.
- Vá embora, filha ingrata! Nunca veio vê-lo. Quando veio, foi para maltratá-lo!
Saí do jardim e fiquei na portaria. Vinte minutos depois, a atendente voltou e me olhou, séria. Perguntei:
- Ele melhorou? Está muito doente?
- Senhor James está doente. Aqui todos os idosos são doentes. Seu estado requer cuidados. Dei-lhe o remédio, deixei-o no leito, um amigo dele está lhe fazendo companhia.
Agradeci e saí. Como o médico psiquiatra que me atendeu recomendou que deveria tentar consertar o que havia estragado, resolvi fazê-lo. Ouvi muitos bons ensinamentos no centro espírita. Um dos que me chamaram mais a atenção foi sobre o perdão, sobre reparação, porque junto do pedido de perdão deve vir o ato reparador. Roguei coragem a Jesus. Decidi dizer a todos o que acontecera e sem adiar. Tinha que ser rápida. Resolvi começar naquele instante. Por ser mais perto de onde estava e por saber que meu irmão trabalhava à noite e certamente estaria naquela hora em casa, fui vê-lo. Contei tudo falando rápido.
- Nega, como pode mentir assim? Não acredito nesta tal de reencarnação. Sou evangélico! Você estava endemoniada! Mentirosa sádica!
Chamou a mãe dele, que morava perto. Contou a ela.
- Mamãe, temos de pedir perdão ao papai. Deixe, Nega, o endereço do asilo. Agora, por favor, você pode ir embora?
Fui à casa dos avós do meu filho. Eles iam jantar. Contei tudo. Deixei-os assustados.
- Sempre pensei, mamãe - falou meu filho -, que a senhora era doida. Mas é completamente biruta! Papai tinha e tem razão de falar que a senhora não é certa. É doente!
- Mente e inventa justificativa? - perguntou a avó do meu filho. - Já ouvi falar de reencarnação, mas nunca escutei alguém mentir por esse motivo. Falam que esquecemos as outras vidas!
- Mamãe, que complicação! - exclamou meu filho. - Deixe-nos fora disso, por favor! - Mãe doida é a última coisa que quero para mim.
Peguei minha bolsa e saí. Estava para desistir de desmentir, mas roguei novamente forças a Jesus. Senti que precisava reparar meu mal. Nunca pensei que meu pai sofrera tanto. Fui à casa de minha irmã Marlene. Contei a ela.
- Papai inocente! Meu Deus, como fui cruel! Não mereço perdão! - começou a chorar alto.
Meus sobrinhos vieram ver o que tinha acontecido. Marlene contou.
- Mãezinha - disse minha sobrinha -, por favor, não se desespere! A senhora acreditou na tia Nega. Vovô com certeza a perdoará.
- Mas como anular o sofrimento dele? - Marlene perguntou aflita.
Continuou chorando. Saí sem me despedir. Márcia morava perto de Marlene, fui para lá. Assim que ela me viu, falou alterada:
- Nosso irmão me telefonou contando o que você fez. O demônio tomou conta de você!
- Agora ou antes? - perguntei.
- Penso que sempre! Mentiu e continua mentindo! Vou falar com o nosso pastor. Pedirei a ele para afastar este demônio de você. Mas precisa cooperar!
- Márcia, não irei a pastor nenhum. Eu não menti. Acreditava que era verdade. Isto porque aconteceu no passado. Eu me confundi. Agora que compreendi, estou tentando me retratar contando a verdade.
- Verdade com outra mentira? Você quer que eu acredite nesta invenção de reencarnação? Seria mais honesto você dizer: menti e pronto!
- Pronto mesmo? - perguntei.
- Claro que não! Sabe o que eu sinto? Você me fez ser má filha! Devo pedir muitas vezes perdão a Deus. Com certeza nosso pastor me ajudará. Desrespeitei o mandamento: "Honrai pai e mãe"! Você tem de ler a Bíblia, orar, talvez Deus a perdoe.
Saí sem me despedir. Fui para casa. Estava tão arrasada que nem conseguia chorar. "Coragem. Devo continuar", pensei. Telefonei para minha tia. O telefone era algo recente. Nem todos possuíam. Comprei o meu com dificuldade, pagando em prestações. Minha tia morava nos fundos da casa de um filho, e era ele que possuía telefone. Foi a mulher dele quem atendeu, e, por coincidência, titia estava lá e atendeu assustada.
- Aconteceu alguma coisa? Você está bem?
- Titia, hoje fui ver meu pai no asilo e... - não a deixei falar e contei tudo.
- Nega, será que estou ficando caduca? Não ouvi direito! Você está me dizendo que inventou tudo? Não foi estuprada pelo James?
- Sim - respondi e pedi: - Titia, naquela época, a senhora me ajudou a contar tudo para os familiares e conhecidos. Quero agora que a senhora me ajude a desmentir.
- Sua louca! - titia gritou. - Eu a ajudei? Tem coragem de me dizer que fui eu que menti? Com que coragem desmentirei?
- Com a mesma que estou tendo em dizer que me equivoquei. Faça-me o favor, diga aos outros tios e primos e tchau!
Desliguei o telefone. Das minhas filhas, somente Ivete tinha telefone. Liguei para ela. Contei. Ela me escutou calada.
- Por favor - finalizei -, conte à Nizete para mim. Vocês moram perto.
- Mamãe, a senhora tem certeza de que não está delirando? O que acaba de me contar é um absurdo! A senhora está bem? Quer ir ao hospital? Está com febre?
Ivete, não estou doente, nem com febre, e não deliro. Comecei a ter sonhos com o passado, com acontecimentos de minha vida anterior a esta, procurei o espiritismo e os espíritas me aconselharam a procurar um médico psiquiatra, e pelo tratamento, soube que o estupro ocorreu na minha outra encarnação. Procurei seu avô, e ele realmente não me estuprou. Estou tentando reparar meu erro falando a verdade para todos. Será que é tão difícil assim de acreditar?
- Claro que é! Isso é absurdo! Temos uma vida somente! Mesmo se tivéssemos mais vidas, o que a senhora fez continuaria sendo um absurdo! Eu...
Desliguei o telefone e o tirei do gancho. Estava muito cansada, com dor de cabeça e pelo corpo. Mas sentia certo alívio. Mesmo sabendo que não iria anular o padecimento que causara, tentei, contando a verdade, repará-lo de algum modo. Tomei um banho demorado, três comprimidos para dormir e me deitei. Adormeci. No outro dia, acordei com muitas dores pelo corpo. Telefonei para o salão de beleza onde trabalhava informando que não estava me sentindo bem e não iria trabalhar. Pensei que os familiares me telefonariam, porém o telefone não tocou. Queria receber apoio, pelo menos compreensão. Mas pensei: "Eu não era compreensiva, por que teria de receber compreensão?". Estava tendo o retorno de minhas atitudes. Senti-me sozinha, muito triste, porém aliviada. Fiz o que tinha de fazer. Embora não pudesse voltar no tempo e anular o sofrimento causado ao meu pai, tive coragem de reconhecer meu erro e dizer a todos. No outro dia, fui trabalhar e, no horário do almoço (sempre almoçávamos na copa do salão), contei a duas companheiras que há tempos trabalhavam comigo toda a verdade. Uma achou que eu deveria me tratar, a outra acreditava na reencarnação e me apoiou. Comentaram esse assunto por dias e escutei várias opiniões. Resolvi acatar somente os conselhos dos companheiros espíritas. Ia ao centro espírita todas as noites, menos aos domingos. Duas semanas se passaram, e ninguém de minha família me procurou, mas me lembrei de que isso sempre ocorria. Ficávamos semanas sem nos falar. Senti esse isolamento porque estava sofrendo. Resolvi procurá-los. Telefonei para meu filho. Tratou-me como sempre, até que perguntou:
- Mãe, como está a história do vovô? Soube que foram todos visitá-lo. Tia Marlene quis trazê-lo para a casa dela, mas vovô não quis. Passou o domingo com ela e foi muita gente vê-lo.
- O que mais sabe sobre isso?
- Quer mesmo saber? - não esperou pela minha resposta e disse: - Levaram-no a médicos, e ele está de óculos novos, compraram-lhe roupas. Ele está contente! Estou pensando em, domingo que vem, ir à casa da tia Márcia para vê-lo. Não o conheço!
Despedimo-nos. Liguei para o trabalho de Nicete. Ela se assustou.
- Mãe! A senhora está bem? Está doente?
- Não, por quê?
- Não costuma ligar.
Ficamos sem saber o que falar. Resolvi perguntar:
- Você viu seu avô?
- Fui visitá-lo no asilo e domingo passei pela casa da tia Marlene. Achamos, Ivete e eu, que deveríamos, de alguma maneira, amenizar o que a senhora fez a ele. Mamãe, por que fez isso?
- É muito difícil mudarmos: exaltei-me, alterei-me e xinguei. Nicete desligou o telefone.
Nos outros dias, tentei falar com minhas irmãs e com meu irmão. Senti que eles se esforçaram para serem educados, responderam-me com monossílabos e nenhum deles quis prolongar a conversa. Folgava nas segundas-feiras, então resolvi ir ao asilo. Fazia três meses que desmentira tudo. No horário da visita fui ao asilo. Desta vez, a atendente foi gentil e comentou:
- Soube que os familiares do senhor James não sabiam onde ele estava. Quiseram até levá-lo daqui, mas ele preferiu ficar conosco. Pode ir vê-lo, deve estar no jardim.
Já sabendo o caminho, fui ao jardim. Vi papai sentado num banco. Ele estava mudado, renovado. Bem vestido, com roupas novas, óculos de aro moderno, cabelos cortados e barba feita. Aproximei-me. Ele me viu e ficou me olhando.
- Oi, pai!
- Oi, Nega!
- Como o senhor está passando?
- Bem e mal - respondeu ele. - Bem porque, embora tardiamente, todos souberam que nunca fui um estuprador. Estou contente por minha família se aproximar de mim. Mal porque me sinto doente. Não estou nada bem. E você, como está?
- Muito triste, mas aliviada.
Ficamos calados por minutos. Talvez por não sabermos o que falar. Pensei em Jesus, pedi ao Mestre Amigo coragem.
- Pai, perdoe-me!
- Nega, tenho pensado muito no perdão. Depois que você desmentiu tudo, não passei mais um domingo no asilo. Márcia tem me levado, ao templo que frequenta. - O pastor fala muito bonito. Ele diz que Deus nos perdoa conforme perdoamos os outros. Até na oração do Pai-Nosso se diz: "perdoa-nos para sermos perdoados" ou "perdoa-nos assim como perdoamos". Está sendo muito difícil perdoá-la. Sabe por quê? Porque o perdão não anula o que passei. E simples perdoar? Da boca para fora é. Mas de coração é difícil. É fácil eu lhe dizer: perdôo! Mas será sincero? Olhando para você, indago-me: "Por que, meu Deus?". Por que você, minha filha, fez isso comigo? Por que mentiu desse modo?
Papai começou a ter falta de ar.
- Eu tinha certeza, papai! Não menti! Acreditava! Comecei a chorar.
- Vá embora, Nega!
- Abençoe-me! - pedi.
- Bênção é como perdão, tem de ser sentida, doada com amor. Não sofra, Nega! Não sofra!
Afastei-me e pedi à atendente que fosse vê-lo. Esperei na portaria. A moça voltou logo e me tranquilizou:
- Seu pai já se sente melhor!
Fui para casa. Minha rotina continuou: trabalhava, saía de casa para fazer algumas compras e ia ao centro espírita. No salão, os comentários sobre este assunto cessaram. Tentei me aproximar dos familiares, mas somente minhas filhas tentaram me tratar como sempre. Para o restante, eu era mentirosa e fizera uma tremenda maldade. Para os mais religiosos, eu fora instrumento do demônio. Não estava me sentindo bem. Pensei que era por estar muito triste. Passaram-se sete meses desde que falara sobre o ocorrido a todos. Minha irmã Marlene me telefonou. Depois de perguntar "Como vai?", ela me falou:
- Papai morreu na sexta-feira.
- Hoje é quarta-feira. Por que não me avisaram?
- Márcia e nosso irmão decidiram não avisá-la. Fizemos um enterro simples. Foi enterrado num cemitério no bairro em que morou, perto do asilo. O pastor fez uma bonita prece, e o padre que dá assistência ao asilo abençoou o corpo. Papai estava doente. Quando soubemos que era inocente, fomos todos vê-lo, pedimos perdão. Ele nos perdoou. Nós o levamos a médicos, mas papai estava com problemas sérios no coração. Morreu na madrugada de sexta-feira e o enterramos no mesmo dia, à tarde. Concordei com Márcia em não avisá-la porque pensei que ia ser muito constrangedor para você. Marlene, você me entende? - perguntei.
- Tenho me esforçado. Conversei até com o padre. Ele me disse que você deve ser doente. Explicou que existem pessoas que acreditam tanto em algo que, para elas, aquilo passa a ser verdade, e não se dão conta de que mentem. O que sinto, Nega, é ter aceitado o fato como verdadeiro. Deveria, na época, ter conversado mais sobre o assunto com você e com papai. Talvez, se a indagássemos, querendo detalhes, iríamos perceber que você inventava. Talvez por papai ter sido sempre calado, introvertido, e por você ter afirmado com tanta convicção e colocado um psicólogo na sua história, todos acreditaram. Sofri e tenho sofrido por ter dito coisas horríveis para papai. Ele me perdoou, mas eu não me desculpo.
- Você me perdoou?
- Minha irmã, você não me pediu! Será, Nega, que não deveria pedir perdão a todos nós? Agimos errado por sua causa. Mas você não nos obrigou a acreditar, não nos obrigou a nada. Calúnia é assim mesmo. Palavras jogadas ao vento que são difíceis de anular. Porém, acreditamos em você porque quisemos. Sendo assim, você não precisa se desculpar. Se for verdade que existe reencarnação e que nosso pai a estuprou em outra vida, não era para você perdoar e esquecer? Se não o fez...
- A culpa é minha, não é? A culpa de tudo de ruim que acontece com a família é por minha causa - interrompi-a, falando de modo rude.
- Deve ser mesmo! Nega, deixe-me em paz. Não sei por que converso com você. Não preciso receber seu mau humor. Já avisei da morte do papai.
- Desculpe-me, Marlene!
- Ofende e pede desculpas. Por que não para de ofender? Vou desligar. Tenho um compromisso. Tchau!
Senti que já não era nem mais tolerada. Recebia o que plantara. Passei a prestar atenção nas minhas atitudes, esforcei-me muito para não ofender ninguém. Tentei melhorar. Sentindo muitas dores e mal-estar, procurei um médico, que me pediu vários exames. Resultado: estava com câncer em vários órgãos. Nessa época, não se curava de câncer. Aposentei-me, passei a ir pouco ao salão, somente para atender algumas clientes. A casa em que morava era do meu primeiro marido e minha. Nós não nos separamos legalmente. Pela lei, éramos casados. Ele veio falar comigo. Queria vender a casa.
- Nega, com o dinheiro que receberá poderá comprar uma casa menor em outro bairro. É melhor vendê-la. Gostaria de reformar a casa em que moro. Você sempre morou aqui e eu nunca cobrei aluguel da minha parte.
Cheguei até a suspirar para não me exaltar. Esforcei-me muito e disse:
- Vamos esperar até o final do ano. No começo do outro, venderemos a casa.
Ele se espantou com minha atitude, certamente esperava uma explosão de minha parte. Dei esse prazo porque com certeza iria desencarnar antes do final do ano. Não contei a ninguém de minha doença. Aproveitei que havia mais tempo livre para ler, estudar a Doutrina Espírita, e passei a ir às tardes num orfanato e asilo do bairro. Uma equipe de frequentadores do centro fazia essas visitas. Eu cortava os cabelos, fazia as unhas e as esmaltava. Esses atos eram recebidos como agrados, carinhos, que melhoravam a auto-estima dos internos. Sentia-me bem comigo, mas minha saúde foi piorando. Não querendo que meus familiares sentissem remorso e achando que eles deveriam saber, contei a eles a minha doença. Minhas filhas se aproximaram de mim, preocuparam-se e tentaram me ajudar. Depois, aproximaram-se minhas irmãs, netos e sobrinhos. Tratava-os bem e fui também bem tratada. Não cobrei nada e acabei recebendo. Fui hospitalizada. O grupo espírita me visitava todos os dias, os familiares também. Senti muitas dores, mas tentei não reclamar. Desencarnei tranquila. Dormi para acordar num quarto agradável. Não senti ores. Percebi logo que meu corpo físico morrera. Reconheci o lugar em que estava. Era um posto de socorro que fazia parte do centro espírita que frequentava. Reconheci porque, por muitas vezes, estivera ali quando meu corpo carnal dormia. Aceitei, agradecida, o socorro que recebi e me esforcei para me livrar dos reflexos da doença. Sentindo-me sadia, quis ser útil. Foi com muita alegria que passei a fazer pequenas tarefas. Recebi a visita de minha mãe. Ela me contou:
- Meu desencarne foi muito diferente do seu. Sofri por não aceitar a morte do meu corpo físico. Vaguei confusa, estive uns anos no umbral. Sofri. Mas a bondade de Deus é imensa e fui socorrida. Adaptei-me, aprendi muitas coisas e soube de vocês. Ao visitar James, compreendi que ele era inocente, então tentei avisá-la com os sonhos. Você adormecia, e eu tentava conversar com você, em espírito. Você teve a coragem para desmentir, fiquei contente com seu gesto. Tentou consertar, reparar seu erro.
- A senhora sabe do papai? - perguntei.
- Ele foi socorrido, ainda não fui visitá-lo. Também não agi corretamente com ele.
- Conversamos muito. Agradeci-lhe.
- Se não fosse pela senhora, teríamos, papai e eu, desencarnado sem tentar nos entender. Eu, pensando ter sido estuprada; e papai, sentindo muita mágoa. E todos na família ficariam sem reparar as ofensas. Se eu não tivesse procurado saber da reencarnação, não teria ido ao centro espírita e não estaria agora aqui. Obrigada, mamãe!
- Ainda bem que consegui!
Meses se passaram. Estava completamente adaptada e aprendi a viver como desencarnada. Pedi e recebi permissão para visitar meu pai. Nosso encontro foi emocionante.
- Filha, como erramos! Sei agora muita coisa sobre reencarnação. De fato, eu fui um estuprador! Nessa minha última reencarnação, repelia tanto esse ato! Isso porque, na minha desencarnação anterior, sofri por esse erro e por outros também. Relutei em perdoá-la, porque não compreendia direito o que é perdão. Pensava que perdoar era anular o ato e suas consequências. Não conseguia esquecer o que sofrera. Mas, ao desejar que você não sofresse, eu estava sendo sincero, foi a minha maneira de perdoá-la. É muito certo este ensinamento: perdoe para ser perdoado! Necessitando de perdão, necessitava perdoar. Perdoar não apaga o que aconteceu, nossos atos fazem parte de nós, mas enquanto esses atos nos incomodarem, o perdão não existiu de fato.
Resolvemos, após esse encontro, pedirmos para, junto com um orientador, nos lembrarmos do período em que estivemos unidos em nossa encarnação anterior. Nosso pedido foi atendido, e a data foi marcada. Chegamos minutos antes ao departamento de reencarnação da colônia, que ficava sobre o espaço espiritual da cidade onde residimos. Estávamos ambos apreensivos. Oramos, tentamos nos tranquilizar, e eu fui a primeira a recordar. Eu encarnei numa fazenda, meu pai era empregado, e minha mãe, escrava liberta. Filha de pai moreno, mas branco, e mãe negra. Fui uma mulata muito bonita, por isso atraí a atenção do proprietário daquele lugar. Este senhor tinha uma casinha afastada da casa-sede somente para seus encontros. Ele me quis e fui levada para lá. Fui estuprada sem piedade. Isso ocorreu muitas vezes. Chamava- me, nesta existência, Flor, o que acabou sendo Fuor. Uma flor negra, e aí ficou Nega Fuor. Minha família recebia alguns benefícios pelo interesse do "sinhô" por mim. Eu tinha verdadeiro horror a esses encontros. Quando este senhor desencarnou, eu estava doente, com doenças venéreas, e muito perturbada mentalmente. Desencarnei jovem, aos vinte e oito anos. Nunca saí da fazenda. As lembranças do meu pai foram: Nasceu numa família rica e herdou uma grande propriedade rural. Se possuía muitos vícios, tinha qualidades também. Era trabalhador, casou e teve filhos. Escravocrata, não foi mau com os escravos. Alimentava-os bem, agasalhava-os, permitia que fizessem festas e não separava as famílias. Mas gostava das escravas e fazia delas suas amantes, forçava muitas. Brigou seriamente com um vizinho por causa de terras, ambos queriam ficar com uma parte onde passava um rio. Uma das filhas do fazendeiro rival veio passear imprudentemente a cavalo nas terras dele e caiu. Em vez de ser ajudada, foi estuprada por ele. Agiu como se a moça viesse procurá-lo, como se tivesse se oferecido a ele. A moça foi embora, arrasada e machucada. E a resposta a esse ato veio depois de uns dias. Foi na festa do santo padroeiro da cidade próxima. Sua família foi à cidade, e os escravos faziam festa no terreiro. Um grupo de homens armados conseguiu entrar escondido na casa-grande, torturaram-no e o mataram.
Ele sofreu muito, e, quando sofremos por atos errados que cometemos, muitas vezes acabamos por repeli-los. Meu pai segurou minha mão. As lembranças terminaram, e conversamos.
- Perdoe-me, Marisa! Não vou chamá-la mais de Nega.
- Perdôo! Desta vez o perdão é real. Os fatos passados serão somente lembranças tristes, mas não me incomodarão mais. O senhor me perdoa?
- Sim, e de coração, com sinceridade - papai falou emocionado.
- Quando não resolvemos uma dificuldade - explicou o orientador que nos ajudava - este problema fica nos incomodando até o resolvermos. Quando nos é recomendado perdoar, é como dizer: seja feliz! Enquanto não se perdoa verdadeiramente, fica-se preso a ações do passado. James sofreu com as torturas e também sofreu muito no umbral para onde foi levado. Arrependeu-se realmente. Reencarnou entre aqueles que prejudicou no passado para se reconciliar. A primeira esposa foi a sua mulher traída do passado, que não resistiu e, tendo oportunidade, traiu-o. Mas não se isentou do erro. Não existe motivo para retribuir mal com mal. Marlene foi a moça, filha do fazendeiro rival, e Márcia, outra escrava.
Talvez seja por isso que todos não duvidaram de mim! - exclamei. - Em espírito, sabiam o que ele fizera, do que fora capaz de fazer anteriormente.
- Temos, Marisa, sempre a reação de nossos atos - continuou o orientador a nos esclarecer. - O aprendizado se faz necessário, e a dor tenta ensinar. Infelizmente, você confundiu o passado com o presente. O estupro ocorrido na encarnação anterior foi algo muito marcante. Por não perdoar, não conseguiu se reconciliar, tornando difícil a convivência familiar. Para muitos espíritos, é dificultoso lidar com lembranças marcantes. E, quando isso acontece, podem, ao reencarnar, sofrer por traumas que se manifestam com lembranças parciais, confusas, de fatos extraordinários do passado.
- Eu me lembrei de maneira confusa! Tive somente uma lembrança, a que mais deveria esquecer - lamentei.
- Marisa - disse meu pai -, vou estudar o Evangelho, participar de terapias, quero aprender a amar com ação, ou seja, fazer o bem com amor. Quero que estas lembranças sejam somente tristes, sem traumas.
- Vou pedir para fazer isso também - decidi.
Papai despediu-se, fiquei com o orientador e o indaguei:
- Como Nega Fuor, meus sofrimentos foram reações, não foram?
- Sofrimentos podem ser por muitas causas. Você poderia ter sofrido aquela ofensa para provar a si mesma que aprendera a perdoar.
- Sinto que não foi prova. Se fosse, seria reprovada. Podemos receber uma reação e ela ser também uma prova?
- Sim - respondeu o orientador. - Se você tivesse perdoado verdadeiramente o fazendeiro, sua reação teria sido também uma aprovação. Provaria a si mesma que aprendera a perdoar.
- Se isso tivesse acontecido, se tivesse perdoado no meu último estágio no físico, teria sido bem diferente. Não teria magoado ninguém, e minha existência teria sido bem mais fácil. Não teria sido infeliz! O senhor tem razão, devemos perdoar para sermos tranquilos e ter paz Gostaria de saber quais os atos que cometi que me levaram a receber esta reação de ser estuprada.
O orientador me olhou e fui lembrando. Fora, na encarnação anterior à Nega Fuor, uma mulher muito bonita. Fui prostituta quando jovem. Depois, mais velha, dona de uma casa de prostituição. Até aí, embora não agisse certo, prejudicara somente a mim. Mas o que nos marca, enlameia-nos, é a maldade feita a outras pessoas. Comprei jovens, meninas entrando na puberdade, de pais endividados ou enganados, que pensavam que as filhas seriam empregadas domésticas, e as transformava em meretrizes. Algumas eram forçadas. Se não obedecessem, eram privadas de alimentos e batiam nelas. Desencarnei, sofri muito no umbral, e reencarnei num local onde seria propício receber a reação como aprendizado. Fui bonita. Minha irmã era feia e não sofreu abusos. Chorei sentida e exclamei.
- Como nos orgulhamos indevidamente! Se soubéssemos o que já fizemos, ninguém teria orgulho de nada! Vou estudar e trabalhar muito, penso que somente assim terei forças para seguir o caminho do bem.
Agradeci e saí do departamento. Papai me esperava.
- Marisa, esperei-a porque quero lhe dar este livro. Adquiri-o com meu trabalho. E o Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec. Sei que quando você quiser ler este livro poderá pegá-lo nas bibliotecas. Mas este é presente meu.
- Obrigada, papai! - exclamei emocionada.
- Somos amigos agora, não é, minha filha?
- Sim, somos amigos.
- Ainda não gosto da reencarnação. Sofri muito nessa última sem saber o motivo - disse meu pai.
- Papai, se não houvesse a reencarnação e o senhor tivesse tido somente a existência do fazendeiro, onde será que estaria agora?
- No inferno. Isto é, no umbral.
- Não é muito melhor termos outras oportunidades? - perguntei.
- Você tem razão, e o esquecimento é também muito importante. Já pensou se eu não esquecesse que fui aquele fazendeiro horroroso? Na minha próxima encarnação, será muito bom esquecer o fazendeiro e o James e iniciar mesmo outra etapa. Quero aproveitar muito e fazer o bem na minha volta ao físico. Aguardarei ansioso mais uma oportunidade que Deus nos dá através da reencarnação.
- Eu sofri muito com uma lembrança somente. Teria sido bem melhor para mim, para nós, se não me lembrasse de nada. O esquecimento é um grande bálsamo! Obrigada pelo presente! - agradeci novamente.
Encontramo-nos sempre e nos tratamos como amigos. Papai mora numa colônia, e eu estou trabalhando no posto de socorro que faz parte do centro espírita que frequentei quando encarnada. Estou ativa no trabalho e no estudo. Como o esquecimento total do nosso passado é importante na reencarnação! E como me confundi por ter somente uma lembrança. Que oportunidade valiosa é a nossa volta ao plano físico em corpos diferentes!

Marisa.

5 - NEM SEMPRE O QUE PARECE SER É...

Frank me telefonou, pediu-me para recebê-lo, queria falar comigo sobre algo importante que descobrira. Não estava com vontade de vê-lo nem de conversar com ele. Por ter insistido e por estar entusiasmado com o assunto de que queria me fazer participar, combinamos que o receberia em minha casa uma hora depois.
Ajeitei a sala de estar e me arrumei. Frank, pontual como sempre, tocou a campainha e eu abri a porta.
- Como está, Lucy?
Cumprimentou-me, estendendo a mão direita; na esquerda, segurava um vaso de flores que me entregou. Agradeci as flores, coloquei-as em cima de uma mesa, conduzi-o à sala de estar, fechei a porta, convidei-o a sentar e me acomodei numa poltrona. Não queria sentar perto dele. Olhamo-nos. Frank estava bem, não aparentava ter setenta anos, sempre bem vestido, com os cabelos penteados, e estava radiante. "O que ele tem para me dizer deve ser uma coisa boa", pensei.
- Lucy, você já ouviu falar em reencarnação?
- Sim, já - respondi. - Li alguns livros que abordavam esse assunto. Mas não estou entendendo. O que a reencarnação tem a ver com o assunto importante que tem a me dizer? Tem algo a ver com meu filho?
- Um dos meus filhos - tive onze - era casado com a filha de Frank.
- Não! O casal está bem. Lucy, procurei ajuda de um psiquiatra e, por indicação desse profissional, consultei outro, que me fez uma regressão de memória.
Não estava entendendo. Frank percebeu e tratou de explicar.
- É mais profundo que recordar fatos desta vida. Recordamos de outras. Isto é: nossa alma, o espírito, é de fato imortal, não morre com o corpo. Para progredirmos, nascemos muitas vezes em corpos diferentes.
Estava para perder a paciência, porém continuei atenta. Com Frank, sempre agi assim, também não entendia o porquê. Tinha mais paciência e tolerância com ele do que com qualquer outra pessoa, mais até do que eu tinha com meus filhos.
- É melhor explicar - pedi.
- Se você raciocinar, tentar compreender, isto se torna simples. Deus é perfeito demais para fazer algo injusto e errado. As diferenças sociais, intelectuais e morais são disparates. Por que Deus nos criou assim? "Porque quis"? Nada disso, Ele não nos criou desse modo, nós que nos fizemos assim. Mary Lucy, se você quiser se aprofundar no assunto, darei de presente alguns livros, muitos deles escritos por mestres, pessoas inteligentes...
Frank elogiou alguns autores, nunca elogiara meus livros. Achei que estava me ofendendo novamente e pensei: "Bem feito para mim. Por que o recebi?". Ele me olhou e continuou a falar:
- Desculpe-me o entusiasmo! Vou contar a você como foram minhas sessões com esse psiquiatra. Primeiro, ele me explicou muitas coisas, disse-me que, se não entendemos algo presente em nossa vida, a explicação pode estar no passado, mas não no passado desta existência. Ele me fez recordar, gravava nossas conversas e depois as escutava. Nas três primeiras, falei de fatos da minha infância de que não me lembrava, as quais, porém, me magoaram. A partir da quarta sessão, lembrei que antes de nascer estava num local muito diferente e que planejei voltar à Terra, ser o Frank, prometi esquecer e perdoar. Nas sessões seguintes, recordei-me de minha outra vida, ou seja, encarnação. Nessa existência amei muito você, que me humilhou, me traiu e muito me fez sofrer.
Eu o escutava sem me mexer, fiquei como que paralisada. Tudo que Frank dizia podia parecer fantasioso demais, porém sentia que poderia ser real. Ele fez uma pausa e continuou a falar. Lucy, nessas regressões, as lembranças vêm como algo muito real, verdadeiro: vi como vivia, onde morava, como você era, o que passei, o que sofri. Você deve estar se perguntando por que fiz isso. Foi para saber o porquê de sentir necessidade de a ofender. Por que somente ofendia você? Lucy, eu sempre a amei. Agora descobri, entendi o porquê. Não é ótimo?
- Você está me dizendo que você me ofende porque sente necessidade? - perguntei.
- Sim, é verdade! Sentia necessidade de ofendê-la e, pior, não me arrependia. Mesmo sofrendo sem você, e sofri bastante, sempre que possível a ofendia. Isso porque no passado você me maltratou muito.
- Frank, se essa terapia diferente está lhe fazendo bem, bom para você. Agora me desculpe, tenho um compromisso.
- Com algum pretendente? - indagou ele.
Olhei-o séria. Havia prometido a mim mesma que não iria receber mais ofensas de Frank. Ele percebeu que havia me aborrecido e se desculpou:
- Desculpe-me, Lucy. Embora agora saiba o porquê de sentir vontade de ofendê-la, ainda não consigo totalmente me controlar. Mas o importante é isto: sei agora o por que. Vamos ficar juntos novamente? Por favor...
Suspirei fundo, olhei-o nos olhos e respondi falando vagarosamente, como sempre fazia quando a decisão era importante:
- Frank, se esse tratamento curou-o de sua indelicadeza em relação a mim, maravilha! Não sei se acredito nisso. É fácil justificar nossos atos indevidos e, quando queremos, encontramos sempre uma maneira. "Faço isso ou aquilo, mas não é por minha culpa, é porque você me fez aquilo outro no passado." Porém, nem sempre as desculpas modificam atos cometidos. Podemos colocar remendos num tecido, mas estará sempre remendado. Se o que você me disse é verdadeiro, se eu fui maldosa em outra existência, não sou mais! Com meus sessenta e seis anos, não maltratei nenhuma pessoa e não quero agir com maldade com ninguém. Creio que tentei me reconciliar com você, isso se guerreamos em outra vida. Não o ofendi, não revidei, desculpei-o e até o amei. Se você sentia necessidade de me ofender, é porque não perdoou, e, se não o fez, isso é problema seu e não meu. Não tenho compromisso com nenhum pretendente, irei ao médico com minha filha Rose. Não quero mais envolvimentos com ninguém, nem com você. Frank, nosso caso está encerrado. Não me interessam suas descobertas, nem o passado desta e nem de outras, que nem sei se houvera. Não quero encontrá-lo, a não ser pelo fato de que é sogro de um dos meus filhos.
- Mas, Lucy... Escute-me...
- Não, Frank, não me interesso por seus motivos, mas pelos meus. Eu me amo, prometi não dar mais oportunidades de ser ofendida por você. Quero ter sossego! E não tente me culpar! Não perdoando, você é o único culpado! Isso se a reencarnação for de fato verdadeira. Por favor, vá embora e não me procure mais.
Levantei-me, abri a porta, dirigi-me ao hall e abri a porta da saída para a rua. Frank me olhou suplicante, desviei o olhar, ele saiu e fechei a porta. De fato fui acompanhar minha filha Rose, a caçula, ao médico. Esforcei-me para agir com naturalidade, mas me recusei a tomar chá com ela: preferi me despedir e ir para casa. O que Frank disse me perturbara, ele sempre teve o dom de me tirar a tranquilidade. Em casa, tive que resolver alguns problemas corriqueiros e, logo que me foi possível, dispensei minha empregada e fui para meu quarto. Acomodei-me e relembrei. Nasci ou, agora corrijo, reencarnei numa família de classe média, numa cidade de porte médio que cresceu muito nos últimos anos. Ao longo de toda a minha existência morei lá. Minha infância foi tranquila, assim como a juventude; fora uma aluna aplicada, sempre gostei de estudai. Conheci Frank quando ainda era menina, achava-o bonito, víamo-nos muito, ou eu tentava sempre vê-lo. Mocinha, interessei-me por ele, ou melhor, enamorei-me. Talvez por ser mais velho: nessa idade, na adolescência, faz diferença. Frank me ignorava. Então, resolvi me fazer notar. Nunca fui de desistir de meus propósitos, que, naquele momento, eram conquistá-lo, namorá-lo. Frequentava lugares onde sabia que ele iria, dei até esbarrões nele, olhava-o fixamente e... nada. Num encontro musical em que jovens se reuniam à tarde, convidei-o para dançar. Necessitei, para fazer isso, de muita coragem; estava com amigas, e ele, com seus amigos. Ele sorriu e respondeu alto:
- Não danço com pirralhas! Vá, menina, procurar garotos de sua idade. Não é elegante dar uma de mulher fatal!
Riram, alguns sem graça pela indelicadeza da resposta e outros porque acharam graça mesmo. Esforcei-me e ri também. Segurei-me a tarde toda para não chorar e parecer natural. Esse fato não me fez desistir dele e recebi outras respostas grosseiras. Sofria com suas rejeições e ofensas. Um dia, ao sair da escola, retornando à minha casa, ao passar por uma praça, vi Frank sentado num banco. Sentei-me em outro, onde ele não me via, e fiquei o observando. Ele estava lendo um livro. Uns oito minutos depois, fechou o livro com força. De dentro, caiu uma folha de caderno que ficou perto do banco. Frank não percebeu que o papel havia caído, levantou-se e foi embora. Disfarçadamente, fui lá, peguei a folha de papel, coloquei-a entre meus cadernos e fui para casa. Tranquei a porta do meu quarto para ler o que estava escrito. "Maravilha!", exclamei contente. Anotado por itens, estava o que lhe agradava numa mulher e do que não gostava. Escondi muito bem aquela folha de caderno. Rapidamente, transformei-me na mulher das anotações. Pedi para um senhor me dar aulas de dança, comprei livros dos autores anotados e os li. Interessei-me por psicologia, cortei os cabelos, comprei roupas, passei a falar mais baixo e devagar, enfim, transformei-me na mulher ideal para quem anotava aqueles itens. Pensava ser Frank, sem dúvida, o autor das anotações. Sabendo dançar razoavelmente, matriculei-me num curso de danças que era, na verdade, um encontro de pessoas que gostavam de dançar. Estas aulas eram num clube que eu não frequentava. Costumava ir em outro, que era mais para a elite. Gostei, mas me decepcionei porque Frank não estava matriculado, embora fosse sempre lá. A reunião dançante era às segundas-feiras, à noite. Li todos os livros de psicologia disponíveis na escola em que estudava e li também os dos autores citados, alguns podiam ser encontrados somente na biblioteca municipal local, que passei a frequentar para que pudesse lê-los. E lá encontrei Tommy, um rapaz louro, bonito, que frequentava a dança. Surpresos, vimos que estávamos à procura do mesmo autor. Tommy me pareceu perfeito para conversar sobre os assuntos dos itens da folha de papel. Ele elogiou meu perfume, o citado como preferido. Tommy tinha uma namorada ciumenta que, numa reunião dançante, fez um escândalo, isso porque ele dançava com uma garota muito bonita. A turma sentiu dó dele. Estava tão concentrada em ser a mulher perfeita segundo aquelas anotações que até deixei de perseguir Frank, que trocava de namoradas. Outra escola promoveu um estudo sobre psicologia e formaria grupos para debater determinados assuntos. Algumas amigas e eu nos inscrevemos. Foram divididos três grupos por autores da psiquiatria. Inscrevi-me no meu preferido. Frank não se inscreveu em nenhum grupo, mas ia a todos os encontros. Tommy fazia parte do meu grupo, tínhamos os mesmos conceitos, tínhamos lido os mesmos livros. Nós dois ficamos como líderes da nossa turma e estávamos tendo as melhores notas. Nessa época, Tommy, cansado dos ciúmes da namorada, terminou o namoro. Frank continuava me ofendendo. Eu já não o perseguia, porém, como íamos aos mesmos lugares, encontrávamo-nos sempre, e ele me chamava de "pirralha", "miniatura de mulher fatal". Eu somente sorria e sofria. Não era pacífica, ninguém além dele me tratava daquele modo. Numa tarde, fui ao clube de campo e estava andando a cavalo, era boa na equitação, vinha de uma corrida. Ao descer, Frank me abordou:
- Lucy, você é exibida! Correndo deste jeito! Quer chamar a atenção? Se cair, não irei socorrê-la!
Resolvi responder:
- Galopo como quero e não caio. E, se tivesse caído, não necessitaria de você para me socorrer. Não estava me exibindo. Neste horário há poucas pessoas por aqui.
- Ora, ora... Respondendo... Malcriada! Onde está a Lucy sonsa que nem namorado consegue arrumar?
Riu. Não respondi e fui entregar o cavalo. Eu tinha muitos pretendentes, mas os dispensava porque queria namorar Frank. Fiquei nervosa e resolvi namorar alguém. Estava escolhendo um namorado quando fui à biblioteca e encontrei Tommy. Sentamo-nos perto, e eu estava lendo uma poesia sobre o beijo. Tommy me pediu para ler baixinho, e, sem que eu esperasse, ele me beijou. Assustei-me e saí de perto dele. Depois, o grupo de dança preparou uma festa surpresa para comemorar o aniversário do professor. Nesta festa, Tommy me pediu em namoro e aceitei: fiz isso para mostrar ao Frank que conseguia alguém para namorar, e o candidato era o melhor possível. Tommy era rico, seus pais haviam morrido quando era garoto, havia recebido uma grande herança, era filho único, e um tio solteiro o criava. Este seu parente também era rico. Tommy era um excelente partido, estudado, educado e romântico. O grupo todo aprovou nosso namoro, e as famílias também. Desfilei com Tommy como troféu e percebi que Frank, por mais que não demonstrasse, estava enciumado. Seria isso que eu queria? Depois de dois meses, estava resolvida a romper o namoro. Aliviada pela decisão, fui à equitação e lá encontrei com Frank, que novamente me ofendeu. Ele estava com alguns amigos e falou alto que eu o perseguia e que já estava cansado de me dizer que não era a moça ideal para ele e que gostava de morenas (eu era loura). Como sempre, não respondi, voltei para casa e fiz comparações. Tommy era tão bonito quanto Frank, porém me tratava muito bem, e o outro me maltratava. Não terminei com Tommy e lhe dei mais atenção, deixando-o feliz. E ele ficou mais ainda, porque nosso grupo ganhou como melhor estudo sobre psicologia. Numa noite, quando Tommy veio se encontrar comigo, trouxe uma poesia que escrevera para mim.
- Vou completar com mais uma estrofe - disse ele. Escreveu na minha frente e me deu a folha de caderno.
Minhas pernas bambearam, creio que empalideci. A poesia falava de amor, mas não foi por isso, foi pela letra. Era a mesma dos itens da mulher ideal. À noite, comparei os dois papéis e tive certeza de que fora Tommy quem escrevera. Sem querer, fiz-me ideal para ele e o conquistara. Certamente, o livro que vi Frank ler naquele dia era do Tommy, que o emprestara. Para Tommy, pareci ser uma pessoa que não era. Conquistara-o e me sentia responsável por ele me amar. Resolvi esquecer Frank, que sempre me desprezara e, pior, me ofendia, humilhava. Decidi ficar com Tommy. Não fui mais à equitação, passei a evitar Frank, dediquei-me ao Tommy e ficamos noivos. Quando via Frank, não o olhava nem o cumprimentava. Já estava noiva, quando, numa festa, Tommy foi buscar refrescos, e Frank aproximou-se de mim e me cumprimentou. Por uns instantes, pensei que fosse me falar algo importante, parecia que seu olhar era terno, porém me enganei, pois ouvi:
- Sua aliança é feia, não se usa mais este modelo. É grossa para mostrar que mesmo tão tola acabou fisgando alguém?
- É mais para mostrar aos mais tolos que tenho dono! - respondi.
Nisso, Tommy chegou e saímos. Concluí com toda a certeza que fizera a escolha certa. Casei-me com Tommy, e ele se casou com alguém que lhe parecia ideal, mas não era. Foi tudo maravilhoso, um casamento perfeito, tudo deu certo. Fui morar onde, por muitos anos, Tommy morara sozinho, numa casa grande, na área central da cidade, a mesma em que os pais dele moraram. Não mexi em nada, somente no nosso quarto. Anne trabalhava com Tommy. Era mais velha que eu uns cinco anos, viúva e com uma filhinha de três anos. Gostamos uma da outra assim que nos vimos. Fiquei grávida, curtimos a chegada do primeiro filho, que nasceu sadio e lindo. Tommy e eu combinávamos muito, e veio o nosso segundo filho. Quando marcamos nosso casamento, Frank foi residir em outra cidade e não nos vimos mais. Apenas fiquei sabendo que ele havia se casado. Tommy tinha uma bela fazenda, muito produtiva, perto da cidade. Normalmente ele ia cedo para lá e voltava à tarde. Eu também ia muito com ele, às vezes ficávamos lá a semana toda. Na casa-sede havia muitos objetos que haviam sido de meus sogros, inclusive roupas. Resolvi, numa tarde em que meus dois filhos dormiam, arrumar um armário para ganhar espaço e nele colocar as roupas das crianças. Percebi que, na parte central, embaixo do armário, tinha um fundo falso. Mexi até conseguir puxar a madeira e, de fato, havia um compartimento escondido. Lá dentro estavam doze cadernos. Peguei-os, folheei-os e percebi que haviam sido escritos pela minha sogra Nancy. Eram textos que falavam de amor citando nomes. Achando que eram os diários dela e poderiam ser comprometedores, por citarem nomes que não eram o do meu sogro, peguei-os, escondi na mala para ler depois e não falei nada para Tommy. Porém, ao lê-los, constatei que eram lindas histórias de amor, romances. Minha sogra fora escritora. Certamente, esse dom fora aproveitado somente por ela, talvez meu sogro não tivesse permitido que publicasse. O fato é que ela havia escrito e escondido, então eu também escondi: peguei um caderno e comecei a reescrever uma das histórias, modernizando-a, aumentando a narrativa. Resolvi aproveitar aqueles originais. Fiquei grávida novamente e nasceu Thomas. Ele estava com quatro meses quando Tommy quis ter uma conversa séria comigo.
- Perdoe-me, Lucy! Perdoe-me!
Assustei-me, então ele me contou que havia me traído: a moça ficou grávida, teve um menino, a notícia se espalhou, e ele estava me contando antes que alguém o fizesse. Tommy parecia ser um marido perfeito, mas, infelizmente, não era. Fiquei arrasada, gritei e chorei muito. Equilibrei-me por causa dos meus filhos. Mas não o perdoei e decidi me separar. Herdara de meu pai uma casa, que não ficava longe daquela onde morava, num local muito bom e sossegado. Mudei-me para lá, comprei móveis, utensílios domésticos e ficamos, meus filhos e eu, bem acomodados. Deixei Tommy inconformado. Os familiares tentaram me fazer mudar de opinião, porém nada adiantou: separei-me. Escutei muitos falatórios, não dei importância. Acabei de reformular a história do caderno, transformando-a em livro, assinei com um pseudônimo e a mandei para uma editora de outro país. Os editores gostaram e decidiram publicá-la. Queriam que eu fosse até lá para assinar contrato e fazer o lançamento do livro. Quis muito ir. Tommy vinha todos os dias ver os filhos, e eu evitava vê-lo, mas, neste dia, esperei-o.
- Tommy, você, às vezes, me via escrevendo. Fiz um romance, mandei-o para a editora... - muito conhecida na época - Eles gostaram e vão editar. O livro está pronto, porém eles querem que eu vá até lá para o lançamento e para assinar o contrato. Queria muito ir, mas tem as crianças...
Tommy elogiou-me, ficou contente por mim e se ofereceu:
- Vá, Lucy! Fico com os meninos! Venho para cá e cuido deles. Viaje tranquila!
Fui. E assim me tornei uma escritora sem ter sido. Lá conheci uma pessoa, um homem elegante e envolvente. Não escondeu que era casado e que estava a fim de uma aventura. Ele morava em outro país, estava naquela cidade a negócios, e nos envolvemos. Foi mais por desforra, porque me sentia rejeitada. E também porque estava separada e não estaria traindo. Tudo deu certo nos eventos literários, recebi uma boa remuneração e fiquei mais dias do que o previsto. Separamo-nos, e meu amante voltou para seu país, seu lar, e eu ao meu. Mas, na viagem de volta, percebi que estava grávida. Estremeci. O que iria fazer? Eu, a mulher honesta, de família tradicional, mãe de outros três filhos, grávida de um envolvimento passageiro, sem importância. Cheguei em casa sem ter achado a solução, mas, assim que vi Tommy, encontrei-a. Estava saudosa de meus filhos, encontrei-os muito bem. Tommy sempre fora bom pai, e, desde que nos separamos, ele não saía de casa, a não ser para ir à fazenda. Tommy me olhava com amor. Ficamos conversando e agradando as crianças. Convidei-o para jantar, abri uma garrafa de vinho. Foi muito agradável ter a família reunida, colocamos as crianças para dormir, beijamo-nos, e ele ficou. Reatamos. Eu não queria sair de minha casa, aquela em que eu morava era mais moderna, e o local, sossegado. Tommy concordou, e Anne veio com ele. Desfizemo-nos dos móveis da casa dele: uns vieram para a nossa, outros foram para a fazenda. A casa foi alugada. Tommy alegrou-se com minha gravidez. Quando completei seis meses de gravidez, Tommy chegou em casa e, pelo seu modo, entendi que queria falar comigo. Sabia que ele, às vezes, ia ver seu outro filho e lhe dava mesada. Achava certo, desde que não se envolvesse mais com a moça.
- Lucy - disse Tommy -, aconteceu um acidente: a mãe de Percy - o filho dele - morreu. Neste acidente, morreram ela, a irmã e o cunhado. Foram passar o feriado numa cidade de veraneio, sofreram um acidente e morreram todos. Ficaram órfãos Percy e Betty, sua priminha. As duas crianças estão com a avó, uma senhora idosa que me avisou que não quer ficar com meu filho.
Levantei-me e andei. Nisto, os nenês se mexeram em meu ventre: o médico havia ouvido as batidas de dois corações e sabíamos que seriam gêmeos. "Estes dois filhos que estão na minha barriga são apenas meus, mas serão também dele. Por que o de Tommy não pode ser meu?", pensei e falei:
- Tommy, quando o perdoei, eu o fiz de fato. Percy não tem culpa de nada, é uma criança inocente e é seu filho. Sou capaz de amá-lo. Vamos buscá-lo! Será também meu filho!
Meu esposo chorou, beijou-me, agradecendo, e fomos buscá-lo. A avó morava num bairro simples, a casa era modesta. Ela nos recebeu chorosa, queixou-se de que estava velha, doente, sentia que ia enlouquecer com as duas perdas e não queria ficar com as crianças. A menina Betty não tinha mais ninguém, porque o pai era imigrante de um país distante. Se tinha parentes, ela não sabia. A senhora buscou Percy, que, ao ver o pai, abraçou-o contente.
- Filho, você ficará comigo, morará conosco!
- Aqui estão as roupas dele - disse a senhora. - Desculpe-me se algumas estão sujas, não tive vontade de lavadas, não tenho vontade de fazer nada.
A menina, ao ver que Percy ia embora, começou a chorar, um choro tão sentido que nos comoveu. Olhei para Tommy e falei baixinho:
- Vamos levá-la!
Ele suspirou aliviado. Bondoso, queria levá-la, mas achou demais me pedir para acolher a garota.
- Podemos levar a menina? - perguntei à senhora. - Cuidaremos dela como se fosse nossa filha.
- Podem levá-la! Com a morte de minhas filhas, fiquei somente com meu filho, que mora em outra cidade. Não tenho como cuidar dela.
Abracei as duas crianças e as levamos para casa. Os dois eram da idade do meu terceiro filho, poucos meses de diferença. Nós os agradamos, e os cinco se enturmaram. Aumentamos a casa. Os gêmeos nasceram: era um casal. A menina recebeu o nome da mãe de Tommy: Nancy. Meu marido fora gêmeo, o irmãozinho dele morrera no parto, minha sogra passou muito mal e não pôde ter mais filhos. Nancy era muito parecida com minha sogra, todos que a conheceram afirmavam e foi comprovado pelas fotos. Não entendia, tinha certeza que voltara grávida da viagem. Nossa casa era movimentada, havia sete crianças. Anne me auxiliava muito. Mesmo com outras empregadas, tinha muito trabalho. Numa tarde, fomos à praça, a uma festa, e avistei Frank: fazia muitos anos que não nos víamos. Cumprimentamo-nos com um simples "boa-tarde", e senti, no seu olhar, reprovação. Estávamos, Tommy e eu, com nossos sete filhos. Ignorei-o, minha atenção era para as crianças num local movimentado. Peguei outro caderno de minha sogra para escrever outro romance, mas, por ter pouco tempo, ia devagar. Fiquei grávida novamente. Tommy e eu resolvemos ter nove filhos: ele queria dez, e eu, que fosse um número impar. Tive o oitavo, um menino, e o nono também, um garotão. Acabei o segundo livro. Desconfiei que Tommy continuava me traindo, mas não procurei saber se era ou não verdade. Se soubesse, o que iria fazer? Como cuidar de tantos filhos? Esquecia-me que Percy e Betty não eram meus biologicamente, amava a todos igualmente, e as crianças, em nosso lar, eram felizes, estudavam em boas escolas, tinham tudo de que necessitavam, recebiam atenção, muito carinho, eram amadas. Com o livro pronto, mandei-o para a mesma editora, que gostou e ia editá-lo. Teria de ir para lá. Estava resolvendo se ia ou não, quando fui à fazenda com as crianças e escutei a conversa de duas mocinhas, que não me viram: falavam de Tommy, e uma delas era amante dele. Meu marido levara uma amante para morar na fazenda. Chorei sentida, sofri e desta vez não fiz nada, calei-me. Era boa para guardar segredos. Fui viajar. Deu tudo certo, o lançamento foi um sucesso, houve muitas festas e eventos. Lá, conheci um moço e saí com ele. Retribuí a traição. "Fez comigo, merece receber o troco", pensei. Quando voltei, as crianças fizeram festa. Tommy novamente cuidou deles muito bem. Não conseguia entendê-lo. Com certeza, ele me amava, e muito mais aos filhos, mesmo assim me traía. Engravidara do amante que nem sabia ao certo quem era. Dessa vez, planejei contar tudo ao Tommy, porém ele ficou tão contente com a minha gravidez, que adiei. Soube que as moças haviam se mudado da fazenda, meu marido as dispensou.
- Lucy, eu não disse que íamos ter dez filhos?! - exclamou ele quando lhe falei da gravidez.
Resolvi não falar, guardar mais este segredo. Desta vez, optei por uma cirurgia que me esterilizasse, para não ter mais filhos. Fui para o hospital, estava sendo preparada para ir à sala de cirurgia quando chegou uma mulher para ter seu terceiro filho, passava muito mal. Deixaram-me no quarto e foram socorrê-la. Com o caso da mulher resolvido, levaram-me para a sala de cirurgia e tive uma menina, a Rose. Pelo movimento no corredor, fiquei sabendo que a mulher morrera, não havia resistido às complicações do parto, não fizera o pré-natal e desencarnou. Levantei-me com dificuldades e fui vê-la, ela ainda estava no quarto ao lado do meu. O casal era estrangeiro e encontrei o homem sozinho, chorando baixinho. Conversei com ele e o consolei. Não sei o que faço! Somos pobres, tenho dois filhos ainda pequenos e nenhum parente neste país. Quero voltar para minha pátria. Como levá-los? Como levar um neném?
- O senhor me dá o neném? Quero adotá-lo! Tenho condições financeiras para fazê-lo. Tive uma filha. Levo gêmeos para casa - disse, comovida.
- Como é triste! Que sofrimento, meu Deus! O que farei sem minha mulher e com três filhos pequenos? Não tenho condições de criados! - lamentou o homem.
- Volte o senhor para seu país e me dê seus filhos - pedi.
- Não! Os três não! Mas lhe deixo o neném. É um menino! Dou à senhora. Que Deus a proteja! Se a senhora ficar com ele, vou providenciar o enterro de minha esposa, cuidar dos outros dois que ficaram sozinhos e partirei, voltarei para a cidade em que nasci, lá encontrarei minha mãe, que poderá ficar com os dois para que eu possa trabalhar.
Quando Tommy veio me ver, contei a ele.
- Você queria a contagem de filhos ímpar! Vamos para casa com gêmeos! Frederico e Rosemary, ou Fred e Rose.
Assim, tivemos os onze filhos. Parei de escrever por um período. Alguns meses depois, conversei com Tommy sobre suas aventuras, ele prometeu não me trair mais e passei a lhe dar mais atenção. Sentia que meu esposo me amava e não conseguia entender o porquê de me trair e por que eu o havia traído. Escutamos muitos comentários de que Fred era outro filho de Tommy. Chateamo-nos, fiquei em dúvida, porém conversara com o pai da criança, e eles estavam na cidade havia pouco tempo. Tommy deu dinheiro para ele voltar ao seu país, eu comprei roupas para a família dele - o inverno estava rigoroso, assim os três partiram e não soubemos mais deles. Dois meses depois que Rose tinha nascido, o tio de Tommy morreu, e ele foi seu herdeiro. Herdou uma fazenda e três casas. Meus filhos eram sadios, tiveram somente doenças comuns na infância, eram inteligentes, peraltas, mas conseguimos educá-los, eram obedientes. Passamos por um período tranquilo. Meus caçulas estavam com três anos quando Tommy adoeceu. Ficou somente três meses e dezesseis dias doente e desencarnou. Foi um período muito complicado para mim. Com sua doença, gastamos nossas economias. Viúva, tive de cuidar das fazendas e das finanças, o que sempre tinha sido feito pelo meu marido. Ainda bem que cada uma das fazendas tinha um bom administrador. Minha despesa era alta e, pela primeira vez, enfrentei problemas financeiros. Peguei mais um caderno e o transformei em outro livro. Mandei-o para a editora, que aceitou publicá-lo. Teria que viajar novamente, mas dessa vez não teria Tommy para ficar com as crianças. Sentia muito sua falta, fazia um ano e três meses que estava viúva. Organizei-me para viajar, Anne ficou com meus filhos, mas, nessa época, os cinco mais velhos eram adolescentes e muito responsáveis. Viajei preocupada: lá, eu tive de participar de eventos, festas, e após um jantar em que ficamos, os editores e eu, conversando detalhes sobre o próximo livro, que prometi escrever logo, escutei me chamarem, virei e me surpreendi.
- Boa noite, Lucy!
Era Frank. Apresentei-o aos editores. Ele me convidou para dançar.
- Desculpe-me, Frank, estamos acabando de decidir as últimas questões sobre o livro.
- Se não se importar, vou esperá-la no bar. É muita coincidência nos encontrarmos neste país. Posso esperá-la?
Resultado: Fui encontrá-lo, dançamos e conversamos muito. Frank tinha se separado e estava ali a negócios quando viu minha foto, leu no jornal a notícia do lançamento do meu livro e viera me ver. Nesta época, meus familiares e alguns amigos sabiam que eu escrevia livros. Estava previsto que ficaria mais quatro dias naquela cidade. Fui aos meus compromissos e, nos horários livres, encontrávamo-nos, saíamos e passeávamos. Frank me disse que ia voltar a residir na cidade onde morava e queria continuar a se encontrar comigo. Não viajamos juntos. De fato, ele se mudou e passamos a nos encontrar. Frank dormia muito em minha casa. As crianças sentiam ciúmes, e ele, em vez de agradá-las, impôs-se e começou a me ofender. Novamente, não respondia. Não entendia minha atitude, o porquê de receber ofensas dele e ficar calada. Eu tratava todos bem: meus empregados, incluindo os das fazendas, respeitavam-me, gostavam de mim, não brigava com ninguém. Penso que recebia as reações, era tratada como tratava a todos. No começo, ele me ofendia quando estávamos a sós, criticava-me por eu ter tido tantos filhos, por ter ficado com ele logo após nosso reencontro, por ter aceitado as traições de Tommy- Depois, passou a me ofender na frente de empregados e filhos. Numa reunião familiar, Frank me criticou alto para todos ouvirem. Meu irmão me convidou para ir à outra sala e falou comigo:
- Lucy, é isto que você quer? Você tem certeza de que quer ficar com este homem? Tommy a tratava tão bem! Não respondi a Frank quando ele a ofendeu, mas senti vontade, porém pensei que não deveria me intrometer.
Tentei, em casa, conversar com ele. Ficou pior: para ele, eu era culpada, e vieram novos desaforos. Não estava bem para escrever, e as finanças estavam cada vez pior. Por ter recebido uma boa oferta e para pagar minhas dívidas, vendi a casa que fora dos pais de Tommy. Frank não me ajudava em nada, ele não era rico e sustentava seus dois filhos. Nesta época, seus filhos vieram passar uma temporada com ele, e sua filha Eilen começou a namorar com meu terceiro rebento, Thomas. Os dois eram adolescentes e se apaixonaram. Amei muito meus filhos, mas, pelo terceiro, tinha muita amizade, nós dois sempre fomos amigos de verdade. Estava inquieta, sem saber o que fazer. Meu filho mais velho terminou os estudos complementares, ou seja, o ensino médio, parou de estudar e passou a ir à fazenda, mas não era isso que eu queria. Sentia que não estava dando atenção aos meus filhos. Numa noite, Frank e eu saímos, fomos jantar num restaurante. Duas moças, muito bonitas, sentaram-se numa mesa ao lado da nossa. Frank conversou com elas e, no meio da conversa, disse com naturalidade:
- Vocês duas são lindas! Bem diferentes da mulher que eu tenho!
Ia levar o garfo à boca, parei. As garotas se olharam, não sabiam se riam, ficaram encabuladas. Eu sorri e não consegui responder. Ele, como se não tivesse ocorrido nada, continuou a conversar. Esforcei-me e tentei parecer natural, como sempre. Porém, ao chegar em casa, falei:
- Frank, vou entrar sozinha. Vá para sua casa!
Bati a porta do carro e entrei rápido. Pensei muito e concluí que Frank somente me fazia mal. Não estava bem financeiramente, deixei de reescrever, não dava a atenção devida aos meus filhos. Por que aceitava suas ofensas? Não merecia ser ofendida. Decidi acabar com esse relacionamento. No outro dia, telefonei para ele terminando nosso envolvimento amoroso. Ele aceitou e ainda afirmou que, como sempre, eu iria procurá-lo. Troquei as chaves da casa para que Frank não pudesse entrar mais, pedi a Thomas para levar alguns objetos dele que estavam comigo e trazer os meus que estavam na casa dele. Meus filhos ficaram aliviados: voltei a ser atenciosa, resolvi que os três mais velhos iriam estudar em outra cidade, cursar uma universidade. Aluguei um apartamento para eles e voltei a escrever. Ocupei tanto meu tempo que não dava para me lembrar de Frank. Tínhamos permanecido juntos um ano e dois meses. Com o livro pronto, viajei para o lançamento e, num evento, conheci Henry, um homem muito educado, agradável, mais velho que eu vinte e dois anos. Eu era bonita, magra, alta, elegante, ninguém que não me conhecesse diria que tinha onze filhos. Para esta viagem, não pude comprar roupas. Anne e eu reformamos algumas que eu tinha. Aceitei os convites de Henry para sair. Quando ele me convidou para ir a um lugar muito caro, onde as pessoas iam a rigor, falei que não tinha roupa adequada e recebi de presente lindos vestidos. Henry me contou sua vida: era rico, seus filhos eram casados, tinha um casal, ficara viúvo há cinco anos. Também contei parte da minha, omiti a quantidade de filhos. Henry enviou meus livros já editados para editoras de outros países, algo em que não havia pensado. Tive de voltar e prometemos nos reencontrar. Surpreendi-me quando, quinze dias depois, Henry me telegrafou dizendo que queria se encontrar comigo. Convidou-me para ir à sua casa - morava na capital do país - e me deu a notícia de que conseguiria editar meus livros em outros países. Havia resolvido meu problema financeiro. Sabia que isso poderia ser temporário, porém me tranquilizei. Foi maravilhoso nosso reencontro: Henry era tranquilo; nossas conversas, agradáveis. Convidou-me e a minha família para irmos à sua casa de veraneio, aproveitando as férias escolares. Ele levaria seus filhos.
- Henry - disse -, há algo que não lhe contei. A quantidade de filhos que tenho. São onze!
- Que beleza! Família grande! É tão difícil ver uma família assim. Terei de buscá-los com um micro-ônibus.
- Fiquei muito contente com sua resposta. Contei a ele que dois eram adotivos e um era somente do meu falecido marido. Aceitei o convite. Thomas terminara o namoro com Eilen, a filha de Frank, porque o pai dela me ofendera. Os dois discutiram, ela ficou do lado do pai, então romperam. Fomos para a casa de praia de Henry, e meus filhos gostaram muito do passeio. Fazia tempo que não saíamos para passear, viajar juntos. Foram férias agradáveis. Henry e eu firmamos nosso compromisso, não casamos, porém ele veio morar comigo, ou melhor, conosco, e resolveu nossos problemas. Ajudou-me a comprar um apartamento grande para meus filhos. Estudariam na capital do país, para onde foram os cinco mais velhos. Ele orientou-os nos estudos, cuidava das fazendas para mim e do meu dinheiro. Com a grande ajuda dele, dava e sobrava para as despesas. Reformou minha casa e viajávamos sempre, passávamos as férias de verão na casa de praia dele. Para haver um lugar confortável para todos, construiu quatro chalés em volta da casa. Henry foi um segundo pai para meus filhos, que o respeitavam e confiavam nele. Nós dois fomos felizes, nunca discutimos, e ele me tratava muito bem. Passei a escrever, ou reescrever, as histórias dos cadernos. Aquelas que faltavam, copiei, e queimei todos os cadernos da minha sogra Nancy, guardando as cópias no cofre. Os livros me renderam um bom dinheiro. Com eles, comprei um apartamento pequeno para cada filho. Henry sempre me elogiou por ser uma boa mãe, nunca me ofendeu e eu o amei muito. Embora com muitos problemas comuns em uma família, ainda mais uma família grande, nunca tive dificuldades maiores com nenhum dos meus filhos. Meu segundo e Thomas, o terceiro, formaram-se em agronomia, e cada um foi cuidar de uma fazenda. Os outros foram se formando, todos os onze fizeram cursos superiores e foram trabalhar na profissão escolhida. Henry me ajudou a resolver a partilha dos bens deixados por Tommy. As fazendas ficaram uma para cada um dos que trabalhavam nelas; os dois pagariam, por alguns anos, uma determinada quantia aos irmãos. Eu comprei, com o dinheiro dos livros, imóveis para os outros, e dividi o que possuía com eles. Todos ficaram satisfeitos, reconheceram que Henry agira com justiça. Meus gêmeos eram muito inteligentes e discretos, diferentes dos irmãos. Ela se formou em medicina; ele, em física. Foram residir na mesma cidade, distante daquela onde morávamos. Casaram-se e vinham pouco me visitar. Meus filhos foram se casando. Thomas também se casou, tinha uma filhinha, e sua esposa adoeceu, teve câncer. Passamos, Henry e eu, a ajudá-los. Meus caçulas se apaixonaram, e o problema antigo surgiu. Eram ou não irmãos? Afirmei que não: sabia que, mesmo se Fred fosse filho de Tommy, Rose não era dele. Mas os falatórios incomodavam. Henry resolveu a questão: fomos com os dois a laboratórios na capital, para fazer exames. O resultado foi enviado pelo correio. Reuni a família, abri os envelopes. Os dois exames afirmavam que os eles não tinham a possibilidade de serem irmãos. Fiz cópia e dei a eles.
- Mostrem isto quando escutarem esses comentários desagradáveis. Todos vocês são irmãos porque foram criados assim, e eu sou a mãe de todos. Porém, se vocês se gostam, estão namorando, e esse namoro pode levados ao casamento, é lícito, porque biologicamente não são irmãos.
Os dois se amavam, desde pequenos eram unidos. Parecia, eu pensava naquela época, que os dois haviam nascido no mesmo dia e local para ficarem juntos. Casaram e foram felizes. Neste período em que Henry e eu ficamos juntos, raramente vi Frank, que tentou, assim que comecei a ficar com Henry, ofender-me. Ignorei-o. Ele se mudou, foi residir novamente na cidade onde havia morado antes, mas não se desfez do seu apartamento. Henry ficou doente, cuidei dele com muito amor e carinho. Ele desencarnou vinte dias antes da esposa de Thomas. Foi para mim uma grande perda. Em testamento, ele me deixou alguns imóveis e a casa de veraneio. Anne, a grande amiga, a empregada de tanto tempo, também partiu para o Além. Voltei a reescrever, tinha somente dois cadernos. Thomas reencontrou com Eilen, que havia se casado, tivera um filho e se separara do marido. Voltaram a namorar, e os dois afirmavam que sempre se amaram. Por isso, voltei a ver Frank. Íamos passar um feriado na casa da praia, e Thomas me perguntou se podia convidar Frank. Disse que sim- Fomos. Num chalé ficaram Thomas, Eilen e os filhos e Frank. Eu tinha muito que fazer, o movimento era grande. Nos dois primeiros dias, Frank foi atencioso, para logo depois voltar a me ofender, mas não lhe dei atenção. Mas Nancy até que me surpreendeu: defendeu-me e houve uma calorosa discussão. Frank resolveu ir embora, e Eilen também foi. Conversei com Thomas.
- Filho, pense bem, se você ama Eilen, se sempre a amou, não deixe Frank atrapalhar. Converse com ela sobre isso. Vocês se separaram uma vez por desavenças entre mim e o Frank, isto não deve ocorrer de novo.
Frank tentou se desculpar quando retornei, pelo telefone:
- Lucy, não queria ter provocado aquela discussão, desculpe-me, é que você...
- Chega Frank - interrompi-o -, não vou aceitar receber ofensas de você. Não mesmo! Deixe nossos filhos serem felizes, não interfira. Se a união se concretizar entre nossos filhos, podemos nos ver socialmente. Não precisamos nem conversar. - Por que você não se trata? Procure um psiquiatra!
Desliguei o telefone. Oito meses se passaram: Thomas e Eilen se casaram. Eu ficava muito com minha neta, filha de Thomas, e pedi Para continuar cuidando dela. Vi Frank no casamento, somente nos cumprimentamos, então houve o telefonema e nossa conversa sobre reencarnação. Fiquei pensativa por uns dias, resolvi ir à capital do país e visitar dois dos meus filhos, mas o motivo foi procurar livros sobre reencarnação. Encontrei alguns de ioga e mestres orientais, comprei-os, mas fui também a um sebo e achei cinco livros do escritor francês, as Obras Básicas de Allan Kardec. Quando retornei à minha casa, li-os e me encantei com a Doutrina Espírita. Nunca fora muito religiosa, nem Tommy ou Henry. Não gostava de acreditar em nada sem compreender, e conhecer a Lei da Reencarnação foi, para mim, acreditar em Deus, ter a certeza de Sua existência. Com estas leituras, percebi que tínhamos, meus dois maridos e eu, sido espíritas sem sabermos. Não que fôssemos perfeitos, tínhamos vícios, mas também muitas qualidades, fomos caridosos. Nunca fiz diferença entre meus filhos (os adotivos me amavam, creio que mais que os biológicos), sempre fiz caridades, ajudei como voluntária a asilos, hospitais e orfanatos e não magoei ninguém. Somente houve as traições, o desconto, pensara erroneamente que deveria dar o troco, o retorno. Conversei sobre reencarnação com Frank, e ele me convidou para participar de um grupo de estudo sobre o assunto. Fui e gostei muito. Comprei dez coleções de livros de Allan Kardec e outros sobre reencarnação e dei aos meus filhos. O casal de caçulas ganhou um. Comentávamos sobre o assunto: uns aceitaram; outros, nem tanto. Frank e eu saíamos para jantar, fazíamos alguns passeios. Reescrevi o último caderno, dividi o dinheiro com os filhos. Frank me pediu várias vezes para morarmos juntos e em casamento, mas não aceitei. Se nós tínhamos diferenças no passado, estava sendo muito bom nos reconciliarmos totalmente, mas amava Henry, quis ser somente amiga de Frank. Tentei fazer um livro sem ter o enredo dos cadernos, foi editado, mas não teve aceitação como os outros, então desisti de escrever. Os livros que escrevi eram mais novelas românticas, obras que foram logo esquecidas, sem muito teor literário. Às vezes, Frank ia falar algo e parava. Brincava com ele:
- Com vontade de me ofender?
- Não quero mais fazer isso. Você não merece ofensas. Desculpe-me.
- É louvável sua tentativa. Desculpo-o.
Frank desencarnou, e seu corpo físico foi encontrado morto pela manhã, no seu apartamento. Orei muito por ele. Continuei morando na mesma casa, que era enorme, com vários quartos. Quatro dos meus filhos moravam na cidade; os dois que viviam nas fazendas vinham sempre me ver, e os outros vinham passar fins de semana, feriados e algumas férias. A casa estava sempre movimentada. Fiquei seis meses muito doente e desencarnei tranquila, aos setenta e dois anos. Não tive surpresas. Abençoadas leituras espiritualistas, bendito Allan Kardec por seus ensinos. Percebi que mudara de plano, pensei que um dos três companheiros viria me ajudar, mas quem me orientou, me fez companhia, foi uma moça muito bonita: era a mãe de Fred, meu caçula adotivo. Cuidou de mim com muito carinho. Quando lhe agradeci, ela me falou:
- É pouco diante de todo o carinho que dedicou ao meu filho!
Adaptei-me facilmente ao plano espiritual, embora sentisse falta da minha casa, de minha rotina, de meus objetos, e muita mesmo de meus filhos, netos e duas bisnetas. Encontrei-me com Tommy, Henry e Frank. Conversamos animados, relembrando acontecimentos agradáveis. O pai dos meus filhos era grato ao Henry pela ajuda que nos dera, foi ele quem o auxiliara quando este desencarnou. Conversei com meu primeiro marido a sós. Ele me pediu perdão e eu a ele:
- Você só descontou Lucy, e estávamos separados.
- Rose não é sua filha! - confessei.
- Sei. Mas filhos são aqueles que criamos e de quem participamos da vida. Soube aqui no Além? - quis saber.
- Não, soube encarnado. Quando você esperava nosso nono filho, esterilizei-me. Não fiz isto por nós, fiz por mim, não queria mais filhos com amantes. Quando você me disse estar grávida, fiquei em dúvida se a cirurgia dera ou não certo. Mas a compreendi, você sabia de minhas aventuras. Um empregado me contou que você conversara com aquelas jovens que eu levara para a fazenda. Sabia de minhas traições e perdoava, por que não podia perdoá-la? Você não criava Percy? Não procurei ter certeza e amei Rose como se fosse minha.
- Por que me traía, Tommy?
- Não sei, amava você, nossos filhos, orgulhava-me de nossa família e acabava traindo você - respondeu Tommy com sinceridade.
- Termos perdoado um ao outro foi muito importante, embora isso já tivesse ocorrido antes. Não guardamos mágoas.
- Tommy estava se preparando para reencarnar, seria neto de Percy. Queria retornar ao plano físico com propósito de melhorar. Frank e eu fomos relembrar nosso passado. Nossa história foi bem parecida com aquela que ele recordara pela regressão, que fizera quando encarnado, com um psiquiatra. Fui uma senhora rica, Frank era meu empregado. Nossa relação fora tumultuada, conquistei-o para humilhá-lo. Eu o fiz sofrer, e, como sempre acontece, quem faz sofrer sofre também. Tive dois filhos homens e abortei três vezes não queria mais filhos. Desencarnamos, sofremos, e eu lhe pedi perdão, mas Frank não conseguiu me perdoar totalmente. Quando nos reencontramos no plano físico, quis me fazer sofrer e padeceu mais do que eu. Recordarmos também das nossas existências anteriores, a antepenúltima, nesta fora Frank quem maltratara.
- Se tivesse o perdoado - lamentou ele, teria evitado para mim muito sofrimento, teria sido feliz. Quem não perdoa sofre muito.
- Se tivesse me perdoado, teríamos ficado juntos na juventude, com certeza teríamos ficado casados por muitos anos. Mas o "se" não deve agora nos entristecer. Você, rejeitando-me, mudou nosso destino. Fiz muitas coisas, e você, outras. Pense, meu amigo, que o perdão não é necessário onde o amor existe. Seu rancor foi maior que o amor, então você não me ama como pensa. Recomece sua vida esquecendo este suposto amor e com o propósito de perdoar sempre.
- Critiquei-a muito - lamentou ele. - Para criticar, é preciso ver tudo e não uma pequena parte. E este "tudo" inclui as outras vivências. Fui eu quem começou com nossas desavenças.
- Cada erro que cometemos nos traz uma lição. Devemos ser prudentes e assimilar a lição para passar na prova. Se abortei no passado, nesta existência consegui ser boa mãe. Como Lucy, poderia ter abortado, conhecia um médico que fazia abortos e nem era caro. Ainda bem que não o fiz. Foi muito bom ter os onze filhos! Concluí que meu maior vício era a desforra, fiz um forte propósito de prestar atenção nessa falha em minha personalidade. Mas era com Henry que queria estar, amava-o. Sentimentos são atributos do espírito, e ele me amava tanto quanto eu. E fora esta a primeira vez que nos encontramos, não recordamos de outras existências juntos. Thomas tinha sido meu pai na minha encarnação anterior, por isso fomos muito amigos. Os pais de Tommy se tornaram nossos filhos, que agora se chamam Rose e Fred. O pai dele confiou em nós para adotá-lo. Tommy se alegrou muito por ter recebido seu pai como filho.
- Ainda bem que o adotei! - exclamou ele. - Iria sofrer muito se não o tivesse aceitado.
- Recebi um bilhete de minha sogra Nancy. Ela escrevera antes de reencarnar como minha filha Rose. Deveria ser entregue quando eu retornasse ao plano espiritual. Ela escreveu que se alegrara por eu ter feito de seus escritos livros que entreteriam e que, sem dúvida, me ajudariam financeiramente na viuvez. Fiquei mais tranquila, afinal, apossei-me de ideias alheias. A mãe do meu primeiro marido sabia que ele iria desencarnar logo que ela reencarnasse. Tommy reencarnou. Encontrava-me sempre com Frank. Continuamos amigos, embora ele me amasse. Henry e eu passamos a estudar e trabalhar juntos na espiritualidade. Vou, sempre que posso, ver meus filhos. Tento continuar orientando cada um e, nas situações mais difíceis, peço-lhes para ler os livros de Kardec. E a vida de fato continua. Conheci Antônio Carlos quando viemos, Henry e eu, visitar uma colônia no Brasil que se dedica a orientar quem quer ter mais informações sobre a literatura espiritualista e espírita. Conversamos, e ele me fez algumas perguntas:
- Lucy, o que é importante para você?
- A compreensão da reencarnação - respondi. - Porque, sem esse entendimento, fica muito difícil acreditar em Deus com todos seus atributos. Entender o porquê de nascermos muitas vezes em corpos diferentes é compreender a vida.
- Alguma gratidão? - perguntou Antônio Carlos.
- A Deus somente, por nos ter criado com muitas oportunidades de crescermos espiritualmente, de aprendermos amar a todos.
- Você foi feliz encarnada? É feliz aqui no plano espiritual? - quis saber Antônio Carlos.
- Sim, fui feliz no plano físico, mesmo com algumas dificuldades. E sou feliz aqui no Além, isso porque pensei sempre em fazer a felicidade dos outros. Sou alegre, o mundo já tem bastante tristeza!
Esse encontro foi muito agradável e aceitei seu convite para ditar à médium que trabalha com ele minha história e como senti os reflexos de outras reencarnações, principalmente da última, na minha vida. Para terminar este relato, completo: queremos, Henry e eu, ficarmos desta vez muitos anos na erraticidade e depois nos prepararmos bem para iniciar uma nova vivência no plano físico. Que Deus seja sempre louvado e mais ainda por nos ter dado a oportunidade de voltarmos ao corpo físico para provarmos que aprendemos as lições que tivemos no Além.

Da irmã grata, Mary Lucy.

6 - A LOUCURA

Eu, Wellinton, estou ditando à médium ajudado pelo senhor Antônio Carlos, o médico que me convidou a contar minha história de vida. Não sabia, ou não sei, escrever, não fui à escola. E na minha penúltima encarnação estudei muito pouco. Lembro-me muito bem dessa existência. Mas ainda não consigo ler nada. Vou, logo após o término do meu tratamento, frequentar a escola na colônia para aprender a ler e escrever. Desejo muito me instruir. Na minha última passagem pelo plano físico, desencarnei com trinta e oito anos. Que vida difícil! Complicada! Dificilmente alguém se lembrava de meu nome. Quando isso ocorria, era porque fora chamado para uma consulta ou para algum registro em hospitais. Meus familiares me chamavam, quando pequeno, de Tom. Depois, eles, os vizinhos e quem mais me conhecia, chamavam-me pelo apelido: Disco. Tive uma existência sofrida, que somente pode ser compreendida pela Lei da Reencarnação. Quando pequeno, fui considerado deficiente mental. Com três anos, era totalmente diferente dos meus outros quatro irmãos. Falava muito, daí o apelido de Disco. Era confuso e assustava a família, principalmente minha mãe.
- Tom, você quer laranja? - perguntava minha mãe.
- Quero! Precisa descascar, sua burra! Claro, não vou chupar com casca. Porco come com casca. Não sou porco e gosto de laranja. Eu gosto e quero. Eu não quero!
- Tom você quer ou não a laranja? - insistia mamãe.
- Ele quer! Não quero! Quero! - falava.
Isso passou a acontecer sempre. Eu falava sem parar e, às vezes, referia-me a mim mesmo como Nório. Respondia:
- Nório quer. Ele não quer. Vá tomar banho, está sujo. Nório não está sujo. Não é Honório, sua burra, é Tom. É Disco que fala sem parar. Chega! Não aguento mais. Cale-se. Você não fale assim comigo. Falo. Cale a boca.
Dava um tapa no meu rosto, na face esquerda. Depois outro, na direita. Chorava e reclamava.
- Pare com isso! Já parei. Ia bater nela e não em você. Você é um estúpido!
Éramos pobres, mas meus pais me levaram ao médico, que me examinou, constatou que estava anêmico e receitou várias vitaminas. E concluiu que era deficiente mental, tinha um retardamento. Minha mãe percebeu que eu conversava com outras pessoas que ninguém via. Ela pensava que eu as inventava. Um dia mamãe tentou conversar comigo, eu estava com seis anos.
- Tom, diga-me, você está vendo alguém além de você e eu nesta sala?
- Vejo a senhora, que é como eu, e os outros, diferentes. Eles estão ali no canto, são uma mulher e um homem. Tenho nome, ouviu? Não gosto que se refira a mim como "mulher". Sou importante! E eu sou muito mais que um homem. Parem! Deixem-me conversar com minha mãe. Grande coisa, quer ser mais importante por ter mãe? Fique quieta, mulher. Deixe Nório conversar com a mãe. Mamãe, eu os vejo e conversamos.
Ao escutar isso, mamãe ficava apavorada. Dificilmente ficava quieto ou brincava e, quando brincava, era sozinho. Normalmente ficava sentado num canto, falando sem parar. Não conversava com outras pessoas, porque, se respondia algo, logo me confundia e falava como se fosse três pessoas. Não conseguia ir à escola. Mamãe até tentou por três vezes me levar, com sete, oito e nove anos. Na última, uma professora marcou uma consulta com um médico especialista em doenças mentais. O médico conversou muito comigo. Fui diagnosticado como tendo duas doenças e, novamente, anemia. Tomava os remédios com facilidade, menos o da noite. Quando mamãe ia me dar, era uma dificuldade, falava sem parar.
- Tome! Não tome! Você fica aí largado. Durmo também. Isso é bom porque fica quieta. Cale a boca, se não você apanha. Quero ver se me bate.
Então vinham os tapas. Normalmente eu me batia na face, nas costas, nas pernas, nos braços e até na barriga.
- Pare, Tom! Beba isto já! - ordenava mamãe. Tomava o remédio. Dormia e deixava todos em casa dormirem.
Minha infância e juventude foram assim. Às vezes ficava sem tomar banho. Estava sempre doente fisicamente: tinha gripes fortes, queixava-me muito de dores, sentia fraqueza e machucava-me muito por causa de tombos e de tapas que eu mesmo me dava. Meus pais nunca me bateram. E, todas as vezes que ia aos médicos, estava anêmico. Perguntava sempre à minha mãe:
- Por que não moro mais naquela casa perto do rio? Cadê meu bar? Tomaram-no de mim? Não bebo mais aguardente? Onde estão minhas roupas? Quem me tirou a cama grande e macia?
Ela não respondia, mas logo eu mesmo falava, todo confuso:
- Ficou no passado. Isso aconteceu e acabou. Nório, preste atenção: acabou, a vida é outra. Não fale assim com ele. Você ainda é má. Não sou mais. Queria, como ele, ter minhas coisas de volta. Queria ter meus vestidos. Eu que não quero usar vestido. Prefiro os trapos que Honório veste. Machão!
Estava com dezenove anos quando meu pai ficou doente, acamado. Meu irmão quis me levar para ser internado num sanatório.
- Mamãe - disse meu irmão -, Disco precisa fazer um tratamento especializado, não precisando cuidar do dele, ficará menos pesado para a senhora cuidar do papai. Hospitais são para doentes.
- Será que irão judiar dele? - perguntou mamãe, preocupada.
- Claro que não. Lá eles cuidam de enfermos como ele - afirmou meu irmão.
- Fui e estranhei somente o horário rígido: tinha hora certa para todas as atividades. Senti menos fraqueza pelos muitos remédios que tomava. Os médicos conversavam comigo e fizeram o diagnóstico de que eu tinha três personalidades. A primeira, a principal, Wellington, o Tom ou o Disco; uma mulher, a Édina; e outra, o Narciso. Fiquei dois anos internado. Estava mais forte fisicamente, mas agia do mesmo modo, conversava sem parar. Neste tempo em que fiquei internado, meu pai faleceu e todos os meus irmãos se casaram. Mamãe foi me buscar no sanatório e me trouxe para casa com a certeza que eu não iria sarar. Concluíram que era melhor continuar o tratamento perto da família. Mas no meu lar não seguia normas. Não me alimentava direito, não tomava banho se não queria e raramente fazia a barba. Minha genitora era idosa e adoentada. Nunca fora firme comigo, sentia muito dó de mim e pensava que, não me forçando a nada, estava sendo boa mãe. Escutava-a sempre:
- Tom é tão bonzinho! Ele não tem culpa de ser doente. Deixo meu filho fazer o que quer. Antes ser um sujo contente do que um limpo infeliz.
Era magro e aparentava ter mais idade. Estava com envelhecimento precoce. E minhas falas continuavam confusas, como sempre. Eram três pessoas que falavam e comecei a modificar o modo de falar. Quando era a mulher, pronunciava com voz mais fina e fazia trejeitos femininos. Quando era o homem, com voz mais grossa e modos grosseiros. Você está sempre olhando a minha bicicleta. Você gosta de bicicleta, Disco? - um vizinho me perguntou.
- Acho-a bonita. Gosto. Ele não sabe pedalar - respondi.
- Você quer esta para você? Dou-a de presente - o vizinho me ofereceu.
- Quero. Você precisa pedir para sua mãe. É melhor, se não ela não acredita. Mãe!
Gritei contente, pedi para mamãe, ela permitiu e ganhei a bicicleta. Não aprendi a pedalar, empurrava a bicicleta pelo quintal; depois, na frente de casa; depois, pelas ruas ali perto. E sempre conversando.
- Eu é que vou no banco. Não, sou eu, cansei de ir na garupa.
E, como sempre discutia, as pessoas me olhavam: uns sentiam medo; outros, dó; e a maioria pensava que estava bêbado. Mas quem me conhecia sabia que era doente. E quando me perguntavam quem eu era ou o que fazia, respondia:
- Sou dono de um bar muito bonito. Sou bailarina. Você foi, quando jovem, agora é... Moro atrás do bar. Bebo somente pinga envelhecida. Sou muito bonito.
Sempre falava do bar e nunca entrara em um. Dizia também que tinha muitas mulheres e roupas bonitas. Uma vez olhei no espelho e exclamei:
- Este não sou eu! Faço a barba todos os dias, tenho cabelos negros, assim como os olhos. Este é feio, eu sou bonito. Você foi assim. Não é mais louco!
Este dia chorei, sentido. Aí nunca mais me olhei num espelho. Minha mãe estava muito doente e desencarnou. Fiquei sozinho naquela casa. Meus irmãos me traziam alimentos. Sentia falta dela, mas tinha meus dois companheiros. Alimentava-me pouco. Saía empurrando a bicicleta e falando sem parar. Quem escutava não entendia. Minha aparência dava medo. Cabelos crescidos, assim como a barba, e desdentado. Não escovava os dentes e, se um dente doía, com muito sacrifício, minha mãe, quando encarnada, levava-me Para extraí-lo. Restavam poucos dentes quando ela pediu ao dentista para extrair o restante. Dava muito trabalho, não Parava de falar, e o profissional tinha de me sedar. Estava sempre sujo e muito magro. Então, meus irmãos conseguiram me internar novamente. Este sanatório era dirigido por pessoas espíritas e recebi também um tratamento espiritual. Estava fraco, anêmico e com várias enfermidades. Recebi transfusão de sangue, tomei soro e vários remédios. O médico conversava comigo, e os três respondiam. O profissional percebeu que era uma obsessão que chegara a possessão e meu tratamento seria demorado. Várias pessoas faziam trabalho voluntário no sanatório, todas elas espíritas. Conversavam conosco, os doentes, davam-nos atenção e carinho. Fiquei mais calmo, ou ficamos. Tomava banho, fazia a barba, alimentava-me melhor e dormia com remédios. Sentia falta da minha bicicleta, mas não queria voltar para casa. Meus irmãos raramente me visitavam. Mesmo sendo bem cuidado, continuava debilitado. Tive pneumonia. Sempre senti dores, mas, enfermo e acamado, senti mais. Naquela tarde, recordei de fatos acontecidos comigo. Triste, chorei e dormi. Desencarnei. Meu corpo físico enfraquecido parou suas funções. Não vi nada nem senti. Foi como se dormisse. Acordei em outro quarto, numa cama, e vi nós três deitados. Estávamos amarrados por uma corda, ou fita, de uns cinco centímetros de largura. Esta faixa era estranha, parecia uma névoa que unia nós três. Não estranhei. Sabia disso, não entendia, mas sabia que estávamos unidos.
- O que me aconteceu? - perguntei. - Acordei e continuo vendo vocês.
- Seu corpo morreu - respondeu a mulher, Édina. - Você não repete mais o que falo.
- Claro que não - falou o homem, Narciso. - Agora ele é desencarnado.
- O que significa isso? - perguntei.
- Que você é agora um espírito sem corpo de carne. É como nós.
- Continuaremos unidos? - quis saber.
- Penso que sim - opinou Édina. - Unimo-nos e não sabemos como nos separar.
- Calamo-nos, dormi novamente e acordei melhor, sentia poucas dores.
- Até que enfim acordou! - exclamou Édina. - A moça nos pediu para não acordá-lo. Aí está ela.
- Boa tarde! - uma moça me cumprimentou. - Trouxe-lhes sucos, pães e frutas. Alimentem-se.
Eu comi, Édina e Narciso tomaram somente um pouquinho de suco. A moça tirou a bandeja, sentou-se numa cadeira perto da cama e falou:
- Chamo-me Isa. Vou conversar um pouquinho com vocês. Serão separados, e então poderão escolher se querem auxílio. Se quiserem, ficarão conosco. Se não, poderão ir para onde quiserem. Conte você, Édina, o porquê de estarem unidos.
- Eu?! Por que eu? - Édina indagou.
- Porque ela mandou - falou Narciso.
Mexi a boca para falar, mas me contive. Ia, certamente, iniciar uma discussão entre os dois. Isa interferiu.
- Por favor, senhores. Estou aqui para ajudá-los a resolverem seus problemas. Não quero discussão. Fale, Édina.
- Tinha dezesseis anos quando fui trabalhar com Honório, o Disco, este aí - Édina me mostrou. - Ele possuía um bar, com uma casa de prostituição. Narciso também trabalhava lá e nos tomamos amigos. O lugar era lucrativo. Eu envelheci e então fui fazer parte dos rituais nos quais Honório também era o chefe.
Édina parou de falar. Eu recordei, ou vi, claramente, porque não me esquecera. Vi-me: era alto, forte, cabelos e olhos negros. Lembrei-me do bar, da casa nos fundos e de como me vestia para esses rituais.
- Édina, o que você fazia nestes rituais? - perguntou Isa.
- Coisas erradas - Édina respondeu. - Tristes e erradas. Pecados terríveis.
Édina calou-se. Olhei para seu rosto: ela não chorou, talvez não tivesse mais lágrimas.
- Por favor, fale você, Narciso - pediu Isa.
- Meus pais me venderam ao Honório quando tinha oito anos e fiquei com ele como empregado. Também fazia parte dos rituais.
- Por que se uniram? - Isa quis saber.
- Éramos amigos, penso que ainda somos - explicou Édina. - Fui eu que tive a ideia de nos unir. Agíamos errado, éramos criminosos e sabia que os mais fracos seriam punidos. Juramos lealdade, prometemos não nos trair.
- Como se uniram? - Isa perguntou.
- Por um ritual complicado. Imprudentemente nos uni-m0s - lamentou Édina.
- Foi isso mesmo - contou Narciso. - Honório tinha um caderno que havia pertencido ao seu avô, que era feiticeiro. Fazíamos rituais para prejudicar nossos inimigos e adquirir coisas materiais. Dava certo. Mas não acreditei nesta união. Pensei que seria apenas para aquela ocasião, não acreditava na sobrevivência do espírito. Para mim, morria e acabava. Ignorava que poderíamos ter outro corpo físico. Pensei que, se fôssemos descobertos e presos, seria somente eu castigado. Fizemos o ritual e nos unimos, ou nos prendemos, uns aos outros.
- Já quiseram se desprender? - Isa quis saber.
- Sim, muitas vezes - respondeu Narciso. - Não foi e não é agradável ficar preso a estes dois tantos anos. Disco reencarnou e ficamos perto dele sem conseguirmos nos afastar. No sanatório, recebemos orientação, melhorando nossa perturbação. Mas não nos separamos.
Isa olhou Édina, convidando-a a falar. Eu também não gosto de ficar presa. Sofro por isso. Quando Narciso morreu, ficamos, Honório e eu, muitíssimo perturbados, sentindo a decomposição dele. Desesperei-me, quis morrer e tomei veneno. Honório não teve coragem de se suicidar. Ficou dias trancado no quarto sentindo nós dois nos decompormos. Enlouqueceu, saiu desesperado, quis se lavar, caiu no rio e morreu afogado.
- E depois? - indagou Isa.
- Ficamos os três no umbral, sofrendo muito - Édina continuou contando. - Foi um período horrível. Honório foi quem mais se arrependeu. Pedia muito perdão. Eu estava muito confusa. Melhorei quando vi uma mulher grávida. Honório nasceu e recebeu outro nome. Narciso e eu ficamos perto dele. Continuamos unidos.
Escutava a conversa e revia os acontecimentos. Não acreditava muito nos rituais. Encontrei por acaso o caderno do meu avô paterno e o guardei. Quando um homem poderoso na região quis tomar meu bar, pressionado, resolvi usar dos conhecimentos do meu avô. Li seus escritos e encontrei uma receita (vovô dava o nome de "receita" para as tarefas que deveriam ser realizadas para alcançar o que se desejava) para afastar o inimigo. Convidei Narciso e Édina para, juntos, fazermos o ritual para impedir o homem de me tomar tudo o que possuía. Fizemos e deu certo. Fizemos outros. Alguns eram mais difíceis. O ritual que nos uniu foi dificílimo. Vivemos por muitos anos depois desta imprudência cruel, estávamos idosos quando Narciso sofreu um infarto e desencarnou. Édina e eu o sentimos se decompor. Foi horrível. Ela, desesperada, suicidou-se. Sofri muito: achando-me sujo, fui me lavar no rio e me afoguei. Ficamos no umbral e não nos separamos. Arrependi-me. Quis, roguei por uma nova oportunidade, e reencarnei. Essas recordações me fizeram chorar. O remorso dói mais do que qualquer dor física.
- Não chore, Disco - rogou Édina.
- Fiz coisas feias - lamentei.
- Fizemos - concordou Narciso.
- E agora? Será que ficaremos para sempre unidos? - perguntou Édina.
- Não fizemos o ritual para isso? Para ficarmos para sempre unidos? - falou Narciso.
Fizemos para sempre, mas não foi para sempre... - disse Édina.
- Vocês, pela vontade, criaram um vínculo - explicou Isa.
- Alimentaram-no pelo remorso. Agora, pela vontade, podem desfazê-lo. Vamos tentar? Pensem que querem que este cordão desapareça.
Pensamos. Isa ergueu as mãos em nossa direção, minutos se passaram e nada. Continuamos unidos.
- Vou pedir ajuda para uma pessoa que sabe fazer isso: ele foi, é, um grande estudioso da mente humana. Dará certo - Isa nos animou.
Ficamos sozinhos e calados. Adormeci, sentia-me cansado. Quando acordei, Édina se queixou:
- Estou com medo!
Isa voltou ao nosso quarto e nos levou para outro local. Destravou as rodas da cama e a empurrou. Ficamos calados. Levou-nos para um cômodo onde somente três velas clareavam o local. Ali havia somente um crucifixo na parede. Isa ficou num canto e entrou no local um homem vestido de branco, com uma capa brilhante. Seus cabelos eram brancos como a neve. Um espírito muito bonito, porque estava harmonioso. Sério, sem falar nada, fez alguns gestos que julgamos ser o início de um ritual. Depois de alguns minutos, em que ficamos atentos a ele, falou com voz forte e agradável:
- Repitam o que digo: O, Deus, Criador do Universo, repetimos -, Pai de bondade infinita, liberte-nos de nossos erros. Pedimos perdão pelos nossos atos impensados e maldosos.
Recitou algumas frases, todas bonitas. Depois tirou, de dentro de sua capa, uma espada. Um objeto lindo. Estávamos atentos. Acreditamos que o ritual daria certo. O senhor com a espada cortou a faixa cinza escura que nos unia.
- Em nome do Todo Poderoso e Misericordioso, eu os liberto!
A faixa sumiu. Nós três choramos e agradecemos. O senhor saiu. Isa acendeu as luzes e nos esclareceu:
- Vocês não estão mais unidos. Despeçam-se uns dos outros e se perdoem. Cada um irá para um local. Ficarão separados.
Abraçamo-nos, desculpamo-nos e fomos desculpados. Voltei para o quarto onde antes estivera e dormi tranquilo pela primeira vez em muitos anos. Ao acordar, senti falta dos dois, e muita. Estava inquieto, parecia que faltava uma parte do meu corpo. Pensei que não ia andar ou mexer os braços. Mas levantei-me, andei e peguei um copo d'água. "Não estou inteiro! Sinto-me pela metade!", pensei.
- Oi, Wellington! - Isa entrou no quarto. - Vou levá-lo para fazer um tratamento que irá fortalecê-lo. O que você mais deseja ter de sadio?
- Gostaria de ter dentes. Comer esta maçã com meus dentes - respondi.
- Então vamos.
Com ajuda, fiquei com aparência saudável. Dentes sadios, cabelos curtos, sem barba, mais gordo, sem as cicatrizes dos vários ferimentos que tive. Gostei de minha aparência. Mas estava muito triste, senti falta dos dois. Dormia muito, acordava, ia às sessões de tratamento, escutava músicas, ouvia palestras e a leitura do Evangelho, caminhava pelo jardim e fazia exercícios. Sentia dificuldade para conversar com outras pessoas. Preferia ficar sozinho. Recordava-me muito do período encarnado, da minha bicicleta, de Édina e Narciso. Sentia saudades deles. Mas estava melhorando, não sentia mais os dois como pedaços de mim. Recebi a visita de meus pais. Mamãe me abraçou apertado. Alegrei-me, gostava deles, mas não os amava. Esforcei-me para conversar com eles, mas não consegui. Mamãe até comentou:
- Tom, você está tão calado. Antes conversava tanto. Sorri. Hoje não estamos juntos, moramos em lugares diferentes, mas nos visitamos sempre.
- Wellington - disse o senhor que me dava passes, conversava comigo e participava do meu tratamento - você pode fazer perguntas. Se quiser saber algo que está lhe acontecendo ou lhe ocorreu, pergunte. Se eu souber, responderei. Se não souber, procurarei saber para te informar.
- Por que sinto falta de Édina e Narciso? Por que ficamos unidos?
O orientador sabia o que tinha acontecido comigo e tudo o que fiz, ou fizemos, no passado. Respondeu, orientando-me.
- Vocês ficaram juntos muitos anos, é natural que sintam falta um do outro. Erraram e sofreram juntos. Vocês agiram imprudentemente, uniram-se por um ritual e acreditaram que, de fato, estavam unidos e que deveriam continuar assim. Seguramente, se este ritual tivesse sido feito sem terem cometido maldades, não se sentiriam culpados e não necessitariam se punir. Mas, infelizmente, vocês três usaram da crueldade e mentalmente se uniram. Tanto que o primeiro a desencarnar, o Narciso, não conseguiu desligar se, em espírito, do corpo físico morto e sentiu sua decomposição. Acreditando estarem ligados, você e Édina sentiram o que ele sentia. Depois que Édina desencarnou, você sentiu o sofrimento dos dois. Aquela faixa fluídica, cinzenta, que você viu, era fortalecida pela vontade de vocês três, que continuaram imprudentemente pensando, imaginando, estar unidos. Não conseguiam se afastar um do outro.
- Estávamos nos punindo? - perguntei.
- Ao cometermos um ato imprudente, principalmente se esta ação resultou em dores para outra pessoa, marcamo-nos, e, para nos livrarmos desta marca, ou deste laço, que nos prende à ação maldosa, não é tão simples. Vocês sabiam que agiam errado, e o erro os prendeu. Se não soubéssemos que estávamos errados, não receberíamos castigo? - quis saber.
- É impossível não saber, não ter noção, não sentir intuitivamente que certos atos são errados. Temos em nós, em nosso espírito, a voz da nossa consciência a nos alertar o que é bom ou não. Mesmo os que julgam não saber recebem a dor, não como punição, porém como correção, como aprendizado. Se vocês tivessem conhecimentos integrais dos atos que fizeram, a reação teria sido com muito mais sofrimento. Porém, se alguém souber realmente, penso que não cometerá este ato que cometeram. Porque uma pessoa com conhecimento não iria querer ficar unida a outra.
- Por que não conseguimos nos separar? Por que somente nos separamos com o auxílio de um espírito bondoso?
- Como disse, não conseguiram se separar por pensarem que haviam se unido e deveriam continuar unidos. O espírito que os separou é, de fato, um ser bondoso. Ele fez aquele ritual apenas para vocês acreditarem, não duvidando que a faixa que os unia pudesse desaparecer. Ele usou a energia positiva para anular a negativa. Para vocês não fazerem este elo novamente, porque ainda se sentem devedores, culpados e em débito, foram separados.
- Como estão meus amigos? Será que eu posso dizer que somos amigos?
- Édina e Narciso estão, cada um, em abrigos diferentes e longe um do outro. Eles estão fazendo o mesmo tratamento que você. Estamos tentando equilibrá-los para depois prepará-los para reencarnarem, e em lugares distantes. Se não são inimigos são amigos. E amigos desejam coisas boas uns para os outros. Faça isto, Wellington: deseje a eles que estejam bem e alegres.
Passei a fazer isso e me senti bem melhor. Todas as vezes que sentia falta deles, desejava-lhes coisas boas e me sentia tranquilo. Passei a conversar com as pessoas. Aprendi a cantar, saía mais do quarto, e o tratamento continuou. Numa tarde, perguntei à pessoa que pacientemente me auxiliava:
- Quando estava encarnado, fui diagnosticado pelos médicos como "deficiente mental". Fui realmente?
- Sim, você teve uma enfermidade mental. Seu espírito, confuso, com muito remorso, transmitiu isso ao físico, que adoeceu. Porém isso ocorreu com você. Cada pessoa enferma o é por uma causa especial, somente dela.
- Tive tripla personalidade? O orientador me esclareceu:
- Mente sã, ou seja, espírito são, sem remorso, sem débito, é sinônimo de corpo físico sadio. São muitas as causas para um enfermo ser diagnosticado como alguém com mais de uma personalidade. Pode haver casos como o seu, em que Édina e Narciso usavam sua mente, deixando-o debilitado. Muitos enfermos o são por obsessão, e até possessão e os motivos para isso acontecer são muitos: paixão, ódio, remorso e outras causas. Vocês se uniram fazendo um elo mental, uma faixa fluídica. Isso é raro. A maioria dos espíritos que ficam perto de outros se afasta quando quer. Outro fato que contribui para o diagnóstico de dupla personalidade é a recordação que o enfermo tem de suas outras encarnações, sem estrutura para isso, confundindo essa lembrança com o presente, perturbando-se muito. Na maioria das vezes, estas recordações são ocasionadas por desafetos que querem mesmo que essa pessoa sofra. Outros doentes podem imaginar ser alguém ou algo que nada tem a ver com eles. São muitas as doenças mentais, e as causas são mais diversas ainda.
- Então não é bom nos lembrarmos de nossas outras existências? - perguntei.
- Deus faz tudo perfeito - continuou o orientador a me elucidar. - Misericordioso, deu-nos várias oportunidades de melhorarmos por meio da reencarnação. Como reiniciaremos se não esquecermos? Espíritos mais amadurecidos recordam-se sem problemas, principalmente se não tiverem muitos débitos. Mesmo no plano espiritual, muitos desencarnados não se recordam, somente o fazem se isso for servir para sua melhora ou para compreender acontecimentos de sua vida. Não se deve recordar por mera curiosidade, principalmente encarnado. Para tudo tem tempo certo. Existem terapias no plano físico que ajudam a recordar outras encarnações. Esse processo deve ser feito por profissionais e com muita cautela. Normalmente é um processo demorado, para não haver o risco de a mente inventar e fazer confusão. O esquecimento é uma bênção pela qual devemos ser gratos.
- Concordo com o senhor - falei. - Se não tivesse recordado, como Wellington, minha existência como Honório, minha vida teria sido diferente, mais fácil. Vou fazer tudo para merecer, na minha próxima volta ao físico, esquecer tudo e reiniciar.
- Você conseguirá - o orientador me animou.
- Vi muito sofrimento no sanatório onde estive internado quando encarnado. Minha cama era próxima à de um moço que um dia pensava ser um sapo; no outro, um famoso presidente já falecido; e, no outro, uma atriz.
Fiz uma pausa no meu ditado à médium, tirei do bolso um papel, mostrei-o ao senhor Antônio Carlos, que estava presente, e disse:
- O orientador leu para mim algo escrito nesta folha de papel. Achei tão bonito que pedi a folha para mim. Ele me deu e a guardei comigo. Quando aprender a ler, desejo ler esses livros. Antônio Carlos, o senhor pode ler para mim o que está escrito, para que eu possa ditar para a médium?
Com sua resposta afirmativa, escutei e fui ditando: "Loucura provém de um certo estado patológico do cérebro, instrumento do pensamento; estando o instrumento desorganizado, o pensamento fica alterado. A loucura é, pois, um efeito consecutivo, cuja causa primária é uma predisposição orgânica, que torna o cérebro mais ou menos acessível a certas impressões, e isso é tão real que encontrareis pessoas que pensam excessivamente e não ficam loucas, ao passo que outras enlouquecem sob o influxo da menor excitação."1 "Sendo todo alienado, conforme o próprio verbete denuncia, um ausente, a alienação mental começa, muitas vezes,quando o espírito retorna ao corpo pela reencarnação em forma de limitação primitiva ou de corrigenda, ligado a credores d'antanho2, em marcha inexorável para o aniquilamento da razão, quando não se afirma nas linhas do equilíbrio moral."³ O senhor Antônio Carlos calou-se, e eu continuei minha narrativa. Às vezes me entristeço porque tenho uma dívida enorme para pagar. Agi muito errado. Mas tenho acatado os conselhos para aprender, trabalhar e me preparar para depois planejar a melhor maneira de quitar meus erros e ficar bem comigo.
- Você já resgatou muitos erros, sofreu muito como Disco - um orientador me consolou.
- Mas não sinto isso. Sofri, sim, mas não o suficiente. Não ficamos sem reação quando fazemos o mal. Sei que podemos anular qualquer ação maldosa com o amor, mas, para isso, tenho de aprender a amar. Por isso ainda não fiz planos, tenho tempo. Não devo reencarnar nos próximos vinte anos. Sem dúvida vou aprender muito neste período em que ficarei no plano espiritual.
- Influências da reencarnação na minha vida? Claro que as tive muito, respondo todas as vezes que me perguntam. Alguém pode ter questionado por que nasci doente, se não havia feito nada de mal (na existência como Wellington), e por que sofri tanto.

1 - Kardec, Allan. O que é o espiritismo. 36. ed., p. 217.
2 - Antanho: de outros tempos, do passado.
3 - Nos bastidores da obsessão, do Espírito Manoel Philomeno de Miranda, psicografado por Divaldo Pereira Franco, 6 ed., p. 281.

Porém, agi com maldade em outra existência. Mas não fui condenado a sofrer para sempre. Tive, como Disco, a dor como companhia, tentando aprender a não agir mais com crueldade. Como tudo é justo e misericordioso! E seguramente terei outras reencarnações, que poderão refletir os atos cometidos quando tive o nome de Honório. Quero sentir essas dificuldades e sofrimentos como aprendizado, como uma grande oportunidade de resgate com a bênção do esquecimento. Bendita a oportunidade da reencarnação! Obrigado, Wellington.
7 - O ACIDENTE COM O CAVALO

Estou, neste momento em que dito minha história à médium, no plano espiritual há onze anos. E graças às dificuldades que tive pelas vagas lembranças de minha outra encarnação e por ter procurado compreendê-las, encontrei o Espiritismo. Tive uma desencarnação tranquila, em que percebi quase de imediato que mudara de plano. Sou profundamente grato pelas muitas oportunidades que temos, por voltarmos várias vezes ao plano físico e também pelos motivos que tive para procurar entender esta graça que o Criador nos deu pela Sua bondade infinita. Vou contar minha história de vida. Reencarnei numa família de classe média, filho do meio, tinha, portanto, uma irmã mais velha e um caçula. Desde pequeno gostava de desenhar, principalmente cavalos. Pintava-os de marrom. Um dia meu pai me perguntou:
- Ricardo - tive este nome na minha última encarnação -, você quer ver uma corrida de cavalos?
- Não! - respondi rapidamente. - Não gosto desses animais, eles pisam na gente.
- Não, meu filho - papai tentou me esclarecer -, cavalos não são maus. São bonzinhos.
- Não quero ir!
- Pensei que você gostasse desse animal, desenha-os tão bem - falou papai.
- Não gosto deles, desenho por isto: porque não gosto! Meu pai não entendeu, mas não me forçou. Meus pais nos educaram sem nos forçar a nada. Cresci, era muito estudioso e fui estudar engenharia civil. Tinha tido algumas namoradas, mas nada sério. E ainda desenhava cavalos e os coloria de marrom. Conheci Clara, ela fazia curso de letras. Gostamos um do outro assim que nos vimos. Namoramos, descobrimos afinidades, o amor nasceu e se fortaleceu. Morávamos na mesma cidade, em bairros distantes. Passamos a frequentar a casa um do outro. Íamos nos formar no mesmo ano e decidimos nos casar logo após as formaturas. Clara tinha dois irmãos, ela era a mais velha. O pai tinha uma propriedade rural, criava muitos animais, principalmente equinos. Já havia sido convidado muitas vezes para ir à fazenda e recusava sempre, inventando desculpas.
- Ricardo - insistiu Clara -, vamos passar o feriado na fazenda. Você irá gostar de lá. A namorada do meu irmão e umas amigas irão também. Por favor, venha conosco. Não quero ir sem você!
- Não queria ir por apenas um motivo, lá havia cavalos. Clara gostava de cavalgar, galopar pela propriedade. Não disse nada à minha namorada do medo que eu tinha desses animais. Foi tanta insistência que decidi ir. Seriam quatro dias. Chegamos de manhã. A fazenda era muito bonita; a casa, confortável e grande. Vi a criação de animais de longe e estremeci. O primeiro dia foi agradável porque choveu e não saímos da casa. Escutamos músicas, jogamos e conversamos. O segundo dia amanheceu com um sol lindo, levantei cedo e saí a pé pela fazenda. Foi um passeio agradável. Almoçamos. À tarde, eles resolveram sair para cavalgar. Dei desculpas para não ir.
- Estou cansado. Encantei-me com o lugar e andei muito.
Eles foram. Estava gostando do passeio. À noite, jogamos e conversamos. Mas no outro dia...
- Vamos todos à cachoeira. O lugar é lindo! Iremos a cavalo - disse Clara.
- Não irei - falei. - Nunca montei e não sei cavalgar. Meu sogro, o senhor Otávio, sorriu. Para mim, até aquele momento, o pai da Clara me era indiferente. Tratava-o bem por ser o genitor de minha namorada. Mas, ao vê-lo sorrir, parecia que estava debochando de mim, tive uma sensação muito desagradável.
- Ricardo - disse o senhor Otávio -, vou selar um cavalo manso, obediente, para você. Este é para as moças cavalgarem.
Clara interferiu:
- Papai está brincando, Ricardo.
- Ele pensa que todos devem saber galopar - falou o irmão de Clara.
Senti-me ofendido, mas não falei nada. Tudo foi organizado para o passeio. Ainda bem que o equino que me foi destinado era preto. Esforcei-me muito e montei. Meu coração disparou e, com muita dificuldade, contive minha respiração alterada. Saímos. De fato, Maneiro, o cavalo que montava, era obediente e seguiu os outros. Não conversei, estava tenso. Fazia quinze minutos que havíamos saído da estrebaria. Para mim, pareciam umas duas horas. Clara, o irmão dela, a namorada dele e as amigas conversavam animados. Clara se emparelhou comigo.
- Ricardo, por que está calado?
- Não sei por que preciso montar, se não quero!
- Está tão ruim assim? - perguntou ela.
- Não me encha! Clara fez até um biquinho. Nunca respondera a ela desse modo. Passou à frente, e eu fiquei para trás. Eles se distanciaram. Senti muita vontade de vomitar. Puxei as rédeas, o animal parou. Desci e vomitei muito. Voltei à casa andando e puxando Maneiro. Andei uns novecentos metros. Quando me aproximei da casa, montei de novo e fui à estrebaria. Deixei lá o cavalo. Disse à empregada que não estava me sentindo bem e fui para o quarto. Estava nervoso: primeiro porque sem motivo me privara de um passeio agradável e depois por ter respondido grosseiramente a Clara. Desci para o jantar. O grupo conversava animado. Meu cunhado me perguntou:
- Por que você voltou? O passeio foi muito agradável.
- Não estava me sentindo bem - respondi.
- Virei, afastei-me do grupo, fui à janela e fiquei olhando para fora. O senhor Otávio se aproximou de mim.
- O que você sentiu? O cheiro do Maneiro lhe fez mal?
Sem entender o porquê, respondi:
- Francisco!
Senti que tonteava. Parecia que estava com sangue na boca. Vi o corpo de um menino caído, ensanguentado, e um cavalo que me pareceu muito grande e marrom. Ouvi um moço gritar:
- Francisco! Francisco!
E o moço me pareceu ser o senhor Otávio. O pai de Clara me olhou assustado, nada respondeu e se afastou. Demorou alguns segundos para passar a sensação de ter sangue na minha boca. Quando me senti melhor, fui me sentar no sofá, ao lado de minha namorada.
- Ricardo, o que você disse ao papai? Ele ficou transtornado, e você não parece estar bem.
- De fato, não me sinto bem - falei. Minha vontade era de ir embora. Fomos chamados para jantar. Comi pouco. O senhor Otávio e eu permanecemos calados. O grupo foi jogar, e eu fui à varanda. Não estava entendendo o que havia acontecido comigo. Nunca gostei de cavalos e pensava não haver razão para temê-los. Mas senti pânico ao montar em um. E a visão que eu tive quando o senhor Otávio conversou comigo era algo inexplicável. Clara aproximou-se.
- Ricardo, o que está acontecendo?
- Não sei.
- Você me ofendeu - ela se queixou.
- Desculpe-me, Clara. Não quis ofendê-la. Não queria montar. Senti-me forçado e não me senti bem.
- Deveria ter dito.
- De fato, teria sido melhor eu ter falado. E que não gosto de cavalgar - tentei me justificar.
- O que você disse ao meu pai?
- Não sei por que disse aquilo. Foi uma palavra, um nome. Falei "Francisco".
- "Francisco"? Por que fez isso? - Clara perguntou.
- Não sei - respondi. - Esse nome tem alguma importância?
- Para meu pai tem. Papai teve um irmão que faleceu com seis anos num acidente de cavalo, e ele se chamava Francisco. Tinha somente esse irmão, que era mais novo que ele nove anos. Papai não gosta de falar desse assunto. Foi muito sofrimento. Minha avó morreu logo depois, e vovô ficou muito calado. Não os conheci, é o que meu pai conta. Onde você escutou esse nome?
- O nome? Deve ter sido por aí.
- Não costumamos, ninguém em casa ou aqui na fazenda, falar disso. Por favor, não comente com ninguém. Papai sofre sempre que se recorda desse acidente - Clara me pediu.
Fui deitar, mas não dormi. Aquela visão me perseguiu, ou seja, não conseguia parar de pensar no que aconteceu. No outro dia, o grupo saiu para passear a cavalo. Clara ficou comigo, e ninguém sequer me convidou. Esforcei-me para parecer natural, mas estava ansioso para ir embora. O senhor Otávio não conversou comigo nem eu com ele. Foi um alívio voltar para a cidade. Prometi a mim mesmo nunca mais ir para lá. Tudo voltou ao normal: estudo, namoro, correria com as provas. Mas não esqueci a sensação do momento em que eu tive aquela visão. Fiz um propósito de não desenhar mais cavalos. E, com muito esforço, não os desenhei mais. Não queria mais voltar à fazenda e fui sincero com Clara.
- Gosto da cidade, de sua agitação. O campo não me atrai nem para passeios. Percebi que não gosto de cavalos e nunca mais quero montar num. Quando você quiser ir à fazenda com sua família, vá, porém não conte comigo. Não me sentia mais à vontade na presença do senhor Otávio nem ele na minha companhia. Mas nos tolerávamos porque Clara e eu nos amávamos e combinávamos muito. Formamo-nos e ficamos noivos. Arrumamos empregos e marcamos a data para o casamento. Meu pai nos cedeu um apartamento para morarmos, não pagaríamos aluguel, e o senhor Otávio nos deu os móveis e a festa. Nosso casamento foi lindo. Para agradar Clara, voltei à fazenda, mas não chegava perto dos cavalos, e ninguém comentava nada. Não gostava mais daquele recanto nem mais o achava bonito. Às vezes, olhava algum lugar e parecia que via outro, ou seja, o mesmo local, mas modificado. Quando estava no campo, não dormia bem. Sentia enjôo e, às vezes, a sensação de sangue na boca. Meu emprego era numa firma de construção e estava gostando. Clara lecionava numa boa escola. Comemoramos seis meses de casados. Éramos muito felizes.
- Ricardo - Clara disse -, ainda não estou grávida. Estou pensando em ir a um médico.
- Por favor, Clara - falei -, ainda é cedo para termos filhos.
- É que não estou me sentindo bem.
- Clara foi ao médico, fez muitos exames, e os resultados não foram bons. Ela estava com câncer. O tratamento foi cruel, assim como a doença. Ela se afastou do trabalho, e todos os familiares nos ajudaram. Quis sair do meu emprego para cuidar dela. Mas meu pai e o dela me aconselharam a continuar. Clara preferiu, após uma longa internação, ir para a casa de seus pais para ficar perto da mãe. Foi um período muito triste. Fiquei desesperado. Estava faltando muito no emprego. Decidi me demitir. Ficava muito com ela, e as esperanças de cura foram diminuindo. Rodeada de muito amor e carinho, Clara desencarnou. Todos sofreram, mas eu sofri demais. Voltei para a casa de meus pais, não tive coragem para voltar ao apartamento. Três meses se passaram, resolvi arrumar outro emprego. Minha irmã tinha se casado e foi morar em outro estado, longe de onde morávamos. Ela me convidou para visitá-la e me disse que eu poderia arrumar lá um bom emprego.
Fui e gostei do lugar. A cidade era pequena, tranquila, e consegui um emprego. Voltei e me desfiz do apartamento. Fiquei somente com nosso álbum de fotos do casamento. Despedi-me de todos, agora nos veríamos menos. Os pais de Clara me agradeceram, e eu a eles. Mudei-me. Não quis ficar com minha irmã, aluguei um pequeno apartamento. Dediquei-me ao trabalho. A dor da separação amenizou, mas sentia muita falta da Clara. Passaram-se dois anos. Minha irmã e meu cunhado estavam sempre tentando me arrumar uma namorada. Tratava bem as pretendentes, mas não queria envolvimento. E aí conheci Nívea, uma jovem professora que viera à cidade para lecionar numa escola. Sua família morava numa cidade próxima. Conhecemo-nos numa festinha, conversamos, achei-a agradável e bonita. Passamos a nos encontrar, sem compromisso. Não a amava, disso eu tinha certeza. Pensava que nunca mais iria amar novamente, não como amei Clara. Acabamos por namorar, e Nívea engravidou. Resolvemos nos casar. A família dela fez uma grande festa. Foi tudo muito bonito. Esforcei-me para parecer entusiasmado. Arrumamos nossa casa e, seis meses depois, nasceu minha filha. Ana Cláudia era linda e saudável. Foi então que minha vida mudou, voltou a ter sentido e me senti feliz. Dois anos depois nasceu Ana Elisa, também linda e saudável. Nossas vidas estavam tranquilas. Nívea e eu combinávamos muito. Ela continuou dando aulas, porém com menos carga horária, para ficar com as meninas. Eu continuei com meu trabalho. Financeiramente, estávamos bem, tínhamos uma casa boa, dois carros e nenhuma dívida. Numas férias, organizamos um passeio junto com um casal amigo e, com seus dois filhos, fomos à praia. Alugamos casas. A nossa ficava distante da casa dos nossos amigos, mas, se íamos de carro, era perto. Aproveitávamos bem, e as crianças estavam gostando muito. O quarto dia amanheceu chuvoso e esfriou. Meu carro apresentou um defeito e o levei numa oficina mecânica. Nossos amigos resolveram andar pela praia, não entrariam na água, e as crianças pegariam conchinhas. Minhas filhas foram de carro com eles. Duas horas depois, voltaram do passeio e pararam em frente à casa em que estávamos, mas não desceram do veículo, e conversamos por alguns minutos, animados, combinando um passeio à tarde. Eles foram embora. Não vi Ana Elisa, então perguntei à minha outra filha:
- Onde está sua irmã?
- Não sei - respondeu Ana Cláudia.
- Como não sabe? Ana Elisa! - gritei.
Nívea e eu nos apavoramos quando percebemos que ela não viera junto. Esqueceram-na lá na praia. Ela estava com quatro anos e gostava muito de água. Meu coração disparou. A praia era longe: se fosse caminhando, demoraria a chegar lá; o mesmo aconteceria se fosse onde estavam nossos amigos, para pegar o carro emprestado. Neste instante, um homem passou na frente da casa, a cavalo.
- Senhor, por favor - pediu Nívea -, empreste o cavalo para meu marido ir...
Contou de nossa filha. O homem se sensibilizou e rapidamente desceu do cavalo e me entregou as rédeas.
- Espero o senhor aqui. Vá rápido!
Por um instante fiquei indeciso. Mas o desespero para encontrar minha filha foi maior. Montei no cavalo e cheguei até a galopar. No momento em que estava galopando nem senti o pavor costumeiro pelo cavalo. Estava aflito para encontrar minha menina. Fui orando, rogando a Deus para que nada de mau acontecesse com ela. No local onde estiveram, vi Ana Elisa na praia, sozinha, pegando as conchas. Pulei do cavalo e corri para ela.
- Ana Elisa! Filhinha!
- Veja, papai, quantas conchinhas eu peguei! Vou ganhar de todos. Meu baldinho está quase cheio.
Ela não percebera que ficara sozinha. Abracei-a. Depois, me ajoelhei e orei agradecendo a Deus. Suspirei aliviado e olhei o cavalo, ele simplesmente ficou parado nos olhando. Senti o pavor. Esforcei-me muito para me aproximar dele e pegar as rédeas. Resolvi ir caminhando: uma mão segurava as rédeas e a outra, a mão de Ana Elisa. Não tive coragem de montar novamente. Andamos alguns metros quando vi meu amigo se aproximar de carro. Nívea estava junto. Minha esposa estava com o rosto inchado de tanto chorar. Ela abraçou Ana Elisa tão apertado que a menina reclamou.
- Nívea, meu bem, Ana Elisa não percebeu que estava sozinha. É melhor que continue pensando assim. Por favor, controle-se - pedi. Olhei para meu amigo e roguei: - Leve o cavalo para mim, deixe-me dirigir seu carro.
Agradecemos muito ao dono do cavalo. Nívea e eu decidimos não deixar mais as meninas sozinhas com ninguém. O casal se desculpou, e tudo ficou bem. A viagem foi muito agradável. Pensei: "Por que será que tenho pavor de cavalos? Num desespero, ao pensar na minha filha em suposto perigo, sozinha numa praia, galopei num cavalo. Esse medo será por um trauma? Mas meus pais me garantiram que eu, na infância, nunca vi um cavalo". Logo após este passeio, minha mãe desencarnou de repente. No velório, vi os pais de Clara. Conversamos por alguns minutos. Ainda sentia uma sensação estranha diante do meu ex-sogro. Meses depois, Ana Cláudia me contou:
- Papai, vi a moça no meu quarto.
- Você sonhou? - perguntei.
- Não sei. Parece que vi mesmo. Uma moça bonita, loura, de cabelos compridos. Vestia uma roupa cor-de-rosa.
- Clarinho - interrompeu Ana Elisa.
- Você também viu?
- Pensei que alguém entrara em casa. Tentei parecer natural, para não assustá-las.
Vi, sim, papai: no domingo de manhã, ontem e hoje - respondeu Ana Elisa.
- Ela falou com você?
- Hoje não, mas no domingo me disse "cavalo marrom" - falou Ana Elisa.
- Como ela entrou na casa? Fechamos a casa toda. Como isso aconteceu? - perguntei.
- Ela atravessou a porta. Eu vi! - afirmou Ana Elisa.
- Como é ela? - quis saber.
- Tem os olhos claros, penso que verdes. Quando sorri, faz um buraquinho aqui - Ana Cláudia a descreveu e colocou o dedo na face.
- Vocês sentiram medo?
- Eu não, ela é boazinha - respondeu Ana Elisa.
- Como sabe?
- Ora, se vemos alguém mau, sentimos medo. Com as boas, não sentimos - concluiu Ana Elisa.
Nívea chamou as meninas e fiquei perplexo. Elas descreveram Clara, minha ex-mulher. De fato, o tempo faz esquecer, quase não me lembrava mais de Clara. Minha esposa deixou as meninas brincando e veio conversar comigo.
- Ricardo, você não fala de sua primeira esposa. Sei que você sofreu quando ela faleceu, mas isso já passou e somos felizes. Precisamos resolver isso, o espírito dela tem vindo em casa. Não quero isso. E melhor você dar um jeito.
- Como?
- Rita, a minha melhor amiga, é espírita: comentei com ela, que me aconselhou irmos ao centro espírita. Os espíritas se reúnem três vezes por semana, à noite. São pessoas boas e caridosas. Hoje tem reunião às dezenove horas. Quero que vá. E lá tente saber o que Clara quer e peça a ela para não voltar mais aqui, eu não quero.
Pensei: "Que situação! Por que será que Clara tem vindo aqui, ao meu lar? Será que não tem mais nada de interessante para fazer? Clara, por favor, vá cuidar de sua vida... ou morte". Fiquei o resto do dia preocupado, e indeciso, se ia ou não ao centro espírita. Minhas filhas tinham visto Clara, em espírito, elas não mentiam. "Será", pensei, "que haveria explicações para esse fato?". Não costumava falar de Clara com Nívea, isso para não enciumá-la, e, ultimamente, não falava de minha primeira esposa com ninguém. "Por que será", continuei pensando, "que Ana Elisa dissera que Clara falou 'cavalo marrom'? Que mistério era aquele?". Querendo explicações e pensando que os espíritas, que conversavam com os mortos, pudessem me esclarecer e orientar, fui ao centro espírita. Fui muito bem acolhido. Aquela noite era de estudos. Mas eles gentilmente me esclareceram.
- Nós - disse um senhor - somos todos espíritos que ora estamos vivendo no corpo físico, ora com o corpo perispiritual. A vida não cessa, continuamos sempre vivos. O espírito de sua primeira esposa pode estar querendo lhe dizer alguma coisa. Amanhã teremos um trabalho de orientação aos desencarnados. É um intercâmbio entre os dois planos, de encarnados e moradores do Além. Se quiser assistir a uma dessas reuniões, recomendo primeiro frequentar as aulas de estudo.
Senti não estar preparado para falar com os mortos, preferi seguir a orientação recebida e me matriculei nas aulas de estudo. Entendi primeiro que não eram "mortos", mas "desencarnados", e foi muito bom compreender como acontece o intercâmbio entre os moradores do plano espiritual e estagiários do plano físico. Cinco aulas depois, em que fiz várias perguntas, e as respostas me satisfizeram, porque as entendi por meio do raciocínio, fui a uma sessão que era chamada de "desobsessão", porque os espíritos desencarnados eram esclarecidos que haviam mudado de plano. Roguei com fervor para que, se Clara quisesse alguma coisa, se manifestasse e dissesse o que queria. Nesse período em que fui ao centro espírita, minhas filhas não a viram mais. Não me assustei com as manifestações. O grupo era muito organizado. Primeiro oraram pedindo proteção. Começou o intercâmbio: o médium falava ou repetia o que o desencarnado dizia, e outro encarnado o orientava. Acomodaram-se à mesa um médium e um orientador. Muitos falavam ao mesmo tempo. Percebi logo que Clara estava falando, e eu a escutava pelo médium. Foi um maravilhoso intercâmbio.
- Ricardo, que bom que veio! Agradeço-lhe. Não quis incomodar suas filhas. Quero lhe pedir uma coisa. Por favor, vá conversar com meu pai. Diga a ele sobre o cavalo marrom. Desejo-lhe felicidades. Adeus!
Quando a sessão de desobsessão terminou, indaguei ao grupo:
- Não consegui entender o recado. Clara me pediu para conversar com seu pai sobre cavalos? Isso não faz sentido. O senhor Otávio vai pensar, e com razão, que estou louco.
- Talvez, se você nos explicar, possamos orientá-lo. O que você tem a ver com cavalos? - perguntou um senhor.
- Tenho verdadeiro horror - respondi rapidamente. - Temo-os. Nunca gostei de cavalos e, ao mesmo tempo, quando garoto, desenhava-os muito e os coloria de marrom. - A primeira vez que fui à fazenda do pai de Clara... Contei resumindo os acontecimentos.
- Ricardo - disse o dirigente daquela reunião -, você, pelo pouco tempo que frequenta nossa casa e pelos estudos que aqui recebeu, sabe que voltamos várias vezes a reencarnar. E, como tudo que Deus faz é perfeito, Ele nos dá o esquecimento para termos um recomeço. Mas podemos trazer algumas lembranças. Por esse fato, devemos procurar ajuda somente se elas nos incomodarem e não encontrarmos explicações. Porque traumas e fobias podem ser dessa existência. Não encontrando razão para as fobias, elas podem ter origem em algo marcante que nos aconteceu no passado, em outras existências nossas. Você já pensou, meditou, no que seja a reencarnação?
- Pensei - respondi. - Observei o meu lar. Minhas filhas são amadas, protegidas, e por que outras crianças são abandonadas? Por que Clara desencarnou tão jovem? São perguntas que somente respondemos com a compreensão da Lei da Reencarnação.
- Sendo assim, concluiu o dirigente - seu medo de cavalo deve ter uma explicação que envolve você e seu ex-sogro. Por que você teve aquela visão? Por que escutou gritarem "Francisco"?
- Será que eu fui o Francisco? - interrompi-o.
- Pode ser que sim. Mas somente a você cabe a resposta. Com certeza Clara quer que você diga isso ao pai dela, para sossegá-lo. É a resposta do perdão. Você o perdoou, mas ele não sabe.
Naquela noite não dormi. Não seria fácil para mim procurar o senhor Otávio e contar o que estava acontecendo. Levantei-me mais cedo do que de costume. Nívea levantou depois de mim e lhe contei tudo enquanto preparávamos o desjejum. As meninas acordaram, e Ana Elisa comentou, como se fosse muito natural:
- Vi a moça do vestido rosa. Ela me deu um tchauzinho e disse: "Se seu pai fizer o que lhe pedi, você não irá me ver mais".
Nívea me olhou e determinou:
- Você irá na sexta-feira conversar com o senhor Otávio.
Estava nervoso: saí da cozinha e fui sentar num banco na varanda. Peguei o Evangelho segundo o Espiritismo e abri ao acaso. Li: "Ah! Meus amigos, se conhecêsseis todos os laços que, na vida presente, vos ligam a vossas existências anteriores; se pudésseis abarcar a multidão das relações que aproximam os seres uns dos outros para o progresso mútuo, admirareis bem mais a sabedoria e a bondade do Criador, que vos permite reviver para chegar até Ele". (Guia protetor, Sens, 1862) Capítulo treze: "Que a vossa mão esquerda não saiba o que dá a vossa mão direita. 19 - Benefícios pagos com a ingratidão". Depois, falei em voz baixa, como se Clara estivesse ali me escutando.
- Clara, eu a amei demais. Não foi por minha culpa nossa separação. Você morreu, desencarnou e deve ficar no plano espiritual. Por favor, não atormente minha família. Vou fazer o que me pediu porque estou sendo forçado. Vou dar uma de louco. Sem dúvida seu pai me irá pôr para fora de sua casa. Isso que você está fazendo é chantagem.
Senti como se tivesse pingado uma gota d'água na minha mão. Olhei e não tinha nada, minha mão não estava molhada. Senti ser uma lágrima e de Clara. E mesmo assim continuei nervoso. Sexta-feira, cedo, saí de casa de carro e fui para a cidade onde morei. Cheguei à tarde. Papai ficou muito contente e me comunicou que estava namorando.
- A solidão, Ricardo, é muito triste. Vocês estão longe, e estou sozinho. Amei sua mãe, mas preciso de companhia.
Combinamos almoçarmos juntos no outro dia, no sábado, para eu conhecer sua noiva. E à noite fui à casa do senhor Otávio. Avisara-os da visita por telegrama. Estava inquieto para acabar com esse assunto e para minha família ficar livre da presença do espírito de Clara. Marquei às dezenove horas e trinta minutos, porém lá estava dez minutos antes. Minha ex-sogra abriu a porta. Abraçou-me, contente ao me ver. O senhor Otávio também me abraçou. Convidado a entrar, sentamos nas poltrões da sala. Conversamos, trocando informações. Mostrei fotos das minhas filhas, e eles, dos netos. Por intuição feminina a mãe de Clara disse que ia fazer um café. Assim que ela saiu da sala, não querendo perder tempo, falei o que me levara ali, pois estava cada vez mais aflito e incomodado com a situação.
- Senhor Otávio, sempre tive medo, pavor, de cavalos, porém, quando era pequeno, desenhava-os muito e os coloria de marrom. Naquele passeio na fazenda, ao me sentir confrontado, decidi montar num. Senti-me mal, vomitei muito e fiquei chateado. À noite estava muito aborrecido comigo mesmo. Indagava-me: "Por que este medo infundado?". Quando o senhor aproximou-se de mim, tive uma visão em que escutei alguém me chamar de Francisco. Clara depois me contou que Francisco era o nome do irmãozinho do senhor que morreu.
Falava de cabeça baixa, fiz uma pausa e olhei para o senhor Otávio. Esperava que ele estivesse sorrindo, debochando, mas ele estava sério, olhava-me atento e perguntou:
- Que visão você teve?
Neste momento, senti a mão de alguém apertar meu ombro, senti ser Clara. Fechei os olhos e tive a visão novamente; desta vez, mais completa. Falei compassado.
- Era pequeno, saudável e levado. Quis montar num cavalo robusto, muito bonito e bravo. Meu irmão Otávio não deixou, porém, como insisti, colocou-me em cima do animal. Estávamos somente nós dois no estábulo. Ele segurava as rédeas. Na outra mão, não sei por que, segurava um pau. "Você não é corajoso? Agora aguente!" Otávio falou, rindo, e levantou o pau. O cavalo se assustou e empinou. Eu, Francisco, segurei o arreio. Otávio, meu irmão, não aguentou segurar as rédeas e as soltou. Porém, o cavalo abaixou as patas e a cabeça. Eu caí na frente do cavalo, passando pela cabeça do animal, que rapidamente voltou a empinar e, com força, bateu com as patas dianteiras em cima de mim, matando-me na hora.
Estava exausto quando terminei de falar. E não senti mais o sangue na boca como das outras vezes em que recordara esse fato. Estava tranquilo, embora não soubesse se fora compreendido, porque nem eu estava compreendendo direito o que estava acontecendo nem a maneira confusa como falei. Olhei para o senhor Otávio, que enxugava as lágrimas. Pensei que ele ia me perguntar como sabia de tudo o que falara, mas ele não o fez. Senti que o genitor de Clara não conseguia nem falar, estava emocionado. Resolvi explicar.
- Não estou louco. Por favor, não me julgue. Por um motivo familiar, fui procurar auxílio no Espiritismo e, nessa religião, fiquei sabendo da reencarnação. Somos espíritos que quando encarnados, estagiamos aqui, no que chamamos de plano físico, e desencarnados vive-se no plano espiritual, no Além. Voltamos muitas vezes ao plano físico e recebemos novos corpos carnais para viver o tempo que for necessário. Foi isso que aconteceu.
Senti um apertão maior, cheguei até a olhar meu ombro e não vi nada. Resolvi continuar a explicar, estava ali para isso e completei, sem me importar se ele acreditaria ou não.
- Acredito que fui, na minha encarnação anterior, Francisco, seu irmão. A vida continuou, voltei a reencarnar, agora sou Ricardo. Perdoei-o. Não seria preciso, o senhor não errou comigo. Mas se perdoei e segui em frente, por que o senhor não se perdoa?
- É difícil! - exclamou o senhor Otávio. Olhamo-nos. Senti que ele sofria. Peguei em suas mãos.
- Pois faça isso! - pedi.
- Ricardo, nunca tive sossego. Era mais velho que Francisco nove anos. Sabia que o Francês (era o nome do cavalo) era bravo e não deveria ter deixado Francisco montá-lo. Segurava um pau pensando, erroneamente, poder, se precisasse, dominar o animal. Sofri muito com o acidente, que ocorreu como você descreveu. Não contei a ninguém o que aconteceu. Somente eu sabia o que você contou. Menti e não desmenti. Falei, na época, que, ao chegar ao estábulo, Francisco já estava morto. E, mesmo assim, minha mãe, num ato de desespero, falou que eu deveria estar contente com a morte do irmão, porque seria o único herdeiro. Nunca esqueci o acidente. De fato, quando Francisco caiu, eu gritei desesperado seu nome.
- O senhor acredita em mim? - perguntei.
- Poderia dizer que você é um paranormal, que conseguiu ver de alguma forma o acontecido no local ou em minha mente. Porém, principalmente hoje, não estava pensando nisso. Quando te vi, somente lembrei de Clara. Já ouvi falar de reencarnação. Agora vou acreditar nesse fato.
E conversamos mais descontraídos sobre o assunto. Recomendei livros para que lesse. Somente quando passamos a falar sobre o Espiritismo que a mãe da minha primeira esposa voltou à sala com a bandeja de café.
- Que café gostoso! - elogiei. - Vou embora. Obrigado por terem me recebido. Foi um prazer revê-los.
Abraçamo-nos. Quando me despedi do senhor Otávio, disse-lhe baixinho:
- Perdoe-se!
O sábado foi muito bom, senti-me tranquilo. Conheci a namorada do meu pai, gostei dela. Revi parentes e amigos e voltei no domingo. Contei tudo a Nívea. Resolvemos nos tornar espíritas. Passamos a frequentar o centro espírita, levamos as meninas na Evangelização Infantil e passamos a participar de trabalhos voluntários.
- Ricardo - disse Nívea -, penso que devemos agradecer a Clara por ter nos dado a oportunidade de conhecer o Espiritismo. A melhor coisa que me aconteceu por isso foi compreender as diferenças entre as pessoas. Amo mais a Deus por esse motivo. O Pai Amoroso não nos criou diferentes: somos nós, pelas nossas atitudes, que nos modificamos. Incomodava-me tanto pensar que existem ricos e pobres, uns jogam alimentos fora, e outros passam fome. Agora entendo que tudo isso é um precioso aprendizado.
E tudo voltou a ser tranquilo. O senhor Otávio me mandou um lindo cartão e nele estava escrito somente: "obrigado". E passamos a trocar cartões de aniversários, Natal e Páscoa. Passaram-se uns meses... Comecei a ter a sensação de que ia desencarnar. Sabia que todos retornamos ao mundo espiritual. Mas a sensação era de que ia fazer logo esta grande e importante mudança. Pensei em muitas possibilidades para justificar o que estava sentindo. "Será que estou tendo esta sensação porque desencarnei muito jovem na minha outra existência? Ou é porque meu espírito sabe mais ou menos a época que me foi marcada para voltar ao Além?" Não comentei com ninguém sobre isso. Precavido, tomei umas providências, fiz seguro, passei a contribuir com outra previdência e deixei meus documentos em ordem. Um dia, no trabalho, tudo seguia como sempre, normal. Quando tocou o alarme, estava sozinho na sala de controle. Rapidamente, fui ver o que estava errado e vi que estávamos tendo um curto-circuito, uma pane muito grave na eletricidade. Tínhamos que sair rápido do prédio. Sabia que três companheiros estavam no porão. Precisava tomar uma decisão rápida, sair ou avisá-los. Não hesitei, desci depressa e, no terceiro degrau, ouvi um tremendo barulho na sala de controle, uma explosão. Ficamos os quatro no porão por duas horas até os bombeiros controlarem o fogo no prédio. Nada aconteceu conosco, nenhum trabalhador se feriu.
- Ricardo - disse um amigo que ficou comigo no porão -, se você tivesse tentado sair, teria sido eletrocutado.
- Pensei em avisá-los - respondi.
De fato, se tivesse saído, não teria tido tempo, teria sido eletrocutado. Aí pensei que teria desencarnado se tivesse escolhido o egoísmo, pensando somente em me salvar. Mas, ao tentar salvar meus três companheiros, nada aconteceu comigo. Talvez, concluí, fosse mudar de plano naquele dia, porém, como agi corretamente, foi-me permitido ficar mais tempo encarnado. Senti-me aliviado. Mas esse alívio durou pouco tempo. Logo a sensação de que não iria demorar para desencarnar voltou forte. Continuei deixando tudo preparado. Meu pai partiu para o Além. Aí pensei que a sensação não era para mim, era para ele. Mas continuei a sentir que logo mudaria de plano. Escutei muitas pessoas afirmarem que gostariam de saber quando iriam desencarnar. Mas não é bom, não é nada agradável sentir a aproximação da morte do corpo carnal. Sofri um infarto numa manhã de inverno e foi fatal para meu físico, que parou suas funções. Fui socorrido, e meu espírito foi levado para um posto de socorro espiritual, onde dormi por dias. Acordei, lembrei-me da dor e observei bem o lugar em que estava. Um senhor aproximou-se de mim e perguntei:
- Onde estou? Que lugar é este? "Mudei de plano?"
- Você está bem? Quer alguma coisa? - indagou o senhor.
- Saber, se possível, o que está acontecendo - pedi.
- Você está no Abrigo Esperança, um posto de socorro localizado no plano espiritual - respondeu o senhor.
Lembrei que adormecera após ter sentido a dor forte. Embora sabendo que meu corpo físico estava morto, quis me iludir.
- Não desencarnei! - exclamei.
O senhor sorriu para mim. Levantei e andei pelo quarto, olhei a janela, vi um bonito jardim. "Estou sonhando", pensei. "Devo voltar ao meu quarto e então acordar. Devo ter me afastado em perispírito do meu corpo físico enquanto dormia e vim até, para este lugar desconhecido. É hora de voltar!" Mas nada aconteceu, continuei no quarto. O homem me explicou:
- Ricardo, seu corpo físico parou suas funções há dezesseis dias. Você veio para cá trazido por amigos espirituais, trabalhadores do centro espírita que frequentava.
- Então, desencarnei mesmo?
- Sim. Seu corpo sofreu um infarto.
- Tempo vencido! E minha família? - quis saber.
- Sofreram e sentem muito a separação. Mas a Doutrina Espírita a consola muito, as três - sua esposa e filhas - estão unidas e oram muito por você. Está precisando de alguma coisa?
Disse-lhe que não. O senhor saiu e fiquei sozinho. Sabia que era verdade, deveria ter mesmo desencarnado, mas preferi pensar que poderia estar sonhando. "Se sonho", concluí, "o melhor é voltar para casa e acordar. Para isso, é só pensar querendo muito". Concentrei-me, quis muito ir para casa. Precisei pensar por minutos, concentrar-me bastante, e aí voltei para meu lar. Nossa casa estava como sempre. Olhei as horas no relógio: naquele horário, elas deveriam estar na escola. Deitei-me na cama, andei pelos cômodos. Escutei um barulho, elas estavam chegando. Corri para a sala e as esperei sorrindo. Passaram por mim sem me ver. Abracei Ana Cláudia e nada aconteceu, minha filha não sentiu o abraço. Fiquei parado, olhando-as conversar.
- Mamãe - contou Ana Cláudia -, Martinha chegou de viagem ontem e não sabia que papai faleceu.
- Faz dezesseis dias! - exclamou Nívea, suspirando. -Mas estamos seguindo as orientações que recebemos dos nossos amigos espíritas e vamos continuar desejando que Ricardo esteja bem, feliz e se adapte logo ao plano espiritual.
- E também para ele não se preocupar conosco - interrompeu Ana Elisa. - Não nos desesperamos para ele ficar bem. Somente choramos de saudades, mas isso não irá perturbá-lo. Sou grata a Deus por ter tido o pai que tive e por saber que ele será sempre o meu paizinho.
Mudaram de assunto. Eu continuei parado, não conseguia nem me mexer.
- É real! Morri! Vim para o Além. - exclamei. "Devo voltar rápido para onde estava", pensei. "Se não, irei sentir perturbação e perturbá-las. Vou tentar voltar ao posto de socorro.
Concentrei-me, esforcei-me muito, e nada, continuei no meu ex-lar terreno. "Em caso de aperto onde devo ir?", pensei e concluí: "Com toda a certeza, nesta situação, ao centro espírita." Aproveitei que a porta e o portão estavam abertos, pois Ana Cláudia conversava com uma amiga em frente à casa, para sair e pedir ajuda. Ao passar por minha filha, senti vontade de parar e escutá-las, mas somente olhei para ela. Sabia que não deveria ficar, tinha conhecimento de que, não tendo permissão para visitá-las, iria me perturbar e prejudicá-las. Elas não mereciam. Lágrimas escorreram pelo meu rosto, enxuguei-as e fui caminhando rumo ao local onde nos reuníamos para orar. Temi. Sabia que um desencarnado, sem saber como viver na espiritualidade, ao vagar, poderia ser alvo de espíritos zombeteiros e maldosos. Poderiam me aprisionar e levar-me para o umbral. Ao pensar nisso, arrepiei-me, senti muito medo e andei rápido. Cheguei ao prédio onde se localizava o centro espírita, que, nos últimos anos, eu frequentava. Estava fechado, bati na porta e nada. Insisti, um homem apareceu diante da porta fechada.
- Por favor, preciso de ajuda - roguei.
- Entre!
Pegou com delicadeza minha camisa e me puxou. Passei pela porta fechada. Entrei.
- Sente aí e espere - pediu o senhor.
Aquele homem era como eu, sobrevivente do corpo carnal morto. Sabia que, quando passamos a viver no mundo espiritual, podemos passar pelas construções do plano físico - isso desde que se aprenda. Sentei numa cadeira material, a mesma onde costumava sentar quando ia ali. Esforcei-me para me acalmar e fui me tranquilizando. Orei agradecendo a Deus por estar protegido.
- Boa tarde, Ricardo!
Assustei-me e olhei para a senhora que me cumprimentava sorrindo.
- Boa tarde - respondi. E pedi: - Preciso de ajuda. Saí do abrigo ao qual fui levado. Não acreditei quando me contaram que viera para o Além. Saí sem permissão e não consegui voltar. Fui à minha casa e aí percebi que mudei de plano. Vim aqui para ser novamente socorrido. Desculpe-me!
A senhora pegou minha mão.
- Ricardo, aceite a desencarnação! Não agiu certo ao sair do posto de socorro, mas agiu com sabedoria ao vir aqui pedir auxílio. Logo mais teremos uma reunião. Você ficará conosco. Depois um grupo de trabalhadores irá para a colônia e você irá com eles. Venha comigo, você deverá aguardar em outro local. Nós, que agora vestimos somente o perispírito, não ficamos junto com os encarnados.
A senhora pegou na minha mão e então vi que, além do espaço físico do prédio, havia outra construção. Subi a escada e vi outra sala.
- Fique aqui - recomendou a trabalhadora do centro espírita. - Tenho muito trabalho a fazer. Nesta bandeja, temos sucos e pães. Se quiser, alimente-se.
Tomei sucos e me alimentei, depois me sentei numa cadeira confortável. Chegaram outras pessoas, outros desencarnados.
- Senhor Alberto! O senhor por aqui? - perguntei, ao ver um homem que eu conhecera e que falecera havia uns três anos. Ele me olhou, observou e indagou:
- Eu o conheço?
- Sou Ricardo, o esposo da Nívea.
- O que está fazendo aqui? Morreu também?
- Sim. E, como o senhor, continuo vivo - respondi.
- Eu já estava velho, mas você ainda é jovem. O que faz aqui?
- Vim pedir ajuda, e o senhor?
- Trouxeram-me - o senhor Alberto explicou - porque eu estava novamente na casa de minha filha. Aquela ingrata! Quando estava vivo, era muito atenciosa comigo, boa filha, cuidou de mim. Eu morri, ela chorou, ficou muito triste, até me chamou. Eu fui, e então ela pediu auxílio para me tirar de lá. Não é um absurdo?
- Estou pensando, senhor Alberto, que temos, depois que o nosso corpo físico morre, de viver em lugar próprio. Sua filha não é ingrata, penso que ela continua sendo boa, querendo seu bem, e o senhor somente poderá se sentir bem no lugar onde vivem os espíritos desencarnados.
- Pode ser. Mas não gosto de viver com outros mortos. Ele foi se sentar longe de mim. Assisti à reunião de estudos dos encarnados. Aprendi naquela noite uma grande lição: não devemos pensar somente em nos modificar interiormente com a desencarnação, porque quando fazemos nossa mudança continuamos a ser os mesmos. Devemos ser, no plano físico, o que desejamos ser no plano espiritual. E conforme tratamos o próximo seremos tratados. Quando a reunião terminou, a senhora que conversava comigo aproximou-se de mim.
- Venha, Ricardo, você irá para uma colônia, irá com amigos.
- Conheci o aeróbus. Achei-o fabuloso. Ao ler sua descrição, podemos imaginá-lo, mas, ao vê-lo, conseguimos entender o tanto que é especial esse veículo, além de ser também bonito e útil. Adaptei-me rapidamente à colônia. Primeiramente porque compreendi que era o melhor para mim. Depois, porque é, de fato, um lugar lindo, acolhedor, e fiz amizades. Recebia sempre orações e incentivos de minhas filhas e de Nívea para me adaptar ao plano espiritual. Foi muito prazeroso rever meus pais e Clara.
- Ricardo - disse Clara -, quero me desculpar pelo transtorno de ter ido ao seu lar, naquela época, para lhe pedir um favor, e agradecer-lhe por ter me atendido.
- Clara, eu que devo me desculpar, não a tratei bem. Também sou agradecido. Devo a você a minha procura para compreender o que estava acontecendo e por ter encontrado o Espiritismo, que facilitou minha vida e também a minha mudança para o Além. Isso foi uma graça.
- Quero explicar o porquê de ter insistido com você para ir falar com meu pai - Clara me esclareceu. - Papai sofreu muito com aquele episódio. Ele foi filho único por muitos anos, sentia ciúmes do irmão mais novo e era repreendido por isso. O acidente foi como você viu e contou ao meu pai. Ele mentiu por medo, disse a todos que, ao chegar na estrebaria, encontrara o irmão caído. Por esse motivo, acreditou no que você disse. Depois do encontro de vocês, papai também procurou o Espiritismo, e isso foi uma bênção para meus pais. Após aquela conversa, meu genitor sentiu-se tranquilo, perdoado e em paz.
- Fui mesmo Francisco? - quis saber.
- Ainda tem dúvida?
- Não - respondi, convicto.
- Ricardo, fiz parte desta história. Na minha encarnação anterior, fui a mãe de Otávio e de você, como Francisco.
- Será que é por isso que nos amamos tanto? - perguntei.
- Devemos aprender a amar a todos - Clara respondeu tranquila, mas suspirou ao lembrar do pai. - Não agi corretamente com Otávio. Por você ser meu filho mais novo, dei-lhe mais atenção, não escondia minha preferência. Julguei Otávio culpado pelo acidente, talvez por intuição. Sofri muito e não me esforcei para reagir. Fiquei deprimida e, num ato de desespero, tomei todos os comprimidos de remédios para dois meses de tratamento e desencarnei. Meu esposo escondeu esse fato de todos, somente ele soube que eu me suicidara. Foi um período muito triste e de sofrimento. Ainda bem que na espiritualidade todos os atos indevidos são analisados com misericórdia. Por estar doente, fui socorrida após um tempo em que fiquei no Vale dos Suicidas. Meu filho Francisco, ou seja, você, me ajudou e voltamos a reencarnar e ficar juntos.
- Isso explica seu retorno tão jovem ao Além - falei.
- Aprendi a dar valor à vida em todos os seus estágios. Recebi uma reação e uma grande lição. Deveria, Ricardo, ter tentado viver na minha penúltima encarnação. Esqueci que Otávio era também meu filho e necessitava da mãe, de mim. Quis morrer pensando que ficaria com meu filho Francisco. E não fiquei. Suicidas normalmente ficam separados de afetos no plano espiritual. Voltei a vestir um envoltório carnal como filha daquele a quem deveria ter amado, confortado e consolado. Por ter deserdado a oportunidade da encarnação, vim nesta minha última roupagem física para retornar jovem. E fiz novamente Otávio sofrer. Mas nada é injusto: meu filho, pai, aprendeu pelo sofrimento. "Quando Clara mudou para o Além", pensei, "julguei ter sido uma injustiça. Ela estava feliz, tinha tudo o que queria. E tudo acabou com a morte do seu corpo físico". Pensava: "Tantas pessoas querendo morrer, e ela, que não queria, morreu. Agora compreendia. Clara recebeu uma reação, que foi também um aprendizado. Fez Otávio sofrer por duas vezes. Por isso quis minha ajuda, para tentar amenizar o sofrimento dele. E conseguiu". Por duas vezes, fui despojado do físico com pouca idade. Como Francisco, era criança; nesta, não cheguei à velhice. Haverá motivos? - quis saber. Para tudo temos respostas. Sempre podemos saber por intuição. Isso porque todos nossos atos estão gravados em nós.
- Sinto, Clara, que fui um assassino. Tirei da vida física pessoas que amavam viver e queriam continuar encarnadas. Será que resgatei? - perguntei, preocupado.
- Podemos também sentir isso. Concentre-se e sentirá se está quite consigo.
Fiz o que ela me recomendou. Por uns minutos me concentrei e procurei sentir em mim se estava com atos negativos sem reparados.
- O que sente? - Clara perguntou.
- Que estou quite comigo - respondi, seguro. - Não quero ainda lembrar minhas outras existências. Para mim, bastam aquelas que tive como Francisco e Ricardo.
- Não devemos nos preocupar com o passado, mas, sim, com nosso presente, para termos um futuro melhor - Clara me aconselhou.
Despedimo-nos. Mas passamos a nos encontrar sempre e também via todos os meus familiares. Conversávamos e trocávamos informações. Meus pais não estão juntos, preferiram ser amigos. Meu pai amava mesmo sua segunda esposa. Numa conversa com minha mãe, queixei-me:
- Mamãe, sinto Nívea diferente. O que será que está acontecendo?
- Nívea está com ciúmes de você. Ela está pensando que agora você está com Clara.
- Por que isso? - perguntei rindo.
Ainda, infelizmente, somos egoístas. Quando amamos, queremos posse total. Nívea sabia que você amava muito Clara, porém Clara estava morta e você, ao lado dela. Agora, com a compreensão que teve no estudo do Espiritismo, sabe que a vida continua, que você está no Além e Clara também. Infelizmente, sofre por ciúmes.
- O que faço? Não quero que Nívea sofra. Clara e eu somos amigos.
- Meu filho - mamãe explicou - aqui no plano espiritual podemos sempre ver afetos. Mas o melhor é sermos amigos de todos e querer que aqueles a quem amamos sejam felizes. Vemos neste lugar casais que, de fato, são ligados pelo amor sem egoísmo, mas, normalmente, casais aqui se tornam amigos. O sentimento de amizade deve ser sempre expandido. Tive permissão para levá-lo a visitar seu lar terreno e conversar com Nívea. Vamos na semana que vem. Prepare-se.
Pensei muito. Entendi o que Nívea estava sentindo. Se ela se casasse de novo ou namorasse, precisaria me esforçar para não sentir ciúmes. Não é porque desencarnarmos que mudamos nossos sentimentos. Não deixamos de ser egoístas de repente. Queria muito aprender a viver no Além e me esforçar para ter somente bons sentimentos. Aguardei, ansioso, a visita ao meu ex-lar. Mamãe volitou comigo. Era noite, e todos dormiam. Entramos no meu antigo quarto. Nívea dormia. Minha mãe deu passes na minha esposa, e ela, em perispírito, deixou o corpo físico adormecido.
- Ricardo! - exclamou. - Você veio me ver! Como está? Sente-se bem?
- Nívea, estou muito bem. Moro numa colônia. Vim com mamãe. Quero agradecer a você por tudo. Você me fez feliz.
- E Clara, você a viu? - Nívea perguntou em voz baixa.
- Sim, ela está bem. Mas não estamos juntos. Entendeu? Não estamos juntos. - Somos, Clara e eu, somente amigos.
- Como é a colônia? É bonita mesmo?
- É sim, muito bonita.
- Sinto tanto sua falta...
Nívea chorou, e eu também. Mamãe colocou-a de volta em seu corpo físico e me puxou. Fomos à varanda. Vi Ana Elisa sentada no banco. Compreendi que minha filha caçula, que estava com oito anos, deixara seu corpinho adormecido. Ela me viu e sorriu. Abraçamo-nos. Emocionei-me.
- Paizinho, quero que você esteja sempre feliz! Não se preocupe conosco, estamos bem. Sentimos saudades, mas nos consolamos porque somente sente saudades quem ama. Amamos você. Está indo embora?
- Sim, filhinha, vim aqui somente para uma visita rápida.
- Ainda bem. Você sabe que não pode ficar aqui conosco, não é?
- Sei sim, meu bem. Que Deus nos abençoe! Tchau!
- Tchau!
Ana Elisa me beijou e sorriu tranquila. Volitamos. Ao chegar à colônia, comentei com minha mãe. Admiro a maturidade de Ana Elisa. De fato é um espírito que reencarnou para progredir. É uma menina especial. Mamãe me contou que, no outro dia, Nívea acordou tranquila e escutou de Ana Elisa:
- Sonhei com papai, e ele está ótimo. Ele nos ama muito.
Nívea sentiu isso, e não deixou mais o ciúme incomodá-la. Esforcei-me e me dediquei aos estudos, ao trabalho e, quando pude escolher uma tarefa, pedi para ajudar o centro espírita que frequentava quando encarnado. Fui atendido, mas não faria isso em período integral. Ia ao centro dois dias por semana, para auxiliar na sessão de desobsessão, e voltava no outro dia para a colônia com os socorridos. Foi muito bom, aprendi muito, e via sempre Nívea e minhas filhas, que continuaram frequentando o centro espírita. O tempo passou. Atualmente, trabalho bastante, continuo estudando e faço tarefas no mesmo centro espírita. Nívea não se casou novamente, e as meninas cresceram, são jovens excelentes. Sou muito grato por tudo que recebi, pelas oportunidades que tive, e uma delas é poder reencarnar. Como assassino no passado, teria de sofrer para sempre. Em vez disso, pela reencarnação, pude aprender, tornar-me um ser melhor e ter o objetivo de melhorar cada vez mais.

Ricardo.

8 - MÃOS QUE EMPURRAM

Recebi o nome de Gilda, reencarnei como quarta filha de um casal pobre, mas honesto e trabalhador. Tiveram cinco filhos, somente eu era menina. Minha infância foi normal. Mas, com doze anos, comecei a ter algumas atitudes estranhas. Tudo começou quando matei um grilo. Vendo o inseto morto, falei à minha mãe:
- Sou uma assassina!
- Como?! - perguntou minha mãe, admirada.
- Quem mata não é assassina?
- Querida, você matou um inseto! Assassino é quem mata pessoas.
- Sou uma assassina!
Mamãe riu e não deu importância. Depois desse dia, comecei a pensar que eu matara alguém. Passei a sonhar com uma moça que me chamava de "criminosa", e eu concordava. Sentia ser uma homicida. Aos treze anos parei de estudar. Cuidava da casa para mamãe trabalhar. Ela era empregada doméstica. Meus irmãos estudavam e trabalhavam. Todos ganhavam pouco. Tornei-me uma pessoa difícil de conviver. Era revoltada, desejava ter muitas coisas e invejava quem as tinha. Afastei-me das amigas, todas, para mim, eram pobres como eu e sem ambições. Aos dezoito anos, comecei a escutar uma voz, como se fosse dentro de minha cabeça, dizendo que eu era uma assassina. Quando isso ocorria, ainda bem que era só de vez em quando, ficava nervosa e aborrecida, porque sentia ser uma criminosa. Não era bonita e nem me cuidava por não ter dinheiro. Determinei que não me envolveria com ninguém a não ser que surgisse em minha vida alguém rico. Saía pouco de casa. Meu pai ficou doente por dois anos, e eu cuidei dele. Às vezes, não tinha paciência e pensei em matá-lo: "Papai sofre de uma enfermidade incurável que o fará padecer cada vez mais. Mamãe não pode parar de trabalhar, e meus irmãos pensam que eu, por ser mulher, tenho de cuidar dele. Estou cansada! Sou assassina! Mato-o e tudo se resolve". Mas não o matei. Cuidei dele, embora, às vezes, reclamasse e até o xingasse, como se ele tivesse culpa por estar doente. Que é a culpa? Uma transgressão. "Culpado", segundo O Livro dos Espíritos3, de Allan Kardec, é aquele que, por um desvio, por um falso movimento da alma, afasta-se do objetivo da Criação, que consiste no culto harmonioso do belo, do bem idealizado pelo arquétipo humano, pelo Homem-Deus, por Jesus Cristo. Como meditar sobre esses dizeres, naquele momento, me fez bem! Vou voltar à minha história de vida. Todos nós, familiares, pensávamos que era injusto papai sofrer daquela maneira. Isso normalmente acontece quando se desconhece a Lei da Reencarnação. Passamos por um período muito difícil. Um dos meus irmãos ficou desempregado; o outro, com a gravidez da namorada, casou e ficou morando conosco. O caçula fraturou a perna. Mamãe continuou trabalhando muito e eu, cuidando do papai. Quando meu pai faleceu, nossa vida, que era ruim, ficou pior. Tínhamos muitas dívidas, o aluguel da casa estava sem pagar havia seis meses. Reunimo-nos para encontrar soluções. Meu irmão casado foi morar com a esposa, e o filhinho, na casa dos pais dela. O que estava desempregado arrumou um emprego, mas, não era bom, e decidiu que moraria por uns tempos num alojamento. Os outros dois alugaram um quarto numa pensão. Mamãe foi morar na casa de seus patrões, a casa deles tinha quartos para empregados nos fundos. Fui junto. Seria também empregada da casa. Fui como arrumadeira. Repartimos nossos móveis e entregamos a casa com a promessa de pagarmos a dívida em prestações. Sofri bastante. Para meu orgulho, foi um golpe muito duro ser empregada doméstica, morar num cômodo no quintal e limpar a casa alheia. Em vez de ser grata por ter um teto e um trabalho honrado, revoltei-me. Tive de aprender a limpar a casa, pois esta era grande e luxuosa, muito diferente da casa simples onde morávamos. O casal, patrões de minha mãe havia anos, estava na faixa etária de quarenta e cinco anos e tinha três filhos. A mais velha era casada, o moço estudava em outra cidade, e a caçula não parava em casa. O patrão, senhor Haroldo, era educado, não dava palpite no serviço da casa e falava pouco com os empregados. Sua mulher, dona Suzane, era nervosa, tinha crises em que gritava e xingava. Implicava conosco, os "serviçais", como ela se referia a nós. Os empregados eram: minha mãe, eu, uma senhora que vinha duas vezes por semana passar roupas, o jardineiro que, de quinze em quinze dias, vinha limpar o jardim e o motorista que, durante a semana, dormia num dos quartinhos. Mamãe e eu dividíamos o outro. Um dia, queixei-me à mamãe:
- Como a senhora aguenta dona Suzane?
- Faz dez anos que trabalho nesta casa. Aprendi a conviver com ela. Fiquei aqui pelo salário, pagam bem. Gosto dos filhos deles e penso que eles não ficam em casa pelo gênio da mãe. Fique quieta, Gilda. Não responda, tente ignorar os ataques nervosos de nossa patroa. Quando pagarmos nossas dívidas, poderemos nos reunir novamente, alugar uma casa e arrumar outros empregos.
Pela primeira vez senti pena de mamãe. Ela se sacrificava muito por nós. Dona Suzane tinha dias em que era insuportável. Não gostei nada de morar ali nem do trabalho. Entendi que os ricos também tinham problemas e eram infelizes. Não havia razão para invejá-los, mas os invejava por terem roupas bonitas, por terem empregados e mandar. Mamãe e eu saíamos pouco. No domingo à tarde, íamos visitar meus irmãos, alguma tia e voltávamos à noite. Não podíamos receber visitas. Mamãe servia o jantar e, quando terminava, íamos para o quarto cansadas e dormíamos para levantarmos cedo. Resolvi não me queixar e tentar fazer tudo do melhor modo que conseguia, para pagarmos nossas dívidas e nos reunirmos novamente. Tentava ajudar minha mãe, ela trabalhava demais. Às vezes sonhava com um vulto, que me parecia ser uma mulher me acusando de assassina. Sentia ser uma. Quando tinha esse sonho, ao acordar, ficava a sensação de que empurrava alguém de uma janela alta. E passei a escutar: "Assassina! Você merece ser empregada! Não foi uma senhora? Não roubou o meu lugar?". Essa voz, que ecoava na minha cabeça, começou a me incomodar. Às vezes respondia, falando baixo:
- Não sou! Não me amole! Não serei empregada para sempre! Mato-a! Assassina é você! - Não necessariamente nessa ordem.
Todos da casa, patrões e empregados, já haviam me escutado falando comigo mesma. Dona Suzane me humilhava muito por esse motivo, e ria de mim.
- Você é louca, Gilda! Doida varrida! Saia daqui e vá resmungar em outro lugar. Não a enxoto de minha casa por causa de sua mãe. Ela não é boa empregada, mas cozinha bem.
Infelizmente, dona Suzane sabia ofender e humilhar. Muitas vezes, ofendida, eu ia para o quarto chorar, e ainda escutava na minha cabeça: "Bem feito! Você merece! Assassina!". Três anos se passaram, pagamos as dívidas, mas outras dificuldades vieram: outro irmão se casou, o filho dele nasceu doente e tivemos de ajudá-lo. Meu mano caçula mudou-se para longe, não tínhamos mais como reunir a família, e mamãe e eu não sabíamos o que fazer.
- Estou velha - minha mãe se queixava. - Como irei arrumar outro emprego? Você não estudou e terá dificuldades para achar outro melhor e ganhar o suficiente para me sustentar.
Um dia de manhã, como de costume, levantei-me, troquei-me e fui ao jardim pegar o jornal. Deparei-me com dona Suzane caída, ela sangrava em várias partes do corpo. Olhei para cima: a casa era um sobrado, e a janela da salinha estava aberta.
Tive uma visão como um relâmpago. Eu empurrando alguém, uma mulher, de uma janela. Gritei e depois falei repetidas vezes:
- Eu matei! Sou assassina!
Vieram todos da casa e os vizinhos para ver o que estava acontecendo, e foi uma confusão. Assustadas, muitas pessoas gritaram. Alguém constatou que dona Suzane estava morta. Eu escutava em minha mente: "Assassina! Agora pagará!".
E eu repetia:
- Matei! Assassina! Matei!
Médicos, polícia e tumulto. Minha mãe chorando desesperada, e eu em estado de choque. Um médico me receitou um remédio e fui presa. Não investigaram. Para os policiais, tudo estava resolvido. Dona Suzane falecera pela queda e por ter fraturado o pescoço. Eu a havia matado empurrando-a pela janela. Três dias depois acordei melhor, mas não sabia o que havia acontecido. Mamãe foi me ver.
- Não me lembro de nada, mamãe - falei. Ela me contou tudo que sabia e lamentou:
Sabendo como dona Suzane era, não deveria tê-la levado para aquela casa. Deveríamos ter nos mudado quando pagamos nossa dívida. Estou arrependida! Não lamente, mamãe. Não me lembro como fiz e nem como foi, somente que a empurrei da janela. Mas parece que era outra janela, muito grande e de cor diferente. Fiquei presa numa delegacia que possuía doze celas e uma somente destinada às mulheres. Fiquei numa cela com mais duas detentas. Uma presa por roubo e outra por ter matado o marido. Estava ainda em estado de choque, quieta, agia automaticamente. Uma das companheiras passou a me ajudar: "Sente aí e coma!", "Tome banho!", "Lave o rosto!". Eu obedecia. Meus familiares me visitavam, e mamãe ia todos os dias me ver. Ela falava, e eu escutava. Raramente falava algo. Quando falava, dizia:
- Ela morreu! Caiu! Sentiu dor! Sou assassina! Mamãe chorava, abraçava-me e pedia:
- Pare de falar assim, por favor! Não repita mais isso! Melhorei depois de um mês. Comentei com as companheiras de cela:
- Não me lembro de nada. Não sei como fui à salinha, como entrei na casa e nem se vi dona Suzane. Recordo-me que levantei, como fazia todos os dias, fui ao jardim pegar o jornal e a encontrei caída, sangrando. Olhei para a janela aberta e gritei.
- Você não se lembra que a empurrou? - perguntou uma das detentas.
- Isso eu lembro. Empurrei-a! Mamãe me contou quando veio me ver:
- Gilda, minha filha, contratei um bom advogado para defendê-la. Ele não cobrou caro e continuo trabalhando com o senhor Haroldo. Sem a dona Suzane, o trabalho naquela casa está bem mais fácil. Pensei que ia ser dispensada, mas o senhor Haroldo me pediu para ficar. Ninguém sentiu a morte dela.
O advogado me visitou várias vezes e me fez muitas perguntas. O julgamento foi quatro meses depois. Emagreci muito e estava nervosa. Aqueles meses na prisão foram de muito sofrimento. Escutava presos serem surrados, ouvia gracejos grosseiros dos detentos, sentia medo e me esforçava para não dizer que era assassina. Continuei ouvindo na minha mente que matara, mas não repetia mais. Lembrava que empurrava uma mulher e sentia o impulso dos meus braços, o encostar de minhas mãos em suas costas. O dia do julgamento chegou. Meu advogado esforçou-se muito na minha defesa. Até as testemunhas não me comprometeram. O senhor Haroldo disse que a esposa era uma pessoa difícil, que humilhava e ofendia a todos, principalmente os empregados. A filha caçula, que morava na casa, confirmou. O advogado de acusação não me acusou, parecia me defender. Mas o promotor disse coisas horríveis, acusou-me, me ofendeu. Não consegui me conter e exclamei alto:
- O senhor não precisa dizer que sou cruel, um perigo para a sociedade, que tenho taras. Sou assassina e pronto! Vá o senhor para o inferno!
Meu advogado quase que me tampou a boca para que eu me calasse. Fez silêncio até que o promotor falou:
- De fato, não preciso falar mais nada! Os senhores jurados já escutaram o suficiente.
- Fui condenada a doze anos de prisão. Ia ser transferida para uma penitenciária feminina localizada longe da cidade em que morávamos. Meus familiares se despediram de mim, e mamãe pôde ficar mais horas comigo. Ela me contou:
- O senhor Haroldo já arrumou uma namorada. Escutei que eles eram amantes há anos. Irá vender a casa. A filha solteira vai morar sozinha num apartamento. O patrão me disse que irá me pagar um salário enquanto eu viver, mas infelizmente não irei mais trabalhar para eles. Gilda, foi o senhor Haroldo que me deu dinheiro para pagar o advogado e me pediu segredo. Ele me disse que, para você ter feito o que fez, dona Suzane deve tê-la maltratado muito. Penso que você fez um favor a ele. Ficou viúvo e rico. Aceitei o que ele me propôs. Vou, no final de semana, para casa do meu filho Júlio. Nossa despedida foi muito triste. Três dias depois do julgamento, fui transferida. Surpreendi-me muito ao ver a penitenciária. O prédio era muito grande, um local feio, fechado e frio. Senti a frieza da indiferença, do desprezo por mais uma criminosa. Fui conduzida à cela, ia dividi-la com outra presa, que se apresentou:
- Sou a Janete. Aqui, companheira Gilda, será o seu castelo, sua casa; o quarto, seu trono. Seja bem-vinda!
Sorri em agradecimento e olhei aquele quadrado onde havia dois lugares para dormir, uma mesinha de cimento, uma repartição na parede para colocar alguns objetos e, num canto, um chuveiro e o vaso sanitário. "Estou me despedindo de você. Pagando pelo que me fez, posso agora cuidar de minha vida. Sofra bastante! Adeus, sua assassina'.": era a voz que escutava sempre dentro da minha cabeça. E realmente nunca mais a escutei. Fiquei apática, não conversava, fazia o que mandavam, estava muito magra porque me alimentava pouco. Mamãe me escrevia todas as semanas. Recebia também cartas dos meus irmãos, cunhadas, de duas tias e de primos. Respondia procurando não me queixar. Ouvia indelicadezas das companheiras do presídio e não respondia. Mamãe também não se queixava, mas sentia que ela não estava bem morando com meu irmão. Fazia sete meses e dezoito dias que estava na penitenciária quando recebi uma carta do meu irmão me dando a notícia que mamãe falecera. Contou que ela estava indisposta à noite, e, no outro dia, como ela não levantou, foram ao seu quarto e a encontraram morta. O enterro foi no mesmo dia, à tarde. Chorei muito, algumas colegas tentaram me consolar. No outro dia, acordei revoltada. Comecei a revidar as ofensas, a discutir e a brigar. Bati e apanhei muito. Nunca brigara antes, e, ali, estava no meio de pessoas muito diferentes. Por causa de um murro, quebrei dois dentes da frente. Por quatro meses, tornei-me insubordinada. As dores físicas dos machucados eram bem menores do que a dor moral de estar presa, longe de todos e sabendo que não iria ver mais minha mãe. Numa noite, tive um sonho que me pareceu ser real. Mamãe me abraçou e pediu:
- Gilda, minha filha, não se revolte! Aqui, todos erraram e pagam pelos seus erros. Tenha paciência! Revolta e desespero somente pioram nossos padecimentos.
Naquela tarde fui conversar com Joana, uma mulher que estava presa havia oito anos e era conselheira de todas, uma pacificadora de ânimos. Todas gostavam dela e a respeitavam. Contei a ela meu sonho.
- Gilda - disse Joana -, podemos receber visitas das pessoas que morreram, porque o espírito continua vivo. Sua mãezinha, com certeza, está preocupada com você pela sua atitude. Pare de brigar. Você não dá para isso. Trabalho na enfermaria, vou pedir ao médico que nos atende para você me ajudar. Trabalhando, o tempo passa rápido, e você se sentirá melhor.
Mesmo sem vontade, fui ajudar Joana. Aí tudo melhorou. Não tinha mais tempo para brigar. Ignorei as provocações, passei a ler livros da biblioteca, a ajudar na cozinha e voltei a escrever cartas, mas estas eram raramente respondidas. Para ter dinheiro para selos, envelopes e papel, fazia faxina nas celas daquelas que podiam me pagar. Joana e eu nos tornamos amigas e conversávamos sempre. Ela também me deixava ouvir as conversas que mantinha com as detentas e escutar os lamentos e queixas das outras companheiras. Depois me explicava como resolvera ou ajudara aquela que lhe pedira conselhos. Gilda, esta presa queixa-se do ex-marido. Ela está presa porque matou a amante dele. Lamenta sua imprudência. Seus dois filhos estão com seus pais, o ex-marido vai vê-los raramente. Ele não a visita e está morando com uma moça por quem diz estar apaixonado. Aconselhei-a a não sentir mágoa ou rancor, em oração pedir perdão à mulher que matou e a escrever sempre para os pais e filhos. E também a cumprir a pena ficando longe de confusões, estudando, lendo bons livros, aprendendo a trabalhar e, ao sair daqui, pensando mais nela e nos filhos. Que imprudência assassinar a amante do marido! - exclamei. - Este ato somente piorou sua situação. Não podemos matar ninguém, Gilda. É uma falta grave privar um espírito de viver aqui na matéria. Mata-se o corpo, mas não se mata a alma, o espírito. Eu matei! Arrependi-me!
- Joana, conte-me o que lhe aconteceu - pedi.
- Meu marido me batia muito. Quando fomos morar juntos, ele tinha dois filhos de outro relacionamento, que moravam com ele. Gostei das crianças e as tratava bem. Seis meses depois de estarmos juntos, percebi que ele era cruel e gostava de bater. Sem motivo, surrava os filhos e a mim. Um dia, flagrei-o tentando estuprar seu filho de oito anos. Interferi, ele me surrou, eu peguei uma faca e o matei. Vim para cá condenada a dezesseis anos de reclusão e as crianças foram para um orfanato.
- Não é tempo demais de condenação para quem se defendeu? - perguntei.
- Por ser pobre, não tive como pagar um bom advogado. E o que me defendeu não se empenhou. O advogado de acusação, bom profissional, pago pela mãe dele, distorceu os fatos, afirmou que eu dava motivos para as brigas e que era mentira a tentativa de estupro. Chamou-me de criminosa, uma assassina cruel que esfaqueou o companheiro sem piedade.
Ficamos caladas por uns minutos. Depois, Joana me pediu:
- Conte-me com detalhes o que você fez para vir para cá.
- Não recordo direito. Explicaram que eu devo ter apagado de minha mente os instantes em que a matei. Lembro de que me levantei no horário de costume, fui pegar o jornal e me deparei com dona Suzane caída e a janela aberta da salinha do andar de cima. Aí gritei.
- Será que você, antes de ir ao jardim, entrou primeiro na casa? - perguntou Joana.
- Não sei. Mas lembro que empurrei alguém. Sinto nas mãos a sensação do empurrão. Por isso gritei que era assassina.
- Gilda, esforce-se para se lembrar de mais detalhes. Você se lembra de como a mulher que empurrou estava vestida?
- Não tenho certeza - respondi -, mas parece que a mulher estava com roupa comprida.
- Isto é importante! - exclamou Joana. - Será que dona Suzane morreu vestida de camisola comprida? Esforce-se para lembrar. A janela era grande ou pequena?
A janela de que recordo ter empurrado a mulher era grande e de cor escura. Como era a janela desta salinha de onde dona Suzane caiu? - quis Joana saber. Pequena e pintada de branco. Gilda, não acredito que você tenha matado essa dona Suzane. Você se confundiu. Confundi-me como? - perguntei. Com um sonho, com algo que você tenha lido ou com um fato que tenham lhe contado. Por que você não escreve para o seu irmão e lhe indaga sobre como dona Suzane estava vestida e a que horas ela morreu? Fiz isso, e meu irmão respondeu contando que dona Suzane havia morrido, segundo a perícia, entre meia-noite e duas horas da manhã, e ela estava vestida com uma saia preta curta e uma blusa colorida. Respondeu também que mamãe afirmava não ter visto eu me levantar, mas não pôde testemunhar por ser minha mãe. Ninguém escutou nada. O senhor Haroldo disse que a esposa costumava ficar até tarde da noite na salinha, por sofrer de insônia, onde ficava escrevendo, lendo ou bordando. Ninguém escutou nenhum barulho. A conclusão a que chegaram foi: eu levantei, fui à salinha, fui humilhada e a empurrei pela janela. Como eu disse ser a assassina, não houve mais nenhuma investigação. Joana leu a carta várias vezes e concluiu:
- Gilda, você não matou dona Suzane! Não faria isso e se esqueceria. Você disse que sua patroa falava alto e, quando ofendia, gritava. Alguém teria escutado se ela a tivesse xingado. Os que dormiam na casa teriam acordado com a voz dela e, acordados, escutariam o barulho da queda. Se todas as noites a casa era fechada, seria necessário, para abri-la, pegar a chave guardada na lavanderia, o abrir e fechar de portas acordaria sua mãe e o motorista, que dormia no quarto ao lado.
- Que faço? Como provar minha inocência? - perguntei aflita.
- Nada - respondeu Joana. - Para abrir um inquérito, você precisaria de um bom advogado, que cobraria caro, e também de uma prova concreta. Como não tem, é melhor cumprir o resto de sua pena.
Não tinha mais certeza de nada. Poderia não ter matado dona Suzane e não queria tê-lo feito. Mas, muitas vezes, olhando minhas mãos, sentia a sensação do empurrão. Joana ficou doente, faleceu, e todas nós sentimos. Fiquei em seu lugar. Aprendi com essa amiga a agir corretamente e a fazer o bem. Escutava desabafos e aconselhava, fazia companhia quando uma delas estava com problemas, ajudava-as quando doentes. Era muito heterogênea a população penitenciária. Ali estavam pessoas boas que erraram e outras, más, que agiram por maldade e prazer, porém todas tinham problemas, gostavam dos familiares e sofriam. A prisão foi para mim uma grande lição: deixei de ser orgulhosa, invejosa e me tornei uma pessoa melhor. Doze anos se passaram. Ia ser solta em dois meses. Escrevi para meus irmãos. Um deles me respondeu, disse que não era possível me buscar por ser longe, e a viagem ficaria cara. Reuniram então todos os familiares, que colaboraram, e ele estava me mandando dinheiro para viajar, dizendo também que me receberia em sua casa. As amigas, companheiras, deram-me informações de como deveria fazer para voltar à minha cidade natal. Não tinha nada para levar, a roupa guardada no presídio era velha. Ganhei saia e blusa. A filha de uma das minhas companheiras foi à rodoviária, trouxe-me os horários de ônibus e me explicou como deveria fazer para ir até o terminal. Fiquei contente com a demonstração de carinho de muitas detentas para comigo. Entendi que sempre recebemos o retorno, até de pequeninos atos, do bem que tentamos fazer. Aguardei ansiosa pela liberdade, mas senti também receio. Depois de tanto tempo confinada, a liberdade dá medo. Penso que é como a morte do corpo. A alma presa no envoltório carnal, com tantos limites, ao se ver sem eles, livre, perturba-se e se confunde. Penso que são poucos os que encaram a desencarnação com maturidade. Despedida é sempre triste. Abracei uma por uma minhas companheiras, agradecendo os votos para que tudo desse certo para mim e desejando a elas muita paz. Quando o portão se fechou atrás de mim, por instantes quis voltar. Tinha escrito numa folha de papel tudo o que devia fazer. Segui as recomendações e deu certo, embora tivesse ficado apreensiva. No entanto, a viagem de ônibus foi prazerosa. Agradeci muitas vezes a Deus pela paisagem que estava vendo. Três dos meus irmãos esperavam-me na rodoviária. Abraçamo-nos emocionados. Todos nós estávamos mudados, envelhecidos. Estávamos saudosos. Foram anos sem nos ver. Não recebi visitas enquanto estive na penitenciária. Fui para a casa de um deles. Eles planejaram que eu ficaria um mês com cada um. Planejaram por mim. Senti logo na primeira noite que incomodava. Compreendi a razão deles. Ninguém gosta de ter junto a si uma assassina. Envergonhavam-se e, inconscientemente, tentavam justificar e até esconder de vizinhos e amigos que eu havia estado presa. Alguns familiares vieram me ver, e todos queriam saber como era viver numa penitenciária e se eu havia me arrependido. Pelas conversas, soube que uma irmã de minha mãe estava num asilo. Quis revê-la. Minhas cunhadas e algumas primas me deram roupas e, no domingo, fui sozinha ao asilo. Lá me informaram que minha tia tinha falecido havia três meses. Pedi para trabalhar ali, não escondi da diretora onde havia passado os últimos doze anos. Ela me empregou. Alívio para todos. Mudei-me para o asilo, teria um quartinho para morar. O ordenado era pouco, mas, para mim, estava bom. Fazia a limpeza na casa, mas, ao perceberem que eu tinha jeito para cuidar dos velhinhos doentes, fui promovida e passei a cuidar deles. Assim que consegui guardar um dinheiro, fui ao dentista, coloquei próteses nas duas falhas e fiz um bom tratamento dentário. Ia pouco às casas dos meus irmãos, que se sentiram aliviados por não terem que ficar comigo. E eles não iam me visitar. Soube que o senhor Haroldo casou-se logo depois de ficar viúvo, e eles estavam bem. Estava empregada havia oito meses quando fiquei sabendo, depois de duas semanas, que uma das minhas sobrinhas havia se casado. Fiquei triste por não ter sido convidada, mas compreendi que eles não queriam por perto uma irmã e tia assassina. No asilo, comentaram, logo que fui trabalhar lá, que eu era ex-presidiária. Muitos se lembraram do crime. Percebi que alguns idosos sentiam medo de mim. Não me importei, compreendi e me esforcei para agradá-los. Tinha, como os idosos diziam, mão boa para aplicar injeções. Meses depois, parentes dos internos reclamaram: eles não queriam que uma assassina cuidasse de seus parentes. A diretora ficou chateada e comentou:
- Colocam os parentes aqui e ainda querem fazer exigências sobre quem cuidará deles. Por que eles não ficam com seus idosos?
Conversei com ela.
- Deixe-me cuidar da horta, assim ninguém reclamará. Não quero perder este emprego.
- Nada disso! - exclamou uma interna que ouvira a conversa. - Quero você para me aplicar as injeções. Por favor!
- Vamos fazer o seguinte - determinou a diretora do asilo -: iremos perguntar quem quer ser cuidado por você. E você, Gilda, aplicará injeções, cuidará daqueles que a quiserem. Daqueles que disserem que preferem outra pessoa, você nem chegará perto.
E assim ficou resolvido. Metade afirmou que queria meus cuidados. Meses depois, o assunto foi esquecido e voltei a cuidar de todos os doentes. Mas o erro cometido marca e, durante o tempo em que trabalhei no asilo, escutava sempre comentários: "Gilda é a assassina da dona Suzane", "é uma ex-detenta", "ela matou uma pessoa". E também ouvi pessoas tentando me justificar: "Mas a mulher era impossível", "infernava a vida de todos", "nem a família gostava dela". Não me importava, e quando me perguntavam sobre isso, respondia com sinceridade e mudava logo de assunto. Concentrei-me no trabalho. Tornei-me querida, todos gostavam de mim. As ex-companheiras do presídio me escreviam, eu respondia e mandava a elas papéis, selos, envelopes, livros e revistas. Dez anos se passaram...
Contraí pneumonia e tive de ser internada. O médico que me atendeu, depois de alguns exames, afirmou que estava muito enferma, meu coração estava com os batimentos muito fracos e falhando. Foram muitas complicações. Depois de cinco dias internada, meu corpo físico parou suas funções e desencarnei. Para mim, foi como mudar de um hospital para outro bem melhor. Surpreendi-me pela melhora rápida e por não tomar mais injeções. Estranhei somente sentir que oravam por mim, e quem orava eram meus idosinhos do asilo. Por demorar para ter alta, não receber visitas e querer muito voltar a cuidar dos meus velhinhos, comecei a fazer perguntas. E quando soube que meu corpo carnal havia morrido e continuava viva no plano espiritual, não acreditei, preocupei-me e senti medo. Minha vontade era me esconder debaixo da cama. Não conversei mais nem respondia às perguntas que me faziam. Por três dias fiquei assim. Então recebi uma visita. Era minha mãe. Abraçamo-nos apertado.
- Que saudades! Mamãe! Mamãezinha!
Ela pegou minhas mãos e nos sentamos no sofá.
- Gilda, filhinha, preste atenção no que vou lhe dizer. A vida é única, nosso espírito estagia ora no plano físico, como encarnado, ora desencarnado, no piano espiritual. Tudo que Deus fez, faz, é perfeito e simples. Como são também nossos ciclos evolutivos. Nascemos, morremos e, em espírito, voltamos várias vezes a vestir o corpo carnal num processo que chamamos de "reencarnação". Gilda, não sinta receio, você mereceu ser socorrida, está bem, e aqui poderá estudar, aprender muitas coisas realmente interessantes e continuar sendo útil. Conversamos por horas, não queria que ela se afastasse de mim, senti medo de ficarmos novamente separadas. Nos dias seguintes, mamãe me levou para passear, conhecer a colônia, achei o lugar maravilhoso. Recebi também algumas visitas de ex-internos do asilo. Estava alegre, feliz. Joana veio me ver. Gilda, fui socorrida quando desencarnei. Fiquei muito agradecida. Lembrei que Jesus perdoou todos que O crucificaram e me senti perdoada por Deus. Disseram que mereci o socorro porque fiz o bem, caridade moral, dei de mim quando ajudei o próximo.
- Seu ex-companheiro a perdoou? - perguntei.
Ele estava sofrendo no umbral quando nos reencontramos - respondeu Joana. - Pude socorrê-lo, ajudei-o. Ele ficou pouco tempo num posto de socorro, quis reencarnar e foi concedido seu retorno ao plano físico. Meu ex-companheiro me contou que sentiu muito ódio de mim por ter matado seu corpo carnal e por ele sofrer, porém, com o tempo, entendeu que padecia pelos seus erros, perdoou-me e me pediu perdão. Quando fiquei sozinha, pus-me a pensar na dona Suzane. E quis muito o seu perdão. No outro dia, quando mamãe veio me ver, pedi isso a ela. Minha mãe sorriu, ia dizer algo, porém pensou um instante e respondeu:
- Gilda, vou pedir autorização. Certamente a teremos e então levarei você para visitá-la.
Dois dias depois, mamãe me levou para vê-la. Fomos volitando, ou seja, ela volitou comigo. Senti medo e um frio na barriga, mas acabei me divertindo e rimos muito. Dona Suzane estava num posto de socorro, como mamãe me explicou, e eu estava abrigada numa colônia. Para mim, tudo era novidade, e, às vezes, mamãe precisava me puxar, por parar admirada olhando tudo. No jardim do posto de socorro, dona Suzane nos esperava. Cumprimentou-nos sorrindo e pediu para chamá-la somente de Suzane.
- Como você está bem, Gilda! Alegro-me em vê-las - disse Suzane.
- Pelo carinho com que está nos recebendo, concluo que me perdoou - disse. - Queria tanto lhe rogar perdão!
Suzane riu, mamãe sorriu, e eu não sabia o que fazer, fiquei encabulada.
- Você ainda não sabe? Acredita mesmo que me assassinou? - perguntou Suzane.
Como eu fiquei olhando-a e não consegui responder, Suzane nos convidou a sentar e contou:
- Gilda, não foi você quem me expulsou do corpo físico, ou seja, assassinou. Reconheço agora que era uma pessoa difícil, ferina, infeliz, e meu passatempo preferido era humilhar as pessoas. Eu era rica. Quando fui me casar com Haroldo, meu pai nos fez casar com total separação de bens com um contrato muito bem-feito. Se houvesse separação, Haroldo não teria direito a receber nada. Ele me amou quando namorávamos e no começo do nosso casamento, porém o amor deve ser alimentado, e eu fiz o contrário, deixei-o morrer. Meu marido conheceu outra pessoa e a amava. Planejou tudo muito bem para seu crime parecer um suicídio. Eu facilitei. Falava sempre que ia me suicidar, mas era chantagem para fazer valer minha vontade. Haroldo pediu ajuda aos filhos, aos meus irmãos e amigos, queixando-se de que eu estava falando muito em suicídio. Sempre, por causa da minha insônia, ia me deitar mais tarde e costumava ficar na salinha. Aquela noite, Haroldo levantou-se devagar, sem que eu percebesse, aproximou-se de mim e virou meu pescoço, quebrando-o. Não consegui gritar, fiquei olhando para ele, apavorada. Rápido, ele abriu a janela e me jogou no jardim. Seu plano foi facilitado por você gritar que era assassina. Fiquei imóvel enquanto a escutava, não consegui me mexer. Suzane calou-se por segundos e depois perguntou:
- Você não sabia mesmo disso? Neguei com um gesto de cabeça.
- Deve existir uma razão para você ter pagado por um crime que não cometeu. Depois que desencarnei, vi coisas que, encarnada, acharia absurdas. Sofri muito quando desencarnei. Foi uma tragédia horrível. Foi, depois de muitos anos, que fui socorrida e ajudada. Você e Amália, sua mãe, é que precisam me desculpar pelas minhas grosserias.
- Eu não me sentia ofendida - respondeu minha mãe e indagou: - Você perdoou o senhor Haroldo? Quis se vingar dele?
- Infelizmente, cometi muitos atos errados nesta minha existência e fiz inimigos que não me perdoaram, alegraram-se com a minha desencarnação e me levaram para o umbral, para me maltratar como eu os havia maltratado. Estes meus atos, reconheço agora, foram cruéis, não foram ofensas, como fiz com vocês. Sofrendo, não pensei em me vingar e não obsediei ninguém, pois não conseguia sair da zona umbralina onde estava presa. Cansei de sofrer, arrependi-me dos meus erros e roguei por clemência. Uma senhora socorrista me indagou se eu perdoava e se queria pedir perdão. Respondi com sinceridade que sim. Vim para cá necessitada de muito tratamento. Quando melhorei, compreendi o que acontecera comigo. Perdoei, fui perdoada, e estou tentando melhorar.
Mamãe e Suzane ficaram conversando, trocando informações, e eu fiquei calada. Despedimo-nos. Mamãe volitou comigo. Desta vez fiz o trajeto em silêncio e não prestei atenção em nada. Entramos no quarto onde estava abrigada, sentamo-nos no sofá e roguei:
- Mamãe, por favor, explique o que aconteceu.
- Gilda, quando ocorreu a tragédia da desencarnação da Suzane, eu sofri muito. Não conseguia entender. Você afirmava que era assassina. Sentia no íntimo que você não era culpada. O senhor Haroldo não me expulsou da casa e me deu dinheiro para pagar o advogado, mas me fez prometer não contar a ninguém. Tive de mentir que eram minhas economias guardadas. Ele me disse que sabia como a esposa tratava os empregados, por isso compreendia seu ato impensado. Depois do seu julgamento, ele vendeu a casa, dispensou-me e passou a me dar um ordenado. Ele se casou novamente. Quando eu desencarnei, seu pai me ajudou muito e me contou que você não tinha matado Suzane. Tive permissão para visitá-la na penitenciária e tentar ajudá-la. Tranquilizei-a, e sua revolta passou. Gilda, nada é injusto. Já lhe falei que somos espíritos e voltamos muitas vezes a vestir um corpo físico, é a abençoada reencarnação. Você cometeu um crime na sua existência passada.
- Empurrei minha irmã de uma janela alta! - exclamei.
- Sim, isso ocorreu, ninguém ficou sabendo e... Mamãe calou-se e eu recordei.
Era filha de um pequeno sitiante, tinha seis irmãos e uma irmã. Estava com dezessete anos quando fui ficar uns tempos na casa dos meus avós paternos para ajudar vovó, que estava doente. Eles moravam em outro sítio, distante para a época, e era necessário ir a cavalo. Lá fiquei por três anos. Quando regressei, minha irmã tinha se casado com um homem rico que morava numa fazenda perto do sítio de meus pais, e ela já era mãe de um menino. Senti muita inveja: eu era muito mais bonita que ela e era solteira. Tive pretendentes, mas eram pobres e não os quis. Pensei, revoltada: "Se papai não tivesse me obrigado a ir cuidar da vovó, com certeza era eu que teria me casado com aquele homem rico". Minha irmã me convidou para visitá-la, passar uns dias com ela. Aceitei contente. Na casa dela, invejei-a mais ainda. Minha mana morava numa mansão maravilhosa com um lindo jardim. A casa era um sobrado, tinha o pé direito alto, cômodos grandes e era bem mobiliada, os quartos ficavam no andar de cima. Tentei ser prestativa, educada, para ficar mais tempo lá pensando em arrumar um marido rico entre os amigos do meu cunhado. Meu sobrinho, pelos meus agrados, passou a gostar muito de mim. Satisfeita, aceitei quando eles me pediram para ficar mais uns meses. Percebi logo que o casal tinha desavenças. Meu cunhado não gostava de festas e tinha poucos amigos. Aconselhei minha irmã a usar chantagem para ter o que queria, como ameaçar se matar. Ela fez, deu certo e passou a fazer sempre. Ela ficou grávida quando planejavam uma viagem. Eu tinha prometido ficar na casa e cuidar do meu sobrinho enquanto eles viajavam. Minha irmã ficou muito nervosa com a gravidez e estava pensando em abortar. Isso para não atrapalhar a viagem. Eu, vendo que não conseguia um marido rico, resolvi ficar com meu cunhado e planejei matar minha irmã. Conversei com meu cunhado a sós e falei da minha preocupação e medo de minha irmã suicidar. Comentei com todos os empregados. Numa noite, minha irmã brigou com o marido, escutei-os brigar e vi que ele saíra da casa. Então, entrei no quarto dela, sem que ninguém visse, fingindo consolá-la. Falei baixinho, prometi ajudá-la com o aborto. Convidei-a para ver a lua que estava bonita. Abri a janela, aproximamo-nos, e eu a empurrei com força. Minha irmã caiu de uma grande altura em cima de um chafariz de pedras. Depressa, fui para meu quarto, deitei e aguardei. Uma empregada, duas horas depois, encontrou-a morta. Fingi tristeza, cuidei do meu sobrinho como mãe e seduzi meu cunhado, que acabou se casando comigo. Viajei muito, tive todos os bens materiais que almejei, tive três filhos e cuidei do meu sobrinho muito bem, como se ele fosse meu. De fato, aproveitei bem o dinheiro - era isso que pensava. Desencarnei e sofri muito. Minha irmã não me perdoou e quis se vingar. Não nos encontramos desencarnadas: eu sofri numa parte do umbral, e ela, em outra. Eu reencarnei, ela ficou desencarnada e me encontrou quando tive a lembrança de que empurrava uma pessoa, de que tinha sido uma assassina. Ela tentou me prejudicar, porém minha mãe, com sua vibração de pessoa honesta, paciente e bondosa, a impedia. Quando vi Suzane caída, lembrei-me do meu ato insano do passado e confundi com o presente. Isso porque sentia culpa de ter sido assassina. Era uma grande dívida não quitada. E quando fui presa, este espírito, que fora minha irmã, achando estar vingada, não se aproximou mais de mim. Soube que ela reencarnou logo depois, retomou sua caminhada rumo ao progresso após ter perdido um bom tempo pelo desejo de se vingar. Olhei minhas mãos e comentei com minha mãe:
- Sentia, quando encarnada, minhas mãos empurrando. Paguei pelo meu crime. Depois, com minhas mãos, fiz o bem. Agora, olhando-as, vejo as injeções que apliquei com todo carinho, as feridas que limpei, os curativos e fraldas que troquei, os banhos que dei, a comida dada na boca dos meus idosos queridos. Observando agora minhas mãos, consigo apenas ver o bem que fiz com elas. Mamãe me abraçou comovida. Choramos.
- Filha, o bem anula o mal. O amor nos enriquece. Você, anteriormente, agiu errado: seu crime não foi descoberto pelas outras pessoas, mas você se sentia em dívida. A lembrança forte do empurrão que deu para matar e a culpa de ter sido assassina acabaram por ser transmitidas para seu cérebro físico. E você teve somente esta recordação de sua encarnação anterior. Como nada é por acaso, você não assassinou Suzane, porém não era inocente. Resgatou seu erro pela dor e com o sofrimento aprendeu a amar. Se cometeu um ato maldoso com as suas mãos, depois fez o bem com elas. Que sejam abençoadas suas mãos!
- Mamãe, quero aprender rápido como viver desencarnada e ser útil com entusiasmo e amor. E bendita seja a oportunidade de reparar nossos erros. Bendita seja a reencarnação!
Receba o leitor amigo meu carinho, e que suas mãos sejam benditas!

Gilda.

9 – DESPEDIDAS

Eu, Anita, recebi o convite para contar minha história quando saía de uma reunião. Uma vez por semana reunimos, numa sala do Departamento da Fraternidade, pais encarnados e desencarnados que sentiram, ou ainda sentem, a dor da separação provocada pela mudança de plano. Esses encontros acontecem em muitas colônias espalhadas pela Terra, mas aquelas que costumo frequentar estão localizadas no espaço brasileiro. A finalidade dessas reuniões é dar alento, consolo e esperança, principalmente a pais que provisoriamente não estão junto de seus filhos. A vida não para. A separação e a despedida fazem parte de nossa existência. São partidas e chegadas. Uns vêm, outros vão. Encontros, desencontros e reencontros. Encarnados, sofremos muito quando nos despedimos de alguém que partiu para o plano espiritual. Pessoas com compreensão despedem-se normalmente de seus amados com um até logo, mas mesmo assim dói, a separação física traz saudades e incertezas. Quem ama, porém, quer mais que tudo o ser amado feliz onde quer que esteja. E o consolo para essas pessoas é suave amenizando o sofrimento. Outros não aceitam a separação, tornando a dor insuportável. Mas a dor cansa, e os separados começam a ter esperança no reencontro. As despedidas acontecem de maneiras diversas. A despedida de pais é sem dúvida a mais sofrida. Por isso os benfeitores espirituais tentam sempre amenizar o padecimento de quem fica e daqueles que partiram. Sim, os que partiram sofrem. Somente não padecem os que voltam para o plano espiritual desapegados não só dos bens materiais, mas de tudo. E aqueles que aprenderam a amar sem egoísmo, sem posses, não sentem falta de nada com o que conviviam encarnados. Amam e não são apegados. Expandem seu amor a todas as criaturas. E assim estão sempre perto de alguém que amam e, consequentemente, sentem-se amados. São nestes seres que devemos nos espelhar. Se uns fazem, todos nós podemos e devemos fazer. Penso que todos os encarnados, principalmente os que fizeram mais aniversários, já se despediram de algum ou de muitos entes queridos. Sabem como é dolorosa a despedida ou calculam a dor do próximo e são normalmente solidários. Mas será que conseguem calcular a dor daquele que se despediu de quase todos seus afetos e partiu? Deixou para trás as coisas de que gostava, sua cama, seu travesseiro, sua casa, esposo ou esposa, filhos, netos, amigos, vizinhos etc. Uma nova forma de vida se inicia para o viajante do mundo. Às vezes reencontra pais, amigos, mas estes foram partindo aos poucos, um de cada vez, e já se acostumaram com sua ausência. Nestas reuniões fraternas das quais participo aqui no mundo espiritual, um auxilia o outro. Contando o que lhe aconteceu, como se sente, é possível desabafar e, ao mesmo tempo, escutar explicações, palavras de consolo e de carinho. Acaba-se confiando numa superação. Os encarnados que se despediram de afetos que partiram para a espiritualidade são consolados com a esperança do reencontro. Isso acontece quando deixam o corpo físico adormecido e são trazidos para essas reuniões por amigos, protetores, familiares, ou pela equipe desencarnada organizadora desses encontros. Os que se encontram na erraticidade também saem esperançosos dessas reuniões, porque compreendem que é a lei da vida, do Criador, sermos errantes, ora vivendo no plano físico, ora no espiritual. E aprofundando um pouco mais o estudo, entendendo mais um pouquinho as leis que regem nossas vidas, compreenderão que a despedida faz de fato parte dela. E também chegará a hora de voltarem a encarnar, então deixarão amigos, o plano espiritual, para terem outro período na carne. Na minha última roupagem, no físico, tinha lembrança de algo que havia sido programado antes de reencarnar. Não tive lembranças de minhas outras existências, mas sim do período em que vivi desencarnada numa colônia. Desde pequena, ao brincar de boneca - tinha várias - uma delas morria, e eu até chorava no seu enterro. Minha mãe não compreendia minha brincadeira, minhas amiguinhas não gostavam, e eu brincava sozinha.
- Anita - pedia mamãe -, por favor, não brinque mais de enterro. Você é uma menina que tem bonecas, e elas não morrem.
- Eu sei, mãezinha, mas um filhinho meu irá morrer! Fui crescendo e não brinquei mais de boneca. Sempre falava em me casar, ter filhos e que um deles iria morrer. Mamãe me repreendia, aconselhava-me a não falar sobre isso.
Esforcei-me para não falar nem pensar mais nesse assunto. Como estudava e trabalhava, meu tempo era corrido. Esses pensamentos então se tornaram raros e não os comentei mais. Casei-me nova, com dezoito anos, e quis logo ter filhos. Tivemos quatro. Era uma excelente mãe, mas um deles, Arnaldo, era diferente para mim. Afirmava que os amava igual, mas não era verdade, minha preferência era por esse filho. Sentia que deveria estar mais com ele. Pensava muitas vezes: "Devo aproveitar enquanto ele está comigo! Quando Arnaldo partir, não poderei abraçá-lo assim! Na despedida dele sofrerei muito!". Repelia esses pensamentos, mas eles teimavam em voltar. Às vezes chorava escondido e não comentei com ninguém sobre isso. Com nove anos, Arnaldo partiu. Uma doença agressiva matou seu corpinho físico em três dias. Sofremos muito. Depois, comecei a entender que sempre soubera que me despediria de Arnaldo. A vida continuou, tinha esposo e três filhos. Foram esses outros afetos, que precisavam de mim, que me fizeram ser forte. Pensei que nunca mais ia voltar a ser alegre, mas o tempo passa, cicatrizando feridas abertas na despedida. Voltei sim a ser alegre, mas não me esquecia do Arnaldo. Meditei e concluí que sabia existir essa separação. Não entendia como eu sabia ou o porquê. Às vezes lembrava-me de estar conversando com outras pessoas e planejando essa despedida. Muitas coisas aconteceram em minha vida, mas nunca me esqueci desse, meu filhinho. Mas, novamente sem conseguir compreender, depois de alguns anos não senti mais saudades dele. Pensava, na época, que era por meus filhos terem casado e a minha casa ter se enchido de netos. Fiquei viúva, vivi muitos anos encarnada, e chegou a minha vez de partir. Pela minha vivência, tive o merecimento de receber ajuda, socorro. Acordei num hospital do plano espiritual e me senti aliviada por estar sem dor. Veio em minha mente o que repetia nos últimos tempos: "No dia em que acordar sem dor é para me preocupar, certamente estarei morta". Espreguicei-me. Nada de dor. Resolvi me levantar e o fiz com facilidade. Estranhei. Foi então que observei o local: "Com certeza estou num hospital. Num quarto coletivo! Mas por quê? Pelo meu plano de saúde tenho direito a ocupar um apartamento e ficar sozinha. Isso não está certo!".
- Bom dia! Como está se sentindo, Anita? Deseja alguma coisa? - perguntou-me uma moça simpática.
- Eu?! Não sei! Talvez saber onde estou. Aqui, pelo jeito, é um hospital. Não conheço este. Onde fica? Não tenho nada contra, mas por que estou num quarto coletivo?
- Que bom que não tem nada contra. Irá gostar daqui, terá companhia para conversar. Nesta mesa tem pães, frutas e sucos. Se precisar de alguma coisa, me chame. Meu nome é Neuza. Embora achando muito estranho e não compreendendo, resolvi me alimentar. Estava me sentindo muito bem. Não tive nenhuma doença grave, mas a idade traz limitações e desgastes e, consequentemente, várias dores: reumatismos, incômodos na coluna, na perna, má digestão etc. Soube depois que desencarnara por causa de um infarto.
- Nossa! - exclamei alto. - Como estou me sentindo bem! Penso que posso até pular! Você está entendendo o que lhe aconteceu? - perguntou uma senhora que estava num dos leitos. Nada! Não estou entendendo, somente gostando - respondi. - Pois se prepare para uma surpresa - falou ela.
- Surpresa? Agradável ou não? - indaguei interessada.
- Depende - respondeu a senhora. - E você que terá de achar se é ou não boa.
- Por favor, fale - pedi.
- Não tem medo?
- Medo? Aqui é perigoso? - assustada, quis saber.
- Claro que não! - falou outra mulher, que se levantou e se aproximou de mim. - Chamo-me Ida e entendo o que nos acontece. Aqui é um lugar seguro, bonito e de pessoas boas.
- É melhor falar logo que ela morreu - disse a senhora que falava comigo.
- Engasguei-me com um pedaço de maçã.
- Terezinha, por favor, não fale assim - pediu Ida. - Deve seguir o que nos é recomendado. Anita, tome este copo d'água.
- Aqui é um hospício? - perguntei baixinho à Ida.
- Não, claro que não!
- Estão conversando! Isso é bom! - exclamou Neuza entrando novamente no quarto. - Vou levá-las ao jardim. Quem quer ir?
- Eu quero! - Falei. - Estou tão disposta que penso que poderei correr. Posso ir de camisola?
- Aqui tem algumas roupas suas, pode trocar atrás daquele biombo - mostrou-me Neuza.
Rapidamente me troquei e lá fomos nós, quase todas do quarto, para o jardim. Neuza ficou perto de mim. Conversamos sobre plantas e, depois que me mostrou o lugar, perguntou:
- Anita, o que você pensa que acontece quando o corpo carnal morre?
- Sei lá, já escutei tantas coisas.
Olhei para Neuza, estava tranquila. Pensei: "Será que a Terezinha falou a verdade? Morri e por isso estou me sentindo tão bem?".
- Morri? - perguntei baixinho.
- A morte, como muitos pensam, não existe - respondeu Neuza.
E por minutos me explicou, com seu jeitinho delicado, o que havia acontecido comigo. Escutei calada, não consegui entender direito. Tudo era muito diferente da maneira que acreditava. Voltei para o quarto preocupada. Conversei com Terezinha, que estava mais assustada do que eu, e ouvi de Ida que estava gostando muito da mudança de plano. Preferi, como sempre, ser otimista e conversar mais com Ida. "Morrer é como partir para não voltar, então devo me conformar e me acostumar a viver aqui": pensei.
- Podemos nos encontrar com as outras pessoas que morreram? - perguntei a Neuza.
- Sim, podemos. Seu marido está querendo a visitar, está somente esperando que você queira vê-lo. Fiquei novamente pensativa. Eu que não quero ficar com meu marido - disse Terezinha. - Não combinávamos vivos e com certeza não iremos nos dar bem mortos. É melhor dizer "encarnados" e "desencarnados" - aconselhou Ida. - Teresinha, você poderá rever seu marido, mas não precisam ficar juntos. Poderão ser somente amigos. Você, Anita, não deseja rever seu esposo?
- Estou velha - falei.
- Não se preocupe, o sentimento verdadeiro é o interior - Ida me animou.
- Quero vê-lo!
Encontramo-nos no jardim, sentamos num banco somente nós dois, olhamo-nos, abraçamo-nos e choramos emocionados. Ele me contou que sofreu ao desencarnar, por não aceitar, e, naquele momento, trabalhava e aprendia muitas coisas. Animou-me. Senti-me feliz.
- E Arnaldo? Sabe do nosso filho?
- Sei - respondeu meu esposo.
- Você não perdeu esta mania de responder somente com poucas palavras - ri.
Respondi o que você me perguntou.
- Está bem. Vou perguntar novamente. Você sabe onde e como Arnaldo está?
- Nosso filho está bem e estava perto de você - respondeu ele.
- Como?
Anita, quando no físico escutamos falar de reencarnação, são muitos os comentários, como: "na outra vida devo ter sido isso ou feito aquilo" e "na próxima quero isso ou aquilo". Pois bem, a reencarnação é real. Nosso espírito nasce, reencarna, muitas vezes na Terra em corpos físicos diferentes. Arnaldo voltou como nosso neto. E o Murilo.
- Foi na época em que Murilo nasceu que a saudade amenizou, e eu me esqueci um pouco de Arnaldo.
- Não é fantástico! - perguntou meu esposo.
- Penso que sim.
- Despedimo-nos, ele voltou ao seu trabalho, e eu para meu quarto no hospital. - Fiquei deslumbrada com tudo que via. Sentia-me bem, saudável e disposta. Curiosa, quis conhecer o hospital, a colônia e todo o plano espiritual. Explicaram-me que isso devia acontecer aos poucos. Não fiquei junto de meu ex-esposo, preferimos ser amigos. A amizade é um sentimento maravilhoso. Comecei a sentir saudades daqueles que ficaram encarnados, e esta foi aumentando. Sentia falta de tudo e de todos. Ficava pensando que, se estivesse encarnada, naquela hora estaria fazendo alguma coisa específica ou conversando com as vizinhas ou então esperando por minha filha. Percebi que gostava muito da maneira como vivia, da minha rotina. Chorava de saudade. Para onde fui levada, a colônia, era tudo muito lindo, mas preferia estar na minha casa. Preferia ter até as dores de que reclamava, percebia que não era de todo ruim senti-las. Fui consolada pelos orientadores, companheiros, e meu esposo foi enérgico comigo.
- Anita, não é bom para você querer reviver o passado. Nada volta a ser como era. O tempo passa para todos. Seu momento agora é viver aqui, por isso pare de choramingar e dê valor ao que lhe está sendo oferecido. Neste período de adaptação o desencarnado necessita entender e ser forte para não sair do lugar onde está abrigado e voltar ao seu antigo lar ou para perto daqueles que ama. Recebi ajuda, tentei compreender, fortaleci-me e fui estudar e trabalhar. Mente ocupada é o melhor remédio para nos auxiliar nesse momento de transição. Senti muita saudade, e esta doía. Passado esse período, que considerei difícil, pude entender a lembrança do passado que mantinha quando encarnada. Não me recordei de encarnações anteriores, mas sim do tempo em que estive anteriormente na espiritualidade. Vou explicar: Arnaldo tinha sido meu filho em minha encarnação anterior. Foi amado, fui boa mãe, tentei educá-lo. Mas, espírito rebelde, cometeu muitas ações erradas. E uma delas, que muito o marcou, foi ter sido a causa de três crianças desencarnarem. Ele sofreu no umbral, e eu senti muito sabendo que sofria. Participei de seu socorro. Ajudei-o. Conversávamos muito, e ele almejava voltar ao físico.
- Quero, mamãe - falava Arnaldo -, ter a bênção do esquecimento. O remorso dói muito, quero quitar esta dívida e provar, com a oportunidade da reencarnação, que aprendi a dar valor à vida, não somente à minha, mas também à do próximo.
- Quero ser sua mãe novamente! Pedirei para voltar ao plano físico e o receber no meu lar.
- Mas, mamãe, a senhora não precisa sentir a dor da separação. Com certeza me amará, foi boa mãe e continuará sendo. Sofrerá com a minha desencarnação. Sempre podemos tirar preciosas lições do sofrimento - insisti. - Amo-o e o quero perto de mim. Como deixá-lo ter outra mãe? Meu amor será forte o bastante para ajudá-lo. Você terá tendências a corrigir, e eu saberei fazê-lo. Quero estar com você novamente!
- Já calculou como sofrerá com a nossa despedida? - perguntou Arnaldo.
- Terei a esperança do reencontro. Determinada, pedi e recebi a graça de ter Arnaldo como filho novamente, por um período de poucos anos. Esta determinação foi tão desejada, tão sentida, que me lembrei dela quando encarnada, tendo a certeza de que esse meu filho iria retornar à pátria espiritual na infância.
- Quero dizer a vocês, leitores, que o que aconteceu conosco, comigo e com Arnaldo não é regra, pois esta não existe na espiritualidade. A desencarnação na infância e na juventude acontece por muitas causas. E Arnaldo também poderia ter escolhido muitas outras formas de reparar seus erros. Foi escolha dele, e o desejo de esquecer teve influência nisso.
Deu certo, sofri, porém, como queria, ajudei muito esse espírito que, sentindo-se quite com seus atos, quis reencarnar e teve permissão de ser um dos meus netos. Desta vez não senti nada diferente por ele, gostava, gosto, igualmente de todos os netos. Estudei e, quando me senti apta, pude escolher a tarefa de tentar consolar todos os que sofrem com a despedida da mudança de plano. As reuniões são prazerosas e têm dado muitos bons resultados. Embora a opinião de muitos, nas primeiras vezes, seja a de que elas são tristes, ali se aprende a não deixar a saudade machucar, ferir, e, quando este sentimento se torna suave, tudo fica mais fácil para quem está separado momentaneamente. São muitas as pessoas que não entenderam como e por que sentiram esta separação prematura. Vagas recordações do passado, seja de outras existências ou do período em que viveram no mundo espiritual, vêm à mente. Pais também contaram que muitas vezes eram os filhos que se pronunciavam - estes também sem compreender -, demonstrando saber de suas desencarnações precoces. Como: "quando eu morrer, quero que isto fique para fulano; minha coleção, para sicrano"; "tudo que é meu deve ficar para você, mamãe, ou para papai"; "desejaria ser enterrado com esta roupa"; "não chorem muito, com certeza irei para um lugar melhor" etc. Estas reuniões são mais frequentadas por pais encarnados e desencarnados e todos sentem muitas saudades de seus filhos, ainda mais aqueles cujos filhos mudaram de plano antes deles, talvez porque é esperado que os mais velhos partam primeiro. Mas, é a lei da vida este retorno. Embora muitos idosos encarnados falem de sua morte, não o fazem por nenhuma recordação, mas sim porque não é possível viver por muitos anos no plano físico. Porém, muitos não pensam ou não gostam de pensar nesta despedida. Eu fui uma dessas pessoas. Gosto de consolar e dar esperanças. Enxugar lágrimas, dar alegrias, é ter as nossas lágrimas enxutas e a alegria no coração. E assim, amigos leitores, é possível ter lembranças de muitas existências, mas também lances do período em que se esteve na erraticidade. Bendito o consolo que podemos receber quando entendemos as leis perfeitas, justas e misericordiosas que nos regem.

Anita.

10 - PEQUENO DOCUMENTÁRIO

Lua crescente de outubro de 2011

Eu, Justo, a convite do meu amigo Antônio Carlos, vou inserir um pequeno texto neste livro, encomendado por um dos dirigentes espirituais do Brasil. Este nosso orientador pediu à Casa do Escritor, colônia onde literatos se reúnem para comentar a atual situação literária de nossa pátria e do mundo, que comentássemos mais sobre a reencarnação, que falássemos da importância para nosso espírito deste retorno ao plano físico e que, de lição em lição, ou seja, nas reencarnações, aprendemos e evoluímos com nossos erros e acertos. Pediu também que falássemos da importância do momento presente, de como vivemos hoje, porque refletimos o que fizemos ontem como refletiremos no amanhã o agir do agora. Basta uma breve conversa aqui no Além para sabermos de histórias deveras interessantes. Porque todos nós, sem exceção, que atualmente fazemos parte dos numerosos habitantes do planeta Terra, já tivemos inúmeras vestimentas físicas. E algumas situações por nós vividas nos marcam mais e, às vezes, basta somente uma lembrança, seja esta de erros chocantes que cometemos ou de acertos fabulosos que ousamos fazer. Atualmente, infelizmente, recordamos mais de nossas imprudências, porém, com a nossa evolução, acredito que iremos nos lembrar também de acontecimentos agradáveis. Penso que atos bons deveriam ficar marcados em nós, porque muitas vezes os realizamos com sacrifícios, estudo e muito trabalho. Comparações normalmente são injustas. Mas podemos, às vezes, comparar-nos com outros, com o próximo, nosso irmão. Eu, se o fizer com os que estão nas primeiras séries, posso ser um professor. Mas também é um incentivo para mim comparar-me aos universitários. Almejo e me esforço para ser como eles.
Há muitas encarnações me dedico ao estudo e tenho escolhido por profissão ensinar. Algo que eu gosto de fazer é transmitir conhecimento. Percebi que poderia ensinar de forma que o aprendiz se divirta e passe a se interessar pelo estudo e que estes conhecimentos também o educassem com exemplos edificantes da boa moral. E, em cada encarnação, sempre aprendia com facilidade e transmitia meus conhecimentos como mestre. Concluo que isso ocorreu por amar de verdade essa maneira de viver. Saber e querer que outros desfrutem do que eu sei. Ensinamentos têm uma matemática interessante: quanto mais você dá, mais você tem; quanto mais você os reparte, divide, mais são multiplicados. Afirmo que a sabedoria é verdadeiramente nossa quando a transmitimos a outros. A influência da reencarnação em minha vida única, dividida em muitas existências, foi fantástica. Tive problemas para serem resolvidos, dificuldades, pelo simples fato de conviver com pessoas diferentes de mim. Sempre achei interessante cada volta minha ao físico. E a minha última foi uma ótima oportunidade. Entre muitas profissões que poderia escolher, fui novamente professor, esforçando-me para ser um bom educador. Almejando aprender, pedi para ter uma existência bem diferente. O meu último estágio no físico foi numa região muito diversificada daquela onde reencarnei por muitas e muitas vezes. E retornei à carne numa família estruturada. Quando comecei a falar, o fazia de forma muito errada. Para todos, minha pronúncia era confusa, "enrolada", como dizia vovó. Demorei um pouco mais que meus irmãos para dizer meu nome. Penso que foi por não gostar dele. Era justo o nome de um dos meus avôs. Quando perguntavam meu nome, complicava muito e respondia algo que ninguém entendia. Com três anos, aprendi a falar, para alívio de meus pais, mas somente aos cinco o fiz corretamente. Sentia falta de muitas coisas das quais pensava estar sendo privado: roupas, comidas e músicas. Sentia saudades e não sabia de quê, mas não sentia ser privação ou castigo, e me esforcei para me adaptar. Curioso, quis conhecer, aprender, e era um perguntador insistente, que tirava o sossego dos adultos com quem convivia. Escrever e ler num idioma tão diferente foi, para mim, um desafio muito interessante. Gostei de estudar. Bom aluno, bom professor. Antes, para mim, o amor também deveria ser intenso, e aprendi que, num relacionamento, o amor deve ser suave, respeitando a personalidade do ser amado, o querer bem sem posse. Era chamado carinhosamente pelos familiares de "enciclopédia" de determinada região, aquela onde estagiei por muitas vezes como encarnado. Encabulava-me por saber tanto da forma de viver deste povo e de épocas remotas. Não me recordei de mais nada além do conhecimento. Tive somente lembranças do que estudava, do que por séculos transmiti. Quando tive conhecimento de que, pela bondade infinita do Criador, voltamos ao físico em corpos e lugares diferentes, compreendi minhas lembranças e me aprofundei nos estudos sobre reencarnação. Convivi bem com minhas recordações e acrescentei a elas novos aprendizados. Gostei muito desta experiência diferente, deste meu último estágio, em que conheci uma maneira diferente de viver. Comentando com Antônio Carlos o que pretendia ditar a médium, ele me perguntou:
- Justo, onde você quererá reencarnar na próxima vez?
Ainda gosto muito da região onde por tantas vezes estagiei em corpo carnal, mas me entristeço por esse povo brigar tanto, guerreando atualmente com armas modernas, mortíferas, bem diversas daquelas dos tempos idos. Gostei de conhecer outros lugares. Pedirei para reencarnar em outra região para continuar aprendendo e, o mais importante, amar a todos como irmãos que somos. Agradeço ajoelhado diante do infinito os inúmeros estágios concebidos aos nossos espíritos. Escutei muitos espíritos falarem de suas encarnações e anotei algumas narrativas de quem, no período vivido no plano físico, teve alguma recordação de outras encarnações ou somente de uma. Transcrevo a vocês:

Adão Moreno me contou:

- Nesta minha última viagem ao plano físico sentia muito medo, pavor mesmo, d'água. Minha mãe contava que, quando neném e menino, não gostava de tomar banho e chorava apavorado até mesmo numa bacia d'água. Adulto, era asseado, tomava banhos, mas rápido. Nunca entrei numa piscina e vi o mar somente de longe. Várias vezes sonhei que estava me afogando. Ouvi falar de reencarnação. (Penso que todos nós sempre ouvimos alguém comentar, seja em brincadeira ou em conversas sérias, sobre reencarnação.) Pensava e até comentei: "Devo ter me afogado na minha vida passada!". Tinha cinquenta e dois anos e residia numa cidade grande. Estava sozinho no carro, numa área de risco de enchente, quando começou uma tempestade. O trânsito parou. Não tive coragem de sair do carro com a água batendo nos meus joelhos. Rapidamente, o volume de água aumentou, cobriu meu carro, e desencarnei afogado. Fiquei confuso, apavorado e, pela imensa bondade de Deus, fui socorrido. Quando melhorei, não fiquei no posto de socorro onde fui abrigado: quis ir para minha casa e fui. Encontrei tudo diferente, não pertencia mais ao mundo físico. Vaguei, sofri, e fui novamente socorrido. Desta vez, fui grato pelo auxílio. Depois de algum tempo vivendo no mundo espiritual, soube que eu, na minha penúltima encarnação, flagrei ladrões em minha casa. Eram dois, e um deles fugiu. Consegui pegar um e o amarrei. Queria que ele me contasse quem era o outro. E, para que falasse, coloquei sua cabeça num balde d'água e o afoguei. Na terceira vez que afundei seu rosto na água, meu filho falou comigo, distraí-me, não levantei a cabeça dele no momento certo, e ele desencarnou. Enterramos o corpo dele num local seguro em minha propriedade. Não foi o Adão o afogado, ele afogou outra pessoa! O pavor que sentia era do erro cometido, e desencarnou por esse medo. Porque, se não tivesse pavor d'água, teria saído do carro e se salvado. Erros nos prendem. A desencarnação de Adão Moreno não foi uma imprudência. O pavor que sentia era algo incontrolável. Ele não conseguiu superá-lo. Se tivesse sido ao contrário, ele ter se afogado como pensava, poderia sentir medo, mas não o pânico que paralisa. Suicídio seria se tivesse a intenção de morrer. Ele não havia se perdoado pelo erro cometido.

Felipe, o Ruivo, contou:

- No século 17, na Espanha, tive, por infelicidade, o ofício de carrasco. Fazia as fogueiras para os condenados serem queimados e as acendia. No meu pequeno entendimento, eu agia corretamente, porque obedecia a ordens. Um dia, ao acender uma fogueira, queimei meu braço, senti muitas dores, então resolvi deixar o emprego. Porém fui ameaçado pelo meu patrão: ou continuava ou iria eu para a fogueira. Decidi continuar, porém passei a fazer as fogueiras para queimar rápido e matar depressa o condenado. Isso me marcou demasiadamente, e tenho vontade de chorar todas as vezes que me recordo dessa minha existência. Fiquei muito tempo na erraticidade após ter desencarnado. Sofri no umbral e, socorrido, estudei, aprendi muitas coisas trabalhando e não queria reencarnar, tinha medo de falhar e voltar a sofrer no umbral. Depois de muitos anos, pedi para retornar ao plano físico e planejei desencarnar queimado, porque somente assim sentiria estar resgatando a crueldade da qual havia participado. Eu deveria ter ido para a fogueira e não continuado a acendê-las. Desde menino, falava que ia morrer queimado. Minha mãe me repreendia, porém era o que sentia. Estava com dezoito anos quando aconteceu um acidente onde eu estava. O prédio incendiou, e eu desencarnei pelas queimaduras que sofri. Minha família comentou que eu havia previsto minha morte.
- Fui socorrido, aceitei minha partida e me senti aliviado, porque, embora ainda me entristeça com meu ofício do passado, senti ter quitado uma dívida que me atormentava.

Felipe, o Ruivo, terminou seu relato:

- Mil vezes bendito seja Deus, que nos criou para usufruir da reencarnação.
- Muito prazer, João D'água!
Cumprimentou-me um homem; pude perceber, observando-o, que seu perispírito deveria ter a aparência misturada de suas duas últimas encarnações. Ele, notando minha percepção, continuou falando:
- Desencarnei com doze anos na minha última roupagem física. Para compreender essa rápida e sofrida existência, recordei-me do passado, misturei as aparências, e vou lhe explicar o porquê.
Fez uma ligeira pausa e, vendo-me interessado, contou:
- Reencarnei numa localidade muito pobre, miserável, numa família numerosa e, no período de seca, passávamos fome de doer o estômago. Tinha saúde frágil e nunca fui a um médico. Naquela região, desencarnavam muitas crianças por falta de higiene, nutrição e cuidados médicos. Era mulato e, aos três anos, minha barriga começou a crescer e ficou grande. Diziam que eu tinha barriga d'água. Daí o nome que, abreviado, ficou João D'água. O nome eu não quis mudar, porque gosto muito de "João" e também "D'Água", que me faz recordar que estive doente e não recebi tratamento, que senti fome, e muitas necessidades não foram supridas. Acredito que esses doze anos em que não saí do sítio, da casinha pobre, foram, para mim, como estudar numa escola muito rígida, isso por ter negligenciado, no passado, o "estudo" em outras "escolas" mais amenas. Naquele casebre de três cômodos, sofrendo muitas privações, gostávamos uns dos outros. Meus pais não tinham como nos dar mais atenção. Nunca tive um brinquedo. Quando criança, meus irmãos e eu fazíamos de sabugo de milho carrinhos, e minhas irmãs, bonecas. Possuíamos poucas roupas. Eu sentia muitos mal-estares, fraquezas, falta de ar. Às vezes tomava chás, que eram o único remédio de que dispúnhamos. Aos oito anos, comecei a ter dores de cabeça e cólicas muito dolorosas no abdômen, que foram ficando cada vez mais fortes e frequentes. Desencarnei depois de oito meses acamado, com feridas pelo corpo, muitas dores, e não tomei nenhum comprimido para amenizá-las. Meus pais não sentiram minha desencarnação. Ficaram até aliviados por acreditarem que iria para o céu, onde estaria melhor, e também por não me verem mais sofrer sem conseguir me ajudar. Não fui para o céu, mas fui socorrido. No plano espiritual, recebi tratamento, sarei e, para mim, estava no paraíso de que mamãe tanto falava. Se nos compararmos com outras pessoas, queremos saber o porquê das diferenças. Isso ocorreu comigo. Quis saber e obtive respostas. Na minha outra encarnação, antes dessa, pude e tive como suprir a necessidade de muitas pessoas e não o fiz. Poderia tê-las tirado da miséria, dado a elas tratamento médico, escolas (todos de minha família eram analfabetos) e meios de viver num local onde a seca não os castigasse tanto, mas preferi enriquecer ilicitamente. Como João D'água, morei na região que poderia ter auxiliado e não auxiliei. Por isso, misturei minha aparência: da outra encarnação, fiquei como adulto e com os conhecimentos obtidos; desta, a cor e as feições. Preferi o nome simples do que o pomposo de outrora, para o qual existem praças e ruas em homenagem, um político que aparentava ser o que não era. João fez uma pausa para enxugar lágrimas e depois continuou a contar sua história de vida. Justo, meu amigo, como esta criança pobre e enferma, tive lances de recordações da minha outra existência. Muitas vezes, sentado no chão ou num dos nossos bancos toscos de madeira (não tínhamos bancos para todos), via uma mesa farta com muitos alimentos, frutas, pães e doces. Olhava para meu pratinho com escasso alimento, às vezes com um feijão ralo, e via outro, muito colorido, cheio de alimentos que nunca vira naquela existência. Comentei uma vez com mamãe sobre uma fruta vermelha, e ela riu, disse que estava mudando a cor da laranja. Não comentava estas visões porque eu ficava com muita vontade de comer o que via na minha mente e não queria que meus irmãos também sentissem vontade. A lembrança que tive da encarnação passada, meu amigo Justo, foi dos alimentos. Tão fartos na outra existência que as sobras iam para o lixo, e me fizeram tanta falta nesta última.
- Reencarnações nos dão explicações das diferentes maneiras de viver. Na minha próxima volta ao físico, certamente terei de provar que aprendi pela dor o que poderia ter feito pelo amor. Não quero ser alguém importante nem uma pessoa parecida com o João Barriga D'água. Mas, sim, um ser que dará valor a tudo que lhe for emprestado (incluo os bens materiais, empréstimos de Deus) e que tentará amenizar a dor do próximo. Mas a maior prova será: não ficar para mim o que poderia converter em ajuda para os outros. Abraçamo-nos ao nos despedir. A maioria de nós sente a influência da reencarnação em nossas vidas, mas, por esse fato não incomodar tanto, não damos a devida atenção. Como, por exemplo, Nelinha, a Meiga. Ela me contou que, durante sua vida encarnada, sentia medo de pessoas muito altas. Quando alguém alto se aproximava dela, esforçava-se para ser educada. Somente veio a saber o porquê quando desencarnou, e recordou que, em sua outra existência no físico, tivera um padrasto muito alto que fora seu carrasco. Maltratou-a muito. Guilherme me falou que, encarnado, sempre desconfiara do irmão, mais velho que ele dois anos. Estava sempre alerta contra ele. Pensava: "Este mano vai me aprontar uma!". Quando criança, implicava com ele e ficou várias vezes de castigo por afrontá-lo e ofendê-lo. E, no castigo, pensava: "Tenho razão, meu irmão me prejudica". Mas concluía que fora ele que o havia provocado. Cresceram, casaram e passaram a se ver menos. Guilherme passou um período difícil. Ao nascer seu terceiro filho, a esposa teve um problema sério, e o filhinho necessitou ficar internado. Precisou de dinheiro. O irmão não esperou que ele pedisse e pagou todas suas dívidas. Ao saber, admirou-se, foi lhe agradecer e afirmou que lhe pagaria. Escutou dele: "Não se preocupe com esse detalhe. Quando tudo estiver bem, você me paga, porém não quero que se aperte para me saldar. Irmãos são para isto: ajudar uns aos outros. Sei que você faria o mesmo por mim". Guilherme pensou e concluiu que não faria isso por esse irmão. Chorou, abraçou-o e se desculpou. Aquele abraço foi de amor. Seu irmão estava bem financeiramente e ficou melhor ainda. Guilherme demorou para começar a pagar-lhe e dividiu em prestações. Tornaram-se amigos. Ele convidou o irmão para ser padrinho de seu filho. Na quinta prestação, o irmão pediu para não lhe pagar mais. As prestações eram em número de trinta. Falou com delicadeza, temendo ofendê-lo. Ele não pagou mais. Anos depois, Guilherme desencarnou e soube que fora ele quem ofendera esse irmão na existência anterior. Pensou erroneamente que o irmão agiria como ele, que revidaria. Por isso, esperava uma ofensa dele. O irmão não o ofendeu e retribuiu com o bem o mal que recebera dele. Hidberto, o Bondoso, foi um médico eficiente e caridoso. Recebeu muito carinho quando desencarnou. Visitei-o para lhe agradecer. Quando estava encarnado, fui seu paciente.

Conversando, Hidberto me contou:

- Amo amenizar dores pela ciência médica. Tenho aproveitado as minhas passagens pelo físico dedicando-me à Medicina. Nesta minha última estadia no corpo carnal, tive muitas lembranças de minhas vivências passadas e de meu estudo no plano espiritual. Falava, quando menino, e com naturalidade, quando escutava alguém se queixando de uma dor, o que poderia ser e, às vezes, o que tomar. Ou comentava de raios que poderiam curar. Meu pai conversou comigo e pediu para não falar mais sobre esse assunto, porque as pessoas não entendiam. Ninguém da minha família compreendia. Prestei atenção para não falar, mas pensava. Fui estudar medicina e dava opiniões, falando como determinada doença era tratada antigamente. Um professor me alertou: "Hidberto, você poderia, em vez de ler livros antigos, ler os modernos. Não interessa o que se fazia antigamente, mas, sim, o que podemos fazer atualmente". Resolvi não comentar mais e passei a falar o que poderia ser feito: os raios. Riram de mim. Eu, então, parei de opinar e me concentrei em aprender o que dispúnhamos naquele momento. Ainda encarnado, vi o raio laser ser usado com proveito e, sem dúvida, será mais ainda. Porque tudo o que os encarnados descobrem normalmente já é conhecido no plano espiritual e, às vezes, há muito tempo. Porque podemos estudar, e muito, no plano espiritual, e também participar de muitas pesquisas que aqui são feitas. Continuo amando muito a Medicina e quero fazer parte de estudos e de pesquisas para reencarnar e continuar sanando dores e curando enfermidades.

Mariana me relatou:

- Encarnada, sempre gostei de anjos. Por isso, ganhava-os de presente. Mas tirava as asas. Dizia: "Eles não precisam de asas para voar e vestem roupas". Dificuldades me levaram a conhecer o Espiritismo e então compreendi que anjos são espíritos bons que volitam pela força da vontade, por isso não precisam de asas. E espíritos, usando o corpo perispiritual, apresentam-se vestidos. Foi, para mim, um alívio compreender esse fato. Desencarnada, soube que eu fora, antes de reencarnar, instrutora de volitação num educandário onde ensinava crianças a se locomoverem no espaço, ou seja, a volitar.

Laurinda, a Preta Velha, muito bem-humorada, contou-me:

- Quando era pequena, não se conformava por ter a pele branca. Queria ser negra. Sua brincadeira preferida era se pintar com carvão. As vezes levava bronca, porque não era fácil limpar o carvão. Quando se pintava, colocava um lenço na cabeça e andava como velha. Gostava muito. Adolescente, parou com essa brincadeira. Olhava suas colegas negras e queria ser como elas. Uma noite foi com uma amiga num centro umbandista e ficou maravilhada, ou melhor, encontrou-se. Passou a frequentá-lo e se ofereceu para ajudar. Não tinha mediunidade em potencial para trabalhar e foi fazer parte da equipe organizando e administrando os trabalhos da casa. Alguns desencarnados chamavam-na carinhosamente de Preta Velha. Teve uma existência tranquila, casou, teve filhos e, por cinquenta e quatro anos, trabalhou neste centro umbandista. Ao desencarnar, soube que, na sua penúltima encarnação, vestira um corpo de pele negra, fora uma benzedeira e resgatara muitos erros pelo trabalho edificante. Por isso amou muito esta encarnação, que a marcou. Concluiu que os atos nos marcam: os maus e também os bons.
- Que alegria para nós ter a reencarnação como meio de progredir! - exclamou Laurinda, alegre ao terminar seu relato.
Quando passamos por um resgate doloroso, por sofrimentos, não é difícil ter a sensação de que já tivemos períodos de farturas e alegrias. Podemos ter até lances de lembranças desses acontecimentos de outrora e também de atos que nos levaram a contrair dívidas, ou seja, de erros, maldades cometidas contra o próximo. Pode ocorrer de termos fobias por atos marcantes ocorridos conosco. Mas pode acontecer de estarmos bem encarnados e recordarmos de sofrimentos de outras vidas, de lições aprendidas com o padecimento ministrado pela sábia mestra, a dor. Conversando com Assíria e Jorge, entendi que podemos sentir saudades desse aprendizado e, após termos compreensão, podemos dizer: abençoado resgate! Assíria me contou que, na sua última encarnação, quando era pequena, queria a outra mãe e o outro pai, da encarnação anterior. Aquela mãe que trabalhava na roça e o pai que, quando não estava bêbado, era bonzinho. Depois queria sua boneca de pano. Seus pais, na última roupagem física, acreditavam em reencarnação e tudo fizeram para a filha esquecer. Compraram várias bonecas, porém ela queria a outra, a que fora dela antes. Foram muitas as vezes que comentou diante da mesa farta:
- Graças a Deus temos o que comer, passei tanta fome!
Na sua última vivência na carne, teve um lar estruturado, pais que a amavam e protegiam, nada lhe faltou, estudou em boas escolas, casou por amor, teve três filhos lindos e sadios e nenhum problema sério. Nesta encarnação, provou a si mesma que aprendera a lição administrada anteriormente pela dor. Teve o Espiritismo por religião, trabalhou fazendo o bem com a mediunidade. Foi caridosa e aproveitou a oportunidade para aprender e voltou ao Além com muitos conhecimentos e boas obras. No plano espiritual, soube que havia errado muito no passado e, na sua encarnação anterior, resgatara seus erros pela dor e também aprendera uma preciosa lição: que deveria fazer o bem. Foi para ela muito importante esse resgate. O sofrimento a marcou. Assim, nesta última vivência na carne, essas recordações a fizeram ser grata, caridosa e ajudar as pessoas que sofriam. A lembrança mais nítida que teve dessa encarnação tão sofrida foi: um dia, o pai, brincando com os filhos, seus irmãos e ela, correu atrás deles com uma tira de pano. Os irmãos se deliciavam com a brincadeira, riam e gritavam. Veio então em sua mente as feições do seu pai de outrora, bêbado, irado, com uma tira de couro e lhe batendo brutalmente. Ela se encostou num canto na parede e tremeu de medo. Seu genitor percebeu, parou com a brincadeira, pegou-a no colo, beijou-a, abraçou-a e disse que a amava. Ela se acalmou, disse-lhe que também o amava e foram brincar de outra coisa. Essa lembrança foi tão forte que sentiu a sensação de dor e sangue escorrendo pelas suas pernas e ficou muito triste.
- Como Deus é bondoso e justo, dando-nos sempre novas oportunidades! - exclamou Assíria ao findar seu relato.
Jorge me contou que, encarnado, tinha sonhos muito nítidos que o fizeram recordar o passado. Outrora tinha vivido numa casa-grande onde servia como empregado. Tinha um defeito na perna direita e por isso mancava. Fora rejeitado pela mãe, que o teve solteira, e foi criado por uma avó maldosa. Nunca recebeu um carinho, não foi amado, mas, sim, rejeitado. Tinha uma aparência feia. Gostava de uma moça que também era empregada da casa. Ela lhe dava atenção, conversava com ele e até o ajudava. Ela, no entanto, quando percebeu seu interesse, passou a evitá-lo e não falou mais com ele, que sofreu muito por mais essa rejeição. Jorge recordou muito da deficiência que tivera, de seu andar com dificuldade e das muitas dores. Ele não comentava com ninguém suas lembranças, mas, querendo compreendê-las, pesquisou e encontrou respostas quando entendeu a Lei da Reencarnação. E então esses lances do passado não mais o incomodaram. Aos vinte e cinco anos, conheceu uma moça, para ele especial, e namoraram. Um dia, ela estava dormindo tranquila ao seu lado, e ele a reconheceu como a moça amada do passado. Pensou em terminar o namoro. Mas gostava dela e iria sofrer se ocorresse uma separação. Então não deixou esse fato, essa recordação, interferir em sua vida: ficaram juntos e foram felizes. Também reconheceu no filho mais velho o ex-patrão, que muito o humilhara. Aprendeu a amá-lo e não fez diferença em relação aos outros filhos. Desencarnado, confirmou suas recordações. Por muitas maldades feitas no passado, reencarnou para um resgate, para aprender a não ser arrogante e domar seu orgulho. Por isso, uma existência sofrida. Essa moça que o repelira no passado e que depois se casara com ele, fora sua companheira nesta existência de erros. Na erraticidade, sofreram muito, reencarnaram perto e prometeram ficar juntos para um auxiliar o outro. Mas, encarnada, ela não o quis pobre, feio e deficiente, mas também sofreu, teve uma vida difícil. Na última encarnação, ela não se recordou de nada. Jorge ficou muito grato por ter essas recordações quando estava encarnado. Ele estudou medicina, especializou-se em ortopedia. Estudioso e dedicado, tornou-se um bom médico. Compreendia a dor alheia e tentava, com paciência e carinho, amenizá-las. Sempre se lembrava das dores que sentira na sua reencarnação anterior e tratava o próximo, seu paciente, como gostaria de ter sido tratado. E reservou, nos anos todos em que clinicou, um dia da semana para cuidar de crianças com deficiência: fez muitas cirurgias nas quais, às vezes, era ele quem pagava o hospital.
- Como foi bom para meu espírito lembrar-me da minha deficiência passada! - Jorge exclamou quando terminou seu relato.
Quando terminei esse relato, Antônio Carlos me fez mais uma pergunta, e a respondi. Talvez por achar a resposta interessante, meu amigo pediu para ditá-la à médium. Aí está:
- Justo, você sente receio de reencarnar?
- Sim, tenho receio. Muitos espíritos aqui na erraticidade temem a volta ao corpo físico por se saberem devedores ou porque precisarão passar por provas para vencer suas tendências nocivas. E aqueles que já passaram pelos itens citados compreendem que o caminho do progresso é por uma porta estreita e que recebemos influência do corpo carnal que é herdado de nossos pais biológicos.
- Quando era menino, escutei uma vez um sermão religioso, algo de que nunca mais esqueci. O orador disse: "No juízo final, Deus mandará os justos de corpo e alma para o céu, e os maus para o inferno, também com a alma e o corpo carnal. E, no inferno, o corpo físico e o espírito acusarão um ao outro pelos erros cometidos". Sabemos que é impossível a alma e o corpo sofrerem ou gozarem juntos depois que houve a separação pela desencarnação. Mas será que essa acusação teria sentido? Depois escutei que o corpo físico era como um cavalo e que era o espírito que dirigia o animal. E que precisava o espírito ter muita vontade e determinação para dirigir o cavalo, que também tinha vontades, intuições e desejos. Adulto, conversei com um oriental que jejuava periodicamente. Pensava que ele o fazia por sacrifício, mas me admirei com sua explicação: "Jejuo não por sacrifício, como muitos pensam. Muitos mestres e eu o fazemos para enfraquecer o corpo carnal para o espírito dominá-lo, sufocando suas vontades". E consegui entender mais sobre o assunto com as explicações que encontrei nos estudos de Allan Kardec. No livro O Evangelho segundo o espiritismo, no capítulo 17, "Sede perfeitos: cuidar do corpo e do espírito", Kardec compara o corpo como um cavalo que pode ser mal guiado. Já na obra O Livro dos Espíritos, capítulo 7, "Retorno à vida corporal: influência do organismo", explica muito sobre o assunto, assim como no item seguinte "Os deficientes mentais e a loucura". Citarei algumas frases. Se o leitor quiser saber mais, estude com atenção as obras de Allan Kardec e, se estiver interessado no assunto, leia os capítulos citados: "O exercício das faculdades depende dos órgãos que lhe servem de instrumento; são enfraquecidos pela grosseria da matéria"; "Assim o corpo material seria um obstáculo à livre manifestação das faculdades do Espírito, como um vidro opaco se opõe à livre emissão da luz"; "Os órgãos são os instrumentos da manifestação da alma; essa manifestação depende do desenvolvimento e grau de perfeição desses mesmos órgãos, como a boa qualidade de um trabalho depende da boa qualidade da ferramenta."; "Nunca dissemos que os órgãos não têm influência. Têm, e muito grande. Um bom músico com um instrumento ruim não fará boa música."; "Mas é preciso não perder de vista que, da mesma forma como o espírito age sobre a matéria, também a matéria reage sobre o espírito." Sabendo disso, meu amigo Antônio Carlos, receio reencarnar porque receberei influência do corpo físico e do meio ambiente. Reencarnar é uma grande responsabilidade para espíritos que têm conhecimentos, mas é uma imensa oportunidade para o crescimento espiritual. E que alegria se sente quando, ao retornar à pátria espiritual, o faz vitorioso. Assim termino meu pequeno documentário sobre reencarnação. E vocês, encarnados, podem analisar as diversas diferenças que existem nos modos de viver para concluir que a reencarnação é um fato, como também é verdade que a Terra, planeta que temos por morada, gira em torno de si mesma e do Sol. Que tenham todos uma encarnação proveitosa, para que a próxima volta ao corpo físico seja de boa colheita.

Muita paz! Justo.


3 . O Livro dos Espíritos. São Paulo: Petit Editora, Parte 4, Capítulo 2, Questão 1.009.
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1


A VIDA SEMPRE VENCE
MARCELO CEZAR
(ESPÍRITO MARCO AURÉLIO)

1864

Os americanos estavam livres da Inglaterra, tinham a própria Constituição, mas estavam presos à Guerra Civil. Muita gente ainda não conseguia entender como um país tão próspero podia estar guerreando entre seus próprios conterrâneos. Declarar guerra aos índios, aos espanhóis e aos mexicanos fazia parte da rotina de expansão territorial dos Estados Unidos; o aumento de seus territórios foi assim conquistado. Mas uma guerra entre eles próprios nunca havia ocorrido. Pela primeira vez na história, americano estava matando americano. A Guerra de Secessão, que se resumia à contenda dos territórios do norte com os territórios do sul do país, já durava três anos. Os estados do norte eram os mais ricos, responsáveis pela fabricação de munições, utensílios, máquinas, bens de consumo em geral. Os do sul eram responsáveis pela agricultura e pela pecuária. Os alimentos consumidos pelos americanos vinham predominantemente dos estados sulinos, cuja economia era baseada no trabalho escravo, repudiado pelos territórios do norte. Grande parte da população estava fazendo pressão para que o sul abolisse a escravidão, principalmente nessa época, em que a corrida do ouro estava no auge. Muito ouro foi descoberto na Califórnia. Um sem número de pessoas abandonou tudo que tinha para tentar a sorte nas minas e fazer fortuna no oeste. Um dos fatores que contribuiu para a guerra foi o fato de o sul querer levar o trabalho escravo também para as minas do oeste, transformando os Estados Unidos numa nação praticamente movida pela escravidão. A maior pressão a favor do fim da escravidão vinha da Inglaterra. O país, berço da Revolução Industrial, encontrava-se em forte crescimento. Para a rainha Vitória, interessava que o mundo fosse povoado por trabalhadores remunerados, que se tornariam consumidores dos bens produzidos pelo seu reino e pelo povo americano. A pequena cidade de Little Flower, no estado de Ohio, nos Estados Unidos, não sentiu o peso da guerra. Seus habitantes viviam do emprego que tinham em pequenas fábricas. Poucos homens se alistaram para a luta armada. Por estar numa região localizada fora da área de combate, tinha-se a impressão, muitas vezes, de que o país não estava em guerra. Little Flower era uma típica cidade de interior, onde todos os habitantes se conheciam. Fora batizada com esse nome devido ao grande número de árvores floridas que possuía. As folhas amareladas dessas árvores caíam suavemente de suas copas, derrubadas pelo sopro suave da brisa matinal, denunciando a chegada do outono. Tudo corria bem naquela manhã, até que o grito desesperado de Norma alterou a rotina da cidade. Correndo pela avenida principal, Norma, com os braços sacudindo para o alto, gritava e chorava ao mesmo tempo:
- Socorro! Socorro! Nossa Senhora! Alguém corra até lá. Algo de terrível aconteceu na casa de Sam e Brenda. As crianças... Pelo amor de Deus...
Tomada pelo desespero, ela desmaiou no meio da praça principal, sendo socorrida pelas pessoas surpresas e nervosas que vieram a seu encontro. Mark, o xerife da cidade, que estava por perto, correu para a casa de Sam e Brenda. Chegando à bela casa, ele encontrou Sam debruçado na escadaria principal, com as mãos cobrindo o rosto, gritando e chorando em desespero:
- Meus filhos! Como isso pôde acontecer? Como Deus pôde fazer um negócio desses comigo?
Levantou-se e abraçou o xerife.
- Mark, é inacreditável! Meus filhos estão mortos. Os meus dois garotos estão mortos. Foram me chamar lá no celeiro. Acho que minha mulher também está morta. Mark, o que está acontecendo conosco?
Mark não sabia o que dizer. Estava tomado por forte emoção. Diante de seu melhor amigo, sentia em seu peito que uma grande tragédia se abatera sobre aquela família. Após abraçar o amigo, com a voz embargada disse:
- Calma, homem! Acalme-se. Desse jeito não vamos chegar a nada. Tente se controlar, por favor.
Anna, a babá das crianças, apareceu na varanda. Com os olhos inchados e vermelhos, lágrimas escorrendo pelo rosto, dirigiu-se ao xerife:
- Oh, Mark, que bom vê-lo! Pensamos que Brenda também estivesse morta, mas ela já acordou. Provavelmente desmaiou de susto. Adolph foi buscar o médico. Parece que ela está em estado de choque.
- Anna, diga-me.
E, fazendo sinal para que ela lhe respondesse com a cabeça, sem Sam perceber:
- Como estão as coisas aí dentro?
Meneando a cabeça, ela deu a entender que os bebês estavam mortos. Só restou ao xerife abraçar o amigo. Os dois ficaram na escadaria da casa, chorando com muita dor a perda das crianças. O xerife Mark era padrinho dos filhos de Sam. Mesmo não sendo o pai, para ele aquela tragédia tivera o poder de estraçalhar seu coração. Depois de muito chorar, passando a mão na cabeça do amigo, perguntou:
- Mas como isso aconteceu? O que se passou? Os meninos caíram do berço?
Sam levantou-se bruscamente e, desesperado, começou a gritar:
- Estão estrangulados! Mark, meus gêmeos foram estrangulados. Quem poderia fazer um negócio desses conosco? Como? Não vimos ninguém entrar ou sair...
Sam parou de falar. A forte emoção impediu-o de continuar. Uma dor sufocante banhava sua alma. Sam casara-se com Brenda três anos antes. Eram amigos de infância. Filho único, Sam perdeu os pais aos dez anos. Foi morar com o avô Roger, que se tornou seu grande companheiro até morrer, havia dois anos. A amizade entre Sam e o avô era preciosa. Para eles não havia diferença de idade: conversavam sobre qualquer assunto. Eram muito amigos. Roger fora um homem ilustre, talvez o homem mais rico de Little Flower. Fez muito dinheiro quando descobriu algumas minas de ouro no oeste. Juntou o que considerava ser o suficiente para que seu único filho e seu neto tivessem uma vida tranqüila. Com a morte da esposa, do filho e da nora, todo o dinheiro que havia acumulado ficaria para o neto. Quando Roger morreu, Sam herdou toda a fortuna. Era um homem cujos ideais estavam longe da cobiça. Gostava de dinheiro, mas não vivia em função dele. Para Sam, o dinheiro devia ser gasto com inteligência. Seu maior desejo era comprar muitas fazendas no sul do país, depois da guerra. Gostava da terra, das plantas, do mato. Várias pessoas, inclusive o avô, já haviam insistido para que ele se mudasse para Nova Iorque. Mas Sam não gostava de agito social, preferindo lugares tranqüilos, como Little Flower. Desde pequeno demonstrava interesse em mexer com terra. Nas horas vagas, lá estava Sam plantando algo, cultivando qualquer coisa. Brenda irritava-se com essa postura do marido. Como podia um homem tão rico e tão bonito querer ficar plantando, ao invés de gastar a fortuna em viagens e festas? Isso preocupava Sam. Mesmo amando a esposa, sentia que teria problemas caso não usasse pulso firme, evitando que ela tomasse conta da situação e do dinheiro. Brenda sempre lhe dizia:
- Sam, com tanto dinheiro, você acha que eu quero morar aqui, nesta cidade encravada no meio do nada, sem vida social, sem atrativos para pessoas do nosso nível? Depois que nos casarmos, poderemos ir para Chicago ou Nova Iorque. O que acha?
- Brenda, você me conhece desde pequeno. Acredita mesmo que eu iria querer sair daqui? Sairia se eu tivesse a oportunidade de comprar terras no sul. Vamos esperar o fim da guerra, quem sabe?
Brenda, nessas conversas, não se dava por vencida. Ficava contrariada. O homem com quem iria se casar era milionário, mas não queria mudar o padrão de vida. Era a grande oportunidade de saírem daquela pequena cidade. Ela queria mais. Um dia convenceria o marido... Sam era um jovem bonito. Alto, forte, com fartos cabelos ruivos ondulados, olhos verdes. Dinâmico e trabalhador, meigo e doce, era adorado por todos. Brenda era uma bela moça. Loira, com os cabelos cacheados até as costas, olhos azuis, algumas sardas que davam colorido a sua tez alva, um corpo bem-feito. Sam amava-a desde pequeno. Brenda gostava muito de Sam, mas não o amava. Algumas pessoas mais próximas não aprovavam o namoro dos dois. Brenda era muito mimada, prepotente, arrogante. Tinha um temperamento muito forte. Era agressiva. Tudo tinha de ser de seu jeito. O pai mimara-a demais. Amigos da família suspeitavam que ela era revoltada por não ter o amor da mãe. A própria Brenda chegava a dizer isso algumas vezes, justificando seu temperamento agressivo:
- Minha mãe nunca gostou de mim. Nunca nos demos bem. Quando Anna veio morar conosco, piorou. Parecia que Anna era a filha, e eu a adotada. Mas não ligo. Com o dinheiro do meu futuro marido, não vou precisar do amor de ninguém, e, se precisar, eu compro...
Esse era o seu discurso. Alguns tentaram alertar Sam, mas ele não ligava para os comentários alheios. O importante era que ele a amava, o resto não lhe interessava. Para ele, Brenda era uma mulher doce e meiga. Às vezes, porém, ele percebia algo de estranho no olhar da esposa, o que o perturbava. Após duas gestações complicadas, que resultaram em dois abortos espontâneos, Brenda teve dois meninos, Jack e Roger, nomes estes em homenagem ao pai e ao avô de Sam, respectivamente. Eram bebê lindos, embora com a saúde debilitada. A relação de Brenda com os bebês era a mesma que sua mãe havia tido com ela. Se sua mãe fora-lhe indiferente, por que também não ser indiferente aos filhos, pensava. Sam tentava, debalde, contornar a situação:
- Querida, pelo fato de não ter recebido o amor que queria da sua mãe é que você deveria amar mais os seus filhos. E, além do mais, você não pode reclamar, porque o seu pai a tratava como uma princesa.
- Sei disso, Sam. Mas o papel do meu pai fica para você, que é pai agora. O meu é de mãe. Fui educada por uma mãe severa, sem amor. Gosto dos meus filhos, mas não consigo ser uma super-mãe. Se aquela desgraçada ao menos me tivesse dado um pouco de atenção...
- Brenda, isso é jeito de falar da sua mãe? Como você ousa dizer uma coisa dessas? Sua mãe era adorável. Só porque ela não realizava os seus caprichos não significa que não a amava. Eu nunca a vi bater em você ou ser mal-educada.
Brenda irritava-se com tais comentários, principalmente quando Sam defendia sua mãe. Sempre rebatia, aos berros:
- Você não sabe o que é não receber amor de uma mãe. Você teve uma mãe amorosa, foi filho único. Eu ainda tive a vergonha de ter uma falsa irmã, que apareceu do nada, que não tem o meu sangue, que foi amada pela minha mãe. Como ela pôde fazer uma desfeita dessas comigo? Demonstrar despudoradamente o seu amor por Anna e não por mim? Espero que minha mãe esteja queimando no inferno, embora preferisse um lugar pior para ela ficar, se é que existe.
Sam amargurava-se. Não conseguia compreender como sua mulher, em questão de segundos, se transformava de esposa amorosa em uma mulher que espumava ódio.
- Querida, acalme-se. Não fale mais assim. Você pode ter lá as suas diferenças com a sua mãe, mas não a insulte, ainda mais que ela está morta e não tem como se defender. Vamos esquecer o passado e seguir nossa vida. Temos duas lindas crianças para criar. E espero que seja o início de uma série.
- Uma série? Você ficou maluco? Você acha que vou estragar novamente o meu corpo e fazer mais filhos? Que vou passar a vida com um monte de crianças correndo pela casa?
- Brenda, você sempre me disse que queria muitos filhos. Por que isso agora?
- Porque sou eu quem engravida, e não você. Quem é que passa nove meses com cólicas, dores e desejos esquisitos? Quem fica na cama após o parto, inchada, com o corpo disforme e cheio de dores? Então não venha me pedir para cumprir esse papel tão maldito que foi impingido a nós mulheres.
- Eu desconheço você, Brenda. Há horas em que você se transforma. Desculpe-me, não vou continuar a discussão. Você precisa estar bem-disposta, com a cabeça boa para amamentar nossos filhos.
O amor de Sam por Brenda estava ligado ao apego que herdara de seu avô. Mesmo tendo uma boa cabeça e sabendo lidar bem com as adversidades da vida, Sam apegava-se facilmente às pessoas ao seu redor. Todos em Little Flower acreditavam que Sam iria enlouquecer após a morte dos pais. Não enlouqueceu. Como ele tinha o amor do avô, acreditavam que, quando este partisse, aí, sim, Sam não agüentaria. E ele agüentou, pois se apoiava demais em Brenda neste aspecto. Com o nascimento dos dois filhos, ele passou a ter três pessoas que lhe davam a sensação de segurança. Os bebês cresciam com a saúde debilitada. O terrível frio no inverno deixava-os constantemente gripados, febris. Mesmo assim, Sam seguia feliz, amando seus filhos e não se preocupando com a falta de amor de Brenda. Segundo o modo de pensar de Sam, as crianças vieram em dose dupla justamente porque os dois abortos, mesmo espontâneos, mostravam que esses dois espíritos queriam estar juntos, com ele e com Brenda. As pessoas riam dessas histórias, chamando-o de louco. Desde o tempo de namoro, Sam tinha uma visão diferente da religião protestante pela qual fora educado. Isso também era um ponto de atrito entre ele e Brenda.
- Sam, onde já se viu? Achar que eles queriam ficar conosco e voltar? Não, isso não é verdade. Deus põe no mundo a hora que quer e tira a hora que quer.
- E o que você acha do suicídio, Brenda? Se uma pessoa tem a capacidade de tirar a própria vida, como você me assegura que Deus coloca e tira a hora que quer? Não acha que há certa inconsistência nessa sua crença?
- Ora, não seja tolo! Você se esqueceu do demônio? O pastor sempre falou, lá na igreja, da tentação do demônio. O suicídio não tem a participação de Deus, de forma alguma. A pessoa é tentada pelo demônio e assim vai para o inferno, com aquelas pessoas ignorantes e estúpidas que também vão para lá quando morrem, tal qual minha mãe.
- Se Deus é perfeito e único, como pode haver um demônio com a mesma capacidade que Ele de fazer as coisas? Não acha que isso é invenção da cabeça ruim das pessoas? Porque, para mim, demônio é a cabeça de certas pessoas, e não um ser invisível que atua deliberadamente sobre elas. E, ademais, você é que enxergava em sua mãe uma estúpida. Será que ela não era vista como uma boa pessoa aos olhos de Deus?
- Boa pessoa? Lá vem você de novo a defendê-la. E para mim chega! Não quero ficar discutindo a minha religião com a sua maneira imbecil e esquisita de interpretar o mundo. Aliás, você e aquele meu primo meio biruta, Adolph. Ele deveria ser seu primo, e não meu. Onde já se viu ter aquelas idéias esquisitas de espíritos? Ele deve ser devoto do demônio, e não de Deus. O pastor disse que Adolph é um pecador e vai pagar caro no inferno, por deturpar as leis de Deus.
- Por deturpar as leis de Deus? Ou por mostrar que a igreja leva muita vantagem enchendo a cabeça de seus fiéis de culpa, medo e abnegação? A religião está dentro de nós. Aqui no peito é que é a morada de Deus, e não nesses templos luxuosos bancados por vocês, fiéis. Acha que Deus iria querer que seus filhos pagassem para poder participar do culto à Sua imagem? Ora, Brenda, pastores estarão sempre cheios de dinheiro enquanto as pessoas acreditarem que pagando o dízimo irão para o céu.
- Prefiro pagar o dízimo a ficar à mercê de cultos maléficos, mexendo com forças sinistras. Ou estudando questões metafísicas, como faz Adolph. Essas idéias que ele trouxe da Europa são disparatadas. Ferem os preceitos da Bíblia. Não quero Adolph por aqui. Se você quiser continuar com essas idéias estúpidas, você tem todo o direito. Mas não dentro de nossa casa. Meus filhos crescerão segundo os preceitos ditados pelo nosso pastor, e o assunto por ora está acabado. Você sempre me deixa com dor de cabeça. Não quero mais discutir isso ou qualquer outro assunto com você, Sam. Deixe-me em paz.
Sam continuou com seus estudos e procurou não mais os discutir com Brenda. Não valia a pena. Ela não queria aceitar, e tinha todo o direito de acreditar no que quisesse. Os estudos com o primo Adolph eram tão esclarecedores, tão inteligentes, que era impossível uma pessoa de bom senso não ser tocada pela profundidade daqueles ensinamentos. Adolph, primo de Brenda, concluiu os estudos na Europa. Quando regressou aos Estados Unidos, contou ao casal sobre os estudos que vinha realizando, envolvendo questões de filosofia, metafísica e espiritualidade. Quanto à filosofia e à metafísica, encantara-se com o escritor brasileiro J.G. de Magalhães. O Dr. Magalhães havia publicado recentemente o livro "Fatos do Espírito Humano", que abordava questões metafísicas com tanta desenvoltura que logo foi traduzido para o francês, tornando-se um grande sucesso na Europa. Quanto à espiritualidade, falara sobre estudos deste teor que surgiram na França. O renomado professor Léon Hippolyte Denizard Rivail, autor de inúmeras obras pedagógicas importantes, destacando-se a "Gramática Francesa Clássica", estava realizando algumas experiências acerca de fenômenos classificados como do "outro mundo", que ele vinha estudando havia algum tempo com um grupo de amigos. Era uma sensação. Nas altas rodas de Paris só se falava nisso, na coragem de um professor importante e respeitado estar ligado a esse tipo de assunto. Ele se preparava para publicar alguns livros relatando o resultado de seus estudos. A efervescência cultural e intelectual de Paris, tida como o centro dos acontecimentos na Europa, mostrava que o momento era ideal para tratar a religiosidade com uma nova roupagem. Os franceses sempre foram um pouco arredios em relação à dominação da igreja. E muitos aplaudiam o que o professor Rivail vinha fazendo, como também acolhiam, com respeito, a obra do Dr. Magalhães. A maneira como Adolph contava essas histórias contagiava Sam sobremaneira. Os dois sentiam que, de certo modo, a vida continuava depois da morte. Mas, como os preconceitos e tabus eram fortes e o material disponível para leitura era escasso, ambos desistiram de se aprofundar nesses estudos. Mas ali, com os filhos mortos dentro de sua própria casa, Sam voltou a pensar no assunto, pois nenhuma outra explicação poderia amenizar a imensa dor que ele sentia no coração. A cidade emocionou-se com o ocorrido. Por três dias o comércio e as repartições ficaram fechados. A tristeza tomou conta de Little Flower. Ninguém conseguia imaginar quem poderia ser o responsável por tão brutal crime. O xerife Mark, tão logo os bebês foram enterrados, viajou até a cidade vizinha. Acreditou que lá pudesse encontrar alguma pista, um suspeito. Mas nada. Sam, desde a morte das crianças, ficou incomunicável. Trancou-se no quarto dos filhos e lá permaneceu dias. Ficava sentado numa poltrona, próximo ao berço dos bebês, olhando para o nada. Era interrompido uma vez por dia para se alimentar. Anna preparava-lhe um caldo, misturado com um sedativo ministrado pelo Dr. Lawrence. Apesar disso, Sam definhava a cada dia. Brenda teve uma forte crise emocional durante o enterro dos filhos. Tentou jogar-se sobre os caixões, sendo segurada por amigos. Sam não tinha forças para ampará-la no enterro. Logo depois do funeral, Brenda trancou-se no quarto do casal. Enquanto Sam permanecia imóvel, sentado, olhando para o nada, Brenda tinha crises de choro e pesadelos. Passava horas correndo pelo quarto, como que fugindo de algo ou alguém. Gritava histérica:
- Saiam daqui! Quem são vocês! Eu nunca os vi antes. Parem de me infernizar! Parem!
Assim permaneceu por dias. Ela não se alimentava, não queria falar com ninguém. Após a morte dos filhos, Sam e Brenda não ficaram mais juntos. Cada um num canto, digerindo a dor cada qual à sua maneira. Sam calado e Brenda com gritos e ataques de histeria. O Dr. Lawrence aplicou alguns sedativos em Brenda, mas de nada adiantavam. As crises aumentavam a cada dia. Mark, Adolph e Anna eram agredidos tão logo tentavam entrar no quarto. Brenda não queria a ajuda de ninguém.
- Deixem-me só! Eu nunca tive ninguém na vida. Mas as coisas não vão ficar assim. Eu prometo que vou dar um jeito nesta situação.
Os amigos faziam orações, tentavam falar com Sam para que ele pudesse convencer a esposa a tratar-se, a sair do quarto. Mas era inútil. Sam não queria saber de nada. Estava descontente com a vida, com Deus. Não tinha mais forças para lutar. Como Deus podia permitir que pessoas entrassem em sua vida e depois partissem, sem mais nem menos? Por que então Deus lhe tinha dado a afeição, o amor, se tudo terminava de uma hora para outra? Onde estava o aprendizado, se é que havia algum? Um mês depois da morte das crianças, Sam e Brenda continuavam na mesma situação. Mark e o Dr. Lawrence arrumaram uma equipe de médicos de Chicago para cuidar do triste casal. O Dr. Lawrence estava intrigado com os ataques histéricos de Brenda. Será que ela estava ficando louca? Será que a morte dos filhos havia afetado suas faculdades mentais? Durante o dia, Brenda passava bem. Ficava sentada numa cadeira, sedada, olhando o sol entrar pela janela do quarto. Ao escurecer, ela se transformava. Conforme o sol se guardava, seu corpo começava a tremer. Brenda suava frio. As visões tornavam a surgir. Ela entrava em pânico:
- Por Deus, deixem-me em paz! Eu vou enlouquecer! Quem são vocês? O que querem comigo? Digam o que querem e deixem-me em paz. Mas me digam.
Quando o médico ou algum outro amigo queria conversar a respeito dos gritos noturnos, Brenda dizia estar bem, que eram pesadelos somente. O orgulho não lhe permitia passar a imagem de uma mulher louca, descontrolada. Ela dava muita atenção à opinião das pessoas. Como os outros iriam encará-la se soubessem o que se passava? Não, esse gosto as pessoas não teriam, principalmente Anna, a meia-irmã. Não iria fazer esse papel ridículo. Mark chegou correndo à casa de Sam:
- Anna, Anna, abra a porta.
Anna estava terminando de preparar um caldo para Sam. Assustada, abriu a porta:
- O que foi, Mark? O que aconteceu?
- O Dr. Lawrence está na estação. Os médicos estão chegando daqui a meia hora. Graças a Deus! Quem sabe agora Sam e Brenda não ficam bons de vez, e tudo volta ao normal?
Anna, com sua meiguice, pela primeira vez desde a tragédia esboçou um sorriso, e com alegria nos olhos disse:
- Que bom! Como torço para que ambos fiquem bons. Sam já está melhorando. A cada dia reage mais.
- Com a sua dedicação e carinho, qualquer um melhora.
- Imagine! Gosto muito de Sam e Brenda. Se não fosse a família dela, não sei onde eu estaria hoje. Mas Brenda não quer me ver de jeito nenhum. Só deixa o Dr. Lawrence entrar no quarto. Eu aproveito essa hora e mando um prato de caldo para ela não definhar.
- Pois bem, daqui à uma hora, mais ou menos, o Dr. Lawrence vem para cá com os médicos. Sam e Brenda não podem saber. Vamos pegá-los de surpresa, certo?
- Deixe comigo, Mark. Vou ficar sentada no corredor, vigiando as portas dos quartos. Bem, deixe-me terminar o caldo que estou fazendo para Sam. Estarei ansiosa esperando por vocês.
- Até daqui a pouco.
Mark despediu-se e foi direto para a estação. Uma nova onda de ânimo invadia-o, pois gostava muito de Sam. Exceto Anna, ninguém mais próximo ao casal sentia afeição por Brenda. Estavam fazendo tudo isso em consideração a Sam, e não em consideração a ela. Duas horas depois, Mark chegou com o Dr. Lawrence e uma equipe de quatro médicos. Anna abriu a porta da casa de Sam e conduziu-os à sala.
- Anna - disse o Dr. Lawrence -, leve os médicos ao quarto das crianças. O estado de Sam está ligado ao desânimo e à falta de alimentação. Parece-me um caso mais fácil de ser resolvido. Depois, conduza-os até o quarto de Brenda.
- Mas, doutor - perguntou Anna -, e se ela resistir e não abrir a porta? O senhor sabe como ela se comporta ao anoitecer, não é mesmo?
- Sim, eu sei. Mas, tão logo eles saiam do quarto onde está Sam, faça com que entrem no quarto de Brenda. Depois os deixe a sós com ela. Desça e prepare um caldo para todos nós, e ajeite cinco camas. Vamos passar a noite nos quartos de hóspedes lá no sótão.
- E você, Mark? Não vai dormir aqui esta noite?
- Não posso, Anna. Preciso fazer minha ronda na cidade. Mas logo cedo estarei aqui. Ao invés do caldo, quero que você me prepare um bom café amanhã cedo.
- Está bem. Só de saber que esses médicos poderão nos ajudar... Por favor, senhores, venham comigo.
Anna conduziu os quatro médicos até o quarto onde Sam estava. O Dr. Lawrence ficou na sala conversando amenidades com Mark antes que este partisse para sua ronda noturna. Os médicos não se assustaram com a aparência de Sam. Estava magro, enfraquecido. O que mais chamava a atenção era a expressão de profunda tristeza em seu olhar. A equipe conversou um pouco com ele e ajudaram-no a banhar-se. Após tomar os medicamentos que eles trouxeram, Sam ficou mais relaxado. Um dos médicos chamou Anna:
- Senhorita, por favor, onde fica o quarto da madame? Poderia me levar até lá?
- Mas já? Sam não precisa de mais cuidados?
- Senhorita - respondeu o médico -, o que acontece com esse homem aí dentro não é doença. Ele perdeu o sentido da vida. Seu corpo físico está um pouco debilitado, mais nada. A verdadeira doença que ele tem está na alma, portanto é uma doença emocional, e não física. Só o tempo vai poder ajudá-lo a superar as perdas que teve. Mas, segundo o Dr. Lawrence, o que preocupa mais é o estado da esposa. Parece que ela fica mal à noite. É verdade?
- Sim, é verdade - disse Anna um tanto perturbada com as palavras do médico. - Antes de irmos para o quarto de Brenda, queria perguntar-lhe algo.
- Pois não, senhorita, pergunte.
- O senhor disse que a doença dele não é física. Se não é doença, então o que ele tem?
O médico fez sinal para que os outros três permanecessem mais um pouco no quarto de Sam. Pegou Anna delicadamente pelo braço e sentaram-se num pequeno sofá no corredor.
- Senhorita, sou médico há mais de trinta anos. Já vi muitos casos nesta minha vida. O fato de lidar diariamente com doentes fez-me questionar as coisas que acontecem em nossas vidas. Por que adoecemos? Por que ficamos loucos ou debilitados?
Anna interrompeu-o:
- Porque Deus assim quer, e assim sempre será. Mas, antes de continuarmos, qual o seu nome, doutor?
- Meu nome é Anderson. Formei-me aqui nos Estados Unidos, mas passei alguns anos clinicando no Rio de Janeiro, no Brasil.
- Rio de... Brasil? Ah, sei. O primo de Brenda, Adolph, tem amigos brasileiros que moram na França. E qual é a sua impressão sobre o Brasil?
- É uma terra muito boa, muito bonita, com pessoas maravilhosas, e tem uma diversidade religiosa impressionante. Devido à mistura de raças no país, há vários cultos, várias religiões, se assim posso dizer. Durante os cinco anos em que lá fiquei, tive contato com essa religiosidade, e assim pude perceber aquilo que os nossos olhos de carne não vêem, compreende?
Anna procurava entender. Nunca ouvira alguém falar daquela maneira antes.
- Então lá a religião não é como aqui, unificada?
- Sim, aparentemente é. Mas o povo lá é muito engraçado. Diz que é católico, mas faz rezas, oferenda para santos que não estão ligados à igreja católica, recorre às benzedeiras...
- Desculpe, doutor, mas o que são benzedeiras? O senhor usa um vocabulário que eu nunca ouvi antes.
- Benzedeiras são mulheres capazes de curar uma doença que a própria medicina ainda luta para encontrar a cura. São mulheres, porque os homens que fazem esse trabalho lá são chamados de curandeiros. Elas fazem poções com ervas que nos são desconhecidas, fazem chás, rezas. E o pior, ou melhor, é que curam. Acredite.
- Nossa, que interessante! Mas o que tudo isso tem a ver com o caso de Sam e Brenda? Por mais que conversemos, ainda acho que isso tudo é coisa de Deus...
- Mas é - garantiu-o. E acredite, senhorita, eu vim aqui mais interessado no caso de sua patroa. A madame tem pesadelos e suores noturnos?
- Isso mesmo. Suores, calafrios. E os gritos, então? É impressionante! Parece que Brenda está agonizando, morrendo. Conforme amanhece, ela se acalma e dorme praticamente o dia todo. No fim da tarde, começa tudo outra vez.
- É natural. Os espíritos preferem atormentar os seus algozes durante a noite.
Anna não deixou o Dr. Anderson terminar sua fala. Arregalou os olhos e, trêmula, segurando firmemente as mãos do médico, gaguejou:
- Es-pí-ri-tos? O doutor está falando em espíritos? Deus do céu! O senhor acha...
- Sim, eu acho. Mesmo sendo científico, trabalhando somente com a razão, percebi, desde que morei no Brasil, que devemos olhar as situações que vivemos com os olhos do espírito, e não com os olhos da carne. Portanto todos nós somos espíritos, só que vestidos com um corpo de carne, que é este aqui que vemos. Eu, você, Sam, Brenda, o Dr. Lawrence...
- Mas espíritos não são invisíveis? Não são um bando de almas penadas que vivem infernizando a vida das pessoas boas aqui no mundo?
- Não, de maneira alguma. Veja, nós somos espíritos vestidos com o corpo de carne, daí dizermos que estamos encarnados aqui na Terra. Os invisíveis, ou almas penadas, segundo você, são os desencarnados. A única diferença entre nós e eles é que estamos com o corpo físico, e eles não. Mas eles são iguais a nós. Eles também têm sentimentos, sensações, e há tanto os bons quanto os maus.
- Existe então alguma alma penada boa?
- Senhorita, alma penada é o termo usado pelos padres e pastores. Meu argumento é que uma alma penada é um espírito que sofre pelas próprias atitudes. São espíritos que não querem encarar a realidade. E Deus, na sua infinita bondade, provoca a dor, o sofrimento, a fim de que eles enxerguem a verdade. Veja, Deus nos deu a escuridão para que percebêssemos a magnitude da luz. Este nosso mundo é assim, aprendemos por contrastes.
- Então damos valor ao bem porque existe o mal?
- É mais ou menos isso. Eu levaria um bom tempo para explicar essas coisas. Mas isso não é tão complicado. Basta querermos nos desnudar dos valores sociais, das crenças que aprendemos a impregnar em nosso espírito através de sucessivas encarnações. Libertando-nos disso tudo, veremos a verdade de nossas almas.
- Nossa, doutor, que maneira encantadora de falar! E quanto a Brenda? O doutor acha que ela está sendo importunada por espíritos? Por quê? Embora ela sempre tenha sido um pouco prepotente, nunca foi uma mulher má.
- Os espíritos, bons ou não, ligam-se às pessoas aqui na Terra pelas afinidades de pensamento. Se você acredita que o mundo é cruel, violento, cheio de sofrimento, vai estar com o seu pensamento ligado a espíritos que também pensam dessa forma. Mas se você acreditar que só existe o bem no mundo, que a dor só serve para acordar-nos e para mostrar-nos que não estamos fazendo o melhor que deveríamos fazer, então estará ligada aos espíritos de luz, que nos ajudam, nos aconselham, nos orientam enquanto estamos vivendo aqui. No caso de Brenda, pelo que o Dr. Lawrence me contou, acredito que ela tenha se ligado a desafetos do passado. Alguma atitude dela, algum tipo de pensamento ligou-a energeticamente a esses espíritos, cujos laços só poderão ser desatados pela reforma de suas próprias atitudes.
- Então quer dizer que, se Brenda for boa, vai melhorar? Vai conseguir separar-se desses espíritos ruins? Que situação!
- Não é uma questão de ser boa ou má. A bondade é relativa aqui no mundo. Eu posso ser uma boa pessoa e você achar que eu sou frio, indiferente.
- Não falei isso do senhor.
- Não, minha filha, você não falou. Estou lhe dando um exemplo. Nós interpretamos as bondades e maledicências das pessoas segundo os nossos padrões de pensamento, segundo as nossas crenças, segundo os nossos valores. Cada um de nós tem dentro de si uma imagem do que seja uma pessoa boa ou má. E garanto-lhe que as más, às vezes, são melhores do que aquelas que nos parecem boas. Todos nós um dia teremos de encarar as nossas verdades, doam ou não. Só assim estaremos sempre caminhando na trilha da luz.
- E quanto a Brenda?
- Bem, quanto a ela, eu não sei. Não a conheço ainda para dar um veredicto. Mas, pelo que o Dr. Lawrence me falou, ela sempre foi muito mimada, sempre quis as coisas do seu jeito. E a vida não funciona assim.
- Não? Como assim, doutor?
- A vida funciona da sua própria maneira. Daí a necessidade de nos livrarmos de determinados conceitos e voltarmos nossas atitudes para o nosso melhor. Confiarmos e deixarmos que a vida nos conduza para onde devemos ir. Jamais interferir em nossa vida com mimos, desespero, preocupação ou rigidez. Devemos confiar em Deus e fazer aquilo que dá para fazer, e não aquilo que queremos fazer por teimosia.
- Mas Brenda passou por poucas e boas ultimamente. Perdeu os pais antes de as crianças nascerem. E agora também os filhos. Doutor, o senhor não acha que é muito sofrimento para um ser humano?
- Diante do ocorrido, Anna, se entrarmos no estado emocional, se tomarmos as dores de Brenda, iremos achar que Deus errou e que a desgraça na vida dela não teria razão de ser. Ora, eu não nego que a perda de pais, e muito mais a perda dos filhos, nos deixe infelizes. É muito dolorido, pois sempre achamos que partiremos antes dos filhos, como se a vida seguisse padrões rígidos e imutáveis. E a vida está sempre em constante mutação. Por que os pais devem morrer antes dos filhos? Isso é crença nossa. Todos os dias temos casos nos mostrando o contrário. Quantos país não perderam seus filhos em acidentes, ou por doenças, ou nesta guerra pela qual estamos passando?
Anna sentiu-se tocada pela conversa. Estava maravilhada com as palavras de Anderson. Embora sua cabeça estivesse fervilhando com esses novos conceitos, seu coração absorvia cada palavra que o velho homem lhe dizia. Ela se atreveu a perguntar:
- Então para esses pais foi uma punição? Por serem pecadores? Pois essa é a razão que ouvimos lá na igreja, quando alguém perde um filho nesta guerra, por exemplo.
O médico continuava pacientemente a conversar com a moça:
- Procure, antes de tudo, livrar-se dessa imagem de um Deus ruim, punitivo, vingativo. Essa é uma visão errada que temos de Deus. Só o bem é real, só existe o bem no mundo. O mal nada mais é do que uma visão distorcida do bem.
- Puxa, nunca tinha pensado nisso antes. Como isso pode ser possível?
- Veja o exemplo desses pais que perderam os filhos. Tudo na vida é experiência. Alguma coisa deve servir de lição para melhorar a vida desses pais.
- Melhorar? Como assim? Agora estou confusa.
- Eu digo melhorar porque, se Deus permite que um filho seja arrancado dos braços de uma mãe, é porque essa mãe deve aprender alguma coisa com essa experiência. Ás vezes passamos por situações tidas como horrorosas e doloridas em nossas vidas. Mas acredito e sinto que isso aconteça para despertarmos para o melhor, para entendermos mais sobre os mecanismos da vida, para procurarmos olhar o mundo como um grande laboratório.
- Desculpe-me, Dr. Anderson, mas está dizendo isso porque não foi o senhor quem perdemos filhos. É fácil entender e aceitar a dor dos outros. Não é nossa, não é mesmo?
Anderson percebeu o estado emocional da moça, mas não se deixou abater. Com as experiências de vida que tinha, pegou pacientemente as mãos de Anna e pousou-as sobre seu colo.
- Cada um na vida tem a sua porção de tragédia. Acredito que você tenha ou vá ter ainda a sua porção. E digo isso porque só assim é que despertamos para a nossa verdade, para a luz. Deus usa certos mecanismos para tirar-nos de nossas ilusões, para fazer-nos perceber a realidade e a beleza da vida.
Anna sentiu-se mal por ter feito aquela pergunta ao médico. Estava se sentindo envergonhada. Mas Anderson continuou, fingindo não notar o constrangimento da moça:
- Sabe, alguns pais perdem os filhos porque não lhes deram atenção ou amor. Outros enchem os filhos com tantos mimos, com excesso de zelo, ficam tão apegados, que a perda serve para diminuir o grau de dependência que estavam criando com os filhos. Outros os perdem para entender que ninguém é de ninguém nesta vida, que estamos aqui hoje, mas que não há garantias de que estejamos aqui amanhã. Porém conforta-me saber que Deus faz tudo certo. Daí eu tiro a conclusão de que o importante e o que vale na vida são os momentos que vivemos. Por isso, quando acordo, eu saúdo o sol, sinto os meus pulmões filtrando o ar, agradeço a Deus por estar aqui mais um dia e procuro passar o tempo reformulando os meus pensamentos, procurando melhorar minhas atitudes, procurando ser uma pessoa cada vez mais feliz comigo e, conseqüentemente, com o mundo ao meu redor.
- Dr. Anderson, adorei o seu discurso. Mas ainda digo ao senhor: é fácil falarmos dos outros quando a tragédia não acontece conosco.
- Senhorita, eu perdi o meu único filho...
Anna tirou as mãos do colo de Anderson e com elas cobriu a boca, abafando um grito de susto. Estava perplexa. Sentiu-se constrangida.
- Desculpe-me, doutor! Perdão! Eu nunca poderia imaginar... Um homem tão calmo, falando sobre a vida de uma maneira tão fantástica, tão desprendido dos valores...
- Eu sei. Você não precisa me pedir perdão, você não me conhecia. Já está sabendo mais do que muita gente sabe a meu respeito. Eu gostei de você, do seu jeito, você tem uma boa energia, é isso.
- Boa energia?
- É, você é uma pessoa agradável, gosto de estar a seu lado. Quando estamos em equilíbrio, podemos perceber a energia das pessoas. Porque energia se sente, não se vê. Bem, isso não vem ao caso agora. Falarei do meu filho.
Anderson deu um breve suspiro e, olhando bem fixo nos olhos de Anna, começou a contar:
- Júnior era um excelente rapaz, cheio de vigor, cheio de vida. Quando recebi o convite de um amigo meu para ficar uns tempos no Brasil, meu filho me acompanhou. Sua mãe não quis ir, preferiu ficar em Chicago. Júnior queria ser médico, como eu. Eu amava muito o meu filho, mas tínhamos uma relação muito distante, porque eu acreditava nos padrões de nossa sociedade, segundo os quais devemos educar o filho à distância, sem intimidades. Ah, meu Deus... Às vezes eu me arrependo um pouco. Faria tantas coisas com meu filho... Eu o abraçaria e beijaria todos os dias, eu o acompanharia nos estudos... Eu seria um amigo mesmo, e não um pai formal.
Lágrimas começaram a surgir nos olhos de Anderson. Seu filho morrera havia mais de dez anos, mas lembrar-se de Júnior sempre o deixava emotivo. Anna também estava em lágrimas. Procurou conter-se, a fim de que Anderson continuasse sua história.
- Bem, nós nos apaixonamos pelo Brasil. Júnior não queria mais voltar para a América. Júnior odiava o frio, e o fato de não haver neve por lá o deixava encantado com aquela terra. Era muito esperto e estudioso, e em questão de meses já estava falando português, que é a língua falada naquele país. Os anos foram passando, e chegou à época de estudar medicina. Ele se preparou para ir estudar em Londres. Duas semanas antes de embarcar, foi acometido por um tipo desconhecido de febre. Foi quando tive contato com as benzedeiras. Uma empregada nossa tinha uma amiga que era benzedeira.
Anderson fez uma pequena pausa e continuou:
- Eu era muito cético. Não acreditava em nada. Sempre fui muito racional. Mas tudo mudou quando eu conheci uma escrava, Maria. Uma mulher fantástica, com muito mais sabedoria do que muitos cientistas e sábios juntos. Uma mulher com um conhecimento profundo sobre a vida. Muito do que eu lhe disse há pouco aprendi com ela. Maria cuidou de Júnior com o amor e o carinho de uma mãe. Era uma moça muito bonita. Ela dizia ter vidência.
- Desculpe mais uma vez, doutor, mas ela tinha o quê?
- Ah, eu é que peço desculpas. Estou tão familiarizado com tudo isso, que esqueci que você é novata no assunto. Bem, vidente é a pessoa que vê os espíritos. E Maria, tão logo foi cuidar de Júnior, viu o guia dele. O guia de Júnior disse a Maria que meu filho tinha de partir, que a hora dele era aquela, que tanto ele quanto eu sabíamos disso antes de reencarnar. Júnior teria uma morte tranqüila e iria continuar seus estudos numa colônia espiritual ligada ao Brasil, devido a suas vidas passadas estarem relacionadas àquele país. E eu deveria aprender a lei do desapego, do amor maior, do amor incondicional. Um treino em que eu tinha de esquecer-me do amanhã e viver o hoje, o agora, o aqui. Que, por mais dolorido que fosse, Deus não estava me punindo, mas me mostrando que tudo é eterno, que tudo continua na vida. Que apenas passamos por situações para melhorarmos, sempre. E foi devido à morte de Júnior que eu despertei para os estudos da vida espiritual. Eu me sentava com Maria e um grupo de escravos bem velhos, amigos dela, que me passavam cada ensinamento. Não há nada no mundo, livro que seja, filósofo que exista, tão inteligente quanto aquelas humildes pessoas no Brasil. Graças a eles estou aqui hoje, firme, forte, com uma boa cabeça. Sei que meu filho continua vivo, em espírito. Sei que ele está bem, trabalhando e estudando. Um dia nos encontraremos novamente. Nesta vida ele foi meu filho, mas e nas outras? Quem sabe o que possa ter acontecido para termos de viver essas experiências, não é mesmo?
Anna estava boquiaberta. O médico falava com muita calma mas ao mesmo tempo com uma firmeza que a deixava impressionada. Um homem que havia sofrido a perda do único filho, ali na sua frente, mostrando todo aquele amadurecimento emocional, porém sem deixar de mostrar a dor da perda. Era impressionante.
- Doutor, o senhor é uma pessoa maravilhosa! Passar por tudo que passou e ainda viver desse jeito...
- Não me leve a mal, senhorita, mas, se Júnior não tivesse morrido, eu hoje talvez não estivesse aqui conversando essas coisas com você. Talvez eu não percebesse o quanto a vida é magnífica e bela. O quanto ela é perfeita.
- Pena que o senhor teve de despertar dessa forma.
- Não me sinto vítima. Sentir-se vítima da situação é dar poder para algo que você mesma pode controlar. Ser vítima é responsabilizar Deus ou os outros por tudo de ruim que acontece em nossas vidas. Eu não sou vítima. Cada um desperta de um jeito. Eu despertei assim, porque para mim foi o melhor que poderia ter acontecido. O mesmo acontece com esse casal, Sam e Brenda. Garanto a você que ninguém carrega sua cruz com mais peso do que deva carregar. A vida nos dá o peso exato da dor. Se esse casal está passando por isso, alguma coisa a vida deve estar querendo lhes mostrar. Vamos aguardar.
- O senhor tem toda a razão. Estou meio atrapalhada em meus pensamentos. Mas sinto em meu coração que o senhor diz a verdade.
- Bem, minha cara, vamos ao quarto de Brenda.
Anderson levantou-se. Sentiu um mal-estar muito grande. A tontura foi tanta que ele caiu no sofá. Anna preocupou-se:
- Doutor, o senhor está bem? O que está havendo? Está pálido...
Ele procurou recompor-se. Fechou os olhos por uns instantes e começou a orar. Anna não sabia se ele estava conversando, orando ou fazendo ambos ao mesmo tempo. Aos poucos, ele foi melhorando. Pediu a ela que lhe trouxesse um copo de água. Ela desceu correndo as escadas e retornou poucos segundos depois.
- Tome, doutor. Coloquei um pouco de açúcar também.
- Obrigado, menina.
Anderson levantou-se do sofá, respirou profundamente e soltou vagarosamente o ar pela boca. Fez isso três vezes. Em seguida foi ao quarto de Brenda, seguindo sua intuição, sem perguntar a Anna onde ele ficava. Anna ficou estática ao ver Anderson daquele jeito. Não parecia o mesmo homem com quem ela havia conversado minutos atrás. Ela não percebeu que Anderson estava ligado ao seu mentor, daí a leve alteração em seu estado. Com a voz levemente mudada, o médico pediu a Anna que ficasse sentada no sofá.
- Deixe que eu vá sozinho até lá. Eu a chamarei assim que for permitido.
Ele caminhou até a porta.
- Sra. Brenda, por favor, abra a porta. Precisamos conversar.
Nada. Nem um som. Ele bateu novamente.
- Sra. Brenda, meu nome é Anderson, um amigo da família. Abra a porta, por favor. Precisamos conversar.
Percebia-se o silêncio do outro lado. Anderson abriu a porta. O quarto estava tomado pela escuridão. Deixou a porta entreaberta e voltou ao corredor, apanhando uma lamparina. Entrou no quarto. Não havia ninguém. Com a lamparina na mão, foi entrando. Brenda não estava lá. Onde estaria? Teria descido? Foi até a janela. Estava trancada por dentro. Procurou iluminar o quarto, acendendo as velas do lustre. Foi até o vestíbulo, ligado por um pequeno corredor dentro do quarto. Por sorte, Anderson estava sendo amparado por seu mentor. Com o pavor estampado nos olhos, soltou um grito abafado. No meio do corredor, uma cadeira caída. No teto, presa ao lustre, uma corda... Brenda havia se enforcado. Anderson foi intuído por seu mentor. Tão logo passou o susto, abaixou-se e começou a fazer uma sentida prece, dirigida ao espírito de Brenda, que não mais se encontrava no quarto. Levantou-se, procurando se recompor. A sua frente estava uma mulher com a coloração da pele já indo para o roxo. Os olhos estavam virados, a cabeça pendia para o lado, os braços largados e as mãos cerradas. Era uma cena chocante. Anderson, por hábito da profissão, procurou tomar o pulso de Brenda. Pela rigidez do corpo, devia estar morta havia algumas horas. Não podia removê-la. Precisaria falar com o xerife antes. O médico mais nada podia fazer. Fez o sinal da cruz e pediu a Deus que fizesse o melhor por aquele espírito que acabara de desencarnar. Foi saindo do quarto e encostando a porta. Anna veio ao seu encontro.
- Então, doutor, como ela está? Não ouvi gritos, nada. Ela está dormindo?
Anderson procurou manter a calma, para não a assustar.
- Aparentemente está dormindo. Vamos descer, preciso conversar com o Dr. Lawrence e o xerife.
Desceram as escadas e foram até a saleta onde estavam Lawrence e Mark. Assim que entraram, o xerife perguntou:
- Então, doutor, como está Sam?
Anderson procurou manter a calma.
- Ele está bem. Os médicos estão lá conversando com ele. Ele só está um pouco debilitado. Dentro de alguns dias estará bem melhor.
Lawrence perguntou:
- E Brenda? Não ouvi grito algum. Acabaram-se os pesadelos noturnos?
Anna interveio, animada, sem imaginar o que realmente havia acontecido:
- O doutor ficou alguns minutos com Brenda. Não ouvi gritos também, Dr. Lawrence. Parece-me que ela está bem, não é, doutor?
Anderson pigarreou, cocou a nuca, passou a mão nervosamente pelos cabelos prateados. Procurava nesses segundos uma maneira de lhes contar o ocorrido. Colocou-se na frente de Anna, Mark e Lawrence.
- Bem, senhores, se a Sra. Brenda está bem, eu não sei. A minha parte está encerrada. O caso da Sra. Brenda agora fica nas mãos do senhor, xerife.
Nenhum dos três entendeu o porquê de o médico ter falado aquilo. Todos se entreolharam com um sinal de interrogação estampado no rosto. Mark logo entendeu a situação, mas relutava em aceitar a verdade. Gaguejando e nervoso, aproximou-se de Anderson.
- O senhor está dando o caso de Brenda para mim? Então... Meu Deus... Dr. Anderson... Ela está...
Mark não terminou de falar. Começou a esmurrar a parede à sua frente. Anna e Lawrence ficaram aturdidos. Ainda não haviam percebido a verdade. Anna abraçou Mark.
- Não fique assim, tudo vai se resolver.
Mark desprendeu-se de Anna. Gritando muito, disse-lhe:
- Anna, você não compreende? Brenda está morta! Morta, ouviu?
Anna estremeceu. A emoção foi tanta que não agüentou e desmaiou. Anderson e Lawrence pegaram-na e colocaram-na no sofá. Anderson foi até a cozinha e trouxe-lhe um pouco de água. Enquanto isso, Lawrence, também estupefato com a situação, perguntou a Mark:
- Meu filho, como Brenda pode estar morta? O que está acontecendo nesta casa?
- Não sei, Dr. Lawrence, não faço idéia. Esperemos pelo Dr. Anderson e vamos subir.
Anderson chegou com um copo de água com açúcar. Passou um líquido nas narinas de Anna. Logo ela acordou.
- Dr. Anderson, é um sonho, não é mesmo?
A expressão no rosto de Anderson indicava que ela havia ouvido a verdade. Brenda estava morta. Anna, nesse momento, não pensou em Brenda, mas em Sam.
- Como vamos dizer isso a Sam? Há um mês seus filhos morreram. E agora a esposa. Doutor, foi parada cardíaca?
Anderson sabia que iriam perguntar-lhe sobre a causa mortis.
- Senhorita, acho melhor você ir até o quarto de Sam. Fique lá com ele e com os médicos, mas não diga nada. Eu vou com Lawrence e Mark até o quarto de Brenda, para tomarmos as providências necessárias.
Subiram as escadas, em profundo silêncio. Anna entrou no quarto de Sam. Procurou manter a calma e ficou lá sentada, esperando. Anderson conduziu Mark e Lawrence até o quarto de Brenda.
- Senhores, por favor, mantenham a calma.
Mark e Lawrence não entenderam o que Anderson estava dizendo. Lawrence, meio aturdido, perguntou:
- Mas ela não está aqui no quarto, Anderson. Se ela está morta, deveria estar ali na cama. Onde ela está?
Mark foi até o outro lado da cama, achando que Brenda pudesse estar caída no chão.
- Por favor - disse Anderson -, dirijam-se ao vestíbulo.
Mark foi na frente, estugando o passo. Chegando ao corredor, deparou com o corpo de Brenda. Ele não conseguia acreditar. Ela havia se matado. Subitamente o semblante de Mark mudou. Ficou com raiva. Ele poderia até ficar triste se ela tivesse morrido por qualquer outro motivo. Mas tirar a própria vida? Deu meia volta e retornou ao quarto. Seu ódio era tanto que começou a gritar:
- Dr. Lawrence, o senhor, que é médico, vá lá e faça a sua parte. Eu não tenho nada o que fazer, a não ser cuidar do meu amigo Sam. Como ela pôde ser tão egoísta, como ela pôde ser tão covarde?
Lawrence não entendeu o porquê de Mark estar furioso.
- Calma, meu filho. Não fique assim. O que foi?
- Vá lá, Dr. Lawrence, e veja com os seus próprios olhos. Ela se matou, o senhor ouviu bem?
Lawrence foi tomado de enorme surpresa. Virando-se para Anderson, perguntou, aflito:
- Suicídio?
Anderson fez sinal afirmativo com a cabeça. Lawrence pôs as mãos na cabeça.
- Meu Deus. Mark, o que faremos?
- Eu não vou fazer nada. O senhor e o Dr. Anderson vão lá e tirem aquele corpo amarrado naquela corda. Tratem de tudo. Eu corro só com a papelada. Velório e enterro, se é que ela merece, deixo a cargo de vocês.
Anderson, percebendo o estado emocional de Mark, procurou mudar o tom da conversa:
- Mark, tenha calma, porque você vai precisar estar ao lado de Sam. Precisa prepará-lo para a verdade.
- Para a verdade? Que verdade? Saber que era usado por uma mulher sem escrúpulos, só interessada em seu dinheiro, mimada, prepotente, arrogante? O senhor fique sabendo que eu aturava essa mulher por causa de Sam. Eu nunca gostei dela. Essa morte combina com ela. Somente um monstro como ela poderia morrer assim.
Lawrence procurou acalmá-lo:
- Calma, Mark. Eu sei que não está sendo fácil. Você era o padrinho das crianças. Eu sei que você gosta muito de Sam. Mas ela era uma boa moça, uma boa esposa, uma boa mãe.
Mark espumava pelos cantos da boca, tamanho o ódio que sentia:
- O senhor não imagina o quão fútil ela era, Dr. Lawrence. Então vamos lá. Primeiro, boa mulher? Para quem? Uma filha detestável, uma menina mimada pelo pai e estúpida. Segundo, boa esposa? Tratava Sam aos pontapés, sempre agressiva e mimada. Sam fazia tudo para vê-la feliz, e nada. E terceiro, boa mãe? Ela mal ficava ao lado das crianças. Anna era a verdadeira mãe. Estava sempre junto delas. Brenda nunca gostou dos filhos.
Um pensamento horroroso veio à cabeça de Mark naquele instante. Não, ele não podia sequer permitir o que vinha à sua mente. Engoliu as palavras que iria dizer. Saiu do quarto e bateu violentamente a porta. Lawrence olhou para Anderson com ar preocupado.
- Anderson, eu conheço todos esses garotos desde que nasceram. Nunca pensei que as coisas tomassem esse rumo.
- Desculpe-me, Lawrence, mas sinto que ele falava a verdade em relação à Brenda. Pelo comportamento dela nos últimos tempos, segundo o que você me relatou, acredito que ela estava tomada de profundo remorso pela vida. Não vamos perturbar mais ainda o ambiente. Vamos lá fazer a nossa parte.
Foram até o vestíbulo. Anderson subiu na cadeira. Com uma faca cortou a corda que prendia Brenda. Seu corpo caiu nos braços de Lawrence. Lágrimas começaram a escorrer de seu rosto. Por mais arrogante que Brenda fosse, ele a conhecia desde menina. Era-lhe muito triste vê-la terminar sua vida daquela maneira. Colocaram-na na cama e arrumaram o quarto. Anderson e Lawrence providenciaram tudo. Não contaram a ninguém a verdade sobre a morte de Brenda. Todos que perguntavam recebiam a mesma resposta: parada cardíaca. Como o caixão fora lacrado, tudo ficou mais fácil. Nem Anna ficou sabendo a verdade. Mark, Anderson e Lawrence procuraram manter sigilo sobre o suicídio. Queriam poupar Sam de mais um desgosto em sua vida. Na semana seguinte ao funeral de Brenda, Anderson e a equipe de médicos partiram de Little Flower. Sam ainda se encontrava dopado, mas os amigos não poderiam esconder-lhe a morte da esposa por muito tempo. Após a partida de Anderson, Mark procurou conversar com Anna e Adolph. Reuniram-se na casa de Sam, numa noite.
- Amigos, já está na hora de contarmos a ele.
- Mas, Mark - indagou Anna -, como?
- Anna, não podemos mais esconder a verdade. Estamos aflitos, temerosos, angustiados. Sam tem de saber, não é mesmo? Então vamos lá e contamos. Será melhor assim.
- Eu concordo com você, Mark - disse Adolph. Chega de esconder a verdade. É hora de irmos lá ter com ele.
Deram-se as mãos e foram para o quarto de Sam. Ele estava deitado na cama, ainda um pouco debilitado. Adolph tomou a iniciativa:
- Sam, precisamos ter uma conversa.
- O que foi? Vão reclamar que estou aqui há quase dois meses? Eu já até saí do quarto dos bebês. E Brenda, como está? Não nos vemos desde a morte das crianças. Ela está no quarto delas? Está no quarto de hóspedes? Por que ela não fica aqui comigo? Será que a dor dela é maior que a minha? Acho que está na hora de encararmos a realidade e conversarmos, não acham?
Anna, Mark e Adolph entreolharam-se. E agora? Como dizer? Sam percebeu o olhar esquisito dos três. Sentia em seu íntimo que havia algo errado por ali.
- O que vocês querem me dizer? Onde está Brenda? Ela está mal também? Diga, Adolph, onde ela está?
Adolph não conseguia encontrar palavras. Mark, que andava frio como uma pedra de gelo desde a morte de Brenda, sentiu-se firme para dizer:
- Bem, meu amigo, Brenda não está mais aqui conosco.
- Como assim? Ela foi para a casa de alguém? Não suportou ficar aqui? Puxa, por que não pensei nisso antes? Eu deveria estar ao seu lado, certo? Fiquei imerso em minha dor e me esqueci dela.
Mark procurou ser mais duro. Afinal de contas, a verdade, mesmo sendo dolorida, precisava ser dita.
- Sam, Brenda... Brenda... Está morta.
A última palavra ficou ecoando na cabeça de todos. O ar ficou pesado. Anna começou a chorar, não controlando a emoção. Adolph ficou estático. Um calor percorreu o corpo de Sam, subindo até a cabeça, deixando seu rosto vermelho. Estava a ponto de explodir. Levantou-se da cama e avançou para cima de Mark.
- O que você está me dizendo? Como se atreve?
Mark e Adolph procuraram segurá-lo. Sam estava completamente desequilibrado. Desgrudou-se de ambos e foi para o quarto das crianças.
- Brenda! Onde está você? Brenda!
Ele não queria acreditar na verdade. Um pavor invadiu sua alma, e ele, não tendo forças para se controlar, tombou na ponta da escada. Anna, que estava à sua frente, não teve forças para segurá-lo. Sam rolou escada abaixo, batendo fortemente a cabeça no chão. Anna deu um grito. Os rapazes saíram correndo do quarto de Sam, assustados. Adolph abraçou Anna, tamanho nervosismo. Mark desceu rapidamente as escadas. Sentou-se no chão ao lado de Sam. Delicadamente passou as mãos pelo rosto do amigo.
- Sam, por favor... Eu estarei sempre ao seu lado, eu prometo. Mas, por favor, não morra, não morra!
E desatou a chorar. Um filete de sangue escorreu pelo canto da boca de Sam, aumentando o desespero do amigo.
- Adolph, desça. Ele está sangrando. Vá chamar o Dr. Lawrence. Não sei o que fazer.
Adolph desceu correndo e saiu em disparada para chamar o médico. Anna desceu as escadas cambaleando, assustada com tudo aquilo. Foi envolvida por uma força estranha. Sua voz ficou mais firme. Foi até Mark.
- Saia. Deixe-me cuidar dele. Vamos, saia, por favor.
Mark parou de chorar e limpou o rosto. Não sabia se estava alucinando. A doce e meiga Anna agora lhe falava com uma voz levemente diferente, porém decidida. Parecia outra pessoa. Anna ajoelhou-se e fechou os olhos. Instintivamente levantou a mão esquerda para o alto, como que captando algo do céu. A mão direita tocou levemente a testa de Sam. Mark ficou paralisado. Nunca havia visto Anna daquele jeito. Estava muito confuso para raciocinar. Poucos minutos depois, Sam começou a mexer a cabeça. Seu corpo começou a tremer. Anna continuou firme em seu intento. Abriu os olhos, abaixou-se e deu um suave beijo no rosto dele, não se incomodando com o sangue que escorria de sua boca. Anna levantou-se. Sentiu uma leve tontura, mas logo ficou bem. Olhou para Sam no chão e para Mark.
- E então? - perguntou ela.
- Então o quê? - indagou Mark, aturdido.
- Ele não vai morrer. Logo o Dr. Lawrence e Adolph estarão aqui. Teremos de fazer vigília constante, até que ele melhore o estado emocional. Vamos cada um de nós fazer a nossa parte. Enquanto eles não chegam, vou me banhar e trocar de roupa. O vestido está um pouco manchado de sangue.
Virou-se e subiu. Mark, estupefato com a transformação de Anna, só conseguiu dizer:
- Seu vestido e sua boca...
Mark ficou olhando para Anna enquanto ela subia a escada, serena, com um brilho diferente no olhar. Abaixou-se e pôs-se a falar com seu amigo, que ainda estava meio inconsciente.
- Calma, Sam... Logo Dr. Lawrence vai estar aqui e cuidará de você. Não se preocupe.
Ficou passando levemente as mãos sobre os cabelos de Sam. Mark gostava muito dele, eram muito amigos. Começou a lembrar-se das crianças, e lágrimas teimavam em escorrer por seu rosto. Anna entrou no banheiro, despiu-se e foi se lavar. Continuava do mesmo jeito, ainda envolvida. Lavou-se, trocou de roupa. Desceu as escadas, passou por Mark e deu-lhe uma piscada. Foi até seu quarto, ao lado da cozinha. Tomada por leve sonolência, cochilou.
Tão logo Anna adormeceu, desprendeu-se do corpo. Um pouco tonta, foi conduzida por suaves mãos que a fizeram sentar-se numa pequena cadeira, ao lado da cama. O quarto estava iluminado por uma luz verde bem clara, suave. Anna abriu os olhos e viu uma mulher jovem, muito bonita, com a pele alva, brilhante. Vestia um lindo vestido azul-claro, e seus cabelos encaracolados, ruivos, desciam até as costas. Possuía um sorriso encantador.
- Anna, querida, precisei atuar através do seu corpo. Foi necessário. Muitas tragédias aconteceram neste lar. Mas logo tudo vai passar. Com o tempo, Sam vai melhorar. Confie.
Anna estava ainda zonza, mas ouvia perfeitamente o que a mulher lhe dizia.
- Quem é você? Eu tenho certeza de que a conheço, mas não sei de onde.
- Sou Agnes. Você sabe quem eu sou, minha querida. Só não se recorda, porque está vivendo uma outra vida, uma outra história. Vivemos muitas vidas juntas, mas agora o meu trabalho é do lado de cá.
- De que lado? - Anna não estava entendendo o que Agnes lhe falava.
- Vocês voltaram, e eu fiquei por aqui, auxiliando-lhes naquilo que fosse preciso, mas sempre com a permissão de vocês, nunca interferindo de maneira direta no arbítrio de cada um. Logo uma nova etapa se iniciará. Eu conto muito com você, Anna. Agora eu preciso ir.
Agnes deu um beijo na testa da jovem. Ajudou-a a levantar-se e a encaixar-se no próprio corpo. Depois disso, partiu. Anna despertou.
- Nossa, que sonho encantador! Que mulher mais linda! De onde a conheço ?
Permaneceu assim por alguns minutos, ainda sentindo em todo o corpo as energias salutares de Agnes. Sentiu um ânimo muito grande, uma vontade muito prazerosa de viver. Reconhecia, no fundo de seu coração, que realmente uma nova etapa se iniciava em sua vida. Lawrence e Adolph chegaram em seguida. Mark continuava a passar as mãos no rosto do amigo. Quando Adolph os viu, suspirou aliviado.
- Santo Deus! Ele está vivo, doutor. Acho que ninguém aqui agüentaria mais uma tragédia.
- Concordo - disse Lawrence. Chega de tragédias. Vocês são jovens, bonitos, saudáveis, têm toda uma vida pela frente. Vamos, ajudem-me a colocar o menino no sofá.
Mark começou a rir.
- Menino? Sabe quantos anos ele tem? Nós não somos mais tão jovens, doutor. Principalmente eu, que vou fazer trinta e um.
- E sabe quantos anos eu vou fazer? - perguntou Lawrence. Trinta a mais que você. Estou mais para o lado de lá...
- Doutor - interveio Adolph -, será que ele sofreu alguma contusão? E o sangue?
- Adolph, eu tenho mais de trinta anos de prática médica. Sam aparentemente não sofreu nada grave. Veja, ele está movimentando todo o corpo. E o sangue escorreu porque ele quebrou um dente.
- Um dente? Como sabe? Nem ao menos tocou nele.
- Ora, Adolph, é só olhar para o chão, próximo ao local da queda.
Adolph e Mark foram até o pé da escada. Ao lado de uma pequena poça de sangue, lá estava o dente. Começaram a rir.
- Doutor, Sam vai ficar horrível. Vai ficar banguela! - declarou Mark.
- Não, aparentemente. Esse dente aí fica no fundo da boca, portanto ninguém vai notar, a não ser Sam, quando for mastigar um bom pedaço de filé.
Os três continuaram a rir, e não notaram uma presença na sala. Lá estava Agnes. Saindo do quarto de Anna, ela tinha ido até a sala para energizar o ambiente. Pétalas de rosas iluminadas escorriam por suas mãos e eram espalhadas por toda a casa. Em seguida, ela passou suavemente a mão pela testa de Mark, Adolph e Lawrence, respectivamente. Pousou a mão mais demoradamente sobre a testa de Sam. Deu um beijo em cada um e partiu, sorridente e feliz. Mais uma vez, Agnes fizera sua parte. Sam, nas semanas seguintes, ficou aos cuidados de Anna, Mark e Adolph. Os três faziam escalas para que ele não permanecesse sozinho em momento algum. O Dr. Lawrence ministrou-lhe doses cavalares de medicamentos. Quanto mais o tempo passasse, e quanto mais Sam não se lembrasse, melhor. Num desses dias, completamente sedado, Sam teve uma visão. Ele viu seu avô Roger no canto do quarto.
- Meu neto querido, não cause mais dor para sua alma tão sofrida. Sabemos que o ocorrido foi brutal para você e Brenda. Mas você está conseguindo caminhar. Infelizmente, sua esposa não suportou e encontra-se em terrível estado. Nada podemos fazer por ela neste momento. Mas veja, meu neto, você está vivo e bem. Você tem uma saúde de ferro. Nada como confiar em Deus, pois ele nunca erra. Tudo está certo no caminho de cada um de nós. Daqui a alguns anos você vai entender tudo. Agora reaja, por favor. Vá viver o que é preciso. Vá viver o que você mesmo prometeu aqui, antes de regressar a Terra. Sua nova etapa de vida começa no Brasil. Siga confiante, pois eu estarei ao seu lado sempre que for necessário. Não desista, não desista, meu querido. Sam começou a pronunciar algumas palavras:
- Não desista... Vovô... Bra...
- O que ele está dizendo, Mark? - inquiriu Anna.
- Não sei. Talvez esteja delirando. Já são três semanas nesse estado. É a primeira vez que vejo Sam falar alguma coisa. Provavelmente deve ter sonhado com seu avô. Eles eram muito ligados. Sam tinha uma relação muito mais estreita com seu avô do que com o pai.
Anna olhou em direção à porta, que acabara de abrir-se.
- Adolph, que bom que chegou! Sam está falando palavras desconexas. Aproxime-se dele, por favor.
- Sam, o que se passa?
- Meu avô está ali no canto do quarto, olhe.
- E ele está falando algo?
- Sim, ele disse que não está com Brenda, que sou forte e que devo ir para o Brasil.
- Adolph, ele deve estar com febre, não?
- Acredito que não, Mark. Estou quase certo de que o avô de Sam está aqui, tentando deixado mais calmo, auxiliando-o.
- Que história é essa, Adolph? Um rapaz que estudou na Europa, como você, falando desse jeito? Também está delirando?
- Não, não estou delirando, de forma alguma. É que lá em Paris eu me interessei e estudei assuntos metafísicos e espirituais, existência de vida após a morte.
- Isso é absurdo. Como pode você, um rapaz estudado, com uma carreira brilhante, acreditar em assuntos próprios de pessoas ignorantes?
- Não precisa se exaltar, Mark. É o meu ponto de vista, e só. Estamos num país livre, não estamos? Então eu tenho todo o direito de acreditar em tudo que quiser. Sinto-me confortável com esta descoberta. Acho que realmente chegou à hora de começarmos a acreditar no poder do invisível e que somos responsáveis por tudo que nos ocorre nesta vida, você me entende?
- Não. De forma alguma. Como se atreve a falar de responsabilidade? Como pode dizer que somos responsáveis por tudo que nos ocorre, sendo que este pobre homem, que está aí deitado, delirando, perdeu dois filhos? Como? Por acaso aquelas crianças eram responsáveis por elas? Por acaso tinham a obrigação de se cuidarem? Você é louco? Elas tinham oito meses de vida. Oito meses!
Irritado e nervoso, Mark partiu colérico para cima de Adolph, em pleno quarto, ao lado de Sam, que novamente se encontrava em estado de torpor. Anna teve de se colocar entre os dois homens, para evitar uma briga.
- Depois de tudo que aconteceu, vocês vão começar a discutir neste quarto? Como ousam? Olhem o estado de Sam. Por favor, chega de confusão. Já vivemos uma situação tão dolorida...
- Ela tem razão, Mark - disse Adolph. Os seus pontos de vista são completamente diferentes dos meus. Cada um pensa como quer, vive como quer. Vamos deixar essa conversa de lado. Procurando acalmar-se e dar outro rumo à conversa, Adolph perguntou:
- A propósito, você já conseguiu alguma pista?
- Não - respondeu Mark tristemente. Sabe, Adolph, foi um crime tão esquisito, mas eu suspeito que...
Dizendo isso, Mark sentiu o sangue ferver. Novamente aquele pensamento horroroso de semanas antes. Não se permitiu fixar-se no que lhe passava pela mente. Procurou desconversar.
- Eu suspeito que... Que... Será sempre um crime sem solução. De que vai adiantar? Por acaso as crianças vão voltar? Não, não vão. Para mim foi uma fatalidade, e todo dia eu rezo para esquecer-me disso.
Adolph ficou sensibilizado com a postura de Mark. Realmente não fazia sentido correr atrás de alguém àquela altura. Mas deixar um crime hediondo daqueles impune? Ele sentia que todos eram responsáveis por si mesmos. Ainda achava que tinha de estudar muito, mas, no fundo, Adolph queria apenas saber quem havia feito aquilo, para entender o porquê do ocorrido. Só assim poderia ficar em paz. Mark, para desviar os pensamentos que teimavam em ferver em sua cabeça, disparou:
- Então somos todos suspeitos? Claro que não. A minha hipótese é de que algum forasteiro se escondeu por aí, na madrugada, e ao amanhecer verificou que podia saquear, roubar, sei lá. E, convenhamos, a casa de nosso amigo Sam é suntuosa...
- E, segundo você - disse Adolph -, provavelmente ele deve ter esperado Sam ir ao celeiro, Anna ir para as compras e aproveitou que Brenda ainda estava dormindo e entrou pela janela do quarto das crianças.
- Isso mesmo, Adolph. Isso mesmo. E acredito que as crianças começaram a chorar ao perceber o estranho, ou ouviram algum barulho e se assustaram, sendo que, não havendo alternativa para que se calassem, ele as enforcou. É horrível, mas acho que foi assim. O que você acha?
- Eu acho que você está coberto de razão. E, com o alvoroço causado por essa tragédia, a cidade toda correndo até aqui, ninguém se deu conta de verificar se tinha ou não algum estranho na cidade, fugindo.
- Realmente, naquela manhã, ninguém nesta cidade pensou em outra coisa, a não ser em consolar o pobre casal.
- E aquele bêbado que encontraram na cidade vizinha? Não seria um suspeito, xerife?
- Olhe, eu até pensei que esse tal bêbado pudesse ser o assassino. Eu fui até a delegacia de lá. Mas, quando cheguei, ele já havia partido. O xerife disse que aquele bêbado sempre aparecia por lá. É freguês antigo da região e, segundo dizem, não faz mal nem a uma mosca.
- Que pena... Então, Mark, será que esse crime jamais terá solução?
- Acredito que nunca nesta vida saberemos quem foi o autor de tamanha brutalidade.
- Será?
Naquele instante, a conversa foi abruptamente interrompida por Emily, a responsável pelo correio local, que entrou no quarto de Sam ansiosa:
- Sr. Adolph, corra para o correio! Chegou um pacote bem bonito, vindo da Europa. O senhor fez alguma encomenda?
- Que eu me lembre, não. Pacote vindo da Europa?
- Isso mesmo. Chegou mês passado lá no porto, e, com as avalanches deste inverno, só entregaram agora de manhã. Vamos lá, eu mesma acompanho o senhor.
- Ah, Emily, só você mesmo para que eu esboce um sorriso nestes tempos. Vamos, então, minha cara - e ofereceu seu braço a ela, em deferência.
- Está certo, Sr. Adolph. Com licença, xerife.
Adolph, Emily e Anna não perceberam o rubor na face de Mark. Já fazia um bom tempo que ele andava de olho na garota. Emily era uma linda moça. Aos dezoito anos, possuía um corpo bem-feito, olhos e cabelos de um castanho amarelado, estatura mediana. Nos bailes organizados para angariar fundos de guerra, o caderninho de Emily era sempre o mais disputado, deixando muitas moças morrendo de inveja. Filha de um casal escocês, ambos já falecidos, ela herdara o posto do correio, que era de seu pai. Seu irmão Bob, um ano mais velho, estava servindo aos aliados do norte e não lhe mandava notícias havia alguns meses, o que a preocupava. Emily era muito esperta, inteligente. Possuía um sorriso que cativava qualquer um. Principalmente o coração do xerife Mark. Mesmo sendo cobiçado por algumas moças da cidade, ele só tinha olhos para Emily. Pensava: "Como terei coragem de falar para ela tudo que vai em meu coração? Como dizer-lhe que a amo, que a quero como minha esposa, mãe de meus filhos?" Ficou pensando nisso enquanto observava Sam. Anna voltou aos afazeres domésticos. Chegando ao correio, Adolph dirigiu-se ao balcão.
- Onde está, Emily? Você veio me perturbando tanto neste caminho, que fui contagiado pela sua excitação. Vamos lá, menina, pegue para mim.
Emily entregou-lhe o pacote.
- Vamos, Sr. Adolph, abra logo! Estou inquieta. Será algum presente? Por favor, abra.
- Calma, menina! Desse jeito você vai ter um ataque.
E, rindo, continuou:
- Vamos fazer o seguinte: você abre para mim, está certo?
- Eu? Posso mesmo? O senhor deixa?
- Deixo, mas só se você nunca mais me chamar de senhor.
- Está certo, senh..., desculpe! Está bem, Adolph.
- Pode abrir.
- Oh! São livros! Não estão escritos em inglês. Estão em que língua?
- Deixe-me ver, Emily.
Eufórico, Adolph começou a rir. Subiu no balcão da agência.
- Meu Deus, Emily! Finalmente. Chegaram!
Surpresa, ela perguntou:
- Que livros são esses?
- É uma longa história, depois eu conto. Acabo de receber algo que esperava há tempos, entende?
- Não, Adolph, eu não entendo. Você os encomendou?
- De maneira alguma. Quando regressei de Paris, no final do ano passado, meus amigos me falaram que um livro muito importante iria ser publicado este ano, mudando, para sempre, a visão do homem sobre todas as coisas. Está escrito em francês, por isso você não entende.
- E esse outro?
- Ah, este outro aqui é sobre metafísica, questões do espírito humano. É um livro que eu tenho aqui, mas está escrito em francês. Como meus amigos são brasileiros, estão me presenteando com a edição original, escrita em português.
Emily, desconhecendo o assunto, pegou aleatoriamente o livro francês:
- O que está escrito aqui na capa, afinal de contas?
- Está escrito "O Livro dos Espíritos".
Mal deu tempo de Adolph terminar de dizer o nome do livro, e Emily, com o medo estampado no rosto, impulsivamente jogou o livro num canto e saiu correndo para o depósito, gritando:
- Adolph, tire isso daqui! Leve esse livro para longe. Imagine se as pessoas aqui na cidade sabem que você mexe com esses assuntos profanos. Falar de espíritos? É muita ignorância. Coisa de gente à toa.
- Emily, não se zangue. Desculpe-me. Eu jamais tive a intenção de causar susto a você. Este é um livro sobre estudos da espiritualidade que está sendo lançado na França. Uma obra que já era esperada, que o autor escreveu através do contato com espíritos. Um livro que ajuda a entender muitas coisas que acontecem conosco nesta vida. E este outro já é mais filosófico.
- E por acaso esses livros podem explicar a morte das crianças? Esse tal livro dos espíritos vai elucidar o crime? Como você, um homem estudado, pode dar crédito a um autor que teve colaboração de espíritos para escrever? Não é insanidade?
- Escute, se fosse insanidade, não seria publicado. Em Paris, conheci o professor Rivail. É um homem culto, educado, inteligente, cativante. Faz parte das altas rodas da sociedade, e já há muita gente por lá que está de acordo com suas idéias.
- Mas aí na capa não consta o nome Rivail.
- O professor adotou o nome de Allan Kardec. Este homem é um sábio, um estudioso. E garanto, minha cara, que este livro vai mudar os conceitos que o homem tem das coisas.
- Que coisas? O que pode mudar? Que agora não vamos mais morrer? Que não vamos mais ter guerras? Que meu irmão vai voltar vivo? Que coisas são essas, Adolph?
- Assuntos da natureza humana, minha cara. Assuntos proibidos pela igreja. Morte, culpa, de onde viemos, como nascemos, por que vivemos aqui neste mundo, por que cada um de nós tem uma vida diferente...
- E você está achando que esse livro francês, desses tais espíritos, e esse outro brasileiro vão explicar tudo isso, não é?
- Tenho certeza absoluta.
- Você fala com tanta convicção, Adolph, que eu estou começando a entrar na sua história. Veja eu, uma mulher lúcida, independente, inteligente, começando a acreditar no que você me diz.
- Quem sabe, à medida que eu for lendo esses livros, trocando cartas com meus amigos em Paris para tirar dúvidas, eu possa lhe mostrar uma nova forma de pensar, certo?
- Adolph, eu sou uma mulher. Mesmo sendo colocadas de lado nesta sociedade machista, se não fôssemos nós, o que seria dos soldados feridos nesta guerra horrível?
Trocando idéias, animados, ambos ficaram horas conversando na agência do correio. Mais alguns dias se passaram. O inverno daquele ano foi rigoroso, com muitas avalanches e nevascas. Cidades foram parcialmente destruídas por ventos fortes, deixando um saldo de centenas de mortos espalhados pelo norte do país. Os amigos de Sam estavam preocupados. Ele não estava reagindo aos medicamentos e não se alimentava, piorando seu estado.
- Doutor, o que mais poderemos fazer? - perguntou Anna.
- Não sei, minha querida, já tentamos de tudo. Acredito que orar será o melhor remédio.
Anna estava arrasada. Também já tinha feito tudo que podia. Alimentava Sam, ministrava-lhe os remédios prescritos pelo Dr. Lawrence. Mas estava cansada. Sam não reagia. Lawrence, percebendo seu estado, começou a conversar, a fim de animada.
- Anna, recebi uma carta de meu amigo Anderson, lá de Chicago. Ele perguntou por você.
Anna sorriu. Trocou a dor de ver Sam naquele estado pela saudade que sentia do Dr. Anderson.
- Oh, Dr. Lawrence, ele perguntou por mim? Eu conversei tanto com ele naquela noite terrível. Aliás, se não fosse a força do Dr. Anderson, não sei como suportaria tudo aquilo.
- Não só você como eu também. Anderson é uma pessoa muito esclarecida, muito lúcida, um homem muito inteligente. Conhece os quatro cantos do planeta. Imagine que ele morou até no Brasil!
- Ele me falou. É o mesmo lugar onde nasceram aqueles amigos que Adolph conheceu em Paris. Confesso que me senti tão pequena, tão estúpida. Nunca viajei na vida, nunca saí de Little Flower.
- Mas e a cidade onde você nasceu e viveu até encontrar o pai de Brenda?
- Ah, doutor, eu nem me lembro. Eu era muito pequena. Só me recordo de que tinha muita neve. Devia ser mais ao norte do país, provavelmente. Sabe, o Dr. Anderson me falou de sua maneira de encarar a vida, os fatos. Ele é brilhante. Onde o senhor o conheceu?
- Anderson estudou comigo na faculdade. Depois, por obra do destino, nos separamos. Mas sempre mantivemos contato. Mesmo quando ele estava no Brasil, nunca deixou de me escrever.
- A morte do filho foi muito dura para ele, não?
- Sabe, Anna, perder um filho deve ser muito triste, uma dor muito pior do que a do filho que perde o pai. Porque o filho vai casar-se, constituir família. Ele tem uma vida pela frente, caso venha a perder os pais. Ao passo que o filho é a própria vida de um pai. Anderson sofreu muito com a morte de Júnior. Pensei até que ele fosse se matar.
- Eu gostei muito dele. Se pudesse escolher um pai, eu o escolheria. Ele nos fala da vida com clareza.
- É, sim, Anna. Depois que Júnior morreu, ele se envolveu com umas pessoas no Brasil, participou de alguns rituais, de algumas curas, não sei ao certo o quê, porque ele nunca se abriu comigo sobre esses assuntos.
- Mas devem ser pessoas boas e decentes, porque ele demonstra ser muito bom também.
- Anderson é uma pessoa instruída, um médico conceituado em Chicago. O fato de ter sido sempre equilibrado ajudou-me a também enxergar a vida de outra maneira.
Anna espantou-se:
- O senhor também pensa como ele? E por que nunca nos disse nada?
- Por causa do preconceito, Anna. Eu já estou velho, não tenho mais para onde ir, não tenho mais como me aventurar pelo mundo. O pouco que ganho vem dos meus pacientes aqui em Little Flower. Imagine eu falando aos meus pacientes que eles são responsáveis pela dor que sentem. Eles nunca mais iriam se tratar comigo. E eu ficaria sem nada.
- Entendo o seu ponto de vista, doutor. Naquela semana em que o Dr. Anderson ficou aqui aprendi muitas coisas. As palavras dele estão me confortando até hoje, ajudando-me a cuidar de Sam.
Ela começou a chorar. Por mais que tentasse, era-lhe muito triste ver Sam naquele estado. Lawrence também não sabia o que fazer. Orava, pedindo pela melhora de Sam. Terminou de ver seu paciente e foi até a cadeira em que Anna estava sentada.
- Minha filha, tenho certeza de que logo tudo vai passar. E sei que vocês serão felizes.
Anna estremeceu. Não conseguia olhar para Lawrence. Como ele havia notado?
- Anna, não precisa me dizer nada. Aliás, não precisa dizer nada a ninguém, a não ser para a pessoa que merece o seu amor. E não queira usar a cabeça, porque, nesses casos, só tendo o coração como guia.
A conversa foi interrompida pelos gemidos de Sam, que estava novamente delirando:
- O que fazer agora, vovô? Mudar de casa... De cidade... De País... Hum...
Anna esqueceu-se por ora do amor que vibrava em seu peito. Preocupada, disse:
- Está vendo, doutor? Ele ainda delira. Acho que faz uns três meses que não pára de sonhar com o avô. Como pode isso?
- Não sei. Mas é melhor ele delirar do que não respirar. Vamos continuar elevando o nosso pensamento para o bem dele. Já que eu descobri que você andou conversando muito com meu amigo Anderson...
- O senhor está com ciúme? Ora, doutor, o senhor é o melhor médico do mundo. Eu o adoro!
Anna abraçou Lawrence com carinho. Ele lhe deu um beijo na testa.
- Eu também gosto muito de você, Anna. Às vezes eu me pergunto se não poderia estar no lugar de Donald naquele dia em que a encontrou. Adoraria ter uma filha como você.
Abraçaram-se, e ela nada disse. Estava emocionada com as palavras do velho médico. Lawrence continuou:
- Eu já vou para casa, está tarde. Gostaria que você fosse até a cozinha e trouxesse um pouco de caldo quente para Sam. Mais tarde Mark virá para continuar a vigília. Agora, por favor, conduza-me até a porta.
- Com todo o prazer. Vamos, mas antes tome também um pouco de caldo. Sem modéstia, está tão bom...
- Vou aceitar, Anna. Está bastante frio hoje, e um caldo vai muito bem. Ainda mais um caldo feito com amor e carinho, só pode fazer bem.
Começaram a rir e saíram do quarto. Desceram as escadas e foram até a cozinha. Após a saída de Anna e Lawrence, duas figuras presentes no aposento durante todo o diálogo permaneceram aos pés da cama de Sam. Agnes, mais uma vez, estava lá, dando a assistência necessária, junto a Roger. Pingos de luz começaram a descer do céu em direção ao corpo de Sam. Em segundos, seu campo áurico foi tomado por um colorido bem vivo, variando nos tons de azul. Essas luzes não podiam ser vistas no plano físico, mas a sensibilidade de Sam as percebeu.
- Vovô, não agüento mais estes sonhos. Por que devo delirar tanto assim? Por que não morro de vez? Levem-me daqui. Deus, tenha piedade de mim, tire-me daqui, por favor.
Começou novamente a chorar. Roger e Agnes levantaram-se, cada um ficando de um lado da cama, próximo à cabeceira. Das mãos de Roger saíam fluidos coloridos que entravam pela testa de Sam e saíam pela região do umbigo. Enquanto isso, Agnes pousava as mãos nos objetos do quarto, limpando-os. De suas mãos saía uma luz branca que, em contato com os objetos, imediatamente tornava-se negra, sendo logo em seguida dissipada no ar. O trabalho de Roger e Agnes nesse momento, era o de preservar o corpo físico de Sam, ao mesmo tempo em que deveriam manter o ambiente magnetizado com energias revigorantes.
- Roger, acredito que sejam necessários mais uns dois dias para levantarmos Sam da cama. Ele já passou tempo demais prostrado. Depois de todo este tempo magnetizando seus alimentos e ministrando-lhe estes passes duas vezes ao dia, sinto que ele já se encontra em condições de partir para a próxima etapa. O que acha?
- Agnes, você o acompanha desde que foi fecundado, desde que estava na barriga da mãe. Estava olhando algumas anotações que os outros guias fizeram, mas há algumas coisas que não compreendo. Eu sei que tudo isto aqui já estava previsto, mas e agora? Não vejo mais anotações daqui para frente.
- Querido Roger, entenda uma coisa: estes primeiros vinte e um anos de Sam já estavam traçados. Quando somos novos, na maioria das vezes temos poucas escolhas a serem feitas. Mesmo sendo espíritos já velhos, aprisionados num corpo jovem, temos poucas escolhas. À medida que vamos envelhecendo no plano físico, vamos aumentando as nossas responsabilidades, porque já tivemos mais experiências, mais treino. E isso é o que vai acontecer com ele a partir de agora.
- Você acredita que ele esteja maduro o suficiente para encarar essa nova etapa? Ir para um outro país, com outra língua, outros costumes... É muita mudança. Há mesmo essa necessidade?
- Roger, você se esqueceu de que os outros envolvidos estão naquele país? O nascimento de Sam foi programado para ser aqui nos Estados Unidos por razões que já conhecemos. Você sabe que Brenda nunca poderia nascer no Brasil. Se assim fosse, todo o plano de encarnação dos dois estaria comprometido, porque aqui não há o suporte necessário para o que ele tem de realizar, compreende?
- Sim, Agnes, compreendo, muito embora Brenda tenha se comprometido muito feio. Mas... Brasil? Por que o meu neto tem de ir para o Brasil? Por mais que eu tente, eu não consigo compreender.
- Roger, seu neto viveu no Brasil na encarnação anterior. Todos nós temos laços com aquele país, inclusive você.
- Então qual a razão de eu ter uma mente tão bloqueada? Por que mesmo eu, um espírito que está ao lado da luz, tenho tantas indagações e não compreendo tantas coisas assim? Nem ao menos me sinto ligado ao Brasil...
- Porque não quer, Roger. Você está muito apegado ao seu neto. Você se envolve com o problema dos outros. Não é pelo fato de estar na luz que você irá se livrar do seu ego.
- Como, problema dos outros? Ele é o meu único parente vivo e não tem mais ninguém nesta vida, a não ser a mim. Se nós não estivéssemos cuidando dele, ele não teria resistido. Como posso ir estudar e largar meu neto? Vindo de você, Agnes, uma mentora? E, ainda por cima, de luz?
- Por isso mesmo. Eu não fico toda hora ao lado de Sam. Nestes últimos vinte e um anos, estive com ele, na verdade, por quatro vezes. O resto do tempo fico à distância. Não precisamos ficar ao lado dos nossos amigos encarnados. Mentalmente, vou direcionando seu neto, sempre, é claro, quando ele pede ajuda, através de suas orações.
- E se não pedir? E o seu orgulho? Acha que meu neto vai ficar implorando a Deus para que faça tudo para ele?
- Claro que não. Mas compreenda uma coisa, Roger: somos responsáveis por tudo que fazemos em nossas vidas. E, se acontece algo com alguém com o qual estamos envolvidos emocionalmente, é porque devemos aprender algo. Eu disse aprender, e não viver o drama do outro.
- Você fala de um jeito diferente. Mesmo assim, sinto que toca meu coração. Quando meu neto chegar àquele país, eu juro que largo mão dele e vou estudar. Estou tentando vaga para o curso de "Desapego".
- Não sabia que você queria fazer esse curso. Eu sou uma das coordenadoras. Você quer mesmo fazê-lo? Pode ficar tranqüilo, pois vamos abrir novas turmas para este semestre. A procura está sendo muito grande.
- Enquanto estávamos conversando, conseguimos terminar o trabalho de magnetização de hoje. Vamos ficar aqui esta noite?
- Não, temos alguns serviços lá na colônia. Anna está voltando da cozinha. Vamos aplicar-lhe um passe e magnetizar a sopa que está trazendo para Sam.
E assim fizeram. Roger ficou ministrando um passe em Anna, e Agnes fluidificou a sopa que Sam iria tomar. O dia amanheceu cinza, com muita neve. Anna procurava fazer o possível para manter aquecido o quarto de Sam, deixando a lareira sempre em brasa. Sam estava bem melhor. Os passes de Agnes e Roger e os cuidados de Anna estavam surtindo efeito. Pela primeira vez, em meses, Sam espreguiçou-se ao acordar. Estava mais corado. O período de prostração parecia ter chegado ao fim.
- Anna... Anna... Onde está você? Cadê o meu café?
Ela estava cantarolando na cozinha e demorou um pouco para escutar o chamado. Num instante, seu coração começou a trepidar. Estava difícil esconder o amor que sentia por Sam. Nesses meses de cuidados intensos, o seu coração estava completamente ligado nele. Órfã, Anna chegou à casa de Brenda com apenas seis anos. Donald, o pai de Brenda, era agricultor. Sempre viajava, no fim de cada inverno, para a compra de sementes. Numa dessas viagens, uma forte nevasca forçou-o a pousar num vilarejo. Durante a semana em que ficou preso, ele conheceu a pequena Anna. No quarto dia de nevasca, algumas casas na periferia da cidade não resistiram e foram levadas pelo vento, matando muitas famílias, inclusive a de Anna. Donald, tomado pelo espírito da fraternidade, começou a ajudar os habitantes da cidade no socorro aos sobreviventes, que eram levados para a paróquia da cidade, em função de o hospital estar lotado de feridos abatidos pela nevasca. Aquela garotinha loira, de olhos azuis, lembrava muito sua filha Brenda. Donald, que tinha somente uma filha, encantou-se pela menina. Ela tinha a mesma idade que Brenda. Poderia ser sua companheira, sua irmã. Quando as estradas foram liberadas, uma semana depois, Donald e Anna já estavam unidos. O sentimento de afeição de Anna por Donald também era forte.
- Posso chamá-lo de papai?
As lágrimas brotaram dos olhos de Donald. Emocionado, ele respondeu:
- É o que mais gostaria neste mundo. Você vai ser criada por mim e pela minha esposa. Brenda vai adorar você, tenho certeza.
- E se ela não gostar? E se me bater?
- Nunca! Prometo-lhe, minha pequena, que nada e ninguém irá tocar em você. Além do mais, Brenda sempre quis ter um irmão, ou irmã.
- E por que ela não tem mais irmãos? Por que o senhor não faz mais irmãos para ela?
O rosto de Donald ficou vermelho. Como aquela garotinha, tão pequena, podia falar coisas daquele tipo? Nem um adulto ousava tocar naquele assunto. Mas a meiguice de Anna era tanta que ele não resistiu e, com largo sorriso estampado no rosto, respondeu:
- Anna, isso é assunto de gente grande. Depois do nascimento de Brenda, a minha esposa não pôde mais ter filhos. Mas, graças a Deus, agora tenho duas.
Continuaram o trajeto até chegarem a Little Flower. Brenda ficou mais animada do que o pai. Arrancou Anna da carruagem e arrastou-a como uma boneca para dentro de casa.
- Papai, ela vai dormir comigo? Pode dormir comigo, não pode?
- Claro, minha filha. Anna é sua nova irmã. Ao invés de vir embalada pela cegonha, numa fralda, já veio grandinha.
- Por que o senhor a trouxe grandinha? Não podia escolher uma menorzinha? Um bebê?
- Poder, eu até que podia. Mas, Brenda querida, não é melhor já trazer uma do seu tamanho? Sua mãe e você não agüentariam choro de criança.
- Não mesmo, papai. O senhor está sempre certo. Posso chamá-la de irmãzinha? Posso?
- Pode, e deve.
Anna voltou ao presente. O fato de encontrar-se apaixonada trazia-lhe essas boas recordações. Mas agora não tinha tempo para isso. O importante era cuidar de Sam. Enquanto levava o café para ele no quarto, ia pensando: "Que bom, ele está se recuperando. Eu tinha certeza disso. Ele sempre foi forte, eu sabia que iria sobreviver. Claro, é horrível perder a família assim, mas a vida continua, não podemos ficar chorando pelas perdas. O Sr. Donald sempre me dizia isso: quem chora as perdas não tem tempo de sorrir os seus ganhos." Anna deu uma leve batida na porta.
- Posso entrar, Sam?
- Entre, por favor.
- Olá. Que boa surpresa! Estava há dias querendo ver essa melhora. Preparei o melhor café do mundo para você. Pães, bolos, um bom caldo, ovos e um pouco de carne também.
- Calma, Anna! Quer que eu morra? Se eu comer tudo isso agora, não vou resistir. - Ele estava bem-disposto e já voltava a sorrir.
- Mas que fantástico! Você está tão bem... Vou chamar Adolph. Ele me pediu para chamá-lo, caso você melhorasse.
- Então faça isso. Enquanto tomo meu café, vá chamá-lo.
- De jeito algum, Sam. E se você se engasgar? E se a carne ficar parada na garganta?
- Anna, está me tomando por um bebê? Eu sou bem grandinho. Pare com tanta preocupação. Já dei muito trabalho, agora quero e preciso voltar a trabalhar, retomar a minha vida.
Agnes e Roger estavam no quarto de Sam. Agnes, com muita paciência, conseguiu convencer o velho Roger a largar o neto e tratar de sua vida.
- Pronto, Roger. Ele está ótimo, não acha? Vamos deixá-lo por ora. Não deveria trazer você aqui, mas como você não acreditou em mim...
- Realmente foi fantástico o que você fez pelo meu neto. Ele está até corado. Que maravilha, Agnes! Agora, sim, você conseguiu me convencer. Não vou acompanhá-lo até o Brasil. Agradeço por ter conseguido aquela vaga no curso para mim.
- Que começa depois de amanhã, certo?
- Isso mesmo. Vou ficar um ano estudando assuntos ligados ao desapego. É um curso intensivo. São quatro horas por dia de aulas teóricas e mais quatro horas de exercícios. Você, como coordenadora, fez parte da elaboração?
- Fiz.
- O que vou aprender, Agnes? Será que pode me adiantar um pouco?
- Roger, meu amigo, você não tem jeito. Aguarde e verá. O próprio título do curso já diz: desapego. Você vai aprender a depender apenas de si, a buscar equilíbrio, paz, amor em você mesmo. Vai aprender que você pode e é capaz de se nutrir, de criar forças em volta de você, aprender a se garantir na vida. Somos responsáveis por tudo que fazemos, daí a necessidade de fortificar o nosso pensamento, sempre no bem, e nos tornarmos, de uma vez por todas, impessoais. Só uma pessoa, ou um espírito no estado impessoal, poderá alcançar a luz e sair da dor que o apego cria. É o primeiro bem que podemos fazer, ao contrário do que muitos pensam, é desapegar-se de tudo e de todos.
- Como aquelas pessoas que largam tudo e ficam isoladas num monte, longe da civilização?
- Mais ou menos isso. Mas agora o assunto não é este. Viemos para você se despedir do seu neto. Não se esqueça de que daqui a três horas o seu ônibus vai pegá-lo. E você sabe muito bem que a disciplina de nossa colônia não permite atrasos.
- Você tem razão, Agnes. Vou ficar só mais um pouquinho aqui. Não fiz o curso ainda, portanto sou apegado ao meu neto. Será que vou conseguir?
- Todos podemos, quando queremos. Quando se quer alguma coisa, sempre se consegue, não importa o que seja. Você é um espírito inteligente, gosta de se sentir útil. Vai adorar as aulas.
- E é verdade que, depois de terminar o curso, eu poderei, de acordo com minhas notas, ter o mérito de rever minhas vidas passadas?
- Esse é um dos méritos, Roger. Você poderá também escolher ir para outras colônias, visitar seu neto aqui neste planeta ou conseguir vaga para outros cursos mais disputados. Bem, está na nossa hora. Precisamos voltar.
Sam nada percebeu, só sentiu um bem-estar muito grande. Estava corado, alegre, com disposição e vigor. Agnes e Roger deram um beijo no rapaz e seguiram viagem. Sentado em sua cama, Sam estava melhor. Mais lúcido e animado, percebeu o tom cerimonioso com o qual era tratado por Anna. Resolveu que isso deveria acabar, já que ela agora tinha se tornado uma grande amiga. Antes que ela saísse do quarto, ele disse:
- Anna, você já está a tanto tempo em minha vida que não há mais a necessidade de manter tanta formalidade comigo. Você foi criada junto a Brenda. Conheço você desde menina. Não é pelo fato de trabalhar para mim que você vai se colocar na posição de criada. Sei que Brenda a tratava como tal, mas agora, sem ela, podemos nos tratar de igual para igual. O que você me diz disso?
Anna não conteve a felicidade. Não sabia o que dizer. Ser sua amiga já era uma grande conquista. Respondeu entusiasmada:
- Se você prefere assim, assim será. De agora em diante você será o meu amigo Sam. Irei cuidar direitinho de você, não deixarei faltar nada. Farei tudo que Brenda sempre fez.
Parou bruscamente de falar. Sentiu-se encabulada. Na sua cabeça, fazer tudo que Brenda sempre fez estendia-se além das fronteiras domésticas. Anna deixou transparecer o seu desejo de substituir Brenda em tudo, inclusive como esposa. Sam, ainda alheio às coisas, não notou o disfarce da moça. Sorrindo, disse:
- Você está, e sempre estará, presente em meu coração. Uma grande amiga, que nos momentos mais difíceis esteve ao meu lado, dando-me mais apoio do que qualquer outra pessoa. Eu só posso e devo lhe agradecer. Muito obrigado.
Ela se sentiu ainda mais emocionada. Agora ele estava mais receptivo. Talvez estivesse chegando o momento de ser amada pela primeira vez na vida. Depois de tanto sofrimento, depois da perda dos pais, do tratamento hostil por parte de Brenda, um novo colorido aparecia em sua triste vida em preto-e-branco. O relacionamento entre Anna e Brenda sempre fora muito conturbado. A princípio, Brenda mostrara-se encantadora. Mas aos poucos, conforme percebia o estreitamento da relação entre Anna e sua mãe, Flora, as coisas começaram a mudar. Brenda não suportava a indiferença da mãe. Os carinhos de Flora dirigidos a Anna irritavam-na profundamente. Anna compreendia o estado emocional de sua nova "mãe". Flora fora obrigada a casar-se com Donald por questões financeiras. Naquela época, era muito comum famílias se unirem para manter a fortuna. Flora teve de largar seu grande amor para satisfazer o desejo de seus pais. Seu único alento era Anna. A presença dela em sua casa deu novo impulso à sua vida. Quando Brenda nasceu, Flora sentiu-se muito deprimida. Nunca gostou da filha. Em seu íntimo, muitas vezes se perguntava por quê. O remorso a corroia por não gostar da filha. Por outro lado, Brenda adorava provocar a mãe. Mas Flora, muito inteligente, não se deixava envolver por suas provocações, o que aumentava a ira da filha. Embora obrigada a casar-se com Donald, Flora gostava da companhia do marido. Ela possuía um temperamento firme, representando muito bem o papel de esposa. Indagava-se se seria punida por não amar a filha conforme os valores de sua sociedade. Flora era muito sincera em seus sentimentos. Depois de ter de abandonar o seu amor, percebeu que dava mais importância à família, aos valores sociais, desprezando o que ia em seu coração. E essa foi a sua lição. Após seu casamento com Donald, passou a se valorizar e a ignorar os comentários maledicentes das amigas a respeito do seu relacionamento com Brenda. Se os outros achavam que ela era fria e não amava a filha como deveria amar, problema dos outros. O fato de tratar "bem" a filha já aliviava o seu pesado coração. Ela sentia na pele o preço pago por dar ouvidos aos outros e não a si. Portanto nunca mais repetiria esse erro. Cumpriria com o seu papel de mãe, auxiliando a filha na educação, na etiqueta e nos costumes vigentes, até que Brenda encontrasse alguém que a amasse de verdade. Isso, sim, era o mais importante de tudo, e não se casar por dinheiro, por nome de família ou outro motivo que não fosse a vontade do coração. Mas a chegada de Anna deu uma reviravolta em sua vida, colocando em xeque seus verdadeiros sentimentos. Flora ficou muito nervosa no dia em que Donald chegou com Anna em casa:
- Donald, você deveria ter me consultado antes de trazer esta garota para cá. Chame-a, preciso conversar com ela, já que vai morar conosco.
- Não se assuste, querida. Ela não nos dará trabalho. É uma garota sensacional. Já lhe disse. Ela perdeu os pais e irmãos na nevasca que me impediu de regressar há mais de dez dias. Ela estava sozinha, não tinha parente algum. Achei que poderia ser uma companhia ótima para a nossa Brenda.
Com postura altiva e voz firme, Flora determinou:
- Leve-a para se lavar. Está muito suja. E depois a conduza até o escritório, deixando-nos a sós, por favor. Ela precisa saber que esta casa segue regras, e, já que vai ficar por aqui, precisa saber como as seguir.
Anna foi conduzida por Brenda até o banheiro, no andar de cima. Estava um pouco assustada. Mesmo Brenda querendo levá-la para o quarto e mostrar sua coleção de bonecas, Anna sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo tão logo ouviu a voz de Flora. Lavou-se e colocou um vestido emprestado por Brenda, pois perdera inclusive suas roupas. Flora estava sentada na cadeira do escritório. Apreciava a paisagem pela janela, quando ouviu uma leve batida na porta. Ela já sabia que era Anna. De costas para a porta disse, num tom seco:
- Entre e feche a porta, por favor.
Anna estava tremendo. O que será que aquela mulher com voz tão grave e firme iria exigir-lhe? Já não tinha mais nada na vida, havia perdido toda a família, seus amores, seus brinquedos, suas roupas. Será que aquela mulher, de costas para ela, iria lhe tomar mais alguma coisa? O que seria?
- Pois não, senhora. Já me lavei e tomei a liberdade de usar um vestido de sua filha e...
Anna não terminou de falar. Flora virou-se bruscamente e não acreditou no que viu. No momento em que as duas cruzaram seus olhares, foi como se um antigo amor tivesse brotado com toda a intensidade, como um vulcão adormecido que de repente explodisse em labaredas de amor. Um sentimento com misto de saudade, amor e respeito. Eram duas almas amigas, cujo reencontro já tinha sido previamente estabelecido. Estavam reunidas novamente para fazer o melhor que pudessem, depois de anos passando pelos vales do sofrimento. Flora não conseguia falar. Agachou-se e abraçou a pequena Anna, com lágrimas nos olhos. Era um sentimento diferente. Flora nunca havia sentido isso em toda a sua vida, nem mesmo quando se apaixonou por aquele rapaz nos tempos de sua juventude. A reação de Anna foi recíproca. O abraço que recebeu de Flora estremeceu todo o seu corpo. Sentia que uma saudade represada por muito tempo agora era liberada pelo contato de seus corpos. Flora agora conseguia entender o que suas amigas diziam em relação ao amor que sentiam pelas filhas. Se elas sentiam isso que ela estava sentindo por Anna, então estavam cobertas de razão. Mas por que não sentia isso por Brenda? Por mais que tentasse, era-lhe impossível qualquer ato de amor para com a filha. Isso agora não importava. Flora estava radiante, feliz. Sentia-se como se estivesse parindo pela primeira vez na vida. A partir daquele instante, Anna passou a ser companhia constante de Flora, que não mais se importava se Brenda ficava ou não irritada com a situação. Seu coração, por mais que tentasse em suas orações, não sentia amor por Brenda, a filha de sangue, mas por Anna, a filha postiça. Conforme os anos foram passando, Flora foi externando cada vez mais esse amor que sentia por Anna, o que culminou definitivamente no ódio de Brenda por ela. Anna e Flora passavam horas juntas conversando, trocando confidencias. Brenda no início sentiu-se um pouco chateada, mas com o tempo nem o amor de seu pai a tirava desse estado de ira pela mãe e por Anna. Donald percebia e tentava apaziguar, dizendo:
- Minha filha, não ligue. Papai ama muito você. Mamãe também gosta muito de você. Pensei até que sua mãe não fosse permitir a permanência de Anna por aqui.
- Eu também, papai. Com o temperamento que mamãe tem, pensei que fosse ter uma outra companhia a sofrer destratos. Mas é incrível, não? Parece que Anna é a verdadeira filha. O senhor percebeu isso, papai?
- No início, não, minha filha. Mas com o tempo, nestes últimos anos, percebi que é inegável o amor que sua mãe sente por ela. Acontece que Anna tem mais afinidades com sua mãe. Você, deve ter reparado que Anna não se relaciona tão bem comigo. E é por essa razão que temos equilíbrio aqui em casa.
- Papai, por que eu não tenho só o senhor? Por que tenho que viver com essa mãe que não escolhi, de quem também não gosto?
- Brenda, sua mãe nunca foi omissa com você. Sempre a educou, a orientou, dentro daquilo que lhe era possível. Não podemos cobrar dos outros aquilo que eles não podem dar.
- Eu preferia que ela estivesse morta!
- Brenda, não fale assim. Ela é sua mãe. Procure ao menos respeitá-la. Você já percebeu o quanto provoca sua mãe e sua irmã?
- Irmã? O senhor disse irmã? Uma garota que não sei de onde veio, que não está ligada a laços de sangue conosco, uma aproveitadora. É isso que ela é, papai. Eu não gosto de Anna.
- Mas assim que ela chegou em casa, naquele dia, você a tratou muito bem...
- Tratei, sim. Mas achava que ela ficaria aqui por uns dias, somente. E veja agora. Não desgruda de mamãe, parece que faz isso de propósito.
- Não creio que Anna faça isso deliberadamente. Ela e sua mãe se dão muito bem. Eu e você nos damos muito bem. Então está tudo resolvido, certo?
- Errado. Um dia as duas ainda vão me pagar. O senhor vai ver. A falsa mãe e a irmã postiça... Um dia vou me vingar!
Donald ficou surpreso com as últimas palavras da filha. Por que Brenda era tão rancorosa? Por que seu estado emocional era tão instável? Por mais que ele amasse a filha, às vezes sentia arrepios. Brenda tinha a capacidade de se transformar. Procurou amenizar a raiva da filha:
- Brenda, querida, não diga isso. Entenda que muitas pessoas confundem os sentimentos. Podemos gostar de alguém pelo simples fato de gostar. Gostar é sentir com a alma, é perceber que algo dentro de nós gosta. Alguma coisa aqui - e, colocando a mão da filha em seu peito, continuou: - acende-se quando você vê alguém com quem simpatiza. Isso é gostar, é querer bem. É algo que não posso explicar, porque gostar não se explica, sente-se.
- Não adianta o senhor vir com esses discursos. A verdade é que não gosto delas, e pronto. E o dia do acerto vai chegar.
Começou a chorar e largou o pai na sala. Trancou-se em seu quarto. Donald, nessas horas, procurava orar e pedir para que Deus não permitisse que a filha cultivasse tamanho ódio pela mãe e pela irmã.
- Senhor meu Deus, por favor tire tais sentimentos do coração de minha filha. Que ela possa enxergar que cada um é aquilo que é.
Embora Donald sempre tivesse uma visão um pouco diferente da vida, suas conversas com Brenda sempre eram nesse tom. Ele procurava passar à filha uma outra visão de vida, mostrando que tudo sempre estava certo em seu curso. Era algo que ele sentia, não podia explicar. Ele sabia que também não era amado por Flora. Mas também tinha deixado um amor pelo casamento de interesses. É por isso que se davam bem. Tratavam-se como dois amigos. E, se Flora não tinha lá seus amores por Brenda, com ele era diferente. Donald amava a filha de uma maneira sem igual. A fé de Donald fazia dele um homem sempre sereno e equilibrado: Mesmo com os impropérios que ouvia de Brenda, procurava, com sua paz habitual, contornar a situação. Sua morte foi assim também, tranqüila e serena. Morreu pouco antes de Brenda dar a luz às crianças.
- Papai, o senhor me prometeu esperar pelas crianças. Elas vão nascer e não vão ter um avô ? O senhor não pode esperar um pouco mais?
- Filha querida, não posso mais. Estou no meu limite. Mesmo estando de cama, estou calmo, tranqüilo, muito feliz. Meus pais já estão por perto há alguns dias. Eles irão me levar para o meu verdadeiro lar.
- O senhor está começando a delirar. Seu lar é aqui, junto a mim. Terá os meus filhos para educar.
- Brenda, há muita coisa que você se recusa a aprender. Papai sempre lhe falou da maneira como enxergava a morte. É um assunto do qual você nunca quis participar. Se você estivesse mais atenta, talvez hoje não estivesse sofrendo dessa maneira. Você também um dia partirá, como todos aqui. Faz parte da natureza.
- Não aceito. Como ficam as nossas afinidades? É justo nós nos amarmos e Deus tirar o senhor de mim? Não dá para entender.
- Tudo passa nesta vida, Brenda. Não fique revoltada, não blasfeme. Deus tudo sabe. Ultimamente eu estive conversando muito com Adolph, seu primo. Ele tem algumas idéias interessantes acerca da vida e da morte. Quando eu partir, converse com ele. Parece que muito do que ele vem lendo e aprendendo faz sentido.
- Não quero entender nada, quero você. Não me deixe.
Brenda começou a chorar. Não aceitava que Deus lhe tirasse seu querido pai. Para ela, Deus era muito injusto, levando o pai que tanto amava e deixando aquela mãe miserável a seu lado. Por que não levava sua mãe ou sua irmã? Sentia muita raiva, como se elas tivessem culpa por isso, desejando vingar-se delas. No fundo, era o ciúme que a inspirava. Sentia inveja da afinidade, do carinho das duas. Contrariando Flora, tão logo Donald faleceu, Brenda levou Anna para morar com ela e Sam, a pretexto de que a ajudasse nos afazeres domésticos devido à sua gravidez. O que Brenda queria era transformar a menina em uma empregada em sua casa. Sam passava o dia fora e não percebia o quanto Anna era maltratada por Brenda. Flora estava doente naquela época e, como passava a maior parte do tempo na cama, não tinha condições de ajudar sua filha adotiva. Anna não se rebelava, para não comprometer a gravidez de Brenda. Preferia ficar em silêncio, abafando sua dor e sua mágoa. Chorava escondida e, nas poucas noites em que ficava livre, ia visitar Flora. Anna nunca contou a Flora sobre os maus tratos que sofria de Brenda. Flora faleceu logo em seguida a Donald. Na última noite em que estava viva, teve uma conversa de despedida com Anna. Pediu para que ela se sentasse ao lado de sua cama. Pegou suas mãos e começou a acariciá-las.
- Sabe, minha filha, não sei lhe explicar, mas sinto que minha hora está chegando.
- Não diga isso, dona Flora. O que será de mim não tendo mais a senhora por perto? É a única companheira que tive durante todos estes anos. O que será de mim?
Anna começou a chorar. Era sentido seu pranto. Embora tivesse a amizade de Sam e Adolph, era-lhe muito difícil ter de conviver com Brenda. Sentia que não teria mais felicidade em sua vida. E agora, deitada naquela cama, a única pessoa que realmente a amava estava partindo. Flora entendeu o que se passava em seu coração e, com o carinho de uma mãe amorosa, disse-lhe:
- Anna, eu sei que é muito difícil conviver com Brenda. Eu não tenho ódio da minha filha. Ela nunca me entendeu. Não carrego mágoa por isso. Fui uma boa mãe dentro dos meus limites. Os nossos temperamentos não permitiram termos uma amizade mais profunda, como tenho com você.
- Concordo com a senhora. Eu percebi o quanto teve paciência para educá-la. Conviver com Brenda é muito difícil. Mas por que falar disso agora?
- Sinto o momento de minha partida. Muitas vezes conversei com Donald sobre a morte, e, mesmo freqüentando a igreja aqui da cidade, sempre acreditei que a morte não é o fim de tudo. Acredito que estarei em outro mundo, outro lugar, mas estarei sempre ao seu lado. Eu a amo muito. E, de onde eu estiver, prometo que estarei fazendo o possível para que o seu caminho esteja repleto de felicidade.
Depois de mais um pouco de conversa, Flora cansou-se. Dormiu suavemente. Anna beijou-lhe as mãos e a testa. Flora não mais acordou. No dia seguinte, os empregados, percebendo que a patroa não descia para o café, resolveram chamá-la. Lá estava Flora, deitada em sua cama, com o semblante sereno, esboçando um pequeno sorriso no canto dos lábios. Os empregados foram chamar o Dr. Lawrence e avisar Brenda. Seu enterro foi simples, mas muitas pessoas da cidade foram dar-lhe seu último adeus. Anna estava inconsolável. Brenda não foi ao enterro da mãe, usando o pretexto de sua gravidez. Os mais chegados suspeitavam que isso poderia acontecer. Sabiam do ódio que ela sentia pela mãe. Ninguém se chocou com a ausência de Brenda. Foram todos dar os pêsames a Anna, que consideravam a verdadeira filha de Flora. Adolph era o único parente de Brenda nos Estados Unidos. Seus pais e sua única irmã estavam, desde a época em que eclodiu a Guerra de Secessão, morando em Paris. Não tinham intenção de regressar. Com o início da corrida do ouro, em meados de 1850, seu pai ficou muito rico e resolveu estabelecer-se de vez na Europa. Adolph ficou na França somente para concluir os estudos. Foi lá que teve contato com grupos de pessoas que estudavam metafísica e espiritualidade, bem como teses sobre a libertação dos escravos. Resolveu retornar aos Estados Unidos justamente para brigar pela abolição da escravatura no país. A Guerra de Secessão nada mais era do que a disputa, pelos estados americanos do sul, para manter o regime escravista. Adolph era um rapaz cortejado nas rodas européias, mas seu senso de realidade era muito diferente daquele que a maioria das pessoas tinha. Não ligava para rodas sociais. Seu lema era sempre o de ajudar as pessoas naquilo que podia. Não fazia caridade como a igreja pregava. Acreditava no poder de criar espaços, conseguir terras, a fim de que gente sem condições pudesse trabalhar e desfrutar de uma vida melhor. Gostava de ajudar as pessoas a progredir pelo próprio trabalho, e não de dar ajuda indiscriminadamente, acreditando-as incapazes. Era um rapaz bonito. Loiro, cabelos naturalmente lisos, esbelto e alto. Sua pele branca era contrastada por um fino bigode loiro, tornando maduro seu semblante. Embora fosse admirado pelas mulheres, sentia que não era chegado o momento para casamento. A instituição do matrimônio, em sua cabeça, tinha uma outra conotação. Naquela época, os casamentos geralmente eram realizados somente para agregar a fortuna das famílias, sem levar em consideração o sentimento das pessoas envolvidas. Adolph era completamente contra esse tipo de arranjo. O dia em que seu coração voltasse a sentir algo mais forte por uma moça, com certeza iria se casar, independentemente das condições ou de qualquer outro atributo não aceito pela sociedade. Seguia sua intuição em tudo que fazia. Era carismático e atraente. Tinha muita afinidade com Sam. Muitos acreditavam que fossem irmãos. Eram inseparáveis desde garotos. Só ficaram afastados quando Adolph foi à França para concluir os estudos. Adolph chegou à casa de Sam com os livros que acabara de receber da Europa. Foi entrando no quarto do amigo cheio de entusiasmo:
- Sam, que maravilha! Você parece outra pessoa. Está corado. - E, olhando para Anna, dando-lhe uma piscada: - Só você poderia conseguir isso com ele, não é?
Ela respondeu embaraçada:
- Adolph! Eu só estou cuidando de Sam da melhor maneira possível. Estou fazendo o que Brenda faria, só isso.
Sam, sentado numa poltrona ao lado da cama, bem-disposto, respondeu:
- Devo toda a minha melhora a essa moça. Ela realmente me ajudou muito.
Adolph foi tirando os livros que estavam em uma pasta e colocando-os no colo de Sam.
- Estes livros vão modificar a nossa maneira de encarar os fatos de nossas vidas. Acabaram de chegar de Paris.
Sam pegou um deles e abriu-o.
- Que língua é essa?
- Esse livro está escrito em português. Já venho estudando a língua há um bom tempo. Logo poderei ministrar-lhe algumas aulas. Por enquanto, eu vou lendo trechos e traduzindo para você.
- E este outro aqui? Hum, está escrito em francês... Deixe-me ver... "Le livre..."
Sam surpreendeu-se:
- "O Livro dos Espíritos"? É isso mesmo o que está escrito aqui?
- Exatamente. Quando eu voltei de Paris, por causa da guerra que aqui começou, esse livro tinha praticamente acabado de ser publicado. Não tive tempo de trazer um exemplar e me esqueci de pedir para que meus amigos brasileiros me enviassem um exemplar.
- Mas por que você não pediu ao seu pai?
- Sam, imagine meu pai indo atrás de um livro com esse título. Ele é americano, e protestante ainda por cima. Você sabe que nunca pude discutir religião com ele. É muito cético. Só acredita no poder da igreja e no poder do dízimo que paga ao pastor. Mais nada. Depois que encontrou ouro, então...
- Bem, Adolph, graças ao ouro, e mesmo sendo cético, seu pai não foi mesquinho. O montante de dinheiro que ele lhe envia por mês é um absurdo. E absurdo maior é que você não gasta nada. Por que tem uma vida tão simples? Por que você não vai para Nova Iorque? Por que não compra uma bela casa em Washington Square?
- O dinheiro que ele me envia também serve para lutarmos por causas nobres, como a libertação. E ainda lhe digo que o sul do país não está agüentando a batalha. O presidente Lincoln já está enviando tropas. Brevemente haverá o cessar fogo. Quanto a viver aqui em Little Flower, é uma questão de gosto. Não aprecio burburinho, vida social agitada. Claro que adoro teatro, jantares, mas na medida certa. Não sou boêmio, portanto Nova Iorque não me interessa.
- E o que você vai querer que eu aprenda com estes livros?
- Sam, temos muitos assuntos para tratar. Isso vai nos ajudar até a compreender a desgraça que se abateu sobre a sua vida...
Adolph percebeu os olhos marejados de Sam. Era-lhe muito difícil esquecer todo o drama pelo qual havia passado. Um lar feliz, uma família feliz, destruída em poucos meses. Mas Sam não conseguia revoltar-se contra Deus. Algo dentro dele dizia-lhe para ter paciência, que aquilo era um treino, uma experiência necessária em sua vida. Anna desceu correndo e foi até a cozinha preparar um chá para ele. Adolph ajoelhou-se na frente de Sam e, pousando suas mãos nas dele, disse:
- Sam, você é como um irmão para mim. Sabe o quanto gosto de você, o quanto gostava de Brenda e o quanto também amava seus filhos. Sei que foi muito doloroso para você. Eu também sofri muito, porque os adorava.
Sam enxugou as lágrimas e apertou com força as mãos de Adolph.
- Você também é um irmão para mim. Aliás, só tenho você na minha vida, e Anna, é claro. Não tenho mais nada a não ser o amor de vocês dois. Mas eu fico me perguntando o porquê disso tudo, entende? Por que temos de passar por tragédias em nossas vidas?
- Sam, não sou um sábio. Sou um ser humano como qualquer outro. Comecei a estudar justamente por causa disso. Eu cresci questionando muito e tendo poucas respostas. E o que mais me intrigou foi como a vida pode nos dar tudo e tirar tudo também. A nossa religião não explica o porquê disso. Qual o mérito de recebermos, e qual o motivo de perdermos? E junto de amigos meus, lá na Europa, eu percebi que a vida trabalha de acordo com as nossas atitudes interiores.
- Concordo em termos com você. Mas qual a atitude que eu tive para que tivesse dois filhos assassinados? É isso o que mais me deprime. Eu não consigo encontrar resposta alguma que me convença.
- Sam, acho que, com vontade de mudar nossos pensamentos, de abrir nossa mente para o novo, vamos aprender muitas coisas. Mesmo que tenhamos de remexer as feridas de nossas almas, tenho certeza de que acabaremos por compreender tudo que vem acontecendo conosco. Olhe bem. Somos inteligentes, lúcidos, dotados de entendimento. Com tantos atributos maravilhosos, um dia Deus vai dar uma mãozinha para compreendermos tudo isso. Aliás, Ele já está nos dando uma mão com esses livros, não acha?
- É, Adolph. Você, com esse jeito sedutor, sempre me convence. Por que não vira político?
- Meu negócio é outro, por enquanto. Eu quero trabalhar com plantação. Gosto da terra tanto quanto você. Mas parece que aqui no norte as coisas estão muito ruins para isso. O surto da industrialização está levando todos a construírem fábricas. Só vejo fábricas sendo erguidas em todo lugar.
- E isso não é bom? É o progresso, meu amigo.
- Eu sei. Imagine como vai demorar para este país se reerguer. Estou pensando em outras coisas, talvez mudar de cidade, ou até mesmo de país.
- Você vai voltar para a Europa? - perguntou Sam um tanto triste.
- De jeito algum. Não quero mais voltar para lá. Eu lhe disse que quero trabalhar com plantação. E, quando penso nisso, também penso em você, porque desde pequeno você adora a terra, mexer com as plantas. E, com aqueles países pequenos, vou arrumar terra onde?
Continuaram conversando, rindo, lembrando dos tempos em que eram crianças, quando passavam horas plantando mudas e sementes no jardim, cuidando da terra. A conversa foi bruscamente interrompida com a entrada de Anna e de Mark.
- Sam, Mark tem uma péssima notícia para lhe dar.
Sam levantou-se rápido da cadeira com os olhos estatelados. O que seria agora? Mais uma tragédia? Não teve tempo de perguntar o que era, pois, ao levantar-se depressa, sentiu-se tonto.
Adolph ajeitou-o na poltrona e voltou-se para Mark:
- Vamos com calma, Mark. O que é desta vez? O xerife estava bufando, muito agitado:
- O presidente foi assassinado.
Adolph não entendeu.
- Mark, você está dizendo que mataram o presidente Lincoln?
- Isso mesmo. Foi num teatro, durante um espetáculo. Deram-lhe um tiro na cabeça. Levaram-no às pressas para o hospital, mas ele não resistiu. E agora nem sabemos se a guerra vai acabar ou não. Nunca pensei que o nosso país fosse passar por uma situação tão trágica.
Adolph procurou controlar-se:
- Anna, vá lá embaixo e traga um bom café para nós três.
Ela não se movia. Estava parada na porta do quarto, olhando para o chão. Adolph precisou gritar:
- Anna!
- Oh, sim... Desculpe. Eu estava preparando um chá, mas trarei café para os três. Com licença.
Sam perguntou a Mark:
- E agora? Como fica este país? Uma nação livre, que está lutando pelo fim da escravidão; uma pátria onde o ouro vem proporcionando uma riqueza sem igual para muitas pessoas. - E, dirigindo seu olhar a Adolph: Acho que este lugar não tem mais jeito. A América está afundando. Adolph, onde você gostaria de plantar? Ou, melhor dizendo, o que você gostaria de plantar?
- Sabe, Sam, quando eu estava em Paris, você se lembra daqueles meus amigos brasileiros, muito educados e simpáticos de que lhe falei? Eram estudantes como eu...
Adolph foi interrompido por Mark:
- Ah, os tais brasileiros de que você tanto fala... Com largo sorriso, Adolph continuou:
- Sim, por quê?
- Por nada. Então moram naquela terra cheia de índios, florestas e bichos por toda parte?
- Ela é cheia de índios, florestas e bichos, mas também é cheia de gente como nós. Existem cidades muito bem estruturadas. Dizem alguns que a capital do Império está instalada em uma cidade de rara beleza...
- Como assim? - perguntou Sam.
Adolph, olhando para um ponto qualquer no quarto, como se estivesse vendo uma imagem à sua frente, explicou-lhes:
- Dizem que aquele país é um dos lugares mais lindos do mundo. Vocês podem imaginar o que é viver rodeado de praias, de belezas naturais?
O espanto de Sam e Mark era expressivo. Eles também tentavam vislumbrar o que Adolph lhes dizia. Não conseguiam imaginar, porque não conheciam praias nos Estados Unidos. Os médicos diziam que o sol e a água do mar faziam mal à saúde, eram coisa de gente não civilizada. Como pessoas educadas e inteligentes podiam gostar do mar? Adolph continuou:
- E, além do mais, há muitos, mas muitos campos para plantação. O tamanho das fazendas por lá é imenso.
Sam interessou-se:
- Plantar o quê? Milho, por exemplo?
- Não. Talvez, não sei. Eu fiquei encantado porque meus amigos descreveram com tanto amor aquela terra, que fiquei até com inveja. Diziam para mim que, tão logo acabassem os estudos, iriam voltar para o Brasil, aplicar por lá tudo que estavam aprendendo na Europa. Eles me falaram que no Brasil tudo que se planta dá. Pode-se plantar o que quiser. É uma terra abençoada por Deus, com sol o ano inteiro.
Mark alegrou-se, e interessado perguntou:
- Sol o ano inteiro? Não tem este inverno rigoroso? Não há neve por lá? Então deve ser mesmo uma maravilha de terra.
- Deve ser mesmo - concordou Adolph. Mas o que está dando dinheiro naquele país são as exportações de cana-de-açúcar e café. Estou com muita vontade de me aventurar.
Sam perguntou:
- Você largaria tudo para ir a um lugar desconhecido, só descrito por algumas pessoas com quem pouco contato você teve na vida? E se eles estivessem brincando com você? Não pensou nisso?
- O brilho nos olhos deles quando me falavam do Brasil era tão intenso que não poderia ser brincadeira. Eu ainda me lembro com muito carinho de Augusto e Carlos, meus amigos. Eles tinham duas fazendas cada, herdadas dos pais. E por lá também há pessoas lutando pelo fim da escravidão, o que muito me agrada.
Anna chegou com as xícaras de café:
- Nossa! Alguns instantes atrás vocês estavam consternados com a morte do presidente e agora estão com os semblantes suaves, alegres. O que aconteceu?
Todos os três riram com a pergunta de Anna. Foi Mark quem disse:
- Estávamos aqui falando de outros assuntos, para espantar essa dor que vai em nossas almas ao ver um país tão rico e democrático como o nosso passar por tudo isso. Eu vou dispensar o meu café. Desculpe, Anna, mas preciso voltar ao meu posto. Só vim mesmo para dar a notícia. Caso tenha alguma novidade, eu volto para lhes contar.
Adolph havia terminado de falar e estava com o rosto tomado por leve tristeza. Mark percebeu e perguntou, antes de sair:
- Estávamos rindo. Você estava falando do Brasil, dos seus amigos. Por que essa cara?
Adolph, como se algo apertasse seu peito, disse com voz embargada:
- É porque eu nunca mais consegui falar com esses amigos. Sumiram. Foram embora de Paris sem me avisar. Mas isso não interessa. Vamos pensar em praias, coqueiros e outras belezas.
Todos passaram às gargalhadas. Ficaram mais um tempo divagando sobre o país tropical. Mark logo se despediu, e Anna foi acompanhá-lo. Sam e Adolph continuaram no quarto.
- Adolph, agora estou me lembrando. Sabe aqueles sonhos com o meu avô?
- Claro que sim. Eu ainda estou estudando esses seus sonhos. Quero descobrir se são sonhos ou se foram contatos reais...
- Não, não estou falando sobre isso. Eu posso até estar enganado, talvez estivesse delirando, mas, quando você estava falando do Brasil, não sei... Algo aqui em mim... Parece que vovô me falava disso... Do Brasil.
Adolph levantou as mãos para o alto, com surpresa e alegria estampadas em seu rosto:
- É mesmo! Parece que, num dos tais "delírios" que você teve, havia um lugar aonde você deveria ir. Será que era o Brasil?
- Agora não sei. Foram períodos em que estive em total estado de torpor. Não me recordo direito. Tudo ficou fragmentado em minha mente. A única certeza, mesmo, era de ver vovô e uma mulher muito linda ao seu lado. Isso foi bem marcante.
- Paremos com esse assunto por enquanto. Vou deixar os livros com você. Já que vai ficar mais um tempo de repouso, é bom distrair a cabeça com algo produtivo. Chega de tristeza. Você agora é um novo homem. Aproveite para pôr em prática o pouco do francês que aprendeu e começar a estudar português.
- Isso mesmo. Vou começar com este aqui em francês. O outro, com o tempo, você vai me traduzindo. Mas o que vou fazer de minha vida? Estou tão perdido...
- Ora, Sam, você tem novos horizontes pela frente. Na vida, a única coisa que pode nos levar adiante é o ânimo. E você o tem de sobra. Isso é admirável. Você é forte. Quando estiver melhor, vai até se casar de novo...
Sam fechou o rosto. Fitou bem os olhos do amigo:
- Casamento, nunca mais. Nunca mais!
- Calma... "Nunca mais" é muito forte. Não quis ferir os seus sentimentos. É a última coisa que gostaria de fazer. Mas você é novo, bonitão e ainda por cima rico. Vai ser difícil permanecer solteiro, ou melhor, viúvo. E, além do mais, algo aqui em mim diz que você já está sendo flechado...
Adolph começou a rir, e Sam nada entendeu.
- Como assim, flechado? Quem iria se interessar por mim? Ainda mais no estado em que estive todo esse tempo? Não é possível, Adolph. Desde a tragédia, eu não saí mais de casa. Portanto não há nenhuma mulher que pudesse estar interessada em mim.
Adolph achou melhor não prosseguir. Sam deveria descobrir por si só o amor de Anna por ele. Pegou sua cartola e sua bengala. Despediu-se de Sam com um sorriso malicioso e foi-se embora. Sam ficou na poltrona pensando nas conversas tidas minutos antes. Pensou no Brasil, na beleza das praias, pensou em Brenda e nas crianças. Ficou por horas pensando em tudo que havia acontecido em sua vida nos últimos tempos. A situação de seu país, a guerra, o assassinato do presidente. Começou a folhear o livro em francês. Por acaso abriu na página cujas questões tratavam da perda de entes queridos. Começou a ler. As lágrimas brotavam, molhando seu rosto. Era muito difícil aceitar a perda da família. Tinham tudo para serem felizes. O que estaria por trás de tudo isso? Qual a necessidade de passar por uma situação dessas? Não lhe vinham respostas. Terminou de ler as questões e instintivamente começou a orar. Orou por Brenda, pelas crianças. Lembrou-se de seu avô e começou a soluçar. Enquanto chorava e orava, não viu que pétalas douradas caíam sobre sua cabeça, provocando uma sensação de bem-estar. Não notou a presença de seu avô Roger e de Agnes, que estavam, naquele instante, a seu lado. Assim, Sam foi aos poucos perdendo os sentidos e adormeceu. Um cheiro insuportável, uma mistura de azedo e podre inundava o ambiente. Gemidos, gritos, lamentos. A cena era dantesca. Um local tenebroso, cheio de pessoas desfiguradas e sofridas, em uma paisagem de terror. No canto de uma encosta estavam deitadas algumas pessoas, deformadas e aflitas. Uma delas levantou-se para tentar tomar um gole da água que descia pela encosta, caindo como uma cascata negra e viscosa. Era o único líquido disponível naquele ambiente. Fazendo muito esforço, a moça conseguiu chegar até a cascata. Bebeu daquela água fétida. Conforme sorvia o líquido, começou a sentir dores horríveis na garganta. Aos berros, começou a correr pelo vale, sem direção.
- Alguém me ajude, por favor! Eu não agüento mais estas dores. Eu estou morrendo de sede e não consigo beber.
Tropeçou numa poça de lama, caiu e lá permaneceu aos soluços. Até aquele momento ela não tinha noção do que estava fazendo ali. Como teria chegado lá?
Estava cansada, perdida. Não queria mais viver aquele pesadelo. Foi ajudada por um homem alto, forte, olhos vermelhos. Trajava uma elegante capa preta.
- Meu amor, você acordou? Finalmente!
- Ajude-me! Eu quero beber e não consigo. Estou morrendo de sede.
- Mas é claro: a sua garganta está muito inchada. Não há líquido que passe. Venha, dê-me os seus braços.
Lentamente a moça levantou os braços em direção à voz potente do homem. Ele a levantou e a colocou em seus braços. Foi até um local aberto, onde o cheiro de podre era menos intenso. Olhando para a lua, ele esfregou as mãos e ergueu-as para o alto. Começou a fazer uma prece com palavras esquisitas e depois pousou as mãos no pescoço da moça. Uma luz prateada começou a sair de suas mãos e foi restaurando a região da garganta da jovem. Em minutos, a moça estava completamente curada. Ela adormeceu logo em seguida. O homem ficou fitando-a, com o ardor da paixão expressa em seus olhos vermelhos. Ele a amava. Finalmente havia encontrado o amor perdido. Nunca mais sairia de seu lado.
- Minha Marianne, você agora vai ficar bem. Eu a amo tanto... Ninguém mais vai lhe fazer mal. Vou ajudá-la na sua vingança. Conte comigo, meu amor.
Deu um beijo em sua testa e continuou fitando-a mais um tempo. De repente, sentiu uma presença a seu lado. Era Sam. O homem de capa violentamente partiu para cima dele, sem tempo de defesa. Agarrou Sam pelos braços e começou a sacudi-lo:
- Você não vai tirá-la de mim, seu safado! Desta vez ninguém vai tirá-la de mim. Eu a encontrei. Agora ela é minha novamente. Minha!
Os olhos do homem eram de um vermelho tão intenso e pavoroso que Sam ficou imóvel, sem saber o que responder. O homem atirou-se em Sam e começou a estrangulá-lo. Sam começou a agitar-se na cama. Acordou com falta de ar. Instintivamente colocou as mãos no pescoço. Suava muito.
- Meu Deus! Que pesadelo horrível! Que lugar escuro e estranho! E aquele homem? Que figura esquisita! Preciso voltar logo a trabalhar, cuidar de minhas coisas. Devo mesmo estar delirando.
Levantou-se e foi até a cozinha tomar um copo de água. Anna, ouvindo o barulho, também se levantou.
- Sam, o que faz aqui há esta hora? Não está bem?
- Calma! Eu tive um pesadelo. Um sonho ruim. Resolvi levantar e tomar água, mais nada. Fique sossegada.
Ela foi para perto dele e também pegou um copo de água. Seu coração batia descompassado, tamanha a emoção.
- O que foi, Anna? Também teve um sonho ruim? Que cara é essa?
Encabulada, abaixando os olhos, respondeu:
- Nada. Eu também estava com um pouco de dor de cabeça. Não conseguia dormir. Mas estou melhor agora.
Bebeu a água, pediu licença e voltou para o quarto, apressada. Precisava controlar seus sentimentos. Pensou: "Meu Deus! E se ele descobrir que estou apaixonada? Não! Não pode saber. Pelo menos agora. Não tenho o direito de amá-lo. Devo ficar mais atenta para não deixar transparecer o que sinto. E se ele me mandar embora? Não, definitivamente não posso."
Sam terminou de beber a água e voltou ao quarto. Não conseguiu mais conciliar o sono. O pesadelo pareceu-lhe tão real que era difícil voltar a dormir. Pegou "O Livro dos Espíritos" e começou a folheá-lo. E assim fez até o amanhecer, quando finalmente adormeceu. A primavera já estava se despedindo. Os dias ensolarados indicavam o quão quente seria aquele verão. Um verão marcante. O verão da reconstrução da América. Depois de mais de quinhentos mil mortos, a Guerra de Secessão chegava ao fim. Uma nação destroçada pela guerra e pela tragédia de ter o presidente assassinado. Era hora de recomeçar, de olhar para a política de escravidão praticada no sul, de repensar como seriam as novas relações entre os estados confederados. O fim da guerra trazia novo ânimo aos americanos. Os Estados Unidos já possuíam a maior linha de ferrovias do mundo. Com o aumento da malha ferroviária, o telégrafo também se expandia, permitindo a comunicação a uma velocidade considerada vertiginosa para a época. As fábricas do norte cresciam em ritmo acelerado e a produção de algodão no sul abastecia todas as fábricas têxteis da Europa. Mesmo assim, Adolph não estava satisfeito em continuar morando lá. Foi num jantar oferecido por Emily que ele comentou:
- Emily, eu não tenho mais vontade de morar aqui. Não me sinto bem neste país. Não sei explicar, só sei que sinto isto.
Mark, que estava no jantar, interveio:
- Desculpe, Emily, a minha indelicadeza. Mas não me segurei com esse comentário seu, Adolph. Agora que o país está voltando aos eixos, eu tenho certeza de que logo seremos uma grande nação, até melhor do que a Europa toda. Você quer mesmo ir embora?
Emily, com largo sorriso, foi quem respondeu:
- Mark, como você gosta de ser um sonhador, não? Acredita que um país povoado ainda por índios possa crescer tanto quanto um continente que está pelo menos uns dois mil anos à nossa frente? Eu concordo com Adolph. Acho que, realmente, se houvesse a oportunidade, eu também iria embora.
Mark surpreendeu-se com a atitude da moça.
- Emily, só porque o seu irmão morreu na guerra, você não pode ficar com esse sentimento de repulsa pelo país. Deveria ter orgulho da morte de seu irmão. Ele morreu pela pátria.
- Ele morreu pela pátria... Que coisa mais bela! E eu, como fico? Eu só tinha este irmão. Você fala isso porque não perdeu ninguém. Com licença.
Ela se levantou e foi chorando até a cozinha. A morte de seu irmão Bob ainda lhe doía muito. Não conseguia engolir a idéia de homens se confrontando e se matando como animais selvagens. Isso a aborrecia muito. Adolph resolveu ir embora. Antes de sair, advertiu o xerife:
- Mark, se eu fosse você, iria até a cozinha conversar com ela, para evitar maiores constrangimentos. E, além do mais, eu estou sentindo um cheiro de romance no ar. Acredito que esteja na hora de você abrir seu coração.
Mark ficou boquiaberto. Parecia que todo o sangue do corpo havia se concentrado em seu rosto.
- Adolph! Eu pensei que você a amasse. Sentia até raiva. Quando os via juntos, eu queria morrer. E você vem com essa conversa de eu ter de abrir meu coração? Como sabe que estou apaixonado por ela?
- Meu amigo, eu sou um estudioso do comportamento. Sempre observo as atitudes das pessoas. Conheço você e Emily há muitos anos. Sei que você sempre gostou dela.
- Mas parece-me que ela gosta de você. Ela nunca deu a mínima para mim.
- Claro! Ela nunca deu à mínima porque você, temendo ser contrariado, prefere ficar calado, sufocando seus sentimentos. Fica aí apertando sua alma, represando o que sente por ela. O que eu sinto por Emily é afeição, afinidade. Gosto de cultivar a nossa amizade, nada mais. Acontece que eu deixo fluir aquilo que sinto, não represo os meus sentimentos, você compreende?
- Nossa, Adolph, nunca ninguém falou assim comigo. São assuntos tão... Tão.
- Delicados, femininos, é isso?
- É. É isso. Eu nunca tive a oportunidade de falar dos meus sentimentos com alguém. Toda vez que a vejo, meu coração dispara. Sinto como se ele fosse sair pela boca, tamanha emoção. Ajude-me a compreender o que se passa comigo.
- Simples: você está apaixonado. Você a ama de verdade.
- Você acha isso mesmo? Que eu estou apaixonado?
- Não se engane, meu amigo. Você já tem idade suficiente para analisar as suas emoções. No fundo de nossa alma, sabemos quando estamos apaixonados. Infelizmente você bloqueia seus sentimentos, com medo de não ser correspondido e sofrer. Apaixonar-se é deixar falar o coração.
- Adolph, não sei como lhe agradecer. Como é bom poder ouvir coisas tão bonitas de uma pessoa tão querida como você. Eu nunca pude falar sobre os meus sentimentos, porque em casa era assunto proibido.
- Mark, entenda que os pais procuram fazer o melhor pelos filhos. Eles nos ensinaram tudo àquilo que os pais deles ensinaram a eles, acreditando estar nos ajudando. Aprenderam que a razão deve dominar o coração. E a razão está cheia de regras limitantes, nutridas pelos valores da sociedade. Deram o que pensavam ser melhor. Cabe a nós procurarmos nossa verdade interior e com ela buscarmos encontrar a felicidade.
- Nunca prestei atenção nisso, Adolph. Você fala tantas coisas... Diferentes... Bem, prefiro parar nossa conversa por aqui. O fato de poder falar um pouquinho do meu amor por Emily deixou-me leve, contente.
- Então fale com ela. Vou embora. Preciso visitar Sam, saber como ele está. Tenha uma boa noite.
Adolph terminou de falar dando uma piscada de olho e uma risadinha para Mark. O xerife Mark já estava com trinta e um anos, contudo mantinha um aspecto bem jovial. Perdera o contato com os pais e irmãos havia alguns anos, quando estes resolveram ir pára o oeste em busca de ouro. Na última carta que recebera, diziam estar ricos e bem, morando em San Francisco, pedindo-lhe que também fosse para lá. Mas ele estava habituado com sua vida em Little Flower e não tinha intenção de mudar. Mark era bem alto, pele bronzeada, olhos amendoados, cabelos lisos e pretos. Descendente de índios, era dotado de belo porte. A roupa de xerife tornava-o mais galante, mostrando um corpo bem torneado, musculoso. Nas quermesses da cidade, Mark era sempre aclamado como o "mais bonito", fazendo alguns corações femininos suspirarem por ele. Era comum ele receber chamados urgentes, de moças em apuros. Ele atendia porque, como xerife, não podia negar-lhes auxílio. Mas essas chamadas eram apenas pretextos para que ele fosse seduzido, cortejado. Ele havia recebido muitas propostas de pais querendo casar suas filhas, o que gentilmente declinava. Embora criado numa sociedade machista, sempre acreditou no amor verdadeiro. Tinha certeza de que um dia encontraria uma mulher que fosse capaz de tocar e manter acesa a chama de amor que carregava no peito. Sentiu isso pela primeira e única vez por Emily, há três anos, durante um baile de gala oferecido pelo governo americano. Mark estava elegantemente vestido, conversando com amigos, quando viu Emily chegar. Ele ficou hipnotizado com aquela moça de rara beleza. Seus amigos disseram que o rapaz que a acompanhava era seu noivo. Diante disso, Mark, na noite do baile, limitou-se a cumprimentá-la, com medo de sofrer alguma represália por parte dela ou do rapaz que a acompanhava. Havia muitos pares na festa, dançando lindas valsas. Durante uma das paradas para descanso, Emily foi até o canto do grande salão, onde havia muitas iguarias e bebidas. Serviu-se de um ponche e, em seguida, dirigiu-se à grande varanda que circundava o salão. Foi lá que Mark percebeu estar apaixonado. Ao vê-la, trajando um lindo vestido azul, os cabelos presos por uma tiara de brilhantes, cujos cachos balançavam lentamente enquanto ela se deliciava com o ponche, não resistiu. Foi ao seu encontro.
- Uma noite muito agradável, não acha?
- Bem agradável, eu diria. Boa noite.
- Boa noite. Meu nome é Mark. Sou xerife de Little Flower.
- Muito prazer. Meu nome é Emily. Mudei há pouco para cá. - e, com um sorriso que a tornava mais bela, completou: Fico lisonjeada em conhecer o xerife que patrulha a nossa cidade.
- O prazer é todo meu. Ficará morando em Little Flower?
- Sim. Papai e mamãe são agentes do correio e foram transferidos para cá. Venho de outra cidade do mesmo porte que esta. Portanto, para mim, não há diferença. Já fiz até algumas amizades.
- Mal chegou e já tem amigos? O seu noivo não fica preocupado?
Antes de responder, e surpresa com este último comentário, Emily foi surpreendida por um belo rapaz:
- Querida, estive procurando você por todo o baile.
- Estava um pouco quente lá dentro, resolvi tomar um pouco de ar fresco.
Querido, este é Mark, o xerife da cidade.
- Boa noite. Prazer. Que bom que você já estava com um xerife a patrulhá-la. Obrigado por estar com a minha pequena.
Mark não sabia o que responder. Estava trêmulo, nervoso, não sabia como agir. Suas mãos estavam suando, sentiu-se mal. Procurou manter a pose, estendendo firmemente a mão para o rapaz.
- Prazer. Estava aqui com a sua pequena. Agora ela está a salvo - e, já se distanciando dos dois: Foi um grande prazer conhecê-los. Até logo.
Disse isso e entrou no salão. Emily não entendeu a atitude de Mark. Um homem tão bonito, tão elegante, tão charmoso, com certeza só estava sendo educado. Deveria estar noivo, ou até mesmo ser casado. Conforme o tempo foi passando, Emily, mesmo sabendo que ele era solteiro, resolveu não alimentar nenhum sentimento. Provavelmente ele deveria amar alguma outra mulher - era o pensamento dela -, ainda mais com tanta beleza e sendo assediado por todas as solteiras da cidade. Emily limpou os olhos, lavou o rosto e voltou para a sala de jantar. Mark estava sentado na mesa, de cabeça baixa, com os seus pensamentos voltados no dia do baile. Levou um susto com a entrada de Emily na sala.
- O que foi, Mark? Estou tão feia assim?
Mark não sabia o que fazer, estava confuso. A conversa com Adolph, minutos atrás, e a lembrança do baile faziam de seu coração uma bomba prestes a explodir de emoção. Mal conseguiu articular as palavras. Procurou conter-se e não demonstrar o turbilhão de emoções que estava sentindo.
- Você, feia? Está brincando comigo? Você é a mulher mais linda que já vi em toda a minha vida.
Emily sentiu-se arrebatada por forte emoção. Nunca pensou que pudesse ouvir isso dele.
- Obrigada, Mark. Você é sempre gentil. E me faz lembrar da noite do baile...
- Inacreditável! Eu estava a pouco me lembrando dele. De como eu a conheci. Você estava radiante, Emily.
- Pena que não conversamos mais, não é? Por mim, teríamos a noite inteira para conversar.
- Eu adoraria isso, mas não quis importuná-la.
- Como me importunar? Atrapalhar-me em quê?
- Bem, você estava acompanhada. Falando nisso, o que aconteceu com aquele rapaz? Eu nunca o vi por aqui. Não era seu noivo?
Emily desatou a chorar. Sentou-se numa cadeira próxima a Mark e não continha os soluços. Mark, tomado pela surpresa, não sabia o que fazer.
- Emily, desculpe-me! Não tive a intenção...
Ela procurou se recompor. Passou as mãos no canto dos olhos, procurando secar as lágrimas, que ainda teimavam em cair.
- Aquele rapaz que estava comigo no baile... Morreu na guerra...
- Oh, Emily! Mais uma vez, perdão. Eu jamais poderia imaginar uma situação dessas. Jamais poderia pensar que o seu noivo morrera na guerra.
- Não se culpe, por favor. É que a morte dele foi e ainda está sendo muito dura de aceitar. Mas ele não era meu noivo.
Mark arregalou os olhos, surpreso.
- Como não? Todos na festa diziam que vocês dois eram noivos...
- Não, Mark. Ele era meu irmão Bob. Como estávamos pouco tempo na cidade e éramos muito ligados, muitas pessoas acreditavam que éramos noivos. Bob era meu único irmão. Depois que papai e mamãe morreram, no ano passado, Bob era a única coisa boa que eu tinha na vida. Rezava todas as noites para que ele voltasse vivo. Mas não adiantou. Deus não ouviu as minhas preces. Meu irmão foi brutalmente assassinado durante um combate. Em menos de dois anos eu perdi a minha família inteira.
Voltou a chorar. Dessa vez, Mark estava bem próximo dela. Num impulso, Emily jogou-se em seus braços e ficou com a cabeça pendendo em seu peito. Ele não conseguia mais se controlar. Instintivamente, abraçou-a, passando as mãos pelos seus longos cabelos dourados.
- Emily, não chore. Não fique assim, minha querida. Você é maravilhosa. Uma mulher de fibra, que vem suportando tudo sozinha. Dirigindo o correio, cuidando da casa... Minha pequena, não fique assim. Eu estou aqui para ajudá-la e ampará-la, se for preciso.
Emily apertava seu rosto mais fortemente contra o peito de Mark. Há quanto tempo estava sendo forte? Há quanto tempo estava sozinha tendo de se segurar? Isso havia feito um bem enorme a ela. Estava mais forte, mais decidida. Havia se tornado uma mulher fora dos padrões da época, porque tinha de levar sua vida, não tinha tempo de pensar em futilidades. Era obrigada a ser firme. Mas agora ela não queria mais nada. Só desejava ficar ali, abraçada àquele homem, sentindo o calor que vinha de seu peito. Tentou segurar as emoções que iam em seu íntimo. Não podia demonstrá-las. Para Emily, toda mulher apaixonada transformava-se em capacho do marido. Sempre. Isso ela nunca iria permitir. Levaria uma vida solitária, mas nunca se submeteria aos caprichos de um homem. Não seria como sua mãe, uma mulher amargurada, que chegava às vezes a apanhar de seu pai. Nunca homem nenhum levantaria a mão para ela. Sentia-se completamente impotente. O calor do corpo de Mark a inebriava. Começou a amolecer o corpo, perder a resistência. Não queria admitir, mas estava apaixonada.
- Emily, você perdeu a família, mas tem a mim. Eu preciso lhe dizer algo... Não sei como falar...
Emily afastou-se rapidamente e, fitando os olhos de Mark, perguntou:
- Dizer-me o quê? Vamos, por favor. O que você precisa me dizer?
Mark começou a gaguejar. Era-lhe muito difícil transformar em palavras aquilo tudo que sentia.
- Faz um tempo... Eu... Bem... Sabe... É que...
- Mark, por favor, o que foi? Depois de tanto choro por aqui, eu não agüento mais desgraças. Fale de uma vez!
Mark começou a rir, não conseguia se controlar. Ele estava fazendo tanta força para se conter que o riso o ajudava a se acalmar. Emily não entendeu nada. Levantou-se nervosa da cadeira e começou a gritar:
- O que foi? Está brincando comigo? Pare de rir, agora mesmo!
Mark foi diminuindo o riso. Ficou extasiado. Ela era linda de qualquer jeito. Brava, então, ficava deslumbrante.
- Desculpe-me, Emily. Não tive a intenção de magoá-la. Mas vou direto ao assunto.
Levantou-se, puxou-a. Pegou-a pelos braços e, olhando fixamente para seus olhos, disse:
- É que eu a amo desde aquele dia do baile...
Emily só não foi ao chão porque Mark a estava segurando. Não sabia se ria ou se chorava, se falava algo ou se gritava. Estava também extasiada. Percebeu naquele instante o quanto amava aquele homem. Só conseguiu lhe dizer:
- Eu também...
Não falaram mais nada. Abraçaram-se e beijaram-se.
Emily, não contendo mais as emoções, pegou nas mãos de Mark e conduziu-o até seu quarto. Entregaram-se um ao outro, num ato de amor intenso. Sentindo o toque de seus corpos, ficaram se amando durante a madrugada adentro. Logo cedo, Mark foi acordado com um leve beijo na boca.
- Meu Deus! Então não era sonho? Belisque-me, por favor.
Rindo, Emily, com a bandeja de café aos pés da cama, disse:
- Não, meu amor. É real, acredite.
- Parece que a conheço há tanto tempo... Parece que a amo há muito tempo, essa é a verdade.
- Eu também sinto o mesmo por você. Amo-o muito, Mark. Você me fez, nesta noite, a mulher mais feliz do mundo.
- Preciso lhe confessar uma coisa: você foi à primeira mulher que realmente tive... Se é que você me entende.
- E você foi o primeiro homem que me amou.
- Disso eu sei, é só olhar para o lençol...
Emily ficou encabulada. Não havia percebido. Mark, para não a deixar sem graça, falou amavelmente:
- Minha querida, esta aqui é a prova do nosso amor.
- E de onde veio a prática? Você foi tão gentil, tão amoroso... Confesso que pensei com quantas mulheres você aprendeu a fazer amor. Fiquei até com um pouco de ciúme.
- Nada disso, meu amor. Sempre fui romântico. E sempre acreditei que o ato de amor deveria ocorrer entre duas pessoas apaixonadas. Nunca consegui enxergar o sexo como algo descartável, fútil, para saciar os mais íntimos desejos de um homem.
- Você é realmente maravilhoso. Estou voltando a acreditar na existência de Deus. Mesmo com tanta desgraça em meu caminho, você foi e está sendo a melhor coisa que eu poderia ter nesta vida.
- Emily, agora que trocamos nossas juras de amor, quer se casar comigo?
Emily colocou a bandeja de café numa cômoda e, radiante, jogou-se na cama, abraçando Mark.
- Se quero? Bem, só se você não quiser que eu mude o meu jeito de ser. Só serei a sua esposa se eu continuar a ser eu mesma. Só posso compartilhar a minha vida com alguém que me ame, mas, acima de tudo, que também me respeite. Esta é a condição.
- Emily, você me surpreende a cada instante. Nunca vou querer que você mude seu modo de ser. É esse jeito que faz a chama de meu coração ficar acesa. Quero amá-la dessa maneira, sempre.
- Então está bem, eu concordo. Aceito casar-me com você.
E entregaram-se novamente ao amor. Duas almas que se reencontravam, para um novo aprendizado, uma nova etapa de vida. Só que, desta vez, carregando no peito a chama do amor. O brilho da lua cheia atravessava fendas nas rochas, iluminando a pequena gruta. Já haviam passado alguns dias, e aquele homem de olhos vermelhos continuava pajeando a moça. Ela começou a se remexer no chão úmido e abriu os olhos.
- Onde estou? Quem é você?
- Eu sou Aramis. Você ainda não se lembra de mim, minha Marianne, ainda...
- Desculpe-me, mas eu não o conheço, embora tenha um rosto familiar.
- Rosto familiar, minha cara? Passei séculos à sua procura. Não me deixavam chegar perto de você. Mas, por meio de favores que fiz a algumas pessoas, consegui o seu paradeiro na Terra. Eu a ajudei a se desligar do corpo. Se não fosse eu, talvez você estivesse sendo devorada por vermes há esta hora. Nem que tivesse de ir ao fundo do inferno eu permitiria que isso lhe ocorresse.
- Não estou compreendendo. Como, desligar? Eu só me lembro de estar desesperada, brigando com dois seres infernais, com chifres e tudo o mais, e depois acordei neste lugar horroroso. Não sei como vim parar aqui. Sam deve ter feito isso comigo. Só pode ter sido ele.
Aramis enervou-se. O nome de Sam deixava-o furioso. Odiava aquele homem. Como tinham permitido que sua Marianne pudesse unir-se àquele crápula, àquele demônio que estava agora na Terra com o nome de Sam? Isso nunca poderia ter acontecido. Em sua fúria, Aramis chutava o que via pela frente.
- Não se preocupe, Marianne. Aquele monstro nunca mais colocará as mãos em você. Você sempre foi minha, e será por todo o sempre. Eu sou o seu homem, eu sou o seu verdadeiro amor.
- Não está me confundindo com alguém? Meu nome não é Marianne. Meu nome é Brenda.
- Não. Brenda foi o nome que lhe deram nessa última vida. Você é, e sempre será, minha Marianne.
Brenda estava assustada. Por que ele falava em desligamento, em última vida? Será? Será que tinha morrido? Não, isso não poderia ser verdade. Ela sentia fome, sentia frio, sentia dores. Sua garganta doía e inchava demais. Parecia um pesadelo, mas era real. Estava ali sentada, conversando com um homem que parecia ser tão real quanto ela. Não conseguia imaginar-se morta. A morte para ela era o fim, era o escuro, o vazio, o nada.
- Se estou aqui com você, como posso estar morta? Estou conversando. Devo estar com uma aparência terrível, mas estou viva. Eu estou viva.
Levantou-se rapidamente, afastou-se de Aramis e começou a chorar. Aramis abraçou-a com força.
- Não chore, meu amor. O mesmo ocorreu comigo há muito tempo. Eu sei que é difícil aceitar. Mas é a verdade. Infelizmente, tudo continua. A morte é uma ilusão. Não há morte, mas vida após a vida, isso sim. Só mudamos de plano, mais nada. Ficamos com os mesmos pensamentos, as mesmas emoções, o mesmo corpo, ficamos com tudo isso. Só a fortuna, as propriedades, o poder que tínhamos na Terra é que não nos pertencem mais. Parece-me que só a cabeça é que passa para o lado de cá. Pelo menos é assim que eu percebo. Não fique desse jeito. Logo você vai se acostumar. Vou levá-la para morar comigo. Venho esperando por isso há muito tempo. Assim que você estiver melhor, vou lhe mostrar o meu plano para acabar com a vida de Sam.
- Acabar com Sam? É interessante... Ao seu lado, Aramis, eu sinto ódio dele. De uns tempos para cá, venho sentindo isso. Por quê?
- É porque você está despertando suas memórias passadas. Quando estiver melhor, você vai saber o porquê de tanta raiva. Ele nos destruiu. E agora é chegada a hora de acabarmos com ele de vez.
- Desculpe, mas ainda estou um pouco tonta com tudo isso. Primeiro você diz que eu morri e que ele desgraçou nossas vidas. Ele sempre me pareceu um homem amável, um grande companheiro. Só nos últimos meses eu comecei a me sentir diferente, um pouco esquisita.
Brenda foi sacudida violentamente por Aramis. Seu ciúme doentio não permitia que ela falasse de Sam daquele jeito.
- Nunca mais me diga isso, ouviu? Não me fale mais nesse tom amoroso quando se referir àquele crápula. Isso não!
Brenda assustou-se. Afastou-se violentamente de Aramis, gritando:
- Quem você pensa que é? Você não é o meu dono. Nem sei de onde veio. E pare de me chamar de Marianne. Meu nome é Brenda.
Aramis não se conteve. Deu um forte tapa no rosto de Brenda. Ela não agüentou e desmaiou. Caiu no chão, e um filete de sangue começou a escorrer pelo canto de sua boca. Ele se abaixou e gentilmente alisou seus cabelos:
- Desculpe, Marianne, ou Brenda, se assim preferir. Nem que eu tenha de amarrá-la nas profundezas deste vale horrendo, você será minha, custe o que custar.
Meses se passaram. A América voltava a crescer, com um novo presidente e novos ideais. A nação se unia para reconstruir o país. Mesmo assim, estava muito difícil para Sam continuar em Little Flower. Anna, Mark, Emily e Adolph tentavam de tudo para alegrá-lo. Little Flower, na cabeça de Sam, estava ligada ao crime praticado contra seus filhos, à morte de sua esposa. O mesmo ocorria com Emily. Embora feliz pelo fato de estar amando Mark, não sentia vontade de continuar morando lá. A perda de sua família, a morte do irmão na guerra, tudo isso a deixava sem vontade para continuar vivendo naquela cidade. Num domingo ensolarado, Anna resolveu convidar os amigos para um almoço. Estavam lá Adolph, Mark e Emily. O almoço correu agradavelmente. Anna cozinhava muito bem. Preparou diversos pratos, entre eles deliciosa torta de maçã, sua especialidade. Terminado a refeição, Emily foi com Anna para a cozinha lavar os pratos e preparar um café para os rapazes. Na varanda, Sam, Adolph e Mark conversavam amenidades. Adolph perguntou a Mark:
- E então, xerife, quando teremos a honra de ver os noivos no altar?
- Ah, o mais rápido possível. Estamos muito apaixonados. Eu queria me casar logo, mas ela quer esperar mais um pouco. Estamos juntos há alguns meses, e pensamos em nos casar agora em junho.
Sam animou-se:
- Mark, como junho é lindo! É o verão chegando. Sabe que me casei em junho... Também...
Lágrimas começaram a rolar de seus olhos. Adolph abraçou-o.
- Sam, não fique assim. Você está se recuperando rápido. Veja, aqui você está rodeado de amigos, pessoas com as quais você pode e poderá contar por toda a vida. Vamos, melhore esse rosto, dê um sorriso.
- Adolph, sempre você... Se não fossem você e Anna, não sei se estaria aqui hoje.
Mark enciumou-se, e em tom de brincadeira disse:
- E eu? E Emily? Nós não somos nada para você? Ingrato!
Sam levantou-se e deu-lhe um forte abraço:
- Vocês também são tudo para mim, Mark. Perdoe-me. Adoro você, tanto que o escolhi para padrinho de meus filhos. Sou muito grato a vocês por tudo que me têm feito até hoje. Estou muito feliz pela união dos dois. Quem sabe você não irá retribuir, e eu serei padrinho de seus filhos?
- Claro. Padrinho dos filhos e de casamento. Sam, quero você e Anna ao meu lado no altar. E Adolph também.
Adolph admirou-se:
- Mark, que bom, muito obrigado. Fico muito feliz de poder estar ao lado de vocês numa data tão importante.
- E você acha que eu não iria convidá-lo? Se não fosse você, eu estaria até hoje sem expressar meu amor. Serei grato pelo resto de minha vida. Você me encorajou a expor meus sentimentos.
Anna e Emily voltaram da cozinha trazendo a bandeja com café. Emily, contrariada, disse:
- Mark, nós iríamos convidá-los juntos. Eu ouvi a conversa de vocês lá da cozinha. Agora perdeu a graça.
Anna abraçou-a, dizendo:
- Minha amiga, fico feliz por vocês. E agradeço o convite, se Sam quiser, é claro.
- Como, se eu quiser? - disse Sam. Seria um enorme prazer tê-la ao meu lado nessa cerimônia de casamento. É claro que você vai estar comigo.
A face de Anna ruborizou-se. Seu peito estava a ponto de explodir, tamanha a emoção que estava sentindo. Era a primeira vez que Sam falava daquela maneira com ela. Procurou conter-se. Emily, Mark e Adolph perceberam o estado da amiga e procuraram desconversar. Adolph, para descontraí-los, começou a rir:
- Muito engraçado. Todos aqui discutindo sobre a cerimônia. E eu? Vou estar no altar com quem? Sozinho?
Emily abraçou-o, dizendo:
- Você vai estar lá sozinho porque quer. Poderíamos ter uma nova amiga aqui conosco. Só não temos porque você não quer saber de casamento. Por que é contra o matrimônio?
- Não sou contra. Só gostaria de ter a sorte que você e Mark tiveram. Pessoas que se apaixonaram e que se amam. Eu nunca amarei ninguém...
De novo Adolph soltou-se de Emily e foi para a beira da varanda. Estava segurando há muito tempo aquela tristeza no peito. Ele era um homem evoluído, lúcido, mas, por mais que tentasse, não conseguia se esquecer do trauma pelo qual havia passado tempos atrás em Paris. Sua amizade com Sam, Anna, Emily e Mark havia crescido tanto desde a tragédia, que sentiu um enorme desejo de falar um pouco de sua vida aos colegas. Olhando o infinito, de costas para os amigos, começou a falar:
- Eu nunca disse nada a ninguém... A nenhum de vocês... Nem mesmo a você, Sam. Mas eu já me apaixonei por uma mulher, quando estive morando na França.
Silêncio absoluto. Todos se entreolharam e permaneceram calados, esperando pelo relato do amigo. Pausadamente, Adolph continuou:
- Seu nome era Heléne. Eu havia terminado meus estudos, estava radiante, feliz. Augusto e Carlos, meus amigos da universidade, resolveram comemorar, e fomos para um bordel, muito famoso por lá. Entramos, e eu nunca havia presenciado cenas como aquelas. Homens garbosamente trajados, mulheres elegantemente vestidas, todos estavam sentados em pequenas mesas, em grupo de quatro, cinco pessoas. A fraca iluminação das velas não me permitia ver nitidamente um rosto sequer. As pessoas estavam completamente descontraídas. Um ambiente muito diferente para um jovem americano recém-saído das fraldas. A princípio fiquei assustado. Pessoas diferentes, com outra moral. Ou sem moral. Meus dois amigos tinham uma outra maneira de encarar a vida, não concordavam com uma série de valores ditados pela sociedade. Diziam-me que costumavam seguir o coração, e nunca a cabeça, e isso me atraía demais. Tudo que eles me falavam, eu sentia como verdadeiro. Com eles, aprendi a sentir mais e a pensar menos.
- Sempre fui muito racional. Tudo deveria ter lógica na vida. Mas esses amigos me mostraram que o mecanismo da vida é bem diferente. Que a vida tem leis próprias, que ela comanda o destino dos homens, das plantas, dos animais... Foi uma época muito boa. Aprendi muitas coisas, quebrei uma série de preconceitos, de tabus. Percebi que toda a moral estava na minha cabeça. Que eu poderia fazer o que quisesse, que na realidade as pessoas não iriam ligar, ou nem mesmo saber.
- Descobri que há uma voz aqui dentro da nossa cabeça que quer controlar os nossos passos, como um general, nos obrigando a seguir as regras que a sociedade, os pais, nos ensinaram, mas que estão erradas. Limitam-nos, fazem nos representar papéis, reprimir os verdadeiros valores da nossa alma. Venho tentando dominar esta voz, fazer com que ela siga meus verdadeiros sentimentos e não o convencional. E isso eu devo aos meus amigos Augusto e Carlos, os tais brasileiros.
Emily tentou fazer uma pergunta, mas Mark não permitiu. Meneando a cabeça, pediu silenciosamente que ela deixasse o amigo relatar os fatos. Adolph continuou:
- Bem, depois eu falo mais sobre os meus amigos. Quero falar agora sobre a mulher por quem me apaixonei. Nesse bordel, depois de meia hora, mais ou menos, e depois de muita bebida, fiquei mais à vontade. Encostei-me na beirada do bar, pensando em minha vida, naquelas pessoas, absorto em meus pensamentos. Só percebi que algo diferente estava acontecendo quando notei que o burburinho do salão havia cessado. Olhei para trás.
- Meu Deus! Meus olhos ficaram congelados naquela imagem. Descendo da escadaria, no canto do salão, lá vinha Heléne. Ruiva, com os cabelos caindo pelos ombros, pele alva, olhos verdes, corpo escultural, linda. Era uma deusa.
Estava trajando um vestido branco, bem justo, que demonstrava todas as curvas de um corpo perfeito. Uma roupa escandalosa para o nosso padrão americano. Nela, aquele vestido era um encanto. Apaixonei-me ali, não consegui desgrudar meus olhos de tanta beleza.
- Por incrível que pareça, ela era amiga de Augusto e Carlos. Meus amigos, percebendo meu encanto, apresentaram-me a ela. O que mais poderia esperar deles? Aquilo era o máximo.
- Foi lindo! Ela também se apaixonou por mim. E nos amamos muito, fazíamos caminhadas ao redor do Sena, piqueniques nos jardins das Tulherias. Nos fins de semana íamos para a sua casa em Montmartre, um bairro de intelectuais, escritores, pintores, artistas em geral. Heléne administrava aquele bordel. Eu não me importava. Nunca me queixei. Iria pedir a sua mão em casamento, mas não foi possível...
Adolph ficou em silêncio por alguns segundos. Mark e Sam abraçaram o amigo. Mark entristeceu-se com a história:
- Somos amigos há tanto tempo. Nunca pensei que você pudesse ter tido uma paixão tão forte na sua vida.
Sam, apertando o ombro de Adolph, estava surpreso:
- E você falou sempre que era meu primo do coração. Nunca me contou nada. Anna, traga uma xícara de café aqui para ele.
Anna prontificou-se, pegou a xícara da bandeja e levou para Adolph.
- Tome, Adolph, vai lhe fazer bem. Mas agora estou curiosa: o que aconteceu?
Mark, Emily e Sam olharam ao mesmo tempo para Anna, reprovando sua pergunta. No fundo, estavam também tão curiosos quanto ela. Adolph continuou:
- Não, estou bem. Pela maneira como aprendi a encarar a vida, eu estou aqui hoje. Caso contrário, eu teria dado cabo dela. Embora doa, eu sinto que devo aprender, e acredito que estou aprendendo muito com tudo isso.
Tomou um gole de café, pigarreou e continuou:
- Eu tive de resolver algumas coisas com meu pai lá na Itália. Seguimos viagem. Ficaríamos vinte dias por lá. Heléne queria ir junto, mas não havia alguém que pudesse ficar em seu lugar na administração do bordel. Eu já tinha ouvido uma história sobre um barão muito rico, do estrangeiro, que tentava seduzi-la de todo jeito. E, é claro, muitas pessoas contavam histórias absurdas, aumentavam os fatos, dizendo que o homem era muito mau, que iria conquistá-la de qualquer maneira. Na Itália, comprei um lindo anel, que carrego comigo até hoje, para pedir a mão de Heléne em casamento. Estávamos muito apaixonados. Ao chegar de viagem, fui correndo para sua casa, mas não havia ninguém. Um amigo dela, pintor, que morava no andar de baixo de seu apartamento, disse-me que ela havia partido com o homem rico. Que havia se casado, e ele não sabia para onde ela tinha ido. Eu não acreditei. Não podia ser verdade. E o nosso amor? Será que o dinheiro contava mais que o nosso sentimento? Será que o luxo, a riqueza, o poder valiam mais que o amor que nos unia?
- Fui atrás de Augusto e de Carlos. Eles deveriam saber o que estava acontecendo. E... O mais estranho de tudo...
Emily não se segurou. Quase gritando e implorando ao mesmo tempo, suplicou:
- E então, Adolph, o que aconteceu?
Adolph enxugou as lágrimas, que agora não segurava mais, virou-se de frente para os amigos. Colocou as mãos na cintura, suspirou.
- Bem, não sei. O mais estranho é que os rapazes também haviam partido. Deixaram-me um bilhete, no qual diziam ter partido com Heléne, mas não me falaram para onde. O que me intriga até hoje é o fato de tudo ter ocorrido tão rápido. Isso não era atitude que poderia vir de Augusto e de Carlos. Eles eram muito íntegros. Mas, enfim, não sei. Foi então que resolvi voltar para Little Flower. Não tinha mais sentido ficar por lá. Perdi a mulher da minha vida e meus dois maiores amigos. Graças a Deus, hoje eu tenho vocês. Obrigado.
Terminado o triste relato, Adolph foi abraçado carinhosamente pelos amigos. A amizade entre eles estava de vez solidificada. Os espíritos de Agnes e de Júlia, sua assistente, estavam presentes. Agnes, num suspiro delicado, passou a mão na testa de cada um deles. Disse a Júlia:
- Minha amiga, que bom! Agora conseguimos reuni-los novamente. Precisamos ajudá-los com uma vibração bem positiva para não se perturbarem e continuarem com o plano.
- Mas, Agnes, como fica Brenda? Já recebi comunicado de que ela foi socorrida por Aramis.
Agnes, em sua tranqüilidade usual, bem-humorada, respondeu:
- Júlia, não se preocupe. Eu sabia que Aramis iria socorrê-la. Ele já estava aqui, mesmo antes de ela morrer. Ele atrapalhou as metas de Brenda. Aramis vai ter de arcar com essa responsabilidade. Você sabe que ninguém pode intervir na vida dos outros, fazendo aquilo que só cada um pode fazer. Por Deus, Sam conseguiu superar a tragédia.
- O interessante é que na ficha de Sam já constava toda a tragédia. Isso estava programado mesmo, não é?
- Estava, Júlia. Estava, sim. As crianças iriam morrer. Só que de outra forma. Iriam adoecer e falecer naquele inverno rigoroso. Eram espíritos cujas Formas pensamentos de destruição eram tão fortes, tão cristalizadas, que só mesmo a reencarnação, por um curto período, iria permitir que tais formas fossem eliminadas de seus perispíritos.
- Não poderiam fazer um tratamento aqui no astral ao invés de reencarnar? Não seria mais fácil que as máquinas sugassem essas formas?
- De que adiantaria, Júlia? Eles acreditavam no mal. Nós tentamos limpar essas formas de suas cabeças. Lembre-se de que nós tentamos fazer isso. Não se esqueça de que os dois abortos de Brenda foram provocados pelo medo dos dois. Mas, assim que tirávamos as formas, em instantes eles as materializavam de novo. O padrão mental deles é assim. E para isso não há máquina que resolva a situação. É tarefa de cada um evoluir, mudar para melhor. A mudança vem com a renovação da atitude interior, e nada como a Terra para nos ajudar a entender isso.
- E pelo fato de as formas-pensamentos serem densas, o melhor para esses dois espíritos seria essa curta reencarnação?
- Isso mesmo. Veja bem: quando nós emitimos um pensamento, damos importância para ele, geramos uma atitude. Essa nossa atitude cria um campo ao nosso redor.
- Um campo de energia?
- Exatamente, um campo de energia, que pode ser favorável ou não, conforme aquilo em que acreditamos.
- Então, como vejo por aqui, os bons pensamentos criam ao nosso redor um campo favorável, e pensamentos ruins criam o contrário, certo?
- Certo, Júlia. E caso tenhamos um pensamento condicionado, seja no bem, seja no mal, esse padrão de pensamento, de tanto ser usado, fica automatizado, e podemos carregá-lo por vidas e mais vidas.
- Ah, com certeza! Se quando morremos continuamos os mesmos, é sinal de que os pensamentos, as crenças e atitudes que tínhamos nos acompanham.
- Por essa razão é que nós devemos estar sempre de olho em nossas atitudes, procurando melhorar sempre. É o básico.
- É Agnes, é o básico...
Continuaram a conversar por mais alguns instantes. Júlia estava fascinada ao lado de Agnes. Havia feito muitos cursos no astral e agora se sentia pronta a estagiar e participar da história desses espíritos reencarnados. Estava aprendendo muito com os casos práticos de sua mentora. Agnes harmonizou o ambiente e deu um abraço em todos, causando-lhes um grande bem-estar. Após os abraços, tomou a mão de Júlia e alçaram vôo. Tinham muitas coisas para fazer. O sábado amanheceu glorioso. Logo cedo, o céu estava completamente azul, sem uma nesga de nuvem que pudesse atrapalhar a trajetória harmônica do sol pelo horizonte. A cerimônia havia sido marcada para as dez horas da manhã, e, aos poucos, os convidados foram chegando. Emily e Mark aceitaram de bom grado o convite de Sam. Ele queria que ambos se casassem no pátio atrás de sua casa. Era um pátio muito extenso, pleno, coberto por uma grama verde-clara, rodeado de arbustos, muitas flores e um grande belvedere onde seria realizada a cerimônia. Próximo ao mirante ficava um lindo lago, cujas águas abrigavam casais de cisnes. Os empregados enfeitaram o pátio com lindas flores brancas e laços cor-de-rosa. Fizeram fileiras com bancos de madeira pintados de branco, de maneira que eles ficassem em frente ao belvedere, para que todos os convidados visualizassem os noivos. As fileiras foram separadas pelos laçarotes cor-de-rosa, e na ponta de cada banco foi colocado um ramo com flores brancas. Era chegada a hora da cerimônia. Mark, elegantemente vestido, já se encontrava com o padre no interior do belvedere. Ao seu lado, estava Sam. Do lado em que ficaria Emily, estava Adolph. Ambos estavam também impecavelmente trajados. Ao longe avistaram a noiva, que estava com o vestido bem justo para a ocasião. Não trazia véu sobre os cabelos, somente uma tiara, que os deixava na forma de coque, voltados para cima. Adolph, com sua visão aguçada e admirando a beleza que se aproximava, disse surpreso:
- Meninos, não é a noiva quem está chegando. É Anna. Mire lá, Sam.
Sam não acreditou. Tantos anos de convivência, e nunca havia notado tanta beleza em Anna. Se ela teve a intenção de chamar-lhe a atenção, conseguiu naquele instante. Ela estava radiante, linda. Ele sentiu uma ponta de emoção no peito. Foi andando rápido em sua direção.
- Anna! Onde você havia guardado tanta beleza? Por que nos escondeu esse tesouro?
- Ora, Sam, não diga bobagens. Eu só me arrumei para o casamento de minha melhor amiga, que considero uma irmã. E, além do mais, fazia anos que eu não tinha a oportunidade de poder me vestir para um evento tão importante.
- Interessante... Conheço você há tanto tempo, e nunca havia reparado na sua beleza.
Sam estava fascinado pela beleza de Anna, e foi falando tudo que vinha à mente. Percebeu que estava empolgado demais e desculpou-se, muito sem jeito:
- Anna, desculpe-me. Estou entusiasmado com a sua formosura, é só. Vamos, pois a noiva já vem chegando.
Ficaram no altar, ao lado de Mark. Adolph se ajeitou no lado em que Emily ficaria. Logo em seguida, uma suave melodia começou a ser tocada pela orquestra. Era a chegada da noiva. Emily estava linda. O vestido alvo contrastando com o sol da manhã deixava-a mais bela. Algumas flores presas no coque feito por Anna eram os únicos complementos de seu traje. Emily aparentava simplicidade, embora muito elegante. Mark não conteve as lágrimas. A cada passo que Emily dava no corredor em direção ao altar, mais as emoções jorravam de seu peito. Estava muito feliz. Emily era a mulher de sua vida. Chegando perto do altar, a noiva foi conduzida por Mark, que antes lhe deu um suave beijo na testa. Após curta e aprazível cerimônia, Sam foi conduzindo os convidados para as mesas ao lado do lago, que também estavam decoradas com toalhas brancas e vasos com rosas vermelhas. Foram todos se sentando nas cadeiras, agrupando-se conforme a intimidade. Em volta das mesas, foi colocada uma grande mesa retangular para os noivos e padrinhos. Adolph resolveu fazer o brinde ao casal:
- Gostaria de desejar-lhes, com o aval de todos os presentes, os nossos sinceros votos de uma união feliz, duradoura. E que a chama do amor esteja sempre acesa, iluminando-os para sempre.
Todos se levantaram e ergueram suas taças. Agnes, que estava presente desde o começo da festa, deu um beijo nos noivos. Aproveitando o momento, fez o que estava ansiando: ser notada por Anna. O ambiente descontraído, festivo e alegre favorecia o intento. Anna estava se dirigindo à cozinha para providenciar o bolo, quando foi interpelada por Agnes:
- Minha querida amiga, parabéns pelo arranjo. Os enfeites, as cores, os tecidos, a delicadeza...
Anna ficou surpresa. Lembrava-se vagamente daquele rosto. Perguntou intrigada, embora sustentando encantador sorriso nos lábios:
- Foi um lindo trabalho. Tudo que é feito com dedicação e amor tem um resultado muito bonito. Desculpe-me, mas eu a conheço?
Agnes sorriu e pegou em suas mãos:
- Somos amigas há muito tempo. Você me conhece, Anna. Mas agora estou em outro plano. Teremos um trabalho para fazer em conjunto e vou precisar muito de sua ajuda. Só passei por aqui para dar um abraço nos noivos.
- Somos amigas? Não sei...
De súbito, Anna lembrou-se do sonho naquela manhã em que Sam caiu da escada.
- Então não era sonho? Era você mesma? Real?
Anna estava muito emocionada. Embora não se lembrasse quem ela era, sentia uma grande afeição por Agnes.Esta, notando a emoção, continuou a falar:
- Somos amigas de outras vidas. Você logo vai se inteirar sobre esse assunto. Assim poderei ter a chance de estar mais próxima de todos, vocês. Agora preciso ir. Fico feliz em poder falar com você, que me é muito especial. Até logo.
Anna permaneceu estática. Não sabia o que falar. Pela primeira vez na vida, não sentiu medo por estar falando com uma pessoa estranha. Pelo contrário, enquanto conversava com Agnes, sentiu amor, saudade, ternura... Como podia sentir isso por alguém que nunca tinha visto antes? E, ainda por cima, ter gostado tanto? Conforme esses pensamentos lhe vinham à cabeça, Agnes foi caminhando pelo gramado, sumindo à distância de seus olhos. Enquanto isso, Emily e Mark foram passando de mesa em mesa, dando os cumprimentos aos convidados. Adolph sentou-se ao lado de Sam. Enchendo sua taça de vinho, disse-lhe:
- Estou muito contente por você ter promovido esta festa. Chega de tragédias, não é verdade? Quero vê-lo feliz, Sam.
- Eu tento, Adolph, eu tento. Mas acha que eu deveria me envolver com alguém? Eu sei que no fundo você está certo. Não posso ficar amarrado às regras sociais e permanecer viúvo pelo resto de minha vida.
- É isso mesmo, Sam. Você, um bonitão, nem fez vinte e dois anos. Ainda tem muito gás para queimar, não é verdade?
Sam começou a rir. O jeito de falar do amigo era muito engraçado. Adolph continuou:
- Pode rir à vontade. Isso melhora o nosso estado. Sabe, Sam, eu penso que você tinha algo para fazer com Brenda, e que a sua parte já foi feita.
- Mas eu a amava - disse Sam, voltando à sua seriedade.
- Sei disso. Mas ela se foi, não é? E você acha que o seu coração é tão mesquinho a ponto de ter espaço somente para um amor na vida? Por acaso o seu coração não é grande o suficiente para ter o amor dos amigos, ou dos filhos que você teve, ou de outras pessoas que possam surgir? Não percebe que o coração tem um espaço imenso, profundo? Que a nossa cabeça é que resolve se meter e criar cercas dentro dele? Acorde, Sam. Acorde para a vida. Ela é poderosa, porque sempre ganha. Não há como brigar com ela. Vamos, abra o seu imenso coração. Arranque as cercas que demarcam território. Deixe-o grande, para receber um grande amor.
- Adolph, você fala de uma maneira... Eu amei Brenda. Sabe, às vezes penso que a amava, mas de uma outra maneira. Hoje percebo que esse amor estava um pouco misturado com apego. Já tinha perdido a minha família toda. Ela era a única pessoa que eu tinha. Você estava na Europa. Mas eu ainda entro nos valores da nossa sociedade, muito embora eu sinta que tenha muito que brotar do meu amor...
- E por que não brota? O que está esperando?
- Ora, Adolph, você não quer que eu agora aproveite a próxima quermesse e saia à caça de moças casadoiras. Isso não combina comigo.
- Agora que Mark, o bonitão das quermesses, não está mais disponível, bem que você poderia ocupar o lugar dele...
Sam passou a mão pela cabeça de Adolph e ambos começaram a rir. Sam comentou:
- O que o vinho nos faz, não? Estou me sentindo tão desinibido, mas não há moça por esta cidade que aqueça o meu coração.
- Como não? Conheço uma que está louca para ser fisgada por você. Faz tempo que venho percebendo isso.
- De quem você está falando?
- Sam, não se faça de ingênuo. Tanto eu quanto Mark e Emily já percebemos que há uma moça louca por você. Abra as portas do seu coração.
- Desculpe-me, mas não sei o que ou de quem você está falando. Nunca percebi ninguém me lançando olhares de amor.
- Mas aquela moça - disse, apontando o dedo em direção a Anna -, acredito que esteja apaixonada por você...
- Não fale besteiras! Anna é uma grande amiga. Recentemente até tive ímpetos de abrir-lhe meu coração, mas sinto que ela não me deseja. Nunca percebi nada que mostrasse o contrário.
- Não fale besteiras você, homem! Ela sempre foi apaixonada por você, mesmo durante seu namoro com Brenda. Se eu fosse você, iria lá ter uma conversinha com ela. Você está apaixonado.
- Como sabe?
- Pelo seu jeito de falar nela, ora. Sam, largue os valores sociais, esqueça suas tragédias por um momento e se entregue ao amor. Não perca a chance. Ela é uma ótima mulher. Sinto que vai fazer você muito feliz.
Sam remexeu-se na cadeira. Realmente sentia seu coração arder. Mas por que só agora? Adolph deu dois tapinhas nas costas de Sam e deixou-o só, em seus pensamentos.
- Bem, Sam, agora o negócio é com você. Não pense, mas sinta com o seu coração. Só assim você saberá se realmente gosta ou não de Anna. Agora vou conversar com algumas pessoas que não vejo há muito tempo. O recado foi dado. Até mais.
Sam esboçou um leve sorriso. Pegou a jarra de vinho que estava em sua mesa e encheu sua taça. Tomou tudo num gole só, deu uma suspirada profunda. Recostou-se na cadeira, cruzou as pernas e, com os braços agarrados à nuca, começou a relembrar de algumas cenas de sua vida. "Minha nossa! Agora que Adolph conversou comigo, eu começo a me lembrar dos olhares que Anna me lançava, desde os tempos em que eu namorava Brenda. Mas ela sempre foi discreta, nunca conversou comigo dando a entender que gostava de mim, se é que gostava. Será que ela sempre teve essa paixão?" Ficou divagando por mais alguns minutos. Seu coração ia batendo mais forte à medida que se lembrava de fatos de sua vida em que havia a presença de Anna. Sentiu que ela se tornara indispensável em sua vida. De repente, percebeu que a amava e decidiu que precisava declarar-lhe seu amor. Anna continuava a observar Agnes sumir por entre os bosques. Foi tirada desse estado de êxtase por Sam:
- Para onde você está olhando? Procurando algo? Seu olhar está tão distante...
- Oh, desculpe-me. Nem havia notado a sua presença. Estava conversando com aquela mulher ali...
- Que mulher?
- Aquela ali, Sam. Que está ali no bosque...
Anna apontava com o dedo e Sam nada conseguia ver.
- Tudo bem, Anna. Deixe-a lá. Os convidados estão esperando pelo bolo. Eu estou morrendo de vontade de comer um pedaço. Sei que você ajudou a fazê-lo.
Deve estar uma delícia. Vamos pegá-lo? Vim ajudá-la.
- Oh, Sam, como você é gentil! Não sabia que gostava tanto de festas.
- Não é a festa que está me deixando neste estado, Anna. É você.
Ele não estava mais conseguindo se controlar. Emocionado, sem perder a firmeza na voz, disse de uma só vez:
- Anna, estou apaixonado por você.
Ela quase foi ao chão. Estaria ouvindo bem? Depois de tantos anos? Ela não sabia o que responder.
- Você ouviu? Eu disse que estou apaixonado por você.
Ela procurou recompor-se. Engasgou-se ao tentar falar. Lágrimas escorriam pela sua face emocionada.
- Desculpe, Sam. É que... Que... Eu esperei tanto por isso. Fui tomada de grande surpresa. Tenho de pegar o bolo agora. Depois da festa conversaremos, está bem?
Sam não entendeu, só notou a satisfação nos olhos apaixonados de Anna. Ficou feliz. Tal qual adolescente enamorado, respondeu:
- Está bem, querida. Estou esperando ansiosamente o fim desta festa. Não vejo a hora de podermos conversar, logo mais à noite. Não fuja de mim.
Deu um beijo na testa da amada e saiu cantarolando pelo bosque, cumprimentando e conversando com os convidados. Anna foi à cozinha ajudar os empregados a enfeitar o bolo. Estava tomada de emoção. Primeiro foi àquela mulher, linda, agradável, dizendo-se sua conhecida de outros tempos, e, por incrível que fosse, era a mesma do sonho de outrora. E logo em seguida a declaração de Sam. O que mais queria? Somente agradecer a Deus tanta felicidade.
- Obrigada, meu Deus! Estou muito feliz por ser amada por ele. Diante de tamanha felicidade, só quero agradecer.
Continuou a orar por mais um tempo com o rosto ainda banhado em lágrimas. A tarde continuou ensolarada. A festa correu sem deslizes. Os convidados foram se retirando, os noivos foram para a casa de Mark. Não podiam viajar de imediato. O xerife precisava de um substituto, e este só chegaria depois de um mês. Emily não ficou contrariada por não ter uma viagem de lua-de-mel. Já estavam vivendo nesse clima desde que se descobriram apaixonados. O que importava é que agora ficariam juntos, para sempre. Emily já havia providenciado, uma semana antes, a mudança de alguns móveis, roupas e utensílios, que levou para a casa de Mark. O que sobrou seria vendido no bazar organizado pelos amigos. Assim que terminasse de esvaziar sua casa, iria vendê-la. O casal estava com planos de montar algum negócio. Emily, além de vender a casa, pensou em transferir o título de propriedade sobre a agência do correio. Não queria mais isso. O correio fora herança de seus pais. A morte do irmão tirou-lhe definitivamente a vontade de tocar o negócio. Emily queria realizar um trabalho que fosse mais dinâmico, difícil de encontrar na pacata Little Flower. Por essa razão, Mark estava pensando em juntar seu dinheiro com o da esposa para comprarem um pequeno pedaço de terra em outra cidade. Emily já havia lhe dado a sugestão de plantarem algo, qualquer coisa. Agora casado, Mark estava pensando na possibilidade de virar fazendeiro e largar a vida de xerife. Brenda acordou naquela mesma gruta, ao lado daquela mesma rocha, mas sem a presença de Aramis. "Será que aquele patife me largou?", pensava, enquanto olhava detalhadamente o interior da gruta em que estava. A presença de Aramis assustava-a muito, mas o que mais a intrigava era o fato de sentir sua falta quando ele não estava por perto. Não conseguia raciocinar direito. Tinha medo e, ao mesmo tempo, sentia saudade. Levantou-se, procurou beber um copo de água. Próximo ao local em que estava deitada, havia uma mesa com alguns pães e um copo cheio de água. Estava com tanta fome que chegava a ouvir o barulho de seu estômago. Tomou um pouco de água, pegou um pedaço de pão. "Hum, isto aqui está muito bom. Também, estou faminta..." A alimentação energética de seu corpo era feita por passes, irradiados por Aramis. Desde o desencarne, Brenda recebia vibrações que sustentavam seus chacras. Somente agora estava em condições de se alimentar novamente. Terminou de comer aquele pedaço de pão e bebeu toda a água do copo. Logo depois sentiu uma forte vontade de urinar. 'Meu Deus, estou maluca! Agora é que percebo. Como podem dizer que morri, se tenho fome, estou comendo e sinto vontade de urinar? Como isso é possível?" Meio sem jeito, foi até um canto da gruta. Havia uma espécie de biombo separando aquela parte do restante da gruta. Brenda logo percebeu ser um banheiro. Embora estivesse dentro de uma gruta, o ambiente era limpo. Atrás do biombo havia uma penteadeira de madeira entalhada, com uma toalha, uma jarra com água, artigos de toucador e um vestido limpo. Ao lado da penteadeira, um vaso sanitário e uma banheira. Brenda, admirada, olhou-se no espelho. Agora podia notar seu estado deplorável. Sua garganta continuava com uma marca vermelha ao redor. Resolveu banhar-se e amenizar aquele triste semblante. Não se arriscou a sair da gruta. Algumas horas depois, chegou Aramis. Estava surpreso com a mudança no aspecto de Brenda.
- Meu amor, como você está linda! Pedi para alguns servos arrumarem tudo do bom e do melhor para você. Eles não falharam, pois você está mais linda do que nunca.
Ele tirou do bolso um colar de pérolas e gentilmente o colocou no pescoço da amada.
- Aramis, você está dando isto para mim? Um colar como este deve valer uma fortuna.
- Você merece o mundo, minha querida. Nada é mais valioso do que nosso amor.
- Você fala nosso amor... Parece que sinto ou senti isso alguma vez por você, mas o meu coração está ligado a Sam...
Ela se esquecera da fúria de Aramis. Ele já havia pedido que ela nunca mais dissesse aquele nome em sua frente. A única reação que teve foi de colocar as mãos cobrindo o rosto, para se defender de uma possível bofetada. Foi surpreendida pelas gargalhadas secas e profundas de Aramis, que naquela gruta incomodavam os ouvidos, de tão fortes.
- Marianne, ou Brenda, tanto faz. Como você pode amar alguém que não gosta de você?
- Como assim? Sam sempre me amou, desde que éramos pequenos. Eu não o amava, mas ele era apaixonado por mim.
- Querida, você é muito ingênua. Acredita mesmo que Sam, ainda jovem, iria ficar viúvo pelo resto da vida? Que ele a amava tanto assim? Você acredita nisso?
- Veja lá como fala, Aramis. Está me deixando nervosa. E insegura. Eu sei que você gosta de mim, mas Sam me ama, e muito. Jamais ficaria com outra. Disso eu tenho certeza.
- Ama? Você disse ama? Não acredita mesmo em mim? Pois então vou lhe mostrar a verdade...
Ele puxou violentamente o braço de Brenda e conduziu-a pelo espaço afora. Assustada, ela se agarrou na cintura dele e fechou os olhos. Tinha pavor de altura. Em instantes estavam na casa de Sam.
- Vamos, Brenda, abra os olhos. Já estamos em terra firme. Veja onde você está.
Ela abriu lentamente os olhos. Embora estivesse com os pés no chão, sentia-se mole.
- Como conseguiu, Aramis? Estávamos na gruta, no vale, e agora estamos aqui, na minha casa. Como você consegue fazer isso? Que poder é esse?
- Não há poder, minha cara. É só saber controlar a mente, os pensamentos. É à força da concentração. Você se concentra e realiza aquilo que quer.
- Assim, fácil? É só pensar e pronto? Como pode?
- Com muito treino e paciência chega-se lá. Demorei anos para começar a voar, e mais anos para dominar os meus pensamentos. Mas depois lhe ensino tudo. Agora quero provar-lhe que não a estou enganando. Pelo contrário. Amo você, e quero que veja a verdade.
Aramis foi conduzindo-a lentamente no interior da casa de Sam. No quarto, já de noite, Sam e Anna estavam deitados na cama. Logo depois que os convidados se retiraram, Sam não se conteve e puxou-a pelas mãos.
- Vamos, Anna. Não quero esperar mais. Eu sou um homem livre, e você também é uma mulher livre. Já estive muito tempo preso nos meus pesadelos, nas minhas tragédias. Agora quero e tenho o direito de continuar vivendo com alguém a quem eu possa dar o amor que está contido em meu peito. Amo você, de verdade.
Anna estava completamente inebriada pela doçura e pela firmeza que vinham das palavras de Sam.
- Como é bom poder ouvir isso. Estou apaixonada há tanto tempo que já perdi a conta. Mas não quero pensar em nada agora, só quero amar você.
E assim fizeram. Sam pegou-a pela cintura, colocou-a por entre seus braços e, conduziu-a até o quarto. Sentindo o calor que seus corpos emanavam, entregaram-se ao amor. Depois de se amar, permaneceram deitados e abraçados, trocando beijos apaixonados. Brenda entrou no quarto nesse instante. O susto jogou-a nos braços de Aramis. Sentiu falta de ar. Ficou pálida como cera. Não podia acreditar no que via. Seu marido com aquela ordinária? Tinha-lhe roubado a mãe, e agora lhe roubava o marido? Como se atrevia? Brenda ficou colérica, seus olhos pareciam querer saltar das órbitas, faiscando ódio. Desgrudou-se de Aramis e partiu para cima de Anna, começando a esbofeteá-la. A vibração de ódio era tanta que Anna não podia receber a bofetada física mas pôde sentir o tapa energético. Ao mesmo tempo, começou a sentir uma dor na nuca e uma pontada na testa. Sua cabeça doeu terrivelmente, como se algo estivesse esmigalhando seus miolos. Sam percebeu o mal-estar de Anna, mas pensou tratar-se apenas de emoção. Procurou levar na brincadeira. Mas logo se deu conta de que ela se debatia na cama, tamanha a dor. Preocupou-se.
- O que foi? Estávamos bem até agora, o que houve?
Anna apertava as têmporas, tentando aliviar aquela dor terrível.
- Não sei, Sam. Dói muito, é como se eu estivesse levando uma punhalada dentro da cabeça, não sei explicar.
Brenda continuava socando Anna.
- Sua desgraçada, como pôde? Você não pode ficar com ele. Isso eu nunca vou permitir. Vagabunda!
O desequilíbrio de Brenda foi aumentando. Sua garganta começou a inchar. Inchou tanto que o colar que Aramis lhe dera estourou, espalhando as pérolas por todo o quarto. Parou de esbofetear Anna, devido à dor aguda que sentia.
- Aramis, o que acontece comigo? Por que meu pescoço está inchado de novo? Ajude-me. Esta dor é horrível!
Aramis procurou acalmar a amada. Fê-la sentar-se no chão e colocou a mão em sua garganta. Não conseguiu o intento. Ele sabia que somente Brenda poderia aliviar-se da dor. Naquele estado colérico, nada que ele fizesse iria adiantar. Resolveu aplicar-lhe uma injeção, para que ela pudesse adormecer e desligar-se do desequilíbrio. Enquanto passava a mão levemente pelos cabelos de Brenda, dizia:
- Fiz isso para você ver a verdade. Fiz isso porque a amo.
Pegou-a nos braços, desfalecida, e alçou vôo. Em instantes estavam de volta à gruta. Ele a deitou no chão, ajeitando delicadamente o corpo para que ela não acordasse. Depois retornou para a casa de Sam. Teve idéia de fazer um trabalho. Aramis magnetizou as pérolas do colar de Brenda, esparramadas pelo quarto de Sam. Impregnou-as com energia de raiva, de desequilíbrio, a fim de atrapalhar a vida do casal. Enquanto Sam e Anna estivessem naquela casa, precisariam de muita firmeza interior para não sucumbirem àquele trabalho. As dores de cabeça de Anna foram cessando. Sam foi correndo até a cozinha e trouxe um pouco de água para ela.
- Como se sente, querida?
- Estou melhor. Não sei o que aconteceu. Estávamos tão bem, de repente isto...
Sabe que eu estava aqui pensando em Brenda? Não sei por que, mas tive a impressão de tê-la visto muito nervosa, aqui no quarto.
- Bobagem! É natural, foi a nossa primeira vez. Você ficou um pouco sem graça, talvez com culpa.
- Pode ser. Talvez eu me sinta invadindo o lugar de Brenda, e associei tudo à imagem dela, nervosa.
- Você não está invadindo o lugar de ninguém. Brenda se foi. Eu não posso nem poderia passar o resto de minha vida por aqui me lamentando. Quem disse que devemos amar somente uma pessoa na vida? Isso não é mesquinhez? Quando a pessoa parte, por que devemos nos manter em luto até morrer? Quem disse que isso é o correto?
- Não sei, Sam. Pergunte a Adolph. Ele parece ser o mais indicado para esse tipo de conversa.
- Você tem razão. Mas não quero que se sinta culpada por me amar. É difícil, mas vou tentar. Eu juro.
Abraçaram-se e procuraram dormir. Não tinham terminado bem à noite. Anna ia se desligando, pegando no sono, mas ao mesmo tempo sentia fortes calafrios pelo corpo. Aramis, sentado na poltrona de Sam, ao lado da cama, a tudo olhava, com admiração e gosto. Pensava: "Enquanto estas pérolas estiverem espalhadas pelo quarto, vocês não vão ter sossego. Vou acabar com a vida de vocês." Uma voz, vinda de algum ponto que ele não podia ver, fez-se ouvir:
- Por que está fazendo isso, Aramis ?
Aramis deu um pulo da poltrona. Olhou para o alto, em todas as direções do quarto, e nada viu. Gritou histérico:
- Quem é você? O que quer aqui? Este terreno é meu!
- Seu? Quem disse que é seu? Este terreno aqui é meu.
- Quem está falando? Quem é você?
Agnes fez-se visível no quarto. Sua luz a deixava mais bela.
- Sou Agnes, amiga do casal. Peço-lhe que tire essas pérolas daqui. Caso contrário, você vai proporcionar momentos de desequilíbrio para o casal.
- Isso é o que quero. Ela é boba, insegura. Acredita que está tomando o lugar de Brenda. Com esse pensamento, é fácil rebaixar o padrão vibratório e ser atraída pela energia que está nas pérolas. Então o problema é dela, é da cabeça dela. Eu só estou contribuindo um pouco.
- Você acha que o problema é dela? Quem lhe deu o direito de colocar as pérolas aqui?
- O padrão de pensamento dela facilitou. Se Anna fosse mais firme, eu não conseguiria fazer a minha parte.
- Mas o que você vai levar em troca? A desarmonia, o desafeto, o fim da relação? Por acaso não é mais vantajoso para você que Sam se case com Anna? Por acaso não é melhor Brenda vê-los a todo instante juntos, e assim nutrir ódio por Sam e preferir ficar com você?
Aramis não havia cogitado essa possibilidade.
- Eu vou pensar...
Agnes era doce porém firme. Não deixou Aramis terminar.
- Não, não vai pensar. Não temos tempo para isso. Quero que você tire essas pérolas daqui agora, porque o trabalho foi seu.
- E se não tirar?
- Bem, se não tirar, eu vou ter de chamar Apolônio para dar um jeito na situação, e assim tirar Brenda de você.
- Isso é chantagem. Espíritos de luz não podem fazer chantagem.
Agnes continuava firme e tranqüila.
- Espíritos de luz não são bobos. Não confunda bondade com burrice. Nenhum de nós aqui é burro, nem do lado de cá nem do seu lado. É só uma questão de interesses. Ou você tira as pérolas ou eu tiro Brenda de você, e ainda lhe mando ao encontro de Apolônio.
- Apolônio, nunca! Faço qualquer coisa para não ter de me encontrar com ele de novo.
Aramis mordeu os lábios com ódio.
- Está certo, faço a minha parte.
Começou o trabalho de limpeza. Ainda contrariado, Aramis esfregou as mãos e pronunciou algumas palavras num dialeto estranho. Aos poucos, as pérolas foram sumindo do quarto. Uma luz azulada começou a irradiar no ambiente, limpando-o das vibrações pesadas emanadas por Brenda e Aramis. Terminado o serviço, Aramis foi embora. Estava confuso e nervoso. Como podia ter sucumbido tão facilmente àquela mulher de luz? Procurou em sua memória lembrar-se de Agnes. De onde a conhecia? Agnes, percebendo o ambiente limpo e equilibrado, retirou-se e foi ter com Júlia:
- Aramis já saiu da casa de Sam. Teremos um pouco de paz.
- Agnes, será que não podemos pedir para Apolônio proteger Sam e Anna dos ataques de Aramis e Brenda?
- Não, isso não podemos fazer. Tudo na vida é regido pelo arbítrio. Há situações nas quais podemos ajudar, mas nunca poderemos interferir no destino das pessoas. Anna carrega dentro de si um grande complexo de rejeição, e também é muito apegada às pessoas. A vida procurou ajudá-la tirando-lhe a família primeiro, naquela avalanche. Depois tirou Flora de seu caminho, para que ela se garantisse no mundo. Ela acredita que poderá perder Sam a qualquer momento. Ele sempre foi o amor de sua vida, mas ela confunde amor com posse. Anna é uma mulher muito insegura nos seus sentimentos. No momento em que tiver mais confiança em si, ela mesma poderá afastar Aramis e Brenda de seu caminho. Todos eles estão ligados há muitas encarnações por laços de apego, ódio, paixão e vingança. Só mesmo a mudança de atitude provocará a quebra nessa relação obsessiva.
- Mas a interferência de Apolônio não seria para o bem de todos? E também não seria mais rápida?
- Seria, mas só por ora. E depois? Teríamos de estar sempre por perto? Cada um deve fazer a sua parte. Se Anna e Sam não mudarem os padrões de comportamento, não há nada que possamos fazer. Eles já receberam bastante ajuda do plano astral. Agora é chegada à hora de confrontarem os sentimentos, as emoções, enfim, de lutarem pela melhora interior.
- Concordo com você. Se tivermos de estar sempre ao lado deles, a todo instante, eles não vão crescer.
- Isso mesmo, Júlia. Anna e Sam têm um grande amigo que vai dar suporte nos momentos mais difíceis, que é Adolph. Ele já está estudando bastante o comportamento humano, a vida espiritual. Logo, todo o grupo vai estar estudando e nos poupando serviço. Agora, vamos falar com Apolônio. Ele deve estar curioso para saber como andam as coisas. Vamos até o seu gabinete.
Deram-se as mãos. Caminhando por entre bosques floridos, foram ao encontro de Apolônio. Agnes era um espírito muito evoluído. Júlia, sua assistente, também já havia subido alguns degraus na eterna escada da luz. Ambas estavam há muito tempo no astral, trabalhando e estudando em várias dimensões. Faziam parte do grupo de espíritos que iriam orientar alguns encarnados a difundirem a espiritualidade no mundo. Elas estavam ligadas por laços de afeto a Sam, Anna, Mark, Emily, Adolph e Heléne. Todos haviam se comprometido, antes de reencarnar, a levar essa tarefa adiante. Passados alguns meses, Sam e Anna se casaram. Muitas pessoas na cidade não aprovavam a união, achando que, por respeito à Brenda, eles deveriam esperar mais tempo. Anna chegou a sofrer represálias nas ruas. A mentalidade da maioria das pessoas estava presa a valores e crenças determinados por uma sociedade repressora e atrasada. Era um tempo em que era mais importante adequar-se às regras do mundo, em detrimento dos sentimentos, numa postura rígida de padrões moralistas e falsos. Sam e Anna receberam grande suporte dos amigos mais próximos, que na verdade eram sua verdadeira família. Emily, Mark e Adolph estavam sempre por perto, dando-lhes apoio. Adolph estudava cada vez mais sobre metafísica e espiritualidade. Cada vez mais lúcido, apaziguava o sofrimento que o preconceito teimava em trazer aos corações de Sam e Anna. Adolph acostumara-se a jantar na casa de Sam todas as noites. Sempre após o jantar, estudavam questões do comportamento humano, tais como as atitudes e crenças das pessoas, e discursavam sobre os rígidos padrões da sociedade em que viviam. Com relação às questões da vida espiritual, discutiam temas tais como reencarnação e obsessão.
- Adolph - perguntou Anna. Por que tenho de passar por este aperto justo agora que estou radiante e feliz?
- Ora, Anna. Estou percebendo, através dos estudos, que somos muito mais do que seres imperfeitos à procura de melhora. Acredito que Deus seja algo muito grande, muito forte, muito rico e muito bom. Indo por essa linha de raciocínio, já que somos filhos Dele, também somos grandes, fortes, ricos e bons. Somos perfeitos, no nível de consciência em que nos encontramos.
- Então você acredita que, apesar dos nossos erros, somos perfeitos? - perguntou Sam.
Adolph levantou-se da cadeira, deu a volta ao redor da mesa, até chegar à cabeceira, onde estava Sam. Pousando as mãos nas costas dele, respondeu:
- Sim, você está certo. Observe a natureza ao seu redor. Tudo funciona perfeitamente. Somos perfeitos porque, sendo filhos de Deus, fazemos parte da natureza, e ela é perfeita. Pense nas estações do ano, no nascer e no pôr-do-sol. Tudo tem o seu ritmo. Tudo segue uma rotina natural em direção ao melhor, sempre. E, como estamos no meio disso tudo, também seguimos do mesmo jeito. Sam estava admirado:
- Eu realmente sinto que você diz a verdade. Se eu penso, tenho raciocínio, então eu posso optar por fazer o que quiser da minha vida, certo? Mas o que me intriga ainda são as pessoas que não pensam, ou que são limitadas. Isso eu acredito que tenho de estudar muito para compreender.
Anna levantou-se e abraçou o marido.
- Querido, eu sei do que está falando. É sobre as crianças, não é? Eu também não consigo entender por que isso acontece. E é nessas horas - disse, olhando para Adolph - que realmente fico na dúvida.
Adolph continuou tranqüilo. Nesse momento orou a Deus, para que lhe ajudasse a dar uma resposta ao casal. Um leve torpor tomou conta de seu corpo. Adolph não percebeu, mas foi envolvido por Júlia. Sam e Anna não notaram a mudança no olhar e na respiração de Adolph. Ele afastou as mãos das costas de Sam, levantou-se e fixou o olhar no meio da sala, como se estivesse falando para mais pessoas:
- Nascemos e morremos muitas vezes. Faz parte do nosso ciclo aqui na Terra. Só Deus sabe há quanto tempo estamos ou por quanto tempo iremos continuar neste processo de reencarne. E, como Deus faz parte de nós, então um dia saberemos. Ao nascer, temos uma vida recheada de situações, envolvimentos, afetos e desafetos. Fazemos amizades, contraímos inimigos. É uma vida de mão dupla, porque estamos ainda precisando aprender por contraste. Sem o sol não há a sombra, sem o ar não há o fogo, sem o mal não há o bem. E o resultado de nossas escolhas abre nossa consciência, permitindo-nos escolher o jeito melhor pelo qual queremos viver. Se ficarmos presos em conceitos, normas e valores criados pela sociedade aqui da Terra, mais lento se torna o processo de evolução. À medida que formos nos desgarrando dos valores da sociedade e seguindo o nosso coração, a vontade de nossa alma, estaremos dando um grande passo na nossa escala evolutiva.
- Quando o corpo de carne morre, continuamos mais vivos do que nunca, vivendo em outros planos, não tão diferentes deste daqui. Há pessoas que se comprometem demais com os outros, que se metem na vida dos outros. Como pensam que só há uma vida, acham que podem fazer o que querem. Aprisionam, matam, escravizam, censuram, julgam, acusam. Às vezes, o nível de comprometimento é tão grande que esses espíritos, no plano astral, não têm um minuto de sossego. São perseguidos pelos seus algozes, são torturados, infernizados. Muitos, ao serem perseguidos, clamam pela morte. Mas esquecem que já estão mortos, que a vida continua, que a vida está sempre presente. Percebem que não podem fugir da vida. Então a dor e o sofrimento duram enquanto eles não mudam, deixando de lado a violência. Esses espíritos, pela ajuda e bondade de Deus, conseguem uma trégua, vindo a reencarnar. Alguns ficam num estado mental tão abalado em virtude desse sofrimento, que nascem e logo em seguida morrem. Muitos pensam que isso seja um mal, um castigo, mas é uma bênção, porque o espírito que pouco tempo esteve aqui, acobertado por um corpo de bebê, teve um descanso, um respiro. Teve condições de reestruturar alguns órgãos do corpo astral, o que só é possível através do mundo físico.
- É por esta e muitas outras razões que reencarnamos. E talvez, Sam, você possa começar a entender um pouco mais o porquê da súbita morte de seus filhos. Lembre-se de que eles eram velhos espíritos em corpos de bebê e que tinham de ficar por aqui num curto período de tempo. Deveriam ser seus filhos, porque você tem sérios problemas com apego. Sofreu em demasia pela perda dos pais. Depois sofreu em demasia a perda de seu avô. Não satisfeita, a vida quis amadurecer os seus sentimentos, e provocou a situação com seus filhos e Brenda. E o que a vida espera de você com isso? Ela quer que você aceite as coisas como são, que respeite as mudanças da vida. Faça a sua parte: trabalhe, estude muito, ajude pessoas, ame sua esposa e, acima de tudo, cuide e ame a si mesmo.
- Quanto a você Anna, enquanto não trabalhar a sua vaidade, escondida nesse véu de bondade, vai sofrer o pão que o diabo amassou. Enquanto você der ouvidos aos outros, enquanto você der importância a tudo que os outros pensam e acham de você, enquanto você acreditar que os outros são melhores e mais importantes que você, sua vida vai ser um inferno. Quando começar a se valorizar, a ter confiança em si, as bocas ao seu redor irão se calar. Lembre-se de que a maldade só fere as pessoas vaidosas e maledicentes.
- Este é o recado, por ora.
Júlia não tinha mais permissão para continuar. Aos poucos foi se afastando de Adolph. Sam e Anna estavam em lágrimas, com as cabeças abaixadas. Adolph, voltando do transe, não sabia o que havia acontecido.
- Meus amigos, o que foi? O que eu falei ou fiz para que vocês ficassem desse jeito?
Sam, enxugando as lágrimas, levantou-se e abraçou o amigo.
- Você foi muito duro. Falou-me coisas que nunca ninguém me disse na vida. Mas confesso que foram as palavras mais verdadeiras que poderia ouvir. Vou refletir sobre tudo que nos falou. Obrigado.
Anna também se levantou e foi abraçar Adolph. Ele não sabia o que dizer, estava sem ação.
- Concordo com Sam, Adolph. Você foi muito duro. Meu orgulho está ferido, sinto até raiva. Eu estou um tanto confusa com o que me disse, mas sinto aqui dentro do meu peito que tudo que falou é verdadeiro. Dei-me conta, enquanto você falava, que eu me sentia realmente muito vaidosa, querendo ser mais, querendo ser melhor do que sou. Sempre me julguei imperfeita. Nunca estive contente comigo. Mas a partir de hoje vou prestar atenção no meu coração e sentir o que ele quer que eu faça. Neste momento só quero lhe dar um abraço e um grande beijo. E também gostaria de ficar a sós com meu marido.
Adolph meneou a cabeça, fazendo sinal afirmativo. Pegou sua casaca, cartola e bengala e foi embora. Ao sair da casa de Sam, Adolph ainda estava meio confuso. Não tinha consciência do ocorrido. O que ele havia falado para que Sam e Anna ficassem naquele estado? Foi direto para casa. Assim que fechou a porta do quarto, arrancou todas as suas roupas. Aquela situação o tinha incomodado muito. Adolph era sensato, inteligente e astuto. Mas havia uma coisa que ele não suportava: perder o controle, principalmente sobre si mesmo. Ao invés de deitar-se, esparramou-se na poltrona ao lado da cama. Começou a rezar. Fechou os olhos e concentrou-se na oração. Ao abrir os olhos, bem à sua frente, uma linda mulher, rodeada de luz amarela bem clara, estava a sorrir. Adolph não sabia se mais uma vez era sonho ou realidade. Estava ficando louco com tanto estudo? Estava perdendo o senso? Começou a chorar.
- Adolph, querido. Estou esperando há tanto tempo para lhe falar... Já estava na hora de me apresentar a você. Meu nome é Júlia. Sou sua amiga há muito tempo. Só que não estou encarnada. Mas estou sempre próxima. Você me ajudou muito. E agora estou retribuindo um pouco essa ajuda.
Adolph parou o choro. Estava inebriado com a candura na voz de Júlia. Por mais que tentasse, não se lembrava dela, mas seu rosto era-lhe extremamente familiar. Com a voz embargada, falou:
- Desculpe-me, não me lembro de você. Mas sua presença me faz muito bem. Algo em mim diz que você não me é estranha.
- Não sou. Sua alma me reconhece, sua mente não. Como temos um esquecimento provisório quando estamos encarnados, realmente se torna difícil nos lembrarmos de amigos de outras vidas. Mas estou e estarei cada vez mais presente ao seu lado, Adolph. Gosto muito de você. Saiba que hoje eu abusei um pouco.
- Como assim?
- Fui eu quem conversou com Sam e Anna agora há pouco. Eu usei o seu corpo para transmitir um recado. E, além do mais, eu preciso treinar a comunicação mediúnica. Logo você vai estar incorporando mais vezes.
- Usou o meu corpo? Incorporar? Nunca imaginei que pudesse ter essa capacidade. Desculpe-me, mas, por mais que eu estude, há muitas coisas das quais ainda não tenho conhecimento.
- Isso é natural. Você está despertando para uma nova consciência, para uma nova maneira de interpretar a vida. Logo surgirão mais livros a respeito. Eu e Agnes também traremos explicações sobre o mundo espiritual, sobre certos mecanismos, para que você não desista dessa vez. Tenho certeza de que agora você vai conseguir.
- Mas como é possível eu poder ver e falar com um espírito? É um dom?
- Não, não é um dom. Todas as pessoas têm essa sensibilidade. Algumas usam, outras não. É como a inteligência. Todos a têm, mas cada um a usa de um jeito. O mesmo ocorre com a mediunidade. Você já vem trabalhando há algumas vidas nisso, e é por essa razão que tem mais facilidade em ver, ouvir e falar com espíritos. Isso não o torna mais que ninguém, nem o faz um premiado por Deus. Você tem essas capacidades desenvolvidas porque já vem se dedicando a esses estudos há muito tempo.
- Júlia, estou perplexo. É tudo muito novo para mim. Eu sempre achei que houvesse algo além do físico, além da morte. Agora sei. Esta constatação mexe muito comigo, traz responsabilidade, pois, se eu prejudicar a mim ou alguém nesta vida, uma hora terei de reparar o erro, certo?
- Mais ou menos certo. Isso discutiremos depois. Onde moro não usamos certas palavras, como erro, culpa ou imperfeição. Erro nada mais é do que a tentativa de acerto. Mas hoje não vim para isso. Vim para avisá-lo que uma nova etapa se inicia para você e para os seus amigos Anna, Sam, Emily e Mark. Anna também pode ver, ouvir e se comunicar conosco. Mas, como não está se dedicando aos estudos necessários, não consegue distinguir um espírito desencarnado de um ser encarnado.
- Isso tudo não é fantasia? Não é um sonho? Como posso saber que tudo isso é verdade?
- Vocês sempre querem provas... Não acreditam, ficam inseguros, com medo. A prova mais real é a de que estou aqui na sua frente. Você verá que estou falando a verdade. Agora eu preciso ir. Quero desejar-lhe uma boa viagem. Nós nos veremos logo.
Júlia deu um beijo na testa do rapaz e partiu. Sua imagem foi se dissipando no quarto, sumindo aos poucos, como névoa. Adolph sentiu-se mais leve, mais firme, mas ao mesmo tempo estava desconfiado. Era muita coisa. Tomou um copo de água e deitou-se. O voto de boa viagem ecoava em sua mente. Mas a beleza, a presença e o perfume deixado por Júlia faziam com que esquecesse as confusões mentais. Adormeceu e, logo em seguida, estava embalado por um sono profundo. A América progredia rapidamente. O país começava a receber muitos imigrantes vindos da Europa. Um novo surto de crescimento tomava conta da nação. O plano espiritual já havia traçado um programa para os Estados Unidos. Espíritos com garra e com desejo de semear a prosperidade reencarnariam em número cada vez maior por lá. A Guerra de Secessão fortalecera o povo americano, quebrara preconceitos, abrira caminho para a formação de uma nova mentalidade de progresso e prosperidade. Mesmo vivendo num país que crescia e prosperava a cada dia Mark não escondia seu desgosto por não estar fazendo aquilo que realmente queria na vida: plantar, ter muitas terras, campos de plantação. Desde pequeno sonhava com isso. Desde garoto ele tinha sonhos com uma casa grande, com enormes janelas e uma espaçosa varanda, cercada por muitas flores e árvores. Durante toda a sua vida, nunca vira em sua cidade ou em outras que conheceu nos Estados Unidos uma casa como a dos seus sonhos. Morava num país livre, próspero, tinha uma boa vida, uma bela casa e uma linda mulher. Mas para ele não bastava. Faltava algo. Às vezes ia até a igreja e abria-se com o pastor. Condenava-se pelo fato de ter tudo na vida e de se sentir insatisfeito.
- Pastor, não sei mais o que fazer. Tenho tudo, mas não sou feliz.
- Meu filho, por que a vida é o que é, temos de aceitar tudo que Deus nos manda, seja bom ou mau.
- Mas, pastor, por que sinto insatisfação? O que ocorre comigo?
- É a tentação do demônio. Ele sempre nos quer pegar pela preguiça, pela insatisfação. Vá para casa e reze. Reze muito. Volte daqui a três dias, e veremos o que poderei fazer.
Mark saía da igreja mais confuso. Fazia três semanas que esse sentimento apertava seu peito. Não conversara com ninguém a respeito, pois considerava muito feio o que sentia. Iriam chamá-lo de louco, de mesquinho. Acreditava que o pastor pudesse ajudá-lo, mas aquela conversa de demônio o deixava angustiado. Saía da igreja com mais peso no peito. Sentia-se impotente. Estava tão imerso em seus pensamentos que não avistou o buraco na calçada à sua frente. Não teve tempo de desviar. Tropeçou e bateu com a cabeça no chão. Desmaiou. Emily ficou desesperada. Tinha pavor de pensar na possibilidade de ficar só. Qualquer situação de perda aparente a deixava confusa, insegura, temerosa. Cuidou do marido com todo o amor do mundo.
- Querido, quer mais chá?
- Emily, meu amor, faz dias que você não desgruda de mim. O Dr. Lawrence disse que esta tala aqui na perna vai ajudar na recuperação. Eu provavelmente só terei de usar uma bengala, mais nada. Não é o fim do mundo.
- Mark, você não vai usar bengala coisa nenhuma. Você vai ficar bem. O doutor disse que eu devo estar sempre aqui, porque, se a tala se deslocar, você vai sentir muita dor.
Ele começou a rir. Emily era madura em certos aspectos, mas em outros se mostrava uma criança. E ele a amava cada vez mais.
- Você caiu do céu. Amo você. Agradeço a Deus todos os dias por tê-la ao meu lado.
- Bobo... Eu também amo você. Agora chega de conversa. Eu vou buscar mais chá.
Enquanto preparava a água ferver, Emily foi surpreendida pela visita de Adolph.
- Puxa, que bom que você veio agora. Você costuma visitar-nos à noite, mas Mark fica sonolento e dorme logo. Agora que ele está bem desperto, vocês podem conversar mais longamente.
- E como anda o nosso xerife?
- Ele ainda está um pouco triste com o ocorrido.
Um nó na garganta impediu que Emily continuasse a falar. Procurou recompor-se.
- Ah, Adolph, como isso foi acontecer? Mark terá de usar uma bengala para o resto da vida. Ele não poderá mais ser xerife. O que faremos?
Adolph abraçou Emily ternamente. Gostava muito dela e de Mark, considerando-os como parte de sua família.
- Querida amiga, não se desespere. Eu e Sam estamos pensando em algo. Nosso amigo nunca ficará inválido. Não deixaremos que isso ocorra. E precisamos de você.
- Oh, Adolph, você é mesmo um grande amigo. Você é um irmão para mim. Eu sabia que poderia contar com você e Sam. Obrigada.
- Não tem de agradecer. Você também me é muito querida. Considero-a minha irmã mais nova.
- O que é isso ao lado da sua cartola? São gravuras? Onde as comprou?
- Não comprei, Emily. Você se lembra dos meus amigos da faculdade, lá na Europa?
- Lembro. Você sempre fala desse grupo. O grupo dos brasileiros, não?
- Sim, principalmente de Augusto e Carlos. Só perdi o contato porque eles sumiram. Mas não estou falando deles. Falo de Alberto, um outro brasileiro que estudou comigo. Esse meu conhecido voltou a morar no Brasil.
- E daí?
- Daí que Alberto tem terras por lá e quer vendê-las.
- Interessante... Quanto à gravura... Que linda! Nunca vi uma casa como esta em toda a minha vida. Como se pode morar em casas tão abertas assim? Não entra neve?
- Emily, no Brasil não há neve.
- Não? Como assim? Como é o inverno, então?
- Segundo Alberto, o inverno brasileiro é como o nosso outono. Faz frio, mas muito pouco. Na maior parte do ano brilha o sol. A primavera, o verão e o outono são quase sempre quentes, na maior parte do território. No sul chega no máximo a gear, mas não cai neve como aqui. Por isso as casas são abertas, com amplas varandas e janelões. Esta casa na gravura é a casa de Alberto.
- Mas ele é tão rico assim? Tão novo e tão bem de vida?
- Sim, o pai deixou tudo para ele e para a irmã. Mas ambos querem se livrar das terras, pois odeiam o Brasil. Tanto que a irmã já se mudou para Lisboa e aguarda que Alberto venda logo as terras e vá para lá também, em definitivo.
- Por que odeiam o Brasil?
- Segundo eles, é uma terra de abutres, com gente muito feia, que come com as mãos, não tem educação. Alberto também está cansado da vida que leva lá. Não gosta de terra, tampouco dos escravos.
- Lá há escravos? Não existe a possibilidade de eclodir uma guerra como a nossa?
- Não. O Brasil inteiro adotou o sistema escravista, muito embora existam grupos de pessoas descontentes com isso. Alberto é um sujeito frio e autoritário. Sempre gostou de freqüentar as altas rodas da sociedade de Paris e Viena, e simplesmente não suporta a pacata vida social do Brasil. Quer vender tudo e fixar-se em Lisboa. As ofertas que lhe fizeram pela fazenda são muito baixas, devido a pouca produção de suas terras. Ele reclama dos escravos. E está me propondo a venda porque sabe que eu gostaria de um dia conhecer o Brasil. O preço que ele me pede não é tão alto assim.
- E você? Acha o quê? Vai embora, nos largar?
- Emily, não é isso, não. Quem disse que vou largar? Eu vou é juntar.
Pegou Emily pelos braços e foram para o quarto onde estava Mark. Adolph não continha o riso. Emily não estava entendendo nada.
- Como está à perna, meu amigo? Melhor?
Mark estava bem-disposto, apesar de ter conversado com o Dr. Lawrence e ter descoberto que iria ficar manco. Ficou aborrecido no início, mas depois se conformou. Era uma maneira de não fazer mais o que não gostava. Ele não estava mesmo querendo seguir na profissão de xerife. Sentia que sua alma precisava de algo novo, diferente. Algo em que ter uma perna deficiente não pudesse atrapalhar sua vida. Respondeu tranqüilo:
- Adolph, meu velho! Que bom que veio agora na parte da tarde. Tenho dado vexames quando você, Sam e Anna vêm me visitar à noite. Os chás de Emily me dão muito sono.
- Ora, meu amigo, não precisa ficar encabulado. Sabemos das poções que Emily lhe faz.
- Tenho de cuidar do meu marido. Quem mais poderia?
Todos deram risadas. Adolph continuou a conversa:
- Sabe, Mark, eu gostaria de conversar com você e Emily. Já falei com Sam e Anna, e eles estão pensando no assunto. É uma proposta. Assim que a perna melhorar, você não gostaria de fazer outra coisa?
Mark remexeu-se na cama. Não acreditava no que ouvia. Tudo que ele mais queria na vida era mudar de profissão, adquirir outros hábitos.
- Eu adoraria. Mas tenho pouco dinheiro guardado. Não sou rico. Eu e Emily vivemos bem, mas não temos luxo.
- Mas quem falou em dinheiro, aqui? Eu disse mudar de vida, de ares.
- Bem, eu adoraria, mas como? O que eu poderia fazer?
Adolph levantou-se e colocou a gravura da casa de Alberto no colo de Mark.
- O que você acha de viver num lugar assim?
- Assim como? - perguntou Mark, sem dar atenção à gravura.
- Olhe você mesmo - incitou Adolph, apontando para a gravura.
A reação de Mark, ao ver aquela gravura, foi de uma comoção tamanha que Adolph e Emily se surpreenderam e se emocionaram. Mark não acreditava no que viu. Era a mesma casa de seus sonhos. Neles, a casa era branca, com portas e janelas azuis. Na gravura predominava a cor amarela. Como Adolph havia conseguido aquilo? Onde? Mark nunca havia comentado com ninguém, nem mesmo com Emily, sobre o sonho com a casa. Com a voz ainda embargada, disse:
- Adolph, desculpe-me. A emoção foi muito grande. Você não imagina o que esta gravura representa para mim. Não são os chás de Emily e do Dr. Lawrence... Eu não estou alucinando, não pode ser...
Emily enxugou as lágrimas e abraçou o marido.
- Querido, quanta emoção! Você gostou tanto assim da casa?
- Não é isso. Não tenho condições de falar agora. Depois falaremos a respeito. Adolph, foi você quem fez esta gravura?
Adolph também estava emocionado com aquela cena.
- Não, não fui eu. Foi um amigo meu que mandou. É a casa onde ele mora.
- Um amigo seu mora aqui? Então esta casa é real, ela existe mesmo?
- Sim, existe. Ela é muito bonita, não?
- Nossa, Adolph, ela é linda! Deslumbrante. Fica na Califórnia? Deve ser lá, porque este estilo de casa eu nunca vi pelos nossos lados.
Emily e Adolph começaram a rir. Mark não entendia nada. Ficou ligeiramente zangado, mas logo começou a rir também. Emily fez-se séria e falou:
- Meu bem, essa casa fica no Brasil.
- Brasil? Vocês estão me falando que esta casa fica no Brasil? Tão longe assim? Como posso sonhar com uma...
- Sonhar com o quê, Mark?
- Sonhar com... Nada... É que é uma casa tão bonita, e fica tão longe.
Adolph interveio na conversa do casal:
- Não, senhor. Se você quiser, o seu sonho poderá se transformar em realidade.
- Não entendi. Como assim?
- Bem, amigos, esta é a minha proposta. Eu tenho muito dinheiro, mas não estou interessado em investir por aqui. Sempre gostei de plantação. Sam também está cansado deste lugar, quer respirar outros ares. Estamos pensando em vender nossas propriedades, juntar nossas fortunas e ir embora para o Brasil. E gostaríamos que você e Emily viessem conosco. O que acham?
Emily e Mark entreolhavam-se. Não sabiam o que dizer. Mark estava extasiado. Plantar, deixar de ser xerife, ir para um outro lugar, começar uma nova vida. Para Emily, morar em qualquer país do mundo seria melhor do que nos Estados Unidos, devido à morte de seu irmão. Sam e Anna também estavam radiantes com a proposta. Havia algum tempo que Sam já estava sentindo um enorme desejo de mudar seu estilo de vida. Um amigo seu o convidara para mudar-se para Nova Iorque. Lá, Sam poderia entrosar-se com a alta sociedade e talvez montar algo que lhe desse um bom retorno financeiro. Esse amigo até já havia visto uma belíssima casa para Sam e Anna, nos arredores de Washington Square, um dos pontos mais nobres de Manhattan. Mesmo havendo pontos favoráveis nessa mudança para Nova Iorque, Sam preferia descartar a idéia por não estar disposto a se tornar um grande empresário americano. Já a proposta de Adolph tocou em suas fibras mais íntimas. Nesse dia, após o jantar, Sam dirigiu-se até a varanda de sua casa. Deixou-se cair numa poltrona e ficou olhando para as estrelas. A noite estava gloriosa. A coloração negra do céu dava lugar a uma névoa prateada, tamanha a intensidade do brilho das estrelas. Fixou os olhos para o alto. Começou a refletir sobre toda a sua vida, desde pequeno, passando pela adolescência, seu namoro com Brenda, o casamento, os filhos... Parou por um instante. Algumas lágrimas começaram a cair pelo canto dos olhos. Somente agora percebia que gostara muito de Brenda, mas como uma grande companheira, e não como um grande amor. Seu grande amor era Anna, em definitivo. Ao pensar em Anna, as lágrimas pararam de escorrer. Seus lábios esboçaram um sorriso terno. Mas a imagem de Brenda ficou fixada em sua mente. Por mais que tentasse esquecer, sua imagem permanecia. Começou a sentir uma forte dor de cabeça e a suar frio. Desesperado, chamou por Anna, que estava na cozinha. Ela chegou aflita à varanda. Ele estava pálido.
- Querido, o que houve? Você não está com bom aspecto, está branco como cera. Vou buscar-lhe um pouco de água.
Sam não conseguiu responder. Sentia-se sufocado, o peito dolorido, a cabeça rodando. Anna pegou um copo com água e açúcar. Também começou a sentir calafrios pelo corpo. Achou que fosse frio. Depois de levar a água ao marido, iria se agasalhar, pensou. Ao abrir a porta da varanda, ficou imobilizada. Sentiu-se paralisada. Tomada de grande pavor, derrubou o copo no chão. A cena à sua frente era assustadora. Sam continuava suando frio e passando a mão pelo peito. Estava quase desfalecendo na poltrona. Mas o que a chocava era a figura horrenda de uma mulher que estava atrás do marido, apertando com força sua garganta. Ao lado da moça estava um homem alto, com a aparência rude, bem musculoso. Ele ficava ao lado da moça, observando e gargalhando. Anna não conseguiu identificar aquelas pessoas. Ficou paralisada pelo medo. De repente a figura da mulher virou o rosto em sua direção. Anna assustou-se. Não podia ser real, era alucinação, pensava. Era Brenda? Naquele estado? Não, isso não podia ser verdade. Soltou um grito agudo, de horror. O grito fez com que Sam se virasse para ela e voltasse a si. De súbito, Brenda foi violentamente afastada de Sam, sendo jogada a alguns metros de distância. Aramis ficou irado e partiu para cima de Sam. Anna reagiu ao ver o marido ser atacado por aquela figura horrível, com olhos flamejantes. Partiu para cima dele, dizendo:
- Quem você pensa que é?
- Como, quem eu sou? Não interessa! Isso que ele está passando não é nada, perto do que vai sofrer.
Aramis continuou batendo na cabeça de Sam, que há essa hora estava fora de si. Não distinguia mais a realidade da fantasia. Sentia-se dopado. Anna não se deu por vencida. Vendo Sam ser agredido, ficou revoltada. A raiva que sentia era tanta que lhe deu coragem para enfrentá-lo. Com a voz dura e firme gritou:
- Ele é meu marido! Você não tem esse direito. Volte de onde veio e leve essa mulher imunda com você. Não tem vergonha de nos atacar sem motivo?
Aramis largou Sam e encarou Anna, olhando-a furioso.
- Ele é um covarde. Destruiu a minha vida e a de Marianne. E vai acertar contas por isso. Nós vamos voltar e nos vingar. Tudo acontece na hora certa, não é mesmo? Pois bem, a hora desse canalha está chegando. E, se você se atrever a se meter, vai levar também.
- Você não me intimida. Eu sou tão forte ou até mais do que você. Só porque é alto e forte, acha que pode ganhar de uma mulher? Patife! Tenho outros meios para lidar com você. Por ora saia do meu caminho, porque senão quem vai acertar contas sou eu. Irei até o inferno atrás de você, caso não nos deixe em paz, compreendeu? Saiam! Sumam daqui!
Aramis esperava qualquer coisa, menos aquela atitude de Anna. Ele a considerava meio boba, muito pacata. O que havia acontecido? A força nas palavras de Anna pegou-o de surpresa, e essa vibração tornou o ambiente desagradável para a permanência de Aramis. Irritado, pegou Brenda nos braços, ainda desacordada, e partiu, sumindo por entre o aglomerado de estrelas que manchavam o céu. Sam adormeceu em seguida. Aramis e Brenda haviam tirado muito de sua energia vital. Precisaria se recompor. Dormir era a primeira coisa a ser feita. Anna respirou fundo, abaixou-se e pousou a cabeça nas pernas de Sam. O que estaria acontecendo? Não conseguia chorar nem gritar. Havia passado por uma experiência inusitada. De repente, sentiu alguém acariciando seus cabelos. Debateu-se e deu um salto, achando que Aramis havia voltado. Ia gritar quando viu Agnes.
- Anna, minha amiga, eu disse a você que a tarefa não seria fácil, lembra-se?
Nesse momento Anna teve a certeza de que não era um sonho. Toda vez que deparava com Agnes, sentia-se muito emocionada. Assustada ainda, correu para abraçá-la. Agnes fez um sinal com as mãos para que ela parasse.
- Minha querida amiga, não há como você me abraçar agora. Quando for se deitar e dormir, poderá então se desprender do seu corpo. Então poderemos nos abraçar. Preciso conversar com você hoje à noite.
- Você? Que surpresa! Não a vejo desde o casamento de Emily e Mark.
- Também estava com saudade. Mas precisamos falar sobre a sua capacidade.
- Capacidade? Qual?
- Você e Adolph têm a capacidade de ver, ouvir e falar com os espíritos. Mark, Sam e Emily têm um outro tipo de mediunidade. Cada qual irá saber, no tempo certo, qual a melhor maneira de trabalhar com esses fenômenos. Precisamos conversar mais a esse respeito.
- Então você é mesmo uma alma penada? Então elas existem. Mas você é tão linda!
- Obrigada. Mas você me faz rir, pela inocência. O que acho mais espantoso é a capacidade que Deus nos dá de esquecermos tudo sobre as vidas passadas. Eu e você já estivemos tanto tempo juntas, tanto na Terra quanto aqui no astral, e, veja só, você nem se lembra de nada. Eu não sou alma penada. A bem da verdade, Anna, almas penadas nada mais são do que espíritos desorientados, que não querem aceitar a realidade da morte, a passagem para o lado de cá. Ficam tão perturbados por terem de deixar família, amigos e principalmente propriedades, bens materiais, que demoram a recuperar o equilíbrio. Até lá, esses espíritos vão para vales, colônias, lugares específicos no astral para o restabelecimento emocional.
- Quem era o homem que estava com Brenda? Nunca o vi, mas senti uma raiva tão grande que, pela primeira vez na vida, não tive medo de argumentar.
- Você foi ótima, Anna. A sua conduta alterou o ambiente de tal sorte que Aramis não conseguiu mais permanecer aqui. Aramis é o rapaz que você viu, ele anda sempre com Brenda.
- Mas ele falou sobre Sam estar arruinando a vida dele e de Marianne. Quem é Marianne?
- Aramis está ligado a Brenda há muitos séculos. Na última vida em que estiveram juntos, Brenda se chamava Marianne. Eles se encontram num processo tão profundo de obsessão que não sabemos ainda como os separar.
- Mas, Agnes, por que Brenda está tão machucada? Ela estava horrorosa.
- Brenda ainda se encontra em desequilíbrio. Quando ela reencontrou Sam há pouco, não conseguiu controlar-se. Ela não sabe ainda usar devidamente a raiva, portanto essa energia para ela se transforma em ódio. O ódio não é saudável, e, no caso de Brenda, o contato com Sam fez com que ela se lembrasse do dia em que morreu. Por isso ela voltou a sentir dores.
- Agnes, você me falou em vales, lugares para espíritos em desequilíbrio. Se Brenda está desequilibrada, por que então não está num vale? Por que está nos perturbando?
- Ora, Anna, tudo na natureza é regido pela lei da afinidade de pensamentos. Se você tiver bons pensamentos, vai atrair coisas e espíritos bons para o seu lado. Agora, se você tiver pensamentos de preocupação, insegurança, medo, formas pensamentos negativas, vai atrair espíritos em desequilíbrio e coisas ruins para você.
- Você está querendo me dizer que Sam atraiu Brenda?
- Não propriamente atrair. Brenda já está por perto faz um tempo. Ela e Aramis têm uma força mental incrível, que poderiam usar para a melhora deles próprios e de outras pessoas. Mas eles resolveram usar a força que têm para se vingar de certas pessoas. Eles estão presos no vitimismo, e toda pessoa que estiver vibrando nesse padrão estará receptiva à manipulação dos dois. Sam estava aqui na varanda pensando em toda a sua vida, mas houve um momento em que ele sentiu remorso pela perda de Brenda e dos filhos, e foi aí que seu padrão energético caiu, permitindo que Brenda pudesse manipular as energias dele.
- Meu Deus, isso é impressionante! Mas, se Sam estava com remorso e não no vitimismo, como poderia estar suscetível à manipulação de Brenda?
- Bem, Sam não aceita até hoje a tragédia que lhe ocorreu. Por mais que estude, mesmo tendo o seu grande amor de volta, que é você, ele ainda se sente vítima das circunstâncias. Ele está no conformismo. E você vai ajudá-lo a sair desse padrão mental. Enquanto ele se julgar uma vítima da vida, por ter perdido mulher e filhos, e não querer olhar o que a vida está lhe mostrando com isso, tanto Brenda como outros espíritos afins poderão atrapalhar, perturbar Sam e, conseqüentemente, você.
- Agnes, é muito duro o que diz. A perda da família foi muito dolorida para Sam. Como pode ele agora querer esquecer tudo e viver como se nada tivesse acontecido?
- Eu não disse para esquecer. Estou falando que não há a necessidade de carregar a tragédia nas costas pela vida inteira. Se Sam passou por essa tragédia, foi porque tinha a ver com ele. Poderia ter acontecido com você, ou com Adolph, ou com Mark. Mas não. A vida escolheu Sam. Por quê? Porque às vezes só mesmo um grande choque é capaz de nos acordar e fazer com que levemos em frente aquilo a que nos propusemos antes de nascer. Veja, Anna, que o sofrimento às vezes é necessário. Encare-o como um treino, como um estímulo para entrarmos em contato com a nossa firmeza, a nossa força, o nosso poder. Se você agir como agiu minutos atrás, usando a sua firmeza e poder, nunca será derrotada, compreendeu?
- Sim, acho que compreendi. Às vezes sinto como se houvesse uma capa de medo à minha frente, impedindo-me de ser eu mesma.
- São defesas mentais que criamos ao longo de nossas vidas. Elas chegam a ficar tão densas que as sentimos como teias que nos impossibilitam de agir. Lembre-se de que, da mesma maneira que você criou, você pode também destruir essa forma mental. Mas siga por ora o seu rumo. Ampare seu marido. Continue com os estudos semanais. Cultive boas atitudes, bons pensamentos, e seja cada vez mais você. É disso que Sam precisa. Eu agora tenho de ir. Sam está acordando. Fique em paz, minha amiga. Até mais.
- Adeus, Agnes. Espero encontrá-la novamente. Você sempre me faz muito bem. Não sei de onde a conheço, mas adoro quando está perto de mim.
Anna estava radiante. Sentia um calor percorrer seu corpo, o peito leve. Pensou: "Meu Deus! Eu nunca ouvi nada a esse respeito antes. Ela fala de uma maneira tão clara mas tão contraditória. Este mundo em que vivo é muito diferente dos conceitos de Agnes. Por mais que tente, acredito que só no mundo dela esses conceitos sejam válidos. A vida aqui é muito dura, muito cruel. E ainda por cima podemos ser atacados por espíritos. Haja treino!" Sam espreguiçou-se. Estava bem-disposto, pois Agnes, antes de partir, aplicara-lhe um passe. Assustou-se ao ver Anna ajoelhada no chão, catando cacos de vidro.
- O que aconteceu? Estava numa soneca tão boa que nem ouvi você derrubar nada. Você se machucou, meu amor?
- Não, querido. Eu vim tomar um pouco de água na varanda. Ao ver você dormindo, resolvi voltar, tropecei e derrubei o copo. Não me machuquei, fique tranqüilo. Estou com vontade de preparar um chá e depois deitarmos, o que acha?
Sam levantou-se tal qual menino sapeca. Com um sorriso malicioso, abraçou a esposa pelas costas.
- Então vamos ter chá no quarto? Vamos beber antes, durante ou depois?
Anna entrou na brincadeira. Virando-se para o marido, tentou fazer cara de brava:
- Sam Lewis, não acredito no que me fala. Sou uma mulher casada!
- Hum. Adoro mulheres casadas. São experientes... Em tudo. Que tal irmos logo com o chá para o quarto?
- Deixe eu terminar de pegar os cacos, aí então vamos.
- Deixe os cacos aí. Ninguém vai pisar, afinal não temos convidados.
Para tristeza dos dois, Adolph estava chegando.
- Olá, pessoal. Vim para um cafezinho.
Anna olhou para o marido com uma cara de "não-sei-o-que-dizer". Sam levantou-se e foi cumprimentar o amigo:
- Ora, Adolph, seja bem-vindo. Estávamos aqui pegando uns cacos de vidro. Não tínhamos mesmo nada para fazer.
Nessa hora Sam olhou para Anna e deu-lhe uma piscada e um sorriso malicioso. Adolph, muito esperto, percebeu a situação.
- Ah, pensando melhor, eu havia me esquecido. Fiquei de passar na casa de
Mark e Emily. Estão interessados em juntar-se a nós nos estudos. Desculpem-me, estou atrasado. Amanhã passo por aqui. Tenham uma boa noite.
Adolph virou-se e seguiu o caminho de casa. Anna olhou meio ressabiada para Sam:
- Será que ele percebeu algo? Ai, Meu Deus, que coisa feia, Sam.
- Que coisa feia, nada. Estamos juntos e nos amamos, ora. Adolph é um ótimo sujeito, e me conhece muito bem. Ele deve ter percebido algo e nos deixou para continuar com a história do chá.
Sam abraçou Anna pela cintura e foi conduzindo-a até o quarto. Antes, apagaram as lamparinas da casa e trancaram as portas. Entregaram-se a uma noite de amor inesquecível. Adolph chegou em casa pensativo. O amor que vira saltar dos olhos de Sam e Anna, minutos antes, fez com que se lembrasse de Heléne. Seus pensamentos estavam todos voltados para a única mulher que amou em toda a sua vida. Abriu a cristaleira, pegou uma taça e uma jarra de licor e sentou-se no sofá. "Ah, Heléne, quanta saudade... Como queria que você estivesse aqui comigo. Vejo Sam e Anna, Mark e Emily, todos apaixonados, e penso em nós dois juntos. Por que me abandonou? Será que você sentia ciúme da minha amizade com Augusto e Carlos? Mas não, isso não pode ser. Eles também sumiram. Perdi meus melhores amigos, perdi você. Por que tenho de passar por isso, Senhor? Por quê?" Ele estava se sentindo completamente só, mesmo rodeado pelos casais amigos. Sentia muita falta de Heléne. Eles combinavam perfeitamente. Parecia que tinham sido feitos um para o outro. Um amor que surgiu tão logo a viu naquele cabaré. Depois de anos represando os sentimentos, deixou que as lágrimas lavassem toda a dor que ia a sua alma. Como sentia a falta de Heléne! Mas agora já era tarde. Devia estar casada com um nobre qualquer. Acreditava nunca mais poder reencontrá-la. Talvez numa outra vida, quem sabe. Esse último pensamento deixou-o mais triste ainda. Mudar-se para o Brasil seria uma maneira de poder tentar esquecer essa grande paixão. Chorando, dizia em voz alta:
- Nunca mais! Nunca mais me apaixonarei. Nunca mais quero amar alguém na vida. Nunca mais quero me entregar, nunca mais!
Foi deitar-se. Jogou-se na cama sem tirar as roupas. Embalado pelo sofrimento, adormeceu. Todos os domingos, nos últimos tempos, os cinco amigos se reuniam, ora na casa de um, ora na casa de outro. Passavam a manhã inteira juntos, preparando o almoço. Depois de comer, iam para o jardim ou para a varanda e conversavam sobre os planos da mudança para o Brasil. Adolph queria que tudo fosse feito o mais rapidamente possível:
- Bem, pessoal, minha parte já está feita. Temos mais dois meses para nos desfazermos de nossas coisas. O vapor parte em 21 de junho. Vou entregar a casa ao novo proprietário nesse dia. Só levarei minhas roupas.
Emily também estava ansiosa:
- Eu e Mark também conseguimos vender nossas casas com as mobílias por um bom preço. O filho do Dr. Lawrence vai ficar com a agência de correios. Só estamos dependendo do aval do governador. Mark já conseguiu a licença, não é, meu bem?
- Isso mesmo, querida. Daqui a vinte dias o governador vai mandar um representante para cá. Ao invés de licença, consegui uma aposentadoria precoce. O fato de me tornar manco ajudou na decisão. E o próprio governador acredita que um manco não possa exercer o cargo de xerife.
Sam começou a rir da maneira como Mark falava:
- Meu amigo, é a primeira vez que vejo alguém agradecer por ter ficado com um defeito no corpo. Você fala de uma maneira tão engraçada que às vezes me dá até vontade de ficar manco também.
Todos riram ao mesmo tempo. Anna interrompeu-os:
- Sam, como ousa falar desse jeito? Respeite o nosso amigo.
- Não se preocupe Anna - disse Mark. Estou tão acostumado com isto aqui que não me perturbo mais. Esta deficiência na perna me trouxe muito mais alegrias do que tristezas. Para mim, foi uma maneira de parar e refletir sobre a minha vida. Quando se fica doente por um ou dois dias, você geralmente reclama de tudo. Mas em trinta dias não há como não pensar em nada. Para mim foi uma grande lição. Pude refletir sobre o que quero na vida e aproveitei também para devorar o "Livro dos Espíritos". Não tenho do que reclamar, só tenho a agradecer.
Todos se emocionaram com as palavras de Mark. Adolph pegou a taça de vinho e levantou-se da cadeira:
- Proponho um brinde à coragem com que Mark vem enfrentando a sua situação, e um brinde também à nossa partida. Saúde!
Os outros se levantaram, pegaram suas taças e também falaram bem alto:
- Saúde!
- Sam - perguntou Mark -, como fica a pendência da sua casa? Você já acertou a venda?
- Não, resolvi não a vender. Eu e Anna conversamos muito e decidimos que não venderemos a casa, por enquanto. Mesmo que eu me habitue com o Brasil, quero manter aqui a minha residência. Quem sabe, passar umas férias, matar saudade... Eu tenho muito dinheiro, a venda da casa não iria significar uma grande soma mesmo.
- Mas a sua casa é maravilhosa. É um palacete. Vale uma fortuna - disse Emily.
- Eu sei, Emily, mas, perto do que tenho, não vai fazer muita diferença. Norma está precisando de emprego, o Dr. Lawrence não a quer mais morando nos fundos lá da farmácia. Ele vai fazer uma reforma e aumentar o estabelecimento. Norma vai morar aqui e tomar conta da casa, como governanta. A hora que qualquer um de nós sentir saudade, é só vir para cá. O que acham?
- Bem, Sam - disse Mark -, eu acho que você tem o direito de fazer o que quiser. Se Anna concordou, acho que está perfeito. Eu não tenho intenções de voltar para a América. Eu e Emily poderíamos vender uma casa só e deixar a outra, mas não queremos mais voltar. Temos um sentimento de que não vamos mais querer sair do Brasil. E ainda mais associando meus sonhos com a casa que Adolph comprou.
Mark percebeu que falara demais. Ele não queria comentar o assunto. Adolph, percebendo a expressão meio embaraçada do amigo, com tranqüilidade perguntou:
- Você sonhou com a casa que eu comprei, Mark?
Mark estava meio hesitante, mas sentiu segurança suficiente para falar:
- Ora, vocês são meus amigos. Não tenho nada a esconder. Afinal de contas, vamos todos morar juntos, viver numa espécie de comunidade, e não posso ficar escondendo o que vem ocorrendo comigo.
Emily perguntou:
- O que vem ocorrendo, meu amor? Você está com algum problema e não quer me contar? O que está havendo?
- Calma, querida - começou Mark a rir. Não tem nada a ver com doença.
Quando Adolph foi em casa naquele dia para nos falar sobre a mudança para o Brasil, eu já estava refletindo muito sobre a minha vida, o que eu tinha construído, o que eu queria dali para frente, etc.
Adolph interrompeu a conversa:
- Os sonhos estão relacionados com a súbita emoção que você teve ao ver aquela gravura?
- Isso mesmo. Desde pequeno, eu tenho tido alguns sonhos marcantes. Mas há um sonho que acontece com freqüência. Sonho que estou sentado numa sala grande, atrás de uma escrivaninha, onde me vejo nervoso, brigando com algumas pessoas. Eu saio dessa sala e vou para o mato, andando por horas. Quando vou chegando em casa de novo, eu vejo essa casa toda imponente, grande, bonita, e me dá uma sensação de poder, de riqueza, de posse. E como se tudo aquilo fosse meu. E eu sempre acho que vão tirar a casa de mim, não sei por quê. Eu me vejo, no sonho, admirando, observando e apreciando cada detalhe de sua construção. E a gravura que você me trouxe, Adolph, é idêntica a essa casa do sonho. Só as cores são diferentes, mas é a mesma. Não me pergunte como eu sei. Eu só sinto que é a mesma.
- Então - disse Adolph -, os sonhos sobre os quais você nos disse naquele dia eram esses? E eu e Emily achávamos que você estivesse um tanto alucinado. Meu amigo, desculpe-me.
Levantou-se e foi abraçar Mark. Emily também foi abraçar o marido.
- Querido, perdoe-me também. Não sabia que você tinha esses sonhos. Você nunca falou nada.
- Nunca falei porque tinha medo de que todos me tomassem por louco. Assim que começamos a estudar, eu comecei a perceber que os sonhos significavam mais do que eu pensava. Tenho trinta e dois anos, não sou mais tão garoto, mas ainda sinto que posso fazer muitas coisas. Sabe, naquela noite em que estudávamos o livro dos espíritos, fiquei fascinado com as perguntas relacionadas a sonhos. Lembrei-me dos sonhos com aquela casa e sinto que tenho alguma ligação com ela. Quem sabe desde pequeno eu já sabia que iria morar lá? Esse livro explica que nós podemos ter tanto conexões com o passado como também com o futuro. Vai ver, eu tive uma premonição.
- Sabe, Mark - falou Sam -, concordo com você. Eu e Anna temos estudado bastante ultimamente e confesso que muitas das coisas relacionadas à tragédia de minha vida fazem sentido no livro. Não vou dizer que acredito em tudo, ou que me conformei com a situação, mas senti um conforto muito grande quando li o trecho referente à morte de crianças. É esclarecedor, e o que mais me deixa fascinado é a maneira lógica com que as respostas são dadas. Parece que as regras da vida sempre foram essas, mas nós não percebíamos.
- Concordo com você - respondeu Adolph. - Toda a humanidade acreditou, por muito tempo, na vida após a morte. Isso sempre foi natural desde o princípio dos tempos. Recebi cartas de alguns colegas meus de Londres que estão começando a fazer escavações no Egito, à procura de templos, múmias e outras preciosidades arqueológicas. E, segundo consta, a crença da civilização egípcia na vida após a morte era verdadeira. Acredito que essas escavações vão poder nos mostrar como as antigas civilizações viviam, como as pessoas pensavam, o modo de vida, as crenças. Poderemos olhar para nós mesmos, daqui para frente, como uma continuidade de todas essas civilizações perdidas, que deve ter desaparecido por motivos que uma hora também descobriremos. Há muitas provas que nos fazem acreditar na reencarnação, não acham?
- Olhe - falou Sam -, o que também é fascinante, embora seja triste, é a manipulação que a igreja exerceu sobre nossa cultura nos últimos séculos. Não sei bem o que possa ter havido, mas o poder da igreja é muito forte e impede que tenhamos uma visão mais ampla acerca dos assuntos espirituais. Eu parei de acreditar nessa igreja depois que li de um amigo de meu pai, há alguns anos, um relatório muito antigo sobre a Inquisição.
- E o que é a Inquisição? - perguntou Emily.
- Inquisição - respondeu Sam - foi uma maneira que a igreja adotou para punir pessoas que não pensavam de acordo com os dogmas impostos por ela. Quem cultuasse um outro deus, uma deusa, uma outra religião, ou que acreditasse em espíritos, era enforcado ou queimado vivo. Antes, é claro, a igreja confiscava todos os bens dos condenados.
- Mas, Sam - continuou Emily -, então quer dizer que o amigo do seu pai, por ter um relatório, fazia parte da Inquisição?
- Não, absolutamente. O avô desse amigo do meu pai havia sido morto pela Inquisição. O relatório que ele tinha nada mais era do que a condenação de seu avô. Ele foi morto na Espanha, muitos anos atrás. Foi condenado por cultuar uma outra divindade. Ou seja, as pessoas não tinham liberdade nem para escolher seu deus. E a igreja confiscou todas as suas propriedades. Eu sei que ainda hoje existem alguns países no mundo que mantêm a sombra da Inquisição bem viva. Espero que as condenações tenham diminuído e que as pessoas voltem a ter a liberdade de cultuar o que quiserem.
- Eu também acho - disse Adolph. - E, falando em Inquisição, de certa maneira ela ainda está viva.
- Como assim? - perguntou Sam, aturdido. Pensei que as condenações tivessem acabado há anos.
- Mais ou menos - respondeu Adolph. Por eu estar me correspondendo com amigos em Paris, e pelo fato de eles estarem estudando essas questões espirituais, fiquei sabendo que recentemente, na Espanha, uma grande quantidade de livros de Kardec foi interceptada pela igreja e queimada em praça pública.
- Não posso acreditar numa barbaridade dessas - interveio Sam. A igreja não tem o direito de fazer isso.
- Mas fez. Centenas de exemplares do "Livro dos Espíritos" foram queimados. A alegação da igreja foi de que esse livro ia contra os dogmas cristãos. Mas essa atitude brutal da igreja acabou surtindo um efeito positivo.
- Como assim? - perguntou Mark, confuso. Se a igreja não permitiu que a população tivesse contato com o livro, por que isso surtiu algum efeito positivo?
- Porque as pessoas, ao verem os livros sendo queimados, ficaram chocadas com a atitude da igreja e fizeram protestos em Barcelona. Ou seja, essa atitude da igreja fez com que as pessoas percebessem o quanto estavam sendo passivas, o quanto estavam se deixando levar por conceitos impostos, impedindo-as de serem livres para pensar.
Todos menearam a cabeça em sentido afirmativo. Adolph continuou:
- Por essa razão é que eu estou me afastando da igreja e me aprofundando nos estudos metafísicos e espirituais. Não quero saber de religiões ou dogmas. Quero ser livre para pensar e estudar o que quiser. Somos únicos e diferentes. Cada um é responsável por aquilo que faz. Isso é fascinante, porque nos dá poder e responsabilidade ao mesmo tempo.
- Como assim? - perguntou Anna.
- Veja bem: a partir do momento em que você se sente responsável por si, que você leva sua vida de acordo com a sua vontade, com o seu arbítrio, você não precisa mais culpar ninguém no mundo pelas suas tristezas e fracassos. Tampouco cultuar deuses e santos pelas graças obtidas. Tudo acontece através de você. Você é quem dirige sua vida. Os outros são meros espectadores, que às vezes contribuem no espetáculo. Mas percebo que as pessoas estão nas nossas vidas porque nós também somos responsáveis por atraí-las no nosso caminho.
- É - falou Mark -, confesso que ainda tenho muito que aprender.
Adolph levantou-se rapidamente da cadeira e, passando a mão pela cabeça, perguntou a todos:
- Pessoal, o que acham de nos reunirmos cada dia na casa de um e estudarmos com afinco as leis da vida?
Todos gritaram ao mesmo tempo:
- Ótimo!
Adolph continuou:
- Até à hora de nosso embarque, em junho, devo receber mais alguns livros sobre reencarnação e poder do pensamento. Quero estudá-los para me tornar um bom médium.
- Médium? - perguntou Emily, intrigada.
- Médium é a pessoa que tem sensibilidade suficiente para perceber o mundo físico e o mundo astral, além de servir como intermediário entre esses dois mundos. De certa forma, Emily, todos nós somos médiuns. Mas uns têm mais sensibilidade que os outros.
- Quer dizer, então - tornou Anna -, que teremos material para estudar tudo isso? Todos aqui vão acreditar nos espíritos?
- É o que parece - respondeu Adolph. Assim que chegarmos ao Brasil, iremos marcar algumas tardes na semana só para esses estudos, sem interrupções. Sinto que precisamos estudar cada vez mais, há muito que aprender.
Continuaram conversando sobre mais alguns assuntos. Todos estavam ansiosos com a viagem para o Brasil. Era uma experiência nova, única. Com exceção de Adolph, todos iriam sair da América pela primeira vez. No íntimo, sabiam ser aquela data, 21 de junho, um novo marco em suas vidas. Agnes estava feliz com a conversa. Também já havia feito sua parte até agora. Mais dois meses e todos estariam embarcando para o Brasil. Estava na hora de ficar um pouco afastada dos colegas encarnados. Precisava avisar Apolônio de que tudo estava em ordem, aparentemente. E aproveitaria para visitar Roger, o avô de Sam. Roger estava de férias escolares, já estava fazendo o curso de "desapego" havia dois anos. Mais um ano de estudos e estaria apto para ingressar na universidade que havia em sua colônia. O céu parecia uma tela de pintura. Seu azul era suave e vivo. Surgiam no horizonte os primeiros raios de sol. A cidade astral Encantada ficava bem em cima da divisa de Minas Gerais com o Rio de Janeiro. Essa colônia tinha o nome de Encantada pela sua beleza. Era uma das colônias com o maior número de bosques floridos, entre todas as colônias espirituais ligadas ao Brasil. Fundada por volta de 1500, foi uma das primeiras a receber europeus que desencarnavam. Antes do descobrimento, as colônias eram praticamente todas indígenas. Como os índios estavam há muito tempo no Brasil, não havia ainda colônias que pudessem receber os desbravadores que aqui chegavam. O plano espiritual começou a fazer algumas modificações nas colônias para recebê-los. Agnes e Júlia estavam estabelecidas em Encantada há cem anos, embora tivessem contribuído na época de sua fundação. Receberam autorização para estabelecer núcleos de trabalho por ali. Roger, em suas horas de folga, dedicava-se ao estudo da língua portuguesa. Em sua memória só tinha o conhecimento do inglês e do francês. Ainda não possuía os mecanismos mentais que Agnes e Júlia possuíam, de poder se comunicar em qualquer idioma. Logo, Sam, Anna, Emily, Mark e Adolph estariam falando fluentemente o português, devido à utilização desse idioma em suas últimas vidas. As casas da colônia Encantada eram lindas. Todas eram brancas, com enormes jardins, rodeados por frondosas árvores e lindas flores. Agnes e Júlia moravam juntas numa dessas casas, próximas aos departamentos de assuntos reencarnatórios. Era um dos edifícios mais movimentados. Lá eram dadas informações sobre os espíritos encarnados, ofereciam-se cursos de reciclagem, ensinavam-se métodos e práticas para que seus habitantes pudessem se comunicar com os encarnados no Brasil. Agnes e Júlia já haviam tratado de permitir que seus amigos encarnados fizessem uma tranqüila viagem até o Brasil. Agora elas precisavam cuidar de suas vidas no astral. Júlia comentou:
- Eu preciso ficar mais um tempo aqui no departamento. Há algumas informações nas fichas dos rapazes e das garotas às quais eu ainda não havia prestado atenção.
Agnes, com seu sorriso habitual, respondeu:
- Não, Júlia. Eu havia omitido certas informações a fim de que você não pudesse interferir na história deles. Veja que agora você pode compreender o porquê das situações trágicas, bem como da união do grupo.
- Concordo. São informações preciosas. Caso eu tivesse acesso a elas antes, confesso que não teria condições de permanecer junto a esse grupo. Por sorte sinto-me mais impessoal no momento, o que me permite estar a par de todo o passado deles e poder contribuir da melhor maneira.
- Perfeito, Júlia. Enquanto você fica aí se deliciando com o passado de nossos amigos encarnados, eu vou ter com Roger. Até mais.
- Até mais, querida.
Agnes retirou-se da seção de arquivamento onde Júlia se encontrava. Cruzou um enorme corredor, repleto de pessoas, num vaivém organizado e silencioso. Desceu as escadas de mármore branco, chegou à enorme recepção, dotada de paredes de vidro, permitindo que a luz do sol iluminasse todo o ambiente durante o dia. Jardins de flores bem cuidadas davam o toque final à beleza da recepção. Agnes, mesmo conhecendo e passando por aquele departamento várias vezes na semana, sempre se encantava com a beleza do prédio. Deu um breve suspiro, cumprimentou alguns conhecidos que estavam no saguão e dirigiu-se para o pátio externo. O pátio era cercado por belos jardins, cheios de flores perfumadas. Havia também um lago central, uma linda fonte e bancos de ferro. Num desses bancos estava Roger. Agnes foi ao seu encontro.
- Meu querido, como está?
Roger estava imerso em seus pensamentos, olhando para as estátuas que cercavam o lago. Respirou profundamente e soltou o ar bem devagar. Esboçou um largo sorriso e voltou-se para Agnes:
- Minha querida amiga, que saudade! Como anda?
- Muito bem, obrigada. Mas noto que você está bem calmo. O que tem se passado?
- Ora, Agnes, depois de dois anos estudando o desapego, você queria o quê? Que eu voltasse a ser o mesmo velho Roger de sempre? Impossível. Esse curso mexeu muito comigo, mudei muito. Agora eu quero mais é cuidar de mim, nas trilhas da luz.
- Quem te viu, quem te vê... Fico muito feliz de saber que o curso o ajudou.
- Se me ajudou? Eu renasci com esse curso. No começo me senti inseguro. Afinal de contas, eu não sabia bem o que iria estudar. Depois, conforme fui aprendendo e praticando, entrei na fase do remorso...
- O que é perfeitamente natural - comentou Agnes.
- Bem - continuou Roger -, os instrutores me ajudaram muito. Depois, quase no final, percebi o quanto eu me prendia às pessoas, o quanto eu dava do meu poder aos outros. Nossa, Agnes, como é fácil nos influenciarmos pelos comentários alheios, deixando de seguir a vontade de nossa alma!
- Sei bem o que você me diz, meu amigo. E vim aqui lhe dizer que, pelo fato de ter tirado excelentes notas, ter se dedicado, você ganhou o direito de reviver algumas vidas passadas.
- Eu sempre quis saber sobre minhas outras vidas. Saber se fui importante, se fui uma pessoa de renome na Terra. E com esse curso percebi que nada disso importa. Agradeço o fato de poder ter acesso às outras encarnações, mas confesso que só vou fazer isso para poder entender como criei certos condicionamentos mentais que perduraram até há pouco tempo. Não me importa mais saber o que eu fui, mas como eu criei certas formas-pensamentos que me jogaram no vale da dor e do apego. Graças a Deus, a curiosidade já se foi. Agora eu quero ficar comigo, centrado. Quero ter o máximo de equilíbrio pela eternidade afora.
- Roger, você mudou mesmo! Eu sabia que iria conseguir. Fico muito feliz por estar mais tranqüilo. E o fato de você descobrir os véus do seu passado só vai ajudar a compreender a história de seu neto e dos amigos dele. Você verá que tudo está certo, que a vida não erra nunca.
- Sim, a vida não erra nunca. Ela é poderosa, está sempre presente, estejamos encarnados ou desencarnados. Talvez este seja o maior tesouro que Deus nos tenha dado: a vida.
- Isso mesmo, Roger, a vida.
Ficaram por mais algumas horas conversando sobre os mecanismos fantásticos que a vida utiliza para fazer com que possamos sempre estar diante da verdade. Roger havia mudado bastante. Não era mais o velho homem preocupado com as tragédias de seu neto. Estava mais novo, aparentando a jovialidade que seu espírito demonstrava depois de se libertar das amarras do apego, das inseguranças que tinha por não acreditar em si, por não usar seu poder em benefício próprio. Sentia-se um novo homem. Os cabelos, antes brancos, voltaram a ser loiros. A pele, antes branca como cera, estava bronzeada, brilhante. Até suas roupas eram mais jovens, mostrando que aquele espírito estava, mais do que nunca, do lado da luz. Um apito estridente soava a cada três minutos, informando aos viajantes atrasados que dentro em breve o vapor partiria. A movimentação no porto de Miami era enorme. Centenas de homens da tripulação carregavam baús e malas para dentro do navio. Outras centenas de pessoas estavam à beira do cais, balançando seus lenços, dizendo adeus aos viajantes. A proa do navio estava repleta de gente também. Choros, acenos, adeus, alguns alegres, outros tristes. Todos se despediam de seus parentes e amigos. Mais um apito, agora mais longo, informava que o navio começava sua rota rumo à América do Sul. Adolph, Sam, Anna, Mark e Emily não tinham amigos que estivessem no cais do porto. Haviam feito um jantar de despedida duas semanas antes em Little Flower, onde reuniram alguns conhecidos. Iriam sentir saudade do Dr. Lawrence, que ultimamente havia se tornado o pai de todos. Como o seu filho ficara com a agência do correio que pertencia a Emily, prometeu que sempre mandaria notícias. Após o jantar de despedida, foram de trem para Miami, de onde sairia o navio para o Brasil. Mark e Emily já haviam recebido o dinheiro pela venda de suas casas e móveis. O dinheiro da aposentadoria de Mark seria depositado em uma conta num banco de San Francisco e seria administrado por seus irmãos que lá moravam. Adolph não vendeu propriedade alguma, pois a casa onde residia era de seu pai. Antes de partir, comunicou a seus pais, que estavam na Europa, que iria alugá-la e que o dinheiro do aluguel seria depositado numa conta bancária em San Francisco, também administrada pelos parentes de Mark, segundo uma procuração feita pelo próprio Adolph. Sam e Anna venderam algumas propriedades, ficando apenas com o palacete, que ficaria aos cuidados de Norma, e um sobrado no centro da cidade. O aluguel desse sobrado iria direto para as mãos de Norma, para que ela pudesse manter o palacete. Tudo acertado. Os corações trepidando. Por mais que desejassem mudar de país, a sensação do novo trazia-lhes desconforto. Pensar em mudar de país tinha sido muito fácil, mas concretizar o pensamento os deixava inseguros. O que encontrariam pela frente? Iriam se adaptar ao novo mundo? Foi assim que Adolph, Sam, Anna, Mark e Emily desceram o Atlântico. Durante trinta dias, esses foram os pensamentos que povoaram suas mentes. Na primeira manhã da primavera, o navio atracou no cais do Rio de Janeiro. A beleza das praias, da vegetação tropical e dos morros era magnífica. O céu era de um azul lindíssimo. O sol se punha no horizonte com toda a sua força, refletindo seu brilho nas águas da baía de Guanabara. Todos os viajantes correram à proa para apreciar a estupenda beleza. Alguns enchiam seus olhos em lágrimas de puro êxtase. Adolph olhou à sua volta e gritou para seus companheiros:
- Meus amigos, bem-vindos ao Brasil! Que a partir de hoje nossas vidas sejam recheadas de tantas belezas quantas essas à nossa frente. Que nossos caminhos sejam trilhados com o mesmo brilho que estamos agora recebendo deste sol.
Sam, Anna, Mark e Emily responderam em uníssono:
- Viva!
O cais do porto estava repleto de pessoas, algumas aguardando os viajantes do navio, outras esperando embarcações que traziam artigos vindos da Europa. O que mais impressionava os recém-chegados era a quantidade de negros: mulheres negras acompanhando senhoras e senhoritas impecavelmente vestidas; negros acompanhando senhores elegantes com seus casacões, luvas, cartolas e bengalas. Cavalos, charretes, carruagens misturavam-se ao vaivém dos trabalhadores do porto e dos transeuntes. Muitas pessoas ficaram ali espremidas, na ponta do cais, para ver quem estava chegando. Assim que o vapor atracou, um contingente de escravos começou a subir uma rampa de madeira que ligava o porto ao porão da embarcação, onde havia imensos baús a serem carregados. Outra rampa de madeira foi colocada para que os viajantes pudessem sair do navio com um mínimo de conforto. Anna e Emily estavam admirando o trabalho extremamente ágil daqueles negros. Não gostaram de ver crianças trabalhando como adultos. Entreolharam-se e abaixaram suas cabeças, num gesto de repúdio. No meio da multidão, destacou-se um grito seco:
- Adolph! Adolph!
Adolph tentava avistar de onde vinha o chamado, mas o barulho e a desordem impediam a pronta identificação.
- Adolph, aqui! Sou eu. Aí, sim, Adolph pôde avistar. Um jovem moreno, cabelos castanhos, muito bem vestido. Encostado próximo a três carruagens estava Alberto, o fazendeiro.
Adolph correu ao seu encontro.
- Alberto, que bom vê-lo! Meu Deus, eu não imaginava que as pessoas aqui fossem tão falantes e... Agitadas.
- Por isso eu não suporto este lugar. Isto não é como Paris ou Lisboa. Estou farto de tanta sujeira, de tantos negros ao meu redor. Estava preocupado que vocês não viessem. Eu quero tratar da venda da fazenda e sumir deste lugar imundo.
Adolph ficou desconcertado. Não esperava que Alberto fosse tão indelicado e arrogante.
O americano olhava as pessoas à sua volta e não sentia o asco que Alberto sentia. Pelo contrário, sentia-se em casa. Nunca uma cidade o havia fascinado tanto como o Rio de Janeiro. Pensou: "Meu Deus, isto aqui é o paraíso! As belezas naturais são fantásticas. As pessoas parecem muito simpáticas. Como Alberto pode ser tão insensível?" Adolph teve seu pensamento cortado pelos gritos de Mark e Sam:
- Adolph, não encontramos as nossas bagagens.
- Calma - disse Alberto. - Seus pertences já se encontram nas carruagens.
Tão logo o navio atracou, meus escravos foram pegar suas bagagens. Por sorte eu ainda tenho alguns negros não tão burros, que sabem ler, o que facilitou a localização das malas. Agora vamos, chamem suas esposas, porque não agüento mais ficar neste lugar horrível e fétido. Vamos. Sam, Mark e Adolph entreolharam-se. Não gostaram da postura de Alberto. Será que valeria a pena fazer negócio com ele? Será que ele era um bom sujeito? Não estariam fazendo um mau negócio? Deixaram os pensamentos de lado e foram buscar Emily e Anna. Entraram nas carruagens e seguiram viagem. Todos estavam encantados e maravilhados com a cidade, sua arquitetura, com a mistura das raças. Ficaram muito impressionados com a beleza dos mulatos e mulatas. Assustaram-se com o desrespeito de alguns homens, que açoitavam desumanamente alguns negros. Adolph perguntou o porquê daquilo. Alberto respondeu-lhe:
- Nós costumamos vender escravos. Quando a produção na fazenda cai, por exemplo, por que é que vamos ficar sustentando esse povo nojento? Então nós trazemos para cá, nesta praça, e fazemos comércio. E ainda mais agora, que estamos proibidos de importar essas criaturas, existem alguns espécimes que valem um bom dinheiro. Como diz um amigo meu, também fazendeiro: negro vale ouro.
- E por que estão batendo naquele negro ali? - perguntou Mark, preocupado.
- Porque ele foi vendido separado da mulher e dos filhos. Ele não quer separar-se de sua família, por isso está apanhando. Negro não pode reclamar, senão apanha, entendeu?
- Não, não entendi - disse Mark, agora com raiva no tom de voz. E você acha justo separar um pai de sua esposa e filhos? Isso é crueldade.
- Crueldade nada. Eles se ajeitam nas senzalas, ficam fazendo filhos e mais filhos. É uma raça inferior, portanto não podem seguir os preceitos de família como nós seguimos. Não podemos ser sentimentalistas com essa gente. Não se pode titubear.
Sam fazia de conta que não ouvia nada. Não podia acreditar no absurdo que Alberto falava daquelas humildes pessoas. Adolph segurou o braço de Mark, que já estava a ponto de esbofetear o rosto de Alberto. O brasileiro continuava:
- E, ademais, precisamos ser firmes com eles. Eu já tive de mandar matar alguns negros metidos. Eles me faziam juramento de morte, pode uma coisa dessas? Olhem o atrevimento! Antes mesmo de me jurarem morte eu os massacrava. Tonico, meu capataz lá na fazenda, adora fazer esse tipo de serviço.
Os americanos estavam estarrecidos. Isso era crueldade e desumanidade pura. Por sorte, as mulheres estavam em outra carruagem. Não ouviram as barbaridades que Alberto foi falando durante o trajeto até a fazenda. Algumas horas depois, pararam numa pousada. As mulheres aproveitaram para se banhar e retocar a maquiagem. Os homens suspiraram pelo fato de ficarem livres dos comentários maledicentes de Alberto. Aproveitaram e fizeram uma farta refeição. Arroz, feijão preto, angu. E muito vinho. De sobremesa foi-lhes servido quindim. Ficaram maravilhados. Embora se sentindo pesados com o repasto, aprovaram a comida local.
- Anna - disse Emily -, vamos aprender rápido a fazer estes pratos. Não imaginava que a comida brasileira fosse tão variada e saborosa.
- Espero aprender a não fazer nada disso - disse Anna num tom de desalento.
Todos se entreolharam. Isso não era sua postura de costume. Sam perguntou-lhe, preocupado:
- Por que, meu bem? Você tem uma mão ótima para cozinhar. Por que disse isso?
- Porque, se aprender a cozinhar essas delícias, vou engordar como uma porca. Você vai querer uma esposa gorda e horrorosa?
Caíram todos na risada. Realmente Anna estava certa. Ela nem imaginava o que viria pela frente. Nem sequer podia imaginar o que as cozinheiras da fazenda iriam lhe ensinar. Após o quindim, tomaram delicioso café. Estranharam um pouco, porque era muito forte, diferente do café americano. Seguiram viagem.
- Alberto - perguntou Adolph -, quantas horas mais de viagem?
- Duas horas e estaremos na fazenda. Eu lhe disse na carta que ela não ficava longe da cidade.
- E não fica longe? - rebateu Mark. Estamos viajando desde cedo. Você acha quatro horas de viagem pouco?
- Vocês americanos são engraçados - respondeu Alberto. Um bando de ianques nascidos e criados em cidadezinhas pequenas. Por acaso você acha que o Brasil é pequeno? Quatro horas não é nada. Existem fazendas que ficam a três dias da cidade. Já está cansado da viagem?
- Ora, seu... - Mark quase partiu para cima do brasileiro.
Sam e Adolph seguraram-no. Sabiam agora quem era na verdade Alberto. Mas não podiam enervar-se com seu jeito estúpido de falar.
- Calma, Mark - disse o próprio Alberto. - Poupe o seu nervosismo aos negros imundos que vai encontrar lá na fazenda.
Continuaram a viagem em silêncio. Desejavam o mais rápido possível acertar a compra da fazenda e livrar-se de Alberto. Pouco depois de uma hora chegaram. Um imenso portão de ferro, em forma de arco, foi aberto por dois negrinhos. Árvores e flores das mais variadas espécies rodeavam o caminho até a casagrande. A beleza da fazenda Santa Carolina era descomunal. Alguns minutos caminhando pela propriedade, avistaram um rio abastecido por belíssima cachoeira. Adolph pediu para que Alberto parasse a carruagem. Nunca haviam visto nada igual. A paisagem era magnífica. Ficaram alguns minutos contemplando a beleza do lugar. Alberto intimamente se deliciava. Aqueles trouxas americanos estavam gostando. Isso era bom. Dois escravos morreram, dezenas ficaram doentes a fim de deixarem a fazenda impecavelmente linda aos olhos dos estrangeiros. Valeu o esforço daqueles negros imbecis e imundos, pensou. O resultado deixara-o feliz. Era isso que ele queria: livrar-se o mais rápido daquela fazenda que não lhe dava um pingo de lucro, pois seus cafezais estavam morrendo ano após ano. Os escravos não cuidavam bem das plantações. Alberto já havia perdido dinheiro com a venda de uma fazenda em Goiás. Não iria permitir o mesmo com a fazenda Santa Carolina. Havia se endividado para mantê-la e precisaria vendê-la pelo dobro do que valia. Pagaria as suas contas e iria para Lisboa, com a irmã e o resto da fortuna. Leve sorriso sarcástico esboçou-se em seus lábios. Os rapazes nem notaram. A apreciação da beleza foi interrompida por uma cena hedionda. Próximo à cachoeira, jazia o corpo de uma menina negra, muito machucado. Anna e Emily correram na direção da garota. Os rapazes seguiram-na. Alberto ficou parado, encostado na carruagem, irritado com o ocorrido. Enquanto os americanos corriam em direção à menina, Alberto bradava:
- Não liguem. É uma negrinha safada. Não cumpriu direito com os afazeres que tinha lá na casa-grande e foi castigada. Sorte de estar próxima da água, pois o que ela merecia mesmo era o tronco.
Ninguém parou para dar ouvidos aos seus comentários. Quando se aproximaram da menina, caída próxima ao leito do rio, custaram a crer na verdade. A pobre menina estava com as costas, peito e pernas em carne viva. Mal conseguia respirar, tamanha a dor. Filetes de sangue escorriam pela água cristalina do rio. Anna e Emily começaram a chorar. Viraram-se para Alberto indignadas. Adolph e Mark pegaram a garota. Com extrema delicadeza e com profundo pesar no olhar, retiraram-na do leito do rio. Sam abriu um de seus baús de viagem e pegou uma coberta para cobrir a menina nua, que tremia de dor e frio. Estendeu-a no gramado próximo ao rio.
- Coloquem-na aqui, rapazes. Com cuidado, porque os cortes estão muito profundos.
Anna retirou a capa que estava usando e, juntamente com Emily, rasgou-a em tiras largas, a fim de cobrir os cortes mais profundos, para amenizar a dor da menina. Os gritos de dor da negrinha, conforme sua pele esfacelada entrava em contato com a coberta, eram terríveis. Mesmo os rapazes, agora, estavam com os olhos marejados. Como um canalha podia fazer uma barbaridade daquelas? A pobre menina não tinha mais do que doze anos. Alberto, completamente alheio à situação, disse-lhes:
- Bem, já que a tiraram do rio, deixem que o resto ficará por conta de Tonico. Não precisam mais sujar as mãos.
Mark esbofetearia Alberto, não fossem os braços fortes de Sam a segurá-lo.
- Mark, não ligue. Não vale a pena.
- Como não vale a pena, Sam? Esse patife iria deixar a pobre menina morrer aqui. Como um ser tão desumano como ele pode ficar com essa cara tão serena? Merece levar uma surra. Uma surra, entendeu?
Alberto gargalhava:
- Ora, ora. Vocês americanos são tão sentimentalistas! Àquilo que não tem valor vocês dão atenção, e àquilo que tem valor vocês não dão a mínima. Agora larguem à negrinha e vamos até a casa-grande. Chega de perda de tempo.
Adolph também estava se irritando com os impropérios do brasileiro.
- Alberto, o preço pela fazenda é aquele da carta, não é verdade?
- É, sim, Adolph. E não venha agora querer baixá-lo. Só as belezas que viram até agora já valem o preço que pedi. Isso porque vocês ainda não viram a casa.
Adolph procurou acalmar-se.
- No navio, conhecemos um fazendeiro brasileiro. Ele nos disse que o preço que você havia pedido era muito alto, mas que, se melhorássemos o sistema de colheita do café, teríamos um bom retorno daqui a alguns anos.
- Sei. E daí? - redargüiu Alberto.
- E daí que, durante a viagem, convertemos o valor da fazenda de conto de réis para dólar e percebemos que dinheiro não é problema para nós. Sendo assim...
- Sendo assim... - continuou Alberto, secamente.
- Sendo assim, eu já me sinto proprietário desta fazenda.
- Ótimo, fico feliz com isso. Quero ir embora o mais rápido possível deste inferno - gritou Alberto, levando as mãos para o alto.
- E como proprietário - continuou Adolph - eu faço o que quiser aqui, de agora em diante.
Com voz firme e o dedo em riste no rosto de Alberto, Adolph continuou:
- Por esta razão, a menina vai ser levada conosco na carruagem até a casagrande e vai receber todos os cuidados necessários.
Alberto ficou colérico:
- Você nunca esteve por aqui antes, ianque. Aqui não é a América. Não se pode misturar as coisas. Essa negra tem de ir para a senzala. Não pode receber cuidados na casa-grande, jamais.
Adolph perdeu o controle. Seu rosto ficou vermelho. A raiva que sentia naquele instante era forte demais para ser controlada. Partiu para cima de Alberto. Com as mãos no pescoço dele disse, num tom de voz capaz de estremecer qualquer ser humano:
- Eu levo a menina para onde eu quiser, entendeu? Para onde eu quiser. Eu sou o novo dono desta fazenda, portanto a partir de agora as coisas serão do meu jeito. Eu vou levá-la até a casa-grande. Assim que cuidarem dela, vamos acertar as contas. Não o quero mais por aqui. Eu quero que você suma de nossas vidas, Alberto. Estamos conversados?
Todos permaneceram calados. Ninguém desta vez quis segurar Adolph. Estavam cansados de tantas barbaridades vindas de Alberto. Vendo a pobre menina naquele estado, não suportariam mais nada. Sam e Mark deitaram a menina na carruagem onde estava Anna e Emily. Alberto estava impassível. Não movia um músculo do corpo. Assustou-se com a postura dos americanos. Eles não eram tão imbecis quanto imaginava. Constrangido com a situação, Alberto procurou apaziguar os ânimos:
- Está bem, você é quem manda. O rapaz do cartório já se encontra em meu escritório. Vamos fazer a transação agora mesmo. Assim que assinarmos toda a documentação, eu partirei. Nem pousarei aqui esta noite.
- Assim é melhor - disse Adolph, tirando as mãos do pescoço do rapaz.
Antes de embarcarem para o Brasil, e durante a viagem, todos estudaram português. Ainda não tinham domínio do idioma, mas sabiam o suficiente para entender as crueldades que saíam da boca de Alberto. Adolph era o único com o português fluente, pois o aprendera com Augusto e Carlos, na época da faculdade. Ele entrou na carruagem de Anna e Emily. Passando suavemente a mão no rosto da menina, perguntou:
- Como você se chama?
A menina, embora com muita dor, teve forças para dizer:
- Rosa, senhor. Meu nome é Rosa.
Com os olhos marejados, Adolph disse:
- A partir de agora, Rosa, ninguém mais vai ser maltratado aqui na fazenda. Eu prometo.
- Obrigada, senhor... Obrigada...
Rosa não conseguia falar mais nada. As dores dos cortes eram muito fortes. Estava praticamente desfalecida. As carruagens partiram em direção à casa-grande. Todos emudecidos. Nos minutos seguintes, o silêncio só foi cortado pelos gemidos de Rosa. A cada gemido, ouviam-se os gritos abafados de Anna e Emily, muito sensibilizadas com a situação. Alberto seguia sozinho em sua carruagem. Sam e Mark espremeram-se entre os baús da terceira carruagem. Não suportavam mais ficar ao lado daquele homem completamente sem escrúpulos. A estrada margeava o rio. Algum tempo depois, após uma sinuosa curva, avistaram a casa-grande. Ela era imensa, linda. Paredes brancas e janelões azul-marinho. Galhos de primaveras cercavam toda a varanda, cujas flores amarelas enroscavam-se nas sacadas, dando um toque romântico e delicado ao casarão. Mark foi o primeiro a descer. Não acreditou no que via. Era a mesma casa do sonho. A mesma, igual, inclusive as cores. Como podia ser possível? Não suportando a emoção, Mark desatou a chorar. Emily foi em sua direção:
- Querido, não fique assim. Por que chora tanto?
Mark abraçou-se à esposa. Continuou a soluçar por mais alguns instantes.
Terminada a forte emoção, conseguiu dizer:
- Emily, meu amor, esta é a casa com que eu sonhei. Eu já havia comentado com vocês antes. Mas é muito real. Desde pequeno eu vejo esta casa. Com as mesmas cores, inclusive. - E, virando-se para Adolph: Meu amigo, o que acha disso? Será que eu já conhecia a casa?
Adolph estava impressionado. A gravura da casa, quando mostrada a Mark, possuía paredes amarelas. E Mark dizia sonhar com a mesma casa, só que com a parede na cor branca. Antes de Adolph responder a Mark, Alberto disse:
- Eu sabia que vocês iriam gostar e ficar. Eu tinha tanta certeza disso que mandei pintar a casa toda. Aliás, gastei um bom dinheiro para arrumar esta fazenda. E pintei-a desta cor porque era a cor da fazenda quando minha família a comprou, anos atrás.
Mark e Adolph se olharam. Como podia Mark ter acertado inclusive a cor da casagrande? Passada a emoção, voltaram a real situação. Uma negra simpática, moça ainda, na faixa dos vinte anos, e mais um negro alto e musculoso, bem bonito e na mesma faixa de idade, aguardavam os estrangeiros. Alberto mais uma vez mostrou seu caráter:
- Ora, por que só Jacira e Pedro aqui na recepção dos novos patrões? Onde está Maria?
- Ela está na senzala. Está muito triste com a morte da filha - respondeu Jacira, com a cabeça voltada para o chão.
Alberto desatou a rir. Gargalhava sem parar.
- Como você é estúpida, Jacira. A pobre coitada não morreu, infelizmente. Foi socorrida por esses gringos imbecis.
Alberto esqueceu-se de que Adolph tinha domínio do idioma português. Adolph, por sua vez, esqueceu-se de sua educação. Avançou para cima de Alberto, dando-lhe um soco no nariz. O rapaz não teve tempo de reagir. A força do murro levou-o direto ao chão. Ninguém entendeu nada. Anna, Emily, Sam e Mark ainda não tinham completo domínio do português. Depois que Adolph lhes disse o porquê de ter dado um murro em Alberto, todos aprovaram e queriam fazer o mesmo. Jacira e Pedro assistiram à cena estarrecidos. A satisfação de verem o patrão caído no chão, com nariz e boca ensangüentados, brilhava em seus olhos. Tinham vontade de beijar Adolph. Controlaram-se. Estavam começando a gostar dos novos patrões. Adolph dirigiu-se a Jacira e Pedro.
- Meu nome é Adolph. Estes aqui são Anna e Sam, Emily e Mark. Formamos uma grande família, unida por laços de afeto e respeito, e seremos seus novos patrões.
- Sim... Sim... - responderam Jacira e Pedro.
- Depois de acertarmos as contas com Alberto, conversarei com vocês e com os outros empregados. Agora, por favor, ajudem-me com a menina que está na carruagem. Levem-na aí para dentro da casa-grande e cuidem dela, vocês me entenderam?
Jacira e Pedro olhavam-se assustados. Quem seria essa menina necessitando de cuidados? Seria uma nova sinhazinha com problemas de saúde? Correram até a carruagem. Os americanos se surpreenderam e também se emocionaram com o grito de alegria de Jacira ao reconhecer o rostinho de Rosa na carruagem.
- Rosa, minha Rosinha! Acharam você, minha menina. Graças a Deus! Bem que Pai Juca disse: louvados sejam os novos patrões.
Pedro também estava emocionado. Antes de pegarem Rosa e levarem-na para a casa-grande, foram beijar as mãos dos novos patrões, num sinal de profundo agradecimento. Pedro disse-lhes:
- Penso que o resgate de Rosinha foi uma bênção. Todos os escravos aqui da fazenda serão eternamente gratos.
Os americanos se emocionaram. Não estavam acostumados com aquele jeito carinhoso do povo brasileiro. Estavam começando a gostar do Brasil. Pedro e Jacira correram de volta à carruagem. Ele pegou Rosa nos braços e levou-a até a casa-grande. Jacira foi até a senzala avisar a mãe da menina que sua filha sobrevivera. Alberto não estava gostando nada daquela situação. Assim que avistou o rapaz do cartório, na porta da sala, disse:
- Vamos logo. Quero assinar a papelada e ir embora deste lugar. Está anoitecendo, e quero partir antes de a escuridão tomar conta da paisagem. Vamos.
Adolph, Sam, Anna, Emily e Mark foram apressados até o escritório. Não queriam mais a presença insuportável de Alberto. Nem repararam na rica e apurada decoração da casa. Meia hora depois, todos os papéis estavam assinados. Finalmente os americanos eram proprietários da fazenda Santa Carolina. Alberto tinha como certa a venda da propriedade, por isso já havia levado quase todos os seus pertences para a capital. Pegou seus últimos bens e partiu, aliviado por deixar aquele pedaço de terra improdutivo na mão dos ianques. Mal se despediu. Seguiu viagem com destino à capital, levando consigo o rapaz do cartório. Anna e Emily percorreram todo o interior da casa-grande. Adolph, Sam e Mark queriam dar uma volta pela fazenda, mas já estava escurecendo. Resolveram deixar para a manhã seguinte a visita pelas terras e a conversa com os escravos. Tinham muito tempo pela frente. Adolph pegou uma pequena jarra de vinho. Serviu uma taça a cada um dos amigos.
- Companheiros, este é o nosso novo lar. Que ele nos traga muitas alegrias de agora em diante. Saúde!
Todos responderam, emocionados:
- Saúde!
E brindaram à nova etapa de suas vidas. Uma etapa carregada de otimismo, coragem e determinação. O brinde foi interrompido por uma grave voz de mulher. Os americanos curvaram-se para o som que vinha do corredor que dava acesso à cozinha. Era Maria, a mãe de Rosa.
- Que Deus abençoe cada um de vocês, meus novos senhores. Serei eternamente grata por resgatarem a minha filhinha.
Maria parou de falar. O pranto não a deixou continuar o agradecimento. Adolph tomou a palavra:
- Não nos agradeça. Fizemos o que achávamos ser o correto. Viemos de uma terra distante. Não estamos acostumados com esse tratamento desumano aos empregados. Acredito que vocês terão também uma nova vida daqui para frente. Vocês continuarão em seus afazeres, como de costume. Mas serão tratados como seres humanos, e não como escravos.
Maria não acreditava nas palavras do novo patrão. Deus havia ouvido as preces dos escravos. Finalmente eles teriam uma vida digna. Intimamente ela agradeceu a Deus, mais uma vez, pelo fato de agora estar nas mãos de gente boa, gente honesta. E agradecia mais ainda o fato de ter sua filha viva. Isso ela nunca mais iria esquecer. Faria tudo para defender os novos patrões. Maria era uma bonita negra, perto de seus quarenta anos. Seu marido havia morrido anos atrás, quando Rosa ainda era bebê. Ele discutira com Alberto e foi para o tronco. Não resistiu às chicotadas, ao sol escaldante e à falta de comida. Maria só tinha Rosa. Por ser excelente cozinheira, morava na casa-grande. Jacira e Pedro faziam as arrumações na enorme casa. Também moravam lá. Eram casados e não tinham filhos. A crueldade com que o Alberto tratava os escravos não lhes dava a coragem necessária de terem filhos. Por esse motivo, tratavam Rosa como filha. Adolph chamou Pedro no canto da sala.
- Diga-me, por que Rosa foi açoitada tão brutalmente? Ela não é servil?
Pedro, meio sem jeito, mas acreditando na boa intenção de Adolph, respondeu:
- Não é isso, não, sinhozinho. A menina Rosa é tão boa cozinheira quanto à mãe. Ajuda muito a gente aqui na casa. Acontece que o senhor Alberto bebia muito. E, quando bebia, queria pegar Rosinha, o patrão sabe bem para quê...
Adolph indignou-se. Pedro continuou:
- Desta última vez, ele foi mais violento. Rosa, para se defender, cuspiu na cara dele e deu uma mordida na sua mão. Ele ficou fulo da vida e bateu nela até não poder mais. Desta vez achamos que ela não fosse agüentar. Foi muito feio.
- E o capataz? Não podia ajudar? Ninguém aqui podia impedir aquele canalha de fazer uma coisa dessas?
- Sinhozinho, desculpe. O senhor não sabe o que é ser escravo. Ser escravo é o mesmo que nada. Somos tratados como animais. Quando o assunto é negro, ninguém se mete. E o capataz é gente do patrão. Ele é tão perverso quanto o Sr. Alberto. Tonico não presta de jeito nenhum. Ele também queria abusar de Rosa.
Adolph estava estarrecido. Não podia acreditar naquele tipo de conduta. Virou-se para Sam e Mark, falando pausadamente em português, para que eles entendessem:
- Rapazes, amanhã já temos alguém para mandar embora.
Pedro arregalou os olhos. Não esperava que Adolph tivesse aquela atitude. Por que o novo patrão iria mandá-lo embora? Só porque tinha sido sincero? Será que havia se enganado com os novos donos da fazenda? Ia falar algo, mas Adolph não deixou. Continuou a conversa pausada com Sam e Mark:
- Teremos de arrumar um novo capataz. Parece-me que esse Tonico é tão vil quanto Alberto.
Os rapazes, mesmo sem entender direito o que ele falava, menearam afirmativamente a cabeça. Pedro encheu-se de euforia. Quase abraçou Adolph. Realmente ele não havia se enganada. Seus novos patrões eram pessoas maravilhosas. Saiu correndo da casa-grande e foi se reunir com os escravos na senzala. Todos já haviam terminado o trabalho no cafezal. O burburinho era grande. Os escravos já sabiam que os novos patrões haviam acolhido Rosa e que, graças a eles, ela não morrera. Pedro chegou e contou sobre o soco que um dos novos patrões tinha dado em Alberto e sobre a demissão de Tonico. Os escravos duvidaram. Era muita notícia boa naquele inferno em que viviam. Resolveram, ainda que temerosos, fazer uma pequena festa para os novos patrões. Os mais velhos se reuniram no centro da senzala e todos juntos fizeram uma oração de agradecimento. Pai Juca, o mais velho de todos, não continha a emoção. Lágrimas escorriam sem cessar pela sua face enrugada pelo tempo. Os santos haviam ouvido suas preces. Estavam livres do mal. A casa-grande possuía três salas enormes, um escritório reservado e uma cozinha ricamente equipada. No canto da sala principal havia um extenso corredor, dando acesso a seis quartos, todos mobiliados em estilo colonial. Cortinas de veludo davam um toque europeu à decoração. Havia três quartos no lado esquerdo do corredor e mais três quartos do lado direito. No final do corredor, um grande vitral colorido evidenciava o requinte da construção. Adolph mais os dois casais escolheram os quartos da ala esquerda, pois era a ala que recebia os primeiros raios de sol. Os quartos da ala direita foram designados para os hóspedes, ou para os filhos que viessem com o tempo. Pedro, Jacira, Maria e Rosa dormiam em dois cômodos ao lado da cozinha. As varandas rodeavam o casarão, com lindos galhos de primaveras amarelas entrelaçados nas grades. Além de bancos de madeira azul, elas tinham redes coloridas espalhadas por toda a sua extensão. Os americanos adoraram as redes. Nunca tinham visto algo parecido. Correram feito moleques, onde cada um foi escolher a sua. Após brincarem na rede, tomaram um caldo preparado por Maria. Rosa sentia-se um pouco melhor. Outras escravas passaram algumas ervas em seu corpo e deram-lhe também um chá. Adolph, Anna, Sam, Emily e Mark estavam realmente muito cansados. Despediram-se. Adolph foi para o quarto no final do corredor. O quarto do meio ficou para Mark e Emily e o da ponta ficou para Sam e Anna. Não tiveram tempo de banhar-se. Suas forças haviam se exaurido devido ao turbilhão de emoções vividos desde que chegaram ao Rio. Cada qual caiu num sono profundo e reparador. O dia resolveu dar boas-vindas ao grupo americano. O sol logo cedo já se fazia presente. Não havia uma nuvem sequer no horizonte. Podia-se sentir o cheiro do orvalho que a noite de primavera havia deixado no vasto verde da fazenda. Adolph foi o último a acordar. Despertou com um forte mas agradável cheiro de café. Lavou-se e foi até a sala de refeições. Mark, Emily, Sam e Anna já estavam a postos, devorando todas as novidades brasileiras, colocadas caprichosamente sobre a mesa. Estavam acostumados com bacon, ovos, batatas. Foram surpreendidos por bolos de fubá e de chocolate, geléias de vários tipos, doce de leite, manteiga, pão salgado e pão doce, leite e, obviamente, o delicioso café. Adolph desatou a rir bem-humorado das expressões de deleite que seus amigos faziam.
- Não acredito que vocês estejam devorando todas essas coisas. Cadê o bacon? E os ovos?
Emily respondeu, soltando farelos de bolo de fubá pelos cantos da boca:
- Adolph, você é que não vai acreditar! Que bacon que nada... Venha comer este bolo de fubá com manteiga. Está quente e a manteiga fica derretendo toda nele. Junte este pedaço de bolo com manteiga a este delicioso café escuro que Maria nos fez. É um banquete dos deuses. Só queremos comida brasileira daqui para frente.
Todos concordaram com Emily. Adolph coçou a nuca e, num gesto gracioso, sentou-se com os amigos. Maria e Jacira, na ponta da sala, riam divertidas do comportamento dos novos patrões. Os tempos de paz haviam retornado àquela fazenda. Tão logo terminaram o café, chamaram Pedro para que os conduzisse pelas terras. Tanto os rapazes quanto as moças queriam saber qual o real tamanho da propriedade e qual seu estado. Pedro correu a selar cinco cavalos. Maria foi cuidar de Rosa, que havia amanhecido bem melhor. Jacira foi tratar do almoço. Antes de partir, pediram a presença de Tonico. Minutos depois ele apareceu no escritório. Um homem de estatura mediana, com pouco mais de quarenta anos, barba por fazer, a aparência bem rude. Tonico já sabia o motivo de ter sido chamado pelos novos patrões. Alguns escravos mais afoitos haviam comentado em alto e bom som que ele seria demitido. Não tiveram muito tempo de conversa. Sem a proteção de Alberto, Tonico sabia que seria bem difícil domar aquele bando de escravos. Sabia haver perdido a autoridade. Iria embora naquele dia mesmo, com medo de ser pego por algum escravo que quisesse acertar as contas. Ele já havia ceifado tantas vidas, por que não poderiam acabar com a dele? Tonico soubera havia algumas semanas que Alberto iria vender a fazenda. Alberto, enquanto acertava com Adolph a venda da propriedade, indicou o nome de Tonico para trabalhar numa fazenda de um conhecido seu, próxima de São Paulo. Em dez minutos, e em monossílabos, Adolph, Mark e Sam acertaram o pagamento de Tonico. Ele pegou as notas, contou-as. Percebeu que havia mais do que o esperado, mas resolveu não falar. Mark, percebendo o que ia à cabeça de Tonico, disse:
- Sabemos que você está levando mais do que merecia. Não somos burros e não erramos no cálculo. Agora vá, antes que eu perca a paciência com você.
Tonico colocou o dinheiro no bolso e saiu ligeiro. Não teve coragem de dizer adeus a ninguém. Embora amáveis, aqueles homens eram firmes. Efetuada a demissão de Tonico, partiram os casais mais Adolph rumo ao conhecimento da nova propriedade. Conforme andavam pelas plantações de café, os americanos eram saudados pelos escravos. A alegria e a satisfação de estarem lá trabalhando para aqueles novos patrões estavam estampadas no rosto de cada homem, de cada mulher, de cada criança. Não imaginavam que a fazenda fosse tão grande. Rodaram horas e mais horas. Não tinha fim. No alto de uma colina, resolveram parar. Desceram de seus cavalos.
- Diga-me, Adolph - perguntou Mark. É tanta terra assim? Você sabia da real extensão da propriedade?
Pedro respondeu antes de Adolph emitir qualquer resposta:
- Esta é uma das maiores fazendas do Rio de Janeiro. Até onde os olhos dos patrões puderem avistar daqui da colina, é tudo dos senhores. Não acaba mais.
- Mas é muita terra - respondeu Sam. - Como uma fazenda como esta não dá lucro? Qual o problema, se há tanta terra e tanto café?
- Bem - seguiu Pedro -, o sinhozinho Alberto era muito ruim com a gente. Ninguém trabalhava direito, não plantava direito. A gente fazia de propósito mesmo. Ele nunca gostou daqui e nunca soube administrar a fazenda. E, quanto mais negros morriam por causa das surras dele e do Tonico, mais a gente não trabalhava direito. E também...
- E também o quê? - perguntou Adolph.
- É que... Que... - Pedro pigarreou. Não sabia se devia falar, mas confiava nos patrões. Continuou: - É que a gente também fez uns trabalhos com o Pai Juca pra terra daqui secar pra sempre.
- Como assim? - indagou Sam. Eles não estavam entendendo o que Pedro tentava lhes dizer.
- A gente fez umas rezas e uns trabalhos com os nossos santos, e a terra começou a não dar mais pra plantar. Agora que tem patrão novo, a gente já começou a fazer trabalho pra terra voltar a dar de novo. E os santos vão ajudar, porque gostaram dos patrões.
- Pedro - perguntou Adolph -, como os santos vão ajudar? Que santos são esses?
- São espíritos que a gente recebe na senzala toda sexta-feira. São os nossos guias.
A palavra "espírito" fez com que todos se entreolhassem admirados. Teria algo a ver com o que eles estavam estudando?
Sam remexeu-se inquieto no selim, virou-se para Pedro e respondeu:
- Está bem, Pedro. Nós acreditamos em você. Não precisa se assustar. Nós entendemos um pouco disso e qualquer hora vamos conversar mais a respeito. Agora vamos voltar, está na hora do almoço. Amanhã vamos percorrer o resto. Queremos falar com os escravos e arrumar um novo capataz para a fazenda.
- Tem o Tonhão, patrão. É um negro bem forte. Ele nasceu aqui na fazenda. Conhece como ninguém toda esta plantação. E os escravos gostam muito dele. Mas acontece que ele também é escravo.
- E qual o problema? - perguntou Emily. Escravo não pode ser capataz? Existe hierarquia, por acaso?
Pedro admirou-se com o jeito de Emily falar. Era uma patroa diferente. Não era quieta e, ainda por cima, falava esquisito. Um português quase igual ao de escravo, todo errado, pensou. Tornou a falar, devagar, para que Emily entendesse:
- Sabe o que é, patroa? Acontece que capataz geralmente é homem branco, que ganha pra trabalhar. A gente não ganha nada. E não existe capataz negro.
Anna, dando de ombros, disse a Pedro:
- Pois bem, então agora teremos um capataz negro. Não me interessa o que as pessoas vão pensar. É problema delas. Eu quero um bom empregado para as terras, não me importa se ele é branco, amarelo ou verde. O que nos importa é que ele seja bom. Só isso.
Pedro, bem como os outros, ficou impressionado com as palavras de Anna. Bateram palmas para ela. E voltaram felizes para a casa-grande. Tonhão era realmente um negro bem alto e bem forte. Careca, com um pequeno cavanhaque, assemelhava-se mais a um mongol, não fosse sua cor de ébano. Simpatizaram rapidamente com ele. Seria o novo capataz, e teria mais dois escravos a ajudá-lo, visto que conheciam bem a fazenda. Eles não queriam salário, pois não sabiam o que fazer com o dinheiro. Não tinham noção do valor do dinheiro. O que interessava àquela gente era a comida, um tanto escassa, e poder descansar um dia na semana, inclusive até para poderem cultuar seus santos. Havia muito patrão na fazenda. Mas também havia muito trabalho a ser feito. Desta forma, eles se dividiram em grupos. Sam e Mark iriam cuidar da plantação. Adoravam a terra e queriam estar junto a Tonhão e os outros escravos, aperfeiçoando os processos de produção. Adolph e Emily se encarregariam de melhorar a vida dos escravos. Iriam cuidar da parte "social" da fazenda. Anna iria ajudar Adolph e Emily, mas somente de vez em quando. Preferia ficar ao lado de Maria e Jacira, aprendendo as receitas da culinária brasileira. Assim, cada qual teria uma função durante o dia. Reuniam-se no almoço para troca de idéias e depois voltavam ao trabalho. Por volta das cinco horas da tarde terminavam seus afazeres e voltavam para casa. Banhavam-se e jantavam. Depois se reuniam na varanda, cada qual em sua rede, e estudavam as questões espirituais até serem dominados pelo sono. Três meses após a chegada dos americanos, a fazenda Santa Carolina já ia de vento em popa. As chuvas de fim de ano ajudaram a semeadura. As plantações de café cresciam em ritmo acelerado. Os escravos agora estavam trabalhando com alegria, dedicação e amor, tanto a terra quanto aos novos patrões. Afeiçoaram-se especialmente por Adolph, Emily e Anna, pois eles faziam a parte social, cuidando das crianças doentes, melhorando a condição de vida dos escravos na senzala. Deram um bom pedaço de terra para que os escravos plantassem tudo aquilo de que necessitassem, desde frutas, verduras, legumes, até ervas. Rosa já estava completamente curada. Trabalhava com amor e dedicação, deixando os trabalhos mais leves nas mãos de Jacira. Não havia um dia em que ela não arrastasse os pesados móveis da casa, a fim de mantê-la sempre limpa. Pedro foi promovido e também trabalhava durante o dia com Tonhão, Sam e Mark. Os escravos, contentes, resolveram fazer uma festa, pouco antes do Natal, em homenagem aos novos patrões. Anna, Emily e Maria decidiram ir até a capital comprar panos para os escravos confeccionarem novas roupas para a festa. Levantaram bem cedo e foram para a capital. Naquele dia, Pedro, o único escravo que já havia ido até a cidade, deixou seu trabalho para levar as moças até a cidade. No trajeto, dentro da carruagem, corria divertida conversa entre as patroas e Maria. Maria, contente com a nova vida, longe dos maus tratos, puxou conversa com Anna:
- Sinhá, toda sexta-feira, em nossos rituais, acendemos velas pra vocês. É uma forma de agradecimento pelo que têm feito pela gente.
- Ora, Maria, não fazemos mais do que a nossa obrigação. Tudo na vida é troca. Eu sei que vocês vivem num regime duro, levam uma vida áspera. Mas a nossa religião faz crermos que tudo tem um motivo. De alguma maneira estamos aprendendo e absorvendo o que a vida nos dá.
Emily tornou, amável:
- Sabe, Maria, cada um de nós teve sua tragédia na vida. Eu perdi meus pais e depois perdi meu irmão numa guerra lá na América. Anna também perdeu a família numa nevasca...
- Desculpe, sinhá Emily. Nevasca?
- Nevasca, de neve.
- Não estou entendendo...
- Aqui não há neve, Maria. Lá na América, sim. São flocos de gelo que caem do céu, no inverno. É como se fosse uma chuva, mas, ao invés de cair água, cai neve.
Maria não conseguia imaginar o que Emily estava falando. Em sua cabeça não conseguia fazer idéia do que fosse neve. Limitou-se a responder:
- Ah, sei... Sei...
Anna e Emily caíram na risada.
- Desculpe, Maria - disse Anna. Você não pode entender uma coisa que nunca viu. O mesmo ocorreu conosco quando nos falaram da ausência de neve aqui no Brasil. Tivemos de vir até aqui e ver se era verdade mesmo.
Maria sentia-se muito bem ao lado das novas patroas. Atreveu-se a perguntar:
- E o sinhô Sam e o sinhô Mark? Ou o sinhozinho Adolph? Eles também passaram por tragédias?
Emily respondeu, dando um tom sério às suas palavras:
- Mark era xerife em nossa cidade, mas sofreu um acidente e ficou manco, o que o fez se aposentar precocemente. Sam perdeu os dois filhos e a primeira esposa de forma trágica, e Adolph, bem, Adolph perdeu o seu grande amor.
- Nossa, sinhazinha, quanta tragédia na vida de vocês. Quem vê nem pensa, não é verdade? Vocês são tão bons, tão amáveis. Será que é coisa de americano? Acredito que cada povo deve passar por aquilo que é necessário em seu aprendizado.
As palavras de Maria tocaram as patroas. Emily disse:
- Nossa, Maria, você também imprime um tom diferente às suas palavras. Às vezes até esqueço que é escrava. Acho você tão lúcida. Por que pergunta se tragédia é coisa de americano?
Maria esfregou as mãos uma na outra, aflita. Pensou ter falado demais. Meio sem graça, respondeu:
- Sabe, sinhá Emily, alguns anos atrás conheci um americano. Eu ainda não tinha sido vendida pra fazenda do sinhozinho Alberto. Faz muitos anos. Eu trabalhava numa pensão lá na capital.
Anna perguntou:
- E por que você não nos disse que já conhecia a cidade? Poderíamos ter deixado Pedro na fazenda.
- Não, sinhá, não poderiam. Quando eu vim da cidade pra cá, foi durante a noite, e há muito tempo. Portanto não faço idéia do caminho. E, além do mais, é sempre bom termos um homem conosco. Existem muitos almofadinhas lá na corte. Eles podem querer abusar das senhoras, porque vocês são muito diferentes do povo daqui, e também... São muito lindas.
Anna e Emily sorriram. Intimamente se orgulharam do elogio de Maria. Sentiam ser sincero. Emily, mais faladeira, continuou interessada na conversa da escrava:
- Então, Maria, conte-nos. Você conheceu um americano? Ele mora aqui ainda?
- Não, não mora mais. Ele se instalou na pensão em que eu trabalhava.
Simpatizei por ele logo de cara. Era um homem muito descrente. Mas, como digo, e disse sempre, quando a tragédia bate à nossa porta, não queremos saber se somos médicos, curandeiros ou benzedeiras. Qualquer coisa serve para salvar uma vida.
Anna estremeceu. Ela já tinha ouvido falar na palavra "benzedeira" antes. Mas quando? Estava delirando, pensou, nunca tinha ouvido falar em benzedeira. Emily interessou-se. Não contendo a ansiedade, perguntou:
- E aí, Maria, que tragédia foi essa que bateu à sua porta?
- Na minha porta, nenhuma. Na dele foi que bateu. Seu filho começou a ficar doente, doente. E olha que o americano era médico. Mas a febre levou muita gente aqui da cidade. Não adiantou nada, porque a vida já havia decretado que o filho dele tinha que partir. E nós, mesmo sendo ignorantes, sabemos que a vida, quando decreta, acontece. Porque ela ganha sempre.
- Como assim? - perguntou Emily.
- Ora, sinhá, morrer nada mais é do que ir para outro estado de vida. Portanto não existe morte. Só existe vida. Você vai estar sempre viva, não importa se na Terra ou no astral. Ou seja, a vida sempre vence, não tem jeito.
Os dizeres de Maria eram sábios para uma pessoa de seu nível. As mulheres continuaram interessadas na conversa.
- Diga mais, Maria - suplicou Anna.
- Bem, o filho dele tinha que partir de qualquer jeito. Sua hora havia chegado. Fizemos o possível, mas um dia o Pai Juca foi visitar o menino. Assim que ele chegou, viu os guias do garoto. Não deixaram a gente fazer muita coisa. Não era nosso direito alterar o destino do menino, a não ser que o próprio garoto quisesse. Mas só podia partir dele, de mais ninguém.
- E o pai da criança, Maria, voltou para a América? - inquiriu Anna.
- Voltou. Depois que o menino morreu, ele quis voltar pra América. É por isso que eu entendo o que os sinhozinhos dizem, mesmo com sotaque, porque aprendi bastante inglês com ele. Eu falava dos nossos santos, das curas, e ele ensinava a língua pra mim. Eu tenho muita saudade do doutorzinho Anderson...
Anna deu um salto no banco da carruagem e um grito de espanto e de dor. De espanto pelo nome que Maria havia pronunciado, e de dor pelo galo que ganhou batendo a cabeça no teto do coche. Emily, assustada com a reação de Anna, empalideceu. Maria, passando delicadamente a mão na cabeça de Anna, perguntou:
- Sinhá Anna, por que o susto? O que foi?
- Desculpe, Maria. Mas qual foi o nome que você disse? Foi Anderson?
- Isso mesmo, sinhá: Anderson. Um médico extraordinário. Um grande homem.
Anna abriu e fechou a boca, sem articular som algum. Como podia ser? Então Maria era a benzedeira que cuidou do filho de Anderson? Do Dr. Anderson, aquele médico que a ajudou a encarar uma nova forma de viver? Aquele que veio de Chicago a pedido do Dr. Lawrence? Então esta era Maria, a mulher que havia mudado a vida de Anderson? Era muita coincidência. Anna não conseguiu impedir a avalanche de perguntas em sua mente. Emily preocupou-se:
- O que foi, querida? O que aconteceu?
- Nada, Emily - respondeu Anna. E virando-se para Maria: Eu já conheço você, Maria, pelo menos de nome. Sou amiga do Dr. Anderson.
- É mesmo? A senhora o conhece?
Desta vez foi Emily quem deu um salto no banco da carruagem:
- De onde você conhece esse homem, Anna? Por acaso é a mesma pessoa? Você não está se confundindo?
- De jeito nenhum - respondeu Anna, mais aliviada. E continuou: Quando Sam e Brenda estavam doentes, o Dr. Lawrence chamou uma equipe de médicos lá de Chicago. Foi na noite em que Brenda morreu. Aliás, foi o Dr. Anderson quem a encontrou morta na cama. Antes de ir para o quarto dela, conversamos um pouco. Eu até fui dura com ele. Eu disse que ele não tinha autoridade para me falar sobre a morte das crianças, porque era muito fácil falar, pois ele não sabia o que era perder um filho...
Anna parou um pouco. Começou a chorar. Lembrou-se do quão áspera havia sido com o médico e o quanto admirava aquele homem. Prosseguiu:
- Então ele me disse que tinha morado no Brasil, que seu único filho tinha morrido aqui. E que ele tinha recebido muita força de uma mulher chamada Maria. Só pode ser você, Maria.
Foi à vez de a escrava dar um salto do banco. Era inacreditável! Lembrou-se de ter recebido uma carta de Anderson uns anos atrás, na qual ele relatava um caso em que parecia haver obsessores envolvidos. Logo em seguida Maria foi vendida a Alberto e não pôde responder à carta. Mas deveria ser outro caso. Ela mesma falou:
- Pode ser coincidência, dona Anna. Acho que o médico é o mesmo, até pensei que a história que me contaram, do sinhozinho Sam, fosse a mesma da carta que ele me escreveu.
E retomaram a conversa. Estavam as três fascinadas com a incrível coincidência. Estava lá, diante de Anna, a mesma mulher que havia ajudado o querido Anderson, anos atrás. Chegaram à cidade. Embora com algumas vielas sujas e malcheirosas, o Rio de Janeiro era uma cidade encantadora. Muitas árvores, casarões em estilo português, prédios de três e quatro andares, pessoas elegantes andando nas ruas. A corte de Dom Pedro II era acolhedora, animada. O Brasil aproximava-se do ano de 1870. O café tornara-se o maior produto de exportação. O Rio de Janeiro crescia a olhos vistos. A política estava lá, junto à corte. A cultura e a moda que vinham de Paris chegavam primeiro à Cidade Maravilhosa. Anna e Emily estavam apaixonadas pelo Rio. Caminharam pela Rua do Ouvidor, fizeram algumas compras pessoais e depois foram à loja que vendia os tecidos para a confecção das roupas dos escravos. Já haviam terminado de fazer as compras quando foram abordadas timidamente por Pedro:
- Dona Anna e dona Emily... Eu queria fazer um pedido...
Anna sorriu e perguntou:
- Pode fazer, Pedro. O que é? Quer comprar algo?
- Não, sinhá Anna, de jeito algum. Não quero nada, não, estou agradecido. Eu queria aproveitar e dar carona a um amigo da gente. Como é vizinho nosso, eu pensei...
- Pedro, que bobagem! Chame o seu amigo. Nós não vamos fazer objeção alguma. Ou vamos? - perguntou Anna virando-se para Emily e Maria.
Ao que de pronto responderam:
- De forma alguma.
- Está bom, sinhá Anna. Obrigado. Vou chamar meu amigo - disse Pedro. E saiu apressado.
As mulheres entraram com alguns pacotes e riam bem-humoradas do jeito sapeca de Pedro. O riso foi interrompido por uma voz doce, cadenciada, porém máscula:
- Obrigado, madames, por me darem esta carona.
Anna e Emily surpreenderam-se. Pensaram ser um escravo amigo de Pedro. Mas não era. Diante delas, postava-se um homem alto, muito bem vestido, cabelos naturalmente lisos e castanhos, olhos de um profundo azul e pele bronzeada. Simpático bigode adornava seus lábios superiores, vermelhos e carnudos. Era muito bonito. Ambas se cutucaram, segurando-se para não gritarem de prazer. Mas eram mulheres casadas. E, mesmo elas sendo um pouco diferentes das mulheres da época, não era de bom-tom demonstrarem admiração por um homem que mal conheciam. Maria soltava seus risinhos no canto da carruagem. Anna e Emily responderam juntas:
- Prazer.
- Desculpem-me, senhoras, não quero criar transtornos. Vou seguindo viagem sentado ao lado de Pedro. Sei que são casadas e não é apropriado andarem na companhia de desconhecidos. Com licença.
Sentou-se ao lado de Pedro, na parte externa da carruagem. Após sorrisos maliciosos, as mulheres voltaram a conversar animadamente:
- Que vizinho, hein, Anna? - exclamou Emily. Imagine Mark ou Sam vendo esse tipão? E sabendo que mora ao lado da gente? Vão ficar com ciúme. Maria, mais calma, disse-lhe:
- Qual nada, dona Emily. O vizinho fica à uma hora da sua fazenda. Não é tão perto assim.
Anna perguntou a Maria:
- Você conhece o moço? Ele é daqui mesmo?
- É, sim, dona Anna. Mas não sei direito o que ocorre lá na fazenda dele. Parece que ele é empregado.
- Empregado? Porque é empregado se tem escravo na fazenda? Ele não tem cara de capataz.
- Ora, dona Anna, não sei. A história desse moço é esquisita. Ele e mais outro moço, também bonitão, como as sinhás falam, são muito ricos e moram com uma madame nossa vizinha. Ela é do estrangeiro e é muito doente. Piorou depois que o marido morreu. Acho que é caso de obsessão...
- E você nunca ajudou. Por que, Maria? - perguntou Emily
- O patrão lá da outra fazenda também era muito mau. Ele era amigo do senhor Alberto. Não deixava a gente ir lá pra ajudar. Quem sabe, agora que tenho novos patrões, vocês permitam que eu possa visitar a madame.
- Mas é claro! - disse Anna. A qualquer momento, Maria. Vocês podem e devem dar auxílio. Se for possível, nós também gostaríamos de ajudar, porque estamos estudando algo que tem certa semelhança com os rituais de vocês. Pelo menos tanto os nossos estudos quanto a religião de vocês falam em espíritos. Talvez estejamos permeando terrenos semelhantes.
- Obrigada, sinhá Anna. Vocês são patrões maravilhosos.
Continuaram o caminho de volta à fazenda. Foram conversando outros assuntos.
Passadas algumas horas, Pedro parou a carruagem. O rapaz desceu, aproximou-se da porta e despediu-se das mulheres:
- Caras senhoras, muitíssimo obrigado. Que Deus lhes pague. Se não fosse por sua ajuda, não sei quando eu voltaria para a fazenda.
Emily ficou intrigada:
- Mas você me parece que tem dinheiro...
- Ah, sim, eu tenho. É que eu tinha algumas dívidas com um conhecido. Ele foi embora do país e quis acertar as contas de qualquer jeito. Não tive outra saída, senão ele seria capaz de me matar. Pegou até meu cavalo como parte de pagamento. Estava já indo à casa bancária quando avistei Pedro...
- Puxa - disse Emily. Que sujeito mais estúpido, não é verdade? Ele não podia esperar?
- Não - disse o moço. Não podia porque estava partindo num vapor rumo à Europa. Ele era meu vizinho.
Anna perguntou-lhe:
- Alberto, não é?
- A senhora o conhece? - perguntou o moço.
- Conhecer, mais ou menos. Nós compramos a fazenda dele.
- Não diga! Vocês compraram a fazenda de Alberto? Então somos vizinhos. É um prazer saber que temos duas vizinhas tão bonitas ao nosso lado. Seus pais também moram lá com vocês?
Emily e Anna sorriram graciosas. Emily respondeu ao moço:
- Nós não somos irmãs. Somos comadres, amigas, por certo. Nossos pais já morreram. Somos americanas. E, por sinal, muito bem casadas.
- Nossa! Americanas... Adoro os americanos.
- Que bom - respondeu Emily. Acredito então que nunca teremos problemas.
Todos caíram no riso. Anna fez a apresentação:
- Eu sou Anna, esta aqui é Emily e esta outra é Maria.
- Prazer. Meu nome é Augusto. Seus maridos são americanos também?
- Oh, sim - disse Anna. Eu sou casada com Sam, Emily é casada com Mark e temos mais um outro amigo, que é solteiro. Nós compramos a fazenda em sociedade. Somos cinco sócios, americanos de verdade e aventureiros.
Estavam todos descontraídos. Maria também gostou muito do rapaz. Após mais algumas palavras, despediram-se e marcaram um café para qualquer outro dia. Chegaram animadas na fazenda. Mark e Sam estavam preocupados, pois estava quase anoitecendo.
- Por que demoraram tanto? Estavam se divertindo na corte? - perguntou Sam, em tom de gracejo.
- Na corte não nos divertimos. O melhor foi dar carona para o príncipe - disse Anna, em sonoro sorriso.
- Que príncipe? - perguntou Mark, franzindo o cenho.
- Nosso vizinho, querido - respondeu Emily.
Antes que Mark falasse qualquer coisa, Emily tascou-lhe um beijo na boca. Logo em seguida disse:
- E não precisa ficar com ciúme. Você é o homem da minha vida, o amor da minha vida. Não há homem no mundo que me faça sentir tudo que sinto por você.
Anna, Maria e Sam bateram palmas. Sam respondeu, também brincando:
- Assim não vale. Uma declaração de amor dessas, Emily. Você está acostumando mal o garoto. Mas, pensando bem, tudo que você falou eu também penso em relação à minha Anna. - E, virando-se para ela: Não existe mulher no mundo que possa entrar no meu coração. Ele foi todinho loteado para você, meu amor.
E beijou apaixonadamente a esposa. Novas palmas, novas brincadeiras, mais risadas. O alvoroço causado na sala chamou a atenção de Adolph, que estava com Jacira e Rosa na cozinha.
- Ei, o que está havendo aqui? Que tanto falatório é esse, minha gente?
Mark respondeu ao amigo:
- É o amor, Adolph. É o amor. Quando você ama alguém, não importa se a pessoa amada vai ser cortejada, não importa se ela sai de casa. O que importa é o que você sente por essa pessoa. Amar do jeito que ela é. Isso é amor. E, além de tudo, é também respeito.
Adolph limitou-se a responder:
- Você tem razão, Mark. Amar é uma dádiva. Parabéns aos casais.
Num gesto de profunda irritação, retirou-se da sala, indo para a varanda. Percebendo que Mark vinha ao seu encontro na varanda, Adolph desceu rapidamente as escadas e foi caminhar um pouco. Pegou uma lamparina e foi fazendo seu caminho. Os amigos compreenderam o que se passava com ele. Mark mordeu os lábios e desejou que seu amigo encontrasse um grande amor, e, assim, todos viveriam felizes para sempre. Sentada numa encosta, na porta de sua gruta, Brenda estava impaciente. Aramis estava atrasado. Já fazia duas horas que ela estava esperando por ele. Pensou enraivecida: "Onde será que ele está? Por que Aramis demora tanto?" Brenda estava radicalmente mudada. Nesses últimos anos, aprendera uma série de truques com Aramis. Fez curso de manipulação mental, curso de criação de amebas destrutivas, curso de materialização e outras práticas maléficas. O Vale das Sombras, onde Brenda morava com Aramis, era assim, uma região do Umbral formada por espíritos vingativos e manipuladores. O desejo comum dos habitantes desse vale era a vingança. O ódio e a vingança eram porta de entrada para que um espírito por lá se afinizasse. Brenda estava recuperada. Não tinha mais dores na garganta. Usava roupas e maquiagem extravagantes. Sua beleza estava escondida por entre camadas e mais camadas de tintas pelo rosto. Aramis gostava disso. Quanto mais ela se produzia, mais ele a desejava. Donald, seu pai, já havia tentado uma aproximação, mas ela não queria mudar. Com a ajuda de Aramis, ela já havia recordado algumas vidas. Como ele era um excelente manipulador, mostrou a Brenda somente às partes em que ela havia sido maltratada por Sam, Anna, Mark, Emily e Adolph. Todos eles eram espíritos que atravessaram muitas encarnações juntos, ora no ódio, ora na vingança. De alguns séculos para cá, Sam, Anna, Mark, Emily e Adolph procuraram melhorar. Em suas últimas encarnações foram trilhando o caminho da luz. Nesta última encarnação haviam se comprometido com o estudo da vida espiritual. Planejavam difundir seus conhecimentos no Brasil, começando pelo Rio de Janeiro. Mesmo antes de reencarnar, sabiam dos resquícios fortes de ódio que Brenda trazia do passado. Mas, através do aprendizado e do esclarecimento dos espíritos, iriam superar as adversidades de outras vidas. A responsabilidade de Brenda, em sua última passagem na Terra, era receber e ajudar dois espíritos com os quais se comprometera muito no passado. Em vidas anteriores, Brenda havia sido morta por eles. Dinheiro, poder e ganância fizeram com que esses espíritos praticassem o assassinato. Agnes e Júlia, a par dessas vidas passadas, comprometeram-se a ajudar Brenda até onde o arbítrio lhes permitisse. Dessa forma, já tinham conseguido afastá-la de Aramis por mais de trezentos anos. Uma vez encarnada, Brenda, abençoada pelo véu do esquecimento, acolheria esses dois espíritos como filhos, ajudando-a, assim, a galgar seu degrau rumo à luz. Infelizmente, o grau de raiva acumulado em seu subconsciente fez com que Aramis a descobrisse e recomeçasse a atraí-la para o caminho das trevas. Tanto o ódio dele quanto o de Brenda comprometeram o programa de reencarnação dos três. Aramis e Brenda viveram paixões fortíssimas na Terra, formando uma simbiose de apego que criou uma colagem energética entre ambos. Mesmo com os crimes praticados, o plano superior intercedeu no sentido de dar uma chance ao casal. Ficariam alguns séculos reencarnando separadamente, a fim de que pudessem descobrir o real e verdadeiro sentimento do amor. Assim que conseguissem chegar a esse patamar, a vida os uniria, definitivamente juntos, na luz. Mas ambos escolheram a união do lado das trevas. E, desta vez, plano algum iria interceder a favor deles. Mais algumas horas, e Aramis chegou. Brenda estava soltando fogo pelas ventas.
- Como ousa me fazer esperar por tanto tempo? Quem você pensa que é? Nunca mais faça isso, ouviu?
Aramis dava suas gargalhadas. Adorava vê-la chegar aos extremos.
- Não fale assim, porque senão eu me apaixono, meu bem.
E agarrou-a violentamente. Deu-lhe um beijo demorado na boca e levou-a para o interior da gruta. Depois de amarem-se loucamente, Brenda, mais calma, perguntou:
- Insisto em saber: onde esteve esse tempo todo? Estava com alguma vagabunda aqui do vale?
- Brenda, você é a única mulher da minha vida. O meu fogo acende quando a vê. Você é e sempre será a única. Demorei porque tenho novidades.
Aramis falava sinistramente. Isso deixava Brenda excitada. Sabia que iriam praticar alguma maldade.
- Você encontrou os bastardos? É isso? Você encontrou Sam e sua corja?
- Encontrei. Sexta-feira vamos lá, acabar com o desgraçado. Vamos trazê-lo para cá, ele e aquele manco inútil.
Exultante, Brenda continuou:
- Não diga! Então conseguimos passar a perna naquelas duas víboras da luz? Conseguimos despistá-las? Vencemos! Nós vencemos, Aramis. Como amo você!
- Eu também a amo, Brenda. Muito.
E voltaram a se amar. Esqueceram-se temporariamente do plano de vingança contra Sam e Mark e entraram numa frenética relação de paixão e desejo. Adolph continuava caminhando pelo campo de café. Estava andando sem direção. Sentia-se angustiado. Por que não tinha o direito de ter seu amor a seu lado? Por que a vida não o estava ajudando? Por quê? E assim foi caminhando, fazendo uma série de perguntas a Deus, à vida, até aos espíritos. Estava desesperado. Ajoelhou-se no chão. Com a voz enrouquecida pela dor que ia a sua alma, disse em voz alta:
- Deus, eu sou uma pessoa honesta, estou procurando viver da melhor maneira possível. Tive a oportunidade de encontrar esta gente aqui sofrida e ajudá-los. Procuro fazer o melhor possível, porque sei que somos responsáveis por tudo àquilo que vivemos. Mas por que ficar sem meu amor? Por que me tirou Heléne? Por quê?
Adolph deixou-se cair de joelhos no chão e soluçava sem parar. Era muita dor no peito. O que a vida queria lhe mostrar com isso? Por que passar pela privação do amor? Ficou mais uns minutos esvaindo sua dor através de lágrimas e mais lágrimas. Foi surpreendido por um leve toque em suas costas. O susto foi tamanho, que Adolph deu um salto do chão, ficando logo em pé na defensiva. Com a pouca luz da lamparina não conseguia ver direito quem era.
- Quem é você? Venha para mais perto da luz. Não consigo enxergar.
Aos poucos a figura foi se aproximando. Cabelos brancos e ralos, barba por fazer. Um velho, negro, de estatura baixa, segurando-se numa bengala improvisada por um galho de laranjeira, lentamente veio caminhando ao encontro de Adolph. Soltando baforadas com o seu cigarro de palha, disse:
- Fio, num percisa fica assim, não. Num se assusta. Eu sô o Pai Juca.
Adolph se recompôs, foi-se acalmando. Aos poucos enxugou suas lágrimas e disse:
- Desculpe-me, senhor... ahn... Pai Juca. Eu sou...
E foi interrompido pela voz mansa e firme do velho negro:
- Ocê é o Adolph, né não, meu fio?
- Isso mesmo. Eu sou Adolph.
O velho continuava com a fala mansa:
- Num adianta chora, meu fio. A vida ta sempre do nosso lado. E ela treina a gente, pra sabe se aprendemo a lição...
- De que o senhor está falando?
- Do seu coração apertado. Agora está dando valor ao amor, não é, meu filho?
A voz do velho transformou-se. Adolph, confuso e emocionado, sem perceber direito, limitou-se a dizer:
- Eu sempre dei valor ao amor. Sempre. Eu amei muito uma mulher no passado, e Deus tirou-a de mim. Como não ficar com o coração apertado?
Pai Jucá continuava:
- Deus tirou porque você já a conquistou e a deixou em outras vidas, trocando-a pelas orgias, pela vida desregrada. Será que agora está maduro o suficiente para não se deixar levar pelas garras da paixão e da luxúria, e dedicar-se definitivamente ao amor puro e incondicional, ao amor verdadeiro, real?
Adolph começou a chorar novamente. As palavras de Pai Juca tocavam-lhe fundo. Pai Juca, por sua vez, continuava com a fala mansa, embora modificada:
- As circunstâncias pelas quais você reencontrou o seu amor já eram um teste. Você foi conhecê-la justamente num prostíbulo...
Adolph cobriu-se de rubor.
- Aquilo não era prostíbulo.
- Tudo bem, Adolph. Dê o nome que quiser. Mas o local estava repleto de baixas energias, mesmo sendo agradável aos olhos da carne. Você passou no primeiro teste. E logo em seguida veio o último, para ver se você havia tomado jeito, se você havia deixado alguns problemas do passado de lado. E você conseguiu. Você mudou. E a vida vai lhe presentear, devido ao seu esforço no bem.
Pai Juca, logo que iniciou a conversa, foi envolvido por Agnes. Estava na hora de Adolph acertar sua vida afetiva. E Agnes, através de Pai Juca, iria orientá-lo para o acerto definitivo de seu coração. Continuou:
- Adolph, eu o acompanho há muito tempo. Você é uma pessoa sensível, equilibrada, lúcida. É um homem maravilhoso. Acredito que vá conseguir realizar o seu intento. Com o coração calmo e estudando cada vez mais as questões do espírito, logo você terá anos de glórias e alegrias.
Adolph estava impressionado. Só agora se dava conta de que o velho estava tomado por alguma força, pois seu português tornara-se impecável de uma hora para outra. E todas aquelas palavras bombardeavam sua alma. Sentia que essa era sua verdade. Ele não tinha mais forças emocionais para continuar a conversa. Sem falar, foi até Pai Juca e deu-lhe um forte abraço. Tomou-lhe as mãos e as beijou.
- Vai com Deus, meu fio. Cê vai acha a moça, logo, logo...
Cada um foi para uma direção no meio do cafezal. Pai Juca voltou para sua choupana e Adolph, mais tranqüilo, voltou para a casa-grande. Emily estava na varanda. Ao ver o amigo regressar a casa, atenciosamente o indagou:
- Adolph, meu querido. Estávamos preocupados com você. Que bom que chegou. Vá se lavar e vou lhe servir um excelente caldo que Anna e Jacira fizeram.
- Obrigado, Emily. Confesso que vocês são mesmo a minha família. Amo todos vocês.
Sem comentar sobre o encontro com Pai Juca, Adolph foi até seu quarto. Lavou-se, mas os pensamentos fervilhavam em sua mente. As palavras de Pai Juca ecoavam em sua cabeça, sem cessar. Terminou de se lavar e avisou aos amigos que não iria jantar. Estava muito cansado. Queria ficar um pouco sozinho. Deitou-se na cama e, imerso nos pensamentos da conversa com Pai Juca, adormeceu. Na sala de jantar, Sam, Anna, Mark e Emily estavam preocupados com o amigo. Mark dizia:
- Pois bem. Eu sempre achei que Adolph gostasse de Emily. Quando ele me disse que não a amava como mulher, fiquei muito feliz. E passei a gostar muito dele, de sua sinceridade. Será que a vida não vai presenteá-lo com um grande amor?
Emily interrompeu-o:
- Se somos responsáveis por nossos atos, Adolph deve ter algum padrão de pensamento que o deixe nesse estado. Acredito que, tão logo ele se liberte de tais condicionamentos, a vida vai lhe trazer uma linda esposa.
Todos concordaram. Gostavam muito de Adolph. Continuaram a conversar agradavelmente durante o resto do jantar. Depois, reuniram-se na sala de estar e ficaram estudando alguns livros sobre mentalismo e espiritualidade oriental que Adolph havia encomendado da Europa. Essa regra de estudo eles não quebravam. Ao contrário. Antes, estudavam uma vez por semana. Agora, já estavam estudando três vezes por semana. Sentiam que deveriam estar preparados, com muito equilíbrio, para algo de muita responsabilidade. E os estudos não os cansavam, de forma alguma. Cada vez mais, os rapazes e as moças estudavam com afinco e amor. Logo Pedro, Jacira, Rosa e Maria estavam fazendo parte do grupo de estudos. De vez em quando requisitavam a presença de Pai Juca para discutirem algumas passagens que não entendiam do "Livro dos Espíritos". Pai Juca, com sua sabedoria incomum, destrinchava-lhes os textos mais complexos. Em pouco tempo, Pai Juca ensinava-lhes muito mais do que qualquer livro jamais lhes pudesse oferecer. Chegou o dia da festa. Os patrões deram folga aos escravos para que eles pudessem ajeitar a senzala, preparar o resto das iguarias e se arrumar prontamente para o evento, que se desenrolaria logo mais à noite. Na casa-grande, o corre-corre também era intenso. Maria, Rosa e Jacira preparavam os últimos quitutes. Sam, Mark e Adolph ajeitaram as bandeirinhas pelo campo ao redor da senzala. Emily e Anna ficaram se arrumando a manhã toda. Além de fazer bonito aos maridos, queriam também impressionar os vizinhos. Emily e Anna ficaram tão encantadas com Augusto que resolveram convidá-lo para a festa dos escravos. Estenderam o convite para quem mais estivesse morando lá com ele, inclusive a madame adoecida. Ao fim daquela tarde de dezembro, após uma rápida chuva de verão, iniciou-se a festa. Os escravos estavam numa alegria só. Os poucos que não quiseram mais continuar na fazenda foram embora assim que os americanos a compraram. As pessoas que lá permaneceram estavam felizes, dentro de suas possibilidades. Armaram uma enorme fogueira no pátio central. Os escravos mostraram aos patrões um pouco de suas raízes. Atabaques, cantos, danças. Queriam mostrar aos novos proprietários um pouco de sua religiosidade. E também, através daquele culto, demonstrar o agradecimento por uma vida melhor. Muita carne, muita aguardente. Sam e Mark não estavam acostumados a beber. A pinga alterou-lhes a consciência. No meio da festa, já estavam dançando alegremente com algumas escravas e tocando atabaques. Adolph não era dado à bebida. Estava bem sóbrio. Tanto ele quanto Emily e Anna estavam encantados com a riqueza cultural daquela gente. Como podiam ser considerados seres inferiores se eles possuíam uma cultura e uma religiosidade tão ricas? Onde estava o erro? Anna disse:
- É inacreditável. São tachados de seres inferiores. E olhe o que estão nos mostrando.
- Concordo - falou Emily. É por isso que iremos mudar muita coisa por aqui. Estas pessoas precisam de roupas decentes, de casa decente, de higiene, de dignidade para viver.
- Eu também concordo - completou Adolph. Eu e os rapazes estamos pensando em fazer uma casa para cada família. Assim criaríamos uma vila, com casas, um pequeno armazém, uma escola...
Anna reforçou:
- Isso mesmo. E também poderíamos montar um galpão para colocarmos em prática o que estudamos. O que me diz?
- Ótima idéia, Anna. Como não tinha pensado nisso antes? Temos tanto espaço... Podemos montar um grande galpão para atendermos pessoas com problemas emocionais e espirituais. Que grande idéia!
Animadamente continuaram a conversa. Sam, alterado pela pinga, começou a dançar com uma negrinha, inocentemente. Ele realmente queria se divertir, no bom sentido. Não havia maldade em sua atitude. Mas não foi isso que Anna entendeu. Ao ver o marido dançando alegremente com uma escrava, mais moça que ela e muito bonita, sentiu o sangue cobrir-lhe o rosto. Emily e Adolph tentaram acalmá-la, em vão. Toda a insegurança de Anna reapareceu. Ela havia reformulado muita coisa, mas sua insegurança em relação a Sam deixava-a muito vulnerável. Era-lhe difícil manter-se segura e firme. Suas mãos ficaram frias, os lábios começaram a tremer. Uma raiva surda brotou dentro de seu peito. Anna sentiu um forte torpor e surpreendeu Adolph e Emily com um grito grave e seco:
- Calem a boca! Não agüento mais vocês dois falando!
Emily e Adolph não sabiam o que fazer. Anna estava transfigurada. Jogou seu copo de pinga na cara de Adolph e saiu colérica na direção de Sam.
- Maldito! Maldito! Você não presta! Eu odeio você, Sam. Odeio! Esta noite vamos acertar as contas!
Uma grave e sarcástica gargalhada saía da boca de Anna. Avançou em seguida para seu lado:
- Sua negra imunda! Como se atreve a dançar com o meu marido? Não vê qual é o seu lugar? Safada!
E esbofeteou a negrinha. Bateu tanto que logo a roupa branca da escrava estava repleta de sangue. Sam estava aturdido. Aquilo não podia ser real. Beliscou-se no intuito de verificar se era realidade ou sonho. Anna não podia estar fazendo aquilo. Subitamente Pai Juca levantou a mão direita. O som dos atabaques cessou. Os negros, assustados com a atitude de Anna, estavam dispostos a correr para a senzala. Para eles, a festa havia acabado. Com os olhos arregalados, Emily e Adolph olhavam para Mark, assustados com a reação da amiga. Pai Juca fez um sinal. Os negros, assustados, não responderam. Ele falou algo numa língua africana. Prontamente todos formaram um enorme círculo ao redor de Anna e Sam. Pai Juca chamou Emily, Mark e Adolph para o centro da roda. Pediu que os americanos fizessem um pequeno círculo ao redor de Anna. Os negros começaram a orar em sua língua de origem. Após alguns instantes, Pai Juca foi ao chão. Os negros continuaram em suas orações. Maria chegou próximo a Anna e começou a desobsessão.
- Minha filha, você não tem o direito de fazer isso.
Anna, com a voz pastosa, rouca, dizia:
- Outra negra imunda... Cale a boca! O que quer?
- Não, minha filha, eu é que pergunto: o que quer?
Silêncio total. Anna nada falava. Maria continuou:
- Você não pode simplesmente chegar e se aproximar das pessoas, usando o corpo delas para serem um veículo seu.
Os americanos concentravam-se ao máximo na oração. Perceberam que Anna estava incorporada. Anna interrompeu Maria:
- Eu faço o que quiser, entendeu? Estou do lado dela há dias, mas não conseguia aproximar-me mais. Agora a pouco a pamonha facilitou. A insegurança dela permitiu a minha aproximação. Ela é a responsável, não eu. Se ela estivesse firme, não tivesse ciúme, eu não conseguiria misturar-me em suas energias. Teria de me apresentar de outra forma.
E gargalhava sem parar. Maria, por sua vez, continuava tranqüila e firme:
- Ela facilitou, mas agora nós estamos complicando. Olhe o tamanho da turma aqui. Olhe os nossos guias ao seu redor. Se você voltar a mexer com este pessoal aqui, vai amargar pelo resto da eternidade.
O corpo de Anna sacudia-se violentamente, de um lado para o outro. Sua fisionomia foi se alterando. Começou a sentir medo.
- Aramis! Aramis! Cadê você? Quem são estas pessoas aqui? O que querem?
Maria explicava:
- Não querem nada, a não ser paz. Aramis já foi pego. Agora a vida lhe deu um basta. Ele pensou que podia tripudiar sobre a vida, mas esqueceu que ela é soberana e vence sempre. O caso dele agora só será resolvido com tratamento de choque. E, se você voltar a perturbar meus amigos, estas entidades ao seu redor vão lhe dar o troco devido.
- Como se atreve? Isso é chantagem. Você é igual àquela víbora da luz. Esta vagabunda aqui roubou o meu marido.
Maria continuava firme:
- Ninguém é de ninguém. Ela não roubou o seu marido. Eles já compartilham desse amor há muito tempo. Não misture amor com orgulho ferido. Você está deixando a dor do ciúme ferir o seu coração.
- Não é verdade! Não é verdade! Ele é meu e assim será até o dia em que eu não mais o quiser. Sempre foi assim com Sam, e agora não vou mudar.
- Você até que poderia infernizar a vida deles, como vem fazendo. Mas os graves delitos que cometeu, minha filha, tiram-lhe o direito de pleitear qualquer coisa. Você matou e se matou, cometeu dois crimes, cujas conseqüências lhe negam o direito de interferir na vida dos outros desta maneira.
Anna suava frio. Tentou agarrar Maria, mas Pai Juca não deixou. Nervosa e chorosa, Anna gritava:
- Isso é mentira! Eu não fiz nada! Foi Aramis. Ele me obrigou. Foi ele.
- Ninguém obriga ninguém a fazer o que não quer. Se Aramis a influenciou, é porque você permitiu. O mesmo ocorre com Anna. Ela não é uma vítima da obsessão. Como ela dá mais valor ao mundo do que a si mesma, trouxe você para perto. Mesmo que Anna aja sob a sua influência, isso não impede que nós a responsabilizemos por ter batido naquela moça ali. E agora chegou a hora de você encarar os seus atos.
Maria tocou levemente a testa de Anna. Os gritos que se sucederam foram horríveis. O espírito que dominara Anna via as imagens que se formavam à sua frente, como uma tela de cinema, mostrando os crimes que ele havia praticado. Não agüentando o teor das barbaridades, o espírito desgrudou-se violentamente de Anna. Maria e Pai Juca tentaram segurá-la, mas em vão. Anna foi direto ao chão, e por lá permaneceu, desmaiada, devido à perda de energia vital. Três velhas negras saíram do círculo e começaram a dar passes em Anna. Emily, Mark, Sam e Adolph estavam perplexos. Anna fora possuída. Mas por quem? O que estava acontecendo? Pai Juca fez mais um sinal com a mão direita. Os escravos fizeram soar seus tambores. Minutos depois de tocarem ritmada melodia, pararam. Pai Juca fez outro sinal com os dedos. Os escravos abriram mais ainda o círculo. Sam, Anna, Mark, Emily e Adolph foram colocados um ao lado do outro. Pai Juca encostou a mão na testa de Maria. Seu corpo deu leve estremecida. Ela foi em direção aos americanos. Sua voz estava alterada, com modulação cadenciada e firme:
- Queridos amigos, estou lhes falando pela última vez. Minha parte com vocês se encerra hoje.
Os jovens ainda não estavam entendendo nada, mas Anna, já recuperada, percebeu quem estava falando através de Maria.
- Agnes! Você está aqui? Por que não aparece e fala? Por que precisa usar o corpo de Maria?
- Porque só você e Adolph têm a capacidade de ver e ouvir, Anna. O que tenho a dizer também importa a Sam, Emily e Mark.
Agnes fez uma pausa. O ambiente já estava equilibrado novamente. Com a ajuda dos guias dos escravos, Agnes conseguira limpar o ambiente das energias pesadas de Brenda e Aramis. Continuou:
- Vocês todos estão ligados há muitas vidas. São espíritos que lutaram, choraram, magoaram e amaram. Hoje estão mais próximos da luz, visto que estão praticando o bem. Só quem pratica o bem tem mérito para subir. E o bem de que falo é o bem a si próprio, é o bem da alma, o bem-estar. É sentir que vocês são tão perfeitos quanto Deus, portanto não há imperfeições.
- Antes de nascerem, vocês assistiram juntos a algumas cenas marcantes de suas últimas vidas. O arrependimento pelo que fizeram foi tão grande que decidiram desta vez não lutar mais por dinheiro ou por poder. Aceitaram usar o dinheiro e o poder em benefício da melhoria de suas vidas e da vida de outras pessoas.
Tomaram por missão espalhar pelo Brasil os conceitos espiritualistas.
- Estão conseguindo, mas precisam ainda de muito trabalho interior. Vocês não podem baixar o padrão de pensamento. Vejam como é fácil alguém, seja encarnado ou desencarnado, interferir em suas vidas. Mas tudo é responsabilidade de cada um. Cabeça boa, energia boa. Cabeça ruim, energia pesada.
O grupo chorava sem parar. Estavam sensíveis demais. Seus mentores, conforme Agnes ia falando, faziam-nos recordar algumas cenas do passado. Começavam a entender muita coisa. Anna, em lágrimas, perguntou:
- Mas, Agnes, diga-me: quem estava do meu lado? Quem era?
- Brenda entrou no seu campo, Anna.
Sam deu um salto do chão. Estava pálido. O nome de Brenda trouxe-lhe calafrios.
- Você disse Brenda? - perguntou Sam, assustadíssimo.
- Sim, Brenda - respondeu Agnes. Ela já está atrás de você e de Anna há muito tempo. Também estava desgostosa com Mark. Vocês três estão presos a laços de ódio e vingança por vidas e mais vidas.
Mark, que ouvira seu nome, também assustado perguntou:
- Mas como eu vou fazer? Eu não quero mais ficar ligado a ela. Eu não quero mais o ódio.
Agnes, através de Maria, continuou tranqüila:
- Mude a sua postura. Mude o seu jeito de ser, fique no bem, confie na vida. Nada pode afetar-lhe. Mas o tempo que tenho agora é para esclarecer alguns pontos de suas vidas.
- Como eu estava dizendo, venho acompanhando todos por muito tempo. Estou ligada a vocês por laços de muito amor. Traçamos um plano em que tudo deveria correr com o aval dos níveis superiores. Brenda iria morrer jovem, assim como as crianças, naquele rigoroso inverno. O trunfo de Brenda seria a geração dos dois espíritos que tanto ela quanto você, Sam, muito odiavam. Assim que as crianças partissem, Brenda sofreria de uma doença específica e voltaria triunfante para o plano astral. Para isso, pedimos a ajuda de nosso instrutor aqui deste lado,
Apolônio, para que afastasse Aramis, um cúmplice de atos maldosos em muitas vidas de Brenda.
- Em sua última encarnação, há muitos anos, vocês cinco foram filhos de Brenda. Aqui, nesta mesma fazenda, ela abrigava também dois irmãos. Quando enviuvou, Brenda deveria repartir a herança com vocês. Levada pela ganância dos irmãos, ela envenenou os filhos, ainda adolescentes. Mas o destino lhe seria mais cruel.
Os dois irmãos, inimigos já de outras vidas, envenenaram-na e ficaram com toda a fortuna. Vocês se recuperaram bem quando chegaram no plano astral. Perdoaram Brenda. Mas a encrenca ficou entre ela e os irmãos. Após morrer, ela os perseguiu, obsediando-os por longos anos. Como eles eram muito violentos com os escravos, acabaram sendo mortos pelos mesmos. Ao saírem do corpo, começaram a correr da irmã. E, para acabar com a obsessão no astral, Brenda, depois de muito relutar, acabou aceitando ser esposa de Sam e gerar os dois irmãos assassinos como filhos.
- O medo inconsciente deles de serem atacados por Brenda era muito forte, a ponto de terem provocado nela dois abortos. Ao nascerem, o ódio de Brenda foi voltando aos poucos. Infelizmente, Aramis foi atraído por esse ódio e facilitou o atentado às crianças.
Sam e os amigos estavam perplexos. As lágrimas banhavam suas faces. Agora Mark entendia o fato de não haver um único suspeito na época do crime. A própria mãe havia matado os filhos. Mark abraçou calorosamente o amigo. Enfim haviam descoberto o assassino dos bebês. Ao mesmo tempo em que fechavam um buraco na consciência, abriam um buraco na alma, por saberem o autor da tragédia. Agnes parou por um tempo. Sam, soluçando, abraçado junto a Anna gritava:
- Por quê? Por que isso comigo, Senhor? Que prova mais dura! Casar-me com uma assassina? Como pude fazer isso?
Agnes voltou a falar:
- Sam, tudo foi previamente acertado. As mortes iriam ocorrer, de qualquer maneira. A lição consistia em manter o equilíbrio, não importando a tarefa a que fossem submetidos. E vocês todos triunfaram. Estão aqui, hoje, cuidando da mesma fazenda que foi de vocês em outros tempos. Estão retomando o que lhes era de direito.
Mark chegou perto de Agnes:
- Mas há duas coisas que eu gostaria de entender: os meus sonhos com esta casa e o porquê de Brenda ter dado cabo da própria vida.
Mark esqueceu-se de que ninguém tinha ciência do suicídio de Brenda. Somente ele e o Dr. Lawrence sabiam da verdade. Sam imediatamente parou de chorar. Ele não acreditou no que Mark acabara de falar:
- O que você está falando? Que Brenda se matou? Isso é verdade, Mark? Não foi parada cardíaca?
Essa pergunta foi feita por Adolph, Emily e Anna ao mesmo tempo. Todos estavam incrédulos com o que estavam escutando. Mark calou-se. Não conseguia falar. Voltou a chorar. Agnes solicitou a ajuda dos guias dos escravos, que começaram a cantarolar e dar passes nos personagens envolvidos pelas tramas do passado. Era bom saberem de toda a verdade, mas era-lhes muito duro aceitá-la toda de uma vez. Agnes prosseguiu:
- Isso foi outro ato desagradável, Sam. Na outra vida, ela atormentou os dois irmãos até a morte. Agora, na última vida, foi o contrário. Eles resolveram atormentar Brenda até o momento em que ela ficasse louca. Aramis, para impedir que ela se afastasse dele caso morresse louca, sugeriu mentalmente o suicídio. Foram meses obsediando Brenda, sugerindo-lhe a morte. E assim foi feito. Tão logo Brenda desencarnou, Aramis prendeu os dois espíritos que a atormentavam. Hoje, esses espíritos capturados estão tão concentrados em formas-pensamentos negativas e destrutivas que seus perispíritos ficaram deformados.
Mark interrompeu-a. Eram muitas informações. Mas ainda queria a resposta do sonho. Abraçado a Sam, que copiosamente chorava em seu peito, perguntou:
- E o porquê dos sonhos que eu tinha com a casa?
Agnes pacientemente continuou suas explicações:
- Você sonhava com a casa porque era louco por ela. Você era o filho mais velho e ajudou o seu pai a construí-la. A casa era-lhe muito especial.
Agnes deu leve suspiro. E então prosseguiu desvendando todos os mistérios que rodeavam a vida daqueles espíritos:
- Aramis e Brenda vieram aqui hoje para se vingar de você, Mark, de Sam e de Anna. Eles queriam a separação de Sam e Anna. Gerado o desequilíbrio na festa, iriam influenciar alguns escravos bêbados para atacarem Emily. Você iria tentar defendê-la e morreria numa sangrenta e violenta luta. Eu disse que isso iria ocorrer, mas não vai mais.
Adolph, um pouco mais calmo pelo impacto de tantas informações, perguntou a Agnes:
- Mas, Agnes, isso não é interferir no arbítrio das pessoas? Como podemos interferir no processo de desencarne de Mark? Já não estava escrito?
- Sim, estava escrito. Tudo aqui no astral já está escrito. Como os espíritos vão reencarnar, como vão viver, como vão desencarnar. Acontece que esse é um livro que cada um de nós possui, sendo escrito a lápis. Usando uma borracha, podemos apagar e reescrever nossas vidas. A borracha equivale à atitude interior de cada um. Dependendo da sua postura diante dos fatos, dos pensamentos, enfim, das situações na sua vida, você pode alterar esse livro a todo e qualquer instante. Lembrem-se de que todos vocês, nesta vida, sofreram tragédias. Perderam seus familiares. Foi uma maneira de a vida mostrar-lhes o preço que pagamos pelo apego. Vocês já tinham condições de melhorar. Mas o sofrimento foi necessário para despertar-lhes a consciência. Apego é falta de confiança na vida. Para afastá-los desse vício, a vida foi tirando de cada um de vocês tudo que mais amavam, mostrando-lhes a doação, permitindo que cada um aqui pudesse crescer completamente livre, de acordo com a sua necessidade interior. Acredito que por enquanto seja isso.
- Não - gritou Sam. Você não pode ir embora assim. Como vamos fazer para que Brenda não interfira mais em nossas vidas?
- Atitude - disse Agnes. É a única ferramenta que vocês têm para afastar um espírito que venha a lhes causar problemas. Garanto que vocês estão melhorando muito o padrão no pensamento positivo. Aliás, foi essa atitude que permitiu nossa interferência esta noite. Aramis e Brenda já foram levados.
- Para onde? - perguntou Anna.
- Para um local de refazimento. Eles não têm o direito de atrapalhar a vida dos outros, embora os outros é que permitam tal interferência. Mas chegou a hora de Brenda e Aramis ficarem isolados do mundo. Mais adiante, num futuro não muito distante, vocês estarão todos reunidos, só que através de laços de amor. Irão perdoar Brenda e Aramis, devido ao grau de lucidez que vêm alcançando.
- Disso eu duvido - disse Emily. Por mais que mudemos nossa postura, não acredito que possamos voltar a perdoá-los. Embora nós tenhamos atraído tudo isso, hoje, para mim, fica difícil tomar essa decisão.
- Pois é - continuou Agnes. Você disse certo, Emily: hoje. Mas e quanto ao amanhã? Agora eu é que duvido que amanhã vocês não vão estar se amando. Vamos aguardar. Eu quero desejar-lhes muito sucesso. Logo, muitos amigos estarão reencarnando aqui na fazenda. Seus filhos irão continuar a obra que vocês estão iniciando. Fiquem com a luz, prestem sempre atenção às suas atitudes. Não liguem para o mundo externo, mas sim para o mundo interior de cada um de vocês. Continuem em seus estudos, conhecendo as leis universais, o encontro com Deus e a magnitude da vida.
Agnes afastou-se de Maria. Logo esta abriu os olhos, seu corpo deu uma leve estremecida e assim voltou a seu estado natural. Ela olhou para Pai Juca e ele lhe deu uma piscada maliciosa. Ela entendeu a mensagem. Os escravos voltaram a tocar seus tambores, a cantar e a dançar. Os jovens americanos se abraçaram emocionados e, com lágrimas nos olhos, permaneceram em silêncio. Intimamente agradeceram a Deus por terem tido o mérito de saberem a verdade sobre suas vidas. O sol já ia alto e o dia estava quente. A festa terminou em plena madrugada. Aquele dia seria de descanso tanto para os escravos quanto para os patrões. A fazenda Santa Carolina estava envolta no mais profundo silêncio. Os que acordaram mais cedo se esticavam em redes, embriagados ainda pela mistura de cachaça e vinho. Adolph e Emily já haviam acordado. Maria serviu-lhes um bule de café bem forte, fumegante, pois ambos sentiam leve tontura causada pelo excesso de bebida. Sentados à grande mesa da sala de jantar, discursavam, ainda emocionados, sobre a mensagem recebida de Agnes na noite anterior.
- Sabe, Emily, eu estive pensado muito nestas poucas horas de sono a que tivemos direito e cheguei a uma conclusão.
- E qual é, Adolph? - inquiriu Emily, com a boca cheia de rosquinhas de goiaba.
- Antes de começar, queria dizer que a senhora já perdeu os bons hábitos. Está falando de boca cheia.
- Mas, Adolph, somos tão íntimos que não vejo a mínima necessidade de ficarmos presos em etiqueta. Se dependesse de mim, Maria, Rosa, Pedro e Jacira fariam as refeições conosco. Essas regras sociais só servem para nos separar.
- Concordo com você. Percebo que a educação é fator preponderante para vivermos bem. Mas a pirâmide social é calçada em valores ligados à vaidade humana. Só têm valor ou mais educação aqueles que estão no topo. E sabemos que às vezes os mais humildes são os mais sábios. Ou seja, dinheiro e poder não têm nada a ver com conduta, com postura.
Ele tomou um gole de café. Enquanto passava a faca com manteiga sobre um pedaço de bolo de fubá, continuou:
- Ontem foi um dia importante. Aprendi muito com a história de Aramis e Brenda. Fiquei preocupado a princípio, mas descobri que sempre estamos amparados, seja por uma força maior, seja por um espírito amigo. Deus está sempre do nosso lado.
- Isso é verdade. Deus está sempre do nosso lado. Se eu não perdesse minha família, não teria saído jamais de Little Flower. Teria ficado lá, amargurando cada minuto desta preciosa vida com lamentações, xingando Deus por ter me arrancado à família. E veja: Ele me deu uma outra linda família, que são vocês, e um lugar maravilhoso para eu reconstruir a minha vida, ao lado do meu grande amor.
- Embora Deus tudo faça, sabemos que Ele só faz através de nós, Emily. Se você não escolhesse mudar, confrontar os seus medos, as suas dores, realmente estaria vivendo lá em Little Flower. Mas não se esqueça de que você vem mudando, todos nós estamos mudando a cada segundo, sempre. E, graças aos nossos estudos, temos evoluído muito. Nada como arrancar o véu da ignorância através do estudo, não é mesmo?
- Ah, sim. O estudo é primordial. Sem dedicação, sem a disciplina que impusemos para nossos estudos, não teríamos feito grandes mudanças em nossas vidas.
- Pois é, Emily. O conhecimento fortalece a alma humana. Qualquer tipo de conhecimento.
- Por também pensarmos assim, eu e Mark estávamos cogitando criar aqui na fazenda uma escola para os escravos. O que você acha?
- Fantástico! - respondeu ele, entusiasmado. Como já estamos criando uma vila para os escravos, com casas individuais para cada família e um pequeno comércio para terem o que comprar, acredito que a escola vai ser muito importante para o desenvolvimento e progresso dessa gente. Eles precisam do nosso apoio. E nós vamos fazer isso.
- Sim - concordou Emily, meneando a cabeça. - Mas quem vai dar aulas para as crianças? Você é o único "brasileiro" da nossa turma, mas também tem todo o tempo tomado com as obras das casas, com a administração do dinheiro. Eu e o resto do pessoal aqui estamos ainda penando com o português.
- Isso é verdade. Tenho muitas coisas para fazer e vocês têm um português apenas razoável - disse ele rindo, bem-humorado. Contudo, quem sabe não possamos trazer uma professora ou professor lá da cidade? Só não sei se vamos conseguir, porque é difícil encontrar professores que aceitem dar aulas a negros.
- Estava me esquecendo desse ponto - disse Emily acabrunhada. Será que o bonitão da fazenda aqui ao lado não conhece alguém? Ele me pareceu tão simpático.
- Maria já me disse. Você e Anna ficaram encantadas com o cavalheiro. Estou sabendo.
E assim continuaram a prosa, num ambiente descontraído e alegre. Próximo à hora do almoço, uma charrete chegou rápida até a casa-grande. Um negro corpulento, de altura considerável e olhos assustados, correu para a soleira da porta da cozinha.
- Dona Maria, Dona Maria! - gritou o rapaz.
Maria prontamente largou seus afazeres e foi ao encontro do visitante. Limpando as mãos em seu avental, perguntou:
- Bento, quanto tempo! O que faz aqui com essa cara tão assustada?
- Sabe o que é, dona Maria? Lá na fazenda a sinhá está muito mal. Não sei o que vamos fazer. Os rapazes estão tentando tudo, mas ela está cada dia mais fraca. A senhora não podia ir lá ajudar agente?
Adolph e Emily ainda se encontravam em demorada e alegre conversa. Estavam sentados na varanda e viram quando a charrete chegou. Dirigiram-se até Maria, para saber o que estava acontecendo.
- Sinhá Emily, este é Bento, um amigo da fazenda aqui vizinha. A sinhá dele está muito mal, sendo que eu preciso fazer umas rezas pra ela.
Adolph e Emily se olharam. Ele perguntou:
- Qual o problema dela, Maria?
- É espiritual, sinhô. Desde que o marido morreu, ela está assim. Eu acho que ele não quer se desgrudar. Era muito apegado, muito possessivo.
- Então vamos juntos - disse Emily. Depois do que passamos ontem à noite, acredito estarmos em condições de ajudar você em suas rezas. Vamos?
- Mas e o resto do pessoal? Tenho que terminar o almoço, sinhá. Estão todos se levantando.
- Ora - disse Adolph -, deixe o resto do almoço com Rosa e Jacira. Não acredito que vamos comer muita coisa hoje. Estamos um pouco de ressaca. E, pela cara desse sujeito, a patroa dele deve estar muito mal. Vamos todos.
Bento levou Maria em sua charrete. Pedro preparou a carruagem e levou Adolph e Emily até a propriedade vizinha. Em pouco mais de meia hora, chegaram à fazenda. Enquanto se dirigiam até a casa-grande, Emily fazia perguntas a Maria:
- O bonitão lá da cidade, então, não é marido dela?
- Não, senhora. Ele é um grande amigo, só isso. Pelo que sei, ele e mais outro rapaz moram aí com ela.
Bento conduziu Maria até os aposentos da patroa enferma. Adolph e Emily permaneceram na varanda da casa. Alguns minutos depois, Bento, com os olhos assustados e as mãos trêmulas, apareceu na varanda:
- Dona Maria está pedindo que vocês venham até o quarto. É urgente.
Levantaram-se rapidamente e procuraram manter a calma. Só poderiam ajudar a mulher caso estivessem com a mente em equilíbrio. Entraram pela sala de estar. Num sofá bem grande, estava deitado um rapaz com as mãos sobre o rosto. Percebia-se que ele estava muito angustiado com a situação. Adolph e Emily procuraram manter silêncio para não o perturbar. Chegando perto do corredor que dava acesso aos quartos, foram surpreendidos por um grito, misto de emoção e espanto, vindo do rapaz no sofá:
- Adolph? É você mesmo? Adolph?
Adolph estava entre Bento e Emily. Ao voltar-se para quem estava gritando, surpreendeu-se. A emoção foi muito forte. Bento teve de segurá-lo para que não fosse ao chão. Emily não estava entendendo nada:
- O que houve?
Adolph não encontrava palavras para expressar seu estupor. Seus lábios passaram a tremer e lágrimas escorriam de seus olhos, lavando seu rosto. O mesmo ocorria com o rapaz à sua frente.
- Adolph, Deus mandou você. Não acredito que o esteja vendo. É verdade, meu amigo?
Adolph abriu e fechou a boca, sem conseguir articular som. Correu pela sala e abraçou fortemente seu amigo sumido.
- Augusto! Meu Deus do céu! Como pode uma coisa dessas? Eu sinto tanta falta de vocês que às vezes sinto o meu coração chorar de saudade.
Continuaram abraçados por algum tempo. Emily e Bento olhavam-se com um ar interrogativo.
- Mas o que você faz aqui?
- Eu é que pergunto, Adolph. O que você faz aqui? Pensei que estivesse nos Estados Unidos.
- E eu pensei que vocês tivessem fugido de mim. E Carlos, onde está?
- Ele está lá no quarto. Adolph, temos tanta coisa para conversar...
- Com certeza. São dez anos sem saber onde estavam. Eu não sabia sequer se estavam vivos. E agora encontro você aqui como meu vizinho.
- Ah, então você faz parte da sociedade de americanos que compraram a fazenda de Alberto?
- Sim. Esta aqui é Emily. Acho que vocês já se conhecem.
- Mais uma vez, prazer, minha senhora.
- O prazer é todo meu - disse Emily, encantada com a beleza de Augusto.
Adolph estava ainda tomado por forte emoção. Precisava aquietar-se para poder ajudar a mulher enferma primeiro, e depois continuaria a conversar com os seus grandes amigos brasileiros.
- Adolph, só mesmo o dedo de Deus. Eu e Carlos já tentamos fazer mentalização, orações, tudo que se possa imaginar, mas debalde. Não estamos conseguindo o efeito desejado. Você, e só você, é que poderá salvá-la.
Um brilho emotivo passou pelos olhos de Adolph. Sentiu um pressentimento, mas considerou-o louco demais. Apesar disso, não conseguia deixar de pensar nele. Suando frio, perguntou ao amigo, com a voz embargada:
- Augusto... Não me diga que...
- Sim, Adolph. Heléne está muito mal. Sinto ser obsessão. Só a força do seu amor poderá nos ajudar a tirá-la das amarras energéticas de seu marido.
Adolph teve ímpetos de gritar. A idéia de estar próximo a Heléne deixava seu peito em chamas. O calor tomou conta de seu corpo. Emily abraçou-o enternecida. Com voz que procurou tornar amável, disse:
- Querido, veja como a vida é fantástica. Você, sempre triste por não poder ter o seu amor, e agora fica com esta cara? Devemos primeiro agradecer a Deus por permitir o reencontro.
- Não sei se devo. Estou com o meu coração querendo sair pela boca. É muita emoção. Primeiro eu reencontro meu grande amigo, quase um irmão, e agora vou rever o meu grande amor. Estou tremendo tal qual taquara agitada pelo vento.
- Por certo, Adolph, você tem o direito de se sentir assim. Mas ela precisa muito de nossa ajuda e agora ainda mais da sua. Não pára de falar em você. Desde que o barão morreu, ela só pensa em tentar uma maneira de reencontrá-lo. E solteiro, se possível.
Adolph não se conteve e sorriu emocionado:
- Estava esperando por ela, Augusto. Até hoje. Faz dez anos que não me relaciono com ninguém. Sempre tive a confiança, lá no fundo, de que um dia reencontraria minha Heléne.
- Então não vamos perder tempo - disse Emily. Maria está lá dentro. Vamos, Adolph, dê-me aqui a sua mão e vamos para o quarto.
Seguiram para o dormitório de Heléne. Adolph foi estugando o passo, suando frio. Apertava com força a mão de Emily.
- Calma, amigo - recomendou-a. Vamos pensar em Agnes, em Júlia. Vamos nos sintonizar com os nossos amigos espirituais. Vamos pedir ajuda a eles. Tenho certeza de que não estamos aqui por acaso. Vamos.
Emily deu algumas batidas leves na porta. Ouviram Maria lá dentro dizer:
- Entrem, por favor.
Abriram a porta. O quarto estava parcialmente escuro. Um pequeno candelabro próximo à cama iluminava parcamente o rosto de Heléne. Adolph não conteve o pranto. Teve ímpetos de jogar-se sobre a amada. Deitada na cama, com os cabelos em desalinho, a pele branca como cera, emitindo fracos gemidos de vez em quando, estava Heléne. Não lembrava a linda mulher de dez anos atrás. O sofrimento estava estampado em seu rosto. Adolph ajoelhou-se. Pegou as mãos da amada, agora brancas, magras e enrugadas, e beijou-as repetidas vezes. Sem nada dizer, intimamente proferiu comovida prece. Maria viu o espírito do barão no canto do quarto. Estava afônico, com dores por todo o corpo, principalmente no peito, pois morrera de ataque cardíaco. Augusto e Carlos posicionaram-se um em cada lado da cama. Levantaram as mãos para o alto e logo depois as colocaram próximas à testa de Heléne. Adolph continuou ajoelhado junto à cama, segurando as mãos dela. Cenas e sentimentos misturavam-se em sua mente. Procurava controlá-los e concentrar-se na oração. Emily posicionou-se aos pés da cama. Concentrou-se e proferiu sentida prece. Maria podia enxergar além, e foi notando como o quarto foi se iluminando a medida que Emily ia orando. Luzes coloridas saíam das mãos dos rapazes, entrando pela testa de Heléne, revigorando seu corpo. Maria sentiu que Agnes se aproximava. Fechou os olhos, deu leve suspiro. Maria, envolvida pelas energias de Agnes, dirigiu-se até o barão.
- Não chegue perto - alertou ele. - Só estou esperando-a morrer para partirmos juntos. Mais uns dias e tudo estará acabado. Não perturbarei mais ninguém.
- Você não pode se colocar no lugar de Deus - disse Agnes através de Maria.
- Somente Ele é que pode decidir o que é melhor para cada um. Você já fez a sua parte na Terra. Agora é hora de partir.
- Não vou fazer isso. Posso deixar as terras, as propriedades para os amigos dela, não me importo. Mas ela tem de vir comigo. Eu a amo demais. Será minha para todo o sempre.
- Será que não está confundindo amor com apego? Será que você realmente a ama? Saiba que quem ama liberta, deseja a felicidade do ser amado. Não tem medo de ficar separado do ser querido, e por conseguinte tem a vida a seu favor. Quem ama nunca perde.
- Mas eu estou perdido. Perdi meu amor. Heléne é a minha mulher. Não posso viver sem ela.
- Não pode viver sem ela? Será? Você não vivia antes de encontrá-la? Não era feliz com o que tinha? Ou será que tentou conquistá-la por capricho, para mostrar ao mundo que você podia fazer o que quisesse, inclusive comprar o amor? Será que a sua vaidade não era maior do que qualquer outro sentimento seu?
O barão estava inquieto. Não se levantara porque a dor no peito era muito forte. Com a voz fraca e afônica rebateu:
- Não é verdade. Sempre tive tudo que quis na vida.
- Sim, você teve tudo que quis. Mas nunca suportou ouvir um "não" dos outros. E Heléne disse-lhe um "não". Disse estar apaixonada por outro. Você enlouqueceu e quase a matou. Disse-lhe que, caso ela não se casasse com você, Adolph e seus amigos iriam morrer. E que ela não teria mais ninguém no mundo. Será que isso é amor, barão? Será que o seu orgulho não consegue enxergar que tudo foi ilusão? Que o jogo acabou?
- Se ela me tivesse dito, sim, talvez eu a abandonasse. Mas sempre gostei de desafios.
- Sim, e deixou seu grande amor escapar, não é mesmo?
- Do que você está falando?
- Do seu grande amor. Da linda garota que o amou na juventude. Lembra-se dela? Seus pais não permitiram que se casassem porque ela não era de família rica, era uma pobre camponesa.
Ele se sentiu invadido. De onde ela tirara aquela história?
- Não sei do que está falando...
Ele sabia. Mesmo doente, tentou dissimular. Um tremor gélido percorreu seu espírito. Cenas do passado vinham-lhe à mente. A jovem camponesa... Sua dor por não poder desposá-la... Sua ira contra os pais... O desastre...
- Pois é, barão - continuou Agnes -, numa tentativa de fuga sua e dela, ocorreu à tragédia. Seus pais, temerosos de que vocês se unissem, perseguiram-nos. Sei que foi muito difícil perder o amor de Fátima.
O barão desatou a chorar. Como aquela mulher sabia de seu segredo? Por que lhe trazia mais dor naquele momento?
- Você não tem o direito de mexer no meu passado.
- E você não tem o direito de influenciar a vida dos outros. Heléne não tem culpa do que aconteceu com você. Deixe-a viver a vida que Deus lhe deu. Não permita que seu orgulho ferido prevaleça. Heléne não vai substituir o amor de Fátima no seu coração.
O barão definitivamente se entregou. Sentidas lágrimas escorriam pelo seu rosto sofrido. Ele sabia, no fundo, que havia se unido a Heléne por orgulho, por vaidade. E, agora que a ferida estava aberta, sentia novamente o seu amor por Fátima.
- Mas não se preocupe, barão. Você vai conseguir superar tudo isso.
- É fácil falar, você não está na minha pele. Aliás, pele eu nem tenho mais. Você não está no meu lugar, é fácil avaliar. Não dói em você, certo?
- Claro que não. O barão plantou, agora está colhendo. É simples. A responsabilidade é toda sua. Mas se estiver disposto a mudar, a querer se desenvolver, evoluir, aprender o verdadeiro sentido do amor, eu posso lhe ajudar.
- Como vai me ajudar?
Agnes fez um sinal. Um enorme arco iluminado abriu-se na frente do barão. Aos poucos, uma linda moça foi surgindo: morena, olhos grandes e verdes, cabelos cacheados balançando suavemente entre os ombros. Trajando um lindo vestido verde-pérola que realçava seu corpo bem-feito, a jovem se aproximou do barão.
- Meu amor, quanto tempo! Estou aqui. Vim lhe buscar. Agora estamos prontos para continuarmos juntos, sem impedimentos. Venha comigo, Heinz.
- Fátima! Minha Fátima, perdoe-me. Não traí você. Casei-me com Heléne somente para esquecer-me da tragédia. Eu estava maluco, estava a ponto de me matar. Sou um canalha!
- Não é, meu amor. Você fez o que achou melhor. Poderia ser outra mulher. Mas a vida usou Heléne não por acaso. Cada um precisa de certas experiências na vida. E Deus vai unindo as pessoas, entrelaçando seus destinos, de acordo com a lição a ser aprendida. Você fez o melhor possível, mesmo tomado pela vaidade e pelo orgulho. Mas não tem mais tempo para lástimas. Agora é hora de começarmos uma nova vida juntos. Tenho certeza de que a partir deste momento saberemos dar valor ao nosso amor.
Ela estendeu as lindas e delicadas mãos para o barão. Vagarosamente ele foi se levantando. Fátima pegou-o pelos braços e deu-lhe um demorado beijo nos lábios.
- Meu amor, vamos embora.
E assim foram caminhando por um corredor comprido e estreito, iluminado por raios das mais variadas tonalidades. O barão despediu-se de Agnes com um aceno. Partiu com Fátima para um local de refazimento. Agnes fez linda e comovida prece de agradecimento e se foi. Maria estremeceu levemente e abriu os olhos. Emily continuava orando e os rapazes continuavam energizando o corpo de Heléne. Adolph estava mais calmo.
- E agora, Maria, o que faremos?
- Nada, patrão. Por ora, nada. O barão já foi embora. Graças às orações e vibrações de todos vocês aqui no quarto, os espíritos conseguiram tirá-lo daqui. Foi emocionante.
- E minha Heléne, ela vai resistir?
- Claro que vai. Ela estava sendo obsediada, sugada pelo barão. Agora que ele se foi, espero que ela fique bem.
- Como assim, espero? Ela pode piorar?
- Depende dela, sinhô. Se ela acredita que não é boa o bastante, que é imperfeita, vai atrair uma legião de gente que pensa como ela, tanto do nosso mundo quanto do outro mundo. Agora, se ela firmar o pensamento no bem, no melhor, ninguém chega perto, a não ser espírito de luz.
- Maria, você tem razão. Confiar no bem, entregar-se ao bem, eis a lição.
- Sim, patrão. Não adianta ler os livros e achar que está protegido. Precisamos sentir em nossos corações o bem real. E olhar com os olhos do bem também. Esta é a verdadeira comunhão com Deus, com o universo, com a vida. Todos se sentiram tocados com as palavras de Maria. Sabiam que ela não estava incorporada. Falava com a alma.
Heléne começou a remexer-se na cama. Os rapazes terminaram a energização. Lentamente ela abriu os olhos. Acreditou estar morta.
- Adolph, meu amor, você veio me buscar. Agora estaremos juntos no céu.
E voltou a adormecer. Adolph recomeçou a chorar. Beijou repetidas vezes o rosto de Heléne. Com voz que a emoção enrouquecia, disse:
- Não, meu amor, eu nunca mais vou deixá-la partir. Ficaremos juntos para sempre, eu prometo. Eu a amo demais.
- Está bem, sinhô. Ela sabe e todos nós sabemos. Mas agora vão até lá fora que eu vou arrumar a sinhá Heléne.
- Eu fico com você, Maria - disse Emily.
Os rapazes saíram do quarto. Adolph estava embriagado pela emoção. Era muita coisa num dia só. Além de encontrar seus dois maiores amigos, reencontrava seu grande e verdadeiro amor. Abraçou demoradamente Carlos. Ambos choraram muito.
- Amigos, quanta falta! Como senti saudade de vocês, meus companheiros de verdade. Agora podem me dizer o que aconteceu, antes que eu morra de vez sem saber?
Riram bem-humorados. O ambiente estava leve, descontraído. Augusto e Carlos estavam radiantes por terem encontrado Adolph novamente. Carlos, mais ponderado, começou a falar:
- Tudo aconteceu naqueles dias em que você foi com seu pai para a Itália.
Heléne já vinha sendo assediada pelo barão havia um bom tempo. Aliás, mesmo antes de você aparecer na vida dela. Heléne estava cansada da vida que levava em Paris, lá no bordel. Quando conheceu o barão, percebeu a real possibilidade de mudar de vida, mesmo sem amor. Para Heléne não existia amor. Até encontrar você. Adolph permanecia em silêncio, com os olhos marejados. Carlos continuou:
- Heléne tentou livrar-se do barão. Quis voltar atrás e acabar com a relação. Disse que estava amando outro. O barão sabia tratar-se de você. Jurou que, se Heléne o largasse, ele mandaria matar você. Ela ficou muito assustada, pois sabia que o barão tinha amigos influentes na Europa. Astuto e ardiloso, ele imaginava ser impossível você os encontrar aqui no Brasil. Lá em Paris acertou com o pai de Alberto a compra desta fazenda. Eu e Augusto, com medo do que pudesse acontecer a Heléne, nos prontificamos a acompanhá-los até o Brasil, pois nem ele nem ela falavam português. Heléne percebeu que não havia saída e que comigo e Augusto por perto as coisas não seriam tão difíceis.
Carlos suspirou. Adolph surpreendia-se com cada palavra.
- Achávamos que, assim que chegássemos ao Brasil, poderíamos tramar uma fuga. Fomos inocentes. O barão, com a sua influência, havia comprado muita gente aqui. Eu e Augusto fomos morar na capital, mas as coisas por lá não estavam nada boas.
- Compreendo - disse Adolph -, não deve ser fácil para vocês viverem juntos no Rio de Janeiro. Por que não continuaram em Paris? Não estava tudo mais fácil por lá?
- Sim, estava - disse Augusto. Mas, Adolph, Heléne é como uma irmã para nós. Você também. Se não estivéssemos por perto, nunca saberíamos o paradeiro dela.
- Isso é verdade. Mas vocês abriram mão da liberdade de vocês por nós?
- E daí? Isso não é o fim, Adolph. Não nos sentimos culpados pelo sentimento puro que carregamos dentro de nós. Também é um grande treino. Não é fácil.
Augusto continuou:
- Muitos pensam que escolhemos este tipo de vida, o que digo ser mentira. O espírito já carrega suas preferências afetivas. O mundo não nos influencia.
Adolph, passando delicadamente a mão pela cabeça dos amigos, disse:
- Vocês são verdadeiros homens. Abdicaram de uma vida boa na Europa, vieram enfrentar os preconceitos aqui no Brasil, só para estarem perto de Heléne. Isso não tem preço. Serei grato a vocês por toda a minha vida.
- Agradecemos - tornou Carlos. A pressão na cidade estava grande. Durante o dia passávamos bem, mantendo-nos em postura digna diante da sociedade. Mas, na calada da noite, muitas das pessoas desta sociedade corriam ao nosso encontro, nos tomando por devassos. Heléne não estava suportando ficar sozinha na fazenda e, sabendo da situação aviltante em que vivíamos na corte, fez o convite para passarmos uma temporada com ela. O barão tratava-nos muito bem. Não se importava com o nosso relacionamento. Era até engraçado, porque ele preferia nos ter por perto, sabendo que nenhum de nós iria tentar algo com sua esposa.
Caíram em sonora risada. Adolph novamente abraçou-os.
- Vocês são meus irmãos. Adoro vocês. E tudo que estiver ao meu alcance eu farei para que ninguém os amole.
Maria e Emily apareceram na sala.
- Sinhozinho Adolph, a sinhá Heléne quer ver o senhor. Por favor.
Adolph levantou-se. Seu coração estava a ponto de saltar pela boca. Não conseguia segurar a emoção. Com as pernas bambas, foi para o quarto. Emily ficou sentada na sala, conversando com Augusto e Carlos, enquanto Maria foi para a cozinha preparar um café. Adolph entrou no quarto. Heléne estava bem melhor. O rosto mais corado, os cabelos lindamente penteados. Sentiu que os toques femininos de Emily e Maria haviam alcançado um bom resultado. Com a voz cansada, ela sussurrou ao amado:
- Chegue mais perto, querido.
Ele se abaixou e amorosamente tomou-lhe as mãos:
- Meu amor, nunca mais a deixarei. Por nada neste mundo. Você é a mulher que eu amo. Sempre a amarei.
- Eu também, Adolph, eu também. Desculpe-me.
- Desculpá-la de quê? Você não teve culpa de nada.
- Não é isso. Eu falhei comigo, como ser humano. Tive medo de dizer "não" ao barão, de enfrentá-lo. Ele não era um homem mau. Nunca me maltratou. Só queria o meu amor, à força. E eu não soube me posicionar. Eu me sentia inferiorizada, sem valor. Sucumbi e aqui estou. Desde que o barão morreu, há um ano, eu venho sentindo a presença dele. Augusto e Carlos me ajudaram muito, caso contrário eu enlouqueceria. Mas a vida me mostrou que eu estava certa. Você está aqui, esta é a maior prova de que ninguém pode tirar de nós aquilo que nos pertence. A vida sempre vence, e estamos aqui, juntos.
- Heléne, meu amor. Ao meu lado, você vai ter os dias mais felizes de sua vida. Farei de você a mulher mais feliz do mundo. Se quiser, podemos voltar a Paris e recomeçar nossas vidas.
- De jeito algum. Eu quero viver aqui no Brasil. Eu amo esta terra, esta gente. Afeiçoei-me muito aos escravos, consegui grandes melhorias em termos de trabalho, alimentação e moradia. Quero recomeçar minha vida aqui, ajudando estas pessoas. O barão deixou-me muito dinheiro, Adolph. Sou uma viúva muito rica. Olhe que partido!
Sorriram e abraçaram-se. Adolph beijou-lhe os lábios com amor, repetidas vezes. Esqueceu-se do estado prostrado da amada e deitou-se ao seu lado. Por dez longos e sofridos anos ele esperou por aquele momento. Júlia encontrou Agnes sentada em um banco, situado em lindíssimo bosque.
- Agnes, você anda muito pensativa ultimamente. Agora que as coisas estão resolvidas lá na Terra, por que não vamos tratar de nossas coisas por aqui?
Temos tanto por fazer.
- É isso que venho pensando, Júlia. Vou ter uma reunião com Apolônio logo mais. Estou pensando em uma coisa. Quer ouvir?
Júlia meneou afirmativamente a cabeça. Agnes começou a confiar-lhe o que tinha em mente. Júlia ficou estupefata com o relato.
- E então, concorda em participar disso comigo, Júlia? Você é a pessoa mais próxima, poderia me ajudar nessa tarefa.
- Pensando bem, Agnes, concordo com você. A que horas você vai ter com Apolônio?
- Agora mesmo. Já está na hora.
Foram até a sala de Apolônio, que ficava na cobertura de um imenso prédio. Da cobertura pendiam trepadeiras, que se agarravam à estrutura do edifício, em direção ao chão, dando-lhe uma aparência belíssima.
- Meninas, que bom revê-las! Quase tive de intervir no caso dos americanos, mas vocês foram firmes.
- Obrigada - responderam as duas.
- Devido ao fato de terem sido bem-sucedidas nesta missão, o plano maior decidiu que vocês podem partir desta colônia, estão aptas a irem para outras esferas.
Ambas se olharam. Agnes tomou a palavra.
- É sobre isso mesmo que queremos conversar, Apolônio. Queremos voltar para a Terra.
- Como?
- Isso mesmo. Queremos voltar.
- Vocês não têm mais a necessidade de voltar. Estão livres da reencarnação. Por que isso agora?
- Porque nos envolvemos demais com nossos amigos na Terra. E gostaríamos de fazer parte do centro que eles vão montar em breve. Queremos estar lá, em carne e osso, participando dessa obra.
- Mas, Agnes, você não precisa disso. Nem você, Júlia. Podem ir ter com eles a hora que quiserem. Vocês estão aqui há tantos séculos. Vão se submeter a viver na Terra? Pensem bem, há outros planos melhores esperando por vocês.
- Já pensamos - tornou Agnes, firme. Depois que terminarmos esta tarefa, iremos para outros planos. Mas, agora, a minha alma e a alma de Júlia clamam pelo retorno. E, afinal de contas, o que são sessenta, setenta anos na Terra? É muito pouco. Por isso, queremos sua permissão para partirmos o mais rápido possível. Juntas. Ele não sabia o que dizer. Era-lhe incomum um pedido como o delas. Só mesmo duas almas fortes e em cumplicidade intensiva com Deus poderiam solicitar um pedido desses.
- Está bem. Se desejarem ajudá-los dessa forma, assim será feito. E pelo jeito já devem ter marcado entrevista com os pais encarnados.
Ambas sorriram. Júlia limitou-se a dizer:
- Vamos tirar os pais do corpo hoje à noite e conversaremos com eles. Tenho certeza de que vão concordar e aprovar.
- Vocês são terríveis! Fizeram tudo premeditadamente. Não tenho como não concordar. Como presente de encarnação, vou solicitar uma dupla de mentores de primeira linha, que irão ajudá-las em todos os momentos.
Agradeceram emocionadas. Abraçaram Apolônio. De mãos dadas, Agnes e Júlia foram caminhando entre bosques floridos, na colônia Encantada, aguardando o momento de se prepararem para o retorno a Terra. Heléne juntou-se ao grupo dos americanos. Sua chegada foi comemorada com alegria e festa. Simpatizaram-se na hora. O reencontro estava selado. Adolph e Heléne, Sam e Anna, Mark e Emily. Os três casais agora estavam juntos para continuar com a missão a que se haviam proposto. A fazenda dos americanos e a de Heléne, de Augusto e de Carlos foram transformadas em uma única propriedade. A fazenda Santa Carolina tornou-se uma das maiores propriedades privadas tio Rio de Janeiro. Com o passar dos anos, foram dando dignas condições de vida aos escravos. Ao fim da escravidão, muitos fazendeiros perderam suas colheitas, pois os escravos libertados foram para a cidade. Os escravos dos americanos ficaram. A abolição para eles não significou nada. Já se sentiam livres vivendo em Santa Carolina. Isso ajudou Adolph, Mark e Sam a aumentarem suas fortunas. Era a única fazenda com larga produção de café da região. Não perderam suas colheitas. Em pouco tempo, já estavam com uma refinaria de açúcar, aumentando as instalações da fazenda e gerando prosperidade na região. Formaram um grande centro de aprendizado e desenvolvimento espiritual. Todos se dedicavam ao estudos e acolhiam, com prazer, as novas idéias sobre psicologia, metafísica e espiritualidade que chegavam com o advento do século XX. Muitos ex-escravos aderiram aos estudos, ajudando nos trabalhos espirituais. Assim, na virada do século, com os filhos adultos, os três casais haviam cumprido a missão à qual se propuseram antes de reencarnar. Já maduros e sem tanta disposição para viagens, Sam e Anna tinham de tomar uma decisão em relação à casa que possuíam nos Estados Unidos. Norma morrera havia alguns anos, e os netos do Dr. Lawrence, também já falecido, tomavam conta da propriedade. O dinheiro da aposentadoria de Mark estava ainda sendo regularmente depositado no banco de San Francisco. Precisavam dar um jeito nas coisas. Numa noite quente de verão, sentados na varanda do centro, após terminarem os trabalhos espirituais, começaram a trocar idéias sobre seus negócios nos Estados Unidos. Sam, com leve pigarro, pausadamente começou a falar:
- Meus amigos, devemos resolver nossas pendências na América. Eu e Anna não pretendemos mais voltar.
Deram muitas risadas. Mesmo com a idade avançada, todos mantinham um vigor e uma vitalidade incríveis. Não se deixaram abater pelo passar dos anos. Estavam muito conservados. A pele de todos ainda possuía muito viço. Mark prosseguiu:
- Minha família sempre envia cartas dizendo que eu preciso fazer alguma coisa com o dinheiro que tenho no banco. Estava pensando em mandar um de nossos filhos para San Francisco.
- Acontece - continuou Sam - que eu não tenho como fazer uma procuração aqui para que meu filho possa vender a nossa casa. Procuração brasileira não serve.
Heléne, a mais animada de todos, questionou:
- Por que não vamos todos aos Estados Unidos? Eu não conheço a América. Mesmo velha, ainda sinto que posso viajar. Estamos trabalhando tanto no centro, nos dedicando de segunda a domingo. Por que não deixamos nossos filhos tomarem conta de tudo e partimos em viagem de lua-de-mel?
- Lua-de-mel? - perguntou Emily, com espanto na voz.
Todos caíram na risada. Só mesmo a espiritualidade de Heléne para fazer uma proposta dessas.
- Lua-de-mel, sim, senhora. Emily, nós estamos com mais de sessenta anos. Temos muito pela frente. Espero que mais uns vinte pelo menos.
Começaram a discutir alegremente. A idéia era-lhes muito atraente. Deixariam os negócios e o centro nas mãos dos filhos e ficariam um tempo fora. Pela idade que tinham, sentiam ser aquela a última chance de poderem viajar até os Estados Unidos. Heléne tinha razão. Tal qual crianças em dia de festa, despediram-se dos filhos no porto do Rio.
- Papai, ainda achamos que vocês estão com há idade um pouco avançada para fazerem uma viagem tão longa. Não acha que podíamos resolver isso de outra forma?
- Donald, meu filho - respondeu Mark -, não se preocupe. Queremos farrear. Vamos nos divertir muito. Faz mais de trinta anos que eu, sua mãe e seus tios não viajamos. Pode ficar tranqüilo, que estaremos muito bem. São poucos meses. Logo estaremos aqui de novo. Não se preocupe.
O vapor partiu do Rio de Janeiro rumo a Buenos Aires. De lá o navio iria contornar o oceano Pacífico, subindo em direção aos Estados Unidos. Era uma viagem muito longa, mas estavam ansiosos e, por que não dizer, saudosos do país de origem. Semanas se passaram. Numa tarde ensolarada, com leve brisa vinda do oceano, o navio aportou na baía de San Francisco. Uma linda cidade, completamente diferente do Rio de Janeiro. O estilo das casas, o jeito das pessoas, tudo era diferente. Heléne estava impressionada. San Francisco tinha alguma coisa de Paris, sua terra natal. A paisagem era-lhe muito familiar. Sam, Anna, Mark, Emily e Adolph contemplavam cada edifício, cada rua, cada detalhe da cidade. Seus olhos não deixavam escapar nada. Estavam atentos a tudo. A América havia mudado muito. O país entrara no novo século como uma ameaça ao poderio inglês, crescendo a olhos vistos. Sam, Mark e Adolph sentiram orgulho daquela terra.
- Vejam - disse Adolph. E nós achamos um dia que este país iria afundar. Meu Deus, como cresceu!
- Você tem razão, Adolph - afirmou Sam. O país cresceu muito. É uma potência. Mas não vivo mais sem café, sem feijão, sem pinga...
Foram conversando animadamente no caminho do porto até o hotel. Instalaram-se em um prédio suntuoso, finamente decorado. Ficava próximo à baía de San Francisco. Da janela dos quartos, podia-se avistar o mar. Resolveram jantar num restaurante próximo ao hotel. Queriam respirar um pouco do ar americano. Estavam muito saudosos. Adolph mostrava para Heléne os pontos turísticos, a vida noturna alegre e agitada da cidade. Fizeram delicioso jantar num sofisticado bistrô próximo à baía. Conversaram sobre os negócios a serem feitos. Queriam terminar tudo o mais rápido possível. Embora saudosos da América, sentiam-se muito brasileiros. Durante o jantar, Sam disse:
- Bem, amigos, depois de amanhã partiremos de San Francisco. Pegaremos o trem que nos levará até Ohio. Chegando lá, vendemos a casa e depois vamos para Nova Iorque. Ficamos uma semana lá e depois partimos rumo ao Rio de Janeiro.
- Ah, Sam - suspirou Heléne -, como eu quero conhecer Nova Iorque... É uma cidade tão chique, tão glamorosa. Nem acredito que vou realizar este sonho.
- Comigo, meu amor - disse Adolph -, você pode realizar todos os sonhos de sua vida.
Beijou-a com amor e foram aplaudidos pelos amigos. Ao término do jantar, estavam cansados. Resolveram voltar ao hotel. Precisavam descansar. O dia seguinte seria tomado por passeios, idas ao banco e compras. Despediram-se calorosamente e cada casal foi para o respectivo quarto. Anna, ao deitar-se, beijou Sam com paixão, repetidas vezes. Bem-humorado, ele a tomou nos braços:
- Hum... Estou me lembrando daquela noite na varanda, enquanto você apanhava aqueles cacos de vidro, recorda-se?
- E como não, meu querido? Foi uma das noites mais lindas que tive ao seu lado.
Maliciosamente, Sam sussurrou no ouvido de Anna:
- Que tal continuarmos? Acredito que Adolph não irá nos atrapalhar desta vez...
Riram bem-humorados e entregaram-se ao amor que extravasava de suas almas. Dormiram abraçados. Cinco e quinze da manhã. Um forte e assustador tremor de terra foi sentido por toda a cidade. Durou somente um minuto. Milhares de casas e prédios foram destruídos. Um grandioso incêndio iniciou-se mal a terra terminara de tremer. San Francisco ficou arrasada. Milhares de desabrigados. Centenas de mortos. O hotel onde os casais estavam hospedados foi completamente ao chão. Não restou sobrevivente. Estavam todos mortos. O Dr. Lawrence resgatou Sam. O Dr. Anderson resgatou Mark. Júnior, o filho de Anderson, resgatou Adolph. Bob resgatou sua irmã Emily. Flora resgatou sua filha querida, Anna. E Pai Juca resgatou Heléne. Carregando em seus braços os espíritos em sono profundo, alçaram vôo em direção à colônia Encantada.

Nota: Para melhor compreensão do próximo capítulo, tomamos a liberdade de manter os mesmos nomes nos personagens, a fim de facilitar seu reconhecimento.

21 de abril, 1960. O Brasil ganhava sua mais moderna cidade, Brasília. O Rio de Janeiro deixava de ser, naquele dia, a capital do país. Nascia o estado da Guanabara. Milhares de pessoas nas ruas comemoravam a criação do novo estado. Buzinas, carros alegóricos, discursos calorosos. Os toques dos sinos da igreja da Candelária fundiam-se à algazarra generalizada. As três filhas de Flora Lewis Magalhães casavam-se naquela noite com os três filhos de Maria Stevens de Albuquerque. Uniam-se ali duas das mais tradicionais, ricas e influentes famílias do Brasil. Por obra do destino, Anna, Emily e Heléne, filhas de Flora, haviam se apaixonado por Sam, Mark e Adolph, respectivamente, filhos de Maria. Teria sido o maior acontecimento da cidade, não fosse o nascimento do novo estado. Mas Flora quis assim. Para não ser incomodada pela legião de fotógrafos e repórteres que aguardavam o tão esperado casamento, resolveu realizá-lo naquela data, não tornando o evento um acontecimento isolado e chamativo. Após a cerimônia, os convidados foram para a festa, realizada no hotel Copacabana Palace. Ao entrar no saguão, Flora foi surpreendida por uma repórter:
- Dona Flora, desculpe-me. Eu sei que hoje é uma data muito importante para a senhora...
- Por certo - disse educadamente Flora. Eu até que lhe concederia uma entrevista, mas para quê? Para dizer qual o perfume que uso? Que tipo de comida eu tenho na geladeira? Eu não sou ligada às futilidades sociais, minha filha.
- Eu sei disso, dona Flora. Mas eu não quero uma entrevista fútil, porque não sou fútil. Quero entrevistá-la porque eu a acho uma grande mulher. A senhora dirige um conglomerado de indústrias, e além do mais possui um centro de estudos e desenvolvimento espiritual que pertence à sua família há mais de meio século e é muito respeitado no Brasil. Quero entrevistá-la pela mulher que é, pela sua garra, coragem e determinação. Só por isso.
Flora sentiu-se atraída pela moça. Havia tal brilho em seu olhar, firmeza em sua postura e sinceridade em suas palavras, que ela se encantou.
- Qual o seu nome, menina?
- Meu nome é Rosa. Sou repórter da revista "O Cruzeiro".
- Boa revista. Caso eu lhe conceda uma entrevista, você promete escrever tudo que eu falar, sem suprimir nada?
- Sim, senhora. O que a senhora falar, eu escreverei, sem tirar nem pôr.
- Mesmo falando sobre o Centro?
- Sim, não há problema. Até acho bom, porque há gente que acredita que esses lugares abrigam tão-somente pessoas ignorantes, supersticiosas e pobres. E a senhora, sendo uma dama da sociedade brasileira, vai fazer muitos pensarem um pouco mais antes de fazer tal julgamento. O que acha?
- Nunca enxerguei por esse ângulo. Você é muito esperta, menina. Vamos fazer o seguinte: semana que vem, eu estarei descansada de tudo isto aqui.
Flora parou por um instante. Abriu sua pequena bolsa e retirou um cartão. Delicadamente pousou-o na mão de Rosa.
- Tome o meu cartão. Esperarei por você na próxima terça-feira, às duas da tarde, em minha casa. Estamos combinadas?
- A senhora é o máximo! Obrigada. A última entrevista que concedeu foi na época do seu casamento. As revistas querem a todo custo uma entrevista sua. E eu consegui. Prometo que tudo que disser vai sair. Até semana que vem. Desculpe-me por abordá-la nesta hora. Felicidades às suas filhas e genros.
Rosa saiu radiante do saguão do hotel. Seria seu maior trabalho como jornalista. Com a entrevista de Flora, conseguiria o tão esperado reconhecimento em sua profissão. Ela era uma linda morena. Filha única de professores era uma pessoa bem educada e de caráter. Seus pais, Pedro e Jacira, haviam feito de tudo para que ela conseguisse se formar e conduzir sua vida, sem depender de ninguém. Na semana seguinte, no horário marcado, lá estava Rosa, na porta da mansão de Flora, no Cosme Velho. Tocou a campainha e logo em seguida foi recepcionada por uma gentil empregada, que a conduziu até o escritório.
- A madame já vai atender. Aguarde um instante, por favor.
Rosa ficou deslumbrada com a decoração. Embora fosse uma moça de boa classe social e morasse no Flamengo, nunca tivera contato com tanto luxo e bom gosto. Encantada, passou a verificar de perto os quadros a óleo nas paredes do escritório. Leve emoção tomou conta de seu corpo. Algumas figuras a impressionaram, fazendo-a sentir uma mistura de emoção e saudade. "Devo estar louca", pensou. "Conheço a história desta família desde menina. Para mim é tudo tão familiar..."
- Boa tarde.
Rosa virou-se. Elegantemente vestida, Flora estava em pé apreciando a postura da moça.
- Boa tarde, dona Flora. Desculpe-me, mas estava aqui observando os quadros e fiquei um pouco impressionada. Quem são?
Flora, sempre bem-disposta, alegrou-se com a curiosidade da jovem repórter. Com ternura em sua voz e apontando delicadamente o indicador, começou:
- Estes da direita são meus avós. Eles vieram dos Estados Unidos em meados do século passado. Casaram-se na América e estabeleceram-se na fazenda Santa Carolina.
- Na fazenda que originou aquela cidade?
- Isso mesmo. Meus avós, Sam e Anna, compraram uma fazenda no Rio e juntaram-se em sociedade com meus tios-avós. Estes da esquerda são meus tios-avós: Mark, Emily, Adolph e Heléne.
- Foram eles que faleceram naquele terremoto?
- Isso mesmo. Foi muito doloroso para toda a família. Por sorte, meus pais já eram adultos quando tudo aconteceu. Foram calorosamente amparados por duas pessoas que para nossa família são os nossos anjos e tutores. São estes dois quadros à sua direita, meus tios Augusto e Carlos. Foi com o suporte deles que os filhos órfãos conseguiram seguir suas vidas.
- E estas duas moças lindas, quem são?
- Estas são minhas tias preferidas: Agnes e Júlia. Elas eram filhas de meu tio Adolph e de minha tia Heléne. Eram gêmeas. Aliás, a expansão do nosso Centro se deve à força e garra destas duas mulheres. Elas introduziram uma série de novas técnicas de passe, de desobsessão e de aconselhamento que funcionam até hoje. Foram as pioneiras na introdução de cursos sobre poder do pensamento e identificação de energias.
- E estão vivas?
- Não, infelizmente morreram há alguns anos. Mas eu as sinto por perto quando estudo, de vez em quando.
- Suas filhas trabalham no Centro?
- Por certo. Desde pequenas participavam dos trabalhos. Anna, Emily e Heléne lembram muito as suas bisavós. E, graças a Deus, encontraram seus amores em família.
- Como assim?
- Sou filha única de Roger, que era filho de Sam e Anna, meus avós. Maria, a mãe de meus genros, é filha de Donald.
- Ele era filho do Sr. Mark e de dona Emily, certo?
- Isso mesmo.
- E quanto aos netos do Sr. Adolph e de dona Heléne?
- Suas filhas, Agnes e Júlia, não se casaram. Dedicaram suas vidas aos estudos da psicologia, da metafísica e da mediunidade. Dessa forma, eu e Maria somos as únicas descendentes. Cabe agora aos nossos filhos aumentarem a família.
Descontraída com a amabilidade de Flora, Rosa arriscou:
- E eles se amam?
- Garanto a você que sim. Muitas pessoas acham que o casamento foi arranjado, tamanha coincidência. Mas não. Foi amor à primeira vista. Sam, Mark e Adolph apaixonaram-se pelas minhas filhas tão logo começaram a engatinhar. Foram feitos um para o outro. E o mais impressionante...
- O que é, dona Flora?
- Não é alucinação, mas venha aqui comigo.
Flora conduziu Rosa até a mesa do escritório. Lá estava uma fotografia com os genros abraçados às suas filhas.
- Olhe bem para os rapazes - disse Flora.
Rosa franziu o cenho, procurando concentrar-se nas fisionomias dos rapazes e das moças.
- Agora, olhe para os retratos dos meus tios-avós.
Rosa olhou para a fotografia e para os quadros na parede. Fez isso três vezes seguidas. As fisionomias eram impressionantemente parecidas. Ela cobriu a boca com a mão. Depois disse, emocionada:
- Dona Flora, eles são muito parecidos!
- Sim, eu também acho. Parecidos demais. Às vezes chego a pensar que são os próprios. Do mesmo modo que vejo certa semelhança entre minha avó e tias com minhas filhas.
- Vai saber... Talvez a vida esteja unindo todos de novo.
- Acredito que sim. Tenho muito carinho por eles. E adoro minhas filhas.
- Desculpe-me, dona Flora, mas correm boatos por aí de que Anna é a sua filha predileta.
- Isso não me constrange. Adoro minhas filhas. Amo-as muito. Damo-nos muito bem. Mas sempre me dei melhor com Anna. Temos uma afinidade incrível. Não temos problemas quanto a isso, aqui em casa. Nós nos amamos e nos respeitamos muito. Minhas filhas compreendem. É um estado natural, uma química que há entre mim e a minha filha Anna. Só isso.
Conversaram mais alguns minutos. Rosa foi tomando nota das declarações de Flora sobre o crescimento das indústrias, o controle que ela tinha com o marido sobre as empresas da família. Rosa estava encantada com a história toda.
- Agora eu gostaria de saber mais sobre os trabalhos no Centro, mesmo porque eu já estudei lá.
- É mesmo? O que você estudou?
- Fiz o curso de "Desapego", e meus pais dão aulas lá.
- É o curso mais disputado. É difícil conseguir vaga, pois as pessoas adoram. Foi criado por minha tia Agnes. Graças a esse curso, ganhamos credibilidade. Mas diga-me: qual o nome dos seus pais?
- Pedro e Jacira. Mas o Centro é tão grande que talvez a senhora não os conheça.
- Como não? - tornou Flora admirada. Pedro e Jacira formam um lindo casal. Eles nos têm ajudado muito. Estão há muitos anos conosco. Os cursos ministrados por eles são ótimos. Seu pai é um excelente professor. Gosto muito de sua mãe. E agora estou gostando mais ainda de você.
- Obrigada, dona Flora.
- Em outra oportunidade, poderei lhe mostrar todas as dependências lá do Centro.
- Mas não é muito incômodo?
- Imagine, incômodo... Quero que você veja que o nosso trabalho é digno, é honesto. Queremos promover o bem das pessoas. Eu mantenho o lugar para mostrar que a vida espiritual não é um bicho de sete cabeças. Estamos sempre ligados a institutos de pesquisas espalhados pelo mundo. Toda vez que surge material novo sobre pensamento positivo, mentalismo ou novas técnicas de aconselhamento metafísico, somos os primeiros a estudá-los e adotá-los em nosso espaço.
- Isso meus pais me falaram. A senhora e seu marido, embora desfrutando de vida boa, não param de estudar um minuto sequer. Isso é admirável, e os jornais nunca escreveram nada a respeito.
- Porque não dá ibope, não vende. Não estamos preocupados com isso. Estudamos, ajudamos, fazemos o melhor para nós e para as pessoas que lá vão. Essa é a nossa parte.
- E quanto ao centro de reabilitação para crianças defeituosas? É um outro projeto?
- Sim, esse é um outro projeto. Criamos uma equipe formada por médicos, professores e cientistas. Estamos unindo ciência, metafísica e espiritualidade para entendermos melhor a causa das doenças. Daí surgiu esse novo espaço. Ele acolhe crianças que nasceram com graves problemas físicos. Minhas filhas, que se formaram em Medicina, conduzem todo o trabalho de lá. É muito complexo, exige dedicação, estudo, paciência e, acima de tudo, amor.
- De onde vêm essas crianças?
- A maioria delas vem da periferia, dos morros. Mães que não têm condições de cuidar. Elas não têm como gastar tempo e dinheiro, e as crianças passam o dia conosco. A noite são levadas para casa, pelos pais. Mas tenho lá três crianças que foram abandonadas logo que nasceram. Isso ocorreu no mesmo hospital.
- Então a senhora cuida delas dia e noite?
- Sim, é por isso que estamos legalizando os papéis e criando uma fundação. Nossa família é muito conceituada nos Estados Unidos. Eu tenho parentes distantes por lá, que também estão ligados a questões espirituais. Queremos propagar o conhecimento das leis universais, das verdades da vida.
- E quanto a essas crianças abandonadas?
- Ah, elas são especiais! Minhas filhas e genros as adoram. Temos muito amor por elas desde que chegaram. Já que você quer conhecer, vamos até lá.
Flora chamou o motorista. Em menos de meia hora estavam em frente a belíssimo edifício, muito bem cuidado, com amplos e generosos jardins. Nem parecia um centro de reabilitação, pois era rodeado de frondosas árvores e lindas flores. Flora foi cumprimentada por dois médicos que lá se encontravam. Rosa cumprimentou-os e ficou fascinada pela beleza de ambos. Meio sem jeito, perguntou a Flora:
- Nossa! Quem são?
Flora, percebendo a intenção nas palavras de Rosa, com suave sorriso nos lábios respondeu:
- Esses médicos têm muito nos ajudado. São como parentes, tamanha a afinidade que temos. Chamam-se Augusto e Carlos.
Com voz que procurou tornar amável, aconselhou:
- Mas não se iluda com eles. Rosa, sem entender, tornou:
- Por quê? Sorrindo, Flora lhe disse:
- Por nada, minha filha. Com o tempo você saberá. Mas venha comigo até o andar de cima, onde estão as crianças.
Atravessaram um imenso e largo corredor, delicadamente decorado com motivos infantis, e subiram as escadas. Um cheiro delicado de perfume embriagava docemente o recinto.
- Aqui estamos. Venha.
Um salão cheio de brinquedos. Pinturas e desenhos estavam pendurados nas paredes. No meio do salão, uma mesa com lápis, canetas, massas, giz e tesouras para as crianças. Numa pequena cama, próxima à mesa, estavam três crianças. Rosa precisou controlar-se para não dar um grito, tamanho o susto. Levou a mão ao rosto. Abriu e fechou os olhos como a constatar a cena à sua frente. Eram crianças esteticamente muito feias, com o corpo todo deformado. - Não se assuste, Rosa. Elas não vão lhe fazer mal. São os nossos encantos. Amamos muito os três. Rosa não conseguia mover um músculo. Das três crianças, uma em especial chamava-lhe a atenção. Não sabia o porquê, mas um ódio surdo brotou de seu peito. Quando os seus olhos cruzaram os do menino, ela empalideceu. Sua vista turvou-se e ela se apoiou numa cadeira ali perto, com o coração batendo descompassado. Flora estava entretida, beijando amorosamente as três crianças, não notando o estado alterado da repórter. Recomposta do susto inicial, porém com o ódio ainda no peito, Rosa, lábios trêmulos, perguntou:
- Quem é este?
- Ah, este aqui é Alberto. Um garoto negro, abandonado pelos pais tão logo se descobriu que ele tinha problemas mentais e na pele. Veja, essas erupções lhe causam muito sofrimento.
- E ele não fala?
- Não. Ele não pode falar devido à sua deficiência mental.
Rosa estava impressionada. Teve a intenção de sair de lá, mas controlou-se. Rapidamente fez sentida prece. Seu coração sossegou. Em seguida, pousou levemente a mão na cabeça de Alberto. Os olhos do garoto fixaram-se em Rosa. Começou a agitar-se.
- Não se assuste, Rosa. Esta é a maneira que Alberto encontrou para se expressar. Ele gostaria de abraçá-la.
Rosa abaixou-se. Olhando nos olhos de Alberto, sem perceber, disse-lhe:
- Eu o perdôo. Esqueça o passado. Cada um fez o melhor que pôde. Estarei ao seu lado no que for preciso.
Lágrimas banhavam o rosto do menino. Delicadamente ele tomou as mãos de Rosa e levou-as aos lábios. Flora olhou para ambos com os olhos marejados. Sentiu um agradável cheiro de perfume. Suas tias estavam lá. Sem que Rosa notasse, orou agradecida:
- Obrigada, tias. Eu sabia que Rosa e Alberto iriam se encontrar. Agora sei que tudo está certo.
Rosa, passada a emoção, levantou-se e recompôs-se. Passou para outra criança.
- E esta aqui, dona Flora?
- Esta garotinha chama-se Brenda. Tem sérios problemas na garganta, o que a impede de falar. É deficiente mental, como Alberto. E este outro é seu irmão gêmeo Aramis, que é surdo-mudo.
- Mas, dona Flora, é incrível. Os dois não falam mas ficam assim grudados?
- Isso é muito interessante. Aramis não desgruda um instante de Brenda. Estão assim desde que vieram para cá. Mesmo deficientes, eles expressam o amor que sentem um pelo outro. Nossa equipe está estudando com afinco esses dois. Esperamos, através de passes, medicamentos e tratamento adequado, além de outras terapias, melhorar-lhes o corpo, a mente e o espírito.
- Mas que horror viver assim...
- Não diga isso. Achar um horror é desacreditar que Deus não está ao nosso favor. A vida nunca se engana. Ela sempre faz o certo. Não sei por que esses espíritos nasceram dessa maneira, mas garanto que alguma razão nobre deve haver. O homem engana, mata, tripudia os outros e se esquece da imortalidade da alma. Esquece que estamos vivendo de acordo com as leis da vida. Podemos fazer mal ao próximo, mas nunca à vida.
- É, dona Flora, olhando por esse prisma parece-me que não podemos fugir da vida.
- Não, Rosa, não podemos. Por mais que tentemos enganá-la, a vida sempre vence.
Perto das crianças, dois espíritos lhes davam conforto espiritual. Agnes e Júlia lá estavam. Sabiam o porquê de Aramis, Brenda e Alberto estarem vivendo daquele jeito. Aos olhos humanos, tratava-se de uma desgraça. Aos olhos de Deus, tratava-se de uma bênção.



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NINGUÉM LUCRA COM O MAL
Psicografia de
Maurício de Castro
Pelo espírito Hermes


Sinopse
Ernesto perdeu a família e revoltou-se contra Deus. Jogou tudo para o alto e resolveu ganhar dinheiro com a mediunidade. Sua vida mudou. Para melhor ou para pior?
Ernesto era um bom homem: classe média, trabalhador, esposa e duas filhas. Espírita convicto, excelente médium, trabalhava devotadamente em um centro de São Paulo. De repente, a vida de Ernesto se transforma: em uma viagem de volta do interior com a família, um acidente automobilístico arrebata sua mulher e as duas meninas. Ernesto sobrevive... Mas agora está só, sem o bem mais precioso de sua vida: a família. Ele revolta-se contra Deus, não acredita no que aconteceu e decide dar um novo rumo à sua existência e à sua mediunidade. Julgando-se injustiçado por Deus, passa a trilhar os perigosos rumos das consultas espirituais pagas, do egoísmo, da fama e da riqueza ilusória.
Mas a Lei de Ação e Reação é implacável. Ernesto vai sofrer as consequências de seus atos nesta mesma encarnação, sendo compelido a uma nova transformação, pela dor, para libertar-se do labirinto de confusões em que ele próprio se envolveu.
Esta é a mensagem de NINGUÉM LUCRA COM O MAL, mais um romance repleto de ensinamentos e de emoções que o espírito Hermes traz ao público pelas mãos do médium Maurício de Castro, uma obra que nos chama à responsabilidade sobre o que queremos efetivamente fazer das nossas vidas, a material e a espiritual.



Maurício de Castro

Nascido em Riachão do Jacuípe, Bahia, em 30 de março de 1980, Maurício de Castro teve seu primeiro contato com o Espiritismo aos 14 anos por intermédio das obras de Zíbia Gasparetto e de Allan Kardec, aprofundando seus conhecimentos espirituais no Centro Espírita Jesus Nosso Mestre.
A sua mediunidade despontou logo aos 13 anos quando Maurício passou a sentir diversos sintomas físicos e emocionais que aparentavam alguma doença. Sem saber do que se tratava, sua família procurou vários médicos, que sempre atestavam plena saúde física e mental. Sua mãe, a professora Dalva Adelina, resolveu então procurar o auxílio da fluidoterapia e da orientação espiritual encontrando, assim, eficientes lenitivos para o problema do filho. No entanto, foram precisos muitos anos de estudo e dedicação para que maurício de castro conseguisse educar sua sensibilidade a fim de se preparar para a tarefa que lhe cabia neste mundo: a psicografia de livros.
O primeiro contato com seu mentor, o espírito hermes, deu-se em janeiro de 2004, quando escreveu seu primeiro romance. Trata-se de um espírito desencarnado ainda jovem, aos 25 anos de idade na década de 30, na cidade de São Paulo, e que encontrou na espiritualidade sua missão: levar à terra histórias com ensinamentos espirituais visanedo o despertar da consciência para a Nova Era em que vivemos.
Sem saber, desde a infânciaMaurício de Castro já era inspirado por esse amigo a escrever textos, contos, peças teatrais e a amar
A literatura.
Atualmente, além de psicografar, Maurício de Castro participa ativamente das reuniões de estudo sobre a mediunidade no centro espírita Cascata de Luz. É formado em História pela Faculdade de Tecnologia
E Ciências de sua cidade e trabalha na área de educação.
Outros trabalhos estão em produção pela dupla maurício de Castro e espírito Hermes, uma sintonia bem afinada que promete trazer a muitos esnsinamentos de suma importância para o desenvolvimento espiritual do Homem.



NINGUÉM LUCRA COM O MAL
Psicografia de
Maurício de Castro
Pelo espírito Hermes
Aos meus pais Dalva Adelina Carneiro e Pedro Silva Castro, com muito amor.

Durante a psicografia deste livro, em 2006, enfrentei algumas dificuldades que só pude vencer com o apoio de amigos deste e do outro lado da vida, aos quais deixo aqui meus sinceros agradecimentos: Hermes, Elisa Masselli, Zibia Gasparetto, Marcelo Cezar e Sandra Carneiro.
A todo o núcleo familiar: meus pais,Vandira, Denner, Marinalva e todos os outros, por sempre estarem ao meu lado, irradiando paz, confiança e coragem.

A todos vocês, muita luz!



Falando aos leitores
A mediunidade é uma faculdade inerente a cada um de nós, mesmo desencarnados. Ignorando o poder que essa ferramenta divina tem de produzir conhecimento, facultar consolo, iluminar consciências, derrotar a morte, muitos têm deturpado sua função, conspurcando, assim, a própria consciência e fazendo-a instrumento de desequilíbrio e maldade, ódio e vingança, numa simbiose infeliz com espíritos ainda ignorantes.
Ao trazermos à Terra esta obra, desejamos mostrar como é difícil e sofrível a trajetória de médiuns que, invigilantes, optam por caminhos obscuros, em que a ambição e os interesses terrenos predominam, atraindo para si o sofrimento reparador que tanto pode acontecer no mundo quanto na erraticidade.
Nosso planeta está mudando rapidamente. Enorme quantidade de sensitivos de todos os níveis surge a cada instante, como necessidade do Novo Mundo. Urge que a mediunidade seja tratada como deve: com seriedade, disciplina e respeito. O não cumprimento desses deveres sagrados para com a faculdade que ora temos como empréstimo é o que ocasiona muitas neuroses, depressões, psicoses e outras doenças físicas de difícil tratamento, oriundas das obsessões severas dos espíritos desejosos de nos levarem à queda.
Que nessa despretensiosa narrativa o leitor encontre elementos que julgue relevantes para sua melhoria como ser humano, como espírito imortal que é e, consequentemente, como médium, na grande e maravilhosa tarefa de ser intérprete de inteligências extrafísicas, numa verdadeira ligação entre os dois mundos. E que, nesse sentido, não esqueçamos as palavras eternas do Mestre Jesus: "porque muitos serão os chamados, mas poucos serão os escolhidos".

Hermes 19.3.2008



Sumário

Prólogo
Capítulo 1 A fragilidade da fé
Capítulo 2 O pacto com as trevas
Capítulo 3 A manipulação do destino
Capítulo 4 Influências maléficas
Capítulo 5 A chegada de Eduardo
Capítulo 6 Negócios escusos
Capítulo 7 O amor e o apego
Capítulo 8 O casamento e as convenções sociais
Capítulo 9 Vítima da maldade
Capítulo 10 O desespero de Alice
Capítulo 11 Convivendo com o sentimento de culpa
Capítulo 12 O despertar do amor
Capítulo 13 Conhecendo a espiritualidade
Capítulo 14 A procura de auxílio
Capítulo 15 Mãe Márgara e a magia do bem
Capítulo 16 O regresso de Arnaldo
Capítulo 17 O rompimento com as forças do mal
Capítulo 18 O envolvimento de Ingrid
Capítulo 19 O preço da ambição
Capítulo 20 A transformação de Ernesto
Capítulo 21 O desabrochar do amor
Capítulo 22 O acidente
Capítulo 23 A declaração de Eduardo
Capítulo 24 A confissão de Ernesto
Capítulo 25 A volta de Márcia e Lívia
Capítulo 26 A conscientização de Arlete
Capítulo 27 A provação de Ingrid
Capítulo 28 A aflição de Ernesto
Capítulo 29 A gravidez
Capítulo 30 O psicopata
Capítulo 31 A importância da fé
Capítulo 32 Tempo de perdão
Capítulo 33 O reencontro de almas
Capítulo 34 A doença de Ernesto
Capítulo 35 A cura pela redenção
Epílogo


Prólogo
Era um magnífico fim de tarde quando Ernesto e sua esposa, Mariana, arrumavam as malas para a viagem que fariam no dia seguinte pela manhã. O fim de semana prometia ser muito divertido em Guararema, e Ernesto sentia que precisava desse descanso. Trabalhava durante a semana num banco e à noite era freqüentador assíduo de um centro espírita, onde militava como médium.
Agradecia a Deus pela família bonita que tinha constituído. Suas filhas estavam crescidas e eram saudáveis e inteligentes -Márcia, com sete anos, e Lívia, com cinco. Elas e a esposa eram todo o seu tesouro.
Colocaram as roupas nas malas e Ernesto telefonou para sua mãe confirmando a viagem. Guararema tinha se tornado uma cidade muito bonita, próspera e era lá que os pais de Ernesto viviam desde que nasceram. Havia muito tempo que não os visitava.
A manhã do sábado estava radiosa e, enquanto colocavam as malas no bagageiro, Mariana comentou:
—Você dormiu pesado esta noite e nem percebeu que levantei diversas vezes.
- Levantou-se? Por quê?
— As meninas não dormiram bem, tiveram pesadelos. Márcia gritou muito e Lívia acordou chorando. Fiquei um bom tempo com elas até que adormecessem.
— Orou? Pode ter sido influência de espíritos obsessores. Ela pensou e respondeu:
— Confesso que não rezei, pois como aqui já se ora bastante, não achei que fosse precisar.
— Devemos sempre orar, nunca é demais. Nunca se sabe quando nossos inimigos estão por perto para atacar. Mas não se preocupe, sendo ou não um ataque de espíritos das trevas, nós somos muito protegidos. Frequentamos o centro, não fazemos nada de errado, procuramos seguir todas as normas, então por que seríamos atacados?
Mariana, que havia se tornado espírita por influência do marido, acabou concordando com o que ele disse. E sem dar maior importância ao caso, colocaram as meninas no carro e iniciaram a viagem.
Os 78 quilômetros que separavam a grande São Paulo daquela cidade interiorana pareceram voar, de tão rápido que foi o trajeto. Logo eles estavam na casa de dona Lúcia e seu Anselmo, que os receberam com muito prazer e carinho.
Após as boas-vindas foram fazer um passeio pela cidade e, tanto Mariana quanto Ernesto, se admiravam com tudo o que viam. Márcia e Lívia não paravam de perguntar sobre tudo, deixando os pais em situações embaraçosas e engraçadas.
Durante o almoço, dona Lúcia perguntou:
— E então? Como anda a vida em São Paulo?
— Muito agitada como sempre. Levo mais de uma hora todos os dias para chegar ao banco. Viver lá é um desafio, ainda mais sendo pobres. Já aqui parece um paraíso, por isso é que se vive bem e com saúde. A senhora mesmo chegará aos cem anos.
Todos riram, ao que dona Lúcia retorquiu:
- Gostaria de acreditar nisso, mas nossa Guararema perde para outras cidades paulistas em qualidade de vida. O progresso ajudou, mas também trouxe muitas coisas negativas.
Ernesto mudou de assunto.
- Notícias do Bruno e da Elza?
—Aqueles lá são uns ingratos — falou seu Anselmo, soltando o garfo e zangado. - Enquanto você, meu filho, não vem sempre aqui porque não pode, eles têm vida folgada. Ficaram ricos e esqueceram que têm pai e mãe velhos.
- Não diga isso, papai, eles têm muitas tarefas no Rio de Janeiro. Trabalham numa empresa que lhes toma boa parte do tempo, tente compreender.
- Nunca poderei entender essa ingratidão. Filhos são para toda a vida, aliás, não os considero mais meus filhos. Você, sim, sempre tão simples e bom! Já aqueles dois, desde pequenos, cheios de ambições, desejos de riqueza. Sentiam até vergonha de nós. Aqueles malditos!
Seu Anselmo deixou o prato e saiu da mesa. Falar dos outros filhos o fazia passar mal. Ernesto tentou se desculpar.
- Nossa, mãe, eu não sabia que o pai ficava assim ao falar dos meus irmãos. Se soubesse nem tinha perguntado.
Dona Lúcia fez um ar triste.
- É sempre dessa forma. O velho fica triste e não entende por que eles agem assim. Confesso que também não consigo entender. Bruno e Elza conseguiram um emprego numa multinacional e foram embora. No início gostamos, pois era uma oportunidade de progresso para eles, mas depois deixaram de nos procurar. As cartas que enviavam semanalmente e os telefonemas rarearam, e atualmente não recebemos nenhuma notícia. Faz dois anos que não sabemos deles.
Ernesto se entristeceu. Dona Lúcia, querendo mudar de assunto, perguntou:
- Como estão os trabalhos no centro espírita? Os olhos de Ernesto brilharam quando disse:
- Maravilhosamente bem. Desde que me descobri médium e iniciei meus trabalhos me sinto outra pessoa. Aquelas crises de depressão e euforia que me abalavam acabaram e hoje estou perfeitamente equilibrado. Ser médium é uma missão árdua. Nós sofremos muito, mas seremos recompensados na outra vida.
Dona Lúcia o beijou com carinho.
- Sempre admirei sua fé, tão diferente de nós, que somos católicos.
- Minha fé é que me ajuda a viver. Todos os dias agradeço a Deus por ter conhecido o espiritismo.
Ele continuou falando do centro onde trabalhava, das reuniões doutrinárias, das campanhas assistenciais, das curas que ocorriam, de tudo. Depois foram para a sala, onde seu Anselmo, já com bom humor, brincava com as netinhas.
No domingo foram visitar mais uma vez os recantos bonitos da cidade e, quando estava a sós com o marido, Mariana voltou a comentar:
- Novamente as meninas tiveram pesadelos. Foi um custo fazê-las adormecer.
- Mais uma vez nada percebi. Você perguntou com o que elas sonharam?
-As duas tiveram o mesmo sonho: um carro sendo jogado a longa distância, um acidente, pessoas morrendo... Confesso que estou começando a me assustar.
Ernesto não deu importância. O lugar onde estavam era maravilhoso, havia uma ponte sobre um riacho cheio de quedas-d'água. De repente, olhou para sua mulher com intensidade.
- Quantas vezes eu já disse que te amo? Ela sorriu.
- Muitas vezes, todos os dias.
Eles se beijaram. Mais uma vez ele perguntou:
- Quantas vezes já disse que você é tudo para mim?
- Bobo! Ainda hoje pela manhã você disse.
Ele olhou profundamente nos olhos da esposa e falou:
- Escute bem o que vou te dizer: nada é mais importante em minha vida do que você e as meninas.Tudo farei para tê-las sempre por perto. Eu as amo muito e nem a morte irá nos separar.
Mariana sentiu um arrepio.
-Você me emocionou tanto que me arrepiei. Nunca falou dessa forma. Sei disso, nem a morte vai nos separar.
Dona Lúcia, que estava com as crianças, chegou interrompendo o momento de emoção.
A tarde estava findando quando eles se despediram e se colocaram na estrada que, apesar de ser um domingo, estava muito movimentada. No banco traseiro as duas meninas dormiam. De repente, uma fumaça começou a encobrir a pista. À medida que a fumaça aumentava, Ernesto não conseguia enxergar nada a sua frente, só sentia a mão de Mariana apertando a sua.
Uma carreta que vinha na contramão, sem visibilidade, chocou-se contra o carro de Ernesto, que foi arremessado longe. Com o susto, o motorista da carreta, que nada sofreu, foi socorrer as vítimas. Das quatro pessoas do carro, apenas uma havia sobrevivido.
1
A Fragilidade da Fé
Foram momentos de desespero para todos. Os pais de Ernesto e a família de mariana compareceram ao enterro e tiveram de tomar todas as providências, porque Ernesto, o único sobrevivente, encontrava-se internado em profunda depressão. No acidente ele nada sofrera, além de poucos arranhões, mas a perda da família o deixara prostrado e sem gosto pela vida. Gritava, chorava e culpava Deus por aquele destino infeliz.
Os dias foram passando e Ernesto não melhorava, tendo de permanecer internado em uma clínica psiquiátrica. Naquele momento sua fé, seus conhecimentos e o ideal pelo qual lutara tantos anos pareciam não ter nenhum efeito. Frustrado e desiludido, Ernesto descobriu que a teoria é muito diferente da prática. Seu estado foi se agravando e ele tentou o suicídio por diversas vezes.
Os amigos do centro espírita, em oração, pediam a Deus ajuda para o amigo que durante tantos anos consolou pessoas e com seu dom de oratória emocionara o público com palestras acerca de vida após a morte, revelando muito conhecimento e sabedoria. Eles não conseguiam entender porque Ernesto reagia daquela maneira.
Após dois meses de internação, ele saiu do hospital. Mas, ao chegar em sua casa acompanhado pelos pais e amigos, teve outra crise forte, relembrando cada momento de alegria, encantamento e felicidade que havia vivido ali. Lembrou-se do sorriso terno de Márcia, do restinho inocente de Lívia a lhe pedir carinhos, da esposa, amiga e companheira de tanto tempo e pediu:
- Mãe, pai, não desejo ficar nessa casa que tantas recordações me traz. Quero sair daqui e ficar com vocês em Guararema. Preciso apenas pedir licença de meu trabalho, o que resolvo em poucos dias. Tenho medo da solidão. Sei que a partir de hoje não desejo mais viver e vou me entregar à tristeza e à depressão, mas quero esquecer essa casa. Aqui não consigo ficar nem um instante sem me lembrar dos momentos de felicidade.
Antônia, frequentadora do centro onde Ernesto trabalhava, tentou ajudar:
-Você precisa reagir, amigo. Quantas vezes consolou pessoas que perderam seus entes queridos? Quantas vezes, com suas palestras, arrancou lágrimas emocionadas e confortadoras das pessoas com problemas de todos os tipos? Lembra quando o Guilherme perdeu a mulher, no ano passado? Ficou assim sem querer viver, entrou em depressão, nem os médicos conseguiram ajudar, daí você conversou com ele, falou das belezas da vida espiritual, que ele deveria se desapegar dos que partiram para viver melhor. Guilherme melhorou, hoje já reconstruiu a vida, é outro homem. Acorde! - ela falava num tom quase áspero. - É hora de ajudar a você mesmo, não pode ser fraco numa hora dessas.
Aquelas palavras despertaram em Ernesto uma fúria que ele não conseguiu controlar. Levantou-se do sofá e começou a quebrar todos os objetos da sala, jogando-os no chão e nas paredes.
As pessoas tentavam se proteger e segurá-lo, mas Ernesto estava com a força multiplicada e ninguém conseguiu.
Depois de quebrar tudo o que pôde e deixar a sala completamente destruída, vociferou:
- Pro inferno você e o espiritismo. Não acredito em mais nada, não acredito nem mais em Deus. Se ele realmente existisse não iria tirar da Terra a família de um homem bom, honesto e sensato como eu.Tudo isso é balela. A partir de hoje deixo a militância no centro e nunca mais acreditarei em nada. Vocês, do centro, esqueçam que eu existo e mais...
Dizendo isso, subiu as escadas e, de repente, voltou com as mãos cheias de livros e falou:
- Doem estas porcarias aos pobres do centro. Nunca mais tocarei em nenhum deles.
Ernesto possuía uma biblioteca grande e começou a atirar todos os livros da escada. Antônia e Sérvulo recolhiam um a um com cuidado e humildade.
Quando terminou, ele desceu com os olhos injetados de ódio e, mirando todos, disse:
- Saiam daqui! Quero apenas minha família comigo, os outros podem ir embora e nunca mais, nunca mais me procurem.
As pessoas, envergonhadas e humilhadas com a cena, saíram deixando-o a sós com os pais. Naquele instante, Ernesto chorou copiosamente no colo de sua mãe, murmurando:
-Tudo em que eu acreditava desmoronou, tudo o que tinha na vida perdi. O que farei a partir de hoje? Não quero mais viver.
Dona Lúcia, muito lúcida, respondeu:
- Você nunca viveu suas crenças com realismo, passou por elas, mas não as deixou entrar em seu espírito, enveredou pelo fanatismo. Se assim não fosse, não estaria agindo como está agora. Sou católica, não entendo muito do espiritismo, mas sei que quando as pessoas se dedicam por inteiro e procuram viver as verdades de um ideal, dificilmente se tornam descrentes. Deixei você fazer aquela cena porque sei que está fora de si e transtornado com o que aconteceu.Você é bom e nunca faria aquilo se não estivesse doente. Não pense em nada por agora. Levaremos você para nossa casa e ficaremos cuidando para que melhore. Temos fé que tudo vai se resolver. Deus é bom e não desampara seus filhos.
— Não me fale no nome de Deus, não quero ouvir.
— Tudo bem, mas agora suba e lave esse rosto que eu e seu pai vamos fazer suas malas. Vamos ainda hoje para Guararema. Depois você volta e resolve seus problemas no banco. Agora cuide de você. Em um caso como esse, toda empresa dá vários dias de folga.
Ernesto levantou-se meio tonto e subiu. Quando estavam a sós, Anselmo comentou:
-É, minha velha, vamos precisar de muita força para cuidar do nosso filho. Ele está fraco e vai nos dar trabalho.
— Nossa força e fé em Deus não vão nos deixar cair. Ele vai melhorar.
- Sinto medo de que tente mais uma vez o suicídio.
- Os médicos me disseram como lidar com isso. E preciso vigilância total, além de tirarmos todos os objetos pontiagudos ou substâncias químicas do seu alcance.
Eles interromperam a conversa, pois Ernesto havia voltado. Juntos, arrumaram as malas e no mesmo dia partiram para Guararema.
Os primeiros dias foram difíceis. Ernesto acordava com horríveis pesadelos e chorando muito. Durante o dia se recusava a comer e a tomar os medicamentos, mas com o tempo suas crises foram passando e ele começou a voltar ao normal. Todavia, um estranho brilho fixou-se em seu olhar.
Uma noite, dona Lúcia e seu Anselmo acordaram assustados. Ernesto estava sentado na cama com os olhos bem abertos e conversava sozinho. Seria uma crise de sonambulismo? Eles ficaram ouvindo o que ele dizia, mas só conseguiam escutar tudo pela metade:
- Entendi perfeitamente, meu senhor - dizia Ernesto com voz modificada. — A partir de hoje serei seu servo... Sim, farei tudo conforme o combinado... Serei muito rico? Sim? Nosso pacto está selado, minha alma agora lhe pertence.
Ernesto soltou um riso macabro, depois deitou-se e dormiu tranquilamente, sem perceber a presença dos pais.
Dona Lúcia estava sentindo calafrios e seu Anselmo, muito arrepiado, comentou:
- Mulher, o que houve aqui não foi coisa boa, não. Estou sentindo medo, nunca vi nosso filho assim. Lembro que, quando pequeno, ele conversava sozinho durante o sono, mas ficava alegre e ria. Agora sinto que foi coisa ruim.
- Eu também estou muito assustada, vamos rezar?
Os dois foram para o quarto, acenderam uma vela aos pés de uma imagem grande de Maria e começaram a rezar um pai-nosso.
De repente, uma lufada de vento muito forte entrou no recinto e apagou a vela. Dona Lúcia admirou-se, pois a casa inteira estava fechada e o teto era forrado. De onde teria vindo aquele vento? Acenderam a vela mais uma vez e o vento apagou-a novamente, impedindo-os de concluir a oração. Um pavor supersticioso tomou conta dos dois que, assustados e aflitos, foram para a cama rezando mecanicamente.
Quando acordaram pela manhã ficaram espantados ao ver Ernesto de banho tomado, barbeado, cabelos arrumados e já tomando café. Eles tinham uma empregada, chamada Alzira, que chegava cedinho, fazia o café, cuidava da casa e das roupas e à noite ia para a casa dela.
— Filho? Já de pé tão cedo? Pelo semblante está ótimo! - disse dona Lúcia, beijando-o na face.
— Não estou bem, afinal, como poderia estar? Mas hoje desejo ir a São Paulo, tenho algo urgente a fazer lá, por isso me preparei cedo.
-Vai resolver sua situação no banco?
— Também, mas outros compromissos estão me fazendo ir para lá. Pretendo vender aquela casa. Procurarei uma imobiliária e devo demorar, só à noite estarei aqui. Vamos tomar café? Só estava esperando vocês.
Seu Anselmo e dona Lúcia não notaram o brilho sinistro no olhar do filho. Ficaram contentes por ele estar reagindo e voltando à vida.
Ernesto terminou o café e pegou o ônibus para a capital. Não estava ainda em condições de dirigir. Chegando a São Paulo, parou em uma movimentada avenida e retirou do bolso um papel com anotações feitas pela manhã. Tomou mais dois ônibus e chegou a um bairro bem afastado do centro. Andou, perguntando por algumas ruas, até que parou diante de um sobrado antigo e mal conservado. Olhou um letreiro vermelho pregado na parede e leu: "Pai Wilton – Confiança e Fé".
Olhou para o papel, percebeu ser o endereço certo e disse para si mesmo:
— Hoje saberei exatamente o que ele quer de mim.



2
O pacto com as trevas
Em poucos instantes Ernesto estava sentado em frente a uma mesa simples, sem arrumação, em um quarto cheio de imagens de santos, fumaça de incenso e velas coloridas acesas. Pai Wilton adentrou o recinto e, com olhos enigmáticos, fixou-se no rosto de Ernesto dizendo:
- Eu sabia que você viria. Tanto que despachei todos os meus compromissos do dia apenas para recebê-lo. Seja bem--vindo!
- Sei que fui chamado a este lugar por um motivo forte. Não sei qual, mas a entidade que se comunicou comigo durante a noite disse que você me daria todas as instruções para que eu possa mudar de vida.
Pai Wilton sorriu e acendeu um charuto.
—Você é um bom "cavalo" mesmo. Entendeu tudo direitinho, foi privilegiado. Sabe com quem conversou durante a noite?
Ernesto fez uma negativa com a cabeça, ao que pai Wilton respondeu:
- Com Lúcifer.
Ernesto sentiu um calafrio e na mesma hora revidou:
— Mas eu sei que o diabo não existe, aprendi isso no espiritismo, sei que é uma invenção dos homens.
Soltando baforadas, o pai de santo respondeu: —Você aprendeu muitas coisas erradas naquele centro espírita, precisa mudar sua forma de pensar.
- Então quer dizer que o diabo existe mesmo?
— Não foi isso que eu quis dizer, mas essa entidade responde como se fosse ele e é muito poderosa. Se você foi o escolhido, deve saber que tem poder e é um homem especial.
Ernesto ficava cada vez mais confuso com o que se passava. De repente, recordou o sonho no qual um homem de forma animalesca lhe dizia que havia chegado a hora de cumprir sua parte no trato, e que ele deveria procurar pai Wilton em São Paulo. Disse-lhe, também, que com ele encontraria um rumo seguro para sua vida e que deveria seguir, já que perdera a mulher e as filhas para o destino. Ernesto aceitou e lembrou-se claramente que assinou, durante o sonho, um papel que selava o contrato entre ambos.
Subitamente, percebeu que pai Wilton começou a tremer muito e a suar frio. Seu rosto começou a se deformar e ele soltava grunhidos altos e fortes. Ajoelhou-se e, em posição de quadrúpede, começou a falar:
- É você meu escolhido desde muitos séculos, chegou a hora de cumprir sua parte e pagar o resto que me deve. Pensa que os anos de serviço em meu palácio foram suficientes? Deverá trabalhar para mim.
— Quem é você? — perguntou Ernesto, ciente de que conversava com a mesma pessoa que o visitou durante a noite.
- Chame-me de Belzebu. Vou instruí-lo para que faça tudo certo. Os detalhes não podem ser esquecidos. - O homem fungava e se portava como se tivesse um aleijão. - Preste muita atenção! Sua vida mudou, sua mulher e suas filhas morreram naquele acidente. Não há mais razão para viver. Ao mesmo tempo, você nasceu com uma qualidade especial, pode servir aos espíritos. Vamos iniciá-lo no conhecimento das energias ocultas da natureza, e por isso pouco conhecidas pelos homens.
— Qual o objetivo?
— Um dia saberá o motivo de tudo isso.Você, a partir de hoje, vai vender sua mediumdade e trabalhar para nós.Vai se instruir com Wilton e fundar seu terreiro. Pessoas vão procurá-lo para os mais diversos tipos de trabalho, separação, amarração, morte, doenças...Você vai servir às trevas.
Ernesto estava assustado. De repente, pensou na lei de causa e efeito e respondeu:
— Não! Não farei isso. Se for para trabalhar dessa forma, não aceitarei.
O espírito sorriu malicioso.
— Não deseja ser rico, milionário?
— Sim, sempre desejei, mas sempre ocultei esse desejo. No fundo, invejava os meus irmãos, que têm ótimos empregos e vida farta. Sempre me questionei por que só eu levava uma vida apertada e sem recursos.
— Pois, então, esta é a hora! Esses trabalhos não são feitos de graça e, para realizar o que pretendem, as pessoas não titubeiam em pagar qualquer quantia. Em pouco tempo ficará muito rico, até mais que seus irmãos.
— Mas o pai Wilton é pobre, vive nesta casa velha e sem conforto. Como acreditar no que você me diz?
-Você acha mesmo que ele mora aqui? Aqui é simplesmente seu ambiente de trabalho. Pai Wilton tem clientes importantes, artistas de renome, políticos famosos.Tem muito dinheiro. Com você ocorrerá o mesmo.
Ernesto sentiu-se tentado em seu ponto mais fraco, e que escondia de todos: a ambição. Não resistiu.
-Aceito, sim. A partir de hoje vou vender minha mediunidade. Sempre trabalhei de graça e nunca tive nada. Vivia com um salário ínfimo que mal dava para as despesas. Agora perdi minha família e não tenho mais motivo para continuar vivendo. A partir de hoje viverei para acumular riquezas e ter tudo de material com que sempre sonhei.
— E assim que se fala, agora estou reconhecendo o Aristides de sempre. Sabia que você não tinha mudado, sempre correndo atrás do ouro.
— Como farei?
— Acerte tudo com o Wilton, e quando iniciar a tarefa estarei ao seu lado. Sua alma agora é minha.
Ernesto teve uma sensação desagradável e vários estouros foram ouvidos no ambiente. Um cheiro forte de enxofre fez com que ele tapasse o nariz. Quando percebeu, já estava com pai Wilton em posição normal à sua frente.
— Parabéns. Sei que não se arrependerá da escolha que fez.
— Não me arrependerei. Se for esse o caminho que tenho de seguir, que seja assim. O que faço agora?
-Você vai aprender tudo comigo. Não gosto de concorrentes, mas se Belzebu pediu que fosse com você, é porque deve ser, e a ele não desobedeço. Comigo você conhecerá todos os rituais de enfeitiçamento, fará sua iniciação e aprenderá todas as técnicas de magia negra.
— Sempre pensei que macumba não existisse.
— Pensou errado. Existe, sim, e só as pessoas que estão inteiramente livres de seu carma é que são imunes aos seus efeitos.
- Como se processa o enfeitiçamento?
- Há muitas maneiras, mas a mais comum é feita pelo hipnotismo de entidades desencarnadas. Praticamente todo o serviço é feito por elas. Mas não fazem de graça, elas exigem muitas coisas, principalmente o sangue humano e de animais.
Ernesto estava estupefato.
- O que elas fazem com o sangue?
- Essas entidades são vampiros que se revigoram com a energia do plasma sanguíneo de animais e pessoas. Depois explico melhor.
Ernesto saiu atordoado daquele ambiente e mal falou com uma moça que trabalhava como atendente. Uma vez na rua, tomou o ônibus e, durante o trajeto, foi pensando. Não poderia pedir demissão do seu emprego no banco até ver se iria realmente obter lucro. Havia combinado com pai Wilton que passaria duas semanas com ele para aprender tudo. O que diria a seus pais?
O dia passou rápido e, ao entardecer, Ernesto já estava com os pais em casa.
Durante o jantar, dona Júlia perguntou:
- Resolveu tudo, filho?
- Procurei uma imobiliária e coloquei a casa à venda — mentiu. - No banco, a situação está regularizada, tenho alguns dias de licença ainda. Mas preciso conviver com a realidade, quero voltar a São Paulo e ficar na minha casa até que consiga vendê-la.
Anselmo protestou.
- Mas já, filho? Não posso concordar. Você ainda está muito abatido e ficar lá sozinho pode agravar sua depressão. Não deixarei.
- Eu também não. Há poucos dias você ainda pensava em suicídio.
A conversa continuou, e ele resolveu contemporizar. - Pensarei melhor, mas fugir não adianta, preciso retomar minha vida.
Demorou mais algumas semanas até Ernesto conseguir convencer os pais de que seria melhor ele morar sozinho em sua antiga casa. Dona Lúcia o fez prometer notícias diárias, e assim ele partiu.
Dias depois, começou a aprender sua nova "profissão". No começo, assustou-se com tudo o que viu, mas depois foi se acostumando e ganhando mais entusiasmo.
O tempo passou, ele abriu o próprio local de consultas e iniciou os trabalhos. Não vendeu a casa em que viveu com a família, e depois de muitas desculpas acabou convencendo os pais de que estava bem e recuperado da perda. Lúcia e Anselmo, com o tempo, deixaram de se preocupar com o filho e esqueceram por completo o seu comportamento estranho e o que viram na noite em que Ernesto se entregou completamente às ilusões do mundo e ao caminho do mal.


3
A manipulação do destino
Lucrécia atirou longe uma revista de fofoca que lia sem prazer. Tentava acalmar os pensamentos, mas não conseguia. Estava difícil aceitar a separação. Afinal, uma mulher com mais de cinquenta anos separada, além de não ser mais bem-vista na sociedade, também não era bem-vista pelos homens. Ao pensar que poderia terminar sozinha, sem ninguém por perto, além dos empregados, ela enlouquecia.
Levantou-se da cama e abriu as persianas. Olhou o jardim de sua suntuosa mansão e viu a piscina onde se divertiu muito com o marido e os filhos, deixando que lágrimas teimosas escorressem do canto dos olhos.
Lucrécia Brandão havia se casado muito cedo. Conheceu Arnaldo ainda muito moça e por ele se apaixonou, foi correspondida e logo estavam casados, vivendo um sonho de amor. Durante vinte e sete anos foram felizes. Até que um dia ele chegou diferente, dizendo que iria arrumar as malas e deixaria aquela casa. Não adiantou ela insistir e implorar; ele confirmou estar amando outra e que, por Alice, deixaria tudo.
Recordando esses momentos, ela voltava a chorar. Como não percebeu que ele estava diferente? Não a procurava mais e suas amigas diziam que era até normal, com tantos anos de casamento. Ela não insistiu até o dia em que descobriu a verdade: fora trocada por uma mulher mais jovem e bonita.
Isso acontecera havia um ano, e ela ainda não tinha se acostumado. Rolar na cama à procura do ombro amigo que havia dormido com ela tantos anos e encontrar o vazio era muito doloroso. Muitas vezes, passava as noites em claro imaginando o que eles estariam fazendo. Arnaldo era um engenheiro civil muito famoso e constantemente saía em revistas da moda. Certa vez, viu uma foto dele com Alice. Ela era uma moça de, no máximo, vinte e cinco anos, morena, cabelos escorridos, alta e magra. Não poderia nunca competir com ela. Olhou-se no espelho e viu uma senhora que, apesar de manter o rosto conservado, trazia um corpo um tanto gordo, cansado e mostrando o peso da idade.
Mesmo estando depressiva, Lucrécia não deixou sua vida parar. Continuava a frequentar o cabeleireiro, os lugares da moda, sempre acompanhada por algumas amigas, mas percebia que, por estar separada, já não era tão requesitada quanto antes. Ela não havia aprendido uma profissão, portanto, tinha de ocupar o dia com futilidades e viver da renda dos imóveis que herdara do pai, um barão do café.Tinha dignidade e não podia aceitar o dinheiro que Arnaldo lhe ofereceu como espécie de mesada.
Resolveu descer e tomar o café na cozinha. Quando terminou, foi para a sala e largou-se no sofá. O que ela faria naquele dia? Estava se sentindo mais só e entediada do que de costume e não estava com a mínima disposição para shoppings, cinemas e tudo o mais que São Paulo oferecia.
Estava assim indecisa quando ouviu o som de carro na garagem. De repente, a porta se abriu e sua filha Arlete entrou. Era uma mulher alta, loura como a mãe, pele rosada e dentes alvos. Lucrécia admirou-se:
-Você? O que faz aqui?
Arlete sorriu.
- Há meses que não a vejo e é assim que me recebe? As duas se abraçaram e trocaram beijos.
- Ah, filhinha, é que você sair do Rio de Janeiro e vir a São Paulo a essa hora do dia só pode ser tragédia. Conte-me tudo.
- Mamãe, olha o drama, nenhuma tragédia aconteceu. Vim por um motivo muito especial. Enquanto o Gustavo descarrega minhas malas, vamos para o jardim? Lá poderemos falar melhor.
Lucrécia estava cada vez mais intrigada.
- Malas? Então é mais sério do que imaginei.Você vai deixar seu marido lá sozinho? Logo você que é um poço de ciúme?
- O Bruno vai ficar sem mim, mas acredito que por pouco tempo. Acho que em apenas uma semana resolverei o que pretendo aqui.
Lucrécia agarrou sua mão e a puxou para o jardim. Sentadas num banco, ela indagou:
- O que, afinal, está acontecendo?
Arlete abriu sua bolsa e retirou um cartão. Olhou para a mãe e disse:
- Leia.
Lucrécia leu e começou a sorrir.
- Mas esse é o cartão de um pai de santo. O que você pode querer com um tipo desses?
Arlete, com os olhos num ponto distante, disse:
- A senhora sabe o quanto amo Bruno e quanto sou ciumenta e possessiva. Não desejo terminar separada como a senhora. Estou desconfiada de que ele anda de olho numa colega de trabalho. Tentei perguntar para a Elza, irmã dele, mas ela negou. Eu não acreditei. Bruno e Elza são muito ligados, ele pode estar me traindo e ela, dando cobertura. Foi aí que numa manhã, ao entrar na cozinha de meu apartamento, encontrei minha empregada e outra amiga conversando sobre um pai de santo famoso de São Paulo. Interessei-me pela conversa por curiosidade e acabei entrando no papo das duas. Gabriela saiu de São Paulo para morar com os patrões no Rio e havia descoberto que eles conseguiam tudo quanto desejavam por meio da magia. Conseguiram emprego, dinheiro, destruíram concorrentes, tudo com rituais de enfeitiçamento.
Lucrécia estava incrédula:
- Como pode! Isso é bobagem, coisa de gente ignorante. Essas coisas não existem. Até você caiu numa história dessa?
Arlete fez ar sério.
- Mamãe, se eu fosse a senhora não duvidaria tanto, e ainda iria lá comigo para tentar melhorar de vida. Sei que ainda ama o papai e faria tudo para tê-lo de volta. Em vez de ficar aí nessa incredulidade, deveria fazer algo por si mesma.
Lucrécia não acreditava no que ouvia.
- Não posso crer que você acredite numa coisa dessas. Sempre foi tão cética! Nunca se dedicou a nenhuma religião, nem mesmo à nossa, católica, nunca foi nem de rezar...
- Eu mudei muito, e depois quero experimentar para ver se realmente esse homem é sério. Fui me informar melhor e soube que até políticos cariocas o procuram. Se gente da alta está metida com isso, é porque deve dar algum resultado.
Lucrécia sentiu-se arrepiar.
- Não gosto de falar nessas coisas. Também nunca fui dada à religião e nem acredito em quem lida com forças ocultas. Vá você, se quiser, e deixe-me com minha vida.
Arlete riu maliciosa.
- E não vai querer o papai de volta? Tem certeza?
- Pare com isso, menina, vamos mudar de assunto. Como vão os negócios do Bruno?
Elas continuaram a conversar e logo se esqueceram do assunto anterior.
Ernesto se modificou bastante com o passar dos anos. Estava mais velho, carrancudo e com uma expressão soturna no olhar. Assim que percebeu que seu novo "negócio" produzia rios de dinheiro, pediu demissão do banco e passou a se dedicar exclusivamente à magia. No princípio, eram casos corriqueiros de amor e paixão, mas, com o tempo, os problemas envolvendo dinheiro começaram a surgir, heranças, dívidas, títulos, e Ernesto foi se prendendo cada vez mais às energias negativas do astral inferior. Não demorou para que pedidos de morte começassem a acontecer, e ele, cada vez mais envolvido e descobrindo que tinha grande poder, os realizava.
Não se mudou de sua antiga casa. Procurou reformá-la e construiu um cômodo no quintal, que servia como ambiente de consultas. Logo, Ernesto estava com muito dinheiro. A notícia de que ele havia se tornado um pai de santo caiu como uma bomba na casa de seus pais. Seu Arnaldo tentou tirar o filho desse caminho a todo custo, mas não conseguiu. Dona Lúcia adoeceu e ficou internada durante um tempo sem se conformar com a escolha do filho. Mas, com o passar do tempo, acabaram aceitando, pois Ernesto passou a mandar mensalmente uma boa quantia para eles.
Tudo assim resolvido, ele se sentia cômodo. Não seria mais feliz mesmo, pois a família que ele tanto amara morreu tragicamente. Ele não acreditava mais na bondade de Deus, como um dia aprendera no centro espírita. Achava que Ele era mau e perverso, por isso estava pagando na mesma moeda. Se o mal tinha mais poder, então era no mal que ele iria ficar. Nunca mais se interessou por nenhuma mulher e, apesar de às vezes ser requestado por algumas clientes, ele sempre negava.
Naquela tarde, ele estava atarefado. Tinha atendido clientes complicados, com situações extremamente complexas, e não queria estar com mais ninguém, porém Fernanda entrou na sua sala dizendo:
- Pai Ernesto, há uma cliente que pegou um engarrafamento e só pôde chegar agora, já estava agendada, o que vamos fazer com ela?
De mau humor, ele respondeu:
- Diga-lhe que volte amanhã.
— Tentei explicar que o senhor estava exausto, mas ela disse que paga o que for preciso. Ela mora no Rio de Janeiro e não pode demorar muito na cidade.
Ernesto pensou que podia ser mais uma milionária e resolveu atender.
Arlete entrou e percebeu que o ambiente era diferente do que ela imaginava. A sala em que Ernesto trabalhava era muito asseada e arrumada com apuro. Muitas velas de diversas cores, muitas imagens que ela não conseguia identificar e, acima da cadeira onde ele se sentava, um quadro grande de um ser com chifres que a fez tremer de pavor.
— O que a trouxe aqui? — perguntou Ernesto, mecanicamente e com voz melíflua.
Arlete sentiu uma sensação estranha e teve vontade de sair correndo, mas resolveu ser firme.
- Ouvi falar que tem poder e que pode deixar um homem preso a uma mulher para sempre. Pois bem, sou casada há quatro anos, meu marido tem porte atlético, aonde vai arranca suspiros das mulheres. Sou muito insegura, vivo armando confusões e pagando detetives para segui-lo. Minha vida é um inferno! Quero que faça um trabalho para mantê-lo fiel a mim sempre e também para que deixe o interesse por uma colega de trabalho. Há tempos venho percebendo que outra mulher tem mexido com ele.
Ernesto ouvia sem muita paciência, era mais um caso de ciúme e insegurança ao qual ele estava muito habituado. As pessoas inseguras chegam a qualquer extremo para conseguir o que querem, com essa não seria diferente.
- Primeiro precisamos jogar o taro e ver o que as cartas dizem.
- Como? Taro? Não vim aqui para esse tipo de coisa, quero algo mais prático.
Ernesto olhou-a no fundo dos olhos enquanto disse:
- O taro é um meio importante de conhecer qualquer situação, inclusive o passado e o futuro. Ademais, comigo essa prática é bem diferente, enquanto olho para as cartas, as entidades vão me dizendo ao ouvido tudo o que preciso saber. Vamos ao jogo?
Arlete estava incrédula, mas pegou o volumoso baralho, misturou e cortou, como Ernesto pediu. De repente, ele começou a se modificar, os olhos ficaram vermelhos e a voz, alterada:
- Seu marido é alto, moreno e tem cabelos castanhos jogados no rosto. Apesar de não ver o seu rosto, vejo-o trabalhando numa grande empresa. Ele cresceu financeiramente cedendo veículos ao tráfico de drogas carioca. Ele e a irmã são aliados de traficantes poderosos e ricos e têm enorme fortuna. Demorou um tempo e continuou:
- Ele tem outra mulher. Sua amante é Diva, uma mulher da periferia. Esqueça a Dione, que é secretária do seu marido e não tem interesse por ele; ela não lhe oferece nenhum perigo. Há dois anos Bruno e Diva se encontram e você não percebe.
Arlete sentiu o ar faltar, uma tontura se apossou de seu corpo e ela desmaiou. Fernanda entrou e, após alguns minutos, conseguiu reanimá-la. Já refeita, ela fez Ernesto repetir tudo o que já havia dito.
Após concluir, Ernesto falou:
- Não precisa se preocupar, meus guias dizem que podem neutralizar a situação. Se fizermos um bom trabalho, ele não só a deixará como ficará para sempre ao seu lado e fiel.
Arlete, muito nervosa, questionou:
- O que preciso fazer? Seja o que for, estarei disposta.
- Seu caso é simples, você precisa trazer ainda amanhã uma peça íntima usada por ele e um fio de cabelo.
- Não tenho como, não moro em São Paulo. Seria impossível. Ernesto olhou-a e falou com voz cobiçosa:
- Para você é impossível, para mim, não.
- Como assim?
- Se me pagar o que é justo, posso trazer do Rio uma peça íntima e um fio de cabelo dele sem nenhum problema.
Ela estava curiosa.
- Como pode fazer isso?
- Nunca ouviu falar em fenômenos de transporte?
- Não, nem sei o que é isso. Ele explicou:
— É simples, com um médium de efeitos físicos conseguimos trazer objetos, plantas, animais e até pessoas para onde queremos, não importando a distância.
— Como assim? Que loucura é essa?
— Loucura nenhuma. São fenômenos naturais, porém o homem não os estuda, não os conhece. Tenho um médium para esse tipo de serviço, mas ele, assim como eu, cobra caro. Com a ajuda desse médium, traremos a sunga e o cabelo de lá para cá sem que ele perceba.
Arlete estava confusa: "Aquilo poderia mesmo acontecer?" Ernesto continuou explicando:
— A peça vai desaparecer e, quando ele der conta, o trabalho já estará feito. Muitos dos objetos das pessoas que somem estão sendo usados em trabalhos desse tipo.Vamos imantar a sunga e o cabelo com as energias que precisarmos, e ele será só seu.
— Estou muito confusa com tudo isso, não sei se quero... Ele a interrompeu.
— Se não fizer isso, perderá seu marido para outra, além de terminar sozinha como sua mãe. Aliás, diga a ela que ainda está em tempo, Arnaldo pode voltar e deixar a Alice.
Arlete já não tinha mais dúvidas, aquele homem era um verdadeiro bruxo.
Após pagar a consulta e dizer que voltaria no dia seguinte, ela saiu. A casa de sua mãe ficava em Moema, e ela estava distante. Teria de pegar um caminho mais fácil para evitar o engarrafamento. Quando chegou em casa, assustada com tudo o que viu e ouviu, chamou a mãe para o quarto.
— Mãe, o homem é realmente bom. Praticamente não abri a boca e ele falou tudo sobre mim.
Lucrécia continuava incrédula.
— Esse tipo de gente sabe que quando uma mulher os procura é porque está sendo traída ou querendo conquistar alguém. E só ter um pouco de raciocínio, falar o que elas querem ouvir e pronto, está feita a consulta.
- Não! Esse é dos bons, valeu a pena ter vindo do Rio para cá. Descobri que Bruno me trai com uma fulana chamada Diva, e não com Dione, como suspeitava. Ele descreveu meu marido perfeitamente e, ao final, mandou um recado para a senhora. Disse, com todas as letras, que Arnaldo poderia deixar a Alice e voltar para casa.
Um arrepio percorreu o corpo de Lucrécia, que disse:
- Não brinque com isso! Como esse homem poderia saber sobre minha vida com seu pai?
— Ele é realmente um médium capaz de ler os pensamentos das pessoas. Mãe, preste atenção, vá comigo amanhã na hora de minha consulta e aproveite para se consultar também. Se há chances de o papai voltar para a senhora, por que não tentar?
— Não sei se devo...Tenho medo dessas coisas. Nunca parei para pensar na existência de seres de outro mundo. Não, não vou! — falou muito segura.
Arlete insistiu, tocando em seu ponto fraco:
- E vai querer continuar nesta solidão? Morando nesta casa enorme, completamente sozinha sem o seu tão amado marido? Vai permitir que ele viva feliz ao lado de outra, sendo que pode mudar o rumo do seu destino?
Lucrécia parou para refletir. Sua vida estava realmente muito difícil.Tinha tudo, dinheiro, jóias, prestígio, mas a solidão não a deixava em paz. A filha estava certa, ela deveria tentar fazer algo. Procurar Arnaldo pessoalmente e tentar uma reconciliação ela jamais faria.Tinha orgulho e não estava habituada a correr atrás dos homens, mesmo que fosse seu marido. Se existia alguma magia que pudesse trazer o Arnaldo de volta, ela faria sim.
- Irei. Amanhã mesmo estarei lá. Não aguento mais a vida que levo, se continuar assim entrarei em depressão. Preciso lutar para ter minha vida de volta.
Arlete exultou.
- Isso mesmo, é assim que se fala!
—Você está muito animada para quem soube há poucas horas que está sendo traída. Não a estou reconhecendo, você já fez escândalo por muito menos.
- É porque estou confiante em pai Ernesto, sei que ele fará o Bruno deixar a Diva e ser fiel só a mim. Além disso, eu amo meu marido e jamais irei perdê-lo. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para nunca ficar longe dele.
Lucrécia sentiu firmeza nas palavras da filha e se animou ainda mais para ir, no dia seguinte, procurar o pai de santo.
Amanheceu e logo as duas estavam na casa de Ernesto, na sala de espera, aguardando o atendimento. Lucrécia percebeu que muitas pessoas da alta sociedade frequentavam aquele lugar e, com isso, sentiu-se menos deslocada. No fundo, ainda estava incrédula e pagaria para ver.
Arlete entrou e Ernesto, demonstrando muita satisfação, pegou uma sacola vermelha e tirou seu conteúdo. Logo ela percebeu se tratar de uma das peças íntimas do marido e se arrepiou. Então era verdade. Os objetos poderiam mesmo ser transportados.
- Surpresa? — perguntou ele com voz misteriosa.
- Confesso que sim. No fundo, duvidava que isso fosse possível.
- Há mais coisas entre o céu e a terra do que julga nossa vã filosofia, disse um sábio. Agora veja só — abriu um saquinho menor e retirou, envolta em fita preta, uma mecha de cabelos -é de seu marido, olhe!
Ariete estava cada vez mais admirada e não conteve a pergunta:
- Como isso pode ser possível?
- Não é um trabalho tão fácil, por isso você terá de pagar muito. Mas não dá para lhe explicar o processo, pois você não o entenderia. Dê-se por satisfeita porque temos o material em mãos. Agora o trabalho será perfeito.
Aríete preencheu o cheque com a quantia e o entregou.
- Em quanto tempo verei o resultado?
- Em menos de duas semanas. Se não acontecer o que espera, pode retornar aqui e eu devolverei o que me pagou.
Aríete sentiu-se segura, mas questionou:
- Ouvi dizer que em alguns a magia não pega. E se meu marido for um desses?
Ernesto riu diabólicamente.
- Ele é um fraco. Se não resistiu ao adultério, como resistirá aos efeitos de uma magia? Raras são as pessoas que não são atingidas por um trabalho desse tipo. Quem cede com facilidade aos apelos do sexo, como no caso do seu marido, não tem proteção alguma. Fique calma, tudo vai dar muito certo.
Aríete saiu confiante e foi a vez de Lucrécia entrar. Ela gostou do que viu, o ambiente lhe fez bem. A sua frente, Ernesto dizia:
- Foi muito bom você ter vindo.Vejo que é uma dama e que estava com receio, mas aqui é frequentado por pessoas de alto nível, não há o que temer.
Lucrécia tentou se explicar:
- Não é apenas isso. Sou uma pessoa materialista, nunca imaginei que pudessem existir poderes que interferissem na vida das pessoas. Sempre achei tudo muito fantasioso...
— Você terá todas as provas. Afinal, quer o Arnaldo de volta ou não?
— Que... que... quero sim. O que me aconselha? —Vamos ver o que dizem as entidades.
— Não vai jogar o taro, como fez com minha filha?
— Cada caso requer uma prática diferente. Com você agirei de outra forma.
Ernesto acendeu as sete velas pretas que estavam num castiçal e depois fechou os olhos, entrando em profunda concentração. Demorou alguns minutos e disse:
— O caso de seu marido não é fácil. Ele está realmente amando outra. Onde há amor fica mais difícil interferir, mas não impossível.
Foi duro para Lucrécia escutar aquelas frases, mas, criando coragem, perguntou:
— O que preciso fazer?
— As entidades que vivem comigo dizem que é preciso muito trabalho para que ele deixe a Alice e volte para você. Custará caro, e elas exigem o sangue de alguns animais.
Lucrécia começou a se assustar.
— Sangue?
— Isso mesmo. Mas você não terá de participar de nada pessoalmente. Tenho um terreiro em um local não muito distante, farei tudo com meus auxiliares. Irá pagar pelo trabalho e verá o resultado. Está disposta?
Ao ouvir o valor, Lucrécia quase desistiu, mas, ao pensar nas noites insones sem o marido ao lado, resolveu pagar.
Mais tarde, ao sair dali, estava confiante e serena, sem saber que estava se comprometendo seriamente com seres das trevas, que riam e rodopiavam ao seu redor.



4
Influências maléficas


Num luxuoso apartamento no Morumbi, um homem alto, de meia-idade, elegantemente vestido, cabelos grisalhos jogados na testa, falava ao telefone, demonstrando muito interesse na ligação. Estava em um quarto ricamente mobiliado acompanhado de uma jovem que, deitada em uma cama, parecia absorta em revistas de moda. Ao concluir o diálogo, ele pegou uma valise e, acenando para a jovem, saiu.
Arnaldo estava muito feliz com sua nova companheira. Alice era dedicada, amiga, conselheira, carinhosa e fiel. Há muito tempo sentia que não amava mais a esposa. Foi sincero ao terminar um casamento de tantos anos e assumir seu amor por outra. No princípio, ao ser correspondido por uma moça tão jovem, pensou estar entrando em uma cilada. Muitas vezes vira amigos deixar tudo por aventureiras, que tiravam tudo o que eles tinham e, após uma bela traição, abandonavam-nos. Ele não queria isso. Buscava amar e ser correspondido de verdade. Alice apareceu num momento em que ele estava se sentindo muito sozinho. Lucrécia havia mudado bastante. Eles se casaram por amor.Todavia, com o tempo, a esposa foi se tornando diferente.
Segura de que vivia um casamento eterno, foi se desleixando na aparência, já não se importava em manter viva a chama da paixão. Arnaldo era um homem amoroso e sensual, nunca se conformou com a mudança de Lucrécia e, quando percebeu que o amor havia acabado, só viu a separação como saída.
Conheceu Alice na empresa de um amigo. Era secretária. Apaixonou-se perdidamente, a cortejou e foi correspondido. Ela, a princípio, estava temerosa, não queria se envolver com um homem comprometido, mas a maneira como foi tratada, os carinhos, os mimos de Arnaldo fizeram com que cedesse. Seus pais levavam uma vida moderna, tinham um casamento aberto e, apesar de ser filha única, não se importaram quando ela revelou estar apaixonada por um homem casado.
Alice, no auge dos seus vinte anos, estava sendo sincera. Nunca se interessara por homens de sua idade, os mais velhos sempre a atraíram de forma excepcional. Estar com Arnaldo era tudo o que mais desejava na vida. Sem titubear, quando soube de sua separação, arrumou seus pertences e se mudou para um apartamento recém-comprado só para eles. Deixou a profissão por insistência do amado e passou a viver exclusivamente para ele.
Naquela manhã, resolveu que iria visitar os pais. Arnaldo iria passar o dia fora e ela não tinha muito o que fazer. Adorava trabalhar e, na primeira oportunidade, voltaria à ativa.

Arnaldo entrou em seu escritório e tentou se concentrar numa planta de um enorme edifício empresarial que estava sob sua responsabilidade. Era sua função, como engenheiro, planejar, projetar, gerenciar, supervisionar e fiscalizar as atividades de construção. Conseguiu concentrar-se por vinte minutos, logo depois, uma estranha dor de cabeça o acometeu. Pediu um comprimido e tentou relaxar, mas a dor persistia. Foi tão forte que acabou desmaiando. A secretária percebeu algo estranho e, ao entrar e encontrá-lo caído, mobilizou tudo para que ele fosse hospitalizado. Todos ficaram temerosos de que o pior tivesse acontecido. Horas depois, ao acordar no hospital, o médico lhe explicou:
- Sua pressão sanguínea subiu em demasia, mas agora está tudo bem. Algo o preocupa?
- Não. Estou muito bem. Nem sei como isso foi me acontecer...
- Muitas vezes as pessoas têm esses problemas e não sabem. Estou requisitando vários exames que você fará aqui mesmo no hospital. Ficará em observação hoje.
Arnaldo impacientou-se.
- Não posso permanecer aqui por muito tempo. Tenho um trabalho grande para realizar e minha esposa não sabe de minha situação. Não desejo ficar no hospital.
O médico insistiu:
- Não sabemos o que ocasionou a alta de pressão e o desmaio. Deverá ficar até sabermos a origem. Não insista em sair, pois pode ter outra crise e será pior.
Um arrepio perpassou o corpo de Arnaldo e ele resolveu obedecer, afinal, não era um homem que se descuidava da saúde.
-Tragam meu celular, preciso ligar para minha esposa.
Apesar das chamadas insistentes, Alice não atendia. Não estava no apartamento e, provavelmente, seu aparelho devia estar desligado ou descarregado. Mas ele tentaria outras vezes até conseguir.
Arnaldo não percebeu, mas ao seu lado um espírito de capa preta ria com muito prazer.

Alice chegou à casa dos pais e encontrou sua mãe sozinha entretida no computador.
— Onde estão todos? - falou beijando a mãe que, apesar da idade, era uma mulher muito conservada.
— Deixaram-me sozinha. Lúcia foi fazer compras para a despensa e seu pai deve estar no clube se divertindo com alguma garotinha. Eu estou procurando um garotão para hoje à noite.
Alice não se conformava com a vida que os pais levavam. Quando saiu de casa, até se sentiu aliviada por não estar compactuando com um modo de viver que ela julgava completamente errado. Onde já se viu aceitar traições?
— Não entendo como a senhora pode aceitar uma vida como esta. Sei que ama papai e deve sofrer por vê-lo te traindo.
Carmem soltou sonora gargalhada e respondeu:
— Todo homem trai, de uma forma ou de outra.Você deve se preparar, pois vai acabar sendo traída pelo Arnaldo. Quando percebi que fidelidade não existe, propus um casamento aberto, assim também me sinto livre para minhas aventuras e não me entristeço quando o Albano sai com outras. Depois tudo volta ao normal e acabamos novamente um nos braços do outro - fez uma pequena pausa e continuou: - Se eu fosse você tratava de propor ao seu marido uma união assim, para depois não ter queixas.
Alice não gostou do que ouviu e protestou:
— Não gosto dessa filosofia de vida. Só aceitei me relacionar com Arnaldo porque descobri que o amava de verdade. Se fosse por simples atração, jamais me envolveria com um homem comprometido.
Carmem deixou o mouse de lado e a fixou nos olhos:
— Não consigo entender por que você é tão careta. Às vezes penso que deveria ter tido mais filhos. Nunca fomos amigas, você nunca concordou com nada do que eu disse.
- Mas, mesmo assim, nos amamos e é isso o que importa. As diferenças não nos separaram.
- As duas sorriram e Carmem convidou: -Venha ao meu quarto, tenho umas fotos de uns rapazes com quem pretendo me relacionar e quero que você opine.Não, mamãe, sinceramente não gostaria de fazer isso. Escolha a senhora mesma.
- Bobinha.
Alice ficou sozinha na sala e resolveu dar uma volta no jardim que circundava a casa. Não eram ricos, mas tinham uma bela residência, herança de seu avô, pai de Albano. Tudo estava muito cuidado e limpo. Carmem podia ser uma doidivanas, mas gostava de cuidar de tudo com capricho. Depois de respirar ar puro, Alice resolveu entrar e só aí se lembrou que tinha deixado o celular descarregado na bolsa. Iria recarregá-lo assim que chegasse à casa da mãe, mas havia esquecido completamente. Quando ligou o aparelho, percebeu que havia várias chamadas vindas do telefone de Arnaldo. Ele não costumava ligar àquela hora da manhã, alguma coisa tinha acontecido. Preocupada, ela retornou imediatamente a ligação.
-Alice? Onde você esteve? - perguntou irritado. - Há horas que tento falar com você e não consigo.
- E que acabei me distraindo com a mamãe e esqueci de recarregar o celular. O que aconteceu? Você não costuma me ligar a essa hora. Algum problema?
- Não sei o que houve direito. Passei mal no escritório, minha cabeça doía sem parar. Tomei um comprimido e, mesmo assim, a dor não me deixou. Fui ficando sem ar até que desmaiei. Acordei no hospital e devo ficar aqui até amanhã fazendo exames. Eu sempre detestei hospitais, médicos, tenho verdadeiro horror a exames, temo que encontrem algo de grave — ele falava sem parar. — Não posso ficar sem você, por favor, venha imediatamente.
Alice se preocupava mais à medida que Arnaldo ia falando. Quando desligou o telefone e anotou o endereço do hospital, viu sua mãe se aproximar com várias fotos nas mãos.
- Esses são os garotos que posso escolher para me divertir ainda hoje. Olhe e me diga: qual é o melhor?
Alice saiu em disparada, deixando a mãe falando sozinha. Carmem, ao vê-la sair, reclamou:
- É assim que os filhos de hoje são, uns ingratos. O que custava uma opinião?
Dizendo isso, subiu as escadas que levavam ao seu quarto sem se importar com a súbita saída da filha.




5
A chegada de Eduardo

Na casa de Lucrécia o clima era de despedida:
- E uma pena que você não possa ficar mais. Sua vinda aqui praticamente modificou minha vida. Nem sei como te agradecer por ter me levado ao pai Ernesto.
- Sinto que fui intuída a lhe falar sobre ele, e sei que nossa ida lá resolverá nossos problemas.
- Não estou tão confiante. Desejo ver para crer. Arlete fez ar de desagrado.
- Essa sua falta de fé pode complicar. Procure acreditar para ajudar no trabalho. A fé é fundamental.
- Achei que fundamental fosse o dinheiro. Nunca vi alguém cobrar tão caro.
- Além do dinheiro, temos de vibrar positivamente, foi isso que pai Ernesto me ensinou — fez uma pequena pausa e prosseguiu. — Não posso ficar mais, meu voo é daqui a uma hora e não quero perdê-lo. Quero chegar ao Rio o mais rápido possível e tentar armar um flagrante do Bruno com a Diva.
- Não faça isso. Deixe tudo nas mãos da magia. Quer pôr tudo a perder? Depois o Bruno pode ficar revoltado, te deixar e o trabalho não surtir efeito.
- Ele não vai fazer isso. Sei de muitos segredos do Bruno. Ele está envolvido com pessoas do tráfico juntamente com a irmã e já o ameacei: se me deixar, conto tudo para a polícia.
Lucrécia não discutiu, sua filha deveria saber o que estava fazendo. Após os abraços, Arlete saiu e Lucrécia deitou-se em uma confortável poltrona pensando: "Como é bom saber que existe uma pessoa com capacidade para resolver nossos problemas. Se soubesse disso antes, não teria ficado tanto tempo sofrendo e chorando sozinha".
Uma entidade maliciosa que trabalhava com Ernesto estava ao seu lado e lhe dizia: "E isso mesmo. Há muitas coisas que você desconhece. Pai Ernesto resolverá todos os seus problemas, seu marido será só seu, acredite".
Lucrécia sentia aumentar sua confiança no trabalho que havia encomendado, e só o pensamento de que Arnaldo poderia voltar para casa a fazia vibrar de emoção. O toque alto do telefone a fez sair do devaneio.
-Alô?
- Mãe?! Está bem?
- Eduardo, meu filho! Que surpresa agradável! Esta semana foi maravilhosa, sua irmã passou alguns dias comigo e hoje você me liga.
- E... Mas o assunto talvez não lhe seja agradável. Estou precisando voltar a morar com a senhora, tem lugar ainda para mim?
- Como? — Lucrécia não conseguia entender, afinal seu filho morava fora de São Paulo havia anos, era bem empregado, o que estaria acontecendo...
— É que a empresa em que trabalho é muito grande e vai abrir filial em São Paulo. Como tenho experiência, fui designado para dirigi-la. — Após uma pausa, concluiu: — Tem um lugarzinho reservado para mim aí?
Muito feliz, Lucrécia respondeu sorrindo:
— Claro, meu filho, sabe que tanto Arlete quanto você são tudo o que possuo de mais precioso. Além do mais, esta mansão ficou muito triste depois que seu pai me abandonou por aquela vaga-bunda.Vivo sozinha, praticamente não tenho amigas, e sua presença aqui, sempre tão alegre e cheia de vida, vai me fazer muito feliz.
Eduardo ouvia com atenção e falou:
— Sinto que tem muita mágoa do papai, mas tente entender que cada um é livre e pode fazer o que desejar de sua vida. Ele optou por uma mudança, seja por amor ou não, quem somos nós para julgar? Enquanto guardar essa mágoa no coração não poderá ser feliz.
— Você fala isso porque não está em meu lugar. Ser traída e trocada nessa idade não é fácil, parece que acabamos morrendo um pouco.
Eduardo não queria continuar a conversa naquele momento e resolveu finalizar.
— Quando chegar aí conversaremos melhor. Acredito que no fim de semana já chegarei com a mudança.
Lucrécia exultou:
— Que maravilha! Vai trazer alguém com você? Uma mulher, por exemplo? Afinal, você já tem mais de trinta anos, já passou da idade de casar e me dar um neto.
Eduardo riu com prazer, enquanto disse:
— Estou solteiro como sempre e me sinto muito feliz assim. Quando chegar a hora saberei e poderei lhe dar o neto com quem tanto sonha.
A conversa continuou por alguns instantes e logo depois Lucrécia colocou o fone no gancho. Estava muito feliz. Teria o filho de volta ao lar e o marido também.
O espírito que estava acompanhando a conversa de Lucrécia desapareceu da mansão e foi para a casa de Ernesto. Era hora do almoço, e ele encontrou o pai de santo fazendo sua refeição.
— Pai Ernesto, pai Ernesto! - gritou alto aos ouvidos espirituais do médium.
— Quem deseja falar? - perguntou, interrompendo o almoço. Era comum os espíritos o procurarem em qualquer horário. Ele realizava muitos trabalhos e tinha muitos amigos no astral que faziam parte de uma falange que o avisava de tudo. Foi com a ajuda deles que Ernesto chegou ao sucesso e estrelato, participando até mesmo de programas de TV.
O espírito falava apressado:
— É o caso da dona Lucrécia, corremos perigo de fracasso.
— O que aconteceu?
— Um dos filhos dela está voltando para casa. Enquanto ele conversava com a mãe, senti algo estranho, daí usei minha vidência e o vi rodeado de muita luz. Parece que é uma pessoa ligada ao Cordeiro.
Ernesto não gostou do que ouviu.
-Vamos aguardar para termos certeza. Se for do lado da luz, pode atrapalhar um pouco, mas não acabará com nosso plano. Esqueceu-se como é difícil acabar com um processo de magia?
— Sei disso, mas é preciso estar atento. Os espíritas têm acesso a poderes que podem nos neutralizar. Lembra-se do caso da Hilda? Tudo estava encaminhado para ela morrer, mas levaram--na para um centro espírita, ela fez tratamento e ficou curada.
Ernesto estava irritado. Detestava lembrar que um dia foi espírita, por isso interrompeu e falou:
—Vamos acabar com esse papo porque preciso almoçar em paz. Fique atento e qualquer diferença no ambiente venha me falar.
O espírito saiu, mas Ernesto não conseguiu concluir sua refeição. Os grupos espíritas estavam se intensificando e sabiam lidar com as forças das trevas, muitas vezes inutilizando-as, principalmente se fosse um grupo sério. Resolveu meditar para encontrar uma solução.
Arnaldo, após fazer os exames requisitados pelo médico e receber os resultados, obteve alta e foi para casa.Tanto ele quanto Alice ficaram satisfeitos, pois os exames mostraram que Arnaldo estava com a saúde perfeita. No entanto, o episódio da dor de cabeça ficou sem explicação, e a partir daquele dia uma estranha sensação de vazio apoderou-se dele.Alice continuava tratando-o como antes, era uma relação carinhosa e cheia de cumplicidade. Mesmo assim, Arnaldo começou a pensar insistentemente na ex-mulher e nos filhos. Ocultando de Alice, quando não suportou mais a pressão dos pensamentos obsessivos, ligou para sua antiga casa. Lucrécia atendeu e exultou, porém disfarçou com um tom de voz formal.
- O que deseja?
Arnaldo pigarreou e não sabia o que dizer, afinal para que ligara? Que estranho impulso o fizera discar o número de sua antiga residência? Tentou ser natural:
— Liguei para saber se tem alguma notícia dos nossos filhos. Afinal, nos separamos, mas não me separei dos meus filhos. Sabe que os amo profundamente e jamais quero perder o contato com eles. Há meses que Arlete não vem me visitar nem me dá um telefonema. O Eduardo é sempre muito atencioso, me manda cartões e nos falamos regularmente. Mas hoje, em especial, bateu aquela saudade deles...
- Se gostasse realmente deles, não teria feito o que fez. Deixar uma família bem constituída para viver com uma aventureira não é atitude de um pai amoroso que pensa nos filhos.
- Lucrécia, não torne mais difícil a situação. Quando saí de casa nossos filhos já eram independentes. Alice não é nenhuma aventureira, é moça nobre e muito sensata. E duro dizer, mas você sabe que te deixei porque o nosso amor acabou. Preferi ser verdadeiro.
As lágrimas começaram a rolar no rosto de Lucrécia, que decidiu finalizar a conversa.
- Se o que deseja é saber de seus filhos, pois bem, Arlete passou alguns dias dessa semana comigo, veio resolver uns problemas do Rio. Mas a surpresa melhor tive hoje, pois o Eduardo me ligou dizendo que vai voltar a morar comigo aqui em São Paulo.
Arnaldo se alegrou. Eduardo era o filho de que mais gostava. Não conseguia esconder sua predileção, o que deixava, muitas vezes, Arlete enciumada e com raiva. Eduardo era culto, inteligente, perspicaz, maduro, tinha o porte atlético e arrancava suspiros por onde passava. Lembrava muito Arnaldo quando jovem. Ele se identificava muito com as ideias espirituais do filho, o qual era seu conselheiro. Jamais poderia contar a Lucrécia que foi Eduardo quem o apoiou na separação, dando força para que ele saísse de casa e fosse feliz.
- Meu filho vai voltar a morar em São Paulo? Não poderia acontecer coisa melhor. Quando vem?
- No início da próxima semana - falou Lucrécia sem muita vontade.
— Então me ligue assim que ele chegar, anote o número do meu celular. Não posso deixar de passar aí para dar um abraço em meu filhão.
Quando o telefonema terminou, Lucrécia estava muito irritada. Não aprovava a amizade profunda que existia entre pai e filho. Eduardo tinha ideias avançadas para seu tempo e muitas vezes influenciava o pai a agir de forma inconsequente.
Foi para o quarto e deitou-se. De repente, um pensamento lhe foi sugerido.
"E se a volta do Eduardo influenciar também a volta do Arnaldo para casa? Tenho certeza de que essa ligação já foi o trabalho de pai Ernesto funcionando. Como ele é bom!"
Animada, desceu as escadas, dispensou o motorista e foi dirigindo para o costumeiro salão de beleza que frequentava. Resolveu ficar bonita, afinal, tudo mudaria em sua vida. Pai Ernesto estava mostrando que tinha muito poder.
Depois que saiu do salão, foi às compras em badalado shopping e só retornou para casa muito tarde.



6

Negócios escusos
Assim que chegou ao Rio de Janeiro, Arlete tentou ser
a mais amável das esposas. Procurou dissimular o ódio que sentia ao imaginar que Bruno estava tendo um caso com outra e só pensava em como flagrá-los para aprontar mais um escândalo.
Arlete era formada em secretariado, mas quando se casou optou pela vida doméstica. Seu sonho era muito simples: ser casada, ter seu lar, seus filhos e viver para o marido. Esse desejo casou-se com o de Bruno, que era machista e sonhava com uma mulher igual a sua mãe, que dedicasse sua vida a ele. Conheceu Arlete em São Paulo, quando prestava serviços para empresa. Do encontro casual ao namoro foi muito rápido, e logo os dois se viram apaixonados. Havia um problema, no entanto: eles moravam em cidades diferentes; a solução foi ele pedir para ser transferido à filial de São Paulo. Bruno não gostava dessa cidade, julgava-a sem atrativos, sem belezas naturais, e ainda havia seus pais que moravam no interior e ele os queria esquecer, mas por Arlete faria o sacrifício. Em pouco tempo estavam casados e ele a convenceu a ir morar no Rio. Lucrécia se opôs, mas Arlete já era maior de idade e seguiu com o marido.
Começou, para Arlete, o tempo da convivência matrimonial. Bruno apresentou sua irmã Elza, que logo se tornou sua amiga, mas percebeu que entre ela e o irmão havia um segredo que, com o tempo, iria descobrir. Bruno e Elza haviam feito sociedade com um grupo já reconhecido, e, como não tinham capital, entraram com o trabalho. Chegavam em casa tarde, às vezes com o dia já claro. Um dia Arlete acabou descobrindo que nos caminhões da firma ia droga, para ser entregue em outros estados. Ficou assustada e procurou esquecer, mas na primeira briga revelou ao marido que sabia da verdade e que, se ele a deixasse, a polícia seria avisada de sua atividade ilícita. Bruno e Elza entraram em pânico e até pensaram em matá-la, mas resolveram esperar, não podiam sujar as mãos daquela maneira, afinal, Arlete era filha de pessoas ricas e influentes, os dois poderiam ser desmascarados e seria pior. Bruno resolveu, então, sujeitar-se ao que a mulher pedia ou fazia, porém era um homem sedutor e não se contentava somente com a esposa, sempre tinha amantes. A cada descoberta era um escândalo. Arlete, apesar de ter sido criada com a mais esmerada educação, quando se descobria traída fazia escândalo, perdia a compostura.
Naquela tarde, ela estava preparando o jantar. Elza morava com eles desde o início do casamento, aliás, essa foi uma exigência do marido: ter a irmã por perto. Ele se sentia responsável por ela. Elza era sozinha, não tinha namorados, era sisuda e só vivia para os negócios. Apesar de ter um bom dinheiro, ela nunca se decidia a comprar apartamento ou casa e ia ficando ali com eles.
Arlete terminou o jantar e ficou na sala vendo televisão. Antes do horário costumeiro, Bruno e Elza chegaram com semblantes sérios mostrando preocupação. Enquanto Elza foi direto para seu quarto, Bruno abraçou e beijou a esposa, que inquiriu:
— Nossa, meu amor, o que está acontecendo? Algum problema no trabalho?
— As mesmas coisas de sempre, nada que possa te preocupar. A propósito, você chegou ontem de São Paulo e nem perguntei como está sua mãe. Que falta de educação!
— Dona Lucrécia está bem, aliás, bem melhor que nós, vivendo naquela mansão todinha para ela.
— Você sempre soube que nunca fui rico como você e sabe que a casa que posso te dar é esta. Senti uma pequena reclamação em seu comentário.
Arlete o beijou nos lábios, enquanto disse:
— Qualquer lugar do mundo com você é maravilhoso. Mas bem que você poderia ir trabalhar lá na filial de São Paulo e irmos morar todos juntos na casa de mamãe. Lá teria mais espaço até para nossos filhos, quando eles vierem.
—Você sabe que me irrito quando fala assim. Meu trabalho é aqui no Rio, minha vida é aqui. Não tente mudar minha vida.
Dizendo isso, saiu irritado e foi para o quarto. Arlete sentiu que algo estranho estava acontecendo. Bruno estava irritado, nervoso. Algo muito sério estava ocorrendo no trabalho e só podia ser ligado ao tráfico. Ficaria atenta para tentar descobrir. Todas as noites, depois que ela dormia, Bruno levantava-se da cama e ia para a cozinha conversar com a irmã. Certamente ela descobriria o que estava acontecendo.
Todos jantaram em silêncio. Como sempre acontecia, Bruno, pela madrugada, levantou-se e foi para a cozinha, onde sua irmã impaciente e fumando muito já o esperava. Arlete também se levantou e pé ante pé foi tentar ouvir algo.
Eles conversavam em voz baixa.
- Com o que nos aconteceu hoje, acho que realmente precisaremos ir embora do Rio.
Elza dizia furiosa:
- Eu não posso acreditar que fomos cometer aquele erro. Tudo estava indo tão bem!
Bruno retorquiu:
- Não adianta nos culparmos agora. O Leopoldo está seriamente desconfiado de que estamos fazendo algo errado na transportadora. Se descobrir o que fazemos, estaremos perdidos. Ele é um homem que gosta de tudo dentro da lei.
-Vamos dar um tempo e pedir transferência para a outra empresa de São Paulo. Não podemos sair assim rápido. Desde que soube da desconfiança dele, parei com todo o serviço e acredito que Leopoldo não encontrará nada de errado. Somos os chefes daquele departamento e até hoje nada fizemos para levantar suspeitas, a não ser aquele telefonema que demos para o Olavinho.
- Passaremos mais um mês aqui e depois diremos que nossos pais estão mal de saúde e que precisamos mudar de cidade para cuidar deles.
Elza fez um ar de incrédula.
- Não vai ser nada fácil. Acha que Leopoldo fará a troca assim? Nós somos muito eficientes aqui. Talvez não consigamos.
Dois espíritos vestidos com trajes que lembravam os antigos inquisidores medievais entraram no ambiente e se aproximaram de Bruno.
Bruno, de repente, falou em tom mais alto:
- Tenho uma ideia. O tráfico que ajudamos tem suas ligações em São Paulo. Podemos prometer que lá o serviço será melhor, dobrado...
Elza estava sem entender.
— E o que isso tem a ver?
— Podemos acionar nossos contatos e pedir um favorzinho... — disse com expressão maquiavélica e sorriso irônico.
—Você está falando em código. Não gosto disso, seja direto. Estamos sozinhos aqui, a tonta da sua mulher a esta hora está no décimo sono.
— Então serei claro. Os gerentes da transportadora lá são o Luciano e a Cleide. Podemos dar a ficha deles a alguns de nossos contatos e pedir que os eliminem. Com a Cleide e o Luciano mortos, pediremos a transferência, que nos será muito facilitada. Não acha fantástico meu plano?
— Não sou contra matar, mas só em último caso. Não acho necessárias essas mortes.
— E o que faremos? O telefonema do Olavinho foi gravado, se continuarmos aqui teremos de servir ao Macedo do mesmo jeito, transportando a cocaína. Logo seremos descobertos e, como a corda só arrebenta do lado mais fraco, seremos indiciados por crime hediondo inafiançável. E isso o que quer para sua vida?
Elza acendeu mais um cigarro e concluiu:
-Você está certo, aliás, como sempre. Então, a partir de amanhã começaremos nossos planos. Agora me responda: o que vai fazer com a Diva? Não está apaixonado por ela?
— E claro que darei um jeito de levar a Diva comigo, não a deixo por nada.
— Às vezes não entendo por que você não deixa logo a Arlete e assume que está com outra. Afinal, você casou por interesse, mas agora, com o dinheiro que conseguiu, não precisa mais dela para nada.
Bruno enfureceu-se.
—Você parece que não pensa.Tenho dinheiro, mas nasci numa família pobre em Guararema, nunca terei o prestígio social que tanto almejo se deixar Arlete e me casar com uma mulher como a Diva. Além de dinheiro, quero ser reconhecido socialmente. A família de Arlete em São Paulo é muito bem-vista na sociedade. O velho Cardoso, pai da dona Lucrécia, foi um barão do café muito influente. Apesar de ela estar separada agora, o nome da família continua tendo prestígio. Jamais deixarei Arlete. Jamais!
- Mas esse nome aqui no Rio de Janeiro de nada vale.
-Você é que pensa. A família de Arlete tem parentes até no governo.
Elza sorriu.
-Você realmente pensa alto. Agora vamos dormir que amanhã o dia será longo.
Eles não viram que Arlete estava escutando tudo e chorando copiosamente. Quando viu que a conversa estava encerrada, saiu rapidamente, meteu-se debaixo das cobertas e fingiu estar em sono profundo. Mas não conseguiu mais dormir. Lembrou--se de seus sonhos de juventude, em que se via amada, cuidando do lar com desvelo e amor. Recordou os primeiros encontros com Bruno, de sua falsa sinceridade, de seus olhos demonstrando amor e paixão. Como fora se enganar tanto? Mas, apesar de tudo, amava o marido com todas as forças de seu coração e jamais iria perdê-lo. De repente, pensou que sua ida para São Paulo seria providencial. Lá, pai Ernesto, que certamente afastaria Diva de seu caminho, iria fazer outro feitiço, agora para que Bruno a amasse de verdade. Todos os dias Arlete agradecia a Deus pelas pessoas que entendiam de magia e realizavam, assim, o desejo das outras.
O que Arlete não sabia era que, envolvendo-se com energias negativas do astral inferior, estava cada vez mais se comprometendo com a própria consciência e, terminado o prazo da magia, tudo iria ruir, destruindo de vez todos os seus sonhos.




7
O amor e o apego
Lucrécia acordou animada. Era o dia em que seu filho
Eduardo estaria de volta a São Paulo. Arrumou-se com esmero, pois o esperaria no aeroporto de Guarulhos. Enquanto se enfeitava, procurou ser o mais provocante possível, apesar de já não conseguir pelo peso da idade, pois Arnaldo tinha adoração pelo filho e certamente estaria lá a esperá-lo.
Desceu as escadas e ficou fazendo hora, folheando uma revista da moda. Quando ia pedir para o motorista tirar o carro, percebeu que alguém abria a porta. Surpreendeu-se.
- Arnaldo? O que faz aqui? Ele pigarreou e respondeu:
- Vim buscá-la para que, juntos, possamos ir esperar nosso filho. Parece que não o vejo há séculos. Essa volta do Eduardo foi o que de melhor me aconteceu ultimamente.
Lucrécia observou bem o ex-marido e pôde notar que ele não estava bem psicológica e fisicamente. Ela o conhecia o suficiente para saber que algo o abalava. Depois, era muito estranho o Arnaldo vir buscá-la. Será que já era o trabalho de pai Ernesto funcionando? Se fosse, ela teria motivos de sobra para comemorar. A curiosidade foi maior, e ela perguntou:
—Você está bem? Noto que está com olheiras, emagreceu e seu rosto está abatido. Parece que envelheceu uns dez anos.
- Não seja exagerada. Nada de mais está acontecendo comigo. Na realidade, desde o dia que minha pressão subiu eu não recuperei a saúde. Os médicos dizem que está tudo bem comigo, que tenho a saúde perfeita. Mas me sinto mal, tenho dores de cabeça, mal-estar, enjoo e o que mais está me deixando preocupado é a insónia. Há dias que não consigo fechar os olhos durante a noite. Viro na cama e, quando cochilo, tenho sonhos horríveis.Tenho pensado em procurar um psiquiatra. O doutor Rodrigues me indicou.
- Psiquiatra? Acha que é para tanto? Eu acho que o problema é com sua amante, provavelmente deve ter estourado todos os seus cartões de crédito e não deve lhe dar sossego.
Arnaldo arrependeu-se de falar sobre seu estado com Lucrécia, mas disse:
- Não é nada com Alice. Já disse que vivemos muito bem. Até me arrependi de ter falado com você sobre meus problemas de saúde.Vejo que não mudou nada depois da separação, continua a mesma mulher de antes.
Lucrécia ofendeu-se.
- Como assim? O que pode haver de errado comigo? Não tenho culpa se os anos passaram e seja não sou a garotinha com quem se casou.
- Lucrécia — disse Arnaldo em tom lamentoso -, vamos parar por aqui para que não nos ofendamos ainda mais. O nosso objetivo hoje é receber nosso filho, e para isso precisamos estar bem. Nada seria pior para o Eduardo que o fôssemos receber com esses rostos compungidos e esse ar de derrotismo. Vamos nos esforçar para que ele se sinta bem aqui. Temo que Eduardo não fique bem com você. Desde os dezenove anos é independente, mora fora, é feliz. Não quero que se sinta mal aqui.
Lucrécia sentiu-se ofendida. Logo ela fazer mal ao filho! Mas resolveu não discutir, Arnaldo estava diferente. De repente, pensou que ele fora lhe buscar para agradar ao filho, e não tinha nada a ver com o trabalho do pai de santo. Sentiu-se depressiva, mas tentou se mostrar na melhor forma possível.
Já no carro com o ex-marido, Lucrécia quase não conversou, dando asas à imaginação, pensando estar com ele novamente e que tudo era como antes. Como o amava! Se soubesse o que tinha causado de fato a separação, faria de tudo para evitá-la. Se pudesse, voltaria no tempo. Algumas amigas diziam que os homens acabam se afastando das mulheres que só cuidam do lar, dos filhos, dos problemas domésticos, e que preferem as ardentes e sensuais. Ela nunca fora sensual. Aprendera que era venalidade mostrar que sentia desejo, e que só aos homens isso era permitido. Será que se tivesse sido boa amante Arnaldo a teria deixado? Essas e outras perguntas ocuparam sua mente durante o trajeto de casa até o aeroporto. Reconhecia que nos últimos tempos já não caprichava no visual nem fazia coisas para agradar ao marido. Quando ele a deixou de procurar na cama, conversou com uma amiga, que disse:
— É assim mesmo que acontece.Todo casamento é igual. No princípio são flores, mas os homens são venais, gostam de sexo, e nós, mulheres de respeito, não podemos fazer tudo o que eles querem. Se fizermos, onde estará nossa dignidade? E natural que procurem as mulheres de vida fácil para conseguir a satisfação dos baixos instintos.
Lucrécia questionou:
— Então passarei a viver sem sexo? Zélia respondeu:
- Temos de nos acostumar. Chega um ponto no casamento que todo marido deixa de procurar a mulher, é natural. Procure se conformar, desenvolva atividades filantrópicas para gastar suas energias. Envolva-se com tarefas assistenciais, com arte, pintura e se sentirá completa. Verá que com o tempo o sexo não lhe fará falta.
Ingenuamente, Lucrécia acreditou naquelas palavras e procurou segui-las. Mas nenhuma tarefa que tentou fazer lhe agradara. Não era dada a artes, nunca aprendera a bordar, costurar, pintar, coisas que as mulheres de sua época haviam aprendido. Havia o piano, mas não sentia estímulo para dedilhá-lo. Então, foi ficando por ali, tentando se interessar pelos adornos da casa, pela organização do lar. Tentou trabalhos assistenciais, mas descobriu que não tinha o dom para a caridade.
O carro parou, e só então ela despertou para a realidade. Estavam no aeroporto e, pouco depois, quando viram Eduardo empurrando seu carrinho, correram para abraçá-lo. Eduardo era um jovem de beleza majestosa. Era louro como a mãe, mas havia puxado os traços fortes do pai, que demonstrava no rosto. Gostava de academias de ginástica e musculação, tinha o corpo perfeito. Os pais o adoravam. Durante o trajeto de volta para casa, crivaram-no de perguntas: "O que estava fazendo?", "O que pretendia, de fato, em São Paulo?" Eduardo ia respondendo àquela avalanche e sorria com a curiosidade dos pais. Ao sorrir, mostrava os dentes alvos, enfileirados e perfeitos, que se casavam perfeitamente com o par de olhos, que ora estava azul-celeste, ora prateado.
Ao chegarem em casa, foram para a sala. Arnaldo pareceu haver remoçado, de tão feliz próximo do filho. Lucrécia, ao vê-los em colóquio, lembrou-se do que o ex-marido lhe dizia:
- Eduardo saiu a mim em tudo. Nunca vi um filho se parecer tanto com o pai dessa maneira. E destemido, estudioso, sabe aproveitar as oportunidades. Tem meu porte, meu rosto. E tudo para mim!
Lucrécia não gostava e dizia:
- Pare com isso, a Arlete já percebeu sua predileção e sofre com essa situação. Essa sua mania de mostrar em exagero o que sente ainda vai deixá-lo em maus lençóis.
Mas Arnaldo não ouvia e desfilava com o filho adolescente por todos os lados. Naquela época, eles tinham intensa vida social e quase sempre a família aparecia nas mais diversas revistas da moda. Nunca havia fotos de Arlete com o pai, apenas de Eduardo.
Um dia, ao chegar em casa, Eduardo comentou:
- Pai, recebi uma proposta para trabalhar no Sul e estou deixando esta casa.
Foi como se uma bomba tivesse caído sobre Arnaldo, que contra-argumentou com veemência:
- Filho, como pode fazer isso? Você tem apenas dezenove anos! A lei não permite que vá morar em outro estado sozinho, é menor. Afinal, que empresa é essa que está agindo fora da lei e empregando jovens menores de idade fora de sua cidade?
- Não é fora da lei. É uma empresa que fornece cursos técnicos para quem quer aprender, e quem é aprovado passa a trabalhar. Recruta jovens com autorização judicial dos pais e é no ramo que eu gosto.
Arnaldo protestava sem entender.
— Mas filho, aqui em São Paulo há tudo o que um jovem possa querer para progredir e ter sucesso na vida. Não posso permitir — disse gritando e fora de si.
Eduardo foi para o quarto e ficou depressivo. Sabia que em São Paulo poderia fazer exatamente o que iria fazer no Sul, mas queria ser livre, independente, e o pai o estava sufocando muito. Queria treinar o desapego. Espírito livre e evoluído, não gostava de ficar preso a nada que o contrariasse. Os pais perceberam a situação e o levaram ao médico da família, que disse:
- É melhor deixar que o filho de vocês se vá. E jovem, tem espírito aventureiro. Se permanecer onde está e como está adoecerá. Faça o que é melhor para ele. Aprenda, Arnaldo, que nossos filhos não são nossos, mas sim da vida. Um dia todos teremos de nos separar para cada um seguir experiências diferentes. O apego é ruim e prejudica mais do que ajuda. Liberte sua criança.
Arnaldo chorava copiosamente. Era duro demais separar-se da pessoa que mais amava no mundo. Lucrécia também sofria, mas entendia que Eduardo era maduro o suficiente para morar só e cuidar de si mesmo, queria o bem do filho. Arnaldo não gostava de sua atitude e a acusava de não amar o filho tanto quanto ele.
A situação foi resolvida e Eduardo partiu. Então, Arnaldo adoeceu. Entrou em profunda depressão, abandonou o escritório e foi para uma fazenda que tinha no interior, lá, em meio ao verde, ao som das águas do córrego, conseguiu se acalmar. Um dia, enquanto estava na grama chorando, sentiu um torpor e percebeu que alguém se aproximava: era um anjo com asas, muito luminoso. Arnaldo sempre fora católico e, embora não praticasse a religião, acreditava em anjos guardiões. Sem entender bem o que estava acontecendo, perguntou:
— O que deseja aqui?
O espírito fixou-o profundamente e disse:
— Retome sua vida e procure a paz. A paixão tolda a razão e nos afasta do verdadeiro amor. E hora de libertar Eduardo de uma vez por todas, de lembrar que ele é seu filho e que, portanto, deve amá-lo como tal. O passado é para nós, muitas vezes, motivo de alegria e felicidade, mas é preciso deixar que ele se vá para que possamos ser felizes. O preço da liberdade é desamarrar todos os nós que nos incomodam e fazem sofrer. Entenda isso e procure ser feliz.
O espírito desapareceu muito rápido, mas Arnaldo nunca mais esqueceu aquela visão. Porém, não contou a ninguém, pois todos iriam achar que ele era louco. Depois disso ele melhorou. A saudade do filho ficou menor. Mesmo assim, eles se correspondiam com frequência, e foi com felicidade que tempos depois puderam presenciar sua formatura em Administração de Empresas. Naquela hora Arnaldo reconheceu que tudo foi para o melhor.
Na grande sala da casa de Lucrécia, todos ainda enchiam Eduardo de perguntas. Passava da meia-noite quando Arnaldo foi embora e mãe e filho foram dormir.
8
O casamento e as convenções sociais

Após o farto desjejum, Lucrécia foi sentar-se com Eduardo num dos bancos do jardim para conversar. Era muito

agradável sentir o cheiro fresco da manhã e o perfume das flores, e ela queria aproveitar enquanto o filho ainda estava em casa arrumando suas coisas, antes de começar o trabalho.
— Imagino a vontade louca de seu pai de estar aqui agora conversando com você. Mas, infelizmente, não pode, deixou a família e vive só para aquela patricinha, que se diverte em gastar todo o dinheiro dele. Se estivesse conosco, poderia desfrutar muito mais de sua companhia, já que é apaixonado por você.
Eduardo a olhou seriamente, enquanto dizia:
— Apesar de o meu pai estar morando em outro lugar e com outra pessoa, não vou me privar de sua companhia. Saiba que pretendo estar com ele o máximo de tempo possível, o quanto meu trabalho me permitir. Irei visitá-lo e desejar-lhe boa sorte com sua nova companheira.
Lucrécia sentia-se magoada, porém, já sabia como Eduardo pensava e também que não fazia para ofendê-la. Mesmo assim, deixando uma lágrima teimosa cair do canto de um dos olhos, comentou:
— Não consigo entender como age com tanta naturalidade. Afinal, não estamos falando de um assunto qualquer que está acontecendo com outra família. Estamos falando de um lar que desmoronou por causa do adultério, e este lar é o nosso. Não vê como sofro com isso?
Eduardo não se perturbou.
— A senhora está sendo dramática como sempre. Consigo ver com naturalidade porque enxergo com os olhos da alma. Quando um casamento não dá certo, só há duas saídas: a separação ou a acomodação. Meu pai preferiu ser verdadeiro a ter de viver comodamente num lar e ter amantes fora. Foi decidido e seguro. Sei que é duro para uma mulher perder seu marido para outra, mas tudo fica fácil quando percebemos que cada pessoa age de acordo com seu nível de evolução espiritual. O fato de meu pai pedir o divórcio demonstra que tem maturidade, que sabe que pode ser feliz e refazer sua vida.
Nesse momento, Lucrécia já não continha o pranto. Entre soluços, retorquiu:
— E a mulher, onde fica? Abandonada? Deixada de lado após tantos anos de dedicação e renúncia?
— Olha, mãe, quando um casamento termina, não é apenas o homem o responsável. A mulher é que, na maioria das vezes, destrói o próprio lar. O homem procura intimamente uma companheira, uma mulher interessante, que saiba conversar sobre tudo, que seja arguta, inteligente, sensual, boa amante e que saiba conduzir com firmeza a família e os filhos. A educação errada da sociedade mata a mulher e deixa em seu lugar somente a empregada ou uma segunda mãe. As mulheres, quando casam, estão cheias de sonhos, mas a maioria está iludida, acreditando que, cumprindo as regras da sociedade, garantirão o casamento.
— E não é assim que acontece?
— Não, e a vida mostra isso todos os dias. A esposa que se abandona em favor do lar e dos filhos empurra inconscientemente o marido para uma amante.
Lucrécia estava incrédula:
— Que horror! Do jeito que você fala, eu fui a culpada de o Arnaldo ter me deixado.
— Isso eu não sei, só a senhora é que pode se avaliar e descobrir. Há também casamentos que não são feitos para durar. Em um relacionamento amoroso o que conta é a aprendizagem. A vida une e separa as pessoas conforme suas necessidades de evolução.
-Você fala diferente... Está seguindo alguma religião? Dessas que passam na televisão?
Eduardo riu com gosto e respondeu:
— Não, minha mãe. Sou espírita já alguns anos e tenho estudado a vida e como ela funciona. Não tenho religião.
— Mas o espiritismo não é uma religião? — Lucrécia estava curiosa, afinal, estava freqüentando um lugar que julgava ser espírita.
— Não. O espiritismo não é religião, é uma filosofia que nos foi trazida pelos espíritos superiores e organizada em livros por Allan Kardec. Dessa organização surgiram O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno e A Gênese. Trata-se de uma filosofia séria, baseada em princípios científicos e que vem mostrar verdades que os homens se debatem há milênios, buscando-as sem encontrar.
— Então deve ser a única filosofia verdadeira...
— Em hipótese alguma. O espiritismo não diz a última palavra sobre assunto algum, a revelação é progressiva. Há, também, outras escolas que estudam a vida e que estão certas em suas verdades. Por isso buscamos ser espiritualistas independentes e procurar a verdade sem a necessidade de rótulos. Lucrécia, quase sem querer, acabou falando:
- O que sei é que os espíritas são muito bons, ajudam as pessoas a resolver seus problemas. Só acho que eles cobram muito caro pelas consultas. Uma amiga foi a um terreiro espírita fazer um trabalho e está gastando muito. Já que eles pregam a caridade, deveriam fazer tudo de graça.
Eduardo olhou-a fixamente, enquanto disse:
- É preciso cuidado. Terreiros, pais-de-santo, trabalhos de magia não pertencem ao espiritismo, e nem sempre estão ligados à espiritualidade elevada. Se cobram pelas consultas, muito pior. O trabalho com os espíritos superiores jamais deve ser cobrado, o médium que faz de sua mediunidade um comércio responderá no futuro às leis divinas pelo que fez. Geralmente, esses trabalhos são feitos por entidades negativas, que vivem nas trevas e depois voltam para cobrar pelo que fizeram.
De repente, Eduardo perguntou, movido por rápida intuição:
- A senhora não está metida nisso, não é? Lucrécia corou rapidamente, mas logo se recompôs.
- Não! De forma alguma. A Zélia que procurou um pai de santo que vem tirando todo o seu dinheiro.
- Fiquei aliviado. Mas, quando puder, diga à sua amiga que ela precisa parar enquanto é tempo. Esses trabalhos têm um preço alto, e quem os faz terá de pagar, mais cedo ou mais tarde.
Lucrécia sentiu um arrepio estranho, não estava gostando daquela conversa.
- O que pode acontecer com quem encomenda um trabalho de magia?
- Muitas coisas. Os espíritos que fazem esse tipo de trabalho sempre querem algo em troca. Muitas vezes são objetos, sangue de animais, álcool, fumo. Mas quem faz um trabalho assim fica comprometido perante as leis universais, e, por mais que consiga seu objetivo, jamais será feliz.Terá por companhia espíritos doentes e perturbados, que sugarão suas energias e, quando desencarnar, poderá vir a ser escravo deles no astral, vivendo como cobaia em suas experiências.
Lucrécia ficou apavorada e resolveu mudar o rumo da conversa.
- Diga-me, quando vai me dar um neto? Estou ansiosa pelo meu primeiro. Arlete já é casada há alguns anos e nada, e você parece que nem pensa em nada sério. Pensei que fosse trazer junto com a bagagem uma mulher.
Ambos riram. Eduardo ponderou:
- É melhor esquecer essa história de neto de minha parte. Não penso em me casar e muito menos em ter filhos.
- Por quê? Um homem lindo como você ficar solteirão? Que desperdício! — falou melosa.
- Desejo ser livre, viver a vida do meu jeito, e uma pessoa ao lado está sempre disposta a atrapalhar. Gosto de namorar, curtir um bom romance, mas quando começa a ficar sério eu termino. Do amor só quero a melhor parte. A convivência, muitas vezes, destrói todo o encantamento.
- Por acaso é contra o casamento?
- É claro que não. Mas para casar há que existir amor verdadeiro, sem o qual nenhum casamento tem sucesso. Depois, as pessoas gostam de fazer do relacionamento uma muleta.Vivem pendurados um no outro. Definitivamente, eu não tenho vocação para o casamento.
— Mas ninguém pode levar uma vida inteira só namorando, sem ter algo sério. E quando a velhice chegar, e a solidão?
— A solidão é a falta da própria companhia. Eu, por exemplo, nunca me sinto só, pois estou sempre comigo, do meu lado, além disso faço somente o que gosto e o que me dá prazer. Depois, casamento não é garantia de companhia. A senhora, por exemplo, casou-se, teve filhos e hoje está só.
— Bem lembrado. Mas o que vou fazer se fui trocada? Na minha idade é feio tentar encontrar outro parceiro e, na realidade, ainda amo o seu pai. Faria tudo para tê-lo de volta.
— Nesse caso, é bom tentar esquecer o senhor Arnaldo. Conheço muito bem o meu pai. Ele está realmente amando Alice e deixou de amar a senhora.
-Você, às vezes, chega a ser cruel!
— Sou verdadeiro. Se o ama de verdade, guarde esse amor no seu coração e vá viver. Procure se interessar por outras pessoas, amar de novo. Nosso coração é grande e não amamos apenas uma vez. Quero sua felicidade, mas vejo que a tem colocado nas mãos do papai. Isso é muito ruim. Nossa felicidade não depende de ninguém, apenas de nós mesmos. Vou morar aqui e quero que muita coisa mude. Desejo que saia mais, chame suas amigas, a Zélia, a Hilda e as outras e procure se distrair. Não é bom ficar em casa remoendo o passado. Uma separação para uma mulher traz um recado: é hora de cuidar de si mesma, de se permitir ser feliz. Aquela que corre atrás do marido que a deixou, além de perder seu tempo, cria nele uma aversão que o deixará ainda mais longe.
Lucrécia estava confusa.Talvez não tivesse sido uma boa ideia Eduardo ter vindo morar em São Paulo. Ele era exótico, tinha ideias diferentes da maioria das pessoas, era estranho. Mas era seu filho. Fingiu aceitar o que ele disse e, quando Célia trouxe a bandeja com o lanche, já estavam falando sobre seu trabalho.
- Vou gerenciar uma loja de departamentos aqui em São Paulo. Nossa empresa cresceu muito lá no Sul e estamos abrindo filiais em vários outros estados.
- Você diz "nossa" como se algo ali lhe pertencesse. Li nos jornais que o dono é podre de rico.
- O Galvão realmente é muito próspero, mas saiba que comprei ações da empresa, também sou dono.
Lucrécia estava cada vez mais surpresa com o filho.
- Como conseguiu comprar ações tão caras?
- Não são muitas, mas penso em crescer, obter mais. Durante o tempo em que vivi no Sul, procurei usar apenas o necessário, economizei, prestei serviços a outras empresas e resolvi apostar nessas ações. Não me arrependo, sei que fiz a coisa certa.
- Não é à toa o orgulho que seu pai sente por você. E o filho que pediu a Deus.
Eles terminaram de lanchar e entraram. Eduardo foi para o quarto e, como a empregada já havia arrumado todas as suas roupas, resolveu arrumar seus livros numa pequena estante que ficava no canto. Logo surgiram os livros espíritas, tanto científicos quanto romanceados, livros de autoajuda que tanto lhe fascinavam e uma coleção de revistas espíritas. Eduardo procuraria um centro espírita em São Paulo pelo qual tivesse afinidade para frequentar. Não era médium, mas um estudioso e pretendia continuar seus estudos espiritualistas, que haviam começado no Sul.

Em seu quarto, Lucrécia tentava tapar o rosto com as almofadas, rolando nervosa de um lado a outro da cama. Não havia gostado do que Eduardo falara a respeito das magias nem havia concordado que fora ela a culpada pelo fim do casamento. Pensava que Eduardo era jovem e, por isso, nada entendia da vida. Ao seu lado, dois espíritos rodopiavam e diziam: "Isso mesmo, seu filho é um louco que quer confundi-la. Pai Ernesto é que é bom e vai trazer seu marido de volta".
Ela não ouviu, mas, de repente, pensou: "O que importa é que pai Ernesto vai trazer meu marido de volta. Onde já se viu uma mulher na minha idade sair à cata de homem? Eduardo só pode estar louco!"
Os espíritos gargalharam e, logo depois, quando viram que Lucrécia estava dominada por eles, saíram do ambiente.


9
Vítima da maldade
Bruno e Elza conseguiram com facilidade tudo o que pretendiam, mesmo tendo sido necessário matar. Ao comunicar à esposa que eles agora passariam a residir em São Paulo, ela não demonstrou nenhuma surpresa no rosto nem contestou, o que deixou Bruno muito desconfiado. Será que Arlete escutava suas conversas com Elza durante as madrugadas? Ela já havia descoberto o segredo dele na transportadora, mas jamais poderia saber certos detalhes. Ficou apreensivo durante um tempo, mas depois resolveu esquecer.
A volta foi calma, e logo se instalaram numa grande casa no Ipiranga. O bairro ficava distante da residência de Lucrécia, mas Bruno tinha carro e, sempre que podia, Arlete estava com a mãe e, agora, com Eduardo.
Numa noite, enquanto Arlete dormia profundamente, Bru¬no rolava insone sem saber o que tinha acontecido ao certo com Diva.Começou a relembrar desde o dia em que lhe disse que ia para outra cidade. Estavam num motel e, quando ele terminou as explicações, Diva protestou:
— Você sabe que não posso sair daqui e ir com você. Tenho mãe doente, meu pai é aposentado, o dinheiro em casa mal dá para os remédios. Sou a caçula e tenho de zelar por eles. Mas me dói deixá-lo ir e só vê-lo vez por outra — disse quase soluçando.
Bruno gostava de Diva com todas as forças de sua sensualidade. Seu sorriso maroto, seu jeito de menina, mesmo já passando dos trinta, deixava-o inebriado. Além do que era excelente amante, coisa que todo homem desejava. Não podia e não ia ficar sem ela.
-Você terá de vir comigo, amor. Como poderemos ficar tão longe um do outro? Você sabe que meu trabalho exige muito de mim, não terei tempo nem tantas desculpas para estar no Rio todo fim de semana, você aguentará ficar sem seu moreno?
Ela se derreteu toda:
—Você tem razão. Não posso de forma alguma vê-lo longe, já me basta a condição de amante. Direi aos meus pais que encontrei uma excelente proposta de emprego em São Paulo e que estou partindo. Laura é casada e mora perto, tem um bom trabalho, poderá arrumar uma empregada para cuidar dos meus pais ou, então, ela pode ir com o Durval e a Cíntia morar lá em casa, o espaço é grande e dá para todos. Além do mais, tem o meu irmão mais velho, que tem dinheiro e poderá fazer algo, se acontecer o pior.
Bruno estava feliz, conseguia sempre tudo o que desejava.
Sorrindo, falou:
— Não disse que você encontraria a solução?
— Por amor faço tudo!
Os dois trocaram beijos apaixonados, depois ela perguntou:
— Quanto tempo tenho para arrumar minhas coisas?
— Quinze dias, no máximo. Estou cuidando da minha transferência e a da minha irmã e devo demorar por causa da burocracia.
Havia um casal que fazia esse trabalho lá em São Paulo, mas foram assaltados e mortos misteriosamente, não há ninguém para substituí-los melhor que eu e a Elza.
—É aqui? Quem fará o trabalho de vocês?
— Aqui é mais fácil. A empresa já tem pessoas à nossa altura, enquanto lá eles não encontraram gente de confiança. Mas não vamos ficar aqui falando de empresa, que você não entende nada. Vamos nos amar mais uma vez e depois você segue para casa e começa a arrumar suas coisas. Dentro de quinze dias partiremos.
Depois que eles saíram do motel, Diva pediu um táxi e desceu numa avenida próxima a sua casa. Ela não queria que a vissem chegando de carro.
Diva morava numa rua pobre, no terceiro andar de um prédio antigo, que pela aparência havia anos que não era reformado. Andando pela calçada, ela ia refletindo. Apesar de amar os pais e se apiedar da situação em que viviam, ela não podia ficar sem o homem amado e, além disso, não estava suportando a vida que levava. Não tinha curso superior nem emprego fixo. Para ajudar na renda doméstica, ela fez testes, foi aprovada e passou a ser diarista em casas de bairros mais abastados. Foi lá que conheceu Bruno, quando trabalhava em sua casa, e ambos se apaixonaram. Ele amou-a pela primeira vez dentro da própria casa, e ela ficou feliz em vê-lo com tanta coragem. Enquanto ia pensando e andando devagar, não notou que sombras sinistras se aproximavam dela. Muitas já viviam com ela pelo teor de seus pensamentos e suas ações, mas as outras acabavam de chegar com um plano pronto para tirá-la do caminho de Arlete. Eram espíritos que trabalhavam no terreiro de pai Ernesto.
Diva estava subindo as escadas e, quando chegou no topo, sentiu um forte empurrão que a fez rolar escada abaixo. Caiu desmaiada. A dona do prédio, uma senhora magra e de cabelos compridos amarrados em rabo de cavalo, ouviu o barulho, mas quando chegou já era tarde. Diva estava sangrando e parecia morta. Logo, outros vizinhos começaram a chegar e providenciaram um carro, levando-a para um pronto-socorro. Após o atendimento, a enfermeira disse:
- Ela está mal e pode entrar em coma. Devem removê-la daqui, pois precisa de uma UTI. A pancada atingiu a nuca, e ela deve fazer exames para ver até que ponto o cérebro foi atingido. Há um corte profundo e hemorragia.
Firmina era mulher ágil e, como dona do prédio, sabia que não podia contar com a ajuda dos pais de Diva, que eram pobres e doentes. Do próprio hospital ligou para Álvaro, irmão abastado da moça, que logo tomou todas as providências.
Diva foi internada num hospital particular e os exames mostraram que a queda tinha provocado uma grande lesão cerebral, ela precisava ser operada. Todos se enterneceram. A família, em estado de oração, ficou pelos corredores do hospital, até que um dos médicos saiu e falou:
- A cirurgia foi um sucesso, mas ela está em coma profundo, o que nesses casos não é anormal. Após algumas horas, vamos reavaliar o caso e saber com mais precisão o que fazer. Se permanecer no coma, não saberemos quando vai despertar. Vão descansar e amanhã, no horário de visitas, poderão retornar.
- Eu gostaria de estar aqui quando Diva acordar, quero dormir no hospital - disse Eva, que era esposa de Álvaro e muito amiga de Diva e, além de tudo, sua confidente. Sabia do relacionamento que ela mantinha com Bruno.
O médico alertou:
- Você pode alugar um quarto e ficar, mas só poderá entrar na UTI para vê-la nas horas certas.
- Obedecerei, mas tenho certeza de que ela acordará logo e ficará muito feliz com a minha presença.
Álvaro não gostou, mas não queria contrariar a mulher e acabou permitindo. Ele sempre tentou ajudar a família, mas seu Onofre e dona Edionor eram muito orgulhosos e não aceitavam nenhuma ajuda dele. Viviam quase na miséria, não fosse o salário que Diva ganhava como diarista. Ao sair do hospital, resolveu ir para casa e tentar consolar os pais.

O espírito de Diva acordou pouco depois da cirurgia e pairava alguns centímetros acima do físico. De repente, recebeu um puxão e uma mulher vestida com uma túnica preta a olhou com ironia e falou:
- Nunca mais acordará desse estado em que está. Diva estava confusa.
- Que estado?
- Não percebeu ainda que está em coma na UTI de um hospital?
Ela pensou estar sonhando, mas olhou em volta e viu seu corpo cheio de tubos e fios. Aturdida e muito nervosa, começou a gritar.
- Quero sair daqui, você é uma louca! Como posso estar naquela cama e ao mesmo tempo aqui? Isso é um delírio que logo vai passar.
Mas não passou. Diva, desesperada, sentou-se no chão e passou a esperar para ver o que acontecia. A mulher com aspecto terrível e amedrontador estava com ela e não a deixava um instante sequer. Ela via o médico entrar de quando em vez e também as enfermeiras e, ao concluir que realmente estava em coma e ao mesmo tempo viva, desmaiou.
Quando acordou, algum tempo mais tarde, a mulher estava ao seu lado e lhe disse:
- Quanto tempo pretende ficar assim? Precisa aceitar a realidade.
Ela tomou forças e perguntou:
- Que realidade?
— Nós, eu e meus amigos, te empurramos daquela escada e você entrou em coma. Não poderá mais viajar com seu amante e ficará presa a uma cama de hospital. Vai demorar muito tempo para acordar, o tempo suficiente para Bruno te esquecer.
- Por que estão fazendo isso comigo? - perguntou Diva entre lágrimas.
- Trabalhamos para pai Ernesto e fazemos tudo o que ele manda.
— Pai quem?
A outra falava orgulhosa:
— E um pai de santo muito bom, que mora em São Paulo. — Ela parou, abriu uma bolsa que trazia consigo e dela retirou uma foto.
— Conhece essa moça?
De pronto Diva não conseguiu lembrar, mas a cabo de poucos segundos reconheceu Arlete, esposa de Bruno. Tinha certeza de que era ela, pois um dia, remexendo na carteira dele, havia visto aquela mesma fotografia.
- Essa é Arlete, mulher do Bruno, que como você mesma já disse é meu amante. Mas o que tem ela a ver com tudo isso?
— Tudo a ver, queridinha. Arlete é moça esperta e ama o marido. Sentiu que estava sendo traída e procurou os serviços de pai Ernesto. Fizemos um trato: tiraríamos você do caminho dela e ela nos daria outras coisas. Primeiro tentamos fazer com que vocês brigassem e ele se desinteressasse, mas não conseguimos. Com uma peça íntima dele tentamos baixar o teor das energias sexuais que ele possui, mas também não conseguimos. Até que o exu que comanda pai Ernesto sugeriu esse plano. Diva estava aterrorizada e gritou:
- Afaste-se de mim, saia! A outra gargalhou.
- Minha função aqui é fazer com que você não retome o corpo de forma alguma. Não conseguimos matá-la. Tem um filho do Cordeiro que protege seu cordão de prata para que não morra, talvez porque não seja mesmo seu dia, sei lá. Mas o que importa, para nós, é que você fique inconsciente e ele a esqueça.
- E por que esse mesmo filho do Cordeiro não me protege e não me tira do coma?
- Bem se vê que você não sabe nada. Ao se meter com um homem casado, você ficou sem proteção espiritual.Tudo piorou quando você passou a alimentar o desejo íntimo de separá-lo da esposa, fixando na mente planos mórbidos. Não venha querer me enganar. Sei que de santa você não tem nada.
Diva, meio zonza, ainda conseguiu protestar:
- Muitas mulheres têm romance com homens casados na Terra e nem por isso algo acontece com elas.
- Mas elas não sabem quanto ficam sem proteção. Na comunidade em que vivo, o sexo é livre e o casamento não é respeitado, mas os seres da luz não aprovam quem comete traições conjugais na Terra, e deixam essas pessoas livres para sofrer as consequências.
- Então estou sendo punida?
— Deve estar! Onde vivo há punição. Se meu chefe pune, Deus deve punir também.
Diva chorava copiosamente, e todas as vezes que tentava retomar o corpo, a mulher horripilante e sinistra a impedia. Por fim, já cansada e julgando estar sendo punida pelo adultério, ela resolveu ficar passiva e passou a ficar o dia inteiro dormindo no chão do hospital ou sobre o próprio corpo inerte.

Alheio a tudo isso, Bruno pensava na fatalidade que ocorrera à mulher que ele tanto desejava, e não conseguia entender. Todos os dias, ligava para o Rio na tentativa de receber boas notícias, mas era sempre a mesma coisa. Diva não saía do estado de coma. Com o tempo, Elza acabou o induzindo a esquecê-la, coisa que ele fez com facilidade. Não imaginava Bruno que o adultério mal-intencionado, tanto para a mulher quanto para o homem, acarreta sérios compromissos de reajustes dolorosos que todos terão de enfrentar, cedo ou tarde.




10
O desespero de Alice
Garoava à noite, e Alice havia mandado preparar um jantar especial àluz de velas para ela e Arnaldo.Próximo ao predio onde residiam havia um excelente restaurante, de modo que ela praticamente não precisava preparar nada, bastava ligar e eles entregavam o pedido. Habituada a uma infância e adolescência apenas voltada para os prazeres e diversões, ela não havia aprendido nada sobre prendas domésticas. Sua mãe dizia que isso era coisa de outros tempos e que não iria criar sua filha única para viver enfurnada em casa, fazendo trabalhos domésticos.
Quando o serviço do restaurante entregou a refeição, Arnaldo havia acabado de sair do banho e logo estava à mesa. O aparelho de som tocava canções de Caetano Veloso, que Alice selecionara especialmente, pois sabia que ele adorava. Aquele momento estava sendo mágico para ela. Desde que Eduardo chegara, havia quatro semanas, Arnaldo inventava um pretexto para ficar à noite com o filho em sua antiga casa. Ela não sentia ciúmes de Lucrécia, sabia que Arnaldo a amava, mas ao mesmo tempo estava sentindo sua falta. Todas as noites ele só aparecia depois das onze. Alice, já ensoñada, às vezes nem percebia e, quando ainda estava acordada, sentia que Arnaldo não estava com disposição para o amor. Então resolveu agir. Conversou com ele e pediu que ficasse mais tempo com ela, ao que ele concordou. Aquela noite era o momento de estarem juntos, e ela aproveitaria ao máximo. No entanto, mesmo com todo o clima de romantismo, Alice sentiu-o distante. Teve até a impressão de que seu desejo mesmo era estar em sua antiga casa.
- O que está acontecendo com você, amor? Onde está neste momento?
Arnaldo assustou-se e respondeu:
- Desculpe, querida, pensava em Eduardo e no que conversamos ontem. Meu filho tem uma filosofia de vida maravilhosa. Tenho descoberto um mundo novo com ele.
Alice percebia que falar do filho era a coisa de que Arnaldo mais gostava, e deu largas à conversa.
- Ele veio poucas vezes ao nosso apartamento, mas percebi que é realmente inteligente. Pensa diferente da maioria das pessoas, tem coragem de se mostrar como é. Admiro pessoas assim, ele é uma cópia sua.
Arnaldo soltou o talher e falou com orgulho:
- Ele não é uma cópia minha, quisera eu. Eduardo é tudo o que eu queria ser e ainda não sou.
Alice levantou-se e o abraçou pelas costas, beijando-o.
- Ainda bem que se entendem e se amam, assim como nós. Ele respondeu reticente:
- É, querida. É...
Alice não aguentou e desabafou:
- Não adianta, Arnaldo, você já não é o mesmo comigo. Tem algo acontecendo de muito errado conosco, ou melhor, com você.
Eles deixaram a mesa e o jantar pela metade e foram para a sala.
—Você sabe que depois daquele súbito desmaio nunca mais fui o mesmo. Tenho feito exames, mas os médicos não encontram nada. Continuo lento no trabalho, esquecendo coisas... Só melhorei depois que meu filho voltou a morar aqui. Basta estar na presença dele para que me sinta melhor. Você está certa, meus sintomas continuam. Foi-me sugerido um tratamento psiquiátrico, como você sabe, mas sinto receio de que pensem que estou louco. Nunca fui homem de chiliques.
- Não é a isso que estou me referindo. Embora saiba que você está abalado psicologicamente, sinto que nossa relação mudou. Você não me olha mais com paixão como antes, está frio, seus gestos demonstram que não sente mais carinho por mim como no princípio. Sou sensível e percebo quando algo está errado.Toda mulher sente quando seu parceiro muda. Muitas querem se enganar e fazem como avestruz, enfiam a cabeça na terra e fingem não ver, mas sou prática e você sabe disso. Portanto, me responda agora: não me ama mais, está em dúvida sobre nosso amor?
Arnaldo não esperava aquele desabafo inesperado e ficou sem saber o que responder de pronto. Algo estranho estava acontecendo com ele, e que não havia revelado a ninguém. Havia algum tempo vinha pensando com insistência em Lucrécia e em tudo o que viveram juntos, até saudade voltou a sentir. Recordava com nitidez suas viagens à Europa, seus fins de semana no haras, a chegada dos filhos... Eram pensamentos carregados de emoção e, após o retorno de Eduardo, eles foram ficando mais intensos. Na verdade, estava adorando o clima do seu antigo lar e achando aquele apartamento sufocante, pequeno. Em contraposição, sentia que amava Alice com todas as forças de seu coração, não queria deixá-la, mas em sua sutil obsessão já até havia levantado a hipótese de regressar ao lar que abandonara. Pensou rápido e tentou contemporizar.
— Que é isso, amor? Em nada mudei com você. São os meus problemas que estão me deixando assim. Você sabe que até a principal obra sob minha responsabilidade está atrasada - falou isso e puxou-a de encontro ao peito.
Ela conseguiu se afastar e continuou:
— Não, Arnaldo. Sei que não está sendo sincero. Gostaria que pensasse bastante no que vou dizer. Amo-o profundamente e faço qualquer coisa para estar ao seu lado. Deixei meu emprego e desisti de fazer um curso superior para me dedicar apenas a nossa vida, a você. Talvez esse tenha sido o meu erro. O que faço agora da vida? Enquanto você trabalha, passo o dia em cinemas, teatros, shoppings, centros de lazer, apenas isso. Tudo bem que sempre saio com a Rose e a Magali, que são minhas melhores amigas, mas acho que tenho descuidado de mim por causa de você. Isso nunca dá certo. Estou disposta a retomar meu trabalho, estudar e não desejo que se oponha. Se sentir que seu amor por mim terminou, não titubearei em deixar este apartamento e voltar para a casa de meus pais. Não sou, nem quero ser como a Lucrécia. Se quiser me deixar livre, faça-o, pois eu sei me virar.
Arnaldo estava cada vez mais estupefato com tudo o que ouvia. Parecia que Alice era outra pessoa. Será que ele havia dado motivo para tanto?
— Querida, creio que você está completamente enganada. Amo você profundamente. Sempre te amei, desde o princípio, e vou te provar agora, deixando-a voltar a trabalhar e estudar. Sinto se não estou sendo o homem que você deseja, mas creia que procurarei um psiquiatra e vou me tratar. Não posso permitir que nada abale nossa relação. Por você joguei fora um casamento de mais de trinta anos, amo-a com paixão, com loucura.
Ele puxou Alice e ela não resistiu, era completamente apaixonada por ele. Foram para o quarto e se amaram como há muito não faziam. Horas mais tarde, enquanto ele dormia, Alice foi ao telefone e, angustiada, esperou que sua amiga Magali atendesse.
-Alô? - falou uma voz preguiçosa do outro lado da linha.
- Magali?! Que ótimo que atendeu! Desculpe, amiga, te ligar neste momento, a esta hora da madrugada.
- O que aconteceu? Foi alguma coisa muito grave, senão não haveria motivo para uma ligação a esta hora.
Alice começou a falar e logo o choro veio junto.
- Sinto que estou perdendo o Arnaldo. A vida está me castigando. Tirei um homem do lar, destruí uma família e não vivi feliz nem três anos.
- Quanto drama! - falava Magali, agora completamente acordada. — O que foi que houve?
- Como você sabe, o Arnaldo está diferente, mudou muito, já não é o mesmo comigo. Hoje fiz um jantar especial, mas ele parecia estar em outro planeta, mal tocou na comida. Falei o que sentia, mas não me convenci com suas respostas. Sei que está deixando de se interessar por mim. O que farei sem ele?
- Calma! Você sempre foi muito racional e inteligente. Todo mundo sabe que o Arnaldo te ama. Nenhum homem deixa uma família sólida como a dele se não for por amor. O Arnaldo tem passado por problemas, pode ser isso.
- Não é! Eu sei, eu sinto. Agora mesmo fizemos amor como no princípio, mas, quando tudo terminou, ele virou para o lado e dormiu. Isso não é normal, não com ele. Além disso uma série de fatos vem acontecendo. Desde que Eduardo, o filho mais velho, voltou a morar aqui, tenho passado as noites sozinha vendo TV. Ele fica na casa da ex e, quando volta, geralmente já estou dormindo. Você sabe que me dou o valor, não aceito menos. Se alguém não me valoriza como deve, eu termino a relação, mesmo amando. Magali ponderou:
- Também não é para ser radical assim, mas penso que seu problema pode ter outra origem.
- Qual?
- Desde aquele desmaio estranho do Arnaldo, tenho tido suspeitas, mas nunca lhe disse nada temendo uma bronca.
Alice ficou curiosa, será que a amiga sabia de coisas da vida do marido que ela mesma ignorava?
- Conta logo, o que é?
- Penso que sua relação com Arnaldo está tendo interferências espirituais.
- Lá vem você com esoterismos. Sabe que não acredito nessas coisas.
- Mas deve começar a acreditar. O Arnaldo a ama e se está mudando assim e com esses problemas de saúde que nenhum médico consegue curar, é porque provavelmente está sendo obsediado.
- Como? Obsediado? O que é isso?
- Assim, por telefone, é ruim explicar, mas amanhã podemos marcar para sair e te explicarei tudo. Se for mesmo obsessão, você pode até perder o Arnaldo.Você não sabe, mas tenho estudado a vida espiritual e frequentado um centro espírita que fica próximo da minha casa. Já descobri coisas incríveis. Por coincidência, acabei de ler um livro maravilhoso do Chico Xavier, ditado pelo espírito André Luiz, que se chama Libertação.Tenho certeza de que o li na hora certa, tenho muitas informações para te passar.
Alice estava achando aquilo uma loucura, mas confiava demais em Magali e queria saber o que a amiga tinha para lhe dizer. Magali continuava, ao telefone:
— Procure ficar na paz. É nas horas da tormenta e dos problemas que temos de nos recolher em prece e pedir a ajuda de Deus e Jesus. Há quanto tempo você não reza?
— Ah, minha amiga, eu nem sei fazer isso. Nunca me ensinaram. Depois, pelo que ouço dizer, Deus não dá ouvido às adúlteras — falou com um riso nos lábios.
— Nada disso. Quem pensa assim são os fanáticos religiosos. Jesus perdoou a adúltera e não a condenou.Vá deitar, reze, peça ajuda a Deus, a seus amigos do astral e ao seu anjo guardião. Coloque sua mão direita sobre a testa de Arnaldo, enquanto ele dorme, e imagine que dela está saindo uma luz azul. Depois entregue seus problemas nas mãos de Deus e vá dormir. Amanhã será outro dia.
Alice, mais tranquila, retorquiu:
— Não sabe como estou aliviada. Foi muito bom ter falado com você. Não sabia que estava tão religiosa! Andamos sempre juntas e você nunca me disse nada!
— Em primeiro lugar, não estou religiosa; em segundo, só precisamos falar sobre as coisas da vida espiritual em momentos certos, em horas propícias. Agora precisamos de uma boa noite de sono.
Ambas desligaram e Alice orou com sinceridade, pedindo a Deus que ajudasse Arnaldo e protegesse seu relacionamento com ele.
Depois, colocou a mão sobre sua testa e realmente uma energia azul saiu dela e penetrou o coronário do homem amado.
Atentos a tudo o que acontecia desde o jantar, dois espíritos com trajes negros, agora com semblantes preocupados, conversavam a um canto do quarto.
- Isso não estava em nossos planos. Pai Ernesto ficará furioso. O que faremos?
- Iremos até ele e contaremos tudo. Se Alice ceder a essa influência da amiga, muita coisa ficará difícil.
- Pode ser, mas não podemos nos esquecer que Arnaldo tem aquele ponto fraco, e com ele a causa já está ganha, em menos de um mês voltará para Lucrécia.
- E, mas lembre-se que pai Ernesto deu um tempo certo para ela. Se essa amiga a influenciar, pode ser que demore muito mais.
- Por isso temos de ir agora acordar o pai Ernesto e ver o que podemos fazer.
Os vultos escuros desapareceram rapidamente.



11
Convivendo com o sentimento de culpa
Em um elegante restaurante,Arnaldo e Eduardo aproveitavam o almoço que marcaram para conversar. Havia alguns dias, Arnaldo decidira contar ao fdho o que estava acontecendo em sua vida, seus problemas, seus pensamentos obsessivos, na esperança de que ele o orientasse. Eduardo era dono de uma inteligência incomum, e o pai sabia que com que ele encontraria alguma solução. Aliás, bastava a presença do fdho para que ele se sentisse melhor. Quando terminaram de almoçar, enquanto aguardavam a sobremesa, Arnaldo começou:
- Marquei este almoço não simplesmente para mudar de ambiente ou como distração. Como pode ver, pedi uma mesa em local reservado para que pudéssemos conversar sem que algum conhecido nos interrompa. Tenho passado por problemas, fdho, e sei que você pode me dar um caminho, uma solução.
Eduardo fixou-o com firmeza, quando disse:
- Tenho notado que não anda bem. Já não é o pai alegre, bem-disposto e empreendedor de alguns meses atrás. Mas percebi que fica pior em seu apartamento. Nas poucas vezes que fui lá, notei que fica calado, carrancudo e com certa tristeza no olhar. Afinal, não está feliz com a mulher que ama?
— Não é tão simples assim, meu filho. Há algum tempo tive um desmaio estranho, minha pressão subiu e fiquei internado. Após os exames requisitados, os médicos disseram que eu estava sadio, que meu corpo não apresentava nenhum problema. Mas, ao sair do hospital, parece que uma espécie de depressão me invadiu. Não me sinto em paz em casa com Alice, a mulher que amo, ando esquecido das coisas, meu trabalho tem sido prejudicado com isso, não consigo me concentrar direito.
Arnaldo estava constrangido por falar aquelas coisas para o filho, mas não viu olhar de crítica no rapaz e sentiu-se encorajado para se abrir. Após uma pausa continuou.
— Meu corpo não anda bem, sinto enjoos, tonturas, dores de cabeça. Já passei por vários médicos, e os exames nada acusam. Mas o pior e o que me deixa mais intrigado é o fato de estar constantemente pensando em sua mãe.
Eduardo não sabia que o problema era tão grave, e logo imaginou o que estava acontecendo, mas não tinha como dizer ao pai. Arnaldo era um homem bom, mas completamente materialista, apesar de ter tido uma educação religiosa. Era católico. Nas conversas que tinham, sempre que mencionava espíritos, médiuns, o pai mudava de assunto, dizendo ser ideias de pessoas ignorantes e simplórias. Mas resolveu tentar:
— Como são esses pensamentos com relação à mamãe?
— Não sei explicar. Eles aparecem fortes, carregados de emoção e são insistentes. Tem dias que, mesmo reconhecendo amar Alice, sinto que devo voltar para casa e reassumir a relação que tinha com sua mãe. E uma loucura, tento parar de pensar, mas não consigo.
Lágrimas brotavam do rosto de Arnaldo, e Eduardo, pela primeira vez, viu o pai fragilizado. A sobremesa chegou e eles não deram importância. Eduardo, com voz firme, decidiu dizer o que lhe estava no íntimo:
— Pai, ouça bem o que vou lhe dizer, é sério e gostaria que não me interrompesse. Sabe que quero sempre o seu bem e o apoiei quando resolveu sair de casa para ser feliz. E meu dever de filho lhe falar a verdade, mesmo que o senhor não acredite. Vou dizer tudo e depois o seu livre-arbítrio lhe dirá como agir.
Arnaldo enxugou as lágrimas e, curioso, perguntou:
— O que vai me dizer de tão sério? Tenho alguma doença grave?
— Tem sim, e sabe com ela se chama? Arnaldo assustou-se:
— Não. O que é?
— É a culpa.
— Ora, não me venha com brincadeiras numa hora dessas. Olhe como estou. Até chorei na sua frente. Não há nada que tenha a ver com culpa.
Eduardo continuava imperturbável.
— O senhor não tem nada no corpo físico. É uma pessoa saudável. Ama, é amado, é bem-conceituado na profissão que escolheu, tem dinheiro. Qual o motivo para estar infeliz dessa forma?
— Não sei, talvez seja a depressão. Mandaram-me procurar a psiquiatria, mas sinto receio.
— Existem, sim, casos reais de depressão, mas não é o seu. Se procurasse um psiquiatra, ficaria pior do que já está. Tomando remédios fortes, aos poucos poderia até mesmo perder a razão.
Arnaldo continuava confuso.
— Até agora você não disse em que ponto a culpa entra nessa história, pode me explicar?
— Sei que não acredita em espiritismo, em vida após a morte. Já começamos a conversar sobre isso e o senhor sempre cortou, acredita que seja balela, mas é hora de atentar para a imortalidade da alma e para as coisas do espírito. Se assim não fizer, sua vida só vai piorar.
Arnaldo irritou-se. Esperava conselhos filosóficos do filho e ele vinha com essa de espiritismo.
- Não acredito e sei que, apesar de você ser espírita, jamais participarei dessa seita.
Apesar de tudo, Eduardo sorriu e disse:
- O espiritismo não é seita nem religião, mas depois lhe explico melhor. Vamos para sua vida, que é o que interessa.
Fixando os olhos profundos no pai, Eduardo começou a explicar.
- O senhor está envolvido por espíritos ignorantes que têm sugado sua vitalidade e que desejam dominar sua vida, levando-o para a infelicidade. Esses espíritos querem que o senhor retorne ao antigo lar e não sabemos por que, mas estão usando da sugestão hipnótica constante de pensamentos para esse fim.
Arnaldo sabia que o filho era uma pessoa séria e inteligente e começou, então, a dar crédito ao que ele dizia:
- Isso realmente pode acontecer?
- Pode e é mais frequente do que se imagina. A maioria das emoções que sentimos vem de fora, dos pensamentos da sociedade, das pessoas encarnadas e, principalmente, dos espíritos que já deixaram este mundo. A maioria das pessoas infelizes que busca consultórios psiquiátricos, na realidade, são médiuns e estão com seu sexto sentido em desenvolvimento. Como não conhecem o processo, buscam todos os meios para se sentirem bem. Embora muitos encontrem a melhora, a maioria não consegue ficar bem, a não ser com o uso contínuo de medicação.
Arnaldo se interessava cada vez mais pelo assunto e não resistiu à pergunta:
- E por que ficam bem quando tomam a medicação? Se são espíritos que os estão atacando, eles não deveriam apresentar nenhuma melhora.
- Cada caso é um caso. As vezes, a sensibilidade perturbada acaba atingindo o físico, e é realmente necessário o uso de medicação. Mas, na maioria das vezes, os remédios prejudicam e aumentam o problema. Os que ficam bem quando tomam a medicação geralmente são aqueles que estão se autoajudando, buscando ideias otimistas, aprendendo a lidar com seu mundo interior. Pode durar mais de uma encarnação. Mas, se são atingidas pelos espíritos das trevas, é porque deram abertura com o baixo padrão vibratório. Nenhum espírito, por pior que seja, vai conseguir nos atingir se estivermos no bem e na felicidade.
- E no meu caso? Se estou sendo atingido por espíritos, não dei abertura em nenhum momento, vivia feliz com a Alice, com minha profissão, amigos... Como isso se explica?
Eduardo esperava por essa pergunta.
- Não lhe falei que sua doença se chamava culpa?
- Sim, e...?
- A culpa é um instrumento de autotortura que as pessoas usam até inconscientemente, é uma porta aberta para inúmeras obsessões e sofrimentos. Sei que, apesar de ser feliz com a nova companheira, o senhor nunca deixou de se culpar pela solidão na qual deixou a mamãe. Pelas nossas conversas por telefone e mesmo ultimamente, tenho percebido que se acha responsável pelo fato de ela viver triste e amargurada. É por meio desse sentimento mórbido que os espíritos das trevas conseguiram alcançá-lo. É preciso perceber que ninguém é culpado pelo que acontece na vida dos outros. Cada um atrai e vivência aquilo que é necessário ao seu crescimento interior. Enquanto não se livrar da culpa, sua vida continuará como está.
Arnaldo percebeu que o fúho mais uma vez falava a verdade. Ele se sentia responsável pela vida de Lucrécia. Sempre que podia e se via só, ligava para ela para saber como andava a mansão, se havia algum problema que ele pudesse resolver. Era-lhe doloroso saber que uma pessoa estava entregue à solidão por sua causa, além disso sempre ouvira dizer que o adultério era um pecado mortal. Se Eduardo seguia o espiritismo, por que o ajudou a se separar?
- O que me diz é verdade, filho. Sinto que sou o culpado, mas o que fazer? E mais forte que eu. Ademais, você sabe que comecei a me relacionar com Alice enquanto ainda estava casado e que sempre tive amantes. Sou de família tradicionalmente católica e sempre ouvi dizer que o adultério é um pecado terrível.
— Essas ideias são das religiões que o homem criou, mas Deus dirige a vida com leis bem diferentes das dos homens. Não existe pecado. O que há são ações negativas que trazem dor e sofrimento, variando de acordo com a intenção de cada um. Para as leis cósmicas, os atos em si nada valem, o que conta mesmo são as intenções.
Arnaldo estava surpreso.
— Então você é a favor do adultério?
- É claro que a traição é uma ação negativa, que produz frutos dolorosos. Ao sentir que não amamos mais alguém e que há outra pessoa em nosso coração, devemos ser sinceros e terminar a relação fracassada antes de iniciar a outra. Isso é honestidade. Mas nem sempre quem comete adultério tem intenções negativas. Na verdade, são pessoas que têm essa fraqueza e que só o tempo irá modificar. Mas há traições planejadas, situações dúbias bastante negativas que envolvem pessoas com o intuito de causar sofrimento. Os que assim agem vão sofrer para harmonizar o que fizeram. Por outro lado, há criaturas também de coração grande, que amam duas ou mais pessoas ao mesmo tempo sem que isso seja adultério. Há variáveis que envolvem o processo, e não temos condições de julgar. Muitas dessas situações vêm de vidas passadas, assuntos mal resolvidos que precisam agora de reajuste. Arnaldo atalhou:
- Então quer dizer que não errei tanto assim? Que posso ser feliz sem culpa?
- E claro, pai. O mais sensato seria ter comunicado à mamãe que gostava de outra e, só depois, começar a se envolver, mas isso não é motivo para culpa. Todos nós somos seres em busca da perfeição total. Somos perfeitos em nosso nível de evolução, mas, para chegarmos à perfeição total que está destinada a nosso espírito, erramos e erraremos muito mais. E natural.
- Nossa, filho, como essa conversa me aliviou! Quer dizer que, se me livrar da culpa, todos os meus problemas desaparecerão?
- Quando mudamos nossos pensamentos para os positivos, há uma desconexão natural com as entidades perversas, mas no seu caso aconselho que vá tomar passes em um centro espírita. O passe é uma transmissão de energias sadias, de fluidos benéficos, que muito o irá ajudar.
Depois que pagaram a conta, cada um foi para sua casa. Eduardo recolheu-se em seu quarto e agradeceu a Deus a oportunidade que teve de esclarecer o pai. Mas no íntimo sentia que não seria fácil Arnaldo voltar a ser como antes. O poder destrutivo da culpa infelicita milhares de criaturas e produz resgates dolorosos de erros que poderiam ser feitos pela harmonização através da inteligência e do amor. Antes de deitar para seu sono vespertino habitual dos domingos, Eduardo ainda pensou na frase do apóstolo Pedro que, se fosse colocada em prática, mudaria a humanidade: "O amor cobre a multidão de pecados".



12
O despertar do amor
Ernesto estava triste e saudoso naquele fim de tarde. De repente, parecia que a vida havia perdido o sentido. Aliás, desde o fatídico acidente que vitimara sua família, ele não via mais graça alguma em continuar vivendo. A mediunidade a serviço das trevas em troca de dinheiro veio para ele em boa hora, pois preenchia seu tempo, permitia que interferisse no destino das pessoas tornava-o poderoso. Como seus serviços funcionavam, davam os resultados esperados, sua clientela foi aumentando e ele já contava com uma grande soma na conta bancária, além de diversos imóveis espalhados pelo centro de São Paulo e até em bairros distantes, que lhe serviam como fonte a mais de renda por estarem alugados. Mas, vez por outra, batia a melancolia. Nessas horas entrava em tristeza profunda, tudo perdia o sentido, e ele chorava muito, escondido, para que seus empregados não percebessem. Jamais pensara em voltar a se relacionar amorosamente com alguém. Seu grande amor, Mariana, a vida injusta e cruel o havia tirado. Estava se refazendo do choro quando Claudete, uma espécie de secretária, entrou em sua sala dizendo:
- Acabou de chegar uma jovem desesperada, chorando muito, desejando ser atendida agora. Disse-lhe que o horário de expediente terminou há mais de uma hora, mas ela insistiu dizendo morar longe e alegando que o trânsito a impediu de chegar na hora marcada.
Ernesto ergueu as sobrancelhas e imaginou que atender mais alguém, mesmo com o horário encerrado, seria bom. Naquele dia, em especial, mais uma consulta o ajudaria a distrair a mente.
Ao seu lado estava o espírito luminoso de Mariana e seu amigo Fernando torcendo para que ele atendesse a moça. Mariana comentou:
- Deus ajude que ele possa se render ao bem desta vez. -Vamos orar e ficar por perto. Os ajudantes de Ernesto não
sabiam o que ia acontecer hoje e não estão aqui, por isso vamos ficar vigilantes.
Ambos começaram a orar e de seus espíritos começaram a sair faíscas de luz prateadas que inundaram o ambiente.
Olhando para Claudete, ele disse:
- Pode mandar entrar. Se estava marcado, não posso deixar de atender.
Ernesto preparou o local acendendo incensos, velas coloridas, luzes que refletiam por todo o ambiente, deixando-o exótico. Apesar de trabalhar para o mal, Ernesto mantinha um consultório agradável ao olhar dos clientes, apesar de no lado espiritual o ambiente ser tenebroso e assustador. Das paredes descia uma espécie de líquido semelhante ao sangue, mas bem mais escurecido. No chão, insetos, como aranhas e baratas, e animais como cobras e ratos, do astral inferior perambulavam de um lado a outro. Atrás de Ernesto sempre ficava um espírito de capa preta que o guiava nas tarefas, mas ele não estava ali naquele momento. Tendo encerrado o expediente, o citado espírito havia ido ao encontro da entidade que se autodenominava Lúcifer para contar os êxitos do dia ao lado do "cavalo".
Tudo preparado para atender, Ernesto estava de costas e falou mecanicamente, quando a moça foi anunciada:
— Sente-se.
Ao se virar e olhar para a pessoa à sua frente, Ernesto corou, seu coração acelerou, uma emoção muito forte tomou conta de seu ser. Quem seria aquela jovem tão bela? Completamente entregue à emoção, Ernesto começou a fitá-la e, quando seus olhos se encontraram, a emoção aumentou a tal ponto que uma lágrima desceu de seu olho esquerdo.
A jovem, percebendo que algo estranho estava acontecendo, perguntou:
— Sente-se bem, pai Ernesto?
A pergunta o fez despertar do quase transe em que havia entrado. Ele se refez rapidamente e respondeu:
— Sim. Sinto-me bem. Apenas rememorei um fato triste de uma cliente que saiu há algum tempo daqui - mentiu.
Ernesto estava completamente emocionado com a presença daquela pessoa até então estranha e que fez brotar de seu íntimo um sentimento há muito esquecido.
— Como se chama?
— Ingrid.
— Quantos anos você tem?
— Dezenove. Ernesto admirou-se.
— Tão nova e já buscando os recursos da magia? Quem lhe influenciou a tomar tal atitude?
- Sou de uma família que entende do assunto, mas que trabalha só para o bem. O que quero eles dizem que não podem fazer. Daí procurei a mãe Márgara, mas só havia vaga para daqui a três meses. A assistente que trabalha com ela disse que vocês são amigos e que eu poderia tentar aqui.
- Mãe Márgara tem muito poder mesmo. Mas aqui a agenda também está lotada, só temos vaga para daqui a quatro meses. Como conseguiu assim tão rápido?
- A Claudete me colocou no lugar de uma cliente que havia desmarcado.
- Sorte sua. Mas... O que pretende aqui?
Ingrid abriu uma pequena bolsa e foi retirando alguns pertences em busca de algo. Ernesto, completamente apaixonado, observava cada gesto delicado que ela fazia, a maneira educada como conversava, a voz pausada. Era uma jovem bonita, alta, de cabelos cacheados abaixo dos ombros, branca, de uma brancura que chegava mesmo à palidez, mas que contrastava com seus lábios vermelhos e discretos.
Após retirar vários objetos, ela encontrou uma foto pequena em que estava um homem e uma mulher. Eram jovens. O homem tinha porte atlético, estava de camiseta e mostrava músculos bem definidos. A mulher era muito parecida com Ingrid, apesar dos cabelos lisos e da tez amorenada. Mostrando a foto, Ingrid disse determinada:
-Quero este homem, custe o que custar. -Vejo que é determinada.
- Sou sim. Quero que faça dois trabalhos. Primeiro, um de separação. Quero vê-lo longe da mulher e dos dois filhos, depois quero que o faça se apaixonar perdidamente por mim. Este homem é a minha vida. Sei que é poderoso e pode fazer o que desejo.
Ernesto estava confuso. Não sabia o que fazer. Não sentiu a presença do exu que o guiava. Onde ele estava que não aparecia para sugerir algo? Mesmo quando o expediente terminava, as entidades ficavam atentas, pois poderia aparecer um caso extra. Por outro lado, Ernesto reconheceu ter sentido por Ingrid um amor súbito, tempestuoso. Seria por isso que o exu de capa preta não estava por perto? Pausando a voz, ele continuou:
- Posso fazer o que me pede, mas para isso é preciso que me conte como se apaixonou tão perdidamente a ponto de recorrer à magia. E preciso saber de tudo para que o trabalho tenha eficácia.
Ingrid estranhou.
- O filho de mãe Márgara disse que o senhor é tão poderoso que adivinha tudo antes mesmo de a pessoa falar. Então, por que preciso contar minha história?
Ernesto ficou perdido com a pergunta inesperada. Era assim que acontecia. Os clientes chegavam e as entidades lhe contavam tudo, fosse pela audiência mediúnica, fosse pela telepatia, mas, naquele instante, além de não sentir nenhuma delas por perto, queria estar mais próximo de Ingrid, demorar o máximo possível em sua companhia. Subitamente inventou:
- As entidades estão pedindo que você conte a sua história. Elas querem captar as vibrações de sua voz, do que você vai narrar para usar no trabalho no terreiro. E muito comum isso acontecer.
Ela então começou o relato:
- Sou filha de pais separados, mas que viveram bem durante muito tempo. Minha irmã mais velha, Vanessa, tem vinte e nove anos. Meus pais não queriam mais ter filhos, porém, por descuido, minha mãe engravidou dez anos depois de Vanessa ter nascido. Eu fui criada mais por minha irmã do que por minha mãe. Somos de classe média baixa e meus pais trabalhavam o dia inteiro. Pela manhã, enquanto Vanessa estava na escola, a empregada cuidava de mim, o resto do tempo eu ficava com ela. Mesmo com a diferença de idade, conseguíamos nos entender e sempre fomos amigas.
No entanto, há três anos Vanessa chegou a nossa casa sorridente e muito feliz, dizendo ter encontrado o homem de sua vida e que ele a tinha pedido em namoro. Marisa, nossa mãe, sorriu e disse: "É assim com todos. Depois de um mês você enjoa e aparece com outro pretendente".
Vanessa, sorrindo muito, retorquiu: "Desta vez é diferente, é para valer. Estamos apaixonados".
Eu adorava minha irmã e, na época, tinha só dezesseis anos, era tímida, pouco ia às baladas e tinha tido poucos namorados. Mesmo assim, estava feliz ao vê-la tão eufórica e apaixonada.
Ela disse à mamãe:"Amanhã quero um jantar especial, ele vem aqui pedir minha mão à senhora. Já que papai nos deixou e foi para Ouro Preto, só resta a senhora aqui para aprovar a união".
Mamãe sorriu e tudo foi preparado para o jantar especial. Vanessa era recém-formada em Medicina e fazia residência em um hospital conhecido, onde conheceu o Diego, que é instrumentador cirúrgico.
A noite chegou e, quando o Diego entrou com um buquê de rosas vermelhas para minha mãe, fiquei estarrecida. Foi paixão à primeira vista. Nunca havia sentido por nenhum homem o que senti em poucos instantes pelo namorado de minha irmã. Quando ele me abraçou cordialmente e me beijou no rosto, senti um calor maravilhoso, meu coração disparou, parecia que ia desmaiar. No entanto, fingi muito bem.
Com o tempo, ele passou a frequentar nossa casa regularmente, e minha paixão aumentava. Depois que o conheci, não consegui mais namorar ninguém. Passava os dias a sonhar com ele, imaginando-o em meus braços, sonhando com o dia em que ele terminaria tudo com minha irmã e se declararia para mim.
Mas isso nunca aconteceu. Eles ficaram noivos e se casaram há dois anos. Vanessa já casou grávida, e há poucos meses deu à luz o segundo filho. Eles vivem muito bem, felizes e eu amo a minha irmã, mas não consigo deixar de amar o Diego de forma alguma. Queria tê-lo para mim de qualquer jeito. Sempre ouvi dizer que nenhum homem resiste quando uma mulher se insinua, então tracei um plano. No dia que minha irmã estava de plantão e Diego, sozinho em casa, fui para lá. Cuidei de fazer a cópia da chave do apartamento deles com antecedência para facilitar as coisas. Entrei sorrateiramente e com roupas previamente pensadas para aquele momento, deitei na cama dos dois, enquanto ele, entretido, cuidava do Marquinhos.
Quando Marquinhos dormiu e ele entrou no quarto, ficou pasmo com o que viu. Jamais poderia imaginar aquilo de sua cunhada. Fui provocante. Falei que o amava desde o início e que naquele momento meu corpo ardia pelo dele. Ele, com o rosto perplexo, segurou-me com força, fez-me vestir a roupa e, quando estava pronta, decepcionado me disse:
—Você é uma adolescente inconsequente e sem limites.Vou perdoá-la por isso, mas nunca mais apareça em nossa casa e saiba que jamais trairei a Vanessa. Amo-a muito e quero que entenda que o que sente por mim é impossível. Seja digna, nenhum homem gosta de mulher que se oferece, que lhe vem fácil. Dê-se o valor antes que fique passando de mão em mão e termine como muitas, solitária e infeliz. Agora saia de minha casa e só me dirija a palavra em caso de extrema necessidade. Vou fingir que nada aconteceu aqui pelo bem-estar de minha mulher e de minha família, que tanto amo. Agora saia!
Ele disse essas últimas palavras com o rosto vermelho e quase gritando. Peguei um táxi e chorei copiosamente até chegar em casa. Havia dito a minha mãe que dormiria na casa de uma amiga. Em meu quarto, continuei a chorar. Nunca fui tão humilhada. Ele havia me chamado de mulher fácil, quando tudo o que fiz foi por amor. Gostaria que soubesse que não sou de fazer sexo com qualquer um, aliás, sou virgem. O que fiz foi movido pelo grande amor que sinto por ele.
Isso aconteceu há seis meses e, de lá para cá, minha paixão só fez aumentar. E um desejo de amor que me consome.Tenho de aturá-lo com minha irmã, fazendo-lhe carinhos, beijando-a. Não suporto mais. Quero esse homem para mim. Apesar de amar minha irmã, esse amor é mais forte que eu. Sinto que jamais serei feliz longe dele.
Ernesto ouviu tudo com atenção e disse:
— É um caso difícil, mas não sei se é impossível. Terá de gastar muito com material, sangria de animais e não sei se terá dinheiro para tanto.
Ela, enxugando as lágrimas que a narrativa provocou, respondeu:
— Não se preocupe com o pagamento. Tenho como conseguir a quantia.
— Se é assim, melhor. Mas terá de trazer a metade daqui a uma semana, tempo em que iniciarei os trabalhos.
— Posso ter a garantia de que terei o Diego para mim?
— Praticamente, sim. Muitos resistem a uma mulher provocante, mas raros resistem a um feitiço bem feito.Vá e fique tranquila.
Ingrid levantou e deu a mão a Ernesto, dizendo:
- Não sei como agradecer.
- Não precisa agradecer, basta pagar.
Ela saiu deixando um delicado perfume no ar.
Ernesto dispensou Claudete e foi para casa. Não conseguiu jantar, e sua mente estava confusa. Aquela era uma mulher especial. Sim! Uma mulher. Apesar da pouca idade e virgem, pensava e agia como uma adulta. Foi para o quarto e rolou insone pensando nela, em seus olhares, em sua doçura ao falar. Ernesto habituou-se a conhecer, desde o tempo de espiritismo, a alma das pessoas. Ingrid era uma alma boa que estava agindo pela ignorância. Provavelmente, no dia que tentara seduzir o cunhado, estava sendo induzida por espíritos ligados ao sexo e às paixões. Em seu peito um sentimento de amor começou a surgir. De onde ele vinha? Sentia que amava com paixão aquela criatura frágil e iludida pelos apelos de uma paixão descontrolada. De repente, veio-lhe um pensamento: e se, em vez de fazer o feitiço para ela ficar com o cunhado, fizesse um para que ela se apaixonasse por ele? Sabia que seria difícil realizar o que Ingrid pedia. As bruxarias não penetram em lares onde há amor verdadeiro, o que parecia ser o caso de Vanessa e Diego. Nenhum feitiço, por mais forte que seja, consegue destruir uma união baseada no amor. Ernesto sabia disso e não iria perder tempo, investiria nele.
Olhou-se no espelho e, apesar de ter trinta e cinco anos, era muito conservado e de porte elegante. Não tinha tanta beleza, mas possuía masculinidade, entendia os jogos da sedução. Tanto que conquistara Mariana. Mariana... Onde estaria naquele momento? Gostaria de saber, mas nenhum guia seu tinha essa informação. E suas filhas? Como estariam?
Ao seu lado, sem que ele pudesse ver, Mariana dizia:
- Meu amor, estou e estarei sempre ao seu lado. A vida nos separou porque era a hora.Vou torcer para, que por meio desse amor por Ingrid, ocorra sua redenção. Vim para a Terra com nossas filhas como voluntária para o teste que você mesmo escolheu antes de nascer. Nossa morte seria necessária para que você pudesse optar pelo caminho da sombra ou da luz. Fique com Deus!
Ernesto sentiu uma brisa suave em seu rosto. De onde vinha? Seu quarto estava todo fechado. De repente pensou: "Mariana? Você está aí?"

Pela manhã, apesar de estar constantemente pensando em Ingrid, Ernesto resolveu continuar com as consultas. Dessa vez estava sentindo a presença de seus companheiros.
Lucrécia entrou altiva na sala e, com voz estridente e arrogante, perguntou:
- O que está acontecendo com o trabalho que encomendei? Faz semanas e nada vi de novo. Olha, se não der certo, quero meu dinheiro de volta!
- Calma, senhora. Não viu como tudo deu certo com sua filha? A amante do marido dela está em coma e é impedida de voltar ao corpo pelo espírito de Gorete. Enquanto isso, ele se aproxima muito mais de sua filha. Não tem notado?
- Sim, com a Arlete, sim, mas e comigo? Nada está acontecendo. Enquanto eu estou na solidão, aquela vagabunda da Alice dorme todas as noites com meu marido.
Ernesto detestava clientes arrogantes e autoritárias, mas não podia perder a paciência.
- Meus guias dizem que ele está mais voltado ao lar, que tem estado lá constantemente. Eles garantem que Arnaldo pensa em você o tempo todo e que mais rápido do que imagina voltará, mas também veem dois problemas que podem atrasar a situação.
Lucrécia abriu ainda mais os olhos nervosos e, quase gritando, perguntou:
- O que diabos pode atrapalhar? Fale logo!
- Há duas pessoas que trabalham para o Cordeiro e que podem interferir na situação, tornando seu desejo mais lento de ser atendido.
- Pessoas? Cordeiro? O que é isso?
- Cordeiro é Jesus, são as forças do bem. As pessoas são seu fdho Eduardo e uma amiga da amante de seu marido. Eles podem atrapalhar. Mas, se você contribuir, tudo ficará mais fácil.
Lucrécia não sabia o que dizer.
- Como Eduardo pode interferir nisso? Sei que ele foi a favor do pai na separação, mas ele não pode ser superior a um bruxo como você.
- E não é! Você pode atrapalhar a relação dos dois. Interferir para que fiquem juntos o mínimo tempo possível.
- Impossível! Arnaldo é apaixonado pelo filho, jamais vou conseguir.
Ernesto foi franco:
-Sem sua ajuda ficará mais demorado. Pense e descubra uma forma de afastar pai e filho que eu cuido da amiguinha da Alice.
- Em quanto tempo terei meu marido de volta?
- Fique tranquila que será rápido, basta que neutralizemos Eduardo e essa outra pessoa.
Lucrécia se irritou ainda mais:
- Sempre que venho aqui você me diz que está perto, mas nada acontece. Cansei de ser enganada. Se dentro de um mês ele não voltar para casa, quero todo o meu dinheiro de volta. Sabe que sou influente e posso fazer uma denúncia dizendo que você faz sacrifícios de pessoas no seu terreiro lá na Vila Maria. Tenha cuidado e trate de fazer o que peço.
Lucrécia colocou seus óculos escuros e saiu, deixando pai Ernesto completamente irritado. Um espírito inferior aproximou-se dele e disse:
— Não se impressione com essa aí, tem tantos pontos fracos que, antes que possa fazer algo para nos prejudicar, plantaremos nela uma baita doença que a impedirá de fazer qualquer coisa.
— Sei disso, mas quero realizar o que ela pede. Não gosto de deixar clientes insatisfeitos, você sabe que Lúcifer não gosta.
— Sei, sei. Mas também sabemos que esses espíritas têm poderes que não conseguimos vencer. Há também terreiros que trabalham para o bem, com técnicas, desconhecidas dos espíritas, que nos neutralizam.Você, que já foi espírita, sabe muito bem disso.
— Não me lembre dessa época, não gosto!
— Falei apenas para que fique atento. Agora acalme-se, o próximo cliente vai entrar.

Lucrécia dirigia muito irritada. Por que com Arlete dera certo e com ela não? Era justo ela sofrer sozinha, enquanto seu marido se divertia com uma aventureira?
Ao chegar em casa, deu de cara com Eduardo, que acabava de chegar do trabalho. Uma sombra escura a envolveu e soprou-lhe ao ouvido:
— Esse aí é o atraso de sua vida. Vai fazer você continuar amarga e infeliz como está. Mande-o embora de sua casa. Ele é muito grandinho. Para que morar com a mamãe?
Ela registrou a mensagem por telepatia e, quando Eduardo veio abraçá-la, sentiu um ódio muito grande do fdho, rechaçando seu abraço. Ele notou que algo estava estranho e perguntou:
- O que aconteceu, mãe? Algum problema?
A entidade rodopiava ao redor de Lucrécia e dizia:
- Não ouça esse aí, mande-o embora.Vá!
Lucrécia deu um empurrão tão forte no filho que ele precisou se apoiar no sofá para não cair.
- Saia daqui, Eduardo! Deixe-me em paz!
Notando o descontrole de sua mãe, o rapaz subiu as escadas e prometeu a si mesmo conversar com ela quando seu ânimo estivesse menos exaltado.






13
Conhecendo a espiritualidade
Sentada à mesa de uma confeitaria, Magali estava ansiosa à espera de Alice. Haviam marcado três horas, e já passava das quatro sem que a amiga aparecesse. Chovia em São Paulo naqueles dias e, por isso, o trânsito estava engarrafado. Mas Magali não culpava o trânsito, afinal a confeitaria ficava a poucas quadras do apartamento de Arnaldo. Por que Alice se atrasara tanto?
De repente, lembrou-se da conversa que havia tido pela manhã com Joana, médium espírita que frequentava o mesmo centro que ela. Magali a havia procurado e relatado o que estava acontecendo com a amiga sem, contudo, entrar em detalhes e também ocultando os nomes dos envolvidos. Joana, depois de ouvi-la com atenção, disse:
-Você está certa em adverti-la Vejo o lar mencionado cheio de entidades que querem ver a separação do casal. Também sinto que foi um trabalho encomendado a um médium que trabalha para o mal. Esses espíritos aproveitam a culpa do homem envolvido para manipulá-lo. Se ele não melhorar, sua amiga acabará separada.
Magali não se conformou:
- Mas isso é injusto. Acompanhei o romance dos dois desde o início. Sei o que minha amiga teve de enfrentar e renunciar para estar com ele. Além do mais, eles se amam de verdade.
- Se há amor, um dia retornarão e serão felizes. O mal não é uma fatalidade, ele só acontece quando permitido por Deus, para nosso crescimento moral e evolução. Mas tome cuidado. Vigie seus pensamentos. Ao tentar alertá-la, você estará sendo visada pelas entidades inferiores envolvidas no caso e pode acabar prejudicada. E preciso ficar alerta e em prece.
Magali protestou.
—As pessoas que ajudam, que trabalham na divulgação da espiritualidade e que fazem caridade deveriam ser automaticamente protegidas. Não acho certo ter de sofrer a influência de espíritos mal-intencionados quando estamos no trabalho de auxílio.
Joana sorriu ao dizer:
— Todos nós estamos sujeitos a essas interferências. Só quem sabe ajudar efetivamente obtém proteção. Muitas vezes, na tentativa de ajudar, queremos impor nossa opinião, fazer valer nosso orgulho, ser paternalista, sofrer junto com a pessoa. Isso não é adequado, pois baixa nosso padrão vibratório, e daí podemos ser atingidos. Muitos querem ajudar, não nego que haja boa intenção. Mas, para ajudarmos realmente, temos de saber como. Envolver-se em problemas que não são nossos, de amigos, parentes e até do companheiro, dá errado, porque, ao fazermos isso sem sabedoria e equilíbrio, acabamos atraindo para nós toda a carga energética que os outros estão mantendo. Muitas vezes orar e enviar boas vibrações é a melhor ajuda.
— Quer dizer que não devo fazer nada? A senhora está se contradizendo.
— Em seu caso, acredito que tem sabedoria para ajudar da maneira correta. Tenho notado como se dedica à espiritualidade, sem fanatismo, com bom senso e discrição. Sabe, Magali, quando entramos no espiritismo sentimos tudo nos deslumbrar, parece que todos os nossos males se acabam em um passe de mágica só porque conhecemos mais uma parcela da verdade. Mas logo percebemos que estamos enganados. Conhecer a espiritualidade só nos torna mais responsáveis perante a vida e as leis universais. E por isso que muitos de nossos companheiros de ideal se revoltam e se afastam quando sofrem uma decepção e percebem que a vida continua a mesma, que os problemas, os pontos fracos permanecem. E preciso entender que só o conhecimento teórico, intelectual, não leva a lugar nenhum. É preciso praticar de verdade para ter uma vida feliz, e você tem feito isso. Acredito que pode e deve orientar sua amiga e ficar ao lado dela, pois prevejo que eles vão se separar.
Magali estava confusa.
— Não dá para realizar um trabalho para desmanchar esse feitiço que fizeram?
— No centro em que trabalhamos podemos trazer os espíritos envolvidos e até mesmo fazer com que eles retirem as energias desequilibradas que colocaram no casal, mas o processo não é tão simples assim.Vejo que o homem é bastante resistente e não está disposto a mudar o pensamento. Nesse caso, o alívio é apenas temporário. As pessoas encarnadas precisam mudar para não atraírem mais esses espíritos. É por isso que muitos trabalhos feitos para desmanchar o que se chama de feitiço não dão certo. Se os envolvidos não mudam a forma de agir e pensar, tudo segue igual. De qualquer forma, é bom que um dos dois frequente o centro, lá temos mais recursos e esclarecimentos.
Magali assustou-se com a chegada intempestiva de Alice.
- Nossa! Eu me atrasei demais, pensei que não fosse mais encontrá-la aqui.
As duas se abraçaram e pediram um lanche. Enquanto esperavam, conversaram amenidades, mas logo Magali foi direto ao ponto.
- Alice, preciso alertá-la quanto ao que está acontecendo com você e o Arnaldo. Confesso que pensei bastante antes de termos essa conversa, mas sempre me guio pela intuição e sei que você está preparada para saber e agir corretamente.
- Do jeito que você fala, parece que vai haver um desastre. Conte-me tudo logo.
Magali fez uma pequena pausa e começou:
- Como te falei ontem, suas brigas e a frieza do Arnaldo têm causa espiritual. Fizeram uma bruxaria para que ele deixe você e, provavelmente, volte para a antiga casa.
Alice deu uma gargalhada.
- Bruxaria? Nossa! Até nisso, hoje em dia, você acredita? Ontem você me disse que era interferência espiritual, hoje já diz que é bruxaria. Por favor, decida-se.
Magali percebeu que ela não estava levando a sério, mas continuou sem se perturbar.
-Você sabe como sou, jamais brincaria com uma coisa séria como esta. A bruxaria e o feitiço existem, de fato, e têm feito muitas pessoas sofrer, provocando a morte, inclusive. Sei que você, apesar da pouca idade, é madura e pode compreender. O mundo oculto interage constantemente com o nosso sem que possamos perceber. Dor de cabeça, enjoo, depressão, tristeza, raiva e revolta sem motivo aparente mostram que captamos energias do mundo astral e até de pessoas encarnadas sem perceber. Mas, no caso da bruxaria, é bem mais profundo o processo. Há espíritos no astral inferior treinados para destruir famílias, acabar com casamentos, provocar a morte, acidentes etc. Tudo na maior disciplina e ordem. Infelizmente, muitas vezes conseguem o que pretendem.
-Você está me assustando. Quer dizer que estamos à mercê desses espíritos sem que possamos fazer nada?
— É a esse ponto que quero chegar. Como te falei, acabei de ler o livro Libertação, de André Luiz, e também Magia de Redenção, de Ramatís. Sei que não foi por acaso que os li. Há alguns meses os vi numa livraria e os comprei. Este último descreve em detalhes todo o processo de enfeitiçamento e de como nos livrar dele. Libertação narra a história de uma mulher subjugada por espíritos do umbral e a trajetória de um chefe de uma falange de justiceiros.Termina contando a libertação, tanto do chefe, que é resgatado pela mãe, quanto da obsediada. Aprendi com esses livros que essa influência ruim só acontece quando deixamos a porta aberta. Pensamentos depressivos, pessimistas, falta de fé na vida, atitudes julgamentosas, culpa, remorso abrem o campo para que os obsessores nos influenciem. Há também os nossos vícios e tendências que acabam atraindo para nós toda a sorte de companhias negativas, tanto desencarnadas quanto encarnadas.
Alice estava cada vez mais atenta. Por fim, perguntou:
— E o que posso fazer para manter meu lar? Pelo visto, sozinha nada conseguirei. Arnaldo é incrédulo e nunca vai admitir uma coisa dessas. E homem do mundo, materialista. Pelo que você falou, é um caso perdido - Alice disse isso com os olhos cheios d'água.
— Não é não. Se ele não quer fazer nada, você pode. Primeiro, não alimentando discussões com ele e o deixando livre para fazer o que quiser. Depois deve orar e pedir a Deus proteção e amparo. Pode também frequentar o centro, onde receberá melhores esclarecimentos. Ficar forte na fé é o que vai sustentar sua vida e sua família.
- Não sou de espiritualidade nem de religião. Nunca fui ensinada a acreditar em Deus.
- Talvez por isso esteja passando por essa situação. Muitas dores e sofrimentos nos despertam para o lado espiritual da vida, mostrando que além desse mundo há outros, e que precisamos atentar para a imortalidade da alma. Chegou a hora de você amadurecer e se ligar com o espiritual.
- Não quero isso para mim. Não me vejo atrelada a uma igreja nem a um centro espírita. Não vou.
- Não precisa ficar atrelada a nada. Basta frequentar alguns dias e, se gostar, continua. Ninguém é obrigado a nada. Nem sempre freqüentar um centro ou estar em igrejas nos garante vida boa ou evolução espiritual. O que vale mesmo é o despertar da consciência, ser ético, buscar o bem. Frequenta quem sente vontade e quer de coração. Seu caso é sério e, como amiga, a aconselho a ir comigo pelo menos um dia. Se achar que não é bom, não precisa voltar. No entanto, comece desde já a cultivar o hábito da prece.
Alice pareceu ceder.
—Você me convenceu, irei sim. Mas confesso que não acredito em orações.Vejo muita gente que reza o dia inteiro e tem uma vida horrível, cheia de problemas e doenças. Minha avó vivia com o terço na mão e, mesmo assim, morreu muito doente. Tanto que minha mãe passou a descrer da oração e nunca me ensinou a rezar.
Magali parecia diferente e, com olhar fixo em um ponto indefinido, respondeu:
- Muitos não acreditam no poder da prece, pois não veem resultados imediatos. Mas todo aquele que ora é atendido, de uma maneira ou de outra. O que dificulta mesmo é acreditar que o simples balbuciar de palavras vai resolver nossa vida. A prece verdadeira é aquela que vem do coração, é o momento que nos abrimos para Deus sem receios, sem restrições. Essa prece é sempre ouvida e atendida, ainda que não vejamos logo seus resultados. Ocorre também que para sairmos de um problema, de uma situação ruim, de uma doença é preciso aprender o que Deus quer nos ensinar com tudo isso. Nesse caso, em vez de orarmos pedindo a solução, devemos orar pedindo a Ele que nos mostre o que precisamos saber para deixar de sofrer. Há também orações que não são atendidas pela nossa falta de fé. Em toda cura que Jesus realizava, ele dizia:'Vá em paz, tua fé te curou".
Minutos mais tarde, quando saíram dali, estavam satisfeitas. Magali por ter ajudado a amiga e Alice por estar começando a descobrir um mundo diferente.




14
À procura de auxílio
Apesar das orações feitas no centro por Magali, Joana e outros amigos, a situação não melhorava entre Alice e Arnaldo. Depois daquela conversa no dia em que havia preparado um jantar especial, Alice não tocou mais no assunto, fingia que não estava acontecendo nada. Fazia um mês que havia conversado com Magali a respeito das interferências espirituais, mas, apesar da insistência da amiga, não havia ido ao centro.
Mas agora tudo estava pior. Além de Arnaldo passar praticamente todas as noites na casa da ex-mulher, também não a procurava na cama. Quando ele retornava,já passava da meia-noite, e Alice já dormia profundamente. Outras vezes a encontrava acordada vendo TV. Alice procurava intimidade e ele alegava cansaço. Desesperada, ela, que estava resistente, resolveu ir ao centro. Era uma tarde de domingo e Arnaldo não estava em casa, pois havia combinado de ir ao Jockey Club com o filho. Ligou para a casa de Magali, que atendeu prontamente.
— Oi, amiga, há quanto tempo não nos falamos, não é?
— É, há algumas semanas mesmo. É que estou em um período de isolamento, nem tenho ido à casa de meus pais. Parece que tudo perdeu o sentido. E você? Por que não veio me visitar?
— Como você sabe, trabalho durante o dia e estudo à noite e, como acho que você está bem com o Arnaldo, não quero incomodar nos fins de semana.
Alice começou a chorar baixinho e a amiga percebeu mesmo do outro lado da linha.
— Está chorando? O que está acontecendo? Não está bem com Arnaldo? Está com algum problema de saúde? Por favor, me conte!
Alice entrou num pranto convulsivo e só um tempo depois conseguiu recuperar-se. Quando estava refeita, narrou tudo o que estava acontecendo em sua vida conjugal e quanto estava arrependida por não haver procurado a espiritualidade.
Magali comentou:
-Você sabe quanto insisti para que fosse ao centro logo depois daquela nossa conversa, mas como vi que você resistia muito, resolvi parar. Depois, você nunca mais se queixou de nada e pensei que tudo estivesse se normalizado.
— Não se normalizou e ando desconfiada de que ele voltou a dormir com a esposa. Tenho sentido cheiro de perfume em suas camisas e o pior: já dormiu lá duas noites. A desculpa que me deu foi que o papo com Eduardo demorou tanto que resolveu ficar por lá, mas sei que não é verdade. Sinto que joguei fora esses anos de minha vida. Apesar de amá-lo, não vou aceitar uma situação como essa e penso mesmo que ele está esperando apenas minha decisão para voltar para casa. Minha mãe sempre diz que os homens nunca põem fim à relação, que sempre esperam a mulher cair fora.
Magali pensou por alguns instantes e falou:
-Você precisa ter calma e agir com racionalidade. O que está fazendo agora?
— Eu? Você ainda pergunta? Estou curtindo minha solidão.
- Então venha até minha casa que iremos conversar com Joana, talvez ela tenha alguma orientação espiritual para nós. E uma mulher muito lúcida, não custa nada ouvi-la.
- Será que a espiritualidade ainda pode me ajudar? Afinal, fui negligente, não dei importância.
— A espiritualidade está sempre pronta a nos amparar, não importa o momento. Estarei te esperando.
Alice desligou o telefone e foi se arrumar para sair. De repente, pensou: "Não vou. No que vai adiantar essa conversa? Meu relacionamento está acabado e não há nada que possa fazê-lo ser como era antes".
Sem perceber, Alice dialogava com entidades perturbadoras, mas ao mesmo tempo seu mentor estava por perto e lhe dizia: "Fique firme, Alice, procure a ajuda espiritual. A hora é agora, não desanime. O mal só triunfa porque o bem age com timidez. Seja corajosa, lute por sua felicidade!"
Mesmo sem registrar as palavras de seu amigo espiritual, Alice pensou:"Devo lutar por minha vida, sim. Não vou me deixar desanimar. Se essa conversa com a Joana não resolver nada, pelo menos não me fará mal. O que não posso é ficar trancada nesse apartamento sozinha. Se continuar assim enlouquecerei".
A esse pensamento, uma energia nova a revigorou. Escolheu um belo vestido e partiu para a casa da amiga. Lá chegando, encontrou-a no portão à sua espera.
-Vamos? - disse Magali eufórica. - Não podemos perder tempo, Joana tem trabalho no centro hoje às seis, se demorarmos talvez não a encontremos em casa.
As duas partiram. Alice tinha carro, o que encurtou o trajeto. Chegaram a uma rua bem arborizada e pararam na frente de uma pequena casa com hall e portão de ferro. Chamaram e logo Joana apareceu sorrindo.
- Que surpresa agradável! Vamos entrar, sintam-se à vontade. A casa de Joana era simples, porém agradável. Elas estavam
em uma sala espaçosa, cheia de vasos com flores naturais e quadros com belíssimas paisagens. Alice gostou do ambiente e, como que por encanto, toda a sua tristeza passou. Joana as olhou e perguntou:
- O que a trazem aqui num domingo à tarde? Algo de especial ou só vieram mesmo para me ver? — disse num gracejo.
Magali foi direta:
- Desculpe, Joana, por estar aqui te incomodando no seu dia de folga, mas achei que não ia se importar se eu trouxesse minha amiga, que está sofrendo muito e precisa de um conselho seu. Sei de seus longos anos de experiência como espírita e também como é bom o trabalho de aconselhamento espiritual que realiza no centro. A senhora já sabe do processo que Alice atravessa e sei que é a melhor pessoa para dizer como ela deve agir.
Joana olhou seriamente para Alice e escutou toda sua história, falando por fim:
- Vejo que a situação se tornou mais séria do que imaginei a princípio. Seu companheiro está completamente envolvido pelos espíritos e pela magia que fizeram para ele. Se não agir rápido, poderá perdê-lo mesmo.
- A senhora quer dizer que devo frequentar o centro e só?
- Seu nome e o de seu marido já estão no caderno de preces, mas tem certos tipos de problemas que nem todo centro espírita kardecista pode resolver. Sabe, não gosto de falar sobre isso para todo mundo. Existem muitos preconceitos contra outros segmentos espiritualistas que trabalham para o bem, e o centro que frequento nem permite que se fale deles para quem vem pedir ajuda. Mas sou daquelas que têm opinião própria e, sempre que posso, alerto as pessoas que nem tudo se resolve em um centro espírita.
Magali estava curiosa: "O que Joana queria dizer com aquilo?"
Ela prosseguiu:
— Por causa desses preconceitos, a maioria dos centros espíritas deixou de estudar o mundo energético de forma mais profunda, eles não desenvolvem técnicas capazes de tratar casos de bruxaria, como é o de seu marido. São obsessões complexas que os doutrinadores não sabem como lidar. Mas a Providência Divina não deixa ninguém sem socorro. Existem médiuns que trabalham com a fraternidade branca, estudam os processos de enfeitiçamento e aprenderam como desmanchá-los.
Magali interrompeu:
— É por isso que Sérvulo, o presidente do centro, não gostou quando disse que li o livro de Ramatís e questionei uma série de coisas.
— Eles têm suas limitações, que devemos respeitar — aquiesceu Joana - mas não podemos deixar de ajudar pessoas que passam por situações como esta por puro medo ou preconceito. Por isso, Alice, aconselho-a a procurar uma pessoa que entenda do assunto para fazer algo que desmanche o feitiço. Eu mesma conheço uma mulher ótima que trabalha para o bem e tem ajudado muita gente. Trata-se de mãe Márgara. Tenho aqui o endereço e posso lhe passar.
Alice sentiu medo.
- Não é perigoso eu me envolver com isso?
- Seria se você fosse procurar pessoas que cobram e que trabalham para o mal. Mãe Márgara não cobra por seus trabalhos e se sente feliz ajudando as pessoas.
- Não entendo. Por que o centro, por si só, não resolve?
- O centro espírita kardecista, aliado aos espíritos superiores, trabalha na desobsessão e, por vezes, nas mais difíceis, como os casos de subjugação. Mas, como havia explicado, nem todos estão preparados para lidar com esse outro tipo de trabalho, que é o feitiço, embora muitos já estejam trabalhando e obtendo bons resultados. Em todo caso o médium chamado mãe ou pai de santo estudou melhor esses processos e lida com entidades mais apegadas ao mundo material. Um feitiço é encomendado a entidades que estão muito presas ao materialismo, por isso, para desfazê-lo, é necessário também entidades que ainda estejam apegadas à vida na Terra, mas que estejam voltadas ao bem. Geralmente, essas entidades boas foram iniciadas em vidas passadas, viveram no Oriente e entendem bem os segredos da natureza, por isso são trabalhos mais práticos, mais rápidos e exclusivamente para casos de magia.
Magali questionou:
- E os espíritos superiores, em um centro espírita, não podem fazer isso sem que seja preciso recorrer a uma mãe de santo?
- E claro que sim. Os espíritos da luz têm uma ação irresistível contra os que estão no mal, mas para isso seria necessário que os centros deixassem o preconceito e estudassem mais a fundo o assunto. Assim preparariam melhor seus médiuns e teriam um belo trabalho. Mas é importante lembrar que as reuniões de desobsessão nos centros auxiliam muito e têm curado muitas pessoas. Mas os casos complexos nem elas nem as mães de santo conseguem resolver.
— Por quê? — indagou a voz angustiada de Alice. Joana explicou sem cerimônia.
— Mesmo que uma pessoa consiga que a magia seja desmanchada por alguém entendido no assunto, se os envolvidos não se voltarem para o lado espiritual e vencer seus pontos fracos, outros espíritos chegarão e continuarão o serviço. A chave da cura está na mudança de postura dos envolvidos. Por isso, minha fdha, além do trabalho, procure orar para que seu marido deixe de se culpar e possa assumir a nova vida sem remorsos. Sem isso, você não o terá de volta, ainda que mãe Márgara desmanche o que fizeram para ele.
— Então, de que adianta eu ir lá?
— Com as entidades afastadas, Arnaldo terá um momento de trégua e será nesse instante que você deverá trabalhar o emocional dele. Com certeza, ele voltará para você e aí, sim, será a hora de os dois frequentarem as meditações e fazerem um dos cursos do nosso centro. Devem, também, ler para entender como funciona a vida espiritual e como ocorrem as influências. Se Arnaldo conseguir compreender, ficará imunizado contra qualquer outra investida das trevas.Vejo também um rapaz louro, alto, branco, de traços fortes e que possui uma luz imensa.Tem tentado ajudá-lo, mas não tem conseguido. Una-se a ele e ficará mais forte.
Alice quase gritou:
— É o Eduardo, filho dele. Tenho certeza.
Todas se emocionaram. Quando saíram dali, estavam radiantes de esperança. Alice deixou Magali em casa com a promessa de, no dia seguinte, acompanhá-la à casa de mãe Márgara.






15
Mãe Márgara e a magia do bem
Magali e Alice chegaram cedo à casa de mãe Márgara naquela segunda-feira. Estranharam, pois não havia ninguém na antessala além de um rapaz que recepcionava os clientes. Sempre ouviram dizer que as pessoas que lidavam com magia eram bastante procuradas e que conseguir vaga e marcar uma consulta era muito difícil. Será que mãe Márgara não era tão boa quanto Joana havia dito?
Aproximaram-se do rapaz que, para a surpresa das duas, falou:
— Suponho que sejam Alice e Magali. Estou certo? Elas se entreolharam assustadas e Magali tornou:
— Sim. Como sabe? Afinal, nunca viemos aqui. Ele simplesmente respondeu:
— Entrem por esse corredor e, na última porta à esquerda, dêem duas batidas e entrem. Mãe Márgara as espera.
As duas seguiram assustadas. Como mãe Márgara adivinhara que elas iriam justo naquele dia?
Bateram e entraram com certo receio. Mãe Márgara, ao vê-las, sorriu e disse:
— Sabia que viriam. Podem se sentar à vontade.
De repente, o receio havia passado como que por encanto. Mãe Márgara era uma negra muito sorridente, simpática e bonita. Já estava na casa dos cinquenta, mas não aparentava. O ambiente era simples: uma mesa redonda, um altar com imagens de Jesus e Maria, cortinas amarelas e um quadro muito bonito de São Jorge. Havia algumas velas brancas acesas no altar e o ambiente era impregnado de incenso.
Magali começou:
—Viemos pedir ajuda. Mas gostaria de saber como a senhora sabia que nós viríamos? Foi pela vidência? Seu secretário sabia até nosso nome.
Ela sorriu, mostrando os dentes alvos e bonitos:
- Não foi vidência. Não sou tão poderosa assim. A amiga de vocês, que também é minha amiga de longa data, ligou-me ontem à noite pedindo que as atendesse. Foi Joana quem me avisou. Ela sabe que não trabalho às segundas, mas me contou o caso e, pela urgência, pediu-me que viesse só para atendê-las. Costumo sentir sempre quando devo ou não atender a um pedido como esse, e meu guia maior me orientou que viesse. Quero dizer que não temam nada. Há muito preconceito em torno de meu trabalho, muitas pessoas o deturpam, mas ao saírem daqui poderão tirar as próprias conclusões.
Foi a vez de Alice falar:
-Vim porque não desejo me separar do homem que amo. Para falar a verdade, antes da conversa que tive com Magali, há poucos dias, eu não acreditava em nada que dissesse respeito à vida depois da morte, magia, essas coisas... Sou sincera e também não sei se a senhora poderá resolver meu caso.
- Nesta vida, minha filha, ninguém resolve o caso de ninguém, isso é uma ilusão. É a própria pessoa que resolve a vida. Nós estamos aqui apenas para dar uma mão, mas o resto é a pessoa que faz. Eu mesma não me sinto com mérito algum nos trabalhos que faço, tudo vem dos guias que se manifestam por meu intermédio e, quando a pessoa não quer ser ajudada, não há nada que se possa fazer.
- Isso a Joana já nos contou. Mas a senhora pode desmanchar o que foi feito para mim e meu companheiro?
Mãe Márgara demorou um pouco e disse: —Vamos ver.
Ela fechou os olhos, demorou alguns minutos, e falou:
- Realmente, minha filha, fizeram feitiço para que você e seu marido se separassem. Um dos meus amigos espirituais está afirmando isso e também diz que pode desfazê-lo. Está dizendo que você é uma moça honesta e que não foi por má intenção que se envolveu com um homem mais velho e casado. Muito pelo contrário, fez isso por amor. Saiba que é muito protegida. O feiticeiro que fez a magia também tentou atingi-la, fazendo com que você sentisse repulsa pelo Arnaldo e o traísse, mas por sua conduta nobre nada a atingiu. Você é filha de Xangô, o orixá da justiça, por isso não gosta de nada errado.
Alice estava emocionada. Tudo o que ela dizia estava certo.
Mãe Márgara permaneceu calada durante um tempo e depois abriu os olhos. Fitou Alice e disse:
-Vamos desfazer isso e, com a fé na luz divina, tudo voltará ao normal. Mas precisarei de dinheiro.
Magali ficou perplexa. Joana garantiu que ela não cobrava. Fez mais, avisou que pessoas que cobram pelos serviços não estão na linha do bem. Antes que Alice dissesse alguma coisa, ela se pronunciou:
- Desculpe, senhora, mas se é amiga de Joana sabe muito bem como ela pensa. Se cobra é porque não trabalha para as forças da luz, então não queremos trabalho nenhum. Sua amiga garantiu que a senhora não cobrava. Estou sem querer acreditar.
Márgara não se perturbou.
- Minha filha, eu não cobro nada pelo que faço. Desde a adolescência descobri que tenho o sexto sentido desenvolvido, sempre previ as coisas e elas sempre aconteciam. Previ a morte de meus pais e de uma irmã com precisão. Mais tarde casei-me com um homem muito católico, que não aprovava o que eu fazia. Na época, já era médium de terreiro, umbandista.Tive de parar com minhas tarefas para me dedicar ao casamento, mas sempre senti a presença dos espíritos necessitados e orava com fé para eles. Depois da oração, percebia que uma luz os envolvia e eles eram levados. Não me arrependi de ter parado. Do meu casamento nasceram meus dois bens mais preciosos, o Carlos e a Fernanda. Carlos é o rapaz que estava na entrada. Ele me ajuda aqui. Fernanda trabalha durante o dia e estuda à noite. Vivo da pensão do meu marido, que já desencarnou, e estou muito feliz com isso. Meu trabalho aqui é gratuito.
- Não entendo. Então, para que quer o dinheiro?
- As entidades que atuam nesse tipo de trabalho, tanto de feitiçaria quanto de desmanche, são muito ligadas ao mundo material e às sensações que experimentaram aqui. A diferença é que aquelas que trabalham no feitiço agem para o mal, enquanto as que trabalham no desmanche atuam para o bem e para recuperar o equilíbrio das pessoas. As entidades boas fazem o trabalho que espíritos mais elevados não podem fazer, pois não estão tão ligados à matéria. São boas, mas não tão evoluídas quanto aquelas.
Ela fez uma pequena pausa e continuou:
- Para desmanchar um trabalho, elas pedem materiais, tais como cigarros, comidas, velas etc. Elas julgam necessário que elementos materiais positivos atuem contra os negativos. Por isso peço o dinheiro, apenas para comprar o material. Mas, se você não quiser me dar, posso lhe passar a lista do que é necessário, você compra e traz aqui. O resto eu faço.
Elas entenderam. Realmente mãe Márgara era uma mulher muito íntegra e nobre. Fazia tudo aquilo de graça, só pelo prazer de ver o bem-estar das pessoas. Por fim, Magali, curiosa, perguntou:
- A senhora parece ter bastante conhecimento do mundo espiritual. Por que não deixa esse trabalho aqui e vai ajudar em um centro espírita?
- Um centro espírita também tem condições de desmanchar esses trabalhos e pode fazer sem que seja necessário nenhum tipo de material, só com os médiuns. Há médiuns específicos para trabalhos desta natureza. Eles se desdobram, vão até a pessoa enfeitiçada e tiram dela todas as energias. Na reunião, os espíritos que estão obsediando as pessoas são atraídos e, dependendo do caso, ficam impedidos de continuar a fazer o mal. Só que a maioria dos centros não gosta desse tipo de trabalho, que requer muito estudo, disciplina e ação. Por outro lado, eu gosto da forma como trabalho aqui, faço como posso e, na maioria dos casos, a situação acaba resolvida.
- Por que não resolve todos os casos?
- Minha filha, nada sem a fé vai para a frente. Muitas pessoas vem nos procurar para que, num passe de mágica, tudo se resolva, são imediatistas e não querem esperar. No fundo, muitas duvidam do nosso trabalho e até nos ridicularizam. Depois, quando não dá certo, vêm nos culpar. Nesses casos, como em qualquer outra situação da vida, a fé é primordial. Sem ela você não pode viver, pois a vida está cheia de desafios e a todo instante temos de usá-la. Por isso, não contem apenas com o que vou fazer, mas principalmente tenham paciência e fé. Orem sinceramente e aguardem. Estou vendo que a separação será inevitável, mas, com o trabalho desfeito, logo ele poderá voltar para você.
Ambas se calaram. Por fim, decidiram deixar a quantia com mãe Márgara e esperar para ver o que ia acontecer. Ao chegar em casa, Alice estava mais animada e resolveu que dali em diante ia se dedicar à vida espiritual com afinco. Independentemente de Arnaldo ir embora ou voltar para ela, algo em si desabrochara, ela queria ir além, descobrir mais sobre a vida e seus mistérios. Alice não sabia, mas naquele instante estava acontecendo o despertar de sua consciência.


16
O regresso do Arnaldo
A mansão de Lucrécia estava animada, apesar do adiantado da hora. Naquela noite, Arlete, Bruno, Elza e Arnaldo estavam lá, todos conversando com Eduardo, que era muito bom de papo e com seu charme e energia contagiante agradava em demasia. Até Elza, que era fechada e muito calada, vez por outra esboçava um sorriso e emitia alguma opinião. Estavam, agora, falando sobre política e a difícil transição do governo que estava ocorrendo naqueles dias. E como Lucrécia não entendia nada sobre aquele assunto, resolveu sair e tomar ar no jardim.
Sentou-se em um dos bancos e, naquele instante, agradeceu mais uma vez aos espíritos que trabalhavam com pai Ernesto pela mudança que havia ocorrido em sua vida nos últimos dias. Ela começou a relembrar. Havia tentado de todas as maneiras afastar Eduardo do pai, mas foi em vão, pois os dois continuavam juntos como sempre. Daí ocorreu um fato que pareceu favorecê-la. O filho passou a chegar mais tarde em casa, alegando que o trabalho na empresa havia dobrado. Sempre chegava muito cansado e não mostrava disposição para conversar com o pai como antes. Num desses dias, já depois das onze, Eduardo pediu licença e se recolheu, deixando os pais sozinhos na sala. Lucrécia exultou e, para deixar o ambiente em penumbra, começou a desligar algumas lâmpadas, dizendo:
- Não há necessidade de tanta luz. O Eduardo é que tem essa mania de deixar tudo muito claro. Você acredita que ele não fecha as persianas ao se deitar?
Arnaldo fez menção de se retirar, afinal era tarde e o filho já tinha ido dormir, não havia mais desculpas para ele permanecer ali. De repente, ao vislumbrar a mulher cuidando da casa, a mesma com quem ele viveu durante tantos anos, sentiu o coração descompassar. Ela estava em trajes de dormir e, vez por outra, mostrava mais o busto, que parecia se insinuar aos seus olhos. Arnaldo tentava desviar os pensamentos de desejo, mas não conseguia. Numa força descomunal, disse:
- Já é tarde, Lucrécia. Preciso ir. Amanhã tenho de estar no escritório antes das nove.
Ela, fingindo indiferença, aquiesceu.
- Oh sim, não quero atrapalhá-lo. Também já vou me recolher, aliás, já estava me aprontando para dormir quando você chegou.
Ele virou as costas e saiu. Lucrécia sentiu que o marido voltara a desejá-la, percebeu seus olhares e também sentia que não estava só ali. Tinha certeza de que as entidades serviçais de pai Ernesto estavam presentes, algo ia acontecer.
Arnaldo foi até o portão, mas uma estranha sensação o acometeu. Cenas eróticas entre ele e a ex-mulher vieram com extrema força a sua mente, e ele não conseguiu se controlar. Voltou e ainda a encontrou na sala. Ele sentia que estava agindo contra a vontade, mas havia algo mais forte que o dominava. Sem dizer mais nada, aproximou-se de Lucrécia e a beijou com volúpia. De repente, já estavam no quarto entregues ao amor.
Quando tudo terminou, ele saiu desesperado, tentando conter o pranto e o sentimento de repulsa, enquanto Lucrécia vibrava extremamente feliz.
A partir daquela noite, Arnaldo, vencendo a repulsa inicial, entregou-se àquele sentimento e não via a hora de voltar a ter a ex-mulher em seus braços novamente. De repente, as crises de mal-estar passaram como que por encanto e ele não via mais graça em Alice. Apesar de Eduardo tentar alertá-lo de todas as maneiras, ele não ouvia, e outra noite como aquela aconteceu. Como Lucrécia estava feliz!
Assustou-se com a presença de Arlete, que vinha com duas taças de vinho.
-Vejo que está muito feliz. Pelo semblante distendido, percebo que finalmente conseguiu ter papai de volta.
Pegando a taça e ingerindo pequenos goles, Lucrécia parecia estar em um sonho, quando disse:
- Isso mesmo, Arlete. Nunca saberei como lhe agradecer por ter me levado ao pai Ernesto. Se não fosse por ele, isso não teria acontecido.
Arlete estava curiosa:
- Então vocês reataram? Por que ele não retorna para casa?
- Nós nos amamos duas vezes na semana que passou, e sinto que para ele voltar falta pouco. Parece que estou vivendo no paraíso. Nunca poderia imaginar que a magia existisse e que fosse uma coisa tão boa.
- Para a senhora ver... Comigo também está tudo ótimo. Bruno esta cada dia mais agarrado a mim. Não percebeu na sala?
- Sim, eu vi tudo. Quem diria?
- Pois é.Voltei ao pai Ernesto e ele garante que Diva está em coma num hospital sem chance de voltar.
- Isso eu sei, ele me contou. Mas e se Diva sair do coma e Bruno voltar a procurá-la?
- Isso não vai acontecer. Ele me garantiu que tem uma entidade lá impedindo que ela retorne ao corpo, até ele a esquecer de vez. Bruno tem ligado para lá pedindo notícias, e o estado é sempre o mesmo. O irmão rico tem gastado uma fortuna na UTI. Na verdade, eu não queria isso para ela, mas, se aconteceu, nada posso fazer. Depois, pai Ernesto me garantiu que ela não morrerá, ficará assim só o tempo necessário.
Bruno apareceu junto com a irmã e Arlete encerrou a conversa. Quando todos se despediram e Eduardo havia se recolhido, mais uma vez Lucrécia e Arnaldo foram para a cama. Depois de tudo, ela virou para ele e perguntou:
- Querido, não podemos ficar assim.
- Assim? Assim como? Não está bem para você? Ela não gostou do que ouviu.
- Claro que não está. De repente, os papéis se inverteram, eu virei sua amante e Alice sua esposa. Não quero isso para mim. Depois, tem o Eduardo, que está morando conosco. O que ele vai pensar disso tudo?
Arnaldo sentou-se na cama apoiando a cabeça nos travesseiros macios e perfumados. De repente, influenciado cada vez mais pelas entidades sombrias, ele começou a pensar: "Como pude ter abandonado minha casa tão luxuosa e confortável para viver naquele apartamento? Como fui abandonar minha mulher depois de tantos anos de casado? Pensei amar Alice, mas estou vendo que o que vale mesmo é uma família. Eduardo está aqui e, se eu voltar a morar nesta casa, poderei estar mais tempo com ele. Como amo meu filho!"
Virou-se para Lucrécia e disse:
-Você está certa. Eduardo merece respeito. Por mais moderninho que pareça ser, ele tem ideias que vão contra situações como essa. Não posso permitir que meu filho, a criatura que mais venero neste mundo, pense que sou um mau caráter. A decisão está tomada. Amanhã mesmo volto para casa.
Lucrécia parecia estar vivendo uma ilusão. Precisou ser forte para não deixar transparecer toda a sua alegria e parecer uma mulher fácil. Então falou:
- Faça como achar melhor. O que queria mesmo era uma definição dessa situação, não quero forçá-lo a nada. De qualquer forma, a casa vai estar sempre à sua disposição. Eduardo ficará muito feliz com a notícia.
Naquela noite, Arnaldo não voltou para casa. Acabou dormindo ali mesmo.
Pela manhã, Eduardo viu quando o pai saiu do quarto da mãe e, antes de irem para a mesa do café, foram conversar na sala.
- Pai, pense bem no que está fazendo. Sabe o que acho de toda essa situação. Não penso que é correto ficar iludindo a mamãe. Cedo ou tarde isso vai acabar e ela sofrerá mais uma vez.
- Filho, não se preocupe. Ontem tomei a decisão de voltar a morar aqui. Não é justo, realmente, o que tenho feito com as duas. Alice vai ficar triste, mas é melhor ser sincero.
Eduardo olhou-o fixamente e replicou:
- Não pense que ficarei feliz com isso. Sei que está agindo contra sua vontade e isso nunca acaba bem. O senhor ama Alice, mas esta dudido pela culpa, talvez induzido por espíritos que nao sabem fazer o bem. Essa decisão é muito séria. É preciso que pense mais.
Arnaldo remexeu-se inquieto no sofá. Não ficava bem quando o filho não o aprovava. Tentou obter seu consentimento.
— Eu me enganei quando pensei estar amando Alice. Na verdade, fui tentado pela ilusão de ter uma mulher jovem e bonita comigo. Ademais, minha vida sempre foi aqui ao lado de sua mãe e ao seu lado. Nunca serei completamente feliz morando longe de você. O tempo que ficou no Sul, para mim, foi de muito sofrimento. Talvez, se estivesse aqui, eu não tivesse deixado sua mãe.
— O senhor está querendo transferir para mim uma responsabilidade que é só sua. No entanto, eu paro por aqui. Tentei alertá-lo, conversei, fiz o que pude, agora está em suas mãos. Faça como achar melhor.
— Sei que não está aceitando minha volta ao lar de bom grado, mas provarei que estou certo tomando essa decisão.
A conversa foi encerrada e eles foram para a mesa onde Lucrécia, com o rosto sereno e cantando, os esperava. O café transcorreu em silêncio, mas Arnaldo percebeu que o filho estava completamente descontente com sua atitude.
Quando terminou a refeição, ele seguiu para o apartamento onde estava Alice. Sabia que seria difícil aquele momento, mas teria de acontecer. Sem que percebesse, vultos escuros rodopiavam ao seu redor, rindo com prazer.
Ao abrir a porta, uma surpresa: Alice com muitas malas na sala já o esperava para sair. Os dois trocaram um olhar significativo e nada mais precisaria ser dito. Entretanto, Alice, muito serena, monologou:
— Aqui estão as chaves do apartamento. Não precisa me dizer mais nada. Sou digna e sei quando uma situação se torna insustentável. Não sei o que o fez mudar assim tão rápido e sem motivo, mas sei que nada acontece por acaso e, antes que um de nós pudesse se ofender ou se magoar, eu me retiro. Foi bom enquanto durou, e eu ainda o amo muito. Talvez não ame mais ninguém neste mundo como um dia amei você. Mas quem ama liberta. A partir de hoje, sinta-se livre de qualquer compromisso comigo. Não precisa se culpar porque me desonrou e me tirou de casa em uma situação complicada. Tudo foi com meu consentimento. Adeus e boa sorte!
Alice deixou as chaves sobre a mesa e saiu sem olhar para trás. Minutos depois, o motorista subiu e começou a retirar as malas. Arnaldo, vendo aquela cena, correu para o quarto e começou a chorar copiosamente. Por que tudo aquilo estava acontecendo, por quê? Ele não queria aquilo, amava Alice, mas também queria Lucrécia. O que fazer? Por que estava tão confuso?
Ele ficou ali naquele desespero por mais de meia hora. Logo depois, duas entidades obscuras começaram a soprar em seus ouvidos:
— Fique firme, você tomou a atitude correta. Não aprendeu em sua religião que o casamento é para sempre? Queria viver em adultério para o resto da vida?Você se livrou do pecado.A separação não pode acontecer, voltar para sua santa esposa é o melhor.
Uma mulher vestida de freira, com o rosto severo, sussurrou também:
- É isso mesmo! Deus condena o divórcio.Viver com a esposa é o melhor para um homem. Mostre que é honrado. Seu filho é um santo e não gosta do pecado, por isso nem se relaciona sexualmente com outra pessoa. Quer que ele pense que você e herege? Animo. Acredite que o Senhor vai te ajudar.
Arnaldo, pensando no filho com veneração, voltou a se animar. Essa era a melhor atitude. No fundo, Eduardo estava muito feliz, só não queria demonstrar. Sentindo-se melhor, lavou o rosto, pegou as chaves e saiu. Desta vez sentindo-se menos angustiado. Os espíritos o seguiram.



17
O rompimento com as forças do mal

Após as intensas atividades no terreiro, Ernesto ainda se manteve por lá com seu fiel assistente Hugo. Foram muitos despachos realizados naquela noite, mas ainda faltava o principal.
Quando o último médium havia se retirado e ele se certificou de que estava só, saiu da tenda juntamente com Hugo carregando vários apetrechos e um bode preto amarrado com uma corda. Chegou ao meio do terreiro e observou a lua nova que ia alta no céu. Ernesto entrou em transe, virou os olhos e começou a fungar. Apesar de incorporado, ele continuava consciente e começou a murmurar palavras em língua estranha. Tudo tinha de dar certo e ele teria Ingrid somente para si. De repente, Hugo começou a tremer e caiu desmaiado. Ernesto pegou o bode, cortou seu pescoço e o sangue jorrou em profusão na bacia de prata que refletia a luz da lua. Depois, vagarosamente, pegou uma caneca de barro, encheu-a de sangue e deu para Hugo beber.
Terminado o estranho ritual, a entidade incorporada falou convencida:
- Grande foi o seu oferecimento a Belzebu. A menina será sua.
Vários estouros foram ouvidos no ar e um cheiro forte de enxofre dominou todo o ambiente.
Satisfeito, Ernesto recolheu a bacia, as adagas, as velas e os castiçais e retornou à tenda. Estava muito feliz, finalmente teria a amada em seus braços. Era uma questão de dias. Após a primeira consulta, Ingrid ainda não havia retornado, e dali a dois dias estava marcada a próxima sessão. Teria de continuar a enganá-la dizendo que estava fazendo a bruxaria para Diego e, enquanto isso, ganhava tempo. Sabia que suas entidades não falhavam, e logo ela se declararia.
Com esse pensamento, entrou no carro, deixou Hugo em casa e foi se recolher. O dia fora por demais cansativo.

Ingrid passou a odiar verdadeiramente os domingos. Sua mãe, Marisa, fazia questão de que Vanessa, Diego e os netos almoçassem com ela, e era um tormento ver o homem amado continuar a ser tão carinhoso com sua irmã, cobri-la de beijos e carinhos. Após o almoço, eles ficavam por ali e só iam embora quando estava escurecendo. Naquela tarde, ela precisou ter uma força ainda maior para poder se controlar. Sua paixão estava chegando ao limite, mas pensava que pai Ernesto iria ajudá-la, e com esse pensamento se acalmava.
Após o almoço, enquanto Diego se entretia na grama do quintal com os filhos, ela foi se deitar na rede da sala. Marisa estava na cozinha lavando a prataria, e Vanessa, sem ter o que fazer, resolveu conversar com a irmã.
— Desculpe se estou impedindo seu cochilo, mana, é que nunca mais conversamos e estou com saudades. Por que não tem ido mais lá em casa?
Uma imensa raiva brotou no coração de Ingrid, mas ela não demonstrou, apenas respondeu com má vontade:
- Sabe que estudo e que não posso me dar ao luxo de estar sempre na sua casa.
Vanessa, sem perceber, continuou:
- É que tenho sentido a sua falta. Sempre fomos muito ligadas. Lembro-me de você ainda bebê, naquela época era eu quem cuidava de seu bem-estar, enquanto nossos pais trabalhavam.
- Mas eu cresci e já sou uma mulher, será que não dá para perceber?
- Nossa! Por que está tão irritada? Notei que você não está bem hoje. Algum problema? Você sabe que eu sempre estarei aqui para o que der e vier.
Ingrid sentiu uma ponta de remorso, mas não deveria ceder. O que importava era seu amor por Diego.Todavia, não era bom que a irmã percebesse que algo estava errado, por isso tentou dissimular.
- É que estudar, às vezes, cansa. Pretendo ser publicitária, mas para isso tenho de estudar muito. Tenho ficado até altas horas com livros e cadernos na mão.Até no fim de semana preciso rever as matérias do cursinho. Estou estressada.
- Mas vale a pena. Hoje sou médica, e para chegar até aqui tive de estudar muito também. Sei que você, assim como eu, vai conseguir. E bom ser independente, ter o próprio dinheiro. Eu mesma não ia querer passar a vida dependendo do dinheiro de Diego. E se um dia a gente se separar?
Ingrid animou-se. Então a irmã cogitava a ideia de separação.
- Então pensa em um dia acabar o casamento? Nunca imaginei que isso passasse por sua cabeça.
- Não é que pense, mas ninguém pode contar com o futuro. Amo o Diego e sei que sou correspondida, mas também sei que não sou a dona dele. Ficarei até quando nosso amor durar.
— Nos tempos atuais, o casamento não dura muito mesmo. E bom estar prevenida. Depois, o seu marido é um homem muito bonito. Qualquer hora pode encontrar uma amante.
Vanessa achou estranha a resposta da irmã.
— Por que diz isso? Sabe de alguma coisa que não sei? Intimamente Ingrid ria, mas sabia que havia se excedido e
deveria parar.
— Não se preocupe, mana. Diego lhe é muito fiel. Não notou meu tom de brincadeira?
Vanessa sorriu.
—É, você só podia estar brincando mesmo. Agora vou ter com Diego no quintal e você trate de tirar uma soneca.
Ao ver a irmã se afastar, Ingrid pensou com ódio: "Não sabe o que a aguarda".

Na segunda-feira pela manhã o consultório de Ernesto estava cheio, mas sua secretária, já avisada e com muita sutileza, passou Ingrid à frente dos outros, e logo ela estava cara a cara com o homem que, segundo seu pensamento, iria transformar seu sonho em realidade. De costas para ela, Ernesto esperava o momento certo de encará-la com profundidade, passando sensualidade e magnetismo, assim como as entidades o orientaram. Como o tempo estava passando e só havia um grande silêncio no ambiente, Ingrid começou a se impacientar e quase ia chamando-o, quando resolveu se calar. Pensou que ele deveria estar conversando em pensamento com os espíritos.
De repente e sem que Ingrid pudesse prever, eleja estava na frente dela, a fitar seus olhos com profundidade. Ela estremeceu e sentiu uma leve tontura. Começou, estranhamente, a sentir um aroma delicado no ar e leves arrepios tomaram conta de seu corpo. Completamente envolvida, Ingrid começou a ver Ernesto com outros olhos. Sem que conseguisse conter sua imaginação, ela pensava: "Que homem interessante e bonito! Não tão bonito quanto Diego, mas tem masculinidade e ainda é jovem, como não reparei nisso antes?"
Ernesto, percebendo o envolvimento, começou:
- Consultei minhas entidades e elas me disseram algo muito importante sobre seu caso.
Estremecendo pela quebra do silêncio, ela, mesmo um pouco atordoada, conseguiu prestar atenção no que ouvia e, curiosa, perguntou:
- O que elas disseram? Não me importo com o dinheiro, tenho como conseguir.
- Elas nem colocaram preço, disseram que é um caso perdido. Sua irmã e seu cunhado se amam de verdade e, nesse caso, não há como interferir. E melhor guardar seu dinheiro para outras coisas. Sou um pai de santo que age com ética, quando vejo que um caso é perdido não engano a pessoa. Esqueça seu cunhado e siga sua vida.Você é jovem, bonita e pode encontrar um homem à sua altura.
Ingrid começou a soluçar. Se nem um homem poderoso como aquele podia resolver sua vida, então realmente não havia outro caminho, ela tinha de desistir e voltar à sua rotina de sempre: estudando, indo para casa, ajudando a mãe nas tarefas domésticas e, o que era pior, vendo Diego e Vanessa cada dia mais felizes.
Ernesto, percebendo sua fragilidade, sentou-se ao seu lado.
—Tome este lenço e enxugue suas lágrimas. Estou sendo sincero. É melhor chorar agora do que depois, quando tiver gasto muito dinheiro sem resultados. O que mais existe nesta São
Paulo são charlatães que vão tirar de você tudo quanto possua, e no fim sua irmã continuará feliz ao lado do marido. Ela estava revoltada.
- Então por que Deus fez eu me apaixonar por um homem que me é impossível? Isso não é justo! Terei de sofrer a vida inteira?
- Essa paixão é só um arroubo da juventude e, com o tempo, vai passar. Além do mais, sei de um homem que está amando você como nunca amou ninguém.
Ingrid, já com mais cor no rosto, perguntou sem muito interesse:
- Sabe? E seu cliente? Tem muitos garotos interessados por mim.
- Não é meu cliente, é meu amigo. Pediu-me que a apresentasse a ele. Aceita sair comigo para que vocês possam se conhecer?
- Se não é seu cliente, como me conheceu? Afinal, esta é a segunda vez que venho aqui.
- Ele estava saindo daqui quando você chegou naquele dia. Ficou aí na frente esperando-a sair e depois voltou para me pedir informações a seu respeito. Falei que faria o possível para ajudar. Ele gostou de você e já está amando-a.
- Como alguém pode me amar se me viu apenas uma vez? Estou achando tudo isso muito estranho.
- Você, por acaso, não acredita em amor à primeira vista? Não foi assim que começou a gostar de Diego?
Ela aquiesceu e ele continuou:
- Podemos marcar para a quarta-feira à noite. O que acha?
Ela estava por demais envolvida por aquele homem. Enquanto pai Ernesto falava, ela começou a sentir uma atração muito forte por ele. Era um homem extremamente agradável e exalava masculinidade. Algo em seus olhos a fascinava.
— Tudo bem, aceito! Mas estou indo para ficar mais tempo em sua companhia. Não consigo entender, estou me sentindo mais segura ao seu lado. Depois, quero sair da rotina. Anote o endereço do meu cursinho. Direi à mamãe que vou estudar. Ela não ia gostar nada de saber que estarei na companhia de dois desconhecidos.
Ernesto anotou com satisfação e, quando Ingrid saiu deixando delicado perfume no ar, ele se sentiu o homem mais feliz do mundo. Nunca poderia imaginar que fosse amar outra pessoa depois de Mariana. Estava radiante e muito contente. Como era boa a magia! Podia dar a ele a mulher amada. De repente, um pensamento lhe veio à mente. No pacto que fez com Belzebu, ele havia prometido que jamais amaria alguém ou se interessaria por mulher alguma, que viveria somente para a bruxaria e nada mais. Isso havia ficado muito claro quando começou a aprender as técnicas de magia com Wdton e Belzebu. Ao mesmo tempo, sabia que sua relação com Ingrid, por mais que evoluísse, em nada iria impedir que ele continuasse seus afazeres no terreiro como pai de santo. Resolveu esquecer e atender o próximo cliente.
O que Ernesto não sabia era que os espíritos que o guiavam estavam atentos a tudo o que acontecia. Só naquele instante perceberam que Ernesto estava apaixonado, tentado ao amor. Eles sabiam que a entidade que se intitulava Belzebu não iria gostar nada da ideia e trataram de agir.
No fim da tarde uma surpresa. Wilton estava à sua frente. Algo grave havia acontecido. Ele era também um pai de santo famoso e não tinha tempo para nada, se estava ah era porque tinha algum recado para ele de suma importância.
Wilton fitou-o com olhos preocupados e disse:
— Ernesto, hoje recebi um recado e fui encarregado de lhe passar com a maior rapidez possível. A nossa entidade chefe já está sabendo de tudo. Você foi envolvido pela chama da paixão e está se deixando levar. Sabe que em nossa seita jamais podemos nos envolver com ninguém. Belzebu o escolheu só porque você ficou viúvo, não queria mais ninguém. Vim aqui para alertá-lo. Se continuar com essa paixão tenebrosa, seu fim será trágico. Morrerá e passará a ser escravo no astral. Ninguém rompe um trato com nosso chefe sem a severa punição.
Ernesto desabou na cadeira.
— Não sei o que fazer, simplesmente aconteceu. Estou amando e quero ser correspondido. Além do mais, quando fiz o feitiço, as próprias entidades disseram que Belzebu havia permitido.
—Você foi iludido por outros espíritos. Ele jamais permitiria uma coisa dessas. Você foi meu pupilo e me é muito querido, desista enquanto é tempo. Sabe que sou muito ocupado e não poderei voltar aqui para lhe dar outro aviso como este. Se quiser continuar com essa loucura, só posso mesmo é lamentar, será mais um servo das trevas no além.
Wilton saiu deixando Ernesto desalentado. Ele havia se esquecido completamente que os homens daquela seita não podiam se envolver amorosamente com ninguém. De que adiantaria sua vida agora? Tinha dinheiro, carro do ano, casa confortável, muitos imóveis, mas sem o amor de Ingrid sua vida perderia completamente o significado. De repente, resolveu: iria, sim, envolver-se com ela, nem que fosse a última coisa que faria em sua vida.
Um espírito que o observava perguntou ao outro:
— Esse está perdido. Devemos trazê-lo para cá.Vamos fazer isso agora? Poderemos produzir uma parada cardíaca fulminante.
O outro meneou a cabeça negativamente:
-Ainda não.Vamos ver se ele tem mesmo coragem. Depois que ele sentir o gosto do amor novamente é que o faremos morrer. Neste lado e sem o amor, após tê-lo provado, sofrerá muito mais, não acha?
- Claro que sim, Germano. Como não pensei nisso antes? Grande ideia a sua.
- Não foi minha, seu idiota, recebi diretamente de Belzebu. Não sabe que sou médium e que recebo comunicações ostensivas dele?
- É mesmo, havia esquecido que aqui deste lado também existe mediunidade.
- Então vamos aguardar, vamos dar mais corda a ele para que se enforque.
Gargalhadas foram ouvidas no ambiente e Ernesto, arrepiado, as escutou.



18
O envolvimento de Ingrid
Marisa estava à máquina de costura quando viu Ingrid sair do quarto vestida de forma diferente naquela noite. Estranhou, pois a filha geralmente usava um jeans e uma blusinha simples para ir ao cursinho e agora estava com um vestido novo, muito elegante, que tinha comprado havia pouco tempo.
- Por que está vestida assim, filha? Vai faltar ao cursinho para ir a alguma festa?
Ela, esperando pela pergunta, respondeu prontamente:
- É que depois do cursinho vou à festa de aniversário da Adriana, por isso me vesti assim.
— Não seria melhor você voltar para casa e se arrumar depois? Seus colegas vão achar estranho e podem até fazer piada.
— Qual nada, mãe, outros colegas do curso irão também, pretendo pegar carona com eles. Se eu me atrasar, não se preocupe, estarei em boas mãos e prometo não demorar muito.
—Vá com Deus, minha filha.
Ingrid andou alguns metros e, chegando à esquina, tomou um táxi.Teria de deixar aqueles livros e cadernos na casa de uma colega antes de ir para a frente do prédio onde estudava. Não pretendia entrar, ficaria na portaria esperando Ernesto chegar. Estava muito excitada e não sabia para onde ele a levaria nem quem era o homem que estava apaixonado por ela. Na verdade, o que Ingrid não conseguia entender era por que passara os últimos dias pensando tanto em Ernesto. Não conseguia tirá-lo da cabeça, e chegava inclusive a ter pensamentos eróticos em relação a ele. O que ela não sabia era que estava sendo envolvida por entidades das trevas para fazer com que Ernesto quebrasse o trato e sofresse.
Assim que ela chegou, após poucos minutos Ernesto desceu de um carro último tipo e, ao vê-lo, sua excitação aumentou. Ele estava muito elegante, bem vestido, estava perfeito! De repente, pensou que Diego não tinha mais tanta importância assim. Se pai Ernesto a apresentasse ao amigo, ela recusaria e depois trataria de se declarar a ele. Após vê-lo tão impecável, tinha a certeza de que estava apaixonada.
Como fora cega querendo destruir o lar da irmã. Ainda bem que havia acordado a tempo.
Entrou no carro e durante o percurso foram conversando amenidades. Ernesto versava bem sobre diversos assuntos, e logo estavam à mesa de um famoso piano-bar. Após os aperitivos, Ingrid indagou:
— Onde está seu amigo que não chega? Por que a demora? Terá desistido de me conhecer?
Ernesto pegou as mãos de Ingrid e apertou-as entre as suas. Disse com voz dominada pela paixão:
— Não existe amigo nenhum. O homem que está apaixonado por você sou eu.
Ingrid surpreendeu-se.
-Você? Como pode? Por que não me disse antes?
— Inventei aquela história porque não queria que você fugisse de mim assustada. Mas aqui, agora, nesse clima romântico, sinto-me seguro para me declarar. Estou amando você e quero que seja minha esposa.
Ela parecia estar vivendo um sonho. Completamente envolvida, ela respondeu:
- Pois eu também estava torcendo para que esse seu suposto amigo não aparecesse ou desistisse de mim. Na verdade, não consigo parar de pensar em você. É um sentimento forte, inexplicável. Parece que o conheço há muito tempo, sinto ânsia de estar ao seu lado. Agora, neste momento, percebo que o que sentia por meu cunhado era uma paixão boba. Eu aceito ser sua esposa.
Ernesto delirava. Tomou Ingrid pelas mãos e a levou para a pista de dança. O piano tocava Crazy, e eles, envolvidos, deixaram-se levar pelo som bonito da melodia. Logo estavam no carro mais uma vez e Ernesto a levou para sua casa. Sabia que ela se entregaria a ele naquela noite, por isso preparou a cama com pétalas de rosas vermelhas e aromatizou o ambiente com agradável cheiro de sândalo. Completamente apaixonados, Ernesto e Ingrid entregaram-se ao amor. Amaram-se várias vezes durante a noite e Ingrid, esquecida do mundo lá fora, acabou dormindo ali mesmo.

Pela manhã, Ingrid acordou cedo e observou Ernesto, que dormia profundamente. Inebriada por tudo o que viveu, pensou: "Como estou feliz! Como estava enganada quanto ao que sentia por Diego. Ernesto é tudo o que quero para mim." Movida pela paixão, ela o beijou várias vezes no rosto sem que ele acordasse.
Desceu as escadas e ligou para a mãe, que atendeu aflita:
- Filha, onde você está? Estamos todos preocupados. Você nunca dormiu fora de casa e não temos o telefone de sua amiga aqui. Você está bem?
- Sim, mãe, estou ótima. A festa se alongou e ficou tarde para voltar, resolvi dormir na casa da Adriana mesmo, logo estarei aí. Mas você disse que estão preocupados? Por acaso Diego e Vanessa estão aí?
- Não, mas já liguei para eles avisando. Querem saber onde você está. Ainda bem que está tudo em paz. Isso não se faz. Onde já se viu uma moça de família dormir fora de casa?
- Deixe de drama, mamãe, já dormi fora outras vezes, quando fui acampar, e a senhora não se importou.
- De qualquer forma, volte logo, pois não quero que fique na casa dos outros dando trabalho.
Ingrid desligou e foi preparar um café para quando Ernesto despertasse. Ficou deslumbrada com a cozinha. Tudo muito moderno, limpo e tinha de tudo. Preparou uma bandeja e levou ao quarto. Ernesto estava acordando quando ela entrou. Não conseguia se conter de felicidade. Parecia que voltara a viver. Havia se esquecido de como o amor era importante. Passara a se dedicar à magia e deixara de viver. A partir de agora, independentemente do que acontecesse, ele iria viver esse amor.
Depois do café, ele, com olhos fixos nos dela, perguntou:
- Como será nossa vida de agora em diante? Já me considero casado com você.
Ela mostrou preocupação no rosto.
- Não queria pensar nisso agora, mas confesso que será difícil para mim assumir uma relação com você e casar. Minha mãe é muito conservadora e também entende de magia. Ela praticava desde a adolescência, mas deixou-a quando se casou por imposição de meu pai. Depois que ambos se separaram e ele foi para Ouro Preto, ela não se sentiu mais à vontade para voltar, diz que prefere a máquina de costura. Mas o certo é que minha mãe entende muito do assunto e sempre me diz que pais de santo, geralmente, trabalham para o mal, e que aqueles que fazem bruxarias para destruir pessoas estão ligados às trevas. Ela nunca vai aceitar nossa união.
Ernesto ajeitou-se na cama e respondeu:
— A magia é uma espécie de ciência muito antiga. Praticamente todos os povos a praticaram durante sua passagem pelo mundo. Eu preferi me dedicar ao mal. Estava desiludido com a vida e com Deus, e ainda estou. Agora, com você, é que parece que o mundo voltou a sorrir para mim. Estou disposto a largar a magia por você já tenho muito dinheiro e podemos ser felizes juntos. Ninguém precisa saber o que sou e o que faço.
—Você é muito famoso em toda a São Paulo e até em outros estados. Provavelmente minha mãe sabe quem você é.
Ernesto sentiu-se desanimado. Após aquela linda noite de amor, não queria pensar em mais nada. Mas, ao mesmo tempo, Ingrid entrara em seu coração, e foi com veracidade que ele falou em abandonar a prática da magia por ela. Não voltaria a acreditar no bem nem em Deus, claro, mas deixaria de ser pai de santo, se esse fosse o preço para tê-la para sempre em seus braços. Ouvira dizer que coisas horríveis aconteciam com quem abandonava o pacto com essas entidades diabólicas, mas queria pagar para ver. Mesmo que para isso precisasse morrer, ele seria feliz enquanto pudesse. Resolveu contemporizar.
- Não vamos pensar em nada agora. Por enquanto, vamos manter nosso amor em segredo. Fecharei meu terreiro e cônsultório, ciarei um tempo para que as pessoas me esqueçam como bruxo e depois pedirei sua mão em casamento para sua mãe.
Ambos resolveram esquecer o assunto e Ingrid partiu. Ernesto estava descendo as escadarias quando ouviu um assobio. Seu corpo arrepiou-se por inteiro, e ele sentiu medo. Era alguma entidade que queria falar com ele e, pela sensação, não vinha com boas intenções. Mentalmente, ele começou a conversar:
- Quem é e o que deseja?
-Aqui é Germano e trago mensagem de Belzebu para você.
— Diga. Estou pronto.
— Ele já sabe o que está se passando e o considera um traidor. Como tal, terá a paga que merece. A partir de hoje sua mediu-nidade está suspensa e se prepare para o que o aguarda.
-Vão me matar? Podem fazer isso desde já. Provei o gosto do amor verdadeiro e, por mais que me tirem desta vida, irei feliz, pois o momento que vivi ontem me fará feliz pela eternidade.
Germano riu macabramente.
- Estudamos seu caso com profundidade. Você se comprometeu seriamente com o que chamam de lei de causa e efeito. No terreiro, fez rituais de amarração, separação, moléstias e até mortes. Pensa que vai ficar impune? Além do mais, está rico com um dinheiro amaldiçoado, e terá de prestar contas um dia, centavo por centavo. Se tirássemos sua vida agora, seu sofrimento seria pouco. Fique com o seu amor e aproveite enquanto pode. O que está reservado para você eu não quero nem para o meu pior inimigo. Adeus e seja muito infeliz.
Ernesto ficou tonto e quase desmaiou. Com muita força, readquiriu o controle de seus movimentos e sentou-se em uma cadeira. Pelo menos eles não o mataram. Mas Germano sabia de alguma coisa muito terrível que iria lhe acontecer. O que seria? Matariam Ingrid? Não. Não podia ser. Ela era uma pessoa protegida, tinha luz, eles não conseguiriam fazer isso.
O estômago começou a arder, ele tomou um sal de frutas e foi para o consultório, que ficava nos fundos da casa. Estava decidido a parar com o que vinha fazendo por amor a Ingrid.
Muitos clientes importantes estavam à sua espera naquele dia. Ele foi enfático ao dizer que estava fechando o consultório por tempo indeterminado. Mentiu dizendo ser ordem das entidades e que ele, durante o tempo em que ficaria ausente, iria fazer um curso, de onde voltaria mais poderoso ainda. Algumas pessoas aceitaram, outras protestaram, pois já haviam pago metade do dinheiro dos despachos. Ele prometeu devolver, e assim o problema foi resolvido.
O que ele não sabia é que ninguém lucra com o mal, e que, para ser feliz como ele sonhava, haveria de trilhar um longo e árduo caminho de redenção.





19
O preço da ambição
Arlete dirigia em alta velocidade por entre os carros de uma movimentada avenida, embora as lágrimas embaciassem sua visão. Não podia acreditar que aquela tragédia havia acontecido. Por sorte não pegara nenhum engarrafamento, e logo entrou na garagem da mansão da mãe, cantando pneu. Esbaforida, abriu a porta e deixou-se cair no chão num pranto convulsivo. Lucrécia estava ao telefone conversando com uma amiga, mas, ao ver o estado da filha e sentir que algo muito sério havia ocorrido, desligou sem se despedir. Tirando Arlete do chão perguntou, aflita:
- Meu Deus! Minha filha, o que houve?
Arlete soluçava e não conseguia articular nenhuma palavra. Quanto mais Lucrécia inquiria, mais ela chorava. Pediu que a empregada trouxesse um calmante e a fez tomar mesmo a contragosto. Os minutos se passaram e, aos poucos, pelo efeito do medicamento ela se acalmou, só aí pôde falar:
- Foi horrível, mãe. Horrível. Eles estão mortos.
- Mortos? Quem?
- Bruno e Elza. Os corpos estão no Instituto Médico Legal. Foi durante a madrugada, mas só soube agora - ela contava enquanto o pranto retornava.
Lucrécia ficou nervosa, mas queria saber ao certo o que tinha acontecido.
- Conte-me. Como isso aconteceu? Foi assalto?
Mesmo entre soluços, Arlete tentou explicar o que até para ela estava confuso.
- Bruno e Elza, nas últimas semanas, passaram a chegar cada vez mais tarde em casa. Não me metia nos assuntos deles e não fazia perguntas. Só que ontem eles demoraram mais que o habitual, passava das três e nem sinal. Comecei a ficar preocupada. Pensei em ligar para cá, mas resolvi esperar. Não consegui mais pregar o olho e o dia clareou sem que eu tivesse nenhuma notícia. No íntimo, sentia que algo grave estava acontecendo. Pela manhã, quando Iracema chegou, encontrou-me no sofá da sala aflita. Enquanto ela preparava o café, o telefone tocou e fui atender com rapidez. Uma voz masculina do outro lado da Unha dizia:
- Apagamos os dois, não cumpriram as regras, nos traíram pela ambição, receberam a morte. Se você sabe de alguma coisa, fique calada ou sua vida não valerá nem um centavo.
- Fiquei aterrada e não tive tempo de perguntar coisa alguma, pois o homem desligou. Naquele momento, senti que Bruno havia morrido, mas não queria acreditar. Fiquei ansiosa e com medo. Não poderia prestar queixa em nenhuma delegacia, não podia fazer nada, a não ser ficar quieta e esperar. Iracema percebeu meu nervosismo e me deu um chá, mas não me acalmei. Horas mais tarde, um delegado ligou.
- E da casa do senhor Bruno Lopes de Oliveira?
- Sim. O que houve?
Encontramos o corpo dele e o de uma mulher chamada Elza com o mesmo sobrenome, com vários tiros e afogados na represa -Guarapiranga. Sinto muito, mas eles foram assassinados. A senhora precisa reconhecer os corpos com urgência.
- Não consegui mais escutar o que o delegado dizia e desmaiei. Quando acordei, deixei tudo e vim para cá. Nem sei como não morri também nesse trânsito. Não tenho coragem para fazer o reconhecimento dos corpos. Ajude-me, mãe.
Arlete não conseguia conter o pranto, ao que Lucrécia dizia:
— Calma, filha. O Bruno tem um irmão que mora em São Paulo e os pais que residem em Guararema. Mas o que você sabe sobre essas mortes? Pela ameaça que recebeu, deve estar por dentro do que eles faziam.
— Eu não sei ao certo. Bruno e Elza tinham contas conjuntas em que depositavam dinheiro ilegal. Eles ajudavam traficantes de drogas. Devem ter cometido algum deslize. A Elza era muito ambiciosa. Eu costumava escutar o que eles conversavam nas madrugadas e, da última vez, a ouvi dizer que havia outro grupo interessado nos serviços deles e que a comissão seria maior. Por certo eles traíram o grupo antigo e morreram. Mãe, diga-me, o que farei sem meu marido?
Lucrécia estava horrorizada com tudo aquilo. Na verdade, nunca simpatizara com Bruno e menos ainda com Elza, que mais parecia um homem. Contudo, era hora de consolar a filha e tentar ajudá-la.
— Vou com você fazer o reconhecimento dos corpos. Precisa ser forte. Depois ligaremos para os pais deles e os avisaremos. Falaremos também com esse irmão que mora aqui. Como é o nome dele mesmo?
— Ernesto. Eu nunca o conheci, nem mesmo por foto. Bruno raramente falava dele e da família.
— Que coincidência. Ernesto é o nome do pai de santo que tanto nos ajudou.
— Sim, mas isso pouco importa. Quantos Ernestos não existem por essa São Paulo?
Depois que Arlete se refez, Lucrécia ligou para Arnaldo contando o ocorrido e logo depois partiram para o IML.

20
A transformação de Ernesto
Ernesto havia acabado de fazer amor com Ingrid e observava enlevado seu sono. Depois do encontro em que havia se declarado, eles passaram a se encontrar com frequência, sempre à noite. Ela dizia à mãe que ia estudar, mas dirigia-se para a casa de Ernesto, onde viviam intensas horas de amor. Eles resolveram manter o romance em sigilo absoluto, porque Ernesto havia feito fama como pai de santo. Se a mãe de Ingrid descobrisse, certamente proibiria a relação. Mesmo assim, iam a bons restaurantes, confeitarias, pistas de danças. Ernesto estava muito feliz, tão feliz que não imaginava ser possível nada maior em sua vida. Conhecia muito de magia, mas não estava com medo do que pudesse lhe acontecer, afinal, já estava se relacionando com sua amada havia oito meses e continuava bem e alegre.
Ingrid era especial, carinhosa e estava realmente gostando dele. Ernesto sabia que a magia que havia feito só fora o pontapé inicial, pois as bruxarias de amor, quando fazem efeito, não trazem harmonia ao casal, logo começam as brigas, violências, discussões. Já entre ele e Ingrid tudo corria às mil maravilhas e ela não parecia nada embruxada. Sentia em seus olhos, em seus gestos, que o amava verdadeiramente. Como ele estava feliz! Descobrira que a vida não valia a pena sem amor, carinhos, beijos, sexo, companhia. E se até aquele momento nada de ruim lhe acontecera, era porque os espíritos malévolos tinham deixado de persegui-lo.
De vez em quando ele se arrepiava e ouvia algumas gargalhadas, mas logo mudava o pensamento e esquecia. Germano tinha lhe dito que ele havia perdido a mediunidade, portanto não precisava mais se preocupar. O que Ernesto ignorava é que nenhum médium perde sua sensibilidade. Às vezes, momentaneamente, para testar a paciência do medianeiro ou quando ele se perde nas ilusões do mundo, o sexto sentido é retirado apenas na forma ostensiva, mas a pessoa continua a captar pensamentos, vibrações, intuições e inspirações do além. A captação energética é inevitável para quem alguma vez já desenvolveu a mediunidade.
O telefone tocou e Ernesto foi atender. Uma voz conhecida falou:
- E da casa do senhor Ernesto?
- Sim, é ele quem fala.
- Aqui é Lucrécia, mãe de Arlete, esposa de seu irmão Bruno.
- Lucrécia? E você mesma? A esposa do engenheiro Arnaldo?
- Como assim? Você me conhece de onde?
- Você e sua filha, Arlete, vieram me procurar quando eu trabalhava com magia, não se lembra? Se está hoje com seu marido, agradeça a mim.
Lucrécia não esperava por aquilo. Era coincidência demais. Mas ela não perder tempo, e foi direto ao assunto.
- Não importa o que fui fazer, o que importa é o que tenho para lhe falar agora.
Ernesto estava estupefato. Então o Bruno, para o qual fizera o feitiço, era seu irmão, talvez por isso não tenha conseguido ver o rosto dele. Era coincidência demais. Sabia que o irmão morava no Rio de Janeiro, mas não sabia o nome de sua esposa nem como vivia, uma vez que ele e Elza abandonaram tudo e nunca mais tiveram contato.
- O que aconteceu com meu irmão?
- Ele está morto. Não só ele, sua irmã também morreu.
- Como? - Ernesto sentiu uma tontura e ajeitou-se melhor na cama. Aquela mulher, além de irritante, não sabia dar uma notícia como aquela de maneira mais adequada.
- E isso o que ouviu. Seus irmãos foram assassinados durante essa madrugada e ninguém sabe o motivo do crime. A polícia está investigando, mas nada descobriu até agora. Minha filha está em pânico, terá de depor, não sabe o que fazer. Estou ligando também para avisar que telefonamos para seus pais e demos a notícia. Acho bom você ir direto para lá. Sua mãe reagiu bem, ficou equilibrada e serena, mas seu pai teve um derrame e está internado. Foi com dona Lúcia que consegui o seu número, e nem havia me dado conta de que é o mesmo que consta de seu cartão de pai de santo. Como o mundo é pequeno!
- Muito obrigado por avisar. Vou tomar as devidas providências de velório e sepultamento e depois irei a Guararema ver meus pais.
- Arnaldo já tomou todas as providências, não precisa se preocupar. Acho bom você largar tudo e ir logo ajudar sua mãe. Ela é forte, mas ninguém sabe até quando irá aguentar sozinha. Afinal, dois filhos morreram, um está distante e o marido, em estado grave. Não sei como os seus guias não lhe informaram isso, foi preciso eu gastar com esse telefonema. Anote aí o endereço do cemitério onde será o velório.
Ernesto anotou, um pouco enraivado pela ironia de Lucrécia, e depois desligou. Precisava ir com urgência ter com os pais. Nesses oito meses depois de ter fechado o terreiro e o consultório, ele havia se reaproximado dos pais, que ficaram muito felizes com sua nova vida. Só não contou que estava namorando e que pretendia se casar. Acordou Ingrid que, sonada, não entendeu o que estava acontecendo.
Ernesto explicou tudo e pediu que ela o acompanhasse.
- Não acho prudente. Seus pais não sabem do nosso envolvimento e podem não aprovar. Sou muito nova e eles vão pensar que quero me beneficiar de seu dinheiro.
- E hora de revelar a todos que nos amamos, para que esconder? Chegou o momento. Estamos felizes, vamos nos casar, não vamos mais adiar as coisas.
— Tenho medo. Minha mãe e minha irmã não aprovarão minha união com você.
- Não revelaremos a eles agora. Por enquanto, acompanhe-me a Guararema e eu a apresentarei à minha mãe. Depois resolveremos como vamos dar a notícia a sua família.Você já é maior e pode fazer o que quiser de sua vida. Se sua mãe se opuser, você se casa comigo mesmo a contragosto dela, não é?
— Claro que sim.
— Então, ligue para ela e invente que vai dormir na casa de uma amiga. Partiremos agora mesmo.
Ingrid ligou para Marisa e a convenceu de que dormiria na casa da amiga Adriana, não sem antes avisá-la que sua mãe poderia ligar para confirmar. Adriana era a única pessoa que sabia de sua união com Ernesto.
Tudo arrumado, eles se puseram a caminho. Era noite e o trânsito estava calmo. Quando chegaram, foram diretamente para o hospital onde seu Anselmo estava internado. Dona Lúcia cochilava no corredor mas, ao ver o filho, despertou e o abraçou. Chorou muito, mas notava-se que era um pranto conformado, resignado. Ernesto também chorou. Não pela morte dos irmãos, com quem tinha pouco contato, mas por ver o sofrimento da mãe, já idosa, que havia perdido os filhos e tinha o marido doente, sem saber se sobreviveria. Quando eles se acalmaram e dona Lúcia contou a situação do marido, ela se deteve a analisar Ingrid. Depois perguntou:
— Quem é a moça?
— Mãe, eu gostaria de dizer que muita coisa em minha vida mudou. Não apenas deixei de ser pai de santo, como também resolvi refazer minha vida. Está é Ingrid, minha companheira e futura esposa.
Dona Lúcia a abraçou calorosamente, depois a olhou nos olhos e disse:
— Você é uma garota especial e tenho certeza de que fará meu filho feliz.Você não sabe quanto rezei à Nossa Senhora para que ele deixasse aquela vida de feiticeiro e encontrasse alguém especial para compartilhar a vida. Um dia, desesperada, orei com mais fervor e uma brisa me envolveu. Senti-me levitar e uma voz sussurrou ao meu ouvido: "Seu pedido de mãe foi atendido". Não sei de onde veio aquela voz, mas fiquei muito feliz e chorei bastante. Eu aceitava a mesada que Ernesto me mandava, pois a situação em casa não era boa, mas não estava feliz com aquilo. Sentia que aquele dinheiro me fazia mal. Hoje ele está rico, mas, se quer um conselho de mãe, quero que doe tudo o que conseguiu com a magia negra às pessoas carentes.
Ao ouvir aquilo, Ernesto discordou, mas não queria discutir com a mãe naquela hora. Ele jamais ficaria sem sua fortuna tão duramente amealhada.
Logo depois, o médico chegou e, mesmo com o adiantado da hora, Ernesto conseguiu entrar no quarto onde seu Anselmo estava. Seu pai estava dormindo e ele não quis acordá-lo. Por fim conseguiu convencer a mãe a ir para casa descansar, pois no dia seguinte teria de deixar Guararema e enfrentar o enterro dos filhos em São Paulo.

Durante o velório e o enterro, todos fixaram a atenção em Ernesto, que estava de mãos dadas com Ingrid. No fundo, queriam saber quem era aquela jovem que havia conquistado o amor do famoso pai de santo. Dona Lúcia chorava confor-madamente e, quando tudo terminou, foi para a casa do filho. Embora Ernesto a estivesse tratando muito bem e Ingrid se esforçando para vê-la melhor, ela queria mesmo voltar para sua cidade e acompanhar a evolução do estado de saúde do marido. Ernesto entendeu que naquele momento tinha de deixar tudo e ir com ela. E, quando se viu a sós com Ingrid, pediu:
— Venha comigo. Será difícil enfrentar esses momentos lá sem você.
— Não posso, meu amor. Para acompanhá-lo tive de inventar um monte de desculpas para minha mãe e ela já está bastante desconfiada. Se eu resolver ir com você, não poderei mais fazer isso, terei de falar a verdade.
— Tem razão. Eu vou, mas, quando meu pai melhorar, irei à sua casa e pedirei sua mão em casamento para dona Marisa. Enquanto isso, vá amadurecendo nela e em sua irmã a ideia de que está namorando e pretende se casar.
— Sinto medo. Minha mãe não o aceitará com facilidade.
- Pelo que você conta, ela é uma mulher espiritualizada. Confessarei tudo o que fiz e direi que estou em outro caminho. Serei sincero, sei que ela entenderá.
Ingrid o beijou e partiu. Algum tempo depois, Ernesto estava mais uma vez a caminho de Guararema.




21
O desabrochar do amor
Fazia algum tempo que Alice havia começado a frequentar o centro espírita no qual sua amiga Magali era participante. Depois da separação, ela tinha voltado para casa e já estava trabalhando como secretária na empresa de um amigo de seu pai. Apesar de estar separada do homem amado e ter de aturar as futilidades de sua mãe, sempre à procura de sexo irresponsável, de presenciar as intermináveis brigas entre os pais, ela se sentia feliz e harmonizada. Havia encontrado no espiritismo a força de que precisava para enfrentar seus desafios e vencê-los. A descoberta de que tudo estava sempre certo e de que Deus dirigia o universo com sabedoria e amor, levando-a sempre para o melhor, confortava-a e deixava-a estuante de paz. Sentia-se em segurança, afinal, independentemente do que houvesse, a vida a levaria para a felicidade e a harmonia.
Mãe Márgara havia lhe avisado que a separação seria inevitável, mas com tempo ele retornaria para ela. O feitiço havia sido desfeito, mas Arnaldo, já ao lado de Lucrécia, tinha criado formas de pensamentos que o impediam de tomar a decisão de deixá-la e, assim, o processo seria demorado.
Todavia, Alice, despertando para as verdades da vida, passou a questionar se realmente queria Arnaldo de volta. Não que ela tivesse deixado de amá-lo, mas não estava disposta a conviver com um homem que se culpava por uma separação e que, por isso, ficaria sempre amargurado e propenso ao feitiço. Por isso, entregou sua vida amorosa a Deus. Que Ele fizesse o melhor. As amigas, até mesmo Magali, diziam que ela deveria arranjar alguém, que a solidão não era boa, uma vez que era jovem, bonita e podia conseguir tudo o que quisesse. Alice retrucava e dizia que não se sentia só e que jamais se envolveria com alguém apenas para tapar um vazio que só ela poderia preencher.
Naquela noite, ela estava particularmente feliz. Havia escutado uma linda palestra no centro sobre a força do pensamento positivo e já ia saindo com Magali por uma das portas laterais quando sentiu uma mão apertar de leve seu braço. Virou-se, surpresa, e falou:
- Eduardo?Você por aqui?
- Sim. Há duas semanas encontrei, finalmente, o centro espírita com o qual tenho afinidade. Já tinha visto você, mas nunca tive chance de me aproximar. Como você está?
De repente, um nó surgiu na garganta de Alice. Eduardo era filho de Arnaldo e muito parecido com o pai. Olhar para ele a fez relembrar de tudo que havia vivido. Disfarçou a emoção e respondeu:
— Eu estou muito bem. E você?
— Melhor agora na presença de vocês. Aqui no centro conheço algumas pessoas, mas adoro fazer novas amizades e encontrar velhos conhecidos. A propósito, não vai me apresentar sua amiga?
- Oh, desculpe, que distração a minha. Essa é Magali, a responsável por eu ter conhecido a espiritualidade.
Ambos trocaram beijos no rosto e,já na calçada, Eduardo propôs:
- Está quente hoje, vamos tomar alguma coisa numa confeitaria? Vocês me acompanham?
Alice ia dizer que não. Para ela, sair com o filho de Arnaldo significava, de certa forma, voltar ao passado, forçar algo sem ser a hora. Mas, antes que ela respondesse, Magali aceitou.
- Vocês estão de carro e eu também. Façamos assim: conheço um ótimo lugar, eu vou à frente e vocês me seguem.
Ambas concordaram e, no carro com a amiga, Alice comentou:
- Eu não queria ir. Você nem me deixou responder. Se alguém me vir na companhia de Eduardo pode achar que estou tentando tirar partido de sua amizade para voltar a ser amante do pai dele. Acho que vou desistir.
Magali riu com bom humor.
- Deixe de ser boba. Eduardo é gentil, só quer fazer amizade conosco e conversar. O que tem de mais nisso? Aliás, o que a opinião dos outros importa para você? Não estamos aprendendo que as críticas não servem para nada?
- Não é isso. Coloque-se no meu lugar. Você se sentiria bem saindo com o filho do seu ex-amante?
- Eu encararia como natural. E apenas uma amizade. A maldade está nos olhos de quem vê. Pare com isso.Vamos ser amigas do Eduardo. Se ele procurou um centro espírita, é porque acredita na espiritualidade. Vamos sempre nos ver, quer você queira ou não. Além do mais, ele é lindo. Notou como os olhos dele brilham enquanto fala?
- Sim. Arnaldo gosta demais do filho, vivia falando nele. Contou-me que Eduardo é espírita há muitos anos. Além disso, ele já foi ao nosso apartamento muitas vezes enquanto o pai morava lá. Mas não se anime com a beleza, ele é um solteirão convicto. Gosta de namorar, mas diz que nunca vai levar ninguém a sério. Magali sorriu.
- Quando ele encontrar a mulher da vida dele tudo isso vai mudar.
-Já sei, você quer ser uma das candidatas. Magali pareceu falar sem perceber:
- Não. O destino dele é com outra.
- Como você sabe? Virou profetisa agora?
- Não sei, me deu vontade de falar e falei, foi mais por impulso. E quer saber? Vou me candidatar, sim.Você vai ver como vou jogar charme para ele esta noite.
O carro de Eduardo foi estacionado e logo depois o de Alice. Quando todos estavam à mesa, após pedirem um drinque, Eduardo comentou:
— Fico feliz em saber que você está bem mesmo longe de meu pai. O amor de vocês era verdadeiro, fiquei um pouco triste quando acabou.
Magali surpreendeu-se:
— E a primeira vez que vejo um filho de uma mãe traída falar assim para a mulher que foi o pivô do sofrimento da família. Não consigo entender.
Eduardo olhou-a firmemente enquanto dizia:
-Talvez um dia, quando amar de verdade, você compreenda.
— Mas como pode saber? Os comentários são de que você nunca namorou ninguém a sério. Como pode entender do amor?
— Eu entendo porque sinto amor por tudo o que faço, pela vida, pela maravilhosa chance de estar reencarnado para aprender. É certo que até hoje não senti esse "amor paixão" por ninguém em especial, mas sei que ele mora em meu peito. Já vivi muitas encarnações, já amei, fui amado, sofri, fiz sofrer. Como não entender do amor? Alice interrompeu.
— Muito bonito o que você disse. O meu amor por seu pai foi realmente verdadeiro e ainda é, mas ele fez uma opção. Meu dever é deixá-lo livre.
— Concordo, e você agiu certo. Mas, já que acreditamos em espiritualidade e sinto confiança em vocês, posso afirmar: meu pai se separou de você e está com minha mãe por influência energética. Tentei e ainda tento alertá-lo de todas as maneiras. Mas ele, que sempre me ouviu, dessa vez não quer saber, está completamente fascinado. Creia, Alice, um dia ele ainda voltará para você.
Alice sentiu os olhos se encherem de lágrimas.
— Já que você tocou no assunto, gostaria de dizer que eu e Magali já estamos a par de tudo o que ocorre com seu pai.
Eduardo interessou-se.
— Como assim?
Enquanto tomavam o drinque, ambas contaram como ficaram sabendo do feitiço, da conversa que tiveram com mãe Margara e de todos os detalhes. Eduardo cada vez mais horrorizava-se com o que ouvia, principalmente com o comportamento de sua mãe, que agia na surdina, com perfídia. Ao final, falou:
— Sinto muito, Alice. Se dependesse de mim, ele não teria feito o que fez. Agora só nos resta orar e esperar. Se você o ama de verdade, saberá aguardar a hora de tudo isso terminar. Nenhuma relação concretizada pelo feitiço vai para a frente. Não é natural, e a vida destrói tudo o que não é natural.
— Sei disso e é o que tenho feito. Confesso que essa doutrina que abracei tem me ajudado muito. As leituras, as palestras têm me deixado forte e com outra visão da vida. Hoje não peço mais a Deus que Arnaldo volte para mim, peço apenas que Ele faça o melhor para minha vida.
Eduardo a encarou profundamente, enquanto ela dizia aquelas palavras, e sentiu o coração descompassar. Seu rosto ficou vermelho e um calor gostoso penetrou o seu corpo. De repente, pareceu que um véu fora arrancado de sua visão: estava diante da mulher de sua vida. Tinha certeza disso. No entanto, dominou a emoção e ela nada percebeu.
-Você tem uma alma nobre, Alice. Gostaria de vê-la outras vezes para que possamos conversar mais. Não só você, como Magali também. Foi muito agradável encontrá-las. Aqui está o cartão com o número do meu celular.
Ele retirou dois cartões pessoais da carteira e os entregou às duas amigas, que retribuíram. Quando se despediram, já passava das onze.
No carro, com Alice, Magali estava calada e pensativa. Será que deveria dizer o que tinha percebido à amiga? O carro parou em frente à sua casa e Alice perguntou:
-Você ficou calada de repente, o que aconteceu?
— Nossa! Você me conhece mesmo, hein!
— Claro! Conte logo o que houve.
Magali era o tipo de pessoa que não sabia ocultar segredos. Se tinha um plano, um sonho, um desejo, se algo bom lhe acontecia, ela logo contava para todo mundo. Sua mãe, Margarida, dizia que não era bom contar nossos planos para os outros, pois sempre dá errado, mas com Magali esse conselho não funcionava. Ela era uma boca-aberta, por isso logo estava contando à amiga:
— Não sei se deveria falar, pois posso estar enganada e fazer confusão em sua cabeça.
— Estou ficando curiosa. Pare com isso. O que aconteceu?
— Como eu lhe falei, fiquei jogando charme para o Eduardo o tempo inteiro, enquanto estávamos no bar. Cheguei a encará-lo várias vezes. Ele percebia, mas não retribuía. Continuei insistente e, com isso, fiquei observando-o. Em um momento, no fim da conversa, o olhar dele mudou quando a encarou. Senti muito amor nos olhos dele enquanto a fitava. Por mais que tentasse disfarçar, percebi que seu rosto ficou vermelho e que ele chegou mesmo a tremer enquanto pegava o copo. Sinto que nesta noite ele se apaixonou por você.
Alice começou a ficar nervosa. Magali não era dada a brincadeiras.
— Pare com isso, você só pode estar enganada. Eu não percebi nada disso.
— Porque estava desatenta, falando do Arnaldo. Mas eu, que estava de olho nele, vi tudo.
— Isso não pode acontecer...
— Mas aconteceu. Algo me diz que Eduardo é o homem de sua vida!
— Não brinque, Magali. Que coisa! O homem de minha vida é o Arnaldo. Você sempre soube que só gosto de homens mais velhos, e o único que amei foi ele.
— A vida tem seus mistérios, amiga.Você verá se o que estou lhe falando não é verdade.
— Se for, agora me afastarei dele o máximo que puder. Não lhe darei nenhuma esperança.
Magali foi enfática:
— Não faça isso ou poderá perder sua chance de felicidade. Você não tem pedido a Deus que faça o melhor em sua vida?
- Sim.
- Então? Não jogue fora esta chance. Se for mesmo verdade o que senti hoje, a vida os unirá, será inevitável!
Alice parecia estar vivendo uma irrealidade.
- Isso não pode acontecer. Seria ridículo de minha parte se, de uma hora para outra, passasse de pai para filho.
- De novo pensando nas convenções e regras da sociedade. Precisa parar com isso. A sociedade não a fará feliz só você pode fazer isso.
As duas continuaram conversando, enquanto espíritos amigos as enlaçavam. Mais tarde, quando chegou em casa, Alice orou e meditou. Nada sentia por Eduardo, mas confiava na intuição da amiga. Por fim, mais uma vez entregou a vida a Deus, deitou e dormiu.

Eduardo chegou em casa e a encontrou às escuras. Sentiu um alívio, pois queria ficar sozinho, deitado no sofá sob a fraca luz do abajur. A mansão se tornara negativa e tumultuada ultimamente. Apesar de morarem juntos, Arnaldo e Lucrécia só viviam brigando e trocando agressões verbais na frente de todos. Arlete, após a morte do marido, passou a morar com eles, mas vivia chorando pelos cantos e se queixando, pois nunca havia conseguido ter filhos, não queria trabalhar e sentia-se só e abandonada pela vida. Aquela hora de silêncio veio bem a calhar para suas reflexões íntimas. Ele se perguntava como tinha estado tantas vezes com Alice e não percebera que a amava. Sim, tinha certeza desse sentimento. Foi de repente, mas o suficiente para saber que ele a queria para companheira pelo resto da vida.
Pensou no pai. Não importava se ele a amava ou não, iria lutar por sua felicidade. Havia aprendido que não podia deixar de ser feliz por causa dos outros, que sua felicidade tinha de ser prioritária. Além do mais, Arnaldo a havia abandonado. Nada mais justo do que Alice encontrar outro companheiro. Pensou na mãe, que iria odiar aquela união.Vivia desejando uma nora que nunca teve, netos que a fizessem mais feliz, mas jamais aceitaria que ele se casasse com Alice, aquela que um dia quase destruíra seu lar. Mas nada disso importava para ele. Com o dinheiro que tinha poderia comprar uma bela casa ou apartamento, casar com ou sem autorização dos pais e viver para sempre com sua escolhida.
Eduardo se conhecia muito bem e sabia que podia conquistar Alice. Se a vida despertara nele esse amor, era porque também poderia vivê-lo. Decidido, subiu as escadas e foi deitar-se. Enquanto se ajeitava nos lençóis, pensou que ela poderia rejeitá-lo. Se isso acontecesse, respeitaria seu livre-arbítrio, sabia que seu pai um dia voltaria a procurá-la e que ela poderia voltar para ele. Mesmo assim, iria lutar até o fim por seu amor. Eduardo acreditava que nenhum amor nascia para ser platônico e que, se a vida o despertava, era porque poderia ser vivido. Com esse pensamento, fez uma prece e adormeceu.
O espírito de Eduardo se desprendeu do corpo e começou a caminhar por uma estrada de grama molhada pelo orvalho da noite. De repente, envolta em um clarão, surgiu Alice. Ambos se olharam e ela disse:
— Meu amor, sabemos que insondáveis são os caminhos de Deus. Foi necessário esse tempo de separação para que aprendêssemos com outras experiências. No entanto, agora é hora de estarmos mais uma vez unidos para ajudar na implantação da Nova Era. Mas você sabe que ainda tenho uma missão com seu pai, por isso serei resistente, todavia acredito no seu amor e sei que ele será forte e aguentará até o fim.
Eles se deram as mãos e Eduardo falou:
— Sei sim, querida. Minha alma esperava pela sua, mas não podia saber da verdade antes do momento previsto. Só esta noite Deus me permitiu essa ventura. Serei paciente e lutarei até o fim. Sempre a amarei.
Ambos se deitaram na grama e entregaram-se ao amor que sentiam um pelo outro. O céu, pontilhado de estrelas, abençoou aquela união.




22
O acidente
Pilantra! Sem-vergonha! Como teve coragem de fazer isso comigo? - gritava Lucrécia fora de si para Arnaldo, enquanto lhe atirava todos os objetos da sala que via pela frente. Arnaldo tentava se desviar, enquanto dizia: -Você que é insegura, insuportável. Não sei como fiz a loucura de voltar para você, foi o maior erro que cometi na vida. Lucrécia sentiu aumentar sua fúria.
- Então você paquera abertamente a filha da Zélia na minha frente e eu é que sou insuportável? - atirou-lhe um bibelô.
O objeto pontiagudo acabou por acertar em cheio a testa de Arnaldo, que, sangrando e sem se controlar, partiu para cima da mulher e começou a esbofeteá-la. Com os gritos da mãe,Arlete, que estava no quarto, veio correndo e conseguiu evitar o pior.
- Meu Deus! O que houve? Lucrécia dizia, rangendo os dentes:
- Fomos ao clube, como todos os domingos, e seu pai, como sempre, flertou abertamente, mas desta vez com a filha de minha melhor amiga. A garota nem estava a fim, mas ele insistiu com olhares, e vi até quando deu uma piscadela. Você acha que uma mulher digna como eu pode suportar uma humilhação dessas?
Antes que Arlete dissesse algo, Arnaldo falou convicto:
-Quem não suporta mais sou eu. Aliás, nunca a suportei, só poderia estar maluco quando resolvi deixar Alice e retornar para esta casa. Até compreendo que eu estava feliz com a volta de meu filho, queria ficar mais tempo com ele e tudo isso me influenciou, mas agora chega! Estou saindo desta casa e, dessa vez, para sempre.
Lucrécia soltou-se dos braços da filha e ajoelhou-se aos pés do marido:
- Por favor, não faça isso! Eu não vou aguentar outra separação. Prometo me controlar, ser mais cordata. Perdoe-me.
-Você sempre diz a mesma coisa desde que nos casamos, mas é escândalo após escândalo desde que voltamos. Parece que nesta noite uma névoa foi arrancada de minha visão. O que estou fazendo aqui? Meu lugar é em meu apartamento com minha Alice.
Lucrécia gargalhou.
- Acha mesmo que ela vai aceitar você de volta? Se sair desta casa ficará tão sozinho quanto eu. Alice é esperta, não vai arriscar voltar para um homem inseguro como você, que não sabe o que quer.
- Mesmo que fique só, ficarei melhor do que aqui com você. Arnaldo saiu, depois retornou dizendo:
- Amanhã mandarei buscar meus pertences.
Quando ele bateu a porta, Arlete conduziu a mãe até o sofá e tentou consolá-la. Mas Lucrécia estava fora de si.
- Ele não pode fazer isso comigo. Não pode! Vamos atrás dele. Não estou em condições de dirigir, você guia e segue o carro até onde ele for.Tenho certeza de que não vai para o Morumbi, deve se hospedar em algum hotel.
— Mas, mãe, não vê que é inútil? Tudo o que a senhora fizer não o trará de volta, só vai se humilhar ainda mais.
Lucrécia vociferou:
-Você não sabe o que diz. Ande, vamos para o carro!
Vendo que a mãe estava obstinada, Arlete obedeceu. Como tudo foi muito rápido, ainda conseguiram divisar o carro de Arnaldo, que acabava de entrar na avenida São João. Lucrécia chorava e dizia impropérios. Arlete também não estava bem, fazia dias que não se alimentava direito. Depois da morte do marido, entrara em profunda depressão e não via mais motivos para viver. Estava frequentando um psiquiatra, usando medicação forte e nem poderia estar dirigindo. De repente, por conta do efeito colateral da medicação, Arlete perdeu a concentração e o carro saiu da pista com velocidade, capotando três vezes. O corpo de Lucrécia foi atirado a metros de distância, enquanto Arlete ficou presa entre as ferragens. Quando o socorro chegou, elas foram levadas a um hospital e atendidas em emergência. Lucrécia acordou instantes depois e percebeu que sofrera um pequeno arranhão. Estava numa cama e sentiu o nervosismo aumentar ao recordar o que acontecera. Como estaria Arlete? Havia morrido?
Minutos depois, um médico veio vê-la.
— Senhora, preciso que venha conosco fazer alguns exames. Aparentemente está bem, teve apenas um pequeno corte no supercílio.Verificamos seus documentos e sua família já foi avisada. Contudo, é imperioso que façamos todos os exames para confirmarmos seu real estado.
Mesmo com receio, ela perguntou:
- E minha filha? Ela morreu?
- Não. Felizmente estava com o cinto de segurança, o que a prendeu no veículo. Mas bateu fortemente a cabeça e está em estado de coma. A coluna sofreu uma pequena fratura e não sabemos se poderá andar.
Lucrécia, horrorizada, começou a chorar. De repente, lembrou-se que pai Ernesto dissera que a amante de Bruno, para o qual sua filha havia encomendado o feitiço, estava em uma UTI. A vida estava castigando Arlete. Que horror! Lucrécia chorou muito e, naquele momento, arrependeu-se amargamente por ter se envolvido com o feitiço. O que aconteceria com ela? O fato de Arnaldo tê-la deixado novamente não seria também um castigo por ela ter se envolvido com as forças do mal? Ou será que viriam mais coisas por aí? Apavorada, ela desmaiou. O médico pediu que a enfermeira aplicasse um sedativo leve, pois certamente o desmaio fora em razão de a mãe saber a real situação da filha.
Quando Eduardo e Arnaldo chegaram ao hospital, já encontraram Lucrécia acordada e bem. Os exames nada acusaram, ela estava em perfeito estado. Olhando para o ex-marido e o filho, não conseguiu conter o pranto. O que seria dela naquele momento?
* * *
No mesmo dia, Lucrécia saiu do hospital e foi para casa, não sem antes certificar-se mais uma vez do grave estado da filha. Sentados na sala de estar, ela, Eduardo e Arnaldo estavam calados. Ninguém parecia querer comentar o ocorrido. Por fim, Lucrécia quebrou o silêncio.
- Sei que a culpa foi inteiramente minha. Se as suspeitas medicas se confirmarem e Arlete ficar paralítica, jamais me perdoarei.
Fez uma pequena pausa, olhou profundamente para Arnaldo e continuou:
— Quero que saiba que, a partir de hoje, está inteiramente livre para fazer o que desejar de sua vida. Reconheço que estava dese¬quilibrada quando fiz tudo aquilo, mas escapei da morte e praticamente nasci outra vez, e ninguém permanece o mesmo depois de um fato como esse. Chegou a hora de revelar a verdade.
Tanto Arnaldo quanto Eduardo não sabiam a que verdade ela se referia. Ficaram curiosos, mas não interromperam. Lucrécia, fixando o olhar num ponto indefinido, começou a narrar:
— Eu estava me sentindo muito sozinha, desamparada e abandonada nesta casa imensa, sem meu marido e meus filhos. Não sentia ânimo para sair nem para fazer as coisas das quais gostava. Da janela do meu quarto ficava observando o jardim e a piscina, recordando os momentos bons que passei com todos vocês. Aos domingos, minha tristeza aumentava, lembrava os passeios de fim de semana, enfim, toda a minha vida passada voltava mais forte na solidão dos domingos. Acho mesmo que estava iniciando uma depressão quando Arlete entrou por aquela porta e me mostrou um caminho que, ilusoriamente, pensei ser a salvação da minha vida.
Ninguém ousava interromper. Eduardo sentia que algo grave seria revelado. Ela continuou:
— Minha filha havia escutado falar de um pai de santo muito famoso daqui de São Paulo, que possuía um grande terreiro na Vila Maria. Ela estava no Rio quando ficou sabendo dos poderes desse homem, que atendia até mesmo pessoas muito famosas. Arlete era ciumenta e o Bruno nunca facilitava. Na época, ela suspeitava de que ele mantinha um romance com uma colega de trabalho e queria a ajuda desse feiticeiro para acabar com o romance e prender o marido aos pés dela. A princípio duvidei que isso pudesse acontecer, mas durante a consulta ele mandou um recado pra mim por intermédio dela deixando claro que possuía poderes de vidência e poderia me ajudar.
No outro dia fui procurá-lo. Depois de me dizer tudo o que eu precisava fazer, encomendei um trabalho de magia negra para separá-lo de Alice e trazê-lo de volta para mim. O que de fato aconteceu. Você não veio para mim naturalmente, forças ocultas trabalharam para isso.
Arnaldo parecia não acreditar no que estava ouvindo. De repente, lembrou do desmaio, das crises de mal-estar, das brigas com Alice, da separação e de sua atração irresistível pela ex-mulher. Será que o filho tinha razão? O mundo astral realmente existia e interferia no físico? Enquanto ele pensava, Lucrécia não parava o desabafo.
- Sei que estou sendo castigada e Arlete também. Este acidente não foi à toa. Pai Ernesto, esse é o nome dele, para afastar a amante de Bruno, fez com que a pobre moça sofresse uma queda e ficasse em estado de coma no CTI. Arlete está passando pelo mesmo que fez indiretamente a outra passar. Mais uma vez Arnaldo me deixou e vou continuar solitária. No fim, tudo deu errado e posso sofrer ainda mais. Não sei o que essas forças do além vão fazer para cobrar de mim esse erro — começou a chorar baixinho.
Mal sabia Lucrécia que, no Rio de Janeiro, naquele exato momento, Diva despertava do coma sem nenhuma sequela.
Eduardo, no íntimo, já sabia tudo o que estava acontecendo, mas não julgava que a mãe fosse capaz de tal ato. Arnaldo fez menção de discutir com ela, mas, a um sinal do filho, parou e voltou a se sentar. Eduardo foi ter com a mãe e a abraçou.
Percebeu que Lucrécia estava apavorada e até tremia. Quando ela se acalmou, ele tentou ajudar.
- A senhora e Arlete erraram muito. Todas as pessoas que encomendam trabalhos de magia ficam comprometidas com entidades do astral inferior, que certamente cobrarão pelo que fizeram. Se não for nesta vida, será em outras ou no plano espiritual. Arlete está tendo o retorno da ação que indiretamente praticou e a senhora, com o fim da relação com papai, também pagou o seu preço. Agora que melhorou mentalmente, reconheceu o erro e se arrependeu, tudo ficará mais fácil. É hora de a senhora mudar de vida, deixar a queixa de lado e procurar reconstruir-se, ser feliz. Lembra-se de que falei isso quando cheguei aqui?
- Lembro, sim. Mas é que não aguento a solidão. Mais dia, menos dia, você acabará se casando ou saindo de casa. Arlete, se ficar paralítica, vai se tornar cada vez mais amargurada e não me servirá de companhia. Mas, se conseguir se recuperar, também se casará novamente, pois é jovem, tem a vida pela frente para ser feliz. E eu? Continuarei nesta casa grande e solitária. Não tenho coragem nem sinto vontade de procurar outro marido.
Eduardo olhou sério para ela, enquanto dizia:
- A felicidade não está somente em um casamento ou em uma vivência a dois, e a solidão independe de a pessoa estar acompanhada ou não. Se não quer um companheiro, não é obrigada a tê-lo, mas é possível ser feliz de diversas maneiras. Acontece que durante esses anos a senhora sufocou sua naturalidade, sua espontaneidade em nome do casamento e dos papéis sociais. Perdeu a identidade, não sabe mais do que gosta nem o que a faz feliz. Acredita que só pendurada em um homem é que poderá estar completa. É preciso descobrir que a vida tem muito a oferecer e preencher os vazios com novas oportunidades de progresso ilimitadas a todo o instante. Temos de estar atentos aos sinais que ela nos manda para sermos felizes hoje, no momento presente. Papai vai seguir a vida dele e trate a senhora de seguir a sua. Procure fazer o que gosta, estar com quem deseja, fazer algo que deixou de lado quando se casou. Caso não faça isso, entrará em depressão e viverá dependente de remédios durante toda a vida. É isso o que quer?
Ela pareceu melhorar, enxugou as lágrimas e falou:
- Como sempre você está certo. Só agora posso entender por que seu pai é tão apaixonado por você. Mas o que vou fazer se Arlete ficar paralítica? Foi culpa minha, não devia tê-la feito entrar naquele carro para seguir Arnaldo.
- Não foi culpa de ninguém. Foi uma reação natural da vida para fazer Arlete despertar a consciência. Ninguém escapa da colheita de sua semeadura. O mal tem um preço alto e costuma voltar multiplicado para aquele que o pratica. Mesmo quando o fazemos indiretamente, estamos sujeitos à reparação que fatalmente chegará. O acidente ocorreria com ela mesmo se a senhora não tivesse feito nada. A lei divina nos alcança onde quer que estejamos, e ninguém pode fugir de suas consequências.
- Mesmo que a pessoa se modifique?
- Para que isso ocorra é preciso um trabalho interior incessante que ninguém quer fazer. Ao praticarmos uma ação, emitimos energias para o universo, que tem um ciclo próprio, onde, findo o tempo, voltará a quem a praticou. O efeito é assimilado pela conduta moral e mental que o indivíduo terá quando ocorrer o retorno. Infelizmente, entre o tempo de uma ação e sua reação correspondente a pessoa geralmente não se modifica, permanece a mesma ou cometendo atos piores, então sofrerá para que possa aprender a disciplinar a mente, acreditar no bem e trabalhar na própria redenção.
Lucrécia parecia haver entendido. Ficou calada meditando, pensando em como Deus agia. Arnaldo finalmente se pronunciou:
— Acredito que todos nós tivemos nossa parcela de responsabilidade. Fui alertado por Eduardo sobre o que estava acontecendo. Claro que ele não sabia sobre o feitiço, mas disse que meu problema era espiritual, que eu tinha sido atingido porque cultivava a culpa. Na época, apesar de encontrar lógica, não levei a sério. Quero que saiba que a perdoo pelo que fez, pois agora sei que, se tivesse agido com meu coração e me livrado da culpa, não teria rompido com a mulher que realmente amo e voltado para cá.
Lucrécia olhou para ele e abraçou-o, emocionada, perguntando:
— Amigos?
— Amigos.
Apesar do acidente e do clima ruim que envolvia a casa, naquele instante a força do perdão trouxe novas energias e todos se sentiram muito bem. Eduardo ficou um pouco triste, pois sabia que o pai procuraria Alice e ela certamente voltaria para ele. Contudo, resolveu se antecipar e se declarar para ela. Não custava tentar. Não sentia culpa por estar competindo com o pai, afinal o amor era livre e cada um tinha o direito de escolher. Sabia que, se Alice o aceitasse como namorado, seu pai sofreria muito e talvez não o perdoasse, mas seria o livre-arbítrio dela que iria ditar a escolha.
Quando Arnaldo se foi, Eduardo e a mãe se recolheram, não sem antes fazer uma prece a Deus e aos espíritos amigos pela saúde de Arlete.


23
A declaração de Eduardo
No outro dia pela manhã, antes mesmo de descer para o café e ir ao hospital ver Ariete, Eduardo ligou para Alice, deixando-a a par de tudo o que havia acontecido e convidando-a para sair com ele à tarde.
- Infelizmente, não posso. Só saio do trabalho às seis. Tem algo mais a me contar?
- Tenho, sim. Quero lhe dizer algo muito importante. Meu pai vai querer voltar para você e é provável que a procure ainda hoje. Mas, em nome de nossa amizade, peço que se negue a conversar com ele, pelo menos antes de nos encontrarmos.
Alice não estava entendendo nada.
- Por que isso? O que está acontecendo?
—Você saberá no momento certo. Dê-me o endereço de seu trabalho, passarei aí às seis para que possamos conversar.
- Tudo bem. Farei o que me pede.
Eduardo anotou o endereço e desceu para o café. Alice ficou pensativa e não conseguia imaginar o que o filho de Arnaldo iria lhe dizer de tão importante. Ela se esquecera completamente do que Magali havia dito sobre o rapaz e, por mais que pensasse, não conseguia imaginar o que ele queria com ela. Será que Arnaldo estava doente? A esse pensamento, sentiu o coração descompassar. Amava aquele homem com todas as forças de seu coração. Se ele fosse procurá-la, como Eduardo dissera, certamente retomaria o romance. Afinal, o trabalho de magia havia sido descoberto e desfeito, e Arnaldo merecia uma nova chance. Tentou se concentrar no trabalho, e só com muito esforço conseguiu.
No hospital, Lucrécia estava muito triste. Arlete continuava na mesma. Não acordava do coma e não havia possibilidade de saber, no momento, se ela voltaria a andar. Eduardo a consolou mais uma vez e depois de algum tempo voltaram para casa.
As horas passaram rápido, e às seis em ponto Eduardo, em seu carro, já esperava por Alice. Assim que ela entrou no veículo, percebeu que ele estava mais lindo do que de costume. Havia se arrumado com esmero e trazia nas mãos um buquê de rosas vermelhas. Quando o entregou a ela, Alice rememorou tudo o que Magali havia dito sobre o suposto interesse afetivo dele e começou a achar que a amiga tinha razão. Se fosse verdade, o que diria a Eduardo? Ele era o homem perfeito, aquele que toda mulher sonha encontrar, mas ela amava justamente o pai dele.
Fingindo achar normal receber um presente daqueles, ela simplesmente sorriu e logo depois rumaram para uma elegante confeitaria. Eduardo tentou ser natural o tempo inteiro, mas Alice percebia os olhares apaixonados, as frases ditas com segundas intenções, mas apenas sorria e respondia naturalmente.
Após algum tempo juntos, enquanto bebiam e conversavam amenidades, ela foi direto ao ponto, mesmo já sabendo o que ele iria dizer.
-Você me trouxe aqui para um assunto sério e até pediu para que não conversasse com seu pai antes, e foi o que fiz.
Pouco depois, Arnaldo também me ligou pedindo para conversar e marquei com ele às nove. Sinto muito, Eduardo, mas não posso demorar aqui. Além do mais, este lugar é elegante e não vim com roupa adequada. Você está parecendo um príncipe e eu, uma plebeia.
Ambos riram. Eduardo olhou-a profundamente, pegou suas mãos e Alice sentiu o coração descompassar. Por que sentira aquilo? Devia ser por estar com um homem bonito, envolvente e muito sensual à sua frente.
Ele começou a falar:
- Nunca fui bom em cantadas. Até perdi a chance de namorar muitas meninas interessantes na adolescência porque sempre fui muito direto. Com você não será diferente. Naquela noite, quando saímos, percebi que a amava.
Ela gelou e retirou delicadamente suas mãos das dele.
- Eu nunca amei ninguém de verdade. Talvez, por isso, sempre curti um bom namoro, mas, quando o relacionamento ia ficando sério, eu terminava. Talvez tenha frustrado muitas mulheres, mas sempre gostei de ser sincero. Nunca quis nada sério com ninguém... até aquela noite. Olhando em seus olhos, senti como se um véu me fosse arrancado e, de repente, estava diante da mulher que sempre amei, desde muito tempo, quem sabe de muitas vidas. Aceita namorar comigo? Eu a farei a mulher mais feliz do mundo.
Alice não conseguia acreditar no que ouvia. Mas era verdade, Eduardo a amava. Podia sentir em seus olhos francos e brilhantes de emoção. Como ele era lindo! Mas ela precisava ser forte. Tinha certeza de que amava Arnaldo, por isso olhou firme nos olhos dele e respondeu:
-Infelizmente, não posso aceitar. Sei que é uma pessoa especial. Talvez um desses iluminados de que a gente ouve falar no espiritismo, mas eu amo seu pai. Sei que ele deseja voltar para mim e é o que farei hoje. Sinto-me honrada em saber que um homem como você está entregando a mim o seu amor, mas preciso ser sincera com você e comigo. Espero que entenda e que possamos ser mais amigos do que nunca de agora em diante.
Eduardo sentiu um nó na garganta. Esperava aquela resposta, mas no íntimo ainda tinha alguma esperança. Quando ela terminou de falar, ele, dominado pela emoção, expressou-se:
— Seremos amigos, mas eu nunca vou te esquecer. O amor verdadeiro não se acaba, mas antes de tudo sabe respeitar a liberdade do ser amado. Serei feliz sabendo que você estará também feliz ao lado de meu pai. Quero que saiba que meu coração lhe pertence hoje e pertencerá para sempre.
Alice estava emocionada. Ficaram em silêncio. Os dois não conseguiam falar mais nada. Pediram a conta e, durante o trajeto de volta, ela não conteve a pergunta curiosa:
— Como você teve coragem de fazer essa proposta, mesmo sabendo que seu pai me ama e reataria a relação comigo? Não sente a consciência doer? E se eu aceitasse?
— Minha consciência está tranquila, não fiz nada de errado. No amor, todos são livres e ninguém tem posse sobre outra pessoa. Errado estaria se tivesse deixado de lutar por seu amor com medo das regras sociais e de relacionamentos que as pessoas criaram e que não são verdadeiros. Desde quando seguir o real desejo do coração é errado?
— Mas seu pai iria sofrer, e a culpa seria sua.
— Engano seu. Ninguém tem o poder de fazer os outros sofrer. As pessoas se magoam e se ferem com o que nós fazemos porque são vulneráveis.Tenho certeza de que chegará o dia em que as pessoas descobrirão que só elas têm o poder sobre suas vidas. Só então deixarão de culpar os outros por seus problemas.
Alice percebeu, mais uma vez, quanto Eduardo era evoluído e especial. Deu um beijo em seu rosto, agradeceu por tudo e entrou em casa. No carro parado, Eduardo pensava: "Meu amor, sei que um dia será minha, serei paciente. O tempo faz tudo na hora certa. Guardarei a lembrança deste beijo e serei feliz por esse momento".
Eduardo estava orgulhoso de si mesmo. Havia tido a coragem de expressar seus sentimentos. Quantas pessoas sofriam por ter medo de mostrar o que sentiam pelas outras? Muitas, certamente. Preferiam cultivar a infelicidade a ser leais a si mesmas e a suas almas. Ele preferia pagar o preço verdadeiro.
Horas mais tarde, Alice finalmente dizia um novo sim a Arnaldo e juntos se entregavam ao amor. Todavia, dentro do coração dela algo começou a mudar, e ela jamais seria a mesma.

24
A confissão de Ernesto

Felizmente, após um longo período hospitalizado, Anselmo recuperou a saúde, com o auxílio da esposa e de Ernesto, regressou ao lar. O incidente o deixou com pequenas sequelas, que com o tempo e alguns exercícios iriam desaparecer. Durante as quatro semanas em que permanecera em Guararema, Ernesto manteve contato com Ingrid por telefone, que o avisara já ter dito à mãe que havia se enamorado por um homem mais velho e que, em breve, seria apresentado à família. Dona Marisa,Vanessa e até mesmo Diego ficaram bastante curiosos para conhecer a pessoa que finalmente tocara de maneira profunda o coração de Ingrid. Todavia, ela não havia revelado sua identidade. Eles o conheceriam em um jantar especial que seria realizado assim que o pai de Ernesto melhorasse e ele pudesse regressar.
Estava compenetrado nesses pensamentos quando foi chamado à realidade por dona Lúcia: -Aceita um café? Acabei de passar.
— Aceito, sim. Está frio e uma bebida quente vem em boa hora. Após servir o filho, dona Lúcia perguntou:
- No que estava pensando agora há pouco? Achei seu semblante um tanto quanto preocupado.
Ele resolveu se abrir com a mãe.
- Pensava em qual será a reação da família de Ingrid quando souber quem sou. Vou conhecê-los amanhã à noite, temo ser mal recebido. Fiz fama como feiticeiro pai de santo que trabalhou para o mal. A mãe de Ingrid é esotérica, entende de magia, mas nunca aceitou a bruxaria, o lado negro desses processos, condena tenazmente quem trabalha com eles. Hoje estou distante de tudo isso, ganhei muito dinheiro, o suficiente para viver bem pelo resto da vida. Confesso que abandonei essas práticas somente por Ingrid e que, no fundo, não estou arrependido de nada do que fiz. Temo que a mãe dela perceba e dificulte as coisas.
Dona Lúcia olhou séria para o filho e disse:
- Fiquei muito preocupada com você desde o dia em que decidiu seguir este caminho. Sou de formação católica, mas não posso fechar os olhos à vida espiritual e aos fenômenos que acontecem com quase todas as pessoas, independentemente da religião que professem. Sempre soube que esse não era um bom caminho. Sentia uma sensação estranha toda vez que gastava o dinheiro que você nos mandava mensalmente, e ainda sinto. Rezei todos os dias a Maria pela sua mudança, mas vejo que saiu do caminho errado não por perceber que fazia o mal, mas por uma mulher. Temo que lhe possa acontecer algo ruim.
Ernesto meneou a cabeça negativamente.
- Não vai me acontecer nada. A princípio pensei que fosse até morrer, mas já se passaram meses e continuo ótimo, amando, sendo amado e feliz. Os espíritos disseram que algo terrível me estava reservado, mas não acredito mais nisso. Sabe, mãe, estudei com pai Wilton tudo sobre magia negra e sei o que poderia acontecer com uma pessoa que faz um pacto e o rompe, nenhuma fica viva para contar a história. Se nada me aconteceu até hoje, é porque eles desistiram de mim. Estou seguro quanto a isso.
— Sei não. Enquanto você falava, senti um arrepio e a impressão de ouvir gargalhadas. Meu filho, ouça sua velha mãe! Arrependa-se enquanto é tempo. Nunca é tarde para se voltar ao bem. Lembra-se da parábola do filho pródigo que Jesus nos contou?
Ele assentiu, lembrando que havia lido muito as parábolas de Jesus quando foi espírita. Ela continuou:
- Pois bem, nunca é tarde para voltarmos à casa do Pai, que nunca nos deixa de lado. Tenho certeza de que sua fortuna não é bem-vista por Ele. Entregue tudo a entidades beneficentes e volte a trabalhar com honestidade.Você é forte, jovem e pode viver com dignidade.
Ernesto sentia que sua mãe tinha razão, mas não conseguia se ver sem seu dinheiro, tendo de trabalhar duro para conseguir um salário mísero. Como iria dar o luxo que pretendia a Ingrid? É certo que ainda morava na mesma casa simples que vivera com Mariana, na qual havia feito apenas algumas reformas, mas pretendia comprar uma mansão ou um apartamento de luxo. Não! Não poderia ficar sem seu dinheiro. Resolveu encerrar a conversa, antes que sua mãe disparasse a falar tentando confundi-lo.
— Prometo pensar em suas palavras. Mas me diga, onde papai está agora?
- No quarto dormindo. Fiz com que tomasse um calmante, por isso adormeceu. Apesar de ter se recuperado do físico, a alma dele está doente. Não aceita que Bruno e Elza tenham morrido sem que tivessem feito as pazes. Vive lamentando o tempo que perdeu com o orgulho, sem querer procurar os filhos, fingindo que eles não existiam.
- Entendo. Eu não consigo sentir nada com a morte daqueles dois. Parece que são desconhecidos que morreram, como tantos morrem todos os dias.
—Você diz isso porque, depois que eles partiram, não tiveram mais contato, além disso, nunca teve afinidade com eles, mesmo na infância. Já eu, que sou mãe, sofri muito com o distanciamento e a morte, mas sei superar. Deus é o mesmo que dá, é o mesmo que tira e é o mesmo que consola.
Ernesto olhava cada vez mais admirado para a mãe, uma mulher sábia.
- E por que a senhora não os procurou?
- Não queria contendas com seu pai. Quando ele disse que Bruno e Elza não eram mais filhos dele, proibiu-me de procurar e manter qualquer contato. Confesso que fui fraca e submissa, mas não me culpo, fiz o que achei melhor no momento. Hoje rezo para que eles estejam bem onde estiverem.
Ernesto notou que a mãe chorava baixinho. Ele a abraçou e assim ficaram até o entardecer. Pela manhã, partiu para São Paulo. Seu Anselmo ficou muito feliz ao saber que o filho rumava para uma nova vida e uma nova relação afetiva.

O jantar simples, porém caprichado, estava pronto e à espera do convidado especial da noite.Vanessa e Diego contrataram uma babá para cuidar dos filhos, porque não queriam levar crianças para uma ocasião como aquela. Todos estavam muito contentes e Ingrid ainda mais, por observar que Diego já lhe havia perdoado a loucura, pois voltara a conversar com ela normalmente e parecia aliviado em vê-la amando outro homem de verdade.
Dona Marisa nem parecia a mesma senhora que vivia em meio aos tecidos e linhas da profissão de costureira. Trajava um costume verde-claro que havia feito há tempos para uma ocasião como aquela, e finalmente chegara o dia de usar. Quando a campainha soou e Ingrid foi atender, a ansiedade de todos havia aumentado, afinal, até a última hora ela havia feito segredo sobre a identidade do amado.
Ernesto entrou na sala muito bem vestido e com um buquê de flores nas mãos. Após cumprimentar todos com elegância e discrição, dirigiu-se a Ingrid para lhe entregar o presente, quando ouviu a voz alta de Marisa:
- Pare onde está. Dê meia-volta e saia de minha casa agora.
Tanto Diego quanto Vanessa nada entenderam daquela reação agressiva. Marisa continuava, enquanto Ernesto se mantinha parado.
- Não ouviu o que ordenei? Saia já daqui, o jantar está desfeito e você jamais voltará a ver minha filha. Saia!
- Calma, senhora! - disse Ernesto, já esperando aquela reação. - Precisamos conversar, preciso esclarecer coisas que talvez a senhora não saiba.
Ela parecia não ouvir e, aproximando-se de Ingrid com os olhos cheios de lágrimas, colocou:
- Então é com este homem que você tem saído? Responda--me. Onde está sua cabeça? Por acaso perdeu o juízo?
- Mamãe, tente entender, aconteceu. Estou gostando de Ernesto e é com ele que me casarei e terei meus filhos, quer a senhora aprove ou não.
Dona Marisa sentou-se na poltrona mais próxima e começou a chorar. O que fazer em uma situação como aquela? Jamais poderia entregar sua fdha nas mãos de um homem da espécie de Ernesto.
Vanessa percebeu que algo sério estava acontecendo e perguntou:
- O que há aqui? Por acaso Ernesto é casado? Para mim, esse é o único impedimento plausível para Ingrid ser proibida de continuar essa relação. Conte, mamãe, já estou ficando aflita.
- Este homem não é simplesmente Ernesto. E pai Ernesto, um feiticeiro perigoso que já fez muito mal para as pessoas. Por certo enfeitiçou minha filha. Ela é jovem, sonhadora, tencionava estudar e prestar vestibular. Agora vem com essa de casar e logo com um homem desse tipo. Com certeza está enfeitiçada. Amanhã mesmo a levarei a uma amiga, ela desfará esse trabalho e você verá que não sente nada por esse sujeito.
Ernesto jamais pensou que a magia um dia poderia influir negativamente em sua vida. Pensou em se defender, mas Vanessa começou a crivá-lo de perguntas.
- Isso é verdade? Vamos, diga! O que pretende com minha irmã?
- E verdade. Pretendo ser honesto com todos vocês. Posso me sentar para tentar explicar? Afinal, tenho esse direito.
Vanessa aquiesceu.
- Sim. Quero saber tudo o que aconteceu entre você e minha irmã. Pelo que sei de magia, ela pode muito bem estar enfeitiçada. Se você fez algo do tipo, fale agora. Nós lhe daremos esta chance de se pronunciar, mas depois quero que se retire daqui. Eu mesma cuidarei para que minha irmã o esqueça.
Marisa gritou entre dentes:
-Vocês ainda conversam com um homem desses? Ele é perigoso, com um olhar pode amaldiçoar esta casa e qualquer um de nós. Mande-o embora, Diego, você que é o único homem representante da família. Faça alguma coisa!
Diego, que até então estava calado só observando, pronunciou-se:
- Dona Marisa, a senhora está sendo muito radical. Vamos ouvir primeiro o que ele tem a dizer. Depois, sua filha já é maior de idade e pode fazer o que quiser da vida dela. Se quiser partir com um feiticeiro, não será a senhora quem irá impedir.
O silêncio se fez. Vendo que era sua vez de falar, Ernesto começou.
- Dona Marisa está certa. Ela entende muito do assunto, sabe que a magia é uma espécie de ciência antiga, surgida em civilizações extintas como a Atlântida, mas perpetuada por todas as outras ao longo do tempo. Ocorre que algumas pessoas passaram a usar essa força da natureza para o mal, e aí surgiram os feiticeiros, os magos negros, as bruxas... Eu era espírita fazia muitos anos, acreditava em tudo o que aquela filosofia dizia, fazia palestras e, desde que me descobri com faculdades mediúnicas, comecei a participar de sessões de desobsessão. Eu era muito feliz, tinha uma esposa que amava e duas filhas que eram tudo para mim. No entanto, um dia um acidente tirou minha paz e felicidade, minha mulher e minhas filhas morreram e eu fui atirado à solidão. Acho que ninguém pode avaliar a dor que senti naquele momento. Ninguém aqui presente pode me julgar porque não passou por uma dor desse tipo.
Ninguém ousava interromper, mesmo dona Marisa, que já conhecia aquela parte da história. Ele continuou:
- Abandonei o espiritismo e fui morar com meus pais no interior. Uma noite, em estado de sonambulismo, entrei em contato com uma entidade que disse ter poderes de me tirar da depressão se eu aceitasse assinar um contrato e trabalhar para ela como pai de santo. Disse-me que eu lhe devia algo e era a hora de pagar. Durante a noite mesmo, assinei o contrato e logo depois comecei a aprender a arte de enfeitiçar. Com o tempo, abri um terreiro e passei a fazer toda espécie de trabalho. Dona Marisa tem razão, sempre trabalhei para o mal, mas também nunca fui feliz, sentia uma angústia, um vazio que nada preenchia. Até o dia em que conheci, casualmente, Ingrid.
- Como conheceu minha irmã? O que ela estaria fazendo com um tipo como você?
Ernesto não poderia revelar que Ingrid havia ido procurá-lo para fazer um feitiço que iria destruir o lar da irmã. O jeito era apelar para a mentira, que já estava articulada em sua mente.
- Ingrid foi a meu consultório acompanhando uma colega de cursinho que desejava prender um rapaz. Coisas de adolescente. Na verdade, a sua irmã havia ido até lá na tentativa de fazer a amiga desistir do intento da magia. Durante a consulta, falou muito bem de dona Marisa e do que havia aprendido com ela. Tanto falou que a colega desistiu do trabalho e foi embora, não sem antes deixar o endereço do cursinho onde estudavam por força de meu pedido.
Com o endereço nas mãos e já completamente apaixonado por Ingrid, passei a esperar ela e sua colega todas as noites na saída das aulas, até que um dia as abordei e as convidei para me acompanhar a uma confeitaria próxima. Elas relutaram, mas eu insisti e acabaram cedendo. Durante esse encontro insisti com a colega para que ela fizesse o trabalho, mas aquela conversa era pretexto só para estar perto de Ingrid. Nunca, depois de minha esposa, eu havia sentido algo parecido por ninguém.
Olhou para Marisa e disse com voz emocionada:
- Conhecer sua filha foi a luz da minha vida. Depois daquele encontro, estreitou-se uma amizade entre nós e eu, muito feliz, percebi que Ingrid me correspondia. Quando me declarei, ela também se disse apaixonada, assim começamos um namoro. Depois de algum tempo, sua filha conversou sério comigo dizendo que se eu não deixasse a magia ela não continuaria o namoro. Com esse amor no coração, tive a coragem de arriscar minha vida e acabei com tudo. Não sou mais pai de santo, fechei meu terreiro e encerrei minhas consultas. A senhora sabe que quem rompe um pacto com as trevas está sujeito a tudo, mas, por amor, assim o fiz. Essa é a maior prova. Procure todos os meus clientes, vá até o local onde ficava meu terreiro, na Vila Maria, e a senhora poderá comprovar. Posso morrer hoje, mas morrerei feliz por um dia ter conhecido sua filha.
Todos estavam mudos com a narrativa de Ernesto. Dona Marisa sentia que ele estava sendo sincero, apesar de ter algumas coisas naquela história que certamente estavam mal contadas. Com os olhos rasos d'água, ela o abraçou dizendo:
- Desculpe-me por julgá-lo. Sei que está sendo sincero, sou intuitiva e posso detectar uma mentira, mas por ter rompido com as trevas, eu permito o namoro com minha Ingrid. Espero que a faça muito feliz. Nesta noite senti que o amor de vocês é verdadeiro e belo, vou orar para que nenhum mal lhe aconteça, afinal, se minha filha o ama, também passarei a amá-lo.
Todos concordaram com as palavras de dona Marisa, e assim passaram ao jantar. No final, Ernesto tirou do bolso do terno uma caixinha e pediu que Ingrid a abrisse. Assim que ela o fez, percebeu um lindo par de alianças. Ernesto explicou:
— O que seria um simples jantar, vai ser, a partir de agora, um noivado. Quero me casar com sua filha e fazê-la a mulher mais feliz do mundo - disse emocionado, olhando para Marisa e Ingrid.
O noivado foi realizado e Diego sugeriu que abrissem um vinho para comemorar. Dona Marisa foi à cozinha buscar a bebida e, quando estava lá, sozinha, sentiu uma lufada de vento frio e ouviu várias gargalhadas e estouros. Arrepiou-se por inteira e começou a orar. Como demorou muito tempo sem reaparecer na sala, ao abrir os olhos viu Vanessa à sua frente indagando:
— O que a senhora faz aí de olhos fechados? Todos querem o vinho.
— Estava orando pela paz do casal.
Foram para a sala e só depois da meia-noite é que foram dormir.
Os meses passaram depressa e o casamento aconteceu. Foi tudo muito simples, com uma cerimônia civil. Ernesto comprou uma mansão e levou a sogra para morar com ele. A princípio, dona Marisa o aconselhou a levar uma vida modesta e doar todo o dinheiro que angariou com os trabalhos de magia, mas ele argumentava que o dinheiro estava sendo bem usado, e que assim não haveria problemas. Marisa acabou se calando, mas no íntimo sentia a esperança de convencer Ernesto a devolver tudo e levar uma vida simples. Esse foi um dos motivos que a fizeram aceitar morar com a filha. Tentar trazer Ernesto cada vez mais para o bem e proteger aquela nova família das investidas das trevas. Tinha certeza de que conseguiria.
Uma noite, quatro meses após o casamento, Ernesto, ao dormir, sonhou que estava afundando numa areia movediça enquanto quatro homens sorriam e rodopiavam ao seu redor. Aquele que parecia ser o chefe disse:
-Tire-o daí e o recoloque no corpo. Para que fazer o coitado sofrer agora mais do que sofrerá no futuro? O outro retrucou:
- Germano, você está ficando muito bonzinho. Esta areia movediça deixa a pessoa com o sono agitado e impregna o espírito de miasmas negativos. No outro dia, a criatura acorda cansada, indisposta, irritada e com coceiras pelo corpo. Muitos são os que trazemos para essa areia durante a noite. Por que não fazer com ele, que é um traidor?
—Vocês mesmos sabem o que ele vai passar e nem será por interferência nossa, mas pelo acerto dele com o Cordeiro. Agora levem-no para o corpo. Coitado, não sabe o que o aguarda!
Ernesto ainda ouviu as últimas frases, quando acordou banhado de suor. Olhou para Ingrid que, ao seu lado, dormia tranquila. Ele havia escutado claramente que algo horrível iria lhe acontecer. Mas o que seria? Sentiu que se perdesse Ingrid, a única alternativa que lhe restava seria o suicídio. Ficou apavorado e sem conseguir conciliar o sono. Pensou em orar, mas para quem? Certamente, se Deus existisse, não estaria se importando com aquela situação. Naquela hora, Ernesto chorou muito e só adormeceu quando o dia começava a clarear. Nem viu que Mariana e suas duas filhas, Márcia e Lívia, estavam ao seu lado velando por ele.




25
A volta de Márcia e Lívia

A vida de Ernesto e Ingrid transcorreu sem problemas durante muito tempo. Ela, logo após o casamento, voltou a estudar, pois pretendia ter nível superior, trabalhar e ser independente, ao que Ernesto não se opôs. Dona Marisa ajudava a filha com os trabalhos da casa, mesmo a contragosto de Ernesto, que queria contratar ainda mais empregados para a mansão onde agora viviam. Ingrid possuía arrumadeiras, cozinheiras, copeiras, mas fazia questão de escolher pessoalmente os arranjos de sua casa e participar ativamente em tudo o que acontecia nela.
No entanto, Ernesto começou a sentir um vazio interior. Havia fechado o terreiro, acabado com o consultório, não tinha o que fazer. Possuía muito dinheiro e poderia viver muito bem com o que tinha, mas a falta de ocupação o deixava apático, sem vontade para levantar da cama. Foi daí que surgiu a ideia de ter uma empresa. Mas em que investir? Eleja possuía imóveis que eram alugados por uma boa quantia. Pensou bastante e resolveu montar uma imobiliária. Adquiriu mais terrenos, imóveis comerciais e montou seu negócio; então o vazio terminou.Transformar-se em empresário, ter com o que se ocupar durante o dia o deixou mais completo. Agora tudo ia muito bem em sua vida. Era um homem feliz, tinha a mulher que amava, um lar, pais que o veneravam, trabalho, tudo! Definitivamente, a magia só tinha trazido coisas boas para ele. Não acreditava mais que algo de ruim pudesse lhe acontecer.
Um ano depois do casamento, Ingrid começou a sentir tonturas, mal-estar, enjoo. Marisa ficou muito feliz, conhecia bem aqueles sintomas e sabia que a fdha estava grávida. Todos ficaram felizes com a suspeita, que logo após os exames médicos foi confirmada. Ernesto não cabia em si de tamanho contentamento. Mas a alegria estava só por começar. Logo descobriram, após o primeiro ultrassom, que se tratava de uma gravidez de gêmeos.
Começou, então, um tempo de cuidados redobrados com a gestante. Nove meses depois nasciam duas lindas meninas. Na verdade, eram Márcia e Lívia que retornavam à convivência com Ernesto. Na última curta existência que ambas tiveram, tudo foi programado para que a morte delas servisse de prova para ele. No entanto, agora elas regressavam para aprender coisas novas, disciplinar a mente, dar um passo a mais na senda da evolução. Sabiam que era arriscado ter um pai como Ernesto, mas ao mesmo tempo laços do passado os uniam. Foi a própria Mariana e outros espíritos amigos, com o aval do plano superior, que aprovaram e cuidaram da reencarnação.
Vanessa e Diego estavam sempre por perto, e Ingrid, sempre que os via, sentia um remorso grande. Como um dia tivera coragem de tentar separar um casal tão lindo como aquele? Ainda bem que Diego a perdoara e parecia nem se lembrar mais do ocorrido. Ele e Vanessa foram os padrinhos de uma das meninas.
Dois anos se passaram depressa e a família de Ernesto só fazia prosperar. Beatriz e Hanna, as gêmeas, estavam cada dia mais saudáveis, risonhas e levadas como todas as crianças naquela idade. Ingrid, finalmente, voltara a estudar e fora aprovada no vestibular para publicidade, mas resolveu não cursar no momento, pois deveria estar ao lado das filhas, que exigiam muito sua presença. Dona Marisa não concordava e dizia:
— Aqui tem muita gente, pode estudar tranquila, não tem com o que se preocupar.
Ao que ela dizia:
- Agora sou mãe. Nessa fase, as crianças ainda são muito dependentes da presença materna, desejo e quero apenas estar com elas nesse momento. O estudo pode esperar.
Dona Marisa sorria e pensava: "Essa nasceu com o dom de ser mãe mesmo".
Era uma tarde ensolarada e Ingrid resolveu passear com as filhas num jardim próximo. Fátima, a babá, as acompanhou. Ela adorava ter contato com a natureza e queria ensinar às filhas como isso era importante desde cedo. Após algum tempo, Fátima percebeu que alguém acenava para ela ao longe, pediu licença à patroa e foi ver quem era. Estava anoitecendo e o jardim ficou praticamente sem ninguém. Ingrid não gostava de ficar sozinha com as filhas, pois eram muito levadas, mas Fátima garantiu que não iria demorar. De repente, sentiu que alguém colocava um lenço embebido de clorofórmio em seu nariz e logo perdeu os sentidos. Foi tudo muito rápido e dois homens desconhecidos a levaram desacordada para um carro estacionado a poucos metros, sem que ninguém percebesse. Depois deram partida e sumiram numa esquina.
Quando Fátima voltou, encontrou as crianças chorando e chamando pela mãe. Ficou assustada, mas resolveu esperar, certamente a patroa deveria ter ido a algum lugar próximo. No entanto, as horas passavam e nada de Ingrid aparecer. Ela começou a se desesperar e, quando chegou em casa com as meninas, encontrou Ernesto, que já havia voltado da imobiliária louco de desejo de rever as fdhas e a esposa. Estranhou quando viu que Ingrid não viera com elas. Abraçou as fdhas e beijou o rosto de cada uma delas, que pararam de chorar imediatamente. Percebendo que algo estava errado e que Fátima estava branca feito cera, perguntou:
- Onde está minha mulher, Fátima? Silêncio.
- Fale, Fátima, onde está Ingrid?
Fátima, com a voz rouca de medo, respondeu:
- Não sei, senhor. Ela desapareceu no jardim.
- Como desapareceu? — era a voz de Marisa, que vinha descendo as escadas e acabou escutando.
- Não sei como foi - respondeu Fátima já chorando. - Um homem me chamou para pedir uma informação e fui ajudar. Pedi à dona Ingrid que ficasse sozinha um instante e, quando voltei, ela não estava mais lá. Esperei, procurei por todo o jardim e não a encontrei.
Um pavor muito grande tomou conta de Ernesto. O que teria acontecido? Ingrid era muito responsável e jamais iria sair e deixar as filhas sozinhas. Deixou-se cair no sofá e indagou:
- Quem era o homem que lhe chamou? O que ele queria?
- Não o conheço, senhor. Queria uma informação, saber onde era determinada rua. Tentei explicar, mas ele parecia não entender. Depois de muito tempo recebeu um telefonema, disse que estava satisfeito e saiu. Não consegui saber o que ele queria, na verdade.
Ernesto bradou:
- Foi um sequestro, com certeza! O que vai ser de Ingrid agora?
Marisa estava chocada.
- Meu Deus! Como isso pôde acontecer conosco? Eu sempre lhe avisei que as pessoas sabem que você tem muito dinheiro, sua fama foi grande, agora com essa imobiliária então...
Ernesto levantou e gritou:
- Suma daqui, Fátima, está despedida! Irresponsável!
- Não faça isso, meu genro. Ela não teve culpa e pode ser muito útil para chegarmos ao homem que a chamou, ele certamente faz parte do grupo que levou minha filha.
Ernesto estava descontrolado.
- Não sei o que fazer, o que pensar.
- Acalme-se
E, voltando-se para a babá, disse:
- Fátima, tire as crianças daqui. Vou ligar para a casa da Vanessa, quem sabe ela não está lá?
- Não, dona Marisa, Ingrid jamais sairia para qualquer lugar sem levar as crianças.
- E verdade, mas, de qualquer maneira, tenho de avisar o que está acontecendo.
Ela discou e esperou, logo a voz de Diego se fez ouvir:
- Diga, minha sogra querida.
Ela fez uma pausa. Como iria dar aquela notícia a Diego e Vanessa, que tanto gostavam de Ingrid?
- Diego, aconteceu uma desgraça aqui.
- O que houve? Algo com as crianças?
- Não. Hanna e Beatriz estão bem, felizmente. Foi com Ingrid. Ela foi sequestrada.
Diego assustou-se.
— Como isso foi acontecer?
— Peça a Vanessa que venha para cá agora. Ernesto está abalado. Precisamos da força de vocês.
Diego relutava em acreditar.
-Vocês podem estar enganados, quem iria sequestrar Ingrid? Tudo bem que Ernesto tem dinheiro, mas não é nenhum milionário.
— Engana-se. Ernesto tem fortuna considerável, o suficiente para atrair esse tipo de coisa.
-Já ligaram pedindo o resgate? Enquanto não ligarem, pode ser que não seja um sequestro.
— É muito recente. Certamente ligarão.
Diego percebeu que Vanessa entrava na sala com Marquinhos e Felipe, desligou o telefone e contou-lhe tudo. Apressados, colocaram os meninos no carro e partiram para a casa de Ernesto.
O clima estava tenso. Já passava da uma da manhã e nada de telefonema. O telefone chamou, mas era engano, o que aumentou a ansiedade de todos. Com o toque, acharam que era alguém tentando entrar em contato.
Por fim Diego sugeriu:
-Vamos a uma delegacia registrar a queixa.
— Não adianta.A polícia só começa a procurar um desaparecido após muitas horas, e não quero meter delegado nisso, pode complicar - falou Ernesto, muito nervoso e andando em círculos.
Diego insistiu:
— É muito mais arriscado, em um caso como esse, os familiares agirem sozinhos. É melhor que a polícia esteja a par.
- Vou esperar a ligação primeiro. Temos gravador e vamos registrar a conversa, depois procuraremos a polícia.
De repente, Ernesto sentiu o coração disparar e uma tontura muito forte o acometeu, sentiu tudo rodar, ouviu muitas gargalhas e desmaiou.
Acordou tempos depois perguntando o que estava acontecendo. Quando recobrou a memória, voltou a se desesperar. Seria isso que os espíritos diziam que ia acontecer? Não! Ele não podia perder mais uma vez a pessoa que amava. Se isso acontecesse, ele se mataria. Uma ideia lhe veio à mente e ele resolveu seguir:
- Tem uma pessoa que pode me ajudar e vou procurá-lo agora.
Vanessa interveio:
- E madrugada e você não tem condições de sair sozinho, se for dirigir será pior.
- Estou decidido, vou sair quer deixem ou não. Diego pegou em sua mão e o encorajou:
- Sei como deve estar sendo difícil para você. Amo minha esposa e nem sei o que faria se isto estivesse acontecendo comigo. Se quiser sair, conte com minha ajuda, posso dirigir para você. Se tiver alguém que pode ajudar, vamos procurá-lo.
Ernesto sentiu lágrimas nos olhos. A preocupação, o desvelo e o carinho daquelas pessoas para com ele o deixavam ainda mais fragilizado. Mesmo assim resolveu agir.
Diego ao volante ia conduzindo o veículo cada vez para mais longe.
- Estamos num lugar perigoso. Não é melhor voltarmos?
- Não. Já chegamos ao local. Aqui mora um pai de santo muito famoso chamado Wilton. Quer dizer, aqui não é sua casa de verdade, mas hoje é dia de trabalhos e ele fica aqui até altas horas acordado.
Diego surpreendeu-se:
- Você não devia se meter mais com isso. Não disse que havia parado?
- Eu parei, mas ele não. Essas pessoas têm o poder de vidência e podem saber o que aconteceu com Ingrid, inclusive dizer onde ela está.
- Não sei, mas se quer tentar...
Ambos desceram do carro e perceberam que o sobrado estava às escuras. Provavelmente os trabalhos já tinham acabado e pai Wilton deveria estar dormindo. Louco de desespero, Ernesto começou a gritar pelo amigo. Uma das janelas se abriu e a figura de Wilton apareceu.
- Ernesto? E você mesmo? O que quer aqui a essa hora?
- Só você pode me ajudar.
Wilton desceu, abriu a porta e eles entraram. Ernesto explicou tudo, pediu que o amigo se concentrasse e tentasse ver algo ou até mesmo evocar alguma entidade.
Wilton ponderou:
—Você sabe que sua ficha ficou suja do lado de lá, não sei se eles vão querer atendê-lo.
- Mas como amigo, sei que vai tentar. Quero pelo menos saber se esse é o castigo que Belzebu preparou para mim.
-Vamos ver...
Todos foram para a sala de consultas e pai Wilton concentrou-se. Demorou quase vinte minutos, em que parecia estar em transe. Depois, abriu os olhos e disse:
- Fique calmo. Ingrid está bem. Não é esse o famoso "castigo" que você vai ter, será algo muito pior.
Ernesto não prestou muita atenção à última frase, apenas perguntou:
- Dá para ver quem a sequestrou? Quando manterá contato? Onde ela está?
- Calma. Cada pergunta de uma vez. Como lhe falei, sua ficha está suja e você é visto pela Legião das Sombras como um traidor, mesmo assim consegui ver algumas coisas. Sua esposa está bem, mas vai sofrer no cativeiro. Este não foi um sequestro comum, nem espere que ninguém vá pedir resgate, o que está acontecendo é uma vingança.
Ernesto abriu os olhos assustado. -Vingança? De quem?
- Não consegui ver mais nada além disso, mas não é difícil deduzir.Você prejudicou muitas pessoas enquanto foi pai de santo. Provavelmente, uma dessas pessoas que se sentiu lesada está querendo se vingar. Por isso, em nosso trato com os espíritos prometemos não nos casar. Vejo que sua mulher vai sofrer muito nas mãos dessa pessoa. Não se sabe se a vão lhe devolver com vida.
Ernesto sentiu o sangue faltar em suas veias. Poderia haver um castigo pior?
Diego, vendo o sofrimento do amigo, colocou as mãos em seus ombros e disse:
-Vamos, Ernesto,Wilton não consegue ver mais nada e acho que já sabemos o suficiente para deixarmos este local.
Iam saindo, quando Wilton disse:
-Tenha esperança. Se este não é o "castigo", é bem provável que ela volte sã e salva para casa. Algo muito mais grave ainda o espera.
Ernesto sentiu-se mal ao ouvir aquilo. Além de passar por uma situação daquelas, ter a mulher na mão de malfeitores, ainda iria sofrer mais! Ele suportaria tudo, mas se tivesse Ingrid por perto. Ao chegar em casa, contou tudo o que aconteceu. Marisa não gostou do que o genro foi fazer, mas pelo menos sabia que sua filha estava bem. Iria orar a Deus para que ela não sofresse e fosse logo devolvida. Convidou todos para fazer uma prece, mas Ernesto se recusou a participar. Foi para o quarto e, com os olhos fixos no teto, começou a chorar.





26
A conscientização de Arlete

O espírito de Arlete acordou e percebeu que estava alguns centímetros acima do corpo físico. A princípio pensou estar sonhando, mas seu perispírito foi se levantando cada vez mais, até que tocou o teto do quarto onde ela se mantinha em estado de coma profundo. Ao se dar conta de sua real situação, começou a gritar desesperadamente. Como aquilo poderia estar acontecendo? Então tinha dois corpos? Um que estava em estado vegetativo e outro que pairava no ar? Que loucura era aquela! Por mais que gritasse, ninguém vinha em seu socorro. Passou assim vários dias e pôde perceber a movimentação dos médicos, das enfermeiras, das visitas de seus familiares, que aconteciam diariamente. Depois de muito tempo, sentiu que alguém a puxava fortemente, até que tombou no chão. Assustada, viu uma mulher com uma mortalha preta, cabelos desgrenhados, pés descalços e que sorria muito. Tentou correr, mas a outra a agarrou.
- Pensa que vai aonde, garota?
- Solte-me, por favor, sua louca! Quero sair daqui, certamente me levaram a um hospício e estou tendo alucinações. Socorro!
Quanto mais Arlete se desesperava, mais o espírito sorria macabramente.
- Desejo ser sua amiga e lhe revelar muitas coisas. Não quer saber por que está nessa situação?
Arlete tremia de medo, mas, ao ouvir aquelas palavras, interessou-se. Afinal, o que realmente estava ocorrendo com ela? Por que via dois corpos seus? Tentou vencer o medo e aproximou-se da mulher.
- Quero sim, afinal, estou prestes a ficar louca de verdade se não souber o que isso significa.
- Acalme-se. Primeiro vou me apresentar. Meu nome é Gorete e por enquanto sou sua guardiã.
- Guardiã? Como assim?
Gorete abriu sua bolsa e retirou duas fotos pequenas. Mostrou uma e perguntou:
- Reconhece?
- Claro que sim! É o Bruno, meu marido que morreu. Mas o que ele tem a ver com isso?
- Já vai descobrir. E esta outra foto aqui? Reconhece esta pessoa?
Arlete olhou demoradamente, mas não conseguiu saber de quem se tratava.
- Não sei. Essa eu não conheço.
- Pois devia conhecer. Ela é a causa de você estar aqui.
- Como assim? Se nem sei quem ela é, como pode ser a causa dessa situação louca por que passo?
- Eu não falei que é só ela a causa, seu marido também. Lembra daquele feitiço que você encomendou com pai Ernesto para afastar uma rival de seu caminho? Pois bem, o feitiço foi realizado e esta moça da foto, que se chama Diva, caiu de uma escada e ficou do mesmo jeito que você está agora, como um vegetal. É justo que você receba o mesmo que ela. Aquele acidente veio na hora certa. O Cordeiro a puniu porque você fez o mal a essa moça. Agora estou aqui com a função de não permitir que você volte ao corpo, o mesmo que fiz com ela. Arlete sentiu todo o corpo arrepiar. Seria verdade?
— Sinto que ainda duvida. Deixe-me colocar a mão em sua testa que você vai se lembrar de tudo.
Arlete permitiu e, assim que Gorete colocou a mão direita em sua fronte, várias imagens começaram a se formar. Ela reviu o dia em que foi ao consultório do pai de santo, quanto pagara pela consulta, o tombo que Diva havia tomado e seu estado na UTI, por fim, a cena do acidente e seu despertar fora do corpo. Percebeu que a vida continuava e que estava pagando pelo seu erro. Começou a chorar. Gorete, vendo seu estado, começou a rir. Riu tanto que Arlete se irritou e perguntou:
- Do que tanto ri? De minha desgraça? Se é minha guardiã, deveria me ajudar, não ficar zombando.
Gorete, de repente, ficou séria e fez ar de mistério.
— É que sempre fico feliz quando vejo a infelicidade dos outros. Na cidade onde moro procuramos induzir as pessoas a fazer toda sorte de maldades, para que, recebendo o troco, fiquem tão infelizes quanto nós. Não suportamos saber que tem alguém feliz, enquanto estamos na tristeza, na culpa, no remorso. Queremos todos iguais. Se é para um, é para todos. Foi por isso que a induzimos a procurar um pai de santo e fazer uma bruxaria.
- Se o que diz é verdade, as pessoas já deveriam ter deixado de fazer magia. Aliás, quando vamos procurar um feiticeiro, ele nunca diz que vamos ter o troco, só nos promete o que queremos, pagamos e ficamos felizes quando as coisas acontecem.
— Como você é ingênua! É claro que os feiticeiros não vão dizer isso, a maioria deles nem sabe da lei do retorno. Na verdade, os feiticeiros estão, sem saber, sendo guiados pelos magos negros e cientistas das trevas para induzir as pessoas ao sofrimento. Eles também são enganados. Mas fique certa de que toda pessoa que faz uma magia visando ao mal de alguém estará comprometida com os espíritos do astral inferior e com a lei do retorno.Você mesma, dê-se por satisfeita por ainda estar viva, pois se seu cordão de prata tivesse se rompido e você houvesse desencarnado, estaria agora sendo escrava das legiões dos seres das sombras.
— E se você sabe que existe essa lei, por que também age no mal?
Gorete deu de ombros.
— Eu não tenho mais nada a perder. Desde que perdi tudo e fiquei pobre, entrei no vício do álcool e morri de cirrose. Como fiquei viciada, logo fui presa por outros espíritos que também tinham esse vício. Fui cobaia deles durante muito tempo, até que um dia um grupo de cientistas me resgatou do vale para trabalhar para eles. Hoje ajudo os feiticeiros e fico guardando o leito de algumas pessoas que estão em coma, como você. Quanto a essa lei, sei que existe, mas não faço o mal por mim mesma, apenas sou uma funcionária, devo ter alguma atenuante.
Neste momento, uma luz forte penetrou no recinto. Era o mentor de Arlete, que acabava de chegar. Tinha uma aura que ia do azul-celeste ao prata. Gorete percebeu que se tratava de um espírito de luz e encolheu-se a um canto, tremendo. O ser de luz olhou ternamente para sua protegida e disse:
— É chegada a hora de você voltar à vida. Deus lhe deu uma nova chance, tem de aproveitá-la.Vamos?
A luz era intensa e Arlete fechava um pouco os olhos incomodada, mas, à medida que fitava aquele bonito homem, a claridade parou de incomodar. Ele pegou em suas mãos e fez com que se levantasse.
- Como Deus pode ter me dado outra chance? Sou uma pessoa muito errada. A Gorete diz que Jesus está me castigando e que ficarei assim por muito tempo. Não mereço outra chance.
- Gorete, assim como muitas outras pessoas, está iludida a respeito das leis eternas e imutáveis que regem a vida. Para Deus não existe o certo ou errado, o bom ou ruim, o que conta mesmo são as intenções que movem as ações de cada um. É claro que existe a lei do retorno, mas nunca para punir ou castigar, apenas para disciplinar, alargar a consciência, despertar para os verdadeiros valores do espírito, sem os quais ninguém poderá ser feliz. Quando o sofrimento nos alcança pela colheita natural de nossa semeadura, é sempre para que possamos arrancar a raiz do mal que ainda há em nós, tanto que, se a pessoa se modificar antes que ele chegue, não precisará mais sofrer. Lembra-se de Paulo, o apóstolo? Ele é um exemplo vivo de como o amor cobre a multidão dos pecados. Não acredite em fatalidade, ela só ocorre quando a pessoa permanece com os mesmos pensamentos e a mesma conduta de antes.
Arlete chorava de emoção.
— Ouvi um dos médicos dizer que provavelmente não voltarei a andar. Sou tão ruim assim para merecer isso?
— A medicina se engana muito. Houve, sim, um pequeno problema em sua coluna, mas é simples e você voltará a andar em poucos dias assim que sair desse estado.
-Já que Deus me deu essa chance, vou aproveitar e ser uma pessoa melhor. Meu irmão vive falando que precisamos estar conectados ao bem se queremos a felicidade. Mas acho que não serei mais feliz. Pouco antes do acidente, iniciei um tratamento psiquiátrico para depressão, meu marido morreu e não sei viver sem ele.
- Primeiro precisa deixar de lado todo o pessimismo. O despertar do coma, saber que escapou da morte, mudará profundamente sua maneira de ver a vida. Deixará a depressão de lado e cuidará de fazer algo por si mesma. É isso o que todos têm de fazer para evitar um processo depressivo. Seu marido e a irmã dele são escravos no umbral e permanecerão assim por muito tempo, até que amadureçam para o bem. Procure, em suas preces diárias, orar por eles, mas cuide de sua vida, busque ser feliz. Esse é o estado natural do homem e foi pra isso que Deus nos criou, para a felicidade, o progresso, a prosperidade e a luz.
—Você diz coisas bonitas. Queria escutar isso todos os dias.
- Não falta quem lhe diga. Seu irmão mesmo é um dos que andam pregando essas verdades.
Arlete refletiu e percebeu como deixara de ouvir o que Eduardo falava. Como havia perdido tempo! Mas havia uma pergunta que a inquietava e, ganhando coragem, resolveu fazê-la ao seu mentor.
- Sofri o acidente e fiquei no mesmo estado em que Diva ficou. Você diz que não há punição. Então por que isso me ocorreu?
- Dizer que não há punição nem castigos divinos não quer dizer que não exista o retorno das nossas ações. Você precisava refletir sobre todo o mal que fez, agiu com irresponsabdidade e não se importou quando soube o que sua rival na Terra estava passando. Você não conhecia as leis da vida. O mal, mesmo quando o fazemos indiretamente, é uma semente que, se encontrar solo fértil, vai se desenvolver e acabará por nos sufocar. Por isso em toda ação que formos praticar, por menor que seja, devemos sempre perguntar se ela vai prejudicar alguém. Se for, não devemos fazê-la de forma alguma. Este é o preço da paz.
Arlete havia entendido. Seu mentor carinhosamente a fez adormecer e a reencaixou no corpo físico que, na Terra, acabava de despertar.

Foram dias de alegria para a família de Lucrécia. Arlete voltara do coma e, aos poucos, começou a se readaptar à vida. Felizmente, nada grave lhe ocorrera na coluna e ela pôde voltar a andar. Mesmo assim, atravessou semanas na cadeira de rodas e depois em um par de muletas. Uma mudança profunda ocorreu nas personalidades de mãe e filha. Fazer esforço para andar normalmente e ter escapado com vida e sem sequelas de um acidente daqueles deixou Arlete introspectiva e, como que por encanto, sua depressão foi embora. Numa bonita manhã de sábado, as duas estavam sentadas em um dos bancos do jardim e, enquanto conversavam, Arlete falou:
— Esses dias estive pensando em como as pessoas se deprimem à toa, talvez por não saberem que já têm tudo de que precisam para ser felizes.
Lucrécia também havia pensado no assunto, pois estava se sentindo triste, mesmo tendo os filhos por perto, dinheiro e casa boa. Nada lhe faltava.
— Como chegou a essa conclusão? Acho que as pessoas sempre tem um motivo para estar deprimidas. Ninguém fica triste à toa.
— Mamãe, não sei explicar, mas algo em mim despertou. De repente, passei a ver a vida de outra maneira, a enxergar coisas que antes não via. Desde que saí do coma, comecei a questionar o porquê da vida, dos acontecimentos, e parecia que uma voz me respondia ao ouvido tudo o que eu perguntava. Eduardo disse que era meu mentor. Não sei se acredito muito nisso, mas o certo é que as respostas começaram a surgir dentro de num e eu fui refletindo... Curei-me da depressão. Sabe o que descobri? Lucrécia meneou a cabeça, e ela continuou:
— Descobri que as pessoas criam falsas necessidades, desejos grandiosos, fantasias, ambições desmedidas e acreditam que só serão felizes com isso. Por causa disso, entram em um círculo vicioso, andam sonhadoras e se esquecem de viver o momento presente, com tudo de bom que ele tem a oferecer. Por essa razão, entram na esperança, na ansiedade, que fatalmente levam à depressão. Eu mesma não soube aproveitar o lar que Deus me deu. Com o ciúme, o desejo de posse, por não aceitar meu marido como ele era, deixei de viver a felicidade que a vida me reservara, enveredei pelos caminhos do mal e, quando o perdi, fiquei depressiva justamente por descobrir que havia perdido a mim mesma. Coloquei minha felicidade nas mãos de um homem e esqueci de ser eu mesma. Isso nunca dá certo. Foi preciso um acidente, ficar entre a vida e a morte, com a possibilidade de me tornar paralítica, para aprender que podemos ser felizes agora, no presente e que não devemos ficar adiando este instante. Temos tudo para alcançar a paz, só que não valorizamos, por isso atraímos tantos sofrimentos.
Lucrécia estava emudecida. A filha tinha mudado, parecia até Eduardo falando.
— Sinto que tem razão. Confesso que preciso também deixar as ilusões de lado.Tenho sentido vontade de conhecer o espiritismo. É uma filosofia que fez muito bem ao Eduardo. Percebe como ele está sempre alegre e feliz?
— Eu também quero conhecer. Arrependo-me muito por ter me envolvido com a magia. Hoje é dia de palestras no centro que ele frequenta.Vamos falar para ele que iremos hoje.
As duas continuaram conversando sobre a vida, quando, minutos depois, viram Eduardo aparecer e se dirigir à garagem. Tentaram chamá-lo, mas ele não escutou. Tirou o carro e saiu com rapidez.
— Percebeu como estava o rosto dele?
— Sim, mamãe, nunca vi o Eduardo com essa cara. O que terá acontecido?
— Só pode ser algo grave. Nunca o vi triste.
— Nem eu. De qualquer forma, seu irmão é auto-suficiente. Seja qual for o problema, ele saberá resolver.
Não deram mais importância ao assunto e logo estavam falando sobre outras coisas.

Eduardo dirigia com pressa. Não gostava de ultrapassar a velocidade permitida, mas não estava conseguindo se conter. Durante a noite tivera sonhos confusos, imagens que não conseguira identificar. Quando acordou, sentiu uma grande tristeza, vontade de chorar, inquietação. Ele não era médium e tinha certeza de que não estava com nenhum espírito obsessor por perto. Orou bastante, sentiu-se aliviado, mas mesmo assim a sensação desagradável continuou. De repente, o rosto do pai veio-lhe forte à mente. Eles eram muito ligados, e logo Eduardo pensou que algo desagradável pudesse estar acontecendo com Arnaldo. Desde que Alice voltara para ele, notara que o pai havia recuperado a alegria e que ela também estava muito feliz.Viam-se regularmente. O que poderia estar acontecendo?
Tentou esquecer aqueles pensamentos desagradáveis, porém, quanto mais lutava, mais o rosto de Arnaldo surgia em sua mente. Não aguentando a pressão, pegou o carro e foi ao Morumbi. Lá chegando, entrou no apartamento e encontrou o pai e Alice ainda fazendo o desjejum. Tudo estava absolutamente em paz. Abraçou o pai com força, perguntou como tudo estava e, ao se certificar de que nada ocorrera ali de ruim, voltou para casa.
Ao chegar, Lucrécia o abordou dizendo que naquela noite ela e Arlete desejavam ir ao centro com ele. Eduardo ficou muito feliz e foi com prazer que entraram em um ambiente simples, porém confortável, onde ouviram uma belíssima palestra sobre o poder da prece. Quando terminou, foram à livraria e adquiriram os livros de Allan Kardec, a série André Luiz, alguns romances ditados pelo espírito Emmanuel, bem como uma trilogia psicografada pela médium Yvonne Pereira.
Contudo, mesmo após o passe Eduardo não se sentiu bem. Ao retornar ao lar foi logo se recolher. Lucrécia e Arlete, empolgadas com os livros que compraram, não deram importância. Afinal, Eduardo adorava ficar sozinho no quarto à noite, onde lia, assistia a filmes e ouvia música.
Estavam comentando o prefácio do livro Nosso Lar quando o telefone tocou e Lucrécia foi atender.
-Alô?
A voz do outro lado estava nervosa e rouca.
- Aqui é Alice. Desculpe ligar para sua casa, dona Lucrécia, mas tentei o celular de Eduardo, que está dando caixa postal. Estou aflita e nem sei como falar.
Lucrécia sentiu que alguma coisa grave havia ocorrido. Alice começou a chorar desesperada e ela passou a se sentir nervosa.
- O que foi, menina? Diga logo.
- O Arnaldo...
- O que tem ele? Vamos, fale!
- Sofreu um infarto fulminante.
Alice não conseguia mais falar. Lucrécia insistiu com o fone no ouvido até que outra voz feminina se fez ouvir:
- Dona Alice está muito nervosa e foi sedada agora. Com quem estou falando?
- Aqui é Lucrécia, ex-mulher de Arnaldo. O que houve?
- Infelizmente, ele faleceu poucos instantes antes de dar entrada aqui. O infarto foi fulminante. Sinto muito, senhora.
Lucrécia sentiu o chão faltar sob seus pés, mesmo assim gravou o nome do hospital onde o ex-marido estava. Era um hospital muito bem-conceituado em São Paulo e não foi preciso anotar.
Arlete não precisou perguntar nada à mãe, pois Lucrécia disparou a falar e a chorar.
- Precisamos ter calma. Se ficarmos assim, como vamos falar ao Edu?
- E isso o que mais temo, avisá-lo que o pai morreu. Mesmo com tanta espiritualidade, não sei como Eduardo vai reagir. Arnaldo era a pessoa que ele mais amava no mundo.
- Temos de estudar uma forma de subir e contar. -Vá você, Arlete. Eu não tenho nenhuma condição.
Elas largaram os livros e tentaram fazer uma prece, como ouviram na palestra, até se sentirem mais calmas.

Enquanto isso, Eduardo, que ao chegar ao quarto deitou-se e entrou em sono profundo, logo começou a sonhar. Viu uma enfermeira entrar segurando Arnaldo pelo braço e ele o olhava com muito amor dizendo:
— Filho, vou fazer a grande viagem. Você foi a coisa mais preciosa que a vida me deu. Nunca vou esquecer que um dia tive o privilégio de te amar e ser seu pai. Adeus.
Eduardo ficou nervoso, mas havia entendido.
— Eu sabia que ia chegar este momento. Não fiquei bem o dia inteiro.
A enfermeira olhou carinhosamente para ele e falou:
— Deus sabe fazer sempre o melhor. Chegou a hora dele. Num esforço muito grande, conseguimos que, depois do infarto, ele ficasse lúcido para se despedir. Quando sentiu a dor, este foi o único pedido: despedir-se de você. Agradeça por essa bênção. Agora ele ficará adormecido e só acordará algum tempo depois.
-Adeus, pai!
Arnaldo deixava as lágrimas escorrer.
— Não diga adeus a seu pai — tornou mais uma vez a enfermeira. — Você sabe que a vida continua e que a morte é uma ilusão. Diga um até breve.
Pai e filho se abraçaram.
Pouco depois, eles foram desaparecendo. Quando Eduardo acordou, lembrou-se claramente da vivência espiritual e sabia que o pai havia desencarnado. Quando Arlete entrou no quarto, ele apenas disse:
— Diga-me em que hospital está o meu pai. Quero vê-lo agora.



27
A provação de Ingrid
Depois de muito tempo desacordada pelo efeito do clorofórmio, Ingrid despertou. Percebeu que estava em um pequeno quarto sem dominação, deitada sob um fino colchão. A porta do ambiente era de um cedro bem trabalhado, o que a levou a pensar que estava em uma casa antiga. Afinal, o que havia de fato acontecido com ela?
Começou a rememorar e concluiu, desesperada, que havia sido sequestrada. Logo outras perguntas começaram a passar por sua cabeça. Quem tinha feito isso? Com qual intenção? Como Ernesto e suas filhas estavam naquele momento? Começou a chorar.
Quando se acalmou, passou a observar melhor o local em que estava. Uma luz bruxuleante fez com que percebesse que havia ali um toucador antigo, cheio de gavetas, uma estante com livros, tudo muito empoeirado. Aterrorizada, notou que alguns ratos, baratas e tarântulas grandes caminhavam no local. Ficou quieta e começou a rezar.
Algumas horas depois, a porta se abriu com estrondo e dois homens encapuzados entraram. Ofereceram a ela um prato de comida e uma maçã de sobremesa. Ingrid pensou em empurrar tudo aquilo com raiva, mas sentiu o estômago doer de fome e resolveu comer. Os homens que entraram e se mantinham em silêncio ficaram observando todos os movimentos dela. De repente, um disse para o outro:
- É assim mesmo que o patrão quer. Ela tem de estar bem cheia de carne para agradar-lhe ao máximo. De que adiantaria para ele uma mulher que ficasse só pele e osso? Ainda bem que é boazinha e resolveu comer.
Ingrid começou a ficar nervosa. O que aquelas pessoas queriam com ela? Começou, então, um diálogo:
- Quem são vocês e por que me sequestraram?
- Isso não podemos dizer, mas no final você vai gostar do que acontecerá aqui.
- Como vou gostar se estou presa, sem ver minha família e minhas filhas? Já pediram o resgate?
O homem deu uma gargalhada maliciosa.
- O patrão não quer dinheiro. Ele quer outra coisa tão gostosa quanto dinheiro. Depois que conseguir tudo o que deseja e se saciar, vai libertar você. Fique despreocupada.
Ingrid percebeu que eles não iriam falar mais nada, mas foi o suficiente para entender que o mandante do sequestro a queria sexualmente.
Os dois homens saíram e ela ficou só. Naquele momento, compreendeu que a vida estava trazendo um sofrimento grande para sua família e, principalmente, para Ernesto. Provavelmente por ele ter se envolvido com a feitiçaria. Mas ela sabia que Deus era bom e não desamparava ninguém e continuou a orar e esperar para ver o que iria acontecer.
Horas mais tarde, a porta se abriu e os dois homens entraram.
- Chegou a melhor hora, garota. Fique quietinha que vamos amarrá-la.
Ingrid tentou correr, mas os homens logo a imobilizaram. Desesperada e com o coração descompassado, ela viu que eles colocaram um capuz em seu rosto, impedindo-a de ver o que quer que fosse. O silêncio se fez e ela percebeu que os homens haviam saído. Notou outra pessoa se aproximar e logo entendeu que era o "patrão". O que seria dela naquele instante? Amarrada, sem forças, nada poderia fazer.
O homem chegou mais perto e tocou seu braço. Ingrid percebeu quais eram as intenções dele. Começou a se debater, tentando dar chutes e mover as mãos, mas viu que era em vão. Ela chorava humilhada pela situação. Quando tudo terminou, ele se foi. Os outros homens voltaram, desamarraram-na e a jogaram no chão.
Nunca, em toda sua vida, ela pensou que isso fosse acontecer. Era a humilhação máxima para uma mulher. O que seria dela dali em diante? Certamente estava nas mãos de um psicopata que terminaria por matá-la. Não acreditava que um dia ele fosse se saciar e a libertar. Pela sua fúria, percebeu ser uma pessoa violenta e perversa. Ingrid chorou muito. De repente, enxugou as lágrimas e um pensamento pior lhe veio à mente. E se ela engravidasse?
Sentindo aumentar o desespero, ela voltou a chorar.



28
A aflição de Ernesto
Ernesto e a família de Ingrid continuavam desesperados. Os dias se sucediam e ninguém ligava para pedir o resgate. A polícia havia iniciado as buscas, mas nem um rastro, nenhuma pista, nenhuma testemunha. Parecia que o chão havia tragado sua esposa. O fato de não pedirem o resgate confirmava o que pai Wilton havia lhe dito, mas também se lembrava que ele dissera que Ingrid sofreria muito no cativeiro. O que estaria acontecendo com ela?
Naquele momento, Ernesto só não fez uma bobagem porque contava com o apoio de Marisa,Vanessa, Diego e seus pais, que vieram do interior para lhe dar forças. Numa tarde, avisaram a Ernesto que ele tinha visita. Foi com alegria que ele recebeu mãe Márgara. Após conduzi-la à sala, os dois, a sós, começaram a conversar.
- Espero que não tenha vindo aqui me dar lições de moral e dizer que estou sendo castigado por ter lidado com magia negra.
Sorrindo com delicadeza, a simpática negra respondeu:
— Não somos ninguém para julgar e nem acredito que você esteja sendo castigado.Vim para lhe dar forças e para dizer que tenho orado bastante por todos vocês desde que soube do que aconteceu pelos jornais.Também tenho uma mensagem do plano astral para lhe fornecer.
Os olhos de Ernesto brilharam. Sempre confiara muito em mãe Márgara, era uma mulher digna que trabalhava para o bem. Haviam feito trabalhos de desmanche juntos e percebeu que ela tinha muita força e poder sobre os espíritos inferiores. Se havia alguma mensagem para ele, certamente seria positiva.
— Uma amiga sua do outro plano manda lhe dizer que não se desespere, que sua esposa está passando por algo que ela mesma atraiu, e que você também precisava dessa dura lição para que pudesse voltar à espiritualidade. Ela vai retornar para o lar sem nenhum problema. Diz que está programado um sofrimento muito grande para você, mas que pode ser evitado caso se disponha a reparar pela inteligência e pelo amor. Pede que doe tudo o que conseguiu com a magia a entidades filantrópicas e pessoas carentes.
Ernesto ficou intrigado. Todos o aconselhavam a fazer a mesma coisa, mas ele não estava disposto a ficar sem sua fortuna por nada no mundo. Se Ingrid ia voltar para casa, ele não precisava fazer nada daquilo.
— Tudo bem, todos acham linda a pobreza e dizem que devo doar meus bens, mas isso não farei. O que importa é que minha esposa voltará para mim. Tudo o que ganhei foi com muito esforço, dei energias minhas, comprometi minha alma, é justo que fique com o dinheiro. Os umbandistas e os espíritas têm essa mania de fazer tudo de graça, mas sei que muitos médiuns espíritas estão vivendo do dinheiro de livros psicografados, então, como podem me mandar fazer o que eles mesmos não fazem?
Mãe Márgara ficou calada por alguns instantes, meditando, e depois respondeu:
—Você sabe que sou umbandista, mas conheço bem o espiritismo kardecista. Nós fazemos tudo de graça, sim. Nos terreiros de umbanda nada é cobrado, como também nada é cobrado em um centro espírita. Os voluntários estão lá para servir por amor, sem interesse. Em relação aos livros, cada um tem sua consciência e age como acha certo, não posso julgar.
- De qualquer forma, não me desfarei do que tenho.
—Você tem o livre-arbítrio, mas o que o fez ganhar dinheiro foi o trabalho para as trevas. Você interferiu na vida das pessoas, matou, roubou, feriu, separou. Eu quero o seu bem, por isso o aconselho pela última vez: esse dinheiro não serve, devolva à vida.
Ernesto pensou por alguns instantes e, para fugir à conversa, fingiu interessar-se pelo que ela disse antes.
-Você me disse que eu deveria voltar à espiritualidade. Quer dizer que devo ser espírita novamente ou umbandista?
- Ninguém precisa ser nada se não quiser. Voltar-se para a espiritualidade é viver no bem maior, acreditando na força da bondade, no otimismo, estar em contato com as forças da natureza e, principalmente, ser ético em tudo o que fizer. A propósito, o centro espírita que você frequentava passou por várias reformulações. Lá eles estão tentando ser espiritualistas independentes, com outras formas de conhecer a verdade. O Sérvulo aderiu aos novos conceitos da metafísica e tudo melhorou, tanto que o número de frequentadores aumentou, como também aumentou o número de pessoas que mudaram sua vida para melhor. Eles já não acreditam mais em carma, dívidas passadas, almas credoras etc... Seria muito bom você voltar.
- Prometo pensar. Mas sua visita hoje me fez muito bem, estou me sentindo sereno, em paz.
A conversa foi interrompida por Marisa, que entrou na sala com uma bandeja de biscoitos e chá.Todos começaram a conversar com mãe Márgara e, por alguns instantes, esqueceram-se do sequestro. Logo o telefone tocou e Diego foi atender. Todos perceberam que ele ficou com o rosto vermelho e suspeitaram ser algo sobre Ingrid. Diego passou o telefone a Ernesto, que atendeu:
-Vamos, digam, o que fizeram com minha mulher?
A grossa voz do outro lado da linha respondeu:
- O patrão manda lhe dizer que sua mulher é muito boa de cama e que está dando um bom trato nela — após gargalhar, o homem encerrou a ligação.
Ernesto caiu no sofá desalentado. Depois de contar tudo o que ouviu, começou a soluçar. Diego o abraçou e lembrou:
- O telefone está grampeado pela polícia. Logo vão saber de onde vem a ligação.
Vanessa também abraçou o cunhado e disse:
- Fique calmo, tudo vai passar. Com o número do telefone, certamente chegaremos mais próximos do sequestrador.
- Enquanto isso, minha mulher está lá sendo estuprada por esse miserável. Se eu pudesse, o mataria com requintes de crueldade.
Mãe Márgara interferiu:
- E bom conter esses impulsos violentos. Quem sabe você nao atraiu isso justamente para trabalhar esse seu lado?
- Mãe Márgara - dizia Ernesto ajoelhado e chorando -, eu não era assim, era uma pessoa boa, honesta, vivia para minha religião, minha família, meu trabalho. Mas a vida me tirou tudo e me transformei neste monstro.
- Não tente se iludir. Ninguém que é verdadeiramente bom fica ruim de uma hora para outra ou por qualquer fato que seja. É muito fácil ser bom quando nada nos atinge. Por isso a vida manda desafios, para que possamos nos testar em nossa bondade, em nosso amor ao próximo e por nós mesmos. Quem cai e pende para o lado do mal é porque nunca foi bom de verdade, mas só aparentemente. E preciso cuidado ao declarar que somos missionários, que temos virtudes, que somos os eleitos e enviados. Todos somos, sim, espíritos cheios de pontos fracos que a vida vai trabalhar para fortalecer, é para isso que surgem os problemas em nossa vida. Quando um ponto fraco nosso fica evidente, a vida manda um desafio para que possamos vencê-lo e evoluir. Procure aprender com essa situação que ninguém neste mundo é completamente bom ou mal. Quase todos nós ainda estamos trafegando entre essas duas polaridades, que na verdade são faces de uma mesma moeda: o bem maior.
Todos se admiraram com a sabedoria daquela mulher. Ernesto levantou-se e sentiu-se com novo ânimo. Mãe Márgara tinha razão, ele se iludira quanto a si próprio. Mas sempre havia a hora de mudar e ele prometeu, naquele instante, que iria tentar.



29
A gravidez
Os dias se passaram e tudo o que a polícia conseguiu descobrir foi que a ligação havia sido feita de um orelhão no bairro da Penha. Fizeram uma investigação no local, mas constataram que nada achariam ali. De qualquer forma, as investigações continuariam.
Com o tempo, Diego eVanessa, que passaram a praticamente morar na mansão de Ernesto, voltaram para casa. Já não havia tanta necessidade de estarem ali. Dona Marisa e dona Lúcia se ajudavam mutuamente e consolavam Ernesto. Havia também seu Anselmo, que cada vez mais se penalizava com a situação do filho e, sem saber como ajudar, ficava quieto em um canto orando. As crianças choravam muito pedindo a mãe, mas, com os cuidados das avós, acabaram por se acostumar. E assim o tempo foi passando...

O "patrão", como era chamado pelos homens que vigiavam Ingrid, todos os dias, no mesmo horário, vinha visitá-la e a estuprava. Depois deixava um balde com água, bacia, sabonete e toalha para que ela tomasse banho. Os dias passavam e ela não aguentava mais a situação. Não dormia direito pensando nas filhas, no marido que tanto amava, na mãe, na irmã e até mesmo em Diego. Como era feliz! Por que a vida estava fazendo isso com ela?
Logo começou a se encher de olheiras e uma palidez grande cobriu todo o seu rosto. Começou a ficar enjoada e não conseguia comer direito. Desesperada e quase sem razão, descobriu que estava grávida de seu algoz. Ela conhecia os sintomas e sabia que estava esperando uma criança. Chorou muito. Depois de muito pensar, tomou uma decisão que talvez viesse a tirá-la dali.
Quando o homem entrou e começou a tirar sua roupa. Ela gritou:
- Não pode mais fazer isso, estou grávida!
O homem parou, vestiu a roupa e saiu. Logo depois, os outros dois homens entraram e tiraram o capuz preto que cobria seu rosto.
- Quer dizer que está grávida, não é?
- Sim, estou. Preciso sair daqui. Por favor, me tirem dessa situação! - ela implorava.
Um dos homens riu muito e falou:
- O patrão disse que gostou muito de sua gravidez, que Ernesto vai criar um filho dele e nunca saberá quem é o pai. Mas disse que, a partir de hoje, não vai usá-la mais, que já se saciou. Vai esperar alguns dias para libertá-la.
Ingrid, percebendo que eles estavam dispostos a conversar, continuou:
- Por que o patrão de vocês nunca fala nada? Nunca escutei sua voz.
- Nosso patrão ficou mudo por causa de uma magia que seu marido fez para ele. Comunica-se conosco por sinais. Não vê que isso aqui é uma vingança?
Ingrid ficou estarrecida. Então era realmente o que ela imaginava. Alguém que fora prejudicado pelos feitiços de Ernesto estava agora se vingando. Mas, por outro lado, ele dissera que ia libertá-la. Finalmente estaria livre daquele tormento. O que faria com aquela criança? Certamente Ernesto não ia querer e iria exigir um aborto. Era também o que, no íntimo, ela queria, mas não tinha coragem para fazer. Pensaria naquilo depois. Por um lado não desejava ter um crime como o aborto pesando em sua consciência, por outro, toda vez que olhasse para a criança, se lembraria de tudo o que passou naquele lugar horrível.
Os homens começaram a cochichar baixinho, mas Ingrid percebeu o teor da conversa.Vendo que ela havia escutado, um deles disse:
- E isso aí gracinha, o patrão não a quer mais, mas nós queremos. Como não usufruir de uma beldade como esta?
Começaram a tirar sua roupa e um de cada vez a estuprou. Quando tudo terminou, Ingrid simplesmente sentou-se de cócoras no chão e deixou um imenso vazio tomar conta de seu peito. Já não se importava com as tarântulas, ratos e baratas que passavam sobre seus pés. Ficou ali, remoendo aqueles instantes como os piores e os mais traumáticos de sua existência.

Fazia três meses que Ingrid havia sumido sem deixar pistas. Ernesto passou do desespero à apatia, entrou numa depressão profunda, ficava horas deitado na cama com os olhos fixos no teto. De repente, aquela casa luxuosa, com tudo o que havia do mundo moderno, seus carros e imóveis perderam todo o valor. Aliás, para ele nada mais tinha valor. Nem com as filhas brincava ou as acariciava.
Vendo-o assim, dona Lúcia comentou com Marisa:
- Só o presenciei nesse estado quando perdeu a esposa Mariana e as filhas. Temo que faça alguma bobagem, como tentar o suicídio.
Marisa retorquiu:
- Ele não fará isso. Aquela médium, a mãe Márgara, o tem ajudado bastante. Ela garante que Ingrid vai voltar sã e salva para o lar. E isso o que me dá forças como mãe e o ajuda a continuar vivendo.
- Nós, mães, sofremos junto com os filhos, é inevitável. Eu mesma perdi dois de uma vez. Nunca senti uma dor tão imensa, mas essa perda me ensinou que não somos donos dos nossos filhos, que a qualquer hora a vida pode traçar outros rumos e nos separar. Conformei-me e, com isso, ajudei o Anselmo a se conformar também. Os filhos morreram sem estar bem com ele. Foram para o outro mundo sem o perdão do pai. Devem ter sofrido muito.
- Eu acredito que a vida continua. Minha família é descendente de bruxas, mas bruxas do bem. Mulheres que descobriram as forças ocultas da natureza e as utilizavam em vários rituais para a saúde, a prosperidade e a paz entre os povos.
- Nossa, Marisa, você não parece uma bruxa. Elas sorriram. Marisa continuou.
- Eu praticava também, mas casei-me com um homem cé-tico, que me proibiu e eu parei. Tanto que nem ensinei nada às minhas duas filhas sobre o assunto.
- Mesmo assim, Vanessa e Ingrid parecem mulheres fortes, independentes.Você as educou bem.
- Fiz o que pude. O pai delas me deixou logo que a Ingrid nasceu. Fui mãe e pai dela. Ambas deram sorte, encontraram homens bons, sinceros e que as amam. Estou feliz por elas.
-Você ainda é jovem e muito bonita, não pensa em se casar outra vez?
Marisa olhou fixamente para dona Lúcia, ao responder:
- Não sinto necessidade. Sou muito feliz como estou. Morando aqui, ajudando a criar minhas netinhas, trabalhando com costura como gosto, viajando para onde quero. Sinto-me completa. A sociedade fica querendo empurrar homem para a gente, como se essa fosse a única forma de ser feliz.
Dona Lúcia corou.
- Não falei por mal. É que acho que a gente só se completa mesmo com outra pessoa. Eu mesma, se ficar viúva, não sei como farei.
- Sei que não falou por mal, e até acredito que é ótimo ter alguém, mas cada coisa na sua hora e na sua forma. Acho que meu momento agora é o de ficar sozinha.
As duas sorriram e foram tentar, mais uma vez, ajudar Ernesto.
30
O psicopata
Ingrid começou a se desesperar, pois estava ouvindo passos que certamente seriam dos homens que a violentaram. Se aquela situação continuasse, ela acabaria por enlouquecer, pois seu estado mental havia chegado ao limite do equilíbrio.
Os passos se aproximaram da porta, e logo os mesmos homens asquerosos estavam à sua frente. Dessa vez nada falaram, já foram amarrando-a, tirando a roupa dela e as deles também. Quando iam começar, Ingrid, mesmo desesperada, viu outro homem com o rosto coberto por um capuz e luvas nas mãos entrar no pequeno quarto e, ao flagrar a cena, sacou de um revólver e atirou nos dois, que caíram mortos. Ela percebeu ser o "patrão", que, sentindo-se traído por seus comparsas, vingara-se com a morte.
O homem misterioso trancou a porta, deixou os dois corpos jorrando sangue no chão e saiu, não sem antes desamarrar Ingrid. Olhando aqueles dois cadáveres estendidos à sua frente, ela teve náuseas. Nunca imaginou passar por uma situação como aquela. Agora tinha certeza de que estava mesmo nas mãos de um perigoso psicopata, que por certo não a deixaria viva.
Mesmo com todo o desespero, conseguiu orar pedindo a Deus auxílio para que, pelo menos, pudesse ver Ernesto e as filhas antes de morrer. Nessa hora, sem que percebesse, o espírito de Mariana dizia ao seu ouvido: "Fique calma, Deus está à frente de tudo e logo sua situação será resolvida.Tenha fé!"
Ela sentiu uma calma inexplicável, sentou no fino colchão e procurou não olhar os homens caídos à sua frente.
O homem encapuzado, responsável por tudo o que estava acontecendo, saiu do porão onde Ingrid estava, tirou as luvas, o capuz e passou por uma grande sala mal conservada. Era uma casa antiga e grande, cheia de quartos, circundada por um jardim maltratado, cujo mato passava de um metro. O homem passou por uma trilha sem observar a beleza da lua, que iluminava a paisagem da Terra. Abriu o portão, fechou-o com cuidado e andou alguns passos, quando percebeu que as luzes de vários carros se acenderam e que estava cercado por policiais. Naquela hora, arrependeu-se de ter deixado a arma na casa.Tentou correr, mas ouviu a voz do delegado:
- Sr. Diego, renda-se. Está preso.
Diego sentiu que chegara ao fim. Sem arma, ainda tentou lutar com os policiais, mas eles eram muitos e o imobilizaram. Uma lanterna iluminou bem seu rosto e ele pôde ver Vanessa e Ernesto, que o olhavam com muito ódio. Não disse nada, estava perdido.
Os policiais entraram na casa, arrombaram as portas até que chegaram ao porão. Ernesto os acompanhou. Ao encontrar a esposa, abraçou-a e ambos choraram de emoção. Ingrid contou tudo o que acontecera e foi levada ao hospital, devido ao seu estado debilitado, enquanto todos os outros foram para a dei egacia. Houve tumulto, pois Vanessa e Ernesto insistiam em ouvir todo o depoimento de Diego.
O delegado Arthur começou a interrogado.
— O senhor não pode negar, é evidente que foi o mentor disso tudo. Para facilitar as coisas, diga tudo, desde o começo, como e por que fez isso
Vanessa, com os olhos inchados de tanto chorar, não se conteve.
— Eu só quero entender o motivo. Nós éramos fehzes, temos dois fdhos lindos. Como nunca percebi o monstro que você é?
O delegado interveio:
— Calma, senhora, deixe seu marido falar. Ela obedeceu e Diego começou:
— Sou inocente. Estava naquela casa tentando negociar com os sequestradores de Ingrid.
— O que nos diz dessa ligação?
Um gravador foi ligado e ouviu-se a voz clara de Diego dizendo:
"Cuidem bem de Ingrid, não vou usá-la mais, amanhã a libertarei."
"Sim, senhor Diego.Tudo como o combinado. E o resto do pagamento?"
"Amanhã à noite irei até aí e acertaremos tudo."
Diego ficou vermelho. Como poderiam ter gravado aqudo?
— Está surpreso? Pois nós, da polícia, já não nos surpreendemos com nada. Antes do seu depoimento, peço a Vanessa que nos conte como conseguimos esta gravação. Está em condições?
Limpando os olhos, ela respondeu:
— Sim. Farei tudo o que for preciso para ver esse monstro atrás das grades.
Há poucas semanas, comecei a desconfiar do comportamento do Diego. Notei que mentia para num dizendo estar no hospital, quando, na verdade, não estava. Em casa temos um porta-chaves e percebi que as da casa de uma tia falecida dele haviam desaparecido. Era uma casa antiga na Penha, que ela deixou para o sobrinho, mas nós nunca quisemos ir morar lá.Vivia abandonada, Diego não mandava cuidar.
Pensei que ele pudesse estar me traindo. Então, um dia, sem dizer nada a ninguém, resolvi segui-lo e vi quando entrou na casa. Nada pude fazer a não ser esperar que a suposta amante chegasse ou ele saísse com alguém, mas isso não aconteceu. Algumas vezes ele saía sozinho, outras com dois homens que eu não conhecia.
Horrorizei-me ao imaginar que ele estivesse mantendo relações homossexuais, contudo fiquei calada observando. Um dia, percebi que ele atendeu um telefonema e falava baixinho. Escondi-me num canto e, com muito esforço, consegui escutar parte da conversa.
"Já não disse para não ligarem para cá? O quê? Ingrid desmaiou? Mantenham-na presa, como sempre, e quando acordar obriguem-na a comer. Logo a libertarei. E jamais liguem novamente para cá. Se quiser me comunicar com vocês, usarei o orelhão de sempre. Sei que ninguém jamais desconfiará de mim, mas não é bom arriscar. Se algo der errado, vocês também estão em cana."
Quase desmaiei ao constatar que meu marido era o responsável pelo sequestro de minha irmã. Parecia que estava sonhando e que, a qualquer instante, iria despertar. Felizmente, Diego não me viu dentro de casa e achou que eu tivesse ido às compras. Logo depois saiu. Abraçada com Marquinhos, chorei muito. Em minha mente só vinha uma pergunta: por quê? O que levou Diego a um ato como aquele? Minha vida havia acabado naquele momento. Contudo, outra vida estava em jogo e era a de minha irmã, mas eu não poderia provar nada. Assim que ele regressou, pedi que ficasse com as crianças e vim aqui relatar tudo o que tinha escutado. O delegado pediu calma, pois, se invadissem a casa, Ingrid correria risco de morte, deveriam agir com cautela e obter uma prova concreta. A polícia o seguiu e grampeou o orelhão do qual ele fazia as ligações. Assim obtivemos esta prova. Vanessa começou a esmurrar o marido e a gritar:
- Por quê? Por quê?
Alguns policiais a seguraram e pediram calma. Ernesto, a um canto, olhava sinistramente para Diego. Se pudesse voltar aos seus rituais de magia, faria um para ele morrer. Foi então que o rosto de Diego começou a se transformar. Do vermelho intenso, foi ficando pálido e com expressões de riso. Ele começou a rir, chegando mesmo a gargalhar.
-Tolos, idiotas, imbecis.Você.Vanessa, é a maior das imbecis! Fui eu sim. Sequestrei Ingrid, usei-a sexualmente até quando quis, ou melhor, até quando ela engravidou.
Ao ouvir aquilo, Ernesto empalideceu. Foi preciso muita força dos policiais para que ele não matasse Diego ali mesmo. O delegado interveio:
-Vou tomar o depoimento do senhor Diego. Peço que se retirem.
Vanessa e Ernesto imploraram para ficar, pois queriam e tinham o direito de saber o que motivou Diego, um homem equilibrado, bom pai e marido, a fazer uma coisa daquelas. O delegado, percebendo a situação dos dois, concedeu permissão. Então Diego começou a narrar.
- Ingrid foi a grande culpada de tudo. Um dia, quando entrei no meu quarto, encontrei-a seminua debaixo dos lençóis. Fiquei surpreso, mas minha cunhada revelou estar apaixonada por mim. Foi provocante e quase me levou ao delírio naquele momento. No entanto, dei uma de moralista e a mandei embora. Ela insistiu e percebi que estava disposta a destruir a família da irmã para ficar comigo. Nos dias que se passaram, procurei evitá-la e não dar mais importância ao ocorrido, mas, com o tempo, passei a sentir um desejo louco de tê-la em meus braços. Tentei lutar contra esse impulso, mas ele foi ficando mais forte que eu e passou a ser uma obsessão.
Quando ela revelou estar apaixonada e querendo se casar com outro, fiz um esforço enorme para não mandar às favas minha vida, meu casamento e tudo o mais para ficar com ela. Tinha desejo, mas não tinha coragem. Pensando bem, não queria abandonar minha mulher, só queria tê-la como amante. Tive de disfarçar ao máximo o ciúme ao vê-la se casar com Ernesto e ainda ter de participar da vida dos dois. Foi daí que surgiu o plano do sequestro. Armei tudo meticulosamente. Iria realizar meu desejo sexual e, quando me saciasse, entregaria Ingrid para o maridinho sem que ninguém soubesse quem, na verdade, fora o autor de tudo. Contudo, quanto mais a possuía, mais meu desejo aumentava, era uma chama que parecia me queimar por dentro. Quando descobri que ela estava grávida, percebi que era hora de parar e libertá-la.
Ele fez uma pausa e prosseguiu, olhando para Vanessa: -Você foi tão idiota que não percebeu nada. Sua irmã é uma traidora, se pudesse teria destruído sua vida. Quando cheguei a casa, os meus ajudantes estavam tentando abusar de Ingrid. Louco de ciúme, matei-os sem piedade. Naquela hora, percebi que estava perdidamente apaixonado por ela. Se não poderia ser minha, não seria de mais ninguém. Eu a usaria outras vezes até chegar a hora de por fim à sua vida.
Todos ficaram surpresos demais para comentar alguma coisa. Estavam na frente de um doente mental. O escrivão registrou tudo e Diego foi levado para a cela. O delegado pediria sua transferência imediata para um presídio onde aguardaria julgamento.
Naquela noite ninguém conseguiu dormir. A decepção foi grande para todos. Diego nunca se mostrara um desequilibrado, ninguém conseguia se conformar.
Ernesto foi ao hospital onde Ingrid estava internada e lá ficou sabendo que ela havia abortado espontaneamente a criança. Isso o aliviou bastante, pois ele jamais criaria o filho de um monstro como Diego e faria a mulher abortá-lo de qualquer maneira.
Ingrid ainda permaneceu alguns dias no hospital, fez diversos exames e só depois regressou para casa. Felizmente, o pesadelo havia passado, mas deixaria marcas em todos para sempre.



31
A importância da fé
Vanessa estava muito triste naquele fim de tarde. Desde o dia em que Diego foi detido, ela se mudou com os filhos para a casa da irmã, pediu licença do trabalho e passava a maior parte do dia ruminando os últimos e trágicos fatos de sua vida.
Seu marido, após exames médicos, foi dado como psicopata frio de ânimo e, desde então, permanecia em um manicômio judiciário. Como ela nunca percebera que convivia com um doente mental? Fez esta pergunta ao psiquiatra que cuidara do caso e ele respondeu:
— Os psicopatas são pessoas completamente sociáveis e podem levar uma vida normal durante muito tempo, até que algum fato concorra para desencadear o transtorno. No caso do seu marido, a doença estava em gérmen até o dia em que sua irmã a despertou. Foi um ato impensado, procure perdoá-la. Além do mais, a psicopatia é uma moléstia mental congênita e qualquer dia seu marido acabaria por desenvolvê-la.
Vanessa entendia um pouco de psiquiatria e sabia que o médico falava a verdade, por isso não culpou a irmã. Sabia que Ingrid amava Ernesto e que o que ocorrera com Diego foi um fato movido por impulso. Todavia, mesmo sabendo do estado em que ele se encontrava, ela não deixara de amá-lo. Sabia que os psicopatas não tinham cura, e ela, que possuía uma vida tranquila e feliz, de repente viu tudo desmoronar.
Estava chorando quando viu mãe Márgara entrar. Ela vinha ajudando Ingrid no tratamento psicológico que estava fazendo. Sua irmã ficara muito traumatizada por tudo o que vivenciara e, além de um psicólogo, estava sempre conversando com a simpática senhora.
Vanessa levantou-se do sofá e foi abraçá-la.
— Percebi que estava chorando. As lágrimas costumam lavar a alma, mas em demasia são prejudiciais, mostram que não estamos aceitando os desígnios da vida.
Vanessa prorrompeu em pranto.
—Vamos sentar, fique calma e pense em Jesus. Feche os olhos e faça uma prece.
Ela obedeceu e, quando se sentiu mais calma, agradeceu.
-A senhora veio ajudar Ingrid e acabou ajudando-me também. Tem horas que sinto que não vou aguentar.
-Você precisa ser forte. Há duas crianças que necessitam do seu apoio, da sua alegria e da sua segurança para crescer bem e com saúde.
Ela fez uma expressão triste.
— É muito difícil ser forte numa situação como essa, parece que uma parte de mim morreu. Saber que meu marido é portador de uma doença incurável e que, apesar de tudo, continuo amando-o como sempre, sem poder estar ao seu lado, é desolador.
— Não acredito que a doença de seu marido seja incurável. Você sabia que não existe doença incurável?
- Como não? É o que diz a psiquiatria. Os psicopatas não têm cura.
- A medicina é uma ciência que tem ajudado muito o homem, tem evoluído, mas, infelizmente, ainda não atentou para a realidade do espírito, para a imortalidade da alma. Por isso, frequentemente se engana e comete muitos erros. Aprendi com os espíritos que temos uma força mental muito grande, que, aliada às forças astrais, pode curar qualquer doença. Os transtornos mentais são geralmente de difícil tratamento, porque seus portadores são resistentes em mudar o comportamento, além de serem, em grande parte, envolvidos por espíritos obsessores. Mas não há um doente mental, por pior que seja, que não tenha sua hora de lucidez, e é nesse instante que pode trabalhar na própria cura. Creia, seu marido poderá ser curado e você ainda pode ser feliz.
- Como acreditar nisso quando todos dizem o contrário?
- O mundo anda sofrendo da pior doença que existe: o pessimismo. É ele que atrai o sofrimento existente em nosso planeta.Você tem a chance de acreditar e lutar pela cura dele ou optar pelo mal, se entregando e deixando as coisas como estão.
Vanessa sentiu um calor gostoso invadir seu peito.
- Então posso lutar pela cura do Diego?
- Pode e deve. Primeiro, precisa ligar-se com as dimensões de luz por meio da prece. Depois, todas as noites deve visualizá-lo bem e com equilíbrio mental. Essas técnicas criam energias que o alcançarão, trabalhando em sua recuperação. Para Deus nada é impossível. Os homens, sim, é que acham que não têm capacidade para conseguir a felicidade. Lutam sozinhos, não fazem de Deus seu aliado. Se assim o fizessem, nada lhes seria impossível.
— A senhora diz coisas interessantes, mas será que na prática funcionam?
— Tenho certeza de que sim, e você poderá testar e comprovar. Pode demorar para que seu marido se recupere, mas nunca duvide de que isso possa acontecer. Todos nós corremos o risco de adoecer, visto que temos atitudes que desequilibram nosso espírito e nos fazem mal. No entanto, se Deus dá o mal, dá também o remédio. Os distúrbios mentais são demorados porque a criatura precisa ir fundo em seu mundo interior, rever uma série de crenças negativas e mudá-las, para novamente encontrar o equilíbrio. Mas todos podem se curar.
— Os médicos dizem que os psicopatas nascem sem a parte do cérebro responsável pelo juízo do que é certo ou errado. Como curar uma pessoa assim?
— Os médicos ignoram que quem modela o corpo físico é o perispírito. Se Diego conseguir introduzir um pouco de positivismo em sua alma, ajudado pelos próprios espíritos, essa parte do cérebro poderá ser recuperada. Daí dirão que é um milagre.
Vanessa ainda duvidava.
— Será mesmo que isso é possível?
— Tudo é possível nesta vida, a natureza tem leis que ignoramos e que podem reconduzir qualquer corpo ao seu estado natural de saúde. Ore, acredite, tenha fé e toda sua vida se modificará.
— Tenho medo de que ele não se recupere e que eu o continue amando mesmo assim. Tento tirar esse sentimento de meu coração, mas não consigo.
— Não precisamos deixar de amar as pessoas apenas porque elas não estão do nosso lado ou porque não nos correspondem. O amor verdadeiro simplesmente existe. Embora a presença da pessoa amada seja desejável, sua ausência não impede que o sentimento continue fluindo e causando bem-estar a quem o sente.
Vanessa abraçou mãe Márgara, que pediu licença e foi para o quarto de Ingrid. Aquele fim de tarde, que parecia um pesadelo, transformou-se em um momento de esperança e tranquilidade. Intimamente Vanessa orou em agradecimento a Deus.

Mãe Márgara entrou no quarto e encontrou Ingrid distraída, brincando com as filhas. Ao vê-la chegar, pediu a Fátima que levasse as crianças para baixo, pois queria estar a sós com a nova amiga, que tanto a estava auxiliando.
— Que bom que veio. Sinto-me bem com sua presença. Outro dia falei a Ernesto que tenho melhorado mais com as conversas que tenho com a senhora do que com o psicólogo.
Mãe Márgara sorriu, mostrando os dentes bonitos e brancos.
— Também gosto muito de conversar com você, é inteligente e aprende tudo com facilidade.
Ingrid fez um ar sério e disse:
— Hoje eu gostaria de ter outro assunto com a senhora. Até aqui tenho aprendido a me desligar dos pensamentos traumatizantes e a me ligar com as boas energias, mas há uma questão que tem me inquietado e chegou a hora de perguntar.
— Se poderei responder não sei, mas vamos tentar - disse a interlocutora, rindo amavelmente.
Ingrid respirou fundo e começou:
— Sei que vocês que lidam com espíritos têm respostas para muitos dos nossos problemas. O que mais desejo saber é por que tive de passar por uma experiência tão dura. A senhora acha que fui má na outra vida e por isso tive de sofrer?
— Minha filha, o passado pouco ou nada interfere em nossa vida quando o assunto é sofrimento. Sofremos mesmo é pela vida presente. Seja sincera comigo.Você se culpava por ter tentado destruir a vida de sua irmã?
Os olhos de Ingrid se encheram de lágrimas.
— Sim, muito. Depois que percebi a loucura que cometi, fiquei muito envergonhada perante Diego e Vanessa. Mas só me arrependi mesmo, depois que me apaixonei por Ernesto. Esse arrependimento, aos poucos, foi se transformando em uma culpa muito grande. Ficava imaginando, se Diego tivesse cedido às minhas investidas, como hoje estariam Vanessa e os filhos pequenos? Sentia alívio quando ele falava comigo e se mostrava amável, como se houvesse me perdoado. Mas eu mesma não havia me dado o perdão. Quanto mais Diego me tratava bem, mas eu me sentia mal, envergonhada e pensava que tinha agido como uma prostituta.
— Então está explicada a causa do que lhe aconteceu. A culpa e o remorso atraíram tudo o que você vivenciou.
— Como? Só uma culpa é capaz de fazer tudo isso? Não devemos nos arrepender?
— Não foi isso que quis dizer. Arrependimento sincero, desejo de mudar, de reparar com amor e inteligência nada têm a ver com a culpa ou o remorso. Quem se arrepende de verdade não se culpa, sabe que fez o melhor que pôde no momento e vai consertar seu desacerto com inteligência, sem sofrimento. A culpa nos faz mal e nos impinge castigos desnecessários, que nada têm a ver com Deus, que é soberano e jamais pune.
Ingrid percebeu que ela tinha razão.
— Gostaria que a senhora me levasse a seu terreiro. Quero conhecer mais essa filosofia que tanta sabedoria lhe dá.
-Você será muito bem-vinda lá, mas fui informada que tanto seu caminho quanto o de Ernesto é o espiritismo.
- Duvido! Ele nem aceita que se fale que um dia foi espírita. -As coisas mudam e o tempo transforma as pessoas. Ernesto,
um dia, voltará ao aprisco do Pai e você irá junto com ele, ambos escolheram isso antes de nascer.
- Mesmo assim, quero conhecer melhor seu trabalho. Minha mãe também era umbandista praticante, mas acabou abandonando.
- Conheço a história de sua mãe.Talvez o caminho dela também seja a doutrina espírita, mas quanto menos procurarmos rótulos, melhor. Se fizermos as contas, a religião fez muito mais mal do que bem à humanidade. Em nome dela matam, roubam, lavam consciências, enganam, criam-se pessoas hipócritas, rituais e exemplos de santidade que estão fora da natureza. Faço meu trabalho, mas não gosto de me intitular umbandista, sou uma pessoa espiritual e só. A forma como trabalho, como lido com os outros, não importa, o que vale mesmo é o resultado.
Ingrid, a cada dia, admirava mais mãe Márgara. Estava mais radiante, alegre e feliz. Decidiu que não iria mais ao psicólogo. Descobrira como tinha atraído seu sofrimento e, a partir dali, iria mudar.
A noite chegou e, quando Ernesto adentrou o lar, sentiu logo o clima de harmonia.Todos na sala de estar estavam folheando revistas, lendo, vendo TV. Logo pensou: "Finalmente a paz parece ter voltado a reinar".
Deu um beijo na esposa e subiu para tomar um banho. Enquanto a água morna deslizava sobre seu corpo, ele foi relaxando até que, sem perceber, adormeceu debaixo do chuveiro.
Seu espírito foi desdobrado e logo ele percebeu Germano e mais dois espíritos ao seu lado.
- Prepare-se. Não pense que o sequestro de sua mulher foi castigo de Belzebu, aliás, ele desistiu de castigá-lo. Está sabendo do que brevemente vai lhe acontecer e já acha o suficiente.Você pagará por tê-lo traído.
Ernesto, a princípio atordoado, logo começou a escutar o que eles diziam e, desesperado, perguntou:
- Digam logo o que é. Não aguento mais essa tortura. O que pode ser pior do que eu perder mais uma vez minha família?
Germano gargalhou.
- Você não vai perder sua família. Pelo visto, eles viverão muito. Mas há coisas bem piores do que isso e logo você saberá o que é.
Ernesto encheu-se de ódio.
- Eu sabia que Deus iria me castigar. Se não é Belzebu, é Ele.
- Deve ser mesmo. Agora já vamos, perdemos tempo demais com você.
Os espíritos sumiram chão adentro, e Ernesto rapidamente foi atraído pelo corpo. Não se lembrava com clareza o que tinha se passado, mas começou a sentir uma inexplicável angústia.



32
Tempo de perdão
A morte de Arnaldo, repentina, sem que houvesse tempo para despedidas, consternou a todos. Eduardo, com sua fé na espiritualidade, conseguiu sair do desespero que tomou conta de seu ser ao ver o pai sendo cremado e logo voltou ao equilíbrio de sempre.
Arlete e Lucrécia demoraram mais para se acostumar com a perda. A primeira, por sentir que havia sido uma filha relapsa, que pouco ou nada se importara com o pai. A outra, por saber que não mais veria o homem que fora seu companheiro durante vinte e sete anos e com o qual tivera dois filhos. Apesar de estar já conformada com a separação, ela ainda o amava muito. Naquele momento, pensou que Deus a havia conduzido ao espiritismo com o intuito de prepará-la para esse momento.
Alice, a princípio, ficou inconsolável, mas já estava aprendendo muito a respeito da vida após a morte e, com a ajuda de Magali e dos amigos do centro espírita, conseguiu se reerguer. Poucos dias após o ocorrido, retirou seus pertences do apartamento e foi entregar as chaves a Eduardo.
- Acho que não tem mais sentido ficar lá. Além de não ter direitos, foi o lugar onde vivi até agora os melhores momentos de minha vida, sofrerei se tiver de ficar. Aqui estão as chaves.
Estavam todos na mansão e Eduardo, com o molho na mão, sentiu os olhos marejar. Olhou para sua amada e fez o que seu coração mandou.
- Não quero estas chaves, elas pertencem a você. Vamos legalizar tudo para que aquele apartamento fique em seu nome e que você possa permanecer nele o tempo que achar conveniente ou até vendê-lo.
- Sinto muito, Eduardo, mas não posso aceitar. O que mais quero agora é retornar para a casa de meus pais e tocar minha vida. Eu trabalho, mas não ganho o suficiente para pagar as despesas de condomínio e as demais contas de um imóvel como aquele. Além disso, tenho motivos pessoais para não estar lá e que já mencionei.
Eduardo insistiu.
- Mas não é justo que você saia da vida de meu pai sem ter ganhado nada.
- O que eu queria sempre obtive: o amor dele. Esse, para mim, foi o meu maior prêmio. O resto não tem importância.
Lucrécia, a um canto, olhava cada gesto de Alice e pôde perceber que ela estava sendo sincera. Resolveu intervir.
- Eduardo, deixe disso. Alice já mostrou que é íntegra, que não era a interesseira que eu imaginava. Se não quer o apartamento, é um direito dela.
Alice olhou para Lucrécia e falou:
- Eu sinto muito, senhora, se sofreu com o meu relacionamento com seu marido. Saiba que jamais me envolveria com ele se não fosse por amor. Tenho aprendido no espiritismo que o adultério tem um preço alto em dor e sofrimento, mas no meu caso foi por um sentimento nobre, sei que Deus me perdoará por isso. O que desejo, agora, é sinceramente pedir o seu perdão.
Lucrécia deixou lágrimas grossas escaparem de seus olhos. Ambas se abraçaram.
-Você está perdoada. Também tenho aprendido muito sobre a vida. Creio mesmo que nem tenho do que lhe perdoar. Mas é bom saber que não guardo, há muito, nenhum ressentimento contra você. Quero que Deus abençoe sua vida e que você seja muito feliz.
Arlete e Eduardo estavam emocionados com a cena. Ao fim, Eduardo se manifestou:
- A força do perdão é muito grande. Caso uma das duas guardasse alguma mágoa, ficaria uma situação mal resolvida, que voltaria, mais cedo ou mais tarde, para uma solução, só que de forma muito mais complicada e dolorosa. A vida não deixa nada incompleto. Quanto mais perdoamos nossos desafetos, mais nos libertamos das amarras do sofrimento.
Alice disse que estava com um táxi à sua espera, mas Eduardo insistiu em levá-la em casa. O táxi foi dispensado e, já no carro, enquanto conversavam, vez por outra seus olhos se cruzavam. Alice não queria se deixar levar pelo que estava sentindo por Eduardo desde o dia em que ele se declarara, mas parecia que não estava conseguindo controlar. Foi um alívio quando desceu do carro e entrou em casa.
Após desarrumar as malas e pedir a Diva que arrumasse suas roupas no antigo quarto, Alice entrou no banho. Minutos depois, quando saiu, deparou-se com Carmem à sua frente.
- Pensei que não fosse mais sair desse banho.
- Você me conhece bem, mãe, sabe que meus banhos são demorados.
Carmem fez ar de mofa e foi direto ao que queria conversar.
— Estou preocupada com você, Alice. Aliás, preocupada não, muito preocupada.
Carmem mexia os olhos nervosamente, e Alice não entendia o porquê de tamanha preocupação. Observou que a cada dia sua mãe se vestia de maneira mais indecente, carregava na maquiagem, querendo parecer garotinha.
— Qual o motivo de sua preocupação?
— E você ainda pergunta? - gritou Carmem com voz estridente.
— Sim — disse Alice, calmamente. — Não entendo por que se preocupa comigo. Voltei a trabalhar, ganho relativamente bem, estou pensando em me pós-graduar, tenho saúde. O que há de errado comigo?
— Como você é ingênua! Acha que isso é o suficiente? Estou preocupada com sua vida afetiva. Praticamente ficou viúva de um homem casado, foi desonrada por ele, passou a desfilar com o amante por toda a São Paulo. O que pensa da vida? Que homem vai levá-la a sério depois de tudo isso?
Alice não acreditava no que ouvia. Logo sua mãe pensar uma coisa como aquela. Ela não deveria estar em seu juízo normal.
— Não estou me importando com o que pensam de mim. Arnaldo foi o único homem a quem amei de verdade e, por ora, nem cogito a possibilidade de me relacionar com outra pessoa. Vou me dedicar aos estudos e ao trabalho. O dia em que o amor aparecer será bem-vindo.
Carmem soltou uma gargalhada.
— E quem vai querer uma mulher que já foi caso de homem casado? Estou preocupada porque temo que termine sozinha. Uma moça que faz o que você fez nunca mais é levada a sério por um homem. Bem que eu tentei avisá-la quando tudo começou, mas você nem quis ouvir.
Alice irritou-se. Quem era Carmem para falar aquilo?
— A senhora não me avisou coisa alguma, e até me incentivou porque Arnaldo era engenheiro famoso e rico. Além disso, vive uma relação horrorosa com papai, paga garotos de programa para ter sexo, não é a pessoa mais indicada para me dar conselhos.
— Petulante, hein? Vou fingir que não me ofendeu e dizer o que realmente quero com essa conversa.
Alice mandou que ela falasse logo, pois queria se vestir e estava apressada.
Carmem revirou os olhos, piscou duas vezes, e começou:
— Como já falei, depois que você se tornou amante de um homem casado, ninguém vai querer aproveitá-la como se deve. A não ser esses pobretões de plantão. Desde que Arnaldo morreu, o deputado Valdo Rodrigues, que é viúvo, nos procurou pedindo sua mão em casamento. E um homem velho, já perto dos oitenta, mas tem muito dinheiro, pode ajudar você a fazer um belo pé-de-meia. E claro que nós concedemos sua mão e você deverá se casar com ele em breve.
Alice não aguentou e soltou uma sonora gargalhada. Só de imaginar a situação e pensar no ridículo que seria se isso acontecesse, desatou a rir. Realmente, Carmem não era uma pessoa normal, não dava nem para sentir raiva.
— Do que ri? A situação é séria. Marcamos para hoje um jantar especial no qual vocês ficarão noivos.
— Mãe. Alô! Estamos no século XX. A época dos senhores de engenho já passou há muito tempo. Não vou me casar com ninguém e hoje à noite tenho compromisso, não posso ficar para esse jantar ridículo. Não sei como a senhora pensou que eu iria aceitar uma situação como essa.
- Ora, você sempre foi chegada a um velho. Daí juntei as peças. Pense bem, a situação financeira de seu pai não é das melhores. Se continuarmos como estamos, teremos de parar de viver no padrão de luxo ao qual estamos habituados. Faça esse esforço! Por seus pais.
Carmem fazia umas caretas suplicantes e Alice não continha o riso.
- A senhora que resolva a situação. Se quiser continuar vivendo assim, cada dia fazendo sexo com um michê diferente e que cobra caro, vá trabalhar. O senhor Valdo que vá comprar outra, não estou à venda. Agora saia, mãe, que preciso me vestir e quero ficar à vontade.
- Que desgosto! Então é para isso que colocamos os filhos no mundo? Foi para isso que deformei minha barriga por nove meses, me enchi de estrias? Eu sempre soube que deveria ter tido mais filhos.Você nunca foi das minhas. Agora, se quiser viver aqui, terá de ajudar nas despesas. Farei uma lista e você deverá pagar tudo que tiver nela.
- Desde que não venha nenhuma conta de michê, tudo bem. Carmem saiu do quarto gesticulando e gritando. Depois se
acalmou e tentou encontrar uma boa desculpa para dar ao deputado mais tarde.


33
O reencontro de almas

O tempo passou depressa, e a amizade de Alice e Eduardo foi se fortificando. A cada dia ele se enchia de esperanças. Tinha certeza de que um dia ela seria sua. No entanto, os dias transcorriam e, apesar de se verem sempre no centro espírita, Eduardo não tinha coragem de voltar ao assunto.
Um ano depois da morte do pai, num dia em que Magali havia faltado a uma reunião doutrinária, ele a levou à confeitaria onde os três lanchavam após as palestras. Sentados um na frente do outro, após fazerem os pedidos, Eduardo comentou:
- Sabia que o apartamento onde você morou com o meu pai ainda está intacto?
- Como assim? Não venderam?
- Não. Eu não permiti.
- Ora, por quê?
-Você sabe quanto eu amava meu pai.Tudo dele, para mim, é sagrado. Só em saber que ele morou naquele lugar e que ali foi muito feliz é o suficiente para que eu não o venda. Há o toque de meu pai em todos os locais daquele apartamento. Quando sinto saudade dele, vou para lá e fico horas. Converso, imagino que ele está à minha frente e digo tudo o que quero dizer. Sei que, de alguma forma, sou ouvido. Às vezes sinto sua presença ao meu lado.
Alice arrepiou-se. Que amor lindo! Nunca vira um filho amar um pai daquela maneira. De repente, uma ideia maluca passou por sua mente.
- Estou com vontade de voltar lá. Você está com as chaves dele agora?
- Sim. Sempre estou com elas. Mas, por que esta súbita vontade?
- Talvez saudade. Quero ver como reajo ao entrar lá mais uma vez.
Eduardo resolveu que iriam logo após o lanche.
Assim que terminaram, eles rumaram para o Morumbi. Alice sentiu o coração descompassar ao entrar no apartamento. Realmente Eduardo não mentira, tudo estava igualzinho como ela deixara há um ano. Foi tocando de leve os estofados, os móveis, os quadros e foi se arrepiando. Deixou que algumas lágrimas rolassem em seu rosto. Eduardo também sempre se sentia assim ao entrar ali.
Foram para o bar.
- Nossa! Até as bebidas continuam as mesmas.
- Meu pai adorava este vinho.Vamos tomar um pouco? Ela aquiesceu e ambos começaram a beber. Algo mágico
parecia estar marcando aquele momento. Talvez pela bebida, também pelo ambiente, Eduardo foi sentindo uma atração cada vez mais irresistível por Alice. Ela também, sem saber explicar o porquê, deixou-se levar, e quando percebeu já estavam se beijando.
Eduardo, com a voz que a emoção tornava rouca, dizia:
- Eu a amo, Alice, mais do que tudo nesta vida!
- Eu também sinto que o amo com todas as forças de meu coração. Mas como pode ser isso? E errado!
- Amar nunca será errado, e eu te amo, desejo que seja minha agora.
Deixando-se levar pela emoção, Alice entregou-se completamente e foi conduzida até a cama. Tudo parecia um sonho. Eduardo foi tirando sua roupa enquanto a beijava e em pouco tempo estavam nus e entregues ao amor. Energias radiosas pairavam sobre o casal.
Na sala, o espírito de Arnaldo, acompanhado de Eglantine, sorria feliz.
- Pensei que ela fosse resistir e que essa relação demorasse. Ainda bem que tudo aconteceu como o previsto.
Eglantine sorriu.
- É isso mesmo. Agora que cumprimos nossa missão, deixemos os dois no ato lindo do sexo com amor.
Seus espíritos volitaram e logo chegaram à colônia em que habitavam.
Era noite, e Eglantine, que era a mentora de Arnaldo na presente encarnação, sentou-se com ele na grama de um lindo jardim onde começaram a observar as estrelas.
- Sinto a necessidade de me abrir com você. Falar tudo o que agora sei.
- Conheço toda a história, mas é sempre bom desabafar. Se quiser, estarei pronta para ouvi-lo.
Arnaldo meneou a cabeça.
- Não acha chato ouvir uma história que já conhece?
- Não. Além de ser um desabafo para você, é uma grande lição de vida.
Arnaldo, então, começou a contar:
- Eu era um rico fazendeiro paulista no fim do século XIX. Nessa época, era cafeicultor. Como os escravos, em sua maioria, haviam abandonado minha propriedade por conta da abolição, fiquei sem mão de obra.
A colheita do ano quase foi perdida, quando começaram a chegar as primeiras levas de imigrantes italianos ao país. Eles vieram para trabalhar, fazer fortuna, e eu os contratei, assim não perdi toda a safra.
No entanto, tratava-os como escravos brancos. Na fazenda moravam minha mãe, que era viúva, minha esposa e minha filha de poucos meses. Eu me chamava Rodolfo, minha mãe, Teodora, minha esposa, Maria Eduarda, e minha pequena, Henriqueta.
Havia um casal de italianos que eram corajosos, organizavam motins contra mim, buscavam uma situação melhor para a vida deles no Brasil. Eles tinham uma filha na flor da juventude que se chamava Aline, por quem me apaixonei perdidamente. Eu me casei com Eduarda sem amor, apenas por arranjo entre as famílias, mas com o tempo e a convivência passei a amá-la de verdade. Eduarda era um anjo em forma de gente, espirituosa, bondosa, sempre vivia sorridente e feliz. Ajudava-me com os problemas da fazenda e foi ela quem me fez um ser humano melhor, amava-a e ainda a amo profundamente.
No entanto, mesmo com todo o amor, não consegui conter a atração que sentia por Aline. Logo fui correspondido e passamos a nos encontrar. Os pais da moça se aproveitaram da situação e logo tiraram de mim o suficiente para poder voltar à Itália e lá realizarem o sonho de cultivar uvas e comercializar vinho. Todavia, na hora de voltar, Aline não queria me deixar e eu estava sofrendo com a futura separação. Chamei o senhor Giuseppe e fui claro:
-Ainda falta um pouco de dinheiro para que voltem à Itália. Prometo que darei todo o restante se deixarem Aline comigo. Ela passará a viver na casa grande e terá vida de rainha.
Giuseppe não queria deixar a filha no Brasil, mas sua mulher, com olhos cobiçosos, decidiu por ele.
— Pode ficar com ela. Nunca foi apegada a nós mesmo. Lá deixamos outros filhos, temos família. Ela que se arranje por aqui.
Assim foi resolvida a situação. Coloquei Aline na fazenda como babá e Eduarda nunca desconfiou de nada. Ambas se tornaram grandes amigas. Notava que Aline se sentia culpada pela situação, mas seu amor por mim era mais forte e ela resistia. O tempo passou e ela praticamente ajudou Eduarda a criar Henriqueta. Naquela época, eu sentia um remorso muito grande por amar duas mulheres ao mesmo tempo, mas era amor mesmo, embora diferentes, mas amor.
Entre Aline e Eduarda surgiu uma afeição fora do comum. Andavam sempre juntas e passavam horas conversando. Eduarda acreditava em histórias de almas do outro mundo e Aline também. Elas se amavam muito. Eu não tive mais filhos e, quando Eduarda já estava velha, no leito da morte, sem chances de cura, Aline contou toda a verdade e pediu-lhe perdão. Eduarda, com voz fraca, respondeu:
— Eu já sabia de tudo, mas meu amor por você e por meu marido foi maior e eu aceitei. Estou indo para o outro mundo e lá certamente saberei o porquê de tudo. Sei que a vida sempre faz tudo certo.
Eduarda era um ser angelical, incomum. Depois de sua morte, Henriqueta já era casada, dessa forma, fiquei só com Aline naquela grande propriedade. O café já não dava mais lucros, a fazenda foi arruinada.Terminei muito pobre, vivendo de pequenas criações.
Quando cheguei ao astral, fui recebido com carinho por Eduarda, que logo após recebeu também Aline. Fomos reunidos com os mentores e eles nos contaram que éramos almas ligadas havia muitos séculos e que precisávamos dessa experiência para evoluir e aprender a conviver sem rancores. Dessa vez conseguimos. Minha mãe, Teodora, também estava na reunião e ficamos sabendo que, durante aquela última encarnação, ela havia cometido adultério várias vezes e estava muito arrependida. Precisava voltar à Terra e experimentar o gosto da traição para aprender. Os espíritos disseram que ela poderia aprender de outra forma, mas ela não aceitou, queria ser traída, assim como traiu inúmeras vezes.
Estávamos todos juntos, éramos afins. Eu continuava a amar as duas mulheres que amei na Terra e me sentia envergonhado por isso. Até que você, Eglantine, me chamou e disse: "Só há uma solução para esse caso. Você precisa aprender a sublimar um dos dois sentimentos. Eduarda e Aline são almas afins, amam-se há muito tempo e você vem impedindo que elas sejam felizes. Nessa última vida, ambas vieram no mesmo sexo e, como não tinham tendências homossexuais, amaram-se apenas como amigas, mas precisam viver a história de amor que as une. Na próxima encarnação, elas virão em sexos opostos e poderão se amar livremente. Escolha uma das duas para ser sua filha e assim modificar o sentimento para algo mais sublime."
Foi difícil, para mim, a escolha. No fim, após muito meditar, preferi ser pai de Eduarda. Ela era mais sensível, mais espiritual, por isso acreditei que seria mais fácil.
Programei que me uniria à minha mãe como marido para que ela pudesse vivenciar o que precisava, e então voltei à Terra como Arnaldo e ela, como Lucrécia. Maria Eduarda veio logo depois, como meu amado filho Eduardo, e Aline recebeu o nome de Alice, tendo como pais os mesmos italianos de outrora.
Por isso Eduardo e eu nos amamos tanto e, ao mesmo tempo, nós dois amamos Alice.
Arnaldo parou um pouco, fixou o olhar no de Eglantine, e perguntou:
— Como um dia essa questão será resolvida? Eduardo e Alice se amam, e eu amo os dois. O que farei?
— Só Deus sabe o que nos reserva o futuro. Por ora, o melhor a fazer é esperar, vibrar pela felicidade deles e trabalhar pela nossa. A ansiedade atrapalha, tudo só vem no tempo certo. Na Terra, são muitos os casos de amor dessa natureza, que só o tempo e as provas da vida irão solucionar. Ninguém pode julgar ninguém, pois o sentimento afetivo está no coração de cada um e só a pessoa sabe o que se passa lá dentro.
- De qualquer forma, um dia terei de deixá-los viver livremente. Eglantine sorriu.
- Lá vem você outra vez antecipando o futuro com a ansiedade. Entregue tudo nas mãos de Deus e vamos trabalhar. Aqui o que não falta é o que fazer.
Ambos sorriram e foram cada um para seus afazeres noturnos.

Alice e Eduardo mantiveram o romance em segredo durante algum tempo. Lucrécia havia se modificado muito, mas eles não podiam prever qual seria a reação dela ao saber que seu filho estava namorando e iria se casar com aquela que foi, durante algum tempo, sua rival.
Eduardo queria contar logo, mas Alice preferiu a cautela e pediu para que ele aguardasse.
Quando julgaram oportuno, foram falar com ela. Lucrécia, a princípio, ficou pensativa, depois disse:
—Vinha notando que você estava mais feliz que de costume. Só podia ser mulher. Sempre soube que você gostava de um bom namoro. Quando mais jovem, era uma namorada para cada dia da semana.
Eduardo sorriu. Ele era assim mesmo.
Ela continuou:
- Contudo, percebi que se tratava de algo mais sério. Nunca pensei que fosse Alice.Vocês têm a minha bênção. Estou aprendendo a perdoar e a não julgar, além do mais, de que adiantaria eu tentar impedir? Você sempre só fez o que quis da vida! Se eu dissesse que não aceitaria, você se casaria com ela da mesma forma e provavelmente romperia comigo. Não. Não quero perder mais ninguém nesta vida.
Ela parou, olhou para Alice, e tornou:
- Não pense que tenho bons olhos para você, mas confio no meu filho. Ele é muito inteligente, sábio, não iria escolher uma mulher qualquer para se casar. Aliás, eu até lhe agradeço por tê-lo levado a escolher o caminho do matrimônio. Achava que Eduardo nunca fosse se casar e que, portanto, nunca me daria um neto, coisa com que sempre sonhei.
Alice estava emocionada. Como a vida era inteligente! Deus conduzia tudo para onde deveria ir. Provavelmente, todos eles estavam ligados pelo passado.
- A senhora tem sido muito boa comigo desde a morte de Arnaldo. Prometo fazer seu filho mais feliz do que eleja é.Teremos muitos filhos, encheremos essa casa de crianças.
Eduardo falou emocionado:
- E eu que pensei que essa conversa seria dificil, até me surpreendi com a sua reação, mamãe.Vamos brindar este momento?
- Antes, quero fazer um pedido ao casal — disse Lucrécia, séria. Todos se entreolharam curiosos, menos Arlete, que já sabia
o que a mãe iria pedir.
— Quero que se casem e venham morar conosco. Eduardo e Alice ficaram espantados, não esperavam por
aquilo. Quando conversavam sobre o futuro, nunca mencionaram morar na mansão, pensavam em habitar o apartamento que foi de Arnaldo ou uma casa em outro bairro. Não souberam o que dizer de pronto.
O espírito de Arnaldo, que estava presente, soprou no ouvido do filho: "Aceite, meu amor! Você será muito feliz aqui com Teodora e Aline. Esta casa é muito grande, foi aqui que você nasceu e cresceu. Aceite, Maria Eduarda!"
Eduardo sentiu uma forte emoção e olhou para Alice, que percebeu na hora que ele queria aceitar o pedido da mãe.
— Eu não havia pensado nisso, mas esse convite é tentador. Adoro esta casa, ela me lembra toda a minha infância, meu pai, as coisas boas que vivi na adolescência. Por mim, aceito, mas tenho de pedir a opinião de Alice.
Mais uma vez, Arnaldo aproximou-se dela e falou: "Aline, concorde. Aqui você terá a chance de conhecer Teodora melhor e de se tornarem amigas. Lembra-se como ela a tratava na casa grande? Por saber que era minha amante, humilhava-a constantemente e vivia fazendo chantagens e ameaças.Você não está sendo convidada a viver com ela à toa. Seus espíritos ainda nutrem reflexos negativos um contra o outro e necessitam harmonizar-se. A vida não deixa nenhum assunto mal resolvido, não fuja, a hora é esta".
Alice captou integralmente a essência da mensagem, embora nada tenha escutado. Foi com os olhos brilhantes de emoção que disse:
-Aceito, sim, Lucrécia.Aqui poderemos ser amigas, nos perdoarmos mutuamente. Talvez não seja fácil nossa convivência, mas vamos tentar.
Lucrécia pegou sua mão e afirmou:
-Você não sabe como mudei depois que conheci a espiritualidade. Terá a prova enquanto vivermos.
Arlete trouxe as taças e todos brindaram aquele momento, não sem antes agradecerem a Deus por tudo ter se resolvido da melhor maneira.

Três meses depois, Eduardo e Alice se uniram no civil em uma cerimônia simples no Clube Paulista. Eles teriam agora largo momento de paz, felicidade e amor.
Assim que o juiz de paz encerrou o enlace, Arnaldo, abraçado a Eglantine, chorava de emoção.
— Finalmente os dois estão unidos. Aqui acaba minha missão. Eglantine percebeu que o amigo estava triste.
— Não deixe o desânimo tomar conta de seu coração. O dever cumprido costuma nos dar alegria. Chegou a hora de cuidar de você e tratar desse apego terrível que sente pelo Eduardo. Isso o tem prejudicado muito ao longo dos séculos.
— Terei mesmo de fazer a grande viagem?
— Sim. Nossos maiores disseram que para você é o melhor.
— Pedi para que pudesse renascer filho deles, mas não me foi concedido.
- Isso mesmo. Se você viesse a ser filho do Eduardo, seria muito dependente, o que estacionaria ainda mais sua evolução. E hora da grande viagem. Você renascerá em outro planeta, viverá com outras pessoas, aprenderá a se desapegar.
- Sentirei muitas saudades. Como é difícil!
- É por isso que é necessária essa medida extrema. O apego aprisiona, faz sofrer, torna-nos dependentes e fracos. Com o tempo, colocamos nossa força no outro e passamos a fazer dele uma muleta. Mas Deus sempre intervém, mostrando que amor não é apego.
Arnaldo secou as lágrimas, beijou o filho, olhou para Eglantine e disse:
-Você prometeu me acompanhar.Vai cumprir a promessa? Ela o abraçou.
- Sim. Serei sua mãe, mas como sou muito independente, livre, o ensinarei a amar sem se pendurar.Você vai ter uma mãe durona, que não passa a mão na cabeça. Cedo terá de se afastar de mim para assumir a própria vida.
Arnaldo pareceu aceitar.
-Agora vamos. O tempo passa depressa, e mais rápido do que supõe poderá voltar à Terra e rever Eduardo, mas, quando isso acontecer, você estará modificado, mais maduro, mais dono de si. Aí se unirão eternamente.
Os dois amigos se abraçaram e desapareceram no meio do céu estrelado.





34
A doença de Ernesto

A pesar dos cinco anos passados, a família de Ernesto jamais esqueceu o que aconteceu com Ingrid e Diego. A Justiça o inocentou, pois foi considerado um doente mental grave e não estava de posse de sãs faculdades mentais quando fez tudo aquilo. Mesmo assim, ele passou um bom tempo no manicômio judiciário e só mais tarde foi transferido para uma clínica psiquiátrica particular.
Vanessa continuava em sua incansável luta para tentar trazê-lo de volta à realidade. As pessoas olhavam de soslaio e riam, considerando-a ingênua, mas ela continuava incansável. Aos poucos, e para o espanto de todos, Diego começou a se modificar. Conversava naturalmente e se mostrava arrependido pelo que tinha feito. Vanessa vivia um tormento, pois sabia que os psicopatas eram exímios mentirosos, e, quando os momentos de dúvida apareciam, ela se recolhia na prece.
Ernesto voltou a trabalhar pouco tempo depois, mas rompeu qualquer tipo de relação com a cunhada. Ela deixara sua mansão com os filhos e regressara ao lar. Ingrid ficou muito triste, porém amava o marido e concluiu que jamais poderiam viver como antes, caso Diego um dia retornasse ao lar.
Anselmo e Lúcia voltaram para Guararema assim que tudo se acalmou, e Ingrid passava quase todo o dia cuidando das filhas em companhia de Marisa.
Ernesto, de repente e sem motivo, começou a se sentir mais cansado que o habitual. Começou a emagrecer muito rapidamente e foi ao seu médico, que diagnosticou uma crise de estresse. Ele foi medicado e melhorou. Nunca mais havia escutado as vozes ou sentido nada. Não parecia que tinha sido pai de santo, muito menos espírita. A imobiliária crescia a olhos vistos e a fortuna de Ernesto aumentava a cada dia.
No entanto, o cansaço retornou um mês depois, e dessa vez mais forte, tanto que ficou prostrado na cama por diversas vezes. Dessa vez não emagreceu, mas começou a tossir com frequência. A tosse ia aumentando e o impossibilitou de trabalhar. O doutor Guedes dava-lhe uns tapinhas nas costas e dizia:
-Você não tem febre, está com apetite, não tem dor. E essa poluição!
Receitava alguns xaropes, mas Ernesto não melhorava. De repente, veio a dor. Forte. Profunda. Aguda. De tão forte, Ernesto desmaiou. Foi levado para o hospital e examinado, ao que o médico falou:
- Precisamos esperar que acorde. Aparentemente não tem nada grave, mas temos de esperar para que ele nos possa dizer onde se localiza exatamente essa dor.
Por conta do sedativo, Ernesto dormiu muito e, quando acordou, doutor Guedes o inquiriu:
— Onde é mesmo a dor?
- Aqui - ele suspendeu a camisa e mostrou o lado esquerdo das costas, acima do pulmão.
—Você fuma?
- Não. Quer dizer... Fumava esporadicamente. Mas faz anos que deixei.
- Irá tirar raios X do pulmão para analisarmos melhor. Por ora ficará aqui em observação.
Ernesto sentiu um pouco de preocupação no olhar do médico, mas não deu muita atenção. Logo estava conversando animadamente com um dos funcionários da sua empresa. Mas as crises de tosse voltavam e ele tinha de parar.
Os exames foram feitos e o doutor Guedes mandou chamar Ingrid em seu consultório.
Ela, com o coração aos saltos, compareceu. O médico a olhou profundamente, estudando as palavras que iria dizer.
- Senhora Ingrid. O correto seria falar diretamente com seu marido, mas sou, além de tudo, amigo de vocês e confesso que não sei como Ernesto vai reagir ao ouvir o que tenho a lhe dizer.
Ingrid sentiu que o sangue lhe faltava, mas manteve-se firme.
- Pode dizer, doutor. Estou preparada.
- Seu marido tem um tumor muito grande no pulmão esquerdo, e é inoperável. Pela visualização das imagens, podemos dizer com acerto que se trata de um tumor maligno muito agressivo. O único jeito é tentar a quimioterapia para ver se o tumor diminui, só assim conseguiremos operá-lo.
Ingrid teve uma crise de choro. O médico ofereceu um lenço e, quando estava mais calma, ela perguntou:
- Quais as chances que ele tem de cura?
- Eu diria que são mínimas. Um tumor desse tamanho certamente já está espalhado por várias partes do corpo. Mas em medicina temos visto de tudo. Pessoas desenganadas que milagrosamente se curam e estão melhores do que nunca. Outras com doenças simples que acabam por morrer. O que gostaria mesmo é que você soubesse primeiro para que pudesse apoiá-lo. Não podemos enganar o paciente, ele deve estar ciente de tudo o que está se passando.
- Meu marido é forte, vai aguentar. Ele já passou por muita coisa nesta vida, precisa saber o que está realmente acontecendo.
- Então vamos lá.
Entraram no quarto. As visitas tinham ido embora e Ernesto estava entretido na leitura. Quando o médico, juntamente com sua esposa, informou o que ele tinha, entrou em um mutismo angustiante. Ao ficar só com o marido, Ingrid tentou conversar, mas Ernesto parecia não ouvi-la. De repente, todo o filme de sua vida passou em sua mente sem que ele pudesse parar. A infância pobre, as brincadeiras de criança, os namoros de adolescente, o casamento com Mariana e a chegada das filhas, suas mortes e, finalmente, seu pacto com as trevas. Só naquele instante ele entendera o que os espíritos queriam dizer quando mencionavam a punição.
Quando a avalanche de pensamentos passou, Ernesto abraçou Ingrid como a pedir que ela salvasse sua vida. Ambos choraram. Dormiram abraçados na pequena cama do hospital.
Ernesto não acreditava em mais nada além da vida material. Deixou-se, então, conduzir pela medicina somente. O caso era extremamente grave e logo começaram as sessões de quimioterapia. Quando o medicamento entrava pelas veias, todo o corpo de Ernesto pinicava como se estivessem lhe espetando diversas agulhas.
Sem que ele visse, os espíritos aos quais se filiara estavam lá acompanhando tudo, aumentando suas dores, sua angústia. A influência foi tanta que Ernesto entrou em depressão profunda. Os exames anunciaram que o tumor não cedia e que mais sessões seriam necessárias, e que, findas estas, nada mais poderia ser feito. Felizmente, o tumor não havia se espalhado para outros órgãos, mas, se continuasse a crescer, certamente isso ocorreria. Foi com horror que Ernesto se viu careca e numa cadeira de rodas. Perdera completamente o gosto pela vida.
Mais uma vez seus pais estavam presentes, torcendo e com fé para que não perdessem o único filho que a vida lhes deixara.
Um dia, Ernesto estava em casa deitado, em depressão profunda, quando Ingrid entrou cautelosa no quarto.
-Tem visitas para você.
—Já disse que não quero ver ninguém, além da mãe Márgara. Ela quem tem me dado encorajamento.
Ingrid fez uma pausa e continuou receosa.
— Só que desta vez ela não veio sozinha, trouxe algumas pessoas com ela.
- Quem são?
— O Sérvulo e a Antônia.
Ernesto não conseguiu se lembrar imediatamente de quem se tratava, mas depois de alguns minutos pensou: "Será que são eles? Como tiveram coragem de vir aqui?" Ele pensou em não os receber, mas, no estado em que se encontrava, não poderia se dar ao luxo de escolher visitas.
- Peça que subam.
Sérvulo e Antônia entraram em silêncio. A princípio, assustaram-se com a aparência cadavérica daquele que lhes fora amigo por tanto tempo, mas, fingindo não perceber, perguntaram:
- Como está hoje, Ernesto?
- E como poderia estar? Caminhando para a morte. Não é isso que vocês espíritas dizem? Que morrer é bom? Então estou ótimo.
Antônia calou-se, havia muita dor e revolta no coração embrutecido de Ernesto, mas Sérvulo levantou-se calmamente e disse numa voz alta, porém educada:
- Sabia que nos receberia assim, mas vim aqui hoje com um objetivo, e não sairei sem cumpri-lo. Depois que eu falar tudo o que preciso, você pode me expulsar, a mim e a Antônia, como fez quando sua primeira esposa morreu, lembra? Mas agora tenho uma tarefa a seu lado e você vai me escutar, queira ou não.
Ernesto fez um ar de desagrado e falou:
- Não precisa me dizer nada. Veio aqui só para jogar na minha cara que Deus está cobrando meus débitos por ter me tornado pai de santo. Essa ladainha conheço de cor.
- Nada disso.Vim para dizer que você pode ser curado, levar uma vida feliz e saudável ao lado de sua família. Deseja isso?
A postura de Sérvulo, que não o condenou como ele imaginava que fosse ocorrer, despertou em Ernesto uma curiosidade. O que ele, então, viera fazer ali?
- Não venha me prometer uma cura miraculosa, pois não acredito.
- Não vim falar em milagre, mas em transformação. Primeiro quero que saiba de nossa história, de tudo o que aconteceu depois que você nos deixou. Peço a Antônia que lhe conte.
Antônia era a esposa de Sérvulo, simpática, forte sem ser gorda, cabelos ruivos e curtos, semblante sereno. Ela contou o que ocorreu e finalizou:
- Nós todos do centro tínhamos uma postura muito rígida com relação ao espiritismo e à vida de maneira geral. Fomos obrigados a passar por uma obsessão coletiva para que pudéssemos nos reavaliar e mudar. Sofremos muito, mas hoje o grupo mudou, evoluiu. Tanto que recebemos ontem uma mensagem de um amigo espiritual querido afirmando que deveríamos vir aqui dizer que você poderia se curar.
Ernesto estava cada vez mais atento. Seria possível essa cura? Ele não acreditava em Deus, em mais nada. Ou acreditava? Antônia continuou:
- Esse nosso amigo disse que você quer a todo custo impedir que Deus entre em sua vida, afirma que você nunca viveu de fato a espiritualidade. Embrenhou-se pelos caminhos do fanatismo e tornou-se um hipócrita. Sua mulher e suas fdhas, ao morrer, representaram um teste e você optou pela descrença e pelo caminho do mal. Esse amigo afirma que se você voltar ao bem, à espiritualidade, doar tudo o que adquiriu com o mau uso da mediunidade e, principalmente, perdoar a vida, o câncer vai desaparecer.
Desta vez Ernesto não debateu. Sempre que falavam para ele abandonar a fortuna sentia ímpetos de agredir a pessoa, mas será que seu dinheiro valia mais que sua saúde e felicidade?
- Como, assim, perdoar a vida?
- O câncer só aparece em uma pessoa quando ela guarda uma grande mágoa da vida, das pessoas ou quando ela carrega frustrações, depressões, tristezas. E uma doença do espírito.Você nunca perdoou a vida porque ela lhe tirou sua esposa e suas filhas. Por outro lado, fez muito mal em seu terreiro, o que o deixava cada vez mais infeliz. Foi essa energia acumulada em seu perispírito que fez com que você adoecesse.
- Deus não está me punindo pelos atos bárbaros que fiz como pai de santo?
- Não! Há espíritos interessados em que você pense assim, para que, cultivando a culpa, se entregue cada vez mais à doença. Mas isso não é verdade. Todo o mal que você fez pode ser consertado pela prática do bem. E claro que isso pode durar muitas vidas e você deverá fazer muito esforço, mas as doenças não são punições por erros, e sim o resultado do somatório das nossas emoções em descontrole.
- Então por que doar o que possuo?
- O dinheiro é sempre bem-vindo. A riqueza é progresso, luz, mas quando adquirida por maneiras honestas. Usar a mediunidade para o mal e, em troca, conseguir fortuna, é extremamente perigoso. Se você não mudar isso agora, depois da morte será levado ao abismo, e de lá não sairá tão cedo.
Ernesto ainda resistia.
- Não acredito em nada disso.
- Acredita, sim.Você nunca deixou de acreditar. Se não quer admitir fica mais difícil.
- O que fazer, então, com tanto dinheiro?
- Fique apenas com o suficiente para se manter até conseguir um emprego honesto e depois doe a instituições de caridade.Você tem uma casa que comprou assim que casou, volte para ela. Este é o preço da sua felicidade. Quer pagar?
Ele pensou um pouco e começou a chorar. Chorou muito. Os amigos deixaram que desabafasse. Mais tarde, quando foram embora, deixaram Ernesto bastante pensativo sobre tudo o que tinha ouvido. Sérvulo e Antônia, na verdade, não quiseram dizer, mas o espírito amigo que tanto queria ver o bem de Ernesto era Mariana.



35
A cura pela redenção

Após alguns dias, vendo que sua doença se agravava, Ernesto percebeu que realmente perderia a vida. Ao pensar em separar-se de Ingrid e de suas duas filhas, que tanto amava, sentia o desespero aumentar, o coração se oprimir. Já havia perdoado Diego, que estava morando em outra cidade com Vanessa e se recuperava bem. O que mais poderia fazer? Apesar de tudo, não conseguia esquecer as palavras de Antônia e Sérvulo. E se fosse verdade? E se ele se arrependesse e mudasse de vida? Haveria realmente chance de cura? Os próprios médicos já o haviam desenganado.
Uma tarde, enquanto estava só no quarto do hospital, ele começou a rezar. No começo de forma mecânica, depois foi abrindo seu coração ao Criador, mostrando-se perdido, implorando a Ele sua cura, pois estava arrependido e por amor iria mudar, fazer tudo diferente. Orou com tanta sinceridade e fervor que logo depois seres luminosos, vestidos de médicos e enfermeiros, juntos com Mariana, entraram no quarto. Um deles comentou:
— Felizmente ele voltou ao caminho. Qual o filho pródigo, Ernesto hoje retorna à casa do Pai. Poderá se curar, não precisa mais da doença.
Logo, a equipe médica começou a trabalhar em seu perispírito e em seu corpo físico. Traziam equipamentos, remédios líquidos e, com as mãos, retiravam camadas escuras de energias que estavam impregnadas em sua aura. Quando terminaram, um dos médicos olhou para Mariana e falou:
- Nossa parte acaba, por ora, o resto a natureza dará conta de restaurar. A lição foi aprendida e hoje Ernesto nasceu mais uma vez.
Mariana chorava, emocionada.
- Como Deus é bom! As pessoas ainda não pararam para perceber o tamanho de Sua misericórdia. Basta uma mudança de pensamento e comportamento para que toda uma vida se modifique ao toque do Criador.
- Além do que, sabemos como Ernesto se comprometeu desde sua última encarnação — disse um dos médicos.
- Sim - tornou Mariana. - No passado, na época da tão famosa corrida do ouro, ele era um simples sertanejo do norte. Quando ficou sabendo que podia ficar rico nas minas, abandonou a família e foi em busca da fortuna no Sul. Mesmo trabalhando na cata, nas escavações, nada conseguiu, até que um dia, desesperado para encontrar a maior pedra que pudesse, disse com todo o fervor que daria sua alma ao diabo para achar um diamante que o tornasse imensamente rico. Sem saber, ele acionou forças de espíritos trevosos que se dizem demônios, que o envolveram, e ele passou a agir diferente. Com cautela e de maneira quase automática, começou a escavar num local onde ninguém suspeitava existir nada de especial, mas eis que surgiu o diamante tão esperado. Muito rico, ele trouxe sua família para as Gerais, onde viveu bem pelo resto da vida. Quando morreu, bastou sair da sepultura para encontrar um espírito deformado à sua espera. Intitulava-se Belzebu e lhe disse:
"Aristides, esqueceu que você vendeu sua alma para mim?"
"Como? Minha alma?"
"Sim, você disse que daria sua alma ao diabo se achasse o diamante. Então trabalhei ao seu lado até você o encontrar. Não acha que é hora de me retribuir?"
— Aristides, muito assustado e percebendo que realmente havia morrido, perguntou:
"Então você é o diabo?"
— A entidade mentiu:
"Eu mesmo. E você acha que foi quem que tentou Jesus no deserto? Eu, meu caro. Agora vamos."
- Aristides tentou fugir, mas percebeu que era em vão. Logo foi amarrado e levado a um palácio no mundo das trevas, onde, apesar do luxo excessivo, tudo era sujo e malcheiroso.Trabalhou durante anos como vassalo dessa entidade, até o dia em que fui chamá-lo. Ao me ver e reconhecer como sua mãe, ele se jogou em meus braços e o levamos para a nossa colônia.
Ela continuou:
- Explicamos que há superstição nas histórias de pessoas que vendem a alma ao demônio, pois ele, na realidade, não existe, mas sim espíritos ignorantes que assim se intitulam. Contudo, quando uma pessoa diz isso acreditando que há uma força do mal capaz de ajudá-la em troca de sua alma, esses seres das trevas se aproximam e ajudam para cobrar depois. Ele entendeu e, após um tempo conosco, foi para uma cidade estudar e descobriu que na próxima vida seria médium e ajudaria os sofredores do além. Mas havia a prova da fortuna e o reencontro com essa entidade que, apesar de séculos, ainda foge à reencarnação, escondendo-se no centro da Terra. Se ele vencesse a prova da cobiça pelo dinheiro desonesto e resistisse em usar a mediunidade para o mal, sairia vitorioso. Mas ele, mais uma vez, mostrou que ainda não estava preparado, e por ignorância fez o melhor que pôde. No entanto, colheu os resultados, aprendeu, evoluiu, está imunizado.
O médico a olhou e comentou:
- E isso mesmo. Cada um escolhe a maneira como vai evoluir e chegar mais rápido à perfeição total. Agora, deixemo-lo repousar e de longe observaremos a medicina da Terra dizer que um milagre aconteceu.
Ernesto sentiu uma tranquilidade após a oração e adormeceu profundamente. Os dias foram passando e, vez por outra, a equipe médica do astral retornava e continuava o tratamento.
Surpreendentemente, os médicos foram notando sensível melhora em Ernesto. Estava mais forte, menos pálido, tossia menos, queixava-se menos da dor, a cada dia progredia mais. Os médicos, com o fato inesperado, fizeram novos exames, nos quais foi detectado que o tumor havia sido reduzido a tal ponto que poderia ser operado.
Ninguém acreditava no que estava acontecendo. Um verdadeiro milagre ocorrera ali. No momento propício e com Ernesto mais resistente, a cirurgia foi realizada com sucesso. Os pequenos tumores que haviam se instalado em outros lugares simplesmente desapareceram. O caso de Ernesto foi comentado por toda a mídia e pesquisado para a divulgação de artigos nas mais variadas revistas científicas.
Realmente, acima de tudo está Deus!
Ernesto teria de continuar fazendo exames de revisão ainda por muito tempo, mas logo retornou às suas atividades no centro espírita. Lá encontrou Lucrécia e Arlete. As duas se admiraram, pois o palestrante da noite era ele. Ambas foram cumprimentá-lo.
- Muito bonito e certo tudo o que você disse — afirmou Arlete.
- Sua oratória é maravilhosa - elogiou Lucrécia.
- Agradeço pelos cumprimentos, mas o mérito é do alto. Eu ainda estou tentando chegar lá.
Ambas riram amavelmente. Ernesto perguntou como as duas estavam, e Lucrécia foi a primeira a falar:
- Eu estou muito bem, trabalho como voluntária aqui no centro e tenho me sentido útil. Procurei tornar minha vida uma alegria, não quero mais casar. Meu prazer agora é viajar, curtir meus futuros netinhos e continuar meus estudos sobre a vida espiritual. Sinto-me completamente preenchida assim. Já Arlete... - ela deu uma piscadela maliciosa.
- O que tem a Arlete?
- Está namorando o fdho mais novo do Sérvulo. Apesar da diferença de idade, Luiz é um rapaz honesto, sincero, tem valores nobres. Minha fdha está e será muito feliz.
Eduardo e Alice aproximaram-se.
- Estes são meu fdho e minha nora.
Ernesto olhou para a barriga de Alice e comentou:
- A senhora vai ser vovó mais cedo do que eu imaginava.
- Isso mesmo. Não imagina como estou feliz, finalmente o neto com que tanto sonhei.
Ela fez uma pausa, olhou profundamente para Ernesto e comentou:
-Você...Você nem parece aquele homem que conheci e que fazia feitiços.
Todos ficaram constrangidos, não esperavam que Lucrécia fosse tocar naquele assunto. Sem cerimônia, Ernesto respondeu:
- Eu não era aquele homem. O verdadeiro está aqui, na sua frente. Quando enveredamos pelo caminho da maldade, deixamos de ser nós mesmos e passamos a agir contra nossa verdadeira essência. Precisei passar por um câncer para aprender isso.
Todos ficaram admirados com a resposta dele. Era realmente um homem inteligente e que, pelo sofrimento, aprendera o valor do bem. Despediram-se e felizes rumaram para suas casas.





Epílogo
O obstetra tentava visualizar com dificuldade o sexo do bebê, e após algum tempo conseguiu. Olhou para o casal ansioso ao seu lado e disse:
- Parabéns, terão uma menina!
O marido, olhos marejados, beijou a esposa, que chorava de felicidade.
- Meu amor, uma menina. Quanta felicidade!
Vieram os preparativos. Quarto e móveis novos comprados com dificuldade, paredes pintadas em rosa-chá, bonecas usadas, vestidos. Nove meses depois, uma linda e saudável menina acabava de nascer.
A mulher olhou para o marido e falou:
- Não escolhemos ainda o nome. Ficamos muito indecisos. Precisamos registrar, temos de escolher rápido.
O homem pensou e, num lampejo, falou:
- Mariana! Ela vai se chamar Mariana.
Assim a registraram. Dois meses se passaram, a menina cresceu e foi ficando cada vez mais bonita. Até que um grave acidente levou a vida de seus pais e a criança foi parar nas mãos de sua única parenta viva. Era uma senhora pobre, mas de sentimentos nobres. Olhou para a menina e disse:
- Aqui onde moro não posso te dar nem comida, vai para o orfanato.
Helena saiu numa noite em que a chuva caía fina e deixou o pequeno carrinho na porta do orfanato sem ser vista. Pouco tempo depois, o porteiro, que havia saído, retornou ao seu posto quando escutou um choro. Abriu o portão e percebeu que era mais uma rejeitada. Entre os poucos pertences da garota, encontrava-se um papel no qual estava escrito o nome Mariana. Assim todos passaram a conhecê-la lá dentro.
Pouco tempo depois, um casal interessado em adotar uma criança entrava no escritório do diretor.
- Meu marido, Ernesto, colocou na cabeça que deve adotar uma criança. Agora que ganha bem, passou no concurso e voltou a trabalhar no banco, sabe que conseguirá — dizia Ingrid.
O diretor os olhou, como se os estivesse analisando, e disse:
- Muitas crianças chegam aqui toda semana. Terão de escolher e passar por toda a burocracia que uma adoção legal requer.
- Estamos dispostos - disse Ernesto.
Logo foram ao berçário e se encantaram com um bebê negro que sorria insistentemente para eles com olhos brilhantes. Num ímpeto, Ernesto disse:
- É aquele! Vamos adotar aquele!
- É uma menina - disse a assistente social que os acompanhava. - Chegou tem mais de um mês.
Aproximaram-se. Uma emoção muito forte tomou conta de Ernesto.
- Ela tem nome?
- Sim. Aqui todos nós a chamamos de Mariana. No saquinho com as roupas dela tinha um papel com esse nome escrito.
Ingrid e Ernesto se arrepiaram. Seria quem eles estavam imaginando? Não. Não poderia ser, estavam fantasiando. Eles prosseguiram com o ato de adoção até que conseguiram oficializá-lo.
Foi uma felicidade a chegada da criança àquela casa. Era mais um motivo que todos ali encontravam para viver. Quando os olhinhos vivos dela se encontravam com os do pai, ele não continha a pergunta:
— Mariana, será mesmo você?


Fim



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A Missão



Mônica Rocha


Romance



ÍNDICE


PrefácioAugusto e PedroDaniloTamboresA expediçãoO HospitalO despertar de DaniloA visita de Francisco
Primeiro passeio
Os terrores de Pedro
A revelação
Dona Marieta e Dona Cacilda
Novos amigos
Os sonhos de Pedro e André
A reunião
Encontro de amigos
A Missão é apresentada
Alegria na enfermaria

Pág.

03
11
28
37
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101
124
138
150
159
167
177
188
202
216
237


A partida 249


Nas estradas da Terra 262
Mãe Maria Eufrásia 279
Um pedido de socorro 288
Em que mundo estamos? 307
A fortaleza medieval 319
Parada no bar 342
No coração do inimigo 354
Numa prisão sombria 371
O encontro com Simeão 387
Os cientistas 398
Combate final 415
Vamos voar, voar, voar,

meus amigos... 422


PREFÁCIO — A MISSÃO

Foi bem no início da década de
sessenta, que ficamos conhecendo,
pessoalmente, a Autora deste livro, a
jornalista Mônica Ribeiro Rocha, quando
de sua visita a Uberaba, não somente com
missão de fazer uma reportagem sobre o
médium Chico Xavier, mas,
principalmente, para mostrar-lhe algumas
páginas por ela psicografadas, de grande
beleza, assinadas por um Espírito que a
intrigou bastante pela pureza e a fluência
das idéias que eram passadas para a folha
em branco, e temerosa de que estivesse
sendo assediada por alguma entidade
culta, porém menos feliz, com vistas a
levá-la ao ridículo. Achou por bem ouvir,

o quanto antes, quem lhe pudesse,
calcado em sua grande experiência, dar os
esclarecimentos necessários,
tranqüilizando-a tanto quanto possível.
Apresentada ao nosso amigo e
médium de Emmanuel, este, depois de
passar os olhos pelas páginas
cuidadosamente datilografadas, afirmou-
lhe, em nossa presença:


— Minha filha, estas mensagens são,
de fato, do Espírito que as assina, seu
amigo de vidas passadas, mas, seguindo
as orientações de Allan Kardec,
precisamos ter mesmo muito cuidado com
os nomes utilizados pelos Espíritos e
apostos ao final das comunicações
mediúnicas. O que nos interessa é a
orientação evangélica, mesmo em se
tratando de páginas de cunho científico,
que nos chegam por intermédio da
mediunidade, e não propriamente o nome
do Espírito comunicante, a não ser nos
casos em que haja absoluta necessidade
de sua identificação, para consolo dos que
ficaram neste mundo, contribuindo assim
para a divulgação da verdade irretorquível
de que não existe a morte, prosseguindo,
estuante, a vida além do túmulo.
Não são estes os termos ipsis litteris
do médium do Parnaso de Além-Túmulo,
devido ao tempo transcorrido desde que
foram pronunciados, mas o certo é que
Mônica ficou radiante de alegria com o que
ouviu, solicitando como proceder no caso
de prosseguir na tarefa psicográfica.

Foi quando Chico Xavier lhe disse,
despedindo-se de nós, em seguida, para


atender outros companheiros que o
aguardavam, ansiosos para registrar-lhe a
palavra sempre sábia e confortadora:

— Já que você é jornalista, permita
Deus que doravante possa vir a ser, além
de jornalista, escritora e médium.
Passaram-se anos até que, nos
primeiros dias de setembro de 1994,
Mônica nos informou que estava
escrevendo um livro e ainda se
perguntando o que fazer com semelhante
material. Solicitamos-lhe nos mandasse,
por via postal, no máximo seis capítulos
de cada vez, de quinze em quinze dias, a
fim de que pudéssemos, superando a
nossa indisciplina pessoal e a falta – por
que não dizer material – de tempo,
percorrer, palavra a palavra, o livro em
andamento. E deste modo os capítulos
foram se sucedendo e cada vez mais nos
convencíamos de que se tratava de
experiência séria, narrada de modo
bastante descontraído, com diálogos
freqüentes, em estilo inquestionavelmente
cinematográfico, narrando a perplexidade
de Espíritos colhidos pela desencarnação,
sem nenhum preparo para se adequar à
vida que prossegue no Plano Extrafísico.


Evitando, naturalmente, tirar ao leitor
o prazer de sentir e compreender o
desenrolar de todas as passagens de A
Missão, tomamos a liberdade de
esclarecer apenas alguns pontos que
reputamos valiosos para os nossos
estudos doutrinários.

Da imensa galeria de personagens,
num total de pouco mais de trinta que
movimentam esta narração, algumas
aparecendo em raros lances, somente
duas pertencem – é bom que se frise – ao
Plano Físico. Todas as demais
desempenham os seus respectivos papéis,
nas regiões inferiores da Espiritualidade,
com episódios de acentuado realismo,
prendendo a nossa atenção da primeira à
última página.

São feitas referências aos locais de
transição onde os Espíritos se abeberam
de energias que lhes são necessárias,
dando ênfase ao "Grande Lar Francisco de
Assis".

Dramáticas, a nosso ver, as cenas de
socorro aos Espíritos de paleontólogos e
sua equipe, enquanto os bombeiros da
Terra se esforçam na remoção de
escombros, onde antigos caçadores de


tesouros há longo tempo desencarnados,
se encontram ensandecidos, e a descrição
da paisagem dantesca do Campo de
Pedras, com as estátuas que vivem
chorando e que se derretem com as
próprias lágrimas, anteriormente
hipnotizadas por perseguidores cruéis, que
desconhecem, por enquanto, a Lei do
Perdão.

O fato de a quase totalidade dos
Espíritos em torno dos quais gira a trama
do presente livro ter chegado ao Mundo
Espiritual, sem o devido apresto,
desconhecendo, por completo, o
continuísmo da vida além da tumba, e de
que somos o que somos, sem qualquer
disfarce, no devido lugar onde nos
encontremos, sempre colhendo o que
semeamos, vem confirmar o que
constatamos, desde 1959, em nossas
sessões de Desobsessão: entidades
espirituais, depois de com muito amor
esclarecidas, notadamente as intelectuais,
suplicam-nos levar aos profitentes das
religiões formalistas e aos cultores do
materialismo semelhantes verdades, para
que não venham a enfrentar o terrível
choque, que elas mesmas sentiram,


idênticas às descritas por Lucas, em XVI,
versículos de 19 a 31, e estudadas por
Allan Kardec no item 5 do Capítulo XVI –
"Não se Pode Servir a Deus e a Mamon" –
de O Evangelho Segundo O Espiritismo.

Os idosos que aparecem neste
volume, assim se apresentam devido às
suas respectivas condições espirituais, não
nos esquecendo de que o Espírito que
atingiu a senectude no corpo físico e
desencarnou de consciência tranqüila,
poderá retomar a sua condição de
maturidade ou de juventude, desde que
isto lhe seja de proveito para ajudar
outros Espíritos a buscarem Jesus, na
grande caminhada evolutiva, ou por
decisão de foro íntimo.

Enfim, a persistência do chefe ligado
às inteligências perversas do Plano
Espiritual dito inferior, no caso Gabriel,
negando-se a aceitar o próprio socorro dos
pais e dos amigos da Espiritualidade, é
mais do que natural, e dia virá em que o
aludido companheiro, ao sentir indícios de
arrependimento, será imediatamente
amparado e conduzido a uma sessão de
Enfermagem Espiritual de um Centro
Espírita bem assistido pelos Benfeitores da


Vida Maior, onde, depois de se comunicar
psicofonicamente através de um abnegado
médium, e atendido com maternal
dedicação por um dos esclarecedores da
casa, sob a assistência paternal dos
Espíritos ligados à Vida Superior que
supervisionam os trabalhos, demandará a
Colônia Espiritual mais próxima, a fim de
que, mais pacificado, receba o tratamento
médico adequado para, posteriormente,
participar dos diversos cursos nas escolas
especializadas para atendimento aos
egressos das regiões denominadas
umbralinas pelo Espírito de André Luiz, em
Nosso Lar, recebido pelo médium
Francisco Cândido Xavier, em 1943.

Agradecendo à prezadíssima Autora
deste livro pela sua coragem ao nos
convidar para que desempenhássemos a
honrosa tarefa de modesto prefaciador,
permitindo-nos tornar um "leitor de
primeira mão", rogamos a você que vem
percorrendo, pacientemente, estas linhas,
escusas pela extensão delas, esperando
que, sem perda de tempo, mergulhe, de
corpo e alma, nas páginas de A Missão,
das quais há de sair disposto a continuar
estudando as obras de Allan Kardec, as de


André Luiz e as de Emmanuel,
psicografadas pelo médium Xavier,
seguindo os passos de Jesus, na

divulgação da Doutrina Espírita,
abençoada sempre, auxiliando os nossos
irmãos em Humanidade na preparação
para o fenômeno mais do que natural da
desencarnação, praticando, em espírito e
em verdade, os ensinamentos do Cristo.

Elias Barbosa
Uberaba, MG


AUGUSTO E PEDRO

A corrida era cansativa, o local ermo
e inóspito. Tenebroso mesmo. As trilhas,
mal delineadas, cheias de pedras e plantas
espinhosas. Em alguns locais, árvores
ressequidas estendiam os contorcidos
braços para cima e grandes rochas negras
interrompiam a caminhada. Então, era
necessário contorná-las e, muitas vezes,
escalá-las perigosamente, usando apenas
as mãos e os pés, ferindo as unhas, para
continuar novamente o trajeto do outro
lado. Sempre em direção nenhuma, para
lugar nenhum.

Neblina baixa e espessa, frio intenso,
nem pensar em sol. Será que ali algum dia
existira sol e calor? De vez em quando,
poças de água lamacenta e escura,
pegajosa, pesada. Em alguns locais, havia
tanta lama que ela podia engolir
tranqüilamente um homem. Em outros, o
chão rachado e seco parecia querer tragar
algum incauto que por ali passasse. Já em
outros, era puro pântano para atravessar.
A água lodosa atingia a altura dos joelhos
e era preciso segurar nos galhos para não


afundar. Por isso, era importante não se
afastar da trilha, por piores que fossem as
condições dela, por mais terríveis que
fossem o pântano ou o espinheiro.

Augusto tentava correr e não
conseguia, respirando com dificuldade,
tentando chegar, nem mesmo sabendo
onde. Havia dias que percorria aquele
caminho, não por opção, mas porque era

o único. Nem queria pensar em se desviar,
pois aí é que se perderia de vez naquela
imensidão de pedreiras, entremeadas por
extensões de areia, de pedras, de
cascalho, de espinhos, de barro e lama.
Por onde andava, pelo menos estava bem
claro: era um caminho – reconhecível
pelas marcas deixadas pelos caminhantes
que haviam passado antes dele, tão
desesperados quanto ele: roupas
rasgadas, sinais com panos nos galhos,
como que marcando passagem e, nos
locais castigados pela seca, havia marcas
de pés gravadas no chão árido. Como toda
estrada, possivelmente levaria a algum
lugar. No entanto, assustado, faminto,
cansado, com frio e com sede, estranhava
não ouvir nem um ruído, nenhum sinal de
vida. Parecia que, naquele silêncio

absoluto e inquietante, o relógio do tempo
havia parado há muito.

Chegou a um local mais espaçoso,
limpou com a manga rasgada o suor
gelado do rosto e sentou-se em uma
pedra para pensar, colocar as idéias no
lugar, tentar equilibrar a mente cansada.
A única coisa de que se lembrava, assim
mesmo vagamente, é que, ao acordar do
desmaio, se vira andando. Que coisa
estranha! Não conseguia se recordar do
que ocorrera entre o desmaio, nítido em
sua mente, e a hora em que sentira que
andava. Mas o momento da perda dos
sentidos estava claro em sua lembrança:
atravessava a rua com Esther, quando
caíra. Depois, o vazio: nem Esther, nem
rua, nem nada! Apenas aquele caminho
feio e infinito e o cansaço extremo.

Pensou em seqüestro. Claro!
Recebera algum golpe e perdera os
sentidos. Fora então levado e abandonado
em local desconhecido. Só poderia ser
isto! Mas, uma dúvida: por que alguém
iria seqüestrá-lo? Ele não era rico, não
tinha nada para dar em troca da própria
vida... Que confusão!... E quanto a Esther,


onde estaria? Se tivesse sido o tal
seqüestro, ela estaria nas mãos dos
bandidos ou teria conseguido fugir? Deus!
Cruel dúvida!

Resignou-se: a única solução era
andar. Procurar um sinal de vida, alguém,
pelo menos um som! Irritante aquele
silêncio! Ou ele teria ficado surdo? Outra
dúvida, Deus do céu! Mas, se seguisse a
trilha principal, mais larga um pouco que
as outras, certamente chegaria a uma
estrada, uma fazenda, um sítio, um posto
policial, um local qualquer, onde pediria
socorro e se informaria.

Ficou de pé, colocando as mãos nos
bolsos da calça. Outra surpresa! Onde o
dinheiro, os documentos, os óculos, o
revólver carregado que sempre trazia
consigo? Olhou as mangas outrora
compridas da camisa francesa, de seda.
Rasgadas, sujas de lama e sangue. Foi
quando notou que a testa doía
intensamente. Compreendeu que, ao
enxugar o suor, espalhara sangue pelo
rosto e pela manga. Estava ferido na
cabeça. Bandidos! Se não tivesse sido
seqüestro, o que era improvável, um


assalto poderia ter acontecido. Agora
entendia: pancadas na cabeça criam
amnésia temporária. Era isso! Por isso não
se lembrava de nada, ficara um lapso em
seus pensamentos, criando a dificuldade
de coordenar as idéias. Mas, não podia se
desesperar, senão as coisas piorariam.
Pelo jeito, a memória estava voltando,
pois já conseguia recordar nitidamente a
hora em que caíra no meio da rua.

O frio cortava a pele. Não sabia dia
nem hora. Uma sensação de flutuar no
vácuo, de medo mesclado à incapacidade
de reagir – contra quem ou contra quê? –
tomou conta dele. Criou coragem.
Respirou fundo e sentiu uma dor aguda no
peito. Recomeçou a andar, tropeçando,
pois o caminho estava pior, com pedras e
galhos secos espalhados pelo chão,
estalando a qualquer toque.

Olhou para cima para se orientar e
constatou que não havia céu. A névoa
espessa cobria e envolvia tudo, inclusive
ele. Parecia grudar em sua pele, entrar
pelos seus poros, fazer parte dele. Nem
mesmo dava para enxergar um palmo


adiante. Puxa! Tiveram o cuidado de
deixá-lo bem longe de casa!

Gritou com sua voz forte,
perguntando se havia alguém por perto.
Nada respondeu e ele notou que nem eco
sua voz tinha.

Apanhou do chão um galho seco,
grosso e cheio de espinhos. Escolheu o
maior. Poderia precisar de uma arma.
Tentou olhar as horas, mas – surpresa! –
haviam roubado seu relógio também.
Ficou bravo de verdade. Afinal, seu Rolex
fora de seu pai. E ele gostava muito deles,
do pai e do relógio. Foi quando sentiu algo
passando muito perto, se arrastando.
Parou, apertou mais o galho nas mãos,
cujos dedos sangraram com os espinhos.
Nem notou, de tão tenso. Olhou em volta,
devagar. Nada. Pensou que havia
imaginado aquilo, era fruto do medo.
Tinha que se controlar, pois não havia
ninguém e o pânico só podia trazer mais
complicação e alucinações. E complicação
ele já tinha o bastante.

Esbarrando e tropeçando, tentando
andar mais rápido, soltando impropérios e
nada enxergando nem ouvindo, sangrando


na testa e nas mãos, empunhando a
estranha arma, continuou seguindo a
inusitada trilha, como um louco perdido no
meio do nada.

A névoa cada vez mais espessa e a
falta de noção de tempo e hora estavam
deixando Augusto cada vez mais
perturbado, cansado, desesperado. Não
havia horizonte, enxergar era difícil, voltar
atrás impossível, ouvir ele não ouvia nada.
E nem sequer sabia se estava surdo ou se

o lugar era fantasmagórico e não tinha
som. Gritar, já havia tentado e só
conseguira o pânico de sentir algo
rastejando por perto. Desesperava-se
cada vez mais. Sabia que estava
machucado, mas não o quanto, se era
grave ou superficial. Temia desmaiar
novamente e morrer abandonado naquele
inferno terrível. Para completar, o sangue
escorria abundantemente da testa.
Curiosamente, não coagulava, corria
tranqüilo, marcando veios em seu rosto,
em seu peito. Deus! Aquilo era o pior! Se
perdesse muito sangue, não sobreviveria!
E se ali vivessem bichos ferozes? Eles
poderiam devorá-lo, atraídos pelo cheiro
de seu sangue! Mas, que nada! Como

pensar que algo poderia viver ali, naquele
local que só lembrava morte? Sempre tem
um abutre nesses locais, pensou... O
medo, gerado e alimentado pelo
desespero, criava em sua mente situações
impossíveis e aterradoras. Augusto
brandia o pau, que trazia na mão
esquerda, como se fosse uma espada.
Com o braço direito estendido, tateava a
frente. E tentava correr, sem conseguir,
tropeçando, caindo, levantando, gemendo,
reclamando, praquejando.

Ele era um homem treinado para
situações difíceis, um militar altamente
graduado e medalhado por bravura e bons
serviços e, no entanto, contrariando o que
aprendera durante a vida toda, sabia que
estava perdendo totalmente o controle.
Suava frio e o suor misturava-se ao
sangue, raleando-o. A camisa já estava
empapada. O que perturbava mais era a
sensação de que tudo estava parado, sem
sons nem movimento, o nada em direção
ao nada. Nunca sentira um silêncio tão
grande, não ouvia nada, nem mesmo os
próprios passos. E, pior ainda, perdera a
noção de há quanto tempo vagava sem
rumo. Não tinha também a menor idéia de


porque estava ali, como chegara ou
mesmo como sairia. Quanto mais força
fazia para se recordar, menos conseguia,
mais se desesperava, mais se
descontrolava. A cabeça rodou, os olhos
reviraram e ele caiu, braços e pernas
abertos, estatelando-se de costas no chão,
em completo silêncio, ganhando mais um
ferimento na nuca ao bater com ela numa
pedra pontiaguda.

Quando acordou – nem tentou
imaginar quanto tempo depois – a névoa
havia se dissipado um pouco, o suficiente
para que levasse um tremendo susto.

Em pé, observando-o com ar idiota,
um homem imenso, alto e magro, cabelos
pretos emaranhados, lisos e cortados
retos, alguns fios compridos grudados na
testa empapada de suor e sangue, olhos
esbugalhados, machucado e assustado
como ele, olhava-o fixamente,
aparentando estar na mesma situação.
Usava terno, se é que aquele monte de
molambos sujos e sangrentos podia
lembrar um terno.

Instintivamente, procurou o pau com
uma das mãos. Mas sentiu a inutilidade do


gesto, pois o estranho nem se moveu.
Nem mesmo tentou ajudá-lo a se levantar
quando, com dificuldade e gemidos,
ergueu-se. Nem falar ele falou. Continuou
ali, olhando-o. Por um bom tempo, os dois
continuaram se observando de maneira
vaga, cada qual mais perdido no tempo e
no espaço e, principalmente, dentro dos
próprios pensamentos desordenados.

Augusto animou-se a falar primeiro:

— Olá! Quem é você? Meu nome é
Augusto e o seu? Não tente me perguntar
onde estamos, pois vejo que você não
sabe e muito menos eu. A propósito, só
por perguntar e já sabendo de antemão a
resposta: sabe onde estamos?
O outro respondeu sem se mover, os
olhos parados, como se fosse um robô:

— Pedro... Não sei como cheguei
aqui. Parece que estou vivendo um
pesadelo... Sabe me dizer onde estamos?
– devolveu a pergunta, abobalhado,
olhando em volta, sem nada ver.
Augusto não se conteve e, como um
louco, desatou a gargalhar nervosamente.
No entanto, seu riso não tinha som nem
eco e tornava ainda mais terrível a


situação. Grande coisa lhe acontecera! –
pensou. Alguém tão perdido como ele,
machucado, assustado e cansado que nem
ele.

Pedro continuava olhando para o
outro, com olhos inexpressivos e
doloridos. Tentou explicar-se, com voz
pausada, baixa e assustada, muito
lentamente:

— Eu acabava de estacionar o carro
em frente à minha casa... Só me lembro
de uma dor forte nas costas, como uma
punhalada ou um tiro, sei lá... Devo ter
desmaiado e caído. Depois, não sei.
Acordei aqui. Ou melhor, por aqui,
vagando. Não sei dizer se ando há dias ou
há horas. Não vejo nada, não ouço nada,
estou cansado e, pela primeira vez na
minha vida, estou com medo. Penso que
roubaram meu relógio, documentos,
carteira, pois não consigo encontrá-los...
Minhas costas doem terrivelmente e só
estamos juntos porque tropecei em você.
— Nossa situação é mais ou menos a
mesma. Acredito que fomos vítimas de
bandidos, que nos doparam e nos
abandonaram no mato. Ou talvez tenham

pensado que estávamos mortos e nos
largaram na estrada. Cheguei a pensar
que, no meu caso, fossem seqüestradores.
Mas, por que? Não sou rico... Já quanto a
você... É rico? Se não for, devem ter sido
ladrões de carros. É isto mesmo! De toda
maneira, este deve ser um local de
desova. Pensaram que estávamos mortos
e nos jogaram aqui. Pode crer em mim:
esta neblina intensa deve estar
escondendo muitos cadáveres, vítimas dos
criminosos que pululam pela cidade,
garanto. Quando chegarmos em local
seguro, vou mandar vasculhar aqui,
drenar onde houver pântano, e teremos
muitas surpresas. Pegaremos os bandidos
também. Os que me atacaram e os que
atacaram você. Ah, isto eu garanto!

De repente, Augusto sentia que suas
idéias estavam se concatenando e
pensava melhor. Aprumara-se, já não
sentia tanto frio nem tanta dor.
Curiosamente, o sangue não escorria mais
pelo seu rosto: coagulara-se. Refez-se do
medo. Respirou fundo. O instinto dizia-lhe
que, para sair dali, tinha que reagir. A
presença do outro lhe fizera bem,
encorajara-o. Afinal, Pedro não era um


pesadelo ou um fantasma. Era real. E, se
algo real acontecera, havia chance de ser
superada aquela situação difícil e
complicada. E ele, Augusto, tinha preparo
suficiente para encarar fosse o que fosse,
lidar com qualquer situação. Era a sua
profissão a vida toda, fora treinado para
superar situações difíceis, perigosas.
Começava a se controlar, tentava se
orientar.

E era justamente aí que começava o
primeiro problema: sentia que, pelo
menos por enquanto, não podia contar
com o outro. Teria que ajudá-lo e resolver
tudo sozinho. Com olhar firme encarou
Pedro, que continuava com os olhos fixos,
perdidos e desesperados. Só faltava cair
em prantos o pobre homem! Augusto
sacudiu-o pelos ombros.

— Acorde Pedro! Vamos conversar,
nos organizar. Caso contrário, morreremos
aqui. Aliás, pela nossa aparência física,
falta muito pouco... Diga-me: qual é a sua
profissão?
— Sou empresário. Trabalho com
armas e defesa.

— Armas contrabandeadas, posso
supor?
— Não pode supor não! Dirijo uma
empresa de consultoria de segurança.
Tenho clientes em todos os setores:
grandes empresas, pessoas famosas,
políticos, etc. Somos quatro sócios. Sob
nossas ordens há laboratórios e
pesquisadores, bons e experientes
profissionais. Os estudos, planos e
estratégias são muito seguros e precisos.
Incentivamos a segurança em todos os
níveis, em todos os locais, e treinamos
pessoal para usar técnicas inéditas, de
altíssimo nível. Nossos homens, após
cursos, estudos, estágios no exterior e
provas práticas, ficam altamente
especializados, não perdem o controle
nunca e realmente são benéficos para a
população. Meu trabalho é mais ou menos
isso. Se tiver mais coisa, esqueci.
Pedro sentou-se, esparramando-se
no chão, cansado do esforço de falar e
pensar. Segurou a cabeça com as mãos,
tentou ajeitar os cabelos lisos e rebeldes e
completou desolado:


— No entanto, veja você: agora estou
só, desarmado, inseguro e desarvorado.
Não sei que lugar é este, minhas costas
continuam doendo, minha cabeça roda,
tenho dificuldades de orientação e
concentração, não consigo pensar direito e
não tenho notícias de minha família. Nem
mesmo sei o que aconteceu comigo, se foi
um assalto, um acidente, ou qualquer
outra coisa. O que estará acontecendo
com minha família? Não sei... Onde estou?
Há quanto tempo? Quem é você? Devo
mesmo acreditar que se chama Augusto?
E que importaria numa situação assim? E
sou um expert em segurança...
— Segurança por segurança,
empatamos. Já disse quem sou. Chamo-
me Augusto e sou militar. Vamos sair
dessa. Coragem! E siga-me.
Milagrosamente, Augusto sentia que
havia se recuperado. Tinha esperanças de
sair dali. Nada mudara na paisagem e na
situação. Mas tudo mudara dentro dele,
que, mesmo sem ver nada, começou a
andar com passo firme.

Maquinalmente, o outro se levantou e

o seguiu de perto, os dois andando

devagar e cautelosamente, evitando cair
em algum buraco dos muitos existentes –
que apareciam repentinamente – tentando
enxergar à frente, como duas sombras
movendo-se no meio da bruma
desconhecida. Nenhum dos dois saberia
dizer ao certo e com segurança de onde
vinham e para onde iam. No entanto,
faziam a única coisa que podiam fazer
naquele momento cruciante: andavam.

A dificuldade de concentrar os
pensamentos era tanta, que eles nem
tentavam pensar em algo, nem sequer
olhavam para os lados e nem mesmo
achavam necessário gravar na mente o
quanto andavam. Ou mesmo marcar os
locais por onde passavam. Para que? Se
por acaso voltassem atrás, não iriam
mesmo achar onde já haviam passado... A
neblina continuava forte, o frio intenso,
pairava no ar a dúvida se estavam
andando em círculo. Mas nenhum deles
ousava levantar o problema. Apenas
caminhavam, um atrás do outro.

Isto, até ouvirem os ruídos, únicos no
meio do silêncio do abismo. Diferentes,
surdos, graves, impossíveis de serem


classificados como humanos ou de
máquinas. Nenhuma identificação possível
para eles. Sobre-humanos? Subumanos?
Mas quebravam o silêncio terrível. E sons
são sinais. Sinais de vida por perto.

Esquecidos do cansaço, das dores e
do medo, os dois começaram a correr,
tropeçando, escorregando e caindo, em
direção aos sons.


DANILO


O médico dissera que seria uma
operação banal, mas ele bem sabia que a
verdade era outra. Simplesmente porque
não existem operações corriqueiras.
Afinal, não pode ser simples abrir uma
pessoa, mexer nos órgãos dela, costurar,
colocar remédios e muitas coisas mais!
Cirurgiões são interessantes: cortam o
sujeito todo, emendam, tiram e
acrescentam pedaços, fazem transplantes,
costuram e, depois, na maior ingenuidade
do mundo, dizem sorrindo que não foi
nada!

No caso dele, era apenas uma válvula
que não estava bem, mas o coração não
sofrera ainda com isso. Trocá-la era coisa
simples, de rotina, e tudo voltaria
rapidamente ao normal. No mais, ele
poderia ficar tranqüilo: o mundo estava
cheio de gente que portava válvulas
artificiais. Havia até casos mais
complicados, que envolviam válvulas e
grandes quantidades de pontes de safena,
em pessoas idosas e com risco de vida.
Que sobreviviam. O dele – jovem e forte –


era dos mais comuns. Isto tudo ele ouvira,
tentando desesperadamente acreditar,
sentindo um friozinho no estômago.

Pensara seriamente que morreria, na
hora de se decidir diante do impasse que
vivera diante das palavras do médico: "Se
não fizer a cirurgia urgentemente, pode
morrer. E será uma morte inútil e inglória,
pois seu caso tem solução". E ele
completara em pensamento: "se fizer,
pode morrer também! Tipo se ficar o bicho
come, se correr o bicho pega...".

A seguir, a conversa séria com seu
pai e Cláudio, o grande amigo de ambos.
O que fazer? E se morresse? Os filhos,
como ficariam? Foi tranqüilizado de todas
as maneiras. O pai disse que nem pensava
numa coisa dessas, mas, se acontecesse,
os netos e a mãe deles jamais ficariam
abandonados, era evidente. Ele estava ali
e os avós maternos também. Mas que era
inconcebível se pensar numa coisa
impossível de acontecer a um moço forte.
Um absurdo ficar falando em morte
quando se está tentando melhorar a vida!
Cláudio não mentiria nem o outro médico.
Era simples a operação, ele tinha certeza.


Cláudio reforçou o que o pai havia dito,
sobre a simplicidade da cirurgia, os bons
resultados previsíveis, a saúde dele, ainda
muito jovem, as vantagens de ter um
coração funcionando perfeitamente,
necessitando apenas uma correção.

Depois, o hospital com seus
corredores, quartos e lençóis brancos, os
médicos e enfermeiros delicados e
prestativos, as paparicações da família, o
apoio dos amigos, a presença constante
de Cláudio, os preparativos para a cirurgia
denominada simples, o sono sem sonhos
da anestesia. Nenhuma dor ou desconforto
na hora.

Agora, o resultado, alguns dias
depois: na cama, ainda no hospital, todo
dolorido, peito aberto e costurado,
sentindo como se tivesse sido atropelado
por uma jamanta! Felizmente não
morrera, o que já era alguma coisa.

Havia alguma compensação, além da
maravilha de ainda estar vivo: o hospital
era realmente ótimo, calmo, bonito, os
médicos atenciosos e cuidadosos, os
enfermeiros prestimosos. Uma única coisa

o aborrecia: por que Cláudio, cirurgião e

amigo de infância de seu pai, querido por
toda a família, resolvera viajar logo após a
operação? E, ainda por cima, sem se
despedir dele, sem esperar que ele
acordasse da anestesia? Não seria uma
falta de consideração? É verdade que o
motivo apresentado em apressado recado
era grave – doença séria em família – mas
sentia-se ainda magoado e abandonado
pelo companheiro numa hora difícil. O
cirurgião assistente de Cláudio, Dr.
Alberto, era excelente, estava atendendo-

o muito bem. Alberto também afirmara
que Cláudio ficara muito preocupado, mas
não podia deixar de atender ao chamado
do irmão gravemente enfermo.
Ele e Alberto estavam ficando
amigos, conversavam muito, tinham
interesses comuns, passavam horas
juntos. Preocupara-se com o fato de estar
incomodando muito, mas o amigo
informou que fora responsabilizado pela
recuperação dele e tinha que estar a
postos sempre. Ele achou interessante
aquilo. Disse que nunca tinha visto um
hospital onde o médico tinha que
acompanhar o doente constantemente,
assumindo a recuperação dele. Soube


então que ali onde estava o regulamento
era diferente e a experiência estava
valendo, pois obtinham total recuperação
dos doentes. Fantástico! Aquilo era uma
promessa formal e real de cura, afastando
totalmente a idéia de morte! Aquela clínica
deveria estar fazendo uma verdadeira
revolução na Medicina, pois dava garantia
de cura! Como não soubera disso antes?
Que benção! Que beleza! – pensou o
doente aliviado.

O fato de estar sozinho no CTI era
normal, pois as cirurgias cardíacas
demandam muito cuidado para o doente
não adquirir uma infecção hospitalar e seu
estado de saúde se complicar. Tivera até
muita sorte, pois, como o CTI estava
lotado, foi improvisado um quarto para
ele, esterilizado, onde só podiam entrar as
pessoas autorizadas. A família o
acompanhava ao lado de fora e só poderia
entrar quando ele estivesse realmente
isento do perigo de apresentar qualquer
complicação. Constantemente, ele
mandava e recebia recados e bilhetes dos
entes queridos, graças às enfermeiras
Dalva e Jaciara, que se encarregavam
disso. Além da conversa encorajadora e


amiga que mantinham com ele, das
papinhas deliciosas que serviam, dos
remédios nas horas certas e das

recomendações de ficar tranqüilo, pois
tudo estava correndo como anteriormente
previsto e na santa paz de Deus. E o
estado de espírito tranqüilo –
acrescentavam – provoca uma
recuperação super rápida.

Chegou então a uma conclusão:
relaxar. Era a única coisa que podia fazer.
Quanto mais colaborasse, mais depressa
ficaria bom e deixaria o leito. Poderia
voltar logo a uma vida normal, a seus
afazeres, à sua família. E como gostava da
família!

Esticou braços e pernas o mais que
pôde, espreguiçando-se. Fechou os olhos.
Recebera a recomendação de descansar e
não pensar em mais nada. Era isto mesmo
que faria, que precisava fazer a muito
tempo. Descansar. Não adiantaria nada
ficar ali pensando nisto e naquilo,
matutando. Havia uma verdade: não
poderia levantar-se hoje nem amanhã e a
recuperação exigiria cuidados especiais,


talvez até fisioterapia. Portanto, colaborar!
O tempo faria o resto.

Depois de tudo resolvido, novamente
com saúde, era imperativo mudar de vida,
valorizá-la mais. Agora, que quase a
perdera, entendia bem isso. E quantos
planos para o futuro! A correria de
advogado de várias empresas, para lá e
para cá, talvez tivesse sido mesmo a
responsável pela doença prematura, o
cansaço, o stress. Mas, prometia a si
mesmo: tudo mudaria, coisas que nunca
tiveram tanto valor passariam a ter muito,
ao contrário de outras, que seriam
relegadas a um segundo plano. E outras
tantas seriam simplesmente abandonadas
e esquecidas. Revisão de valores já
começava a acontecer em sua mente.
Quando pudesse, poria em prática tudo
aquilo que idealizara, no amadurecimento
que a doença provocara.

E os projetos começaram ali mesmo,
naquela hora: passaria a trabalhar com o
pai, num escritório só de ambos, com
menos clientes, mais selecionados.
Reservaria tempo para a família, passear
com os filhos, procurar ouvi-los com


atenção, estar ao lado de Marília na
educação das crianças, participar da vida
doméstica, férias sagradas todos juntos e

– agora que conhecia o lado da doença e
da dor – prometia solenemente a si
mesmo ajudar aos que estivessem
sofrendo em camas de hospitais.
Conversaria com Alberto sobre como
poderia colaborar na casa de saúde.
Com um sorriso tranqüilo, olhou
através da janela, que ficava bem na
frente à sua cama, à altura de seus olhos:
havia florezinhas azuis no parapeito. Mais,
adiante, o jardim estava bonito, as
árvores floridas e coloridas, leve brisa
balançando as folhas, a temperatura
ótima. Uma enfermeira passava longe,
numa alameda, andando rápido.

O som de pássaros cantando chegava
a seus ouvidos, como doce melodia. Em
algum lugar ali perto de sua janela deveria
haver água correndo, pois dava para
escutar um doce murmúrio de água
mansa.

Fechou novamente os olhos. Um calor
gostoso e morno percorreu o seu corpo.
Estava em paz. Pensava em paz.


Espalharia paz quando saísse dali. Seria
um apóstolo da paz.

E Danilo adormeceu sorrindo.


TAMBORES

Augusto parou de repente, segurando
Pedro fortemente pelo braço. Falando
baixinho, explicou a necessidade de terem
prudência, pois não sabiam o que estava
acontecendo. E, num lugar como aquele,
qualquer coisa era possível. Portanto,
importante se aproximarem devagar,
observarem primeiro, escondidos, antes
de se manifestarem. Não sabiam quem ou

o quê encontrariam, o que os esperava
mais adiante. E se fossem marginais? A
situação ficaria pior do que já estava.
— Tem jeito de ficar pior? –
perguntou um abobalhado Pedro.
— Sempre tem, sempre tem...
Os sons estavam cada vez mais altos,
pertinho deles. Tambores ritmados,
acompanhados de um canto compassado e
triste. Parecia haver várias pessoas.
Agachados, quase se arrastando, os
dois tentaram chegar mais perto. Estava
mais fácil esconder, pois, sem que eles
houvessem notado, o mato ficara alto e
cerrado, as pedras enormes. O cenário
mudara bastante, sem que eles


percebessem, preocupados como estavam
em correr o mais rápido possível em
direção à única manifestação de vida no
local: aqueles sons estranhos. Ofegantes e
curiosos, deitaram-se entre as plantas, de
bruços, tentando normalizar a respiração.

E olharam, abrindo com muito cuidado
espaço entre os galhos, para não serem
notados.

Cerca de uma dúzia de lindas pessoas
morenas dançava ritmadamente, num
compasso sensual, batendo os pés, perto
de um fio d'água, ao som de dois grandes
tambores ovais, tocados por homens
descalços, com peitos nus e largas faixas
vermelhas na cintura. Estavam em círculo
e, no meio, aparecia uma comprida toalha
vermelha. Em cima dela, grandes potes de
barro aparentavam conter farinhas e
folhas, muitas folhas. O maior, central,
enfeitado com penas negras e compridas
hastes de ferro. Bem encostado nele, um
buquê de rosas vermelhas, preso por um
laço de fita também vermelha. Havia
enfeites entre os potes. Estranhos
enfeites: espadas, punhais, facas,
estiletes, garrafas. E velas, muitas velas


coloridas, presas em gargalos de garrafas
que pareciam de champagne. Um homem,
com longo cabelo negro e descalço, peito
nu e cheio de colares, andava de um lado
a outro, espalhando uma fumaça cheirosa
em cima dos potes e acendendo as velas
com uma espécie de archote.

As roupas de todos eram diferentes,
de cores fortes e enfeitadas. As saias das
mulheres, longas e cheias de rendas,
eram fartas e pareciam bordadas com fios
que brilhavam. As pulseiras das mulheres
tilintavam e os cabelos longos balançavam
ao ritmo da dança.

Não dava para entender em que
língua eles cantavam, mas,
decididamente, português é que não era.
Parecia um dialeto rouco e sincopado.

Em tempos alternados, os bailarinos
paravam, curvavam-se, batiam palmas,
erguiam-se novamente, abriam os braços
para o alto e gritavam uma espécie de
saudação. E recomeçavam, cada vez com
mais intensidade. Os homens dos
tambores suavam, caprichando no toque
cada vez mais acelerado.


A música era bonita e triste e, em
certas horas, parecia um lamento cada
vez mais alto, quase gritado. Os rodopios
das mulheres aumentavam
gradativamente, as saias subindo e
descendo, esvoaçantes.

Num crescendo louco, frenético,
começaram a suar e a se contorcer, os
colares balançando e volteando no ar, os
turbantes desenrolando das cabeças,
soltando pontas que também volteavam.
Dois homens que haviam se mantido em
pé ao lado dos tambores, caíram de
joelhos, se contorcendo como cobras e
gritando.

O que era aquilo eles não sabiam,
mas algo dizia no íntimo dos boquiabertos
maltrapilhos que eles não deveriam
interferir. Que não seriam bem vindos ou
teriam mais problemas caso se
manifestassem. Afinal, o rosto do que
parecia ser o chefe era sério e dava para
notar que não admitiria interrupções.
Qualquer atitude em relação a ele teria
um preço. E nunca se sabe das coisas
desconhecidas.


Depois de muitas danças, cantos e
estertores, o estranho grupo se retirou,
dançando de marcha à ré, a frente voltada
para os potes. De vez em quando
paravam, davam dois passos de dança
para frente e quatro para trás e assim
iam, sempre dançando, até que sumiram
de vista, atrás de grandes rochedos. O
silêncio reinou novamente.

Os dois estupefatos observadores
ficaram escondidos mais um pouco, com
medo de que alguém voltasse. Falando
baixinho, combinaram que tentariam
chegar mais perto, para verem melhor o
que era aquilo que haviam deixado
armado em cima da toalha vermelha, o
que havia nos potes.

Passado um tempo, começaram a se
arrastar cuidadosamente para frente,
sempre protegidos pela mataria densa.
Mas, antes que Augusto e Pedro se
aproximassem dos potes de barro, ouviu-
se um barulho forte como um galope, um
estrondo, e imenso grupo cercou o local.

Os dois observadores pensaram estar
sonhando e passaram as mãos nos olhos,
escondendo-se o mais rápido possível. Era


a mais bizarra cena que já haviam visto.
Homenzarrões e anões, mulheres bonitas
e feias, muitos com mutilações, roupas
coloridas e capas longas, botas imensas
nos pés de alguns, chapéus e capas
extravagantes, avançaram todos ao
mesmo tempo sobre os potes, que, pelo
visto, pareciam conter comida. Uns
gritavam e empurravam os outros. Saíram
tapas e disputa a murros. Os potes se
esvaziaram em pouco tempo e a turba
saiu com o mesmo alarido, as mesmas
brigas e sopapos, os mesmos gritos.

— Decididamente não é este o lugar
onde devemos descansar um pouco. Viu
que coisa mais esquisita? – falou Pedro,
esticando as pernas e assentando-se no
chão.
— Agora é que me atrapalhei todo e
não sei mesmo onde estamos... Parece
outro país, outros costumes... As roupas,
a língua... Não sei não... Mas acho, ou
melhor, tenho certeza de que não
devemos seguir o mesmo caminho que
eles. Temos que continuar procurando,
nem sei mesmo o quê. Estou

impressionado. Não estou me sentindo
bem. E você?

— Se quer mesmo saber, estou
péssimo.
Levantar, andar, quase correr na
direção oposta foi coisa de minutos. O que
não impediu que, logo, logo, esbarrassem
nos limites da cidade. Cidade?! Não dava
bem para entender, muito menos explicar.
Era uma única e longa rua, poeirenta e
deserta, cercada de casas tortas
empoleiradas umas nas outras, sobrados
sombrios que desafiavam a lei da
gravidade. Tudo velho, caindo aos
pedaços, antigo, cheio de pó e mofo, sem
cor nem vida. Parecia um lugar fantasma,
um cenário desabado e abandonado de
filme de horror.

Cautelosos, começaram a atravessar,
andando no meio da rua, olhando para
todos os lados, em guarda.

De uma casa irrompeu um grupo na
maior algazarra, uns empurrando os
outros, todos vestindo roupas diferentes e
coloridas, capas longas, parecendo atores
mal comportados em direção ao palco
para representar uma peça macabra. Os


dois encostaram as costas um no outro,
protegendo-se, prontos para a briga que,
acreditavam, fatalmente viria. Mas –
surpresa! – ninguém lhes deu a mínima
atenção. Nem sequer um olhar. E olha que
passaram raspando na dupla assustada.

Recomeçaram a andar. Uma força
vinda não se sabe de onde, impelia-os,
olhares firmes para frente, a não parar em
hipótese alguma, andar sempre no mesmo
ritmo, seguir adiante, atravessando assim
a cidadezinha, encontrando outros grupos
bizarros, uns barulhentos, outros não,
chegando novamente a campo aberto e, a
seguir, mata adentro, com a maior rapidez
possível.

Felizmente, embora o mato fosse
denso e sombrio, não havia mais neblina
nem lama. Ao contrário, agora era pó que
não acabava mais. Muita cinza espalhada
pelo chão, dando a tudo e a todos um
colorido igual. As plantas eram as mais
inimagináveis possíveis. Muito feias,
pareciam artificiais, paradas, sem vida.
Tinham galhos grossos e retorcidos, folhas
secas que estalavam ao toque, cores
escuras, espinhos longos e pontiagudos.


Havia muito cactus seco, morto. Cicuta
queimada espalhava-se entre as raízes
imensas e mortas de grandes árvores,
parecendo sobreviventes macabras de um
grande incêndio na floresta. O chão,
rachado e seco, apresentava, em certos
locais, fendas tão grandes e fundas que
um homem poderia muito bem se
esconder dentro delas. De vez em quando,
caveiras descarnadas de animais
desconhecidos. Augusto aproximou-se de
uma, para tentar reconhecê-la, mas, a um
simples toque seu, ela transformou-se em
pó. Um pó fino e negro que escorreu para
longe de suas mãos como se tivesse sido
soprado por algum desconhecido.

Julgando-se mais protegidos, os dois
sentaram-se no chão para descansar,
tentar compreender e, se possível, se
refazerem dos sustos das últimas horas.
Pedro começou a chorar copiosamente,
como uma criança indefesa e abandonada.
Augusto observava mudo, mas
compreendendo o desespero do outro.
Estavam começando a sentir-se loucos ou
então participantes de um pesadelo
interminável e cada vez mais terrível.


Toda a sensação de segurança havia
abandonado a dupla. Augusto não mais
pensava que resolveria tudo o que
aparecesse pela frente. Se não sabiam o
mais elementar – onde estavam, em que
país estavam e porque estavam ali – não
havia condições de armar qualquer plano
de fuga. Fugir de quê, de onde e para
onde? Andar indefinidamente, até
encontrar algo mais plausível era a única e

terrível alternativa, pois cada vez
encontravam coisas menos
compreensíveis.

Augusto levantou-se com dificuldade
e recomeçou a caminhada em silêncio,
num passo cansado, Pedro seguindo-o de
perto, para estacarem novamente bem
adiante, frente a um novo obstáculo,
desta vez com aparência de
intransponível. Imenso paredão rochoso,
lodoso e liso, não mostrava frestas ou
condições de subida. Nem mesmo parecia
ter fim, indicando que o caminho
terminava ali. Do nada haviam chegado ao
nada.

A vegetação tornara-se oleosa e
rasteira, não havia neblina nem pó, mas


não havia também nem sol nem lua,
dando a impressão de um vazio total, sem
identidade. Lembrava um fim de tarde
depois de uma tempestade violenta. Só
que uma tempestade de óleo negro. Pois
era óleo negro e pegajoso que cobria
tudo.

Não dava mesmo para enxergar o
final do paredão e as pedras sumiam ao
longe, se perdendo da vista. Augusto
pensou – e nem ousou comentar com
Pedro – que aquele local era totalmente
inexplicável, pois mudava constantemente
de paisagem, sendo cada vez para um
visual pior do que o anterior.

Estavam encurralados, abobados,
cansados, sem condições de pensar numa
solução, numa saída, parados, olhando
para a imensidão das pedras.

Foi quando um relâmpago cortou o ar
anunciando chuva grossa. Parecia que,
desta vez, cairia água mesmo. Um trovão
ribombou altíssimo, fazendo o chão
tremer. Só faltava um terremoto, pensou
Augusto. Mas foi uma tempestade que
desabou violenta. E era água. Mas uma
água pesada, salgada, suja.


Encolhidos num pequeno vão das
rochas, os dois começaram a chorar.


A EXPEDIÇÃO

Foram muitas as providências
tomadas no dia anterior e havia mais a
fazer, agora em relação às emoções.
Principalmente manter a mente clara e
livre de receios, em sintonia com a base.
Qualquer vacilo de um dos membros
abriria brechas no campo vibracional do
grupo e as conseqüências seriam
imprevisíveis. Por isso, não era qualquer
um que podia se candidatar a voluntário
para as incursões nas furnas. As provas
eram difíceis e o autocontrole testado ao
máximo até que o aspirante recebesse
autorização para participar da primeira
viagem-teste. Caso se saísse bem, seria
então considerado apto.

Os membros da expedição já
estavam recrutados e se organizando.
Antes da saída, algumas coisas tinham
que ser feitas pessoalmente por Francisco
e Clara, como a verificação do estado
mental de todos. Isto era feito através de
um cristal hexagonal cor de rosa,
incrustado num bloco de mármore alvo.
Era necessário que o paciente colocasse as


duas mãos abertas em cima do cristal,
fechasse os olhos e liberasse os
pensamentos. Caso a pedra se mantivesse
na mesma cor, tudo bem. Se escurecesse,
era sinal de problemas. Este aparelho de
verificação ficava no gabinete de
Francisco, onde todos deveriam passar
antes de se dirigirem ao local de partida.
Francisco verificava um a um e depois saia
com eles.

Os ajudantes já haviam testado as
mentes e começavam a preparar as redes
magnéticas, lanternas possantes, pistolas
paralisantes, padiolas dobráveis com
controle de peso e todo o material
necessário para socorro. Tudo estava
sendo colocado em grandes mochilas com
sustentação aérea, para que não
pesassem muito nas costas de quem as
carregava.

Enquanto Clara observava o mapa do
roteiro e conversava com os experientes
batedores, Francisco perdia-se em
divagações, assentando em cima de um
rolo de cordas, cofiando as barbas
brancas.


Era importante pensar em tudo, para
que o resultado fosse um sucesso e
estivessem de volta o mais rápido
possível. Desceriam em profundidades
inóspitas e a reação sobre seus
organismos se faria notar em poucas
horas, conseqüência do ar pesado, das
emanações vulcânicas e outros problemas
de regiões onde predominam grutas e
abismos. Teriam pouco tempo para o
resgate, pois ficariam cansados muito
depressa e, quando isso acontecesse, a
volta se faria imperiosa. Todos os passos
deveriam ser cronometrados, as faltas e
imprevistos contornados com sabedoria e
presteza.

Francisco já não se assustava mais e
nem temia as surpresas de tais
caminhadas em regiões praticamente
desconhecidas. Esta não era a primeira e
nem seria a última vez que desceria,
procurando salvar pessoas. Há anos fazia
isto! No entanto, cada uma era uma
experiência nova e aconteciam fatos
inesperados. Lembrava-se de um grupo de
senhores idosos encontrado quando
procuravam uma moça. Nem sequer vira a
moça. De outra, chegara a incorporar à


sua uma outra expedição que precisava de
ajuda, visto ter acontecido com eles um
acidente inesperado: um dos membros,
menos experiente, deixara-se
impressionar pelo ambiente,
desequilibrando a mente e atrapalhando
os outros. Já acontecera também de ele
próprio precisar de auxílio, quando, ao
descer sozinho em região muito escura e
profunda, ficou preso lá, precisando usar
toda sua força telepática para se
comunicar com a central de operações.
Mas, felizmente, em todas as vezes
obteve resultados positivos, coroados de
sucesso.

Hoje, desceriam junto com ele e
Clara os experientes Felipe, Daniel e Vera,
além de quatro enfermeiros acostumados
a todos os tipos de resgate. Os batedores
tinham profundos conhecimentos da
região, pois outrora haviam vivido nela.
Em duas reuniões preparatórias, o
programa fora exposto nos mínimos
detalhes e todos tiveram oportunidade de
esclarecer as dúvidas. Agora, era a vez da
ação.


Vera aproximou-se, avisando que
estavam prontos. Ainda não amanhecera,
era a melhor hora para saírem. Ele
enlaçou a moça tão querida pelos ombros
e, abraçados, foram ao encontro do resto
do pessoal que, pronto, aguardava a
ordem de partida. Teriam que carregar
todo o equipamento, pois a região que
visitariam não comportava os carrinhos
magnéticos. Portanto, todos portavam as
grandes mochilas que haviam preparado,
bem presas às costas.

Atravessaram o grande jardim,
passaram pelo portão isolante e pela
passagem imantada e se embrenharam na
mata que, curiosamente, na medida em
que se afastavam do ponto de partida, ia
ficando mais densa e menos bela. Sempre
em silêncio, em ordem, com passos
cadenciados, sem olhar para os lados, sem
parar ou falar.

Em poucos minutos, uma escura
pedreira coberta de musgos mostrou que
estavam chegando ao local da descida.
Dava para ver de longe o imenso buraco,
que mais parecia uma boca aberta, pronta
a engolir quem entrasse nela. Era a


entrada. Andaram mais rápido e passaram
a uns cinco metros do local, conservando
as posições. Francisco olhou para trás
conferindo a ordem e, parecendo
satisfeito, fez um sinal levantando a mão
direita.

Silenciosos e em fila indiana,
Francisco e Clara à frente – logo atrás os
batedores Felipe e Vera – Daniel atrás de
todos, dando cobertura à retaguarda,
entraram na caverna, um pequeno grupo
iluminado pela luz das lanternas e pela
brancura imaculada das roupas, que
brilhavam no escuro, espalhando uma
aura fluorescente em torno de cada um.

Apesar das pedras pontiagudas e dos
morcegos que voavam baixo e assustados,
ninguém falou, parou ou mudou o ritmo
dos passos. Avançavam com a segurança
de quem conhecia o caminho, muitas
vezes antes percorrido. Para eles, não
havia perigo. Mentes vibrando juntas e em
paz, rostos tranqüilos, olhar firme, passo
seguro, descendo sempre, embrenhando-
se em longos corredores de pedra, rampas
em caracol, quase verticais, em direção ao
fundo.


No fim da descida, grandes galerias
apareceram à frente, mostrando muitas
entradas e poucas saídas. Ouviam-se
estranhos ruídos, estalos intermitentes e
dava para notar que um rio corria em
cima, pelo barulho da água batendo
violentamente nas margens.

Escolheram a mais estreita das
galerias, um imenso corredor apertado e
escuro, com gotas de água quente
pingando do teto que, ao baterem no
chão, formavam estalagmites com uma
rapidez inimaginável. De vez em quando
tinham de se curvar para conseguir
passar.

Foi aí, quando a passagem se tornou
quase impossível, que o ar começou a
pesar e um cheiro forte de enxofre
predominou. Algumas pedras, de tão
quentes, estavam incandescentes,
mostrando a cor vermelha da brasa. O
calor, muito forte, começou a dificultar a
respiração de alguns deles.

No entanto, todos caminhavam
tranqüilos, sem o menor susto ou o menor
interesse pelo ambiente em volta.


No grande salão que encontraram
após as galerias, um lago de águas
borbulhantes, muito quentes, apareceu
em frente. Atravessaram de pedra em
pedra, imersos no vapor que exalava da
fervura. Suas roupas protegiam-nos de
todas as variações, não se molhavam e
ninguém dava sinais de cansaço, susto ou
desequilíbrio. Os que estavam com a
respiração ofegante, concentraram-se e
reequilibraram-na.

Entraram na última galeria, que tinha
degraus escavados na rocha como uma
escada em caracol, que descia a perder de
vista, em direção a um mundo sem fim.

Uma última etapa, outro salão cheio
de estalactites e estalagmites e um longo
corredor menos sombrio e mais largo
apareceu. Aproximava-se a saída do lado
de lá.

Demoraram a atravessar pelo interior
e só muito tempo depois saíram do outro
lado, para enfrentar a garoa fina e fria do
exterior. Não havia sol nem claridade,
fazia um frio de cortar, só escuridão,
piados de aves noturnas e a sensação da


existência de répteis que não os tocavam
embora passassem por perto.

À frente, longa trilha de pedras e
areia. Se eram vultos humanos ou animais
que se esgueiravam, ninguém se
preocupava em olhar ou conferir. Todos
sabiam exatamente o que faziam, aonde
iam e o que fariam. Começavam a sentir
ligeiro cansaço, pois o ar ficava cada vez
mais pesado, seco e gélido. A sensação de
aperto, como se carregassem um pesado
fardo, estava com todos. Mas ninguém
falava, parava ou fazia qualquer sinal.
Apenas andavam, os batedores mantendo
uma certa distância de Francisco, que
puxava a fila. O mal-estar que sentiam já
era previsto, pois acometia a todos os que
se aventuravam naquelas regiões.

O local escuro dava idéia de vazio. De
vez em quando, pequena cratera se abria
no chão e uma língua de fogo varria o ar,
lambendo as rochas, gerando sombras
imensas dos passantes.

A certa altura, Francisco parou, pois
os batedores haviam sinalizado adiante.

— É aqui a primeira parada.
Preparem-se.

Colocados os fardos no chão, todos
se dispersaram, procurando com
lanternas, parecendo saber muito bem o
quê e onde procurar. Até que Daniel fez
um sinal, mostrando algo. Acorreram,
uma padiola foi estendida e um senhor
idoso, de longas barbas brancas,
desmaiado, foi resgatado de dentro de
imenso buraco de onde, em tempos
sincopados, chamas ardentes brotavam do
interior, como bolas de fogo atiradas ao
ar.

Sem uma palavra de susto, medo,
pena do homem ou pavor diante de sua
situação terrível – queimaduras e bolhas
por todo o corpo –, a expedição continuou,
desfalcada de dois enfermeiros, que, visto
a gravidade do doente, voltaram pelo
mesmo caminho, levando-o na padiola,
tudo tranqüilamente como se previamente
combinado. Seguiram novamente em fila
indiana, sempre com Francisco seguido
por Clara.

A escuridão já não era tão intensa e
as possantes lanternas foram desligadas.
A expedição continuava por um caminho
mais largo e com mato alto em volta.


Mesmo assim, não seria fácil dizer se era
dia ou noite, madrugada ou tarde
chuvosa. Uma nuvem cinza impedia a
visão do céu e de possíveis estrelas, sol
ou lua. O ar parado e viciado, o mato
rígido e ressecado, em alguns locais com
pouca ou nenhuma folha verde, de um
verde morto. Quem ficasse ali perderia
fatalmente a noção de tempo. Ou
enlouqueceria.

No meio do caminho, um grupo de
pessoas estranhas, umas muito altas e
outras muito baixas, todas portando
roupas multicoloridas e exóticas, apareceu
à frente, fechando a passagem. Diante dos
olhares firmes dos batedores o confuso
grupo abriu-se para dar passagem ao
outro, o de branco. Uns riam, outros
olhavam sérios e um alto e
tremendamente parecido com uma
raposa, mais atrevido, perguntou se
procuravam alguém. Nenhuma resposta. A
branca fila indiana passou calada. Nos
lábios de Francisco, um sorriso, o olhar
firme e fixo em todos que lhe abriam
caminho.


Respiravam arfando, quando pararam
no alto de um rochedo. Olharam para
baixo, mirando o fundo com as lanternas.
Foi Vera, com sua visão de águia, quem
viu primeiro: dois homens assustados,
feridos e sujos, de cócoras num vão de
rocha, tinham as cabeças entre as mãos e
pareciam chorar.

Constataram que seria impossível
descer para ajudá-los, pois gastariam
muita energia. A ordem era não passar do
limite pré-determinado pela engenharia de
apoio, que traçava as rotas previamente e
marcava os possíveis obstáculos que
poderiam oferecer maior dificuldade ou
risco de perda de recursos mentais.
Descer mais do que já haviam descido
oferecia perigo. Cada expedição de
resgate tinha um limite de profundidade e
ninguém o quebrava.

Imediatamente, Felipe começou a
desenrolar as redes, que foram atiradas
como escadas. Os dois homens teriam que
subir. Daniel, de posse de um megafone,
gritou que subissem e se segurassem
bem.


Os dois, apalermados, olhando para
cima, não sabiam se subiam ou se ficavam
onde estavam, pois a visibilidade não era
boa e a certeza de estarem sendo salvos
não ocupava suas mentes.

E foi aí que aconteceu. De todos os
lados, apareceram pessoas, como tribos
perdidas, maltrapilhas, sujas e
animalizadas, vestindo tangas e usando
nas cabeças adereços que lembravam
cocares, avançando para as redes,
brandindo cajados e gritando frases e
palavras ininteligíveis.

Augusto só teve tempo de puxar pela
camisa o apalermado Pedro, e correr em
direção à rede próxima. Os dois
começaram a subida, sentindo que mãos
lhes puxavam os calcanhares e
escorregavam, não conseguindo se
segurar neles ou nas improvisadas
escadas. Uma pedra voou das mãos de
alguém e atingiu Augusto no ombro
esquerdo, causando dor e dormência no
braço. Mesmo assim, ele segurava firme a
rede com uma das mãos e com a outra
ajudava Pedro a se sustentar, numa
escalada difícil, onde os pés ajudavam as


mãos, pois, para cada avanço, ele tinha
que enrolar a perna na corda para se
firmar, poder soltar uma das mãos e
puxar o companheiro. A subida não estava
fácil, o óleo das rochas se transferia às
cordas, tornando-as escorregadias, as
mãos sangravam, o corpo escorregava, os
pés lutavam para se firmar.

Embaixo, uns atacavam os outros,
tentando subir também, como que
pensando que o vizinho de tentativa era o
responsável pela impossibilidade de
escalar o escorregadio piso de pedra.

Pedro parecia não estar bem,
ensaiando um desmaio. Augusto falava
firme com ele, mandando que segurasse,
pois, se caísse, era certo que não haveria
volta. Poderia ser massacrado pela turba
de baixo.

Foi quando uma mão forte e firme,
mas tão machucada quanto a de Augusto,
ajudou a aparar Pedro pelo outro lado. Era
um homem na mesma situação e com a
mesma determinação que os dois.

Os três galgavam com dificuldade,
Pedro no meio, escorregando e chorando
de desespero. O topo ficava cada vez mais


perto e já dava para distinguir os vultos
que os estimulavam a subir, subir...

Sentir o final da subida e as mãos
firmes dos batedores puxando-os foi o
paraíso. Os três, exaustos, caíram no
chão, olhando para os tranqüilos
salvadores. Francisco providenciava algo
numa moringa e os outros amparavam as
cabeças dos recém-chegados, dando-lhes
a água da bilha, que parecia conter algum
remédio, pois o cansaço passou de
imediato.

Augusto e o desconhecido puseram-
se de pé. Pedro foi colocado numa padiola
e dois enfermeiros o acomodaram o
melhor que puderam. Parecia desmaiado.
Clara cobriu-o com uma manta, mandou
que ele descansasse e todos ficassem
calmos.

Augusto olhou para baixo, aonde ecos
de impropérios iam se esvaindo no ar,
voltando a reinar o silêncio.
Instintivamente, começou a ajudar a
recolher a rede, ajudado pelo outro, de
quem nem sequer o nome sabia.

Recolhido o material, Francisco se
dirigiu aos recém chegados:


— Não se preocupem, vocês estão
bem e a salvo. Terão a explicação de tudo
mais tarde. Agora, urge voltar, sair deste
local. Vamos, meus filhos.
Nova fila indiana se formou, desta
vez com os sobreviventes logo atrás de
Francisco. Clara postou-se bem atrás da
padiola. Daniel novamente na retaguarda,
protegendo os amigos. Receberam ordem

de manter silêncio. Perplexos, eles
obedeceram. Cada um recebeu uma
lanterna e, instintivamente, os dois

pediram mochilas para carregar e aliviar
os outros.

E, voltando nos próprios passos, a
caravana seguiu, entrando de novo na
escuridão, acendendo as lanternas, em
direção à caverna, onde a subida pelas
galerias sombrias seria, com certeza, mais
longa e exaustiva que a descida.


O HOSPITAL

Augusto respirou aliviado, depois de
passar a noite na caverna, superando
obstáculos e fazendo intervalos para
descansar. Por duas vezes pararam, com a
volta se tornando cada vez mais difícil, já
cansados. Quando ficavam exaustos e sem
fôlego, Francisco ordenava um círculo,
mandava que se dessem as mãos,
fechassem os olhos e respirassem fundo.
Mantinha-se um bom tempo como que
hibernando e, quando recebiam ordem
para abrir os olhos, sentiam-se refeitos.
Só no final da travessia aconteceu um
obstáculo intransponível: o lago de águas
quentes encheu a galeria e eles tiveram
que aguardar a descida das águas.
Durante toda a noite esperaram. De
madrugada o líquido fervilhante sumiu
como por encanto em alguma fenda das
rochas e as pedras apareceram para que
eles pudessem passar. Tudo superado,
eles conseguiram sair ao ar livre.

A caravana, no mais perfeito silêncio
e na maior ordem, entrou em terreno
livre, gramado, parecendo aproximar-se


de local habitado. Amanhecia, sol morno e
céu azul. Mas, na cabeça do andarilho
socorrido a pergunta persistia: onde
estavam? Quanto ao terceiro
companheiro, que caminhava firme e
alegre logo atrás de Clara, ninguém
duvidava: estava calado, mas bem e,
embora parecesse partilhar os
pensamentos com Augusto, aparentava
não se incomodar muito com isso.
Familiarizara-se com Clara, ajudava-a
carregando mochila e equipamentos, para
que aquela moça bonita de idade
indefinida tivesse mais liberdade de
movimentos para abrir a manta e
verificar, de vez em quando, como estava
Pedro. Ele mesmo cuidava de olhar se o
paciente adormecido ainda respirava.
Enfim, comportava-se na maior
naturalidade, prestando atenção ao redor
e refletindo no rosto a impressão que
sentia quando as paisagens variavam.

Obedientes às instruções, não faziam
perguntas. Apenas caminhavam e
ajudavam a carregar os fardos. De vez em
quando, Francisco olhava para trás e seu
olhar cruzava com os dos recém-
chegados. Um sorriso enigmático e


bondoso aparecia mais no olhar que nos
lábios do chefe da expedição.

Entraram por uma porta linda, toda
coberta de hera e invisível à distância,
incrustada numa rocha sem fim. Um
grande e movimentado pátio apareceu.
Pararam diante de imenso prédio, que
parecia ser um hospital localizado em
algum bairro de cidade grande, pois,
embora cercado de verde e em região
rural, ambulâncias e outros carros de
marcas estrangeiras – eles nunca tinham
visto iguais – entravam e saíam, velozes,
de um largo portão lateral. O entra-e-sai
de enfermeiros e médicos era intenso,
todos vestidos de impecável branco.
Outras expedições chegavam e algumas
partiam, quase todas a pé.

Aquele era um local amigável. Nem
um rosto conhecido. Augusto começou a
ficar intrigado. Pedro dormia
profundamente na maca. Clara avisou que
ia levá-lo para o quarto e que depois
poderiam visitá-lo. Seguiu acompanhando

o doente, levado por dois novos
enfermeiros que vieram buscá-lo.
Dispersaram-se todos para seus afazeres.

Francisco chamou Augusto e o outro, pelo
nome:

— Augusto e André, venham comigo.
Poderão descansar e depois
conversaremos. Não temam. Estão em
local seguro. Acabaram-se as suas
aflições.
— Parece-me um hospital imenso –
arriscou Augusto.
— Acertou. É o melhor lugar para o
que vocês dois precisam: um grande
descanso, nada mais. Felizmente, não
estão machucados ou doentes, apenas
cansados. E assustados – completou
Francisco com um grande sorriso.
— De fato – murmurou André –
gostaríamos de saber onde estamos, que
lugar é este... Meu Deus! Onde estamos?
E nossas famílias? O que fazemos aqui se
não estamos doentes? O que está
acontecendo conosco? Quem são vocês?
Haviam chegado a uma ala de
quartos. Francisco indicou um a cada um e
respondeu:

— Tudo na hora certa. Estão
exaustos. Por ora, descanso e
relaxamento, um bom sono. Depois, uma

longa conversa comigo. Voltarei logo.
Descansem bastante, meus filhos.

Já dentro do quarto, Augusto correu
para a janela, abrindo-a de par em par.
Ficou espantado com o tamanho, a beleza
e a calma do que viu. Prédios perdendo-se
de vista, todos brancos. Entre eles,
jardins, gente de branco andando para
todos os lados, ambulâncias, atividade de
uma colméia de abelhas diligentes. Teve
certeza de que aquilo era um complexo
hospitalar maior que todos que já tivera
oportunidade de conhecer.

Num dos jardins, logo abaixo de sua
janela, pessoas passeavam, em grupos,
conversando calmamente. Uns se
amparavam em muletas, outros em
enfermeiros. Já outros andavam devagar,
como se tivessem saído de uma cirurgia e
estivessem em plena convalescença. Havia
tranqüilidade em todos os rostos e
grupinhos se formavam, assentados em
bancos ou na grama, à sombra de
imensas árvores hospitaleiras.

Logo adiante, um colossal repuxo
jorrava água para cima, atirando-a nas
alturas, bem alto mesmo, e soltando-a no


ar em cascatas lindas. Pessoas paravam
para olhar e molhar as mãos, encantadas.

Havia muitas flores, de todos os
tamanhos e cores. Algumas formavam
lindas trepadeiras, subindo pelas árvores e
se atirando em outras, formando
balouçantes alças floridas e multicoloridas.

Este sim era um hospital digno de se
ver, de se considerar como tal. Convidava
ao repouso, ao relaxamento, à
convalescença e à cura completa, pensou

o novo internado embevecido.
Duas simpáticas velhinhas, de braços
dados, passaram logo abaixo de sua
janela e acenaram para ele, sorridentes.
Retribuiu sorrindo. Notou que era a
primeira vez que sorria. Sentia-se muito
bem.
Respirou fundo e mergulhou o olhar
na distância. Muito longe, a perder-se de
vista, havia silhuetas de mais prédios.
Calculou que deveria haver uma cidade,
bastante longe do hospital para garantir a
tranqüilidade e a qualidade do tratamento
dos doentes.
Nunca havia visto uma casa de saúde
tão cercada de jardins. Parecia um


bosque, um oásis de paz! Local ideal! Pena
que não ficaria ali por muito tempo, pois,
a julgar pelo que dissera o chefe da
expedição, não estava doente nem muito
machucado. Um bom banho, um sono
reparador e uma excelente refeição
resolveriam o seu problema. Depois,
localizar-se, telefonar para casa, contar a
sua aventura, saber ao certo o que houve,
se Esther estava bem, notícias do cunhado
operado. Enfim, voltar ao normal. Não
agüentava mais tanta emoção.

Teve medo de ter um choque
nervoso, por causa do que havia passado
nos dias anteriores. Resolveu: procuraria
um psiquiatra, talvez naquele hospital
mesmo. Precisava se cuidar e acreditava
que, depois de tudo, teria uma crise, não
sabia bem de quê. Talvez de stress no
último ponto. Afinal, os últimos dias – ou
as últimas horas? – tinham sido terríveis e
completamente fora dos parâmetros
normais de seqüestro, rapto ou coisa que

o valha. Jamais esqueceria o local por
onde andou, o medo, o desespero, o
cansaço e o susto. A falta de norte. E o
horror de não saber o que havia
acontecido. Que loucura!

Caiu pesadamente sobre a
convidativa cama, larga, alva e macia.
Antes de tudo, um sono. Estava exausto.
De repente, desabava. Sim, talvez fosse o
resultado de tantas aventuras
inexplicáveis.

Quando acordou, ainda sonolento,
não sabia dizer com certeza quanto
tempo, dias ou horas dormiu. Mas aquele,
sim, era um hospital modelo! Pois não é
que estava acordando limpo, arrumado,
debaixo das colchas, sentindo-se
alimentado e descansado? Incrível! Por
certo desmaiara de cansaço, pois nem
sentira quando os enfermeiros o
arrumaram, lavaram, fizeram a barba –
olhe só, a barba também! – e trocaram
sua roupa.

Espreguiçou gostosamente e notou
que havia um curativo na testa e outro na
nuca. Mas não doíam. E, se não doíam,
resolveu que esqueceria deles. Estava
bom demais para pensar em machucados
e curativos. De lá de fora chegava a seus
ouvidos o burburinho distante de
enfermeiros, médicos, ambulâncias.
Sentia mais do que ouvia. Já as conversas


dos doentes no jardim, debaixo de sua
janela, eram mais próximas e quase
audíveis. Concluiu que seu quarto deveria
estar localizado no primeiro andar ou no
térreo. Notou que não sentia dor, não
sentia fome, não sentia incômodo algum.
Sentia paz e um maravilhoso bem-estar. E

o perfume das flores chegava às suas
narinas como uma onda etérea.
Pensou no vizinho. Como estaria o tal
André que o ajudara no último momento,
no salvamento de Pedro? E Pedro? Será
que se sentia tão bem quanto ele? Onde
estaria o chefe da expedição, tão
simpático e de sorriso misterioso? Bom
sujeito aquele! E – curioso! – quem teria
avisado ao hospital que havia três
necessitados de socorro? Que loucos eram
aqueles que avançaram nas redes? Tribo
de índios? Gozado: eles lembravam índios,
mas não eram índios, tinha certeza. Já
vivera entre os índios durante muito
tempo, conhecia-os bem. O quê ou quem
eram os estranhos seres de sexo
indefinido que tentaram escalar com eles
e não conseguiram? Decididamente, tinha
muitas perguntas. Mas, antes de tudo,
telefonar para Esther era imprescindível.


Assentou-se na cama, pensando que
a cabeça ia rodar. Mas ela não rodou. Ao
contrário. Uma forte vontade de sair,
conversar, olhar pela janela, se localizar,
apossou-se de Augusto. Além do mais, as
únicas pessoas que conhecia eram Pedro e
André. Urgia encontrá-los, saber as
impressões deles, se já haviam obtido
alguma explicação.

Uma enfermeira entrou, sorridente:

— Querendo levantar-se? Já?!
— Estou me sentindo muito bem.
Onde estão meus amigos? E o chefe da
expedição? Que lugar é este? Há quanto
tempo durmo? Que dia é hoje? Alguém
pode me explicar o que está acontecendo
comigo?
Ela desatou em gostosa risada e
completou:

— Bom dia! Calma! Não é o fim do
mundo e não estamos em guerra, posso
lhe garantir. Seus amigos estão em
quartos exatamente iguais ao seu. Pedro
ainda está um pouco tonto, mas ficará
bem. Quanto a André, acabei de vê-lo. Ele
fez as mesmas perguntas, perguntou por
você. Está no quarto ao lado e poderão se

visitar quando quiserem. Francisco, "o
chefe da expedição" como você diz, virá
vê-lo hoje ainda. E você dormiu uma
semana. Mais alguma pergunta?

Ele passou as mãos pela cabeça,
desconcertado. Colocou as pernas para
fora da cama alta, balançando-as. Alisou
os cabelos com as mãos.

— Bom dia. Desculpe-me. Está tudo
ótimo aqui, nunca vi local tão bonito e
nunca me senti tão bem. Mas, você
compreende, não é? Como não estou
doente e já me recuperei, preciso me
localizar, tomar algumas providências. Já
imaginou como deve estar a minha
família? Pelo visto, estou sumido há
tempos. Não sei quanto vaguei, pois os
bandidos me deixaram num local ermo,
estranho e desconhecido. Só aqui no
hospital, estou a uma semana. Nossa!
Devem estar desesperados me
procurando. E preciso ver como foi a
operação de Danilo. O médico nos disse
que o estado dele era muito grave.
Quando eu caí, estava justamente
atravessando a rua em frente ao hospital.
Oh, meu Deus!

— Calma! O mundo não vai acabar.
Relaxe! Sua família já foi avisada. Só não
puderam vir aqui. Este hospital tem um
rígido regulamento e os doentes não
podem ter acompanhantes, para que a
recuperação seja perfeita, não aconteçam
infecções e coisas assim. Todos
compreenderam e não vieram visitar você.
Mas posso transmitir a eles seus recados e
desejos. Como notou, este é um sanatório
modelo, com resultados satisfatórios, e,
embora você não esteja passando mal,
terá que seguir o regimento interno à
risca, tudo bem?
Não passou pela cabeça de Augusto
perguntar como eles souberam de sua
família. Nem se lembrou que foi
encontrado sem documentos ou algo que

o identificasse; portanto, como poderiam
saber de seus familiares?
A moça continuou sorridente:

— Quanto a Danilo, ele realmente
passou mal, sofreu um choque durante a
cirurgia e uma parada cardíaca muito
demorada. Teve que ser imediatamente
transferido de hospital, justamente para
cá, onde há mais recursos. Encontra-se

neste momento no CTI, mas amanhã irá
para o quarto, quando então poderão se
ver. Será ótimo para os dois.

Augusto exultou. Até que enfim algo
normal, uma conversa que ele entendia.
Havia alguém mais, seu conhecido, que se
encontrava em tratamento. Que ótimo!
Felizmente, estava tudo se esclarecendo e
acabando bem.

A moça ajudou-o a levantar-se e
assentar-se numa cadeira perto da janela.
Ficou surpreso com a agilidade com que
andou, mas não disse nada. Atribuiu ao
descanso físico prolongado.

— Agora, que está bem informado e
mais tranqüilo, sugiro que não faça
excessos ou poderá realmente ficar
doente, pois passou por muita emoção.
Quanto ao psiquiatra, você já está sendo
medicado. E Francisco, o homem que
salvou você, virá vê-lo a qualquer
momento. Está mais calmo agora?
— Claro. Este hospital é mesmo
fantástico! Onde ele se situa? Fora da
cidade? Como é que você soube que eu
queria um psiquiatra?!

— Nós aqui sempre sabemos de tudo
que os doentes precisam. Não se
preocupe, você não ficará estressado nem
guardará recordações ruins da época em
que esteve perdido. Com o tempo, só terá
boas lembranças e esquecerá as coisas
ruins. Quanto ao local, sim, estamos no
campo, numa região sem poluição e muito
calma. O ar que você está respirando
agora é puro, mais puro do que pode
imaginar. Caso contrário, os tratamentos
não seriam perfeitos. Doentes e
convalescentes precisam de paz. Agora
descanse. Espere com paciência, pois o
médico responsável pelos que acordaram
hoje deve estar chegando. Depois, poderá
visitar seus amigos. André está ansioso
para vê-lo. Ele também dormiu muito e
está calmo. Já teve as mesmas
informações e está decidido a descansar e
colaborar. Não está ferido ou doente.
Logo, estarão na ativa, garanto. Quanto a
Pedro, talvez demore um pouquinho, mas
não tem nada de grave. Apenas ficou em
estado de choque durante muito tempo.
Levou um grande susto, não foi? Pobre
Pedro? Ele é muito impressionável!

— Ele quase morreu de medo, isto
sim. Nossa! Como ficava de olhos
arregalados olhando para mim,
abobalhado! Coitado!

Os dois riram e ela saiu, deixando-o
respirando o ar puro da manhã, assentado
perto da janela, observando o vai-e-vem
de fora, a fonte de águas claras e
borbulhantes, as flores e jardins, os
doentes e convalescentes, sentindo-se em
paz.


O DESPERTAR DE DANILO

— E então? Vamos passar para o
quarto? Chega de ficar deitado, isolado.
Que tal acabar com esta preguiça brava e
sair por aí dando bom dia à vida?
Jaciara falava e ia tirando as últimas
ataduras do peito de Danilo.

— Como é? Como é? Vamos levantar
desta cama? Mexa-se, vamos! Um dia
maravilhoso o espera lá fora!
O moço, abaixando o queixo com
cuidado e olhando o peito, falou
preocupado:

— Mas, e o pós-operatório? Já posso
me mexer? É coração, válvula...
— E daí? Quer ficar morando num
CTI? Aposto com você que nem cicatriz
tem mais... Viu só que recuperação a sua?
Eu não lhe disse que podia confiar na
equipe do hospital?
— Engraçado, eu pensava que sair do
CTI era uma operação delicada, com o
doente inconsciente, sentindo-se mal,
máscara de oxigênio no rosto, soro no
braço e coisas assim...

— E é. Em certos casos. Muito
poucos, felizmente. No entanto, posso
atendê-lo. Se quiser, pode ficar de olhos
bem fechados, gemendo e fingindo-se de
tonto e eu vou empurrando a maca pelos
corredores...
Os dois riram e Jaciara explicou:

— Acontece que está num hospital
onde técnicas novas e avançadas são
usadas e quase todos os remédios
empregados de maneira diferente da que
conhece. Posso até dizer que nem os
remédios que usamos são seus
conhecidos... Temos tratamentos tão
sofisticados que você não acreditaria.
Basta dizer que usamos os elementos da
natureza, água, ar, terra, minerais, tudo
combinado sutilmente com energia pura.
Nossos equipamentos são de primeira
linha e os métodos de cura totalmente
diversos dos convencionais.
— É?! Medicina Alternativa?
Homeopatia? Terapia chinesa? Massagens?
— É. Pode dar o nome que quiser.
Mas não é bem isso. Sua operação foi
realizada com técnica pioneira em
cardiologia. Prova é que você já está bem.

Prepare-se. Muitas surpresas o esperam


ainda. Primeiro, na recuperação, não
ficará recluso nem fará exames
constantemente. Muito menos usará

medicação; parou com ela hoje. Aliás,
duvido que você volte algum dia a um
hospital. Logo, logo, poderá andar,
respirar ar puro nos jardins, conviver com
os outros. E outras coisas mais. Muitas
outras coisas mais, fique sabendo.

— Estou maravilhado! Marília está me
esperando no quarto?
— Hã, hã... Terá algumas decepções
também, explicáveis, pequenas e
sanáveis, por sinal. E não se preocupe
com elas; são mínimas e suportáveis em
vista das alegrias e do progresso que terá.
Não poderá entrar em contato com a
família ou qualquer pessoa de fora. Sabe
como é, não é? Você foi tratado por um
método especial, como todos os enfermos
daqui. Aliás, o hospital é especial. Nada
pode comprometer sua recuperação,
entendeu? Qualquer deslize poderá
prejudicá-lo mais do que pode imaginar. E
isto nós não queremos que aconteça, não
é mesmo?

— Está bem, está bem. Estou
conformado, impressionado com suas
explicações e aberto a todas as
recomendações, contanto que eu sare.
Mas com uma saudade imensa da família.
Leva outro bilhete para eles?
— Claro. E vamos logo, deixe de
preguiça.
Danilo passou para a cadeira de
rodas com uma facilidade inacreditável
para um recém-operado do coração. Não
ficou tonto, nem indisposto.
Decididamente, o tratamento era
realmente maravilhoso! No entanto,
abraçou o próprio peito, assustado,
acreditando que todo cuidado é sempre
pouco quando se trata de problema
cardíaco. Será que se movimentara muito?
E se a válvula saísse do lugar? De
repente, incomodava-o o fato de ter um
objeto estranho dentro do coração. E logo
dentro do coração, onde qualquer
problema poderia acarretar a morte!
Respirou fundo, fechou os olhos. Teria que
aprender a conviver com a idéia da
válvula. Sabia que não seria fácil, mas,


afinal, tudo estava dando certo. Cabia
colaborar.

A cadeira começou a rodar
mansamente pelos corredores. E Danilo a
notar que aquele não era o hospital onde
se internara. Olhou para Jaciara, confuso.
Ela entendeu e foi logo explicando:

— Alberto contará os detalhes. Ele
está esperando no quarto. Logo após a
operação, você começou a passar mal de
verdade. Ficou inconsciente algumas
horas. Cláudio comunicou-se com Alberto
e acharam melhor transferi-lo para cá,
onde havia mais recursos.
— E por que não me contaram isto
antes?
— Estou contando agora. E as coisas
devem ser contadas nas horas certas,
para que não provoquem reações
desnecessárias ou desequilibrantes. Fique
tranqüilo: contaremos muitos detalhes
mais – sorriu. Você ficará sabendo toda a
história da sua doença e da sua
recuperação. Feliz com isso?
Ele pareceu emburrado como uma
criança de pirraça. Abraçou-se mais ao
próprio peito, falando baixinho:


— Por favor, ande bem devagar e não
deixe que a cadeira balance muito. Está
vendo? Eu sabia! Não era uma coisa tão
simples assim! Pobre papai! Ele também
devia saber e não podia demonstrar, para
me dar coragem! Oh, meu Deus! Eu quase
morri! Era perigosíssima a cirurgia! Será
que, durante o tempo em que fiquei
inconsciente, eu respirei direito? É um
perigo faltar oxigenação no cérebro! Que
horror! Que medo horrível eu sinto da
morte! Você nem pode imaginar. E agora?
Quais as minhas chances? Será que terei
alguma recaída? Responda com
sinceridade, por favor: terei ou não
recaídas? Estou totalmente fora de perigo?
Isto que eu tive repete? O meu coração
está no lugar certo? Tem certeza?
A moça não se agüentava mais de
vontade de rir do medroso e chorão
paciente:

— Calma lá! Que eu saiba, seu
coração nunca saiu do lugar, está bem,
inteiro, e não terá recaída, a não ser que
desobedeça às instruções do tratamento.
Relaxe e solte logo estes braços. Olha,
desculpe-me, mas está muito engraçado.

— É? É porque não é com você. Já
encarou a morte alguma vez para saber?
Oh, meu Deus do céu! – lamuriava-se o
apavorado doente, enquanto apertava o
peito com as duas mãos, cada vez com
mais força.
Nem olhou mais para os largos e
brancos corredores, cheios de plantas,
agradáveis sofás e gente sorridente indo e
vindo, alguns olhando curiosos para ele,
todo abraçado e enrolado em si mesmo,
encolhido. Nada ali se parecia com um
hospital, mas ele não notou, os olhos
apertados, fechados como se estivessem
colados.

De repente, Danilo pareceu se
lembrar de algo. Deu um pulo, que fez a
moça parar de rodar a cadeira e olhar
assustada para ele. Tateou o pulso
esquerdo, horrorizado. Procurou o pulso.
Não o encontrou. Deu um grito
desesperado. A enfermeira acionou os
freios da cadeira, para que ela se
mantivesse firme e não girasse. Passou à
frente do paciente, segurando-o pelos
ombros, assustada.


— O meu pulso! Ele parou! Não o
encontro! Estou morrendo! Meu peito está
doendo! – gritava o doente inconformado
e em pânico.
— Calma! Não grite. Aquiete-se,
senão você morre mesmo – falou com
energia.
Jaciara postou-se atrás dele e colocou
as duas mãos acima das suas orelhas,
bem nas têmporas. Apertou levemente
sua cabeça e ficou imóvel durante alguns
minutos. Depois, voltou à frente, segurou-

o novamente pelos ombros e, falando com
muita clareza, firme e pausadamente,
explicou que o tratamento a que ele
estava sendo submetido provocava esta
sensação de ausência de pulso, o que não
queria dizer que o pulso estava parado
mesmo. Imprescindível era que, após uma
cirurgia pesada como a que ele fez, o
doente permanecesse calmo, em repouso
e em paz com a mente, senão poderia ter
um abalo e passar muito mal. Com
carinho e firmeza, disse que ele não
deveria ter medo, pois o pior já havia
passado. Que ele confiasse em quem o
tratava e tudo daria certo. Ela queria um

crédito de confiança dele para o pessoal
que o tratava.

E assim se foram pelos corredores,
Danilo ora acalmando-se um pouco, ora
com os braços cruzados apertando o peito,
parecendo um caramujo de tão enrolado
em si mesmo. Jaciara calou-se e fez que
não notou.

Na porta do quarto esperava-o
Alberto, que perguntou à enfermeira:

— O que está havendo com ele, todo
encolhido, suado e de olhos fechados?
— Morto de medo – respondeu ela
rindo. – Está segurando o coração, com
medo de que ele saia pela boca –
completou, acariciando ternamente os
cabelos do doente, que revidou, abrindo
os olhos:
— Muito engraçadinhos, vocês dois.
Estou com medo mesmo, e daí? Aliás,
morto de medo.
— E daí – completou Alberto – que
está se comportando tolamente. Olhe só:
no CTI, na primeira e mais difícil fase da
recuperação, você estava leve, solto, feliz,
conversando e brincando alegre. Agora,
está parecendo um velho resmungão,

encolhido dentro de um desconfortável
ovo. Ora, ora! Vamos reagir, meu amigo!
O perigo de morrer – que você teme – já
passou, se é que houve perigo e se é que
morte existe do modo como você pensa.

Jaciara acariciou novamente os
cabelos dourados de Danilo, dizendo que
voltaria logo e o deixaria aos cuidados de
Alberto.

O médico fez umas recomendações à
enfermeira e, calma e pacientemente, foi
ajudar Danilo a sair da cadeira e se deitar
na cama, pois ele se negou a ficar
assentado na poltrona, mesmo com o
outro dizendo que tudo estava bem e não
precisava mais ficar deitado. Repetia sem
cessar que sabia que não estava bem, que
a válvula doía muito, repuxando o peito,
que parecia ter febre, a boca estava seca
e um grande enjôo se apossava dele. E,
para completar, não encontrava o próprio
pulso, sinal de alarme.

Alberto acomodou-o e sentou-se nos
pés da cama, perto do alarmado doente,
agora lívido e respirando com dificuldade:

— Sabe que você é o doente mais
assustado que já vi? Portanto, vamos

começar logo a tranqüilizá-lo e esclarecer
algumas dúvidas, senão, agora mesmo
você vai começar a passar muito mal
mesmo, de verdade. Primeira: tire logo as
mãos do peito e pare de apertá-lo. E
respire! Você não tem válvula nenhuma!

Danilo arregalou os olhos. Alberto
continuou:

— Não foi preciso colocá-la.
Conseguimos recuperar a sua. E então: a
válvula continua doendo?
Desapontado, Danilo relaxou um
pouco, permitindo que Alberto voltasse à
carga total:

— Viu só o que uma mente
descontrolada e desgovernada, sem freios,
é capaz de fazer? Você já estava até
sentindo dor na válvula... E sei que não
mentiu. Sentia mesmo. Não é de hoje que
se diz que a mente é a dona da casa. Se
todos se conscientizassem disso e
procurassem melhorar os pensamentos, os
desejos e sonhos ocultos, o mundo mental
ficaria bem mais limpo e muitas doenças
nem sequer aconteceriam. Aliás, doença
esperada e recomendada quase nunca, ou
nunca, acontece. Já reparou nisso? Além

do mais, as coisas que colocamos na
cabeça e batemos e rebatemos dia e noite
em cima delas, nem sempre são passíveis
de acontecer ou, o que é pior, atraímo-las
pelo pensamento firme nelas e aí a coisa
fica séria... Homem: regula a tua mente,
controla-a e a chave da felicidade já
estará mais acessível!

Envergonhado, o rapaz replicou:

— A dor não era na válvula. Era no
coração...
— E por quê?
— Vocês o cortaram, ele está
sensível, inchando...
— Quem cortou seu coração? Só se
for alguma desilusão amorosa, porque
bisturi mesmo...
— Não?!...
— Não...
— É?...
— É.
Alberto ria a mais não poder da
situação do outro:

— Cortar o coração, ficar com ele
inchado, dolorido, que loucura pôs na
cabeça! Não à toa que estava todo

encolhido, bobo e medroso! Dá para
assustar mesmo. Saiba que aqui no
hospital – e em lugar nenhum que eu
saiba, onde se pratica a mesma medicina
que praticamos em nossa rede de casas
de saúde – à necessidade de cortar o
coração em pedaços e pedacinhos para
reparar uma válvula. Muito bem: resolvida
esta parte, já sei o que vai dizer agora:
que a cicatriz está doendo.

— É...
— E se ela já tiver sumido? Ou se
nunca tiver existido?
O medroso Danilo não se deixou
vencer:

— Impossível. Ela é imensa. Sei que,
para ter acesso ao coração, vocês tiveram
que serrar as minhas costelas, o osso
externo foi dividido ao meio e separado
com um alicate próprio. Depois, foi todo
preso com grampos de aço de calibre
grosso... Aliás, grampos que incomodam
muito, atrapalham os meus movimentos e
vão doer todas as vezes que mudar a lua.
Principalmente na lua cheia. Minha mãe
diz que é muito freqüente a lua influenciar
neste tipo de dor. Posso ser medroso, mas

não sou burro nem analfabeto, não é
Alberto? Quando soube que estava
doente, li tudo que chegou às minhas
mãos a respeito.

— Ai, meu Deus do céu... Por acaso
você é escritor de ficção também? Onde é
que tirou esta história toda, de arrepiar?
Por favor, olhe para o seu peito, para a
cicatriz em especial.
Danilo abriu a camisa do pijama com
todo cuidado e baixou os olhos devagar;
tentando não prejudicar a cirurgia. Os
cabelos do peito já haviam crescido
novamente, notou. Somente à altura do
mamilo esquerdo, depois de muito
procurar e passar as mãos, encontrou
uma marca pequena, de cerca de um
centímetro, que nem pontos tinha. Estava
coberta com um esparadrapo
transparente. Ele olhou para o médico,
com os olhos arregalados.

Alberto se divertia:

— É. Você escutou, mas não quis
ouvir. Jaciara contou muitas vezes para
você que neste hospital tudo é diferente e
avançado. As técnicas cirúrgicas mais
ainda. Que é que acha agora da sua

imensa cicatriz, costelas quebradas,
ganchos de metal e não sei quê mais?
Para não ficar muito envergonhado, posso
até dizer que talvez – eu disse talvez – o
seu peito estivesse um pouco comprido e
dolorido, pois você o apertava tanto e
continha tão desesperadamente a
respiração quando chegou aqui, que dava
a impressão de estar todo amarrado e
apertado... Numa camisa de força mental,
digamos assim.

Danilo era o próprio retrato do
desaponto. Relaxou mais na cama. Agora,
sentia-se o oposto: por que ficara no CTI,

o que estava fazendo ali se nada era tão
grave?
— Então, Alberto? Deixa-me ir
embora, rapaz... Vamos lá... O que é que
vou ficar fazendo aqui? Cuidando disto? –
e mostrava o pequeno ponto perto do
mamilo.
— Cuidando disto, sim senhor! Ora
bolas! Uma hora você aumenta demais as
coisas, outra hora acaba com a
importância delas. Calma lá! Você esteve
doente – esteve, ouviu? – precisou
realmente de um tratamento ainda

desconhecido para você, seu organismo
reagiu bem e pronto. Agora, vamos
consolidar a cura.

— Médico adora esta conversa de
"consolidar a cura". Vai me encher de
remédios, fisioterapia, etc.
— Acertou em uma pequena parte...
Como Jaciara explicou, temos
regulamentos aqui. E terá de segui-los.
Logo, logo, estará liberado, prometo.
Cumprirá um programa de
restabelecimento que não será nada
desagradável. Não terá limitação alguma,
terá companhia e se sentirá bem. Um
conselho meu: permita-se ser feliz e
gostar de você. Inclusive, tenho uma
notícia boa: aqui perto, ao lado mesmo,
está internado um amigo seu. Poderá
encontrá-lo à tarde e quantas vezes
quiser. Ele também está se recuperando
bem e vai receber as mesmas
recomendações que você está recebendo.
— E quem é?
— Augusto.
— Augusto, o meu cunhado?! Meu
Deus, o que houve com ele? Esther está
com ele?

— Já disse: as regras valem para
todos. Nada de visitas, familiares ou não.
Nossos métodos englobam recuperação
total, física e psíquica. Qualquer fator
externo só poderá atrapalhar. E agora,
vamos fazer um rápido relaxamento, tudo
bem? Tentaremos tirar as minhocas que
colocou dentro da cabeça. E, limpando seu
campo mental, estaremos iniciando a
segunda fase da sua cura. Vai aprender,
de hoje em diante, a se dominar, a
respirar, perder o medo e ganhar
segurança. Vamos lá! Estique-se na cama,
abra braços e pernas e solte-os. Feche os
olhos e só pense ou faça o que eu mandar
você pensar ou fazer. É muito importante
que me obedeça.
Danilo obedeceu.
Alberto dirigiu-se a um interfone,
falou algo baixinho. Música suave de
harpa e luz azul inundaram o quarto.
O médico postou-se de pé, do lado
esquerdo do doente. Começou então a
falar, com voz pausada e firme, olhando-o
fixamente:

— Sinta-se bem e em paz. Relaxe
todos os músculos do corpo, não pense.

Esvazie seus pensamentos. Tente colocar
em sua mente apenas paz, a música que
ouve e a minha voz.

Danilo arrumou-se melhor na cama.
Espalmou as mãos e soltou melhor os
membros, procurando relaxar.

— Isto mesmo. Agora, imagine-se
deitado na grama, verde e orvalhada
grama, à beira de um riacho que corre
mansamente. Em volta de você, flores e
mais flores de rara beleza, de todas as
cores, perfumadas e coloridas. Sente o
perfume?
— Sim.
— Ouça agora o suave deslizar da
água...
— Hum...
— Água deslizando, grama macia e
fofa, flores e perfume suave. E música,
música deliciosa, envolvente. Você está
cada vez mais leve, mais leve... Sinta a
grama com as mãos. Isto mesmo: passe
as mãos na grama verde e macia como
veludo, pegue nela. E vá aspirando o
perfume profundamente.
Relaxe e descanse cada vez mais.
Você está bem, você se sente bem e em


paz. Mais, cada vez mais em paz. Você é a
paz. Paz, muita paz, paz profunda...

Você não tem problemas, sua mente
e sua alma estão livres e ordenadas, e
sobem, sobem cada vez mais, para enfim
descansarem numa nuvem de algodão, no
espaço. Vamos, coragem, vá atrás! Suba,
suba cada vez mais, encontre-se consigo
mesmo. Leve com você a paz do riacho,
das flores, da grama... Não há doença,
não há dores, não há morte, não há
problemas. Há paz, paz profunda.

Agora deslize, volteando pelo espaço,
a bordo da nuvem. Veja como ela desliza
suavemente, lentamente, embalando-o no
seu berço etéreo. Refestele-se nela, sinta-

a. Afunde nela, como num colchão macio.
Você está cada vez mais leve, mais feliz,
mais inteiro. Comandando a nuvem de
algodão sedoso, puro e macio,
mansamente, desça com ela até a grama
do jardim, aterrissando com mansidão
numa nova vida. O perfume, o deslizar da
água, a maciez da nuvem...
Você está agora unido à Mente e à
Alma Universais. Abra os seus horizontes.
Veja a extensão do infinito. Sinta o infinito


dentro de você. Entre no infinito como ele
entrou em você. Confunda-se com ele. Em
paz.

Você acaba de abandonar tudo que o
atribulava, física, mental e
emocionalmente. Quando se levantar da
nuvem e andar pelo tapete de veludo da
grama, terá abandonado o passado e
estará pronto para o futuro. Quando eu
disser que pode abrir os olhos, um novo
homem, sem doenças nem mazelas,
relaxado e em paz, verá à sua frente um
mundo novo, onde a Vida não tem fim e
confunde-se com o infinito.

Abra a sua mente, destranque as
portas da sua alma, deixe a paz invadir
você, entrar dentro de você e se abrigar lá
para sempre. E abra devagar os olhos,
diante da nova realidade, da nova vida,
que continua como o rio e como a nuvem,
num pulsar constante.

Seja feliz, meu irmão.

Tenha paz. Espalhe a paz a seu
redor.

Abra os olhos! Sinta todo o seu corpo
em harmonia! Sorria! Olhe a vida! Sintase
feliz!


Sinta-se em paz, meu amigo.


A VISITA DE FRANCISCO

Augusto, de olhos fechados, imerso
nos mais desencontrados pensamentos,
nem notou quando Francisco entrou e
parou em frente à cama, olhando para ele,
que, lentamente, foi abrindo os olhos.

— E então? Desistiu de ficar na janela
observando o movimento e a beleza local
e voltou a dormir. Por quê?
— Fiquei com sono. Nem sei quanto
tempo dormi. Mas agora estava apenas
cochilando, com a mente ocupada entre
um pensamento e outro, aguardando sua
chegada com o maior interesse e a cabeça
fervilhando de perguntas. Entre elas,
gostaria de saber quem é o meu salvador
e de quê ou do quê fui salvo. Para
procurar dar uma seqüência à minha vida
que, nem bem sei porquê, parece ter sido
interrompida entre o meu tombo em
frente ao hospital e aqueles momentos de
desespero no pântano. E não consigo
encontrar o elo entre um e outro... Fazer
uma ponte, entendeu? É como se minha
vida tivesse se dividido em duas,
completamente diferentes uma da outra.

Isto está me deixando muito confuso,
pensando nas mais loucas teorias. Preciso
reencontrar a seqüência da minha
existência e, para isso, preciso recordar o
que aconteceu neste lapso de tempo em
que, parece, perdi a memória, ou os
arquivos mentais. Só posso ter tido uma
crise de amnésia... Por favor, fale um
pouco desta parte que não consigo
lembrar, para que eu me acalme...

— Recordar-se daqueles tempos
desagradáveis que passou lá? Nunca! Para
que? Basta saber que aquela é uma região
perigosa, onde se encontram pessoas que
se identificam com ela, ou se identificaram
em algum momento da vida. A partir do
momento em que você conseguiu sair de
lá pelos próprios esforços, os
acontecimentos se tornaram mais belos e
vale mais falar neles e no futuro. Para que
discutir passado e – pior ainda – passado
com tantos sustos?
— Já expliquei. Porque quero
preencher este vácuo que ficou na minha
memória. Literalmente, tenho a sensação
de que perdi uma parte da minha vida,
pois me esqueci completamente dela.

Você pode não acreditar em mim, mas é a
pura verdade: não consigo, mas não
consigo mesmo, me lembrar como ou
porque caí lá. Nem mesmo do período em
que estava indo ou sendo levado para lá.
Nunca me aconteceu ter uma crise de
amnésia e estou muito preocupado. É
inadmissível! E preciso pegar os bandidos
que me atacaram e dar-lhes uma boa
lição. Ah, quando eu puser as mãos neles!
Quem pode saber quantas pessoas estes
homens já jogaram naquele abismo? E
quantas morreram antes de serem
socorridas? Uma coisa eu garanto: vão
confessar tudo, ah, vão sim! Vão dar os
nomes e a localização de todos que
jogaram naquelas paragens! Isto que
fizeram comigo e com Pedro não se faz. O
coitado ficou mais assustado do que eu.
Ele também se perdeu um pouco
mentalmente, teve uma amnésia parecida
com a minha, disse que acha que levou
facadas ou tiros, não sabe explicar bem.
Aquela região é tão pavorosa que provoca
uma sensação de esquecimento nas
pessoas, só pode ser. Ou o susto é muito
grande, sei lá. A propósito, no meu caso,


sabe me dizer se eles pediram resgate?
Foi mesmo seqüestro?

— Não sei. Eles quem? Sabe que nem
me interessei em procurar saber? Não
gosto de assuntos que nos arrastam para
baixo, para o abismo. Acredito na força da
mente e só me preocupo com as coisas
que nos lançam para o alto, para cima.
Mas, respondendo à sua pergunta
anterior, sou professor e me dedico, nas
horas vagas, a resgatar supostas vítimas
de bandidos que precisem de socorro.
Como você – respondeu Francisco
sorrindo.
— Aquele é mesmo um local de
desova? Acertei?
— É um local fácil para pessoas
desorientadas se perderem, digamos
assim. Mas, no final, todos encontram
uma saída ou uma mão amiga. Nunca
soube de alguém que ficasse lá para
sempre.
Augusto viu que o assunto, pelo
menos no momento, não ia render muito,
além de estar ficando incompreensível.
Acreditou que ainda não estivesse
recuperado de todo, necessitando ainda


de mais repouso para voltar a entender
novamente as coisas com mais clareza,
com a rapidez fulminante que sempre
caracterizou seus pensamentos. A
obsessão de saber tudo se apossava dele
cada vez mais, misturada à saudade dos
entes queridos e à preocupação com
familiares e amigos. E, diga-se de
passagem, com a vontade de dar uma
surra bem dada nos bandidos, como dizia.
Atacou por outro lado. Perguntou, olhando
em volta:

— Afinal, aqui é um hospital ou uma
instituição socorrista?
— E tem diferença? Geralmente, os
que socorremos estão necessitados de
cuidados especiais, pois, em quase todos
os casos, estão machucados no corpo e na
alma.
— E vocês tratam do corpo e da
alma?
— Evidentemente. Se não o
fizéssemos, o tratamento estaria sempre
deixando a desejar, incompleto. Há
interdependência entre o corpo e a alma.
Se um não estiver bem, fatalmente
influenciará o outro, que cairá também.

— Não conheço hospital que faça isto,
não.
— Agora conhece. Este faz.
— Como vocês sabem a quem
socorrer? Como são avisados que há
pessoas perdidas? Têm ligações com a
polícia?
— Saiba que, em qualquer local do
universo, por mais terrível que seja, há
sempre alguém desejoso de informar e
ajudar a quem se perde. Somos sempre
avisados a tempo de salvar. E
encontramos aqueles que se afinam
conosco. Pela lei dos iguais, você sabe, os
semelhantes se procuram, querem estar
juntos.
— Tem horas que você fala coisas
difíceis de compreender... Acho que ainda
estou muito cansado, embora não
pareça... É muito grande o serviço de
salvamento por aquelas bandas? São
voluntários ou são pagos? Quem treina as
equipes?
— Você nem conseguiria imaginar, no
momento, uma resposta plausível para
qualquer uma das suas perguntas.
Acredito mesmo que nunca tenha ouvido

falar ou lido sobre essas coisas. Nosso
serviço é tão grande quanto o número de
perdidos desarvorados. Para um
desgarrado, há sempre alguém o
buscando. No entanto, depende da vitima
querer ser salva. Não interferimos no livre
arbítrio. Respeitamos: se quiser ficar por
lá, sinta-se à vontade!

— Como?! Quem não quer ser salvo?
— Não acreditaria se eu respondesse.
— Vamos tentar nos entender
melhor. Digamos: se não conseguíssemos
subir pelas redes, vocês teriam ido lá
embaixo nos buscar? – perguntou
desconfiado.
— Não.
— Não?!
— Não. Por que se assusta? Nós
estávamos fazendo a nossa parte. A de
vocês era subir pelas cordas, usando
todos os recursos que conhecessem,
escalando por seus próprios meios e
méritos.
— Estranho... Podíamos estar com
muitos machucados, sem forças, sei lá...
Horrorizo-me só de pensar que vocês
teriam nos abandonado lá.

— Nunca abandonamos ninguém. A
não ser que a pessoa esteja pedindo para
ser abandonada. Respeitamos o livre
arbítrio, já disse. Se vocês estivessem
com muitos machucados, ou sofrendo
qualquer outro tipo de empecilho, pressão
ou incapacidade, saberíamos neutralizá-lo.
Cada caso é um caso. Não existe um igual
ao outro. No entanto, quem chega até ali
onde vocês estavam, consegue subir,
pode crer.
— Tem tanta certeza assim?
— Absoluta. Conheço muito bem o
meu trabalho. Executo-o há 50 anos.
Confuso, Augusto mediu o outro dos
pés à cabeça. Viu-se diante de um homem
alto, forte, nem gordo nem magro,
vestindo calça, camisa e sapatos brancos
como um médico, tranqüilo, calmo,
aparentando idade indefinida e portador
de uma dignidade que exalava como o
bom perfume. Mas, curiosamente, não
parecia uma pessoa vaidosa. Ao contrário.
Embora tivesse curtas e bem tratadas
barbas brancas, cabelo alvo e não muito
curto, ligeiramente ondulado, não parecia


ter nem 40 anos, pois irradiava mocidade.
Intrigado, retrucou:

— Está querendo brincar comigo? Já
nasceu fazendo isso, pescando gente
perdida? Quantos anos você tem?
— Trabalho aqui há 60. Antes, vivi
alguns anos em outro local bem mais
perto da região que abomina, labutando
no planejamento e orientação de
expedições socorristas, para que
pudessem descer em segurança a locais
mais baixos do que o que conhece. Fazia
também o rastreamento de pessoas
perdidas, usando radar sofisticado, que,
através de um sistema de cores, mostrava
perfeitamente as emoções do procurado, o
que nos dava a informação se estava ou
não na hora de ir buscá-lo. Satisfeito?
— Nossa conversa está melhorando.
Falou em radar. Radares e aparelhos de
defesa fazem parte das coisas que
entendo. Mas nunca ouvi falar em radar
que detecta emoções... Quanto à hora de
ir buscar alguém, não entendi... Tem hora
para socorrer um desorientado, perdido?
Eu, hein... Coisa mais maluca essa... E
não me venha com essa história de 60

anos aqui, mais não sei quantos acolá.
Não acredito e pronto. Você é jovem, não
queira me convencer do contrário, pois
tenho olhos para ver.

— Não parece, até agora, que esteja
vendo alguma coisa além da ponta do seu
próprio nariz... Se é que está vendo a
ponta dele... E, para sua informação, eu
não minto.
— Desculpe, eu não quis dizer isto.
Mas você não pode ser velho, embora
tenha cabelos brancos...
— Tenho cabelos brancos porque
gosto de cabelos brancos. Sempre gostei.
Augusto deu um pulo à frente,
exultante:
— Uau! Matei a charada! Vocês

dominam a técnica da juventude! Já ouvi
falar nestes tratamentos, radicais livres,
implantes de fios de ouro na face e sei lá o
que mais. Breve conseguirão a juventude
eterna, olhe lá! Tenho uns amigos que,
quando descobrirem isso, correrão logo
para cá. Sabe como é: pavor da velhice,
estas coisas. Olhe só: você parece um
moço, mas lembra alguém muito idoso.
Não entendo...


— Quem sabe? Quanto às técnicas
que dominamos, posso lhe dizer que está
numa instituição gigantesca em todos os
sentidos, como nunca imaginou existir.
Um complexo aparelhado para todos os
tipos de tratamento, emergência e
salvamento. Você nem pode imaginar tudo
que acontece aqui dentro. Sempre
objetivando a melhoria da vida e
aprimoramento dos seres, todos irmãos,
filhos de um mesmo Pai. Agora que
acordou e está bem, visitará as
instalações, se informará e entenderá
melhor. Terei muito prazer em ciceroneálo,
dando as explicações necessárias.
Garanto que vai ficar boquiaberto. Eu
mesmo, quando cheguei, embora
conhecendo algo a respeito e não tão
ignorante das coisas além das fronteiras
da mente, fiquei perplexo com o que vi.
Ultrapassou tudo que criei na imaginação.
Por isso me incorporei e aqui estou até
hoje, cada vez mais enturmado e pronto
para ajudar em tudo e a todos.
Augusto se entusiasmou e seus olhos
brilharam. Sempre tivera atração pelo
desconhecido, pelos desafios. Mas, desta
vez, estava achando aquela situação


muito estranha. Em certos e raros
momentos da conversa, sentia-se fora do
mundo. Continuou as perguntas, tentando
obter mais luz:

— Você disse que dá aulas? De quê?
Para quem?
— Anatomia e Fisiologia Humanas.
Para médicos e afins. Para os médicos do
futuro também. E então? Quer saber mais
alguma coisa?
— Você é médico? Quem são os
médicos do futuro? O que quer dizer com
isto?
— Fui médico. E os médicos do futuro
são aqueles que ainda não são médicos,
mas que um dia serão, por escolha
voluntária. Já outros foram e voltarão a
ser. E por aí vai.
— Foi?! Não é mais? E o que quer
dizer com isso de "foram e voltarão a
ser?" Nunca vi papo mais esquisito...
— Ainda sou médico. Voltarei a ser,
tenho certeza. Estarei sempre dentro da
Medicina. E não há papo estranho: há
ouvidos que não querem ouvir e olhos que
não querem ver. Os seus, por exemplo,
meu amigo.

O paciente Francisco sentou-se na
poltrona ao lado da cama, sorrindo
bondosamente diante da curiosidade e da
desorientação do outro.

Augusto pigarreou, incomodado, sem
saber bem com o quê:

— Não me leve a mal, agradeço
muito por ter me tirado daquele buraco de
loucuras. Você é o meu salvador e não me
esquecerei disto nunca. Saberei retribuir
sempre que precisar. Sou um amigo fiel.
Quero a sua amizade.
— Já a tem, garanto-lhe. E já
retribuiu. Tirar você de lá foi o meu
prêmio.
— Sim eu sei, embora não esteja
entendendo bem a sua conversa. Mas,
quer você queira ou não, tem a minha
amizade eterna, além de muita gratidão.
Não sei o que teria acontecido comigo se
sua caravana não aparecesse. Você parece
ser aquele sujeito que auxilia todo mundo
e suporta mais que todos as ingratidões
do mundo. Sei lá, você tem cara de
santo...

O outro começou a rir gostosamente
enquanto Augusto andava apressado de
um lado para o outro, coçando a nuca.

— Santo é você de pensar isto de
mim. Obrigado.
— Não precisa agradecer. Sou seu
amigo, pode contar sempre comigo. Mas,
sinto dizer que não posso ficar aqui
parado, embora a curiosidade de conhecer
tudo seja grande. Estou me sentindo bem.
Devo retomar minhas atividades. A
enfermeira me falou em regulamentos e
regras que, acredito, não se aplicam ao
meu caso, pois não vejo porque continuar
aqui. Posso vir, se você consentir, todos
os fins de semana, por exemplo. Para me
mostrar tudo. Para que eu possa ajudar,
se você quiser, até mesmo nas caravanas
de resgate. Não dispenso estar a seu lado
e auxiliá-lo. Devo-lhe muito. Acredito que
Pedro também vai querer colaborar. Ele
tem uma empresa de segurança. E o outro
que se salvou conosco. Não sei o que ele
faz, mas sempre há algo a fazer quando
queremos colaborar.
Meu Deus do céu, que falha
imperdoável a nossa, no Exército, de não


sabermos da existência deste lugar! Logo
que chegar em casa, quero comunicar
isto, até mesmo para ajudarmos. Nunca vi
um sistema de segurança com uma falha
tão grande, ignorando este local, os locais
onde me perdi, enfim tudo! Vamos ter que
questionar isto e remodelar tudo. Há uma
falha, uma lacuna, em algum ponto. Posso
garantir a você – pois já chefiei sistemas
de segurança militares – que ninguém,
mas ninguém mesmo, sabe da existência
de tal lugar. E nem dos bandidos que
soltam suas vítimas naquele pantanal
terrível.

— Acredito em você. Tenho absoluta
certeza disto.
— Antes de sair daqui, quero que me
dê a localização exata de tudo, para que
eu possa tomar providências. Arrumar
guardas bem armados para aquelas
imensidões. Gente treinada, corajosa, sem
medo! Talvez haja necessidade de
guaritas aqui por perto e
acompanhamentos lá por dentro da mata,
destacamentos nas fronteiras. Seguranças
para acompanharem as expedições.
Ajudar vocês e o povo do lugar. Aqueles

que tentaram nos atacar pareceram-me
selvagens. Que loucura, meu Deus! Podem
até ser usados por terroristas contra a
segurança da Nação! Por favor, quero um
mapa detalhado de todos os locais. Os
subterrâneos, outra loucura! Um
esconderijo perfeito e um perigo maior
ainda!

Já a parte positiva é que o local,
depois de devidamente entendido,
conhecido e vasculhado, pode servir para
cursos de sobrevivência em lugares
totalmente inabitáveis. Podemos instalar
lá alguns daqueles seus radares ultra-
sensíveis, os tais das cores, vão nos
ajudar muito. Aliás, vão ajudar às Forças
Armadas. Nunca ouvi falar da existência
de um deles, nem nos Estados Unidos ou
no Oriente Médio. Podemos negociar a
fabricação, para fins pacíficos e uso
restrito de forças de paz, alguma coisa
assim. Para protegê-los de algum louco
que queira usá-los com fins bélicos ou
outra finalidade qualquer. Pode me dar
uns croquis deles? Como são construídos e
por quem? Onde fica a fábrica? Ou são
fábricas? Como conseguem matéria


prima? Melhor, qual é a matéria prima?
Quero ver um deles logo que possível.

Francisco ouvia o outro com um
sorriso nos lábios e outro nos olhos, além
de uma tranqüilidade imensa. Resolveu
acalmá-lo:

— Conversaremos depois sobre tudo
que quer saber, ver e entender. Outro
assunto é mais importante: como militar,
deve entender bem de disciplina. É o que
mais valorizamos aqui, para o próprio bem
de nossos convalescentes. Digamos que
você está bem, fora de perigo, mas ainda
não teve alta. Tem que se conscientizar
disso.
— E quando terei? Impossível! Não
aceito ouvir isto. Não estou sentindo nada,
estou passando bem. E caso concorde em
ficar, quero explicações detalhadas. Além
do mais, terão que ser muito
convincentes, pois não estou com a menor
vontade de ficar nem mais um minuto.
Espero que me libere agora.
— Sinto. A explicação é das mais
simples: não sei quando poderá sair
daqui. O mais breve possível, acredito.
Recuperará o seu equilíbrio rápido. Não

temos a menor intenção de segurar
pacientes sãos. A vida continua, não há
minuto a perder e todos têm uma missão
a cumprir, um caminho a seguir. Concorda
comigo?

— Plenamente. E então?
— Então confie em mim. No
momento, sua missão é terminar o
tratamento e amparar seus amigos Danilo,
Pedro e André.
— Que tratamento? Você está se
contradizendo, pois disse agora mesmo
que eu estava bem... E Pedro e André não
são meus amigos. Nem sei bem quem são.
— Saberá oportunamente. Eles são
seus amigos sim. Você os ajudou nos
últimos momentos e eles, em
contrapartida, estiveram a seu lado.
Pronto: estabeleceu-se o laço! Gostará
dos dois. Quanto ao resto, não estou
tendo duas palavras: você está bem, mas,
no entanto, reconheceu que precisa de um
psiquiatra, para evitar uma crise de
stress. Então, digamos, não está
totalmente bem...
— É... Como está Danilo?

— Muito bem, cada vez melhor.
Poderá visitá-lo. Vocês têm total liberdade
para sair dos quartos e andar pelos jardins
e parques. Fará bem aos dois. Poderão se
ver quando quiserem. São vizinhos aqui.
Quanto a Pedro, poderá ir vê-lo,
conversar, mas verá que ele está muito
confuso ainda. André é mais receptivo,
menos complicado e, em conseqüência
disso, vem melhorando mais rápido. Breve
todos estarão bem.
— Fala como se estivéssemos ligados
uns aos outros. No entanto, só tenho
ligações com Danilo, que é irmão da
minha noiva Esther.
— Todas as pessoas estão ligadas
umas às outras, quer queiram, quer não.
São elos da mesma corrente humana,
onde são irmãos e o Pai ampara a todos.
Além disso, penso que terão aulas e
vivências, serão colegas em muitas
atividades.
— Aulas?! De quê? Já vem você com
complicações e adiamentos para minha
partida daqui...
— Aulas, sim. Para melhor
compreensão da nova vida, depois de uma

caminhada na escuridão e no vazio. Aqui a
recuperação é completa. Não é só pôr
curativo no dedão do pé e sair por aí não.
Digamos que aprenderão a não cair mais
em ciladas, tanto físicas como mentais.

— Ciladas como as que nos
vitimaram? É, foi feio mesmo.
Principalmente para mim, treinado e
esperto, com cursos de sobrevivência. Já
comi carne de cobra na selva, lutei com
jacaré na Amazônia, dormi ao relento, fugi
de onças, sou consultor em assuntos de
guerrilha e terrorismo. Não me conformo
com minha derrota desta vez. Confesso a
você, meu novo amigo – mas só a você –
que cheguei a chorar! Que humilhação!
Desorientação, pânico, falta de
imaginação e criatividade para tomar
atitudes certas e rápidas, tudo isso me
acometeu naquele lodaçal. Estou
envergonhado, falhei. E logo eu! Não
conhece meu currículo; se conhecesse
entenderia a minha vergonha.
Fico feliz em saber que ensinam
estratégia e defesa pessoal aqui. Olha
só... Posso colaborar também neste ponto.
Fiz muitos cursos no exterior, estagiei na


CIA, no FBI, na Scotland Yard e por aí
afora. Cheguei a fazer um curso na antiga
e poderosa KGB. Tenho amigos que são
ótimos em sobrevivência. Eles ajudarão,
tenho certeza. Podemos montar um
grande centro de estudos militares e
estratégicos aqui nas redondezas. O local
é bom para tal, pois é totalmente
desconhecido. E vocês só lucrarão, pois
estarão bem protegidos. Temos que nos
assentar com calma e colocar todos estes
planos no papel, para que eu possa levar
tudo certinho, conversar lá e voltar com
tudo esquematizado. Talvez o General
Siqueira venha comigo para ver tudo in
loco.

Vou avisando logo: Danilo terá
dificuldades nos planos de defesa. Poderá
colaborar em outras coisas, como na
administração e organização do hospital.
Aí, vai gostar. Ele não aceita assuntos
militares, bélicos. Foi sempre um manso
cordeirinho, nunca brigou nem discutiu,
um sujeito bom, bom demais a meu ver.
Ele tem uma estranha convicção tipo "se
te batem, perdoa". A minha é diferente: é
do tipo "se te batem, couro neles".


— Sabe que você disse uma coisa
interessante no meio de tudo? As nossas
aulas não deixam de ser aulas e vivências
de estratégia e defesa pessoal mesmo...
Temos que nos defender de nossos
inimigos, ficar alertas, usar as armas da
compreensão e da sabedoria, ter
invariavelmente a mente aberta e limpa e
auxiliar no que for possível, vigiar
ininterruptamente os locais que ofereçam
perigo de nos perdermos, com os nossos
radares interiores sempre ligados. Você
não deixou de atirar numa coisa e acertar
noutra, amigo!
Francisco se levantou, avisando:

— A partir de hoje, nós nos
encontraremos muito. Digamos que sou
um dos responsáveis por vocês. Gostarão
da aventura. Prometo. E partirão para
outras logo que estiverem preparados. Ou
poderão colaborar sempre aqui, como
você quer. Agora, prepare-se. Dalva virá
buscá-lo breve e, ao lado dela e de
Jaciara, você e Danilo farão seu primeiro
passeio nos jardins.
— Quem são elas? Professoras
também?

Retirando-se sorridente, Francisco
respondeu:

— Enfermeiras, meu caro,
enfermeiras...

PRIMEIRO PASSEIO

Augusto e Danilo, devidamente
escoltados por Jaciara e Dalva, saíram
para um primeiro passeio pelo parque.

Andando devagar, deslumbrados,
observavam tudo. De imediato,
concordaram que nunca haviam visto algo
mais belo e bem cuidado! Gramados a
perder de vista, lagos de água tão límpida
que se via com facilidade os seixos do
fundo e peixinhos coloridos nadando para
lá e para cá. A vegetação exuberante
mostrava gloriosos todos os tons do
verde, mesclados ao cinza prata e ao
dourado. Já as flores, multicoloridas e
algumas com formas até então
desconhecidas dos dois amigos, formavam
um espetáculo à parte. Deslumbrantes,
perfumadas, algumas refletindo a luz
solar, outras brilhantes, mostrando ter luz
própria. Notaram que minúsculos miosótis,
incrustados nos vãos de uma gruta,
refletiam os raios luminosos do sol,
espargindo luz azul e dando um tom
celeste às pedras que os sustinham. Leve
brisa balançava trepadeiras maravilhosas,


que subiam pelas árvores, formavam laços
balouçantes e se imiscuíam nos pequenos
vãos das pedras, aparecendo depois entre
folhagens. Principalmente, sentiram que
ali tudo respirava muita paz,
tranqüilidade.

Cruzaram com vários grupos de
convalescentes fazendo o mesmo que
eles. Todos se cumprimentavam sorrindo
e acenando. Havia vida por todo lado.
Vida leve, bonita. Decididamente, seria
difícil um doente não se recuperar em
local igual àquele.

Foram informados pelas moças que
as águas das fontes eram medicinais e
que poderiam e até deveriam beber delas
a vontade, pois seu efeito era quase
instantâneo. Não se fizeram de rogados.
Beberam e gostaram. Eram águas
cristalinas e, em algumas fontes,
borbulhavam círculos concêntricos e
brilhantes. Tinham os mais variados
sabores e, quando ingeridas, pareciam
recuperar as forças quase de imediato.
Quem as bebia sentia-se melhor, mais
forte, mais lépido.


Encontraram também grupos de
crianças de todas as idades, sexos e
raças, alegres e correndo, brincando
despreocupadas, guardadas por solícitos
enfermeiros e enfermeiras.

Pararam para descansar sob uma
árvore frondosa, onde se sentaram no
chão.

— Foi muito bom ver você, Danilo. É
ótimo estarmos juntos, no mesmo
hospital, melhorando, Mas fico pensando
no pessoal de casa. Como devem estar
assustados! Sabe, quando me atacaram,
eu estava justamente atravessando a rua,
para estar com você na hora da cirurgia.
— E não ia encontrá-lo lá – disse
Dalva. Ele foi transferido logo após a
internação.
Danilo olhou para as moças:

— Imaginem vocês que coincidência:
dois amigos tão ligados por laços de
companheirismo e família, tendo
problemas de saúde no mesmo instante!
Augusto retrucou:

— Felizmente caímos em mãos
experientes, mas, antes, passei por maus

momentos. Não gosto nem um pouco de
me lembrar daquilo. Fico confuso.

— E nem deve. Aliás, nem conte.
Para que? Risque de sua mente as
recordações negativas. O que passou,
passou. Sempre falei isto com você,
lembra-se? E vamos logo mudar de
assunto. Você já visitou este hospital? É
incrível que nunca tenhamos ouvido falar
dele! – falou Danilo, com súbito interesse
pela casa de saúde e nenhuma vontade de
saber de coisas tristes ou deprimentes.
— Ainda não. O homem que me
salvou prometeu me mostrar tudo.
Acredito que permitirá sua companhia.
— É... Gostaria de ver tudo,
acompanhar vocês. Preciso saber algumas
coisas... As nossas amigas passaram
muitas informações. No entanto, sinto que
falta um elo, eu gostaria de saber muito
mais. Estou sempre pensando em
questões básicas que, por não me
responderem com a franqueza que eu
gostaria, tornaram-se situações
complicadas e ainda não resolvidas. Será
que estamos muito longe de casa? Notou

que não nos informaram nada? Preciso
saber mais.

— Muito mais – reforçou Augusto. Por
exemplo: fico observando da janela.
Chegou a ver os veículos curiosos nos
quais todos se transportam? Quando
cheguei, eu vi muitos rodando por aí. De
repente, desapareceram...
Jaciara entrou na conversa
explicando logo:

— Não sabem porque não
perguntaram. Sempre respondemos a
todas as dúvidas que nos apresentam;
jamais deixamos alguém sem
esclarecimento. Evitamos, porém, encher
a cabeça dos doentes e dos
convalescentes com informações
supérfluas, acreditando que, quando o
assunto interessa, o próprio doente
pergunta. Se não perguntou, para que
levantar problemas desnecessários? O
primordial é que se recuperem o mais
rápido possível. Com o tempo, eles
mesmos irão mostrando suas
necessidades e perguntando,
perguntando...

Quanto às conduções, elas não
desapareceram; apenas não podem entrar
no parque interno, nem ficar próximas
dele, para que os pacientes tenham o
máximo de tranqüilidade e calma.
Regulamento, disciplina, cuidado com os
pacientes: são nossas metas prioritárias.
Mas, existem diversos tipos delas sim.
Velozes e adaptadas às situações para as
quais são usadas. Quanto à locomoção dos
funcionários, quem mora na cidade, tem
seus horários de trabalho, vai e volta.
Geralmente fazem isto no ônibus aéreo.
Vocês vão conhecê-lo e até andar nele
logo que aparecer a oportunidade. É um
carro muito interessante: anda acima do
solo, cerca de dois metros. No meu caso e
de Dalva, porém, raramente o usamos,
pois não saímos todo os dias. Moramos
aqui mesmo, em local destinado aos
funcionários que residem na própria
instituição.

— Mas têm horas de descanso,
folgas, férias e outras coisas, não? –
perguntou Danilo.
— É claro que sim! Todas as pessoas
devem trabalhar e descansar. É básico!

— E por que vocês moram aqui? Não
têm família?
— Por perto não. Como gostamos de
trabalhar aqui, preferimos morar juntas,
pois sempre fomos grandes amigas.
— Estão aqui há muito? – perguntou
Augusto.
— 10 anos – respondeu Dalva.
— Um tempão! Então, devem
conhecer todo o complexo, suponho.
Como vieram parar aqui? Sempre foram
enfermeiras?
— Sim, mas chegamos aqui por
diferentes caminhos, como pacientes e,
depois, fomos convidadas para ficar e
aceitamos. Gostamos de cuidar de
doentes, ajudar, vê-los ficarem cada vez
melhores a cada dia. Sempre fizemos isto
na vida...
— Quem convidou
permanecerem aqui?
vocês para
— Francisco, um dos diretores.
— E se não quisessem ficar?
— Não ficaríamos, ora!

Restabelecidas e curadas, iríamos procurar
outro trabalho, normalmente. Caso não



tivéssemos muita certeza do campo em
que desejaríamos trabalhar, entraríamos
em contato com o Departamento de
Colocação de Ex-Pacientes e eles nos
encaminhariam para uma orientação e
posterior escolha de local de trabalho.
Tudo democraticamente, como devem ser
as escolhas pessoais, pois, já que arcamos
com as conseqüências do que fazemos,
devemos também escolher livremente o
que fazer. Entenderam?

Augusto estava cada vez mais
interessado e Danilo cada vez mais
pensativo. Alguma coisa o incomodava, no
íntimo. Augusto continuou:

— E o tratamento de vocês demorou
muito? Tratamentos aqui são longos?
— Depende do caso e do paciente –
falou Jaciara. Já vi pessoas que ficaram
ótimas em uma semana, outras que
levaram dez anos ou mais e outras que
chegaram e nunca se recuperaram. Estas
tiveram que ser transferidas para outros
locais mais condizentes com os problemas
delas. Há casos também dos que
chegaram já prontos, sem precisar de

tratamento ou adaptação e começaram
direto no trabalho de ajuda.

Quanto ao meu caso, não foi muito
longa a adaptação. Colaborei bastante,
graças a Deus. Eu realmente queria ficar
curada, limpar minha mente e meu
coração e renascer para uma nova vida de
auxílio ao próximo e elevação própria. Eu
sabia que era a responsável pela minha
doença, pelo estado em que cheguei aqui
e me sentia humilhada com isso, sabem?
Mas ninguém nunca me cobrou nada, nem
me menosprezou por causa da minha
fraqueza passada. Ao contrário, só tive
palavras de ânimo e encorajamento.

Vou contar para vocês dois: eu sou
uma suicida, sabem? Tudo que aconteceu
depois foi uma agradável surpresa para
mim, mas também motivo de muita
vergonha pela minha fraqueza.

Imaginem vocês que eu fui casada.
Com alguém que me fez sofrer muito e a
quem não perdoei jamais, mesmo depois
de separados. Ao contrário, meu ódio por
Mauro foi me dominando tanto, o meu
desejo de vingança crescendo, eu só
pensava nele, sempre nele. É claro,


desejando as piores coisas para ele,
culpando-o por tudo que me acontecia.
Não notava que minha atitude me
amarrava nele cada vez mais, ao invés de
me livrar dele... Não bastaram os avisos
de minha mãe, que eu sempre considerei
uma mulher muito sábia. Ela me dizia o
óbvio: que o ódio prende tanto ou mais
que o amor e, no fim, o que eu estava
fazendo era justamente o contrário do que
queria: ligava-me cada vez mais em quem
só me fez mal. E não conseguia me
separar de um passado dolorido e infeliz,
de uma pessoa que nada tinha a ver
comigo. Só quem perdoa consegue se
desligar e seguir em frente. Mas eu não
perdoava, não esquecia, amaldiçoava. Só
pensava em vingança, enviando na
direção dele os piores pensamentos que
tinha. E, logicamente, recebendo-os de
volta, pelo choque do retorno. E – olhem
só – eu nunca fui uma pessoa má, tenho
certeza. Nunca guardei ódios nem
rancores, sempre procurei colaborar e
ajudar as pessoas. Só Mauro, só Mauro,
ficava atravessado na minha garganta, me
sufocando.


Com o tempo, foram aparecendo
doenças em mim – e não nele. Alergias
inexplicáveis, pânico, angústia, dores no
peito, tudo aparecia sem causas, sem que
os médicos conseguissem explicar. De
fato, eu não sabia – nem eles – que, no
físico, havia só o reflexo de uma mente
envenenada por ela mesma durante anos
e que se atrofiara toda.

Eu, cada vez pior, já cheia de
doenças inexplicáveis cientificamente –
pois cheguei a ponto de ter os sintomas
físicos e a doença não aparecer nos
exames – comecei a ter ligeira idéia do
mecanismo do que me acontecia, mas o
veneno – o meu próprio veneno – já havia
me tomado irremediavelmente. Foi
horrível! Vocês nem imaginam como sofri
com minhas doenças! Cheguei a ter um
choque respiratório – até hoje não
explicado pela medicina convencional –
mas muito bem explicado pela lógica e
pelo bom senso. Digamos que eu forcei
demais a máquina, sem azeitá-la com a
compreensão e a humanidade.

Vejam só: nunca me passou pela
cabeça que, se eu censurava tanto Mauro,


ele talvez me censurasse também, com
alguma razão. Será que a culpa do fim do
casamento era só dele? Será que eu teria
sido tão maravilhosa para ele e ele tão
tenebroso para mim? E, mesmo que ele
realmente nada tivesse feito de bom, por
que não coloquei por cima de tudo a pedra
do perdão, libertei-o e me libertei
também, seguindo o meu caminho em
paz?

Enfim, tudo passou, sofri muito antes
de vir para cá, cheguei aqui sofrendo, mas
me curei e estou aí. Só lamento o tempo
útil que perdi com isto, com esta idéia
boba de vingança...

A moça balançou os longos cabelos
negros e lisos, afastando velhas
lembranças e sonhos que não se
realizaram.

— Não vi o suicídio nesta história –
murmurou Augusto.
— Não o viu no fim da história porque
ele foi lento, durante toda a história. Cada
dia eu me matava um pouquinho, me
envenenava em pequenas doses, me
destruía em pensamentos doloridos. Até
que o corpo cansado dos ataques de uma

mente doente, explodiu junto com ela e
fui atirada para cá...

— E você, Dalva? – falou, bem
baixinho, Danilo.
A bela moça, enfiando os dedos nos
cabelos castanhos e anelados até os
ombros, sorriu:

— Muito simples. Andava pela rua e
uma bala perdida me atingiu. Só! Não vi o
que foi que me fez cair, pois nem dor
senti. Aliás, nem mesmo vi quando caí. Só
fiquei sabendo de tudo depois, quando saí
do prolongado coma. Como podem ver,
cada um de nós tem sua história. O
importante, porém, é que vencemos e
aqui estamos, prontos para recomeçar e
recomeçar melhor. Nada como a
experiência pessoal para melhorar as
pessoas. Devemos ver sempre o lado bom
e positivo dos fatos e tirar só as lições que
poderão melhorar o nosso futuro e o dos
outros. O resto é passado. Acabou e fim!
Os quatro ficaram algum tempo
calados, pensativos, olhando para um
ponto no infinito. Algo ainda tímido e
inexplicável brotava nas mentes de
Augusto e Danilo.


Jaciara quebrou o silêncio:

— Não acham que já passearam
bastante para um primeiro dia? Agora,
penso que devem voltar e visitar André e
Pedro, não é mesmo?
— Prefiro ir para o quarto hoje. Sinto-
me indisposto e preciso descansar – falou
Danilo.
Augusto concordou:

— Vou visitá-los sim. Quanto a você
Danilo, descanse bastante, pois acredito
que precisamos conversar muito. Procuro
você amanhã cedo.
Ninguém saberia dizer porque, de
repente, os dois falavam baixinho,

circunspectos. As moças, caladas,
respeitavam o momento e apenas
acompanhavam os seus pupilos

convalescentes.

Devagar, os quatro voltaram ao
hospital. No entanto, quem reparasse
melhor nos olhos azuis de Danilo veria que
eles, quais duas safiras, nadavam e
nadavam em pérolas de lágrimas que, no
momento, se negavam a escorrer pelas
faces...


OS TERRORES DE PEDRO

Augusto entrou pensativo no quarto
de Pedro. Havia pensado muito, escondido
no silêncio de seu quarto. Agora, resolvera
agir. Afinal, nunca ficara parado diante da
realidade. E não seria neste momento que
esperaria que outros fizessem por ele,
resolvessem por ele, enfim, vivessem por
ele. Baseado na máxima de que a vida
continua e acreditando que tudo passa e o
que acontece é nosso destino resolveu
reagir, olhar os fatos de frente e ajudar
Pedro e André, pois, como Francisco
dissera, se chegaram juntos havia algum
motivo. E se permanecessem parados
chegariam a lugar nenhum, ao
aniquilamento, ao fim.

Encontrou o novo amigo cochilando
na poltrona perto da janela, muito
inquieto, com tremores nas mãos,
emitindo sons ininteligíveis, como se
estivesse preso a um sonho terrível.

Silenciosamente, sentou-se em frente
a ele e ficou observando-o. Pedro sentiu a
presença de alguém e abriu os olhos:


— Olá! Vejo que está bem melhor do
que eu. Ainda bem que não é um
fantasma. Sabe? Ultimamente dei para ver
fantasmas... Como vê, não consigo
controlar o sono. Tenho pesadelos, acordo
e durmo de novo... Sonho com meus
avós, que já faleceram há não sei quantos
anos, falando comigo coisas complicadas,
que não consigo entender. Ao mesmo
tempo, penso que vejo um homem de
pedra olhando para mim... Uma loucura!
Estou exausto! Acho que estão me
dopando, dando algum remédio para
dormir, para entorpecer os membros, não
sei por quê... Mas, como aqui tudo é
estranho, não duvido de nada. Perdido por
um, perdido por mil...
— Que conversa furada é esta? Não
tem nada de estranho aqui. Ao contrário,
é bem óbvio. Pare de fugir, rapaz! Acorde!
Seja homem!
Augusto recuperara toda a
serenidade e autocontrole. Encarou o
outro com segurança na voz:

— O local é fabuloso e você está
dormindo porque quer, porque está com

medo de abrir os olhos e encarar a
realidade. Acertei?

— Que realidade? Estou perdido! E
você também. Vai dizer que não tem suas
dúvidas?
— Eu?! Nenhuma mais. Não, seu
idiota, já matei a charada. Já as suas
ainda são muitas, pelo que vejo.
— Não sei o que está querendo me
dizer, mas posso adiantar com toda
segurança que estamos confinados, sem
nenhuma comunicação com o mundo
exterior. Olhe só a gravidade desta
afirmação: sem nenhuma comunicação
com o mundo exterior! Nenhuma mesmo!
Tenho certeza, certeza absoluta, que isto
aqui é um laboratório de pesquisas, onde
seres humanos são usados como cobaias
por um laboratório que tenta criar uma
arma química altamente poderosa e
destruidora. Nem penso no que poderá
acontecer conosco. Veja os produtos que
estão ministrando em mim: estou
totalmente apático, inerte, dormindo,
tremendo, sem conseguir concatenar os
pensamentos. É a prova.

E olhe o pior de tudo: já notei que é
difícil fugir. Cair de novo naquele pantanal
terrível que circunda este local? Nem
pensar... Ir para onde mais? Quando
estávamos lá, não encontrávamos saídas.
Já aqui, agora, estão nos vigiando
constantemente. Neste quarto e nos
outros também, bem camuflados, existem
câmaras de TV escondidas e gravadores.
Sabem tudo que falamos, tudo que
fazemos, tudo que sonhamos, tudo que
desejamos, tudo que queremos.
Conversam conosco como se nos
conhecessem há milênios.

Acredito mesmo na possibilidade de
termos sido raptados; eles já nos
vigiavam antes, quando ainda estávamos
trabalhando normalmente. Devem ter feito
um estudo de nossas vidas e descoberto
que temos boas condições físicas, que
estamos bem para as pesquisas deles. Aí
então, tentaram nos raptar. Mas alguma
coisa deu errado e caímos naquele lugar.
Então, eles nos procuraram de novo e nos
trouxeram para cá.

— Meu Deus do céu, Pedro! Onde é
que tirou estas idéias? Nunca vi tanta

asneira junta! Ficou maluco de vez? Vou
contar um caso da minha infância para
você: quando meninos, na escola
primária, eu e meus amigos gostávamos
de fazer campeonatos de lorotas. Quem
contasse a maior, ganharia um prêmio
previamente estabelecido. Geralmente, o
prêmio era em dinheiro: uma parcela da
mesada de cada um. O vencedor levava
uma bolada... Olha, se você aparecesse
por lá, ganharia todos os troféus...
Rapaz... Estou perplexo com este festival
de besteiras...

— Que besteiras que nada! Não sou
burro, cara. Sempre trabalhei com gente
treinada para pensar rápido. Gente
conhecedora de assuntos bélicos,
secretos, sei lá...
— E daí? Sou militar... E nem por isso
saio por aí falando estas coisas...
— Mas não parece. Não está estranho
tudo aqui não? Vamos, pense! É muito
claro que estamos em outro mundo,
isolados num local diferente daqueles que
conhecemos e estamos acostumados.
— Aí, sim. Sabe que começo a
concordar com você em alguns pontos?

Muito mais do que pensa, meu caro. Aliás,
eu também tenho certeza de que estamos
em outro mundo. Mas não tão longe do
nosso como pensa.

— Não falei? Você está é escondendo
informação. Será que isto tudo é
patrocinado por alguma organização
estrangeira? Uma multinacional poderosa?
Que acha? Vamos, solta a língua! Aposto
que você já sabe! Devemos estar no
coração da selva amazônica. Justamente!
Aqui há muitas plantas medicinais,
tóxicas, venenosas, carnívoras... Já
reparou na vegetação? É exuberante
demais para ser um matinho qualquer...
De repente, Augusto recobrou o bom
humor habitual e foi acometido de uma
crise de riso aberto e franco. A expressão
idiota e assustada do outro o divertia
intensamente. Resolveu pôr um fim
naquela situação boba e sacudir a mente
do amigo recalcitrante. Controlou o riso e
falou com sua voz trovejante:

— Acho que aqui é um hospital e fim.
E muito mais breve do que pensa
sairemos daqui. A não ser, é claro, que

você queira ficar empacado ai. Acorda,
rapaz! Raciocina!

— Ah, é? Está pensando que sou
maluco, é? É porque você ainda não ouviu
o André, aquele cara que nos ajudou no
fim e veio para cá conosco. Estive com
ele, ou melhor, ele esteve comigo, pois foi
ele quem veio me visitar. Está doidinho,
rapaz! Sabe o que me garantiu, provando
por a + b? Que estamos numa base
espacial e que extraterrestres nos
estudam. Gostou? De certa forma, é uma
hipótese a estudar também. E tanto com
laboratório como com extraterrestres,
estamos ferrados de qualquer maneira.
E sabe baseado em que ele afirma
isso? Ele me contou, jurou mesmo que era
verdade, que estava quase dormindo,
quando um vulto branco e luminoso,
deslizando e parecendo não tocar o chão,
entrou no quarto e parou ao lado dele,
bem na cabeceira. Ele fingiu dormir,
quietinho, prendendo a respiração,
horrorizado e pensando que tinha chegado
a hora dele. Estavam tão perto um do
outro que ele sentia o calor vindo do
estranho ser. O vulto começou a flutuar –


flutuar, ouviu? – em volta da cama.
Passou repetidas vezes as mãos no ar, em
várias direções do corpo dele, parou um
pouco com elas em cima da cabeça dele e
saiu silenciosamente. Bicho, deve ter sido
um pesadelo e tanto...

— Coitado! Vai ficar biruta por medo
de entender a realidade... Sabe de uma
coisa? Eu atraio doidos varridos, descobri
agora. Com tanta gente para ser salva
comigo, fui logo ser salvo junto com vocês
dois! Arre!
— Que nada! Doido é você, que não
se preocupa com nada e vai morrer sem
saber porquê se continuar assim. Eu sou
muito normal. Quanto a André, acho que
ele já nasceu um pouco desregulado, pois
não acredito muito nisto de ET's não...
Veio com um papo muito estranho,
contatos de terceiro e quarto graus e
outras coisas mais. Falou em seres
intergalácticos, inteligência sideral, sons
do espaço, naves e bases espaciais. Está
convicto disto. Depois disto, ainda pensa
que sou maluco?
— Quem são vocês para serem
malucos numa hora destas? Acho que são

é idiotas mesmo... Aprenda: o segredo é
enfrentar de frente as coisas que nos
ocorrem e nos metem medo. André,
inconscientemente, já sabe o que
aconteceu conosco. Ele está é com horror
de encarar os fatos, pois, logicamente,
algumas coisas vão mudar na vida dele.
Como você. Sinto muito, mas é a verdade.
Você afirma que vocês dois são muito
inteligentes, mas entendo que não
consigam compreender: é duro acordar,
mesmo que seja numa situação boa como
agora.

— Que situação boa? Que verdade é
esta sobre a qual você está falando?
Acordar como? Quer misturar mais ainda
as minhas idéias e baratinar de vez o meu
cérebro cansado? Pelo amor de Deus,
cara...
Augusto sempre foi um homem
prático, corajoso e forte em todas as
situações. Continuava sendo. Olhou para o
outro e teve pena, notou a fragilidade
dele, ao vê-lo com tanto medo, tão longe
da realidade. Resolveu adiar a conversa
que pretendia ter com ele. Amaciou a voz:


— Não se preocupe, Pedro. Descanse
e não tenha medo. Oportunamente
conversaremos. De repente, passo a
pensar que o melhor é você dormir um
pouco mais e deixar André com seus
astronautas, internautas, ET's, sei lá o que
mais. Enquanto isto eu reorganizo a minha
mente, me acalmo e converso com um
amigo que está aqui, Danilo. Quanto ao tal
André, não se preocupe. Parece-me que
ele é gente boa. Depois, sabe o que nós
dois faremos? A gente dá um susto nele e
ele melhora rapidinho. Por ora nem vou
visitá-lo, como pretendia. A conversa com
Danilo é muito importante para nós todos.
Uma coisa eu posso afirmar para você:
comece a se acostumar comigo, com
Danilo e com André. Algo me diz que
estaremos juntos um bom tempo. Não me
pergunte porquê.
— Por que?
— Por que não sei o porquê... Tenho
quase certeza. Mas, descobriremos,
garanto-lhe.
Augusto deu uma gostosa risada.
Pedro ficou sério:


— Se é que conheço as pessoas,
posso afirmar que você já sabe muita
coisa sobre o local onde estamos, por que
estamos e o que fazemos aqui. E muito
mais. Acertei?
— Você também sabe... Basta uma
espremidinha em você...
Pedro murmurou:

— Posso até imaginar que sei, mas
tenho medo...
— Não precisa ter. Agora está tudo
sob controle, meu amigo.
— Alguma coisa irreversível? Diga-
me, Augusto!
Augusto olhou em volta, conformado.
Seu olhar era triste, mas sua voz firme:

— De certa forma, acertou. Mas não
é nenhuma tragédia, confie em mim. É até
uma coisa banal. Acontece com todo
mundo, desde que o mundo é mundo...
— Estou assustado...
— Não precisa ficar assim. Poupe-se
ao máximo. Preciso conversar mais com
Francisco e Danilo e depois terei o máximo
prazer em transmitir minhas impressões a
você. Por ora, vá se esquecendo de ET's e

laboratórios com cobaias humanas. Posso
garantir que, mesmo que não seja o que
estou pensando, não é nada também do
que vocês estão pensando.

— Uau! Que autoridade! Adianta logo
alguma coisa, pelo amor de Deus! Pelo
menos diga: corremos algum perigo
iminente?
Augusto desatou a rir da ingenuidade
do outro:

— Já corremos. Agora, afirmo que
estamos imunes. Será muito difícil algo
nos atingir. Descanse. Vai precisar de
muita paz e força quando descobrir
realmente onde nós estamos. Confie em
mim.
Augusto saiu pelo corredor, andando
devagar e ainda rindo da cara assustada
do outro, dos ET's e laboratórios, de si
próprio, que se julgava tão inteligente e
rápido no raciocínio e havia levado tanto
para compreender...


A REVELAÇÃO

Danilo acordou muito bem disposto,
sem sentir dor alguma e nem mesmo se
lembrar do coração. Mas, mesmo com este
estado de espírito, foi com um sorriso de
amargura indefinível que recebeu
Augusto:

— E então? Pesquisando muito sobre
o local onde estamos?
— Deixe de conversa, Danilo! Você
sabe tanto quanto eu onde estamos...
Melhor do que eu.
Augusto assentou-se pesadamente na
poltrona, olhando para o horizonte azul da
manhã linda, absorvendo a luz da
paisagem maravilhosa que se descortinava
da janela. Com sua acuidade mental já
funcionando perfeitamente, notou a beleza
do momento e também que já havia
pacientes andando nas alamedas, embora
fosse muito cedo. Pelo que viu, sentiu que
a vida não parava naquela gigantesca
colméia onde agora vivia.

Olhou tristemente para Danilo:


— Difícil vai ser explicar para Pedro e
André. E parece que eles serão nossos
companheiros num futuro próximo... Pelo
que entendi, temos algumas coisas em
comum, embora eu não possa imaginar
quais. Mas deixa para lá... Vamos homem,
saia logo desta cama! Você sabe que ela
não é mais necessária! Vamos encarar
logo!
Danilo levantou-se em silêncio e
caminhou até a janela, junto ao amigo.
Sentou-se no parapeito dela, uma perna
para dentro e outra para fora. Encostou-se
relaxado na lateral. Não estava abatido,
estava triste. Encarou o outro, com um
meio sorriso:

— Nunca pensei que fosse tão bonito
do lado de cá... Mas também nunca pensei
que viria tão cedo. Estou cheio de
saudades, Augusto.
— Eu também. Fazer o quê? Tem
saída? Você entende disto melhor do que
eu. Sempre acreditou em tudo que agora
vê como realidade, não? Ouso dizer que
você sabe, pelo menos por intuição, quais
serão os próximos passos.

— Não tem saída não, meu amigo.
Estamos do outro lado, onde só tem
caminho à frente. Não sei se isto é bom ou
mau, mas esta caminhada não tem volta.
Pelo menos nesta etapa. A volta será de
outra forma, noutros ambientes, noutros
locais, outras pessoas ligadas a nós. Meu
Deus! E eu que tinha tanto medo da hora,
não a vi chegar!
— Pelo menos você sabe como
aconteceu: problema cardíaco. E eu, que
nem sei? Só me lembro de ter caído. Mas,
caído por que? E logo no meio da rua...
Danilo sorriu:

— Você sempre gostou de confusão,
confesse! E deve ter provocado uma das
maiores! Ajuntamento de gente e coisas
assim... Pode ter sido atropelamento, já
pensou nisso? Lembra-se que Jaciara falou
que só não sabemos o que não
perguntamos? Que aqui eles respondem a
tudo?
— É... Vou perguntar... Agora, já não
interessa tanto assim... Já não penso mais
que foi seqüestro ou assalto. Será que foi
coração também? É uma hipótese...

Pela primeira vez, os dois se
descontraíram num repente e riram da
situação. Foi neste momento que entrou
Alberto e, sem cerimônia, assentou-se na
cama:

— E então? Como vão os dois? As
pesquisas estão sendo
Alguém tem novidades?
proveitosas?
Danilo adiantou-se:
— Por que não me falou antes,

Alberto? Por que me deixou descobrir
sozinho?

— Porque você mesmo quis assim.
Agüentaria ouvir antes? Ou melhor,
ouviria? Seus ouvidos estavam cerrados.
Nem mesmo enxergar o local você queria!
Fechava os olhos frente a qualquer
ameaça de descobrir a verdade. Verdade
que, para ser entendida e compreendida,
bastava ser observada. Ainda mais você
que, desde criança, leu e aprendeu sobre
certas coisas que, agora, nos últimos
tempos, está presenciando. De tão
assustado, nem notou. Perdoe-me, mas,
em certas situações, seu comportamento
chegou a me fazer rir. Foi cômico. Mas
saiba que você sempre soube, Danilo. Só

não deixou aflorar o que pensava. Não se
preocupe. Não é um caso único. Toda
transição assusta e forma bloqueios. No
fundo, vocês dois estão se saindo muito
bem da situação, vencendo a maior das
batalhas. Lembra-se de Paulo, em 1
Coríntios 15,26? "O último inimigo a ser
destruído é a morte" disse ele. E quanto a
você, Augusto?

— Confesso que estou perplexo.
Nunca tinha me interessado pelo assunto
e o "depois" para mim era uma incógnita,
com a qual não me preocupava, pois
acreditava estar muito distante. Os
primeiros dias, no entanto, não foram
animadores nem agradáveis e acredito
que terei uma explicação a respeito.
— Terá todas. Caso continue julgando
que precisa delas. Pode acontecer também
que se desinteresse e nem queira saber,
arquive tudo e siga em frente.
— Ótimo! Bem, estou pronto e
resignado. Apenas lamento, pois estava
em uma fase excelente da minha vida,
onde era imensamente feliz, depois de
muitos anos de solidão. Isto está doendo

muito no meu coração, creia-me. E agora,

o que acontecerá?
— Tudo que tinha que acontecer já
aconteceu. Posso garantir que ninguém
deixou de ser feliz. Vocês dois apenas
passam por um momento que é
complicado para todos. Ou para a maioria.
Embora ainda não saibam, o passado
remoto abona vocês. Tudo que está
acontecendo com vocês e o que
acontecerá, tudo mesmo, tem razão de
ser. E, há séculos, vocês vêm se
programando para o hoje. Não se
enganem: está tudo certinho! Francisco e
eu somos os responsáveis por vocês aqui.
Caso necessitem – e eu quase acredito
que não precisarão delas, que se
recordarão espontaneamente – terão,
daqui a algum tempo, algumas aulas
conosco, junto com outros que se
encontram na mesma situação. Aliás, não
são propriamente aulas, são agradáveis
reuniões de informação, digamos assim.
Depois, como um rio, tudo seguirá seu
curso e as águas da vida arrastarão vocês
e seus destinos, diluindo o que não se
fizer necessário.

— E os nossos? Nunca mais os
veremos?
— Pergunte ao seu amigo Danilo. Ele
se lembra perfeitamente das coisas que
leu e estudou. Será bom que vocês
conversem bastante. Aqui não existe a
expressão "nunca mais". Mas tudo
acontece a seu tempo, sem atropelos nem
precipitações. Não tenham medo. Tenham
fé.
— E depois, é irreversível mesmo! –
completou um triste Augusto, esfregando
os olhos com as costas das mãos.
— Irreversível tudo pode ser,
dependendo da colocação pessoal que
fazemos dos fatos. Mas nada é trágico
como pensa, posso afirmar e dar minha
palavra de honra. Aliás, não tem nada de
tragédia. Quando souberem de tudo que é
possível aqui, verão que aqueles que cá
aportam podem trabalhar muito, ajudar
muito, estudar muito, amar muito, sonhar
muito...
— É... Tomara que você tenha razão.
Agora vá se preparando: duro mesmo vai
ser convencer André e Pedro.

— Que nada! Na hora "H" eles
suportarão bem o choque da verdade.
Garanto-lhes. E animem-se! Amanhã de
manhã nos reuniremos e teremos um
primeiro encontro dos novos pacientes sob
minha responsabilidade, para que se
conheçam e troquem informações. Não
mais ficarão parados, como doentes que
não são.
— Gostaríamos de começar logo a
fazer algo, sei lá, encaixar... – falou
Danilo, já pensando na parte prática.
— E farão. Já temos planos para
vocês. Se aceitarem, é claro. Mas
acreditamos que, como se recuperaram
muito bem, já podem se incorporar logo à
nova vida, continuando assim o caminho
eterno do destino de cada um. Até
amanhã de manhã, façam o que quiserem.
Têm liberdade para andar à vontade,
conversar com as outras pessoas que aqui
estão, tanto com os pacientes quanto com
a equipe médica ou de enfermagem.
Melhor dizendo, podem perguntar tudo a
qualquer um que encontrarem pelo
caminho. Passeiem, descansem,

procurando assimilar o melhor possível a
nova situação. No fim, gostarão muito.

Com um sorriso maroto, Alberto
deixou-os a sós, com suas conjecturas,
lembranças e planos.


DONA MARIETA E DONA CACILDA

Dona Marieta e Dona Cacilda já nem
mais doentes ou convalescentes eram no
hospital, tanto tempo estavam lá. E nem
faziam questão de contar os dias.
Inquestionavelmente, elas eram a alegria
geral. As duas velhinhas andavam por
todo lado, conheciam tudo e todos e
estavam sempre presentes para ajudar à
direção e ao corpo clínico, atuando
certeiramente com sua simpatia e
conhecimentos. Eram dois anjos no meio
daqueles doentes e convalescentes,
preciosas ajudantes dos médicos e
orientadores. Indispensáveis e amadas.
Na manhã azul, as duas, como sempre,
conversavam debaixo da janela de Danilo.
Era o banco preferido delas, pois ficava
dentro do canteiro de rosas amarelas.

E foi assim que se estabeleceu o
contato. Dona Marieta olhou para cima,
viu Danilo e Augusto na janela, acenou e,
em pouco tempo, os dois já estavam no
banco florido conversando com elas.

— E aí, meus filhos? – começou logo
Dona Marieta. Que caras mais murchas!...

— As senhoras sabem – falou Danilo
reticente – sem saber se elas sabiam ou
não – chegamos há pouco e hoje tivemos
um susto. O que se pode chamar de um
susto tranqüilo, mas susto. Estamos um
pouco perdidos...
— Eles estão com medo de falar,
pensando que não sabemos – Cacilda
cutucou Marieta. Podem falar, rapazes.
Estão com tanto medo assim de dizerem
que descobriram que estão mortos?
Era a primeira vez que uma palavra
relacionada à morte era pronunciada e o
efeito foi bombástico: Danilo lívido e
Augusto de boca literalmente aberta.

— Ora, ora – continuou Dona Marieta
– mas que bobos vocês são! Meus
queridos filhos tratem de acordar! Olhem
para vocês, olhem para nós. Não
aconteceu nada demais. Estamos mais
vivos do que antes. Eu pelo menos me
sinto assim. Com muito mais
discernimento, visão e compreensão. Fora
a disposição física que, do lado de lá, eu
já não tinha mais. Voltaram todas as
coisas boas... Repito: não aconteceu nada
demais. Mudamos de plano de vida e é só.

Mas a vida, a vida que pulsa do lado de lá,
é a mesma que pulsa do lado de cá. São
apenas lados de um mesmo rio, de uma
mesma correnteza.

— Mas não tem ponte para o lado de
lá – falou Augusto desconsolado,
mostrando sua filosofia de vida: prática.
As duas velhinhas pareciam divertir-
se e, ao mesmo tempo, já adotavam os
novos filhos que chegavam. Dona Cacilda,
tal qual uma mãe bondosa, pegou numa
das mãos de Augusto, que estava sentado
ao lado esquerdo dela:

— Como não tem ponte, meu filho?
Quem falou com você?
— Falam, falam, mas a verdade
mesmo é que nunca vi ninguém que eu
conhecesse e que tivesse morrido
aparecer para mim depois de morto.
Agora, vai ser o contrário. Duvido que
verei alguém de lá ou alguém me verá...
Se é que eu vou ter chance de chegar pelo
menos perto do antigo lar...
— Vocês estão amargos, quando
deveriam estar felizes. Acabaram de
superar sem grandes problemas uma das
barreiras da Eternidade. E nem imaginam

quanta gente se agarra ou se perde por aí
pelos caminhos, antes de chegar onde
vocês estão.

— Imagino, sim. Dei umas voltinhas
"por ai" antes de chegar aqui...
— Ah, esteve por lá, pelas cavernas?
Mas, por muito pouco tempo, imagino. Por
que é que vocês não acabam logo com
essa melancolia e reagem?
— Estamos tentando, mas está difícil
– suspirou Danilo, na maior sinceridade.
— Marieta – falou Cacilda –
precisamos dar um jeito nesses dois. E já.
Senão, vai ser uma lamúria só... Olha
aqui, crianças, vamos acordar, sacudir a
poeira do tempo e das dores passadas e
olhar para os lados, para frente, nunca
para trás. Só se olha para trás quando é
necessário estender os braços e pescar
alguém, ajudá-lo a vir até nós. Vamos
raciocinar friamente.
— Assim é que eu gosto – falou
Augusto.
— E eu também – respondeu Dona
Cacilda. O que aconteceu com vocês
acontece com todas as pessoas, portanto,
não é novidade nenhuma. Basicamente, é

isso: quando nascemos lá, morremos aqui
e, quando morremos lá, nascemos aqui.
Tudo temporariamente, fazendo parte de
uma cadeia em direção ao Eterno. Temos
muito mais prática de nascer e morrer do
que imaginamos. No entanto, não
precisamos temer: tudo é vida, vida
eterna. Lá ou cá, somos sempre os
mesmos. O que morre são as cascas
inúteis que tiramos de cima de nós, após
usá-las temporariamente. Daqui nós
ajudamos aos que ainda virão. Por sua
vez, eles, de lá, também nos ajudam,
quando nos mandam bons pensamentos,
boas vibrações, preces e luzes de amor,
cada vez mais intensas, dependendo da
vibração e da elevação de quem as
manda. Tudo isto é uma transfusão de
forças, benéfica para todos.

Gosto de pensar que somos todos
longas penas das asas brancas de um
Grande Anjo, que voa incessantemente
em direção ao Infinito. Formamos um
conjunto. Juntos, somos algo e
caminhamos para algo maior. Sozinhos,
somos penas desgarradas, perdidas,
voando ao léu...


Se vocês vieram agora, é porque
estava na hora, pois nada acontece fora
do Grande Roteiro. Continuarão a viver,
trabalhar, amar, sonhar, apenas em outro
plano. Principalmente, terão chance de
ajudar. Ajuda consciente, construtiva. Um
dia todos os que amamos estarão
conosco. E os outros, que ainda não
tivemos oportunidade de amar, estarão
também incorporados, nos amando... E
este dia estará tanto mais próximo quanto
mais lutarmos para que seja feliz.

Vocês se encontram num local de
transição, onde males do espírito
começam a ser sanados, as vestes sujas
retiradas e as novas colocadas, todos
sendo conscientizados da realidade, antes
de seguirem seus caminhos. Serão
informados sobre tudo aqui, conhecerão
bem o local e, quando estiverem prontos,
partirão para outras paragens melhores.

Francisco e Alberto me disseram que,
amanhã de manhã, eles vão reunir um
pequeno grupo para troca de informações
e esclarecimentos. Vai ser bom para
vocês. Sabemos que há ainda dois amigos
que chegaram com vocês e que ainda não


conseguiram se convencer bem do que
acontece. Vamos tentar colocá-los no
ponto para a reunião de amanhã! Na
verdade, os dois já sabem o que ocorreu.
Mas, inseguros, estão com muito medo,
medo do desconhecido para eles. Logo se
darão bem. São bons rapazes. Agora
mesmo, antes de virmos para cá,
soubemos que André teve uma grande
crise de choro. Isto é bom, lágrimas lavam
a alma. Não foi só crise de choro, foi crise
de despertamento também. Já quanto a
Pedro, depois da conversa que teve com
você, Augusto, não tem mais dúvidas.
Você conseguiu acordar o inconsciente
dele e o consciente reagiu. Ele acordou,
não sente mais aquele sono povoado de
sonhos, parou de tremer. No entanto,
cauteloso, espera novo diálogo, desta vez
mais esclarecedor e objetivo, para se
sentir mais seguro.

Dona Cacilda desatou a rir:

— Sabem o que fizemos para que os
dois começassem a reagir? Alberto foi ao
quarto de cada um e contou que Augusto
ia ser transferido de hospital e que os dois
só poderiam ir juntos se melhorassem.

Como duas crianças, eles melhoraram
logo. Não querem perder a única
referência que têm neste local. É que aqui
eles pensam só conhecer Augusto e, sem
ele, como ficarão? Augusto é mais velho,
lembra-lhes a figura do pai, transmite
segurança com este modo forte de falar.
Como vêm, as coisas estão melhorando e
caminhando bem. Amanhã os dois estarão
melhores.

Dona Cacilda levantou-se e falou
enérgica:

— E agora, vamos passear. Vamos
mostrar para vocês ótimos locais para
descanso e meditação e também começar
a apresentá-los a alguns amigos que estão
por aí. Já está mais do que na hora de se
enturmarem. Vamos lá?
E, mais que depressa, cada velhinha
segurou no braço de um dos seus novos
protegidos e, saltitantes como dois
passarinhos, puxaram os dois em direção
às fontes.


NOVOS AMIGOS

Dona Marieta e Dona Cacilda, como
duas adolescentes sapecas, conversando e
tagarelando, arrastaram Augusto e Danilo
para uma das fontes termais do parque,
onde um grupo já se encontrava reunido,
assentando na grama, ao lado das águas.

— Bom dia para todos! Trouxemos
novos amigos, Augusto e Danilo. São
recém-chegados.
Cumprimentos e uma roda de papo
foi formada, à sombra de imensa e copada
árvore, cheia de cachos de flores rosadas,
cujas pétalas transparentes, de quando
em vez, caíam sobre as cabeças de todos
como gotas etéreas.

— E então? – um senhor idoso
perguntou aos dois. Estão gostando? Já se
adaptaram bem?
Danilo sorriu amarelo, entre
aborrecido e ansioso por mais explicações:

— Para dizer a verdade, é a primeira
vez que saímos e entramos em contato
com outros pacientes. Quero dizer, com
outros moradores, não é? Tudo é ótimo,

bom, tranqüilo, mas ainda não sei se
estou gostando muito de estar aqui...
Sabem como é, não é?

O senhor Mário era o mais alegre e
descontraído do grupo:

— É, sabemos. Praticamente todos se
ressentem desta fase, em maior ou menor
intensidade. Há os raros que não sentem
nada, mas nem sequer moram por aqui,
estão mais acima, digamos assim... No
entanto, passado algum tempo, nunca
encontrei alguém que não estivesse feliz...
— O senhor está há muito tempo
aqui?
— Ninguém fica muitos anos, a não
ser que se incorpore à equipe e encontre
bom motivo para ficar e trabalhar. Caso
contrário, segue seu destino. Há dez anos
moro por cá, mas a minha transferência já
está sendo providenciada. Vou para uma
instituição onde todos se dedicam à
educação e orientação, transmissão de
comunicados entre os dois planos e coisas
assim. Digamos que trabalharei nos
Correios daqui... Sempre gostei disto
quando estava do lado de lá. Lia toda a
literatura a respeito do além da vida. E

freqüentava reuniões onde havia sério
intercâmbio entre os de cá e os de lá, com
mensagens escritas e faladas. Como
sabem, a evolução não dá saltos e
continuo gostando dessa
correspondência...

Preciso começar logo a trabalhar, já
me atrasei muito. Ninguém reclamou
comigo ou mesmo me chamou a atenção,
mas me sinto envergonhado e
desconfortável. O trabalho é necessário e
fundamental. Não existe ócio no Além,
meus filhos. Aliás, não deveria existir em
lugar algum. Uma recuperação o mais
rápida possível e todos para frente!

Infelizmente, mesmo tendo sido um
espiritualista atuante, forte depressão
tomou conta de mim quando cheguei e
demorei muito a superá-la.

— Depressão?! – reagiram em
conjunto Danilo e Augusto. Tem disso aqui
também?!
— Claro! Não tem disso aqui, mas
nós trazemos isso para cá. Entenderam?
Trazemos conosco nossa bagagem íntima.
Ela sempre anda junto a nós, por todos os
caminhos onde andamos. E, por causa

disso, às vezes, as coisas se complicam
muito e conseguimos apenas nos atrasar.
Vejam: eu era muito apegado à minha
família, à minha bem remunerada
profissão e até à minha religião. Só pude
trazer comigo a minha fé e não gostei.
Queria mais. Sofri terrivelmente pensando
que outras pessoas estavam desfrutando o
que deixei. Quando soube que minha
mulher havia se casado novamente, então
é que enlouqueci! Imaginem: outro
homem havia tomado posse de tudo meu
e da minha família também! Nem me
passou pela cabeça que este outro homem
estava me ajudando e muito, pois estava
amando e cuidando dos meus. Para mim
era usurpação, traição e só!

Passei primeiro por uma fase de
loucura total. Tive que ficar isolado numa
cela, pois me tornei violento. Depois, veio

o desespero, a apatia, a depressão e,
finalmente, a aceitação. Mas não creiam
que foi fácil, pois demorei muito a
colaborar com os que queriam me ajudar.
Devo muito aos amigos de cá que me
compreenderam, apoiaram e ajudaram,
não sem me mostrar, em todos os
instantes, a minha egoísta posição.

Hoje, visito periodicamente minha
família e ajudo a todos. Até ao novo
marido da minha mulher. Sem mágoas,
fraternalmente. É o mínimo que posso
fazer, pois eles sofreram muito por mim.
Na fase mais forte da minha loucura cega,
eu mandava vibrações terríveis como
lanças envenenadas na direção deles e
isto repercutiu em todos. Como sofreram!
Portanto, o mínimo que posso fazer é
reconstruir o que abalei, não acham? E é o
que venho tentando fazer a cada
momento. Felizmente, agora estão todos
bem. Louvado seja Deus!

— E como é que a gente pode visitar
e ajudar às pessoas que ama? –
perguntou Augusto interessado.
— Aprenderá oportunamente. Não é
difícil. Só exige dedicação e amor
desprendido. Tenho certeza de que breve
você estará visitando os seus.
— É? Se Esther estiver com outro,
enlouqueço e faço uma confusão. Aliás,
nem sei o que farei. A ele, não a ela.
Ninguém riu da cara fechada de
Augusto que, imediatamente após falar,
ficou com uma sombra no rosto.


Dona Cacilda, de um salto, ficou em
pé na frente dele e colocou a mão direita
na sua testa, desfazendo, como por
encanto, a marca acinzentada que se
acentuava abaixo dos seus olhos. Após,
ela apressou-se a explicar ao recém-
chegado:

— Pare com este pensamento
imediatamente Augusto! E nem pense em
recair novamente nele! Não sabe o que
está fazendo neste momento, tanto a você
como aos que ama. Pensamentos são
setas certeiras, levando luz ou veneno.
Não repita nunca mais pensamentos hostis
em relação a ninguém, prometa-me, sim?
E, enquanto um envergonhado
Augusto procurava se recompor do mal
estar súbito que sentira, ela, virando-se
para todos, continuou:

— Ao longo do tempo, vocês
encontrarão aqui todas as histórias
possíveis e imagináveis. Umas tristes,
outras mais tristes ainda, já outras
alegres e algumas pitorescas. Cada ser
tem sua saga e não é mudando de plano
que ela será anulada. Olhem ali para
nossa amiga Carmen. Ela reagiu à morte

muito bem. Fechou os olhos lá e abriu-os
aqui, praticamente no mesmo instante. E
sem medo algum, com muita segurança e
paz. Teve uma passagem rápida,
consciente e bonita. Colaborou em todas
as etapas.

Carmen, que parecia ser muito
tímida, ficou encabulada:

— Isto não tem mérito algum,
Cacilda! Mas, se servir para ajudar aos
dois novos amigos, eu conto. É que eu
sempre fui espiritualista e tinha absoluta
certeza de que havia vida do outro lado. E
já sabia que morreria a qualquer
momento. As dores de cabeça não me
abandonavam e nunca me enganaram.
Então, quando o aneurisma ia romper-se,
eu tive uma espécie de premonição
minutos antes e ganhei tempo para
dominar o susto da mudança que se
aproximava. Entendi que era chegada a
hora. Hora que seria linda ou triste, de
acordo com minha vontade. Concentrei-
me, reuni as forças que ainda tinha e
evoquei vocês para me ajudarem.
Comecei a rezar e vi perfeitamente
quando Marieta e Cacilda entraram no

quarto e começaram a me desligar.
Cooperei com elas e fui me sentindo cada
vez mais leve, mais calma, mais em paz.
Foi lindo! Tentei ficar o mais consciente
possível e assisti a todas as etapas.
Rapidamente, me trouxeram para cá.
Dormi uma semana, não sem antes
agradecer a ajuda de todos e reconhecer o
local onde estava. Foi o sono mais
tranqüilo e repousante da minha vida. Da
minha nova vida, aliás.

Augusto, pensativo, falou:

— Pelo que vejo, naquele lugar
esquisito só eu passei...
Dona Marieta retrucou:

— Pois fique sabendo, meu filho, que
aquele não é o pior nem o mais esquisito
dos lugares que existem por aqui.
— Uau! – respondeu ele – o outro
lado e seus lados!
— O outro lado e seus muitos lados –
completou Dona Marieta. Aqui é um outro
mundo, Augusto. Tem de tudo. Se você
passou pelas cavernas, é porque
necessitava passar. Um dia compreenderá
porquê. Não fique se lamuriando, pois
tudo acabou bem. Inácio e João passaram

por abismos maiores e por muito mais
tempo. E aí estão, alegres e sorridentes,
participando atualmente de equipes de
socorro, nos mesmos lugares onde eles
estiveram e sofreram. Digamos que
trabalham com conhecimento de causa. A
cada um conforme suas necessidades!
Você vai entender isso tudo muito breve.
Não é mesmo, meninos? – completou,
dirigindo-se a Inácio e João.

Os dois confirmaram com presteza. E
João falou:

— Sabe, Augusto, com o tempo você
aprende cada vez mais. Hoje até agradeço
pela experiência difícil que passei.
Precisava dela, tenho certeza. As coisas
não seriam boas para mim agora, se eu
não tivesse passado por aquela escola e lá
deixado o meu pagamento por algo do
meu passado. Anime-se! Amanhã, na
reunião com Francisco, tenho certeza de
que seus horizontes se abrirão muito
mais. E continuarão se abrindo. De
repente, você verá tantas perspectivas de
vida que ficará boquiaberto.
Compreenderá que viver não é só aquilo
que acontecia com você naquele

mundinho limitado chamado Terra, mas o
que acontece com você no Universo
infinito. Confie em mim.

E o papo desviou-se para notícias dos
familiares de cada um, visitas
programadas à Terra, tratamentos nas
fontes e outras coisas mais.

Augusto e Danilo, cada vez se
enturmando mais, acabaram participando
ativamente das conversas entre os novos
amigos. Dentro de algum tempo, já se
podia ouvir a sonora gargalhada de um
Augusto muito bem humorado.


OS SONHOS DE PEDRO E ANDRÉ

Pedro havia pensado muito, durante

o dia inteiro, procurando raciocinar com
calma e sabedoria, não deixando que as
emoções o assaltassem e cortassem o
rumo das decisões que, sabia, precisava
tomar.
Tinha absoluta certeza de que
Augusto já tinha conhecimento de alguma
coisa. Portanto, precisava melhorar
urgentemente, levantar-se daquela
poltrona e andar, senão perderia o outro
de vista e ficaria sozinho naquele mundo
desconhecido. Afinal, não sabia até onde
poderia contar com André, mas quanto a
Augusto tinha certeza: eles dois eram
muito parecidos, tinham treinamento para
situações como a que encaravam agora. E
era o único parceiro com o qual poderia
contar para encarar os carcereiros daquele
local.

Queria e precisava participar da
reunião que aconteceria no dia seguinte.
Alberto dissera que teria respostas para
todas as perguntas e, de quebra e se
quisesse, poderia passear num parque


maravilhoso, o que só poderia ser bom
para a recuperação dele. E ele não
revelara ao bom médico que pretendia
andar o mais possível pelo tal parque,
tentando identificar possíveis rotas de
fuga.

Pedro até já arquitetara um plano,
caso não ficasse satisfeito com as
explicações ou não conseguisse ver e
descobrir nada interessante para a fuga.
Estava convicto de que Augusto aceitaria
sair furtivamente com ele durante a noite,
quando então os dois tentariam localizar
os arquivos do hospital e ter melhores
esclarecimentos. Afinal, todo hospital tem
arquivo. Após terem acesso a ele,
resolveriam juntos quais as atitudes a
tomar. Poderiam até comunicar o
resolvido ao tal André, mas só depois de
tudo muito bem resolvido e arquitetado,
para que ele não falasse pelos cotovelos e
atrapalhasse os planos.

Cansado de tanta emoção e tanto
trabalho mental, caiu na cama e, logo,
dormindo profundamente, começou a
sonhar.


Viu-se andando pelos corredores e,
finalmente, entrando numa imensa sala
retangular que, aos seus olhos, pareceu
um centro de controle. Ao longo das
paredes havia máquinas muito parecidas
com os computadores que ele conhecia.
Mas pressentiu que eram mais modernas.
Pensou que deviam ser o que os
aficionados da informática chamam de
máquinas de última geração ou mesmo
topo de linha.

No centro algumas mesas com
cadeiras e – alegria – formando um círculo
interno e rodeando as mesas, imensos
gaveteiros. Gaveteiros? Seriam arquivos?!
Arquivos!

Deu um grito de felicidade, lançando-
se sobre eles.

Não foi difícil localizar a letra "P" e
nem a sua tão procurada e desejada
pasta. Na capa, o seu nome: Pedro
Monteiro. Abaixo, o número do quarto:

321. Dentro, um envelope e algo parecido
com um CD.
Correndo, assentou-se diante de uma
das máquinas que, ao simples toque de
suas mãos no teclado, acendeu o visor,


aparecendo nele um comando: PEDRO
MONTEIRO. Parecia que havia uma
câmera em cima do vídeo. Fantástico!
Fora identificado pelo próprio rosto!
Tecnologia de ponta! E disso ele gostava!
Rapidamente colocou o CD. Nem precisou
dar qualquer comando para que a tela
mudasse de cor.

Incrível o que viu: sua fotografia!
Uma fotografia anterior, quando ele era
mais moço. Aliás, a que mais gostava!
Ora, ora! Ele tinha razão afinal! Bem que
dissera a Augusto: aquilo pertencia a
alguma nação estrangeira e só usava o
rótulo de hospital. Ali se faziam pesquisas,
estava claro. E, como havia suspeitado,
usando cobaias humanas. Poderia haver
até tráfico de órgãos. Nunca errava!

Recostou-se na cadeira confortável,
com apoios para a cabeça, para os braços
e para os pés. Convenceu-se de que tinha
acertado mais uma vez. Era óbvio e ali
estava a prova: logo após o retrato, uma
verdadeira e perfeita relação de todo o
funcionamento de seu organismo, com
mapas e laudos, que pareciam laudos
médicos. Seu sistema circulatório era


apresentado tão bem, que ele via o
sangue correr nas veias! Como num
cinema, ele via seu corpo funcionando,
transparente. Assustador, mas fantástico!

Meu Deus! – um raio cruzou seus
pensamentos – seria mesmo contrabando
de órgãos? Já lera algo sobre isso. E tinha
visto um filme muito esquisito e aterrador
também, sobre o mesmo tema, onde
retiravam órgãos das pessoas vivas! Será
que quem fez o filme tinha alguma idéia
de que o assunto podia ser verdadeiro
mesmo? Afinal, na Segunda Guerra
Mundial foram feitas experiências com
cobaias humanas, depois consideradas
crimes de guerra. Será que o pesadelo
ainda existia? Só podia ser! Relatórios
sobre suas mínimas doenças, problemas
físicos e emocionais e até esquemas
ósseos e neurológicos. Não havia mais
dúvida. Estava certo! E tremendamente
apavorado, suando frio, a testa molhada,
sentiu-se em perigo iminente de vida.

De susto em susto, foi percorrendo as
telas: aquilo não era definitivamente um
simples prontuário de internação. Era uma
história: a história de sua própria vida! E


com todos os detalhes físicos, emocionais,
psíquicos, familiares! Até genéticos!

Extasiado, viu sua cadeia de DNA
decifrada! E, embora devesse ser uma
longa descrição, notou que os cientistas
daquele local já haviam desenvolvido
técnica bem mais simples e fácil, que,
tomando o formato de módulos, mostrava
rapidamente as principais tendências e
características de seu portador. Aquilo era
maravilhoso em termos de ciência! E
desconhecido, ele tinha certeza, pois
gostava de acompanhar as reportagens e
notícias sobre mapeamento do DNA e
sabia perfeitamente que o trabalho ainda
não estava terminado. Todos os cientistas
deveriam ser notificados daquele método
ali usado! Facilitaria a cura de doenças e a
medicina preventiva daria um salto.

Cada vez mais perplexo, viu o local
onde nasceu, fotos, biografias de pais e
parentes, sua árvore genealógica
completa.

Arregalou os olhos, apavorado: era
urgente fugir naquela mesma noite!
Agora, nem mais uma dúvida: estavam
em local escondido e o resultado disso não


parecia promissor para eles. Não podia
estar acontecendo coisa boa por ali! Quem
quer que fosse detentor de avanços
científicos e tecnológicos tão grandes e
não notificasse a comunidade científica
imediatamente, boa coisa não iria fazer
com eles!

Devia haver armas por ali. Teria que
encontrá-las. Naquele momento mesmo
iria ao quarto de Augusto comunicar a ele

o encontrado e o convocaria para
correrem, correrem o mais que pudessem,
procurando uma saída, acobertados pela
noite e pelo silêncio, enquanto todos
dormiam. Depois, tentariam encontrar um
rádio ou telefone para alertar a Policia. Ou
mesmo o Exército. Aquilo era um
problema de segurança nacional! Era
quase certo que naquele local tão
avançado deveria existir uma sala de
comunicações à altura dos conhecimentos
e dos detentores deles!
Um pensamento rápido: e se
conseguisse conectar na Internet e lançar
na rede um aviso e um pedido de socorro?

Mais apavorado ficou quando
constatou que o possante computador que


usava não tinha condições de conexão
com a rede. Impossível? Ou melhor,
possível: era uma confirmação de que ali
era um presídio. E um presídio camuflado,
escondido, desconhecido do resto do
mundo...

Continuou a navegar dentro de
"Pedro Monteiro". Céus! Existia ali um
serviço de espionagem perfeita, dos mais
sofisticados. Havia também todos os
detalhes de sua empresa! Até os mais
secretos! Todos os esquemas de
segurança, aos quais só ele e dois ou três
diretores tinham acesso. Os planos
secretos de pedir treinamento na CIA, sem
que ninguém ficasse sabendo quem os
treinava. As compras de armas, algumas
legais e outras nem tanto. Eles, os seus
carcereiros, sabiam de tudo sobre ele.
Devia estar sendo seguido há muito tempo
e não notara. Estava ali, documentado,
até o caso de um dos seus melhores e
mais fiéis seguranças, o Pedrão Boi, que,
para surpresa geral da diretoria, tentara
matá-lo dentro do escritório e, para não
gerar escândalo, ele conseguira encobrir
tudo dos funcionários e até da própria
Polícia. Menos, é óbvio e pelo visto,


daquelas pessoas que o mantinham preso.
Elas sabiam tudo! Estava assustado e
curioso.

Reparou no envelope, que havia
deixado de lado, ao alcance das mãos.
Abriu-o freneticamente e soltou um grito
de pavor quando viu o conteúdo: fotos
coloridas e ampliadas do exato momento
em que sentiu a dor nas costas e desabou
pesadamente no chão.

A primeira foto era completa e
reveladora da causa da dor: nela ele
aparecia de costas e um homem, também
de costas, desferia uma punhalada em
suas costas, em pleno centro do pulmão
direito.

Na segunda, caído no chão numa
poça de sangue, era socorrido por seu
vizinho.

Na terceira, Pedrão Boi entrava em
seu carro, parecendo muito assustado.

Junto às fotos, uma ficha onde
apenas se lia:

Pedro Monteiro
Quarto 321



Descida em 06.08.1946

Retorno em 10.01.1992

Motivo: assassinado com punhalada
nas costas

Permanência no abismo: 2 anos e
meio

Aquilo, sim, era outra punhalada! E
direto no coração! Assentado, segurando
as fotos nas mãos, olhar esgazeado, Pedro
ouviu alguém chorando baixinho.

Lentamente, seus olhos percorreram
a sala até encontrarem entre duas
máquinas, envelope aberto numa mão e
ficha na outra, fotos esparramadas pelo
chão, um vulto humano de cócoras: lá
estava André.

Devagar, Pedro foi se aproximando.
Assentou-se no chão ao lado do outro e,
com cuidado, tomou da mão dele a ficha,
onde se lia:

André Pinheiro
Quarto 322
Descida em 03.03.1954
Retorno em 10.02.1994



Motivo: morte súbita por infarto
fulminante do miocárdio

Permanência no abismo: 6 meses

Pedro esticou as pernas, encostou-se
na parede e largou a ficha no chão. Cobriu

o rosto com as mãos. Subitamente,
começou a soluçar alto, grossas lágrimas
escorrendo entre seus dedos.

A REUNIÃO


— Mudei os planos. Não iremos
conversar no parque e não reunirei muitas
pessoas hoje. Resolvi chamar só vocês
quatro nesta sala, onde poderemos estar
mais tranqüilos. Como é nossa primeira
reunião e, logicamente, será para
esclarecimentos, ficará bem melhor aqui.
Os quatro, assentados em
semicírculo, olhavam com seriedade para
Francisco, que vestia uma espécie de
túnica de grosso algodão branco, que fazia
lembrar a roupa dos beduínos. Pedro e
André estavam muito abatidos, mas

calmos e lúcidos.
Silenciosamente,
assentando-se entre
solidariedade muda.
Alberto
eles,
entrou,
numa

A sala era agradável, piso de granito
branco, paredes brancas, amplas janelas
de vidro cristalino, abertas de par em par,
com cortinas transparentes e esvoaçantes,
de um tecido diáfano, que emitia discretos
reflexos prateados, quando os raios
luminosos de fora esbarravam em suas
franjas.


Confortáveis sofás, também de alvura
impecável, contornavam baixa mesa de
centro, do mesmo granito do chão e
parecendo ser uma continuação elevada
dele. Formando maravilhoso caminho
central de mesa, mais alto e repolhudo em
seu centro, um arranjo de flores azuis,
como os quatro jamais haviam visto,
percorria-a de ponta a ponta. Elas tinham

o formato de estrelas e pareciam
molhadas com gotas de orvalho. Pistilos
brancos e amarelinhos, compridos e
delicados, sobressaíam em auréolas
centrais de azul mais escuro. Para
completar, lustrosas folhas verdes rajadas
de branco, muito parecidas com hera,
completavam o grande buquê, que parecia
ter vida própria e prender os olhos dos
visitantes, provocando admiração e paz.
Uma das paredes – formada por
único e imenso bloco de pedra rochosa –
abrigava grande quantidade de folhagens
e trepadeiras floridas que,
inacreditavelmente, pareciam nascer na
própria pedra. Na parte central da pedra,
parecendo presa nas plantas que ali
tinham raízes, larga porta de vidro abria-
se para um bem cuidado e minúsculo


jardim interno retangular – coberto de
plantas pequeninas e delicadas, bonsais –
onde corria um fio de água, lembrando os
lindos jardins japoneses. Suave brisa
banhava o local.

Ao fundo do jardim, na direção da
porta e incrustada na rocha que
contornava, grande tela azul-rei.

Francisco assentou-se de frente para
eles e de costas para a tela:

— Podemos começar. Não tenho a
menor dúvida de que todos já têm
consciência da própria situação.
Silêncio absoluto.
O instrutor continuou:


— Cada um, a seu próprio modo e
sempre com nosso empurrãozinho amigo,
descobriu o que está acontecendo. Ou
melhor, o que já aconteceu. Tenho certeza
de que a serenidade, inteligência e bom
senso de vocês irão imperar agora.
O silêncio continuou. Francisco
também:

— É verdade: já não estão mais entre
os vivos da Terra, embora vivos aqui e
separados deles apenas por uma barreira

vibracional, facilmente transponível para
aqueles de lá e de cá que possuem
sensibilidade adequada.

Posso dizer que estamos muito perto
dos limites físicos terrestres, pois nossa
Instituição visa exatamente ajudar
àqueles que circulam entre esses limites,
no ir e vir da vida.

Dando-lhes formalmente boas vindas,
comunico que estão abrigados no "Grande
Lar Francisco de Assis". Muitos outros
iguais a este se encontram por aí. Mas,
vamos falar do nosso caso, por enquanto.

Quem aqui chega é tratado, orientado
e cuidado, até que possa andar com as
próprias pernas e seguir o seu destino,
consciente das suas responsabilidades e
deveres. É um local de transição, como já
notaram e foram informados. Por ora,
nem tentem imaginar o tamanho deste
nosso lar: não conseguirão, até que
estejam mais acostumados com a
limitação de nossos padrões e de nossa
visão. É um verdadeiro colosso. Nem por
isso pensem que já conhecem o outro
mundo, o Além, como se costuma dizer lá


na Terra. Aqui é uma nesga do princípio
dele.

Temos conosco os mais diversos
casos de doenças, algumas muito graves.
Vieram com aqueles que se desligaram da
Terra em total desequilíbrio físico,
emocional e mental. Como a vida não dá
saltos e nada nem ninguém muda de um
dia para o outro, chegaram aqui do
mesmo modo como saíram de lá. Muitos
nem sequer acordar conseguem:
continuam dormindo desde que chegaram
e só Deus sabe quando acordarão.

Há também os loucos, alguns calmos,
outros furiosos.

E muitos outros casos, que
conhecerão com o tempo. Todos os
doentes são bem cuidados, mas, se ainda
estão doentes, é porque são vítimas deles
próprios, de seu despreparo espiritual,
fanatismo religioso, egoísmo, ganância e
coisas assim. Cada qual é um retrato
falado de seu próprio passado e de sua
própria limitação mental e emocional.

Lógico que muitos nem conseguem
chegar até aqui, infelizmente, perdidos em
furnas e abismos terríveis. Expedições de


socorro com destino a estas regiões
partem constantemente daqui e de
diversos postos de socorro. Irmãos nossos
permanecem naquelas regiões, tentando
atrair os que se encontram em melhor
situação. Mas, no mais das vezes, não
conseguem sequer ser pressentidos por
eles. Existe eficiência em todas as
tentativas de resgate, mas nada acontece
antes da hora e nem todos podem ou
querem ser resgatados ainda, por culpa
sempre deles mesmos.

Temos também escolas, onde os que
já conseguiram superar os primeiros
obstáculos, se preparam para vôos mais
altos. E, muitas vezes, estes altos vôos se
dão e são coroados de êxito em regiões de
sombra, onde os que daqui saíram prontos
para o trabalho tentam pescar os irmãos
perdidos, sem se contaminarem, limpando
cada vez mais a alma, independente do
lodo em que pisem.

Um pouco adiante, após os parques e
bosques, a cidade mais próxima é
excelente e gostarão de visitá-la. Muitos lá
moram e aguardam a hora da volta
novamente à Terra. Outros trabalham em


diversos setores de ajuda, aguardando a
chegada dos entes queridos e preparando
para eles acolhedoras recepções.

Em grandes prédios agrupados, que,
se ainda na Terra, vocês chamariam de
bairros, reencarnações são programadas
com carinho, outras apenas coordenadas
em grupos, quando os reencarnantes não
têm a menor condição de opinar, pedir ou
pensar.

O intercâmbio – o Correio, como
disse Mário – é muito movimentado.
Quem assistir a um dia de trabalho do
pessoal de lá jamais terá direito de falar
que "quem morre nunca mais dá notícias"
ou que "os mundos estão
irremediavelmente separados". Tanto aqui
como lá, só não vê e não progride quem
não quer. E o livre arbítrio é sempre
respeitado.

Como poderão ver em qualquer
atividade do lado de cá, um mundo não
está isolado do outro. Ao contrário. Tudo
está interligado no Universo. Realmente,
vocês levarão algum tempo para
conhecerem e entenderem a nova e
vastíssima realidade, na medida em que


forem afastando os conceitos e
preconceitos que trouxeram na bagagem.

Augusto arriscou:

— E aquele pessoal que eu e Pedro
vimos?
— Nas regiões que ainda
permanecem dentro do campo vibracional
da Terra, quase se mesclando ao lado de
lá, há cidades também. E habitantes. Tudo
se apresenta de acordo com o grau de
evolução dos que lá estão.
— E a gente de lá? É boa ou má?
— Cada um é bom ou mau de acordo
com o que tem dentro do coração. Nunca
devemos generalizar. Os Evangelhos
ensinam que a boca só fala daquilo que
está cheio o coração.
Como na próxima Terra, há todo tipo
de gente lá. Todos caminhando, cada qual
na sua estrada e na sua velocidade, mas,
generalizando, o destino final é sempre o
mesmo: a Luz.

Nas cavernas e abismos há de tudo.
Nas cidades que as cercam também. Em
alguns casos, nem é maldade: é
ignorância total, falta de visão, preguiça e
daí por diante.


Quanto às regiões mais sombrias, as
coisas pioram. Felizmente, nenhum de
vocês passou por elas. No entanto, tudo é
vida, tudo é evolução. Uns mais à frente,
outros mais atrás, vamos todos na direção
da Casa do Pai. Alguns caminham firmes,
outros, os mais estabanados que não
reparam bem onde pisam, tropeçando.
Mas todos indo, cada qual à sua maneira,
sofrendo ou não os efeitos do caminho, de
acordo com a própria prudência e cuidado
ao caminhar.

Augusto falou baixinho, soltando a
pergunta que o martirizava, com medo do
som grave da própria voz:

— Como é que eu morri?
— Atropelado. Você nem viu ou teve
tempo de reagir.
— Foi morte instantânea?
— Não. Ficou em coma 5 dias.
— E depois...
— Para sua própria evolução,
precisava de um estágio nas cavernas.
Aconteceu e já passou. Saiu usando suas
próprias forças e foi socorrido. Com o
tempo, compreenderá melhor.

Augusto quedou-se imóvel, os olhos
baixos.

Fracamente, Danilo levantou a voz:

— Comigo, aconteceu durante a
cirurgia?
— Não, antes.
— E depois?
— Passou direto de um CTI para o
outro.
— Como não notei?
— Você dormia profundamente nas
primeiras horas. E, na medida em que foi
melhorando, fez o possível para não
notar...
Augusto tomou novamente a
iniciativa, revelando mais uma vez seu
espírito prático e forte:

— Acredito que falo por todos. Só nos
resta aceitar e incorporarmo-nos. Não
será fácil conter as saudades, que
parecem querer explodir de vez o coração.
Mas estamos às suas ordens. Queremos
aprender a viver aqui e a auxiliar,
trabalhar, incorporarmo-nos de vez, coisas
assim. Diga-nos o que precisamos fazer e
faremos.

— É lógico que doerá um pouco. É
normal sentir saudades – esclareceu
Francisco.
E continuou com voz tranqüila e
pausada:

— Vocês estão numa fase de
adaptação. São abonados pelo próprio
passado de vocês, em outras vidas, outras
eras. Já ouviram isto. Posso dizer que
estão reagindo muito bem mesmo.
— Não sei não... – ponderou Pedro.
— Sabe sim! Você é um espírito forte
e não será isto que o derrubará.
Um grande suspiro foi a resposta,
seguindo-se um mutismo dolorido e total.
André perguntou:

— E eu? Como foi?
— Infarto fulminante do miocárdio,
em pleno escritório. Você estava falando
com um amigo ao telefone e nem
terminou. Foi rápido.
— E para que serve esta tela? Vocês
vão nos mostrar como foi nossa morte lá?
Aqui vocês chamam de morte também?
— Em alguns casos, André, há
necessidade de mostrar cenas da vida da

pessoa. Há gente que não aceita
imediatamente a realidade imutável,
contesta, tenta discutir, dizer que as
coisas não foram bem assim ou assado.
Alguns relutam e dizem que estão em
outro planeta, as coisas mais fantasiosas e
absurdas. Quando isto acontece, nada
melhor que a projeção para acabar com as
dúvidas. Acalma-se tudo, porque não é
uma simples seqüência de cenas de
cinema o que vêm, representada por
atores desconhecidos. É que, enquanto o
filme se desenrola, a pessoa sente as
mesmas emoções que sentiu no momento
da ação e, o que provoca maior impacto,
se vê executando as ações ou sofrendo as
ações de outrem. Revive tudo, digamos
assim. E aí não pode discutir nem negar
mais, só se envergonhar no mais das
vezes. E corrigir-se. No caso de vocês,
não vejo nada que justifique uma
apresentação de provas. Não há
necessidade de esclarecer nada.

André, como se estivesse muito
cansado, recostou-se melhor no sofá e
fechou os olhos. Os outros permaneceram
cabisbaixos, pensativos.


Francisco levantou-se:

— Vejo que estão cansados. Não se
preocupem; é normal. Muitas vezes,
certas revelações deixam as pessoas
exaustas, pois estão sempre carregadas
de muita emoção. E vocês vêm tendo
muitas em seguida. O melhor é liberá-los
por hoje. Descansem bastante. Tentem
digerir o que ouviram.
Fiquem à vontade. Podem ir aonde
quiserem, conversar com quem quiserem.
Não são prisioneiros. Por enquanto, este é

o lar de vocês. Posteriormente, escolherão
o caminho que desejarem seguir. Todos
somos companheiros e irmãos na grande
jornada, lembrem-se sempre disso.
Ninguém está só.
Teremos muitas outras conversas,
garanto-lhes. E posso afirmar também que
tudo terminará melhor do que pensam.
Tentem confiar em mim. Prometo que não
se decepcionarão.

Silenciosos e muito emocionados, os
quatro se levantaram. Agradeceram e
saíram devagar, sentindo-se realmente
exaustos, em direção aos próprios
quartos.


Francisco e Alberto entreolharam-se
sorrindo. Estava vencida a primeira
batalha de aceitação. De agora em diante,
tudo correria de acordo com a vontade de
Deus. Só restava mesmo esperar e
confiar. Afinal, a vida sempre vence em
todos os planos. E, principalmente e em
todos eles, continua...


ENCONTRO DE AMIGOS

Augusto acordou com vozes entrando
pelo quarto. Todos falando ao mesmo
tempo, rindo e brincando. Abriu os olhos e
deparou com dona Marieta, Dona Cacilda e
Danilo. Mais atrás, Pedro, André e Alberto.

Levantou-se de um pulo. Havia
dormido a tarde inteira! Envergonhado por
ter bancado o dorminhoco, não teve,
porém, tempo de se explicar, perguntar
que invasão era aquela ou reagir. Foi
literalmente puxado pelos amigos em
direção ao parque. As velhinhas haviam
programado uma reunião e não aceitavam
atrasos. Elas caminhavam na frente,
felizes como duas crianças.

Encontraram-se com Dalva e Jaciara
na saída do prédio. As duas, muito
alegres, incorporaram-se ao grupo.
Atravessaram o parque, mantendo-se
sempre à esquerda do hospital, num
caminho que o observador Augusto sequer
havia notado ainda, uma estreita trilha
coberta por seixos coloridos, ladeada por
hortênsias em diversos tons azulados,
cercada por copadas árvores, que a


cobriam toda, fazendo-a parecer um túnel
coberto de verde e com o chão de
pedrinhas salpicado de azul. Conversando
com seus botões, Augusto concordou que
as paisagens ali eram magníficas! Fariam

o paraíso de um pintor!
Cada dia é uma surpresa e este não
poderia deixar de ter a sua – pensou por
sua vez Pedro.
Afinal, viram-se num campo grande e
gramado, onde lindas casinhas de madeira
de diferentes tamanhos se alinhavam lado
a lado. Todas eram cercadas por varandas
e lembravam os cottages dinamarqueses,
com seus telhados de material parecido
com palha e muito verde ladeando-as.
Os quatro pararam admirados.
Simplesmente não acreditavam no que
estavam vendo. Parecia uma cena mágica
aquela visão, banhada ao lusco-fusco da
tarde.

— E agora, o que é isto? – tomou a
iniciativa, como sempre, Augusto.
— "Isto" são nossas casas, ora! –
respondeu, de pronto, Dona Cacilda.
Trabalhamos e somos funcionárias do
hospital, mas temos nossos lares e nossas

vidas independentes. Por opção, não
moramos nas cidades que existem nas
redondezas, preferindo ficar no local de
trabalho. Há várias vilas aqui por perto,
cada uma mais encantadora que a outra.
Tenho que lembrar que faz parte de nosso
aprendizado viajar sempre, visitar outros
hospitais, outras colônias, sejam elas de
tratamento ou de estudo.

Quando podemos ou há necessidade,
vamos à Terra também, visitar nossos
entes queridos ou ajudar amigos
encarnados ou desencarnados que
necessitam de socorro e nos pedem
telepaticamente.

— Esta parte começa a me
interessar... – murmurou Augusto.
— E quem não se interessa em visitar
amigos ou ajudar entes queridos? No
entanto, como chegaram recentemente,
terão que passar por um período de
adaptação senão o que conseguirão é
atrapalhar amigos... – falou Dalva,
sorridente.
Dona Marieta parou e falou:

— Lembre-se Augusto: isto aqui não
é prisão. É um outro país para o qual você

se mudou. Procure pensar assim até
conseguir entender e transitar melhor
nele. Depois, verá que existem também
"agências de viagens" que proporcionarão
boas excursões a você, quando então terá
oportunidade de rever o país onde morou
no passado... No entanto, terá que
"pagar" a passagem com os novos
conhecimentos que adquirir aqui. Está
bom assim para início de conversa?

Augusto murmurou qualquer coisa
ininteligível.

Pararam diante de um chalezinho de
madeira cercado de flores:

— Entrem, meus filhos, entrem! –
falou, toda entusiasmada, Dona Cacilda.
Os quatros boquiabertos recém-
chegados não conseguiam acreditar.
Estavam numa aconchegante sala cujos
móveis obedeciam ao estilo da casa e
onde a discrição e o bom gosto
imperavam. Flores e plantas, tanto dentro
como fora, cada uma mais exuberante e
bela que a outra.

Pedro foi logo perguntando:

— Uma coisa que notei aqui foi a
quantidade de plantas, flores – algumas

mais lindas que as da Terra – gramados,
fontes e lagos. Isto tem a ver com a
recuperação de quem chega?

— Isto tem a ver com todo mundo –
respondeu Alberto. E continuou:
— Tanto com quem chega, como com
quem já mora aqui. Como sabe, as plantas
e a água são vitais. Além dos minerais que
existem em quantidade por estas bandas.
Muita gente na Terra já acredita nisso e
defende a Natureza. Ainda bem! Outros
usam a fitoterapia e hidroterapia. Estão
cobertos de razão. Com um pouco de
exagero, posso dizer que aí está um dos
ramos da medicina do futuro na Terra.
— E aqui? – perguntou Pedro.
— Aqui estes conhecimentos já fazem
parte da Medicina. Você já notou que a
nossa Medicina, do lado de cá, é
antroposófica, holística, ou que nome você
queira dar? O fato é que tratamos do
espírito, que é o sobrevivente sempre...
André, alheio a tudo, encantava-se
com um pequeno e belíssimo vaso, florido
com minúsculos e perfumados jasmins.

— Nunca vi jasmins deste tipo em
vasos... – ponderou. Eles costumam

crescer e se tornarem em árvores. Este
parece bonsai.

— E é – aproximou-se Jaciara. Já viu
coisa mais linda?
— Quem cuida de tantas plantas e
tão bem?
— Nossas vibrações de amor e
carinho para com elas. E, finalmente,
nossos jardineiros, André. Temos uma
grande equipe deles. E nós também, nas
horas vagas. As nossas amigas sentem o
amor em nossas mãos e respondem com
crescimento, beleza, viço, perfume...
— É... Na Terra sempre gostei de
plantas. Vivi entre elas, tanto em casa
como no trabalho. Meu escritório ficava
em um prédio cheio de jardins internos e
jardineiras floridas nas janelas. Além
disso, situava-se em frente a um parque
muito bem cuidado e bonito. Mas que não
tinha um décimo da beleza dos daqui.
Sempre que podia eu dava uma volta por
dentro dele, ficava olhando as árvores
centenárias, as plantas aquáticas do
lago...
A nossa casa estava sempre florida,
dentro e fora. Minha mãe gastava horas


cuidando do jardim e dos vasos. Que
saudade da minha mãe! – murmurou.
Dona Marieta acariciou a cabeça do
moço:

— Até que vocês possam estar
novamente juntos, prometo que cuidarei
de você, meu filho.
Era maravilhosa a ternura maternal
daquelas velhinhas! E o carinho delas era
realmente de mães, mães de todos.

— As senhoras têm filhos? – arriscou
André.
As duas se entreolharam tristes. Foi
Dona Cacilda quem respondeu:

— Na Terra, sempre adiamos o que
considerávamos "esta história de ter
filhos". Éramos belas, bem casadas e
muito amigas. As festas, viagens e
passeios enchiam nossos dias. Uma
criança só poderia atrapalhar,
pensávamos. Por isso, nós usávamos
todos os meios disponíveis para evitar
gravidezes indesejadas. E a vida foi
caminhando, enviuvamos, a velhice foi se
aproximando. A solidão chegou de um
pulo. Nunca havíamos sido más, cometido

crimes ou coisas assim, mas não havíamos
construído para a velhice.

Tínhamos casas grandes e
confortáveis, boas contas bancárias e
ninguém a quem amar! E quem nos
amasse também...

Decidimos então morar juntas e foi o
que fizemos. Pelo menos, teríamos uma à
outra.

Logo depois, Marieta ficou doente e
passamos uma boa temporada no
hospital, eu como acompanhante.

Durante a convalescença dela,
ficávamos andando pelos corredores e
bisbilhotando. Fizemos amizade com Dalva
e Jaciara, enfermeiras dedicadas. E foi
através delas que encontramos a ala de
pediatria e a enfermaria infantil. Vocês já
adivinharam que nunca mais saímos de lá,
não é?

— Meu Deus! – interrompeu Pedro.
Tudo tem sentido aqui! Vejam: vocês
duas, Dalva e Jaciara. Encontraram-se lá,
encontraram-se cá...
— É claro que tudo tem sentido!
Ninguém se encontra por acaso nem lá
nem cá, vai aprender isto... Mas,

retornemos à história que eu estava
contando:

Voltamos para casa depois de certo
tempo, mas, diariamente, lá estávamos
nós de volta, visitando e amparando
nossas criancinhas doentes.

Tivemos então a idéia de organizar
um grupo de senhoras voluntárias que, no
princípio, recrutamos entre nossas
amigas. Depois cresceu muito, virando
grupo de senhoras, senhores e jovens...
Ainda existe por lá até hoje, com o nome
de "Irmãos de Cacilda e Marieta".

O grupo se reunia três vezes por
semana e, entre múltiplas atividades,
visitava as famílias das crianças doentes.
Algumas senhoras costuravam enxovais
de nenê, Dalva e Jaciara ensinavam os
cuidados básicos às mães, coisas assim.

E, como crianças e velhos se parecem
muito, não tardou e estendemos nossas
atividades a orfanatos e asilos.

Foi quando ficamos conhecendo Dr.
Saulo, pai de Alberto. Ele era geriatra no
Hospital onde ficáramos durante a doença
de Marieta. Ficamos muito amigos. Ele nos
convidou para reuniões de estudos que


fazia às segundas-feiras em sua própria
casa. Tomamos então conhecimento do
Espiritualismo e aí é que nossas vidas
mudaram mesmo, pois passamos a
entender a necessidade de ajudar sem
querer nada em troca. Descobrimos
explicações para nossas vidas e um
sentido para o que fazíamos, encontramos
Paz, mais amigos e esclarecimento para
muitas dúvidas. E coragem e força para
conseguirmos ajudar ainda mais nossos
velhos e crianças.

Algum tempo depois, Dr. Saulo e o
filho Alberto partiram para cá, após um
acidente automobilístico. Filho e pai
trabalhavam juntos na Terra, vieram
juntos, chegaram juntos, ficaram juntos e
continuaram trabalhando juntos. E
encontraram aqui o resto da equipe, pois
fomos chegando aos poucos.

Logo após os dois amigos, nós duas
viemos, quase juntas, com problemas
coronarianos.

E, surpresa! Reencontramo-nos os
quatro aqui, onde prosseguimos nosso
trabalho, eles dois como médicos e nós
duas adotando todos os doentes e


convalescentes como filhos queridos do
nosso coração. Isto sem falar que a
equipe passou a contar também com
Jaciara e Dalva totalmente recuperadas da
passagem, como antigamente. E com
outros que aqui estão e mais outros que
ainda chegarão. Vocês ficarão conhecendo
todos.

A emoção era geral.

— E onde está o Dr. Saulo, que não
vimos ainda? – murmurou um emocionado
Augusto.
— Meu pai encontra-se no momento
executando uma tarefa difícil – falou
Alberto. Está acontecendo na Terra,
precisamente na cidade onde morávamos,
um grande Congresso Médico
Internacional, onde – nós aqui sabemos –
importante descoberta virá a público.
Trata-se de um remédio há muito
esperado e que será enfim divulgado e
disponibilizado para médicos e hospitais,
visando minorar os sofrimentos de
doentes de câncer e, em certos casos,
debelar a doença. Meu pai encontra-se
entre os médicos que inspiram os
cientistas participantes.

Aliás, ele está neste trabalho há
muito tempo, pois aqui dirige um grupo
que pesquisa novos medicamentos para
graves doenças que afligem a
Humanidade. A EX-108 – nome científico
da droga que está sendo apresentada
neste Congresso – é resultado de uma
pesquisa conjunta do lado de lá e do lado
de cá, vamos dizer assim.

— É sempre desta maneira?
— Quase sempre. De cá, somos
incansáveis na ajuda aos que ficaram na
retaguarda. Cada um, dentro das suas
tendências, colabora à sua moda. Médicos,
cientistas, artistas, artesãos e assim por
diante. Onde há quem quer trabalhar, há
trabalho.
— Sabem? – falou Pedro. Ouvindo as
coisas que vocês dizem, chego a pensar
que não existe morte como eu a encarava.
O que há é um verdadeiro e perfeito
entrosamento entre os dois mundos. Basta
ter um pouco mais de sensibilidade, ligar
melhor as antenas receptoras e o contato
está feito!

— Parabéns, Pedro! – aplaudiu
radiante Dona Cacilda. Não sabia que você
já estava tão entrosado...
— Nem eu, Dona Cacilda, nem eu...
Mas uma coisa eu noto e sinto: a cada
hora que passa, numa rapidez impossível
de conceber na minha antiga vida, parece
que meus olhos vão se abrindo mais,
minha capacidade de compreender vai se
alargando, sei lá. Isto começou a
acontecer quando eu me negava a
acreditar que já havia partido da Terra. Só
que eu bloqueava, pensava em loucura.
Nestas últimas horas, tive um estalo
mental... É assim mesmo?
— Podemos dizer que nesta escola
você está sendo um ótimo aluno, meu
filho. Garanto que terá sempre chances de
ajudar a muita gente e, pelo que vejo,
nenhum de vocês desperdiçará as
oportunidades.
— Mas aquele jasmim está lindo
demais! – divagou um sonhador André,
que parecia não prestar atenção à
conversa.

215
Riso geral, descontração na hora
certa e o papo perdeu-se pela noite
estrelada adentro...


A MISSÃO É APRESENTADA

Francisco estava escrevendo quando
Augusto entrou.

— Incomodo?
— Claro que não. Entre. Sente-se e
fique à vontade. Em que posso ajudá-lo?
— Estive pensando... Não quero ficar
inativo, um boboca. Sei que não estou
doente e que acabo de me mudar para cá,
de maneira irreversível. Até que me
acostume totalmente com a idéia, o
trabalho é o melhor remédio. Concorda
comigo?
— Certíssimo. Você é um homem
acostumado à ação e encara a realidade
com segurança e confiança. Quanto a esta
amargura velada que vejo em suas
palavras, tenho certeza de que vai superá-
la, na medida em que a compreensão e a
visão clara das perspectivas novas forem
tomando o lugar dela. Mudar-se para cá
de maneira irreversível – como você disse
com tristeza – não significa sofrimento
nem imolação, mas sim renovação e
recomeço. E, principalmente, o abandono
da ignorância antiga em relação à vida

eterna, aliando tudo ao sentimento de que
somos todos irmãos e nossas
potencialidades são infinitas. De acordo
com a aceitação do novo morador,
oportunidades mil surgem, pois aqui não
existe o impossível nem a estrada com
fim.

Acabou-se a escola dura da Terra
com seu horizonte limitado; agora é hora
de checagem de conhecimentos e
realizações. Só para lembrá-lo e consolá-
lo: a vida verdadeira é a daqui e não a de
lá. Aqui somos sempre os mesmos;
quando estamos lá, representamos papéis
necessários ao nosso aprendizado ou à
nossa missão no momento. Somos os
Joãos, as Marias, e assim por diante. Aqui,
não escapamos de sermos nós mesmos.
Assim, a morte, vista pela ótica de cá,
representa apenas um momento de troca
de papéis no teatro da vida, nada tão
trágico ou desesperador como costumam
dizer os menos esclarecidos. Quem morre
lá está apenas voltando à realidade;
agora, se esta realidade será ou não
agradável, a culpa é só dele, que não
soube representar bem o seu papel. Mas,
mesmo assim, outras oportunidades virão


e aquele que aqui chega devendo algo a si
mesmo – porque, quando contraímos uma
dívida, fomos derrotados e ficamos
devendo o pagamento dela a nós mesmos
também –, se tiver boa vontade e
discernimento, encontra logo outra chance
de consertar as coisas. Já pensou nisso?

Chega de paradeira! E vamos logo
ver o que gostaria de fazer. Tem alguma
preferência?

— Sim. Eu pensei nas suas
expedições. Parece-me que elas exigem
coragem e rapidez em certos casos.
— Em todos.
— Pois é. Tenho formação militar.
Acredita que posso ser útil?
— Você acaba de escolher onde e
como quer trabalhar! E muito bem
escolhido. No momento, tenho justamente
um caso delicado que, com certeza, exige
habilidades como as suas. Que tal chefiar
uma expedição perigosa, num local difícil?
— Chefiar?! Se achar que estou
preparado, aceito. Não conheço os locais,
as situações de cá... Pode estar confiando
demais em mim...

— Terá um experiente guia, o que
resolve o problema dos locais
desconhecidos. Situações que oferecem
perigo são fáceis de controlar por quem
tem experiência. Combates e estratégia
são parecidos em todos os lugares,
embora a finalidade e o desenvolvimento
deles seja diferente. As decisões ficarão
com você. A palavra final sempre será a
do guia. Trabalharão juntos, entendeu? E,
já que estamos conversados, quem
gostaria de levar para auxiliá-lo?
— Se for possível, Danilo, Pedro,
André, Jaciara e Dalva. É que são os
únicos habitantes daqui, fora você e
Alberto, com os quais estou acostumado.
Acredito que eles aceitarão.
— Olha, pode acreditar: a missão é
de briga mesmo, com armas e tudo...
— Como é que é?! Temos armas
também? E arma, que eu saiba, é para
matar. Aqui já estamos mortos... Ou
vivos, sei lá, isto ainda me confunde.
Afinal, estou olhando para o meu corpo e
ele apresenta-se tal qual era, nos mínimos
detalhes... Sabe? Eu sempre tive o pomo

de Adão proeminente. Rapaz, não é que
ele continua pontudinho?!

Juntando a palavra ao ato, verificou
mais uma vez a famosa pontinha no
pescoço. Satisfeito com a confirmação de
que ela continuava como sempre foi, deu
um largo sorriso, esparramando-se com
gosto no sofá, exatamente como tinha
costume de fazer quando estava alegre e
descontraído.

— E, no entanto, seu corpo físico já
não existe mais. Foi enterrado,
desintegrou-se e fim.
Augusto não gostou de ouvir isto,
empertigou-se, cortou o sorriso largo e
olhou desconfiado para o instrutor, que
continuou:

— Todavia, como já aprendeu, nada
dá saltos na vida e seu corpo atual é uma
cópia fiel do outro. Com tempo e
evolução, irão aparecendo as diferenças e
você irá se tornando cada vez mais sutil,
cada vez mais você mesmo, aquele que
não morre nunca...
Augusto gostou menos ainda do que
ouvia. Murmurou aborrecido:


— Não me agrada a idéia de saber
que meu corpo sumiu, que posso
desaparecer no ar... Ainda permaneço
muito confuso. Só que estou fazendo o
possível para encarar a situação com
galhardia... Um dia, sei lá quando, eu me
acostumo... Deixa para lá. Vamos às
armas. Pelo menos sei usar material
bélico...
— Temos um arsenal sofisticado e
variado. A utilização e as finalidades são
diferentes daquelas às quais está
acostumado. Você será apresentado a
tudo e num instante se familiarizará.
Alguns armamentos servem apenas para
assustar, outros para imobilizar, outros
emitem sons, outros disparam violentos
choques elétricos ou magnéticos. Há
lança-chamas, lança-anestésico, lança-gás
paralisante e assim por diante.
— Estas armas são usadas contra
quem? Ou contra quê? Ou para quê? Ou
melhor, por quê?
— Como na Terra, temos aqui os
recalcitrantes. Os bandidos, para usar
uma linguagem terrena. Saíram de lá
assim, chegaram aqui assim.

Desorientados muitas vezes, nem sabem
que trocaram de plano; ou sabem e
gostam, pensando que adquiriram
imunidade e impunidade para seus atos.
Muitos chefiam bandos agressivos de
desordeiros de rua que se comprazem em
andar pelas cidades da Terra, praticando
todo tipo de ações impensadas ou
vagando sem saber direito como nem por
que ou para que vagam, ignorando a
própria condição.

Há, porém, casos mais graves, de
indivíduos altamente inteligentes,
maléficos na mesma proporção. São
excelentes comandantes de hostes bem
organizadas, têm seus quartéis generais
em locais fortificados e de difícil acesso.
Pensam que estão sabendo aproveitar-se
da nova situação e, freqüentemente,
escondem-na de seus subordinados fiéis e
ignorantes, para melhor dominá-los. E o
pior é que se julgam certos, combatendo a
justa causa, punindo aqueles que
merecem castigo, cá e lá. Acreditam na
força do ódio, do dente por dente,
confundindo-a com a justiça. Nutrindo-se
de desejos de vingança, tentam ser justos
a seu modo deturpado. Na base do olho


por olho ou pior. Vivem como se
estivessem na Terra, escondidos e
defendidos por seus seguidores,
alimentando ódios e paixões, mandando e
desmandando.

Verdadeiros reis em seus domínios
submetem os pretensos súditos à sua
vontade, julgam e executam sentenças
aqui e lá. Influenciam as vidas dos que
odiaram e dos que amaram e que ainda se
encontram na Terra. Fazem o mesmo com
os que estão do lado de cá e se mantém
na mesma faixa de vibração deles. Quase
sempre, são anjos negros da vingança,
quando não causam grandes confusões,
difíceis de serem consertadas depois.
Ainda mais se lembrarmos que o
destruidor é quem tem obrigação de
consertar o que foi destruído por ele...
Alguns se ligam a questões religiosas e se
tornam mais fanáticos e inflexíveis que os
da Terra, verdadeiros inquisidores. Outros,
dizem querer pacificar o mundo. E lutam
ferozmente para isso.

Veja como as mentes de todos estão
desviadas e pervertidas! E são justamente
estas mentes que dão forma às regiões


onde habitam, criando para eles próprios
um local sombrio, árido, estéril, cheio de
perigos, de animais ferozes e formas
monstruosas. Fazem intercâmbio mental
com regiões da Terra que lhes são
compatíveis, criando ambientes
pestilentos e formas de vida terríveis e
primitivas, cá e lá.

— Onde a justiça de Deus?
— Em tudo e em toda parte, mas
respeitando o ser criado à sua
semelhança, adormecido, esperando –
queira ou não – o empurrão fatal que o
acordará. Garanto a você que nada
acontece sem motivo. Lá ninguém ora,
ninguém vigia, ninguém acredita. Se os
dominados de cá e de lá estivessem em
outra faixa vibratória, superior, não
seriam dominados nem atingidos. É
básico: encostou, a faixa é a mesma. Já
viu ondas diferentes se misturarem?
— Isto aqui é muito complicado! Há
ações que se desenrolam tão baixo, tão
perto das emoções humanas, que exigem
reações muito iguais às da Terra, penso.
— Você acaba de entender porque
terá que agir como se estivesse entre os

vivos de lá. Muitos dos seus futuros
opositores nem sequer sabem que já
saíram da Terra! Mas não é complicado
nada! Cada pessoa traz para cá sua
bagagem espiritual, moral, psíquica,
emocional, negando-se ou tendo
dificuldade imensa para ver o que nunca
pensou que existisse. Aí, a coisa fica séria.
No fim, a luz brilha e brilhará para todos,
tenha certeza.

— Muito bem. Qual é a missão?
— Resgate. Dois cientistas muito
valiosos na Terra e igualmente aqui,
vencidos por sentimentos descontrolados
e imprevidência, caíram nas mãos de
Gabriel, o Mago, ficando prisioneiros dele.
No entanto, não são maus e estão
sinceramente arrependidos do passado,
que os fez cair na atual situação. Presos
nas teias que ajudaram a tecer desde
quando ainda encarnados, estão
desorientados. Não é simples a libertação
de algo, quando se criaram vínculos muito
fortes. E os deles com Gabriel são
fortíssimos.
As ondas mentais da dupla, pedindo
socorro, têm chegado até nós


constantemente. Encontram-se em uma
fortaleza numa das regiões mais perigosas
que conhecemos, cujas fronteiras
confundem-se com os limites onde
habitam os da Terra. Ocupam
praticamente o mesmo espaço, em
dimensões diferentes. Os moradores de lá
usam as pessoas encarnadas invigilantes e
vulneráveis como se fossem brinquedos.

Terão que desatar, arrebentar
mesmo, as teias que os prendem lá,
libertá-los. E trazê-los. Não será fácil. E
não menospreze a força e a inteligência
dos moradores de lá. Ainda quer ajudar?

— Claro. Nunca tive medo de cara
feia. Não é agora que vou ter. Vamos ver
se ainda estou em forma.
Francisco se divertiu com o
entusiasmo e gostou da firmeza do outro.
Ele sabia que, se havia coisa que Augusto
gostava, esta coisa era ação. E quanto
mais, melhor.

O instrutor continuou:

— Terão que se infiltrar na fortaleza.
Não escondo que correrão riscos, até
mesmo o de se descontrolarem
mentalmente e, conscientemente,

desistirem de voltar, inteiramente
dominados. Nem sei como tirarão os
prisioneiros de lá: o plano será seu. Terá
que ter muito cuidado: ondas e vibrações
mentais maléficas são tão perigosas
quanto dardos envenenados e canhões.
Não se iluda e nem duvide.

Outra hipótese possível é que
poderão ficar retidos contra a vontade,
impossibilitados de lutar com mentes mais
poderosas que as suas. Ninguém pode
prever como será o confronto e as reações
de todos num momento de alta tensão.
Não os engano. Os perigos são idênticos
ou maiores que os de uma operação
militar terrestre de resgate. Ainda mais:
se ficarem por lá e tivermos que ir buscá-
los, teremos o mesmo problema que vocês
e não sei qual será o resultado. Quero que
saibam de todos os grandes riscos que
correrão.

A única coisa que – tenho certeza
absoluta – posso garantir é que vocês
voltarão diferentes, mais maduros e
entrosados no novo mundo e na nova
vida, sem medo e com muito mais
segurança íntima e leveza mental.


— Antigamente, quando eu
participava de missões, tinha cuidado para
não ser morto. Agora, não deixa de ser
divertido o fato de que ninguém poderá
nos matar... Já estamos mortos...
— Morrer, muitas vezes, não é a pior
coisa que pode acontecer a uma pessoa.
Algumas formas de luta são piores e mais
difíceis do que encarar metralhadoras
giratórias. Lembre-se disto. E antes que
me esqueça: eles também têm armas. E
armas, do lado de cá, meu caro amigo,
são muito mais letais, você verá. Você
está acostumado com armamento que
mata o corpo físico. Aqui, arrebentam o
mental e o emocional. Isto sem falar na
terrível e violenta arma do controle de
uma mente sobre outra. A mente de
Gabriel é como uma usina atômica
poderosíssima, funcionando nos limites
máximos de força. Pode dominar o inimigo
com a maior facilidade. E aí a saída não é
fácil.
Só uma coisa – extremamente
simples, diga-se de passagem – pode
descontrolar Gabriel: a mente tranqüila e
em paz, o coração em ordem, o


pensamento reto e firme. Se você e seus
amigos mantiverem o padrão vibracional
alto, nada precisarão temer. Se, por um
segundo sequer, deixarem cair a guarda,
serão presas fáceis. Pense em ondas de
rádio: sintonizou, tocou...

A melhor estratégia será nunca tentar
medir forças, acreditando estar amparado
pelo Bem. Nem pense nisso,
principalmente porque esta história de
Bem e de Mal é muito relativa. Mau no
meio dos maus não é novidade nenhuma,
não leva vantagem alguma. Proeza e
escudo é ser objetivo, certo e reto diante
dos maus. Caridoso, porém firme. E a
melhor maneira de saber quem é o mais
forte é justamente não partir para o
confronto. Se os bons soubessem a força
que têm! Não gosto muito de citar
religiões, porque tenho minha opinião
pessoal sobre elas, mas gosto muito
daquilo dos mansos herdarem a terra...

— Opinião pessoal sobre elas?
— Sempre detestei rótulos. Deus não
é propriedade de ninguém e santo é todo
aquele que vence as fraquezas do espírito.
Se partirmos do princípio de que todos

somos irmãos, implantaremos a
fraternidade e facilitaremos tudo na vida.
Quem não ama a um irmão? Portanto,
qualquer religião que pregar o Amor, a
Verdade e a Justiça terá o meu apoio
incondicional.

Todos os problemas de lá e de cá –
veja bem – estão enraizados num único: a
falta de respeito ao outro, a ausência de
sentimento puro e de desprendimento.

Você amanhã passará o dia comigo.
Aprenderá alguns conceitos fundamentais,
verá mapas e filmes do local da ação e
será apresentado ao nosso armamento.
Depois, terá apenas um dia para treinar e
passar instruções a seus amigos. Partirá
no terceiro. Sinto muito pela correria, mas
não temos tempo. Mesmo em ação, você
terá que ser rápido. É que está
programada uma tempestade vibratória de
limpeza da região dos seguidores de
Gabriel e vocês não poderão ser pegos por
ela. Não gostariam nada...

— Posso saber o que vem a ser
tempestade vibratória de limpeza? Deve
ser coisa brava... Quem programou?

— E é coisa brava. A região de
Gabriel, em conseqüência das emanações
mentais, ações dele e de seus seguidores,
casadas ás ondas iguais que atraem da
Terra, está ficando insustentável,
insuportável até para eles mesmos, com
uma carga magnética pesada e
destruidora, comprometendo o equilíbrio
de outros locais vizinhos, onde amigos
nossos mantêm postos de socorro. Gabriel
já foi avisado disto várias vezes, através
de mensageiros. Já foi mostrado a ele que
está em formação, construída, gerada por
eles próprios, uma verdadeira bomba
nuclear. No entanto, a resposta que
tivemos foi escárnio e indiferença.
Receberão então o que merecem e
pediram: uma boa dose do próprio
veneno...
Eles mesmos criaram e programaram
a tempestade, carregando demais o
ambiente, que explodirá em cima de seus
criadores. Nada será acrescentado para
aumentar a força destruidora; já basta o
que veio deles mesmos. Justo, não?

Fogo e emanações magnéticas
provocarão reações sísmicas de estarrecer


e a região será limpa pelas chamas. Os
habitantes receberão cargas altas de
magnetismo e só Deus sabe o que
acontecerá. Alguns conseguirão fugir para
nossos postos de socorro, outros ficarão
cegos, mutilados, queimados e outras
coisas assim. Dependerá de cada um.

— Você sempre diz isto: dependerá
de cada um.
— Com toda razão. A vida não dá
saltos e quem planta colhe exatamente o
que semeou. Não pode reclamar que
queria outra colheita, não é mesmo? Nada
brota sem ser plantado, adubado e
cultivado. Portanto, tudo sempre depende
do que está dentro do coração das
pessoas e não do que está fora. Já
reparou que os ensinamentos e verdades
básicas são de uma simplicidade extrema?
— E como ficará a região de Gabriel?
— Queimada, estorricada, mas pronta
para ser utilizada novamente. Tudo
voltará a depender de quem irá para lá
fazer a boa ou má utilização da nova boa
terra.
Do reino de Gabriel, porém, não
ficará pedra sobre pedra. Não acabaremos


com ele – nem temos este poder. Mas ele,
sim, tem o poder de se esgotar. E
conseguiu.

Augusto levantou-se:

— Amanhã estarei aqui bem cedo.
Por hora, já vou fazendo contatos com
meu pessoal, adiantando alguma coisa,
para que possam optar se querem
participar. Acredito que ninguém recusará
e depois de amanhã estarão prontos para
receber as instruções finais. Pedro já tem
conhecimento deste tipo de operação,
Jaciara e Dalva conhecem bastante o lado
de cá. Danilo, eu me responsabilizo por
ele. É pacífico, detesta armas, é amigo e é
bom. A maior arma dele é o coração. Sabe
reconhecer o direito de cada um.
Entenderá rápido e não decepcionará. A
incógnita é André, que gosta de divagar
diante de vasos de flores...
— Não menospreze o desconhecido...
Incógnitas podem se transformar nas
maiores surpresas. Saiba disto.
— Preciso conhecê-lo melhor. O que é
que ele fazia na Terra?
— Era economista.

— Xi... Estou perdido com ele! O que
é que um economista vai poder fazer
numa operação militar?
— Você não me esperou terminar. A
força de cada um para desempenhar bem
a missão, não estará nas profissões que
exerciam num passado que já acabou,
mas nas mentes e nos corações de vocês.
Já que ficará mais tranqüilo
conhecendo melhor André, aí vai uma
rápida ficha dele. Profissão: economista.
Paixão: como você já sabe, plantas e
flores. Ele chegou a estudar botânica em
certa fase da vida. Hobby: praticar karatê
Era faixa preta. Dizia que era um esporte
relaxante, que trabalhava a agressividade
e acalmava as pessoas. No mais, foi
excelente filho, bom profissional, irmão
querido.

— Já melhorou um pouco – riu
Augusto.
— Quanto ao guia, será Inácio. Você
já o conhece. Ele conseguiu fugir da
fortaleza de Gabriel. Ocupava um alto
posto lá, privava da intimidade pessoal do
Mago. Por estas maquinações do destino
que não adianta discutirmos agora, os dois

são muito ligados. Inácio tem
conhecimento das reações e do poder do
chefe, do local e das pessoas que o
rodeiam.

— E, principalmente – espero com fé
–, dos modos de se escapar de lá...
— Justamente. Será um precioso
ajudante. Já recebeu instruções e sabe
que a palavra final será sempre a de vocês
dois juntos.
— Posso fazer uma pergunta antes de
sair? Por que confia tanto em mim se não
me conhece? Ou falei besteira e já me
conhece?
Uma boa risada foi a resposta de
Francisco que, levantando-se e segurando
no ombro do outro, afirmou:

— E quem não conhece alguém aqui?
Lembre-se: as máscaras foram enterradas
com o corpo físico e já se deterioraram.
Do lado de cá, não há dissimulações: é ou
não é.
Só para ilustrar, digo que você foi um
sujeito muito bravo, muito bravo mesmo.
Com seu vozeirão e destemor, chegava a
assustar os mais tímidos. Fazia coisas que
aqueles que o conheciam chamavam no


mínimo de maluquice. Amou, sofreu,
viveu, lutou. Tudo muito, intensamente.

Mas uma coisa você fez
magistralmente: cumpriu o seu dever, a
qualquer preço. E, mesmo quando
exagerava e era intransigente com
aqueles que não tinham um caráter reto
como o seu, era tentando acertar. Foi reto
e justo. Isto, para não falar nas pessoas
que ajudava, principalmente velhinhas,
sem fazer o menor alarde.

Eu sei quem você é, sim, Augusto.
Por isso confio em você.


ALEGRIA NA ENFERMARIA

Alberto encontrou Augusto saindo do
encontro com Francisco. Os dois foram
andando pelo corredor. O médico
provocou-o:

— E então? Animado e procurando
trabalho?
— Animado não digo: procurando me
animar seria mais certo. Quanto ao
trabalho, já encontrei. E me assusto com
a responsabilidade dele. Mas não temo
executá-lo e sei que me sairei bem.
— É uma particularidade deste local,
Augusto: quem quer mesmo prosseguir a
jornada e tem disposição para o trabalho
útil, pode ter certeza: não demora a
encontrá-lo. E, uma vez encontrado, está
encaminhado, o curso da Vida pode
prosseguir. O que fará?
— Pensei nas expedições de Francisco
e falei com ele, que concordou logo. É que
sou um homem de ação. Não consigo me
adaptar em locais fechados, ao que na
Terra chamamos de trabalho burocrático.
Preciso de espaço, movimento. Sempre fui
assim.

Pensando bem, morri do lado de lá de
uma forma excelente. Acredito que não
suportaria ficar em cima de uma cama me
acabando e dependendo de todos.

— É... A Providência Divina zelou e
Deus teve misericórdia. Você sofreria
muito mesmo se não fosse assim...
Chegaram em espaçosa enfermaria,
onde alvos leitos se alinhavam lado a lado.
Os doentes pareciam estar em franca
recuperação, pois conversavam felizes
com as visitas e entre si. Havia muita
luminosidade e calor entrando por todos
os lados, o imenso quarto era arejado,
com vasos de plantas, janelas e portas
abertas, bastante circulação de ar e luz.
Havia animação ali, naquele local de
recuperação de jovens e velhos, de ambos
os sexos.

Antes de entrar, Augusto cochichou
para Alberto:

— E eles? Já sabem que morreram?
Quem são as visitas? Por que estão juntos
e não em quartos separados como eu?
Aliás, por que fiquei separado? Por que o
quarto é misto? Isto não é impróprio?...

— Nossa! Lembre-me de arranjar uns
livros para você ler! Falam sobre tudo que
acontece neste mundo. Vamos por etapas:
ninguém aqui sabe que morreu. As visitas
são assistentes sociais da cidade, homens,
mulheres e jovens cujo trabalho é visitar
recém-chegados realmente doentes –
carregaram consigo as mazelas –, mas
que ainda desconhecem a própria
situação.
— Por que disse "realmente
doentes?".
— Todos sofreram enfermidades
fatais e muito sérias na Terra e vieram
para cá em conseqüência delas, trazendo
algumas seqüelas. Passaram de um leito
para o outro, de um hospital para o outro,
cansados e desgastados pelas doenças e
pelos remédios. Acreditam que estão
sarando e que com eles está acontecendo
verdadeiro milagre.
São pessoas de bom coração que, se
nada fizeram de espetacular na vida
terrena, também não fizeram mal.
Pensando bem, isso causa dó... Não
realizar nada...


Alguns ainda sentem sintomas do mal
que os acometeu. Mas todos notam que
estão melhorando com uma rapidez
vertiginosa e não se cansam de louvar
tratamentos, hospital, médicos, corpo de
enfermagem, alimentação, tudo...

O fato de estarem juntos,
solidificando a amizade entre si e com
suas visitas amenizará o susto e a possível
dor da descoberta. Na hora certa, todos se
apoiarão uns nos outros, orientados
justamente pelas visitas.

— Pelas visitas?!
— E quem você acha que são os
visitantes? Esqueceu o que eu disse?
— Ah, já me lembrei: assistentes
sociais que cuidam da adaptação dos
novos mortos...
— Augusto, pare com este
negativismo... Aqui, todo pensamento tem
efeito imediato... Mesmo que não
sintamos nada na hora, algo acontece.
Não existem mortos, nem novos mortos,
nem velhos mortos, da maneira como
você quer dizer. Existem, sim, muitos
mortos lá e cá: os cabeças-duras...

— Tudo bem. Desculpe. Saiu sem
querer e não vai se repetir... Mas, vamos
ao que você estava dizendo. Que
acontecerá quando descobrirem a nova
situação?
— Vão descobri-la aos poucos, uns
primeiro que outros, na medida em que
forem se fortificando, conseguindo se
levantar e andar. A verdade virá devagar,
através das próprias observações de cada
um e das conversas que terão aqui e lá
fora, quando puderem sair para tomar sol
e bater papos com os outros pacientes de
outras alas.
Os assistentes estarão sempre por
perto, pois, após tantas visitas e
conversas íntimas, consolos e auxílios, já
terá nascido uma sólida amizade entre
todos.

Depois, quando cada um for seguir o
seu destino, será com seus amigos que se
aconselharão e – quem sabe? – poderão
até acompanhá-los e se tornar visitas de
outros doentes, futuros assistentes sociais
dedicados aos recém-chegados...

Você ficou no quarto por vários
motivos. Para começar, não ia precisar do


mesmo tempo que eles para acordar, não
veio por causa de doença incurável, nem
muito desgastado e outras coisas. Além do
mais, sabe agora que cada caso é um
caso.

Quanto à impropriedade de homens e
mulheres, velhos e jovens, ocuparem a
mesma enfermaria, posso acalmá-lo
rápido, pois já sei o que o incomoda no
caso. Embora nenhum deles tenha notado
e ninguém sequer tenha questionado esta
saudável mistura de seres aparentemente
diferentes, os espíritos – e eles agora são
espíritos – são todos irmãos, imortais.

No princípio, quando chegam aqui,
ainda têm algumas necessidades básicas e
guardam lembranças e vontades que não
têm mais o menor sentido. Para sanar os
possíveis problemas que advierem disso,
temos enfermeiros e enfermeiras
dedicados, cortinas entre as camas e
"remédios" e "sopas" que nada mais são
do que medicamentos, mas em outro
sentido: ajudam no esquecimento dos
corpos físicos que não mais existem e
reforçam as recordações básicas do


espírito, pois, afinal, agora é que estão
todos em casa e não antes...

— Por favor, traduza melhor este
negócio para mim...
— Sempre lutando contra a idéia do
fim do corpo físico, hein, Augusto?
Tradução simples: todos saímos deste
mundo – seja de que lugar for dele – e
nascemos na Terra. Lá passamos uma
temporada, alguns totalmente esquecidos
de cá. Na volta destes renitentes que
fecharam a mente, colocaram viseiras e só
se ligaram à vida terrestre, há
necessidade de "reforçar as recordações
básicas do espírito", ou seja, fazer com
que se adaptem onde sempre foi seu lar e
sintam prazer na volta, entendeu agora?
— Isto é necessário com todos?
— Nem pense. Cada caso é um caso,
já disse, cada um de nós traz uma história
e uma estória. E, principalmente, um
pedido mudo e inconsciente de
readaptação, além de um arquivo antes
inacessível guardado nas gavetas mentais
que, quando tocado de leve, abre-se e
mostra à tona tudo que sempre foi e só foi
relegado ao esquecimento por algum

tempo terrestre. Isto está acontecendo
exatamente nos casos específicos destes
que juntamos nesta enfermaria.

Passaram devagar por entre as
camas, Alberto parando e conversando
com doentes e visitas. Apresentava
Augusto como um novo amigo, que, por

sua vez, participava de todas as
conversas.
Pararam junto à cama do Sr.

Antenor, a última à esquerda, no fim do
corredor, perto da saída.

— E então, Sr. Antenor? Melhorou
mais?
— Meu filho, estou encantado com o
tratamento! Quando eu estiver bom, vou
recomendar este local para todos os
conhecidos e trarei minha mulher para
este hospital. Tenho certeza de que ela se
beneficiará e ficará curada de seus males
de velhice. Nem sinto mais as terríveis
dores na cabeça e, como pode notar, o
meu rosto já não está deformado, está
normal. E tudo tão rápido!
O meu médico anterior não era tão
bom quanto o senhor, Dr. Alberto. Ele me
enchia de remédios e eu não sentia


melhora alguma. Ao contrário, piorava a
olhos vistos. Ele dizia que o tratamento
era demorado e que eu deveria ficar
tranqüilo.

Até onde pude ouvi-lo, antes de ficar
surdo, ele me consolava dizendo que, um
dia, tudo acabaria bem. Olhe só! O senhor
apareceu na hora certa. Caso contrário, eu
já estaria morto.

E dirigindo-se a Augusto:

— O senhor sabe que tenho câncer
no cérebro? Já estava ficando com o rosto
e a cabeça deformados, dificuldades com
os cinco sentidos. Não falava mais, minha
mente não conseguia se concentrar em
nada. Transferido para este hospital,
aconteceu o milagre: melhorei em poucos
dias. Eu, que nem conseguia mais
raciocinar direito, estou bem, ainda me
alimentando com soro, mas falando,
ouvindo, enxergando e com a cabeça e o
rosto normais.
Louvado seja Deus!
Alberto corrigiu-o:


— O senhor disse que tem câncer no
cérebro, Sr. Antenor. Errou no verbo. O
senhor tinha câncer no cérebro. Aliás,

estou aqui para avisar que cortei o seu
soro. Não precisará mais dele. Já, já
estará andando por aí.

— E irei direto para casa, abraçar
Madalena e os filhos! Nunca me senti tão
bem disposto. Poderei até voltar a
trabalhar! O senhor vai concordar comigo
e me deixar voltar ao meu trabalho, não é
doutor? Graças a Deus, vai voltar tudo ao
normal lá em casa! Vamos sair todos do
pesadelo da doença e entrar na
normalidade!
Alberto deu um tapinha carinhoso no
ombro do alegre doente e seguiu com
Augusto, explicando em voz baixa,
enquanto saíam pelo corredor:

— Dona Madalena já chegou, vítima
de leucemia. Está noutra enfermaria,
ainda inconsciente. Vai dar muito
trabalho, porque nunca acreditou em
nada. Sempre afirmou que quem morre
vira terra e pronto. Portanto, demorará a
ver e sentir o que ela sempre negou
existir. Sentirá nela própria as
conseqüências de seu desinteresse e
negligência. Perderá tempo para aprender
e fazer o que tinha que aprender e fazer

antes. Demorará mais a ficar livre dos
sintomas da doença porque vai se julgar
doente e a pior doença, que passa de uma
esfera para outra, é se julgar doente.
Cada um escolhe seu próprio caminho e,
se privilégios há ou não, eles dependem
exclusivamente da pessoa e seus méritos.

Como pode constatar, aqui há de
tudo. Com isso, há também inúmeras
oportunidades de trabalho, em todos os
campos, para aqueles realmente
interessados e que desejam prosseguir no
caminho sem volta da Vida. Aqui mesmo,
nesta enfermaria que acabou de visitar, há

o trabalho constante dos médicos,
enfermeiros, visitas, pessoal de
manutenção e limpeza e muitos outros.
Depois, haverá também o trabalho dos ex-
doentes que, ao se conscientizarem
primeiro do que os outros, formarão
equipes junto aos assistentes, começando
a ajudar, a convencer e a animar os
amigos.
Augusto interrompeu a conversa com
um olhar feliz, repentinamente
lembrando-se de algo muito importante:


— Por falar em trabalho, vou cuidar
do meu! Agora mesmo, reunirei todos os
meus amigos no quarto e apresentarei a
eles o trabalho que faremos.
— Se quiser, posso dar uma
mãozinha, avisando Inácio, Dalva e
Jaciara para irem para o seu quarto. Vou
passar perto de onde eles estão.
— Faça isto para mim, sim? E muito
obrigado!
Augusto saiu apressado, assobiando
pelos corredores.


A PARTIDA


Era madrugada ainda, mas os
preparativos transcorriam intensos. Cada
um conferia suas coisas, Francisco e
Alberto ajudavam. Dona Marieta e Dona
Cacilda andavam no meio de todos,
conversavam com um e outro, faziam
recomendações, preocupadas com o bem-
estar e a segurança geral.

Augusto colocava um lança-chamas
dentro do veículo que os transportaria,
quando Dona Cacilda se aproximou:

— Meu filho, todo cuidado é pouco.
Não quero que vocês se percam por lá e
nem que se machuquem. Por favor,
mantenha sempre o pensamento reto e
firme, livrando-se assim das ciladas. Não
se esqueça e nem deixe que seus
companheiros se esqueçam: deste lado da
vida os ferimentos são mais sérios,
deixam cicatrizes na alma. Significam que
quem os recebeu baixou a guarda e se
deixou levar por ondas vibratórias malsãs.
Emocionado e lembrando-se de sua
própria mãe, ele beijou a testa da bondosa
velhinha, alisou os cabelos alvos e


abraçou-a com carinho, prometendo que
voltaria muito mais depressa do que ela
pensava.

— Vocês prestaram bastante atenção
em todas as orientações, mapas e têm
consciência de todos os perigos que
correrão, não é? Sabem perfeitamente que
a maior arma que estão levando está
guardada dentro de suas mentes?
— Sim, Dona Cacilda. Pode ficar
tranqüila. Decoramos tudo e sabemos
que, ainda assim, surpresas nos
aguardam. Mas não as tememos, o que é
importante.
Danilo e Pedro se aproximaram,
comunicando a Augusto que estavam
todos prontos. Quanto mais cedo
partissem, melhor.

Abraços, beijos nas velhinhas,
desejos de boa sorte, últimas
recomendações e eis o grupo todo dentro
do veículo que os levaria até certo ponto.
Depois, os guerreiros do Além teriam que
continuar a pé, carregando armas e
bagagens.

Um jipe, em quase tudo idêntico aos
da Terra, era a condução que agora


rodava, dirigida por Inácio. Até nele,
notava-se que as proporções de um lado
da vida eram bem diferentes das do outro.
Embora parecesse muito pequeno por
fora, tinha um espaço interior considerável
e parecia ter sido feito para rodar em
qualquer local, pois suas rodas eram
muito largas, estáveis e encapadas por
material impermeável, cheio de sulcos.
Augusto, bom estrategista, pensou logo
em ilusão de ótica, para confundir
possíveis adversários. Hipótese bem
alicerçada, considerando-se não a cor,
mas as cores externas. Tons de
camuflagem que lembravam bem plantas
e folhagens.

O veículo era alto, deixando a parte
inferior a mais de um metro do chão. De
fora, dava para ver todo o mecanismo que
unia as rodas e protegia o piso. Apareciam
grandes estabilizadores, parecendo molas
de aço, interligadas entre si. E não havia
fragilidade nessa parte, pois todo o
aparato externo era protegido pela mesma
matéria que envolvia os pneus.

Cada vez se afastavam mais das
regiões claras e a estrada interminável


entrava em locais sombrios, esburacados
e cheios de obstáculos. Pacientemente, e
demonstrando conhecer muito bem o
caminho, Inácio ia passando por tudo e,
quando havia necessidade de afastar
empecilho maior, Pedro e André desciam
pela porta de trás e o faziam. A porta
traseira, toda de vidro, era a alegria de
Pedro e André, pois abria ao contrário:
para cima. Quem saísse por ela, ao invés
de tocar o chão, chegava ao teto externo.
Daí ao chão, a solução era a mais simples
possível: um bom salto, para alegria dos
dois, parecendo duas crianças felizes,
sempre apostando quem conseguia cair
em pé sem balançar.

O humor geral era o melhor possível
e o entrosamento total. Quando souberam
da missão, aceitaram imediatamente, pois
ninguém queria se separar. Um grande
laço de amizade fraterna havia atado
todos.

Danilo, relembrando os seus tempos
de espiritualista, os livros que lera e o que
aprendera, sentia-se cada vez mais à
vontade e aproveitava a viagem,
assentado junto ao fundo envidraçado do


veículo, para ensinar a André alguma
coisa que pensava conhecer sobre o
mundo que agora habitavam. André,
interessadíssimo, prestava atenção em
tudo e ainda acrescentava suas próprias
opiniões, muitas vezes divertindo a todos
com seu bom humor. Inácio, lá da direção,
dava palpites no papo das moças.

Escurecia cada vez mais e começava
aquela estranha neblina, característica das
regiões perigosas. A velocidade teve que
ser diminuída. A estrada foi ficando cada
vez mais estreita e, para surpresa de
todos, foram surgindo vultos, cobertos
com mantas grossas e escuras, cabeças
escondidas debaixo de grandes capuzes
pontudos, que paravam à beira do
caminho, observando os passantes com
curiosidade e nenhuma agressividade, não
se atrevendo – ou não se animando – a
chegar mais perto do veículo.

— Que povo é este, Inácio? –
perguntou Pedro.
— Habitantes destas regiões. Vivem
em cavernas espalhadas por aí. Não são
maus, apenas muito primitivos, com a
inteligência pouco desenvolvida. Não

sabem que morreram, onde estão e por
que estão aqui. Nem sequer conseguem
fazer alguma ligação entre o lado de lá e o
de cá; para eles é tudo igual. Não se
recordam de nenhuma fase de sua
evolução, nem dos locais por onde
andaram e viveram. Perambulam por aí,
tentando entender, formando grupos
pacíficos e silenciosos, como nômades.
São como viajantes, perambulando entre
dois mundos, mas indiferentes a todos
eles.

— E por que não entendem? É só
chegar lá e falar para eles a verdade, ora
bolas!
— Não é tão simples assim, meu
caro. Suas mentes estão num estágio
muito inicial de formação. Eles não
compreenderiam. Ainda não chegou a
hora deles. Temos gente nossa que passa
sempre por aqui. Quem pode, é levado
para os postos avançados de socorro, que
se encontram em toda a região. Lá, são
cuidados e encaminhados a locais
apropriados.
— Que são postos avançados de
socorro?

— É onde se faz seleção e
encaminhamento de quem chega. Existem
muitos, cada qual com equipamento e
funcionários de acordo com o grau de
evolução de quem estão preparados para
receber. São pequenos, pontos de
transição, e, nos que se situam em locais
baixos como este, os funcionários não
ficam muito tempo por causa da
insalubridade.
— E os socorridos daqui são levados
para onde?
— A maioria não tem condições de
discernir e optar. O encaminhamento para
reencarnação é imediato e compulsório. É
o melhor para eles. Há casos
inacreditáveis: os que morrem lá, ficam
algum tempo perambulando por aqui, são
recolhidos, passam pela reencarnação,
nascem na Terra novamente, tudo sem ter
a menor consciência do lado de lá ou do
de cá! Nem notam, tão pouco evoluídos
estão. São ainda pedras brutas, que só o
tempo e a corrente da vida conseguirão
lapidar.

— Estou sonhando ou vejo mesmo
uma grande construção cinza à frente? –
interrompeu Pedro.
— Está vendo, sim. Mas não está tão
perto como pensa. Aqui as distâncias são
diferentes e você ainda é novato para
saber calcular. Ali é o Posto de Socorro
"Paulo de Tarso", vinculado à nossa
Instituição, onde pararemos dentro de
algumas horas.
— Algumas horas?! Mas está ali na
frente! É só ir em frente e chegar em
poucos segundos!
— Ir reto e cair no abismo? Olhe
melhor.
Pedro esticou o pescoço para fora da
janela do carro, erguendo-se com a maior
naturalidade, para ver melhor.

— Noooossaa! – pensou alto, caindo
assentado, horrorizado.
Que risco se seguissem em linha
reta! Um tronco da estrada desembocava
logo à frente, diante de colossal precipício.
O outro, onde rodavam, passava pelo
centro do abismo, no ar, parecendo não
estar apoiado em nada visível. Há um bom
tempo estavam em cima dele, sem


nenhum acostamento, apenas um fio de
rocha da largura das rodas do veículo. Não
se conteve, apavorado:

— Aqui tudo é assim, é? Quando
menos se nota, já se está de cabeça no
buraco?! Valha-me Deus!
Todos riram da reação desesperada
do companheiro. Augusto virou-se para
trás:

— Aqui tudo é diferente, Pedro. Até o
perigo. Ainda não se acostumou? Eu já...
— Acontece que tenho vertigens, não
posso com altura. Quando olhei pela
janela e vi aquele buraco sem fundo e eu
pendurado cá em cima, meu estômago
doeu e enrolou. Perdi o chão. A propósito,
Inácio, você sabe dirigir isto? Oh, meu
Deus do Céu! Eu me meto em cada uma!
Ninguém se balance, todo mundo
quietinho, para o veículo não perder a
estabilidade e cair para o lado. Ai, ai, ai!
Pedro enroscava-se todo, afundando-
se no assento, suando e apertando o
estômago com as duas mãos, olhos
esbugalhados.

— Olha gente! Ele ficou com medo de
morrer! – gracejou André alegremente,

com aquele seu modo de brincar que não
aborrecia ninguém, só causava risos.
Pedro calou-se, amuado e envergonhado,
com a brincadeira geral.

Mais escuridão. Mais neblina. Nem
dava para ver se já haviam saído da
estrada do abismo. Nenhum vulto cinza
aparecia mais. Muito frio. E a estrada sem
fim... Muito adiante, o tempo melhorou
um pouco e permitiu que os viajantes
distinguissem melhor onde estavam. Foi
quando pararam em frente a imenso
portão de ferro afixado por roldanas e
correntes em longo paredão rochoso.

Como se mão invisível o tocasse, ele
se abriu de par em par e o veículo entrou
em grande pátio, iluminado por holofotes
que faziam a sombra parecer dia. No
entanto, curiosamente, a luz não passava
dos limites dos altos muros para fora.

— Eis o "Paulo de Tarso", amigos –
apresentou Inácio. Nossa primeira parada.
Aproveitem, pois, quanto às outras, só
Deus sabe.
No pátio, grande movimento de
pessoas e veículos de formatos e


tamanhos inteiramente desconhecidos
pelos viajantes.

Um senhor, aparentando uns 50
anos, aproximou-se:

— Bem vindos! Esperava por vocês.
Entrem! Devem estar muito cansados. Sou
Dionísio, encarregado do Posto.
Cumprimentos e entraram no
atarracado prédio, que se apresentava
como construção muito sólida e antiga,
toda de pedra, em tudo lembrando a
época medieval.

Dionísio se dirigiu a Augusto:

— Francisco me avisou da vinda e do
objetivo de vocês. Gostaria que ficassem e
descansassem uns dias, mas sou obrigado
a avisá-los que a tempestade magnética
não tardará e têm muito pouco tempo
para levar a cabo sua missão.
— Sei disso, Dionísio. Não poderemos
mesmo demorar. Se é que já entendo um
pouco do tempo aqui, acredito que a noite
se aproxima e isto é bom, pois andaremos
sem sermos notados.
— Este local é quase sempre escuro,
Augusto. Estamos muito perto da Terra,
quase num ponto de intercessão e posso

lhe afirmar que não é um belo ponto...
Vocês andarão em direção ao centro desta
região, portanto, preparem-se para
escuridão e mais escuridão. Até lá,
encontrarão alguns locais um pouco mais
claros do que este, mas não esperem
muito. Já a iluminação da Fortaleza é
perfeita e saberão quando estiverem
chegando perto.

Terão que ter muito cuidado no
trajeto, pois, quando se aproximam
tempestades magnéticas, o tempo fica
pior ainda, muito carregado, com
relâmpagos e trovões. Sugiro que usem,
no princípio da caminhada, a rodovia da
Terra, pois poderão se orientar melhor e,
durante o dia, haverá luz. Inácio conhece
bem a localização dos portões vibracionais
e isto facilitará na escolha do melhor
trajeto. Mas não tenha muitas ilusões não.

— Uma pergunta, Dionísio: há
controle destas tempestades magnéticas?
Pode-se interrompê-las?
— Não temos o menor controle sobre
elas, pois não somos os seus criadores. Os
próprios causadores delas as dirigem e
controlam sua intensidade. Só eles

poderiam amenizá-las, mas não
compreendem isto. Vibram tão mal e tão
fortemente, que saturam o ambiente. A
conseqüência é a descarga imantada
proporcional que, uma vez desencadeada,
não pode ser detida até que se esgote seu
núcleo. Simples, não é?

— É... – murmurou Augusto.
E completou:
— Muito bem: meu pessoal
descansará o mínimo necessário. Depois,
descarregaremos o veículo e começaremos
a caminhada.
Você tem razão: iremos pela rodovia
da Terra. Não custa nada rever a velha
Terra!

— Que Deus os proteja! Não é nada
fácil a missão a que se propuseram!

NAS ESTRADAS DA TERRA

Era meia-noite em ponto quando o
grupo foi deixado pelo guia de Dionísio na
estrada da Terra. A sensação de terem
voltado para casa ficou evidente na
emoção que se estampou no rosto de
todos, ao verem carros, caminhões e
ônibus passarem correndo, buzinando. Do
outro lado da pista, bem em frente, uma
iluminada loja de conveniências e um
posto de gasolina lotado de veículos
mostravam ser ali um local de parada de
viajantes.

O céu estava estrelado e a noite
amena, com uma grande lua a iluminar o
caminho.

— Inacreditável! – falou Augusto,
com um olhar de encantamento. Se
alguém me contasse isto eu não
acreditaria. Dois mundos se
interpenetrando, mas sem se tocarem.
Dimensões diferentes, mesmo tempo. Dois
planos vibracionais perfeitamente
distintos.
Unindo a palavra ao ato, ele se dirigiu
a uma árvore e nela encostou a mão, que


deslizou, atravessando o tronco. Teimoso,
tentou novamente, desta vez decidido a
passar através dele. Não teve dificuldades.

Olhou para todos com ar de perplexidade
e alegria:

— Gente, não é sonho não! Se
alguém tinha alguma dúvida, que a perca
agora. Não estamos mais entre os vivos
de lá... Atravessamos objetos, vemos e
não somos vistos!
— Às vezes, com muito mais
freqüência do que pode imaginar, somos
vistos sim – atalhou Inácio. Sempre passa
alguém com os sentidos mais evoluídos e
nos pressente ou mesmo nos vê
perfeitamente. Já quanto a passar através
das coisas, o fenômeno é recíproco: quem
está lá – como você diz – pode passar
através de nós...
— Não gostei – atalhou Pedro.
— Vai acabar gostando – respondeu
Inácio. Usando uma linguagem popular, é
cada um na sua. Eles lá e nós cá, sendo
que, na verdade, nós já temos certeza de
tudo e eles ainda não. Ponto para nós...
Vamos dar um pontinho também para
aqueles que conseguem nos ver. No

fundo, eles têm mais chance de
compreender as verdades da Vida e como
são os mundos, pois conseguem senti-los
e pressenti-los...

Inácio falou e a prova aconteceu em
cima, como se previamente combinada.

Um ônibus parou no acostamento,
bem perto deles, para trocar um pneu
furado. Seus ocupantes desceram
sonolentos e se espalharam.

— Observem – murmurou Inácio.
As pessoas passavam entre eles e
através deles, tranqüilamente, sem nada
notar. Pedro e André, achando
interessante aquilo, tentaram ficar no
caminho dos viajantes, mas não
conseguiram ser vistos ou pressentidos.
Retardatária, uma senhora, puxando
pela mão uma dorminhoca criança de uns
5 anos, aproximou-se. Ao passar raspando
em Pedro, sentiu um arrepio e seu corpo
balançou.

— Cruzes! – falou alto, benzendo-se
e segurando forte a mãozinha do pequeno.
Não gosto de escuro. Fica perto de mim,
Joãozinho.

O menino revidou, para desespero da
assustada mãe:

— Você esbarrou no moço mãe, e não
pediu desculpas! Você não sabe pedir
desculpas? – e apontava para um Pedro
em estado de graça, por ver-se notado
pelo menininho.
— Não fale isto, meu filho! Não tem
ninguém aqui!
— Você me ensinou a pedir desculpas
e a não falar mentiras. Eu aprendi. Tem
gente aqui sim! Tem uns moços e duas
moças. Estão rindo para mim. Uma delas
está me jogando um beijo.
Neste instante chegou o pai:

— Que é, meu filho?
— Eles, pai. Gosto deles e a minha
mamãe não quer acreditar que estão aqui.
Está cega, mamãe?
O menino falava e apontava para
frente.
O pai olhou desconfiado para todos
os lados e desabafou na mãe:

— Está satisfeita? Viu só? Não
adianta falar com você! Deixa o menino

horas e horas na frente da televisão! É
nisto que dá. Gostou?

Joãozinho ameaçou chorar,
protestando aos gritos:

— É verdade! É verdade! Eu não falo
mentira! E não tenho culpa de vocês
serem cegos!
Jaciara adiantou-se, passou a mão na
cabeça da criança, que se acalmou logo.
Beijou os cabelinhos e falou no ouvido
dele:

— Não se preocupe. É que eles não
enxergam no escuro. É verdade sim e é
segredo nosso, ouviu?
O menino respondeu alto, abrindo o
maior sorriso:

— Eles não enxergam no claro
também não. E depois ficam falando que
eu é que falo mentira!...
Desesperado, o pai colocou o menino
no colo e continuou recriminando a mãe:

— Viu? Primeiro deu para ver coisas.
Agora ele fala sozinho! Você precisa cuidar
mais desta criança! Quando chegarmos,
acabou-se esta estória de ter babá. Quem
vai cuidar dele é só você.

O motorista gritou pelos passageiros.
Pai, mãe, filho no colo do pai, correram
todos para o ônibus. Antes de entrarem,
Joãozinho jogou um beijo e deu adeus
para Jaciara.

— Fantástico! – murmurou Augusto.
— Que pai mais burro! – esbravejou
Pedro.
— O que você presenciou – e que
acontece com muito mais freqüência do
que possa imaginar – representa uma
tremenda falta de informação e de visão
dos pais – esclareceu Dalva. Tudo que
uma criança fala deve ser levado em
consideração. Crianças são puras, não
mentem. Mesmo quando fantasiam, foram
inspiradas por algo. Os adultos é que as
deformam mentalmente. E, muitas vezes,
moral, emocional e psiquicamente
também. É muito triste, mas raramente os
pais cumprem todas as tarefas na
educação dos filhos... Muitas vezes agem
impelidos pelo excesso de zelo,
fanatismos, ignorância, preguiça, omissão
pura e simples, irresponsabilidade e
outras coisas mais.

Para nós, um dos piores sofrimentos
é assistir, muitas vezes sem condições de
reação, à conduta irresponsável paterna
ou materna. Ignoram eles que, quando
chegam do lado de cá, têm que explicar
tim-tim-por-tim-tim tudo que fizeram
errado ou deixaram de fazer.

— Explicar para quem?! – interrogou
Pedro.
— Para o que mais terrível dos
inquisidores: a própria consciência. E,
meu caro, fuja de ter uma consciência
culpada! É um dos maiores tormentos e
ninguém pode livrá-lo dele ou minorá-lo,
pois ele é seu, exclusivamente seu,
criação da sua falta de responsabilidade
diante da vida e de seus compromissos. E,
quanto ao conserto dos erros, no caso de
pais omissos, nem é bom falar. Afinal,
pais são responsáveis pelo novo ser, pela
orientação, boa formação e conduta dele.
Caso se descuidem, podem arranjar
problemas por milênios, até que as coisas
se ajustem novamente. Isto, fora o
sofrimento, a vergonha de haver falhado,
muitas vezes, pura e simplesmente, por
preguiça ou boa vida.

Enfim, os preguiçosos arranjam mil
desculpas para sua incompetência. Até
chegarem aqui e darem de cara com a
Verdade. Então...

— É, já vi casos de pessoas dizerem
que não vão perder nada de bom da vida
por causa dos filhos. Por isso, arrumam
babás e colégios que os substituam. Ou, o
que é pior, não arrumam substitutos e não
fazem nada. E recriminam os filhos por
qualquer coisinha – falou um pensativo
Danilo.
O ônibus partiu numa direção e o
grupo noutra. De longe, ainda dava para
ver a cabeça do menino tentando sair da
janela e o pai impedindo.

Augusto e Inácio à frente, grandes
mochilas de sustentação aérea bem presas
às costas, todos começaram a andar. A
partir dali, estavam por conta própria.

— O que é que você fazia aqui na
Terra, Inácio?
— Sou médico há muitas idas e
vindas... Trabalhava com doenças
tropicais e morri – vamos dizer assim – na
selva amazônica quando, justamente,
contraí uma.

— Como foi parar perto de Gabriel, o
Mago?
— A história de Gabriel é fácil de
contar e, muito cedo, confunde-se com a
minha: estudamos juntos desde o Jardim
da Infância. Nossas famílias eram amigas
e nós nos formamos juntos em Medicina.
Trabalhávamos no mesmo local, um posto
de fronteira do exército, dando apoio à
população. Aliás, o único apoio. Éramos
médicos, psicólogos, conselheiros,
professores, tudo enfim. Formávamos um
trio amigo com um velho pajé, ao qual
Gabriel se afeiçoou muito. Recebia dele
aulas de cura com ervas e raízes e
aprendia a fazer contato com os espíritos
dos mortos. Como era um excelente
sensitivo, ampliou demais os
conhecimentos que recebia. Foi ficando
cada vez mais inconveniente, a despeito
dos nossos avisos. Certa vez, só de olhar
com muita firmeza para um enfermeiro,
colocou-o em estado cataléptico.
O próprio pajé o advertiu. Explicou
sobre cultura indígena e mostrou que ele
estava fugindo dos ensinamentos
recebidos. Falou sobre o respeito que se


deve aos semelhantes, para lidar com
certas coisas da mente sem ferir nada
nem ninguém. Gabriel não se balançou.
Alguns passaram a temê-lo. Ganhou fama
de feiticeiro branco entre os índios. E pior:
foi perdendo os escrúpulos e as noções de
princípios morais e éticos. Ele conseguia o
que queria, de um modo ou de outro. E o
"outro modo" nem sempre era respeitável
ou aceitável...

Foi nesta fase que ele começou a
fazer o que chamava de experiências
avançadas, no coração da selva. Brincava
de testar os poderes que tinha – cada vez
mais solidificados e fortes – sem nenhum
controle ou orientação, pois o idoso pajé
há muito havia se afastado, magoado com

o destino que ele estava dando aos
conhecimentos que havia recebido. Sabem
como é: os velhos índios, considerados os
sábios da tribo, respeitam demais suas
crenças, consideram-nas sagradas e
abominam quem delas duvida ou abusa.
Temi então pelo equilíbrio mental do
meu amigo. Conversamos francamente,
falei dos meus temores e Gabriel riu muito
de mim, chamando-me de seu irmão


covarde... Afirmou que o importante era
ter força, dominar. Que, num futuro bem
próximo, as nações mais poderosas do
mundo teriam suas equipes de
paranormais muito bem treinadas,
auxiliando aos governos em questões de
estado, espionagem, estratégia. Coisas
assim... E por ai foi...

Numa noite escura – escolhida,
segundo ele, através dos melhores
cálculos – entrou numa caverna mais
escura ainda que a noite, para fazer um
teste tão idiota quanto tudo que ele fazia
nos últimos tempos: queria ver se, mesmo
com uma rocha entre eles, moveria os
galhos de uma certa árvore muitas vezes
centenária, apenas usando a mente. Era
uma árvore gigantesca, com tronco de
diâmetro colossal e galhos fortes, grossos
e firmes.

Gabriel não ficou sabendo que obteve
mais sucesso do que esperava e que havia
quebrado um imenso galho, pois foi picado
por uma cobra muito venenosa e de lá
saiu morto.

Chegando aqui, esperavam-no todos
os que tinham sido evocados e usados por


ele. Viu novamente a oportunidade de ser
líder, organizou-os e continuou as
experiências, desta vez interferindo em
vidas de cá e de lá. De quebra, atendia
aos pedidos dos amigos encarnados e
desencarnados e castigava ou premiava,
segundo um critério próprio e cada vez
mais insano.

Eu fui o amigo de todas as horas, que
realmente gostava dele como um irmão e
que, na Terra, sempre tentou ajudá-lo,
mas que nunca falou com ele usando a
energia devida. No princípio, antes que as
coisas ficassem incontroláveis, eu até
achava graça em certas loucuras que ele
praticava. Portanto, não deu outra:
quando morri, ele me atraiu. Ele tem
senso de amizade e fidelidade, à moda
dele, e não me abandonou. Além do mais,
sua cultura, sua inteligência, seus vastos
conhecimentos em diversos campos, o
tornam muito agradável e dono de uma
conversa invejável.

Aprende-se muito com Gabriel, pois,
ao contrário do que vocês possam pensar,
ele não está constantemente cometendo
erros. Não mora em nenhuma caverna


primitiva, nem é um ser abominável da
noite, com grandes unhas e aspecto
vampiresco. Aliás, é uma estátua grega,
sempre primou pela beleza física do lado
de lá e trouxe-a intacta para cá. E é aí que
mora o perigo. Seus interlocutores ficam
hipnotizados, encantados, e o passo
seguinte é ficarem submissos. Só que eu o
conheço muito, notei logo o que ele estava
fazendo, não permiti que a força
envolvente dele me alcançasse e nem
consegui me adaptar lá; fiquei
horrorizado, mas me sentia preso e não
sabia como escapar. Quando estamos
muito ligados a alguém acontecem destas
coisas: mesmo que não permitamos que
nos dominem, demoramos a nos desligar
das forças deste alguém. Gastei muito
tempo aprendendo a usar a minha mente,
a reforçá-la e a não permitir que ela fosse
controlada. Dificílimo! Fomos sempre
irmãos-amigos e não nego que eu,
embora achando aquilo tudo uma loucura,
queria ficar, ajudá-lo, fazê-lo pensar. Mas
algo me dizia que, talvez, saindo para
longe de lá eu pudesse socorrê-lo melhor.
Não só a ele, mas a todos os que ali
estavam subjugados.


O maior perigo para o incauto que
lida com Gabriel é este: ele é um príncipe,
um diplomata. Sabe agir na hora certa e
com precisão. Sabe conquistar, cativar.
Sabe até ser discreto, recuar para poder
avançar em seguida. É um estrategista.
Por exemplo: ele nunca falou diretamente,
mas tenho certeza de que conhecia minha
luta para me libertar. E não pretendia
medir forças comigo, por motivos pessoais
e, possivelmente, por saber que eu não
agüentaria encará-lo. Talvez em respeito a
todo o nosso passado de família, amizade
e trabalho, sei lá, ele deixou que eu me
virasse sozinho e não interferiu nem
contra nem a favor. Mas, sei que nem se
preocupava, pois acreditava que eu jamais
conseguiria. E melhor: que se
conseguisse, optaria por ficar, pois
desconhecia completamente o mundo de
fora. Ali, pelo menos, eu estava mais
seguro. Por tudo isso não foi fácil me
desimantar de lá, num esforço insano
comigo mesmo. Felizmente, consegui fugir
usando meus próprios recursos e isto
conta pontos. Quando soube, ele deve ter
levado o maior susto; depois, a maior


raiva, pois sentiu que eu ganhara mais
força.

Quanto a mim, fui socorrido por uma
das equipes de Francisco, perambulando
desorientado. Ainda volto
esporadicamente à fortaleza, em missões
de paz, sempre mal compreendido por lá,
mas imune aos riscos locais... Mas,
curiosamente, nunca maltratado. É como
se eu tivesse passe livre por lá... Mesmo
quando Gabriel perde a paciência comigo,
ele não usa seus poderes contra mim. É
curioso. O máximo que ele faz é tentar
dialogar comigo, exatamente como nos
velhos tempos. Vendo que não consegue,
esbraveja e tenta me incutir medo. Fui eu
um dos mensageiros que o advertiu da
destruição que se aproxima, provocada
por ele mesmo. Desta vez, quase fiquei
preso lá, tamanha a fúria dele comigo.
Chamou-me de missionário imbecil de
inteligência curta e disse que tinha
vergonha de ter sido meu amigo.
Esbravejou. Tentou me intimidar. Propôs-
me aliança. E por aí afora.

No fundo, ele gosta de mim e foi o
que me salvou e salva a minha pele


sempre. Tenho sincero desejo de salvá-lo
também, mas vejo que isto está ficando
praticamente impossível. Eu só posso
ajudar, mas quem terá que se
conscientizar do caminho errado que
percorre será ele. E nisto ele nem pensa.

Inácio interrompeu o que falava, pois
tropeçara em algo. Um homem dormia
deitado no chão e acordou assustado,
perguntando:

— O que houve? Aconteceu alguma
coisa?
Mais assustados ficaram os quatro
amigos. André rebateu:

— Ele nos vê!
— Claro, André – ensinou Inácio. Ele
é um dos nossos. É um guardião da
estrada que, por sinal, se afastou do
dever. E está aqui justamente porque esta
rodovia, como vocês devem se lembrar de
antigos tempos, é terrivelmente perigosa,
principalmente nesta curva sem proteção.
Ela não é chamada de "Curva da Morte?"
Lembram-se? Se acontecesse um acidente
possível de ser evitado, ele seria
responsabilizado.

O homem levantou-se, visivelmente
envergonhado:

— Não tenho o que dizer. É
lamentável. Trabalho neste posto há cem
anos... Isto nunca me aconteceu. Quem
ou o quê terá me influenciado?!
— Não perca tempo pensando nisso.
Somos todos passíveis de erro, meu
amigo. Não se preocupe, mas não se
esqueça de vigiar, para evitar ciladas
deste tipo. Mantenha a mente em alto
padrão e trabalhe tranqüilo.
— Depois deste susto, não me
esquecerei.
Os quatro estavam encantados. O
mundo novo era realmente surpreendente!
E foi comentando o fato que prosseguiram

o caminho.

MÃE MARIA EUFRÁSIA


O dia clareava quando notaram um
carro em disparada. Parou ao lado deles,
cantando os pneus. Era um utilitário
grande, ocupado apenas pelo casal e o
filhinho pequenino. A criança estava tendo
enjôos e os três pularam fora, para que o
menininho respirasse ar puro.

A solícita e preocupada mãe abriu a
frasqueira, tirou um remédio que já estava
preparado na mamadeira e a criança
bebeu tudo. Esperaram mais um pouco,
mamãe sempre abraçada ao filhinho, até
que este adormeceu em paz.

— Que tal andarmos um pouco de
carro? Será bom para aprenderem algo
mais e adiantará bastante o trajeto.
Inácio não precisou falar duas vezes.
Como crianças travessas, apostando quem
entrava primeiro, aboletaram-se no banco
de trás, André, Pedro e Danilo apertados
no espaço traseiro, em cima da bagagem,
divertindo-se como meninos em férias.

O veículo partiu novamente, fazendo
zigue-zague na pista. Notaram que o
motorista não tinha a menor condição de


dirigir, estava com sono e corria demais.
Acabaram-se as brincadeiras e começaram
as preocupações com os ocupantes.

— Êh, maluco! Anda mais devagar! –
gritou Augusto com seu vozeirão bem no
ouvido dele.
O homem acordou de uma vez só,
estremecendo e piscando fortemente os
olhos. Falou para a mulher, que o
observava assustada:

— Acho que os comprimidos
antidepressivos não estão me fazendo
bem. Dei para ouvir coisas.
— Só para ouvir coisas? Deu para
dirigir mal também. E muito mal! E não
conte com minha aprovação para esta
viagem. Se algo acontecer, será culpa
exclusivamente sua. Devíamos ter vindo
de ônibus. Quem toma os remédios que
está tomando não deve dirigir em lugar
nenhum, nem na cidade, quanto mais em
estrada! Mas você não me ouve e coloca a
vida de todos nós em risco, a nossa e a
dos outros que passam por nós. Sabe que
está sendo um irresponsável?
— Que nada! São uns remedinhos à
toa! Eu disse que eles estão me fazendo

ouvir coisas. Mas é só. Quanto ao volante,
você é uma medrosa. E andar devagar é
coisa de bobo. Aí é que durmo mesmo!

Ela não respondeu. Abraçou-se ao
filhinho que cochilava, resignada.

Um solavanco maior e o carro saiu da
pista, desgovernado.

Augusto não pensou duas vezes.
Atirou-se ao volante e, por um instante, a
estranha sensação de usar braços e
pernas alheios dominou-o. Mudou as
marchas, pisou no freio, segurou o freio
de mão, controlou a direção, rodou o
volante para a direita, tudo em segundos.
Bem a tempo, porém, de evitar a colisão
com o caminhão-tanque.

O automóvel parou no acostamento
com um ranger de pneus, todos os
ocupantes mudos. O intrépido motorista –
agora já não mais tão intrépido – estava
lívido. Tremia da cabeça aos pés. Precisou
de tempo para conseguir falar com a
apavorada esposa:

— Nem eu sabia que tinha reflexos
tão bons e que era excelente motorista!
Senti uma força diferente nos braços e
pernas e nunca pensei tão rápido assim na

minha vida! Viu só? E você preocupada
com comprimidinhos! Mudei de idéia: eles
são é ótimos! Não falei que podia confiar
em mim?

Ela olhou para ele, resoluta e furiosa:

— Tudo bem que você é o Super-
Homem! Mas, por via das dúvidas, segure
o Carlinhos que, de agora em diante,
quem vai dirigir sou eu e pronto!
Envergonhado e intimidado pela
atitude enérgica dela, ele não disse uma
palavra e mudou de banco, passando a
segurar o filho nos braços.

Rindo, os ocupantes-fantasmas
desembarcaram e tiveram outra surpresa.
Danilo quase joga ao chão uma senhora
velhinha, enrugadinha e curva, de vestido
estampado comprido e rodado, segurando
uma bengala, observando assustada a
cena:

— Perdão, vovó! Como é que eu
consegui empurrar a senhora? Quero
dizer, a senhora me ouve? Vê-me? Está de
cá ou de lá?
— De cá, menino! Junto com vocês.
Ainda não sabe distinguir não? Xiii...
— Tem diferença?

— Oh! Não vai me dizer que nem isto
você consegue? Está perdido, chegou
ontem ou o quê?
E, olhando para os outros, perguntou
aflita:

— Ele tem algum problema?
Danilo murmurou uma desculpa meio
sem jeito, enquanto André se abraçava à
velhinha, recompondo-a, e Dalva
apanhava a bengala que havia caído,
entregando-a de novo à ranzinza
proprietária.
A senhora falou alto, parecendo que,
repentinamente resolvera não ficar mais
zangada:

— Obrigada, crianças! Sou chamada
por todos de Mãe Maria Eufrásia e moro
aqui perto. Estava aqui na beira da
estrada, justamente pedindo ajuda dos
Céus para os meus protegidos dentro do
automóvel. Pressentia um acidente, com
aquele maluco ao volante. Sabem, eu os
protejo há muitos anos. Nasci escrava do
bisavô dele, fui ama de leite do avô e
babá do pai. Felizmente, a Providência
Divina mandou vocês!

— Nossa! Este mundo de cá é uma
surpresa só! – interrompeu Augusto.
— Ainda não viu nada, meu filho,
ainda não viu nada! Querem descansar um
pouco em minha casa?
E, sem esperar resposta:

— Acompanhem-me!
Embrenharam-se pelo mato,
seguindo a velhinha, que ia à frente, de
braço dado com Jaciara.
Pararam em uma cabana de sapé,
debaixo de frondosas árvores centenárias.

— Mora aqui sozinha, vovó? Não tem
medo não? – perguntou Danilo.
— Meu filho, aqui adiante ficava a
fazenda onde nasci e vivi. Daqui não saio.
Além do mais, é o único local que
conheço, sair para onde? E vocês, aonde
vão?
— Para uma boa briga, vovó. Com
gente ruim.
— Hum... Neste caso, precisam estar
bem e tranqüilos. Assentem-se todos nos
banquinhos e vamos conversar um pouco.
E, depois, antes de irem, uma boa benzida
não faz mal a ninguém. Além do mais,

gosto de companhia. Raramente, aparece
gente por aqui. Em cada lua, eu é que vou
lá.

— Lá onde?
— No local onde trabalho. O mesmo
onde nasci e vivi, no terreno da fazenda,
ao lado da senzala. Na casa do Jerônimo,
um amigo meu. A gente se reúne lá e os
amigos necessitados de socorro, aqui e da
Terra, nos procuram. Nós os benzemos e
damos remédios de raízes. Sou raizeira
das boas!
Um triste Danilo murmurou:

— Se fosse há algum tempo atrás, eu
pediria à vovó um remédio para o meu
coração... Agora, não precisa mais...
A velhinha passou as mãos pelos
cabelos louros do novo neto, talvez
arrependida de ter dado uma bronca com
ele:

— Agora, não precisa mais, porque tudo
melhorou, meu filho. Você sarou. Não
pense que as coisas pioraram. Elas
acertaram. E então? O que disseram? Vão
brigar? Mas briga é coisa feia... Deve
haver pelo menos um bom motivo, não?
Augusto adiantou-se:


— Vamos a um local perigoso, onde as
pessoas mais perigosas ainda fazem
maldades mil umas com as outras.
Tentaremos parar com isto e libertar dois
prisioneiros deles. Temos pouco tempo
para fazer tudo, pois vai haver uma
catástrofe lá.
A boa velhinha olhou-o espantada e
depois ficou um bom tempo cabisbaixa,
segurando nas mãos de Dalva. Assentada
em seu banquinho, curvada para a frente,
falou:

— Não fica preocupado nem com medo
não, meu filho! Quem está com Zâmbi não
está sozinho nunca! E vocês estão lutando
por uma boa causa. Vão conseguir e
melhor do que pensam. A maldade não
pode vencer. Nunca venceu. O máximo
que conseguiu foi dominar
temporariamente. Ouçam o conselho
desta velha: quando chegarem lá, nem
pensem que eles são maus ou que terão
que lutar. Pensem apenas que com vocês
vai a Paz e a Força. Vai dar certo!
A seguir, cada qual se aproximou dela,
que colocou as mãos na cabeça de um por
um, rezando fervorosamente em nagô, a


língua de seus antepassados. Quando
terminou, apenas disse:

— E agora vão, meus filhos. Vão com as
bênçãos desta preta velha. Que a paz de
Zâmbi os acompanhe!
Silenciosos, eles saíram, deixando Mãe
Maria Eufrásia sentada em seu banquinho,
pensativa, olhar perdido.


UM PEDIDO DE SOCORRO

— Que bom encontrar alguns dos
nossos por aqui! – foi logo falando o
homem que chegava correndo do outro
lado da estrada.
— Que aconteceu? – perguntou
Inácio.
— Meu nome é Antônio. Sempre
desço para socorrer aqueles que mostram
desejo – por menor que seja – de se
livrarem das armadilhas onde se
encontram imantados por vontade própria.
Normalmente, trago comigo um auxiliar
ou dois no máximo. Pois, imaginem vocês
que, desta vez, encontrei uma situação
mais difícil do que esperava. Preciso de
ajuda.
Augusto adiantou-se:

— Explique-se melhor, meu amigo.
— Esta é uma linda região da Terra,
repleta de grutas, onde turistas e
estudiosos de espeleologia e paleontologia
– pois aqui há também muitos restos de
animais e plantas fossilizados – gostam de
passear e estudar.

Abaixo de uma das grutas, por um
capricho geológico, há uma imensa mina,
desativada há muitos e muitos anos. No
passado distante, ela continha pedras e
cristais valiosos. Ambiciosos e acreditando
haver mais tesouros, vários aventureiros
tentavam enriquecer do dia para a noite,
retirando pedras constantemente, sem a
menor preocupação com segurança,
agindo muitas vezes às escondidas, na
calada da noite. Um dia, alguém
inteiramente sem noção de
responsabilidade e perigo explodiu
dinamite bem no interior de uma das
galerias. Pequena quantidade, mas não
tão pequena para evitar que acontecesse

o previsível: ficaram todos soterrados.
Seus corpos astrais permanecem ali até
hoje, imantados ao que consideram suas
fortunas, agora reduzidas a alguns
punhados de terra e pedregulhos.
Várias entidades que trabalham com
socorro imediato, e outras ligadas a afetos
deles que do nosso lado já se encontram,
vêm tentando removê-los, acordá-los. Mas
em vão. Impotentes para realizarem suas
missões, as equipes começaram então a
enviar pedidos constantes de socorro até


nós e, ao mesmo tempo, boas vibrações
de paz e harmonia em direção a eles, os
empedernidos que não aceitavam ser
socorridos. O tempo fez o resto e
conseguiu amolecer os corações dos
garimpeiros que já estão começando a
acordar, esboçar alguma reação e, muito
fracamente, também eles estão pedindo
socorro mentalmente, mas ainda muito
confusos e perturbados, ignorando o
tempo de permanência no local, sem nem
sequer saber que morreram e ainda
desejando seus tesouros.

Desci com dois auxiliares para tentar
resgatá-los e tive uma triste surpresa:
justamente hoje, um paleontólogo que
aqui faz pesquisas sofreu um acidente
junto com outros colegas de trabalho, bem
no local onde os nossos necessitados se
encontram. Morreram todos também.

Imaginem vocês a confusão que está
formada lá embaixo, com antigos mortos
empedernidos e confusos, junto a mortos
recentes desorientados! Todos apavorados
e sem saber direito o que acontece! Para
completar, apenas eu e dois auxiliares!


Precisamos urgentemente de ajuda!
Quando corri ao encontro de vocês para
pedir socorro, a situação se complicava
ainda mais, pois o paleontólogo estava
acordando, descontrolado e apavorado
com as cenas que via. Ao mesmo tempo,
os garimpeiros, vendo invasores e
julgando-os ladrões de seus tesouros,
desesperavam-se a tal ponto que temo
que fiquem loucos incontroláveis em
pouco tempo.

Não podemos perder um minuto, por
favor! Deixei meus auxiliares lá, mas eles
pouco estão podendo fazer.

— Vamos lá! – comandou Augusto.
Atravessaram a estrada correndo,
embrenhando-se no mato do outro lado.
Não tardou e viram-se frente a frente
com uma gruta, onde foram entrando pelo
lado direito, ciceroneados por Antônio, que
avisou:

— Cuidado! Teremos que descer
muito e o ar está irrespirável. Embora isto
não nos afete diretamente, há emanações
de todos os tipos, vindas das mentes que
lá estão presas. Além do perigo das
pedras escorregadias e soltas.

— E pedras soltas podem nos afetar?
– perguntou André.
— De certa forma, sim. Embora nada
possa nos machucar, pois estamos em
campos vibratórios diferentes, acontece
conosco uma coisa interessante: estamos
tão perto, mas tão perto mesmo do
mundo dos vivos da Terra, que podemos
sentir os efeitos de alguns fatos ou abalos.
E, neste trabalho que vamos executar
agora, teremos que fazer esforços e,
muitas vezes, nos sentiremos como se
ainda estivéssemos vivos lá... A não ser, é
claro, que todos já estejam inteiramente
equilibrados e capacitados no controle
mental perfeito...
— Já sei que vou levar um tombo e
coisas mais... – falou o bem humorado
André.
— Se pensa assim, vai mesmo –
respondeu Pedro, escorregando e
provocando riso geral.
Augusto interveio na brincadeira:

— Olha lá, pessoal, cuidado! Vamos
manter nosso padrão mental o mais alto
possível. É uma boa hora para
começarmos a aprender. E vamos em

frente! Sabem de uma coisa? Já estou
gostando muito da vida de cá...

A afirmação de Augusto recebeu
aplauso geral. Todos estavam se sentindo
muito bem, conscientes da própria
situação e do trabalho a executar. E, o
principal, gostando de tudo e se
acomodando muito bem ao novo e
irreversível modo de vida.

Uma grande corda foi amarrada às
cinturas de todos que, presos uns aos
outros e em fila indiana, foram descendo,
descendo, segurando nas pedras,
escorregando e arfando, enfrentando com
galhardia estalactites e estalagmites
agudos, musgo e lama em alguns locais.
Mesmo assim, André conseguia explicar a
Pedro, que vinha logo atrás dele, a razão
dos musgos brotarem em certos locais.

Embaixo, ainda tiveram que
atravessar compridas galerias e andar
totalmente dentro d'água num rio
subterrâneo que, em outras
circunstâncias, seria até considerado
bonito. Encantaram-se, maravilharam-se
mesmo, com a facilidade com que se
locomoviam dentro d'água, sem problema


algum. André e Pedro combinaram repetir


a experiência numa ocasião mais
tranqüila.
Gritos e lamentos explodiram de
repetente e o quadro que viram foi

aterrador: homens caídos na lama do
chão, olhos arregalados e olhar
ameaçador, pareciam proteger imensas
pedras, às quais se abraçavam com força.
Outros, segurando as paredes, pareciam
só ter olhos para elas. Todos maltrapilhos,
sujos de pólvora e sangue. Parecia que
estavam começando a acordar depois de
longo tempo, completamente dementes e
perdidos no espaço.

André segurou no ombro de Danilo,
desalentado:

— Acho que este pessoal não vai sair
por bem, não...
— Claro que não! – atalhou Inácio.
Estão muito assustados, desorientados e,
em suas mentes primitivas, pensam que
viemos roubá-los. Vamos ter que levá-los
com calma, mas à força. Só depois
começarão a compreender que nossa
chegada não foi assalto, mas colaboração.

— Eu sabia, eu sabia, meu caro, que
iríamos ter um trabalho e tanto pela
frente. Isto é o que se pode chamar de
salvamento dos mais simples... – gracejou
o alegre André, cujo bom humor era um
constante alento.
— Meu Deus! – interrompeu Pedro.
Este acidente não aconteceu há séculos?
Parece que foi ontem!
Jaciara esclareceu:

— As antigas e preciosas pedras
transformaram-se em barro e lama do
lado de cá. A explosão imprudente deixou
suas marcas de pólvora e sangue em
todos, que, durante todo este tempo –
mesmo sem ter noção da duração dele –,
sentiram-se como no crucial momento.
— Mas, por que? – insistiu Pedro.
— A ambição desmedida, a ganância,
a paixão pela riqueza, impediram que
saíssem daqui depois de mortos. Eles
mesmos se imantaram ao local. Vejam:
nada os prende às paredes e pedras. No
entanto, eles estão agarrados nelas.
Várias vezes, equipes nossas desceram
aqui tentando socorrê-los, tenho certeza.
Mas, estavam todos petrificados como as

paredes às quais se agarram. E, como só
sairiam caso se soltassem por vontade
própria... Graças a Deus, começaram a
fazer isto hoje e já afrouxam as forças que
os prendem. É a nossa ocasião de ajudá-
los e acabar de desligá-los. Mas, não são
nossos únicos problemas...

E Jaciara apontou para a galeria ao
lado, onde homens e mulheres
desesperados gritavam e pediam socorro,
ensangüentados. Era a equipe de
paleontologia.

— E agora? – perguntou Antônio.
Como vamos tirar este povo daqui? E
como acalmá-los para que cooperem?
Neste momento, um pesquisador da
equipe recém desencarnada aproximou-
se, viu os garimpeiros e desabou a correr
em direção aos amigos, numa gritaria
alucinada. Estabeleceu-se tremenda
confusão, onde todos gritavam e os mais
calmos perdiam a compostura,
acompanhando o coro, cada vez mais
assustados.

Augusto assumiu prontamente o
comando e deu as ordens:


— Vamos nos aproximar tranqüilos.
Ninguém diga a eles nada sobre vida ou
morte. Tentem apenas mostrar que
viemos para salvá-los, acalmá-los. Não é
nossa parte fazer ou falar mais do que
devemos. Vamos tirá-los daqui e, depois,
onde ficarem serão tratados, orientados e
encaminhados, de acordo com sua própria
bagagem... Como nós fomos...
Espalhem-se por aí e façam o melhor
que puderem. Se houver necessidade,
usem a força para carregá-los para fora. O
que não podemos é deixar este pessoal
aqui, neste sofrimento todo. Enquanto
isto, eu e Pedro abriremos nossas redes e
as de Antônio, no espaço maior ao lado da
galeria. Vão levando todos para lá. O
melhor é colocá-los dentro das redes e
levá-los para cima. Assim, poderão
espernear à vontade que estarão contidos
e teremos melhores condições de
içamento. Não vai ser nada fácil.
Preparem-se para muito trabalho e vamos
em frente!

Neste instante, ouviram vozes e
gritos e gente com lanternas acesas se
aproximava pelo outro lado da parede da


galeria. Eram os bombeiros da Terra, que
começavam a remover as pedras imensas
que bloqueavam a passagem, para
resgatarem os corpos e salvarem os
sobreviventes, se houvesse. Augusto e os
amigos notaram com satisfação e muita
emoção que haviam visto tudo através da
parede da rocha, que suas possibilidades
de visão já haviam se desenvolvido e para
elas não havia mais barreiras.

Augusto calculou, falando alto:

— Eles demorarão cerca de uma hora
ou mais para chegarem aqui. Terão que
abrir caminho tirando muitas pedras.
Quando isto acontecer, já teremos saído
com todos e eles apenas resgatarão os
corpos.
— E os garimpeiros? – perguntou
André.
Inácio respondeu:

— Eles não verão corpos, mas
esqueletos carbonizados e farão uma
descoberta inusitada para eles: que, no
passado, alguns homens morreram aqui,
em conseqüência de uma explosão, pois
os ossos estão com marcas, tão forte ela
foi. Pensarão que foram aventureiros de

outras plagas e alguns até se lembrarão
de uma lenda ou história contada pelos
seus antepassados sobre os garimpeiros
que desapareceram na gruta ou mesmo os
saqueadores que sumiram no interior da
terra. É sempre assim. Toda lenda que vai
de boca em boca tem um fundo de
verdade, não é mesmo?

Quanto a nós, resgataremos os seus
corpos fluídicos. O que já não é sem
tempo.

Espalharam-se, tentando soltar uns e
outros, conversar, acalmar. Todos se
julgavam salvos, agradeciam por terem
chegado a tempo, falavam do susto que
haviam tido com o desabamento e não
passava pelos pensamentos de nenhum
dos socorridos paleontólogos que já se
encontravam em outro mundo. Apenas o
chefe deles estava totalmente
descontrolado, ao lado de um casal que
parecia estar em pânico.

Já os antigos caçadores de tesouros
estavam em pleno acesso de pavor e
agora acordavam totalmente, piscando
muito os olhos e tentando mexer pernas e
braços. Abraçavam-se às suas pedras,


dizendo que iam levá-las junto, onde quer
que fossem.

Augusto e equipe corriam de um lado
para o outro e suas atividades lembravam
um serviço de enfermagem em front de
guerra.

Dalva e Jaciara se aproximaram do
casal que gritava desesperadamente, os
dois agarrados nas pedras, tentando
encontrar uma saída.

— Calma, vocês dois! Já chegamos e
vamos salvá-los. Fiquem tranqüilos e
venham conosco. O pior já passou. Vamos
subi-los em redes, não ficarão muito
confortáveis.
— Não importa – falou a mulher. O
importante é estarmos salvos. Pensei que
íamos morrer! Foi um rápido e violento
deslizamento de pedras e terra que nos
barrou a saída. Mas, graças a Deus, vocês
chegaram rápido! Estou machucada, mas
agüentarei.
E, amparado pelas duas, o casal foi
até à rede em que André e Danilo estavam
colocando um outro casal em estado de
choque.


— Coitados! – falou ela para o
marido. Assustaram-se mais do que nós.
Por que estão assim?
André explicou:

— Estão em estado de choque,
senhora, mas voltarão ao normal logo.
Agora, segurem-se e ajudem a segurar
seus amigos. Eu e Danilo vamos içar vocês
até a superfície.
Dalva e Jaciara foram buscar mais
pessoas e o assustado casal nem reparou
que seus dois salvadores tinham muito
mais força do que seria possível para dois
homens normais, pois começavam a
enfrentar a árdua escalada, suportando o
peso da rede com os quadro dentro e sem
aparentar cansaço.

O serviço de salvamento continuava e
os salvadores subiam e desciam levando
os feridos, que, na superfície, eram
deitados na grama, sob a guarda dos
auxiliares de Antônio.

Os da recente expedição foram içados
primeiro, ficando o paleontólogo e os
antigos garimpeiros para o fim.

E aí começou a maior confusão.
Todos urravam, gritavam, esbravejavam,


esperneavam, segurando montes de barro
e dizendo que eram fortunas e não podiam
abandoná-las. Tinham que levar as
pedras. Ao mesmo tempo, diziam coisas
desconexas e loucas, choravam alto e
pediam misericórdia e socorro a Deus. E
nem sequer notavam que a misericórdia já
acontecia.

O paleontólogo, grande e forte,
avançou furioso e começou a lutar
ferozmente com André, que fazia jus aos
seus conhecimentos de luta, tentando
dominá-lo e salvá-lo. Mas ele nada queria
compreender, em plena crise de horror.
Pedro passou por perto, também lutando
desesperadamente para conter um
garimpeiro que, em crise de loucura, o
agredia e atrapalhava o salvamento.

Nesta situação difícil, os dois amigos
se cruzaram, cada um lutando mais que o
outro. Mesmo na confusão, André gritou
para Pedro:

— Quem foi que disse que do lado de
cá as coisas são calmas e contemplativas?
— Um maluco que não usava a
cabeça para pensar, mas para enfeitar o

pescoço – respondeu um combativo e
alegre Pedro.

Augusto passava no momento,
segurando fortemente pelos pescoços dois
barbudos agarrados a suas pedras.

— Alguém estava achando que
haveria pouca ação? – falou para Pedro e
André, que, nestas alturas, rolavam pelo
chão, tentando controlar seus pupilos
rebeldes.
André deu uma gravata no grande
garimpeiro, e, diante do olhar assustado e
divertido de Danilo, falou para o amigo,
que também estava às voltas com o seu
caçador de pedras:

— É para salvar, não é? Então, estou
salvando...
Danilo desatou a rir do bom humor
do outro e saiu, carregando alguém
recém-acordado e assustadíssimo.

Jaciara e Dalva, mais adiante, não
deixavam por menos, recolhendo dois
inteiramente alucinados e praticamente
domando-os, devido à fúria que
apresentavam, gritando que tinham que
levar juntos seus tesouros e pedindo a
Deus que os salvasse da morte e dos


ladrões, misturando todo nas mentes
confusas.

Antônio integrou-se com fervor ao
trabalho e ao bom humor dos novos
amigos e encarava sem medo os doentes
que tinha de salvar, mesmo quando eles
estavam em acesso de loucura.

Parecia que todos os que se achavam
soterrados há tantos anos haviam
acordado de uma vez só, ignorando o
longo tempo de sono, com a fúria e o
medo de quem estava sendo roubado. Não
conseguiam entender que estavam sendo
salvos e lutavam a mais não poder contra
os invasores.

E foi com um suspiro geral de alívio
que o último foi içado, agarrado ao
pescoço de Danilo.

Mesmo deitados na grama e enfim
salvos, começando a entender vagamente
que não enfrentavam inimigos, os
garimpeiros gritavam por socorro e se
abraçavam às bolas de barro que haviam
conseguido levar para cima.

O agora calmo paleontólogo e amigos
olhavam estarrecidos para os que
acreditavam serem companheiros do


mesmo desabamento, que, ao invés de
agradecer, mostravam-se desesperados,
querendo descer de novo e pegar mais
bolas de barro.

Dalva e Jaciara, docemente, foram
passando entre os recém-salvos. Paravam
diante de cada um colocando ternamente
as mãos em suas cabeças.
Imediatamente, o paciente entrava em
sono profundo e calmo.

Do outro lado, junto à entrada
principal da gruta, começaram a aparecer
soldados do Corpo de Bombeiros, alguns
carregando grandes caixas de metal.

Estavam chegando ao fim dois
salvamentos, os da Terra ignorando
totalmente o outro.

Augusto dirigiu-se a Antônio:

— E agora? Que tipo de ajuda
precisa?
— Agora, só quero agradecer pelo
auxílio e pelo prazer de conhecer vocês. É
o grupo de salvamento mais alegre que já
conheci, rápido e preciso. Estou feliz e
encantado, com pena de separarmo-nos.
Parece mentira, mas, no meio daquela
confusão toda, nunca me senti tão bem,

com a alegria de vocês me contagiando.
Sabe? Quem trabalha assim, com Amor e
Felicidade, é abençoado com as faculdades
da presteza e da sabedoria. Devem estar
a muito tempo neste trabalho de resgate,
não é?

Diante dos sorrisos de todos, Augusto
nem respondeu, para não deixar Antônio
encabulado. Apenas falou:

— Obrigado mesmo, Antônio, pela
chance que nos deu de sermos úteis.
Ajudar vocês foi um prazer imenso e um
auxílio muito grande para nós, acredite-
me. Como vai fazer para levar tanta
gente?
— Dentro de algumas horas,
chegarão os veículos de transporte.
Encontrarão muito mais passageiros do
que esperavam. Mas, isto não é problema.
Vocês foram, com sua ajuda precisa e
rápida, muito importantes, pois não me
deixaram atrasar e perder o horário
combinado com eles, a despeito de tudo
haver se complicado com mais um
acidente. Obrigado, amigos!

EM QUE MUNDO ESTAMOS?

Passaram por locais conhecidos de
velhas épocas e, muitas vezes, os
corações choraram de saudades. Mas,
mesmo assim, não se detiveram. Sabiam
que o tempo era cada vez mais curto. O
pressentimento de que não podiam se
atrasar dominava todos.

Amanhecia e o sol raiava, depois de
terem andado por uma noite inteira e mais
um dia sem parar. Agora, sem dúvida,
estavam em plena Terra, vivenciando a
interpenetração dos mundos. Durante a
caminhada puderam sentir o peso da
atmosfera, cansaço e outras coisas que
mostravam bem o tanto que se
aprofundavam num mundo que já não era
mais o deles e apresentava-se muito mais
pesado.

Só agora se sentiam descansados,
pois haviam se abrigado no celeiro de uma
fazenda durante a última noite. O repouso
era necessário para suportar aquela
vibração pesada, à qual não estavam mais
acostumados.


Reencetaram a marcha, mas, em
pouco tempo, começaram a ficar
intrigados e assustados, pois, com muita
freqüência, escutavam lamentos doloridos,
que pareciam vir de dentro deles mesmos.

Augusto intrigou-se:

— Estamos virando telepatas ou o
que, Inácio? Ouço claramente alguém se
lamentando, chamando, pedindo socorro...
Ou serei eu mesmo inconscientemente?
Será que ainda não me conformei com a
minha nova situação?
Os outros concordaram
imediatamente. Também eles ouviam e
sentiam o mesmo.

— Nada disto! – socorreu o guia.
Vocês todos se adaptaram muito bem à
nova vida. E a cada dia se entrosam
melhor! O que está acontecendo é
simples: desde que partimos, ficamos
sintonizados mentalmente com o nosso
objetivo final, isto é, a fortaleza. Agora
que estamos chegando perto dela,
escutamos os clamores de quem por lá
está pedindo socorro, acordando.
Principalmente dos dois prisioneiros que
vamos acudir. Eles já estão em linha

direta conosco, pressentindo que foram
ouvidos e serão salvos, mas ainda
impossibilitados de qualquer reação, como
num sono hipnótico.

— Interessante sistema de telefonia!
Mas incomoda muito – gracejou Pedro,
coçando as orelhas.
— Incomoda, porque vocês não estão
acostumados a isolar estas transmissões
em determinados momentos e sintonizá-
las apenas para controle da situação.
Através delas, conseguimos saber
exatamente quantos prisioneiros estão em
condições de serem socorridos e quantos
estão fingindo, querendo apenas
aproveitar-se da saída dos outros para
uma fuga em direção a outras regiões
iguais ou piores.
— Observem – falou Dalva. Prestem
bastante atenção no que ouvem.
Alguns instantes de silêncio. Inácio
explicou:

— Dalva é especialista em
reconhecimento e análise de transmissões,
sabe dizer com precisão se são falsas ou
não. Ouçam-na com atenção.

A moça parou, fechando os olhos,
como se estivesse ligando antenas. Mas
continuou falando:

— Concentrem-se e escutem bem. Há
lamentos e pedidos em todos os tons e
sons. Procurem ouvi-los com isenção, sem
deixar que a tristeza deles penetre vocês.
Apenas escutem.
Todos fizeram um círculo em redor
dela, olhos fechados. Ela orientou:

— Deixem a mente solta. Permitam
que a sintonia seja perfeita. Joguem a
mente de vocês de encontro aos sons.
Esperem...
Agora, ouçam bem o lamento mais
baixo, mais dolorido e choroso. Quase
sem forças, tenta nos alcançar. É falso.
Notem como ele não é sonoro. A dor real
é sonora.

Passemos aos outros sons, estes que
parecem se misturar a ruídos. Entre eles,
alguém apenas chora. Nem tenta pedir.
Este será um dos primeiros socorridos.
Engraçado... O choro dele me lembra
pedra, estalagmite, uma coisa assim. Esta
pessoa deve estar num local cheio de
pedras, não sei bem. Mas tem pedra e


muita. Não faz mal: mesmo que não
consigamos identificar quem é, ele ficará
livre e será resgatado, pois é um lamento
sincero e arrependido e os aflitos jamais
serão desamparados. Muito breve seu
choro será estancado.

— Por nós? – perguntou um
emocionado Pedro.
— Talvez sim, talvez não. Isto não
importa. Toda vez que parte uma
expedição, como a nossa, para uma região
onde haverá tempestade magnética, ela é
imediatamente seguida por outra de
recolhimento de sobreviventes. Nós
cumpriremos a nossa meta: os dois
cientistas. Os que nos seguem se
encarregarão de verificar quem precisa
realmente de socorro. Assim, não nos
desviaremos um minuto sequer de nosso
objetivo e todos serão atendidos.
— Meu Deus, que mundo é este? –
Augusto pensou alto.
Inácio prontificou-se a responder:

— Um mundo muito bem organizado,
só perturbado pelas imperfeições que
trazemos conosco da Terra.

O círculo em volta de Dalva se
desfez. Augusto recomendou:

— Concentrem-se em nossa missão.
Tentem não ouvir estas transmissões
constantemente. Vamos começar a nos
educar. Já não é sem tempo.
— Concordo! – aplaudiu André. Já
estou começando a ficar incomodado com
a minha ignorância!
Todos manifestaram seu apoio a
quem tão bem soube explicar o
sentimento geral.

Era impressionante a capacidade que
Augusto tinha de reagir com rapidez. E a
liderança firme dele sobre o grupo que,
imediatamente, retomou a caminhada,
tranqüilamente, como se nada tivesse
acontecido. Estavam aprendendo
autocontrole de uma vez só. E com muita
disciplina, fruto do esforço de cada um.

O percurso pela estrada terminava.
Era necessário voltar à região mais
escura, na reta final para a fortaleza.

Foi com saudades da vida na Terra
que eles a deixaram novamente e
atravessaram um por um a barreira


vibracional, penetrando no astral por uma
de suas entradas mais baixas e sombrias.

A paisagem mudou bruscamente:
viam-se muitos espinheiros, pedras e
plantas de regiões desérticas. Não fazia
sol nem chuva, frio nem calor. A
impressão era de total abandono, como se
tivessem entrado dentro de um relógio do
tempo e segurado os seus ponteiros para
que parassem de andar. Corvos pareciam
petrificados em galhos secos. Cascudos e
negros lagartos esgueiravam-se por entre
as pedras.

Indiferentes à mudança, continuaram
andando normalmente e com
determinação. Quem visse aquele grupo
entenderia que muita coisa havia mudado
neles. Estavam melhores, firmes,
tranqüilos, entrosados. Seria difícil dizer
quem era recém-chegado e quem já
conhecia há muito o Além. Saltava aos
olhos a inutilidade total do arsenal que
portavam. Era evidente a capacidade de
fogo da maior arma de todos: a mente e o
coração. Ninguém falava, ninguém
perguntava, ninguém mostrava medo,
ninguém reagia sem prudência: apenas


andavam em direção à meta, um grupo
coeso num passo firme, Augusto e Inácio
à frente. Atrás, protegendo a retaguarda,
André e Pedro.

Começavam a aparecer grandes
amontoados de pedra e areia, formando
grutas de aspecto tenebroso, umas
imensas, outras menores, todas
parecendo enormes bocas negras
querendo engolir tudo e todos. A
paisagem mutante e sombria a cada
momento apresentava aspecto mais hostil.

Repentinamente, estranho animal
cortou-lhes o caminho. Pararam,
petrificados diante de colossal réptil
negro, com duas cabeças e presas
pontiagudas, olhando fixamente para eles.
As finas e compridas línguas quase os
alcançavam. Ele balançava-se, como
preparando o bote. Viscosa baba escorria-
lhe de uma das bocas. Um apito frio e
cortante partiu da outra garganta.

André não teve dúvidas e nem medo:
pulou à frente e, empunhando o lança-
chamas, crestou o animal que, para
espanto geral, foi sumindo, sumindo, até


desaparecer por completo, deixando no
chão um montinho de cinzas fumegantes.

— Há muitos animais aqui, Inácio? –
perguntou Augusto.
— Vários e alguns pavorosos. Mas
não são animais. São criações mentais de
quem habita estas regiões e as que lhes
são correspondentes na Terra. Por isso,
este desapareceu com o fogo, que é
elemento de limpeza e purificação. O
episódio serviu também para ilustrar a
utilidade das armas que portamos: servem
para limpeza e não matança. Seu poder é
proporcional à situação para a qual foram
criadas. As chamas são sempre de limpeza
e queima de emanações podres.
A região é fortemente bombardeada
pelas más emissões de mentes doentias,
tanto da Terra como de cá. Dá nisso que
viram: criam monstros pavorosos, que se
nutrem das próprias emanações pútridas
que os criaram, formando um círculo
vicioso.

Nunca ouviram falar em formas-
pensamento? Existem até expressões na
Terra: "de tanto pensar, fulano conseguiu
o que queria". Ou então: "beltrano fixou o


pensamento numa só coisa e ficou
alienado". E assim por diante. Tudo tem
fundamento. Quando desejamos
intensamente algo, conseguimos atrair o
objeto desejado ou, caso seja impossível,
pegamos algo exatamente similar, já
notaram? Ou, pelo menos, criamos um elo
que o prende a nós. O que pode ser bom
ou mau para ambos. O único elo que vale
é o do Amor. Os outros, um dia se
desfazem com a mesma intensidade com
que foram criados.

A força do pensamento é imensa.
Jaciara, que conseguiu se envenenar com
os próprios desejos de vingança, é uma
prova. Imaginem agora, em contrapartida,

o efeito maravilhoso que fazem as
emanações mentais de alguém que só
perdoe, queira e deseje o Bem, vibre o
Bem...
Os nossos antepassados costumavam
representar santos e anjos com auréolas
de luz envolvendo a cabeça, fonte de
pensamentos e desejos. Quando faziam
isto, talvez nem pensassem no que
realmente significava: o Bem realmente é
uma coroa de luz.


Augusto nada falou. Enquanto os
outros discutiam animadamente formas e
pensamentos, ele olhava para frente,
resoluto. A fortaleza estava por perto,
tinha certeza. Uma voz interior lhe dizia
que ela ia brotar a qualquer momento, no
meio daquele deserto. Era necessário que
tivessem disciplina e organização.

Mais uns metros adiante, uma parada
para descansar, numa entrada de gruta.
Ali, estariam seguros para um
relaxamento e um último repouso, antes
da parte mais perigosa da missão.
Precedendo qualquer ação, é importante
relaxar e repousar. Cada um se acomodou

o mais confortável possível, olhos
fechados, mentes soltas, procurando Luz.
A região era triste e feia, estavam
mal acomodados, mas, neste instante de
Paz, só viam e sentiam o sol luminoso de
seu interior. Nele, se nutriam de forças,
como grandes turbinas. Em preces mudas,
suas mentes vagaram para um espaço
azul, muito longe dali e nele flutuaram.

Aos poucos e brilhando intensamente,
em volta de cada um foi se formando uma


bolha luminosa e transparente, que
cintilava como cristal lapidado.

Violentos e imensos morcegos que
habitavam o interior da gruta, acordados
pelo brilho das bolhas, saíram em bandos
das frestas e se aproximaram cegos,
mostrando enormes dentes e batendo as
asas desordenadamente. Mas, na medida
em que esbarravam nas redomas de
cristal, desfaziam-se como em passes de
mágica, com tilintares sonoros e puros
que, no ambiente sem vida da caverna,
compunham uma doce e bela sinfonia.

E assim, silentes e em prece, todos
compreenderam que nada havia a temer
nos domínios de Gabriel. O arsenal que
transportavam serviria apenas para
destruir barreiras magnéticas e criações
sombrias das mentes desequilibradas.
Contra o resto, eles eram as armas vivas.
A verdadeira finalidade era destruir
barreiras e não seres. E a maior munição
estava neles próprios, imbatíveis e
resolutos na missão de pacificar e libertar.


A FORTALEZA MEDIEVAL

Os caminhos tornaram-se fáceis de
percorrer, com aspecto pesado e muita
organização nas várias trilhas cobertas de
seixos, cercadas por grandes pedras.
Separando-as, apenas uma grossa e
escura areia. Cada rota seguia em
determinada direção, mas a maioria se
mantinha paralela, terminando num
aglomerado de casamatas. Vultos
caminhavam aqui e ali, sem nem sequer
se dar ao trabalho de olhar para os novos
caminhantes que chegavam. Andavam
apressadamente, indo e vindo, dando a

impressão de organizados grupos de
trabalho.
Era evidente que entravam

definitivamente no coração dos domínios
de Gabriel. Que, por sinal, não eram feios
nem horrendos como pensavam ser. Nem
bonitos também. Diferentes, a palavra
adequada.

Do alto, antes da descida final,
avistaram a fortaleza e estacaram
perplexos. Era uma cidade! Murada e
fortificada, à moda medieval. De espaço


em espaço, guaritas e muitos, muitos
guardas, portando imensas lanças
pontiagudas, capacetes com asas e
armaduras – sim, armaduras – coloridas.
A sensação de todos era a de que estavam
na Terra e haviam voltado no tempo,
encontrando-se agora em plena Idade
Média.

— E então? Esperavam uma cidade
cheia de arranha-céus, viadutos,
autopistas, ônibus, carros e aquela
parafernália toda? E, só para ficar
igualzinho à Terra, alguns trombadinhas e
trombadões atacando velhinhos indefesos?
– perguntou André bem humorado,
quebrando o susto e a surpresa e, como
sempre, descontraindo todos.
— Tenho plena consciência de que
estamos na Terra. Só que do outro lado da
barreira, o que faz toda a diferença...
Quanto ao lado e ao local onde estamos,
pelo que imagino, aqui só tem trombadão.
Mas em muito maior quantidade do que eu
pensava. Deve haver exércitos aí dentro!
Como vamos poder com eles? Por que não
nos falou que era assim, Inácio? –
adiantou-se Pedro.

— Porque não é assim como pensam
à primeira vista. Isto não é uma cidade,
embora pareça. Temos aí um núcleo, com
tudo circulando em torno dele e
protegendo-o. Observem melhor e verão
que é um local realmente muito bem
guardado, mais para Forte do que para
cidade. Todos que moram lá dentro
servem ao mesmo chefe, fazem dos
desejos dele os seus próprios desejos.
Ninguém tem vontade própria e nem tem
o direito de ter. E tudo é muito bem
organizado, não se iludam. Todos os
movimentos giram em torno de Gabriel,
senhor único.
Augusto murmurou pensativo:

— Sabem de onde me lembrei? De
Jericó. Com suas muralhas bíblicas...
Deixem para lá...
— Onde fica Gabriel? – quis saber
Danilo.
— No centro. Num palácio de pedra.
Para chegar até ele, você tem que passar
por todos que, fatalmente, darão o alarme
antes que você pisque um olho. Entendeu?
— Entendi e não gostei. Vocês
sentem o peso do ar?

Todos concordaram com Danilo.
Sofriam a mesma pressão invisível e nem
discutiram a causa, que já conheciam: as
vibrações fortíssimas ali, no próprio
epicentro delas.

— Vamos lá, pessoal! Nada de
pânico! Controlem-se e o mal-estar
passará rápido – comandou Augusto,
completando com calma: temos um
contato lá dentro, Simeão. Ele é o nosso
posto avançado no coração da fortaleza e
já deve estar nos guardando.
— Ulálá! Novidades! Comecei a
gostar! Está parecendo filme de 007!
Lembram-se dele? Sabem? Eu sempre fui
vidrada, vidrada mesmo no Sean
Connery... Ai, meu Deus do Céu!... Sean
Connery, Sean Connery! Mas vamos lá.
Deixa-me acordar do sonho e perguntar:
se Gabriel é tão forte, como não
encontrou Simeão ainda? – perguntou
uma alegre e sonhadora Jaciara.
Inácio sorriu:

— Sinto não ter um Sean Connery
aqui para você. Embora apóie: artista bom
aquele!

— Bom só?! Lindo, maravilhoso,
charmoso, talentoso! Ai, ai!
— Acorda, Jaciara! Quanto ao

bandido do filme, no caso Gabriel, ele é
forte, mas nós também somos. Será uma
luta diferente das do seu herói, Jaciara,
mas talvez até mais emocionante, pois as
armas usadas serão mentes tão
poderosas, tão grandes e possantes, que
não custa lembrar que estamos aqui para
salvar até mesmo Gabriel, se ele quiser.
Nossa consciência nos obriga a tentar.

Colocando a situação atual em nível
de aventura, heróis e bandidos têm uma
retaguarda invejável... No caso de
Simeão, ele está constantemente
protegido por um escudo mental, que
funciona de maneira simples: deixa entrar
todas as informações, mas não permite
que nada guardado por ele seja vazado.
Em nossos postos avançados, dentro de
territórios perigosos, os escudos mentais
são muito usados, com sucesso: permitem
que não soframos as agressões do
ambiente e possamos ajudar a quem
precisa e pede. Quando voltarmos, faço
questão de mostrar a vocês como funciona


o controle à distância dos escudos
mentais. É uma coisa fantástica!
— Quem é Simeão? Um informante
nosso? – arriscou Dalva.
— Nem pensar! Não precisamos
disto! Ele é um protetor dos que estão lá e
faz isto por opção própria. Ao menor sinal
de que alguém precisa ser socorrido,
comunica-se conosco ou, então, resolve o
problema ele mesmo, facilitando a fuga e
providenciando transporte ou guia para o
novo amigo. Além do mais, procura
acordar os que ainda não viram a Luz,
através da aproximação desinteressada,
amizade, carinho, e coisas assim. Está
mais para missionário, não acham? E que
missionário! Quando sairmos daqui, não
se esqueçam de procurar conhecer a
história dele. Vale a pena!
— E por que ele não tirou os
cientistas?
— Ele tem que ter certos cuidados,
senão terá que fugir também. Não se
esqueçam que o Mal tem poder e que, na
fortaleza, há forças poderosas. É uma
ilusão pensar o contrário. E ninguém é
salvo à força, acordado à força. Tem que

haver um pedido, um lamento, uma prece,
um grito, sei lá, um mínimo que seja sinal
de desejo de aproximação... No caso dos
cientistas, só agora eles estão
conseguindo fazer comunicação, embora
muito fraca. Mas estão presos ainda,
imantados e hipnotizados. Sentem muita
dificuldade para manter qualquer
concentração mental. E, por isso, jamais
conseguirão equilíbrio para se controlarem
sozinhos e soltarem as amarras. Temos a
considerar que isto tudo dificulta a reação
deles. Por isso viemos.

— Existe alguma possibilidade de
alguém controlar uma situação dessas
sem ajuda, sozinho?
— Claro! É um esforço fantástico,
mas não impossível. Afinal, a nossa mente
é nossa... Pode ser a louca da casa, como
já se disse, mas pode ser a comandante
também. Controlando-a com segurança,
jogando fora o medo, ganhamos forças
até então desconhecidas e podemos,
tranqüilamente, encarar qualquer Gabriel
que apareça à nossa frente.
— Eu, hein... E quando não
conseguimos tal proeza? O que acontece?

— O que está acontecendo agora.
Alguém de fora, com controle mental
perfeito e sem medo algum, tem que agir
ajudando e libertando o prisioneiro.
Arrancando da casa mental dele o pavor e
inserindo ali a segurança, a calma, o
equilíbrio, a certeza da paz e do amor.
Sabia que o amor é o segredo de tudo?
Ele amolece o coração e faz com que nos
sintamos todos irmãos. Paralelamente,
leva a nossa alma a um estado mais alto,
imune a ataques grosseiros. Está aí a
chave mágica do sucesso... Extremamente
fácil para ser compreendida pela maioria...
— E no caso dos nossos protegidos,
quem é que vai ser capaz de soltá-los,
desimantá-los e acordá-los da hipnose
profunda? Não deve ser um trabalho fácil,
considerando-se que são prisioneiros de
Gabriel. Pelo que entendi, parece até que
são os prisioneiros favoritos, se é que há
prisioneiros de estimação... – interessou-
se Danilo.
— Confio em você, Danilo, para esta
missão – respondeu Augusto, colocando a
mão no ombro do amigo, que arregalou os
olhos:

— Eu?! Está brincando comigo? Eu
não sei fazer isto não! Para ser franco,
nem saberia por onde começar, quanto
mais segurar a barra. Pode ir esquecendo
esta idéia sem pé nem cabeça!
— Sempre é tempo de se fazer algo
ela primeira vez não acha? Seu passado é
seu maior aval. Vai me dizer que esqueceu
tudo que aprendeu?
— Está certo, vamos raciocinar
friamente: eu fui orientador num Centro
Espírita, fui médium passista e, muitas
vezes, falei nas reuniões e ajudei no
aconselhamento aos que chegavam
desesperados e sem rumo, sem
compreenderem os próprios problemas,
muitas vezes criados por eles próprios. O
que pode comprovar que eu sempre
soube, com toda convicção, da existência
do mundo de cá, ao passo que outros
jamais desconfiaram disto... Mas, daí a
soltar presos num covil de lobos... Sei
não... Sou novato por cá...
— É isto aí, companheiro! – falou
André dando um tapinha no ombro de
Danilo, num gesto muito comum seu. E
completou:

— Você faz a sua parte. Deus protege
quem age com fé. Aprendi isto com minha
mãe. Ela sempre fez parte do Movimento
de Renovação Carismática da Igreja
Católica. E, menino, você nem imagina o
que ela conseguia com a força da fé e da
convicção! Se eu começar a falar da minha
mãe, não vou conseguir parar. Mas
garanto: aquela heroína da fé libertava
corações e mentes com suas preces
fervorosas, sua crença inabalável num
Deus de Amor! Uma vez eu li que já está
comprovado cientificamente o poder da
prece. Acredito, porque eu via desde
menino o trabalho desinteressado da
minha mãe, sempre com um sorriso,
abençoando e amando a todos sem cobrar
nada em troca. Minha casa vivia cheia de
gente atrás dela, pedindo uma prece, um
conselho. E ela nunca se cansava sempre
sorria, sempre atendia. Um anjo de luz!
Não se assuste, amigo, vá em frente!
Quanto a nós, estaremos todos a seu lado,
dando a maior força. Não esquenta não!
Aposto que você é bom nisto e não sabe.
E depois, sabe o que penso? O pior e mais
difícil já fizemos, nem notamos quando o
fizemos e, pelo que notei, não nos saímos


mal: morremos e descobrimos o Além.
Descobrimos também que a vida pulsa
sempre, que a vida continua,
independente de religiões e credos, mas
dependente apenas do amor e da elevação
moral das criaturas. Deus, a Força, o
Poder Supremo – ou que nome queiram
dar – está do lado e comanda aqueles que
têm puros os corações. Estamos
continuando, estamos mais vivos do que
nunca! O resto é manha... Dá para tirar de
letra.

A facilidade de André para
descontrair ambientes e minimizar
problemas era maravilhosa. Danilo olhou
sério para ele, mas acabou rindo,
confiante.

Recomeçaram a andar, descendo a
trilha pedregosa que, de vez em quando,
parecia sair de foco e balançar.

— E agora, o que é isto? – perguntou
Dalva, abrindo os braços, como para se
equilibrar.
Inácio explicou:

— A tempestade está muito próxima.
Tudo começa a se desestabilizar, pois fica
cada vez mais forte o choque de forças. E

nunca se esqueçam de que são todas
poderosas, venham de onde vierem.

Um vento frio e cortante assobiava e,
de vez em quando, um raio cortava os
ares.

Já estavam bem perto de uma
guarita avançada, onde carrancudo e
desconfiado guarda olhava para eles, com
cara de poucos amigos.

Augusto aproximou-se descontraído,
aparentando um ar malandro e uma ginga
até então desconhecida dos companheiros
que, no íntimo, começaram a achar
interessante e admirar mais ainda aquele
líder que havia surgido para eles e que
demonstrava conhecer tão bem táticas de
aproximação e de reconhecimento de
estranhos, além de infundir a maior
confiança nos seus comandados.
Espalharam-se em volta e tentaram
manter a atitude mais descompromissada
possível, enquanto Augusto abordava o
homenzarrão:

— E aí, amigo? Tem lugar para nós aí
dentro? Estamos procurando pouso. O
tempo não está nada bom.
— Para descansar ou para ficar?

— Depende. Tanto faz... Está
convidando? É simples: se for bom aí,
ficamos. Se não for, não ficamos. Estamos
cansados de andar sem rumo. Queremos
nos fixar onde nos agrade.
— Andando tanto, não acharam outro
local para pedir pousada?!
— Um que nos agradasse totalmente
não. Os que encontramos não nos
interessaram. Cada um tinha um defeito.
Alguns eram muito pacíficos para nós.
Outros estavam cheios de gente meio
esquisita, boazinha, meio carola... Todos
encheram nossa paciência. Imagina você
que, em um deles, queriam que
trabalhássemos! E trabalho monótono!
Mandei que fossem se coçar!
E Augusto deu de ombros, com
desdém.

— Ah, é? O que chamam de pacíficos
e monótonos? Posso saber ou é muito
cansativo falar?
— Não goza, cara... Não gostamos de
pouca ação, muita paradeira. Nosso
negócio é movimento, barulho, trabalho
ativo...

— E como chegaram aqui? Olha que é
longe...
— É, notamos isto. Mas, sabe como
é, não é? Andando, andando, conversa
daqui, conversa dali... Gente muito chata
para todo lado...
E Augusto foi se assentando numa
pedra ao lado do guarda, que continuou as
perguntas:

— E o que é que sabem fazer?
— Qualquer coisa, desde que nos dê
satisfação.
— Mas gostam mesmo é que tenha
movimento, embora não queiram se
comprometer nem cansar demais. São uns
tremendos boas-vidas! Acertei?
— Em cheio! Você é um gênio, meu
amigo! – empolgou-se Augusto.
— Se há uma coisa que tem aqui, é
ação constante. Mas é coisa para macho...
Sei lá... Você é o chefe deles?
— Sou. E não ouse duvidar que sou
macho, pois lhe dou uma lição aqui e
agora! Como faremos para participar de
tudo por cá? Queremos conhecer a cidade
primeiro, para ver se interessa.

— Isto não é cidade. É um Forte, não
vê? Vou encaminhá-los ao Ebenezer. Ele
poderá colocá-los em contato com os
traficantes de liberdade. Vão ver o que é
movimento.
— Calma lá! Gostamos de escolher as
coisas. Quem são os traficantes de
liberdade? Que negócio mais doido é
este?!
— Vamos por etapas, seus otários
vagabundos e burros. Primeiro devem
saber que quem entra aqui, entra
definitivo, para sempre. É caminho sem
volta. Não pode se arrepender e deve
obedecer sem discutir, senão tem castigo.
E castigo dos bons. Portanto, eliminada a
hipótese de escolherem. Caso entrem,
fim! Já ficaram. Deu para entender bem?
Segundo: aprendam desde já a temer
os traficantes de liberdade, caso não se
incorporem a eles. Mas vocês não me
parecem ter cancha para entrar numa
dessa. Gostam é de curtir uma sombra e
água fresca, quem não vê? Mas, lá vai:
saibam pelo menos como eles agem.
Depois, se caírem na esparrela, bem feito!
Não mandei ninguém vir aqui pedir abrigo.


Acontece que, vez em quando, o sujeito
tem vontade de aprontar por conta
própria, resolver umas coisinhas
particulares, tirar umas lasquinhas nos
inimigos ou mesmo vagabundear
procurando emoção nos cantos por fora.
Aí é que entram os traficantes, que
facilitam ao boboca algumas horas fora
daqui, sozinho, sem ser notado e sem que
sua ausência seja sentida. Em troca do
favor, o fujão executa alguma tarefa para
seus protetores, que tanto pode ser
azucrinar alguém ou localizar desafetos
deles, atualmente escondidos na Terra. O
único problema é que os bobos que se
utilizam destes expedientes ficam viciados
e abusam: querem sair toda hora, custe o
que custar. Quando começam a
incomodar, os traficantes dão um jeito
neles: facilitam a saída, mas providenciam
para que a guarda note. Preparado o
campo para a volta do desprevenido, o
castigo vem certo: o sujeito imantado na
prisão ou petrificado por tempos no
Campo das Pedras. Os traficantes ficam
livres, sem problema. E morrem de rir.


— Qual o pagamento que pedem para
colaborar com alguém? Só o trabalho
extra ou mais alguma coisa?
— Por acaso você é mais burro ainda
do que penso? Ninguém faz nada de
graça, bobão! No caso, o pagamento não
é a missão que o sujeito é obrigado a
executar para eles. É pior ainda:
submissão total às vontades e ordens
deles. Quando os dominados se
comportam, são até muito úteis, fazendo
todo o trabalho sujo e pesado. Quando
não, são algumas pedras a mais... Mas a
maioria obedece, porque, a partir da
primeira fuga temporária – e às vezes
nem tão interessante – os idiotas ficam
entre o pavor de dois castigos: o de
Gabriel e o dos novos chefes. Quem
descobrir primeiro, ferra! E nenhum dos
dois é bom, diga-se de passagem. Os
novos dominadores nunca mais têm
sossego, pois passam a ter dois senhores
poderosos, que exigem submissão total.
Não dá, não é?
E o guarda soltou estrepitosa
gargalhada.


— Anda, me fala sobre o Campo de
Pedra... Nunca ouvi falar nisso... E olha
que já andei por aí... – insistiu Augusto.
— Simples: todo mundo que é
petrificado pelos traficantes ou por
Gabriel, é levado para lá. É um espaço
imenso, a perder de vista, coberto de
estátuas cinzentas que vivem chorando.
Um negócio muito deprimente, mas bem
feito! Otário tem mais é que acabar lá,
duro e berrando...
— Chorando por quê? Não são
estátuas? Estátua não chora... E como é
que se petrifica uma pessoa? Vai me dizer
que aqui a turma é tão adiantada em
ciência?...
— Moço, deixa de ser bobo...
Conversar com gente besta é o que mais
me enerva... Não sei e nem quero saber
como é que uma pessoa vira pedra.
Esqueceu que é punição? Embora se
transformem em pedra e fiquem
imobilizados, suas mentes continuam
funcionando perfeitamente. É terrível, um
senhor castigo, sabia? Ultimamente, as
coisas estão ficando ainda piores, se é que
isto é possível, por causa dos inexplicáveis

terremotos. Além da rotação normal de
defesa da fortaleza, que periodicamente
muda de posição para evitar assaltos, tem
havido abalos sísmicos muito freqüentes e
violentos, não sabemos porquê. As
estátuas quase sempre caem, pois nem
sempre se fixam com firmeza no chão.
Então, ficam rolando sem eira nem beira,
batendo umas contra as outras... Dizem
que é um sofrer que não acaba mais...
Cruz em credo!

— É, imagino... Cruz em credo
mesmo! E eles não conseguem se livrar
dessa, meu chapa? Não tem ninguém
esperto por aqui, além dos chefes?
Alguém pode até querer me fazer virar
pedra, mas vai ter trabalho, ah, se vai...
O guarda olhou para Augusto com os
olhos arregalados:

— Correm histórias ou lendas, sei lá,
de gente que se salvou, se derreteu com
as próprias lágrimas, voltou ao normal e
fugiu. Ou foi levada por algum louco, pois
dizem que os loucos perambulam por lá
que nem assombrações, olhando as
estátuas, limpando-as, coisas assim, que
só doido sabe fazer. Não acredito em nada

disto não. Acho que nem doido gosta
daquilo... Você não conhece os domínios
de Gabriel... Mas, está em tempo: vira
para trás e cai fora se não tiver coragem
de encarar! Não vou perder tempo com
gente covarde!

— Calma lá, meu caro! Eu e meus
amigos encaramos qualquer coisa, não
temos medo de nada, não! Não vai nos
confundir não, olha lá! Tá pensando que
tem algum maricas aqui? – Augusto falou
bravo e alto.
— Tudo bem, tudo bem! Gostei de
vocês e vou deixá-los entrar. Se fizerem
alguma coisa errada e me trouxerem
problemas, não vão gostar do que farei
com vocês.
Não vão entrar pelo portão principal.
Tem uma entrada aqui no chão da guarita,
de emergência. Vocês entram pelo alçapão
e já saem dentro da sala do Ebenezer, em
frente a ele. Não vão conseguir se perder,
nem que queiram. Ele saberá que fui eu
quem mandou vocês e, daí em diante,
cuidará de tudo.

Augusto olhou para os preocupados
companheiros e se comunicou com eles


pelo pensamento, pela primeira vez.
Tranqüilizou-os pedindo calma e firmeza
mental. Rápidos sorrisos brotaram nos
rostos de todos, felizes com a descoberta
da possibilidade de falarem entre si e
ninguém de fora conseguir captar. Como
um raio, passou pela mente de todos que,
cada vez mais, estavam se adaptando à
nova realidade e aos novos poderes que,
por sua vez, estavam aumentando cada
vez mais.

No entanto, a preocupação voltou
rápido, pois, na verdade, não pensavam
em se ligar a Ebenezer ou qualquer outro.
Queriam apenas entrar da maneira mais
discreta possível. Quanto menos gente em
contato com eles, melhor. Quanto menos
fossem vistos e conhecidos, mais fácil
ficariam as ações que teriam que
empreender.

Augusto arriscou:

— Não precisa se preocupar não, seu
guarda. Já nos conhece o bastante e sabe
que somos da mesma turma. Entramos
pelo portão mesmo, o senhor o abre para
nós. Lá procuraremos por Ebenezer. Sabe?
É que queremos conhecer primeiro o local.

Se entrarmos por um túnel subterrâneo,
não veremos nada. E alguém pode nos
confundir com malfeitores... Concorda
comigo, não concorda?

— Nada disso, espertinho! Está
pensando que aqui é a casa da sogra?
Quer arrumar complicação para mim?
Verão a fortaleza inteira depois. Terão
bastante tempo para tal. Nas novas
atribuições, terão que andar por todos os
lugares e sua curiosidade vai ficar mais
que satisfeita. Mas tudo a seu tempo e no
tempo certo. Antes, vão conversar com
Ebenezer, que vai escolher onde ficarão e
o que farão. Assim, qualquer problema ou
deslize de vocês, a responsabilidade é dele
também. E se existe um sujeito que sabe
cair fora de encrencas, é ele. Olha para
vocês e sabe logo com quem está lidando.
Está falado e pronto! E se me amolarem
muito, vão caçar encrenca em outro lugar!
E, juntando a palavra à ação, foi abrindo o
alçapão e ordenando:

— Entrem logo e pouca conversa! Se
são medrosos, não têm nada que aparecer
por aqui. A fortaleza não é lugar de

covardes! Andem, andem! Tenho mais o
que fazer!


PARADA NO BAR

— Bar?! Mas tem bar neste mundo?!
Não acredito!
Pedro foi o primeiro a botar a cabeça
para fora do alçapão e a levar um susto:
estavam saindo dentro de um bar, bem no
meio do salão! Pelo menos, era o que
mais parecia o local, cortado de fora a fora
por comprido balcão, cercado por uma
desordem de mesas e cadeiras colocadas
irregularmente e com uma espécie de
palco num dos cantos.

Um a um, foram saindo, olhando para
os lados, tentando ver alguém, conhecer o
lugar.

O alçapão foi fechado e encaixado,
tão bem que não se conseguia distinguí-lo
facilmente.

André e Pedro pularam para o outro
lado do balcão, procurando alguma coisa
que nem sabiam o quê. Mas, nada! Os
dois lados eram exatamente iguais, não
possuíam gavetas nem prateleiras. E
muito menos garrafas ou copos. O que era
aquilo afinal?


Apito estridente cortou os ares e um
barulho ensurdecedor precedeu um tremor
de terra. Cadeiras e mesas começaram a
cair e rolar, as paredes se movendo em
todas as direções, enquanto eles se
seguravam fortemente no balcão,
apavorados.

O barulho era cada vez mais forte,
parecia uma montanha rugindo. Vento
fortíssimo e gelado soprava, vindo não se
sabia de onde, assobiando e criando um
redemoinho dentro da sala, jogando
cadeiras e mesas para o ar.

André olhou divertido para Pedro:

— Bar eu não sei se é ou se tem
algum neste mundo. Mas terremoto eu
garanto. E dos grandes! Se segura,
menino!
— Nem precisa avisar!
Com um grito, as moças soltaram-se
do balcão, caíram e rolaram para a
parede, tentando segurar nos pés das
mesas e escorregando junto com elas.
Inácio e Danilo soltaram-se e foram
rolando até onde elas estavam, tentando
impedir que as duas saíssem porta afora,


segurando-as e colando-se com elas à
insegura parede.

O barulho foi diminuindo, ao mesmo
tempo em que a vibração aumentava. De
repente, tudo parou de se sacudir como
gelatina e o chão ficou firme novamente,
cessando de balançar. Do mesmo modo
como veio, o terremoto parou. Durou
pouco, mas arrasou tudo.

Exaustos todos se puseram de pé,
levantando algumas cadeiras e sentando-
se nelas ao redor de uma mesa.

— E agora, Inácio? – perguntou
Danilo.
— Agora o quê?
— Explica mais essa. O que
aconteceu? Foi terremoto mesmo?
— Rapaz... Nem eu sabia que estes
tremores eram tão fortes assim, porque
eu nunca fiquei nos limites da fortaleza.
Vivi sempre perto de Gabriel, onde tudo é
protegido e estas coisas não acontecem.
Meus amigos: saibam que, por
medidas de segurança, de tempos em
tempos, a área em torno do núcleo desta
fortificação roda, trocando tudo de
posição. No centro, nada treme, ouve-se


apenas o barulho ao longe. Na periferia,
acabo de ver que a coisa é brava.

Ao girar tudo, a conseqüência é
certa: o palácio de Gabriel muda, e toda a
parte central da fortaleza troca de lugar
em relação ao resto. Como a residência
principal é cercada por labirintos, e eles
também sofrem uma metamorfose, o
acesso aos aposentos particulares do
mago fica cada vez mais impossível até
para os membros mais antigos da
comunidade.

Quanto aos de sua segurança
pessoal, estes não passam pelos
corredores dos labirintos e não enfrentam
tal tipo de problema: existe uma
passagem subterrânea especial e do
conhecimento só dos iniciados. Aliás, o
que não falta aqui é passagem
subterrânea.

Muitos habitantes daqui nunca viram

o próprio chefe, que jamais sai de casa.
Para todos os contatos externos, ele tem
mensageiros de confiança.
A fortaleza é um mundo diferente.
Mais diferente ainda é o mundo que ela


abriga: o comando, a residência de
Gabriel. Vocês verão.

— Não tenho a menor pressa em ver.
E você, Pedro? – perguntou André.
— Por mim, fico aqui mesmo... Meu
consolo é saber que em pouco tempo isto
tudo não existirá mais, será destruído e
consumido.
— É? E já pensou se você estiver aqui
dentro na hora?
— Vira essa boca para lá, vira...
Neste momento, entra na sala,
passando por uma disfarçada porta
lateral, um homem muito alto e forte,

torso nu, barba cerrada preta e
sobrancelhas grossas. Sem a menor
cerimônia, foi falando:

— Ah, já se refizeram do susto?
Quem é o chefe?
Augusto levantou-se:

— Eu. E você, quem é?
O brutamontes, ao contrário da
expectativa geral, deu um sorriso bobo e
estendeu a mão peluda, de unhas grandes
e sujas, cumprimentando todos:


— Ebenezer. De onde vieram? Por
que vieram para cá?
— Viemos de lugar nenhum. Vivemos
andando. Não temos pouso fixo.
Andarilhos, sabe?
— Só me aparecem doidos! Também,
para querer viver aqui... Quanto a mim,
breve volto para casa, pois acaba o meu
contrato de trabalho e não pretendo
renová-lo. Chega! Vou me aposentar e
pronto. Serviço mais chato esse... –
reclamou, entredentes, Ebenezer,
sentando-se e espalmando as mãos na
mesa, ao mesmo tempo em que dava um
longo suspiro.
— Não gosta daqui? – arriscou
Danilo, tentando puxar conversa.
— Não. Quer saber? Detesto! Gosto
mesmo é de beber, no meu bar, na minha
cidade, sossegado.
— Então, por que está aqui? Já
quanto a bar, estamos num... É só
começar a beber...
— Nunca precisou trabalhar não?
Estou aqui trabalhando com um contrato
de trabalho que vencerá logo e me

permitirá voltar para casa. E isto não é
bar, idiota.

— E o que é?
— Local de reuniões de traficantes.
— Ah... Barra pesada, hein? Você
trabalha para eles?
— Infelizmente sim. Digo
infelizmente, porque é um trabalho muito
bobo. Fico aqui, recrutando os novos
trabalhadores que chegam e
encaminhando-os. Nada mais do que isto.
É monótono não acham? Quanto aos
traficantes, não é que eu goste ou não
goste deles, isto não vem ao caso. Eu não
gosto muito é da paradeira e de nunca
poder viajar para ver a família. Ou mesmo
ir buscar a família para morar comigo.
Mas, não vou ficar reclamando. Eles não
gostariam de morar num local como
este... Afinal, me pagam bem e posso
sustentá-los, mesmo de longe.

— Quanto?
— Você não precisa saber, seu
perguntador. Mas, vá lá: cá para nós, nem
eu mesmo sei quanto ganho ou pego no
meu dinheiro. Faz parte do contrato. Eles
entregam diretamente à minha mulher e

filhos. Até hoje ninguém escreveu
reclamando ou pedindo mais. Deve estar
dando...

— E onde está sua família?
— No Nordeste. Fico aqui no Sul
trabalhando porque lá não tem emprego
para mim.
— Nordeste? Sul?! De onde?
Ebenezer olhou para Pedro, que
estava sentado a seu lado, e apontou para
Danilo:

— Ele é doido?
Pedro prontificou-se a responder,
sem conseguir disfarçar um sorriso:

— Não. Ele é mesmo muito
perguntador, só isso. Temos andando
tanto, que perdemos um pouco a
localização, a noção de lugar...
— Quer dizer que você também não
sabe que está no Sul? Vocês estão é
fugindo da polícia e não querem contar...
Onde já se viu andar por um país inteiro,
sem saber onde se está? Malandros, vocês
não me enganam não... Tenho muito
tempo de janela...

Sem saber como responder e
pensando que Ebenezer é que era doido,
Pedro deu um sorriso amarelo:

— É... Parece que estamos todos
perdidos. Mas Sul de onde?
E Ebenezer, de olhos arregalados,
cofiando a barba:

— Hum... Do Brasil. De onde mais
podia ser, seu pateta? Acorde, cara! E
desembucha logo. Conta quem vocês
mataram ou que droga traficaram. Ou
acha que penso que são santinhos?
André divertia-se a mais não poder,
junto com as moças.

Augusto e Inácio se entreolharam
preocupados. Inácio fixou os olhos no
companheiro, informando a todos,
mentalmente:

— Já entendi tudo. Este cara é um
idiota a serviço deles. Nem sabe que
morreu, muito menos de onde veio ou
onde está. Aceitou um serviço e pensa
estar executando-o. Como ele diz,
acredita que voltará para casa ao terminar
o contrato. Repete apenas o que falaram
para ele, como um zumbi. Aliás, é o
próprio zumbi.

Instantaneamente, todos captaram a
informação. André aproveitou para
informar a todos, telepaticamente, o seu
protesto, pois não estava gostando da
história não.

Augusto falou grosso:

— Olha aqui, Ebenezer: estamos
gostando muito daqui e já conversamos
bastante. Agora, gostaríamos de dar uma
volta. Mais tarde voltaremos. Se
gostarmos do lugar, você nos
providenciará um contrato de trabalho,
estamos acertados?
Sem esperar resposta, todos se
levantaram e caminharam rapidamente
para a porta. Que não encontraram.

Ebenezer deu o seu sorriso mais
largo e divertido:

— Pensando que podiam me enganar,
hein? A porta rodou e mudou de lugar
seus bobalhões!
Jaciara e Dalva se sentaram
pesadamente num cantinho da sala,
desconsoladas. Os outros se
encaminharam novamente para Ebenezer,
cercando-o na mesa.


Augusto fez outra tentativa, com
mais calma:

— Escuta, Ebenezer. Ninguém quer
enganá-lo. O bobo é você de pensar isto.
É errado querer passear?
— Não. E passear é o que vocês vão
fazer agora, garanto. Eu e um amigo
ficamos reparando-os durante e após o
tremor. E não gostamos. Não sei o que é,
mas tem uma coisa errada. E não quero
confusões para o meu lado, nem ter de
me explicar com ninguém. Muito menos
virar pedra. Não tenho nada com isto e
não quero ter. Se tiver mesmo alguma
coisa errada, nem quero saber. Por isso,
antes de entrar aqui na sala, avisei à
Polícia. É melhor eles conferirem vocês
primeiro.
Foi dito e tinha sido feito mesmo.
Homens grandes e barbudos, com
carrancas de poucos amigos, acabavam de
entrar, passando por uma porta que se
abriu na parede, parando em volta dos
recém-chegados.
Atrás de todos e esquecidas por
todos, Dalva e Jaciara, assentadas no
canto e aterradas, observavam a cena.


Silenciosamente, foram escorregando pelo
chão, se arrastando até o local por onde
os homens haviam entrado.

E nem olharam para trás quando
saíram e se esconderam entre grandes
caixas, no pátio. Agora, era urgente que
as duas encontrassem Simeão. Por onde
começar?


NO CORAÇÃO DO INIMIGO

Amarrados fortemente uns aos
outros, amordaçados, levando empurrões
e socos dos guardas que os escoltavam,
os cinco amigos partiram da casa de
Ebenezer, puxados pela ponta da frente
da corda pelo mais forte dos homens
barbudos.

Mentalmente, Augusto se comunicou
com todos:

— Pessoal, chegou a hora de
provarmos a nós mesmos que estamos
preparados para continuar com galhardia
e valor a caminhada da Vida. Que nenhum
de vocês se deixe levar por pensamentos
de raiva ou quaisquer outros menos
dignos. Lembrem-se de todas as
instruções que receberam e do que vêm
aprendendo em todos os momentos.
Mantenham alto seu padrão vibratório,
não se esqueçam. Pensem e desejem
unicamente ajudar aos que ainda não se
encontraram e não se equilibraram.
Lembrem-se que estamos entrando na
etapa mais difícil da nossa missão e temos
a obrigação de realizá-la. Continuem

tranqüilos. Vejam como temos conosco a
força da paz, num exemplo simples: estas
amarras que nos prendem só conseguem
me dar a impressão de fragilidade. Tenho
a nítida sensação de que conseguiria nos
soltar a todos agora, se quisesse.

A resposta mental geral foi imediata:
concordavam e sentiam a mesma coisa.
Tinham consciência que deviam fingir
estar bem presos, para poderem chegar
mais perto do objetivo. Em nenhum
momento e por nada deviam dar mostras
de superioridade.

Foi, portanto, com tranqüilidade que
atravessaram vielas e mais vielas – onde
gente curiosa, mal encarada e mal
vestida, se aglomerava para vê-los – e
entraram numa passagem subterrânea,
sempre puxados violentamente pelos
guardas.

Na medida em que avançavam,
notavam que as paredes do túnel iam se
alargando e havia perfume no ar. Um
perfume exótico, sensual e forte. A
escuridão não era total e pedras de todos
os tamanhos e luminosidades serviam
como lâmpadas, estrategicamente


colocadas. André, que adorava a
capacidade de conversar telepaticamente,
avisou a todos que aquele projeto de
iluminação era dos mais interessantes que
já tinha visto.

Uma escada pequena e chegaram em
amplo salão, todo de pedras, lembrando
um rico arsenal medieval. Brasões, armas
e armaduras enfeitavam as paredes, onde
bandeiras coloridas e com os mesmos
brasões estampados em cores fortes,
desciam do teto ao piso de rocha.

No centro, imensa mesa oval formada
por um único bloco de soberbo granito
negro, com castiçais e objetos de ferro
adornando-a, brotava do chão, como se
nele tivesse raízes. Não havia cadeiras
comuns em volta, mas confortáveis e
anatômicos bancos talhados em mármore
cinza escuro, com encosto alto, de uma
beleza que impressionou a todos.

Um colossal candelabro de cristal,
com dezenas de grossas velas acesas,
pendia do teto e emanava uma luz morna
que se refletia no centro polido da mesa.

Na lateral, à direita, uma escadaria
de pedra encostada à parede era um


caracol que tanto entrava pelo teto como
afundava no chão, cujo início e final não
se via ou se previa.

O mesmo perfume forte que sentiram
antes dominava o ambiente.

Retiradas cordas e mordaças, eles
foram deixados ali pelos guardas, sem
nenhuma explicação ou mesmo precaução
da parte deles.

— Lugar de uma beleza estranha... –
murmurou Augusto, correndo o olhar pelo
local.
— Estou e não estou gostando –
definiu André, que foi logo se assentando
sem cerimônia, experimentando um dos
exóticos bancos de mármore. Gelado
como um iceberg, por sinal. Levantou-se
rapidamente, com uma expressão de
susto e mal-estar, resmungando:
— É nisto que dá querer mexer em
tudo...
Inácio informou:

— Acho que vamos falar com o chefe.
Ele usa esta sala para interrogar presos
especiais.

— Sinto-me honrado, mas tenho
medo das conseqüências de tanto
prestígio... Por que somos presos
especiais? Aliás, é melhor nem me
responder, porque tenho medo da
resposta... – atalhou Pedro.

— Aqui nada acontece sem que ele
saiba. Deve ter me pressentido e, quer
queira ou não, ele tem absoluta certeza de
que sou amigo dele. E sempre teve uma
curiosidade imensa em descobrir o porquê
da minha transformação e fuga, pois, nem
usando todos os seus poderes, ele
conseguiu desvendar a minha renovada
mente, depois que nos separamos. Isto
pode ser bom ou mal para nós. Não sei se
Gabriel, que me tem como irmão, teme
que eu me torne seu inimigo, pois não
tem a menor vontade de medir forças
comigo... Principalmente pela raiva que
tem de desconhecer o que se passou em
minha mente e me mudou tanto. Ele é Rei
aqui, mas não suporta nem deseja
entender o reinado de lá, de onde viemos.
Mas não se iludam: sabe se defender e
conhece as posições das peças deste
tabuleiro de xadrez perfeitamente.

Preparem-se. Terão muitas surpresas
com ele e sobre ele... Não pensem que o
que chamamos de Mal é feio, asqueroso e
menos potente. Demo est Deus inversus...

Um homem novo, alto, louro e muito
bonito, surgiu majestosamente por detrás
de uma bandeira que decorava a parede
central. Vestia uma túnica vermelha
comprida, presa por largo cinturão
dourado. Farta capa de veludo grená
quase negro espalhava seus gomos pelo
chão de pedras lustrosas, lembrando um
rei antigo pelas roupas e adornos
preciosos. Aproximou-se mansamente,
sorrindo e estendendo a mão fina, fria e
bem tratada para um Augusto perplexo:

— Esperava encontrar um homem
primitivo, morando numa gruta e
brandindo o tacape?
— Confesso que não fazia idéia...
Passaram pela minha cabeça várias
imagens, todas completamente diferentes
da que vejo. Você combina perfeitamente
com a sua sala, com tudo aqui, sabia?
— Sabia. Não quer sentar-se? Mande
que todos se sentem.

— Por que você mesmo não convida
todos a se sentarem?
— Quem manda nos subordinados,
nos mínimos detalhes, é o chefe.
— Como sabe que sou o chefe? Quem
é você?
— Não vai me bombardear com
perguntas idiotas, vai? Está cansado de
saber que sou Gabriel.
— Não custava confirmar, não é? Eu
gosto das coisas muito bem explicadas. É
vício antigo. Mas, claro que quero que
meu pessoal se sente; no entanto, eles
não vão ficar congelados nesses assentos
gélidos?
— Já não estão mais frios. Agora eu
estou aqui e estou convidando. Se alguém
congelou antes da minha chegada é
porque se assentou antes da hora.
Assentaram-se, Pedro e Danilo
olhando para André com o maior sorriso,
Augusto ao lado do Mago, que foi logo
dizendo sem cerimônias, apontando Inácio
com desdém:

— Vejo que trouxe este covarde de
sempre. Ele serve exatamente para que?
Aliás, eu não entendo qual é a dele:

quando morava aqui e tinha uma vida
régia, foi ingrato e não quis ficar. Fugiu
como um rato de esgoto, sem saber


agradecer a amizade com que era
distinguido. Mas, vira e mexe, vive
aparecendo por cá...

Inácio levantou a voz firme, do outro
lado da mesa:

— Como vai, meu amigo? Estou feliz
por vê-lo novamente. Ficaria mais, se
conseguisse levá-lo conosco para o lugar
de onde viemos.
— Você conseguiu se fixar em algum
lugar? Fantástico! Como pretende me
levar? Preso? Ou vai tentar me intimidar e
amedrontar, falando em destruição de
novo? Não me canse! Você já nem me
preocupa mais, meu caro. Meus guardas
têm ordem de deixá-lo entrar e sair à
vontade. Está maluco, pregando no
deserto... Em consideração à nossa
amizade anterior, passei a considerá-lo
inofensivo. Você já esteve aqui inúmeras
vezes, falando neste tal fogo e coisas
assim... Tem certeza de que está bem? Já
procurou tratamento psiquiátrico?
— É a primeira vez que entro preso...

— Claro, é a primeira vez que chegou
aqui rodeado de desconhecidos. Mas,
considere-se solto imediatamente. Que se
afaste sempre de mim a vontade de
mantê-lo detido! Pode entrar e sair à
vontade. Andar por onde quiser. Você é
cachorro conhecido e não morde. O que
quer desta vez? Avisar de novo? Você
deve ter fixação em mim, não é verdade?
— Obrigado, mas prefiro ficar com
meus companheiros. Gosto de você como
um irmão. Você sabe disto, Gabriel. Sou o
amigo que teve e tem, para todas as
horas. Mas que, por ser amigo, não vai
concordar com seus métodos de ação e de
vida. No entanto, tranqüilize-se: não há
mais tempo para avisos. Agora, quero é
salvá-lo mesmo. E, por tabela, salvar
todos que mantém prisioneiros, sofrendo.
Um sorriso frio como o mármore da
sala tornou ainda mais lindo e pétreo o
rosto perfeito de Gabriel, o brilho dos
olhos claros extremamente azuis, que
balançou a mão com desprezo em direção
ao interlocutor.

Dirigiu-se novamente a Augusto,
desta vez com voz forte e imperiosa:


— Não sabe respeitar os domínios
dos outros? Por acaso ocorreu-lhe que
está invadindo meu território?
— Longe de mim tal idéia! Você é que
me desrespeitou, mandando nos prender
como criminosos, antes mesmo de saber o
que queríamos, de onde vínhamos e
porque viemos. Não foi nada hospitaleiro e
foi um ato arbitrário.
Gabriel engoliu em seco e seus
grandes olhos azuis brilharam. Excitava-o
constatar que aqueles homens não o
temiam nem um pouco, mesmo estando
com os destinos em suas mãos. Encarou
Augusto, que não baixou os olhos:

— Estão soltos agora, ninguém está
amarrado e estamos a sós. Pode dizer o
que quer.
— Quero levar comigo dois presos
que você tem aí. E quem mais quiser sair.
Não vai concordar, vai?
— Você sabe ser óbvio e direto.
Adivinhou. Claro que não.
— É, eu imaginava... Em todo caso,
obrigado pelos elogios.
— Você merece, acredite. Muito bem.
Já que não chegamos a uma conclusão,

vocês têm duas opções. Na primeira, em
respeito à minha antiga e fraternal
amizade com este idiota aí, mandarei
levar vocês até o portão principal, de onde
irão embora sem olhar para trás e nunca
mais voltarão.

— Negativo.
— É, eu também imaginava... Resta
então a segunda. Vão fazer companhia
aos presos do calabouço, até que eu
resolva o que fazer. Pretendo acabar com
vocês de uma vez, mas na hora certa.
Conheço várias e boas maneiras de deixar
sujeitos corajosos inativos por séculos...
Não tenho nada pessoal contra vocês, que
até me agradam: gosto de homens fortes
e de coragem, que não se dobram com
qualquer vento. Mas é que não suporto
mais esta mania de socorro do seu povo...
Eu sou um chefe poderoso. Tenho legiões
de comandados trabalhando para mim,
aqui e em outros locais. Nunca pedi e nem
pedirei socorro. Não preciso, entendeu?
Mas, mesmo assim, volta e meia, sou
perturbado: lá vem um de vocês, de
preferência esse parvo aí, com fala mansa
e conversa fiada. Chega!!!

A voz possante e sonora de Gabriel
ecoou em toda a sala, produzindo um
efeito acústico surpreendente e fazendo
tilintar fortemente os cristais do lustre,
cujas velas espalharam fagulhas, como
gotas douradas para todos os lados. Seus
olhos soltaram faíscas e suas mãos
ficaram tensas e crispadas.

Ninguém se moveu, se preocupou ou
se intimidou com o som e o efeito
atordoante. Ficaram imóveis, esperando
tudo voltar à normalidade. E foi a hora da
voz de Augusto, também bonita, forte,
possante e tranqüila, ecoar por sua vez,
não provocando faíscas, mas espalhando
segurança e uma vibração de paz naquela
sala macabra:

— Posso fazer uma pergunta,
Gabriel?
— Claro.
— Conhece o mundo de onde viemos?
— A Terra? Até demais para o meu
gosto...
— Não se faça de desentendido. Sabe
muito bem de onde viemos.
— Nem tanto como você pensa, pois
não é prioritário para mim estudá-lo. Sei

que vocês são bem organizados e têm
mania de salvar os outros. Querem que
todo mundo pense como vocês e, de
preferência, more com vocês. Isto é meio
neurótico, não? Nunca me interessei em
visitar sua região. Seria canseira demais
para mim... E monótono. Nossos
interesses não coincidem. Nem desejo
nada do que vocês têm: sábios, cientistas,
máquinas, armas, tenho tudo, igual ou
melhor que lá, pelo que me informaram os
traidores de vocês! Ou você não sabe que,
vez por outra, tem gente de lá correndo
para cá? E tenho mais o que fazer.

— Aceita o convite? – revidou,
implacável, Augusto.
— Como?!
— Convite sem compromisso de
permanência lá, mas com seriedade. De
homem para homem. Você vai conosco,
olha tudo com total liberdade e opina
depois. Com sua inteligência, captará logo
todas as nossas atividades e – por que
não? – talvez até aprove alguma. Será
muito bem vindo lá, acredite. Se não
gostar, volta correndo. Pode até continuar
dizendo que não gostou, que não aprovou,

mas com conhecimento de causa. Olha,
filho, posso ser seu pai e, portanto, posso
ensinar isto a você: nunca fale contra ou a
favor de algo, sem prévio conhecimento.
Não condiz com sua capacidade
intelectual. E então?

Um perplexo Gabriel respondeu:

— Está me chamando de filho?! Como
me levará lá?
— Normalmente. Conosco. Não tem
segredo nenhum não. Digamos que você
saísse de férias... Já disse e repito: com
garantia de volta, caso não queira ficar, o
que é uma das possibilidades... Mas, com
uma única condição: os dois prisioneiros
que viemos buscar irão também. Sabe? É
questão de responsabilidade: gosto de
cumprir minhas missões integralmente.
Você não se incomoda, não é?
— Está brincando comigo...
— Nunca falei tão sério, filho.
— E eu pensando que só o Inácio era
maluco... Por uns instantes, imaginei que
você era normal... Não está enxergando a
diferença entre nós dois? Eu sou um rei,
enquanto você...

— Somos iguais, garanto-lhe. No
momento, dois filhos de Deus
necessitando muito da Misericórdia Divina,
para que possam entender todos os
meandros da vida infinita, que, agora,
sabem ser uma realidade irrefutável. E, ao
mesmo tempo, dois homens corajosos o
suficiente para não temerem um ao outro
e saberem encarar as verdades da vida,
procurando ter sabedoria para navegar na
correnteza de Deus... É tão simples! Basta
se deixar levar... Eu já encarei e optei. É a
sua vez.
— Fala em Deus?
— Sim. Mas, se você quiser dar outro
nome à Força que governa a vida, não
tem problema. O importante é crer. Nós
dois já passamos pelo portal que divide os
mundos e sabemos que algo mais forte
governa tudo isso. Que nome queira dar a
este Poder, é bobagem. Nomes são
rótulos, mas nem por isso devem ser
desrespeitados. Use o seu, que uso o
meu. Eu chamo de Deus. Mas, caso queira
ou ache importante discutir isso, estou
aberto a todas as teorias.

Gabriel ficou de pé, revelando toda
sua majestade e imponência. E que
majestade! Inegavelmente, sua presença
dominava o ambiente e transmitia magia e
mistério. Olhou para baixo, para Augusto
precisamente, e sua voz saiu gélida:

— Não sei como tive paciência para
ouvi-lo por tanto tempo... E olhe que o
meu tempo é precioso. Tenho mais o que
fazer.
E, correndo os olhos em volta:

— Ninguém aqui merece minha
atenção.
Dizendo e falando, espalmou a mão
esquerda em um grande ônix incrustado
sobre a mesa, bem em frente ao seu
lugar, na cabeceira. Imediatamente, uma
dúzia de homens vestidos com armaduras
reluzentes ocupou a sala, surgindo
ninguém viu de onde, tamanha a rapidez
com que apareceram.

Silenciosa e mansamente, Gabriel
afastou-se, sumindo atrás da mesma
bandeira por onde entrou, arrastando os
gomos fartos de sua capa grená e
deixando no ar o mesmo perfume
inebriante e insinuante de sempre.


— Sempre achei que só as mulheres
podem ser lindas. Nunca sequer imaginei
que um homem pudesse ser bonito. Mas
este é maravilhoso! Nem parece
humano... – murmurou André.
— Não é humano. Mas convenhamos
que tem majestade... – rebateu Pedro.
Um dos soldados aproximou-se e,
sem falar, indicou uma escada estreita no
fundo do salão, meio encoberta por uma
alta peça de madeira maciça, onde
lâminas de diversos tipos e pedras escuras
e cortantes repousavam nas prateleiras.

Um a um, todos desceram, guiados
pelo mesmo soldado e acompanhados
pelos outros. Os minúsculos e irregulares
degraus exigiam o máximo cuidado para
ninguém tropeçar e cair. A escada parecia
não ter fim e perfurar as entranhas
escuras da terra.

Chegaram a uma galeria cheia de
portas de ferro em toda sua extensão. Na
primeira, que já se encontrava
escancarada, entraram os cinco, onde
foram imediatamente trancafiados.


UMA PRISÃO SOMBRIA

— Essa é boa! E agora? O homem é
mesmo muito poderoso e forte, vocês
notaram? Vai fazer picadinho conosco! Ou
melhor, sei lá se ele pode picar alguém
em pedaços, pois já morremos... Ou não
morremos? Estou vivinho, vivinho! Antes
eu pensava que morte era fim, agora
descobri que morte é mudança de
realidade. E, na atual realidade, viemos
criar problema com um sujeito que
comanda legiões, mora numa fortaleza
bem fortificada, tem cara e aspecto de rei
e uma mente prodigiosa. Estamos
malucos!
André, como sempre, começava a
conversa, enquanto examinava
detalhadamente a porta da cela e sua
tranca, de aspecto completamente
diferente das conhecidas dele. Continuou:

— A fechadura é magnética, portanto
cem por cento segura. Pelo andar da
carruagem, dá para notar que o pessoal
aqui trabalha mais com a mente do que
com as mãos. Até para trancar portas!
Notaram que vamos ter grandes

problemas pela frente e que eu,
completamente maluco, não estou com
medo? Para falar a verdade, estou
bastante entusiasmado e cada vez mais
motivado e entrosado na minha nova vida!

— Notei uma coisa também – falou
Augusto, abraçando paternalmente André
pelos ombros e levando-o para perto dos
outros.
Continuou:

— O homem é forte, mas não
conseguiu, em momento algum, entrar na
minha mente. É verdade que eu também
não consegui entrar na dele... E olhem
que eu tentei...
Encostado na parede de pedra do
calabouço, com uma das mãos no queixo
e prestando muita atenção ao que falava,
como se estivesse revivendo algo, o
sensível e observador Danilo informou:

— Pois eu acho que pesquei algo
naquele mar gelado... Durante todo o
tempo, fixei-me na pomposa figura do
Mago. Olhei constantemente dentro dos
seus olhos, mesmo quando não estavam
na minha direção. Persegui-os, fixei-me
neles. Ele notou, agüentou e, quando

passava os olhos por mim, encarava, é
claro. E ainda me endereçava um meio
sorriso. Deve ter até se divertido com um
bobo que tentava ficar par a par com ele.
Mas não faz mal: se não sondei fatos,
acredito que consegui captar sentimentos,
não pensamentos. Sabem, eram ondas
que pareciam vir dele e batiam
fragorosamente em mim. Ondas fortes de
profunda solidão, sofrimento intenso e um
vazio interior tremendo. É isto mesmo:
ondas muito fortes, mas ocas, dá para
entender? Por mim, acho que ele nem
está mais interessado no que faz. Só se vê
num caminho sem volta, ou pior: que
acredita ser sem volta. Tive a impressão
muito pronunciada de enfado, ausência. E
na hora em que você, Augusto, convidou-

o para visitar nosso mundo, senti que
quase aceitou. Como teve vontade de
dizer sim, quero! Foi por pouco.
Sei lá, isto tudo pode ser ilusão minha.
Não acreditem em mim, por favor. Acho
que sou muito sentimental e o ambiente
diferente, as roupas dele, o perfume, sei
lá, me fizeram imaginar coisas...


— Pois foi a mesma impressão que tive,
meu filho, quando, por minha vez, tive
uma única e decisiva conversa com ele.
Parecia que estava querendo estender a
mão para mim, dialogar, entender o que
eu dizia, ouvir minhas justificativas,
compreender melhor o drama pessoal dele
do qual eu fui o principal protagonista e
desencadeador. Mas foi só por um
momento. Mesmo assim, com estas
considerações todas, estamos
encarcerados e nem imagino por quanto
tempo. Ainda bem que não estamos sendo
torturados...
A voz vinha de um canto escuro da cela,
para onde se voltaram todos os olhares.

Um homem de idade indefinida e
profunda tristeza no olhar estava
assentado no chão, encostado na parece,
debaixo da única janela gradeada.

Danilo se adiantou:

— Aqui há tortura também? Meu Deus
do Céu! Quem é você? De onde vem? O
que faz aqui? Qual a sua história? Como
não o vimos antes?
— Meu nome é José Anselmo, filho. Já
lá se vai tanto tempo que nem me lembro

de quando comecei a trabalhar na
fortaleza, na guarda do portão principal do
palácio, um dos locais mais melindrosos
com todo um processo magnético
diferente dos restantes. Alguém que
esteja bem dentro do núcleo de comando
e que planeje cair fora, tem
obrigatoriamente que passar por ele
primeiro, pois só assim conseguirá chegar
ao subterrâneo mais próximo e mais
acessível à escapada. Sei que os
traficantes de liberdade têm um macete
para localizar esta saída, mas nunca quis
saber detalhes disto. Eu, hein? Nunca fui
doido de me meter em coisas fora da
minha alçada. Tomava conta do portão e
só. Abri-lo era possível só para os
moradores de máxima confiança. Para os
outros, era preciso consultar a chefia. Eu
tinha a senha e respondia por ela diante
do chefe supremo. Mas não me
preocupava com isto, pois conhecia
perfeitamente quem podia e quem não
podia passar, sabendo punir qualquer
irregularidade de algum engraçadinho que
se atrevesse a criar caso comigo ou
mesmo me enganar simulando um passeio
ou outra coisa e escondendo a fuga.


Só sei que, nesta história toda, já fui
muito cruel e não poupava nada nem
ninguém. Isto ficou em minha mente e,
não sei bem porque, hoje me envergonho
de certas cenas que protagonizei e que
ficaram gravadas em meu íntimo. Quando
pegava um fujão, eu mesmo
encaminhava-o para o Campo de Pedras.
Ou para coisa pior. Com o maior prazer e
consciência do dever cumprido.

No entanto, sem que eu mesmo notasse
quando e como o processo mental
começou a se instalar e a me incomodar,
passei a me cansar do serviço, achando-o
monótono, ficando relaxado com os
castigos e acreditando que no mundo
devia haver coisa melhor e mais
interessante para se fazer do que ficar
tomando conta de portão e perseguindo
todo mundo. Para piorar a situação, fiquei
muito doente, passei a sofrer alucinações
e ausências, a ter delírios, sentia minha
mãe me estendendo os braços. Via os
lugares lindos que a cercavam, repletos de
flores, água e gente feliz. Comecei a
querer me sentir feliz também, a precisar
ser feliz, entenderam?


Fui mudando pensamentos, atitudes,
nem eu conseguia me entender. Perdi a
vontade de bater, agredir, castigar. E
cheguei ao extremo do destemor e do
desinteresse pelo trabalho: ajudei um
amigo de Gabriel a fugir, embora nem
mesmo ele tivesse ficado sabendo disto. É
que, quando o moço passou
sorrateiramente por trás de mim,
compreendi perfeitamente que ele não
estava passeando, li com clareza as
intenções mentais dele, fingi que não o vi
e, distraidamente, soltei as amarras do
portão. Não me arrependi e não me
arrependo. Coitado! Merecia uma
oportunidade melhor. Era um sujeito bom,
fiel, não combinava com o lugar. Lia-se
nos seus olhos que não estava satisfeito
nem feliz. Nunca o vi participar de
julgamentos, perseguir alguém ou mesmo
sugerir punições. Sempre o admirei muito,
embora pouco conversássemos, pois ele
fazia parte da elite restrita do chefe e, por
isso, acessá-lo era proibido. Só podíamos
falar com ele quando ele se dirigia a nós.
Mas o moço não combinava com o lugar,
tenho absoluta certeza: estava sempre
tentando apaziguar, acalmar. Havia algo


diferente no seu olhar e na sua voz.
Tomara que tenha encontrado um destino
melhor que o meu! Pelo menos para isto
eu servi: deixar que um justo saísse deste
inferno!

O resultado de minhas ausências e
delírios – que continuaram cada vez mais
intensos – foi fatal: fui considerado inútil
pelos meus chefes, doente mental,
incapaz para qualquer tipo de serviço
responsável e outras coisas. Passei pela
inevitável entrevista com Gabriel, no Salão
da Pedra Negra, onde acredito que vocês
estiveram também.

Fui muito sincero e cheguei a chorar.
Falei com o Mago que não lhe desejava
mal – aliás, estava tão doente que não
desejava mal a mais ninguém – que
queria algo mais, que sentia meu coração
vazio, que não queria prejudicar pessoa
alguma e procurava a Paz para mim e
para todos.

Por momentos, senti que o coração dele
também estava balançando, tive as
mesmas sensações e impressões que
você. Pensei até que ia respeitar minha
nova opção de vida, me deixar ir embora,


me estender a mão, pois notei compaixão
nos seus olhos. Mas, foi por pouco tempo.
Acho que eu mesmo é que estava doido de
pensar isso. Era alguma emoção qualquer
dele, mas não a que eu imaginava. De
qualquer maneira, ele se refez logo e o
resultado vocês estão vendo: eu estou
aqui preso. Antes, porém, fui torturado
com descargas magnéticas na mente e no
coração. Não gosto de me lembrar. Foi
horrível! Vocês ainda não conhecem e
espero que nem conheçam as torturas
daqui...

Mas, nisto tudo, guardo comigo duas
vitórias inúteis para mim no momento,
pois em nada me ajudam, embora muito
me alegrem. A primeira: comecei a me
sentir cada dia mais leve, mais tranqüilo,
quase feliz, embora tenha perdido a noção
de tempo, trancafiado aqui. E não acredito
que tenha chances de sair. Embora
vivendo quase no escuro, neste lugar onde
tudo é eternamente sombrio e frio, sonho
com muita luz e continuo vendo minha
mãe naqueles lugares, me chamando. Ah,
se eu pudesse! Se fosse verdade, se
minha mãe estivesse a meu alcance! Não
me lembro como vim parar aqui, como


vou saber onde ela está? Éramos tão
amigos, tão ligados!

A segunda vitória é que, em momento
algum, ele, que é tão forte e poderoso,
conseguiu entrar em minha pobre e
desprotegida mente e descobrir que fui eu
quem deu cobertura a Inácio! Minha
condenação foi por ter me tornado um
guarda relapso e não cumprir fielmente os
meus deveres, desinteressando-me deles.
Ainda bem para mim! Inácio era o amigo-
irmão, que sabia protegê-lo sem
concordar com seus atos, o único que
tinha condições de aconselhá-lo,
repreendê-lo e – o melhor – ser ouvido.
Acredito que tinha esta força sobre o Mago
por ser infinitamente superior a ele nos
caminhos do coração, sempre dando bons
conselhos e tentando ajudá-lo a se elevar.
Por sua vez, Gabriel só confiava em
Inácio, única pessoa em quem acreditava
e de quem gostava! Se alguém tivesse o
poder de tirar algo bom do Mago, seria
Inácio. Não entendo como duas criaturas
tão diferentes podiam ser tão unidas! Uma
vez comentei isto com um amigo e este
amigo, o João, falou comigo num negócio
muito esquisito de muitas vidas,


reencarnação, coisas muito estranhas. Por
via das dúvidas e porque não entendi
nada, dei um fim em nossa amizade,
senão ia acabar me comprometendo. Logo
depois, soube que levaram João para o
Campo de Pedras. Bem feito! Ficar
conversando fiado dá nisso – pensei eu na
época.

Mas, voltemos ao assunto principal.
Quando soube da perda do amigo, o
homem quase enlouqueceu de fúria! E de
dor não revelada, creio eu, pois, no fundo,
ele sabia que o outro era superior a ele –
se não no poder mental – pelo menos no
poder moral.

De vez em quando, eu me pergunto,
sem resposta: como consegui enganá-lo?
Não sou forte e nem tenho os poderes
dele... Ainda bem para mim: se
descobrisse, não sei o que seria deste
pobre coitado! Mexi logo na maior ferida
dele. Ou melhor, criei a maior ferida dele.
No íntimo de Gabriel misturaram-se as
dores da perda, o orgulho ferido por se
ver preterido, a mágoa, o horror de ser
desprezado, mesmo sendo tão poderoso.
E quem sabe mais o quê?


Uma voz emocionada e embargada
respondeu atrás de todos:

— Porque você amaciou o seu coração,
tornou-se bom e saiu da faixa vibratória
dele, José Anselmo, meu irmão! Só isto!
Mas isto tirou toda a força dele sobre
você. A única coisa que ele podia, a partir
daí, era mantê-lo trancafiado, em virtude
da sua ignorância da nova condição: caso
contrário, nem isto! Você já estaria longe
a esta hora! E obrigado, meu amigo! Deus
queira que eu algum dia possa retribuir
sua generosidade! Você foi a chave da
minha recuperação espiritual. Eu não me
deixava dominar por Gabriel, como você
disse, mas havia uma coisa que eu jamais
conseguiria, por causa do violento
processo de imantação entre nós dois, que
atravessou até o portal dos mundos: abrir
o portão da liberdade. Cheguei várias
vezes até ali, mas tive que retroceder. Ao
soltar a trava, você me libertou, pois
soltou as minhas amarras também,
entendeu? Devo-lhe muito, muito mais do
que você pensa...

José Anselmo e Inácio se abraçaram
chorando, no meio do silêncio, da
surpresa e da emoção geral.

Foi quando a porta se abriu com
estrondo e Dalva e Jaciara foram atiradas
para dentro, jogadas sem piedade no
chão. Imediatamente amparadas por
Pedro e André, e ainda assustadas, elas
contaram que, apenas viram os amigos
saírem presos e a rua se esvaziar, saíram
do esconderijo e esgueiraram-se por entre
os muros silenciosamente.

Nunca haviam visto um local tão cheio
de cruzamentos, embora tudo fosse
quadrado e retangular! Nada redondo! As
casas – se é que eram casas – pareciam
grandes caixas de pedra, todas com
janelinhas também quadradas e
gradeadas, bem no alto das paredes. Até
a pracinha, aonde chegaram totalmente
perdidas, era um grande retângulo, onde
desembocavam várias ruas, numa ordem
perfeita e espaços iguais.

Havia gente por todo lado, como um
grande e desorganizado mercado. Todos
pareciam atrasados, sem tempo, agitados.
Ninguém olhava para os lados e, até os


grupos que pareciam conversar, o faziam
andando sem parar, quase correndo. A
maioria carregava cestos, garrafões,
trouxas e até peças inteiras de panos de
cores fortes. As roupas lembravam os
trajes medievais e diferenciavam as
escalas sociais. Algumas muito suntuosas,
em mulheres com grandes e trabalhadas
cabeleiras. Outras vestiam camponeses e
camponesas, com sapatos de pano grosso
cheio de amarras de couro. Todos usavam
chapéus pontudos e coloridos.

As duas encostaram-se numa parede e
ficaram olhando o movimento, tentando
localizar alguém que parecesse confiável.
O máximo que conseguiram foram olhares
de desprezo ou de troça.

Começavam a se desesperar, quando
uma porta se abriu bem ao lado e uma
cabeça de mulher apareceu, mandando
que entrassem rápido, pois era perigoso
ficarem paradas na rua e sozinhas.

Desconfiadas, mas sem alternativas, as
duas entraram e se viram em linda e
original sala, com cortinas que imitavam o
caimento de tendas, em tudo igual a um
harém árabe, pelo tipo de decoração e


pelas roupas das lindas mulheres ali
espalhadas, sentadas ou deitadas em
almofadas grandes e confortáveis, que
nem prestaram atenção às recém-
chegadas.

A mulher que as colocara para dentro
era mais velha e não se vestia como as
outras. Parecia ter grande influência sobre
todas e, também, muita autoridade. Com
carinho, mandou que as duas se
acomodassem à vontade e sem medo.
Disse que, por enquanto, poderiam ficar
ali, pois era certo que estavam perdidas e
que não pertenciam àquele local.

Elas responderam que estavam um
pouco confusas, pois não conheciam o
lugar e haviam realmente se perdido dos
amigos.

Uma outra mulher, alta, morena e de
fisionomia dura, entrou na conversa de
maneira brutal, dizendo que as duas não
se fizessem de rogadas, pois ali ninguém
era idiota e estava na cara que não
tinham para onde irem. E, sem cerimônia
e nenhuma delicadeza, falou que elas
agora podiam fazer parte do grupo e que

– tinha certeza – gostariam do trabalho de

consolar os tristes e ajudar os cansados e
relaxarem.

Diante do olhar de espanto e
incompreensão das duas, uma loura alta e
esguia deu-lhes boas vindas na mais
antiga profissão do mundo... E desatou
em estrondosa gargalhada.

A conversa foi interrompida pela
entrada barulhenta e desrespeitosa da
polícia, procurando por duas mulheres
suspeitas. De susto em susto, elas foram
amarradas e atiradas num canto da sala,
entre almofadas. Os policiais pretendiam
revistar o local para ver se havia mais
suspeitos, antes de levá-las.

E foi precisamente isto que facilitou a
aproximação da mulher que as deixara
entrar. Fingindo apanhar almofadas no
chão, ela conseguiu sussurrar no ouvido
de Dalva que avisaria Simeão.


O ENCONTRO COM SIMEÃO

Acalmadas as moças e José Anselmo
incorporado ao grupo, todos se
assentaram no chão, em circulo, para
combinarem a estratégia a seguir.

Pelo tanto de escadas que haviam
descido e baseados nas informações do
novo amigo, constataram que a prisão se
encontrava muito abaixo dos
subterrâneos. E, justamente por isso,
sentiam que os abalos na superfície
estavam cada vez mais freqüentes, pois o
interior da terra estremecia em
convulsões. A tempestade chegava.
Tinham que agir.

José Anselmo foi informado da
urgência da fuga, do objetivo a cumprir e
da destruição próxima. Chorou comovido
quando ouviu que agora era membro do
grupo. Em lágrimas, jurou que cumpriria a
parte que lhe fosse destinada na missão.
Mas, quando soube que o lugar de flores,
água e paz que via em sonhos existia
mesmo e que ele iria para lá, pôs-se de
joelhos, agradecendo a Deus por haver
aberto seus olhos.


Ainda sob forte emoção, ouviram a
informação do novo amigo e parceiro:

— Estamos com um problema. É
muito difícil escapar daqui, se não
impossível. As fechaduras das celas são
controladas magneticamente pelo chefe da
guarda, que fica lá em cima. Elas têm
precisão total, como André já notou.
Falando com o máximo de otimismo,
mesmo que consigamos sair – e não faço
a menor idéia de como faremos isto –
teremos que passar pelos guardas e andar
muito pelos subterrâneos.
Augusto interrompeu-o:

— Sabemos que não é fácil, José
Anselmo. Nada vai ser fácil, é por isso
mesmo que estamos aqui. Não temos
outra escolha. Diga-me: caso consigamos
destravar esta fechadura, você nos guiará
para fora? Conhece estes caminhos?
— Sim, com certeza.
— Então, Danilo, passo-lhe a vez.
— Que vez?
— De abrir a fechadura, meu caro, a
fechadura... Avie-se, vamos...

Danilo levantou-se. Os outros ficaram
de pé atrás dele, aguardando. Ele se
aproximou da porta, colocou as duas mãos
sobre a fechadura e cerrou os olhos. Ficou
imóvel por segundos e então suas mãos
começaram a deslizar em volta do pino
principal que entrava pedra adentro,
tornando o lacre da porta inviolável. Mais
alguns segundos e um ruído de
engrenagens que se destravavam se fez
ouvir, primeiro baixinho, depois mais alto,
cada vez mais nítido o som. As mãos de
Danilo largaram o pino, parando a alguns
centímetros dele que, lentamente, foi se
movendo para trás, para trás, até que um
"clic" final escancarou a porta.

Com um "Hurra!" André e Pedro
festejaram o fato diante de um atônito
José Anselmo, que perguntou incrédulo:

— Mas, afinal, quem são vocês? Em
quê ou em quem você se transformou
Inácio? Um novo Mago? Por acaso são
todos Magos? Vocês acabam de me provar
que há coisas mais belas e mais
profundas, que o meu amigo que eu
abandonei pensando ser louco estava era
aproximando-se da verdade...

Diante da alegria geral, foi Inácio
quem respondeu:

— Viemos de onde será seu novo lar,
meu amigo. Um local de paz e de luz,
onde aqueles que lutam para o próprio
aperfeiçoamento vivem e pelejam para
auxiliar aos outros que se encontram mais
atrás. Lá você morará e aprenderá a ser
feliz e fazer os outros felizes também,
como vem sonhando há tanto tempo.
Sem serem perturbados pelos
guardas – e sem nem sequer serem vistos
por eles – passaram todos pelo corredor
que se tornou inexplicavelmente mais
escuro, entrando numa minúscula
passagem debaixo da escada e se
embrenhando nos subterrâneos, guiados
com segurança por José Anselmo que, em
suas atividades anteriores, já passara
muito por ali. Andaram por túneis largos –
agora subindo – e entraram em
maravilhoso salão cheio de estalactites e
estalagmites, que brilhavam como
diamantes. Uma gruta! E de rara beleza!
Ali novamente presenciavam dois planos –

o da Terra e o do Além– se
interpenetrando com perfeição.

Inacreditável! Mas não era possível parar
para observar melhor. Aguardava-os a
travessia de mais um longo túnel e mais
uma penetração na cortina de separação
dos mundos. Uma longa caminhada e
saíram do subterrâneo, num local cheio de
terra, pedras e lama.

José Anselmo informou:

— Estamos entrando no Campo de
Pedras. Não é agradável, mas,
infelizmente, teremos que atravessá-lo.
Logo após, sei de um lugar seguro onde
me informarão sobre seu amigo Simeão.
Infelizmente, nunca ouvi falar dele.
Estávamos em campos opostos e, pelo
visto, ele muito mais protegido do que
eu... Vamos em frente.
O que viram era estarrecedor.
Estátuas por todos os lados, nas mais
variadas posições, umas em pé, outras
caídas, algumas paradas, outras rolando,
esbarrando umas nas outras, sujas de
terra e barro. No entanto, se observados
de perto, os olhos de todas apresentavam-
se como as únicas partes vivas!

Alguns olhares refletiam ódio e
chegavam a dar medo, outros mostravam


loucura total, outros mais eram vazios ou
desesperados. Muitos estavam molhados e
algumas estátuas apresentavam sulcos
profundos, que saíam dos olhos e se
espalhavam por todo o corpo. Estas
pareciam querer se movimentar.

O guia informou:

— As pedras só se derretem com o
líquido salgado que, em alguns casos e de
repente, começa a escorrer-lhes dos
olhos, parecendo lágrimas. É um
fenômeno que não entendemos e ninguém
se interessa ou consegue explicar. Dizem
que é o sal que não combina com este tipo
de pedra e a marca e derrete. Parece uma
reação química, nada mais. Estes que
começam a se molhar muito entram num
estranho processo de movimentos
desordenados e são os que começam a se
derreter! Cruzes! Quando se derretem
totalmente, ficam ensopados e soltam
uma casca molhada e quebradiça. Então,
saem correndo assustados por aí.
— Para onde? – quis saber André.
— E eu sei? E quem sabe? A única
coisa que alguns falam é que eles
simplesmente somem no ar e nunca mais

os vemos. Tem uns doidos que dizem que
eles viram anjos e, por isso, são expulsos
daqui. Vejam se é possível! Mas há outras
teorias e muitos malucos que acreditam
nelas: algumas pessoas juram que eles
são recolhidos, mas não se sabe por
quem, nem para quê. Quem conta baseia-
se no fato de que já foram vistos vultos
por aqui, entre as estátuas, mas ninguém
se aventurou a chegar perto. Tudo são
conjecturas.

Comovidos diante de tanto
sofrimento, mas sem nada poderem fazer
no momento, continuaram a andar, até
que, lívido, Pedro ajoelhou-se para
observar melhor uma delas que, quase
livre, tentava se mover, arrastando-se de
bruços pelo chão de lama, soltando
pedaços semelhantes a cimento molhado e
quebradiço. Com cuidado, Pedro virou-a e
seus olhos se encontraram com os olhos
suplicantes e cheios de lágrimas do
homem-estátua. As mãos, ainda pétreas,
se estendiam em direção a Pedro, como
que em prece.


E os olhos agora molhados de
lágrimas de Pedro, se cruzaram com os
olhos cansados de chorar de Pedrão Boi.

Compreendendo que algo muito
profundo estava acontecendo, todos
pararam e cercaram Pedro, mantendo
silêncio profundo. André ajoelhou-se e
colocou a mão no ombro do amigo, numa
atitude de solidariedade e presença muda.

O que se passou em segundos na
mente de Pedro ninguém imaginou ou
imaginará, mas o resultado, cheio de
misericórdia e perdão, todos
presenciaram.

Chorando, Pedro foi passando as
mãos pela cabeça do infortunado. Depois,
desceu-as até o coração da estátua e as
manteve lá. Os primeiros movimentos na
cabeça e nas mãos de pedra fizeram-se
sentir então. Pedro mantinha as mãos
firmes no coração do inimigo de outrora,
dando-lhe forças e chorando com ele.

Os olhos de Pedrão Boi se
arregalaram desmesuradamente e ele
sofreu violenta convulsão no corpo todo.
Grandes pedaços de pedra despedaçada
foram se soltando dele, rachando-se como


um casulo quebrando-se. Com dificuldade,
seus lábios se abriram, murmurando:

— Perdão!
O salvador do próprio assassino,
chorando cada vez mais, respondeu:

— Quando eu o vi qual pedra, havia
tanta dor e desespero em seus olhos, que
não foi o seu, mas o meu coração que
doeu. Seja o que for que você tenha feito,
já sofreu muito. E, por me matar e me
tirar do convívio amado dos meus, eu
perdôo você, Pedrão Boi, o homem que
em vida foi tão meu amigo e me traiu
tanto! E, se eu o magoei a ponto de
induzi-lo a tal ato de loucura, perdoe-me
também agora, meu amigo!
As lágrimas de Pedro, copiosas,
caíram no rosto do assassino, misturando-
se às dele. E toda a pedra foi se
derretendo, enquanto pernas e braços
começaram a se mover normalmente.

Pedrão Boi voltava ao normal, agora
ajudado também por André, que ia
passando as mãos em movimentos
longitudinais pelo corpo do outro,
desembaraçando-o de invisíveis e ainda
pétreos fios.


Emocionada, Dalva se lembrou:

— Meu Deus! O homem que chorava
e me passou a imagem de pedras, de
estalagmite... Estalagmite, estátua... Ele
estava preso ao chão, como estalagmite. E
foi socorrido por nós...
Pedrão Boi já se encontrava de pé,
amparado por André, procurando firmar as
pernas. Tentou explicar algo para Pedro,
que o cortou:

— Não quero saber porquê você fez
aquilo. Tudo tem uma razão na vida e eu
mesmo, inconscientemente, posso ter
estimulado o seu ato. Quem sabe? O que
passou, passou e você tem o meu sincero
perdão. Vamos levá-lo e providenciar
ajuda. Acalme-se.
E o grupo seguiu em silêncio, José
Anselmo e André amparando o ex-homem
de pedra que ainda sentia dificuldades
para andar, Jaciara e Dalva
carinhosamente abraçadas com Pedro.

Mais adiante, já saindo do campo,
notaram que um vulto os observava de
longe. Depois, veio se aproximando,
acompanhado de outros dois. Haviam
encontrado Simeão.


Com um sorriso nos lábios e um rosto
bondoso, largo manto branco, barbas e
cabelos alvos, Simeão lembrava um
profeta da antiguidade. Acostumado a agir
rápido, antes mesmo de falar com os
novos amigos, ele fez um sinal para os
dois auxiliares que, imediatamente,
desdobraram a padiola que traziam e nela
colocaram cuidadosamente Pedrão Boi.
Sem palavras, afastaram-se celeremente.

Só então o velho Simeão falou:

— Felizmente encontrei-os! Não se
preocupem com o homem que acabaram
de salvar. Juntamente com outros que
tirei daqui, ele está sendo levado para
longe deste pesadelo, onde será cuidado e
encaminhado a seu destino. Agora
mesmo, todos os que foram libertados nas
últimas horas já estão seguros. Já quanto
a nós, não digo o mesmo: ainda temos
muito que fazer e em pouco tempo. Não
podemos nos atrasar e nem estamos livres
de ciladas. Sigam-me!

OS CIENTISTAS

Violento abalo sísmico interrompeu a
caminhada, atirando todos ao chão.
Relâmpagos e raios cortaram o espaço e
fagulhas elétricas desceram ao solo,
perfurando-o e soltando altíssimas chispas
de fogo, incendiando galhos secos e
árvores mortas.

Levantaram-se, uns ajudando aos
outros. Simeão avisou que estavam
chegando a uma gruta, onde poderiam
descansar e fazer os planos imediatos.
Correram, por entre os fogos que
crepitavam ao tocarem o solo, uns
puxando os outros e todos segurando
onde fosse possível.

Incêndios propagavam-se em todos
os locais que a vista alcançava.
Desembaraçando-se de uma pedra que
obstava o caminho, André comentou:

— Parece que a festa começou...
Ao que Simeão retrucou:
— Você ainda não viu nada. Ela está
apenas se anunciando.

Uns auxiliando aos outros, correndo
entre as labaredas escarlates,
conseguiram chegar à gruta onde, mais
protegidos, Danilo foi logo ao assunto:

— Simeão, por favor, satisfaça à
minha curiosidade: por que tanta
importância a estes dois cientistas? Ainda
não entendi isto. Quem são eles?
Precisamos tanto assim de cientistas?
— Meu filho, nem nós nem Gabriel
precisamos de mais aparato técnico. Já
quanto a objetivos... Um dia, os nossos
pontos de vista hão de coincidir e então
uma nova história do Universo será
contada... O casal de velhinhos que veio
buscar foi, na Terra, o casal que adotou
uma criança abandonada e deu a ela o
nome de Gabriel.
Cientistas conhecidos no campo da
pesquisa da genética humana, eles
passaram ao filho muito querido a
profissão, os conhecimentos e o nome
respeitado nas comunidades científicas
internacionais. Só não preencheram o
coração dele com alguma fé ou crença,
pois não tinham este tesouro invisível.


Eram ateus e só acreditavam no exatismo
da Ciência.

O menino – possuidor de uma
paranormalidade de altíssima qualidade,
aliada a uma beleza física fora do comum

– cresceu acreditando que podia tudo, ao
lado da facilidade material e da grande
inteligência. Tornou-se médico e escolheu
dedicar-se às pesquisas no campo das
doenças tropicais. Esta parte da história
vocês já conhecem bem.
Os pais, embora lhes faltasse a paz
de uma fé, eram pessoas sérias e
bondosas. Digamos que eram aqueles
ateus maravilhosos: que fazem o Bem,
não porque esperam alguma recompensa,
mas porque acreditam nele. No caso
deles, vendo a situação que criaram,
conscientizaram-se imediatamente e sem
nenhum orgulho do erro que haviam
cometido na criação do ser amado,
tentaram intervir várias vezes junto ao
filho, mas não foram ouvidos. Já era tarde
demais. No entanto, um grande e real laço
de amor unia os três que, logo após a
vinda de Gabriel, se reuniram aqui, pois
os que ficaram não conseguiram


sobreviver à dor da partida do filho
amado.

Ao se reunirem novamente, vendo os
atos loucos e impensados do filho, eles
sentiram realmente o peso da
responsabilidade para com aquele Espírito
que lhes havia sido confiado pela força do
destino e se conscientizaram da culpa por
omissão que tinham em tudo.
Descobriram também que a vida continua

– coisa que nunca lhes havia passado pela
cabeça – e isto só complicou mais as
coisas, pois as consciências acordaram
mais. Tentaram mais uma vez falar ao
coração do filho, mas em vão. Eles se
transformaram então num empecilho para
Gabriel que, no entanto, os amava muito,
mas se sentia incomodado com as
admoestações deles.
Os velhinhos tiveram várias chances
para escapar daqui, mas recusaram todas,
pois os dominava a idéia fixa de salvar o
filho querido, embora, por total falta de
informação, eles não soubessem como
nem por onde começar. Afinal, eles
sempre acreditaram só na Ciência...


Ficaram enredados no seu próprio
desconhecimento das coisas do espírito:
se optassem por fugir, não saberiam o
quê, onde e o quê procurar. Optando por
ficar e agir em favor do filho, não sabiam
por onde começar a fazer o quê...

Afinal, é muito difícil, praticamente
impossível, achar aquilo que não foi
forjado previamente no coração e do qual
não se tem o menor conhecimento.

Criou-se uma situação complicada e,
mais uma vez, Gabriel – também tentando
solucionar o conflito à sua maneira
complicada, embora amando-os – resolveu
as coisas a seu modo: colocou os dois em
local confortável, mas completamente
isolado e fortificado, onde só ele entrava
para visitas periódicas, tentando atendê-
los e protegê-los em tudo, menos ouvi-los
com seriedade. Achava ele que eram
achaques de velhos que um dia passariam
e poderiam então ficar juntos e felizes
novamente.

O silêncio e a mágoa do isolamento
imposto pelo próprio filho amoleceram
mais ainda os corações dos velhinhos, que
foram acordando aos poucos, e, no


princípio inconscientes, depois plenamente
conscientes, eles começaram a pedir
socorro e apoio da Misericórdia Divina,
mesmo sem saberem ao certo o que era o
Divino. Apelaram para aquela mesma
misericórdia da qual eles tinham ouvido
falar a muitos anos atrás – em cinemas,
jornais, teatros, palestras e mesmo
conversa de clientes e colegas – e da qual,
aparentemente, nunca precisaram e nem
sequer conseguiram entender o
mecanismo ou porque as pessoas
acreditavam nela. Algumas vezes
chegavam a perguntar aos mais
chegados: por que não estudam e
resolvem o problema pela ciência exata,
que tem resposta para tudo? Crendice
popular, reza, tudo isto é desculpa para
preguiçoso, diziam. Afinal, achavam muito
comodismo quando, ao invés de
pesquisar, as pessoas levavam o assunto
para o campo da religião e pronto: davam
um basta nele! Gostavam até de provocar
os amigos mais chegados dizendo: "Ao
invés de acreditar cegamente nisto que
você está me falando, vá pesquisar,
procurar, achar, estudar, vá! Tudo tem
explicação e para isto existem a física, a


química e outras ciências mais!" Uma vez,
ao responder a um cunhado que tentava
questionar determinado assunto não
concreto, o pai de Gabriel provocou-o: "Vá
procurar lá dentro do seu cérebro que
você acha! Ainda falta muita coisa para
pesquisar no cérebro humano. Por que
você não inicia uma coisa séria neste
campo?" E por aí afora...

E foi numa de suas visitas periódicas
que o filho descobriu a mudança operada
nos pais e se desesperou, entre o desejo
de puni-los e o receio de magoá-los mais.
Como vêem, o coração de Gabriel não é
totalmente árido: há esperanças para ele.
Aliás, para quem não há esperanças?

Danilo interrompeu a narração,
eufórico:
— Viu, José Anselmo? Tínhamos

razão! Ele tem pontos vulneráveis! De
algum modo, nós conseguimos ver isto!
Simeão aparteou:

— E quem não tem pontos
vulneráveis, filho? Nos corações sempre
habita a Misericórdia Divina, basta uma
estocadinha e... Só que Gabriel luta muito
contra o que ele também acredita serem

seus pontos vulneráveis, e que considera
manifestações de fraqueza. E, ao ver os
pais mais fortes, considerou-os fracos e, à
sua moda, quis protegê-los. E aprontou
outra: colocou-os em estado cataléptico,
acreditando cegamente que assim eles
sofreriam menos, até que ele encontrasse
uma solução. Ao mesmo tempo,
desesperava-se toda vez que os via assim,
pois ele, o Mago poderoso, respeitado e
temido, não conseguia curar os pais e
trazê-los normais ao convívio dele, para
voltarem a fazer a família feliz de sempre.
É como ele se sente no momento.

Gabriel luta consigo mesmo e,
infelizmente, sempre que seu coração é
tocado, toma a atitude errada... Ele
próprio está escolhendo um caminho de
muito sofrimento, até conseguir aprender.
E não poderá reclamar nunca, apenas
lamentar o tempo perdido. Afinal, teve
todas as facilidades, até demais: beleza
física, inteligência, riqueza material, bons
amigos. Mas não soube aproveitar nada...
Pobre Gabriel!

Augusto estava pensativo e
murmurou:


— Meu Deus! Ninguém me falou que
eram os pais do Mago... Por quê, Inácio?
— Acredite-me: você não receberia
bem a notícia. Lembre-se de que apenas
acabara de acordar. Com muito êxito por
sinal. Mas ainda não estava totalmente
firme e preparado para tudo. Na medida
em que viajávamos para cá, e através das
muitas coisas que nos aconteceram, todos
nós amadurecemos. Foi um processo
muito bonito e, depois que tudo passar,
sugiro que cada um de nós pense nisto.
Valeu muito mais do que possamos
imaginar agora. De certa forma, passamos
em mais um teste... Nada acontece por
acaso ou com a pessoa errada. No futuro,
descobriremos porque nós fomos os
escolhidos para esta missão. Há um
motivo forte para estarmos aqui juntos,
mesmo que não o conheçamos agora,
podem ter certeza.
— É mesmo! Eu me sinto tão bem,
tão seguro, bem incorporado ao ambiente
e às novas perspectivas, com inteira
consciência de que algo muito grande
mudou em mim, nenhuma dúvida ou

medo me assalta mais... Estou em paz... –
ponderou Pedro.

— E eu? Já me sinto uma perfeita
alma do outro mundo... – alardeou André,
rindo gostosamente e fazendo uma careta
para Danilo, como se quisesse assombrá-
lo. Danilo retribuiu com um tapa na nuca
do amigo-assombração.
Simeão sorria bondosamente,
ouvindo as considerações de todos e
constatando que, realmente, tinha diante
de si novos seres imortais preparados
para tudo e, principalmente, com perfeita
noção da interpenetração dos mundos e
das vidas. Sugeriu então:

— Que tal irmos buscar o nosso
casal? Não temos muito tempo... Confiram
só o barulho lá fora. Não será nada
agradável conhecer esta parte do mundo
de cá, se estivermos por perto na hora em
que eclodir todo o potencial da tormenta.
Conheço um caminho onde conseguiremos
passar com menos dificuldades. A
convulsão ainda não deve ter chegado lá,
espero. Vamos logo!
Levantaram-se e acompanharam
Simeão.


Seguiram por estreita trilha arenosa
e escorregadia, escondida entre grandes
pedras, onde a fúria do tempo estava
menos assustadora. Entre as estreitas
passagens e as colossais pedreiras,
ficavam disfarçados e tornava-se difícil a
localização deles, pois tinham certeza de
que deveriam estar sendo seguidos. A
fuga já deveria ter sido descoberta há
algum tempo.

Andaram bastante, escorregando e
segurando uns nos outros, até que
pararam diante de uma construção que
lembrava uma pirâmide, com a ponta de
cima cortada, toda de pedra. E o primeiro
obstáculo apareceu: não havia porta e
nem entrada visível.

Simeão parou de frente para a
pequena e inviolável edificação e abriu os
braços, estendendo as mãos espalmadas
para o alto. Cerrou os olhos e ficou
imóvel.

Ligeira brisa começou a soprar só em
volta de Simeão, formando um cone cuja
ponta sumia no infinito e a base entrava
terra adentro, contrastando com toda a
violência do lugar. A veste branca e


comprida do ancião balançava docemente.
A nítida sensação de que ali, naquela
hora, dois mundos se tocavam e um se
abria para o outro, dominou a todos.

Mansamente, uma pedra começou a
se deslocar devagarzinho, formando um
ângulo com a parede e criando uma
passagem, por onde todos entraram sem
hesitação, parando em espaçosa sala sem
móveis, onde, no centro, rico toldo de alva
renda pendia do teto em cascatas,
cercando uma elevação coberta com
tecidos finos e esvoaçantes, mostrando
cama protegida, confortável e macia. Em
cima, cercados por almofadas, o casal de
velhinhos dormia profundamente.

Aproximaram-se reverentemente. A
um sinal de Simeão, formaram um círculo
ao redor deles e estenderam as mãos à
frente, com as palmas para baixo. Luz
azulada começou a brotar dos dedos de
todos, iluminando o local com delicadeza.

Sem que precisasse ser lembrado de
que a hora era dele, sem medo ou
insegurança, mostrando saber o que devia
fazer, Danilo adiantou-se e se colocou na
cabeceira. As duas mãos no ar, cada uma


na direção da cabeça de um adormecido,
palmas para baixo, dedos bem abertos e
separados.

Como por encanto, o cortinado
começou a subir delicadamente,
permanecendo pairando no ar a uma
razoável distância, deixando a cama
inteiramente acessível.

Danilo ficou imóvel e concentrado por
mais alguns minutos, depois ajoelhou e
tocou, ao mesmo tempo, as testas
geladas. Como se tivessem levado um
choque, as mãos do casal começaram a
dar sinais de despertamento, os dedos se
mexendo com fraqueza, desordenados e
sem forças.

Por sua vez, as mãos de Danilo,
acercando-se dos olhos dos dois, pareciam
fazer evoluções no ar, em movimentos ora
lentos e circulares, ora rápidos e descendo
em direção aos corações.

A coordenação de Danilo era
excelente e as suas mãos faziam
exatamente os mesmos gestos, uma para
cada um dos adormecidos. A rapidez era
grande e parecia que faziam mágico
desenho no ar. Doce luz cristalina com


emanações rosadas começou a brotar das
pontas de seus dedos, em direção aos
corações dos velhinhos.

Desordenadamente, o casal começou
a ter convulsões, bater pernas e braços,
mas ainda parecendo ter as costas coladas
na cama. Danilo, impassível, continuava a
sua coreografia com as mãos iluminadas.

Repentinamente, pararam todos os
movimentos descontrolados. E os dois
velhinhos abriram os olhos, indecisos,
assustados e choramingando como
crianças. Dalva e Jaciara acercaram-se,
abraçando-os ternamente, beijando-os
nas testas e acalmando-os. André e Pedro,
de um pulo, ampararam e levantaram
Danilo, que parecia exausto.

O bom velhinho, arregalando os
olhos, perguntou:

— São anjos? Existem mesmo anjos?
Inácio aproximou-se:
— Somos seus amigos. Viemos
buscá-los. Não temam.
— E nosso filho? Não podemos deixá-
lo...

— Não se preocupem. Um dia ele
também irá, quando chegar a hora dele...
O lugar para onde vamos agora é o ponto
onde termina a peregrinação de todos...
Ninguém se perde no caminho, embora
uns demorem mais que os outros. Podem
confiar em mim.
Trovões ribombavam lá fora e forte
chuva de granizo começou a cair
barulhenta, espalhando pedras imensas
que, ao invés de ajudarem a aplacar o
fogo, pareciam atiçá-lo.

Simeão avisou:

— Vamos logo! Temos que nos
esconder! Aí vêm Gabriel e a tempestade
também!
Docilmente, os velhinhos se deixaram
conduzir pelo imenso carinho das moças.
E, pelo mesmo caminho que haviam
percorrido para entrar, voltaram quase
correndo. Sem parar de caminhar rápido,
Augusto ia dando as ordens com precisão:

— Dalva e Jaciara, não se afastem
dos nossos protegidos. Inácio e Danilo
dêem cobertura a elas. André e Pedro
protejam Simeão! Eu e José Anselmo
abriremos passagem de qualquer maneira.

Sigam-nos todos, o mais perto possível
uns dos outros. Vamos sair em bloco,
atravessando qualquer barreira. Lança-
chamas nas mãos, pessoal! Bombardeiem
as pedras e tudo mais que interceptar o
nosso caminho. Os obstáculos vão se
derreter.

— Como sabe? – um curioso André
perguntou.
— Não sei. Imagino que sim.
— Eu sabia que não deveria ter
perguntado... Eu falo demais... O que é
que eu estou fazendo aqui, meu Deus do
Céu? – foi a resposta bem humorada de
André, acompanhada de uma risada de
Pedro.
Imensas pedras caíam de todos os
lados, quase atingindo o coeso grupo.
Galhos secos e pesados troncos
desabavam não se sabia de onde e o local
parecia uma filial do inferno descrito por
algumas religiões e pelo próprio Dante.

O grupo bem unido, colados uns aos
outros, andava o mais depressa possível,
tentando alcançar os portões dimensionais
e sair, fugindo rápido do que ainda viria,
tinham certeza muito pior e mais


avassalador do que o vento, o fogo, o
granizo e os trovões.


COMBATE FINAL

Estavam no alto da colina,
aproximando-se das guaritas dos portões
avançados da fortaleza, quando puderam
ver que lá dentro acontecia a pior e mais
terrível devastação.

As casas voavam pelos ares, onde se
desfaziam estrondosamente, provocando
chuvas de pedras, entre fogo, granizo e
muita areia.

O chão pulsava, abrindo e fechando,
abrindo bocas monstruosas que engoliam
tudo e todos.

Fogo, pedras, granizo, gritos e
imprecações fundiam-se num rugido surdo
e aterrorizante.

As muralhas rompiam-se como se
fossem de papel, provocando mais
desmoronamentos e mais chuvas de
pedras no ar.

De repente, bem perto deles, vindo
dos ares, um majestoso manto grená
cobriu o horizonte, aparecendo Gabriel e
sua guarda que lançava dardos
paralisantes em direção ao grupo.


As moças abraçaram-se
instintivamente aos velhinhos,
protegendo-os com carinho e tentando
esconder-se com eles num vão de rocha.

E então aconteceu o pior, a convulsão
final. Violento ribombar, parecendo vir das
entranhas do Universo, sacudiu a terra e o
ar, entre relâmpagos, trovões e cargas
elétricas. Como se acompanhando a
rotação da Terra, tudo se misturou num
desespero só, pessoas e escombros. O
fogo que saía das entranhas da terra
cruzava com o fogo que caía do céu e
bolas incandescentes espalhavam-se por
todos os lados. Augusto e José Anselmo
firmaram-se no chão, protegendo-se. Os
guardas de Gabriel voaram pelos ares
como bólidos, sendo levados pelo vento e
caindo bem adiante, estatelando-se entre
os escombros da cidade. O chefe das
hostes do Mal balançou no ar, escorregou
num obstáculo invisível, ficando preso a
um tronco espinhoso apenas pelo manto,
enquanto a terra abria a garganta gulosa
ao seu redor, tentando engolir tudo.

Inácio rolou desesperadamente em
direção ao abismo, procurando segurar a


mão do amigo, que se levantava no ar,
tentando agarrar algo. André se atirou
junto para auxiliar, Pedro segurando nas
suas pernas, ajudando-o a firmar-se e
melhor protegê-lo de uma queda. Formou-
se uma corrente de amigos, as mãos
estendidas para salvar Gabriel.

— Fuja, louco! – gritou Gabriel para
Inácio.
— Não sem levar você! Seus pais já
estão a salvo conosco. Vamos! Estique
mais o braço, vou conseguir pegar sua
mão...
Um sorriso passou rápido pelos lábios
do Mago que, antes de cair na cratera
negra e fumegante, ainda falou e pôde
ouvir a resposta:

— Cuida deles por mim...
— Eu o farei, meu irmão, até que
você mesmo tenha condições de fazê-lo.
A terra toda se abriu em gargantas
de fogo, enquanto José Anselmo puxava
Pedro que, por sua vez, puxava André e
Inácio, num esforço hercúleo.

A situação era a pior possível e
Augusto gritou:


— Todos de pé! Firmem-se de
qualquer maneira! Vamos sair correndo!
Braços apareciam entre pedras
fumegantes e galhos estorricados,
segurando-os e tentando retê-los,
enquanto tentavam se equilibrar, uns
ajudando os outros a se levantarem.
Lamentos e gritos ecoavam por todos os
lados. O fogo grassava sem piedade.
Pedras de todos os tamanhos e formatos
caíam sem cessar, cruzando-se no ar
antes de baterem no chão e se
arrebentarem cuspindo dardos explosivos.

André, com seu sorriso de menino
levado, olhou para Pedro:

— Morrer não corro risco de morrer
novamente! Portanto, lá vou eu!
Seguindo Augusto e imediatamente
acompanhado por Pedro e José Anselmo,
André formou com eles um grupo coeso de
batedores, abrindo caminho para os
outros, bombardeando todos os
obstáculos. Era fogo contra fogo e pedras:
os lança-chamas eram como
metralhadoras, cuspindo sem parar
labaredas e bolas incandescentes que
derretiam os obstáculos do caminho,


competindo no barulho com o ribombar
ensurdecedor da tempestade.

Uma voz conhecida falou ao lado de
Augusto:

— Para que tempestade magnética?
Vocês estão fazendo muito mais barulho e
limpando mais que ela!
De macacão branco e portando um
lança-chamas, Francisco parecia mais uma
visão de lutador galáctico do que o pacato
instrutor do "Francisco de Assis".
Continuou sorrindo, diante da alegria geral
ao vê-lo:

— Se estão pensando que tenho uma
fórmula mágica para escaparem daqui,
estão muito enganados... Tudo tem suas
leis naturais e o local onde estamos
também. Precisamos sair por terra. Vamos
logo! Nunca me viram?
Um sorridente André falou baixinho
para Pedro:

— Ainda bem que desta vez eu não
perguntei nada... Fórmula mágica, hein?
E Pedro, contagiado pelo bom humor
do amigo:

— Anda logo, menino, anda...

Francisco incorporou-se ao grupo,
encarando e desmantelando obstáculos,
saltando crateras, ajudando aos amigos, o
grupo todo numa corrida louca para fora e
para bem longe da fortaleza.

Um roçar de hélices ou asas fez-se
sentir acima do barulho geral. Todos
olharam para cima e para trás e, no meio
do tumulto, tiveram uma visão celeste de
amor: companheiros do "Francisco de
Assis", liderados por Clara, literalmente
voavam, descendo suavemente bem no
meio das convulsões.

— Quê que é isso? Que coisa mais
linda, meu Deus do Céu! – gritou André
para Inácio.
— A misericórdia divina, meu caro.
Ela não falta nunca e leva luz e paz até
aos confins do deserto. As equipes de
salvamento estão chegando para recolher
os sobreviventes...
— Como anjos de luz... – balbuciou
extasiado André.
— Como anjos de luz... – repetiu
Inácio emocionado.
E, enquanto eles corriam para longe,
no meio da balbúrdia toda, cumprindo a


sua parte da Missão, continuou a doce
visão dos céus, com os amigos de Clara
cumprindo a parte deles, estendendo as
mãos prestimosas aos que pediam socorro
e, docemente, os recolhendo, de volta ao
caminho da Luz...


VAMOS VOAR, VOAR, VOAR, MEUS
AMIGOS...


Bem longe da fortaleza, passaram
pela barreira vibracional e entraram
novamente na Terra, para descansarem
antes da viagem final de volta ao lar, que,
depois de tudo, sabiam perfeitamente
onde seria daquela hora em diante.

Viram-se num lindo bosque, onde
água corrente e cristalina murmurava
canções de paz, entre o verde da relva e a
alegria de flores coloridas.

Deitaram-se debaixo de uma árvore
frondosa, repondo energias através do
contato com a Mãe Natureza.

Os pássaros cantavam, o sol brilhava
e, novamente, lembranças da Terra
acorreram às mentes de todos. Mas, desta
vez, sem dor, sem mágoa, apenas
recordações das histórias de cada um.

Simeão, Francisco e Augusto
relaxavam deitados de olhos fechados sob
frondosa copa verde e os outros se
encantavam com a conversa gostosa dos
recém-salvos velhinhos, que queriam


saber de tudo ao mesmo tempo e
mostravam-se na mais perfeita lucidez.
André desdobrava-se em explicações,
mostrando o quanto já fazia parte da nova
realidade.

Curiosamente, em momento algum
os pais falaram do filho ou tentaram se
informar da mudança de local e mesmo
dos horrores que haviam passado
momentos antes. Tal fato chamou a
atenção de Augusto que, embora de olhos
fechados, estava atento à conversação.
Perguntou discretamente a Francisco:

— Por que não falam do filho e nem
mostram mágoa por perdê-lo? E por que
não estão traumatizados com o que
aconteceu com ele e com eles?
— Por que não se lembram mais dele
e nem de nada do que lhes aconteceu.
— Hã? – Augusto assentou-se num
pulo.
— Isto mesmo. Foi apagada
temporariamente da memória deles a
lembrança do cativeiro, da tempestade e
do filho. Sofreriam muito caso se
lembrassem. E eles fizeram por merecer
esta trégua de paz. Logicamente, como

nada se perde no Universo – nem seres
nem fatos – eles se encontrarão no futuro,
onde, juntos novamente, terão chances de
reconstruírem a vida com muito amor e
mais sensibilidade. Mas, no momento,
ficarão bloqueados, para o próprio bem de
todos e para que possam se dedicar
integralmente ao próprio crescimento – e
isto é um trabalho individual – dentro do
caminho que escolheram.

Um dia, não sei se amanhã ou daqui
a cem anos – que importa o tempo diante
da Eternidade? – Gabriel acordará e
reencetará a marcha da evolução, usando
os próprios recursos. Até lá, será bom
para ele ficar esquecido por aqueles que
ele não esquecerá em momento algum.
Ele fez por merecer isto. Lembra-se da
frase "a cada um segundo suas obras?".

Augusto mirou o azul do céu,
pensando na grandeza do Universo e do
seu comando.

Depois do proveitoso descanso, onde

ficou imóvel como se estivesse
profundamente adormecido, Simeão
levantou a voz forte e sonora.


— E agora, vamos voar, meus
amigos?
— Voar?! – repetiram todos em coro.
— A opção é de vocês: querem voltar
para casa imediatamente ou preferem
andar dias e dias a pé, à cata de portões
vibracionais?
E, juntando a palavra à ação, abriu
os braços como uma ave de paz e foi-se
levantando lentamente do solo, seguido
por Francisco, que gritou para baixo, rindo
dos olhares indecisos de todos:

— Não querem vir?
Dalva e Jaciara, decididas e
confiantes, abraçaram seus alegres e já
muito queridos velhinhos e alçaram vôo,
chamando e encorajando os boquiabertos
companheiros.
Desajeitados, eles começaram a
tentar imitar aves, batendo os braços
desordenadamente. Foram orientados por
um divertido Inácio:

— Voar – ou volitar – é um estado de
espírito de quem sempre voou e mantém
estes registros ocultos na mente, prontos
a desabrocharem ao menor toque. Ou
seja, todos nós. Basta que pensem

firmemente que vão voar. Alcem vôo
primeiro com o pensamento. O resto
acompanhará. Não precisa desta ginástica
toda não, pessoal!

Lição rapidamente assimilada e
festivamente posta em prática, todos
foram se levantando do solo, alguns mais
devagar, outros rateando e
desequilibrando ainda, os melhores
estimulando os piores. Até se reunirem
festivamente no azul do infinito.

Já com segurança e contentes como
crianças no recreio, planaram de braços
abertos, rindo e brincando, felizes, felizes,
curtindo ao máximo a nova experiência, a
inefável sensação de liberdade, de uma
realidade sem fronteiras ou obstáculos...

— Meu Deus do Céu! Meu sonho
sempre foi voar! Sempre tive fixação em
anjos e aves, porque eles têm asas. Esta é
a melhor coisa que já aprendi na minha
vida! – dizia André, deslizando no ar de
braços abertos, enquanto os amigos o
incitavam a deslizar mais e mais,
divertidos com a espontaneidade e
felicidade dele.

Todos sentiam o quanto era lindo
voar! A sensação de varar o infinito com
leveza era fantástica e fazia com que
planassem sem medo, como grandes
pássaros de volta ao ninho, um enorme
bando de luz, acompanhando Simeão que
ia à frente!

Não demorou e viram o grande
complexo do "Francisco de Assis", com a
sua movimentação de sempre.
Posicionando-se verticalmente, foram
baixando, baixando suavemente, até
colocarem os pés no chão firme e florido.

No Jardim das Rosas, onde tanto
gostavam de ficar, Dona Cacilda e Dona
Marieta, irrequietas como sempre,
lideravam o grupo que aplaudia os novos
habitantes, que chegavam vitoriosos e
agora perfeitamente integrados à nova
vida.

Mário, João, Carmen, Sr. Antenor,
agora quase refeito, e Antônio batiam
palmas, olhando a descida dos
companheiros.

Eles tocaram o chão como plumas e,
no mesmo momento, Dona Cacilda e Dona
Marieta se aproximaram de José Anselmo,


conduzindo uma senhora loura, de
profundos olhos azuis, que foi logo se
abraçando ao filho em prantos.

Alberto, radiante, não esperou um
minuto para começar a apresentar o pai
Saulo a todos e, principalmente, aos dois
alegres velhinhos recém-chegados, os
mais novos membros da equipe liderada
pelo médico...


"A Missão" narra a

trajetória de Espíritos
colhidos pela morte, sempreparo para a nova vida, mas
com bagagem considerável e
respeitável vinda de vidasanteriores.

O leitor – com muitas

pinceladas de emoção –
acompanha o rápido
desenvolvimento espiritualdos quatro amigos – Augusto,
Pedro, André e Danilo –
através de aventuras no outro
lado da vida, desempenhando
funções difíceis,
galhardamente vencendoobstáculos, mostrando
situações e cenas jamais
vistas ou imaginadas doAlém.


O BRILHO DA VERDADE
ELIANA MACHADO COELHO
(ESPÍRITO SCHELLIDA)



O AMOR INCONDICIONAL SOBREVIVE ÀS FRONTEIRAS
DAS EXISTÊNCIAS E VAI MUITO ALÉM...

Samara viveu meio século no Umbral passando por experiências terríveis. Esgotada, consegue elevar o pensamento a Deus e ser recolhida por abnegados benfeitores, começando uma fase de novos aprendizados na espiritualidade. Depois de muito estudo, com planos de trabalho abençoado na caridade e em obras assistenciais, Samara acredita-se preparada para reencarnar. Ela retorna a Terra como Camila, uma jovem que opta por uma vida farta e confortável graças à religião que seu pai abraçou, usando o nome de Deus para fins lucrativos. Obstáculos tentadores se colocam no caminho de Camila e ela, ainda jovem, volta ao plano espiritual. Revoltada e sem aceitar sua condição de desencarnada, Camila regressa à crosta junto de seus familiares, causando a si perturbações e desequilíbrios. Mas Deus nunca abandona seus filhos. Amigos espirituais, principalmente o espírito Túlio, iniciam um trabalho de esclarecimento para libertá-la de suas próprias fraquezas. Camila, aos poucos, aprende diversas lições como: os problemas do aborto, o suicídio, a avareza, o uso do nome de Deus para enriquecimento pessoal e a expiação de encarnados e desencarnados de diversas religiões, entre outros temas. Em O Brilho da Verdade, mais uma vez, o espírito Schellida, por intermédio da psicografia de Eliana Machado Coelho, traz-nos valiosos ensinamentos para o nosso esclarecimento espiritual, um dos requisitos básicos para nossa evolução individual em direção a Deus. Eliana Machado Coelho nasceu em São Paulo, capital, em 9 de outubro. Desde pequena, Eliana sempre esteve em contato com o Espiritismo e a presença constante do espírito Schellida em sua vida, que até hoje se apresenta como uma linda moça, delicada, sorriso doce e sempre amorosa, já prenunciava uma sólida parceria entre Eliana e a doce mentora para os trabalhos que ambas realizariam juntas. O tempo foi passando. Amparada por pais amorosos, avós, mais tarde pelo marido e filha, Eliana, sempre com Schellida ao seu lado, foi trabalhando. Depois de anos de estudos e treinos de psicografia, em julho de 1997 surgiu o primeiro livro: Despertar para a Vida, obra que Schellida escreveu em apenas vinte dias. Depois vieram outros, entre eles o presente volume O Brilho da Verdade, na época publicado timidamente. Mas a espiritualidade endereçou-o a um novo caminho de luz para que fosse reeditado. E eis aqui a obra retrabalhada agora em toda sua íntegra, com o respeito e o carinho que a médium faz questão de manter para com a tarefa que lhe foi confiada. O Brilho da Verdade ressurge exatamente como a espiritualidade o enviou e desejava que fosse publicado: com todas as emoções e ensinamentos que este belo romance oferece. Trabalho à parte, curiosidades surgem sobre essa dupla (médium e espírito) que impressiona pela beleza dos romances recebidos. Uma delas é sobre a origem do nome Schellida. De onde teria surgido e quem é Schellida? Eliana nos responde que esse nome, Schellida, vem de uma história vi vida entre elas e, por ética, deixará a revelação por conta da própria mentora, pois Schellida a avisou que escreverá um livro contando a principal parte dessa sua trajetória terrena e a ligação amorosa com a médium. Por essa razão, Schellida afirmou certa vez que se tivesse de escrever livros utilizando-se de outro médium, assinaria um nome diferente, a fim de preservar a idoneidade do tarefeiro sem fazê-lo passar por questionamentos duvidosos, situações embaraçosas e dispensáveis, uma vez que o nome de um espírito pouco importa. O que prevalece é o conteúdo de moral e os ensinamentos elevados transmitidos através de obras confiáveis. Eliana e o espírito Schellida contam com diversos livros publicados (entre eles, os consagrados Um Diário no Tempo, O Retorno, Despertar para a Vida, O Direito de Ser Feliz, Sem Regras para Amar e Um Motivo para Viver, todos editados pela Lúmen Editorial). Outros inéditos entrarão em produção em breve, além das obras antigas a serem reeditadas. Dessa forma, o espírito Schellida garante que a tarefa é extensa e há um longo caminho a ser trilhado pelas duas, que continuarão sempre juntas a trazer ensinamentos sobre o amor no plano espiritual, as conseqüências concretas da Lei de Harmonização, sobre a felicidade e a conquista de cada um de nós, pois o bem sempre vence quando há fé.

Aos Leitores Amigos leitores,

Eu não poderia lhes apresentar esta obra literária sem algumas respeitáveis e responsáveis explicações. Após o término das psicografias do primeiro livro Despertar para a Vida, iniciei um novo trabalho mediúnico com a querida mentora Schellida. Além disso, durante outras tarefas de psicografias no Centro Espírita, passei a receber mensagens com uma letra totalmente diferente da mentora Schellida e de outros espíritos já conhecidos em meus trabalhos mediúnicos. Só que essa letra desconhecida assinava as comunicações como "Um espírito amigo", porém, algum tempo depois, assinou André Luiz. Frente às mensagens assinadas com o nome do ilustre Espírito André Luiz, que chegavam quase constantemente, confesso que a incredulidade invadiu meus pensamentos: "Seria um Espírito brincalhão? Uma experiência ou prova para testar minha vaidade e meu caráter?". Eu não sabia responder. Foi então que, mais uma vez, fez-se presente o conforto doce das palavras meigas da mentora-amiga Schellida, orientando-me: "Diante da dúvida e da insegurança, tenha responsabilidade, resignação e fé. O Pai Celeste sempre manifesta Sua presença e verdade quando menos esperamos e nas ocasiões mais singelas. Aguarde". Orei por uma solução e prossegui na tarefa de psicografia, sem alardes. Eu não poderia expor aquelas mensagens, mesmo sendo de alto cunho moral, sem antes ter a certeza da autoria espiritual. Para minha maior surpresa e preocupação no decorrer das psicografias deste livro surgiram a participação e os ensinamentos sublimes do querido Espírito André Luiz. Apesar de ser um trabalho realizado com minha mentora Schellida, ela não se manifestou deixando-me escolher, através do livre-arbítrio, o caminho da vaidade ou da responsabilidade. Minha cautela e consideração aos trabalhos prevaleceram e, diante disso, reservei as psicografias do livro e das mensagens. Era o mês de setembro de 1997. Somente ao meu marido André e alguns poucos amigos, confiei mostrar aqueles trabalhos mediúnicos. A letra da querida Schellida é completamente diferente da outra cuja autoria dizia ser de André Luiz. Os amigos que leram as comunicações disseram ter certeza de se tratar do querido instrutor e Espírito André Luiz devido ao seu estilo, riqueza em detalhes, explicações amplas, ensinamentos magistrais que elucidam sem ferir nossas fraquezas e fizeram muitos outros apontamentos que somaram um peso ainda maior às minhas dúvidas. Sem querer desprezar a atenção e o incentivo recebidos deles devo admitir que eu precisava de uma prova mais contundente. Lembrando sempre da orientação da mentora Schellida eu aguardava com resignação e fé esperando a manifestação da verdade em uma ocasião singela. Por isso guardei as mensagens e as psicografias desta obra, "arquivando" na memória tudo aquilo. Em seguida o sublime espírito Schellida e eu iniciamos a psicografia do terceiro livro sem que a nobre mentora criticasse minha decisão. Em 09 de março de 1998, um amigo e sua esposa convidaram a mim e meu marido para irmos a Uberaba, Minas Gerais, para tirarmos a dúvida com o querido médium Chico Xavier sobre as tão polêmicas mensagens e o livro psicografado. No sábado, 14 de março de 1998, às 13 horas, chegamos ao Grupo Espírita da Prece, em Uberaba - Minas Gerais. A reunião estava prevista para as 20 horas. Esperei. Na Casa da Prece, os amigos que auxiliavam o querido Chico e o Culto do Evangelho solicitavam a todos que se limitassem apenas aos cumprimentos no momento de irem embora. Mesmo assim perguntei a uma moça que ajudava na organização se eu poderia fazer uma pergunta. Ela disse que não. Eu obedeci enquanto segurava as mensagens, o calhamaço de folhas psicografadas deste livro, inclusive o prefácio que recebi inesperadamente dias antes também assinado como André Luiz. Sem que esperássemos, o nobre médium Chico Xavier virou-se para sua secretária e perguntou, apontando para mim:
- "O que ela precisa?"
Trêmula de emoção, aproximei-me e sem querer coloquei os papéis sobre a mesa e tentei falar, mas a voz não saía. O querido médium pôs a mão direita sobre as psicografias, parou por alguns segundos, deixou-se relaxar na cadeira e fez uma expressão bem alegre. Olhando-me, disse em seguida:
- Você pensou que fosse um espírito brincalhão, mas não! É ele mesmo!
Ainda incrédula, insisti perguntando: "O senhor tem certeza? Tenho medo de ser enganada...". O grandioso médium riu e sorriu lindamente afirmando:
- Mas é claro que é ele! - Entre outras coisas, o querido irmão Chico orientou finalizando: - Nós é que temos de ser dignos de trabalhos nobres. Deus te abençoe! Um bom trabalho para você!
Não contive as lágrimas. Recebi do querido Chico um doce beijo amoroso do mais alto valor moral, beijei-o com todo o carinho. Por me aproximar daquele ser tão iluminado, pela lição e bênção recebidas saí chorando de emoção. Meu marido filmou e registrou tudo. Os amigos que nos acompanhavam testemunharam. Já passava da 0 h 30 do dia 15 de março de 1998, quando nos retiramos do Grupo Espírita da Prece. Tudo pareceu acontecer rápido demais. Porém foi maravilhoso e singelo de incalculável valor moral, sentimental e eterno na memória. Receber a orientação e a bênção sublime do querido médium foi um momento ímpar em minha vida. Não é possível descrever. Retornamos a São Paulo e eu só podia agradecer a Deus por aquela oportunidade e lembrar a orientação de Schellida: "Diante da dúvida e da insegurança, tenha resignação e fé. O Pai Celeste sempre manifesta Sua presença e verdade quando menos esperamos e nas ocasiões mais singelas. Aguarde". Como foi importante eu ter analisado e aceitado o sábio conselho da querida mentora. Foi então que tive maior consciência da responsabilidade e do dever a cumprir. Dias depois, em reunião mediúnica realizada no Centro Espírita, na qual se encontravam vários médiuns e entre eles alguns clarividentes, comecei a receber uma psicografia. Mais uma vez, além do prefácio deste livro, o ilustre Espírito e Instrutor André Luiz se empenhou em uma apresentação da querida Schellida, agraciando-nos com uma maravilhosa mensagem ao recepcioná-la. Após a leitura da mensagem, o doce e amoroso Espírito Schellida se manifestou através de minha psicofonia. A emoção foi geral. Houve lágrimas dos médiuns presentes que a admiraram pela luzente paz. Fizeram-lhe perguntas e testemunharam a psicografia do Espírito André Luiz. Isso novamente me alertou sobre a responsabilidade para com os trabalhos e os deveres a cumprir com humildade, respeito e muito amor. A mensagem recebida na noite de 01 de maio de 1998, no Centro Espírita, através da qual a querida Schellida foi apresentada, deixo-lhes aqui juntamente com o prefácio do espírito André Luiz para este livro. Fico com a consciência tranqüila pelo fato de as psicografias do tão ilustre espírito André Luiz terem sido confirmadas pelo admirável e sublime médium Francisco Cândido Xavier, o nosso querido Chico. Muita paz a todos e que Deus os abençoe.

Com carinho, Eliana Machado Coelho.

APRESENTAÇÃO

Diante da tarefa de apresentação, confesso, calei-me pressuroso, maravilhado. Estupefato com tal emoção, vigiei-me. Não queria que a vaidade tocasse meu coração, mesmo assim, cauteloso, admito estar imensamente feliz. Sejamos dignos de trabalhos nobres. Ao darmos boas-vindas, podemos transmitir, de todo nosso coração, os mais belos sentimentos e os mais nobres pensamentos. Devotemo-nos. Abneguemos nossas mentes para que o nosso coração aja, acima de tudo, com imensurável sabedoria. Todas as lições de caridade e humildade devem ser recebidas e expandidas, através de nós, com amor e caridade para sentirmo-nos tranqüilos e resignados. "Amai-vos e Instrui-vos". Atentemos aos ensinamentos valiosos e luzentes que nos enviaram. Dignemo-nos de assistir e participar.

Eliana Machado Coelho (Schellida)


Aqui estamos, prontos para executar a vontade do Pai Celeste e, cobertos que somos por Suas Bênçãos Santificantes, deixemo-nos abraçar por jubilosa e sublime Luz para prosseguirmos na jornada de servir com amor, bondade e responsabilidade os ensinamentos Divinos. Enorme prazer e digníssima felicidade envolvem-me. Desejo, de coração, repartir com todos a alegria que me invadiu nesse instante tão edificante e nobre. Agradeço o grande carinho dispensado. Recebamos nossa irmã Schellida com imensa ternura e todo respeito que lhe é meritório. Que as Luzes Divinas abracem a nós todos.

André Luiz



PREFÁCIO

Ensinar, através dos romances literários, verdadeiras obras espíritas, é uma tarefa árdua que exige do encarnado e dos desencarnados imensurável compromisso com a verdade.
Aventuro-me a considerar que encarnados e desencarnados gritam por incessante socorro espiritual e, como sabemos, a toda prece é dada imensa consideração e estima, advindo, para nosso auxílio, a oferta de amigos do Plano Superior, de trabalhos jubilosos, dispondo estes de ensinamentos e experiências inúmeras. Em tais literários, fico contente em relatar-lhes, pode ser encontrado verdadeiro alívio ao coração e imensurável aproveitamento a serem refletidos pela mente. Os que buscarem essas obras terão, sem dúvida, inúmeros interesses em comum e, sabendo aproveitar, revigorar-se-ão com elas, pois estarão envolvidos com imensos ensinos edificantes. Todavia, preciso acrescentar que o esforço para o aprendizado é sempre individual, além de ser imprescindível toda dedicação possível, muita paciência, pureza dos pensamentos e a boa-vontade que sempre devem estar presente. Todo trabalho nobre e edificante recebe amparo e apoio sério. Schellida, parabéns por refazer o aprendizado no caminho de Deus, nas Verdades Eternas e por amor incondicional aos nossos queridos irmãos. Enlacemo-nos todos em suas grandes obras de ensino, amor e verdades que procuram expor, com carinho, as alegrias supremas na união com o Eterno Divino.

Seu amigo, André Luiz.

São Paulo, 10 de março de 1998.

ÍNDICE

1 - APÓS MAIS DE 50 ANOS NO UMBRAL
2 - O DESPERTAR DE HONÓRIO
3 - OPORTUNIDADE DE CRESCIMENTO
4 - HIPOCRISIA USANDO O NOME DE DEUS
5 - CAMILA ESCOLHE CONFORTO E COMODIDADE
6 - DIANTE DA VERDADEIRA VIDA
7 - CAMILA RETORNA À CROSTA
8 - A DESONESTIDADE DE HONÓRIO ATRAVÉS DA RELIGIÃO
9 - ORIENTAÇÕES DE ANDRÉ LUIZ
10 - DEDICAÇÃO DE TÚLIO
11 - LAR, OFICINA ESPIRITUAL
12 - A AVAREZA DIFICULTA O DESENCARNE
13 - DR. JÚLIO E SEU GRANDE ENSINAMENTO
14 - LEGIÃO DE JUSTICEIROS
15 - O SOFRIMENTO DOS ABORTADOS SOB A VISÃO ESPIRITUAL
16 - EDUCAÇÃO SOCIAL
17 - SUICÍDIO E OBSESSÃO, ABORTO: REMORSO, PERDÃO E RECONCILIAÇÃO
18 - O REENCARNE DE TÚLIO
19 - HONÓRIO, HERDEIRO DO ATAQUE DAS SOMBRAS
20 - LIÇÕES QUE A VIDA OFERECE

1 - APÓS MAIS DE 50 ANOS NO UMBRAL

Por não atentar, na situação de encarnada, aos mais sublimes e íntimos chamados direcionados aos valores benéficos, nobres e educativos à evolução do espírito humano que recebia, Samara passou muito tempo sofrendo na ignorância quando se deu seu desencarne súbito. Isso a levou a cumprir penas rígidas e dolorosas experiências pelo tão horripilante e indescritível Umbral. Naquela encarnação, não havia traços ou planos para que Samara enlaçasse amizade ou afeição a ambientes inferiores, porém não tentou reagir contra os incitamentos, as propostas e as sugestões ocasionais de pessoas que cultivavam uma moral de pouco valor, deixando-se levar de forma incoerente a atos inconseqüentes. Devido aos pensamentos inconfessáveis e a compatibilidade momentânea com os prazeres carnais, ela atraiu para si a afeição de uma criatura muito inferior, possuidora de uma monstruosidade indescritível ao caráter humano. Esse infeliz e desgraçado ser desencarnou logo depois dela. Acostumado com as horríveis vinganças e a liderança nas práticas das perversidades coletivas, ele familiarizou-se rapidamente com outras criaturas espirituais de semelhante caráter ao chegar ao Umbral, horrorizando e acompanhando o espírito Samara por mais de meio século após o desencarne. Por muito tempo, o espírito Samara vagou e sofreu penas horrorosas em lugares descomunais. Além do desmesurado tratamento do qual padecia, ela experimentava sofrer moralmente pelas organizações que se fazia a sua volta. Tudo ali era repulsivo, monstruoso, de uma qualidade espiritual terrivelmente inferior, a qual provocava aos inúmeros seres habitantes do Umbral uma aparência que não convém descrever devido à soma de matéria mental que poderá trazer tal idéia de seres tão horrendos. Cabendo salientar que cultivamos a nossa volta a energia de nossos próprios pensamentos. Por essa razão, o que imaginarmos ou tivermos por idéia, atrairemos à nossa volta e para a nossa companhia. Sendo essa atração, que é feita através de nossos próprios pensamentos, uma ameaça ao nosso equilíbrio mental, moral e espiritual, trazendo-nos imagens, idéias e sentimentos de ordem inferior, o que seria imensamente desnecessário a nós como espírito. Depois de muito vagar sem rumo, objetivo ou propósito, Samara passou a refletir sobre tudo o que havia feito quando encarnada, sobre as desnecessárias indecorosidades vividas e o seu desrespeito às leis Divinas da Sábia Natureza. Por um relance ela se observou, sua imagem física não era mais a mesma. Aliás, ela nem mesmo se reconhecia. Estava completamente desfigurada, cadavérica, feia e mal cheirosa. Samara possuía vaga noção cristã que ganhou conhecimento no catolicismo arcaico, pois o latim, pronunciado durante as missas que freqüentava, dificultou, e muito, seus conhecimentos, entendimento morais e religiosos sobre a vida adequada que qualquer pessoa tem de procurar manter. Desde o seu desencarne, a partir do momento que começou sofrer, padecendo como escrava, ela sempre rezou frases prontas pedindo para sair daquela lamentável situação, mas acreditou que nunca fora ouvida. Achou que estava no inferno. Único lugar onde poderia padecer tanto. Com o passar dos anos, algo parecia estar diferente dentro dela. O espírito Samara sempre procurou tentar, por si só, livrar-se de todo aquele horror sofrido no Umbral. Lamentou as dores e angústias que experimentava viver. Sentia-se desmilingüir, pois acreditava estar só em sua luta. Certa vez, lembrou-se das palavras de Jesus: "Batei e abrir-se-vos- á" e recordou também de sua avó que, de modo simples, sempre dizia: "Jesus ama a todos, em qualquer situação. É só a gente acreditar, pedir e saber esperar". O espírito Samara compreendeu que todo aquele sofrimento era por sua culpa, por culpa de seu descaso ao bom comportamento moral e espiritual. Quando encarnada, desafeiçoou-se de tudo de bom que a vida lhe ofereceu para a compreensão às leis da honestidade, do pudor e dos bons costumes. Usando seu livre-arbítrio se dispôs a outros tipos de aventuras, que julgava serem mais divertidas, atraindo-se espiritualmente àquela situação. Não mais rezou palavras decoradas. Passou a sentir realmente vontade de mudar sua condição, de evoluir, de sair daquela situação. Ela desejou ter agido melhor quando encarnada, arrependendo-se de todos seus feitos indignos e pensou:
- "Se há um Deus, Ele sabe realmente o que eu sinto. Deus sabe que estou arrependida e que desejo mudar. Desejaria ter agido diferente, entretanto, pobre de mim, só agora pude perceber isso. Senhor, ouça minhas preces. Perdoe meus pecados. Acolha-me em Seu reino. Dá-me orientação. Preciso de Sua paz, Senhor. Preciso de Sua proteção Divina".
Nem um segundo se fez e o espírito Samara acreditou ter visto uma luz brilhante e forte. Depois disso, de nada se lembra, pois sentiu grande e irresistível sonolência que a dominou completamente, anestesiando-lhe os sentidos. Acolhida a um Posto de Socorro, tratada com muito carinho e atenção, ela ficou em repouso por algum tempo, pois sua aparência espiritual era cadavérica e suas necessidades inúmeras. Tempos depois, já se levantava do leito e andava pela enfermaria. Dias passaram e ela se dispôs a caminhar pelos corredores e saguões. Mesmo com permissão, temia passear pelos jardins. Somente muito tempo depois ganhou confiança, através dos incentivos que recebia, para caminhar pelos belos canteiros cobertos por flores magníficas. Tinha medo de sair daquele edifício e não retornar mais, voltando à miserável situação e condição anterior. Sentia receio de que aqueles seres inferiores pudessem aparecer ali e levá-la novamente, o que seria impossível de acontecer naquele lugar. O tempo foi passando e Samara começou a perceber que sua aparência física mudara sensivelmente para melhor. Ela já não tinha mais aquele aspecto cadavérico e sujo. Suas vestes apresentavam-se limpas e alimentava-se bem. Seus pensamentos, agora, eram voltados para coisas construtivas e enobrecedoras do espírito humano, o que melhorava incrivelmente seu aspecto. Ganhou considerável conhecimento sobre o plano espiritual e agradecia imensamente a Deus por estar em tão nobre e elevada situação, por receber tanta orientação e carinho. Certo dia, o espírito Inácio, administrador daquele Posto, pediu a presença de Samara em sua sala.
- Bom dia, Samara! - expressou-se Inácio animadamente. - Como tens passado?
- Bem. Muito bem, obrigada - respondeu encabulada.
Mesmo assim continuou:
- Em primeiro lugar, eu gostaria de aproveitar esta nobre oportunidade para agradecer-vos pela hospitalidade e pelo excelente tratamento que venho recebendo neste ilustre e elevado local que é de vossa distinta administração. O caro senhor não deve imaginar como vinha sofrendo desde que morri. Demorou eu entender minha morte. Quando me vi desorientada, procurei no início por meus familiares que ignoravam minha presença e maldiziam-me. Mesmo diante de meu fronteiriço e meus revides às ofensas recebidas, eles não podiam me ouvir e nem me percebiam. Eu não quis crer em minha morte. Não aceitava aquela situação. Muito sofri. Depois fui levada a vagar por... Samara passou a relatar toda a sua dolorosa odisséia, como se Inácio a desconhecesse. Paciente ouvinte, ele deixou-a contar tudo, enquanto sentia seu desabafo. Acreditou que aquilo lhe seria necessário. Após muito falar, diante da atenção recebida de Inácio, Samara suspirou aliviada e por fim argumentou:
- É por tudo isso que vos sou imensamente grata e coloco-me a vossa inteira disposição, tendo em vista o que fizera por mim. Já estou em condições de trabalhar e ajudar-vos com outros "doentes" que estão aqui em condições semelhantes as minhas quando cheguei. Além disso...
Pela primeira vez Inácio, com delicadeza interrompeu-a:
- Cara Samara - disse ele -, sinto-me imensamente feliz por compartilhar, juntamente contigo e com os demais irmãos, de tão nobre e revigoroso abrigo que é este Posto de Socorro. No entanto, cabe-me orientar-te de que não é a mim a quem deves agradecer e muito menos colocar-te, sinceramente, a tão nobre e honrosa disposição. Deves sim voltar teus agradecimentos e tua disponibilidade ao querido e amado Mestre Jesus, pois foi Ele quem nos ensinou o caminho de amor e paz, de moral e dignidade, de fraternidade, paciência e perdão que nos leva ao Pai Eterno e de infinita bondade a quem chamamos de Deus.
Percebendo o embaraço de Samara, Inácio prosseguiu tentando abrandar-lhe a timidez:
- Sei que são sinceros teus devotamentos, porém quero lembrar-te de que sou um humilde servidor deste Posto como qualquer um outro que há aqui. Não deves a mim nenhum agradecimento, ao contrário, eu te devo agradecer em nome de todos os trabalhadores daqui a oportunidade que nos deste de te servir e orientar. Esperamos que nossas humildes e limitadas condições tenham te proporcionado grande e proveitoso bem-estar e crescimento espiritual.
Vendo-a mais à vontade, o gentil espírito Inácio esboçou leve sorriso e decidiu definir o seu chamado:
- Bem, cara Samara, eu a chamei justamente por termos percebido o teu progresso em crescente escala animadora, desde que chegaste aqui. Particularmente, venho observando teu desenvolvimento, tua sinceridade e vontade de servir, mas para isso, a cara companheira necessita de muito mais conhecimento que receberá através dos meios e métodos de instruções que não dispomos, pois, como sabes, este é um Posto de Socorro e em uma colônia terá condições e oportunidades para melhor aprimorar teus conhecimentos na esfera evolutiva da espiritualidade. Explicando-lhe os motivos de sua ida para uma colônia maior, Inácio sentiu-se satisfeito como quem se depara com o dever cumprido. Samara, por sua vez, sentia-se lisonjeada e orgulhosa de si mesma, apesar de ainda não se achar segura o suficiente para enfrentar lugares e situações novas e diferentes.

2 - O DESPERTAR DE HONÓRIO

Tendo, no Posto em que administrava, outros dois espíritos que julgava estarem preparados, assim como o espírito Samara, para receberem mais esclarecimentos e desenvolvimento espiritual, Inácio encaminhou e acompanhou Samara, Maria e Helena a uma colônia próxima e mais apropriada, aproveitando a visita para rever velhos amigos. Ao chegarem lá, foram levadas aos aposentos reservados a elas. As três encontravam-se admiradas com tudo o que viam. Assim que se acomodaram e conheceram o lugar onde lhes seria proporcionado grande parte de seus estudos, Inácio solicitou a presença de Samara no salão principal, avisando-a de que alguém gostaria muito de revê-la e cumprimentá-la. Rapidamente, caminhou até o salão. No trajeto, sentia um misto de emoções que se alternavam entre a ansiedade e a curiosidade. Ao deparar-se com a figura conhecida de Nicolau, estremeceu encabulada. O espírito Nicolau centralizou seu olhar fraterno em Samara, aproximou-se encantado de alegria pelo prazer de vê-la agora ali, na mesma colônia em que ele habitava e trabalhava como assistente do coordenador do departamento de orientação. Aproximando-se um pouco mais, segurou ambas as mãos de Samara, que abaixou o olhar envergonhado, e, com imensa alegria, cumprimentou-a:
- Querida amiga Samara! Como estou feliz por tê-la aqui!
Ela, por sua vez, não conseguiu encará-lo. Quando encarnada, apaixonou-se imensamente por Nicolau que, na época, já era casado com sua prima Lavínea. Por todos os meios, tentava persuadi-lo para que vivessem juntos uma imensa paixão, não medindo as conseqüências de seus atos. Tentava separá-lo de sua prima, intrigando Lavínea contra Nicolau, querendo provocar imensa discórdia entre ambos. A experiência vivida entre Nicolau e Lavínea foi imensamente difícil, tendo em vista as tramas complexas armadas pela pobre Samara. Porém, o casal teve mais fé e assim adquiriu muita força para superar o desafio. Durante os dez anos de matrimônio que os uniram, Samara os incomodou, dando-lhes paz somente quando Nicolau desencarnou num acidente em que a charrete tombou e ele quebrou o pescoço deixando a viúva com três pequenos órfãos de pai. Samara, mesmo em boas condições financeiras, não se propôs em ajudar sua prima, muito menos aos filhos de Nicolau, que passaram inúmeras necessidades devido à falta do pai. Mesmo viúva, empenhou-se ao máximo na educação e na boa formação moral dos pequeninos, guiando-os sempre para o caminho do bem e do amor fraterno. Desencarnou depois de um mês do casamento de seu caçula quando já possuía dois netos, um de cada outro filho já casado. Naquele instante, chegou, ali naquele saguão o espírito Lavínea que também queria cumprimentar a recém chegada. Aproximando-se de Samara, abraçou-a com terno carinho emanando-lhe imensa quantidade de energias fraternas. Samara retribuiu o afeto, mas não conteve as lágrimas de vergonha e arrependimento. Lavínea afastou-se do abraço e colocando firmemente as mãos nos ombros da outra, balançou-a com firmeza dizendo:
- Aqui não há lugar para lágrimas de tristezas. Se estais aqui é porque tu mereces esta condição.
- Eu te fiz tanto mal... - murmurou embargada pelos soluços. - Eu deixei de obedecer às razões morais para dar atenção aos meus instintos imorais. Perturbei a vossa felicidade para destruir vosso matrimônio. Não auxiliei quando em vossa viuvez... quando eu poderia e deveria. Não sei o que dizer-vos.
Nicolau, para atenuar o constrangimento de Samara, completou:
- Cara Samara, se reconsiderastes tudo o que deixastes de fazer, arrependendo-vos dos valores que, infelizmente desprezou, se o remorso e o arrependimento tocou-vos a razão, fazendo-vos refletir e desejar imensamente a mudança e a correção do que vós fizestes. Esta é a oportunidade de elevação que tendes! Aqui não há lugar para lamentações e sim para o desejo de evoluir. Eu e minha amada Lavínea estamos aqui para apresentar-vos a nossa fraternidade, o nosso carinho e o nosso desejo em vosso progresso moral e espiritual. Estamos a sua disposição. Samara abraçou-os emocionada e, diante de tanto conforto, passou a sorrir, ansiosa por aprender e reparar suas faltas. Empenhou-se ao máximo, preparou-se por décadas e décadas no plano espiritual para as condições que sabia enfrentar na próxima reencarnação. Com a ajuda de Nicolau e Lavínea, ela superava todos os obstáculos que surgiam, dedicando-se incessantemente aos trabalhos oportunos. Após anos e anos de preparo, Nicolau e Lavínea partiram da colônia para o reencarne terreno, dispondo-se à dura tarefa de doutrinação no campo do Espiritismo Evangélico. Lavínea acompanharia Nicolau como sua amada fiel, esposa e amiga terrena, apoiando, incentivando e auxiliando-o na instrução de irmãos encarnados e desencarnados, amparando e esclarecendo a mediunidade dos companheiros que lhes fossem colocados à disposição. Caberia a eles o difícil trabalho de inserir e elucidar, no seio familiar junto aos parentes mais próximos, os preceitos espíritas, não deixando de perder as oportunidades de oferecer-lhes todo o embasamento necessário para o entendimento de tão nobres ensinamentos. Eles sabiam de antemão que receberiam como filhos duas criaturas maravilhosas, amáveis companheiros competentes que se dedicariam à instrução e à orientação do semelhante, dos quais o casal receberia muito apoio, compreensão e colaboração. Ao saber dos planos reencarnatórios, o espírito Samara ficou felicíssimo ao saber que teria os espíritos Nicolau e Lavínea como parentes próximos. Nicolau seria seu tio e, agora já encarnado, recebera o nome de Alfredo. Era irmão de seu futuro pai: Honório. Lavínea reencarnada recebera o nome de Dora. Dora e Alfredo já tinham como benção os dois tão esperados e amados filhos: Dirceu e Júlio. Alfredo, presidente de um organizado grupo espírita, edificava cada vez mais sua meta com os ensinamentos do Espiritismo Cristão. Por outro lado, Dora, dedicada mãe e companheira, ajudava-o com as noções basicamente espíritas na educação dos tão amados filhos que aproveitavam ao máximo tudo o que lhes era ensinado. Alfredo não era rico. Tinha de trabalhar muito para manter a família, porém parecia nunca se cansar. Era extremamente dedicado, não medindo esforços ao ensinamento do evangelho e sua prática. Seu maior obstáculo era passar para seus irmãos Honório, Sílvia e Marta o entendimento e a aceitação das explicações espíritas para os fatos da vida terrena. A mãe deles, dona Filomena, católica, não interferia na educação religiosa dos filhos, deixando-os à deriva. Com o tempo, Honório casou-se com uma moça chamada Clara e receberam, como primogênita, Samara, a quem deram o nome de Camila. Tendo na memória o absoluto esquecimento do passado, Alfredo e Dora tinham, em seus corações, a lembrança intuitiva e por isso muito se afeiçoaram à sobrinha Camila. Tempos depois, Camila teve duas outras irmãs: Cida e Vera, que eram gêmeas. Anos se passaram e quando Camila já era uma adolescente, ganhou outro irmão, Júnior. Nessa época, Honório e Clara passavam por inúmeras dificuldades financeiras e a situação parecia estar cada vez mais desesperadora. Alfredo, sempre prestativo, começou a dividir o que tinha com o irmão Honório. Seus pais, já velhos e sem possuir muitos bens financeiros, pouco podiam ajudar. As irmãs, Sílvia e Marta, casaram-se e moravam em outra cidade. Quase não tinham notícias delas. Raramente escreviam ou enviavam algum cartão de natal. O desespero tomava conta de Honório que, não conseguindo nem mesmo pagar o aluguel, teve de se mudar para a casa de Alfredo, que, sozinho, passou a sustentar as duas famílias. Dora e Clara se dispuseram a fazer faxina em casa de família para ajudar no orçamento e na manutenção da casa, enquanto Camila e seus primos, mais velhos, Dirceu e Júlio se revezavam entre o horário escolar e os cuidados com os menores. Alfredo incentivava Honório, que já se deixava abater com a crise. Entretanto, por causa das dificuldades, Honório apresentava-se mais humilde, menos arrogante. Passou a freqüentar o Centro Espírita, do qual Alfredo era presidente, junto com toda a família. Alfredo e Dora passavam horas com os filhos e a sobrinha mais velha, Camila, contando-lhes crônicas e exemplos espíritas, elevando-lhes o espírito e o entendimento com os ensinamentos à luz do Espiritismo. O divino livro O Evangelho Segundo o Espiritismo era lido e estudado diariamente no lar de Alfredo, que fazia questão da presença de todos em volta da humilde mesa, a fim de que fossem expostos e estudados os tesouros sagrados nele contido. Honório participava, porém distante daquelas vibrações harmoniosas que reinavam, pois estava bem desanimado. Saindo à procura de emprego, diariamente ele retornava desconsolado pelas portas que se faziam fechar a sua frente. Certo dia, quando o sol escaldante do mês de dezembro se fazia brilhar radiante na imensidão azul, depois de horas numa fila imensa de desempregados à porta de uma firma, Honório revoltou-se diante da negativa feita às suas qualificações profissionais. Aflito e desorientado, passou a caminhar sem rumo. Depois de andar muito chegou suado e todo desalinhado à praia de Copacabana. Ele tirou os sapatos e afrouxou a gravata que já se desarrumara toda. Sentou-se na areia quente e ficou ali por bastante tempo pensando em tudo o que acontecia e no que fazer de sua vida. Seu irmão não tinha a obrigação de sustentá-lo juntamente com a esposa e quatro filhos. Alfredo mal ganhava para o sustento da própria família e ainda tinha de dividir com ele, e os seus, o pouco que havia. Algumas vezes nem ele mesmo entendia como conseguiam comer diariamente nem se fosse uma só refeição. Mas alguns pensamentos monstruosos passaram a tomar conta dos sentimentos de Honório. A princípio pensou em suicídio. Em seguida acreditou não ser o suficiente. O melhor a fazer era acabar com a vida dos quatro filhos, que por sua causa estavam nesse mundo, e com a da esposa a qual sofria com aquela situação por culpa dele. Aí sim, depois disso consumado, ele se mataria, pois somente assim não deixaria suas obrigações para alguém. A caminho da casa de Alfredo, Honório começou a pensar em uma maneira de pôr um fim àquele sofrimento e começou a tecer planos de como executar tal tragédia. Ele andava pela calçada de forma mecânica e instintiva, fazendo impercepti-velmente o trajeto de volta. Sem perceber, passando ele frente a uma igreja evangélica, chamaram-lhe a atenção as palavras altas vociferadas pelo pastor que iniciava o culto naquele momento. Sem refletir, Honório entrou no templo religioso acomodando-se em uma cadeira bem no fundo da igreja e lá ficou extasiado. Aos chamados irritadiços do pastor aos que se negavam se entregarem a Deus, Honório despertou assustado, como quem acabasse de acordar. Em alto e bravo som, o pastor chamou novamente:
- Entregue-te a Deus Pai Todo-Poderoso! Só Ele pode te salvar da maldição! Da angústia! Da insatisfação desse mundo pecaminoso! Se tu sofres, se estás passando por dificuldades, se está desolado, entrega ao Senhor o teu coração e os teus problemas. Venha aqui na frente e entrega-te!
Honório, com os olhos cheios de lágrimas, não resistiu e caiu em pranto. O pastor, apesar da distância, percebeu seu desespero. Então, vendo-o inseguro e indeciso, passou a manipular suas palavras dizendo coisas que lhe tocavam nos problemas íntimos, fazendo-o desabafar em desesperado choro compulsivo.
- Irmão! - dizia. - Venha aqui e entrega a Deus os teus problemas e as tuas dúvidas! Deixa que o Senhor tome-te em Teus braços e conduza-te ao conforto do que reservou a ti! O sofrimento não pertence ao homem e sim ao demônio!
Honório, levado por uma força sobrenatural, caminhou até a frente e chegando próximo aos degraus onde ele estava, colocou-se de joelhos e pôs-se a chorar ainda mais. O pastor, dando gritos de glória e aleluia, era acompanhado pela multidão que junto vibrava feliz por ter entre eles mais um irmão que entregava a Deus o seu coração e os seus problemas. No fim do culto, depois dos cantos e dos agradecimentos, o ministro Freitas procurou ter uma conversa em particular com Honório, pois o percebeu muito alterado e imensamente perturbado. Honório, recompondo as emoções e mais calmo relatou suas dificuldades financeiras, profissionais e o transtorno que levava para a casa de seu irmão. Apesar de ele não reclamar, não tinha obrigações de arcar com tantas responsabilidades.
O pastor Freitas ouviu seu desabafo com grande atenção e ficou profundamente chocado quando Honório relatou-lhe a perversidade desumana de seus pensamentos e desejos de exterminar-se, juntamente com a família, para pôr fim a tanto sofrimento.
- Irmão - disse com brandura -, esses pensamentos não são teus! E o demônio que está falando aos teus ouvidos! O demônio é monstruoso e astuto fazendo parecer teus os pensamentos que ele te transmite. Por outro lado, o irmão pode perceber que o anjo do Senhor foi mais forte, trazendo-o à nossa direção e guiando-o a entrar na casa de Deus e ouvir seus ensinamentos.
Honório, por ter desabafado, estava um tanto mais tranqüilo, porém pouco conseguia atentar as palavras de Freitas que continuava a orientá-lo:
- O irmão pode ter certeza de que tudo vai melhorar em tua vida a partir de hoje, de agora! Há em nossa igreja inúmeros irmãos que, eu sei, vão empenhar-se em ajudar-te! Eu mesmo tomarei providências a esse respeito. Agora, porém, vou acompanhá-lo à casa de teu irmão para que te sintas seguro e chegues a salvo.
Freitas acompanhou Honório até a casa de Alfredo onde todos já estavam preocupados com sua ausência, pois já se fazia noite. Honório, um tanto envergonhado, apresentou-o a seu irmão e a família. Educado, Alfredo convidou-o a entrar na humilde residência e ofereceu-lhe um refresco para abafar o calor. No decorrer da conversação, Freitas contou quem ele era e o que havia acontecido. Relatou até mesmo as confissões que Honório lhe fizera sobre os pensamentos monstruosos de matar toda a família e se suicidar. Alfredo se resguardou de tecer quaisquer comentários para não julgar ou ser precipitado, ficando na expectativa. Freitas não foi embora enquanto não realizou, dentro daquele lar já tão iluminado, uma nobre e bela oração na qual vibrou muito positivamente para o bem-estar de todos. Alfredo ficou imensamente satisfeito por seu irmão ter encontrado em hora tão difícil uma criatura que o fizesse mudar de pensamento e sentimento, não importando a religião, mas sim o valor de sua atenção e compreensão dos bons princípios. O pastor pediu a Honório para ir à igreja bem cedo na manhã seguinte para tratarem de arrumar-lhe um emprego. Convidou também a todos para o próximo culto. Mais tarde, procurando Alfredo em particular, Dora se preocupou:
- Alfredo, não estou muito simpática a idéia de Honório ligar-se a esse pastor - comentou descontente.
- Não vejo motivo para preocupar-se, minha querida. Esse homem me pareceu ser gente de bem. Não observei nada de errado com seus desejos e devemos admitir que sua prece foi muito rica.
- Não é ao pastor a quem me refiro. Desculpe-me a franqueza, sei que tu muito desejas ajudar teu irmão, porém refiro-me a Honório.
- Não entendi, Dora. Tu poderias ser mais clara?
- Honório não acredita em Deus, muito menos em religião. Já percebeste isso?
- Quem sabe seja esse o caminho que o levará a aprender, entender e aceitar os ensinamentos do nosso Irmão Maior, que é Jesus?
- Mais uma vez peço-te desculpa pela franqueza, Alfredo. Porém duvido e ainda acredito que esse tipo de doutrina religiosa possa complicar, ainda mais, a vida espiritual de Honório e talvez até a de sua família.
- Por quê?
- Não sei dizer, é só um palpite. - Minutos de silêncio e Dora argumentou: - Desculpe-me, meu amor, eu não queria que ficasses preocupado.
Alfredo nada comentou. Entretanto também sentia algo errado com a religiosidade tão repentina de seu irmão e em tudo o que Honório pensara assumir em nome de Deus.

3 - OPORTUNIDADE DE CRESCIMENTO

Na manhã seguinte, bem cedo, conforme combinaram Honório pontualmente estava na igreja. Com satisfação foi recebido pelo pastor Freitas e outro irmão da congregação que já o esperava.
- Honório! É com imenso prazer que te temos aqui! - disse o pastor Freitas apertando-lhe a mão e puxando-o para um abraço. - Deixe-me apresentar-te! Este é Alcides, nosso irmão na congregação.
O novo conhecido cumprimentou-o com satisfação.
- O digníssimo pastor Freitas contou-me teus pesares e isso muito me sensibilizou - falou Alcides em tom comovedor. - Porém, eu gostaria de esclarecer que, independente dessa apresentação feita pelo pastor, eu procuro um funcionário responsável. Sou proprietário de um pequeno armazém e necessito de alguém a quem possa depositar minha inteira confiança. Quando o pastor apresentou-me teu perfil, acreditei ter encontrado o funcionário ideal.
- Pois bem, senhor Alcides - disse Honório -, eu me coloco a tua inteira disposição. Tenho aqui toda a minha documentação e trago também as cartas de referência de meus dois últimos empregos.
- As cartas não serão necessárias, entretanto a documentação terá de ser apresentada a meu contador. Apesar do meu empório não ser muito grande, faço questão de ter meus funcionários registrados e com todos os seus direitos garantidos. Quanto ao salário, este ficará em torno de setecentos cruzeiros. Está bom pra ti?
Sem titubear, Honório aceitou emocionado:
- Sim, claro! Sem dúvidas!
- Irmão Alcides - interrompeu o pastor -, o caro irmão me falou sobre a casa que tens para alugar, creio que o irmão esqueceu-se desse detalhe.
- Ah, sim! Como pude!... É que tenho algumas casas de aluguel e para alguns funcionários com família eu costumo alugá-las e fazer o desconto da locação direto na folha de pagamento, caso seja de teu interesse...
Honório ficou maravilhado. Vieram-lhe à mente as cenas que se repetiam todas as noites havia cerca de oito meses na casa de seu irmão, onde só havia um quarto, sala cozinha e um banheiro. Portanto, para acomodar a todos, até embaixo da mesa da cozinha haviam de espalhar colchões a fim de poderem dormir.
- Não sei como posso agradecer o senhor! - exclamou Honório com os olhos transbordando lágrimas. - Não sei o que dizer!
- Então não digas nada, homem! Aceite o emprego e a oferta da casa!
- Sem dúvida que aceito! - respondeu Honório. - Nem sei como agradecer!
O pastor Freitas virou-se para Honório e comentou:
- Irmão Honório, agradeça a Deus. Agradeça aos anjos do Senhor que o colocou no caminho da luz, no caminho do bem e do amor para ser socorrido e não deixou aqueles pensamentos tenebrosos se tornarem realidade. Pois se o anjo do Senhor não aparecesse para sussurrar-lhe aos ouvidos suas preces, o demônio te teria tomado conta da alma.
Honório sorriu de satisfação porque sua vida começou a ter propósito de melhorias. Embora ele acreditasse que sua entrada em uma igreja evangélica, bem como o emprego que acabara de arrumar e a saída da casa de seu irmão, fora uma mera casualidade, o que, logicamente, não foi. Apesar de não perceber, muito menos acreditar, Honório era amparado pelo plano espiritual devido às preces e os pedidos de seu irmão Alfredo, que muito acreditava no auxílio do invisível. Cabendo lembrar que nenhuma oração ou pedido deixam de ser observados pelo plano espiritual e amparados na medida do possível. Honório não dava atenção aos pensamentos mais sublimes que continham uma elevada carga de instrução e apoio espiritual superior. Entretanto, quando em sua mente começou a vigorar instintos monstruosos inerentes as mais perversas fraquezas humanas, naquela tarde na praia de Copacabana, ele foi guiado a entrar em uma igreja que elevava o nome de Deus como Onipotente, sendo esse o único lugar onde conseguiu paz para seu espírito perturbado. Os freqüentadores daquela igreja evangélica chamavam-se de irmãos por acreditarem em um único Pai. Diante dessa irmandade e até mesmo por causa dela, os adeptos se auxiliavam material e espiritualmente em nome de Deus. Honório foi alertado por essa doutrina que os nossos pensamentos são invadidos pela vontade ou pelos desejos traiçoeiros de espíritos inferiores, aos quais eles denominam demônio ou satanás. Essas mesmas criaturas são reconhecidas, no Espiritismo, como nossos irmãos. Espíritos ainda sem evolução, sofredores e infelizes. Tais irmãos sem instrução e com o coração endurecido pela falta de perdão e amor incondicional, recusam auxílio para a sua elevação, à qual todos os seres vivos têm direito, independentes da etapa ou escala espiritual na qual se encontre. No Espiritismo, o comum é a denominação dessas criaturas como obsessores, mas isso em casos em que haja uma perseguição muito ostensiva por parte do desencarnado. No entanto, é bom lembrarmos que também existem os obsessores encarnados que podem se dedicar exclusivamente para tentar prejudicar outro encarnado. Naquela mesma semana, Honório começou a trabalhar. E na seguinte ele, com toda a sua família, mudaram-se para a nova casa. Em meio a tantas arrumações, Honório não teve tempo ou lembrança de sequer dizer obrigado ao seu irmão Alfredo que o apoiou moral, espiritual e financeiramente por quase um ano em sua casa. Honório, bem esforçado, não se importava em trabalhar até mais tarde a bem do serviço e sempre que solicitado ajudava, inclusive nos finais de semana. Entretanto, nos dias de culto na igreja, Alcides deixava os funcionários, seguidores de sua religião, saírem mais cedo. Honório era um dos privilegiados. E querendo demonstrar-se dedicado, chegava a casa e rapidamente se arrumava. Nunca admitia chegarem atrasados, pois era muito grato a Freitas e a Alcides pela oportunidade de serviço e por viver com mais dignidade agora. Começou a integrar-se com toda a família na disciplina e nas tarefas da igreja. Somente não se satisfazia com o pagamento do dizimo a bem da doutrina religiosa, porém não encontrava um meio de livrar-se de tal colaboração. Não demorou para que Honório, sua mulher e filhos se batizassem, firmando com isso maiores compromissos com a igreja evangélica. Tudo em sua vida mudou. Não havia riqueza, no entanto, agora, podiam contar com uma boa alimentação e um pouco mais de conforto. Honório e Clara se afastaram totalmente do resto da família e também não permitiam que os filhos os visitassem sozinhos. Nem mesmo Camila, que já estava uma moça feita e responsável, não tinha permissão do pai para ir ver os avós e muito menos os tios, Alfredo e Dora que tanto o ajudaram.
- Não! Definitivamente, não! - vociferava Honório. - Não admito que vá a casa deles!
- Mas pai, qual o problema?! - reclamava Camila, filha mais velha de Honório. - O tio Alfredo e a tia Dora não falam mais nada de Espiritismo pra mim. Eles nem tocam no assunto. Eu...
- Eu disse: não! Entendeu Camila? Não!
- Mas pai...
Interrompendo-a com veemência e colocando-se robustamente frente da filha e levantando o braço com ameaça de agredi-la, Honório berrou:
- Mais uma palavra e tu apanhas! Ninguém aqui vai se envolver com quem tem pacto com o demônio! Entendeu?! - Acuada diante da ameaça, ela não disse nada. Porém Honório continuou:
- Enquanto eu vivi ligado àqueles endemoninhados nunca tive sequer um emprego! Depois que conheci a palavra do Senhor nunca mais nos faltou nada!
A filha sentia algo errado acontecendo com as opiniões e pensamentos de seu pai. Sabia que ele nunca fora religioso. Porém agora se dedicava integralmente àquela doutrina. Mesmo diante de todo empenho e imposição para que seguissem as normas religiosas que ele demonstrava adotar, ela não conseguia acreditar em tanta devoção por parte dele. Camila sempre gostou e concordou com tudo o que ouvira de seu tio Alfredo sobre o Espiritismo, o evangelho feito no lar, as conversas sobre assuntos espirituais, as literaturas espíritas... Tudo aquilo lhe trazia imenso conforto e uma profunda paz. Como é que poderia ser coisa do demônio algo que lhe trazia imenso esclarecimento e tranqüilidade? Algumas das vezes que esse tipo de dúvida surgiu, a jovem procurou conversar com sua mãe para saber sobre seu parecer.
- Filha - dizia Clara -, teu pai trabalha muito para manter a casa e a família em boas condições. Esse emprego foi conseguido somente por intermédio de pessoas que têm uma determinada crença e um único tipo de conduta. Portanto não seria justo nós trairmos teu pai e essa gente que tanto nos ajuda vivendo próximo daqueles que eles consideram pecadores.
- Mãe, não quero contrariar-te, no entanto esqueces que primeiro esses a quem chamas de pecadores são nossos parentes e segundo são pessoas que sempre nos ajudaram nos momentos mais difíceis pelos quais passamos. Não é justo esquecermos tudo o que o tio Alfredo fez por nós! Ele sustentou-nos por muito tempo sem pedir nada, sem nunca reclamar de nada! No entanto eu nem mesmo posso visitá-lo!
- É que teu pai percebeu que tu foste quem sempre mais admirou e se identificou com o tipo de pregação religiosa que teu tio Alfredo e a tia Dora faziam enquanto morávamos com eles. Hoje, temendo que tu te deixes enganar por aquelas conversas sobre Espiritismo e reencarnações, teu pai quer poupá-la, isso é justo.
- Já sou maior de idade e tenho o direito de seguir o que eu quero!
- Não deixe teu pai ouvir-te falando assim!
- Mãe, a senhora é muito submissa.
- Camila! Agora tu foste longe demais! - Clara começava a se zangar devido à insistência da filha.
- Não quero que toques mais nesse assunto! Tu farás o que teu pai determinar!
Inconformada, a jovem sempre procurava uma maneira de visitar seus tios às escondidas. Alfredo não concordava com isso. Entretanto não conseguia negar sua imensa satisfação ao ver a sobrinha.
- Camila, não é correto o que tu fazes - dizia sua tia Dora, pacientemente.
- Tia, meu pai é muito rígido comigo! Não suporto ter de ir à igreja por obrigação, não gosto de lá.
- O melhor que tu tens a fazer é conversar com ele e explicar a situação - completou Alfredo.
- Tio, o senhor não entende. Meu pai não quer falar nesse assunto. Aliás, tenho mais oportunidade e liberdade para conversar com o senhor ou com a tia Dora do que com ele ou minha mãe.
- Quantas vezes tu tentaste conversar com Honório e explicar tua insatisfação? - quis saber Alfredo.
- Várias tio!
- Mesmo?...
- Sim, tio!
- Quer que eu vá procurá-lo para falar-lhe sobre teus desejos, opiniões e...
Antes que Alfredo terminasse sua frase, Camila reagiu impulsiva:
- Não! Por favor, tio!... Deixa como está! Promete-me?! Sem alternativa, Alfredo decidiu deixar tudo como estava diante da imploração da sobrinha.
Com o tempo, Camila passou a diminuir suas visitas à casa de seu tio. Entretanto, alguns dias da semana, dizia à sua mãe que, após sair do colégio, iria à casa de uma amiga para fazer algum trabalho escolar, mas na verdade ela ia à praia com sua colega ou a outros lugares de diversão como cinema e parques. Inevitavelmente a jovem começou a namorar às escondidas com um rapaz que a incentivava e apoiava a continuar com tais mentiras e também a cabular as aulas do colégio. Honório estava envolvido demais com seu trabalho, com as tarefas e compromissos assumidos na igreja e não conseguia atentar para as atitudes das filhas, pois Júnior não lhe dava trabalho. Sua exigência era que todos estivessem prontos no horário dos cultos. Ele não admitia atraso. Certo dia o pastor Freitas pediu a Alcides, proprietário do empório onde Honório trabalhava, que esse fizesse o imenso favor de liberar por um dia Honório e um outro funcionário de nome Monteiro, o qual também era adepto da doutrina, para que, junto com ele, fossem pesquisar e efetuar as compras de alguns materiais de construção para a reforma de ampliação da igreja. Prontamente Alcides os liberou. A partir de então Honório passou a ter mais conhecimento da verba arrecadada pela igreja através das doações dos fiéis por intermédio do dízimo ou das doações voluntárias, extras aos pagamentos obrigatórios dos fiéis. Ele começou a fazer parte da administração e da contabilidade da igreja, passando a ter conhecimento de todo o numerário recebido e de como ou em que era gasto. Tendo em vista a confiança depositada nos irmãos de igreja na compra de qualquer material, nunca foram solicitadas as notas ficais ou qualquer outro tipo de comprovante de pagamento. Na primeira oportunidade, começou a desviar e apropriar-se de pequenas quantias, quase insignificantes, para uso pessoal. Não demorou para perceber que Monteiro não era muito fiel àquela doutrina, pois, quando estava perto dele, sentia cheiro de bebida alcoólica que disfarçava com o uso de um perfume forte. Assim como ele, Monteiro freqüentava a igreja com o intuito de garantir o emprego. Astuto, Honório o convenceu a trapacear. Juntos eles começaram a conseguir desviar valores bem maiores das arrecadações feitas e sem levantar qualquer suspeita. Agindo assim, um era testemunho do outro quando prestavam contas referentes aos gastos nas compras que realizavam. Por anunciarem um preço bem acima do efetivamente cobrado, passaram a dividir o dinheiro que sobrava, o qual deveria ser devolvido à igreja. Honório e Monteiro começaram a ter idéias diferentes das pregadas pelo pastor Freitas sobre a humildade, a riqueza através da ganância e do logro. Sem se importarem com as pregações tiraram vantagens de tudo o que a eles era designado. Em conversa com Honório, Monteiro, tentando justificar suas atitudes, dizia:
- Queres saber? Estou a mais tempo ligado a eles do que pensas. Pelo que vejo, quem me garante que Freitas e outros da igreja já não tiraram o seu quinhão da verba destinada às obras? E quando nenhuma melhoria está sendo realizada, pra onde tu achas que vai essa dinheirama toda?
- E verdade, Monteiro. Eu também me pergunto tudo isso. A gente fica feito trouxa lá, trabalhando nisso e naquilo e?... Coisas que eu não conserto na minha casa fico arrumando lá na igreja pra eles economizarem com mão-de-obra. Faço isso só para manter meu emprego e a minha casa, do contrário...
- E eu Honório, tu achas que estou lá por que, hein? Ainda bem que te encontrei e que concordas comigo. Estou cansado de ser oprimido e não ter para quem reclamar. Emprego é coisa rara hoje em dia. O governo acaba com a nossa liberdade e com os nossos direitos, entre outras coisas. Por fim vem a igreja evangélica que me obriga a tosar o cabelo feito um recruta, a usar paletó e gravata no clima do Rio de Janeiro, determina que minha mulher e minhas filhas fiquem com toda aquela cabeleira que só serve para esquentar as idéias e criar piolho, além de prendê-las àquelas saias ridículas. Todas essas determinações me revolta, pois é a característica típica do "crente". Estou cheio!
- O que eu puder fazer para não sair no prejuízo, farei - disse Honório convicto.
- Eu estarei contigo!
- Tenho uma idéia - disse Honório. - Em nossas condições o que nos sobra é tempo.
- Vamos usá-lo!
- Como?!
Honório começou a relatar seus planos para Monteiro. O melhor a fazer era estudar a Bíblia e obter muito conhecimento, trazendo decorados trechos importantes que justificassem seus objetivos escusos, ilícitos. Aprenderiam a falar corretamente de modo a convencer e envolver as pessoas através da entoação de voz e da dramatização das palavras. Cativando-as teria como conseqüência o aflorar de suas carências afetivas, o apego fanático na dependência de oradores fervorosos. Para amparar-se usariam somente a Bíblia, proferindo palavras e esclarecimentos dúbios com o intuito de confundir o entendimento. Julgavam que poderiam ser exímios oradores, portanto teriam muitos fiéis. Não se deixariam mais dominar como discípulos da igreja que freqüentavam. Eles sim teriam autoridade e poder. Pretendiam exercer influência sobre multidões, angariando confiança através de suas dedicações aos necessitados. Tinham em mente que levariam uma boa palavra e grande orientação através das mensagens bíblicas aos sofredores, obtendo destes a gratidão, a obediência, o devotamento e, lógico, o agradecimento através de numerários que seriam arrecadados em nome de Deus e como prova do desapego material dos fiéis ou como meio de fé, pois acreditariam que receberiam em dobro o que doassem. O objetivo de Honório e Monteiro era que todos fossem dependentes deles religiosa e espiritualmente.
- Nós seremos as bengalas, as cadeiras de roda aos aleijados de religião e fé! - gritou Honório com euforia.
- Um brinde a isso! - concordou Monteiro, oferecendo ao amigo Honório um copo com aperitivo alcoólico, convidando-o para uma comemoração.

4 - HIPOCRISIA USANDO O NOME DE DEUS

Honório e Monteiro empenharam-se ao máximo em estudos bíblicos em todos os seus momentos vagos. Ambos se reuniam às portas fechadas, treinando e ensaiando o que seriam as apresentações em público para dirigirem um culto evangélico tão bem, ou melhor que o pastor Freitas. Chegavam a ajoelhar e chorar nos ensaios, de forma tão autêntica que não colocaria em dúvida nem mesmo um experiente diretor cinematográfico. Todo esse espetáculo era feito em nome de Deus. No final riam e parabenizavam-se pela perfeição exibida na representação durante tão árduo ensaio. Um dia a oportunidade surgiu. O pastor Freitas teve de ser operado às pressas por ocasião de uma apendicite aguda e não havia quem o substituísse de imediato, pois todos, pegos de surpresa, ficaram desorientados: Foi então que Honório se prontificou. Assumindo a frente da igreja com seriedade, Honório manteve uma expressão austera. Olhou para todos e começou a cantar sendo acompanhado por todos os fiéis. Em seguida, após leitura rápida de uma passagem do evangelho, iniciou a explicação com vigor dando ênfase em tudo o que falava, usando de todas suas sutilezas e raciocínio rápido para convencer os fiéis e angariar o respeito deles. Sua apresentação foi fenomenal! Nem mesmo se esqueceu de uma calorosa oração pela melhora da saúde do pastor Freitas. No final, os fiéis estavam fervorosamente alegres. Acreditavam que o anjo do Senhor havia se pronunciado através do irmão Honório e que Deus não os abandonou, pois na falta do pastor Freitas mandou Seu emissário proferir suas palavras. Honório sentiu-se saciado. Nem mesmo ele acreditava se sair tão bem. Então passou a se incumbir dos próximos cultos por causa da recuperação do pastor Freitas. Monteiro vibrou de alegria e, não se contendo, procurou Honório na mesma noite:
- Bem que me disse que daria certo, Honório! Eu até achei que estávamos perdendo tempo com tanto estudo e ensaio.
- Eu nunca perco tempo. Foi uma questão de oportunidade e nós a tivemos. Agora é só ganharmos confiança.
- Tu viste quanto arrecadamos?! - exclamou Monteiro entusiasmado.
- Não. Tu não querias que eu fosse atrás do cesto de óbolos para saber de dinheiro perto do Alcides e dos outros, querias?
Tu não imaginas! Triplicamos o último numerário arrecadado por Freitas!
- Tu não brincas?! - disse Honório admirado.
- Aqui está. Confere tu mesmo.
Exibindo dois feixes de notas, Monteiro entregou um na palma da mão de Honório dizendo:
- Combinastes metade comigo, certo? Eis tua parte.
- Foi o combinado - confirmou Honório com os olhos brilhando ao tocar as notas e verificando o valor.
- As moedas e alguns trocados eu deixei lá para eles verem que seu culto rendeu mais que o do Freitas. Sabes, não foi fácil tirar nossa parte com o Alcides por perto. Ele é uma águia.
Com um sorriso irônico, Honório comentou:
- Alcides está preocupado com a parte dele.
- Sabes qual é o pior? - ironizou Monteiro. - Alcides é tão trouxa e covarde que não tira nada para ele. Acho que o idiota é honesto mesmo.
Depois de rirem muito e combinarem novos planos, Monteiro se foi, deixando Honório fora de si ruminando novas intenções para ganhar poder e fama dentro da religião. Ele entendeu que as pessoas pagavam por um espetáculo, pois só através deste é que conseguiam ter fé e esperança. Quando era bom, pagavam bem; quando era ótimo, pagavam mais. Outros cultos ocorreram e, apesar de admirar muito Honório, Alcides passou a ter certas suspeitas tanto dele quanto de Monteiro e em uma de suas visitas ao pastor Freitas, que se recuperava da cirurgia, chegou a comentar:
- Pastor, sei que é pecado caluniar, porém algo está errado. Não sei ao certo o que é, entretanto sinto uma cumplicidade entre Honório e Monteiro. A impressão que tenho é que o olhar deles os denuncia.
- Não posso dizer nada, caro irmão. Confio neles. Nunca tivemos em nossa comunidade irmãos que não fossem fiéis e honestos.
- Pastor - insistia Alcides -, sou eu quem cuida da verba da igreja e logo após a arrecadação eu a confiro. Sempre agradeci a Deus pela honestidade em minhas mãos e a tranqüilidade em minha consciência para separar e direcionar cada centavo recebido. O senhor sabe que cuido de pagar todas as contas, cubro todas as necessidades da igreja e ainda sobra para comprarmos alimentos para os nossos irmãos pobres e, também doamos o restante até para aqueles pobres que ainda não se envolveram na palavra de Deus e não freqüentam a casa do Senhor.
- Se não soubesse de sua honestidade, Alcides, não ocuparias essa função.
- Agradeço a confiança, pastor Freitas.
- Seja claro, irmão Alcides. Do que tu desconfias?
- O irmão Monteiro é quem faz a arrecadação do numerário e a separação das notas e moedas. Eu... bem... eu... - gaguejou Alcides.
- Digas homem!
- Eu creio que ele tira para si algumas notas. Freitas arregalou os olhos incrédulos e insistiu:
- Como?! Do que tu falas?!
- O pastor sabe que o irmão Honório é talentoso. Agora que ele está dirigindo o culto, parece que algo se manifesta por ele, pastor.
- Como assim irmão?! Eu te estranho! Nunca contestaste sobre alguém de nossa igreja.
- Eu me explico. Durante o culto, o irmão Honório se apodera de um dom espetacular! Ele envolve os fiéis e os leva ao delírio! Chega a pronunciar coisas estranhas em forma de prece em idioma que eu desconheço.
- Ora, ora, irmão. Ao anjo do Senhor não há fronteiras lingüísticas.
- Certo pastor, eu concordo contigo. Entretanto o irmão Honório envolve os fiéis com sugestões engenhosas que induzem a uma alucinada doação e entrega de seus bens materiais, e o primeiro a ser entregue é o dinheiro. Eu pude observar, durante o culto, que a doação aumentou, porém, ao chegar as minhas mãos para contabilizar, esta se encontra no valor aproximado das antigas arrecadações. Como se explica isso?
O pastor Freitas ficou preocupado. Tal fato jamais havia ocorrido dentro de sua igreja.
- O irmão tem certeza disso? É uma suspeita muito séria.
- Estou disposto, se o pastor permitir, a marcar algumas notas e distribuí-la à minha família para a doação. Dentre essas notas colocarei uma de bom valor, tipo... dez cruzeiros. Se todas as notas forem parar na contabilidade, eu me retiro desse trabalho ao Senhor e até deixo de ser membro da igreja, pois não é cabível que alguém como eu dê-se ao desfrute de ouvir o demônio ao ponto de acusar e querer testar irmãos da doutrina.
- Se o irmão Alcides quiser fazer isso, tem minha aprovação. Porém não permitirei que saias da minha igreja caso não proves nada contra o irmão Honório e o irmão Monteiro. Se isso ocorrer, esse é o momento que o irmão necessitará de nós.
- Então será feito, pastor. Temos aqui quatro notas de cinco cruzeiros e uma de dez cruzeiros. Eu gostaria que o senhor mesmo anotasse a numeração. Quando o numerário chegar à contabilidade, quero que o senhor esteja lá comigo para comprovarmos.
Assim foi feito. Marcaram em um papel a numeração das notas e guardaram. Dois dias depois, com a saúde quase totalmente restabelecida, Freitas foi à igreja para se encontrar com Alcides e conferirem a arrecadação da noite anterior. José, outro membro da igreja, que junto com Alcides encarregava-se da contabilidade, estava a par da situação. Ele confirmou ao pastor que após a arrecadação, foi Monteiro quem colocou no cofre os valores e pertences valiosos doados pelos fiéis. Depois disso ninguém mais mexeu neles.
Abriram o pequeno cofre e começaram a procurar pelas notas marcadas. Mas, para a surpresa dos três, não havia nenhuma nota de dez cruzeiros e todas as outras notas de cinco cruzeiros, cuja numeração fora anotada, também não estavam ali. Alcides revoltou-se. Como podiam fazer aquilo? Não acreditavam no castigo de Deus? José, por sua vez, queria expor toda a situação e a experiência durante o próximo culto para que todos soubessem das falcatruas de Honório e Monteiro. Freitas acalmou-os. Porém, não poderia permitir novas lesões ou furtos às doações recebidas para a igreja. Teria uma conversa com Honório e Monteiro para esclarecerem tal fato. Alcides imediatamente prontificou-se a ir buscar no empório Monteiro e Honório, colocando-os na frente do pastor e de José para pedir-lhes explicações sobre o fato.
- Estão acusando-nos de roubo?! - exclamou Monteiro cinicamente. - O irmão acredita mesmo que seríamos capazes de subtrair quaisquer valores das obras de Deus?!
- Como, então, os irmãos explicam o desaparecimento das notas que marcamos o número de série? - indagou Alcides. - Há tempos venho observando uma atitude estranha dos irmãos e percebi também que o montante arrecadado não era compatível com a somatória final.
- Seus olhos te traíram, irmão Alcides - manifestou-se Honório com largo descaramento e um leve semblante debochado.
- Explica o sumiço das notas marcadas que ontem doamos! - vociferou Alcides.
- Não há explicação. A não ser de que o demônio tem por vontade e prioridade o nosso desentendimento e a nossa desconfiança - defendeu-se Honório. - O demônio quer que nos agridamos e nos odiemos. Como o próprio pastor nos disse um dia: "o demônio é ardiloso e vive nos rodeando de armadilhas perigosas".
- Não me venha com dissimulações! - insistiu Alcides. - Eu digo que, ontem assim que entreguei as doações, vi no cesto de óbolos a nota de dez cruzeiros, mas quando Monteiro organizou, contou os valores arrecadados e colocou-os no cofre a nota desapareceu!
Alcides estava exaltado. Enquanto o pastor, preocupado com a harmonia que já se esvaia da conversação, pôs-se de permeio.
- Acalmem-se, irmãos. - Voltando-se para Alcides, continuou: - Caro Alcides, mantenhamos cautela antes de acusações tão fortes. O irmão Honório alertou-nos para um fato importante sobre o demônio ser ardiloso, concorda?
- Não! - vociferou Alcides terminantemente.
Nesse instante Honório ergueu o tronco, curvando-o levemente para traz, desfechando uma delirante gargalhada de zombaria. Todos se surpreenderam, inclusive Monteiro, e fitaram-no pasmados de surpresa. Honório não conseguia conter-se. Chegou a apoiar-se com uma mão na parede e outra no ventre para equilibrar-se. Ao mesmo tempo os outros, paralisados pela incredulidade provocada pela cena, não conseguiam manifestar-se. Em certo momento Honório fitou-os com o semblante bem sério e falou:
- Pensavam que poderiam tripudiar sobre mim por muito tempo?! Enganaram-se! - Desfechando um soco sobre a mesa, ele continuou: - Os caros companheiros foram ardis, bem astuciosos até hoje para com os pobres, fracos e dependentes de fé.
- O irmão Honório está suscetível ao demônio! - exclamou José.
- Cale-se e ouça! - continuou Honório. - Demônio não existe! Cheguei a essa conclusão depois de quase um ano ouvindo todas as baboseiras nas pregações! Anjos e demônios não existem! Demônios e satanás somos nós! - gritou batendo no próprio peito. Sem trégua, continuou: - Anjos e guardiões podemos ser nós! Tudo de acordo com as nossas atitudes e os nossos desejos e, pelo que eu vejo aqui, só há demônios disfarçados de anjos, querendo ser muito espertos!
- O irmão está!... - tentou interferir o pastor.
- Eu disse para calarem-se! - gritou Honório novamente. - Agora irão ouvir tudo o que precisam para saber sobre a verdade dos espíritos, anjos ou demônios. - Fitando os ouvintes avidamente, circunvagou o olhar e prosseguiu: - Estão todos nervosos pelo sumiço das notas, por quê?! Uma intensa cobiça chega a emanar de cada um só pela arrecadação realizada nas últimas pregações feitas por mim! Será por que nada mais sobrou a todos além do que já era comum?
- Está nos caluniando de ladrões?! - alterou-se Alcides.
- Tu não, caro e estúpido Alcides. Porém acredito que todos os envolvidos, direta ou indiretamente com a contabilidade arrecadada para a igreja, sempre subtraem para si o seu quinhão. Entretanto, tu, irmão Alcides, é o único cego que não percebeu as falcatruas. És o único idiota honesto existente na direção da contabilidade da igreja que nada tirou para si. Se existe anjo, tu representas um. Só pregas o bem e praticas exatamente tudo o que diz. No entanto o que o digníssimo pastor me diz sobre os custos dos materiais comprados no depósito de Copacabana no último dia quinze e que no dia seguinte, sem saber de tua estada lá, pessoalmente levei a mesma lista e o orçamento ficou 10% mais barato. Justifique isso, caro pastor Freitas! - intimou Honório com ironia.
Freitas empalideceu e os demais estupefaram-se. Não obtendo resposta, Honório prosseguiu.
- O digníssimo irmão Jorge, que infelizmente não está presente, também fez o mesmo com a compra das telhas, ou melhor, solicitou junto ao depósito de materiais que dois centos das referidas telhas fossem entregues em sua residência e as outras quinhentas no terreno da igreja. O que os caros irmãos dizem disso?!
José manifestou-se:
- Como pode haver esse tipo de ocorrência na obra do Senhor?! Pastor Freitas, eu me admiro...
Honório gargalhou novamente interrompendo-o:
- Não te faças de ingênuo, José! Tenho também provas de que tu não és tão honesto quanto representas!
- Tenho as notas de tudo quanto comprei para a obra da nova igreja! - defendeu-se José.
Quem quiser poderá ir até a loja onde tu compraste o material para a fiação da parte elétrica e comprovar com o vendedor de nome Vicente, que tu solicitaste uma nota com um valor bem acima do custo real! O vendedor, ironicamente, ainda me disse: "Se vais comprar material para a igreja, como fez o teu amigo, eu também posso jogar um valor a mais na notinha..." Portanto, daqui só não consegui provar falcatruas do pobre Alcides que acredita na honestidade de todos. Quanto a mim, o que tenho em minha defesa é que cansei de ser subjugado e espezinhado! Tenho capacidade e provei isso nos sermões, nas pregações àqueles infelizes, desprovidos de inteligência e perseverança para alcançarem paz de espírito através de suas próprias buscas, através de sua própria fé! Esses são uns pobres coitados dependentes da astúcia e do alvitre alheio para terem fé em alguma coisa e acreditarem nela, por isso pagam em dinheiro para possuírem paz, para terem amor, como se isso fossem coisas compradas. E são! Eu mesmo vendi a eles fé, esperança e muito mais. Talvez eu seja o único aqui que tenha ganhado esse dinheiro honestamente, porque trabalhei, fiz algumas coisas por algumas pessoas e elas pagaram o quanto quiseram por meus préstimos! E tu José, o que foi que ensinaste a esse bando de fiéis? E o Jorge? O que ele tem feito por esses necessitados? Bem, o pastor Freitas esforçou-se um pouco mais! - Rindo ironicamente, completou: - Ele vem se mobilizando muito para guiar essas ovelhas e tem que receber algum pelo seu trabalho, não é pastor?
- Não posso acreditar nisso! - exclamou Alcides.
- Tenho provas de tudo! Caso o irmão queira confirmar! - insistiu Honório num grito.
- Eu mesmo faço a divisão do numerário - disse Alcides.
- Não sejas tão estúpido, Alcides - manifestou-se Monteiro. - Tu só entregas o dinheiro nas mãos deles e depois recebes uns trocos de volta e não verificas onde e quanto foi consumido. Se tu queres ser cego, seja, mas, diante da realidade, não sejas burro!
- Não tenho mais motivos para ficar aqui - disse Honório. - Eu e Monteiro estamos abrindo uma nova igreja em outro bairro.
- Vou chamar a Força Pública! Tenho conhecidos lá e tu serás preso! - gritou Freitas.
- Chame! Chame mesmo! Assim tu, teus comparsas e cúmplices sereis presos comigo. Haverá um belo escândalo público! Só não te esqueças de que há vários soldados, um tenente e um capitão que são membros ativos da tua igreja! Eles são colaboradores e contribuintes assíduos com valores consideráveis que tu, em pessoa, desviaste! Chame-os, vamos lá! Denuncie-me! - Virando-se para Alcides, que estava assombrado com tudo, Honório falou: - Em poucos dias sairei da casa que me alugaste. Outra já está sendo providenciada. Quanto ao emprego... só irei lá amanhã para o acerto de contas. Eu me demito. - Voltando-se aos demais explicou: - A verdade sobre anjos e demônios é uma só: todos nós temos uma alma ou espírito, sei lá, mas tenho certeza de que temos o direito de agirmos livremente como anjos ou demônios. Ninguém aqui pode se considerar mais honesto do que eu que admito o que faço. Se há demônios a me rodear, esses são vós que não sois dignos de se intitularem servidores do Senhor!
Honório deu-lhes as costas e Monteiro o seguiu. Alcides, a princípio, revoltou-se por saber de toda a verdade, mas decidiu manter a calma e não se precipitar antes de ter mais esclarecimentos. Freitas, envergonhado, chamou os demais membros que compunham a direção e a contabilidade. Todos confessaram os desvios das verbas ou materiais destinados à reforma da igreja para seus próprios benefícios. Eles assumiram suas culpas e verdadeiro arrependimento prometendo ressarcir tudo o que haviam subtraído o mais breve possível, além de solicitarem o perdão de Deus junto com a promessa de que não mais repetiriam aquilo. Apesar de contrariar-se, Alcides aceitou lembrando-se de que o perdão é o mais nobre sentimento recomendado pelo Evangelho de Jesus. Assim foi feito.
Aqueles homens dedicaram-se inteiramente ao trabalho a que se propuseram de maneira humilde e honesta, ajudando de forma material e espiritual todos os membros daquela congregação, não mais se deixando levar pela cobiça de angariar algo para si.

5 - CAMILA ESCOLHE CONFORTO E COMODIDADE

Num bairro próximo de onde já moravam, Honório e Monteiro alugaram pequenas casas e continuaram vizinhos. Alugaram também um pequeno salão onde começaram sua nova igreja. Guardavam consigo a tranqüilidade de que nunca seriam denunciados pelo pastor Freitas ou por qualquer um dos outros, tendo em vista que ocultavam também grande segredo destes. A pequena igreja, fundada por Honório e Monteiro, contava com a participação de alguns membros da igreja anterior que os seguiram por se identificarem com a pregação de Honório, sem desconfiarem do que havia ocorrido para que Honório se afastasse de Freitas. Quando questionado sobre o assunto, Honório respondia:
- Em um reino não pode haver dois reis. Eu recebi um aviso para dedicar-me inteiramente a Deus a fim de guiar Tuas ovelhas e assim estou fazendo. Como o digníssimo pastor Freitas já tem seu rebanho formado, só me restou sair em busca das ovelhas que se desgarraram para trazê-las até Deus guiando-as no caminho do Senhor. Honório era sagaz, ardiloso e em pouco tempo sua igreja mudou de um pequeno salão alugado para um grande salão emprestado, indefinidamente, por um dos fiéis. Enquanto isso, outros doaram cadeiras e bancos. Aos poucos até um microfone e algumas caixas de som, coisas raras na época, Honório recebeu como doação. Incentivados por Honório durante as pregações, os fiéis doavam altas verbas a fim de adquirirem um terreno para a sede própria da igreja. Não demorou muito e foi feita a aquisição do referido imóvel e junto com a compra, Honório e Monteiro omitiram que parte do valor usado foi destinado à compra de outro terreno bem próximo de onde seria a sede da igreja. Essa aquisição ilícita teria a finalidade da construção de suas casas, uma ao lado da outra. Contra sua própria vontade, Camila foi imposta a namorar um membro da igreja. Era um compromisso arranjado por conveniência e determinado por seu pai. O mesmo ocorreu com Vera, uma das gêmeas. Seu pai providenciou sua transferência de escola sem sua prévia opinião. Além disso, obrigava-a freqüentar e seguir uma doutrina religiosa com a qual a jovem não concordava e ainda namorar quem ela não queria. Não! Tudo isso era excessivamente tirano. Camila revoltou-se por esse e outros motivos. Por essa razão ela não tinha o menor remorso ao sair às escondidas para namorar outro rapaz e passear com algumas poucas amigas que ainda tinha. Em pouco tempo Honório terminou a construção de sua casa e estabilizou-se nela. Nessa mesma época a sede da igreja também ficou pronta. O novo templo religioso era razoavelmente confortável, havia mais espaço e o número de fiéis passou a aumentar consideravelmente. Quando não estava fazendo pregações na igreja, Honório dava-se ao trabalho de visitar os fiéis em suas casas e até nos hospitais para fazê-los perceber sua dedicação, seu interesse e sua preocupação para com os membros da igreja. Pouco tempo restava-lhe para dedicar-se à mulher e os filhos. Entretanto sabia que sua família encontrava-se financeiramente estável, vivendo com muito conforto e bem amparados. Camila era a mais vaidosa e exigente. Apesar de a televisão ser proibida por aquela doutrina religiosa, Camila tanto reclamou e impôs que pai comprou uma e a instalou em um quarto destinado somente para essa finalidade. Esse quarto seria trancado, pois ninguém poderia saber que eles tinham uma televisão. Mesmo assim para a jovem nada estava bom. Ela queria liberdade.
Certo dia insistiu em conversar com seu pai a respeito de sua presença obrigatória na igreja e sobre seu namoro. Afinal, ela não gostava do rapaz e não queria mais ostentar aquela farsa. Tanto teimou e protestou com modos exigentes alteando o volume da voz que Honório, perdendo a paciência, deu-lhe uma surra forte e marcas roxas espalharam-se por todo o corpo da moça. Camila não pensou muito. Na manhã seguinte, na primeira oportunidade, apoderou-se de algumas roupas e até de algum dinheiro e saiu de casa. Sem rumo e ainda revoltada, foi para a casa de seu tio Alfredo. Ao recebê-la, Dora não sabia como agir. Não poderia fechar-lhe a porta nem mesmo incentivá-la e apoiar a sobrinha naquela decisão. Aos prantos, Camila relatava tudo para a tia:
- Ele me bateu, tia! Me espancou! Eu não volto mais para aquela casa, nunca mais!
- Camila, minha filha - dizia Dora -, a situação é recente. Tu estás nervosa. Não sabes o que estás dizendo. Quando te acalmares...
- Não volto, tia! Não volto mais lá!
Quando se fez noite e Alfredo chegou, surpreendeu-se com a situação e, pensando na preocupação de Honório e Clara, imaginou que os pais não sabiam onde procurar a filha, ele decidiu, na mesma hora, ir até a casa do irmão. Ao ser atendido por Honório ao portão daquela bela residência, Alfredo, com satisfação, cumprimentou-o.
- Honório, meu irmão, tu estás bem?
- O que desejas? - perguntou Honório friamente.
- Desculpe-me se o incomodo, mas gostaria de falar-te sobre Camila. Poderíamos conversar? - expressou-se Alfredo recatado diante da indiferença do irmão.
- Eu deduzi que ela te havia procurado. Não temos nada a conversar.
- Mas Honório, é tua filha!
- Será minha filha somente diante do perdão que há de pedir-me. Do contrário, hoje ela deixou de ser. - Depois de pequena pausa, Honório perguntou: - Era só isso?
Alfredo ficou perplexo, pasmo de espanto. Diante disso, ele não teve alternativa e desfechou:
- Quero que tu saibas que Camila está em minha casa e, é claro, será muito bem tratada e orientada. Caso tu ou Clara queiram vê-la, minha casa está de portas abertas.
- Sou-te grato. No entanto, não posso dizer-te o mesmo. Rezarei por ti, para que vejas a luz antes que se apague. Porém minha igreja estará de portas abertas caso queira o perdão.
- Obrigado, meu irmão.
Alfredo ficou decepcionado com a frieza do irmão. E por conta de tudo, Camila passou a morar na casa de Alfredo e Dora. Com o passar dos dias, ela arrumou um emprego como auxiliar de crediário numa loja de grande porte financeiro. Parte do que recebia como salário ela dava à tia a fim de auxiliar com as despesas da casa e a outra parte ficava para si. Passou a freqüentar o Centro Espírita junto com seus tios e primos, pois acreditava identificar-se com a Doutrina Espírita que quase nada exigia dela, somente orientava. A casa de Alfredo era humilde e com muito custo e sacrifício era mantido o estudo dos filhos. Era comum Dora fazer faxina em casa de família para ajudar com as despesas. Dirceu, o filho mais velho do casal, trabalhava e com seu salário conseguia pagar sua a própria faculdade e parte da faculdade do irmão. Alfredo arcava, com dificuldade, o restante do pagamento da faculdade de Júlio, filho mais novo, e o que sobrava do que recebia era exato para as despesas da casa. Dirceu estava no último ano da faculdade de Direito e Júlio no terceiro ano de Medicina. Muitas vezes, Júlio enfraquecia e queria largar os estudos. Sentia-se inútil uma vez que o estudo roubava-lhe todo o tempo e ele não podia trabalhar para ajudar nas despesas. Porém Alfredo não admitia. Se Júlio quisesse deixar a faculdade por não gostar do curso, seria justo, mas por dinheiro, ele nunca iria deixar. Por essa razão, o pai fazia muitas horas-extras sem que o filho soubesse. Mais de um ano depois, Alfredo encontrava-se num ônibus que colidiu com um caminhão. No terrível acidente, morreram cinco pessoas e Alfredo foi uma delas. Dora sofreu muito com a separação. Entretanto sua evolução espiritual serviu de muita sustentação. Sabendo que essa experiência terrena é passageira e que a separação seria temporária, conseguiu se resignar, mas não deixou de chorar e experimentar imensa dor. Com a falta de Alfredo, as dificuldades financeiras aumentavam. A pensão, que recebia como esposa era pouca para pagar a faculdade de Júlio. Dirceu, recém-formado, não ganhava o suficiente para ajudar o irmão.
- Não, Júlio - dizia Dora firmemente -, tu não largarás a faculdade.
- Mãe, milagres não existem - justificava-se Júlio. - Não posso estudar sem pagar. Não é justo a senhora se matar de tanto, fazer faxina, lavar e passar roupas para os outros para que eu estude. Vamos dizer a verdade, com todo respeito: mãe, nem que a senhora fizesse isso todos os dias da semana, não conseguiria pagar meus estudos. A senhora sabe disso.
- Tem que haver um jeito, filho. Tem que haver.
Camila ouvindo a conversa não se manifestou. Havia tempos percebia que tudo ali estava difícil. Os alimentos já não eram tão fartos como antes e mal tinham uma porção de arroz para dividir no jantar. Ela trabalhava, mas não achava justo entregar seu pagamento nas mãos de Júlio só para ele estudar e ela ficar sem nada. Tinha uma pequena economia que guardara desde quando começou a trabalhar, mas não podia desfazer-se dela, o futuro era inserto e já começava a ficar preocupada. Dora, em seu desespero de mãe, sem ter a quem recorrer, procurou por seu cunhado Honório. Afinal, Júlio era seu sobrinho e era um caso de necessidade.
- Procura-me para pagar a faculdade de Júlio?! - exclamou Honório. - Ficastes louca, mulher?! Hoje nenhum dos meus filhos se dá ao luxo de estudar em uma faculdade!
- Se não fosse pela falta de Alfredo, eu não recorreria a ti, Honório. Mas tenho pena de meu filho. Deixá-lo parar com um estudo tão nobre e útil à humanidade na metade de seu curso... Ele é estudioso, devotado mesmo...
Interrompendo-a bruscamente, Honório desfechou:
- Peça dinheiro ao satanás. Não é ele que se comunica através de ti? Não é o espírito do demônio em que acreditas? Então peça a ele. Tenho causas mais importantes para me preocupar. Sou pastor de Deus e é aos filhos Dele que devo ajudar.
Virando as costas, Honório entrou e deixou Dora parada junto ao largo e majestoso portão de sua residência. Voltando para casa, a pobre mulher lamentou a atitude de Honório. Entretanto nem em pensamento protestou ou se arrependeu do favor que já haviam prestado ao cunhado no passado. Ela orou e pediu a Deus uma solução, a melhor possível e que sua alma estivesse forte o bastante para aceitar e suportar com paciência o aprendizado daquela prova. Não era fácil para uma mãe devotada ver tanto empenho e sacrifício de um filho cair por terra. Naquela mesma noite Camila a procurou.
- Tia, sei que a situação é difícil. Nada está dando certo para a senhora desde que o tio Alfredo morreu. Não quero ser mais um estorvo, por isso, amanhã, vou deixar esta casa.
- De maneira alguma, Camila! Não posso permitir que tu saias daqui para ir sabe Deus pra aonde. O pouco que temos também é teu. Nunca nos importunamos com tua presença. Não vou permitir isso.
- Tia, já decidi. Voltarei para a casa do meu pai. - Dora calou-se incrédula e Camila continuou: - Sabe o que é, estou cansada de importunar, além de tudo aqui está muito difícil.
- Filha, se lamentas da falta de conforto e fartura, não estamos te negando tal tratamento. Dividimos o que temos contigo e ninguém te negas nada aqui.
- Não é isso, ou melhor, creio que terão mais se eu sair daqui.
Dora não disse mais nada sentindo que a sobrinha não conseguia viver sem conforto. Abraçou e beijou-a com carinho, afirmando que sempre estaria ali e disposta a ajudá-la em qualquer coisa. Na manhã seguinte Camila procurou pelo pai. Rotulando no rosto um falso arrependimento, ajoelhou-se diante dele e pediu perdão por tudo. Naquela noite a igreja de Honório pôs-se em festa. O tema foi a volta do "Filho pródigo". Uma semana depois, Dirceu, atuando como advogado, acabara de ganhar uma causa no fórum e estava sendo cumprimentado por alguns colegas. Apesar de sua bela atuação, ele não conseguia disfarçar uma nítida preocupação, sem conseguir alegrar-se. Um juiz de direito, muito amigável, aproximou-se dele e o interpelou inesperadamente:
- O que há contigo, caro rapaz? Não estás satisfeito?!
- Sim meritíssimo, claro que sim.
- O que te aflige?
Sem titubear, Dirceu desabafou e contou tudo sobre a morte de seu pai e o prejuízo que isso causou aos estudos de seu irmão. Impressionado e comovido, o juiz chamou-o até seu gabinete para que conversassem mais à vontade. Depois de uma hora. Saiu do fórum direto para casa. Ao chegar, viu que Júlio preenchia a documentação para trancar a matrícula da faculdade. Aproximou-se, tomou-lhe das mãos os papéis, olhou-os rapidamente e os rasgou.
- Tu ficaste louco?! - perguntou Júlio estupefato com a atitude do irmão.
Dirceu, sorrindo largamente, respondeu:
- Tu já ouviste falar em bolsa de estudo?
- O que tem isso a ver comigo?
- Acabaste de ganhar uma até o último ano de seu curso! - gritou, abraçando-o e saltitando como um menino.
- O quê?! Como?! Já tentei por todos os meios conseguir uma bolsa, mas não teve jeito! - dizia o irmão sem entender nada.
- Resumirei. Conversando com um juiz de direito sobre teu caso, depois de três ou quatro telefonemas, ele te conseguiu a tão sonhada bolsa!
Do outro cômodo da casa, a mãe ouviu a conversa e se aproximou quase incrédula. Dora, Júlio e Dirceu abraçaram-se de felicidade. Suas lágrimas se misturaram. Não conseguiam conter a imensa alegria que lhes invadiu a alma. Na casa de Honório e Clara, Camila se satisfazia no conforto e na fartura, coisas das quais sentiu muita saudade. Ela não precisava mais trabalhar nem levantar tão cedo para pegar uma condução lotada. Depois de tão sofrida experiência, começou a acreditar ou forçar-se a crer que seu pai estava certo. Às vezes, a jovem pensava em seu tio Alfredo. Ele tanto acreditou no Espiritismo e em espíritos, no entanto por que nenhum espírito o avisou do acidente fazendo-o escapar da tragédia? Seu tio sempre viveu na pobreza e defendendo o Espiritismo. Onde se escondiam os amigos espíritas agora que sua tia estava quase na miséria? Seu primo deixaria a faculdade por falta de dinheiro. Como se explica isso? Por outro lado seu pai, que tanto defendia o Velho Testamento e o Evangelho, possuía mais dinheiro, conforto e fartura. Cabendo salientar que somente depois de começar a fazer isso, a vida dele, bem como a de toda família, mudou para melhor. Ele tinha razão em não concordar com essa história de cultivar estima aos espíritos. Veja só ela. Estaria também na miséria se continuasse naquela casa. Teria dado todo o dinheiro que guardou com muito sacrifício e talvez até entregasse tudo o que ganhava para sustentar a faculdade de seu primo. Se o Espiritismo desse algum lucro, aquele pessoal não passaria dificuldade. Como fora tola. Seu pai estava certo. Sinceramente sabia o que era bom para ela. Realmente, a bênção de Deus encontrava-se no que ele defendia, no que pregava. Foi preciso que trabalhasse, passasse por necessidades e desconfortos para saber valorizar as graças de Deus. Depois de sua volta para casa e sua reintegração na igreja, Camila observou que Honório ficou mais atencioso com ela. Agora ele a inteirava sobre alguns fatos e detalhes da igreja e de seus planos para o futuro. A jovem passou a entendê-lo melhor e partilhar com as tarefas da igreja. Fingia ignorar a subtração do numerário doado para fins evangélicos usados para o conforto e bem-estar de sua família. Quando, vez ou outra, questionava-se em pensamento sobre o fato de se acharem bem estabelecidos diante de um governo de opressão, Camila procurava desviar suas idéias acreditando ser induzida pelo demônio a pensar daquela forma, levantando suspeitas infundadas e injustas sobre seu próprio pai.
Honório e Monteiro estavam às vésperas de inaugurar sua segunda igreja, quando Monteiro, aflito, procurou pelo sócio:
- Honório! Honório! - gritou Monteiro desesperado, entrando às pressas no escritório de ambos.
- Acalme-se, homem! - pediu Honório. - O que te aflige?!
- É minha filha mais velha, a Telma, tu não imaginas... - Sentando-se em uma cadeira, Monteiro passou as mãos pelos cabelos e aflito continuou: - soube agora que a menina engravidou.
- Isso jamais poderia ter acontecido! - exclamou Honório enfurecido. - Como pode ser uma coisa dessa?! A filha de um pastor!... O que dirão?! Que a moral e os bons princípios não são mantidos dentro de nossa própria casa! Que não damos bons exemplos!
- O que faço agora, Honório?!
- Mande tirar, é claro! - respondeu Honório de imediato.
- Mas!...
- Mas o quê?! - gritou Honório. - Tu queres ser chamado de quê?! Acha que continuarão te respeitando depois que vier ao conhecimento de todos?!
- Tenho medo por ela. É uma menina ainda e... muito nova... Vai completar dezessete...
Se fosse tão nova assim, não teria engravidado! Sabes quem é o pai pelo menos?!
- Um garoto da escola. Colega da mesma classe. Deve ter a mesma idade.
- Por isso tirei minhas filhas daquela escola! - Pensando por poucos segundos, planejou: - Vejamos... tu terás que levá-la para outro lugar para fazer esse tipo de serviço! Não podemos nos arriscar! Ninguém mais deve saber. Tenho alguns contatos em São Paulo e tu a levarás lá para fazer isso! Entendeu?!
Monteiro concordou imediatamente. Aquilo era uma imensurável vergonha para um pai, principalmente, um pai evangélico. Por essa razão, tudo foi realizado com o mais rigoroso sigilo. As igrejas de Honório e Monteiro, cada dia que passava, estavam mais repletas de seguidores que os idolatravam. Honório era considerado pelos fiéis um homem culto, leal aos princípios que pregava e, acima de tudo, muito honrado. Nunca preocupou-se em saber como estava passando Dora, a viúva de seu irmão que tanto o ajudou, nem mesmo procurava saber sobre sua própria mãe e irmãs. Camila, por sua vez, esforçava-se para esquecer dos dias em que viveu junto aos pecadores para fugir das imposições de seu pai. E sem maiores problemas ou preocupações, passou a saciar-se numa vida tranqüila e muito cômoda. Dora, agora mais do que nunca se empenhava na divulgação e no entendimento do evangelho à Luz do Espiritismo juntamente com seus filhos Júlio, que continuava na faculdade de Medicina e Dirceu, que decidiu não mais militar na carreira de advogado e estava associando-se na abertura de uma imobiliária.

6 - DIANTE DA VERDADEIRA VIDA

Alfredo desencarnado já há alguns anos, desempenhava importantes tarefas na colônia espiritual onde vivia e também, como não poderia deixar de ser, visitava seu lar terreno com certa freqüência auxiliando os trabalhos espirituais ali realizados. Na colônia, foi informado sobre o desencarne de sua sobrinha mais velha, Camila. Ficou satisfeito por saber que ela havia sido envolvida e levada com carinho para um Posto de Socorro próximo da colônia onde ele estava. Depois de argumentar com seus superiores, recebeu autorização para ir em visita ao Posto de Socorro recepcionar Camila quando ela despertasse a fim de ajudar seu entendimento e sua aceitação sobre suas novas condições no plano espiritual. O tio sabia que a sobrinha tivera uma educação religiosa rígida e inflexível. Apesar das explicações e entendimentos que ele e Dora procuraram passar-lhe sobre Espiritismo, sabia que não seria fácil fazê-la acreditar tão rapidamente que o espírito passa por inúmeras experiências, repara seus erros, aprende e vive evoluindo, não ficando tão somente confinado ao céu ou ao inferno, como Camila passou a acreditar piamente. Meses depois do desencarne da sobrinha, foi até o Posto onde ela se encontrava. Pondo-se em conversação com o dirigente do lugar, seu velho conhecido, Alfredo dizia:
- Caro Inácio, eu creio que Camila vai entender e aceitar. Ela é inteligente e logo perceberá que está em um bom lugar e se sentirá entre amigos.
- Sim Alfredo. Ela vai perceber que está em um bom lugar. Porém temo pelo seu entendimento. Temos de admitir que Camila viveu nos últimos anos uma vida religiosa rigorosa e fanática. Como sabes, o fanatismo nos leva até mesmo a auto-obsessão, a um flagelo físico e mental desnecessário e a um grande desequilíbrio espiritual.
- Sei que és muito sensato e prevenido, Inácio, mas sempre me dei muito bem com Camila. Acredito que ela vai me ouvir com atenção e logo aceitará sua nova condição. Nós conversávamos muito quando encarnados.
- Prezado Alfredo, não quero de forma alguma te contrariar. Entretanto devemos atentar que, quando em experiência na vida terrena, o amigo foi parente de sangue da querida Camila. O que o leva a ter imensa afeição pela amada sobrinha. Isso não é errado. No entanto, com o teu conhecimento, sabes que és tu quem deseja ardentemente que ela aceite a situação presente e talvez isso, no momento, seja difícil. Antes desse último reencarne, Camila aprendeu muito no plano espiritual. Como sabemos, ela sofreu demasiadamente após o desencarne como Samara e passou por terríveis experiências no Umbral. Resgatada por elevar os pensamentos, abraçou as lições com muito amor e dedicação. Não creio que todo esse aprendizado possa se perder agora. O amigo Alfredo não quer perder as esperanças. Porém deve alertar-se para o fato de que todo o bom aprendizado que demonstrou ter abraçado com imensa dedicação na espiritualidade, e até as terríveis experiências nas tristes caminhadas pelo Umbral, ela, sozinha, colocou a perder. Isso ocorreu a partir do momento em que não atentou à suas mais sublimes intuições a fim de almejar a verdade e seguir o bom caminho. Não te deixes enganar pela pouca idade terrena. Camila estava madura o suficiente para decidir o que queria ou no que acreditar. No entanto ela não hesitou e escolheu o que era mais cômodo e eficiente para o seu próprio bem-estar. Ela nunca questionou o pai sobre suas atitudes, sobre a verdadeira fonte que lhes servia de subsistência e enorme conforto. Nunca encarou suas reflexões ou tentou investigar seus próprios pensamentos, analisando sobre o certo e o errado. Mesmo possuindo conhecimento e preparo espiritual suficientes para isso, preferiu ignorar suas dúvidas e incertezas, desviando seus pensamentos dos fatos que presenciava para disfarçar a realidade e viver de fantasias para seu bem-estar não ser abalado. O que agrava ainda mais sua situação é o fato de que ela, no pouco tempo que conviveu contigo e tua família, teve a oportunidade de rever os ensinamentos Cristãos sob a Luz do Espiritismo. Entendeu sobre a Lei de Causa e Efeito e experimentou os ensinamentos evangélicos. Fora isso, viveu o teu exemplo de caridade e humildade, exemplo este que, cabe salientar, foi em benefício dela, de seus pais e de seus irmãos. No entanto, quando ela poderia ajudar, mesmo com pequena participação, Camila negou-se, repetindo o erro do passado. Fez imenso esforço para convencer-se de que Deus demonstra suas bênçãos através do bem-estar e do conforto em que vivem algumas pessoas. Nós, espíritas, sabemos que isso não condiz com a verdade. Quanto maior o valor em dinheiro, maior será a prova, maior será a expiação e maior poderá ser o arrependimento. Jesus, nosso Irmão Maior, já alertou: "Será mais fácil um camelo passar por uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus." Camelo era o nome dado, na região de Jerusalém, a uma corda muito grossa, feita de pelagem da crina e rabo do animal: camelo, e como sabemos, uma agulha possui um orifício pequeno demais para que uma corda o atravesse.
- Com isso o amigo Inácio quer dizer quê?...
- Quero dizer que não será fácil o esclarecimento e a aceitação de Camila.
- Vais me deixar ter com ela?
- Claro! Sem dúvida. Não quis, dizendo isso, insinuar uma negativa à sua recepção. Por experiência, só estou avisando-te. Não será fácil. Devemos sim é orar muito por seu entendimento, pois, como te falei, temo por suas condições espirituais caso se negue a aceitar a verdadeira realidade que se desvendará, deixando por terra todos os seus mitos e ilusões. Será um momento de grande conflito íntimo. O caro amigo sabe que não podemos intervir por ela. Não podemos prendê-la. Se Camila está aqui, se foi atendida em seu momento de transição, é porque teve méritos para isso, teve dignidade suficiente a fim de não ser abandonada e ficar vagando. Esses valores pessoais são independentes de quaisquer graus de parentesco adquirido durante a vida corpórea. Entretanto não temos como impedi-la. Lembre-se do livre-arbítrio, que é o direito de escolha através da vontade própria.
Com o olhar indefinido e o semblante preocupado, Alfredo concordou.
- Eu compreendo, caro Inácio, porém quero empenhar-me ao máximo para auxiliar Camila em sua evolução, em seu entendimento.
- Nós nos empenharemos, meu amigo - disse Inácio espalmando com firmeza o ombro de Alfredo. - Daremos todo o apoio e toda a força necessária.
- Fico-te imensamente grato.
- Não há pelo que me agradecer. Agradeça ao Pai por nos dar essa oportunidade de tarefa em nome do Cristo.
Sentindo a preocupação de Alfredo, Inácio começou a narrar seus planos para animá-lo:
- No momento, tua amada sobrinha está em uma enfermaria junto com outras tantas irmãs que se encontram em sono profundo, como ela, depois do desencarne. Se Camila não foi uma criatura má, o bem ela não praticou. Não há regalias ou tratamentos especiais a alguém só pelo fato deste ter esse ou aquele parente que, quando encarnado, praticou boas ações, caridade ou agiu corretamente. Essas virtudes são individuais. Os méritos, assim como os débitos, só a ela pertencem. Quando Camila estiver próxima de despertar, nós a tiraremos da enfermaria e a levaremos a um quarto individual para não formar opiniões precipitadas sobre suas condições ou sobre o lugar. Logicamente não se lembrará imediatamente de tudo. Nós a envolveremos com fluidos calmantes. Em seguida a faremos conhecer este lugar para que ela sinta as vibrações aqui existentes. Além de se beneficiar, experimentará impressões boas e agradáveis. Tudo isso antes que tenha referências sobre o seu desencarne. Depois conversaremos e daremos todas as explicações necessárias, com tua ajuda, é claro.
Alfredo animou-se um pouco mais, embora ainda estivesse temeroso. Ao despertar, Camila pensou estar em um hospital. O quarto onde ela se encontrava não era muito grande, porém muito bem iluminado e de mobília muito simples. Após suspirar profundamente e sentindo-se confusa, ela olhou querendo reconhecer o local. Procurou lembrar-se do que havia ocorrido. Examinou a janela coberta por suaves cortinas de renda branca tentando, parcialmente, barrar a luz do sol que teimava penetrar através delas. Num canto do quarto, havia uma pequena mesa onde se depositava uma jarra de vidro transparente cheia com água e ao lado um copo. Existia também um vaso solitário com uma flor semelhante a uma margarida. Este pequeno quarto possuía duas portas, Camila ficou observando-as e desejando que entrasse alguém por uma delas. Experimentou sentar no leito, mas sentiu-se tonta desistindo logo na primeira tentativa.
Esfregou o rosto com as mãos, buscando animar-se mais. Porém algo estava diferente. Sentia como se a textura de sua pele fosse mais sutil e achou isso engraçado. Pensando encontrar-se em um hospital, procurou por uma campainha na cabeceira do leito, pois em todo leito hospitalar há uma. Foi quando uma das portas se abriu vagarosamente e entrou uma senhora sorridente, de aparência amável e gestos delicados. Camila não a conhecia. A senhora era de estatura baixa e aparentava ter uns cinqüenta anos de idade.
Sorridente, ela aproximou-se do leito e disse:
- Olá, meu bem! Sei como se sente. Mas em breve irá recuperar suas forças e ânimo.
- Onde estou? Que lugar é esse? - perguntou ainda confusa.
- Este é um Posto de Socorro. - respondeu a senhora amavelmente. - Fique tranqüila que em breve tu terás esclarecimento sobre tudo.
Ainda sentia-se tonta, porém com muito esforço e a ajuda daquela senhora conseguiu sentar-se. Foi aí que indagou em pensamento:
- Como é meu nome? Quem sou eu? De onde vim?
A bondosa senhora virou-se e colocando água no copo, foi em sua direção dizendo:
- Beba um pouco, é água.
Segurando o copo com ambas as mãos, pois temia deixá-lo cair, Levou-o à boca e passou a beber pequenos goles. Suas mãos estavam trêmulas e nada havia que pudesse fazer para impedir tal reação involuntária. Sentia um torpor e não se lembrava de nada. Até aquele momento não conseguia, sequer, recordar o próprio nome. A amável senhora, percebendo os pensamentos que a estavam deixando nervosa e angustiada, pois o medo e a dúvida já lhe tomavam conta, explicou:
- Camila, desculpe por não me apresentar, meu nome é Aurora. Não precisas te preocupar, estás em um bom lugar e em breve tudo vai se esclarecer em tua própria mente. Não te precipites. Tu sempre acreditaste em Deus, não é? Pois bem, agora é hora de ter muita fé e confiar em nosso Criador, aguardando com tranqüilidade tudo o que Ele nos reservou.
- Aguardar o quê? Do que a senhora está falando? Eu não me sinto muito bem. Estou tonta e, há um minuto, não recordava meu próprio nome. O que me aconteceu?!
Camila fez uma avalanche de perguntas à senhora, sem dar uma pequena pausa para as respostas. Durante todo o tempo, Aurora sorria tranqüilamente, o que a deixava, ainda mais, com o semblante generoso.
- Acalma-te, meu bem. Tu estiveste dormindo por muito tempo. É normal que te sintas confusa. Pessoas que se encontram em estado semelhante ao teu podem esquecer temporariamente das coisas. Em breve tua memória voltará e estarás mais lúcida do que nunca.
- Dormindo?! - indagou Camila. - Eu dormindo por muito tempo?! Como isso aconteceu?!
- Espere, Camila. Logo receberás uma visita. É alguém que não vês há muito tempo e ficou feliz em saber que estás aqui entre nós. Mas antes que ele chegue, se quiseres, ali naquela porta, há um banheiro onde poderás te lavar e, no armário, encontrarás roupas de teu agrado. - Sorrindo delicadamente, Aurora brincou: - Não vais querer receber visitas com esse camisolão de hospital, vais?
- Eu me sinto fraca.
- Não. Não estás fraca - respondeu com firmeza. Em seguida observou com doce carinho: - Tu estás te restabelecendo e à medida que desejares reagir e sentires-te forte, estarás revigorada e todo esse mal estar vai passar, certo?
Mesmo se achando fraca, concordou. Foi então que Aurora aumentou o volume da voz com ênfase e alegria, dando energia e ânimo à Camila:
- Vamos, meu bem! Vamos logo! Escolhe uma roupa bonita, lava-te, penteia teus cabelos e arruma-te! Lá fora há um sol maravilhoso a tua espera e poderás aproveitar o final da tarde no belo jardim que há a tua disposição.
- Tenho medo de cair - temeu Camila.
- Tu não vais cair.
Com a ajuda da senhora, Camila levantou-se e ficou em pé. Notou seus pés adormecidos. Aliás todo seu corpo parecia adormecido.
- Aurora - perguntou não conseguindo esperar muito tempo para elucidar os fatos -, o que eu estou fazendo aqui? Por que me sinto tonta embora não tenha nenhum machucado aparente? Sinto-me mal.
- Mal? Quem disse que tu estás mal?
- Eu estou dizendo - insistiu Camila.
- Meu bem - tornou Aurora paciente -, esteve dormindo por algum tempo. Acordou poucas vezes nesse último mês e voltou a dormir. Só que não se lembra.
- Acordei algumas vezes nesse último mês?! Do que estás falando?!
A mulher sorriu com ternura e respondeu:
- Tu estás em um Posto de Socorro. Este é um bom lugar. Daqui a pouco terás todas as informações que quiseres e as terá por ti mesma. Agora vamos, tens de te arrumar para receberes uma visita. Ele já está chegando.
- Quem é?
- Um parente teu.
- Um parente! Espera aí! Quem são meus parentes e onde estão? Se é um hospital, onde está minha família? Eu não me lembro da minha família. Não consigo recordar de ninguém. Estou com amnésia!
- Dê o nome que quiseres ao teu esquecimento. Mas eu te garanto, isso já vai passar. Acalma-te.
Camila contentou-se temporariamente. Ela banhou-se, penteou os cabelos e escolheu uma roupa de seu agrado. Ao sair da toalete, sentou-se na cadeira próxima à pequena mesa. Sentia-se exausta. Arrumar-se sozinha parecia ter-lhe exigido grande esforço. Aurora havia saído e não retornara até aquele momento. Foi então que levantou-se, caminhou até a porta e a abriu deparando-se com um enorme corredor onde havia várias portas que pareciam ser de quartos iguais ao seu. No final desse corredor, surgiu uma moça trazendo uma bandeja. A jovem se aproximou e parou frente a ela dizendo amistosamente:
- Boa tarde. Tudo bem?
- Sim. Obrigada.
Quando Camila percebeu que a moça desejava entrar ali, recuou dando-lhe passagem. Dentro do quarto ela se apresentou:
- Meu nome é Lara.
- O que faz aqui, Lara?
- Eu trabalho neste Posto de Socorro. - Tirou a tampa da bandeja, chamando-lhe a atenção para o que trazia: - Veja, Camila, que frutas lindas! São especialmente para tu saboreares. Creio que irás adorá-las, são deverasmente deliciosas!
- De fato são lindas! - concordou Camila.
- Saboreia. Tenho certeza de que vai gostar.
Camila aproximou-se da mesa e pegou uma pêra, observando:
- Sempre gostei muito de pêra.
- Viu só! Já lembraste que gosta de pêra.
Camila sorriu. Ao prová-la, sentiu alguma coisa especial em seu sabor. Nunca havia experimentado fruta como aquela. Apesar do gosto ser o mesmo, existia algo diferente em seu impressionante paladar, em sua essência que não sabia explicar.
- Dê-me licença. Tenho outros para servir. Daqui a pouco Aurora vai voltar para levá-la a um passeio. Foi um prazer enorme conhecê-la.
- Obrigada, Lara. Muito obrigada.
- Ora! Não por isso. Até mais.
Lara se foi e um imenso vazio se fez nos sentimentos de Camila. Ao acabar de comer a pêra, resolveu saborear uma nectarina que lhe pareceu deliciosa. Após bater suavemente à porta, Aurora entrou.
- Vejo que estás te alimentando! Isso é bom. Não quero te interromper, mas quando acabar vamos dar uma volta para que possas conhecer este local enquanto o nosso astro maior está presente no céu límpido e de um azul esplêndido!
- Se quiseres - disse Camila -, estou pronta. Entretanto me sinto fraca. Não sei se poderei andar muito.
- Isso não é problema, veja.
Abrindo a porta, Aurora mostrou uma cadeira de rodas que a esperava do lado de fora do quarto.
- Pra mim?! - surpreendeu-se Camila.
- Claro. Quanto mais tempo ficamos presos entre paredes e deitados em camas, maior é o desânimo que nos assola. Sei que precisas sair. Lá fora há um lindo jardim a tua espera.
Um pouco constrangida, por achar-se um estorvo, Camila aceitou a cadeira de rodas. Aurora, animada, pôs-se a empurrá-la corredor a fora. Passaram por corredores e saguões até que chegaram a um imenso jardim. Seu gramado era de um verde inigualável parecendo ser aveludado. Seus canteiros ornamentavam lindas flores que nunca vira antes. Havia rosas e margaridas também. Ao longe, podiam-se ver magníficas árvores semelhantes a eucaliptos gigantescos. O sol realmente estava radiante. Camila nunca havia observado um entardecer tão lindo. Os pássaros, percebendo a aproximação do crepúsculo, faziam suas revoadas encenando um lindo balé aéreo. Ela ficou vislumbrada com tudo e, por alguns minutos, esqueceu suas dúvidas e curiosidades. A certa distância ela pôde observar outras pessoas que se encontravam por ali. Uns pareciam apenas passear, admirando a bela natureza; outros, sentados em bancos de jardins, apreciavam um bom livro; outros, ainda, somente andavam de um lado para outro, parecendo trabalhadores do local. Depois de longo tempo, quando o sol quase se punha, Aurora interrompeu sua apreciação perguntando:
- Gostou do nosso jardim?
- É maravilhoso! - respondeu Camila emocionada. - Este lugar é encantador. Quem o fez tem imenso bom gosto.
- Quem o fez, projetou-o com amor, com muito amor - enfatizou Aurora sorridente.
Depois de ficarem ali por mais alguns minutos, a generosa senhora convidou-a para entrar:
- Importas-te de entrarmos agora? Creio que tua visita já chegou e te aguarda.
- Sim, claro. Vamos entrar.
Manobrando a cadeira de rodas, Aurora empurrou-a até uma sala onde havia dois sofás e uma mesinha central que ostentava um vaso com belas flores.
- Camila - disse Aurora. -, se desejares, podes levantar e caminhar um pouco. Tua visita não vai demorar.
Aceitando o convite, andou até a larga janela de onde pôde observar o jardim de outro ângulo. Após alguns minutos, ela ouviu seu nome pronunciado por uma voz que lhe pareceu familiar.
- Camila?... Quando ela se virou...
- Minha querida, que bom que tu estás aqui!
Ela ficou petrificada e incrédula. Repentinamente, lembrou-se da família, do passado mais recente e não conseguia entender como estava frente àquele homem que fora seu tio por parte de pai e que havia falecido há uns seis anos. Alfredo ficou parado, esperando alguma reação, pois entendia o espanto da sobrinha. A custo Camila murmurou:
- Tio Alfredo!...
- Camila, querida...
Quando Alfredo tentou aproximar-se imediatamente ela se afastou e gritou:
- Não!!! Socorro! Por favor, ajudem-me! Ele morreu! Socorro!
- Querida, seu tio te ama. Ele só quer teu bem - disse Aurora.
Alfredo, querendo ser amável e para não atormentá-la mais, tentou explicar em rápidas palavras:
- Camila, meu bem, Eu não morri, só deixei de viver na carne para viver em espírito. Já te expliquei isso quando vivemos encarnados.
Abraçada à Aurora, Camila chorava enquanto implorava em soluços:
- Não deixe que ele se aproxime de mim. Ele morreu. É uma assombração!
- Ele não é uma assombração. Nenhum de nós somos. Teu tio Alfredo desencarnou, ou melhor, deixou de viver entre os encarnados para viver entre nós, como espírito, como tu também.
- Eu?! - gritou inconformada.
- Sim querida. Assim como todos os que vês ou viste por aqui. Nós só deixamos de viver na Terra. Isso não significa morte, significa que deixamos a carne, deixamos de viver no nosso corpo material e agora somos só espíritos.
- Não pode ser! Não é verdade!
- É sim - confirmou Alfredo amável.
Camila afastou-se de Aurora, como se a repudiasse, e perguntou ofensivamente:
- Onde estão meus pais?! Onde estão meus irmãos?!
- Na Terra, Camila. Eles ainda vivem encarnados - respondeu Alfredo em tom generoso.
- E eu... eu morri?!
- Tu desencarnaste há seis meses - tornou Alfredo.
- O que eu estou fazendo em um lugar como este?!
- Estás sendo socorrida, ajudada. Estás aqui para receberes orientação sobre o plano espiritual. Recordares tudo o que já sabes sobre o mundo dos espíritos e as experiências que tiveste de vivenciar para harmonizares e evoluíres moralmente. Não é a primeira vez que tu desencarnas. Temos a certeza de que, em breve, vais lembrar-te de tuas outras reencarnações, das outras experiências quando desencarnada, dos cursos em colônias que já viveste...
- Chega!!! Chega!!! Isso não existe! Isso é besteira! O que é que estou fazendo no mesmo lugar que ele?!! - perguntou Camila à Aurora, apontando com desdenho ao seu tio.
- Alfredo não vive aqui. Ele pertence a uma colônia espiritual não muito distante e veio para cá a fim de te recepcionar e nos ajudar a te esclarecer tudo - respondeu Inácio que acabara de entrar na sala.
Camila não se conformou. Agitando a cabeça como se tentasse negar a situação e o esclarecimento que recebia, passou a andar de um lado para outro repetindo:
- Não! Eu não morri! Não morri! Se eu morri, não é esse o meu lugar. Não foi para um lugar deste que eu me preparei e me eduquei. - Olhando para o alto, como em súplicas, ela ainda disse: - Oh! Senhor! Tenha misericórdia de mim! Eu não pequei. Sempre segui Teus mandamentos! Nunca fiz nada de errado para merecer estar nas mesmas condições que os pecadores!
- Camila, pára. Por favor - pediu Alfredo com voz enérgica. - Não digas nada sem antes tentares entender a situação.
- Não fales comigo! O senhor só viveu em pecado e quando morreu foi pro inferno porque viveu pregando coisa do demônio!
- Não digas mais nada, Camila - insistiu Alfredo. - Não te precipites.
- O senhor viveu no erro, tio! Eu bem sei! Viveu no pecado. Eu fui cristã!!! Meu pai sempre nos disse que o senhor iria pro inferno quando morresse e, se eu morri, não posso estar junto de pecadores! Isso eu não aceito! Aqui é o inferno e tu és o satanás!!! Eu quero sair daqui!
- Acalma-te! Não digas mais nada. Tua atitude, palavras e sentimentos não são convenientes às vibrações existentes neste lugar. Não fales mais nada ou poderás te arrepender disso - tornou Alfredo novamente enérgico.
Porém ela não o ouviu.
- Aqui é o inferno!!! Quero sair daqui!!! Este lugar é para os sujos e pecadores!!! Este lugar é para imundos, sujos!!!...
Camila entrou em desespero e, sem que pudesse reagir, sentiu-se tonta e foi enfraquecendo. Alfredo aproximou-se e tentou segurá-la, mas escorregou por entre seus braços e se fez sumir. Aurora e Alfredo se entreolharam. Sabiam o que havia acontecido.
Alfredo olhou em seguida para Inácio como quem questionasse. Entendendo sua expressão, Inácio falou:
- Lamento muito, caro Alfredo. Bem sabe como lamento. Mas as vibrações emanadas por Camila, destruiria a harmonia de nosso Posto caso continuasse aqui. Na hora e no momento certos, ela se harmonizará e voltará para nós. Oremos para que isso seja em breve. Camila é uma criatura de personalidade superior e já foi enriquecida, em outros tempos, com orientações que irão operar em seu âmago. Após certificar-se de seu desencarne e recordar suas experiências passadas, ela própria se guiará, a princípio pelo instinto, depois pela certeza no caminho da evolução.
- Eu não consigo entender como isso pôde acontecer. Preparou-se tanto no plano espiritual para esse último reencarne. Teve tanto estudo, assistência e amparo, além de imensa boa vontade e orientações quando encarnada.
- Tu entendes sim, Alfredo. E claro que entendes. A ignorância, o medo e a comodidade não permitirão, a qualquer espírito, lembrar-se das verdades eternas. Quando, no círculo da carne, a criatura se acomoda e se acovarda, negando-se a ser o servidor que deveria, tende a encontrar dificuldade diante da verdadeira vida, que é no mundo espiritual, e quer, muitas vezes, tentar justificar sua existência improdutiva. Se ela não se integrar no trabalho de propagação de valores espirituais, morais e educativos para as almas com ela encarnada, recolhe-se indevidamente na comodidade que lhe traz o mais completo bem-estar físico e material. A Terra é uma oficina de trabalho para os que lá se preparam. Não importa o que a vida nos apresente como experiência quando encarnados. Temos de seguir os nossos mais suaves sussurros interiores voltados para o bem e cumprir nossas obrigações fundamentais com muita responsabilidade. Vamos aguardar e vibrar para que Camila encontre o melhor, onde quer que vá. A propósito, para que saibas, será possível enviarmos uma excelsa criatura que atingiu elevados valores morais e espirituais para tentar acompanhar nossa querida Camila. Há muito ele vem, gentilmente, fazendo tal solicitação na Colônia onde se encontra, mas somente agora ela pode alcançar a vibração espiritual para vê-lo, se ele diminuir a luminescência. - O espírito Alfredo olhou-o surpreso, mas nada disse. Porém o nobre Inácio revelou: - O amor verdadeiro e incondicional transcende as barreiras da vida e do tempo. Falo do nosso querido e elevado Túlio. Sabemos o quanto ele se empenhará para ajudá-la e trazê-la para junto de si como filha espiritual. Os olhos de Alfredo brilharam. Ele não conseguia argumentar nada. Depois de algum tempo sorriu e agradeceu imensamente.

7 - CAMILA RETORNA À CROSTA

De súbito Camila sentou rapidamente em sua cama. Sentindo o coração bater aos saltos, pensou:
- Puxa, que pesadelo horrível! Como pode ser isso? Olhando-se, observou:
- Adormeci vestida. Que engraçado! Perdi a noção do tempo. Devo ter dormido demais.
Logo sua atenção voltou-se aos chamados de sua mãe.
- Vamos, meninas. Estamos atrasadas! Seu pai não pode se atrasar hoje, viu?! Vamos logo.
Camila saltou da cama, olhou-se rapidamente no espelho e saiu correndo. Na sala, ela viu quando Cida e Vera saiam às pressas enquanto sua mãe segurava a maçaneta da porta, pronta para fechá-la. As irmãs entraram no carro acomodando-se no banco de trás onde Júnior já se encontrava sentado. Cida e Vera começaram algum tipo de brincadeira logo interrompida pelo severo senhor Honório que, sentado no banco do motorista, repreendeu-as zangado:
- Parem com isso! Se perturbarem mais uma única vez, eu as colocarei de castigo e até prometo-lhes uma surra.
Sabendo da rigorosidade do pai e temendo a punição, as meninas se aquietaram. Dona Clara acomodou-se no banco dianteiro e todos seguiram em total silêncio até a igreja. Ao chegarem, como sempre faziam, sentaram-se logo nos primeiros bancos a espera do início do culto, que não iria demorar. O senhor Honório era cumprimentado por todos de forma muito cortês e amistosa. Uma senhora, que se pôs ao órgão, passou a executar um belo hino. Alguns jovens apossaram-se de violões enquanto outros emitiam sons em instrumentos percursores que estavam num dos cantos do imenso salão. Nesse momento o ambiente ficou perturbado pela miscigenação sonora que se fez devido aos acordes emitidos pela afinação dos instrumentos. Cida e Vera cochichavam e gracejavam de algumas coisas que viam, enquanto Camila sentia-se ainda desconcertada. Aquele sonho parecia ter-lhe feito mal de alguma forma. Estava confusa e um pouco atordoada. Virando-se para a irmã, Camila chamou:
- Vera?
Vera não se importou com o chamado e continuou murmurando graças com Cida.
- Vera! - insistiu Camila que se irritou.
- Deixem de ser crianças. Parem com essas besteiras! Vendo que as irmãs não se importavam, virou-se soberba e resmungou:
- Crianças são assim mesmo! Espero que cresçam algum dia.
Ao perceberem a entrada do pastor, que assumiria seu lugar na frente, todos os presentes se colocaram em pé e se puseram a cantar um belo hino para iniciar o culto. O senhor Honório, pastor da igreja, entrou muito animado e sorridente, cantando enquanto batia palmas. Ele sentiu-se orgulhoso ao assumir, na frente de todos, o patamar mais alto de onde podia ver aquele salão lotado de fiéis fervorosos e dedicados. Depois dos cantos, cumprimentos coletivos e de ler uma passagem bíblica com muita emoção, o pastor Honório explicou de maneira conveniente e pregou alvitrando favoravelmente aos interesses daquela igreja. A cada pedido de confirmação de fé, os fiéis deliravam em gritos fervorosos de aleluia. Pela primeira vez, Camila começou a sentir-se muito mal com todo aquele alarido que se fez. Era um sentimento estranho, pois já se acostumara com tudo aquilo. Em alguns momentos, a multidão de fiéis parecia enlouquecida. Eles estavam realmente fora de si, longe de seus juízos normais. Pareciam completamente insanos em seus protestos chorosos, pedidos, súplicas, agradecimentos e rogativas infinitas. No momento da coleta e arrecadação de valores denominados serem para a "casa do Senhor", o pastor Honório falava em altos brados:
- Ninguém é tão pobre que não tenha nada para oferecer! Isso está escrito aqui... no livro do Senhor! - e erguendo a bíblia, ele gritava: - Colaborem, irmãos! Colaborem para o crescimento do amor. Provem seu amor pelo Senhor e que darão a Ele tudo em nome do amor! Doando, todos vós provam que não têm ambições em seus corações! Livrando-se de todos os valores, todos vós provam ao Senhor que são puros de coração! Que são isentos do grande pecado, que é a ambição, pois o dinheiro abundante que não tiver o destino ao Senhor, é sujo! É pecaminoso! Nenhum prazer vós tirareis dele aqui neste mundo!
A cada exclamação dita, ouviam-se louvores de "glória e aleluia" da multidão que parecia dominada pelas propostas e considerações proferidas pelo pastor Honório que os fascinava e entorpecia, parecendo fazer debilitar as faculdades da multidão que se deixava enfraquecer sem raciocínio algum sobre o deblaterar proclamado pelo pastor que tinha como objetivo, talvez inconsciente, uma insana lavagem cerebral coletiva. Observando a igreja, já lotada, Camila percebeu que o número de fiéis parecia ter dobrado. Enquanto os músicos executavam uma canção e uma mulher cantava, o pastor Honório dizia palavras de agradecimentos aos que colaboraram com tudo o que tinham e ainda incentivava aqueles que não haviam doado o suficiente.
- Irmãos! - gritava o pastor Honório. - O que quer que tenham doado aqui de coração, podem ter certeza de que o Senhor está vendo! O Senhor sabe se realmente tu ofertaste à Ele tudo o que podia! E por isso o Senhor te abençoará! Ele te dará em dobro tudo o que tu deste a Ele aqui! O Senhor sabe se tu estás ou não sendo sincero! O senhor sabe dos teus pensamentos e da tua ganância! Mas se não quiseres doar ao Senhor os teus bens, não tem problema. Porém, lembra-te de que se estiveres sendo egoísta para com Ele, Ele também será egoísta para com vós! O Senhor não te dará mais nada! Ele negará a ti a entrada no reino dos céus!!!
Em meio aos apelos fervorosos do pastor, a multidão aglomerada clamava repetidas vezes: - Glória!!! Aleluia!!!
Fazia-se um emaranhado de vozes no ar, vibrando para uma só proposta: a de convencer mais um a doar seus bens, pois sempre havia um e outro fiel a se levantar e dirigia-se à frente a fim de dar seu último óbolo e, muitas vezes, realmente era o último valor em dinheiro que havia para si e para sua família. Mas a credibilidade nas palavras do pastor, de que aquele numerário seria para Deus, os fiéis ali presentes se desfaziam até mesmo de pertences e adornos pessoais, acreditando pudessem ter algum valor às obras do Senhor e os doavam para não serem vistos por Deus como avarentos, ambiciosos ou egoístas. Aqueles homens e mulheres estavam entorpecidos pelas palavras do pastor, que mais parecia um ditador usando de manifestos convincentes aos desprovidos de perspicácia e observações, óbvias aos olhos de quaisquer pessoas de espírito prudente e lógico. Porém Honório convencia-os com sagaz palavreado de indução aos óbolos, fazendo desta petição de donativos um ponto fundamental e indiscutível da doutrina religiosa, dando-lhes referências vagas e indiretas de como e onde tudo aquilo seria usado por Deus. Camila começou a sentir-se indignada com os dizeres, observações e alusões feitas com disfarces por seu pai para aquela gente humilde e ignorante aos conceitos espirituais. Ela sentiu imensa vontade de sair dali, mas como poderia? Onde já se viu a filha do pastor abandonar o culto? Poderia parecer arredia à vista dos irmãos de crença. Observando melhor seu pai, não como um parente e sim como quem observa um desconhecido, Camila estarreceu. Como é que ele poderia usar o nome de Deus para arrecadar aqueles valores de pessoas que pareciam ser tão pobres e indefesas? Isso era um crime! Seu pai usava de sutileza em suas palavras, era engenhoso com os trechos bíblicos lidos, direcionando, com ousadia, suas explicações a tudo o que lhe era conveniente. Seu pai possuía grande sutileza de raciocínio ao argumentar qualquer contenda que poderia surgir. Ele conseguia encobrir, com astúcia, seus propósitos, ocultando o que realmente almejava obter. Por outro lado, Camila não entendia como aquelas pessoas se deixavam levar por tais argumentações, por todo aquele enredo exibido e proposto pelo pastor Honório. Muitas vezes, em suas encenações, ele fazia de seus cultos um verdadeiro espetáculo circense simplesmente para incentivar, animar e convencer aquelas pessoas às suas argumentações e propósitos, dissimulando o verdadeiro significado da boa conduta que nos ensina a Bíblia. De súbito Camila questionou-se por tais pensamentos. Por que pensava aquilo e somente agora? Não contendo mais a imensa vontade de abandonar aquele recinto, levantou-se e, sem titubear, andou corredor afora saindo pela porta principal.
- Os irmãos de igreja - pensou ela - estão tão envolvidos em delírios que nem mesmo se incomodaram com minha retirada.
Ao ganhar a porta principal e passar rapidamente pelos homens que estavam ali em pé fazendo-se de sentinelas para inibir a entrada daqueles que não são bem vindos aos cultos dessa doutrina, Camila sentiu-se aliviada. Os homens que se faziam de guardiões para a segurança da igreja e do pastor, estavam atentos a tudo, porém não se incomodaram com sua saída rápida nem poderiam. Já no pequeno quintal da igreja, antes de sair pelos portões, Camila começou a observar as pregações feitas por seu pai. Reparou que suas palavras nos longos discursos maçantes nunca deixavam de argüir e até ofender outros credos ou doutrinas religiosas, como se todos os não- simpatizantes com aquelas pregações pudessem ser pecadores sem perdão, confinados às chamas eternas do tão temido inferno. O pastor Honório possuía refinada argúcia, empregando em suas palavras, manifestos e gesticulações que convenciam a todos. Ele enobrecia seus palavreados, suas propostas e sugestões de modo a tolher e constranger a qualquer um dos presentes a alguma dúvida que pudesse surgir. Camila começou a ficar preocupada com o que deveria dizer a seu pai sobre sua súbita retirada. Logo mais, quando findou o culto e todos os irmãos começaram sair, ela passou a afligir-se ainda mais. Assim que seus pais começaram a descer os poucos degraus para chegarem ao pátio, sorriam prazerosamente aos cumprimentos recebidos dos estimados irmãos de doutrina. Alguns deles estavam ali a visitá-los, pois pertenciam a outra comunidade da mesma regra religiosa. Outros não eram vistos há alguns dias. Mesmo temendo a punição de seu pai, pois sabia de sua severidade, principalmente tratando-se da religião, Camila pôs-se à frente deles para ser notada e com isso procuraria sentir, ao observar a fisionomia de ambos, qual o conceito que tiveram de sua atitude. Os pais de Camila se fizeram neutros. As expressões fisionômicas eram de que nada viam. Por sua vez, aproximou-se de sua mãe e a chamou:
- Mãe?!
Mas de imediato, outro grupo de conhecido se fez à frente deles, por isso Clara não lhe deu atenção, pensou ela. Aguardando que houvesse uma pausa na conversação, Camila se pôs ao lado dos pais, mas notou que ninguém a cumprimentava.
- Estariam eles punindo-me com o desprezo, ignorando minha presença devido à atitude arredia durante o culto? - pensou Camila.
Porém sobressaltou-se ao ouvir de um irmão de culto a seguinte condolência:
- Irmã Clara - disse ele -, eu lamentei imensamente a morte de nossa irmã Camila. Aceite os meus pesares. Soube ontem, quando retornei de minha viagem a São Paulo. Fiquei imensamente triste, mas ao mesmo tempo estou contente por ter a certeza de que nossa irmãzinha Camila se encontra no reino do Senhor e não mais neste mundo infectado pelas tentações perniciosas dos infelizes e maldosos que não acreditam na fúria do Senhor e vivem no erro e no pecado. Nós aqui na Terra, cara irmã, estamos rodeados de satanases disfarçados de gente.
- O que é isso?!! - gritou Camila, tentando interrompê-los. - De que Camila o senhor está falando?!
- Mas nem sua mãe ou o amigo puderam ouvi-la.
- Sim, caro irmão Pedro - respondeu Clara -, tenho certeza de que minha filha está ao lado do Senhor, longe das maldades deste mundo, pois se houve algo que sempre eu e Honório lhe ensinamos, foi a boa conduta. Nunca deixamos que Camila se aproximasse daqueles que transgridem as leis do Senhor. Hoje eu tenho a certeza de que os anjos cuidam de minha filha ao lado do Senhor! No reino de Deus! Na glória eterna!
- Aleluia, irmã! - disse Pedro. - Glória ao Senhor!
- Espere aí! - desesperava-se Camila em pânico. - Mãe! Senhor Pedro! Estou aqui! Vejam! Olhem para mim!!!
Porém toda a tentativa para ser vista ou ouvida era inútil. De nada adiantavam seus gritos, rogativas e desespero. O assunto sobre sua morte continuou:
- Irmã Clara - perguntou o senhor Pedro -, eu ainda não soube com detalhes o que aconteceu a ela, se não se incomodar...
- De forma alguma, irmão Pedro. Eu estou amparada nas forças do Senhor, pois tenho certeza de que se o Senhor levou minha filha para junto Dele, lá ela estará bem melhor. O Senhor me consola e me fortifica... - Clara passou a interpor em sua conversação termos bíblicos decorados e, voltando logo as suas explicações, continuou: - O Senhor teve misericórdia de mim porque minha alma confia Nele! E à sombra de suas asas me abrigo até que passe as calamidades! Clamei ao Deus Altíssimo, que por mim tudo executa! E Ele dos céus enviou o seu auxílio e me salvou do desespero. O senhor me enviou Sua misericórdia e a Sua verdade. Por isso, confiante no Senhor, não temo em contar o que houve. No sítio do irmão Paulo, as meninas dele junto com as minhas filhas animaram-se a passear de barco na represa próxima. O irmão Paulo se prontificou a levá-las. Colocando todas em sua caminhonete, levou-as ao tão solicitado passeio. Eu e Honório ficamos no sítio. Contaram-nos posteriormente que, as sete meninas, junto com o irmão Paulo, seguiram represa adentro num barco a remo. Momentos depois, quando estavam muito longe da margem, a água passou a invadir o pequeno barco. As meninas se apavoraram e começaram a gritar. Ângela, a filha mais nova do irmão Paulo, caiu na água e o irmão atirou-se nela para salvá-la. As meninas contam que com o balanço que se fez no barco, um dos remos atingiu Camila na cabeça e que no mesmo instante ela caiu na água. Ângela foi posta no barco pelo pai com a ajuda das meninas que logo contaram ao irmão Paulo que Camila também caíra na água. Disseram-nos que o irmão mergulhou à procura de Camila que, ao cair, conforme contam as meninas, afundou sem voltar à superfície por uma única vez. O irmão Paulo ficou fora do barco para não fazer mais peso até a chegada do socorro, que não demorou. Os bombeiros encontraram o corpo de minha filha somente horas mais tarde. Segundo os médicos, Camila afogou-se dormindo. Ela desmaiou imediatamente, no momento em que o remo a atingiu e não sofreu a angústia do afogamento.
- Tão nova. Tão bondosa. O Senhor só poderia colhê-la dormindo - salientou o senhor Pedro.
- Minha filha foi levada ao reino dos céus logo depois de fazer vinte e seis anos - disse Clara.
Camila ficou estarrecida. Não lembrava, em absoluto, o que sua mãe contara. Contudo aquela narrativa lhe era familiar. Em seguida, veio à memória a conversa que, acreditando ser sonho, teve com seu tio Alfredo, do lugar onde esteve que parecia ser um hospital e do pôr-do-sol luzente e inigualável. Sentindo-se atordoada com todas aquelas recordações, agitou a cabeça como se quisesse negar o que ocorria ou despertar de um pesadelo. Resolveu insistir com eles, mais uma vez, sobre sua presença:
- Mãe, por favor, mãe. Veja! Por Deus, mãe! Olha pra mim!!! Eu não morri! - Clara não conseguia registrar sua presença e ficava completamente indiferente aos chamados da filha. - Não pode ser! - reclamava o espírito Camila em seu desespero. - Eu acordei há pouco e... Foi isso mesmo! Eu acordei, sentei na cama... na minha cama... Depois entrei no carro com meus irmãos e vim pra igreja. Eu não morri! Eu vejo a todos, sinto meu corpo. Eu não morri!
Correu para seu pai, que não pode percebê-la. Depois para as irmãs, que não puderam senti-la. Tentou então outros conhecidos da igreja, com quem outrora vinculara amizade.
Tudo em vão. Ninguém a notava. Ninguém registrava sua presença. Camila pensou que iria enlouquecer. Até que um senhor de certa idade, já encurvado pelos anos, pôs-se frente a ela e perguntou:
- Menina, também te sentes boba falando e falando sem ninguém te dar ouvidos?
- É comigo que o senhor está falando?
- Puxa, menina! Ainda bem que me ouviste!
- O senhor pode me ver?!
- Claro! Com quem acha que estou conversando? Ninguém aqui dá importância ao que eu digo.
- Como é que o senhor pode me ver e também falar comigo? Aqui ninguém mais consegue me perceber.
- É simples. Tu morreste. Como eu e muitos outros que estamos aqui. Veja só.
E apontando para alguns grupos de pessoas reunidas, Camila notou que um e outro se juntavam aos aglomerados, mas esses eram diferentes dos demais, porém agiam como se pudessem ser notados e palestravam sobre o assunto em pauta como se os demais acatassem suas opiniões, o que freqüentemente acontecia.
- Estou ficando louca! - exclamou Camila. - Isso não está acontecendo comigo!!!
- Mas está. Não se assuste. No começo é difícil, mas depois tu acostumas. Agora tenho que ir. Minha família já está se retirando. Ah! Só um aviso: cuidado com as sombras.
- As sombras?! - perguntou Camila.
O senhor se virou sem se incomodar com a indagação e acompanhou seus parentes. Percebendo também que sua família estava indo embora, sem titubear, ela os seguiu.

8 - A DESONESTIDADE DE HONÓRIO ATRAVÉS DA RELIGIÃO

Dentro do carro, a caminho de sua casa, Camila tentou, em vão e seguidas vezes, falar com seus familiares. Chorosa por suas condições, começou a sentir-se insegura pelo seu futuro incerto. Acompanhando a família em tudo o que faziam, ela não tinha alternativa, se não a de ficar ali vegetando na companhia dos seus. Ao amanhecer, sentiu fome. Tentou pegar alguns dos alimentos que se encontravam arrumados sobre a mesa para o desjejum de todos. Incapaz de sequer tocá-los, desistiu após inúmeras tentativas. Depois chorou. Sentindo-se um ser translúcido e malfadado, começou a impugnar a existência de Deus e todos os valores morais que aprendera a respeitar durante toda a sua vida. Em seu pensamento, começaram a surgir inúmeras indagações:
- Para onde vão os que morrem? Se estou em minha casa, onde está o restante dos meus familiares que cruzaram a fronteira da morte antes de mim?! Meus avós maternos, que morreram há anos?... Por que será que não estão aqui agora?! Para onde foram?!
Mesmo sem obter respostas, ela prosseguiu seu raciocínio naquela linha de pensamento, questionando:
- Onde será que fica o céu? E o inferno? Seria o inferno aqui, junto com os vivos? Não. No inferno há fogo e sofrimento. O que eu tenho, no momento, é fome.
Sentando ao lado de sua mãe durante o tempo em que tomavam o café da manhã, Camila recostou sua cabeça no ombro da genitora buscando afeto, pois a carência afetiva era imensa. Durante aquele desjejum, Clara ficou com um semblante choroso e passou a pensar na filha que perdera desejando ter ali sua presença, ou querendo ter a certeza de que ela estivesse em boas condições. Honório, notando a tristeza presente na mulher, vociferou:
- Lembre-se, mulher, o demônio entra em nossos pensamentos quando nós deixamos!!!
Clara não se pronunciou, continuando seu café. Logo depois que todos se retiraram da mesa, Camila sentia-se menos faminta. Ela havia absorvido as energias dos alimentos através de sua mãe. Porém não se deu conta disso. Sem saber o que fazer naquelas condições em que se achava, Camila foi para a sala de estar onde seu pai se encontrava empenhado na leitura de um jornal. Minutos depois, Vera e Cida pararam junto à estante, vasta de livros, à procura de uma determinada matéria. As irmãs discutiam sobre o assunto enquanto Honório, resoluto e inflexível, pronunciou a elas, de forma hostil e desagradável, sem respeitar a atividade nem os direitos das filhas. Vão para o quarto. Preciso telefonar.
- Mas pai... precisamos de... - Vera tentou dizer. Interrompendo-a bruscamente ele reagiu:
- Eu mandei irem para o quarto!
Sem demora ou reclamação, elas se retiraram temerosas. Camila passou a refletir sobre o comportamento de seu pai.
- Para que tanta animosidade? - pensava ela. - Meu pai não tinha razão para tratá-las assim de forma tão irracional e estúpida. Tua maneira de falar sempre fora hostil. Isso é admirável, pois os ensinamentos e as pregações que ele faz como pastor difere completamente de suas atitudes quando se trata de sua família.
Sabendo que seu pai não podia ouvi-la, ela falou-lhe ao ouvido:
- É, pai, dentro de tua própria casa o senhor não sabe praticar um dos principais mandamentos que é "Amar ao próximo como a ti mesmo." Esse, próximo, de que nos fala o mandamento, são aqueles que encontramos dentro do nosso lar. E no lar que deve haver imensa, extrema troca de gentilezas. Além de causar excelentes energias benéficas, carregadas de otimismo sadio e tranqüilo aos que dela vibram e compartilham, proporciona aos ouvintes ou espectadores o exemplo e as impressões salutares que os estimularão à prática de ações semelhantes.
Honório não podia sequer sentir o raciocínio sensato e edificante que sua filha lhe emitiu, pois ele se encontrava espiritualmente distante dessas sensibilidades agora tão aguçadas, de sua filha que podia vê-lo com "outros olhos". Camila reteve aqueles pensamentos e mencionou:
- Por que estou falando assim? O que pode me levar a essas conclusões sobre as atitudes de meu pai? Será que eu deveria defender esse mandamento de "Amar ao Próximo", pois hoje tenho a impressão de que Deus me abandonou. Se Deus existe, por que Ele não impede meu pai de falar e agir de forma imprudente sobre os ensinamentos do evangelho? Por que não me tira daqui, Senhor?
Nesse instante ela passou a experimentar uma amarga e infeliz sensação de angústia e abandono. De súbito, sua atenção se voltou à gargalhada emitida por seu pai, que estava em concentrada conversa ao telefone. Foi então que passou a atentar ao que ele dizia:
- ... mas é claro! Tu pensas que sou otário?!
E novamente um sorriso simulado com o canto da boca se fez na face de Honório, que passou a ouvir o seu interlocutor. Camila inquietou-se. Nunca vira seu pai com aquela fisionomia. Logo ele revidou novamente a alguma indagação que partiu do outro:
- Não. De forma alguma. Sabe Monteiro, eu tenho em mente uma coisa: presto àquele bando de infelizes amargurados um serviço de extrema necessidade e importância, pois, pelo que nós podemos perceber, eles são incapazes de raciocinarem sozinhos, são totalmente dependentes no sentido de palavra e fé. Se esse pessoal não for à igreja, não consegue rezar sozinho. Depois caem em melancólica ociosidade, depressão, não tendo ânimo para trabalhar ou conduzir bem-estar para dentro de suas próprias casas. Eles não conseguem nada sozinhos! Ao ponto de que, quando vão aos cultos, depois de atentarem muito às pregações, aos conselhos, às propostas que nós temos imenso trabalho de preparar e explicar a esses ignorantes, é que eles conseguem ganhar ânimo, força, energia que os revigoram. Daí que eles saem de lá entusiasmados, renovados... E tudo isso graças a quê?! Graças ao nosso esforço e a nossa capacidade! Sem nós, esses pobres e infelizes entrariam em conflitos interiores, desarmonia em seus lares, preguiça para o trabalho etc. E quem é que despende imenso esforço mental, além de enorme tempo gasto para que esse pessoal possa ter um pouco de auto-estima?! Nós, é claro!!!
Enquanto Honório escutava a opinião de seu colega, Camila foi vencida pela golfada de verdades horrendas sobre as opiniões sinceras de seu pai quanto ao que ele realmente sentia sobre aqueles fiéis tão dedicados. Ela ficou estupefata e deixou-se escorregar pela parede onde encostara até chegar ao chão e lá ficou sentada. Seu primeiro impulso foi o de revolta contra tudo e todos. Olhando incrédula para seu pai, que ainda deleitava sobre aquele assunto, pôde ver rolando em torno dele sombras agressivas que tentavam atingi-lo. Porém Honório não conseguia senti-las ou percebê-las até porque seu animado assunto prosseguia:
- Eu não os engano, Monteiro - dizia Honório irônico. -, sempre digo que aquela arrecadação é, em nome de Deus, para a casa do Senhor! Eu não disse a ninguém que esse senhor, ao qual me refiro é Deus, concorda? Esse senhor sou eu! - E novamente outra gargalhada se fez, mas logo Honório voltou a falar. - As obras do Senhor são o término da construção da minha casa em Angra dos Reis. Sabe, Monteiro... veja bem... Os médicos, dentistas, assistentes sociais e outros estudam para proporcionar saúde e bem-estar aos necessitados daqueles serviços, certo? E quando nós precisamos de um deles, nós pagamos por isso, e bem caro! O nosso caso não é diferente. Nós temos de estudar, e muito, para realizarmos o nosso trabalho, que é o de proporcionar paz de espírito, calma, resignação, paciência, harmonia, compreensão e muito mais aos necessitados, aos desequilibrados, aos ébrios, aos doentes, entre outros que não conseguem sozinhos esse estado. Prestando esse serviço, que é árduo e tendo em vista a qualidade e o tipo de gente que nos procuram, nós nos desgastamos muito, nos empenhamos extremamente e por isso temos direito a numerários ou salários, como qualquer outro profissional. Se um médico é excelente e cobra mais caro do que os outros por uma consulta e se inúmeras pessoas desejam ser atendidas por ele, esses pacientes têm de pagar pelo que desejam ou o profissional não os atende. Nosso caso não é diferente. Se minha igreja está sempre cheia, é porque os freqüentadores gostam do que encontram lá e o que encontram é o que eu dou. Portanto têm de pagar por tudo o que eles querem ter de mim, como pagam para qualquer outro profissional que lhes presta serviços. Sentada no chão, com as pernas estendidas, Camila ficou ainda mais assombrada com o que ouvia.
- Sim Monteiro - continuou Honório -, pretendo abrir outra igreja no Leblon ou na Tijuca... - Breve pausa: - Não... Não estarei forçando nada. Eu confio na minha sutileza, no meu raciocínio rápido. Tu sabes... sou esperto!
Não suportando mais ouvir a verdadeira opinião de seu pai quanto à religiosidade, na qual esclarecia com exatidão o seu próprio caráter e sua verdadeira personalidade, Camila levantou-se e foi até o quarto onde estavam suas irmãs.
- Passa bastante pomada para que, quando voltarmos, o pai não veja que estamos vermelhas - dizia Vera.
As irmãs se preparavam para irem à praia sem que seu pai soubesse. Elas diriam que havia um trabalho escolar importante e que o fariam na casa de uma colega da escola.
- Quanta hipocrisia! - disse Camila. - Como somos falsos. Fiz tanto disso. Menti, fugi, saí às escondidas para namorar... como se tudo ficasse encoberto para sempre. E tudo isso por quê? - depois de uma breve pausa, ela mesma respondeu - Porque, a começar pelo nosso pai, sempre tivemos o fingimento, a mentira e a falsidade vigorando em nossos corações. Nosso pai, indiretamente, sempre nos ensinou a mentir quando nos pedia para não contarmos isso ou aquilo aos outros sobre o que tivéssemos ouvido ou presenciado.
Impressionada por tomar ciência de que seu pai era um homem impudico, cínico e longe de ser temente à justiça Divina, Camila passou a ter um sentimento repulsivo por ele.
Voltando novamente à sala de visita, onde Honório ainda se encontrava, ela passou a experimentar um outro tipo de sentimento que divergia ao de pai e filha ou a qualquer outro de laços sangüíneos. Agora o repudiava-o. Odiava. Ouvindo o final da conversa de seu pai ao telefone, ela alertou-se:
- É claro que estou disposto - dizia Honório. - Quero ver sim! Além do que será melhor conversarmos pessoalmente. Estou indo agora mesmo. Até mais.
Camila não hesitou. Resolveu acompanhá-lo para descobrir o que mais camuflava de forma astuciosa. Honório arrumou-se rapidamente. Avisou a esposa que não voltaria para o almoço daquele domingo e, depois de seu encontro, iria direto para a igreja onde se encontraria com ela e os filhos. Ao sair de casa Honório, fechou a porta sobre Camila que descobriu, naquele instante, que portas e paredes não lhes seriam mais obstáculos. Entretanto aquela experiência a fez sentir um frio estranho correr-lhe pelo corpo espiritual. Ela entrou no luxuoso carro junto com seu pai e acompanhou-o até um requintado edifício no Leblon. Depois de estacionar, Honório desceu e alinhou ligeiramente as roupas que desajustara quando sentara para dirigir. O espírito Camila desceu com ele observando para onde iria. Caminhando alguns metros distraidamente pela calçada, Honório sobressaltou-se ao deparar com uma mulher que com animada e sincera simplicidade o cumprimentou de forma cortês:
- Honório, como vai?! Quanto tempo!...
Honório demonstrando nítida insatisfação ao vê-la, revidou ao cumprimento com modos rústicos e descortês:
- Vou indo.
Quando ele quase se virou para seguir seu rumo, a mulher insistiu:
- E a Clara? Como tem passado... Os filhos?... que já devem estar bem grandes!
- Vão indo bem. Desculpe-me, Dora, mas tenho um pouco de pressa.
Nessa pequena pausa, Camila exclamou emocionada:
- Tia Dora!
Dora transformou sua fisionomia de forma indefinível. Atenta, pareceu aguçar os ouvidos e girou a cabeça como se procurasse quem havia lhe chamado, enquanto dava um profundo suspiro de emoção. Mesmo sabendo que não foram os órgãos físicos que lhe proporcionavam a clariaudiência, foi instintiva aquela reação. Camila teve a nítida impressão de que Dora a tinha percebido.
- Tia! Tia Dora! A senhora pode me ouvir?!
Dora sentindo-se surpresa e com os olhos lacrimejando, acenou levemente a cabeça de forma positiva. Honório nada entendeu e insistiu friamente:
- Com licença, Dora. Tenho de ir. Foi um prazer te ver. Podes deixar que eu darei tuas lembranças a todos lá em casa.
Camila não se importou mais com seu pai, perdendo completamente o interesse pelos seus objetivos. Correndo para perto de Dora, começou a abraçá-la e inexplicavelmente passou a sentir-se melhor, pois havia preenchido parte do vazio e da solidão que a corroia, pois alguém, do "mundo dos vivos", conseguiu percebê-la e passar-lhe verdadeiro amor. Abraçada a Dora, Camila banhou-se de lágrimas em meio a um choro compulsivo. Dora passou a andar vagarosamente, esboçando no rosto um leve e delicado sorriso. Ambas pegaram o ônibus. Depois de algum tempo desceram e andaram muito até chegarem a simples, porém aconchegante, casa onde Dora morava com seus dois filhos. A última vez que Honório vira Dora, foi quando a cunhada pediu-lhe ajuda para pagar a faculdade do filho Júlio. Diante da negativa e repudiante resposta de Honório, Dora e os filhos não mais o procuraram nem mesmo mencionaram críticas ou comentários quanto ao tempo que Honório e a família viveram à mercê da bondade e do esforço deles. Dora soube do desencarne de Camila por alguns conhecidos que lhe informaram quando já havia passado duas semanas. Honório, depois que se mudou da casa de seu irmão Alfredo, influenciou e convenceu sua mulher e filhos de que seu irmão e a família viviam em pecado mortal por acreditar no que dizia o Espiritismo, e na comunicação dos que já morreram, pois os mortos, que se comunicam com os vivos, só podem ter pacto com o diabo. Afinal, na opinião dele, somente o satanás seria capaz de voltar ao mundo dos vivos usando o corpo e a mente de um encarnado para atazanar os que ainda estão aqui, enganando-os com suas mentiras para persuadi-los ao inferno. Somente assim o demônio teria mais escravos para servi-lo. Toda a família teve por opinião formada aquele conceito deliberado que lhe foi imposto pelas idéias preconceituosas e convenientes de Honório.

9 - ORIENTAÇÕES DE ANDRÉ LUIZ

Já se fazia hora do almoço. Dora, rubra pelo calor escaldante do dezembro carioca, adentrou sua cozinha e foi à procura de água fresca, saciando-se. Camila, inquieta, andava pela cozinha proseando o tempo todo.
- Tia Dora, tenho certeza que me ouviste. A senhora mudou o teu rosto no momento em que eu disse teu nome. Quase chorou de emoção quando me percebeste. Tenho certeza, tia, a senhora me ouviu.
O espírito Camila estava eufórico, desassossegado e ansioso para que Dora demonstrasse algo mais sobre o registro de sua presença. Porém, de súbito, Camila estarreceu ao ver perto de sua tia um homem luzente que parecia não tocar seus pés no chão. Ela fitou-o assustada, contudo não conseguiu sentir medo. Sorrindo, ele estendeu-lhe a mão cumprimentando-a e dizendo:
- Eu sou André. Fiquei imensamente feliz por ter nos acompanhado.
- E... eu... sou Ca... Camila - gaguejou ela ainda pasmada, pois sentiu uma indescritível emoção ao ver e conversar com um espírito dotado de uma luz imensa.
- É um imensurável prazer tê-la conosco - respondeu André de maneira carinhosa e cativante.
Camila, olhos esbugalhados e nitidamente embaraçada, não sabia o que falar, porém retribuiu ao cumprimento. Indicando-lhe onde sentar-se, André generosamente falou:
- Sente-se, Camila. Sossegue as ressaltas momentâneas, em breve tudo te será claro, acredite.
Sentando-se no lugar indicado, Camila nem mesmo piscava. Aquele homem era um espírito circundado por uma luz resplandecente, transmissor de uma paz, de uma segurança incompreensível por ela. Temerosa, em meio a um sorriso quase forçoso, devido ao seu recente estado atônito, Camila timidamente perguntou:
- O senhor disse que eu os acompanhei... só segui minha tia Dora.
- A ilustre Dora não estava sozinha. Eu lhe fazia companhia.
- Mas eu não o vi - insistiu Camila.
- Não acredite que somente por ter rompido os laços que a unia com a matéria corpórea, poderá ver todos aqueles que já o fizeram também.
- Mas se já morri, por que não posso ver todos aqueles que também já morreram?
- Porque há inúmeros escalões no mundo dos espíritos. Conforme o grau de espiritualidade, de sutileza do espírito, há para ele, inúmeras barreiras que não são só a da visão.
- Por quê?
- Há, na espiritualidade, infalíveis leis dirigidas pelo poder cósmico, que são Leis Divinas. Elas existem sempre por inúmeras razões que, no momento, seria desnecessário explicar-te, uma vez que já tens grande bagagem de não tão remoto passado.
- Eu tive algum conhecimento espiritual no passado?
- Obviamente que sim - respondeu André com um doce sorriso esboçado no rosto. - Outrora, plenas energias lhe desabrocharam as faculdades espirituais através da dedicação à disciplina e incansáveis exercícios mentais despendidos por ti.
- Quando morri e despertei não me lembrava do próprio nome. Não lembrava o que me levou à morte. Como posso lembrar um passado que o senhor me diz ter vivido, se não me lembro do que fiz há poucos meses?
- Talvez não o recorde de plena consciência. Contudo usando o amor do coração, hoje, ouviu a voz da Consciência Divina, que te falou através dos íntimos pensamentos e sentimentos e, com isso, seguiu-nos até aqui.
- Eu segui minha tia porque, ao ficar contente em vê-la, pronunciei seu nome e ela pareceu me escutar.
- Será que foi somente isso? Não vens, nos últimos tempos, pedindo guarida a Deus para o teu espírito inquieto e inseguro? Não teceste inúmeras indagações em que acreditaste não serem ouvidas e por isso pensaste estar sem respostas?
- Como assim?
- Bem se vê a brevidade de tuas recordações - tornou ele de modo fraterno -, porém relembremos. Quando te certificaste de teu desencarne, desejaste ardentemente saber onde estavam teus parentes que haviam "cruzado a fronteira da morte antes de ti?" Quiseste saber "onde é o céu ou o inferno?" Perguntaste "Por que Deus deixava teu pai agir de forma imprudente e por que não a tirava daquelas condições?" Não foi?
Camila, com os olhos mergulhados em lágrimas, que logo lhe correram a face, acenou a cabeça positivamente.
- Pois bem, filha, "pede e te és dado".- garantiu André ao falar. - Deixe-me acompanhar os movimentos orientando-te. Seria casualidade não conseguir isentar-te de imensurável ânimo ao ver tua estimada tia Dora? - Fez-se breve pausa, mas logo continuou: - E quanto a expressiva e farta empolgação que te fizeste desinteressar de tuas casuais curiosidades para com teu pai e parar de segui-lo? Tenho certeza, porém, de que todas as recomendações negativas feitas a respeito dessa humilde família, todo o vasto e profundo conhecimento que acolheste da rigorosa doutrina que seguiste, passaram a ser translúcidos diante de teus "novos olhos de ver". Apesar de que tal reconhecimento não a isenta da deliberada negação injustificável de exercitar a fé e a caridade. Contudo não hesitaste ao inexplicável sentimento confortante e prazeroso experimentado junto da magnífica Dora, sendo que nada te foi semelhante vivenciar perto dos teus. Que estranha força é essa?
Diante do silêncio de Camila, André seguiu amável e cortês:
- Minha irmã, abandonaste a falsa ideologia, da qual te deixaste escaldar, para seguir sublimes e inexplicáveis impulsos verdadeiros de teu coração. Não será isso uma resposta às tuas súplicas?
- Pode ser que sim. Estou confusa.
- Obviamente que estás. Porém a decisão será sempre tua. Deixa teu âmago decidir. Possuímos poderes bem maiores do que imaginamos, desde que ajamos com fé e amor.
- A culpa por eu ter essas dúvidas é da religião que passei a acreditar e por ter desprezado o pouco que aprendi sobre Espiritismo.
- Não - respondeu André, convicto, firme e amável. - De forma alguma podemos maldizer uma religião. A base das religiões é a crença do homem ter um Ser Superior e Mantenedor a respeitar. Alguns homens são quem manipulam o entendimento dos menos vigilantes, às suas determinações sempre são voltadas aos interesses e conveniências pessoais, desnivelando o verdadeiro significado de uma doutrina e seus sagrados princípios. Todas as doutrinas religiosas têm sua razão de existir no seio da humanidade. O principal objetivo das religiões, podemos dizer, são os dois primeiros sagrados mandamentos bíblicos resumidos por Jesus, que são: 'Amarás ao Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento". Esse é o maior e o primeiro mandamento. E o segundo, semelhante ao primeiro, é: "Amarás ao teu próximo como a ti mesmo". Esses mandamentos contêm toda a lei e os profetas. Bem ensinados e seguidos, atribuiriam paz e concórdia coletiva aos fiéis. Se temos Deus como nosso Pai, somos todos irmãos e uma das principais divergências religiosas, que vigora na sociedade atual, é o preconceito que obstinam os seres humanos, mesmo os portadores de imensa bagagem religiosa, e principalmente eles, a tolerar aversão a outros credos, a outras religiões, etnias ou cor da pele, esquecendo-se, eles, de que o amor do Pai Celeste é o mesmo para todos os seres vivos, não importando a Deus qual o escalão religioso ou político do homem mais nobre nem a ignorância, a instrução ou cultura de valores que outro possa ter. O aspecto mais essencial é o apreço, a consideração, a estima e o tratamento que um ser dispensa ao seu semelhante, independente de seu credo religioso ou étnico. Serão inúteis todos os gritos de louvores aos céus para preconizarmos nossas almas ao Senhor se dispensarmos, criticarmos ou intolerarmos um irmão por ele crer nisso ou naquilo, por ele ser desse ou daquele jeito, ter essa ou aquela cultura. Não quero com isso, cara Camila, dizer-te ser a oração inútil ou não deva ser cultivada em nossos hábitos diários - salientou André benevolente -, só quero que atente a esses fatos, pois irmãos não são somente aqueles com ligação sangüínea ou de mesmas opiniões religiosas ou ainda os que possuem a mesma cor de pele. Irmãos somos nós todos que tivemos origem, que fomos criados, feitos, soprados pelo único Ser Supremo e Criador de todas as coisas, denominados por muitos de Deus. Mesmo o homem incrédulo em Deus, deve ser respeitado por nós, pois o próprio Deus o respeita, deixando-o agir com livre-arbítrio até que, por vontade própria, ele volte ao Seu seio. Além do mais, se acreditarmos que Deus é nosso Pai e se maltratarmos, subjugarmos, criticarmos ou intolerarmos qualquer irmão, estaremos criticando o Criador dessa criatura, que é Deus.
Os louvores ao Pai Divino devem ser feitos diariamente, ressaltando tudo o que Ele criou, bendizendo todas as suas criaturas, agradecendo a presença de todos os irmãos que Ele deixou termos a nossa volta, reconhecendo a oportunidade concedida que podemos ter de auxiliar a outro, mesmo que este não considere a nossa dedicação. Saiba, minha irmã, nada escapa aos Olhos de Deus e, com toda a certeza, Ele tudo vê, tudo sabe, tudo pode.
Camila abaixou a cabeça, envergonhada, pois percebeu não ter, quando encarnada, tão bom comportamento quanto acreditara. Lembrou-se ela de quando se amotinava com suas irmãs e amigas da mesma crença, desfazendo e maldizendo os outros. Acreditando que os católicos, umbandistas, espíritas e outros cultivavam oferendas, preces, orações etc. ao demônio. Elas os ofendiam, maldiziam-nos e denegriam suas imagens, desejando-lhes todas as desventuras e infortúnios que a vida pudesse lhes dar. Ansiavam pela morte dos que de sua religião não participavam só para eles irem logo para o inferno, ambicionando, de lá onde estivessem, poderem vê-las, futuramente, no reino do céu junto dos anjos do Senhor.
- Sinto-me envergonhada - murmurou Camila timidamente. - Pensei ter levado uma vida digna de ser recebida no céu pelo meu nobre comportamento, porém agora vejo o quanto estava errada.
André, olhando-a firmemente, não procurou nem mesmo com palavras, alentar os sentimentos que a fragilizavam naquele momento. Ele sabia que o maior sustento à coragem e à perseverança para a evolução da alma é o reconhecimento dos próprios erros e fracassos, seguido de arrependimento e imenso desejo de acertar com perfeição.
- Como pude ser tão tola - lamentou Camila. - Agi como criança, não percebendo ou não querendo perceber tanta coisa errada a minha volta, simplesmente aceitando e compartilhando tudo sem me incomodar.
- Justamente - concordou André. - Seu maior empecilho para o despertar das verdades eternas foi a acomodação. Todos nós temos condições de desenvolver energias ou forças espirituais, manifestadas através de nossas faculdades intuitivas ou dos sublimes desejos que nos vêm pelos sentimentos do coração. Nós todos também podemos fazer germinar e crescer essa nossa capacidade espiritual por meio de exercícios, experiências ou observações, ou seja, o exercício da fé, a experiência da caridade e as observações de nós mesmos, ou melhor, a vigilância constante. Para isso precisamos despender perseverança e esforço. Só assim teremos a certeza de haver algo mais além da matéria corpórea e que o mundo invisível pode nos influenciar. Para o bem ou para o mal, através dos sentimentos que criamos dentro de nós, e isso sem qualquer mediador. Porém para essas energias ou forças espirituais alcançarem níveis vibratórios superiores a fim de nos darem amparo e orientações benéficas, é de suma importância, é altamente necessário o devotamento da fé inabalável em Deus, a aceitação, a prática e o amor aos ensinamentos de Jesus.
- Desculpe-me, não entendi muito bem.
- Não me leve a mal. Meus desejos são os de, tão somente, orientar. Não pretendo recriminar-te, porém vejamos. Quando em companhia de tuas irmãs e amigas, por te achares em condições superiores, humilhaste ou discriminaste outras pessoas. Nesse momento, foi-te cômodo te unires às companheiras aceitando as opiniões delas, sem verificares se o que fizeram estava certo ou errado. Não quiseste perder tempo em consultar os sentimentos de teu coração, que no momento era contrário aos de tua ação, para ouvires o teu manifesto e assim, independente das opiniões de tuas companheiras, barrares aquelas críticas, humilhações e preconceitos a outros semelhantes. Muitas vezes, assolaste em pensamentos indagando a ti mesma, e somente a ti mesma, de onde vinha todo o conforto que receberas? Sabias da verdade, porém era cômodo deixar tudo acontecer e não encarares a realidade. Além disso a idade já te permitias conversação tão realista e direta com teu pai, não quiseste te defrontar com ele à procura de respostas para tuas próprias dúvidas, tão menos alertá-lo para as sublimes verdades bíblicas que ele mesmo defendia ou julgava defender.
- Meu pai sempre foi uma pessoa intolerante e inflexível para com os de casa.
- Sem dúvida que o homem omisso, de palavras generosas e que dificulta o diálogo familiar, sempre está dissimulando suas ações que podem parecer duvidosas aos olhos dos seus e com isso ele perderia todo o respeito, credibilidade e autoridade.
- Eu não sabia o que fazer.
- Na verdade, minha irmã, não despendeste o mínimo esforço para fazer algo. Cada vez que intuías observar teu pai em tuas ações, tu te negavas. Cada vez que o coração te mandava falar, tu te calavas.
- Mas ele iria brigar comigo.
- Certamente. No entanto, somente tu poderias fazê-lo pensar e refletir sobre o que fazia. Com tua manifestação, Honório não poderia, mais tarde, tentar defender-se que errou na ignorância, se bem que, para o conhecimento que ele tem, isso de nada lhe valerá. Todavia teu pai não iria deixar de pensar nas tuas palavras.
- Sou muito nova, senhor André. Não tenho tanto poder assim com meu pai.
- Nova?! - exclamou André sorridente. - Ao espírito não se soma idade, soma-se experiências e evolução. Além do que, se tentasses dizer poucas palavras de alerta ao teu pai, quem te disse que estarias falando sozinha e pelas tuas próprias conclusões e pensamentos? Vejo que a irmã nunca tentou.
- Perdoa-me por falar assim, mas...
Sem que Camila concluísse, André completou:
- ... mas nem mesmo sabes porque estás aqui me dando ouvidos, não é?
Camila surpreendeu-se. André completou sua frase exatamente na íntegra.
- Sabes minha irmã, somente agora, desencarnada, é que deste ouvidos aos sentimentos de teu coração e estás atendendo às tuas intuições. Nos limites da matéria quiseste receber sem nada doares. Nenhum trabalho prestaste para a divulgação e orientação de uma atividade cristã.
Camila sentiu-se ofendida, porém André continuou:
- Todos os ensinamentos espíritas que recebeste, quando encarnada, de teus tios Alfredo e Dora só te interessaste enquanto participavas da vida em comum daquela nobre família. Nunca ofereceste nada a eles que, por outro lado, nunca te cobraram o amparo e o apoio, educando-te moral e espiritualmente, preparando e fortificando-te para tuas provas e expiações. No entanto tu te acomodaste, pois era muito fácil receber. Contudo no momento em que poderias tê-los ajudado, iniciando teus trabalhos na doutrina e dando continuidade às tarefas de Alfredo no plano físico, fugiste como no passado, infelizmente, repetindo teu erro. Desperdiçaste as oportunidades que, com muito trabalho, foram preparadas por inúmeros trabalhadores do plano espiritual. Isso realmente foi lamentável.
Nesse momento Camila sentiu-se atordoada. As lembranças de outra reencarnação fizeram-se presentes vivamente em sua memória. Como um relampejo de idéias, recordou os atos praticados contra si e as leis morais. Lembrou seu reencarne como Samara e em seguida do socorro abençoado que tivera quando, desencarnada, encontrava-se à disposição de criaturas imensamente monstruosas, sem compaixão, que viviam na ignorância das boas ações e orientações, atuando de forma horripilante contra os que lhes serviam de escravos nos vales do Umbral. Recordou dos ensinamentos e conselhos recebidos logo que foi socorrida, da oportunidade obtida na honrosa tarefa de acompanhar o trabalho no campo da doutrinação espírita que prometera antes de deixar aquela amada colônia espiritual para a reencarnação. Realmente, André tinha razão. No momento em que Dora necessitou de sua ajuda, ela a abandonou novamente com os filhos. Camila pendeu a cabeça negativamente como quem lamentasse suas atitudes. Mesmo assim, tentou justificar-se junto a André:
- Quando meu tio Alfredo deixou o plano físico, as necessidades de Dora e dos meus primos eram financeiras e jamais eu poderia ajudá-los no que dizia respeito a isso. O dinheiro que eu havia guardado era pouco diante do que precisavam. Eu acreditei que os deixando sobraria mais para o sustendo deles. Por outro lado, não vejo como poderia eu ter dado continuidade ao trabalho de meu tio. Sozinha, digo, sem ele por perto, jamais conseguiria.
- A missão de Alfredo - salientou André, pacientemente -, era a difícil arte na tarefa de doutrinar, no entanto o abnegado e honroso irmão, realizou-a muitíssimo bem. Coube-lhe a parte, em primeiro lugar com o exemplo de inúmeras atitudes de solidariedade e amor e, sobretudo, o laborioso e magnífico ensinamento do Evangelho do Senhor todos os necessitados de orientação. Quanto à cara irmã, deverias ter desempenhado atividades relativas ou paralelas ao trabalho do digníssimo Alfredo, aproveitando o inabalável alicerce já solidificado pelo nobre irmão, juntamente com o apoio e o amparo do plano espiritual. Conforme tua solicitação a esse serviço e tuas promessas de dedicação honrosa a esse trabalho, empenhar-te-ias em estimular companheiros de luta que propagariam a Doutrina Espírita, a solidariedade e a moral cristã. Agora no que se refere às necessidades financeiras pelas quais passavam todos, sinceramente, não deverias ter crivado teu coração com o abalado da insegurança. O plano espiritual ampara sempre a todos, sem exceção, dando-lhes de acordo com as necessidades físicas, morais, espirituais e materiais. Não há trabalhador espiritual que não tenha de acordo com as necessidades e merecimentos. Tudo é engenhosamente planejado. Muitas vezes o dinheiro traz escravidão e dependência difíceis de superar. A criatura exposta à vasta fartura, quando encarnada, corre o risco de enlaçar dependência e apego a tudo o que é material, deformando a alma e a compreensão dos sentidos, fazendo com que uma pequena perda ou danos de um bem se transforme em uma tragédia. Tudo isso pode negativar o espírito a tal ponto que ele passa a ambicionar e desejar mais e mais. Assim sendo, começa a odiar, maltratar, apropriar-se do que não lhe é de direito e assim por diante, fazendo-o estagnar cada vez mais na escala da evolução.
Camila ouvia-o com a cabeça abaixada. Depois de breve pausa, André continuou:
- A irmã sabe o quanto é grande o número de desencarnados que trabalham ativamente na área dos pensamentos inferiores, trazidos aos encarnados pelos irmãos e espíritos ignorantes, os quais são chamados obsessores? Eles deformam a versão da realidade e arrastam os pensamentos e os sentimentos dos encarnados ao abismo do vazio, deixando-os com o coração enrijecido e deserto. - Camila não respondeu, mas André entendeu e prosseguiu: - Por esse motivo, a grande maioria dos espíritos que se propõe a trabalhos árduos na área da evangelização, durante o seu período e oportunidade de reencarnação, solicitam que se faça em ambiente simples e humilde para não caírem em tentação. Não estou dizendo, sobremaneira, que para desempenhar bem a atividade a qual se propõe quando encarnada, a criatura tenha de se flagelar, torturar-se, recusar o bem-estar físico e material, não. Não é isso. O importante é: a pessoa que se dispõe a tão nobre trabalho dê atenção aos chamados intuitivos e aos tesouros sagrados acumulados no coração e podem, sobretudo, ser doados aos montantes para inúmeros necessitados, sem, sequer, nos fazer pobres, muito ao contrário. Tua decisão quanto a deixares tua tia e teus primos não foi, de forma alguma, para que vivessem mais fartos, pois eles não teriam de partilhar contigo o pouco que os nutria, seria providencial tudo chegar no tempo e na medida certa. A irmã não deve iludir-se querendo crer em tuas próprias alegorias. Foi sim por tua busca ao conforto, as boas acomodações, a fartura da qual te sentias carente. O problema foi a comparação que comecei a fazer entre a situação financeira de meus tios e do meu pai. Meu pai se estabilizou e passamos a viver bem depois que se apegou àquela religião conservadora. Demorei a ver que só ensinavam egoísmo e preconceito. As religiões não ensinam egoísmo ou preconceitos. Quem pode trazer esse tipo de sentimento e entendimento são os homens que a divulgam da forma como eles bem querem. No entanto, acima de tudo, a irmã não pode negar que te foram muitos os chamados. Pode ser. Mas após ficar ouvindo tudo o que meu pai dizia sobre céu e inferno, anjos e demônios, eu cheguei à conclusão de que meus tios não estavam bem financeiramente porque pecavam. Bem sabes que meu pai foi, em outrora, uma criatura monstruosa e dono de atos imensamente perversos com os quais eu nem mesmo necessitava enlaçar amizade. Errei. Agora não entendo como alguém que praticou ações tão horripilantes, tanto encarnado como desencarnado, tem uma vida tão boa, possui tanto conforto e tantos privilégios. Ele era líder de falanges extremamente inferiores. Como pode querer falar de Deus e não ser punido? Eu sinto-me desamparada e confusa hoje no plano espiritual e não cheguei a fazer um centésimo dos atos malévolos que ele praticou. André esboçou leve sorriso fraterno ao afirmar:
- A querida irmã chegou a essa conclusão porque não tem fé e ignora Leis imutáveis da Natureza Divina. Quando encarnada, refugaste a labuta. Não só os trabalhos normais de todo e qualquer encarnado responsável, como também as tarefas que te cabiam ao espírito, preferindo os prazeres temporários das acomodações nos bens terrenos. A verdade é essa. Assim que estiveres preparada, compreenderás toda a situação e saberás por que seu pai passa por tal experiência, na qual hoje acredita se sair ileso. Recorda-te que Deus é pura justiça e bondade. Não nos cabe julgamento algum. Lembremo-nos de que todos nós, sem exceção, somos espíritos eternos, encarnados e desencarnados em constante evolução. Não nos devemos ver como mais evoluídos que alguns ou inferiores a outros, mas sim criaturas que buscam conhecimento, entendimento e melhoria.
- Mas ele errou muito!
- Será que foi somente ele? Será que a ignorância de Honório não prevalece por culpa de seus acompanhantes e simpatizantes? Lembra-te que já foste um deles? O Mestre Divino nos disse "Amai os vossos inimigos", isso não quer dizer, sobremaneira, que devamos nos igualar a eles ou lhes dar apoio e razão no que fazem. Em O Evangelho Segundo Espiritismo, encontramos uma explicação magnífica: "nenhum ser será maldoso e perverso por toda a eternidade. Esse é um estado temporário ao homem ignorante e sem instrução". Bem sabes, por experiência, que o desencarne de uma pessoa perversa pode e nos afasta dela, somente pela visão física. Essa criatura poderá continuar ao nosso lado por muito tempo e onde quer que estejamos. Apenas com nosso amor, nosso entendimento e pensamentos firmes no bem, podemos transmitir-lhe, com nossos atos, as verdadeiras instruções e ensinamentos necessários para mudar os seus sentimentos e fazê-la evoluir. Nisso deixamos de sofrer e evoluímos juntos.
Diante do exposto, ela não disse mais nada. Negava-se em admitir suas necessidades de aprimoramento. André despediu-se silencioso, quando respeitosamente apoiou a mão em seu ombro em sinal de solidariedade e retirou-se vagarosamente. Sábio ele entendia que no serviço de transformação íntima somente a própria criatura pode trabalhar, começando a se abrir para pequenas aceitações e entendimentos, vigiando-se para efetuar as práticas cristãs. Camila permaneceu ali refletindo sobre a nobre conversa por longo tempo.
10 - A DEDICAÇÃO DE TÚLIO

Sem saber o que fazer ou para onde ir, Camila ficou na casa de sua tia durante aquela noite. Mesmo diante de toda a verdade exposta por André, ela se recusava a crer ter falhado por culpa própria. Acreditava que seu pai deformou-lhe os sentidos, influenciando suas decisões. Na manhã seguinte, resolveu deixar a casa de sua tia e vagar sem rumo. Seus pensamentos eram velozes e conturbados. Não conseguia organizar-se. Mais tarde, sentada em um banco de praça, começou a observar algumas crianças brincando e refletiu:
- Com tudo o que aprendi no plano espiritual antes de reencarnar como Camila, estou aqui jogada ao léu e sem destino. Se bem que fui socorrida àquele Posto, mas por culpa de meu pai, por tudo o que me ensinou, eu mesma me atraí de volta ao plano terreno, porém sem o corpo de carne. Por que será que agora, nesse momento, não me colocam ou não me levam de volta ao Posto de Socorro? Poderiam me atrair para a colônia mais próxima, uma vez que já compreendi e recordei tudo?
Seu olhar perdido fixou-se de repente em uma bola que rolou na direção da rua. Uma sombra turva, sem brilho, parecia acompanhar o brinquedo como se o levasse. Logo atrás, uma criança correndo. Os carros passavam velozes e a criança levada pelo impulso inocente tentava alcançar a bola que saiu do gramado, rolou sobre a calçada e depois para a rua por entre os veículos ligeiros. Ela ficou assustada imaginando as graves conseqüências, entretanto se surpreendeu. Quando a criança tentou sair da calçada para ganhar a sarjeta e a rua, um rapaz a barrou fazendo-a tropeçar e cair. Nesse momento um automóvel que passava atropelou a bola, estourando-a. A sombra deslustrada pareceu fugir diante do rapaz que a olhou com seriedade. Chorosa, por ralar os joelhos e ver sua bola estourada, foi ao encontro da mãe que se aproximava em desespero para acolhê-la. Camila observou que o moço não foi visto pela mãe ou pela criança, aliás, nem mesmo ela viu de onde ele surgiu. Olhando em sua direção, estranhamente o belo rapaz aproximou-se sorrindo, cumprimentando:
- Como tens passado, Camila?
- Me conheces?! - respondeu ela surpresa.
- Claro, ias sempre ao Centro Espírita acompanhando teu tio Alfredo.
- Se me podes ver é porque estás morto!...
- Desencarnado, por favor. - Rindo, com simpatia, explicou: - Se eu estivesse morto aquele garotinho não estaria no colo da mãe somente com os joelhos machucados.
- Como me conheces?
- Pode me chamar de Túlio. Eu sou um cooperador espiritual e atualmente sou o guarda responsável desta praça. Fico aqui o tempo inteiro com o máximo de atenção voltada aos nossos amiguinhos encarnados que necessitam de espaço e lazer. São de minha responsabilidade o amparo e a proteção a essas criaturinhas lindas, inocentes, indefesas e encantadoras, enquanto estiverem sobre o domínio desta área de lazer.
- Tu o fizeste cair e ele se machucou!
- Tens razão - concordou mais sério. - Porém foi preciso. Assim como o seu anjo de guarda eu sussurrei-lhe ao ouvido que parasse de correr e ficasse atento ao perigo eminente. Entretanto diante da falta de atenção que dispensou à intuição que teve, foi necessário barrá-lo de qualquer maneira para que o pior não acontecesse. Os pequeninos são dotados de uma aguçada sensibilidade às orientações espirituais, mas alguns costumam exibir sua teimosia desde cedo. Mas irão aprender com o tempo.
- Por que, então, algumas crianças são atropeladas e chegam a morrer?
- Desencarnar - Túlio corrigindo-a novamente, sempre ostentando agradável sorriso e gentileza. - Bem, não podemos interferir no tempo ou período de encarnação designado a um espírito, muito menos mudar as provas e expiações individuais, sem ainda contar com o livre-arbítrio. É por isso que alguns acidentes têm que ocorrer. Meu trabalho é a proteção de todos que estão dentro do espaço da praça. Não posso deixar que criaturas perversas ou trevosas os lesem deliberadamente a bel-prazer. No entanto alguns atraem para si a companhia espiritual de acordo com seu nível moral ou provação. Os ferimentos na pobre e ingênua criança lhe servirão de lição, inclusive para a mãe que fora imprudente em sua atenção. O susto que levou foi um alerta para que ficasse sempre atenta e ensinasse limite ao filho. Respeito e limite são o que está faltando àquela criança, por essa razão ela não obedeceu à inspiração que lhe chegou e continuou correndo. Quanto ao machucado, esse vai se curar rapidamente. Dos males, o menor.
- A propósito, de onde veio aquela sombra?
- Sombra?!... Ah! E um espírito vadio que geralmente rodeia esta e outras praças em busca de desordem e zombarias. É uma pobre e infeliz entidade que, quando encarnada, fazia-se de mendigo para seu sustento. Hoje o coitado realmente é um mendigo espiritual.
- Eu vi uma sombra - insistiu Camila.
- É porque tua visão não está ainda afinada com o mundo dos espíritos. Acredito que estás muito ligada à matéria.
- Já desencarnei há uns oito meses. Passei seis meses dormindo e já estou na crosta há dois meses, perto de minha família.
- De que importa o tempo? Medimos a elevação pelas experiências bem aproveitadas - comentou Túlio com o intuito de ensinar.
- André me disse isso.
- André?! Encontrou-se com nosso ilustre orientador?! - perguntou Túlio entusiasmado.
- Espere, Túlio. De onde me conheces? Como sabes tanto a meu respeito? Quem é esse André? - perguntou ela apreensiva.
- Cheguei à crosta da Terra, para trabalhar e servir, quando teu tio Alfredo iniciou o trabalho de orientador. Depois acompanhei tua freqüência no Centro Espírita e assim fiquei sabendo muito a teu respeito. Para te falar a verdade, esperávamos mais de ti. - Breve pausa e Túlio continuou:
- Não assumiste os compromissos aos quais te propuseste e solicitaste preparo.
- Sinto-me envergonhada. Desencarnei e fui parar num Posto de Socorro e, por não me lembrar imediatamente de tudo o que aprendi no plano espiritual, voltei para a crosta. Como pode ser isso?
- Creio que te apegaste muito ao conforto e ao bem-estar material, quando encarnada, para gozar de grande mordomia no plano físico, nessa provação tu te reprovaste. Encarnada, renegaste a verdade aprendida propositadamente e promoveu um auto convencimento, uma fé cega, em virtude da falsa posição que assumiras. Como resultado, obtiveste, em teus sentidos, um grande conflito íntimo ao despertar no plano espiritual.
- A culpa de tudo isso é daquela maldita religião.
- Não maldiga nada em tua existência. Tudo são provas abençoadas que o Pai da Vida nos oferece com a finalidade de evoluirmos para mundos melhores e deixarmos de sofrer.
- É lógico que a culpa é daquela religião! - teimou.
- E também do meu pai que nos mantinha presos aos seus caprichos religiosos, expondo-nos falsos tesouros. Foi isso o que me fez mudar de idéia e deixar de acreditar no Espiritismo. Em outra encarnação, quando recebi o nome de Samara, conheci uma terrível e monstruosa criatura que me prejudicou na evolução e perseguiu-me por mais de meio século no Umbral e que hoje é meu pai encarnado. Como se não bastasse ter me prejudicado no passado, agora estagnou minha evolução e meu trabalho para o bem.
- Se atrelou conversa com nosso amado André, ele deve tê-la alertado de que os outros não podem nos direcionar ou nos obrigar a fazer algo, caso nós não queiramos e tenhamos condições de evitar.
- Não concordo - teimava Camila. - Deixei o Posto de Socorro e recusei a ajuda oferecida, agora, porém, eu a quero. Quero ser assistida, protegida, no entanto não sei como posso voltar para o Posto ou para a Colônia. Não entendo. Diante de tanto conhecimento que ganhei desencarnada, falhei na tarefa proposta para esse reencarne e de nada está me valendo o conhecimento adquirido agora que procuro abrigo e paz.
O jovem Túlio gargalhou.
- Desamparada?! Desculpe-me Camila, não sabes o que está dizendo.
- Como não?! Quero retornar ao Posto e não sei como o faço. Encontro-me sem abrigo ou proteção nesta praça e sem saber o que fazer.
- Sem proteção ou abrigo estão aqueles nossos outros irmãos ali. Veja só.
Apontando a um grupo de desencarnados, maltrapilhos e desorientados, Camila observou-lhes os gestos e as condições. Um deles chamou-lhe mais a atenção e Túlio explicou:
- Aquele ali, gesticula e age como se portasse deficiência mental. Anda curvo, é chutado e socado pelos outros espíritos inferiores que passam por ele. Quando encarnado deliberadamente deixou o filho cair de seus braços para o chão provocando, no pobre bebê de cinco meses, sérias lesões e fraturas que o prejudicaram seriamente pelo resto da vida terrena. A criança sofreu lesões cerebrais, debilitou-se mentalmente e a coluna torta nunca pôde ser corrigida. Esse espírito, lesado pelo próprio pai, tinha uma missão muito importante no plano terreno. Que, por culpa do infeliz homem, não pôde realizar. A nobre criatura prejudicada desencarnou muitos anos depois, porém aproveitou, como espírito, muitíssimo bem a experiência vivida e hoje ele procura investir em estudos com a intenção da melhoria na qualidade de vida, promoções de bem-estar e apoio aos deficientes. Tudo isso está sendo cautelosamente planejado no plano espiritual para colocar em prática, na próxima oportunidade de reencarnação, sem deixar de atuar na sua antiga proposta de trabalho, que não chegou a dar início devido à inferioridade do espírito paterno que o lesou. Desencarnado, sempre que possível, procurou orientar seu pai e ampará-lo, pois, quando encarnado ainda, depois do crime praticado, o referido genitor começou a torturar-se pelo remorso e tormento da amarga lembrança que lhe ruminava a memória. Agora, desencarnado, como podes confirmar, o pai agressor já sofre algumas das conseqüências. Ele agita a cabeça, o tronco e os braços em movimentos descoordenados como se a mente não controlasse o corpo. A curvatura que se fez nas vértebras da coluna de sua vítima, manifesta-se nele inclinando-o ligeiramente para frente, deixando-o com a mesma t aparência sinistra que provocou ao próprio filho, que teve de conviver com a deficiência por quase trinta anos. Agora outros espíritos passam por ele, maltratando e torturando-o, pois, apesar do grau de inferioridade e de também estarem vivendo em sofrimento, não concordam com o crime por ele cometido.
Nem esse pobre espírito poderíamos dizer que está sem proteção porque Deus ampara a todos. E tu falas em desamparo! Veja, não estás à disposição de zombeteiros, sob perseguição ou confinada a escravidão de organizações inferiores. Se ninguém está te maltratando, isso já é uma imensa demonstração de proteção, concorda?
Camila ficou pensativa, não havia pensado nisso. Contudo, logo reclamou:
- Quero ir para um Posto ou uma colônia. Não compreendo. Tenho entendimento e aceito a espiritualidade. Concordo que não cumpri minha tarefa, porém não cometi falhas graves para merecer ficar presa aqui no plano terreno sem ser atendida.
- Tem que admitir que até agora vem sendo protegida e orientada.
- Protegida?! - retrucou Camila. - Chama proteção ficar sentada aqui no banco de uma praça sem saber o que fazer ou para onde ir?!
- Reflita, Camila! - Túlio deu ênfase à frase para tentar despertá-la. Em seguida, com olhar generoso explicou com toda a atenção impostando carinho na fala: - Dos lugares que esteve desde o seu desencarne, onde foste maltratada ou agredida? Lamentas injustamente, minha querida. Estás sendo ingrata.
- Então me explique. Estou cega - disse Camila.
- Pense, meu bem. Existe algo que não te deixa receber mais apoio ou orientação? Queres ir a um Posto e não consegues? Por que será?! Pensa.
- Não estou entendendo, Túlio. Aonde quer chegar?
- Se não conseguiste ficar no Posto, quando foste socorrida, é porque tua vibração espiritual era incompatível com a do lugar. Se agora não consegues voltar para lá, é porque ainda não há compatibilidade vibratória espiritual entre ti e o lugar para aonde desejas ir.
- O que há de errado comigo?! Já reconheci meu erro. Já aceitei a espiritualidade e até lembrei-me do meu passado culposo. O que querem que eu faça?! Se falhei, porque me omiti em servir e assumir minhas tarefas, foi por me iludir com as malditas palavras proferidas por meu pai e aquela desafortunada religião que me cruzou o caminho. Se eu tivesse me apegado mais ao Espiritismo...
- Uma vez ouvi um espírito dizer que "a religião não faz de um homem um grande espírito". Há lições que devemos aprender sozinhos. - lembrou Túlio. Depois de longa pausa para que ela refletisse, o belo espírito avisou com tranqüilidade: - Bem... agora que as doces, alegres e peraltas crianças se foram, meu trabalho acabou aqui, por hoje. A noite começa a cair em breve e com isso outras criaturas surgirão. Sendo que estas não necessitam de minha presença ou proteção. Tenho que repor energias através da alimentação ao espírito e descanso apropriados. Além de revigorar as forças espirituais é indescritivelmente agradável juntar-me aos amigos que também edificam o serviço Cristão. Confesso estar ansioso para rever o ilustre e querido amigo André. Vamos?
- Vou ficar por aqui.
- Não posso interferir em tua vontade, porém aconselho-te: esse não é um bom lugar. Em breve espíritos de baixas condições vibratórias surgirão para assumirem suas tarefas ou hábitos noturnos. Aos desencarnados tudo aqui ficará tenebroso e cheio de resíduos escuros que resulta de matéria mental dos encarnados e desencarnados de baixa condição moral, freqüentadores deste lugar. Isso só enquanto o nosso astro maior abençoa com sua luz a outra face do planeta. Porém amanhã, com certeza, logo nas primeiras horas, os raios solares cintilarão através das copas das árvores formando feixes de luzes coloridas pelas gotas de orvalho que hão de estar aqui. Essa luz dissolverá essa camada de energia densa desfazendo as sombras emissoras de vibração inferior se afastar junto com as criaturas de baixa condição espiritual. Propiciando as nossas amadas criancinhas um lugar de lazer e diversão. Se queres ficar... Até amanhã! - disse ele sorrindo.
Camila sentiu medo. Levantou-se às pressas e acompanhou Túlio, que calmamente ia se retirando do lugar.
- Aonde vamos? - perguntou ela.
- Vamos nos socorrer - brincou ele.
- Como assim?
- Também necessitamos de socorro. Precisamos de alimentação apropriada, descanso salutar, orientação digna, aperfeiçoarmos nossos conhecimentos, edificarmos nossa fé e nosso amor junto a Deus nas palavras do amado Mestre Jesus. Estamos em constante evolução e, ao irmos atrás do que necessitamos, estamos nos socorrendo, concorda?
Camila sorriu e aceitou.
- Eu ignorava a presença de André na crosta. Tive trabalhos diversos no auxílio a companheiros e não pude ir para o Posto espiritual, aqui na crosta, noite passada.
- Túlio, quem é aquele senhor, o André?
- Sério?! Não sabes quem é ele?!
- Sei dizer que tem imensa luz e infinita sabedoria que...
- Aquele é o nosso tão amado André Luiz! Digníssima entidade que tantos ensinamentos edificantes trouxe a luz para que encarnados pudessem, através de sua literatura, aprender e experimentar a nobre lição prática que nos traz o Espiritismo.
- É ... aquele André Luiz do livro Nosso Lar?!
- Ele mesmo! O ilustre espírito André Luiz que passou para o plano físico através das psicografias do nosso tão estimado Chico Xavier, e outros médiuns, mais de vinte obras literárias, várias mensagens, destacando, acima de tudo, fé, esperança, amor, perdão entre tantos outros nobres sentimentos.
Camila ficou pasmada. Mesmo assim salientou:
- É que ele me pareceu tão simples...
- Como nos diz o Evangelho, "A virtude, no seu grau mais elevado, abrange o conjunto de todas as qualidades essenciais que constituem o homem de bem. Ser bom, caridoso, trabalhador, sóbrio, modesto são as qualidades do homem virtuoso. Aquele que faz alarde de sua virtude, não é virtuoso, pois lhe falta a principal qualidade, que é a modéstia, e sobra-lhe o vício mais oposto: o orgulho. A criatura realmente virtuosa e digna desse nome não gosta de exibir-se. Temos de adivinhá-la. Elas se escondem e fogem à admiração das multidões." André Luiz é uma criatura virtuosa!
Camila ficou maravilhada. Pensava ela que André Luiz fosse um mito. Entretanto pôde experimentar seus elevados conceitos e lamentou, mais uma vez, não ter dado tanta atenção quanto deveria. André Luiz tinha razão. Ela já ouvira inúmeros chamados, pena não ter dado atenção. Enquanto caminhavam, lembrou-se de questionar:
- Túlio, estou curiosa. Sabes aquele espírito que me mostrou e disse que deixou o filho cair deliberadamente?
- Túlio acenou com a cabeça positivamente, e ela tornou a perguntar: - Por que ele fez isso?
- O pobre homem vivia infeliz em seu casamento e, acreditando que a esposa engravidou para prendê-lo no lar, sentiu-se imensamente insatisfeito e renegou o filho quando este nasceu. Ele possuía uma amante que o pressionava incessantemente para deixar a família e afirmava-lhe que o obstáculo da felicidade entre eles seria o filho que os incomodaria pelo resto da vida, trazendo-lhes as queixas e as necessidades. A amante passou a valer-se de obsessor e dizia: "se essa criança não existisse, a mãe não lhe cobraria nada nem o filho os importunaria". Depois de alguns meses, ele se convenceu de tudo e provocou a queda da criança. Após ter lesado o próprio filho de forma permanente, simulando um acidente, o pobre homem nunca mais pôde encará-lo. Abandonou o garoto e a mãe, deixando-os sem assistência, piorando ainda mais a situação. A amante, com medo, abandonou-o pensando: "se ele teve coragem de tentar matar o próprio filho, o que não faria com ela?" A partir daí, enquanto encarnado passou a arrepender-se de seu feito.
- Como há seres cruéis nesse mundo! - comentou Camila indignada.
- Não nos cabe julgá-los, criticá-los ou dizer o que eles merecem.
Camila aquietou-se e limitou a seguir Túlio que, como se estivesse encarnado, preferiu andar passo a passo a volitar, talvez pela companhia de Camila. Longo silêncio se fez até ele perguntar:
- Viste somente o caro André Luiz quando visitou tua tia?
- Eu não disse que visitei minha tia. - Túlio sorriu e nada disse. Camila continuou: - Sim, vi só ele. Há mais algum outro espírito lá?
- Encontra-se imensamente presa à matéria ou ao mundo material e não entendeu ainda que o lar de Alfredo e Dora é um Posto espiritual que acolhe e auxilia trabalhadores e cooperadores encarnados e desencarnados operosos em atividades e serviços cristãos.
- Não havia mais nenhum espírito lá, pois só vi o senhor André.
Túlio sorriu novamente e bondosamente comentou:
- André Luiz se deixou ver. Quanto aos outros, talvez ainda não possa vê-los.
- Há muitos desencarnados lá?
- Sim, inúmeros. Devido à maioria empenhar-se em trabalhos árduos e de longo tempo, naquele Posto ou oficina nós dispomos de auxílio, orientação, revigoração para as tarefas abraçadas, descanso necessário, entre outros benefícios.
Logo depois, Camila observou:
- Estamos fazendo o caminho para a casa de minha tia Dora!
- É lógico, Camila. Estamos indo para lá.

11 - LAR, OFICINA ESPIRITUAL

Chegando à casa de Dora, Túlio expressou-se satisfeito e aconselhou:
- Camila, procure ficar tranqüila e apurar a visão. Não a visão dos olhos pensando estar encarnada, mas a do espírito. Talvez não consiga enxergar com clareza algumas entidades, devido ao seu grau de evolução, mas poderá observar a movimentação e o serviço incessante que prestam nesta casa.
A porta de madeira da casa estava fechada. Entretanto, uma outra porta no plano invisível aos encarnados que, ficava sobre a do plano material foi aberta para Túlio entrar. A entrada comum, vista pelos moradores, continuou trancada, porém sem gerar qualquer problema para eles atravessarem-na. Somente agora Camila pôde ver a porta no plano espiritual, por isso exclamou:
- Essa porta!... Ela não estava aí!...
- Fico feliz por tê-la enxergado agora. Afirmo que há anos ela está exatamente aqui. Alguém deve tê-la aberto para que pudesse entrar quando acompanhou a generosa Dora.
Camila intrigou-se com a novidade. Tinha certeza de nada ter visto antes.
- Por que esta porta espiritual? Para que serve? Achando graça, Túlio educadamente respondeu:
- Pode parecer uma porta, mas explico-te que é um forte sistema de segurança magnético, próprio para barrar qualquer espírito indesejável a esta oficina de trabalho operoso.
- Alguém a abriu ou desligou quando eu passei?
- Com toda a certeza - afirmou Túlio alegremente.
Ao adentrarem na humilde residência, Túlio cumprimentou a todos de forma educada e cortês. Porém, a um amigo muito especial, estendeu amistoso abraço e cumprimentos mais demorados. Em seguida apresentou Camila que ficou surpresa ao ver tantos espíritos ali presentes.
- Aqui está Camila! - disse Túlio com olhar expressivo e satisfeito.
- Como vai, Camila? Ontem parece não nos ter percebido, mas agora estou feliz em vê-la aqui novamente! - Estendendo-lhe a mão para um cumprimento, apresentou-se: - Meu nome é Anacleto.
Sorrindo, ela retribuiu:
- Prazer, senhor Anacleto.
- Pois bem, meus caros - disse Anacleto -, já que estão aqui aproveitem para a revigoração.
- Estou exausta - lamentou Camila. - E faminta também. Sinto-me um tanto fraca.
Então este é o lugar ideal. Pedirei à Luana que a auxilie no que for preciso para seu bem-estar - pronunciou-se Anacleto carinhosamente.
Camila foi levada a um outro cômodo da casa para se assear. Sua aparência estava turva por causa da impregnação de seus próprios pensamentos negativos e de protesto. O magnetismo do local apropriado deixou-a experimentar gratificante sensação de paz e leveza clareando sua aura ofuscada. Assim que retornou, Túlio a fez sentar-se em cadeira plasmada junto à mesa da cozinha do plano físico, onde sobre a mesma era plasmada outra idêntica para melhor acomodar a todos na espiritualidade.
- Que curioso - ressaltou Camila -, eu não havia observado estes móveis existentes no plano espiritual.
Eles procuram acompanhar e até imitar a mobília que há no plano material e até mesmo o lugar onde é colocada. Luana aproximou-se de Camila e ofereceu-lhe algumas frutas. Porém a Túlio ofertou, em uma tina, outro tipo de alimento que, se fosse descrevê-lo em nível material, poderia dizer-lhes que assemelhava-se a um caldo. Contudo seus valores nutrientes eram diferentes da comida dos encarnados. Este se designava a abastecer o corpo espiritual para nele restabelecer e revigorar as energias necessárias. Ela observou essa diferença, mas nada comentou. Apressadamente apanhou uma das frutas e quando foi mordê-la observou que o amigo cerrou os olhos preparando-se para uma oração. Largou-a rapidamente e acompanhou em pensamento a bela prece que Túlio praticamente murmurou:
- Agradeço, Senhor, a oportunidade de estarmos aqui neste refúgio abençoado para o descanso necessário e o revigorar de nossas energias. Que este alimento possa nos irradiar forças suficientes para que nossos corpos espirituais tenham a capacidade de servi-Lo com incansável vigor e desenvolver uma tarefa perfeita aos Seus olhos. Graças a Deus.
Outros trabalhadores movimentavam-se ou palestravam assuntos edificantes em outros cômodos. Camila não conseguia vê-los todos, mas percebia a emissão de luzes que volitavam brilhantes em todos os recintos. Agora mais confortada pela ausência da fome e sentindo-se segura pela estabilidade de harmonia que garantia o local, sentia-se mais calma e confiante. Virando-se para Túlio, perguntou:
- Há muito mais trabalhadores aqui do que os que eu posso perceber, não é?
- Com certeza! - respondeu ele satisfeito por vê-la interessada.
Neste instante entrou pela porta daquela cozinha, que prestava o mesmo tipo de serviço, como ambiente ao plano físico, Júlio, primo de Camila. Todo vestido de branco e sustentando na mão a alça da maleta médica. Assim que chegou, fechou a porta com relativo cuidado e acendeu a luz. Somente então Camila notou que a lâmpada da casa estava apagada, pois a luz espiritual ali reinante, não a deixou perceber o breu no plano material daquele ambiente. Do outro recinto, Dora perguntou em voz branda:
- Filho, és tu?
Confortando a mãe, Júlio respondeu:
- Sim, mãe, sou eu.
Dora apareceu na porta e Júlio a cumprimentou com um beijo e forte abraço que foi correspondido com carinho.
- Demoraste hoje, Júlio. Atendeste a caso sério, filho?
- Sim, mãe. Mas, graças a Deus com final feliz.
- Fiquei preocupada com tua demora - desabafou Dora.
- Preciso conversar com Dirceu para vermos a possibilidade de comprarmos uma linha telefônica para não te preocupares mais, mãe.
- Estás com fome, filho?
- Sim mãe. Estou faminto.
- Vá te lavar enquanto esquento o jantar.
Júlio foi para o quarto. Camila pasmou-se diante daquela cena. Júlio se formou médico! - exclamou ela admirada.
- Tudo é exatamente como tem de ser - filosofou Túlio agora sério.
- Como conseguiram? Na época não havia nem o suficiente para a subsistência alimentar deles?!
Túlio ficou calado. Verificou que Camila mesmo com sua indagação havia entendido a moral da história.
- Túlio - tornou Camila -, sinto agora, mais do que nunca, uma imensa vergonha por tudo o que fiz e deixei de fazer. Um grande remorso invadiu-me a alma.
Anacleto aproximou-se deles e observou:
- Sua reflexão é válida. Reconheceste que agarraste a laços inferiores devido aos caprichos materiais? Bem que poderias ter desenvolvido magníficos exercícios espirituais e desempenhado importantes e excelentes trabalhos no campo evangélico da doutrina, o que seria imensamente importante para tua evolução individual. Resta-te ainda, para torturar-te a alma, a resistência da aceitação total de teus erros. És incapaz de admitir que a opinião alheia não foi o motivo de tua falência nas atividades corpóreas.
- Já admiti que errei. Sinceramente, estou arrependida e se pudesse faria tudo diferente. Porém, procuro proteção, sinto-me insegura. Por ter consciência do passado, estou ansiosa para sair da crosta e empenhar-me no trabalho e no estudo no plano espiritual. Meu desejo é voltar para o Posto ou para a colônia. Pelo que percebo não estão me deixando ir e não entendo por quê.
- Cara Camila - tornou-lhe Anacleto bondoso -, o que providencia a abertura de uma porta no plano invisível é a sinceridade e a pureza do espírito. Somente a mera adoração aparente a Deus não significa a edificação ou evolução do espírito encarnado ou desencarnado. O que se faz necessário e imprescindível é o amor incondicional, a humildade e a solidariedade a todas as criaturas, além da compreensão, que não significa aceitação, mas faz parte da solidariedade.
Ela expressou uma fisionomia singular e Túlio, vendo sua dificuldade para compreender, procurou ser mais claro:
- Compreender as atitudes alheias, sem a condenação dos atos por eles praticados, não significa concordar com o que foi feito. Isso não quer dizer que deves compartilhar direta ou indiretamente com o que foi ou está sendo realizado de forma errada aos princípios morais. Devemos ter compaixão pelo espírito que praticou um ato indigno e, se tivermos condições, auxiliá-lo com instruções partilhando nossa sabedoria.
Camila ficou pensativa. Mesmo reconhecendo ter fracassado, sabia que algum sentimento inferior vibrava-lhe o espírito ao ponto de interromper o progresso e o socorro para uma colônia adequada.
- Nossas palavras de estímulo servir-lhe-ão como uma bússola - orientou Anacleto de forma ponderada. - Sabendo usá-la, encontrará a diretriz e a direção corretas. Instantaneamente reformularás os teus conceitos. Transformarás tuas opiniões e te livrarás das vibrações inferiores, as quais muitas foram provocadas por ti mesma e que te rodeiam o espírito, deixando cair por terra todo o lastro que te prende na crosta. - Não podendo ser mais claro, Anacleto voltou-se para Túlio e informou: - Nosso estimado André Luiz já retornou. Sei que deseja vê-lo.
Túlio esboçando agradável surpresa e sorrindo largamente, comentou:
- Quando soube que o caro André se encontrava aqui, logo deduzi que vieste com ele, Anacleto!
- Como não! Não te prendas por mim. Vai ter com ele! - respondeu alegremente. Assim que Túlio os deixou, Anacleto, voltando-se para Camila sugeriu generoso: - Necessitas de descanso. Luana irá acompanhar-te até o andar acima e te mostrará as limitações e o recinto onde poderá descansar.
- Andar de cima? Esta casa é térrea - expressou-se Camila surpresa.
Anacleto sorriu e observou:
- A casa material sim, mas nossas dependências não. Esta oficina possui dois andares, além deste térreo. Entretanto deves limitar-te somente por algumas dependências. Há trabalhos realizados aqui que não podem ser incomodados. Luana poderá explicar-te melhor.
Camila seguiu Luana até o recinto, que era a sala de estar da casa de sua tia, onde no canto havia uma escada somente no plano espiritual. Ganhando o andar acima, Luana explicou:
- Seguindo até o fim deste corredor, teremos dois alojamentos. Poderás ficar no da direita onde encontrarás outras que, assim como tu, necessitam só de descanso, e algumas trabalhadoras que também carecem de revigoração. Os alojamentos da esquerda são para os homens. A nossa frente, depois dessa porta - prosseguiu generosa -, temos um grande salão destinado para trabalhos espirituais edificantes para os espíritos encarnados que vêm aqui durante o sono e, quando uma suave lembrança ocorre, eles a denominam de sonho. Aqui recebem orientações instrutivas. Os trabalhadores procuram infundir-lhes ensinamentos morais e espirituais de bons princípios por estarem parcialmente desprendidos do corpo físico, pelo estado do sono. Os espíritos encarnados são trazidos aqui por trabalhadores nobres. Após receberem revigoroso e positivo ânimo e fluidos, eles retornam para o corpo físico.
- Podes explicar-me se eles se lembram do que ocorreu aqui exatamente? - perguntou Camila.
- Somente se possuírem profunda harmonia das emoções e pensamentos no plano físico, além de conciliarem suas ações com a coragem e o bom ânimo no bem e, sobretudo, exemplificarem com o amor e a solidariedade incondicional. Fora isso, poderão ter uma idéia parcial ou até uma lembrança bem vaga do que julgarão um sonho. No entanto, com certeza, terão na mente as melhores lições e sentimentos que os guiarão como forte intuição para fazerem o melhor.
Camila surpreendeu-se. Apesar de todo seu estudo no plano espiritual, nunca se privilegiou com tanta instrução vivenciada.
- Desse lado do corredor, à esquerda, nessa outra porta - prosseguiu Luana -, há um atendimento semelhante aos desencarnados que possuem um nível espiritual razoável para receber tais ensinamentos. Portanto é importante lembrar que não deves entrar em quaisquer dos dois salões sem prévia permissão. Deverás limitar-te ao alojamento e as repartições lá de baixo.
Chegando ao local, Camila observou que já haviam providenciado acomodações plenamente aconchegantes ao lado de mulheres, que também repousavam. Luana a deixou à vontade e se foi. Mais tarde teve sede. Mesmo temerosa, ela saiu do aposento. Andou pelo corredor e desceu as escadas. Na sala viu seus primos Júlio e Dirceu em animada conversa amigável. Teve vontade de abraçá-los. Sentia muita saudade. Luana, aproximando-se de Camila, falou:
- Se tivesse chegado um pouco antes, teria o prazer de acompanhar uma bela leitura e uma ilustre explicação das instruções que nos lega o Evangelho Sagrado. Teus primos e tua tia elevam imensamente o nível espiritual deste lar com o que propagam dentro dele, devido as suas atitudes, gestos, ações e pensamentos. Eles são trabalhadores encarnados ativos e edificados no campo da espiritualidade. Todo o trabalho aqui realizado é graças ao nível superior de matéria e energia mental que encontramos disponível. Em outro lugar, tais tarefas seriam impossíveis.
- Não é em todo lar que encontram condições de realizar tudo isso?
- De forma alguma! - salientou Luana. - Hoje em dia, são raros, aliás, raríssimos os lares que servem de oficina digna de trabalho espiritual superior.
- Disseste oficina de trabalho espiritual superior, por quê? Há oficinas inferiores? - perguntou Camila.
- E como! - exclamou Luana. - Devido ao comportamento dos encarnados e tendo em vista seus pensamentos que vibram em escala muito inferior, principalmente, o linguajar usado habitualmente, o trabalho de espíritos inferiores tomam lugar em seus lares, trazendo-lhes incômodos e perturbações de ordem incrivelmente inferior.
Camila, curiosa, solicitou mais detalhes:
- Como assim. Poderia me explicar melhor?
- Muitas pessoas encarnadas tendem a pensamentos, gestos, sentimentos, palavras e atos que vibram em escalas inferiores, por isso elas, seus lares e suas vidas impregnam-se de dolorosos fluidos negativos. Por exemplo: alguém que costuma xingar palavrões vibra em condições tão inferiores e atrai para si espíritos sem cultura e sofredores. Essa pessoa passa a viver e vibrar sempre na ignorância e no sofrimento. Tudo de ruim lhe acontece por culpa de seus próprios pensamentos, palavras e ações. O mesmo acontece com o indivíduo que é agressivo e intolerante. Ele pode até não mencionar palavras de baixo nível moral, porém sua agressividade, sua imponência desnecessária, suas ações brutas e sua intolerância provocam a atração de desencarnados que sintonizam a mesma freqüência, isso a princípio. Depois, com o passar do tempo, outros espíritos, de nível ainda mais inferior vão com certeza se aproximar dele, colocando-o em problemas ou encrencas de que não necessitaria passar em condições normais. Assim esse encarnado acaba sendo um intolerante e agressor em potencial quando lidar com outras pessoas. Ao dirigir ou simplesmente numa brincadeira inofensiva, ele consegue transformar o ato saudável em algo de imenso desagrado, de mau gosto ou extremamente agressivo. A família que possui uma linguagem que vibra em condições inferiores, que adota costumeiramente palavras de baixo valor moral e espiritual, mesmo nos momentos alegres e até por brincadeira ou então tece comentários venenosos sobre a vida alheia, críticas sobre a moral de outro, menciona acontecimentos cruéis e catástrofes desnecessárias, conversa sobre prazeres indecorosos, alonga diálogos sobre tragédias entre outras coisas, atrai para junto de si e para seus lares, espíritos sofredores e extremamente inferiores que gostam de conversas e pensamentos voltados para a malícia ou para a desgraça. Esses encarnados conseguem fazer de suas próprias casas oficina de trabalho para o mal. Na casa onde reside família que cultiva tal moral ou comentários, há, com certeza, espíritos maldosos que costumam atrair para aquele lar problemas, discórdias, brigas e intrigas generalizadas e até tragédias. Para esses lares são levados espíritos sofredores para serem atormentados por entidades perversas. Existem ali, em nível invisível aos encarnados, verdadeiras câmaras de torturas moral e perispiritual.
- Como tortura perispiritual? - perguntou Camila.
- Já que o espírito desencarnado não tem mais o corpo de carne para ser torturado e seu corpo espiritual é denominado perispírito, a tortura é feita no perispírito ou corpo espiritual. Assim sendo, como eu estava falando antes, todos aqueles fluidos de sofrimento, dor, angústia, medo, desequilíbrio emocional, revolta, ódio, nervosismo e tudo o quanto for mais de sentimentos inferiores, começa a ser passado para os encarnados que ali habitam, fazendo com que entrem na mesma freqüência vibratória que os sofredores ou até dos torturadores que ali se encontram. Quantos pais não passam a agredir seus filhos por captarem os pensamentos e os sentimentos desses torturadores? Quantos casais não se agridem por vibrarem nas brigas e intrigas dos desencarnados que cultivam sentimentos inferiores? Quantas pequenas tragédias diárias como ferimentos inesperados, doenças, furtos, roubos e até cansaço excessivo são atraídos por algumas pessoas por vibrarem ou acolherem seus pensamentos nas tragédias alheias? Quantos filhos matam seus próprios pais por ambição ou contrariedade? Quantos pais tiram a vida dos filhos até com o uso de torturas? E o que dizer dos abusos sexuais? Do instinto incontido do sexo?
- Tudo isso, entre muitas outras coisas é atraído para as pessoas e para seus lares por causa de um simples palavrão, por um fio de pensamento de cobiça ou crítica, por um julgamento à vida alheia, por um comentário à moral de outro, por sentimentos de prazeres indecorosos etc. É com uma fagulha que todo incêndio se inicia. Não nos esqueçamos de que "os semelhantes se atraem". Muitas pessoas que praticam esses feitos são religiosas e até rezam com fervor e arrependimento, mas continuam com suas práticas e vícios. De nada essa falsa fé lhes valerá. Se houvesse realmente fé, amor em Deus e a todas as Suas criaturas, como nos diz os principais mandamentos, essas pessoas não usariam, nem em seus pensamentos, palavras de baixo nível moral, planos de ações ou violência e outros sentimentos tão pobres e infelizes. Algumas só sabem pedir perdão e continuam com as mesmas práticas, outras acham que nada acontece por pronunciarem um simples palavrão.
- Nos lares onde operam oficinas do mal, encarnados são levados durante o sono físico para serem perturbados? - tornou Camila curiosa.
- Sem dúvida que sim! Os encarnados que não vigiam, não oram, não possuem sentimentos e comportamentos dignos sempre estão desprovidos de proteção espiritual e se deixam arrastar para tais oficinas durante o sono sem que nada eles possam fazer contra os que os agridem. Onde acha que os pesadelos se formam? Apesar de que muitos encarnados não se lembram de seus sonhos ou pesadelos, mas, quando enlaçados ou envolvidos por espíritos trevosos durante o sono físico, ao acordarem, sentem-se mal, amargurados, não progridem como deveriam em suas tarefas, falam sempre de coisas tristes, tragédias ou expressam esses sentimentos. São pessimistas. Irritam-se com facilidade, brigam ou resmungam à toa. Acreditam que nada dá certo para eles. Reclamam de tudo e, muitas vezes, proferem palavras de baixo nível ou vivem falando em morte ou nos que já desencarnaram. As pessoas normalmente dispensam sua companhia como se elas portassem uma virose infecto-contagiosa.
André Luiz ao observar a conversação proveitosa que se fazia entre Camila e Luana, aproximou-se de ambas e gentilmente pediu:
- Com licença, caras irmãs - disse André -, só para enriquecer a nobre explicação da ilustre Luana, gostaria de acrescentar que devemos, para evitar ligação com os trevosos, quando não for necessário e enquanto não estivermos preparados, praticar dentro de nosso próprio lar pequenos gestos salutares de cortesia. Recriminarmos imediatamente pensamentos indignos sobre qualquer assunto ou pessoa e substituí-los por uma prece no desejo do bem e do amor. Pedir amparo a Deus e a Jesus acima de tudo. Trocar as palavras de baixo nível moral e espiritual por frases dignas de elevação ao ambiente. Para fazer-se entender pelo interlocutor, devemos falar com cautela diante de qualquer opinião contrária a nossa. Diminuir o volume da voz para se fazer entender com calma e bondade acima de tudo. Ouvir sempre as necessidades e as apreciações daqueles com quem se divide o ambiente. Orientar para o amor e para o bem é indispensável. Observar, com paciência, todas as necessidades do lar. Participar e colaborar com as tarefas diárias. Utilizar objetos, lidar com as mobílias e portas com silêncio e carinho aos seus gestos para não incomodar os parentes ou os mais próximos. Nunca gritar para se fazer ouvir, deve-se sim diminuir a distância. Por mais intimidade que se tenha com o interlocutor, pedir licença é fundamental toda vez que necessitar interromper um assunto. Diante de qualquer dificuldade ou acusação, se não souber argumentar com benevolência e amor para explicar-se, deve-se calar em oração, pedindo amparo e orientação a Deus. Toda prece é ouvida. Toda família deve unir-se em conversação salutar e oração bendita ao Pai Celeste. Somente assim um lar deixará de ser contaminado por fluidos de espíritos trevosos e inferiores, tornando-se uma oficina de trabalho espiritual superior e edificante. Trazendo para todos, que nele habitam ou freqüentam, verdadeira elevação espiritual, tranqüilidade verdadeira nas experiências diárias com os entes queridos, prazer singelo em servir, humildade e agradecimento generoso ao ser servido, entre muitos outros especiais gestos fraternos e salutares, exemplos vivos de amor incondicional dentro do próprio lar. Assim sendo, palmilharão todos juntos a evolução espiritual e as apreciações educativas.
André Luiz não poderia ter explicado melhor. Luana sorriu satisfeita e Camila impressionou-se com as belas palavras. Cortês, ele fez um gesto singular como uma reverência. Não esperou por comentários e, pedindo licença, afastou-se das companheiras. Depois de tão nobre aprendizagem, Camila dirigiu-se à cozinha, saciou sua sede e recolheu-se ao aposento que lhe designaram com o coração farto de jubilosos ensinamentos, elucidados por uma entidade tão superior.

12 - A AVAREZA DIFICULTA O DESENCARNE

Na manhã seguinte, Camila assustou-se ao conseguir ver que o número de trabalhadores ali existentes parecia ter dobrado. Chegando à cozinha, verificou que sua tia Dora e seus primos, já iniciavam a primeira refeição enquanto que no plano invisível, os trabalhadores se revezavam a um lugar à mesa para alimentarem-se, porém tudo era realizado de forma harmoniosa. Camila parou e observou.
- Dora, agradavelmente, dialogava com os filhos:
- ...traga a moça aqui para nós conhecermos, Dirceu.
- Nós não, mãe, a senhora. Eu já a conheço - dizia Júlio sorrindo diante do embaraço do irmão.
- Ela é um pouco tímida, mãe -justificava-se Dirceu.
Mesmo assim filho, quero conhecê-la - insistia Dora.
- Sabe o que é - explicava Dirceu sem graça -, o pai dela não a deixa sair sozinha.
- Traga ele também, Dirceu - insistiu Dora. - Nossa casa pode ser humilde, porém temos dignidade e amor, além de educação para recebermos quem quer que seja, filho. Traga o pai, a mãe e quem mais quiser.
Júlio ria, observando o embaraço de Dirceu. O espírito Túlio aproximou-se de Camila e convidou-a gentilmente:
- Vem, senta-te aqui para o desjejum.
Depois de um breve agradecimento a Deus, ela se alimentou.
- O que pretendes fazer hoje, Camila? - perguntou Túlio.
- Não sei, Túlio. Nem imagino. Posso ir para a praça contigo e, talvez, ajudar-te com tua tarefa enquanto não sei o que me reserva o futuro?
- Não. Não pode - respondeu Túlio sempre com sorriso generoso e amigável. - Não irei para a praça hoje. Em meu lugar haverá um substituto que já está acostumado a tarefas semelhantes.
- O que vais fazer?
- Por sugestão do nosso orientador, sairemos agora para visitar alguns amigos em trabalho ativo. Além de observarmos e estudarmos locais e pessoas, se por acaso pudermos ajudar, sem dúvida o faremos. Vê bem... não entendas isso como um privilégio. É o nosso dever verificarmos se outros trabalhadores ativos estão ou não precisando de ajuda, orientarmos irmãos necessitados e instruirmo-nos. Agora vamos.
A visão de Camila parecia estar melhor em nível espiritual. Ela agora conseguia ver com mais perfeição o plano invisível aos encarnados e a alguns desencarnados. Ao saírem dos domínios da residência de Dora, Túlio perguntou:
- Consegues volitar?
- Não sei. Ainda não tentei.
- Pois então tenta.
Diante de inúmeras tentativas e fracassos, Túlio interferiu:
- Outra hora tu tentas. Andemos. É mais garantido e, talvez, mais proveitoso.
- Túlio, por que eu não me lembrei de tudo assim que desencarnei? Por que agredi meu tio Alfredo com palavras ao ser recebida por ele? Qual razão de eu ter-me esquecido de todo aprendizado espiritual antes desta minha última reencarnação? Aprendizado que aconteceu por causa de meu tio Alfredo e minha tia Dora! Por que não consigo sair da crosta e ir para uma colônia? Sabe, apesar de ser bem tratada, sinto-me como uma parasita dependente de todos e com inúmeros limites por causa da minha vibração incompatível ao trabalho e, ao mesmo tempo, não consigo melhorar minhas condições.
- Considere nossa memória um arquivo - exemplificou Túlio com semblante sério. - Acredita que nesse arquivo há inúmeras pastas que guardam infinitos registros, sendo eles as nossas experiências. Quando estamos confinados aos limites do corpo físico, ou melhor, encarnados, a matéria oferece certa dificuldade para abrirmos esse arquivo e buscarmos uma pasta. Se houver algo dentro de nós, superior a nossa vontade e fazendo parte dela, algo poderoso, que damos o nome de fé, durante a nossa experiência física, seguiremos um bom caminho experimentando o trabalho para o bem e o pensamento sempre elevado para as vibrações superiores com as quais afinaremos os nossos sentidos. Ficaremos mais sensíveis às intuições e edificaremos nosso espírito. Do contrário, se titubearmos diante dos mais singelos acontecimentos por falta de fé, sairemos de sincronia, perderemos a harmonia, isto é, cortaremos as ligações com as vibrações superiores. Nossas intuições e inspirações deixarão de ser sensíveis e nosso espírito ficará denso, suscetível e exposto às vibrações inferiores, revelando-nos aos obsessores e zombeteiros de toda sorte. Desprovidos de fé, nós nos transformamos em materialistas, independente de todo preparo que recebemos antes de reencarnarmos. Ao desencarnarmos, com certeza, como espírito estaremos rodeados de todas as impressões ou energias que atraímos para nós quando vivemos na matéria. Se nos faltou fé e cortamos a ligação com o plano superior, desencarnando acreditaremos em tudo o que nos forçamos ou passamos a acreditar em vida. Se quando encarnados nos tornamos materialistas, seremos tão densos quanto a matéria e, com certeza, os objetos ou matéria do plano físico nos apresentará como obstáculo como se vivêssemos encarnados ainda.
- Não me faltou fé - defendeu-se Camila.
- Lembre-se do que nos disse o sábio Anacleto: "Somente a mera adoração a Deus, não significa a edificação do espírito, desencarnado ou encarnado". Tua fé foi abalada sim, ela não foi tão forte ao ponto de acreditares em uma solução para a dificuldade que teu primo Júlio enfrentava. Por exemplo: quando este e toda a família se viram sem provisões e à beira de falir com os estudos do rapaz, tu foste incapaz de tentar ajudar, mesmo...
- Pareceu-me que não havia saída! - interrompeu-o para se defender.
- Mesmo se não houvesse solução e Júlio tivesse de parar com os estudos, qual o prejuízo que estarias tendo? - Camila ficou pensativa e nada respondeu. O espírito Túlio continuou: - Teu trabalho ali com ele era o de amparo moral e espiritual. Além do que, não irias ficar mais pobre do que já eras se colaborasses um pouco mais com o que tinhas.
- Eu já sei que falhei, Túlio. Não precisas lembrar-me a todo o momento.
- E que isso faz parte da minha resposta às tuas perguntas. Pois bem, quando desencarnou, estavas muito ligada ao materialismo e tua fé era pouca, como já exemplifiquei. Tua atitude cortou-te os laços com o plano superior que te apoiava. Mesmo assim os amigos espirituais de considerável evolução não cortaram os laços de amor e amparo após teu desencarne. Ao chegar o devido socorro e as necessárias explicações, no Posto para onde foste socorrida, tu tinhas na mente tudo aquilo em que querias acreditar, tudo o que acreditaste durante a mais recente encarnação. Tu mesma criaste barreiras que te provocaram o fechamento das gavetas do arquivo da memória como se estivesses encarnada. Entendeste?
- Sim - admitiu desalentada. - Se eu não tivesse voltado para a casa de meu pai, eu não teria desencarnado tão nova, não é? Se eu houvesse ficado com Dora e meus primos estaria lá até hoje, não é mesmo?!
Depois de longa pausa, Túlio filosofou:
- A frase "orai e vigiai" é muito abrangente. Se tu oras é porque tens fé e se tu vigias é porque acreditas no visível e no invisível e sempre estarás alerta a todas as ocorrências.
- O que quer dizer?
- Vou exemplificar para que tu entendas melhor: "Alguém que tem fé ora pedindo proteção. Quando desce uma escada, essa pessoa o faz vagarosamente amparando-se no apoio existente e nada acontece a ela. No entanto outra pessoa que também diz ter fé e ora pedindo proteção, ao descer a mesma escada o faz às pressas. Ela cai, pois não quer perder tempo. Quebra-se e sai ferida". Ambas pediram proteção, mas somente a primeira pessoa vigiou.
- Então eu não teria desencarnado se eu não tivesse voltado para a casa de meu pai, não é?
- Não foi isso o que eu disse - afirmou Túlio categórico, mas exibindo bondade.
- Então seja mais claro, por favor.
- Digamos que a primeira pessoa que orou pedindo proteção e amparo e alguém do plano espiritual, vindo em seu auxílio, sussurrou-lhe ao ouvido: "Cuidado com a escada". E a pessoa tomou todos os cuidados porque estava afinada com a vibração do plano superior e tinha fé. Entretanto a outra que também orou pedindo proteção e amparo e alguém do plano espiritual, vindo em seu auxílio, sussurrou-lhe ao ouvido: "Cuidado com a escada". E a pessoa, além de não vigiar como deveria, tomando os devidos cuidados ao que fazia, não estava afinada com a vibração do plano espiritual superior ao ponto de atentar para a intuição recebida. Cabe esclarecer que ela não tinha tanta fé e não vigiou, por isso descuidou-se e caiu.
- Eu sabia - irritou-se Camila. - Não só fiquei desamparada espiritualmente como também desencarnei por culpa daquela religião e do meu pai, com suas imposições que me confundiram e acabaram por me convencer.
- É fácil culparmos os outros pelos erros que cometemos - disse Túlio sabiamente. - Continuando minha exemplificação, tu dizes que há barreiras que a impedem de ir para lugares melhores do que a crosta terrena. Nesse estágio em que te encontras, uma vez que não tens mais laços com o corpo de carne, isso acontece pelo fato de tua mente ter atraído para o teu corpo espiritual uma densa energia que tu mesma proporcionaste através de teus pensamentos cultivados. Resumindo, o tipo de sentimento que hoje cultivas é incompatível à harmonia existente no plano espiritual das colônias ou Postos de Socorro. A opinião que tu tens cega-te o espírito e o coração. Por conseqüência de já seres um espírito instruído, tanto no plano espiritual como no físico, é incabível e inaceitável que alegues ignorância em tua defesa. Não é admissível que tenhas amparo, consolo e negues o entendimento somente por puro capricho ou luxo de te fazeres de ignorante ou vítima sem, na verdade, ocupares tal posição. Se tu fosses acolhida hoje como está, em uma colônia, o plano espiritual superior atrofiaria tua evolução. Não podemos dizer o que tu tens de fazer ou o que deves fazer para conseguir o que desejas. Isso cabe só e unicamente a ti sentir, observar e decidir. Infelizmente estou lamentavelmente cansado de ver espíritas, católicos, protestantes e tantos outros que se achavam grandes religiosos, quando encarnados, estarem hoje na espiritualidade nas mesma condições que ti. - Depois de longo silêncio para que Camila refletisse sobre suas explicações, Túlio indicou: - Vê, é aqui. Chegamos.
Defronte a uma residência de certo porte, pararam. Passando pelo portão e, depois de percorrerem o corredor que dividia o belo jardim, entraram atravessando pela porta sem qualquer dificuldade. Já no centro de uma grande sala de estar, Túlio estendeu a mão para o cumprimento de um amigo do plano espiritual que estava ali a trabalho.
- Querido Salustiano! Como tens passado? - indagou Túlio prazerosamente.
- Graças ao Mestre Jesus e todo o amparo que recebo dos Espíritos Superiores, estou muito bem, uma vez que continuo exercendo o labor abençoado do amparo e da proteção aos nossos irmãos. A oportunidade de tarefa é vida! E vós, Túlio, como estais? Já faz algum tempo que não nos vemos!
- Continuo como guarda da área de lazer infantil. Como sabe, eu amo o trabalho com nossas agitadas e queridas criancinhas que tanto necessitam de proteção. Deixa-me apresentar-te... Esta é Camila.
- Muito prazer! Estais a trabalho com nosso querido Túlio?! Camila sentiu-se sem graça e não soube o que responder.
Diante de seu embaraço, trocando olhares com o amigo, Túlio falou por ela:
- Camila presta-se ao trabalho da observação e do aprendizado edificante. Sempre é bom ter mais conhecimento, pois é isso o que nos torna aptos e capazes! - Voltando-se para ela perguntou alegre: - Não é mesmo?
- Sim. Claro.
- O que temos aqui, caro Salustiano? - tornou Túlio.
- A situação presente é lamentável. Temos à beira do desencarne Benedito, homem já corroído pelos anos e possuidor de inúmeros bens materiais conseguidos após muito trabalho. A esposa Maria desencarnou há cerca de dez anos, encontrando-se em ótimas e elevadas condições no plano espiritual, juntamente com o filho do casal, Juca, que desencarnou algum tempo depois da mãe. Benedito não se deixa levar, ou melhor, desligar-se lentamente do corpo físico. Ele se transtorna, inconformado diante da ambição e avareza da única filha Beta. Muito egoísta, Beta não quer dividir nem mesmo parte da herança com a cunhada, a viúva Adalgisa que teve quatro lindos filhos. Apesar dos bens do velho homem, a nora e os netos ainda passam por muitas necessidades. O neto mais velho está com onze anos e o caçula com quatro anos.
- Adalgisa, como nora, não tem direito à herança do sogro? - quis saber Camila.
- Parece-me que, perante a Lei, Adalgisa não tem direito à herança do sogro. Ela só seria beneficiada se não fosse viúva. Como seu marido Juca desencarnou antes do pai dele, toda a herança é designada aos filhos de Juca e isso só ocorrerá quando esses forem maiores de idade ou se um juiz determinar, mas, como mãe das crianças, ela precisaria entrar com ação na justiça e pagar advogado para tal processo. Resumindo, atualmente Adalgisa nada tem de direito sobre a herança e sabe-se lá o que pode acontecer com a parte das crianças ficando Beta cuidando do inventário. Como Benedito não deixou testamento ou inventário e moribundo não pode fazê-lo, percebe que a filha, arrogante e impiedosa, deixará seus netinhos no desamparo, por isso ele insiste em não deixar a matéria.
- Vamos vê-lo - decidiu Túlio olhando para Salustiano. Chegando ao quarto viram a figura cadavérica do velho que tinha de ficar com as mãos atadas em faixas e estas presas as grades do leito por tanto debater-se. De olhos arregalados, ele parecia assustar-se com qualquer movimento, pois começava a perceber o plano espiritual de forma mais nítida. Aproximando-se dele, Salustiano pediu bondoso:
- Meu caro Benedito, acalma-te. Tu já cumpriste tua parte no plano material. Agora é hora de deixá-lo. Tu tens que seguir tua evolução. Somente assim poderás crescer espiritualmente e até voltares para ajudares os queridos netos.
Benedito, parecendo ouvir Salustiano, agitava a cabeça de um lado para o outro, negando a sugestão.
- Como um senhor com tão grande instrução pôde deixar de fazer um inventário ou testamento? - perguntou Camila.
- Nada é por acaso - respondeu Salustiano pacientemente. - Aconteceu o seguinte: quando gozava de perfeita saúde, Benedito discriminou a nora Adalgisa por ser de cor parda, pobre e não ter instrução. Com o desencarne do filho Juca, Benedito abandonou a pobre moça que contava com pequena e insignificante pensão para cuidar dos quatro filhos. Ela jamais lhe pediu nada. Ele nunca lhe ofereceu qualquer auxílio. Com o passar dos tempos, um acidente vascular cerebral, mais conhecido como derrame cerebral, sucumbiu Benedito ao leito. Sem fala e sem movimento dos membros inferiores, Benedito precisou de auxílio. A filha Beta resolveu estudar em São Paulo e as enfermeiras que ela pagava para cuidar dele o maltratavam muito. Somente a nora Adalgisa pôs-se a banhar-lhe na hora certa, trocar-lhe as fraldas, alimentá-lo com comida apropriada e variada, levá-lo para passeio em cadeira de rodas pelo jardim e ainda se dispunha a ler para ele, mesmo que pausadamente pela falta de instrução e agilidade com a leitura. A nora fez-lhe tudo isso com dedicação e bom ânimo. Os netos, por outro lado, serviam-lhe de distração. Quando Beta soube dos bons tratos, temeu perder sua parte da herança, de alguma forma, para a cunhada. Ela voltou para casa. Dispensou os trabalhos de Adalgisa e confinou o pai ao quarto e aos maus tratos. Benedito desesperou-se, mas nada podia fazer. Teve outro derrame cerebral, o que agravou seu estado físico e condições de qualquer tipo de recuperação. Para piorar a situação, Beta vem superdosando os medicamentos dados a seu pai com o intuito de tirá-lo logo da vida terrena.
- Isso é homicídio! - exclamou Camila.
- Sim, sem dúvida que é - respondeu Túlio em tom comovido. - Com certeza Beta, um dia, terá de prestar contas disso.
- Mandamos chamar Juca, que já está chegando, para ajudar seu pai nessa difícil transição, pois só acontece dessa forma, devido à falta de orientação, fé e aceitação de Benedito - informou Salustiano.
- Nossa! O que será de Adalgisa sem herança e sem muitas condições? - preocupou-se Camila.
- Sem condições materiais, tu dizes. Apesar de não freqüentar nenhum tipo de doutrina, Adalgisa é uma mulher de espírito forte e tem muito amor no coração. Acredita e confia em Deus. Independente de sua situação financeira, ela trata os filhos, que lhe foram cofiados, com imenso carinho, atenção e amor. Ela ora ao Pai Celeste, pede orientação para seus mínimos atos. Por isso Adalgisa sempre tem grande amparo espiritual.
- Ela não odeia a cunhada? - tornou Camila curiosa.
- Não. Nunca maldisse nada sobre Beta. Nem mesmo em pensamento. Ela tem piedade da cunhada e em suas orações pede que o Pai lhe perdoe e que a luz Divina possa tocar a alma e o coração de Beta para que não continue maltratando o próprio pai moribundo - respondeu Salustiano.
- Vê, Camila - explicou Túlio sempre educado e cuidadoso com as palavras -, Adalgisa não tem qualquer religião. Sua religião é o bom pensamento e o bom sentimento. Sua religião é o trabalho para o bem e com amor. Por outro lado, Beta é católica - e, com um leve sorriso, acrescentou - e se diz praticante. Ela despeja verdadeira fortuna na igreja, seja no dízimo ou na contribuição semanal. O ideal seria aprender, entender e praticar os ensinamentos que recebe na igreja só que isso ela não faz. No último domingo, na paróquia que freqüenta, foi dado grande destaque a um dos mandamentos que serviria muito bem para alertá-la a suas falhas, caso ela atentasse a ele. Sabe qual? - Camila ouvia atentamente e pendeu a cabeça negativamente para responder e Túlio prosseguiu: - "Honrai vosso pai e vossa mãe". O vigário da paróquia explicou muito bem esse mandamento. Pareceu-me até que ele leu O Evangelho Segundo o Espiritismo - sorriu Túlio de um modo espirituoso. Depois lembrou: - Em O Evangelho Segundo o Espiritismo, no capítulo XIV em Piedade filial, Kardec nos diz que o mandamento honrai vosso pai e vossa mãe é a afirmação da lei geral de caridade e de amor. Uma vez que não é possível amarmos o próximo se não amarmos nossos pais, porém do termo "honrai" concluímos que temos um dever ainda maior que é o da piedade filial. Kardec nos explica que Deus quer nos ensinar que junto com o amor para com os pais elevemos demonstrar respeito, atenção, dependência e tolerância. Kardec, através do Evangelho, ainda nos fala em Piedade filiai que honrai pai e mãe não é somente o fato de respeitá-los e acompanhá-los em tudo. Do que eles necessitam é, acima de tudo, a garantia do repouso na velhice. Necessitamos regar o ambiente doméstico com amor e paz, sermos benevolentes e cuidadosos ao nos dirigirmos a eles, seja para o que for. Piedade filial não é darmos aos nossos pais tão somente o que eles necessitam para que não morram de fome e depois confiná-los aos aposentos do lar e privá-los da liberdade apenas para não deixá-los viver sem amparo. Piedade filial é, principalmente, envolvê-los com amor e carinho deixando que participem integralmente do cotidiano no lar, reservando a eles as atividades que queiram ou necessitem participar e não esquecendo do tão necessário lazer. Mesmo os pais que não declinaram muito afeto e compreensão para com os filhos, por sua vez e por ocasião da velhice dos pais, esses filhos devem empenhar tanto amor e compreensão quanto possível, não reclamando ou censurando a atenção que vos fora privada. Como nos ensina Kardec: "a Deus é que compete puni-los e não aos filhos. Não compete a eles censurá-los porque talvez haja merecido que aqueles fossem quais se mostram". Beta não ampara o pai como deveria e não divide com a cunhada, tão necessitada, o muito que tem, preferindo auxiliar em construções faraônicas, deixando de garantir o conforto do próximo tão próximo. Todos nós, encarnados ou não, sabemos como é assustadora a fortuna que há no Vaticano, nas basílicas, nas igrejas. Tronos e castiçais de ouro, prata, crivados de diamantes e rubis. Nenhuma lasca dessas jóias é usada pelo catolicismo para acabar com a fome no mundo.
- Mas eles possuem creches e instituições filantrópicas - defendeu Camila.
- Sim, claro que possuem! Mas essas são custeadas pela igreja somente no nome, pois é a população e, geralmente, o trabalhador pobre que, mediante aos pedidos, sustentam financeiramente essas instituições. Quando elas fecham por falta de verba, há ainda uma propaganda de que isso só ocorreu por falta de amor, caridade e egoísmo das pessoas. A igreja nada faz pelos infelizes que lá estão. Raríssimas vezes encontramos um padre que se dispõe realmente ao trabalho ao qual se propôs em juramento. Não estou criticando, somente contando o que já observei. Tu já ouviste dizer que Sua Santidade colocou a leilão sua coroa, cetro ou qualquer outra peça e que a verba arrecadada seria usada para combater a fome no mundo?
Camila balançou a cabeça negativamente e Túlio continuou: - De que servirá a Sua Santidade, o Papa, aquele trono de ouro, seus crucifixos de ouro e prata crivados de rubis e diamantes? De que lhe servirão suas taças e castiçais ourificados e selados de jóias, adornando-os ainda mais? Acredito que inúmeros excêntricos pagariam uma verdadeira fortuna para terem em seu poder tais jóias. Sem mencionar que a grande parte dessa fortuna incalculável foi conseguida através da chamada Guerra Santa, que banhou de sangue, miséria e peste toda a Europa, através de seus impostos e de inquisições que ainda foram chamadas de "santas", massacrando milhares em troca do sustento e da luxúria que se cobriu o Vaticano. Se houvesse algum Papa realmente fiel a Deus e que quisesse ser honesto e defensor dos direitos humanos, essa "santidade" se despojaria de tais jóias conseguidas através de torturas, ludibrio da boa fé e sangue com a finalidade de ajudar a tantos necessitados no mundo inteiro. Se a igreja ainda guarda em seu poder toda essa fortuna, é porque não se envergonha do que fez no passado, muito menos há, em seu seio, o arrependimento e a vontade de mudar. O Vaticano só sabe pedir e pedir. Parece-me que querem ver a Terra vazia de pobres que morrem de fome porque pobre miserável não dá dinheiro à igreja. Eles não querem ver seus palácios e galerias vazios para em troca fartarem a barriguinha dos famintos de pão. O interessante para a igreja são os pobres e ignorantes que trabalham. Em nada o catolicismo difere de outras religiões que só sabem tirar dos que pouco têm para servir a eles próprios, apropriando-se das doações. Utilizam o nome de Jesus Cristo, o Salvador, para acumularem bens terrenos, vivendo na mais alta e luxuosa mordomia. Os papas, bispos, cardeais etc, extraordinariamente subtraem gigantescas fortunas, a olhos vistos, sem nada, absolutamente nada oferecerem para o povo. Roma é um país onde o papa é o presidente. Suas igrejas, espalhadas por toda a face da Terra, são suas embaixadas que só servem para arrecadar os impostos como foi feito na Idade Média. Hoje esses impostos são disfarçados com o nome de óbolos, mas têm a mesma finalidade: serem enviados para o seu presidente. A idolatria e o misticismo inventado pela igreja, ou melhor, pelos homens que a compõe, escraviza o homem encarnado por sua fé cega, trancafiando seu espírito e seu bolso às idéias infundadas de paganças sem limites e sem idealismo. Eles ignoram ou não querem admitir que os espíritos beatificados ou comumente denominados "Santos" são, muitas vezes, verdadeiros escravos perturbados pelos encarnados. Não podem calcular quão imensa tortura é levada ao espírito despreparado que vê inúmeros pedidos e promessas feitos fervorosamente à sua alma. Eles caem em verdadeiros conflitos ou torturas pelos chamados incessantes dos encarnados que lhes gritam socorro sem que eles nada possam fazer. Alguns, menos evoluídos, sentem-se culpados por sua impotência espiritual e se tornam verdadeiros loucos e doentes mentais espirituais, necessitando de longo e rigoroso tratamento no plano espiritual que, muitas vezes, não é obtido com grande resultado devido aos incontroláveis pedidos dos fiéis que se transformam em compulsivos pedintes a pobre e infeliz entidade. Em todas as religiões há muitas criaturas encarnadas que são dependentes da fé. Só sabem pedir sem nada fazer por merecer, preferindo pagar, de alguma forma, para adquirir algo. Além disso, não querem ganhar conhecimento para se orientarem sobre o que estão fazendo e por quê. O encarnado não tem capacidade de orar a Deus, "encará-Lo de frente", reconhecer seus erros, pedir perdão, sustentação, amparo, assumindo não errar mais. Vários encarnados vivem de intermediário na sua fé. O homem comum terceiriza suas orações e seus pedidos como se precisasse de muletas para ter fé. Para tanto, sem buscar instrução a fim de saber o que é realmente certo ou errado, usa o nome de um pobre espírito, chamando-o de santo que muitas vezes possui as mesmas fraquezas que ele para servir de mediador ou intermediário às suas solicitações a Deus. Tudo isso é a introdução do catolicismo que inventou o santo e colocou um homem comum por debaixo de uma batina fazendo-o de divindade ou porta-voz de Deus para enganar os ignorantes. Muitas vezes esses homens, intitulados "ministros de Deus", põem em pânico a espiritualidade, seja ele ordenando sacrifícios e penas aos pobres e modestos que os buscam nos confessionários, seja ele dando o perdão em nome de Deus a um "pecador". Qual condição humana, na face desta Terra, pode dar o poder para alguém se acreditar com o direito de canonizar, beatificar ou dar quaisquer títulos a um espírito que possa vir a recebê-lo? Felizmente, ainda hoje, o Brasil não conta com nenhum santo intitulado pelo Vaticano (1).

(1) Nota da Médium: Este livro foi psicografado em 1997 quando não havia menções consideráveis, mas somente estudos e buscas de provas para a Igreja Católica nomear algum brasileiro como Santo.

- Imensas fortunas são tiradas da população carente para que isso ocorra. Em virtude do Brasil não ser um país em que Roma pode contar com extrema soma de dinheiro para santificarem algum nome, o Vaticano vem adiando tal fato em seus projetos, pois quanto mais um país deseja ter um santo, mais caro isso lhe custará, e o Brasil é um imenso país tanto em território quanto em número de fiéis, por isso haverá de lucrarem mais para fornecerem um título desse a um "espírito brasileiro", como se o espírito tivesse pátria.
Camila ficou assombrada com aquela revelação e sobressaltou-se e perguntou:
- E quando desencarnam, como ficam essas santidades, cardeais etc?
Para o lugar reservado a eles. Ninguém tem privilégios nas moradas do Senhor - respondeu Túlio.
- Para o Umbral?! - exclamou ela ainda surpresa.
- Depende. Alguns para regiões de extremos abismos, outros sem dúvida alguma podem permanecer em estado de perturbação no Umbral sim. Não poderia haver outro lugar para os que ludibriam a boa fé ou usam o nome do Pai Celeste para adquirirem bens terrenos. Isso é independente da religião. Foram mais ou menos com essas palavras que Kardec nos relatou, tão bem, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, no Capítulo XVI, em Não se pode servir a Deus e a mamom: "O homem não deve acumular riquezas para o corpo e sim para a alma como a inteligência, os conhecimentos e as qualidades morais. Tudo isso é o que o homem traz, ganha ou leva consigo durante um reencarne. Essas riquezas ninguém poderá subtrair-lhe, o que lhe será de muito mais utilidade no outro mundo do que neste. Depende dele ser mais rico ao partir do que ao chegar". - O espírito Camila ficou refletindo e Túlio completou: - Não te perturbes, o Umbral deve ser visto como um local para a recuperação. Não o vejamos como um lugar de punição. O que um espírito experimenta no Umbral, pode e deve ser aproveitado como exemplo pelo resto de sua existência e a quem mais possa interessar. Quero ressaltar também que no Umbral não há somente espíritos de outras religiões. Inúmeros sofredores e moradores do Umbral, foram ou se dizem Espíritas - sorriu suavemente ao enfatizar: - Espíritas Kardecistas, quando encarnados, mas se esqueceram de praticar o amor e a benevolência. Não perdoaram, não doaram nada do muito conhecimento que adquiriram. Achegaram-se ou se aproximaram do Espiritismo somente para receber.
- E quanto àquelas doutrinas místicas que pregam paz e amor em suas filosofias? - perguntou Camila.
- A doutrina não prega nada de errado, porém parece-me falha quando se omite na pregação de praticar o bem. Muitas filosofias ensinam pensar em cores, massagear o corpo com a mente, levitar o espírito, viagem astral, entre várias outras coisas. Isso pode ser válido para aquela pessoa naquele estágio evolutivo. Entretanto se esquecem ou pouco falam na prática do bem, no amor fraterno incondicional, no perdão das ofensas... Tudo o que Jesus nos ensinou.
- Além disso - completou Camila -, essas religiões não falam ou não admitem a reencarnação, não é mesmo?
- Nem todas. Vê bem... não admitir a reencarnação pode ser falta de atenção, fé cega ou coisa de quem não quer se preocupar com as responsabilidades futuras que terão de enfrentar. Eu acredito que toda doutrina religiosa acredita e confirma os atributos de Deus, ou seja, as qualidades de Deus dentro do entendimento máximo do homem. A maioria crê, e estamos de acordo, que Deus é Eterno, Imaterial, Imutável, Único, Justo, Bom e, acima de tudo, Todo Poderoso. Acreditando ou simpatizando com esses atributos, seria cabível que Deus desse pernas e braços para um e fizesse de um outro um aleijão? Seria possível que Deus, por puro capricho, desejasse que um de seus filhos fosse muito rico e outro um miserável faminto? Se um homem comum e responsável é capaz de ser justo ao ponto de dividir uma fatia de pão no número de filhos que possui, por que Deus, que consideramos bom e justo, faria diferente ou seria injusto para com seus filhos? Aí voltamos ao ponto de partida: Deus é justo e todos temos o que merecemos. Sei que muitos questionam por que os miseráveis ou aleijados nascem assim, o que fizeram para serem dessa forma ou estarem nessa situação. Teriam eles cometido tão terríveis pecados dentro do ventre materno? Ou está ele pagando pelo pecado dos pais? Respondendo a uma das perguntas, eu afirmo que nenhum pecado pode ser praticado por um feto e respondendo à outra, prefiro usar as palavras de Jesus que nos disse: "Nenhum filho pagará pela culpa dos pais". Mas se a criatura nasceu assim, só se tem por alternativa acreditar em algo que ela tenha feito de errado antes daquela vida. Retomemos, então, a fé no Espiritismo, no mundo dos espíritos e nas reencarnações para corrigirmos ou aprendermos mais uma vez. São nos ensinamentos da Codificação Espírita que entendemos não haver privilegiados ou injustiçados, mas sim muita caridade e perdão a ser praticado por todos nós.

13 - DR. JÚLIO E SEU GRANDE ENSINAMENTO

Depois da longa explicação, Túlio passou a auxiliar Salustiano com passes magnéticos a Benedito. Algum tempo passou e Juca, filho desencarnado de Benedito, chegou àquele quarto acompanhado por uma equipe de enfermeiros espirituais. O espírito Juca penalizou-se ao ver a triste situação de seu pai que se recusava a deixar o corpo e muito sofria. Depois de cumprimentar a todos, ele aproximou-se do leito e disse:
- Vim visitar-te, meu pai.
Benedito esbugalhou os olhos e agitou-se como que querendo falar. Sua aflição era imensa. Pôde ouvir seu filho nitidamente e viu-o parcialmente através dos olhos da alma quase cegos ao plano material. Juca, bondoso e amável, continuou:
- Tranqüiliza-te meu pai, não tentes reagir contra a força da natureza que sempre constrói sobre as transformações que, por vezes, se fazem necessária. Se tu te agitas, temendo a situação de Adalgisa com meus queridos filhos, saiba que ela e os pequeninos estarão amparados e felizes. Isso é o que mais nos importa.
Neste instante, Beta entrou no quarto. Certificando-se de que a enfermeira estava longe e não poderia ouvi-la e acreditando estar sozinha no plano material e espiritual, a filha disse asperamente ao pai moribundo:
- Vê se morres logo, desgraçado! Não achas que já me deu trabalho e preocupação demais, além dos gastos?!
Benedito agitou-se ainda mais e Juca tornou-lhe amável:
- Não te importes com isso, meu velho. Toda essa angústia é passageira e descobrirás, em breve, que todo esse sofrimento é falso. Pensa em Jesus, o Consolador, e estarás amparado em Deus. Vê, estou aqui, nada se acaba depois que cruzamos a fronteira desta vida. Estou perfeito, calmo, procurando tranqüilizar-te... Sabe, sou trabalhador operoso no plano espiritual. Isso tudo se dá por que eu creio em Jesus e procuro seguir Seus ensinamentos. Essa paz que eu sinto e procuro transmitir, todos que a desejarem e seguirem os ensinamentos do Mestre poderão tê-la e distribuí-la.
Benedito parecia ter começado a aceitar a idéia. Neste momento Beta saía do quarto. Ela não suportava o odor que havia ali. Os enfermeiros do plano espiritual, contando com o auxílio de Túlio e Salustiano, aplicavam passes ao velho Benedito, que agora parecia bem mais tranqüilo, enquanto Juca ainda conversava com ele:
- Vê só, quanto mais calmo tu ficas, mais suave tua dor é. Em breve todo sofrimento vai acabar. Deixa-te envolver por toda essa energia calmante. Ela está te penetrando na alma e te faz bem ao coração. Pensa em Jesus. Pensa que aqui deste lado, tudo vai mudar e terás uma consciência diferente da de outrora. Vem, meu pai, vem.
Fechando os olhos, Benedito entregou-se àquela paz que sentia cada vez mais forte e, num último suspiro, deixou o corpo. Rapidamente os enfermeiros do plano espiritual o desligaram da matéria e o envolveram, levando-o para o devido socorro. Após agradecer Salustiano, Túlio e Camila, Juca seguiu atrás. Somente depois de uma hora a enfermeira contratada entrou no quarto. Constatando a morte de Benedito, foi informar a Beta que mascarou, com dor e sofrimento, o grande alívio experimentado. Túlio, voltando-se para Camila, perguntou:
- Vamos?
- Para onde?
- Temos mais trabalhadores amigos a visitar. Veremos como eles estão passando, observaremos a experiência dos que acompanham e auxiliar se possível, além de aprender.
Despediram-se de Salustiano que também, após um devido repouso, iria ao auxílio do desencarne de outro moribundo, pois era esse seu trabalho. Depois de voltarem para a casa de Dora e refazerem-se rapidamente num breve descanso, Túlio comentou para Camila:
- Tenho informações de um caso dramático e até... - parou por segundos, em seguida argumentou: - E até lamentavelmente interessante, por se tratar de uma mulher estudiosa da Doutrina Espírita. Vamos, precisamos tentar ajudar.
Sem demora, Túlio seguiu com sua acompanhante até uma simples e humilde residência onde uma mulher discutia com seu marido. Uma equipe de socorristas, no plano espiritual, fazia-se presente, tentando, de todas as maneiras, acalmar os ânimos de ambos. Depois de rápido cumprimento ao encarregado do grupo espiritual, que não poderia se distrair, Túlio voltou-se para Camila e explicou:
- Esta mulher chama-se Sissa, é freqüentadora assídua de um Centro Espírita. Julga-se espírita. Sempre que pode, faz caridade, amparo, orientação e é tarefeira no Centro. Seu esposo, Noel, não freqüenta o Centro Espírita devido à incompatibilidade de horário, mas pratica junto com ela O Evangelho no Lar e procura seguir tudo o que de melhor aprende nele. O casal já tem dois filhos e Sissa está grávida. A gestação é de pouco tempo. Só que ela não quer o filho. Acredita que a vida já está muito difícil com dois e se colocarem mais um no mundo, eles não conseguirão sustentá-lo. Ela quer praticar o aborto. Tenta por todos os meios convencer o marido de que com até quatro meses de gestação não há vida no embrião e assim o aborto não será um crime. O marido, por outro lado, não concorda. Pensa que será difícil criarem mais um filho, mas acha que eles vão conseguir. Ele acredita que o aborto é um crime abominável independente do tempo de gestação, e o é! A equipe de socorristas tenta ampará-la e convencê-la a deixar a criança a vir ao mundo, porém está sendo difícil.
- Nossa! - espantou-se Camila. - Uma mulher com conhecimento Cristão tentando matar o próprio filho indefeso.
- Para tu veres - disse Túlio lamentando. - Ela diz ser espírita. Já leu inúmeros livros... O Evangelho Segundo o Espiritismo, tem grande entendimento da doutrina e, mesmo assim, quer praticar o abominável ato. Vê só o bebê.
Túlio sobrepôs a destra na nuca de Camila, passando-lhe energias para facilitar-lhe a visão. Camila viu, agarrada a Sissa, uma criança em posição fetal que parecia entender a situação e por isso tremia com medo de sua própria mãezinha que, aos berros, falava ao marido:
- Não és tu quem vai sentir dores! Passar mal! Virar noites em claro! Lavar, passar, cozinhar e ainda cuidar de teus meninos! Estou cansada!!! Eu não quero!!!
Noel, envolvido pelos socorristas espirituais, que não podia ver, passou a falar calmamente:
- Eu cuido. Se teu problema é esse, deixa meu filho nascer que eu cuido dele. Pedirei ajuda à minha mãe. Quanto a ti, se não mudares de idéia depois do bebê nascer, podes ir embora.
Sissa revoltou-se. Seus pensamentos eram tenebrosos.
- Esse infeliz! - pensava ela. - Se nasce, estraga-me a vida! Se for abortado rouba-me a felicidade.
Os socorristas aplicavam-lhe passes, que não surtiam efeitos devido aos seus terríveis pensamentos. Enquanto o bebê, um espírito, encolhia-se assustado, temeroso de grandes sofrimentos físicos pelo aborto. Voltando-se para o marido, ela resolveu:
- Sairei agora, preciso pensar.
- Que horror! - exclamou Camila. - Como uma mãe pode pensar assim? Esse ser não pode perder a oportunidade de seu reencarne somente por causa da vontade dela de não ter mais filhos.
- Não é só a oportunidade bendita do reencarne, Camila - completou Túlio triste e sabiamente -, há terríveis ocorrências por traz disso tudo. O espírito de um abortado sofre não só com o trauma da rejeição mas também sente por muito tempo todas as dores ou as queimaduras químicas provocadas em seu corpo pelos medicamentos ou pelas mutilações que lhe foram feitas decorrentes do seu esquartejamento. Esses espíritos abortados sentem a dor de cada pedacinho de seu corpinho que está sendo arrancado. Sofrem indescritivelmente quando a pele e todos os órgãos internos são destruídos por medicamentos químicos ou mesmo ervas e chás que lhes provocam dolorosos ressecamentos cutâneos como queimaduras que lhes descarnam ou desintegram todo o corpinho físico. Toda essa dor e imenso sofrimento são passados para seu corpo espiritual ou perispírito. Mesmo depois de terem seus corpos físicos violentamente descarnados, picados ou queimados, essas pobres criaturas continuam sentindo toda essa dor e sofrimento e grande angústia no plano espiritual.
- Pobres coitados - lamentou Camila quase chorando.
- Hoje, existem colônias especializadas para o difícil e longo tratamento dessas criaturas que têm seus corpos físicos violentados e sacrificados por suas próprias mães. Esses espíritos chegam lá em condições tão lastimáveis que é difícil e doloroso descrever.
- Essas colônias não são muito comuns? - perguntou Camila.
- São colônias especialmente preparadas para receber espíritos que se prepararam para o reencarne e que, por serem rejeitados por seus pais, principalmente pela mãe, foram friamente assassinados em abortos. Inúmeras mulheres expõem-se a um carniceiro, muitas vezes esse é até um profissional denominado médico que jurou salvar vidas e que pela ganância material, hoje, mutila criaturas vivas e indefesas em troca de dinheiro. Essas mulheres colocam-se sobre uma mesa à disposição para que esquartejem, dentro delas, uma criaturinha viva, indefesa, que nada lhe fez de mal e que, muitas vezes, implora-lhe a vida. Sem o menor remorso, sem o menor senso crítico e julgando-se donas de seus próprios corpos, elas apresentam como justificativas o direito de fazerem dele o que bem querem. Não admitem que seus corpos lhes foram emprestados para que cumprissem seus destinos. Ninguém pode prejudicar ou lesar sua matéria física por motivos vis. Menos ainda lesar, junto com seu corpo, o corpo de uma criaturinha que, porventura, esteja se formando dentro dela. Um dia pagarão muito caro o preço desse "direito de dizerem que são donas de seus próprios corpos" acreditando poderem realizar o que desejam deles, esquecendo-se que o corpo físico que usamos pertence a Deus e foi por acréscimo de Sua infinita misericórdia nos emprestado para harmonizarmos nossos erros. Enquanto estamos encarnados, não somos donos de nada. As pessoas ainda não perceberam que quando desencarnam deixam a Terra, ou melhor, saem do plano físico exatamente como entraram: sem absolutamente nada. O que levamos das encarnações são os méritos pelos atos de bondade e caridade praticados, é a nobreza pelos feitos de boa moral, é a sabedoria de como agir diante de qualquer situação difícil.
- Esses abortados sofrem muito? - tornou Camila.
- Como não?! - confirmou Túlio. - Como acabei de te explicar, os infelizes penam mais que condenados. O aborto lesa-lhe o corpinho, no plano físico, o corpo espiritual e a mente. Nas clínicas abortivas, casas de parteiras que prestam esse tipo de crime, há equipes de socorristas espirituais que são especialistas no socorro dos espíritos ali assassinados. Esses socorristas ficam de prontidão para envolver, com o máximo de amor, os pobrezinhos abortados logo no ato de seu desencarne para ampará-los e tentar diminuir-lhes as dores, as angústias.
Camila, parecendo incrédula, ficou pensando como seria o sofrimento de tais espíritos. Enquanto isso o espírito Túlio permaneceu por alguns segundos num estado semelhante ao introspectivo, mas de súbito, chamou às pressas sua acompanhante:
- Vamos, Camila. Temos de ir à casa de tua tia Dora.
Ao chegarem observaram que Sissa encontrava-se na cozinha de Dora aguardando por Júlio. Notaram, junto à gestante encarnada, vários socorristas tentando fazê-la mudar de idéia. Júlio, um tanto assonorentado, pois estava dormindo porque iria trabalhar no plantão daquela noite, levantou atordoado quando a mãe o acordou dizendo que Sissa, companheira do mesmo Centro Espírita freqüentado por eles, o aguardava para falar-lhe de um assunto urgente. Paciente, Júlio caminhou até a cozinha e, ao deparar-se com Sissa, sensibilizou-se ao vê-la chorando.
- Como tens passado, dona Sissa? - diante do silêncio, ele quis saber: - O que houve?! O que te trazes aqui?! - perguntou Júlio muito preocupado com a mulher que chorava compulsivamente.
Depois de enxugar as lágrimas e se recompor um pouco, ela desfechou:
- Sei que o senhor me entenderá, doutor Júlio, e sei que somente o senhor poderá me ajudar. Sou uma mulher pobre. Meu marido ganha mal. Sou cristã e tarefeira no Centro que o senhor e tua família também trabalham na divulgação e orientação da Doutrina Espírita. Já tenho dois filhos e espero por mais um... só que não tenho o mínimo de condições para ampará-lo. Eu e meu marido não poderemos arcar com três crianças. É muito para nós!
Atarantado, ainda pelo sono, Júlio perguntou:
- Não entendo. O que a senhora deseja de mim? Se precisares de algum tratamento durante a gravidez, com o pré-natal ou mesmo com o parto, é claro que poderei te ajudar, sem dúvida. Quanto ao pré-natal, ficarei orgulhoso se me deixares acompanhar-te - afirmou sinceramente contente. - Até se precisares de medicamentos, eu providenciarei...
- Não! - ela, bem nervosa, interrompeu-o. - Não é isso! É que... Vê, estou de pouco tempo e como sei que não há vida no feto, eu queria...
- Não há vida no quê?! - perguntou Júlio, incrédulo, ao começar a entender as intenções da mulher. Antes de ela responder, ele explicou bem firme: - Se a senhora fosse realmente Espírita ou no mínimo Cristã, não estaria dizendo tamanho absurdo! Só espero que não estejas aqui me pedindo para que te faça o aborto.
- Eu não quero ter esse filho, por favor, ajude-me!
Júlio ficou indignado. Suspirando fundo, passou as mãos pelos cabelos e, depois de breve pausa, calmamente argumentou:
- Dona Sissa, creio que a senhora não mediu as conseqüências de teu pedido. Aliás, para mim isso não é um pedido, é uma ofensa. Sinto-me violentado. Agora quero que te acalmes. Pedirei à minha mãe que te faça um chá e...
- Não! - interrompeu o novamente. - Espere! Estou decidida. Quero tirar!
- Como espírita e como médico te garanto que há vida em um óvulo, que há vida em um esperma e que ambos, óvulo e esperma, são especialmente escolhidos pelo plano espiritual Superior segundos antes da concepção. E uma tarefa minuciosa e delicada com a finalidade de a criancinha que se formar através dessa união tenha toda a carga genética necessária e meritória para o reencarne a ser realizado.
- Mantendo-se bem calmo e esclarecedor, Júlio continuou: Garanto-te ainda que no instante da concepção o espírito é ligado àquela célula que começa a se transformar e se dividir, formando órgãos e sistemas vitais a ele. É uma engenharia maravilhosa o nascimento de um corpo humano. E qualquer instante em que for interrompida a multiplicação da célula, o desenvolvimento ou o crescimento de um embrião ou feto é um assassinato que está sendo cometido, independente do meio utilizado para essa finalidade.
Para a surpresa do médico, a mulher começou a chorar. Mas não desistia da idéia. Apiedado, Júlio indagou:
- O que te disse o senhor Noel?
- Não me importa o que Noel pensa - respondeu abrupta -, eu não quero mais ter filhos! Estou cansada de trocar fraldas! Fazer mamadeiras! Ficar noites em claro e passar necessidades!
- Sabe que há inúmeras mulheres estéreis que amariam tais tarefas.
- Isso porque elas não as têm! - irritou-se Sissa.
- Tenha o bebê, dona Sissa - pediu com modos piedosos.
- Deixa-o vir ao mundo. Se depois disso ainda não o quiseres, doa-o para alguém... - Júlio falava calmamente. Mas, de súbito, de sua boca saiu um pedido inesperado que o surpreendeu. Mesmo assim, sustentou-o firme: - Isso! Doa teu filho! Dá-o para mim! Tenho certeza de que eu e minha mãe daremos conta. Talvez, até em pouco tempo, a senhora mude de idéia e vai querê-lo perto e o amará tanto quanto ama os outros. Porém, se necessitares deixá-lo comigo para sempre, terei imenso prazer em prestar-lhe todos os cuidados como um pai! Darei tudo o que ele necessitar. Posso te garantir! Sissa olhou-o incrédula e respondeu:
- Ficaste maluco?!
- Não. Não estou maluco, não. A senhora ama os teus outros dois filhos?
- Sim, sem dúvida que sim.
- Desejarias que um deles morresse?
- Lógico que não!
- Então, Dona Sissa, querer fazer um aborto é o mesmo que assassinar um dos outros filhos que já possuis. Pensa nisso! Acredito que a senhora jamais te apoderaria de uma faca ou um cutelo para esquartejar um de teus outros filhos, não é mesmo?! Pois o aborto é isso! O aborto é o mesmo que esquartejar um indefeso, sem dó ou piedade. Tenha teu filho e traze-o para mim. Eu o quero - desfechou, olhando-a firme e convicto, esperando uma reação.
Sissa levantou-se sem dizer nada e foi embora. Júlio seguiu-a até a porta e ainda pediu quase gritando:
- Por favor! Por amor a Deus! Pensa em tudo o que te falei. A mulher nem mesmo olhou para trás. Na espiritualidade,
acompanhando tudo o que acontecia, Túlio, satisfeito com a atitude do médico, virou-se para Camila e perguntou:
- Observaste a nobre postura de teu primo Júlio quanto aos seus princípios e conceitos espirituais, morais e Profissionais?
Camila acenou a cabeça positivamente sem dizer nada. Foi então que Túlio argumentou: - Creio que não há necessidade de qualquer comentário diante de tamanha demonstração sincera de fé e evolução de Júlio. Descansemos por hoje. Amanhã nós voltaremos a novos trabalhos, estudos e observações.
Apesar de todo seu conhecimento espírita, e depois de do o que Júlio dissera, Sissa ainda desejava matar seu filho esquartejando-o através do aborto. Tentava justificar por não ter condições financeiras razoáveis para cuidar dele. Enquanto isso, hoje, na Somália, Etiópia, nordeste brasileiro e em tantos outros países, por piores que sejam as condições desses povos tão sofridos, por mais que sejam miseráveis suas situações, eles ainda dão oportunidade de vida aos seus filhos, criaturas de Deus tão necessitadas, para naquelas circunstâncias, ainda tão subumanas, poderem evoluir e instruir-se diante da tão difícil condição de encarnado. Independente da vontade do ser humano, alguns de nossos irmãos têm de passar por situações muito tristes para repararem seus erros do passado e aprenderem com a dolorosa experiência. E para harmonização e equilíbrio das Leis de Deus, os outros irmãos, nas condições de criaturas humanas mais privilegiadas espiritualmente ou materialmente, têm a abençoada oportunidade de auxiliar, de várias formas, os tão carentes e necessitados. Não encarando a sua contribuição como esmola, mas com a consciência de harmonizar suavemente o que possa ter como débito passado.

14 - LEGIÃO DE JUSTICEIROS

Na manhã seguinte, Camila e Túlio saíram bem cedo. Ele pretendia levá-la a uma igreja evangélica. Porém companheiros espirituais chamaram-lhes a atenção para outros fatos que mereciam observações e serviriam de estudo para ela.
- Camila - propôs Túlio, como dedicado instrutor -, vamos a um Centro Espírita em outro bairro um tanto distante. Para isso, temos de nos apressar. Já consegues volitar?
Ao vê-la levantar-se do chão um tanto desgovernada, Túlio riu com gosto, sem qualquer maldade, explicando-lhe que todo início normalmente era daquele jeito mesmo. Para ajudá-la, ele despendeu suas próprias energias e começou a puxá-la, segurando-a delicadamente pela mão. Volitando sobre a cidade, Camila observava inúmeros desencarnados que se arrastavam como bichos ou até pior. Muitos estavam descarnados, fétidos e monstruosamente deformados. Não se assemelhavam a criaturas que um dia reencarnaram como seres humanos. Outros espíritos pareciam moribundos com aspecto terrivelmente doentio. Ela ficou assustada, principalmente ao ver certas formações espirituais como gangues ou falanges. Túlio, com sua típica serenidade, explicou:
- Vê só, Camila, aqueles grupos se formam ou se juntam, várias vezes por um ideal ou por compatibilidade de idéias. Essas legiões de espíritos são imensamente errantes. O mais incrível é que muitos deles agem em nome de Deus. Dizem-se justiceiros. Oram, acreditam em Deus, temem-nO, mas não compreendem o perdão nem o praticam. Olha, aquela legião. Anda como se estivesse em marcha militar. Estão indo em direção àquele espírito ali que acabou de acordar no plano espiritual.
Nesse momento eles pararam e passaram a observar a ocorrência.
- Vê. É o espírito de um homem que em vida foi um político de muita fama, só que usurpou o quanto pôde dos cofres públicos, deixando os pobres e carentes mais miseráveis do que já eram. Desviou verbas destinadas aos hospitais e creches do governo, deixando doentes e órfãos desamparados e, literalmente, morrendo à míngua. Encarnado, esse homem praticava o Budismo, uma religião oriental da qual nada entendia devido ao idioma estrangeiro e aos chamados mantras que não tinham qualquer significado para ele. Não modificou o seu interior, fazendo-o refletir na prática da honestidade, da caridade, do amor, do perdão, da modéstia. Esse espírito era dependente de ficar em locais silenciosos, aromatizados para se sentir bem e sem o estresse que acreditava ter. Não se tornou um trabalhador ativo após tantas meditações. Ele precisava saber que no Umbral não há silêncio, aromas agradáveis ou flores. O verdadeiro bem-estar está no trabalho venturoso do progresso dos nossos queridos irmãos em face de suas necessidades. Se nos mantivermos como tarefeiros no progresso de outros, não haverá tempo para nos sentirmos mal física, espiritual ou mentalmente, pois, junto com a tarefa benéfica e edificante que fazemos, virão os amigos invisíveis que nos darão o amparo espiritual de que necessitamos. Esse espírito, quando encarnado, gozou de imensa riqueza e saúde. Acumulou incontáveis bens que agora de nada lhe servirão, pois aqui, no plano espiritual, não usamos dinheiro, só possuímos e exibimos a fé e a boa conduta moral. As maiores riquezas a se acumular é o amor incondicional e a sabedoria para a elevação moral. E com essa finalidade que reencarnamos e são com essas conquistas que vamos embora.
Túlio calou-se. Naquele momento vários espíritos, que faziam parte de uma legião de justiceiros, aproximaram-se, com gestos agressivos e palavreado baixo, do pobre espírito que em vida fora um político tão poderoso e que agora estava imensamente indefeso.
- O que é isso?! O que querem?! - perguntou ele que ainda não se dera conta do desencarne. - Chamarei meus seguranças, ou melhor, chamarei o exército! Não se aproximem! Não se aproximem!
- Somos justiceiros. Representamos os velhos que morreram à míngua por tua causa, as crianças pobres e flageladas que sucumbem por tua culpa, os pais de famílias que recebem miséria porque tu roubaste para ti o pagamento deles para enriqueceres ainda mais - vociferava um dos espíritos que parecia ser o chefe do bando.
Enquanto o espírito, que parecia ser o chefe do grupo, esbravejava, as cenas da pobreza, da miséria, de doentes agonizando e morrendo de doenças ou fome começaram a aparecer na tela mental daquele que fora um grande e conceituado político quando encarnado. Imagens horríveis principiavam a se formar como se os prejudicados cobrassem constantemente tudo o que lhes roubaram. Aquilo era só o início. Em breve, pesadelos tenebrosos iriam se fazer de modo a dominar inteiramente as idéias desse espírito totalmente despreparado para a vida no mundo real. Passou a gritar por socorro assim que o remorso começou a corroer-lhe os pensamentos, porém de nada adiantava. Todo o grupo de desencarnados, munido de madeiras, paus com aspecto de clavas e pedras que plasmaram, pôs-se a agredir aquele espírito. E, apesar do ataque hostil e da pancadaria, eles usavam o nome de Deus para justificarem tal babaria.
- Nós, em nome de Deus, vamos punir-te!
Nesse instante, principiaram a atacar o infeliz com pauladas e pedradas enquanto vociferavam tudo o que ele fizera de errado na posição política e social que ocupou.
Nesse momento, Camila apavorou-se:
- Vamos embora, Túlio! Estou com medo!
- Acalma-te. Eles não nos podem ver - falou bondoso, entendendo sua aflição. - Nós nos encontramos em outra freqüência vibratória e, como espíritos menos densos, não poderemos ser vistos por eles, a não ser que queiramos.
- Não podemos ajudar aquele homem?
- Não podemos interferir. Para isso há trabalhadores especializados que não somos nós. Vão auxiliá-lo no momento certo, se ele permitir, e conforme suas necessidades. Agora vamos.
Volitando por mais algum tempo, chegaram ao local destinado. Era uma casa simples, que servia de encontro para a edificação do Evangelho no plano físico e espiritual, além de possuir uma pequena creche para crianças órfãs. O dirigente era um homem instruído e de certa idade. A esposa e as filhas o auxiliavam com o trabalho e com as crianças.
- Ficaremos por aqui pouco tempo, porém quero que preste atenção em tudo o que vou te contar. O senhor Aprígio é dirigente deste Centro há anos. Com a ajuda da família, de amigos do plano físico e espiritual ele montou essa pequena instituição para proteger a órfãos que hoje somam cerca de doze crianças. Através de donativos e voluntários, os pequeninos são bem amparados. Há cerca de um ano, os amigos espirituais avisaram-me de que Aprígio vem agindo estranhamente. Ele está deixando que maus pensamentos invadam sua mente e corroam seu espírito, que agora se encontra enfraquecido por sua própria culpa. Sua tarefa, como encarnado, era o ilustre trabalho de doutrina no Espiritismo evangélico com a prática da caridade e do amor fraterno incondicional. A esposa, junto com as filhas, estariam sempre prontas para o digníssimo auxílio. No planejamento reencarnatório, achava-se tudo combinado. Aprígio reencarnou e para facilitar-lhe a missão, isso se deu em família espírita, cujo pai, também dirigente, simplificou-lhe muito o trabalho. Encontrou Francisca com quem se casou. Teve as quatro meninas e, como previsto, elas sempre o vêm apoiando. Tudo estava perfeito e dentro do previsto. Todos cuidavam bem de suas tarefas no Centro. Formaram a pequena instituição, que abriga as criancinhas órfãs, sustentadas por eles e por donativos de nobres espíritos encarnados que se propuseram a auxiliados. E assim o fazem ativamente. Há mais ou menos um ano, Aprígio acredita ser "líder" do Centro, do grupo de crianças que auxilia entre outras coisas. Até poderíamos dizer que se intitula "dono da verdade". Tudo o que os nobres companheiros e auxiliadores fazem, incluindo a abnegada esposa Francisca e as amadas filhas, sempre parece pouco para ele. Contaram-me que certo dia dona Mariquinha, ilustre tarefeira que se prestava aos mais simples e honrosos trabalhos, faltou em uma seção de tratamento na qual ela auxiliava na aplicação de passes magnéticos aos necessitados. Aprígio ruminou, em pensamento, histórias mil. Criticou a pobre senhora. Zangou-se por ela não cumprir com o dever, entre outras coisas. Porém ele não foi à procura de dona Mariquinha para saber o que lhe havia acontecido. Nos dias que se sucederam, dona Mariquinha não se apresentou para as demais tarefas às quais se propunha. Além de auxiliar nos passes, ela cuidava da limpeza e da conservação do Centro e, duas vezes por semana, realizava toda a faxina da creche.
Em uma das vezes em que conversava com a esposa, Aprígio criticou dizendo: "Deixa a Mariquinha. Um dia ela também será abandonada e largada à míngua, assim como nos largou sem dar a mínima satisfação". Por sua vez, Francisca o alertava dizendo que não falasse dessa forma. Ninguém sabia o que ocorrera com Mariquinha. Ela mesma não teve tempo diante de tantos trabalhos na verdade, nem o próprio Aprígio fora procurar notícias da mulher. Mas Aprígio não continha seus pensamentos nem suas palavras e, às vezes, chegava a dizer horrores do tipo: "Mariquinha não tem idéia do transtorno que nos provocou deixando para nós todo o serviço que fazia. Porém ela não perde por esperar! O Umbral a aguarda! Ela fará faxina na casa dos sofredores por muito tempo!". Após alguns meses, em uma seção de comunicação, uma entidade de considerável elevação se apresentou pedindo a palavra. Era um espírito respeitável que já havia se pronunciado anteriormente. Voltando-se para Aprígio disse: "Cala tuas críticas e teus pensamentos sobre todas as coisas que vês ou sabes através dos sentidos humanos. Mariquinha, hoje, trabalha mais do que todos os médiuns encarnados deste Centro nas seções de passes aqui realizadas. Desencarnada, auxilia os passistas e ainda cuida de toda a faxina espiritual que precisa ser feita porque teus pensamentos e sentimentos vêm sujando imensamente esta casa de oração. E para que o trabalho espiritual possa ser digno, ela limpa e prepara o ambiente. Em uma coisa tens razão: Mariquinha está fazendo faxina na casa de um sofredor e esse és tu, Aprígio".
- Ele, segundo me contaram, revoltou-se.
- Outros avisos vieram, porém não deu atenção. Vive exigindo muito dos médiuns para que haja mais mensagens do plano espiritual aos freqüentadores interessados, como se esses médiuns servidores pudessem ser ligados e desligados com o plano espiritual. E, uma vez ligados, pudessem sintonizar qualquer nível espiritual, além de transmitirem na integra tudo o que se passa nele. Em seu dia-a-dia, Aprígio não usa o bom senso nem os ensinamentos que vive no Centro. Sendo dono de um pequeno mercado, onde tem seis funcionários, ele constantemente ameaça-os com pressões psicológicas dizendo que os negócios não estão muito bons, que terá, a qualquer hora, de dispensar alguém. Tudo isso só para que os empregados trabalhem corretamente dando o máximo de si, não faltem ou reclamem do salário. Esses funcionários vivem pressionados injustamente. Isso é desumano. Outro dia, em uma conversa com um amigo, ele disse que iria mandar embora três dos seus empregados, pois o serviço ali existente tem condições de ser feito por três ou, no máximo, quatro empregados, e que é burrice pagar funcionários a mais. Aqueles que continuarem no mercado e não derem conta do trabalho atribuído, também serão dispensados. Ainda acrescentou que funcionário novo é bom porque nunca reclama do que lhe dão para fazer. Vê só, Camila. Esses pensamentos são corretos para alguém que se diz espírita? Os funcionários são pais e mães de família e, se até hoje houve condições de empregá-los e pagar-lhes obtendo lucros satisfatórios para Aprígio, por que agora seria necessário dispensá-los?
- E agora, o que há para ser feito?
- Estamos chamando-o debalde para os ensinamentos edificantes do Evangelho de Jesus. Porém, até agora, não obtivemos respostas.
- Ele parece tão calmo, compreensivo.
- Somente aparências, Camila. A convivência com Aprígio está começando a ficar insuportável. Ele reclama de tudo injustamente. Nunca ouve as argumentações alheias e se julga com razão em tudo o que fala. A ambição toma-lhe conta da alma. Ele deseja cada vez mais para suas obras.
- Mas, Túlio, o trabalho que ele está realizando é uma nobre atividade promissora e construtiva. Necessita de recursos.
- Sem dúvida que sim! Entretanto todo homem ou espírito sempre receberá de acordo com suas necessidades. Nunca mais, nunca menos. Quer ele grite, urre ou esperneie. Aprígio não está sendo humilde ou sequer paciente. Seu senso crítico está excessivamente negativo. Sempre observa somente os defeitos alheios e os julga de forma hostil e inescrupulosa. Julga e condena e, se pudesse, ele mesmo puniria. O julgamento, a condenação ou punição não nos pertence.
- E a esposa? - perguntou Camila.
- É graças a Francisca e as filhas que o árduo trabalho de assistência é mantido e bem realizado. Oremos ao Pai para que Aprígio desperte enquanto há tempo.
Camila ficou muito pensativa, porém Túlio chamou-a à realidade:
- Hoje, no Umbral, há inúmeros espíritas que ignoravam, quando encarnados, que deles seria cobrado mais por terem mais conhecimento da verdade do que as demais pessoas que desconheciam os ensinamentos do Cristo. - Breves segundos e chamou com jeito sempre educado e prestativo: - Agora vamos, querida Camila. Quero levá-la a um outro lugar.
Saindo dali, eles voltaram para o bairro onde Dora morava. Porém não foram em direção a sua residência. No caminho, Camila espantou-se com o grande número de encarnados que traziam presos, junto a si, alguns desencarnados. Esses chegavam a andar de braços dados com os encarnados ou até mesmo abraçados.
- Túlio, como podem aqueles espíritos ficarem assim?
- São sofredores - respondeu Túlio. - Esses espíritos, de uma forma ou de outra, encontram afinidade com o encarnado e passam a segui-los. Vê aquela mulher? Eu a conheço há alguns anos. Ela e o marido viveram bem. Quando ele desencarnou, ela não se conformou caindo em desespero. Apesar de ser uma mulher crente em Deus, conhecedora do Evangelho, ficou em extrema aflição e encolerizou-se contra os desígnios do Pai. O marido foi socorrido, porém as vibrações de lamentações que ela emitia pensando nele constantemente, queixando-se de sua falta, relembrando os bons momentos vividos juntos, chegaram até ele, que já estava em uma boa colônia. Isso fez com que entrasse na mesma freqüência vibratória de reclamações e saudade imensa. Não foi forte e se deixou atrair de volta à crosta da Terra e está dessa forma. Sem sustentação espiritual, o marido vive preso a ela. Ambos sofrem e lamentam a separação através do desencarne que sabemos ser necessária e passageira.
- Por que ele está com esse aspecto sujo, um cheiro horrível e aparência esquelética?
- Ele obteve socorro, mas recusou-o pelo desejo de viver na Terra junto a sua amada. Como espírito indigente, perambula agarrado à esposa. Não tem tratamento espiritual, alimentação correta ao seu espírito, asseio energético. Está desprovido de tudo o que é necessário a um espírito. O pobre espírito não tem descanso. Os zombeteiros que passam por ele o maltratam, agredindo-o com palavras e ações. Por isso sofre e, por estar junto à esposa, ela sente suas vibrações e começa a chorar, depois diz que é saudade do marido, depressão.
- E agora, o que poderá ser feito?
- Já está sendo. Uma vizinha dessa mulher está insistindo para que ela vá a um Centro Espírita, pois lá terá esclarecimento de tudo o que precisa.
- Ela vai?
- Tudo indica que sim. Lá no Centro Espírita, com certeza, ela receberá orientação de como deverá agir quando se der o desencarne de um ente querido. Ele, por sua vez, como espírito obterá tratamento e socorro. Isso aliviará o sofrimento de ambos e os farão entender que o amor significa aceitação, honestidade, desejo do bem à pessoa querida. Amor é sinônimo de doação, de entendimento e de fé.
- Tomara que isso ocorra logo - desejou Camila.
- Ocorrerá. - Apontando para um outro lado, Túlio mostrou: - Olha ali. Aquele homem está despertando o alcoólatra que há nele pelas amizades que vem atraindo para si tanto no plano material quanto no plano espiritual.
Ao olhar, Camila viu, agarrado àquele homem, três espíritos desencarnados. Possuíam uma aparência horrível. Suas roupas eram sujas e esfarrapadas. Tinham aspecto de quem havia ingerido muita bebida alcoólica. No perispírito traziam manchas escuras e avermelhadas, rosto e mãos inchados e andavam cambaleantes.
- Aquele homem - explicou Túlio pacientemente - está se aproximando de colegas encarnados que bebem, levam uma vida boêmia, entre outras coisas. Ele sempre aceita o aperitivo oferecido e o convite para mais um drinque. Ultimamente se dispõe a ficar na porta de bares e, cada vez mais, distancia-se da família. Quando a esposa, com toda a razão, chama-o para a responsabilidade e para o perigo que a bebida alcoólica traz, ele acha que, para acalmar-se ou não se zangar com ela, tem de tomar um aperitivo qualquer. Na verdade, quem o convence de que é necessário beber, por qualquer razão, são as três criaturas desencarnadas que o acompanham. Isso acontece por meio de pensamentos e inspirações sutis imperceptíveis. Pode-se dizer que esses espíritos se embriagam junto com o encarnado pela energia e sentimento que ele emana após ingerir uma bebida alcoólica. Com isso as entidades passam a experimentar as mesmas sensações que o encarnado, pois estão cada vez mais afinados espiritualmente pelas idéias, vontades e sugestões em comum. Os espíritos desencarnados que apreciam os efeitos das bebidas alcoólicas são capazes de localizar, com antecedência, onde estão os amigos encarnados desse homem que o convidam para beber e levam o infeliz, através da inspiração, aos locais onde os colegas se encontram para partilharem a experiência.
- Eu nunca ouvi falar disso! - admirou-se Camila.
- Há muitas coisas, no mundo dos espíritos, que os encarnados ignoram. Agora vamos. Quero mostrar-te algo interessante. E logo ali.
Caminhando alguns metros, Camila observou espantada:
- Aquela é a igreja do pastor Freitas!
- Claro que é. Vamos lá! - falou animado. Obedecendo ao chamado de Túlio, sem contestar, ela o
seguiu.
Ao entrarem, observaram que havia um culto quase terminando. Túlio cumprimentou dois cooperadores espirituais que estavam trabalhando naquela igreja.
- O que esses socorristas fazem aqui, Túlio? - perguntou Camila curiosa. - Essa é uma igreja crente!
- Do que uma igreja crente se difere de outra casa de oração que edifica o Evangelho e orienta sobre os ensinamentos de Jesus? Mesmo não sendo Cristão, um templo de oração pode transmitir bons conhecimentos, ensinar o amor ao próximo e instruir sobre a boa moral, não pode? Vê, minha querida, apura a visão do espírito.
Nesse momento o pastor Freitas agradecia a Deus pelas doações que receberam e pediam a bênção àqueles alimentos.
- Que o Senhor Jesus abençoe estes alimentos! - gritava o pastor. - Que cada grão possa conter, através das bênçãos de Deus, toda a força, toda a energia necessária para alimentar cada irmão que dele provar!
- "Glória! Aleluia!" - gritavam os fiéis em coro.
- Queira, Senhor Deus - vociferava Freitas -, que Teus filhos, aqui na Terra, sejam abençoados por Ti, Pai Celeste, por participarem destas e de outras arrecadações para saciar a fome de seus irmãos, provando que em seus corações instalou-se o amor ao próximo como pediu o Senhor Jesus! Vamos orar, irmãos, para que as bênçãos do Senhor caiam sobre nós! Aleluia, irmãos!!!
Enquanto todos acompanhavam as palavras de oração de Freitas em pensamentos, fez-se um longo silêncio. Nesse instante, Túlio, Camila e os demais desencarnados puderam observar que luzes cintilantes caíam sobre todos, principalmente sobre os alimentos ensacados que se depositavam frente ao altar. Eram fluidos com aparência luminosa. Energizavam os alimentos e abençoavam todos os presentes, incluindo os desencarnados.
Depois de dar graças e despedir-se de todos, Freitas solicitou a ajuda de voluntários para que auxiliassem na distribuição dos suprimentos. Sorrindo, Túlio virou-se para Camila e contou:
- Tu sabias que muitos desses alimentos foram doados por católicos, espíritas, adventistas, budistas e ateus?
- Não - respondeu surpresa
- Pois é... Muitas vezes não há condições de as igrejas católicas, protestantes ou evangélicas, os Centros Espíritas, templos budistas conseguirem fazer um trabalho de arrecadação de alimentos para distribuírem aos necessitados. No entanto nada impede esses religiosos de ajudarem aos carentes. Sabendo que essa igreja evangélica faz arrecadação de gêneros alimentícios, bem como de roupas, pessoas de inúmeras religiões ou doutrinas e até ateus trazem para cá suas colaborações. O trabalho realizado aqui é sério e de muita responsabilidade. Eles recolhem os alimentos e roupas de quem estiver disposto a ajudar, independente de religião, e ainda compram mais gêneros com o dinheiro arrecadado na igreja. É raro, raríssimo vermos uma igreja evangélica fazer isso. Freitas, entre outros, deve muito a seu pai, Honório, pois foi por causa dele que começaram a praticar a caridade.
- Por quê?
- Se não fosse por Honório, talvez Freitas e seus auxiliares diretos continuariam vivendo de forma errônea, transgredindo e usando o Evangelho para adquirirem bens terrenos. No entanto, a vergonha e o arrependimento por que passaram diante da descoberta feita por Honório, fizeram com que refletissem e muito! Hoje essa é uma das raras igrejas que prega o perdão incondicional, independente de etnia ou raça, credo, posição social. Freitas cultiva a humildade e a exemplifica. Prega o amor e tudo mais o que observa o livro sagrado. Não se envolve em política ou questão social polêmica, ele só realiza sua parte ensinando e fazendo caridade. A solidariedade, praticada pelos fiéis dessa igreja a outros irmãos, é independente da crendice de quem a recebe. Vem, vamos ali fora. Na porta lateral de igreja tinha uma longa fila de pessoas que portavam um papel com uma senha. Uma a uma iam recebendo das mãos dos fiéis e do pastor os sacos de alimentos e uma folha na qual havia uma linda prece para reflexão.
Camila sensibilizou-se. Observou que ali existiam somente necessitados, descalços e descamisados.
- Camila - disse Túlio -, cada uma dessas pessoas recebeu, em suas casas ou barracos, a visita de um membro voluntário dessa igreja para que ficasse bem claro a carência desses alimentos. Depois da confirmação de tais necessidades, eles ganham uma senha e quinzenalmente vêm aqui a fim de obterem o donativo e cadastrarem-se para uma nova triagem dos voluntários.
Enquanto isso os trabalhadores espirituais faziam convites aos vários desencarnados, irmãos ignorantes e sofredores, ali presentes, que já se encontravam em condições de entendimento para participarem da realização de um estudo evangélico destinado a auxiliar e renovar suas condições.
- Vê, Camila, é esse o trabalho dos cooperadores espirituais aqui hoje.
- Eu nunca poderia imaginar! - exclamou ela. - ...em uma igreja crente?!
- Há muito mais do que nós imaginamos. A assistência espiritual cristã tem de se dar em inúmeros locais. Se ela existe no Umbral, quanto mais em uma casa de oração onde é edificado o Evangelho e difundidos os ensinamentos de Jesus.
Camila ficou maravilhada. Aquele dia foi farto de ensinamentos. Satisfeito, Túlio generosamente convidou-a para retornarem ao lar abençoado de Dora, onde a recomposição seria meritória.

15 - O SOFRIMENTO DOS ABORTADOS SOB A VISÃO ESPIRITUAL

Com o passar dos dias, após tantos exemplos presenciados, Camila observou e concordou com o que Túlio lhe dissera: "A religião não faz de um homem um grande espírito". Certa manhã, o experiente espírito Túlio procurou por sua acompanhante e avisou com alguma comoção:
- Camila, existe um fato lamentável que poderá ocorrer. Deve servir-lhe de observação para reflexão e estudo ou, talvez, possamos ajudar em algo. Vamos?
De imediato ela concordou. Não demorou e chegaram a uma casa modesta. Apesar de bem pintada no plano material, Túlio e Camila puderam ver, no plano espiritual, que em suas paredes havia sangue, pele humana putrificando e até mesmo pequenos pedaços de membros de crianças. Eram também nitidamente vistos rostos pregados nas paredes como se estivessem em auto-relevo. Camila sentiu-se mal e horrorizada.
- Túlio! Por Deus, o que é isso?!
- Essa é uma casa onde inúmeros assassinatos são cometidos diariamente com a maior frieza e sem a menor piedade. Lamento ter de dizer-te, mas... nós vamos entrar.
Havia uma sala de espera com três mulheres aguardando para serem chamadas. Uma delas era Sissa, a única que estava sem acompanhante. As outras duas traziam consigo uma amiga. No plano espiritual, cada uma delas tinha equipes de amparadores que tentavam, por todos os meios, convencer-lhes de sair daquele lugar e deixarem nascer o filho que tinha vida dentro delas. Vez ou outra, os socorristas se voltavam para a amiga e acompanhante tentando envolvê-la e convencê-la a sair dali. A acompanhante de uma mulher que pretendia ser atendida começou a inquietar-se e perguntou num tom amedrontado:
- Tonha, tu tem certeza de que quer mesmo?...
Tonha assustou-se com a pergunta e nesse momento os amparadores tentaram influenciá-la dizendo-lhe como seria lindo ter em seus braços uma criança tão bela e perfeita. Poderia amamentá-lo, amá-lo, mimá-lo o quanto quisesse, pois ela gostava muito de crianças. De repente João, seu namorado, ao ver o bebê, poderia querer ficar com ela e, mesmo se não quisesse, uma criança nunca impediu ninguém de ser feliz.
- Não sei não... Tô com medo... - respondeu Tonha à amiga.
- E se tu morre, Tonha?! E se tu fica defeituosa e num pode ter mais filho? E se mais tarde, tu tem um filho defeituoso e torto só por que mato esse? Se sabe que de Deus a gente num esconde nada, num é? Ele pode te castiga.
Tonha, assustada, num impulso caiu de joelhos e falou:
- Senhor, perdoa por eu ter vindo aqui pra matá meu fio. Eu num quero matá ele não. Me deixa cuida dele perfeitinho, são. Juro que num vô me importa só porque sô mãe solteira. Deixa que os outros fale! Que se danem! Quem vai dá comida pra meu fio sou eu nem que tenha que varre rua. Seja o que Deus quisé. Vamo embora, Zefa. Vai vê que Deus te falô ríovido!
Levantando-se às pressas, Tonha agarrou a bolsa, puxou a amiga e saiu quase correndo do local. A equipe, que a amparava, vibrou de alegria. Alguns choraram emocionados. Porém tinham imensa noção de que aquela era somente uma batalha ganha. O grupo se dividiu: parte seguiu Tonha com a finalidade de ampará-la com pensamentos dignos e apoio para as necessidades materiais e a outra parte ficou no local, auxiliando os outros colaboradores espirituais que exerciam o mesmo tipo de tarefa com as outras mulheres ali presentes.
- Por que aqueles trabalhadores espirituais seguiram Tonha? - perguntou Camila.
- Uma mãe jamais ficará sozinha ou desamparada. Sempre haverá um trabalhador para socorrê-la e sustentá-la no que for preciso de acordo com o seu merecimento e necessidade.
- E no caso de ser seu primeiro filho? Ela ainda não é mãe, haverá amparo?
- Desculpa-me Camila. Não entendeste ainda que a mulher é mãe no mesmo segundo em que se da à concepção, não apenas após o parto.
Ele ofereceu meio sorriso generoso, vendo-a refletir. Não demorou e voltaram-se para Sissa que perdia seu olhar sem definir o que sentia. A outra mulher assustou-se com a atitude e as palavras de Tonha. Sensibilizada, estava sendo mais fácil de ela perceber a vibração e o envolvimento enternecido dos trabalhadores espirituais para que ela deixasse seu filho viver. Nesse momento, a enfermeira abriu a porta e chamou:
- Senhora Antônia?!
Sem hesitar, Sissa respondeu:
- Foi embora. Creio que sou a próxima.
- Então entre.
Nesse instante toda a equipe se colocou em alerta máximo para impedir aquele assassinato, acompanhando Sissa dentro da sala de cirurgia que, vista do plano espiritual, mais parecia um matadouro de gente. Com um aspecto macabro, sujo, tenebroso e, digamos, até indescritível para nós, espíritos, narrarmos aos encarnados. A sala possuía, em suas paredes, todas as marcas de cada assassinato ali cometido por uma infeliz criatura humana que teve seu diploma de Medicina anulado ou caçado por exercício de função criminosa de acordo com a lei - o aborto - no qual algumas mulheres morreram. Agora para ganhar dinheiro e enriquecer, ele, homem covarde e de um espírito indigno a um ser humano, esquartejava criaturinhas indefesas que só queriam, como todos nós, o direito a mais uma reencarnação. Com a alma gélida, Sissa deitou-se à mesa sem nenhuma dúvida ou remorso. Os socorristas ainda falavam-lhe, mas nada adiantava. Com frieza, a enfermeira aproximou-se e preparou-a. Logo em seguida, chegou o aborteiro e assassino aplicando-lhe algumas picadas de injeção que passou a queimar o corpo físico da inocente vítima que tentava fugir instintivamente de um lado para outro. No plano espiritual, o silêncio foi absoluto diante da amarga e cruel cena. Camila e todos podiam ver o pequeno ser revirando-se como se quisesse fugir do assassinato sórdido, cruel e pavoroso de ser presenciado na espiritualidade. Vez ou outra, a criaturinha viva no ventre abria a boquinha como se quisesse desesperadamente gritar para sua mamãe, porém Sissa não podia ouvi-lo. Talvez o fizesse com o coração se esse não estivesse tão endurecido. Os espíritos, ali presentes, podiam ouvir os gritos de agonia daquela criancinha em formação, seus gemidos sofridos e sua extrema aflição. As dores que experimentava em seu corpinho, naquele momento, eram passadas para seu corpo espiritual que sentia todos aqueles sofrimentos e ainda tentava lutar para ter uma chance de continuar a viver. Os socorristas envolviam aquela triste criaturinha com energias calmantes, mas nada parecia aliviar suas dores, suas queimaduras químicas e seu desespero. Nesse instante, o aborteiro buscava alcançá-lo com instrumentos para puxá-lo, o que não foi muito difícil de conseguir, tendo em vista as condições indefesas da frágil criaturinha que agora sentia seu corpo ser esquartejado sem dó nem piedade. Primeiro arrancou-lhe uma perna, depois a outra, de uma vez foram as vísceras e depois todo o resto que sobrou daquele corpinho perfeito que a Natureza Divina providenciou a formação. Os enfermeiros espirituais providenciavam o desligamento do espírito do corpo que se fazia em pedaços, porém era difícil. Aquele espírito queria imensamente viver. Quando foram desligados os liames do perispírito do corpinho esquartejado, a mente daquele espírito plasmou seu perispírito com uma triste aparência. Seu tamanho era o de uma criança de um ano com o braço e a cabeça parecendo ser de um homem maduro. A entonação para se comunicar era a de criança, assim como a maneira de se expressar, mas conseguia, mesmo como criança pensar e querer entender o que acontecia. Ele gritava, chorava, revirava-se nos braços do espírito enfermeiro por experimentar inenarrável dor. Seu corpinho espiritual esvaia-se em sangue plasmado pelo sofrimento, mostrando, em alguns membros, os cortes profundos e os descarnes provocados pelos instrumentos cirúrgicos, além da queimadura química que se distribuía por todo ele. O sangue respingado no chão daquela clínica junto com alguns pedaços de pele que caíram, ficariam, ali, como marca de mais um assassinato cometido. E mesmo limpo, no plano físico, permaneceriam no plano espiritual. Com a voz de uma criancinha, ele falava:
- Mamãe, eu queria ficar com a senhora. Por que a senhora matou meu corpinho? Eu juro que iria ser muito bonzinho. Não precisava fazer isso comigo, mamãe. Eu não ia dar muito trabalho. Eu só queria nascer. Mãezinha, me ajuda! Isso dói, dói muito!
Gemendo, ele foi envolvido amorosamente pelo enfermeiro espiritual e levado para receber os devidos socorros. Camila abraçou Túlio e não suportou, caindo em pranto e soluços compulsivos. Envolvendo-a com extremo carinho, Túlio levou-a para fora da sala de cirurgia. Na sala de espera, a outra mulher começou a corroer-se pelo medo. A todo instante vinham as palavras de Tonha e Zefa que se faziam vivas em seu pensamento: " ...e se tu, mais tarde tem um filho defeituoso e torto?". "Perdoa por eu ter vindo aqui pra matá meu fio...".
Às pressas, a mulher se levantou, virou-se para a amiga e resolveu:
- Vamos, Ana. Quero ir embora.
- Mas...
- Mas, nada! Tenho marido. Posso ser dona do meu corpo, mas não sou dona do corpo que está vivendo dentro de mim e quer nascer.
- Mas tu...
- Eu sei que a situação hoje não ta pra brincadeira, por isso deveria ter me cuidado antes de engravidar desse, aliás, não sou só eu que posso me cuidar contra uma gravidez indesejada. Meu marido também tem esse dever. Se estou grávida, não fiquei assim sozinha. Ele colaborou assim como fez com os outros três. Não vou violentar meu corpo ou mutilar meu filho. Se o Zé não quer ter mais filho, ele que não tenha mais vontade de fazê-lo. Vamos embora, e que Deus nos ajude!
Virando as costas, ela se foi sem nenhuma dúvida. Camila lamentava:
- Por que as mulheres não pensam assim como essa que acabou de sair daqui? Se soubessem como é horrível o simples fato de pensarem no aborto... Se elas soubessem como é grande o sofrimento de uma criatura quando a condenamos a uma morte tão cruel e indefesa...
Túlio apertou-lhe o ombro com a destra, provocando-lhe um suave balanço. Para tentar consolá-la disse:
- Se o ser humano encarnado tivesse, mesmo que por uma única oportunidade, condições de ver, com os olhos espirituais, o trauma, o sofrimento que ele provoca a um espírito que está passando por um processo de gestação para o reencarne e subitamente lhe são arrancados braços, pernas, cabeça, pescoço e tórax... por simples egoísmo de casais que não querem ter mais um filho ou pela mera beleza corpórea das mães não desejando deformar seus corpos, ou ainda, pela falsa moral daqueles que não querem apresentar uma gravidez "fora do tempo"... Esse ser humano, se tivesse a oportunidade de ver tal assassinato, mudaria sua opinião e teria outra idéia sobre a vida, defendendo o direito de nascer. Esses espíritos, muitas vezes, sofrem por anos e anos todas as dores, todas as queimaduras que lhes provocaram no momento do seu desencarne através do aborto. Sei de casos de espíritos abortados que ficaram deformados e sentindo dores por mais de trinta anos depois de receberem ajuda em colônias especializadas no plano espiritual. Tão grande fora o sofrimento e o desespero, além do trauma, por sentirem-se rejeitados que não conseguiam tirar de seus pensamentos aquele momento tão desesperador. Nesses anos todos, foram necessárias inúmeras cirurgias e tratamentos espirituais em colônias apropriadas para recuperar-lhes o perispírito, pois o corpo espiritual deformado sofria com as queimaduras, com as perfurações e com as lacerações como se elas acabassem de ocorrer ou ocorressem a todo o momento. Eles sentem dores por todo o corpo como se a todo instante estivesse sendo cortados aos pedaços, queimado, furado... Esses espíritos não conseguem esquecer, tão facilmente, o instante cruel, covarde e desumano de seu assassinato hediondo, assombroso. Inúmeras mulheres, ao desconfiarem de uma gravidez e para não terem peso de consciência, não procuram certificar-se de seu estado através de exames clínicos, e ingerindo inúmeras drogas, chás, remédios considerados abortivos, lavagens intra-uterina e muito mais para provocarem a morte de seu filho. Mas a suposta ignorância não a afastará da dor e do remorso futuro. Mesmo sem provas que confirmem a gravidez, se alguém provocar a morte do bebê através de remédios, chás, lavagens, esmagamento por pancadas no abdômen, sem dúvida alguma, essa pessoa arcará com as conseqüências de seus atos. Os remédios e chás ingeridos provocam sofrimentos, queimaduras, asfixia e desespero ao feto tanto quanto o que é feito em uma clínica abortiva. O remédio bebido queima o corpo do bebê por muito tempo antes de matá-lo e, como já disse, as dores das queimaduras continuam por um longo período. Os chás produzem reações semelhantes, pois, mesmo sendo ervas, eles, para matarem o feto, promovem ressecamento da placenta e do cordão umbilical, que é por onde o feto se alimenta e respira. A princípio vem a asfixia e o ressecamento da pele, ocasionando fortíssimas dores. Acredito que a maioria dos encarnados sabe o quanto é triste a dor causada por uma queimadura. Pois bem, é isso o que o abortado sente em todo o seu corpo quando está sendo assassinado. Mesmo depois de cortado o laço com o corpo físico, essas dores continuam.
Chorosa, Camila perguntou:
- Por que essas mães fazem isso? Será falta de instrução?
- Em muitos casos não - respondeu Túlio, entristecido. - Infelizmente muitas delas não podem justificar ignorância dos fatos. A grande maioria das religiões prega contra o aborto. O catolicismo é a primeira a se pronunciar a favor do direito da vida durante o estado de gestação, mas, infelizmente, talvez devido a essas religiões não dizerem exatamente o motivo pelo qual são contra o aborto, as mulheres se dizem no direito de escolherem o que fazer no caso de uma gravidez não planejada.
- Por que as religiões não dão o verdadeiro motivo pelo qual o aborto é um dos maiores crimes contra o espírito humano?
- Camila, se alguma religião dissesse que o espírito está ali, sofrendo o assassinato, sofrendo com as queimaduras e com as lacerações, que o espírito abortado se desespera ao se ver rejeitado e penará por muito tempo, passando por um sofrimento indescritível, essas religiões estariam dando razão a tudo o que o Espiritismo vem divulgando. Poucas religiões ou filosofias confirmam o que a Doutrina Espírita detalha.
- Por quê?
- Porque o Espiritismo teve e tem esses conhecimentos graças às comunicações dos espíritos desencarnados que trazem, através dos médiuns, ao plano material tudo o que se faz necessário saberem para cada vez mais, o encarnado errar menos. Se essas religiões admitissem isso, seria como admitir que o Espiritismo tem razão em tudo o que diz. Qual explicação elas teriam para dar sobre o sofrimento de um abortado, se não fosse através da comunicação de um espírito desencarnado? Eles não podem dizer que o espírito de um abortado sofre muito depois do seu assassinato. Como ficaram sabendo disso se não através da comunicação de um espírito? Entendes?
Camila não teve tempo de responder, porque naquele instante, entrou na sala de espera uma senhora muito bem arrumada, acompanhando sua filha de dezessete anos. Junto com elas, uma outra equipe de socorro espiritual, a qual rapidamente, cumprimentou Túlio e voltou ao trabalho incessante de socorro à menina que faria o aborto, e ao bebê, já desesperado, pois pressentia seu terrível sofrimento para o desencarde criminoso. Camila ficou chocada e Túlio disse:
- Vamos, Camila. Vejo-te frágil. Não é necessário acompanhar outros casos. Viemos aqui para observar que, mesmo com todo o preparo espiritual, todo o entendimento sobre Espiritismo, além do que Júlio lhe propôs, Sissa foi capaz de assassinar o próprio filho.
- Espera Túlio! Vê?! Essa é Helena! - disse ela apontando para a senhora, mãe da adolescente. - É Helena. Está diferente. Sua aparência é outra, mas eu sei que é ela.
- Provavelmente o nome também não seja mais esse.
- Tens razão, Túlio. Mas Helena foi acolhida junto comigo ao Posto de Socorro quando se deu meu desencarne como Samara. Juntas, nós fomos com uma outra moça, Maria, para a colônia onde Inácio nos disse que receberíamos instruções e muito iríamos aprender.
- Como de fato se deu - completou Túlio.
- Sim. Sem dúvida. Nós recebemos instruções. Fizemos cursos e moramos juntas, dividindo o mesmo alojamento por muitos anos, até que Helena foi chamada ao Ministério da Reencarnação. Ela ficou imensamente feliz. Fez planos... muitos planos...
- Planos de oportunidades de vida a outros, planos de agir com amor, dignidade, planos de humildade e justiça, certo? - perguntou Túlio num tom desalentado.
- Certo, mas... Não pode ser, Túlio! O que ela faz aqui?!! Camila ficou incrédula enquanto Túlio a conduzia para fora.
- E, Camila, quando estamos encarnados, devemos nos apegar ao máximo aos ensinamentos do querido Mestre Jesus. Somente assim nós nos manteremos firmes em nossos propósitos e cumpriremos bem a nossa missão, mesmo sem sabermos qual é ela. - Se tivermos uma boa conduta, se obedecermos aos ensinamentos de Jesus, independente da religião, obteremos o melhor resultado.
Ao deixarem aquela casa, Camila olhou para traz e viu Sissa sair.
- Vê, Túlio? É Sissa.
- Sim, é. Porém nunca mais será a mesma. Vê com a visão espiritual a marca que lhe ficou crivada no perispírito pela prática do assassinato ao seu filhinho indefeso através do aborto.
Olhando, Camila pôde ver uma mancha escura em Sissa. Logo em seguida observou:
- Vê aquelas sombras seguindo Sissa!
- São criaturas perversas que, desencarnadas, ainda vivem no erro. É curioso que mesmo errantes, esses espíritos, nossos irmãos, não admitem a prática do aborto e perseguem quem o faz, perturbando e obsedando o encarnado praticante desse crime por toda a sua existência no plano físico e até depois do desencarne. Sissa agora ficará à disposição dessas criaturas desequilibradas que se dizem donas da justiça e do amor. - Depois de longa reflexão, Túlio completou com uma prece: - Que o Pai Eterno, Dono de grande amor e bondade, tenha piedade de Sissa e daqueles que a cercam para perturbar-lhe o espírito. Que nossa irmã Sissa possa, através do arrependimento, reconsiderar seu erro e, um dia, de volta ao amor de Jesus, reparar sua falha o mais breve possível.
- Túlio - quis saber Camila após minutos de silêncio -, uma coisa me deixa intrigada. Quando estamos encarnados, se sofremos um acidente e perdemos muito sangue logo vem a morte do corpo físico. Mas aqui na espiritualidade vemos o perispírito esvaindo-se em sangue continuamente, como uma fonte a jorrar. Como é isso?
- O corpo perispiritual é muito diferente do corpo de carne. Ele é fluídico e causa de sensações, registro de nossa consciência, de nossa moral e serve até para outras espécies de sofrimento enquanto for necessário. Tanto que a elevação de muitos espíritos nós vemos pela sua luz, ou seja, pela ausência de impregnações em seu perispírito. Alguns encarnados dirão que o perispírito não tem sangue. Sangue líquido, material próprio do corpo humano, não tem mesmo, uma vez que suas propriedades são outras. Mas a mente do espírito, conforme o seu grau de evolução, fica presa, ou melhor, só tem como referência de sofrimento as lembranças que pode imaginar no corpo de carne. Assim sendo, muitos espíritos mentalmente plasmam despropositadamente em seus perispíritos o recurso que conheceu para exibir a agressão, o corte, a dilaceração ou o sofrimento. E quando esse sofrimento ou experiência for traumático, o espírito que o experimenta pode-se apresentar se esvaindo em fluidos como que sangue a jorrar-lhe continuamente do perispírito. Uma das provas da existência da dor e da enfermidade no perispírito ou corpo espiritual pode ser experimentada por algumas pessoas como, por exemplo, quando o membro de um encarnado é amputado, ele continua sentindo dor na região retirada como se a referida parte de carne doente ainda estivesse ali. Muitos médicos não conseguem dar uma explicação para isso, pois nem todos os amputados vivenciam esse efeito que ocorre de acordo com suas provas ou expiações. Mas se o membro físico não está ali, a permanência da dor sofrida só pode ser explicada pela existência da enfermidade do perispírito. Na época em que se passam esses acontecimentos poderia ser mais difícil uma autoridade religiosa defender o direito de vida de um embrião ou feto. Hoje eu sei que poucos o fazem em alta voz e bom tom. No entanto, mais uma vez, provando que a religião não faz de um homem um grande espírito, peço licença para contar o que tive imenso prazer de presenciar da espiritualidade. Em 1994, em Washington, Estados Unidos da América do Norte, milhares de pessoas se reuniram para assistir a uma grandiosa entidade espiritual, na época, encarnada. Ao contrário do que muitos pensam, ela falava firme, era persistente, pregava com fé, esperança e muito amor. Madre Teresa de Calcutá de forma clara e inteligível com suas palavras fortes e marcantes a todos os ouvintes. Entre tudo o que ela falou destacou o seu: "NÃO AO ABORTO!". Traduzindo-lhes o prisma de seu protesto, trago sua principal frase: "Sinto que o maior destruidor da paz no mundo é o aborto!..." Madre Teresa falou por muito tempo e todos a ouviram em absoluto silêncio. Mesmo não detalhando o que ocorre com um espírito no exato momento de seu assassinato através do aborto, Madre Teresa conseguiu explicar a importância de deixarmos um ser vir à vida, ter o direito de nascer e nossa culpa pelo homicídio de tão indefesas criaturinhas. No final de seu magnífico discurso, católicos, protestantes, judeus, entre outros pertencentes a diversas religiões e filosofias a aplaudiram em pé! Surpreendi-me ao ver que o Presidente da República, em exercício, presente juntamente com sua primeira dama, ficaram imóveis. Não se levantaram, não a aplaudiram. Permanecendo petrificados, gélidos. Na multidão, em alguns rostos rolaram lágrimas. Talvez por estarem comovidos, talvez de remorso porque nunca tiveram a coragem de defender a vida de um embrião ou feto. Talvez as lágrimas fossem de reconhecimento do que é ter moral elevada. Lágrimas talvez de emoção... No entanto nem comoção ou aplausos as maiores autoridades presentes foram capazes de oferecer ou apresentar a simples consideração de se levantarem por respeito àquelas instruções majestosas e sublimes. Madre Teresa nunca aparentou força física. Contudo sua força espiritual é imensa. Ela jamais se acovardou ou se deteve de dizer a verdade a um homem devido a sua posição política ou social. Parabéns, Madre Teresa. Bem vinda ao lar! (2) Lamento os encarnados oferecerem tão pouca atenção aos seus grandes feitos, criticando-a sempre por suas idéias e ideais, mas os acusadores não têm coragem de realizar uma fração do que esse grandioso espírito fez em lugares tão flagelados do planeta, deixando sementes para que o plantio da caridade continuasse. Depois de estudar, Madre Teresa pediu permissão para trabalhar com os pobres e desamparados de Calcutá mudando-se para as favelas onde se confirmou seu enorme empenho na tarefa da caridade. Fundadora da Ordem das Missionárias da Caridade, na índia, Madre Teresa fez instituições para cegos, para aleijados, asilos para idosos abandonados e solitários, recolheu e acolheu incontáveis doentes agonizantes à beira da morte e construiu um leprosário. Suas obras tiveram repercussão mundial. Presenteada com uma limusine pelo papa Paulo VI, Madre Teresa rifou o automóvel com a única finalidade de prover as despesas de financiamento da fundação da colônia de leprosos. Em 1979, foi premiada com o Prêmio Nobel da Paz. Sua congregação, Ordem das Missionárias da Caridade, já existe em vários países e é subordinada somente ao papa. Católica fervorosa, conhecedora e tarefeira Cristã por inúmeras atividades caridosas junto aos irmãos que viveram na miséria, Madre Teresa teve e tem Moral suficiente para dizer: "Sinto que o maior destruidor da paz no mundo é o aborto!...". E lamentável a não reflexão sobre este assunto por ocasião de seu desencarne, pois quem ocupará o seu lugar nas tarefas de socorro de encarnado para encarnado? Lembremos que a ajuda material e financeira mantida a distância é louvável, porém é mais fácil.

(2) Nota da Médium: Este livro foi psicografado em setembro de 1997, mês e ano em que Madre Teresa de Calcutá desencarnou. Provavelmente seja esse o motivo de a autora espiritual fazer-lhe a reverência de boas-vindas por seu retorno à Pátria Espiritual.

Dificilmente tem-se encarnado um espírito tão grandioso, disposto e abnegado a trabalhos tão nobres de caridade como o da Madre, independente de sua religião. No Brasil, o ilustre e elevado espírito de Irmã Dulce, católica, conhecida por sua árdua dedicação à caridade. Criadora e dirigente de fundação de obras assistenciais. Provedora de orfanato e hospital em Salvador, na Bahia, e tantos outros trabalhos misericordiosos realizados em favelas ou lugares que ninguém ousava chegar, mesmo com a saúde considerada imensamente frágil, debilitada e impossibilitada sob a ótica médica. Sua lista de tarefas no campo da caridade é imensa, sempre pregando a fé, oferecendo esperança e muito amor! E uma das coisas que a doce Irmã Dulce apoiava em suas ternas palavras de amor era: "Deixe o seu filhinho nascer!". Os encarnados não deram atenção a esses desencarnes, porém podem sentir muito a falta de criaturas divinas como essas sem nem mesmo saberem por que ou do quê. Queira Deus que trabalhadores fiéis e abnegados dêem continuidade a essas tarefas. Que Jesus os proteja.

16 - EDUCAÇÃO SOCIAL

Os espíritos Túlio e Camila caminharam em direção a uma bela praça. Ela, ainda chocada, não conseguia esquecer as súplicas desesperadas daquela entidade que, indefesa, foi cruelmente arrancada, aos pedaços, do útero materno.
- Túlio, por que as pessoas, os direitos humanos, não se manifestam contra esse feito abominável, o aborto?
- Há muito, o plano espiritual vem avisando sobre a crueldade praticada contra essas criaturas abortadas. Alguns espíritas que fazem parte dessas comissões ou organizações que condenam o aborto procuram alertar que esse ato é um crime hediondo, cruel e covarde, independente de credo ou religião. É bem pouca a noção que os encarnados têm de quão horrendo é esse ato e de quanto sofrimento e lágrimas isso trará a quem o pratica, direta ou indiretamente, quem induz ou até quem é favorável, mesmo nunca o tendo feito.
- Os encarnados necessitam de mais conhecimento. E necessária mais divulgação contra esse crime, não acha?
- Sem dúvida que sim. Saliento que o plano espiritual está em polvorosa diante do número crescente de abortos praticados no mundo e, principalmente, no Brasil, mesmo tendo a legislação brasileira, atualmente, lei que considere esse ato um crime. Hoje o número de abortos diário praticados, só na cidade do Rio de Janeiro, ultrapassa quatro vezes o número de homicídios praticados no Brasil inteiro. Tu não imaginas como é desesperadora a situação de espíritos que estão em preparo para o reencarne e enfrentam a dúvida cruel de serem ou não aceitos por seus pais, pois podem ter seus corpinhos mutilados, esquartejados, queimados por injeções, comprimidos, ervas e depois jogados no lixo. Eles temem experimentar todas as dores e sofrimentos físicos que são passados para o perispírito, vivenciando, depois na espiritualidade, as torturas cruéis, as dilacerações e deformidades resultantes do aborto. Soube haver um trabalho no plano espiritual a fim de oferecer um maior número de mensagens aos encarnados, orientando-os sobre o que acontece com o espírito de um abortado ou de um rejeitado e quais as conseqüências que isso traz a quem o faz.
- Como podem as mulheres, com todas as suas aptidões natas para serem mães, não perceberem que o aborto é matar um filho? - lamentou Camila, ainda chorosa.
- Infelizmente, Camila, tenho de te dizer que a maior culpada pelas práticas de aborto é a mulher. Não que o homem saia ileso desse crime. Ele também é negligente ou imprudente sim, pois a mulher não fica grávida sozinha. Ele erra por não amparar, por não assumir e não arcar com as conseqüências de seus atos. Mas, infelizmente, temos, por outro lado, os movimentos feministas que a cada dia tomam mais vulto e divulgam desenfreadamente o que julgam de direito da mulher. As feministas querem disputar cada palmo de terreno com o homem no campo profissional, físico e mental. Elas não percebem que, muitas vezes, reivindicam contra a função nobre e magnífica reservada ao espírito feminino, que é o privilégio nos serviços de paciência próprio de sua natureza a princípio dentro de seu próprio lar. Com a riqueza de sua meiguice expressada em carinho diante de qualquer situação áspera, a mulher poderá, com toda a certeza, abrandar um momento extremamente difícil e conturbado, conduzindo os envolvidos à paz, à compreensão e aos melhores atos para uma nova ação construtiva e regeneradora.
Muitas mulheres hoje querem duelar contra o homem e serem superiores. Elas não fazem do homem um parceiro, um aliado que a respeite e compreenda sua delicada, doce e bela natureza feminina. Elas lutam contra as verdadeiras atribuições do espírito feminino, por isso vêm se chocando com as incompatibilidades da sua natureza e não querem admitir isso. As feministas desviam seus requisitos quando exigem a "propriedade de si mesmas" como se elas fossem objetos de posse, objetos de uso descartável. Querem ser donas de si, donas de seus corpos... Exigem a liberdade feminina, a liberdade sexual e para tanto agridem a sociedade com gestos, comportamentos, com roupas ousadas e até com linguajar chulo como ato de protesto. Elas chegam a ser convincentes para alguns imprudentes que as apóiam em troca de popularidade ou fama, como são os casos de alguns políticos. Porém, diante do chamado da Natureza Divina para com as responsabilidades cabíveis ao espírito feminino, essa mesma mulher, que se dizia forte, dona de si e auto-suficiente para tudo, acaba se abalando e começa a se desmilingüir no momento de arcar com as conseqüências de seus atos. Ela recua envergonhada. Não quer encarar a sociedade preconceituosa que ela mesma agrediu e desafiou, pois essa mesma sociedade e até suas companheiras de luta e opiniões irão vê-la como mulher vulgar e não como uma mulher liberada. Frágil, ela corre para o homem querendo seu apoio e proteção, mas esse muitas vezes se recusa a ampará-la e a entender sua natureza delicada. Por culpa dela mesma, ele não se vê como parceiro porque ela não quis tê-lo a seu lado e tratou-o como objeto, tendo-o num dia e, no seguinte, trocou-o por outro como uma roupa, não se dando respeito. Nesse caso, o homem não se considera um aliado porque a mulher não permitiu, não compartilhou com ele tudo o que deveria, deixando-o a par somente de seus assuntos supérfluos. Ele não tem o menor desejo de ampará-la porque não houve o cultivo de um sentimento forte, de verdadeiro carinho, parceria e amizade, pois a mulher se mostrou liberal e forte o suficiente igualando-se a ele na liberdade das ações que apresentou, não demonstrando respeito para com ele ou para consigo mesma. Inúmeras mulheres, covardes o bastante para não assumirem seus atos, não querendo ser ridicularizadas pelo falso pudor que a sociedade ostenta, correm para uma clínica abortiva, cometendo o maior crime que um ser humano pode realizar, sem imaginar a amargura futura que terá de encarar. Não há nada contra a mulher ocupar seu devido lugar na sociedade, porém que seja o seu devido lugar, isto é, que ela tenha todos os seus direitos e até mais direitos do que os homens, inclusive salariais e trabalhistas por assumirem seus deveres como mulher, mãe, esposa, filha, companheira... A mulher deve receber atenção, orientação, os melhores e mais dignos tratamentos por razão de sua natureza delicadamente abençoada e todo o respeito que lhe é meritório, por ser mulher, que representa o símbolo da vida, pois não nasceríamos sem elas. Nenhum homem conseguiu igualar-se a ela na atividade natural e divina da maternidade. Camila ouvia atentamente. Depois de uma breve pausa, Túlio continuou:
- Espíritos maravilhosos perderam a oportunidade do reencarne pelo tão horripilante ato do aborto. Criaturas lindas e divinas, depois de séculos de aperfeiçoamento no plano espiritual, foram confinadas a longos anos de dor e sofrimento por causa dos assassinatos provocados por seus próprios pais que os abortaram. Imagina, Camila, se a mãe de Carlos Chagas o tivesse assassinado com o aborto ou a mãe de Osvaldo Cruz o tivesse matado com o aborto?! E se na França Kardec fosse barrado à vida pelo aborto? Se a querida mãe do nosso amado Chico Xavier não o tivesse deixado vir ao mundo?... Citando somente os dois primeiros possíveis abortos, podes imaginar quantas tragédias e mortes trariam as doenças e as pestes ao mundo. Citando os outros dois possíveis assassinatos através do aborto, podes ter idéia de quantos ensinamentos, quantos conhecimentos, quantas mensagens maravilhosas do bem, de amor, da edificação os encarnados deixariam de receber para guiarem-se no caminho da esperança e da fé em Jesus. Com isso, dá para se calcular quanto prejuízo a humanidade tem com a prática desse crime que ainda é defendido sem qualquer argumento plausível. O estranho é que algumas feministas dizem acreditar em Deus, mas não se aprofundam em nenhuma pesquisa religiosa para saberem realmente o que é certo ou errado diante das Leis Divinas ou o que acontece quando se realiza um crime desse porte. Não há preocupação com a criaturinha viva que foi morta ou com o que irá acontecer com quem pratica o aborto, induz ou aprova.
- Então tu és contra o ato sexual antes do casamento? - perguntou Camila.
- Nem eu nem a espiritualidade podemos ser contra o ato sexual, desde que esse seja praticado com responsabilidade e amor. Digo amor porque deveriam praticá-lo com quem realmente amam e não por uma necessidade física como é o caso de muitos, ou para demonstração de liberdade sexual como é o caso de várias mocinhas. Falo em responsabilidade porque se deve arcar com as conseqüências antes, durante e depois de tê-lo praticado. O ato sexual não é somente para a concepção ou troca de prazeres físicos. |Nele há muito mais do que imaginamos. Há uma troca de energias perispirituais que atuam no âmago de cada um dos parceiros.
- E quando o casal não deseja ter filhos? E se a mulher for casada ou não quer antecipar seus encargos como mãe? Como ficam essas situações?
- Tu sabias que devido ao número crescente de aborto, o plano espiritual apoiou trabalhos científicos e pesquisas de anticoncepção como a pílula?
Camila pendeu a cabeça negativamente.
- Pois é. A pílula traz inúmeras alterações ao organismo feminino. Vista do lado espiritual e físico, ela impede a oportunidade de um espírito encarnar, em princípio. Mas diante do abominável crime de aborto, que é um assassinato com seqüelas terríveis, é admissível a pílula ou o uso de preservativo. Cientistas e pesquisadores vêm, intuitivamente, recebendo grande amparo do plano espiritual para o trabalho no campo de prevenir a concepção e não, ou melhor, nunca interromper a evolução de uma já consumada. Esse apoio teve de ser feito baseado em que é mais terrível matar, através do aborto, do que impedir a concepção.
- E no caso de crianças deficientes? Como devem agir os pais diante da opção, pois a própria lei permite o aborto?
- É imensamente lamentável termos leis terríveis assim. Posso responder com uma pergunta, se tu me permites: Por acaso deixa de ser uma criatura viva aquela indefesa criancinha que porventura é deficiente já no ventre da mãe? Se todo ser vivo é um espírito e pode ocupar um corpo físico, por que não deve ser dado o direito à vida àquele que, muitas vezes, escolheu e implorou vir deficiente para cumprir sua missão? Matar um deficiente não é menos culposo do que matar uma criatura normal! Ao contrário, os pais estarão cometendo um crime ainda maior se deixarem assassinar um filho só porque esse é especial ou portador de alguma necessidade. Os pais, em princípio, não estariam aceitando o que lhes foi designado pela Natureza Divina e estarão matando só porque aquela criatura é indefesa, frágil e diferente do comum. Posso contar-te um caso curioso que acompanhei: Um espírito passou muitos anos em colônias para aperfeiçoar-se devidamente. Era uma criatura inteligente e prestativa, além de portar paciência irritável. Ao ser determinado seu reencarne, ele solicitou que se desse em corpo imperfeito, por motivos e razões próprias. Algo bem pessoal. Assim foi feito. Mas não contavam que os pais, portadores de ótimas condições financeiras, descobrissem, através de exames realizados no exterior, onde há mais recurso, que o feto era imperfeito. Sem hesitar os pais pediram a realização do aborto. Apesar de sofrer, ele o fez com resignação, por ser elevado, esse espírito se recompôs rapidamente na espiritualidade e não teve dúvidas, solicitou, junto ao Ministério de Reencarnação, novo pedido para retomar a carne, só que dessa vez com o corpo físico perfeito. Tudo se deu conforme o combinado. Os pais, felizes, orgulhavam-se do filho que a cada dia mostrava-se esperto e prodigioso, incrivelmente inteligente e sábio. Ao completar cinco anos, conforme solicitado por ele antes do reencarne, esse espírito sofreu um acidente. Ele se encontrava dentro do carro conduzido por seu pai que, inesperadamente, colidiu o veículo. Essa criança quebrou duas vértebras e ficou paraplégica. Numa noite, quando o pai acariciava-lhe a fronte, o garotinho se virou o pai comovido e perguntou com toda sua inocência de criança: Papai, o senhor não vai mandar me matar só por que eu fiquei assim, não é?! Não poderia ter sido maior a dor desse pai! - enfatizou Túlio emocionadamente melancólico. - Quem acredita que devamos assassinar uma criatura em formação só por ela não ser perfeita física ou mentalmente, concorda com os feitos nazistas durante a Segunda Guerra. Eu creio que os defensores do aborto de crianças imperfeitas, defendem crematórios para as pessoas portadoras de necessidades físicas ou mentais especiais que já vivem e fazem parte do nosso dia-a-dia. Essas criancinhas, consideradas como seres imperfeitos no útero materno, estão tão vivos quanto os já nascidos e aqui provam, muitas vezes, possuírem mais determinação e força espiritual do que muitas criaturas consideradas normais. Em nada diferencia a dor, o desespero e o sofrimento de um espírito abortado e que tem o seu corpinho perfeito de um espírito cuja formação de seu corpinho ou mente não é comum. Muitas vezes essa criaturinha considerada anormal possui elevação espiritual mais digna e elevada do que seus pais. Quanto aos abortos para casos de estupro, creio não precisar de muito comentário. Só digo que é um crime e quem o pratica, mesmo com a permissão da lei, terá de arcar com as conseqüências e muito sofrerá e lamentará ter assassinado um filho. Um crime não justifica o outro. Além do que, em termos de crueldade e violência, alerto que o aborto é pior do que o estupro.
Em muitos casos, a mulher se porta de maneira incoerente, com roupas sumárias, expondo partes íntimas e insinuantes de seu corpo, promovendo provocações ao instinto sexual masculino, o que é desnecessário ao espectador que não for o seu parceiro. Muitas mulheres encurtam suas saias, diminuem as blusas na largura e no comprimento, jogam uma insignificante já que tinha por cima, sobem em suas botas de salto alto, ressaltam os seios e se debruçam ou desfilam para serem admiradas. Esse tipo de comportamento atrai para elas entidades femininas de níveis imensamente inferiores que, quando encarnadas, ocupavam o mais baixo escalão moral. Nada digno de respeito, segundo a sociedade. Promíscuos sexualmente, esses espíritos de mulheres não possuíam valores decentes ou caráter, porém sabemos que diante de Deus, todos somos irmãos e merecemos nos respeitar mutuamente. Então ao encontrarem encarnadas que exibem seus corpos como provocação e exclusivismo, essas entidades sem instrução, sentem a compatibilidade no vestir e agir, começando a envolver a encarnada com sentimentos e pensamentos de provocação e conquista através do desejo de serem admiradas, atraentes, cobiçadas sexualmente e outras coisas mais. Por causa da exibição corpórea ou da sensualidade da mulher que se mostra de modo sedutor, o homem provocado, que não controla o desejo da carne, sem dúvida alguma, cultiva uma moral de pouco valor pelo fato de não se importar com quem irá se relacionar sexualmente. Ele simplesmente atende aos seus instintos. Envolvido por outros espíritos inferiores, animando-se com a provocação feita pela encarnada, vendo ele uma aproximação, tenta uma proposta de relacionamento sexual. Se não aceito, em casos extremos, chegam a partir para a violência sexual, podendo haver uma gravidez. Em muitos casos os ataques de violência sexual são feitos inesperadamente e contra mulheres de boa conduta moral, o que chamamos de estupro, podendo provocar uma gravidez na vítima. Há casos de crimes de "estupro culposo" por parte de uma mulher que nem mesmo sabe o que aconteceu, mas espiritualmente ela é responsável por ele.
- Como? - perguntou Camila.
- Devido às vestimentas reduzidas e gestos provocantes. Mulheres instigam alguns homens não equilibrados à prática de sexo, mas acabam se esquivando do ato posteriormente. Esse homem, como eu disse, um desequilibrado espiritual e psicológico, não consegue inibir sua vontade ou diminuir seus estímulos e sai em busca de vítimas realmente inocentes. Assim sendo, as mulheres que estimularam esses desejos também são culpadas, indiretamente, pelo crime de estupro ocorrido. Quantas vezes, no trabalho, na prática do lazer ou no transporte coletivo, um homem de boa conduta e possuidor de grande valor moral se surpreende com a aparição de uma mulher que não se dá ao respeito ao exibirem seus corpos através das roupas reduzidas e transparentes? Para um homem equilibrado mental, moral e espiritualmente, esse fato passará sem muita exaltação. Porém, para outro, poderá haver uma série de complicações. A mulher reduz seu respeito quando se vulgariza! Ela precisa se resguardar um pouco mais. Observando a atitude masculina, talvez, ela aprendesse um pouco. Vê, um homem não vai trabalhar em um escritório com um micro shorts só porque está calor. No entanto a mulher vai com uma mini-saia. O homem não trabalha sem camisa, principalmente quando serve a uma empresa, escritório, mas a mulher reduz suas blusas ou usam bustiês só porque está calor. Estou só dando o exemplo do calor, sem entrar nos detalhes das provocações que algumas desejam fazer ou fazem. Mas todas elas, sem exceção, querem para si ou para contrair casamento um homem íntegro, fiel, de boa conduta, de elevado valor moral e espiritual. Elas esquecem que esses tipos de homem não se atraem ou dificilmente o fazem por mulheres que se expõem e se vulgarizam. Não existe nada contra as roupas justas ou curtas, só que há hora e lugar para tudo. É lógico que não se vai à praia de calças compridas ou paletó, mas também não deve pegar um coletivo com maio de banho. Devemos ser sensatos e prudentes quanto ao vestir. - Breves instantes e declarou: - Desculpe-me, Camila. Acho que falei demais.
- Não, suas explicações foram ótimas. Aprendi muito.
- Já estamos chegando ao lar de Dora. Prometo ficar quieto - disse brincando e com belo sorriso amigável.
Ela somente sorriu de seu jeito espirituoso. Túlio tem toda razão. Se naquela época, por volta do início dos anos setenta, muitas mulheres e garotas já expunham seus corpos considerando-se objeto de arte para serem admiradas, mesmo diante das polêmicas e das críticas da sociedade daqueles tempos. Atualmente a situação se agravou. Hoje em dia os próprios pais incentivam filhas pequeninas à degeneração e promiscuidade moral e espiritual quando as estimulam às danças em que meneiam o corpo com sensualidade e afetação. Esses movimentos provocam e incentivam estímulos e pensamentos sexuais em quem assiste a elas. Esses mesmos pais dão-lhes roupas ousadas que exibem seus corpinhos quase nus e ainda aplaudem como se fosse um espetáculo grandioso. Na verdade deveria ser considerado macabro, tendo em vista o que acontece por de traz dos bastidores, isto é, no plano espiritual. Entidades extremamente inferiores passam a aproximar-se dessas criancinhas e se comprazem daqueles momentos. Como tais entidades têm todo o tempo do mundo, elas ficam aguardando que a criança cresça enquanto obtêm mais afinidade porque já se compatibilizam com aquela criaturinha. Tudo fica muito pior quando o espírito inferior foi adepta da pedofilia. Isso não ocorre somente com as meninas. Os garotinhos nem bem aprenderam a falar ou a andar e seus pais já lhes perguntam, com nomes pitorescos, onde estão localizados os seus órgãos genitais, ou ainda fazem-lhes mostrar que são homens e viris. Como se a masculinidade e a honra de um homem pudessem ser comprovadas através de seus órgãos íntimos. Acredito, às vezes, que esses pais têm inúmeras dúvidas quanto à masculinidade de seus filhos e ficam temerosos. Por essa razão ficam estimulando-os desde tão cedo ao sexo. Lembrando ainda os palavreados baixos, imorais e repulsivos que os fazem repetir desnecessariamente para provarem que homem tem de falar palavrões. Como se tudo isso fosse firmar o caráter e a personalidade de seus filhos. Hoje em dia, inúmeros programas infantis distribuem imagens que, para terem uma idéia em nível espiritual, consideramos programas de prostituição infantil. Começando pelas apresentadoras que não se dão ao respeito, não possuem boa moral, boa índole e convocam, com seus feitos, a danças, gestos sensuais e palavreado a criança à mesma prática que a sua. Esses programas lançam concursos que insinuam, através de danças e apresentações aparentemente inocentes, exibições de pequeninos treinados para danças eróticas e provocativas de estímulos sexuais. As pobres criancinhas nem imaginam que estão sendo incentivadas ao cultivo de uma moral de pouco valor, coisa que ignoram e nem pediram para ter. A espiritualidade não tem nada contra a dança, desde que seja voltada ao crescimento moral, psicológico, físico, mental. Como é o caso da psicomotricidade com movimentos corporais em concordância com a música. Qualquer pessoa, principalmente a criança, desenvolvem-se mental, física e psicologicamente sem que sejam necessários gestos eróticos, roupas minúsculas etc. É lamentável os direitos da criança e do adolescente nada disporem para orientar pais imprudentes que fazem desses programas infantis verdadeiras babás eletrônicas que deturpam a moral, a personalidade e jogam no lixo a doce e inocente ingenuidade de uma criança e em nada as instruem ou estimulam suas mentes. Os direitos da criança e do adolescente poderiam voltar-se a esse tipo de episódio que não deixa de ser uma agressão moral, estímulo à promiscuidade, pois esses pequeninos nada entendem sobre o que adultos inescrupulosos forçam-lhes a fazer, gostar e praticar. Não deixa de ser um crime contra a moral e aos bons costumes da criança o que poderosas redes de televisões vêm proporcionando a esse público. Quando o que é apresentado não os agridem com programas de baixo calão moral e espiritual, oferecem desenhos violentos que os incentivam às agressões físicas, psicológicas e à destruição de bens materiais. Essa é a origem de incentivo à violência que muitos pais procuram, sem saber, onde seus filhos aprenderam a ser agressivos. Isso acontece porque não acompanham a vida infantil deles e desconhecem o que assistem. Por outro lado, a sociedade questiona o porquê de tanta destruição de patrimônios públicos. Como esses jovens aprenderam ou quem os incentivou à depredação de bens de utilidade do povo como um telefone ou a caixa de coleta de correspondência, entre outras coisas. Muitas vezes, os pais têm como prioridade os bens materiais e não atentam para a formação moral e psicológica de seus filhos e, mais distante, ainda os deixam sem uma religião cristã, independente de qual seja ela, que poderia incentivá-los a Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. Quando os pais exibem os corpinhos de seus filhos, perguntam-lhes sobre suas partes íntimas ou mandam que façam a outros, além de estarem de ridicularizarem o pobre pequenino, expõem seus mais sórdidos e íntimos desejos inferiores através da criança, uma vez que eles próprios não podem fazê-lo diante da sociedade que, com certeza, criticaria. Há coisas muito mais construtivas a serem ensinadas a uma criança. Muitas vezes me pergunto: O que pretendem esses pais e familiares excitadores da masculinidade de um garotinho: que mais tarde seja um inescrupuloso, desequilibrado sexual, valendo-se de machão que, para se auto-afirmar como homem, não respeita as filhas de outros e não se responsabiliza por seus atos? Pretendem eles que, um dia, seus filhos saiam por aí praticando atentado violento ao pudor amparados nos pedidos ouvidos desde pequenos que queriam saber onde ficavam seus órgãos sexuais? Ou será que esses genitores querem que seu filho se torne um desses repugnantes homens assediadores que costumamos encontrar, principalmente nos coletivos, desrespeitando e incomodando mulheres respeitáveis, mocinhas e até meninas pequenas com seus desequilibrados e voluptuosos desejos indecentes e incontroláveis? Será que esses pais desejam que seus filhos, homens, tornem-se valentões, donos de um linguajar extremamente inferior, atraindo para si as espécies mais inferiores e ignorantes de entidades desencarnadas? Creio que não. E quanto aos pais de garotinhas que hoje se exibem com danças eróticas? Querem eles que, mais tarde, sua filha amada, vista seu corpo com decência? Como?! Hoje são eles que a deixam seminua! Como esses pais vão querer que suas filhas cultivem boa moral e boa conduta se hoje eles as exibem como símbolo sexual infantil? Se é a dança, se é a expressão corporal que procuram exercitar, o Brasil, além de ser um país lindo, é rico em cultura de norte a sul. Inúmeras danças folclóricas existem. Seus belíssimos bailados estimulam o corpo e a mente sem denegrir a moral e o espírito, tendo ainda o privilégio de conhecer a cultura, a história e preservar a memória desse maravilhoso país. As músicas e ritmos que embutem um linguajar pobre e de extrema inferioridade, sexo, baixo valor moral e agressão, nenhum benefício acarretam à sociedade. Não necessitamos disso. Não necessitamos que tragam espíritos inferiores dos mais assombrosos abismos para conviverem com a população em geral e, principalmente, instigando os que apreciam esse tipo de linguagem e ritmo musical. Os pais que hoje ensinam ou aprovam a filhinha a esse tipo de comportamento como às danças eróticas e provocativas, saibam eles que mais tarde é exatamente isso o que ela vai fazer. Um dia, um grande espírito disse-me: A criança aprende o que vive. Eu sempre admirei essa frase. No entanto, se essa entidade me permite, gostaria de acrescentar: A criança aprende o que vive e mais tarde viverá exatamente como aprendeu. Toda essa libertinagem a que é induzida e exposta a criança está acabando com a inocência desses pequeninos, guiando-os a um mundo devasso e pervertido que eles não necessitariam experimentar tão cedo. Em pouco tempo, serão adolescentes rebeldes e promíscuos e os pais dirão que não sabem ou não entendem por que isso ocorreu. Essa promiscuidade e liberdade sexual dos adolescentes aumentam consideravelmente o número de meninas sem maturidade que se deixam engravidar. Depois disso, elas procuram, por conta própria e através de medicamentos, assassinar seus filhinhos indefesos ou, então, correm para seus pais e eles, por sua vez, para manterem uma falsa imagem perante a sociedade, pagam para esquartejarem o netinho. Esses pais lamentarão, um dia, por terem sido tão liberais. Não é necessário que crianças enlacem concórdia com moral de pouco valor, com a promiscuidade e muito menos com espíritos inferiores que as prejudiquem na evolução. No entanto, hoje, nossas criancinhas estão sendo forçadas a tais feitos por culpa de seus pais ignorantes ou irresponsáveis que terão muito a chorar, muito a se arrepender, muito a corrigir e harmonizar.

17 - SUICÍDIO E OBSESSÃO, ABORTO: REMORSO, PERDÃO E RECONCILIAÇÃO

Cada dia que passava Túlio, amorosamente, instruía à Camila, mostrando-lhe inúmeros exemplos de amor, fé, compaixão, paciência entre outras virtudes praticadas por inúmeras criaturas encarnadas independentes de suas religiões. Assim como lhe expôs às vistas crimes, violências, intolerâncias e cobiças praticadas por quem diz ter uma religião e Amar a Deus sobre todas as coisas, esquecendo-se do segundo mandamento em que Jesus diz ser semelhante ao primeiro que é Amar ao próximo como a ti mesmo. Certo dia, bem cedo, Túlio procurou por Camila avisando-a:
- Iremos às pressas agora para a casa de Monteiro, aquele amigo com quem seu pai enlaçou amizade, religião e negócios.
- O que há com Monteiro? - quis saber Camila.
- Vamos. Eu te explico depois.
Chegando à casa de Monteiro, Camila e Túlio presenciaram os esforços empreendidos por socorristas espirituais para impedir que Telma, filha de Monteiro, praticasse o suicídio. Depois de aplicar em Telma fluidos magnéticos tranqüilizadores, Genésio, um dos trabalhadores espirituais presentes, voltou-se para Túlio e Camila, cumprimentou-os rapidamente e logo explicou:
- Há muito a jovem Telma está sendo perturbada por um terrível irmão desencarnado que vive na ignorância e não aceita ajuda. Os pensamentos da moça estão voltados para o pior dos desencarnes: o suicídio. Esse espírito sofredor atormenta-a há dias e noites. Raramente, quando anestesiado com nossos passes, ele a deixa ter um pouco de paz.
Telma andava de um lado para outro da casa. Ela estava sozinha. Vez ou outra chorava inquieta e nem mesmo tinha motivos aparentes para isso. Por um instante, Telma sentou-se no sofá e começou puxar seus próprios cabelos aos trancos como se portasse debilidade mental que atingiu o máximo do desequilíbrio, balançando o tronco para frente e para trás agitadamente.
- O que ela tem? - perguntou Camila. - Eu conheço a Telma. Ela nunca foi assim!
- É um caso de obsessão, Camila - esclareceu Túlio comovido.
- Como obsessão? Eu não vejo nenhum outro espírito aqui além de nós - afirmou ela teimosa.
- É necessário que a irmã Camila aguce a visão espiritual, nesse caso, para que possa vê-lo melhor - esclareceu Genésio.
Túlio, para auxiliar, colocou sua destra próxima da fronte de Camila, ministrando-lhe fluidos energéticos que facilitassem sua visão. Em poucos segundos, Camila surpreendeu-se assustada:
- O que é isso?!
- É um abortado - respondeu Túlio de forma triste.
Havia em Telma uma grande mancha escura, na parte espiritual chamada duplo etérico ou perispírito, o corpo espiritual que envolve o espírito. Este é uma substância que parece vaporosa para os encarnados. Nessa mancha existia uma figura torcida e deformada lembrando um rosto humano. Observando com mais atenção, Camila pôde ver, colado ao útero de Telma, um corpinho espiritual em estado fetal apresentando-se de forma irregular, deformado e trazendo em seu aspecto imensa queimadura e cortes. Quando esse corpo espiritual percebeu a presença dos socorristas, começou a urrar desesperado. Ele era o espírito abortado.
- Sumam! Sumam daqui!! - gritava a infeliz criatura. Nesse instante, Telma começou a chorar e a se debater esperneando.
- Vê, Camila. O abortado transformou-se em obsessor - informou Túlio.
- Mas os abortados são socorridos, não são? - perguntou ela.
- Em alguns casos sim. Eles são levados a Postos de Socorros especializados em casos de abortados ou rejeitados, como queiras, mesmo assim têm o livre-arbítrio, que é o direito de escolha. Podem voltar ao plano físico para junto de quem quiserem, como de seus assassinos, e passarem a atormentá-los, como o que está acontecendo agora. Há casos de aborto em que os socorristas não conseguem levar o abortado para ser auxiliado. No instante do desligamento do corpo, ele se liga a sua mãe e ninguém consegue tirá-lo de lá.
- O que ele pretende fazer com Telma?
- Quer vingar-se do assassinato.
- Ele pode fazer isso?
- Matá-la, não. Porém os sofredores do plano espiritual desejosos de vingarem-se dos encarnados operam da seguinte forma: primeiro entram na mesma freqüência vibratória dos pensamentos do encarnado. Depois lhe dizem coisas que o encarnado acredita serem idéias sua. 0 quanto antes, o espírito inferior e vingativo quer que o encarnado se prejudique, por isso passa-lhe idéias agressivas, principalmente. Quando esses pensamentos começam a penetrar na casa mental do encarnado e ele passa a aceitá-los, temos o que tu estás vendo ocorrer com Telma.
- Pobre Telma, acreditando que esses pensamentos são dela - apiedou-se Camila.
- Sem dúvida - afirmou Túlio. - Quando o encarnado se desespera, nunca consegue perceber que tais desejos e pensamentos pertencem a um obsessor.
Nesse instante, o abortado chorava e mesmo com a voz rouca, forte e descontrolada, dizia:
- Assassina!!! Tu me mataste sem dó nem piedade!!! Tu me queimaste e, não contente porque não morri, cortaste-me aos pedaços e jogaste-me no lixo. Até hoje todo o meu corpo dói!!! Assassina!!! Só vais livrar-te de mim quando morreres da mesma forma que me mataste!!! Só te livrarás de mim quando morreres!!!
Telma só pensava em morte, em suicídio. Chorava, gritando de forma desesperadora. Não podia ouvi-lo, porém captava seus sentimentos e pensamentos. Ela sentia-se rejeitada, improdutiva, inútil no mundo. Uma grande angústia e enorme descontrole corroíam-lhe a alma. Muitos clínicos chamariam esse estado de depressão ou loucura. Sob a visão e entendimento espiritual, chamamos de obsessão. Os trabalhadores aplicavam-lhe passe, mas a falta de fé e ignorância da moça não deixavam tais fluidos fazerem efeito.
- O que poderia ajudar Telma, Túlio? - perguntou Camila muito preocupada.
- Se Telma compreendesse o motivo de seu sofrimento, se ela entendesse como e onde errou e desejasse mudar essa situação, ajudaria muito o plano espiritual. A auto-ajuda, o verdadeiro desejo de contribuir com o plano invisível para harmonizar uma situação de tormento, auxilia imensamente a evolução e o esclarecimento das duas partes envolvidas: encarnado e desencarnado. Telma, apesar da religião, não se apega em Deus nem nos ensinamentos de Jesus. Isso dificulta muito o trabalho da espiritualidade.
- Eu nem mesmo sabia que Telma havia feito um aborto - disse Camila.
- Ela o fez porque Monteiro, seu próprio pai, levou-a a uma clínica. Porém foi Honório, teu pai Camila, quem o incentivou a isso.
Camila assustou-se e parecia assombrada por ignorar o fato. Nesse instante, Telma começou a quebrar tudo o que havia naquela sala. E, infelizmente, a jovem estava sozinha em casa. Indescritivelmente revoltado, o espírito abortado urrava seus desejos de vingança, seus lamentos e suas determinações de suicídio aos pensamentos da moça, e tais idéias eram cada vez mais aceitas por ela. Vendo que a situação perdera o controle e pressentindo o pior, o experiente espírito Túlio aconselhou:
- Vamos embora, Camila. Deixemos os outros irmãos tarefeiros espirituais cuidarem disso.
- Não, Túlio. Por favor! Deixa-me tentar falar com ela!
- Não é meu desejo subestimar-te. No entanto creio ser difícil Telma atender a alguém agora. Quero poupar-te de cenas horríveis de se verem e difíceis de serem esquecidas.
O espírito Camila não se importou com a orientação do instrutor. Aproximando-se de Telma, tentou envolvê-la com sugestões. Foi louvável sua atitude, mas errônea a desobediência daquele que, sabiamente transmitia-lhe conhecimento salutar. Entretanto percebeu-se que ela só quis ajudar. Apesar do momento crítico, não queria dispensar qualquer possibilidade ou alternativa. Porém foi em vão. Telma não a ouvia. Num ato súbito de desespero e loucura, a pobre Telma foi ao banheiro, despejou um litro de álcool sobre si mesma e ateou-se fogo. A cena foi horrível. Telma, em chamas, gritava e urrava, mas o fogo propagou-se com facilidade pelas roupas. Não havia modo de ela apagá-lo. Gritou por muito tempo no plano físico pelas dores horríveis das graves queimaduras que levaram à morte de seu corpo de carne. Seus berros de angústia e extrema dor no plano espiritual, através do que vivenciava em seu perispírito, prosseguiram de forma triste, aflitiva, demorada e lastimável. O espírito Telma não conseguiu se desligar do corpo físico, ficando presa a ele por meios violentos: pela ação de sua própria consciência. Ao mesmo tempo via o plano espiritual e sentia as dores severamente graves das queimaduras que provocou para matar o corpo que lhe fora emprestado para aquela reencarnação. O abortado, logo que se deu o início do suicídio, separou-se de Telma imaginando o seu corpo desprendido. Mas seu estado consciencial, nada elevado, plasmou seu perispírito tortuoso, maior e monstruoso. O pobre espírito abortado, sofredor e vingativo permaneceu ao seu lado, olhando-a queimar. Vendo que ela continuava em sofrimento medonho no plano espiritual, ele dizia-lhe:
- Desgraçada!!! Foi isso o que eu senti!!! É isso o que eu sinto!!! Tu me assassinaste dessa forma!!! Sofre muito, infeliz!!! Eu agora tenho meu outro assassino com quem vou acertar as contas!
Manco e cambaleante, o abortado saiu quase se arrastando. Camila recorria a Túlio, implorando:
- Por favor, Túlio, desliga-a do corpo. Acaba com esse sofrimento.
- Não podemos, Camila. Sinto imensamente, mas não podemos.
- Por quê?!
- Não somos trabalhadores ou técnicos no campo do auxílio ao desligamento por essa opção de desencarne. Em breve, eles chegarão e verão o que pode ser feito.
- Como os técnicos verão o que pode ser feito? Deveriam desligá-la e terminar logo com isso!
- Foi suicídio. Mesmo que seja desligada do corpo físico, as dores das queimaduras não cessarão. Vivenciará continuamente o desespero do que provocou a si mesma. Acredito que não será feito nada, pois foi livre-arbítrio. Ela matou o corpo que lhe fora emprestado por um período que não havia chegado ao fim, antecipando, propositadamente, a morte desse físico. Os técnicos em desligamento para os desencarnados através do suicídio chegarão e a examinarão para saber como poderão ajudada. A ninguém é negado o socorro, mas, como já disse, não somos técnicos para avaliar o caso. O corpo físico de Telma estava inerte no chão, irreconhecível e ainda com chamas. Enquanto o espírito da moça debatia-se pelas queimaduras, seus olhos esbugalhados num rosto desfigurado com aspecto de derretido pelas chamas. Ela gritava pedindo socorro, porém ninguém, em nível do plano físico, podia ouvi-la. Depois de alguns minutos, um vizinho sentiu um forte cheiro de queimado e, ao ver a fumaça que saia pela janela chamou os bombeiros que logo, ao chegarem, localizaram o corpo.
- E agora, Túlio? - perguntou Camila extremamente triste.
- Virá uma equipe espiritual para dar auxílio e amparo aos pais e familiares. Lógico que será de acordo com o nível espiritual, entendimento e receptividade deles que receberão tais benefícios, apesar da deplorável situação. - Sentido, ele a chamou: - Vamos, Camila.
Chegando à casa de Dora, Camila sentia-se triste. Vendo-a muito pensativa, Túlio aproximou-se e perguntou com terna preocupação:
- Precisas de ajuda?
- Estou refletindo sobre tudo o que presenciei desde quando desencarnei. Choquei-me com muitas coisas que ignorava existirem, embora, na espiritualidade, no passado, já ter estudado muito a respeito.
- Estamos em constante aprendizagem, querida Camila. Nunca sabemos o suficiente. O dono da sabedoria e da verdade é o nosso Irmão Maior: Jesus.
- Túlio, se é que podes me explicar, gostaria de saber o que uma mulher deveria fazer caso ela já tenha errado cometendo um aborto e só veio saber de tamanho erro depois de já tê-lo consumado?
- Uma verdadeira reforma íntima - respondeu Túlio sabiamente. - Ao descobrir que errou, tem de haver nessa mulher o verdadeiro arrependimento. Terá de sentir uma imensa vontade de mudar tudo o que foi feito. Sabe aquele sentimento que nos abate corroendo por dentro e que nos faz desejar imensamente termos feito tudo diferente? - Camila acenou a cabeça positivamente e ele continuou: - Então, é isso. É esse o desejo que ela tem realmente de sentir. Já que depois de tudo consumado não se pode mudar a situação, essa mulher deve, através de seu arrependimento e vontade de mudar, pedir perdão a Deus e propor-se aos trabalhos dignos, nobres e edificantes do Evangelho. Ela deve sentir amor pela criatura que prejudicou com o aborto, mas sentir muito amor mesmo! E indispensável também cultivar, ensinar e exemplificar a compaixão e o perdão a todos, sem exceção.
- E se mesmo assim o ou os abortados quiserem vingar-se e prejudicá-la com a obsessão?
- Ela terá de ter uma fé inabalável acima de tudo. Não se deixar abater pelos mais fortes "ataques", pois com toda a certeza, a partir do momento que passar por essa transformação íntima, desejar mudar, lamentar o que fez, querer corrigir a situação, já será amparada e auxiliada pelo plano espiritual superior. Quando ela se orientar através do Evangelho e praticá-lo com amor, já se estará socorrendo com a ajuda do plano superior, estará se renovando e buscando sua elevação espiritual, ligando-se a Deus. Se, junto a tudo isso, a mulher ou quem quer que seja se expuser a um tratamento espiritual em um Centro Espírita, encontrará mais facilidade de entender e saber como agir. Sem contar que os mentores terão melhores condições de amparada, auxiliada, socorrêda. Ela deve envolver com muito carinho e imenso amor, aquele ou aqueles que rejeitou através do aborto. Necessita, humildemente, pedir-lhes o perdão. Precisa orientá-los, ampará-los, ajudá-los a sair do vale tenebroso de vingança que os revoltados se encontram. Se não for um espírito abortado vingativo, suas preces vão ajudá-lo a se recompor incrivelmente. Através de seus pensamentos, ela pode passar-lhe o seu amor e mostrar-lhe o amor de Deus pelos ensinamentos de Jesus.
- Quer dizer que se deve ler o Evangelho para eles? - perguntou Camila.
- Por que não? Ela deve ler tanto o Evangelho como outras leituras clássicas da espiritualidade que esclareçam o amor de Jesus. Além disso, devem-se dar explicações sobre o que leu em voz alta, de forma calma e pausada como se estivesse lecionando em uma sala de aula, falando com os filhinhos queridos. Os espíritos escutam tudo o que os encarnados dizem. Esqueceste?
- Só para lembrar, o Evangelho deve ser lido quando sentirmos um incômodo nos pensamentos. Isso pode ser influência de irmãos sofredores. Com esse tipo de leitura e explicação, esses irmãozinhos terão a oportunidade de compreender o que lhes ocorre e será mais fácil colocarem-se à disposição para um tratamento em colônias apropriadas, deixando o encarnado livre do sofrimento.
- Isso seria como o perdão de Deus, não é, Túlio?
- Não. O perdão é alguém ficar livre de encargos por danos que tenha causado a si ou a outro. Nesse caso de transformação íntima, a mulher estará reformando suas ações, modificando suas atitudes e pensamentos, trabalhando para conseguir um objetivo: livrar-se do sofrimento. Porém antes de se libertar desse sofrimento terá de trazer alívio às dores aquele que prejudicou. Isso ocorre através do amor, do perdão, da compaixão, da fé, da dedicação ao bem, à paz, à concórdia em todos os sentidos. Praticamente, precisará reverter o quadro obsessivo, ou seja, em vez de aceitar o que seus obsessores lhes dizem sobre dor e sofrimento, de ficar ouvindo-os falar e aceitar o que dizem como se fossem seus pensamentos, ela terá de impregná-los com amor, fé, carinho, ensinamentos do bem, perdão, mesmo que não esteja se sentindo obsedada, pois quando o abortado é socorrido para uma colônia de rejeitados, ele não permanece junto à mãe para perturbá-la, como eu já disse. Mas poderá haver mágoa, trauma, tristeza... Ele poderá sofrer no perispírito a tortura do aborto à qual foi submetido. No entanto os sentimentos que sua mãe tiver de arrependimento pelo ato praticado, chegará até ele e tu não imaginas como esse tipo de sentimento e pensamento muda o estado espiritual de um rejeitado. Quando lhes chega à colônia uma prece, o sentimento de amor, fé, carinho, transformam-se sensibilizados e passam a nutrir sentimentos muito mais edificantes. Quando as mães encarnadas lêem para eles trechos do Evangelho, essas leituras os alcançam na íntegra. Há, inclusive, técnicos na espiritualidade que se esforçam no trabalho de fazerem-nos ouvir até a voz de seus genitores, eles conseguem captar também todas as emoções só para levarem como mensagem para o auxílio do tratamento do irmãozinho rejeitado, necessitado e carente. Isso é de imenso valor e elevação espiritual. E um resgate maravilhoso. O ser humano ainda não entendeu quando é dito no Evangelho do Senhor: "Bem-aventurado os que choram porque serão consolados. Bem-aventurado os que têm fome e sede de justiça porque sereis fartos. Bem-aventurados os que agora chorais porque rireis". O que chora por arrependimento sempre busca a Deus, sempre sai à procura dos ensinamentos, com isso ele aprende, evolui, corrige e auxilia os outros. Esse é o que verdadeiramente chora. Os que têm fome e sede de justiça são aqueles que divulgam e exemplificam os verdadeiros ensinamentos Divinos de Jesus para que as injustiças do mundo não prevaleçam. Aquele que realmente lamenta o que fez de errado corrige seus erros e auxilia os outros, um dia, rirá farto com glória por ter sanado tudo o que se fez necessário corrigir. Porém quando é dito: "Ai de vós, ricos, porque tendes no mundo a vossa consolação", faz-se um alerta àqueles que cultivam riquezas porque ninguém viverá no mundo por muito tempo. "Ai de vós que estais fartos porque tereis fome", é um alerta aos que não repartem o que tem, não se apegaram aos valores religiosos e cristãos, não dão importância aos ensinamentos de Jesus, um dia sentirão imensa falta deles. "Ai de vós que agora rides porque um dia chorareis e gemereis", alerta aos que se livram de situações de maneira criminosa ou leviana e depois se comprazem nos prazeres da carne, no conforto material abusivo, na prática do mal, um dia lamentarão muito os seus feitos, suas ousadias.
Camila ouvia atenta e Túlio, depois de uma breve pausa, prosseguiu:
- Eu conheço um caso curioso sobre pais que se arrependeram do aborto. Um casal, que já possuía um casal de filhos, negou a vida a um terceiro, assassinando-o com o aborto.
Com o passar dos anos, esse casal, através do Espiritismo, tomou ciência da gravidade de seu erro. A mulher, quando soube o que acontecia com o espírito ao ser abortado, chorou inconformada. Se a idade lhe permitisse, ela teria mais um filho para reparar seu erro. Porém isso não lhe era mais possível. Com remorso, o casal apegou-se ao Evangelho buscando alívio para a dor que sentia. Passaram a orientar outras pessoas sobre o assunto, a gravidade e as conseqüências do aborto. A mulher passou a tirar alguns dias da semana para trabalhos voluntários em creches e orfanatos que cuidavam de crianças carentes. Sempre, em suas preces, eles rogavam perdão a Deus pelo que haviam praticado e direcionavam pedidos de perdão ao espírito a quem negaram a vida, procurando enviar-lhe pensamentos nobres, envolvendo-o com amor e carinho. Faziam-lhe preces e leituras para que ele compreendesse a ignorância e aceitasse o remorso de ambos, além dos pedidos de perdão. Todos os sentimentos do casal chegaram até a criatura que fora rejeitada por eles. Assim um belo processo de transformação se iniciou. A mágoa, a angústia e a revolta transformaram-se em amor, esperança e compreensão. A mudança ocorrida em sua mente foi tamanha que seu perispírito, que se encontrava deformado sinalizando ainda os sofrimentos do seu assassinato, moldou-se em forma e tamanho normais, e o espírito, por sua vez, começou a nutrir sentimentos de amor sincero aos pais que o rejeitaram. Mais tarde, essa criatura reencarnou como neta desse casal que a amava de forma incompreensível. Com a necessidade de trabalho da nora, o casal, maravilhado, foi quem tomou conta da querida netinha. O mais curioso nisso tudo foi que eles, sem conhecimento da situação, oravam duas vezes pela netinha: uma quando enviavam seus sentimentos de remorso, amor e esperança à criatura que eles rejeitaram e outra quando oravam pela própria neta, desejando-lhe toda a bem-aventurança possível. Quando a compreensão do erro lhes fez chorar e o remorso corroeu-lhes, eles buscaram a Deus e através do reconhecimento do erro, o trabalho no bem, eles mostraram-se arrependidos, por isso riram com a chegada da netinha e serão consolados ao descobrirem tudo o que fizeram e as conseqüências. "Bem-aventurados os que choram porque serão consolados". Dentro de uma existência podemos errar e procurar corrigir sem que sejamos dolorosamente punidos para acertarmos o que fizemos de errado.
- Obrigada, Túlio. Aprendi tanto contigo. Parece que te conheço há tanto tempo... - disse Camila emocionada, experimentando um sentimento indefinido. Túlio, por sua vez, somente sorriu.
- Sabes, Túlio, hoje eu compreendi que tudo o que me aconteceu não foi por culpa de meu pai. Eu errei. Omiti-me ao presenciar situações acontecendo rapidamente a minha volta e, lamentavelmente, não fiz nada. Recusei-me a servir ao bem, ao próximo por puro comodismo. Tive medo do trabalho. Não assumi minhas responsabilidades. Deixei tudo para os outros. Não cometi erros graves, porém não edifiquei nenhuma tarefa para o bem do próximo. Independente da religião, eu poderia ter ajudado muita gente. Poderia ter, simplesmente, conversado com aqueles que chegavam desorientados diariamente à igreja em busca de amparo. Poderia ter orientado os que lamentavam injustamente com assuntos cansativos e depreciativos. Deveria ter ensinado o irmão crítico a agir com mais benevolência. Poderia ter barrado as conversas depreciativas, edificando com nobres e elevados conceitos o assunto vigente, a começar dentro da minha própria casa. No Posto de Socorro espiritual, ao ser recebida por meu tio Alfredo, através de meu vocabulário e pensamentos indignos àquele plano espiritual, afastei-me do socorro porque não igualei minhas vibrações com o bom nível espiritual existente ali, por isso retornei à crosta da Terra. De volta ao plano físico, ao reconhecer meu desencarne, cultivei profunda mágoa e rancor pelo meu pai, em vez disso deveria ter compreensão e amor. Infelizmente não compreendi a orientação que me deram e continuei julgando, reclamando e culpando-o por minhas atuais condições. Reconheço, agora, depois de tudo o que vi, que não estou em situação tão ruim assim. Se estou aqui presa à crosta da Terra, tenho de agradecer imensamente a Deus e aos amigos espirituais superiores por não estar em condições deploráveis e inferiores como alguns irmãos que vi ou por não ter sido incomodada por espíritos de pouca instrução ou mesmo por não ter ido parar no Umbral onde, com certeza, estaria sofrendo. Mesmo presa à crosta e sentindo-me desorientada, fui socorrida, aqui, neste Posto de Socorro Terreno. Fui amparada, orientada e muito bem tratada. Envergonho-me das reclamações que teci. Depois de longa pausa e profundo silêncio, ela prosseguiu:
- Túlio, agradeço teus esforços para que eu pudesse reformular meus sentimentos e pensamentos. Hoje percebo e entendo que fui eu quem errou. A meu pai tenho que agradecer a oportunidade que me deu de reencarnar, não me deixando sofrer como tantos outros. Queira Deus que ele encontre orientação e consiga o quanto antes arrepender-se e corrigir suas falhas. Ele é um homem dotado de muita perseverança. Possui imensa força espiritual que, quando for voltada para o bem e para o amor, sei que será um grande e valioso trabalhador nesse sentido. Nesse instante, lágrimas rolaram na alva e bela face de Túlio. Emocionado, quase sem conseguir argumentar, ele a congratulou:
- Parabéns, Camila! Tu realmente entendeste o motivo de ter ficado na crosta da Terra sem ir para um plano inferior ou superior. Tu és um espírito elevado que se deixou adormecer quando encarnada e desencarnada também. Faltou-te o perdão sincero para aquele que te tenha ofendido. - O espírito Túlio pareceu iluminar-se ainda mais e alertou: - Lembra-te sempre de agradecer a Deus por não ter colocado em nível inferior após o desencarne por falta desse grande sentimento, que é o perdão. Por favor, não fiques assim! - pediu ela por nunca tê-lo visto daquela forma. - Tive tudo o que mereci.
- Não te subestimes, querida. Cada qual tem de acordo com os méritos: não mais, não menos.
Camila chorou emocionada, abraçando-se ao amigo e instrutor que afagou seu rosto com carinho
- Sabes, Camila, tu deverias ter te lembrado das palavras do nosso irmão maior: "Bem-aventurados os misericordiosos porque obterão misericórdia" Mateus cap. V, 7 - "Se perdoardes aos homens as faltas que cometeram contra vós, também vosso Pai Celestial vos perdoará os pecados. Mas se não perdoardes aos homens quando vos tenham ofendido, vosso Pai Celestial também não vos perdoará os pecados". Esse versículo ninguém explicou tão bem quanto Kardec, quando no capítulo X de O Evangelho Segundo o Espiritismo, diz-nos: "A misericórdia é complemento da brandura, porém aquele que não for misericordioso, não poderá ser brando e pacífico. A misericórdia consiste no esquecimento e no perdão das ofensas. O ódio e o rancor é o símbolo da alma sem elevação e sem grandeza. O esquecimento das ofensas é próprio da alma elevada que paira acima dos golpes que lhes possam desferir. Ai daquele que diz: nunca perdoarei. Esse, se não for condenado pelos homens, sê-lo-á por Deus". - Em seguida Túlio comentou: - Creio que ninguém mais, além de Kardec, poderia explicar de forma tão inteligível as palavras do Mestre Jesus.
O espírito Túlio parou por longos segundos fitando os lindos olhos de Camila, parecendo invadir seu âmago com um sentimento que atingiu o mais alto grau na escala dos valores morais. Ela experimentou algo nunca vivenciado antes e, sem que esperasse, ouviu-o dizer:
- Eu te amo muito, filha querida, minha Camila.... Com toda força do meu ser. Eu te amo muito, filha. Venho procurando-te há tempo... - ele chorou, silenciando.
Em meio às lágrimas, ela se declarou:
- Não sei de onde te conheço nem como explicar o que sinto por ti. Mas posso afirmar que te amo também. Como se tu foste um ente querido, um pai espiritual... Por que não me encontraste antes?
Afagando-lhe a face, ele confessou bondoso:
- Eu te encontrei, mas tu não me podias ver. Por acréscimo de misericórdia e bondade permitiram que eu retornasse à crosta terrestre para acompanhar-te e instruir-te o quanto possível. Se queres saber, isso fora idéia e pedido do nosso nobre Inácio, o operoso tarefeiro responsável e administrador do Posto de Socorro no qual foste atendida. - Breve pausa, na qual Túlio tentava reprimir a emoção exibida pelas lágrimas, e ele contou: - Eu fui teu pai há séculos, minha querida. Foste fruto de especial afeição entre mim e minha querida amada espiritual. Posso falar em nome dela, que se encontra em elevada condições espirituais, que te amamos imensamente. Tentamos ajudar-te, mas por força de tua vontade te desviaste do caminho de boa moral e precisaste aprender através das experiências mais diversas. Hoje sei que estás preparada, pois apresentas verdadeira vontade de evoluir, com resignação e sabedoria, aceitando os desígnios de Deus. Amo-te como filha espiritual e sei que o elevado espírito que foste tua mãezinha no passado ama-te como eu e está muito feliz com teu despertar para a elevação. Eu sei disso por que sinto. Posso sentida. Não existe distância ou barreiras entre aqueles que se amam.
Abraçando-o firme, ela não tinha o que dizer. Deixou que as lágrimas de júbilo lavassem seu coração, tirando-lhe os pesares.

18 - O REENCARNE DE TÚLIO

Na manhã seguinte, bem cedo, Luana foi à procura de Camila no alojamento.
- Bom dia! - Após ouvida retribuir o cumprimento, avisou: - Túlio pediu-me que te chamasse. Ele precisa ter contigo.
Ela apressou-se. Ao chegar à sala de estar, surpreendeu-se emocionada. Seus olhos encheram-se de lágrimas e como que num suspiro, ela falou:
- Tio Alfredo! - Correndo, foi ao seu encontro abraçando-o. Emocionada, desculpou-se: - Perdoa-me por ter-te tratado daquela forma tão agressiva julgando-te inferior espiritualmente. Eu não atentei aos bons princípios e julguei querendo-te condenar. Perdoa-me.
- Claro, Camila. Eu te compreendo - disse Alfredo.
- Como é bom te ver, tio!
- Como é bom tu me veres agora - avisou Alfredo sorridente.
- O senhor esteve aqui, viu-me?!
- Inúmeras vezes, filha. Não só aqui como na casa de Honório quando tu, ao confirmar teu desencarne, sentiste-te ao desamparo e dominada por imensa dor. Quando encontrou Dora, eu te sugeri que a seguisse e tu o fizeste. E também quando o ilustre amigo André se fez ver e passou a ajudar-te expondo-te a tua atual situação, ali, ao lado de ti, eu estava ministrando-te passes magnéticos. Agora tu elevaste tuas condições espirituais, por isso me vês, como também aos outros que ignoravas estarem aqui.
- Sinto-me envergonhada, tio!
- Não deixes a vergonha abater-te nem o orgulho dominar-te. Procura manter o coração feliz e satisfeito pela maravilhosa evolução conseguida.
- Todos me ampararam, orientaram-me...
- Nós podemos ter feito isso, porém tu tiveste o direito de escolher e fazer o que quisesses. Seria fácil não dares atenção às orientações recebidas e saíres por aí enlaçando amizade com espíritos inferiores. Seria fácil tu te ligares a Honório, revoltada em busca de vingança por tudo o que te ocorrera. Ninguém te prendeu nessa oficina abençoada, que é o lar de Dora e de meus amados filhos. Foste tu quem decidiu ficar e aceitar tuas condições até compreenderes o que te falavam. Aceitaste o proposto e, acima de tudo, desenvolveste dentro de teu coração o sentimento necessário para tua evolução e o devido socorro.
Camila, com um suave sorriso no rosto, acenou a cabeça positivamente depois disse:
- Como posso agradecê-los?
- Vindo comigo e com Túlio para a Colônia Espiritual.
- Para uma Colônia?! - espantou-se ela, incrédula. - Não pensei que isso seria tão breve!
- Se estiverdes prontos, poderemos ir agora! - completou amavelmente Alfredo.
- Túlio, tu também irás?! - perguntou ela com imensa alegria.
- Sim, Camila. Se não te incomodares com minha companhia... - respondeu ele brincando.
- Imagina!... Tu me ajudaste tanto. Pensei que ficarias aqui, pois percebi que não tens somente o trabalho lá na praça.
- Devo te dizer que aquela tarefa na praça, que amo muito, foi um meio de chamar a tua atenção, assim como a aparência jovial com a qual me apresentei, pois tu ainda apreciavas a beleza da matéria vista através das enganosas percepções dos sentidos físicos e não espirituais. As demais tarefas serviram de humilde ajuda a outros tarefeiros espirituais e para tua instrução, compreensão e o descortinar do véu do perdão a todos que, um dia, possam ter-te ofendido. - Alguns segundos de reflexão e Túlio avisou: - Outros abnegados companheiros já assumiram os modestos, mas respeitosos serviços que pude prestar enquanto estive aqui. Retornarei para a Colônia porque tenho alguns últimos preparos a fazer. - Sorrindo largamente, contou: - Dirceu, filho do nosso amado Alfredo, prepara-se para contrair matrimônio com uma adorável moça e eu terei a honra de ser seu primogênito!
- Tu serás neto de Dora?! - surpreendeu-se Camila com um misto de alegria e preocupação.
- Sim. Mais uma vez estarei aconchegado nos braços da querida Dora, só que desta vez como seu neto.
Camila, refletindo de forma lógica e rápida, concluiu:
- Túlio, tu eras o outro filho que Dora tinha na encarnação em que ela se chamava Lavínea e tio Alfredo chamava-se Nicolau?
- Sim, Camila. Naquela época eu fui o terceiro filho desse nobre casal. Agora serei seu neto.
- Afinal, Camila - interferiu Alfredo sorrindo -, todos precisamos... vamos dizer... de um "herdeiro espiritual" para dar continuidade ao trabalho que começamos na área da edificação do Evangelho e da Doutrina Espírita. Túlio, reencarnado como filho de Dirceu, dará continuidade a essa tarefa, até que daqui há uns vinte e poucos anos... eu possa voltar à Terra, como filho de Túlio, para prosseguir com esse maravilhoso trabalho que abraçamos.
Camila, estarrecida, começou a entender que tudo, exatamente tudo no plano espiritual, já é previsto e premeditado o quanto possível.
- Que maravilha, tio! Eu não imaginava... E quando Túlio reencarnará? - quis saber com algo triste na expressão.
- Não se sabe ao certo - respondeu Túlio sorrindo, adivinhando-lhe os pensamentos. - Isso pode acontecer a qualquer momento. Alguns namoros, hoje em dia, aceleram o reencarne. Por essa razão, quando sabemos quem são os pais e ao percebermos que eles se aproximaram e se apaixonaram, partimos o mais rápido possível para uma preparação reencarnatória, pois isso poderá ocorrer a qualquer momento e não podemos perder a oportunidade - riu com gosto.
- Parabéns, Túlio por ir para uma família tão maravilhosa quanto a de Dora. Tu tens por merecer - cumprimentou ela sem muita empolgação, pois sentia como se perdesse um amigo ou se afastando do pai amoroso que tanto a orientou.
- Espero conseguir cumprir os objetivos do meu reencarne. Queira Deus que eu possa vencer todos os obstáculos sem desviar-me do caminho de luz e amor que Jesus nos deixou para seguir.
- Será conforme o planejado, Túlio! - afirmou Alfredo convicto - Tu tens capacidade, preparo e grande elevação, meu querido. Deus e os espíritos superiores te darão amparo e sustentação a todo instante. Tem fé!
Túlio sorriu, completando alegremente:
- Queira Deus que eu te tenha nos braços, meu amado Alfredo! E como filho querido, consiga te passar com muito amor todos os ensinamentos Cristãos que te servirão de sustento para dares continuidade a tão belo trabalho da doutrina cristã que tu mesmo iniciaste.
- Assim será, Túlio! Tenhamos fé! - tornou Alfredo. Repleto de esperanças e bênçãos Divinas, Túlio e Camila seguiram Alfredo para a Colônia Espiritual onde começaram a se preparar, cada qual para sua distinta tarefa.
Mesmo em lugar de verdadeira elevação e paz, houve várias surpresas para o espírito Camila. Conforme o planejado, Túlio nascera como filho querido de Dirceu e neto de Dora. Túlio, agora encarnado, recebera o nome de Tadeu por escolha de sua amada avó que tanto o mimou e ensinou. Quando Tadeu tinha dez anos, Dora desencarnou dormindo por causa de uma parada cardíaca. Quinze anos depois do desencarne de Dora, Tadeu levava para seu pai conhecer uma simples e encantadora jovem. Apesar da pouca idade, a bela Cíntia, apresentada a toda família como namorada de Tadeu, era uma moça muito carismática e de uma singela beleza espiritual. Júlio, que tanto se determinou e conquistou merecidamente a graduação de médico, já havia trabalhado muito em prol do sustento da família e em prestimosos atos caridosos que realizava com excelso amor. Júlio já casado, vivia muito bem uma vida aconchegantemente simples, ao lado de sua companheira amada e quatro filhos moços. Certa vez, como sempre fazia, Dirceu solicitou pelo irmão e amigo a fim de conversarem um pouco.
- É, Júlio - dizia Dirceu pensativo -, acredito que eu já esteja ficando velho. O Tadeu está namorando, daqui a pouco casa... Chegarão os netinhos... Não sei, não...
- Dirceu, dá-te por realizado! Alias nós devemos nos dar por realizados! Demos continuidade aos grandiosos trabalhos espirituais de nossos pais levando o entendimento do Evangelho redentor a muitos! Tivemos a oportunidade abençoada de fundar uma bela creche, que é mantida graças ao trabalho comunitário de nossa grande família e de nossos maravilhosos amigos encarnados, lembrando a sustentação que temos dos amigos espirituais, claro! Tudo isso realizado com honestidade, abnegação e muito amor, muito amor!...
- Júlio, não imaginas como me sinto realizado, só por colocar a cabeça tranqüila no travesseiro enquanto durmo. Rogo a Deus que ilumine nossos filhos para que dêem continuidade a esse belo trabalho.
Dirceu e Júlio não podiam ver, mas naquele exato momento chegavam, ali, os espíritos Dora, Alfredo e Camila. Dora aproximou-se dos filhos e abraçou-os com carinho. Mesmo sem vê-la, eles puderam sentir que uma imensa dose de energia benéfica os envolveu. Júlio deu um longo suspiro e sorriu sem motivo aparente. Entendendo-o, Dirceu não disse nada por experimentar a mesma sensação. Ambos, extremamente emocionados, calaram-se ou chegariam às lágrimas. O espírito Camila, por sua vez, comentou:
- Eles sempre foram unidos! Que lindo!
- É verdade, filha. São almas afins, ou melhor, fazem parte de uma bela família espiritual - explicou Alfredo satisfeito.
Nesse instante, entrou naquela sala uma senhora chamando Júlio para medicar uma das crianças da creche que estava febril. Rapidamente ele levantou e se foi para prestar os cuidados necessários ao pequenino. Examinando e medicando a criancinha, o doutor Júlio comentou:
- Ainda bem que ele teve febre, agora, enquanto estou aqui. Eu já estava quase de saída para o hospital. Trabalharei hoje até bem tarde. Se ele não melhorar, liga-me imediatamente, certo?
- Podes deixar, doutor! - afirmou a nobre senhora muito prestativa.
- Camila - perguntou Dora -, tu sabes como começou esta creche?
- Não. Eu estava longe da crosta, em estudo, e desconheço sua origem.
- Dirceu era sócio de uma imobiliária e lá havia uma moça empregada como auxiliar de escritório que se chamava Penha. Isso aconteceu pouco depois do reencarne de Túlio, ou melhor, Tadeu - Dora riu de si mesma. Depois continuou: - Essa moça engravidou do namorado que não quis assumir a responsabilidade de seus atos e abandonou a pobrezinha, que procurou a ajuda de Dirceu. A jovem sabia que Júlio era médico e pensou na possibilidade de ele fazer-lhe o aborto por um preço razoável, uma vez que ela não tinha condições de pagar o que lhe fora pedido por outros profissionais.
Dirceu levou Penha lá para casa e a deixou conversando com Júlio, sem nada dizer a ela sobre nossa filosofia, religião ou sobre os conceitos e conhecimentos que temos sobre o aborto. Júlio sempre ficava... de certa forma... irritado, ou melhor, indignado quando alguém lhe pedia que assassinasse um bebê em formação. A moça foi surpreendida por uma série de argumentações feitas por Júlio para que ela deixasse seu filho nascer. Por fim, meu filho pediu a criança para ele, como fez com a pobre Sissa, que, em vez de dar a criancinha, preferiu matá-la. A moça ficou confusa, sem saber o que fazer, e temerosa de realizar o aborto. Ela contou aos pais, mas eles não aceitaram a gravidez e a expulsaram de casa. Penha passou a morar na casa de uma amiga e continuou trabalhando com Dirceu e seu sócio que a ampararam em tudo: médico, hospital, exames, remédios, roupas. Dirceu até fez com que ela fosse ao Centro Espírita por várias vezes. Próximo de dar à luz um bebê, Penha acabou por ficar sem onde morar. No início ela ia para a casa da amiga somente para dormir. Entretanto, no final da gravidez, necessitava ficar de repouso durante algumas horas por dia, o que estava incomodando imensamente a família da amiga. Revoltada, Penha procurou por Júlio numa noite de chuva e, toda molhada, bateu a nossa porta. Ela dizia frases fortes e baixas do tipo: "Se tivesse matado, quando ainda era pequeno, ele não estaria me atrapalhando a vida como está!". "Tu me disseste que o queria para criar, para eu dado a ti que tomaria conta dele! - Por que não começas agora?!"
- Júlio, como sempre muito calmo, disse à moça: "Por isso, não. Entra, cuidaremos de ti até o bebê nascer. Depois disso tu podes deixado conosco se quiseres. Terás tempo para pensares e decidires se seguirás tua vida sem ele ou se o levas contigo para onde fores". Depois de mais ou menos duas semanas e meia, a criança nasceu. Um belo menino.
- E a moça?! - perguntou Camila ansiosa.
- Após recuperar-se - continuou Dora -, poucos dias se passaram e ela foi embora sem nem menos dar um nome ao seu filhinho.
Júlio ficou triste pela atitude da mãe, porém sentia-se maravilhado com a criança! Parecia até que ele era o pai! - Dora riu lembrando-se de diversas cenas. Em seguida prosseguiu: - Confesso que fiquei imensamente preocupada por inúmeras razões, claro. Ajudei Júlio a tomar conta do bebê, a quem ele deu o nome de Maurício. Faltava regularizar muita coisa perante a lei que, em princípio, diante do abandono da mãe, deu a posse e guarda da criança a mim e ao Júlio. Ele tinha muita afeição, muito amor pelo pequeno Maurício que já lhe fazia algumas gracinhas, já o reconhecia... Aconteceu que, seis meses depois, Penha apareceu. Ela não tinha onde morar nem para onde ir. Havia abandonado o emprego na imobiliária e não conseguiu outro. Ao vê-la a nossa porta, Júlio imaginou o que a moça queria e foi muito firme com ela. Eu nem acreditei no que ouvi Júlio dizer: "Se tu pretendes não fazer nada, tu não farás esse nada aqui! Se queres teu filho, leva-o agora. Mas dar apoio a alguém que não produz nenhum benefício para si ou para os outros, isso eu e minha mãe não faremos. Teu filho é indefeso, por isso eu o sustento. Mas tu és muito experiente e esperta para o meu gosto. Se estás pensando que te sustentaremos para termos o Maurício conosco, engana-te. Pega teu filho e podes ir se achares que tens condições e capacidade de cuidar tão bem dele quanto estamos cuidando, dando-lhe amor, atenção e carinho acima de tudo". Fiquei incrédula! Júlio era pai e mãe para aquele menino. Meu filho trocou horário de serviço para estar com a criança durante a noite, dava-lhe amor, atenção, carinho... Eu mesma nunca fiquei em claro por causa do pequeno Maurício. Eu amava aquela criança e não queria que a mãe o levasse. Porém Júlio foi mais esperto do que eu que, talvez, ficasse implorando para ela deixar a criança conosco ou para que ficasse morando com a gente para não nos afastarmos de Maurício.
Diante da firmeza e determinação de Júlio, Penha propôs humilde: "Doutor Júlio, a senhora tua mãe já não tem mais idade para tomar conta de criança e até mesmo alguns serviços domésticos são pesados demais. Se o senhor quiser, eu posso trabalhar de empregada doméstica aqui nem se for à troca de dormir, comer e ficar com meu filho. Gostaria que soubesse que me arrependo muito de ter pensado em matá-lo quando engravidei, de tê-lo abandonado e ter feito tudo o que fiz. Nos últimos meses, a vida foi dura demais comigo. Como sofri!... - Nesse instante, ela chorou e mesmo com as lágrimas seguidas, Penha continuou: - Não tive amparo de meus pais nem do meu ex-namorado. Minhas amigas sumiram. Tive vergonha de procurar pelo senhor Dirceu, seu irmão, pois foi ele quem me trouxe aqui para ouvir tantas explicações. Se queres saber, passei muita fome e tornei-me uma pedinte de rua para não ter de me prostituir, pois acho que preferiria a morte a fazer isso... Não vim até aqui para aproveitar e abusar da bondade de todos só porque amam e têm tanta afeição por meu filho. Se não me quiseres como empregada, não tem problema. Vou embora e nunca mais vão me ver. Só peço que continuem cuidando do meu filhinho". Foi nesse momento que Júlio, engolindo seco e disfarçando as lágrimas que brotaram, segurou-a pelo braço e pediu-lhe desculpas, convi-dando-a para entrar e se sentar à mesa conosco depois que lhe apresentou Maurício. Assim Penha ficou em nossa casa. Acompanhava-nos em tudo, principalmente, nas tarefas do Centro. Dias se passaram e uma mulher bateu a nossa porta com o filho nos braços dizendo não querê-lo. Parecendo enfurecida, ela praticamente empurrou a criancinha nos braços de Penha e foi embora sem que conseguíssemos argumentar nada, pois a mulher correu e sumiu. Nunca a vimos antes, muito menos depois. Penha passou a cuidar da criança com a supervisão e orientação de Júlio. Não demorou muito tempo e, numa manhã fria, encontramos em nossa porta uma caixa e nela havia outro recém-nascido. Acolhemos o pequenino com todo o amor. De outra vez, uma vizinha encontrou no lixo uma menininha enrolada em alguns jornais que parecia ter problemas para respirar. Levou-a para meu Júlio, pois sabia que ele era médico e poderia ajudá-la. Júlio e Penha começaram a cuidar dessas crianças, apegando-se e enlaçando imenso amor por elas. Amigos e conhecidos passaram a ajudar com roupas, móveis e enxovais enquanto os bebês apareciam um a um, dia após dia. Quatro anos depois, somavam doze órfãos. Sem contar com Maurício que Júlio registrou como se fosse seu filho com Penha. Penha era e é o braço direito de Júlio para cuidar das crianças e organizar as coisas. Ela era incrivelmente criativa, ativa e abençoada em conseguir pessoas de confiança que se revezavam para ajudá-la em algo. Júlio apaixonou-se por Penha enquanto ela já estava, silenciosamente, apaixonada por ele. Não demorou para se casarem e tiveram mais três filhos. Com o passar dos anos, Júlio comprou um terreno ao lado de nossa casa. Com a ajuda de Dirceu instalaram ali a creche que hoje ampara cerca de vinte e cinco órfãos dia e noite. Além desses, tem as crianças que permanecem ali durante o dia enquanto as mães trabalham. Tudo legalizado perante a lei. Os cinco primeiros que ali chegaram hoje já são adultos e não se foram. Trabalham fora, estudam e ajudam os outros órfãos nos momentos livres. Eu soube até que um casamento já vai haver ali entre a menininha encontrada na caixa e o que foi deixado nos braços de Penha.
Alfredo, sabiamente, falou:
- "Ditosos serão os que houverem trabalhado no campo do Senhor com desinteresse e sem outro móvel senão a caridade". Isso é dito em O Evangelho Segundo o Espiritismo - Capítulo XX.
Camila se surpreendeu e comentou:
- Penha poderia ter conseguido para si um terrível destino caso tivesse matado seu filho, não é mesmo?
- Sem dúvida - afirmou Alfredo. - Vejamos Sissa.
- O que tem ela?
Mesmo com todo o entendimento espírita, mesmo diante de todo o alerta que recebeu, ela teimou em assassinar seu filho. Hoje se encontra num vale de tristeza e dor por causa disso.
- Ela ainda freqüenta o Centro? - perguntou Camila.
- Sim - respondeu Alfredo. - O marido nunca soube que Sissa abortou deliberadamente seu filho. Ela jurou a ele que tudo foi espontâneo, que perdeu o bebê sem fazer nada para que isso acontecesse. Até representou sua tristeza lamentando, falsamente, que se arrependera de querer tirar o filho.
O pobre homem aceitou inocentemente a representação feita pela mulher mas, com o passar dos dias, Sissa foi sentindo-se mal, mental e espiritualmente. Tudo para ela se tornou um grande sacrifício. Nada em sua vida parece dar certo. Mesmo freqüentando o Centro, entidades perversas passaram a atormentá-la. Sissa começou a ter acessos e crises de choro. O desespero toma conta dela. Seus pensamentos sempre são tenebrosos, voltados ao pior. Nada a satisfaz.
- É o abortado que a deixa obsedada? - perguntou Camila.
- Não - tornou Alfredo. - O filhinho que ela rejeitou foi socorrido e passou cerca de quatro anos sob intenso tratamento espiritual e psicológico para livrar-se do terrível trauma de seu assassinato através do aborto, reequilibrando-se através do amparo recebido e aceito dada sua elevação. Esse tempo de recuperação foi curto pelo fato de ser um espírito de muita luz com uma magnífica aptidão e missão de cuidar tanto da saúde física como da espiritual dos encarnados, tarefa semelhante à de Júlio. Por mérito, ele, o filho rejeitado por Sissa, solicitou, junto ao Departamento de Reencarnação, seu reencarne entre Júlio e Penha porque, tempos atrás, Júlio quis adotá-lo solicitando à Sissa que não o matasse, deixasse nascer para que ele cuidasse da criança. Júlio e Penha já foram chamados, durante o sono, para serem questionados sobre a aceitação de deixar nascer entre eles aquela criatura que não estava no planejamento reencarnatório com alguma possibilidade de ser filho deles.
- E eles?! - perguntou Camila ansiosa.
- Creio não precisar responder, já que Penha está grávida e ainda nem desconfia - respondeu com um riso gostoso. Mais sério, Alfredo contou: - A pobre Sissa, por sua vez, está sendo obsedada por irmãos sofredores que, apesar de suas condições espirituais inferiores, não concordam com o assassinato através do aborto e passam a punir quem o praticou.
- O que vai acontecer com ela?
- Até que Sissa não faça uma verdadeira transformação íntima através do remorso, do verdadeiro arrependimento, ela não terá paz. Tememos que sua situação piore ainda mais depois de seu desencarne, uma vez que hoje, reencarnada, ela poderia dedicar-se a trabalhos edificantes e nobres exemplos cristãos, o que auxiliaria o plano espiritual superior a lidar com seus obsessores.
Camila ficou admirada diante de tanto conhecimento. Entendia que as Leis de Deus são justas e imutáveis. O Pai Celeste não nos castiga, o que nos faz sofrer é nossa própria consciência que nos cobra pelos erros cometidos. Criaturas maravilhosas e dignas são assassinadas diariamente através do aborto. Dando ênfase, mais uma vez, sobre o que Madre Teresa de Calcutá disse: "Creio que o maior destruidor da paz no mundo é o aborto", cabe esclarecer que o aborto assassinou inúmeros pacifistas, bacteriologistas, infectologistas e muitos outros espíritos conceituados que se dispuseram para nascer após muitos preparos no plano espiritual para apaziguar, defender, livrar ou amenizar este mundo de tantas guerras, pestes e epidemias como as que temos vigorando atualmente. Antes de nascerem cientistas respeitáveis foram mortos através do aborto por suas mães. Terríveis doenças infecto-contagiosas, bem como vírus que produzem resultados funestos, estão persistindo em meio aos encarnados por culpa do aborto, pois aquele que poderia ser o descobridor do controle ou um exterminador epidêmico foi assassinado com o ato abominável do aborto. Como se sentirá uma mulher ao descobrir que, quando condenou seu filhinho a um desencarne tão horripilante, indefeso e cruel, condenou também milhares, talvez, milhões de seres humanos, só por causa de sua vaidade, de seu egoísmo ou por suas luxurias? Que terrível destino não terá essa pobre criatura que condenou inúmeros irmãos ao sofrimento junto com a morte de seu filho?!
Não julguemos. Porém devemos lançar um alerta para que esse tão abominável ato deixe de ser praticado. O ser humano não imagina como está desequilibrando a espiritualidade, assim como sua própria existência com esses crimes. O aborto deveria ser considerado um crime contra a humanidade. Deveria ser feita uma conscientização para que homens e mulheres sejam mais prudentes e responsáveis ao lidarem com a vida humana, com a concepção, inclusive com as concepções em laboratórios. Rogo a Deus que envie, através de Seus mensageiros de luz, orientações aos encarnados para frearem esse crime que vem sendo praticado com imenso descaso, com terrível frieza, sem que seus praticantes pensem nas conseqüências. Muitos encarnados, conscientes de que o aborto é um crime pavoroso, programam a concepção, ou melhor, fazem um planejamento familiar. No entanto, diante de uma gravidez inesperada, acatam o desejo da natureza Divina e deixam vir ao mundo a criatura que insistiu para ali estar para cumprir sua missão. Assim sendo, dão-lhe amor, compreensão, ensino e atenção. Esse é o verdadeiro ato de amor praticado por criaturas encarnadas de diferentes religiões. Como já foi dito, a religião não faz de um homem um grande espírito, por isso mesmo estão aí grandes líderes pacifistas de diferentes religiões que pregam o amor, doam amor, ensinam a fé e a esperança. Praticam a caridade acima de tudo e orientam, com benevolência, em diferentes partes do mundo. Posso mencionar agora poucos nomes como: Gandhi, que promoveu a convivência pacífica entre muçulmanos e indianos, além de libertar a índia do tirano regime Britânico sem derramar uma gota de sangue; Francisco Cândido Xavier, o nosso amado Chico, que tanto conforto e entendimento trouxe à Pátria do Evangelho; Madre Teresa de Calcutá, Irmã Dulce tão pouco lembrada, Herbert José de Souza, nosso querido Betinho, que depois de sua partida para a Pátria Espiritual nunca mais se ouviu falar, com tanta convicção, sobre o extermínio da miséria e da fome no Brasil. Nomes conhecidos mundialmente e de diferentes religiões, mas com um único objetivo: trabalhar por amor e com amor incondicional em favor dos necessitados. Não é tão difícil praticarmos, ensinarmos e exemplificarmos o amor incondicional. Podemos começar pelas pequenas coisas, pelo próximo mais próximo: dentro dos nossos lares, a começar pelos nossos pais e filhos. Oferecendo aos queridos espíritos que Deus nos confiou os cuidados, no início, o direito à vida, condições dignas de seres humanos, ensinamento moral cristão, amparo e orientação para que se tornem criaturas abençoadas e firmes na missão que Deus lhes reservou.

19 - HONÓRIO, HERDEIRO DO ATAQUE DAS SOMBRAS

Depois de visitar seus primos e o querido Túlio, que agora se chamava Tadeu, Camila solicitou à Dora e Alfredo que fossem juntos à casa de seus pais. Ao chegarem, Dora percebeu que a cunhada, Clara, sentia-se deprimida e aparentava profundo abatimento físico. Honório, por sua vez, estava agitado ao telefone tratando de seus negócios. A casa apresentava-se muito moderna, requintada, com o maior conforto. Vários empregados uniformizados prestavam diversos serviços com destreza. Camila assustou-se ao ver o pai controlar todos os negócios através de seus computadores, inclusive seus empregados domésticos e, principalmente, a fiscalização extrema das arrecadações dos numerários doados à igreja.
- Sem dúvida! - dizia Honório ao telefone. - Em breve seremos uma potência dentro deste país medíocre. O mais importante agora é elegermos, na política, o maior número de candidatos possível, sejam eles membros de nossa igreja ou que apóiem o nosso trabalho evangélico, para futuramente...
- Meu pai está se envolvendo na política! - lamentou Camila. - Eu não acreditava que ele fosse tão longe.
- Filha, quando um homem se determina em armazenar bens materiais, ele o realiza sem pensar no espírito que, desencarnado, nada obterá dessa riqueza e nenhum proveito tirará dela.
-...sim - continuava Honório -, daqui a uns três ou quatro anos inauguraremos "megatemplos" que terão um sistema antiético para não incomodar os vizinhos safados que reclamam, um estacionamento digno de shopping center para não atrapalhar o tráfego, assentos confortáveis, ar condicionado e monitores especializados para lidar com o público. - depois de breve pausa: - ...sim, sim, irei colocá-lo a par das informações que eu trouxe dos Estados Unidos. Percebi lá que o luxo nas igrejas evangélicas atraiu muito mais fiéis e dinheiro, conseqüentemente!... - gargalhou.
-Tio, num passado remoto, meu pai, ou melhor, o irmão Honório, que nesse meu último reencarne recebeu-me como filha, foi líder de falanges espirituais terrivelmente inferiores. Como ele conseguiu reencarnar numa condição física tão excelente? Com a oportunidade de ocupar uma posição que deveria ser bem séria e importante? Ele usa o nome de Deus para sustentar seus luxos, todo esse bem-estar e ilude pessoas de bem... Parece que ele tem algum tipo de privilégio. Como isso pode acontecer?
- Não te precipites, Camila. A Natureza Divina é sábia. Acredito que tenham dado uma oportunidade a Honório.
- Continuo não compreendendo, Tio. Contudo lamento imensamente o que ele está fazendo a si mesmo.
- É sim, Camila. Realmente é lamentável a posição de Honório.
- Tio, e quanto ao sócio dele, o senhor Monteiro, continua como antes?
- Podemos vê-lo. Tu desejas?
A princípio Camila titubeou, depois aceitou. Assim, foram os três para a casa de Monteiro.
Ao entrarem na casa, puderam sentir um terrível odor que só se propagava em nível espiritual. Raramente era sentido por encarnados, pois quando isso acontecia era pelo fato da pessoa ter atributos sensíveis ao mundo espiritual ou dotada de mediunidade.
Dora os alertou:
- Não nos abalemos para não deixarmos cair nossas vibrações.
- Com o quê, Tia?
- Tu verás, filha.
Ao chegarem à sala, Camila aterrorizou-se ao ver a filha de Monteiro, Telma, que desencarnara através do suicídio havia muito tempo. O espírito Telma estava verdadeiramente monstruoso, irreconhecível, deformado pelas queimaduras que provocara a si mesma. Gemendo, arrastava-se pela dor extrema, pois ainda sentia as fortes queimaduras como se elas acabassem de acontecer. Chorando e gritando, às vezes, chegava a rastejar de um lado para outro da casa.
- Telma... - disse Camila. Dora logo a advertiu firme:
- Camila, não te deixes levar pelos sentimentos de piedade. Tu poderás te envolver com ela e isso, hoje, ainda não é bom. Além do que, Telma não nos pode ver ou ouvir, porque se encontra em vibrações espirituais muito inferiores.
- Eu não imaginava que os suicidas sofressem tanto assim!
- Telma está nessas condições há poucos anos.
- Tia! A senhora diz "poucos anos"?!
- Filha, há espíritos que sofrem por causa da prática do suicídio por séculos. Especificamente neste caso, pelo que sei, é provável que Telma fique presa ao lar por muitos anos. Mas isso não é uma regra. Ela sairá caso mude suas vibrações e seja muito perseverante em preces sentidas a Deus, o que eu acredito ser difícil pela sua falta de fé. Então alguma outra condição pode tirá-la daqui e levá-la para o Vale.
- Como assim, Tia?
- Telma suicidou-se pouco antes dos vinte e três anos. Ficaria encarnada até os oitenta e quatro anos. Isso quer dizer que "jogou fora" cerca de sessenta anos de sua vida. Por causa das minúcias e características especiais deste caso, sei que ela ficará vagando pelo seu lar, nessas condições até... só Deus sabe.
- Por que ela não está no Vale dos Suicidas como acontece com muitos outros no ato de seu desencarne por esse meio?
- Cada caso é um caso. Pelo que me consta, Telma foi culpada pela morte antecipada de seu corpo, sem dúvida. Entretanto, indiretamente, seu pai a prejudicou, apoiando-a a assassinar o próprio filho. Ela, por vergonha da sociedade, quis e gostou de ter ajuda e condições para praticar c crime de aborto. Aconteceu que Monteiro não só auxiliou financeiramente um assassinato, mas também abandonou seus deveres paternos quando não quis oferecer atenção às condições espirituais, morais e psicológicas da filha, o que a levou mais rapidamente à prática do suicídio. Telma não se atraiu para o Vale dos Suicidas ainda por procurar no pai ou no lar, através de um pensamento forte, um alívio para as aflições e tenebrosos sofrimentos ininterruptos das dores provocadas pelo suicídio.
- E o senhor Monteiro?
- Monteiro está passando por terríveis problemas obsessivos, semelhantes aos que Telma passou.
Camila ficou assustada, mesmo assim perguntou:
- Depois de tantos anos, o rejeitado não desistiu de sua vingança?
- Não. Ele continua perseguindo os culpados por sua morte. Primeiro obsedou a mãe, Telma, agora quem a levou para matá-lo, que foi Monteiro.
- Mesmo depois de tanto tempo ele insiste e não se cansa?!
O obsessor tem todo o tempo do mundo, Camila. Lembra: o espírito é eterno. Assim sendo, o rejeitado não se cansa quando sua vítima não tem fé, não procura a Deus nem possui bons pensamentos, entre outras coisas. Por isso a religião é importante ao encarnado.
- É melhor irmos para a oficina de trabalho. Já é tarde - avisou Alfredo amável.
Elas concordaram, e todos seguiram. Chegando lá, puderam presenciar Tadeu e Dirceu conversando descontraidamente. O filho comentava com o pai sobre a data de seu noivado com Cíntia e que no mesmo dia avisariam a data do casamento, o qual ele não gostaria de que demorasse. Na espiritualidade Alfredo e Dora começaram a sorrir, satisfeitos por tudo acontecer conforme o planejado, e Camila compartilhou dessa felicidade, abraçando-os. Com o passar dos dias, Dora e Alfredo souberam que socorristas estavam se empenhando ao máximo para Monteiro não cometer o suicídio. Eles decidiram ir até lá, e Camila os seguiu. Ao chegarem, observaram Telma agarrada ao seu pai lamentando-lhe sua morte e as miseráveis condições espirituais que se encontrava. O espírito Telma revivia a todo instante o momento de seu suicídio. Apesar dos anos, a agonia experimentada na ocasião de seu desencarne ainda perdurava. A aflição de ver e sentir as chamas queimando o seu corpo e crescendo em torno de si, as dores indescritíveis provocadas pelo fogo em sua carne e o desejo de querer deixar de experimentar constantemente tudo aquilo era desesperador. Além isso, passavam por ela desencarnados, donos de uma terrível monstruosidade, que a agrediam, maltratavam e ofendiam. Tudo isso ela experimentava ali, longe do Vale dos Suicidas, onde suas condições piorariam, com certeza. Para esse lugar Telma, futuramente, seria atraída ou levada por causa das condições em que se deram seu desencarne. Nenhum suicida escapa de tal região mesmo tendo antecedentes espirituais positivos. Para o Vale dos Suicidas será levada toda criatura humana que pratique suicídio consciente ou inconsciente. O tempo de permanência, em tão terrível lugar, depende do espírito. No Vale dos Suicidas as trevas são eternas. Os gemidos, as dores, os sofrimentos são indescritíveis. Embora nós tentemos descrever aos encarnados as horripilantes condições do Vale, ainda faltarão características inferiores para atribuir-lhe, pois só os suicidas podem experimentar. A todo momento eles revêem, sentem, sofrem com as dores e com as cenas, não só de seu desencarne, mas também com as dos outros companheiros infelizes que se encontram naquele lugar. O arrependimento é constante. Nenhum sofrimento experimentado durante qualquer encarnação, por mais terrível que possa ser a experiência vivida, jamais poderá ser comparada ao sofrimento existente no Vale dos Suicidas. Telma passou a abraçar Monteiro, que não podia ouvi-la, mas captava seus sentimentos e suas vibrações inferiores. Por outro lado, o rejeitado abortado por Telma, obsedava-o com terríveis desejos para que Monteiro praticasse o suicídio.
- Morre!!! Tu deves morrer!!! Enquanto não morreres, eu não te darei sossego. Hoje vivo como um aleijão monstruoso por tua culpa!!! Fui queimado e esquartejado!!! Cortaram-me aos pedaços e jogaram no lixo!!! Como eu sofri!!! Senti dores por todo o meu corpo, que até hoje dói! Agora tu vais sofrer como eu!!! Morre, infeliz!!! Só assim pra eu te dar sossego!!!
Monteiro, desesperado, não conseguia ter fé. Experimentava uma infelicidade impressionante, mas não tinha motivos para isso. Estava desgostoso com a vida. Lembrava-se da filha que se matou queimada e imaginava onde ela estaria: se no céu ou no inferno. Os socorristas aplicavam-lhe passes magnéticos, porém sua vontade de morrer era maior. Monteiro guiou-se até uma via férrea, bem próxima, e lá ficou à espera de um trem. O espírito Telma o acompanhou e pedia constantemente que ele a ajudasse a sair daquelas condições dolorosas, prejudicando mais ainda os pensamentos de Monteiro. Telma acreditava que, se seu pai desencarnasse, iria tirá-la daquela situação deplorável e de dores intermináveis. Com a aproximação de um trem, Monteiro se jogou. Suicidando-se. O corpo, esquartejado, só foi identificado pelos documentos encontrados nas roupas. O rejeitado, no instante do suicídio, passou a gritar:
- Eu venci!!! Eu venci!!! Os dois morreram como eu: um queimado e o outro aos pedaços!!! Somente agora me sinto satisfeito!!! Vou tratar-me e deixar de ser deformado. Vou à busca de uma renovação. Renascerei em lar perfeito junto àqueles que me amam. Eu venci!!!
- E agora? - perguntou Camila. - Será socorrido e encaminhado como imagina?
- Não. Isso é pura ilusão. Ele é um homicida. Telma e Monteiro suicidaram-se por culpa dele. Mesmo sendo suicídio, esse rejeitado é tão culpado quanto um homicida, ou até mais. Terá de arcar com a responsabilidade de seus desejos que conduziram duas pessoas ao auto-extermínio antecipadamente. Se ele tivesse aceitado o socorro, quando veio no momento do aborto, estaria livre de toda essa culpa.
Nesse instante, espíritos tenebrosos os quais não convêm descrever, aproximaram-se de Monteiro e começaram a envolvê-lo para carregar seu corpo espiritual que ficara com um aspecto quebrado e retalhado. O espírito de Monteiro achava-se adormecido, como se estivesse desmaiado. Porém por pouco tempo. Em breve, muito breve, ele retomaria a consciência já no Vale dos Suicidas.
- Tia, o que é isso? - perguntou Camila. -São os irmãos das sombras do Vale.
- Para onde o estão levando?
- Para o Vale dos Suicidas.
Nesse momento, Telma, com medo, afastou-se e retornou para sua casa. Um daqueles irmãos tenebrosos que levava Monteiro virou-se para ela e gritou:
- Ninguém se esconde de nós. Iremos buscá-la!
Em nenhuma ocasião eles puderam sentir a presença dos espíritos Alfredo, Dora e Camila.
- Vamos - solicitou Alfredo. -, temos de ir para a casa de Honório.
- O que há com meu pai?
- Lá te explicaremos.
Honório encontrava-se muito nervoso, irritando-se com qualquer coisa. Ele não tinha sossego: ora as redes de televisão o incomodavam, ora os jornais e revistas o atormentavam ou então a queda de alguma aplicação financeira. Depois de algumas horas, um dos telefones da casa tocou comunicando a morte de Monteiro.
- Não!!! - gritou incrédulo. - Isso não pode ser!!! Após ouvir seu interlocutor, respondeu:
- Que testemunhas, que nada!!! Isso foi um acidente!!! De forma alguma eu aceitarei um suicídio!!! Isso tem de parecer um acidente!!!
Nessa hora Clara, paciente, entrou na sala perguntando o que havia acontecido e Honório, desligando brutalmente o telefone, explicou:
- Foi o Monteiro! O desgraçado se matou e deixou testemunhas! Isso não podia ter acontecido! Tem de parecer um acidente!
- Bem que vi o Monteiro diferente. Isso já observei há tempo - disse Clara.
- Cala a boca!!! - gritou desesperado. - Foi um acidente, entendeste?!!
Nesse momento Honório começou a passar mal. Algo parecia sufocá-lo. Sem serem percebidos, Dora, Alfredo e Camila presenciavam aquela situação.
- O que ele tem, tio? - indagou Camila.
- Seu pai tem consideráveis anos vividos, Camila. Não é velho, mas atualmente não vem cuidando de sua saúde como deveria. Agita-se com tantos compromissos gananciosos que visam aos bens materiais e enerva-se quando eles não se processam como desejaria e... - Alfredo silenciou.
Honório colocou ambas as mãos no peito e deixou-se cair subitamente. Clara tentou ajudá-lo, porém sentia-se impotente. Ela correu ao telefone e chamou por socorro. Honório estava sofrendo um infarto. Camila observava uma forte mancha acinzentada no peito de seu pai. Ela pôde ver também inúmeros vultos presentes ali, sendo que eles não podiam perceber sua presença nem a de seus tios.
- Tio, olha esses vultos! Eu já os vi antes! Assim que desencarnei eu os vi. Parece que eles querem atacar meu pai!
- São entidades perversas que acompanham seu pai há muito tempo. Eles, juntamente com Honório, num passado remoto, quando encarnados e desencarnados, também eram criaturas cruéis e desumanas. Praticavam os mais terríveis crimes contra os semelhantes, e Honório era chefe dessa legião. Desencarnado e no Umbral, simpatizou com o terrível lugar continuando na liderança desse grupo.
- Eu sei. Ele me perseguiu muito quando desencarnei naquela época em que recebi o nome de Samara e, por mais de cinqüenta anos, fiquei sendo torturada no Umbral.
- A Sábia Natureza Divina tudo faz para que nós nos corrijamos. Por isso foi dada a Honório uma reencarnação digna como pai de boas criaturas, como chefe de família e próximo a uma religião cristã da qual poderia adquirir bons conhecimentos e desenvolver ótimos sentimentos. Infelizmente, ele desviou-se do que lhe foi traçado. Nos momentos difíceis, embora tendo-me a seu lado dando-lhe todo o apoio moral, espiritual e material, na medida do possível e dentro das minhas condições, deixou-se dominar por pensamentos terríveis de exterminar com toda a sua família e depois suicidar-se. Nessa época, minha casa já era uma oficina de trabalho para o plano espiritual superior. Eu já sentia isso. Diante das preces que direcionei a Honório, mesmo ignorando suas idéias, amigos do plano espiritual o ampararam e o guiaram e, num momento crítico fizeram-no entrar em uma casa de oração onde pôde encontrar pessoas que o amparassem de forma espiritual e material. Nessa casa de oração, ele se estabeleceu sem abrir seu coração para que sua alma se iluminasse. Perdeu grande oportunidade para ganhar conhecimento do bem, elevar seu espírito e corrigir suas falhas. Deixou prevalecer, em seu coração, sua aptidão para líder do mal e conquistas materiais. Para isso Honório passou a usar e falsamente defender o nome de Deus, os ensinamentos Sagrados do Mestre Jesus em troca de bem-estar e fortuna. Não atentou que esses valores conquistados são passageiros e o bem-estar conseguido é temporário e ilusório. Suas preocupações e perturbações com a ordem de tudo, com os ganhos levaram-no a cultivar grave doença física que não seria necessário adquirir.
- Esse problema cardíaco parece ter sido provocado por essas entidades perversas que o perturbam - observou Camila.
- Nada permanece no corpo físico se o espírito, desde que preparado e com a permissão do Pai, não autorizar - filosofou Dora.
- Por que essas entidades o querem prejudicar se ele fora seu líder, seu amigo em zonas inferiores? - perguntou Camila.
- Foi dada a Honório a oportunidade de elevação espiritual, de aprendizagem para o bem, de cultivar bons costumes, respeito e auxílio ao próximo através de uma religião cristã que prega e defende todas essas qualidades e ensinamentos retirados do livro Sagrado, dos conceitos deixados por Jesus. Ele obteve acesso a tudo isso. Depois teve duas opções: primeira para seguir, entender e praticar tudo aquilo de maneira honesta a ponto de receber amparo e sustentação do plano espiritual superior e segunda aprender todos aqueles ensinamentos, seguindo-os e vivenciando-os só de aparência, com uma deslealdade inimaginável aos verdadeiros princípios trazidos pelo Evangelho. Transgrediu inúmeras leis naturais devido a suas dissimulações. Além de adquirir uma terrível dívida por usar e manipular ensinamentos sagrados para obter bens e poder materiais, Honório traiu também seus antigos amigos e aliados do plano espiritual inferior. Embora, em seu íntimo, fosse oposto àquelas verdades ditas, temos de concordar que em suas pregações elevava o nome de Deus e os ensinamentos de Jesus. Isso causou imensa discórdia entre o que ele defendia antigamente a seus antigos amigos de baixa vibração espiritual. Por isso eles sempre o perseguiram, nesta encarnação: esperando uma oportunidade para lançarem nele suas baixas vibrações, procurando provocar-lhe qualquer mal. Eles acreditam que Honório os traiu e traição, para eles, é imperdoável.
- E agora, tio?
- Não há nada que possamos fazer. Se Honório fosse verdadeiro quando defendia e elevava o bom ensinamento, se ele tivesse sido fiel ao que pregava, sem dúvida, não estaria à disposição de criaturas tão perversas e inferiores como essas. Ele teria toda a proteção do plano espiritual superior e não se encontraria assim, tão exposto, tão indefeso.
Camila ficou pensando em tudo o que ouviu. Ela sentia imensa compaixão por ver aquele que foi seu pai naquelas condições, Porém não havia nada a ser feito.

20 - LIÇÕES QUE A VIDA OFERECE20 - LIÇÕES QUE A VIDA OFERECE

Já no hospital, Honório era socorrido pelo médico de plantão que, inexperiente, solicitou à enfermeira chamar um outro médico. Enquanto o ligavam a equipamentos clínicos para assegurar-lhe o bem-estar físico, chegava o doutor Júlio àquela sala do pronto-socorro para auxiliar seu colega. Júlio ouvia atentamente de seu colega médico tudo sobre o estado clínico do paciente que, até aquele instante ignorava, ser o seu tio. Porém Honório conseguiu reconhecê-lo. - Ele não!!! Ele não!!! - gritou exaltado. Júlio e o plantonista aproximaram e Honório desmaiou com o impacto de um outro enfarte. Mesmo com as tentativas de ressuscitá-lo desencarnou. Seu desligamento do corpo não aconteceu de imediato. Ele não percebeu o desencarne e continuou gritando com seu sobrinho como se esse pudesse ouvi-lo ainda. Júlio, por sua vez, lamentou ter assistido ao desencarne de seu tio.
- Seu burro!!! Incompetente!!! Tu queres me matar!!! Tirem-no daqui!!! - vociferava, tentando agredir o sobrinho médico.
O espírito Alfredo aproximou-se dele e, junto com Dora e Camila, fizeram-se visíveis a Honório que se sobressaltou. Calmamente Alfredo lhe disse:
- Não adianta, meu irmão. Tu não podes mais ser ouvido por eles. Tu estás desencarnado agora.
Honório esbugalhou os olhos assustados e reparou que estava ao lado do seu corpo sobre a maca. Sem saber o que fazer passou a gritar:
- Saia daqui, Satanás!!! Eu te expulso!!! Eu determino que se afaste de mim, em nome de Deus!!!...
- Pai - disse Camila com a voz branda -, compreenda o quanto antes que somente quando fores honesto com Deus, honesto com tuas palavras e sentimentos, o senhor poderá se livrar dos espíritos inferiores que te fazem tanto mal. Somente quando temos o coração repleto de sentimentos verdadeiros e nobres como o perdão, a resignação, a humildade e o amor incondicional é que Deus nos ouve e atende aos nossos gritos de socorro. O Pai Celeste é justo, por isso Ele dá a todos os filhos oportunidades iguais e quantas vezes forem necessárias para que ele entenda, aprenda e se corrija. Deus é bom e perfeito. Geralmente sofremos pelo que provocamos a alguém. Confie Nele e ore muito.
Sai daqui tu também, filha da besta!!! Eu te expurgo em nome de Deus!!! - gritava em seu desespero.
Alfredo fez um sinal para ambas, informando ser qualquer tentativa, agora, inútil. Ficaram invisíveis novamente para Honório, que começou a ver as sombras turvas aproximarem-se dele. O barulho produzido por aquelas criaturas espirituais, que se achegavam, era horrível, pavoroso. Em poucos instantes, seres perversos e monstruosos, possuidores de uma maldade indescritível, aproximaram-se de Honório aterrorizado e gritando por socorro. Alfredo, Dora e Camila não podiam fazer nada, pois as criaturas não possuíam condições espirituais para vê-los. Foi então que esses seres monstruosos envolveram Honório em uma energia escura e chamando-o de traidor junto a outros predicados indecorosos, foram arrastando-o sem que pudesse se defender das agressões começadas ali mesmo.
- Para onde vão levá-lo, tio? - perguntou Camila, entristecida.
- Para o Umbral, com certeza - respondeu Alfredo. - Entretanto em que nível de inferioridade, nós não sabemos.
- É melhor irmos embora - propôs Dora. - Precisamos do devido descanso.
Vendo Camila chocada com aquela cena, Alfredo ressaltou:
- Camila, tudo o que deveria ter dito a teu pai durante toda a tua convivência com ele, tu resumiste em poucas palavras.
- Será que adiantou alguma coisa, tio?
- Nada do que falamos sobre a fé, a resignação, o amor sem medidas e os atributos de Deus é desnecessário ou frívolo.
- Mas será que adiantou de algo para ele?
- Com certeza Honório recordará tuas palavras. Aqui, no plano espiritual, temos a mente livre e tudo nos vem à memória de acordo com o nosso desejo.
De volta à oficina de trabalho espiritual, que fora à casa de Dora e Alfredo, Camila, apesar de triste, encontrava-se mais tranqüila. Tadeu, todo satisfeito, passava pela sala quando Júlio o chamou.
- Tadeu?
- Sim, tio! - respondeu ele de pronto.
- Soube por Dirceu que ficarás noivo. Qual é a data?
- Ah! Estou para confirmar tudo com a Cíntia. Creio que será daqui a uns dois meses. Pretendemos, no dia do noivado, anunciar a data que devemos nos casar.
- Tadeu - tornou Júlio -, sei que já és um homem feito, maduro e muito responsável. Desculpa-me se te ofendo, mas já pensaste no fato de Cíntia não ser maior de idade?
- Claro, tio. Apesar dela ter dezessete anos, vejo que a Cíntia é muito responsável. Ela não é como muitas garotas que há comumente por aí. Os pais a educaram muitíssimo bem.
- Certo - respondeu Júlio pensativo. Porém Tadeu continuou: Além do que, a Cíntia fará dezoito anos seis meses após ficarmos noivos e é essa a data que pretendemos nos casar.
- Tadeu, tu já explicaste à Cíntia o trabalho que executamos no Centro Espírita e na creche?
- Sim, tio! Lógico! Ela está ciente e concorda com tudo o que fazemos e sabe que futuramente fará parte dos tarefeiros. Inclusive os pais dela, que são católicos, concordam e apóiam o nosso trabalho. Sabe, a mãe da Cíntia tem vindo visitar a creche e auxiliado em algumas tarefas, soube até que ela é muito apegada àquele garotinho, o Zezinho, e que está ensaiando para pedir-te que o deixe passar um dia na casa dela.
- Fico feliz por saber disso. Entretanto tu sabes como sou rigoroso quanto a esse tipo de concessão. Como todos os outros, é um caso para ser estudado - respondeu Júlio firme.
- Tio, não te preocupes. Esforçar-me-ei ao máximo para dar continuidade ao trabalho que o senhor e meu pai vêm desenvolvendo junto à creche e, sem dúvida, continuarei a dar seguimento na tarefa de doutrinação que meu avô iniciou. Queira Deus que eu consiga incentivar, ao máximo, meus filhos para prosseguirem com esse maravilhoso e edificante trabalho. Sempre peço a Deus que meus filhos venham com a vontade e o prazer de servir, desapegados dos valores materiais e com imensa vontade de auxiliar ao próximo com paciência e resignação.
Júlio levantou-se do sofá, espalmou as costas do sobrinho dando-lhe um forte e demorado abraço. Nesse momento, no plano espiritual, Alfredo que ouvia atentamente Tadeu expor seus sinceros desejos deixou rolar lágrimas de emoção e alegria. Dora, para confortá-lo, abraçou-o com ternura, dizendo:
- Meu querido, estás colhendo exatamente o que plantaste. Foi isso, exatamente tudo isso que tu vens ensinando a esses maravilhosos espíritos há muito tempo e, foram esses tipos de pensamentos e sentimentos que passaste de forma tão maravilhosa que lhe ficaram encravados na alma deles, mesmo diante do esquecimento provocado pelo reencarne.
Alfredo não conseguiu conter as emoções e chorou um pouco mais, só que de alegria. Camila, também emocionada, ficou pensando alto: - O casamento de Túlio, isto é, de Tadeu trará Alfredo ao reencarne como seu filho. Alfredo, por sua vez, dará continuidade ao serviço de seu pai Tadeu, de seu avô Dirceu e de seu bisavô, que é ele mesmo!!! Puxa!!! - Encantada com a dedução, ela salientou à Dora: - Tia, se a senhora e o tio Alfredo tivessem decidido não dar a vida a Dirceu e Júlio» se vocês os tivessem abortado, agora, o tio Alfredo não poderia reencarnar dando seguimento ao seu próprio trabalho nem teria essa oportunidade bendita de viver no meio de tão maravilhoso lar.
- Percebeste, agora, Camila, o quanto é importante planejarmos bem uma família e não matarmos nenhum filho que Deus nos tenha designado para cuidarmos? E essencial, acima de tudo, ensinarmos uma boa moral, passarmos os ensinamentos Cristãos e mostrarmos aos nossos filhos a importância do amor a Deus e do respeito ao próximo porque estaremos fazendo isso para nós mesmos.
- E quanto à senhora, tia? Reencarnará, em breve, para se encontrar com o tio Alfredo, não é?
- Sim, filha. É claro.
- E com quem isso se dará? - perguntou ela, curiosa.
- Ficarei aqui na crosta cuidando de quem será minha mãezinha, que atualmente se encontra muito desorientada.
- A senhora sabe quem é?!
- Sim, filha. Eu tive permissão para isso. É uma menina de rua que foi escolhida para assegurar meu encontro com Alfredo.
- Mas... uma menina de rua, tia!...
- Claro. Por que não? Só terei de ampará-la, e muito, para que ela não contraia nenhuma doença ou para Que não se envolva em grandes problemas que a prejudiquem ainda mais.
- Mas, tia, e se ela te assassinar com o aborto? E se ela te der a outra pessoa? Ou então...
Não deixando que Camila continuasse com suas indagações desenfreadas, Dora respondeu tranqüila:
- Atualmente, querida, corremos menos riscos de sermos assassinados através do aborto por criaturas materialmente pobres do que pelas que estão razoavelmente estabilizadas. Tudo indica que ela não irá me abortar porque não tem dinheiro para isso e também tem medo o bastante para tentar o aborto sozinha. Quanto ao fato dela me dar a outro ou abandonar-me, bem... é esse o objetivo.
- Como, tia? Por quê?
- Sem dinheiro, sem condições, ela me abandonará na creche de Júlio, pois uma amiga dessa menina já fez isso antes e é esse o caminho que tenderá a seguir. Por sua vez, Júlio, me acolherá e cuidará de mim assim como fizemos com as outras crianças que lá apareceram. Ao longo dos anos, crescerei e participarei mais diretamente do belo trabalho ali realizado. Nessa mesma época, meu querido Alfredo estará participando arduamente das tarefas a ele designadas. Não será difícil nos apaixonarmos.
Camila sorriu satisfeita, porém ainda preocupada:
- Tia, e se tua mãe, a menina de rua, não te levar para a creche ou te der para outra pessoa?
- Aqui Camila, no plano espiritual, temos inúmeros amigos que se empenham para nos guardarem e nos guiarem pelos caminhos retos que devemos traçar enquanto estamos encarnados. Caso isso ocorra, confio imensamente nos espíritos amigos, donos de luzes e bondades divinas, para conduzirem-me até o Centro Espírita ou até a creche para que eu e Alfredo nos conheçamos e, a partir daí, prossigamos com nossa missão. Porém tudo indica que serei recebida como um bebê, por um dos meus filhos, Dirceu ou Júlio, com muito carinho e tratada com muito amor.
- Camila - avisou Alfredo -, esses são nossos planos. Viste agora como é importante não termos preconceitos quanto à classe social dos que nos rodeiam? Se Dirceu desprezar a menina que enlaçar namoro com seu neto, discriminará sua própria mãe. Se Tadeu protestar meu namoro ou casamento com uma moça só porque é filha de uma menina de rua, ele estará criticando ou tendo preconceitos por aquela que foi sua avó e, em período mais distante, sua tão amada mãe. Observa o risco que corremos quando direcionamos julgamentos preconceituosos a algum ato ou a alguma criatura, seja ela quem for. Já pensaste se quando Júlio iniciou a creche, junto com Penha, Dora fosse ambiciosa, egoísta a ponto de aconselhá-lo a viver a vida, deleitar-se nos prazeres terrenos? Como médico, Júlio poderia ganhar muito dinheiro, viajar, passear, divertir-se sem se preocupar com o filho dos outros, não é? Se assim fosse, agora, estaria próximo a um reencarne sem ter o amparo e o apoio daquele que no passado foi seu filho. Isso por ela ter sido egoísta e preconceituosa e o aconselhado a não cuidar do filho dos outros, entendeste? Hoje, será a filha de uma desconhecida para Júlio e Dirceu. Mas como espírito nobre, que é Dora, ensinou-os, acima de tudo, o amor incondicional, pois nunca sabemos com quem estamos lidando ou o porquê dessa tarefa.
- O senhor tem razão, tio. É emocionante saber de tudo isso. - Depois de alguns segundos pensativa, Camila prosseguiu: - Sei que não tenho o direito de pedir... mas, eu gostaria muito de ser filha do Túlio... digo... Tadeu e Cíntia. Gosto tanto deles. Amo Túlio, digo, Tadeu como um pai que nunca recordei ter. Ele foi tão importante para mim.
- Sem dúvida. Tadeu e Cíntia são criaturas dignas e maravilhosas. No entanto tu não poderás ser filha deles. - Ao vê-la entristecer e abaixar o olhar, Alfredo sorriu e avisou:
- Sinto muito, Camila. Dora e eu decidimos cuidar de ti, por isso solicitamos que teu próximo reencarne se dê entre nós dois. Assim, queira Deus eu consiga manter-te na linha, menina! Não deixaremos que tu fujas das responsabilidades, certo?! Ah! E ainda terás Tadeu e Cíntia que, como todos avós abobalhados, certamente vão te amar, mimar e orientar. Está bom assim?! - Camila parou petrificada por alguns instantes, mas logo reagiu em lágrimas e os abraçou, chorando de alegria. E Alfredo confirmou: - Daqui alguns anos, filha, nós a receberemos com muito amor e prometemos guiá-la no caminho cristão para que eleve teu espírito e auxilie na edificação do trabalho que teremos, que é o de espalhar, principalmente com exemplos, os ensinamentos do querido Mestre Jesus.
Agora entendestes tudo, "conhecereis a verdade e ela vos libertará", disse Jesus. A verdade é como um brilho, um clarão que nos assusta como relâmpago a surpreender. Porém, quando a entendemos, a verdade é um brilho que nos eleva.



2


O AMOR NÃO PODE ESPERAR
MAURÍCIO DE CASTRO (PELO ESPÍRITO HERMES)

SINOPSE

Nunca houve tanto desamor no mundo, se revelando no descanso da maioria para com a responsabilidade de cuidar bem de si, na leviandade com que muitos cuidam das suas reais necessidades, mergulhando nas ilusões das aparências, nos jogos da competição, do poder, do orgulho e da inconseqüência, ignorando as oportunidades de progresso que a vida lhe oferece, como se fossem seres merecedores de todos os privilégios sem ter que dar nada em troca. Essas ilusões têm custado caro e o sofrimento aparece tentando mostrar a verdade que muitos não querem ver culpando os outros pelos seus desacertos. Dia cegará que cansados de sofrer, começarão a enxergar a realidade, reconhecerão a própria responsabilidade cobrando o desenvolvimento de seus potenciais. Sentirão amor dentro de si e a necessidade inadiável de se cuidar, de conquistar a própria felicidade e estar em condições de participar da construção de um mundo melhor. Não retarde seu progresso, faça já a sua parte porque a hora é agora e seu AMOR NÃO PODE ESPERAR.

PALAVRAS AMIGAS DO AUTOR ESPIRITUAL

Colaborar com a divulgação da espiritualidade é um trabalho maravilhoso, porém difícil. As dificuldades do processo muitas vezes superam o entusiasmo de muitos irmãos nossos da comunidade onde vivo. É que os médiuns, em grande parte, ainda continuam resistentes. Passam por todas as provas de manifestações mediúnicas, têm inúmeras chances de perceber a continuação da vida após a morte, o processo de reencarnação, porém não se dedicam ao ideal espiritual que muitas vezes escolhem antes do próprio nascimento. Mas, estou aqui, com minha personalidade teimosa e persistente tentando passar o que aprendi e vivi com companheiros mais evoluídos que eu. Garanto que é fascinante encontrar recepção mediúnica em companheiros da Terra. Psicografar! Viver experiências de outros como se fossem nossas! Sorrir com suas vitórias, chorar com seus fracassos, amar, descobrir a vida em suas dimensões mais profundas! Tenho certeza de que se a ignorância fosse vencida muitas pessoas veriam na mediunidade uma ferramenta a mais para seu progresso e felicidade e não mais como instrumento de medo e de tortura. Quando recebi de irmãos mais elevados a tarefa de enviar mensagens de esclarecimento para a Terra preferi o romance. Em meu nível de aprendizado e evolução tenho algumas condições de escolha e este trabalho - a escrita mediúnica - por ser de profunda responsabilidade, atinge centenas de criaturas, e deve ser dosado com muita cautela. Acredito que passar receitas sobre o certo e o errado, lições de moralismo ou cientificismo pura e simplesmente não seja de minha alçada. Já uma história, onde os personagens viveram seus dramas, seus erros e acertos, suas escolhas e os resultados dos mesmos, me parece bem mais convincente e bem menos complicado de se fazer entender. Em nosso curso para escritores temos como condição essencial o poder de escolha e a categoria romance tem atraído muitos de nós. Também pudera! Tudo o que temos de mais belo em termos de literatura no mundo terreno deve-se em grande parte à forma romanceada como os autores conduzem seu pensamento. A própria Bíblia é uma coletânea de romances, cada um em seu estilo e em sua função. Que beleza! Passar histórias, contos, acontecimentos, fatos de todos os tipos fascinam não só a nós escritores "fantasmas" como também os leitores, que ávidos pela narrativa podem desfrutar de intensos momentos de prazer, encantamento e aprendizado. Afinal, ler bons livros é a melhor forma de experimentar a vida sem sofrer. É isso que me dá forças para levar esta tarefa adiante, e me desculpem os amigos que desistiram, quero dizer que todos eles estão se privando da imensa oportunidade de utilizar o amor em favor de todas as pessoas que sofrem. Refiro-me aqui também aos médiuns que continuam achando que mediunidade é sofrimento e vale de lágrimas, e movidos por esses pensamentos desistem de suas tarefas com facilidade. Eles ignoram que a maior ajuda que damos à espiritualidade é divulgá-la com amor, com o amor que Deus tem pela humanidade e esse mesmo amor jamais pode esperar...

Hermes 24/05/2004

PRÓLOGO

Flávio olhou mais uma vez aqueles envelopes em suas mãos e sua irritação aumentou. Não era isso o que ele queria para sua vida. Trabalhar ainda que como office-boy naquela famosa empresa era o sonho de nove entre dez jovens de sua idade, mas para ele era como se fosse nada. Contava 23 anos e sua turma de amigos lhe dizia que ele era um rapaz de sorte, nada lhe faltava. Tinha uma família boa, pais responsáveis, amigos leais, porém mesmo assim ele não se sentia feliz. Esse emprego arranjado por um amigo de seu pai, a princípio lhe proporcionou uma grande euforia. Era a empresa onde seus colegas de colégio mais almejavam trabalhar e realmente era ótimo ter seu nome em qualquer currículo, o emprego viria certo. Quando iniciou a tarefa percebeu que não era tão bom assim. Passar a metade do dia entregando correspondências, prestando favores a terceiros no centro de São Paulo não era nada agradável. Andar pela Paulista se tornou uma rotina e ele não parava mais para admirar a beleza de seus majestosos edifícios. Naquele dia, após três meses de trabalho, sentia que não ia resistir, deixaria o emprego. Com o segundo grau incompleto, Flávio sabia que não era fácil conseguir um emprego melhor. Criado em família de classe média, se quisesse nem trabalharia, passaria o dia a vagar com alguns amigos e a fingir que estudava. Mas seu pai desde cedo lhe incutiu a idéia do trabalho como meio de progresso e ele tentava seguir. Havia também alguns poucos amigos que assim como ele tentavam aproveitar melhor o tempo. Mas Flávio não estava gostando do que estava fazendo. De súbito olhou o relógio e percebeu que já eram cinco horas da tarde. Felizmente não iria mais transitar pela empresa levando e trazendo envelopes. Só no próximo dia faria esse serviço e como no dia seguinte ele pretendia se demitir, com certeza estaria livre dele. Desceu as escadarias que o levavam ao elevador e pensativo recordou a alegria de Ângelo e Érica, seus pais, quando o presenciaram chegando no primeiro dia de trabalho. Flávio cresceu ouvindo a história de que seus genitores haviam sido pobres. Érica havia nascido em uma zona rural e seu pai tinha sido um rapaz pobre que, ingressando na faculdade de Administração logo conseguiu juntar o suficiente para o casamento. No princípio, seus pais sofreram inúmeras dificuldades, mas como aprenderam desde cedo a lutar e não desanimar, conseguiram o que hoje chamam de vida boa. Será que ele, Flávio, não estaria deixando para trás uma chance de progresso? Desceu do elevador e seguiu andando, sua casa era a poucas quadras dali. Durante o trajeto começou a recordar sua aversão pelos estudos e como os pais sofriam com isso. Não sabia como havia conseguido chegar ao segundo ano do segundo grau. Contudo, apesar de manter a apatia pelos estudos, Flávio se revelava um observador arguto da natureza e do comportamento humano, por isso sonhava com um trabalho onde pudesse desenvolver melhor essa capacidade. Na empresa onde várias pessoas conviviam seria uma ótima oportunidade. Porém, logo se decepcionou, a apatia e a preguiça o fizeram pensar em deixar aquele trabalho. As pessoas chatas e fechadas daquele ambiente onde se trabalhava apenas pelo dinheiro enchiam a sua paciência. Chegou em casa desanimado e encontrou a mãe preparando o jantar.
- Flávio? Já chegou meu filho?
- Cheguei daquela espelunca!
Disse mais para si do que para a mãe.
- Por que está abusado, algum problema no trabalho?
- O trabalho é o próprio problema, descobri que não dou para isso.
Érica largou o pano de prato, deu ordens à empregada que continuasse com o serviço e foi falar com o filho no sofá da sala. Percebeu o que ela já esperava há muito tempo: Flávio desistiria do emprego. Olhou dura para ele e disse:
- O que você está querendo? Deixar o trabalho? Ah! Isso eu não permitirei!
- Isso não dá para mim mãe! Ando estressado com o que estou fazendo, cansei! Amanhã mesmo deixarei este emprego.
- Você não pode fazer isso, seu pai vai ter um desgosto daqueles.
Flávio parou para pensar e resolveu não dar largas àquela discussão. Disse:
- Vou pensar, agora tomarei um banho para relaxar um pouco.
Ele subiu as escadas e foi para o quarto. Érica ficou no sofá, pensativa. Por que o Flávio tinha que ser assim? Era o filho mais diferente que tinha. Cristiano, de 26 anos, viajara para a Inglaterra havia muito tempo e estava fazendo excelentes progressos. Foi fazer intercâmbio e já estava bem empregado. Apesar de não ver a família há mais de cinco anos, Érica e Ângelo estavam contentes em saber que o filho estava bem encaminhado. Sua segunda filha Marina cursava Direito em excelente faculdade e não havia dúvidas que seu futuro também seria brilhante. Mas Flávio... Esse não era nada fácil. Desde pequeno, apesar de aprender com facilidade não dava tanto valor ao estudo, reclamava da chatice das aulas, das coisas inúteis que estudava, dos professores, de tudo! Para estimulá-lo, Ângelo começou a falar em empregá-lo e até que ele não rejeitou a idéia. Porém, Érica que conhecia muito o filho e seu temperamento instável, sabia que qualquer trabalho em suas mãos duraria muito pouco. Por que o Flávio era assim? A porta da sala se abriu e Marina entrou:
- O que minha mãe linda faz aí no sofá com esse ar de tristeza?
- Oh, Marina, só você agora para me levantar um pouco o ânimo. Seu irmão diz que amanhã deixará o emprego.
Marina fez um ar de desagrado e comentou:
- Esse menino sempre querendo aparecer e fazer chantagens. Bem que as pessoas falam que o que ele quer mesmo é levar vida boêmia e sem fazer nada. Não me admira se ele conseguir uma velha rica que o sustente!
Érica atemorizada protestou:
- De onde você tirou essa idéia? Era só o que faltava!
Marina continuou:
- Pensa que não observo as coisas? Outro dia a tia Francisca disse a mesma coisa e ainda disse que por ser o caçula foi criado errado e muito mimado pela senhora e papai.
Érica fez um ar azedo. Aquela metida da Francisca, o que ela queria dando opinião na sua família? Logo ela uma solteirona amarga que nunca havia tido filhos.
- Olha, vamos mudar de assunto - disse Érica. - Vá tomar seu banho que logo iremos jantar, seu pai hoje vai chegar mais tarde, tem uma reunião extra na empresa e mandou dizer que não o espere.
Marina foi para o seu quarto e pelo corredor percebeu que Flávio estava no banho. Pensou: Aquele metido! Bem que merecia perder o emprego e levar uma boa dura do pai. Flávio tomava uma ducha e pensava no que fazer de sua vida que, aliás, estava muito sem graça. Desde o início da adolescência sentia um vazio interior e uma sensação de saudade indefinível. Nunca estava realmente bem. Os namoros apesar de divertidos e saudáveis não serviram para lhe preencher, estudar era muito chato, trabalhar também não estava sendo nada agradável. Tinha um tino muito grande para compreender as pessoas ao seu redor, mas compreender a si mesmo não estava sendo fácil. Os amigos também já não lhe pareciam tão agradáveis. Terminou o banho e sentiu uma tristeza infinita. Vestiu uma roupa confortável e foi para a varanda de seu quarto. Já eram sete horas da noite e de onde estava dava para perceber uma nesga do céu e suas estrelas despontando iluminadas. Era uma linda noite de verão e o céu aberto convidava-o para uma reflexão interior. Sentou-se na cadeira de balanço que havia na varanda e pensou em como seria bom viver longe dali, num lugar onde só houvesse paz e alegria. Fixou seu olhar no firmamento e um torpor o invadiu. Adormeceu. Sonhou que estava num campo verde cheio de flores amarelas, caminhou por ele e à sua frente um rapaz de jeans e camisa branca, lábios abertos em terno sorriso, disse:
- Seja bem-vindo Flávio, a reunião já vai começar.
Meio atordoado, Flávio recordou-se que deveria estar ali por um motivo sério que não conseguia compreender de pronto. O rapaz pegou em sua mão e seguiram por uma estrada que terminava em um pesado portão de ferro. O rapaz tocou a campainha que havia num alto muro e o portão se abriu. Flávio não sabia que lugar era aquele. Do portão seguia-se uma alameda ladeada por um imenso jardim todo iluminado onde várias pessoas conversavam animadamente. Continuaram andando calados e aos poucos Flávio foi lembrando do local: era nesta cidade que ele vivia antes de reencarnar. Numa esquina, uma moça se aproximou e os cumprimentou. Flávio encheu os olhos de lágrimas e exclamou:
- Carlota! Quanto tempo!
- Que é isso querido? Não existe tempo para aqueles que realmente se amam! - E se abraçaram.
Noel, o rapaz que acompanhava Flávio, virou para ela e disse:
- Como imaginávamos não foi difícil trazê-lo até aqui, ele conserva ainda muito do que aprendeu conosco e no mar encapelado do mundo felizmente ainda não esqueceu.
Carlota concordou feliz e os três sentaram-se num banco. Flávio, muito sereno, disse:
- Oh, Noel, não sei como tenho conseguido viver lá. As idéias e os comportamentos frívolos imperam, eles invertem tudo. O que é realmente importante ficou encoberto e o que é passageiro e fútil está em evidência. Sinceramente não sei se terei coragem de iniciar à tarefa.
Noel olhou para ele com profundidade e disse:
- Vejo que tem certa razão no que diz amigo, porém você deve perceber que quando algo nos incomoda é porque não estamos vendo com os olhos da verdade. No mundo onde existem espíritos de diferentes níveis é natural existir a variedade de comportamentos e muitas vezes os mais descabidos. Porém, cada espírito cria o seu próprio universo e vive feliz ou infeliz de acordo com ele. Quem já aprendeu a viver bem em qualquer ambiente compreende as necessidades de cada irmão e antes de criticar procura auxiliar.
Carlota ouvia atenta e Flávio exultou:
- Como é bom poder conviver com vocês, há sempre a chance de reaprender o que sempre ouvi e estudei por aqui.
Noel o interrompeu:
- Vamos para a sala de reuniões onde Hilário nos aguarda. Saíram por uma rua larga que dava numa bela praça iluminada.
No centro da praça havia um enorme prédio com letreiros que diziam: Departamento de orientação e auxílio aos missionários. Carlota inseriu uma espécie de cartão magnético e a porta se abriu dando passagem a um recinto cheio de portas. Abriu uma delas e uma espécie de elevador surgiu. Em poucos segundos eles entravam em uma sala espaçosa onde um senhor de cabelos grisalhos lia pausadamente alguns papéis. Ao vê-los, disse:
- Já os esperava e sei que Camila não pôde vir.
Carlota respondeu:
- Como sempre deixou se levar pelo vício e foi impossível adormecê-la, só podemos contar com Flávio.
Hilário levantou-se, virou-se de costas e ficou a observar a noite pela janela de sua sala, depois se virou e disse:
- Os verdadeiros trabalhadores do bem não se abatem se um companheiro desertar da tarefa. Camila terá a própria hora de amadurecer ainda que seja sob o peso da dor. Quanto a Flávio é chegada a hora. Mandei chamá-lo aqui hoje porque o tempo avança e é imperioso que recorde algumas verdades antes do que está por vir. Sua família, apesar de aparentar tranqüilidade e segurança, no fundo está construindo um destino sobre a areia e não sobre a rocha como ensinou Jesus. Seu pai cultiva formas-pensamentos que irão criar situações tumultuantes e os preconceitos da mãe, com sua rotina estafante e seu pessimismo, materializarão uma reação negativa da vida. Por outro lado, sua irmã debaixo da postura de boa moça cultiva na mente hábitos infelizes devido um terrível complexo de inferioridade. Todos ouviam calados respeitando a sabedoria daquele espírito.
- Não é difícil perceber o que receberão da vida. Você, Flávio, concordou em renascer com eles para lhes prestar auxílio, porém observando seu comportamento nos últimos dias estamos notando que já começa a se envolver no turbilhão do mundo. Como espírito estudado e benevolente você já compreende a inutilidade de tantos ensinamentos que as escolas terrenas passam. A forma de ensino atrasada e cansativa comparada à do mundo onde vivia o levou ao desinteresse. E com razão, não se pode forçar a natureza. Quero lhe explicar que seu desinteresse com relação ao trabalho também não é à toa, você quer se encontrar, quer saber onde está sua vocação e estamos aqui justamente para isso. Carlota, ligue a tela.
Um monitor de grandes proporções foi ligado e nele surgiu a imagem de Flávio dois anos antes de reencarnar. Ele se chamava Henrique e ouvia de Carlota as explicações sobre o tipo específico de mediunidade que teria. Carlota explicou-lhe que aceitando a missão de levar alívio a um grupo que tanto amava era necessário que ele recebesse do mundo maior a dádiva da mediunidade. Pessoas materialistas e grosseiras necessitariam de provas da espiritualidade para que pudessem acordar do pesado sono em que viviam. Não que essas provas dos espíritos viessem de graça só pelo capricho de mostrar que a vida espiritual existia. O grupo necessitado já vinha sofrendo há algumas encarnações por não usar o melhor de si. Eles já tinham condições de dar um passo à frente e pediram orientação espiritual para que na próxima existência não falissem mais. Carlota fez uma pausa e explicou que a família foi orientada de que o auxílio do Alto nunca falta a ninguém, porém era preciso estar receptivo para recebê-lo. Eles aceitaram e Flávio, espírito amigo que estava estudando os processos de evolução aceitou a tarefa com o intuito de ajudar e aprender ao mesmo tempo. Flávio sabia que ensinar era uma forma de reter conceitos e sentia que apesar de saber muito ainda havia infinidades de lições a aprender. Foram programadas as reencarnações. Juliete, espírito que usou a sensualidade de forma perversa e prostituída, estava arrependida e queria começar uma nova vida; viria como Marina, irmã de Flávio. Zuleika Carbajaua, antiga fanática religiosa, não tinha sido tão rica quanto gostaria e não aceitando a forma da filha Juliete viver, expulsou-a de casa acomodando-se na religião, nos preconceitos e na rotina entediante; viria como Érica, mãe de Marina. Solano Carbajaua, revoltado com o padrão de vida que tinha e com a atitude da filha, apegou-se a Eduardo, seu filho mais velho, e ambos começaram a roubar nos negócios que mantinham, sendo descobertos e presos. Solano, sem dinheiro e deixando a mulher na miséria, matou-se na prisão. Eduardo conseguiu fugir mais tarde consorciando-se com uma prostituta e dando golpes e mais golpes. Solano renasceu como Ângelo e por sentir-se culpado da vida de ladrão incutiu na cabeça de todos que só o trabalho sacrificioso é que tinha valor. Eduardo retornou como Cristiano e Henrique viria como Flávio para, no momento certo, lançar sobre eles a semente da espiritualidade, pois já tinham alçado algumas conquistas espirituais, graças a seus esforços e aceitação. Logo depois foi mostrado a Flávio todo o seu trabalho futuro e toda a sua preparação para exercê-lo com segurança na Terra. A tela foi desligada e Flávio olhou para Hilário. Ele percebendo o que lhe ia no íntimo disse:
- Pode perguntar, sei que tem uma dúvida.
- Isso mesmo. Se aqui no astral eles haviam aprendido muito, qual seria a necessidade de minha ajuda?
Noel ressaltou:
- Bem se vê como o esquecimento do mundo, apesar de benéfico pode nos paralisar!
Hilário explicou:
- Meu filho, nós os espíritos que estudamos a personalidade humana há séculos, conhecemos muito bem os pendores de cada um neste grupo; pelas leis das probabilidades sabíamos que o que eles tinham a oferecer numa nova encarnação era muito pouco. São comum espíritos tocados pelo remorso demonstrar arrependimento. Eles pareciam ter aprendido, porém o contato com o mundo carnal faz aparecer os problemas mal resolvidos de outrora, colocando-os à prova para saber o quanto haviam assimilado. Como Carlota disse a pouco, o tempo que passaram conosco em nossa cidade fez com que o solo de seus corações fossem abertos e você seria o encarregado de regá-lo em momento propício. E chegou esse momento. Você com poderosa mediunidade de desobsessão e de psicofonia será chamado a esse encargo, não pode e nem deve desanimar.
Olhando nos olhos de Flávio prosseguiu:
- Seus corpos físico e perispiritual foram programados para o trabalho de ajuda e nosso aviso é que as sensações pré-mediúnicas irão começar. Você já está com os 23 anos que foram permitidos para o entrosamento familiar, e os dissabores de uma mediunidade de prova o colocarão frente a frente com o que deve ser feito. Suas perturbações não virão por causa da mediunidade; é muito comum o médium sofrer e culpar a sua sensibilidade aguçada, isto é um erro. Nosso desequilíbrio emocional é que atrai para nós energias perturbadoras. Lembre-se de que você Flávio, apesar de não viver mais no mal, ainda tem muitos resquícios de pensamentos desarmoniosos e depressivos. Sua tarefa, assim como a de todos, é ajudar se ajudando. A conquista do nosso mundo interior é uma tarefa grande e é necessário não só deixar de fazer o mal aos outros como principalmente de fazer o mal a si mesmo. Estaremos sempre juntos e é importante avisar que Noel e Carlota serão seus mentores. Que Deus te abençoe e que o Universo possa conspirar a nosso favor.
Os três levantaram-se e já iam cruzando a porta quando Flávio voltou e perguntou:
- E Camila? Não vai cumprir sua parte?
Hilário olhou com olhos profundos ao responder:
- Só o tempo dirá!

1 – DESPERTANDO DO SONHO

Você se lembrará parcialmente do que se passou aqui - disse Noel a Flávio. - O cérebro do corpo denso esquecerá quase que a totalidade dessas informações a nível consciente, porém haverá a infalível intuição que o orientará no que fazer. De volta à praça onde ficava o prédio, Flávio pôde observar melhor toda a sua suntuosidade, o estilo moderno acompanhava as cidades terrenas e havia muita harmonia no ar.
- Sinto informá-lo Flávio - falou Carlota. Senti o que você pensou e se me permite farei uma correção: não são as nossas cidades que acompanham as modas terrenas em sua arquitetura, é a Terra que acompanha o nosso ritmo. Tudo o que lá existe primeiro existiu aqui. Não é tão errado dizer que a Terra é uma cópia do mundo espiritual.
Os três seguiram animados e volitaram até a varanda do quarto de Flávio. Voltando ao corpo de carne ele acordou. Quanto tempo teria dormido? Olhou para o relógio e percebeu que havia dormido por uma hora e meia. Que sono estranho foi esse que o acometeu? Desceu e viu a mãe e a irmã acabando de jantar.
- Nossa, o príncipe acordou! - disse Marina num gracejo.
- Entrei em seu quarto e o vi dormindo tão profundamente que não quis acordá-lo. Sente-se, eu mandarei Sandra colocar a mesa pra você - falou Érica prestativa.
- Não precisa se preocupar mãe, eu como na cozinha mesmo. Aliás, estou sem fome. A propósito, papai já chegou?
- Não, hoje ele disse que haveria reunião extra na empresa, reunião de emergência, só chegaria mais tarde. Mas estou estranhando... Ele nunca chegou tão tarde.
Marina levantou-se da mesa e disse:
- Bom, isso não me importa, hoje às nove horas Dirce e Juliana vêm estudar comigo uma matéria importante e não quero ser interrompida, principalmente porque o Ricardo Valadares também vem e não é sempre que se pode contar com a ajuda dele.
Flávio olhou-a desconfiado e disse:
- Por acaso está interessada no herdeiro dos Valadares?
- Não seja bobo, ele é meu colega desde que ingressei na faculdade e muito inteligente, ele vem só dar uma ajuda. E se eu fosse você, além de continuar trabalhando, eu tratava de me interessar mais pelo colégio, vejo que seu futuro será uma porcaria, sem emprego e sem dinheiro.
Marina subiu para seu quarto e Érica concordando com o que ela disse, continuou:
- Sua irmã tem razão, pense bem antes de deixar esse trabalho e sair por aí vagando com aqueles seus amigos que só dão problemas para a família. Sabe o quanto seu pai e eu lhe amamos e não queremos nosso filho por aí em meio a bêbados e prostitutas.
Flávio ouvia calado, para que argumentar? Ele sabia que a mãe e a irmã eram assim mesmo e o melhor seria calar. Amanhã não iria mais trabalhar e ponto final. Érica foi para a sala de vídeo e Flávio foi para a cozinha. A empregada arrumava a prataria do jantar e solícita esquentou a comida para ele. De repente, Flávio sentiu vontade e perguntou:
- Sandra, você acredita em sonhos?
Ela, que não esperava uma pergunta dessas, disse sem pensar muito.
- Olha, seu Flávio, eu nunca parei pra acreditar em sonho. A gente que vive assim nessa vida agitada não tem muito tempo para pensar nessas coisas. Mas a Margarida, vizinha da minha mãe, sempre pára pra interpretar os sonhos de todo mundo do bairro. É muito engraçado, e o melhor é que na maioria das vezes ela acerta tudo. Mas por que esta pergunta?
Flávio parou de mastigar um instante e vendo a receptividade de Sandra resolveu se abrir:
- É que hoje tive o mais estranho sonho de minha vida. Quando terminei de tomar banho sentei-me na cadeira da varanda de meu quarto e um sono irresistível me invadiu. Lembro-me que eu me vi conversando com um senhor e mais duas pessoas numa sala; esse senhor me dizia que eu precisava ajudar minha família e que uma tarefa iria começar. Depois só me lembro de estar voando no céu da cidade e vendo as casas lá embaixo bem pequenininhas. Em seguida acordei. Porém, a sensação que mais me deixou confuso foi um nome que ficou em minha mente até agora.
Sandra que ouvia atenta perguntou:
- Qual nome, seu Flávio?
- Camila! Esse nome me soa muito familiar apesar de não conhecer ninguém com ele.
- Bem, - disse ela sorrindo - só levando o senhor na casa de dona Margarida para ela adivinhar seu sonho, porque eu mesma não entendi nada.
- Muito pior eu. Logo agora que deixei o trabalho vem um velho e me diz que a tarefa vai começar, veja só.
- Olha, eu não gosto de me meter na vida de ninguém, muito pior de meus patrões, mas eu concordo com o senhor deixar esse emprego.
Flávio se surpreendeu, afinal uma pessoa lhe entendia. Curioso, ele quis saber o porquê desse pensamento dela.
- Eu via o senhor chegar desse emprego sempre chateado, quase não comia direito, até emagreceu! Olha seu Flávio, dinheiro assim não presta não. O dinheiro é energia espiritual e só o que é ganho com prazer é que rende. Olhe para mim, nunca tive estudo e sei que empregada doméstica ganha pouco, mas sou feliz com o que tenho e meu dinheiro dá pra tudo que preciso. Gorete, uma vizinha de minha mãe, é solteira e ganha o mesmo que eu, só que trabalha mal-humorada, vive se queixando e o dinheiro dela parece que é amaldiçoado, não rende, é todo gasto em problemas de saúde ou prejuízos. Parece até trabalho feito.
- Não fale besteiras Sandra, mas concordo em parte com o que você falou, não sinto nenhum prazer em trabalhar ali, e o pior é que penso que não vou gostar de trabalhar mais em lugar nenhum.
- Se acalme rapaz, um dia você descobre sua vocação.
A conversa foi interrompida pelo ar sério e grave de Ângelo que entrou na cozinha. Secamente ele disse:
- Flávio, termine esse jantar e vá para a sala, preciso conversar com você, sua mãe e sua irmã.
Pelo tom do pai, Flávio sentiu que alguma coisa negativa havia acontecido. Terminou a refeição e foi para a sala. Lá já estavam Érica e Marina juntamente com Ângelo.
- Posso saber o motivo dessa reunião doméstica? - disse Marina. Há tempos não existe isso aqui. Por acaso alguém ganhou na loteria?
- Pare de gracinhas Marina, o assunto é sério. Hoje na empresa recebi um chamado do acionista majoritário para uma reunião onde fui notificado de que perdi o emprego.
O silêncio foi geral. Ele continuou:
- A empresa passa por uns problemas delicados... Desses em que se passa a vender supérfluos, coisa e tal... E foi preciso haver alguns cortes. Por azar eu fui um dos escolhidos para sair. A empresa pagou-me tudo que havia direito por demissão sem aviso prévio, alegando que seria melhor devolver minhas receitas do que manter-me empregado. Enfim, mais uma demissão sem explicações nesse imenso país.
Marina protestou:
- Aí tem coisa! O senhor é um dos mais velhos administradores daquela empresa que me parece ir muito bem. Tenho acompanhado pelos jornais e vejo que os produtos dela têm muita aceitação no mercado. Conte direito pai, o que o senhor tem a esconder?
Foi à vez de Érica tomar a palavra:
- O que é isso, sua atrevida? É assim que se fala com um pai? Pai é sempre pai e o que eles dizem os filhos não devem contestar.
Ângelo tentou contornar:
- Olha filha, tudo o que os donos da Limbol fizeram comigo está dentro dos trâmites legais. É assim mesmo, de quando em vez os diretores vêem que precisam reciclar o quadro de funcionários e fazem isso: demitem quem querem. Também há outros administradores da família que trabalham na empresa; entre eles e eu é lógico que iriam optar pelos familiares.
Flávio desde que entrara na sala sentira arrepios percorrer-lhe o corpo. De repente, sem que pudesse controlar, ele começou a se sentir dominado por uma força diferente. Quis gritar, mas a voz não saiu. Sentiu seu corpo sendo conduzido para o sofá da sala mecanicamente e a sentar impávido. Enquanto seu pai falava, um nervosismo foi tomando conta de seu ser. Os presentes, atentos ao que Ângelo dizia, nem observaram o estado estático de Flávio. O espírito de Carlota envolvera Flávio para iniciar o trabalho mediúnico conforme haviam combinado. Na verdade "violentar" um médium era tarefa que ela não gostava de fazer, porém era necessário e mais necessário ainda era deixá-lo consciente. Sem treinar suas defesas, Flávio foi se deixando levar pela energia da entidade, que assim pôde iniciar o que já estava traçado. Interrompendo o pai, ele disse com voz modificada:
- Cada um recebe de acordo com as suas atitudes. Cabe a você agora ver a parcela de sua responsabilidade no que lhe aconteceu e se reavaliar.
Ângelo olhou-o desconfiado e rebateu:
- Vai dizer agora que a culpa é minha? Meu filho que deveria desvelar-se por mim, agora me acusa?
- Não estou culpando ninguém, mas é hora de perceber que você atraiu tudo isso por causa de seus pensamentos e atitudes. O tempo para você será de desafios, haverá horas em que pensará em desistir, porém nós estaremos do seu lado. Lembre-se de que a culpa jamais resolveu nenhum problema, o que vale mesmo é a mudança de atitudes para outras mais positivas.
Era inacreditável, Flávio, seu filho, dando agora uma de profeta!
- Cale a boca e deixe de falar besteiras, o que você pode saber sobre o futuro?
Marina interrompeu:
- Ora papai, não vê que esse pirralho como sempre está querendo aparecer?
De repente, Érica percebeu que Flávio não se mexia e falou para os outros:
- Olhem o Flávio, está estranho, não se movimenta.
Nessa hora soa a campainha e entram na sala Dirce, Juliana e Ricardo. Marina, envergonhada por ver seus colegas presenciarem aquela cena enrubesceu. Flávio continuou:
- Não posso saber muito sobre o futuro, pois o destino não existe, porém o modo como encaramos a vida hoje é o que vai determinar as experiências de amanhã. Não há nada de errado com Flávio, ele é apenas um ajudante, aproveitem a chance para melhorar e reciclar valores. Até a próxima vez.
Carlota afastou-se de Flávio cansada pela resistência do rapaz que já se fazia sentir sobre ela. Flávio, por sua vez, livre do jugo de outra mente sentiu seu rosto cobrir-se de fino suor. Ele ouviu claramente tudo o que falou, porém não conseguiu parar a boca. O medo por haver se deixado levar por uma sensação esquisita fez com que ele desesperado subisse imediatamente as escadas. Vermelhos de vergonha por Flávio ter se passado por louco, Érica e Ângelo pedindo desculpas aos amigos de Marina foram atrás dele no quarto. Dirce, olhando para Marina que continuava rubra, não se conteve:
- Mas o que houve aqui? Seu irmão parecia fora de si, com outra voz e depois saiu correndo... Ele está doente?
Envergonhada ela mentiu:
- É que o Flávio sempre foi assim desde pequeno, adora chamar a atenção dos outros, deve estar querendo deixar papai e mamãe preocupados com sua saúde para amanhã não ir trabalhar.
Foi à vez de Ricardo falar:
- Deve ser por causa dos problemas bobos que todos nós temos de vez em quando com o trabalho.
- Ou preguiça mesmo! - falou Juliana.
Marina interrompendo a conversa disse:
- Não vamos perder tempo com as criancices do Flávio, vamos ao que interessa que é o nosso trabalho. Subam garotos - e fazendo a pose de bem equilibrada, Marina fingiu muito bem e foi sorridente estudar com os amigos.
Flávio não abriu a porta por mais que seus pais batessem e insistissem. Érica e Ângelo que agora tinham um duplo problema pela frente estavam esgotados.
- Agora mais essa! Além de você ter perdido o emprego temos um filho fazendo teatro dentro de casa.
- Cale a boca, mulher! - reclamou Ângelo. - Não vê que o caso é sério?
- Não acho que seja não. O Flávio à tardinha me confessou que vai deixar o emprego na empresa do Dr. Otto e eu acho que ele está fazendo manha, fingindo um abalo nos nervos para não ser obrigado a trabalhar amanhã.
Ângelo ficou muito nervoso:
- Não é possível. Ele vai trabalhar amanhã nem que seja arrastado! O dinheiro que tenho em mãos só é suficiente por algum tempo. Se eu não arranjar outro emprego rápido, muito de suas despesas ele mesmo terá de custear.
- Quer-me dizer que está pessimista?
- Não é isso. É que um excelente administrador como eu não deve aceitar tudo o que vem pela frente. Tenho que só optar pelo melhor.
Como Flávio não respondia de forma nenhuma aos chamados eles resolveram descer e dormir.
No seu quarto Flávio estava banhando seu travesseiro de lágrimas. Logo agora que o pai perdera o emprego, isso acontecia em sua vida. O certo é que uma força estranha tomara conta de sua voz e ele, mesmo percebendo, não conseguiu conter. A sensação de conforto sentida nesta hora foi solapada pelo seu medo e sua sensação de impotência. Estaria ficando louco? Olhou para o céu e percebeu que ele já não estava mais estrelado. Ouvira as últimas palavras do pai que dizia que o forçaria a ir para o trabalho e sua depressão aumentou. Impaciente esperou a hora que Sandra foi dormir e desceu até a cozinha. Lembrou que sua mãe tomava uns calmantes de vez em quando e sabia onde eles ficavam. Abriu o frasco e tomou dois de vez, precisava relaxar e dormir. Foi para a cama e angustiado adormeceu. Com o efeito dos calmantes, Ângelo também dormia, porém Érica não conseguia conciliar o sono. Por que seu marido com o emprego estável de uma hora para outra se viu no olho da rua? Ela não trabalhava e vivia à custa dele. Era uma perfeita matrona. Passava o dia a cuidar da casa, dos cabelos, da pele e da religião. Desde a mais tenra idade, Érica era ligada ao Catolicismo com um fanatismo intenso. Todo o dia ia à missa das seis na Catedral, nos fins de semana estudava a Bíblia com suas amigas e dava aulas de catecismo às crianças. Ela tinha certeza de que Deus não desampararia a sua família, afinal ela era uma mulher extremamente virtuosa e caridosa. Dava somas e mais somas de dinheiro que Ângelo lhe cedia para as pastorais e se punia por qualquer ato que julgasse indigno e impuro para uma senhora casada. Tudo o que ela julgava errado nos outros condenava ferozmente e nessa postura não percebia que a cada dia tornava sua aura impregnada de energias negativas. Era o tipo de criatura que não queria enxergar a verdade: o que realmente era importante ficava de lado e tudo que levasse ao descumprimento das normas sociais e da igreja virava motivo de fúria. Mas ela estava segura de que assim encontraria a felicidade. Iludida, achava que cumprir as regras exteriores mesmo em detrimento aos chamados do coração, daria à sua alma a elevação que o céu exigia. Apesar de pessimista no cotidiano, ela adormeceu na espera do auxílio divino. Flávio começou a ter um sono agitado. Debatia-se na cama e suava muito. Ninguém na casa percebeu que três entidades movidas pelo ódio, com semblantes deformados entraram acompanhando Ângelo desde a hora que ele chegou do trabalho. Ficaram observando Carlota utilizar a mediunidade de Flávio e assim não desgrudaram mais dele. Viram quando ele desceu para tomar os calmantes e muito se alegraram. Com os remédios o assédio que eles planejavam fazer ficaria muito mais fácil. Ester, Malaquias e Roque como eram chamados iniciaram seu plano de vingança e desta vez tudo daria certo. Eles começaram a sugar a vitalidade de Flávio e incutir no seu corpo astral semi desprendido imagens de aberrações espirituais. Os pesadelos iniciaram e Flávio acordou num susto. Olhou para o relógio, viu que não dormira nem meia hora e que estava com o corpo molhado de suor. Começou a se sentir mal, um misto de tontura com angústia e uma sensação de morte iminente apoderou-se de seu corpo. Dois fachos de luz chegaram no quarto e foram tomando corpo, eram Carlota e Noel, que pressentindo o que iria acontecer vieram prestar auxílio. Flávio, achando que estava sozinho no quarto tinha a companhia de cinco pessoas. Noel disse:
- Não sei se poderemos fazer muito por ele. É um médium de prova em desenvolvimento que se deixa levar facilmente pelo medo. Se tivesse mais força para reagir, esses fatos não estariam acontecendo. Carlota e Noel começaram a aplicar passes no coronário, acima da cabeça, mas foi em vão. Ester sem perceber a presença deles se lançou violentamente sobre o corpo de Flávio que estremeceu. De repente, Ester o envolveu tanto que parecia haver tomado o corpo inteiro dele. Carlota disse:
- O perispírito dele está semi-afastado e agora Ester assumiu o comando. Pouco temos a fazer senão orar a Deus para que nos ajude a cumprir nossa parte - e começaram a orar.
Enlouquecida, Ester abriu violentamente a porta do quarto e seguida por seus comparsas deu violento chute na porta do quarto de Ângelo. Flávio parecia ter força multiplicada e os olhos abertos e brilhantes expeliam chispas de raiva. Ângelo e Érica acordaram assustados e viram o filho ali, sorrindo diabolicamente e gritando:
- Você perdeu, seu ladrão! Solano mais uma vez foi descoberto. Você agora vai morrer! - e avançou no pai com fúria.
Érica começou a chorar e a gritar:
- Flávio! Pare com isso. O meu Deus do céu, nos ajude!
- Cale-se maldita! Esse aí teve a paga que merece e em breve será a sua.
Ângelo que estava assustado, tentava ainda concatenar os pensamentos:
- Do que me acusa, filho? Olhe, eu sou seu pai, seu pai.
Flávio rebelou-se:
- Cale-se ladrão. Eu sei de tudo, sou sua sombra, te acompanho desde aquele maldito dia que você roubou toda a minha família e nos deixou na miséria. Você passou um bom tempo fugido, mas te encontrei neste outro corpo bem diferente, eu sei que é você Solano! Não te deixarei em paz. Fui eu e meus filhos fiéis que colaboramos para que sua falcatrua na empresa fosse descoberta. Aquele papel não estava lá à toa, fizemos você esquecer ele e mais os outros e abrimos o caminho para você ser pego em flagrante.
Ângelo gelou. Mas o que era aquilo? Como Flávio sabia do que havia ocorrido na empresa? De repente uma onda de raiva o acometeu. Alguém contara ao filho o seu envolvimento com desvios de dinheiro e ele agora estava querendo rir de sua cara. Num ímpeto avançou para ele e deu violento soco em seu queixo:
- Cale-se moleque.
Érica, vendo a agressão, desmaiou. Ester deixou o corpo de Flávio e sorriu vitoriosa. Livre dela, Flávio, queixo sangrando, saiu em disparada para a garagem, pegou a chave do carro de sua mãe e lançou-se pelas ruas de São Paulo em alta velocidade. Malaquias que havia influenciado Ângelo para bater no filho juntou-se com Roque e Ester que disseram:
- Por hoje já está bom! Vamos para o Desterro que Jorge ficará feliz com as notícias. - E os vultos escuros sumiram na noite.
Todos acordaram com a gritaria. Sandra e Marina pegaram o corpo de Érica e colocaram na cama. Ninguém entendeu o motivo da briga. Sandra estava estarrecida. Nunca em tantos anos de serviço vira Ângelo bater em ninguém, muito menos num filho, mas respeitando a privacidade dele nada perguntou. Marina disse:
- Parece que um furacão passou por aqui.
- Seu irmão, que se aproveita para fingir-se de louco e me desrespeitar.
- O quê? O Flávio fez isso? Ah, então bem que mereceu o soco que levou.
Nisso Sandra percebeu que Érica despertava. Após lavar o rosto, Ângelo pediu para que Marina e Sandra se retirassem, pois estava tudo bem e o destino de Flávio nas ruas de São Paulo não o incomodava. Érica ouvindo isso enlouqueceu. Além de seu filho não saber guiar direito, a noite de São Paulo era muito violenta e o trânsito desenfreado. Não conseguiu dormir mais. Estava com raiva do marido porque ele lhe ocultava alguma coisa e preocupada com Flávio, pois sabia que ele realmente estava doente. Pior que isso era pensar nele sozinho em seu carro numa selva de pedra como esta cidade. No quarto, Noel e Carlota não se cansavam de orar pela família. Eles não conseguiram agir a contento porque as mentes deles não permitiram. Pessoas que se deixam levar impulsivamente por idéias nefastas e perniciosas são presas fáceis dos espíritos levianos e vingadores que se aproveitam e fazem tudo o que querem com suas supostas vítimas. Restava agora buscarem Flávio que, a esta altura, se deixava levar pelo sentimento de raiva e cometia o grave erro de dirigir em excesso de velocidade.

2 - CAMILA

Flávio tentava conter as lágrimas que embaçavam sua visão. Nunca havia recebido uma surra do pai, no máximo algumas palavras ásperas, mas agora aquele soco foi à gota d'água. Ele queria esquecer e aumentava cada vez mais a velocidade. No banco traseiro Noel e Carlota observavam a situação ao mesmo tempo em que em telepatia recebiam a mensagem do instrutor Hilário:
- Aguardem com serenidade. Seriam perfeitamente dispensáveis essas dores porvindouras, porém a vida usa a ignorância de uns para fazer o aprendizado de outros ou para colocá-los frente a frente com algo que muito aguardam. Continuem seguindo o caminho sem desanimar, jamais esquecendo que Jesus está sempre próximo e nunca desampara.
Numa avenida movimentada um carro conversível vinha na contramão com uma pessoa distraída ao volante. Flávio tentou brecar, mas foi tarde demais. Uma batida, uns gritos de horror e muita confusão. O carro de Flávio juntamente com o conversível foram parar a metros de distância. Rapidamente apareceram bombeiros que de dentro dos destroços retiraram o corpo de Flávio e de uma jovem loura, no outro carro, conduzindo-os para o pronto-socorro. Por coincidência os dois jovens foram atendidos na mesma hora e ficaram no mesmo quarto. Ela estava consciente e havia fraturado um braço e uma perna. Flávio com apenas alguns arranhões, porém, talvez por força do desmaio continuava adormecido. As enfermeiras procuraram os documentos dele, mas não os encontraram. Na bolsa da moça havia sua identidade: Camila Assunção Ferguson. Após conseguir o seu número a equipe do hospital ligou para a família dela e os informou dos recentes acontecimentos. Enquanto isso Flávio adormecido foi levado para o astral. Numa sala de um dos prédios da colônia Campo da Redenção ele foi despertando e mais uma vez estava com Hilário, Carlota e Noel. Ao abrir os olhos, disse:
- O que houve, onde estou?
Hilário adiantou-se:
- Mais uma vez conosco. Em menos de 24 horas duas viagens ao além, muita mudança e muita confusão. Como tem se saído?
Ele ainda atordoado pareceu recordar-se e disse:
- Já sabe que não estou fazendo o bem, peço desculpas.
- Não há o que desculpar, mas sim aprender a fazer melhor.
Ele, com um quê de revolta, perguntou:
- Por que tudo tinha de acontecer assim tão de repente? Ainda hoje pela tarde chegava do trabalho com a rotina de sempre. Tudo ia sem mais novidades e de uma hora para outra parece que o céu desaba sobre minha cabeça. Não lhe parece injusto?
Hilário, num terno sorriso, explicou:
- Não existem injustiças, a vida é uma equação perfeita. No que diz respeito à mediunidade não é de hoje que você vem sentindo seus efeitos. Desde a infância os constantes desmaios e as mudanças repentinas de humor já davam indícios do que viria mais tarde. Quando o trabalhador está pronto o trabalho aparece. Mandei trazê-lo aqui pelo rumo rápido que os acontecimentos vêm tomando. Os encarnados com o livre-arbítrio fazem mudanças muitas vezes tão céleres nos caminhos pelos quais trilham que aqui na espiritualidade a orientação "orai e vigiai" é seguida com o triplo de intensidade. Sua desorientação mental o levou àquele acidente e como não há acaso na obra divina, seu carro se chocou com outro guiado por uma alma muito necessitada de sua presença. Chegou a hora: você reencontrará Helena, que hoje se chama Camila. As afinidades de energias os colocaram frente a frente, aproveite.
Completamente desperto, Flávio mostrou-se feliz:
- Que maravilha, afinal são 23 anos de espera, desejo que ela não sofra quando eu reencontrar Anita. Mas, e minha família, por que indo assim tão de repente?
Carlota retorquiu:
- Vejo que você já captou um vício humano: o de exagerar as coisas.
Hilário prosseguiu:
- Isso mesmo. O que eles estão passando e vão passar são reflexo dos pensamentos do passado que ainda insistem em manter. Como sabíamos que essa fase viria trabalhamos em você um desenvolvimento rápido de mediunidade. Mas você se deixou levar pelo desequilíbrio e atraiu as entidades perturbadoras. Um portador de mediunidade pode atrair tanto um espírito sofredor como um superior, e sua vinda aqui, é para que perceba que não deve mais deixar se levar tão profundamente por sentimentos negativos.
Noel interrompeu:
- A espiritualidade não cobra sua perfeição, apenas seu esforço em se conscientizar e dar o melhor de si. O resto nós aqui fazemos. Mas quando a pessoa deixa de fazer o seu melhor como você fez agora a pouco, a conexão com o superior é cortada e pouco ou nada podemos fazer, a não ser deixar a pessoa colher os próprios resultados.
Hilário prosseguiu:
- Pela urgência que você tem em melhorar para fazer um bom trabalho nós viemos lhe pedir que busque os meios da auto-ajuda, felizmente, muitos dos nossos irmãos encarnados na Terra estão cumprindo perfeitamente seu papel palestrando, escrevendo e mostrando para todos os caminhos necessários para a felicidade, busque-os. Jesus disse: "batei e abri-se-vos-á". Se procurar esse auxílio, mais fácil irá conseguir o que pretende.
Flávio perguntou:
- Quer dizer que devo buscar os livros do Espiritismo?
- Também. Os nossos irmãos do astral esforçam-se para passar tudo o que aprendem aqui através da psicografia não só na linha do espiritismo como no espiritualismo em geral. A psicologia experimental vem inspirando pessoas que têm feito grandes obras. Na cidade que vivemos não temos rótulos e valorizamos tudo o que é capaz de levar o espírito a desenvolver seus potenciais inatos e eternos.
- Entendi - disse Flávio. - A febre dos livros de auto-ajuda, das palestras, dos lugares de refazimento já se faz sentir sobre o mundo e vem ganhando campo cada vez maior. Saberei procurar no momento oportuno; mas vim parar novamente aqui apenas para ser alertado sobre isso?
- É claro que não! - ponderou Hilário. - Viemos avisá-lo sobre o estado penoso em que se encontra Camila. Vocês vão se reencontrar e será imperioso que você a auxilie como irmão um pouco mais adiantado. Camila não conseguiu perdoar sua mãe e bebe desenfreadamente para se vingar da mesma. É uma atitude dolorosa que só a tem feito sofrer.
Flávio encheu os olhos de lágrimas e concluiu:
- Talvez não cumpra mesmo sua parte no trato, neste caso o que acontecerá com ela?
Hilário, olhos profundos, respondeu:
- Sofrerá muito. Assim como você, Camila é portadora de ostensiva mediunidade e na exata hora será chamada ao encargo que escolheu e aceitou antes de renascer na Terra. Por ter o corpo programado para o trabalho mediúnico sentirá a conseqüência danosa daqueles que desertam aos chamados do coração. Na vida que leva, facilmente será vítima de terrível obsessão dos espíritos principalmente os viciados em alcoolismo. Toda pessoa que bebe carrega consigo companhias espirituais viciadas e sugadoras que se aproveitam de seu desequilíbrio para sugar as libações do álcool às quais tanto se habituaram.
- Bom, é chegada a hora de retornar ao corpo. Cuide de Camila fazendo o seu melhor. Não caia na vaidade de salvá-la, pois isso não lhe compete; siga apenas seu coração dando o que ele tem de melhor. Jamais se esqueça de buscar o contato espiritual e a literatura confortante da auto-ajuda. Vá em paz!
No quarto do hospital Flávio despertou. Apesar do machucado, uma doce sensação de paz invadiu o seu ser. A assistente que o observava pegou seus dados pessoais e saiu.
Numa cama ao lado, uma moça de cabelos encaracolados, louros, na altura dos ombros, tez clara, olhos amendoados se mexia inquieta. Flávio vislumbrou seu semblante meio revoltado e pensou: "Que mulher linda! Quem dera uma aproximação". Ele não se lembrava de quase nada que ouviu na colônia espiritual, apenas a última frase ecoava em seu cérebro: "Nunca deixe de procurar o auxílio espiritual". Meio atordoado ele virou-se para a moça e disse:
- Não dá nem para saber que horas são, não é mesmo?
Ela irritada respondeu:
- Essa droga de hospital nem relógio tem. Se eu não estivesse com a perna e o braço quebrados já teria fugido daqui. Só queria saber quem foi o bobo que atravessou na minha frente.
Flávio suspirou:
- Você também foi acidentada num automóvel?
Ela, meio sarcástica, disse:
- Dá para perceber! E você teve sorte, pois não está muito mal. É sempre assim, até nesses casos a vida sempre privilegia os homens em detrimento das mulheres.
- Oh! Não diga isso, talvez tenha sido a sorte sei lá, mas logo você também vai se recuperar. O conversível no qual bati teve menos sorte que eu, acredito que quem o dirigia deve estar bem mal, mas eu não guardo culpa, pois foi a outra pessoa quem vinha na contramão.
Ela empalideceu:
- Não me diga que seu acidente foi na Paulista!
- Isso mesmo, por quê?
Ela fez um ar de raiva e bradou:
- Seu irresponsável, foi você que bateu no meu conversível. Quando o meu pai chegar darei um jeito de lhe processar e você vai pagar caro, afinal eu vinha distraída isso sei, mas a minha velocidade era a mínima possível, você é que parecia estar fugindo da polícia.
- Mas você vinha na contramão, por acaso estava bêbada?
Nesse instante, a moça enrubesceu, falando com raiva:
- Quem é você para me chamar de bêbada? Olha, que se eu não estivesse imobilizada, me levantava daqui e te dava um tabefe no rosto. E vamos acabar com essa conversa mole que não é com qualquer um que eu falo. - E começou a gritar: - enfermeiraaaa! Incompetentes! Quero meu pai!
Flávio não se ofendeu e achando-a até divertida disse:
- Acalme-se, senão vai acordar toda São Paulo!
Ela continuou a berrar e a atirar os objetos do criado-mudo no chão. Uma enfermeira surgiu e vendo a cena perguntou:
- Mas o que é isso aqui? Tenha modos menina, olhe o que você fez, contenha-se!  Ela não deu ouvidos:
- Cale a boca sua enfermeirazinha de nada, saiba que meu pai com o dinheiro que tem pode colocar essa espelunca abaixo!
Nessa hora entrou no quarto um casal de meia-idade acompanhado de uma moça. Eles olharam para Camila e o homem disse:
- Camila, o que foi que te aconteceu?
Ela chorando agarrou-se ao pai. Ele percebeu que a filha ainda estava alcoolizada e preferiu não falar sobre o acidente. Camila fitando a mãe falou rancorosa:
- O que quer aqui? Ver minha derrota, meu corpo estragado só para rir de mim? Vá embora, não preciso de sua presença aqui.
Élida, mulher acostumada ao convívio social, contemporizou:
- Que é isso filhinha, veja como fala, todos nós aqui só queremos o seu bem.
Camila ainda mais alterada vociferou:
- Não precisa fingir dona Élida Assunção Ferguson, estamos sozinhos aqui, exceto por esse desconhecido aí, portanto pode dizer que veio tripudiar sobre mim juntamente com essa aí. - E olhou para Isabela sua irmã. - Eu já avisei que só quero meu pai aqui, vão embora antes que eu perca minha paciência!  Élida virou-se para Flávio e disse:
- Não se assuste garotinho com o que ela diz, sabe como são os jovens, vão em festas com amigos e acabam passando um pouco da conta na bebida, mas depois tudo volta ao normal.
Fernando virou-se para a mulher e disse:
- Vá com Isabela providenciar a cadeira de rodas para Camila.
Elas obedeceram e saíram. Outra enfermeira entrou no quarto e avisou:
- Finalmente localizamos seus pais Flávio, eles estão a caminho, porém avisaram que o trânsito pode atrasá-los, não fique impaciente, logo eles estarão aqui.
Isabela e Élida entraram com a cadeira de rodas e auxiliadas pelo médico e duas enfermeiras colocaram Camila nela para ser levada à outra sala para fazer exames. Antes de sair Camila olhou para Flávio c disse:
- Voltaremos a conversar rapaz!
E saiu. Flávio estava impressionado. Que mulher! Apesar das cenas desagradáveis que ela havia aprontado, ele pensou que sóbria ela poderia ser uma linda mulher. Que olhos! Onde os teria visto? O espírito de Carlota o envolveu dizendo:
- Não se deixe levar pelas aparências. Ela é a Helena de sempre, apenas estacionou um pouco na ilusão, porém a luz que tem ainda continua lá, é só ter paciência e esperar que ela venha para fora.
Flávio pensou:
- Ela é linda, apenas se esconde na aparência da revolta e estupidez, no fundo tem uma luz especial que me encantou.
Flávio sentiu que aquele acidente não fora de todo ruim. Apesar dos dissabores, ele havia conhecido uma linda garota que o encantou. Mas que sensação esquisita foi aquela? Por que de uma hora para outra ele havia perdido o controle de seu corpo e de sua voz? E por que duas vezes no mesmo dia? Ele estava com vergonha por haver agredido o pai, jamais se perdoaria por isso. Por que mesmo fazendo força para se calar acabou chamando seu pai de ladrão? Logo ele um homem tão trabalhador e honesto. Flávio começou a chorar. A conexão com Carlota foi rompida pela energia depressiva. Noel que também estava a seu lado comentou:
- Ele não consegue compreender por que fez aquilo com o pai. Ele ainda não percebeu que mediunidade tem tudo a ver com personalidade. Quando Flávio ouviu o pai dizer que o forçaria a trabalhar novamente, ficou com raiva e sentiu vontade de esmurrá-lo. No entanto, engoliu a raiva e a calcou dentro de si. Bastou esse pensamento para seu padrão energético baixar, o que permitiu a Ester manejá-lo como queria.
Carlota considerou:
- É por isso que o portador de mediunidade deve estar alerta com o nível de seus pensamentos, quando entra no negativo abre a porta para a interferência dos espíritos perturbadores. É necessário fazer a parte que lhe cabe mantendo pensamentos positivos, ficando no seu melhor. Flávio se deixa invadir constantemente por opressões e ainda não aprendeu a tomar conta do seu próprio campo vibratório. Um pouquinho mais de esforço e Ester não teria conseguido o seu intento.
Noel, olhos perdidos no tempo, ponderou:
- O ódio que ela sente é muito grande, mas já teria se desfeito se não tivesse se embrenhado com o pessoal do Desterro. Jorge consegue manejá-la facilmente explorando seu lado vingativo.
Carlota, suspirando profundamente, disse:
- Mas, como nos diz Hilário, a natureza não dá saltos e vai chegar a hora em que ela recolhendo os resultados de suas atitudes acabará mudando e buscando outros caminhos.
- Isso mesmo querida, só ela pode fazer isso. Agora como e quando isso vai acontecer, só o tempo dirá.
E continuaram ali a velar por Flávio.

3 - O MAL PRODUZINDO SEUS EFEITOS

A saída de Flávio do hospital foi rápida e sua recuperação foi em casa. As famílias envolvidas conversaram bastante e resolveram não dividir as despesas do carro de Camila. Os Assunção Ferguson eram bastante orgulhosos para aceitarem a oferta que Ângelo lhes propôs, e após os formais pedidos de desculpas, ambas as famílias levaram seus filhos de volta aos lares. Durante sua recuperação Camila estava mais nervosa que o habitual. Seu caso fora mais grave e exigiria muitos dias de repouso absoluto. Sentada em sua cadeira de rodas num quarto ricamente mobiliado ela pensava em tudo que aconteceu em sua vida. Recordou-se do juramento que havia feito: que jamais deixaria a mãe viver em paz. Tudo começou quando ela completou 15 anos. Élida abriu os portões de sua mansão no Bairro dos Jardins para uma luxuosa festa em comemoração ao seu aniversário e toda a mais fina sociedade paulistana compareceu. Após o baile, Vera chamou Camila num canto do jardim e disse:
- Preciso mostrar uns amigos do Cambuci que conheci e tive a liberdade de trazer à sua festa. Dona Élida os tratou mal e por isso eles nem chegaram a entrar na casa, preferiram o jardim.
Camila, com personalidade forte, respondeu:
- Mamãe é assim mesmo, para ela só vale a etiqueta do social, do mais rico, do nome melhor, eu já estou acostumada.
Aproximaram-se de um banco onde os jovens estavam reunidos e Vera iniciou:
- Jorge, Maurílio, Rafael, eis aqui nossa aniversariante, agora já podem cumprimentá-la sem que a dona Élida faça nenhuma cena.
Os três parabenizaram Camila e continuaram a conversar no ar puro do jardim. A orquestra que tocava no salão iniciou um jazz ao que Jorge falou:
- Que dona Élida me perdoe, mas não vou perder esse jazz por nada deste mundo.
Maurílio aquiesceu:
- Também vou e quero dançar com Vera. Dá-me a honra?
- É claro querido! Vamos também Rafael?
- Eu prefiro continuar aqui com Camila, ao que parece ela prefere as baladas românticas e não está interessada no jazz!
Camila aquiesceu:
- Isso mesmo, prefiro a brisa aqui de fora. Se aceitar gostaria que ficássemos conversando aqui.
Eles entraram e Rafael falou admirado:
- Puxa, Camila, pelos poucos minutos que conversamos percebi que você é muito amadurecida para sua idade, discorre facilmente sobre os vários assuntos.
Ela retorquiu:
- Sou o que sou, gosto de ser eu mesma, sem ilusões de grandeza ou de ser melhor. Pelo que percebi você parece pensar como eu.
- Isso mesmo, o problema é que minha condição não me permite crescer e fazer tudo o que eu quero.
Só naquele instante Camila percebeu o óbvio: Ele sofria com o preconceito de cor, ele era negro! Talvez por isso sua mãe os repelira tanto. Élida tinha horror aos negros. Camila não conseguia entender como uma pessoa tão religiosa era assim tão arrogante e preconceituosa. Tentou contemporizar:
- Não diga isso, hoje em dia o mundo tem mudado, já não se vê tanto preconceito contra negros.
Ele abriu terno sorriso e Camila apaixonou-se pelo seu espírito que julgou sincero e nobre.
- Sabe Camila, sonho em ser artista, trabalhar em TV, irado, mas o que vejo é o preconceito terrível. Os papéis dos negros são apenas para serem empregados, humilhados em cena, ninguém dá valor ao nosso trabalho. O mocinho é sempre o branco, e o bandido, o marginal que assalta, mata e rouba é sempre o negro. Infelizmente não terei fama com papéis como estes.
Triste, mas querendo ajudar, Camila disse:
- E você pensa que a única forma de ser feliz é através da fama? A vida é muito rica e se nos tira uma oportunidade nos oferece sempre outra equivalente, sempre há um novo caminho para encontrarmos a felicidade.
De repente eles se assustaram, Isabela a irmã mais velha de Camila estava na frente de ambos. Sarcástica ela disse a Camila:
- O Ricardo Valadares e o Guilherme Brandão querem cumprimentar a aniversariante e não a encontra. E eu venho encontrá-la conversando aqui sem dar atenção aos verdadeiros amigos.
Camila percebeu que ela havia dito isso se referindo à cor de Rafael. Não estava a fim de discutir, contemporizou:
- Vim tomar ar e encontrei a companhia maravilhosa de Rafael, a propósito quero convidá-lo para entrar comigo agora e dançarmos a valsa.
Isabela corou:
- O quê? Mamãe não vai gostar nada de lhe ver dançando com quem não é de nossas relações, vai lhe passar um sermão quando a festa acabar.
Rafael interrompeu:
- Não vim aqui causar confusão, aliás, não era nem para ter vindo, a Vera que insistiu. Olha, Camila, se houver algum inconveniente não precisa se expor.
Camila insistiu:
- Nada disso, vou mostrar a todos que quem manda na minha vida sou eu. Danço com quem quiser e achar melhor. Vamos Rafael.
Puxando Rafael pelo braço, Camila sentiu algo se rebelar dentro dela, estava cansada de ver os desmandos de sua mãe, seus preconceitos, sua arrogância. Ela ia ver quem era melhor.
A valsa começou e Camila entrou no grande salão majestosamente de mãos dadas com Rafael. Iniciaram a dança. Instantes depois os amigos de Camila perguntaram quem era o desconhecido que dançava com ela. Todos pararam para ver. Élida envergonhada desculpava-se com as amigas dizendo que se tratava de coisas da adolescência, que Camila sempre tivera personalidade forte e que ela não estranhava essa atitude. Mesmo assim as matronas teceram comentários descaridosos a respeito da cor do rapaz, bem como sua origem. Passava das quatro horas da manhã quando todos os convidados foram embora. Élida não conseguia esconder sua indignação; além de dançar com o negro mais de uma hora, Camila deixou seus principais amigos de lado para conversar apenas com o intruso. No dia seguinte falaria com ela.
Em sua banheira, Camila não conseguia esquecer Rafael, fora paixão à primeira vista. Encantou-se com seu jeito firme, suas palavras sinceras e encantadoras, seu modo de pensar e sua inteligência. Trocaram telefones e prometeram se ver. Os garotos de sua turma eram por demais exibidos e ostentadores, "Mauricinhos", como se costuma dizer e esses não a interessavam nem um pouco. Pela manhã depois do café, Élida lhe passou um sermão falando do ridículo que foi sua atuação em plena festa de 15 anos, discorreu sobre os valores sociais e exigiu que eles fossem respeitados. Fernando, seu pai, era médico e não merecia aquela gafe. Mesmo assim Camila não a ouviu e continuou se encontrando com Rafael. A cada dia estavam mais unidos. A partir daquela festa um ódio surdo brotou em seu peito contra a mãe, pelo egoísmo que ela representava e pela falsidade em que vivia. Estava disposta a levar sua relação adiante custasse o que custasse e acabou se entregando a Rafael. Um ano e meio após seu aniversário e depois de encontros furtivos sem que ninguém desconfiasse, Camila engravidou. O casal resolveu esconder a relação de todos temendo que Élida os atrapalhasse, porém com o passar do tempo não dava mais. Após uma longa conversa decidiram participar o assunto à família dela. Uma bomba teria dado menor impacto. Élida expulsou Rafael de sua casa dizendo-lhe impropérios e bateu três vezes no rosto da filha. Fernando tentava contemporizar, mas a esposa estava irredutível: esse filho jamais viria ao mundo. Tentando fugir, Camila foi presa pelos seguranças e trancada em um quarto, sem ver ninguém, sem nenhum contato com o mundo exterior. O ódio crescia ainda mais em seu peito e nem Fernando pôde ajudá-la como gostaria, uma vez que era dominado pela esposa. Uma tarde soube pela empregada que Rafael saltou um dos muros da mansão e foi ferido pelos cachorros da casa. A mãe dele lá esteve e foi humilhada por Élida. Com o tempo Rafael seguindo os conselhos da mãe procurava esquecer Camila, mas a imagem de seu filhinho que estava por nascer vinha forte em seu pensamento e ele começou a beber. Depois de três meses com Camila presa, Élida pediu a Jacira, a empregada, que a deixasse preparar o almoço da filha. Seu plano tinha que dar certo. Colocou alta dose de sonífero no prato e ela mesma foi levá-lo à filha. Não a via desde que fora presa, pois Camila a xingava e atirava-lhe objetos. Porém, nesse dia, entrou no quarto falando:
- Você pode me odiar, mas tudo o que faço é para o seu bem, coma.
- Saia daqui, não quero vê-la. Jamais a perdoarei!
- Pode me xingar à vontade, entendo que está louca e como tal tenho pena e não ódio de você.
- O que pretende em pleno século XX fazer com um neto negro? Afinal, ele tem o seu sangue!
- Jamais o reconhecerei, fique sabendo que não vou deixar você estragar sua vida inteira por causa de um negro sem eira nem beira. Coma!
Camila sentiu vontade de atirar-lhe o prato no rosto, mas a fome era maior, ela também tinha que alimentar seu filhinho que já se mexia e precisava ser nutrido. Começou a comer. Ela não viu, mas pelos olhos de Élida passou estranho brilho de vitória. Sua filha caíra nas suas garras. Em poucos minutos Camila estava desacordada. Élida, acompanhada por espíritos abismais colocou a filha adormecida dentro do carro dando ordens aos empregados para nada dizer a Fernando. Em sua mente um único pensamento: "Este negrinho não manchará a honra de minha família com sua cor nojenta". Um vulto exultou de alegria e soprou-lhe aos ouvidos:
- Está certa amiga, vamos acabar com essa raça infeliz e é hoje.
Élida sentia aumentar seu ódio e repetia para si mesma: Hoje acabarei através de um aborto com essa raça que ousou invadir minha família.
Mal sabia que com essa atitude estava criando compromissos terríveis de reajuste que certamente iriam encontrá-la no futuro. Ninguém pode dispor da vida pois só Deus tem esse poder. Pobre do homem ou da mulher que se achando dono da vida pratica semelhante crime, achando que seja a solução para seus problemas. Numa casa malcheirosa num subúrbio da Zona Sul o aborto foi realizado. Camila inconsciente não perdeu muito sangue e sua recuperação foi rápida. Ao abrir os olhos e constatar a realidade Camila e a mãe travaram uma luta corporal. No auge da raiva ela jurou:
- Malditas sejam você e sua alma, enquanto viver farei de tudo para tornar um inferno a sua mesquinha vida. Vou desmoralizá-la perante a sociedade, me tornarei a pior das criaturas até que ao vê-la destruída eu possa novamente viver em paz.

4 - OBJETIVOS DA VIDA

Camila saiu de casa com muito ódio à procura de Rafael. Ainda estava fraca, mesmo assim seguiu para o Cambuci. Quando chegou na rua onde ele residia percebeu um movimento inusitado. Ela precisou ter todo o controle quando viu na porta da humilde casa uma coroa de flores. Atônita ela entrou no velório e viu Rafael no caixão. Ele estava morto e ela não teve forças para chorar, sua vida estava acabada. Saiu da casa e sentou-se numa pedra próxima onde podia divisar uma nesga do horizonte. Por que tudo teve de ser assim? Fatalidade? Porém, a verdade é que Camila estava muito chocada. Para ela a maldade e o ódio eram os sentimentos que dominavam o mundo, sua mãe triunfara através do ódio e ela, a partir daquele dia usaria o ódio e o rancor para destruir tudo o que passasse na sua frente. Daquela hora em diante ela jamais teria piedade ou dó de ninguém. Maurílio e Vera aproximaram-se. Vera alisou-lhe os cabelos e Maurílio comentou:
- Não tivemos como avisá-la, sua mãe proibia-nos de entrar em sua casa. Soubemos que está grávida, mas infelizmente ele se foi.
Vera continuou:
- Desde que foram proibidos de se ver, Rafael começou a beber sem parar, só falava no filho que ia nascer e em você, o grande amor da vida dele. Ontem à noite pegou o carro do Maurício emprestado e acidentou-se gravemente. Foi morte cerebral instantânea. Infelizmente seu filhinho não conhecerá o pai.
Sem conseguir chorar, Camila contou tudo o que a mãe fizera, explicou o aborto e o seu juramento final. Seus amigos revoltados a ajudariam naquela empreitada. O enterro foi pobre e humilde. Camila foi olhada de soslaio pela mãe de Rafael que intimamente a culpava pela morte de seu único filho. Na sepultura humilde, Camila apanhou um punhado de terra e mais uma vez proferiu outro juramento:
- Hei de vingar sua morte! Pela luz que irradia deste pôr-do-sol, hei de me vingar.
Os dias foram passando, Camila não saiu de casa, pois permanecer no lar fazia parte de seu nefasto plano. A partir daquele dia espíritos do umbral passaram a segui-la constantemente, alimentando seus planos, dando-lhe detalhes para conseguir o intento macabro. Influenciada pelos espíritos das trevas ela iniciou uma draconiana mudança em seu visual, colocou tatuagens manchando assim o templo sagrado que é o corpo físico, piercings por todos os lugares possíveis, agredindo o templo do espírito e entregando-se completamente ao vício do álcool. Assim, seus escândalos passaram a figurar em todos os jornais da cidade, inclusive nas páginas policiais. Élida começou a perder o equilíbrio emocional, passou a tomar remédios controlados e há sair muito pouco. A gota d'água foi ela ter surpreendido a filha e seus amigos da "pesada" numa orgia em plena sala de sua casa. A partir daquele dia Élida começou a definhar até que um padre seu amigo a aconselhou a não se desfazer de sua vida por uma filha que havia se ligado com o demônio. Então Élida reagiu, foi a cabeleireiros, lugares da moda, enfim, praticamente voltou a levar a vida de antes. Porém Camila não mudou, continuava provocando escândalos e mais escândalos. Como exalava uma energia especial, pois era médium sensitiva, rapidamente atraiu mais presenças espirituais inferiores que sugavam toda a sua energia. Ela passou então a apresentar uma aparência pálida e debilitada. Essas lembranças incomodavam Camila e, para distrair a mente, invariavelmente usava o computador navegando por sites pesados da Internet. No panorama espiritual os mentores faziam de tudo para amenizar o estado caótico daquela família, porém eles não tinham liberdade para interferir no livre-arbítrio dos envolvidos. A obsessão que está presente na maioria dos lares terrenos, naquela casa se encontrava em estado mais grave. Além dos espíritos sugadores do dia-a-dia, havia uma tenebrosa equipe espiritual treinada e disciplinada por Teófilo para pôr fim à vida de Camila. Pela forma como ela agia, Teófilo, chefe de uma cidade astral inferior, foi informado que ela seria uma preciosa sugadora e magnetizadora do astral inferior, seria perfeita para a realização dos planos de vingança que ele e seus súditos tinham em mente e que não podiam ser postergados. Teófilo decidiu no tribunal da cidade de Larvosa que Camila deveria desencarnar, uma vez que encarnada de nada valia. O plano foi traçado: dezesseis espíritos iriam afundá-la no vício do álcool, revezando-se continuamente para que ela fosse manipulada 24 horas por dia.
Teófilo designou oito espíritos para ficar com ela da meia-noite ao meio-dia e mais oito para continuarem do meio-dia até a próxima meia-noite. Tudo na mais perfeita disciplina. Sabendo o que se passava, Carlota marcou urgente reunião com Hilário para que juntamente com Noel e outros benfeitores do além pudessem intervir no caso. Em sua habitual sala de trabalho no edifício central da colônia Campo da Redenção, Hilário, sorridente e amável os recebeu:
- Sejam bem-vindos. O que desejam?
Carlota iniciou:
- Acreditamos que pela sua experiência já sabe do que se trata. Somos encarregados da evolução de um grupo espiritual e estamos observando um de seus membros se perder no vício e na degradação. Trata-se de Camila.
Noel e Carlota narraram em detalhes os acontecimentos e Hilário observou:
- O que me contam não é novidade. Camila necessita de amadurecimento e está escolhendo o caminho da dor para evoluir. Sei do interesse de vocês em auxiliá-la, mas nada ou quase nada há para se fazer, a não ser rezar para que Deus nos conforte e alivie o sofrimento dela.
Carlota indignou-se:
- O quê? Vemos a destruição de um ser querido e não podemos fazer nada? O Teófilo vai conseguir levá-la para Larvosa... Onde está o Criador?
Impávido Hilário respondeu:
- Está no leme de tudo! Deus sempre está à frente de qualquer acontecimento e não cai uma folha da árvore sem seu consentimento. À medida que crescemos vamos adquirindo maior liberdade e se foi Deus quem nos deu certamente Ele não irá interferir no seu uso. Na
Terra as pessoas embrenham-se nos vícios de todas as espécies. Como não têm visão espiritual acham que estão fazendo tudo sozinhas e que vão ficar sempre como estão, gozando deles sem limites. Em verdade estão em sua maioria sendo usadas pelos chefes das falanges inferiores. Quando morrem, nem bem termina o desligamento dos laços fluídicos já estão quais vampiros à espera da presa. Quando finalmente libertos do invólucro carnal os espíritos viciados são capturados pelos chefes do umbral e passam a viver como prisioneiros destes.
Carlota não se conteve:
- Esse será o destino de Camila?
Hilário explicou:
- Tudo pode ser mudado, porém eu diria que no caso dela talvez seja um pouco tarde. Vamos ver se o reencontro com Flávio lhe será positivo. Em breve a mediunidade dela se tornará mais ostensiva e bebendo como está não será nada fácil. Esse rapaz terá muito que fazer para que ela desperte.
Noel ficou em dúvida:
- Em minha inexperiência acho que apenas os espíritos equilibrados merecem a mediunidade, pois saberão fazer bom uso dela. Até hoje não consigo aceitar que pessoas como Camila ganhem essa preciosa ferramenta.
Hilário sorriu:
- Disse-nos Jesus: "Não são os sãos que precisam de médicos e sim os doentes". Sábias palavras do Nazareno. Como a mediunidade é uma bênção, um espírito necessitado, se bem orientado por pessoas experientes pode vir a equilibrar-se, conhecer outras dimensões do Universo, praticar o bem, aprender, ser feliz. A mediunidade é um presente para que o homem viva melhor. Não critique, pois se Deus os favoreceu com esse dom é porque em sua misericórdia sabia que era para um bem maior.
Carlota ansiosa perguntou:
- O que efetivamente podemos fazer para salvar Camila?
- Vejo que você ainda cultiva um grave vício humano: o de querer salvar as pessoas. Quanta ilusão! Ninguém salva ninguém, ninguém ensina nada a ninguém. Apenas favorecemos para que as pessoas retirem de si mesmas as lições que precisam. Estamos acostumados a subestimar o poder do ser humano e o mimamos excessivamente. Se Deus nos colocou num planeta de experiências como a Terra Ele também nos deu todos os elementos para sairmos dela vitoriosos. Mas nós, orgulhosos que somos, achamos que estamos "ajudando", "salvando" os outros quando estamos apenas exercitando o nosso orgulho.
Ele fez ligeira pausa e vendo que os dois ouviam atentos, continuou:
- Carlota, raros são os que ajudam verdadeiramente. Enquanto mantivermos a ilusão de que estamos ajudando alguém, evidenciamos apenas nossa vaidade. Devemos ter a humildade de perceber que quando a vida coloca algum necessitado em nosso caminho é para treinarmos a doação, o dar de coração e principalmente para termos ocasião para fazermos o nosso melhor. Quem ajuda de coração recebe muito mais do que deu. A sabedoria divina aproxima e separa as pessoas para que trocando experiências aprendam a viver melhor.
- Então deixaremos Camila à mercê desse grupo monstruoso? - indagou Noel.
- Não foi isso que quis dizer. Contamos com vocês para praticarmos a verdadeira ajuda, que só pode ser feita quando a pessoa estiver madura para recebê-la. Não se atiram pérolas aos porcos. Nunca se perguntaram por que no umbral e na crosta há tanto sofrimento? Nunca se perguntaram onde está Deus que vê tudo isso e aparentemente nada faz?
- Quando cheguei aqui há 35 anos tinha esse questionamento - expôs Carlota. - Com você e espíritos de regiões mais elevadas tenho entendido muita coisa, mas a cruel dúvida para muitos casos ainda permanece. Sei que há muito sofrimento nessas zonas, o irmão André Luiz que reside em Nosso Lar, levou oito anos para ser socorrido e retirado do umbral.
Hilário exultou:
- Belo exemplo. Deus é suprema justiça, bondade e sabedoria, nada acontece sem seu consentimento. O exemplo de André Luiz ilustra bem o caso em questão. De que adiantaria ele ter sido socorrido sem ter aprendido tudo quanto deveria aprender para sair dali? Nem
de Deus ele se lembrava. Porém quando orou, meditou e aprendeu o significado de sua estada lá, imediatamente à equipe de Clarêncio foi buscá-lo. Deus não tem pena e nem mima ninguém; olhando casos como este do André, analisando os hospitais da Terra principalmente os infantis, podemos perceber que o conceito de ajuda para Deus é um, mas para nós é outro. E quem ousaria dizer que Deus fez alguma coisa errada? Dizer isso é afirmar que Ele é falível, o que jamais podemos conceber. Se Ele é a causa primeira de tudo, seu objetivo maior é a evolução. Enquanto nós queremos ser a "muleta" para que os outros se pendurem, Ele deseja ser o professor que ensina a andar direito e com as próprias pernas. Quer pai melhor?
Noel e Carlota estavam mudos com a sabedoria de Hilário. Porém, Carlota insistiu:
- Você ainda não respondeu à minha pergunta: Camila ficará sem auxílio somente porque com o livre-arbítrio escolheu o vício?
- Ninguém está sozinho porque a vida é misericordiosa. Ela terá não só de vocês, mas de outro grupo espiritual toda a assistência que por mérito conseguir. No que for possível aliviar aliviaremos, porém se continuar agindo como está atrairá experiências que não poderemos evitar, afinal a vida é feita de escolhas. Recebi informação de plano mais alto que a convivência com Flávio será uma oportunidade de crescimento para ela. Se aproveitar será feliz, se não sofrerá as conseqüências. Vão em paz e que Deus e Jesus os acompanhem.
Noel e Carlota saíram conformados com as palavras de Hilário. Eles fariam de tudo para colocar em prática as coisas que ouviram.

5 - O DRAMA DE FLÁVIO

A tarde ia em meio quando Flávio resolveu sair da cama. Desde o acidente não havia mais saído de casa e seu pai não conseguira esquecer as palavras acusadoras que ouvira dele. Havia uma semana que tudo tinha acontecido, porém ninguém na casa comentou mais nada, nem Marina que gostava de dar alfinetadas esboçou qualquer gracejo. Flávio tentava concatenar as idéias sem entender o que acontecia com ele. Lembrava-se claramente do ódio que sentira do pai e de tê-lo acusado de ladrão. Por que dissera aquilo? A partir daquele acontecimento o pai estava cada vez mais sisudo com ele, falava apenas o necessário e não havia lhe pedido desculpas pelo soco. Descendo as escadas encontrou Érica folheando uma revista de moda, que ao ver o filho falou:
- Ainda bem que resolveu descer, precisamos conversar.
Acomodado no sofá, Flávio esperava.
- Seu pai perdeu o emprego, eu não tenho profissão, sua irmã estuda, por tanto resta apenas você. Na próxima segunda-feira voltará ao trabalho quer queira quer não queira. Você precisa auxiliar, pois o dinheiro de seu pai vai durar muito pouco para mantermos o padrão de vida ao qual estamos habituados.
Corado pela surpresa Flávio retrucou:
- Isso não poderei fazer, de jeito nenhum! Aquela empresa é para mim o verdadeiro inferno, você não pode me obrigar.
- Mas obedecerá! Seu pai já está muito magoado com suas palavras e caso não colabore será pior para você.
- Por que ele não tenta outro emprego? Afinal, não dizem em sociedade que são os pais que devem sustentar os filhos?
- Ele está procurando, mas você acha que é fácil encontrar emprego depois dos 50 anos? Vocês jovens nada sabem da vida. Não estamos em condições de dar importância ao que a sociedade diz ou não.
- Mas há o Cristiano, ele não está lá na Inglaterra levando vida boa? Por que não recorrem a ele?
- O seu irmão sempre quis nos ajudar, mas o Ângelo é muito orgulhoso e jamais aceitou, muito pior agora.
A porta abriu-se e Ângelo com expressão séria entrou. Beijou o rosto da esposa, mas não cumprimentou Flávio. Sentando-se anunciou:
- Temos que viajar. A empresa do Farias, a única que me restava acaba de me negar emprego, precisamos aceitar a sugestão de Cristiano.
Mudos, Flávio e Érica não sabiam o que dizer. Ele continuou:
- Nem a você Érica eu revelei que tenho mantido contato com nosso filho. Como ele está muito bem na Inglaterra e é dono de uma empresa de porte médio nos chamou para residir lá com ele, me ofereceu emprego em sua empresa e ainda garantiu-me serviços extras. Diz que na Inglaterra as idéias são outras e por isso o país é próspero. Lá tudo que se toca vira ouro.
Assustada, Érica perguntou:
- Mas ir embora assim, de repente? E nossa propriedade, nossa filha que falta muito para se formar?
- Já pensei em tudo, mas tem um problema: não podemos levar o Flávio.
Um susto fez estremecer todo o corpo de Flávio que, instintivamente, disse:
- Como pode ser isso? Onde eu vou ficar?
Ângelo revelou:
- Telefonarei para sua tia Francisca e ela de bom grado o acolherá. É solteirona e ficará muito feliz com a companhia de alguém mais jovem.
Flávio ficou sem chão. Já não tinha amigos, estava com problemas que ele supunha serem mentais e agora perdia o apoio da família. Foi tomado de uma tontura e seu corpo cobriu-se de suor. Sua fisionomia mudou e uma vontade irresistível fez com que se levantasse e andasse pela sala, inquieto. Súbito, virou-se para o pai e disse:
- Como sempre egoísta, além de ladrão é egoísta! Agora por causa de um ódio quer abandonar o filho e por que vai levar Marina?
Flávio sentiu-se enlouquecer, num átimo foi jogado em espírito a um canto da sala e de lá pôde observar uma mulher loura tomar conta de seu corpo físico. Ela estava muito próxima dele e o manuseava como um boneco. Malaquias se aproximou do espírito dele que estava encolhido em um canto e apavorado falou com chispas de ódio nos olhos:
- Não tente fazer nada garotinho ou vai se arrepender, fique só observando, na hora certa Ester lhe devolverá o corpo.
Flávio estava atordoado, que loucura era aquela? Por que se via longe do corpo? Agoniado, agitado e nervoso, ele perdeu os sentidos. Malaquias e Roque sorriram e um disse para o outro:
- Bem que Teófilo nos avisou, esse é presa fácil. A tarefa será mais rápida do que pensamos.
Enquanto isso, o clima era cada vez pior. Ester através do corpo de Flávio dizia:
- É isso mesmo, quem mandou você fazer o Adolfo assinar aquelas promissórias? Você sabia que ele não tinha como pagar. Só para depois tomar nossas terras e nos deixar morrer na miséria. Você pagará caro.
Com os gritos, Marina e Sandra apareceram na sala e a cena era patética. Érica chorava implorando para que parassem e Ângelo bradava:
- Você está louco, não quero um louco me acompanhando a Londres, vou dar autorização à sua tia para interná-lo num hospício!
- Faça isso e levará mais um crime na consciência, é isso que nós queremos! Por hora vou me retirar, mas estou lhe avisando: onde você for eu o estarei perseguindo, como uma sombra e farei justiça com as próprias mãos.
Flávio desmaiou e seu corpo cobriu-se de suor gelado. Sandra e Marina colocaram-no sobre o sofá e Ângelo subiu as escadarias revoltado, Érica o acompanhou. Sandra trêmula confessou a Marina:
- Dona Marina se não estou enganada, o que aconteceu com Flávio é coisa de espírito.
- O quê? Era só o que faltava, isso não existe, é coisa de gente ignorante!
- Não é não. Lá no meu bairro o Luís, filho de minha cunhada, era tomado por um espírito vingativo que queria sua morte, e só melhorou quando dona Isaltina foi lá, conversou com o espírito e o convenceu a ir embora. Falou do perdão, do amor ao próximo e como seria bom ele viver num mundo de paz e refazimento. Depois disso o Luizinho nunca mais teve nada, sarou de verdade.
Marina muito impressionada com o que presenciou deu um pouco de crédito àquela história. As horas passavam e Flávio não despertava do desmaio. Seu espírito em estado de choque pairava alguns centímetros acima do seu físico. Ao chegar a hora de deixar o serviço, Sandra teve uma idéia:
- Quem sabe se a dona Isaltina vier aqui rezar e falar com o espírito ele não desperte?
- Está louca de chamar uma curandeira aqui? Minha religião jamais permitiria! - disse Érica a Sandra. - Está na Bíblia que não se pode falar com os mortos e eu não acredito nessas coisas.
Marina interrompeu:
- Mas é bom começar a pensar no assunto.
Em rápidas palavras Marina contou à sua mãe a história de Sandra e por fim disse:
- Mamãe, vamos trazê-la aqui, olhe o estado do Flávio, já são sete horas e ele continua gelado e não acorda. Papai não quer saber dele, precisamos fazer alguma coisa.
- Nessa hora dona Isaltina está em casa, se formos rápido ela poderá vir.
- Não quero. Essa curandeira aqui não entra jamais - bradou Érica.
- Eu não vou deixar você com seu preconceito acabar com a saúde do Flávio, ele é meu irmão e não estou gostando de vê-lo nesse estado.
Marina e Sandra saíram e Érica a se ver sozinha com o filho estendido no sofá da sala sentiu um arrepio percorrer seu corpo. Ela não podia ver, porém Malaquias estava ali atento e com medo de que alguma coisa desse errado com a presença de Isaltina, aproximou-se de Érica. Érica sentia as energias de medo de Malaquias e achava que eram suas, arrepios de quando em vez percorriam seu corpo. É claro que como mãe ela também temia, mas boa parte do que sentia vinha de Malaquias. Roque surgiu na sala assustado, chamando Malaquias a um canto:
- O clima aqui não será bom para nós. Teófilo mandou que retornássemos urgentemente, pois cidadãos da luz vão invadir esta casa. Eles podem até nos prender e levar para lugares de onde não mais retornaremos.
Apavorados, seus vultos negros desapareceram da sala. No mesmo instante uma senhora de meia-idade adentrava o recinto com Marina e Sandra. Com simpatia ela falou:
- Boa noite, suponho que o rapaz seja este.
- É sim, e seu estado se mantém desde as cinco da tarde, não acha que ele precisa de um médico? - perguntou Marina.
- Olha filha - tornou Isaltina. - O médico que ele realmente precisa é Jesus. Vamos dar as mãos, fechar os olhos e fazer uma prece pedindo auxílio aos amigos espirituais: "Senhor Deus Criador do Universo, sua força é sublime e sua misericórdia é infinita, concede-nos a presença de amigos espirituais benfeitores para ajudarmos esse irmão necessitado. Que sua luz possa brilhar por entre as trevas da ignorância e que sua bondade permita que este espírito possa novamente encontrar a paz. Que assim seja!".
Flávio estremeceu e sua testa se cobriu de fino suor. Dona Isaltina colocou a mão sobre sua testa e falou com convicção:
- Volte ao corpo Flávio, assuma o comando de sua vida, é hora de começar a tarefa que Deus lhe confiou.
Todos estavam impressionados. Flávio abriu os olhos e deu-se conta do que se passara. Inspirada por Carlota, Isaltina dizia:
- Você foi afastado temporariamente do corpo, mas tudo voltou ao normal. Você precisa dedicar-se à espiritualidade o quanto antes. Alguns fatos vão acontecer na sua vida e só poderá contar com o conforto espiritual. Um amigo espiritual está dizendo que chegou à hora de assumir sua tarefa e que contará com o auxílio da mediunidade. Por isso precisa estudar o assunto e aprender a lidar com sua sensibilidade.
Flávio já completamente acordado perguntou:
- Quem é esse amigo espiritual que está me mandando este recado?
- Um homem de cabelos grisalhos, estatura mediana, com óculos quadrados e se diz chamar Hilário. Diz que é seu amigo há muito tempo, mas que você agora não se recorda dele. Deixa-lhe a mensagem para que use sua mediunidade para o bem, com amor e dedicação. Há aqui mesmo em São Paulo um grupo que está esperando sua chegada e em breve estará com eles, sentirá sua sensibilidade aumentar, sairá do corpo e conversará conscientemente com os espíritos desencarnados.
- Posso saber o que vai acontecer em minha vida?
- Ele diz que é cedo para falar nisso. Admite, porém que você terá toda assistência necessária. Agora ele precisa ir, pede que se ligue com a espiritualidade através da prece e mantenha pensamentos positivos que o ajudarão a viver melhor.
O ambiente da casa havia se transformado. O tumulto desaparecera e em seu lugar havia uma atmosfera agradável de paz. Isaltina deu um beijo em Flávio e disse:
- Você é muito bonito. A beleza pode ser a perdição ou a salvação de uma pessoa, utilizando-a para o caminho do bem só terá a ganhar. Adeus filho, se precisar, me procure neste endereço.
Érica impressionada com tudo o que vira não conseguia articular palavra, apenas agradeceu a benfeitora com admiração. Nunca vira um padre da sua igreja fazer semelhante coisa.
Marina foi à sacada de seu quarto e olhou o céu cheio de nuvens. Será que realmente existia um ser que a tudo comandava? Em sua vida mundana nunca havia pensado em Deus. Passara a vida inteira vestindo-se à última moda, valorizando o status, mas não se sentia importante nem feliz. Por causa disso todos a achavam esnobe, metida. Ela porém sabia que não era nada disso. Tudo quanto fazia era para encobrir seu complexo de inferioridade. Ela não gostava de si mesma. Como seria Deus? Se Ele existisse mesmo, gostaria dela? O que presenciara naquele dia a fizera compreender que havia muitas coisas além do mundo material. O que seria tudo aquilo? Ela não percebeu, mas uma luz muito forte a abraçou e sussurrou-lhe ao ouvido:
- Deus também ama muito você!

6 - A TRAGÉDIA

Sentado na sala de estar Flávio não conseguia esquecer os últimos acontecimentos. Certa vez ouvira falar em centro espírita, mediunidade e contato com os mortos, mas nunca parou para pensar na veracidade do fato. Agora estava acontecendo com ele, por quê? Logo após a saída de dona Isaltina, sua mãe e Marina foram para os quartos e praticamente ignoraram sua presença. O que seria de sua vida dali em diante? Érica entrou na suíte e percebeu que Ângelo dormia profundamente. Graças à Virgem ele não presenciou aquela cena desagradável da curandeira conversando coisas estranhas em plena sala, onde os maiores figurões de São Paulo já transitaram. Deitou e tentou dormir, mas o sono não vinha. Era-lhe penoso deixar o Brasil, havia suas amigas, a igreja que ela tanto amava e se dedicava, e o pior: deixar Flávio com a insuportável da Francisca. Ela tinha certeza de que Ângelo sempre duro e rigoroso tomou partido contra o filho e só não o levaria junto por capricho. Ela nada poderia fazer. Estava habituada a aceitar todas as ordens do marido sem contradição e se ficasse a favor do filho era capaz de ele a deixar também no Brasil. Rolou mais meia hora na cama e caiu em sono profundo. Naquela noite todos dormiram muito bem. Noel e Carlota trouxeram amigos espirituais para velar por aquele lar tão conturbado e por isso Teófilo não conseguiu entrar lá com Ester. Pela manhã, na hora do café, Ângelo comentou:
- Escuta Flávio, estou disposto a perdoá-lo em consideração à sua loucura, pois você está muito doente. Deixarei ordens a Francisca para que ela procure o melhor psiquiatra de São Paulo para ver o que ele fará com você.
- Pai, eu posso garantir que não estou doente, ontem dona Isaltina conversou comigo e quando ela me partiu voltei ao normal. Tenho quase certeza de que meu caso é interferência de espíritos.
Érica corou e Ângelo não acreditou no que estava ouvindo.
- O quê? Coisas estranhas se passam dentro de meu lar e não fico sabendo? O que ocorreu aqui ontem Érica? Que história é essa de espíritos?
- A Marina e a Sandra trouxeram aqui uma senhora que rezou e o Flávio voltou ao normal. Coincidência ou não tudo melhorou e nosso filho ficou bem, por favor, vamos acabar com esse clima, eu não agüento mais.
Marina explicou:
- Isso mesmo pai. Também não acredito nessas besteiras de espiritismo, mas o Flávio saiu do estado em que estava, é isso que importa.
- Mais uma razão para deixá-lo no Brasil. Não desejo que me acompanhe com essas histórias da Carochinha. Depois do café conversaremos no escritório. Não se atrase.
Flávio tremeu. O que o pai queria com ele? Não conseguiu mais se alimentar, demorou alguns instantes e foi procurar o pai. Entrou no escritório bem mobiliado e arrumado modernamente e percebeu seu pai com olhar grave soltando baforadas de cigarro.
- Entre Flávio e sente-se, pois nossa conversa vai ser longa. Já adiei muito esse momento devido ao seu acidente, porém não dá mais. Ontem você repetiu o mesmo erro e hoje você irá me confessar: por que me chamou de ladrão? Quem lhe passou calúnias tão injuriosas a respeito do seu próprio pai?
Naquele instante Flávio admirou-se. Em vez de sentir medo e receio, uma força grande surgiu de dentro dele. Afinal, ele tinha dignidade e não queria ofender o pai.
- Desculpe-me pai, eu não tinha e nem tenho motivos para lhe chamar de ladrão, pois você para mim sempre foi o orientador que dizia que só o trabalho duro e honesto tinha valor.
Ângelo remexeu-se na cadeira. Na realidade ele sempre tinha dito isso à família, mas de alguns anos para cá tinha mudado um pouco de idéia. Só conseguiria enriquecer se tirasse dinheiro na empresa onde trabalhava. E foi isso o que ele fez, criou contas no exterior onde tinha razoável quantia. Um comprovante esquecido no seu escritório foi o passaporte para a descoberta. Ele nunca havia passado tanta vergonha, porém procurou esquecer.
- Não minta filho, se alguém lhe disse alguma coisa, cabe a você como filho me defender e me contar e não acobertar caluniadores.
- Falo a verdade pai, não sei o que ocorre comigo, de repente sinto uma tontura, um calor insuportável, vontade de andar sem parar e de falar muito, quando vejo já estou dizendo coisas que não desejo e que não vêm de mim.
- Não venha com essas histórias que a igreja condena, os mortos não voltam e nem falam com os vivos. Sei que está querendo me enganar, porém vou perdoá-lo se prometer jamais lançar injúrias a quem te deu a vida.
Flávio ia protestar, mas de que adiantaria?
- Sim, prometo. Mas... Por que não me leva junto para Londres? Até a Marina vai, menos eu que ficarei aqui com tia Francisca com a qual não tenho afinidade nenhuma.
Ângelo não podia contar o verdadeiro motivo que o fazia não o levar a Londres. Ele temia e estava certo de que Flávio sabia a realidade da Limbol. Lá com esses surtos de loucura certamente ele abriria o jogo com Cristiano e o pior: na frente das pessoas importantes que passavam na casa do filho. Com certeza ele seria desmascarado e mais uma vez perderia o emprego. Tinha absoluta certeza de que Flávio estava enlouquecendo e durante os surtos falava o que não devia. Só não conseguia entender como o filho descobriu tudo. Hermes, o acionista majoritário, num ato caridoso resolveu mascarar o fato e poucas pessoas sabiam da verdade. Resolveu contemporizar:
- Flávio, aqui você tem um emprego e lá além de ser mais uma pessoa tomando o tempo do seu irmão, talvez não encontre tarefas fáceis já que não gosta de estudar. Aqui com tia Francisca nós poderemos mantê-lo e até custear um tratamento psiquiátrico mais em conta.
Flávio corou:
- Quantas vezes quero dizer que não estou louco? E por acaso a mamãe lhe disse que vou deixar o emprego? Que não vou voltar mais lá?
Desta vez Ângelo levantou-se da cadeira:
- É claro que já sei dessa loucura, porém pensei que seria mais uma das suas alucinações. Quer dizer que vai sair mesmo, vai cometer essa insanidade?
Flávio encarou-o nos olhos, respondendo com firmeza:
- Irei, pois não gosto de trabalhar só pelo dinheiro. Se o senhor quiser continuar me ajudando até eu encontrar algo que me dê prazer, tudo bem. Se não, posso pedir que tia Francisca me sustente até conseguir. Sei que é rica e fará isso por mim sem queixas.
Ângelo ficou mudo com tanta determinação:
- É assim que diz? Então assim será. Hoje mesmo você vai partir para a casa de sua tia e não vai levar nem um centavo meu. Partiremos daqui a duas semanas e é melhor que você já fique adaptado à sua nova realidade. Suba e faça suas malas.
Com nó na garganta Flávio subiu e arrumou tudo numa mochila de viagem. Com o tempo ele buscaria o resto das coisas. Despediu-se de seu quarto e da janela onde costumava ver o céu estrelado e se perguntar o que existiria naqueles astros bonitos e misteriosos. A despedida foi de emoção. Érica chorou bastante e naquele Instante ela sentiu que jamais voltaria ao Brasil. Era ilógico esse pensamento, mas uma força estranha a avisava que jamais voltaria para aquele que durante 26 anos fora seu lar.
- Venha visitar sua mãe, afinal só iremos daqui a 15 dias.
- É claro que venho mamãe, pode esperar.
Marina quase não o abraçou, pois não gostava de demonstrar o que sentia. Todas as vezes que tinha um sentimento de amor, gratidão, amizade por alguém, ela não conseguia demonstrar por medo de parecer ridícula. Apenas desejou sorte ao irmão que também desejou que Deus a amparasse na continuação de seus estudos fora do país. Noel e Carlota em espíritos estavam lá observando tudo.
- Infelizmente tem que ser assim - comentou Carlota.
- Tudo poderia ser diferente, mas já não há mais tempo, os elementos astrais estão em ebulição e criaram o destino dessa família - respondeu Noel.
- O que me conforta é saber que tudo está sempre certo e que a sabedoria divina a tudo comanda, trabalhando na evolução de todos.
- Isso mesmo Carlota, vejo que tem crescido muito, mas é hora de irmos, pois na operosa cidade astral que vivemos tem sempre muito trabalho a fazer e Hilário conta conosco.
Seus espíritos radiosos saíram da sala. Poucos minutos depois Flávio chegou na casa da tia. Era uma casa grande e antiga circundada por lindo jardim. No hall havia cadeiras, plantas ornamentais, estátuas e à frente da casa uma fonte luminosa dava um ar agradável ao ambiente. Flávio poucas vezes tinha ido lá. Sua tia era considerada excêntrica por sua família, pois só fazia o que queria e dizia somente o que pensava. Não freqüentava a igreja e até mesmo discutia com Érica por conta de assuntos religiosos. Ambas viam Deus de forma muito diferente. Tocou a campainha e uma criada atendeu. Logo, uma senhora gorda, risonha e simpática, veio recebê-lo abraçando-o com ar de muita felicidade:
- Seja bem-vindo meu filho. Seu pai já me deixou a par de tudo, até já arrumei seu quarto, espero que esteja de seu gosto.
Flávio era moço simples e estava encantado com aquela casa imensa, cheia de janelas por todos os lados, o que dava uma ventilação agradável ao ambiente. Quando entrou em seu quarto gostou do que viu: além de tudo muito simples e arrumado havia uma televisão, um som e um videocassete. Abanando-se com colorido leque, Francisca veio em seguida.
- Gostou do quarto?
- Ora, tia, está bom demais, aqui posso fazer meu mundinho, é muito arejado e claro.
- Ah, eu sou assim, só gosto de tudo muito bonito, colorido, claro. A vida só tem valor se for vivida em plenitude e com alegria do interno ao externo.
Flávio começou a gostar daquela senhora alegre e elegante, com cativante sorriso. Ela não parecia ser nada do que sua mãe costumava dizer.
- Venha filho, vou lhe apresentar aos criados e aos outros moradores da casa.
Flávio começou a perguntar-se:
- Sua tia não era solteirona? Não morava sozinha com os criados? Havia mais alguém ali que ele desconhecia?
Foram andando por longo corredor que os levavam à cozinha. Lá ela apresentou Clara, Gaudêncio e João, o jardineiro.
- Agora filho vou lhe mostrar os outros moradores deste lar.
Eles seguiram por outro pequeno corredor e se depararam com pequena porta. Ao abrir Flávio sorriu: três gatos siameses gordos e grandes dormiam confortavelmente numa cama. Francisca explicou:
- Esses são os três moradores deste lar, são minha vida, eu os amo.
Começou a pegar um por um que acordaram ronronando.
- Estes são o Titi, o Inácio e o Cadu, razão do meu viver. - E como que esquecida de tudo começou a falar com eles:
- Filhinhos lindos, querem a merendinha das quatro não é isso? Mamãe vai buscar.
Flávio sorriu e percebeu o quão simples era aquela mulher que transferiu sua energia afetiva para três animaizinhos. Sua adaptação àquele lar foi muito fácil. O clima era gostoso, principalmente pela pontualidade que reinava absoluta. Sua tia havia morado durante 16 anos na Inglaterra e trouxe de lá muitos costumes gostosos, principalmente o chá das cinco. Flávio ia todos os dias visitar a família, mas o pai não o tratava bem. Acabou concluindo que ele o mandara para a casa da tia antes para não ver mais seu rosto e lembrar-se das acusações. No dia da viagem as despedidas foram poucas, só havia muita tristeza nos olhos da mãe.
- Se eu pudesse não viajaria, juro. Sinto que nunca mais verei o Brasil.
- O que é isso mamãe, o papai disse que na primeira oportunidade voltaremos aqui para uma visita. Até disse que se as coisas por lá se ajeitarem bem, poderá mandar buscar o Flávio. O Cristiano não se conforma por que ele não vai conosco, não é papai? - perguntou Marina.
- Isso mesmo, não há motivos para choros. Breve estaremos de volta.Vamos logo que o vôo 140 nos espera.
E foram para o aeroporto, Flávio não os acompanhou. Chegando a casa da tia a encontrou assistindo TV e comendo deliciosa pipoca de forno com guaraná.
- Sente aqui meu filho, está passando um maravilhoso filme de Carlitos que nos dá preciosa lição de vida.
Ele concordou e em meio ao ronronar dos gatos começou a prestar atenção no filme. Uma hora depois o programa foi interrompido pelo plantão da emissora para avisar que uma tragédia ocorrera com o avião do vôo 140 de famosa companhia. Infelizmente ninguém sobreviveu. Flávio imediatamente perdeu os sentidos.

7 - OS RESULTADOS DO ORGULHO

Logo após o acidente de avião, o espírito de cada membro da família de Flávio foi para seu lugar de afinidade. Eles não permaneceram juntos depois da morte. Ângelo acordou num charco onde vários espíritos como ele gemiam e gritavam. Aos poucos foi recuperando os sentidos e a cada minuto se horrorizava com o que via. Aqueles seres não pareciam pessoas e sim retalhos humanos. Como fora parar ali? Nunca havia visto semelhante lugar. Quem o salvou na hora da queda do avião? Onde estavam Marina e Érica? Essas perguntas fervilhavam a sua mente quando de repente uma horda gritando e correndo se aproximou. Uma mulher com a perna direita ulcerada disse olhando para ele:
- Você terá coragem de ficar aqui? Olhe só o estado de minha perna.
Ângelo observou e viu uma grande ferida abaixo do joelho sangrando e expelindo uma espécie de líquido branco; estava muito profunda também.
- Por que você não procura um médico? Isso pode ser câncer.
A mulher desesperada gritou:
- Não vê que estou querendo salvar sua pele? Eles, os terríveis pássaros das furnas estão chegando. Não ouve seus gritos?
De repente, gritos como de abutres selvagens cruzaram o céu. Quanto mais alto ficavam mais as hordas tentavam correr. Ângelo olhou para frente e a mulher havia desaparecido, talvez tivesse seguido o bando. Algumas pessoas feridas mais gravemente caíam no meio do caminho e gemiam desesperadas. Foi aí que o pior aconteceu. Um grupo de 12 aves três vezes maior que os urubus terrenos e muito mais negro surgiu. Seus bicos eram finos como a ponta de um alicate, seus gritos eram ensurdecedores e logo começaram a beliscar as feridas dos perispíritos dilacerados. Ângelo ficou desesperado quando viu uma delas faminta aproximar-se dele. Seus olhos pareciam ser iluminados com uma lâmpada vermelha, pois faiscavam tenazmente. Ele caiu e ficou imóvel, sua respiração ofegante paralisava todo o seu corpo. De repente, a estranha ave que mais parecia uma mistura do abutre com o urubu, começou a bicar as mãos de Ângelo. Ele tentava se livrar, mas seu corpo parecia estar irremediavelmente preso ao chão. Uma dor aguda o acometeu. A ave bicava sem parar e ele começou a gemer fortemente. O sangue jorrou e a ave bebia com prazer. Perdeu um dos dedos, cada vez mais a respiração aumentava e o coração acelerava. Ele perdeu os sentidos. Horas mais tarde quando acordou, havia um silêncio macabro no ar. Desesperado ele percebeu que estava sem as duas mãos. Levantou e começou a andar, mas escorregava no próprio sangue. Num lago da colônia Campo da Redenção que servia de tela, Hilário, Carlota e Noel observavam toda a cena. Carlota disse:
- Fico penalizada com um caso como este!
Noel aquiesceu:
- Isso mesmo! Apesar de saber que é necessário que o escândalo venha, ainda perco o equilíbrio com cenas deste tipo.
Hilário muito sereno explicou:
- A morte é simples mudança de faixa energética e depois dela cada um encontra a sua realidade. O inferno e o céu encontram-se dentro de cada um. É preciso entender que a desonestidade tem um retorno doloroso para quem a pratica. Se quem faz essa espécie de mal soubesse o que vai receber como conseqüência, acredito que jamais o faria.
- Ele está pagando o que fez, por isso perdeu as mãos?
Sorrindo, Hilário disse ternamente:
- A vida não cobra nem castiga ninguém. Ele está apenas colhendo o resultado de suas atitudes. É assim que ele vai amadurecer. Deus é infinitamente superior e está acima de castigos e punições. Porém ele criou leis perfeitas que levam o indivíduo a experimentar as conseqüências das suas escolhas. Não existe punição, apenas aprendizagem.
- Difícil acreditar que ele não está sendo punido. Ao ver uma cena como esta, acredito sim que este é o preço de seus erros – tornou Noel.
Hilário amável replicou:
- É que sua visão ainda não saiu dos acanhados limites da percepção terrena, lá eles inventaram um Deus que pune e um Deus que premia. Aqui descobrimos que cada um apenas passa pelo que lhe é necessário para aprender a viver melhor. Creia Noel, é o homem que escolhe ir pela lei do "faz e paga". Ele é um ser inteligente que precisa aprender a fazer o melhor. Deus jamais se compraz com o sofrimento humano. Porém é a dor que desperta, ensina o homem a compreender que só a prática do amor o levará à conquista da
felicidade.
Eles continuaram discorrendo sobre os vários aspectos da evolução espiritual quando o entardecer os surpreendeu com o convite para a hora da prece. Reunidos, se dirigiram para o grande salão. Longe dali Érica sofria muito e não percebeu que havia deixado a vida na Terra. Atordoada começou a andar sem rumo, mas não encontrava ninguém. Imaginou que se salvara do acidente de avião e estava perdida em uma espécie de mata sem fim. Sentia muita fome, sede e calor, porém o que mais a machucava era saber qual o destino do marido e da filha. Chorava de tristeza, saudade e preocupação, se perguntando se eles teriam se salvado. Tentando descobrir onde estavam, ela andava sem parar. Estava numa espécie de caatinga e nem mesmo poderia saber se era dia ou noite. Olhava para o céu, mas relutava em acreditar que aquele disco alaranjado e quase sem luz fosse o sol. Descalça, os pés ficaram em chagas. "Se ao menos encontrasse alguém por aqui, alguma casa..." - pensava aflita. Mas isso não acontecia. Pela sua dedução estava há mais de um mês andando sem rumo. Por várias vezes desmaiara de fome e seu corpo magro e ossudo já nem lembravam a Érica de antes. Foi de repente que começou a ouvir o choro de uma criança que cada vez mais forte pressionava seus ouvidos. Ela procurou o bebê por entre os galhos retorcidos das árvores, mas não o encontrou. O choro estava cada vez mais alto e ensurdecedor. Tão incomodada se sentiu que passou a correr para evitar ouvi-lo, mas o choro a perseguia implacável.
- Meu Deus, estou ficando louca? Tanto tempo sem comer e ainda não morri? O que acontece comigo? E esse choro que tanto me angustia?
Durante dois meses ela continuou assim até que ao fim de uma estrada poeirenta encontrou uma mulher loura, cabelos à altura dos ombros, vestido preto, com um bastão de mais ou menos meio metro nas mãos. Vinha acompanhada de uma moça de uns 20 anos. Ao vê-la esboçou um sorriso de satisfação:
- Ainda bem que te encontrei. Você estava certa Mina, é aqui mesmo que ela estava. Érica olhe para mim, está lembrada? Sou Ester!
Érica, que ficou feliz por ter finalmente encontrado um ser vivente, ao mesmo tempo sentiu medo, pois aquela expressão maquiavélica lhe dava uma desagradável sensação de mal-estar.
- Quem é você? Pode me ajudar a sair daqui? Há meses que ando sem rumo, sem saber o que fazer, veja como estou magra.
A outra pareceu não se importar:
- Como sempre se fingindo de vítima, mas aqui não existe isso não. Se não se lembra de mim será forçada a lembrar-se mais tarde. Venha, me acompanhe!
Suas palavras soavam como uma terrível sentença. Érica não viu outra solução a não ser obedecer. Estava perdida mesmo, depois tentaria saber onde estava e pensaria numa forma de voltar para casa.
Com o bastão, Ester lançou uma energia alaranjada que começou a circular pelos pulsos de Érica. A energia foi se condensando e uma espécie de algema apareceu. Ela estava prisioneira, começou a chorar desesperada:
- O que está fazendo comigo? Preciso voltar para casa, rever meus filhos, meu marido e você me prende, seja bondosa, me solte!
- Cale-se - bradou Ester. - Aqui quem dá as ordens é Jorge. Você aprontou demais, fez muita besteira desde a última encarnação, agora chegou a hora de pagar o que nos deve.
Érica não acreditou no que ouviu, certamente Ester era uma desequilibrada que trabalhava para um grupo de seqüestradores. Tentou argumentar:
- Se é dinheiro que quer, tenho um filho que mora na Inglaterra que é muito rico. Tenho o telefone dele e posso passar-lhe para conversarem.
Ester sorriu sarcasticamente:
- Bem se vê que chegou agora. Terá muito que sofrer e aprender. Só Jorge poderá saber o seu destino, enquanto isso me siga sem falatórios ou não responderei por mim.
Elas caminharam por uma trilha cheia de pedregulhos e vegetação rasteira. Depois de alguns minutos chegaram em frente a um sobradão antigo e mal conservado. Pararam. Dois cachorros negros da raça pastor alemão vieram festejar a chegada. De seus olhos saíam chispas vermelhas. Ester deu um sinal e a porta central se abriu. Passaram por um corredor com inúmeras portas até que entraram em uma sala enorme onde um homem de rosto fino e cavanhaque os aguardava. Vestia uma capa preta e tinha olhar penetrante e amedrontador. Olhou enigmaticamente para Ester e falou:
- Finalmente frente a frente. A partir de agora será minha escrava. Ester lhe providenciará a roupa específica. Porém é necessário você saber do seu real estado antes de qualquer coisa.
- Quem é o senhor? Em que lugar estou? Onde está minha família? E tudo o que quero saber.
- Sente-se.
Ela sentou numa cadeira estilo século XVIII preta e esperou ansiosa.
- Calma! Aqui quem pergunta sou eu. Cada resposta virá a seu tempo. Primeiro lugar: seu marido e sua filha morreram instantaneamente na hora em que o avião caiu. Assim como você, todos estão mortos.
Pelo semblante de Érica passou um misto de susto e zombaria.
- Ora, que brincadeira é essa? Não lhe conheço, mas me deve respeito. Sou uma mulher bem casada e quando sair daqui meu marido virá pedir-lhe contas do que está fazendo comigo.
Um brilho de ódio surgiu nos olhos de Jorge:
- Estou perdendo a paciência com você. Quanto mais for resistente à verdade mais sofrerá. Trabalhará para mim de qualquer jeito, acreditando ou não que está morta.
Um arrepio passou pelo corpo de Érica, e se fosse verdade? Mas não, ela estava muito viva, afinal seu coração batia, podia sentir sua pele e seus ossos, só poderia ser mentira. Tentou contemporizar:
- Quando sairei daqui?
- Depende muito de você. Se for boazinha poderei permitir que vá ver o seu filho, ele é o único sobrevivente da família.
Érica concluiu que estava lidando com loucos e o melhor era aceitar tudo quanto eles diziam. Certamente iria fugir dali e encontraria sua casa.
- Não adianta pensar que somos loucos - falou Jorge, lendo seus pensamentos. - Sei muito bem que pensa em fugir, mas saiba que temos condições de encontrá-la seja onde for e se a pegarmos de volta o castigo será maior. Você se comprometeu muito quando fez aquele aborto, por isso ganhei sua alma, ficará aqui até quando eu desejar.
Érica sentiu que iria desmaiar, aquele homem amedrontador sabia muito sobre a sua vida. O que mais poderia saber sobre sua família? Resolveu arriscar:
- O Flávio já sabe que aconteceu a tragédia com o avião?
- Sabe e já está melhorando. Cristiano, seu filho mais velho, veio ao Brasil ampará-lo. Quanto ao seu marido foi levado às furnas e assim como você nem suspeita ainda que desencarnou. Marina, a melhorzinha, foi socorrida num pronto-socorro ligado ao Campo da Redenção e recupera-se lentamente. Érica sentiu uma tontura e desmaiou.
- O susto foi demais para ela. Seu espírito sentiu que era verdade o que falávamos e não resistiu, preferiu fugir. Leve-a para a cela 356 e a mantenha vigiada, não quero perder mais ninguém.
Ester apertou um botão vermelho que havia na parede e rapidamente Malaquias surgiu com Roque trazendo uma maca. Partiram com Ester. Sozinho na sala Jorge estava feliz. Conseguiria através da imposição e do medo conquistar mais uma trabalhadora do mal. Orgulhosa como era seria de fácil manejo. Durante suas cinco décadas no comando do Desterro, uma região do umbral localizada acima da cidade de São Paulo já havia conseguido um grande número de servidores, que por cultivarem o orgulho e o egoísmo, eram mandados para zonas inferiores. Satisfeito ele percebeu que esses vermes estavam grassando no planeta, e sabia que o processo de regeneração do orbe estava lento, principalmente por causa desses sentimentos. Satisfeito, ele saiu para dar uma palestra sobre a obsessão e os pontos fracos dos seres humanos. Não poderia se atrasar, pois Teófilo, seu ajudante na palestra, já havia chegado.

8 - O REENCONTRO 

Voltando a Terra, retomamos a história do ponto em que Flávio viu pela TV a notícia da morte de sua família. Francisca chamou os empregados que rapidamente levaram Flávio desmaiado para o quarto. Providenciou atendimento médico e o acordou com sais. Enquanto o médico não chegava todos estavam desolados com o estado do garoto. Chorando sem parar, ele se mostrava inconsolável. Francisca também muito abalada pelo trágico acontecimento tentava se manter firme, mas estava em seu limite. Finalmente o Dr. Roberto Cavalcanti chegou e medicou Flávio com fortes calmantes. Ela não sabia o que fazer. A casa onde a família residia estava fechada e ninguém tinha a chave. Não tinha como se comunicar com Cristiano, o jeito era esperar de uma forma ou de outra ele saber do ocorrido, que aconteceu rapidamente. Em Londres os telejornais divulgaram a notícia de que o vôo 140 com destino ao país havia tido destino trágico. Chocado, Cristiano providenciou imediata viagem ao Brasil, pois só restara Flávio de sua família e ele deveria saber como ficariam as coisas. O reconhecimento dos corpos foi feito por Francisca. No IML, ao vislumbrar o corpo de Marina tão jovem não conseguiu entender por que aquilo tinha acontecido. Afinal, eles eram uma boa família e Marina uma jovem com tudo pela frente. Por que Deus não havia impedido essa tragédia? Ela sempre foi avessa a qualquer tipo de religião porque elas não respondiam às suas indagações a contento e confundiam-se umas com as outras. Na religião o que ela via era apenas abuso de poder. Algumas amigas evangélicas diziam:
- Como você pode viver assim sem freios? Sem nenhum tipo de suporte religioso? Você é uma pessoa do mundo!
Ao que ela respondia:
- Do mundo todas nós somos queridas, afinal ninguém aqui nasceu no outro planeta. Quanto aos freios? O que vejo são pessoas hipócritas criando regras fora da realidade que no fundo ninguém cumpre porque estão fora da natureza. Ademais nunca precisei de religião para saber o que é ético. Pauto minha vida pela ética e não me importo com o que os outros pensam ou deixam de pensar. Não as vejo sendo mais felizes do que eu!
Elas retrucavam dizendo que o fim do mundo estava próximo e só quem fosse de determinada igreja iria se salvar. Mas Francisca, dotada de uma intuição fortíssima, não discutia e logo depois elas estavam falando de outros assuntos. Na hora do reconhecimento dos corpos ela chegou a duvidar de Deus, porém algo lhe dizia que tudo tinha sua razão de ser. Um dia ela ainda desvendaria os mistérios daqueles acontecimentos. O velório foi no Araçá. Cristiano chegou algumas horas antes, abraçou o irmão, a tia e cumprimentou os conhecidos. Era um jovem de rara beleza e porte atlético, muito diferente de Flávio, que apesar de não ser feio não cultuava o corpo como o irmão fazia. Um padre conhecido falou sobre a morte e que era preciso aceitar o que Deus fez. Chamou as pessoas ao perdão, à vida regrada, para que num instante como aquele não se vissem em maus lençóis com o Criador. Os corpos foram entregues à mãe-terra e os irmãos abraçados seguiram para a casa de tia Francisca. Lá chegando tomaram banho e lancharam os deliciosos bolinhos de milho que Clara havia feito para o chá.
- Apesar da tristeza, é reconfortante chegar ao Brasil e ver esse costume maravilhoso reproduzido aqui - disse Cristiano.
- Tem razão.Todas as vezes que participo dele com a tia sinto uma sensação deliciosa de paz!
Cristiano com olhar profundo disse:
- Esta casa tem muitas energias boas, muitos espíritos bons vêm visitá-la. Já percebeu a presença de um deles, tia?
Surpreendida, Francisca respondeu:
- Sinto-me em profunda paz neste recanto simples que é minha casa, mas... Você fala de espíritos, eles existem realmente?
Cristiano esclareceu:
- Claro que sim! Nunca parou para imaginar onde estão as pessoas que morreram? Se analisar a vida, verá que Deus jamais nos criaria dando sabedoria, amor, liberdade, inteligência só para morrermos um dia e deixarmos tudo para trás. Além de ilógico, concluiríamos que a vida na Terra não teria nenhum sentido. Quem morre passa a viver em outras dimensões do Universo, levando apenas seu mundo interior, seus medos, suas ilusões e suas crenças. Se progredir levará consigo tudo de bom para ser usado numa próxima encarnação.
Nessa hora Flávio não agüentou e perguntou:
- O que é ser médium?
- Um médium é uma pessoa capaz de perceber além dos cinco sentidos físicos. Enquanto as pessoas comuns só percebem o lado material da vida, os médiuns vão além. Onde a visão de um homem comum pára, a do médium continua decifrando o que para nós é apenas Considerado sobrenatural.
- Todos podem ser médiuns?
- A resposta certa é: todos nós somos espíritos e o sexto sentido faz parte da nossa natureza. Alguns são mais ostensivos do que outros, mais a mediunidade é um fenômeno natural do ser humano.
Francisca quis saber:
- Você é espírita?
Cristiano esclareceu:
- Se você chama de espírita a pessoa que acredita na reencarnação, na comunicação dos espíritos e na diversidade dos mundos habitados então sou sim um espírita. Porém, fui orientado pelo meu mentor espiritual a utilizar o termo espiritualista independentemente, pois ele além de não me pôr rótulos permite que eu trabalhe em um campo mais livre e tenha uma ação mais proveitosa no âmbito espiritual. Sou em realidade um universalista.
Todos gostaram dos conceitos de Cristiano, porém Flávio por medo de ouvir algumas verdades que julgava não estar preparado omitiu suas manifestações mediúnicas. Depois do jantar, com ar grave Cristiano chamou Francisca e Flávio para uma reunião. Ele começou:
- Eu sei que não é hora de conversarmos sobre certos assuntos, porém não tenho muito tempo no Brasil e antes de partir gostaria de esclarecer alguns pontos.
Nessa hora a campainha tocou e Clara foi atender. Com surpresa, Francisca percebeu que a família Assunção Ferguson estava em sua casa. Delicadamente perguntou:
- O que desejam?
Fernando tomou à dianteira:
- Boa-noite. Por gosto de minha mulher viemos prestar solidariedade à família tão enlutada.
Era mentira. Élida ficou sabendo pelos jornais que o filho rico e mais velho de Érica e Ângelo estava de volta por conta da morte dos pais e pretendia apresentá-lo a Isabela sua filha, na esperança de um rico casamento. Porém Camila decidiu ir junto, o que frustrou os planos de Élida. Camila acompanhava os pais de vez em quando na tentativa de envergonhá-los com seus modos e suas roupas. Antes de sair, mãe e filha haviam travado violenta discussão, porém Fernando acabou convencendo Élida a levá-la para evitar problemas. Francisca, como boa anfitriã, convidou-os a sentar e pediu que Clara servisse chá a todos. Não era bem a merenda que Élida estava habituada, porém aceitou de bom grado. Os olhos de Flávio e Camila não paravam de se cruzar. Ela imediatamente o reconheceu. Sonhou todos os dias em reencontrá-lo, mas não via como. Por isso quando soube da visita à família Menezes insistiu para ir. Agora com a troca de olhares ela tinha certeza de que ele a havia reconhecido. Élida, demonstrando preocupação, dirigiu-se a Flávio:
- Sei que não é hora nem dia de visitas deste tipo, porém soubemos que o Cristiano em breve voltará a Londres e não podíamos deixar de cumprimentá-lo, já que tarefas inadiáveis nos impediram de ir ao enterro. Esse aqui eu já conheço, é o Flávio. Está melhor?
Flávio não conseguiu conter o pranto e foi correndo para o seu quarto. Todos na sala ficaram constrangidos e Cristiano apaziguou o clima:
- São coisas comuns para quem perde uma família inteira, por favor, entendam e desculpem.
Élida continuou:
- Entendemos perfeitamente, a propósito, já conhece minha filha Isabela?
Quando Cristiano a encarou, sentiu terrível mal-estar. Ele viu três vultos de mulheres deformadas próximos a Isabela. Pediu proteção a Cândido, seu mentor espiritual, ao estender a mão para cumprimentá-la.
- Muito prazer.
Depois de algum tempo conversando banalidades, Camila fingiu que ia ao banheiro, mas pé-ante-pé entrou no quarto de Flávio. O encontrou banhando seu travesseiro em lágrimas. Ela o surpreendeu:
- Não disse que ainda conversaríamos? Aqui estou eu, vamos aproveitar e falar sobre outros assuntos que não seja a morte?
Ele profundamente tocado pela atitude dela naquele instante de fragilidade sentiu-se confortado e atraído por ela. Perfumada, loura, bem maquiada, teve o condão de mexer profundamente com seu lado afetivo.
- Vamos sim, em meu egoísmo não agradeci por ter vindo nos visitar.
- Você é sempre assim tão sensível?  Ele retrucou:
- E você é sempre assim tão ousada?
- Sou sim, a vida obrigou-me a ser assim. O mundo em que vivemos onde só os maus sobrevivem nesta selva chamada Terra, é cruel e duro. Enfrento tudo isso a meu modo.
- Não diga isso. Veja meu estado, não tenho mais nem pai nem mãe, mas mesmo assim consigo olhar as belezas do mundo. Não quer aprender a olhar junto comigo?
Um calor forte cobriu o corpo de ambos. A forte atração que um sentia pelo outro os aproximou e eles se beijaram nos lábios, repetidas vezes, Flávio disse:
- Você salvou minha vida com esses beijos.
- E você a minha.
Meia hora depois, quando eles chegaram na sala de mãos dadas, todos ficaram estupefatos.
Élida corou de vergonha:
- Mas o que significa isso?
- Desde o nosso acidente nos sentimos atraídos um pelo outro. Hoje conversamos e começamos a namorar.
Todos ficaram mudos. Isabela, com receio que Cristiano a julgasse uma leviana como a irmã, disse:
- Isso só pode ser brincadeira da Camila com a mamãe. Papai, faça alguma coisa!
Fernando separou as mãos dos dois e disse:
- Camila, que brincadeira é essa? Quer mais uma vez nos importunar?
Ela se defendeu:
- Por quê? Em sua época não existia amor à primeira vista? Pois foi o que aconteceu comigo e Flávio. Somos almas destinadas a viverem juntas.
Fernando corou:
- Mas isso só pode se tratar de mais uma das suas. Eu a conheço muito bem, porém agora foi longe demais, usar esse rapaz no estado em que está é um pecado.
- Mas por que ninguém acredita em mim? Flávio diga a eles.
Flávio assentiu:
- Desculpe tia Francisca, mas foi isso mesmo que aconteceu, tudo foi inesperado, mas aconteceu. Camila foi me consolar e lá conversamos, nos entendemos.
Élida exultou. Ela havia pensado em Isabela, mas aconteceu algo melhor. Certamente Flávio não era tão rico quanto o irmão, mas se casasse com Camila seria uma dádiva. Além de ficar livre da filha doidivanas, sua família voltaria a ter o status que tinha antes. Tentou contornar:
- Devemos entender que são coisas de jovens, perfeitamente compreensíveis. Porém a hora já é adiantada. Precisamos ir.
A visita terminou no clima do namoro entre Flávio e Camila, quando iam se recolher, Cristiano avisou:
- Por conta desta visita não pudemos conversar um assunto sério e que não pode mais ser postergado. Amanhã cedo após o café conversaremos. Sigo agora para o hotel, este é o número. Se precisarem de mim é só ligar.
- Pensei que quisesse ficar aqui. Preparei seu quarto e ficaria muito feliz se acompanhasse seu irmão no estado em que está - falou Francisca.
- Tia, agradeço sua hospitalidade, mas já me instalei no hotel não desejo sair de lá. Flávio está melhor do que eu. Basta olhar seu rosto. A visita de Camila lhe fez bem.
Era verdade, aquela noite para Flávio tinha sido mágica, apesar do enterro de seus pais o encontro com Camila o fazia prever dias melhores. Desde que vira Camila no hospital pela primeira vez se sentiu profundamente tocado. Notando os olhares interrogativos da tia e do irmão considerou:
- Também não exagerem, estou sim muito interessado nela, mas neste momento não posso me envolver profundamente com Camila, porque não sei como será minha vida daqui para frente sem meus pais.
Cristiano respondeu:
- A vida ensina independência, auto-suficiência, liberdade e embora não pareça a nossos olhos, sempre faz o melhor. Se levar nossos pais foi porque o tempo que tinham para viver havia terminado. Certamente eles foram chamados não só para rever suas atitudes de até então, como para em novas experiências continuar aprendendo os valores eternos do espírito. Acredite, o que aconteceu, embora nos cause sofrimento, foi o melhor para todos. A morte nos convida a refletir sobre os objetivos da vida, a reciclar valores, crescer, progredir. Depois, é bom lembrar que ela não é o fim, pois quem morre passa a viver em outras dimensões deste Universo infinito.
- Onde estão nossos pais agora? E Marina?
- Só Deus sabe! Entretanto, penso que se foram atendidos pelos espíritos superiores devem estar adormecidos em algum lugar. Pessoas relativamente jovens arrancadas assim de forma brutal do corpo físico podem levar mais tempo para desprenderem-se dos laços fluídicos que os ligam ao corpo. Quando têm mérito esse desligamento ocorre no próprio velório ou no próprio túmulo, dependendo de quanto aquele espírito está ligado ao materialismo. Ele só se libera espiritualmente quando absorver em seu corpo astral todos os elementos de ligação com a matéria. Durante esse tempo é assessorado pelos espíritos superiores que o protegem através de um sono reparador. Os amigos espirituais esclarecem que os espíritos sofrem muito mais pela doença do que pela hora da morte, porque a vida é muito misericordiosa.
Flávio inquietou-se:
- O que ocorrerá a quem não tem mérito?
- Todo espírito após a morte ao acordar no astral recebe a orientação dos espíritos de luz. Os que afundaram nos vícios, no sexo desenfreado, na maldade e na corrupção, não se arrependem nem desejam aceitar o caminho da regeneração que lhes é oferecido. Envolvidos com os espíritos perturbados com os quais se ligaram, são deixados à mercê de suas escolhas. Então são atraídos a lugares de sofrimento que lhes são afins. Lá, através do choque com sua realidade, encontrarão o arrependimento e a necessidade de buscar a ajuda espiritual. Aceitarão as normas e disciplinas necessárias, serão recolhidos e auxiliados. Francisca estava enlevada com as lições, havia ido a alguns centros espíritas, mas por não ter encontrado afinidade acabou deixando de freqüentá-los. Hoje após essa conversa voltaria a estudar o assunto. Precisava aprender mais sobre as lições que a espiritualidade ofertava. Cansados pelo dia estafante que tiveram, cada um foi para seus aposentos e mergulharam num sono reparador.

9 - REVELAÇÕES 

Pela manhã após o café, Cristiano chamou todos à sala contígua.
- Nossa conversa foi interrompida ontem, porém hoje não a poderá ser adiada.
Francisca preocupou-se:
- É necessário mesmo que eu fique? Se for um assunto muito particular posso sair e deixá-los à vontade.
- Não tia - disse Cristiano. - Prefiro que fique. O que vou falar também vai lhe interessar.
Flávio inquieto persistiu:
- Comece logo, já estou ficando nervoso.
Com ar grave, Cristiano começou:
- Talvez não seja do seu conhecimento irmão, mas nosso pai mantinha contas milionárias no exterior. Quando ele perdeu o emprego aqui no Brasil e falou que tinha poucos recursos, estava mentindo. Na realidade há muito dinheiro dele nos Estados Unidos e... - pensou um pouco. - Ele agora é nosso!
Flávio admirou-se:
- Mas como o papai pôde ter assim tanto dinheiro? Com o trabalho que tinha não dava para tudo isso.
- Não pode ser desvio de dinheiro da empresa onde trabalhava? - arriscou Francisca.
Cristiano atalhou:
- Não apenas de uma empresa, mas de todas as outras a quem ele prestava serviço e trabalhou anteriormente. Papai também mantinha negócios ilícitos, os quais não desejo nem mencionar. No entanto, se foi realmente roubo, ele o fez muito bem-feito, pois não há como provar. Apenas as últimas receitas da empresa Limbol foram comprovadas. Quanto a essas já as devolvi e está tudo regularizado. Flávio demonstrou curiosidade:
- Qual o valor dessas contas?
- Algo em torno de sete milhões de dólares.
Francisca não conteve o grito de horror e Flávio aumentou o nervosismo:
- De onde veio tanto dinheiro?
- Não sabemos e acho que jamais saberemos a fonte, porém garanto que nosso pai não estava indo a Londres para nada. Pretendia montar empresa própria com esse dinheiro e eu já tinha aberto firma em meu nome.
- Por que no seu nome?
- Acredito que por questão de precaução. Quem move negócios escusos como os dele sempre tem medo de que algo venha à tona, então o melhor é encontrar um bom testa-de-ferro.
Flávio interrogou:
- Por que você aceitou uma coisa dessas?
- Se eu não o aceitasse teria feito com outro. Essa foi à maneira que encontrei para influenciá-lo e evitar um mal maior. Protegê-lo de alguma forma.
Flávio não se conteve:
- E o que vamos fazer com tanto dinheiro? Por que papai não nos proporcionou uma vida melhor? Vivíamos como classe média.
- Certamente ele não queria ostentar para não dar na vista. Nem nossa própria mãe sabia desses negócios, apenas eu estava à par de tudo.
- Por que você? Era cúmplice dele? - perguntou Francisca já se abanando com enorme leque.
Cristiano remexeu-se no sofá inquieto:
- Essa pra mim é a pior parte da história, mas que não devo omitir. A princípio eu participava dos negócios escusos de meu pai. Sabia que ele transferia dinheiro ilícito para contas no exterior e o incentivava. A primeira conta foi aberta em meu nome e nós dividíamos o dinheiro. Porém, quando conheci a espiritualidade desisti de tudo. Fechei essa conta que tinha em Nova York e nunca mais me deixei levar por esse tipo de coisa.
- Qual foi à atitude do papai ao perder seu aliado?
- Tentou me arrastar a todo custo com ele novamente. Porém fui firme, falei do meu encontro com uma médium e de um lugar que eu freqüentei na Inglaterra. Ele me chamou de louco e irresponsável, disse que eu estava jogando fora toda a minha chance de enriquecer e passou a me evitar, certamente pelos sermões que lhe passava.
Francisca, curiosa que estava sobre temas ligados ao espiritismo, perguntou:
- Que história de médium é essa?
- Ah, essa história foi à mudança radical que aconteceu em minha vida. O Cristiano de antes morreu no dia chuvoso em que encontrei dona Margareth. Eu estava acabando de sair do meu trabalho quando vagando sem rumo vi uma porta aberta. Um desejo muito forte de penetrar naquele recinto me invadiu e quando dei por mim já estava lá. Uma senhora de meia-idade me atendeu e disse chamar-se Margareth. Convidou-me a sentar e percebi que se tratava de uma espécie de lugar de orações. Mais tarde ela me explicou ser um lugar de orientação espiritual. Continuei participando da mentalização e no final ela aproximou-se de mim dizendo:
- Há uma senhorita ao seu lado e quer lhe passar uma mensagem.
Assustado perguntei:
- Trata-se de um espírito?
- Sim. Mas não precisa se assustar, os espíritos são seres iguais a nós, apenas não estão revestidos de um corpo de carne. Ela diz se chamar Carlota e gostaria de dizer-lhe para não recair em erros antigos. Fiquei surpreso, mas arrisquei:
- No que posso estar errado?
- Provavelmente você chegou em determinado momento de sua evolução que não permite mais que aja com irresponsabilidade. Pessoas que agem assim sofrem sérias conseqüências. Carlota diz que você é uma pessoa que renasceu trazendo no espírito uma grave tendência de repetir erros passados. Em sua última encarnação utilizou práticas ilícitas para conseguir dinheiro, jóias e ainda hoje continua a fazê-lo. Porém seu espírito já possui conhecimento espiritual para agir de outra forma. Em seu nível de evolução se você cometer o mesmo erro de antes, sofrerá todas as conseqüências.
- Nessa hora gelei e fino suor cobriu minha testa. Só podia ser verdade o que aquela simpática senhora me dizia. Ela não me conhecia, não sabia nada da minha vida, como adivinhou que eu estava cometendo atos ilícitos junto com meu pai? Para me deixar ainda mais crédulo ela disse:
- Carlota manda lhe dizer que seu pai está na prorrogação, afirma que para ele não haverá mudança, tão imbuído está nas crenças do que faz. Mesmo assim ela pede que você o alerte, que faça a sua parte.
Respondi amável:
- Senhora, muito obrigado, não sabe o quanto me ajudou!
Ao que ela humildemente respondeu:
- Não me iludo, não é a mim que deve agradecer, mas a Deus. Todo o bem que ocorre na Terra provém dele, pai amoroso e justo que é. Eu sou simplesmente um instrumento.
Sorrimos e me despedi agradecendo a Deus todo o bem que adquiri naquele fim de tarde chuvoso e melancólico. Aquele instante serviu para modificar o meu destino. Aprendi a lição que a vida me mandou e passei a agir diferente. Voltei a procurar dona Margareth que me levou a um grupo de iniciação espiritual, estudei todas as obras do professor Rivail e agora me encontro à disposição do serviço divino. Então minha sensibilidade se abriu e comecei a ver alguns espíritos e perceber além das aparências.
- Nossa, que história! Agora percebo porque essa religião tem crescido tanto aqui no Brasil e em boa parte do mundo – comentou Francisca.
Flávio, surpreso também com a história, estava mudo, mas o dinheiro do pai em contas no exterior ainda fervilhava em sua mente.
- Para onde irá esse dinheiro?
Cristiano hesitou um pouco e respondeu:
- Nós é que decidiremos! Hoje não dá mais para devolvê-lo ao lugar de origem, minha idéia é fazermos algo de útil com ele.
- O quê, por exemplo?
Cristiano mediu o que ia dizer, nessa hora viu o vulto de seu mentor espiritual e começou a repetir o que ele dizia-lhe ao ouvido:
- Flávio, você tem um compromisso com o seu grupo de evolução neste planeta. Reencarnou pra ajudá-lo na transição para um mundo melhor e deve imbuir-se desse objetivo o quanto antes. O tempo corre célere e você não pode mais esperar. Venha comigo a Inglaterra para iniciarmos seu curso de aprimoramento espiritual, seu destino é ser professor de auto-ajuda.
Flávio soltou uma gargalhada sonora:
- Mano, você enlouqueceu, logo eu professor? De auto-ajuda? Não sei ajudar nem a mim mesmo!
- Não subestime seu poder, não entre no turbilhão do mundo. Lá na Inglaterra terá tudo o que precisa para desenvolver e equilibrar sua mediunidade. Quando estiver pronto regressará ao Brasil para fundar um espaço onde as pessoas recebam auxílio espiritual, conheçam as leis cósmicas que regem a vida, aprendam a lidar com suas emoções e possam viver melhor.
Flávio surpreendeu-se. Como o irmão sabia dos seus problemas com mediunidade?
Cristiano continuou:
- Como professor deverá cobrar pelo seu trabalho e esse será o seu sustento.
- Cris, deixe de brincar comigo. Nunca farei essas coisas.
- O mundo dá muitas voltas e a vida é surpreendente, verá que o que digo ocorrerá exatamente assim!
Afastando-se de Cristiano, Cândido deu por encerrada sua missão ali e partiu deixando o resto por conta de seu tutelado.
- Flávio, sei que você está um pouco chocado com as revelações, mas é assim que tinha que se dar.
Francisca observou:
- Nossa, enquanto você falava tive a impressão que era outra pessoa, sua voz estava mais grave, seu semblante mudou.
- Também senti. Houve interferência espiritual?
- Sim. Cândido meu mentor estava comigo. Sei que deverá pensar em tudo quanto ouviu. Não acho justo gastar um dinheiro que não nos pertence e que veio por meios ilícitos. Aplicando num espaço para ajudar as pessoas, ele será muito útil. Quanto ao restante, podemos aplicá-lo em obras sociais de reconhecido mérito que aliviam o sofrimento humano. Em Londres, os necessitados quase são ignorados, os viciados em drogas, os maltrapilhos precisam de atendimento em suas urgências. Acredito que lá poderemos desenvolver muitos trabalhos como esse.
Flávio sentia intimamente que tudo o que estava sendo falado iria realizar-se. Ele não poderia fugir a esse destino. Aproveitando o tempo, ele narrou seus processos mediúnicos ao irmão, que logo os identificou:
- Você é um médium de desobsessão. O que isto significa? É um tipo de mediunidade muito específica, que quando bem orientada é de grande valia nos trabalhos de captação e cura de pessoas perturbadas, podendo às vezes libertá-las numa só sessão.
- Em união com os espíritos superiores você é capaz de desmagnetizar a aura dos assistidos, sair do corpo para buscar os espíritos que estão atacando as pessoas ou atraí-los, prendendo-os em seu magnetismo. Isso faz com que eles tomem consciência dos seus atos. Caso isto não aconteça, você poderá segurá-los até que concordem em desistir de seus intentos, eliminando depois as energias negativas acumuladas.
- À medida que ela vai se tornando mais ostensiva você passará a ver os espíritos e se tornará muito sensível às energias, identificando-as prontamente. Quando você olhar uma pessoa saberá imediatamente se ela está sendo manipulada por um espírito perturbador.
Flávio estava estupefato. Nunca poderia imaginar uma coisa desse tipo. Resolveu perguntar:
- E se eu me recusar a aceitar tudo isso? O que poderá acontecer comigo?
Cristiano impávido explicou:
- Esse tipo de médium capta energias com muita facilidade e quando não conhece o processo ou foge dele, sua vida acaba se tornando desequilibrada e confusa. Infelizmente, esse tipo de mediunidade ainda é pouco conhecida pela maioria dos estudiosos nos Centros Espíritas e geralmente eles não gostam de trabalhar com esses médiuns.
Foi à vez de Francisca indagar:
- Por quê? O Centro Espírita não existe justamente para isso? Para apoiar os médiuns?
Cristiano, auxiliado por espírito de elevada hierarquia, falava com segurança:
- É que as sessões de desobsessão são ruidosas e cheias de ação. Quem não conhece se impressiona, pois os espíritos perturbados que são atraídos para esclarecimento gritam e fazem de tudo para impressionar pelo pavor, tentando desviar a atenção das pessoas que estão presentes, na esperança de ludibriá-las.
- Todavia, os espíritos superiores têm ação irresistível sobre os perturbadores e os contêm com muita facilidade. Se permitirem que se expressem é porque preferem que eles próprios percebam que atacando os outros estão prejudicando a eles mesmos.
Flávio perguntou um pouco assustado com tudo:
- Qual a necessidade de um médium para que esses espíritos tomem consciência de seus erros?
- São espíritos muito ligados ao materialismo. O contato com as energias físicas do médium favorece a tomada de consciência, facilitando que percebam melhor seus enganos e possam mudar suas atitudes. A ajuda espiritual é utilizada sempre visando o bem de todos os envolvidos. Conseguir que espíritos deixem de atacarem-se mutuamente é a melhor forma de ajudar a ambos.
Flávio e Francisca, impressionados com o que ouviram, deixaram escapar longo suspiro. A espiritualidade está sempre presente em nosso dia-a-dia. Quem deseja progredir precisa estar atento com os sinais que ela nos manda com a finalidade de nos ajudar. Infelizmente, no cotidiano muitos se deixam envolver pela maledicência, pelas tentações do mundo, de tal forma que nem percebem o que a vida lhes deseja ensinar. Raros fazem como Francisca e Flávio, que atentos às orientações recebidas, começaram a perceber os verdadeiros valores espirituais.

10 – O INÍCIO DOS PLANOS 

Na cela 356, Érica continuava presa. Uma forte tristeza a invadia e ela chorava sem parar. O que foi feito da sua vida? Tudo estava caminhando bem até aquele maldito dia em que Flávio chegara em casa revelando que ia deixar o emprego. Por que tudo teve que ser assim? Por que ela morrera naquele acidente? Essas perguntas desfilavam na sua mente quando, de repente, viu Ester:
- Coma! Acho melhor obedecer e se alimentar, pois hoje o Jorge quer vê-la. Tem uma missão especial para você.
- Além de querer que eu coma este pão imundo, ainda quer me obrigar a fazer coisas para ele? Isso é que não!
Ester sorriu:
- Pela minha experiência sugiro-lhe que não contrarie o Jorge, ele é instável e quando contrariado se torna perigoso. Apesar de tudo não quero que você sofra, foi quem menos teve culpa da minha desgraça.
Segurando o pão que foi colocado por debaixo da cela, ela afirmou:
- Você sempre culpa meu marido e minha família pela sua infelicidade, no entanto nunca me contou o que fizemos, se bem que nunca a vi antes.
- É que o Jorge disse que não é hora ainda de você lembrar-se do passado. Aqui na Cidade do Desterro não temos aquelas máquinas que fazem o retorno ao passado, por isso as reminiscências devem ser espontâneas. Érica começou a comer um pão mofado e sem gosto, porém sua fome era maior que seu refinado paladar.
- Às vezes penso que não estou morta e que tudo não passa de uma ilusão. Acho que vocês são um grupo de loucos seqüestradores e que a qualquer hora fugirei para minha casa.
Ester retorquiu:
- Você já sabe que está morta, não precisa se enganar. Quanto a fugir, jamais conseguirá. Sua forma de ser e aquele aborto que praticou a conduziram até aqui. Jorge tem o seu comando porque sabe que você não é protegida dos filhos do Cordeiro.
- Gostaria de saber que missão é esta a que o Jorge se referiu.
- Só na hora ele dirá. Aliás, a reunião hoje será longa, ele mandou convocar todos os chefes dos magnetizadores e todos os diretores dos núcleos da cidade. Se mandar chamar você é porque tem algo de muito importante a fazer.
As horas passaram rápidas e logo Ester apareceu toda maquiada e vestida com roupas de cores berrantes. Abriu o cadeado e saiu com Érica em direção ao pavilhão. Desceram por uma rua poeirenta e malcheirosa, pouco se via o sol e o dia estava nublado. Próximo ao pavilhão se encontrava enorme fila. Ester lhe entregou uma ficha e pediu que ficasse atrás dela. Pouco a pouco a fila bem organizada foi acabando e elas entraram no recinto. Nele havia muitas cadeiras enfileiradas, cada uma com um número. O de Érica era 278. Havia mais de 300 espíritos naquele lugar. Os semblantes e as vestes eram os mais variados: pessoas de preto, vermelho-fogo, azul-escuro cintilante eram as que mais se destacavam. Érica estava surpresa, pois nunca vira contar na Bíblia que além do túmulo existisse um local como aquele.
- Está curiosa? Pois você ainda não viu nada. Veja como os piercigns tão em moda na Terra estão por aqui, mais sofisticados e em lugares que os humanos nunca usaram - explicou Ester.
Érica percebeu que além dos piercigns que alguns colocavam até na garganta, havia muitas pessoas tatuadas.
- Aqui existem tatuadores?
- Não. Esses espíritos que você vê vêm do Vale dos Tatuados. Lá existem muitos tatuadores que usam os recursos daqui para fazerem desenhos mais irados. - Ester sorriu de forma macabra.
De repente um silêncio total invadiu o recinto, todos prestaram atenção ao palco que tinha uma cortina carmim. A cortina se abriu e a figura pálida de Jorge apareceu. Trajava um terno preto e tinha na cabeça uma espécie de cartola. Seus olhos metálicos paralisavam qualquer ser humano. Num átimo ele começou o discurso:
- Estamos aqui hoje mais uma vez para reforçarmos nossos planos. Sinto que a cada dia a Terra torna-se mais nossa escrava. Quero falar aos chefes de cada uma das nossas zonas exclusivas e com algumas pessoas em particular que logo saberão de quem se trata. Primeiro para os magnetizadores da Zona do Sexo, vocês precisam explorar mais a sensualidade perversa, precisamos fazer acontecer mais e mais estupros. Colem-se em quem tem a tendência ao descontrole sexual e levem-nos a cometerem crimes neste setor. É necessário também aumentar o índice de pedofilia, vocês não podem desistir de invadir os templos religiosos que só têm fachada, pois é lá que mais se encontra tendência ao desvario da pedofilia. Os religiosos terrenos ignoram que proibir rigorosamente o sexo é a porta aberta para sérias obsessões. O homem vulgar se vê pressionado e essa pressão explode no que nós gostamos: a obsessão.
- Agora falo aos servidores da Zona da Violência da qual a droga é nossa maior aliada. Laércio, Vitor e Mathias devem se colar mais àquelas pessoas que estão descobrindo as drogas novas e fazê-las explodir, principalmente na nossa cidade de ação, a metrópole São Paulo. Estamos certos de que a violência jamais será vencida, pois os próprios policiais movidos pelas nossas sugestões estão no mundo do crime. Continuem assediando-os. Quanto aos crimes particulares nós conversaremos depois. Não sei se Deus castiga ou não, não sei se o Cordeiro castiga ou não, mas eu, Jorge, estou aqui para punir severamente todos aqueles que estão prejudicando nossos planos.
- Quero a atenção dos produtores das doenças. O egoísmo e o orgulho que nós tanto veneramos estão dominando o orbe. Teófilo conseguiu permissão para irmos ao abismo buscar as formas degeneradas e colocá-las próximas dos encarnados. Sabemos de antemão que se uma dessas formas ficar próxima de um encarnado, ele fatalmente enlouquecerá. Tomará fortes remédios, mas não conseguirá curar-se. Mais tarde chamarei em particular essas pessoas.
Jorge continuou a palestra falando sobre os frutos das paixões e dos vícios, depois falou dos trabalhos de magia negra e de outros aspectos mórbidos que não convém relatar aqui.
Quando tudo o terminou avisou que gostaria de falar em especial com algumas pessoas, esclareceu que não seria necessário falar seus nomes, pois as próprias pessoas saberiam quem eram. Ester disse a Érica que ela era uma dessas pessoas. O recinto ia ficando vazio, mas algumas pessoas aterrorizadas perceberam que não conseguiam se levantar das cadeiras. Elas estavam presas por uma força estranha. Érica concluiu que as pessoas agarradas a elas eram as mesmas que Jorge queria falar. Após entabular conversa com algumas pessoas chegou à vez de Érica. Para essas conversações Jorge utilizava uma espécie de confessionário instalado em um dos recintos daquele pavoroso pavilhão. Tímida, Érica se dirigiu a ele:
- O que deseja de mim? Antes de qualquer coisa quero ver minha família, nada faço se não ver o estado em que ela se encontra.
Ele foi ríspido como de costume:
- Já não lhe avisaram que aqui quem dá as ordens sou eu? Cale-se e ouça o que tenho a dizer ou então será pior pra você. Sei que você não engravidou apenas três vezes. Sua última gestação foi interrompida por você, que utilizou um draconiano aborto naquela clínica da periferia. Ninguém ficou sabendo, nem o seu marido. Você não queria mais criar outro filho, então resolveu dispor da vida como se fosse a dona dela. Dava seu dia na igreja, estudando a Bíblia, mas no íntimo não havia se modificado. Se engravidasse novamente não titubearia em fazer outro aborto. Onde está sua religiosidade?
Érica ficou pálida feito cera, tudo o que ele dizia era verdade. Jorge continuou:
- Quando você morreu e foi levada ao lugar ideal ao seu padrão mental, esse espírito que foi abortado começou a persegui-la, ele está deformado: da cintura pra cima é criança e da cintura pra baixo é adulto. Eu estava interessado em seu espírito e consegui afastar aquele ser de você. Foi aí que Ester e Mina a encontraram. Aqui tudo é feito à base da troca, se quiser ver sua família terá que trabalhar duro.
- Faço o que for preciso para conseguir isso, diga logo.
Jorge esboçou um sorriso de satisfação:
- Há uma amiga sua na Terra que fez muita coisa errada e existe aqui no Desterro um espírito interessado em vingar-se dela. Essa amiga chama-se Élida Assunção Ferguson. Agiu com preconceito, fez um aborto ignominioso na filha, separou-a de Rafael, que acabou desencarnando. Ele não aceitou a morte, rebelou-se contra os assistentes espirituais e assim saiu da colônia na qual foi abrigado. Após andar durante dias encontrou nossa cidade e achou guarida aqui. Desde que chegou demonstrou um desejo intenso de ajudar e já nos prestou grande serviço, agora é a hora de retribuirmos.
Érica replicou:
- Não sou tão amiga assim da Élida, nossos filhos se encontraram num acidente de carro, e a partir daí nos visitávamos regularmente. Às vezes também a via na igreja, mas só. O que devo fazer contra ela?
Jorge explicou:
- Teófilo conseguiu permissão para descer ao abismo e buscar ele lá uma forma degenerada.
- O que vem a ser isto?
- Damos esse nome aos seres que perderam a forma perispiritual humana e encontram-se em formas de animais. Muitos se dividem: metade do corpo é humano e metade é animal. Suas paixões, seus ódios e rancores os conduzem a perder a forma do perispírito pouco a pouco. Esses seres degenerados trazem consigo uma energia negativa muito grande. Não é sempre que vão à crosta, só em casos especiais como esse que faremos agora.
- Estou assustada, nunca pensei que poderia existir isso por aqui.
- Mas existe e você descerá ao abismo para buscar uma dessas formas.
- Com qual objetivo?
- Estamos sabendo que a família de Élida em breve sofrerá penoso golpe do destino. Ela vai se desequilibrar e nessa hora de fraqueza colocaremos próximo ao seu perispírito um ser do abismo. Se uma dessas formas abismais permanecer próxima a um encarnado certamente ele enlouquecerá. O objetivo de Rafael é levá-la à loucura, para que no hospício ela acabe dando fim à própria vida, deu para entender?
Érica estava horrorizada, nunca pensava que existia no mundo tanta maldade. De repente sentiu louca vontade de fugir dali, de não praticar nada do que aquele homem horrendo estava falando, mas o que ela podia fazer?
- Vejo que ainda pensa em fugir, não faça isso. Em nossa cidade temos prisões tenebrosas das quais ninguém sai. Se quiser rever a família e ficar como está deverá obedecer.
Calada, ela curvou-se ao peso de sua dor e seguiu o caminho de volta à prisão e acompanhada por um guarda ela era vigiada a todo instante. Tinha que descer ao abismo no dia seguinte. Ester a acompanharia. Na Terra o clima estava agradável. Cristiano continuava no Brasil e sua presença enchia de mais alegria o lar de tia Francisca. Ele avisara que necessitava rever alguns sócios e ainda demoraria um mês para retornar levando Flávio consigo. O namoro de Flávio e Camila estava indo muito bem não fosse o ciúme doentio que ela tinha dele. Eles passavam o dia juntos, iam a festas, barzinhos e clubes, porém sempre Camila exagerava na bebida. Ele sempre compreensivo acreditava que essa fase era passageira e que com a chegada dele ela mudaria, porém isso não aconteceu. Camila bebia mais a cada dia e qualquer olhar de uma garota para Flávio era motivo para escândalos. Ele não interferiu em sua forma gótica de se vestir, mas já andava chateado com a cor negra das suas vestes. Flávio a amava mais e mais e desejava ficar com ela. Pretendia levá-la a Inglaterra com ele para sua iniciação, porém isso dependeria muito do dinheiro dos pais dela. Élida não facilitava a vida da filha, passou a criticar Flávio e com isso as discussões no lar aumentaram. Isabela, com inveja do namoro, criava calúnias e inventava pretextos para estar com Camila na casa de tia Francisca só para ver Cristiano. O ciúme de Camila estendia-se para todos. Estava apaixonada pela segunda vez e talvez por isso estivesse agindo de forma tão infantil. Para ela, Flávio deveria ser exclusivo, só pensar nela, só olhar para ela, viver para ela. Influenciada por entidade das trevas ela dizia:
- Não vá fazer esse curso. De que adiantará? As pessoas são preconceituosas com relação ao espiritismo e esse seu trabalho fracassará.
Ao que ele dizia:
- Confio muito no meu irmão e sei que ele falou a verdade. Há muito tempo não conseguia me encontrar, não sabia qual era minha vocação, agora acredito que com esse trabalho estarei realizado.
Camila, influenciada, falava sobre os preconceitos que os espíritas passavam e que certamente esse trabalho iria fracassar. Flávio não se deixava envolver e continuava em seu irredutível intento de trabalhar para a espiritualidade. Assim é que deve ser, os trabalhadores do bem devem vencer acima de qualquer coisa o desânimo, a falta de empreendimento e o negativismo, pois agindo dessa forma, com certeza estarão sempre ligados com os amigos espirituais da luz.

11 - O DESTINO TEM SUAS LEIS

A casa de Francisca se transformou no local onde os namorados Flávio e Camila gostavam de ficar quando queriam paz e sossego. A viagem de Cristiano que se daria logo, teve que ser adiada, pois os compromissos com os sócios do Brasil não foram rapidamente resolvidos. Havia três meses que ele estava no país e esse era o tempo do namoro de Camila e Flávio. Ela continuava exagerando no ciúme, tanto que Flávio evitava estar com ela em locais públicos. Aos poucos Camila foi modificando a forma de se vestir e já se via algum colorido em algumas peças de roupas. Élida mostrava-se feliz, aquele namoro estava modificando gradativamente a vida de Camila. Não estava preocupada com a filha e sim com a sua reputação na sociedade. Não agüentava mais ver suas amigas ladys criticando-a, chamando-a de mãe omissa, permissiva. Agora elas não poderiam mais falar como antes. Camila se revelou extremamente apaixonada por Flávio. Naquela tarde, eles estavam na rede da casa da tia Francisca com um dos gatos siameses no colo. A certa altura ela disse:
- Sabe, acho que se um dia eu te perder, serei capaz de cometer uma loucura. Não agüentaria essa vida sem você.
Flávio sentiu uma sensação desagradável ao ouvir essas palavras e reagiu:
- Cristiano diz que a vida ensina independência e auto-suficiência, dessa forma você está exagerando, apegando-se a mim com muita posse!
- Você não gostou? Essa é minha forma de amar. Talvez pelo que aconteceu comigo no passado, não quero mais perder ninguém que amo. Acho que se minha mãe fizesse hoje comigo o que fez antes... Eu a mataria!
Flávio gelou, sentiu que Camila falou aquilo com sinceridade.
- Camila, você me surpreende! Como pode falar uma coisa dessas? Peça perdão a Deus pelo que disse.
- Não peço de jeito nenhum, pois é isso mesmo que eu faria. Ela me dopou, me levou a uma clínica de abortos e tirou de mim a coisa mais preciosa que a vida tinha me dado. Hoje aprendi que o mal só pode ser vencido com o mal. Jurei que seria uma pessoa dura e inflexível e cumprirei isso em memória de Rafael.
Flávio discordou:
- O Cristiano sempre diz que um dos piores erros que o ser humano comete é o assassinato. Diz que a vida humana é muito importante, pois se o espírito reencarnou é porque tem um programa a cumprir na Terra. Quem mata, corta essa programação, e sofrerá muito por isso.
- Bobagens de seu irmão que quer vir com essa onda de santo.
- Olha, vejo em você uma luz muito forte - disse Flávio com paixão. - Por trás desse corpo gostoso, desses cabelos louros e encaracolados há um espírito em amadurecimento. Amo muito você e não desejo mais conversar com o lado negativo da sua personalidade. Prefiro a Camila linda, alegre, empreendedora e voluntariosa que conheci lá naquele hospital e não esta que fica falando bobagens.
Ela, embevecida, o beijou repetidas vezes nos lábios. Em seu íntimo algo lhe dizia que se um dia perdesse Flávio não conseguiria sobreviver. Sua vida antes dele se resumia apenas a boates, festas, orgias e escândalos. Tudo ela fazia na intenção de magoar Élida. Mas depois de Flávio, um brilho novo apareceu em seu viver. Agora se sentia feliz e completa. Cometeria uma loucura, mas Flávio jamais se separaria dela. Eles continuaram se beijando até que foram para o quarto onde se entregaram mais uma vez ao amor que sentiam. Na cidade astral Campo da Redenção Noel, Carlota e Hilário estavam em uma séria reunião. Hilário dizia com semblante preocupado.
- Camila não se modificou e infelizmente receberá um ataque espiritual. Rafael no Desterro está enciumado e programa um ataque a Camila em breve.
Carlota indagou:
- Nada poderemos fazer?
Hilário olhou-a sério:
- Você sabe que não se pode interferir no livre-arbítrio. Ela continua cultivando vícios materiais e sentimentos perversos. Certamente Rafael conseguirá atingi-la. Jorge já o avisou que Flávio tem proteção e que não deve mexer com ele. Só ela será atingida.  Noel questionou:
- E se ela mudar os padrões de pensamento que tem, conseguirá evitar o ataque?
- Sim, ela terá como evitar. Porém, estudando o caso pelas leis das probabilidades, posso garantir que ela não vai querer mudar. É um espírito ainda ignorante das leis divinas e mesmo Flávio, que ela julga amar, não conseguiu melhorá-la. Lembrem-se sempre que o destino tem suas leis, hoje ela está escrevendo o que lhe ocorrerá amanhã, ainda que inconscientemente.
Carlota ficou séria:
- E o caso de Élida? Pelo visto ela será atingida pelos homens de Jorge. Porque Deus permite que uma forma degenerada se aproxime de um encarnado?
O instrutor explicou:
- Tudo o que acontece a uma pessoa encarnada só é permitido para seu amadurecimento e evolução. É muito raro casos como este acontecer, mas infelizmente ocorrem. Élida cultiva sentimentos tão negativos que fará jus a uma companhia do abismo. Certamente enlouquecerá. A princípio os psiquiatras terrenos não irão encontrar nenhuma lesão no seu cérebro. Porém, com o tempo essas lesões vão aparecer. Só um grupo muito estruturado de desobsessão poderá livrá-la dessa prova.
- A evolução é gradativa e para que ela ocorra é utilizado o livre-arbítrio. Quando uma pessoa comete atos preconceituosos, cruéis, ela se liga aos espíritos do astral inferior. Ignorando esse fato, muitos na Terra enveredam pelos caminhos do mal. Quando sofrem perdas, adoecem e não conseguem a cura, culpam o destino, Deus e o mundo. Aí entra o livre-arbítrio. Eles escolheram livremente o próprio caminho e estão colhendo os resultados. Há pessoas para quem tudo dá certo. Dizem que foi sorte, mas isso não existe. Elas escolheram melhor. Quem tem atitudes positivas, pensa sempre no bem e acredita que terá dias de felicidade. Já as pessoas amargas, que vêem o mal em tudo vão ter dias tumultuados, onde tudo dará errado. É assim que a vida funciona. Ela responde de acordo com as nossas atitudes. Os fatos que estão para acontecer com Flávio brevemente, pedirão de nós muita dedicação e persistência. Agora precisamos ir a Terra. Vamos. Abraçados, eles volitaram juntos rumo à crosta terrestre.
Na casa de tia Francisca era hora do chá das cinco. Camila, Cristiano e Flávio faziam-lhe companhia. Eles não perceberam, porém cinco vultos escuros penetraram o recinto. Rafael e mais alguns companheiros de expressões maquiavélicas começaram a circular em torno de Camila. Cristiano percebeu, mas nada falou, calou-se e intimamente começou a rezar. De repente, Camila soltou um grito assustador e começou a se debater no chão. Todos ficaram assustados e tentavam ajudá-la, porém suas convulsões eram muito fortes e ninguém conseguia segurá-la. Francisca gritou:
- Socorram! Ela está tendo uma crise de epilepsia!
Flávio não sabia o que fazer. Os espíritos atacaram a zona do córtex cerebral de Camila e ela consciente sentia que se debatia, mas nada podia fazer. Uma baba amarelada começou a surgir de sua boca. Flávio começou a chorar:
- Tia, ela vai morrer!
Cristiano tentava acalmar a todos:
- Calma, esses ataques assim passam rápido e por si próprios. Não se deixem levar pela situação, vamos orar com fé e pedir ajuda dos espíritos da luz.
Cada um à sua maneira fez uma prece, enquanto Camila continuava a debater-se e a babar fortemente. Pouco depois das orações três fachos de luz entraram na casa, eram Hilário, Noel e Carlota. Imediatamente os espíritos afastaram-se de Camila. A luz que eles emanavam ofuscaram os espíritos que estavam dominando o cérebro dela. Rafael falou colérico:
- Sujou pessoal, vamos sair daqui. Se algum deles nos pegar estaremos em maus lençóis.
Em seguida seus vultos escuros desapareceram indo em direção ao umbral.
Cristiano e Francisca levaram Camila até o quarto e colocaram-na na cama. Flávio muito assustado tremia muito. Ela havia parado de se debater, mas estava muito pálida e com respiração ofegante. Clara ligou para a família de Camila e avisou do ocorrido. Élida para demonstrar preocupação foi até lá com Isabela.
Todos estavam muito preocupados. Francisca dizia:
- Se ela sofre de epilepsia deve ter tido outros ataques durante a infância. Foi horrível. Sei que pessoas assim tomam fortes remédios e freqüentam psiquiatras pelo resto da vida.
Cristiano esclareceu:
- Tia, toda crise epilética na realidade é um ataque espiritual das trevas. Havia aqui nesta casa um grupo de espíritos querendo algum tipo de vingança, por isso atacaram Camila.
Flávio vociferou:
- Então é nisso que quer me meter? Com espíritos do mal, ataque das trevas e coisas do tipo? Realmente eu preferia a vida que levava como office-boy do que esta que está me oferecendo. Você é fanático Cristiano, tudo para você é espírito!
- Não diga isso. Conhecer a espiritualidade só nos ajuda. Precisamos estudar e conhecer essa realidade para podermos nos defender. No caso de Camila, se ela estivesse em outro lugar e com pessoas materialistas, seria fatalmente levada a um hospital onde diagnosticariam epilepsia e lhe dariam remédios fortíssimos. Os espíritos que a atacaram poderiam continuar perto dela fazendo-a ter novas crises. Graças a Deus ela estava conosco que oramos e o grupo de obsessores se afastou.
O argumento foi forte e Flávio calou-se. Um carro parou na calçada e Cristiano ordenou:
- Os pais de Camila chegaram juntamente com Isabela. Nós não vamos contar na íntegra o aconteceu. Vamos omitir as convulsões, diremos apenas que ela teve uma vertigem e desmaiou.
- Por que vamos mentir? - quis saber Francisca.
- Porque se os pais dela souberem da "epilepsia" irão levá-la ao médico e ela ficará dependente de remédios fortíssimos.
A campainha tocou e Clara foi atender. Élida entrou com semblante preocupado:
- Como está minha filhinha? O que houve com ela?
Fernando e Isabela também perguntaram a mesma coisa. Foi Cristiano quem esclareceu:
- Ela agora está bem. A Clara foi um pouco exagerada ao telefone. Ela conversava conosco quando de repente sentiu-se tonta e desmaiou. Talvez seja o calor imenso que faz aqui neste país.
Élida não se deu por satisfeita:
- Ela nunca teve esses problemas de desmaios quando vai à praia e nunca sentiu nada, por mais forte que fosse o calor.
Fernando preocupou-se:
- Ela só pode estar com um problema sério, vamos levá-la ao médico. Mas antes queremos vê-la, onde se encontra?
Cristiano indicou o quarto onde ela estava. Clara havia cuidado dela, trocado sua roupa e feito a higiene necessária. Camila já estava acordando e chamava por Flávio.
- Estou aqui meu amor, do seu lado - respondeu ele.
Ao ver os pais, Camila começou a chorar. Abraçou Fernando, dizendo:
- Ah, pai, foi horrível. De repente tudo girou ao meu redor e caí no chão me retorcendo, parecia que ia morrer.
Cristiano tentou contornar:
- Ela está exagerando, certamente porque está nervosa. Ela apenas desmaiou. O Dr. Eduardo Medeiros veio vê-la e constatou que foi um desmaio passageiro garantindo que não vai mais acontecer.
- O Dr. Eduardo veio aqui? Quem pagou a consulta? - indagou Élida.
- Eu! - mentiu ainda mais Cristiano.
Élida alegrou-se:
- Se ela já foi examinada não há o que temer. Foi um mau súbito como se diz por aí.
Camila continuava chorando sem parar:
- Pai, eu vi! Eu vi! Aqueles homens horríveis em cima de mim. Um me segurava pela cabeça e os outros apertavam minha garganta!
Francisca contornou:
- Não tinha homem nenhum aqui Camila, pergunte a Flávio que não me deixa mentir.
- Foi isso mesmo amor, estávamos sozinhos aqui.
Ela parecia não acreditar e continuava com os olhos esbugalhados e muito assustada:
- Não sei por que eles estão mentindo, mas com certeza há um grupo de pessoas querendo me matar e eu irei à polícia.
Fernando percebeu que sua filha estava muito nervosa e resolveu levá-la para casa:
- Querida, vamos embora descansar, amanhã você verá o que vai fazer.
Ela concordou rapidamente e nesse instante Cristiano chamou Isabela à outra sala:
- Sinto que você não gosta muito da sua irmã, mas vou lhe pedir um favor: não deixe seus pais levarem-na ao médico, pois realmente não é necessário.
Ela, interessada que estava em tê-lo como marido, concordou prontamente:
- Farei como me pede, mas desejo dizer-lhe que amo muito minha irmã e seu pensamento sobre mim é errado. Sei que ela não está doente, é mais uma cena teatral que inventa para chamar a atenção de meus pais.
- Não diga isso, ela sofreu um desmaio, mas já passou. Não queremos que ela vá ao médico porque lá irão passar remédios desnecessários, afinal o Dr. Eduardo garantiu que ela está bem.
Isabela aquiesceu e aproveitou para convidá-lo:
- Não sei se em Londres as mulheres são tão atiradas quanto aqui, mas se me permite gostaria de convidá-lo para sairmos qualquer dia desses. Por favor, não vá me negar.
Ele retorquiu:
- Pode ser. Não nego que você me atrai, mas casamento não está em meus planos, pelo menos por enquanto.
- Nossa! Como você é sério! Não se preocupe, sairemos apenas como bons amigos.
Ele concordou e ela foi chamada pelos pais que já iam se retirar. Camila não queria deixar Flávio por nada, mas, sentindo que precisava descansar, resolveu ir para casa com os pais.
No carro, Élida se contentava ainda mais com os comentários de Isabela a respeito de sua futura união com Cristiano. Agora sim suas filhas seguiam um rumo certo. Jamais permitiria que um negro ou um pobre viesse a desposar uma delas. Nessa hora ela não viu, mas o vulto de Rafael a espreitava de cima do veículo. Ele dizia:
- Breve você terá o que merece!
Alguns dias depois quando novamente reunidos na casa de tia Francisca no chá das cinco, Cristiano resolveu contar a Camila as informações espirituais que recebeu sobre seu caso:
- Camila... - começou meio sem jeito. - Naquele dia quando você desmaiou não estava errada. Havia vários homens enforcando-a. Eles não eram seres encarnados e sim espíritos inferiores.
Ela sorriu:
- Você está querendo justificar uma tentativa de assassinato com essa historiazinha de espíritos. Francamente, Cristiano, pensei que você fosse mais inteligente. Até agora não entendo por que querem negar que fui atacada por bandidos e por que os protegem. Por acaso foram ameaçados também?
Flávio chegou mais perto:
- Acredite amor, foram espíritos mesmo. Ou você acha que estaríamos acobertando os assassinos?
Ela, que confiava muito no namorado, olhou seriamente para Cristiano e indagou:
- Como assim... Espíritos?
Cristiano explicou:
- Isso mesmo. Vivemos rodeados por uma população de espíritos que já viveu neste mundo, porém apegados às ilusões materiais que deixaram por aqui, se recusam a seguir adiante e viver no mundo que realmente lhes pertence.
Camila ouvia atenta, sabia que Cristiano era um homem honesto e sério, por isso confiava no que ele dizia. É nessas horas que se vê como é importante a boa conduta das pessoas que trabalham com a espiritualidade. Se Cristiano fosse uma pessoa mentirosa, trapaceira e orgulhosa, ela jamais iria lhe dar crédito. Chegamos à conclusão que o exemplo é tudo e vale mais que mil palavras. Ele continuou:
- Há um grupo espiritual das trevas querendo persegui-la. Não sei o motivo, porém Cândido, meu mentor espiritual, disse se tratar de uma falange muito bem organizada que vive no astral inferior. Você é portadora de valiosa mediunidade de vidência. Sua crise de epilepsia demonstra que tem uma mediunidade que necessita ser estudada e educada.
Ela pensou um pouco e disse:
- Não quero saber nada sobre mediunidade, espíritos e essas coisas. O que quero é me livrar desses perseguidores odientos que estão próximos de mim e você irá me ajudar. Faça um trabalho, um despacho, alguma coisa e me livre deles o quanto antes. Se fossem vivos eu saberia muito bem como agir.
Cristiano empalideceu:
- Procure não pensar assim ou estará atraindo-os ainda mais para si. Se quiser estar bem, deve mudar seus pensamentos, procurando viver numa faixa mental superior à deles.
Ela parecia estar distante. De repente, levantou-se e disse:
- Tenho dentista marcado para as 18 horas e não posso me atrasar.
Ninguém entendeu essa súbita decisão, mas Cristiano viu que um vulto escuro a abraçava. Camila e Flávio trocaram um longo beijo e ela saiu. Cristiano muito intuitivo falou:
- Essa aí vai dar trabalho. Está resistente ao bem e disposta a fugir da espiritualidade. Não sei onde isso vai dar. Todos se recolheram para fazer uma prece àquela alma conturbada. Dirigindo seu conversível, Camila ia pensando:
- Se esse grupo de espíritos idiotas pensa que vai me derrotar, está enganado. Saberei como me livrar dele num só instante.
Rafael e mais dois estavam no carro quando Jorge os surpreendeu:
- Não procurem agir agora. Vamos embora daqui e deixemos que os fatos aconteçam.
Pelo jeito sério de Jorge eles viram que algo grave estava para ocorrer e logo seus vultos desapareceram em direção ao Desterro. Camila andava de carro tentando procurar a casa de um pai-de-santo que ela conhecia e que já havia ido lá uma vez com uma amiga. De repente, lembrou-se que era para os lados do Cambuci. Lá chegando percebeu que o bairro crescera bastante e só perguntando conseguiria chegar até ele. Numa rua sem calçamento ela parou o carro e desceu. Trajava-se de preto e usava botas, além de óculos escuros, e sua postura altiva impressionava as pessoas que a viam ali. Ela parou um meninote de seus 13 anos e perguntou:
- Garoto, você pode me informar onde é a casa de pai Gildo? Sei que é por aqui.
O menino disse que não sabia e ela continuou rodando e fazendo a mesma pergunta a várias pessoas. Até que uma mulher magra e desdentada disse que ela estava próxima do local:
- Mas só mostro a casa se a senhora me der uns trocados. Estou passando fome e preciso comprar uns pães - disse mostrando a boca sem dentes que se abria num sorriso. Camila deu o dinheiro e a senhora levou-a até a casa de pai Gildo.
Lá chegando percebeu que havia muitas pessoas à sua frente esperando para serem atendidas.
Conversou com a moça que servia de secretária:
- Olha, preciso urgente conversar com o pai Gildo e não estou disposta a esperar. Pago o triplo pela consulta se me deixar ser a próxima.
Gislene entrou por uma porta, demorou alguns minutos e saiu dizendo que ela já poderia ser atendida. Pai Gildo era um senhor de meia-idade magro, careca e com os dentes amarelecidos pelo fumo. Trabalhava num local impregnado de incenso onde ao fundo havia uma mesa com a imagem de Iemanjá e vários outros santos. Havia muitas velas acesas, um varal com várias penas pretas penduradas, muitas cruzes e o clima era um lauto opressivo. Abrindo um sorriso amarelo ele indagou:
- Por que a mocinha está com tanta pressa em me ver?
Ela foi direta:
- Eu vim porque quero que me livre de um grupo infernal de espíritos que resolveu me prejudicar. Tive um ataque com convulsão e um amigo me disse que eram perseguidores espirituais. Quero-me ver livre deles já, custe o que custar!
Ele sorriu novamente e com paciência começou a enrolar um cigarro de fumo, deu umas baforadas e disse:
- As coisas não são bem assim como pensa. Tenho que consultar meus guias e ver o que eles me sugerem.
Ele começou a acender um castiçal com seis velas vermelhas e virou-se de costas. Murmurou algumas palavras em língua estranha e ficou em silêncio durante dez minutos. Depois se voltou para Camila com olhos enigmáticos:
- Os meus guias estão me dizendo que o trabalho não será fácil. O grupo que quer lhe prejudicar conta com um forte líder, que é muito disciplinado.
Camila se encheu de raiva:
- Quer dizer que você não pode com eles? Que tipo de feiticeiro você é?
- Cale-se garota! Não foi isso o que quis dizer. Apenas falei que o trabalho não é tão fácil quanto pensei a princípio, mas, meus guias dizem que podem vencê-los. - Ele lançou um olhar malicioso e continuou:
- O meu guia maior disse que você está namorando um rapaz, mas afirma que ele não ficará com você, a não ser que encomende outro trabalho.
Camila corou, o feiticeiro mexeu no seu ponto mais fraco: a paixão por Flávio. Desvairada ela disse:
- Faço o que for possível e impossível. O senhor está vendo outra mulher na parada?
- Por enquanto não, mas vejo que se você não agir logo certamente o perderá.
Camila não podia acreditar no que ouvia. De repente, falou:
- Quero então encomendar esses dois trabalhos. Qual o valor?
Ele demorou um pouco e respondeu:
- Três mil reais.
- Tudo isso? Sinto muito, mas o senhor terá que baixar o preço. Não tenho condições para...
Ele a interrompeu bruscamente:
- Ou isso ou nada, a mocinha é quem vai escolher.
- Está bem, pode iniciar os trabalhos, vou em casa conseguir a metade da quantia com o meu pai, o restante darei quando o trabalho surtir efeito. Mas de uma coisa eu quero ter certeza: Flávio será para sempre meu? Eu me livrarei para sempre desses vermes malditos que vocês chamam de espíritos?
Ele sorriu com ar de superioridade e respondeu:
- O que o pai Gildo não consegue?
Ela saiu dali com uma terrível dor de cabeça. O odor desagradável daquele ambiente estava insuportável. Já no carro ela ia pensando em como iria convencer o pai a lhe dar esse dinheiro.
Ela queria ardentemente fazer esses trabalhos. Pai Gildo era poderoso e Flávio seria todo seu.
Na Via Dutra o trânsito estava engarrafado. Os carros estavam parados e Camila cada vez mais impaciente. Olhou no relógio, eram sete e meia da noite. De repente, ela ouviu um burburinho e percebeu que estavam assaltando o carro que estava à sua frente. Olhou em volta, procurando um jeito de se proteger, mas não tinha por onde sair. Em seguida foi abordada por três homens encapuzados:
- Passa a grana loura, agora!  Ela muito nervosa disse:
- Não tenho nada agora! Por favor, me deixem em paz!
Eles pareciam não ouvir e continuavam:
- Passa essa bolsa, bem devagar. Levante-se para eu ver se está armada.
Ela abriu a porta do carro e resolveu agir. Deu com a bolsa no rosto do bandido mais próximo e tentando abrir o porta-luvas recebeu três tiros: um no pulmão esquerdo, outro no pescoço e outro na nuca. Ela teve morte cerebral instantânea. Realmente, o destino tem suas leis.

12 - E A VIDA CONTINUA

No crematório todos tinham no rosto a tristeza e a dor. Principalmente Flávio que em tão pouco tempo sofreu duas grandes perdas. Para o sentimento afetivo, o tempo não tem a mínima importância, ele nasce e se intensifica de forma espontânea no coração, e nem todas as pessoas aceitam a perda do ser amado. Flávio se sentia desolado. Para ele o mundo havia acabado. Nunca em tão pouco tempo sentira tanto afeto e amor por alguém. Mas, no panorama espiritual a situação de Flávio era ainda mais profunda. A dor da perda era intensificada pela sua memória de vidas passadas que aflorava em forma de intuição. Seu espírito recordava inconscientemente da união que ambos tiveram no passado e do plano que fizeram de juntos auxiliar a espiritualidade na implantação da Nova Era. Quando alguém que amamos morre, nossa aura fica cheia de buracos e assim o vazio interior e a depressão aumentam consideravelmente. O padre orava de forma habitual e as pessoas quase não prestavam atenção ao que ele dizia. Da família dela todos estavam chocados, principalmente Élida, talvez pelo remorso de consciência pelos atos de maldade cometidos com a filha. Dentro do crematório havia um espetáculo de dar horror a qualquer criatura. O corpo de Camila destruía-se em meio ao fogo e ao calor, mas, ao seu redor, um grupo de cinco espíritos estava esperando a sua saída do corpo. Eles festejavam ao redor do serviçal, que triste, tinha de acompanhar cotidianamente os corpos serem cremados. Jorge, o chefe do grupo, deu um sinal para que eles parassem a comemoração:
- Atenção todos! Os filhos do Cordeiro já desligaram os laços que prendiam Camila ao corpo. Toda atenção agora é pouco. Camila foi libertada, mas não consegue sair do corpo que derrete, vejam só a agonia dela!
Realmente, Camila estava sofrendo muito. As chamas que queimavam seu corpo de carne davam-lhe a impressão que invadiam seu corpo perispiritual que estava psicologicamente muito ligado à matéria. Ela sentia o fogo queimando-a ainda como se estivesse viva.
Porém, algo de incrível acontecia, sentia-se queimar, mas seu segundo corpo não se destruía. O duplo estava a alguns centímetros do corpo físico, já em estado de cinzas.
Ester perguntava a Jorge:
- Não vamos aliviá-la? Ela está sofrendo demais!
Jorge soltou uma gargalhada:
- Se os servidores da luz não aliviaram, não somos nós que vamos fazer essa tarefa. Aguardaremos esse homem pegar as cinzas e depois veremos o que fazer com essa macabra criatura.
Assim foi. Quando do corpo de Camila restava apenas cinzas, o senhor responsável pelo crematório recolheu com cuidado o que sobrou da jovem moça e colocou numa urna prateada.
Camila sentia-se aliviada, embora não entendesse o que estava acontecendo. Nunca sentiu tanta dor em sua vida. O crematório ficou aparentemente vazio, todavia, o grupo de Jorge continuava lá à espera de Camila. Ao vê-los ela esboçou um sorriso:
- Alguém veio me salvar do fogo! Por favor, tirem-me daqui!  Jorge encarou-a profundamente:
- Levante-se! Você já pode andar!
Ela obedeceu e saiu do forno indo para a sala contígua. Perguntou:
- Por que me olham assim? Sou alguma assombração?
- Quase isso! - Exclamou Jorge.
De repente, Camila sentiu uma tontura e quase desmaiou quando reconheceu à sua frente Rafael, antigo amor da adolescência:
- Saia de perto de mim, alma do outro mundo, me deixe em paz!
Jorge deu um sinal para que ele se afastasse e falou:
- É melhor acalmar-se. Lá fora está um carro à nossa disposição.
A partir de hoje irá morar na Cidade do Desterro. Já temos uma casa pronta que servirá como seu lar. Acompanhe-nos. Camila ia protestar, mas os olhos metálicos de Jorge fizeram com que ela tremesse de medo. O melhor era seguir. Certamente ela encontraria um jeito de voltar para casa. Camila estava achando que o que havia passado no crematório fora um sonho. Relutava em crer no que lhe ocorria, apenas pensava em fugir dali. Esquecera-se do assassinato do qual fora vítima e ignorava que seus últimos atos sobre a Terra escreveram o seu destino, do qual só com hercúleo esforço conseguiria se safar. Na Terra, Flávio estava sendo consolado pelo irmão. Parecia que tudo era uma irrealidade, que a qualquer momento iria acordar e ter, não só sua família de volta, mas também sua amada Camila. Sentia que a vida tinha sido perversa, que estava lhe tirando tudo o que tinha de bom. Apresentou esse pensamento a Cristiano, que o consolou:
- Sei que as palavras são insuficientes nessa hora, mas posso lhe garantir que tudo que ocorre tem por trás a bondade divina. Talvez Camila tenha se comprometido com a própria consciência, por isso desencarnou. Mas a morte é uma ilusão, em algum lugar deste Universo ela está tão viva quanto nós.
Flávio não sabia o que dizer. Caminhava por entre as árvores do parque Ibirapuera tentando extravasar sua tristeza, sua dor. Francisca e Cristiano o deixaram sozinho para que refletisse. Sentados em um banco, Francisca perguntou:
- Cristiano, qual o motivo de uma pessoa morrer violentamente? Você sempre diz que Deus faz tudo certo, mas em minha visão um crime é muito errado. Gostaria de entender...
- Olha tia, Deus é infinitamente sábio e age em toda parte. Lógico está que se Ele quisesse evitar um crime certamente o faria, pois tem maior poder do que qualquer assassino. Porém, a inteligência Divina não interfere no livre-arbítrio que nos deu. Um assassino é um espírito ignorante que acredita na violência para se defender e resolver seus desafios, já o assassinado é uma pessoa que possui mais conhecimento, já pode agir de forma melhor, mas está se violentando intimamente, agindo fora do seu nível de evolução espiritual. "Muito será pedido há quem muito foi dado." As leis cósmicas retardam durante certo tempo as conseqüências das atitudes do ignorante, esperando que ele amadureça e possa aproveitar melhor os resultados. Porém, quando temos mais consciência do bem e escolhemos o mal, a vida deixa de nos proteger e os resultados são imediatos.
- Você acha que foi isso o que aconteceu com Camila?
- Sim. Ela deve ter tido uma atitude infeliz quando por seu nível espiritual poderia escolher melhor e assim atraiu o que lhe aconteceu. Não existe vítima. A vida faz tudo certo..
Francisca ouvia atentamente, refletindo sobre aqueles ensinamentos. Flávio aproximou-se:
- Vamos embora, estou cansado!
Eles seguiram para casa, enquanto Noel e Carlota mais atrás comentavam:
- Graças a Deus existem ainda muitos "Cristianos" nessa vida, não é mesmo, Noel?
- Sim, a bondade de Deus distribui espíritos bons em todos os recantos da Terra, para garantir harmonia, fraternidade, explicação e paz!
A vida continuava com seu pulsar e precisava ser levada adiante. O Universo reage com equilíbrio, indiferentemente aos acontecimentos humanos. Por mais que soframos, choremos ou sorrimos, todos os dias o sol nasce e a noite chega. Por mais que pessoas sofram nos hospitais ou com a violência, a vida continua cobrindo de pássaros e flores nosso planeta, na tentativa de mostrar que todos os dias a misericórdia divina se renova. Imbuído nesses pensamentos, Cristiano chegou naquela manhã na casa de tia Francisca. Encontrou-a com Flávio na mesa do café. Os gatos siameses foram alisar seus pêlos na calça de Cristiano.
- Sente-se e sirva-se - falou Francisca, com doçura.
- Podem terminar a refeição com calma. Hoje temos muito que conversar.
Francisca pediu:
- Cris, dê uns conselhos a seu irmão, olhe, ele não está comendo nada. E isto ocorre a quinze dias, desde que a Camila desencarnou.
Cristiano não falou nada, mas percebeu que Flávio estava mais magro e abatido. O café continuou apenas com o barulho dos miados dos gatos. Após o término todos foram para a sala de estar. Cristiano comentou:
- Vim para dizer que no próximo fim de semana partirei para Londres. Meus negócios aqui estão resolvidos e não posso mais postergar minha viagem de volta. Gostaria que você, Flávio, se preparasse para ir comigo. Tia, de uma só vez a senhora perderá dois sobrinhos.
Francisca sorriu:
- Oh! Não pense que fico triste, pois jamais me sinto sozinha. É claro que vocês me farão falta, mas sei que no futuro, quando Flávio voltar, já será outro homem. Talvez traga filhos e assim encherá muito mais meu lar de alegria.
Flávio não parecia contente com a viagem, mas Cristiano percebendo o fez reagir:
- Olha, não adianta ficar com esse rosto triste e de vítima. Vejo do seu lado espíritos negativos lhe sugerindo que fique no Brasil. Eles querem que mais um trabalho do bem seja derrotado. Você não vai fazer isso porque eu não vou deixar. Liguei para a médium Margareth e a avisei que estou levando comigo uma pessoa que precisa estudar a espiritualidade. Tenho certeza de que esse é o caminho que lhe dará forças para superar esta crise.
Ele começou a lamentar-se:
- É que sinto um desânimo, uma fraqueza...
- Isso é próprio das pessoas que estão sendo sugadas espiritualmente, reaja, você pode. Nada que faça trará a Camila de volta, ela precisa seguir outro rumo e a vida os afastou temporariamente.
Essas palavras tiveram o dom de animar Flávio. A viagem se realizou num domingo à noite. Francisca e alguns poucos amigos de Flávio foram se despedir. O clima era de saudade e angústia. Quando finalmente o avião decolou, Francisca fez uma prece de agradecimento a Deus por tudo o que havia aprendido com Cristiano e pediu que Ele desse uma boa viagem aos sobrinhos. Em Londres, Flávio se adaptou com extrema facilidade. Dona Margareth o recebeu com carinho e o introduziu no estudo das leis das afinidades espirituais. Esse curso com trinta alunos durou um ano. Logo após ele estudou durante dois anos os processos da mediunidade e pesquisou tudo o que pôde sobre seu mediunismo específico. Aproveitou a boa vontade do irmão e conheceu todos os pontos turísticos da cidade e do país em que estava. Em três anos já falava o inglês fluentemente. O quarto ano de sua estada em Londres foi dedicado ao processo de educação da mediunidade. Nesse ano ele sentiu seu campo vibratório tornar-se mais ostensivo. Começou a sair do corpo com muita facilidade e sem perder a consciência. Conversava com os espíritos como se estivesse conversando com pessoas amigas do dia-a-dia. Ia a palestras no mundo espiritual e retornava ao corpo lembrando-se nitidamente de tudo. Uma tarde, durante seu treinamento, saiu do corpo e viu aproximar-se dele um senhor de meia-idade, cabelos grisalhos e olhar muito profundo, que disse:
- Finalmente amigo, vou conversar com você em estado de consciência. Está lembrado do velho Hilário?
Ele hesitou um pouco:
- Eu já o conheço?
- Muito! De muitas eras. Talvez agora não se lembre, mas o importante é a mensagem que venho lhe trazer.
Flávio olhou-o nos olhos e percebeu que realmente o conhecia, mas não sabia de onde.
Eles sentaram num jardim, na frente de um prédio, e Hilário começou:
- Você é portador de mediunidade de desobsessão.
- Disso já fui informado, mas até o presente momento não fiz nenhum trabalho desta espécie.
- É que sua missão é no Brasil e não aqui. Com Margareth você aprenderá todo o processo da desobsessão e um método para aplicar no seu campo de serviço. Há outra coisa que preciso lhe lembrar: você nasceu também para lançar a semente da espiritualidade na sua família e esta é a hora.
Ele retrucou:
- Não dará mais tempo, minha família desencarnou há quase quatro anos, não há mais nada a ser feito.
Hilário sorriu:
- Você está enganado, a missão com sua família começou justamente depois que ela desencarnou. Você irá comigo visitar os lugares onde ela se encontra na espiritualidade. Usaremos o seu ectoplasma para torná-lo visível a seu pai, sua mãe e sua irmã. Prepare seu coração, nenhum dos três está em bom lugar. É preciso que você converse com cada um em particular e os ajude a sair de onde se encontram. A essa altura todos já sabem que desencarnaram. A visão de seu pai está à pior possível: sem as duas mãos ele luta para fugir das aves do umbral que teimam em beliscar suas feridas.
Flávio assustou-se:
- Quer dizer que ele foi atacado pelas aves das furnas?
- Isso mesmo!
- E por que perdeu as mãos?
Hilário ponderado explicou:
- Essas aves são quais urubus terrenos. Elas farejam os locais de putrefação do corpo espiritual, assim como o urubu terreno fareja a putrefação da carne. Ambos têm a mesma função: sanear o ambiente. O corpo astral absorve as energias das atitudes de cada um e quando são negativas chegam a lesar seus órgãos. Onde o espírito faliu, ali está o ponto nevrálgico onde os miasmas aparecem. Quando encontraram seu pai, as aves sentiram que esse ponto se encontrava nas mãos. Ele exagerou no roubo, e as mãos que roubam em demasia ficam impregnadas de energias densas, equimoses e miasmas que vêm à tona assim que o espírito desencarna. Foi por isso que o ataque das aves se deu nesse local específico.
- Essa explicação é lógica. Acha que conseguirei auxiliá-lo?
Hilário respondeu que sim com a cabeça e pegou Flávio pelo braço. Margareth percebeu que o espírito de Flávio estava fora do corpo e para que não fosse interrompido, ela fechou a sala.
Flávio e Hilário foram volitando até uma zona escura semelhante ao vale dos suicidas. Ele esclareceu:
- Nós chamamos esse local de furnas, pela quantidade de cavernas e buracos que aqui se encontram. As aves temidas se escondem nas cavernas que ficam abaixo daquela serra. – Apontou para Flávio uma serra feia e de vegetação rasteira. - Nesse momento elas estão descansando.
Flávio ficou curioso:
- De onde vêm essas aves? Na Terra não temos nenhuma espécie desse tipo. Sei que no astral apenas residem os animais que viveram na Terra.
Hilário disse:
- Realmente, no astral ficam apenas os espécimes de animais terrenos e com esse grupo de aves ocorre uma exceção. Elas migram do astral inferior de um planeta ainda primitivo. Deus as mandou para que possam limpar o ambiente e aliviar os espíritos sofredores. Flávio indignou-se:
- Aliviar? Mas elas fazem com que sofram muito mais.
- Engano seu. As feridas e as equimoses quando em excesso limitam as ações dos espíritos em busca da melhoria íntima. Quando são aliviados pelos pássaros, mesmo de forma grosseira, eles podem peregrinar mais à vontade e quem sabe encontrar a salvação. Além do que, esses excessos de energias negativas prejudicam ainda mais a atmosfera das furnas, que por si só já é tão densa.
- O meu pai foi tão ruim a ponto de vir a sofrer tanto?
- Não podemos rotular ninguém dessa forma. Mas o que posso garantir é que ele tinha um coração muito duro, insensível e irascível. As furnas é um lugar que favorece a mudança interior através do sofrimento.
Eles caminharam mais e ao passo que iam andando, Flávio via muitos sofredores conhecidos: políticos que foram famosos na Terra, personalidades que influenciaram comportamentos viciados e muitas pessoas desconhecidas, mas um só olhar: o do sofrimento. Num charco eles encontraram Ângelo. Sem as mãos, ele gemia muito. Flávio o olhou e ele percebeu:
- Filho, filho meu, você veio me salvar? Ah, só você mesmo, essa alma tão bela, que tanto eu critiquei durante a passagem na Terra. Como me arrependo de não ter aproveitado o tempo em que vivi com você. Veja como estão minhas mãos! Tire-me daqui, eu te suplico!
A luz que Flávio emanava naquele lugar sombrio fazia ofuscar um pouco a visão de Ângelo. Hilário, que não era visto por ele, deu um sinal para que Flávio puxasse o pai. Flávio segurou nos braços fracos do genitor e não conteve o pranto. Eles se abraçaram, e de repente, enfermeiros da colônia Campo da Redenção chegaram com macas e equipamentos médicos. Ângelo desmaiou nos braços do filho, depois foi levado num autobus para o hospital Vinha de Luz, que ficava na própria colônia. Hilário levou Flávio para o corpo de carne e avisou:
- Sua tarefa apenas começou. Fique atento, no Brasil nos veremos mais vezes.
Ele volitou e rapidamente chegou à cidade astral em que trabalhava. Os anos continuavam passando e Flávio aprendia cada vez mais. Hilário nunca mais mencionou sua família quando aparecia para ele. Confiante, Flávio entendeu que se assim estava acontecendo era porque Érica e Marina ainda não poderiam ser socorridas. Porém, de aluno, ele passou rapidamente a mestre e ministrava aulas juntamente com Margareth. Em desdobramento, Flávio também passou a dar aulas no astral, inclusive para o próprio pai que, a cada ano, mostrava-se mais equilibrado. Mas, mesmo depois de tanto tempo ele não tinha notícias de Camila, nem por seus mentores, nem por mentores de outros médiuns. No entanto, a notícia do destino de sua mãe no astral inferior o perturbou muito. Soube também que Marina saiu da colônia em que estava abrigada, em Larvosa, uma cidade do umbral comandada por Teófilo. Ao questionar sobre uma possível ajuda a ambas, Hilário respondeu:
- Ainda não é a hora. Cultive a paciência e saiba esperar. Soube por emissário de plano maior que a ajuda se dará através de você. Todavia, a vida tem suas leis que jamais são corrompidas. Marina e Érica se comprometeram muito durante a passagem terrena e devem levar a experiência até o fim, até onde aprenderem de fato a serem melhores.
- Minha mãe eu até compreendo. Levava vida fútil e vazia, tinha muitos preconceitos e não amava ninguém, a não ser a vida boa que o dinheiro proporcionava. Sabia que o papai iria me deixar no Brasil apenas por vingança e nem sequer se importou. Mas... Por que Marina se encontra hoje numa cidade inferior? Ela não foi socorrida?
- Ela se encontra lá por teimosia. Quando despertou na colônia onde foi abrigada, relutou em acreditar que havia morrido. Ao tomar consciência de que estava só e entre pessoas que julgava estranhas e loucas, ela entrou em depressão. Por mais que tentasse sair de onde estava não conseguia. Os portões eram de um ferro muito pesado e os muros altíssimos. Dominada pela tristeza ela só pensava no lar da Terra. Chegou um momento que seu pensamento foi tão forte que ao abrir os olhos acabou se encontrando em sua antiga casa. Achou tudo fechado e sujo. Facilmente percebeu que podia atravessar as paredes e essa sensação a enlouqueceu ainda mais. Constatar que estava realmente morta foi um golpe muito duro e ela perdeu os sentidos. Quando acordou encontrou ao seu lado Teófilo, que, com sua voz melodiosa e conversa fácil, acabou conquistando-a. Agora ela vive lá, na esperança de rever a família e o Ricardo Valadares, sua paixão quando encarnada.
Flávio sentiu compaixão. Isso já ocorria há quatro anos. Naquele dia ele não conseguiu mais trabalhar com sua mediunidade, recolheu-se e ficou duas horas em profunda meditação. Quando terminou, se sentiu sereno, admitiu que a vida é sábia e jamais erra. Se sua mãe e sua irmã ainda estavam naquele lugar é porque era 0 melhor que podia acontecer.

13 - A VIDA TRAÇA NOVOS RUMOS

Sempre que podia, Cristiano acompanhava Flávio em seus estudos. O curso que ele fazia era de um nível mais avançado, porém Flávio rapidamente o alcançou e o ultrapassou. Isso se deu porque em sua mente subconsciente estavam os clichês de tudo quanto já tinha aprendido, tanto em vidas passadas, quanto em suas passagens na erraticidade. Flávio era um espírito mais evoluído do que o irmão, e tendo conquistado maior equilíbrio espiritual, sua ascendência sobre ele se manifestou naturalmente. Cristiano passou a consultá-lo antes de tomar qualquer decisão e a acatar suas opiniões. Tudo quanto fazia passava agora pelo cunho do irmão. Os negócios de Cristiano prosperavam na Inglaterra, e com eles, era possível arcar com todas as despesas de Flávio até que estivesse preparado para iniciar seu trabalho no Brasil. Uma tarde Cristiano, em companhia de duas belas jovens, foi visitar Flávio no Centro de Estudos Espirituais onde ele estudava. Uma aparentava ser mais velha, com tez morena escura, cabelos lisos à altura dos ombros e a outra mais nova era morena-clara, tinha lábios finos e cabelos encaracolados. Só quem as conhecia sabia de seu parentesco: eram irmãs. Muito diferentes fisicamente, demonstravam a mesma simpatia. Cristiano chamou o irmão a uma sala discreta e as apresentou:
- Esta é Laura, minha namorada da qual lhe falei, e esta é Anita, sua irmã.
Ao olhar nos olhos de Anita, Flávio sentiu uma sensação diferente e teve a certeza de que já a conhecia de outras vidas. Cristiano notou, porém nada comentou. Flávio fitou-as admirado:
- Muito prazer! Vocês são diferentes, nem parecem irmãs! Como aprenderam a falar português tão bem?
Anita explicou:
- Somos brasileiras. Estamos aqui há apenas dois anos. Nosso pai conseguiu um ótimo emprego e nos mudamos para cá. Foi bom para Laura que teve a chance de conhecer o Cristiano.
Ela pareceu encabulada:
- Não repare. Anita fala demais.
Cristiano interferiu:
- Elas têm personalidades diferentes; enquanto Laura é tímida, Anita é o oposto.
Flávio observou:
- Pelo brilho que vejo em seus olhos, penso que logo teremos um casamento.
- Você é um bruxo mesmo! Como adivinhou? Conhecemo-nos há apenas seis meses e sinto que quero viver com ela pelo resto da vida.
- Olhando vocês dois, sinto que nasceram um para o outro.
Cristiano atalhou:
- Viram como ele consegue ler o que se passa dentro de cada um de nós?
- Foi você quem me ajudou a perceber minha sensibilidade.
- Mas o aluno da primeira hora superou o mestre.
- Pare de brincadeiras, você sabe que eu não gosto que me chame assim. Às vezes você pede e dou minha opinião, mas jamais pretendi guiar sua vida.
- Mas seguindo sua opinião nunca me dei mal.
Anita, muito interessada, perguntou:
- Você, Flávio, é médium? O que vê na minha aura?
Ele viu nitidamente surgir na aura de Anita um brilho muito forte quando ela o fitava, revelando certo interesse por ele. Porém, disse apenas:
- Sua aura é de uma pessoa muito alegre, que sabe curtir a vida. Está muito brilhante.
Anita corou. Ele disse as últimas palavras olhando profundamente em seus olhos; teria percebido seu interesse? A conversa continuou até a hora do crepúsculo, quando todos se despediram e foram embora. Contudo, Flávio e Anita não conseguiram esquecer um do outro. Desde que chegara a Inglaterra, Flávio não tinha se envolvido com nenhuma moça. Depois do que sofrerá com a morte de Camila, fechara o coração ao amor, com medo de sofrer. Porém, ao conhecer Anita, sentiu por ela uma incrível sensação de familiaridade, mas teve medo de estar confundindo as coisas. Resolveu meditar e tentar compreender melhor o que se passava com ele. No mundo espiritual, Camila continuava escrava de Jorge. A princípio, Teófilo queria levá-la para Larvosa, mas um acordo feito com o amigo à fez permanecer no Desterro. Teófilo queria ter mais uma magnetizadora, porém Jorge lhe garantiu que trabalhando para ele Camila faria a mesma coisa. Ela sentia muita saudade de Flávio e quando descobriu que estava morta tentou vê-lo, porém Ester explicou:
- Flávio vive em uma sintonia acima da nossa, portanto não podemos vê-lo. Deverá conformar-se e ficar na saudade. Também não consigo ver meu marido que já reencarnou e está protegido por uma família espírita. Eles fazem toda semana o evangelho no lar e por isso não conseguimos nos aproximar. Aqueles malditos espíritas!
Camila ficou curiosa:
- O Flávio ainda continua nessa de espiritismo?
- Soube que vive na Inglaterra com um grupo de espiritualistas independentes numa faixa de alta elevação. Nem conseguimos chegar perto. Jorge não costuma se meter com o pessoal do Cordeiro, pois sempre se dá mal.
Camila teve que se conformar. Não sentia saudades da família, muito menos de Rafael, seu antigo namorado. Na cidade em que vivia, pôde conhecê-lo melhor e percebeu que era apenas paixão o que havia sentido por ele. Porém, ele não deixava de persegui-la e às vezes ela deixava-se envolver e ambos se entregavam à paixão, num daqueles quartos sombrios e escuros da cidade. Depois que isso acontecia, Camila passava horas em depressão e ia a Terra sugar as libações do álcool das pessoas que se entretinham nesse vício. Fazendo isso conseguia esquecer um pouco a insatisfação. Numa dessas visitas ao orbe, ela percebeu que algo de muito estranho acontecia na sua antiga casa. Aterrorizada ela percebeu que sua mãe Élida havia enlouquecido e se encontrava internada. Seu pai e sua irmã não a visitavam e de certa forma sentiam-se aliviados por se verem livres dos problemas que ela lhes trazia. No hospício, Camila não conseguiu permanecer nem cinco minutos. Ela viu que lá havia grande quantidade de entidades em desequilíbrio, que assim como ela queria viver no lado obscuro da vida. Ela viu próximo à sua mãe um espírito de aparência horrível. Sentiu-se muito mal. Élida em nada lembrava a mulher bonita e chique de antigamente. Estava com os cabelos desgrenhados, mal vestida, além de babar muito. Camila fugiu logo dali, pois não desejava desequilibrar-se mais. Não estava interessada na mãe nem em seu destino. Era até bom que tivesse enlouquecido. Com o tempo, Érica deixou de ser prisioneira para ser trabalhadora de Jorge na cidade do Desterro. Em todos os anos de desencarnada ela nunca viu a família. Soube da situação do marido, mas recusou-se a vê-lo. Marina não lhe interessava, já Flávio e Cristiano ela não pôde nem chegar perto devido à vibração de ambos. Por isso conformou-se com a situação em que vivia. Passou a utilizar seus poderes para magnetizar as pessoas da Terra e tentar manipulá-las conforme sua conveniência. Porém, de tudo que havia visto depois da morte, jamais esqueceu da viagem que fizera ao abismo. Aquelas cenas permaneceram vivas em sua memória. Naquela noite, ao ver o grupo que Jorge convocara juntamente com Rafael para ir ao abismo, ela espantou-se:
- Para que tanta gente?
Ester explicou:
- As formas degeneradas são muito pesadas, são necessários homens fortes para locomovê-las. Esses homens irão lá com essa função. Veja o Rafael como está alegre com a vingança. Conversa e sorri sem parar.
Érica olhou para Rafael, que era ainda muito jovem, e exclamou:
- Não entendo como um rapaz desse, pode se comprometer dessa forma. Tenho ajudado nos trabalhados de vingança, mas noto que ninguém sai feliz de uma coisa dessas.
Ester retorquiu:
- É porque você não sabe o que a Élida fez. Quando chegou no astral, Rafael descobriu que Camila perdeu o bebê porque a mãe fez ela praticar um tenebroso aborto. Imagine só a raiva que ele sentiu. Além de separá-los por puro preconceito ela cometeu esse ato draconiano com o filhinho que estava por nascer. É muito justa essa vingança, aquela mulher merece a loucura que a aguarda.
- Estou com muito medo, Ester - confessou Érica. - Não sou acostumada a ir em lugares como o abismo, acho que me recusarei a ir.
- Não desobedeça ao Jorge, ele é muito violento. Disse que faz questão de levá-la junto para que veja do que ele é capaz.
Ela estremeceu:
- Então irei, mas você me protegerá.
Ester sorriu:
- Aqui ninguém protege ninguém, se tiver alguma coisa ruim lá lhe aguardando, não sou eu quem irá salvá-la.
Érica ficou apavorada, porém não tinha como deixar de obedecer. Ela percorreu junto com o grupo um longo caminho. Ao chegarem em certo ponto, já na sub crosta, todos colocaram uma espécie de óculos protetor. No limiar para o abismo, Érica sentiu que ia desfalecer. As cenas que viu eram de aterrorizar qualquer criatura. Os homens indiferentes chegaram ao local e retiraram de lá uma forma que parecia ser de uma mulher. Ela babava sem parar e tinha os olhos vidrados. Os cabelos se transformaram em uma crina e ela andava de quatro pés. Do meio da cintura para baixo seu corpo era de cavalo e ela relinchava como se fosse mesmo um animal. Jorge chamou Érica a um canto e disse:
- Essa aí foi uma antiga criminosa que chegou a esse estado por sugestão de um espírito vingativo. Traz nas costas mais de cem crimes e o remorso torturante, sem remédio, a levou pouco a pouco a se transformar nisso que vê aí. Agora, está completamente louca.
Colaremos esse espécime no corpo de Élida, que bem merece.
Ela implorou:
- Não faça isso Jorge, pelo amor de Deus. Os filhos do Cordeiro não irão permitir que isto aconteça.
Jorge deu uma gargalhada:
- Élida não tem proteção dos filhos do Cordeiro. É ambiciosa, má, perversa, crítica e maledicente. Vive num mundo de fantasias e ilusões. Por que acha que iremos atingi-la? Se fosse uma pessoa voltada ao bem jamais conseguiríamos esse intento. Os homens fortes abriram uma jaula e prenderam a forma tenebrosa dentro com muita violência.
O caminho de volta pareceu mais rápido, porém, eles não descansaram. "Ler o romance O Abismo, de R.A. Ranieri." Foram direto para a mansão dos Assunção Ferguson. Encontraram Élida no trocador aprontando-se para sair. O quarto era luxuoso e muito bem decorado. Rapidamente os homens ligaram alguns fios energéticos, que Érica não entendeu de onde vinham, no cerebelo de Élida. Em seguida abriram a jaula e soltaram no recinto a forma meio humana, meio animal. Érica percebeu que os fios vinham da entidade e esperou aflita o que ocorreria. De repente, Élida sentiu ligeira tontura. Olhou no relógio e percebeu que já eram oito horas da noite. Sem saber por que, começou a se sentir nervosa e angustiada. Uma sensação de apreensão a invadiu e ela começou a suar fino na testa. Pôde ver claramente a forma degenerada próxima a seu corpo e deu um grito de horror. Gritou alto e muito forte, repetidas vezes. Isabela e Fernando apareceram no quarto e ela pediu chorando:
- Tirem-na daqui, eu lhes suplico. Tirem-na.  O marido protestou:
- Não há nada aqui Élida, o quarto está vazio!
Rafael ria de felicidade. A mulher maldosa e preconceituosa virará um farrapo humano. Ela insistia que havia um monstro no quarto, mas Fernando repetia que não havia nada lá. Isabela dizia a mesma coisa, porém ninguém conseguia contê-la. Sentindo-se perseguida, Élida começou a correr pela grande casa. Por mais que tentasse não conseguia se livrar do ser monstruoso que estava ligado ao seu corpo. Aonde ia, o ser urrando e babando a acompanhava. Ela acabou sendo levada ao psiquiatra que diagnosticou esquizofrenia paranóide. O Dr. Francisco disse que casos assim eram comuns e que poderiam ser medicados em casa. Ela não apresentava lesões no cérebro, porém o médico explicou que todos os sintomas eram de uma esquizofrenia e certamente a lesão deveria estar em uma zona específica que os exames não conseguiram identificar. Era uma explicação confusa. Na realidade, o Dr. Francisco não entendia como uma pessoa com esses sintomas não apresentava nenhuma lesão. Élida tomava 16 comprimidos por dia. Mas, não melhorou. Pelo contrário, os medicamentos agravaram seu estado. Ela passou a andar nua pela casa e pela rua. Fernando e Isabela optaram pela internação que ocorreu com Élida numa camisa de força. Érica não conseguia entender como podia existir tanta maldade no mundo. Não entendia como uma mulher bondosa e religiosa como Élida pudesse terminar naquele estado. Com esses pensamentos resolveu se recolher. Pelo amanhecer trabalharia mais.

14 - NO BRASIL

Flávio continuava com os pensamentos contraditórios no que se referia a Anita. Ela se mostrava completamente apaixonada por ele. Ia visitá-lo freqüentemente na companhia de Cristiano que sempre estava próximo do irmão. Rolando na cama, ele pensava se o que sentia era algo mais profundo ou apenas uma atração passageira. Não desejava misturar as coisas, queria agir com absoluta certeza de seus sentimentos. Fazia dois meses que se conheciam, mas um não tirava o outro do pensamento. Lembrou-se repentinamente de uma frase do Dalai-Lama que dizia: Ame profundamente e com paixão. Você pode se machucar, mas é a única forma de viver a vida completamente. Era isso que precisava fazer. Vivia pregando em suas palestras que o amor deve ser vivido em plenitude e que jamais devemos deixar de demonstrar um sentimento. Nesse instante, percebeu que estava fazendo totalmente o contrário, fugindo covardemente do amor. Tomou uma decisão: logo após a palestra convidaria Anita para um passeio e se declararia. Flávio entrou num salão repleto de pessoas, onde ouviriam uma palestra sobre o planeta Terra. Era um grupo de espiritualistas interessado em saber um pouco mais sobre o panorama espiritual do nosso planeta que confiava muito no que Flávio dizia. Ele iniciou:
- Vamos todos pedir a Deus, supremo Criador do Universo, que tome a direção deste trabalho que hoje se realizará. Que Ele possa nos enviar vibrações de paz, amor e harmonia, que possamos contar com a presença de nossos amigos espirituais e com a cumplicidade do Universo.
- Meus amigos, o governo espiritual do planeta Terra é monitorado por uma junta muito grande de espíritos, que acompanha sua evolução. São espíritos superiores designados pela fonte de vida, para ajudar a humanidade a encontrar o caminho do progresso, com menos sofrimento. As leis cósmicas, perfeitas e imutáveis funcionam, respondendo às atitudes de cada um e ao mesmo tempo às escolhas coletivas dos povos, cuja ignorância tem levado a guerras e aos jogos do poder, ocasionando todo sofrimento que tem crucificado na dor toda a humanidade. Em uma cruzada de amor, esses espíritos iluminados intervém, buscando de todas as formas esclarecer a consciência dos encarnados, a fim de que se ajustem às leis do progresso e possam evoluir pela inteligência, banindo da face do planeta o sofrimento. Ele continuou discorrendo com extrema facilidade sobre a Terra e seus mecanismos, inspirado que estava por entidade de elevada hierarquia. Ao final, concluiu:
- Na Terra, o bem-estar das pessoas depende exclusivamente das energias que produzem. Elas alimentam idéias que determinam suas atitudes. Essas atitudes formam o destino do planeta e conforme a situação, os espíritos superiores não intervém, só o fazendo quando as transformações provocadas pela colheita dos resultados, tornam propício o momento, favorecendo o sucesso de seus propósitos. È bom lembrar que a vida não joga para perder e só atua quando há grande probabilidade de obter o que ela deseja. Quando um desafio se faz presente em nossas vidas é porque temos condições de enfrentá-lo e vencê-lo.
- Vamos pensar melhor se estamos ou não contribuindo para a evolução do planeta, e a partir daí pautar nossa vida pela ética, pelo otimismo e pela fé.
- Que Jesus possa nos abençoar pelos caminhos da vida, hoje e sempre. Que assim seja!
Os trabalhos da noite foram encerrados e alguns dos presentes foram cumprimentar Flávio pelas palavras de incentivo. Anita estava no meio deles, juntamente com a irmã e Cristiano. Após um aperto de mão e um abraço caloroso, Flávio, meio sem jeito, falou-lhe ao ouvido:
- Anita, preciso muito conversar com você, me espera no jardim?
Ela, parecendo saber do que se tratava, respondeu com um sim muito expressivo.
Para esclarecer a situação com Laura, Flávio comentou:
- Gostaria muito de poder conversar particularmente com Anita. Depois eu a deixarei em casa.
Laura respondeu:
- Fique à vontade.
Despedindo-se da irmã e de Cristiano, Anita foi ao jardim esperar por Flávio. Ele foi em seguida. Um vez juntos no carro, Flávio disse:
- Vou levá-la a um belo restaurante.
- Não estou com fome Flávio, não desejo comer nada.
Ele respondeu:
- Você vai gostar. Há música instrumental ambiente e se não quiser jantar, poderemos ficar no barzinho.
Durante o trajeto ele pegava algumas vezes na mão de Anita que corava de prazer. Será que finalmente seu sonho se realizaria? Sentia que amava Flávio mais que tudo na vida e namorá-lo seria o ápice da sua felicidade. Num lugar do barzinho, meio em penumbra, Flávio fez sua declaração a Anita. Foi objetivo e sincero. Falou da sua vida, do seu trabalho com a mediunidade, da sua paixão por Camila e da morte trágica dos pais e da irmã. Confessou ter sentido algo diferente e especial por ela, não afirmou ser amor, mas era um bom sentimento que deveria ser vivido com intensidade. Flávio aprendeu que nenhum sentimento deve ficar escondido, principalmente os de amor. E o amor que dá alegria à vida e quando ele aparece deve ser vivido. Anita não estava em si de tanta felicidade. Era uma alma de evolução mediana e não estava interessada nos trabalhos mediúnicos de Flávio. Ela fingia que se interessava, fazia perguntas, mas do que gostava mesmo era de estar com ele. No fundo dava graças a Deus pelo namorado ser assim, meio beato, só assim ficaria sossegada quanto às traições, que certamente jamais ocorreriam. Bendita mediunidade, pensava ela, com certo egoísmo. Ela procurou fazer tudo para agradá-lo a partir daquele dia. Cristiano ficou muito feliz com o namoro dos dois, pois ficaria tudo em família. Onde Flávio estivesse, lá estaria Anita. Não fosse pelo egoísmo dela, essa seria uma relação perfeita. Flávio a amava. Sabia de seus defeitos, mas eles não eram suficientes para acabar com o amor que ele sentia. Compreendia e jamais discutiam. Para ela, viver ao lado de Flávio, era uma oportunidade de progresso que a vida lhe oferecia. Estando unidos por compromissos do passado, o casamento por certo se realizaria, visando o progresso de ambos. Anita, desde a época que vivia na espiritualidade, aceitou tê-lo como marido. Por tê-lo perdido de forma trágica no passado remoto, ela cristalizou em seu espírito que só seria feliz se estivesse com ele, por isso tudo fazia para ficar ao seu lado. Um ano se passou desde o início do idílio entre Flávio e Anita. Durante esse período estavam sempre juntos. Ela aproveitava toda a chance de estar com ele e por isso era assídua nas reuniões espíritas de dona Margareth. O tempo passava e Flávio ia desenvolvendo mais sua consciência e agindo com mais sabedoria. Fez diversos tipos de cursos, dentre eles os de auto-ajuda, psicologia comportamental, análise, parapsicologia, terapias, incluindo a logoterapia, que tem como base fundamental a busca e a expressão do eu. Mas foi numa viagem a Califórnia que Flávio fez um dos cursos que mais o ajudaria, o curso de mentalismo e prosperidade. Quando voltou dessa viagem, num horário de meditação, Flávio viu aproximar-se dele o espírito Hilário:
- Que a Paz de Deus esteja com você.
- Que assim seja. O que deseja de mim, Hilário?
- Primeiro lhe avisar que mais uma parte de sua missão será cumprida. Deverá deixar a Inglaterra o quanto antes e voltar para o Brasil. É lá que reside o grupo de pessoas que você deverá ensinar. Sua iniciação e aprendizagem se completaram com o curso que recebeu na Califórnia. É hora de metodizar o trabalho e traçar as diretrizes para bem organizá-lo. As pessoas estão cada vez mais perdidas com os desafios que enfrentam no mundo. Você será o agente transformador da vida de cada um deles, que já estão prontos para a ajuda.
- E Anita? Vai poder seguir comigo?
- Sim. Ela também é uma necessitada. Você ainda descobrirá que a ama mais do que imagina. Terão que passar por um grande desafio, mas a vida jamais desampara ninguém e vocês terão condições para vencê-lo. A sugestão da espiritualidade é que formalize sua união, case-se com ela. Depois de casados deverão residir no Brasil. Lá o procurarei para maiores esclarecimentos. Que Deus te proteja.
Flávio agradeceu a Deus mais esse contato e resolveu colocar em prática os conselhos de Hilário, pedindo Anita em casamento. Ela ficou imensamente feliz com o pedido de casamento do namorado. Seus pais, Rômulo e Alexandra, também concordaram com o enlace, pois viam em Flávio a personificação do genro perfeito: bonito, inteligente, sadio e rico. Apenas não gostavam das idéias espirituais dele; como católicos ortodoxos que eram, jamais compartilhariam com as idéias de reencarnação, comunicações de espíritos e coisas do tipo. Mas, acabaram deixando de lado seus pontos de vista em favor da felicidade da filha. Uma tarde, lá estava Flávio no apartamento dos pais de Anita, com a noiva presente, traçando planos para o casamento:
- Vim avisar que pretendo ir embora do país retornando ao Brasil. Conversei com Anita e ela concordou em nos casarmos lá.
Alexandra não gostou:
- Lá? Eu queria tanto que fosse aqui. Tinha feito tantos planos, afinal, ela casará primeiro que a Laura, é minha primeira filha que casa! - disse ela com um tom melancólico na voz.
- É que a minha única tia viva mora lá e me é muito querida. Somos todos brasileiros e desejamos oficializar lá em nossa terra essa tão sonhada união. Vocês poderão ir pra lá também no dia da cerimônia...
Rômulo concordou:
- Eu não queria perder minha filha, mas concordo que ela deve seguir o futuro marido. Se quiserem se casar por lá têm toda a minha aprovação.
Alexandra retorquiu:
- Mas quero ir com vocês. Desejo preparar tudo para esse casamento pessoalmente. O Rômulo e a Laura podem ir no dia, mas eu não deixo minha filhinha só, por nada.
Flávio argumentou:
- Nós desejamos apenas uma festa simples. A cerimônia será civil, sem mais badalações, não foi isso que combinamos Anita?
Anita, que se mantinha calada, respondeu:
- Sim, mas sabendo como dona Alexandra é teimosa, acho melhor fazermos como ela quer senão teremos problemas.
Alexandra era uma mulher rígida, porém de boa índole. Gostava muito da filha e sonhava com o mais lindo casamento para ela. Não deixaria passar uma ocasião dessa, evidentemente.
- Sou teimosa mesmo, vou organizar a mais bela festa de São Paulo. Eu e meu marido vamos dar tudo para a festa, de modo que você, Flávio, não precisa se preocupar.
- Eu faço questão de colaborar, afinal sou o noivo.
Rômulo interviu:
- Deixe isso com a gente, você já terá que arcar com as despesas da casa, mobiliário, dentre outras coisas.
A discussão seguiu acalorada, cada um dando sua opinião, ao final concluíram que Flávio daria o enxoval, a casa e os móveis, enquanto os pais dariam uma luxuosa festa. Depois de tudo decidido Flávio, Anita e Alexandra voaram de volta ao Brasil. Cristiano, Rômulo e Laura foram se despedir no aeroporto. Francisca iria recepcioná-los e estava ansiosa para rever o sobrinho tão amado depois de longos seis anos. Mandou arrumar três quartos especialmente para eles e preparou deliciosa merenda para o chá das cinco. As três em ponto eles estavam no Brasil. Flávio estava emocionado:
- Ah, minha terra! Esse cheiro, esse sol, essa magia só existem mesmo aqui.
Alexandra também se emocionava:
- Já havia me esquecido do quanto é bom e bonito esse querido país. Parece que passei cem anos fora. Devo confessar que mesmo com toda a organização da Inglaterra ainda prefiro aqui. E que sou muito baderneira, desorganizada e o povo do Brasil é assim, muito zen.
Flávio corrigiu:
- Aqui há mesmo muita liberdade, porém o povo brasileiro já se adaptou mais ao ritmo organizado dos países de primeiro mundo. Hoje você pode ver que o país está bem cuidado, organizado e dirigido. Será maravilhoso vivermos aqui.
Anita apenas falou:
- Para mim onde você estiver estará minha felicidade.
O Flávio que acabara de chegar ao Brasil, em nada mais lembrava aquele adolescente cheio de dramas, confuso consigo mesmo. Agora era um homem feito, de corpo e alma. Experiente, centrado, maduro, Flávio era realmente um mestre. De repente, a lembrança dos pais, de Camila, dos velhos amigos lhe veio à memória, mas foi interrompida pela recepção calorosa de Francisca que veio buscá-los.
- Como é bom te ver Flávio. Como está diferente, mudou até a cor dos cabelos! - disse sorrindo.
Flávio abraçou aquela alma generosa e apresentou as mulheres.
- A Anita é muito mais bonita do que eu imaginava, e essa é Laura, irmã dela?
- Não, esta é Alexandra, mãe de Anita.
Francisca observou:
- Nossa, invejo sua juventude e beleza, parecem irmãs. Olha, tenho orgulho de levar vocês com o meu próprio carro. Muita coisa mudou na minha vida nestes seis anos, me tornei até empresária - falou muito contente.
Flávio exultou:
- Nossa, tia, que progresso!
Ela disse:
- Percebi que a vida ociosa que levava em nada contribuía para meu progresso, com o tempo fui cansando da rotina que tinha e resolvi investir parte de minha herança num empreendimento. Mas agora vamos, pois estou ansiosa para instalá-los em minha casa.
A conversa seguiu animada, mas Flávio estava viajando em suas lembranças. Realmente, o Brasil mexia muito com ele, principalmente pelo seu passado, sua paixão por Camila, tudo fazia lembrar o tempo que ainda era adolescente e que morava com seus pais levando uma vida como tantas outras. Até que um dia o destino mudou o rumo dos acontecimentos, e lá estava ele, prova viva e consciente que Deus jamais erra e só faz o melhor. Assim que Flávio chegou ao Brasil, Ester tratou de comunicar a Camila. Durante aqueles seis anos ela continuava trabalhando nos planos de vingança da Cidade do Desterro. Vivia amedrontada, mas como não acreditava ser possível sair dali, continuava fazendo tudo o que Jorge mandava. Ultimamente estava sendo uma das produtoras das roupas dos moradores da cidade. Ester a encontrou numa espécie de tear, porém os fios eram magnéticos e saíam da mente de Camila; assim ela aprendeu a plasmar os tecidos.
- O que foi, Ester?
- Tenho novidades do Flávio. O Jorge viu pelo monitor quando ele chegou ao Brasil. Parece que o trabalho dele com os filhos do outro lado vai começar em São Paulo.
Camila largou o serviço, interessada que estava naquela conversa. Durante aqueles anos todos o que mais queria era aproximar-se do grande amor de sua vida, porém os companheiros diziam não ser possível, pois Flávio vivia em faixa mental elevada. Mesmo assim Jorge o espiava sempre que possível através dos monitores e ela sempre estava informada. Perguntou:
- Ele continua com ela, a trouxe para o Brasil?
Ester ficou calada durante alguns segundos e informou:
- Sinto dizer, ele além de trazê-la, pretende casar-se com ela. Tente se acalmar.
Camila entrou em fúria, seus olhos expeliam chispas e todo o seu corpo tremia:
- Isso não pode acontecer, impedirei a todo custo!
Ester retorquiu:
- Não sei se será possível, terá que pedir permissão ao Jorge. Durante esses anos, ninguém dessa cidade conseguiu chegar nem perto de Flávio. Acha que será possível agora?
- Não sei, mas tenho que encontrar uma maneira de impedir que essa maldita case-se com ele, deve haver algum modo, Ester.
- Nem sempre se pode interferir assim ao bel-prazer na vida dos encarnados. Se assim fosse, a Terra já teria se transformado num hospício mais louco do que é. Se em muitas vezes conseguimos, em outras fracassamos. Se a pessoa for protegida da luz, nada conseguiremos fazer.
Camila rosnou de raiva e decidiu:
- Flávio é só meu e jamais será de ninguém, de nenhuma outra. Ester, marque uma reunião com Jorge, preciso vê-lo ainda hoje.
Ester, com mau humor, respondeu:
- Não sei se será possível, hoje ele está muito ocupado, mas com jeitinho talvez eu consiga. - Falou estas últimas palavras com jeito malicioso.  Camila perguntou:
- Há tempos venho desconfiando que você está de rolo com o Jorge, me diga, é verdade?
Ela sorriu ao responder:
- O Jorge tem muitas amantes, mas duvido que as outras dêem tudo de si a ele como eu.
- Eu sabia! - exultou Camila. - Ele lhe dá muitas facilidades. Só podia ser isso.
Ester lamentou:
- Desde que meu marido reencarnou eu não tinha mais vida sexual, sabe, eu estava carente, daí acabei me entregando ao Jorge.
Camila disse:
- Certa você! Faço a mesma coisa. Amo o Flávio, mas para assuntos íntimos eu sempre uso o Rafael. - Elas continuaram com a conversa sensual, envoltas de energias negras, mas a certo ponto Camila disse:
- Chega desse papo, vá marcar minha audiência com o Jorge. Eu separarei esse casal ou não me chamo Camila Assunção Ferguson.
Ester procurou Jorge, que relutou um pouco para receber Camila, porém acabou cedendo. No horário marcado, rosto compungido pelo ódio, lá estava ela:
- Jorge, eu preciso arrumar um jeito de separar Flávio de Anita, ele deverá se guardar apenas pra mim.
Jorge tirou uma espécie de cachimbo da boca e sorriu:
- Realmente, você tem muita sorte. Hoje, justamente hoje, eu descobri que você poderá interferir na relação.
Os olhos dela brilharam.
- Como assim?
Jorge foi metódico ao responder:
- Primeiro quero dizer que você ainda não pode se aproximar de seu amor. Não conseguirá alcançá-lo. Mas Anita tem baixas energias e você poderá trabalhar negativamente com ela.
- Graças a Deus, poderei me vingar daquela infeliz que tenta roubar o amor do Flávio, mas... Como farei, poderemos enlouquecê-la?
- Isso seria perfeito, mas não temos autorização para tanto. Segundo informações de Teófilo, Anita não traz nenhum tipo de enfermidade no perispírito, mas podemos semear a discórdia entre o casal, a desconfiança e o ciúme na mente dela, bem como a depressão e se ela ceder mais, futuramente um suicídio. Daí poderemos capturá-la no vale e trazê-la para cá. Ela será só sua, poderá molestá-la à vontade.
Camila ficou radiante, o orgulho e a maldade eram sentimentos que a excitavam.
- Isso será logo? A Ester me afirmou que o casamento será breve, temos que agir rápido.
- Sinto muito, mas o casamento não poderemos evitar.
Camila abriu desmesuradamente os olhos.
- Por quê? Está me dizendo que você é fraco e nada poderá fazer? Onde está sua força, Jorge?
Ele a olhou raivoso:
- Não me provoque ou se arrependerá. Esse casamento está na programação reencarnatória de Flávio e só pode ser evitado pelos dois, quanto a isso nossa atuação é nula. Contra certos determinismos da vida, nós somos completamente impotentes. Camila começou a chorar:
- Aquela sonsa! Conseguirá o maior desejo da minha vida, ser a esposa de Flávio. Mas... Se não podemos impedir o casamento, o que de fato podemos fazer?
Jorge explicou:
- O casamento dele está protegido, mas depois vamos atuar pouco a pouco na vida conjugal e os problemas começarão. Lembre-se de que Flávio tem uma vibração muito alta, mas Anita não, vamos atuar nela, nas fraquezas dela. O que posso fazer, já estou fazendo.
Enviei um servidor à crosta para observar os pontos fracos de Anita 24 horas por dia. Quando descobrirmos todos eles vamos atacar. Camila ficou em dúvida:
- Será que Flávio não tem mais pontos fracos? Virou santo? Nada pode atingi-lo?
- Não é bem assim. Os filhos do Cordeiro não exigem a perfeição de seus trabalhadores. Segundo pude observar, Flávio tem muitos defeitos, pois é um homem comum, porém esforça-se para melhorar, dá o melhor que pode em seu nível de evolução, busca a alta espiritualidade. Quem age assim é automaticamente protegido pela lei. Só podemos atacar quem não dá o melhor de si, como é o caso de Anita. Camila parecendo entender, perguntou:
- Será que conseguirei separá-los?
- Isso dependerá muito dela. Flávio é protegido, mas Anita não. Vamos ver o que podemos fazer. Cada coisa no seu tempo.
Ela se despediu dele e saiu meio tristonha. No meio de uma praça feia e malcheirosa Ester veio ao seu encontro.
- E aí amiga? O que o Jorge lhe disse?
- Infelizmente não posso fazer nada contra esse maldito casamento, porém depois posso interferir. Talvez os possamos separar.
Ester vibrou:
- Você é das nossas! Já vi que merece viver aqui conosco.
- Desde que fui traída pela minha própria mãe não consigo ver à minha frente nenhum sentimento que não seja o ódio. Antes disso eu era uma adolescente feliz, alegre, era uma pessoa comum, infelizmente ela me transformou num monstro!
- É isso mesmo, os outros é quem são culpados pelos nossos problemas. Por isso, aqui no Desterro, fazemos justiça com as próprias mãos. Essa história de perdoar só serve mesmo para pessoas fracas. Camila concordou:
- Adorei a dona Élida ter enlouquecido. Quero que morra e venha pro nosso lado, aí poderei fazer dela o que bem quiser.
- Minha vida foi destruída pelo Solano Carbajaua e hoje também ele teve a paga que mereceu. Está lá sem as duas mãos vagando a esmo. Ninguém, nem mesmo Jorge, conseguiu ainda saber seu paradeiro, ele sumiu. Deve estar escondido numa daquelas cavernas.
Camila disse:
- Você sempre teve esse ódio, porém nunca nos contou a causa, gostaria muito de saber.
- Então chegou a hora, prepare-se para saber o que aquele desgraçado me fez!
E começou a narrar todo o drama de sua vida.

15 – DE VOLTA AO PASSADO

Era o ano de 1896, algum tempo depois da abolição da escravatura no Brasil. Eu, Ester, e meu marido, Adolfo Cruz, morávamos em uma vila chamada Guadalupe, interior de uma Cidadezinha do México, que hoje faz parte da capital. Cultivávamos ervas e tínhamos pequena plantação que vendíamos nas feiras de fim de semana. Nossa vida era boa, calma e tínhamos dois filhos chamados Malaquias e Roque. Solano e Zuleika Carbajaua eram nossos vizinhos mais próximos e traçamos estreita amizade. Eles tinham um casal de filhos que eram a Juliete e o Eduardo. Viviam aparentemente bem e eram mais prósperos que nós. Além das plantações, mantinham um grande armazém no Arraial de Guadalupe do qual todos éramos clientes. O tempo foi passando e começou o período da seca. Nossas plantações não vingavam e precisávamos continuar nos mantendo. Eu tinha verdadeira adoração pelos meus filhos, enlouquecia-me a idéia de vê-los passando fome, e assim Adolfo fez grande soma de dívidas, não só no armazém de Solano, como em outras casas comerciais da região. Eduardo, o filho mais velho de Solano, tomava conta do armazém e sempre aumentava o número das notas dos clientes. Solano era temido pelas redondezas e por isso ninguém ousava desafiá-lo. Com o tempo, Eduardo roubava mais e mais e assim fizeram pequena fortuna. Tínhamos uma conta altíssima e não teríamos condições de pagar. Eu afirmava ao meu marido que nós não tínhamos feito tantas compras, ao que ele dizia:
- O Eduardo me apresentou essa soma e não podemos fazer nada contra, aliás, os mantimentos estão acabando e precisamos abastecer novamente no armazém do Solano.
E assim foi, a seca continuou pelo resto deste ano e ficou do mesmo jeito nos três anos seguintes. A única solução foi continuar devendo à família Carbajaua. Um dia, quando estávamos tomando café, Eduardo chegou em nossa humilde casa acompanhado pelo pai. Seus rostos estavam compungidos e Solano começou:
- Viemos comunicar que a situação de vocês com nosso comércio não é boa. Devem muito dinheiro e acredito que não têm com que pagar.
Adolfo, lembrando da velha amizade entre as famílias, ainda tentou contemporizar:
- Sei disso amigo, mas tempo virá que saldaremos todas as nossas dívidas contigo. Deixe esta seca passar e devolverei tudo o que nos fornece em forma de dinheiro. Nossas terras sempre foram boas para o plantio e haveremos de colher em dobro.
Solano, com sorriso cínico no olhar, redargüiu:
- Sabemos que suas terras são ótimas, por isso viemos aqui. Desejamos trocar todas essas promissórias pela sua casa e suas terras. Estremeci de horror ao ver o calhamaço de promissórias na mesa de minha cozinha e percebi que se tratavam de todas as outras que tínhamos na cidade. Solano, interessado que estava em nossas terras, saldou todas as nossas dívidas e somado ao montante que Eduardo aumentava nas compras do armazém dava uma enorme quantia. Desesperada gritei:
- Isso não pode ser! Mais da metade do que está aqui não foi comprado por nós em seu armazém.
Eduardo, com rosto marcado pela cobiça, gritou:
- Está duvidando de minha conduta, chama-me de mentiroso?
Eu repliquei:
- Não foi isso que quis dizer, é que tenho consciência de que não compramos nem metade do que aí está. Comecei a chorar desolada.
Adolfo pediu:
- Deixe-me examinar.
Quando ele pegou as promissórias, sentiu-se gelar. A soma era o valor exato de todas as nossas terras e propriedades. Vociferou alto:
- Vocês não podem fazer isso conosco, iremos pagar!
Solano não queria controvérsia e afirmou:
- Vocês devem muito. Por isso vão deixar essa propriedade e as terras até amanhã cedo. A partir de agora elas são nossas.
Comecei a chorar abraçada a Malaquias e Roque que eram adolescentes na época. Eles saíram zoando nas botas, deixando para trás uma família destruída. Adolfo tentou consolar-nos dizendo que partir era a única alternativa. A raiva e o ódio dominavam nossos corações e às seis da manhã um grupo de peões armados veio nos expulsar daquele que foi nosso lar durante tantos anos. Unidos, pegamos a estrada em direção à capital jurando vingança. Porém nunca pudemos nos vingar. Sofremos muito na capital e nas primeiras noites dormimos em plena rua. Foi com decepção e amargura que recebemos no rosto a grossa chuva que acabava de chegar àqueles lados do México. Desnutridos, Malaquias e Roque acabaram morrendo. Nunca senti em minha vida uma dor tão imensa. Adolfo, pelo desgosto, também não resistiu e acabou fazendo seu passamento. Eu fiquei sozinha naquela cidade tão grande, pois vivíamos como maltrapilhos, fazendo serviços aqui e ali, nas mansões, em troca de alguma comida. Numa dessas casas encontrei Malvina, uma prostituta que mantinha um castelo na periferia e que se interessou pelas minhas formas. Eu não era uma mulher feia, apenas estava maltratada pela vida. Malvina me levou a salões e tratou de mim, colocando-me na vida do comércio sexual. Quando fui ficando velha e os clientes me rejeitando acabei voltando às ruas, pois o dinheiro como prostituta não rendia, parecia amaldiçoado. Um dia caí doente e um grupo católico me acolheu num asilo, onde morri solitária. Cheguei ao astral no ano de 1956, desencarnei com 80 anos. A morte retirou o véu que ocultava minha visão e me vi num lugar sujo, frio e molhado. Os mesmos homens que me usaram sexualmente quando na Terra, agora durante o sono físico, me perseguiam implacáveis. Acabavam me achando e continuavam abusando de mim. Fiquei assim por seis anos, até o dia que uma linda mulher surgiu me convidando para abandonar aquela vida, dizia que eu não merecia viver mais assim. Afirmava que havia um belo lugar me esperando e que para entrar nele eu precisava de uma única coisa: perdoar. Em sua docilidade ela dizia:
- Lembre-se do sofrimento de Jesus, ele padeceu pela injustiça dos homens e mesmo assim perdoou. Agora é a sua vez.
Ela falava isso, pois sabia que eu não havia perdoado o Solano, era esse ódio que me mantinha e me mantém viva até hoje. Recusei terminantemente, ela ainda voltou algumas vezes, depois desapareceu. Daí aconteceu o melhor: Jorge veio ao meu encontro e disse que eu estava certa em não seguir esta mulher, pois me levaria com ele para ver os meus filhos e então fiquei muito feliz. Cheguei ao Desterro, essa nossa cidade, onde meus filhos já residiam. Foi um encontro fabuloso. Para minha felicidade ser completa só faltava meu marido, porém Jorge informou que ele seguiu com aquela mulher e nunca mais eu o veria. Foi o que aconteceu. Pouco tempo depois fiquei sabendo que ele reencarnou no Brasil. Malaquias e Roque, agora já amadurecidos e com os semblantes de outra encarnação onde foram sanguinários, me ajudaram procurar Solano. Exultei ao saber por Jorge o fim trágico de toda a família Carbajaua. Solano prosperou por mais alguns anos, porém logo depois cometeu grave erro, que o levou à falência. Suas falcatruas foram descobertas e ele foi preso. Na prisão ele se suicidou. Juliete foi morar no mesmo castelo que outrora eu trabalhei e se tornou prostituta. Eduardo fugiu e Zuleika morreu velha e muito beata, apesar de solitária. Perseguimos todos no umbral, porém havia uma alma muito bela chamada Henrique que os queria ajudar. Por muitas orações desse espírito, Deus concedeu uma nova chance para toda a família. Eles reencarnaram. Usamos uma médium aqui do Desterro chamada Mina e conseguimos localizá-los no Brasil. Mas quando isto aconteceu eles já estavam bem de vida. Daí, influenciada por Jorge, tracei meticuloso plano. Colei-me ao Solano e o induzi mais uma vez ao roubo. Facilmente ele captou minhas mensagens e começou a subtrair dinheiro ilicitamente das empresas onde trabalhava. Minha vingança tinha começado. Malaquias e Roque induziram Cristiano, que fora Eduardo, também a compactuar com as falcatruas do pai e os dois estavam no meu encalço. Jorge me apoiou na vingança odienta e passou também a obsedar a família. Como eles não tinham proteção, acabaram sendo atingidos. Henrique, a alma nobre, também renasceu com eles e se chama Flávio, o grande amor de sua vida, Camila. Mas pouco ele conseguiu fazer. Você viu que todos morreram e estão sofrendo tudo o que nos fizeram sofrer. No umbral, Solano, hoje Ângelo, passou privações, perdeu as mãos e Zuleika que é Érica, está escrava. Marina está no Vale do Amor Livre e infelizmente perdemos de vista o Eduardo. Ele está realmente mudado e se imbui a cada dia pelos propostos do Cordeiro. Não posso me vingar dele. Jorge diz que se tentar isto me darei mal. Esse é meu drama, minha vida acabou naquele dia que me tiraram tudo. Você não acha que estou certa em me vingar?
Camila, que a tudo ouviu com espanto, confirmou:
- Claro amiga, avalio sua luta. Pela sua história, e pela minha também, vejo que só através do mal conseguimos ser mais fortes. Se você fosse ruim, certamente teria feito uma desgraça com eles e estaria bem melhor. Talvez nem tivesse perdido suas terras.
- Isso mesmo, antes eu era boba, aceitava tudo de cabeça baixa. Hoje ninguém mexe comigo.
Aquelas criaturas perdidas numa moral falsa e estacionaria continuaram conversando. Elas ignoravam que só o perdão liberta e que a vingança é uma faca de dois gumes: atinge principalmente quem a pratica.

16 - O CASAMENTO

Alexandra acordou animada, era o dia do casamento de sua filha. Aquela temporada no Brasil havia feito muito bem ao seu espírito. A casa de Francisca tinha um clima mágico, agradável e levava todos a uma sensação de paz interior. Naquele dia em particular, a azáfama era geral, finalmente Flávio e Anita se uniriam. Na mesa do café a conversa girava em torno do assunto:
- É tão bom quando duas pessoas que se gostam resolvem viver num mesmo teto, é uma pena que não tenha acontecido comigo - dizia Francisca levando uma torrada à boca.
- O bom é que as pessoas procurem viver bem e felizes de qualquer jeito. Um ser humano não é feliz apenas porque se casa e também não é infeliz porque está sozinho. Você mesma tia, se queixa à toa. Vive sozinha, mas não sente solidão, está sempre alegre e de bem com a vida. Para muitos o casamento tem sido sinônimo de angústia e infelicidade - elucidou Flávio.
- Eu e o Rômulo vivemos muito bem graças a Deus. Nos compreendemos e sabemos aceitar os defeitos um do outro. Acho que o respeito é fundamental numa relação, mais até que o amor, pois quem diz que ama e não respeita a individualidade do ser amado, na verdade não está amando em plenitude - disse Alexandra.
- Nossa, mamãe, a senhora hoje está uma verdadeira filósofa - brincou Anita.
- É isso mesmo filha, de médico e louco todos nós temos um pouco.
A conversa seguiu animada e depois cada um foi cuidar dos seus afazeres. Francisca havia aplicado boa parte de sua herança deixada pelo pai e cuidadosamente administrada numa loja de confecções. Para ela, ser empresária estava sendo um divertimento, uma forma de ser útil. Flávio nesses três meses no Brasil comprou um imóvel grande em rua aprazível no centro de São Paulo e estava reformando de acordo com suas necessidades de trabalho. Hilário sempre o orientava no que fazer para que o trabalho com a espiritualidade se desse o melhor possível. Havia o salão específico onde haveriam os trabalhos de desobsessão, outro onde se dariam os cursos e palestras e mais um dedicado a passes e terapias alternativas. Ele queria fazer um centro de estudos, onde as pessoas pudessem ter aconselhamento individual e para isso estava contratando especialistas e os treinando quanto aos conceitos de metafísica e mentalismo. Tudo estava programado pela espiritualidade e Flávio confiava no futuro. Anita saiu com a mãe para ultimar os ornamentos do vasto salão onde se daria a união civil. Ela não se continha de felicidade, ter o homem amado, fiel, religioso, era tudo o que ela mais ansiava. Alexandra estava com pressa, pois ainda receberia o marido, Laura e Cristiano que estavam chegando da Inglaterra. O clube estava impecável, ela e Flávio haviam gastado muito, porém o resultado era muito bom. O luxo excessivo incomodava. Flávio, porém, resolveu fazer todas as vontades de sua futura mulher. Tencionava iniciá-la nas tarefas espirituais e com isso passar-lhe-ia ensinamentos sobre as leis cósmicas. Anita era um espírito pouco amadurecido e estava longe de saber o que era a verdadeira simplicidade. A prova da riqueza que ela aceitou quando estava na espiritualidade era justamente para que aprendesse a viver na simplicidade, mesmo tendo muito dinheiro. Porém, as leis das probabilidades indicavam que ela estava no limiar da falência perante a prova escolhida. Na arrumação ela sempre exagerava e sua mãe contribuía. Tudo tinha que ser do mais caro e do melhor. Ao meio-dia em ponto o avião de Londres chegou em famoso aeroporto de São Paulo. Foi com alegria que Rômulo, Cristiano e Laura pisaram o solo brasileiro. Cada um fez a exclamação que pôde, enquanto abraçavam Flávio, Anita e Alexandra.
No caminho para casa, já no luxuoso carro de Flávio, Cristiano brincou:
- Vejam como a vida é irônica. O Flávio disse que logo eu e Laura estaríamos casados, e quem foram os apressadinhos? Quem foi que marcou a data de casamento com apenas seis meses de namoro?
Flávio, respondendo disse:
- Foi isso mesmo, para que adiar a felicidade? Anita é a mulher da minha vida, tenho certeza disso, então para que esperar?
Rômulo falou:
- Fico muito feliz em deixar minha filha em suas mãos, sei que ela será muito feliz, sua alma é muito nobre.
- Nobre só Jesus o foi integralmente, todos nós ainda estamos longe da nobreza. Qualquer qualidade que tenhamos neste mundo ainda é muito problemática. Tenho horror à fama de santidade!
- Desculpe Flávio, não quis lhe causar aborrecimentos, porém sou verdadeiro, falo o que sinto, e sei que sua alma é muito elevada.
- Bondade sua amigo, você é que deve ser muito bom para me enxergar assim.
Eles chegaram em casa. A cada palavra dita por Flávio, Anita sentia-se privilegiada. Que homem sábio! Que homem perfeito! Pensava ela perdida em fantasias. Ela ignorava que por mais que uma pessoa tenha certo magnetismo que nos impressione, jamais é perfeita ou maravilhosa. É apenas um ser humano com qualidades e defeitos. A adoração, o culto e o endeusamento excessivos revelam falta de discernimento espiritual. Quando essa pessoa comete falhas, nossa ilusão cai por terra, e assim percebemos se a amamos realmente ou se estávamos apenas vivendo através de uma projeção feita por nossa mente quase sempre invigilante. O casamento se deu com muita pompa, bem ao gosto de Anita. A mais fina sociedade foi convidada, uma vez que os pais da noiva, já conhecidos em São Paulo, gozavam a fama de serem milionários no exterior. Havia muita fartura, música, beleza e a festa foi muito elogiada. Os noivos receberam os cumprimentos e depois partiram em lua-de-mel que seria num chalé em Angra dos Reis, a contragosto de Anita, que queria conhecer alguns países da Europa. Passados os primeiros dias, Anita chamou Flávio e disse:
- Gostaria que você explicasse o porquê daquela gafe na festa de nosso casamento.
Ele assustou-se e perguntou:
- Qual gafe?
- Ora, você ter interrompido os cumprimentos dos convidados para anunciar esse tal curso que irá realizar com os espíritos. Fiquei passada!
Flávio, que jamais esperava isso dela, disse:
- Ora amor, não foi gafe nenhuma. Apenas aproveitei a ocasião para anunciar o início dos meus trabalhos, havia muita gente e senti que era uma ótima oportunidade.
- Muita gente católica, você quer dizer? Aquelas pessoas jamais vão se interessar por nada que diga respeito a espíritos, almas de outro mundo, coisas do tipo, pois você terá todo o tempo do mundo para fazer isso.
Flávio olhou sério para ela e disse:
- Não desejo que nosso casamento comece assim. A amo muito e pensei que estava de acordo com minhas idéias, aliás, expus todas elas pra você assim que nos conhecemos. Tenho uma missão delicada para realizar em São Paulo e sei que há um grupo de evolução me esperando, aguardando a espiritualidade se manifestar através de mim. Tenho certeza de que as pessoas vão se interessar. Aliás, na nossa festa não mencionei nada com espíritos, apenas falei da ciência mentalista e da metafísica. Há algo de mal nisso? Ela contemporizou:
- Não, meu bem, é que apenas não achei o momento apropriado...
Ele captou sua energia facilmente e respondeu:
- Olhe Anita, sei que você pensa que com o tempo vai me controlar, mandar em minha vida e coisas do tipo, mas eu quero que saiba que comigo não vai conseguir. Sou um espírito livre e independente. O casamento é apenas o desejo de duas pessoas que se amam e que querem viver juntas, formar uma família. Casamento, alianças, podem emocionar, levar lágrimas aos olhos, porém não é uma prisão, uma algema. Quem ama liberta e não aprisiona.
Ela ficou calada durante alguns segundos, depois o abraçou:
- Desculpe-me amor, prometo que o aceitarei como é. Jamais poderia viver sem você!
- Cuidado com isso, a dependência escraviza e enfraquece. Nada nesse mundo é tão seguro quanto imaginamos. A vida é surpreendente e as coisas podem mudar a qualquer momento. Cada um tem um caminho para evoluir. De fato a única coisa segura nesse mundo é a mudança que renova.
- Está querendo me deixar? Apenas uma semana de casado e já fala em separação?
- Não me interprete mal. Não estou dizendo que vamos nos separar, eu não desejo isso. Porém o futuro tem suas leis e pode traçar outros caminhos, novos rumos para as pessoas. O bom mesmo é viver o presente sem perspectiva de amanhã, fazer do hoje o único momento de felicidade. Só se pode ser feliz agora, nunca no passado ou futuro, pois o futuro sempre é presente e o passado já está morto.
Anita estava embevecida. Ela havia criado em Flávio uma aura de santidade que a fazia tecer os sonhos mais apaixonados. Se um dia o perdesse não saberia como viver. Após ouvir as últimas palavras do marido ela o encheu de beijos e o arrastou ao quarto onde continuaram aproveitando os bons momentos da lua-de-mel.
- Precisamos partir - avisava Alexandra a Francisca durante o chá das cinco.
- Ah, já tão cedo?
- Isso mesmo, não vamos nem esperar Anita voltar da lua-de-mel. O Cristiano e a Laura já partiram e nós temos nossos negócios na Inglaterra. Infelizmente Francisca, nossa temporada de férias terminou.
O marido tomando chá com bolachas concordou:
- É isso mesmo, já estou a uma semana longe dos negócios e, sabe como é, empresário nem sempre pode se dar ao luxo de férias em qualquer época do ano.
Francisca concordou:
- Compreendo. Minha confecção é relativamente pequena e eu já me vejo sem tempo, imagine você com uma empresa tão grande. Na verdade eu é que gostaria de tê-los mais em minha companhia.
- Imagine! Nós é que estamos encantados com você, com sua casa deliciosa... Hoje sei o quanto o Flávio foi feliz aqui - disse Alexandra feliz.
- Ele sofreu muito, afinal tinha acabado de perder os pais e a irmã. Porém esse menino é muito forte, venceu tudo, soube se fazer lá fora, acredito que terá muita sorte aqui.
Nessa hora Rômulo perguntou:
- Acredita mesmo que essa história de espíritos, mediunidade, mundo espiritual, pode dar algum lucro? Sei que o meu genro tem muito dinheiro, mas um dia esse dinheiro acaba e aí, como vai viver com minha filha?
Francisca esclareceu:
- Você está equivocado! O trabalho com a espiritualidade é muito sério e jamais pode ser cobrado. Flávio é um médium de incorporação muito ostensivo, veio programado para trabalhar em desobsessão e por isso não cobrará um centavo. O dinheiro que ele ganhará virá dos cursos sobre mentalismo e metafísica, ciências que ele aprendeu nos Estados Unidos.
Rômulo estava incrédulo:
- Nunca interferi nas idéias do Flávio, mas intimamente acredito que ele não terá retorno. Está investindo muito alto, num prédio grande... As pessoas não dão muita importância a tais coisas, esses modismos só dão certo lá para os americanos, os brasileiros não darão valor - falou muito seguro de si.
- Não diga isso! - interveio Francisca. - As pessoas estão cansadas de sofrer e buscam meios alternativos para alcançar a felicidade. E num mundo onde cada um é um e não existem duas pessoas iguais, ao invés de procurar sua própria essência e seguir sua vocação, a maioria tenta se encaixar nos modelos sociais com medo de não ser aceita. E fingem felicidade quando estão amargas por dentro, aparentam sabedoria, inteligência, intelectualidade quando não sabem entender nem a si próprias. É aí que Flávio, auxiliado pelos espíritos de luz, tem muito que ensinar. O mundo espiritual tem feito o possível para esclarecer as pessoas enviando profetas, médiuns conscientes, que inspiram a prática do bem. Acredito que meu sobrinho terá todo o sucesso que merece.
Rômulo sorriu ao dizer:
- Vejo que já foi catequizada pelo Flávio.
- Com certeza. Tudo o que meu sobrinho diz pode ser comprovado pela vida, pela prática do dia-a-dia.
A viagem do casal se deu no dia seguinte. Mais uma vez no aeroporto, ao se despedir, Francisca rezou para que eles fizessem uma boa viagem. Após um mês de lua-de-mel Anita e Flávio regressaram a São Paulo. Francisca, mesmo atarefada, cuidou da bela casa que ambos adquiriram num bairro próximo ao local escolhido por Flávio, para ser o Centro onde desenvolveria seus trabalhos. Anita escolheu tudo com muito cuidado e dedicação, sua casa seria um verdadeiro santuário, tendo Flávio como seu ídolo. Tentou agradar o marido em casa para que ele se sentisse feliz. Ao fazer isso ela se anulou totalmente, abdicando de suas preferências para agradá-lo. As obras no Centro ainda estavam em andamento, porém Flávio fazia questão de acompanhar tudo de perto. A fachada do prédio era grande e nela havia escrito "Centro de Estudos Espirituais Luz no Caminho". Naquela tarde, após examinar os trabalhos dos operários no Centro, Flávio chegou em casa cansado. Ao abrir o portão, admirou mais uma vez à beleza do jardim que circundava a casa. Era sempre assim, ele não conseguia penetrar o recinto se não admirasse as roseiras, as dálias, os cravos e todas as flores e plantas que havia no seu jardim. Cruzou a porta central da casa e não viu ninguém. Na luxuosa sala, ricamente mobiliada, só havia Rosália retirando o pouco pó que havia no carrilhão.
- Já falei que não precisa se esmerar tanto, há essa hora aposto que já tirou o pó desta sala umas quatro vezes - disse Flávio dirigindo-se a ela.
Assustada Rosália respondeu:
- É que dona Anita assim exige, diz que o pó deve ser retirado cinco vezes ao dia.
Ele beijou a senhora já um pouco idosa e respondeu:
- Pois diga à dona Anita que não precisa tanta coisa assim, por hoje está bom, já pode descansar, cadê sua patroa?
- Chegou toda misteriosa da rua, telefonou muito e depois foi para o quarto, disse que assim que o senhor chegasse era para encontrá-la lá.
- Nossa! O que será que a minha senhora tem assim de tão importante para falar comigo? - disse num gracejo.
- Não sei, mas parece que é coisa séria.
Ele subiu a escadaria que dava para grande corredor. Era uma casa grande, que pensava em povoá-la de filhos seus com Anita; queria uns seis. Quando dizia isso à esposa ela não gostava, achava demais. Porém, no íntimo ela sentia que por Flávio faria tudo, até se sacrificar no tormento que seriam tantas gestações. O quarto do casal era o maior da mansão. Todos os quartos tinham sacada que dava para o jardim. Ao entrar no recinto ele encontrou Anita deitada na cama fazendo pose, trajando belíssimo vestido azul. Ele estranhou, a esposa não costumava se arrumar tanto sem que fosse a alguma festa importante. Olhou para ela e se emocionou com o que viu. Um fio tênue cor de prata estava ligado ao ventre de Anita, ele começou a chorar, correu e abraçou a esposa. Ela percebendo que o marido, com sua mediunidade já havia percebido, sussurrou-lhe ao ouvido:
- É isso mesmo meu amor, estou grávida. É a primeira criatura que vem através de nós.
- Sei disso querida, nosso lar foi bafejado pela bênção da maternidade. Que Deus te proteja nessa linda fase.
Eles começaram a se beijar repetidas vezes e logo depois entregaram-se ao amor que sentiam um pelo outro. Na cidade astral Campo da Redenção Carlota, Noel e Hilário juntamente com um grupo de técnicos estavam em séria reunião. Carlota perguntava:
- Não é arriscada uma intervenção desta maneira?
Hilário explicava:
- Toda reencarnação é prevista e aprovada pelo Criador, portanto tem sempre condições de dar certo. Contudo, todos têm livre-arbítrio. O que as pessoas fazem comprometendo a própria reencarnação é de responsabilidade apenas delas. Anita está com seis semanas de gestação, por enquanto o feto está sendo mantido por espíritos superiores, porém em breve o espírito de Camila se ligará a ele, renascendo no lar de Flávio. Essa será a chance de Camila santificar a antiga paixão que sente por ele. Vendo-o como pai e aprendendo a amá-lo respeitosamente terá a chance de sublimar esse sentimento.
Noel interveio:
- Entendo a preocupação de Carlota, também a tenho. Temo que Camila, uma vez reencarnada, volte a sentir a mesma paixão pelo ser que então será seu pai. Não sabendo gerir esse sentimento talvez cometa erros gravíssimos.
Um dos técnicos chamado Aramis respondeu:
- As reencarnações só ocorrem quando aprovadas por plano superior. Soubemos por mentor mais avançado que a hora é esta. Se assim é, Camila já tem a chance de vencer a sua prova. Se vier a falir é por sua própria escolha e por não dar o melhor de si.
Houve um silêncio, Hilário interrompeu:
- Creio estar encerrada a nossa reunião. A equipe de Aramis continuará a cuidar do feto que receberá Camila. Noel e Carlota deverão dar sustentação à família e apoiar mais uma vez Anita. Ela está muito feliz, porém sua gestação será complicada. Quando o espírito de sua rival entrar em contato com seu campo vibratório, ela entrará em depressão, começará a evitar Flávio, na tentativa inconsciente de afastar Camila de seu grande amor. Teremos muito trabalho, porém as bênçãos de Deus jamais nos desamparam. Vão com Jesus e que ele possa sempre estar do seu lado. A reunião encerrou-se. Noel e Carlota saíram pela praça principal ainda pensativos com tudo que ouviram. Juntaram-se a um grupo de pessoas que estava num banco e começaram um gostoso bate-papo.
17 – PRELÚDIO DA VOLTA

No dia imediato, Hilário novamente chamou Noel e Carlota à sua sala. Ao chegarem, ele os convidou para assistirem Camila em seus últimos momentos na Cidade do Desterro. Um monitor foi ligado e logo eles puderam ver o ambiente onde estava Camila. Na sala de Jorge ela dizia:
- É isso mesmo Jorge, há alguns dias estou sentindo uma sensação estranha, sinto-me inquieta, não consigo trabalhar na confecção das roupas, nem mesmo bater um papo com minha amiga Ester.
Jorge pareceu observá-la no mais fundo dos seus sentimentos e disse:
- Suas idas à crosta não têm resolvido esse problema? Geralmente, quando sugamos as energias das pessoas invigilantes e viciadas nos sentimos muito melhor.
Ela, muito melancólica, respondeu:
- Nem isso mais me anima. Não vou à crosta há quinze dias. Sinto-me sem vigor, parece que algo muito grave vai acontecer comigo.
Jorge já conhecia aqueles sintomas. Era sempre assim, muitas vezes seus súditos se sentiram depressivos, com vazio interior, demonstravam arrependimento pelos atos cometidos e desejo de melhorar. Ás vezes ele os mandava para a prisão e os castigava "fisicamente" machucando-os, o que resolvia a questão. Uma boa surra e uma palestra sobre as maldades do mundo eram suficientes para demover alguns dos bons intentos. Porém, para outros nem isso mesmo adiantava, eles ficavam estranhos, dizendo que algo de muito sério estava para acontecer e que eles não sabiam definir o quê. Pouco tempo depois eles desapareciam misteriosamente. Ninguém os encontrava em lugar algum. Teófilo, seu amigo, explicou:
- Isso tudo é culpa dos seres da luz. Quando eles percebem que alguém do nosso lado precisa reencarnar, fazem tudo direitinho, invadem nossas cidades e os levam. Não adianta montar guarda, eles entram imperceptíveis ao nosso olhar, driblam nossos melhores guardas e levam quem desejam. Infelizmente amigo, ainda temos essas limitações que com o tempo venceremos. Chegará a hora que nenhum servo do bem entrará aqui ou lá no Desterro sem nossa autorização. Veja como os filhos do Cordeiro são ousados, fazem o querem conosco e ainda saem vitoriosos. Mas tenho a esperança de que um dia o mal vencerá o bem definitivamente.
Relembrando esse diálogo, Jorge achou que Camila estava prestes ao reencarne. Não mandaria castigá-la, apenas disse:
- Aconselho-a distrair-se na crosta. Chame Ester e vá passear, sugar as libações do álcool, do cigarro e de outros vícios sempre faz bem. Tenho observado, você nunca mais fez maldade alguma. Depois que virou produtora de roupas, deixou de lado as práticas do nosso magnetismo. Acho que errei quando há deixei tanto tempo fora do serviço.
Ela perguntou:
- Acha mesmo que se voltar a trabalhar na produção de magnetismo ficarei boa?
- Por enquanto vá com Ester na Terra e divirta-se um pouco, se não melhorar terá que voltar à prática do mal.
Camila saiu em busca de Ester, foi encontrá-la em sua residência. Era uma casa de aspecto feio e sujo. As paredes eram pintadas de um rosa encardido. Ester abriu a porta e com satisfação viu que era a amiga:
- Que bom que veio, estava já entediada aqui sem meus filhos.
- Para onde foram Malaquias e Roque?
Ela, passando um pente sujo nos cabelos louros e crespos, respondeu:
- Estão em missão na Terra. No Tribunal da Justiça Jorge decidiu que um homem na Terra deve morrer numa briga de bar. Meus filhos foram para esse bar inspirar o algoz do homem a assassiná-lo friamente.
Camila, com rosto de quem ouve algo corriqueiro, disse:
- Ah, pensei que fosse algo sério! Vim aqui falar de mim. Sabe amiga, não estou mais me sentindo feliz como antes, aliás, aqui nunca senti alegria ou felicidade.
Ester retorquiu:
- Você sabe que a felicidade não existe, nascemos para sofrer mesmo! O que espera da vida? Vocês jovens têm tanta ilusão! Devemos agradecer a Jorge a chance de estarmos aqui, e vivermos com ele, que é tão inteligente.
- Você sabe que comecei a duvidar da inteligência dele?
A outra ficou chocada:
- Como assim?
- Fui contar o meu estado, mas parece que ele não sabe o que tenho. Foi curto nas palavras e pareceu estar me escondendo alguma coisa séria. Depois mandou eu ir a Terra gozar com você dos prazeres e só.
Ester defendeu Jorge:
- Não diga jamais que o Jorge não é inteligente. Vivo com ele há mais de 80 anos e nunca o vi errar. Talvez você não deva saber de alguma coisa, deve ser isso.
- Mas o quê? Sinto que algo terrível ocorrerá comigo, parece que a Terra está me puxando. Sinto que em breve passarei longo período por lá.
- Não diga besteiras, isso só poderá acontecer se você desobedecer ao Jorge e ele a expulsar daqui.
Ela pareceu concordar:
- É, talvez seja impressão boba mesmo. Agora vamos a Terra?
- Vamos sim, lá nos divertiremos e você espantará todos esses fantasmas.
Elas seguiram para a crosta e logo estavam numa rua na periferia de São Paulo. Era uma rua pobre, mas tinha um movimentado barzinho. Elas se aproximaram e lá encontraram várias entidades iguais a elas. Era manhã, porém já havia jovens e adultos no vício do álcool. Um dos jovens dizia:
- Galera, hoje o reggae aqui será da pesada. A turma lá da Rua 15 vem e vamos mandar bala nela.
Os outros jovens se animaram e começaram a gritar. Era um grupo de no máximo oito adolescentes e quatro adultos. Eles se referiam a outro grupo que chegaria para beber com eles e nos fundos do bar fazerem uma orgia. Alugavam esse quarto contíguo para praticarem a sexualidade irresponsável e o uso de drogas. Camila e Ester ficaram lá até a noite quando o referido grupo chegou. Ester, loucamente se colou a uma jovem e começou a saborear deliciosa bebida. Camila fez o mesmo. Quando saíram de lá estavam cansadas por tudo o que vivenciaram. Era madrugada e cada uma foi para sua casa. Camila ainda embriagada preparava-se para dormir quando de repente viu uma forte luz invadir seu quarto. Tentou abrir os olhos, o que conseguiu após muito esforço. A luz era forte e ofuscava sua visão. Vislumbrou um senhor de mais ou menos 60 anos que a olhava com profundidade. Perguntou:
- O que o senhor deseja? O que quer de mim? Nunca o vi aqui no Desterro, é morador novo?
Ele pareceu não ouvir e disse:
- Chegou sua hora minha filha. A o tempo de plantar e o tempo de colher. Acompanhe-me.
Ela assustada, porém confiante naquele homem disse:
- Vai me levar daqui? Mas eu não... Eu não posso sair, o Jorge me encontraria onde quer que eu fosse. O senhor não deve saber, mas aqui vivemos como escravos, há um tribunal onde ele julga as pessoas. Temo sofrer; para onde quer me levar?
Ele, muito sereno, explicou:
- Somos escravos apenas das nossas atitudes e pensamentos. Enquanto não os modificarmos no bem continuaremos a sofrer. Você está escrava por causa de suas ilusões, pensa que pode ser dona da vida e das pessoas. Acredita poder mandar e pensa que só o mal tem poder. Quanta ilusão! Só o bem é verdadeiro, o mal só existe para quem acredita nele. A partir de agora deverá ceder e vir comigo. O tempo urge e você deverá reencarnar em questão de poucos meses.
Ela abriu os olhos aparentando pavor e disse:
- Reencarnar? Quer dizer que isso é real, existe mesmo?
- Esse é um dos processos mais naturais da vida e você já passou por ele inúmeras vezes. Agora acompanhe-me.
Ela relutou:
- Não podemos sair daqui. Há guardas por toda a cidade. Aliás, como você entrou aqui sem ser visto? Se alguém souber que está em minha casa seremos severamente punidos.
Ele sem se perturbar revelou:
- Me chamo Hilário e moro numa cidade acima desta faixa chamada Campo da Redenção. É lá que viverá até renascer na Terra. Se aceitar, poderemos sair daqui sem que ninguém nos veja. Pela manipulação de certos fluidos podemos passar despercebidos pelo olhar de qualquer pessoa que vive aqui.
Ela parou, pensou um pouco, e disse:
- Não, não posso! Aqui sou livre, faço o que quero. Ouço dizer que nessas outras cidades tudo é limitado, não se pode fazer o quer. Aliás, vocês vão querer colocar em minha cabeça que o bem é bom, que praticar caridade dá alegria e nessas coisas eu não acredito. Além do que, estou interessada em separar um casal na Terra. Só seguirei com você se prometer que vai separar Flávio de Anita. O Jorge disse que não tem poder para interferir nessa relação, mas se você tiver vou com você. Hilário disse:
- Flávio e Anita estão unidos pelos laços do amor. Casais assim não se separam com facilidade, ninguém interfere num lar onde existe amor verdadeiro. Só o próprio casal na sua intimidade pode optar pela separação, que nesses casos ocorre sem maiores transtornos. Quem ama libera e dá plenitude ao ser amado para que ele se expresse e seja como é. Não acha que o que chama de amor é apenas paixão?
Ela pensou um pouco e respondeu:
- Não, eu amo o Flávio mais que tudo! Não suporto saber que me traiu e casou com outra.
Hilário jogou sua última cartada:
- Não podemos ajudá-la nesse plano, porém posso garantir que se seguir comigo lhe colocarei frente a frente com seu amor. Garanto que aqui com o Jorge isso nunca acontecerá.
Ela encheu os olhos de lágrimas e perguntou meio desconfiada:
- Promete mesmo? Jura que verei o Flávio, o beijarei, o abraçarei?
- Sim, então vamos?
Ele abriu os braços e ela o abraçou. Uma energia leitosa e branca os envolveu e eles saíram andando pela tenebrosa cidade. Os guardas pareciam distraídos e nada perceberam, algumas pessoas também passeavam durante a madrugada, mas não viram nem Hilário nem Camila. Depois de andarem alguns metros ele enlaçou-a pela cintura e assim volitaram para a cidade referida. Pararam na frente de imenso muro e pesado portão de ferro. A sua esquerda estava escrito Colônia de recuperação Campo da Redenção. Hilário introduziu uma espécie de cartão magnético, esperou alguns segundos e um painel se abriu num compartimento do muro. Ele colocou a mão aberta sobre o compartimento e o painel se iluminou. Camila percebeu que o painel registrou todas as impressões digitais de Hilário. Logo depois o portão se abriu e eles entraram. Camila estava estupefata com o que via. Imensos jardins floridos e verdes, bancos de madeira onde pessoas apesar da madrugada ainda conversavam. Eles andaram um pouco mais. Agora pisavam em rua com calçamento. De onde estava, ela via conjuntos de casas aos milhares perdendo-se de vista. Era tudo muito bonito, limpo e organizado. Carlota vinha chegando com seu sorriso, abraçou-a e curioso fenômeno aconteceu: as roupas que Camila usava mudaram de aspecto. Exótico vestido amarelo-claro surgiu, liso e vaporoso.
- Não se assuste amiga, aqui a maioria das roupas é plasmada na hora pela força do nosso pensamento. Vamos? O autobus nos espera.
Camila olhou para Hilário:
- O senhor não vai comigo? Vai me deixar aqui com essa estranha?
Hilário sorriu:
- O prédio onde resido é próximo da sua casa, durma, amanhã lhe farei uma visita e conversaremos melhor.
Meio desconfiada Camila seguiu Carlota. Quanto mais andava mais se admirava com a beleza da cidade, a organização e a limpeza. Chegaram em um ônibus um pouco diferente dos vistos na Terra. Entraram. Carlota sentou do lado da nova amiga e perguntou:
- Para onde estamos indo? Estou com medo e confusa.
Carlota disse:
- Esse autobus nos levará ao Conjunto Harmonia, onde graciosa casa a espera. Eu mesma, junto com Jane e Noel preparamos para você. Espero que esteja do seu gosto.
- Olha, para falar a verdade, estou muito desconfiada de vocês. Não sei se você sabe, mas nunca usaram a bondade para comigo, até minha mãe foi falsa. Por isso sei que vocês vão querer algo em troca. Sei não, uma casa pronta, roupas bonitas... O que quer de mim?
Carlota sorriu:
- Não seja injusta, você recebeu muita bondade quando estava na Terra, apenas preferiu olhar tudo pelo lado negativo. Teve um pai que a amou profundamente, uma vida boa e confortável, Flávio que a amou e Rafael também. Por que é tão ingrata?
Ela surpreendeu-se, nunca havia parado para pensar daquela forma.
- E as injustiças que recebi?
- Cada um recebe de acordo com o que irradia. Suas crenças e pensamentos foram os responsáveis por tudo o que vivenciou. A vida é maravilhosa, os seres encarnados é que invertem tudo.
- Quer dizer que o aborto que minha mãe me fez, o fato de ter perdido Rafael e morrido em plena juventude foi culpa minha? Não consigo entender.
- Em breve saberá como atraiu tudo isso em sua vida. Agora fique atenta, chegamos ao nosso destino.
A viagem não durou nem dez minutos. Elas desceram e Camila se encantou com a bela casinha que haviam lhe reservado. Era pequena, porém graciosa. Um hall na entrada e pequeno jardim. Por dentro era iluminada e tinha uma sala, um quarto, um banheiro e um cômodo para refeições. Ela estava encantada. Carlota se despediu e ela entrou no quarto. Era muito simples com janela, guarda-roupas, criado-mudo e um espelho. Olhou-se admirada: seu rosto estava sem a pesada maquiagem que costumava usar. Onde estava seu estojo? Abriu o guarda-roupas e não o encontrou, porém lá havia muitas roupas de vários estilos. Sobre o criado-mudo havia uma bandeja com suco e pães. Ela comeu e logo depois um torpor a invadiu. Na cama, rapidamente adormeceu. Hilário via tudo pelo monitor, juntamente com Carlota, e disse:
- Certamente, amanhã será um dia de desafios para ela. Descobrirá seu passado, saberá como atraiu tudo o que vivenciou sobre a Terra e talvez se revolte. Mas a compreensão e o amor divino a estarão amparando.
- Ela terá que enfrentar a própria realidade para poder partir segura, tentando vencer a paixão que ainda sente pelo Henrique; já sofreu muito por esse amor desenfreado.
- Não só ela como também Anita, que saiu muito prejudicada da última vez.
- Vamos orar, pedindo a Deus por todos, só com a força Dele conseguirão vencer.
O grandioso salão estava iluminado e preparado para a primeira palestra. A reforma durou o tempo necessário e não houve atrasos, tudo saiu como Flávio desejou. Na frente do grande palco havia 300 cadeiras, todas numeradas. A noite estava agradável e Flávio alegre percebeu que a maioria dos convidados estava presente. Francisca, ansiosa para começar a aprender, estava na cadeira número 1 ao lado de Anita, que agora mais do que nunca considerava o marido uma estrela. Flávio, muito organizado, havia enviado convites para todos os centros espíritas, casas comerciais, colégios, pessoas conhecidas da família e outras tantas que poderiam se interessar pelo evento. Nele estava escrito: O Centro de Estudos Espirituais Luz no Caminho convida você para uma palestra onde assuntos como auto-ajuda, espiritualidade, amor-próprio e mudança interior serão tratados. Você terá a partir de hoje um lugar para buscar uma vida melhor com orientação espiritual de terapeutas e médiuns capacitados. Não perca nossa palestra inaugural. Muita paz, do amigo Flávio de Menezes Tudo foi feito com muito carinho e assim o resultado foi o esperado. O espaço reservado lotou. A cortina se abriu e Flávio apareceu. Muito feliz e concentrado ele começou:
- Queridos amigos, hoje é o dia mais feliz de minha vida. Juntos nesta casa, estudaremos os valores eternos do espírito, trabalhando em favor do nosso progresso espiritual. Vejo a luz que cada um irradia e sinto a ânsia e a necessidade de aprender para construir uma vida melhor e conquistar a felicidade. Vamos começar perguntando:
- Como andam suas mentes? Quais são seus pensamentos habituais? Como está sua vida? Você é feliz? A resposta da maioria será negativa, e não é difícil perceber isto. Basta parar, olhar em volta para ver a quantidade de amigos, parentes, vizinhos, com problemas dos mais variados: é a queixa de que a saúde não anda boa, de que a vida afetiva está um fracasso, que o dinheiro é escasso, que as pessoas são falsas, etc. Vocês mesmos que estão ouvindo agora estas palavras não estão felizes. Se estiverem, parabéns, vocês souberam apertar os botões certos e suas vidas estão seguindo o rumo das realizações. Porém, o que mais se vê são pessoas com problemas. Os consultórios psiquiátricos e psicológicos andam cheios de criaturas querendo sair do círculo horrível do negativismo onde elas se colocaram. É claro que foram elas! Somos responsáveis por tudo quanto nos acontece. Não há nada em nossa vida que não tenha estado primeiro em nossa mente e em nosso coração, de uma forma ou de outra.
- O sábio Juvenal disse: "Mente sã corpo são, mente doente corpo doente". Com toda certeza esta sabedoria demonstra sua verdade. Não há nada pior do que uma cabeça ociosa e vazia. Vazia de idéias boas, vazia de alegria, vazia de aventura, vazia de divertimento, vazia de sabedoria. Nosso demônio interior e os demônios exteriores começam a trabalhar de forma sorrateira e vamos perdendo dia após dia a alegria de viver. Quando vocês virem uma pessoa desanimada, frustrada, sem vida ou cometendo absurdos, pode ter certeza: ela está com a cabeça vazia de bons pensamentos, mas ocupadas com idéias negativas. Vocês podem protestar e dizer: "É mentira! Eu trabalho, estudo, corro feito um condenado, minha mente é muito ocupada, mesmo assim ando tão pra baixo..." É claro que anda e vai continuar a andar, piorando a cada dia. É que as pessoas cultivam a ilusão de que o trabalho, o estudo, a vida agitada e corrida preenchem o vazio interior. Cedo ou tarde perceberão que estão enganadas. É claro que essas coisas são importantes, mas o alimento que preenche a alma é outro, e ele não é encontrado nas coisas exteriores. As estatísticas revelam que o suicídio, a depressão, o vazio interior acontecem em todas as classes sociais, mostrando claramente que a condição financeira é o fator menos importante. Acontece com as pessoas empregadas e com as desempregadas, mostrando também que a falta da ocupação externa não é a causa.
- Vamos procurar entender: Não estou querendo dizer que o trabalho de nada vale, é claro que ele é importante. Quando se está bem, alegre e feliz, o trabalho rende e é uma maravilha, nossa produção aumenta, atraímos energias astrais que intensificam nosso entusiasmo e nem vemos a hora passar. O contrário se dá quando estamos de mal com a vida. Se pudéssemos nem levantávamos da cama, trabalhar então? Nem pensar! Você já observou quando um funcionário trabalha com problemas? Há irritação, nervosismo, preguiça... Acontece o mesmo com o estudo. Se estivermos de bem com a vida, estudaremos felizes e realmente aprenderemos. Se estivermos mal, de nada valerá o estudo. Não se iluda procurando fora de você soluções para seus problemas. Tudo o que você precisa para ser feliz está dentro da sua alma.
- Preencham suas cabeças de forma verdadeira e jamais sentirão vazio. Mas, o que vem a ser o verdadeiro preenchimento? É viver de acordo com a sua natureza mais profunda, valorizando seus sentimentos, ficando no bem. Vocês têm a vida íntima que gostariam de ter? Sua vida amorosa, familiar e sexual está como pede seu coração? Vocês se conhecem o suficiente para saber o que realmente querem da vida? Suas amizades são aquelas que satisfazem seu espírito? Seu sim é sempre sim e o não sempre não? Vocês já descobriram sua verdadeira vocação? Vocês se aceitam integralmente como são? Aceitam seus defeitos com naturalidade buscando melhorar e reconhecer suas qualidades? Já aprenderam a aceitar o ser humano que há em cada pessoa que convive com vocês? Deixaram de criticar, de ter complexos de superioridade e de inferioridade? Aceitam que a vida é livre e incontrolável e já sabem se adaptar aos seus ciclos? Já baniram por completo a inveja de seus corações? Deixaram de desejar o mal ao próximo? Já perceberam que vocês não são melhores nem piores que ninguém?
- Se responderem não a apenas um destes itens, fica claro que é preciso mudar. Ocupar a mente com coisas positivas. Descobrir seu mundo interior onde Deus colocou todas as respostas mostrando o caminho para seu progresso espiritual. Cumprir sua função na Terra, trabalhando, estudando, cuidando da família, do progresso do planeta é um dever para com a vida, que nos dá a oportunidade de aprender aqui. O dever cumprido nos ajuda a encontrar a paz. Mas a realização do nosso espírito, a conquista da felicidade está dentro de nós, no desenvolvimento de nossos potenciais e na maturidade do nosso espírito.
- Se você quer a felicidade terá que conquistá-la passo a passo, aprendendo a lidar de forma adequada com todas as situações da vida. Nesse processo, cada um é um e o que serve para mim, talvez não sirva para você. Entre dentro de você e tente descobrir como conquistar a sua felicidade e nesta casa, juntos, auxiliados pelos amigos espirituais, vamos procurar encontrar o próprio caminho.
Assim que a palestra acabou Flávio deu avisos importantes. Falou que o Centro funcionaria todos os dias da semana ficando as segundas-feiras para o tratamento de desobsessão, as terças para as palestras educativas e de auto-ajuda gratuitas, as quartas para o curso de educação mediúnica. Nas quintas-feiras haveria o curso pago com o título "Prosperidade", sexta e sábado seria outro curso o "Poder da Mente e Metafísica" e um domingo por mês haveria o curso também pago sobre "Saúde e Doença". Ele também avisou que todos os interessados deveriam passar na portaria, dar seu nome e endereço, confirmando os preços de cada curso. Os nomes das pessoas em estado de obsessão seriam colocados por uma secretária numa agenda, e Flávio submeteria cada nome à consulta com os guias espirituais, para saber se o tratamento seria a distância ou com o paciente no próprio Centro. Explicou também que cada caso é um caso e que só os mentores de elevada hierarquia dariam a última palavra no tratamento. Terminou dizendo que a desobsessão às segundas-feiras seria fechada e iniciaria as oito em ponto, mesmo assim a equipe treinada e disciplinada atenderia os casos especiais que necessitassem de socorro urgente. Essas pessoas devem chegar ao Centro quinze minutos antes de a porta fechar.Agradecendo a presença de todos, Flávio encerrou a reunião. Em seguida, foi rodeado por muitas pessoas que satisfeitas, foram cumprimentá-lo. Naquele dia, Flávio sentiu que finalmente estava exercendo sua vocação, fazendo um trabalho que lhe dava imensa realização interior.

18 - AJUDANDO O CÉU

No Centro de Estudos que Flávio dirigia com carinho e amor realmente prosperou. A princípio poucas pessoas freqüentavam seus cursos, porém com o passar do tempo a freqüência foi aumentando para a felicidade dele. Poder passar tudo o que havia aprendido com os mestres era um prazer indescritível. Agora entendia por que não se dava bem com os trabalhos que fazia, é que sua real vocação, seu real desejo ainda não tinham se tornado claros para ele. A renda de seus cursos a princípio era mínima, todavia ele não desanimava. Porém, o trabalho que mais lhe dava prazer era a desobsessão. Apesar de não ser num Centro Espírita propriamente dito, esse trabalho vinha dando frutos, principalmente no seu próprio lar, onde terrível processo se instalou. No terceiro mês de gravidez, Anita começou a se sentir muito mal. Desmaiava e demorava a acordar. Os médicos tranqüilizavam Flávio, dizendo se tratar de sintoma passageiro, já que ela não tinha nenhum problema físico. Realmente passou. Anita não desmaiou mais, porém estranha sensação a acometeu. Passou a rejeitar o marido e a sentir raiva dele. Ela que sempre fora amorosa estava transformada, evitava qualquer contato com ele por mínimo que fosse. Tudo aconteceu muito rápido. Camila se adaptou facilmente à nova vida com os amigos Noel, Carlota e Hilário. Todos os dias cobrava a promessa que lhe fizeram: veria Flávio e poderia até abraçá-lo. Assim foi feito. Saindo do corpo ele viu Hilário à sua frente.
- Flávio, há uma pessoa que te ama muito e precisa te ver. Embora não esteja autorizada a falar muitas coisas, se contenta apenas com um abraço terno e amoroso vindo de você.
Flávio pensou por alguns instantes e disse:
- Será quem eu estou pensando? Será Camila? Nesses seis anos de desencarnada nunca consegui obter nenhuma informação sobre ela. Por quê?
- Você sabe que nem todas as informações do plano espiritual podem ser passadas aos encarnados. Existe por aqui um controle para certas informações e só na hora exata elas são transmitidas. Ê imperioso que o homem ignore certas verdades para que possa viver em equilíbrio.
- Sei disso, mas é que a amei demais, gostaria de saber se está bem.
Nessa hora um vulto surgiu em sua frente e foi se corporificando. Era Camila. Estranha emoção o acometeu ao olhar seus olhos. Ela não conseguiu conter as lágrimas. Correu e o abraçou, beijou-o repetidas vezes no rosto, transmitindo tudo o que sentia. Ele estava estático, não sabia como agir. Perguntou:
- Você está bem?
- Agora mais do que nunca, pois estou perto de você. Mesmo sabendo que já se casou, não consigo deixar de te amar.
Ele respondeu:
- Além do casamento, estamos separados por uma faixa energética, mas fico feliz ao saber que está bem.
Ela disse:
- Muitas coisas ocorrerão em meu destino. Eles dizem que tudo é para o melhor, porém estou com medo, desejo ficar do seu lado para sempre. Você me transmite paz e segurança.
- Nunca estaremos realmente separados, o pensamento é energia viva e onde quer que eu esteja estarei também pensando em você.
Ela sorriu:
- Estranho. Nem a morte consegue acabar com um amor quando ele é verdadeiro. Gostaria de saber se Anita vai um dia liberar você para mim.
- Não pense no futuro. Cuide de você, aprenda a viver melhor, siga o destino que Deus agora te reserva. Um dia quem sabe poderemos nos unir em melhores circunstâncias. Naquela época eu era um adolescente inexperiente, com medo da vida, órfão. Você estava revoltada, se agredia, por isso morreu daquela forma. Quem se trata mal, agride-se ou ao seu semelhante e está sempre apto a morrer também de forma violenta. Modifique-se para que numa próxima existência viva melhor.
Ela não se conteve:
- É que vou renascer na...
Hilário rapidamente lançou uma energia cinza, que paralisou sua voz. Olhou para Flávio e disse:
- Infelizmente filho, deverá esquecer o que ouviu aqui. Ainda não pode lhe ser revelado que Camila será sua filha. – Dizendo isso lançou em Flávio uma energia violeta que o fez adormecer e levou-o de volta ao corpo.
Quando ele acordou lembrou-se de tudo com nitidez, menos da parte final que não estava clara em seu cérebro. O que Camila havia dito mesmo? Não se recordava. Intimamente agradeceu a Deus aquele encontro e por saber que ela estava bem. Porém, Camila não se conformou. Cada dia que passava, ligada a Anita pelos laços do reencarne, ela sentia um ódio surdo brotar de seu peito. Ela não merecia ficar com o amor de sua vida. Iria acabar com a vida dela. Hilário foi ao seu encontro:
- Minha filha, se continuar assim será obrigada a deixar esta estância de paz e refazimento. Suas energias negativas a levarão para a Terra e seu reencarne se dará em circunstâncias não muito boas para você. Com seu livre-arbítrio poderá optar agora pela felicidade de uma nova vida ou entrar na mesma, cheia de ódio, e sofrer as conseqüências.
- Por que só dão razão a ela? Não vê que Anita é o único empecilho para que eu ame o Flávio? Ele pode sair do corpo e se ela morrer ele poderá vir se encontrar comigo todos os dias para sermos felizes.
- Não seja tão ingênua filha. As leis que regem os diferentes planos são rígidas. Mesmo que Anita desencarnasse, Flávio não poderia vir aqui para estar com você, ele tem uma sagrada missão na Terra e a tem desempenhado bem. Deus não permitiria que isso acontecesse.
- Que Deus é esse que me deixa longe do meu amor?
Ele pensou e resolveu:
- Vou lhe dizer tudo para que possa raciocinar melhor e decidir. Só daqui a algum tempo você terá acesso a certas informações, antes de sua total inconsciência devido à reencarnação. Porém, suas energias pedem uma solução para seu conflito e antes que acabe comprometendo a gravidez.
Ela se irritou:
- Que verdade é esta que vivem falando em segredo? É você, é Carlota, são todos que vêm com esses mistérios e não dizem nada, já estou ficando irritada.
- O que você chama de mistério é todo o drama que envolve sua vida passada com Flávio e Anita. Chegou a hora de rever.
Ela, meio incrédula, seguiu Hilário que a levou até o parque dos lagos. Sentaram à beira de um deles e de suas águas começou a surgir uma imagem. Era o ano de 1756, época em que certas doenças não tinham cura, a lepra era uma delas. Um casarão antigo no leste de Minas Gerais servia de leprosário. Em meio a todos aqueles doentes havia um jovem de rara beleza que estava lá como voluntário cuidando de feridas. Enquanto fazia esse serviço um negro entrou no quarto e o chamou:
- Sinhozinho Henrique, sinhá Helena está lhe chamando lá fora.
Ele pareceu se irritar dizendo:
- O que ela veio fazer aqui? Sabe que estou trabalhando e não gosto de ser interrompido.
- Num sei sinhô, mais ela disse que lhe fala com urgência.
Henrique deixou o doente e saiu. Foi encontrá-la em rica carruagem, já na estrada, um pouco longe do leprosário.
- O que quer aqui? Sabe que não gosto de ser interrompido quando trabalho.
Helena fingiu não perceber o desagrado e falou:
- Vim trazer um recado urgente de seu pai. Ele ordena que volte para a fazenda o quanto antes, diz que um rapaz como você não deve ficar aqui cuidando de doentes. Se não obedecer mandará você de volta à França.
Henrique ficou contrariado:
- O que tem de mais um rapaz como eu? Só porque sou filho de fazendeiro e estudo fora não sou melhor do que ninguém.
Ela replicou:
- Você não se olha no espelho? Não vê as formas que tem no rosto, no corpo? Não vislumbra sua magnífica origem? Não pode e nem deve ficar aqui com esses malditos leprosos.
Ele se deixou dominar pela indignação:
- E você o que tem que ver com isso? Por que veio ser a mensageira de meu pai? O Antônio poderia vir sozinho, porém mais uma vez está tentando guiar minha vida. Quando começamos a namorar, eu não a conhecia direito, não sabia que você era tão mesquinha. Por isso, tudo terminou e não tem volta.
Ela abriu elegante leque e disse entre dentes:
- Vim porque quero constatar o que lhe prende aqui. Sei que não são esses míseros doentes. Deve ter uma mulher no meio disso. Ela deve estar fazendo sua cabeça. Se eu descobrir...
Ele irritou-se:
- Deixe-me em paz, vá embora e avise meu pai que só sairei daqui quando o trabalho terminar.
Ela vencida e lançando um olhar vingativo, já ia embora quando uma jovem de especial beleza saiu da casa. Trajava uma espécie de avental e tinha um lenço na cabeça. Ela ingenuamente aproximou-se da carruagem e dirigiu-se a ele:
- Henrique, terminei meu serviço de hoje, partirei imediatamente para casa antes do pôr-do-sol. Vim lhe avisar que aquela família piorou bastante. Depois que o senhor saiu à mãe começou a ter delírios e os filhos clamaram chorando muito. Mas o pai... Esse não passa de hoje.
Henrique fez um ar triste e disse:
- Obrigado Anete, sei que tem se esforçado muito, mas quando chega à hora, só a fé em Deus pode nos amparar. Permita que a leve para casa. O sol já se escondeu de todo no horizonte.
Pelo semblante de Helena passou um vislumbre de ódio. Então era ela, era ela a mulherzinha que ousava roubar-lhe Henrique. Pois ela sentiria o peso de seu ódio.
Henrique virou-se para o escravo e disse:
- Antônio, leve a Helena daqui, ela pode se contaminar e eu não desejo sentir-me culpado por isso. - Virou-se para ela. - E você pense em tudo o que falei. Esqueça-me, procure casar e ser feliz com outra pessoa, é o melhor que pode fazer por você mesma.
Ela estava irada:
- O quê? E ainda tem coragem de falar isso na frente desta mulherzinha? Veremos. Você vai ser meu, custe o que custar!  A carruagem saiu em disparada e logo desapareceu na curva da estrada.
Anete, sempre respeitosa e temerosa, perguntou:
- Do que ela me culpa? Sinto que me olhou com desdém e ódio apesar de eu nada ter feito para ela. Tenho medo de estar me envolvendo com pessoas dessa estirpe. Sou filha única, não tenho pai, desejo ver-me livre de qualquer confusão.
Henrique, que já a amava sinceramente, procurou contemporizar:
- Essa mulher foi minha noiva durante dois anos, apesar de a pressão de minha família, nunca me casei, por não ter certeza de que a amava. No começo, nossa relação foi muito boa, andávamos muito unidos, mas depois ela passou a ter um ciúme exagerado de mim, a me tratar como posse. Desde esse dia comecei a desconfiar que não a amava de verdade. Essa idéia tomou conta de mim e passei a me sentir indigno por estar com alguém a quem não amava de verdade. Rompi a relação, porém ela continuou obstinada a me reconquistar. Isso tornou-se uma verdadeira obsessão para Helena, e eu lhe digo: fique tranqüila, nada de mal vai lhe acontecer, eu a protegerei.
Dizendo isso Henrique tomou-a pelo braço e juntos iniciaram uma caminhada. Feliz, mais uma vez ele levaria aquela bela enfermeira que tão amorosamente dedicava-se a cuidar de leprosos. Certamente, o amor morava em seu peito. As imagens nas águas do lago apagaram-se. Camila chorava sem parar. Hilário a confortava:
- Eu sei filha, que a consciência culpada costuma cobrar um tributo muito caro para aqueles que ainda não aprenderam a evoluir pela lei do amor. Porém, tudo isso já passou há séculos, é hora de seguir adiante.
Ela comentou entre lágrimas:
- Lembrei, lembrei de tudo. Desde aquela época como Helena já era fútil, vaidosa e egoísta. Não soube perder e por isso muito errei. Henrique hoje é Flávio e continua com seu trabalho de amor pelas pessoas. Anete é Anita, a inimiga que tanto odiei. A família que Flávio tratava com tanto amor naquele leprosário eram os Carbajaua que atualmente são Ângelo, Érica, Marina e Cristiano. Mas eu quero ver tudo até o fim, preciso saber o que fiz depois, não posso mais me esconder no véu do esquecimento.
- Tem certeza de que está preparada?
- Sim, preciso saber quem sou e a causa de tudo que experimentei nessa vida presente.
O lago voltou a iluminar-se e novas imagens começaram a surgir:
A carruagem ia depressa, enquanto Helena pensava: "Preciso destruí-la. Sei que é ela. Vi o jeito que ambos se olharam. Ele me troca por qualquer, mas isso não ficará assim". Nessa hora duas sombras escuras colaram-se a ela com prazer. Quando Helena chegou na Fazenda Florença, tratou de fazer uma péssima imagem de Henrique para o pai. Semeou na mente do coronel Epifânio que o filho estava prestes a se contaminar da doença horrível e que estava se envolvendo com uma mulherzinha qualquer, sem nome ou moral. O coronel ficou irado e decidiu que no outro dia procuraria o filho e o traria de volta, custasse o que custasse. Pela manhã do outro dia foi procurá-lo. Assim que estava frente a frente com o filho, bem longe do local doentio, ele falou:
- Meu filho insano! Voltará pra casa hoje e comigo, assim eu exijo.
- Não voltarei, tenho um trabalho, uma missão para realizar aqui com esses doentes e não vou, nem que me deserde.
- Filho! Ouve teu pai! Sua mãe chora dia e noite lembrando que você está aqui exposto ao contágio de uma doença ruim, se é que já não está doente. A Fazenda Florença não é mais a mesma sem você, sem seu brilho, sua inteligência...
- Preciso ficar aqui, vocês não entendem... Eu quero, sinto-me bem prestando serviço a quem sofre!
O pai se comoveu, mas foi firme:
- Não adianta tentar me enganar, você pode até gostar do que faz aqui, mas o que lhe prende mesmo é uma mulher, uma enfermeira da casa.
Henrique se contrariou:
- Como sempre a Helena interferindo no destino dos outros e querendo levar o senhor na conversa. Não percebe o jogo que ela está fazendo? A Anete é apenas uma das enfermeiras daqui, tenho muito respeito e carinho por ela, mas é só.
- Espero que seja mesmo. Já vi que não conseguirei levá-lo comigo. Mas uma coisa eu aviso: você não manchará a honra de uma família nobre como a nossa, casando-se com qualquer.
Dizendo isso se foi. Henrique triste e decepcionado com o pai começou a chorar. Anete se aproximou:
- Nossa, sua família de ontem pra cá começou a lhe procurar mesmo. Não acha melhor desistir daqui e voltar para os seus? Há seus estudos em outro país e com isso nenhum pai pode concordar: um filho deixar de estudar para cuidar de doentes.
Ele enxugou uma lágrima teimosa e respondeu:
- Estou de férias, posso ficar aqui à vontade. Não há motivos justos para nos desviarmos do trabalho do bem, vou ficar!
Anete corou de prazer:
- Você é determinado, gosto de pessoas assim.
Ele respondeu:
- Você também é determinada e corajosa. Não é qualquer uma que se torna enfermeira de um lugar como esse, estamos correndo sério perigo de contágio.
Ela corou ao dizer:
- Por você eu perco qualquer medo.
Henrique sentiu a declaração de amor e aproveitou:
- Sinto-me muito bem ao seu lado, gostaria de tê-la como esposa, gosto muito de você.
Ela, que não esperava que as coisas caminhassem tão rápidas, sentiu-se vitoriosa:
- É tudo o que eu mais queria: ser sua mulher, cuidar de você, estar ao seu lado...
Eles se beijaram com paixão. De repente, uma senhora enrugada, surgiu na porta e gritou:
- Henrique! Anete! Corram, seu Paulo agoniza.
Eles interromperam a manifestação afetiva e correram para o interior do leprosário. Numa cama simples, um homem chegava ao fim de sua jornada terrestre vítima do bacilo de Hansen. Trabalhando durante semanas com ele, Henrique sentia-se apiedado diante de sua própria impotência. Ver um ser humano morrendo envolto em farrapos, sem os dedos, sem as orelhas e o nariz era muito penoso. Nessa hora ele não entendia a bondade de Deus e até questionava se Ele realmente existia. O velho olhou para o semblante lindo do rapaz e olhos nos olhos, iniciou agonizante:
- Filho, não sei como poderei um dia te agradecer por tudo o que tem feito por mim, se não fosse por sua bondade, não teria o alívio que tive. Que Deus te abençoe. Parto deste mundo, mas vou confiante que a minha família ficará nas mãos de um anjo.
Em três leitos no mesmo quarto, três pessoas em estados cadavéricos choravam. Elas faziam parte da família de Paulo. Era sua mulher, sua filha e seu filho. Todos moravam juntos e a vida era boa, até que contraíram a doença e foram expulsos de casa pelos vizinhos. Henrique sempre que estava de férias, procurava uma dessas casas de doentes tão comuns na época, para prestar auxílio. Quando viu chegar à família de leprosos ele a acolheu e a tratou. Porém, sentia que perto da vida ele era completamente impotente. Começou a chorar. A freira Veridiana rezou uma espécie de extrema-unção, e logo depois puxou Henrique pelo braço, que chorando se abraçava ao cadáver. Veridiana muito serena afirmou:
- Este não é o primeiro, nem será o último que morrerá assim, é preciso entender que é necessário, Deus muitas vezes sublima o homem pelo sofrimento, acredite, Ele só faz o melhor.
Henrique enxugando as lágrimas discordou:
- Não posso admitir uma coisa dessas, se eu fosse Deus, teria curado todos!
- Não blasfeme! Querer ser Deus é um sacrilégio dos piores. Ele cuida de todos nós da forma Dele e com certeza é a mais correta.
- Irmã Veridiana, acredita que essa doença algum dia poderá ter cura?
- Sim! Um dia, quando a vaidade for exterminada da Terra todos alcançarão a cura não só deste como de muitos outros males. A vaidade cobra um preço alto para quem a cultiva.
Henrique ficou curioso:
- Acredita que uma doença pode vir por causa da vaidade? Então Deus está dando um exemplo de que a vaidade é um mal?
- Meu filho, muita coisa ainda vamos aprender, porém eu tenho observado como a natureza age e descobri há muito que a causa das doenças reside no padrão espiritual da pessoa atingida. Se ele é lealmente elevado nada as atinge, porém se é um baixo padrão cultivado por vaidades, crimes, arrogância, orgulho, egoísmo e tantos vícios horríveis que a humanidade cultiva, certamente ele adoecerá. Não é à toa que se vêem tantos doentes pelo mundo.
Henrique acalmou o coração. Aquela freira tinha algo diferente das demais. Quando falava, seu rosto mudava de expressão, parecia que o olhar perdia-se num ponto distante e até a voz modificava-se um pouco. Apesar de ele estudar muito a ciência terrena nunca tinha conseguido entender certos porquês da vida.
O corpo foi jogado numa vala onde jaziam outros corpos já delidos. Henrique continuou cuidando do resto da família com desvelo e amor, porém viu um a um ser chamados pela morte. Chorava a cada acontecimento deste. Logo depois do pai foi à vez de Matilde, uma moça ainda jovem e depois José o mais novo. Por último se foi dona Eulália, a que mais sofreu. Hilário parou as imagens para dar algumas explicações necessárias. Virou-se para Camila e disse:
- Aquela família que Henrique tanto se afeiçoou foi mais tarde Solano, Zuleika, Marina e Eduardo Carbajaua. Não conseguindo vencer os impulsos negativos continuaram na delinqüência e no preconceito, até que desencarnados e sob a orientação de Henrique conseguiram reencarnar. Eles foram no Brasil Ângelo, Érica, Marina e Cristiano. Henrique renasceu para cumprir uma missão e ajudá-los. Foi chamado de Flávio.
Camila interrompeu:
- Lembrei-me de tudo! Como fui egoísta! Quando Henrique voltou para os estudos, o pai dele foi procurado pela mãe de Anete, contando que ela estava grávida e que o filho seria seu neto. Eu, que morava em fazenda vizinha, e sempre estava por perto, acabei presenciando a cena e disse ao velho Epifânio que se tratava de um golpe daquela mulher, que jamais Henrique teria um filho com qualquer. Porém, ele não acreditou e foi procurar Anete.
Lá chegando ela mostrou as cartas que recebia de Henrique e a última em que ele demonstrava toda a felicidade em ser pai, orientava também que Anete e a mãe procurassem por Epifânio, pois com certeza ele não as deixaria desamparadas. E foi o que o velho fez, além de acreditar em tudo o que elas disseram,por causa da gravidez deu-lhes dinheiro para que arcassem com as primeiras despesas. Fiquei furiosa e tramei a morte de Anete. Contratei um capanga que matou ela e a criança com três tiros. Henrique quase enlouqueceu, porém a freira Veridiana hoje a médium Margareth da Inglaterra o consolou e ele acabou seus dias como padre, entregue ao sacerdócio religioso. O capanga que hoje sei tratar-se de Rafael apaixonou-se por mim e acabamos mantendo um romance. Para todos eu era uma solteirona virtuosa, porém às escondidas mantínhamos um relacionamento, até que acabei o traindo com um capataz da fazenda e terminei morta por ele que me pegou em flagrante. Como errei, como tenho errado!
Fez uma pausa, olhou para Hilário e continuou:
- Agora entendo tudo o que passei nesta última encarnação. Assim como fui preconceituosa com Anete que era pobre, senti na pele o peso do preconceito ao me apaixonar por um negro. Matei uma pessoa grávida e senti meu filho ser retirado de forma horrível de meu ventre, e para completar, morri com tiros, assim como outrora matei alguém. Essa foi à vingança divina.
Hilário sério retificou:
- Você está enganada, Deus não castiga ninguém, muito menos se vinga ou se sente feliz com o sofrimento humano. Você atraiu tudo o que vivenciou por ter continuado no mesmo padrão de pensamento do passado. A lei de Talião só é usada em último caso.
Antes Deus procura alertar as pessoas de várias formas para que elas aprendam pela lei do amor. A lei do carma não é usada para punir, mas para proporcionar aprendizado e evolução. O motivo maior da vida humana é seu caminhar rumo à perfeição e infelizmente você para chegar até ela tem escolhido caminhos tortuosos. Ela não conseguia acompanhar o raciocínio de Hilário.
- Estou confusa. Se não fui punida, por que eu vivenciei todo esse drama? Afinal, já estou bem melhor espiritualmente.  Ele sorriu ao dizer:
- Não existe alguém bom sofrendo, pode ter certeza. Se a pessoa estiver realmente arrependida do mal que fez, reconhecer que é a única responsável pelo que lhe aconteceu e procurar ficar no bem, terá condições de modificar o seu destino e ter uma vida melhor.
- Aparentemente você havia melhorado, mas bastou um golpe da vida para provar que você continuava igual. Em pouco tempo passou a se tornar vingativa, vestindo-se de forma agressiva para provocar sua mãe, sem contar os vícios nos quais se embrenhou. Quando conheceu Flávio, mais uma vez deixou-se levar pela paixão. Quando foi alertada de que ele não ficaria com você, logo fez um pacto com um pai-de-santo para segurá-lo a todo custo. Quis violentar a vida mais uma vez e a violentada foi você. Como vê, não existe punição, apenas aprendizagem.
Hilário fez uma pausa e prosseguiu:
- Antes de renascer você prometeu que mudaria. Para isso lhe foi concedida poderosa mediunidade e ao lado de Flávio faria belo trabalho a favor do bem. O encontro amoroso de vocês seria inevitável, porém com o tempo Flávio perceberia que não a amava e terminaria o vínculo afetivo que ambos tinham. Você deveria aceitar e procurar ser sua amiga. Com o tempo novos amores viriam e você teria a chance de escolher. Anita apareceria na hora exata concretizando o casamento que foi interrompido por você anteriormente.
Como amiga do casal a vida lhe daria chances de redimir os seus erros, e unida a Flávio no trabalho da mediunidade fraterna teria chances de saber como a vida espiritual funciona e com isso conquistaria o equilíbrio. Porém, você preferiu seguir as intuições perversas, como sensitiva captava facilmente as energias de espíritos alcoólatras e viciados e perdia-se cada vez mais. Nem o encontro com Flávio conseguiu modificá-la. Você criou todo o seu destino. Camila chorava muito, só agora percebia que foi a única responsável por tudo que ocorreu na sua vida. De nada adiantava o desespero, mais do que nunca percebeu que Deus agia pelo melhor e que tudo era para um objetivo elevado. Naquele instante desistiu de imantar Anita com vibrações de ódio, devia-lhe a chance de uma nova vida. Aceitaria ser sua filha, tentaria amá-la e provar para si mesma que tinha se tornado um espírito melhor. Hilário abraçou-a pela cintura e juntos seguiram para o grande salão de prece da colônia. Anita, que era sempre amorosa e dedicada a Flávio, passou a rejeitá-lo sem nenhum motivo. Trancava-se no quarto e evitava recebê-lo. Ele logo percebeu que era influência espiritual; se levasse ao médico ele suspeitaria alguma enfermidade nervosa, o que Flávio sabia ser improvável naquele caso. No princípio, Anita sentia as ondas negativas vindas de Camila, porém depois que ela reviu o seu passado ao lado de Hilário, deixou de perturbá-la, mas outros espíritos aproveitaram-se da fragilidade emocional da gestante e continuaram fazendo o trabalho perverso que antes Camila fazia. Naquela tarde, Flávio mais uma vez bateu na porta do quarto da esposa, decidido a levá-la ao Centro para tratamento espiritual. Em transe, ele comunicou-se com Hilário, que disse se tratar realmente de obsessão, indicando-lhe o tratamento para aquela mesma noite, solicitando urgência. Flávio continuava batendo insistentemente na porta e Anita gritava:
- Deixe-me em paz! Volte para aquele lugar, aliás a coisa que você mais ama na vida.
Ele paciente tentava convencê-la:
- Abra, preciso conversar com você, prometo não fazer nada que você não queira.
A empregada estava do lado dele e dizia:
- Como o senhor vê, ela continua muito estranha, hoje nem almoçou. Fui levar a bandeja no quarto e ela quase me agrediu, jogou tudo no, foi uma trabalheira.
Flávio insistia:
- Abra Anita, o assunto é sério, converso com você e depois te deixo em paz.
Dentro do quarto, ela gritou:
- Fale daí mesmo, não posso ver seu rosto. O que quero mesmo é expulsar você e essa criança de minha vida. Quando sair daqui saberei o que fazer!
Flávio gelou, então ela estava pensando em fazer um aborto? Dentro dele algo se rebelou, ele sentiu uma força agressiva muito grande e arrombou com vários chutes a porta. Quando conseguiu entrar, encontrou Anita pálida, deitada em posição defensiva. Ela gritava:
- Seu monstro, pensa que vai me assustar assim? Saia ou não responderei por mim!
A empregada que entrou junto com o patrão disse angustiada:
- É melhor o senhor sair daqui, ela está desequilibrada e pode cometer uma loucura, aliás, acho que uma pessoa neste estado está completamente louca, quer que eu ligue para o Dr. Eduardo?
- Não! Pode se retirar, deixe-me a sós com ela.
- Mas ela pode agredi-lo, veja!
Nesse instante Anita pegava um vaso grande de cristal que enfeitava o cômodo e fazia menção de jogar no marido. Ele, ágil, partiu para cima dela, desarmou-a e jogou-a na cama. Ela começou a gritar e a morder o marido enquanto o vaso de cristal quebrava-se inteiro no chão. Flávio dominou-a e intimamente começou a orar. Um cheiro fétido dominou todo o quarto e em poucos segundos Anita estava desmaiada. A empregada assustada, chorava sem parar. Flávio tranqüilizou-a:
- Fique calma, o pior já passou, ela está bem novamente.
Chorosa, ela disse:
- Bem que me avisaram para não vir trabalhar em casa de pessoas que lidam com espíritos, vejo que aqui acontecem coisas estranhas. O que se passou com ela, com certeza, é coisa de seres das trevas, ela estava possessa.
Flávio explicou:
- É verdade, ela está sendo vítima de um ataque das trevas. Mas isso não acontece só em casa de pessoas que lidam com espíritos. Em todos os lares da Terra existem seres espirituais que quando acham abertura interferem e causam desarmonia. A vantagem dos espiritualizados é que eles sabem agir com exatidão e contam com as energias superiores. Se esse fato ocorresse em uma casa de pessoa materialista, ela seria levada a um hospital e teria um tratamento perfeitamente dispensável, que não seria indicado para seu caso.
Ela pareceu entender e perguntou:
- E agora? Ela parece desmaiada, o que vai acontecer com ela?
- Vou levá-la adormecida para a câmara de passes e depois para a sala de desobsessão. Lá, juntamente com meus amigos médiuns, saberei o que fazer para ajudá-la.
Anita dormiu o resto da tarde até a noite. Era um sono pesado e angustiado. Por vezes ela suava muito, outras chamava nomes que ninguém entendia. Às sete e meia Ernesto e Marilda chegaram na casa de Flávio. Marilda ao olhá-la, disse:
- Trata-se de poderosa subjugação. Não sei se poderemos libertá-la nesta sessão.
Flávio reconheceu que era verdade. Porém, em sua experiência, dizia que desistir era pior. Os três rezaram e colocaram as mãos sobre o corpo de Anita que estremecia de vez em quando. A empregada assustada procurou rezar também. No horário marcado todos partiram para o Centro. Ao chegarem com Anita ainda adormecida encontraram Walter e mais três médiuns que fariam parte da sessão íntima. Eles deram passes e oraram chamando pelos amigos espirituais. Todos fizeram um círculo e colocaram Anita deitada no meio. Flávio fez a prece inicial e entrou em comunicação com Félix o orientador e instrutor dos trabalhos de desobsessão. Já em desdobramento, Flávio pôde ouvir o que Félix lhe dizia:
- Ela está envolvida por entidades que sugam suas energias. Vimos intuir aos médiuns que dêem passagem a esses espíritos para iniciarmos o trabalho de doutrinação.
Flávio indagou:
- Hoje não servirei de instrumento?
- Sim, servirá, eu me utilizarei de suas cordas vocais para tentar convencer as entidades a deixarem Anita.
Voltando ao corpo, Flávio esclareceu:
- Félix nos diz que os espíritos obsessores serão trazidos para cá esta noite. O médium que estiver em condições de dar passagem para que eles se comuniquem deve fazê-lo com muito amor e respeito.
Minutos depois uma mulher começou a tremer e a sorrir maliciosamente, e de repente falou:
- Que querem de mim? Pensam que estão lidando com quem? Sou poderosa, posso fazer este teto vir abaixo e todos morrerem soterrados.
Flávio, livre do corpo, deixou total espaço para Félix utilizar suas faculdades. Ele disse:
- Não precisa ficar zangada, apenas queremos conversar e saber por que se aproximou de Anita.
Ela, rindo zombeteira, falou:
- Esta aí é muito fraca, serve a nós como repasto, estamos sugando suas energias e fazendo-a ficar longe do marido. Agora que conseguimos um repasto vivo não o deixaremos por nada, exijo que não interfiram, ou não responderemos por nós.
Félix, através de Flávio, continuava a falar muito sereno:
- Você está fazendo algo que não é bom nem pra você nem pra ninguém, sente-se feliz depois de usá-la? Acaso não percebeu que esse processo só faz aumentar seu grau de responsabilidade perante a lei?
- Cale-se garoto fraco! Não abandonarei sua esposa jamais, ela me permite, dá espaço, tem ciúme de você. Sabe intuitivamente que o espírito que vai nascer através dela pode vir a separá-los no futuro; portanto, inconscientemente, ela se afasta de você, não permitindo que esse espírito esteja ao seu lado. Se não fosse o ciúme nós não estaríamos tratando-a como nossa refeição energética.
- Sabe, Deus dá a todos a chance de escolher e treinar através da liberdade, porém dia chegará que terá de deixá-la, você e seus companheiros, para assim assumirem a responsabilidade por suas atitudes.
Nessa hora, um médium soltou alta gargalhada:
- Pensam que vão fazer a cabeça de minha tutelada? Não sabem com quem estão lidando, saibam que se não desistirem, mandaremos Anita para o hospício. É bom que parem agora antes que seja tarde.
Felix continuou imperturbável:
- Não queremos fazer a cabeça de ninguém, cada um é livre para pensar. A maior liberdade que o ser humano possui é a do pensamento, apenas gostaríamos que a deixassem em nome de Jesus. Há um espírito unido a Anita e precisa renascer em paz; o que estão fazendo não pode ser pra sempre. Quem faz o mal embriaga-se com ele e essa mesma energia fará com que a pessoa se sinta mal, atraindo para si o sofrimento e a tristeza. É isso o que quer para sua vida?
- Não admito que falem assim comigo, sei o que estou fazendo e dou um último aviso: desistam desse intento ou não saberemos onde essa história vai dar.
Dizendo estas palavras os espíritos saíram e toda a equipe permaneceu em oração. Félix, ainda utilizando o corpo de Flávio, prestou alguns esclarecimentos:
- Anita vai melhorar um pouco, há aqui uma equipe de espíritos amigos que está banhando a aura dela com energias boas e fortalecedoras, porém o grupo que se apresentou aqui hoje não desistirá facilmente; são antigos vampiros do astral inferior que querem sugá-la até onde puderem. Não se impressionem pelas palavras deles, o bem é mais forte que o mal e sempre vence. Eles não conseguirão enlouquecê-la, nem levá-la ao hospício, porém para isso é necessário que Anita venha freqüentemente às reuniões de desobsessão, pois só
aqui temos equipamentos suficientes para aos poucos desmagnetizar a aura dela dos blocos de energia negativa a que se imantou pelo ciúme.
A reunião terminou com a prece de Cáritas e Flávio ao levar a esposa já acordada, porém calada para casa, percebeu que ajudar o céu muitas vezes é difícil, porém com amor e perseverança sempre se consegue.

19 - A LUTA CONTINUA 

Durante o trajeto de volta para casa, Anita ia calada e pensativa. A sessão conseguiu desbloquear algumas energias negativas, porém ela continuava ainda sob a influência dos espíritos inferiores. Flávio tentou uma conversa:  
- Sente-se melhor?
Ela, parecendo sair de grande torpor, respondeu com ar desagradável:
- Um pouco, mas não pense que vou deixá-lo privar de minha intimidade hoje, você me provoca náuseas.  Flávio, sem perder a paciência, disse:
- Não desejo nada que você não queira, nós todos precisamos sim de uma boa noite de sono e repouso.
O carro chegou ao destino e eles subiram para seus cômodos. A empregada já havia se recolhido e a casa estava silenciosa. Como nos últimos dias Flávio dirigiu-se ao quarto de hóspedes quando ouviu o telefone tocar. Desceu para atender:
- Alô!
- Oi mano! Como é difícil falar com você!  Flávio exultou ao reconhecer a voz de Cristiano:
- Você ligou em boa hora, estava mesmo precisando desabafar...
- O que você tem?
- Anita está gravemente enferma, está obsediada por um grupo de espíritos, que suga sua vitalidade, e a faz ficar longe de mim. Está sendo muito duro!
Cristiano ficou em silêncio durante alguns segundos, depois disse:
- Como isso pôde acontecer em sua casa, Flávio? Como você deixou ela ser influenciada?
- Você sabe que cada um é responsável apenas por si. Faço minha parte, levo Anita aos cursos, às palestras, porém ela apenas finge interesse para me agradar, as coisas que ouve não penetram de forma real em seu espírito. Cada um deve fazer a sua parte, se ela foi influenciada foi porque baixou o padrão enérgico com alguma atitude.
Preocupado, Cristiano perguntou:
- A obsessão dela é grave? Tem conseguido tratá-la aí mesmo no seu espaço?
- Ela está subjugada por mentes infelizes que descobriram suas fraquezas. Quem a vê ultimamente dirá que está em crise psicótica. Quanto ao tratamento ele começou justamente hoje, mas acreditamos que há muito caminho pela frente.
- Poxa, mano, me sinto até constrangido, pois liguei justamente para falar de um acontecimento que me deixou muito feliz! Laura está grávida, nós vamos casar!
Flávio exultou de alegria:
- Nossa, parabéns! Coincidência ou não nós dois estamos grávidos! Dona Alexandra terá muito que fazer, dois netos de uma só vez!
Cristiano lembrou:
- Acha que devo contar a ela o estado de Anita?
- Não, em hipótese nenhuma. Certamente ela ficará curada e não é necessário preocupar os pais dela por isso.
Cristiano respondeu:
- Como sempre acato suas decisões, meu guru! Mas aí vem outra notícia: no final deste mês estarei de férias e pretendo passar uns dois meses no Brasil com vocês, alguma objeção?
- Claro que não, será um prazer recebê-lo.
Eles conversaram mais alguns minutos e logo depois Cristiano desligou. Flávio foi se recolher e após orar dormiu profundamente. Ele não viu, porém as entidades que obsediavam Anita chegaram ao seu quarto. Uma delas com aspecto feminino dizia:
- Teófilo disse que esse aí pode nos dar trabalho, viu o que ele e aquele grupo de médiuns fizeram conosco? Nos prenderam em seus corpos e fomos obrigados a falar!
Outro retorquia:
- Se pudéssemos neutralizá-lo, acho que seria bom. Mas veja aquela energia azulada que o envolve, nós não conseguimos atravessar aquela barreira.
- Isso me deixa um pouco receosa. Tentamos impressionar aqueles médiuns birutas com gritos de pavor e ameaças, mas parece que eles estão muito seguros de si.
A entidade feminina continuou:
- Por hora devemos parar e ir a Larvosa comunicar pessoalmente nossas dúvidas a Teófilo. Deixaremos o Inácio tomando conta dela, não devemos demorar.
Dizendo isso seus vultos negros sumiram num canto do quarto. Pela manhã Flávio comunicou a novidade do irmão para Anita:
- É isso mesmo, Laura está grávida e o Cristiano vem com ela passar as férias aqui no Brasil. O meu irmão precisa mesmo descansar, afinal dá sua vida por aquela empresa.
Anita, que mal tocava naquele rico café da manhã, respondeu com polidez e desinteresse:
- Tanto faz que venham ou não, apenas fico feliz por minha irmã estar grávida. Quanto ao Cristiano você não pode criticá-lo, também abandonou tudo por esse maldito Centro espírita.
Anita estava angustiada e sofrendo muito. Sua personalidade não estava completamente aniquilada, ela sentia tudo o que se passava em sua mente e sofria por estar afastada do homem que tanto amava. Mas uma força maior que ela imprimia em sua mente que estar com Flávio era perigoso. As entidades sugeriam e ela acreditava cegamente que esse filho que ia nascer iria separá-la do marido. Pensou em aborto, mas devido a tudo o que ouviu de Flávio, sabia que esse era um caminho de tenebrosos sofrimentos. Ela deveria agir depois que o filho nascesse, aí sim saberia como se livrar desse fardo. Porém em seu íntimo o sofrimento era grande, ela lutava, tentava reagir, mas o ciúme era maior. Aí sentia-se completamente dominada, atirava objetos no marido, esbravejava, blasfemava. O ciúme vem do complexo de inferioridade e é porta aberta para sérias obsessões. Flávio ia discutir com a esposa, mas resolveu calar-se, tinha um curso para iniciar naquela tarde e não poderia mesclar suas energias com discussões negativas. Saiu calado sem beijá-la. Um espírito soprou-lhe ao ouvido:
- É assim que ele a trata? Acha justo? Os homens são todos iguais, só porque está grávida ele a está rejeitando, daqui a alguns dias tomará alguém como amante.
Anita sentiu uma onda de rancor ao ver Flávio sair sem ao menos beijá-la.
- Aquele cretino! - pensava - me rejeita apenas porque estou grávida! É até capaz de arrumar uma amante para satisfazer seus baixos instintos. Se isso acontecer, juro que os matarei!
Vendo que Anita concordava com seus pensamentos a entidade deformada abraçava-se a ela com muito prazer. Flávio saiu deixando ordens para que a empregada ficasse atenta a qualquer passo da esposa. Qualquer novidade estranha era para comunicar-lhe imediatamente. A luta contra os obsessores continuava. Outras sessões vieram sem que Anita fosse levada ao Centro, ela era atendida a distância e registrava pouca melhora. No final do mês Cristiano e Laura chegaram ao Brasil e se hospedaram na casa de Flávio. Na chegada foram recebidos amavelmente por Anita, porém eles logo perceberam a mudança dela. Laura ficou estarrecida: sua irmã estava magra e fundas olheiras abatiam seu rosto. Após um banho reconfortante eles foram para a sala de estar.
- É tão bom estar novamente no Brasil, sinto que esta temporada aqui fará bem para minha gravidez, concorda Anita?
- Pode ser, quando se tem um marido bom como o seu, já em meu caso...
Flávio e Cristiano se entreolharam mas não articularam palavra.
- Por que diz isso do Flávio? Ao que me consta, ele é um ótimo marido!
- É porque você não vê a forma como ele tem me tratado ultimamente, me rejeita, age com indiferença, é como se não fosse mais meu marido.
Flávio interrompeu:
- É ela quem me rejeita, não quer que eu me aproxime. Se estou evitando-a é porque não desejo maiores confusões.
Cristiano mudou o rumo da conversa, enveredando por assuntos diversos, até que o humor de Anita melhorou. Passaram o resto da manhã conversando e conhecendo a mansão onde Flávio residia.

20 - COISAS DO DESTINO

Flávio iniciou a reunião com uma prece pedindo assistência aos espíritos superiores. Os médiuns dispostos em semicírculo, concentrados, com mediunidade educada e com o pensamento em Deus esperavam a entrada do primeiro paciente da noite que viera em busca de socorro. Na platéia, além de algumas outras pessoas estavam Cristiano e Laura. Quando as portas foram fechadas entrou a primeira paciente. Uma moça jovem, aparentando 25 anos, foi introduzida na ampla sala e colocada no meio do círculo, sentada num banquinho. O assistente deu o nome dela a Flávio que pediu boas vibrações para o caso urgente. De repente, uma mulher do círculo estremeceu levemente e disse com voz alterada:
- Que querem de mim? Soltem-me ou não responderei por minhas atitudes.
Ernesto, o doutrinador, com voz suave iniciou um diálogo:  - Nada desejamos de você que não possa cumprir, primeiro responda: por que persegue esta moça?
- Não quero e nem tenho nada a dizer, me disseram que vocês são muito perigosos e podem prender-me pra sempre, caso não fuja rápido daqui. Além disso, não posso falar, pois seria punida severamente pelos meus chefes.
- Acredita mesmo que eles têm poder? Onde estão seus chefes neste momento que não vêm lhe salvar?
A médium fungou um pouco, depois disse:
- Se me prometerem libertar logo, poderei dizer algumas coisas.
Ernesto perguntou:
- Qual o motivo para perseguir esta moça, que mal ela lhe fez?
- A mim nenhum, mas na organização onde vivo mora uma mulher que foi seriamente prejudicada por ela em vida anterior e deseja vingança, pretendemos levá-la ao suicídio.
Ernesto com calma e já falando por Félix disse:
- A vingança é um sentimento mórbido que o afasta de Deus, volta-se contra você. Por que não tenta analisar melhor os fatos e enxergar os outros lados da questão? Se fizer isso vai se surpreender. As coisas não são como lhe parecem.
- Não preciso fazer isso. Eu sei a verdade. Sandra sofre muito. Em sua última existência, ela e Mônica foram grandes amigas, porém Mônica apaixonou-se por Vivaldo, marido de Sandra e o quis para ela. Chamado a ter relações, Vivaldo rejeitou-a com vivacidade, amava a esposa e não queria prejudicá-la com semelhante traição. Cega pela paixão Constância, hoje Mônica, procurou um feiticeiro e encomendou a morte da amiga através da magia negra, o que ocorreu três semanas depois. Desde então Sandra jurou vingança e nós da comunidade nos reunimos para ajudá-la. Não adianta tentarem, nós descobrimos os pontos fracos dela e a dominamos pela depressão profunda; quanto mais ela toma remédios mais perde a razão e assim conseguiremos enlouquecê-la.
Nesse momento algo de inesperado aconteceu: Mônica levantou-se corajosamente da cadeira e aproximou-se da médium dizendo:
- Por que me querem tanto mal? Sinto que a cada dia morre um pedaço de mim. Choro sem parar, não tenho alegria, sinto muita solidão e vazio. Se vocês não pararem com isso sinto que morrerei! – Disse banhando-se em lágrimas.
A entidade pareceu enternecer-se:
- Olha moça, faço apenas meu trabalho, a raiva é dela e não minha. Ocorre que Sandra já me ajudou a destruir um antigo rival aqui na Terra e agora é hora de retribuir o favor. Você também não colabora, vive de ilusões! Em casa quer sempre ser servida, não auxilia ninguém, é fútil e vaidosa, acha que o mundo gira ao seu redor. Quando conheceu o Ronaldo e se apaixonou, achou que ele deveria ser igual à sua mãe, lhe fazer todas as vontades. Quando foi trocada pela Ana, entrou em desespero e o que seria uma fase passageira virou obsessão. Naquele ponto conseguimos contato com sua mente e semeamos a depressão. Suas ilusões e vaidades nos deixam no seu comando. Era verdade, Mônica sentia que o que a entidade lhe dizia era compatível com sua vida. De repente arrependeu-se amargamente da vida que levava e desabafou:
- E se eu me arrepender de tudo o que fiz, posso ficar livre?
A médium soltou uma sonora gargalhada e disse:
- Pensa que é assim tão fácil? Nós, da organização, temos aparelhos monitores, com os quais observamos sua vida o dia todo, saiba que sempre encontraremos pontos fracos para a envolver.
Mônica continuou:
- Diga ao espírito que me quer mal o quanto mudei e estou arrependida, quero ser feliz, descobrir novas formas de viver, sei que encontrarei.
A médium estremeceu e baixou a cabeça. Mônica voltou ao banquinho e Flávio começou a falar:
- Mônica, hoje você deu importante passo para o seu progresso. O perdão nos livra dos grilhões que amarram nosso espírito e nos permite alcançar dias melhores. Você começou a perdoar a si própria! Está informada sobre o seu passado e sobre a organização que a persegue, entretanto, o mal jamais venceu o bem, o mal triunfa apenas por um tempo, um momento, mas qual noite escura ele sempre passa. Você está tendo a oportunidade de mudar verdadeiramente sua forma de ver a vida e com isso ver-se livre desses perseguidores. Porém, toda mudança demanda tempo, é como uma longa escada, é preciso começar do primeiro degrau sem desistir jamais. Vá em paz e que Deus a acompanhe.
Ela foi para a saleta dos passes enquanto um homem de meia-idade era introduzido no círculo. Gordo, de estatura baixa, demonstrava na face à grande dor que lhe ia na alma. Flávio deu prosseguimento:
- Continuemos com o pensamento elevado a Deus e vibremos por Elias de Souza, que está aqui presente.
Todos começaram a orar e Flávio deu passividade a uma entidade feminina, com aparência deformada, que começou a falar com admiração.
- Meu Deus! Que fenômeno é este? Consigo enxergar! Que alegria!
Ernesto aproximou-se:
- Isso ocorre porque o choque com as energias deste mundo reavivaram sua visão há muito tempo desgastada.
- Como sou infeliz! Perdi tudo, até os olhos, até o Elias me deixou... Esse é o meu maior drama, não deixarei jamais ele ser de outra!
Ernesto retorquiu:
- Você morreu há muito tempo, vítima de um tumor no cérebro que toldou sua visão. Não acha que é a hora de encontrar a felicidade? Seu marido é um ser humano, necessita de uma companheira para viver a vida. Porém, estranha força faz com que nada dê certo para a vida afetiva dele. Com o tempo ele passou a ter estranhas crises de convulsões sempre que está com alguma companhia feminina; mal sabe que é você que com suas energias provoca essas crises. Não é hora de desistir e seguir outro rumo?
Ela começou a chorar copiosamente:
- Não! O Elias é só meu, jamais será de outra. Mesmo cega tenho condições de achá-lo, como também as suas amantes. Quando percebi que minha energia doentia os afetava exultei, sabia que poderia facilmente manejá-lo, era só jogar todo o meu ódio sobre ele e estaria satisfeita.
Ernesto tentou contemporizar:
- Mas você mesma sabe que nada pode trazê-la de volta ao mundo. Hoje vocês vivem em diferentes faixas energéticas, se a vida os deparou é porque assim é o melhor. Seu caso chegou ao limite permitido por nossos maiores e você terá que se afastar dele por tempo indeterminado. Se fizer isso agora de espontânea vontade, será levada a um local onde receberá atendimento fraterno, voltará a enxergar e poderá refazer sua vida. Caso não aceite será afastada da mesma forma e será levada para este lugar, olhe.
Flávio pareceu aquietar-se por alguns segundos, depois falou desesperado:
- Não, por favor, não! Este lugar é horrível, tudo, menos ir para semelhante sítio.
Ernesto continuou:
- Ótimo, mas terá que retirar toda a energia doentia que colocou nele agora!
- Como posso fazer isto se eu própria estou doente? Não conseguirei!
- Conseguirá sim, basta chegar perto dele, pensar em Deus e no amor que sente no coração, visualize seu ex-marido bem e com saúde, o resto nós faremos.
Flávio levantou e se aproximou de Elias, que chorava emocionado, depois novamente foi para o seu lugar e disse:
- Pronto, já fiz o que pude, agora posso ir?
Ernesto disse:
- Isso mesmo, siga este grupo que está ao seu lado e aproveite o tempo que ficar com ele para aprender a ser feliz. Irá para um pronto-socorro de refazimento e paz!
Houve alguns instantes de silêncio, Elias se retirou para a câmara de passes e minutos depois Flávio, incorporado por Félix, começou a falar:
- Amigos, neste último caso saímos vencedores. Esta irmã chamada Florence habituou-se a achar que pode ser dona das pessoas. Ela ignora que só possuímos a nós mesmos e que ninguém é de ninguém. Desde que viveu na Terra, atormentou o lar que Deus lhe concedeu com ciúme e posse desmedidos. Fez incontáveis abortos para não ter que dividir o marido com os filhos. Insegura, passava a cercar o marido de perguntas e cedia a pensamentos de traição que entidades abismais colocavam em sua mente, chegava a "vê-lo" nos braços de outra.
Chamada ao amadurecimento e reciclagem por um terrível câncer de cérebro, ela tornou-se ainda mais revoltada, e a proximidade da morte fazia com que pensasse mais no marido recebendo carinhos de outra. Chegou ao astral revoltada e infeliz. Continuou no lar que residia e apesar de cega sentia o marido onde quer que estivesse. Devido à falta de visão, começou a apurar os ouvidos na tentativa desesperada de saber como o marido se comportava. Desde que ouviu tudo sobre os relacionamentos que ele pretendia manter, passou a colar-se nele, passando-lhe energias negativas. As mulheres corriam dele como o diabo da cruz, e ele, com o tempo passou a sofrer ataques epilépticos e finalmente encontrou nosso auxílio.
Houve alguns minutos de silêncio em que todos meditaram, depois Félix continuou:
- O próximo caso também tem origem no ciúme; aguardemos as vibrações e passividades dos médiuns.
Flávio e os companheiros vibraram por Anita. Ela, com o estado que mantinha não conseguia ir ao Centro. É importante que certos tratamentos de desobsessão ocorram com o próprio paciente presente. É que o local para este trabalho é impregnado de vibrações essenciais ao tratamento e de delicados aparelhos de captação e cura energética. O paciente à distância nem sempre é bem atendido e assim o processo quase sempre é muito lento. No lar do encarnado habitam espíritos de diversos níveis de evolução encarnados e desencarnados e as energias que eles emitem na atmosfera doméstica quase sempre interferem negativamente nos casos atendidos a distância. Já no próprio Centro, além da limpeza energética do ambiente, só entram os espíritos que os guardiões da casa permitem. Quais doentes terrenos, os obsediados muitas vezes necessitam do tratamento no próprio hospital, e o Centro onde se realiza a desobsessão é qual um hospital terreno. Logo um espírito sábio se manifestou:
- Boa-noite! Que Jesus esteja conosco! Anita, subjugada por mentes infelizes sente que o pequeno ser que chegará poderá atrapalhar sua vida com Flávio. Antes era o próprio espírito reencarnante que a fascinava, hoje ele já foi esclarecido e segue o caminho do bem. Todavia, um grupo de espíritos do astral inferior percebendo seus pontos fracos, utilizou-se deles para subjugá-lo. Flávio querido, acreditamos que esta obsessão vai durar até o nascimento do bebê. Está difícil o auxílio, pois Anita comunga com eles dos mesmos pensamentos, porém quando estiver com o pequeno e indefeso ser nos braços, sentirá que o ama mais que tudo, assim vencerá o ciúme e o medo. Nesta hora cortará a ligação com os obsessores. Não deixe que os psiquiatras a examinem, pois constatarão erroneamente tratar-se de loucura. Acredite em Deus e nos amigos espirituais, estaremos sempre do seu lado. Continuem vibrando por Anita e rezando a Deus por ela.
Flávio, emocionado, não continha as lágrimas. Foram atendidos mais dois casos e a prece final de agradecimento deu por encerrada a sessão. Na saída, Flávio propôs a Cristiano e Laura um lanche em uma confeitaria próxima. Eles concordaram. Durante o lanche, Cristiano falava admirado:
- Nossa, mano, aqui vocês têm um grupo muito bem estruturado de desobsessão. Vejo que segue à risca as orientações de dona Margareth.
Laura também comentou:
- Fiquei impressionada, o seu Elias foi libertado logo na primeira sessão!
Flávio explicou:
- Isto se deu justamente porque ele fez a parte que lhe cabia. Certamente aprendeu o que a vida quis lhe ensinar e de agora em diante deve seguir em paz. Outra chave importante é a elevação do espírito. Fazendo isso os espíritos inferiores não têm mais condições de atacá-lo.
Eles mudaram de assunto, comentando os pontos positivos na conquista do equilíbrio interior. Já em casa, Cristiano e Laura foram se recolher e Flávio como sempre foi para o quarto de hóspedes. Anita trancava o quarto, mas ele precavido tinha outra chave e ela nem desconfiava. Antes de deitar foi vê-la, estava dormindo profundamente. Flávio também deitou e depois de sentida prece adormeceu. Passava da meia-noite quando uma luz cinza-escuro surgiu no quarto de Anita. Ela foi se condensando e tomou forma humana: era Rafael, antigo namorado de Camila. Olhando por todos os lados ele começou a gritar:
- Camila! Camila! Apareça!
Nada acontecia, ele novamente gritou, e por fim duas entidades iluminadas vieram trazendo Camila pela cintura. Ela, após olhá-lo profundamente, disse:
- O que deseja Rafael? Estou em vias de reencarnar e está sendo uma trajetória muito difícil. Por que me chama? Já não temos mais nada um com o outro, bastam às dificuldades que estou tendo para renascer!
Ele, feliz por tê-la encontrado, correu para abraçá-la.
- Como estou feliz em te ver! Parece que esses meses foram séculos! Também vou renascer! Também fui chamado por mentores elevados que disseram ter chegado há minha hora. Quando você sumiu do Desterro todos ficaram admirados, afinal não é fácil fugir de uma organização como aquela. Ester me explicou que seu caso talvez seja uma reencarnação involuntária. Fiquei sem entender até que aconteceu o mesmo comigo. Adormeci e quando acordei estava num outro quarto próximo de bondoso senhor que tudo me explicou. Disse que se eu concordasse em reencarnar espontaneamente seria mais Fácil para mim; se eu me negasse, reencarnaria da mesma forma, só que com mais sofrimento. Diante daquele argumento resolvi ceder. Eles disseram que me comprometi muito com a lei quando ajudei a enlouquecer sua mãe. Agora terei que voltar a Terra e reparar o meu erro Camila chorava abraçada a ele. Surpresa, ela viu um fio tênue cor de prata que se perdia pela mansão. Rafael, olhando enigmático para ela, perguntou:
- Quer saber onde está ligado este fio?
- Quero sim.
Ele levou-a pela mão ao quarto de Cristiano e qual não foi à surpresa quando Camila percebeu que o cordão energético estava ligado ao ventre de Laura.
Estupefata, Camila indagou:
- Então seremos primos?
- Isso mesmo. Os mentores dizem que nos comprometemos mutuamente e como membros da mesma família poderemos desta vez a acertar.
Noel e Carlota apareceram no quarto e disseram:
- É isso mesmo, dessa vez podem vencer. Muito já sofreram neste mundo por não entenderem que não devemos fazer o mal a ninguém. Como primos deverão sublimar a antiga paixão que ainda arde entre ambos e fazer dela um sentimento superior.
Rafael mencionou:
- Fui informado por Hilário que viverei na Inglaterra, já Camila viverá aqui no Brasil, dessa forma como iremos conviver?
Noel com olhos perdidos no infinito respondeu:
- A vida tem seus meios e quando ela quer alguma coisa certamente consegue. A vida é Deus em ação, por acaso estão duvidando do poder de Deus?
Eles se calaram e Camila disse:
- Venha Rafael, desejo mostrar-lhe o porquê das minhas dificuldades reencarnatórias.
Eles voltaram para o quarto onde Anita dormia um sono agitado.
Camila mostrou-lhe a testa e com horror Rafael perguntou:
- O que são essas manchas pretas circulando o cérebro de Anita?
Carlota respondeu:
- São massas de energias negativas que os espíritos plantaram no corpo astral dela, é através dessas massas que eles a controlam a distância. Note que não há nenhum outro espírito além de nós nesse recinto. É que a distância eles também enviam pensamentos e conseguem desequilibrá-la.
Rafael assustou-se:
- Eles podem nos ver agora?
- Não - disse Noel. - Estamos numa faixa de energia que eles não conseguem captar. Eles nem sequer sabem que você será filha dela.
Camila entristeceu-se:
- Estou triste e confusa, em breve entrarei inconsciente na câmara para sofrer a restrição do corpo perispiritual e mesmo assim o medo me domina. Sinto que amo Flávio com todas as forças do meu coração. Temo mais uma vez recair no erro. Talvez isso contribua para que Anita sinta ciúmes injustificados do marido. Se hoje não desejo prejudicá-la, ainda sinto-me perdedora, afinal ela o tem como marido e esse é o maior sonho de minha vida. Temo cair em outro deslize.
Carlota a abraçou:
- Não fique assim querida, terá todo apoio do mundo espiritual para sair vitoriosa. Além disso, ele será seu pai, não haverá mais sentimento de paixão como antes. Você sublimará esse sentimento, vendo no homem amado de outrora apenas um pai fiel e amoroso.
Os espíritos conversaram mais alguns instantes e logo depois desapareceram rumo às colônias que habitavam.

21 - DEZOITO ANOS DEPOIS

- Papai, não deixe ela nos dominar mais uma vez, eu quero minha festa de aniversário! - gritava Maria Antônia aos berros para Flávio.
Paciente ele dizia:
- Filha, pense bem... Eu e Anita fizemos um maravilhoso baile de 15 anos, nos outros anos também houve festa, este ano deverá se conformar. Você não precisa mais de tanto luxo, além do que já tem.
Ela irritada e com feições coléricas bradou:
- Foi ela mais uma vez! Eu juro que ela me paga! Sempre querendo interferir na minha vida! Um dia ainda fujo pra sempre desta casa e ninguém mais vai me encontrar.
Dizendo isso subiu feito um furacão as escadarias e trancou-se no quarto. Francisca que observava tudo a distância, chegou-se perto de Flávio e disse:
- Meu filho, essa menina está sendo educada de forma errada! Meu Deus, eu não entendo um pai feito você, um sábio, um mestre, educar a filha dessa forma. Desde que nasceu, você lhe faz todas as vontades. É por isso que está assim, acha que para ela tudo é sem limites.
- Tia, eu fiz o que pude na educação dela, mas reconheço que Anita não colaborou. Ela não é ligada à filha, não se preocupa com seu bem-estar, aliás, a senhora que acompanha tudo desde que ela nasceu sabe muito bem disso.
A velha e simpática senhora retorquiu:
- Não sei não... Detesto ver cenas como esta. Quando a mãe chegar do shopping vai ser outra briga.
Flávio ficou vermelho:
- Anita novamente no shopping? Ela não disse que ia cuidar da assistência social do Centro?
- Isto foi o que ela disse a você. Mas eu vi muito bem ela pegar o cartão de crédito e telefonar para Giulia combinando fazerem compras.
Flávio ficou com raiva; por que Anita mentia tanto para ele? Amava a esposa, não queria brigar, depois conversaria com ela. Francisca relatou:
- Não gosto de me meter na vida de ninguém, mas acho que Maria Antônia fica pior sempre que se encontra com o primo Fabrício; aquele doidivanas ainda vai colocar sua filha em maus lençóis.
- Não fale assim do Fabrício, ele é um bom menino, talvez os pais dele também tenham errado um pouco na educação, mas não é um doidivanas como a senhora diz.
Francisca levantou-se e disse:
- Você é quem sabe, agora irei ver se o jantar está pronto.
Na imensa e luxuosa sala de estar Flávio ficou sozinho. Começou a relembrar todos os fatos desde o nascimento de Maria Antônia e tentaria ver com a ajuda dos seus amigos espirituais onde realmente tinha errado. Em seu quarto, Maria Antônia chorava copiosamente. Detestava quando era contrariada em alguma coisa. Por que sua mãe não era tão legal como o pai? Em sua raiva culpava Anita pelo desgosto de não ter sua festa de aniversário. O que os amigos de cursinho iriam pensar? A mãe, sempre a mãe! Um dia ela iria ver quem podia mais. Levantou-se da cama com os olhos inchados e olhou a decoração de seu quarto. Pensava: "Não gosto de nada do que ela colocou aqui! Só gosto das fotos do meu pai que enfeitam minha vida. Como foi boa essa idéia que tive de colocar posters dele por todo o quarto! Como ele é lindo! Nem parece que tem 48 anos!". Ela continuava com o devaneio: "Que homem lindo é o meu pai, quando me casar quero que seja com um homem como ele! Sinto que só com um homem assim, serei feliz". E olhando as fotos do pai, como se ele fosse um ídolo, ela conseguiu se acalmar. Foi ao telefone e discou, esperou um tempo e uma voz do outro lado da linha respondeu:
- Maria Antônia, é você?
- Eu mesma, não sabe como já estou com saudades. Sabe primo, acho que só você me entende. Se eu pudesse morar aí na Inglaterra, acho que seria muito mais feliz.
Fabrício concordou:
- É verdade, sua mãe concorda de bom grado, já o tio não deixa de jeito nenhum, é muito apegado a você.
- O que me segura ainda é o meu pai, imagine agora que a dona Anita não quer dar minha festa de aniversário. Estou com vontade de fazer uma besteira daquelas...
Ele pareceu hesitar, mas falou:
- Besteiras nós já fizemos aí no Brasil, meu pai ficou desconfiado que me envolvi com drogas, mas não pôde provar, imagine se tio Flávio descobre que você já experimentou?
Ela corou:
- Nem pensar, jamais quero dar qualquer desgosto ao meu pai. Ele nunca vai saber, isso não irá se repetir.
- Assim espero.
A conversa durou ainda alguns minutos e logo depois eles desligaram. Maria Antônia deitou-se na cama e fixando o olhar no rosto expressivo de Flávio numa foto na cabeceira de sua cama, conseguiu adormecer. Pouco antes da hora do jantar Anita chegou com inúmeras sacolas de compras. Ela, durante aqueles dezoito anos havia se transformado bastante. Acostumada com o dinheiro fácil, nunca trabalhara. Tentava auxiliar no Centro espiritual de Flávio, mas raramente cumpria as obrigações. Sua diversão era fazer compras, passear pelos melhores shoppings da cidade, freqüentar salões de beleza e festas. Flávio a amava muito, todavia percebia profundamente a sua transformação. Em comunicação com os espíritos superiores, era sempre orientado a ter paciência e tolerância com a esposa. Hilário havia lhe dito que no seu caso as brigas e as discussões, além de provocar desarmonia no lar poderiam atrair uma separação, o que não seria nada bom, uma vez que ambos se amavam. E assim Flávio ia perdoando suas futilidades, tendo paciência com os seus ataques de possessividade, sendo tolerante com suas amigas matronas e fúteis. Flávio não conseguia entender por que Anita não mais engravidara desde que nasceu Maria Antônia. A princípio ele achou que era por culpa da última gravidez cheia de problemas. Anita continuou obsediada até a hora do parto, só cortando o vínculo quando pegou em seus braços a criaturinha frágil e dependente. Assim, sentindo o amor maternal pôde se livrar do grupo terrível que a subjugava mentalmente. Percebendo que ela havia se curado da obsessão com auxílio de espíritos abnegados, ele a levou em vários médicos, que não constataram nenhum problema. Olhando a esposa subir a escadaria cheia de compras sem percebê-lo na sala, ele ficou imaginando porque não pudera ter mais filhos. Flávio ignorava que a esposa havia procurado há anos um feiticeiro, indicado por sua amiga Giulia, e através dele conseguiu uma beberagem que impedia a gravidez. No princípio ela ficou incrédula, mas com o passar do tempo pôde perceber que funcionava de verdade. Durante todos esses anos ela tomava a bebida religiosamente. Jamais iria querer deformar o corpo outra vez, já bastava à primeira. Depois, cuidar de crianças não era tão agradável como pensara a princípio. Havia também o medo sempre presente de ter que dividir Flávio com outras pessoas, já bastava aquele Centro que tomava boa parte das horas de seu marido. Flávio continuou meditando sem conseguir entender algumas coisas. Por que o relacionamento entre Anita e Maria Antônia era tão difícil? Nos primeiros anos Anita parecia amá-la de verdade. Era cuidadosa, extremada, e nada poderia acontecer à filha sem que a preocupasse profundamente. Às vezes ela chorava muito e só se aquietava nos braços do pai. O tempo passou e fatos estranhos começaram a acontecer. Maria Antônia se apegou muito ao pai e tinha ciúmes de vê-lo com a mãe. Desde os sete anos ela discutia com Anita como se fosse adulta e só estava bem se estivesse com Flávio. Talvez por seu temperamento estranho Anita começou a afastar-se da filha, e repente passou a olhá-la com indiferença, pois percebia que de forma indireta e sem razão sua filha queria afastá-la do seu marido. Maria Antônia foi crescendo e a situação se complicando. Tudo o que a mãe dizia ou fazia, ela tinha por gosto ser do contra, e as discussões entre as duas eram inevitáveis. O clima na casa de Flávio foi ficando permissivo ao contato com espíritos inferiores, assim os espíritos que já mantinham contato com Maria Antônia desde a última encarnação como Camila, voltaram a assediá-la. Dessa forma os obsessores se instalaram naquele lar. O Centro de desenvolvimento espiritual que Flávio dirigia com dedicação e amor, bafejando proteção espiritual, prosseguiu com seu enorme sucesso. As sessões de desobsessão curavam muitas pessoas: loucos irreversíveis pela medicina, neuróticos, sexólatras, violentos, subjugados e fascinados de todos os matizes. Flávio, com o passar dos anos, sentiu sua freqüência mediúnica aumentar a tal ponto que lhe foi possibilitada uma visita a um mundo distante, com uma civilização muito avançada. Desde então multiplicara seus esforços, fazia muito para que com seus trabalhos pudesse passar tudo o que aprendia com os espíritos evoluídos. Sabia perfeitamente das entidades negativas que viviam no seu lar com Anita e Maria Antônia, e se conseguia doutrinar muitas delas afastando-as, outras se aproximavam atraídas pelos pensamentos que elas emanavam. Lembrou da terrível obsessão que sua esposa passou durante os nove meses de gestação. Parecia haver enlouquecido completamente. Quando nasceu o bebê, Anita voltou ao normal e lembrando-se perfeitamente de tudo o que havia feito chorou muito, envergonhou-se, porém Flávio com paciência e amor explicou-lhe tudo sobre o processo obsessivo pelo qual ela passara. Anita pareceu ceder à espiritualidade, todavia, anos depois desligou-se completamente, levando vida fútil e vazia. Quando desceu para jantar, vendo o marido absorto em profundos pensamentos, aproximou-se:
- Meu amor, não sabia que estava aí. Chegou agora?
Ele beijando-a delicadamente nos lábios respondeu:
- Não, estava muito antes de você chegar, vi quando chegou com as compras. Por que não foi ao Centro como o combinado?
Ela corou um pouco:
- Deixei a Fátima no meu lugar. Ela aceitou e então resolvi distrair-me com as vitrines.
Ele procurou mudar de assunto:
- Já viu nossa filha?
- Não... Ela está em casa?
- Está sim e muito magoada com você!
Anita sentou-se no sofá fingindo-se de desentendida:
- Comigo, por quê? Ah, deve ser pela festa de aniversário. Se for por isso saiba que este ano não vai haver de jeito nenhum. Todos os anos ela quer festa, sinto dizer, mas acostumamos mal a nossa filha.
Flávio replicou:
- Acho que devemos ceder desta vez, afinal ela é uma boa filha, merece sua festa.
- Ela é boa filha pra você, não vê como me trata? Parece até que sou sua inimiga. A Cleide e a Giulia já perceberam e andam perguntando o porquê desta atitude. Acho bom que você que é o rei para ela faça alguma coisa.
- Você é que deve conquistar sua filha. É distante e fria. Na sociedade em que vivemos atualmente os papéis se inverteram. Antigamente eram os pais que sofriam com os filhos; a rebeldia, a abertura dos costumes, a droga fizeram muitos pais infelizes e ainda fazem. Porém hoje o contrário acontece: são os filhos que sofrem amargamente com as atitudes dos pais. Muitos são autoritários, acham que são os donos absolutos dos filhos, querem dominá-los a todo custo, esquecem-se que os filhos são almas independentes e que têm um programa de reencarnação a cumprir neste mundo. Outros fazem como você ficam frios e distantes, não dão carinho, não procuram entender o que lhes vai na alma, não são amigos dos filhos. Se os pais soubessem a responsabilidade que têm com eles, deixariam de lado o papel social e se tornariam os melhores amigos dos filhos. São os laços de amizade entre pais e filhos que fazem a felicidade de uma família.
Anita discordou:
- O que você diz não é verdade, não sou fria, apenas reajo às atitudes dela. Essa menina é muito estranha, nunca a vi olhando para mim com amor, já com você, parece até paixão!
Flávio ia retrucar, mas foi interrompido pela voz de Francisca falando que o jantar estava na mesa. Os três comeram em silêncio e logo depois cada um foi para seu aposento. Antes de deitar Flávio foi ver a filha:
- Posso entrar? - disse ele colocando a cabeça na porta.
- Claro que sim paizinho, o senhor sempre pode tudo comigo.
Ele entrou e sentou-se na cama, colocando a cabeça de Maria Antônia em seu colo.
- Por que você não desceu para o jantar? Você não comeu nada! Pode ficar fraca.
Ela encarando-o disse:
- Não quero ver o rosto dela!
- Não fale assim de sua mãe, ela faz o que pode por todos nós, não a recrimine.
Ela não gostou do que ouviu e disse:
- Não quer dar minha festa, sempre encontra uma maneira de me contrariar. Será que o senhor é cego? Até tia Francisca concorda comigo.
Flávio contemporizou:
- Ela não quer dar a festa, mas eu posso lhe dar uma boa viagem. Que tal curtir o fim de suas férias com seu primo Fabrício?
Ela deu vários pulos de alegria.
- Ah, você é o melhor pai do mundo. Claro que quero, quero muito.
Beijou Flávio repetidas vezes no rosto.
- Agora, prometa ser melhor com sua mãe, seja mais cordata. Compreenda-a melhor.
Ela, movida pela alegria do momento, abraçou o pai e disse:
- Por você eu faço tudo!
Nesse instante havia tanta paixão no olhar da filha que Flávio se incomodou. Tirou-a de seus braços e após beijá-la na face se retirou. Em seu quarto Flávio remexia-se na cama inquieto. Rezou, meditou, mas não conseguiu adormecer. A sensação que sentiu quando Maria Antônia olhou-o daquela forma foi horrível. Onde teria visto aquele olhar? No fundo sentiu uma energia macabra vindo da filha. Só quando o dia começou a clarear é que conseguiu adormecer. No outro dia pela manhã, enquanto Flávio havia saído para o Centro, à notícia da viagem de Maria Antônia se espalhou pela mansão. Ela e Francisca comemoravam, quando Anita chegou de surpresa.
- Quer dizer que minha filhinha vai viajar e nem sequer contou à mãe?
Fingindo não perceber o tom irônico que a mãe colocava na voz, Maria Antônia respondeu contente:
- Sim, o meu paizão me deu de presente de aniversário uma viagem à Inglaterra. A propósito, ele me pediu que eu esquecesse as mágoas que tenho da senhora e que fiquemos em paz.
Ela correu a abraçar a mãe, que por estar na frente de Francisca retribuiu com fingida alegria. E Anita disse falsamente:
- Que bom querida, o que eu não queria era mais uma daquelas suas barulhentas festas, porém uma viagem vem até em boa hora. Eu te ajudo a arrumar a bagagem.
Francisca, alegre com a cena, disse:
- Oh! Que bom que a alegria voltou a reinar aqui! E você menina, não se cansa de estar com seu primo Fabrício? Afinal, ele estava aqui há apenas duas semanas.
- Claro que não me canso, Fabrício fala a minha língua, é o meu melhor amigo. Nunca me dei tão bem com alguém como me dou com ele.
Francisca redargüiu:
- Ótimo! Agora vá tomar o seu café, afinal você não pode ficar fraca senão não poderá viajar.
Ela saiu para a cozinha e Anita foi para o telefone, discou um número e esperou:
- Alô, Giulia? Não sabe a novidade que tenho! Vou me ver livre da pestinha por mais de duas semanas, não é uma dádiva?
- Como assim? Fale logo!
- Ela vai para a casa dos tios na Inglaterra. Além de ter me livrado da festa horrível, vou me livrar também de sua presença incômoda.
A amiga gargalhou:
- Sabe que você chega a ser cômica? Nunca vi uma mãe agir assim com uma filha, você não gosta mesmo dela, não é?  Anita tentou se explicar:
- Não é isso, é que Maria Antônia sufoca muito o pai, não me deixa curtir o maridão, agora ele será só meu!
- Então você tirou a sorte grande mesmo. E nossa ida ao shopping hoje, ainda está de pé?
- Ah, infelizmente não poderei ir, ontem notei que o Flávio não gostou muito da minha saída, e sabe como é, detesto constrange-lo faço tudo para que ele me admire e me ame. Aliás, vou aproveitar, à tarde para ir ao cabeleireiro.
- Ah bom, vou ver se a Cleide quer ir comigo... Ah! Você sabe da última? A filha da Marisa está de romance com um amigo de meu marido.
- O quê? Não me diga...
Elas continuaram falando da vida alheia sem perceber que espíritos inferiores abraçavam-se a elas prazerosamente.

22 - O RECOMEÇO DE UMA HISTÓRIA DE AMOR

Fabrício exultou com a notícia da breve chegada de sua prima a sua casa. Cristiano e Laura acharam estranha essa súbita viagem, porém calaram-se, a alegria do filho único era tudo para eles. Desde a mais tenra idade Fabrício apresentava problemas de comportamento, sentia-se rejeitado como se fosse uma pessoa com motivos para esconder-se do preconceito. Seus pais levaram-no a vários psicólogos, porém não adiantou, sua revolta continuava contra tudo e todos. Só com a prima é que se dava bem. Na Inglaterra ele fez diversos cursos, mas não havia ainda ingressado em nenhuma faculdade. Na bem mobiliada sala do apartamento de seus pais, Fabrício comentava:
- É uma alegria estar com Maria Antônia, é a única que me tende.
Laura lendo uma revista, interrompeu para dizer:  
- É que você precisa fazer mais amizades, socializar-se com jovens de sua idade. Não pode continuar trancado em casa, só saindo com Maria Antônia. Seu pai disse que quando melhorar seu comportamento vai te dar aquele carro que tanto sonha.  Ele exultou:
- Mesmo? Então juro que vou me esforçar. Mas é difícil, sinto que as pessoas podem a qualquer momento me rejeitar, me colocar de longe...
Cristiano entrou na sala chegando do trabalho:
- Oi, soube que meu filho está com motivos de sobra para ficar contente, Maria Antônia ficará aqui durante três semanas.
Fabrício estava ainda mais alegre:
- Três semanas? Isso é uma dádiva!  Laura levantou-se indo beijar o marido.
- Hoje vamos ao Centro?
Cristiano respondeu:
- Claro! E Fabrício também deverá ir conosco. Há tempos que dona Margareth pergunta por você, tem sentido sua falta lá.
Ele já subindo as escadarias disse:
- Não vou hoje, essa notícia me deixou muito feliz, irei me comunicar agora com Maria Antônia pela Internet, temos muito que conversar.
Laura e Cristiano ficaram tristes. Por que o filho não se interessava pelo lado espiritual? De repente, eles pensaram que Maria Antônia e Fabrício deveriam ser espíritos endurecidos, que viveram juntos em vidas passadas e que retornavam agora para tentarem melhorar. Mal sabiam que o filho era a reencarnação de Rafael, que em última existência foi negro e muito discriminado. Ignoravam também que Maria Antônia era Camila, a antiga namorada de Flávio. O dia tão esperado chegou. No aeroporto Laura e Cristiano foram esperar Maria Antônia que não cabia em si de felicidade. Logo estava abraçada ao primo. Foram para casa. Lá chegando, Laura questionou:
- Qual o motivo dessa viagem logo no final de suas férias?
Ela franziu o cenho:
- Mamãe, como sempre! Não sei como duas irmãs podem ser tão diferentes, a senhora é doce, suave, parece um anjo. Já mamãe é fria, distante, sempre preocupada com o papai. A senhora sabe que ela nunca me deu atenção.
Laura mordeu os lábios, sabia que era verdade, sua irmã havia se modificado muito depois que a filha nasceu, mas não podia concordar com isso na sua frente.
- Não fale isso da sua mãe, ele faz o que pode por você e seu bem-estar. Esta viagem, por exemplo, foi por conta dela.
Maria Antônia sentou-se no sofá e com ar de enfado contou:
- A senhora se engana com a dona Anita; se estou agora na Inglaterra, podendo ficar uns dias com meu primo que tanto amo, isso se deve ao meu pai. A sua querida irmã fez questão de não fazer a minha festa de aniversário este ano, ela sabe que todos os anos no Meu aniversário, papai dá festas. Mas, para me provocar, como sempre, ela fez questão de dizer que não faria. Me rebelei, jurei me vingar, e meu pai como sempre, para ajeitar a situação entre nós duas me ofereceu esta viagem.
Laura surpresa, perguntou:
- O que você fez para sua mãe lhe negar essa festa? Deve ter sido algo muito grave!
- Até a senhora duvida de mim, tia? Não fiz nada. O que minha mãe sente é muito ciúme de meu pai, ela tem inveja do relacionamento que tenho com ele desde pequena, só pode ser isso. Não tem outra explicação.
Laura também suspeitava o mesmo. Anita, infelizmente, era muito possessiva, será que até da filha ela tinha ciúmes? Resolveu mudar de assunto:
- Como está à tia Francisca?
- Tem se recuperado bem, eu pensei que ela nunca iria sair daquela crise horrível pela qual passou.
Foi à vez de Cristiano falar:
- Eu também. Mas ela é uma mulher muito forte, sempre soube que sairia daquele problema.
Maria Antônia disse:  - O bom disso tudo é que ela foi morar em nossa casa, passou a ser nossa governanta e é uma pessoa com quem sempre posso contar.
A conversa continuou fluindo agradável até que Fabrício convidou a prima a irem para o computador. Havia sites maravilhosos que ele queria lhe mostrar. Subiram para o quarto e ficaram a sós. Depois de muito tempo na internet, eles foram lanchar. A cozinha estava vazia àquela hora da noite, então iniciaram uma conversa.
- Sabe prima, você é a única pessoa que me entende, parece que às vezes o mundo está contra mim. Não me sinto bem com as pessoas que me circundam.
Ela olhou-o penalizada e disse:
- Enquanto eu estiver por perto nada de mal irá te acontecer, eu juro.
Ele embeveceu-se:
- Como você é linda! De repente...
- Diga! De repente...
Ele ficou envergonhado, não poderia expor assim o que sentia, resolveu contemporizar:
- De repente me sinto muito bem com você, é só isso.
- Isso mesmo?
- É! Agora vamos dormir que já está tarde. O papai disponibilizou o carro só para nós amanhã.
Ela alegrou-se:
- Mesmo? Que bom, assim poderemos visitar todos aqueles lugares que vimos da última vez. Aquela turma ainda está unida?
- A turma da pesada? Está sim, mas só tenho ânimo de estar com eles quando você está aqui.
- No Brasil também é assim. Só tenho disposição para ir às festas quando você está lá.
E assim os dois jovens foram dormir.
Pela manhã eles foram ao lugar que planejaram. Era um bar bem movimentado apesar da hora matutina. Vários jovens tatuados, bebendo muito, estavam lá. Um grupo os avistou e gritou:
- É isso aí manos, quem é vivo um dia aparece!
Um jovem tatuado e fumando uma espécie de cigarro aproximou-se de Maria Antônia.
- E aí boneca, por que sumiu? E nossa troça, hein?
Fabrício interrompeu:
- É assim que nos recebe? Cadê o bagulho?  O outro pareceu se lembrar e disse:
- Tem para quem puder pagar, mas você é filhinho de papai, deve ter dinheiro de sobra.
Fabrício retirou alguns dólares da carteira e deu ao jovem:
- Tenho só para me divertir hoje, pra mim e pra Maria Antônia.
Ela estava assustada, havia experimentado droga no Brasil, mas não havia gostado muito. Falou ao primo:
- Eu não quero e você também não deveria querer. Continua usando esse troço?
- Não, mas com você aqui é motivo para comemorar.
Ela retirando-se disse:
- Prefiro comemorar de outra forma, se ficar aqui vou embora.
Outro rapaz já drogado, aproximou-se:
- Não estou te reconhecendo Toninha, da última vez você estava muito mais descolada.
- É que ouvi uma palestra de meu pai em que ele dizia que os espíritos viciados, que já viveram na Terra se drogam, sugando as energias através de nós.  Eles começaram a rir:
- Ah, então seu pai é feiticeiro, se entende com os espíritos?  Ela ficou com raiva, criticar seu pai era seu ponto fraco.
- Não fale assim de meu pai, ele é um Deus para mim e tudo quanto diz é sempre verdade. Não quero e nem vou mais provar isto. Vamos embora Fabrício.
Ele obedeceu e já no carro ela disse:
- Nossa, a turma está cada vez pior, nunca mais volto aqui!  - Também não precisa exagerar, quer dar uma de puritana? Sei muito bem que você é chegada num bagulho, lembra lá em São Paulo?
- Eu não sou chegada, apenas provei uma vez e foi você quem me deu.
Eles discutiram um pouco, mas logo depois estavam às boas. Todas as noites iam para o quarto e ficavam na internet. Cristiano tinha controle rígido sobre o aparelho e Fabrício não conseguia entrar em sites pornográficos ou de violência. Uma noite, os olhos de Fabrício e Maria Antônia se cruzaram de forma diferente. Ambos sentiram um frio no peito. Ela começou:
- Não sei... De repente senti algo estranho por você. Um desejo, uma sensação esquisita, sabia que você é um homem bonito? Não tão lindo como o meu pai, mas é muito bonito!
Ele sorriu:
- Você e essa sua paixão por tio Flávio. Ainda não conseguiu se curar?
- Claro que não! Se ele não fosse meu pai... Havia de tirá-lo da mamãe.
Ele assustou-se:
- Nem pense nisso! Que coisa feia!
Ela alisou seus cabelos, dizendo:
- Não penso, sei que é impossível, meu amor pelo seu Flávio é platônico - disse meio sarcástica.
Uma entidade viciada penetrou no recinto e soprou-lhe ao ouvido:
- Não é impossível nada, boba! Quantas filhas existem nesse mundo que se relacionam com os pais? Muitas! Faça uma investida, você pode!
Ela sentiu um calor imenso e o rosto de seu pai apareceu-lhe vivo no pensamento. Pouco depois falou com olhos vidrados:
- Sabe que me veio uma idéia? Bem que posso investir no papai!
Carlota, que também estava em espírito no quarto, tentou impedir, inspirando Fabrício:
- Diga a ela que semelhante ato é um crime gravíssimo perante as leis de Deus. Faça-a voltar em si, você pode, ela gosta muito de você.
Fabrício, ao ouvir a barbárie dita pela prima, interviu na hora:
- Isto é um erro muito grande, você é louca? Pai é pai, respeite-o ou não serei mais seu amigo. O incesto deve ser um crime terrível!
Ao ouvir estas palavras a entidade despida resolveu investir contra o rapaz, porém Carlota o protegeu, lançando sobre ele uma capa energética azulada. Quando em contato com a capa protetora a entidade foi arremessada a metros de distância. Maria Antônia, ouvindo as palavras do primo, pareceu haver saído de um transe. Envergonhou-se e começou a chorar:
- Não devia jamais ter dito o que disse, peço-lhe perdão.  Fabrício respondeu:
- Eu a perdôo desta vez, mas se falar de novo isto, não quero mais saber de você.
Ela, já refeita, alisou os cabelos e sem perceber o beijou nos lábios. A partir daquele dia eles começaram a namorar escondido. Estavam muito felizes, mais que o habitual e Laura percebeu:
- Nossa, como vocês estão alegres, o que aconteceu para ficarem desse jeito?
- Nada mãe - respondia Fabrício. - Talvez as visitas a lugares turísticos tenham deixado eu e Maria Antônia mais felizes.
Ela aproveitou:
- Já que estão tão felizes assim hoje, vou lhes fazer um pedido e não deve ser negado.
Maria Antônia ficou curiosa:
- De que se trata?
Laura respondeu:
- Ir conosco no Centro de dona Margareth. Hoje à noite teremos uma reunião onde espíritos elevados darão instruções a todos os freqüentadores. Devem ir conosco.
Eles tinham um programa para a noite, mas bem poderia ser depois do Centro. Fabrício respondeu:
- Iremos sim!
Laura ficou muito feliz:
- Nossa! Seu pai ficará honrado com a presença de vocês.
A noite finalmente chegou e com Cristiano ao volante todos foram para o Centro.
Cristiano olhou para Maria Antônia e disse emocionado:
- Foi aqui que seu pai estudou quando era mais jovem e pôde se tornar tudo o que é hoje.
Ela respondeu:
- Sei disso, realmente, meu pai é um astro!
Cristiano sorriu:
- Esses adolescentes...
Laura, Maria Antônia e Fabrício sentaram-se com algumas outras pessoas na platéia, enquanto Cristiano foi para a enorme mesa onde outros médiuns já estavam concentrados e em meditação. Dona Margareth, já muito velha, porém ativa, deu início ao trabalho com uma prece. Logo depois um dos integrantes da mesa abriu ao acaso O Evangelho segundo o Espiritismo e leu uma mensagem sobre os laços de família. As luzes foram apagadas ficando apenas duas lâmpadas azuis. Uma mulher de rosto sereno estremeceu levemente e começou a falar:
- Felizes são aqueles que buscam as verdades espirituais. Neste mundo costuma-se dar mais valor às coisas materiais do que às espirituais. Para ser feliz, é necessário inverter esses valores, porque o mundo material é passageiro, enquanto o nosso espírito é eterno. Hoje vim para alertar uma jovem que necessita muito aprender isso. O fascínio pelas coisas do mundo tomam conta de seu ser ofuscando sua visão, criando ilusões, o que fatalmente a levará à frustração e à desilusão. É preciso ver as coisas como elas são. Você tem endeusado pessoas sem perceber que são apenas seres humanos, com qualidades e defeitos. É hora de sublimar este sentimento que tanto a tem prejudicado. Essa jovem está presente e deve procurar amar seu pai com os olhos do espírito. A vida os colocou unidos para que aprendessem a transformar o sentimento que os uniu em vidas passadas em algo divino. Ele já conseguiu, porém você insiste em permanecer no mesmo erro. Ouça a voz de sua alma, ela quer lhe oferecer a verdadeira alegria que a levará à felicidade.
Maria Antônia estremecia e chorava agarrada à sua tia. Tudo o que o espírito lhe disse era a realidade. Amava seu pai de forma exagerada e estranha, seria a hora de mudar tudo aquilo?  O espírito continuou:
- O amor quando vivido de forma verdadeira jamais provoca sofrimentos, muito pelo contrário, é o amor que produz a felicidade, a alegria e o bem-estar.
Maria Antônia continuava chorando sem parar, acolhida por sua tia. O espírito se despediu e logo depois outros se manifestaram, todos falando do amor e dos laços familiares.
Quando chegaram em casa os jovens não estavam com ânimo para conversar, deixaram o programa para depois e foram para seus quartos, Cristiano, já no leito com a esposa, comentou:
- Querida, veja como a vida faz tudo certo, Maria Antônia ouviu tudo o que precisava, justamente na noite em que foi ao Centro, que bela mensagem!
Ela concordou:
- Isto é verdade, Maria Antônia é muito apegada a Flávio, assim como minha irmã Anita. Ás vezes me pergunto: por que Flávio atrai tantas pessoas dependentes e apegadas? Não posso negar que o apego de minha irmã e minha sobrinha é exagerado. Não sei como ele suporta.
Cristiano sentou-se na cama e ligou o abajur:  - Laura, é fácil entender por que Flávio atrai essas pessoas. Ele é uma luz, e todos querem ficar em volta de uma luz, às trevas ninguém dá importância. A natureza nos mostra que a luz produz atração por onde passa, note como os insetos voam para ela atraídos pelo seu calor e fascínio. Assim é Flávio: uma pessoa iluminada, abnegada e feliz. Ninguém gosta de ficar próximo de quem se queixa ou tem baixas energias.
- Isto é verdade, mas Anita e Maria Antônia se apegam demais, tenho a impressão que o usam como muleta.
Cristiano concordou:
- É verdade, porém Flávio faz sua parte, explica que toda dependência é sinal de imaturidade e atrai sempre o sofrimento. Elas é que não querem ouvir, neste caso a responsabilidade é toda delas.
Laura concordou e eles continuaram conversando, até que vencidos pelo cansaço, foram forçados a adormecer. Fabrício e Maria Antônia continuavam namorando escondido sem que ninguém percebesse. Uma tarde estavam sozinhos no quarto e Fabrício muito arrojado propôs:
- Você é tudo para mim! Está na hora de ser minha de verdade, tem que ser agora!
Ela meio envergonhada negou:
- Acho que não é ainda a hora, está muito cedo, estamos ficando há apenas duas semanas.
- O tempo suficiente para que eu tenha certeza de que você é a mulher de minha vida.
- Eu também te amo, mas... Sabe como é, acho que aqui no seu quarto não é lugar.
Ele com voz melíflua disse:
- Por que não? Ninguém vai chegar...
Ela acabou cedendo e já estava seminua quando percebeu uma presença no quarto. O susto foi grande, Laura estava estática. Eles começaram a se recompor e, refeita do susto, Laura vociferou:
- Vocês são loucos? Como se atrevem a esse absurdo? Meu Deus! O que sua mãe vai dizer quando souber? - Olhou para o filho.
- E você? Terá uma séria conversa com seu pai quando ele chegar. Maria Antônia não pode ficar mais aqui, deverá voltar o mais rápido possível para o Brasil.
Ela, trêmula de vergonha e de susto, suplicou:
- Tia, por favor não diga nada à minha mãe, meu pai ficará sabendo e não saberei como agir perante ele.
Laura sentia sua irritação aumentar:
- Ainda pede que eu omita uma situação como esta? Seu pai será o primeiro a saber, eu mesma ligarei para ele agora e contarei tudo. Aprendi com seu pai que devemos ser verdadeiros doa a quem doer, pois a verdade nunca é prejudicial. Nunca esconderei isso.  Fabrício gritou:
- A senhora não tem o direito de nos separar dessa forma, nós nos amamos!
Laura estava atordoada:  
- Pelo visto isso não começou hoje, a situação é pior do que eu pensava, se descobrir que houve algo mais entre vocês, não saberei qual será minha reação.
Maria Antônia chorava imaginando como seria a reação do pai. Por que cometera aquela loucura? Amava Fabrício era verdade, mas sentia um pavor ao pensar que o pai pudesse perder a imagem pura que tinha dela. Mas uma coisa era certa, nada a separaria de Fabrício. Laura tomou um calmante para esperar o marido chegar, tendo Maria Antônia e Fabrício sentados à sua frente. Horas mais tarde, quando Cristiano chegou, ela contou tudo nos mínimos detalhes. Cristiano tentou acalmar-se e fazê-los perceber o erro que estavam cometendo. Porém, eles não concordaram com nada que ele dizia. A notícia caiu como uma bomba na casa de Flávio. Anita rodava de um lado a outro esbravejando contra a filha. Francisca tentava acalmá-la enquanto Flávio permanecia pensativo no sofá. Anita vendo-o calado explodiu ainda mais:
- Não vai falar nada? Veja no que se transformou a nossa filha, numa rameira qualquer. Algo me dizia que ainda teríamos um sério desgosto com essa menina!
Flávio olhou-a sem se perturbar:
- Nada há de dramático. É você que exagera as coisas, nossa filha já tem dezoito anos e o aparecimento do sexo é inevitável. Além disso, Laura garantiu que nada de mais aconteceu, ela chegou e conseguiu impedir.
Anita continuava colérica:
- E se Laura não tivesse chegado? Tudo estaria consumado uma hora dessa e você ainda encara com naturalidade.
Ele imperturbável continuou:
- O adolescente precisa vivenciar muitas coisas para amadurecer, o sexo e o amor são duas dessas coisas. O que há de mal nisso? Os pais não devem estimular a prostituição, porém a vida sexual sadia deve ser discutida com eles dentro do próprio lar.
- Não posso acreditar no que estou ouvindo, não! Os ouvidos não são meus. Você está compactuando com uma infâmia dessas?
Flávio sempre calmo respondeu:
- Não é questão de compactuar e sim de tentar compreender. Nossa filha retorna que dia?
- Daqui a dois dias penso que estará aqui.
Francisca se pronunciou:
- Acho que os ânimos estão demais exaltados aqui, que tal fazermos uma oração chamando os guias espirituais? Precisamos de paz!
Anita sentiu realmente que precisava de orações. Os três unidos oraram pela família e assim ficaram mais calmos.

23 - AUXÍLIO ENTRE A TERRA E O CÉU

Na colônia Campo da Redenção Érica estava aflita na sala de espera de Hilário. Ao seu lado estavam Marina e Carlota.
- Não fique aflita, Érica, tudo acontece de forma certa e Deus está no comando de tudo, para que temer?
Ela se acalmava sempre que ouvia Carlota, mas mesmo assim não conseguiu parar o turbilhão de pensamentos que lhe invadiam a mente.A porta se abriu e um casal ainda jovem saiu dela. Carlota, referendo-se a eles disse:
- Veja, esse casal desencarnou num desastre de carro deixando três filhinhos sobre a Terra. Estão abalados, porém confiam em Deus. Hoje eles vieram pedir permissão a Hilário para visitar o lar terreno, onde a prole fica com a avó materna. Pelos semblantes felizes conseguiram permissão.
Chegou à vez de Érica, que ansiosa, entrou na sala do simpático e sorridente senhor que os convidou a sentar. Hilário como sempre já sabia o motivo da visita e foi direto ao assunto:
- Sei que está aflita com a família de Flávio, veio pedir para intervir e auxiliar, porém este é um momento delicado, quando as pessoas terão que usar o livre-arbítrio. Nestes casos nós não podemos interferir, apenas auxiliar aliviando as dores.
Érica começou a chorar:
- Carlota me falou do que pode acontecer e estou apavorada, meu filho não merece passar por uma coisa dessas.
Marina interveio:
- Também acho, ele é muito bom, tirou-me daquele vale onde estava perdendo minhas energias e se estou bem é por causa dele. É uma injustiça o que ocorrerá.
Hilário olhava profundamente nos olhos da mãe e da filha, pensou por alguns segundos e respondeu:
- Observem com cautela. Vocês chegaram a esta colônia há pouco tempo, não conseguem entender certas coisas e por isso julgam a vida injusta. Você, Érica, que passou mais de vinte anos morando naquela organização justiceira, onde a verdade está corrompida por uma moral permissiva e ilusória, ainda tem muitos pensamentos materialistas e grosseiros. Quando achamos que determinado fato é injusto, estamos vendo com os olhos da matéria. Só com os olhos da alma conseguimos enxergar a verdade da vida. Ela jamais erra, e
permite que as conseqüências das nossas atitudes sirvam para aprendermos os valores eternos do espírito. Marina também não está em condições de ver os fatos. Após tempos de prostituição no Vale do Amor Livre conseguiu ser libertada pela alma elevada de seu irmão e por isso julga que tem o direito de livrá-lo das provas que passará. Ignora que a Inteligência Divina tem tudo sob controle e age sempre no bem de todos, e o faz do seu jeito, o que nem sempre ocorre da forma como gostaríamos. Ninguém tem o poder de manipular a vida. Querer fazer isso é uma ilusão.
Marina e Érica envergonharam-se um pouco, porém não se deram por vencidas. Érica disse:
- Sei que Flávio me ensinou, me retirou da prisão onde vivia e por isso sou muito grata. Ele é meu filho amado. Mas será que o destino é assim inexorável e fatal? Nada há que impeça a tragédia?
Hilário explicou:
- O destino não é inexorável e fatal, uma vez que as coisas mudam conforme as pessoas agem. No caso da família de Flávio, há Camila que reencarnada não conseguiu vencer sua paixão inferior e seus sentimentos mórbidos. Estudou conosco, renasceu sob a supervisão de espíritos abnegados, porém o contato com as energias do mundo físico fez com que todas as tendências más retornassem. Nisso não há nenhuma fatalidade. Na Terra há dois tipos de energia predominantes: a negativa e a positiva. E o espírito encarnado que faz a opção pela qual vai transitar. Maria Antônia estará de frente com uma escolha muito importante da vida dela, que vai decidir todo o seu futuro, ela vai optar pelo caminho do amor ou pelo caminho da dor. Só ela poderá decidir o que fazer.  Marina replicou:
- Não há como Anita evitar a situação?
- Sempre existe um caminho onde se pode inverter as prioridades. O caminho do amor é mais fácil, é de alegrias e êxitos. Porém as pessoas estão acostumadas a pensar que o amor pode esperar. Por isso atraem todo tipo de sofrimento. O amor a Deus, a si mesmo, ao próximo, à natureza não podem esperar pelo dia de amanhã, deve ser vivido desde já. Brevemente haverá um grande expurgo no planeta Terra, onde milhares de espíritos desencarnarão compulsoriamente de forma coletiva, e não terão mais a chance de reencarnar lá. Infelizmente se Maria Antônia fizer o que pretende não poderá mais nascer na Terra. Já Anita vive pensando que doar-se, amar, ser feliz, libertar-se, pode esperar pelo dia de amanhã. Pelo que conhecemos da personalidade dela é provável que não consiga evitar a catástrofe.
Érica quis saber mais:
- Você fala em expurgo. É verdade que isto acontecerá? Na igreja sempre ouvia falar no fim do mundo, é o que ocorrerá com a Terra?
Hilário sorriu amavelmente:  
- Absolutamente não. Nosso planeta não morrerá por completo, pois está sob a lei Divina de progresso. Todavia, seu processo de regeneração já está em andamento e certas pessoas que não acompanham a vibração do mundo novo, não poderão mais permanecer nele. Os violentos, os assaltantes, os assassinos, os viciados em aberrações sexuais e em tóxicos, os egoístas, os orgulhosos, os que guardam ódio e os trapaceiros serão expurgados para aprenderem em um mundo mais condizente com suas vibrações. A Terra vai entrar em um clima de regeneração e nada poderá perturbar quem permanecer sobre ela.
Marina quis saber:
- Como isso ocorrerá? Em que data?
- O tempo ainda é uma incógnita para nós. O que podemos afirmar segundo os espíritos mais elevados é que será em breve. Essa varredura também se dará em plano astral. O fogo purificador levará os espíritos inferiores para a crosta de outro mundo ainda primitivo e renovará a atmosfera espiritual do planeta. As colônias e habitações dos espíritos inferiores também serão destruídas pelo fogo purificador.
Érica estava abismada:
- Trata-se de castigo contra os infratores?
A resposta foi clara:
- Castigo é uma palavra que não existe no dicionário divino. Trata-se do retorno das próprias ações maléficas para quem as produziu. Na realidade é o caminho da aprendizagem para aqueles que optaram pelo sofrimento. Vivendo em um mundo primitivo, sem rádio, anestesia, cinema, recursos médicos, eles aprenderão a valorizar o dom da vida e a respeitar o espaço de cada um.
Marina voltou ao assunto anterior:
- Quanto a Flávio nada poderemos fazer? Ficaremos de braços cruzados?
- Não, doaremos energias revigorantes e saudáveis. Quanto ao resto pertence apenas ao livre-arbítrio de cada um. E, mudando de assunto, hoje vocês podem visitar quem desejam.
Érica sentiu-se trêmula, finalmente iria rever o seu tão amado esposo. Marina iria junto. Carlota que as levaria ao local pediu:
- É necessário que vocês duas estejam bem emocionalmente para fazer a visita que desejam, se forem levar energias depressivas, o melhor é permanecerem por aqui.
Marina garantiu:
- Estou bem, apesar de saudosa, mas pelo que sei saudade não faz mal.
- Eu digo o mesmo - voltou a falar Érica.  Elas despediram-se de Hilário e volitaram até a crosta terrestre. Entraram numa creche grande e muito bem organizada, foram até uma das salas e perceberam que era a hora do lanche. De longe avistaram uma assistente dando comida na boca de um garoto que tinha cinco anos. A criança parecia revoltada por não conseguir comer como os coleguinhas, porém a docilidade da assistente o acalmava.
Érica emocionada dizia:
- É difícil aceitar a situação na qual renasceu meu pobre Ângelo. Sem as duas mãos, muitas oportunidades lhe serão tiradas.
Marina abraçava-se ao garoto e dizia:
- Ah, paizinho, como te amo, sempre que puder estarei contigo. Pena que não o valorizei quando estava na Terra, sinto que não fui boa filha.
Carlota interferiu:
- Não tenham sentimentos de pena para com ele. Dó e piedade destroem o ser humano, pois indicam que ele não tem forças para lutar e vence. Isso não é verdade, todo ser humano tem muita força e pode vencer esteja onde estiver. A medicina avança e em breve ele terá mãos artificiais, podendo trabalhar normalmente como qualquer outra pessoa.
Marina perguntou:
- Por que ele escolheu vir desta forma?
- Ele quis se punir pelos atos de roubo que cometeu nas duas últimas encarnações. Foi orientado de que podia aprender pelo amor, poderia vir com o corpo sadio e utilizar as mãos como médico-cirurgião, dando passes nos centros espíritas, ou como médium escrevendo sobre a espiritualidade e os importantes valores do bem. Porém ele, individualista e egocêntrico como sempre, preferiu sofrer sozinho ao invés de modificar seu carma, trabalhando em favor de si mesmo e do próximo.
- Como é ruim a autopunição! Por isso em minha próxima encarnação farei de tudo para aprender pela lei do amor - disse Érica. - Sei que me comprometi quando fiz aquele aborto, mas estou disposta a receber aquele espírito novamente e a tratá-lo com amor e dedicação, ensinando-lhe o caminho do bem.
- Eu também - disse Marina. - Desejo fazer algo de útil para mim e para a humanidade. As pessoas estão sofrendo muito sobre a Terra e necessitam de orientação e consolo. Se puder contribuirei para acabar com a prostituição e ensinar a viver a sexualidade sadia.
Espero conseguir, pois assim também estarei me auxiliando.
Depois de lançar energias positivas sobre Ângelo, elas se despediram e foram para a casa de Flávio. Fazia dois dias que Maria Antônia havia retornado da Inglaterra e o clima estava péssimo em todo o ambiente. Fechada em seu quarto ela dava vazão às lágrimas, enquanto Anita recebia na sala sua amiga Giulia.
- Ai, como me arrependo de não haver dado aquela festa que a pestinha pediu, para mim tudo foi pior, só pode ser castigo.
Giulia mexendo delicadamente no belo arranjo de flores ao lado do sofá concordou:
- Foi mesmo, essa menina merecia uma bela sova, imagine, namorar com um primo! Se fosse minha filha, mesmo nessa idade apanharia.
- Imagine se o Flávio vai deixar! Ela nunca apanhou na vida porque o pai não permitiu. Acho que deixei o Flávio cuidar demais dessa menina, por isso deu no que deu. Ele prega que os castigos e surras não educam ninguém, imagine só. Se não fosse ele, Maria Antônia veria o que é uma boa educação.
Giulia com um tom admirado na voz retorquiu:
- Engraçado... Na sociedade você e o Flávio são admirados como um casal modelo. Ninguém imagina que você vive nesse clima com sua filha, para todos você é a mãe bondosa e perfeita.
Anita declarou:
- Faço isso para não deixar minha imagem manchada. Mas entre mim e o Flávio tudo é às mil maravilhas, nisso todos têm razão. Mas não sei o que acontece entre mim e Maria Antônia, parece que somos completamente estranhas, inimigas, talvez. Desde que ela nasceu perdi muito espaço junto ao Flávio, ele só dá importância a ela. Isso me ofende muito.
- Você deve se conformar, afinal filhos são para a vida toda. Ainda bem que sou feliz com os meus. Onde está Maria Antônia agora?
- Lá no quarto chorando, fazendo drama para o pai derreter-se todo e liberar o namoro.
Francisca subiu as escadarias com uma bandeja de lanche, olhando de soslaio para as duas.
- Essa velha maluca é outra que perturba a minha vida. Desde que se mudou pra cá vive se metendo em nossos problemas. Quanta coisa tenho de aturar pelo meu marido!  Giulia estava curiosa:
- Afinal, por que essa Francisca veio morar aqui? Ela não tinha uma bela casa em bairro elegante?
- Nossa, você está mal informada, parece que nem somos amigas - retorquiu Anita. - Essa velha meteu-se com uma confecção há tempos e não deu certo, não tinha tino para os negócios. A loja foi endividando-se e ela começou a tomar dinheiro com agiotas. Como a crise não foi superada, teve que vender a casa e a loja. Como único parente no Brasil Flávio deu guarida a ela aqui. Agora está como governanta. Veja só, não faz nada aqui, mete-se na minha vida e ainda ganha por isso. Só mesmo nessa família!
Giulia lamentou:
- Avalio sua dor querida, se ao menos seus pais estivessem vivos, você poderia passar uma temporada com eles como fazia antigamente.
- Nem fale Giulia, nunca vou perdoar Deus por ter matado meus pais daquela forma naquele desastre. E o Flávio ainda garante que a vida faz tudo certo.
A amiga ouvia admirada:
- Quer dizer que você não segue a filosofia dele? Estou admirada cada vez mais com você.
- É claro que não dá para não acreditar em algumas coisas, porém na maioria das vezes finjo que aceito. Sabe como é, uma esposa apaixonada faz tudo pelo seu casamento.
Nessa hora Francisca interrompeu:
- Com licença, Anita, mas preciso falar com você seriamente.
- Do que se trata? Se for sobre Maria Antônia, nem quero saber!
- É sobre ela sim. Acho bom você fazer alguma coisa antes que ela adoeça. Levei o lanche e ela não comeu. Isso já faz dois dias, o que quer? Que ela seja internada?
- Ora, como se a culpa fosse minha. O que ela está fazendo é só para chamar a atenção do pai, pensa que não sei?
Francisca pediu:
- Por favor, converse com ela, diga que libera esse namoro. Você sabe como são essas coisas de adolescente, logo tudo passa.
Anita teve um ataque de fúria:
- Não acredito que ela ainda mantém esse pensamento! Vou já falar com ela. Direi umas boas verdades.
Francisca interrompendo a passagem da escada bradou:
- Veja só o que vai fazer para depois não se arrepender. O Flávio é muito paciente, mas uma hora dessa pode mudar, cuidado!
Encarando-a com rancor Anita vociferou:
- Saia da minha frente, eu sei como educar minha própria filha, afinal eu sou a mãe.
Francisca saiu e sem olhar para Giulia, foi rezar em seu quarto. Aquela casa precisava muito de boas vibrações. Anita invadiu o quarto da filha, onde grossas cortinas impediam a luz do sol de penetrar. Vendo Maria Antônia com a cabeça nos travesseiros, perdeu a paciência.
- Eu pensei que você já havia se conformado, mas não! Agora está recorrendo à boba de sua tia. Saiba que aconteça o que acontecer você não irá jamais continuar o namoro com o Fabrício. Eu não permitirei.
Maria Antônia, o poço vivo da obsessão, levantou transtornada, olhos vidrados a encarar a mãe com rancor:
- Miserável, é assim que quer destruir a minha vida? Saiba que sou mais forte e vencerei. Tenho condições de tirar o papai de você para sempre!
Anita empalideceu, será que estava ouvindo direito?
- Você disse o quê? Repete, que eu não entendi bem.  Sem se esquivar, Maria Antônia continuou colérica:
- É isso mesmo dona Anita, você me separa do Fabrício e eu torno sua vida um inferno. Faço meu pai te abandonar. Você morrerá sozinha e abandonada.
Anita, sem se conter, desferiu um forte tapa no rosto da filha, que tombou ao chão.
Maria Antônia, de onde estava, repetiu entre dentes:
- Você vai me pagar por isso, eu juro que vai. Maldita seja você e sua alma! Primeiro rouba o meu pai, agora rouba o Fabrício. Um dia ainda sentirá o peso de minha ira.  Anita, olhos desafiadores, respondeu:
- É o que veremos.  Bateu a porta e desceu as escadas deixando para trás todo o ódio e rancor da filha. Giulia já havia partido e ela resolveu tomar uma ducha e tentar relaxar.
Em seu quarto Maria Antônia estava com ódio triplicado. Espíritos inferiores já em simbiose intuía-lhe várias idéias. Ela rodava sem parar, atormentada por tantos pensamentos. Não saberia viver sem Fabrício, sua mãe haveria de lhe pagar. Ela precisava pensar numa maneira de neutralizar a atitude da mãe, mas como? Pensou, pensou e conseguir achar uma saída. Até que de repente uma idéia veio-lhe a mente e tomou forma. Era isso que iria fazer! Como não pensara nisso antes? Rapidamente consultou a lista telefônica e achando o numero, discou:
- Alô, preciso falar com Janjão, ele está?  Uma grossa voz masculina, sem nenhuma simpatia, perguntou:
- Quem deseja falar? É que ele está sempre muito ocupado e só fala com pessoas que tenham assunto importante.
- O meu assunto é importante, posso falar com ele amanhã de manhã? Diga que é a Maria Antônia de Menezes, certamente se lembrará de mim.
O outro demorou alguns instantes, depois respondeu:
- Tudo certo garota, amanhã ele irá recebê-la.
Ela agradeceu e desligou. Seu plano seria perfeito, ninguém iria desconfiar de nada. Desceu mais refeita e já encontrou o pai na sala. Correu a abraçá-lo. Flávio retribuiu o abraço com prazer, adorava ver a filha feliz. O que tinha acontecido? Por que apesar das confusões ela estava feliz? Vendo a filha abraçada ao marido Anita perguntou:
- Nossa, essa sua filha é uma caixinha de surpresas! Há menos de meia hora estava no quarto, me agredindo e chorando. Agora já ri e o abraça.
Maria Antônia esclareceu com fingimento:
- É que pensei em tudo o que a senhora me disse e resolvi seguir seus conselhos. Meu lance com o Fabrício não pode continuar. A senhora estava coberta de razão.
Flávio sentiu-se mal. De repente, uma onda de energias pesadas invadiu o ambiente. Ele não saberia de onde vinham, mas as estava sentindo. Seria da filha? Algo lhe dizia que ela estava mentindo. Resolveu arriscar:
- É isso mesmo que quer para sua vida, filha? Pense direito, sei que sua mãe tem boas intenções, mas só você pode decidir seu destino, sei que é forte e capaz.
Os olhos de Maria Antônia brilharam. Como o pai era maravilhoso! Resolveu continuar com a mentira:
- É isso mesmo pai, resolvi pôr um ponto final nessa história maluca. Desejo toda a felicidade a Fabrício, mas sei que não será comigo. O meu namorado ainda vai aparecer.
Flávio fingiu acreditar e não perguntou mais nada. Foram jantar e assim esqueceram os incidentes do dia.

24 - A VINGANÇA

No outro dia pela manhã Maria Antônia saiu cedo em direção a uma rua pobre da Zona Norte de São Paulo. Tinha certeza de que era ali que Janjão morava. Pagou o táxi, deu ordem para que esperasse e seguiu andando. Numa rua de má aparência um sobrado luxuoso se destacava. Ela se aproximou do portão e falou com o segurança:
- Sou a Maria Antônia, tenho hora marcada com Janjão agora de manhã, gostaria que você fosse avisá-lo. 0 segurança, com cara de poucos amigos, avisou por um aparelho de rádio, que havia uma moça querendo falar com o chefe. Após dar o nome, ele liberou a passagem e ela entrou. Passou por um jardim bonito e foi conduzida pela empregada ao segundo andar. Pelo corredor ela passou por várias portas até chegar a uma, repleta de seguranças. Pouco depois estava frente a frente com o famoso traficante. Olhando-a intimamente, ele perguntou:
- O que a traz aqui? Veio buscar o bagulho para alguém? Até onde eu sei você não é viciada, apenas provou aquele dia com meu filho e seu primo na festa que demos aqui em casa. Nunca pensei que fosse voltar, afinal, filha de um homem metido a santo, sabe como é.
Ela foi direto ao assunto:
- O senhor sabe que sou amiga de seu filho e sei de muitas coisas sobre você. Inclusive que mata sem dó nem piedade seus inimigos no tráfico. Sei também que não faz isso pessoalmente, contrata pistoleiros especializados para esse fim. Seu filho num "daqueles" momentos me contou tudo.
Ele cocou a barba preocupado:
- O que tem isso a ver com sua visita?
- Tudo a ver! Quero que um de seus pistoleiros extermine uma pessoa para sempre da face da Terra. Tem que ser um serviço bem-feito e sem deixar pistas!
Ele se admirou:
- Olha que tenho visto muito bandido por aí, da pior espécie, mas nunca vi nenhum assim com cara de anjo. Por acaso quer matar a namoradinha de algum garoto por que está apaixonada? Se for isso, não precisa chegar a tanto, uma crueldade praticada com classe separa qualquer casal, sem precisarmos recorrer ao crime.
Ela foi clara:
- Quero matar a minha mãe, o mais rápido possível!
Janjão abriu a boca e fechou-a rapidamente de tanta surpresa, poderia esperar qualquer maldade, mas uma dessas estava fora de seu pensamento.
- Menina, já pensou bem no que quer fazer? Isto é muito grave. Veja, até eu tenho amor à minha mãe, cuido dela com todo carinho. O que a sua fez de tão sério?
Maria Antônia demorou, mas respondeu:
- Ela existe! Isto é o que ela fez de mais grave, existir.
Janjão estava cada vez mais admirado e com um tom grave na voz ele argumentou:
- É melhor desistir do que vai fazer, certamente se arrependerá muito e não poderá mais voltar atrás.
Um espírito de mulher que acompanhava Maria Antônia, irritada, soprou-lhe ao ouvido:
- Não se deixe levar pela conversa dele, insista, vá até o fim. Só será realmente feliz quando sua mãe morrer, aí terá o Flávio e o Fabrício só para você. Não seja fraca!
Ela não registrou suas palavras, mas de repente sentiu aumentar o desejo de ver sua mãe morta:
- Não vou me deixar levar por suas palavras. Quem é você para me dar lições de moral? Sei que já tem mais de quarenta mortes nas costas. O que quero é que você contrate a qualquer preço um de seus pistoleiros para dar cabo de minha mãe o mais urgente possível. Não posso esperar mais.
Ele coçou a barba indeciso, depois retrucou:
- Está bem, poderei contratar uma pessoa de Goiás que trabalha pra mim. Mas ela cobra caro e eu também quero minha comissão.
- Já esperava por isso. Tenho como conseguir esse dinheiro. Entre em contato com ela o mais rápido possível. Desejo saber o valor ainda hoje. Este aqui é o número de meu celular. - Ela pegou um pedaço de papel com um número anotado e deu para ele. Logo depois se despediu e foi embora.
No trajeto de volta para casa Maria Antônia sorria satisfeita. Com esse ato ficaria livre para sempre de sua mãe e teria seu namoro liberado. Depois cuidaria para que Flávio não se casasse novamente, não suportaria vê-lo com outra. Quem tivesse visão espiritual perceberia vultos negros andando de mãos dadas com Maria Antônia, que estava à beira de cometer mais um crime. Porém, nada acontece sem que as forças do bem estejam atentas, e em Campo da Redenção os mentores juntamente com Marina e Érica estudavam o caso.
- É triste perceber que apesar de tudo Maria Antônia não conseguiu vencer sua paixão - lamentou-se Carlota. - Tudo fizemos para que ela pudesse crescer sem sofrimento, mas por livre-arbítrio escolheu o caminho da dor. Às vezes penso que ela está regredindo espiritualmente.
Hilário explicou:
- Isto seria impossível. Na escala da perfeição ninguém desce, apenas estaciona. No emaranhado das reencarnações sucessivas podemos perder até mesmo as conquistas intelectuais, porém as morais jamais são perdidas. Acreditem, Maria Antônia não está madura para agir diferente, além do mais ela encontra reciprocidade. A energia da mãe está atraindo esse crime.
- Que horror! - bradou Érica sem entender. - Onde está Deus que não impede esse crime? Estará omisso?
Hilário sorriu:
- Dia chegará em que todos perceberão como Deus age, acionando a evolução. No movimento de seres que povoam o Universo, os mais inferiores auxiliam o progresso de outros e assim por diante. Se as pessoas vencessem a violência íntima, lutassem para banir o pessimismo e o medo do coração, ninguém mais seria assassinado ou violentado. Anita não tem a violência estampada no rosto como muitos a tem, porém acredita no mal, teme o mal, acha que ele é mais forte que o bem, vê sua filha como uma rival. Ao lado de Flávio teve a oportunidade de se modificar, porém a ignorou. Leva vida fútil onde o materialismo impera. Se Maria Antônia conseguir o que pretende será porque a mãe necessita desta experiência para evoluir, não como fatalismo, mas por afinidade.
Marina pareceu entender:
- Então é por isso que as pessoas são assassinadas? Elas atraem o crime para suas vidas?
- Lógico! Não existem vítimas inocentes sobre a Terra. Num crime, num assassinato, o que há é o encontro de vibrações do assassino com o assassinado. Na Terra há pessoas "assassináveis" que morrem com facilidade, seja por balas perdidas, crime premeditado, passional, etc. Essas não estão dando o melhor de si em seu nível de evolução, estão carentes de si mesmas e de Deus. Em contraposição existem pessoas "não assassináveis"; essas não morrem através da violência, do crime, do roubo e nem são violentadas, isto se dá porque já venceram a violência íntima, acreditam na força do bem, cultivam a espiritualidade, são otimistas, não dramatizam nem invadem a vida alheia. Infelizmente, se Anita morrer é porque é "assassinável".
Érica em dúvida questionou:
- Então, quer dizer que o ato de Maria Antônia está certo? Ela não será castigada por Deus?
Hilário delicadamente respondeu:
- Um crime, de qualquer espécie só traz resultados negativos, portanto é sempre um mal. Deus não castiga ninguém, todavia dirige o Universo através de leis perfeitas e imutáveis que dão sempre a cada um segundo suas obras. O espírito que hoje chamamos de Maria Antônia, já viveu como Helena; naquela época já acreditava na violência, por isso optou por matar Anete, sua rival no amor por Henrique. Recebeu a violência de volta quando foi assassinada pelo capanga que virou seu amante. Em sua penúltima reencarnação continuou acreditando no mal, como solução de problemas e novamente morreu assassinada. Agora mais uma vez recorre ao crime e desta vez o pior de todos: contra a sua própria mãe. Certamente sofrerá muito com essa atitude. É uma obsediada em altíssimo grau.
Marina perguntou:
- Será justo Anete morrer assassinada mais uma vez? E pela mesma pessoa?
- Para Deus ela estará sempre aprendendo ainda que pelo caminho da dor. Quando viveu como Anete, julgava-se fraca e Indefesa, acreditava na força do mal, temia o mal. Por isso foi morta tragicamente. Na presente existência, para fugir da experiência anterior, seu espírito entrou nas ilusões. Acha-se dona de Flávio, pensa que pode fazer o que quer por causa do dinheiro e da influência do marido. Prometeu amar, melhorar-se, aproveitar a evolução de Flávio para crescer junto, porém tem invertido todo o processo. Se as pessoas soubessem o quanto a violência íntima as prejudica lutariam para modificar suas más inclinações. Mas no mar encapelado do mundo a maioria esquece-se de cultivar o bem, a espiritualidade. Creia Marina, se Anita procurasse o bem verdadeiramente ninguém conseguiria assassiná-la. Após esta reunião, Hilário os convidou para continuarem observando os fatos, para ajudarem se fosse preciso. Na mansão de Anita, tudo reinava na mais aparente tranqüilidade. Ela sentia-se aliviada, já que a filha estava modificada, mostrando-se benevolente e não falava mais no primo Fabrício. Com isso, sem mais problemas para cuidar voltou à vida vazia de sempre. Francisca continuava cuidando de tudo, porém ao perceber Maria Antônia ao telefone, ficou desconfiada. Com quem ela estava conversando que quando a viu ficou tão assustada? Ela sentia energias ruins no ambiente, mas não conseguia perceber de onde vinham. Era noite de reunião espiritual na casa de Flávio. Uma vez por semana ele reunia a família na grande sala de estar e orava em favor da humanidade, recebendo instruções psicofônicas, que eram gravadas por Francisca num aparelho de som, para serem estudadas depois. Após a prece inicial, Anita com rosto compungido leu uma mensagem sobre a força do pensamento positivo e o livre-arbítrio. Depois dos comentários de Francisca e Flávio, as luzes principais foram apagadas, ficando o ambiente em penumbra. Concentrado, Flávio entrou em transe e começou a falar:
- Boa-noite irmãos, a mensagem de hoje será sobre a boa nova da paz. O nosso Mestre Maior ensinou-nos o perdão das ofensas e o arrependimento. Até quando vamos adiar a conquista destas virtudes? Em nossa ilusão deixamos tudo para depois, ignoramos que a felicidade só pode ser vivenciada no hoje, nunca no passado ou futuro. Iludidos projetamos para o futuro nossos sonhos e desejos, imaginando que só seremos felizes com eles. Para realizá-los não titubeamos em ferir, magoar e interferir drasticamente na vida alheia, achando que assim alcançaremos a paz que tanto sonhamos. Porém, o que começa errado jamais poderá dar certo, e na colheita de nossa semeadura receberemos a desilusão e a dor, forçando-nos a amadurecer e a reparar. É o momento de descobrir que o amor e a felicidade verdadeira não podem esperar pelo dia de amanhã. O Criador não espera o dia de amanhã para nos amar, porém nós cultivadores que somos de toda sorte de ilusões, esperamos o amanhã para amá-lo e praticar seus ensinamentos. O nível de evolução de cada um conta sempre. Hoje todos que habitam este lar estão tendo uma chance preciosa de parar para pensar no que vêm fazendo de suas vidas e onde estão colocando seus corações. A partir de agora não podem mais utilizar a desculpa da ignorância para encobrir os erros, todos aqui já estão cientes do mal que não devem fazer e do bem que devem praticar. Quem sabe mais tem o dobro de responsabilidade. O Nazareno nos disse: "Muito será pedido há quem muito foi dado". E essa é a realidade. Conservem a paz no coração, o otimismo e a conduta reta, marcada sempre pela ética e pelo verdadeiro bem. Gostaria de dizer que ainda dá tempo de corrigir muitos erros e evitar o sofrimento, pelos descaminhos nunca se chega ao caminho, pela maldade nunca se chega à felicidade. Quem comete o mal mergulha o subconsciente nas sombras da infelicidade, e como o subconsciente trabalha na materialização das nossas crenças, é a infelicidade que teremos em nosso caminho. Só o amor liberta, só a prática do bem verdadeiro pode levar à prosperidade completa. A mensagem foi encerrada e Flávio voltou ao normal. Beijou a filha e a esposa, abraçou Francisca e alguns amigos que estavam com ele na sala. Quando foram se recolher, já no quarto, Flávio comentou com a esposa o teor da mensagem:
- Alguém nesta casa está querendo fazer alguma espécie de mal. Nunca me engano, sempre que Hilário dá mensagens deste tipo é porque alguém está na prática do mal. Não me negue Anita, é você?  Ela, que estava deitada, levantou-se nervosa:
- Como você pode perguntar isso a mim? Afinal, não me conhece depois de tantos anos de casamento? Seria incapaz de fazer mal a uma mosca, você sabe.
- Não sei... Você mudou muito de alguns anos para cá. Sinto que não é a mesma moça com a qual casei.
Ela corou, nunca quis que o marido tivesse queixas dela.
- As coisas podem mudar meu amor, isso não quer dizer que eu passe a cometer maldades. Você diz que eu mudei, mas eu não vejo em que. Afinal, não estou sempre amorosa com você? Nossa vida íntima nunca mudou nesses anos todos, continuamos anos amar como sempre.
- Você diz isso porque analisa apenas o seu lado afetivo. É claro que continuo amando-há como no primeiro dia, porém tem levado vida ociosa, briga demais com Maria Antônia, não tem gestos de carinho, é fria com as outras pessoas, só vejo-a sendo amorosa comigo. Às vezes acho seu amor por mim um pouco obsessivo.
- Nunca pensei que um dia chegaríamos a ter essa conversa. Achava que você nunca ia me cobrar por não ser religiosa. Sempre achei que se um dia nosso casamento acabasse seria por causa de sua religião. Afinal, não sou a mulher religiosa como você queria.
Ele enterneceu-se, amava Anita sinceramente apesar de todos os seus defeitos. Não queria e nem gostava de brigas. Resolveu contemporizar:
- Tudo bem meu amor, aceito-a como você é. Vamos esquecer esse nosso papo e pedir a Deus que se alguém aqui deste lar estiver com a maldade no pensamento, possa se arrepender e voltar atrás.
Anita, vendo-o rezar, sentiu-se aliviada. Aquela conversa estava seguindo um rumo que não estava lhe agradando. Imagine se o marido descobrisse que ela utilizava ervas para não engravidar? Temia perdê-lo para outro filho. Jamais engravidaria de novo. No silêncio da noite, Anita refletiu sobre seu comportamento, mas influenciada por entidade das trevas concluiu que estava sempre certa e que não precisava mudar em nada. Assim adormeceu. Sonhou que estava numa praça arborizada e uma brisa suave banhava seu rosto, era noite e o céu estava estrelado. De repente, uma figura de mulher surge-lhe a distância e ao aproximar-se lentamente provoca-lhe muito susto:
- Mamãe! Como pode? A senhora não morreu com papai naquele desastre horrível? É mentira, devo estar tendo alucinações. - Dizendo isso fugiu desesperada para o corpo físico, acordando banhada de suor.
No astral Alexandra dizia triste:
- É Alonso, minha filha nem mesmo conseguiu me ver, conversar comigo, tão mergulhada está nas ilusões do mundo. Admito que devo ter errado muito na educação dela. - Começou a chorar.
Alonso, companheiro da comunidade onde viviam, confortou-a:
- Não pense assim amiga, lembre-se de que você também educou Laura e ela não é nem um pouco parecida com a irmã. Neste caso não foi questão de simples educação doméstica, mas sim de nível de evolução espiritual. Enquanto Laura mais evoluída conseguiu captar facilmente suas palavras e exemplos, Anita, mais primitiva, esqueceu-se e caiu nas malhas do pessimismo e da futilidade. Não é à toa que vai atrair semelhante crime para a sua vida. Alexandra, enxugando as lágrimas e sentada em um banco tosco, comentou triste:
- É difícil aceitar a morte. Temo que Flávio não consiga reagir positivamente perante os fatos. Aqui Anita ficará comigo, mas lá ele ficará sozinho.
Alonso sorriu delicadamente ao dizer:
- Ninguém está sozinho. Flávio já tem amadurecimento suficiente para vencer esta prova. Confiemos em Deus.  Ela concordou e juntos foram para o pátio interno da operosa colônia.
Em seu quarto Maria Antônia agarrada ao travesseiro não conseguia dormir. Será que aquela mensagem foi para ela? Não, não podia ser. O que ela iria fazer era um favor ao mundo retirando dele aquela criatura cruel e infeliz que era sua mãe. Quando a viu lendo Tão linda mensagem teve ganas de agredi-la. Mas o que poderia fazer? Se quisesse ter vida boa e feliz ao lado do pai e de Fabrício teria que exterminá-la. Levantou-se e sobre o toucador havia um porta-retratos dela bem pequena, com três anos talvez. Sua mãe estava junto. Naquela época tudo era feliz, por que as coisas tiveram que mudar? Reconheceu que gostava de provocar a mãe, mas ela era também culpada. Nunca havia tido gestos de carinho com ela. As outras mães que ela conhecia eram amorosas com os filhos, cobriam-lhe de carinhos e beijos, faziam-lhes todas as vontades. Porém sua mãe era distante, fria e egoísta. Até tia Francisca que era solteirona e nunca havia tido filhos, tinha arroubos de carinho para com ela muito mais que sua própria Anita.
Olhou o relógio digital: eram duas horas da manhã. Pela manhã receberia de Janjão a informação da quantia necessária para o crime. Não poderia desistir. Olhou para os posters de seu pai na parede e pensou: "Como um homem tão bonito pode ter gostado de uma pessoa como sua mãe?". Em sua perigosa ilusão se via como a mulher ideal para Flávio, a única que ele realmente merecia. Não, não poderia desistir. Acertaria tudo com Janjão. Ela não percebeu, porém Ester, sua antiga companheira quando na erraticidade, estava do seu lado insuflando-lhe idéias macabras:
- Isso mesmo Camila, não desista. Onde está aquela jovem corajosa e voluntariosa que conheci? Essa zinha que você chama de mãe é sua rival, roubou-lhe seu amor e vai lhe roubar a vida se você permitir. Acabe com ela agora ou sofrerá muito no futuro!
Ela não registrava suas palavras, porém sentia o ódio por sua mãe aumentar:
- Não posso e não vou desistir. O que quero fazer será o melhor para a minha vida. Ela já me rouba a atenção de meu pai, agora quer me separar de Fabrício. Isso não poderá acontecer, mostrarei para ela quem é mais forte". - Pensando assim foi para a cama e depois de horas rolando insone, conseguiu adormecer.
Maria Antônia, em seu egoísmo, esquecera-se completamente de tudo quanto aprendeu com o pai desde criança. Flávio ministrava-lhe aulas de espiritualidade, pensamento positivo, mentalismo e metafísica. Todavia, os sentimentos perversos prevaleceram e ela não se lembrava o quanto o assassinato é crime terrível perante o tribunal da própria consciência, muito pior se cometido contra um dos genitores. A responsabilidade é dobrada.

25 - O DIA DO CRIME

- Alô!? Janjão? Tudo certo para hoje? A quantia é aquela mesma?
- Sim, mas deve ser entregue às três horas como o combinado. Se não estiver na hora marcada nada feito.  - Sim, estarei lá!
- Como você arranjou esta quantia? É muito alta. Você é espertinha, como conseguiu enganar o velho?
Ela irritou-se:
- Isto não é de sua conta. Meu pai não é velho, é o homem mais jovem e bonito que existe! Como ousa pronunciar o nome dele com sua boca suja?
- Olha garota, vamos terminar esse papo antes que eu me irrite com você. Esteja lá às três.
Maria Antônia desligou o celular e continuou andando por uma avenida larga e movimentada. De repente chegou a uma bela praça. A fonte luminosa jorrava e alguns pássaros brincavam felizes redor dela. Ela sentou sem perceber a beleza do lugar, só tinha olhos para seus problemas. Uma senhora com aproximadamente 80 anos também chegou e sentou-se perto dela. Que horas são, mocinha?
- Dez e meia.
- Você costuma sempre vir a este local?
- Não, estou aqui por acaso - respondeu já irritada.  A velhinha olhou-a profundamente e disse:
- Já observou como são belos e inocentes esses pássaros? Brincam felizes sem se preocuparem com nada. É uma beleza! Sempre que estou com problemas venho aqui retirar deles preciosa lição.
- Era só o que faltava! - pensou Maria Antônia. - Lição de pássaros! O que esses seres degradantes poderiam oferecer? Lições sim eram aquelas que seu pai dava em seus cursos. A senhora, parecendo ler seus pensamentos, disse:
- Vejo que você não entendeu o que eu disse e nem consegue enxergar a lição que eles podem nos dar. A natureza é muito rica e com ela podemos aprender muitas coisas. Porém os homens esquecem-se do belo, do natural, vivem como se fossem robôs, esquecem-se de que na natureza estão todas as lições que nós precisamos para viver melhor. Às vezes penso que a única religião que existe no mundo é a natureza. Já imaginou que beleza?
Ela deu de ombros:
- Pra mim religião é aquela que meu pai professa, ele é muito religioso e sábio, fique sabendo!
- Sei que seu pai é assim, mas vamos falar dos pássaros. Deveríamos ser como eles. Despreocupados, brincam, trabalham sempre confiantes de que o dia de amanhã lhes virá belo para suprir todas as suas necessidades. Nós somos diferentes, desconfiamos da vida, vivemos sem fé, achando que o dia de amanhã será sempre de sofrimento e problemas. Não confiamos na Fonte da Vida e nem sabemos sequer que ela é Deus em ação.
Maria Antônia contestou:
- É claro que os pássaros são despreocupados, são somente pássaros, seres sem nenhuma importância. Nem sequer pensam nem sentem nada.
Há senhora muito viva respondeu:
- Engana-se, antes de serem animais eles são uma centelha divina neles reside o princípio inteligente que um dia tornar-se-á espírito. Neles, por instinto, há a confiança num ser divino que tudo provê e comanda. Nós, os seres humanos, somos a raça mais desenvolvida da Terra, porém a mais sofredora. O pensamento, o raciocínio que nos foram dados como mérito, para nosso crescimento e progresso, estão sendo usados para a destruição e a derrota. Creia querida, nunca colheremos flores se plantarmos sempre espinhos.
Maria Antônia ficou pensativa. Parecia até que aquela velha lia seus pensamentos.Resolveu terminar a conversa:
- Olha minha senhora, já ouvi falar de tudo isso no Centro de meu pai, não preciso saber de mais nada. Vá cuidar de sua vida que eu cuido da minha.
Dizendo isso saiu apressada e não percebeu que a mulher desapareceu rapidamente indo buscar outros espíritos que estavam esperando por ela. Ao vê-la chegar, Noel indagou:
- E então, Luiza, ela cedeu à nossa última tentativa?  - Infelizmente não, querido. Acha que sabe tudo e que não precisa de mais nada nem ninguém. O egoísmo impera e só será vencido com o sofrimento.
Noel abraçou-a com carinho:
- Nem tudo que queremos podemos evitar, se aqui do plano espiritual pudéssemos interferir no livre-arbítrio das pessoas, muito sofrimento seria evitado. Entretanto, só experimentando é que as pessoas teimosas vão aprender. As pessoas inteligentes vão pelo caminho do amor, as insensatas vão pelo caminho da dor, há apenas estes dois caminhos para se evoluir...
Maria Antônia continuava andando sem parar. Estava planejando esse crime há duas semanas e nada poderia falhar. Armaria tudo para que parecesse um assalto, assim ninguém seria condenado ou preso, muito menos ela. O pistoleiro viria de Goiás e assim que terminasse o serviço iria embora. Havia conseguido com um amigo, poderoso sonífero que colocaria na bebida dos seguranças, fazendo-os adormecer. Naquela noite haveria palestra e todos de sua casa sairiam, menos Anita que há meses não freqüentava o Centro. Teria que ficar atenta para que a mãe não inventasse nenhum programa e saísse de última hora. De súbito decidiu ir para casa e ficar grudada ao telefone, assim se a Giulia ligasse ela daria uma desculpa e não a deixaria falar com a mãe. Todos almoçaram normalmente naquele dia, menos Maria Antônia que estava muito nervosa, mas só Francisca percebeu. Após ficar até o meio da tarde sem sair, lembrou-se do compromisso inadiável de levar o dinheiro a Janjão. Assim foi, entregou o dinheiro, deu o mapa da casa e uma foto de sua mãe. Às nove horas tudo ocorreria sem falhas.
Às sete da noite todos se preparavam para sair. Quando Flávio viu Maria Antônia pronta para seguir com ele e Francisca ficou admirado:
- Resolveu ir conosco, assim de repente? Fico muito feliz!
- É que gostaria de ouvir sobre o tema de hoje. Nem sei o que é, mas sei que tudo o que o senhor fala é lei!
Francisca interviu:
- Mas você raramente vai ao Centro com seu pai, o que deu em você, menina?
Ela mordeu os lábios:
- É que... É que não me sinto bem hoje, quem sabe uma boa palestra renovará meu ânimo!
- Bem que eu percebi que você estava muito nervosa, quase não almoçou nem jantou. Até tremer você tremeu. Conte à sua tia, algum problema?
Anita que ouviu tudo a distância se aproximou com fingido interesse:
- O que minha filha pode ter? Afinal tem tudo aqui, nada lhe falta! Eu não entendo esses jovens de hoje, têm o mundo nas mãos e ainda se queixam.
Maria Antônia queria dizer que o principal lhe faltou que era um amor real de mãe, porém queria demonstrar ao máximo que estava em paz com ela, apenas disse:
- Agradeço sua preocupação mamãe, mas não deve ser nada sério, apenas uma indisposição.
- Você precisa ver isso filha, depois da palestra você fará uma consulta com um dos nossos terapeutas para ver se essa indisposição está no corpo físico ou astral. Agora vamos, que não posso chegar atrasado.
Eles saíram deixando Anita sozinha na sacada da mansão olhando-os de longe. Quando o carro partiu ela sentiu uma tristeza infinita. Não sabia definir de onde vinha. Resolveu ligar para Giulia. Discou e esperou:
- Giulia? Que tal vir aqui me fazer companhia? Estou tão solitária, todos me abandonaram - disse ela em tom de brincadeira.
- Você está se sentindo sozinha? Nunca a vimos assim, diga logo, está desconfiada do Flávio com outra?  Anita se horrorizou:
- Nem de brincadeira fale uma coisa desta, nestes longos anos de casamento tenho certeza de que ele nunca me traiu, é da natureza dele ser fiel. Se ele tivesse me traído com alguém certamente eu teria eliminado da Terra essa rival.  Giulia assustou-se:
- Nossa, você às vezes tem uma crueldade que me espanta. Seria mesmo capaz de um ato desses?
- Pelo meu marido eu até mataria se preciso fosse.
- Bom, estarei passando aí dentro em pouco, apenas vou dar uns retoques na maquiagem.
Ela desligou o telefone e foi esperar a amiga ouvindo música. Nessas horas que a casa ficava vazia, gostava de colocar o som que mais lhe agradava. Olhou no relógio e percebeu que passara um bom tempo distraindo-se com a música. E Giulia que não chegava? De repente um homem encapuzado surge à sua frente, silencioso, apontando uma arma para ela:
- Silêncio madame, é melhor não gritar ou dou cabo de você agora mesmo!
Ela ficou desesperada:
- Por favor, o que quer de mim? Meu marido é muito rico, pode lhe dar o dinheiro que você quiser, não me mate, tenho uma filha que precisa muito de mim.
A voz de Anita estava rouca e suas mãos trêmulas, arrependeu-se amargamente de não ter saído de casa com o marido. O que seria de sua vida? Resolveu contemporizar:
- Eu sei que é um assalto, podem levar o que quiser, tem muitas peças valiosas aqui, mas por favor poupe-me a vida.
Outro homem chegou na sala com um capuz na cabeça, dando gargalhadas:
- Está reconhecendo esta foto?
Anita, nervosa, e com a arma na cabeça, reconheceu uma das suas fotos que estava no porta-retratos do quarto e que havia sumido misteriosamente. O homem gargalhando muito disse:
- Isto aqui não é um assalto coisa nenhuma, é apenas o dia de sua morte. Esta foto foi nos dada por uma linda mocinha chamada Maria Antônia, conhece?
Anita gelou ainda mais, aquilo não poderia ser realidade:
- Mentira, minha filha me adora e jamais faria uma coisa dessas comigo!
O homem continuava gargalhando:
- Pois foi ela sim. Já percebeu que os seguranças de sua mansão estão todos dormindo? Ela colocou sonífero na bebida deles para que adormecessem e facilitassem nossa missão. Também pediu que lhe fosse revelado que a assassina era ela, ela é que foi a mandante. Disse que jamais você poderia morrer sem saber quem foi à autora. Ela quer que você saiba que a odeia e que a odiará para sempre. Agora prepare-se para ir pro inferno.
Anita tão chocada estava que nem sequer suspirou, foi fulminada por três balas silenciosas e tombou ao chão. Os homens saíram correndo e cerca de cinco minutos depois Giulia entra assustada:
- Anita, o que aconteceu com sua casa, está toda aberta, os seguranças dormindo...
De repente pálida, viu Anita no chão banhada de sangue. Um grito de horror e Giulia saiu correndo em direção à rua. Tomou um táxi e foi em direção ao Centro de Desenvolvimento Espiritual Luz no Caminho. Flávio concentrado iniciava sua palestra sobre a paz:  
- Ouvimos muito as pessoas dizerem: "Desejo a paz". Mas será que elas realmente sabem o que estão desejando? Para vocês o que é ter paz?
- Paz é ficar parada sem fazer nada? Muitos desempregados estão nessa mesma situação, será que eles têm paz?
- Paz é ficar quietinho num lugar sem que ninguém lhe perturbe? As pessoas na UTI, estão nesta exata situação, será que elas estão em paz?
- paz é ter muito dinheiro? Muitas pessoas são milionárias, será que elas vivem em paz, com tranqüilidade e alegria?
- Paz é ter muita saúde? Pode até ser, mas muitas pessoas saudáveis aproveitam-se dessa dádiva para embrenhar-se em todas as formas de vícios. Será que elas têm paz?
A paz verdadeira só acontece com a compreensão e aceitação da vida. Se desejamos a paz devemos deixar de lado as preocupações, as culpas, as mágoas, o medo e o ódio. Precisamos expulsar de nossa mente tudo o que nos desarmoniza, todo pensamento que nos causa sensações ruins. O planeta Terra não está errado, nossa visão sobre ele é que está equivocada. Muitos de nós com essa visão superficial e grosseira invadimos a privacidade dos outros, viramos justiceiros, pensando que para ter a paz é preciso fazer a guerra. Esta atitude mesquinha e equivocada de buscar a paz tem nos arrastado durante séculos a reencarnações inferiores, onde agindo da mesma forma vamos receber os mesmos resultados. O que precisamos mesmo é mudar de atitude mudando nossa forma de agir. Temos que aprender a tomar conta da própria mente, educá-la, deixando de lado o pensamento velho que subjuga e considerar os próprios sentimentos. Somos responsáveis por todos os nossos problemas, mas não somos os nossos problemas. Se não somos os nossos problemas, podemos olhá-los de fora, dominá-los e vencê-los. Só ouvindo a voz de nossa alma é que teremos a paz que tanto almejamos. Flávio continuou discorrendo facilmente sobre o assunto até que em dado momento percebeu uma agitação na porta principal. Algumas pessoas queriam impedir que uma mulher muito nervosa entrasse e atrapalhasse o trabalho. Porém, ela venceu os seguranças e passou correndo esbaforida por entre as cadeiras. Admirado, Flávio percebeu que era Giulia Aguiar, amiga de sua esposa. Giulia se aproximou dele muito pálida e ofegante, não conseguia falar. A esta altura ninguém mais prestava atenção em nada a não ser na figura daquela mulher. Flávio fez ela sentar em uma poltrona, pois sua respiração impedia a pronúncia de qualquer palavra. Quando se acalmou, ela olhando-o nos olhos, disse:
- Flávio, não sei como te dizer, não sei como aconteceu, mas... Mas Anita foi assassinada e está estendida no tapete de sua sala banhada em sangue.
Ninguém ouviu o que ela disse além de Francisca. Flávio, mudo, sentou-se no chão, depois deitou-se e com a cabeça entre as mãos, chorando muito, começou a fazer sentida prece a Deus. Vendo o movimento Maria Antônia, que já sabia do que se tratava, aproximou-se com fingida comoção:
- O que houve aqui, tia Francisca? Por que meu pai está chorando desse jeito?
Francisca abraçou-a de encontro ao peito e chorando respondeu:
- Não tenho outra maneira de te dizer, sua mãe foi assassinada friamente agora, e está lá estendida no chão. Um desastre, uma tragédia horrível.
Abraçadas, as duas começaram a soluçar. Maria Antônia fingia muito bem e agarrava-se a Flávio que deixava as lágrimas caírem em profusão pelo rosto. As pessoas foram retiradas da platéia sem entender o que estava acontecendo. Flávio foi para casa e quando chegou ainda pôde perceber o cenário do crime, a mulher que ele tanto amava estava lá estendida no chão vítima da maldade alheia. Sobre o corpo da mãe, Maria Antônia fazia um verdadeiro escândalo. A polícia chegou, afastou todos do local e levou o corpo. A tragédia se abateu sobre aquela família. Espíritos inferiores que tentaram atrapalhar o trabalho de Flávio tentaram se aproximar dele para lançar-lhe energias negativas, porém foram impedidos por uma capa azulada que o protegia. Mesmo muito evoluído, Flávio sentia A dor do momento vendo sua esposa morrer de forma tão trágica. Cristiano e Laura vieram para o enterro e decepcionados ouviram da polícia que a motivação do crime fora uma tentativa de assalto. Os ladrões não conseguiram levar nada porque certamente perceberam a presença de Giulia que estava chegando. Provavelmente Anita tentara se defender e fora atingida por tiros silenciosos, pois ninguém mais na vizinhança ouviu nada. As pessoas começaram a duvidar do trabalho de Flávio, já que em seu próprio lar a violência fez morada. Mas ninguém em momento algum desconfiou de Maria Antônia. Ela representando uma terrível depressão conseguiu que Laura deixasse Fabrício no Brasil por um mês e assim eles voltaram a namorar. Flávio, com o auxílio de Hilário, Félix, Noel e Carlota conseguiu superar o momento e seis meses depois já estava de volta aos cursos. E assim o tempo foi passando...

26 - É O PERDÃO QUE LIBERTA

Um ano depois da tragédia, tudo continuava igual. Maria Antônia namorando feliz com Fabrício nem sequer lembrava que um dia teve mãe e que a mesma foi morta por ela. Flávio, muito sensitivo, passou a achar que havia algo de muito estranho naquela morte. Conversando com os seus mentores espirituais, eles lhe diziam para esquecer o ocorrido, pois a morte era simples mudança de lugar e que Anita continuava bem na outra dimensão. Apesar de saber que a mulher havia sido acolhida em um posto de socorro e que se recuperava lentamente, em seu íntimo algo lhe dizia que havia alguma coisa séria e errada por trás daquela morte. Ele nunca mais foi o mesmo homem. Continuava com seus cursos, explicando como a vida agia e procurava se esforçar para ser feliz o máximo que podia. Francisca tentava ajudar para que às vezes ele não entrasse em profunda depressão, mas nem sempre conseguia. A sensação que uma grande barbaridade tinha vitimado sua querida Anita, ainda estava lhe amargando o peito. Ele já não sofria pela morte dela, mas sim por aquela sensação esquisita que não o deixava em paz.  Maria Antônia não cabia em si de egoístico contentamento. Agora o pai era só dela.
Em uma tarde de inverno todos tomavam o chá das cinco na elegante sala onde Anita veio a falecer. Maria Antônia estava muito saudosa do namorado que havia retornado a Inglaterra para continuar os estudos. De repente o telefone tocou e Francisca foi atender, era Laura preocupadíssima, e com voz trêmula:
- Por favor, chame o Flávio com urgência, o assunto é sério.
Flávio atendeu:
- O que foi de tão grave? Algo com o Cristiano?
- Não, com o Cristiano tudo bem, é com o Fabrício, ele está mal. Teve um surto de loucura há dois dias e está internado.
Flávio ficou surpreso:
- Como isto foi acontecer? Ele é um rapaz tão equilibrado!
- É isto que não sabemos, foi de repente, ele está tão mal que precisou ficar preso naquele hospício horrível! Me ajude, Flávio, não sabemos o que fazer.
- Não se desespere, nestas horas o equilíbrio é fundamental. Hoje no Centro tem uma reunião mediúnica e poderemos pedir informações sobre este caso. Sabemos de antemão que muitos dos problemas psiquiátricos são, na realidade, obsessões gravíssimas, porém não sabemos se este é o caso. Só a espiritualidade ê que pode dizer.
- Sinto-me confortada ao ouvir suas palavras. Cristiano também está confiante e vai procurar aqui com dona Margareth o auxílio, porém eu confio muito no trabalho de vocês aí no Brasil. Avise a Maria Antônia e peça-lhe que reze pelo namorado.
Quando Flávio anunciou a drástica notícia, Maria Antônia correu para o quarto. Sozinha e abraçada ao travesseiro ficou assustada. Na última vez que conversara com Fabrício, contara a ele toda a façanha que culminou com a morte da mãe. Tinha toda confiança em Fabrício e juntos comemoraram o sucesso do plano. Teria aquela notícia abalado os nervos do namorado?
No Centro, Flávio já em transe, recebeu a seguinte comunicação sobre o caso de Fabrício:
- O problema de seu sobrinho é simples. Antes de renascer na Terra ele viveu no astral unido a espíritos inferiores e que praticavam o mal. Ele era um espírito que foi vítima do preconceito racial, viveu como negro e foi muito discriminado. Encontrando uma falange de justiceiros, resolveu pagar o mal com o mal e unindo-se a eles buscou no abismo, na sub-crosta terrestre, uma forma degenerada e colocou-a mediunicamente em quem julgava tê-lo prejudicado quando ainda no mundo. Sua "vítima" enlouqueceu e até hoje encontra-se num hospício terreno sem qualquer chance de cura. Ele reencarnou com uma grave lesão no cérebro perispiritual que passou a depender de sua nova conduta que iria se desenvolver ou não no corpo físico. Foi aí que encontrou sua comparsa de vidas passadas e voltando às mesmas atitudes de outrora, desarticulou as forças do bem que o sustentavam. Agora, através de uma psicose de difícil tratamento, aos poucos seu perispírito lesado vai reencontrar o equilíbrio.  Flávio quis saber:  - Ele irá se curar?
A entidade elevada respondeu:
- Só o tempo e a mudança interior é que vão dizer. Ele não é um obsediado como pode parecer a princípio, ele tem realmente um distúrbio psiquiátrico causado pela lesão no cérebro, ocasionada pela sua conduta quando viveu no astral. Se as pessoas soubessem o que podem receber quando fazem o mal jamais o fariam, muito pelo contrário lutariam para bani-lo do coração com toda a força de vontade. Mas agora é o momento de ficarmos com Deus e aguardarmos sua divina misericórdia. A fé e o pensamento positivo tudo conseguem, pois eles são dispositivos que interferem na lei de causa e efeito, mudando suas conseqüências. Porém nada acontece sem a mudança verdadeira, é necessário entender que Deus vê o íntimo de cada um, não existe um bom sofrendo, pode ter certeza, quem sofre coloca pra fora todas as suas mazelas espirituais e seus pensamentos equivocados. São as crenças no mal que provocam e atraem todo o sofrimento que grassa sobre a Terra. Quem crê apenas no bem fica imune às doenças, acidentes, prejuízos, solidão, falta de amor e quaisquer fracassos. A educação mental é a chave que falta para banir pra sempre o sofrimento da Terra, transformando-o no mundo de regeneração que tanto sonhamos.
O espírito Hilário se despediu e Flávio emocionado fez silenciosa prece de agradecimento a Deus. Quando ele ligou para Laura dias depois, percebeu que a médium Margareth recebeu comunicação idêntica na Inglaterra, provando assim que era realmente verdadeira. Sem o namorado, Maria Antônia foi ficando muito depressiva. Ao visitá-lo na Inglaterra e ver seu estado penoso, uma sensação desagradável de culpa a acometeu. Não sabia de onde vinha esse sentimento, porém não conseguia se desvencilhar dele. À medida que foi passando o tempo ele foi ficando cada vez mais amargo e profundo. Flávio percebia, tentava ajudá-la levando-a ao Centro, mas não adiantou, a cada dia estava mais triste. Uma noite sonhou que estava num terreno baldio e lamacento, as árvores tinham aspecto feio e pareciam estar mortas. De repente, do meio da escuridão, um lobo grande e com dentes afiados lhe apareceu. Os olhos estavam vermelhos como fogo e acesos como se fossem lâmpadas elétricas. Aterrorizada ela começou a correr sem parar, porém o lobo corria com mais velocidade e a agarrou fortemente. Com a respiração ofegante Maria Antônia percebeu que a face do lobo transformou-se no rosto de sua mãe. Tentou gritar, mas a voz não saía, estava presa nas patas daquela que parecia ser Anita. O lobo abriu a boca e falou com voz rouca de ódio:
- Você vai pagar tudo o que me fez sua assassina! Vai morrer louca e sozinha, sem ninguém para lhe ajudar - dizendo isso começou a apertar o pescoço de Maria Antônia que acordou sufocada, aos berros, e suando muito. Francisca ouvindo os gritos de Maria Antônia, acordou também assustada, saindo em disparada batendo na porta de seu quarto:
- Abra menina, o que há com você?
Ela abriu rapidamente a porta e agarrou-se a Francisca:
- Tia, foi horrível, foi o pior pesadelo que tive na vida.
- Conte-me como foi, talvez não passe de sua cabecinha assustada com a sorte do seu primo Fabrício.
Ela chorava sem parar:
- Não foi não tenho certeza. Era minha mãe que veio do inferno se vingar de mim.
- Não diga isso menina, sua mãe a amava e não teria motivo para se vingar. O melhor a fazer é rezar e pedir a orientação dos amigos espirituais. Em qualquer circunstância a prece é a força que nos liga a Deus e às forças superiores do Universo.
- Não posso rezar, tenho vergonha!  Francisca sorriu:
- Vergonha de rezar, onde já se viu isso? Deus não nos condena por nada, por que nós teríamos vergonha Dele?
Maria Antônia soluçava:
- Tem razão, vou tentar - começou a fazer uma prece mecânica, mas mesmo assim se acalmou. Minutos mais tarde, quando a tia saiu do quarto, já se sentia mais calma, porém lembrando da visão terrível não conseguiu mais dormir.
Do lado de sua cama estavam Anita, Hilário e Noel. Anita falou:
- É incrível o que a consciência culpada pode fazer num ser humano. Há muito que já a perdoei pelo mal que me fez. Porém esta visão terrível ainda a acompanhará por muito tempo...
- É verdade. - concordou Hilário - Deus não nos condena por nada, porém a consciência de cada um é o próprio juiz que lhe pede a reparação sempre que se transviar. Sua filha poderia evitar isso se confessasse o crime perante a justiça dos homens. Esse seria apenas o começo de sua redenção. Porém é certo que ainda voltará a reencarnar para modificar essa conduta errada que a levou ao crime. Talvez venha a sofrer exatamente o que praticou. Terá uma filha ruim que poderá com os desgostos e inconseqüências tirar sua própria vida. Anita perguntou:
- Não será uma injustiça? Afinal, sei que ela me matou na última existência, porém eu que atraí esse crime na minha vida. Desde que morri como Anete séculos atrás, desenvolvi grande vaidade. Para me defender do mal que sofri ao ser morta por Helena, passei a ser arrogante e possessiva. Quando cheguei aqui assassinada pela minha própria filha, me revoltei, chorei, blasfemei e quase voltei a Terra para cobrar meu tributo, se você não tivesse me mostrado como atraí tudo, talvez ainda estivesse interferindo na vida de todos.
Hilário explicou:
- É mesmo, você mudou muito desde que desencarnou, deixou de ser aquela mulher fútil de outrora. Mas isso aconteceu porque você contribuiu, amadureceu com a dura experiência que passou. O mal que ocorrerá a Maria Antônia é por causa da sua crença na violência, no mal e na vingança. Talvez sofra muito para finalmente aprender que só Deus pode tirar a vida de um ser humano.
Anita o abraçou com carinho:
- Por que não te ouvi quando falava através de Flávio? Na verdade achava tudo muito distante da realidade, nunca me envolvi de fato com a espiritualidade que batia à minha porta. Talvez se tivesse me ligado mais a Deus ainda estivesse no mundo ao lado do meu marido.
- Não fique triste Anita, a morte é o agente da transformação, por onde ela passa tudo se modifica. Seu marido agora poderá se dedicar a um projeto antigo. Convido-a para ver o que irá acontecer.
Ela animou-se:
- Então irei, estar perto de meu amor sempre me dá alegria.
Os espíritos Noel, Carlota, Luiza e Anita passaram a transmitir a Maria Antônia à idéia de que ela precisava confessar o crime para livrar-se do remorso. Os dias foram passando e os pesadelos aumentando. Ela contava parcialmente ao pai, que lhe aplicava passes, conversava amorosamente, melhorava, porém no outro dia estava do mesmo jeito. Já não freqüentava mais o colégio, acabaram-se todas as poucas amizades. Vendo-a tão depressiva, Flávio preocupado falava à tia:
- Não sei mais o que fazer para tirá-la da depressão. Já nem quer mais sair do quarto.
- Ela lembra-me você quando ainda era jovem e foi morar em minha casa. Foi um tempo muito ruim. Érica, Ângelo e Marina morreram naquele acidente e você ficou praticamente órfão contando apenas com Cristiano. Você teve muita força e venceu tudo, mas lembro que foi difícil. Depois houve seu namoro com Camila que morreu também tragicamente. Às vezes te acho um herói, hoje o olhando mais maduro e confiante percebo, que em nada mais lembra aquele jovem medroso e desconfiado, que não sabia que rumo dar à própria vida.
Ele sorriu meio melancólico:
- Passei realmente por muitas coisas, mas nessa vida ninguém é herói. Esse mito que nós devemos sofrer heroicamente na Terra para alcançarmos um grau maior de evolução é balela. Hoje sei que através do amor aprendi muito mais do que pela dor.
- É que você é modesto e não gosta de reconhecer. Agora mesmo sofreu esse golpe fulminante da vida, perdeu a mulher amada e este aí conformado e confiante.
- É que a espiritualidade conforta e auxilia. Saber que a vida não começa no berço e nem termina no túmulo, transforma a vida de qualquer um. Mas falemos agora da senhora. Há muito tempo mora comigo, está feliz assim? Não desejaria voltar à sua antiga casa? Saiba que tenho condições de comprá-la a hora que quiser.
Ela sorriu:
- Nem diga isso, aqui tenho toda a liberdade que tinha na minha casa, até meus gatos eu crio. Você me dá tudo que desejo para ser feliz e ainda me paga por isso. Aquela aventura minha com o comércio mostrou-me que ainda estava imatura para este tipo de serviço e apontou-me o caminho para ser sua governanta. Veja como Deus é bom!
Flávio admitiu:
- Não sei o que seria de minha vida sem a senhora, tia. Minha casa não seria a mesma sem sua ajuda. Mas o que você falou sobre o comércio é uma grande realidade. Quem se aventura numa coisa muito grandiosa como você fez deve ter estrutura financeira e psicológica para tanto. A crença na facilidade das coisas é fundamental para quem lida com o comércio. Pessoas que não confiam na força da vida, que não usam seus poderes mentais estão fadadas ao fracasso.
- Foi isso que aconteceu comigo. Não tive o otimismo suficiente, logo estava cheia de dívidas. Envergonhada, não quis lhe pedir ajuda e gastei tudo que tinha, hoje sei que se tivesse agido com mais prudência e otimismo, tudo seria diferente do que foi.
- O bom é que sempre se pode tirar vantagem mesmo de uma situação ruim. Acredito que a senhora deve ter aprendido muito com o que aconteceu.
- Muito! Até hoje não consigo esquecer esta lição, sei que a vida usa nossos atos ruins para nos levar ao bem. A vida é mágica, tudo o que nos acontece tem sempre uma razão de ser.
- Isso mesmo tia, hoje a senhora está mais evoluída do que antes. Mas voltando a falar de minha filha, não sei o que acontece com ela, está muito estranha. Ás vezes penso que foi depois que o Fabrício adoeceu, mas sinto que tem algo muito estranho acontecendo com ela. Não é normal esses pesadelos horríveis que vem tendo. Agora mesmo está lá no quarto sobre a cama em profunda depressão.
- Acho melhor você ir vê-la, conversar com ela, sei que isso lhe fará bem.
- Tem razão tia, afinal hoje não tenho atividades no Centro e posso ficar em casa.
Dizendo isso Flávio subiu até o quarto da filha. Chegando lá percebeu que ela soluçava. Com compaixão ele sentou-se próximo dela e alisou-lhe os cabelos. Ela, percebendo que era o pai, rompeu em mais soluços. Anita estava ali com ela transmitindo-lhe energias revigorantes e ao mesmo tempo suplicando-lhe para que tivesse coragem e revelasse o crime.
- Filha, por que está assim? Pensei que fosse por causa do Fabrício, mas vendo-a desse jeito sinto que tem algo mais que a atormenta muito.
Ela olhou para ele com o rosto e os olhos inchados pelo choro. Como poderia revelar-lhe o que lhe ia na alma? Por que esse remorso torturante a invadia? Sentia que a única solução era confessar a barbaridade que cometeu, mas não tinha coragem para isso. Como iria olhar novamente para o pai? O deus, o ídolo que ela tanto cultivou desde a infância será que ia perdoá-la? Se confessasse e Flávio a odiasse para sempre ela com certeza se mataria, não conseguiria jamais viver sabendo que o homem a quem ela amava como mulher a desprezava.
Agora , naquele instante, ela percebia que o que sentiu por Fabrício era só uma paixão boba e momentânea. Que destino trágico e estranho era esse que a acompanhava desde a infância?
- Pai, estou morrendo por dentro, sei que só terei paz quando colocar pra fora tudo o que está me atormentando, mas não tenho coragem, sei que me odiará pelo resto de sua vida! Ele ficou surpreso:  - Por que, logo eu que sou seu pai a odiaria? Não sabe que o amor de pai abre as portas para o amor incondicional? Seja o que for que tenha feito com certeza eu a perdoarei. Agora somos só nós, precisamos nos unir para não sentirmos a falta que sua mãe faz!
- Sei que o senhor é muito bom, mas tenho certeza de que quando souber o que fiz jamais olhará novamente em meus olhos, e sem você do meu lado sinto que morreria em pouco tempo.
- Não diga isso, você é jovem ainda e tem tudo pela frente, o que uma adolescente pode cometer de tão mal? Diga-me e lhe mostrarei que o que você fez não é tão grave assim, apenas sua cabeça de menina é que está exagerando.
Ela levantou-se da cama e gritou colérica, com as faces desfiguradas:
- Será que você é tão ingênuo que nunca percebeu? Dá pra parar de ser o santo por alguns segundos e me enxergar? Quem está em sua frente não é uma meninazinha boa e ingênua, aqui está uma mulher que te ama mais do que tudo. Nunca reparou como eu te olhava? Nunca percebeu que em meu peito nunca existiu um amor de filha e sim de amante?
Ele corou e não conseguiu articular nenhuma palavra. Ela continuou bradando muito alto:
- Isso mesmo Sr. Flávio, nunca o amei como filha, sempre o desejei. Nunca suportei aquela mulher que se chamava Anita e que me roubava você, dia após dia. Ela parecia sentir ou sabia dos meus sentimentos, pois disputava sua presença comigo, como se fôssemos duas rivais. Mas você sempre com esse jeito sonso nunca percebeu o que acontecia em seu próprio lar. Louca pela raiva e pelo ciúme não titubeei em matá-la para ter você só pra mim. Isso mesmo, eu que matei minha própria mãe. Contratei assassinos de outro estado e eliminei aquela vida fútil e vazia que atormentava a minha existência!  Ela parecia fora de si e gritava muito. Flávio começou a tremer qual folha sacudida pelo vento, parecia que estava vivendo uma situação familiar, parecia que aquele fato já havia acontecido com ele alguma vez na vida. Agora entendia o porquê do estado de Maria Antônia. Por mais que não quisesse acreditar, sentia que o que a filha, criada com tanto carinho e proteção, lhe dizia era a realidade. Levantou-se da cama num acesso de loucura e deu-lhe vários tapas no rosto. Naquela hora não se lembrava de nada do que pregava ou que havia aprendido, deixou seus instintos tomarem conta de seu ser. Começou a sacudir violentamente a filha pelos cabelos enquanto ela gritava e chorava histérica.
- Assassina! Assassina, você verá qual é seu destino.
Começou a arrastá-la pela escadaria e jogou-a violentamente no chão da sala. Francisca e os empregados correram e não acreditavam no que viam. Aquele não era o Flávio de jeito nenhum. Francisca começou a gritar:
- Pare, você vai matá-la deste jeito, ela já está sangrando.
- É isso o que ela merece depois de tantos anos de carinho e proteção que teve neste lar. Saibam que esta criatura não passa de uma reles assassina, ela matou a própria mãe. Aquilo não foi um assalto, foi um crime premeditado por ela e capangas não sei de onde. O ciúme, os baixos sentimentos que ela nutre por mim a levaram a praticar semelhante ato, agora que apodreça na cadeia. Colérico e fora de si Flávio ligou para a polícia e fez a denúncia. Francisca desmaiada, fora levada para o hospital, enquanto Maria Antônia na delegacia confessou tudo o que fez. Deu os telefones dos pistoleiros e foi levada para um presídio de detenção máxima onde aguardaria julgamento. A imprensa ficou agitada depois dessas revelações, em todos os telejornais só o que se ouvia era a notícia de que uma filha adolescente, por ciúme do pai, assassinara cruelmente sua própria mãe. Até psiquiatras e psicólogos foram à TV dar entrevistas sobre o ocorrido, tecendo as mais descaridosas opiniões. O Centro de Flávio foi fechado por tempo indeterminado. As pessoas perderam um pouco da credibilidade devido aos fatos trágicos que o acometeram. Ele viajou para a Inglaterra e ficou lá com Laura e Cristiano durante quase um ano. Sua fé não fora abalada, depois que pensou em tudo com frieza, percebeu que foi muito violento com a filha e não conseguia se perdoar por isto. Apesar de tudo ele a amava. Mesmo assim não conseguia voltar ao Brasil, à vergonha de ver novamente a filha e encará-la depois de tudo o que fez a ela era muita. Apenas sabia notícias por Francisca que todos os domingos, de quinze em quinze dias ia visitá-la no presídio. Ficou sabendo que Maria Antônia tentou o suicídio por duas vezes, achando que Flávio não a havia perdoado, só ficou melhor quando recebeu uma carta dele contando que a perdoava. Ela jamais iria se esquecer do que ele havia escrito: "Filha do coração, Naquele dia fatídico te disse que o amor paterno abre as portas para o amor incondicional. Hoje sei que é verdade. Mesmo sabendo tudo o que fez não consigo deixar de amá-la. Em meu coração estarão gravadas para o som do seu primeiro chorinho, a imagem de seus olhinhos pequeninos me fitando com tanto amor pedindo-me proteção. A partir daquele dia senti que a amaria para sempre, acontecesse o que acontecesse. Lembro-me com emoção da sua primeira palavra 'papai', dos seus primeiros passinhos vindo na minha direção, naquele dia que você andou pela primeira nem fui ao Centro tão empolgado fiquei. Como não te amar para sempre? Se dentro de mim venci a antiga paixão que nos unia sei que você não teve forças para tanto, não posso te condenar, nem te julgar por isso, muito menos pelo que fez com sua mãe. Hoje sei que para Deus somos todos inocentes, para Ele somos apenas crianças aprendendo a viver, lutando para conseguir uma vida melhor. Apesar de estarmos submetidos ao resultado das nossas atitudes, Deus não nos condena, afinal Ele é sumamente amor e sabedoria. Só o que sinto por você é capaz de explicar um pouquinho o amor que Deus sente pela humanidade. Hoje também percebi que não estava preparado para o perdão, não titubeei em te violentar esquecendo-me que o mal jamais se paga com o mal e sim com o bem. Descobri que só o perdão liberta nossa alma. Quem não perdoa vive sem alegria e sem paz no coração.
Aproveite para fazer de sua vida, a partir de agora, um hino de amor a Deus. Sei que você será julgada e condenada, porém mesmo de onde você está, já pode ir caminhando para Deus, seguindo seus ensinamentos. Do paizão que te ama, "Flávio de Menezes". Na solidão do presídio ela leu e releu aquela carta, dormindo com ela agarrada ao peito. No domingo que se seguiu, durante a visita de Francisca ela pediu:
- Tia, eu quero ler, quero me instruir sobre a vida espiritual. Sempre deixei-a de lado, achando que seguindo as regras do mundo seria mais feliz. Hoje percebi que estava equivocada. Quero procurar o amor divino, hoje sei que esse amor não espera pra me amar e quero retribuir um dia todo esse amor que Deus me dá gratuitamente.
- Que bom minha filha que você chegou a esta conclusão. Logo hoje trouxe em minha bolsa um livro muito importante que gostaria de lhe emprestar, veja.
Maria Antônia olhou e leu: O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec.
- Começarei a lê-lo ainda hoje. Meu pai sempre me falava dele e nunca dei importância, quero vencer essa paixão horrível por ele que só tem me feito sofrer, e sei que com este livro terei esta força.
- É isso mesmo minha filha, essa paixão como todas as outras desenfreadas, nos fazem sofrer e nos levam ao abismo. Seu pai é muito evoluído e por isso vocês nunca chegaram à aberração do incesto. Imagine se você tivesse agora mais este terrível crime na consciência, como estaria?  
- É mesmo, quero amá-lo como o pai querido que a vida me confiou, sei que conseguirei.
Foi com o coração renovado pelo êxito que Francisca saiu do presídio naquela tarde. Tinha certeza de que aquele livro iria fazer um bem enorme à sobrinha, como tem feito a tantas pessoas mundo afora.

EPÍLOGO 

Era inverno e Flávio em sua grande sala de estar meditava profundamente. Fazia três anos que descobrira que Maria Antônia era a assassina de Anita. De lá para cá muita coisa havia mudado. Com a ajuda dos espíritos superiores que sempre o assistiram, ele conseguiu reabrir o Centro e voltar a ter o mesmo sucesso de antes. Durante a reunião mediúnica Anita se comunicou e narrou-lhe todo o passado. Disse que ele já estava maduro para saber. Foi um choque descobrir que Maria Antônia era Camila reencarnada e que Fabrício tinha sido Rafael seu antigo namorado. Anita prometeu esperá-lo no futuro, quando sua missão na Terra terminasse e ambos pudessem desfrutar de uma vida mais harmoniosa. Compreendeu por que tudo aconteceu daquela forma e pôde agradecer a Deus por toda a sua bondade. Francisca desceu a escadaria e propôs:
- Vamos acender a lareira? Está um frio daqueles, afinal moramos na terra da garoa.
Ele, com semblante distendido, pareceu estar viajando quando disse:
- Tia, tive a melhor idéia de minha vida! Hoje descobri que preciso fazer uma coisa muito importante e que não pode mais ser adiada.
- O quê?
- Esta casa é muito grande para nós dois apenas, vou adotar várias crianças e com seu auxílio e de empregados competentes sei que poderei criá-los. Tenho muito dinheiro e sei que posso dar-lhes o melhor!
Francisca chorou de emoção ao ouvir as palavras do sobrinho. Dias atrás, ela havia tido a mesma idéia.
- Nossa Flávio, que boa ação! É claro que te ajudarei. Sei que tenho pouco tempo sobre a Terra, já estou velha, mas sei que ainda posso ser útil.
- Você é a velhinha mais jovem que já conheci - disse Flávio rindo muito e abraçando-a. - Sei que será meu braço direito por muito, muito tempo. Aceita mesmo me ajudar?
- É lógico, com todo prazer. Agora me diga, quantas crianças pretende trazer para esta casa?
- O máximo que puder, sei que posso criá-las. Assim, quando Maria Antônia sair da prisão também poderá nos auxiliar.
- Meu sobrinho, acho que você agora está sendo inspirado mais do que nunca, acho que devemos rezar e agradecer a Deus por mais esta bênção.
Ele concordou e com olhos fechados começou a orar:
"Pai de infinita bondade e sabedoria!"
"Como é grande a sua misericórdia e quanto é infinito o seu amor."
"Sinto que não devo mais esperar para amar toda a humanidade como se fosse uma só."
"Sei que posso e devo dar o melhor de mim por tudo e todos que estiverem à minha volta. "Que o mundo possa sentir todo o seu amor, como sinto agora".
"Eu te agradeço Deus de amor, por tudo o que me destes. Ajuda-me através de Jesus e dos espíritos superiores a cumprir com fidelidade a missão que me destes sem fraquejar, nem me abater".
"Sei que só a Tua força é capaz de remover todas as pedras do caminho e que sem ela nós não fazemos nada".
"Por tudo isso Senhor é que te agradeço".  Flávio chorava e Francisca também.
Lançando sobre eles energias coloridas estavam Hilário, Anita, Noel e Carlota. Érica e Marina à distância observavam tudo em estado de oração. No fundo elas sabiam que Deus a tudo provê e que Flávio mais uma vez conseguiria ser seu fiel discípulo. Como foi bom tê-lo em sua família! Era um anjo do bem que derramava luzes por onde passava. Elas agora entendiam que tudo o que sofreram foi por falta de amor. Na próxima existência elas saberiam usar esse fogo divino que não pode e nem deve esperar para acontecer. Nessa hora de júbilo e felicidade sentiram leve brisa no rosto como que a dizer que desta vez elas conseguiriam.



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