segunda-feira, 24 de março de 2014 By: Fred

{clube-do-e-livro} Livros Espíritas em TXT - Zibia,Elisa Masselli, Sandra Carneiro, Maurício de Castro

NADA É PARA SEMPRE
MAURÍCIO DE CASTRO
(PELO ESPÍRITO HERMES)


Este livro é dedicado a duas pessoas especiais:
Leonardo Rásica - escritor e amigo do peito
Denner Evair - a quem considero mais que um filho, um verdadeiro presente divino. Que Deus possa iluminar suas vidas!


PREFÁCIO


Nada descreve a honra com que recebi o convite para fazer um breve prefácio a este novo livro de Maurício de Castro, NADA É PARA SEMPRE. Já o conheço de outros tempos e de outras obras e foi, portanto, com muito entusiasmo que soube que mais um livro seu seria publicado. Desta vez o promissor escritor, através do espírito Hermes, brinda-nos com um envolvente romance sobre um dos temas mais universais e intrigantes da História da Humanidade: o aspecto transitório e efêmero das condições e situações humanas, e sua correlação com o materialismo - quanto mais algo é puramente material, maior sua fragilidade frente aos reveses do tempo. A história de Clotilde - mais tarde Isabela - é um perfeito exemplo desta transitoriedade: da vida miserável de favela à prostituição de luxo, aos confortos de esposa de um bem-sucedido político; do amor materno e incondicional aos impulsos que a impelem aos atos mais hediondos, tudo parece mutável e passageiro na existência dessa personagem que um dia jurou vingança contra as humilhações e violências que sofreu no início de sua juventude, antes de se tornar Isabela. Para a jovem Isabela, desnorteada pela dor e pela miséria e seduzida pelas promessas de dinheiro fácil e abundante de uma suspeita "Madame", o valor de um ser humano na sociedade parece ser ditado unicamente pelo que a pessoa tem de material, e assim ela promete a si mesma se tornar rica e poderosa, sem pensar no quanto isso poderá lhe custar à alma. Espíritos vingativos, que a perseguem desde existências prévias, tornam ainda mais densa a trama. Os valores equivocados de Isabela, infelizmente, parecem ser a regra na sociedade de hoje em dia. O aspecto espiritual é negligenciado, e a religião da maioria se converte em uma perigosa ilusão: a ilusão do dinheiro, e de tudo o que ele pode comprar-mansões deslumbrantes, carros potentes, roupas de luxo, poder, privilégios e até mesmo a beleza, talentosamente confeccionada pelas mãos de cirurgiões regiamente pagos. Tudo ilusão, tudo transitório... A ascensão que o dinheiro parece proporcionar é falsa e enganosa, é uma ladeira quê temos a impressão de estar subindo, enquanto, na verdade, não saímos do lugar. É como aquela personagem de fábula, que corre atrás da lua, e em sua ingenuidade crê que se aproxima dela mais e mais, esgotando-se em uma obsessão louca e equivocada. Assim são todos os que guiam suas vidas pela ambição das "riquezas" mundanas, sem suspeitar que toda a fortuna, o poder e o prestígio alcançados por um homem podem desabar como um castelo de cartas ao menor sopro do destino. Algumas vezes, apenas uma mudança assim pode fazer com que essas pessoas percebam o essencial: que a única riqueza que existe é a da alma, e que a única ascensão possível é a espiritual. Somente então se percebe que os verdadeiros degraus para a legítima ascensão - o aperfeiçoamento espiritual - estão em conceitos como o amor incondicional, a abnegação, a responsabilidade pelos próprios atos, o respeito aos outros e a si, a humildade, a fraternidade... Conceitos que nada tem a ver com a dimensão material, especialmente em um mundo como o que vivemos hoje, em que tudo muda tão rapidamente e onde NADA É PARA SEMPRE. Estou certo de que o leitor, após ter o prazer de acompanhar cada reviravolta do interessante relato com o qual nos presenteiam Hermes e Maurício de Castro terminará este livro um pouco mais rico, mas em moedas que realmente contam: a sabedoria e a iluminação espiritual.

Boa leitura!

Leonardo Rásica, Escritor.


SUMÁRIO

PRÓLOGO
1 - A VISITA
2 - UMA PROPOSTA DAS TREVAS
3 - ENTRE O BEM E O MAL
4 - A PRIMEIRA VÍTIMA
5 - UMA VIDA DESTRUÍDA
6 - UMA INIMIGA
7 - ORIENTAÇÕES
8 - ADQUIRINDO COMPROMISSOS
9 - A DESCOBERTA DE FLAVIANA
10 - PLANO SÓRDIDO
11 - À HORA DA VINGANÇA
12 - DE VOLTA A ANTIGOS HÁBITOS
13 - NA MANSÃO DE HIGIENÓPOLIS
14 - A MORTE SE APROXIMA
15 - ENCONTRANDO A ESPIRITUALIDADE
16 - DE VOLTA AO MUNDO MAIOR
17 - INTRIGA
18 - A NOVA REALIDADE
19 - CONHECENDO A VERDADE
20 - O BEM É MAIS FORTE
21 - DE VOLTA PARA CASA
22 - RENÚNCIA
EPÍLOGO

PRÓLOGO


Numa tarde chuvosa e fria, uma mulher jovem de miserável aspecto, com o filho pequeno nos braços e uma sacola de sujo tecido nas mãos, tenta esconder-se da intempérie da chuva por entre as casas em construção daquela rua. Finalmente encontra um teto e deita-se ali com o filhinho de bruços sobre sua barriga. No íntimo sente-se aliviada, pois nesse exato momento a chuva aumenta com toda a sua força. A criança de meses, sem ter sequer um ano completo, alheia a tudo que se passa, olha para a mãe e sorri. Em sua inocência não avalia a dor pela qual ela passa vendo o filho naquela indigência. Fazia muito tempo que Clotilde passava o dia a esmolar pelas ruas. O barraco em que vivia era paupérrimo. Possuía poucos parentes que, em situação igual à dela, não poderiam ajudá-la. Difícil mesmo tinha ficado depois da gravidez, indesejada, por sinal. Na favela onde morava era praticamente um "cão sem dono", e assim ficou fácil ser estuprada por Juvêncio. Homem forte e asqueroso, integrante de um grupo de marginais, rapidamente pousou sobre ela os olhos e só se aquietou quando a tomou à força e a violentou sexualmente. Ao descobrir-se grávida, Clotilde pensou que estava em pesadelo; procurou o brutamonte, que questionou a paternidade da criança e ainda a espancou. Pensando em aborto, cogitou concretizá-lo. Acertou tudo com uma amiga. Esta ia levá-la a uma mulher que fazia uma beberagem fatal, quando uma noite mudou todo o seu plano. Ainda sentia as fortes emoções daquele sonho. Lembrou-se de quando adormeceu e sonhou que estava num campo verde e vasto, quase infinito. Sentiu medo por estar em um local deserto, apesar da beleza. Porém, de repente, uma doce figura de mulher apareceu num clarão:
- Clotilde, que Deus a abençoe e proteja! Assim como lhe disse da última vez, cumpro minha promessa. Estou aqui pronta para ouvi-la.
Ela não reconheceu de imediato, mas a cabo de poucos segundos deu um grito:
- Diana! Minha amiga querida! Como tudo isso foi acontecer comigo? - Desabou no chão chorando convulsivamente. - Não mereço! Sempre fui tão boa!
Diana, espírito lúcido e já bastante evoluído, esclareceu:
- Sempre merecemos tudo por que passamos. Na lei divina tudo está certo sempre. Já se esqueceu do que estudou conosco?
Ela pareceu se revoltar:
- Aqui volto a me lembrar, porém lá esqueço. Ademais, acho o fardo muito pesado, não vou resistir, vou sucumbir mais uma vez!
Diana sorriu:
- Sente-se um pouco nesta grama. Não vim aqui para vê-la chorar dessa maneira. Ninguém está sozinho ou desamparado pelo Pai. Ele jamais nos dá provas maiores do que possamos suportar e vencer. Estou aqui para ajudá-la e comigo há um grupo de amigos que a assistirão na crosta.
- Então é mesmo a hora de Thierry voltar? Não seria mais tarde? Afinal, ainda não estou preparada, e o ato do estupro foi traumatizante.
O ser angelical elucidou:
- Sim, Thierry vai voltar, assim como prometeu, para estar a seu lado, equilibrando-a nas horas mais difíceis do seu reajuste. Mas não é só, ele também muito errou contigo naquela experiência na França. Tanto é que não lograram viver num plano de regeneração e tiveram de vestir novamente a carne da Terra, esse mundo de desafios, para assim continuarem o aprendizado.
- Sei disso, mas é difícil me conformar. Por que fui errar daquela maneira?
- Só se erra por ignorância. Se você soubesse o que iria lhe acontecer naquele momento, jamais agiria da mesma forma, por isso não se condene. Retorne a Terra e abrace a responsabilidade que assumiu consigo mesma. Infelizmente teve de ser por meio de um estupro, mas Thierry estaria com você de uma maneira ou de outra. Volte e fique com Deus!
A mulher deu-lhe um abraço terno e desapareceu envolta no mesmo clarão que a fez surgir. Clotilde acordou chorando, um pranto dolorido e aliviado ao mesmo tempo. Despertando de seu devaneio, ali naquela casa em construção, olhando a chuva impertinente, ela percebeu o quanto fora feliz em sua escolha e como aquele sonho a havia ajudado. Se não fosse por ele, talvez Daniel não estivesse ali naquele momento, enchendo sua vida de encanto e alegria. Aquela frase: "Abrace a responsabilidade que assumiu consigo mesma" ficou em sua mente, e foi ela quem a fez no dia seguinte desistir do aborto. A chuva parou e ela percebeu que já era tarde e não poderia mais esmolar naquele dia. O pouco que conseguira dava para ela, mas e Daniel? O que iria comer naquela noite? Seguiu em direção à favela com essa preocupação em mente e, ao subir o morro, uma mulher esbaforida veio ao seu encontro:
- Corre, Clotilde. Começou um incêndio na favela e seu barraco está em chamas. Acho que não sobrou nada!
- Meu Deus, que horas começou isso?
- Não sei direito, mas o fogo consumiu tudo muito rápido!
Clotilde tentou se apressar, porém, ao chegar perto, percebeu que de sua casa nada sobrara. Entregou Daniel nos braços de Shirley e começou a chorar copiosamente. Seu barraco era sua dignidade. Mesmo feio e feito de madeira, era a maneira de dizer a si mesma que tinha algo de seu. Naquela noite, Clotilde foi pedir abrigo na casa da mãe. Lá alimentara Daniel com um mingau sem nenhuma substância nutritiva, e o resto da noite não conseguiu dormir de tanto chorar.

1 - A VISITA

O dia amanheceu nublado e as nuvens encobriam os raios solares. Clotilde acordou cedo, providenciou a parca alimentação para o filho e sentou-se em frente do barraco de sua mãe, recomeçando a chorar. Tinha pouco mais de vinte anos e já sofria amargamente sem nunca ter feito mal a ninguém. Sua infância triste, em meio aos tiroteios e às guerras contra o tráfico de drogas na favela, a tinha transformado numa adolescente melancólica e sem expectativas. Desde pequena saía às ruas para pedir esmola com a mãe e sentia no rosto das pessoas todo o desprezo por gente como ela: pobre e com pouco estudo. Se muitos davam de bom grado um pedaço de pão, um punhado de açúcar ou farinha, outros batiam a porta ou viravam o rosto em desagrado. Como a vida era difícil! Estava assim concatenando as idéias quando sua mãe, Lourdes, uma senhora idosa, gorda, de cabelos desgrenhados, saiu à porta e se dirigiu a ela. Sentadas sobre um tronco de árvore sem vida, elas começaram a dialogar:
- E, filha, a vida é ruim e cheia de problemas para todos nos. Quando você quis morar sozinha, não me intrometi, mas avisei dos perigos que ia passar, vivendo só com o Daniel. Seu corpo é belo de formas, e os brutamontes daqui são violentos. Todos os dias eu rezo para que não lhe aconteça de novo o que houve com o Juvêncio.
- Nem fale mãe. Nem eu, nem a senhora merecemos a vida que levamos. Depois de ter o Daniel foi que pude perceber o quanto preciso dar a ele uma vida melhor. Não quero viver neste morro para sempre.
- Não sonhe minha filha. Sabe que isso é impossível. Quem nasce pobre, morre pobre. Siga os conselhos desta mãe velha que lhe fala. Tudo que queremos, não conseguimos. Veja o que aconteceu com seu pai. Morreu de doença ruim na boca, aquela ferida que não cicatrizava e aumentava a cada dia. Ninguém veio nos ajudar, nem mesmo Deus se valeu por nós. Às vezes duvido da sua existência!
Nesse momento, um grupo de pessoas com sacolas nas mãos subia vagarosamente o morro. Eram três mulheres de meia-idade. Atrás delas, um carrinho de mão vinha empurrado por mais dois moços. Aproximaram-se das duas, e uma mulher questionou:
- Foi nesta área da favela que houve um incêndio ontem? Vimos pela televisão, mas não temos certeza da rua. As senhoras podem nos informar?
Clotilde levantou-se:
- O incêndio foi na fileira de casas onde eu morava. Do meu barraco não sobrou nada. Mais de vinte casas foram destruídas pelo fogo. Se quiser, posso lhes mostrar.
- Aceitamos, sim. Fazemos parte da assistência social do Centro Espírita Maria de Nazaré e ontem, quando vimos o incêndio, nos reunimos, juntamos alguns mantimentos e viemos para ajudar. Se as pessoas aceitarem, podemos nos reunir e ler o Evangelho. O que você acha?
Lágrimas escorriam no rosto de Clotilde:
- Acho que todos vão aceitar. Somos muitos carentes e não estamos em condições de rejeitar nada. Nossos poucos mantimentos se consumiram junto com o fogo; foi terrível!
- Eu me chamo Neide, e elas são Jane e Claudia. Os rapazes são Mário e Lucas. Agora, vamos para a rua?
Lourdes, meio desconfiada, seguiu com eles para ver o que iria acontecer. Ao chegar ao local, todos perceberam que a situação era desoladora. Se Clotilde teve a casa da mãe para se abrigar, muitos outros vizinhos com filhos pequenos não tiveram abrigo e foram forçados a dormir ali mesmo, pelo chão. Felizmente ninguém morrera. Clotilde anunciou os visitantes:
- Esse é o pessoal do centro espírita que veio nos ajudar. Viram ontem pela tevê o incêndio e se apiedaram de nós. Quem aceitar a ajuda deve se aproximar.
Imediatamente todos vieram, uns chorando, outros agradecendo. Lucas perguntou se eles podiam ler um trecho do Evangelho segundo o Espiritismo e comentá-lo. Todos aceitaram. Abrindo ao acaso, viu-se a seguinte mensagem: "O que é preciso entender por pobres de espírito". Após lê-la integralmente, Jane começou o comentário:
- Jesus nos disse que todos os pobres de espírito herdariam o reino dos céus. Vejam bem, ele disse os pobres de espírito, e não os pobres de dinheiro, o que é bem diferente.
Pobre de espírito é todo aquele que tem o coração pobre de orgulho, de vaidade e de egoísmo. Ao contrário do que se pensa pobre de espírito não é aquela pessoa sem cultura, sem dinheiro ou conhecimento, é, sim, todo aquele que procura se empobrecer das ilusões do mundo e se enriquecer dos ensinamentos de Deus. E continuou:
- Amigos, não pensem que Deus se alegra em vê-los nessa situação infeliz. Ele é sumamente bom e justo; dá a cada um de nós segundo nossas obras. Existem outras formas de aprendizagem para todos aqueles que vivem a pobreza física. Mas, para mudar o estado de coisas, é necessária a reformulação interior. Vocês devem tomar conhecimento de que podem e merecem a felicidade e a fartura, de que podem e merecem evoluir sem o sofrimento. Ao tomarem essa consciência, suas vidas se modificarão. Jesus disse: "Todo aquele que crê em mim, terá vida, e vida em abundância".
Uma mulher com o rosto marcado pelo sofrimento perguntou:
- Como podemos mudar esse estado de coisas, se não temos ajuda? O governo não cumpre seu papel, não temos ninguém que se preocupe conosco. Não concordo com o que a senhora diz. Acho que Deus está omisso e não consegue dar conta de nós.
Jane sorriu:
- Garanto que está equivocada. Nosso progresso não depende do governo ou de quem quer que seja; só depende de nós mesmos. A prosperidade é uma questão pessoal, e não uma questão social. Por isso não fazemos esse trabalho por assistencialismo. Vamos em busca de quem realmente precisa e quer se ajudar. Enquanto esperamos que os outros cuidem de nós com nosso egoísmo, esquecemos que estamos na Terra para aprender a enfrentar a vida com coragem e buscar a melhoria. Todos, se quiserem, poderão fazer isso. Não foi Jesus mesmo que disse que "A fé remove montanhas"?
Ouve um silêncio geral. Jane prosseguiu:
- Não queremos confundir vocês, pois cada um aqui tem sua crença e sua fé, e não podemos impor nada a ninguém; apenas queremos a felicidade de todos e acreditamos em Jesus e nos ensinamentos da espiritualidade. Se algo dito aqui os tocou, aproveitem. Que Deus fique com todos.
Logo depois os farnéis foram distribuídos para as vítimas do incêndio. Todos agradeceram à ajuda e o grupo avisou que voltaria mais tarde com roupas e outros utensílios. Vendo aquela expressão de carinho, Clotilde não conseguiu se conter:
- Como ainda existem pessoas boas no mundo, não é, mãe?
- É verdade, mas são poucos. A maioria das pessoas são ruins e maldosas. Neste mundo onde vivemos só podemos esperar mesmo pelas coisas ruins.
- Credo, mãe. Às vezes acho que as coisas más que nos acontecem vêm da senhora, sempre a agourar!
- Não agouro nada, menina, apenas digo a verdade.
Clotilde não discutiu e seguiu com a mãe para o barraco. Colocou os mantimentos em cima da mesa e, de repente, uma onda de rancor a invadiu:
- Que miséria ter de depender da caridade alheia. Só aceito por causa de meu filho. Se não fosse por ele, não queria nada disso aqui.
Dona Lourdes se indignou:
- Você deve é agradecer a Deus essa gente ter vindo aqui hoje. Esquece que depois que seu pai morreu o dinheiro das minhas lavagens de roupa não dá para nada? Seus irmãos pouco ajudam. Reze por esse povo que, mesmo fazendo parte de uma seita perigosa, veio aqui nos ajudar.
Clotilde calou-se e foi preparar o mingau. Um dia ela sairia dali e todos iam ver quem ela era de verdade.
Após dar comida a Daniel, ela saiu a esmolar novamente. Passou o dia, mas recolheu pouca coisa. À noite, dividindo a cama tosca e malcheirosa com a mãe, ela adormeceu pensando em como deveria fazer para mudar de vida.

2 - UMA PROPOSTA DAS TREVAS

Novamente, após raiar o dia, Clotilde saiu pelas ruas de São Paulo caminhando lentamente com o filho a tiracolo. Passou por algumas casas, pediu esmola e foi seguindo. No final de uma bonita rua, nos Jardins, ela divisou uma senhora bem vestida sentada em um jardim muito verde e bem cuidado. Lia um livro, que parecia ser a Bíblia, com muita atenção.
- Senhora, tem uma esmola para me dar, pelo amor de Deus?
A mulher olhou de soslaio para Clotilde e, de longe mesmo, respondeu:
- Passe aqui na sexta-feira. Hoje não é dia de esmola! - Dizendo isso, concertou os óculos e voltou a ler.
Pelo espírito de Clotilde passou uma onda de raiva, e ela gritou:
- Será que a senhora é tão ruim a ponto de me negar uma mísera esmola? Então para que ler esse livro e ser religiosa, se a senhora não é capaz de um ato de caridade?
A mulher se levantou enraivecida e revidou:
- E essa agora! Uma pedinte ousando me desafiar. Saiba que de pobres miseráveis já estou farta. Saia de minha calçada antes que eu mande meu segurança colocá-la para fora. Não confio em pessoas como você.
- Quem a senhora é para falar assim? Só porque é rica, pensa que é a dona do mundo? Eu a amaldiçôo. Que a senhora termine os seus dias na pior das situações e que, quando morrer vá para o inferno!
As palavras de Clotilde, ditas com tanta energia negativa, fizeram vibrar de ódio o espírito daquela mulher. Com ódio, ela gritou:
- Ronaldo, Ronaldo, venha aqui agora!
De repente, um homem forte e de roupas escuras apareceu.
- Esta miserável ousou desafiar Augusta de Camargo e vai ter o que merece. Dê uma surra nela.
Clotilde tentou correr, mas o peso do filho e os passos rápidos do homem a fizeram ceder. Ele lhe puxou o filho, colocou-o no chão e a espancou. Depois se retirou e entrou pelos portões da suntuosa mansão. Jogada no chão, Clotilde não sabia qual era a dor maior: se a moral ou a física. O certo é que naquele momento um ódio surdo por tudo e por todos brotou de seu coração e ela chorou mais de raiva do que de tristeza. Pegando Daniel na calçada, saiu se arrastando pela rua. Olhou a casa da senhora, que já estava longe e jurou em voz alta:
- Um dia voltarei para me vingar! Maldita seja essa mulher.
A partir de hoje ninguém mais vai me maltratar. Eu é que maltratarei, pisarei, prejudicarei e farei mal a todos os que encontrar pela frente.
Olhou para Daniel, que sorria e disse:
- Filhinho, você ainda será muito rico, e vou ensiná-lo a pisar, magoar e ferir as pessoas. Juro que ninguém nunca vai humilhar você.
Nesse instante, sombras escuras se aproximaram de Clotilde. Uma delas, que parecia a chefe do grupo, disse:
- Nosso trabalho foi perfeito! Essa já está ganha. Bastou um pouco de humilhação para ela ceder aos nossos impulsos e ainda vamos mais longe. Muita atenção: a segunda parte do plano e a mais importante está por vir. Vamos lá.
Dizendo isso, o grupo de espíritos das trevas desapareceu chão adentro.
Clotilde andou sem rumo durante horas e Daniel começou a chorar. Percebeu que o filho estava com fome e providenciou a alimentação. Felizmente um senhor lhe cedeu um pouco de leite. Ao alimentar o filho, ela percebeu que agora era seu estômago que clamava por alimento. Sem ter o que comer, enfraquecida e humilhada, começou a chorar sentada no meio-fio. Após algum tempo, notou que uma mulher excessivamente arrumada e com roupas de cores berrantes a fitava como que a vasculhar seus mais íntimos pensamentos.
- O que a senhora quer? - perguntou Clotilde com raiva.
A mulher de seus sessenta anos, percebendo a fúria em sua interlocutora, aquiesceu:
- Estava admirando você. Uma moça tão bonita, de formas tão exuberantes, jogada em um chão como indigente. Você não merece nem pode ficar assim.
Ao ouvir aquelas palavras Clotilde ficou feliz; pelo menos alguém a valorizava.
- É isso o que sou: uma indigente, sem dinheiro, sem casa para morar com meu filho e sem comida. Como quer que eu esteja?
A mulher com muito traquejo sentou-se com ela e falou:
- Eu me chamo Aurélia, ou melhor, madame Aurélia, e quero ajudá-la. Se aceitar minha proposta poderá morar comigo, e ainda levar esse bebê!
- Como? Não entendi. Morar com a senhora? Mas com que intenção me faz essa proposta? Não sou o que a senhora está pensando; não me interesso por mulheres.
Madame Aurélia sorriu:
- Não é nada disso, sua bobinha. Vou lhe revelar a verdade: tenho um bordel num bairro afastado daqui, mas que é freqüentado por homens da estirpe paulistana. Convivem comigo muitas moças que, assim como você, estavam em situação difícil e lá encontraram apoio. Hoje recebem muito dinheiro pelo que fazem. Ao observar seu corpo esbelto e seu rosto bonito, pensei logo: essa é a menina que faltava para completar minha coleção de moças e suprir a falta da Julieta, que se casou.
Clotilde estava admirada com tudo o que ouvia e não conteve a pergunta:
- Uma prostituta se casou?
Após uma gargalhada, madame Aurélia respondeu:
- Isso mesmo. É raro, mas acontece. E com você pode até acontecer o mesmo. Se aceitar, levo-a a um ótimo salão de beleza onde vai ficar mais bela e depois a ensino tudo sobre a profissão. Porém, tenho de lhe explicar um detalhe: você tem de me dar garantias de que é maior de idade, e terá de dividir seus lucros comigo. No bordel entra muito dinheiro e é justo que eu fique com cinqüenta por cento de tudo que você faturar. Garanto que é muito dinheiro e que você não vai se arrepender.
Enquanto Clotilde pensava, os espíritos das trevas começaram a envolvê-la:
- Não vê que madame Aurélia é a única capaz de lhe tirar desse sufoco? Ninguém até hoje a ajudou. Ao contrário, todos a humilharam. Depois, como prostituta você pode chegar a ser rica! Vamos logo, aceite!
Cedendo à proposta, ela respondeu:
- A senhora tem razão. Vou seguir seus conselhos. Ainda hoje levei uma surra, fui humilhada e jurei que nunca mais ninguém ia me fazer Sofrer. Quero, sim, ser rica, e vou conseguir isso usando o sexo e os homens. Chega dessa vida ruim que só me faz sofrer.
As duas se levantaram e seguiram trocando idéias. Quem tivesse vidência poderia enxergar um grupo de espíritos deformados abraçando as duas e lhes inspirando idéias.
Num canto da rua, Diana e mais dois companheiros estavam atentos:
- Nunca pensei que ela fosse ceder tão fácil à influência das trevas.
- Infelizmente ela cedeu, e não pudemos interferir. Mais uma vez o livre-arbítrio nos impede a ação. As criaturas são livres para agir tanto como são para pensar.
Diana concordou:
- Infelizmente, o apelo para a comercialização do sexo está muito difundido na Terra. Os espíritos das trevas têm conseguido muitos seguidores no mundo, e Clotilde vai errar mais uma vez. Vivendo em um bordel, ela estará se comprometendo ainda mais com as leis divinas e terá um penoso reajuste.
Um companheiro questionou:
- E madame Aurélia, vai continuar por séculos corrompendo consciências?
- Assim será, até que a dor venha visitá-la. Toda pessoa que desrespeita o sexo, levando-o à comercialização, sofrerá as conseqüências danosas desse ato. Infelizmente, na Terra isso vem acontecendo desde o princípio, sem que os homens aprendam à lição. Agora vamos, companheiros. Temos muito que fazer pela nossa irmã Clotilde, afinal, como disse Jesus: "Não são os sãos que precisam de médicos, e sim os doentes".
Dizendo isso, seus vultos radiosos desapareceram na direção do bordel onde Clotilde passaria a viver.

3 - ENTRE O BEM E O MAL

Madame Aurélia e Clotilde seguiram andando até um ponto de ônibus e alguns minutos depois desceram em Higienópolis. Seguiram por uma rua residencial e, ao final dela, entraram numa mansão do início do século XX. Madame Aurélia esclareceu:
- Ganhei essa casa de um político influente assim que comecei "na vida". Até hoje moro aqui e mantenho o estilo, apenas fazendo algumas reformas.
Clotilde estava maravilhada com a beleza da casa e do jardim. Seguiram por ele e entraram por uma pesada porta de madeira. Ao penetrarem em um grande recinto, houve uma agitação geral. As outras moças vieram para perto, umas admirando a beleza de Clotilde, outras questionando sobre ela e o bebê à cafetina.
- Parem de amolação. Se querem saber, minha intuição estava certa. Hoje pela manhã encontrei a substituta de Julieta; foi fácil e rápido.
Maria José, trabalhadora antiga da casa, inquiriu:
- Como à senhora a descobriu? Pensei que tivesse saído às compras, como sempre faz pela manhã. A senhora, quando quer buscar uma moça nova, sempre procura à noite no sinal.
A cafetina pareceu meditar, sentou num sofá e respondeu:
- Não sei o que me deu hoje pela manhã. Ao acordar tinha a certeza de que se saísse encontraria alguém para o serviço. Não costumo acreditar nisso, mas parece que tinha alguém do meu lado dizendo que eu deveria sair e que encontraria a pessoa que queria. Andei por horas sem rumo até que achei a Clotilde chorando, sem casa e sem comida. A sorte me mandou para o lugar certo.
Clotilde estava envergonhada. Desde já se sentia uma mercadoria; a maneira como aquela mulher falava dava a entender que ela não passava disso.
- Sente-se aí, menina. Estas são suas colegas, e aquele ali é Floriano, nosso mordomo. Fique à vontade. Vou subir e preparar seu quarto.
As outras moças, com roupas sumárias e coloridas, aproximaram-se e começaram a fazer perguntas, às quais Clotilde respondia meio desnorteada. Ela estava muito admirada com o luxo daquele local; nunca entrara num lugar assim. Começou a observar toda a decoração, as cortinas de um veludo cor de vinho, os móveis que pareciam ser do início do século passado, o bar muito luxuoso e decorado com quadros de artistas famosos. Os tapetes vermelhos e as estátuas de pessoas nuas e fazendo sexo completavam o visual do ambiente. As moças foram saindo e ela chamou:
- Ei, você, por favor, não me deixe só. Estou tão desorientada!
Morgana se apiedou:
- Você é tão nova... Por que não escolhe outro tipo de vida?
- É que não tenho outra saída. Sou pobre, moro numa favela com minha mãe num barraco miserável, cansei de pedir esmola pela rua e ser humilhada. O encontro com madame Aurélia mudou minha vida. A partir de hoje quero ser outra pessoa.
A colega se admirou:
- Nossa você está decidida mesmo! Mas não se engane; a vida aqui não é fácil. Ao ver nossas colegas gargalhando e bebendo, achamos que tudo é muito bom, contudo a prostituição tem seu lado cruel.
- Estou disposta a enfrentar todas as conseqüências. Fico cada vez mais admirada... Pensei que esse tipo de bordel não existisse mais.
- Mas existe - explicou Morgana, que parecia estar na casa dos trinta anos. - Nem todas as prostitutas gostam e podem viver fazendo programas no sinal. Muitas são mortas pelos clientes ou envolvidas no tráfico de drogas. Outras não conseguem se manter e preferem um lugar assim como o nosso.
Clotilde continuava curiosa:
- Vocês não têm problemas com a polícia?
- Madame Aurélia só admite que trabalhem com ela mulheres maiores de idade, e a Mansão de Higienópolis, como aqui é chamada, é protegida por políticos influentes do governo, que inclusive são freqüentadores assíduos dos nossos serviços. Esta casa tem proteção de muita gente grande.
Clotilde se sentiu segura e feliz. Ali realizaria seu sonho.
- Então não vejo por que essa vida tem o lado ruim - comentou ela.
Morgana sorriu.
- É que você está chegando agora. Não sabe o que terá de enfrentar. Se o dinheiro é alto, os ossos do ofício são, por vezes, repugnantes. Madame Aurélia exige que façamos sexo com qualquer cliente, sem distinção, muitas vezes até mesmo com drogados, bêbados ou homens violentos. Eles nos usam como querem; terá de ser forte e se acostumar.
Olhando para o bebê ao seu lado no sofá, Clotilde pensou: "Vou ser forte e suportar; para conseguir meu objetivo, farei de tudo". Madame Aurélia desceu as escadarias e chamou por Clotilde. Seguiram por um longo corredor, que tinha muitas portas. Na última, à esquerda, pararam. Ao entrarem no quarto, Clotilde ficou deslumbrada. Uma cama de casal coberta com luxuoso lençol vermelho, abajur, banheiro e janelas com cortinas seria o seu recanto.
- É aqui que você passará a viver a partir de agora - explicou a velha senhora. - Não costumo deixar que mulheres com crianças vivam aqui, mas você é uma exceção. Sua beleza e seu corpo são raros de ser encontrados. Olhe sua barriga, nem parece que teve criança! Você será um sucesso aqui na casa. Mas vou logo avisando: não tolero arrependimentos, brigas entre colegas ou rejeição a clientes. Qualquer coisa que fizer de errado aqui, voltará para o olho da rua. Sou muito boa, mas perco a paciência com ataques de consciência, choro e lamentações. Se quiser viver neste lugar, terá de seguir as normas da casa.
Clotilde ouvia tudo um pouco assustada. A mulher, com olhos penetrantes prosseguiu:
- A partir de hoje também não terá vida própria. Sua vida pertence a esta casa. Primeiro vamos começar mudando o seu nome. Clotilde é um nome arcaico e feio. Não combina com mulheres que devem dar prazer e alegria aos homens. De agora em diante se chamará Isabela. Vá almoçar, pois à tarde sairemos às compras e ao cabeleireiro. Mudaremos esse corte horrível e o pintaremos, de maneira a chamar a atenção. Seja rápida, tome um banho. Estou esperando por você lá embaixo.
Com a voz sumida pelo medo, Clotilde indagou:
- E meu filho, onde ficará nas horas de meu trabalho?
- Paciência, tudo se resolve no tempo ideal.
Dizendo isso, saiu fechando a porta atrás de si. Clotilde caiu em um pranto convulsivo por mais de meia hora. Depois, ainda influenciada por espíritos inferiores, concluiu que só havia para ela aquele caminho, e que agora não era hora para arrependimentos. Algum tempo depois, desceu, almoçou, alimentou o filho e ao sair, deixou Daniel com uma de suas colegas. Pelo centro de São Paulo elas fizeram compras e foram ao salão de beleza. Mais tarde, quando chegou, Clotilde parecia outra pessoa. As amigas a felicitaram pela nova aparência, que deixou algumas com inveja, tamanha era sua beleza.
- Como faço se meus parentes me procurarem?
A severa mulher foi taxativa:
- Esqueci de lhe dizer que, enquanto viver na Mansão de Higienópolis, não terá mais família. Está proibida de procurá-los e se for encontrada, deverá livrar-se deles o mais rápido possível. Em seu caso acho difícil encontrarem você, pois, vivendo naquela miséria, dificilmente chegarão até aqui.
A noite chegou e, já no quarto, madame Aurélia lhe explicou:
- Hoje você ficará aqui quieta, sem aparecer. Daqui a pouco o grande salão será aberto e você ouvirá muita música, gargalhadas e gritos. Não se assuste; são suas colegas no trabalho. Sua estréia será amanhã. Faremos uma festa especial para você. Haverá um leilão: quem pagar mais vai estrear a nova trabalhadora da casa.
Clotilde ainda estava chocada com tudo aquilo, no entanto tinha de prosseguir. Do ponto onde estava jamais olharia para trás. Aquela vida pobre e miserável que levava morrera naquele dia. Não queria mais saber da mãe, aquela velha agourenta, nem de seus irmãos, pobres e sem emprego. Mesmo com toda a algazarra formada no salão, Clotilde conseguiu dormir. Em poucos minutos estava fora do corpo. Viu três homens com roupas escuras, cabelos desgrenhados e semblantes perversos se aproximar:
- Parabéns, está fazendo tudo certo. Continue assim; você conseguirá tudo o que deseja.
- Quem são vocês? - perguntou assustada.
- Somos seus amigos. Estamos lhe inspirando as idéias e as ações. Não tem se sentido forte ultimamente para decidir as coisas? Pois é, somos nós.
O espírito Diana também apareceu. Reduzindo a sua vibração, ela pôde ser vista por todos eles. Clotilde correu e abraçou-a:
- Minha amiga, você continua ainda do meu lado? Mesmo com a vida que estou querendo levar? Veja aqueles ali são meus amigos.
Diana, com semblante sereno, olhou-a séria enquanto falou:
- Clotilde, pense muito no que vai fazer para não se comprometer ainda mais. Essa vida que pretende iniciar só vai levá-la ao caminho do sofrimento. Esqueceu o que já fez no passado, você e Davi? Ainda dá tempo. Nós a aconselhamos a romper esse laço com essas pessoas e voltar para a casa de sua mãe. Lá a intuiremos e você conseguirá melhorar de vida honestamente.
- Não posso; infelizmente não posso. Quero ser rica, famosa, para poder humilhar e ferir aquela mulher horrível que me ofendeu e a todos que encontrar no caminho. Só conseguirei isso aqui, com essas pessoas. Não vê que na favela nada conseguirei, a não ser pedir esmola?
Diana não se deu por vencida:
- Você pensa assim, pois está dando vazão às ilusões do mundo. Dinheiro e fama só são bons quando os conseguimos pelos caminhos do bem. Quem procura a riqueza e o status por meios negativos e reprováveis, por meio do roubo ou da vida fácil na prostituição, apesar de o conseguirem, nunca serão felizes. As leis de Deus cobrarão, centavo por centavo, tudo que foi conseguido de forma desonesta. E, em seu caso, haverá a agravante da prostituição. Toda pessoa que se utiliza desse meio para subir na vida terá um retorno doloroso no futuro. Poderá nascer pobre mais uma vez e ter os órgãos genésicos deformados, além de ter como companhias os obsessores que a induziram por esse caminho. Pense bem antes de decidir.
Os espíritos, que ouviam tudo e estavam sentindo que podiam perder a chance de influenciar Clotilde, tomaram a frente:
- Não pense assim, amiga. Não vê que essa aí só quer o seu mal? Em poucos anos nesta casa você vai conseguir tudo o que quer; até um marido estamos providenciando para você. Analise bem... Estando do nosso lado, nunca estará desamparada e ainda vai conseguir se vingar de todos que a molestaram, até mesmo daquela mulher.
Clotilde ficou em dúvida:
- Mas... E se me acontecer tudo aquilo que Diana falou? Ela é minha amiga, estudei muito com ela. Eu já sabia que a tentação da vida fácil ia aparecer na minha jornada. Julgava estar forte para resistir, mas parece que vou sucumbir. Posso ser punida severamente por Deus.
O espírito gargalhou:
- Você acredita mesmo nisso? Esse papo não resolve nada! Vemos pessoas do bem a todo instante sofrer maldades e receber desgraças, enquanto nós, os chamados ruins, prevalecemos vitoriosos e com sorte. Qual caminho vai escolher?
Diana fez sua última tentativa:
- Não é bem assim como ele disse. Quem é realmente bom sempre recebe o bem porque a lei é justa. As pessoas que chamamos "boazinhas" e que sofrem estão passando por provações por não estarem dando o melhor que podem dentro do nível de evolução delas. Alardeiam o bem e o fazem realmente ao semelhante, mas deixam de fazê-lo a si próprias. Não desenvolvem a consciência, não procuram ter fé nem cultivam bons pensa mentos; só pensam em amar os outros sem amar a si mesmas. A felicidade só acontece quando abrimos à consciência e usamos nosso potencial a nosso favor. Jesus nos disse: "Amai o próximo como a ti mesmo". Infelizmente, muitas pessoas se esquecem do "ti mesmo".
A amiga espiritual de Clotilde tomou novo fôlego, e completou:
- Quanto aos maldosos que estão vivendo bem, é bom que eles se prepararem, pois a vitória do mal é apenas momentânea. Deus realmente não pune ninguém, todavia chegará à hora do acerto de contas com a própria consciência, e é possível que sofram bastante até se voltarem novamente ao bem, reparando todos os delitos cometidos ou, o que é pior: expiando. Não se trata de castigo divino, e sim do retorno natural de suas ações.
Clotilde pensou um pouco e decidiu:
- Não adianta tentar me iludir. Cansei das ilusões de que o bem sempre vence e de que Deus a tudo prove. Vou cuidar de minha vida e não quero mais saber de suas interferências. Sou grata por tudo que me fez, mas, se for para ficar me cobrando agora, prefiro não vê-la mais.
Ao ouvir aquela frase, Diana desistiu e desapareceu, indo em busca de seus companheiros.
- É amigos - comentou Diana, ao encontrá-los -, mais uma vez Clotilde preferiu entrar pela porta larga que conduz à perdição. Entretanto, estaremos atentos. Qualquer sinal de mudança voltaremos para ajudá-la.
Deixaram aquele lugar onde espíritos inferiores aproveitavam as paixões que escravizam os homens e foram se recolher à colônia Campo da Redenção, onde trabalhavam e viviam.

4 - A PRIMEIRA VÍTIMA

Fazia um ano que Isabela se encontrava na Mansão de Higienópolis. Desde o dia de sua estréia no bordel, tivera de suportar todo tipo de humilhação e impropérios. Ela procurava agüentar tudo calada, deixando os homens livres para fazer com ela o que quisessem como tinha ensinado madame Aurélia. Mas seu íntimo estava repleto de ódio e rancor. Assim como ela agradecia a Deus seu filho estar alimentado e bem, também odiava todos, principalmente a mercenária cafetina. Um dia ela se vingaria dela também e poderia lhe mostrar, então, o quanto era forte. Nunca mais tivera notícias da mãe nem dos irmãos. Sempre que pensava neles, uma onda de rancor a invadia. Julgava-os fracos e sem capacidade. A noite estava bonita e a brisa do outono entrava pelas grandes janelas da mansão. Isabela estava no quarto contíguo ao seu, onde ficava Daniel, e o alimentava quando Morgana entrou.
- Isabela, é bom se apressar, pois madame Aurélia quer todas nós no grande salão. Tem algo de muito importante a nos comunicar.
- O que é que ela quer desta vez? Explorar-nos ainda mais?
A outra, com ar preocupado, sentou ao lado dela.
- Você sabe que sou sua amiga e quero o seu bem - começou Morgana. - Por isso vou lhe avisar: não abuse da bondade da madame; outro dia eu a ouvi dizer que você é muito dada a chiliques e quer ser melhor que as outras. Disse também que só não a coloca no olho da rua porque é muito bonita e dá muito lucro a casa. Mas lhe digo para não abusar. A Ofélia era assim, até o dia em que a madame não agüentou e tocou ela daqui.
Isabela sentiu muita raiva. Quem aquela madamezinha pensava que era?
- Digo-lhe, Morgana: um dia ainda serei rica e vou sair desse inferno. Nesse dia vou me vingar de todos os que me humilharam principalmente de dona Aurélia. Eu juro amiga! E, se você quiser, a levarei junto.
A outra, com sorriso triste, redargüiu:
- Isso é muito difícil de acontecer. No entanto, se você um dia melhorar de vida, lembre-se da amiga aqui. Agora vamos descer que a chefe nos espera e não gosta de atrasos.
No salão as outras já estavam sentadas, esperando o início da reunião. Madame Aurélia, tragando elegante cigarro e bebericando um vinho seco, começou:
- Hoje teremos uma visita muito importante em nossa casa. Trata-se de um cavalheiro que nunca veio aqui e nos visitará pela primeira vez. É um importante senador, braço direito do nosso governo. Quero que vocês todas estejam bonitas, da ponta da unha até o último fio de cabelo. Ele vai escolher uma de vocês para passar a noite de graça, e nenhuma poderá se recusar.
Isabela protestou:
- Por que de graça? Isso nunca aconteceu antes! Se me escolher, eu não vou!
- Não brinque garota. Esse homem é importante, amigo de um protetor nosso, e lhe devemos esse presente. Caso ele escolha você, terá de ir ou então será mandada para o olho da rua. Há muito tempo venho estando engasgada com suas gracinhas aqui. A prostituição é trabalho como qualquer outro e deve-se fazer vontades e agrados ao freguês. E, como toda boa empresa, aqui também tem seus brindes, por isso uma de vocês será o brinde da noite. Agora subam e se arrumem, pois quero todas impecáveis.
As moças subiram insatisfeitas. Não gostavam de trabalhar de graça; nenhuma delas queria ser a escolhida. Finalmente à hora chegou. A casa cheia, anunciando animação, estava à espera do misterioso homem. De forma discreta, ele entrou acompanhado de outros amigos já freqüentadores do lugar. Após cumprimentar a dona, sentou-se e pediu uma bebida forte. Num lugar do umbral, um grupo de espíritos se reunia. Um deles dizia:
- A hora chegou, precisamos ir para lá!
- Além do que, estamos ansiosos pelas vibrações do sexo que podemos obter naquele paraíso.
O que parecia ser o chefe se pronunciou:
- Podem vampirizar à vontade, porém não se esqueçam da importante missão que têm lá. Devem influenciar o senador Humberto para que ele escolha a Clotilde. Ela precisa fazer o que nós desejamos.
- Isso mesmo! Ela é um fantoche em nossas mãos; certamente vamos conseguir.
Dizendo isso, as sombras escuras desapareceram, indo em direção do local.
Madame Aurélia fez uma espécie de desfile no qual uma a uma às mulheres eram apresentadas. De repente, as sombras chegaram ao ambiente e cumprimentaram outros espíritos que já se encontravam no local, todos buscando o prazer do sexo de forma ilícita e sempre o conseguindo junto àqueles que não possuem vivência no verdadeiro bem.
Romário, que comandava a expedição, explicou:
- Vejam como é fácil obrigar as pessoas a fazer nossas vontades. Madame Aurélia foi, no século passado, uma famosa cafetina nordestina. Comandava com mãos de ferro um bordel que ficou famoso naquelas paragens. Conseguia com uma feiticeira uma beberagem que impedia suas meninas de engravidar e, caso alguma delas "pegasse barriga", como assim ela dizia, a levava a uma mulher experiente para fazer aborto. Essa mulher que vocês vêem aí foi responsável por mais de cem abortos praticados no ambiente onde trabalhava fora os outros incontáveis que fez em si mesma. Não sabemos por que, mas desencarnou naquele tempo com um terrível câncer no útero que a devorou em seis meses. Ficou no umbral sofrendo como se ainda estivesse com a doença durante largo período. Depois que foi resgatada pelos servos do Cordeiro, nunca mais ouvimos falar dela, até que um dia a encontramos pelo pensamento em uma situação difícil. A mãe tinha morrido e ela era arrimo de seis irmãos menores. Sem ter dinheiro e sem trabalho, entrou em desespero. Daí foi fácil sugerirmos que retornasse à antiga profissão que exerceu no passado. E agora vocês podem ver o resultado.
Os espíritos gargalharam e se dirigiram ao alvo da noite: o senador Humberto Aguiar. Sentado à mesa com um copo de forte bebida entre as mãos, o senador esperava com ansiedade a hora de escolher sua preferida. Ele era um homem de meia-idade, moreno claro, com um bigode devidamente aparado, meio calvo, mas muito bonito.

Apesar de parecer contraditório Romário dizer que não sabia por que madame Aurélia havia desencarnado com câncer no útero, uma vez que tinha provocado tantos abortos em si mesma e em outras de suas meninas, o motivo parece muito claro. Devemos ter em vista que a ótica é a de Romário, que não tinha esclarecimento suficiente para entender as leis divinas. (N. do E.)

Qualquer uma das mulheres dali se daria por feliz ao passar uma noite com ele, desde que fosse regiamente recompensada. Porém, de graça, nenhuma estava disposta. Madame Aurélia, microfone à mão, iniciou a homenagem dizendo palavras belas ao senador que tanto contribuía com o governo e o deixou à vontade para escolher sua parceira da noite. Humberto, num gesto muito seu, colocou a mão direita no queixo e perpassou o olhar em cada uma delas minuciosamente. Estava difícil escolher. Realmente seus amigos tinham razão. Madame Aurélia só trabalhava com mulheres de primeira. Como escolher a melhor? Romário, atento, percebeu que era o momento exato de agir e, lançando um olhar que logo foi compreendido pelos seus companheiros, iniciou a operação. Eles se abraçaram ao senador e começaram a sugerir frases:
- Escolha a Isabela! Não vê que ela é a melhor? - dizia um.
- A sua deverá ser aquela do costume azul; não a deixe escapar. Você aqui é rei, pode tudo - outro dizia.
- Com Isabela você terá a noite inesquecível com a qual sempre sonhou - vociferava o outro.
Sem perceber que estava sendo envolvido por espíritos perversos, cujas intenções ele estava longe de saber, Humberto de repente sentiu-se magnetizado pelo olhar e pelo corpo da mulher do vestido azul. Fez menção de olhar as outras na tentativa de encontrar alguma mais interessante, mas não conseguia. Estranha força o prendia ao semblante de Isabela. Com rapidez, decidiu: seria a que estava na ponta da fila. Com um gesto ele fez a sua escolha. Isabela tremeu; isso não poderia estar acontecendo com ela.
- Isabela, desça! - ordenou a madame. - Acompanhe o senhor Humberto ao seu quarto. Você foi à escolhida, parabéns!
Palmas e gargalhadas cortaram o ar. O olhar de Aurélia já dizia por si mesmo que, se ela não obedecesse, não escaparia do olho da rua. Isabela ainda tentou enfrentá-la, todavia, ao lembrar que Daniel poderia ficar mais uma vez sem teto ou comida, resolveu aquiescer. A festa continuou no grande salão enquanto ela e Humberto foram para o quarto. Daniel ficava sempre aos cuidados de uma empregada que não exercia a função de prostituta enquanto a mãe trabalhava. Uma vez no quarto, Isabela se entregou àquele homem que sequer iria pagá-la com muita repugnância. Quando tudo acabou, o espírito de Romário sussurrou ao seu ouvido:
- Esse é o homem que você esperava. Nele está sua chance de mudar de vida! Aproveite!
De repente um pensamento a acometeu: "Quem sabe esse homem não pode me tirar da miséria?". Fumando um elegante charuto, ele parecia estar distante. Tomando coragem, numa atitude incomum às prostitutas profissionais, ela tentou:
- O senhor mora em Brasília mesmo?
Ele, parecendo não ter se importado com a pergunta, respondeu:
- Praticamente sim. Lá tenho um belo apartamento onde passo a maioria dos dias da semana. Aqui em São Paulo tenho uma bela casa onde ficam minha esposa e minha filha. Venho sempre que posso.
- O senhor é casado há muito tempo?
- Sim, há mais de trinta anos. Construí uma família sólida, embora marcada por tragédias. Perdi dois filhos num acidente de carro e minha esposa vive doente.
Influenciada pelos espíritos das trevas, subitamente ela pensou: "Esse homem ainda será meu. Vou tirá-lo dessa mulher doente e serei, assim, a esposa dele". O senador parecia estar apreciando a conversa, pois em hora nenhuma se opôs às perguntas dela. Isso não era algo comum de ele fazer com mulheres desse tipo. Mal sabia que agia assim pela influência de espíritos ainda atrasados que estavam no local. Toda pessoa que busca o prazer do sexo de forma comercial está sujeita à invasão de espíritos inferiores. O senador Humberto Costa de Aguiar era visado pelo astral inferior fazia anos. Mas só depois de várias tentativas tinham conseguido influenciá-lo. E à hora havia chegado; bastava Isabela fazer o que eles desejavam. Isabela deu sua cartada:
- Gostaria de vê-lo mais vezes. Será sempre de graça, é porque é para você...
Vestindo-se, ele respondeu:
- Voltarei outras vezes, sim.
Deu um beijo no rosto dela e saiu fechando a porta atrás de si. Desceu. O salão havia se aquietado e apenas uma música romântica embalava alguns casais que ainda conversavam na penumbra. Muito contente, madame Aurélia aproximou-se do senador:
- Tenho certeza de que gostou senador. Isabela é uma das minhas melhores meninas!
- Com certeza é a melhor. A partir de hoje quero que ela seja exclusivamente minha. Pagarei por isso; basta me dizer a quantia.
Pelo semblante de Aurélia passou um vislumbre voraz de ambição.
- Gostaria que o senhor soubesse que não vai custar barato. Infelizmente, temos de nos manter. E, pela estrutura da casa, o senhor pôde perceber que gastamos muito, principalmente para oferecer o que há de melhor a pessoas como o senhor, por exemplo.
Ele se sentou próximo ao balcão e pediu uma bebida, a qual Aurélia serviu com prazer. Como era bom fazer um negócio de vulto como aquele! Fumando outro charuto que, pela marca, Aurélia percebeu ser importado, ele confessou:
- Usei a Isabela hoje sem pagar, o que me deixou meio constrangido. Não é de meu feitio usar essas mulheres sem dar nada em troca. Aceitei por insistência de amigos. Mas, a partir de hoje, ela será só minha. Faça os cálculos que eu pago.
Com muita satisfação, aquela mulher, acostumada a vender o corpo das pessoas, calculou tudo muito rápido e mostrou a quantia ao senador. Cocando o bigode ele afirmou:
- Nossa não pensei que ela fosse tão cara! Porém, tenho de concordar que é realmente esse o valor que ela tem.
Assinou o cheque, pegou o paletó e saiu sem esperar os amigos. Dentro do carro, o senador ficou pensando nos intensos momentos de prazer que vivenciara ao lado daquela jovem mulher e jurou para si mesmo que jamais a perderia. Ele não poderia ver a quantidade de espíritos que o rodeavam. Do teto do carro aos bancos, espíritos viciados em bebida e sexo estavam em contato com aquele homem que se imaginava sozinho. Em processo de vampirismo, essas entidades retiravam dele o fluido vital e com isso encurtavam, e muito, o número de anos de sua presente encarnação. Era a primeira vítima de Isabela e seus comparsas desencarnados na presente existência. Ela, que reencarnara para progredir e crescer com o próprio esforço, condição que sempre exige mudanças de atitudes e pensamentos, estava preferindo a porta larga, que, como disse Jesus, sempre nos conduz à perdição.

5 - UMA VIDA DESTRUÍDA

O carro último modelo parou em frente de um majestoso portão de ferro. Humberto, com o controle remoto abriu o portão e, após colocar o veículo na garagem, entrou na elegante vivenda. Construída em bairro luxuoso de São Paulo, aquela casa causaria inveja a qualquer pessoa, mesmo as da mesma classe do senador. Tudo ali fora cuidadosamente escolhido por Flaviana de Camargo Aguiar quando, no auge da sua felicidade afetiva, se casara com o homem amado. Naquela época, quando ele ainda não tencionava seguir carreira política, tudo era diferente. Amoroso e apaixonado, ele a cortejara até conseguir sua mão em casamento. Não fora fácil. Humberto era ainda muito novo e vinha de uma família que, apesar de ter algumas posses, não era rica. Ele sempre tinha sido muito ambicioso e jamais se casaria com uma mulher que fosse pobre ou tivesse patrimônio igual ao seu. Ele queria mais, tencionava ser milionário, e só fazendo um casamento de conveniência com uma moça da alta sociedade é que iria conseguir. Era início dos anos 1970 e a revolução sexual havia transformado o comportamento e o caráter de muitas moças naquela época. Para Humberto, encontrar uma à altura dos seus sonhos estava praticamente impossível. Mas a vida, quando quer pôr um espírito à prova, que ele mesmo atrai com o próprio comportamento, faz surgir oportunidades de onde menos se espera: eis que, no baile de sua formatura, onde se tornara bacharel em Direito, Humberto conhece Flaviana. Do primeiro encontro ao casamento foi menos de um ano. Os pais dela, o senhor Hipólito e dona Augusta, haviam sido educados de forma austera e sempre condicionados ao pensamento de que as classes não deviam nem podiam ser misturadas. Porém, a paixão da filha única pelo recém-formado Humberto aos poucos foi minando a resistência dos pais, que acabaram por concordar. Humberto fez o papel de moço apaixonado quando, na realidade, só queria mesmo era ascensão social e financeira, esta última principalmente. Agradavam-lhe as formas do corpo e o rosto angelical de Flaviana, mas amor mesmo ele não tinha por ela. Foi um casamento sem amor, portanto, fadado ao fracasso. Flaviana, como a maioria das mulheres, teve uma educação equivocada. Fantasiava o homem perfeito, que iria aparecer e lhe fazer todas as vontades. O mimo a fez achar que Humberto era o príncipe que a vida lhe mandara. Iludida com o sonho de amor, ela atraiu para sua vida justamente o homem que iria, por intermédio da desilusão e da dor, fazê-la amadurecer. Após as pompas da cerimônia e a rica lua-de-mel, começou para eles o tempo da convivência. Depois dos primeiros anos, a paixão que ele demonstrava esfriou. Vieram os dois primeiros filhos, a rotina entediante, até que, logo após o fim do regime militar, Humberto interessou-se pela política. Filiou-se a um partido que estava surgindo com muita força naquele momento e, anos depois, até se candidatou à vice-presidência do país, mas foi derrotado. Conseguindo o cargo de senador, deixou para sempre de advogar, tarefa que exercia com bastante enfado. Entrou na sala excessivamente luxuosa e tudo estava às escuras. Naquele momento pensou no quanto era infeliz. Patrícia havia nascido em meio às brigas e confusões de um matrimônio já fracassado. O senhor Hipólito, percebendo que a filha fora enganada, praticamente cortou relações com o casal, principalmente após saber das aventuras sexuais do genro. Humberto subiu e com desgosto foi para o quarto de hóspedes em que dormia. Começou a relembrar a tristeza e a dor de ter perdido Marcos e Alfredo, seus filhos queridos e que seriam seus continuadores na carreira política. No desastre apenas ele se salvara. Começou a chorar de emoção. Apesar de tudo, ainda lhe restava Patrícia, que era seu anjo bom. Só por ela é que não abandonava para sempre aquela casa triste e sombria, apesar de rica e composta com tudo que há no mundo moderno. Poucos anos depois do nascimento de Patrícia, estranhos sintomas acometeram sua mulher. Ela começou a ter náuseas e vômitos freqüentes, manchas arroxeadas começaram a surgir junto com um forte prurido, mas os médicos não conseguiam diagnosticar a doença. Até que ela começou a urinar mais que o normal e sempre que o fazia era com muita dor e sangramento. Quando foi descoberta a insuficiência renal, ela já estava com mais de noventa por cento dos rins comprometidos. Os médicos afirmaram que só o tratamento com hemodiálise poderia lhe dar algum tempo a mais de vida, pois um transplante naquele momento seria arriscado e até fatal, além do que teriam de enfrentar a fila de espera, mesmo sendo ricos. Foi uma bomba que caiu sobre aquela família. Desesperada, dona Augusta, já viúva havia alguns anos, exigiu que o tratamento fosse feito em casa. Eles conseguiram os aparelhos e montaram uma verdadeira clínica no próprio quarto do casal. Humberto, a partir daquele momento, sempre tinha de contar com a presença desagradável da sogra em sua casa. Olhar rancoroso, ela conversava com ele somente o necessário. Fazia dois anos que sua mulher estava gravemente enferma. Humberto chorava copiosamente sua desdita. Perdera os filhos, a riqueza não o tornara tão feliz quanto imaginara e sentia um imenso vazio dentro do peito. Só mesmo na política e no sexo encontrava algum prazer. Mas, ultimamente, toda vez que podia fugia das reuniões do Senado. Estava perdendo o gosto pela vida. Só agora, ao encontrar Isabela, é que tinha vislumbrado uma nova luz em seu caminho. Sem que ele pudesse ver, seus filhos desencarnados estavam ali a velar por ele. Marcos e Alfredo, espíritos bons, logo compreenderam como atraíram aquelas mortes por acidente e trataram de procurar auxiliar o próximo na colônia onde viviam. Trabalhavam bastante, porém sem se desligar um instante sequer da família que os recebera com tanto amor na Terra. Ao perceberem a doença da mãe, prontamente foram buscar explicações com um dos instrutores da cidade em que viviam. Foram recebidos com cordialidade por Alexandre.
- Vieram saber sobre o estado de Flaviana. Fui informado de que está desenvolvendo uma doença terminal.
Marcos, olhos marejados, redargüiu:
- Isso mesmo. Não conseguimos entender por que aquela que foi nossa mãe na Terra tem de passar por semelhante sofrimento. Gostaríamos de ajudar.
- A doença da mãe de vocês não poderá ser curada na presente encarnação. Tentem se conformar para poderem ajudar. Adoecer junto com ela não será o melhor remédio.
- Por quê? - foi à pergunta aflita de Alfredo.
- Todas as doenças que acontecem aos encarnados surgem pela maneira equivocada com que estão guiando suas vidas. O corpo de carne é uma espécie de válvula que absorve as energias doentias produzidas pelo pensamento humano e as extravasa em forma de doenças. No caso da sua mãe, ela se encontra escrava da hemodiálise porque foi escrava a vida inteira das próprias ilusões. Terá de modificar a forma de pensar para encontrar a paz e o equilíbrio. No entanto, isso não acontecerá na Terra; só vai se dar depois do desencarne.
- Notamos que a nossa mãe estava muito infeliz, mas ela não se iludiu. Quando percebeu quem nosso pai era de verdade, acordou para a vida e procurou viver da melhor maneira possível.
Alexandre explicou:
- Engana-se. Sua mãe trocou de ilusão. Se antes o que a dominava era o sonho de amor, agora ela vive na esperança de que Humberto mude de comportamento e ainda seja o que ela espera. Sua mãe alimenta o desejo de transformá-lo. Triste situação. Infelizmente, a doença é a forma que a vida encontrou de levar ao seu espírito a cura por que ela tanto anseia. É necessário, acreditem. Se ela não precisasse passar por semelhante situação, a bondade divina não iria permitir.
Conformados, eles saíram, e a partir daquele instante procu¬ravam ajudar no que fosse necessário no intuito de diminuir as dores da mãe. Era com tristeza que viam o pai mergulhar nos meandros da corrupção e do sexo irresponsável, mas nada podiam fazer a não ser rezar e ter paciência. Humberto chorou durante um tempo, porém lembrou-se da filha, Patrícia, o único bem que lhe restara na vida. Como ela era bela e inteligente! Já estava com dezoito anos e havia terminado o colegial. Pensava em prestar vestibular e ser psicóloga. Humberto sabia que ela conseguiria. Era muito interessada pela vida e pelos estudos. Naquele instante, lembrou-se das conversas longas que tinha com ela e de como admirava sua sabedoria. Apesar da idade, ela tinha muitas idéias que desafiavam o raciocínio comum e às vezes fazia com que ele se sentisse melhor. Pensando na filha, adormeceu. Pela manhã, já devidamente barbeado, desceu. Tinha acordado bastante cedo, apesar de ter dormido tarde. Encontrou Patrícia à mesa, tomando café.
- Bom dia, papai! Como é bom tê-lo em casa. Está ficando cada vez mais rara sua presença aqui. - Levantou-se e deu um beijo na testa dele.
Enquanto Eulália, a criada, o servia, ele comentou:
- Esta casa sempre me traz recordações tristes. A lembrança dos seus irmãos, dos tempos de felicidade que vivi ao lado de sua mãe, tudo isso me machuca muito.
- Sabe papai, há alguns meses tenho freqüentado um lugar muito bom, onde tenho aprendido várias coisas a respeito da vida. Sempre que vou lá me sinto bem. E um centro de estudos espirituais. Gostaria muito que o senhor fosse lá um dia comigo.
Ele, meio desinteressado, perguntou:
- E o que se aprende lá? Pelo visto, é um centro religioso.
- Lá, eles ensinam que o sofrimento é um estado antinatural, que nascemos para ser felizes e que a perfeição total é nosso destino. Mas não tem nada a ver com religião. Eles afirmam que as religiões vão acabar e trabalham com eles muitos terapeutas e médiuns que, com o auxílio de espíritos bons e evoluídos, nos ajudam a viver melhor.
Ele fez um ar azedo:
- Só podia ser mesmo o espiritismo. Quero que saiba que aqui nunca ensinamos religião a ninguém, cada um sempre foi livre para seguir o que quisesse, mas não me obrigue a ouvir coisas que vêm de pessoas simplórias e supersticiosas. Muito me admira você, sempre tão inteligente, ter caído em uma dessas.
Ela continuou sem se importar:
- Eles trabalham como espiritualistas independentes, mas têm bases no espiritismo codificado por Allan Kardec. Vendo o senhor sempre tão triste, observando a doença horrível da mamãe e os fatos trágicos que aconteceram com meus irmãos, sempre me perguntei o porquê, e nunca encontrei respostas. Hoje, com o pessoal do centro, tenho descoberto coisas incríveis e sei que tudo está certo da maneira como está. Eles me deram O Livro dos Espíritos para ler e com ele estou descobrindo até o próprio Deus. Não é fabuloso, papai?
Coçando o bigode, Humberto replicou:
- Sei não... Tenho medo de que eles coloquem em sua cabeça que seus irmãos morreram e sua mãe está sofrendo porque estão pagando débitos de vidas passadas. Conheço pessoas espíritas que depois que abraçaram essa doutrina se tornaram conformistas e estagnadas, aceitando tudo sem reagir. Não quero que você pense assim.
- É aí que está o engano, papai. A interpretação errada de alguns deu a essa sublime doutrina uma conotação conformista. Tenho aprendido que não existe fatalidade e que noventa por cento dos nossos sofrimentos não vêm de vidas passadas, e sim de escolhas atuais. Só quando nascemos com defeitos físicos, em estados calamitosos de pobreza e doença, ou numa família problemática é que estamos recolhendo o que fizemos no passado. Quanto ao resto, corre por conta do nosso modo inadequado de pensar e encarar a vida. Creia papai, o sofrimento pode e deve ser evitado. Chegou à hora de a humanidade se libertar de vez da dor. Não acha que tenho razão?
Tomando vagarosamente seu café, Humberto se perguntava de onde a filha tirava tantas idéias, que por vezes o confundiam.
- Então, como explicar o sofrimento de sua mãe, uma mulher tão boa e prestativa? Não consigo entender. Se você perguntar a um espírita, por exemplo, ele dirá que é um resgate.
- Nada disso. Conversei com a Sílvia, uma das terapeutas, sobre o problema de mamãe, e ela me disse que os problemas de saúde são o resultado de atitudes equivocadas da pessoa na presente encarnação. Nos casos de problemas renais, a causa está na escravidão que a pessoa vive consigo mesma. Espera tudo dos outros e tem dificuldades no relacionamento afetivo. São pessoas que criam à imagem do amor ideal e, quando se decepcionam, ficam com muito ódio, achando que tudo está perdido. Elas, então, desistem de viver, atraindo para si a moléstia nos rins.
Humberto remexeu-se na cadeira. Realmente Flaviana havia se decepcionado bastante com ele. Com certeza ela descobrira que o casamento só fora uma conveniência. Resolveu parar com aquela conversa; não desejava se sentir culpado. Eulália desceu a escadaria com uma bandeja praticamente intacta nas mãos. Aproximou-se da mesa:
- Sr. Humberto, dona Flaviana o chama. Disse que quer lhe falar antes que saia.
- Como está ela hoje, Eulália?
- Um pouco pior. Está depressiva, quase não quis comer.
Deixando a filha na sala, ele foi ter com ela. Ao entrar no quarto, uma sensação de tristeza muito grande o invadiu. Aqueles aparelhos horríveis filtrando o sangue praticamente o tempo inteiro davam uma impressão soturna ao ambiente. Na cama ricamente arrumada, Flaviana se encontrava com os olhos perdidos num ponto indefinido. Em quase nada lembrava aquela moça jovem e bonita que um dia havia se casado com Humberto.
- Sente aí! – disse ela com voz fraca.
Ele obedeceu.
- Sei que você nunca me amou. Percebo como era ingênua quando achei que você era o homem perfeito que idealizei. Tarde demais; minha vida está destruída.
Ele pegou nas mãos dela e o remorso o fez derramar algumas lágrimas.
- Não diga isso. Você é jovem. Sua vida não está destruída, você vai se recuperar e voltar a ser o que era antes. Lembre-se de Patrícia; ela precisa muito de você!
- Não me iluda mais. Sei que não tenho chances de cura e, se tivesse, não sei se iria querer mais me curar... Para quê? Para viver desprezada por você, dentro desta casa enorme, sem meus filhos? Prefiro morrer a voltar a essa vida que você me dá.
Ele chorou pelo remorso.
- Não tive culpa do que aconteceu. Você sabe como a política me absorve. Não posso fazer mais do que já faço. Pensa que também não sofro a morte de Alfredo e Marcos? Pensa que não sofro ao vê-la assim, sem poder se levantar e levar uma vida normal?
- Você sofre pelo remorso, por ter me tirado da casa de meus pais e despertado meu amor sem nenhuma intenção de retribuir. Como fui tão cega? - lamentou-se Flaviana. - Mas não posso me demorar relembrando a infelicidade que é minha vida. Chamei-o por causa de algo mais importante: nossa filha Patrícia. Em breve não estarei mais aqui para cuidar dela e orientá-la; quero que a leve para a casa de minha mãe.
Ele ruborizou:
- Isso nunca! Patrícia vai continuar sempre comigo. Não vejo por que levá-la para a casa de dona Augusta. Tenho meios de educá-la e o farei!
- Faça o que estou pedindo. Talvez seja meu último pedido a você. Sei que não tem condições de cuidar dela. E moça, é jovem, e precisa de alguém que a oriente. Você leva vida imoral e nunca está em casa. Raramente larga Brasília para vir aqui. Faça o que estou pedindo; não hesite!
Ele pensou em discordar, mas resolveu ceder, prometendo a ela o que no fundo sabia que não iria cumprir. Jamais deixaria sua filha nas mãos de uma mulher como Augusta Camargo. Resolveu contemporizar. Beijou o rosto dela e desceu. Patrícia não estava mais à mesa, todavia teve uma desagradável surpresa ao passar pela sala: dona Augusta o esperava.
- Quero falar-lhe. Não subi porque não queria interromper sua conversa com minha filha. Não sei de que se tratava, mas espero que não a tenha feito sofrer mais do que até o momento.
Ele foi seco:
- Diga o que quer, pois estou muito atrasado.
- Como sempre! Só não estava atrasado quando tirou minha filha do lar onde era amada e valorizada para trazê-la a uma vida de sofrimentos e traições. Mas tenha certeza de que não viverá feliz um dia sequer de sua vida. Terá a mim como inimiga, e não lhe darei paz enquanto viver!
Ele esfregou as mãos tentando conter a raiva.
- Diga o que a senhora quer, pois preciso sair. Seja breve.
A velha e elegante senhora prosseguiu:
- Quero que contrate mais uma empregada para esta casa. Desejo que minha filha tenha companhia mais horas durante o dia. Conversei com o doutor Eduardo e ele garantiu que ela está em fase terminal. Não quero que nada lhe falte nesses últimos momentos de vida. Quero, pelo menos, que morra com dignidade.
- Empregada? Mas esta casa já tem tantas! A Eulália cuida muito bem dela; não lhe deixa faltar nada.
- Eulália é da cozinha. Estou me referindo a uma exclusiva. Para ser mais direta, quero que contrate uma enfermeira para cuidar de minha filha.
Nesse instante o espírito Romário, que estava atento a toda a conversa, soprou nos ouvidos de Humberto:
- Concorde com ela, não discuta. Nós o ajudaremos a encontrar a enfermeira.
Humberto resolveu concordar:
- Está certo. A senhora pode providenciar isso para mim?
Não tenho tempo para essas coisas. Estou indo resolver alguns problemas e depois sigo para Brasília.
O companheiro de Romário influenciou Augusta, que logo protestou:
- Nada disso, você é que deverá encontrar a enfermeira desta vez. Já fiz muito por esta casa. Todas as empregadas daqui foram escolhidas por mim e minha filha, agora é a sua vez. Contrate e traga essa enfermeira ainda hoje, ou não responderei por mim.
Dizendo isso, a velha senhora virou o rosto e subiu a escadaria em direção ao quarto de Flaviana. Sem saber o que fazer diante de tanta petulância, Humberto também saiu. Ia ver madame Aurélia, fazer algumas recomendações e conversar diretamente com Isabela. Iria lhe propor montar uma bela casa onde ele a visitaria semanalmente. De repente, Romário, que estava ao seu lado, lhe disse:
- Você não precisa se preocupar com a enfermeira. Traga Isabela para sua casa e transforme-a em acompanhante da sua esposa. Diga que é a enfermeira que contratou ninguém vai desconfiar. Além do mais, você poderá possuí-la sexualmente na sua própria casa, sem gastar tanto!
A maioria dos pensamentos das pessoas é sugerida por espíritos que circulam na crosta terrestre. Ignorando esse fenômeno de comunicação telepática, os encarnados supõem que estão pensando por si mesmos. Grande ilusão! Assim como existem os bons espíritos que lhes inspiram idéias nobres e boas, há os inferiores, que os tentam levar cada vez mais para a queda. Humberto, pelo comportamento que mantinha e pelos pensamentos que cultivava, cortara a relação com seu guia espiritual, que não conseguia mais influenciá-lo. Respeitando o livre-arbítrio, seu mentor o deixara livre para que, recolhendo a dor, pudesse amadurecer. Após captar com facilidade as idéias de Romário, ele exultou: - Tive uma idéia excelente. Resolvi agora o que fazer com Isabela. Será a enfermeira perfeita que dona Augusta tanto almeja. Feliz com a idéia aceita, Romário regressou para o sítio infernal onde vivia com uma comunidade muito grande de espíritos que, assim como ele, lutavam para conduzir a humanidade à maldade e à dor, degradando-se nos caminhos que levam ao sofrimento.

6 - UMA INIMIGA

Na Mansão de Higienópolis, no dia seguinte à visita do senador, madame Aurélia reuniu todas as suas empregadas no grande salão. Queria falar com elas em especial.
- Gostaria de agradecer a todas pela noite memorável que tivemos ontem. Nossos protetores saíram satisfeitos. Libero as bebidas para todas durante uma semana.
Muitas sorriram gratas pelo elogio; outras logo se levantaram para o bar. Muitos espíritos as seguiram também contentes com a idéia de poder sentir o sabor da bebida por intermédio delas. Naquele lugar, além do vício sexual, havia a agravante do álcool. Aurélia olhou profundamente para Isabela, que logo notou que ela lhe queria falar em particular.
- Isabela, vamos subir. Temos muito que conversar.
Luana, que invejava bastante a beleza e o porte da companheira de profissão, tornou:
- Nossa quanto mistério! Ontem foi a escolhida da noite, hoje é a preferida da patroa. Quanto privilégio!
Fingindo não ouvir, as duas subiram. No quarto excessivamente luxuoso de Aurélia, Isabela se acomodou. Estava preparada para ser explorada mais uma vez. Por certo o senador havia gostado dela e a queria de graça. Isso seria ótimo, pois estava em seus planos conquistá-lo definitivamente.
- Isabela, faz mais de um ano que está aqui comigo. Como já teve a oportunidade de ver, nem sempre à vida aqui é boa. Também não há o que reclamar tendo vindo de um lugar como o que você veio; considere-se até com muita sorte. Mas seus dias de prostituta praticamente acabaram.
Isabela estremeceu:
- Vai me mandar embora? A senhora não pode fazer isso comigo. Dei muito lucro a esta casa e pretendo continuar dando. Meu filho aqui cresceu e está bem alimentado e com saúde; tenha piedade. Só tenho aquela favela horrível para viver - começou a soluçar.
Aurélia sorriu:
- Não precisa chorar nem se ajoelhar a meus pés. Não é nada disso que você está pensando. É algo muito melhor, maravilhoso!
- Não entendo. O quê pode ser?
- Você sabe que sempre a considerei uma filha. Se fui dura algumas vezes, foi porque precisava. Quem trabalha nesse ramo sabe muito bem que às vezes temos de ser inflexíveis com os empregados. Saiba que em agências especializadas os donos costumam ser bem menos tolerantes que eu. Mas você parece que nasceu com uma estrela. Em pouco tempo conseguiu o que todas almejam: um homem rico e apaixonado a seus pés!
Isabela continuava sem entender. Será que era o que estava pensando? Não podia ser.
- Continue, madame!
- É isso mesmo! O senador Humberto a comprou. A partir de hoje, não vai servir a nenhum outro homem, será peça exclusiva para ele.
- Como isso foi acontecer?
- Não sei! Os homens são assim. Alguns são difíceis, outros são fáceis de se apaixonar. Mas todos, quando se apaixonam, cometem loucuras. Mensalmente ele vai me pagar tudo o que você costumava render aqui dentro. Também vai pagar você por fora, mas esse acerto só os dois poderão ter. Contudo, aqui vai um conselho: tire dele tudo o que puder. Os homens merecem ser usados até o último centavo. Se um dia ele não lhe servir mais, o abandone sem titubear. Mas, enquanto estiver com ele, sugue tudo a que tem direito.
Isabela estava radiante. Finalmente o universo conspirava a seu favor. Estava mais fácil do que ela podia supor. Num gesto impulsivo, abraçou a madame e desceu as escadarias gritando que estava livre e que era amada. Sua única amiga, Morgana, se aproximou, abraçando-a longamente. Foram para o jardim. Sentadas no banco, Isabela lhe contou tudo, e finalizou:
- Morgana, estou muito feliz. Minha vida vai mudar e, como a minha, a sua também!
- Quem dera amiga, mas não vejo como. Seja feliz você; acho que eu nasci para esta vida mesmo.
- Não diga isso, Morgana. Tenho um plano e sei que vai dar certo. Se der, vou ser a senhora Isabela Aguiar. Quando isso se realizar, saberei agir para tirá-la daqui. Essa cafetina miserável deve estar ganhando uma fortuna comigo, mas hoje me deu conselhos benéficos. Vou aproveitar tudo que a vida está me dando e saberei retribuir a sua amizade e lealdade para comigo.
Morgana tinha no canto dos olhos uma lágrima teimosa.
- Se fizer isso por mim, serei eternamente grata. Penso que a prostituição não é algo bem-visto por Deus. Sinto-me muito culpada cada vez que troco meu corpo por dinheiro.
- Não seja boba em pensar em Deus em uma hora dessas, se ele realmente existisse não teria feito esse mundo cheio de desgraças e de gente como nós. Pense em você mesma. Ceda aos homens até que eu a tire daqui; tenha paciência.
A outra pareceu se acalmar. De repente, elas viram o carro de Humberto parar em frente à mansão. Ele entrou e cumprimentou as duas.
- Madame Aurélia está em seus aposentos. Deseja falar com ela, senhor? - perguntou Isabela.
Ao fitá-la, ele sentiu mais uma vez que era a mulher perfeita para ser sua e a enfermeira que a sogra queria. Já perturbado pelas ondas de luxúria provindas daquele ambiente, ele, meio tonto, respondeu:
- Sim, desejo ter com madame Aurélia.
As duas entraram conduzindo o senador para dentro do recinto. Em poucos minutos, estavam ele e Aurélia no escritório.
- O senhor aceita uma bebida?
- A de sempre, por favor!
Depois de servido, ele foi direto ao assunto:
- Quero desfazer a proposta que fiz à senhora ontem. Desejo tirar Isabela daqui.
Ela não acreditava no que ouvia. Não podia perder aquela renda mensal de forma alguma. Irritou-se:
- O senhor não pode chegar aqui e fazer o que bem entende. Somos um grupo muito unido; prezo pelo bem-estar das minhas meninas e não vou permitir que tire uma delas daqui sem que vá lhe dar uma vida digna.
Ele sorriu sarcasticamente.
- Faz-me rir. Sei que a senhora é uma mercenária e que não se importa com nada que não seja dinheiro. Não tente cruzar o meu caminho ou levo essa casa à falência muito mais rápido do que supõe.
Ela tentou contemporizar:
- Não vê que vai cometer uma loucura? Para onde pretende levar uma mulher que conheceu ainda ontem? Não sabe quem ela é nem do que é capaz. Trabalho há muitos anos com esse tipo de gente e sei que são capazes de tudo para atingir seus objetivos. Pode se dar muito mal. Isabela é sonsa, falsa e arrogante; também percebo nela um instinto agressivo, tenha cuidado com o que vai fazer.
Acompanhado pelos espíritos desde que saíra de casa, Humberto estava suficientemente influenciado para não ceder às palavras de Aurélia.
- Não desejo saber de mais nada que venha da senhora, não acredito no que diz. É interesseira e só pensa em explorar o corpo alheio para viver. Sei que vai fazer minha cabeça para que não leve Isabela daqui, mais a aviso de que não vai adiantar. Aceite o que estou propondo: fique com o dinheiro que lhe dei e se dê por satisfeita em ter passado um tempo com ela e lucrado tanto. Agora ela é minha e vai seguir comigo ainda hoje.
Madame Aurélia resolveu não insistir.
- Então que seja como o senhor quiser. Depois não diga que não avisei. Ah, e tem mais, algo que nunca lhe contaram: Isabela tem um filho. Ele mora com ela aqui.
Terminada a conversa, Humberto subiu ao quarto de Isabela e deu-lhe pessoalmente a notícia. Ela parecia delirar; não poderia acreditar de forma alguma que aquilo estivesse acontecendo com ela. Após se beijarem longamente, os dois foram para a cama, onde ela mais do que nunca procurou se esmerar. Quando tudo terminou, ele a olhou e disse:
- Arrume todas as suas coisas que às cinco horas passarei aqui para levá-la. Tenho alguns compromissos e, após resolvê-los, venho sem falta. - Ele deu uma pausa. - Tenho outra coisa a lhe dizer. Durante algum tempo terá de me fazer um favor; não posso lhe dizer o que é agora. Prepare-se e na hora exata saberá.
Ela concordou rapidamente. Não podia perder aquela chance. Subitamente, segurou com muita força os braços dele, e confessou:
- Há um segredo que ninguém lhe contou, mas é preciso que saiba antes de qualquer coisa.
- O que pode ser?
- Tenho um filho. Ele vive aqui comigo, nesse quarto ao lado. Uma empregada cuida dele para mim enquanto trabalho. Se não puder levá-lo comigo, recuso agora sua proposta. Ele é meu bem mais precioso.
Humberto sorriu.
- Sei que tem um filho. Fui informado por madame Aurélia. Já pensei nisso e tenho a solução. Você terá uma bela casa onde poderá viver com ele. Enquanto estiver me ajudando no que preciso, poderá contratar uma babá para olhá-lo.
Emocionada, Isabela se ajoelhou aos pés de seu protetor e chorou muito.
- Não sei como agradecer o que tem feito. Às vezes penso que estou sonhando e a qualquer momento vou acordar.
Ele olhou para um ponto indefinido e pensou alto:
- Nem sei também por que tenho feito tudo isso. Sinto por você uma atração incrível, irresistível mesmo. Uma força muito grande me atrai até você. O que sei é que a partir daquela noite não consigo mais viver sem pensar em tê-la a meu lado.
Eles se beijaram. Deixando recomendações à madame Aurélia para que ajudasse Isabela com as bagagens, ele saiu. A alegria foi grande quando Morgana ficou sabendo o que finalmente iria acontecer com a amiga. Começaram a arrumar as malas, e então Aurélia apareceu no quarto.
- Saia, Morgana. Preciso falar com Isabela a sós.
Quando estavam apenas as duas, ela começou:
- Não pense que vai sair assim tão fácil daqui. Depois de tudo que fiz por você, me deve muito. Vim para fazermos um contrato.
Isabela não entendeu.
- Contrato? Que espécie de contrato?
A outra sorriu.
- Deverá me dar a metade de tudo que conseguir ao lado do senador. Acha mesmo que, depois de tê-la tirado daquela favela horrível, tratado de você nos melhores salões de beleza, dado-lhe um nome, ajudado seu filho a não morrer de fome, vai sair assim sem molhar muito bem a minha mão?
- Lembre-se, senhora, de que tudo isso que fez já retribuí regiamente e a duras penas. Servi aos piores homens que freqüentaram esta casa e lhe dava cinqüenta por cento. Para a senhora, isso basta. Não tente me atrapalhar; estou protegida por um homem muito importante e, se a senhora tentar algo, vai se arrepender. Aurélia sentiu muita raiva naquele momento. Quem ela pensava que era?
- Escute aqui. Ninguém me passa para trás e fica impune. É melhor aceitar meu acordo agora ou ganhará uma inimiga para o resto dos seus dias.
- Ameaças comigo não resolvem. Aprendi desde cedo a ser forte. Fui estuprada, engravidei, desde criança tive de cuidar de mim, e não é uma mulher como à senhora que vai me atrapalhar. Antes disso, não viverá para fazer nada.
- Está me ameaçando? Não sabe com quem está lidando. Engula tudo que disse. – Dizendo isso, deu uma bofetada no rosto de Isabela, que revidou. As duas então começaram uma luta corporal.
Morgana e as outras que escutavam atrás da porta, invadiram o quarto e acabaram separando as duas. Despenteada, rosto cortado e com expressão de ódio, Aurélia parecia um monstro.
- Arrume suas coisas e suma daqui. Mas saiba que vou persegui-la enquanto viver. Você foi o meu maior investimento; é justo que agora eu cobre. Ainda vai me ver bastante.
Ela saiu com ar ameaçador. Morgana e Eudásia correram para acudir Isabela, que estava no chão chorando desesperadamente e tinha várias marcas em todo o rosto. Tiraram-na do chão e a colocaram sobre a cama. Ela chorava, rosnava, mordia os lençóis e a cama de tanta raiva. Em meio ao ódio, gritou em voz alta:
- Quem ganhou uma inimiga foi à senhora. Juro que não viverá muito tempo pra atormentar minha vida. Eu tirarei a sua primeiro.
Morgana interrompeu:
- Isabela, acalme-se. Não diga mais nada para não se complicar. Lembre-se de que tem um filho que depende de você.
Nessa hora ela caiu em si. A lembrança do filho a fez refletir bastante. Instintivamente, foi ao quarto contíguo e o encontrou sobre a cama. Ao vê-la, Daniel sorriu. Isabela chorou emocionada. Pegou-o no colo, e lhe falou:
- Filhinho, a partir de agora a mamãe vai poder lhe dar tudo o que você precisa para ser um grande homem. Vou ensiná-lo a conquistar o que desejar e passar por cima de quem for preciso para conseguir vencer.
Trazendo o filho para o quarto, Isabela, Eudásia e Morgana começaram a arrumar as malas. Já era noite quando Humberto chegou de carro e a levou. As despedidas foram tristes, principalmente para Eudásia, que cuidava de Daniel havia mais de um ano, e Morgana, que realmente era amiga de Isabela. Pelo vidro da janela de seu quarto, madame Aurélia olhava com ódio o carro que partia. A seu lado estava Luana, que se juntara à patroa para ajudá-la nos planos de vingança. Perto das duas, várias entidades sombrias as abraçavam, inspirando os mais cruéis pensamentos. Patrícia acabara de ouvir uma palestra maravilhosa sobre o carma no Centro de Estudos que freqüentava. Após receber os passes e tomar a água fluidificada, ela foi procurar o palestrante. Depois de alguns cumprimentos de outros presentes, finalmente conseguiu se aproximar de Rodolfo.
- Gostaria de tirar algumas dúvidas sobre a palestra de hoje. Foi muito boa e proveitosa.
Rodolfo, muito simpático, a fez sentar-se num dos bancos.
- Realmente o carma é assunto muito interessante, que deve ser estudado e entendido em seu real sentido. Infelizmente, as pessoas o têm deturpado sobremaneira.
- É isso que gostaria de saber. Desde que iniciei minhas vindas aqui tenho procurado ler muito a respeito de espiritismo, mediunidade, vida após a morte e tantos outros assuntos ligados à espiritualidade. Para isso, fui numa boa livraria e comprei vários livros a respeito. Porém, tenho percebido em alguns deles idéias conformistas sobre o carma, sobre o sofrimento, e alguns até se referem à punição e castigo. O que aceitar de tudo isso?
- Realmente, na literatura espírita e espiritualista existem muitos autores que ainda teimam em continuar pensando de modo radical sobre certos assuntos. Eles ignoram que o pensamento evolui e ainda se prendem de forma ortodoxa ao que foi dito tempos atrás.
Patrícia refletiu:
- É isso que não consigo entender. Aqui aprendemos que Deus não castiga nem pune, apenas dispõe os fatos para que cada um colha aquilo que plantou e aprenda a viver melhor. Todavia, lendo as obras de Allan Kardec, sempre deparo com frases que fazem alusão ao castigo e à punição divina. Pode me explicar por que isso acontece?
Rodolfo se levantou e disse:
- Para isso preciso que venha comigo à nossa biblioteca.
Eles saíram e logo entraram numa grande sala com imensa quantidade de livros.
- Aqui é nossa biblioteca. Nela há muitos livros da literatura, tanto espírita quanto espiritualista, mas para responder às suas dúvidas e esclarecê-la quanto às outras que possivelmente vão aparecer em seu caminho, primeiro vamos ver um dos principais livros para os espíritas.
Eles sentaram. Rodolfo puxou de uma das estantes um exemplar que Patrícia logo percebeu ser de O Evangelho segundo o Espiritismo.
- Veja bem, Patrícia, logo na introdução deste livro, Kardec, em sua sabedoria e raciocínio ímpar, nos informou que "não é a opinião de um homem que se deverá aliar-se, mas a voz unânime dos Espíritos; não é um homem, não mais nós que um outro que fundará a ortodoxia espírita; não é, tampouco, um Espírito vindo se impor a quem quer que seja; é a universalidade dos Espíritos se comunicando sobre toda a Terra por ordem de Deus".
Hoje, como você mesma tem observado, universalizou-se a verdade de que Deus não castiga nem pune. Esse ensino se tornou praticamente universal nas lides espirituais e já tomou conta de quase todo o globo terrestre. Mas não pense que foi fácil essa generalização. No princípio, os espíritos superiores encontraram nos médiuns muita resistência e foi difícil essa idéia tomar forma. As pessoas rejeitavam-na como se fossem misticismos sem nem atentarem para o que dizia o bom-senso. Patrícia interrompeu:
- Continuo sem entender. Se na Codificação Espírita os espíritos usaram desses termos, por que só tempos depois vieram a mudar a linguagem?
- Esperava por essa pergunta, e mais uma vez quem responde é Kardec. Veja aqui o que ele diz ainda na introdução deste livro.
Patrícia leu: "Os Espíritos superiores procedem, nas suas revelações, com uma extrema sabedoria; eles não abordam as mandes questões da doutrina senão gradualmente, à medida que a inteligência está apta a compreender verdades de ordem mais elevada, e que as circunstâncias são propícias para a emissão de uma idéia nova".
- Por este trecho você pode perceber o método de Kardec. Ele sabia que os espíritos estavam falando de acordo com uma época, de acordo com o que a humanidade poderia entender no século passado. O Codificador sabia que, quando o tempo fosse favorável, novas revelações iriam acontecer e que a verdade sempre se impõe sobre qualquer obstáculo. Hoje em dia falar que Deus castiga mostra completa ignorância sobre a natureza divina. O que naquela época foi facilmente aceitável, hoje, com a mente mais avançada da humanidade, torna-se intolerante afirmar. Kardec sabia que muitas coisas novas iriam surgir completando e até mesmo retificando, o que ele disse naquela época, todavia sem ferir nem abalar os princípios básicos do espiritismo, que são imutáveis e universais.
- Quais são esses princípios, Rodolfo?
- Os princípios básicos do espiritismo são: a vida após a morte, a reencarnação como oportunidade única de progresso, a comunicabilidade dos espíritos com o mundo corporal, a pluralidade dos mundos habitados e a crença num Deus único, imutável, soberanamente justo e bom. Isso jamais será abalado, pois o tempo mostra que são verdades eternas.
- Entendi... Mas ainda sobre o carma. Se for verdade que ele não existe como algo fatal, como entender o que minha mãe passa sem nunca ter feito mal a ninguém? A Sílvia uma vez me explicou, mas não estou totalmente convencida. E onde fica aquela crença que vemos em muitos livros a respeito de que todos estão aqui para pagar débitos do passado? Tenho tantas dúvidas!
- É que você está muito presa à visão materialista das coisas. A crença de que viemos aqui para pagar débitos, além de incorreta, é uma maneira muito primitiva de entender a justiça divina. O que Sílvia lhe explicou está certo. Ninguém paga nada, porque ninguém deve nada a ninguém, apenas à própria consciência. Os sofrimentos são resultado das crenças, pensamentos e atitudes que ainda não se modificaram no bem, no otimismo e na fé. O sofrimento não é a cobrança de débitos do passado, e sim o chamamento divino para a evolução e a mudança para melhor. Ocorre que nossas crenças no mal vêm de muito longe e se repetem de encarnação a encarnação. Enquanto não as mudarmos, sofreremos da mesma forma. Esse é o único e verdadeiro carma que existe. Sua mãe nunca fez o mal a ninguém, todavia, se está sofrendo, é porque vem fazendo mal a si mesma. Provavelmente, antes de reencarnar, prometeu mudar, buscar o bem, evoluir pelo amor auxiliando o próprio espírito com a busca da espiritualidade e da sabedoria. Uma vez aqui, se acomodou em vez de buscar ser feliz e aprender como as leis universais funcionam. Ela fez o oposto, preferiu ser a vítima e continuou a alimentar a crença no mal.
Patrícia protestou:
- E como outras pessoas que vivem do mesmo modo que minha mãe, ou até em condição pior, estão bem e com saúde? - Nos olhos da jovem, uma lágrima teimava em cair.
- "Muito será pedido a quem muito recebeu." Deus respeita o nível de evolução de cada um; ele não pede aquilo que a pessoa ainda não é capaz de oferecer. Você exigiria que uma criança agisse como um adulto?
- É claro que não, imagine!
- Assim é que Deus age. Sua mãe chegou a um nível de evolução que não lhe permite mais ter certas atitudes, então vem o sofrimento. Sempre que a pessoa age fora de seu nível de evolução espiritual, a natureza não a protege mais, por isso a pessoa sofre as conseqüências. Acredite: quem não usa o bem que tem vai sofrer a interferência do mal.
Patrícia havia entendido, porém chorava muito. Era-lhe muito penoso ver a mãe, ainda jovem, jogada naquela cama, definhando sem esperanças. Ao seu lado, Alfredo e Marcos a consolavam. Rodolfo os viu, e lhe disse:
- Desabafe, chore, mas saiba que ela não está sozinha. Agora mesmo está sendo amparada por dois espíritos amigos que querem ver seu bem.
Ela ficou admirada
- São espíritos amigos? São meus mentores?
- Não sei dizer. Só sei é que possuem muita luz e a protegem. Renda graças a Deus por ter amigos assim no astral.
Ela estava emocionada. Ao sair do centro, tomou um táxi e foi para sua casa. Ganhara um carro último modelo dos pais, porém, ainda não aprendera a dirigir. Durante o trajeto foi refletindo sobre o que ouvira de Sílvia e de Rodolfo, e concluiu que eles tinham razão. De repente seu pensamento foi em direção à sua própria vida. Ela se sentia feliz. Não fosse a doença de sua mãe e a ausência do pai em casa, sua vida seria uma total felicidade. A perda dos irmãos também a chocara bastante, mas ela logo se recuperara. Ao ver seus corpos naqueles caixões, ela sentia no íntimo que a vida não terminava ali. Tinha amigas, mas gostava de selecioná-las. Às vezes preferia sair só a ter companhia de certas pessoas que não lhe agradavam. O que faltava mesmo era um namorado. Já tinha tido alguns, mas nenhum deles a tocara profundamente. Contudo, Patrícia confiava na vida e sabia que um dia, mais cedo ou mais tarde, a pessoa amada iria aparecer. Após pagar o táxi, Patrícia entrou e logo percebeu que sua avó permanecia na casa.
- Vovó?! A senhora ainda aqui? Mamãe piorou?
- Não, filha. Estou esperando o crápula do seu pai chegar; hoje teremos um acerto de contas.
Patrícia sentou-se ao lado da avó no sofá luxuoso. Augusta de Camargo já estava velha, porém em seu rosto havia poucas rugas, além do que sempre se vestia com muita elegância, algo incomum em mulheres de idade avançada.
- Por que esse ódio tão grande contra papai? O que de mal ele lhe fez?
- Esse não é assunto para uma mocinha como você. O meu acerto de contas com ele hoje é outro. Sua mãe precisa de uma enfermeira e pela manhã ordenei que ele providenciasse uma para cuidar dela o dia todo. Humberto me garantiu que traria a moça ainda hoje e veja só: são dez e meia, e nada de ele chegar.
- Vovó, ele é um homem muito ocupado, mas, quando promete, cumpre. Apesar de a senhora nutrir esse ódio por ele, sempre o amarei e mamãe também. Não acho bom guardar rancor no coração. Quem o cultiva é o primeiro a se prejudicar. Esse tipo de sentimento provoca emoções desordenadas que causarão problemas de saúde. Cuidado, vovó: eu a amo muito e a quero sempre do meu lado.
Augusta enterneceu-se:
- Ah, você é realmente um anjo. Mas esse repúdio que sinto pelo Humberto é mais forte que eu. Filha pense bem, já é do conhecimento de todos que sua mãe tem poucos meses de vida. Temos de nos conformar... Quero que quando ela nos deixar você venha morar comigo, em minha casa.
- Não, vovó, isso não! Gosto muito da senhora, mas vou continuar vivendo aqui. Ademais, quem somos nós para dizer que uma pessoa vai viver ou morrer? Só Deus é que pode saber e, enquanto há vida, há esperança. Mesmo assim, caso mamãe se vá, irei continuar aqui, nesta casa que ela tanto amou e da qual cuidou. Vou me casar e ter minha família, e quero que seja aqui o meu lar.
- Você não vê que viver ao lado de seu pai pode prejudicá-la? Ele vai colocar em sua mente valores perniciosos, vai influenciá-la, e você vai se perder. Comigo não correrá esse risco.
- Não acredito que ninguém influencie ninguém dessa maneira, como dizem. As pessoas podem nos sugerir atos, idéias, pensamentos, mas nós só fazemos o que queremos.
A conversa foi interrompida pela chegada de Humberto. Augusta levantou-se e foi logo perguntando:
- Onde está a enfermeira que você prometeu trazer hoje? Desde já, digo que não aceito desculpas. Se essa moça não vier, levarei Patrícia e Flaviana para minha casa. Você sabe muito bem do que sou capaz!
Humberto fez de tudo para não perder a paciência com aquela senhora intragável.
- Tive muitos compromissos hoje e só encontrei a pessoa ideal no fim do dia, de modo que ela não poderá vir hoje à noite, mas está contratada e começa amanhã cedo.
Patrícia deu um beijo nele e o abraçou. Augusta ia discutir, mas quando viu aquela manifestação de carinho entre pai e filha resolveu desistir.
- Espero que seja verdade. De qualquer maneira, vou dormir aqui hoje. Ligarei para Fátima ordenando que cuide de tudo em minha casa e amanhã bem cedo estarei de pé esperando a enfermeira. Se eu gostar, ela continua; se não, ela sai.
Dizendo isso, deixou os dois sozinhos na sala e dirigiu-se ao telefone.
- Conte-me como foi seu dia, papai.
- Ah, filha, muito cheio. Sempre que venho a São Paulo os compromissos políticos tomam a maior parte de meu tempo. Essa vida é boa, mas tem hora que dá vontade de deixar tudo.
- Queria o senhor mais presente aqui. Desde que meus irmãos morreram e que minha mãe adoeceu, esta casa está uma tristeza.
Humberto sempre se sentia mal quando alguém mencionava aquele assunto. Tentou mudar o rumo da conversa e logo estavam conversando amenidades. Após algum tempo, subiu e foi ver a mulher. Ela dormia, com uma aparência mais cadavérica do que no dia anterior, mas aquilo agora não importava. Tomou um longo banho e deitou-se. Começou a se lembrar de como tinha convencido Isabela a aceitar ser uma enfermeira em sua casa. Eles tinham parado na frente de um hotel simples.
- Vou instalá-la aqui primeiro. Dentro de uma semana terá sua casa com tudo de melhor e moderno que há.
Ela estava em estado de felicidade:
- Nem sei como lhe agradecer. Sinto não merecer o que está me ofertando.
- Não diga isso, você merece muito mais. Agora entremos, temos muito que conversar. Lembra da proposta que tenho a lhe fazer?
- Lembro, sim. Vamos entrar, estou ansiosa para saber.
Entraram. Já devidamente instalada e alimentando Daniel, ela começou a ouvir o que Humberto tinha a lhe dizer.

7 – ORIENTAÇÕES

Humberto contou a Isabela seus planos. Ele narrou, em detalhes, o desejo de torná-la sua esposa assim que Flaviana morresse. Mas, como parte inicial do plano, ela deveria ser a enfermeira zelosa que sua sogra tanto insistia que ele levasse para a mansão. Humberto nem percebia que não havia lógica nenhuma em se casar com uma mulher que mal conhecia. Envolvido que estava em processo de terrível fascinação, ele sequer questionava tal atitude. Assim como Humberto, a maioria dos encarnados toma decisões envolvidas pelas entidades espirituais das trevas, deixando o mundo no estado atual de sofrimento. Ao ouvi-lo, ela cogitou:
- Mas eu não tenho a mínima prática em enfermagem. Sua sogra vai perceber de imediato que não sou enfermeira. Será pior para você.
- Nem pense isso. Minha mulher está em seus últimos dias de vida, o trabalho não é tão complicado. Desde que ela adoeceu, os médicos indicaram como tudo deveria ser feito e a maior parte do trabalho são os empregados que fazem. Sua tarefa será apenas a de velar por ela, ministrando os medicamentos nas horas certas, a alimentação, etc. Verá como é fácil. Terá de passar as noites por lá. Cuidarei para que venha todas as manhãs ficar com Daniel. Ela o abraçou:
- Era isso o que me preocupava. Não posso ficar sem ver meu filho. Para que eu possa ficar lá durante a noite, tenho de contratar alguém que fique com o Daniel. Prefiro que seja a Eudásia, que é de minha confiança.
Ele cocou o bigode:
- Isso é comprar mais briga ainda com Aurélia. Eudásia trabalha para ela.
- Não me importa. Busque-a para mim e assim ficarei tranqüila para fazer o papel que me pede.
Humberto concordou. Pela manhã telefonaria bem cedo para Aurélia pedindo que lhe enviasse Eudásia para trabalhar e morar com Isabela. Tudo combinado, pela manhã Isabela já estava na mansão onde desempenharia o papel de enfermeira desvelada. Madame Aurélia ficou com muita raiva do senador pela ousadia de tirar dela mais uma funcionária, porém concordou insuflada por Luana, que com isso acabou descobrindo o novo endereço da ex-colega para realizarem os planos de vingança. Isabela ficou deslumbrada com a elegância da mansão. Nem em seus sonhos mais ambiciosos, ainda quando morava na favela, poderia imaginar que um dia seria dona de uma casa como aquela. Sim, porque ela pensava em ser dona de tudo aquilo. Humberto comprara uniforme e apetrechos de enfermagem, e ela estava perfeita. Sentada no elegante sofá, ela esperava. De repente uma jovem bonita se aproximou:
- Então é você que vai cuidar de minha mãe? Fico feliz em ter mais alguém com ela. Meu nome é Patrícia, sou filha de Humberto.
- Prazer. Meu nome é Isabela. Vou fazer o possível para ajudar sua mãe.
- É, mas vai ter de enfrentar as exigências da senhora Augusta. É minha avó, uma pessoa muito legal, mas muito exigente e dura. Se você não atender às expectativas dela, é capaz de perder esse emprego.
- Farei de tudo para estar à altura do que sua avó espera. Ela tem razão. Para lidar com esses problemas de saúde precisamos mesmo de pessoas competentes.
Nesse momento, do alto da escadaria surgiu Augusta. Quando a viu à sua frente, fitando-a com um olhar inquisidor, Isabela sentiu-se tontear. Não era possível! Quem estava ali era a mesma senhora que a humilhara e mandara espancar quando fora pedir esmola. Precisou de todo seu autocontrole. Felizmente Augusta não a reconheceu tão diferente que estava.
- Olá. Chamo-me Augusta, sou mãe da sua paciente. Vamos subir, tenho de lhe mostrar tudo e dizer como será seu trabalho.
Ela a acompanhou. Do sofá, Patrícia sentiu uma sensação ruim invadir o seu espírito. Não sabia explicar de onde vinha, mas não havia gostado da enfermeira. Algo nela não lhe inspirava confiança. Patrícia tinha aprendido, havia muito tempo, a confiar na intuição. Esta guia infalível, quando escutada, nos leva sempre à verdade, por mais escondida que ela nos pareça. Ela sentiu no íntimo que, com a chegada daquela mulher na sua vida, algo de macabro iria acontecer. Preferiu mudar os pensamentos e dirigiu-se ao curso. Isabela conheceu Flaviana e ficou muito feliz. Realmente aquela mulher não iria atrapalhar seus planos; pelo estado em que a viu, não duraria muito tempo. Tentou dissimular todo o ódio que sentia por Augusta, mas em sua mente já surgiam planos de vingança assim que casasse com Humberto e fosse dona de tudo aquilo. Tentou executar as tarefas direito, nos mínimos detalhes, para agradar à severa senhora. Durante a madrugada, enquanto to dos dormiam, Humberto a chamou e foram para um dos quartos da casa. Lá deram vazão aos sentimentos que os uniam. Nem se lembraram de que estavam em um lar que devia ser respeitado acima de qualquer coisa, e assim assumiam compromissos dolorosos que os iam encontrar fatalmente no futuro. Diana estava reunida com os amigos estudando o caso de Clotilde/Isabela. Sentados em uma sala, eles conversavam.
- Realmente, Bruno, nessa situação não podemos fazer muito. Antes Clotilde ainda nos ouvia durante o sono físico, mas hoje, quando nos vê, corre apavorada para o corpo de carne, recusando-se a ouvir nossas orientações. Devemos ter paciência e confiarmos na bondade divina.
Bruno ouvia calado com os olhos perdidos num ponto indefinido. Depois comentou:
- Ainda lembro com nitidez quando fomos resgatá-la no umbral em estado lamentável. Na caravana estávamos eu, você, Gabriel e Daniel. Após tempos conosco, perto de reencarnar, resolveu que mudaria e que desta vez faria tudo diferente. Mas a prova do reencontro com Humberto foi definitiva, e ela optou pelo caminho do erro mais uma vez. Mesmo conhecendo a origem do problema, ainda fico triste ao ver toda a programação de uma vida ser perdida assim com extrema facilidade.
Gabriel questionou:
- Não entendo onde tudo começou. Gostaria de conhecer a história dela. Pode me contar Diana?
- Sim. A história de Clotilde vem já de algum tempo, precisamente quando viveu na França, entre os séculos XVIII e XIX. Naquele tempo, ela era uma nobre da corte muito rica. Acreditava que entre pobres e ricos deveria sempre haver grande distância e os tratava com desprezo. Naquela época, no fim do século XVIII, a situação econômica e social da França era gravíssima. A maioria dos franceses da época eram camponeses que, em geral, trabalhavam nas terras de um nobre ou nas de uma ordem religiosa católica. Clotilde, que naquela época se chamava Nathalie, e seu marido, Henry, que hoje se chama Humberto tinham muitas terras e nelas viviam vários camponeses em sistema feudal, regime sob o qual tinham de entregar a maior parte da comida aos seus senhores. Muitas famílias nobres tratavam relativamente bem os campônios, dando-lhes boa moradia e melhores condições de vida, todavia na família de Henry o tratamento era péssimo. Nathalie não permitia que o marido, um homem relativamente bom, melhorasse a vida de quem trabalhasse para eles; deixava-os passar fome e morar em casebres com chão de terra. A vida corria bem para eles até o dia em que Nathalie conheceu um lindo camponês chamado Thierry e se apaixonou perdidamente por ele. Notando o interesse da senhora e tencionando melhorar de vida, Thierry aceitou com facilidade as suas investidas e ambos passaram a se encontrar secretamente numa cabana de caça um pouco distante da luxuosa propriedade dela.
Diana fez breve pausa para organizar suas lembranças. Depois prosseguiu:
- Nathalie se viu perdidamente apaixonada e dava somas e mais somas de moedas e jóias ao seu amante. Mesmo sabendo que Thierry só tinha interesse em seu patrimônio, cega de paixão, continuava o relacionamento. Foi aí que madame Philomene, a mãe de Henry, necessitou passar uns dias na casa do filho. Ela estava doente e era viúva; não queria morrer longe do filho único e amado. Porém, Philomene não morreu; pelo contrário, logo se recuperou. Aconselhada pelo filho, ela permaneceu no castelo, pois havia tido início o que hoje conhecemos como Revolução Francesa, e a cidade estava em polvorosa. A rotina do castelo foi alterada com a chegada da matrona e Nathalie teve de espaçar os encontros com Thierry na cabana de caça. Como Henry saía bastante a fim de resolver os problemas da imensa propriedade, pediu à esposa que cuidasse de sua mãe e velasse por ela. O receio de Henry foi logo compreendido quando, numa noite de inverno de 1789, seu castelo foi invadido por camponeses que se apropriaram de toda a comida e de documentos que registravam suas dívidas feudais. Houve morte e muita luta. Entre os camponeses estava Thierry que, a partir daquele momento, passou a residir fora das terras de Henry. Estando longe do amante, Nathalie sentiu-se muito triste. Seus filhos eram adultos e estavam fora do país. Foi então que resolveu escrever uma carta para ele marcando um encontro no lugar de costume. Sua fiel camareira, Morgan, iria entregar.
- E Nathalie conseguiu se encontrar com seu amante? - perguntou Gabriel.
- Ela não contava com as armadilhas que o destino costuma pregar - continuou Diana -, e saiu de seu quarto a procurar a empregada. Nesse momento, sua sogra, que entrara no recinto procurando por ela, viu sobre a escrivaninha a carta de amor e luxúria que seria enviada em breve para Thierry. Philomene apropriou-se da carta e quando Nathalie retornou ao quarto em companhia de Morgan, sem encontrar a missiva, entrou em surto quase psicótico. Não poderia imaginar quem estava com a carta, nem passava por sua mente que se tratava de Philomene. Após se acalmar, decidiu que precisava se manter atenta e descobrir o autor do roubo. Certamente teria sido um empregado do castelo que queria chantageá-la em troca de fortuna. A esse pensamento, sentiu-se calma. Mas as horas passavam, e nada de o chantageador falar com ela.
Gabriel escutava atentamente o desenrolar daquela história real.
- Em seu quarto, madame Philomene estava em estado de choque. Nunca poderia imaginar que Nathalie fosse capaz de semelhante ato. Decidida, contou tudo ao filho, sem atinar na tragédia que estava desencadeando. Henry, muito apaixonado pela esposa, não teve coragem de matá-la. Espancou-a várias vezes, jurando de morte Thierry onde quer que o encontre. Trancou sua mulher no castelo e ordenou que não saísse dali a partir daquele dia. Desesperada e pensando que Thierry pudesse morrer, Nathalie mandou que Morgan o procurasse e lhe avisasse que fugisse, pois corria risco de vida. Depois da fuga, quando tudo estivesse esquecido, ele deveria voltar e invadir a casa juntamente com outros campônios, e tirar a vida de Henry. Ela facilitaria tudo. Prometeu que ele seria um homem rico e ela uma mulher mais livre para amar. Também prometeu a Morgan muitas jóias, que a fariam uma mulher bem de vida, caso continuasse fiel a ela. Thierry fez tudo conforme o combinado. Durante a Revolução Francesa, os ataques de camponeses aos castelos se tornaram comuns e num desses ataques aconteceu o premeditado: Henry perdeu a vida. Philomene ficou arrasada, mas nem de longe conseguiu imaginar tratar-se de Nathalie a mandante do crime. Passados os primeiros tempos de luto, ela e Thierry voltaram a se encontrar. Ela continuou viúva em respeito aos filhos e, apesar de apaixonada, jamais se uniria a um camponês oficialmente.
Diana tomou fôlego, antes de prosseguir com a narrativa envolvente dos fatos:
- Charles e Luigi, filhos de Nathalie, tiveram de voltar da Inglaterra, pois a Revolução estava atingindo toda a Europa, e a Inglaterra planejava atacar a França na tentativa de conter o movimento. Os franceses já não eram mais bem-vistos naquele País. Com os filhos no castelo, e ainda a sogra, ficaram mais difíceis os encontros com o amante. Este, já rico com o dinheiro e as jóias que recebia da amante, estava começando a afastar-se dela. Percebendo isso, Nathalie pensava numa maneira de reconquistá-lo causando-lhe ciúmes. Começou então a sair com George, viúvo rico muito amigo da família. Iam a cafés e demais lugares públicos na tentativa de chamar a atenção de Thierry. Isso realmente aconteceu: Thierry passou a pensar, induzido pelo espírito vingativo de Henry, agora desencarnado, que merecia mais dinheiro, e as saídas de Nathalie com George indicavam que em breve ela se casaria novamente e ele perderia essa chance. Envenenado pela inveja, ele passou a persegui-la por toda a parte, até que um dia a encontrou comprando fazendas numa butique requintada.
- Thierry estava, então, sob a influência do espírito desencarnado de Henry? - perguntou Gabriel.
- Sim - respondeu Diana. - Thierry, após abordá-la na butique - prosseguiu -, começou a ameaçá-la e marcaram assim novo encontro na cabana de caça. Radiante, ela foi. Luigi estava caçando por perto e viu horrorizado quando a mãe entrou com um homem na cabana. Espreitou por uma fresta e os viu fazer amor. Seu sangue subiu à cabeça e ele pensou em matá-los ali mesmo, todavia seu espírito guardião o aconselhou a esquecer o assunto e a perdoar. Ele não conseguiu. Durante os dias que seguiram, influenciado por um espírito inimigo da mãe, ele traçou meticuloso plano. Sua mãe não poderia dar aquela vergonha a ele e ao irmão; era preferível vê-la morta a estar nos braços de um homem como aquele. Durante uma madrugada, ele entrou devagar e silencioso no quarto dela e a sufocou com um travesseiro. Assim Nathalie regressou ao astral. Todos pensaram se tratar de parada cardíaca; ninguém cogitou a possibilidade de Luigi ser o assassino da própria mãe. Assim que seu corpo astral se libertou do físico, o espírito dementado de Henry passou a persegui-la incansavelmente e a fez prisioneira por anos a fio no umbral. Depois disso, Thierry, em uma terrível discussão com Luigi, acabou sabendo que o próprio filho tinha matado a mãe quando descobrira que ela e ele se relacionavam. Cego de ódio e pensando ter sido madame Philomene quem os delatara, assim como fizera da última vez com o filho, Henry, ele assassinou a velha senhora com requintes de crueldade.
- E como termina tudo isso? - inquiriu com interesse Gabriel.
- Em mil setecentos e noventa e oito, desiludidos e sozinhos, Charles e Luigi se entregaram passivamente à morte numa das batalhas de Napoleão Bonaparte e chegaram ao mundo espiritual em situação lamentável. Suicidas, passaram por terríveis tormentos. Basicamente, amigos foi isso que aconteceu.
Diana encerrou a narrativa e Gabriel estava estupefato; nunca poderia imaginar que a história de Clotilde envolvesse tantas peripécias. Diana concluiu:
- Após passar por tantos sofrimentos, Clotilde ainda não conseguiu encontrar o caminho da evolução pelo amor. Aqui, em nossa estância de paz, ela foi orientada a respeito de que isso era possível, todavia escolheu sofrer em vez de encarar seus problemas de outra forma.
Bruno completou:
- Infelizmente, a maioria dos espíritos desencarnados escolhe apagar suas culpas por meio da expiação e do sofrimento. Bom seria se todos nós pudéssemos aprender somente pelo bem.
- Você tem razão, Bruno. Atualmente na Terra já é possível acabar com todo o sofrimento, mas a humanidade é que tem de fazer a própria libertação espiritual pela qual tanto anseia. Em via de se regenerar, nosso planeta, ao qual estamos ligados há séculos, está deixando já há algum tempo a velha forma de evolução pela dor. Vale a pena salientar que a dor é a forma mais Primitiva de evolução. Ela só acontece em mundos ainda inferiores; em planos mais elevados nem as lágrimas existem mais, há muito foram abolidas - esclareceu Diana. Gabriel estava com dúvidas:
- Lembro-me de que ajudei a resgatá-la. Só que naquele tempo eu era um novato no mundo espiritual. Iniciava meu trabalho como uma espécie de terapia para meu espírito, que estava arrasado pelas culpas e pela saudade que sentia dos que haviam ficado por isso não pude acompanhar o processo de reencarnação desse grupo. Como foi que isso aconteceu?
- De forma sofrida, infelizmente - retorquiu Diana. - Como já lhe contei, Nathalie chegou aqui com muitos compromissos assumidos perante a própria consciência. Assim que desencarnou, teve como algoz seu marido, Henry, que, se sentindo traído, a perseguiu cruelmente. Com seus companheiros de uma falange das trevas, ele a tirou do corpo e a levou para uma caverna onde ficou presa durante décadas e onde era violentada todos os dias. Para piorar seu estado, Henry revelou como foi sua morte e ela começou a se sentir culpada por tantos erros, inclusive o de ter induzido o próprio filho a matá-la. Tendo consciência de que muito fracassara, Nathalie julgava estar no inferno, atirada às penas eternas. Não se lembrava de rezar nem de pedir auxílio a Deus. Por causa disso, demorou muito para ser resgatada.
- Madame Philomene também passou por muitos sofrimentos deste lado da vida - continuou Diana. - Não acreditava estar morta e vagou sem rumo pelo umbral por mais de dez anos, sentindo todas as necessidades de quando estava viva sem poder supri-las. Quando encarnada, julgava que o sexo era apenas para a procriação, e com isso reprimiu toda manifestação de sexualidade que lhe aparecia, até que um dia um grupo de homens ainda presos a esse vício a encontrou e sem mais dificuldades a levou para o Vale do Amor Livre, onde passara a molestá-la sexualmente, sem se importar com a idade que ela aparentava. Tendo reprimido tanto a própria sexualidade, madame Philomene passou a gostar de ter relações com aqueles espíritos. A essa altura, seu próprio marido também fazia parte daquela horrível situação e ela havia se convencido de que tinha deixado à carne. Algum tempo depois, ela foi convidada a uma excursão pelo Vale dos Suicidas e lá encontrou seus netos com os corpos perispirituais "chumbados" ao chão. Olhos vítreos, eles estavam presos e pareciam congelados. Foi então que ela começou a perceber a real situação em que estava e o remorso começou a persegui-la. Seu desejo maior agora era rever o filho Henry e retirar seus netos daquela situação. Um dia, após tanto chorar, orou a Deus e foi atendida. Chegou à nossa colônia prometendo se regenerar, conquanto tirássemos seus netos do Vale e ela pudesse ter ao lado o filho e o marido. Então lhe explicamos que naquele momento não era possível, que ela tinha de cuidar de si mesma, procurando ser feliz. Em seguida, aconselhamos a reencarnação, que ela aceitou depois da aprovação do Plano Superior.
- E quais seriam as características de sua nova vida? - perguntou Gabriel.
- Renasceria pobre, pois achava a riqueza perigosa e má. Escolheu o Brasil, precisamente o interior do Nordeste, e lhe foi concedida à oportunidade: seria uma mãe de família honrada e criaria os filhos para o bem, pois como mãe de Henry havia fracassado e dado a ele uma educação perniciosa, baseada nos falsos valores da sociedade. Longe da cidade, ela também aprenderia a se aproximar mais de Deus no contato com a natureza, ainda que inóspita. Assim ela nasceu - explicou Diana. - todavia as chagas do espírito são como ímãs e em pouco tempo os espíritos com os quais ela se consorciou no astral em atos sexuais a encontraram. Diante das dificuldades que ela enfrentava quando moça, sugeriram a prostituição, idéia que ela acatou com facilidade. Logo estava fazendo na Terra o que fazia quando desencarnada. Anos depois, montou uma casa de prostituição e até hoje, como Aurélia, ainda se especializa em vender o corpo em troca de dinheiro.
- Durante os anos em que Philomene passou encarnada, muitas coisas aconteceram - prosseguiu Diana. - Pudemos resgatar Charles e Luigi e os conduzimos a uma colônia correcional. Lá eles estagiaram durante anos. Mas mesmo assim não melhoravam. O ato do suicídio lesa o corpo astral profundamente e eles precisavam voltar a Terra com urgência. Oraram com fervor a Deus e a Jesus para que Nathalie fosse socorrida. Eles teriam de reencarnar, mas não podiam imaginar a mãe em tão terrível situação. Luigi estava com remorsos por tê-la assassinado e queria seu perdão. Todos estavam reunidos, menos Henry, que se recusava a ser socorrido. Por isso foi submetido a uma reencarnação compulsória, e veio ao mundo como Humberto. Era um espírito ainda muito ligado ao materialismo e às conveniências de quando viveu como nobre na França. Dessa maneira, foi facilmente envolvido pela política e pela corrupção, coisas que estava tão habituado a fazer. O casamento, que foi lhe dado para aprendizado interior, logo foi deixado de lado. Até hoje a única coisa que realmente o sensibilizou foi à morte de Alfredo e Marcos, que foram Luigi e Charles reencarnados. Interrompendo a narrativa, Gabriel perguntou:
- E Nathalie, vai voltar à vida de Humberto? Afinal, foram marido e mulher no passado.
- Sim. Flaviana foi o espírito que induziu Luigi a sufocar a mãe naquela noite. Elas são inimigas de passado remoto; fatalmente iriam se encontrar quando encarnadas. Na Terra ninguém se encontra com ninguém pela primeira vez, principalmente nas relações de afeto. O casamento com Humberto iria terminar na hora exata e ele assumiria Isabela como esposa, para assim melhorarem como espíritos. Mas muita coisa saiu da programação e mais uma vez eles escolheram o sofrimento.
- Como assim? Na Terra as coisas podem acontecer fora da programação? - perguntou Bruno.
- Sim, e é o que mais acontece. Chamada a reencarnar, Nathalie disse que viria, mas desta vez em miserável situação. Depois de tudo que sofrerá, ela criou na mente a crença de que a riqueza é ruim e só a pobreza pode levar à evolução. É um pensamento equivocado, mas no qual muitos acreditam geralmente movidos pelos remorsos. Ela poderia ter vindo rica mais uma vez e ter usado sua fortuna para produzir o progresso no meio social e auxiliar a todos que prejudicou no passado, todavia preferiu o egoísmo de sofrer sozinha e foi viver numa favela com casa de piso de terra, assim como os camponeses que lhe serviam viviam. Sofrer sempre será um egoísmo, pois pelo bem e pelo amor vamos ajudar o próximo muito mais do que sofrendo. Clotilde não acredita nisso e prefere a vida que vem levando. Todavia, mesmo a duras penas, teria a chance de progredir. Se a qualquer momento ela passasse a crer de forma diferente, mudando os pensamentos para outros mais prósperos, logo estaria bem de vida e evoluiria com mais facilidade. Mas, movida pelos espíritos inferiores, preferiu ser prostituta e subir na vida de modo ilícito, o que fatalmente vai acabar em mais sofrimento.
- Ela vai conseguir se casar com Humberto? - perguntou Bruno.
Diana explicou:
- Isso está na programação. Eles precisam se unir até mesmo para ajudar Thierry, que está na Terra como Daniel. Ex-amantes agora como mãe e filho, eles vão sublimar a paixão que tanto os fez sofrer. Humberto, vendo-o agora como uma criancinha doce inocente, esquecerá que ele foi seu antigo rival e assassino, e o perdoará. Por outro lado, vendo-o como pai, Thierry vencerá o ódio e aprenderá a amá-lo, mas ainda terá de sobrepujar seus instintos violentos. Para isso, contará com o espiritismo, com o qual ele assumiu se comprometer na tentativa de melhorar e evoluir. Se tudo correr assim, apesar dos erros, Humberto e Clotilde poderão ser felizes. Mas os espíritos das trevas estão atentos e vão fazer de tudo para que eles fracassem mais uma vez. Por isso estamos aqui, para ajudá-los, sempre contando com o amparo de Deus e de Jesus!
- Como é difícil vencer quando estamos na Terra, Diana! - ponderou Gabriel.
- Isso acontece porque não ouvimos a voz da nossa própria alma. Ela sabe tudo o que precisamos fazer para alcançar a felicidade. E por intermédio da intuição que o Criador se comunica conosco, nos orientando a alcançar o caminho mais indicado para atingir nossos objetivos superiores. Quem não ouve a própria alma, facilmente se perde no turbilhão do mundo e, fazendo escolhas erradas, sofrerá bastante. Só vence na vida aquele que está do lado da espiritualidade, dos valores eternos do espírito, que são muito diferentes dos valores da sociedade. Quem vive de acordo com as leis universais, mesmo contrariando as leis sociais, vai estar sempre equilibrado e feliz.
Os amigos terminaram de conversar e, após um abraço amigo, se despediram. Bruno e Gabriel foram dormir na casa onde residiam na própria colônia. Diana era um espírito muito avançado, então aproveitava a noite para estudar os casos em que trabalhava ou então ia ler os livros de espíritos que eram mais evoluídos que ela, livros esses que as pessoas da Terra ainda não conheciam e que, mais tarde, quando a humanidade estivesse melhor, chegariam a Terra por intermédio de médiuns dedicados e responsáveis.

8 - ADQUIRINDO COMPROMISSOS

A noite estava fria e Isabela folheava um livro, sem muito interesse, na cabeceira da cama da moribunda.
- Como está à mamãe? - Era a voz de Patrícia, que acabava de entrar no quarto.
- Está bem melhor hoje. Aliás, sua mãe tem melhorado muito ultimamente.
- São seus cuidados. Depois que vovó teve a idéia de trazer uma enfermeira para cá, tudo melhorou. Até papai está mais presente no lar, coisa que não fazia antes.
Isabela mordeu os lábios. Aquela sirigaita nem desconfiava o porquê de o pai estar tão presente.
- É mesmo, o senhor Humberto tem se interessado bastante pelo lar. Sinto que a melhora de dona Flaviana o tem deixado mais alegre e motivado para estar em casa.
- Deus a ouça; sinto muito a falta de papai aqui.
Flaviana tossiu e acordou:
- Filha, que bom acordar e ver você!
- Vim aqui ver como à senhora estava. Não queria ir ao centro sem vê-la. Isabela me disse que a senhora melhorou.
- Sinto-me mais forte ultimamente. Também, pudera... Com um anjo como Isabela à minha cabeceira não tinha como não melhorar.
Patrícia a beijou, despediu-se e saiu do quarto. As duas ficaram sozinhas. Isabela costumava conversar com Flaviana sobre amenidades e, depois de alguns minutos, ela estava novamente adormecida. Isabela recomeçou a leitura, sempre atenta ao menor ruído para ver se Humberto havia chegado. Agora, três vezes por semana ele estava em casa. Mesmo com os compromissos em Brasília, ele fazia questão de voltar para o lar, onde dava vazão a sua paixão por ela. O quarto de Flaviana tinha uma vidraça que dava para o jardim e o portão da frente. Era dia de Humberto chegar e, ao menor ruído de carro, ela corria para vê-lo. Estava ansiosa. Quando aquela mulher cadavérica iria morrer para ela se tornar logo dona da mansão? O tempo passava e Humberto não chegava. Ela acabou adormecendo na cadeira de balanço. Assim que se desligou do corpo, percebeu uma pessoa à sua volta. Era Romário, que demonstrava ansiedade no rosto.
- Parecia que você não ia dormir nunca. Estava ansioso para lhe falar; preciso com urgência lhe fazer um alerta.
Ela, meio assustada, não reconheceu de imediato àquela pessoa tão feia e suja. Depois de alguns instantes, se lembrou:
- Ah, o que é desta vez, Romário?
- Você precisa agir muito rápido. Por acaso quer perder a chance de ser a dona de tudo isso aqui?
- Como assim? Não vou perder a chance. Essa mulher doente logo morrerá e Humberto vai se casar comigo. Ele me prometeu e sei que é homem de palavra.
- Eu não estaria tão certo disso - respondeu Romário maliciosamente.
- Como assim? Ele está com outra? Diga-me, por favor - ela começou a se desesperar, afinal confiava em Romário, e, se ele estava lhe dizendo aquilo, havia de ter um motivo.
- Não é isso. Humberto é fiel a você. O que acontece é que você não está enxergando o óbvio. Flaviana está se recuperando. A doença dela deixou de se desenvolver e está regredindo. Daqui a alguns meses estará boa e voltará a reinar absoluta como dona desta casa. Humberto, pressionado pela sogra e pela filha, não vai ter coragem de se separar. Você terá de se contentar em ser uma reles amante.
Ela começou a sentir ódio.
- Isso não pode acontecer. Bem que suspeitei que ela estivesse melhorando. O que posso fazer para me livrar dessa mulher de uma vez por todas?
- Matá-la! E isso que deve fazer. Se não matar Flaviana, não vai conseguir ser a senhora desta casa.
- O quê? Nunca matei ninguém, isso é errado!
- Boba! Ou faz isso, ou perderá sua chance de ficar milionária. Aproveite enquanto ela dorme e a sufoque com o travesseiro. Todos pensarão que foi parada cardíaca e ninguém suspeitará de você. Acorde no corpo físico e mate-a sem piedade. Ademais, na última encarnação, ela foi o espírito que influenciou seu filho a matá-la. Você apenas fará justiça.
- Isso mesmo. Vou agora para o corpo e farei o que me indicou, só assim serei rica e feliz.
Romário sorria de prazer mórbido. Tinha conseguido enganar Isabela facilmente. A melhora de Flaviana era temporária, ele sabia que a insuficiência renal crônica não tinha cura, mas o que ele queria era comprometer ainda mais Isabela com as leis de Deus. Os espíritos inferiores induzem os outros ao mal com um único propósito: o de os fazer infelizes como eles. A felicidade das pessoas é um verdadeiro tormento para os espíritos inferiores, então, para vê-las infelizes também, eles as induzem ao mal. Isabela, com esse ato se comprometeria seriamente e seria tão infeliz quanto eles num futuro próximo. Ainda que as leis da Terra jamais descobrissem seu crime, as leis divinas agiriam sem erro até forçá-la ao reajuste. Num susto, Isabela acordou. Olhou novamente pela vidraça e nada de Humberto. Já era tarde e àquela hora ele não viria, ficaria no apartamento em Brasília. Certamente os compromissos lá tinham se intensificado e ele não pudera voltar para casa. Olhou Flaviana adormecida e percebeu que sua respiração estava normal. Aquela mulher estava melhorando e isso era péssimo para ela. De repente, um pensamento a invadiu: "E se ela melhorar?" Já ouvira falar de casos em que o paciente estava com o pé na sepultura e mesmo assim havia se recuperado e passado a levar vida normal como antes. Não, isso não podia acontecer. Flaviana estava perto da morte e nada a faria se recuperar. Tentou se concentrar no romance, mas não conseguia. Algo lhe dizia fortemente que Flaviana iria se recuperar e voltar a ser a senhora daquela casa. Isso ela não podia deixar acontecer; tinha de fazer algo. Nas últimas semanas, Flaviana tinha melhorado muito. Se recuperasse, não permitiria que Humberto se separasse dela para se casar com outra. A velha chata da Augusta continuaria a imperar e ela não poderia se vingar. De repente, outro pensamento lhe tomou: "E se ela morresse? Só assim tudo ficaria resolvido". Estranha força a envolveu e ela pegou o travesseiro sobre o qual Flaviana dormia. Bruscamente, começou a apertá-lo contra seu rosto. Flaviana acordou assustada e tentou gritar, mas a voz não saiu. Sentiu que alguém a sufocava, mas não sabia quem. Isabela tinha força multiplicada e, ao perceber que a vítima tentava se livrar apertou ainda mais o travesseiro. Em desespero, a enferma sentia perder o resto de suas forças e concluiu que ia morrer. Ao pensar nessa hipótese, um mórbido pavor a invadiu e ela perdeu os sentidos. Isabela, ao se certificar de que Flaviana estava morta, foi para sua poltrona e fingiu dormir. Como se sentia aliviada ao pensar que agora tudo seria seu! Pela manhã teria de estar preparada para representar o papel de surpresa e inocente. Amanheceu. Augusta e Patrícia estavam reunidas na mesa tomando o café. Era sempre assim; elas acordavam, tomavam o café e depois iam ver Flaviana. Augusta, mesmo depois que Isabela chegara, continuava praticamente morando na mansão, tão preocupada estava com a filha. De repente, ouviram um grito agudo vindo de cima. Com o susto, elas correram a fim de ver o que era. Ao chegarem, viram Isabela chorando ajoelhada aos pés de Flaviana, que parecia morta. Sentindo o que tinha acontecido, Augusta desmaiou. Logo os empregados chegaram e se enterneceram ao ver o desespero de Isabela e o choro baixinho de Patrícia, debruçada sobre a mãe. Levaram Augusta para outro quarto e telefonaram para Humberto dando a fatídica notícia. Nem perceberam o exagero cometido pela enfermeira, que nem de longe se importava com a situação.
- Levante Patrícia - dizia Zulmira, antiga empregada da casa. - Não vai adiantar ficar aí debruçada. É hora de rezar e pedir a Deus que receba a alma de dona Flaviana no céu. Era uma santa mulher.
Patrícia levantou-se e seguiu com ela. Tudo parecia um pesadelo. Isabela, olhos inchados, depois de contar sua versão dos fatos ao médico, foi para casa. No trajeto não conseguia esconder a egoística satisfação com o que tinha feito. O doutor Vasconcellos diagnosticou parada cardíaca e ninguém nunca iria desconfiar dela. Mas, mesmo assim, tinha de disfarçar. Eudásia estava lá cuidando de Daniel e ela não poderia desconfiar de nada; seria um segredo que levaria ao túmulo. Em casa, Isabela fez a mesma cena com Eudásia, que de nada desconfiou. Algumas horas depois na mansão, Humberto havia acabado de chegar. Abraçou a filha e tentou confortá-la como pôde. O pessoal do centro espírita estava lá e reanimara Patrícia com palavras de consolo. Augusta estava inconsolável. Chorava, gritava e desmaiava repetidas vezes, até que o doutor Vasconcellos a fez dormir com uma alta dose de ansiolítico. O velório foi na capela de um rico cemitério. Isabela compareceu e estava com Augusta o tempo inteiro. Naqueles seis meses trabalhando lá, ela fizera grande amizade com a sogra de Humberto. Com extrema falsidade, tinha se acercado da senhora e conquistara sua afeição. Ouvia-lhe as confidencias. Augusta era severa e só tinha amigas de sua idade e religião, mas com Isabela ocorrera uma exceção; ambas teriam se tornado grandes amigas, não fosse à hipocrisia de Isabela. Humberto estava cercado por amigos do Senado e até o presidente compareceu. Isabela ficava imaginando como seria maravilhoso ser a esposa dele e brilhar na sociedade. Foi com esses pensamentos que viu o corpo de Flaviana ser sepultado. Augusta não permitiu a cremação. Naquela noite, o ambiente estava triste na mansão. Humberto, que tinha passado quase a vida inteira longe da filha, não sabia agora como se aproximar dela. Ele também se sentia mal. No fundo, sua consciência já o acusava de ter sido interesseiro e se casado sem amor. Naquele instante, o remorso pareceu aumentar. Na sala com a sogra e a filha, cada um a um canto do sofá, ele não sabia como quebrar aquele mórbido silêncio.
- Sei que é muito triste... - começou ele. - Mas precisamos acabar com esse silêncio pavoroso que se instalou aqui. Dona Augusta é hora de deixarmos para trás nossas desavenças e nos tornarmos amigos, pelo bem de Patrícia.
- Sei o que você quer, mas não vou ceder. O que lhe disse antes de minha filha morrer repito agora. A partir da próxima semana Patrícia vai viver comigo em minha casa; não posso permitir que ela passe a viver aqui sozinha. Não volto atrás na minha decisão.
Patrícia, ainda com os olhos inchados, pareceu sair do torpor que a invadia e se defendeu:
- Vovó, já conversamos sobre isso. Eu lhe disse que, apesar de ter apenas dezoito anos, sei bem o que quero da vida. Não vou morar com a senhora, apesar de amá-la bastante. Ademais, se eu sair daqui, o que será feito desta casa tão grande da qual mamãe cuidou com tanto carinho? O que será desses empregados que cuidaram de nós durante tanto tempo? Não, não vou sair. Pretendo me casar e morar nesta casa. Acredito que quando mamãe despertar no plano espiritual ficará contente ao me ver aqui.
- Você e essas suas idéias. Sua mãe morreu, e, como todos que morrem, ela estará dormindo até o último dia; não vai poder ver nada. Veja só, Humberto, o que sua negligência fez! Até entrar para uma seita horrível sua filha entrou. E claro! Flaviana, sempre doente, não pôde guiá-la como deveria, e você, que tinha essa obrigação, a abandonou, por isso segue esse caminho. Temo por você, minha neta. Pode até enlouquecer com essas idéias.
- A senhora não pode falar de uma coisa que não conhece. O espiritismo é uma filosofia séria, voltada para o bem. Além do mais, ela consola mais do que qualquer outra religião que existe no mundo. Não quero ofendê-la, mas sua religião não acredita no perdão de Deus, uma vez que considera o inferno como um lugar de padecimentos eternos, e também não consola, já que acredita que os espíritos não se comunicam e não têm consciência de si mesmos. Eu aprendi com o espiritismo que Deus é bom, sempre perdoa seus filhos e não fecha a porta para nenhum deles, por mais errados que pareçam estar. Aprendi que a morte não existe e que a vida é eterna. Acredito que minha mãe, agora, está amparada por espíritos de luz, descansando em algum lugar, e isso me dá consolo e alegria.
- Patrícia, sua avó está certa. Nunca obriguei ninguém a seguir religião alguma, mas acredito que este não seja um caminho bom para você. Se essa religião lhe desse consolo mesmo, não teria chorado tanto a morte de sua mãe.
- Chorei sim, e ainda vou chorar mais, pois a amava, e quem ama sempre sente quando se separa do ser amado. Mas meu choro é como se fosse por mamãe ter ido fazer uma longa viagem. Não choro o "nunca mais". Sei que, se Deus a levou, foi porque assim foi o melhor. Tenho certeza de que um dia a reencontrarei.
Augusta estava indignada.
- Que desgosto! Para mim é horrível ter uma neta nessa religião. Se você fosse igual à Isabela... Ela sim é que é uma pessoa sensata e tem aprendido muito com minha experiência. Tornamo-nos amigas e ela ouve tudo quanto eu digo, já você...
- Pense como quiser. Só aviso que não irei morar com a senhora. Agora vou dormir, porque estou muito cansada.
Dizendo isso, beijou o pai e subiu. Augusta ficou sozinha com Humberto.
- Você está vendo no que está se transformando sua filha: numa anarquista. Isso é o resultado da sua ausência aqui no lar. Saiba que eu nunca o perdoarei por tudo que fez minha filha passar. Vou amanhã para minha casa, mas ficarei atenta ao que acontece aqui. Não permitirei que se case com outra enquanto eu for viva.
- Dona Augusta, hoje todos os ânimos estão exaltados. É melhor termos essa conversa depois. Patrícia vai morar aqui com a Zulmira e com os outros empregados. Ela já é bastante adulta para escolher o que quer da vida. Não posso estar aqui todo dia, mas vou mandar redobrar a segurança da casa e sei que com Zulmira, que a viu nascer, ela estará protegida.
Augusta começou a chorar e Humberto, angustiado, deixou-a sozinha. Desse modo, ela passou o resto da noite chorando o triste destino e a morte de sua filha.
- Eudásia, a felicidade vai entrar para sempre em minha vida! Não consegui nem dormir direito esta noite pensando no que me acontecerá de agora por diante - falava Isabela à sua fiel amiga desde os tempos do bordel.
- Mas não consigo entender... Ontem você estava chorando tanto a morte de dona Flaviana, e hoje já está tão alegre?
- Percebi que de nada me vale ficar chorando por ela. Chorei ontem porque cuidei dela, e acabei me apegando à enferma. Mas a morte dela é um passaporte para a vida que eu tanto sonhei.
Levando um pão à boca, Eudásia questionou:
- Você acredita mesmo nisso, menina? Será que o senhor Humberto vai realmente cumprir suas promessas?
- Nem diga isso. Claro que vai! Ele está apaixonado, e você sabe como é um homem assim. Dei muita sorte nesta vida; nunca pensei ser possível sair daquela favela horrível onde eu vivia.
Eudásia silenciou. Isabela estava muito feliz e ela não queria tirar suas esperanças. Resolveu mudar de assunto:
- Agora que sua tarefa como enfermeira terminou o que pensa em fazer?
- Bom, vou continuar visitando dona Augusta e ficar cada vez mais amiga dela. Sei que vai ser um choque quando ela descobrir que eu serei a futura mulher de Humberto, mas ao mesmo tempo ela nunca vai desconfiar de que já nos relacionávamos.
- Será? Ela pode ficar com muito ódio de você e deduzir que já eram amantes. Tenha muito cuidado.
Isabela ia responder quando viu Daniel se aproximar. Era uma criança muito bonita e esperta, de cabelos encaracolados, branquinho e com olhos castanho-claros. Parecia um anjo. Ela se enterneceu. Realmente, a única coisa que mexia com as fibras mais íntimas do ser de Isabela era seu filho. Pegou-o e o colocou no colo. Estava assim, dando comida a ele, quando a campainha tocou. Eudásia foi abrir e a figura de Humberto apareceu. Rapidamente Isabela levantou-se para recebê-lo e ambos se beijaram. Já na sala, ele começou:
- Estou indo hoje para Brasília e não poderia deixar de passar aqui antes para vê-la.
- Meu amor, a cada dia sinto que nascemos um para o outro. Em que dia vamos nos casar?
Ele cocou o bigode.
- Vocês, mulheres, nem esperam o período de luto e já querem agarrar a todo custo o viúvo... - falou ele sério.
- Nossa, Humberto, não sabia que você era dado a ser puritano. Nem parece o mesmo homem viril que me possuía no quarto vizinho ao da sua esposa.
Ele sorriu.
- Boba! Falei isso de brincadeira. Olhe que nem sou homem dessas coisas, veja só no que você me transformou. - Ele deu uma pausa. - Não podemos pensar em nosso casamento agora. Devemos ser discretos, se não quisermos ser impedidos por Augusta. Ainda ontem conversamos e ela me disse que não deixará que eu me case outra vez.
- Mas que petulância daquela velha! Tenho ganas de matá-la com minhas próprias mãos. Se não fosse nosso plano, não a estaria mais suportando.
- Você precisa ser a melhor atriz possível. Quando formos nos casar, ela deverá pensar que nunca nos relacionamos antes. Será um problema a menos.
Isabela começou a fazer beicinho para ele e logo estavam na cama, acompanhados por entidades viciadas que usavam suas energias no campo do sexo. Isso acontecia porque tanto ela quanto Humberto viviam e acreditavam na maldade.
Alguns dias se passaram e Flaviana começou a despertar. Via vultos de pessoas ao seu redor, mas o sono era maior e ela voltava a adormecer. Ficou assim durante um tempo até o dia que acordou de vez. Ao abrir os olhos, teve uma surpresa: estava deitada com muitas outras pessoas em uma espécie de cama de vidro ao ar livre. Intimamente perguntou-se onde estava e que lugar era aquele, tão bonito. As camas estavam sobre um chão coberto de uma grama muito verde, cheia de gotas de orvalho. As pessoas pareciam dormir ou relaxar, e algumas conversavam com outras, que pareciam lhes passar informações. Tentou chamar uma dessas pessoas, mas não conseguiu; elas estavam um tanto distantes. Em sua sala, Diana estava com Gabriel à sua frente.
- Vá, Gabriel, e faça o possível para não chocá-la. - Flaviana, assim como a maioria dos que estavam naquela ala de refazimento, não tinha consciência de que já havia deixado o corpo de carne, e saber disso de forma abrupta podia levá-la ao desespero. - Faça como sempre fez; seja sincero e firme ao mesmo tempo, mas deixe-a ciente da sua nova condição.
Gabriel aquiesceu e se dirigiu para a ala. De onde estava até o parque destinado a receber os recém-chegados havia certa distância, e ele usou a volitação. Logo estava se aproximando de Flaviana. Ela estava impaciente, via as pessoas atender as outras nas camas, mas ninguém ia procurá-la. Começou a se angustiar. Por que sua mãe a levara para um lugar de terapias alternativas? E seus aparelhos? Ela estava atordoada. De repente, viu a figura de um jovem de seus vinte anos sorrir para ela e depois aproximar-se.
- Como está dona Flaviana? Sente-se bem?
Ela se sentou.
- Sim. Muito bem, por sinal. Até que enfim alguém veio falar comigo. Estou aqui há horas e ninguém vem conversar, me dizer onde estou. Afinal, que lugar é este?
- A senhora está numa colônia de recuperação. Aqui é um local de recuperação e refazimento, onde a senhora poderá ser muito feliz, se souber aproveitar.
Ela pareceu não entender.
- Colônia? Nunca ouvi falar nesse lugar. Será um lugar para loucos? Se for, então erraram comigo, pois minha doença é nos rins.
Gabriel sorriu:
- Fique tranqüila. Aqui não é um local de loucos como à senhora conhece. Como já lhe disse, é um local de refazimento. Esta ala é destinada aos recém-chegados. A propósito, como está se sentindo fisicamente?
- Estou muito bem. O mal-estar passou, não sinto o corpo cansado... Aliás, não sinto mais nada da minha doença. Por quê?
- E que aqui as doenças desaparecem.
- Nossa que lugar fantástico! Como Humberto o encontrou? Ou terá sido minha mãe?
- Ninguém o encontrou. A senhora chegou aqui sozinha, porque era a hora.
- Olha rapazinho, você não responde nada com clareza. Até agora, só me deixou mais confusa ainda. Como cheguei aqui sozinha se não tinha forças nem para andar?
- A senhora veio viver nesse lugar pela misericórdia divina. Agradeça; nem todos podem estar aqui.
- Quer dizer que estou internada? Cadê os aparelhos que filtram meu sangue?
- Aqui a senhora não vai mais precisar deles. Se quiser, poderemos dar uma volta e poderá conhecer o lugar. Aqui é muito bonito.
- Estou percebendo. Parece o paraíso. Onde estamos é muito verde e essas serras que nos circundam dão um ar maravilhoso ao local. Estamos em São Paulo?
- Não, estamos distantes de lá agora. Mas não se preocupe com isso. Vamos dar uma volta?
Flaviana começou a ficar preocupada. Afinal, que lugar era aquele? Levantou-se e foi andando por entre as outras camas. Via crianças com copos de água molhando a testa de pessoas que dormiam, outras pessoas empunhavam as mãos sobre a fronte, e ela ficou ainda mais confusa. Crianças trabalhando em hospitais? Durante o trajeto, Gabriel ia explicando com evasivas as dúvidas dela sobre o ambiente em que estava. Flaviana ficou tão empolgada que por instantes se esqueceu de Patrícia, Humberto e de sua enfermeira, Isabela. Aquele lugar era lindo! Flaviana viu animais domésticos, coelhos, gatos, cachorros, cavalos; observou pessoas colhendo flores, crianças brincando, mulheres entretidas com o jardim. Não pôde conter a pergunta:
- Nunca vi ou estive num lugar tão bonito assim. Aqui é tudo natureza? Não vejo casas... Onde fica a sede?
- A senhora vai conhecer, mas não agora. Aqui é uma cidade. À parte em que estamos é uma zona onde predomina apenas a natureza, porém mais à frente temos conjuntos de habitações e prédios onde às pessoas realizam as mais diversas tarefas.
- Agora foi que fiquei confusa. Primeiro você me disse que aqui era um lugar de recuperação, então pensei que fosse um hospital. Agora me diz que é uma cidade. O que me deixa tranqüila é que estou bem e sei que foi minha mãe ou Humberto que me trouxeram para cá, logo é um lugar seguro. Mas quero falar com o diretor, saber que dia posso sair ou ver minha família. Que horas posso falar com ele?
- Agora vamos voltar àquele lugar onde a senhora estava e voltará a descansar. Depois prometo que falará com o responsável.
Flaviana estava muito bem-disposta e não queria descansar, mas resolveu obedecer. Pensava estar fazendo um tratamento inovador que deveria seguir à risca. Nem cogitou que, se estivesse na Terra, jamais poderia ficar sem os aparelhos. Chegando ao lugar novamente, deitou-se. Um homem maduro começou a empunhar as mãos na fronte dela, que logo adormeceu, sem perceber que saíam energias brilhantes das mãos daquele abnegado seareiro de Deus. Gabriel volitou e chegou rapidamente à sala de Diana.
- E então, como foi?
- Não pude revelar-lhe a verdade. Achei muito prematuro. Ela pensa que ainda está na Terra e que o marido e a mãe a internaram numa clínica de terapias alternativas; nem sequer lembra que foi assassinada.
- Você agiu certo, Gabriel. Esperávamos que ela fosse se lembrar de algo, mas a memória ainda está apagada. Deus sabe o que faz! Mas, ao acordar, a deixaremos ciente. Eu mesma falarei e lhe explicarei tudo. Estamos vivendo no mundo da verdade, e não podemos deixar uma pessoa enganada. Aqui cada um descobre que a vida continua e que a morte é a maior ilusão que o ser humano cultiva, seja qual for sua crença ou religião, ou ainda que seja ateu.
- Você tem razão, Diana. Eu mesmo sei como certos religiosos dão trabalho quando chegam aqui. Muitos se recusam a entender que a idéia que mantinham de céu e inferno não era verdadeira e acham que nós somos loucos.
- Verdade. A maioria dos religiosos são os que mais sofrem quando chegam aqui e descobrem o quanto estavam enganados. Mesmo assim não acreditam e acabam retornando para a Terra. Lá vão constatar, entre pasmados e desesperados, que realmente deixaram o corpo de carne. Então começam a vagar por entre os familiares ou vão viver no umbral. A maioria deles se recusa a aceitar auxílio de pessoas que eles julgam ser espíritas, na ignorância de que aqui não existe religião.
Gabriel estava pensativo:
- Nossa como o problema é complexo! Por que as pessoas são tão resistentes em aceitar que estavam erradas?
- Devido ao orgulho. Infelizmente esse sentimento tem dificultado muito nossa estadia no plano astral. Nunca gostamos de aceitar que erramos em nossas convicções. Preferimos sofrer a admitir que nos enganamos. Existem espíritos que durante a vida na Terra acreditaram que morrer era ficar dormindo, sem consciência. Quando chegam aqui e descobrem que estão mais acordados do que nunca, fogem assustados e vão ser presas fáceis das entidades infernais que os farão dormir por anos, satisfazendo seus egoísticos desejos.
- Quer dizer que os espíritas na Terra devem se arvorar em ser donos da verdade?
- Não foi isso o que quis dizer. Não quero contribuir para aumentar o fanatismo que anda tomando conta dos nossos irmãos das lides espirituais. As verdades que o espiritismo veio revelar não são propriedade exclusiva de ninguém, pois pertencem a todos, e são verdades da vida, acima de tudo. O Espiritismo apenas as estuda, pois a vida após a morte, a mediunidade, a reencarnação são fenômenos que pertencem às leis da natureza, e não a grupos religiosos. As religiões vão acabar porque estão dividindo as pessoas. A única religião verdadeira do mundo é o amor, e nela todos estamos incluídos, pois somos herdeiros dele. Só assim perceberemos que não há por que querermos ser donos de verdades que só pertencem a Deus, supremo criador do universo.
Gabriel estava satisfeito com as respostas de Diana e pacientemente esperou que Flaviana voltasse a despertar.

9 - A DESCOBERTA DE FLAVIANA

Naquela mesma tarde, Flaviana acordou e percebeu que ainda estava no mesmo lugar. As mesmas camas de vidro, as mesmas pessoas à volta atendendo os pacientes, até a paisagem era a mesma. Quando abriu completamente os olhos, percebeu que ao seu lado estavam Gabriel e mais outra mulher que ela não conhecia.
- Suponho que ela seja a diretora daqui. Foi bom a senhora ter vindo. Não estou conseguindo entender nada. Até agora só dormi e nem minha filha, nem minha mãe apareceram para me ver. Acho isso muito estranho... Sou uma mulher doente e eles jamais me deixariam sozinha por tanto tempo.
- Chamo-me Diana e sou trabalhadora daqui, não sou a diretora. Sou responsável, entre outras coisas, por este departamento que chamamos de Departamento dos Recém-Chegados.
Flaviana abriu bem os olhos castanhos e grandes, e indagou:
- Recém-chegados de onde?
Sem hesitar, Diana respondeu:
- Recém-chegados da Terra. Aqui todos vieram de lá.
Flaviana sentiu uma sensação ruim, pois sentiu que aquela mulher era sincera e não estava mentindo.
- Da Terra? Quer dizer que não estamos na Terra? Que brincadeira é essa?
- Não é brincadeira, e vamos lhe mostrar isso agora. Deite-se novamente. - Flaviana obedeceu, tremendo por dentro. Sentia que algo de muito ruim lhe seria revelado.
Diana colocou a mão direita sobre sua fronte e pediu:
- Agora feche os olhos e tente se lembrar da última imagem que tem da sua vida antes de chegar aqui.
Flaviana se esforçou e começou a se ver deitada, com uma aparência cadavérica, em sua cama. Tinha Isabela por perto em uma poltrona, lendo um livro e velando por ela.
- Diga o que você vê - pediu Diana.
- Vejo-me em meu quarto deitada, muito doente, e Isabela, minha enfermeira, ao meu lado.
- O que mais? Tente se lembrar do último dia que esteve com sua enfermeira.
- Estou lembrando. Fazia muito frio e ela se levantava toda hora para ir até a janela do quarto. Logo depois adormeci e...
Flaviana demorou algum tempo com os olhos e o rosto comprimidos, e depois soltou um grito:
- Socorro, ela... Ela está me matando! Ajudem-me!
Diana retirou a mão e ordenou:
- Acorde Flaviana. Já passou; você está bem.
Ela abriu os olhos e todo seu corpo tremia.
- Foi Isabela... Ela tentou me matar, meu Deus! Por que ela fez isso comigo? Era tão fiel, tão boa!
Gabriel trouxe-lhe um copo com água e fê-la beber. Quando se acalmou, ela colocou as mãos na de Diana, e perguntou:
- Por favor, me diga: quem me salvou aquela noite? Já prenderam Isabela? Meu Deus estávamos com uma criminosa em casa e nem desconfiávamos... Ela ia me sufocar com o travesseiro!
Diana, já acostumada com aquele tipo de situação, começou a explicar:
- Ninguém a salvou naquela noite. Seu corpo morreu e nós a recolhemos aqui. E hora de cuidar de sua vida, rever seus valores e entender como atraiu isso para seu destino.
Flaviana começou a chorar convulsivamente. Sentia que era verdade, ela estava morta! Mas, se estava morta, como se sentia mais viva e saudável do que nunca? Seu corpo estava igual ao da Terra; até o coração batia. Sentindo seus pensamentos, Diana a orientou:
- Você agora vive com o corpo do espírito, que chamamos de perispírito. Você pensa que ele é igual ao seu corpo de carne, mas logo perceberá que não é. Quanto à forma, sim; todavia, esse corpo em sua constituição é muito diferente. Mas outra hora conversaremos sobre isso. Tente dormir que, ao acordar, será levada para uma casa que preparamos para você.
Flaviana explodiu:
- Como você fala isso com tanta simplicidade assim? Fui assassinada, estou morta, tenho de me afastar de minha filha, e você vem me dizer que vai me dar uma casa? Não quero nada disso, quero minha vida de volta: minha casa, minha mãe e até mesmo o Humberto.
- Você prefere viver num corpo doente, sem ter mais condições de levar uma vida normal? Reflita e procure entrar em contato com Deus pela prece. Quando chegar o momento, entenderá que tudo que lhe aconteceu foi para o melhor; busque a fé. Há quanto tempo você não reza?
Ela, enxugando as lágrimas com as mãos, disse:
- Não tenho fé em Deus. Ele me tirou tudo, a saúde, o marido, a alegria de viver e até mesmo minha vida. Não vou rezar.
Diana a olhou com ternura:
- Não seja injusta. Deus lhe deu a vida e a dá todos os dias. Mesmo tendo deixado seu corpo de carne na Terra numa cova escura, você está aqui com o corpo astral, mais viva do que antes. Recuperou a saúde e pode reencontrar a felicidade. Tudo depende de você. Quando perceber que o que lhe aconteceu veio da forma negativa como olhava a vida, vai compreender melhor.
Flaviana soluçava. Como se sentia triste! Deitou-se e fingiu que dormia. Em seu íntimo, existia um único pensamento: o de escapar dali e voltar para sua casa. Durante o trajeto de volta, Diana ia falando com Gabriel:
- Acredito que Flaviana não vá ficar muito tempo conosco. Ela fingiu que dormia, mas percebi claramente que quer sair daqui e, se continuar assim, acabará conseguindo.
- E uma pena, mas não podemos prender ninguém aqui. O livre-arbítrio é sempre respeitado. Com isso ela vai atrasar ainda mais seu encontro com Aurélio. Para ele, são mais de quarenta anos de espera.
- É mesmo. Todavia o amor é paciente. Ele continuará a esperar, tenho certeza.
Eles se abraçaram e seguiram para o prédio onde trabalhavam.
Flaviana, ao vê-los se distanciar, levantou-se rapidamente e começou a andar pelo lugar. Precisava encontrar a saída. Mas, quanto mais andava, mais percebia como o lugar era grande. Ela via pessoas montadas em cavalos passeando livremente, outras cultivando flores em jardins, mas nada daquilo lhe interessava. Anoiteceu e as primeiras estrelas no céu começaram a brilhar. Ela se sentou sobre uma frondosa árvore e recomeçou a chorar. De repente, uma senhora negra se aproximou dela:
- Por que não volta para onde estava? Já é noite!
- Quem é você?
- Chamo-me Amélia. E, pelo tempo que estou aqui, posso garantir que é melhor aceitar; chorar não adianta.
- Não posso, tenho de voltar a Terra e me vingar de quem me matou. Só assim terei paz.
Amélia fez uma cara de assustada e disse:
- Não saia daqui não! Atrás desses muros altos tem muitos perigos, você vai se dar mal. Apesar de essa cidade ser muito bonita e organizada, ainda estamos no umbral, e circular por ele sozinho nunca acaba bem.
Flaviana não entendeu:
- Não estamos no céu?
A outra riu, bem-humorada.
- Não, estamos muito longe dele. Muitos acham que depois que morrem vão chegar aqui e ver Deus e Jesus, e que estão no céu. Mas nada disso é verdade. Estamos no umbral mesmo.
- O que é isso?
- O umbral é um local de passagem para as regiões superiores. Aqui ficamos estagiando até podermos ir ao nosso lugar de origem. Pelo pouco que sei, o umbral tem várias zonas. Onde ficam as colônias de recuperação, como esta, é uma zona mais amena, mas nos outros lugares há sofrimentos inenarráveis. Há também cidades como esta só que voltadas ao mal.
Flaviana começou a ficar com medo.
- Você chegou aqui há muito tempo? - perguntou à sua interlocutora.
- Nem tanto; morri há vinte e cinco anos.
- De quê?
- Tive um câncer de pulmão. Mas fugi deste lugar e vivi horrores nas zonas mais densas do umbral. Só há três anos é que fui recolhida novamente. Mas já estou me preparando para voltar a Terra. Vou reencarnar!
- Reencarnar?
- Sim, reencarnar, ou vestir um novo corpo de carne e renascer na Terra. Sabe, não fui muito boa na minha última vida.
- O que você fez?
Ela lançou um olhar para o infinito, soltou o gatinho que segurava e começou a narrar:
- Eu queria ter uma vida melhor, ser rica, daí inventei que era médium e que recebia comunicações dos espíritos desencarnados. Fingia que psicografava mensagens de parentes mortos e cobrava por isso. Logo estava cheia de clientes e ganhei um bom dinheiro. Quando morri, fiquei presa ao caixão durante dias e uns espíritos horríveis, todos de preto, vieram me retirar do túmulo. Sofri muito e hoje quero voltar a Terra e reparar o meu erro. Serei uma médium ostensiva e vou me comprometer com o auxílio ao próximo. Mas estou avisada de que se novamente falhar serei submetida a um processo de loucura.
Flaviana estava confusa. Seria verdade?
- Você pode ficar louca? Vai aceitar isso?
- Vou sim. Sou muito ambiciosa. Enquanto vivo aqui estou protegida quanto às minhas ilusões, mas quando reencarno fica bem mais difícil. O esquecimento do passado, o consumismo, o apelo do status e do dinheiro são muito fortes. Se em qualquer momento eu priorizar mais a vida material do que a espiritual, começarei a ter problemas mentais. É difícil, mas será esse o remédio amargo que levará à cura de meu mal.
Flaviana olhava Amélia sem entender muito o que ela falava. Esta a convidou para ir ao salão de orações, mas Flaviana recusou. Sentada embaixo da árvore, ela pensava: "Não posso deixar Isabela impune. Preciso descobrir por que me matou e depois quero me vingar". A esse pensamento um acesso de ódio a acometeu e ela começou a chorar. Flaviana desejou tanto sair dali e se vingar que num átimo se viu arremessada a um lugar muito escuro, cheio de fumaça e pessoas gemendo. Assustada, tentou se levantar e andar, mas seus pés atolaram numa poça de lama. Com esforço, ela conseguiu sair dali e começou a andar, e o que via era muito diferente do local onde estava. As árvores estavam secas, e a vegetação rasteira e o solo lamacento davam uma impressão mórbida ao lugar. Com muito medo, ela andava sem parar, sem saber para onde estava indo. Olhou para o céu e ele estava coberto com pesadas nuvens escuras. Ela não conseguia ver a Lua nem as estrelas. Seria a outra parte do umbral a que Amélia tinha se referido? Pensou num instante. De repente, ouviu uma voz:
- O que esta dama faz aí sozinha? Está precisando de companhia?
Flaviana se arrepiou inteira. Um homem magro, de rosto fino e nariz aquilino, vestindo um terno preto estava à sua frente. Tentou correr, mas não conseguiu. Sentiu que seus pés estavam chumbados ao chão. O homem com olhar assustador começou a gargalhar e, de tanto medo, Flaviana desmaiou.
- Acorde acorde!
Ao despertar, ela se viu ainda no mesmo lugar e o pavor continuava. O homem sentado ao seu lado abriu um sorriso e disse:
- Sei que é uma novata; não quero lhe fazer mal. E que às vezes acho graça em assustar as pessoas, é muito divertido.
Ela, ainda trêmula, respondeu:
- Pois não vejo graça nenhuma. Estou muito assustada e quero sair daqui e voltar para minha família.
- Bem se vê que chegou agora. Sair daqui não é tão fácil como pensa, mas eu posso ajudá-la. Chamo-me Nicodemos e moro numa cidade perto daqui. Chama-se Cidade das Trevas. Lá você poderá morar e daí voltar para ver os seus.
- Nossa que nome mais esquisito. Por que a cidade se chama assim?
- Porque lá nós não vemos a luz do Sol. Temos de usar tochas e outros tipos de chamas para iluminar os ambientes. - Ele abriu um sorriso malicioso. - Também possui esse nome porque nos utilizamos do mal para atingir nossos objetivos. Lá o lema é: "Os fins justificam os meios".
- Nossa... Depois da morte tem tudo isso, é?
- E muito mais. As pessoas acham que depois da morte perdem a consciência ou vão viver em locais esfumaçados ou nas nuvens. Quando acordam aqui, percebem que nada disso é verdade. Conseguimos capturar essas pessoas que durante a vida foram descrentes, atéias ou acreditavam que dormiriam até o juízo final, e as colocamos para dormir por longo tempo. Fazemos isso para retardar o progresso delas. Lá na minha cidade tem câmaras onde essas pessoas ficam praticamente em estado de coma.
Flaviana pensou e respondeu:
- Não quero viver lá. Parece que é um lugar ruim; prefiro a colônia onde estava.
Ele sorriu mostrando as falhas da dentadura.
- Você é que sabe, mas essas colônias são como prisões. Você não poderá fazer o que deseja, e aposto que não vão deixá-la ver sua família. Já na nossa cidade somos livres e fazemos o que queremos. Se ficar conosco, garanto que Teodoro deixará você vê-los.
- Quem é Teodoro?
- É o novo chefe da nossa cidade. E uma espécie de prefeito.
- Ah, se for assim então eu vou. Leve-me para lá.
Eles caminharam por uma estrada íngreme e depois de uma hora chegaram a uma rua cheia de casas feias e mal construídas.
- Aqui é à entrada da cidade. Vamos que os guardas me conhecem e se lhe virem comigo a deixarão passar.
Eles passaram por diversas ruas da tenebrosa cidade e foram até o chefe. Flaviana foi apresentada a um homem branco, jovem, de rara beleza, mas com um olhar cruel que exalava sensualidade. Flaviana admirou-se, pois julgava que "o chefe" fosse um senhor, e havia encontrado na realidade um rapaz de, no máximo, vinte anos. Depois de ouvi-lo, ela foi informada de que poderia ir para a Terra ver os seus. Como acompanhante ela teria Nicodemos.Chegaram à mansão que, àquela hora da madrugada, estava às escuras. Flaviana sentiu o ódio corroê-la. Fora ali, em sua própria casa, que tinha sido assassinada pela asquerosa Isabela. Na sala ela começou a chorar. Depois do pranto, sentiu fome:
- Nicodemos, estou com fome. Antes de ver minha filha, quero me alimentar. Preciso estar forte para agüentar vê-la sem poder falar ou tocar nela.
- Lá na cidade não temos alimentos, mas é muito fácil se alimentar aqui na Terra. Vamos a um bom restaurante que vou ensiná-la.
Flaviana não entendeu nada, mas seguiu com ele. Chegaram a um restaurante de luxo em um bairro nobre de São Paulo. Apesar do adiantado da hora, algumas pessoas ainda faziam refeições. Nicodemos logo sentiu apetite com o cheiro saboroso dos pratos e da carne. Olhou para Flaviana e disse:
- Você vai chegar perto de quem está se alimentando; aproxime-se bem. A matéria de nosso corpo é diferente da do corpo de carne, portanto uma penetra na outra. Fique perto e deixe seu corpo ser parcialmente absorvido pelo corpo do encarnado, logo sentirá o prazer da alimentação como se a estivesse ingerindo. Flaviana achou estranho, mas, imitando Nicodemos, começou a se aproximar de um senhor gordo que devorava prazerosamente um filé. Estranho fenômeno aconteceu. Flaviana sentiu-se intimamente ligada ao senhor e começou a perceber o gosto da carne em sua boca. Gostou do que estava fazendo. Ao se sentir farta, parou. Depois percebeu que o homem continuava a comer sem parar.
- Não sei como ele consegue comer tanto. Já me fartei, e ele continua lá. Veja!
- Isso acontece porque a energia dos alimentos dele ficou com você. O que ficou para ele foi somente o "bucho". Agora, para se sentir farto, ele terá de comer o dobro.
Flaviana não entendeu nada, mas estava se sentindo completamente alimentada. Depois sentiu vontade de ir ao banheiro. Há quanto tempo não fazia suas necessidades? Nicodemos a orientou para que fosse a um dos banheiros do restaurante e agisse normalmente. Ela só não devia dar a descarga, pois não conseguiria movê-la com seu corpo de agora. Assim ela fez. Tudo terminado, ela exigiu que retornassem para sua mansão. Desse modo fizeram. Patrícia dormia e foi com emoção que Flaviana a abraçou. Humberto, como sempre, não se encontrava, e ela ficou muito tempo abraçada à filha. De repente se lembrou:
- Onde está o espírito de minha filha agora?
- E eu sei lá! Só sei que à noite, quando os encarnados dormem, seus espíritos se libertam e vão passear no astral. Essa sua filha tem cara de boazinha. Deve estar em alguma colônia conversando.
Flaviana resolveu dormir na casa e permanecer lá até o amanhecer.

10 - PLANO SÓRDIDO

Amanheceu e Humberto chegou cedo à casa que tinha alugado para Isabela viver. Ela, Eudásia e Daniel tomavam o desjejum. Fazia três semanas que Flaviana tinha morrido e a vida tinha quase voltado ao normal. Isabela ia visitar Augusta várias vezes e a "consolava" pela morte da filha. Naquela manhã, ela estava irritada. Por isso, quando Humberto chegou, ela logo o arrastou para o quarto. Quando estavam sentados na cama, ela começou:
- Não agüento mais essa situação. São três semanas, e você não toma nenhuma atitude. Estou perdendo minha paciência.
Coçando o bigode, ele respondeu:
- Você terá de esperar um pouco mais. Não faz nem um mês que Flaviana baixou ao túmulo e eu não posso me dar ao luxo de já me casar com outra. Tem Augusta, que pode criar problemas, e principalmente Patrícia. Você sabe que eu não posso magoar a minha filha.
Isabela se contorceu de ódio por dentro. Novamente aquelas duas em seu caminho. Mas, no momento certo, ela saberia se livrar delas. Tinha de ser paciente. Ao mesmo tempo, sentia que não podia deixar Humberto fazer o que quisesse. Se fosse assim, em pouco tempo ela deixaria de ser interessante para ele, que logo estaria com uma outra.
- Não estou conhecendo você. Um homem tão corajoso, que se envolve com operações arriscadas do governo, com me¬do de duas mulheres.
- Não é isso - respondeu ele, tentando se defender. - É que temos de dar tempo para as coisas se arrumarem. Se eu chegar agora com a notícia de que me casarei novamente, e com a ex-enfermeira da minha mulher, o mundo desabaria sobre minha cabeça. Até você teria problemas, o que desejo sinceramente evitar.
Isabela sentiu que ele falava a verdade. Apesar de sem moral, Humberto era um homem completamente discreto. Isso fazia parte do temperamento dele, e ela tinha de respeitar. Por isso encerrou a discussão e mesmo em plena manhã o puxou para a cama, onde se entregaram ao amor.
Horas mais tarde, quando ele saiu, Isabela se maquiou, colocou uma roupa elegante e disse a Eudásia que iria visitar dona Augusta. Tomou um táxi e, durante o trajeto, ia repensando todo o plano. Sabia que o que iria fazer poderia deixar Humberto com muita raiva, mas ela tinha de dar esse passo. O táxi parou na frente da elegante mansão onde Augusta morava, e ela relembrou o dia em que tinha sido espancada por aquele mesmo segurança que hoje a atendia gentilmente. Um dia ela ainda iria se vingar daquela velha inútil. Na enorme sala, Augusta lia um jornal sem muita atenção quando Isabela entrou.
- Querida, que bom que está novamente aqui. Não tenho muito o que fazer, e hoje estava me sentindo tediosa.
Isabela abaixou a cabeça e fez um ar triste.
- Infelizmente o que vim conversar com a senhora hoje em nada vai lhe agradar, mas a tenho como minha mãe e não posso deixar de lhe falar o que há em meu íntimo.
- O que tem filha? Nunca a vi tão triste. É problema de saúde?
- Antes fosse... É um problema de consciência. Enquanto não desabafar com a senhora e obter seu perdão, não posso ficar em paz. - Isabela deixou uma lágrima forçada cair em seu rosto.
Augusta se ajeitou melhor no sofá e, com olhos miúdos, fitou-a profundamente:
- O que pode ser tão sério? Saiba que pode confiar. Eu a tenho como uma outra filha e sei que você não ia fazer nada que me desagradasse.
Deixando lágrimas falsas rolarem sobre seu rosto, Isabela começou a narrar sua sórdida mentira.
- Desde que vim trabalhar na casa da sua filha, percebi que o senhor Humberto me olhava de forma diferente. Como não sou muito experiente, procurei não pensar no assunto, até o dia em que ele me chamou e se declarou apaixonado por mim. Fiquei muito assustada e disse a ele que procurasse me esquecer, que aquilo era impossível, e até lhe passei um sermão. Mas ele não desistiu e continuou me assediando. Eu fugia o máximo que podia, porém durante uma noite ele chegou muito triste e perguntou se podia desabafar comigo. Fomos então para o bar. Eu não queria beber, mas a noite estava fria e ele insistiu, até que cedi. Ele me contou que estava muito triste com a doença da esposa e que a amava sinceramente, mas me disse que depois que ela tinha adoecido nunca mais havia tido relações com ninguém. Pediu-me perdão por ter se apaixonado por mim e disse que ia deixar de me importunar. Fiquei muito feliz e não percebi que estava me excedendo na bebida. Logo caí num sono profundo e o pior aconteceu...
Ela fez uma pausa e percebeu que Augusta a ouvia com expressões de ódio.
- Quando acordei, tempos depois, estava nua com Humberto também nu do meu lado. Vendo o que tinha acontecido, me desesperei e, num acesso de ódio, comecei a esmurrá-lo. Ele me revelou que havia colocado sonífero em minha bebida, pois queria me possuir a todo custo, e que eu agora lhe pertencia. A partir daquele dia, pensei em abandonar o emprego, mas, vendo a senhora tão triste e a dona Flaviana tão doente, não tive forças. Contudo, passei a evitar Humberto completamente. Quando sua filha morreu, pensei que tudo estivesse terminado, mas ele descobriu onde eu moro e passou a me perseguir. Chegou a fazer ameaças a uma amiga que mora comigo. Resisti em lhe contar isso até hoje pela manhã, quando descobri o pior: estou grávida! Aquela noite me trouxe sérias conseqüências.
Isabela começou a chorar convulsivamente aos pés de Augusta, que começou a chorar também de ódio e pena da moça. Após um pranto sentido, Augusta cerrou os punhos e vociferou:
- Aquele calhorda miserável! Teve a coragem de cometer um ato vil e degradante debaixo do teto onde minha filha agonizava. Avalio sua dor, Isabela, e a perdôo.
Ela levantou o rosto inchado pelo choro, e disse:
- Mas não sei se a senhora vai me perdoar depois do que vou lhe dizer agora. Aceitei me casar com Humberto; serei a esposa dele!
Augusta assustou-se:
- Casar?
- Sim. Hoje, logo depois que fiz o exame e descobri a gravidez, ele apareceu novamente na minha casa e, pressionada, acabei revelando a minha real situação. Ele me pediu em casamento e eu aceitei.
- Isso jamais vou permitir. Saia da minha casa agora! - gritou ela.
- Dona Augusta, me ouça! Nunca tive sorte na vida. Meus pais são pobres lavradores do interior de Goiás e não podem me ajudar a criar esse filho. Apenas tenho um curso técnico de enfermagem, por isso não posso me manter, nem a criança, com o que ganho. Depois, estou desonrada, nenhum rapaz vai querer me assumir e a esta inocente criança. Não tenho alternativa. Se quiser dar uma vida digna a esse ser pequenino, tenho de aceitar ser esposa desse homem que desgraçou a minha vida.
Ela chorava muito e Augusta acabou ficando com pena. Lembrou-se dos momentos de dedicação que ela tivera com Flaviana, lembrou-se da sua amizade preciosa, e nessa hora sua antiga raiva por Humberto falou mais alto - ele era de fato o culpado. Não era justo acusar a pobre e inocente Isabela, que mais parecia um anjo.
- Levante-se! Ficando aí no chão estará mais humilhada do que a situação permite. Não deixarei que esse homem acabe com sua vida como fez com a de minha filha. Recomponha-se, vamos para a casa dele imediatamente.
Isabela estava muito feliz, mas precisava disfarçar.
- Não, não podemos. Se ele souber que lhe contei tudo, não me perdoará. Não posso ir.
Augusta levantou-se:
- Eu saberia de qualquer maneira. Agora vamos que o tempo urge. Se Humberto está aqui é porque vai almoçar com Patrícia. Chegaremos lá e aguardaremos. Sei que vão se casar, mas antes preciso conversar seriamente com ele, que terá de garantir seu futuro e o desse ser que vai nascer.
Ela parecia estar sonhando. Seu plano resultará melhor que o esperado. O chofer as conduziu para a casa de Humberto. Lá chegando, não encontraram Patrícia, que só voltaria da faculdade a uma da tarde. Sentadas no sofá luxuoso que em breve seria seu, Isabela sonhava. Resolveu reforçar a cena teatral; a velha de nada poderia desconfiar.
- Dona Augusta, será que é necessário tudo isso? Não penso que a senhora deva entrar em um assunto que só vai machucá-la ainda mais.
Apesar da raiva, Augusta se enterneceu:
- Você é que foi enganada e precisa que Humberto repare esse erro. O que vou fazê-lo cumprir custe o que custar.
Dali a poucos minutos, o elegante carro de Humberto entrava pelos portões da mansão. Andando pelo jardim, de repente ele se lembrou de Flaviana ainda na juventude, cuidando da casa com carinho e dedicação. Um remorso o tomou, porém logo ele tratou. de mudar os pensamentos. Sabia que fora leviano, interesseiro e infiel, entretanto agora era tarde. O importante é que em breve seria feliz ao lado de Isabela. Assim, entrou na sala. Seu coração disparou. Sentiu uma vertigem e, se não houvesse tido muito controle, passaria mal ao ver Isabela e Augusta juntas no sofá.
- Foi bom que chegou. Precisamos ter uma conversa - falou Augusta dirigindo-se para ele. Ela levantou a mão e lhe deu um tapa tão forte no rosto que Humberto rodou nos calcanhares. As marcas dos dedos e dos anéis ficaram em sua face.
- Posso entender por que me esbofeteou?
- E ainda pergunta seu canalha? Seu cafajeste!
- Quero uma explicação, desejo saber o que a ex-enfermeira de minha mulher quer aqui e por que me bateu na frente dela.
Augusta ia bater outra vez, mas agora Humberto a segurou fortemente pelo pulso.
- Não se atreva ou não responderei por mim. Até um homem como eu tem seus limites. Não se esqueça disso.
Durante a cena, Isabela se mantinha quieta e encolhida no canto do sofá, fazendo o papel de vítima. Augusta se recompôs e falou entre dentes:
- Já sei de tudo, seu animal. Sei que fez mal a Isabela durante o tempo em que ela trabalhou aqui. Sei que a persegue até hoje e chegou a lhe propor casamento. Mas eu tomei a dianteira e as coisas serão como quero, ou então o denunciarei como adúltero, e tenho como provar.
Augusta repetiu toda a história que Isabela lhe contou enquanto Humberto ouvia estupefato. Como ela tivera coragem para tanto? Mas no fundo se sentiu confortável. Ele não teria mais de explicar nada à sogra; aquela história viera mesmo na hora certa.
- Eu... Eu não resisti aos encantos de Isabela. Fiquei apaixonado e agora não posso deixá-la sozinha com esse filho que ela espera. Vou me casar com ela.
- Meu Deus! Minha filha deve estar se revirando no túmulo uma hora dessas.
Patrícia entrou na sala e, ouvindo as últimas palavras, mal conseguiu acreditar.
- Então era por isso que eu não gostava de você. Sempre soube que agia mal, mas nunca pensei que pudesse chegar a tanto. É uma mulher sem moral. Papai, se o senhor se casar com ela, leve-a para outro lugar ou sairei desta casa.
Isabela, com voz fraca se manifestou:
- Tente entender, Patrícia, não foi culpa minha. Fiz de tudo para resistir ao seu pai, mas não consegui.
Augusta a defendeu:
- Fique calma, Patrícia. Isabela nessa história é mais vítima do que qualquer outra coisa. Depois lhe contarei o que aconteceu e você verá como tenho razão.
- Nunca gostei de você; algo me dizia que não era confiável. Tenho certeza de que planejou isso só para ficar com o dinheiro de meu pai.
Isabela chorava copiosamente. Foi Augusta quem terminou:
- Levarei Isabela até sua casa e depois acertaremos as coisas pendentes. Vamos, filha, não chore assim.
Patrícia estava surpresa com a atitude de sua avó. Aquela mulherzinha conseguira enganar a todos, inclusive Augusta, uma mulher experiente e vivida. A sós com o pai, ela lhe lançou um olhar de indignação:
- Eu esperava tudo do senhor, menos isso.
- Filha, tente entender... O amor acontece e não temos culpa.
- A desculpa é o amor. Por isso não vou me entregar a esse sentimento nunca. Foi por ele que minha mãe foi infeliz e terminou doente e morta. E é por ele que você e essa mulherzinha andaram cometendo atos indecentes. Nunca amarei.
- Patrícia, não é isso o que me dizia quando conversávamos. Você aprendeu muito no centro que freqüentava e me dava grandes lições. Por que mudou tão de repente?
- Concluo hoje que só vivi a teoria; da prática ainda estou distante. Não sei quando poderei perdoá-lo.
Ela subiu as escadas e foi se trancar em seu quarto. Humberto não almoçou. Pediu que retirassem a mesa e ficou pensativo durante horas. O que estava fazendo seria realmente certo? O que ele nem ninguém suspeitava era que Flaviana e Nicodemos estavam ali acompanhando os fatos minuciosamente. Ela chorava, esmurrava as paredes e o chão. Nicodemos não sabia mais o que fazer para acalmá-la. Ouvindo aquela história criada por Isabela, Flaviana estava descobrindo o real motivo de sua morte. Só não entendia uma coisa: se Isabela fora violentada por Humberto e não o desejava, por que a tinha matado? Fora Flaviana quem inspirara Patrícia a dizer todas aquelas palavras de indignação. Depois deixara Nicodemos com Humberto e subira com a filha para o quarto. Patrícia não conseguia parar de chorar. Após muito tempo deitada pensando no sofrimento que a mãe tinha passado com uma enfermeira que lhe roubava o marido, resolveu rezar. Aprendera no centro que a prece reconforta e alivia, e o que ela mais precisava era de alívio. Depois de sentida prece a Jesus, sentiu-se melhor. Flaviana viu que o espírito de uma mulher passava as mãos pelo corpo de sua filha e derramava energias coloridas sobre ele. Nunca, quando estava viva, pensou que isso pudesse acontecer. A mesma mulher, quando terminou, olhou para ela e disse:
- Deus fique com você. - Em seguida desapareceu.
Pela manhã, quando a casa despertou, ela acompanhou Patrícia enquanto tomava café. Percebeu que sua filha tinha proteção e por isso Nicodemos não conseguiu tomar café junto com ela, como pretendia. Como sua filha era linda! Quando a viu sair para estudar, abençoou-a e chorou muito. Como seria bom se estivesse ainda no mundo e com saúde! A manhã havia transcorrido sem nenhuma novidade, até que apareceram sua mãe e Isabela. O ódio tomou conta de Flaviana e ela tentou estrangulá-la. Mas uma força estranha a arremessou para o outro lado da sala e ela caiu com estrondo. De repente, um espírito de aspecto feio e olhar de ódio se aproximou:
- Essa aí é minha protegida, faz tudo que quero. Ninguém toca nela; se tentar outra vez se arrependerá amargamente.
- Dizendo isso, o espírito se retirou e foi postar-se ao lado de Isabela.
Nicodemos se aproximou:
- Como ousou fazer isso? Essa aí tem proteção de pessoas poderosas; não podemos nos meter com eles. E melhor desistir.
- Mas não é justo, Nicodemos. Ela me assassinou e continua livre, e o pior: na companhia de minha mãe. Temos de fazer alguma coisa para destruí-la.
- Sei que está ansiosa, mas temos de esperar. Pela roupa que aquele espírito usa, ele vem da Cidade Perversa, um lugar cujos moradores corrompem os encarnados por meio do sexo desenfreado e perverso. Eles são poderosos e bem organizados. Nossa cidade não pode com eles.
- Nossa! Mas hei de conseguir. Vamos ficar atentos e ver como conseguiremos. Você tem de me ajudar, Nicodemos.
- Ajudarei.
De repente Flaviana apurou mais a visão e viu uma mulher vestida com um hábito preto de freira. Flaviana não gostou daquela mulher, que, apesar de não se aproximar, a olhava cinicamente.
- Quem é aquela freira?
- Não sei - respondeu Nicodemos. - Deve ser o espírito acompanhante da sua mãe. Pelo visto, essa freira não é nada boa. Quando vejo uma pessoa da luz logo reconheço, e essa aí está longe de ser iluminada.
Nicodemos estava certo. Irmã Celeste era uma antiga freira cujo fanatismo a fez cometer atos de violência, tortura e morte alguns séculos atrás. Augusta também fora freira junto com ela e participava dos mesmos atos. Quando Augusta reencarnou, Celeste ficou vagando no astral até o dia que a reencontrou e não a deixou mais. Era ela quem guiava quase todos os passos de Augusta.

11 - À HORA DA VINGANÇA

No carro com Augusta, Isabela seguia nervosa. Não poderia deixar aquela velha entrar em sua casa sob hipótese nenhuma. Por enquanto ela não poderia saber que tinha um filho. O que fazer se ela cismasse em entrar? O carro parou na frente da casa e Augusta estranhou o fato de Isabela, apesar de ser tão pobre, morar numa casa que não era tão pequena e situada num bairro de classe média. Isabela desceu do carro e fez um ar de descontente:
- Não posso convidá-la a entrar. Minha casa humilde a deixaria constrangida. Por fora é bonita e bem-acabada, mas quase não possuo móveis e o que tenho está um tanto gasto.
Augusta sorriu:
- Mas a nossa amizade está acima de qualquer coisa. Vá, deixe-me entrar e me convide para um chá ou um café.
Isabela ficou sem cor. Ela não poderia entrar de jeito nenhum; tinha de achar uma saída.
- Dona Augusta, não irei me sentir bem em recebê-la em minha casa. Peço que não insista. Sinto vergonha em não ter nenhum assento decente para a senhora. Perdoe-me, mas será convidada de honra na casa que era de sua filha e que por um golpe duro do destino acabará em minhas mãos.
- Bom, se quer assim, aceitarei. Mostra mais uma vez o quanto é bonita de alma. Fico pensando no triste destino das mulheres que passam pelas mãos de Humberto. Se não fosse pela gravidez, juro que encontraria um homem decente que se casasse com você.
- A senhora é muito bondosa mesmo.
- Deixe-me ir. Quero que saiba que comprarei todo o enxoval do bebê com você, peça por peça.
Deu um beijo na moça e foi embora. Ao entrar em casa, ela não se conteve e abriu um largo sorriso. Abraçou Daniel e beijou Eudásia. Finalmente tudo estava indo como planejado. Depois do susto da situação, Humberto até iria agradecê-la. Passou o resto da tarde cantarolando e naquela noite dormiu muito bem. Como Isabela tinha planejado, após ficar viúvo, o senador Humberto Aguiar já estava casado. A cerimônia teve grande pompa e a mais fina sociedade paulistana compareceu. As pessoas comentavam a pressa de Humberto em se casar tão rapidamente, mas logo esqueciam ao ver a beleza da noiva e ao participarem da elegante recepção num clube famoso. Patrícia havia aceitado o fato e já conseguia conversar normalmente com sua madrasta. Durante a recepção, Isabela teve sua atenção voltada para um belo rapaz moreno claro, muito bem vestido, olhos amendoados, corpo bem-feito, que exalava sensualidade. Ele acompanhava Patrícia e, entre um cumprimento e outro, ela se aproximou:
- Não vai me apresentar seu amiguinho, Patrícia?
- Ah, sim. Este é Fernando, meu namorado.
- Namorado? Como nunca o levou à nossa casa?
- Ele já foi, mas você não se encontrava.
Fernando abriu um belíssimo sorriso e seus olhos penetrantes procuraram os de Isabela, no que foi retribuído. No resto da noite eles continuaram se olhando sem parar. Nem Patrícia, nem Humberto perceberam nada. Até aquele momento, Isabela havia conseguido esconder Daniel de todos. Eudásia ficava com ele o tempo inteiro e Isabela planejava apresentá-lo depois. Tanto falou que acabou convencendo Humberto. Todos achavam que ela era uma mulher solteira e sem filhos; só Augusta e Patrícia sabiam da suposta gravidez. A lua-de-mel foi um passeio em cidades da Europa. Isabela não sabia se portar bem, mas Humberto não a deixava cometer nenhum tipo de gafe. No final, ela até se comportou bem, tendo em vista que saíra de uma favela miserável. Um mês depois estavam de volta e Augusta providenciou uma pequena festa para recebê-los. Isabela ficou feliz ao perceber que Fernando estava lá. Ao vê-lo, ela sentia seus desejos aumentarem e não via a hora de tomá-lo de Patrícia e fazê-lo seu amante. E claro que ela iria conseguir. Com o dinheiro que tinha agora poderia fazer o que quisesse. Apesar disso, ela foi formal com ele e ninguém desconfiou. No outro dia pela manhã, ela pediu a Humberto que contratasse novos seguranças para a casa, pois os queria de sua confiança, no que logo foi satisfeita. Uma semana depois, sem que ninguém soubesse, ela pediu a Eudásia que fosse para a mansão. Havia chegado à hora. No mesmo dia, ela convidou Augusta para um chá. Quando a velha senhora chegou, encontrou tudo arrumado na mesa e Isabela à sua espera.
- Que bom que a senhora veio. Hoje será um dia muito especial para nós duas. Tenho muitas surpresas e gostaria de compartilhá-las. Mas antes vamos ao chá.
Augusta pegou sua xícara, adoçou e, antes de se sentar, recebeu um tapa tão forte no rosto dado por Isabela que tonteou e caiu no chão. Aturdida, ela não sabia o que pensar. Isabela começou a gargalhar alto, parecendo uma bruxa, como se representasse em um filme de terror. Gargalhava tanto que o som de sua risada poderia ser ouvido por toda a mansão.
- É aí o lugar onde a senhora sempre deveria ter estado: no chão!
Augusta sentia ódio, mas ao mesmo tempo não entendia o que estava acontecendo.
- Levante-se, o show está apenas começando.
- O que está acontecendo?
- Calada! Aqui quem manda sou eu. Sou a dona absoluta desta casa e a senhora vai fazer o que eu quiser.
Augusta continuava sem saber o que ocorria.
- Sei que você não está entendendo, mas vou lhe explicar. Acabou a farsa, dona Augusta. Eu a odeio e meu desejo é vê-la morta. Como não posso matá-la, vou humilhá-la o mais que puder. Em sua cabeça suja você nada está compreendendo, mas será que a senhora não se lembra de uma mendiga com o filho nos braços que lhe pediu um prato de comida, a qual a senhora mandou espancar?
Nessa hora, Eudásia entrou e trouxe Daniel nos braços.
- Lembra-se dessa criança?
Augusta sentia-se tonta. Não conseguia organizar os pensamentos. Subitamente, lembrou-se. Veio-lhe à mente o dia em que mandara espancar uma mendiga insolente que ousara desafiá-la. Sem coragem para ouvir a resposta, ela perguntou:
- Vo... Você é aquela mendiga?
Novas gargalhadas.
- Eu era a mendiga! Agora sou Isabela Aguiar. Nunca fui sua amiga. Sempre a odiei mais do que tudo. Agora posso confessar, porque hoje quem manda aqui sou eu. Roubei, sim, o marido de sua filha. Ele me encontrou num bordel e me trouxe para esta casa. Durante as noites nos amávamos no quarto ao lado de onde sua filha esquelética dormia. Tramei o plano passo a passo, e hoje, com sua ajuda, sou a esposa dele. Agora saia daqui e nunca mais coloque os pés nesta casa.
- Mas minha neta mora aqui...
- Por pouco tempo. Nela também darei um jeito.
Nunca Augusta sentira tanto ódio em sua vida. Com voz rouca, ela balbuciou:
- Fique certa de que isso não ficará assim. Você não viverá para usufruir de sua ousadia, nem você nem esse filho que carrega no ventre.
Mais gargalhadas.
- Filho? Nunca existiu filho nenhum aqui dentro; fazia parte da farsa na qual você caiu. Para Patrícia tratei de dizer que perdi a criança durante a viagem. Ah, e aquela casa onde não a deixei entrar não era tão pobre quanto à senhora imaginava. Humberto a alugou para mim e tinha tudo, do bom e do melhor. Agora saia! Está esperando o quê, velha asquerosa?
Augusta chorava de raiva. Ao sair deparou com um homem forte e musculoso. Isabela logo apareceu na porta.
- É essa aí, Amaral. Faça o que pedi.
O homem, ao olhar aquela senhora que poderia ser a sua avó, ou mãe, sentiu pena.
- Senhora, não terei coragem. Melhor desistir da idéia.
Isabela estava com os olhos esbugalhados pelo ódio.
- Faça o que pedi ou será demitido agora mesmo. Sei que tem mulher e filhos, e se perder esse emprego ficará na miséria. Eu mesma farei com que você fique sem trabalho; é pegar ou largar.
Amaral, vendo que não havia outra maneira, segurou Augusta, que, pressentindo o que iria acontecer, começava a correr. Espancou-a e depois a jogou na calçada, fechando o portão de grade. Augusta, humilhada e sem conseguir andar, esperou que o chofer a recolhesse do chão e a colocasse no carro. Adonias o fez sem entender o que havia acontecido. Ia perguntar quando Augusta respondeu:
- Sem perguntas, mantenha-se calado. Vamos para um hospital, rápido!
Poucos instantes depois, sem saber de nada, Patrícia chegava em casa. Encontrou Isabela calmamente tomando o chá que havia preparado tendo a seu lado Eudásia e Daniel.
- Olá, Isabela! Quem são eles? Quem é esse bebê lindo e formoso?
- Patrícia, temos de levar uma conversa séria. Eu sou a mãe desta criança.
- Como assim? Não consigo entender! Você já é mãe?
- Sabe como é... Humberto quis esconder esse fato de todos, até que os comentários amainassem. Mas agora disse que eu já poderia trazê-lo para morar nesta casa. Esta é Eudásia; é ela quem cuida dele.
- Estou surpresa! Nunca poderia imaginar que você, sendo tão jovem, pudesse já ter um filho.
Patrícia era um espírito bom. Logo perdoava as ofensas e havia de pronto se afeiçoado ao bebê, que lhe sorria inocentemente.
- Que bom que vieram morar conosco. Essa casa é muito grande. Meus irmãos morreram e essa mansão ficou muito vazia. Casa cheia é bom. Pretendo morar aqui quando for me casar. Mas estou curiosa: o que foi feito do pai de Daniel? É o papai?
Isabela jamais iria revelar que um dia fora Clotilde e que havia sido estuprada. Pensando rápido, retrucou:
- Não, absolutamente! O pai dele morreu quando eu ainda estava grávida. Era um pobre lavrador de Goiás, terra onde meus pais residem.
- É estranha essa ligação com seus pais. Eles nem sequer compareceram ao seu casamento!
- São pessoas simples do interior. Insisti para que viessem, mas não querem se misturar com o mundo dos ricos, como eles chamam. Tenho de respeitar.
Patrícia, apesar de agora gostar de Isabela, sentia que ela era exímia na arte de mentir e sabia que aquelas histórias estavam sendo mal contadas. De qualquer maneira, se Daniel fosse seu irmão ela acabaria sabendo. Depois de dar as boas-vindas aos novos moradores, Patrícia foi para seu quarto. Diana, Gabriel, Marcos e Alfredo estavam ali presentes observando a cena. Flaviana e Nicodemos também. Eles haviam passado o tempo todo tentando envolver Isabela, mas não tinham conseguido. Marcos perguntou a Diana:
- Por que nossa mãe não se lembra de nós?
- E porque ela está tão envolvida pelo ódio e querendo vingança que se esqueceu de todo o resto. Não consegue perceber que nós estamos aqui.
Foi à vez de Alfredo dizer:
- Isso mesmo. Para ela, não existimos.
- Também não é assim... Em breve Flaviana vai se lembrar de vocês e poderá ser o instante em que decida esquecer seus planos. Deus a auxilie para que isso aconteça.
- Tem horas que acho a vida injusta. Se eu e meu irmão estivéssemos vivos, as coisas poderiam ter sido diferentes. Meu pai começou a se desinteressar pelo lar depois que nós desencarnamos.
Diana explicou:
- É que, apesar do tempo de desencarnados e dos estudos que fazemos juntos, vocês ainda não conseguiram entender como as leis divinas funcionam. Deus rege o universo com sabedoria e amor. O que acontece na Terra primeiro passa pela permissão Dele. Sem isso, nada em nossa vida é feito. Vocês não podem esquecer que desencarnaram cedo porque foram suicidas na vida anterior. Antes de renascer, pediram uma vida curta, caso tivessem uma educação permissiva e voltada para o mal. Apesar de suicidas, se fossem guiados para o caminho do bem pelos pais, Deus lhes concederia uma moratória e viveriam uma vida longa sobre a Terra, na qual, pelo bem, poderiam se reajustar com o passado de crimes. Todavia, Humberto os estava preparando para uma vida exclusivamente material e corrupta. Naquele momento, seus espíritos escolheram desencarnar a ter de falir mais uma vez.
Eles ficaram calados. Gabriel perguntou:
- Então é por isso que há pessoas que desencarnam em plena juventude?
- Cada caso é um caso, mas podemos afirmar sem erro que se todos vivessem uma vida voltada para a espiritualidade, para o bem; se não se desviassem dos planos que traçaram no astral para a própria redenção, não haveria mortes prematuras. A bondade divina quer que todos os encarnados tenham vida longa para que possam aproveitar bem as lições que a Terra oferece. Quanto mais se vive encarnado, mais se é útil e mais se aprende. Infelizmente muitos têm de voltar antes do tempo previsto ou escolhem uma encarnação curta com medo de falhar. Foi assim com Marcos e Alfredo; eles preferiram fugir a ter de enfrentar as tentações, e os desafios.
Gabriel não estava satisfeito:
- E porque Deus permite que esses espíritos assim escolham?
- Porque Ele não interfere no livre-arbítrio de ninguém. Quando os espíritos retornam da Terra após um período curto, geralmente percebem o quanto estavam iludidos com a escolha e pedem logo para voltar e continuar aprendendo. Deus é extremamente sábio. Se permite que escolhamos caminhos dolorosos é porque sabe que é por intermédio deles que aprenderemos o valor e a força do bem.
Marcos e Alfredo deixavam lágrimas rolar por seu rosto, mas Gabriel continuava curioso:
- E Isabela, até onde irá com seus enganos?
- Rapidamente ela colherá os resultados de suas atitudes. Isabela, como você a chamou, é parecida com cada um de nós. Infelizmente, muitas vezes nos esquecemos de que nada nesta vida é para sempre, e por isso cometemos muitos enganos, que nos custarão anos de sofrimento. Se as pessoas soubessem como tudo na vida é passageiro, todo o sofrimento da Terra estaria terminado.
- Como assim? - quis saber Marcos.
- Tudo que temos na vida de bom ou de ruim um dia passará. O movimento é lei do universo e nada pára, portanto em nossa vida nada é tão seguro quanto imaginamos. Quem pára atrai a dor e o sofrimento. Quando todos entenderem que nada é para sempre, certamente deixarão de sofrer, principalmente por medo, ansiedade e angústia. Clotilde achava que sua vida na favela seria eterna. Não confiava em Deus; ignorava que ele tem o poder de modificar nossa vida quando temos fé, por isso começou a agir no mal. Agora, como rica, também pensa que sua situação é definitiva, e continua cometendo barbaridades. Logo perceberá o quanto estava iludida. Assim é com a maioria das pessoas. Quando vivem um problema, uma situação dolorosa acreditam que isso nunca passará e em nome disso agem mal e impulsivamente. O ser humano sofre muito por agir pelos impulsos do momento. Às vezes, uma ação de um minuto é tão maléfica que vai destruir todo o bem que está programado para nosso caminho. A falta de fé é ainda o maior problema do ser humano.
- Quer dizer que as coisas boas também passam?
- Sim. Mas elas só passam quando nos vão conduzir a algo melhor, ainda que por meio do sofrimento momentâneo. Precisamos aprender que o que nos acontece é para o melhor; essa é uma lei da vida.
- Minha mãe acreditou que seu casamento era para sempre, que meu pai iria ser fiel. Esse foi o erro dela.
- Não diga que foi um erro; foi simplesmente uma forma de pensar. Todas nós, mulheres, somos ensinadas a acreditar no sonho de amor. Só que a realidade supera o sonho e na maior parte das vezes não queremos enxergar. Acreditar no casamento eterno, na perfeição e fidelidade do marido, apesar de ser ilusório, ainda povoa os sonhos de muitas mulheres. Elas ignoram que não existe pessoa perfeita na Terra e que as relações obedecem ao nosso ciclo de aprendizagem, todas um dia terminam, seja na Terra, seja no astral, para dar início a novas etapas de progresso dos envolvidos; isso é certeza. Ademais, esperar dos outros aquilo que eles não nos podem oferecer é uma utopia e sempre nos faz sofrer. As pessoas não estão no mundo para satisfazerem os desejos egoísticos dos outros, estão para aprender a crescer e evoluir, e como evoluir sem o direito de liberdade e escolha?
Finalmente eles entenderam. Diana os chamou para voltarem à colônia onde viviam. Deixaram lá Flaviana e Nicodemos, obstinados em prejudicar Isabela.

12 - DE VOLTA A ANTIGOS HÁBITOS

A partir do dia em que foi tão humilhada e aviltada por Isabela, Augusta entrou em depressão profunda. Perceber que fora ludibriada e que tinha uma inimiga dentro de sua própria casa abateu-a profundamente. Já não saía às compras, não visitava amigas nem recebia visitas. Percebendo seu sumiço, Patrícia foi procurá-la e ainda viu algumas marcas da agressão em seu corpo, embora Augusta tivesse dito que sofrerá uma queda e que não estava podendo andar direito. Todavia, ela nunca mais apareceu na mansão. Pensou em revelar a verdade a Patrícia e Humberto, mas quem acreditaria? Certamente Isabela desmentiria tudo e ainda iria se fazer de vítima. O remédio foi se calar. Augusta chorou bastante durante aquele tempo. Sentia saudades da filha e muita solidão, afinal morava praticamente só numa casa imensa. A depressão era tão grande que ela não tinha mais forças nem para odiar; sentia-se morta. O desaparecimento de Augusta em muito agradou a Isabela, que continuava levando vida boa na riqueza. Humberto quase não deu por falta da velha senhora, atribuindo seu sumiço ao fato de a filha ter morrido e de ela não suportar outra assumir o lugar, mesmo que fosse uma amiga. O casamento de Isabela com o senador foi noticiado em todas as revistas e jornais nas colunas sociais. Um dia, praticamente por acaso, Juvêncio parou numa banca de jornal e acabou lendo uma das reportagens. Nela havia detalhes da cerimônia, onde passaram à lua-de-mel e até mencionava o endereço da bela mansão onde vivia o casal. Pensando em conseguir dinheiro para sustentar seu vício nas drogas, ele resolveu procurar Isabela. Para isso esperou passar o período da lua-de-mel e, quando viu que era a hora certa, rumou para lá. Não foi difícil para ele encontrar a casa. Ao chegar, viu Isabela no jardim com uma empregada e Daniel, que brincava satisfeito. Chamou o segurança e disse que queria conversar com a dona da casa. Isabela sentiu faltar o chão ao deparar com o homem que um dia a violentara sexualmente.
- Não conheço esse senhor, Amaral. Peça que se retire daqui imediatamente.
Juvêncio não perdeu a chance:
- Se não quiser atender, conto tudo que sei sobre sua vida e ainda recupero o que é meu de direito.
Ao ouvir aquelas palavras, ela resolveu ceder. Nunca em sua vida imaginava que iria rever aquele homem horrível. Ela se aproximou do portão e pediu que os seguranças se afastassem.
- O que deseja? Aquela moça boba de antes morreu completamente. Aqui está agora uma mulher rica e poderosa. Não tente nada contra mim ou se arrependerá amargamente.
- Não pense que está assim tão por cima. Posso destruir sua vida contando seu passado e tomando Daniel para mim. Ou me dá dinheiro ou quem vai se arrepender é você!
- Meu marido me ama e não vai se importar se conhecer minha origem. Nada vai conseguir contra mim.
- Posso ir à Justiça reclamar meus direitos de pai e, se não conseguir, sabe que posso seqüestrá-lo ou fazer qualquer mal a ele? Está em suas mãos a decisão.
- Não posso acreditar no que diz. Como pode falar isso do seu próprio filho? Aqui não é o momento para conversarmos; vamos marcar em outro lugar.
- Não é bem assim. Quero dinheiro. Ou me dá a quantia de que preciso ou transformo a vida do seu filhinho em um inferno.
Ao olhar Daniel brincando tão inocentemente, Isabela ficou preocupada. O que aquele homem poderia fazer? Sentiu medo.
- Diga quanto quer que vou providenciar. Mas que seja a última vez.
Ao ouvir a quantia, Isabela quase desmaiou.
- Não tenho como conseguir tudo isso. Desista.
- Você é quem sabe. Só que você vai ser a mais prejudicada. Não ama tanto o seu filhinho?
- Cretino cafajeste! Vou arrumar o que me pede. Ligue-me na segunda às três da tarde. Nesse horário ninguém está em casa e poderemos nos falar e marcar um lugar para a gente se encontrar.
Juvêncio pegou um papel, anotou o número e saiu satisfeito. Isabela entrou. Já escurecia e começou a ventar forte. Naquela noite Humberto não estava em casa e ela se sentia aliviada por isso. Não iria conseguir aturá-lo com aquele problema para resolver. Depois que Daniel dormiu, ela foi para a banheira, encheu-a de sais e começou a tomar um banho relaxante. Precisava pensar friamente no que iria fazer. Ceder à chantagem iria colocá-la em uma situação ruim, pois ele sempre exigiria mais. Todavia, ela não podia deixar de fazer o que ele queria, senão poderia colocar a vida do seu filho em risco. Mesmo sendo rica e cheia de pessoas que a protegessem, ela sentiu medo. Ouvia falar de pessoas ricas que, mesmo com todo o dinheiro do mundo, tiveram seus filhos ou parentes seqüestrados e mortos, e sentiu um frio percorrer seu corpo. Não poderia imaginar seu filho sofrendo. Passou mais de uma hora na banheira. Depois saiu e com um confortável roupão foi para a cama. Tentava encontrar uma solução e não conseguia, por mais que pensasse. De repente, uma idéia surgiu em sua mente e foi tomando forma. Ela a achou perfeita. Como não havia pensado nisso antes? Interfonou e pediu que Amaral fosse até a garagem, pois ela precisava muito falar com ele. Patrícia dormia e ninguém perceberia que conversavam. Frente a frente com o motorista, que a partir daquele dia se tornaria seu cúmplice, ela disse:
- Amaral, você tem de encontrar um lugar deserto, de preferência uma casa pequena e isolada. Preciso de um encontro e não quero que ninguém saiba.
Ele balançou a cabeça:
- Senhora, não desejo me envolver com esses assuntos. Não posso perder meu emprego, muito menos trair a confiança do senhor Humberto. Não posso fazer o que me pede.
- Pode e vai fazer. Sei que tem uma família, mãe doente, e se não fizer isso perderá o emprego hoje mesmo. Posso contar a Humberto que tentou fazer sexo comigo à força e será pior para você. Eu mesma cuidarei depois para que não encontre nenhum emprego.
- Tudo bem. A senhora, como sempre, venceu. Encontrarei o local que me pede.
- Mas tem de ser rápido. Hoje é sexta-feira e quero isso para segunda à tarde. Humberto chega esse fim de semana e não quero que desconfie de nada, por isso não me dirija à palavra. Segunda pela manhã conversaremos.
O fim de semana pareceu eterno para Isabela. Humberto estava meloso e a queria a todo o momento. O que ela mais gostou foi ter a presença de Fernando no domingo na piscina. Ela flertava com ele discretamente e sabia que era correspondida. Porém, naquele dia, tinha de se concentrar no que pretendia fazer. Finalmente a segunda-feira havia chegado. Humberto tinha viajado e a casa estava vazia. Ela saiu e pediu ao taxista que a deixasse numa loja. Esperou. Poucos minutos depois, Amaral apareceu.
- Vejo que é eficiente. Vamos, quero conhecer esse local para ter certeza se é realmente bom. Depois preciso de um treinamento seu.
- Treinamento?
- Sim. Na hora explicarei.
Eles tomaram um táxi e foram se afastando do centro. Quando chegaram próximo ao local, dispensaram o carro e seguiram a pé. Foram ter em uma espécie de cabana que, apesar de isolada, de onde se localizava podia se avistar algo parecido com uma favela.
- Aqui é o local perfeito. Agora vamos ao treinamento.
Mesmo a contragosto, Amaral ensinou o que ela deveria fazer, ainda que soubesse que estava cometendo um erro.
Já em casa, ela esperou ansiosamente o telefonema.
- Alô? - Era a voz de Isabela atendendo o tão esperado telefonema.
- Sou eu. Desejo saber se nosso encontro está combinado para hoje e se tem à quantia. Tem de responder que sim, pois não estou acostumado a esperar.
- Tenho sim. Vou passar o endereço do lugar aonde vamos nos encontrar. Mas estou avisando: será a primeira e última vez. Nunca mais desejo ver seu rosto repugnante na minha frente.
Juvêncio sorriu ironicamente.
- Calma, Clotilde, não precisa ficar assim tão nervosinha. Tudo só depende de você.
Ela, muito irritada por ter sido chamada por seu verdadeiro nome, resolveu dar um basta na conversa e passou logo o endereço.
- No final dessa rua tem um terreno baldio com uma cabana abandonada. É lá que vamos nos ver. Até mais.
Ela ficou por ali com Daniel e Eudásia até chegar à hora do almoço. Patrícia estava encantada com o filho de Isabela e não cansava de brincar com ele. Às três da tarde, Isabela, pretextando um dor de dente, pediu que Amaral tirasse o carro e a levasse ao dentista. Patrícia se ofereceu para ir com ela, mas recebeu uma negativa.
- Vá estudar não se importe. Seu pai me deu o endereço de um ótimo dentista e o Amaral vai comigo.
Assim saíram. No carro, ela indagou:
- Ela está pronta como pedi?
- Sim senhora. Mas acho que vai cometer um erro muito grande. Não vou ser testemunha; deixarei a senhora no final da rua e ficarei no carro.
- Nada disso, você vai comigo até o fim. E se ele tentar me imobilizar? Quero tê-lo ao meu lado. E já sabe que não aceito um não. Ou isso, ou perde o emprego.
Amaral aceitou, porém sabia que aquilo não ia terminar bem. Nunca em sua vida havia se metido num caso como esse. Contudo, preferia ajudar a nova patroa a ficar sem dinheiro para sustentar sua família e sua mãe doente. Chegaram. Isabela retirou do carro um pacote marrom e entrou na cabana. Poucos instantes depois Juvêncio apareceu. Estavam os três reunidos, quando ele falou nervoso:
- Vamos, passa a grana. Ainda vou contar para ver se tem a quantia certa. Quero ter certeza de que não está me enganando.
Ela passou o envelope e ele abriu com rapidez. Após contar as cédulas, gritou:
- Mas aqui não tem nem a metade. Você está me enganando, |sua ordinária! - Dizendo isso, ia avançando sobre ela quando, de repente, viu um revólver apontado em sua direção.
- Basta! Fique longe. Sempre desejei sua morte desde o dia em que acabou com minha juventude com aquele estupro. Como desejei matar você! Mas o que eu podia fazer morando naquela favela horrorosa sem ter ninguém que cuidasse de mim? Agora tudo mudou. Sou rica e mulher de um senador. Posso tudo, e você vai morrer e conhecer os horrores do inferno.
- Calma, Clotilde, vamos conversar. Sou pai de seu filho, pense no que vai fazer...
- Você nunca será o pai do meu filho. E um miserável, que vou fazer um favor em tirar do mundo. Deus está guiando minhas mãos nesse momento.
Ela não pensou em mais nada. Começou a atirar sem parar até que viu o corpo dele inerte no chão. Vendo-o ainda respirando, ela se aproximou, mirou seu cérebro e atirou pela última vez. Depois gargalhou dizendo:
- Morra seu verme.
Ela parecia estar em transe. Quando voltou ao normal, recolheu o dinheiro e saiu do lugar deserto com Amaral, única testemunha do seu crime.
Tempos mais tarde, chegou em casa como se nada tivesse acontecido.
- Olá, Patrícia. Onde está o Daniel?
- Lá em cima com Eudásia. Brincou até cansar. Acho que agora pegou no sono.
- Vou subir e tomar uma ducha estou precisando.
- Isabela, preciso conversar com você. Tem um tempo para mim agora?
Ela sentiu que era um assunto sério. Nunca Patrícia a havia chamado dessa forma.
- Em que posso ser útil?
- Desejo a sua sinceridade. O que houve entre você e a minha avó?
Apanhada de surpresa, Isabela não soube o que responder. Precisava inventar uma mentira com rapidez.
- Olha Pati, não gosto muito de falar nesse assunto porque me magoa bastante...
Patrícia olhou firme para ela.
- Não seria minha avó quem deveria estar muito magoada com você?
- Não sei o que a dona Augusta lhe falou, mas, se quer saber a verdade, vou lhe contar. Sua avó era muito minha amiga, como você mesma sabia. Depois que lhe disse o que tinha acontecido entre mim e seu pai, ela fingiu aceitar. Até me ajudou no casamento. Contudo, depois que voltei da lua-de-mel, ela me chamou e me falou coisas horríveis. Disse que havia descoberto a existência do meu filho e que eu não serviria para morar na casa que tinha sido de sua filha. Fui muito humilhada e ela jurou que eu não viveria para usufruir desse casamento. Confesso Patrícia, que tenho medo, muito medo do que a dona Augusta possa fazer contra mim.
Patrícia sentiu que algo nela não era verdadeiro. Ela continuava a freqüentar o centro espírita e tinha intuição aguçada. Tentava fazer o possível para agradar a Isabela, mas algo lhe dizia que havia uma coisa muito errada naquela história.
- Estranho, minha avó não quer tocar no assunto e está há mais de um mês depressiva. Nem sai mais de casa. Levou uma queda, que machucou muito seu braço, e está fazendo fisioterapia porque eu insisti. Ela, que era ativa, religiosa, gostava de viajar, visitar as amigas, agora parece um farrapo humano.
- Sinto muita pena dela, mas não posso fazer nada. Ela não me aceita como amiga e deve estar assim por sentir falta da dona Flaviana e por me ver no lugar dela. Creia Patrícia, aprendi a gostar de seu pai, mesmo a contragosto, e acho muito justo ele reconstruir a família.
- Entendo. Deve ser impressão minha então. Bom, pode subir. Vou me encontrar com Fernando. Iremos ao centro espírita.
- Ele também é espírita? - interessou-se ela.
- Não, é apenas simpatizante. Vai porque eu vou.
- Ah, se me convidasse, bem que eu poderia ir.
- Então está convidada. As segundas são palestras instrutivas a respeito da espiritualidade; no meio da semana há outras tarefas.
- Irei, sim.
Terminada a conversa, Isabela subiu. Sorriu da ingenuidade de Patrícia. Mas ela iria usá-la para se aproximar de Fernando. Desde o dia em que o vira tencionava tê-lo como amante. Ele era um rapaz extremamente atraente, de olhos amendoados, alto, cabelos lisos que lhe emolduravam o rosto, pele clara, musculoso, e Isabela se deixava levar em pensamentos, antevendo o prazer que sentiria ao lado dele. Havia se esquecido por completo de que deixara um inimigo desencarnado por suas mãos em estado de completo alheamento. Na cabana abandonada, o corpo de Juvêncio jazia lavado em sangue. Passados alguns instantes após seu espírito estar inconsciente, acordou ainda preso ao corpo. Não conseguia entender o que estava se passando. Tentava se levantar, mas não conseguia. De repente, estranho fenômeno aconteceu. Ele parecia haver se duplicado. Estava fora do corpo e via seu cadáver todo cheio de balas, ensangüentado e inerte no chão. Desesperado, tentou correr do lugar, mas não conseguiu. Sentia-se puxado ao corpo inerte e mais uma vez estava dentro dele. Juvêncio nunca sentiu tanto medo e pavor em sua vida quanto agora. Os dias passaram e ele continuava no mesmo estado. Por que ninguém o socorria? Sentia seu corpo exalar um terrível mau cheiro e suas carnes apodrecerem, porém nada podia fazer para sair daquela situação. Um dia, um casal de namorados entrou na cabana e se assustou com o que viu.
- Rodrigo, esse homem está morto, e parece que há muitos dias.
- É isso mesmo, Fátima. Precisamos avisar a polícia.
Ela fez beicinho:
- E nosso encontro de hoje?
- Esse cadáver cortou todo nosso clima. Vamos sair daqui e telefonar contando o que vimos.
Assim fizeram. A polícia chegou ao local, retirou o corpo e começou as averiguações. O assassino não havia deixado pistas e nada existia junto ao corpo que pudesse identificá-lo, portanto o entregaram ao Instituto Médico Legal. Juvêncio sentiu o horror de ser engavetado em um local gelado. Era a primeira vez que chorava um pranto sincero e angustiado. Também nunca havia sentido tanto medo, apesar dos longos anos de vida marginal que tivera. Por mais que gritasse aos policiais, ninguém o ouvia. Com os médicos foi ainda pior. Então começou a se lembrar de Clotilde e de que ela o havia matado. Sentiu um ódio surdo brotar em seu peito, e o sentimento teve tanta força que o arremessou para o lado dela. Era noite e todos estavam na sala de jantar. Flaviana continuava lá, acompanhada de Nicodemos, sem conseguir se aproximar de Isabela. De repente, ela viu um vulto aparecer na sala. Era uma pessoa sangrando muito, cheia de buracos pelo corpo. Ficou com medo.
- Quem é esse, Nicodemos?
- E eu vou lá saber? Mas parece que é dos perigosos. Vamos ficar longe.
Era sábado, por isso todos jantavam juntos. Humberto estava presente e Fernando estava acompanhando Patrícia. Juvêncio viu com ódio Isabela sorrindo e conversando animadamente. Numa rapidez muito grande, ele avançou sobre ela, mas foi detido por Romário que, com um soco, jogou-o no canto da sala.
- Quem é você?
- Sou o protetor de Clotilde. Ninguém se aproxima dela.
- Tenho o direito. Ela me matou, e vou me vingar, custe o que custar. Não vai ser você quem vai me impedir.
- Vou sim.
Os dois travaram uma luta corporal no meio da sala. Juvêncio conseguiu se livrar e lançou-se sobre Isabela, apertando seu pescoço. Seu ódio foi tanto que ela engasgou e perdeu o fôlego. Todos correram para socorrê-la. Isabela tentava respirar, mas não conseguia. Foi ficando vermelha, até que desmaiou. Patrícia ficou muito nervosa:
- Papai, leve-a para o hospital. Ela pode morrer!
- Como ela foi engasgar assim desse jeito?
- Não vamos perder tempo com isso. Vou pedir a Amaral que tire o carro e nos leve ao hospital agora.
Quando chegaram ao hospital, Isabela foi atendida e o médico informou que por pouco ela não perdera a vida. O doutor Fagundes suspeitava de que algo mais grave estava acontecendo com ela, pois sua língua havia ficado enrolada, o que tinha dificultado a passagem do ar. Humberto sentiu muito medo de perdê-la. Ficou toda à noite com ela no hospital. Juvêncio também não deixou o quarto. Na madrugada, Romário apareceu com um homem de rosto sério, bigode fino e olhar penetrante. O estranho homem olhou para Juvêncio e falou:
- Levante-se daí, precisamos conversar.
- O que quer? Saiba que só vou sair daqui quando levar Clotilde à morte. Esse aí tentou me impedir e levou uma sova daquelas. Quer apanhar também?
O homem sorriu.
- Não. Quero ajudá-lo. Também tenho interesse em que essa mulher desencarne para que venha sofrer junto de nós. Mas não é assim que você vai conseguir matá-la. Com essa atitude, ela vai ter esses ataques até melhorar de vez, e você não vai conseguir mais atingi-la.
- Melhorar? Como assim?
- Já ouviu falar em centro espírita?
Ele demorou, mas respondeu:
- Sim. De vez em quando pessoas desses centros apareciam lá na favela levando comidas e roupas. Mas o que isso tem a ver comigo?
- Tudo! Isabela mora em uma casa onde sua enteada freqüenta um desses horríveis lugares, e se você continuar provocando essas crises nela a enteada vai desconfiar de que é envolvimento de espírito desencarnado. Então a levará para fazer um tratamento. Esses lugares malditos têm um poder especial que consegue neutralizar nossa ação. Em pouco tempo, você não conseguirá mais nada com ela.
- Mas isso é injusto! Ela é má, egoísta e assassina. Deixou a mãe e os irmãos na maior miséria e não faz o bem a ninguém. Como é que será protegida?
- Não sei dizer, mas os seres da luz não gostam que exerçamos a justiça com as próprias mãos. Dizem que só Deus pode fazer justiça e, assim, conseguem nos afastar. Porém, se ficar do meu lado, teremos como matá-la de outra forma.
Juvêncio se interessou.
- Então me conte como.
Horácio chamou-o a um canto e narrou-lhe o plano terrível. Ele ia ouvindo sem acreditar naquelas palavras, que lhe mostravam uma trama tão habilidosa que sequer poderia ter imaginado algum dia. Quando terminou estava radiante.
- Seguirei com você. Nossa como é inteligente! Tem razão em ser o chefe.
Horácio respondeu:
- Não sou o chefe; quisera eu! Nossa cidade no astral está sem comando. Nosso chefe foi resgatado e ninguém ainda ocupou o lugar.
- E por que você mesmo não toma o lugar?
- Não tenho gabarito para isso. Estamos esperando nosso próximo chefe desencarnar para nos comandar. Trata-se de um político muito famoso na Terra. Assim que ele morrer, o receberemos com alegria e assim passará a comandar os planos de vingança, tão a seu gosto.
- Tem certeza de que devo deixar a Clotilde aí?
- Sim. Venha comigo. Aposto que está doido para sentir o prazer das drogas novamente.
- Como adivinhou?
- Soube pela sua ficha. Acompanhe-me que vou levá-lo a um lugar onde poderá sentir esse prazer novamente.
- Mesmo depois de ter morrido?
- E claro! Aqui na Terra sugamos as energias que nos dão prazer por meio das pessoas que fazem as mesmas coisas. Você mesmo servia de repasto para outros espíritos viciados, só que não se lembra de nada.
Juvêncio estava admirado com aquilo. Resolveu seguir Horácio e ver se era verdade o que ele dizia. No domingo pela manhã Isabela recebeu alta. Quando chegou em casa, já no elegante sofá da sala de estar, ela comentou:
- Não sei como aconteceu. De repente, me deu uma vontade enorme de tossir e quando vi estava engasgada. Parecia que tinha alguém apertando meu pescoço. Foi horrível.
Humberto a tranqüilizou:
- Mas não foi nada. Mesmo assim, terá de fazer os exames que o doutor Fagundes pediu.
- Farei meu amor. Agora desejo ver Daniel. Onde ele está? - dizendo isso, subiu as escadas.
Patrícia ficou sozinha com o pai e aproveitou:
- O senhor está feliz com esse casamento?
- Claro filha. Por que pergunta isso?
- Não sei. Sinto que essa união não lhe trará felicidade.
Humberto cocou o bigode.
- Lá vem você com essa história de intuição de novo. Sabe que não acredito em nada disso.
- Também não sei por que sinto isso. Gosto da Isabela sei que ela o faz feliz e que é uma boa pessoa. Pela lógica, não era para eu sentir nada disso. Mas aprendi no centro que a intuição é superior à razão, e sempre nos conduz à verdade. Algo me diz que sua vida com ela não vai ser sempre boa.
Humberto irritou-se.
- Não quero mais falar sobre isso. Causa-me mal-estar. Mudemos de assunto. Como está seu namorinho com o Fernando?
- Muito bem. Gosto dele e sei que ele gosta de mim. Acabaremos casados.
Ele riu.
- Como pode dizer isso se tem tão pouco tempo de namoro? É intuição também?
- Sim, sei que ele será meu marido.
- Você às vezes me faz rir. Bem que eu gostaria de ter essa tal intuição para descobrir quem são meus inimigos no Senado.
Os dois riram e começaram a falar amenidades. No quarto com Daniel, Isabela havia esquecido o mal-estar e só pensava numa forma de se aproximar de Fernando. Todo movimento estranho que acontecia, ela ia olhar na esperança de vê-lo chegar à mansão. Era domingo e certamente ele iria aparecer para ver Patrícia. Até agora ambos haviam só trocado olhares e ela precisava agir. Sentia que ele estava tímido para procurá-la e ela não queria mais perder tempo. Suas relações íntimas com Humberto já não lhe davam o prazer esperado e ela queria descobrir novas sensações. Sem perceber, ela voltava aos hábitos antigos de sua encarnação anterior, incorrendo nos mesmos erros. Quando vivera como Nathalie, traíra Henry, que agora era Humberto, e agora novamente tencionava fazê-lo. Romário a estava inspirando o tempo inteiro, colocando em sua mente cenas de intimidade com Fernando. Ela sentia aumentar seu desejo. Estava ficando ansiosa e com dor de cabeça quando finalmente o viu entrar. Rapidamente ela entregou seu filho a Eudásia e desceu. Fernando estava à beira da piscina com Patrícia, quando ela chegou.
- Vim tomar um pouco de sol. Depois do mal-estar de ontem sei que o sol me fará bem.
Patrícia comentou:
- Isso mesmo, fez muito bem. Sente-se conosco.
Fernando tentou conversar, um tanto tímido:
- Está melhor? Não sentiu mais nada?
- Não. Se novamente tiver um ataque daquele, morrerei.
- Não diga isso. A senhora é muito jovem para morrer.
A conversa continuou amena, até que de repente Isabela pediu:
- Patrícia, peça a Eudásia que venha até aqui e traga o Daniel. Ele precisa tomar sol.
- Irei sim. Vou aproveitar e trazer mais refrigerante.
Assim que Patrícia saiu, Isabela olhou profundamente para Fernando e, com coragem, falou:
- Sei que pode pensar mal de mim, mas estou loucamente apaixonada por você. Meu casamento é uma infelicidade, não amo o pai da Patrícia. Vivo com ele por necessidade. Sei também que sou correspondida, pois noto seus olhares de desejo sobre mim. Isso me faz acreditar que não gosta de Patrícia e que está com ela por outros interesses. Amanhã às três da tarde me ligue, pois precisamos conversar melhor. Encontrarei um lugar para nos encontrarmos.
Fernando não teve tempo de falar nada, pois Patrícia tinha voltado. Mas ele gostara muito do que ouvira. Afinal, ser amante daquela mulher, mesmo que se casasse com Patrícia, lhe daria muitas vantagens. Fernando era um jovem de 26 anos de classe média. Trabalhava para ter mais dinheiro e havia prestado vestibular algumas vezes, sem, contudo nunca ter conseguido ingressar em nenhum curso superior. Na realidade, não pensava em estudar. Pensava em fazer um bom casamento do qual pudesse tirar muitas vantagens. Na realidade, ele usava sua beleza para viver bem financeiramente. Assim, saía com algumas mulheres e logo começavam suas exigências: queria dinheiro. Se algumas fugiam, decepcionadas, outras, movidas pelo interesse no sexo e pela vaidade de estarem acompanhadas por um homem bonito, cediam a todos os seus desejos. Mas ele sentia necessidade de mais. Queria uma vida estável e, quando conhecera Patrícia "por acaso" numa festa de amigos, logo sentiu que ela era a pessoa indicada. Rica, Patrícia possuía boa parte da fortuna de sua mãe e ele sabia que esse casamento lhe traria a situação que almejava. Mas a vida estava sendo por demais pródiga com ele, colocando em seu caminho Isabela, que pelo visto faria tudo que ele quisesse. Foi Isabela quem perguntou:
- Daniel já vem?
- Vem sim. Também nosso refrigerante está chegando. Vamos aproveitar esse sol e cair na piscina.
Fernando e Patrícia entraram na água, enquanto Isabela, vendo-o nadar, sentia aumentar compulsivamente seu desejo.

13 - NA MANSÃO DE HIGIENÓPOLIS

Flaviana estava muito triste aquele dia. Fazia meses que se encontrava na casa de Humberto e não conseguia se aproximar de Isabela, pois Romário sempre impedia. Ficou muito feliz quando viu aquele homem asqueroso apertá-la pelo pescoço, porque achou que ele ia matá-la. Mas qual não foi sua surpresa quando a viu voltar como se nada tivesse acontecido. Nicodemos chegou arfante.
- Você não sabe o que a Isabela quer aprontar agora.
Ela, desanimada, respondeu:
- Estou cansada dessa vida. Estou sofrendo, ficando mais velha e feia, e nada tenho conseguido. Às vezes penso nas pessoas que me acolheram num lugar chamado colônia, mas lá também não quero ficar; parece uma prisão. Também não tenho para onde ir... Que desespero! - dizendo isso, começou a soluçar sentidamente.
Nicodemos a olhou penalizado.
- Tem a minha cidade. Lá você poderá ficar e até trabalhar.
- Não desejo ficar com vocês. Na verdade, nem sei o que fazer da minha vida. Sinto-me perdida. Nunca pensei que morrer pudesse nos levar a uma vida tão parecida com a que levávamos na Terra.
- Deixe para pensar nisso depois. Temos de nos concentrar agora na vingança contra sua assassina. Ou quer deixá-la sem receber o que merece?
Ela enxugou as lágrimas teimosas e o fitou seriamente.
- Vingança é o que mais desejo no mundo! Então, o que tem para me dizer?
- Estava lá na beira da piscina vigiando a assassina quando vi que ela se declarou ao rapazinho que namora sua filha.
- Como? Ela quer trair Humberto?
- Sim, não percebe que ela tem muito fogo? E daquelas que não se bastam com um homem só.
Flaviana corou:
- Não fale isso na minha frente. Sou mulher de respeito.
- Tudo bem, me desculpe. Mas é isso: ela quer tê-lo como amante. Podemos influenciar Humberto para que desconfie e mate os dois. Uma vez aqui, nós a prenderemos em uma das celas e a castigaremos.
Flaviana exultou:
- Que boa idéia! Fale baixo, pois Romário poderá escutar.
- Não se preocupe. Ele está do lado dela, passando desejos sexuais e pensamentos obsessivos de paixão; nem percebeu que vim lhe contar.
- Fico mais tranqüila. Temos de influenciar Humberto sem que ele perceba, pois, do contrário, estaremos perdidos.
Nesse momento, uma luz azulada penetrou no ambiente. Flaviana e Nicodemos fecharam um pouco os olhos porque aquele reflexo era muito forte e lhes doía às vistas. A luz foi reduzindo sua intensidade e apareceu no meio do clarão a figura de uma mulher. Ela olhou para Flaviana e falou:
- Vim em nome de Deus, porque preciso lhe mostrar duas pessoas que muito a amam e há muito querem vê-la.
- Diana? É você?
- Sim, minha amiga. E estou acompanhada de pessoas das quais sua mente nem se lembra no momento. Nunca se perguntou onde estariam seus dois filhos que morreram no acidente?
- Filhos? Acidente? - Ela estava atordoada. - Meu Deus! Marcos e Alfredo! Onde estão eles? Como pude me esquecer?
- Você se deixou levar pelos sentimentos negativos e esqueceu tudo o mais, porém eles jamais esqueceram de você, dos seus carinhos de mãe, das noites insones que teve, dos zelos e cuidados, e estão aqui para vê-la.
Era muita emoção para Flaviana. Do meio do clarão, Marcos e Alfredo surgiram. Ela, sem lembrar de mais nada, correu a abraçá-los. Chorou muito e naquela hora a lembrança dos seus sofrimentos reapareceu com toda a força. Lembrou-se do acidente terrível, de como havia sofrido com a perda dos seus filhinhos amados. Recordou-se de Humberto se afastando do lar e, finalmente, de sua doença cruel.
- Meus filhos, deixe-me abraçar cada um de vocês. Quanta saudade! Como estou sofrendo!
Marcos foi o primeiro a dizer:
- Mãe, venha conosco e esqueça a vingança. Só Deus tem o poder para julgar as pessoas e aplicar sua justiça. Quem somos nós para condenar os outros? A vingança nunca trouxe felicidade a ninguém; ao contrário, nos leva a caminhos tortuosos de sofrimento e infelicidade.
- Você diz isso porque é muito bom, sempre foi desde criança. Mas não posso deixar de matar aquela que me tirou a vida, é justo. Fiquem comigo, provem que me amam de verdade e me ajudem a trazer para o inferno essa mulher que roubou minha existência.
Alfredo, muito paciente, explicou:
- Não estamos aqui para nos vingar de ninguém. Há muito aprendi que não existem vítimas sobre a Terra e são nossos pensamentos e crenças que atraem todos os sofrimentos em nossa vida. Creia mamãe, a senhora passou pelo que era necessário ao seu aprendizado e pelo que estava de acordo com sua maneira de ser. Ao contrário de condenar, abençoe a mão que lhe deu, por meio do sofrimento, a chance de se melhorar e redimir. Flaviana pareceu não aceitar.
- Vocês dizem coisas estranhas. Pelo jeito, parece que ela estava certa em fazer o que fez e que a errada fui eu.
- Não estamos dizendo isso. Claro que Isabela se comprometeu seriamente com as leis divinas quando agiu daquela maneira, mas já se perguntou como à senhora a atraiu para sua vida? Se não houvesse necessidade de a senhora passar por essa experiência, Isabela não teria conseguido o que pretendia e iria molestar outra pessoa.
Ela não queria entender e mudou de assunto.
- Como vocês estão crescidos! Eu queria tanto que todos nós estivéssemos ainda na Terra, como antes.
Diana interrompeu:
- Flaviana, seus filhos desejam que você siga conosco. Eles estão penalizados com sua situação e querem ver a mãe bem. Aceita?
- Isso não! Não posso deixar essa mulher vulgar impune. Eles é que deveriam sair daquela colônia e estar aqui perto de mim, ajudando. Aliás, esse é um dever de filho.
- Bom, aceitamos sua posição, mas aviso que Marcos e Alfredo não poderão ficar. Vamos nos despedir; fique com Deus. Quando precisar de nós pense com força que atenderemos.
Flaviana começou a chorar.
- Não me deixem, tenho me sentido muito sozinha. Voltem!
Os três desvaneceram diante dos seus olhos e ela continuou a chorar. Mas o sentimento de vingança era mais forte que tudo, e Flaviana pensava em reencontrar os filhos depois que concluísse seus planos. Como estava enganada! A vingança nos afasta de Deus e dos espíritos superiores. Jesus nos recomendou perdoar setenta vezes sete, querendo mostrar que o perdão é infinito. Esquecendo dessa elevada orientação, Flaviana ia se prender a espíritos ignorantes e demoraria muito para rever os filhos. Passado um tempo, Marcos e Alfredo foram novamente visitar Diana, que sempre os recebia com amor.
- Continuamos preocupados com nossa mãe. Pensamos que nossa presença ia demovê-la de seus intentos, mas foi tudo em vão.
Diana sorriu.
- O bem nunca é em vão. Às vezes ficamos tristes quando fazemos o bem, orientamos pessoas e elas fazem justamente o contrário; parece que não aprenderam nada e até pensamos em desistir. Ledo engano. Tudo que escutamos de bom, por mais que não usemos no momento, fica registrado em nossa alma e um dia o usaremos. Há sementes que passam séculos para germinar e dar frutos; assim também somos nós. O que o Mestre de amor nos ensinou há mais de dois mil anos, e que ainda não conseguimos colocar em prática, está dentro de nós como uma semente que um dia vai criar vida. Creiam amigos, todo o bem que plantamos no coração de alguém, por mais dura, por mais rude que seja essa pessoa, um dia vai ser usado em benefício dela própria, e nessa hora ela se lembrará de quem o plantou, onde quer que esteja.
Alfredo comentou:
- Há na Terra quem pense que a morte não modifica as pessoas e que elas continuam as mesmas. Pelo caso de minha mãe, posso perceber que não é uma regra geral. Quem diria que a dona Flaviana, uma mulher doce e cordata, estivesse depois da morte planejando uma vingança e um assassinato?
- É que as pessoas não conhecem as outras completamente, e não sabem do que elas são capazes. Ainda temos muito que conhecer a respeito de nós mesmos, imagine, então, dos outros. Convivemos certamente durante várias encarnações com uma pessoa sem conhecê-la profundamente. Flaviana mostra que tinha uma bondade apenas aparente. Bastou um pequeno golpe da vida para se rebelar e apresentar o outro lado de sua personalidade. Assim somos nós: caridosos, bondosos, doces e sorridentes até que um pequeno fato venha a mexer em nosso orgulho para a máscara cair. Temos muito que aprender para evoluir. Quantas vezes vemos pessoas aparentemente bondosas passarem por toda a sorte de privações? Achamos injusto ou culpamos seus desacertos em vidas passadas, porém estamos enganados. Os sofrimentos decorrem das nossas atitudes atuais e de como estamos nos portando no presente. Quem é bom de verdade jamais sofre, pois a lei é justa.
Alfredo, com voz que o pranto embargava, disse:
- É difícil aceitar certas coisas, mas os fatos mostram que você está certa, Diana. Todavia, desconfio que essa ligação entre Isabela e minha mãe vem de muito longe. Por que o espírito dela me induziu a matar minha mãe quando vivemos na França?
Diana foi falando com calma:
- Elas são inimigas de um passado remoto. Tudo começou no início do século XVIII. Isabela, naquele tempo, chamava-se Moema e Flaviana tinha o nome de Sebastiana. Viviam num pequeno arraial no Brasil e eram amigas. Certo dia conheceram um homem misterioso que as seduziu e lhes ensinou os segredos da magia negra. Tornaram-se satanistas. Em parceria com Leopoldo, elas cometeram muitos crimes para satisfazer entidades infernais, em troca de vida longa, saúde e fortuna. Os três viviam uma relação poligâmica, mas Moema tinha grande ciúme da forma pela qual Leopoldo tratava à amiga e passou a odiá-la. Em trato com os espíritos das trevas, ela fez um encantamento e conseguiu que Sebastiana morresse. Foi uma morte lenta e sofrida. Moema a fez ingerir uma erva que tapava pouco a pouco o esôfago, e ela morreu agonizante com insuficiência respiratória. Quando chegou ao astral e descobriu quem tinha sido sua assassina, era tarde demais. Por ter se envolvido com a magia, os espíritos que a assessoravam prenderam-na para que servisse de cobaia em suas experiências. Tendo seu poder temporariamente suspenso, ela não conseguiu prejudicá-los e o casal Leopoldo e Moema continuou vivendo bem e cometendo mais crimes. Anos mais tarde desencarnaram e sofreram muito. Os espíritos de suas vítimas eram tantos que eles foram perseguidos cruelmente, chegando à loucura. Sebastiana, libertada dos seus algozes, ficou muito feliz com a cena, mas ainda assim não se sentia vingada. Queria mais. Por isso se juntou com o grupo e pretendia transformá-los em massas disformes, até que um espírito superior, com ordem de Jesus, interferiu no processo e resgatou os espíritos de Leopoldo e Moema, completamente loucos, do umbral. Havia no astral um espírito amigo do casal que todos os dias orava a Deus pedindo auxílio para eles, até que foi atendido.
Marcos e Alfredo ouviam sem querer perder nem uma palavra. Diana prosseguiu:
- Recolhidos a um manicômio do plano espiritual, padeceram. Nenhum tratamento surtia efeito. Um dos mentores chamou os encarregados do caso e avisou que só a reencarnação poderia amenizar um pouco o problema. Reencarnaram em completo estado de idiotia e viveram poucos anos na Terra. Os espíritos que foram suas vítimas no passado os encontraram mesmo em corpos infantis, e, por intermédio de uma trama ardilosa, conseguiram assassiná-los. As crianças apareceram mortas subitamente e ninguém encontrou explicação plausível. Ao regressarem para cá, tinham melhorado e adquirido lucidez. O corpo de carne é uma válvula que absorve as energias do perispírito e as extravasa. Eliminando esses resíduos, os espíritos voltam a ter saúde. Reunidos conosco, Moema se mostrou muito arrependida e queria uma nova chance. Leopoldo reconheceu que usou seus potenciais mediúnicos a serviço das trevas e queria uma reencarnação na qual pudesse usar esses dons para o bem. Foi aconselhado a esperar e desenvolver outros lados da sua personalidade. Eles acreditavam na força da riqueza, então decidiram ser nobres na França e contribuir com pessoas necessitadas dando trabalho e dignidade a elas. Muitos seriam suas vítimas reencarnadas. Felizes, voltaram ao mundo, ela como Nathalie e ele como Henry. Sebastiana não renasceu porque não tinha chegado à hora e ficaria no astral esperando o instante de nascer como filha do casal. Mas ela não aceitou o tratamento que queríamos ministrar e fugiu de nossa colônia, indo em busca dos seus antigos parceiros para se vingar. Foi quando conseguiu, através de Luigi, matar Nathalie por asfixia, a mesma forma como tinha sido morta.
Marcos interrompeu:
- O resto eu já sei. Eles falharam novamente e renasceram no Brasil. Mais uma vez, Isabela não perdoou minha mãe e a matou. Meu pai continua mergulhado no materialismo e esquecido de tudo o que programou para a própria existência.
Alfredo completou:
- Minha mãe continua querendo vingança e Isabela, no caminho dos crimes, vai certamente ter um final trágico. Meu Deus, quando essa sucessão de vinganças vai parar?
Foi Diana quem respondeu:
- Quando aprenderem o valor do perdão e a força do bem. Não sabemos até quando essa situação vai permanecer, todavia não poderão permanecer eternamente estacionados e fazendo o mal; nada permanece para sempre do mesmo jeito e as pessoas não podem ficar desrespeitando as leis de Deus sem que sejam contidas. Um dia, por um sofrimento muito grande, eles vão aprender que só o bem tem força e que o mal cobra um tributo muito grande daquele que o pratica.
- Por que meu pai não veio na última encarnação com as faculdades mediúnicas ostensivas? Afinal, ele precisava reparar o mal que tinha feito no passado. - Fora Marcos quem perguntara.
- Porque ele teve medo de falhar e pediu a Deus uma encarnação mais amena, na qual pudesse ir ganhando coragem para no futuro exercer esse mandato. Mesmo que demore, Humberto ainda voltará com as faculdades mediúnicas muito desenvolvidas para que, com o trabalho em favor dos sofredores, possa se redimir do passado de crimes.
- Quando eles vão encontrar a felicidade?
- Quando quiserem. A felicidade tem um preço que nem todos querem pagar para obtê-la. As pessoas sempre preferem à comodidade, a lei do mínimo esforço, as ilusões do materialismo a ter de se modificar no bem e disciplinar os pensamentos. Viver bem é fácil quando percebemos que já possuímos tudo que é necessário para ser felizes. Ao contrário do que se pensa, a felicidade independe das coisas externas, pois é um estado interior de satisfação, de contemplação do belo, da natureza e de êxtase com as coisas simples do dia-a-dia. É um erro procurarmos à felicidade em acontecimentos grandiosos que nem sempre trazem a alegria esperada, pois ela se encontra na vivência de todos os momentos, e qualquer um pode, desde já, alcançá-la, basta querer.
- E a busca pelo progresso, pelo bem-estar? Onde fica?
- Os acontecimentos materiais, o progresso vêm apenas aumentar a felicidade de quem já a possui; são meros complementos.
Já notou aquelas pessoas que têm tudo e não são felizes? É que ser feliz é uma arte, uma conquista do nosso espírito, e é um sentimento inato no ser humano, basta buscar que a encontraremos.
- Nossa, Diana, hoje você nos elucidou bastante. Vivo colocando a minha felicidade para depois. A partir de hoje, quero ser feliz já, não vou esperar mais.
- É assim que se fala Alfredo. Agora vamos que o trabalho nos espera.
Abraçados, eles saíram rumo a outros departamentos daquela operosa colônia.
No elegante quarto de Madame Aurélia, na Mansão de Higienópolis, a grande cama de casal se encontrava coberta de jornais e revistas. Ela, Morgana e Luana observavam tudo com muito ódio. Eram fotos de Isabela e Humberto em colunas sociais.
- Acolhi essa miserável aqui e olhem como ela se porta, finge que nem existimos. Já pensei em mil formas de destruí-la e não encontrei nenhuma que possa realizar. Quando penso em minha impotência, tenho ainda mais raiva.
Luana não perdeu a chance:
- Sempre avisei à senhora que estava colocando uma cobra aqui dentro. Mas ninguém quis me escutar.
Na ponta da cama, Morgana chorava de raiva.
- O que mais me deixa magoada é a ingratidão que ela teve para comigo. Éramos amigas; aliás, a única amiga que ela tinha aqui dentro era eu. Era em meu ombro que Isabela chorava suas mágoas, revelava seus sonhos e me prometia que assim que melhorasse de vida ia melhorar a minha também.
Madame Aurélia sorriu ironicamente.
- Como você é ingênua. Essa miserável só pensa nela mesma. Logo que teve a sorte de achar quem a quisesse, deixou-a sem sequer um adeus.
- Justo a mim, que era sua melhor amiga.
Madame Aurélia pensou um pouco e depois gritou:
- Morgana, tive uma idéia perfeita! Sem querer, suas palavras acabaram me dando a chave.
Ela enxugou as lágrimas e Luana se aproximou para ouvir bem.
- É isso mesmo. Você vai procurá-la e dirá que sentiu sua falta e que gostaria que fossem amigas novamente. Fale que não vai cobrar sua promessa, que se contenta em tê-la por perto, conversando como antigamente. O resto lhe direi depois.
- Assim não, senhora. Quer dizer que serei a isca e não sei dos planos? Tem de me contar.
Luana interrompeu:
- Tem de contar a nós duas, pois também detesto aquela mulher.
- Bom, já que fazem questão, vou contar. Traga-me uma bebida forte, pois a idéia que tive vai arrepiar as duas. Porém, aviso: se alguma de vocês trair esse segredo, o túmulo virá como resposta.
As duas perceberam que era algo pesado. Passou pela cabeça de Morgana desistir, mas a madame já havia começado a narrar e ela não teve mais como voltar atrás.
- Alô? É você? - Isabela, nervosa, perguntava.
- Sou eu, sim. Quando podemos nos ver?
- Amanhã à tarde. Tenho um lugar onde podemos nos encontrar à vontade. Finja que veio buscar algo aqui de que precisa e eu passarei o endereço.
- Combinado.
Enquanto Fernando desligava o telefone, sua mãe entrou na sala.
- Estava falando com a Patrícia?
- Sim, era com ela mesma - mentiu.
Marília era uma mulher de meia-idade muito bonita. Havia criado o filho único com dificuldades. Apesar de se manter num nível em que o dinheiro não era o problema principal, ficara viúva muito cedo e tivera de criar Fernando praticamente sozinha. Sabia que o filho era muito bonito e requestado pelas mulheres; apesar disso, até aquele momento ele não havia namorado com nenhuma delas. Quando o viu saindo com Patrícia Costa Aguiar, ficou muito feliz. Marília havia educado Fernando para fazer um rico casamento; não toleraria que se juntasse com uma moça pobre ou do mesmo nível que eles. Ela queria mais e Fernando acabou sendo o filho que ela sonhou, interesseiro e mercenário. Mesmo assim, Marília controlava sua vida, com receio de que ele se apaixonasse por uma garota sem posses ou de baixo nível. Seu filho era um príncipe e, movida por esse pensamento, ela buscou informações de moças solteiras e ricas, e orientava Fernando para que se aproximasse delas. O encontro dele com Patrícia não fora casual; tinha sido muito bem programado. Marília sabia que nenhuma mulher resistia ao seu filho. Sentou-se no sofá com uma expressão de tédio, pegou uma revista de moda e folheou-a sem interesse. Vendo o filho pensativo, comentou:
- Sabe como faço gosto nesse namoro com Patrícia. Não sei no que está pensando, mas espero que não seja em nada que venha atrapalhar nossos planos.
Ele levantou e, com um sorriso que fazia covinhas em seu rosto, abraçou e beijou a sua mãe.
- Tenha a certeza de que nada vai atrapalhar nossos planos.
- Fico feliz!
- Vou sair. Não pego no serviço hoje e quero aproveitar.
- Deus o acompanhe.
A porta bateu e Marília sentiu muita raiva. Que vida humilhante ela levava, tendo de ver seu filho trabalhar se quisesse ter alguns luxos a mais. A pensão de seu marido dava para manter um pouco do luxo que um dia haviam tido, mas a duras penas. Ela economizava no que podia para sempre estar no cabeleireiro e com roupas da moda, ou para manter Fernando impecável. Só assim ele encontraria uma noiva à altura. Sentindo-se depressiva, reabriu a revista e começou a ler. Isabela havia pedido certa quantia em dinheiro a Humberto, alegando ter de comprar algumas roupas, quando, na realidade, seria utilizado para alugar temporariamente um apartamento onde iria se encontrar com Fernando. A quantia deu para pagar dois meses de aluguel e o apartamento foi alugado por Amaral, que a cada dia se envolvia mais com as tramas dela. Várias vezes tinha pensado em se demitir daquele emprego, mas as ameaças da patroa o impediam. Depois de tudo marcado e combinado o local, Isabela esperava ansiosa a chegada de Fernando. O apartamento era mobiliado e ela mandou comprar bebidas para o barzinho, que ficava em um canto da sala. Quando Fernando chegou, ela já havia tomado várias doses de uísque e estava mais excitada do que o habitual. Nunca desejara tanto um homem em sua vida como desejava Fernando. Ia arrastando-o para o quarto quando ele a interrompeu:
- Não sei se o que vamos fazer é certo. Tenho pensado muito a respeito desde que comecei a me sentir atraído por você.
Ela se sentou com ele no sofá e fez ar de vítima.
- Também tenho me questionado sobre isso, mas não tenho como evitar a atração que sinto; é mais forte que eu. Não gostaria que nada disso estivesse acontecendo, afinal, Humberto é um homem bom e não merece.
- Você não gosta dele?
- Casei-me por gratidão. Não tinha uma vida fácil e ele foi à única pessoa que me estendeu a mão. Mas não me sinto realizada com ele, sou infeliz. - Ela deixou uma lágrima falsa escorrer por seu rosto.
Fernando sabia que ela estava fazendo um jogo, mas ele também jogava e queria ganhar, por isso tornou:
- A Patrícia também não merece. Gosto dela, mas preciso de uma mulher mais experiente, que saiba oferecer coisas que ela ainda não sabe.
- E como sabe que sou essa mulher? Tenho praticamente a mesma idade que você. Não sou tão experiente assim.
- Mas é casada, conhece a vida conjugai. Patrícia não me permite muitas intimidades e eu fico muito carente. Sabe um homem sempre precisa de mais.
- O que sente por minha enteada?
- Não sei ao certo, creio que coisas da juventude. Mas confesso que a admiro e que gosto de estar com ela. Com você, entretanto, é uma atração incontrolável, não programei sentir isso.
- Esqueçamos esse assunto por enquanto. Quero mesmo que me faça feliz. Venha!
Ele não falou mais nada e foram para o quarto. Quando terminou, ainda abraçada a ele, Isabela jurou que jamais iria perdê-lo. A partir daquele dia se tornaram amantes. As visitas àquele lugar de encontros se tornaram assíduas e logo Fernando começou a se queixar de dificuldades financeiras. Ela sempre o auxiliava, pedia dinheiro, cheques a Humberto, e deixava nas mãos dele. Quando Marília soube, exultou de alegria. Ao mesmo tempo, teve receio de que isso viesse a atrapalhar o casamento do filho com Patrícia, ao que ele respondia:
- Nada vai atrapalhar nossos planos. Somos discretos e não posso perder essa mina de ouro que encontrei.
- Também acho. Mas tenha cautela; não ponha em risco o futuro brilhante que sonhei para você. Depois de casado, poderemos pedir que Humberto lhe arranje um cargo em Brasília, de preferência daqueles que à pessoa nem vá lá e mesmo assim ganhe bem. No governo existem milhões de funcionários fantasmas, e você será um deles.
Os dois sorriram abertamente, mas ele retrucou:
- Mesmo assim, terei de trabalhar. Não quero que minha mulher pense que sou um preguiçoso. Basta ter de inventar mil desculpas para explicar por que não faço curso superior.
- Essa menina é bobinha mesmo. Um rapaz com sua beleza precisa de curso superior para quê? Enquanto os bobos passam anos de suas vidas em bancos de faculdade para depois terem um emprego de mísero salário, você é mais esperto e está cortando o caminho. Conseguirá muito mais e sem nenhum esforço.
Ele sorriu, fazendo as covinhas no rosto, e colocou a cabeça no colo da mãe. Continuaram a trocar idéias. Marília ignorava que conduzia muito mal o filho que Deus lhe confiara. Educando-o de maneira errada, as idéias falsas e o egoísmo prevaleciam, e ela se comprometia bastante com a própria consciência. Os dois estavam falindo mais uma vez sobre a Terra e mãe e filho sofreriam muito na hora do reajuste. Os pais que conduzem os filhos pelos caminhos do materialismo, do preconceito, do orgulho e do egoísmo falham na missão da paternidade e encontrarão a dor no caminho da redenção. Eles não são responsáveis pelos atos dos filhos, mas são responsáveis pelas crenças que cultivam e plantam em espíritos que a vida enviou para ser educados para o bem. Sendo assim, passarão por duras provas até aprenderem à força da bondade e cultivarem os valores eternos do espírito. Isabela brincava no jardim com Daniel e Eudásia quando viu uma figura de mulher aparecer no portão. Rapidamente a reconheceu: era Morgana. O que ela fazia ali? Nem lembrava mais que ela existia. Pediu que a deixassem entrar e ambas trocaram um longo abraço.
- Minha amiga, como está você? Pensei que nunca mais fosse vê-la.
- A saudade apertou e resolvi vir até aqui. Vi no jornal uma foto sua com Humberto e lá se mencionava seu endereço. Resolvi arriscar, em nome de nossa velha amizade. Devo dizer que pensei em ser mal recebida.
- Não diga isso, Morgana. Sempre a receberia bem. Afinal, naquele lugar onde eu vivia a única pessoa que foi verdadeira comigo foi você.
- Confesso que fiquei magoada. Em nossas horas de tristeza, você disse que me ajudaria, mas bastou se casar para me esquecer. Não estou aqui para me queixar, mas é que fiquei com esperanças de sair dali. Como você mesma sabe, ninguém é feliz naquela vida. - Dizendo isso, começou a chorar.
- Morgana, não foi essa minha intenção. Não queria magoá-la. E que desde que casei não parei com as atividades. Vida de rica é muito trabalhosa, você não imagina o quanto. Mas me lembrava de você e pensava numa forma de tirá-la dali e das mãos daquela mercenária.
- Você não imagina como sofro. Porém não posso sair de lá. Meus pais são do Nordeste e não sabem a vida que levo. Não tenho para onde ir nem a quem recorrer. Depois que você se casou, fiquei deprimida. Não gosto mais de exercer aquela tarefa repugnante e tenho sido punida por madame Aurélia. Tenho levado até tapas no rosto.
Um ódio surdo brotou no peito de Isabela e ela sentiu que não poderia deixar sua amiga à mercê de uma pessoa tão ordinária.
- Morgana, saia de lá e venha viver aqui. Tem espaço de sobra e diremos a todos que você é uma parente do interior que veio pedir ajuda.
Os olhos de Morgana brilharam. As coisas estavam saindo melhor do que ela poderia supor.
- Mas o que poderei fazer para ganhar dinheiro? Não quero ser um peso para você e também não posso ficar sem dinheiro para minhas coisas. Não. Obrigado, amiga, mas não posso aceitar.
- Aceite Morgana. Você vem morar aqui e trabalha como governanta. A Idalina já está velha mesmo, e você pode substituí-la. Ou podemos ter duas. Humberto pode pagá-la bem, tudo será melhor, você pode ajudar Eudásia com o Daniel e seremos felizes.
Morgana fingiu chorar de emoção e abraçou-a.
- Deus a abençoe, Isabela. Nas circunstâncias em que vivo essa é a única solução.
- O que vai dizer à megera?
- Que vou voltar a morar com meus pais no Nordeste. Direi que estão doentes e precisando do meu auxílio.
- Faça isso. Ainda quero ver aquela casa fechar suas portas e Aurélia morrer de fome.
Daniel se aproximou e começou a brincar com Morgana. Vendo-o tão inocente, será que ela teria coragem de executar o planejado? Claro que sim! Isabela só a estava auxiliando porque fora procurá-la. No fundo, agia mais movida pela promessa antiga do que qualquer outra coisa. Se não fosse esse plano ela iria envelhecer na prostituição e acabar no olho da rua. Sim! Isabela merecia uma vingança. Foi convidada a entrar e tomar um chá. Eudásia emocionou-se quando a viu e as duas se abraçaram. Patrícia chegou e foi apresentada à "prima" de Isabela.
- Ela chegou hoje do interior e está num hotel. Amanhã passará a viver conosco e ajudará a Idalina no comando da casa.
Patrícia achou aquilo bem estranho.
- Mas a Idalina cuida de tudo muito bem, não precisamos de mais ninguém aqui.
Isabela foi rápida:
- É que minha prima veio do interior desesperada. Seus pais estão doentes e ela precisa desse emprego para enviar o dinheiro do tratamento. É mais uma questão de caridade do que de necessidade.
Fingindo entender, Patrícia deu as boas-vindas e subiu. Gostava de ter gente por perto. Não fazia objeções, mas algo a avisava de que aquela história estava mal contada. Seu pai estava muito apaixonado por Isabela e fazia tudo que ela queria. Resolveu não pensar no assunto e entrou no banho. Morgana ficou impressionada com a beleza da casa.
- Nossa! Como o Humberto consegue manter o luxo daqui? O dinheiro de um senador dá para tudo isso?
- Ah, mas Humberto tem seus meios de conseguir mais dinheiro. É braço direito do governo. Pensa que ele recebe só o salário dele, é? Além do mais, a dona Flaviana era muito rica e foi ela quem decorou tudo aqui.
- Teve muito bom gosto. Agora tenho de ir. Amanhã cedo estarei aqui.
- Vou ligar para o Humberto e avisá-lo. No fim de semana ele deve estar aqui e não quero que tenha nenhuma surpresa.
- Acha que ele pode não gostar?
- Não! Ele está apaixonado, faz tudo que desejo; não haverá problemas.
Morgana saiu muito feliz. Tomou um ônibus e, durante o trajeto, ia pensando em como madame Aurélia ficaria satisfeita. O plano acontecera melhor do que o imaginado. Ela fora até lá apenas com o intuito de reatar a amizade e passar a ter acesso a casa para facilitar a vingança. Mas morar lá seria melhor ainda. Ela faria tudo e ninguém ia desconfiar. Quando chegou à mansão, foi logo se reunir com Luana e Aurélia no quarto.
- Ela caiu como uma patinha, nem acredito no que está acontecendo.
Após contar todos os fatos em detalhes, ela finalizou:
- A ordinária ainda disse que quer ver essa casa fechada e a senhora passando fome.
Aurélia cerrou os punhos com raiva.
- Ela sentirá o peso de meu ódio. Ainda vai chorar lágrimas de sangue.
Morgana ficou um pouco triste, e Luana perguntou:
- Em que pensa?
- Senti uma angústia quando vi a criança brincando perto de mim, pegando meus cabelos. Quase pensei em desistir, mas sei que Isabela nunca foi minha amiga e merece sofrer.
Aurélia aquiesceu:
- Isso mesmo, mas há um detalhe: não posso liberá-la do serviço aqui. Sabe que está sendo exclusividade do doutor Estevão e terá de vir algumas tardes por semana para servi-lo.
Morgana não gostou.
- Não vou poder sair de lá assim sem explicações. Isabela pode desconfiar.
- Isso não é comigo. Encontre uma desculpa, invente, sei lá. Mas terá de vir aqui.
Morgana resolveu não discordar. Madame Aurélia era severa e não gostava de ser contrariada. As três continuaram a conversa rindo da ingenuidade de Isabela, sem imaginar que eram assessoradas diretamente por espíritos inferiores.

14 - A MORTE SE APROXIMA

Morgana se adaptou muito facilmente à casa de Humberto, que não fez nenhuma oposição à sua moradia lá. Apaixonado, ele fazia tudo quanto Isabela queria. Naquela tarde, todos estavam calmos. A presença do senador em casa mudava a rotina e Isabela ficava diferente. Atenciosa, carinhosa, ela nem se aproximava de Fernando, que agora já estava noivo de Patrícia. Ela tinha de conter seu ciúme e agradar o máximo possível ao marido. Eudásia, Morgana e Daniel estavam no jardim, Patrícia e Fernando no quarto e Isabela dialogava com Humberto, saboreando deliciosa bebida. Mas eles não estavam a sós. Flaviana e Nicodemos continuavam na casa tentando uma forma de aproximação com o casal.
- Estou ficando entediada aqui sem ter o que fazer. Preciso me vingar. Podem se passar anos, mas enquanto não conseguir o que quero não me afasto - Flaviana dizia cerrando os punhos.
Nicodemos estava pensativo. Não agüentava mais aquela situação. Mas também não tinha o que fazer. Sua vida na Terra terminara tragicamente por sua própria culpa. Não queria se vingar de ninguém, mas o que lhe restava fazer? Pelo menos enquanto acompanhava aquela mulher vingativa passava seu tempo. De repente, vultos escuros surgiram na sala e eles reconheceram o homem forte que havia tentado sufocar Isabela acompanhado por mais dois espíritos que traziam uma rede nas mãos. Flaviana teve medo. O que eles pretendiam fazer?
- Nicodemos, vamos sair daqui. Não gosto dessa gente, tenho medo.
- Não, vamos ficar para ver o que eles pretendem. São da pesada e talvez nos ajudem em nossa vingança. É só observar e não fazer nada e eles nos deixam em paz.
Eles apuraram os sentidos e perceberam que a rede que eles traziam não estava vazia. Nela havia seis massas de formato arredondado, um pouco menores que uma bola média. Cuidadosamente, um deles colocou a mão na nuca de Humberto. No meio da conversa, ele interrompeu:
- Acho que essa bebida me deu sono. De repente, veio uma vontade grande de ir para a cama e deitar.
- Mas você bebeu muito pouco, deve estar cansado. Venha eu o acompanho até o quarto.
- Não precisa. Vá ficar com seu filho e sua amiga. Dormirei um pouco, o sono me domina. Estranho isso. Nunca fui de dormir nesse horário.
- Não sei... Mas vá se deitar, sim. Aproveito e vou ultimar os preparativos para o jantar.
Humberto subiu as escadarias e o grupo das trevas foi junto. Ele mal conseguiu tirar a calça e em seguida caiu num sono profundo. De repente, ao sair do corpo, percebeu as entidades no seu quarto. Gritou-lhes:
- Quem são vocês? Como entraram em minha casa?
- Cale-se! Você faz parte do nosso plano para destruir Clotilde e, se tentar atrapalhar, vai se dar mal. É melhor paralisá-lo. Vamos, segurem-no ou vai nos dar trabalho.
Os homens paralisaram Humberto em espírito e colocaram-no à beira da cama. Flaviana e Nicodemos observavam tudo com pavor. O que iria acontecer? Os homens retiraram as formas arredondadas e cuidadosamente, por meio de fios magnéticos, colaram-nas no corpo adormecido de Humberto na região genital. Quando terminaram, disseram:
- O serviço está pronto, Juvêncio. A partir de hoje começa o fim do reinado de Clotilde.
- Tem certeza do que diz?
- Absoluta. Esse plano nunca falha.
Todos gargalharam e Humberto, sem nada entender, perguntou aflito:
- O que fizeram comigo? O que são essas bolas amarradas no meu corpo? Por que querem destruir Isabela?
O homem que chefiou a operação respondeu:
- Instalamos em você os parasitas ovóides. Esses seres disformes lhe causarão uma impotência sexual tão severa que nenhum médico da Terra vai conseguir curar.
- O que são parasitas ovóides?
- Não importa. Você não vai entender mesmo que eu lhe explique. O fato é que seu orgulho de macho vai acabar. Você não conseguirá mais ter relações sexuais nem com sua esposa, nem com ninguém.
Humberto sentiu que era verdade e começou a se desesperar.
- Por que fazem isso comigo? Deixem-me em paz!
Todos riram muito. Juvêncio respondeu:
- Sua mulher destruiu a minha vida e agora vai pagar caro. Você será o nosso instrumento.
- Se a vingança é para ela, por que estão fazendo isso comigo?
- Sua mulher tem muito fogo. Se você estiver impotente, ela vai precisar mais e mais do amante, até que, enlouquecida por uma obsessão sexual, não consiga mais esconder o relacionamento. Você vai acabar descobrindo que é traído. Nessa hora, será intuído a lavar sua honra com sangue, matando-a e a Fernando, que será seu genro. Quer plano melhor?
Humberto sentia a cabeça rodar e desmaiou. Na cama, seu corpo estava suado e agitado, mas ninguém chegava ao quarto. Quando tudo terminou, o grupo foi embora muito feliz, deixando Flaviana e Nicodemos entre assustados e exultantes. Isabela teria o fim que merecia. Ficaram sós no quarto e viram Humberto desmaiado.
- Vou acordá-lo.
- Humberto, Humberto! Acorde!
Ele despertou.
- Flaviana, o que faz aqui? Você não morreu?
- Sim, morri. Oh, como ainda o amo. Você fez de minha vida um inferno. Por quê? Eu não merecia.
- Não é hora para relembrar o passado. Ajude-me. Não consigo me mexer.
Nicodemos interferiu:
- Vamos ajudá-lo. Assim ele acorda mais rápido no corpo físico.
Com esforço, eles ajudaram Humberto a se libertar. Depois ele olhou com pena para si mesmo.
- Vejam no que vão me transformar: num homem sem potência. Não vou ser homem para minha mulher.
- Isso é ótimo. Vai ajudá-lo a perceber quem é a cobra que tem em casa, e o homem horrível que sempre foi.
- Não me acuse Flaviana. Apesar de tudo, sei que ainda me ama. Reze por mim. Sei que vou sofrer muito. - Dizendo isso, ele entrou no corpo que, assustado, acabava de acordar.
Humberto se levantou sem saber o que tinha acontecido com ele e qual fora o motivo daquele sono pesado e intenso que o havia acometido. Lembrava que tinha tido um pesadelo e que nele estava sua mulher, Flaviana. Lembrou também que vira uns homens com rostos crispados pelo ódio, mas estava tudo muito confuso em sua mente. Havia suado bastante e resolveu tomar uma ducha morna para relaxar. Isabela foi à cozinha, verificou o jantar e, a pretexto de falar sobre a saúde de Humberto, bateu à porta do quarto de Patrícia. Ela queria evitar que algo de mais íntimo ocorresse entre o casal. Estava muito envolvida com Fernando e só em pensá-lo nos braços de outra sentia uma onda enorme de rancor. Patrícia abriu e se surpreendeu:
- O que faz aqui? Algum problema?
Ela tentou disfarçar, mas pelo que viu dava para perceber que os dois estavam apenas conversando.
- É seu pai. Estou um pouco preocupada com ele.
- Mas ele estava muito bem ainda há pouco quando o deixamos na sala. O que aconteceu?
Fernando havia se aproximado e ela sentia o coração disparar.
- Ele sentiu um sono estranho de repente e falou que ia deitar. Pensei que tivesse sido pela bebida que tomávamos, mas ele bebeu muito pouco. Acho que está doente. Fui ao quarto e ele está se revirando na cama. Não acordou nem quando o chamei.
- O senhor Humberto me parece um homem muito sadio. Se está assim, realmente é porque adoeceu. Por que não chamam um médico? - sugeriu Fernando timidamente.
- Não acho que necessite. Papai anda muito cansado. Essas viagens de Brasília até aqui não o deixam bem. Deve ser isso. Daqui a pouco vai estar melhor.
Isabela encerrou a conversa:
- Se você acha assim, então vamos esperar.
Humberto não descia e Isabela estava ficando inquieta. Eudásia e Morgana entraram com Daniel e Patrícia e Fernando também estavam na sala.
- Vou ver como ele está. Estou ficando preocupada - disse Patrícia, levantando-se e indo em direção ao quarto do pai.
Em poucos segundos, Isabela e Fernando trocaram significativo olhar, que foi percebido por Morgana. Em seu pensamento uma desconfiança começou a aparecer. O que havia entre aqueles dois? Ela resolveu averiguar. Pretextando ir ao banheiro, Fernando saiu. Logo depois, Isabela resolveu ir à copa beber água e Morgana achou aquilo muito estranho. Na copa, Isabela conversava nervosamente com Fernando.
- Essa situação está ficando horrível para mim. Não agüento vê-lo. O único homem a quem realmente amo nos braços de uma outra mulher! E terrível para mim. Não sei se suportarei vê-lo casado.
Ele colocou suas mãos em seu corpo e ela estremeceu.
- Tem de aceitar, pelo bem de nós dois. Sabe que a amo e que estou com Patrícia porque me é conveniente. Preciso ficar bem de vida e com você não conseguiria. Precisa entender; mais tarde, quando for oportuno, traçaremos um plano e eliminaremos Humberto e Patrícia de nossa vida. Seremos felizes.
- Como eu gostaria de acreditar em você. Sinto que posso perder tudo que conquistei por causa dessa paixão que me consome. Beije-me agora. Prove que me ama e me beije aqui.
- Mas é muito perigoso. Podem estranhar nossa demora e nos pegar em flagrante.
- Vamos, tenha coragem.
Fernando não resistiu e a beijou longamente. De repente um grito abafado:
- Isabela?! Fernando? Não posso acreditar!
Eles se separaram rapidamente e sem fôlego olharam para Morgana. Isabela apressou-se em se defender:
- Não é isso que está pensando. Por favor, Morgana, tente entender...
- Calma amiga. Sabe que somos unidas e não direi o que vi. Mas, assim como fui eu, poderia ter sido outra pessoa, e você estaria perdida. Tenham mais cuidado.
Fernando saiu e voltou para a sala, onde já estavam o senador e Patrícia. Morgana conseguiu convencer Isabela de que nada falaria e que lhe seria fiel. Ela acreditou. Mal sabia que tinha sob seu teto uma grande inimiga que, a qualquer momento, a apunhalaria pelas costas. Todos se reuniram na sala e ouviam Humberto contar seu pesadelo.
Patrícia sentiu que alguma coisa estava errada com o pai e o aconselhou:
- Por que não vai conosco ao centro? O senhor precisa de uma consulta. Os sonhos, em sua maioria, são as lembranças do que vimos e vivemos no mundo astral. Se o senhor viu a minha mãe e alguns espíritos com semblantes negativos, é sinal de que ela não tem boas companhias.
- Você sabe que não acredito nessas coisas de espiritismo. O que tive só foi um pesadelo mesmo. Não nego que me impressionou, mas sonhos são ilusões da mente, e não têm nenhum significado.
Patrícia encerrou a conversa e foram jantar. Isabela mal conseguia se conter e olhava muito para Fernando, porém só Morgana percebia. Juvêncio, seu acompanhante espiritual, havia cedido ao grupo poderoso de Romário, e agora fazia parte do plano. Naquele momento, ele lhe inspirava idéias sensuais:
- Você precisa fazer amor ainda hoje com Fernando, mas, se não conseguir, faça com seu marido mesmo. Pense no Fernando e use o Humberto.
Isabela sentia seu desejo aumentar; estava quase incontrolável. Mal conseguiu comer. Quando todos se despediram e ela foi para o quarto, agiu impetuosamente e levou Humberto para a cama. Beijaram-se com paixão e, quando tudo estava para acontecer, Humberto parou. Ela, percebendo o que ocorria, perguntou:
- Por que, Humberto? Nunca isso nos aconteceu. Por que logo hoje, que estou tão carente?
Ele estava com muita vergonha. Sentou-se do outro lado da cama e colocou as mãos no rosto. Orgulhava-se de ser conquistador e viril. Nunca, em todas as suas conquistas aquilo havia acontecido. Estaria ficando velho? O certo era que ele estava com receio de olhar o rosto de Isabela. Limitou-se a dizer:
- Não sei, hoje não foi um bom dia pra mim. À tarde aquele pesadelo, e agora esse fato horrível. Não sei o que lhe dizer. Devo estar cansado ou, como diz a Patrícia, devo ter um encosto.
Ela se irritou:
- Não vê que isso não existe? Você está com problemas e deve procurar um médico.
- Não! Isso jamais! Vamos tentar outra vez.
Mais uma vez se deitaram e Isabela se esmerou, utilizando todos os truques que aprendera com madame Aurélia, mas nada deu resultado. Humberto fez um grande esforço para não chorar. Sentia-se humilhado. Levantou-se, vestiu o roupão e foi fumar um charuto na sacada. Isabela também se vestiu e foi para o bar. Ingeriu dois copos de uísque e seus pensamentos estavam em Fernando. Como ele era viril! Se não fosse pobre, deixaria Humberto e iria viver com ele. Mas ela jamais abdicaria de sua vida atual para novamente viver na pobreza. E se aquele problema com Humberto continuasse? Ela não poderia prescindir de sexo e teria de se encontrar mais vezes com Fernando. Sentindo o desejo aumentar, tomou mais uma dose da bebida e voltou ao quarto. Já na cama, percebeu que Humberto fingia dormir. Ela também fez o mesmo e fechou os olhos, mas era em Fernando que pensava. O domingo amanheceu bonito e Humberto agiu como se nada tivesse acontecido com ele. Tomou café e foi sentar-se à beira da piscina, lendo o jornal. Isabela aproximou-se e falou em tom áspero:
- Não pense em fingir que nada aconteceu. Amanhã não volte a Brasília e vá consultar nosso médico de confiança. Quero você como antes.
- E eu? Pensa que está sendo fácil para mim? Estou me sentindo o pior dos homens, tenho vergonha até de procurar um profissional.
- Mas é isso que terá de fazer.
A conversa encerrou com a chegada de Daniel, que vinha nos braços de Eudásia.
- Onde está a Morgana?
- Precisou sair. Falou que precisava repor algumas coisas na despensa e que ia ao supermercado.
- Mas justo num domingo?
- É... Também achei estranho, mas não quis discordar.
Daniel começou a balbuciar algumas palavrinhas e logo Isabela esqueceu aquele acontecimento. Todos os domingos Patrícia ia visitar sua avó, mas naquele dia a visita era especial. Ela iria levar uma amiga muito querida que havia conhecido no centro para conversar e tentar reanimar Augusta, que agora praticamente não saía da cama em profunda depressão. Sílvia era médium e trabalhava dando consultas e orientando as pessoas para que levassem uma vida melhor. Tinha quarenta anos e estava separada. Não tinha filhos e seu trabalho como voluntária no centro a deixava muito feliz. Quando elas chegaram, a mansão estava às escuras. Patrícia perguntou a uma empregada o porquê daquela escuridão, ao que ela respondeu:
- A dona Augusta não quer que abram as cortinas; diz que o sol tem lhe feito mal.
- Pobre vovó, não sei mais o que faço para ajudá-la. Tenho medo que morra por causa desse estado.
Silvia tentou animá-la:
- Vamos confiar em Deus. Tudo Ele pode resolver, basta que para isso tenhamos fé. Mas estou preocupada. Pelo que me consta sua avó é muito católica. Como permitiu que eu, uma espiritualista, viesse até aqui?
- Apenas mencionei que é terapeuta e que deseja ajudar. Realmente minha avó é muito preconceituosa e, se soubesse que freqüenta um centro espírita, não iria permitir sua visita. Ela perdeu muita coisa com essa depressão, menos os preconceitos.
Elas entraram no quarto. Dona Augusta nem de longe parecia àquela senhora bonita, elegante, que gostava de passeios, viagens, que era ativa e falante. Agora se assemelhava a um farrapo humano. Jogada na cama, parecia ter envelhecido uns dez anos. Branca feito cera e com profundas olheiras, ela saudou as visitas:
- Sempre você, Patrícia, que nunca me deixa só. Só não morri ainda porque tenho o seu amor.
- Não diga isso, vovó. A senhora ainda vai viver muito. Agora vou lhe pedir para abrir essas cortinas. Está escuro e a Sílvia gostaria de conversar com a senhora.
Ela fez sinal afirmativo com a cabeça e o quarto se iluminou. Augusta fechou um pouco os olhos mostrando que estava incomodada com a claridade. Sílvia fez intimamente uma prece e pediu auxílio de Deus e dos amigos espirituais. Ela viu a freira que estava colada a Augusta e observou que ela percebeu que tinha ido lá para ajudar. Logo um círculo de luz azulada cobriu o corpo de Sílvia e irmã Celeste não conseguiu envolvê-la.
- Como se sente dona Augusta?
- Bem. Só quero que me deixem em paz e sozinha.
- Ninguém pode estar bem deitada em uma cama o dia inteiro, sem querer sair, ver a luz do sol e participar desta vida que é tão bonita. A senhora está desistindo de viver e isso é muito ruim. Tem de reagir.
Ela começou a chorar.
- Não consigo. Sinto que minha vida acabou. Não tenho mais o que fazer, minha filha morreu, tudo está sem sentido. Só me resta ficar na cama até que a morte me chegue como alívio.
- E um direito que a senhora tem, mas essa escolha está deixando-a muito infeliz, e a infelicidade é um estado antinatural. Fomos criados para a felicidade. Deus nos colocou em um mundo bonito, rodeado de plantas, flores, com um lindo sol que nos aquece e ilumina. Deu a cada um o direito de ser feliz, evoluir, e a senhora está desperdiçando isso. Não acha que está sendo ingrata com a vida?
- Não diga isso, tenho muita fé. Mas já estou velha e os velhos não servem para nada. Como é horrível o entardecer de uma existência!
Sílvia não se deu por vencida.
- A senhora está sendo dramática e preconceituosa. A velhice é a fase de maturidade espiritual de todos nós. Longe de ser ruim, ela é um bem. E a fase na qual podemos ser o que somos sem preocupações ou medos; é o tempo de colher os frutos de nosso aprendizado sobre a Terra. Ademais, quem envelhece é o corpo, porque o espírito fica sempre jovem e todos nós somos jovens, seja em que idade for. A senhora se engana quando diz que os velhos não servem para nada, o que conta mesmo é a idade mental que cada um tem. Há jovens que já envelheceram e há idosos com a mente muito jovem, são ativos, vivem rodeados de amigos, trabalham e têm o respeito de todos. Tudo vai da crença de cada um. Acreditar na velhice atrai falta de oportunidades, desrespeito, rejeição, mas tudo depende de nós. Sua vida não acabou porque a senhora tem sessenta ou setenta anos; há coisas agradáveis e boas para se fazer em qualquer idade, basta que deixemos o preconceito de lado, não acha? Dona Augusta parecia pensar.
- Você diz coisas bonitas, mas a velhice é um fato, e com ela chegam às doenças, os remédios, o desprezo dos mais jovens...
- Isso tudo depende do pensamento de cada um. Há pessoas idosas que têm excelente saúde, até mais do que certos jovens. São respeitadas e ouvidas pelos mais novos. Aonde vão têm amigos das mais diferentes idades. Já se perguntou por que isso acontece? Por causa das crenças que elas carregam. Quem acredita na velhice como um mal, como um fardo doloroso e difícil, realmente vai atrair as doenças, o desprezo e o abandono. A senhora quer viver assim?
- Na verdade não, é que não tenho forças. Ando tão desanimada...
- Para sair dessa situação é necessário força de vontade e colocar Deus em seu coração. Procure se ligar a ele por meio da prece; esse será o primeiro passo.
- Mas eu rezo todos os dias.
- Não falo da oração mecânica e decorada, digo da oração que vem de dentro, aquela feita com o coração; essa funciona de verdade. O segundo passo é levantar dessa cama e retomar sua vida de antes. Volte a ser a pessoa que era: elegante, arrumada, ativa, bem-disposta, e logo vai se livrar dessa depressão que a invade.
- Não tenho forças...
- Tem sim. Todos temos a força do mundo quando realmente queremos alguma coisa. Sua força reside em seu coração, e seu coração quer a felicidade.
Ela esboçou um sorriso.
- Muito obrigada. Sinto-me melhor.
Sílvia se despediu e saiu do quarto, mas dona Augusta fez questão de lhe pedir que voltasse outras vezes. Já na sala lanchando com Patrícia, ela disse:
- Não se anime muito. Hoje ela ficará um pouco bem, mas amanhã voltará aos mesmos problemas. O que ela está passando é difícil e demorado para curar.
- Ela está obsediada?
- Está com depressão profunda, acima de tudo. Claro que nesses quadros há sempre a interferência de obsessores, mas sua avó está clinicamente depressiva. Já lidei com muitos casos assim e sei que só um bom psiquiatra pode resolver.
- E a ajuda espiritual?
- É também essencial, mas não dispensa a ajuda médica, de forma alguma. A depressão é uma doença séria e tratada no meio espírita com preconceito. Acha-se que qualquer manifestação dela é obsessão e, às vezes, impede-se que o paciente recorra à medicina terrena, que é indispensável em muitos casos.
- Mas não há casos em que o problema é só espiritual?
- Há sim, e os médiuns experientes sabem diferenciar uma situação da outra. Nos casos em que há apenas obsessão, o tratamento médico pode até piorar os sintomas, mas não é esse o caso de sua avó.
- No caso dela, que adoeceu apenas no físico, o que causa a depressão?
- Alguns estudiosos teimam em dizer que a depressão é o produto da disfunção das substâncias químicas responsáveis pelo humor e dos neurotransmissores. Mas, pelo conhecimento espiritual que temos adquirido, podemos afirmar que eles estão trocando o efeito pela causa. A depressão é uma doença da alma e acontece quando as pessoas se sufocam e não atendem aos anseios mais íntimos de seu espírito. A alma se agita e quer se libertar; a depressão é o grito da alma sufocada.
- Toda depressão começa na alma?
- Sim. Quando estamos distantes de nossa essência, magoados, fazendo coisas por obrigação, vivendo uma vida diferente daquela que nossa alma pede, aparece o vazio, a solidão e depois a depressão. Mesmo quem diz não ter motivos para estar deprimido, se for olhar para dentro de si com realismo, vai saber a causa.
Patrícia estava surpresa:
- E o que pode ter levado a minha avó a esse estado? Ela vivia tão bem!
- Não sei, mas, pelo que pude perceber, ela está assim por mágoa. Alguém a magoou profundamente e ela tem se sentido pequena, inferior. Com isso sufocou a alegria e entrou em depressão.
- Então vamos tentar extrair isso dela.
- Não é bom. Para quem está em depressão profunda, revolver as mágoas só vai piorar o estado. O melhor que temos a fazer é esperar essa fase passar e, quando ela estiver melhor, voltaremos a esse assunto. Quando o paciente melhora, ele tem condições de perceber como atraiu a doença e modificar a causa. Mas isso só pode acontecer quando essa fase severa passar.
As duas continuaram conversando até a hora do almoço. Sílvia voltou para casa e Patrícia almoçou na casa da avó, que não saiu do quarto. Morgana não foi ao supermercado, como havia dito, e sim à Mansão de Higienópolis. Nos fins de semana as mulheres se arrumavam mais que o habitual e madame Aurélia tinha trabalho dobrado. Mesmo assim, quando Morgana chegou, foram para o quarto. Luana também não perdia a ocasião e estava junto. Nunca simpatizara com Isabela e vê-la feliz e rica causava-lhe grande inveja. Auxiliar naquela vingança seria um prazer ao qual ela não se poderia furtar.
- Madame, tenho algo importante a lhe contar - começou Morgana com expressões de mistério para valorizar ainda mais o que iria dizer. - O que tenho a dizer pode mudar completamente o curso dos nossos planos.
Madame Aurélia estava curiosa.
- O que pode ser?
- Descobri ontem que Isabela trai o senador com Fernando, um rapazinho que está noivo da Patrícia, filha dele. Com essa informação nas mãos, podemos desistir de envolver a criança inocente e acabar com ela de outra forma.
Aurélia pareceu refletir, depois disse:
- E uma informação e tanto, mas acho que não devemos desistir de nossa estratégia. Queremos ver Isabela sofrer, e, se contássemos a Humberto dessa traição, o máximo que poderia acontecer seria ela ser expulsa de casa. Não! Eu quero mais, quero vê-la amargar a dor de perder um filho e, mesmo rica, não poder ser feliz.
Luana concordou.
- Também acho, não podemos desistir. - Olhando para Morgana fixamente, Luana completou: - Estou vendo que está toda medrosa em matar uma criança e está querendo voltar atrás. Saiba que se isso acontecer nós a consideraremos uma traidora e aqui não colocará mais os pés.
Madame Aurélia vociferou:
- E, se nos trair, não viverá para saborear sua traição. Sabe muito bem do que sou capaz. Se tenho coragem suficiente para tramar a morte de um menino inocente, imagine o que não farei com você.
Ela sentiu um arrepio percorrer seu corpo. Por que fora se meter naquilo?
- Mesmo assim, sua informação não foi inútil - comentou Aurélia. - Assim que Daniel morrer, acharemos uma maneira de fazer Humberto saber que sua mulher o trai. Daí, sem o filho e sem riqueza, ela acabará com a própria vida.
Morgana estava estupefata com tamanha crueldade.
- Para que tanto? Afinal, o que Isabela lhe fez não foi tão grave. Humberto agiu muito pior. Foi ele quem tirou ela daqui com toda a arrogância - ponderou.
- Não sei... Sinto um ódio muito grande por ela. Sua arrogância e falta de escrúpulos merecem punição. Já Humberto eu não consigo odiar. Compreendo os homens, sei como são quando se envolvem com mulheres da espécie de Isabela.
Morgana não protestou; sentia medo de ficar contra uma mulher tão perigosa. Quando deixou a Mansão, sentia-se mal. Sua cabeça rodava e seu estômago estava enjoado. Como fora entrar numa vingança tão sórdida como aquela? Mas agora tinha de ir até o fim. Se recuasse, coisas horríveis poderiam acontecer com ela. Foi ao supermercado, pois não podia chegar em casa sem algumas compras. No caminho, ia pensando no ódio de Aurélia e não conseguia entender como atitudes aparentemente pequenas de Isabela tinham despertado uma sede de vingança tão grande naquela mulher. Ela não sabia que o ódio de Aurélia vinha do inconsciente, estava enraizado em acontecimentos de vidas passadas, quando vivera na França e tivera seu filho morto por culpa de Nathalie, que era Isabela reencarnada. Inconscientemente, queria se vingar por ter perdido o filho matando Daniel, o ser que sua inimiga mais amava no mundo. Também ela não conseguia odiar Humberto porque naquele passado longínquo ele fora seu filho, Henry.
Chegando em casa, Morgana deu algumas explicações que logo foram aceitas por sua amiga. Foram almoçar e Morgana insistiu em dar a comida a Daniel, tarefa que era de Eudásia. O menino, muito alegre e com olhos vivos, começou a comer. Sem que ninguém percebesse, Morgana destampou um pequeno frasco de vidro que continha um pó e o derramou sobre a comida. Ninguém viu nada. Uma hora depois da refeição, Daniel começou a vomitar. Fizeram chás, mas nada resolveu. Levaram-no ao médico, que diagnosticou perturbações estomacais. Prescreveu alguns medicamentos e a criança melhorou. Isabela abalou-se muito e, preocupada, nem procurou o marido durante a noite, o que para ele foi um alívio devido a sua impotência. A semana transcorreu calma, exceto por Daniel, que se mostrava apático, não brincava como antes e quase não comia. Na quinta-feira, ele piorou. Isabela ficou desesperada. Ver seu filho sofrer era o que mais a deixava abalada. Outra vez foi ao médico, que a aconselhou a ter calma e falou que esses fatos sempre acontecem uma vez ou outra na infância. Todavia, no pouco que Daniel comia o veneno terrível e que matava lentamente era inserido. Ele voltava a vomitar e passar mal, mas ninguém podia supor que Morgana estivesse por trás daquilo. Isabela entrou em depressão e Humberto voltou de Brasília para ficar com ela. O menino foi internado, mas depois de três dias veio a falecer. Ninguém suspeitou de envenenamento e os médicos disseram que o menino tinha o aparelho digestivo fraco e por isso sucumbira. Isabela parecia viver um sonho. Nada a fazia parar de gritar e chorar; ela entrou em terrível desespero. Abraçada com ele no pequeno caixão, ela dizia:
- Meu filhinho, por que isso aconteceu? Você era a minha razão de viver, tudo que fiz na vida foi por você. Por que me deixou?
O corpinho inerte estava banhado de lágrimas daquela mulher que, pela primeira vez na vida, despertava ante a dor e o sofrimento. Ela continuava:
- Não me deixe filho. O que vou fazer sem você? Sem seu sorriso, sua alegria, suas brincadeiras?
Naquele instante, os espíritos de Juvêncio e seus amigos riam muito do sofrimento de Isabela. Todavia, Flaviana estava profundamente abalada e desistiu de sua vingança. Ela sabia muito bem o que era perder um filho e Isabela já havia sido punida devidamente. Vendo-a sofrer daquela forma, ela percebeu que nada mais poderia fazer ali e resolveu ir embora, não sem antes acompanhar o sepultamento de Daniel. Diana e Gabriel estavam lá e traziam Daniel adormecido no colo. Eles sabiam que muito teriam de fazer até que ele recuperasse a forma adulta e pudesse ajudar sua mãe.

15 - ENCONTRANDO A ESPIRITUALIDADE

Isabela entrou em profunda depressão após a morte do filho. Materialista, ela acreditava que tudo acabava com a morte e não conseguia entender por que seu filho tão pequeno havia morrido daquela maneira. Passava os dias na cama e nem a companhia de Morgana lhe dava um pouco de ânimo. Ao seu lado, assediando-a, estavam Juvêncio, Romário e outros espíritos que faziam aumentar sua sensação de desespero. Flaviana havia ficado muito condoída com o que Isabela passara e resolvera abandonar a casa. Naquela tarde, andando com Nicodemos por uma rua movimentada, ela não sabia o que fazer.
- Não sei para onde vou agora que me sinto vingada. Descobri que não estou mais feliz por isso, muito pelo contrário, sinto uma insatisfação, um vazio no peito, ainda mais quando lembro o que é perder um filho.
Nicodemos retorquiu:
- Vocês mulheres não sabem o que querem, sempre estão insatisfeitas. Mas agora tenho de lhe dizer que seu tempo terminou. Terá de nos servir em nossa cidade. Eu lhe acompanhei durante meses nessa situação e agora terá de retribuir. Teodoro está mandando buscá-la.
Ela ficou assustada. Não queria morar naquele lugar horrível e sem higiene.
- Não posso, não vou.
- E o que veremos. Sou seu amigo, mas, se não fizer o que é certo, quem vai se dar mal sou eu.
Nicodemos parou perto de um banco, sentou e colocou as duas mãos na cabeça, fechando os olhos. Parecia estar em concentração. Flaviana não entendeu o que ele fazia. De repente, um vulto escuro apareceu e ela reconheceu o rapaz a que fora apresentada quando chegara à cidade do umbral. Era o chefe.
Ele a olhou com olhos de ódio e vociferou:
- Você ocupou um dos nossos servidores a longo prazo. Não pense que agora vai escapar e fazer o que quer. Virá comigo e trabalhará até pagar todas as horas que Nicodemos ficou com você. Se não vier por bem, virá por mal. Tenho como levá-la mesmo contra a sua vontade.
Ela estava aterrorizada. Nunca havia lidado com pessoas como aquelas. Tentou correr, mas Teodoro lançou-lhe uma energia que a fez se sentir imóvel. Quanto mais tentava se mexer e fugir, mais percebia que era inútil. De repente lembrou-se de Deus e percebeu que só ele poderia salvá-la naquele momento. Num gesto desesperado começou a rezar: "Deus, meu pai, vem em meu socorro nesse momento de aflição. Estou arrependida. Sei que a vingança não me trouxe felicidade e quero mudar desejo encontrar a paz. Não permita que o mal invada minha vida, me protege, livra-me desses inimigos".
Aquela oração simples teve o poder de deter Nicodemos e Teodoro, que já se aproximavam para capturá-la. Uma luz azulada a envolveu e eles não puderam se aproximar. Do meio de uma luz branca muito forte surgiu Diana.
Finalmente, Flaviana, encontrou o caminho certo. Seu arrependimento sincero muito a ajudou nesse momento.
- Agradeça a Deus; pode vir conosco.
Flaviana chorava muito. Diana retirou as correntes que a prendiam e as fez desaparecer; junto com elas, Teodoro e Nicodemos também sumiram.
Abraçadas, Flaviana soluçava:
- Não sei como agradecê-la, amiga. Sei que não mereço tanta ajuda. Fui vingativa e desejei o mal a Isabela. Hoje sei que estava errada. Vendo-a sofrer tão amargamente, não fiquei feliz. Como estava enganada!
Diana sorriu.
- Você buscou a vingança porque acreditava que tinha sido vítima. Mas vítima ninguém é. Quem busca pagar o mal com o próprio mal tem muito que sofrer. Felizmente se arrependeu na hora certa, se não fizesse assim não a poderíamos defender e iria sofrer na escravidão com aqueles irmãos menos esclarecidos. Toda vingança prejudica primeiro a quem a pratica; hoje você sabe disso.
- Agora desejo ir para aquela colônia onde estão meus filhos. Vamos?
- Ainda não será possível. Primeiro você vai permanecer num Posto de Socorro muito próximo da Terra e, quando for possível, viremos buscá-la.
Flaviana ficou triste.
- Esperava ver logo meus filhos.
- Deverá ter paciência. Você acaba de sair de uma situação muito precária. Estava se alimentando por intermédio dos encarnados, sugando as energias dos alimentos; emagreceu e está em um estado que não lhe permite ainda viver em nossa colônia. No Posto de Socorro Aliança você receberá os primeiros socorros, aprenderá a ajudar e, quando estiver melhor, viverá conosco.
Ela recomeçou a chorar. Diana a abraçou e juntas desapareceram em meio aos transeuntes. Isabela estava sozinha e em pranto copioso quando ouviu batidas leves na porta de seu quarto. Ela gritou áspera:
- Deixem-me em paz!
A porta se abriu e Fernando entrou. Aproximou-se da cama e sentou. Quando ela percebeu que era ele, seu rosto se alegrou. Ele a abraçou e trocaram longos beijos. Olhando-o firme nos olhos, ela disse:
- Veja como estou. A mulher que você conhecia morreu junto com aquela criança. Peço que me esqueça, que este seja nosso último beijo.
Ele, muito nervoso, retrucou:
- Não diga isso. Você vai levantar dessa cama e reviver para mim e para o nosso amor. Nada pode ser maior do que o que sentimos um pelo outro.
Aquelas palavras tiveram o dom de acalmar a alma sofrida de Isabela.
- Sinto que não tenho mais forças para nada. Descobri que a riqueza e o luxo de nada valem sem meu filhinho tão inocente. Não quero mais viver.
- Não diga isso. Você é cheia de vida e me ensinou o que é o verdadeiro amor. Tenho de confessar que estou amando você.
Ela não podia acreditar.
- Você nunca disse isso para mim. Não brinque com meus sentimentos, não quero que diga que me ama só porque estou numa cama em depressão.
- Eu a amo de verdade. O que era apenas uma atração e uma aventura transformou-se num sentimento verdadeiro dentro de mim. Você acha que estaria me arriscando a estar agora em seu quarto sozinho com você se não fosse por amor?
- Você me fez sentir bem, mas não posso ser mais quem eu era. Meu filho foi a maior razão dos meus atos. Tudo o que fiz foi por amor a ele. Queria que crescesse e se tornasse um homem, para ensiná-lo a ser duro, inflexível, pisar em todos que fossem obstáculos para seus planos. Mas não pude vê-lo crescer. Esse Deus mau e cruel o tirou de mim. - Dizendo isso, ela voltou a chorar compulsivamente.
Fernando, apressado, pois estava aproveitando que Patrícia estava no banho, finalizou:
- Tenha forças. Seu filho se foi, mas eu estou aqui. Nós nos amamos e esse amor é mais que motivo para você continuar vivendo. Amanhã vamos nos encontrar no lugar de sempre. Estarei esperando-a as três.
Ele saiu e Isabela levantou-se. Entrou na banheira e começou a meditar. Seus pensamentos estavam confusos. Ter visto Daniel morrer sem que pudesse fazer nada a deixara em um estado muito grande de tristeza. Ela nunca havia sentido uma dor tão grande. Mas também tinha o amor de Fernando; se ele havia se declarado era porque realmente a amava. De repente, pensou que poderia ainda ser feliz, mesmo com o vazio que seu filho ia fazer em seu peito. Mesmo com todo o dinheiro e com todos os recursos da medicina, ninguém o salvara. Naquele instante, ela sentiu um grande ódio de Deus e da vida. Se ela já era dura e má, de agora por diante seria pior. Quando saiu da banheira estava decidida a destruir Patrícia para ter Fernando só para ela; sabia que conseguiria. Só outro filho poderia suprir a falta de Daniel, mas ela nem pensava em tê-lo com Humberto. Decidiu naquele momento que teria um filho com Fernando. Horas mais tarde, quando desceu, todos se surpreenderam. Ela estava bonita e bem produzida. Morgana e Patrícia, que não esperavam vê-la assim em tão pouco tempo, tiveram de se conter e nada perguntar. Se ela estava melhor não queriam magoá-la com recordações do filho. No dia seguinte, quando estava pronta para ir ao encontro de Fernando, a empregada veio lhe dizer que havia uma mulher querendo falar com ela e que a aguardava na sala. Isabela não podia imaginar quem seria e desceu apressada, não poderia perder a hora. No alto da escada seu coração disparou e ela parou estarrecida. Madame Aurélia estava à sua frente. Sorrindo ironicamente, ela comentou:
- Muito bonita esta mansão. E uma pena que não lhe pertença. Qualquer dia desses Humberto vai voltar a freqüentar minha casa e colocará outra em seu lugar; é apenas uma questão de tempo.
Isabela trincou os dentes de ódio.
- O que deseja aqui? Saiba que não é bem-vinda. Retire-se imediatamente ou mandarei os seguranças a arrancarem à força. O que prefere?
- Não fique nervosa. Só vim para lhe dizer que está sendo castigada por Deus, por isso perdeu seu filho. Não sabe como fiquei alegre quando soube que ele morreu, e não podia deixar de vir aqui lhe dar meus pêsames.
Isabela, com muito ódio ia avançando para agredi-la quando se lembrou do seu encontro. Mesmo assim, proferiu com a voz rouca de ódio:
- Um dia lhe disse que não viveria muito para me humilhar ou rir de mim. Pois hoje assinou sua sentença de morte. Saia agora de minha casa e me espere; vai saber do que sou capaz.
- Não tenho medo de suas ameaças. Sairei porque estar com você me causa náuseas. Passe bem.
Ela saiu e Isabela chegou a chorar de ódio. Aquela mulher tivera coragem de ir até sua casa tripudiar sobre a morte de uma criança inocente. Mas, a partir daquele dia, ela viveria para levá-la à morte. Já havia matado duas pessoas e não haveria problema em matar mais uma. Também queria se livrar de Patrícia, mas não pensava em matá-la. Tinha outros planos para ela. Levantou-se e foi refazer a maquiagem; queria estar impecável para Fernando. Já na saída, quando ia entrando no carro, viu uma mulher de aspecto miserável que passava sobre sua calçada, certamente esmolando. Seus olhares se encontraram e ela reconheceu sua mãe, Lourdes. A velha e doente senhora deixou uma lágrima cair dos seus olhos e, virando-se para ela, falou emocionada:
- Há quanto tempo não a vejo, Clotilde. Onde você está? Por que está com essas roupas, filha?
Ela ficou nervosa. O que menos queria era um encontro com alguém de sua família. Fingiu não conhecê-la.
- A senhora é uma louca que está me confundindo com outra pessoa. Saia da minha calçada, aqui não é lugar para mendigos.
- Por que está agindo assim comigo? Sou sua mãe, fui eu quem a colocou no mundo. Abrace-me; sinto muito sua falta. Desde o dia que desapareceu, vivo na esperança de encontrá-la. - Ao falar isso, Lourdes se aproximou e abraçou Isabela, mas ela foi mais ágil e a empurrou tão forte que a velha senhora caiu no chão. Virando-se para o motorista, ordenou:
- Vamos, já estamos atrasados. Não tenho tempo a perder com esses pedintes.
O carro partiu e Lourdes ficou jogada no chão, chorando e se sentindo humilhada. Patrícia estava acabando de chegar e, ao vê-la, correu para auxiliá-la.
- O que faz aí nesse chão?
Ela ficou sem jeito, quem seria aquela moça?
- Eu caí. Mas não se preocupe, estou bem.
- Não quer entrar e tomar um pouco de água? A senhora deve estar com fome.
Lourdes sorriu. Uma estranha tratava-a bem, enquanto sua filha a humilhava profundamente. Quem seria essa moça com rosto angelical?
- Não desejo entrar. Estava andando, tentando encontrar alguma coisa para comer. Não quero incomodar.
- Não será incômodo algum. A senhora entra comigo e vou lhe arrumar uma cesta com alimentos, assim não precisará andar mais. A senhora tem idade! Por que não manda seus filhos pedirem em seu lugar?
Lourdes olhou para um ponto distante e comentou:
- Já não tenho ninguém. Meus filhos foram embora, alguns morreram. Tinha uma filha que desapareceu. Moro só num barraco, mas não quero que se preocupe comigo. Você é moça e não tenho o direito de envolvê-la em meus problemas.
Patrícia teve compaixão daquela alma pobre e solitária e se calou, pois percebeu que falar daqueles problemas estava sendo penoso para ela. Quando entraram na mansão, o segurança olhou para Patrícia e alertou:
- Seu pai não vai gostar nada de saber que colocou uma mendiga dentro de casa. Essas pessoas são perigosas, não é prudente o que a senhora vai fazer.
- Não se preocupe Albano. Assumo a responsabilidade. Olhe bem para ela, acha mesmo que é perigosa e capaz de fazer algum mal?
Albano concordou a contragosto. Patrícia levou Lourdes para a mansão e ela ficou encantada. Nunca, nem em seus maiores sonhos havia imaginado um lugar como aquele. O que Clotilde fazia ali? Tentaria descobrir. Na cozinha, Patrícia lhe serviu um lanche, enquanto mandou que fizessem uma cesta com mantimentos. Enquanto comia, Lourdes de uma forma que procurou parecer casual, perguntou:
- Vi quando a dona da casa saiu muito arrumada e bonita. Ela não tem idade para ser sua mãe. Será sua irmã?
- Não, ela é minha madrasta. Minha mãe morreu há algum tempo e meu pai se casou novamente.
- Muito bonita sua madrasta. Como se chama?
- Isabela e é realmente muito bonita.
Lourdes se calou. Por que sua filha usava outro nome? Resolveu não insistir com as perguntas. Terminou o lanche e agradeceu o que Patrícia lhe tinha feito. Quando saiu da mansão, estava se sentindo muito humilhada e infeliz. A vida lhe havia tirado tudo, até o amor de sua filha, que agora era casada e não queria mais saber dela. De volta ao barraco, Lourdes chorou. Sentiu dores fortes no peito e teve um infarto fulminante. Desencarnou e foi levada a um Posto de Socorro ainda próximo da crosta terrestre. No carro, Isabela ia enraivecida. Aquele não tinha sido um bom dia. Primeiro a visita incômoda de Aurélia, logo depois sua mãe. O que iria fazer se ela insistisse em procurá-la novamente? Se isso acontecesse, a procuraria e lhe daria uma boa quantia em dinheiro, mas se a mãe insistisse, teria de usar meios mais drásticos para afastá-la. Tentou não pensar mais naquele assunto, todavia de hora em hora, as imagens de Aurélia e Lourdes voltavam a sua mente. Pediu ao motorista que a deixasse em uma loja como de costume e logo depois tomou um táxi, indo em direção ao apartamento que havia alugado para os encontros com o amante. Quando chegou, encontrou Fernando bebendo uísque. Ela o abraçou e o beijou repetidas vezes nos lábios, depois falou emocionada:
- Só você foi capaz de me tirar da depressão. Sem você não seria feliz.
Novamente se abraçaram e esquecidos do mundo lá fora, foram para a cama. Quando terminaram, Isabela, deitada a seu lado, confessou:
- Não quero perdê-lo. Quero que jure que, mesmo casado com Patrícia, vai continuar com o nosso amor.
- Já lhe disse que a amo e que estou me casando com ela porque preciso ter uma vida estável. Continuaremos como sempre até que, de posse de tudo que desejo, possa me separar dela.
Isabela demonstrou tristeza.
- Minha vida está uma infelicidade! Pelo menos não vou ter de me sujeitar a ter relações com o Humberto. Você sabia que ele não tem conseguido?
Fernando sorriu maliciosamente.
- Quer dizer que meu sogro ficou impotente?
- Isso mesmo, para minha felicidade. Só nos seus braços me sinto completa.
- Eu também, meu amor. Pelo menos agora, com o Humberto "pra baixo", não vou ter de dividi-la com outro homem. Não sabe como me sinto mal em saber que todas as noites ele a tem. Mas mudemos de assunto. Fale-me como anda sua cabecinha. Sei que melhorou daquela depressão que estava querendo envolvê-la.
Enquanto ela comentava a infelicidade de ter perdido o filho, ele pensava na maneira como se livraria dela no futuro. Ele havia começado a gostar sinceramente de Patrícia e pensava em usar Isabela até quando lhe fosse conveniente. Queria trabalhar em Brasília, casar em comunhão de bens e contava com Isabela para ajudá-lo. Enquanto a estivesse satisfazendo, ele sabia que poderia contar com ela. Mas jamais se separaria de Patrícia. Ela era tudo o que ele realmente tinha sonhado para a vida dele: uma mulher rica, culta, bonita e inteligente. O que ele poderia querer mais? Os dias foram passando e Humberto, sempre que tentava ter relações com a mulher, não conseguia. Isabela se esmerava para tentar tirá-lo daquela apatia, mas nada que ela fizesse estava tendo efeito. Humberto se sentia desesperado. Estava triste e resolveu se ausentar de Brasília para tratar da saúde. Não podia deixar um receio ser mais forte do que seu bem-estar. Procurou doutor Caldas, que o atendeu prontamente.
- Você está com inapetência sexual. Melhor dizendo, está impotente. Isso é normal e acontece com todos os homens em algum momento da vida. Na maioria dos casos, a causa da impotência masculina está ligada a problemas psicológicos, contudo há também problemas físicos que podem ocasioná-la.
Humberto retrucou:
- Não estou com nenhum problema grave. Sempre fui viril, me orgulhava disso. Não sei por que isso foi acontecer comigo.
O doutor Caldas era um senhor de meia-idade muito simpático. Sorridente, explicou:
- Não se preocupe. Até rapazes podem ter esse problema. Vou lhe prescrever um medicamento que tem resolvido praticamente todos os casos de impotência masculina. Mas você vai fazer todos esses exames. Precisamos ver se há algo em seu físico.
Naquele dia Humberto saiu animado do consultório. Comprou o medicamento com uma certa vergonha e, ao chegar em casa, esperou ansiosamente à noite. Mas qual não foi sua surpresa quando nada de diferente aconteceu. Mesmo tendo tomado o remédio, como o médico lhe indicara, o problema continuava. Humberto estava cada vez mais envergonhado perante Isabela. Naquela noite, enquanto estava sentado de costas fumando seu costumeiro charuto, ele disse:
- Não sei o que está acontecendo. Fui ao médico, tomei os remédios e nada mudou.
- Não se desespere meu bem. O mais importante você já fez que foi a consulta com o doutor Caldas. O remédio não fez efeito hoje, mas certamente fará amanhã.
Isabela fazia carinho nele sentindo-se aliviada. Depois que conhecera a intimidade de Fernando, estava lhe sendo penoso manter relações com o marido. Ainda assim, tentava se mostrar compreensiva e tolerante, como toda boa esposa deve fazer. Foi com desespero que Humberto viu o problema continuar todas as noites, mesmo fazendo tudo que o médico recomendara. Assim seguiram-se semanas. Os exames deram resultados satisfatórios e ele não entendia por que continuava doente. Já ia tentar a alternativa extrema de implantar uma prótese quando o médico, mais sério que o habitual, lhe disse:
- Humberto, sei que somos amigos e, como amigos, tenho a liberdade de lhe dizer que seu problema pode ter uma outra causa. Algo em que talvez você não acredite, mas peço que pense nessa causa com seriedade. Seu problema pode ser espiritual. Como sabe, sou espírita há muitos anos e tenho estudado certos fenômenos de interferência de seres desencarnados. Sei que eles podem causar problemas físicos os mais variados até mesmo à impotência. Você não tem nada no corpo físico, também não tem passado por problemas graves que o possam estar deprimindo. Tudo leva a crer que seu problema seja obsessivo.
Humberto ouviu com atenção. Caldas era um homem sério, dedicado, responsável; se estava dizendo aquilo, com certeza tinha um fundamento. Mas ao seu lado estavam os espíritos de Juvêncio e Romário, insuflando-lhe idéias:
- Não acredite nesse velho louco. O que ele diz não é verdade. Logo você, um homem da política, vai acreditar em tamanha bobagem? - soprava um ao seu ouvido.
- Seja racional, Humberto! Essa idéia de espíritos é falsa. Esses seres não existem, são crenças de pessoas desocupadas - sugeriu o outro.
Imaginando estar pensando sozinho, Humberto protestou:
- Sei que o senhor é um homem de ciência, um homem sensato, mas não posso acreditar no que me diz. Aliás, nem sei como um doutor pode se deixar levar por uma seita de pessoas desocupadas. Isso é bobagem que só serve para mocinhas como minha filha, Patrícia. Ela também acredita nisso.
O médico insistiu:
- Sei que está tentando ser racional, mas se estou lhe dizendo é porque quero seu bem. Somos amigos de longa data e não desejo vê-lo ir de médico em médico sem obter uma solução. Se for realmente o que imagino, a medicina nada poderá fazer. Só um tratamento espiritual adequado pode sanar o problema. Sei que sua filha também tem esses pensamentos. Quase sempre a vejo no centro que, por coincidência, é o mesmo que freqüento. É uma jovem muito inteligente e sensível. Não se deixe levar por preconceitos, Humberto. Faça uma consulta. Caso não se convença, então faça como achar melhor.
- Consulta?
- Sim. Lá no centro que freqüento temos médiuns capacitados que dão consultas gratuitamente, mas jamais atendem problemas mesquinhos ou sem importância. Eles atuam na área da desobsessão e, através de seus amigos espirituais, aconselham o tratamento mais oportuno. Às vezes um tratamento de limpeza com passes magnéticos pode ajudar de forma definitiva; em outros casos é necessária uma intervenção mais direta com os espíritos que estão assediando a pessoa. Se for até lá, garanto que não vai se arrepender. Tenho visto casos de meus pacientes que só se resolveram com ajuda espiritual. Pense nisso. Ele cocou o bigode e respondeu:
- Prometo pensar. Todas as noites tenho esperanças de que tudo se regularize, mas nada acontece. Vou dar mais alguns dias; caso não melhore, volto a procurá-lo. Mas não desejo que minha filha saiba de nada; sinto receio.
- Não se preocupe. A discrição é natural quando trabalhamos com a espiritualidade. Pense bem, sua saúde está em suas mãos.
Quando Humberto saiu, o doutor Caldas rezou e pediu a Deus proteção para seu amigo, que sentiu estar envolvido por entidades sombrias. Sua oração surtiu efeito e envolveu Humberto em uma camada de energia que os espíritos não conseguiram penetrar. Juvêncio chamou o seu chefe em pensamento e logo ele apareceu. Muito nervoso, ele falou:
- Nosso plano pode estar perdido. Aquele médico idiota está tentando levar Humberto para um centro onde poderá se libertar de nossa influência. O que faremos?
O homem sorriu de maneira macabra.
- Eles não conseguirão tão facilmente e até lá nosso plano de matar Isabela já estará realizado. Temos de impedir que Humberto freqüente esse centro. Contudo, ainda que vá, os seres da luz não conseguirão libertá-lo rapidamente. Pensa que é fácil afastar os ovóides?
Juvêncio pareceu pensar.
- Estou mais calmo. O que devemos fazer agora?
- Continuem seguindo Humberto. Não permitam que ele vá a esse lugar horroroso e encontre a espiritualidade. Quero-o do nosso lado, quando desencarnar.
Dizendo isso desapareceu deixando Juvêncio e Romário, que se preparavam para voltar à casa de Isabela.

16 - DE VOLTA AO MUNDO MAIOR

Foi com dedicação e amor que Diana e seus amigos recolheram o espírito de Daniel ainda em forma infantil e o conduziram à colônia onde viviam. Ele ficou em uma câmara de vidro adormecido, recebendo no perispírito pulsos magnéticos que o faziam pouco a pouco recuperar a forma adulta. Foi no hospital da Terra que esses espíritos amigos desfizeram os laços que prendiam Daniel ao corpo físico antes mesmo que ele exalasse o último suspiro. Diana levara em seus braços aquele espírito que vivera pouco mais de três anos terrenos até o hospital que se encontrava no astral. A porta se abriu e Gabriel entrou.
- Como ele está hoje, Diana?
- Está muito bem. Continua adormecido, mas, como pode ver, já está recuperando a forma adulta e voltando a ser fisicamente quem foi na última encarnação.
Gabriel observou Daniel e notou que ele estava praticamente com as feições de Thierry, exatamente igual a quando vivera reencarnado na França.
- Por que ele está voltando a ser como era antes?
- É que ele não teve tempo de se tornar adulto na presente encarnação, então seu inconsciente está plasmando a última aparência adulta que teve. Ademais, aquela reencarnação trouxe-lhe experiências muito fortes; é natural que isso acontecesse.
Gabriel perguntou a Diana o que tinha curiosidade desde quando ajudara Daniel a se livrar do corpo físico.
- Por que ele não teve tempo de crescer para viver os desafios necessários à sua evolução?
Diana explicou com sua paciência característica:
- Já falamos outras vezes sobre as causas das mortes prematuras, e Daniel não foge à regra. Antes de nascer, ele pediu que desencarnasse cedo caso tivesse uma má educação que o fosse influenciar negativamente. Mais uma vez, foi o medo de falir que ditou essa escolha. Isabela prometeu levar vida digna e o instruir para o bem, de modo que, quando os desafios aparecessem, ele, munido de uma boa educação, pudesse vencê-los. Todavia, Daniel se lembrava da personalidade de Isabela e com medo de cometer mais erros devido a uma orientação equivocada, solicitou voltar rapidamente.
- Mas não seria melhor ele continuar vivendo, vencer os valores errados e reajustar-se consigo mesmo?
- Era o melhor que poderia acontecer, mas infelizmente as pessoas no mundo agem pelo medo. Esse sentimento tem impedido nosso crescimento como espíritos, nossa realização como pessoa, e atrasado nossa evolução espiritual. O medo paralisa, e quem pára atrai o sofrimento. No dia em que todos vencerem seus medos, aprenderem que o mundo não é mau, que é um lugar seguro, de paz e felicidade, certamente darão um passo definitivo rumo à evolução. Infelizmente, as crenças negativas das pessoas têm causado todo o sofrimento que há em nosso planeta. Quando entenderem que não nasceram para a infelicidade, tudo mudará; é apenas uma questão de tempo.
- Até quando Daniel vai ficar fugindo sem querer enfrentar os desafios que a vida vai lhe trazer?
- O livre-arbítrio é respeitado, mas até certo ponto. Não podemos esquecer que quem comanda tudo no universo é Deus, por leis perfeitas e imutáveis. Um dia vai chegar à hora de ele enfrentar o que é preciso e acabará evoluindo; se não for pelo amor, será pela dor.
Gabriel não estava satisfeito.
- Como o Departamento de Reencarnação permite que esses espíritos escolham vidas que em nada vão contribuir para seu progresso?
Diana elucidou:
- Aqui temos condições de escolher melhor do que quando estamos na Terra, envolvidos pelos problemas materiais. Todavia, ainda sim podemos fazer escolhas erradas, movidas por valores falsos. Se muitos escolhem corretamente os desafios que irão enfrentar no mundo, outros escolhem baseados em crenças negativas e acabam vivendo várias reencarnações que outros julgam perdidas, mas que na realidade não são. Na vida nada se perde e, em cada uma delas, mesmo quando escolhemos supostamente errado, estamos nos tornando mais fortes, estamos nos imunizando. Toda reencarnação é aprovada por Deus. Se Ele permite que nos equivoquemos com as escolhas é porque sabe que delas vamos retirar lições preciosas. O preguiçoso, que escolheu uma vida na ociosidade descobrirá, no além-túmulo, o quanto estava enganado e aprenderá a valorizar o trabalho. O egoísta que escolheu a dor para apagar suas culpas descobrirá decepcionado que o amor cobre a multidão dos pecados e que é unicamente por ele que se apaga o mal que se fez. O medroso que escolheu a pobreza com receio de enfrentar as tentações da riqueza acabará percebendo que enterrou seu talento e terá de voltar atrás, aprender a produzir, ajudar a sociedade, conduzir ao progresso. O ávido pelo poder que escolheu a riqueza unicamente para satisfação de seus desejos aprenderá que dinheiro é progresso espiritual, e não fonte de paixões e egoísmos, que nada produzem.
- Quer dizer que não era para existir o sofrimento?
- Não. O sofrimento e a dor são criados pelo próprio homem e pela sua condição inferior. O mal só existe para aqueles que acreditam nele. Há humanidade um dia entenderá isso e a Terra se transformará num paraíso.
- E onde fica a lei de ação e reação? Não devemos sofrer para pagar o mal que fizemos aos outros?
Diana sorriu.
- Essa é uma inversão de valores perigosa e que não nos leva ao bem verdadeiro. A lei do retorno não visa punir, mas educar. Quando agimos mal é porque não temos condições de fazer diferente. Quem faria o mal se soubesse os seus resultados?
Para Deus, os maldosos, os assassinos, os mentirosos, os cruéis, os corruptos são crianças espirituais que estão agindo de acordo com o nível de evolução que lhes é próprio. Como pai bom e justo que é, criou para essas pessoas a reparação pelo bem e pelo amor ao próximo. É dessa forma, na boa ação e na mudança de atitudes, que temos a única chance de nos redimir completamente e aprender o valor da bondade. A dor só aparece para quem insiste no mal, para quem se culpa para os que cultivam pensamentos negativos, para quem acha que tem de sofrer para pagar por enganos cometidos durante sua infância evolutiva. Eis a grande causa do sofrimento humano. Gabriel havia entendido. Nesse momento, Daniel estava abrindo os olhos. Finalmente havia despertado. Diana se aproximou, abriu a câmara e perguntou:
- Como se sente?
- Um tanto atordoado. Quem são vocês?
- Amigos que estão aqui para ajudar. Você está dormindo há dias. Não quer sair conosco? Nosso parque é muito bonito.
- Sim, aceito. Sinto que preciso andar um pouco.
Os três saíram e ele, como quase todos que desencarnam, fazia perguntas, sem entender o que se passava. Diana e Gabriel respondiam com evasivas. Eles sabiam por experiência que não podiam contar a todos que haviam morrido; em muitos casos tinham de esperar que a própria pessoa descobrisse sua real situação. Depois do passeio, pararam diante de uma casa pequena e Diana explicou:
- Aqui será seu novo lar a partir de agora. Entre e descanse; depois conversaremos.
Daniel ainda estava um tanto confuso:
- Não vou voltar àquele quarto?
- Você não precisa, não está doente. Mas aqui há um quarto onde poderá deitar e dormir. É bom que descanse.
Ele não insistiu. Após entrar e examinar seu novo lar foi para a cama e deitou. Mais uma vez um torpor o invadiu e ele dormiu e sonhou. Sonhou que estava em uma cabana tendo um encontro amoroso. As cenas se sucediam e ele se lembrou de Nathalie, percebendo que era com ela que se encontrava. Sonhou que estava invadindo um castelo e que tirava a vida de um homem, depois surgiu à imagem dele assassinando uma senhora. Outras cenas seguiram-se e ele se viu pequenino nos braços de Isabela e reviu a agonia de sua morte. Nesse instante acordou com um susto e, com os olhos abertos, falou em voz alta para si mesmo:
- Lembrei, lembrei de tudo! Minha mãe, Isabela, é a mesma Nathalie de antes. Fui assassino, traidor e cruel. - Em seguida, caiu em pranto sentido. Chorou por horas.
No outro dia pela manhã, Diana e Gabriel foram visitá-lo. Acomodados em uma espécie de sofá próximo à cama, eles iniciaram a conversa:
- Pelo visto, lembrou-se de tudo. Como se sente? - perguntou Diana amavelmente.
- Não me sinto bem. Muito pelo contrário, estou me sentindo culpado por tantos crimes que cometi no passado. Minha morte foi uma fuga dos problemas que ia enfrentar no mundo. Sinto-me perdido - confessou desalentado.
- Procure não cultivar a culpa. Tente elevar-se com suas experiências para poder auxiliar quem realmente precisa de você: Isabela.
- Sinto que preciso auxiliá-la, mas não sei como.
- Viemos aqui lhe dizer que você pode fazer isso e que vai contar com uma pessoa muito especial para ajudá-lo: sua avó, Lourdes. Ela acaba de desencarnar e, assim que passar pelo sono reparador, vamos nos reunir e encontrar a melhor maneira de auxiliar aquela que foi sua mãe. Sou muito amiga dela de outros tempos e sei que não conseguiu ainda vencer suas fraquezas, porém não podemos desanimar. Um dia ela vai despertar. Contudo, até lá, temos muito que fazer.
Daniel se emocionou e naquele instante jurou para si mesmo que tudo faria para ver Isabela se regenerar. Sentada em luxuoso sofá, Isabela chorava lembrando-se do filho que havia morrido. A mansão estava silenciosa e naquele instante ela se sentiu muito só. Nada tinha para reclamar da vida. Era rica, estava casada, tinha um amante, mas nada daquilo servia para fazê-la feliz naquele momento. Lembrou-se da mãe e de quando sentavam num tronco seco de árvore em sua favela para conversar. Sentiu saudades dela naquele momento e chorou ainda mais. "A vida me transformou num monstro, mas não tive culpa. Tudo que fiz foi pensando no meu filho", refletia, tentando consolar-se. A luz do abajur foi acesa e ela percebeu que Morgana havia chegado com uma bandeja que continha chá e biscoitos.
- Coma, vai lhe fazer bem - aconselhou Morgana tentando levantar o ânimo da outra por se sentir culpada.
- Não sei o que se passa dentro de mim. Sinto um vazio, um buraco que nada pode preencher. Sinto que sem meu filho jamais terei a mesma alegria.
- Não vai lhe fazer bem ficar assim. Pense que é rica que possui bens e que pode usufruir de tudo isso. Além do mais, há Fernando. Quer motivo maior para a felicidade?
- Confesso que só ele me dá ânimo para prosseguir nessa jornada.
A outra procurou conversar sobre o amante, pois sabia que lhe fazia bem.
- Pense que um dia você vai se ver livre do Humberto para sempre e poderá viver com ele onde quiser.
Isabela fez um ar de descrença.
- Essa vida me ensinou muitas coisas, e sei perceber o que vai ao coração dos homens. Apesar de tudo, sinto que Fernando não me ama e desconfio que está começando a gostar da lambisgóia da Patrícia. Sinto que está comigo apenas por interesse, mas não consigo deixá-lo, mesmo sabendo disso. Infelizmente, estou apaixonada.
Morgana fingiu compreender.
- Sei como são essas coisas. Também já me apaixonei uma vez, pouco antes de você chegar à mansão. Ele era casado, mas me contentava apenas em ser sua amante. Nós, prostitutas, não temos o direito ao sonho de amor e sempre soube que ele não iria ficar comigo. Felizmente você teve sorte, encontrou Humberto, que a assumiu integralmente.
- Mas não o amo. Confesso que sentia uma atração sexual por ele a princípio, mas, depois de conhecer a intimidade de Fernando, não posso suportar que me tome. Tenho de dizer que estou adorando o fato de Humberto estar impotente.
- Ele não está conseguindo ter relações com você?
- Não, e estou dando graças a Deus. Amanhã é o dia de ele chegar; espero que não tenha melhorado.
Patrícia chegou sorrindo com Fernando, aparentando muita felicidade. Cumprimentaram as duas e subiram as escadas. Isabela, com muito ódio atirou longe a xícara que segurava. Morgana assustou-se.
- Você tem de se controlar; eles quase perceberam. Quer colocar tudo a perder? Se a Patrícia desconfiar, você estará perdida. Fernando não vai admitir que tem um caso com você e ela vai acreditar nele, e vocês vão se afastar. E isso que quer?
Ela chorava agora de inveja e ódio. Professou entre dentes:
- Vou tirar essa menina do meu caminho ou não me chamo Isabela; ou melhor, Clotilde. - Virando-se para Morgana, asseverou: - Você vai me ajudar. Traçarei um plano e na hora exata vamos colocá-lo em prática. Já perdi meu filho e não vou suportar perder o homem que amo.
- Conte comigo. Mas, se quiser que as coisas dêem certo, deverá ser fria; não pode demonstrar o que sente por Fernando, principalmente quando Humberto estiver por aqui.
- Esse é um bom conselho. Sinto que você é um anjo que a vida colocou em meu caminho.
As duas terminaram o chá e Isabela subiu sem sequer imaginar que iria ser traída por aquela que mais julgava ser sua amiga. No outro dia, Humberto chegou e ela tentou ser paciente e estar bem-humorada. Fernando estava cada vez mais íntimo da casa e da família, e durante o almoço parecia mais falante do que o habitual. Isabela ficou desconfiada. Quando foram para a sala, ele se virou para Humberto e, em tom solene, começou:
- Senhor Humberto, como já é do seu conhecimento, eu e Patrícia nos amamos. Estamos há certo tempo juntos e gostaríamos de oficializar nossa relação. Estou pedindo a mão de sua filha em casamento. Gostaria de ouvir um sim de sua parte.
Humberto não estava surpreso. Percebia que a filha estava apaixonada e sabia que mais cedo ou mais tarde isso ia acabar acontecendo, mas não deixou de dar seu discurso de pai.
- Antes de dar a resposta, gostaria de dizer que eu e Flaviana criamos Patrícia para a felicidade. Se ela escolheu você, acredito que tem condições de fazê-la feliz, pois minha filha tem bom senso e não iria gostar de um rapaz que pudesse fazer sua infelicidade. Como pai, torço para que ela seja feliz. Se ela quer sê-lo ao seu lado, que assim seja, e que tenham muita felicidade. Têm a minha bênção. Mas saiba que, se um dia fizer Patrícia sofrer, terá um inimigo.
Mesmo com o tom áspero das últimas palavras de Humberto, todos ficaram muito felizes. Patrícia levantou-se, beijou o pai repetidas vezes, depois voltou a se sentar perto de Fernando. Humberto indagou:
- O que você faz da vida? Suponho que tenha uma boa profissão, uma vez que deseja se casar.
Fernando esperava por aquela pergunta e estava bem preparado.
- Trabalho numa grande empresa e fui promovido. Tenho o suficiente para dar um lar a sua filha e uma vida digna. Mas não posso oferecer o conforto e o luxo aos quais ela está acostumada. Nós conversamos e ela insiste para que moremos aqui depois do casamento. Não quero, tenho minha dignidade.
Humberto cocou o bigode e retorquiu preocupado:
- Só posso conceder a mão de minha filha se você passar a morar aqui. Esta mansão é muito grande, e era o sonho de Flaviana que Patrícia, quando casada, viesse a morar na casa que ela mesma ajudou a construir com seu bom gosto. Aliás, essa mansão é de Patrícia. Antes de Flaviana morrer, nós a colocamos em seu nome, como única filha viva de nosso casamento. Se não vier morar aqui, não posso concordar que se casem.
Patrícia, passando a mão pelos cabelos castanhos dele, falou com voz que a paixão tornava doce:
- Concorde, meu amor. Só falta você deixar sua teimosia de lado e aceitar.
Era tudo que Fernando queria ser adulado ao máximo. Fingiu demorar a pensar, depois reconsiderou:
- Tudo bem. Se for essa a condição, aceito.
Patrícia, muito carinhosa, o beijou várias vezes, até que todos na sala pararam quando escutaram o barulho de vidro quebrando. Isabela, com feições que o ódio modificava, havia quebrado a taça que segurava entre os dedos, dos quais jorrava sangue. Humberto se aproximou preocupado:
- O que há com você? Por que fez isso?
Ela percebeu que havia se excedido e rapidamente encontrou a saída:
- Estava alheia a tudo que acontecia aqui. Pensava na morte de meu filho e sentia muito ódio da vida, por isso sem querer esmaguei essa taça em minhas mãos. Não se preocupem; pedirei a Morgana que faça um curativo.
Patrícia, que havia se levantado, olhou para as mãos dela e assustou-se.
- Mas ainda estão muito cortadas. Terá de ir ao médico. Precisa de pontos.
Um ódio surdo brotou em Isabela que, com feições coléricas, bradou:
- Sei do que preciso, não é necessário se meter. - Ao dizer isso, fulminou-a com o olhar e saiu da sala.
Patrícia e os outros não entenderam a súbita agressão de Isabela, a qual Humberto tentou atenuar:
- Perdoem a minha mulher. Ela está assim desde que o filho morreu; daquele dia em diante, nunca mais foi à mesma.
Naquele dia eles estavam por demais alegres para imaginar o que na realidade se passava com aquela mulher cheia de inveja. Voltaram a conversar normalmente, apenas Fernando parava às vezes para pensar com certo receio. Algo lhe dizia que Isabela ainda iria lhe dar trabalho. Morgana acompanhou a amiga até a cozinha, onde recebeu os primeiros socorros. Quando se viram a sós, Morgana comentou:
- Desta vez você passou dos limites, mas confesso que esperei coisa pior. Precisa se cuidar para não fazer coisa parecida outra vez ou colocará seu relacionamento com Fernando a perder. De preferência, nem vá ao casamento. Dê uma desculpa, invente alguma coisa, sei lá.
Ela vociferou:
- Esse casamento não vai acontecer; antes, eu acabo com essa alegria. Não posso perder o homem de minha vida para uma pirralha qualquer. Tenho de imaginar algo, preciso agir.
Isabela rodava pela cozinha muito nervosa. Morgana tentou acalmá-la:
- Não acho prudente você tentar acabar com esse casamento. O melhor é que ele venha morar aqui e que vocês continuem como sempre. Se acabar com o casamento, não vai poder ficar com ele, pois há o Humberto e, além do mais, se Fernando descobrir que foi você, poderá vir a odiá-la.
- Você tem razão. Estou me deixando levar pelas emoções. Permitirei que esse casamento aconteça, mas depois vou agir para que ele seja um inferno. Agora mande o motorista tirar o carro, pois esses cortes voltaram a sangrar. Vamos ao médico.
Minutos depois ambas saíram. Fernando também havia deixado à mansão e Patrícia ficou só com o pai. De súbito, ela comentou:
- Senti que Isabela não ficou feliz com o meu casamento. Não foi normal aquela reação de ódio quando falou comigo. Só não consigo entender o porquê.
Humberto, já com outro copo de uísque nas mãos, concordou:
- Também não achei normal, aliás, venho notando que Isabela não fica bem quando está na presença de Fernando. Às vezes fala demais, em outros momentos fica retraída... Hoje mesmo, enquanto vocês comunicavam a decisão do casamento, percebi que ela os olhava com rancor.
Patrícia não conseguia entender. Apesar de ser muito intuitiva, ela havia se deixado levar pela paixão. Nesse estado geralmente perdemos contato com nossa essência e tudo quanto se refere à pessoa amada de modo negativo costumamos ignorar. Algumas vezes Patrícia havia sentido que Fernando não estava sendo sincero com ela, todavia, por não querer acreditar, não dava ouvidos à intuição e acabara perdendo o contato com ela. Tanto que nunca poderia supor que ele a estivesse traindo. A conversa mudou de rumo e Patrícia ficou feliz quando o pai comunicou-a de que finalmente iria ao centro naquela noite para fazer uma consulta.
- Fico feliz que tenha tomado essa decisão. Não poderei acompanhar o senhor hoje, mas garanto que iremos juntos outras vezes. Quem vai lá uma vez sempre deseja voltar.
Ele, meio envergonhado, confessou:
- Estou indo empurrado pela vida. Tenho passado por muitos problemas ultimamente e há muito não me ligo a essas coisas de religião. Nem sei há quanto tempo fiz uma oração.
- Sempre é tempo para nos dedicarmos à espiritualidade. O senhor falou em religião, mas posso garantir que espiritismo e espiritualidade nada têm a ver com religião. Ao freqüentar o centro, ò senhor vai descobrir que é muito mais que isso; trata-se do estudo das leis de Deus e da vida.
Humberto queria mesmo descobrir como tudo isso funcionava e foi com ansiedade que esperou a noite chegar. Isabela passara o resto do dia deitada pretextando uma dor de cabeça e ele saiu sem avisar. O centro iniciava suas tarefas às oito da noite em ponto e ele não queria se atrasar. Com o endereço em mãos, partiu. Ao chegar na frente do prédio, se surpreendeu. Era muito grande e a fachada moderna indicava que as pessoas tinham bom gosto. Quando entrou, logo sentiu uma sensação agradável de paz. Mesmo assim, procurou sentar em uma das últimas filas; não queria encontrar nenhum conhecido. A despeito disso, viu o doutor Caldas, que acenou com a mão. As luzes se apagaram, ficando acesas apenas pequenas lâmpadas verdes. O dirigente fez uma prece a Deus evocando a presença dos amigos espirituais e falou sobre a importância da fé. Uma moça distribuiu um papel com o número que indicava a ordem das consultas, e Humberto percebeu que teria de esperar um pouco. Mas a espera foi agradável. O ambiente em penumbra, com música relaxante, provocou em Humberto uma sensação de bem-estar como há muito ele não sentia. Todos nós nos sentimos felizes e serenos quando entramos em contato com a espiritualidade. No turbilhão do mundo, envolvidos pelos problemas materiais e com as regras da sociedade, muitas vezes nos esquecemos desse contato e de como ele nos beneficia. E por isso que todo ser, ao meditar, orar ou freqüentar lugares onde mora a espiritualidade superior sente sensações de paz e alegria que não estão acostumados a ter na rotina do dia-a-dia. Humberto ignorava que para estar ali naquele momento muito esforço fora empreendido pelos seus amigos espirituais e por Flaviana, que agora procurava auxiliá-lo a encontrar o caminho do bem. Juvêncio, Romário e Nicodemos tudo tentaram para impedir que ele chegasse ali. Primeiro planejaram mexer no mecanismo do carro para que ele não conseguisse dirigir, depois pensaram em induzi-lo a um sono profundo, também cogitaram visitas de amigos da política e, por fim, uma terrível dor de cabeça. Nada conseguiram porque os espíritos do bem estavam em alerta e havia em Humberto o desejo sincero de melhorar. Mas nem sempre isso acontece. As pessoas, quando chamadas a um lugar de oração e espiritualidade, costumam ter toda espécie de problemas corriqueiros: dores de cabeça e mal-estar, visitas inesperadas, falta de vontade de ir, acidentes domésticos, desânimo, entre outros. É preciso o desejo sincero do bem para obter proteção. Finalmente chegou sua hora e ele, um pouco envergonhado, entrou em pequena sala iluminada apenas por uma lâmpada azul. A atendente perguntou:
- Qual o motivo de sua consulta? Aqui estamos dispostos a ajudar em nome de Deus e não deve temer confessar seus problemas. Somos todos seres humanos e necessitamos em algum momento da ajuda espiritual.
Ele estava tímido, mas a voz doce daquela mulher lhe inspirou confiança. Além do mais, o ambiente em penumbra facilitava à timidez inicial se transformar em coragem, afinal, ele já não agüentava mais lidar com a impotência.
- Eu... Estou com problemas de saúde. Procurei um médico, fiz exames, tomei remédios, mas nada adiantou. Minha filha acha que pode ser problema espiritual, até meu próprio médico, que é trabalhador desta casa, afirmou que posso estar sendo assediado por espíritos perturbadores. Por não agüentar mais a situação, venho pedir ajuda.
- Em primeiro lugar, gostaria que soubesse que todas as nossas doenças vêm de atitudes negativas que estamos tendo para conosco. A depender do tipo de doença que atraímos, acabamos por descobrir sua causa. O que se passa com você?
Ele hesitou um pouco, depois, tomando coragem, revelou:
- Estou impotente há várias semanas. Você deve saber como é difícil para um homem falar sobre esse problema, mas a situação tem piorado. Como os espíritos podem ajudar?
A atendente demorou um pouco e respondeu:
- Você já procurou a medicina terrena e não conseguiu se curar. Os amigos espirituais estão dizendo que o problema está na parte energética. Você atraiu esse problema porque precisava desenvolver sua consciência.
- Há espíritos envolvidos no assunto?
- Sim, mas não precisa se assustar com isso. A interferência dos espíritos em nossa vida é mais constante do que se pode imaginar, e todas as pessoas são envolvidas por eles, mesmo que não percebam. A impotência sexual aparece quando o homem começa a se sentir fracassado na vida ou quando se sente inferior a sua parceira. Também pode acontecer quando ele gosta de manipular e dominar as pessoas à sua volta, então a vida manda esse problema para que ele acorde e se torne melhor. Mas seu caso não é esse; sua impotência tem origem espiritual. Tudo indica que espíritos ainda presos aos interesses que deixaram na Terra estão tentando baixar seu padrão energético, levando-o à depressão e ao complexo de inferioridade, por objetivos que estamos longe de saber.
Humberto estava um pouco assustado; aquilo era muito novo para ele. Ainda assim, arriscou uma pergunta:
- Por que eles conseguiram me atingir?
- Uma obsessão pode acontecer por diversos motivos, mas em todos os casos foi o obsediado quem abriu suas energias para essa invasão. No seu caso, foi para que despertasse para a vida espiritual. Você precisa deixar o materialismo que o vem infelicitando há muitas vidas. - Ela falava com voz levemente modificada. - Pelas ilusões da matéria você sofreu e fez sofrer, mas chegou o momento da mudança e do amadurecimento. De agora por diante, se quer ficar bem e curar-se do mal que o aflige, deverá cultivar a espiritualidade, estudar as leis das energias e aprender a se defender. Todas as pessoas terão de passar por esse momento.
Ele estava confuso.
- Mas eu não acredito muito nessas coisas. Depois, não quero ser médium nem servir aos espíritos. O que mais desejo é ter minha vida de volta.
- Não estou dizendo que você precise trabalhar com os espíritos, mas só conseguirá curar-se se inverter os valores em sua vida, colocar os espirituais acima dos materiais, fazer uma reformulação no mundo interior. Sua hora chegou Humberto. Pense nisso com carinho.
A consulta parecia ter terminado e Humberto estava insatisfeito.
- Quer dizer que só vim aqui para conversar? Não vou fazer nenhum tratamento?
- Vai sim. Vou colocar seu nome no caderno para os trabalhos de desobsessão e agora você vai para a câmara de passes, mas deverá voltar nesses dias para o tratamento. - Ela lhe deu um papel, que ele guardou no bolso. Depois sorriu e falou: - Fique com Deus, Humberto!
Ele ficou encantado com aquele sorriso e com a delicadeza daquela mulher; algo nela mexera profundamente com ele desde que entrara na sala.
- Posso saber seu nome?
- Chamo-me Sílvia. Foi um prazer conhecê-lo.
Humberto se despediu, foi para a sala de passes e depois saiu. Mesmo não sendo como ele esperava, uma esperança nova brotou em seu coração. Contudo o que mais o intrigava eram a voz e o sorriso de Sílvia, que não lhe saíam do pensamento.

17 - INTRIGA

Alguns meses se passaram e Humberto continuou seu tratamento. Todavia os resultados não apareciam e ele começou a ficar triste e depressivo. Vendo a alegria de sua filha preparando o enxoval para o casamento e a harmonia que aparentemente reinava em seu lar, ele nada dizia a ninguém e sofria calado. Isabela fingia compreender e não se importar com a falta de relações entre eles, dizendo amá-lo mesmo que nada acontecesse entre os dois. Ele se enternecia pelos sentimentos dela e prosseguia esperançoso, mas nada o fazia melhorar. Por outro lado, Isabela continuava com os encontros com Fernando, agora com mais intensidade. Fingia aceitar o casamento, mas o fizera prometer continuar sendo seu amante mesmo depois de casado. Era um final de tarde e Marília estava ansiosa para que o filho chegasse do trabalho. Precisava ter uma conversa séria com ele. Desde que pedira a mão de Patrícia em casamento e as famílias tinham estreitado suas relações, Marília conhecera Humberto e Isabela num jantar e sentira que aquela mulher era perigosa e poderia colocar seus planos a perder. Impaciente, ela esperou. Quando finalmente Fernando chegou, ela mal o deixou afrouxar a gravata e foi logo dizendo:
- Precisamos conversar seriamente. Sou sua mãe e sinto que sua vida pode desmoronar a qualquer momento, caso não termine seu relacionamento com aquela mulher vulgar.
Ele não esperava ouvir isso da mãe e sentou-se ao seu lado. Costumava ouvir e seguir tudo que Marília lhe dizia. Se ela o estava alertando, certamente sabia algo importante.
- Por que a senhora diz isso? Afinal, foi a primeira que me incentivou a manter esse relacionamento. Sabe de algo que não sei?
- Eu não a conhecia, mas depois que a vi percebi que essa mulher vai lhe causar muitos aborrecimentos. Ela tem gênio e é voluntariosa, pode até separá-lo da Patrícia.
- Também sinto isso, mas não tenho coragem de romper a relação que temos. Apesar de tudo, gosto do prazer que ela me proporciona, além das facilidades financeiras.
Marília o olhou seriamente.
- Se quer ter um belo futuro, status e estabilidade ao lado de sua mulher, deverá romper com Isabela o quanto antes. Tenho pressentimentos de que algo de ruim vai acontecer. Prometa a mim neste momento que ainda hoje porá fim a essa relação.
Marília falava severamente, e Fernando se impressionou.
- Prometo fazer o que me pede, mas sei que não será fácil. Isabela fará de tudo para me prender a ela.
- Resista, negue, mas se afaste dessa mulher.
- Temo que ela possa revelar nossa relação. Não posso mais viver sem Patrícia.
- Ela não vai ter essa coragem. Poderá ser vista como adúltera e perder seus direitos no rico casamento que fez. E melhor fazer o que estou dizendo, e rápido.
Fernando estava realmente impressionado. Deitou no sofá e colocou a cabeça no colo da mãe, que acariciava seus cabelos lisos. Estava decidido: entre ele e Isabela nada mais poderia acontecer. Após tomar um banho e jantar, ligou para ela e marcou um encontro para a próxima tarde. Era sábado e ele estaria de folga. Isabela estranhou; geralmente quem marcava os encontros era ela. Conversou com Morgana, que a fez acreditar que ele estava cada vez mais apaixonado, por isso estava marcando para se encontrarem. Isabela esperou o outro dia chegar com ansiedade. Na hora marcada, estava lá. Quando Fernando entrou, ela, como sempre, correu para abraçá-lo e beijá-lo nos lábios, mas desta vez ele não correspondeu.
- O que está havendo com você, meu amor?
- Isabela, precisamos conversar. Tenho repensado minha vida, estou noivo, vou casar daqui a um mês... - Ele parou, hesitando. Não sentia coragem para dizer o que queria.
Isabela, percebendo o que ele iria dizer, o encorajou:
- Vamos, diga, quero que vá até o fim.
- Não sei como lhe dizer isso. Você é uma pessoa muito especial para mim, me auxiliou muito, nossa relação é boa, mas não devemos continuar com ela. A partir de agora, não teremos mais nada. Acabou.
Isabela ouvia sem querer acreditar. Seu coração batia descompassado; o ar parecia faltar-lhe aos pulmões. Mesmo assim, reuniu forças para continuar.
- Quando tomou essa decisão? Há menos de três dias estávamos juntos e tudo parecia bem. Você jurou que ficaria comigo mesmo depois de casado. Chegamos a fazer planos. Como pode dizer isso agora? - Ela estava desesperada. Realmente amava Fernando, e não queria a separação. Porém ele, instruído pela mãe, deu o golpe final:
- Descobri que amo Patrícia e é com ela que quero ficar. Desejo ser fiel, amá-la como ela merece. Não amo você; desde o princípio nossa relação não passou de uma aventura.
Cada palavra dita por ele parecia atingir o coração de Isabela como um punhal. Ela começou a sentir um ódio surdo e deu uma bofetada no rosto dele. Fernando, envolvido pela raiva, começou a esbofeteá-la. Ela foi revidando e ele, dominado por uma força estranha, começou a chutá-la e acabou jogando-a no chão. Ele tinha força duplicada e logo ela estava toda sangrando. Ainda com muito ódio, ele disse:
- Espero que isso sirva para aprender a me respeitar. Não gosto de mulheres vadias como você.
Fechou a porta e saiu. Isabela estava louca de raiva, decepção e angústia. Seu sonho de amor havia chegado ao fim. Mas isso não ficaria assim. Ela encontraria uma maneira de se vingar e acabar com aquele casamento. Seu corpo doía e os cortes estavam sangrando. O que iria dizer quando chegasse em casa? Havia saído sem Amaral, o que não costumava fazer. Tentou se levantar e foi com dificuldade que conseguiu. Ao descer, tomou um táxi e foi para casa. Todos se espantaram com o estado de Isabela. Ela, muito hábil, contou que tinha sido assaltada e tentara reagir, por isso fora violentada. Morgana, muito desconfiada, conseguiu a verdade da amiga, que chorava muito e, com feições animalescas, planejava vingança. Humberto estava em Brasília e só estaria em casa no outro fim de semana, o que em muito aliviou Isabela. Não queria que o marido a visse com aqueles ferimentos e aquelas manchas roxas. Já bastavam as perguntas de Patrícia, de Eudásia e dos empregados. Morgana aproveitou que estava de folga e foi visitar madame Aurélia. Ao entrar naquela casa, sentiu saudades do tempo em que morava lá. Aurélia e Luana chamaram-na para o quarto onde trocavam confidencias. Morgana começou a relatar os últimos fatos.
- Foi isso mesmo que aconteceu. Fernando terminou tudo com ela e ainda a espancou. Nosso plano de denunciá-la a Humberto não vai dar certo e, além de tudo, ela quer meu auxílio para separar o casal.
A cafetina pensou um pouco, então respondeu:
- Esse plano não está perdido e podemos ainda fazer com que Humberto saiba a verdade. Você será a encarregada.
- Como poderei fazer algo, se eles não estão mais unidos?
- Você colocará na mente de Isabela a idéia de que ainda pode se reconciliar com Fernando. Eles precisam se encontrar, mesmo que seja apenas uma vez, para conversar, e daí você contará a Humberto toda a verdade e indicará o local onde se encontram. Fará mais: descobrirá o dia que vão se encontrar fará uma cópia da chave do apartamento e dará a Humberto. Ele ouvirá tudo e a expulsará de casa. Seja amiga dele, insista em que ele precisa fazer um flagrante de adultério; só assim ela perderá o que adquiriu com o casamento e terminará mais pobre do que nunca.
Luana anuiu:
- Isso mesmo. Ela jamais desconfiará de você. As pessoas confiam muito mais nos falsos amigos do que nos amigos verdadeiros, sempre foi assim. Faça isso e aposto que Humberto ainda a recompensará financeiramente.
Morgana era falsa, mas no íntimo não gostava do que estava fazendo. Ela não via motivo para tanto ódio por parte de Aurélia e não podia compreender como uma pessoa como Luana praticava o mal somente por inveja. No fundo, não via a hora de tudo isso acabar para que pudesse voltar ao interior e viver ao lado dos pais. Morgana ficou pensativa. Aurélia percebeu.
- Não adianta tentar fugir de nossos planos. Você quis ser tão vingativa quanto nós duas e agora não poderá voltar atrás.
Já cometeu um crime, matou uma criança e, se não cumprir o que prometeu quem terminará morta é você.
Sentindo-se ameaçada, ela tentou contemporizar:
- Não estou querendo fugir madame. Apenas pensava no motivo tão pequeno que transformou a mim e a senhora em assassinas cruéis.
- E que você é muito ingênua e não sabe do que o ser humano é capaz. Todos nós carregamos no íntimo sentimentos que desconhecemos. Isabela me transformou no que sou hoje.
Morgana não insistiu. Após ouvir mais uma vez o meticuloso plano, voltou para a mansão. Ao chegar, foi logo procurar a amiga, que escondia o rosto entre almofadas.
- Como você está?
- Não consigo pensar em outra coisa, a não ser em vingança - falou Isabela demonstrando ódio. - Amo Fernando demais para ter de perdê-lo. Se ele não for meu, não será de mais ninguém.
- Compreendo que queira se vingar, mas o amor de vocês foi muito grande. Fernando pode ter feito o que fez movido por alguma pressão. Nunca lhe ocorreu que ele pode estar arrependido?
Isabela pareceu pensar, depois comentou:
- Não acredito. Senti muita decisão nas palavras dele. E ele foi violento, coisa que não costuma ser. Sei que a situação está perdida, mas não posso deixar esse casamento acontecer, e, se acontecer, tenho de encontrar uma forma de afastá-lo de Patrícia, custe o que custar. Agora só me resta a vingança. Mas tenho de tomar cuidado para que Humberto jamais saiba que estou por trás.
Morgana começou a sentir que Isabela estava decidida. Ela precisaria ser muito persuasiva para tentar fazê-la mudar de idéia. Resolveu continuar apelando para sua paixão. Ela conhecia muito bem esse sentimento; sabia que, quando uma mulher se apaixona, se ilude com muita facilidade e qualquer esperança, mesmo falsa, reacende a chama. Com voz meiga, ela tornou:
- Ainda não acho que você esteja certa. Movidos pelo ódio podemos cometer atos dos quais vamos nos arrepender futuramente. Sei que você o ama e também senti que ele ama você; percebi pelos olhares que ele lhe lançava. Uma paixão assim não termina de uma hora para outra. Insista; se quer ser feliz, deverá lutar por ele.
O rosto de Isabela se iluminou. Ela gostou muito de ouvir tudo aquilo.
- O que acha que devo fazer? Tenho medo até de voltar a me aproximar dele depois de tudo o que me fez. E se você estiver errada? E se estiver mesmo disposto a me abandonar?
- Você sabe que não me engano com as pessoas. A vida num bordel pode nos ensinar muitas coisas, inclusive a perceber quando um homem está apaixonado de verdade. Acredite, ele está se casando por conveniência, mas ama realmente você. Vai deixar essa chance escapar? Procure o Fernando, marque com ele um encontro, fale que será a última vez. Quando estiverem frente a frente, diga que o ama que o perdoa que deseja um retorno. Faça alguma coisa, mas lute por esse amor! Tenho certeza de que ele vai ceder e voltará para você.
Morgana falou com tamanha empolgação que Isabela se convenceu de que era verdade. Sua vaidade falou mais alto e naquele momento ela realmente acreditou que Fernando a amava e que ambos tornariam a viver a paixão de antes. Aquela conversa teve o dom de animar Isabela, e ela passou a planejar tudo. Morgana estava muito feliz; sua parte no plano estava sendo perfeitamente desempenhada. À noite Fernando apareceu, mas Isabela continuou reclusa em seu quarto. Só queria aparecer quando os hematomas estivessem desaparecidos. Mesmo assim, foi à sacada e de lá viu Patrícia e ele fazendo planos para o futuro e se beijando apaixonados. De repente pensou que Morgana estava enganada e que realmente ele havia deixado de amá-la, mas, envolvida pelos seus companheiros espirituais, logo estava pensando nas mesmas ilusões de antes. Teve de buscar forças ao ver Patrícia e Fernando dirigirem-se ao quarto, mas pensava que logo as coisas estariam como antes. Os dias foram passando e as marcas no corpo de Isabela já haviam desaparecido então ela começou a sair. Ao rever Fernando lembrou que fora gravemente violentada, mas também imaginou que ele agira por impulso e imediatamente o perdoou. Tratou-o como se nada tivesse acontecido e o fez tão bem que o próprio Fernando imaginou que a surra havia servido para que ela o esquecesse de vez. Mas qual não foi sua surpresa quando, ao se vir a sós com Morgana, ela comentou:
- Fernando, não quero que ache que estou sendo abusada, mas sei tudo que aconteceu entre você e Isabela. A princípio ela ficou desesperada, porém agora reconhece que foi imprudente envolvendo-se numa relação como essa. Ela me pediu que conversasse com você e quer que lhe diga que, apesar de tudo, ainda o ama e deseja um último instante com você antes que se case.
Fernando pareceu perceber que se tratava de um jogo e respondeu em voz baixa, com receio de que alguém mais escutasse:
- Não sei o que vocês pretendem, mas diga a sua amiga que nada mais existe entre nós. Essa relação foi um erro; amo Patrícia e pretendo ser fiel a ela. Se você realmente sabe o que aconteceu, nem deveria estar aqui falando comigo.
Ele ia se levantando do sofá, mas Morgana segurou em seu braço e pediu súplice:
- Acredite, Isabela está modificada. Ela não deseja um retorno, apenas quer ter um instante em que possa falar o que sente e dizer pessoalmente que quer sua felicidade e que não está contra seu casamento. Aceite vê-la uma última vez, só vocês. E muito importante para ela e é o mínimo que você pode fazer depois do que aconteceu.
- Prometo pensar. Agora me deixe ir, não quero que minha futura mulher me veja de cochichos com você.
- Prometa me dar a resposta o mais rápido possível. Faça isso em nome de tudo que a Isabela fez por você.
- Está bem - disse secamente, e saiu.
Morgana puxou Isabela para o quarto e mentiu:
- Ele aceitou rapidamente. Falou que está arrependido pelo que lhe fez e confessou que a ama. Só lhe pede um tempo, pois ainda está envergonhado pelo que ocorreu.
Isabela parecia flutuar. Então era verdade: o homem que ela amava também lhe correspondia. Fizera aquela desfeita porque se encontrava em um mau momento, e ambos podiam voltar a se amar. A felicidade era tanta que ela sorria e abraçava Morgana.
- Obrigada pelo que me fez. Sem seus conselhos talvez agora estivesse perdida numa vingança que só ia me afastar da pessoa que mais amo neste mundo.
Morgana fez um ar de superior e respondeu:
- Sou experiente. Sei reconhecer quando um homem está amando. Agora vamos aguardar ele marcar a data.
Muito feliz, sem imaginar a teia que estava sendo tecida, Isabela saiu às compras e só muito tarde retornou ao lar. Morgana estava preocupada e temerosa; não queria que Fernando marcasse o encontro para um dia que Humberto estivesse em Brasília, contudo tinha algo em mente para usar caso isso acontecesse. Humberto só chegaria na sexta pela manhã e o esperado aconteceu: Fernando disse que queria ver Isabela na quinta à tarde. Morgana fingiu aceitar, no entanto falou à amiga que o encontro seria no sábado. Quinta-feira, Fernando estava no apartamento esperando quando Morgana apareceu.
- Vim para dizer que Isabela está passando mal em casa, com uma terrível enxaqueca. Pede que a perdoe e quer remarcar o encontro para o sábado neste horário. Amanhã Humberto chega e ela não quer sair no primeiro dia em que ele está em casa.
Fernando, nervoso, passou a mão pelos cabelos lisos.
- Não sei o que ela ainda tem para me dizer. Fui muito claro da última vez que estive com ela. Diga que não volto mais.
Morgana sentiu-se irritada. Se o plano saísse errado, madame Aurélia não a perdoaria; tinha de ser rápida.
- Também não concordo com esse encontro, mas ela quer ter a chance de lhe dizer que está arrependida e disposta a levar uma vida de paz com você e Patrícia, afinal todos vão morar na mesma casa.
- Se é só isso que ela quer me dizer, então diga que não precisa. Já sei do que se trata e estou informado.
Morgana lançou a última cartada:
- É que ela quer lhe dar um presente como lembrança do que viveram.
Ele sorriu.
- E essa agora! Diga que não quero mais nada.
- Trata-se de algo valioso, um presente muito caro para selar a paz!
Fernando pensou: "Será o relógio de ouro com o qual tanto sonho?" A esse pensamento, resolveu aceitar.
- Diga-lhe que aceito, mas, se não aparecer no sábado, não voltarei atrás.
Morgana, muito satisfeita, esperou Fernando sair e depois foi fazer uma cópia da chave. Precisava dela para dar continuidade ao seu plano. Quando chegou em casa, o jantar estava sendo servido. Mesmo assim, conseguiu subir e recolocar a chave do apartamento onde Isabela a guardava; só ela sabia o local. A sexta-feira transcorreu calma. Apenas Isabela demonstrava uma ansiedade fora do normal. Humberto chegou e foi recebido com alegria por todos, inclusive por Fernando, que se encontrava na mansão. Morgana estudava uma maneira de falar com Humberto a sós, mas não via como. Na medida em que as horas foram avançando e eles foram se recolhendo, ela decidiu ficar acordada. Sabia que Humberto tinha o costume de acordar à noite para um lanche, e ela o esperaria de vigília. No quarto de Isabela, mais uma vez Humberto não havia conseguido fazer amor e os dois estavam tensos e nervosos. Ele resolveu comentar:
- Acho que esse tratamento espiritual não está fazendo efeito. Estou nele há mais de dois meses, e nenhuma melhora aconteceu.
Isabela fingiu ser compreensiva e se interessar pelo assunto.
- Você sabe que não acredito em nada disso, mas acho que deve ter paciência. Patrícia fala que esses tratamentos são demorados e não se resolvem de uma hora para outra.
- A Sílvia também diz a mesma coisa. Mas é que dá uma vergonha... Sinto-me o pior dos homens!
Ela começou a fazer carinhos forçados nele, enquanto dizia com voz dengosa:
- Não fique assim. Sou sua mulher e não me importo, portanto não tem com que se preocupar. A não ser que queira mostrar seu desempenho com outra...
- Nada disso. Só penso em você. Acho que traía a Flaviana porque não a amava, mas com você é diferente. Não penso em ter mais ninguém. Também não gostaria de ser traído. A Sílvia sempre diz que recebemos os resultados das nossas atitudes, porém confesso que me é muito penoso pensar em receber a traição de volta.
Isabela não estava gostando do rumo que a aquela conversa tinha tomando e resolveu inverter a situação:
- Jamais trairia você, mas vejo que está muito empolgado com essa Sílvia. Já falou nela duas vezes. Vou avisando que não tolero traições; não sou como a mosca morta da sua ex-mulher.
- A Sílvia é uma mulher que muito admiro, é uma das terapeutas do centro que freqüento nada de mais. Está com ciúmes?
- Sim. Nem todas as mulheres têm a chance de estar com um homem como você.
Humberto se sentiu valorizado. Mesmo estando impotente, sua mulher o amava e o respeitava; até ciúmes estava sentindo. Os dois resolveram dormir, mas Humberto não conseguiu. Sentiu a fome costumeira e a vontade de "assaltar a geladeira" o fez levantar e ir até a cozinha. Isabela dormia profundamente e nem percebeu que ele se levantara. A casa estava às escuras e ele, mesmo conhecendo o caminho, sentiu certa dificuldade para chegar à cozinha e acender a luz. Quando conseguiu, levou um verdadeiro susto. Sentada em uma cadeira que circundava uma mesa pequena estava Morgana, com olhos muito abertos a fitá-lo. Quando o viu, falou em voz baixa, mas com firmeza:
- Humberto, esperei todo esse tempo porque sei que durante a noite costuma se levantar e vir até a cozinha. Contive meu sono porque preciso lhe falar com urgência. Não dá mais para segurar esse segredo, está me fazendo mal.
Humberto coçou o bigode com curiosidade. Ela estava realmente nervosa, e se o tinha esperado àquela hora era porque deveria ser algo sério. Perguntou:
- Mas o que pode ser tão grave que não pôde me dizer durante o dia?
- Sente-se que a história é um pouco longa e o senhor tem de saber tudo.
Ele puxou a cadeira para ouvi-la, sentindo-se cada vez mais curioso.
- Para iniciar devo lhe dizer que não sou prima da Isabela coisa nenhuma. Ela não tem parentes no Nordeste, pois, como o senhor mesmo sabe, saiu de uma favela aqui mesmo de São Paulo, direto para a casa de madame Aurélia. Sou uma das meninas que trabalha na Mansão de Higienópolis, o senhor não me reconheceu porque não freqüentava o lugar com assiduidade e as poucas vezes que esteve lá só tinha olhos para Isabela. Pois bem, madame Aurélia, preocupada com sua vida, pois muito o estima, pediu que eu mentisse para Isabela dizendo que fui expulsa de lá e que não tinha para onde ir. O plano deu certo e ela me chamou para morar com vocês. Na verdade, estou aqui como espiã. A madame achava que Isabela poderia a qualquer momento prejudicá-lo e eu, como melhor amiga dela, saberia de tudo com antecedência e poderia informá-lo. Mas nunca pensei em descobrir algo tão terrível...
Humberto se impacientou. Não estava gostando nada daquilo. Uma espiã em sua casa? Com que intenção?
- Onde está querendo chegar?
- Não sei como lhe dizer isso, mas há alguns dias descobri que Isabela o trai.
Humberto corou.
- Como?
- Isso mesmo. Sem querer, acabei sabendo de tudo. Flagrei Isabela e Fernando se beijando aqui mesmo nesta cozinha.
Pressionei e ela me contou tudo: são amantes há muito tempo. Tentei guardar esse segredo, mas vendo o senhor tão justo e bom não consegui me conter. Fernando, seu futuro genro, tem um relacionamento com sua esposa e, pelo que sei, pretendem continuá-lo mesmo depois que ele se casar com Patrícia.
Humberto sentia a cabeça rodar. Pensamentos contraditórios passavam por sua mente. Só podia ser mentira. Aquela mulher estava ali para fazer intriga, para se vingar por Isabela ter conseguido um bom casamento e ter deixado o bordel.
- Você está mentindo; Isabela é fiel. Aurélia a mandou aqui apenas para fazer intriga e se vingar de mim e de minha mulher. Conheço-a bem para saber que jamais se preocuparia comigo a ponto de enviar uma das suas meninas somente para me proteger. Agora saia daqui e amanhã a quero fora de minha casa. Além de mentirosa, é falsa; está a todo instante com minha mulher e a trai covardemente inventando uma farsa como esta. Fernando é um bom rapaz e também não merece o que você está fazendo.
- Ouça-me pela última vez. Sei que a madame tem o desejo de ver Isabela mal, mas eu jamais inventaria uma trama como essa. Esta chave abre a porta do apartamento onde eles se encontram. Tomei a liberdade de tirar uma cópia para que o senhor possa entrar primeiro e se esconder para ouvir o que vão dizer. Acredite em mim: eles vão se encontrar amanhã às três da tarde, e aqui está o endereço. - Ela pegou um papel e o entregou junto com a chave.
Humberto estava confuso, parecia ser mesmo verdade. Morgana falava com seriedade e estava tentando mostrar-lhe a prova. Um grande ódio brotou dentro dele. Se Isabela o estivesse traindo com Fernando, não saberia qual seria sua reação. Pegou a chave da mão dela e a guardou.
- Não vou mandá-la embora enquanto não verificar se o que diz é mesmo verdade. Agora vá dormir. Já me disse tudo que tinha para dizer.
- Antes, quero lhe fazer uma sugestão: por que não faz um flagrante de adultério? Isabela perderia todos os direitos do casamento e voltaria pobre para o olho da rua.
Humberto estava irritado demais para pensar naquilo.
- Vá dormir, é o melhor que tem a fazer.
Ela saiu radiante, deixando Humberto pensativo. Se Isabela o traísse seria para ele o fim. Tinha uma arma em casa, e decidiu levá-la. Como ela poderia ter coragem de traí-lo e, além de tudo, com Fernando? Era demais para a honra de um homem, e ele resolveu que a lavaria com sangue. De volta à cama, vendo Isabela ressonar, pensou em matá-la ali mesmo, mas resolveu esperar o outro dia para confirmar a história. Sabia que as prostitutas eram muito invejosas e gostavam de prejudicar umas às outras. Poderia ser uma armação para destruir seu casamento. O resto da noite virou na cama, só conseguindo adormecer quando o dia clareou por completo.

18 - A NOVA REALIDADE

O sábado amanheceu bonito e na mansão tudo corria como sempre. Humberto não saiu pela manhã e, à tarde, pretextando uma visita a amigos, se ausentou de casa. Isabela ficou feliz, pois, com o marido fora de casa, não tinha de dar satisfações quando saísse. Em seu quarto, ela se arrumava com esmero. Precisava estar o mais bonita possível para Fernando. Só em pensar que novamente poderiam se encontrar, um arrepio percorria todo o seu corpo. Ao descer as escadas, Morgana elogiou sua beleza, o que a deixou ainda mais animada. Assim ela saiu. Pediu que o motorista a deixasse no lugar de sempre e dali tomou um táxi, indo em direção ao apartamento. Enquanto isso, Humberto, de posse da cópia da chave, entrou no apartamento e o que viu foi lhe tirando o fôlego. Havia fotos de Fernando e Isabela espalhadas pelos aposentos, algumas com cenas de intimidade, mostrando claramente que mantinham um romance. Ele não conseguia acreditar e pensava: "Como pude me deixar enganar por uma mulher desse tipo? Depois de tudo que fiz para ela, de ter lhe dado um nome, posição, ela me retribui com uma traição, e com o pulha do meu genro?! Canalhas! Pagarão caro o que estão fazendo comigo e com minha filha. Por que não pensei em fazer um flagrante? No fundo, eu não acreditava que isso fosse verdade, mas agora é tarde. Os dois pagarão com a vida o que estão fazendo". Ao pensar nisso, sombras escuras se aproximaram e o abraçaram com prazer. Humberto examinou cada detalhe do apartamento e, ao lembrar que ele era mantido com seu dinheiro, sentiu a raiva aumentar. De repente, ouviu barulho de fechadura e se escondeu atrás de um móvel. Do local onde estava percebeu que Fernando havia entrado, ido até o bar e se servido de uma bebida. Depois o viu se acomodar no sofá e teve gana de matá-lo naquele momento. Mas tinha de ser os dois. Humberto sentia tanto ódio que não pensava na sua posição como político, como pai, como homem da sociedade; só a vingança prevalecia. Ele havia amado Isabela de verdade, mas seu amor era possessivo e não admitia uma traição como aquela. De repente, a porta se abriu e Isabela entrou. Vendo-se tão próxima de Fernando, ela não resistiu e correu a abraçá-lo e beijá-lo repetidas vezes.
- Meu amor, eu sabia que você ia me perdoar, que tudo voltaria a ser como antes. Vem, quero amar você.
Ele não retribuiu e afastou-a bruscamente.
- O que significa isto? Não vim aqui para fazer as pazes com você. Já disse que em breve vou me casar e que nosso caso ficou no passado. O que está armando para mim agora?
Isabela estava sem entender.
- Como? Você não me perdoou e não deseja voltar? Por favor, não brinque comigo. Sei que me ama e deseja voltar para mim a fim de vivermos como antes. Por que está fazendo esse jogo agora?
- Não estou fazendo jogo nenhum. Sua amiga Morgana me procurou e disse que você estava arrependida, que nosso caso havia sido uma loucura e que queria conversar comigo como uma despedida. Também falou que me traria um presente, como recordação dos momentos que vivemos juntos. É você que está fazendo jogo comigo. Agora entendi tudo. O que você quer é uma reconciliação e usou essa artimanha para me reconquistar. Sabe o que você merece? Outra surra como aquela que lhe dei outro dia.
Isabela estava nervosa. Algo estava muito errado.
- Fernando, preste atenção, há um complô contra nós. Morgana disse que você havia me perdoado que me amava e desejava estar novamente comigo. Foi ela quem marcou nosso encontro para hoje. Também achei estranho, depois daquela sua atitude, essa mudança tão repentina. Estava perdendo as esperanças, quando a vida pareceu se iluminar novamente.
- Essa sua amiga vagabunda quer aprontar alguma para nós dois, mas não entendo o quê.
- Eu vou explicar - era a grossa voz de Humberto, que acabava de aparecer, com o revólver em punho e dedo no gatilho. - Chegou o fim de vocês, mas antes quero lhe dizer Isabela, que você é a pior pessoa que conheci nesta vida, uma ingrata. Depois de tudo que fiz, é assim que me retribui? Aurélia me avisou que você não prestava, mas envolvido por seus feitiços não ouvi a voz da razão e agora paguei o preço. Contudo, terá o fim que merece.
Fernando, estupefato, tentou falar:
- Não tive culpa. Ela me seduziu, me prometeu muito dinheiro e acabei cedendo por inexperiência. Mas acordei para o erro que estava cometendo e terminei tudo com ela, como o senhor pôde ouvir. Poupe minha vida, estou arrependido. Desejo casar com sua filha e fazê-la feliz.
Humberto gritou com os lábios crispados de raiva:
- Você só serve mesmo para prostitutas como essa mulher aí. Jamais para uma moça honrada como minha filha. Agora cale-se; prepare-se para conhecer o inferno.
Humberto mirou a arma na cabeça de Fernando, que não tinha com o que se defender e esperava a hora do tiro. Isabela chorava, ajoelhada no chão. De súbito, o espírito de Diana envolveu Humberto com muito amor e lhe sugeriu:
- Lembre-se do que aprendeu com a Sílvia; matar só vai lhe trazer infelicidade.
Humberto atirou uma, duas, três vezes, todas para o teto. Fernando e Isabela não entenderam, mas o rapaz aproveitou, abriu a porta e correu em disparada. Ela continuou chorando e, nesse instante, Humberto bradou:
- Saia da minha frente! A partir de hoje não colocará mais os pés na minha casa. Não consegui matar vocês como mereciam, porém nunca mais conte comigo para nada. Vou pedir o divórcio, e de agora em diante terá de contar apenas com o pouco que conseguiu ao meu lado. Quando o dinheiro acabar, voltará às ruas para pedir esmola ou para o bordel, de onde jamais deveria ter saído. Agora saia. - Humberto lhe dava chutes violentamente, até que, vencida pelos pontapés, Isabela saiu porta afora.
Humberto permaneceu ainda no apartamento e atirou em tudo que encontrava pela frente. Quando deixou o lugar, ele estava destruído. No carro, guiava sem saber o que fazer. Rodou por várias ruas até que anoiteceu. Ele não imaginava como contar a verdade à sua filha. No íntimo queria que aquilo fosse uma mentira. Patrícia já havia feito todo o enxoval do casamento, redecorado o quarto onde iam dormir e tecia sonhos de felicidade. Mesmo assim, tinha de arranjar coragem para falar. Ao chegar em casa, percebeu que a filha estava com um brilho diferente nos olhos, demonstrando estar muito feliz. Tanto que nem percebeu a aparência transtornada do pai. Como sempre fazia, beijou-lhe o rosto e o chamou para conversar.
- Tenho uma notícia para dar que em muito vai agradar-lhe. Primeiramente quem tinha de saber era o Fernando, mas ele não apareceu aqui esta tarde e estou ansiosa, não posso guardar tanta felicidade só para mim. Há alguns dias estava me sentindo enjoada, tinha náuseas, tonturas e minhas regras haviam atrasado. Imaginei que pudesse estar grávida, mas mesmo assim não contei a ninguém; queria a comprovação. Fiz um exame de laboratório e hoje recebi o resultado: estou realmente grávida! Não é uma felicidade muito grande, papai?
Humberto ouvia as palavras da filha sem querer acreditar. Como iria lhe falar sobre o que tinha acabado de vivenciar? Sentiu a cabeça rodar e o estômago embrulhar, depois tonteou e caiu desmaiado. Patrícia tentou fazê-lo reagir ao mesmo tempo em que gritava. Logo todos estavam ao redor de Humberto. Eudásia afastou Patrícia enquanto dizia:
- Precisamos chamar uma ambulância. Ele não está bem. Alguém tem o telefone?
- Naquela agenda tem o número do hospital onde o doutor Caldas trabalha. Liguem e peçam que ele venha com a ambulância - explicou Patrícia, que estava nervosa e chorava. - Será que ele vai morrer? Não posso agüentar ficar sem meu pai. O que farei sem ele? E Fernando, que não aparece?
Eudásia tentava consolá-la:
- Fique calma, menina. Seu pai ficará bem e as coisas voltarão a ser como antes, tenha fé.
- Não consigo acreditar. Ele estava bem e sadio. De repente foi ficando pálido e caiu dessa forma. O que será que ocorreu?
Morgana e outros empregados da casa também estavam ali ansiosos para saber o que tinha acontecido com Humberto. Ela tinha a intuição de que a revelação de que Isabela o traía tinha feito Humberto adoecer. Estava curiosa, será que ele a tinha assassinado? O tempo passou e logo a ambulância chegou. O doutor Caldas fez os primeiros socorros e o conduziu ao interior do veículo. Patrícia e Eudásia seguiram em outro carro em direção ao hospital. Quando chegaram, tiveram de aguardar mais de uma hora na sala de espera. Finalmente o doutor Caldas apareceu. Patrícia se levantou rapidamente e foi ao seu encontro.
- Como está meu pai? O que aconteceu com ele?
- Fiquem calmos. Humberto teve um AVC, ou seja, um acidente vascular cerebral, mas foi socorrido a tempo. Estamos fazendo exames para saber a extensão da área cerebral atingida e se ele ficará com seqüelas. A notícia não muito boa é que ele está em coma profundo e, em casos como este, não podemos prever quando irá acordar, nem como.
Patrícia assustou-se.
- Mas meu pai estava muito bem. Como isso foi ocorrer de uma hora para outra?
- As causas do AVC são várias e na maioria das vezes ele não apresenta sintomas preliminares. Seu pai teve alguma contrariedade ultimamente?
- Não, ele estava muito bem. Ainda hoje passou a manhã inteira em casa conversando como sempre, se bem que notei algo estranho em seu olhar. Por que essa pergunta?
- É que, como médico, tenho percebido que esse problema tem como causa principal algum desgosto muito profundo. Contudo, ainda não investiguei melhor o assunto. No entanto, se Humberto resistir bem às próximas quarenta e oito horas, estará completamente fora de perigo.
O doutor Caldas ainda conversou mais um pouco e depois autorizou uma breve visita de poucos minutos à UTI. Patrícia estava se sentindo completamente só naquele momento. Fernando não apareceu e ela só podia contar com o ombro amigo de Eudásia. Quando aconselhada pelo médico, resolveu voltar para casa. Era madrugada. Foi ao quarto de Isabela e não a encontrou, o que achou muito estranho. Chamou Morgana, que fingiu nada saber:
- Ela saiu dizendo que iria às compras e, como faz isso sozinha, não a acompanhei. Também estou preocupada. Ela não costuma demorar tanto. Será que foi novamente assaltada?
- Meu Deus! Isso não pode ter acontecido justo hoje.
- Mas devemos levantar essa hipótese. Isabela nunca ficou uma noite fora, já passa das duas, e nem sinal dela.
Patrícia se sentia fraca, não conseguia raciocinar direito. Resolveu se deitar.
- Não vamos conseguir resolver nada agora. Só podemos dar queixa à polícia se uma pessoa estiver sumida por mais de quarenta e oito horas. Se formos lá agora, de nada vai adiantar.
- Temo pela vida de minha amiga. O motorista a levou para a mesma loja de sempre e a esperou no horário combinado, e ela não apareceu. Entrou na loja e perguntou se dona Isabela Aguiar tinha estado por lá e todos disseram que ela nem chegou a entrar. Não acha isso estranho?
- Acho sim e estou preocupada. Meu pai a ama e ela é fundamental para sua recuperação. Mas vou descansar, por hoje estou exausta.
Morgana resolveu fazer o mesmo e minutos depois à mansão estava às escuras.
Desde que fora expulsa a chutes do apartamento, Isabela vagou sem rumo pelas ruas de São Paulo, chorando muito. Seu sonho de amor estava desfeito; seu casamento, arruinado. O que ela poderia fazer de sua vida? Tinha uma conta em seu nome na qual pôde economizar algum dinheiro, mas achando que sua situação era boa não se preocupou muito em poupar. Foi ao banco e retirou uma quantia que dava para hospedá-la num hotel até pensar no que iria resolver. Depois de instalada, tomou um banho e olhou-se no espelho; achou-se feia e velha. Deitou-se na cama e pensou em como se vingar de Morgana e de Fernando. Certamente madame Aurélia estaria por trás daquela situação, elas não perderiam por esperar. Com o pouco dinheiro que tinha, iria arquitetar uma vingança da qual nenhum dos três escaparia vivo. Teria de raciocinar muito friamente para que fossem crimes perfeitos. Jamais ela iria permitir que Fernando vivesse feliz ao lado de alguém. Rolou na cama e pensou também que poderia ainda reconquistar Humberto, só não sabia como. Durante toda a noite não conseguiu dormir e os pensamentos fervilhavam em sua mente, parecendo enlouquecê-la. Pela manhã ligou a TV e, ao ouvir o noticiário, levou grande susto. O jornalista dizia:
- O senador Humberto Costa Aguiar sofreu um acidente vascular cerebral e se encontra em estado de coma no hospital. Sua filha informa que tudo aconteceu muito rápido, mas que ele pôde ser atendido a tempo. Segundo os médicos, seu estado é estável.
A reportagem continuou e mostrou uma entrevista com Patrícia. Logo após, com seus colegas de partido que mostravam solidariedade. Isabela deixou o café que estava tomando e pensou em como fazer para voltar para casa. Não sabia se Humberto havia revelado a verdade à filha, mas precisava tentar. De repente pensou: fingiria que tinha sido assaltada novamente e levada para longe, e só então conseguira voltar. Também ia fingir nada saber sobre a doença do marido. Sorriu abertamente pensando em como a sorte havia lhe favorecido. Humberto provavelmente morreria e ela poderia tomar conta de toda aquela mansão como sempre sonhara. Intimamente agradecia a Deus pelo fato de o marido estar em coma numa UTI; tudo lhe seria facilitado. Pagou a conta do hotel e saiu. Na rua, ela caprichou no visual: desfiou suas roupas e sujou-se de terra, sem se importar com os olhares das pessoas que a observavam achando a cena descabida. Fazendo-se de arfante, ela chegou à mansão. O hotel não era tão longe e ela conseguiu ir a pé. Os seguranças quase não a reconheceram e em poucos instantes ela estava na sala da mansão. Chamou a todos, mas só Eudásia apareceu. Olhando assustada para sua aparência, perguntou:
- O que aconteceu com você? Esta casa está cheia de problemas, estávamos preocupados com seu sumiço, principalmente agora que o senhor Humberto adoeceu tão seriamente.
- O que Humberto teve? Como foi ficar doente?
- Ele estava na sala conversando com Patrícia quando se sentiu mal e desmaiou. Levamos ele para o hospital e está em estado de coma. Como você foi desaparecer num momento como este? Fernando também sumiu e Patrícia está se sentindo muito só. Não sai do hospital um instante sequer. Temo pela saúde dela.
- Desapareci porque ontem, quando fazia compras, dois homens me pegaram, colocaram um revólver em minha cabeça e me colocaram dentro de um carro. Achei que estava sendo seqüestrada e chorava muito. Eles me levaram para um lugar distante e ermo. Lá chegando tiraram o que eu tinha minha bolsa, minhas jóias, relógio, fiquei sem nada. Tentaram abusar de mim e nem sei se conseguiram, pois, de tanto medo, acabei desmaiando. Quando acordei não sabia onde estava. Vaguei pelas ruas parecendo uma mendiga; nenhum táxi atendia a meu chamado. Andei bastante até que acabei achando o caminho.
Eudásia estava impressionada com a narrativa.
- Quanta coisa ruim acontecendo nesta casa de uma só vez. Até a Morgana resolveu ir embora.
- Ir embora? Ela não está mais aqui?
- Está no quarto dela fazendo as malas. Num momento como esse em que ela deveria estar do seu lado, resolveu partir.
Isabela nem terminou de ouvir o que Eudásia dizia e subiu as escadarias, indo em direção ao quarto de Morgana. Invadiu-o com rapidez e Morgana, assustada, começou a tremer. Isabela a olhou com ódio e esbravejou:
- Como ousou me trair? Como teve tamanha coragem? Diga-me!
Morgana tremia muito e com voz que o medo abafava balbuciou:
- Não tive culpa. Ela me obrigou me perdoe!
- Eu sabia. Tinha certeza de que madame Aurélia estava por trás disso. Mas nunca esperava uma traição dessas vinda de sua parte. A partir de agora ganhou uma inimiga para o resto de sua vida. O plano de vocês deu errado e eu continuo nesta casa, sendo senhora absoluta. Humberto morrerá e ficarei com o que é meu, e serei muito rica. Quanto a você, nunca mais terá paz. Vou cuidar para que sua vida se transforme num inferno, a sua e a daquela mulher infernal. Avise-a de que ouvirá falar muito de mim. Agora você vai sair sem nada. Esqueça suas malas. Daqui você não levará nada, pois nada lhe pertence.
- Espero um dia conseguir seu perdão - falou Morgana com a voz fraca.
- Nunca, e você saberá agora do que sou capaz! Acompanhe-me.
Morgana acompanhou Isabela até o jardim sem saber o que ela faria. Lá chegando, Isabela falou algo com Amaral que ela não entendeu, porém rapidamente percebeu do que se tratava. Amaral se aproximou e começou a violentá-la com chutes e socos. Morgana estava sangrando e com manchas arroxeadas no corpo quando Isabela ordenou que parasse. Amaral pegou o corpo quase inerte de Morgana e jogou na calçada. Mais tarde, quando Isabela saiu arrumada para o hospital, ela ainda estava lá, desmaiada. Amaral retornou e, condoído com a situação, levou-a para um pronto-socorro, onde foi atendida e medicada. Ele não gostava de espancar as pessoas, mas sabia que se não cumprisse as ordens da patroa, perderia o emprego que era o sustento de sua família. Isabela chegou ao hospital e encontrou Patrícia na recepção. As duas se abraçaram e Isabela perguntou:
- Como ele está?
- O quadro é estável, mas ele continua em estado de coma profundo. Temo muito pela vida dele. Tenho me sentido muito só. - Patrícia começou a chorar e Isabela a abraçou mais fortemente. Depois que se acalmou, ela perguntou:
- Onde você estava? Já íamos dar queixa à polícia sobre seu desaparecimento.
- É uma longa história. Ontem, seu pai e eu corremos riscos de vida. - Na seqüência, começou a repetir a mesma história que tinha contado a Eudásia. Patrícia estava tão preocupada com o pai que nem prestou muita atenção, pois, se assim o fizesse, perceberia que se tratava de outra mentira mal contada. Depois de terminar a história, Isabela quis saber:
- Onde está o Fernando? A Eudásia me disse que ele não tem estado com você.
- Tenho ligado para a casa da dona Marília e ela me disse que o filho precisou viajar a trabalho, mas que logo estará aqui.
- Estranho Fernando nunca viajou a trabalho... - completou Isabela com maldade.
- Sei disso. Também achei estranho, mas algo deve ter acontecido para ele precisar viajar. Quando chegar, me explicará tudo, tenho certeza.
Isabela teve de esperar muito até que o médico aparecesse e autorizasse sua entrada na UTI. Lá chegando, fingiu tristeza e chorou copiosamente. Patrícia, que a acompanhava, aconselhou:
- Não é bom que tenhamos emoções muito fortes próximos de alguém nesse estado. Os médicos afirmam que, apesar do coma, a pessoa pode ficar num estado semiconsciente em que pode sentir nossas emoções e até registrar nossas palavras. Não chore, ele ficará bem.
- Como eu queria acreditar nisso! Depois que perdi meu filho, achava que Deus não ia me tirar mais ninguém, mas vejo que Ele não é tão bom quanto dizem. Que vou fazer se Humberto morrer?
Patrícia estava surpresa com tamanho sentimento.
- Não pense assim, vamos acreditar no melhor. Deus não é ruim e, se meu pai está passando por isso, deve ter um motivo justo. É um homem bom; depois que minha mãe ficou doente ele tem se esforçado para melhorar. Creio que terá outra chance, mesmo que fique com seqüelas.
- Seqüelas? Como assim?
- Segundo o doutor Caldas afirmou, todo acidente vascular cerebral pode deixar alguma seqüela no sistema nervoso do paciente, de forma que ele pode ficar sem movimentar alguns membros do corpo, um lado inteiro, ou ficar sem falar. Mas isso são apenas hipóteses, só quando ele acordar é que saberemos.
As duas saíram da sala porque o tempo havia se esgotado e foram para casa. Quando chegaram, cada uma foi para o seu quarto. Isabela estava muito feliz por a vida ter lhe dado uma segunda chance, e pensava: "Nasci para viver no luxo e na riqueza. Estou torcendo para que Humberto jamais volte desse coma ou, se voltar, fique paralisado para sempre. Aí poderei ter minha vida de volta. Não sei se Fernando vai retornar a esta casa, mas se voltar lutarei para reconquistá-lo e sei que conseguirei. Depois disso saberei como fazer para me livrar da Patrícia". Com esses pensamentos, entrou na banheira e permaneceu lá por horas. Em seu quarto, Patrícia pensava e não conseguia entender por que Fernando havia viajado sem lhe dar explicações e mesmo com o pai doente não aparecia para vê-la. Novamente ligou para a casa dele e Marília atendeu.
- Ah, sim, querida. Fernando já chegou um momento.
Alguns segundos de espera e logo a voz grave de Fernando se fez ouvir:
- Meu amor, como está? Não consigo ficar mais um instante sem vê-la. Assim que fiquei sabendo do que houve com seu pai, voltei imediatamente.
- Oh, Fernando, como pôde ter feito isso comigo? Estou me sentindo completamente sozinha. Meu pai está mal e você desaparece assim?
- Não tive culpa, precisei resolver um problema de uma das filiais de nossa empresa. Mas voltei quando soube o que aconteceu. Já estava indo até aí quando o telefone tocou.
- Venha logo. Tenho algo a lhe dizer que é muito importante e não pode ser adiado.
- Uma surpresa?
- Não posso falar pelo telefone. Ao chegar, ficará sabendo.
Fernando colocou o fone no gancho e percebeu os olhos de sua mãe a mirá-lo ansiosamente.
- O que ela lhe disse?
- Parece não saber de nada. Isso me dá um alívio muito grande. Por outro lado, temo que o pai possa melhorar e contar o que descobriu.
Marília olhou-o profundamente e disse:
- Para nossa sorte, Humberto adoeceu antes de ter revelado o que sabia. Se melhorar, pode não ficar como antes. Essas pessoas que têm esse problema nunca voltam a ser as mesmas.
Mas, ainda que fique bom, ao ver a filha feliz saberá se conter e nada falará. Ele passou a mão pelos cabelos, num gesto nervoso.
- A senhora me tranqüiliza, mas ela disse que tem algo sério a me dizer. Será que o pai não deixou escapar nada que a deixou desconfiada?
- Não acredito. Se desconfiasse de algo, deixaria transparecer pelo telefone. Vá confiante. Esta nós não perdemos.
Fernando sorriu, beijou a mãe e saiu. Marília estava entediada e foi para o quarto. Deitada em sua cama, ela pensava: "Meu filho encontrou a mulher ideal e eu farei de tudo para que ele permaneça com ela até o fim. Desejo ter uma vida melhor e também não criei meu príncipe para se casar com uma mulher qualquer e comum. Ele merece a melhor". Continuou a pensar sem perceber que sombras escuras se aproximavam comungando com seus pensamentos e lhe passando energias doentias. Diana, Gabriel, Flaviana e os filhos estavam ansiosos no quarto esperando que Humberto despertasse. Dali a poucos instantes ele acordaria. Permaneceram esperando até que ele se mexeu e lentamente começou a despertar. A princípio não reconheceu o lugar, mas ao abrir melhor os olhos, disse assustado:
- Flaviana? Meus filhos? Como pode ser? Todos estão mortos!
Flaviana, com voz doce, o acalmou:
- Engana-se, querido. Todos estamos mais vivos do que antes. Não se sente bem em estar conosco?
Ele parecia confuso, mas falou:
- Não entendo. Quer dizer então que eu morri também?
Alfredo respondeu:
- Ainda não, pai. Sua hora não chegou. Seu corpo de carne está doente num hospital da Terra. Enquanto os médicos de lá cuidam dele, nós o trouxemos aqui para que seu espírito seja curado também.
Humberto, completamente acordado, começou a entender:
- Como isso é possível?
- Quando nosso corpo de carne dorme ou entra em um estado de coma, como é o seu caso, o espírito fica parcialmente livre e pode visitar o astral, rever amigos, ou entes queridos que ficaram aqui - disse Flaviana sorrindo. - Você talvez nem vá se lembrar disso quando acordar na Terra, mas vamos aproveitar essa oportunidade que Deus nos deu. Dê-me um abraço.
Humberto, emocionado, levantou e a abraçou fortemente. Unidos ao abraço, Marcos e Alfredo choravam de emoção. Diana e Gabriel observavam tudo e em prece agradeciam a Deus aquele momento. De repente, Humberto começou a chorar. O choro foi crescendo e aumentou tanto que ele se sentou no chão. Todos ficaram penalizados. Flaviana passou a mão sobre sua cabeça.
- Entendo o que sente. A dor do remorso é muito grande, mas para ela existe o remédio: o autoperdão.
Diana completou:
- É isso mesmo, Humberto. O remorso e a culpa são sentimentos que nos colocam em profunda depressão, mas só quando aprendemos a nos perdoar é que nos libertaremos dele.
Ele murmurou entre soluços:
- É que não consigo controlar o sentimento de culpa quando vejo Flaviana e meus filhos. Lembrar que fui um mau marido e um pai materialista me atormenta muito. Sinto que falhei gravemente.
Diana foi firme ao dizer:
- Quem de nós nunca errou nessa vida? Os erros fazem parte da aprendizagem e são naturais. Você fez o que achou certo no momento, quando não tinha maturidade para agir diferente. Na vida é preciso aprender que cada pessoa age de acordo com o nível de evolução que lhe é próprio e que só o tempo vai modificar. O retorno das nossas ações vai fazer com que aprendamos pouco a pouco, e assim chegaremos a Deus. Mas esse caminho é longo e, como seres humanos, ainda vamos errar outras vezes. Portanto, não se condene dessa forma para não atrair mais dores em sua vida.
Humberto pareceu se acalmar. Voltou para a cama e todos se sentaram ao redor em espécies de sofás que havia espalhados pelo quarto. Flaviana iniciou:
- Trouxemos você aqui para que seu espírito seja curado e para que seu corpo possa despertar na Terra com poucas limitações. Já se perguntou como atraiu todos esses problemas para sua vida?
- Eu não atraí nada. Os outros foram os culpados. Casei-me novamente achando que era amado. No auge de minha felicidade, fiquei impotente e descobri que era traído. Minha filha nem desconfia que o noivo dela é um patife que a trai com a própria madrasta. Como posso ter atraído esses problemas para mim?
Flaviana aproximou-se e explicou com voz doce:
- Quando cheguei aqui também pensava como você. Achava que eram os outros os culpados pelos meus sofrimentos. Entrei em confusão, me envolvi com pessoas que queriam meu mal. Só queria me vingar. Sofri muito e hoje descobri que nunca fui vítima e que ninguém na Terra o é. Diana e outros amigos queridos me ensinaram que somos criadores do nosso próprio destino e tudo que nos acontece é responsabilidade nossa. É duro aceitarmos essa verdade, mas, quando passamos a enxergá-la, as coisas ficam mais fáceis. Eu mesma há muito o perdoei pelo que me fez. Hoje sei que, se não precisasse passar por tudo aquilo, Deus teria me poupado.
Humberto estava ouvindo sem querer acreditar: então Flaviana o havia perdoado? Ela, lendo seus pensamentos, respondeu:
- Perdoei, mas o perdão dos outros não é tão importante quanto o nosso próprio. O que lhe aconteceu foi porque você não se perdoou pelos erros do passado.
Humberto estava confuso.
- Como assim?
Diana começou a explicar:
- A culpa é um sentimento aprendido. Ela não nasce com o nosso espírito. Já o arrependimento, sim, é parte integrante de nossa alma. Sempre que agimos contra a nossa natureza, sempre que cometemos os chamados "erros", nossa consciência nos mostra, por meio de sensações desagradáveis, que não estamos no caminho certo. Uma vez observada, a sensação desaparece. Aprendemos à lição e passamos a agir diferente. É o que chamamos de reparação. Todavia, muitas pessoas aprenderam à filosofia do crime e castigo; acham que têm de pagar pelos erros cometidos durante sua ignorância espiritual e programam o subconsciente para atrair sofrimento quando errarem. Essas pessoas não acreditam que podem apagar seus erros pelo amor e pelo bem; crêem que só sofrendo é que voltarão ao equilíbrio. É por isso que há tanta dor na Terra.
Humberto parecia entender, mas ainda assim questionou:
- E o que isso tem a ver comigo?
Diana sorriu.
- Você é assim, é um cobrador inveterado de si mesmo. Aprendeu que as pessoas devem ser castigadas quando errarem. Agora está provando do próprio veneno. É preciso rever suas crenças uma a uma para que mude. E chegada à hora de você deixar o homem velho morrer para que o homem novo nasça principalmente para que possa perdoar Isabela e ajudá-la a voltar para o caminho do bem.
- Nunca farei isso! Ela me traiu covardemente, não merece perdão.
- Você atraiu uma mulher como ela porque acreditava que merecia passar pelas mesmas traições que cometeu com sua mulher. Atraiu a doença porque se culpava pela morte de Flaviana, achando que ela adoecera por sua culpa. E preciso deixar a vaidade de lado e perceber que você não é tão poderoso assim para fazer os outros sofrerem. Ninguém tem o poder de ferir uma pessoa; os outros é que se ferem com o que nós fazemos.
- Pelo que você diz, foi até certo o que fiz.
Diana o olhou com seriedade.
- Não foi certo nem errado. Você agiu como sabia. Se hoje reconhece que poderia ter feito melhor, não pode se culpar. Deve se preparar para agir melhor de agora por diante. Não somos responsáveis pelo sofrimento de ninguém; somos, sim, responsáveis pelas nossas crenças e pelos próprios sofrimentos. Se sofremos, não foi porque fizemos mal aos outros, mas porque fizemos mal a nós mesmos com nossas crenças inadequadas. Nunca ouviu dizer que quem faz o mal aos outros prejudica primeiro a si mesmo?
Marcos e Alfredo permanecerem calados o tempo inteiro. Quando Diana terminou, Marcos disse:
- Vamos levá-lo para participar de um curso no qual é ensinado o poder do bem como fonte de reparação e depois a uma palestra cujo orador explica como nos livrarmos da culpa e reprogramarmos o subconsciente positivamente, para que o senhor aprenda a nunca mais se castigar pelos seus erros.
Humberto estava feliz. Poder recomeçar, ser um novo homem... Aquilo estava sendo muito bom. Indagou:
- Quanto tempo ficarei em estado de coma na Terra?
- Ficará por uma semana; é o tempo que vai estagiar aqui - respondeu Diana amavelmente. - Agora vamos, há muito o que estudar.
Humberto abraçou os filhos e a ex-mulher. Quando ia saindo, comentou:
- Lembrei que há algum tempo vários homens me amarraram enquanto eu dormia e colaram em meu corpo físico algumas formas arredondadas. Lembro-me de que eles disseram que elas seriam a causa de minha impotência. Isso é real?
- Com certeza! Essas formas que chamamos de ovóides são responsáveis por inúmeras doenças na Terra. Mas não precisa se preocupar. Quando se libertar da culpa e se render ao amor, conseguirá se libertar delas.
- Vai demorar muito?
- O tempo suficiente para que você mude interiormente.
Humberto entendeu e seguiu com eles, rumando para um dos pavilhões de cursos daquela colônia. Em sua mente, a esperança começava a brotar.

19 - CONHECENDO A VERDADE

Isabela havia chegado em casa com Patrícia. Ficaram no hospital muito tempo, mas por recomendação médica resolveram descansar. Era noite e, ao entrarem em casa, depararam com Fernando, que as esperava com ansiedade. Patrícia o abraçou e ambos se beijaram com paixão. Com muito ódio, Isabela observava a cena. Ao terminarem de se beijar, Patrícia comentou:
- Não sei como agüentei todo esse tormento sem você. Nunca mais desapareça assim, sem dizer onde está.
Fernando fuzilou Isabela com o olhar, enquanto respondeu:
- Quando viajei, não imaginava o que vocês todos iriam passar. Não costumo viajar para as filiais da empresa. Tive de ir de última hora, mas, assim que soube pelos noticiários o que tinha acontecido, voltei imediatamente. Sabe como a amo e o que mais quero é vê-la bem e feliz.
Isabela estava se sentindo muito mal com aquela cena. Ia se retirar, mas Patrícia a chamou:
- Por favor, Isabela, não suba agora. Tenho uma notícia maravilhosa para dar a vocês, principalmente a Fernando.
Ela ficou ainda mais irritada.
- Não vejo o que pode ser maravilhoso com Humberto entubado numa UTI de hospital.
Patrícia, com semblante alegre, colocando as mãos sobre o ventre e olhando emocionada para Fernando, comunicou:
- Descobri que estou grávida. Vou ter um filho do homem que amo! Quer motivo maior para minha felicidade?
Fernando, com os olhos marejados, a abraçou com força e ambos se beijaram novamente. Muito feliz, ele dizia, beijando a barriga de Patrícia:
- Um filho! Tudo que mais queria ter na vida. Meu Deus, quanta felicidade. Sei que não mereço, mas estou muito feliz. Além de tudo, a mãe de meu filho é a mulher que mais amo no mundo. Como posso fazer para agradecer tamanha felicidade?
Isabela sentiu-se tontear e quase foi chão, não fosse o mezanino no qual se amparou. Patrícia percebeu e correu para socorrê-la.
- O que aconteceu com você? Parece que vai desmaiar. Venha, sente-se no sofá.
- Senti-me mal de repente. Não sei o que me deu. Não se preocupe, vai passar.
Fernando, com ar de ironia, indagou:
- Por acaso seu desmaio ocorreu por causa da notícia da gravidez de Patrícia?
Ela, mesmo com ódio, fingiu.
- Talvez. Desde que Daniel morreu, fico mal com qualquer assunto ligado a crianças. Por favor, me perdoem, vou me retirar. Peçam a Eudásia que me leve um copo com água, preciso tomar um calmante.
- Quer ajuda para subir? - Era a voz irônica de Fernando mais uma vez.
- Oh, sim, ainda estou muito tonta. Acredito que minha pressão tenha caído.
Ele foi subindo com Isabela lentamente pela longa escada. Quando se viram a sós, ela falou entre dentes:
- Não pense que isso vai ficar assim. Nunca será feliz com a Patrícia enquanto eu viver. Antes, ela ou você terá de morrer.
Fernando sentiu vontade de esbofeteá-la até a morte, porém teve de se conter. Ainda assim, completou com voz que o ódio enrouquecia:
- Não tente atravessar meu caminho ou quem vai sair morta dessa história será você. Sabe muito bem do que sou capaz. Esqueceu as bofetadas que lhe dei? Usei você até quando foi conveniente, agora acabou. Amo Patrícia de verdade e é com ela que vou ficar, custe o que custar. Esqueça que eu existo ou terá sérios problemas. Se acontecer qualquer coisa com Patrícia, você pagará caro.
- Sabe que posso revelar a ela tudo que tivemos juntos. Se eu o fizer, você estará perdido. Patrícia nunca vai perdoá-lo. Ou volta para mim ou acabo com sua vida - exclamou Isabela transtornada.
- Vai ser sua palavra contra a minha. Posso dizer que me assediava e que, por não ter sido correspondida, inventou essa história. Além do mais, você está perdida de qualquer jeito. Quando Humberto melhorar e voltar para casa, você será expulsa daqui a pontapés. Eu vou me dar bem, pois quando Humberto vir à filha feliz e grávida jamais terá coragem para revelar o que soube. Como vê, você é a única perdedora.
O ódio tomava conta de Isabela, e ela rangia os dentes dizendo com voz entrecortada:
- Isso se ele acordar. Daqui para lá muita coisa pode acontecer. Tenho como matá-lo no próprio quarto sem que ninguém desconfie.
- Faça isso e eu serei o primeiro a denunciá-la.
Patrícia chamou Fernando e eles deram por encerrada a conversa. Já no quarto, Isabela teve um acesso de ódio e perdeu a cabeça. Desarrumou a cama, quebrou arranjos e bibelôs, atirou uma porcelana no espelho. Quando Eudásia entrou com a água, encontrou-a em um estado deplorável.
- O que aconteceu aqui? Por que fez tudo isso?
- Estou com ódio, muito ódio. Eles me pagam, e vão pagar com a vida - dizia ela fora de si.
- Eles quem?
- Os malditos que me roubaram à felicidade. Mas eu juro que eles nunca serão felizes.
Eudásia não sabia do envolvimento de Isabela com Fernando, por isso não conseguia entender de quem se tratava. Tentou acalmá-la.
- Venha para a cama, deite-se e tome um comprimido. Vai lhe fazer bem. Aqui todos estão nervosos com a doença do senhor Humberto. Quando se acalmar, verá que não há motivo para tanto ódio. Seu marido vai ficar bem, você está rica e terá condições de ser feliz.
Isabela tentou se acalmar, mas as palavras de Eudásia a irritavam ainda mais.
- Saia daqui e me deixe só! - exclamou num grito.
Eudásia obedeceu e foi rezar na cozinha. Havia alguns dias tinha começado a freqüentar o centro aonde Patrícia ia e havia aprendido que, quando tudo se agita, quando as dores aparecem, é hora de oração. Aprendeu que a prece, quando sincera, nos deixa ligados aos espíritos do bem e a Deus. Naquele momento ela fez uma sentida oração pedindo saúde para Humberto, paz para Isabela e felicidade para Fernando e Patrícia. Ela não viu, mas seres radiosos estavam ali cobrindo-a de luzes coloridas. Um deles se aproximou e disse-lhe ao ouvido:
- Confie em Deus, Ele não desampara ninguém. Tudo será dado assim como pediu!
Uma brisa leve passou ao seu redor e Eudásia se sentiu muito bem. Na sala, Fernando e Patrícia comemoravam. Ele estava muito empolgado em ser pai e ela, muito feliz em poder estar ao lado do homem amado.
- Vamos oficializar nossa união assim que seu pai sair do hospital - comentou Fernando cheio de planos.
- Sim, é o que mais quero. Mas nossa união será apenas civil. Sou espiritualista e não gosto dessas cerimônias em igrejas. Respeito à religião católica, mas não acredito que seja preciso um intermediário para que Deus nos abençoe.
Fernando tornou um pouco preocupado:
- Minha mãe é conservadora e, apesar de não ir muito à igreja, é católica e sempre sonhou comigo casando com a bênção de um padre em uma cerimônia bonita. Ela sonha com isso para a minha vida. Por favor, quero que entenda...
Patrícia não queria discutir aquilo naquele momento, mas sabia que acabaria cedendo.
- Tudo bem, vamos pensar nisso depois. Agora vamos subir que estou morrendo de saudades.
Felizes, os dois foram para o quarto, onde se amaram com muita paixão. No outro dia pela manhã, antes de ir ao hospital, Patrícia foi visitar a avó. Sempre passava por lá para ver como ela estava. As visitas de Sílvia haviam feito um bem enorme a dona Augusta, que já se levantava da cama e quase tinha voltado à vida normal. Ao entrar na enorme sala encontrou a avó ainda no desjejum.
- Que boa visita a essa hora da manhã. Venha tomar café comigo.
- Muito obrigada, vovó. Termine sua refeição, pois hoje quero compartilhar uma alegria muito grande com a senhora.
Augusta ficou curiosa.
- Alegria? Bem que estou precisando...
- Não fale assim, vovó. A senhora já melhorou tanto que está irreconhecível. Achei que nunca mais iria se levantar daquela cama. Não sabe o quanto fiquei desesperada, mas hoje as cores já voltaram ao seu rosto. Vejo que voltou a arrumar o cabelo e já soube que foi visitar algumas amigas.
- Graças a sua amiga Sílvia foi que pude sair do buraco em que eu mesma me coloquei. Com ela tenho aprendido muitas coisas, inclusive como atraí aqueles fatos que me colocaram em depressão.
Patrícia retorquiu:
- Sei que houve um motivo muito sério para a sua depressão. Por que não me conta? Sei que a Sílvia já sabe.
Augusta sentiu que ainda não podia revelar a verdade. Estava aprendendo que o perdão consistia em calar os defeitos alheios, e ela não queria falar mal de Isabela naquele momento. Resolveu dar uma desculpa.
- Não estou preparada para lhe contar, mas fique certa de que um dia o farei. Um dia você ficará sabendo o que me levou a querer desistir da vida. - Ela parou de comer e continuou falando. - Descobri como estava errada em querer fugir do mundo e hoje sei que estava me tornando uma suicida.
Patrícia se admirou. Será que Sílvia havia revelado sua forma de pensar à sua avó?
- Nossa, a senhora está falando como uma espírita! - respondeu a neta, surpresa.
- Muita coisa mudou em minha vida. Sílvia me fez ver lados de minha personalidade que estavam esquecidos e acabou revelando ser espiritualista. Sei que ela acredita em reencarnação e que trabalha num centro. Fiquei chocada a princípio, mas não podia mais ficar sem sua amizade. Nunca conheci uma pessoa tão sensata quanto ela. Aos poucos fui me interessando pela vida espiritual. Ela me emprestou alguns livros e fiquei deslumbrada. Nunca poderia imaginar que o espiritismo fosse tão bonito e lógico em seus ensinamentos. Ainda estou presa a algumas convenções de minha religião, mas confesso que não suporto mais aquelas reuniões de que participava, nas quais não havia profundidade de ensinamentos nem resposta às questões básicas de nossa vida. Hoje quero ser feliz, descobrir de onde vim e para onde vou melhorar meu padrão mental. Fiz muitas coisas erradas em minha vida, mas recebi a resposta e estou amadurecendo.
Patrícia abraçou a avó e beijou seu rosto várias vezes. Quando terminou o café, já na sala de estar, Patrícia iniciou:
- Sei que esse não é um momento de muita felicidade. Meu pai está doente e em estado grave, mas mesmo assim me sinto imensamente feliz. Estou grávida!
Dona Augusta abriu a boca e fechou-a novamente, espantada.
- Que felicidade! - falou com alegria. - Parabéns, você merece essa dádiva da vida. - As duas se abraçaram mais uma vez e Augusta tornou: - Confesso que não estou acostumada a esses tempos modernos. Na minha época o sexo começava depois do casamento. Hoje sei que começa junto com o namoro. Ainda acho tudo muito moderno para a minha mente, mas Sílvia está tentando me atualizar. Sei que você se casará e será muito feliz!
- Serei sim, vovó. O Fernando me ama e estava disposto ao casamento muito antes de saber de minha gravidez. Ele é o homem de minha vida, perfeito, íntegro, bom caráter, é tudo que sempre sonhei, além de lindo.
- Como estou feliz. Lembro-me de quando Flaviana engravidou pela primeira vez. Enjoava muito e tinha desejos difíceis de realizar. Gostaria de acompanhar sua gravidez como acompanhei a de sua mãe, mas não será possível.
- É... Sei que a senhora não gosta de Isabela e julga que ela tomou o lugar de minha mãe, mas posso garantir que ela é uma mulher boa, está muito mal com a doença de papai. A senhora está equivocada. Faça as pazes com ela e volte a freqüentar nossa casa. Sentimos muito a sua falta.
Augusta não podia falar a verdade à neta e preferiu se calar.
- Deixe o tempo correr. De qualquer forma, sei que é minha neta querida e nunca deixará de vir me ver; isso me dá um alívio muito grande.
Patrícia emocionou-se.
- É claro que amo a senhora mais que tudo. Da próxima vez que vier aqui trarei Fernando para a senhora conhecer.
- Que tal um jantar especial?
- Não precisa tanto. Fernando é um homem muito simples.
- Faço questão. Assim que Humberto sair do hospital, farei um jantar aqui e convidarei todos. Assim mostrarei a você que posso não apreciar Isabela, mas posso conviver com ela normalmente.
Patrícia estava muito feliz. Depois de conversar mais um tempo, tomou um táxi e foi para o hospital. Já havia passado uma semana e Humberto não melhorava. Todos estavam apreensivos e Patrícia, muito chorosa. Naquela tarde Isabela, que havia planejado matar Humberto no quarto da UTI, estava se preparando para o plano. Conseguira a custa de muito dinheiro subornar uma enfermeira que trocaria de lugar com ela sem que ninguém desconfiasse. Ela, vestida com roupa de enfermeira, desligaria os tubos de oxigênio e Humberto teria uma parada cardíaca fulminante. Depois ligaria os tubos novamente e ninguém imaginaria que ela estava por trás. Pensara friamente e resolvera não arriscar o plano sem um disfarce, afinal Humberto poderia despertar a qualquer momento e se isso acontecesse, ela não teria salvação. Alguém bateu na porta do quarto e ela foi atender. Era Eudásia.
- Há uma pessoa ao telefone. Diz que é de um hospital da periferia e quer lhe falar com urgência.
- Quem pode ser?
- É uma recepcionista. Pelo tom de voz está muito ansiosa.
- Tudo bem, eu pego a ligação aqui do quarto mesmo. Isabela atendeu e uma voz de mulher se fez ouvir:
- É a senhora Isabela Costa Aguiar?
- Sim, o que gostaria?
- Há uma paciente em nosso hospital em estado terminal que deseja urgentemente falar com você. Chama-se Morgana.
Isabela não conseguia entender. O que fizera Morgana adoecer tão gravemente?
- Diga-lhe para me esquecer, quero mesmo é que ela morra. Certamente quer me pedir dinheiro para pagar a conta do hospital. Se for apenas isso, não me incomode mais.
A mulher insistiu:
- Morgana disse que a senhora agiria assim, por isso pediu que lhe dissesse que tem uma revelação a lhe fazer sobre a morte de seu filho. Disse que jamais poderá morrer sem lhe contar a verdade.
Isabela sentiu o coração acelerar. O que Morgana sabia sobre a morte de Daniel? O argumento foi forte e ela anotou o endereço do hospital e partiu para lá imediatamente. Só iria colocar seu plano em prática à tardinha, quando Edwiges fosse dar seu plantão. Até lá teria muito tempo. O hospital era longe e ela demorou a chegar. Na recepção, procurou se informar:
- O que aconteceu de tão grave para Morgana estar morrendo?
A enfermeira explicou:
- Chegou aqui com uma grave hemorragia interna. Alguém a violentou com muita força e seu útero foi danificado. Fizemos uma cirurgia, mas ela não se recupera; a hemorragia volta com intensidade. O doutor Marcelo teme que ela não resista a uma nova cirurgia. Isabela sabia muito bem do que se tratava, mas fingiu espanto:
- Meu Deus! Mas ela contou quem fez isso?
- Nos momentos de lucidez ela apenas chama por seu nome. Quando conseguimos seu telefone, resolvemos ligar. Mas, se ela melhorar, terá de prestar queixa em uma delegacia para que o culpado seja punido. Entretanto, infelizmente acreditamos que só um milagre poderá salvá-la.
Isabela foi conduzida a um quarto onde havia várias camas. Ela foi procurando uma por uma, até que na última estava Morgana com um aspecto de quem há poucos instantes deixaria a vida. Em quase nada lembrava a moça bonita e alegre de antes. Isabela a sacudiu, pois percebeu que dormia. Ao abrir os olhos, Morgana respirou fundo, ficou mais pálida do que já estava e começou a falar num fio de voz:
- Você veio... Eu sabia que Deus não me deixaria morrer sem começar a reparar o mal que eu fiz.
Isabela sentia vontade de matá-la ali mesmo, tamanho o ódio que sentia, mas queria ouvir o que ela tinha a dizer sobre a morte do filho. Por isso foi direta:
- Não quero saber dos seus remorsos; isso pouco me importa. Quero que me diga o que sabe sobre a morte de meu filho que eu não sei. Aliás, ficou tudo muito claro. Daniel nasceu com problema no intestino e não resistiu. Essa foi à versão do médico. O que mais pode saber?
Morgana fazia um esforço enorme para falar e sua voz quase não era ouvida. Ainda assim, ela falou:
- Os médicos não souberam a verdade, a terrível verdade. Seu filho foi morto por envenenamento.
Isabela sentiu que ia desmaiar. Procurou uma cadeira e sentou-se. Quando se refez do susto, continuou a ouvir.
- Foi isso mesmo. Ele, aquela criança inocente, sorridente e cheia de vida, morreu por minhas mãos. A mando de madame Aurélia, todos os dias eu ministrava um veneno, que desconheço o nome, na comida que eu mesma dava para ele. O veneno causava perturbações gástricas e nenhum médico iria desconfiar do que se tratava, pois geralmente nesses casos não existem suspeitas e eles não fazem exame. O certo é que o intestino era corroído pouco a pouco e a morte era certa. Fiz isso movida por uma vingança, mas minha consciência nunca mais me deixou em paz. Agora sei que pagarei pelo meu crime. Vejo vultos escuros, pessoas babando e sangrando à minha volta, esperando que eu morra para me levarem com elas. Espero que esse gesto me ajude e que eu não sofra tanto nessa vida que me espera.
Isabela, num acesso de raiva, sacudiu violentamente Morgana, que agonizava. A enfermeira que chegava correu a socorrer:
- O que é isso? Ela está quase morrendo, saia! - Retirou Isabela, que estava em estado de loucura.
Do canto do quarto, Isabela bradava com muito ódio:
- Quero que morra e só tenha o inferno como morada. Sairei daqui e vou à polícia denunciá-la. Você e o monstro que armou toda essa trama infernal. Não morra enquanto não servir de testemunha para que Aurélia apodreça na cadeia.
Isabela saiu correndo e a enfermeira aplicou um sedativo em Morgana, que estava muito fraca. Na rua, Isabela rumou para a delegacia mais próxima. O delegado a ouviu e, devido à urgência do caso, logo tomou as providências que terminariam por prender e condenar madame Aurélia.

20 - O BEM É MAIS FORTE

Isabela chegou em casa esbaforida e com muito ódio. As emoções que tinha vivido inesperadamente naquela tarde a fizeram entrar em um processo de autodestruição. Nunca iria se perdoar por haver colocado uma assassina dentro de sua casa, que acabaria por matar seu próprio filho. O depoimento que dera na delegacia havia tomado muito seu tempo, mas ainda teria de ir ao hospital pôr fim à vida de Humberto. Tomou um banho rápido e saiu. Já no hospital e no horário combinado, ela entrou pela saída de emergência e logo trocou de roupa com Edwiges. No almoxarifado, enquanto se trocavam, Isabela perguntou um tanto apreensiva:
- Tem certeza de que ninguém da família está aí?
- Tenho sim. Marquei essa hora justamente por não haver visitas na UTI. A filha dele esteve aqui rapidamente com um rapaz e saiu. O caminho está livre.
- Explique-me direito. Tenho medo de mexer no aparelho errado e o plano ir por água abaixo.
Edwiges procurou detalhar o aparelho no qual Isabela deveria mexer e ela ouviu com muita atenção. Assim Isabela seguiu para o quarto. Doutor Eduardo estava em sua sala lendo uma revista. O dia havia sido cheio e ele aproveitava para relaxar. De repente, um pensamento começou a tomar conta de sua mente. Ele sentia que precisava ver o paciente Humberto. Havia acabado de passar na UTI e sabia que ele estava na mesma condição. O quadro havia se tornado estável e já não havia tanto o que temer; era só esperar ele acordar e fazer os exames para a comprovação de seqüelas. Procurou desviar o pensamento, mas ele não o deixou. "Você precisa ver o senador Humberto". A frase se repetia insistentemente. Então ele resolveu obedecer e levantou-se. No quarto, Isabela sorria maquiavelicamente. Olhou para Humberto e começou a dialogar como se ele pudesse ouvi-la:
- Não adiantou tanta soberba, você está em minhas mãos. Um dia jurei que seria rica e humilharia a todos que encontrasse. Você foi minha escada; consegui o que queria e jamais saberia viver na pobreza novamente. Ou eu, ou você. Chegou o seu fim, Humberto.
No instante que Isabela iria mexer no oxigênio, doutor Eduardo entrou na sala. Ela ficou nervosa enquanto ele perguntava:
- Quem é você?
- Edwiges... - falou ela fracamente.
Ele não deu tanta importância ao fato de ela estar de costas e começou a examinar mais uma vez o paciente. Isabela, com receio de ser surpreendida saiu sem que o médico percebesse. Rapidamente e de cabeça baixa, ela voltou ao local onde Edwiges a esperava.
- E então? Conseguiu?
- Não. Um médico entrou no momento em que eu ia mexer no aparelho. Não foi desta vez, mas temos de tentar novamente.
Edwiges não estava gostando daquilo. Poderia perder o emprego e ser presa como cúmplice. Aceitara ajudar Isabela pelo dinheiro que ia receber, mas já estava arrependida. Resolveu aconselhar:
- Por que não desiste de cometer esse crime? O Humberto vai acordar e você vai poder conversar com ele e pedir perdão. Estou achando isso muito arriscado. Hoje é o doutor Eduardo; amanhã poderá ser outro.
Isabela irritou-se:
- Não foi paga para me dar conselhos, e sim para cumprir ordens. Não gaste o dinheiro que lhe dei. Caso algo dê errado e eu não consiga fazer o que pretendo, vou querer tudo de volta.
Edwiges resolveu se calar. Percebeu que estava muito envolvida na trama e não poderia mais voltar atrás. Isabela se trocou e saiu sorrateira pela mesma porta de emergência pela qual entrara. Doutor Eduardo examinava Humberto quando, de repente, viu sua mão se mexer. Continuou observando e notou que o paciente abria vagarosamente os olhos e os fechava de novo, até que acordou de vez. Humberto, com voz fraca e desorientado, perguntou:
- Onde estou?
O médico feliz por ver seu paciente retornar do coma apenas uma semana depois de haver adoecido, tentou acalmá-lo:
- Não se preocupe com isso agora, Humberto. O que importa é que você acordou e está bem. Procure descansar.
Ele continuava confuso:
- Onde está minha filha? Preciso vê-la.
- Ela não está no momento, mas vamos comunicá-la de que o senhor acordou e em breve ela poderá vê-lo.
Uma lágrima teimosa começou a cair no rosto de Humberto. Ele sentia que havia feito uma grande viagem e que tinha renascido. Muito cansado pelo estado que vinha mantendo, voltou a adormecer. Doutor Eduardo comunicou a nova situação à equipe médica e todas as providências foram tomadas para que o paciente se restabelecesse e ficasse bem. Isabela chegou em casa muito nervosa. Passou rapidamente pela sala e foi para o seu quarto. Aquele dia tinha sido muito intenso para ela. Numa mesma tarde fora a dois hospitais e a uma delegacia. Ficou feliz em saber que havia denunciado Aurélia e que em breve ela seria presa. Precisava saber se havia dado tempo de a polícia tomar o depoimento de Morgana antes que ela morresse. Sem esse depoimento, ela não teria provas e as coisas ficariam na mesma. A esse pensamento, um acesso de ódio a acometeu. Se Aurélia ficasse livre, ela mesma daria um jeito de matá-la com as próprias mãos. Nunca iria perdoar esse crime contra seu filho. Estava assim, largada na cama com esses pensamentos, quando a porta do quarto se abriu e Patrícia entrou sorrindo e contando:
- Isabela, um milagre aconteceu. Acabo de falar com doutor Eduardo e ele me disse que papai saiu do coma. Diz que está confuso e que perguntou por mim. Que felicidade!
Isabela ficou branca feito cera. Tentou não demonstrar o nervosismo que ia em seu peito.
- Quando foi isso?
- Agora há pouco. Foi muito rápido, mas ele está bem. A equipe médica vai fazer alguns exames. Irei agora mesmo ao hospital. Não deseja vir comigo?
Isabela se sentiu perdida. Sua vida iria por água abaixo; certamente Humberto se lembraria de tudo e ela não poderia levar a vida de luxo que tanto sonhara. Precisava pensar no que fazer; para isso deu uma desculpa:
- Não irei agora. Apesar de estar muito feliz com o restabelecimento da saúde de seu pai, acho que esse primeiro momento deve ser entre você e ele. Não se preocupe logo depois eu vou.
- Papai vai ficar ressentido sem sua presença...
- Vá primeiro. Diga que irei em seguida. Não estou me sentindo bem e quero estar ótima para o reencontro com Humberto.
- Está bem. De qualquer forma, ele ainda permanece na UTI e não podemos nos demorar muito tempo.
Patrícia se retirou, deixando Isabela a sós com seus pensamentos. O quarto começou a rodar sem parar. Estava perdida. O casamento havia lhe dado alguns direitos sobre os bens de Humberto, talvez o suficiente para levar uma vida boa por largo tempo, mas ela estava habituada a sonhar alto; desejava possuir tudo que era do marido e poder usufruir ao lado de Fernando. Agora, com Humberto estabelecido, ela certamente seria expulsa da mansão, perderia sua posição e longe da casa ficaria praticamente impossível reconquistar Fernando. Como amava aquele homem! Daria qualquer coisa para tê-lo somente para si. Isabela continuou refletindo até que chegou a uma solução:
- Vou me ajoelhar aos pés de Humberto pedindo perdão - dizia alto para si mesma. - Vou apelar para o lado sentimental que ele tem e tenho certeza de que serei perdoada. Na frente da filha, ele não terá coragem de fazer nenhuma cena. Quando estiver a sós, farei de tudo para que me perdoe. Afinal, que mulher vai querer suportar um homem seqüelado e impotente?
Com esse pensamento ficou mais calma. Deitou e logo adormeceu profundamente. Na UTI do hospital a emoção tomou conta de Patrícia, que abraçava e beijava o pai com muito carinho. Lágrimas escorriam pelo rosto de Humberto. Ele apenas conseguiu balbuciar:
- Eu a amo, minha filha. Nunca se esqueça disso.
- Eu também o amo, papai.
Doutor Eduardo pediu que fosse encerrada a visita, pois o paciente não podia passar por emoções fortes. Patrícia saiu do hospital feliz e nem percebeu que no quarto também estavam Flaviana, Diana, Alfredo e Marcos. Quando Humberto adormeceu logo seu espírito se desprendeu e foi ter com os amigos.
- Quase morri de verdade; a Isabela por pouco não conseguiu.
- O bem sempre é mais forte. Quando Deus não permite algo, não há nada que o faça acontecer. Você não necessitava passar por essa experiência, então Deus, com suas leis perfeitas, o protegeu - respondeu Diana sorrindo.
- Tenho medo do que me pode acontecer de agora por diante. Sinto que não posso perdoar Isabela pelo que me fez. Não vou conseguir.
Flaviana interveio:
- Lembre-se de que você a atraiu pela sua forma de ser e a perdoe. O mal só aparece em nossa vida quando damos abertura. Agora que você aprendeu a lição pode perdoá-la.
Humberto disse com rancor:
- Jamais poderei conviver com ela novamente.
- Deus não obriga ninguém a conviver com quem não quer. - Era a voz de Diana. - Você pode perdoá-la, mas não viverá a seu lado, ainda mais sabendo do mal que ela pode lhe causar. Entretanto, não deve ser vingativo. Dê a ela o que lhe é de direito e permita que siga sua vida. Mostre que aprendeu a ser generoso e que realmente mereceu a nova chance que a vida lhe deu.
Alfredo abraçou o pai.
- Isso mesmo, pai. É hora de recomeçar. Ninguém pode viver em paz sem perdoar seus desafetos. Além do mais, você sabe que a felicidade lhe está reservada ao lado de Sílvia e na hora exata vocês se entenderão. Liberte Isabela para que possa ser feliz.
- Tentarei, mas o Fernando... Esse me paga! Juro que não deixarei que ele destrua a vida de minha filha.
Diana olhou-o firmemente.
- Fernando não é uma pessoa completamente má, apenas está usando o que aprendeu com a educação equivocada que recebeu de Marília. Mas ele é forte e vai melhorar. Nossos irmãos maiores garantem que Fernando vai se voltar ao bem e que ama realmente a sua filha. Não podemos esquecer que o amor faz milagres. Quando se casar vai se tornar um marido fiel e compromissado com o lar que Deus lhe confiou. Se tentar separá-los vai cortar uma programação do destino. Patrícia tinha de se unir a Fernando na presente encarnação, não se esqueça disso.
Humberto cedeu um pouco a esse argumento e logo voltou a sentir sono.Os amigos aplicaram passes em todo o seu corpo perispiritual e em pouco tempo Humberto estava novamente adormecido. Com cuidado, eles o recolocaram no corpo físico. Terminado o trabalho, Flaviana comentou:
- Fico feliz em vê-lo bem, apesar de saber que ainda terá de enfrentar muitos desafios para encontrar a felicidade.
Diana aquiesceu:
- Infelizmente o ódio que ele alimenta por Isabela ainda poderá lhe trazer muitos fatos desagradáveis. Mas Deus está atento e nada acontece sem sua permissão. Vamos orar e confiar.
Marcos estava preocupado.
- As formas ovóides ainda estão instaladas em seu corpo físico. Quando meu pai se livrará delas?
- Humberto se comprometeu muito quando usou o sexo de forma desregrada. Mas o amor cura tudo. Quando ele estiver com Sílvia e novamente sentir o amor pulsando em seu peito, ficará curado. As obsessões são um santo remédio. Cada um precisa tomar de seu próprio veneno para poder crescer e evoluir. A força do amor é infinita e da próxima vez que ele se relacionar sexualmente com alguém por amor estará livre dos parasitas.
Flaviana corou; não estava acostumada a ouvir falar de sexo tão abertamente. Diana percebeu.
- Não precisa se envergonhar, o sexo é uma energia natural que emana da Divindade para todos nós. Ele foi criado para várias funções e o prazer, a troca magnética e a reencarnação são apenas algumas delas. Na verdade, o sexo é um dos alimentos da alma. Mas quem o pratica de forma ilícita, por machismo, por vício ou por comércio acabará por se conduzir ao vale da dor por meio de obsessões ou doenças físicas. Infelizmente, muitos ainda não aprenderam a respeitar esse sagrado instituto.
Os outros concordaram. Em seguida se retiraram do quarto deixando apenas dois enfermeiros espirituais velando por Humberto.

21 - DE VOLTA PARA CASA

Madame Aurélia foi presa logo após o depoimento de Morgana. A polícia pressionou e ela acabou confessando o crime, o que tornou o processo mais fácil. A Mansão de Higienópolis foi interditada, pois logo após a prisão da madame um telefonema misterioso informou que havia prostituição de menores, o que foi facilmente comprovado. Sendo assim, madame Aurélia iria ser julgada por crime hediondo de infanticídio e exploração sexual de menores. Os políticos que protegiam a casa, temerosos quanto ao escândalo, desapareceram, e muitos deles não conseguiam entender por que a casa que tanto prezava em só trabalhar com mulheres maiores de idade se envolvera numa situação daquelas. Eles ignoravam que Luana havia dado a idéia à sua patroa. Ela descobrira que o comércio da pedofilia estava dando mais dinheiro que o do sexo comum. Depois de algum tempo de resistência, madame Aurélia acabou aceitando. Juntas, ela e Luana foram às ruas à procura de garotas que estivessem saindo da infância e que se encontrassem em situação precária. Por fim, acabavam conseguindo até a autorização dos próprios pais. Rapidamente a casa triplicou em faturamento, até que a bomba do assassinato de Daniel estourou. Sem lugar para morar, as moças acabaram indo para outras redes de prostituição, com exceção de Luana, que havia conseguido juntar algum dinheiro. Passou a viver de aluguel e independente, voltou a fazer programas no sinal. Se voltarmos no tempo alguns dias, vamos encontrar Isabela nervosa em seu quarto na mansão. Era o dia que Humberto voltaria para casa. Ela não havia ido ao hospital. Patrícia perguntava e ela respondia com evasivas; por outro lado, Humberto apenas perguntava pela esposa para não levantar suspeitas. Sentia-se traído, mas ao saber que Isabela havia retornado para casa não teve coragem de contar a verdade ao ver Patrícia bem e feliz. Ainda teria de aturar Fernando, porém ele jurou para si mesmo que iria fazer de tudo para separá-lo da filha. Doutor Eduardo e mais outros médicos o examinaram e felizmente as seqüelas do AVC seriam poucas. Humberto teria de andar com uma muleta, pois seu lado esquerdo estava levemente esquecido. Todavia, com exercícios constantes e disciplinados ele poderia voltar a ter uma vida normal. Humberto renasceu. O fato de pensar que poderia estar paralítico ou morto fez com que uma mudança muito grande se estabelecesse na personalidade dele. Já não pensava em se vingar de Isabela; sabia que poderia acusá-la de adultério e ela não levaria nada do casamento, mas para fazer isso ele teria de envolver Fernando, e nada nesse mundo era mais importante do que a felicidade da filha. Isabela desceu as escadas quando viu o movimento. Humberto adentrou a sala apoiado por Fernando e Patrícia e, ao vê-lo, ela fez uma cena. Correu a abraçá-lo e beijá-lo enquanto dizia chorando:
- Meu amor, que bom que retornou com saúde. Esta casa não é nada sem sua presença. Perdoe-me por não ter ido ao hospital. Não queria vê-lo naquele sofrimento, em um quarto de hospital. Preferia vê-lo como agora, firme e com saúde.
Humberto precisou ter muita força para agüentar tanto fingimento. Retirou delicadamente as mãos da esposa de seu rosto e limitou-se a responder:
- O que importa é que estou com saúde e bem. Gostaria que todos soubessem que sou grato pela preocupação que tiveram comigo. Muitos amigos da política daqui a pouco estarão aqui, mas eu sei que a maioria deles virá aqui por fingimento. Sei que só minha família realmente se preocupou comigo, principalmente a minha filha Patrícia.
Os familiares se enterneceram. Patrícia, olhos cheios de água, disse:
- Não diga isso. Apesar de tudo existem amigos políticos que não são tão interesseiros assim. O Andrade e o Rodrigo, por exemplo, estavam preocupados de verdade. Não deixaram de ligar um dia sequer para saber como o senhor estava.
Isabela interrompeu solícita:
- Acho que essa ocasião tão feliz merece um brinde. Humberto não pode beber ainda, mas podemos comemorar de outra forma. Mandei a empregada fazer um lanche para quando vocês chegassem; vou pedir a Eudásia que traga aqui.
Antes de Isabela chamar, Eudásia já estava na sala anunciando que havia visita para o senador. Todos se admiraram ao ver Sílvia chegar com um buquê de rosas vermelhas nas mãos. Patrícia foi recebê-la com muita alegria.
- É um gosto tê-la aqui.
- Eu é que me sinto muito feliz em saber que Humberto já se restabeleceu e saiu sem muitas seqüelas. - Virando-se para ele, explicou: - Essas flores são para você. Sei que os homens são um tanto machistas, mas não pude deixar de trazer com essas flores energias positivas para sua casa. Aceite-as com carinho.
Os olhos de Humberto brilharam e nesse momento ele percebeu o quanto Sílvia era bonita e bem-educada. Seu coração acelerou e sentiu um brando calor envolver-lhe o peito.
- Aceito, sim. Sua visita só veio tornar meu dia ainda mais feliz. Sabe o quanto lhe sou grato pelas nossas conversas no centro. Ajudaram-me bastante.
- No centro sempre fazíamos vibrações positivas por você. Deus lhe deu uma segunda chance; saiba aproveitá-la da melhor maneira possível.
Humberto estava sério ao tornar:
- Vou aproveitar sim. De hoje em diante, muitas coisas vão mudar em minha vida. Sei que essa minha doença foi um alerta. A partir de agora, serei outra pessoa.
- É assim que se fala. Se a cada problema parássemos para analisar o que a vida quer nos ensinar, logo estaríamos livres dele.
A presença de Sílvia alegrou o ambiente e eles ficaram muito à vontade. Todavia, por um mínimo instante, Isabela percebeu que os olhos de Sílvia e Humberto se encontraram com amor e um grande ódio tomou conta de seu ser. Durante o tempo inteiro procurou fingir estar alegre, mas cada vez que percebia a troca de olhares ficava enraivecida. Ela pensava em reconquistar o marido e nada nem ninguém iria impedir. O lanche terminou e o dia transcorreu com algumas visitas de amigos de Humberto. À noite, quando todos se recolheram, ele puxou Isabela com violência e a fez sentar-se na cama.
- O que pensa que está fazendo ainda em minha casa? Acha que esqueci de tudo? Foi por sua causa que tive esse derrame e quase morri. Quero você longe daqui.
Ela sentiu-se tremer, mas havia pensado bastante nesse instante e não podia perder o controle. Falou quase chorando:
- Humberto, sei que o que fiz foi muito grave. Mas entenda que o Fernando me seduziu e eu, iludida, caí na tentação. Porém, posso garantir que sempre o amei e estou arrependida. Jamais farei isso de novo. Deixe-me ficar; você foi o que me restou nessa vida. Eu o amo.
- Não vou cair mais nas suas armadilhas. Você nunca me amou, amou apenas o meu dinheiro e a minha posição social. Mas amanhã mesmo darei entrada em nossa separação. Dê-se por feliz em não deixá-la sem nada. O que é seu de direito você vai levar, mas não quero vê-la nem mais um dia na minha frente.
Aliás, amanhã terá uma festa aqui com meus amigos políticos, que Patrícia organizou. Como não desejo estar sozinho, nem quero que eles saibam que é uma mulher venal e sem escrúpulos, quero que me acompanhe amanhã nessa recepção. Mas, depois, quero que saia desta casa e, desta vez, para sempre.
Ela se ajoelhou a seus pés e implorou:
- Não faça isso comigo. Não desejo sair do seu lado nem ser colocada à margem da sociedade. Sei o que é a pobreza, sei o que é ser humilhada pelas pessoas e olhada de soslaio pelos ricos. Não desejo, não posso nem quero mais viver assim. Dê-me uma segunda chance. Eu lhe imploro!
Humberto estava irredutível. Sentia muita raiva daquela mulher falsa, que fora capaz de traí-lo com o namorado de sua filha.
- Não se humilhe tanto, pois de nada adiantará. Já tomei minha decisão.
Isabela, com muito ódio bradou:
- Eu sei, eu sei que a Sílvia está por trás disso. Pensa que não percebi seus olhares de amor para ela? Mais saiba que onde estiver eu não deixarei que seja feliz com ela. Você é meu e ninguém vai me tirar. Juro que nunca o deixarei para ela, nem que para isso seja preciso matar!
Humberto, mesmo fraco, agarrou os pulsos de Isabela e falou em voz rouca de ódio:
- Tente fazer algo contra a Sílvia e eu mesmo darei um jeito de acabar com você. Agora se retire e vá dormir no quarto de hóspedes. Tenho nojo de você!
Isabela percebeu que não havia como reconquistar o marido e retirou-se em prantos. No outro quarto, deitada na cama, ela não conseguia organizar os pensamentos. Parecia que sua cabeça ia explodir a qualquer momento. De repente, lembrou-se que Fernando estava dormindo na mansão. Ao pensar nele, um sentimento violento de paixão se apoderou dela. Sentia que se não conquistasse esse homem, sua vida não valeria mais a pena. Insone, resolveu andar pela casa. Passou pelas salas e admirou-se mais uma vez com o bom gosto com o qual a mansão era decorada. Ao pensar que ia perder aquilo e passaria a viver longe e sem chances de ver Fernando, ela teve vontade de chorar. A vida tinha lhe tirado tudo: o filho, a riqueza, o status, e, o principal, o amor de Fernando. Foi até o bar, encheu um copo e tomou de uma vez. Quando já ia subir percebeu que Fernando ia descendo as escadas vestido com um roupão. Aquela visão deixou Isabela completamente transtornada e fora de si. Ela correu e o abraçou:
- Você é quem mais amo neste mundo. Por favor, não me deixe!!
Ela soluçava e Fernando não sabia o que fazer. Havia descido para tomar água e jamais imaginava encontrar Isabela àquela hora naquele estado.
- Não quero mais nada com você. Se sabe disso, por que insiste?
- Perdi tudo. Se eu perder o seu amor, não sei o que serei capaz de fazer.
- Faça o certo. Vá embora daqui; sua presença é indesejável. Com você vivendo nesta casa jamais poderia ser feliz com a mulher que eu realmente amo. Vá embora e procure viver com o pouco que lhe restou. Você é bonita, logo estará com outro amor. Mas, por favor, me deixe em paz!
Ela chorava abraçada a ele, sem querer soltá-lo. Fernando tinha uma índole violenta e sem conseguir conter a repulsa, arremessou-a com força. Isabela caiu.
- Nunca mais se aproxime de mim. Minha futura mulher não merece nem que eu olhe para você.
Sem mesmo tomar sua água, Fernando voltou para o quarto. Constatou que Patrícia dormia tranqüila e ficou aliviado. Se Isabela continuasse daquela maneira, ele mesmo daria um jeito de sumir com ela para sempre. Temia que, mesmo morando distante, ela fosse interferir e acabar com seu relacionamento. Se isso acontecesse, ele não titubearia em matá-la. Na sala, Isabela chorou muito. Quando se acalmou e tomou consciência de que não poderia mais estar com Fernando nem reconquistar Humberto, tomou uma decisão. A idéia foi tomando forma em sua mente e ela parecia estar serena ao ter resolvido a situação. Disse em voz alta:
- Amanhã na hora da festa saberei o que fazer. Ninguém vai desconfiar de nada e sei onde Humberto guarda seu revólver. Está tudo planejado. Essa é à saída de minha vida.
Os vultos deformados de Juvêncio, Romário e seus amigos rodopiavam ao redor dela e sorriam felizes. Um falava em seu ouvido:
- Isso mesmo. Essa é a melhor saída para você. Não hesite, faça exatamente como pensa.
Após rodopiarem, eles pararam, e Juvêncio concluiu feliz:
- Deu trabalho, mas finalmente ela vai fazer o que tanto desejamos. Amanhã será o grande dia.
Romário alertou:
- Mesmo assim temos de ficar vigilantes. Sinto que os espíritos da luz estão nessa casa acompanhando Patrícia e a tonta da Eudásia. Se não ficarmos atentos, eles podem colocar tudo a perder.
Juvêncio ria a valer.
- Não se preocupe, já magnetizamos Isabela o suficiente para que ela não desista da idéia. Vê essas formas-pensamento que plantamos ao redor de sua cabeça? Pois é, são elas que vão influenciá-la de agora por diante.
Romário estava mais confiante:
- Como é fácil dominar as pessoas da Terra e obrigá-las a fazer o que queremos. É como tirar doce de criança.
Juvêncio tornou:
- Nem sempre. Lembra aquele curso que tomamos de influenciação? As pessoas positivas, que vêem tudo com bons olhos, que não cultivam pensamentos depressivos, que fazem o Evangelho no Lar e que cultivam a oração não são influenciadas por nós. Delas nem conseguimos nos aproximar. Mas, felizmente, boa parte das pessoas adora falar sobre negatividades, crimes, vida alheia, criticar e julgar... Com estes conseguimos tudo muito facilmente.
- É mesmo. Isabela é uma delas. Pessoas assim são pratos cheios para nós.
Os espíritos riram bastante.
- Agora vamos continuar aqui. Não desejo perder o espetáculo - falou Juvêncio.
Isabela, com muita dor de cabeça e com certa dificuldade subiu as escadas, foi para o quarto. Quase não conseguiu dormir pensando na solução que havia tomado. Só quando o dia clareou foi que ela conseguiu adormecer. Na manhã do dia seguinte, a casa estava em animação. Os preparativos estavam sendo concluídos com muito carinho para comemorar o retorno de Humberto à vida e à saúde. Patrícia havia se esmerado e não queria que nada estivesse fora de ordem, desde a decoração até os petiscos que encomendara. Isabela participou da organização com muito entusiasmo. Quem a visse nem de longe imaginaria a terrível decisão que ela havia tomado no dia anterior. À tardinha, quando se arrumava no quarto, Humberto indagou:
- Estou achando você muito feliz em vista do que aconteceu ontem. O que está tramando?
- Eu? Nada! Apenas me conscientizei de que não posso mais viver aqui com você. Uma vez que não tenho mais esse direito, não vou ficar me lamentando. Desejo ser a esposa perfeita hoje. É meu último dia nesta casa e não quero causar uma má impressão aos seus convidados.
Humberto achou estranho, mas nada comentou. Depois de um tempo calado, tornou:
- Não sei se fiz bem em ter feito você ficar aqui hoje. Nosso casamento se tornou uma farsa e, mais dia, menos dia, os meus companheiros vão saber que me separei. Estou me sentindo meio ridículo.
- Não se preocupe, é melhor que eu fique hoje. Depois, com o tempo, você dá a explicação que quiser para eles. A impressa vai cobrir o acontecimento e não é bom você estar desacompanhado.
Ele cocou o bigode.
- Tem razão, porém amanhã quero você o mais longe possível de minha família.
Saiu e bateu a porta. Isabela olhou-se no espelho e murmurou boca crispada:
- Não sabe o que o aguarda.
A noite estava bonita, contribuindo para deixar a festa mais agradável. Logo a mansão ficou cheia de gente importante da sociedade paulistana. Os amigos cumprimentavam Humberto e o felicitavam pelo seu restabelecimento. Isabela também recebia os cumprimentos e sorria para todos. A certa altura, Humberto parou a música e, emocionado, agradeceu aos companheiros, falando da importância de estar vivo e praticamente recuperado. Teceu seus comentários políticos e até arrancou risadas dos presentes. Em seguida, num gesto pouco usual, Isabela pediu a palavra.
- Gostaria de lhes contar uma história que poucos conhecem, mas que vão gostar de saber. Peço que me deixem ir até o fim em meu discurso e que não me impeçam, aconteça o que acontecer.
Humberto começou a ficar nervoso. O que será que ela iria dizer? Isabela continuou:
- Sou de origem muito pobre. Vivi vários anos de miséria em uma favela, fui estuprada e tive um filho. Quando achava que não havia mais saída, convidaram-me a me prostituir em um famoso bordel: a Mansão de Higienópolis. Lá conheci o senador Humberto, que sempre quis dar uma de certinho, porém sempre gostou desse tipo de lugar. Ele se apaixonou por mim, mesmo casado, e me trouxe para esta casa como enfermeira de sua mulher doente. Nós nos amávamos no quarto ao lado de onde sua mulher estava enferma.
As pessoas começaram a falar baixinho umas com outras, mas logo se calaram ao ouvir a voz de Humberto:
- Alguém detenha essa mulher!
Ela gritou, tirando um revólver que estava sob sua roupa.
- Ninguém se aproxime ou vai morrer. Eu vou até o fim. - Apontou a arma para as pessoas. Fotos começaram a ser tiradas e o repórter que estava cobrindo o evento se aproximou ávido pelo furo que iria conseguir. Ela prosseguiu, transtornada:
- Quando vi que Flaviana iria demorar a morrer e meu sonho de ser rica seria adiado, resolvi me precipitar e a matei, sufocando-a com o travesseiro. Estão surpresos? Foi isso mesmo que ocorreu. Matei Flaviana. Fui eu que tirei aquela vida inútil e que me roubava à felicidade. Casei-me com Humberto e realizei meu sonho de ter a vida com a qual sempre sonhei e que até então me fora negada. Mas o destino me fez conhecer Fernando no dia em que me casei. A partir daí, me apaixonei perdidamente, e ele correspondeu. Vivemos uma louca história de amor, mesmo ele estando com Patrícia. - Virou-se para Patrícia e falou, rindo alto: - Como pode ver, você foi enganada esse tempo todo. Seu noivo é um pulha. Estava comigo interessado em meu dinheiro, e está com você só porque é rica e pode oferecer o que ele nunca teve. Humberto ficou impotente e está até hoje. Não consegue mais manter relações sexuais com nenhuma mulher, o que para mim foi um alívio, pois não agüentava mais que me tocasse. Agora que fiz o que pretendia, vou deixar essa festa inesquecível.
O fato se deu repentinamente. Ela virou o revólver para sua cabeça e disparou um tiro, caindo morta no chão. Patrícia desmaiou e Humberto passou mal. Os convidados saíram um a um, estarrecidos com a situação. A polícia foi informada e quando chegou ao local já não tinha muito que fazer. Ficou claro o ato suicida, e o corpo foi removido para o IML. Na mesma noite, em todos os noticiários, o assunto bombástico era a vida íntima de Humberto e a morte trágica de sua mulher....

22 - RENÚNCIA

É isso mesmo que deseja? Já pensou bem? - Era a voz de Diana questionando com firmeza sua interlocutora.
- É isso sim - respondeu Lourdes com segurança. - Sinto que devo seguir meu coração, e ele não me engana. Partirei hoje mesmo para o Vale dos Suicidas.
Diana ponderou:
- Sabe que não vai poder auxiliá-la como gostaria e correrá sérios perigos. Aqui está protegida e poderá auxiliá-la muito mais.
- Não irei sozinha. Alfredo e Marcos também estarão comigo. Estamos unidos pelos laços do amor verdadeiro. Amamos Isabela e queremos a sua felicidade. Infelizmente, não pudemos evitar o ato tresloucado do suicídio, mas vamos estar ao seu lado até que se arrependa e se redima. Daniel, o único ser a quem ela realmente amou, se prepara para reencarnar e não poderá nos acompanhar nessa jornada.
Flaviana estava reunida com eles.
- Não saberia renunciar a um lugar como este para descer ao inferno. Admiro seu ato de coragem, mas não tenho essa força.
Antes que Marcos e Alfredo falassem, Lourdes continuou:
- O dia que sentir a chama do amor incondicional em seu peito saberá que toda renúncia é válida e que os obstáculos são facilmente vencidos quando estamos munidos com esse sentimento. Não tememos o que vamos encontrar naquele lugar, pois estamos sob a proteção do amor divino. Então, Diana, podemos partir?
- Já avisamos que outros caminhos podem levar a resultados melhores. Isabela está dementada e não consegue se livrar de seus algozes. Raros são seus momentos de lucidez. Aqui estará protegida e podemos auxiliar sempre que necessário. Contudo, não podemos interferir no livre-arbítrio de vocês. Quando a renúncia é de coração, o universo nos protege. Podem partir; nossos maiores concederam permissão.
O momento foi de muita emoção. Lourdes foi abraçada por Flaviana, que não deixou de perguntar:
- Você foi tão humilhada pela sua filha! Como ainda consegue se sacrificar a tal ponto?
- O amor de mãe abre as portas para o amor incondicional. Se fossem Marcos e Alfredo que estivessem lá, não faria o mesmo?
- Penso que sim. Mas é difícil saber que meus filhos vão se distanciar de mim para ajudar uma mulher que foi sua mãe em uma vida longínqua. Não consigo entender.
Marcos explicou:
- Aquela encarnação foi muito importante para nós. Trazemos laços de amor que nos unem a Isabela. Mais uma vez, ela fracassou e perdeu a oportunidade de ser feliz, mas no que depender de nós um dia ela vai conseguir. Compreenda mãe, amamos a senhora tanto quanto amamos aquela que um dia também nos gerou. O verdadeiro amor não pode ser egoísta. Aqueles a quem amamos de verdade nem o tempo consegue afastar.
Flaviana sentiu os olhos umedecer. Beijou os filhos e desejou-lhes boa sorte. Ela não conseguia entender o tamanho daquela renúncia. Abandonar um lugar como aquela colônia maravilhosa para sofrer os tormentos do vale tenebroso. Ainda bem que reencontrara Aurélio, um espírito amigo que a estava auxiliando bastante e, dessa maneira, não iria se sentir tão só enquanto os filhos estivessem distantes. Após as bênçãos de outros amigos da colônia, eles partiram. Em questão de segundos estavam em um lugar escuro, cheio de lama e névoa. Pessoas gemiam e se contorciam, as árvores eram secas e não havia vegetação rasteira. Lourdes começou a sentir dificuldades em respirar; Marcos e Alfredo também. Então ela lembrou:
- Vamos orar mais uma vez e pedir proteção a Deus. Assim como nós, muitos outros estão aqui para socorrer e ajudar. Trouxemos todos os apetrechos que vamos utilizar para amenizar o sofrimento de Isabela, mas sabemos que não vai ser fácil. Ela está em estado de loucura e não reconhece ninguém.
Eles fizeram uma sentida prece a Deus pedindo proteção. Ao terminar, Marcos indagou:
- Será que todos os que se suicidam ficam assim? Conosco aconteceu o mesmo.
- Pelo que pude estudar cada caso é um caso. Existem suicidas que não vêm para esse vale; ficam presos ao local do crime durante anos revivendo a cena que os levou à morte. Outros ficam presos no corpo e sentem o horror dos vermes destruindo seu envoltório físico; há também aqueles que mesmo aqui no vale logo recobram a lucidez e sofrem muito por descobrirem que continuam vivos e que os problemas estão maiores. O suicídio sempre será a falta mais grave que o ser humano comete para com as leis divinas. Isabela, em espírito, foi conduzida para esse vale inconscientemente pelos espíritos que a acompanhavam no dia-a-dia. Ao acordar e se dar conta da situação, desesperou-se, gritou muito e desmaiou várias vezes. Sempre que acordava, via Juvêncio, Morgana e outros espíritos que foram suas vítimas desde outras reencarnações. Esses espíritos acabaram por enlouquecê-la e ela não sabe mais nem onde está nem quem é.
Alfredo estava preocupado:
- Começo a acreditar que erramos em ter vindo para cá. Esses espíritos não vão permitir nossa aproximação e podem nos fazer mal.
- Não pense assim. Estamos vibrando numa sintonia diferente e por isso eles não poderão nos ver. Nossa tarefa principal é enviar pulsos magnéticos a seu perispírito para que ele não se deforme e vire uma massa disforme ou um ovóide.
Alfredo se lembrou:
- Ovóides são aqueles seres que estão presos ao meu pai?
- Sim. No tempo que aqui estou procurei aprender e entendi muitas coisas. Ovóides são espíritos que perderam toda a forma humana devido a sentimentos negativos, e se transformaram em massas arredondadas portadoras de muitas energias destrutivas. Não desejo que minha filha fique assim. Agora vamos em frente que a tarefa nos espera.
Eles andaram sobre corpos dilacerados de pessoas que gritavam desesperadamente. Depois de um tempo, encontraram Isabela sozinha deitada sobre uma poça de lama. Aproximaram-se e começaram a aplicar passes em seu perispírito. Aos poucos ela foi se acalmando. Mas, em questão de segundos, o grupo de Juvêncio chegou e começou a rodopiar ao seu redor, rindo dela e a violentando como podiam. Então ela voltava a chorar e a gritar. Dez anos depois, Lourdes e o restante do grupo finalmente conseguiram sua libertação. Ela passou por um breve tratamento, mas não conseguia recobrar a lucidez. Os mentores se reuniram e perceberam que a única chance de ela melhorar seria uma nova reencarnação. Lourdes participou ativamente de tudo até o dia em que sua filha amada mais uma vez regressou ao palco da Terra. As revelações que Isabela fizera durante a festa, como era de esperar, tinham provocado muita revolta em Patrícia, que passou a odiar Fernando com todas as forças de seu coração. Humberto também sentiu-se envergonhado porque suas intimidades foram ditas com requintes de crueldade, e passou a não sair mais de casa. Seu estado de saúde voltou a piorar e ele não conseguia recuperar os movimentos perdidos. Naquela tarde, a mansão se encontrava em estado sombrio. Humberto estava na sala e Patrícia, em seu quarto, reclusa. A campainha soou e Eudásia foi abrir. Era Sílvia. Humberto só conseguia se sentir bem quando ela aparecia. Quando ficaram a sós, ela explicou:
- Vim para conversar com a Patrícia. Sei que ela não quer ver ninguém porque está se sentindo traída, mas não posso deixar que cometa a maior bobagem de sua vida por orgulho. Posso subir?
- Pode, sim. Mas quando vou ter sua companhia? Sabe o quanto gosto de você e o quanto tem me ajudado.
Sílvia corou. Havia muito tempo descobrira que amava Humberto, mas sentia receio de não ser correspondida. Limitou-se a dizer:
- Não se preocupe, teremos muito tempo para conversar. -Subiu em direção ao quarto, bateu levemente e entrou. Patrícia chorava abraçada aos travesseiros. Sua barriga estava grande, pois contava com seis meses de gestação. Ao perceber de quem se tratava, limpou os olhos e sentou-se na cama.
Sílvia foi direto ao assunto:
- Vim porque sou sua amiga e não posso deixar que cometa um erro que vai fazê-la infeliz pelo resto da vida. Sei que está assim por orgulho. Sentiu-se enganada e a imagem perfeita que fez do Fernando desmoronou, mas é hora do perdão. Só será feliz se perdoar.
Ela respondeu com revolta:
- Diz isso porque não está na minha pele. Fui enganada todo esse tempo. O homem que imaginei perfeito para mim é leviano, infiel e interesseiro. Não posso perdoar a quem me fez tanto mal.
- A desilusão dói, mas ela é melhor do que qualquer mentira. Você descobriu que na Terra ninguém é perfeito, por mais que pareça ser. A verdade foi dura, mas necessária. Agora você sabe que Fernando é só um homem com defeitos e qualidades, e, mesmo que não queira, ainda ama esse homem. Na vida há sempre caminhos para escolher, mas, feita a escolha, teremos de arcar com as conseqüências. Você pode escolher perdoá-lo agora e viver feliz ou continuar mimada e orgulhosa, e ser infeliz para sempre. A escolha é sua.
Patrícia falou com voz chorosa:
- Como posso perdoar alguém que me traía sem nenhum remorso? Como posso querer perto de mim uma pessoa que está interessada apenas em meu patrimônio? Já escolhi, vou viver sozinha e me dedicar só a este filho que está para nascer.
Sílvia não se deu por vencida:
- Você está escolhendo a infelicidade. Fernando se modificou muito nesses seis meses que está longe de você. Passou a freqüentar o centro e tem desabafado comigo. Ele se sente culpado pela morte de Isabela e sente-se infeliz por vê-la sofrer. Acredite, ele a ama de verdade. Pode ter se aproximado de você por interesse, mas está mudado e disposto a se regenerar.
Ademais, ninguém encontra ninguém pela primeira vez aqui na Terra. Há entre vocês laços fortes de vidas passadas que não podem se romper por egoísmo. Pense que seu filho precisa de um pai e de uma família para que cresça em segurança e se firme, mas antes de tudo pense em você mesma. Se o ama, passe por cima do orgulho e volte para ele. A vida só vale a pena quando vivida com felicidade. Sílvia falava de maneira decidida e olhava dentro dos olhos de Patrícia.
- Confesso que estou melhor com sua presença. No momento estou muito confusa para tomar uma decisão, mas me sinto muito infeliz desde que me separei do Fernando.
- Você foi radical e não deixou que ele se explicasse. Não acha que chegou a hora?
- Penso que sim. Não suporto mais ficar neste quarto chorando.
- Ninguém agüenta a infelicidade por muito tempo. O estado natural do ser humano é a alegria; ser infeliz é lutar contra a natureza, que nos fez para o amor e a abundância.
Patrícia a abraçou fortemente. Ao descer as escadas, já com um sorriso nos lábios, ouviu Humberto comentar:
- Realmente, Sílvia, você faz milagres.

EPÍLOGO

Dez anos se passaram. Patrícia ainda demorou bastante para perdoar Fernando, o que aconteceu quando o primeiro filho deles veio ao mundo. Ele chorou sentidamente, pediu perdão, ajoelhou-se aos seus pés e declarou seu amor. Ela, auxiliada por Sílvia e por amigos espirituais, venceu o orgulho e admitiu que o amava profundamente. Foram dias felizes para eles. Planejando terminar sua faculdade de Psicologia, ela não teve mais filhos durante largo tempo. Casou-se com Fernando no mesmo dia em que seu pai casava-se com Sílvia. Foi uma cerimônia muito bonita, mas simples, totalmente diferente do luxo que Marília esperava. Mas ela se sentia feliz. Agora seu filho amado pertencia a mais alta sociedade. Pressionado pelos seus sentimentos, Humberto se declarou a Sílvia e ela, apaixonada, também revelou que o amava desde que se encontraram pela primeira vez no centro espírita. Quando se amaram pela primeira vez, Humberto livrou-se da impotência e sentiu-se um novo homem. Pensou em abandonar a política. Agora que havia conhecido a espiritualidade, percebeu a gravidade dos erros que havia cometido com as corrupções junto ao governo e as outras que o beneficiaram particularmente. Acreditou que se afastando estaria imune às tentações, todavia Sílvia o fez pensar diferente, mostrando que agora ele poderia agir com honestidade, reparando assim seus antigos erros. Disse-lhe que na política Deus une os homens em reajustes do passado longínquo e que quando cada homem amar seu semelhante como ama a si mesmo a corrupção deixará de existir. Humberto sentiu-se seguro para continuar e dessa vez trilhou um caminho reto e pautado pela ética. Sendo assim, deu um grande passo rumo à própria evolução. A mansão voltou a ser um lar feliz com Fernando, Patrícia, o pequeno Lucas, Sílvia e Humberto. Ninguém mais falava de Isabela. Às vezes, Eudásia se lembrava de sua amiga e fazia-lhe preces. Sílvia também, sempre que ia ao centro, enviava-lhe vibrações de amor. Mas os outros ainda sentiam mágoa pelo que haviam passado e não conseguiam perdoar. No entanto, a vida não deixa nenhuma situação inacabada e eis que depois de quase dez anos Patrícia novamente engravida. Foi uma alegria geral, mas que durou pouco tempo. O obstetra percebeu que o feto estava com malformação no cérebro, e que a criança poderia nascer e viver com muitas limitações. Foi um choque geral. Augusta, agora já desencarnada e em equilíbrio, passou a ajudar a neta com energias positivas naqueles nove meses de gestação complicada. O nascimento da criança, no entanto, provocou em todos um sentimento de compaixão, e cada um deles passou a amar a pequena Andressa com muita intensidade. Os primeiros anos foram difíceis. A criança não caminhava nem entendia o que as pessoas falavam, mas demonstrava estranho brilho no olhar sempre que Fernando se aproximava. Às vezes se agitava e emitia pequenos sons, como há dizer que muito sofria, e só se acalmava quando o pai a acalentava ou a colocava no colo. Um dia, um médium foi procurar a família. Havia uma carta que havia sido psicografada no centro durante uma sessão íntima que se endereçava a eles. A família se reuniu para ler e cada palavra que Humberto pronunciava causava muita emoção: "Queridos amigos e familiares que deixei na Terra: hoje, com a permissão de Deus e dos espíritos superiores, posso vir revelar alguns fatos que se ocultam por trás da matéria. Quando parti deixando meu corpo de carne doente, não entendi o que se passava comigo e me revoltei. Humberto, o homem que mais amei, havia me traído e me trocado por uma mulher que mais tarde viria a tirar minha vida. Oh! Eu não sabia que Deus sempre faz tudo certo e resolvi cobrar a vingança. Cedo descobri que esse caminho só me trouxe infelicidade e, com ajuda de amigos, consegui acabar com minhas ilusões e olhar a vida como ela é. Como a aceitação nos faz bem! Percebi que Humberto é apenas um ser humano e, como tal, errou e ainda vai errar outras vezes para crescer. Aprendi que o erro é uma condição natural para a evolução e parei de me culpar pelo que fiz da minha própria vida. Quando casei, enterrei minha juventude em nome dos papéis sociais, achando que assim seria feliz. Coloquei toda a minha alegria em meu marido sem perceber que não são os outros que fazem nossa felicidade, que ela só pode vir de nós mesmos. Resultado: atraí a rejeição e a doença. Hoje sei que tudo que nos acontece vem de nossas próprias atitudes e estou disposta a mudar, ser feliz! Quero dizer que todos vocês deram um passo muito grande na senda da evolução. Mamãe venceu os preconceitos e aprendeu que ninguém é melhor que ninguém, que riqueza e poder só valem mesmo quando estamos caminhando com a verdade. Humberto se tornou um novo homem e está no caminho da espiritualidade, preparando-se inconscientemente para uma grande tarefa que terá no futuro, que Deus o abençoe. Patrícia e Fernando se reencontraram após muitas vidas de desentendimentos, paixões e sofrimentos; agora podem finalmente encontrar a paz. Principalmente porque venceram a prova importante do orgulho, souberam renunciar em nome do amor. Andressa precisava dessa oportunidade. Abençoada seja a maternidade, que conduziu até o seio dessa família um espírito muito ligado a vocês por laços que se perdem no tempo. Aprendam a amá-la verdadeiramente. Esse estágio de Andressa na Terra será curto, apenas para que se cure dos problemas que carrega e possa obter de todos vocês o perdão sincero e efetivo. Ninguém pode seguir para Deus deixando em seu caminho resquícios de ódio, revolta, violências e crenças no mal. Todos nós sofremos muito para entender que nada é para sempre, que a vida pode a qualquer momento modificar todas as situações ao nosso redor sem que possamos prever.
Finalizo pedindo a todos que continuem os estudos sobre a vida espiritual. Sabemos aqui no plano astral que estão surgindo novas revelações da verdade; elas virão para implantar de vez a Nova Era nesse mundo ainda tão conturbado. Aproveitem o que a espiritualidade pode oferecer praticando todos os seus ensinamentos, pois o conhecimento de nada adianta sem a prática. As novas revelações vão desafiar alguns, confundir a outros, mexer com orgulhos e vaidades, mas quem estiver firme no bem vai se beneficiar e mais rápido encontrará a felicidade e a harmonia interior. Que o Mestre de amor possa estar com todos vocês, abençoando-os sempre... Flaviana". Humberto e a família leram e releram muitas vezes a carta, agradecendo a Deus a bênção maravilhosa da mediunidade e a chance que Ele dera a Flaviana de se manifestar. Renovados por aquelas simples palavras, entenderam um pouco mais a infinita bondade do Criador e a sabedoria de suas leis. No fundo do coração de cada um ficou a certeza de que no corpinho deformado de Andressa estava o espírito que um dia se chamou Isabela, e de que a reencarnação é a única porta que conduz ao amor incondicional.



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DE VOLTA AO PASSADO
CÉLIA XAVIER CAMARGO
DITADO PELO ESPÍRITO CÉSAR AUGUSTO MELERO


ÍNDICE

APRESENTAÇÃO

CAPÍTULO 1 = APRENDENDO SEMPRE
CAPÍTULO 2 = REFLEXÕES
CAPÍTULO 3 = O SONHO
CAPÍTULO 4 = ENFRENTANDO A VERDADE
CAPÍTULO 5 = NOVAS ATIVIDADES
CAPÍTULO 6 = NO HOSPITAL
CAPÍTULO 7 = UMA EXPERIÊNCIA DIFERENTE
CAPÍTULO 8 = LUZ NAS TREVAS
CAPÍTULO 9 = JOSÉ DOMINGOS MORGADO
CAPÍTULO 10 = O SONO DOS ENCARNADOS
CAPÍTULO 11 = LEMBRANDO O PASSADO
CAPÍTULO 12 = DIA EXAUSTIVO
CAPÍTULO 13 = VISITA INESPERADA
CAPÍTULO 14 = ESPERANÇA RENOVADA
CAPÍTULO 15 = NOVOS CONHECIMENTOS
CAPÍTULO 16 = NO CENTRO ESPÍRITA
CAPÍTULO 17 = O TRABALHO PROSSEGUE
CAPÍTULO 18 = ENCONTRO COM O PASSADO
CAPÍTULO 19 = A HISTÓRIA DE LÍGIA
CAPÍTULO 20 = ACOMPANHANDO GUSTAVO
CAPÍTULO 21 = SOB A LUZ DO LUAR
CAPÍTULO 22 = DECISÃO IMPORTANTE
CAPÍTULO 23 = MUDANÇA DE VIDA
CAPÍTULO 24 = REUNIÃO ESPIRITUAL
CAPÍTULO 25 = ASSIMILANDO IDÉIAS
CAPÍTULO 26 = RETORNO AO LAR
CAPÍTULO 27 = O RETORNO
CAPÍTULO 28 = NOVOS PACIENTES
CAPÍTULO 29 = NA RESIDÊNCIA DE FÁBIO
CAPÍTULO 30 = NO SÍTIO
CAPÍTULO 31 = CONFIDÊNCIA
CAPÍTULO 32 = EVANGELHO NO LAR
CAPÍTULO 33 = LEMBRANDO RESPONSABILIDADES
CAPÍTULO 34 = REAFIRMANDO COMPROMISSOS
CAPÍTULO 35 = AVALIAÇÃO
CAPÍTULO 36 = TEMPO DE DESPERTAR
CAPÍTULO 37 = NOVAS LEMBRANÇAS
CAPÍTULO 38 = DESPEDIDAS

APRESENTAÇÃO

Difícil descrever o que sentimos ao encerramento de uma tarefa. Primeiro, imensa alegria, por termos vencido o desafio; depois, alívio, por havermos concluído o que começamos; e, por último, saudade de um período trabalhoso, mas profundamente gratificante, e que não voltará mais. Por dezenove meses - de 16 de março de 1998 a 19 de outubro de 1999 – trabalhamos sem cessar, juntando os esforços de toda a equipe. O resultado aqui está. Para nós, foi uma etapa altamente compensadora e rica de aprendizado, que nos possibilitou várias conquistas, entre outras a consciência de nos encontrarmos hoje bem mais maduros e responsáveis. Que esta obra, fruto do trabalho de muitos, possa ser de alguma utilidade para todos os que a lerem, despertando em cada um a necessidade do auto-conhecimento como meio de vencer as imperfeições que ainda caracterizam o ser humano. Os companheiros do grupo envolvidos nos casos aqui enfocados abriram mão de sua privacidade em benefício geral. Naturalmente, muitos nomes foram trocados, em nome da caridade cristã, evitando-se assim uma identificação indesejável. Uma coisa é certa: o esquecimento do passado, para o encarnado, é bênção divina, que lhe proporciona tranqüilidade e condições para viver de forma construtiva e digna. Ao re-construir hoje o que destruiu ontem, ficará deslumbrado com o amanhã - muito mais feliz -, porque fundamentado no exercício do bem e do amor ao próximo. Chega o momento, porém, em que precisamos enfrentar a dura realidade, que nos coloca face a face com o passado, forçando-nos a lutar para vencer os desafios que a vida nos apresenta. Não é fácil. Pela nossa ótica, enxergamo-nos sempre como vítimas inocentes. A verdade, entretanto, poderá nos surpreender, mostrando nossa real situação como Espíritos e os prejuízos que causamos a outrem através do tempo. Desse modo, nosso objetivo, ao enfatizarmos o que ensina a Doutrina Espírita, é o mesmo que já pregava Jesus de Nazaré há quase dois milênios, isto é, demonstrar a necessidade da mudança interior. Não essa mudança de fachada, mas aquela que, em profundidade, busca o aprimoramento moral, tornando-nos livres e conscientes. "Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará", afirmou o Mestre. Busquemos essa verdade pelo auto-conhecimento, para não sermos surpreendidos depois, quando a morte nos obrigar a enfrentá-la, visto que, não raro, nos apresentamos completamente despreparados de valores nobilitantes. Estamos no limiar do terceiro milênio, às portas de grandes transformações: nosso planeta será elevado à categoria de Mundo de Regeneração. Se desejamos fazer parte da sociedade do futuro, se aspiramos a uma vida melhor em todos os sentidos, não podemos conservar-nos presos ao lamaçal das nossas imperfeições. Nesta época, Jesus nos faz um último convite para nos aliarmos à sua obra de regeneração pelo Espiritismo, laborando em sua seara como servidores fiéis e dignos do salário da boa vontade. Aceitemo-lo! Nossos agradecimentos a todos os que, encarnados e desencarnados, colaboraram para a execução deste projeto. A Jesus de Nazaré, o Mestre Maior, nosso profundo amor. Que Deus, Pai Amantíssimo, nos fortaleça e ampare sempre nossa trajetória rumo à evolução. Muita paz!

César Augusto Melero
Rolândia, novembro de 1999.

1 - APRENDENDO SEMPRE

Naquele dia, nos dirigíamos ao Centro de Estudos da Individualidade para as reuniões evangélico-doutrinárias programadas. Nesses encontros, procedíamos à análise de temas do Evangelho de Jesus, de extraordinária importância para nosso aprendizado, quando ficavam evidenciadas as nossas falhas morais e a conseqüente necessidade de crescimento interior com vistas ao progresso espiritual que tanto almejávamos. Após o fenômeno da morte corporal e o inevitável ingresso no além-túmulo, passasse por um período em que o mais importante e inadiável é o reequilíbrio das condições perispirituais, prejudicadas em razão de acidente, ou de enfermidade (como no meu caso, o que me obrigou a enfrentar a grande viagem). Ou ainda, em casos mais sérios, quando o corpo espiritual está profundamente comprometido por ato insano ligado ao suicídio, por exemplo. Nesta hipótese, as seqüelas são gravíssimas, exigindo tratamento especializado, como já foi relatado por Eduardo em outro livro, do qual participamos1. Adaptamo-nos emocional e espiritualmente à nova situação, maravilhados e perplexos com as novidades que nos apresentavam, com a beleza e a grandiosidade do outro mundo, que muitos de nós ignorávamos até aquele momento. E passamos cada vez mais a reverenciar o Criador, compreendendo-lhe a grandeza e a sabedoria, a misericórdia e a justiça. O coração transborda de amor e de gratidão pela bênção da vida eterna; uma sensação inefável de paz e bem-estar nos domina e sentimo-nos reconfortados e seguros. Uma nova visão do futuro nos ilumina a mente e nos dilata as percepções, e a esperança nos infunde alegria e otimismo. A realidade cósmica da imortalidade coloca-nos diante do imperativo de reformular o interior, em face da necessidade de progresso. Após essa primeira fase, já recuperados, nos propomos a servir. Ansiamos trabalhar, fazer alguma coisa de bom, de útil, para as outras criaturas, ajudar o próximo tal qual fomos ajudados. E nos lançamos ao serviço dignificante com disposição e otimismo, cheios de alegria e entusiasmo. Aos poucos, esse estado de euforia passa e retornamos a nossa singela condição, isto é, à de Espíritos imperfeitos, rebeldes, orgulhosos, egoístas, indiferentes, violentos, agressivos, críticos, entre outras coisas. Perplexos, chegamos a uma constatação constrangedora: a morte não nos tornou criaturas melhores. Somos o que somos. Daí a necessidade de nos dedicarmos continuadamente ao estudo do Evangelho de Jesus, como bússola norteadora das mudanças que precisamos implantar, para aquisição de valores morais nobilitantes que nos transformarão em seres mais conscientes e elevados espiritualmente. Em virtude disso, é obrigatória a passagem pelo Centro de Estudos da Individualidade. Nesse departamento são programadas reuniões, palestras e outras atividades com o objetivo de cada um se analisar e exercitar o conhecimento de si mesmo. Nesse dia, estava programada uma explanação em torno do tema Aprimoramento moral. A palestrante, Anita, era nossa conhecida e gozava de grande conceito e admiração. Era uma dama de idade indefinível, fisionomia clara e radiante de ternura, envolta em suave luminosidade. As vestes, que pareciam tecidas com fios cintilantes na cor lilás, realçavam ainda mais sua figura nobre e digna. Quando entrou, o recinto pareceu inundar-se com sua presença. Após a prece inicial, começou a falar. Seus olhos, lúcidos e calmos, passeavam pela assistência, fitando cada um dos presentes e fazendo com que todos se sentissem importantes, o que era sobremodo favorável e propício para a ocasião. Dotada de grandes conhecimentos e de clareza de exposição, as idéias lhe fluíam da mente de forma sintética e pedagógica, facilitando o entendimento por parte da assistência heterogênea. A palestrante mostrou a todos os presentes que as dificuldades e os sofrimentos experimentados são conseqüência da ignorância e do mal que espalhamos no passado, valorizando em excesso o próprio ego, em razão do orgulho e da ambição desmedidos, e de outros comportamentos egoísticos e interesseiros. Enfatizou a necessidade do Conhece-te a ti mesmo. Demonstrou que as nossas imperfeições, estendendo-se através do tempo, nos têm causado desastrosas quedas morais. Que é imprescindível detectar as nossas fraquezas, para centralizar nelas o nosso poder de combate. E ponderou:
- A memória integral do ser pensante, a individualidade do Espírito, encontra-se arquivada cuidadosamente em camadas profundas, podendo ser acessada à medida que ele evolui em moralidade e conhecimento. Atualmente, cada um de vocês possui apenas lembranças da última encarnação, da personalidade que vestiram no tempo e no espaço durante a mais recente experiência reencarnatória, da identidade que assumiram, cujo nome, profissão, características orgânicas, estado civil e outros dados dizem respeito apenas a essa existência determinada. A proporção que se forem descobrindo, refletindo sobre os próprios problemas, o porquê das dificuldades que enfrentaram e suas raízes, as recordações irão aflorando naturalmente. A reflexão acerca de nossos defeitos e a análise do que fatalmente teremos que enfrentar, como conseqüência das nossas atitudes, nos levará a desejar ser melhores. Mas essa é uma conclusão a que cada um terá que chegar com os próprios recursos.
Após uma pausa, prosseguiu:
- O mal é a ausência do Bem. A cada virtude negativa corresponde uma virtude positiva que nos cabe adquirir. Aos poucos, a substituição será feita, com grande benefício para o Espírito. O egoísta vai aprendendo a ser altruísta, o orgulhoso a ser humilde, o agressivo a ser pacífico, e assim por diante.
Concluiu suas palavras afirmando que, apesar de nossos erros fragorosos, novas oportunidades nos serão sempre concedidas por Deus, visando ao nosso progresso como Espíritos imortais a caminho da evolução. Que, no estágio atual de conhecimento e de consciência de que já dispomos, urge aproveitar o tempo para fazer o melhor. Após a palestra, acompanhamos mentalmente a prece de encerramento. Em seguida, sem qualquer protocolo, Anita desceu os degraus que a separavam de nós e se integrou à assistência. Estávamos impressionados. Seu poder de persuasão era enorme, visto que quase todos os presentes se sentiam tocados nas fibras mais profundas. Agora era o momento de trocarmos idéias, aproveitando a oportunidade para conhecer as experiências de cada um, de extrema importância para o nosso aprendizado. Atingidos pelas palavras da expositora, muitos enxugavam os olhos, discretamente, relembrando o próprio caso. Os grupos se formaram naturalmente e os diálogos surgiam, interessantes e ricos em conteúdo. Ao passar por algumas pessoas, ouvi um senhor que, demonstrando infinito remorso, relatava a seus interlocutores:
- No meu caso, o ciúme me arruinou. Conheci minha esposa ainda muito jovem e nos apaixonamos. Todavia, meu ciúme era doentio. Ainda na fase de namoro estava sempre a vigiá-la, cerceando-lhe os passos e exigindo explicações a propósito de tudo. Acreditava, no entanto, que após o casamento as coisas iriam melhorar, o que não aconteceu, pois fiquei ainda mais exigente e desconfiado. Não conseguia me controlar. Até que, não suportando mais, minha esposa foi embora, levando nosso filhinho. Desesperado, então convicto de que ela me enganava com outro homem, fui atrás dela e a matei.
Fez uma pausa, levou o lenço aos olhos e prosseguiu:
- Fui preso, condenado e paguei minha dívida para com a sociedade. Durante muitos anos, amarguei a solidão numa cela. Somente aqui, no além-túmulo, décadas depois, fiquei sabendo a verdade: minha esposa jamais me traíra. Tudo foi engendrado pelo meu cérebro doentio. Perdi a família, perdi a felicidade, perdi a liberdade, perdi tudo. Agora, tento conseguir nova oportunidade para retornar ao corpo físico numa outra encarnação. Para isso, estou me preparando. Recebi orientação para freqüentar este grupo e oro muito a Deus, suplicando uma nova chance. Mas não é fácil... Não é nada fácil vencer a si mesmo...
Em outro grupo, uma senhora de olhos arregalados e vivos, um tanto agitada, dizia:
- O meu problema sempre foi falta de paciência.
- Como assim? - indagou uma velhinha simpática.
- Explico-me. Espírito prático, sempre fui muito exigente com todos os que me rodeavam. Desejava que tudo fosse feito segundo minha vontade. Não tinha paciência com o marido, empregada, amigos, colegas de serviço. Vivia sempre irritada e descontente. Nada conseguia realizar porque, se as coisas não fossem do meu jeito, eu me desentendia com as pessoas e delas me afastava.
Fez uma pausa, deu um longo suspiro e concluiu:
- Reencarnei com uma tarefa que me seria muito gratificante: deveria ajudar crianças desamparadas. Meus compromissos anteriores assim o exigiam. Viria a casar, mas não seria mãe, em virtude de haver abandonado meus filhos em mais de uma existência. Seria, porém, mãe de filhos alheios. Como podem imaginar, retornei sem ter conseguido levar a cabo a programação. Não ajudei meu marido ou as crianças de rua. Irritada e impaciente, desistia de lutar, sempre que um obstáculo surgia, ou que minha vontade era colocada em xeque. Reconheço que perdi a oportunidade apenas por falta de paciência. Hoje, exercito-me, procurando aceitar as pessoas tais quais são e respeitando-lhes o ponto de vista.
Um senhor alto, magro, de óculos, sorriu tristemente e considerou:
- O seu caso, minha irmã, parece-me mais fácil do que o meu. A paciência é algo que exige treino e que se adquire com o tempo. O seu oposto - a impaciência - não chega a provocar tantos sentimentos inferiores. É algo que você não aceita nos outros, mas que é periférico, no meu modesto entender. Já o meu caso é mais complicado porque envolve mágoa, aversão, sentimentos esses muito fortes e negativos.
Pigarreou, arrumou os óculos de aro de tartaruga e começou a narrar:
- Dentre todas as virtudes, penso que a mais difícil de adquirir é o perdão. Quando encarnado, sempre me consideraram pessoa boa, paciente e cordata. Mas o que as pessoas não sabiam é que eu era muito rancoroso. A menor ofensa, à mais ligeira crítica, ficava logo ressentido. Não demonstrava meus sentimentos, entretanto não conseguia perdoar. Esse estado de espírito fez com que eu atravessasse a existência conservando o coração em vinagre. Quando meu filho desencarnou num acidente de moto, fiquei desesperado. Passei a guardar ódio mortal do motorista que o atropelou com o caminhão. Os policiais afirmaram-me que ele não teve culpa: que houve imprudência de meu filho ao tentar cruzar a rua com o sinal vermelho e por dirigir em alta velocidade. Nada disso, porém, me convenceu. Desejava destruir aquele homem que havia assassinado meu filho. O ódio me consumiu. Atravessei o resto da existência perturbado e infeliz, dominado pela presença de minhas vítimas do pretérito, que agora surgiam como algozes, atraídos pelo baixo padrão vibratório em que eu vivia. Vinguei-me do desventurado motorista, fazendo com que perdesse o emprego, e, não contente com isso, vigiava-lhe os passos e o prejudicava sempre que encontrava ocasião.
Alguém perguntou, sensibilizado com o relato:
- E seu filho? Você o tem visto?
- Infelizmente não. Tive algum contato com ele, por generosidade de amigos espirituais, após readquirir um certo equilíbrio, o que não foi fácil. Mas não pudemos ficar juntos. Desde que aqui chegou, meu filho evoluiu muito, espiritual e moralmente, enquanto que eu passei os últimos cinqüenta anos entregue à revolta, vinte dos quais no plano espiritual. Após a morte do corpo físico, ainda prossegui com as idéias de rancor, ligando-me a um bando de vingadores e tentando prejudicar o pobre caminhoneiro. Atualmente, fui informado de que meu filho está se preparando para reencarnar na família dele. Como seu neto, tentará reparar o mal que lhe causei. Estávamos impressionados. Cada pessoa ali presente era um mundo diferente e único; suas lembranças nos traziam valiosos conhecimentos, além de nos esclarecerem sobre a importância de dominarmos as próprias inferioridades.
Ouvindo esses relatos, pensávamos em nossos problemas. O que teria determinado a nossa queda? Ou o que estaria nos detendo no caminho evolutivo? Essas perguntas teríamos que responder a nós mesmos. Buscar nos recônditos do ser, desentranhar sentimentos e sensações - aversões, medos, angústias, traumas - para restaurarmos a nossa identidade espiritual, a qual, como uma colcha de retalhos, tivesse de ser montada, juntando-se os pedaços à feição de um quebra-cabeças. Esse é o nosso desafio. Aliás, o desafio de todas as criaturas humanas, Espíritos eternos e aprendizes na escola da vida.

1 - Referência ao livro "Preciso de Ajuda!" , da autoria espiritual de Eduardo, publicação desta Editora.

2 - REFLEXÕES

As palavras da irmã Anita ficaram a martelar-me a mente. Profundamente impressionado, não conseguia esquecê-las. Nossa orientadora tinha razão. Era preciso mergulhar no passado, buscar nos refolhos da memória os fatos de que tínhamos participado, analisar o porque de nossas dificuldades e dos sofrimentos que experimentáramos. De regresso ao nosso abrigo, ouvia as conversas dos amigos sem qualquer interesse. Irineuzinho - assim chamado para estabelecer diferença deste para outro amigo com o mesmo nome - caminhava a meu lado.
- Você está muito calado hoje, César.
- É o peso da responsabilidade! - brinquei.
Ele riu. Com as mãos nos bolsos, olhou o céu limpo e estrelado, considerando:
- Compreendo seu estado de espírito. À medida que a orientadora Anita falava, comecei a pensar em meu caso. Passei a sentir uma certa angústia, o coração apertado, como se o medo de alguma coisa que ignoro, e que possa vir a descobrir, me tomasse de assalto.
- É, Irineuzinho, são os nossos fantasmas. Conquanto não nos lembremos da nossa história, permanecendo o passado sob o véu do esquecimento, nossa individualidade intuitivamente sabe e teme que os seus erros sejam descobertos.
- Acho que é isso mesmo, César. Então, num processo inconsciente de fuga, age como qualquer infrator apavorado tenta esconder o que fez.
Permanecemos calados durante alguns minutos, cada qual mergulhado nos próprios pensamentos. Em seguida, ele voltou a perguntar:
- César, você tem alguma noção do seu passado?
Naquele momento lembrei-me de Sheila2. Da minha muito querida Sheila. Suspirei. Sempre que nossas atividades permitem, visitamos amigos na crosta planetária, acompanhando suas vidas e procurando ajudar na medida do possível. Uma das famílias que temos o hábito de rever, periodicamente, é a de Sheila. Atualmente ela tem outro nome, mas vamos continuar a chamá-la assim. Desenvolve-se como uma flor. É uma garotinha esperta, meiga e de olhos grandes e melancólicos; tem os cabelos claros, que caem até o pescoço em cachos largos e macios. Está na primeira infância. Sempre que dela nos aproximamos, ela percebe a nossa presença e sorri. É o mesmo sorriso encantador de sempre. Todavia, tem o aspecto de uma criança triste, mesmo quando sorri. Quando dorme e seu Espírito se desprende do corpo, corre ao nosso encontro, ansiosa, e chora de saudade. Por essa razão, evitamos que Sheila nos veja. Especialmente eu, ligado a ela por profundos laços de afeto. É imprescindível deixar que ela cresça, que se desenvolva normalmente, que crie raízes na nova vida e que vá se esquecendo, aos poucos, dos amigos da Espiritualidade, para que possa ser feliz. Isso acontecerá fatalmente com o decorrer do tempo. À medida que o corpo se desenvolve, a encarnação vai sendo consolidada e o Espírito passa a interessar-se mais pela nova existência. Perde paulatinamente o contato com o mundo espiritual e esquece a vida que levava antes, processo que perdurará até que a reencarnação seja completada. Entre os motivos que muitas vezes levam a criatura à tentativa de suicídio, está exatamente o desejo de retornar ao plano espiritual, a saudade do mundo que deixou e, não raro, o medo de enfrentar a nova vida. Conforme a natureza das provas que o Espírito tenha de passar, intuitivamente ele se lembra e se atemoriza, podendo ressentir-se de estar numa família que não é a sua, junto com pessoas com as quais não tem afinidade, e luta para regressar ao lugar de onde veio e onde era feliz. Especialmente na fase infantil, é preciso muito cuidado da parte de pais e educadores. A depressão que ataca as crianças apresenta com freqüência essa causa. A adaptação à nova vida não é fácil e o Espírito reage contra essa situação. Mesmo porque ele não ignora as dificuldades, problemas e sofrimentos que irá enfrentar, e tenta fugir. Não tem outra razão a melancolia que domina crianças e adolescentes. Saudades da vida que deixaram para trás, dos amigos e familiares que ficaram, da felicidade e do bem-estar que gozavam, e dos quais recordam um. Tudo isso me passou rápido pela mente após ouvir a pergunta do amigo: César, você tem alguma noção do seu passado? Virei-me e vi que Irineuzinho esperava, paciente, uma resposta.
- Alguma coisa. Somente alguma coisa.
- Compreendo - disse ele, percebendo que tinha tocado num ponto ainda muito doloroso para mim.
Irineuzinho chegou a Céu Azul depois que o livro, com o mesmo nome, fora ditado. Veio do Posto de Socorro Redenção, onde permanecera durante alguns anos, atraído por seus avós, que lá residiam. Embora tivesse lido o livro, somente agora se lembrava do episódio em que narrei a ida ao Setor de Programação de Renascimentos e as conseqüentes informações.
- Você já sabe um pouco do seu passado, e isso é muito bom - disse ele. Depois de uma pausa, acrescentou: - Eu não tenho nem idéia do que andei aprontando! Contudo - sempre penso nisso! -, não foi à toa que eu e o Padilha desencarnamos, tão jovens, num acidente!3
Uma voz alegre e curiosa soou atrás de nós, enquanto alguém colocava as mãos em nossos ombros:
- Estão falando de mim?
Irineuzinho o colocou a par do que falávamos e Padilha tornou-se sério de repente:
- Acham que também não tenho quebrado a cabeça pensando nisso? Vezes sem conta tenho rebuscado na memória uma explicação para o que nos aconteceu. Mas não quero ser ingrato para com Deus. A verdade é que tudo tem uma razão de ser, e, algum dia, saberemos o porquê.
Estávamos chegando a nossa casa. Irineuzinho, Padilha, Márcio Alberto4, Paulo e outros prosseguiriam, pois seus Abrigos estavam localizados um pouco mais adiante. Despedimo-nos fraternalmente e entramos. Todos estávamos calados e introspectivos. Diferentemente de outros dias, não tivemos vontade de ficar conversando em nossa varanda. Mesmo porque já era tarde. Após uma prece em conjunto, nos recolhemos. Estirado no leito, relaxado, deixei que a mente planasse livre e os pensamentos fluíssem naturalmente. A memória buscou o lar terreno e me lembrei da época em que ainda estava encarnado. Embora estivesse muito longe da Terra e da minha cidade natal, parecia-me penetrar o ambiente simples e despojado de nossa casa; ao meu olfato chegava o cheiro característico de comida sendo preparada na cozinha. A presença de minha mãe, sempre terna e carinhosa, e do meu paizão, alto e magro como uma vara de pescar. Coisas de há muito esquecidas vinham-me à lembrança. Suspirei, enxugando uma lágrima. À época, eu era feliz e não sabia... Lembrei-me dos primeiros sintomas da doença. A dor no joelho, enjoada e insistente; leve no início, depois vigorosa e constante. Uma presença indesejável da qual eu não conseguia me libertar. Revia-me na cama, com a perna enorme, desproporcional, enquanto a dor, aquela dor terrível, não me dava tréguas. Por que tanto sofrimento? Reconheço que Deus é justo e que nada acontece por acaso. Sei que mereci passar por aquela situação. Dolorosa, mas de função altamente pedagógica, educativa. A nossa querida irmã Anita tinha dito que deveríamos refletir sobre tudo o que acontecera conosco, para que, aos poucos, pudéssemos retirar das camadas mais profundas as matrizes dos nossos sofrimentos. Taí uma coisa que pra mim era fundamental: descobrir as razões da expiação que experimentei na última romagem terrena. Recordei-me de que, durante a minha doença, alguns irmãozinhos desencarnados permaneciam no ambiente de nosso lar, convivendo conosco, participando de nossas vidas e causando perturbações de vulto. Lembrei-me também de que, na época, foram feitas reuniões mediúnicas no grupo que meus pais freqüentavam, na tentativa de auxiliar esses irmãos revoltados e que tanto me odiavam. No escuro, levei a mão à cabeça. Como pude ter esquecido isso? Estava perplexo! Somente agora essas lembranças me afloravam à mente. Mas, por que eles me odiavam tanto? O que fizera eu para atrair tanto rancor? Por mais que consultasse a memória, não conseguia me lembrar. O que fazer? Agora sentia uma urgência íntima, uma necessidade premente de descobrir o que se escondia no meu passado. Depois de muito pensar, decidi: na manhã seguinte, procuraria os amigos que me acompanharam durante o período em que estivera enfermo e que tanto me ajudaram. Certamente eles teriam respostas para essas indagações. Somente depois dessa resolução, consegui dormir. Não tinha percebido o avanço das horas. O dia não tardaria a chegar. As primeiras claridades da aurora surgiam e as estrelas, aos poucos, se apagavam. Amanhecia.

1 - Irineu Schoereder, de Rolândia (PR).
2 - Referência a personagem do livro "Céu Azul", do mesmo autor.
3 - Referência ao acidente que causou a morte física de Irineu Schoereder e Carlos Alberto Padilha. Também de Rolândia (PR).
4 - Márcio Alberto Ramires, de Rolândia (PR).

3 - O SONHO

Tão logo adormeci, reconheci-me em um lugar diferente. A princípio, uma bruma azulada cobria tudo; lentamente, a névoa se foi dissolvendo e, aos poucos, imagens foram surgindo de forma tênue e esfumaçada. Eu não saberia dizer se elas eram produto da minha mente ou se eram realidade. Então, vi uma aldeia em meio a bela região montanhosa, cercada de vegetação luxuriante. Frondosas árvores criavam efeitos de luz e sombra sob os raios do sol, contrastando com o azul profundo de um céu sem nuvens, enquanto flores de colorido variado e vibrante faziam com que a visão se assemelhasse a um encantador cartão-postal. Estava embevecido na contemplação daquelas imagens, que, embora contivessem tanta tranqüilidade, me davam uma certa angústia. Não saberia dizer a razão da ansiedade e do medo que me tomavam de assalto, fazendo com que o coração batesse forte. Logo entendi o porquê. Repentinamente, aquela paz bucólica foi quebrada por movimentação extraordinária. Brados de guerra, agudos e estridentes, soaram, enquanto o ruído de um grupo de cavaleiros que se aproximava em disparada fazia com que o solo trepidasse sob os cascos dos cavalos. Pressentindo o perigo, os pacatos habitantes da formosa aldeia corriam, desnorteados, tentando fugir e se esconder. Conquanto sentissem a urgência da fuga, não sabiam que rumo tomar. Nesse momento, um grupo de guerreiros, rudes e sanguinários, surgiu de todos os lados impedindo a fuga. Portando tochas, que exalavam odor acre e resinoso, atearam fogo nas taperas, transformando tudo num imenso fogaréu, enquanto outros passavam pelo fio da espada todos os homens, mulheres e crianças. Ninguém da aldeia se salvou. Não pouparam nem mesmo os animais, que lhes poderiam ser de alguma utilidade. E eu fazia parte dessa tragédia; naquela hora, eu estava ali e senti todo o horror e angústia junto com terrível sensação de impotência diante dessa agressão inominável. Lutei bravamente tentando proteger meu povo, mas os invasores, mais adestrados, estavam em maior número. Além disso, éramos apenas uma tribo pacífica, que aprendera a cultivar a terra e a sobreviver dos frutos que ela nos dava. Quando caí mortalmente ferido, tentava defender uma jovem loura e frágil a quem amava e que fora o motivo pelo qual os bárbaros tinham invadido nossas terras e destruído tudo. Um ódio profundo passou a dominar-me o coração e jurei vingar-me daquele chefe guerreiro que tanto mal havia causado às nossas vidas. Despertei indisposto e cansado. Somente então percebi que sonhara. Tudo me parecera tão real que senti ter vivido naquela bucólica aldeia perdida entre as montanhas. Mas, teria realmente acontecido tudo aquilo que eu presenciara, ou fora apenas um sonho? A razão afirmava-me que sim, que tivera lembrança de fatos acontecidos num passado distante. Agora, mais do que nunca, precisava procurar alguém que pudesse me esclarecer. Estava de folga e me lembrei de buscar ajuda com o assistente Matheus, criatura boníssima e com quem tinha grande afinidade. Muitas vezes eu o tinha visto em meu quarto de doente, quando encarnado. Portanto, deveria estar bem informado. Contei a Eduardo o que tinha em mente.
- Ótima idéia, César. Se quiser, posso acompanhá-lo. Também estou de folga esta manhã.
Aceitei o oferecimento. Mesmo porque Eduardo e Marcelo, meus amigos mais íntimos, também tinham acompanhado meu processo terminal na vida física. Caminhamos pelas ruas, bastante movimentadas àquela hora, quando os moradores da Pequena Cidade se dirigiam para seus locais de trabalho. Em poucos minutos nos aproximamos de um prédio baixo e comprido, em meio de extenso e bem cuidado jardim. Tudo me era muito familiar. Entramos. Atravessamos extensos corredores, cheios de portas, algumas abertas, o que nos permitia ver, ao fundo, o verde do jardim e sentir a brisa que entrava pelas amplas janelas. Logo chegamos à sala de Matheus. Admitidos à sua presença, fomos recebidos com largo sorriso:
- Estou muito contente em vê-los. Mas, o que os trouxe aqui tão cedo? Posso ser útil em alguma coisa?
Incentivado pelo amigo, não relutei em contar-lhe o que estava acontecendo comigo. Falei-lhe sobre as reflexões a que me entregara, como conseqüência das palavras da instrutora Anita. Relatei-lhe o sonho que tivera e que tanto me impressionara. Depois, concluí, ansioso:
- Matheus, você acompanhou meu período terminal de vida orgânica. Certamente sabe muitas coisas a meu respeito, que ignoro. Diga-me, será verdade tudo isso?
Com expressão grave, mas afetuosa, ele confirmou:
- Sem dúvida, César Augusto. Ao adormecer, com a mente preocupada, você liberou lembranças de vivências antigas e que muito lhe marcaram o Espírito.
- É verdade, Matheus. Aquelas cenas me chocaram bastante. Porém, o que me impressionou sobremaneira foi o ódio que senti daquele guerreiro. Jamais imaginei que, no atual estágio em que me encontro, pudesse ainda experimentar sentimentos tão violentos por alguém!...
Eduardo, que ouvia calado, considerou:
- Você não deve se preocupar com isso. É que, durante o sonho, você voltou àquele momento específico em que o drama estava ocorrendo, vivenciando a carga de emoções correspondente. Isso não significa que você ainda odeie aquele homem.
- Foi horrível! Ver a aldeia em chamas, os moradores correndo de um lado para o outro, tentando escapar dos invasores... E eu sem poder fazer nada. Ainda sinto o cheiro de fumaça e de carne queimada.
Matheus e Eduardo concordaram em que a experiência deveria ter sido muito dura, mas proveitosa. Eu, porém, refletia: Mas, se fui o agredido àquela época, porque desencarnei na última existência em condições tão dolorosas?
- Porque existem outros fatos que você desconhece. Após essa tragédia que tanto o abalou, ocorrida em época que se perde no tempo, vocês se encontraram outras vezes, conservando o mesmo ódio mortal um pelo outro. O que estava, num dado momento, em melhor posição, esmagava o adversário. Depois, a situação se invertia, e a agressividade e o ódio continuavam, num círculo vicioso e infindável - explicou Matheus.
- Verdade? Que coisa horrível é o passado! É como se isso tudo tivesse acontecido com outra pessoa, não comigo. Não me recordo de nada. Poderia ter acesso a essas lembranças? -indaguei, interessado.
- Acredito que não haja problema. Em geral, só permitimos o acesso aos arquivos em ocasiões de extrema necessidade...
- Como foi o caso da Sheila... - lembrei.
- Exatamente - concordou ele. - Ou quando o interessado começa a lembrar-se espontaneamente do passado, como é o seu caso. Isto significa que você já está despertando para o conhecimento da memória integral e em condições de obter mais informações.
- Será possível, então? Quando poderemos fazer isso?
Vendo meu estado de ansiosa expectativa, Matheus sorriu:
- Calma, César Augusto. Que tal amanhã cedo?
- Estarei de serviço amanhã - respondi, com uma ponta de decepção na voz.
- Não se preocupe. Falarei pessoalmente com seu superior no hospital e pedirei para liberá-lo, designando um substituto. Esteja aqui às sete horas.
Despedimo-nos. Externei agradecimentos ao generoso amigo, que nunca tinha deixado de nos socorrer. Abracei-o com carinho. Era incrível como tinha gostado dele desde o primeiro momento em que nos vimos em Céu Azul'. Uma sensação que não sabia explicar me tomava de assalto o coração: Matheus me parecia um misto de pai e amigo, de irmão e companheiro. O bondoso assistente olhou para mim e sorriu misteriosamente. Compreendi que ele sabia o que me ia na alma e não ignorava os laços que nos uniam. Quando, junto com Eduardo, deixamos a sala, eu estava sensibilizado até as lágrimas. Caminhamos um pouco pelas ruas e depois nos sentamos num banco de bela praça florida. Eduardo me olhava de forma muito especial. Colocou-me a mão no ombro e considerou:
- O contato com o passado é sempre emocionante e inesquecível, César. Todos temos que passar por isso.
- Você já conseguiu?
- Em parte. Sempre nos mostram o necessário para nosso aprendizado e crescimento íntimo. Não estamos ainda em condições de suportar tudo.
Alguma coisa em mim despertou. Olhei-o de frente:
- Você está a par de meu passado, não é? Estava sempre em casa conosco, Eduardo, e certamente deve ter presenciado muita coisa.
Pesando bem as palavras, ele concordou:
- Um pouco.
- Por que não me disse? - reclamei, como a criança que se sente traída pelo melhor amigo.
- Porque não estava na hora de você saber. Além disso, não cabia a mim relatar nada. Tudo tem seu tempo certo.
- Compreendo...
No fundo, porém, eu estava um pouquinho magoado, como alguém que não compartilha de um segredo, quando outros o conhecem. Porém, mais no fundo ainda, sabia que ele tinha razão e que agiu corretamente. Levantamo-nos do banco e prosseguimos de retorno à nossa casa. O resto do dia não consegui concentrar-me em nenhuma atividade, só esperando que chegasse logo a manhã seguinte.

1 - Nessa ocasião, ainda não me lembrava de detalhes da época em que permaneci no leito, quando encarnado. Posteriormente vim a identificá-lo como alguém que me visitava regularmente.

4 - ENFRENTANDO A VERDADE

Levantei-me bem cedo e me pus a caminho. Estava tenso e preocupado. Chegando à sala de Matheus, o amigo percebeu de imediato meu estado de espírito e sugeriu:
- Quer deixar para outra ocasião?
- Absolutamente! - redargüi. – Nem pensar! Estou ansioso demais para suportar por mais tempo essa tortura.
- Não dramatize, César Augusto. Sua situação é imensamente melhor e mais confortável do que a de muita gente, com a graça de Deus. - disse-me ele, completando:
- Além disso, não conseguirá atingir seu objetivo de recuar no tempo se não estiver em condições de perfeito equilíbrio.
- Compreendo. Desculpe-me, Matheus. Por favor, não me negue essa oportunidade. Tentarei me controlar - supliquei.
- Muito bem. Então, vamos.
Conduziu-me para um outro prédio, distante algumas centenas de metros. Durante o percurso íamos conversando e, aos poucos, fui-me tranqüilizando. Quando lá chegamos, meu estado íntimo era outro. Estava bem melhor. Certamente, a presença de Matheus, as vibrações que ele exteriorizava e sua conversa serena e amiga foram decisivas para o meu equilíbrio. Entramos. O orientador conversou com um dos servidores desse departamento, e, alguns minutos depois, fomos introduzidos numa pequena sala de projeções. Na frente, uma grande tela translúcida, algo leitosa, ocupava toda a parede fronteiriça. Algumas poltronas confortáveis, postadas simetricamente, destinavam-se à assistência. Sentamo-nos. Antes de começar a projeção, Matheus convidou-me ao serviço da oração, o que fizemos com singeleza. Depois, olhando-me com seriedade, explicou:
- César, procure manter-se tranqüilo. Caso você se emocione além da conta, a tela se apagará automaticamente e só voltará a acender quando você estiver equilibrado. Entendeu?
Não conseguia falar. Com leve gesto de cabeça, fiz menção de ter entendido. Matheus apertou um botão ao lado da poltrona, que eu não notara, e percebi que era uma ordem para começar a projeção. A tela iluminou-se e imagens surgiram como se tivessem vida própria. Já tive ocasião de descrever esse processo de cinematografia no mundo espiritual. É um fenômeno indescritível! As imagens movimentam-se em várias dimensões, e o espectador tem a oportunidade de vivenciar o que está assistindo, inclusive de perceber as impressões dos personagens, as sensações de frio ou de calor do momento, a liquidez da água que escorre por entre os dedos, os odores existentes no ambiente e até sentir o vento, forte e impetuoso, ou a brisa fresca e suave que passa acariciando a pele. Mas vai além. Podem-se registrar também os sentimentos e as idéias das figuras envolvidas, bem como a psicosfera da cena, que, não raro, assinala a presença de desencarnados atuando de modo decisivo nas atitudes dos participantes encarnados. A tela mostrava uma grande cidade antiga, com prédios de telhados planos, templos suntuosos, monumentos. Nas ruas, calçadas com pedras, o trânsito era intenso; pessoas com a vestimenta própria dos escravos carregavam grandes cestos de verduras, peixes e outros gêneros alimentícios. Liteiras luxuosas, sustentadas por quatro, às vezes seis, escravos negros e musculosos, trafegavam, deixando ver seus ocupantes através das cortinas descerradas: mulheres bem vestidas, rostos pintados em excesso, fisionomias fúteis e vulgares; homens trajando elegantes togas fitavam o populacho com arrogância e desprezo. Soldados em grupos, com seus uniformes vermelhos e dourados, metais reluzindo ao sol, cavalgavam belos animais, conversando despreocupados. Enquanto atravessavam a cidade. Criaturas sujas e esfomeadas, quase sempre escorraçadas pelos soldados, mendigavam uma moeda ou um pouco de comida. Com emoção, compreendi que se tratava de Roma, a Cidade das Sete Colinas. Caminhando pelas ruas, passamos pelo mercado, onde o movimento era ainda mais intenso e os mercadores apregoavam suas mercadorias em altos brados, oferecendo-as aos transeuntes. Entrando numa rua menos movimentada, começamos a subir uma colina. Um pouco além, à nossa frente surgiu uma grande mansão, em mármore branco, imensa e muito luxuosa. Adentramos seu interior, onde escravos se entretinham com as ocupações domésticas. No triclínio, alguns personagens conversavam, recostados nos leitos. Falavam sobre os jogos, evento muito concorrido, que teriam início dentro de alguns dias. O dono da casa, um jovem centurião forte e arrogante, dizia:
- Vou acabar com ele. Não há melhor momento do que na corrida de bigas. Estou informado de que Múncio também irá participar. Desta vez ele não me escapará. Aurélia Regina será minha de qualquer maneira.
Os dois amigos que ali estavam o incentivavam, enquanto levavam as taças à boca, sorvendo grandes goles de vinho. Um deles era Horácio, cliente da casa, ali residindo há algum tempo e dependente da generosidade do anfitrião, visto ser pobre e não ter meios de sustentar seu dispendioso estilo de vida, O outro, Isidoro, era rapaz de família patrícia, abastado, mas igualmente amante dos prazeres, levando existência desregrada e dissoluta, sem qualquer compromisso com a verdade e a justiça.
- Isso mesmo, Gúbio. Acaba com ele. Esse miserável não merece viver. Além disso, terás um prêmio: a doce e bela Aurélia Regina. Nada mal, hein?...
Fiquei muito emocionado. Observando melhor, reconheci-me naquele centurião a quem chamavam de Gúbio. A comoção foi tanta que a tela se apagou. Matheus aguardou pacientemente que eu readquirisse o controle das emoções para recomeçar a projeção. O cenário tinha mudado por completo. Desta vez, a cena que surgiu a nossos olhos focalizava um banquete na residência daquela de quem já ouvíramos falar - Aurélia Regina. Tratava-se de uma jovem bela e sedutora, pertencente a uma classe inferior e de moral bastante duvidosa, mas que atraíra a atenção dos dois rapazes, fazendo com que a animosidade surgisse entre ambos. Vendo a jovem, imediatamente a reconheci. Era a mesma moça loira que eu amava e que vira em sonhos, a razão do ataque inimigo à nossa aldeia. Emocionado, estava imerso na contemplação daquela que eu revia depois de longo tempo, quando deu entrada no recinto meu rival, Múncio, acompanhado de dois amigos. Aproximou-se de mim e o ódio me dominou o coração. Apesar de cobiçarmos a mesma mulher, mantínhamos relacionamento amigável e ele ignorava até que ponto eu o detestava. Conversamos, e Múncio provocou-me, afirmando que eu não estava preparado e, portanto, não teria condições de vencê-lo nas corridas. Irritado, retruquei, levando a mão ao punhal que trazia preso à cintura, escondido entre as dobras da vestimenta:
- Tenho confiança em minhas habilidades. Mas, se é o que pensa, façamos uma aposta para ver quem de nós dois é o melhor.
Os demais convidados acercaram-se, interessados. As apostas eram sempre muito apreciadas em Roma.
- Aceito! - concordou ele. - Qual será o valor da aposta? Cem... Duzentas moedas de ouro?
Fingi desinteresse.
- Quinhentas, então? - insistiu.
- Dinheiro? Não!... Não me interessa. Já o possuo em quantidade - respondi com desprezo.
- Então, escolha você o prêmio para o vencedor. Aceito qualquer aposta.
Passei os olhos pela sala, com displicência. Ao deparar com a figura de minha amada, que, como os demais, acompanhava a cena, divertida com a disputa, sugeri:
- Aurélia! Sim, Aurélia Regina será o prêmio para o vencedor!
Múncio corou ao perceber a minha intenção, mas concordou:
- Aceito.
Com sorriso irônico, a fogosa Aurélia exclamou:
- Eu?!... Ora, sinto-me lisonjeada por ser assim disputada por dois dos melhores partidos da nossa cidade. Sim, é uma boa idéia. Desse modo, resolveremos de vez esta questão. Já que não consigo decidir-me definitivamente por nenhum dos dois, deposito em suas mãos a solução do problema.
E, apanhando de mesa próxima imensa bandeja de estanho, cheia de saladas, ali deixada por um escravo, despejou todo o seu conteúdo no chão. Depois, para surpresa geral, sentou-se sobre ela, afirmando com orgulho e determinação, enquanto soltava larga e sarcástica risada:
- Muito bem! Aceito ser o prêmio da aposta. Ficarei com o vencedor!
Palmas e gargalhadas estrugiram de todos os lados, pela atitude bem-humorada da anfitriã. Entre os opositores, porém, a tensão aumentara de forma perigosa. Novamente o cenário mudou. Desta vez surgiu o Grande Circo. Estava completamente lotado e o populacho aguardava impaciente o início dos jogos. Algumas disputas preliminares e de menor importância abriram os festejos. Mas todos aguardavam a corrida de quadrigas, ponto alto do dia. Finalmente, chegou o nosso grande momento. Continha-mos com dificuldade os cavalos, frementes de impaciência, como nós mesmos. Dada a ordem, levamos os veículos para o local determinado, no centro da pista. Outros dez competidores disputariam conosco a honra de ser o vencedor da corrida. Ao sinal, fustigando os cavalos, partimos em vertiginosa carreira. Uma nuvem de poeira amarela levantou-se do chão, impedindo uma perfeita visibilidade. Sob os aplausos e as vaias do público, aos poucos os competidores foram deixando a arena em virtude de desarranjos nos carros, ou de acidentes, quase sempre fatais, quando o corredor não conseguia deixar imediatamente a pista, sendo atropelado pelos veículos em alta velocidade. Éramos poucos àquela altura. Numa das curvas, vi meu adversário, Múncio, que, tentando livrar-se de um outro competidor que avançava firme pela direita, levantou o braço que segurava o chicote, procurando atingir-lhe o rosto. Todavia, a ponta do chicote prendeu-se na roda da quadriga; Múncio foi arremessado para fora do carro e arrastado no solo em meio à poeira dourada. Múncio estava perdido. Definitivamente fora do páreo, não ganharia mais a corrida. Exultei! Entretanto, naquele momento, o ódio falou mais alto. Vendo-o ser arrastado na arena pelo carro em disparada, veio-me o desejo insano de trucidá-lo de vez. Chicoteei os cavalos e avancei em maior velocidade ainda. Nesse instante, o chicote de Múncio se soltou da roda em que estava preso e ele rolou pelo solo, todo ensangüentado. Com sorriso satânico no rosto, aproveitei a oportunidade que o destino me reservava e avancei sobre ele, fazendo com que a roda lhe esmagasse a perna. Eu não precisava disso; meu inimigo estava vencido. Muito machucado, a pele em carne viva, sofrera fraturas graves e provavelmente não resistiria aos ferimentos. Mas, vingativo e cruel, eu ainda não estava contente. Desejava matá-lo com minhas próprias mãos. Só assim ficaria tranqüilo. Ganhei a corrida. Aurélia Regina cumpriu sua parte no acordo, ficando comigo. Ninguém me culpou pela morte do rival. Todos os que assistiram à competição acreditaram que foi uma fatalidade e que eu não conseguira desviar o carro a tempo. Naturalmente, deixei que continuassem pensando dessa forma. A consciência, porém, não me dava paz. Continuava a ver a expressão de pavor com que Múncio me fitou na hora extrema, ao tempo em que seus olhos me suplicavam piedade. Nunca fui feliz. Aurélia Regina, mulher sem escrúpulos e de vida depravada, arrastou-me para uma derrocada moral sem precedentes. Ao retornar à Espiritualidade, sofri muito, por longo tempo, assediado por inimigos ferrenhos, inclusive Múncio, que não me perdoava pelo crime cometido. Dezenas de anos depois, fui recolhido por generosos amigos espirituais, já cansado de tanta luta e de tanta miséria. Lembrei-me de minha mãe e supliquei sua ajuda. O socorro não tardou e levaram-me para um local de refazimento e assistência, em que pude analisar melhor meus atos e repensar minhas atitudes. Nesse ponto, a tela apagou-se. Chorei. Chorei muito. A verdade sobre o nosso passado é dura e inflexível. Porém necessária. Desse dia em diante, teria um farto material para reflexões.

1 - Referência ao livro "Céu Azul" de sua autoria.

5 - NOVAS ATIVIDADES

Caminhamos, eu e Matheus, pelas ruas até uma convidativa praça. Trazia mil indagações na cabeça. Certa vez alguém me disse que eu tinha muitos inimigos, mas foi uma informação vaga, que, na época, não estava em condições de assimilar. Agora, porém, era diferente. O desafeto tinha um rosto e um nome: Múncio. Sentamo-nos num banco e fiz a pergunta que me queimava a língua:
- Matheus, onde está Múncio agora? Sinto que preciso encontrá-lo para pedir-lhe perdão. No atual estágio em que me encontro, não posso continuar conservando inimizades.
- Sem dúvida, César Augusto. Todavia, tudo vem a seu tempo. Quando ambos estiverem preparados para enfrentar essa prova, a ocasião surgirá. Tenha paciência. Tudo acontecerá de maneira casual.
- E você sabe onde ele se encontra?
- Sei.
- Mas não me dirá...
- Não. Entenda, não seria conveniente, nem para você nem para ele. Ambos precisam de tempo para refletir. Além disso, César, você foi informado apenas de uma circunstância. Em nossa vida de Espíritos em evolução, tivemos múltiplas experiências e um número considerável de afetos e desafetos. Portanto, ainda terá muitas surpresas, acredite! Você conseguiu saber apenas o que era necessário ao seu aprendizado atual.
- Compreendo. Então, se esta é uma parcela mínima de minhas lembranças, e a que eu tive condição de suportar no momento, nem quero saber o que me aguarda o futuro! - exclamei.
Matheus deu uma sonora risada. Depois, tranqüilizou-me:
- Meu amigo, não se aflija nem sofra por antecipação! Tudo é sábio e misericordioso na obra de Deus. O que tiver que acontecer, acontecerá sem traumas, da melhor maneira possível. Jesus vela por nós.
Levantou-se, considerando findo o nosso encontro, que, a bem da verdade, se estendera por longo tempo:
- Agora, vamos andando. Ambos temos compromissos inadiáveis.
- Tem razão! Lamento ter-lhe tomado tanto tempo, Matheus. É que precisava muito trocar idéias com alguém.
O amigo abraçou-me com carinho e despediu-se:
- Procure não pensar muito no assunto. Você já teve lições de sobra por hoje.
Separamo-nos e voltei à nossa casa. Ninguém havia chegado ainda e, assim, pude desfrutar da solidão, rememorando tudo o que tinha visto naquela manhã. Os pensamentos pululavam na mente: Teria Múncio o mesmo rosto? Certamente não, visto que tivera outras existências posteriores. Usaria o mesmo nome? Provavelmente não, pela mesma razão. Mas, então como eu o reconheceria? Qual seria sua condição espiritual hoje? Teria me perdoado ou ainda conservaria mágoa? E Aurélia Regina, por onde andaria? Desencarnada, habitando a Espiritualidade como eu, ou na Terra, mergulhada num corpo denso? Que sentimento teria eu por ela, caso a reencontrasse? Voltaria a sentir o despertar do amor? Isso me fez lembrar de Sheila, a quem eu amava do fundo do coração. Estava respondida a minha pergunta: não, absolutamente, não! Aurélia Regina não despertaria em mim os mesmos sentimentos de amor, visto que meu coração já se achava ocupado por outra pessoa. Alguém que, no momento, estava encarnado, que era apenas uma criança, mas a quem eu dedicava um profundo e enternecido amor. Essas cogitações me deram um nó na cabeça, deixando-me confuso. Felizmente, os companheiros começaram a chegar e procurei me distrair um pouco. Na parte da tarde demandei o hospital, reassumindo minhas funções após a folga. Achei excelente! Lá, não teria tempo para pensar em minha própria vida. O serviço era muito e poucos os atendentes. Depois, teria minha cota de participação no auxílio aos suicidas em potencial. Não quis apartar-me desse trabalho, como muitos outros fizeram, e por isso continuava dando atendimento, mesmo após terminado o estágio. Era uma área bastante cansativa, que exigia grande responsabilidade, mas extremamente gratificante. Também participava de cursos e palestras, sempre que possível, procurando instruir-me cada vez mais. Além disso, freqüentava o Centro de Estudos da Individualidade e cumpria com regularidade meu compromisso com a Sociedade Espírita Maria de Nazaré, em especial com o grupo mediúnico das terças-feiras. Assim, não me sobrava muito tempo para pensar em outras coisas, o que era ótimo. Durante alguns dias, ainda me ocupei com perplexidade das lembranças do passado; com o passar do tempo, porém, elas se foram apagando e a vida retornou ao ritmo normal. Nas reuniões subseqüentes do Centro de Estudos da Individualidade, fiquei sabendo que, como eu, outras pessoas tinham conseguido também resgatar acontecimentos pretéritos de grande importância para suas vidas. Trocamos idéias, cada qual contou suas experiências, fazendo com que todos, sem exceção, se emocionassem. Aqueles que ainda não tinham tido janelas para o passado ouviam preocupados e com uma certa dose de frustração, aguardando, ansiosos, o seu próprio momento de descoberta da verdade. Nossa instrutora, irmã Anita, alertou-nos para as conseqüências desses fatos:
- Como já temos conversado anteriormente, não foi à toa que muitos de vocês tiveram certas áreas desbloqueadas. Isto significa que estão prontos para enfrentar a verdade, assumindo a responsabilidade pelos atos praticados e, especialmente, utilizando esses conhecimentos para eliminar as próprias imperfeições, deixando de lado o homem velho para que a criatura renovada possa surgir, consoante o ensinamento do Mestre.
Fez uma pausa e, observando cada um de nós, prosseguiu:
- Entre os que passaram por essas experiências, todos, sem exceção, tiveram a oportunidade de notar falhas em sua individualidade, nas quais deverão concentrar seus esforços de regeneração. Analisem bem. Reflitam sobre todas as variáveis, sobre seus comportamentos e atitudes, e chegarão a importantes conclusões. Mesmo aqueles que não foram beneficiados por essas lembranças poderão, examinando sua última encarnação, dela extrair excelentes lições.
Um senhor de idade madura, algo obeso, de expressão amargurada, falou:
- Irmã Anita, ainda não consegui recordar-me de nada, mas estive estudando minha última existência na Terra. Passei a vida acreditando que as pessoas não gostavam de mim, me desprezavam. Sentia-me sempre excluído de qualquer atividade, fosse na área profissional, no clube ou na família. Nunca me senti satisfeito. Achava que os outros tinham tido sempre melhores oportunidades do que eu, ganhavam mais, eram mais estimados, mais felizes.
Enxugou uma lágrima e calou-se. Irmã Anita incentivou-o a prosseguir:
- E então? Chegou a alguma conclusão, Gumercindo?
Ele suspirou, levando o lenço aos olhos:
- Sim. Estou certo de que tudo se deveu à inveja, terrível sentimento que azeda tudo o que vê e espreita. Compreendo também que, com essa imperfeição ainda tão viva em meu íntimo, minhas vidas anteriores não devem ter sido melhores.
- Muito bem, Gumercindo. Analisou com clareza suas dificuldades íntimas. E o que propõe como medida saneadora?
- Bem, irmã Anita, certamente tenho muitas outras falhas, mas espero começar logo o trabalho de regeneração procurando vencer esse grave defeito. Além disso, sinto que preciso me reajustar com aqueles a quem, em minha insânia, prejudiquei.
E concluiu, indagando:
- Seria possível? Deus me concederia essa bênção?
A orientadora sorriu suavemente, esclarecendo otimista:
- Sem dúvida. Estamos aqui para isso. Para estudar nossos caracteres e tentar mudar, refazendo nossos passos. O Senhor é Pai magnânimo, que recebe sempre o filho pródigo de braços abertos.
Aquele senhor que relatou sua experiência, após a palestra de Anita, alto, magro, de óculos com aro de tartaruga, pediu a palavra:
- Bondosa irmã Anita. Certamente, não ignora o meu caso. Gostaria de saber se poderei ajudar o caminhoneiro que tirou a vida de meu filho... involuntariamente. Fui informado de que meu querido Juliano prepara-se para retornar como neto de Manuel, para reparar o mal que eu causei ao motorista. Pergunto: algum dia, me será permitido ajudar meu ex-desafeto e, por conseqüência, auxiliar Juliano na tarefa de restauração? Acho que somente assim irei liberando o coração da mágoa e aprendendo a perdoar - desabafou, emocionado.
- Guilherme, o Senhor nunca nega oportunidade ao filho que deseja progredir. Isso será possível, sim, desde que você se liberte do ressentimento e cultive o amor.
- Tem razão, minha irmã. Mesmo porque hoje estou convencido de que a ofensa não existiu, porquanto estava programado que meu filho voltaria logo à Espiritualidade. O pobre caminhoneiro foi apenas um instrumento da lei divina.
Conversamos mais algum tempo, trocando idéias e nos enriquecendo de novos valores. Cada um, intimamente, refletia sobre seu próprio problema e sobre as maneiras de solucioná-lo. A orientadora, dando por encerrada a reunião, concluiu:
- Creio que já estão preparados para atividades mais práticas. Aqueles que realmente se decidirem por mudanças interiores e pelo trabalho de reparação dos próprios erros, procurem-me. Temos grupos em formação orientados para esses objetivos e estaremos cadastrando os interessados a partir de amanhã.
Após singela prece em conjunto, em que agradecemos as bênçãos divinas, nos dispersamos cheios de indagações. Como funcionariam esses grupos de que estávamos sendo convidados a participar?

1 - Referência a atividades citadas no livro "Céu Azul".

6 - NO HOSPITAL

No dia seguinte pela manhã, estava de plantão no hospital, no exercício de minhas funções, quando recebi um chamado. Aguardavam-me na enfermaria seis. Terminei rapidamente o que estava fazendo e para lá me dirigi. Tratava-se de um rapaz que fora resgatado havia cerca de quinze dias. Chegando ao mundo espiritual nove meses antes, passara por zonas inferiores liberando-se dos fluidos mais pesados e acabara sendo recolhido por um grupo socorrista. Desde esse momento, estava dando bastante trabalho aos enfermeiros. Nesses casos, requisitavam-nos para fazer o atendimento, auxiliando na recuperação do paciente e na aceitação por ele das suas novas condições no além-túmulo. Entrando na enfermaria, logo pude vê-lo. Estava irrequieto, agitava os braços e exigia a atenção dos enfermeiros, que, ocupadíssimos, atendiam os outros pacientes. Aproximei-me do leito, ignorando suas reclamações.
- Olá!... Sou o César Augusto e vim fazer-lhe uma visita. Como tem passado? - perguntei com meu melhor sorriso.
Irritado, sem me dar atenção, fulminou-me com o olhar, como se eu fosse um verme. Contudo, vendo que eu era a única pessoa que se prontificara a atendê-lo, respondeu mal-humorado:
- Não está vendo, cara? Estou péssimo! Aqui ninguém responde aos meus chamados. Ignoram meus apelos. Preciso urgentemente de ajuda! Estou mal e ninguém liga! Afinal, que droga de hospital é este? Meu pai deve estar pagando uma fortuna e sou tratado como um indigente!
Procurando acalmá-lo, indaguei:
- Meu amigo, mas está lhe faltando alguma coisa? Suas roupas estão limpas, parece bem tratado, sua aparência está ótima! O que lhe falta?
O tom calmo e intencional com que me dirigia a ele fez com que também baixasse o volume da voz, respondendo-me de maneira mais branda:
- A verdade é que sou mantido aqui contra minha vontade! Gostaria de ver minha família, preciso da presença de meus amigos, mas qual! Não deixam ninguém entrar. Acaso serei um prisioneiro incomunicável? Por que estou isolado de todos?
Afinal, que lugar é este?...
- Gustavo, você não está isolado! Olhe quanta gente a seu redor! Quanto à família, poderá receber visitas dos entes queridos logo que estiver recuperado. Por ora, não seria aconselhável. Procure tranqüilizar-se, meu amigo. Essa agitação só poderá piorar o seu estado. Olhe, tudo tem seu tempo certo. Atenda ao programa de recuperação que lhe foi traçado pelos orientadores e logo estará bem. Mas, para isso, é preciso seu esforço e sua boa vontade.
Após pequeno intervalo, concluí:
- Se desejar, virei fazer-lhe companhia, sempre que puder. Conquanto desapontado por não conseguir resposta diferente das que já obtivera antes de outras pessoas, Gustavo animou-se com minha proposta final.
- Verdade que virá me visitar sempre? Fala sério?
- Claro! Poderemos conversar, passear pelos jardins, participar das orações coletivas...
Seus olhos mostraram interesse novo. Fazendo sinal para que me aproximasse mais, falou em voz baixa:
- Pode sair daqui à hora que quiser?
- Sem dúvida! Resido fora do hospital.
- Ah!... E poderia me fazer um favor?
- Se estiver ao meu alcance!
- Naturalmente será bem recompensado, César Augusto. Dinheiro não me falta.
Tinha percebido o que Gustavo desejava de mim, mas deixei que continuasse, sem interrompê-lo.
- Poderia trazer-me... Você sabe. Estou necessitado, cara... Sabe onde conseguir o pó? - concluiu com gesto característico, baixando mais ainda o tom de voz e lançando um olhar em torno, com receio de que alguém pudesse ouvi-lo.
- Lamento, companheiro. Aqui não entram drogas - afirmei.
Ele concordou, demonstrando tranqüilidade, como alguém que está acostumado a conseguir sempre o que deseja:
- Sim, eu sei. Você tem toda a razão. Mas, sempre se pode dar um jeitinho, não é? Sei como são essas coisas. Se você quisesse, meu amigo, poderia trazer-me um pouco. Um pouquinho só. Não me negue esse favor, César Augusto. A situação está preta, cara. Eu lhe ficaria muito agradecido e você seria bem recompensado - reafirmou.
Olhando sua fisionomia suplicante, os olhos vermelhos, senti imensa piedade. Coloquei-lhe a mão no ombro e afirmei:
- Infelizmente não será possível, meu amigo. Mas, olhe, sei de algo que vai satisfazê-lo mais e melhor. Aguarde um momento.
Sob sua expressão curiosa, chamei o Jefferson, que acabara de entrar na enfermaria, e pedi que me ajudasse a aplicar um passe no paciente. Enquanto fazíamos uma prece, Gustavo permaneceu de braços cruzados, irritado e ressentido, sem querer colaborar. A medida, porém, que as energias tranqüilizantes eram assimiladas pelo seu corpo espiritual, ele se foi relaxando, soltando as tensões, até acomodar a cabeça no travesseiro e adormecer placidamente. Suspiramos aliviados. Por ora, ele estava bem. Durante algumas horas, dormiria, dando descanso aos servidores, que tanto tinham por fazer. Um senhor de idade, ocupante do leito ao lado, sorriu para nós, agradecido:
- Também já passei por essa fase - comentou - e sei como é difícil. Agora estou bem, graças à ajuda de amigos dedicados. Creio que logo deixarão minha família visitar-me, não acham?
- Sem dúvida! Tenha confiança e continue se esforçando para melhorar - afirmei.
- Pois é! Quando fui internado, meus negócios ficaram nas mãos da esposa, inexperiente, e preciso dar-lhe algumas orientações imprescindíveis ao bom andamento da empresa.
- Relaxe! Certamente sua esposa está agindo da melhor maneira possível. Além do mais, Deus é Pai amoroso e não irá desampará-la em suas necessidades. Confie! Agora, você precisa pensar em si mesmo, meu amigo. Quando estiver bom, tudo lhe será esclarecido e terá permissão para ver os familiares.
O velhinho sorriu resignado, e deixamos a enfermaria. Após atravessarmos um grande corredor, subimos dois lances de escada e entramos num recinto onde diversas pessoas estavam reunidas, conversando. Ali era nossa sala, nosso ponto de encontro no hospital. Terminado o serviço, ou nos intervalos, quando nos sobravam alguns minutos, para lá nos dirigíamos. Vários outros amigos ali se achavam. Dialogavam sobre as dificuldades que os recém-chegados enfrentavam para entender a realidade da vida no mundo espiritual.
- É interessante como continuamos a ser os mesmos, a ter as mesmas necessidades, a mesma maneira de agir que tínhamos quando encarnados - comentava Giséli.
- Eu que o diga! Agora mesmo um rapaz tentou me subornar para trazer-lhe "coca". A desinformação e a falta de consciência são tão grandes que ele chegou a afirmar-me não ter problemas de dinheiro. Ainda não percebeu que nada mais possui e que tudo está na sua mente - considerei.
- É. O trabalho de desintoxicação é extremamente demorado e doloroso - disse Melina.
- Sim; no caso desse rapaz, porém, o pior já passou, pois, do contrário, ele não estaria na enfermaria, mas no isolamento! - lembrou Betão com muita lógica.
- Certamente. A verdade, no entanto, é que ele não quer melhorar. Sente ainda falta da droga, gosta dela e deseja continuar no regime antigo, sem saber que já não pertence ao mundo dos chamados vivos - aduzi.
Giséli, Melina e Jefferson receberam chamados e se despediram. Nós continuamos a discorrer sobre o assunto que tanto nos interessava.
- Sempre podemos perceber as imperfeições do indivíduo onde quer que ele esteja, porque faz parte intrínseca da sua individualidade. Ele é dessa ou daquela maneira, conforme suas tendências e conquistas - falou Paulo.
- Mas pode ser influenciado negativamente pelo meio em que vive. Veja o meu caso, por exemplo - dizia Maneco. - Minha última existência passei numa favela, sujeito a tudo o que havia de pior, tanto de vícios quanto de criminalidade. Teria eu culpa de me deixar influenciar pelo meio, Paulo?
- Penso que sim, Maneco. Se você renasceu numa favela em condições difíceis e em contato com o mal, é que isso era necessário para seu aprendizado. Era a melhor situação para seu Espírito. Contudo, tanto poderia deixar-se envolver pelo mal quanto observar os bons exemplos e segui-los, pois na favela, como em qualquer outro lugar, existem pessoas boas, honestas e respeitáveis. É um problema de exercício do livre-arbítrio - concluiu o interpelado.
- Sim, porém o grau de dificuldade é bem maior - disse Maneco.
- Sem dúvida! Mas aí é que reside o mérito de vencer. Quando a prova é mais árdua e exige esforço extra do Espírito, a recompensa, proporcionalmente, também será maior.
- Isso todos temos tentado aprender no Centro de Estudos da Individualidade, mas sem grande êxito - argumentei.
- Por quê? - discordou Paulo. - Acho que estamos nos esforçando, César. O problema é que a natureza não dá saltos. As conquistas, para serem perenes, precisam de um trabalho de sedimentação que só o tempo trará.
Concordei com um gesto de cabeça, prosseguindo:
- Sim, é verdade. Mas, veja. Da nossa turma, no Centro de Estudos da Individualidade, que se contavam por quase duas centenas, inscreveram-se nos grupos de trabalho prático apenas trinta e duas pessoas!
- Lamentável, César, mas era de esperar. Porque grande parte das pessoas, apesar de se considerarem necessitadas de melhoria interior, ainda não se sentem preparadas para enfrentar sua própria realidade. Em nosso meio, temos indiferentes, preguiçosos, medrosos, ressentidos e outros, que lutam ainda com as próprias imperfeições. O que vamos fazer? É um problema de nível evolutivo, meu amigo. Aqui, nos dão todas as condições de crescimento e aprendizado. Quem não segue junto fica para trás e, fatalmente, terá de recomeçar em outra oportunidade.
Concordamos todos com Paulo e ficamos a meditar na responsabilidade que assumimos com nossos atos diante de nós mesmos e dos orientadores maiores, aqueles que receberam a incumbência de velar por nós, conduzindo-nos ao caminho do dever e do amor ao próximo.

7 - UMA EXPERIÊNCIA DIFERENTE

Ao deixar o hospital, após as tarefas do dia, caminhava ao lado de Paulo. Conquanto não tivéssemos uma convivência mais estreita, visto estarmos trabalhando em áreas diferentes, eu o admirava profundamente. Do nosso grupo de jovens, Paulo é dos mais experientes. Temos grande satisfação em conversar com ele e passamos horas a ouvi-lo sem nos cansarmos. Extremamente simpático, consegue sempre prender nossa atenção. Ele esteve ausente durante algum tempo, acompanhando uma equipe socorrista requisitada para atender local de extrema necessidade, onde se verificavam conflitos armados. De uma colônia espiritual distante, localizada na Europa, chegara o pedido de socorro, e para lá acorreram servidores para ajudá-la nessa situação dolorosa. Os combates, na Bósnia-Herzegovina, prosseguiam acirrados, causando tantos estragos que os irmãos europeus se viram forçados a pedir reforços a outras regiões do Orbe, para enfrentar o volume de atendimentos. Imediatamente, movimentaram-se nossos dirigentes levando em conta a solicitação. Dentre os que se candidataram e foram aceitos, estava nosso amigo Paulo. Pelas suas condições espirituais, equilíbrio emocional, conhecimento de línguas estrangeiras, inclusive do esperanto, era dos mais indicados para a missão. Por um período de dois anos, permaneceu a equipe de Céu Azul no continente europeu. No retorno, foram recebidos com festas e muito carinho. Certa ocasião nos reunimos na Casa da Esperança, abrigo do qual ele fazia parte, para que nos contasse suas experiências na região dos combates. Paulo passou a nos relatar as dificuldades encontradas, os problemas, os sofrimentos e as dores daquele povo, que toda a equipe de Céu Azul acompanhou.
Sua tarefa era ajudar na retirada dos Espíritos recém desencarnados, para que não se aumentassem as vibrações poderosas de ódio e desejo de vingança que ali campeavam e para evitar que eles continuassem a lutar ao lado dos irmãos encarnados, julgando-se ainda na carne, VIVOS.
- E não tínhamos que atender apenas os soldados, combatentes de uma guerra iníqua. A população civil, constituída de idosos, mulheres e crianças, também era dizimada. Cenas chocantes se desdobravam sob nossas vistas, sem que algo pudéssemos fazer. Cenas de selvageria e brutalidade, por simples desejo do mal, se tornaram corriqueiras; torturas e estupros eram praticados à luz meridiana do dia, fazendo com que as vítimas suplicassem pela morte. Não bastasse isso, hordas obsessoras, falanges do mal, dominavam livremente em virtude das baixas vibrações ambientais, facilitando o vampirismo. As cargas negativas eram tão pesadas que as turmas que se revezavam no atendimento, a períodos regulares, procuravam a orla marítima do Adriático para se reabastecerem no ambiente puro e balsâmico da Natureza, limpo de miasmas mentais, e, com isso, terem condições de energizar os corpos espirituais combalidos.
- Como podem ainda acontecer coisas como essas! Nem parece que estamos no final do século 20, prestes a entrarmos no terceiro milênio! - exclamou Giovanna, penalizada, com o apoio dos demais.
- E o pior é que acontece! A sociedade terrena progrediu muito, mas em certos aspectos parece estar ainda na era medieval - comentou Dínio.1
- É verdade, meu amigo. Isso ocorre porque a imperfeição moral dos Espíritos ainda é muito grande. E, quando encarnados no planeta, nesses casos em que existe disputa de interesses entre grupos étnicos, todos se envolvem e parecem regredir a níveis inferiores da animalidade, ignorando a razão, o discernimento, a afetividade e a solidariedade.2 Cada um pensa em si próprio e perde a noção do que é certo ou errado, do que é justo ou injusto, do que é bom ou mau. Mesmo os que poderiam ter algum direito, por haverem sido espoliados em alguma época, acabam por agravar sua situação pelos excessos praticados contra os inimigos.
Padilha, que ouvia com extrema atenção, questionou:
- Paulo, você encontrou dificuldade em se comunicar com eles em virtude da diversidade de idiomas? Sim, porque sabemos que a linguagem do Espírito é a do pensamento, mas a prática mostra que, dependendo da baixa condição vibratória dos envolvidos, isso se torna difícil, não é?
- Sem dúvida, Padilha. Esse é um obstáculo de vulto nessas circunstâncias, quando os desencarnados se acham ainda bastante impregnados de fluidos muito densos. Trabalhávamos sem muita conversa, utilizando-nos apenas das vibrações mentais no atendimento em campo de batalha. Contudo, não raro era preciso conversar com os atendidos, e então percebíamos que eles não estavam em condições de ouvir nosso pensamento. Aí, apelávamos para a linguagem comum. Como fui estudante de línguas, falando razoavelmente o inglês, o francês, o alemão e o esperanto, além do português, usava os recursos de que dispunha. Tentava uma língua, tentava outra, até me fazer compreender. O esperanto me foi de grande utilidade, especialmente no diálogo com os nossos aliados, servidores do bem. Muitos se expressavam com fluência nesse idioma universalista, o que facilitou bastante o nosso relacionamento, especialmente em termos de ordens de serviço.
- Já que tocou nesse ponto, Paulo, como era o relacionamento entre vocês, isto é, a equipe de Céu Azul e a equipe dos europeus? - perguntou Marcelo.
- Cordial, mas diferente - informou ele.
- Como assim? Diferente como? - quis saber o Gladstone, intrigado.
Paulo pensou um pouco, como se estivesse estudando bem as palavras, e prosseguiu:
- São diferentes! É difícil de explicar. Aqueles servidores trabalham e se esforçam em cumprir bem suas obrigações. Têm um alto senso de dever e de responsabilidade, mas são... Como direi... Frios, algo distantes. Naturalmente, não são todos; há aqueles que são carinhosos e efusivos, como nós, brasileiros, mas são raros. A colônia espiritual para onde fomos fica situada numa região entre a Hungria e a antiga Iugoslávia, mas a maior parte do tempo ficávamos num posto de serviço provisoriamente montado nas proximidades das regiões de combate. Ali havia atendentes de inúmeras nacionalidades, entre eles alemães, italianos, franceses, iugoslavos, bósnios, austríacos, suíços, portugueses, eslavos...
- ... E brasileiros! - brinquei.
- Naturalmente. Além de nós, afluíram em grande quantidade brasileiros de várias colônias espirituais de nosso território, como Nosso Lar, Campos da Paz, Redenção, Aldebaran, Alvorada Nova e outras.
- Mas... Por que eles são tão diferentes? São Espíritos como nós, conscientes da própria condição!... - indagou a Patrícia.
- Porque ninguém muda com a morte do corpo, minha amiga. Continuamos a ser o que somos. E eles são assim! Foram educados dessa maneira, construíram uma personalidade baseada na razão, que modera a afetividade e não se deixa levar pela emoção. Como mudarem agora de um momento para o outro? Especialmente os que reencarnaram muitas vezes na mesma região. Assimilam os condicionamentos que lhes são impostos, e só o tempo fará com que possam demonstrar alguma mudança. Os italianos e os portugueses, por exemplo, são mais parecidos conosco, emotivos e alegres; já os alemães e os austríacos são mais frios e compenetrados.
Após breves interrupções em que meditamos sobre suas palavras, concluiu:
- Por isso, não imaginam a falta que sentimos daqui, de todos vocês. A saudade era imensa e não víamos a hora de retornar para nossa terra. Lá não existe essa amizade calorosa que a gente vê aqui, essa fraternidade que une os membros de um mesmo grupo e os torna verdadeiramente irmãos. Não digo que eles não sejam unidos. Talvez sejam até mais solidários do que nós, brasileiros. Mas não se comunicam com facilidade nem demonstram de maneira ostensiva seus sentimentos, e isso os torna um tanto distantes e indiferentes aos nossos olhos.
Fez nova pausa e prosseguiu, olhando com carinho cada um de nós:
- Nossa terra é abençoada, acreditem! Em que lugar do mundo pode-se ver tanta gente, de nacionalidades, raças e credos diversos, convivendo sem qualquer problema?
Todos os que aportam ao extenso território da nossa Pátria são bem recebidos, prosperam e se integram, constituindo uma imensa família, na qual a fraternidade e a solidariedade se sobrepõem às dificuldades normais da existência, aos problemas socioeconômicos e culturais do povo. Paulo falara, externando tanta emoção, colocando tanto sentimento, que todos estávamos também comovidos. Enxuguei discretamente uma lágrima, enquanto o Betão -sempre ele! - ao perceber nosso estado interior, que facilmente redundaria em tristeza pela saudade da terra natal, alterou o tônus vibratório, levantando os braços e exclamando com ênfase:
- E viva o Brasil!...
Todos caímos na risada. Daí em diante, o ambiente tornou-se alegre. Um imenso sentimento de felicidade, de satisfação por sermos brasileiros, inundou nosso íntimo. E nos abraçamos, chorando e rindo, rindo e chorando. Certamente tínhamos a consciência de que, no fundo, todos somos cidadãos do mundo, e que apenas no presente estávamos vinculados ao Brasil. Não ignorávamos que muitos de nós viéramos de outros continentes, sobretudo da velha Europa, e que aqui, nesta terra abençoada, estávamos tendo a oportunidade de fugir dos ambientes em que tanto falimos, para recomeçarmos sob novas bases. De tudo isso eu me lembrava agora, no momento em que deixávamos o hospital após as tarefas do dia. Ainda preso à nossa conversa anterior, comentei:
- Paulo, a respeito desse assunto, recordo-me neste instante daquele dia em que você nos relatou suas experiências na Bósnia, logo após seu regresso. Falava-nos exatamente sobre a dificuldade que temos de nos modificar, mesmo após a passagem para o plano espiritual.
- Exatamente. Sabe, César, muitas coisas me impressionaram naquela época. As experiências foram muito marcantes e dolorosas para todos nós. Mas sempre que revejo os semblantes dos companheiros de lá, calmos, circunspectos e distantes, fico perplexo.
Lembrei-me de Sheila e da sua experiência. Um dia ela me contou que, em virtude de abusos na área da fala e dos relacionamentos, optara por tornar-se freira na encarnação seguinte. Quando a conheci, tinha dificuldade em se expressar, falava pouco, em razão dos condicionamentos dessa época, em que permaneceu muito tempo quase que incomunicável.
- Mas dá para entender por que são assim! - concordei, com um gesto de cabeça.
Continuamos a caminhar calados, cada qual mergulhado nos próprios pensamentos. Ao nos aproximarmos de casa, despedimo-nos. Nós nos veríamos na manhã seguinte para prosseguimento das tarefas. Entrei. Os outros amigos ainda não tinham chegado. Fui até o quarto para repousar um pouco. Logo mais iríamos para o Centro de Estudos da Individualidade.

1 - Dínio Afonso Mantovani, desencarnado em 4/5/1985, em Arapongas.
2 – Os Espíritos podem permanecer estacionários, mas não regridem em sua evolução. Quando temos a impressão de que isso está acontecendo, é que eles estão demonstrando o que realmente são. Ver "O Livro dos Espíritos", de Allan Kardec, questão 118.

8 - LUZ NAS TREVAS

Logo mais, à noite, nos reunimos no Centro de Estudos da Individualidade, ansiosos para saber como seriam formados os grupos e de que maneira iríamos trabalhar. Irmã Anita, iniciando a reunião, tranqüilizou-nos. Vários colaboradores ali estavam, secundando-a, e seriam os coordenadores, responsáveis pelas diversas equipes. Por áreas de afinidade, fomos encaminhados aos grupos que passaríamos a integrar. Conduzido à sala sete, deparei-me com os futuros colegas. Éramos um grupo de cinco pessoas, incluindo o orientador. Com prazer, verifiquei que trabalharíamos sob a direção de Henrique, um amigo de longa data, profissional dedicado que muito me ajudou quando ainda estava internado no hospital, nos primeiros meses como habitante da Espiritualidade. Os outros componentes eram: Viviane, Adriana e Alberto, o médico que já participara comigo do grupo de ajuda aos suicidas em potencial. Sentamo-nos em círculo para os primeiros contatos. Apresentamo-nos mutuamente, quebrando o gelo. Viviane, uma jovem morena, simpática, com longos cabelos crespos presos por um elástico, grandes olhos escuros e sorriso melancólico, iniciou, contando-nos sua história:
- Meu nome é Viviane e desencarnei aos trinta anos. Em conseqüência de uma queda no banheiro, quebrei o pescoço, seccionando a medula, e fiquei tetraplégica aos vinte anos. Extremamente revoltada, tornei a minha vida e a de meus familiares um inferno. Não aceitava a condição de deficiente física. Amava o esporte, fora atleta e participara de jogos e campeonatos em todo o país. Transformei-me numa criatura amarga e insuportável, não recebendo ninguém, nem os melhores amigos. Assim permaneci por dez anos, até que, vitimada por uma pneumonia dupla, deixei o corpo material. Estagiei durante longo período em regiões inferiores, em grande perturbação. Socorrida, trouxeram-me para cá, onde me recuperei com dificuldade, após muitos meses de internamento no hospital. Viviane calou-se, sob a forte emoção que as lembranças lhe traziam. Comovido com seu relato e recordando o meu próprio caso, indaguei:
- Viviane, em suas dificuldades nunca pensou em Deus?
- Não! Jamais! - respondeu taxativamente. - Prosseguindo:
- Enquanto eu era forte e saudável, a religião nunca me interessou. Havia coisas mais importantes para fazer, segundo meu modo de pensar. Depois, quando a tragédia desabou sobre mim, retendo-me ao leito, se alguém me falava de Deus ou de um Ser Superior, externava o ódio e a revolta que me iam na alma. Se era verdade que existia um Deus, por que fora tão cruel comigo? Nunca fui pessoa preocupada em ajudar os outros, praticando a caridade, mas também não me lembrava de ter prejudicado alguém, nunca fizera nada de mal. Por quê?... Por quê?...
Fez uma pausa e concluiu com voz embargada:
- Hoje eu sei que me faltaram noções de verdadeira religiosidade e de espiritualidade maior, que teriam modificado a minha vida. Todavia, meditando agora sobre tudo o que me aconteceu, penso que, certamente, eu não merecia essa bênção. Deveria vencer com o meu próprio esforço.
Adriana fitava a companheira com os olhos úmidos. Era clara, delicada e tímida, mas tinha sorriso fácil e lindos olhos castanhos.
- Achei comovente seu relato, Viviane. Minha experiência, apesar de dolorosa, é muito diferente da sua. Tive vida confortável, família amorosa, saúde perfeita e alguma beleza física. Nada me faltou. Contudo, uma insatisfação íntima sempre crescente levou-me ao contato com a droga. Daí por diante, não é preciso nem dizer, me afundei cada vez mais. Degradei-me aos poucos. Cheguei a ponto de roubar para obter o que queria. Vendi tudo o que tínhamos de valor dentro de casa, para satisfazer o vício, até que meus pais concluíram que eu deveria ser internada. No hospital, ludibriei os guardas e consegui fugir. Não pensava em voltar para casa porque sabia que me levariam novamente para o hospital. Fugi, simplesmente. Nunca mais me pegaram. Mudei de nome, deixei crescer os cabelos. Para sobreviver, passei a relacionar-me com a ralé das ruas, com o submundo do crime, até desencarnar por overdose. O resto, já podem imaginar. Sofri por muito tempo em regiões sombrias, até ser trazida para esta cidade espiritual. - E finalizou:
- Ah! Meus amigos!... Como é fácil perder uma existência, mesmo tendo todas as condições de obter êxito. Hoje, na Espiritualidade, com a visão do problema modificada pelos novos conhecimentos, tento reconstruir minha vida, sabendo que fui a única responsável por tudo o que me aconteceu.
Por nossa vez, Alberto e eu também participamos, contando cada qual a sua história, que todos já conhecem, razão por que deixo de fazê-lo aqui para não ser repetitivo e enfadonho.2 Ao término das apresentações, Henrique, que acompanhava atento os diálogos, considerou:
- Muito bem. Cada um trouxe relatos ricos em experiências e de grande conteúdo para análise, o que se reveste da maior importância. Quando nos dispomos a trabalhar em conjunto, faz-se necessário que nos conheçamos bem, aumentando a afinidade e os elos entre todos os componentes.
Após breve intervalo, em que esquadrinhou cada um de nós, prosseguiu:
- Sei que estão curiosos para saber como se desenvolverá nossa atividade. Como estamos estudando nossos problemas morais, iremos atuar em casos previamente escolhidos, que nos chegam através de pedidos de socorro. Esses casos, que se adaptam às nossas necessidades, funcionarão como parâmetros, despertando-nos a sensibilidade e obrigando-nos a refletir sobre as próprias realidades. Mas não se preocupem. Com o transcorrer do tempo, perceberão melhor a finalidade que buscamos. Alguma pergunta?
Como as respostas fossem negativas, ele encerrou a reunião, comunicando:
- Então, começaremos pelo caso Morgado. Estejam aqui amanhã à mesma hora.
No dia seguinte, excitados pela novidade, nos reunimos no mesmo local. Antes de sairmos, Henrique fez uma prece cuja singeleza não ocultava seus raros dotes de espírito:
- Senhor da Vida! Buscamos-te a presença neste momento em que nos preparamos para mais uma jornada de trabalho na crosta terrestre. Sabedores das deficiências de que nos revestimos ainda, suplicamos tuas bênçãos e teu amparo para nossas tarefas; não por nós, mas em atenção àqueles que estão necessitados de ajuda e que esperam por proteção. Apesar da nossa pequenez, sejamos nós os dispersores da tua luz e a extensão dos teus braços, direcionados para amparar os desvalidos da Terra. Sustenta-nos na luta, Senhor, e fortalece-nos no cumprimento do dever. Muito obrigado!
Saímos satisfeitos e revigorados pela oração. A noite estrelada era um convite de Deus às nossas almas. Sob a orientação de Henrique, demandamos o espaço. Não demorou muito e começamos a perceber os contornos de uma grande cidade. Logo, os edifícios, as ruas e as praças estavam visíveis a nossos olhos. As ruas, iluminadas, apresentavam intenso movimento de veículos e de pedestres. Encaminhamo-nos para a zona periférica da cidade, parando num dos bairros mais pobres. A rua, sem iluminação pública, encontrava-se às escuras, clareada apenas pelas luzes provenientes das janelas das moradias. Paramos defronte de uma casa quase que totalmente às escuras. Entramos. A branda claridade de uma vela sobre a mesa impedia que as trevas dominassem. Observamos o ambiente sob forte impressão. A miséria era grande e o recinto tresandava sujeira. Um certo odor de urina e de excrementos invadiu nossa sensibilidade. Sem parecer se incomodar com o cheiro que impregnava o barraco, a que certamente estariam habituados, três pessoas sentadas defronte de uma mesa faziam frugal refeição. Aproximamo-nos. Constava ela de um caldo ralo, com cheiro de gordura rançosa, em que alguns pedaços de cenoura boiavam, e de um pedaço de pão duro. Notamos, porém, que comiam com satisfação, como se estivessem diante de um banquete. Eram eles: um homem de idade avançada, maltrapilho e de expressão amarga; uma mulher na faixa dos cinqüenta anos, mas que aparentava ser mais velha, cujos olhos tristes denotavam o desânimo e a desesperança que lhe iam na alma. A terceira pessoa, porém, despertou nosso interesse e admiração. Era uma mocinha, quase uma menina, que se apresentava limpa e penteada, destoando estranhamente do ambiente, apesar das roupas velhas e desgastadas. Seu rosto não tinha traços bonitos, mas era dotado de certo encanto; os olhos, vivos, pareciam chamas iluminando ao redor. Abriu um sorriso encantador e foi como se a primavera entrasse naquele recinto escuro e fétido. Sua condição espiritual, no entanto, era o que mais nos impressionava. Ela exteriorizava belos pensamentos endereçados a Jesus, através dos quais agradecia o alimento que estavam comendo e pedia auxilio para toda a família, além de forças para continuar realizando suas tarefas. Depois, dirigiu-se aos pais, afirmando:
- Papai e mamãe, não se deixem dominar pelo desânimo. Confio em Jesus e sei que Ele vai nos ajudar. O padre sempre diz que Deus é Pai, e que um pai nunca desampara seus filhos. Então, por que temer? Certamente, Ele mandará Jesus nos socorrer!
O homem rude coçou a cabeça, denotando cansaço, e respondeu com um gesto negativo, de incredulidade:
- Você é muito nova, minha filha, o que pode saber da vida? Eu e sua mãe temos comido o pão que o diabo amassou durante todos esses anos. Pulei de um emprego a outro, buscando sempre um trabalho honesto. Ficava desempregado, mas tinha confiança em que arrumaria outro serviço, e arrumava. Mas, e agora? Já estou velho, o ex-patrão disse que eu não servia mais para nada e me mandou para o olho da rua. O que fazer? O mercado de trabalho está difícil e não vou conseguir outra colocação.
- Vai, sim, meu pai. Tenha confiança.
A mãe chorava baixinho, concordando com o marido. Ao enxugar as lágrimas no avental, ela inquiriu com voz lamentosa:
- O que vai ser de nós, marido? Como vamos conseguir viver? Se pelo menos não tivéssemos o Zé!
A mocinha reagiu, indignada:
- Nem fale uma coisa dessas, mãe, que está pecando contra Deus! Foi Nosso Senhor quem mandou o Zé para nossa casa, e Ele lá deve ter suas razões.
- Eu sei, Marilda, mas tem horas em que penso que melhor seria que ele não tivesse nascido. Seria melhor para todos. Para ele, que não sofreria tanto, e para nós, que teríamos menos problemas.
- Vira essa boca pra lá, mulher, não diga besteira! - resmungou o marido.
- É isso mesmo! Se o Zé não estivesse aqui, a Marilda poderia trabalhar e nos ajudar a manter a casa, Antonino.
Com imenso carinho, a jovenzinha levantou-se e abraçou a mãe, que, com a cabeça entre os braços, sobre a mesa, chorava convulsivamente.
- Mãezinha, não chore. Se eu fosse trabalhar, quem faria o serviço de casa? Quem lavaria as roupas e faria a comida? Alguém tem que ficar tomando conta de tudo, para que, quando a senhora chegar, cansada, encontre o serviço feito. Então, que seja eu. Trabalho com prazer, a senhora sabe.
- Mas, filha, seu irmão é tão pesado e você é tão franzina, tão delicada!
- Não, mamãe, gosto de cuidar dele. A senhora sabe como amo meu irmão. Além disso, ouvi dizer que Deus não dá o fardo maior do que a gente possa carregar. Então, se me concedeu essa tarefa, é sinal de que ela não é superior às minhas forças.
Sorriu e, mudando o curso da conversa, esbanjou otimismo:
- Vamos, gente, ânimo! As coisas vão melhorar. Tenham confiança! Olhe, mamãe, estive pensando... Eu poderia trabalhar aqui em casa mesmo! Dona Benedita, nossa amiga, tem reclamado do volume de serviço. Falarei com ela e tenho certeza de que não se negará a me dar alguma coisa para fazer. Trarei costuras para arrematar aqui em casa, para que possa, ao mesmo tempo, fazer companhia ao Zé. Certamente, não ganharei muito, mas sempre será de grande valia na atual circunstância. Além disso, continuarei executando as minhas tarefas!
Acompanhávamos a cena que se desenrolava diante de nossos olhos sob intensa emoção. O otimismo, a boa vontade e a disposição de ânimo daquela menina eram notáveis. Uma luminosidade clara e azulada envolvia todo o seu corpo, tornando-se mais intensa na região da cabeça e do coração. Estávamos curiosos. Externando o pensamento geral, perguntei a Henrique:
- Quem é o Zé, de quem tanto falam?
- Vocês logo ficarão sabendo. Aguardem! - respondeu.
Nesse momento, marido e mulher, vendo que não poderiam vencer tamanho bom ânimo, demonstraram desejo de recolher-se. A mãe relutava, entre a cama e a louça suja.
- Pode ir deitar, mamãe. A senhora está cansada. Trabalhou o dia inteiro. Arrumarei a cozinha e depois também irei dormir. Boa noite.
- Boa noite, minha filha, durma com os anjos.
Os pais se recolheram e Marilda foi para a cozinha. Logo, porém, ouviu um grunhido. Prestativa, encaminhou-se ao quarto do irmão, com quem dividia o aposento, para maior facilidade de atendê-lo durante a noite.

1 - Referencia ao livro "Preciso de Ajuda!" da autoria de Eduardo.
2 - Referência aos livros "Céu Azul", de sua autoria, e "Preciso de Ajuda!" da autoria de Eduardo.

9 - JOSÉ DOMINGOS MORGADO

Entramos. Imediatamente percebemos a presença de um servidor do nosso plano que se mantinha vigilante junto a um leito. Ao nos ver chegar, aproximou-se dando-nos as boas-vindas. Henrique fez as apresentações. Tratava-se de homem humilde, aparência singela, cuja condição espiritual o credenciava para o serviço. Jeremias era amigo da família e especialmente ligado ao enfermo, do qual se sentia devedor, razão por que solicitara essa tarefa. Nesse momento, a mocinha debruçou-se sobre o leito, onde estava um rapaz de vinte e poucos anos. Nosso orientador olhou-nos, estendeu o braço em direção do doente e disse:
- Este é José Domingos Morgado - o Zé -, a quem a família se referiu há pouco.
Nasceu sadio, mas no primeiro ano de vida foi acometido de uma grave meningoencefalite, que o prostrou no leito desde essa época.
- O que é isso? - indagou Viviane.
- As meninges são membranas que envolvem o encéfalo e a medula espinhal. Essa doença caracteriza-se por grave inflamação de toda a área, atingindo as meninges e o encéfalo, provocando, entre outras coisas, a paralisia cerebral.
Comovidos, fitamos o rapaz deitado. Nada faria supor a gravidade do problema. Marilda afetuosamente ajeitou-lhe os cabelos, perguntando:
- Está com fome, Zé Domingos? Quer comer alguma coisa antes de dormir?
O rapaz a olhou com carinho e sorriu. Marilda entendeu que ele estava com fome.
- Ah! Muito bem! Antes, porém, vou trocar suas roupas.
Com presteza e agilidade, a jovem preparou-lhe o asseio. Foi até a cozinha, aqueceu um pouco de água e a colocou numa bacia; pegou bucha, sabonete e voltou para o quarto. Removeu as cobertas, limpou-o cuidadosamente, lavou-o e vestiu-lhe uma roupa limpa. Notamos que, apesar da pouca idade, procedeu com tanta naturalidade que não causou nenhum constrangimento ao rapaz, que, certamente, estaria acostumado a esses cuidados. E ela o fez com tanta competência como talvez não o fizesse uma enfermeira experiente. Ao terminar, afirmou com um sorriso:
- Agora que está limpo e cheiroso, Zé, espere um pouco. Vou preparar algo para você comer.
O rapaz piscou os olhos num sinal de agradecimento e ela foi para a cozinha. Felizmente, tinham um pouco de leite que uma vizinha lhes dera. Os vizinhos eram tão pobres como eles, mas, condoídos da situação e das necessidades de José Domingos, sempre colaboravam com alguma coisa. Eles poderiam até passar fome, mas o enfermo sempre tinha o que comer. Cheia de gratidão pela ajuda da vizinha, Marilda fez um mingau e, alguns minutos depois, retornou ao quarto.
- Veja que beleza! Sinta o cheiro! Está uma delícia.
Colocou um pano sobre o peito do irmão e começou a dar-lhe o alimento às colheradas. Ele comeu com apetite. Aliás, sempre tinha muito apetite. Terminou de dar o mingau, levou o prato sujo para a cozinha, foi até o banheiro e depois retornou, pronta para dormir. José Domingos ainda estava acordado.
- O meu nenê ainda não conseguiu dormir? - brincou -Já sei! Está esperando para orarmos juntos, não é?
Ele sorriu fazendo um trejeito. Satisfeita, Marilda sentou-se na beirada do leito e, colocando-se em atitude íntima de oração, de mãos postas, proferiu um pai-nosso, no que foi acompanhada mentalmente pelo irmão. Vimos que essa prece, modelo que nos foi legado por Jesus, dita com singeleza e profunda sinceridade, saía-lhe da mente e do coração em suaves vibrações de amor, que se estendiam sobre todos os familiares, especialmente atingindo o irmão enfermo. Notamos também que o Espírito do rapaz estava consciente, embora não pudesse se comunicar em face do desarranjo da máquina física. Com alguma dificuldade, no entanto, tentava acompanhar as palavras proferidas pela irmã, aproveitando integralmente as bênçãos da prece. No trecho em que Marilda disse perdoa as nossas dívidas como nós perdoamos aos nossos devedores, percebemos nitidamente que José Domingos se fechou. A fraca luminosidade que se espraiava do alto da sua cabeça encolheu-se até desaparecer, sendo substituída por emanações pesadas de coloração cinza-escura. Marilda encerrou o momento de oração, que, na nossa esfera, acompanháramos comovidos, e curvou-se para desejar boa-noite ao irmão. Quando ia beijá-lo, notou-lhe a expressão fisionômica carregada.
- O que aconteceu, Zé Domingos? Você estava tão bem!
Ele virou o rosto para a parede, mostrando desagrado, como se fosse uma criança rebelde. Nós, que ali estávamos, podíamos ouvir seus pensamentos. José Domingos sentia uma profunda revolta pela sua incapacidade. No íntimo, acusava o médico que o atendera na época pela sua doença. Demonstrando grande sensibilidade e intuição, Marilda afagou-lhe os cabelos.
- Eu sei - disse ela com a fisionomia triste. - É o trecho que fala sobre o perdão. Já percebi que, todas as vezes que chegamos a esse ponto da oração, você fica alterado.
Mentalmente, ele respondeu:
- É isso mesmo. Não consigo aceitar!... Olhe o que fizeram comigo, no que me transformaram!
- Esqueça, meu irmão. Ninguém é responsável pelos nossos problemas. Deus sabe o que faz. Além disso, já se passaram tantos anos...
- Exatamente por isso. Eu estou aqui, preso a uma cama, e ele está andando por aí, livre, rico e feliz.
O diálogo prosseguia, para surpresa nossa. A afinidade entre ambos era tão intensa depois de todos esses anos de íntima convivência, que Marilda, apesar da impassibilidade do irmão, sabia reconhecer-lhe as necessidades e problemas.
- Zé, o médico não teve intenção de prejudicá-lo, meu irmão. Aconteceu, simplesmente. A mãe disse que, quando você estava no hospital, ele afirmou que seu estado era tão grave que você poderia até morrer!
José Domingos virou a cabeça para a irmã e grunhiu, olhando-a com amargura e ressentimento. Mentalmente, resmungou:
- Antes tivesse morrido mesmo!
Marilda abraçou o irmão, envolvendo-o com muito carinho.
- Não pense assim, meu querido, você nos faria muita falta. Queremos tê-lo aqui conosco!
Ele virou novamente a cabeça para a parede, de forma acintosa.
- Nós o amamos! Duvida do nosso amor? - ela perguntou com surpresa.
- Não do seu amor, certamente. Sei que é sincera. Mas, quanto a nossos pais, não sei.
- Por que está com esses pensamentos hoje?
Ele baixou os olhos, calou-se por alguns momentos e vimos as imagens mentais que exteriorizava. José Domingos ouvira a conversa da família na hora do jantar. Em virtude das deficiências e naturais limitações do filho, os pais agiam como se ele não estivesse ali perto, separado por fina parede de madeira. Como se, além de tudo, também fosse surdo.
- Você ouviu nossa conversa? É isso? Ah! Zé Domingos, a mãe não falou por mal. É que ela tem muitos problemas...
José Domingos ficou nervoso e demonstrou grande agitação. Queria se agredir, arrancar as roupas e grunhia com desespero. E ouvimos seus pensamentos em resposta à irmã. Exatamente. E eu só complico a vida de vocês. Se pudesse, eu me mataria. Assustada, sentindo psiquicamente suas idéias destrutivas, Marilda abraçou-o ainda com mais força, deitando a cabeça sobre o peito dele:
- Não pense nisso, meu irmão. Quer-nos fazer a todos infelizes? Nunca mais pense numa besteira dessa, ou não cuido mais de você. Todos nós o amamos muito, não percebe?
Sua voz calou-se num soluço. Lágrimas sentidas escorriam sobre o irmão. Arrependido, o rapaz colocou a mão nos cabelos de Marilda, fazendo-lhe um afago carinhoso. Intimamente, afirmava: Não chore, Marilda. Sei que vocês me amam. Não quero que sofra. Especialmente você, que tanto tem me ajudado! Perdoe-me, não sei o que se passou comigo, mas não acontecerá mais. A jovenzinha levantou a cabeça e viu o olhar amoroso pousado nela, e entendeu que ele estava bem novamente. Enxugou as lágrimas, ajeitou-lhe as cobertas e deu-lhe um último beijo, acompanhado de terno sorriso.
- Então, vamos dormir, que já é tarde. Boa noite, Zé!

10 - O SONO DOS ENCARNADOS

Deixamos o aposento, indo para a sala. Lá poderíamos conversar sem atrapalhar o sono dos encarnados. Todos estávamos impressionados com a cena que se desenrolara a nossos olhos. Viviane, especialmente, demonstrava uma comoção maior. Quedara-se, pensativa. Durante o tempo em que estivemos no quarto, não observamos o que estava acontecendo com ela, atentos ao comovente diálogo entre os encarnados. Agora, porém, notávamos que estava estranha, distante. Acomodamo-nos na sala. Henrique considerou:
- Sei que têm muitos questionamentos. O que conseguiram perceber da situação?
- Bem - iniciou Adriana -, gostaria de saber o que é esse negócio de encéfalo. Já ouvi referências a essa parte do corpo humano, mas não sei o que significa realmente.
Alberto, que fora médico na última encarnação, explicou:
- Encéfalo, Adriana, é uma parte do sistema nervoso central localizada na cavidade craniana, que compreende o cérebro, o cerebelo, os pedúnculos, a protuberância e o bulbo raquiano.
- Nossa! Fiquei mais confusa ainda com tantos nomes estranhos! - exclamou Adriana, surpresa e com olhos arregalados.
Não pudemos conter o riso. O amigo simplificou:
- Basta você saber que é um problema localizado no crânio. Entendeu?
- Entendi. Obrigada.
Em seguida comentei, perplexo:
- Henrique, achei muito interessante o diálogo entre eles. Que afinidade tem José Domingos e a irmã! Nunca tinha tido a oportunidade de ver nada igual.
- É realmente extraordinário, César Augusto. Mas perfeitamente normal. Não estamos acostumados a ver fenômenos mediúnicos acontecerem? O intercâmbio entre encarnados e desencarnados é acontecimento corriqueiro, que se vê a todo instante!
- Sem dúvida! - afirmou Adriana, completando: - mas aqui são dois encarnados!
- Não deixam de ser dois Espíritos! Além disso, a transmissão do pensamento é algo provado no mundo material. Acrescente-se o fato de que José Domingos, estando impedido de se comunicar com a esfera terrena, tem maior facilidade para liberar-se espiritualmente. Afinidade produz sintonia, e isso os dois irmãos desenvolveram através do tempo, com a convivência.
Henrique fez breve intervalo e prosseguiu:
- Além desses fatores, existe também a vinculação estabelecida no passado, em outras encarnações. Eles não estão Juntos por acaso.
Nesse momento, Viviane, que até então permanecera calada, demonstrou emotividade profunda. As lágrimas desciam-lhe pelo rosto, sem que conseguisse estancá-las. Surpresos e respeitosos, nós a olhávamos sem entender. Afinal, ela conseguiu falar:
- Desculpem-me o descontrole íntimo. Não sei o que está acontecendo comigo.
- Não se preocupe, Viviane. Pode abrir seu coração -afirmou Henrique com brandura.
- Desde que entrei naquele quarto, algo dentro de mim despertou. Senti grande atração pelo pobre José Domingos e, ao mesmo tempo, imensa compaixão.
- É natural essa empatia. Afinal, você também sofreu um problema parecido - considerei, lembrando-me da sua história e do período em que ela também fora paralítica, presa a um leito.
- Você tem razão, César Augusto, mas não é só isso. Existe algo de mais profundo que não sei explicar.
Nesse momento, interrompemos a conversa. José Domingos, em Espírito, deixou o quarto e rapidamente saiu de casa, desaparecendo de nossas vistas, sem que pudéssemos evitar. Aonde iria ele com tanta pressa? Dali a instantes, surgiu a imagem meiga de Marilda. Transformada a nossos olhos, nimbava-se de luz. Sorriso radiante de ternura, exteriorizava serenidade e paz. Ainda era a mesma adolescente, contudo aparentava mais idade. Vendo-nos, encaminhou-se a nosso encontro com as mãos estendidas num gesto de boas-vindas.
- Que Jesus os abençoe! Henrique, imenso prazer em vê-lo, meu amigo. Certamente estão aqui para nos ajudar. Fico-lhes muito grata pela bondade.
Após trocar com ela algumas palavras gentis, Henrique nos apresentou a Marilda, que abraçou cada um de nós com carinho. Quando chegou a vez de Viviane, afagou-lhe os cabelos crespos.
- Como vai, minha querida?
- Muito satisfeita por estar aqui e poder conhecê-la, Marilda.
- Seja sempre bem-vinda!
Viviane, mal contendo a emoção, arriscou-se a perguntar:
- Já não nos vimos antes? Você me parece muito familiar! Com os olhos úmidos, Marilda abraçou-a novamente, sugerindo:
- Quem sabe? É possível que, nas inúmeras romagens terrenas, tenhamos nos encontrado. Somos todos Espíritos viajores no tempo, com vínculos insuspeitados uns com os outros, que não se rompem com a distância.
Afastou-se de Viviane, considerando encerrado o assunto, embora a nossa companheira tivesse feito menção de prosseguir.
- Agora, meus amigos, devo ausentar-me. O dever me chama e não posso demorar-me mais.
- Gostaria que um de nós a acompanhasse? Estamos aqui em serviço ativo e sabe que pode contar conosco. Marilda sorriu, agradecida:
- Jesus o abençoe, meu amigo, pela sua generosa solicitude. Prefiro, no entanto, que fiquem aqui cuidando da nossa casa. Sei como lidar com o José Domingos. Não se preocupem. Logo estaremos de volta.
- Então, vá tranqüila, Marilda. Cuidaremos de tudo até sua volta - afirmou Henrique.
- Obrigada, meu amigo. Orem por nós. Meu irmão precisa muito de ajuda.
Curioso, não contive uma pergunta que me queimava a ponta da língua:
- Para onde terá ido ele?
Marilda virou-se para mim e esclareceu, com laivos de tristeza na voz:
- Para onde vai todas as noites, assim que adormece, César Augusto. Para a casa do médico, que julga responsável pelos seus infortúnios!
A formosa entidade despediu-se e saiu, e nos pusemos a conversar. Jeremias, que aproveitava a ausência do enfermo para cuidar do casal, retornou à sala, participando da conversa.
- Agora entendo porque José Domingos afirmou que, enquanto ele permanece preso a um leito, o médico está andando por aí, livre, rico e feliz! - comentou Adriana.
- Sem dúvida! Ele sabe porque, durante o repouso do veículo corpóreo, vai atrás, apesar das suas deficiências, daquele que considera seu inimigo - explicou Henrique.
- O Espírito é livre e vai aonde deseja - completou Jeremias.
- Já estudamos isso. Onde está o vosso tesouro aí está também o vosso coração - considerou Alberto.
- Só que, no caso do José Domingos, ele desvirtuou o seu tesouro, direcionando as atenções para alguém que considera um inimigo, sem ao menos ter certeza de que esse alguém realmente o teria prejudicado - aduzi.
Jeremias, que falava pouco, exclamou:
- Quem sabe!
- Existirá algum vínculo entre eles, isto é, entre o enfermo e o médico? - quis eu saber, perguntando diretamente a Henrique.
- Sabemos que não existe efeito sem causa, não é? Necessário, portanto, estudar em profundidade o problema para encontrar as raízes que levaram aos fatos atuais.
Henrique ia continuar, mas fomos interrompidos. A mãe de Marilda, desprendida do corpo, assomou à porta do quarto e ficou assustada ao ver tanta gente. Voltou correndo para o corpo, acordando sob terrível pavor. Despertou o marido, que, de má vontade, esfregando os olhos, perguntou:
- O que está acontecendo, mulher? Me acordar no meio da noite, desse jeito!
- Ai, Antonino, levei o maior susto! Imagine você que sonhei que a nossa casa estava cheia de gente! Será que isso é perigoso? Ouvi dizer que sonhar com muita gente é sinal de morte, de velório, de enterro!
- Ora, Alzira, vire essa boca pra lá! Tá ficando maluca, mulher? Nossa casa está bem, não tem ninguém estranho, e todos nós estamos com saúde. Até o Zé, que esse tem mais saúde que todos nós juntos.
Mas a mulher, recostada no travesseiro, continuava desconfiada da nossa presença.
- Ai, Antonino, será que é a minha mãe que vai morrer? Anda meio adoentada...
- Mas pare de besteiras, Alzira. Sua mãe é velha mas tem saúde de touro. Pare com isso! Vamos dormir, que estou cansado. Amanhã, quero começar a procurar emprego logo cedo.
Ali presentes, não podíamos deixar de sorrir com a preocupação da mulher. Condoídos, fizemos uma prece. E Jeremias, com quem ela estava mais acostumada e tinha mais afinidade, aplicou-lhe um passe, tranqüilizando-a:
- Durma, minha irmã. Acalme-se. Tudo está bem.
Aos poucos, ela adormeceu. Jeremias aplicara-lhe energias de forma que adormecesse também em espírito, para poder repousar melhor e se reequilibrar do susto que levara.
- E o marido, Antonino? - indaguei.
- Esse não tem condições de nos ver. Como não acredita em nada, dorme a noite toda sem problemas.
- Ele não deixa o corpo durante o sono?... - surpreendeu-se Adriana.
- Não. A liberdade do Espírito está condicionada ao conhecimento que possua de espiritualidade. Se alguém não acredita que exista algo além do corpo; que morrer é descansar, permanece jungido ao veículo físico, também durante as horas de sono, condicionado pela própria mente.
Deixamos o quarto para que os encarnados pudessem repousar melhor. Enquanto eles prosseguiam conversando, e Jeremias contando suas tarefas e os problemas que tinha de enfrentar, olhei para Viviane. Ela continuava calada e circunspecta. Ainda não dissera uma única palavra. Estava realmente preocupado com ela. Olhei para Henrique, procurando ajuda, mas o orientador devolveu meu olhar fazendo um imperceptível gesto em que me acalmava, dizendo-me que tivesse paciência e aguardasse. Então, deixei a coisa rolar. Não demorou muito, Marilda retornou com José Domingos. Agora podíamos vê-lo melhor. Quando passou por nós na sala, não deu para olharmos direito. Era um rapaz alto, forte, bonito, rosto regular, cabelos e olhos escuros. Tinha a mesma expressão concentrada de rancor que víramos. Ali, porém, ele se movimentava à vontade, falava e reclamava.
- Por que você não deixou que eu desse uns murros naquele cara? Ele merece, Marilda.
- Não, meu querido, já temos conversado muito sobre isso. Ele não tem culpa dos desígnios divinos. O Doutor Vinícius é simplesmente um médico que trabalha dentro das limitações da medicina terrena. Se você está num leito hoje, é porque era necessário para seu progresso espiritual. A aceitação é o melhor remédio nestas circunstâncias. Temos que nos resignar ao que não pudermos evitar, sabendo que Deus é sábio, justo, bom e sabe o que faz.
- Balelas! A verdade é que eu é que estou sofrendo as conseqüências do erro desse miserável!
Com carinho e paciência infinitos, Marilda prosseguiu:
- Não houve erro, meu irmão, você tem que acreditar nisso!
- Houve sim! Pior que isso! Sei que ele me odeia e me quer destruir - continuou afirmando o rapaz.
Presos à cena que se desenrolava à nossa frente, não vimos o estado de Viviane. Com o rosto entre as mãos, olhos arregalados e supremo espanto, ela gritou:
- É ele! É ele! Ele, que tenho procurado durante tanto tempo!
Com serenidade, Henrique aproximou-se dela e disse:
- Acalme-se, Viviane.
- Henrique, eu o conheço!
Nisso, todos os olhares tinham-se voltado para nossa companheira, inclusive o de José Domingos, que dialogava com a irmã. O enfermo ouviu o que Viviane estava dizendo e se interessou. Fixou a atenção nela, procurando nos escaninhos da memória onde já a teria visto. Em choro convulsivo, ela aproximou-se do encarnado, tocou-lhe o rosto com delicadeza. E a sorrir e a chorar, afirmou:
- Sim, é você mesmo! É você, Alfredo! Tenho certeza! Lembra-se de mim?
José Domingos, que a olhava de forma estranha, ao ouvir aquele nome - Alfredo -, pareceu despertar lentamente. As lembranças começaram a vir à tona, vagas cenas afloraram-lhe a memória, e ele demonstrou na fisionomia o que lhe ia por dentro da mente.
- Lembro-me agora. Você é a Ivette!
- Ivette! Sim, sou eu mesma!
Abraçaram-se, selando o reencontro depois de tanto tempo. Nós, que acompanhávamos a cena, também nos deixamos envolver. Sensibilizados, tínhamos os olhos úmidos e os corações agradecidos pela bênção dessa hora. Olhei Henrique, que sorria. Ele conhecia a história e por certo esperava esse desfecho. Aproximei-me discretamente e perguntei:
- Você sabia o que ia acontecer hoje aqui?
- Não. Conhecia os laços que unem Viviane e José Domingos, mas contei com as probabilidades, esperando que algo de positivo sucedesse. E Jesus nos ajudou para que tudo corresse bem.
- E agora? - prossegui.
- Agora... Temos muito trabalho pela frente!

11 - LEMBRANDO O PASSADO

Decorridos os primeiros momentos de maior emoção, Viviane sentou-se, segurando as mãos de José Domingos, e começou a falar:
- Que coisa fantástica é a nossa mente! Até uns minutos atrás não me lembrava de nada. Agora tudo está muito claro na minha cabeça, como se uma janela para o passado tivesse sido aberta!
E começou a narrar sua história...
- Nasci na França, em Paris, no século passado. Casei-me por interesse com um brasileiro, Ermírio, rico dono de terras, vindo a residir no Brasil. Alguns anos depois. Numa festa, conheci Alfredo, por quem me apaixonei loucamente. Por ser casada, ter marido e filhos, nossa união tornou-se impossível. Dominados, porém, pela paixão, resolvemos que o único jeito de ficarmos juntos era matar meu esposo.
Viviane fez uma pausa, enxugou as lágrimas e prosseguiu:
- Planejamos tudo cuidadosamente. A fazenda era grande e Ermírio costumava sair a cavalo percorrendo as lavouras de cana-de-açúcar, ou simplesmente internando-se nas matas. Alfredo ficaria de tocaia num ponto desse trajeto costumeiro, e o mataria.
Nesse momento, José Domingos começou a chorar convulsivamente, gritando:
- Estou arrependido! Eu não queria matá-lo! Fiquei escondido e, quando Ermírio passou, eu o atingi na cabeça com um porrete. Caiu do cavalo e dei-lhe mais dois golpes. Ficou lá no chão, estrebuchando. Fugi daquele lugar. Ninguém podia me encontrar ali.
Ele se calou. Expressão distante, alucinada, olhos vítreos, mostrava no semblante todo o horror que aquelas lembranças evocavam. Viviane continuou a narrar:
- Algumas horas depois, dois negros o encontraram e o levaram para a Casagrande. Estava em triste estado. As pancadas o deixaram paralisado. Viveu mais alguns dias em agonia atroz, até que desencarnou.
Ela calou-se, entregue às lembranças do passado. Vendo que Viviane parecia ter-se esquecido de nós, Henrique incentivou-a a continuar:
- E depois, o que aconteceu?
Olhando para ele como se voltasse a si, Viviane prosseguiu:
- Depois, uma nuvem negra pairou sobre nossas vidas. Casei-me com Alfredo, mas jamais fomos felizes. A sombra de Ermírio estava sempre entre nós. Nada dava certo.
Nesse instante, deu entrada no recinto um homem que desconhecíamos. Vinha desarvorado, aflito:
- Quem me chama? Quem me chama?
Henrique aproximou-se dele e, passando os braços sobre seus ombros, tranqüilizou-o:
- Acalme-se, meu irmão! Tudo está bem. Só queremos conversar.
Vendo José Domingos, ele se apavorou, misturando presente e passado, e fez menção de fugir.
- Não quero vê-lo! Esse demônio não me dá paz! Já disse que não tive intenção de prejudicá-lo, mas ele me acusa sempre. Sou médico, meu dever é salvar vidas, não matar. Piedade! Piedade! Jesus, ajuda-me! Não agüento mais!
A cena, altamente dramática, era de profundo significado. Compreendemos, comovidos, que o recém-chegado era o médico, Dr. Vinícius, a quem o rapaz acusava pelos seus infortúnios. Henrique, que permanecia junto dele, com carinho levou-o para perto de Viviane e de José Domingos.
- Ninguém o acusa, meu irmão. Observe melhor essas duas pessoas que aqui estão. Lembre-se! Volte ao passado!
Vinícius olhou-os e algo dentro dele rompeu o dique das recordações.
- Ivette! É você?! E ele, é Alfredo! Meu Deus! Agora me lembro de tudo! Vocês, de comum acordo, destruíram-me a vida. Minha esposa e meu amigo! Por muito tempo os persegui, desejando vingança.
Nesse ponto, Henrique interferiu, asseverando:
- Sim, é verdade, meu irmão Ermírio. Lembrem-se, porém, de que, antes de tomarem um novo corpo em regresso à Terra, todos vocês se prometeram perdão mútuo e refazimento dos laços afetivos. Agora é hora de construir e de pensar no futuro.
Marilda, transfigurada a nossos olhos, aproximou-se do grupo, envolvendo-os com amor. José Domingos, ao vê-la, lembrou-se do passado e exclamou cheio de alegria:
- Mamãe!...
- Sim, meu filho. Sou sua mãe, que nunca o abandonou. Apesar dos seus erros, amo-o como sempre. Pedi a Jesus que me permitisse ajudá-lo a reparar seus desatinos, e aqui estou. Agora vim como sua irmã, mas continuo a cuidar de você com o mesmo amor e o mesmo carinho.
Virando-se para Viviane, a entidade abraçou-a:
- E você, minha querida Ivette, saldou uma parte dos seus débitos com a doença que por tantos anos a jungiu ao leito de dor. Continue trabalhando e servindo.
- Dona Eugênia! Quero pedir-lhe perdão pelos males que Alfredo e eu lhe causamos. A senhora sempre foi tão boa comigo!
- Não, Ivette, nada tenho a lhe perdoar. O que vocês fizeram a Ermírio fizeram a si mesmos, tornando-se responsáveis perante a lei.
Envolvendo Ermírio com imenso carinho, a entidade afagou-lhe os cabelos:
- Ermírio, mostre-se generoso e conceda-lhes o perdão. Aquele perdão que sai do íntimo, não o dos lábios. Eles já sofreram muito e estão sofrendo ainda, especialmente Alfredo. Vamos começar uma nova era de entendimento e de paz, para as reconstruções do futuro.
Abraçaram-se uns aos outros, comprometendo-se a mudança de atitudes. Nós, da equipe espiritual, estávamos emocionados. Vinícius foi levado de volta ao corpo físico por Jeremias, e José Domingos pela mãezinha, hoje irmã dedicada. Retornando ao presente, já como Marilda, a adolescente nos agradeceu o amparo da noite, convidando-nos à prece. Com os olhos úmidos e radiantes de intenso júbilo, ela proferiu esta bela oração:
- Senhor Jesus, generoso Amigo!
Nesta noite de bênçãos sem-fim, quando tantas dádivas nos foram ofertadas pela Misericórdia Divina, queremos agradecer-te. Atendendo a nossos apelos, Senhor, proporcionaste-nos a oportunidade de ajudar entes queridos, há muito necessitados de socorro. Nada temos para te dar, Senhor, senão nossa boa vontade e desejo de servir, mas queremos de alguma forma repartir o muito que temos recebido. Que a tua bondade possa nos facultar os meios de trabalhar, auxiliando nossos semelhantes. Agradecidos pelo amparo dos amigos espirituais, colocamo-nos à tua disposição. Fortalece-nos, Jesus amigo, nas estradas da vida, para que possamos melhorar sempre, a caminho do teu reino de paz! O ambiente tornou-se dulcíssimo pelas vibrações amorosas que Marilda externara na oração. Brandas sensações de paz e reconforto nos envolviam. Acompanhamos Marilda até o leito e despedimo-nos dela com imenso carinho. Ela conseguira conquistar nossa amizade nesse pequeno espaço de algumas horas. Admiração crescente por ela fazia com que desejássemos continuar prestando nossa ajuda àquela casa. Tudo calmo, olhamos Viviane, que agora se mostrava alegre e bem-disposta. Por ora, nada mais tínhamos a fazer ali. Saímos. O céu estrelado nos envolveu como um manto de veludo.
- E daí? O que achou dessa abertura para o passado? - indaguei a Viviane.
Ela respirou profundamente. Depois respondeu, contemplando as estrelas:
- Olha, César, é uma sensação que não tem paralelo. Gostei de ter desvendado um pouquinho do que já vivi. A responsabilidade pelos atos praticados começa a pesar de forma dolorosa. Voltei a sentir raiva de Ermírio quando o vi ingressar naquela sala.
- Sim, sei que ele foi nossa vítima naquela ocasião, mas acho que permaneceu mais forte, mais nítida para mim, a época em que ele se arvorou em perseguidor.
- Porque as lembranças são mais recentes e, por isso, mais intensas. Da existência passada você não se recordava.
- Exato. Só me lembrei quando vi o José Domingos em Espírito.
Ficamos calados, mergulhados nos próprios pensamentos, até que ela considerou:
- Mas, o fato de saber que podemos refazer nossos passos, trabalhar para reconstruir o que destruímos, ajudar quem prejudicamos... É também extremamente importante.
Concordei com ela. Eu, igualmente, experimentara os mesmos sentimentos quando tive aquela regressão de memória.
- Sim, sei bem o que você está sentindo, amiga.
- E agora, César?
- Agora, certamente, vamos ter de trabalhar dentro de nós mesmos para vencer as inferioridades. A mágoa, o rancor, o ressentimento, o remorso, devem ser substituídos pelo amor e pelo desejo do bem, de forma que exercitemos a caridade cristã. Não é a isso o que estamos nos propondo?
- Sem dúvida! Agora posso entender por que fiquei todos aqueles anos presa ao leito. Era a lei de ação e reação funcionando. Embora eu ignorasse, o tratamento corretivo estava acontecendo e o remédio amargo sendo ministrado para propiciar-me a cura da alma.
Henrique, um pouco atrás de nós, ouviu nossa conversa e indagou:
- E não valeu a pena o sacrifício?
- Como valeu! Aqueles anos, que me pareciam tão sofridos, que se arrastavam pesados e enfadonhos, não representam mais nada. Hoje, só tenho que agradecer a Deus.
O espaço cósmico estendia-se à nossa frente. Vencendo as distâncias, nos aproximamos de Céu Azul, nosso lar na Espiritualidade, o qual aprendemos a amar.

12 - DIA EXAUSTIVO

O movimento no hospital era intenso. Tínhamos sido alertados de que não tardaria a chegar um contingente de desencarnados em estado de grande necessidade. Acabavam de ser resgatados por excursão socorrista que partira da nossa instituição com destino às zonas inferiores. Assim, havia muito trabalho pela frente. Enfermeiros e atendentes, ligeiros, movimentavam-se de um lado para outro para atender a todas as solicitações. Arrumavam-se os leitos, ultimando os preparativos. Todos os servidores que tivessem condição e boa vontade deveriam apresentar-se para o trabalho de emergência. Mesmo os que estavam de folga. O aviso tinha sido expedido pela direção do hospital e, em resposta à solicitação, ali estávamos nós oferecendo nossa colaboração. Jesus afirmou que a seara é grande e os trabalhadores são poucos, o que mais do que nunca, ali, era uma realidade. Em virtude da grande carência de cooperadores treinados para assistência aos recém-chegados, todos nós nos engajamos nas atividades, salvo quem estivesse servindo em outra área ou impossibilitado de comparecer. No corre-corre que se estabelecera em razão das novas internações, ainda havia os albergados mais antigos, que estavam a exigir nossa atenção. Ao passar pela enfermaria seis, ouvi um chamado:
- César Augusto!
Voltei sobre meus passos e deparei com Gustavo. Sentado no leito, olhava-me com curiosidade. Sorri, amistoso.
- Olá, Gustavo! Como tem passado?
- Vou levando. Sabe como é, se pudesse escolher, certamente não estaria aqui.
Sempre o mesmo enfermo inconformado e rebelde. Apesar da pressa, parei e, com paciência, retruquei:
- Gustavo, meu amigo, não seja ingrato. Sua situação é infinitamente melhor aqui do que se continuasse entregue a si mesmo nas zonas inferiores. Ou já se esqueceu do que sofreu por lá?
Constrangido, ele argumentou:
- É... Eu sei. Não posso negar que aqui tenho mordomias que não tinha lá. Mas era diferente! Antes, tinha liberdade de me locomover à vontade, ia aonde quisesse e ninguém me impedia. Aqui, estou restrito a esta enfermaria!
Não pude deixar de aduzir, ouvindo seus argumentos:
- Isso é relativo, meu irmão. Você tinha liberdade nos limites da sua condição espiritual, e só entrava em ambientes cuja baixa vibração o permitisse. Não creio que isso seja uma vantagem. Aqui, ao contrário, sua posição é bem melhor e você reconheceria essa verdade se não fosse tão teimoso e rebelde. Quer saber, há muita gente que daria tudo para estar no seu lugar. Além disso, pode ir até o jardim, passear, sentar nos bancos e contemplar a natureza...
- Mas aqui sou sozinho!
Novamente a mesma reclamação. Ele estava me tomando muito tempo e era preciso cortar aquela conversa que não nos levaria a nada.
- Você não está sozinho, Gustavo. Sempre que posso, venho fazer-lhe companhia e sei que outros jovens fazem o mesmo.
- Fique aqui comigo agora.
- Não posso. Procure ler alguma coisa. Você tem excelentes livros na gaveta de sua mesa de cabeceira.
- Não gosto de ler, você sabe. Acho esses livros chatérrimos!
- Bem, então mais tarde virei fazer-lhe companhia. Podemos passear pelo jardim e conversar.
- Não vejo graça nisso! - respondeu, fazendo uma careta.
- Bem, então podemos fazer outra coisa... Jogar xadrez, por exemplo!
- Não sei jogar.
- Eu ensino.
- Não quero e não gosto.
Diante da má vontade do rapaz, pensei um pouco e respondi, um tanto irritado:
- Gustavo, você não quer companhia nem amizade. Sente falta, na verdade, é dos companheiros que lhe satisfaziam a dependência do vício. Lamento, meu amigo, mas nisso não posso atendê-lo. Agora tenho que ir - afirmei, já me preparando para sair.
Dei alguns passos, mas ele gritou:
- Espere! Espere um pouco! Que pressa! O que está acontecendo afinal? Todos estão super ocupados... Não podem me dar atenção...
- Está para chegar um grupo de pessoas que foram retiradas da zona umbralina, tal qual aconteceu com você. Garanto-lhe que eles se sentirão muito felizes por receberem assistência nesta unidade hospitalar. Pense nisso.
Afastei-me às pressas. Não tínhamos tempo a perder e eu gastara minutos preciosos. A caravana chegou e nossa sensibilidade foi inundada por gritos, lamentos, reclamações e toda sorte de impropérios. Alguns exigiam especial atenção, alegando sua condição social, outros proferiam queixas quanto à demora em receber ajuda; ou pediam que telefonássemos aos médicos, dos quais eram clientes e com os quais estavam acostumados; outros, ainda, reclamavam a presença da família, que não viam há muito. A todos tínhamos que receber com carinho e respeito, dentro das suas características pessoais, encaminhando-os para atendimento. Os médicos socorriam um por um, medicando-os em regime de urgência. Procedia-se à higiene pessoal, faziam-se curativos. Dentro de algum tempo, todos estavam acomodados em alvos leitos, limpos, acolhedores e aquecidos, recebendo alimentação nutritiva e reconfortante. Algumas horas depois, quando o movimento já diminuíra de intensidade, ao transitar por um corredor, portando uma bandeja com medicamentos que a irmã Clara pedira, ao virar uma esquina trombei com alguém que vinha em sentido contrário. Um tanto irritado, não me contive:
- Ei! Não vê por onde anda?
- Estava limpando o chão e não o vi aproximar-se - desculpou-se o outro.
Só então o olhei com atenção e notei que era um atendente dos mais humildes. Trazia nas mãos um esfregão e um balde com líquido desinfetante, que agora estava caído no chão, entornado. Sua fisionomia não me pareceu estranha. Senti imensa vergonha da minha atitude e afirmei:
- Eu é que lhe peço desculpas. Estamos trabalhando há horas e...
- Compreendo. Certamente está exausto. Hoje foi um dia de grande movimento.
- É verdade, mas isso não me dá o direito de destratar ninguém. Você também deve ter trabalhado muito. Peço-lhe perdão.
Estendi-lhe a mão, apresentando-me:
- Sou César Augusto.
Ele me olhou de forma especial. Tinha aparência comum. Pele morena, nariz proeminente, olhos grandes e amendoados com expressão diferente; cabelos escuros e ondulados, cujo comprimento ia até o pescoço, um tanto grisalhos. Certamente, não era muito de falar. Permaneceu calado por alguns momentos; depois respondeu, apertando a minha mão estendida:
- Chamo-me Hassan.
- Descendência árabe?
- Sim.
- Nunca o tinha visto por aqui. Desde quando trabalha no hospital?
- Há pouco mais de um mês. Vim de um posto de serviço próximo da Terra, em regiões mais densas.
- Ah!... Muito bem, Hassan. Prazer em conhecê-lo. Até logo.
Afastamo-nos. Cada um foi para seu lado. A imagem daquele homem, porém, não me saía da cabeça. Onde já o teria visto? Por mais que rebuscasse na memória, não conseguia descobrir. Ora, pensei, deve ser parecido com alguém que conheço. Não devo perder tempo com isso. Contudo, não conseguia esquecer o rosto daquele homem. Confesso que não me causou boa impressão. Alguma coisa nele me incomodava, provocando mal-estar. Coitado! Eu fora realmente rude com ele. Na verdade, era ele que não deveria ter ficado com uma impressão muito favorável a meu respeito. E com toda a razão! O plantão estava terminando e logo outra turma assumiria nosso lugar. Estava realmente exausto. Talvez nunca tivesse ficado tão cansado. Ao retornar para casa com os amigos, permaneci calado. Os outros também não demonstravam ânimo para conversar, por estarem tão esgotados quanto eu. O silêncio era geral. Tive vontade de sentar-me na varanda; Eduardo me acompanhou. Os outros companheiros, que iriam dar plantão, já tinham saído, e os que chegaram foram dormir. Assim, tudo era paz e quietude. Aquele lugar da nossa casa sempre conseguia proporcionar-me tranqüilidade e restaurar-me o equilíbrio. Mas, nesse momento, tinha a mente assoberbada. A certa altura, olhando o céu estrelado, não contive o desabafo:
- Hoje exorbitei.
- Como assim?
- Eduardo, agora estou convencido de que, apesar de tudo o que aprendemos aqui, não mudei nada! - respondi com gravidade.
- O que aconteceu? - indagou, atencioso.
Relatei a ele, minuciosamente, o que se tinha passado, sem omitir nada. O episódio da enfermaria seis, com Gustavo, e, depois, a trombada com o servidor Hassan. E terminei, dizendo:
- É imperdoável! Não consegui me controlar. Primeiro, com um pobre viciado. Depois, com um faxineiro. O que está acontecendo comigo?...
Colocando-me a mão no braço, Eduardo pensou um pouco e considerou:
- Não está acontecendo nada de extraordinário com você, César. A verdade é que somos todos imperfeitos! Sob uma tensão muito grande, seu emocional sofreu certo desequilíbrio. O que, até certo ponto, é natural, tendo em vista o estágio evolutivo em que transitamos. Tudo pode ser reparado.
Eu, porém, continuava inconformado:
- Mas não podia ter acontecido! Se nós, que tanto temos estudado e aprendido, nos comportamos dessa maneira, o que esperar dos outros? Fiquei irritado com o mau humor e o pessimismo de um viciado em drogas, que, sei perfeitamente, está em tratamento e passando pelas dificuldades naturais de um recém-chegado à nossa esfera.
Eduardo deixou que eu desabafasse sem interromper. Fiz uma pausa, levando a mão à cabeça. Depois, prossegui:
- E o mal-estar que o pobre Hassan me causou? Que coisa estranha, Eduardo!
- Ah!...
- Você o conhece?
- Não.
- Bem, então não pode avaliar o que senti.
- Esqueça! Tudo isso passa. Quando o encontrar outra vez, verá que as coisas estarão diferentes.
- Queira Deus que você tenha razão! Bem, é tarde e precisamos descansar um pouco. Temos trabalho daqui a algumas horas.
Despedimo-nos e cada um foi para seu quarto. Todos já estavam recolhidos. Deitei-me, mas o problema não me saía da cabeça. Por quê? Por quê? Fechei os olhos, buscando a elevação de pensamento. Mentalizei a imagem de Jesus, e ela surgiu, na acústica da alma, clara e nítida, como no dia em que assistimos ao filme relativo a seu Calvário. Os braços do Mestre estavam estendidos em minha direção e suas mãos pareciam abençoar-me. Chorei. Chorei muito. Reconhecia que falhara perante mim mesmo, perante meus semelhantes. Sentia-me culpado e considerava-me indigno dos mestres que tivera desde que aportara na Espiritualidade. O que pensariam eles de mim se soubessem como agira? Orei como há muito tempo não orava. Abri o coração, expondo meu íntimo, e supliquei o amparo do Criador para minha alma necessitada de luz. Estava assim entregue a mim mesmo, quando uma branda luminosidade, como fumaça esbranquiçada, começou a se formar à minha frente, no alto. Atento, percebi que lentamente surgiam os contornos e, logo, a figura de um homem deparou-se diante de meus olhos maravilhados, a fitar-me com brandura. Era um romano. Envergava uma toga branca, de tecido luminescente, com uma faixa azul-celeste a contornar-lhe a cintura. Seu rosto tinha uma expressão serena e leve sorriso bailava-lhe nos lábios. E, coisa curiosa, nas mãos trazia um pergaminho escrito com letras e bordas douradas, que eu não conseguia ler. A presença dessa entidade encheu-me o coração de alegria e emoção. Sabia que éramos conhecidos de épocas remotas, embora não me lembrasse de quando. Respeitoso, agradeci mentalmente a visita que tanto me reconfortava. Quando o nobre visitante começou a falar, sua voz fez reacender em mim imensa saudade de algo que ficara perdido no tempo:
- Tudo está indo muito bem. Não exijas demasiadamente de ti mesmo. A evolução é produto do próprio esforço e que só o tempo concluirá. Estamos juntos desde eras remotas, meu filho, e continuaremos unidos pela Eternidade. Não desanimes, seja qual for a dificuldade. Confia sempre e prossegue lutando e servindo. Aproveita o momento que passa e a oportunidade que surge radiosa em teu caminho, para reparar erros do pretérito e refazer ligações com velhos companheiros de romagem terrena. Logo terás a resposta para tuas indagações. Que o Senhor da Vida te proteja e ilumine sempre!
Parou de falar. Ansioso, eu desejava perguntar quem era ele, onde nos teríamos conhecido, quais nossos vínculos, mas não consegui articular palavra. A emoção era intensa e um nó na garganta impedia que falasse. Do mesmo modo como havia chegado, afastou-se repentinamente, diluindo-se sua imagem aos poucos, como poeira cósmica. As lágrimas voltaram a cair, abundantes. Agora, porém, de felicidade. Um grande bem-estar inundava minh'alma. Sabia que teria de lutar, e lutaria. Ânimo renovado, repassava as palavras que a nobre entidade proferira, ultimamente compreendendo o que me competia fazer. Quanto aos companheiros do passado, nada poderia fazer no momento, evidentemente. Teria que esperar que surgissem para as reparações e entendimentos necessários. Todavia, outras coisas poderia fazer no presente. Procuraria Gustavo e Hassan para tratá-los de forma diferente, modificando, assim, minha conduta, sob os ditames da fraternidade legítima. Novamente elevei pensamentos de gratidão a Deus pela ajuda inesperada que me proporcionara na presença desse amigo de Altas Esferas.
Logo, brando sono dominou-me e adormeci tranqüilo e feliz.

1 - Referência a filme citado no livro "Céu Azul", de sua autoria. Capítulo 26.

13 - VISITA INESPERADA

Utilizando o tempo de que dispúnhamos, procurávamos adequar as atividades para atender a todas as áreas com as quais nos comprometemos. Assim, passamos a visitar a casa de José Domingos periodicamente. Era com grande prazer que víamos as mudanças que se operavam em Viviane. Cheia de desejo de servir, dedicava-se à família com carinho e determinação. Algo dentro dela promovera alterações profundas. Basicamente, permanecia a mesma, contudo se tornara mais mansa, mais compassiva, mais amorosa. Havíamos estabelecido um plano de ajuda à família Morgado. Nesse dia, quando chegamos, Marilda terminava os cuidados com o irmão e preparava-se para buscar mais serviço na casa de Dona Benedita, para a qual estava trabalhando, como tinha se proposto. Adriana e eu a acompanhamos. Os outros permaneceram ao lado do enfermo. Dona Benedita a recebeu com satisfação.
- Que bom vê-la, Marilda. Como vai o Zé?
- Vai bem, Dona Benedita, obrigada. Vim saber se a senhora tem serviço para mim.
- Graças a Deus que você veio, minha filha. Estou cheia de costuras e ainda bem que tenho você para me ajudar! Sente-se e espere um minuto. Vou buscá-las.
Marilda acomodou-se, contente. Dona Benedita tinha o condão de transformar sua atitude generosa, fazendo com que parecesse que Marilda é que lhe prestava um favor, e por isso também lhe era grata. Enquanto aguardava, relanceou os olhos pelo ambiente. Sobre uma pequena mesa lateral havia um livro. Por nossa sugestão, a jovem aproximou-se e tomou-o nas mãos. Leu o título: O Evangelho Segundo o Espiritismo. Interessada, sentou-se novamente e começou a folheá-lo, abrindo-o ao acaso. Diante de seus olhos surgiram as palavras do Cristo que abrem o Capítulo 6 desse livro admirável: Vinde a mim todos vós que estais aflitos e sobrecarregados, que eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei comigo que sou brando e humilde de coração e achareis repouso para vossas almas, pois é suave o meu jugo e leve o meu fardo.1 As palavras de Jesus ecoaram em sua alma sedenta de consolação, causando-lhe intenso bem-estar. Continuou lendo: Todos os sofrimentos: misérias, decepções, dores físicas, perda de seres amados, encontram consolação em a fé no futuro, em a confiança na justiça de Deus, que o Cristo veio ensinar aos homens. Sobre aquele que, ao contrário, nada espera após esta vida, ou que simplesmente duvida, as aflições caem com todo o seu peso e nenhuma esperança lhe mitiga o amargor. Foi isso que levou Jesus a dizer: - Vinde a mim todos vós que estais fatigados, que eu vos aliviarei. Estava tão interessada na leitura que nem percebeu que Dona Benedita voltara e estava esperando, a seu lado, com a sacola de roupas na mão. Um tanto constrangida, Marilda desculpou-se:
- Desculpe-me, Dona Benedita, não deveria ter mexido em suas coisas, mas este livro chamou minha atenção e não pude resistir.
A dona da casa sorriu, compreensiva:
- Não tem importância, Marilda. Se estiver interessada, pode levá-lo.
- Posso mesmo? Muito agradecida, Dona Benedita. Fiquei surpresa. Não sabia que a senhora se interessava por religião.
- É que nunca tivemos oportunidade de conversar sobre o assunto. Sou espírita.
- Espírita? - surpreendeu-se a outra.
- Sim. Sabe o que é a Doutrina Espírita?
- Não.
- Pois então, leia este livro e depois conversaremos com mais calma.
Marilda agradeceu novamente e despediu-se, levando as roupas e o livro de encontro ao coração. Estávamos satisfeitos com o andamento do caso. Chegando em casa, logo começou a trabalhar. Dona Benedita era patroa compreensiva, mas tinha urgência do serviço. Deixamos nossa amiguinha entregue a suas tarefas e aproveitamos o tempo para fazer outra visita. Acompanhando Henrique, dirigimo-nos a uma movimentada rua no centro da cidade, parando defronte do consultório do Dr. Vinícius. Ele estava atendendo, e na sala de espera encontravam-se três pessoas aguardando. Entramos. A um canto da sala, pusemo-nos a observar seu trabalho. Era um profissional sério, competente e criterioso. Entre uma consulta e outra, porém, percebíamos seu pensamento, preocupado. Desde alguns dias, instalar-se-lhe na mente o desejo de rever um antigo paciente. Havia anos que não tinha notícias dele, mas se lembrava de que, muitas vezes em sonhos, ele lhe aparecia e o acusava de alguma coisa. Nos últimos dias isso não mais ocorrera, mas lhe ficara o desejo de saber o que era feito dele. O nome do cliente: José Domingos Morgado. Mente racional, sempre direcionada para a ciência, Vinícius não entendia o que estava acontecendo. Seu amigo Orlando, adepto do Espiritismo e a quem confidenciara a estranha situação e o mal-estar que sentia, aconselhou-o a ir a um centro espírita, pois estava precisando tomar passes. Vinícius riu na cara dele. Não acreditava nessas coisas sobrenaturais. Achava que eram crendices, superstições do povo ignorante. Quando terminou os atendimentos, nos aproximamos e Henrique sugeriu-lhe que fosse visitar o antigo cliente. Mas agora? Pensou em voz alta, sem se dar conta de que estava a conversar com alguém. Por que não? Suas consultas terminaram por hoje. Aproveite a oportunidade. Não deixe o tempo passar em vão. Aceitando a sugestão, ele murmurou: Bem lembrado. Acho que vou agora mesmo. Chega de adiar. Vou procurar a ficha e ver o endereço. Certamente ainda estará em nosso arquivo. Logo, com um papel na mão em que anotara cuidadosamente o endereço, ele tira o carro da garagem e dirige-se a bairro miserável da periferia. Mal sabia ele que não estava só. Junto dele seguíamos todos nós, aboletados no veículo. Chegando ao endereço, Vinícius bateu na porta e logo uma mocinha veio abrir. Era Marilda.
- Boa tarde! - cumprimentou ele, sem saber que desculpa dar para sua presença ali.
Ao vê-lo parado na porta, Marilda, que já o tinha visto na rua, reconheceu-o e sorriu, estendendo-lhe a mão efusivamente:
- Dr. Vinícius! Que prazer. Entre, por favor.
Ela não perguntou a razão da sua visita, mas ele sentiu necessidade de justificar-se:
- Sabe, vim atender um paciente aqui perto e lembrando-me de José Domingos.
- Que gentileza a sua! Venha, vou levá-lo até o quarto de meu irmão.
- Como é seu nome?
- Marilda.
Mais tranqüilo pelo acolhimento da mocinha, o médico a acompanhou. Chegando ao quarto do enfermo, sentiu o coração se confranger ao ver o rapaz estirado no leito.
- Como ele está passando? - perguntou.
- Bem. Saúde é o que não lhe falta. Não é, José Domingos?
O rapaz olhou o homem à sua frente e o reconheceu. Grunhiu, virando a cabeça para a parede, como sempre fazia quando estava descontente.
- Vim visitá-lo, José Domingos. Como vai?
E, voltando-se para Marilda, perguntou:
- Alimenta-se bem?
- Sim. Estamos em dificuldades, mas para ele, pelo menos, nunca falta comida - falou com orgulho.
O médico entendeu. Pelo estado precário da habitação, percebeu que deveria faltar dinheiro para as necessidades básicas de sobrevivência. Abriu a maleta, tirou o estetoscópio e começou a examiná-lo. O paciente agora estava intrigado.
- Dorme bem?
- Não muito, doutor. Acorda várias vezes por noite. Acho que tem pesadelos. Nestes últimos dias, porém, está dormindo melhor.
Terminado o exame, Vinícius tirou da maleta uma pomada, entregando-a para Marilda.
- Passe esta pomada após a higiene, nos locais das escaras. Vai amenizar os sofrimentos dele.
Antes de sair, inclinou-se para o doente, afagou-lhe os cabelos e disse com gentileza:
- José Domingos está bem. Virei outras vezes visitá-lo. Se precisarem de alguma coisa, me procurem.
Marilda agradeceu, mas, um pouco constrangida, explicou:
- Dr. Vinícius, não temos com que pagar-lhe...
- Não se preocupe, Marilda. Não terão que pagar nada. A propósito, onde estão seus pais?
- Mamãe está trabalhando e papai está procurando emprego.
- Está desempregado?
- Sim.
- Entregue-lhe meu cartão e diga para me procurar. Talvez possa arranjar-lhe alguma coisa.
- Que Deus o abençoe, doutor! Qualquer serviço serve.
Despediram-se. O médico deixou aquela humilde casa aliviado. Interiormente, sentia enorme bem-estar. Sensação agradável de dever cumprido, como se tivesse realizado algo que há muito deixara por fazer. Um estranho sentimento de que laços mais profundos o uniam ao enfermo passou a dominar-lhe o íntimo. Voltaria outras vezes. Um grande desejo de auxiliar a família Morgado, tornando-lhe a vida mais fácil, acudia-lhe à mente. A figura daquela mocinha, uma menina ainda, cuidando do enfermo o comovera profundamente. Sentia-se bem junto dela. Assim, com pensamentos altamente positivos, retornou a seu lar. Na casa dos Morgados, Marilda, por sua vez, também se emocionara com a visita do médico. Percebera que José Domingos o olhara com desconfiança, no início; mas a atitude do visitante, sincera e digna, demonstrando carinho e interesse, o vencera. No final, o Zé já estava mais sereno. Agradecendo a Deus, Marilda abriu o Evangelho e começou a ler em voz alta para o irmão:
- Bem-aventurados os que choram, pois que serão consolados...
À medida que lia, José Domingos se foi aquietando, parecendo prestar atenção nas palavras, até adormecer. Nós, na Espiritualidade, estávamos satisfeitos. Tudo caminhava segundo o previsto. Certos de que tudo estava em paz e após orarmos em conjunto, partimos, deixando Jeremias como guardião da família.

1 - Mateus, 9:28 a 30.

14 - ESPERANÇA RENOVADA

Nos dias seguintes, quando voltamos à casa dos Morgados, encontramos o ambiente modificado. Marilda, que se afeiçoara à leitura do livro que a costureira lhe emprestara, trazia a mente inundada de belos pensamentos. Ela, que gozava de natural elevação espiritual, agora sentia que os ensinamentos do Evangelho lhe falavam ao coração, como que complementando-a. Eram idéias que trazia inatas, das quais tinha agora a comprovação através das leituras. Uma sensação de bem-estar e de paz, além daquela que já experimentava normalmente, passou a dominá-la. Viviane solicitara a Henrique permissão para ficar alguns dias na casa, para colaborar com mais eficiência, o que ele aprovou, afirmando:
- Em virtude dos compromissos que você tem com o grupo, acho uma excelente idéia estreitar ligações. Sabe como agir e quais são os nossos objetivos. De resto, manteremos contato, além de estarmos sempre por aqui.
Foi com grande satisfação que Viviane ali permaneceu, junto com Jeremias, participando mais diretamente da vida da família. Naquela noite, Marilda contou aos pais sobre a visita do Dr. Vinícius, o que os deixou muito intrigados, porquanto não viam o médico havia muito tempo. Contudo, ficaram contentes e agradecidos, pois, na situação em que estavam, qualquer ajuda era bem-vinda. Especialmente essa, que dizia respeito a um emprego, deixou Antonino mais esperançoso. Assim, no dia seguinte, logo bem cedo, ele tomou um banho, se arrumou o melhor que pôde e, com as bênçãos e o incentivo da família, foi até o consultório do médico. Lá chegando, disse à secretária que queria falar ao doutor, mas ela perguntou, torcendo o nariz:
- É consulta?
- Não, senhora. Só quero falar com ele.
A moça mediu o homem dos pés à cabeça e, percebendo a sua humilde condição, fez pouco caso:
- Vai ter que esperar.
- Está bem - disse Antonino, sentando-se.
A secretária apontou a porta da rua:
- Aqui não. Lá fora.
Não fosse sua situação de necessidade extrema, Antonino teria ido embora no mesmo instante. A vontade era de dizer algumas verdades para aquela moça de voz áspera e nariz empinado. Todavia, baixou a cabeça e saiu da sala. Encostou-se numa árvore e passou a esperar. Ao cabo de quatro horas ainda estava lá. Como não visse mais ninguém sair, resolveu saber da secretária se tinha chegado sua hora. Nesse preciso instante, ela deixava o prédio. Antonino indagou:
- O Dr. Vinícius vai me atender agora?
- O doutor saiu para almoçar. Não está vendo que estou fechando o consultório?
- Sim, mas a senhora me disse que...
- Sei o que eu disse. Que o senhor teria de esperar. Infelizmente, Dr. Vinícius é um médico muito ocupado e os clientes vêm com hora marcada. Volte mais tarde.
- A que horas o doutor retorna?
- Às quinze horas.
Antonino agradeceu e a moça afastou-se, pisando duro. Encostado na árvore, mal podendo se suster em pé, ele pensava o que fazer. Voltar para casa era impraticável. Morava muito longe e não tinha dinheiro para pagar uma passagem de ônibus. Para ir andando, levaria tanto tempo que, quando lá chegasse, estaria na hora de voltar. Além disso, ele se sentia extremamente fraco. Tomara apenas uma caneca de chá pela manhã, antes de sair. Já passava das treze horas e estava faminto. O estômago dava voltas e as pernas tremiam. Engolindo o amor-próprio, resolveu bater em alguma casa e pedir um prato de comida. Muniu-se de coragem e andou por uma rua lateral, mais tranqüila, onde tinha avistado muitas residências ricas. Tocou a campainha daquela que lhe pareceu mais simpática. Logo uma criada veio atender. Humildemente, explicou que estava com fome e pediu um prato de comida. A mulher olhou-o com desconfiança e disse:
- Você não acha que ainda é bastante forte para trabalhar? Toma vergonha! Não tem comida não! Fora, vagabundo!
Com o rosto corado de vergonha e humilhação, Antonino afastou-se, os olhos úmidos de pranto. Enxugou as lágrimas e prosseguiu. Quem sabe, na outra casa, seriam mais generosos? Bateu na próxima, na outra, e na outra. Em todas elas foi escorraçado impiedosamente. Sem coragem para novas tentativas, sentou-se na calçada, desanimado. Viviane, que o acompanhara, procurava em vão manter-lhe o bom ânimo e a esperança, ao mesmo tempo em que tentava abrandar o coração das pessoas que o atendiam. Mas tudo em vão. Não havia ninguém que estivesse com as antenas psíquicas ligadas e que pudesse ouvi-la.
- Está com fome? - perguntou uma voz suave.
Só então Antonino notou um velhinho acomodado na calçada, perto dele. Sem disposição para falar, acenou afirmativamente com a cabeça. O ancião deu uma risadinha e estendeu o braço:
- Logo vi. Sei bem o que é passar fome. Mas comigo agora é mais fácil. As pessoas sentem pena de um velho andarilho como eu. Tome. Só tenho este pedaço de pão duro. Se quiser...
Viviane abraçou o velhinho e beijou-lhe o rosto enrugado, envolvendo-o em vibrações carinhosas, cheia de gratidão. Antonino aceitou o oferecimento, pegando com as duas mãos.
- Agradeço-lhe, amigo, é mais do que tive em casa hoje para comer.
Comeu com satisfação. Aquele pedaço de pão tinha caído do céu. O seu benfeitor abriu uma sacola que colocara ao lado e ofereceu, tirando uma garrafa:
- Aceita um gole de cachaça?
O pai de Marilda teve vontade de aceitar. Porém, recusou delicadamente:
- Não, obrigado, amigo. Estou procurando emprego.
- Ah!... E tem esperança de encontrar?
- Muita. Um doutor pediu que viesse falar com ele, mas vou ter que esperar.
- Desejo-lhe boa sorte - disse o velho à guisa de despedida.
Levantou-se, jogou a sacola no ombro e foi embora com passos trôpegos. Antonino acompanhou sua figura até desaparecer na esquina. Seu coração estava cheio de gratidão. Junto de um miserável, em pior condição do que a sua, fora encontrar ajuda, quando ninguém com dinheiro quis socorrê-lo. E nem ao menos perguntara seu nome... Mais refeito, caminhou até uma praça procurando água. Estava com sede. Depois de saciá-la, voltou ao consultório médico. A secretária retornou também, abriu a porta e os clientes começaram a chegar. Não viu o doutor entrar.
- O Dr. Vinícius ainda não veio? - perguntou à moça.
- Já. Está consultando.
Surpreso, Antonino exclamou:
- Mas estou aí fora faz tempo e não o vi!
- É que ele entra com o carro pelo estacionamento ao lado - explicou ela.
- Ah!...
Só então Antonino compreendeu que ficara olhando a porta e por isso não viu o médico chegar. No término do dia, após muito esperar, finalmente a secretária chamou Antonino. O doutor ia atendê-lo. Quando o pobre homem entrou na sala, fresca e agradável, o médico perguntou-lhe:
- Como é mesmo o seu nome?
- Antonino Morgado, um seu criado.
- O que deseja?
- Bem, doutor, o senhor entregou este cartão para minha filha e deixou recado para eu vir procurá-lo ... Então, aqui estou.
Somente aí lembrando-se do caso, o médico desculpou-se:
- Que cabeça a minha! Sabe como é, hoje tive um dia cheio. Esperou muito tempo, Antonino?
- Um pouquinho, mas não tem importância - disse sorrindo.
- Ótimo. Escute, estou precisando de um guarda-noturno para a minha casa. O empregado que fazia esse trabalho saiu. Caso aceite, o serviço é seu.
Radiante, Antonino esqueceu todas as horas de espera, o sofrimento, a humilhação. Teve vontade de se ajoelhar aos pés do médico. Em vez disso, contendo-se, respondeu satisfeito:
- Aceito, sim, doutor. Esse emprego veio na hora certa. Quando começo?
Depois de acertarem os detalhes, Antonino pegou o endereço da residência do médico e agradeceu ainda uma vez. Antes de ele sair, Vinícius pensou um pouco e, acatando sugestão de Viviane, tirou um maço de notas do bolso e deu ao novo empregado:
- Isto é um adiantamento para suas primeiras despesas. Sei que esteve desempregado alguns meses e precisará comprar algumas coisas, até umas peças de roupa. O uniforme será fornecido por mim.
Antonino estava em estado de graça. Não via a hora de chegar em casa e contar aos familiares a grande novidade. Passou num supermercado, fez uma compra e voltou carregado de pacotes. A alegria e a esperança tomaram conta de Alzira, que chorou de contentamento. Marilda aproveitou o momento para dizer:
- Devemos agradecer a Deus as bênçãos recebidas neste dia. Sinto que grandes mudanças estão ocorrendo. Neste livro que Dona Benedita me emprestou está a resposta para todos os nossos problemas e questionamentos.
Assim, naquela noite, antes do jantar, que para eles foi um verdadeiro banquete, oraram juntos, elevando o pensamento a Jesus e agradecendo as bênçãos recebidas. Para que José Domingos pudesse participar, fizeram a prece no quarto dele. Marilda leu um trecho do livro, que espalhou consolação e paz entre os participantes, com grande aproveitamento de Alzira e Antonino. Dessa forma, mesmo sem o saberem, haviam inaugurado o Culto do Evangelho no Lar naquela morada singela. Emanações de luz vertiam do Alto, envolvendo toda a casa e seus moradores. Na Espiritualidade, todos estávamos comovidos, especialmente Viviane, que trabalhava com afinco, colocando disposição e esforço em benefício daquele lar.

15 - NOVOS CONHECIMENTOS

Um sopro de esperança bafejava os moradores daquela casinha singela de periferia. Com o chefe da família trabalhando, aos poucos as coisas iriam entrar nos eixos e a miséria seria grande-mente atenuada. A par disso, o médico passou a interessar-se cada vez mais por José Domingos, por quem sentia estranha atração. Ao mesmo tempo, as leituras do Evangelho propiciavam à família nova maneira de pensar, incutindo em suas mentes idéias diferentes e renovadoras. Certa noite, ao chegar ao lar dos Morgados para uma visita ligeira, o médico percebeu, na mesinha de cabeceira de José Domingos, um livro. Interessou-se por ele. Tomou-o nas mãos e leu o título:
- O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec! Interessante! Nunca li nada sobre Espiritismo. Vocês são espíritas? - indagou, curioso.
Marilda sorriu e meneou a cabeça:
- Não somos praticantes do Espiritismo. Tal como o senhor, até alguém nos emprestar este livro, ignorávamos completamente o assunto. Contudo, as leituras desses textos nos têm feito grande bem.
Fez uma pausa, pensou por alguns segundos e depois sugeriu:
- Quando o senhor chegou, íamos começar a leitura. Se tiver algum tempo disponível e quiser participar, nos dará imenso prazer sua companhia, Dr. Vinícius.
Sentindo-se envolvido pelo ambiente, o médico aceitou a sugestão de Marilda.
- Excelente idéia, Marilda. Talvez seja a minha oportunidade de também obter as informações que me faltam sobre essa doutrina. Ficarei. Obrigado.
Ele sentou-se e a mocinha, de forma singela, depositou o livro nas mãos dele.
- Abra ao acaso, doutor. Veremos o que Jesus tem para nos dizer nesta noite.
Sem motivo aparente, Vinícius sentia-se tocado nas fibras mais profundas. Com unção, abriu o livro na página que assinalava a lição Retribuir o mal com o bem, do Capítulo 12º. Aprendestes que foi dito. Amareis o vosso próximo e odiareis os vossos inimigos. Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e caluniam, afim de serdes filhos do vosso Pai que está nos céus e que faz se levante o Sol para os bons e para os maus e que chova sobre os justos e os injustos. - Porque, se só amardes os que vos amam, qual será a vossa recompensa? Não procedem assim também os publicanos? Se apenas os vossos irmãos saudardes, que é o que com isso fazeis mais do que os outros? Não fazem outro tanto os pagãos?1 Enquanto ia lendo aqueles ensinamentos que Jesus disseminara há quase dois mil anos, Vinícius deixava que a mente funcionasse livremente. Nunca fora dado a leituras da Bíblia e assim desconhecia por completo esse texto. Parecia-lhe estar penetrando num outro mundo. Continuou lendo. Chegando aos comentários do codificador, ficou surpreso com a grandeza e a lógica dos conceitos emitidos. Prosseguia ele:
- Amar os inimigos é, para o incrédulo, um contra-senso. Aquele para quem a vida presente é tudo, vê no seu inimigo um ser nocivo, que lhe perturba o repouso e do qual unicamente a morte, pensa ele, o pode livrar...
Quando terminou o trecho, viu a lição subseqüente, Os inimigos desencarnados, e se encheu de curiosidade. Contudo, Marilda disse-lhe que era suficiente o que fora lido.
- Temos aí um farto material para meditar - disse ela.
- Sem dúvida - concordou o médico -, estou impressionado com as explicações dadas ao tema. Confesso que desconhecia esses ensinamentos de Jesus e agora, com os comentários do autor do livro, eles adquiriram uma amplitude maior para mim.
Enquanto Vinícius e Marilda conversavam fraternalmente, visto que Alzira pouco falava, o enfermo mantinha os olhos fixos no médico. Aquela lição parecia endereçada especialmente a ele, José, que tanto tinha odiado. Ali presentes, percebíamos o que o doente estava pensando. Agora já não sentia tanto rancor pelo médico. As visitas do doutor tinham tido o condão de amansá-lo. Não mais demonstrava revolta ao vê-lo. Ao contrário, com a convivência, experimentava até um certo prazer, reconhecendo-se importante e valorizado. As atenções do médico faziam-lhe muito bem. Nesse momento, Marilda encerrava a pequena reunião com uma prece:
- Senhor Jesus, Mestre querido, nós te agradecemos por esses momentos de paz que nos concedeste através da leitura do teu Evangelho. Possamos aprender tuas lições, tornando-nos cristãos dignos e fiéis cumpridores das nossas obrigações. Abençoa meu pai, que está trabalhando, assim como toda a família do Dr. Vinícius e a nós que aqui estamos, especialmente o José Domingos. Amém.
O médico estava deveras emocionado. A prece de Marilda, feita de forma simples e despojada, reflexo da sua alma, transformara o ambiente, inundando-o de luz. Vinícius despediu-se, agradecido. Experimentava uma sensação de tranqüilidade e de bem-estar que há muito não sentia. Antes de retornar para casa, passou num shopping e, numa grande livraria, comprou dois exemplares de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Um seria seu. Estava ansioso para lê-lo. O outro daria a Marilda, que tomara emprestado de alguém o exemplar utilizado na reunião. Nós o acompanhamos. Chegando em casa, logo viu Antonino, que fazia a ronda, e acenou-lhe amigavelmente. Entrou. A esposa, Helena, o esperava para o jantar; beijou os filhos, Patrícia e Guilherme, de sete e oito anos, e sentaram-se à mesa de refeições. As crianças puseram-se a narrar as peripécias do dia. Vinícius, que geralmente chegava cansado e de mau humor, sem paciência para aturar a tagarelice dos filhos, mostrava-se sereno e com excelente disposição, o que a esposa estranhou.
- Você está bem hoje!
- É verdade. Tive um dia puxado, mas, por incrível que pareça, estou ótimo.
- Aconteceu alguma coisa diferente? Você demorou hoje!
- Não. Tudo igual. Fui visitar um paciente na periferia, por isso cheguei tarde.
Vinícius preferiu não contar toda a verdade por enquanto. Helena, tal como ele, nunca se interessara por religião, e ele desejava pesquisar um pouco mais, ter mais tempo para refletir sobre o assunto antes de contar a ela. Brincou um pouco com os filhos, conversou ligeiramente com a esposa e, quando ela o avisou de que ia se recolher após colocar as crianças na cama, ele disse:
- Ficarei mais algum tempo aqui. Tenho um novo livro para ler. Durma bem, querida.
Depois que Helena saiu, Vinícius abriu o livro. Estava ansioso para continuar a leitura. Voltando ao Capítulo 12º, subtítulo Os inimigos desencarnados, leu: Ainda outros motivos tem o espírita para ser indulgente com os seus inimigos. Sabe ele, primeiramente, que a maldade não é um estado permanente dos homens; que ela decorre de uma imperfeição temporária e que, assim como a criança se corrige dos seus defeitos, o homem mau reconhecerá um dia os seus erros e se tornará bom. Sabe também que a morte apenas o livra da presença material do seu inimigo, pois que este o pode perseguir com o seu ódio, mesmo depois de haver deixado a Terra; que, assim, a vingança, que tome, falha ao seu objetivo, visto que, ao contrário, tem por efeito produzir maior irritação, capaz de passar de uma existência a outra...1 Outra vez essa idéia de continuidade da vida após a morte, inclusive sugerindo a reencarnação, ou teoria das vidas sucessivas. Teria nisso algum fundo de verdade? Jamais acreditara nessas idéias, mas agora, lembrando-se dos sonhos que tivera, começava a ter suas dúvidas. Terminando essa lição, folheou novamente ao acaso e caiu justo na página Ressurreição e reencarnação.2 Ficou surpreso com o acaso e mergulhou na leitura de todo esse Capítulo. Novas idéias surgiam em sua mente, fazendo-o raciocinar com lógica e bom senso. Desse Capítulo passou a outro e a outro. Não conseguia parar de ler. Sua fome de informações era tão grande que não percebeu as horas passarem. Quando deu por si, estava amanhecendo. Esfregou os olhos, satisfeito. Novas concepções lhe felicitavam o Espírito sobre Deus, a vida, a prece, a caridade, a reencarnação, a lei de causa e efeito... Estava pensando seriamente em telefonar ao Orlando, espírita convicto, e buscar mais informações. Não podíamos deixar passar essa oportunidade. Assim, continuamos a seu lado por mais algumas horas. Recolheu-se ao leito e dormiu placidamente, como há muito não acontecia. Acordou tarde. Levantou-se com excelente disposição e ânimo. Sentia-se renovado. No consultório, num intervalo entre uma consulta e outra, ligou para o colega Orlando e combinou de ir ao centro espírita com ele, logo mais à noite.
- Aconteceu alguma coisa? - perguntou o amigo, surpreso.
- Não. Você não disse que preciso tomar uns passes?
- Disse, mas você nunca aceitou! Estou estranhando...
- Fique tranqüilo. Mais tarde conversaremos.
Desligou o telefone e continuou trabalhando, enquanto esperava ansiosamente o dia passar. Queria conhecer o tal do centro espírita.

1 - Mateus, Capítulo 5º, versículos 43 a 47.
2 - "Ninguém poderá ver o reino de Deus se não nascer de novo", Capítulo 4º de "O Evangelho Segundo o Espiritismo".

16 - NO CENTRO ESPÍRITA

Após o jantar, Orlando passou na residência do amigo. Vinícius teve o cuidado de prevenir a esposa de que iriam a uma reunião àquela noite, o que não deixava de ser verdade. Só não disse onde. Assim, ao despedir-se dos filhos e da esposa, avisou:
- Não me espere, querida. Não sei a que horas vou chegar.
Orlando colocou o carro em movimento e, enquanto faziam o trajeto, observava disfarçadamente o colega. Tinha vontade de crivá-lo de perguntas, mas, como Vinícius se mantivesse calado, respeitou-lhe o silêncio. Adriana e eu seguimos juntos, aboletados no veículo. Não demorou muito o carro parou defronte de uma construção singela onde se lia o nome do centro espírita. Entraram. O salão, pequeno, com capacidade para uma centena de pessoas, encontrava-se praticamente lotado. Todos mantinham-se em respeitoso silêncio. Na frente, uma mesa coberta com toalha branca; sobre ela, apenas um vaso de flores, alguns livros, uma jarra com água pura e um copo. Atrás da mesa, na parede do fundo, uma frase: Fora da caridade não há salvação. Música suave impregnava o ambiente de paz, convidando à meditação. Vinícius sentia-se emocionado. No recinto, uma grande quantidade de espíritos necessitados de socorro e de assistência também aguardavam o início das atividades, conduzidos por servidores do nosso plano, que procuravam manter a disciplina e a tranqüilidade entre os mais impacientes. A nossa visão espiritual, inúmeros trabalhadores do bem, responsáveis pela Casa e pelos trabalhos, faziam-se visíveis. No horário aprazado, teve início a reunião. Um senhor de cabelos grisalhos aproximou-se da mesa e convidou os presentes a elevar o pensamento em oração. Nesse momento, vimos uma entidade de nobre condição espiritual acercar-se dele e envolvêl-o em vibrações dulcificantes. Ela ergueu a fronte e orou junto, transmitindo-lhe belos pensamentos. Após a oração, o dirigente encarnado abriu um exemplar de O Evangelho Segundo o Espiritismo, ainda auxiliado pelo amigo espiritual, e leu a lição, Ajuda-te a ti mesmo, que o céu te ajudará. Pedi e se vos dará; buscai e achareis; batei à porta e se vos abrirá; porquanto, quem pede recebe e quem procura acha e, àquele que bata à porta, abrir-se-á. Qual o homem, dentre vós, que dá uma pedra ao filho que lhe pede pão? - Ou, se pedir um peixe, dar-lhe-á uma serpente? - Ora, se, sendo maus como sois, sabeis dar boas coisas aos vossos filhos, não é lógico que, com mais forte razão, vosso Pai que está nos céus dê os bens verdadeiros aos que lhos pedirem?1 Após a leitura, o dirigente fez uma pausa, pareceu concentrar-se durante alguns segundos e começou a falar, explanando o tema. A primeira vista, percebia-se que era pessoa simples, de pouca cultura, porém de coração bom e generoso. Seus comentários, feitos de forma singela e agradável, atingiam o público presente, criando um elo de simpatia entre o orador e a platéia. Apesar da simplicidade da forma, que facilitava o entendimento, Vinícius notou que os conceitos emitidos tinham grande conteúdo e dilatavam sua visão, abrangendo pontos de vista diferentes que ele não tinha percebido. Encerrada a preleção, seu juízo sobre o palestrante tinha melhorado muito, e sua admiração também. Olhou para Orlando, que o fitava com uma expressão de quem diz "não falei que você ia gostar"? Mas não pôde dizer nada, porque nesse instante iniciava-se o trabalho de passes. A luz foi reduzida e a música voltou a inundar o ambiente. Vinícius notou que algumas pessoas se levantaram e, pondo-se em posição, iniciaram o trabalho. Um pouco tenso, agitou-se na cadeira. Percebendo sua preocupação, Orlando informou em voz baixa:
- Fique tranqüilo. O passe é apenas uma transmissão de energias.
Nesse momento, uma moça aproximou-se dele e estendeu as mãos sobre sua cabeça. Vinícius fechou os olhos, procurando manter-se sereno. Sentiu branda sensação de bem-estar, acompanhada de leve aragem, enquanto suave arrepio percorreu todo o seu corpo. Estava em paz consigo mesmo e com o mundo. Naquela hora, seus problemas tinham desaparecido. Quando a reunião terminou e as luzes voltaram ao normal, ele estava maravilhado. Orlando sorria, dizendo:
- E daí, o que achou?
- Gostei muito. Então. Espiritismo é isso? Nunca imaginei!
O colega deu uma risadinha, afirmando:
- É. Eu sei o que você imaginava. Como muita gente, faz confusão entre Espiritismo e seitas africanas, cujo sincretismo se acha impregnado na cultura do povo brasileiro; merecem o nosso maior respeito, mas nada têm a ver com nossa doutrina.
Um pouco constrangido, Vinícius concordou:
- Tem razão. Reconheço minha ignorância, amigo Orlando, e vou nomeá-lo meu instrutor para assuntos transcendentais.
- Com o máximo prazer, Vinícius. Então, para começar, vamos até a livraria. Você precisa ler alguns livros, indispensáveis para quem quer entender melhor a Doutrina Espírita.
Assim conversando, procuraram abrir caminho entre as pessoas que se Levantavam para sair e se dirigiram à sala onde funcionava a livraria. Muitos freqüentadores formavam grupos em que comentavam o tema da noite, ou simplesmente confraternizavam, mostrando amizade antiga. Outros, ainda, esperavam para falar com o senhor Fortunato, o palestrante da noite, para pedir-lhe orientações. Nesse momento, Vinícius vê, no fundo do salão, em meio ao povo, uma senhora acompanhada de uma mocinha. Satisfeito e sorridente, dirige-se para junto delas, abrindo caminho entre as pessoas.
- Marilda! Mas que prazer encontrá-la aqui hoje! Não sabia que freqüentava um centro espírita.
Eu e Adriana sorrimos. Ao lado delas estavam os outros membros do nosso grupo: Viviane, Alberto e Henrique. Trocamos um abraço, sem deixar de acompanhar o diálogo que se desenrolava entre os encarnados.
- Como vai, Dr. Vinícius? É a primeira vez que venho a esta Casa. Dona Benedita, que aqui está, convidou-me e, muito feliz, aceitei a oportunidade. Confesso-lhe que não me arrependi. Gostei muito. Desculpe-me, não lhe apresentei minha amiga. Dona Benedita, este é o Dr. Vinícius, de quem tenho lhe falado tanto.
Cumprimentaram-se e Vinícius apresentou a ambas o colega Orlando. Após os cumprimentos, dirigiram-Se à livraria, ali perto. Orlando pegou um exemplar de O Livro dos Espíritos, mostrando-o a Vinícius:
- Esta obra contém a síntese de todo o ensinamento dos Espíritos. Sua leitura é fundamental.
Vinícius folheou-O e depois comprou dois exemplares, entregando um para Marilda. Ela estava corada de prazer.
- Muito agradecida, Dr. Vinícius. Fico feliz em ganhar este livro, mas será que vou entender alguma coisa? Freqüentei tão pouco a escola!
- Não se aflija, Marilda. Este é um assunto novo para mim também. Já contratei Orlando para orientar-me e, certamente, ele não se negará a fazer o mesmo com você. O que acha?
Antes que ela pudesse dizer alguma coisa, Orlando antecipou-se:
- Marilda, terei imenso prazer se pudermos estudar juntos. É só marcarmos dia e horário, que estou à disposição de ambos.
Dona Benedita não quis ficar de fora:
- Se me aceitarem, também desejo participar. Sou espírita há muitos anos, mas confesso que tenho grande dificuldade de entender, quando leio sozinha.
- Então está combinado! Faremos um grupo de estudos! - afirmou Vinícius, demonstrando imensa satisfação.
Nós estávamos comovidos. Tudo caminhava bem e as sementes estavam germinando. Alegremente nossos amigos deixaram o Centro. Orlando prontificou-se a levar Dona Benedita e Marilda para casa. Após deixá-las em suas residências, convidou o amigo para comerem uma pizza. Assim, teriam ocasião de conversar melhor. Entraram na pizzaria, que, naquele dia da semana, estava praticamente vazia. Sentaram-se e fizeram os pedidos. Quando o garçom se afastou, Orlando cruzou os braços sobre a mesa e disse:
- Bem, agora estamos sozinhos e podemos conversar sem ser interrompidos. O que está acontecendo?
Vinícius fitou o amigo e disse:
- É uma longa história, Orlando.
- Gosto de histórias. Além disso, temos bastante tempo. Você disse à Helena que não o esperasse, e eu, como sou solteiro e moro sozinho, não tenho que dar satisfações a ninguém. Portanto...
- Tem razão. De qualquer forma, estou mesmo precisando desabafar. Lembra-se daqueles sonhos que eu lhe contei?
- Certamente. Recordo-me que eles sempre o incomodaram muito.
- Pois bem. A mocinha que você conheceu hoje é irmã do rapaz que eu via em sonhos.
- Não é possível!
- Verdade. Vou lhe contar como tudo aconteceu. Certo dia, tive vontade de visitar um ex-paciente e...
Assim, Vinícius contou ao amigo tudo o que tinha ocorrido desde aquele dia. Suas visitas posteriores ao enfermo, a leitura do Evangelho, que tanto bem lhe fez, a compra do livro e o interesse de saber mais sobre o Espiritismo.
- Aí tem você os motivos que me levaram a mudar de idéia e a desejar ir ao Centro nesta noite.
- Ora, vejam só! - disse Orlando. - E você me escondendo tudo isso!
- Sabe como sou racional, meu amigo, e como penso em termos científicos.
Sempre achei que religião não combinava com ciência. Eram pontos extremos e divergentes. Assim, precisava encontrar bases para poder me agarrar. E isso fui encontrar na filosofia espírita.
- Ah! Meu amigo! Então, agora está pronto para se encontrar com a ciência espírita. Nunca pude lhe dizer nada porque você nem permitia que se falasse no assunto!
Vinícius concordou, sorrindo:
- É verdade. Sempre fui muito preconceituoso.
- E isso, por si só, denota pensamento anticientífico.
- Certamente. Quantas vezes até ri dessas idéias que hoje tento estudar. Sem pensar que rir daquilo que a gente não conhece nem entende é ignorância.
- Está fazendo progressos, colega!
Nesse momento, o garçom retornou trazendo a pizza pedida. O aroma estava delicioso e, com prazer, puseram-se a comê-la. Entre uma garfada e outra, Vinícius considerou:
- Uma coisa, no entanto, me incomoda, Orlando. Quando vou à casa dos Morgados, sinto um misto de atração e de repulsão por José Domingos. Há momentos em que me aproximo dele com sincero desejo de ajudar; a situação do rapaz me causa profunda compaixão e, realmente, gostaria de algo fazer por ele. Mas, em outros momentos, quando ele me olha daquele jeito, como se soubesse o que estou pensando, sinto aversão por ele, raiva... Até medo!
- Medo?...
- É!... Como se ele pudesse me fazer mal, entende? Depois, caio em mim e percebo o absurdo da situação. Ele é um jovem com paralisia cerebral, seu problema é irreversível e está preso a um leito, enquanto eu sou forte, tenho todos os movimentos e mente lúcida. Aí, tento me controlar, dominar o pânico e olhá-lo de forma racional. Não é realmente um absurdo? Há horas em que acho que estou ficando louco!
Orlando tranqüilizou-o:
- Não se preocupe, Vinícius. Você não está ficando louco. É compreensível, de certa forma, o que está sentindo.
- Como assim?
- Se olharmos pela ótica da reencarnação, poderemos compreender o que está acontecendo com você e com ele também. Provavelmente, ele o prejudicou numa outra existência, o que o leva a ter medo dele. O estado atual de José Domingos demonstra que é um Espírito em expiação.
- Entendo. Ele está pagando hoje o que fez outrora.
- Mais ou menos isso. Prefiro dizer que Deus, em sua infinita misericórdia, se utiliza de um processo educativo concedendo a ele meios de se reabilitar perante sua própria consciência.
- Interessante... É lógico. Mas, porque ele me acusava, em sonhos, de desejar destruí-lo?
- Não podemos saber com certeza. Mas, pense bem. Suponhamos que José Domingos, em outra época, o tenha destruído. Não é natural que, encontrando-o agora, suponha que você o odeie e queira se vingar dele, desejando-lhe também o mal? E se, na atualidade, você tem oportunidade de ajudá-lo como médico, ministrando-lhe cuidados e zelando pela sua saúde, significa que você também tem sua parcela de culpa. Não raro, nesses casos, adversários se digladiam através do tempo, alternando-se as posições, em que os implicados ora são agressores ora vítimas, dependendo das circunstâncias e das possibilidades do momento. Tudo é muito complexo...
Pensativo, Vinícius meditava sobre as considerações de Orlando. Sim, tudo tinha muita lógica. Teria que refletir sobre isso. Já era tarde. Saíram do restaurante, cada qual entregue a seus próprios pensamentos. No dia seguinte, marcaram o estudo. Todas as segundas-feiras, às dezenove horas - antes de voltarem para casa -, se reuniriam na residência de Marilda.

1 - Mateus, Capítulo 7º, versículos 7 a 11, constante do Capítulo 25º, item 1. de "O Evangelho Segundo o Espiritismo".

17 - O TRABALHO PROSSEGUE

Alguns dias depois, reunidos, conversávamos sobre os progressos do Caso Morgado. Demonstrávamos nossa alegria em ver que tudo estava transcorrendo da melhor maneira possível, os fatos se encaixando e criando condições novas, propiciadoras de esperança de dias melhores no futuro. Viviane, que retornara das suas atividades na casa dos Morgados e participava da nossa reunião, mostrava seu júbilo:
- É um prazer ver nossos amigos reunidos para o estudo da obra básica da codificação kardequiana. Sob a orientação de Orlando, todos manifestam grande interesse. Até José Domingos!
Henrique sorriu, concordando:
- Sem dúvida, O estudo será de grande utilidade para eles, visto que, com o conhecimento da Doutrina Espírita, terão a visão ampliada e esclarecida, ficando mais fortalecidos perante as atribulações da vida e cientes do que lhes compete realizar em beneficio do próprio progresso.
- Tenho uma dúvida, Henrique. Até quando iremos acompanhá-los com nossos cuidados? - indagou Adriana.
- Enquanto for necessário. No momento, precisam de acompanhamento, para sedimentarem as novas disposições de crescimento interior. São plantas frágeis que carecem de cuidados para um saudável desenvolvimento. Como temos outras atividades a desenvolver, serão designados servidores do nosso plano para fazer esse acompanhamento no dia-a-dia. Caso surja algum imprevisto, seremos avisados. Todavia, não podemos perder de vista que a nossa ação, como não ignoram, deve respeitar o livre-arbítrio de cada um. A linha divisória que separa a sugestão que emitimos da ação que empreendemos é, em muitos casos, bastante tênue. A despeito do nosso desejo de fazer o melhor, não podemos decidir por nossos irmãos encarnados.
Viviane sorriu, um tanto constrangida:
- Embora não nos falte vontade, Henrique. No meu caso, não raro tenho que me controlar. Como desencarnados, possuímos uma visão mais ampla e diferenciada das situações e dos fatos, o que os encarnados não têm. Muitas vezes, vemos que estão agindo errado, tentamos ajudar, mas nem sempre nos ouvem. Como fazer?
- Se utilizamos todos os recursos à nossa disposição, sem resultado, deixá-los bater a cabeça é a única opção. Só nos resta respeitar seus desejos - afirmou o orientador. - Todas as experiências são válidas. Para exercitar o aprendizado, se candidataram a retornar à Terra em novo corpo. O esquecimento do passado facilita-lhes o reequilíbrio diante dos novos compromissos assumidos. As vivências anteriores e os conhecimentos acumulados servirão de base, surgindo-lhes em forma de intuição e esclarecendo-lhes como agir em face dessa ou daquela situação. Se tomarem a decisão errada, sofrerão as conseqüências; se tomarem a decisão correta, um bem-estar íntimo lhes advirá, pela paz da consciência resultante do dever cumprido. Lutas e vitórias fazem parte do trajeto que nos conduzirá à perfeição. O caminho, porém, é escolha nossa.
Henrique fez uma pausa, que não tivemos a coragem de quebrar, imersos em nossos pensamentos. Retomando a palavra, o instrutor considerou:
- O caso Morgado caminha de forma satisfatória. Assim, iniciaremos o trabalho com outro grupo. Amanhã, no mesmo horário, estejam aqui. Partiremos para a Crosta.
Depois da prece de encerramento das nossas atividades, nos despedimos. Estávamos ansiosos para saber o que nos reservava o dia seguinte. No horário de sempre nos reunimos. Outra equipe sairia na mesma hora; desse modo, nos fariam companhia. Após as orações de costume nessas ocasiões, quando suplicávamos o amparo divino para nossas tarefas, partimos. Ao chegar nas proximidades de uma grande cidade brasileira, nos separamos. O outro grupo permaneceria ali, na região metropolitana, mas nós tomaríamos rumo diferente, segundo informou Henrique. Aproveitando a brisa ligeira que tocava nossa pele, produzindo agradável sensação, volitávamos, observando as paisagens que se desdobravam aos nossos olhos. Matas verdejantes, cortadas por estradas que serpenteavam como cicatrizes no solo. Rios, cujas águas refletiam a luz do sol em cambiantes matizes do arco-íris. Casarios singelos surgiam à nossa frente, vez por outra, em meio às imensas pastagens pontilhadas de animais. As lavouras, como um tapete verde, se estendiam sobre o solo, colorindo a paisagem, na qual se incluíam trabalhadores, homens e mulheres de humílima condição, que cuidavam da terra. Reverente, elevei o pensamento ao Criador, agradecido por todas as belezas que seu coração amoroso ofertara ao homem, por divina oportunidade de trabalho e redenção, mas que este não valorizava devidamente. Nesse instante, Henrique indicou um ponto ao longe:
- Vejam. Estamos chegando.
Fixei os olhos naquela direção. À distância, vi uma cidade pequena encravada entre dois morros. Uma parte do casario se equilibrava nas alturas, enquanto outra se conservava no sopé dos montes, escondida nas sombras, visto que os raios de sol ali não incidiam àquela hora do dia. Um pequeno rio de águas cristalinas banhava a cidade. De longe, a paisagem assemelhava-se a um cartão postal, desses que a gente compra nos pontos turísticos. Caminhamos pelas ruas como qualquer mortal, para observarmos melhor. As pessoas, alegres e descontraídas, sorriam umas para as outras, trocando saudações. Crianças brincavam em grupos, batendo bola, jogando amarelinha ou, simplesmente, conversando. Descendo a montanha, vimos pacatos habitantes a pescar, sentados na antiga ponte de madeira sobre o rio. Paramos defronte de uma casa singela e florida, numa estreita rua na fralda do monte.
- Chegamos ao nosso destino. Entremos.
Na sala, despida de quaisquer atavios, vimos um casal idoso. Ele, magro e encurvado, feições angulosas e cabelos grisalhos, achava-se sentado numa cadeira de balanço. Lia um jornal. Ela, baixinha e gorducha, pele clara e rosada, cabelos louros presos na nuca, parecia essas pessoas que estão sempre sorrindo, de bem com o mundo.
- Meu velho, Júlio ainda não chegou? Estou preocupada. Está anoitecendo e nosso neto não costuma demorar tanto.
Desviando os olhos da página que estava lendo, ele tirou os óculos e sugeriu:
- Talvez tenha algum trabalho de escola para fazer e se atrasou.
- Não o nosso Júlio, certamente. É muito responsável. Teria avisado.
- Ora, mulher, como poderia nos avisar se nosso telefone tem estado com problemas?
- Sempre encontraria um jeito!
- Não se aflija. Neste lugar nada de mal pode acontecer a ele. Temos que levantar as mãos para o Alto. Veja! Li no jornal que aconteceu um crime bárbaro numa localidade não muito distante daqui. Dois rapazes alcoolizados atacaram duas adolescentes que saíam da escola ao meio-dia. Levaram-nas para um matagal nas imediações da cidade e, após abusarem da inocência delas, as torturaram e, em seguida, as mataram com requintes de crueldade.
- Que coisa horrível, Genésio! Isso é o fim do mundo! As pessoas se esqueceram de Deus e o resultado aí está! - considerou a mulher, parando de mexer a panela e agitando no ar a colher de pau, indignada.
- Pois é! Felizmente essas coisas não acontecem aqui na nossa pacata cidadezinha. Mas, e nossa filha, como estará? Sujeita a toda sorte de perigos na cidade grande...
Com uma das mãos, a boa mulher afastou da testa um cacho de cabelos, enquanto com a outra levava a ponta do avental no canto do olho, enxugando uma lágrima. Seu coração vivia sempre apertado de angústia. Havia anos que não tinham notícias da filha. Mudara-se, não deixara endereço e nunca mais os procurara. Muitas vezes chorava à noite, bem baixinho, para que o marido não percebesse. Nesse instante, ouve um ruído de passos que se aproximam e o portão que se abre com um rangido. Em poucos segundos, um garoto entra na casa. O coração da velha senhora exulta. Esse neto é o sol, a luz da sua vida. Sorriu para ele, dizendo:
- Júlio, lave as mãos e venha, O jantar está pronto.
O menino, um saudável e belo garoto de dez anos, não espera a reprimenda e justifica-se:
- Desculpe, vovó Luzia. Atrasei-me hoje. Amanhã teremos prova e um colega pediu-me que fosse até sua casa e lhe ensinasse alguns problemas de matemática. Não pude evitar.
- Não tem importância, meu filho. O que interessa é que você chegou. E bem na hora da nossa refeição!
O avô sorriu, observando como a companheira se derretia pelo neto. Logo mais, estavam sentados em torno da mesa. No centro, um belo prato de polenta; sobre ela, um suculento molho de tomates e carne. Nós nos olhamos e sorrimos. Quem de nós não teria uma lembrança dessas na mente? A família reunida em volta da mesa, os pratos preparados carinhosamente pela mãe. Uma onda de saudade nos inundou o coração. Nesse momento, de cabeça baixa, oravam antes da refeição. Abençoa, Senhor Jesus, nossa casa e todos os nossos familiares. Abençoa também o nosso jantar. Amém. Após essa sintética oração, que, percebemos, nem todos estavam acompanhando mentalmente, eles atacaram a iguaria, que parecia deliciosa. Notamos, porém, que Dona Luzia, com o prato à sua frente, não se resolvia a levar o garfo à boca.
- Coma, vovó, senão esfria. Está uma delícia!
Ouvindo a voz do neto, a velha senhora começou a comer lentamente. Estava sem apetite. Enquanto o garoto tagarelava na mesa, nosso companheiro Alberto estava pensativo.
- Que coisa interessante! Parece que já conheço esse menino. O formato do rosto, os olhos grandes e aveludados, a maneira de falar, a voz... Não sei.
- Quem sabe você o conhece realmente? - arrisquei.
- Impossível, César. Nunca estive nesta região nem conheço essa família. São estranhos para mim. Provavelmente, ele se assemelha a alguém que conheci. Mas, quem?... Eis a questão.
Olhei para o garoto, que se servia pela segunda vez. Tinha cabelos escuros, pele bem clara e grandes olhos castanhos, sombreados de longas pestanas. Sua boca era rosada e tinha sorriso fácil, onde se viam dentes perfeitos. Era um menino simpático e agradável. Terminada a refeição, Júlio fez as tarefas escolares e, após beijar os avós, recolheu-se ao quarto de dormir. Os avós, Genésio e Luzia, permaneceram acordados mais algum tempo. Ele, preso à leitura do jornal. Ela, mergulhada na confecção de uma toalha de crochê, que estava tecendo para vender.

18 - ENCONTRO COM O PASSADO

Acompanhamos o garoto até o quarto. Ele se preparou cuidadosamente para dormir. Após a higiene, colocou o pijama, guardou o uniforme da escola e ajoelhou-se ao lado da cama. De mãos postas, fez uma oração:
- Querido Jesus. Agradeço tudo o que o Senhor tem me dado: um lar, uma família, o amor do vovô Genésio e da vovó Luzia.
Interrompeu por instantes, parecendo meditar, depois prosseguiu:
- Se não for pedir demais, já que tenho recebido tanto, gostaria de ter notícias de minha mãe. O Senhor sabe, só conheço minha mãezinha através de fatos, e sinto muita falta dela. Não desejo parecer ingrato, mas todas as crianças têm mãe, só eu não tenho a minha. Além disso, tenho pena de meus avós; noto que sofrem muito, embora evitem comentar o assunto por minha causa. Não sei quem é meu pai! Então, se pelo menos pudesse ver minha mãe - uma vez que fosse -, ficaria contente e não pediria mais nada. Prometo. Amém.
Comovidos, acompanhávamos a oração do menino. Quando terminou, verificamos que duas entidades tinham chegado e também o observavam. Certamente deveriam ser parentes desencarnados. Tratava-se de um homem e de uma mulher. Ela, beirando os oitenta anos, clara, muito parecida com dona Luzia. Deduzi que deveria ser sua mãe. Ele, bem mais jovem, um senhor de cinqüenta anos presumíveis, pele mais morena e cabelos grisalhos. Pela diferença de idade, por certo não seriam marido e mulher. Henrique, que já os conhecia, nos apresentou a eles:
- Esta é Dona Gema, mãe da dona da casa, nossa conhecida Luzia. E este é Artur, irmão de Genésio.
Trocamos cumprimentos e nos pusemos a conversar com os recém-chegados, risonhos e simpáticos. Artur, nos dando as boas-vindas, considerou:
- Estamos muito satisfeitos por recebê-los aqui nesta casa. Especialmente porque sabemos que vieram em tarefa de auxílio à família. Como puderam perceber, pela prece de nosso querido Júlio, nem tudo caminha bem. Existem pontos que precisam ser analisados, para que possamos ajudá-los com acerto.
- Temos procurado fazer o máximo por eles, mas há algumas limitações - ponderou a senhora Gema com delicadeza.
Particularmente, eu estava surpreso. As duas entidades denotavam excelente condição espiritual. O que estaria tolhendo seus passos no socorro aos familiares encarnados, a ponto de sermos chamados para atender o caso? Corei de vergonha. Notei que Gema, Artur e Henrique se entreolharam e sorriram. Haviam captado meu pensamento. Para evitar novos constrangimentos, nosso orientador explicou:
- Existem certos aspectos deste caso que vocês ignoram e que tomarão conhecimento à medida que as ações forem se desenrolando. Logo perceberão porque nossa presença se faz necessária.
Nessa hora, o menino deitava-se, apagando a luz. Deixamos o quarto. Ali permaneceu apenas Artur, o tio-avô, encarregado de acompanhar o sono do garoto. Dirigimo-nos à sala, onde o marido lia o jornal e a esposa fazia crochê. Luzia, reconhecendo-se cansada pelos afazeres diurnos, também se recolhia, no que foi acompanhada pelo marido. Mantivemos uma discreta distância do quarto do casal, ali só penetrando a idosa entidade, Dona Gema. Após algum tempo, ela franqueou a entrada do quarto. Ambos estavam dormindo. Enquanto aguardávamos, pus-me a observar o aposento. Algumas fotos em porta-retratos, sobre a cômoda, chamaram minha atenção. Ali aparecia, em diversas poses e em épocas diferentes, a mesma pessoa: recém-nascida, na primeira infância, fazendo a primeira comunhão, em idade escolar, adolescente. Era uma mocinha bonita, magra, de pele clara, cabelos pretos e olhos grandes e aveludados, como os de Júlio. Percebi que Alberto se aproximara, também atraído pelas fotos. Eu ia fazer um comentário, quando, olhando de lado, notei que ele estava extremamente pálido.
- Você não está bem, Alberto? - perguntei.
Ele me olhou de forma estranha, parecendo desnorteado, mas não teve tempo de responder. Nesse instante, ouvimos um choro. Era Dona Luzia que, desprendida do corpo, estava sentada no leito, com a cabeça entre as mãos, acusando grande desespero.
- Por que, meu Deus? Por que isso foi acontecer conosco? Onde está nossa filhinha? Onde está nossa querida Lígia? Tenho amargado todos esses anos a dor da separação, tenho sofrido e chorado sem consolo. Quero ver minha filha! Quero ver minha Lígia!
Ela nada percebia do ambiente espiritual à sua volta. Dona Gema, abraçada a ela, tentava tranqüilizá-la:
- Acalme-se, minha filha! Confie em Deus, Luzia! Não se desespere! Aceite o sofrimento por bênção divina. São recursos terapêuticos que o Senhor lhe envia para que você possa superar os erros do passado e aprender com o presente.
Luzia, porém, não escutava as amorosas sugestões da mãezinha desencarnada. Levantando-se bruscamente do leito, saiu apressada a gritar:
- Eu quero ver minha filha! Quero ver minha filha!...
Henrique fez sinal para que a acompanhássemos. Como uma louca, ela se deslocou pelo espaço sem saber para onde ia, em busca da filha. Chegando a uma grande cidade, dirigimo-nos a um bairro de periferia, de péssima freqüência. A vida noturna era intensa. Bares, boates e lupanares proliferavam, sob as luzes de néon. Entramos numa construção de sórdido aspecto. Na frente, um salão na penumbra, onde pares dançavam; garçons transitavam por entre as mesas carregando bandejas repletas de bebidas. Os freqüentadores, já alcoolizados, portavam-se de forma inconveniente. Atravessamos o recinto e, num canto, sozinha numa mesa, deparamos com uma mulher que, àquela hora, estava em estado deplorável. Usava uma peruca loira de cabelos mal tingidos, excessivamente maquilada, cigarro entre os dedos; olhava sem ver. Aliviada e feliz, Luzia abraçou-a com carinho:
- Minha filhinha, afinal a encontrei! Por que fugiu de nós, Lígia? Em nossa casa você tinha tudo, minha filha. Nada lhe faltava.
Não se dava conta do ambiente, atraída apenas pela visão da filha querida. Não percebia sequer os acompanhantes espirituais de Lígia, espíritos vampirizadores da pior espécie. Somente a lei das vibrações explica o fato de ter buscado a filha e de tê-la reconhecido apesar das enormes diferenças. A imagem atual nada fazia lembrar aquela linda adolescente cujo retrato viramos há poucas horas, de rosto limpo e sorriso aberto. A mulher que ali estava, envelhecida pela vida noturna, pelo uso de bebidas e, até onde eu podia notar, de drogas, denotava vulgaridade nas atitudes. Usava cílios postiços e o olhar era pesado de rímel e sombras. A pele, excessivamente pintada para ocultar os vestígios das noites mal dormidas, parecia uma máscara; a boca, recoberta com batom vermelho-escuro, mostrava um ríctus de tristeza e amargura. Nesse instante, um rumor fez com que me virasse. Era Alberto que, caindo sentado numa cadeira, cobriu o rosto com as mãos e se pôs a chorar convulsivamente. Henrique aproximou-se dele, envolvendo-o num abraço carinhoso:
- Meu amigo, acalme-se. Compreendemos o que você está sentindo. É chegada a hora da reparação. Controle-se, para podermos ajudar com acerto.
Gema, a generosa entidade que ali estava, trocou um olhar com Henrique e, como se estivessem colocando em execução um plano programado, envolveram Lígia em emanações dulcificantes, aplicando-lhe energias através do passe. Ao mesmo tempo em que cortavam, provisoriamente, suas ligações com os acompanhantes de baixo nível, afastando-os, procuravam despertar nela o desejo de ficar só. Logo em seguida, vimos que Lígia levantou-se e dirigiu-se ao barman, sussurrando-lhe algo ao ouvido. Depois, encaminhou-se para uma porta, meio escondida por um reposteiro, e atravessou um grande corredor, onde se viam portas dos dois lados. Parando diante de uma delas, virou a chave na fechadura e entrou. Acendeu a luz. Era um quarto simples e despojado. Como mobiliário, apenas uma cama, uma penteadeira com uma banqueta e um armário pequeno. Uma porta levava a um minúsculo banheiro. A moça arrancou a peruca loira, tirou os cílios postiços, a maquilagem e lavou o rosto. Depois, voltando ao quarto, sentou-se no leito. Sentia-se descontente sem saber por quê. Pensamentos estranhos dominavam-lhe a mente. Lembrou-se do passado, da sua cidade natal, da família... A presença da mãe e da avó a enchia de saudade e de boas recordações. Como uma aragem benfazeja, amenizava-lhe o estado atual. Sentiu vontade de chorar. No que se transformara sua vida!...

19 - A HISTÓRIA DE LÍGIA

Recostada no leito, acendeu um cigarro com as mãos trêmulas e, depois, como se estivesse contemplando algo perdido na distância, voltou ao passado. Ainda menina, sonhava em ir para a cidade grande. Os elogios à sua beleza física despertaram nela a vaidade e a ambição. Sonhava ser modelo, como tantas jovens que via na televisão. Almejava sucesso, dinheiro, notoriedade. Não queria, em hipótese alguma, permanecer ali naquela cidadezinha do interior e envelhecer, como o resto da população, sem ter feito nada de interessante. Sem ter vivido. Um belo dia, decidiu-se. Ao participar de um concurso de redação na escola, ganhara uma pequena importância. Embora reconhecesse não ser suficiente, acreditava, na sua ingenuidade, que serviria para começar uma nova vida. Programou tudo cuidadosamente. Certo dia, esperou os pais dormirem e, saindo de casa na calada da noite, tomou o ônibus rumo à cidade grande. Felizmente para ela, a cidadezinha estava deserta. Nenhum conhecido que pudesse frustrar-lhe os planos a viu. Amanheceu num outro mundo. Havia uma multidão, um número de pessoas tão grande na rodoviária, que ficou assustada, sem saber o que fazer, nem que rumo tomar. Sentou-se num banco para pensar. Como não poderia permanecer ali, resolveu enfrentar a situação. Saiu da rodoviária, acompanhando o movimento de pessoas, e, duas quadras adiante, descobriu uma pensão. Entrou e alugou um quarto. As instalações eram muito simples, mas serviam para começar. Comprou um jornal e passou a examinar os classificados. Infelizmente, para os empregos que lhe pareciam mais de acordo com seus ideais, não tinha as qualificações necessárias. Anotou, todavia, os anúncios que considerou mais razoáveis e saiu à luta. Como não conhecesse a cidade, as dificuldades eram enormes. Ao terminar o primeiro dia, depois de muito caminhar, nada tinha conseguido. Voltou exausta para a pensão. Comeu alguma coisa e caiu desmaiada na cama. Nos dias seguintes, a situação não mudou. Nada de emprego. Suas reservas reduziam-se perigosamente e ela começou a cortar de forma drástica a alimentação, ficando fraca e sem ânimo. Além disso, a dona da pensão exigia o pagamento pelo aluguel do quarto, e ela já não tinha em seu poder a quantia necessária. Aproveitando-se de um momento em que a proprietária fora ao supermercado fazer compras, pegou suas coisas e fugiu da pensão. Caminhou sem destino por muitas horas. Chegando a uma praça, sentou-se num banco para descansar um pouco. Logo, uma senhora acomodou-se a seu lado e, percebendo pelo seu aspecto de tristeza e de abandono a situação difícil que deveria estar atravessando, começou a conversar. Ao saber que Lígia estava sem lugar para ficar e desempregada, deu-lhe o endereço de uma agência de empregos ali perto. Ligia agradeceu e encaminhou-se para lá. Como não tivesse carta de referência, só conseguiu vaga para empregada doméstica, e assim mesmo porque a secretária da agência notou, pelo seu jeito, que era moça simples do interior e porque a patroa - que não poderia pagar grande coisa - não era muito exigente. Como não estivesse em condição de escolher, aceitou. Pelo menos, teria casa e comida. Assim, começou a trabalhar. O serviço não era dos piores, a família era simpática, mas ela não gostava nem estava acostumada com os afazeres domésticos. Sua mãe sempre fizera tudo, ela nunca lavara uma peça de roupa, e agora via como isso era cansativo. Sem experiência, lutou muito para manter o emprego. Por outro lado, gostava de crianças e demonstrou eficiência no trato com elas, o que lhe valeu pontos preciosos. Nos dias de folga, munida de um jornal, saía à procura de um serviço melhor, sem desistir de seus projetos iniciais. Certo dia, andando por um bairro de classe média alta, entrou numa lanchonete. Estava com sede. Pediu um refrigerante e, enquanto aguardava, reparou num grupo de rapazes e moças que conversavam sentados à uma mesa na calçada. Sua atenção foi atraída para um rapaz que a olhava fixamente. Achou-o simpático e atraente e correspondeu aos seus olhares. Não demorou muito e o moço entrou, aproximando-se da mesa onde ela estava.
- Olá! Meu nome é Alberto. E o seu?
- Lígia.
- Espera alguém? - perguntou ele.
- Não.
- Posso fazer-lhe companhia?
- Se quiser! Sente-se.
Na Espiritualidade, nosso amigo Alberto, constrangido e em lágrimas, acompanhava a cena que se desenrolava aos nossos olhos. Percebemos, sem sombra de dúvida, que era ele o rapaz que se acercara de Lígia. Continuaram conversando. Grande atração surgiu entre ambos. Marcaram um encontro. Lígia não contou a ele a verdade, onde morava, que era empregada doméstica. Disse-lhe que era estudante, residente em conhecido bairro de classe média, que seu pai era comerciante abastado e moravam em confortável residência. O relacionamento entre eles foi se estreitando. Alberto, um dia, ofereceu-lhe um baseado. Lígia relutou a princípio, mas depois acabou aceitando. Ele a convenceu de que todos os jovens fumavam. No grupo de amigos que Lígia passou a freqüentar, por influência de Alberto, a droga rolava solta. Logo, a adolescente estava consumindo substâncias tóxicas cada vez mais pesadas. Em conseqüência desse relacionamento, acabou engravidando. Como Alberto deixara claro que não desejava ligação mais séria, teve medo de contar a ele e perdê-lo. Ou pior do que isso: temia que ele, como médico, recomendasse o aborto, e isso ela não faria em hipótese alguma. Havia ainda um outro problema grave: não podia mais continuar no emprego. Os patrões perceberam sua vinculação com as drogas e a expulsaram de casa. Sem lugar para ficar, sem emprego e, além do mais, grávida, Lígia não teve outro jeito senão voltar para casa. Cheia de vergonha, telefonou para a mãe e pediu ajuda, explicando a situação, sem dizer onde estava. Dona Luzia, preocupada com a filha, mas satisfeita por receber notícias, disse-lhe que voltasse para casa. Seria sempre bem recebida em seu lar. Lígia desembarcou na pequena cidade do interior com um gosto amargo de frustração. Jamais pensara em retornar à terra natal naquelas condições. Durante os meses de gestação, ali permaneceu sem sair de casa. Foi uma exigência do pai, que não queria se sentir envergonhado perante a comunidade local. O bebê nasceu. Era pequeno e franzino, em virtude das implicações da mãe com os entorpecentes. Durante a gravidez, Lígia controlou ao máximo suas tendências viciosas, pelo bebê. Contudo, quando saiu do hospital e voltou para casa com o filho nos braços, decidiu que não poderia ali permanecer. Não suportava aquele lugar, sentia falta da antiga vida e queria procurar Alberto, a quem amava. Assim, deixou uma carta em que colocava os pais a par da decisão que tomara. Considerando que o bebê estaria em melhores mãos do que nas dela, abandonou o filho e novamente a casa que a vira nascer. Voltou para a capital. Procurou os velhos amigos, esperando reencontrar Alberto. Tudo estava diferente. Não os viu no ponto de encontro costumeiro. Perguntou por Alberto ao garçom, que a reconheceu. O rapaz a fitou, penalizado:
- Alberto se foi, garota. Está em outra.
- Como assim?
- Onde é que você se meteu por tanto tempo? Alberto morreu por overdose há quatro meses!
- Mentira! Diga que é mentira!... - gritou, estarrecida.
- Lamento, garota. É verdade. Não há nada que se possa fazer quanto a isso. Vejo que essa notícia foi demais para você. Venha, sente-se. Vou trazer-lhe uma bebida.
Cambaleando, como se tivesse sido atingida por um golpe fatal, Lígia deixou a lanchonete sem esperar a volta do garçom. Desde esse dia, afundou-se cada vez mais na degradação e no vício, por desespero e solidão, entregando-se a uma vida dissoluta, em que nada mais lhe importava. Considerando-se sem opções para manter o vício, passou a dedicar-se à prostituição. Pensava no filho. Como estaria ele? Nunca mais teve notícias. O resto da história já conhecíamos. Alberto, ao nosso lado, soluçava convulsivamente. De grande parte dos fatos ele só ficou sabendo naquele momento.
- Meu Deus! Ignorava de onde Lígia viera, onde morava e que esperava um filho meu. Mas, a nossa era uma ligação fortuita. Pelo menos para mim. Por que não procurei me informar direito? Nossas vidas poderiam ter sido tão diferentes!... E então... Júlio é meu filho? Eu tinha um filho e não sabia!
Enquanto Gema e Luzia permaneciam junto de Lígia, ficamos ao lado de Alberto, dando-lhe forças. Deixamos que ele desabafasse sem interromper. Contudo, a consciência acusava-o de modo implacável. Em sua mente, martelava a idéia de que só ele era culpado por essa tragédia toda. Ele fora o responsável, não apenas por sua própria morte física, mas também por levar uma garota jovem e inexperiente ao vício. E não só ela! Quantas outras pessoas teria também desencaminhado? Henrique, olhando-o com firmeza, ponderou:
- Alberto, já conhecíamos sua história. Portanto, para nós, não é novidade. As lembranças de Lígia vêm complementar a parte que você também desconhecia. Certamente, sua responsabilidade é grande nesse processo todo, e isso não podemos minimizar. Todavia, quem de nós não é culpado? Atire a primeira pedra aquele que se achar sem pecados, ensinou Jesus. A verdade é que todos nós temos o lado escuro que precisamos trazer à tona para os necessários reajustes. No seu caso, os anos de experiência na Espiritualidade, tudo o que já aprendeu e vivenciou, dão-lhe condições de trabalhar em favor de todos os necessitados desse grupo. Assim, não se deixe envolver negativamente pelo problema nem cultive o remorso. Reaja! Levante a cabeça! Readquira seu equilíbrio emocional! - E completou:
- Vamos trabalhar. Temos muito serviço a fazer.
- É muito doloroso enfrentar os próprios erros, Henrique. Quando não estamos envolvidos com o problema, é fácil. Temos uma visão mais clara, nítida e ampla da situação. Mas, agora...
- Certamente. Porém aí está o nosso desafio. Sabemos que, perante nossos erros, não basta o arrependimento. Também não adianta ficarmos chorando, lamentando-nos, batendo no peito e dizendo: sou culpado! É preciso reparar o mal cometido, bem como as conseqüências que possam ter advindo de nosso comportamento.
Mais aliviado, embora profundamente envergonhado perante os colegas, Alberto sussurrou:
- Tem razão, Henrique. Agradeço também a compreensão de todos, pois não vejo nos amigos da equipe nenhum resquício de reprovação. Só muita compreensão pelas minhas imperfeições. Obrigado.
Todos sorrimos, procurando enviar-lhe vibrações boas e fortalecedoras. Enxugando as lágrimas, Alberto indagou:
- Então, o que é que podemos fazer?
Nosso instrutor abriu um grande e encorajador sorriso:
- Muito bem, Alberto. Vamos arregaçar as mangas. O que você sugere para começar?
Olhamos Lígia, que chorava nos braços da mãe e da avó desencarnada.
- Acho que temos que começar por ela! - opinou, apoiado pelo grupo. - E a mais necessitada. Parece-me que devemos nos esforçar para retirá-la logo deste local de devassidão.
- Ótimo! Veremos o que é possível fazer! - disse Henrique. - Apoio do Alto não nos faltará, por certo. Foi-nos confiada uma tarefa cuja realização depende de nós. Que Jesus nos abençoe a todos!
A nobre Gema permaneceria ao lado da neta, para ajudá-la e protegê-la. Após uma prece de agradecimento ao Criador, acompanhamos nossa irmã Luzia a seu domicílio terreno. Era preciso que ela retornasse ao veículo corporal, abandonado provisoriamente. Aliviada e satisfeita, reapossou-se do corpo, acordando feliz e realizada.
- Meu velho, sonhei com nossa filha! Era tão real que tenho a certeza de que me encontrei com ela. Sinto que alguma coisa vai mudar, Genésio. Para melhor. Tenho íntima convicção de que Deus vai nos ajudar e - quem sabe? - Lígia nos mandará notícias.
Aragens de paz sopravam suavemente. Estávamos gratificados. O trabalho prosseguia sempre e empenharíamos nossos melhores esforços para cumprir a nossa parte.
20 - ACOMPANHANDO GUSTAVO

Enquanto preparávamos um plano de ação para auxiliar com proveito todo o grupo, conforme fosse permitido pelo Alto, prosseguíamos com nossas atividades rotineiras. Certa manhã, atravessava o extenso jardim do hospital quando deparei com alguém sentado num banco. Não me viu, absorvido na contemplação das grandes árvores e dos pássaros que gorgeavam nos altos galhos. Parei a seu lado, satisfeito por vê-lo ali.
- Olá, Gustavo! Apreciando a Natureza?
Virando-se para mim, sorriu:
- Pois é, César! Por falta de opções, a gente acaba aderindo, não é?
Achei graça. Enquanto me aproximava, notei que Gustavo demonstrava real prazer em estar ali, no jardim. Todavia, rebelde, não queria dar o braço a torcer. Tinha que ser do contra. Como dispunha de algum tempo, sentei-me.
- Você está com ótima aparência, meu amigo. Percebe-se que está forte e bem-disposto. Logo deixará o hospital, certamente.
- É verdade. O médico prometeu que na semana que vem terei alta. Disse-me até que já poderia freqüentar, além dos passes, uma reunião de Estudo do Evangelho, se quisesse.
- E você quer?
- Acho que seria interessante. Mesmo porque não tenho nada para fazer. Pelo menos, sairia da minha rotina.
Não pude deixar de rir. Sempre o mesmo.
- Então, posso acompanhá-lo, se desejar.
- Que bom! Queria pedir-lhe este favor, mas não me atrevia.
- Sem problemas, Gustavo. Terei muito prazer em acompanhá-lo. Vou verificar em qual dos grupos está prevista a sua participação e depois voltaremos a conversar.
Assim, deixei-o entregue à sua contemplação e me dirigi ao setor de informações. Gustavo seria colocado no Abrigo Saudades da Mamãe e freqüentaria a reunião coordenada pelo nosso velho amigo e orientador Matheus. Após confirmar as informações que ele me dera, voltei e combinei de apanhá-lo no quarto, meia hora antes do horário previsto para o início da reunião, que seria realizada no final da tarde numa das dependências da própria instituição. Ansioso, ele me aguardava. Era a primeira vez que iria participar de uma atividade diferente. Crivou-me de perguntas enquanto nos dirigíamos ao local. Aliás, para ele, era tudo novo. Até esse momento, só tivera permissão para sair da enfermaria e caminhar até o jardim. O tamanho do complexo hospitalar, o conjunto de prédios com suas enormes dependências, as alas que percorríamos, os pátios e os jardins, tudo o encantava. Ao chegarmos, algumas dezenas de pessoas já se encontravam no local. Sentamo-nos e aguardamos. No meio da assistência, vi o atendente Hassan, que me cumprimentou à distância. Remexi-me na cadeira. Nunca me sentia à vontade na presença desse homem. Lembrava-me, envergonhado, do dia em que eu e ele tínhamos colidido no corredor e de como o tratara mal. Jamais tinha conseguido digerir aquele episódio tão constrangedor. Felizmente, nossos horários e áreas de atuação eram diferentes, e assim era raro cruzarmos nas dependências do hospital. A reunião, para convalescentes e recém-chegados ao mundo espiritual em condições de aceitar uma outra realidade, era a ocasião em que os novatos entravam em contato com a vida além-túmulo e suas implicações. Após a prece inicial, era feita a leitura de um trecho do Novo Testamento, seguida de breve explanação sobre o tema, visto que os presentes, de modo geral, não apresentavam condições emocionais, mentais e vibratórias de fixação do pensamento por tempo muito longo. Terminada a palestra, o dirigente da reunião se oferecia para responder a perguntas, ocasião em que os interessados tinham a oportunidade de ter esclarecidas suas dúvidas. Era comum, pelo desconhecimento das realidades espirituais, não acreditarem sequer que estivessem num outro mundo. Naquela tarde, um dos participantes, que aparentava uns trinta e cinco anos, bem vestido, barba curta e cerrada, indagou de Matheus:
- Caro palestrante. Gostaria de expressar o que me vai na alma. Sou muito grato pela gentileza e finura de trato que sempre me dispensaram. Todavia, causa-me estranheza a ausência de familiares, parentes e amigos. Sou cidadão do mundo, como se diz. Sempre dado a viagens, percorri o globo todo por duas vezes e visitei países nos cinco continentes. De forma que me localizo relativamente bem em qualquer lugar que esteja. Contudo, não consigo reconhecer a região onde estamos, e isto me causa perplexidade. Também não nos permitem utilizar o telefone ou enviar correspondência a quem quer que seja! Não podemos deixar este hospital em hipótese alguma, embora, pelo menos no meu caso, sinta-me completamente recuperado e em condições de receber alta. Seremos, porventura, prisioneiros de algum grupo extremista? Gostaria que o senhor nos esclarecesse e nos prestasse as informações a que acreditamos ter direito.
Os demais participantes igualmente se agitaram em apoio ao colega que falara. Matheus espraiou o olhar manso pela assistência e, em seguida, parecendo meditar por alguns instantes, esclareceu:
- Meus irmãos, ninguém aqui se encontra prisioneiro senão de si mesmo. A própria consciência em desalinho provoca os desequilíbrios que fazem com que a permanência nesta instituição seja necessária.
Após ligeiro intervalo, em que observou a cada um em particular, sondando-lhes a realidade íntima, prosseguiu:
- O Evangelho de Jesus permanece ignorado para a grande maioria das pessoas. Elas não o enxergam senão como textos que, embora importantes, só dizem respeito à religião, e que, no máximo, servem para ser lidos em determinado dia da semana, reservado especialmente para suas obrigações devocionais. Todavia, o assunto é muito mais complexo. Há poucos minutos, lemos significativo trecho do Evangelho que deveria servir para nossas reflexões desta tarde. Nele, o Mestre nos fala a respeito das muitas moradas da casa do Pai, deixando claro que o Universo é a Casa do Senhor. Discorremos sobre o assunto, mostrando a estreita correlação entre o mundo corporal e o mundo espiritual, que se interpenetram e que representam estágios diferentes de uma mesma realidade, que é a vida. Matheus fez nova pausa e continuou:
- Porém, entregues às próprias concepções, muitos irmãos não conseguiram assimilar os esclarecimentos aqui ministrados, permanecendo enclausurados na própria realidade. Dessa forma, asseguro-lhes que somente a reflexão e a análise em torno da própria existência, de tudo o que acontece a seu redor, fará com que os irmãos cheguem a conclusões mais lúcidas.
Aproveitando uma pausa que se fizera mais longa, uma senhora sugeriu:
- Irmão, de acordo com suas palavras e com tudo o que tenho vivenciado, estou quase certa de que estamos todos mortos!
Novamente a platéia voltou a agitar-se, tomados de surpresa e horror. Ouviu-se um choro convulsivo. Tranqüilo, Matheus esclareceu:
- Notável dedução, minha irmã. Contudo, sente-se morta?
- Absolutamente, não! - respondeu ela, convicta. - Ao contrário, sinto-me mais viva do que nunca e com boa disposição, como nunca estive.
- Então, não está. A grande verdade é que a morte não existe. Só a vida é real! Apenas mudamos de um plano para outro.
Atônitos, os internos do hospital calaram-se, refletindo nas palavras do orientador, muitos contendo o soluço. Dando por finalizada a reunião, que fora bastante proveitosa, Matheus fez uma oração agradecendo o amparo divino. Por mais algum tempo, os participantes ficariam trocando idéias e experiências, num bate-papo informal. Matheus permaneceria na assembléia, atendendo os que quisessem falar-lhe em particular e esclarecendo dúvidas. Os grupos se formaram de forma natural. Percebi que as sementes lançadas estavam produzindo resultados. As indagações começavam a surgir de todos os lados. Convidei Gustavo para nos aproximarmos do palestrante, Matheus. Sentia que meu acompanhante também fora tocado pelo tema. Estava calado, grave, o que não era normal. O assistente Matheus sorriu, cumprimentando-me de forma calorosa.
- César Augusto, que prazer! Não temos tido muitas ocasiões de nos encontrarmos ultimamente.
- É verdade, Matheus. Mas nunca me esqueço das nossas reuniões. É sempre com grande carinho que me lembro de você. Hoje vim acompanhando o nosso Gustavo, convalescente, em via de receber alta.
Matheus dirigiu-se a ele cordialmente:
- Seja bem-vindo ao nosso grupo, Gustavo. Como está se sentindo? Ao chegarmos, muitas vezes demoramos para nos libertar de antigos condicionamentos.
- Sem dúvida. Agora estou muito bem, mas passei por meses extremamente difíceis. A propósito, se entendi bem o que quis explicar, cheguei à conclusão de que não estamos mais no mundo. É isso?
- De certa forma, sim. Não nos encontramos mais vivendo no mundo dos chamados vivos. Estamos numa outra realidade, que é a espiritual. O que morre é o corpo material. O espírito, ser pensante e imortal, continua vivo.
Gustavo denotava grande perturbação emocional.
- Mas, você se referiu aos condicionamentos. Eu fui internado neste hospital porque estava viciado em drogas. Demorei muito para me libertar da dependência. (Ainda não sei se consegui.) Como explicar isso? Se realmente estou num outro mundo, sem meu corpo de carne, por que não me liberei imediatamente desses condicionamentos? Além disso, sinto meu corpo bem vivo. Posso tocá-lo, sentir a textura da pele, sua temperatura, o sangue correndo nas veias e artérias, tenho necessidades físicas. Como pode ser isso?...
Matheus pensou um pouco e em seguida considerou:
- Gustavo, vamos por partes. Aos poucos você irá adquirindo outros conhecimentos importantes para a compreensão que ainda não tem. Um deles, e bastante complexo, é o que diz respeito ao corpo espiritual. Enquanto encarnados, somos um conjunto constituído de: corpo material ou físico; Espírito ou ser pensante; e o corpo espiritual ou perispírito, que funciona como elo entre o veículo corpóreo e o Espírito. Quando o corpo material não tem mais condições de manter a vida orgânica, o Espírito se desprende e volta para sua verdadeira pátria, a Espiritualidade, juntamente com o corpo espiritual, do qual não se desliga.
- Deixe-me ver se entendi. Então, esse que estou sentindo é o meu corpo espiritual? - perguntou, tocando seu braço.
- Exatamente. Então, voltando ao problema dos condicionamentos. É através dele que você manteve sua dependência, porque a dependência não é só química. É material, emocional e espiritual. Entendeu?
- Entendi. Estou um pouco confuso ainda, mas prometo que vou digerir tudo o que ouvi aqui hoje. Obrigado.
- É natural. As informações têm que ser assimiladas lentamente, dando-se o tempo necessário para a reflexão. Com o passar dos dias, verá que tudo é muito simples e natural, perfeito e lógico, o que demonstra a grandeza e a sabedoria do Criador.
Como outras pessoas queriam falar com Matheus, e já tomáramos muito do seu precioso tempo, era hora de nos despedirmos. Nosso amigo abraçou-nos, dizendo a Gustavo:
- Estarei esperando-o na próxima reunião. Sua presença é importante. Não falte!
Gustavo agradeceu a gentileza e deixamos o recinto. Meu amigo convalescente tinha mil indagações na mente. Enquanto caminhávamos de retorno a seu quarto, fomos conversando. Ele fazia uma pergunta atrás da outra, e eu ia respondendo.
- É tudo fantástico! Ainda não consigo entender direito. Então, é por isso que minha família não está aqui, nem meus amigos?
- Exato. A medida que se fortalecer, mostrar maior equilíbrio emocional e melhor entendimento da situação, poderá entrar em contato com eles.
- Verdade?...
- Sem dúvida! Tanto poderá visitá-los em sua antiga casa, como eles poderão vir até aqui vê-lo, durante o repouso noturno.
- E? Quer dizer que esse negócio de intercâmbio com os mortos é verdade mesmo? Caramba! Nunca acreditei nessas coisas!
- Pois pode acreditar! - afirmei, rindo. Custou-me deixar Gustavo em seu leito hospitalar. Ele estava muito agitado com as novas verdades. Não sei se nessa noite ele conseguiria dormir.
Era, porém, uma agitação benéfica. Agitação que produz transformações e crescimento íntimo.

21 - SOB A LUZ DO LUAR

Após despedir-me de Gustavo, saí do hospital. Estava feliz. Lembrei-me de seu estado quando chegou, de suas dificuldades de adaptação, de sua impertinência e até das propostas que me fizera. Hoje, eu o via totalmente diferente. Sem aquele ar perdido do dependente de drogas, sem aquele brilho alucinado no olhar, sem os delírios provocados pela desintoxicação. Era outra pessoa. Intimamente, agradeci a Jesus pela transformação que se operara em meu amigo. O céu sem nuvens deixava ver o manto estrelado que se estendia grandioso e belo. Sob o luar prateado, caminhava pelo jardim quando percebi alguém vindo em sentido contrário. Era Hassan. Mal contive um gesto de desagrado.
- Olá! - disse-me ele. - Está de retorno à casa?
- Sim. Vim trazer meu acompanhante. E você?
- Moro aqui no hospital.
- Ah!...
Não tínhamos muito o que falar um ao outro e a conversa parou por aí. Como o silêncio se fizesse constrangedor, perguntei:
- Está freqüentando esse grupo de Estudo do Evangelho? Segundo sei, é destinado preferencialmente aos recém-chegados e convalescentes.
Ele sorriu.
- Também me considero um principiante nas coisas espirituais. Mas a verdade é que gosto de participar dessa atividade e de acompanhar a reação dos nossos internos. Os convalescentes têm reações completamente diferentes uns dos outros. Acho importante saber para melhor ajudar durante meu contato com eles no decorrer do dia.
- Ah! Interessante.
- É verdade. Uns se desesperam ao tomar conhecimento da realidade; outros ficam eufóricos diante da imortalidade da alma e da continuidade da vida; outros, ainda, não conseguem sair de dentro de si mesmos e não entendem nada. É um problema de despertamento íntimo.
Estava admirado do seu interesse em aprender. Mais do que isso. Demonstrava dedicação incomum pelos pacientes. Normalmente, os atendentes da limpeza só se preocupavam com a limpeza. Ele não. Era diferente dos outros. Olhei-o com atenção. Era um homem de aparência humilde, de condição espiritual modesta. Tinha boa vontade, disposição, mas certamente ainda não tivera muito tempo para aprender na Espiritualidade. Ele terminara de falar e esperava que eu dissesse algo. Perguntei:
- Você me disse, outro dia, que veio de um posto de serviço em regiões mais densas.
- É verdade. Vim de Lírio da Paz.
- Bonito nome. Muito sugestivo.
- Sim, mas a realidade lá não é tão bela assim. Sem sombra de dúvida, aqui estamos num paraíso. Lá em Lírio da Paz nunca tive a oportunidade de apreciar um céu limpo e estrelado como aqui. O sol raramente aparece por causa do nevoeiro constante. A Natureza é árida e sem atrativos. Não se contemplam árvores e flores como aqui.
- Conhece a história da instituição? Por que lhe deram o nome de Lírio da Paz?
- O Posto de Serviço foi fundado no início do século passado por Olegário, valente e generoso servidor do bem. Em virtude de ter entes queridos que estagiavam naquela região, mergulhados nas sombras, obteve do Mestre a permissão de ali trabalhar, dessa forma auxiliando seus entes queridos e demais Espíritos que ali permaneciam. Deu-lhe o nome de Lírio da Paz porque a instituição deveria ser como um lírio, flor que viceja no pântano, embelezando e perfumando o ambiente, sem se contaminar.
Enquanto ele falava, descrevendo as características do local de onde viera, eu pensava. A tonalidade da sua voz despertava em mim estranhas sensações. Um misto de atração e de repulsão, simultâneas. Percebendo que eu o olhava calado, Hassan considerou:
- Creio que estou a incomodá-lo, falando-lhe de coisas que não lhe interessam.
- De maneira alguma - respondi. - Continue. Estou achando bem interessante. Ficou bastante tempo por lá?
Mais animado, ele prosseguiu:
- Não muito. Durante vários anos, revoltado e odiento, unido a uma falange de Espíritos vingativos, prejudiquei antigo desafeto encarnado. Depois, consciente de que estava agindo errado e de que nada lucraria com esse comportamento - ao contrário, só me prejudicaria ainda mais -, resolvi mudar de vida. Assim, fui recolhido, em situação de grande penúria espiritual, por equipe socorrista de Lírio da Paz. Com o passar do tempo, comecei a colaborar na instituição que me acolhera, trabalhando a serviço do próximo. Lá permaneci por vários anos, ate que, por bons serviços prestados, o administrador do posto de serviço resolveu transferir-me para Céu Azul.
- Então, foi uma promoção'? - indaguei, surpreso.
- Sim! - respondeu-me, satisfeito. - Mas isso nada significa, porque reconheço que nada sou e que é incipiente minha elevação espiritual.
- Se você recebeu esse prêmio, é porque tem méritos. Parabéns!
Conversando com Hassan sob a luz do luar, ouvindo-o contar suas experiências, tranqüilizei-me. Ele já não me incomodava tanto. Comecei a achá-lo mais simpático.
- E o seu desafeto, o que foi feito dele? Continua encarnado? - indaguei.
- Não. Também já fez a grande viagem. Encontra-se desencarnado há muitos anos.
- E você teve oportunidade de reencontrá-lo?
- Encontrei-o algumas vezes, mas não sabe quem sou e quais os laços que nos ligam ao passado - respondeu de forma evasiva.
- Entendo... Teme que ele não perdoe os prejuízos que você lhe causou.
- Em parte. Porque, verdadeiramente, ambos temos que nos perdoar mutuamente. Meus orientadores me disseram que devo esperar a ocasião propícia.
- Sem dúvida. A própria vida se encarregará de aproximá-los um do outro. Bem, é tarde e amanhã temos que trabalhar.
- Tem razão, César. Foi um prazer revê-lo. Agradeço a Deus a oportunidade de encontrá-lo novamente. Até outro dia. Que Jesus o abençoe.
- O prazer é recíproco, Hassan. Venha nos visitar no Abrigo dos Descamisados. Poderemos conversar com mais calma.
Apertamos as mãos em despedida. Não sei por que, fiquei achando que aquele aperto de mãos tinha um significado muito especial. Pelo menos para mim. Notei que Hassan tinha os olhos úmidos. Estava emocionado. Afastamo-nos, cada um tomando seu rumo. Sentia-me aliviado intimamente. No fundo, aquele mal-estar que eu tive na primeira vez que nos encontramos, quando trombei com o faxineiro ao virar um corredor, vinha me incomodando. Sempre tratara bem todas as pessoas, era cordial, amável, por isso não me perdoava a atitude desagradável. Agora, tinha a sensação de que um véu de sombras se diluíra e que a aproximação de Hassan fizera bem a mim e a ele. Dormi como um anjo, agradecendo ao Senhor a oportunidade de me reconciliar com alguém.

22 - DECISÃO IMPORTANTE

Na manhã seguinte, acordei satisfeito e sentindo-me extremamente leve. Abri a janela. O Sol inundou o aposento. Seus raios tépidos, tocando minha pele, produziam agradável sensação de calor e paz. Era o mesmo astro que iluminava a Terra, o orbe dos nossos sonhos. Era ele que tornava possível a vida em nosso lar planetário; sem ele, tudo seria escuro, desolado e gélido. Abri os braços, estendendo-os para o Alto, agradecido e reverente ao Sol por suas dádivas e ao Criador do Universo por sua criação. Era dia de reunião da nossa equipe. Mais tarde, no horário combinado, estávamos todos a postos. Um senhor que eu não conhecia se encontrava presente. Henrique fez as apresentações:
- Este é nosso irmão Glauco. Há muito acompanha o grupo com o qual estamos envolvidos. Especialmente Lígia e Júlio.
O estranho era um homem de idade madura, fisionomia serena e sorriso terno. Seus olhos claros e lúcidos transmitiam segurança, energia e determinação. Enquanto examinávamos discretamente o recém-chegado, o orientador concluiu:
- Glauco vai cooperar conosco nesse caso que tão bem conhece. Sua ajuda nos será muito valiosa.
De forma efusiva, demonstramos nossa satisfação em tê-lo conosco. Após uma oração em conjunto, demandamos a Terra. De longe reconheci a grande metrópole. Em poucos minutos chegamos ao quarto onde morava Lígia. Do lado de fora, dois servidores do nosso plano faziam a segurança do local, evitando assim o assédio de entidades malfazejas. A vovó Gema veio atender à porta. Vendo-nos, abriu um grande e caloroso sorriso. Ao aproximar-se de Glauco, cumprimentou-o imensamente comovida. Certamente eram amigos de longa data.
Lígia estava recostada no leito. A imagem era a mesma do dia em que a conhecemos. Tive a impressão de que a imagem ficara congelada; como se a moça não tivesse se mexido, conservando-se no mesmo local e na mesma posição. Henrique indagou, atencioso:
- Como está ela?
Dona Gema aproximou-se de Lígia. Envolvendo-a num abraço afetuoso.
- Minha neta está algo mudada desde que a viram. Procurei inocular-lhe pensamentos mais elevados, fazendo-a refletir sobre o que tem feito da existência, quais são seus objetivos, o que realmente deseja para si. O resultado é esse que estão vendo. Tem pensado muito, quase não saiu do quarto e não tem recebido ninguém.
- Ótimas notícias! - disse Glauco.
- Sem dúvida, meu caro. Todavia, temo represálias. O amigo dela está revoltado com essa sua atitude de recolhimento.
Curioso, não pude deixar de perguntar:
- Que amigo é esse?
Gema virou-se para mim e explicou, enquanto Henrique e Glauco sorriam levemente.
- É o homem que a explora sexualmente e que a mantém submissa. Trata-se de um brutamontes que fica com quase tudo o que ela ganha, deixando-lhe apenas o necessário para viver modestamente.
Era o que se chama de cafetão. Corei ao perceber minha ingenuidade. Dispunha-me a agradecer a explicação quando se ouviram fortes pancadas na porta. Lígia pulou de susto. Dona Gema lançou-nos olhar apreensivo, afirmando:
- Ei-lo que chega. É Sandoval.
Lígia saíra do seu alheamento. Mostrava-se visivelmente apavorada. Encolheu-se na cama, tapando os ouvidos. As pancadas, porém, continuaram. Agora eram murros que pareciam quase derrubar a porta. A madeira, frágil, não resistiria muito tempo. Com tranqüilidade nosso orientador recomendou:
- Vamos deixá-lo entrar. Gema, faça com que Lígia abra a porta.
A avozinha aproximou-se da neta, sugerindo-lhe:
- Minha querida, abra a porta. Deixe-o entrar. Enfrente-o. Estamos aqui com você e nada lhe acontecerá. Não tema.
Ainda indecisa, mas intuitivamente ouvindo o que lhe era ordenado, supondo tratar-se de idéia sua, Lígia ergueu-se do leito. Sim! - pensava ela - é melhor enfrentar logo a situação. Não tenho razões para ter medo. Sou uma mulher livre e dona de meus atos. Destrancou a porta com decisão. Bem a tempo! Mais um pouco e ela viria abaixo. Sandoval entrou. Era o típico cafetão. Bem-arrumado roupas extravagantes, cabelos engomados, perfume forte e insuportável. Com um palito no canto da boca, caminhou pelo quarto com seu gingado, examinando tudo, a ver se Lígia não estava lhe escondendo alguma coisa. Junto dele estavam as viciosas entidades desencarnadas que da primeira vez a acompanhavam. Como estivessem impedidas de aproximar-se da moça, buscaram reforço em Sandoval, outro interessado em que ela continuasse na dependência dos vícios. Os dois Espíritos aproximaram-se dela tentando envolvê-la e procurando despertar-lhe a necessidade da droga. Contudo, Dona Gema tinha cercado a neta de vibrações salutares, o que permitiu a Lígia, naqueles dois dias, manter a mente sob certa elevação, não sintonizando facilmente com os antigos companheiros. Com voz baixa e ameaçadora, em que se percebia a ira contida, Sandoval perguntou:
- Com que então, você se recusa a trabalhar?
- Não tenho passado bem. Só isso - respondeu, com firmeza.
- Mas nós temos um acordo, beleza. Como é que eu vou viver se você não for para as ruas? Hein? Como é que vou fazer? E você? Também depende disso!
Lígia não respondeu. Continuou calada, de cabeça baixa. Sentindo que estava perdendo seu império sobre ela, Sandoval tentou usar seu poder de sedução, que sempre funcionara.
- Quer deixar seu homem pobre, sem dinheiro? Venha cá, doçura, estou com saudade de você. Tome isso. Você deve estar necessitada.
Tirou um papelzinho do bolso do paletó, acenando-o para a moça aflita. Fiquei preocupado e, nesse momento, Alberto indagou:
- Não vamos fazer nada? Precisamos ajudá-la!
Glauco, que estava ao lado dele, respondeu:
- Acalme-se, Alberto. Se for necessário, agiremos.
Henrique, sem perder de vista o que estava acontecendo, considerou:
- Necessário deixar que Lígia exercite o seu livre-arbítrio e demonstre até que ponto deseja realmente ser ajudada.
- Mas... Ela ainda está muito frágil! - objetei.
- Observe! - ordenou-me Henrique.
Naquele instante de grande tensão, Sandoval acercava-se de Lígia com o papelzinho entre os dedos. Vimos a moça balançar. Olhou o pedacinho de papel dobrado, que sabia conter o pó, e seus olhos demonstraram um brilho diferente. Pensamos que ia aceitar. Contudo, refletiu por alguns segundos, respirou fundo e, reunindo forças para reagir, gritou:
- Não! Não quero!
- Vamos, beleza, eu sei como você é fissurada nisso! Não banque a durona comigo, que você não leva jeito. Venha aqui com o papai...
Recuando um passo, Lígia reagiu com firmeza:
- Não! Não chegue perto de mim! Não quero mais saber de você! Tenho nojo!
O brutamontes, atingido em seus brios, levantou o braço e desceu-o com toda a força na moça, atingindo-a em pleno rosto. Ela rodopiou, balançou e em seguida caiu desamparada no chão.
- Mantenham os pensamentos elevados, em prece. Não interfiram - pediu o orientador.
Depois, Henrique aproximou-se de Lígia, envolvendo-a com carinho. Glauco colocou as mãos sobre a fronte de Sandoval, que acusou imediato mal-estar. Cheio de medo, olhando dos lados, como se temesse algo, deixou o aposento. Antes de sair, porém, esbravejou:
- Você me paga! Isso não ficará assim!
Os outros irmãos desencarnados, viciosos também, saíram, levados pelos seguranças. Seriam conduzidos a uma Casa Espírita de nossa confiança existente nas imediações. Apesar do hematoma na face, do olho inchado e do fio de sangue que escorria pelo canto da boca, Lígia estava aliviada. Agora, resolvida como nunca a abandonar a vida de prostituição e atendendo às sugestões de Henrique, fez as malas e fugiu dali o mais rápido possível. Sandoval poderia voltar, e ela sabia como ele era perigoso. Já na rua, outro problema. Não tinha para onde ir. Nisso, lembrou-se de uma amiga que largara o meretrício para se casar. Tinha o endereço dela. Decidiu procurá-la. Naquelas circunstâncias, era o melhor que tinha a fazer. Sandra poderia ajudá-la. Tomou um táxi e foi bater à casa da amiga. Sandra recebeu-a com alegria. Após contar o que lhe tinha acontecido, Lígia concluiu, em lágrimas:
- Por isso, Sandra, quero deixar essa vida miserável. Entretanto, não sei o que fazer, nem para onde ir. Estou confusa e desorientada. Tenho medo de Sandoval.
Lembrei-me de você, que conseguiu a liberdade, e achei que poderia me ajudar.
- Louvo sua coragem, amiga. Não se preocupe. Poderá ficar conosco por alguns dias. Aqui é lugar seguro. Sandoval nunca viria procurá-la em minha casa.
- Mas... E seu esposo? Vai entender?
- Tranqüilize-se. José é muito bom e compreensivo. Quanto a isso, não há problema. Por outro lado, aqui nesta cidade não estará segura por muito tempo. Sozinha e desprotegida, poderá cair nas mãos de outro explorador. Além disso, Sandoval não é de esquecer uma afronta. Vai mover céus e terras para encontrá-la. E você sabe que o submundo do crime conta com extensa rede de informantes. Não, você não poderá permanecer aqui por muito tempo. Temos que levá-la para outro lugar!
Lígia pensou um pouco e ponderou:
- Estou num abrigo provisório, sem recursos e sem emprego. Só há uma saída: voltarei para minha cidade natal. Isto é, se meus pais me aceitarem de volta.
Sandra sorriu, concordando:
- Acho que tem razão! É o lugar ideal para você. Tenha confiança. Vai dar certo. Além disso, família é sempre família.
Lígia permaneceu escondida na casa de Sandra, enquanto se recuperava. Não desejava retornar para sua cidadezinha com o rosto inchado, o olho preto e as marcas da violência de Sandoval. Também era preciso dar um tempo para que a raiva passasse, ele encontrasse novos interesses e arrefecesse as buscas. Três dias depois de ter chegado à casa da amiga, telefonou para a mãe.
- Alô? Aqui quem fala é Júlio!
Lígia não se identificou. Gostaria de conversar com o filho, sim, mas não dessa maneira, pelo telefone. Mas, ouvir a voz dele pela primeira vez causou-lhe grande comoção. Ele continuou insistindo:
- Alô? Quem é? Com quem deseja falar? - Depois, virando-se para a avó: - Que estranho, vovó! Não é ninguém!
Dona Luzia pegou o fone e percebeu uma respiração forte do outro lado da linha. Sentiu a emoção dominar-lhe o íntimo. Alguma coisa lhe dizia que era sua filha, Lígia, quem estava telefonando. Daí por diante, ficou atenta. Ao menor toque do telefone, ela corria. Algumas horas depois, o telefone tocou de novo. Ela atendeu, ansiosa.
- Alô?
Depois de alguns segundos, uma voz temerosa murmurou:
- Mamãe, sou eu!
- Minha filha, que saudade! Onde você se encontra? Está bem?
Dona Luzia ouviu um soluço do outro lado.
- Mamãe, estou precisando de ajuda!
- Estamos aqui à sua espera, minha filha. Volte. Esta casa continua sendo sua - disse a mãe com a voz embargada de pranto.
Cada vez que a filha pedia socorro, ela viajava no tempo, voltando ao momento em que a recebera nos braços pela primeira vez. Era um bebê pequeno e franzino.
- E o papai, mãe?
- Ele entenderá, minha filha. Não tenha receio. Venha!
Lígia recolocou o fone no gancho e chorou copiosamente. Ao ouvir a voz da mãe depois de tantos anos, uma imensa saudade de casa dominou seu coração.
- Sim. Voltarei - pensou. - Não sei quando, mas voltarei. Começarei vida nova no aconchego do meu lar, junto dos familiares queridos. Especialmente de Júlio, meu filho. Poderá ele me perdoar por tê-lo abandonado ainda bebê?

23 - MUDANÇA DE VIDA

Aproveitamos aqueles dias, que representavam um oásis de paz na vida tumultuada que Lígia levara até então, para colocar em prática nosso plano de ajuda. Analisando tudo o que acontecera, eu percebia agora como fora importante nossa amiga tomar sozinha suas decisões. Esse fato a tornou mais forte, mais segura e mais consciente do que realmente desejava. Henrique tinha razão. Não podemos intervir no livre-arbítrio das pessoas. Devemos deixar que cresçam por si mesmas; se pedirem socorro, aí é outra história... Ao aceitar a hospedagem de Sandra, Lígia experimentava um certo receio. Seria natural que José, o esposo da amiga não visse com bons olhos sua presença naquela casa, especialmente sabendo tratar-se de uma antiga colega de prostituição. Casara-se com Sandra, mostrando ser um homem de mente mais aberta e livre de preconceitos, mas certamente desejaria esquecer o passado de sua mulher. À noite, quando José chegou, Sandra fez as apresentações, e, em seguida, sentaram-se à mesa para jantar. Durante a refeição, Lígia foi ficando mais descontraída. Reparou que o dono da casa a tratava com gentileza e cortesia, parecendo satisfeito com sua presença. Em nenhum momento, a hóspede notou qualquer resquício de contrariedade em suas atitudes. Achou que Sandra talvez não tivesse deixado clara a situação. Para evitar aborrecimentos futuros, sentiu-se no dever de alertá-lo. Sem titubear, tocou no assunto:
- José, não sei se Sandra contou-lhe o que está acontecendo comigo e a razão que me trouxe à sua casa.
O rapaz fitou-a, sereno:
- Sim, certamente. Nada temos a esconder um do outro.
Surpresa, Lígia sorriu.
- Então, agradeço-lhe ter permitido que fique hospedada em seu lar. Asseguro-lhe que será por poucos dias; pretendo sair da cidade tão logo possa.
- Não há problema, Lígia. Fique o tempo que julgar necessário. Mas concordo com você. Não acho conveniente que permaneça aqui por muito tempo. Sabe como é, não suportará ficar dentro de casa por um longo período; sentirá necessidade de sair e sempre haverá o risco de ser reconhecida por alguém ligado àquele homem. De qualquer forma, conte conosco. Ajudaremos em tudo o que for possível.
- Não está aborrecido com a minha presença, então? -insistiu ela, ainda em dúvida.
- Absolutamente. Ao contrário. Fez muito bem em nos procurar. Temos que nos amparar uns aos outros. Hoje é você quem está precisando de ajuda, amanhã posso ser eu ou Sandra... Quem sabe? A verdade é que formamos uma sociedade em que temos o dever de ser fraternos e solidários uns com os outros, para atingirmos o objetivo maior, que é a evolução.
Lígia olhou para a amiga, depois para seu esposo, perplexa:
- Você realmente me surpreende, José. Esperei encontrar um homem duro e inflexível, mas, ao contrário, descubro um ser solidário e fraterno, preocupado com o bem-estar do seu semelhante.
Sandra sorriu ternamente, apertando a mão do marido, a qual repousava sobre a mesa. Depois afirmou:
- Ganhei na loteria, Lígia. José é muito especial. Como ele, não existe nenhum outro. Meu marido é espírita e está sempre preocupado em fazer o bem. Além disso, como poderia ser um homem duro e inflexível se, entre tantas mulheres, escolheu a mim para ser sua esposa?
Lígia concordou com um sorriso, mas não fez comentários. Nada sabia dessa coisa de Espiritismo, a não ser vagas lembranças de conversas que ouvira quando criança. E, a bem da verdade, essas conversas não eram nada agradáveis. Davam-lhe medo, especialmente à noite, pois envolviam velas, garrafas de aguardente, galinhas pretas e trabalhos feitos na calada da noite em encruzilhadas desertas, com aparições de fantasmas. Entretanto, achou que o tal de Espiritismo deveria ter um lado bom, se produzia pessoas como José. Na verdade, jamais tinha ouvido alguém falar como ele. Então, a partir daquele dia, seu relacionamento com ele transcorreu em clima agradável e alegre. Sandra não era espírita, segundo contou, mas respeitava profundamente a religião do marido, pela admiração que ele lhe despertava. À tardezinha, quando José voltava do trabalho, conversavam sobre vários temas, mas Lígia gostava de ouvi-lo discorrer sobre a Doutrina Espírita.
- Tudo isso que você me diz, José, parece muito distante daquilo que sempre conheci como Espiritismo - disse ela um dia. E prosseguiu, intrigada: - Nessa história toda, onde entram os despachos, velas e outras coisas?
José e Sandra riram da pergunta. Ele esclareceu:
- A sua confusão é natural. Por desconhecimento das pessoas, a Doutrina Espírita tem sido confundida com os cultos afro-brasileiros, que se utilizam dessas práticas que você citou, Lígia. Apesar de muito respeitáveis, essas seitas, que fazem parte do sincretismo religioso do nosso povo, nada têm a ver com o Espiritismo, doutrina codificada pelo professor Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido como Allan Kardec, no século passado, na França.
- Mas, o que originou essa confusão toda?
- O fato de essas crenças afro-brasileiras se utilizarem de fenômenos naturais e próprios da condição humana, como o intercâmbio com os mortos, e até da terminologia espírita proposta por Kardec.
Lígia aprendia muito, ouvindo as explicações lógicas e claras de José, que lhe sanavam as dúvidas e lhe esclareciam o espírito. Certa noite, em que eles conversavam sobre a lei de causa e efeito, Lígia ponderou:
- Vejam o meu caso, por exemplo. Minha vida daria um romance! Sou jovem ainda e tenho experiência de uma velha de cem anos. Por que foi acontecer tudo isso comigo? Estaria traçado? Seria destino?
José pensou um pouco e respondeu:
- De forma alguma, Lígia. O que está preestabelecido pelo determinismo divino é o que surge em nossa existência sem que possamos evitar. Como um problema congênito, um retardamento mental, os reveses da fortuna, a morte de um ente querido e tantas outras coisas. No seu caso, tudo se deveu ao uso indiscriminado do livre-arbítrio.
- Você acha mesmo isso? Mas, José, tenho sofrido tanto!...
- Não duvido. Porém, é um sofrimento que você mesma procurou. Faça uma recapitulação dos acontecimentos. Quando foi que tudo começou?
- Quando resolvi fugir de casa à procura de uma vida melhor.
- Está vendo? A decisão foi sua, Lígia.
- Mas é errado querer ser feliz? Procurar crescer na vida? - indagou ela.
- De modo algum. O progresso é lei da Natureza, isto é, faz parte das leis naturais emanadas do Criador. Estamos sempre em busca de condições melhores e mais confortáveis. E assim que a humanidade cresce e se desenvolve. Já imaginou? Não fossem as conquistas de seres abnegados, inconformados com a situação, não teria o nosso planeta chegado onde está, com o conhecimento humano caminhando a passos de gigante.
Após um gole de água, José prosseguiu:
- Todavia, esse progresso não pode ocorrer à custa da irresponsabilidade, da indisciplina e do sofrimento de outras pessoas. Você causou aflições desnecessárias a seus pais e a você mesma; poderia ter saído da cidade da forma correta, em plena luz do dia, com o conhecimento de todos.
- Mas eu precisava terminar o segundo grau... E tinha pressa. Ainda faltavam dois anos!
- E daí? O que representam dois anos quando alimentamos um objetivo claro e definido na vida? Se tivesse tido paciência de esperar, terminaria o curso e poderia fazer o vestibular. E só sairia da sua cidadezinha quando ingressasse na faculdade. Dessa forma, conseguiria uma ascensão mais rápida. Quando não, deveria ter sido sincera e verdadeira com seus pais, falando-lhes dos seus planos, do seu desejo de ser modelo. Tenho certeza de que iriam entender. Lígia manteve-se calada, pensando em tudo o que acontecera.
- Tem razão, José. O pior é que errei muito e continuei errando. Depois de fugir de casa, entrei para o mundo das drogas, levada por Alberto, a quem eu amava. Sabia que ele não me levava a sério, mas, ainda assim, desse relacionamento tive um filho, que, abandonado por mim, acabou ficando sob os cuidados de meus pais. Posteriormente, ao saber que Alberto morrera, desisti de lutar pela vida, entregando-me ao desespero e à inconformação.
Lágrimas copiosas inundavam-lhe o rosto, especialmente ao se lembrar do antigo namorado. Depois de conter a emoção, dirigiu-se a José:
- Você me disse que ninguém morre, que a morte é uma ilusão e que todos estão vivos. Então, Alberto também está vivo. Onde estará ele? Poderá ouvir-me?
José fez um gesto vago com as mãos:
- Onde ele está, não sei. Dependerá do tipo de vida que levou aqui na Terra, de como se comportou, dos conhecimentos que tinha sobre espiritualidade e da sua reação perante as novas condições no além-túmulo. Considerando que a comunicação entre os Espíritos se dá através do pensamento, então, racionalmente, posso dizer que Alberto poderá ouvi-la, sim. Contudo, como não sabemos do seu estado moral, emocional e espiritual, evite pensamentos depressivos, cobranças, recriminações, queixas. Ore por ele, enviando-lhe pensamentos de amor, paz, carinho e reconforto. Lembre-se sempre dos momentos bons e agradáveis que viveram, esquecendo o lado negativo do relacionamento entre ambos. Só assim poderá ajudá-lo.
Nós, que estávamos ali presentes acompanhando o diálogo, notamos que, a essas lembranças, Alberto sentiu forte emoção. Lígia, apesar de todas as suas dificuldades, preocupava-se com ele. Essa lembrança da antiga namorada lhe fez muito bem.
- Poderei encontrar-me com Alberto? - indagou ela em seguida.
- Sem dúvida. Se ele estiver em boas condições emocionais e vibratórias, e se os mentores espirituais permitirem, sim, você poderá encontrar-se com ele. Ele poderá até estar aqui, neste momento.
- Aqui?...
- Sim. Atraído pelas suas lembranças, poderá estar participando da nossa conversa!
Lígia experimentava grande euforia íntima. Pranteara Alberto morto, julgando-o perdido para sempre, e agora nova esperança luzia em seu entendimento.
- Como poderei vê-lo? - quis saber.
- De diversas maneiras. A mais fácil é através dos sonhos. Quando dormimos, o Espírito se desprende e vai aonde quiser. Também poderá comunicar-se com ele através de um sensitivo, alguém a quem chamamos médium e que tem a facilidade de ser intermediário entre o mundo corporal e o espiritual. Além disso, se for dotada de percepções mediúnicas mais apuradas, você mesma poderá vê-lo, ouvi-lo ou senti-lo.
Ela estava maravilhada.
- José, um mundo novo se descortina à minha frente. Foi Deus quem me encaminhou para esta casa, onde vim adquirir conhecimentos tão importantes.
Na Espiritualidade, estávamos satisfeitos. Tudo corria conforme o esperado. A conversa fora direcionada por Glauco com o objetivo de servir de conveniente preparação para as atividades programadas para aquela noite. Nossos amigos encarnados recolheram-se, após uma prece em conjunto, experimentando grande paz e harmonia. Nossa amiga deitou-se pensando em Alberto.
- Senhor, se for da tua vontade, permite que eu me encontre com Alberto. Só um pouquinho.

24 - REUNIÃO NA ESPIRITUALIDADE

Não demorou muito, estavam todos adormecidos. Na Espiritualidade, o movimento era intenso. Cada qual tinha uma função específica. Dona Gema ficara encarregada de trazer nossos amigos Genésio, Luzia e o menino Júlio. Servidores do nosso plano seriam responsáveis por Jonas e Eufrásio, as entidades viciosas ligadas à Lígia, e Glauco por Sandoval. Nós permaneceríamos no local para preparar o ambiente. Passava um pouco das duas horas da madrugada quando Sandoval chegou. Vinha apreensivo e ressabiado. Não sabia o que estava acontecendo. Sua aparência era das piores. Envolvia-se em coloração sombria, em cambiantes de cinza-chumbo e vermelho-escuro. Seus traços pareciam mais acentuados e a expressão fisionômica denotava crueldade, malícia e sensualidade. Certamente deveria provocar medo em pessoas menos acostumadas como mundo espiritual inferior.
- Que lugar é este? - indagou, hostil.
Glauco, com brandura, respondeu:
- Acalme-se, Sandoval. Está entre amigos.
O recém-chegado reagiu fazendo uma carantonha.
- Amigos? Não tenho amigos. Toda liderança é solitária, não sabe? Sou chefe de uma falange e tenho poder. Exijo saber por que estou aqui!
- Você concordou em vir, lembra-se? Tenha mais um pouco de paciência - insistiu o orientador.
- Concordei porque você afirmou que se tratava de assunto do meu interesse e que só teria a ganhar acompanhando-o.
Paciencioso, Glauco concordou:
- Exato. Não se arrependerá. Portanto, tranqüilize-se e aguarde.
Enquanto esse diálogo ocorria, reuniam-se numa sala Sandra, José, Lígia, Genésio, Luzia, Júlio. Entre os desencarnados, os integrantes da nossa equipe de apoio e os obsessores de Lígia. Os presentes acusavam maior ou menor grau de entendimento. Dos encarnados, somente José e Júlio percebiam o que estava acontecendo, mostrando certa lucidez espiritual. Os demais mantinham-se um tanto alheios e desconectados com a realidade. Ao adentrar o recinto onde se achavam os outros convidados, Sandoval passeou os olhos pela pequena assembléia, sem grande interesse. Naturalmente, só via os encarnados e os desencarnados Jonas e Eufrásio com os quais tinha mais afinidade, - de Glauco, que descera de sua elevada condição para tornar-se visível. Ao deparar-se com Lígia, porém, seus olhos apertaram-se, mostrando toda a ira que o dominava.
- Com que então, você apareceu?...
Virou-se para Glauco, postado a seu lado e comentou:
- Tem razão, meu velho. Não me arrependo de ter vindo. Certamente, esta é a surpresa que me estava reservada, não é? Fico lhe devendo essa, meu chapa!
Assim falando, deu dois passos em direção de Lígia, que, ao reconhecê-lo, demonstrou imenso pavor. A nobre entidade ao lado de Sandoval deu uma ordem de comando:
- Detenha-se, Ulisses! Não dê mais um passo! Basta de arbitrariedades!
Ao ouvir esse nome, Sandoval parou como se tivesse levado um choque. Baixou lentamente a mão, que levantara para agredir Lígia, e virou-se para Glauco:
- Por que me chama de Ulisses? Quem é você?
O benfeitor, fixando nele os olhos serenos, reafirmou:
- Sim. Ulisses. Este é o seu nome. Não se lembra?
E, colocando a mão na testa de Sandoval, prosseguiu:
- Você era um poderoso general e todas as frontes se dobravam à sua passagem. Sua crueldade e insânia não tinham limites...
Sandoval fazia esforços para se recordar. Nesse momento, olhou para Lígia e algo dentro dele aflorou:
- Aqui está ela! A mulher que tenho procurado sempre e que agora encontrei. É Alma.
- Exatamente, Ulisses. A mulher que você escravizou e torturou durante muitos anos.
- Eu a amava! - defendia-se ele.
- Não. Você a desejava, é diferente. E, cheio de orgulho, não conseguiu aceitar a rejeição dela.
- Ora, eu tinha todas as mulheres a meus pés...
- Menos Alma, e isso você nunca lhe pôde perdoar.
Nesse instante, Lígia, que acompanhava a cena cheia de horror e estupefação, completamente diferente, parecendo ter recuado no tempo, avançou um passo. Era uma bela moça em trajes antigos do século 17, e mostrava um rancor feroz:
- Eu o odeio, Ulisses! Fui uma prisioneira em suas mãos, obrigada a obedecer-lhe às menores ordens. Jamais tive vontade própria ou liberdade para fazer o que desejasse. (E agora, referindo-se a ele como Sandoval.) Você continua o mesmo. Pensa que pode subjugar-me novamente? Basta! Estou livre de você, entendeu bem? Livre! Livre!...
Acompanhávamos a cena sumamente interessados. Como uma peça teatral, em que cada ator tem sua vez, Alberto adiantou-se, também regredindo no tempo:
- Perdoe-me, Alma, todo o mal que lhe fiz. Como amigo de Ulisses, aproveitei-me da oportunidade para aproximar-me de você, seduzindo-a.
- Guilherme?... Mas também é Alberto! Por isso, desde o primeiro instante, senti-me atraída por você, entregando-lhe meu coração.
O rapaz abraçou Lígia, que chorava de emoção ao reencontrá-lo. Lembrando-se do momento atual, ele suplicou:
- Mais uma vez peço o seu perdão, Lígia. Ignorava que esperasse um filho meu. Por que não me contou?
- Eu sei. Não lhe contei porque não queria que ficasse comigo pela criança.
Depois, quando voltei a procurá-lo, você tinha partido. Ah! Alberto! Deus ouviu minhas preces. Quanto tenho pedido para poder vê-lo de novo!
Diante da cena tocante que se desenrolava a suas vistas, Ulisses-Sandoval estremeceu:
- Novamente ele! Esse amigo desleal que me traiu a confiança! Guilherme não ficará com Alma! Não permitirei!
Nesse instante, alguém aproximou-se do grupo. Era Glauco que, transformado num senhor de idade madura, fisionomia serena, vestido como um fidalgo do século 17, com firmeza falou:
- Basta de loucuras, meu filho. Você já não causou mal suficiente? Destruiu, espoliou, torturou e matou muita gente. Jamais aceitou que outra vontade se sobrepusesse à sua. Orgulhoso e egoísta, arrogante e cruel, plantou apenas o ódio no coração daqueles que tiveram a desdita de conviver com você.
Sob o império daquela voz grave e enérgica, mas amorável, Sandoval sentiu-se tocado nas fibras mais íntimas. Aquela voz despertava-lhe sentimentos até então adormecidos, vozes sussurradas e imagens diáfanas que pareciam vir de um passado longínquo. Prosseguiu a nobre entidade:
- É chegado o momento da sua regeneração. Repense suas atitudes e modifique o rumo da sua vida, meu filho. Surge para você, nesta hora, a melhor oportunidade da sua existência. Jesus, por divina misericórdia, permitiu que lhe falássemos, despertando seu espírito para as realidades da vida. Nossa meta é a evolução, filho meu, e você tem perdido um tempo precioso. É hora de mudanças. Acorde e veja, O que plantou? Todo o mal perece, só o bem é eterno. Ao chegar o momento de entregar a alma ao Criador, qual será sua bagagem? O que fez de bom? Não terá sequer o refrigério de uma prece murmurada com carinho, que balsamize suas dores. Seus parentes lhe abominam a presença; os amigos que o procuram visam apenas interesses escusos; seus pais, ralados de desgostos, enlanguescem na penúria à míngua de pão.
A essas palavras, vieram-lhe à lembrança a figura dos dois velhinhos, que ele abandonara à própria sorte, e se comoveu, pondo-se a chorar convulsivamente. Cingindo-o num terno abraço, Glauco prosseguiu:
- Sempre é tempo de mudança, querido filho. Cada dia é bênção divina que se renova, convidando-nos ao trabalho e ao amor. Retempere seu espírito nas fontes cristalinas do Evangelho de Jesus e modifique sua vida, transformando-a num hino de amor e de devotamento ao próximo. Só assim poderá ouvir alguém, algum dia, abençoar-lhe o nome.
Sandoval-Ulisses em copioso pranto meditava, talvez pela primeira vez na vida. Alertado pelas palavras do generoso amigo, experimentando maior lucidez de idéias, percebia agora o quanto se degradara.
- Tem razão, meu pai. Fiz tudo errado. Novamente me deixei levar pelas paixões e agora colho o resultado. Sinto-me sozinho. Ninguém se interessa por mim. É justo. Apesar de cercado de uma multidão, em locais alegres consagrados ao prazer, sinto-me solitário e vazio.
Glauco sorriu e ajuntou:
- Isso é porque você tem procurado a felicidade nos efêmeros prazeres da carne, que só deixam desilusão e vazio na alma. Nunca procurou os prazeres do espírito, únicos bens verdadeiros e duráveis. Nas uniões com o sexo oposto, jamais viu a mulher como companheira, amiga e credora de respeito e consideração. Sempre buscou saciar seus instintos e emoções mais baixas, desprovido de sentimentos enobrecedores, explorando-as e aviltando-as. Por isso, é bom que você tenha entendido essa realidade, meu Ulisses.
Quedou-se por alguns instantes, para avaliar o impacto de suas palavras sobre o filho ali a seus pés, em cuja cabeça passou a mão com imensa piedade. E prosseguiu:
- Contudo, o Supremo Amor sempre permite a aproximação de entes queridos para balsamizar nosso sofrimento e aliviar nossas dores.
- Como sua presença, pai querido...
Glauco sorriu delicadamente:
- Sim. Mas uma outra pessoa está aqui. Não obstante seus erros e atrocidades, o ama muito e tem-se mantido fiel a você. Por muitas etapas reencarnatórias, esteve a seu lado e tem lutado para vê-lo em melhor situação. É Amadeu.
- Meu filho?...
- Sim, seu filho. Reencarnado atualmente, planejou reunir-se a você mais tarde com a intenção de ampará-lo.
Também nós estávamos surpresos, sem saber a quem Glauco se referia. Nesse momento, cheios de emoção, vimos o menino Júlio correr e abraçar Sandoval.
- Meu pai!... Meu paizinho!
- Amadeu, meu filho! Quanto amarguei sua ausência! Que alegria! Que felicidade! Quero ser digno de você, meu filho. Lutarei para vencer minhas más inclinações e ter a ventura de ficarmos juntos.
Sandoval inclinou a cabeça, lembrando-se de tudo o que já fizera:
- Entretanto, não sei se conseguirei, meu filho. Sou um fraco...
- Peça a Jesus, meu pai, e Ele o ajudará.
- Tem razão, Amadeu. Jesus me ajudará. Suplicarei a Ele que me dê forças e perseverança para vencer a mim mesmo.
A cena era de beleza tocante. Estávamos sensibilizados. O ambiente inundara-se de claridades inexprimíveis. Todos se abraçaram, permutando vibrações e afetos. Muitos se reencontravam depois de longa ausência. Genésio abraçou a filha, cheio de saudade, esquecendo o ressentimento que trazia no peito. Lígia jogou-se nos braços da mãe e ambas choraram de emoção e de alegria. Depois, observando Júlio, que a examinava de longe, ela aproximou-se do filho e, humildemente, pediu:
- Júlio, meu filho, você poderá me perdoar algum dia?
O rapazinho lançou-se nos braços da mãe, exclamando:
- Quanto tenho esperado por este momento, mamãe!
Aquelas palavras, ditas com generosidade e sem mágoa, venceram uma barreira de muitos anos de ausência e carências afetivas, atestando a grandeza de alma daquele Espírito. Lígia, pegando Alberto pela mão, aproximou-o do menino:
- Meu filho, aqui está seu pai. Alberto.
O semblante de Júlio inundou-se de alegria. Jogou-se nos braços de Alberto, e aí permaneceu demoradamente.
- Que felicidade! - exclamou. - Numa mesma hora encontro dois pais!
Sandoval, que observava o diálogo, ficou ainda mais comovido por saber que Júlio, o seu Amadeu, era filho de Lígia e Alberto. Um pouco além, atraindo para si Jonas e Eufrásio, desencarnados que não tinham real expressão de maldade e que se ligaram a Lígia pelos vícios, Glauco considerou:
- Meus irmãos, vocês observaram tudo o que ocorreu aqui hoje. Que esta hora bendita represente também a libertação de ambos.
Tocados pelo ambiente, os dois espíritos estavam dispostos a mudar de vida, porém se mostravam temerosos:
- Somos comandados por Sandoval. Agora que nosso chefe capitulou, não temos mais razões para prosseguir. Todavia, outros tomarão o comando do grupo. Mentes odiosas e pervertidas que não nos darão paz - explicou Eufrásio, o mais velho.
- Eufrásio tem razão, senhor. Não sabe do que eles são capazes de fazer. Virão e nos levarão prisioneiros. Ninguém pode com eles - disse Jonas, com expressão de pavor.
- Temos que ir embora. Não podemos ficar aqui!
Ele fez menção de sair correndo, mas Glauco o impediu:
- Calma! Tranqüilizem-se, amigos. Conosco estarão seguros. Jesus é nosso refúgio e nossa fortaleza. Com Ele, nada devemos temer. Vocês serão conduzidos para região inacessível àqueles que ainda se locupletam no mal. Contudo, não descansaremos enquanto o último dos componentes dessa falange não for socorrido. Também me considero responsável por esses irmãos, e Sandoval, a quem eles obedecem cegamente, mais tarde nos ajudará.
Glauco, elevando os olhos para o Alto, convidou todos os presentes:
- Agradeçamos, meus filhos, esta hora bendita. Soa para todos nós as claridades de uma nova aurora. Sejamos gratos a Deus.
Fez uma pausa, pareceu concentrar-se durante alguns segundos e, à medida que se ligava às Altas Esferas da Vida, reassumia suas condições espirituais. Aos poucos, diante de olhos admirados, nimbava-se de luz. Senhor, Pai de Infinito Amor! Nesta hora sublime, nossos corações estão em festa e se regozijam perante as bênçãos de luz que nos proporcionaste. O amor misericordioso de nosso Mestre Jesus, inseparável e desvelado Amigo, abriu-nos as portas de novas oportunidades redentoras para nossos Espíritos. Sejamos nós dignos de tal generosidade, aproveitando o momento que surge para decisões plenificadoras. Reveste-nos, Senhor, de coragem, determinação e perseverança para vencermos a nós mesmos na escalada rumo a teu Reino. Sabemos que este é apenas o início de uma tarefa. Inúmeras dificuldades virão e muito trabalho teremos pela frente... Mas, no cumprimento do sagrado dever que nos outorgaste, jamais desfaleceremos, por maiores sejam os obstáculos. E se, porventura, vitórias conseguirmos, os louros pertencerão a ti, Pai Amado, como Supremo Condutor de nossas vidas. Assim, recebe, Senhor, nosso preito de gratidão e o devotamento de nossos corações, de filhos que almejam dedicar-se a teu serviço. Sua voz calou-se, mas, após a prece singela, continuamos sentindo as cariciosas aragens que sopravam do Infinito. Melodias sublimes soavam em nossos ouvidos como se cantadas por um coro celeste. Despedimo-nos de todos, permutando sentimentos e vibrações. Bem-estar inefável nos felicitava o íntimo, e certamente essa noite ficaria em nossas lembranças mais caras como prenúncio de paz e de renovação.

25 - ASSIMILANDO IDEIA

De manhã, quando acordaram, cada um dos encarnados que participaram da reunião transcorrida à noite tinha lembranças próprias. José recordava-se perfeitamente de grande parte do que acontecera. Sandra e Lígia, apenas vaga noção de um sonho em que apareciam muitas pessoas. No café, os amigos conversavam sobre o assunto quando Lígia afirmou, comovida:
- Interessante! Tenho certeza de que estive com meus pais e com meu filho esta noite. De repente, não sei por que, Sandoval apareceu e fiquei apavorada. Depois, ele mudou, já não era mais Sandoval... Estranho... Ah! Agora estou me lembrando melhor. Alberto também estava presente! Não é curioso?
José sorriu e explicou:
- Acho que estivemos todos juntos nesta noite resolvendo assuntos de grande importância. Tanto é verdade, que você conservou desse encontro algumas lembranças.
- Tem razão, José. Antes de dormir, rezei pedindo a Deus me permitisse ver Alberto. Mas por que estavam juntas pessoas tão diferentes e estranhas entre si? Quem sabe? Talvez sejam desconhecidas nesta existência, mas certamente deve haver um elo entre elas no passado, uma vez que somos Espíritos em evolução e já tivemos muitas experiências reencarnatórias.
Lígia calou-se, permanecendo pensativa e emocionada durante todo o dia.
Na casa de Genésio, todos despertaram com grande bem-estar. O casal não reteve nenhuma lembrança da reunião, mas Luzia assegurava:
- Acordei com a sensação de que sonhei com nossa filha. O sonho foi tão claro e vívido que parecia real. Porém, tento recordar como foi e não consigo. Tudo se apagou da minha mente.
Genésio concordou, exclamando:
- Curioso! Agora que você tocou no assunto, também tenho a impressão de que qualquer coisa semelhante aconteceu comigo. Acordei com o coração leve, sem mágoas, sem ressentimentos. Olha, mulher, se nossa filha voltasse hoje, eu a aceitaria tranqüilamente.
Júlio, que tomava seu café, ouvindo a conversa dos avós, também se manifestou, com os olhos úmidos:
- Certamente algo de muito importante aconteceu durante a noite. Lembro-me de que estava num lugar diferente. Parecia uma festa... E até meu pai estava presente!
O casal trocou um olhar de perplexidade.
- Seu pai, meu filho? Seu pai?... Mas você nem sabe quem é ele!
- É verdade, vovó. Mas sei que era meu pai! Tinha muita gente; grande parte das pessoas nem conheço. Também estava lá um senhor que me impressionou pela bondade e sabedoria. Sua presença enchia todo o ambiente, e meu coração se alegrou ao vê-lo.
- Ah!... Você o conhece? - indagou a avó.
- É estranho, vovó Luzia. Daqui do nosso mundo onde vivemos, tenho certeza de que não. Entretanto, sei que é alguém muito querido, que conheci em outros lugares...
- Esse menino está delirando, Luzia. Como pode ser isso? - perguntou o avô Genésio, surpreso e incrédulo.
O garoto fitou o avô com seus olhos serenos e respondeu:
- Não sei, vovô. Mas tem pessoas que acreditam que vivemos muitas vezes através da reencarnação. Aprendi isso na escola.
- Bobagens!
- Pode ser, vovô. Porém, como é que sinto que conheço aquele homem? Ele estava vestido com roupas muito antigas e que me eram familiares!
Como os avós não tinham explicação para o fato, calaram-se. Mas cada um ficou com indagações que esperavam por respostas. Sandoval despertou por volta do meio-dia. Sentia-se estranhamente bem naquela manhã, ao contrário dos outros dias, em que, invariavelmente, acordava com uma tremenda ressaca. Ainda na cama, veio-lhe à mente o sonho que tivera. Não se recordava bem dele, mas sabia que fora muito importante. Nesse momento, se pôs a pensar nos pais. Como estariam eles? Um imenso desejo de revê-los o tomou de assalto. Experimentava insatisfação e desgosto pela vida que estava levando, enquanto indefinível tristeza assomava-lhe o íntimo pelas coisas que não construíra durante todos aqueles anos. Inconscientemente, lembrava-se das palavras de Glauco e murmurava, mais para si mesmo:
- O que já construí de bom? Não tenho família, casa, pessoas que me amem, nada! Estou cansado de tudo isso, quero mudar. Quem sabe arranjar um emprego e ter uma existência normal como todo mundo. Dormir à noite, levantar cedo para pegar no batente, viver do meu salário, sem explorar ninguém...
Parou de falar e passou as mãos pelos cabelos, espantado com os próprios pensamentos:
- Ora, estou ficando babaca! Preciso de um gole - exclamou em voz alta.
Foi até a cozinha, pegou uma garrafa de conhaque e despejou uma dose generosa no copo, mas não conseguiu beber. Naquele momento, Sandoval decidiu rever os pais. Colocou algumas peças de roupa numa valise, deu alguns telefonemas avisando que iria se ausentar por dois dias e, entrando no carro, saiu da cidade rumo ao vilarejo onde seus pais moravam. No trajeto, observava as paisagens que se sucediam, as pessoas trabalhando na lavoura. Pensou que deveriam ser felizes, sem grandes problemas; certamente teriam vida simples e, o mais importante, ao voltarem para casa, encontrariam alguém esperando por eles. Suspirou. Jamais esse tipo de pensamento lhe passara pela cabeça. Sandoval estava se estranhando. Não sabia por que, desde que acordara naquele dia, experimentava a falta de um filho. Interessante é que tinha a sensação de que esse filho já existia em algum lugar. Nós o acompanhávamos. Mais próximo a ele, Glauco não deixava que os pensamentos de Sandoval tomassem rumo diferente, afastando-se das mudanças que tinha de introduzir em sua vida. Viajou a tarde inteira. A noitinha, entrou na sua pequena cidade natal. Buscou a rua pobre onde passara grande parte da vida. O estado da casa que o vira nascer confrangeu-lhe o coração. O muro estava parcialmente caído e o portão enferrujara, desengonçado; o mato e as pragas haviam tomado conta do pequeno jardim, que sua mãe antigamente cuidava com tanto capricho. As paredes externas estavam com a pintura descascada e o telhado crivado de buracos. Enfim, o abandono e a desolação eram tão evidentes que Sandoval sentiu um aperto no coração, imaginando como estaria o interior da residência. Abriu a porta. Tudo estava em silêncio.
- Ô de casa! Tem alguém aí?
Ouviu passos arrastados que vinham do quarto. Esperou. Logo, uma velhinha vestida de trapos, encarquilhada, pôs a cabeça na porta do corredor.
- Quem está aí? - perguntou num fio de voz.
- Sou eu, mãe, Sandoval!
Trêmula, a velhinha apertou os olhos tentando enxergar melhor:
- É você, meu filho?
- Sim, mãe, sou eu.
Correu até onde ela estava, envolvendo-a num grande abraço. A esse contato, percebeu sua fragilidade e magreza extremas.
- Que bom vê-lo, meu filho. Seu pai ficará contente com sua presença.
- Onde está ele, mãe? Saiu? Certamente foi à pracinha encontrar com os amigos, como sempre gostou de fazer.
- Qual nada, meu filho. Seu pai teve um derrame cerebral há três anos e nunca mais saiu do leito.
Surpreso, Sandoval exclamou:
- Mas como não fiquei sabendo? Por que a senhora não me avisou?
- Não sabia seu endereço, meu filho - desculpou-se. Envergonhado, ele baixou a cabeça, compreendendo o quanto fora ingrato e omisso. Queria cortar os laços com a família; assim, mudou e não comunicou o novo endereço. Na verdade, com o passar do tempo, fazia isso constantemente para evitar ser localizado pela polícia, com a qual tinha contas a ajustar.
A mãe, porém, falara com simplicidade, sem intenção de o acusar.
- Venha! - disse ela.
Entraram no quarto. A figura estendida no leito causava piedade. Sandoval lembrava-se do pai alto e forte. Agora, ali naquela cama, viu uma outra pessoa. Magro e raquítico, parecia ter encolhido.
- Veja como o meu Martinho está. Todo paralisado, depende de mim para tudo. Ouve bem, mas só consegue balbuciar alguma coisa.
Colocando a mão na cabeça do enfermo, Sandoval falou:
- Pai, sou eu, seu filho. Vim vê-lo.
O doente arregalou os olhos e tentou falar, mas, na boca torta, a língua não ajudava.
- O senhor está me reconhecendo?
Dos olhos do ancião, duas lágrimas rolaram, silenciosas, enquanto ele grunhia, tentando falar.
- Pai, não se esforce. Fique tranqüilo. Vim para ajudá-los.
Nesse momento, um homem entra no quarto. Ao ver o estranho, pára, constrangido.
- Desculpe-me, dona Maria. Não sabia que estavam com visita.
- Ora, você é de casa. Entre, Silvério. Este aqui é meu filho, Sandoval, que acaba de chegar.
E para Sandoval:
- Este aqui é nosso amigo Silvério, um vizinho que muito nos tem ajudado. Sem ele, não sei o que seria de nós.
Aquelas palavras, ditas sem intenção, tiveram em Sandoval o efeito de uma chicotada. Depois de cumprimentar o filho do casal, com sorriso afetuoso, Silvério dirigiu-se ao doente:
- Está na hora do banho, meu amigo. Quer se refrescar?
Martinho sorriu com sua boca torta. Tinha entendido e, pelo jeito, gostava do banho. Sandoval, observando-os, enquanto Silvério conversava com o pai, notou a afinidade entre eles. A fisionomia do pai se alegrara, mostrando que ele gostava da companhia do vizinho. Na verdade, ocupava ele o lugar de filho, que por direito lhe pertencia. Sandoval sentiu uma certa amargura ao fazer essa constatação. Acabada a higiene, Silvério despediu-se, dizendo:
- Dona Maria, deixei algumas coisas na cozinha para a senhora. Amanhã virei consertar aquela janela que está quebrada. Hoje não dá porque tenho que comprar uns parafusos.
- Está bem, meu filho. Obrigada por tudo. Que Jesus o abençoe. Vá com Deus.
Havia tanto carinho na voz da mãe que Sandoval novamente sentiu-se excluído. A mãe chamou-o:
- Venha para a cozinha, meu filho. Vou fazer um café.
Na cozinha, sobre a mesa, gêneros alimentícios numa sacola atestavam a indigência em que os pais tinham vivido até então. Sandoval corou de vergonha ao ver que eles dependiam da caridade pública. Resolveu que tudo iria mudar desse dia em diante. Tomaria as rédeas da situação e seria o filho que, até aquela data, não tinha sido. Glauco olhou para nós e sorriu.
- Hoje conseguimos grande avanço na ajuda a este companheiro.
Depois, elevou os olhos para o Alto e orou com acento comovedor. Estávamos todos satisfeitos. Sandoval, para nós, já não era aquele homem cruel e sem entranhas, explorador de mulheres e traficante de drogas. Era simplesmente alguém necessitado de amparo, que tomava consciência dos seus erros e que se empenharia em vencer suas tendências inferiores. Olhei para Henrique. Muitas indagações me dominavam a mente. Afinal, ajuda da Espiritualidade não faltaria, mas conseguiria Sandoval vencer a si mesmo? E tudo o que deixara para trás? Não seria uma mudança passageira? Se resolvesse permanecer no vilarejo, junto com os velhos pais, agüentaria essa vida, que para ele seria muito monótona? Ele se conformaria em viver longe dos prazeres que gozara até então? E, se isso se tornasse uma realidade, seus antigos comparsas encarnados aceitariam sua decisão? E a falange de desencarnados, da qual era o líder, se conformaria em perdê-lo? E... O orientador amigo sorriu e disse:
- Calma, César. Conheço suas dúvidas, mas só o tempo poderá mostrar se nosso trabalho foi profícuo. Também não temos certeza de nada. Estamos semeando e devemos aguardar para saber se as sementes vão germinar. Todavia, estamos fazendo a nossa parte, o que é importante. Certamente, o nosso irmão Sandoval terá problemas, mas deverá encontrar forças dentro de si para vencer. Conforme demonstre boa vontade na sua transformação moral, a assistência do Alto será cada vez mais intensa e maiores recursos lhe serão direcionados. Por enquanto, não se iluda. Esta é só uma visita aos velhos pais. Aguardemos.
Suspirei. Seria extremamente interessante continuar acompanhando o caso de Sandoval no futuro. Contudo, era hora de partirmos. Ali nada mais havia para ser feito naquele momento. Outras tarefas nos aguardavam. Glauco permaneceria durante algum tempo junto a Sandoval, para ampará-lo nas novas diretrizes. Despedimo-nos afetuosamente. Em nossos corações despertara um grande afeto pela nobre entidade durante aqueles dias de trabalho conjunto. Voltaríamos a vê-lo, naturalmente, porque Glauco não se afastaria do caso Lígia, nossa amiga tão necessitada de ajuda.

26 - RETORNO AO LAR

Naquela mesma noite, Lígia decidiu que era hora de voltar para a casa paterna. Há meses estava com os amigos. Durante o dia conversou demoradamente com os seus hospedeiros sobre suas dúvidas e sua insegurança. Sempre sereno e atencioso, assegurou-lhe José:
- Nada tema, minha amiga. Estaremos aqui orando por você, e tudo dará certo. Tenho certeza de que será bem recebida por seus pais e por seu filho, Júlio. E ainda vai ser muito feliz!
- Será? - indagou, temerosa.
- Claro! Pode ser até que você enfrente alguns problemas no início, o que é natural, tendo em vista o modo como saiu de casa e seu comportamento durante esses anos. Mas sempre é tempo de corrigir nossos erros. Olhe, Lígia, quando temos real desejo de acertar, contamos com a ajuda de Deus em nosso favor.
- Mas... Não é só isso, José. Tenho medo de não conseguir vencer a mim mesma.
Sandra, que até aquele momento ouvira calada, ajuntou:
- Compreendo o que sente, minha amiga. Lígia teme não conseguir ficar longe dos vícios, querido.
- É isso mesmo, Sandra. Não me sinto muito segura e, diante dos problemas que vou enfrentar, temo uma recaída, especialmente quanto às drogas.
- Tem sentido vontade de fazer uso delas ultimamente? - indagou José.
Notando a preocupação do amigo, Lígia apressou-se em esclarecer:
- Não, não. Fique tranqüilo. No começo, quando aqui cheguei, confesso que fiquei enlouquecida. Depois, você me levou para fazer uma consulta com aquele médico espírita, Dr. Lucas, seu amigo, e ele me ajudou bastante. Submeti-me a um processo de desintoxicação, doloroso, mas realmente indispensável. Aos poucos, fui aprendendo a me controlar, e melhorei muito. Agora, posso dizer que estou bem.
- Você tem tomado direitinho os remédios que ele lhe receitou? São substâncias naturais, sem contra-indicação, e que poderão ajudar a restabelecer seu equilíbrio orgânico e emocional, libertando-a dos condicionamentos.
- Tenho.
- Então, não há o que temer. Está desintoxicada e agora só dependerá de você.
Lígia calou-se, entrando a meditar. Apesar das palavras cheias de confiança do amigo, tinha dúvidas. Será que, diante de uma situação difícil, a ansiedade e a tensão não a levariam a apelar para a bebida ou para as drogas, como fuga? A verdade é que nossa amiga Lígia, embora viciada em drogas e alcoólicos, tinha mais tendência para os primeiros. Fora, no entanto, grandemente beneficiada graças ao afastamento de Jonas e Eufrásio, seus comensais desencarnados, que a incentivavam na viciação. Depois, como hóspede na casa de José e Sandra, encontrara ambiente propício para sua recuperação, nas reuniões fraternas que realizavam, inclusive o Culto Cristão no Lar. Além disso, nas orações diárias e conjuntas, José aplicava-lhe energias restauradoras e desintoxicantes através do passe magnético, intuitivamente percebendo sua necessidade. José, que a observava atentamente, complementou:
- Hoje você possui conhecimentos que muito poderão auxiliá-la no combate às próprias inferioridades, Lígia. De mais a mais, não se esqueça de nós. Somos seus amigos e estaremos à sua disposição em qualquer eventualidade. A nossa casa também é sua, e a porta permanecerá aberta sempre que precisar.
- Só lamentamos que precise partir, minha amiga. Sentiremos muito sua ausência - disse Sandra, emocionada.
Lígia não conseguiu falar. Um nó apertava-lhe a garganta. Apenas os olhos, onde brilhavam duas lágrimas, falavam da emoção e da gratidão que sentia naquele momento.
- Mas antes que se vá, vamos orar pela última vez - convidou o dono da casa.
Num impulso fraterno, eles se deram as mãos. Fechando os olhos, José concentrou-se por alguns segundos e iniciou uma prece singela:
- Senhor Jesus! Como tantas vezes o fizemos, no recesso de nosso lar, hoje nos dirigimos novamente a ti. Neste momento, suplicamos tuas bênçãos para nossa irmã Lígia. Ela parte hoje, Senhor, para uma nova vida. Na verdade, é a retomada de sua verdadeira vida na família para onde a bondade e a sabedoria de nosso Pai a conduziu ao renascer e onde poderá, no início, encontrar dificuldades de adaptação. Por isso, Mestre Amado, rogamos teu socorro para nossa irmã, deforma que possa manter em níveis elevados seu desejo de mudança interior, sua boa disposição e seu otimismo. Ajuda-a, Senhor, a não esmorecer nunca, para que o desânimo não venha a estiolar suas mais caras esperanças. Fortalece-a na fé, para que a confiança na Divina Providência possa nortear-lhe o roteiro e fazê-la compreender os desígnios do Pai. Ensina-lhe humildade, Senhor, para aceitar, com coragem e resignação, os reveses que a vida lhe assinale e para enfrentar os obstáculos e as dificuldades com a consciência da própria responsabilidade perante as leis divinas. Desperta-lhe, Jesus Amado, a compreensão para com os erros das outras pessoas, perdoando, aceitando e ajudando sempre os semelhantes. Sobretudo, Senhor, acende a flama do amor em seu íntimo, de modo que a fraternidade e a solidariedade sejam suas companheiras diletas no trato com nossos irmãos em humanidade, especialmente para com aqueles que, de pronto, não lhe possam reconhecer o esforço de mudança interior na conquista de uma vida mais digna e saudável. Que ela possa receber neste instante tuas dádivas de paz e luz, que a acompanharão por onde for, como teu divino legado. Muito obrigado, Senhor!
Após a oração, que inundou a todos de grande bem-estar, os participantes da pequena reunião abraçaram-se, permutando sentimentos e ratificando amizade. Eles não podiam ver, mas sentiam as maravilhosas bênçãos que fluíam do Alto. Emocionados e reverentes, acompanhávamos, do outro lado da vida, a prece que, profundamente sincera, partindo de um coração leal e devotado, movimentava energias poderosas. Do tórax, da cabeça e das mãos de José saía um foco de luz direcionado para cima e que, retornando, envolvia Lígia totalmente. O ambiente se iluminou; flocos de substância azulada, como neve translúcida, desciam suavemente sobre o grupo e logo desapareciam, assimilados pelo corpo dos encarnados, proporcionando-lhes inefável sensação de bem-estar, paz, confiança e alegria. Em seguida, Lígia arrumou sua bagagem, e o casal amigo foi levá-la até a estação rodoviária, onde deveria tomar o ônibus para sua cidade natal. Enquanto aguardavam o horário da partida, Lígia mostrava no semblante uma certa tristeza.
- Acreditem, jamais poderei lhes pagar tudo o que fizeram por mim. Despeço-me de vocês com o coração apertado, porque, no fundo, gostaria de permanecer aqui.
Todavia, sinto que o dever me chama, exigindo a reparação de meus erros. Depois de tudo o que aprendi sobre a imortalidade da alma, reencarnação, lei de causa e efeito, responsabilidade e livre-arbítrio, entre outras coisas, não posso fugir ao cumprimento da parte que me cabe na vida. Na verdade, dele tenho me eximido há longo tempo.
Enxugou os olhos e, tentando se controlar, contemplou os amigos com imensa ternura:
- Jamais esquecerei de vocês. Estes últimos meses foram os mais importantes da minha vida. Estarão sempre na minha memória.
Sandra chorava abraçada à amiga. José, contendo a emoção, brincou:
- Ei! Da maneira como fala, dá a impressão de que nunca mais nos veremos! Esta não é a última vez que estamos nos encontrando! Nada disso, garota! Quando você menos esperar, estaremos batendo à sua porta e pedindo abrigo!
Lígia deu uma risada bem-humorada, ao mesmo tempo em que enxugava os olhos.
- Será um prazer imenso! Vou ficar esperando! Quero que conheçam meus pais e meu filho. E, é lógico, nossa cidadezinha, que, apesar de pobre, é rica de belezas naturais.
- Pode esperar. Assim que entrarmos em férias, iremos fazer-lhe uma visita e matar as saudades.
- Minha mãe faz um peixe assado que é uma delícia! Antes que José pudesse fazer qualquer comentário, o ônibus chegou e tiveram de se despedir. Pela janelinha, ele fez uma última recomendação:
- Lígia, não se esqueça de procurar um núcleo espírita, como me prometeu. É muito importante que você continue a receber passes. Não se esqueça!
- Não me esquecerei. Fique tranqüilo. Até breve! Deus lhes pague por tudo!
Logo, as mãos que acenavam eram só uma lembrança. Por muitas horas Lígia chorou, enquanto a condução rodava. Lá fora, a escuridão era quase completa, amenizada apenas pelo brilho das estrelas. Passava das duas horas da tarde quando ela desembarcou em sua cidadezinha. Pouca coisa havia mudado. Pegou a mala e tomou o rumo do lar paterno. Parou na calçada defronte da casa. Contemplou a velha moradia tão familiar. Estava tensa e preocupada. Toda a confiança que armazenara, a segurança que os amigos tentaram lhe transmitir, tudo fora por água abaixo. O coração batia forte e acelerado. As mãos estavam frias e úmidas, apesar do calor. Sentia-se pequena e frágil. Teve um impulso de dar meia-volta e retornar para o conforto da casa de José e Sandra. Mas se conteve, amparada por Alberto, que a sustentava nesse momento difícil. Ao sol quente da tarde, viu o vulto da mãe que estava varrendo o jardim. Ficou parada, imóvel, olhando fixamente para aquela imagem tão querida. Como se atraída pelo olhar de Lígia, a senhora levantou a cabeça e viu alguém parado do outro lado da rua. Reconheceu-a imediatamente. Abriu o portão e atravessou a rua, ainda incapaz de acreditar naquilo que estava vendo. Chegando mais perto, não conteve as lágrimas.
- Minha filha! Então é você mesma! Meus olhos não me enganaram. Eu sabia que você ia voltar!
Abraçaram-se em prantos. Lígia não conseguia falar, expressar o que aquele momento representava para ela. Passado o impacto do encontro, conseguiu afinal balbuciar, como tantas vezes o fizera quando criança:
- Mamãe, estou com medo!
Compreendendo o estado da filha e tudo o que aquela pequena frase continha, Dona Luzia envolveu Lígia com os braços, afirmando:
- Nada tema, minha filha. Vamos para casa. Ela nunca deixou de ser a sua casa.
- Mas... Papai...
- Não se preocupe. Tudo ficará bem. Atravessaram a rua, e a mãe abriu a porta, feliz, colocando a filha à vontade.
- Minha filha, seu quarto sempre esteve à sua espera. Acomode suas coisas e volte para tomar um café.
A pergunta lhe queimava os lábios:
- Mamãe, e Júlio?
- Seu filho está bem, Lígia. Agora está na escola. Você o verá na hora do jantar.
Mais tarde, Dona Luzia estava na cozinha preparando a refeição, quando Júlio chegou.
- Oi, vovó! O que está fazendo? O cheiro está muito bom!
Com ar misterioso, a velha senhora respondeu:
- É segredo!
O garoto, ao pegar água na geladeira, observou a avó, que cantarolava uma canção enquanto descascava batatas. Estranhou.
- A senhora está diferente, vovó. Mais alegre, com ar feliz. Está até cantando, coisa que nunca a vi fazer! Aconteceu alguma coisa?
Ela virou-se e disse, com ar serio.
- Tenho uma surpresa para você, meu filho.
- Adoro surpresas! O que é?
Sem dizer nada, Dona Luzia apontou para o corredor que levava aos quartos.
- Descubra por si mesmo.
Júlio deixou o copo de água que estava tomando e dirigiu-se para o corredor. Entrou em seu quarto. Tudo estava do mesmo jeito. Achou que era um presente que a avó tinha comprado para ele. Ela sabia que ele desejava uma bola nova de futebol. Nada encontrou. Nenhum embrulho, nada. Nisso, ouviu um ruído que vinha do outro quarto. Então era isso. Uma visita. A porta estava entreaberta, e ele espichou os olhos para dentro. Uma mulher estava inclinada sobre a cama, ocupada em tirar as roupas da mala para colocá-las no armário. Bateu discretamente:
- Com licença. Posso entrar?
A mulher se virou, assustada, e ele pôde vê-la. Estarrecido, ele a reconheceu. Era sua mãe! Lígia contemplou aquele rapazinho à sua frente sem saber o que fazer, que atitude tomar. Por sua vez, Júlio olhava fixamente a mãe, incapaz de acreditar que ela tivesse voltado. Naquela hora, em que o silêncio se tornara opressivo, Lígia lembrou-se das palavras de José. O amigo dissera que ela deveria dizer a verdade, sempre, enfrentando as conseqüências de seus atos. Então, com humildade, dirigiu-se ao filho:
- Júlio, meu filho, muito tenho errado e me arrependo sinceramente de tudo o que fiz, do sofrimento que causei a você e a meus pais. Eu era muito jovem, tinha a mente cheia de sonhos e pouco juízo. Se pudesse voltar atrás, faria tudo diferente, mas isso é impossível.
Engolindo as lágrimas, com muito amor suplicou:
- Júlio, meu filho, você poderá me perdoar algum dia?
O garoto ouvia com o coração apertado. A princípio, teve vontade de mandá-la embora, dizendo que não precisava mais dela. Sua mágoa, por tantos anos represada, ameaçava arrebentar em soluços. Contudo, intuitivamente, lembrava-se da reunião, e sua alma generosa falou mais alto. Correu para Lígia, dizendo:
- Quanto tenho esperado por este momento, mamãe!
Nesse instante, Júlio teve a certeza de que aquela cena já ocorrera, que já tinha ouvido aquelas mesmas palavras. Na Espiritualidade, envolvendo-os num grande abraço, Alberto ergueu os olhos para o Alto, agradecendo em lágrimas as bênçãos daquela hora:
- Senhor Jesus, a vitória deste momento pertence a ti, que nos tens amparado a todo instante. Aqui estão reunidos Lígia e meu filho, para uma nova vida. Se ainda posso te pedir algo, suplicaria a dádiva de poder dedicar-me a eles, ajudando-os a transpor as dificuldades e os obstáculos naturais do caminho. Sandoval também merece o nosso carinho, Senhor; por isso, rogo-te permitas que eu me aproxime dele para sanarmos antigos desajustes. Que teu amor nos envolva a todos, facultando-nos novas oportunidades de servir em teu nome. Muito obrigado!

27 - O REENCONTRO

No dia seguinte, enquanto aguardávamos a chegada do dono da casa para sustentar, vibratoriamente, a nossa amiga Lígia nessa hora tão delicada de sua vida, ainda nos lembrávamos com emoção dos momentos vividos no lar de Dona Luzia. Como esperávamos, tudo correu bem. A princípio, houve um certo constrangimento. Genésio chegou da rua cansado. Tivera um dia difícil, cheio de problemas e estava faminto. Foi logo perguntando pelo jantar. Dona Luzia, com expressão satisfeita, não se deixou influenciar pelo mau humor do marido:
- Calma, Genésio. Hoje a refeição vai atrasar um pouco, mas tenho um bom motivo!
- Aconteceu alguma coisa? - perguntou, curioso, pegando uma banana na fruteira para enganar o estômago, enquanto aguardava o jantar.
- Sim. E você ficará muito contente!
Antes que tivesse tempo de pedir novas explicações, Genésio ouviu passos no corredor acompanhados do ruído de vozes. Nisso, o neto Júlio assoma à porta com outra pessoa. Era uma mulher. À primeira vista, não percebeu que era a filha, tais as mudanças que se operaram nela durante aquele decênio de ausência.
- Sou eu, papai! Não está me reconhecendo?
Ao ver que era Lígia, Genésio levou um choque. Reunindo as forças, mais uma vez ela enfrentou a situação, O pai permanecia imóvel, incapaz de falar. Olhos arregalados, olhava apenas.
- Estou de volta, meu pai - disse ela com humildade.
- Estou vendo. Até quando? - conseguiu afinal dizer, com amargura, tentando manter uma atitude fria e distante.
Júlio intercedeu pela mãezinha, abraçando-a:
- Mamãe está aqui conosco, vovô! Não é ótimo? Temos que agradecer a Deus, que atendeu às nossas preces. Lembra-se de quantas vezes oramos a Ele pedindo que ela voltasse?
Ignorando as palavras do neto. Genésio continuou fixando a filha, grave.
- Até quando? - repetiu a pergunta.
Refletindo um pouco, Lígia respondeu:
- Meu pai, sei que errei muito e que mereço a sua desconfiança. Asseguro-lhe, porém, que mudei. Sou outra pessoa. Andei batendo a cabeça muitas vezes e sofri bastante. Quando abandonei esta casa, eu era muito jovem ainda, quase uma criança, e não sabia o que estava fazendo. Queria viver a vida, desejava ser feliz.
Parou de falar por momentos, engolindo as lágrimas. Genésio aproveitou para perguntar, algo irônico:
- E conseguiu a felicidade que estava buscando?
- Não, papai. Hoje eu sei que jamais conseguiria ser feliz longe de vocês. Do senhor, da mamãe e do meu filho. Como sei também que não há paz sem a consciência tranqüila.
Dona Luzia deixara o fogão e aproximara-se, enxugando o pranto na ponta do avental. Lígia lançou um olhar carinhoso para a mãe e prosseguiu:
- Não imaginam como esses anos foram difíceis. Muitas vezes eu telefonava e, sem coragem de falar, desligava em seguida. Discava só para ouvir-lhes a voz e matar as saudades. Passei fome, passei frio, trabalhei em muitos lugares. Alguns não recomendáveis. Tive contato com pessoas horríveis, conheci vícios, dos quais espero ter-me libertado. Hoje, sei que somos responsáveis pelos nossos atos, e que a colheita será sempre proporcional à semeadura que tenhamos feito. Assim, aprendi que a felicidade ou a desventura são o reflexo do nosso próprio comportamento. Não pensem que pretendo passar por vítima. Ao contrário, reconheço que a culpa é toda minha e que tive o que merecia.
Olhando melhor a filha, Genésio percebeu como estava mudada. Tinha uma expressão sofrida e marcas indeléveis no rosto, mas falava com sinceridade e seus olhos eram tranqüilos.
- E o que a levou a tomar a decisão de voltar para casa? - indagou, já com voz menos áspera.
- A última vez que estive em casa foi quando Júlio nasceu. Acabei tomando a decisão de retornar para a cidade grande, deixando-o aos cuidados de vocês, porque julgava que eu não tinha condições de cuidar de um bebê e desejava o melhor para meu filho. Também porque amava Alberto, o pai de Júlio, e não suportava ficar longe dele. Todavia, quando fui procurá-lo, fiquei sabendo que havia morrido meses antes, vitimado pelas drogas. Meu mundo desmoronou. Desesperada, mergulhei fundo na degradação e nos vícios. Chegou uma hora, porém, em que não suportei mais aquela vida e comecei a meditar sobre o que fizera da minha existência. Não sei onde consegui arrumar forças para lutar. A verdade é que, às vezes, sentia a vovó Gema do meu lado, me amparando. Resolvi dar um basta. Um casal amigo me ajudou a reconstruir a vida, e aqui estou. Aprendi bastante com eles. Foram amigos de verdade.
Fez nova pausa e, fixando o velho pai, concluiu:
- Meu pai, sei como deve ser difícil para o senhor, que sempre foi honesto e digno, aceitar-me de volta. Mas aqui estou na mesma condição do filho pródigo da parábola de Jesus. Depois de ter dilapidado tudo o que tinha, retornou para a casa paterna. Como ele, eu também lhe suplico: Pai, sei que não mereço mais ser chamada de filha, mas deixa que eu aqui permaneça como uma simples empregada.
O nó que sufocava a garganta do velho pai explodiu em soluços. Não suportando mais, ele caiu em choro convulsivo, abrindo os braços para a filha, que se agasalhou neles. Dona Luzia também estava profundamente tocada pela confissão da filha, sobretudo quando ela se referiu à presença da querida avó desencarnada, sua mãezinha. A emoção do momento era tanta que também nós, da Espiritualidade, não contivemos as lágrimas. Entre nós, Alberto abraçou-se à pequena família, fundindo sentimentos e vibrações. Naquela noite, deixamos nossos amigos encarnados, voltando para Céu Azul. Tudo estava em paz, o clima era de bem-estar e harmonia. Eles teriam muito tempo para se entender. Era preciso deixar que aprendessem com as próprias experiências, exercitando o livre-arbítrio. Certamente teriam problemas, mas quando existe boa vontade e amor, tudo se resolve. Reunidos no Centro de Estudos da Individualidade, trocávamos idéias tendo por base a história de Lígia. Um dos companheiros perguntou ao nosso orientador:
- Henrique, e Sandoval? Conseguirá vencer?
- Dependerá dele, da firme disposição e da perseverança que demonstre em manter as conquistas obtidas. Até este momento, os resultados são promissores.
- Sem dúvida, ele encontrará muitas dificuldades, tendo em vista o estilo de vida que levou até há pouco tempo e os compromissos que assumiu perante o próximo e perante si mesmo - ajuntou Adriana.
- Exato - concordou Henrique, prosseguindo: - Porém, o Pai sempre nos concede a oportunidade de refazermos nossos passos, reparando os erros cometidos. O Senhor é magnânimo e jamais apresentará as contas ao devedor que não possa saldar suas dívidas. Ao contrário, lhe dará tempo para que se recupere. Em relação ao nosso Sandoval, essa bênção surgiu do Alto com a retirada dele do palco de suas ações.
Aceitando por via intuitiva a colaboração de Glauco, que lhe sugerira a volta ao interior para junto dos velhos pais, foi-lhe proporcionada a dádiva do recomeço. Ali, naquele vilarejo, estará Sandoval a salvo de influências negativas, do ambiente em que delinqüiu outrora, dos cúmplices e subordinados, dos dependentes de drogas e dos cobradores. Terá a chance de ter uma vida simples, conhecerá pessoas simples e estará em contato permanente com a Natureza. Esperamos que ele aproveite esse período para se fortalecer, porque tempo virá em que será obrigado a arcar com as conseqüências dos próprios atos. Nesse meio tempo, entretanto, contará com a ajuda dos amigos da Espiritualidade, em especial de Glauco, que se sente particularmente responsável por ele. Aproveitando a pausa que se fizera mais longa, indaguei:
- Lígia e Sandoval estão hoje bem distantes um do outro. Tornarão a encontrar-se na atual existência? Afinal, existem elos entre os dois, e isso não podemos ignorar.
O orientador sorriu enigmático:
- Quem sabe? Vamos dar tempo ao tempo, César. Deus sabe o que faz.
O nosso grupo trocou olhares de entendimento, e sorrimos. Por certo Henrique sabia mais do que poderia nos contar no momento.
- E nossos conhecidos Jonas e Eufrásio? - indagou Viviane.
- Estão lá onde os deixamos. Permanecem no isolamento do hospital, recuperando-se gradativamente. Logo poderão receber visitas.
Estávamos satisfeitos e gratificados, como sempre acontecia quando conseguíamos realizar uma tarefa a contento. Alberto, tomando a palavra, agradeceu a toda a equipe pela ajuda naqueles dias.
- Como se sente interiormente, Alberto? - indagou Henrique.
Nosso companheiro pensou um pouco como se procurasse as melhores palavras para vestir seus pensamentos:
- Difícil explicar o que me vai por dentro. Neste período em que nos dedicamos a assistir Lígia e todo o grupo, uma grande mudança ocorreu em mim. Sinto-me hoje mais sereno, mais responsável, menos crítico, mais compreensivo perante os erros alheios e com mais paciência até comigo mesmo, porque reconheço que todos os nossos sentimentos têm uma razão de ser e somente o tempo vai produzir uma alteração substancial para melhor.
Parou de falar por alguns momentos e, fixando cada um de nós, completou:
- É interessante. Sempre soube que somos seres em evolução, que já tivemos inúmeras reencarnações, mas vivenciar uma experiência ocorrida no passado e que produz conseqüências no presente faz com que possamos entender melhor a mecânica da vida. Hoje experimento grande paz interior e me sinto bem mais leve. Não ignoro que essa é apenas a ponta do véu. Muitas outras experiências virão, porém me vejo hoje mais forte e seguro para enfrentar o porvir.
Alberto acabou de falar e todos o abraçamos, externando a nossa satisfação pela vitória que ele obtivera. Quando a agitação em nosso meio diminuiu um pouco, Henrique informou:
- Agora é hora de voltarmos ao trabalho. Como o caso Lígia se encontra em andamento e tudo corre bem, espaçaremos as visitas. Vamos partir para outra frente de serviço. Temos um novo caso para atendimento. Pouco antes de iniciarmos a nossa reunião, um mensageiro trouxe um pedido de socorro, encaminhado pelo Departamento.
Adriana e eu trocamos um olhar de entendimento. De quem seria a vez? Sim, porque Viviane e Alberto, nossos companheiros, já tinham sido contemplados e faltavam apenas nós dois. Eu ou ela? Um pouco ansiosos, aguardávamos que Henrique desse maiores explicações, mas ele pareceu ignorar nosso estado emocional. Combinamos nos encontrar no dia seguinte, à mesma hora quando nos seriam dados maiores esclarecimentos para iniciarmos a nova tarefa. Com uma prece, a reunião foi encerrada. Despedimo-nos, retornando cada um à sua casa para o repouso noturno. Conseguiria eu dormir aquela noite?

28 - NOVOS PACIENTES

Na manhã seguinte, encaminhei-me ao hospital. Estaria de plantão durante todo o dia e não podia me atrasar. Logo que cheguei, passaram-me as fichas de dois novos pacientes, socorridos há poucos dias e ainda com grande dificuldade de adaptação. Aproximei-me do primeiro. Era um rapaz de pele muito branca, cabelos louros e extremamente magro. Estendido no leito, trazia as marcas do acidente de moto que lhe causara a morte física. Era muito jovem, apenas dezoito anos. Estava com a cabeça enfaixada e apresentava ferimentos por todo o corpo. Quando entrei, ele dormia, mas seu sono não era tranqüilo. Debatia-se, gemendo dolorosamente; fazia esforços para abrir os olhos e levantar-se do leito, obrigando-me a contê-lo.
- Estão me chamando! Preciso ir! Mamãe! Mamãe! Onde está você? Estou indo! - exclamava com voz lancinante, entrecortada por soluços.
- Calma Alessandro. Fique tranqüilo. Não se agite. Você foi socorrido por amigos espirituais e logo estará bem. Confie em Deus.
Movido pela compaixão, coloquei a mão sobre seus cabelos e elevei o pensamento em prece, suplicando as bênçãos de Jesus para aquele infeliz rapaz que, tendo a vida inteira pela frente, retornara ao mundo espiritual de forma tão traumática. Nesse momento, irmã Clara aproximou-se.
- Como está indo, César?
- Não foi fácil, mas veja por si mesma, irmã.
Como se tivesse ingerido um sedativo, ele se acalmou. Parou de gemer e de se agitar, mergulhando em sono tranqüilo.
Irmã Clara acompanhou-me no atendimento ao segundo caso do dia. Tratava-se de um moço que morrera por afogamento, em um final de semana, numa cidade litorânea. Confiando em suas condições de exímio nadador, ele procurou, sozinho, um recanto em meio a alguns rochedos, para apreciar a vida submarina. Mergulhou. As águas ali eram profundas, e ele ficou preso em um galho de árvore. Tentou soltar-se, mas não conseguiu. Como estivesse desacompanhado, e o local fosse deserto, expirou sem nenhum socorro. Aproximei-me. Agitava os braços, tentando respirar, ainda sob as impressões da morte dolorosa por asfixia. De repente, passava a ter ânsias e vomitava a água que tinha ingerido. Novamente elevamos o pensamento às Altas Esferas, rogando auxílio para o infortunado jovem. Finalmente ele serenou e pudemos relaxar um pouco. Irmã Clara foi atender a uma emergência e deixou-nos a sós. Sentei-me à cabeceira de seu leito com a ficha na mão. Chamava-se Ismael. Era moreno, de pele olivácea, com traços da raça judaica. Nesse momento, o faxineiro entrou na enfermaria para limpar a sujeira que o recém-chegado fizera. Com surpresa vi que era Hassan. Cumprimentou-me, sorridente:
- Olá, César Augusto. Como tem passado? Não nos temos visto ultimamente. O que anda fazendo?
- É verdade, Hassan. Nossos horários não coincidem. Tenho trabalhado muito. E só.
Apesar de mais acostumado à sua presença, ainda me sentia um tanto incomodado ao vê-lo. Talvez porque ele me recordasse silenciosamente a atitude infeliz daquele dia, a qual eu tanto lamentava. A consciência é juiz vigilante e implacável. Percebendo provavelmente que eu não estava muito a fim de conversar, ele não insistiu. Limpou o chão, calado. Alegando tarefas urgentes, afastei-me. Como Ismael dormiria tranqüilo por algumas horas, não havia necessidade da minha presença ali a seu lado. Sentia-me descontente comigo mesmo. Por que, cada vez que topava com aquela criatura, não conseguia me controlar? Onde estava tudo o que já tinha aprendido? Em que lugar do cérebro teria eu guardado os, ensinamentos recebidos, que agora, na hora da necessidade, não conseguia encontrar? Caminhando por um dos corredores do hospital, ia tão circunspecto que passei por Gustavo, que se dirigia ao jardim, sem vê-lo. Ele chamou-me a atenção:
- Oi, César! Foi bom ter encontrado você. Quero lhe falar. Tem algum tempo disponível?
Sorri. Seu aspecto já era outro. A expressão fisionômica agora era simpática e agradável, conversava com as pessoas e até sorria. Que diferença daquele rapaz que chegara todo cheio de vontades, carrancudo e mal-humorado!
- Claro! Eu o acompanho.
Saímos do prédio e um sol forte nos envolveu. Sentamo-nos num banco e esperei que Gustavo se dispusesse a falar.
- Sabe que logo terei alta? - informou-me.
- Muito bom! Você teve um progresso notável. Não tem mais razão para ficar aqui no hospital. Logo será encaminhado a um abrigo de jovens.
- É exatamente sobre esse assunto que queria lhe falar. Sei que todos, médicos, enfermeiros e orientadores, querem o melhor para nós. Contudo, antes que os responsáveis me apresentem uma decisão, gostaria de poder escolher. É possível?
Pensei um pouco e disse:
- Não vejo impossibilidade nisso, desde que o pedido seja razoável, atenda às suas necessidades de adaptação e que exista vaga. O que sugere?
Notei que estava um pouco constrangido, mas acabou falando como se pisasse em ovos:
- Se não for pedir demais, gostaria de poder ficar em sua companhia.
Na verdade, já sabia o que ele queria e compreendi que ele fizera tantos rodeios temendo ser rejeitado. Achei graça do seu ar preocupado.
- Ora, se isso é tudo quanto deseja, Gustavo, não tem problema. Se depender de nós, irá para o Abrigo dos Descamisados! A alegria iluminou-lhe o rosto.
- Puxa! Não sabe como estou contente, César. Temia que não me quisesse junto com você. Afinal, já perturbei bastante!
- Por que não?... Será um prazer tê-lo conosco, Gustavo. Tenho certeza de que os demais também aprovarão. Se quiser, eu mesmo posso apresentar sua petição junto à Administração Hospitalar.
- Fará isso por mim? Muito obrigado.
- Isso não é nada. Bem, tenho que ir agora. Quando tiver a resposta ao seu pedido, eu lhe comunico.
Despedi-me dele. Eu estava emocionado. Naquela hora voltou-me na lembrança a minha própria experiência. Os primeiros tempos como paciente, as visitas de Eduardo e de Marcelo. O dia em que finalmente tive alta, deixando o hospital. A chegada ao novo lar. A comoção que experimentei ao ver o pessoal todo reunido para me dar as boas-vindas. Ah! Foram momentos felizes aqueles. Jamais me esquecerei do carinho e da amizade que recebi. Com Gustavo seria da mesma forma. Ele estava começando uma nova vida, sob condições completamente diferentes e inusitadas. Precisaria de todo o nosso apoio. Voltei ao trabalho e, entregue às atividades que me estavam afetas, nem vi o tempo passar. Um pouco antes de sair, procurei o diretor do hospital, um senhor afável e simpático. Expus-lhe o pedido de Gustavo e, como não existisse nenhum tipo de dificuldade, ele concordou plenamente. Agradecido, despedi-me e rumei para casa. Daria a boa notícia a Gustavo somente no dia seguinte. Chegando ao abrigo, encontrei os companheiros conversando na nossa varanda. Era difícil o dia em que conseguíamos reunir todos. Sempre havia alguém trabalhando ou em trânsito.
- Aproveito o momento para apresentar-lhes o pedido de um rapaz que em breve terá alta e deseja ser aceito pelo nosso grupo. Trata-se do Gustavo.
Betão, sempre bem-humorado, perguntou:
- Não é aquele que tentou subornar você?
Todos riram. Concordei:
- É ele mesmo.
- O cara, olha lá! Já pensou se ele resolve convencer-nos a contrabandear drogas? Ou fazer da nossa casa um posto avançado de entrega do produto?
Os demais caíram na risada.
- Graças a Deus, esse período passou! Ele até já aprendeu a jogar xadrez com o César. Não é? - comentou o Marcelo, virando-se para mim.
- É isso mesmo. Sabem que foi muito importante para ele? No início, o desencarnado tem dificuldade de concentrar-se em algo alheio a seus próprios desejos e tendências, vícios e seqüelas, dores e sofrimentos. Quanto mais tempo conseguir passar sem lembrar-se daquilo que o incomoda, melhor. É conquista feita. Ganha-se terreno.
- Depois, a mudança de ambiente, com o ingresso na Unidade Hospitalar; o tratamento a que é submetido, que desintoxica o corpo espiritual e o fortalece, saturando-o de energias positivas; a própria mudança mental do paciente e o desejo que demonstre de vencer a si mesmo; tudo isso são fatores decisivos para a cura - considerou Eduardo.
- Brincadeiras à parte - falou Betão -, todos passam por períodos difíceis quando chegam à Espiritualidade, e é preciso saber encontrar alguma atividade que toque o paciente, de forma que, aproveitando seu interesse e potencial, possamos trabalhar seu interior. No caso de Gustavo, César utilizou-se do xadrez, o que não é usual por aqui, diga-se de passagem.
- Exatamente, Betão - concordei. - Todavia, foi a única coisa que o atraiu. Não gostava de ler, não queria conversar, nada... Rejeitava todas as propostas. Bem, vocês se lembram.
- Diga ao Gustavo que o estamos esperando! - completou nosso bem-humorado Betão, demonstrando sua aceitação ao novo membro.
- Creio que todos ficaremos satisfeitos em tê-lo aqui conosco - falou Giovanna, expressando o pensamento dos demais.
Todos bateram palmas, revelando alegria em comentários risonhos e descontraídos. Sorri satisfeito. Quando concordamos em receber alguém em nosso lar, fica estabelecido um compromisso de ajuda, em que todos assumem sua parcela de responsabilidade no processo. Gustavo acabava de ser adotado pelo grupo. Agradeci aos companheiros e despedi-me. Estava na hora da reunião no Centro de Estudos da Individualidade.

29 - NA RESIDÊNCIA DE FÁBIO

Após uma prece, deixamos Céu Azul acompanhando o instrutor Henrique em nova tarefa de socorro e aprendizado.
- Nosso destino é uma cidade de médio porte localizada na região Centro-Oeste do nosso Brasil - disse ele.
Estávamos curiosos. O orientador abstivera-se de dar-nos maiores esclarecimentos a respeito do novo caso. Assim, sem saber o que iríamos encontrar, rapidamente nos deslocamos no espaço, seguindo Henrique. Lá chegando, nos dirigimos para um conjunto habitacional de classe popular, num bairro de periferia. A manhã, iluminada por um sol risonho, era muito agradável. Paramos diante de uma casa. A construção, absolutamente igual às outras, distinguia-se pela falta de muros e por um pequeno e bem cuidado jardim. Apesar da simplicidade, viam-se, no chão de terra batida, gerânios, hortênsias e azáleas cercando toda a frente da moradia. Henrique bateu delicadamente. Um senhor de idade avançada, magro e encurvado, de nome Germano, e que na última encarnação fora avô da dona da casa, abriu a porta, recebendo-nos com gentileza. O instrutor fez as apresentações, e ele, com um sorriso, agradeceu nossa visita. Entramos. Os cômodos eram pequenos e o mobiliário singelo, mas havia ordem e limpeza em tudo. Na cozinha, deparamos com um garoto de sete para oito anos sentado diante de uma mesa rústica e debruçado sobre um caderno. Fazia os deveres da escola. Das panelas no fogão vinha um cheiro bom de tempero, de arroz e de feijão preparados recentemente, o que, de imediato, nos remeteu ao lar terreno, trazendo-nos à lembrança nossas mães que, com tanto carinho e dedicação, nos esperavam à hora do almoço. O menino não nos percebeu a presença. Henrique aproximou-se dele, envolvendo-o num terno abraço e dirigindo-lhe palavras de estímulo. Depois, virando-se para nós, apresentou-nos:
- Este é Fábio, um velho conhecido.
O garoto prosseguia escrevendo com capricho e boa vontade. Inclinei-me sobre o caderno e não pude deixar de admirar-lhe a letra redonda e bonita. Notei que suave luminosidade o envolvia como um manto, denotando-lhe as boas condições espirituais. Seu semblante refletia serenidade e paz; possuía um coração generoso, pelas radiações que lhe partiam do plexo cardíaco. Seus cabelos castanhos, lisos e bem penteados. Estavam molhados, e o cheiro de sabonete atestava que ele se banhara havia pouco. Percebia-se que o uniforme da escola era muito surrado, mas estava limpo e passado. Terminava de escrever as últimas letras quando uma senhora ainda jovem chegou. Vinha arcada ao peso de uma sacola de compras e deixava transparecer cansaço e abatimento. Ouvindo passos de alguém que chegava, o garoto levantou a cabeça e seus olhos se iluminaram.
- Olá, mamãe! - disse o menino, risonho.
- Olá, meu filho! Fez tudo o que mandei?
Denotando responsabilidade, o garoto respondeu com justa satisfação:
- Tudinho, mamãe! Olhe, temperei o feijão e fiz o arroz, como a senhora gosta. Ah! Também arrumei as camas e varri o quintal. Depois tomei banho e acabei de fazer os deveres da escola.
A senhora passou um olhar crítico em tudo.
- Foi até a venda dar o recado para o seu João, como mandei?
Fábio arregalou os olhos, assustado:
- Chiiii, mamãe! Esqueci!
Irritada, a mulher puxou a orelha do menino, que gritou de dor.
- Ai! Ai!...
- Mas é um imprestável mesmo! Não mandei você dar o recado?
- Mandou, sim, mamãe. Mas fiquei entretido no serviço e acabei esquecendo!
Tinha tanta coisa para fazer!
- Pois saiba que era muito importante.
- Não se preocupe, mamãe. A caminho da escola passo por lá e deixo o recado.
- Agora não adianta. Era o meu jogo do bicho, e eu tinha um palpite de que desta vez ia ganhar. Sonhei com cobra e tenho certeza de que era um aviso. Está vendo só? Não ficaremos ricos por sua causa! Moleque irresponsável!
A princípio tivemos vontade de rir. Toda aquela confusão apenas por um jogo do bicho que não fora feito'? Em seguida, a atitude daquela mulher deixou-nos indignados. Percebendo-nos a posição íntima, Henrique alertou, grave:
- Mantenham-se em condições mentais elevadas. Não se deixem influenciar pelas circunstâncias. Dora é nossa irmã e estamos aqui para ajudar, não para julgar comportamentos alheios. Observem apenas.
Reajustando-nos mentalmente, vimos o menino baixar a cabeça, triste e decepcionado. Tirou o material escolar que estava sobre a mesa, colocando-o numa sacola de plástico. Depois, arrumou a mesa para o almoço, enquanto Dora terminava de preparar a refeição. Sentia-se culpado. As palavras duras da mãe fizeram com que seu coraçãozinho se confrangesse. Que pena - pensava ele. - Seria tão bom se pudéssemos ter mais algum dinheiro. Mamãe não precisaria trabalhar tanto e poderia descansar um pouco, voltando a ser como antes, mais calma e mais alegre. Não havia qualquer resquício de reprovação em seu íntimo pela conduta da mãe. Apenas sentia que não cumprira com seu dever. Dora serviu o menino, que aguardava calado. Serviu-se também e sentou-se para comer. Estava faminta. Nesse momento, percebemos que um vulto escuro assomara à porta da cozinha e que fios tenuíssimos, como visgo, ligavam o desencarnado à dona da casa. Quando esta levava a comida à boca, a entidade desencarnada recebia grande parte do que Dora ingeria, aspirando gostosamente as emanações dos alimentos. Ele não se dava conta da nossa presença, completamente preocupado em envolver Dora. Alberto considerou:
- Interessante. O pequeno Fábio não é atingido pelas vibrações inferiores e nocivas do infeliz irmão que acompanha sua mãe.
- É preservado pelas suas condições espirituais; no entanto, é atingido através da própria mãe - aduziu Viviane.
- Exatamente! - concordou Henrique. - A entidade maléfica não pode acercar-se do menino, que está protegido vibratoriamente pelos valores morais já conquistados e pelo hábito da oração, mas vale-se de Dora, instrumento dócil e maleável em suas mãos, para prejudicar Fábio.
Nesse momento, olhamos para ambos e vimos que a mãe, irritada, observava Fábio. O garoto mal tocara na comida, mastigando lentamente e com má vontade.
- Vamos logo, moleza! Não tenho tempo a perder. Preciso retornar para o trabalho e o patrão não perdoa se chego atrasada.
- Já acabei, mamãe.
- Mas você não comeu nada!
- Não estou com fome. Tomo merenda na escola.
- Então, pegue o material e vá para a aula. Quando voltar, não se esqueça de lavar os pratos. Vou deixar as panelas em cima do fogão porque seu pai, como sempre, chega mais tarde para almoçar.
- Está bem, mamãe.
Germano abraçou o bisneto com infinita compaixão, enquanto nos dizia:
- As cenas que vocês acabaram de presenciar têm-se repetido com certa freqüência há alguns meses.
Henrique, aproveitando o momento, convidou-nos ao trabalho da oração:
- Ajudemo-los com vibrações balsamizantes, destinando-lhes energias através do passe, para que executem suas atividades dentro das melhores condições possíveis.
Alberto, Viviane, Adriana e eu nos preparamos para secundar Henrique no socorro aos nossos irmãos encarnados, elevando o pensamento ao Alto e dirigindo as mãos sobre suas cabeças, na condição de intermediários das bênçãos divinas. Quando terminamos, mãe e filho apresentavam outra disposição de ânimo. Dora, provisoriamente desligada dos vínculos com seu sombrio acompanhante, apresentava o olhar mais lúcido e a fisionomia mais descontraída. Toda a irritação e o mal-estar haviam passado. Até abraçou e beijou Fábio, arrependida da maneira como o tratara pouco antes, exigindo tanto de uma criança tão pequena. O menino foi para a escola acompanhado do bisavô Germano. Logo em seguida, Dora saiu também, fechando a casa. Nós permanecemos no local, aguardando. O chefe da pequena família, Lúcio, não tardou a chegar. Era um homem grande, de constituição forte, cabeça enterrada nos ombros. Esquentou a comida e comeu rapidamente.
- Vou arrumar a cozinha. Assim, ajudo Fábio. Senão, meu filho terá que fazê-lo - falou baixinho, acompanhando as palavras com um sorriso de cumplicidade.
Era até engraçado ver aquele homenzarrão abrutalhado, de avental na cintura, lavando os pratos. Depois de deixar tudo limpo, encaminhou-se para o jardim. Àquela hora, o sol havia mudado de posição e as plantas estavam na sombra. Notamos que aquilo era uma rotina para Lúcio, que gostava de lidar com elas. Abaixando-se, arrancou as ervas daninhas, tirou as folhas secas, afofou a terra em alguns lugares e depois, trazendo uma muda de primavera, plantou-a num canto. Para finalizar, regou tudo cuidadosamente. A ternura que dispensava às suas flores ficava patente no olhar, nos gestos delicados, no sorriso de satisfação que dirigia às plantas, acompanhado de meigas palavras de estímulo. Não pudemos deixar de sorrir, vendo-o assim a lidar tão bem com as flores, trabalho que, em princípio, se julgaria incompatível com o porte de Lúcio e com o tamanho das mãos, grossas e ásperas, habituadas ao labor rude. Ao mesmo tempo em que enfiava as mãos na terra, monologava intimamente. Percebíamos sua preocupação, que extravasava em forma de pensamentos dirigidos ao filho querido e à esposa. Não sei mais o que fazer, pensava ele. Dora está diferente, arredia, mal-humorada, mantendo-se irritada e nervosa o tempo todo. Quem sofre com isso é o nosso Fábio, um anjo caído dos céus, que suporta suas exigências e rabugices. E ele é tão bom! Tem um coração tão meigo!... Acompanhando seu pensamento, víamos as imagens que exteriorizava, em que o filho aparecia ora indo para a aula, ora executando os trabalhos domésticos, ora fazendo os deveres da escola. Sempre com boa vontade e alegria, denotando responsabilidade e disciplina. Não posso ver meu filho sofrer, continuava ele, e sei que ele sofre; não reclama, não demonstra, mas sinto que não é feliz. Nunca tem tempo para brincar com os amigos, em virtude da carga de responsabilidades que Dora colocou sobre seus ombros frágeis. Nesse ponto, vimos imagens de Fábio sendo espancado pela mãe, recebendo castigos e chorando copiosamente. Lúcio enxugou uma lágrima na manga da camisa e prosseguiu mentalmente: Ó Jesus, sei que o trabalho é útil e necessário; não estou reclamando disso, o Senhor sabe. Só gostaria que nossa vida fosse um tantinho melhor. Dora anda irritada e nervosa e tem seus motivos, mas não posso vê-la descontando suas frustrações em nosso filho. Sei também que Dora trabalha muito e a culpa não é dela. É minha, que não consigo sustentar a casa com meu salário de fundidor. Mas, Senhor, peço-lhe por meu filho, Fábio, para que ele possa ter uma vida mais serena e feliz. Também por minha esposa, para que ela volte a ser o que era antes, quando éramos tão felizes. Quero ver um sorriso no rosto do meu filho e no da minha mulher; aí, sim, ficarei satisfeito. Estávamos emocionados com os sentimentos daquele homem que, exteriormente, parecia ser tão rude, mas por dentro tão terno, amoroso e dedicado à família. Henrique dirigiu-lhe um olhar enternecido, enquanto nos esclarecia:
- Eis a razão de nossa presença nesta casa. As súplicas deste homem, veementes e sinceras, endereçadas ao nosso Mestre Jesus, alcançaram seu objetivo, e fomos designados para ajudar. Por isso estamos aqui.
Nesse instante, Lúcio preparava-se para retornar ao serviço. Henrique aproximou-se dele, envolvendo-o em vibrações revigorantes, e falou-lhe ao ouvido com carinho:
- Meu amigo Lúcio, tenha confiança e guarde a certeza de que Jesus atende sempre as orações que lhe são encaminhadas, quando sérias e justas. Mantenha o pensamento elevado e o bom ânimo, e Deus o sustentará. Continue firme no cumprimento do dever. Vá em paz, sob as bênçãos do Senhor.
As palavras ditas por Henrique alcançaram-no em forma de sugestões benéficas, reabastecendo-o de energias e de esperança. Reconheceu-se mais fortalecido e, intuitivamente, guardou a certeza de que tudo começaria a melhorar desse dia em diante. Lúcio saiu de casa e nós continuamos ali reunidos. Era hora de conversarmos e estabelecermos um plano de ação.

30 - NO SÍTIO

Nos dias subseqüentes, permaneceríamos em contato com a família de Fábio para aumentar nossas ligações psíquicas e favorecer a sintonia. Procurávamos inteirar-nos de todas as facetas do caso, com vistas a uma melhor observação e a um socorro mais eficiente. Sem essa aproximação, ficaria mais difícil nosso trabalho. Na primeira noite, utilizamos o tempo para conhecer os componentes da pequena família, buscando entender as atitudes, absolutamente diversas, de cada um durante o sono.
- Observem - alertou-nos Henrique. Dora havia deixado o veículo corpóreo com os olhos fixos, como se focalizados em algo que não estávamos vendo. Alucinada, passou por nós sem detectar-nos a presença, ganhando a rua.
A um sinal de nosso orientador, Viviane e Alberto a seguiram. Logo mais foi a vez de Fábio. Assomou à porta do quarto, sorriu ao ver-nos, cumprimentou cada um, gentil; depois, alegando trabalho urgente, despediu-se. Não pudemos deixar de notar que parecia mais velho, muito mais maduro, seguro de si e determinado. Em seguida surgiu Lúcio, demonstrando grande alegria com a nossa presença. Revelava alguma experiência e certa desenvoltura na esfera espiritual.
- Sei que são amigos e aqui estão para nos ajudar. Tenho orado a Jesus, suplicando socorro e discernimento diante das dificuldades.
- No que agiu muito bem. Deus é Pai e jamais estamos desamparados, Lúcio. A Providência Divina nos dispensa profundo amor, notadamente quando estamos atravessando as maiores dificuldades. Jesus está conosco sempre - afirmou Henrique.
- A presença de vocês é uma prova disso. Agradeço-lhes.
Começamos a conversar, trocando idéias e informações. Pouco tempo depois, Germano avisou que ia sair com Lúcio. O velhinho, mais experiente, tinha programado uma excursão de adestramento para o familiar encarnado. Acenaram com as mãos, despedindo-se, enquanto Germano explicava:
- Logo estaremos de volta! Vou levar Lúcio para visitar um velho conhecido.
Mal eles saíram, Alberto e Viviane retornaram. Perplexos, relataram-nos o que tinha acontecido:
- Quando Dora deixou esta casa, imediatamente a seguimos. Logo que chegou à via pública, vimos aquele companheiro, já nosso conhecido, que a esperava. Dirigiram-se para um local de baixíssima condição e entraram - disse Viviane.
- Ainda tentamos evitar que ela se jogasse naquela aventura, mas foi impossível - afirmou Alberto, decepcionado. - Parece que a ligação deles é muito forte e antiga.
- Debalde lhe sugerimos o retorno ao lar, lembrando-lhe a presença do marido e do filhinho. Ela, no entanto, se transformara em outra pessoa. Estava completamente fascinada por aquele homem. Nossa presença era inútil e achamos melhor voltar, deixando-os entregues a si mesmos - completou Viviane.
Cheio de compaixão e sem demonstrar surpresa, Henrique concordou:
- Fizeram bem seu trabalho. Nesse momento, não adiantaria chamar nossa irmã ao cumprimento do dever. Ela não teria condições de escutá-los, e seu comparsa muito menos. Não se preocupem, teremos tempo para agir.
Algumas horas depois, Dora retomou. Vinha cabisbaixa, preocupada e inquieta. Novamente passou por nós, dirigiu-se para o quarto, mergulhando no corpo físico.
Foi a última a retornar. Todos acomodados, entramos no aposento do casal, a convite do avô, para orarmos em benefício de Dora. Henrique e Germano a auxiliaram com aplicações de energias balsâmicas, de forma que pudesse despertar mais tranqüila. Na manhã seguinte, a família decidiu ir para o sítio de uns amigos. Era sábado, estavam de folga e queriam aproveitar o final de semana. Toda vez que se sentiam cansados, o sítio representava um oásis de paz e de reabastecimento para eles. A expectativa do encontro com amigos muito queridos, o ambiente fraterno, a convivência agradável, o local aprazível, tudo colaborava para que esperassem ansiosos essa oportunidade. Naturalmente, nós os acompanhamos. Tomaram um ônibus intermunicipal, repleto àquela hora do dia. Repleto literalmente. Os encarnados faziam-se acompanhar de outros tantos desencarnados, o que tornou o ambiente pesado e asfixiante. Vimos imagens extremamente tristes e degradantes, que não nos é lícito descrever. Ainda bem que, quarenta minutos depois, o ônibus parou no meio da estrada e descemos. Olhei de um lado e de outro. Tudo deserto. Cogitei sobre o que teríamos vindo fazer ali, naquela solidão. Nisso, eles tomaram uma estradinha meio encoberta pelas árvores, que eu ainda não percebera. Caminhamos uns dois quilômetros por terra batida. A paisagem tinha mudado e a psicosfera completamente diferente daquela que sentíramos no ônibus. A estrada, ladeada por grandes árvores, tornou nosso trajeto bastante agradável. Nossos amigos iam na frente, conversando. Curiosa, Viviane indagou:
- Henrique, qual a finalidade da nossa presença nesse sítio?
Um tanto misterioso, ele respondeu de forma evasiva:
- Aguarde e verá. Estamos chegando.
Realmente, logo em seguida, depois de uma curva, vimos uma casa. De madeira, singela, mas simpática. Lúcio chamou:
- Ô de casa!
Em pouco tempo, uma cabeça de mulher assomou à janela. Espantada ao ver os recém-chegados, sorriu e gritou:
- Sejam bem-vindos! Que surpresa agradável!
Saiu da casa e abraçou todos, demonstrando real alegria. Seu sorriso era cativante; nos olhos, claros e límpidos, vimos sinceridade. Era uma alma boa.
- Vamos entrar. Olhem, ainda ontem eu disse ao Maneco que estava com o pressentimento de que vocês viriam hoje!
- Pois acertou, Marieta. Aqui estamos nós! Onde estão todos?...
- Bem, Maneco está na horta. Janaína está com ele. Ela gosta de ajudar o pai. E o bebê está dormindo.
Fábio, ao saber que Janaína estava com o pai, perguntou:
- Tia Marieta, posso ir na horta?
- Claro, Fábio. Você conhece o caminho. Janaína ficará contente em vê-lo.
- Espere, meu filho, também vou - disse Lúcio; depois completou, dirigindo-se às mulheres: - Talvez possa ajudar o Maneco em alguma coisa.
- Ótima idéia. Certamente sua ajuda será bem-vinda. Enquanto isso, ficaremos colocando a prosa em dia e preparando o almoço - concordou Marieta, risonha, levando a amiga para dentro de casa.
Nós acompanhamos Lúcio e Fábio até a horta. Quando chegamos, Maneco colocava a vara num tomateiro. A menina, agachada a seu lado, ajudava o pai, passando-lhe as varetas, quando necessário. Levantando a cabeça, viu Fábio e Lúcio que se aproximavam. Sorridente, ela exclamou:
- Fábio!...
No sorriso radiante e no olhar percebemos o quanto ela gostava do garoto. Largando tudo, correu para abraçar o amiguinho que chegava; já seu pai, limpava as mãos nas calças para cumprimentar Lúcio. Enquanto os adultos conversavam, Janaína ficou entretida com Fábio. Era uma menina de uns cinco anos, bonita e viva. A pele bronzeada de sol e os cabelos, pretos e lisos, com uma franja cobrindo a testa. Notava-se uma grande ligação entre eles. O carinho de Fábio para com ela era tocante, bem como a admiração da pequena por seu amigo mais velho.
- Fábio, mamãe disse que você já vai na escola.
- Vou sim.
- Você gosta de ir na escola?
- Gosto muito, Jana.
- O que você faz lá?
- Aprendo a ler e a escrever. Faço continhas. Tomo lanche e brinco.
- Ah!... Também quero ir na escola. Mamãe disse que, quando eu crescer um pouco mais, vou poder ir.
- Isso mesmo. É bom estudar. A gente conhece outras crianças, faz muitos amigos...
- Ah!... Também quero ter muitos amigos.
Os dois ficaram calados, sentados à sombra de um chuchuzeiro.
- Fábio, sempre sonho com você.
- É? Eu também sonho com você. E parece de verdade!
- Mamãe disse que é de verdade!
- Como assim?
- Mamãe ensinou que, quando a gente dorme, a alma sai e vai para onde quer. Então, como gosto muito de você, tenho certeza de que vou procurar você.
A pequena Janaína disse essas palavras acompanhadas de um olhar de adoração tão evidente, que nos deixou comovidos.
- Vejam como as informações mais sérias e verdadeiras chegam até as pessoas - comentou Henrique, discretamente. Concordamos, admirados. Virei-me para Adriana, a meu lado, e percebi uma expressão estranha em seu rosto.
- O que houve'? - indaguei.
- Não sei, César. De repente, tive uma sensação inquietante. O olhar dessa menina para Fábio me incomodou. Como se eu já o conhecesse, já o tivesse visto em outra pessoa e em outro lugar. Não gostei. Como pode ser isso?
Henrique, que acompanhava as reações de nossa colega, interferiu:
- Continue, Adriana.
Naquele instante, olhando para nosso orientador, Adriana se deu conta de que finalmente estava acontecendo com ela. Um tanto assustada, passou o olhar pelo grupo e sentiu o nosso apoio vibratório. Então, mais encorajada, voltou-se para as crianças, que conversavam despreocupadas sem imaginar que estavam sendo observadas. Olhou para a pequena Janaína mais atentamente.
- Não se detenha na aparência exterior, minha amiga. Você sabe que isso que está vendo, o corpo físico, é apenas uma casca. Concentre-se, procurando enxergar mais além, para descobrir o porquê dos seus sentimentos - incentivou Henrique.
Esquecendo tudo que acontecia à sua volta, Adriana fixou a atenção na menina.
- Eu sei que não gosto dela. Sempre esteve entre mim e ele - afirmou repentinamente.
- Ele, quem? - perguntou Henrique.
- Ele. Não sei quem é.
- Observe com bastante cuidado.
Nisso, Adriana, como se tivesse mergulhado no passado, começou a descrever.
- Ela sempre esteve entre nós. Desde que conheci Rodolfo, sabia que ele fora feito para mim. Apaixonei-me à primeira vista. Logo, porém, percebi que Natália procurava seduzi-lo. Ela era minha irmã.
Adriana parou de falar por momentos.
- Continue - disse o orientador.
- Começaram a se encontrar às escondidas. Quando descobri, exigi que ele a deixasse.
Impossível, contestou ele. Eu a amo e vamos nos casar. Estamos noivos. Só falta tornar público o nosso compromisso. Deixei-me dominar pelo ódio. Indignada, furiosa, desejava acabar com eles. Incapaz de compreender o mal que me fizera, ele prosseguiu:
- Não me queira mal, Loreta. Jamais lhe dei qualquer esperança.
- Nós nos amávamos! - afirmei convicta.
- Não! Nunca! Sempre fomos bons amigos.
- Você não saía de nossa casa, estávamos sempre juntos...
- Perdoe-me. Queria aproximar-me de Natália, a quem sempre amei - justificou-se.
- Você é um canalha! Enganou-me! - protestei com expressão de desprezo.
Cheio de dignidade, ele retrucou:
- Não. Você é que preferiu enganar-se.
Separamo-nos naquela hora. Entre nós não havia mais o que dizer. Contudo, a ira crescia dentro de mim. Não deixei que os outros percebessem o que me ia dentro da alma. Bastava a humilhação de ter-me rebaixado diante de Rodolfo. Quando Natália ficou noiva, suportei com aparente estoicismo sua felicidade, afivelando uma máscara no rosto e impedindo que todos vissem meus reais sentimentos. Intimamente, todavia, planejava uma vingança. Não suportaria a visão da felicidade deles. Jamais! Então, depois do casamento, procurei uma mulher, na periferia da cidade, famosa por suas poções e ervas medicinais. Manipulava as plantas como ninguém. Curava doenças com suas ervas, fazia filtros do amor e, dizia-se à boca pequena, ajudava mulheres a se libertarem de uma gravidez indesejada. Não raro, provocava a morte também de algum inimigo de seus clientes. Era muito procurada na calada da noite. Tudo isso as pessoas falavam, mas ninguém conseguia provar nada. Adriana pareceu titubear. Expressão de grande sofrimento misturou-se às lágrimas que lhe desciam pela face. Tapou o rosto com as mãos, agitando a cabeça. Desejava evitar a visão terrificante de seus atos.
- Prossiga, Adriana. Liberte-se desse peso - disse Henrique com doçura.
Pouco depois, limpando as lágrimas, ela continuou:
- A princípio, aquela mulher negou-se a me ajudar. Depois, por uma pequena fortuna, passou-me as ervas venenosas que me libertariam da presença da rival. Preparei um chá, alegando que era bom para o estômago. Natália, que sofria muitas dores nesse órgão, agradecida, ingeriu-o confiante. Em poucas horas minha irmã morreu. Ninguém ficou sabendo o que tinha acontecido. Naquela época era muito comum as pessoas morrerem com diarréia e vômitos. Assim, ninguém desconfiou, e o médico, chamado às pressas, nada pôde fazer. Todos acreditaram que minha irmã comera alguma coisa que lhe fizera mal. Rodolfo ficou desesperado, e eu o consolei. Ao contrário do que eu pensava, ele nunca quis saber de mim. Fiel a seu amor por Natália, jamais se casou de novo.
Parando de falar, Adriana soluçava convulsivamente. Nisso, seu olhar se desviou e deu com Fábio. Só a partir desse instante, atônita, ela o reconheceu.
- Rodolfo?...
Henrique colocou-lhe a mão no ombro, confirmando:
- Sim, Adriana. Rodolfo, que você tanto amou... E que retorna como Fábio em nova encarnação.
- Não é possível! Como não o reconheci antes?
- Certamente não prestou muita atenção nele.
- É verdade. Estava preocupada com o momento em que chegaria a minha vez de encarar a verdade e não percebi que a resposta estava diante do meu nariz. E agora, Henrique?
- Agora temos que trabalhar com os dados que possuímos para ajudar a todos.
Adriana, lembrando-se da mãe de Fábio, perguntou:
- E Dora? Onde entra nessa história?
- Muitas outras experiências encarnatórias vocês tiveram. Dora é alguém com a qual vocês se envolveram através do tempo e que agora aí está, fazendo parte do grupo e lutando contra as próprias imperfeições - respondeu com sutileza.
- Compreendo. Pelo jeito, tenho sempre atrapalhado a vida de Natália e Rodolfo, não é?
- Nem sempre. Algumas vezes foi ela que, incapaz de perdoar, a prejudicou. Hoje, no entanto, é tempo de esquecer as ofensas e de reparar os erros cometidos.
- Certo, Henrique. Desejo fazer tudo o que puder para aproximar-me deles.
- Pois é exatamente isso o que estamos fazendo. Agradeçamos a Jesus esta hora bendita de esclarecimento - disse o orientador.
Então, ali, em meio às hortaliças, aos pés de couves e de alfaces, de repolhos e de cenouras, de tomates e de beterrabas, à sombra de um grande caramanchão de chuchus, elevamos o pensamento ao Mestre dos Mestres, gratos pelas oportunidades que estávamos tendo de burilarmos os nossos espíritos falidos e comprometidos com o passado e de repararmos as conseqüências dos nossos atos.

31 - CONFIDÊNCIAS

Não obstante o calor, a refeição transcorreu alegre e descontraída, à sombra das grandes árvores do quintal, onde as mulheres arrumaram a mesa. Após o almoço, enquanto as crianças brincavam no terreiro e os homens se recolhiam para tirar um cochilo, as mulheres ficaram descansando na ampla varanda, à frente da casa. De onde estavam, podiam ver os filhos brincando, despreocupados e felizes. O local era fresco e agradável. Sentadas em confortáveis redes, elas conversavam. Dora mantinha o olhar perdido ao longe, fitando a copa de uma frondosa árvore, onde retalhos do céu apareciam por entre as folhas agitadas pela brisa. Marieta observava a amiga discretamente. Afinal, não se conteve:
- Diga-me lá, Dora, o que está acontecendo com você? Apesar da aparente alegria, noto em seu rosto um certo ar de tristeza e preocupação. Mas não é só isso.
Sinto também que está tensa e angustiada. Se puder ser útil, amiga, sabe que pode contar comigo. A interpelada sorriu, agradecida.
- Eu sei, Marieta. Você é a melhor amiga que tenho. Aliás, a única.
- Então, vamos lá! Liberte-se desses sentimentos depressivos. Jogue tudo para fora e se sentirá melhor. É algum problema com seu marido?
- Lúcio? Não, absolutamente! Ele é um homem excelente. Apesar do aspecto rude, é marido dedicado como poucos.
- Então é com Fabinho? Como vai ele na escola? - insistiu Marieta.
- Fábio é inteligente e aluno aplicado. Não, não tenho problemas com ele.
- Então?...
Dora pareceu pensar por alguns segundos, depois confidenciou:
- Sabe Marieta, de algum tempo para cá, tudo vai mal. Minha vida está de pernas para o ar! Tudo está errado, sinto-me mal e não sei explicar o que acontece comigo. Perco a paciência por nada, brigo com Fábio, que tanto me ajuda e que não merece, pois é uma criança boa e gentil, responsável e prestativa. Lúcio me irrita profundamente. Eu o acuso de não ganhar o suficiente e de ser vagabundo, o que não é verdade. Além disso, você sabe que o trabalho nunca foi um peso para mim. Agora, no entanto, estou sempre cansada, sem vontade para nada. Sinto a cabeça confusa e dolorida. Não sei o que está acontecendo comigo! - desabafou, com os olhos úmidos e expressão sofrida de quem pede socorro.
Marieta, que ouvia sem interromper, aproveitou a pausa que se fizera mais longa para perguntar:
- Você tem orado, Dora?
Apesar de estranhar a pergunta, ela respondeu:
- Na verdade, não. Antes até conseguia fazer um pai-nosso ou uma ave-maria. Hoje não consigo.
E, como se só naquele momento se lembrasse de algo importante, prosseguiu:
- E não é só isso, Marieta. Tenho as minhas noites tumultuadas por pesadelos horríveis; vejo figuras estranhas e pessoas que me causam medo. Tem um homem em especial que me infunde temor; ao mesmo tempo, sinto-me fascinada por ele. Esse homem exerce um poder tão grande sobre mim que me obriga a atos que depois me deixam envergonhada. Acordo em péssimo estado, arrasada. O pior é que sinto como se tivesse alguém me seguindo o tempo todo. Como se essa criatura, que me horroriza e ao mesmo tempo me atrai, ganhasse vida e saísse dos meus sonhos, transportando-se para a vida real, e viesse fazer parte do meu dia-a-dia. Será que estou ficando maluca?
Marieta apertou a mão da amiga com carinho.
- Não, Dora. Você não está ficando maluca. Responda-me uma coisa: você acredita na imortalidade da alma?
- Como assim? - indagou a outra, assustada.
- Acredita em vida após a morte?
Dora se benzeu, arrepiando-se toda:
- Deus me livre e guarde! Não gosto de pensar, muito menos de falar em morte!
- Acredita ou não? - insistiu a outra.
- Bem, não sei. Sou católica, você sabe. Não sou praticante, mas acho que todos devemos ter uma religião.
- Muito bem. E o que a sua religião diz?
- Que quando o corpo morre a alma vai para o céu, para o inferno ou para o purgatório, dependendo da vida que levou.
- Exatamente. Mas, e se eu lhe dissesse que aqueles que já deixaram esta vida continuam convivendo conosco, participando das nossas existências e nos influenciando?
- Ah! Não sei, não. Você está falando de fantasmas?
- Isso mesmo. Fantasmas, como você diz, são Espíritos de pessoas que já habitaram a Terra e que agora se encontram numa outra realidade. Nunca ouviu falar sobre isso?
- Já. As pessoas no serviço comentam às vezes esses assuntos, mas confesso que procuro me afastar porque tenho receio. Não gosto de conversas sobre coisas do outro mundo.
Fez uma pausa, parecendo pensar por alguns momentos, depois confidenciou:
- Sabe que minha falecida mãe - que Deus a tenha! -contava histórias de seres do outro mundo? Lembro-me de que ela falava que via sempre o pai dela - meu avô Germano -, que tinha morrido!
Ouvir seu nome, evocado pela neta querida, deixou nosso amigo emocionado.
Vendo que o fitávamos, sorridentes, ele comentou:
- Além de agradável, a lembrança de nós pelos familiares encarnados facilita a sintonia vibratória.
Voltamos a prestar atenção no diálogo das senhoras. Marieta afirmava para a amiga:
- Viu? Então, não há motivo para ter medo. São seres humanos como nós, só não possuem mais o corpo de carne. Quando a gente morre, isto é, quando o corpo morre, o Espírito continua vivendo e tendo os mesmos sentimentos, gostando ou não das mesmas coisas e das mesmas pessoas. Você não acredita em anjo de guarda?
- Claro!
- Pois o chamado anjo de guarda é um espírito elevado que Deus designou para nos proteger durante a vida corpórea. Ele nos assiste, nos orienta, nos consola, nos protege nas dificuldades da existência. Só não têm asas como mostram as figuras.
Dora ouvia com interesse a amiga falar. Sorriu e perguntou:
- Onde você aprendeu todas essas coisas? Nunca me disse nada. Jamais passou pela minha cabeça que você se interessava por tais assuntos.
- Porque não houve oportunidade. Lembra-se daquela vez que o Gabriel esteve doente?
- Claro que me lembro. Ficamos todos muito preocupados com seu bebê. Ele era tão novinho ainda e já com tantas dificuldades!...
- Exatamente. Um dia, cansada de percorrer os consultórios médicos sem resultado satisfatório, resolvi aceitar a sugestão de uma vizinha, a Dona Vitória, que me aconselhou a procurar um centro espírita. A princípio, relutei, mas meu desespero era tanto que, vencendo a resistência íntima, fui e levei o Gabriel. Nem contei para o Maneco, com medo de que ele me impedisse de ir. Pois olha, o bebê recebeu um passe e logo começou a melhorar. Levei-o mais três dias para receber a aplicação de energias, e ele ficou completamente curado. A partir daí, procurei estudar o Espiritismo, para entender o que tinha acontecido com meu filhinho, como me orientaram. Lá me emprestaram alguns livros, que li rapidamente, tão interessantes eram. Depois disso, todas as vezes que vou à cidade, visito a casa espírita e adquiro livros, não só para ter o que ler, como para aumentar meus conhecimentos.
- Mas, e o Maneco? - indagou a amiga, preocupada.
- Agora ele já sabe o que aconteceu. Contei-lhe tudo e ele entendeu. Também gosta de ler e, sempre antes de dormir, lemos juntos.
Dora estava abismada. Percebia que o assunto era sério; caso contrário, sua amiga Marieta, por quem sempre tivera profunda admiração, não se interessaria. Perguntou:
- Voltando ao meu caso, o que está acontecendo? Por que me sinto tão mal? Por que mudei tanto?
- Dora, para nós, espíritas, céu, inferno e purgatório são apenas estados de espírito. Na verdade, aqueles que já deixaram esta vida, convivem conosco, fazem parte da nossa existência, influenciando-nos os pensamentos e as ações. Dessa forma, vivemos cercados de Espíritos que gostam, ou não, de nós, de acordo com nossa maneira de proceder. Por isso, é muito importante mantermos a elevação do pensamento. Orarmos. Procurarmos viver de forma útil e equilibrada, pensando apenas no Bem.
- Mas, se não consigo orar, o que fazer?
- Não se preocupe. Vai conseguir. Olhe, se vocês aceitarem, podemos fazer, hoje à noite, uma prece em conjunto. É o dia do nosso Evangelho no Lar. Que tal?
- Aceito com prazer. Sabe, já estou me sentindo bem melhor só de falar com você.
- Porque toda conversa edificante atrai bons Espíritos. Certamente, amigos desencarnados aqui estão participando da nossa prosa.
Dora olhou em torno, assustada.
- Tem certeza? Olhe como estou arrepiada, só de pensar!
Marieta sorriu, achando graça.
- Não se preocupe. Eles são nossos amigos e só querem o nosso bem. Não há razão para ter medo.
Dora levantou-se da rede, olhando para os lados, ainda ressabiada, e justificou-se:
- Vou ver se Lúcio acordou. Afinal, ele não veio aqui para dormir!
Sorrimos do comportamento dela. Percebemos que dera uma desculpa para poder sair da varanda, onde não se sentia à vontade só de imaginar que ali também poderia haver fantasmas...
Henrique ausentou-se o resto da tarde. Antes de partir, avisou:
- Aproveitaremos esta noite para agir. Fiquem e observem, ajudando no sentido de manter a conversação dos encarnados em níveis elevados e saudáveis.
Horas depois, ao anoitecer, percebemos que muitas pessoas estavam chegando.
Eram Espíritos necessitados, de condições diferentes entre si, que vinham acompanhados de servidores do nosso plano. Entre estes, dois se destacavam. Simpáticos e sorridentes, denotavam elevação maior e comandavam a operação. O mais jovem era Samuel; o outro, que aparentava uns cinqüenta anos, Rinaldo. Ambos demonstravam a mesma disposição e alegria no trabalho. Germano apresentou-nos aos recém-chegados:
- Estes são nossos amigos Alberto, Viviane, Adriana e César Augusto, que chegaram de Céu Azul em tarefa de auxilio. Eles nos cumprimentaram com simpatia e entusiasmo.
Rinaldo, o mais velho, que visivelmente ocupava posição de chefia, disse:
- Henrique já nos informara da presença de vocês. É sempre uma satisfação recebermos visitas em nosso modesto trabalho.
- Especialmente quando podem nos ajudar, como é o caso de vocês - completou Samuel, rindo.
- Estamos aqui para o que for preciso! - disse eu.
Continuamos a conversar, e não contive minha curiosidade:
- Rinaldo, de onde vêm todos esses espíritos?
- De toda a região. Como você vê, César Augusto, estamos na zona rural, onde existem muitas pequenas propriedades. Começamos a arrebanhar o pessoal algumas horas antes, de modo que, à hora da reunião, estejam todos presentes.
- Posso perceber que são muito necessitados - comentei.
- Necessitados, sim. Contudo, em níveis diferentes. Veja: Alguns são nitidamente sofredores, precisando de atendimento especial; outros, apenas irmãos em aprendizado, que se encontram na região e comparecem para participar da reunião.
- Entre eles, não vejo a presença de Espíritos mais rebeldes e endurecidos - estranhou Alberto.
- De modo geral, não são admitidos neste trabalho; só em casos excepcionais. É preciso preservar a casa de uma família, cujos moradores nem sempre têm grandes possibilidades de defesa. O ambiente do lar difere do de um centro espírita, preparado para receber todo tipo de entidades. Assim, procuramos trazer apenas aqueles irmãos que não denotem vibrações de ódio, vingança, revolta e agressividade, e que possam realmente aproveitar a oportunidade que lhes é concedida.
Enquanto conversávamos, os demais servidores trabalhavam, cada qual em função específica, preparando o ambiente e acomodando os visitantes. Rinaldo, observando todos os detalhes como dirigente experimentado, completou:
- Como podem ver, a finalidade dessa reunião evangélica é oração, consolo, ajuda, orientação, esclarecimento, elevação do pensamento.
Alguns minutos antes do início das atividades, marcado para as dezenove horas, Henrique chegou trazendo um irmão necessitado que destoava do conjunto pelas vibrações pesadas e escuras. Era o mesmo que tínhamos visto acompanhando Dora em seu lar. O responsável pela reunião não demonstrou surpresa. Por certo tinha conhecimento do fato, porque, logo em seguida, foram tomadas as providências para isolá-lo dos outros participantes. Henrique e Rinaldo o envolveram em substâncias refratárias, emanações essas que o manteriam apartado vibratoriamente, de forma que não contaminasse o ambiente. O nosso grupo, atento, acompanhava as operações. Quando terminou, Rinaldo virou-se para nós, sorridente, explicando:
- Há pouco afirmei que, em princípio, não permitimos o ingresso de irmãos mais endurecidos no mal. Como podem ver, esta é uma exceção.
Olhou para um dos servidores postado ali perto:
- Tudo pronto, Herval?
- Sim. Tudo em ordem.
- Então, podemos dar início à reunião, com as bênçãos de Jesus!

32 - EVANGELHO NO LAR

No plano material, encontravam-se presentes poucas pessoas. Na sala, em torno de mesa rústica, apenas os donos da casa, Maneco e Marieta, e os filhos, Janaína e o pequeno Gabriel, no colo da mãe, além dos hóspedes, Lúcio, Dora e Fábio. O ambiente espiritual, porém, encontrava-se repleto. As paredes da casa como que se afastaram para acolher todos os necessitados, que foram acomodados em cadeiras dispostas em círculo. Como foco central a mesa onde estavam os nossos amigos encarnados, que jamais poderiam supor tal assistência. Na hora aprazada, deu-se início à reunião. Com simplicidade tocante, Marieta fez a prece de abertura, agradecendo de maneira especial a bênção da presença, nessa noite, dos amigos da cidade. Depois, entregando o Evangelho a Dora, pediu:
- Abra ao acaso. Vamos ver o que Jesus nos reservou para hoje.
Vimos Rinaldo aproximar-se e, colocando a destra sobre as mãos de Dora, direcionar a abertura do livro. Ela leu:
- Reconciliai-vos o mais depressa possível com o vosso adversário, enquanto estais com ele a caminho, para que ele não vos entregue ao juiz, o juiz não vos entregue ao ministro da justiça e não sejais metido em prisão. - Digo-vos, em verdade, que daí não saireis, enquanto não houverdes pago o último ceitil. (Mateus, Capítulo 5º, versículos 25 e 26)
E Dora leu também, com emoção crescente, a bela página Reconciliação com os adversários, comentário de Allan Kardec ao texto evangélico, que se encontra inserido no Capítulo 10º (Bem-aventurados os que são misericordiosos) de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Aquelas palavras pareciam estar sendo ditas especialmente para ela. Quando terminou de ler, tinha os olhos úmidos. Marieta passou o olhar sereno sobre a pequena assistência:
- Alguém deseja fazer algum comentário?
A pequena Janaína perguntou:
- Mamãe, o que é re... reconciliação?
Com imenso carinho, Marieta explicou:
- Reconciliação é fazer as pazes, ficar de bem.
- Isso eu faço. Às vezes, brigo com uma amiguinha. Depois me arrependo e faço as pazes com ela! E adversário?
- Adversário é alguém que se considera nosso inimigo, isto é, o contrário de amigo. Enfim, alguém que não gosta de nós.
A pequena pensou um pouco e falou:
- Ainda bem, mamãe, que não tenho inimigos. Gosto de todo mundo!
O comentário fora dito com tal expressão de gravidade que todos acharam graça, tendo em vista a pouca idade da menina. Até Gabriel, que brincava com um carrinho no colo da mãe, riu, acompanhando os demais. Fábio, que se conservava pensativo, lembrou:
- Outro dia, na saída da escola, meu amigo Zuza trombou sem querer com outro colega, o Horácio, e pisou no pé dele. Horácio ficou muito bravo e deu um murro no Zuza. Mas, quando o Horácio se virou, tropeçou na mochila e levou um tombo. Aí ficou com mais raiva ainda, porque todos riram dele! Mas o Zuza ficou com pena dele e estendeu a mão, pedindo desculpas e dizendo que não pisou no pé dele por querer. Horácio levantou, cheio de vergonha, e foi embora.
- E ele perdoou o Zuza? - quis saber a garotinha.
- Naquele dia, não. No dia seguinte, porém, estava arrependido e foi conversar com o Zuza. Então, fizeram as pazes e continuaram a ser amigos!
Os adultos ouviam com muita atenção a história de Fábio, que bem exemplificava a lição da noite. Marieta comentou:
- O fato que Fábio contou ilustra muito bem a passagem evangélica. Se Zuza tivesse tido outra atitude, se tivesse rido de Horácio, o que teria acontecido?
- Teriam ficado inimigos! - disse Janaína, orgulhosa por ter aprendido a lição.
- Isso mesmo, minha filha. E teria aumentado a distância entre eles, tornando difícil que voltassem a ser verdadeiros amigos. E quanto mais o tempo passasse, o relacionamento só tenderia a piorar. Por isso, Zuza agiu muito bem, colocando em prática a lição de Jesus, que manda nos reconciliemos com o adversário enquanto ele está no nosso caminho.
Naquele momento, o pequeno Gabriel agitou-se, levantando os bracinhos e tentando puxar os cabelos da irmã, que estava ao lado.
- Ainda bem que eu não ligo quando o Gabriel bate em mim, puxa meus cabelos e belisca o meu braço! - falou Janaína muito séria.
- Isso mesmo, querida! - concordou Maneco. - Afinal, Gabriel é quase um bebê e não sabe o que faz, não é? Ele não faz por mal e gosta muito de você.
Todos riram do comentário da menina. Marieta prosseguiu:
- Geralmente, as pessoas partem desta vida para outra levando mágoa e conservando o coração em vinagre. Ressentimento é ácido corrosivo que destrói as melhores intenções. Nesse caso, a reconciliação fica muito difícil. Em virtude disso, devemos sempre procurar entender aqueles que não nos querem bem. Somos criaturas cheias de defeitos, temos muitos problemas e sempre necessitamos da compreensão alheia para com nossas imperfeições. Como ficamos felizes quando alguém desculpa nossos erros, sem alarde... Assim, da mesma forma, é preciso aprender a respeitar, a ter paciência, tolerância com aqueles que nos cercam, como desejamos que façam conosco, porque, muitas vezes, somos nós os agressores. Aprender a perdoar, não sete vezes, mas setenta vezes sete vezes, como ensinou Jesus. Somos geralmente muito severos com o nosso próximo e bastante indulgentes com os nossos erros. Sempre com a razão, o Mestre nos orienta para fazer aos outros tudo o que gostaríamos que os outros nos fizessem, como regra de bem viver.
Estava admirado com os conceitos emitidos pela dona da casa, senhora da roça e sem instrução, quando percebi que elos luminosos tenuíssimos ligavam sua mente à de Rinaldo, posicionado de pé a pouca distância de Marieta. Nesse momento, Dora lembrou-se dos pesadelos que vinha tendo durante a noite e, na tela da memória, reviu a figura do homem que tanto a perturbava. Sentiu que a lição evangélica fora dirigida especialmente a eles, como se ambos necessitassem de perdão recíproco. Embora sem entender, teve a certeza de que ele estava presente. Como pode ser isso? - pensou, não contendo as lágrimas. Na Espiritualidade, detectando seu pensamento, busquei com o olhar a estranha criatura, que se conservava contida num canto do ambiente. A essa lembrança, o obsessor se agitou e tentou soltar-se, no que foi impedido por um dos auxiliares. Henrique, a meu lado, falou em voz baixa:
- Percebeu a sintonia que existe entre eles? Bastou leve emissão mental da parte de Dora para que ele se ligasse a ela novamente. Por isso é tão difícil separarmos seres que têm afinidade entre si. Trata-se, não raro, de grande violência cometida contra eles. Assim, na execução da nossa ajuda, precisamos agir com muito cuidado e discernimento.
Concordei com leve gesto de cabeça; todavia, desejava mais esclarecimentos. Antes que ensaiasse alguma pergunta, Henrique respondeu:
- Agora não, César. Mais tarde conversaremos sobre o assunto. Ouçamos! - e indicou com os olhos a reunião que prosseguia entre os encarnados.
Nesse momento, Maneco, que ouvia calado, lembrou:
- Como agricultor, gosto de examinar o exemplo da Natureza. Quando podamos uma árvore, cortando seus galhos, ferindo-a, ela responde à nossa agressão com ramagem ainda mais bela. Ao rasgarmos a terra por ocasião do plantio, revolvendo-a e causando-lhe sofrimento, ela nos brinda com brotos novos e tenros, transformando-se o solo árido em tapete verdejante. Por que não acatarmos essas belas lições da Natureza, transportando-as para a nossa vida? Com certeza, seremos melhores e mais felizes.
- Exatamente. Assim, diante de qualquer problema, lembremo-nos das lições do Evangelho, que são luzes em nossas vidas, indicando-nos a resposta para todas as situações - completou Marieta.
Após uma pausa, ela indagou:
- Alguém deseja fazer mais algum comentário? Não? Então, creio que é hora de encerrarmos nossa reunião. Elevemos os nossos pensamentos a Jesus.
Com uma prece sentida, a dona da casa deu por terminada a atividade evangélica.
Do Alto, bênçãos de luz vertiam sobre os presentes, impregnando todos de paz e bem-estar. Muitos desencarnados quedaram-se em lágrimas, sob forte emoção, atingidos em suas fibras mais profundas. Durante os comentários, servidores do nosso plano aplicaram passes nos presentes, tanto nos encarnados quanto nos desencarnados. Muitos foram ajudados, conseguindo, graças ao clima saturado de vibrações amorosas e dulcificantes, ser levados para instituição socorrista, onde receberam o atendimento necessário. Outros, contudo, deixaram a casa ainda centrados no monoideísmo que cultivavam, incapazes de se desligar da família e do ambiente doméstico, ao qual já não pertenciam fisicamente. Assim que os necessitados foram embora e a sala se esvaziou, as coisas voltaram à normalidade. Somente nós ali permanecemos, juntamente com os Espíritos familiares da casa. De modo geral, o trabalho fora pródigo em resultados benéficos. No nosso plano, satisfeitos, nos entretivemos em alegre palestra. Logo após a atividade evangélica, Marieta colocou uma toalha na mesa e serviu um ligeiro lanche, composto de chá, leite, biscoitos e pão caseiro, além de manteiga e queijo do próprio sítio. Os encarnados, satisfeitos e alegres, trocavam idéias sobre a reunião. Os hóspedes tinham gostado muito. Lúcio, que ainda se mantinha emocionado, comentou:
- Nem sei como agradecer-lhes a oportunidade de ter participado do culto. Asseguro-lhes que nunca tive tão grande sensação de paz e de bem-estar. Parece-me ter encontrado hoje algo que venho buscando há longo tempo.
Fábio sugeriu:
- Papai, mamãe, não poderíamos fazer uma reunião assim lá em casa? Acho que estamos precisando!
Lúcio concordou:
- Claro, meu filho. É uma excelente sugestão. Tenho certeza de que o ambiente em nossa casa ficará mais leve e agradável, como este que estamos sentindo.
Dora não disse nada, mas no íntimo reconhecia as bênçãos da oração. Todo o mal-estar desaparecera, bem como a angústia, a insatisfação, a ansiedade, que não a deixavam nunca. Sentia-se mais leve, conseguia pensar com maior clareza e - fato interessante - a dor de cabeça constante tinha sumido!... Não demorou muito, todos se recolheram. Cansados das atividades do dia, logo estavam dormindo. Aos poucos, desligando-se do veículo corpóreo, vinham para o nosso plano, trazendo as próprias condições. Auxiliados por nós, seus amigos espirituais e familiares desencarnados, pressentiam a importância do momento, conquanto alguns não atinassem com o que estava acontecendo. De modo geral, todos estavam bem e conversavam entre si, surpresos por se reencontrar. Dora, preocupada com seu problema, custou a dormir e foi a última a chegar. Estranhou o ambiente.
- O que está acontecendo? - indagou.
- Fique tranqüila. É apenas uma reunião de amigos - assegurou-lhe Henrique.
- Amigos? Mas por que vejo tanta gente estranha? - perguntou novamente, meio inquieta, perpassando o olhar sobre nós, que sorríamos para ela.
- Também são seus amigos. Aguarde mais um pouco. Logo terá todos os esclarecimentos que desejar.
Alguns minutos depois, Rinaldo fez um leve sinal para Henrique, que, chamando a atenção dos presentes, deu por iniciada a reunião.
- Meus irmãos, que Jesus nos abençoe o propósito de servir!

33 - LEMBRANDO RESPONSABILIDADES

Todos estavam ansiosos para saber o motivo da reunião. Henrique, fixando os olhos calmos e lúcidos nos presentes, informou:
- Nosso objetivo, nesta oportunidade, é conversar e reencontrar o passado.
Desfazer dúvidas, aclarar idéias e relembrar o que nos compete realizar, segundo o planejamento reencarnatório feito com nossa anuência, antes do mergulho na carne. Os presentes mostravam-se intrigados. O que estava para acontecer? O que se esperaria deles? Intuitivamente, porém, sentiam que essa hora revestia-se de grande importância para seus Espíritos. Nosso orientador prosseguiu:
- Sejamos gratos à Espiritualidade Maior, que nos permitiu este encontro como forma de auxílio a todos os implicados no caso.
Com os olhos esgazeados, que denotavam seu estado emocional, atormentada por forte sentimento de culpa, Dora espraiou o olhar pela assistência, detendo-se na figura feia e de expressão torturada que se postava a um canto do recinto. Reconheceu-o imediatamente.
- Ó maldito! Até aqui me persegue? Não conseguirei nunca livrar-me de sua figura horrenda?
Desligada do veículo corpóreo, Dora retomou a lembrança de tudo o que lhe vinha acontecendo todas as noites durante o sono e do comportamento que vinha mantendo. E reconhecia-se culpada perante sua consciência e perante os demais familiares e amigos, especialmente o marido, ali presente, e que parecia fitá-la com ar acusador. Sentia-se como que uma ré num tribunal. Apontando o infeliz, que se encolhia de encontro à parede, acusou-o diante de Henrique, que supôs fosse o juiz:
- Senhor, é ele o responsável por tudo. Tem-me perseguido tenazmente e encarcera-me em sua vontade poderosa. Sua força descomunal me domina e me vejo fraca e indefesa em sua presença. Acusa-me e tortura-me sem cessar. Agora, não contente em perseguir-me durante a noite, resolveu invadir outros períodos do dia, perturbando-me o sossego. Em vista disso, não tenho mais paz nem alegria. Eu o odeio! Eu o odeio! - gritava, soluçando convulsivamente, entregue a grande desequilíbrio.
Henrique aproximou-se dela com carinho e piedade.
- Minha irmã, tranqüilize-se. Nem eu, nem ninguém está aqui para julgar seus atos, ou os de quem quer que seja. Desejamos apenas esclarecer alguns pontos obscuros, o que será de grande benefício para todos. Somos seus amigos e nosso objetivo é tão-somente ajudá-la. Acalme-se e confie.
Sob os eflúvios que emanavam do instrutor, e ouvindo-lhe as palavras serenas, Dora respirou fundo, procurando readquirir o equilíbrio emocional. Enquanto isso, vendo-se apontado pela mulher e recebendo em cheio suas acusações, o infeliz reagiu violentamente:
- Sua víbora! Serpente venenosa que agasalhei e nutri em meu peito! Você me acusa de persegui-la e de torturá-la. Não sabe o que diz. Por tudo o que me fez, você merecia muito mais, miserável! Ou não se recorda do quanto sofri por sua culpa? Você pode enganar quem quiser, mulher infame, mas não a mim! Sou Azambuja, lembra-se? Conheço-a de sobejo e sei todos os seus truques.
Aquelas palavras acusadoras e o tom com que foram ditas fizeram com que o tênue véu que encobria o passado fosse retirado, e Dora, entre o espanto e o temor, exclamou:
- Azambuja?...
- Sim, sou eu mesmo! Eu, que aqui estou para cobrar tudo o que você me deve!
- Mas... Mas... Está tão diferente... Não o reconheci com essa aparência... - gaguejou, a tremer nervosamente.
- Por certo. Já não me apresento mais com elegância, como antigamente. Os trajes luxuosos, as jóias, o penteado cuidadoso... Tudo isso ficou no passado. Esta é a aparência que você me deu. Desde aquela época, há tanto tempo, estou assim... - disse, com refinada ironia.
Fez uma pausa e riu com sarcasmo:
- Lembra-se de como mandou matar-me? Ordenou a seu criado de confiança que me destruísse a vida e depois, para que não ficassem vestígios comprometedores, me queimasse o corpo. Pois foi exatamente o que ele fez. Aquele miserável que ali está, Basílio!
Com o dedo em riste, apontou para Lúcio, que, olhos esbugalhados, ouvia tudo, retornando no tempo e recordando-se também dos acontecimentos narrados. Enquanto Azambuja falava, pela mente de Lúcio passavam as cenas descritas, que ele tão bem conhecia. Depois de matar o infeliz, viu-se arremessando o que restava do corpo por uma ribanceira, onde nunca seria encontrado. Invadido pelas lembranças, Lúcio soluçava convulsivamente, balançando o enorme corpo.
- Perdoe-me, Azambuja! Estou muito arrependido. Perdoe-me! - dizia Basílio-Lúcio.
- Não merece o meu perdão, miserável. Cúmplice dela, destruiu-me a vida para evitar que contasse a verdade a Fernando, o marido: que eu e ela éramos amantes.
O menino Fábio, que também se lembrava naquele instante do drama vivenciado no século passado passou a ter aparência de Fernando, um nobre em plena madureza física, elegante e bem vestido. Aproximou-se deles, ponderando:
- Azambuja, há muito não ignoro os fatos que está a relatar. Embora traído e também assassinado posteriormente pela sanha ambiciosa de Genoveva, a esposa que não pôde esperar minha morte para herdar-me a fortuna, recuperei-me no mundo espiritual e compreendi, após muito sofrimento, que me competia perdoar aos meus algozes. Por isso, recebemos de Deus a bênção de renascermos para uma nova experiência na carne. Só você não aceitou a oportunidade que lhe era oferecida na ocasião, por se conservar cheio de ódio e de desejo de vingança.
Enquanto Azambuja, diante das palavras ponderadas e ternas de Fernando-Fábio, mudava lentamente o teor mental, atingido pelas vibrações amorosas do grupo, Fábio prosseguiu:
- Sob as bênçãos do Altíssimo, estamos aqui para nos entender. Basta de desavenças e de mágoas. Façamos as pazes e nos tornemos amigos. Nada tenho contra você. Todo o mal que me fez recaiu sobre si mesmo. É, na verdade, hoje sei que eu não era uma vítima inocente. Segundo a lei de causa e efeito, merecia o que passei em virtude de compromissos anteriores, ligados a fatos ocorridos no século 17.
Quando Fábio disse essas palavras, Adriana, que, a meu lado acompanhava atentamente o diálogo, caiu em pranto. No silêncio que se estabeleceu, só se ouviam seus soluços. Buscando nossa amiga com os olhos, Fábio aproximou-se dela com ternura e a abraçou:
- Sim, Loreta, eu mereci o que passei porque também a fiz sofrer. Você tinha razão quando me acusava. Eu a iludi, fazendo-a acreditar que a amava, quando minhas intenções eram apenas aproximar-me de você para chegar até Natália. Confesso que também não a amava, embora me sentisse atraído por ela. Desejava apenas ficar com a fortuna dela.
- Não entendo, Rodolfo. Eu também era rica e o amava! - questionou ela.
- Menos rica, porém, que Natália. Eu tinha feito investigações e descobri que Natália era sua meia-irmã; que a mãe dela falecera deixando-lhe imensa fortuna.
Descobri também, conversando com o médico de Natália, que seu estado era grave e teria pouco tempo de vida. Como minha ambição não tinha limites, uni o útil ao agradável. Lamento profundamente, mas esta é a verdade.
- Meu Deus! - exclamou Adriana. - E eu que não sabia que Natália estava doente!... Cometi um crime sem necessidade e compliquei o meu futuro, tornando-me criminosa e culpada perante a lei divina.
Janaína se aproximou como Natália, vestida agora com trajes antigos e com a aparência de uma linda jovem. Adriana, que sob nossas vistas voltara à aparência de Loreta, olhou-a e suplicou:
- Será que algum dia poderá me perdoar, minha irmã?
Nos olhos de Natália percebia-se ainda mágoa e ressentimento, que ela fazia esforço para vencer. Inclinou a cabeça sobre os ombros de Rodolfo-Fábio, enquanto ele, envolvendo-a ternamente com o braço, suplicou:
- Minha querida, perdoe. Tudo isso já passou. Loreta hoje é outra criatura e luta para vencer a si mesma. O perdão é uma necessidade, porque todos precisamos do perdão uns dos outros. Houve época em que você também a prejudicou, lutando por mim, que, fraco, nunca soube decidir-me por uma ou por outra.
Natália-Janaína levantou a fronte e, em seus olhos úmidos, Loreta-Adriana percebeu que a animosidade tinha desaparecido do seu coração. Abraçaram-se com carinho, e, naquele momento - amparadas pelos amigos espirituais -, só se lembraram do tempo em que eram irmãs, quando tinham crescido juntas e dividido o mesmo quarto e os mesmos brinquedos. Achegando-se ao grupo, Dora também reconheceu seus erros:
- Natália, tenho minha parcela de responsabilidade, porque fui eu que forneci as ervas venenosas para Loreta. Perdoe-me. Não sabia o que estava fazendo.
Natália sorriu, envolvendo Dora num abraço.
- Nada tenho que perdoar. Tudo é passado. Hoje você é minha tia Dora e tem me conquistado com seu carinho.
Diante da presença de Fábio, ontem vítima, hoje filho querido, em quem reconhecia a superioridade moral e a grandeza de alma, sentiu a vacuidade dos laços terrenos, que nos encaminham para situações diferentes de acordo com as necessidades. Uma grande admiração por ele tomou conta de seu coração, por isso o abraçou, não apenas como filho amado, mas, sobretudo, como irmão de jornada terrena e credor de consideração e respeito. Ao entregá-lo a ela e a Lúcio, Deus lhes concedia a bendita oportunidade de reparação, competindo-lhes encaminhá-lo na vida e dar a ele o melhor de si mesmos. O ambiente se transformara. Cada um dos implicados nos dramas ocorridos nos séculos 17 e 19, com reflexos na época atual, mostrava-se disposto à modificação interior. Abraçavam-se, prometiam-se ajuda mútua, renovavam sentimentos e refaziam laços que os atos passados tinham rompido. Todos sentiam-se repletos de paz e bem-estar. Harmonias intraduzíveis fluíam do Alto, envolvendo o recinto em claridades novas. Germano, que até aquele momento permanecera calado, tomou a palavra:
- Como pai de Genoveva, muito errei, pensando apenas no lado material da existência e incentivando a ambição de minha filha para que ficasse com a fortuna do marido, Fernando, a quem eu não estimava. Mais tarde, voltei ao corpo de carne, e Dora renasceu como minha neta. Sinto-me responsável por ela, motivo pelo qual tenho procurado ajudá-la de todas as maneiras, inclusive pedindo a Jesus a bênção de renascer na família de minha neta, para reparar os danos que causei.
- E eu fui mãe de Genoveva, por essa razão o carinho que sentimos uma pela outra. Desejo ajudá-la em tudo o que puder - afirmou Marieta, abraçando Dora, sua amiga de hoje e filha querida do passado.
Adriana chorava sentidamente, incapaz de conter a emoção pelas reminiscências que tivera. Enfrentara a verdade e sentia-se gratificada, ainda que indescritível sensação de responsabilidade pelos danos causados a outrem lhe abalasse o íntimo. Rinaldo, que se mantivera como observador até aquele momento, acercou-se de Loreta-Adriana, com o aspecto de um fidalgo, e a envolveu num grande abraço:
- Minha filha querida! Lembra-se de mim?
Somente agora, prestando atenção nele, ela exclamou:
- Papai!...
- Sim, Adriana. Sou eu mesmo, querida! Seu pai que muito a ama. Não se preocupe, minha filha, com o passado. Tem hoje você todas as condições necessárias para vencer. Na França do século 17, fui seu pai e de Natália, mas não soube orientá-las como deveria. Agora, na Espiritualidade, tento compensá-las de tudo o que não fiz naquela oportunidade, auxiliando também todo o grupo, para que possamos crescer juntos. Para tanto, já solicitei uma atividade próxima de Natália, para estar junto dela e assisti-la nas dificuldades. Então, permitiram-me ser o responsável pela reunião semanal evangélica da qual você participou.
- Meu pai! Por que não se apresentou a mim antes?
Com expressão algo melancólica, Rinaldo explicou:
- Estava impedido de fazê-lo pelos meus superiores. Em outras oportunidades, fui muito complacente e, por excesso de carinho e atenções, a prejudiquei. Recomendaram-me então que, no futuro, permanecesse distante, para que você pudesse crescer por seu próprio esforço.
Rinaldo fez uma pausa e concluiu:
- Não valeu a pena?
- Tem razão, papai. Valeu.
- Tenho acompanhado sua trajetória desde que retornou ao mundo espiritual. Sei dos progressos que tem feito e de como tem-se esforçado no trabalho de auxilio aos necessitados, tanto encarnados quanto desencarnados.
A essa evocação, Adriana ficou pensativa por alguns instantes, lembrando-se de como chegara ao além-túmulo, consumida pelas drogas e inconsciente do seu estado. Antecipando a pergunta da filha, que detectara mentalmente, Rinaldo explicou:
- Sua ligação com os alucinógenos é antiga, minha filha. Naquela encarnação mesmo, como Loreta, na maturidade você ficou doente. Em virtude das dores, precisava usar substâncias fortes, extraídas de ervas, que a tornaram dependente. Mais tarde, em outra encarnação, como esposa de um médico, teve acesso às drogas e, em virtude de suas tendências, voltou a consumi-las sem que seu marido disso tivesse conhecimento.
- Entendo. E, na última encarnação, em virtude dos antecedentes, foi fácil voltar à dependência.
- Exatamente. Por isso, necessário se faz que vença verdadeiramente a si mesma, acabando de vez com a atração pelas drogas.
- Hei de conseguir, papai. Com sua ajuda e o amparo de todos, vencerei.
Acompanhávamos o diálogo sensibilizados. Henrique, com grande sorriso, aproximou-se:
- Viu quanto trabalho temos que realizar, Adriana?
- É verdade. Hoje percebo isso de uma forma mais ampla. Encarando o passado, tenho a mente mais aberta e mais lúcida. Vejo as coisas de um ângulo coletivo que não via antes. Talvez seja essa a visão dos mentores, guardadas as proporções, evidentemente - completou.
Todos rimos de sua preocupação em não parecer pretensiosa. Dora também estava preocupada com as informações que tivera quando Germano se aproximou da neta com ternura.
- Vovô Germano, estou horrorizada com todo o mal que pratiquei. Quero mudar e trabalhar em beneficio dos outros, para reparar um pouco do muito que errei.
- Esse seu desejo já foi aceito, Dora. Antes de renascer, você fez um planejamento de vida em que se comprometia a auxiliar as pessoas através da mediunidade.
- Verdade, vovô? Mediunidade! Mas... Nem sei o que é isso!...
- Saberá. Está chegando a hora. Por isso, não poderíamos deixar essa reunião para mais tarde. Tinha que ser feita agora. Você teve a primeira noção de Espiritismo hoje, momento que se revestiu de grande importância. Não foi por acaso que Marieta, sua mãe do passado, a apresentou à Doutrina dos Espíritos. Deverá aproveitar a oportunidade e procurar estudar cada vez mais. Quando estiver preparada, terá uma tarefa através da mediunidade com Jesus, aplicada ao socorro de quantos foram prejudicados por suas mãos. E ai de você, se perder essa chance bendita!
- E Azambuja? E Lúcio?
- No futuro, quando Azambuja estiver em condições melhores e se transformar em trabalhador da Seara de Jesus, será seu auxiliar, ajudando-a a consolar uma imensidão de dores. Quanto a Lúcio, está em situação de trabalhar desde já. Será seu braço direito e sustentáculo nas horas difíceis.
Dora elevou o pensamento ao Alto, agradecida pelas infinitas bênçãos que estava recebendo. Abraçada a Fábio, a Lúcio, a Marieta, não cabia em si de tanta felicidade. A madrugada ia avançada e logo as primeiras claridades da aurora tingiriam o céu. Era hora de os amigos encarnados retornarem para seus corpos. Com uma prece carregada de emoção, Henrique deu por encerrada a reunião, que tantas dádivas trouxera aos participantes. Depois, cada qual foi reconduzido a seu leito pelos servidores do nosso plano. Saímos para o ar livre. Desejávamos respirar o ar puro da Natureza, sentir a brisa perfumada que soprava, trazendo-nos o aroma das flores. Tudo era paz e quietude. O que nos ia no íntimo é difícil de ser descrito em linguagem humana, sempre pobre para expressar os grandes sentimentos da alma. Um bem-estar, uma sensação agradabilíssima de plenitude, de dever cumprido, nos irmanava a todos. Expressando o pensamento geral, Adriana ergueu os olhos para o Alto e, diante das primeiras tintas da aurora, que coloriam o horizonte, levantou os braços abertos e exclamou:
- Graças a Deus!...

34 - RATIFICANDO COMPROMISSOS

Na manhã seguinte, nossos amigos encarnados despertaram fortalecidos e revigorados. Nós, da equipe espiritual, permanecemos no sítio Santa Matilde para comprovar o resultado de nossos esforços. Marieta estava na cozinha com o café pronto e a mesa posta quando os demais acordaram. Maneco, em plena atividade há horas, entrou com um balde de leite fresco, muito apreciado por todos.
- Bom dia! Dormiram bem?
- Muito bem! Aliás, sempre tenho sono excelente aqui no sítio. Mas hoje sinto que acordei bem-disposto como não acontecia há meses - respondeu Lúcio.
- São os ares do campo, meu amigo. Longe da poluição da cidade, em contato com a Natureza, nos sentimos melhor - considerou o dono da casa.
- Sem contar esse abençoado silêncio! - completou Dora. Acomodando-se em torno da mesa, as crianças tagarelavam sem parar, rindo e brincando. Um ar de felicidade se espalhava em todos os semblantes.
Marieta, que tinha ido levar a mamadeira do pequeno Gabriel, voltou e sentou-se também, no momento em que o marido dizia:
- Puxa! A noite deve ter sido excelente mesmo, porque nunca vi tanto bom humor. O que será que aconteceu? Viram algum passarinho verde?
Todos riram, mas a pergunta ficou no ar. Naquele instante, Janaína lembrou:
- Papai, tive um sonho cheio de gente!
- É mesmo, minha filha? Conte para o papai.
- Não me lembro direito. Só sei que o Fábio estava nele e vocês também. E tinha mais gente que não me lembro... Quem eram essas pessoas? - disse, com jeitinho pensativo, mais para si mesma.
Fábio, sempre protetor em relação à menina, respondeu à indagação:
- Era uma reunião, Jana. Todos nós estávamos presentes. Tinha também algumas moças e rapazes desconhecidos, mas muito simpáticos.
Trocamos um olhar de satisfação, agradecidos pelo simpáticos. Certamente, éramos nós. Fábio continuou, depois de fazer uma pausa e beber um gole de leite.
- Engraçado é que estávamos todos vestidos com roupas antigas!...
Lúcio também tinha algumas lembranças, mas permaneceu em silêncio, tentando pôr em ordem as vagas reminiscências. Sentia-se culpado perante o filho pôr alguma coisa que não sabia precisar. Dora, ouvindo esses comentários, notou que algo lhe despertava no íntimo:
- Agora que falaram sobre esse assunto, também me recordo de ter sonhado alguma coisa. Mas não era uma reunião, era um julgamento. Via-me diante de um tribunal em que eu seria julgada. Interessante é que, à semelhança do que aconteceu com Fábio, parecia um filme antigo, como se a história tivesse ocorrido há séculos.
Nisso, apareceu uma criatura horrível, que me causava grande medo e que me ameaçou. Depois... Depois... Ela se transformou num homem muito bem-vestido e atraente. E, coisa curiosa, fizemos as pazes! Engoliu as lágrimas prestes a cair e afirmou, mal contendo a emoção:
- Não sei por que, mas acho que minha vida vai mudar depois dessa noite.
Lúcio, que se conservara calado, deu corpo a seus pensamentos:
- Também tive sonhos estranhos e grande parte deles se conserva sob tênue véu, como se a qualquer momento eu fosse me lembrar. O que tenho muito nítido é que eu conversava com um velhinho alto, magro e de maçãs do rosto salientes. Apesar de não tê-lo conhecido, Dora, achei que era o seu...
- Meu avô Germano! - exclamou Dora, cheia de emoção, interrompendo o marido. - Sim, é ele mesmo. Também me lembro agora de tê-lo visto no meu sonho. Como pude esquecer!...
- É natural - comentou Marieta. - Os nossos sonhos não são lembrados na sua totalidade. Apenas aquilo que o Espírito consegue reter e que lhe poderá ser de utilidade na vida terrena.
Surpreso, Lúcio indagou:
- Como assim?...
- Lúcio, quando dormimos, o Espírito se desprende do corpo e vai para onde quiser. Normalmente, para onde estão direcionados seus interesses. Faz visitas, encontra pessoas, estuda, aprende, se esses são seus desejos. Se tiver o pensamento fixo no mal, nos vícios, nos prazeres, irá sem dúvida incursionar por esses domínios, buscando desafetos ou parceiros.
- Interessante... Então, pelo que entendi, nos encontramos realmente essa noite?
- Exato. Cada um de nós, porém, fixou na mente aquilo que lhe seria mais necessário.
- Agora que você disse isso, Marieta, lembro que meu avô me falou coisas muito importantes enfatizando que eu não poderia esquecê-las. Que era imprescindível que eu as conservasse na mente. Deixe-me lembrar... Ah, sim!... Disse-me que vou trabalhar com a mediunidade e ajudar muita gente.
- Tem muita lógica essa afirmação do seu avô, porque, pelo que me contou ontem à tarde, Dora, você é dotada de grande sensibilidade - considerou Marieta.
- Algo me diz que vou ter de aprender sobre esse tal de Espiritismo - completou Dora.
Todos estavam surpresos e encantados. Marieta também se recordava do sonho, mas se absteve de relatá-lo. Tinha lido no Evangelho que as lembranças devem ser graduadas para não prejudicarem o espírito. Que o esquecimento do passado é uma bênção para o Espírito faltoso, visto que ele terá condições de enfrentar seus desafetos sem sentir-se inferiorizado. Por isso, guardou apenas para si mesma a cena em que se viu como mãe de Dora numa outra encarnação e entendeu a razão do seu grande afeto maternal em relação a ela. Conversavam assim sobre assuntos tão empolgantes, quando ouviram alguém dizer à porta:
- Ô de casa!...
Marieta foi abrir. Era uma amiga, Dona Eufrásia, moradora de um sítio vizinho. A dona da casa fez com que entrasse, recebendo-a com carinho, e apresentou-a aos hóspedes. Em seguida, ofereceu-lhe uma xícara de café.
- Agradecida, Marieta, mas não estou passando muito bem. É exatamente por isso que estou aqui. Tudo que engulo me faz mal. Como não posso ir à cidade hoje, algo me diz que você deve ter um remédio para esse problema de má digestão. Não consegui dormir nadinha essa noite.
Nesse momento, vimos Germano se aproximar de Dora e envolvê-la com seus fluidos. Imediatamente, ela passou a acusar a influenciação.
- Lamento, Dona Eufrásia. Infelizmente, não tenho remédio nenhum. Talvez um chá possa lhe fazer bem - sugeriu Marieta, penalizada.
- Não precisa, Marieta - disse Dora, com olhar e jeito diferentes.
Depois levantou-se e, diante do espanto dos demais, aproximou-se da recém-chegada, colocando as mãos sobre seu ventre por alguns minutos. E vimos que delas partiam jatos de luz que atingiam o órgão debilitado, restaurando-lhe o equilíbrio. Em seguida, Dora perguntou, demonstrando segurança:
- Dona Eufrásia, a senhora conhece uma erva que cresce no meio do mato e que... - especificou como era a planta, seu aspecto e textura.
- Conheço, sim. Nunca dei grande valor a ela.
- Pois a senhora pegue umas cinco folhas, lave-as bem, esmague num copo e tire o suco. Beba uma colher de chá desse líquido todos os dias antes das refeições. Seu organismo está se ressentindo da má alimentação. Evite comidas pesadas e gordurosas, frituras e bebidas alcoólicas. Com a ajuda de Deus, vai ficar boa. Que Jesus a abençoe!
- Muito agradecida. Tem razão. Gosto muito de comidas fortes e bem temperadas. Vou agora mesmo procurar a erva. Tenho pressa de fazer o remédio. Que sorte ter encontrado alguém que entende de plantas!
Os demais estavam perplexos. Depois que a mulher saiu, trocaram um olhar interrogativo. Só Marieta sorria, serena e confiante. Dora voltou a seu lugar, como se nada tivesse acontecido. Lúcio, estranhando o comportamento dela, não pôde deixar de comentar:
- Nunca soube que você entendesse de plantas, Dora!
- E não entendo mesmo.
- Mas... Mas... Então, por que fez o que fez, e por que disse aquilo para a senhora?
- Não sei. Porque me veio à cabeça, ora. Tive o impulso de fazer e fiz. Não consegui evitar! Parecia que eu era outra pessoa.
Naquele instante, todos perceberam que algo de muito sublime tinha acontecido. Marieta abraçou a amiga com carinho maternal:
- Viu? Mesmo sem saber o que é, já começou a trabalhar com sua mediunidade.
Somente então Dora se deu conta de seu comportamento inusitado.
- É mesmo!... Ai, meu Deus! E agora, o que é que eu faço? Não posso andar por aí falando coisas para as pessoas.
- Calma, Dora! Não se preocupe. Você vai aprender a lidar com isso. É uma bênção que Deus colocou em sua vida para que possa socorrer os necessitados.
- Você me ajuda, Marieta? Quero ir ao centro espírita com você e entender o que está acontecendo - suplicou, ainda assustada.
- Claro. Iremos juntas. Ou melhor, iremos todos juntos - disse, frisando bem as palavras.
- Começo a perceber que algo de muito importante está acontecendo e quero ajudar em tudo o que for preciso - propôs Lúcio, que trazia intuitivamente a lembrança do compromisso assumido.
Também nós experimentávamos intensa emoção, com aquela prova prática do trabalho que competiria à nossa amiga Dora no exercício da mediunidade com Jesus. Lembrei-me, naquele momento, de que ela contraíra débitos no passado, prejudicando pessoas pelo mau uso de seus conhecimentos das plantas. A Sabedoria Divina lhe propiciava agora a oportunidade de reparar seus erros através do bom uso desse mesmo conhecimento. Certamente, ela encontraria grandes obstáculos, muitas dificuldades, em virtude do seu comprometimento passado, mas sem dúvida contaria sempre com o apoio da Espiritualidade Maior, que iria orientá-la e assisti-la em sua tarefa, desde que trabalhasse com dedicação e desinteresse, preocupada apenas em realmente amenizar as dores alheias. Estavam traçados os esboços. Dependeria dela agora a boa vontade, a disposição e a perseverança para vencer. No final da tarde, os visitantes foram acompanhados pelos amigos e anfitriões até a estrada, onde deveriam tomar o ônibus para a cidade. Com o pequeno nos braços, Marieta caminhava ao lado de Dora, que se manteve o dia todo em estado de graça. Sentia-se bem-disposta, alegre e bem-humorada, como era antes.
- Sabe, Marieta, foi Deus quem nos encaminhou para o sítio neste final de semana. Estava tão desesperada, tão estranha, tão irritada com tudo e com todos... Se eu mesma não me suportava, como os outros o fariam? Encontrava dificuldades no serviço e confesso até que tinha medo de ser dispensada! Em casa, então, nem se diga. Quando penso em tudo o que fiz para o Fábio, meu filho tão querido, sinto-me um monstro.
Marieta ponderava com tranqüila firmeza:
- Dora, não se deixe mergulhar em pensamentos negativos, cultivando culpa e remorso. Essa análise é importante para que você aprenda como não deve fazer. Contudo, é hora de reconstrução, minha amiga. Não pode ficar chorando sobre o leite derramado. O que passou, passou. Se sabe que estava errada, procure agir acertadamente a partir de agora. Modifique seu comportamento, tornando-se mais amável, serena, amorosa. Enfim, mais equilibrada. Para isso, deverá fazer preces com regularidade, inclusive para aquele nosso irmão que foi ajudado.
- Venha cá! Você acredita mesmo que tudo isso aconteceu?
- Certamente. Trata-se daquele homem que você sempre via em sonhos e que lhe causava medo, ao qual se referiu ontem à tarde. E que começou a perceber também durante o dia, não é?
- Ele mesmo.
- Pois então. Ele existe realmente e nos encontramos na noite passada, durante o sono, para acertos necessários. Não se preocupe. Tudo vai caminhar bem. Mas, como eu disse, uma parte do problema foi resolvido com o socorro a esse companheiro seu do passado. Agora, precisará você introduzir mudanças em seu íntimo, corrigir defeitos, procurar agir melhor. Entendeu?
- Entendi. Tenho certeza, Marieta, de que tudo vai melhorar. Experimento grande otimismo e acho que nossa vida vai mudar de hoje em diante.
Despediram-se com grande carinho de lado a lado. Marieta entregou um exemplar de O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, para os amigos.
- Estamos certos de que este livro poderá ajudá-los muito. Vão com Deus! - afirmou Marieta, num último abraço.
Quando o ônibus partiu numa nuvem de poeira, Dora, Lúcio e Fábio lançaram um último olhar para trás e viram os amigos acenando com os olhos úmidos de emoção, que também eles sentiam. Regressavam para casa com ânimo completamente diferente. Entre os membros da pequena família existia agora uma harmonia desconhecida e inusitada. Sentiam-se mais unidos e mais fortes. Tomaram banho e fizeram uma refeição ligeira. Estavam cansados, mas antes de se recolherem para dormir, Lúcio sugeriu:
- Vamos fazer uma prece?
Dora e Fábio concordaram com prazer. Abriram o Evangelho - livro com que Marieta os presenteara na despedida - e leram um trecho: Ajuda-te a ti mesmo, que o céu te ajudará. Pedi e se vos dará; buscai e achareis; batei à porta e se vos abrirá; porquanto, quem pede recebe e quem procura acha e, àquele que bata à porta, abrir-se-á. Qual o homem, dentre vós, que dá uma pedra ao filho que lhe pede pão? - Ou, se pedir um peixe, dar-lhe-á uma serpente?
- Ora, se, sendo maus como sois, sabeis dar boas coisas aos vossos filhos, não é lógico que, com mais forte razão, vosso Pai que está nos céus dê os bens verdadeiros aos que lhos pedirem? (Mateus, Capítulo 7º, versículos 7 a 11)
As palavras caíram em suas almas sedentas de conhecimento como bênçãos de luz. Uma grande paz passou a envolvê-los, acrescida de confiança nesse Deus, que é Pai de infinita misericórdia e amor, de que Jesus sempre falava. Jamais tinham tido a oportunidade de adentrar o conteúdo das lições evangélicas, e agora se maravilhavam com elas. Em seguida, Lúcio fez uma prece singela:
- Senhor Deus, nosso Pai! Não sabemos como te agradecer a paz que nos invade a alma. Uma nova aurora raia para nós. As palavras do Evangelho de Jesus nos mostram como devemos nos comportar perante as adversidades da vida. Compreendemos agora, finalmente, que de nós depende a felicidade que almejamos. Somos, porém, fracos, Senhor! Precisamos do teu amparo e da tua proteção para poder resistir aos tropeços, nas tarefas de cada dia, com otimismo e determinação, coragem e fé. Compreendemos agora tua divina misericórdia e teu infinito amor. Então, se não for pedir demais, Senhor, permite a teus mensageiros, nossos anjos da guarda, estarem conosco e nos ajudarem na execução de nosso desejo de progredir. Percebemos, maravilhados e agradecidos, que um novo trabalho está se delineando e nos dispomos a realizá-lo com boa vontade e amor, se esta for a tua vontade. Para isso, rogamos as tuas bênçãos para que possamos fazer o melhor. E se algo fizermos de errado, alerta-nos, Pai, para que não venhamos a errar novamente. Obrigado, Senhor!
A prece de Lúcio, imbuída de grande sinceridade e de real desejo de melhoria interior, que acompanhamos reverentes, tocava-nos os corações. Também nós, na Espiritualidade, nos sentíamos agradecidos pela oportunidade de servir, pela nossa tarefa, que estava no término, coroada de êxito, a qual permitiu se derramassem tantas bênçãos sobre todos os envolvidos. Dizer da felicidade que nos dominava o íntimo é difícil, quiçá impossível, porque o sentimento dos Espíritos, que já não pertencem ao mundo dos encarnados e que habitam outras muitas moradas da casa do Pai no espaço cósmico, é muito mais intenso e verdadeiro, visto não terem mais as amarras do corpo físico nem suas limitações. Todos estavam dormindo. Era hora de partir. Nada mais tínhamos a fazer ali no momento. Ficaríamos, no entanto, em contato com eles, acompanhando o desenrolar dos acontecimentos e o progresso do grupo. Despedimo-nos dos amigos ali presentes. Desprendidos do veículo corpóreo, os encarnados foram ao nosso encontro e nos abraçamos emocionados. Especialmente Fábio, que nos tocara o coração pela grandeza de alma. Germano envolveu-nos com carinho, externando sua gratidão:
- Nem sei como lhes agradecer, Henrique. Podem contar comigo para o que precisarem. A partir de agora, considero-me um devotado servidor de todos.
- Não nos agradeça, Germano. Nada faríamos sem a permissão do Alto. Mantenha-nos informados. Antes de partir, porém, aproveitemos a oportunidade para elevar o pensamento ao Criador, gratos pelas infinitas dádivas que nos foram concedidas.
Henrique fechou os olhos e pareceu concentrar-se por alguns segundos. Depois, proferiu bela oração, externando os nossos sentimentos. Quando terminou, o ar saturava-se de pontos luminosos, como poeira brilhante e azulada. Partimos. Aquela pequena casa de periferia agora apresentava outro ambiente espiritual. Do alto, lançando um último olhar para trás, a vimos envolta em branda luminosidade azulada, reflexo da oração e dos pensamentos positivos dos seus moradores. Dentro em pouco, a cidade era apenas um ponto minúsculo perdido ao longe. Tínhamos pressa em chegar a Céu Azul. Estávamos fora havia muitos dias e a saudade do lar nos apertava o coração.

35 - AVALIAÇÃO

Foi com prazer e muitas novidades para contar, que nos reunimos com os amigos. A saudade era imensa. É muito bom trabalhar, visitar lugares diferentes, conhecer pessoas e ter experiências novas. Todavia, é muito bom também voltar para casa. Acomodados confortavelmente em nossa varanda, desfrutávamos da paz e do aconchego de nosso lar na Espiritualidade. Respirando o ar leve e perfumado do nosso jardim, trocávamos idéias, ficando a par dos últimos acontecimentos da cidade e, naturalmente, relatando a nossa experiência. Andréia, uma garota de olhos claros, cabelos longos e ondulados, bonita e inteligente, que chegara não fazia muito tempo e que nos visitava naquela oportunidade, exclamou:
- Como gostaria de fazer parte da turma de vocês, César! Tudo parece tão interessante!
- Mas em todos os lugares existem coisas interessantes, Andréia. O nosso grupo é apenas um dos muitos que existem.
- Eu sei. Contudo, gostaria de trabalhar com vocês. É um grupo com o qual tenho muitas afinidades.
Eduardo, que, a par das nossas atividades comuns, desenvolvia também um trabalho com adolescentes chegados há algum tempo e em fase de aprendizado, considerou:
- Poderá trabalhar conosco, não tem problema nenhum. Precisa apenas se preparar, estudando e aprendendo sempre. Apesar de sua permanência não muito longa aqui na Espiritualidade, já avançou bastante. Seu desejo de melhorar e progredir é visível.
- Eusébio, o orientador de nossa turma, disse que logo vamos começar com as aulas práticas - afirmou, eufórica.
- Está vendo? - encorajou Ana Cláudia. - Aqui você terá sempre oportunidades de crescimento, desde que queira.
Aquele desde que queira fez Andréia questionar, espantada:
- Por quê?... Tem gente que não quer crescer? Tem. Existem Espíritos que são preguiçosos, indiferentes e preferem apenas gozar a vida.
- Mesmo sabendo que são seres imortais, sujeitos à lei causa e efeito?... E como fica? Quero dizer, os orientadores aceitam isso?
Achei graça, lembrando que eu reagira da mesma forma, e respondi:
- Procuram alertá-los sobre a necessidade de elevação, enfatizando que o futuro depende de cada um. Mas não podem violentar o livre-arbítrio de ninguém.
- Não acredito!
Um pouco afastado, acompanhando a conversa, Gustavo interferiu:
- Pois acredite, Andréia. Eu sou um desses casos. Levei muito tempo para aceitar a realidade e me condicionar à vida do lado de cá. Fui dependente de drogas e cheguei aqui sem o mínimo conhecimento da Espiritualidade.
- Tentou até subornar o César Augusto! - lembrou o Padilha, com ar falsamente sério.
Todos caíram na risada. Até o próprio Gustavo.
- É verdade! Fiz isso, sim. Pudera! Tudo era tão igual à Terra, em que julguei ainda estar encarnado.
- E tentou agir como sempre fazia, não é? Usando o dinheiro para conseguir o que desejava - considerou Marcelo.
- Isso mesmo. Quando na Terra, o dinheiro sempre me permitiu esse tipo de coisa. Porque existem pessoas que aceitam ser subornadas. Além disso, foi assim minha infância e minha adolescência. Vendo meu pai comprar as pessoas para atingir seus objetivos, não apenas nos negócios ou com os amigos, mas também em casa. Foi assim com minha mãe, com meu irmão e comigo - rematou com tristeza.
Fez uma pausa, perpassou o olhar em torno e completou:
- Não que isso me exima de responsabilidade, que é individual, claro. Hoje sei que não precisava aceitar o suborno dele. Aceitava porque me era conveniente, o que me tornava cúmplice do seu erro.
- Isso mesmo. E assim se estabelece um círculo vicioso difícil de acabar. Boa porcentagem dos relacionamentos existentes no planeta funciona nessa base, estabelecendo ligações negativas difíceis de extirpar - afirmou Márcio Alberto.
- E cujas conseqüências, em forma de ódio, de desamor, de revolta, de inconformação e de ressentimento, alcançam as criaturas onde estiverem, não importa o tempo decorrido. E ficamos adstritos às colheitas malsãs que buscamos - acentuou Dínio.
Os demais concordaram, permanecendo calados e pensativos. Cada qual meditando em seu próprio problema ou nas experiências de que tinham conhecimento. Adriana, que se mantinha circunspecta e ainda emocionada, sob a influência de tudo o que acontecera nos últimos dias, saiu do seu mutismo:
- César, se me fosse permitido, gostaria de estar mais perto das famílias de Fábio e de Janaína, para ajudá-las no que for possível. Acompanhar-lhes o desenvolvimento e reparar, de alguma forma, os danos que lhes causei.
- Sem dúvida, esse seu desejo é muito nobre, Adriana. Fale com Henrique. Tenho certeza de que ele aprovará sua atitude.
- Vou falar. Hoje mesmo teremos uma reunião para avaliar os resultados da nossa última excursão socorrista. Será ótima ocasião para tocar no assunto.
Betão entrou em casa e voltou alguns minutos depois, trazendo seu violão. Os demais aplaudiram, entendendo que era preciso mudar o ambiente. Os assuntos enfocados tinham levado a maioria a pensar na própria situação, e uma certa melancolia estabelecera-se no íntimo de cada um.
- Isso mesmo, Betão! Vamos cantar!
Alguém sugeriu a música do Eduardo: Janelas do Coração. Os primeiros acordes surgiram, enchendo o ar de paz e harmonia, e todos começaram a cantar:

A melodia toca e me seduz,
O pensamento voa para Jesus.
Abro as janelas do coração
E Deus me fala na solidão.

Qual ave ferida, de asa quebrada,
Que anseia o céu e se arrasta na estrada,
Que deseja a paz e provoca a guerra,
Que sonha com o bem onde o mal ainda impera.

Romper as barreiras da incompreensão,
Quebrar as algemas que nos prendem ao chão,
Buscar o infinito, o espaço singrar,
E nas asas da prece voar...
Voar... Voar...

Voar em busca da luz,
De uma nova manhã,
Vendo em cada criatura,
Realmente uma irmã.

Em busca da luz,
De uma nova manhã,
Onde cada criatura seja
Realmente uma irmã!

Quando as últimas notas soaram, o ambiente estava impregnado de vibrações dulcíssimas, e nos sentíamos emocionados. Surgiu outra sugestão. E mais outra. E outra mais. O tempo passou de forma agradável, sem que nos déssemos conta. Chegou porém a hora em que a responsabilidade nos alertava para o cumprimento do dever. Plantão no hospital, cursos, atividades práticas. Dispersamo-nos, enquanto Gladstone, Melina, Paulo e Irineuzinho, entre outros, retomavam de suas funções. Era sempre assim. Um entra-e-sai constante. Ao cair da noite, fomos para a sede do Centro de Estudos da Individualidade. Cada equipe tinha uma sala separada. Dirigimo-nos para a nossa e ficamos aguardando os demais membros do grupo. Conversávamos animadamente quando Henrique chegou, poucos minutos antes do horário marcado para o início das atividades. Acomodamo-nos. O orientador fez uma prece, que acompanhamos reverentes. Em seguida, colocou em questão a missão socorrista realizada nos últimos dias.
- Vejamos. O que acharam do trabalho? Como sentiram o desenrolar de nossas atividades?
Alberto foi o primeiro a dar opinião:
- Achei muito bom. E, mais uma vez, aprendemos que não se pode julgar ninguém. Dora, por exemplo, não gozava de nossa simpatia no início, em virtude de seu comportamento. Com o tempo, percebemos que ela era apenas uma criatura necessitada de ajuda e de compreensão.
E, concluiu:
- Por sinal, já tínhamos visto isso acontecer em outros casos, quando nos arvoramos em pretensos julgadores, e nos demos mal. A realidade mostrou-se bem diferente daquilo que pensávamos.
- Exato! - concordou Viviane. - Quando se entra no problema, nota-se que ninguém é intrinsecamente mau. É apenas alguém equivocado em suas atitudes por ignorância das leis que regem a vida.
- Mesmo Azambuja, que à primeira vista aparecia como um perseguidor implacável e vingativo, no fundo, tirando a máscara, era uma vítima do passado, que, pela incapacidade de perdoar, ficou preso às próprias imperfeições e ao sofrimento - considerei.
Adriana, que até aquele momento não falara, ponderou:
- Vocês estão comentando o que sentiram como observadores neutros e imparciais, que analisam um problema do qual não fazem parte. No meu caso - que participei desse processo, que vivenciei os acontecimentos -, a carga de emoções é intensa. Sinto agora realmente o peso da responsabilidade. Jamais pensei que poderia ter um passado como esse que me foi mostrado. É o tipo da coisa que achamos que só acontece com os outros, nunca conosco.
- É verdade. Como entrar ladrão em casa, como sofrer um acidente... ou como morrer... - acrescentou Viviane.
- Isso mesmo! E confesso que o choque foi grande. Mas agora posso compreender muitas coisas. É como se em minha cabeça, de repente, tudo se tornasse claro. Por exemplo: quando encarnada, sempre senti um vazio dentro de mim, pois tinha certeza de que não encontraria ninguém a quem eu viesse a amar. Sentia saudade de alguém que não sabia quem era, que conhecera não sabia quando, nem onde. Alguém que não tinha rosto e que, ao mesmo tempo, estava sempre presente em minha vida... É uma sensação difícil de explicar. Hoje eu sei, sem sombra de dúvida, que sentia falta de Rodolfo, atualmente reencarnado como Fábio. E muitas coisas mais...
- Sua ligação com as drogas... - lembrei, procurando ajudá-la.
- Também, César. Agora sei que o problema é bem mais profundo do que parecia e que exigirá de mim esforço redobrado.
- Mas você tem tudo para vencer. A consciência da dificuldade nos impulsiona para a solução - aduziu Alberto, que já enfrentara o mesmo tipo de problema e do qual se sentia liberto.
- Tem razão, companheiro. Lutarei com todas as forças para vencer. Além disso, sei que não estou sozinha. Tenho vocês, este grupo que me fortalece, meus verdadeiros amigos, sem contar nossos superiores. E confio na Misericórdia Divina, que nunca nos desampara; em Jesus, que é o Amigo Maior, em Maria de Nazaré, a Mãe dos Necessitados.
Ela calou-se e também ficamos pensativos, mergulhados em nós mesmos. Adriana aproveitou a pausa que se fizera mais longa e pediu:
- Henrique, se me fosse permitido, gostaria de poder ficar mais perto deles.
Ajudá-los, contribuir para o crescimento do grupo, acompanhar seu desenvolvimento. Sei que trabalho não vai faltar e sinto-me em débito com todos eles.
- Louvo sua postura, Adriana. Encaminharei seu pedido para a Administração. Vamos aguardar a decisão de nossos superiores.
- Isso me permitiria também trabalhar junto com Rinaldo, meu pai. Acha que minha solicitação tem chance de ser aprovada?
- Acho. Ela é bastante louvável e nobre. Como serão consideradas sua condição espiritual e a responsabilidade assumida no passado com o grupo, creio que não haverá problema. Afinal, nossa meta é aprender a amar uns aos outros. Vamos aguardar.
- Obrigada. Serei eternamente grata a você, meu amigo.
- Não me agradeça. Apenas cumpro um dever. Hoje mesmo encaminharei sua petição. Se conseguir o que almeja, tenha certeza de que o conseguiu por mérito próprio.
Voltamos a analisar pontos interessantes do caso. Cheio de admiração e respeito, Alberto comentou:
- Não apenas o pequeno Fábio, mas também Dona Marieta e sua família me encantaram. Essa mulher simples da roça, sem grande cultura, tem feito um trabalho excelente junto aos moradores das redondezas. O pouco que sabe distribui a mancheias, sem egoísmo. É como a linfa de água pura, que, sempre em renovação, não a deixa estagnar.
- Também fiquei muito impressionado, ainda mais quando sabemos que existe tanta gente intelectualizada, que possui tesouros em conhecimentos e que nada oferece a ninguém. O trabalho executado pelos amigos espirituais, responsáveis pela reunião, igualmente me sensibilizou. Os encarnados nem de longe imaginam o esforço despendido por esses companheiros invisíveis que os cercam com tanto carinho - considerei.
- Sem contar a ajuda aos necessitados da Espiritualidade, que é efetuada naqueles poucos minutos de elevação e prece! - lembrou Alberto.
- Sem dúvida. Uma vez mais, aprendemos que não importa o lugar. A grandeza do trabalho se mede pelos seus resultados. Seja num recanto humilde perdido no meio do mato, seja numa grande cidade, a Misericórdia Divina estende suas bênçãos, amparando e ajudando, sempre que existe boa vontade e real desejo de servir - afirmou Henrique.
- E quanto a Azambuja? - indaguei.
- Foi alojado, como sabem, em nosso hospital, onde receberá atendimento e assistência. Por enquanto não poderá receber as visitas de praxe. Depois, quando estiver melhor, poderão vê-lo e levar-lhe carinho e amizade. Sei como estão ansiosos para colaborar. Por ora, envolvamos Azambuja em nossas orações. Não é fácil mudar de vida e de atitudes.
Antes de encerrar a reunião, Henrique avisou:
- Na próxima semana, teremos uma excursão de aprendizado e adestramento, em que um outro grupo, chefiado por Matheus, seguirá conosco. Como vamos na mesma direção, aproveitaremos a companhia dos amigos por algum tempo.
Todos ficamos contentes. A presença de Matheus era sempre bem-vinda. Concluindo, Henrique perguntou:
- Alguma dúvida?
Como ninguém se manifestasse, o instrutor encerrou a reunião com uma prece, exorando as bênçãos divinas para nossas atividades.

36 - TEMPO DE DESPERTAR

Os companheiros começaram a chegar um a hora antes do horário combinado para a partida. Eram sempre gratificantes essas excursões para a Terra, e nos sentíamos alegres e bem-humorados. A possibilidade de rever velhos amigos, de novos relacionamentos, de aprendizado e de experiências diferentes, era realmente estimulante. Os alunos de Matheus foram chegando e se misturando ao nosso grupo. Eram sete ao todo. Abraçamos com carinho o velho amigo e orientador Matheus. Desde o tempo em que integramos sua equipe, conquistara ele definitivamente nosso respeito e amizade.
- Será um prazer excursionarmos juntos novamente, Matheus - comentei, externando o pensamento de Viviane, de Adriana e de Alberto, que o rodeavam, satisfeitos.
- É muito bom quando amigos verdadeiros se encontram. A troca de vibrações harmônicas produz energias poderosas que nos revigoram - respondeu ele com largo sorriso, olhando-nos com carinho.
- Qual a programação de vocês? - perguntou Alberto.
- Nossa finalidade primordial é a de visita aos lares terrenos. Muitos o fazem pela primeira vez e estão tensos e preocupados, conquanto felizes.
- É. Sabemos bem o que é isso. Também já passamos por essa situação - disse Adriana.
- O retorno ao lar terreno, após a grande viagem, é uma experiência profundamente recompensadora e inesquecível, que em cada caso se reveste de características especiais e únicas -comentou Viviane.
- E que opera grande crescimento íntimo - acrescentou Matheus, completando - Teremos, porém, bastante tempo para conversar. Agora, peço-lhes licença por breves minutos. Tenho ainda alguns pontos a acertar com Henrique.
Assim dizendo, saiu ao encontro de nosso orientador, e continuamos conversando despreocupados, tecendo comentários exatamente sobre nossas primeiras visitas ao lar terreno. Nesse instante, vi alguém no meio do agrupamento, o que me deixou incomodado. Era Hassan. Não pude acreditar. Imediatamente procurei Henrique, interrompendo o diálogo entre ele e Matheus.
- Henrique, o que faz Hassan aqui? - indaguei de forma intempestiva, procurando não demonstrar o descontentamento que me ia por dentro.
Fixando-me sereno, respondeu-me o interpelado com extrema delicadeza, sem gesto algum que denotasse recriminação a meu comportamento impertinente:
- Hassan faz parte da equipe de Matheus e seguirá conosco para a crosta, César.
- Ah!...
- Algum problema, César? - indagou Matheus, solícito.
- Não! Não! Tudo bem. Desculpem-me a interrupção. Estranhei a presença dele. Nada mais.
Afastei-me. Contudo, o dia, que tinha começado auspicioso, já não me parecia tão promissor. Apesar de nosso relacionamento ter melhorado, vê-lo ainda me incomodava. Tomei uma decisão: a de manter-me calado e de ignorar sua presença. Como sempre fazíamos, antes da partida oramos em conjunto. Henrique solicitou a Matheus que fizesse a prece por todos. Elevando a nobre fronte para o Alto, ele rogou as bênçãos divinas para a atividade que iríamos iniciar, de modo que o trabalho fosse produtivo, repleto de experiências benéficas, e resultasse no máximo de aproveitamento para todos. Da Espiritualidade Maior, miríades de pontos luminosos, como poeira cósmica radiante, verteram sobre nós suavemente, representando a resposta do Alto às nossas súplicas e o beneplácito dos emissários divinos para nossas atividades. Grande bem-estar me inundou o íntimo. Reajustado emocionalmente, esqueci Hassan e tudo o que não dissesse respeito ao nosso labor. Afinal, faríamos apenas parte do trajeto juntos. Logo a equipe de Matheus seguiria outro rumo e tudo voltaria ao normal. Tomamos a condução que nos levaria à crosta planetária. Algumas horas depois, percebemos que o veículo perdia altura, acabando por pousar suavemente. Chegáramos ao nosso destino. A porta se abriu e descemos. Estávamos defronte de uma instituição espírita de grande porte e bem ajardinada. Passarinhos cantavam nos galhos do arvoredo e uma brisa caridosa soprava. Ali ficaríamos hospedados o tempo necessário para a execução de nossas tarefas. Os dirigentes da instituição, que já nos aguardavam, vieram dar-nos as boas-vindas, cumprimentando-nos de modo efusivo. Depois de instalados convenientemente, saímos para um giro de reconhecimento. Como muitos dos caravaneiros ali estivessem pela primeira vez e não conhecessem a casa, o responsável espiritual pela instituição levou-nos para uma visita às instalações. Tratava-se de uma creche com atendimento para cento e cinqüenta crianças, na faixa etária de zero a quatorze anos. Transitamos pelas salas de aula e corredores, quartos e pátios, cozinhas e banheiros, refeitórios e salas de recreação. Tudo muito limpo, bem cuidado e de bom gosto. No pátio interno, também primorosamente ajardinado, as crianças se entretinham no playground, ou corriam pelo gramado, brincando de roda ou jogando bola. O ambiente era alegre, descontraído e saudável. Inúmeras crianças desencarnadas brincavam também, misturando-se às da Terra. Mais tarde, Henrique reuniu nossa equipe numa das salas. Assim que chegamos, explicou:
- Matheus tem um atendimento programado, para o qual solicita o concurso do nosso grupo, pela experiência já adquirida.
O assistente Matheus, ali presente, ratificou as palavras de Henrique:
- É verdade, meus amigos. Se aceitarem participar de nossa atividade, além de nos favorecerem com suas presenças, nos darão grande prazer.
- O que muito os enriquecerá também em aprendizado e experiência - acrescentou Henrique.
Naturalmente, Alberto, Viviane, Adriana e eu concordamos. Não havia como recusar. Estávamos ali com o objetivo de trabalhar e, diante da feliz oportunidade que se nos oferecia de sermos úteis, a aceitamos com prazer. O relógio na parede do saguão, à entrada principal do prédio, marcava dezessete horas quando nos reunimos para sair. Os demais permaneceriam confraternizando e, sobretudo, participando das atividades, ajudando os atendentes nos cuidados com as crianças. Uma outra surpresa, porém, me aguardava. Hassan seguiria conosco. Procurei manter-me tranqüilo. Afinal, não poderia me desequilibrar cada vez que tivesse de me deparar com ele, cara a cara. Meu tempo de aprendizado na Espiritualidade era considerável. Precisava demonstrar a mim mesmo que tivera algum aproveitamento durante esse período. Não podia me deixar entregue ao sabor das emoções. Era ridículo! Notei que Henrique, de quando em vez, me observava discretamente. Matheus aproximou-se e tentou entabular conversação. Tão preocupado estava comigo mesmo, com minhas próprias reações, que nem me dei conta do rumo que tomáramos. Ouvia o que Matheus dizia, respondia maquinalmente a suas perguntas, alheio a tudo. Quando percebi, estávamos nos aproximando de uma cidade de porte médio que eu conhecia muito bem. Estranhei a coincidência, mas como Henrique não nos informara sobre o trajeto, não fiz comentário algum. À medida que achegávamos, percebi que não me enganara. Estávamos perto da casa de Sheila, da minha querida Sheila. O coração começou a bater descompassado. A emoção ameaçava dominar-me o íntimo. Daí por diante, parei de pensar. Só desejava chegar logo para vê-la. Em virtude das intensas atividades desenvolvidas ultimamente, fazia algum tempo que não a visitava, e as saudades eram imensas. Como estaria ela? Crescera muito durante aquele período? Sentira minha falta? Um misto de ansiedade e alegria me tomou de assalto. Adiantei-me aos outros, sem perceber, deixando-os para trás. Impaciente, passei pelo portão e abri a porta da casa. Uma simpática senhora veio me receber. Era a avó de Sheila, desencarnada há muitos anos. Na verdade, Sheila não tem mais esse nome, naturalmente. Continuarei, porém, a chamá-la assim, para facilitar o entendimento, como já expliquei antes. Perguntei por ela. Com um sorriso, a senhora Eunice mostrou a porta que eu tão bem conhecia:
- Chegou cansada da escola e está dormindo.
Entrei no quarto. O ambiente, decorado com gosto e delicadeza, tinha aparência alegre e agradável. Em tons de rosa, estava repleto de brinquedos, bonecas e bichos de pelúcia. Inclinei-me no leito. Agora, ela não usava mais o berço, que fora substituído por uma linda cama. Abraçada a um urso de pelúcia, ela dormia serena, um sorriso a brincar-lhe nas faces rosadas, enquanto os longos cabelos claros e encaracolados se espalhavam no travesseiro. Atraída pela minha presença, ela abriu os olhos, acordando em Espírito. Ao me ver, arregalou os lindos olhos, sorriu e estendeu os bracinhos para mim, levantando-se satisfeita.
- César!...
Abracei-a com grande carinho. A sensação de felicidade que me envolveu era indescritível.
- Veio me visitar! Que bom! Estava com saudade!... Preparava-me para responder, refreando a emoção, quando notei que ela se retesou nos meus braços. Seus olhos ficaram fixos e estatelados. E, demonstrando enorme pavor, começou a gritar.
Virei-me para saber a razão de tamanho susto e me deparei com Hassan, postado alguns passos atrás. Só então me dei conta de que os demais tinham chegado e acompanhavam a cena que se desenrolava diante de seus olhos. Hassan, que suavizara a expressão fisionômica, sempre um tanto carregada, olhava a menina com interesse e afeto.
- Este homem é mau! Não quero vê-lo! Socorro! Socorro! - continuava ela a gritar.
Matheus aproximou-se, tomando a pequena nos braços.
- Acalme-se, minha querida. Ninguém lhe quer fazer mal.
- Tenho medo dele! Ele vai me bater! - insistia ela.
- Não vai, não. Veja: ele gosta de você. É seu amigo. Fique tranqüila.
Enquanto Matheus dialogava em voz baixa com Sheila, olhei para Hassan mais detidamente. O que estava acontecendo? Eu não gostava dele, isso era evidente, mas... Sheila?... Que razões teria ela para não querer a presença dele? Perdi-me em divagações, lembrando o tempo em que Sheila, desencarnada, fazia parte da nossa equipe. Hassan só veio para Céu Azul algum tempo depois. Ela não o conhecia. Não se encontrara com ele na Espiritualidade. Tinha certeza disso. Então, por quê?... Hassan olhava-me também, demonstrando ansiedade e certo temor. Notei que ele desejava falar alguma coisa, mas não conseguia. Nisso, Henrique aproximou-se de mim, colocou o braço em meu ombro, fazendo leve pressão, e sugeriu:
- César Augusto, é tempo de despertar! Olhe com atenção. Concentre-se além da aparência atual.
Obedeci, compreendendo que algo de muito importante estava para acontecer. Algo que tanto esperara e que agora me dava medo. Instintivamente, quis recuar.
- Não, não fuja! - ordenou-me ele. - Enfrente a realidade!
Então, não resisti mais. Respirei fundo. Olhei para ele... Além daquele rosto que eu conhecia e do qual não gostava, comecei a perceber uma expressão diferente no olhar. Na verdade, era a primeira vez que o olhava realmente de frente. Nunca prestara grande atenção nele. Agora notava algo de conhecido, de familiar, naqueles olhos súplices. Então, diante de mim, Hassan se foi modificando lentamente até ficar com a aparência de um patrício romano. Vestia uma toga que lhe caía abaixo dos joelhos, presa na cintura por uma faixa bordada em ouro e escarlate.
- Múncio! - gritei, reconhecendo-o finalmente.
- Sim, Gúbio! Sou eu mesmo!
Notei que também me transformava, voltando ao passado. Sentia-me agora como um centurião romano. Envergava o uniforme vermelho e dourado, que tanto orgulho me dava, a ostentar as insígnias do império. Tudo voltara a ser como antes. O tempo parecia não ter transcorrido. As imagens passavam-me pela mente de forma rápida e contínua. Lembrei-me da noite, em casa de Aurélia Regina, quando eu e Múncio fizemos a aposta de tão graves conseqüências. Revi a fatídica corrida no Circo Máximo, quando ele foi esmagado pelas rodas da quadriga que eu dirigia em grande velocidade.
- Em virtude desse episódio, Gúbio, ódio mortal por você fez-me persegui-lo através do tempo e também à mulher a quem eu amava e que sempre preferiu o seu amor.
O remorso voltou-me com força ao íntimo e justifiquei:
- Sim, Múncio, sou culpado desse crime. Todavia, sei hoje que esse ressentimento contra você originou-se de um certo ataque de bárbaros a uma pacífica aldeia, onde dezenas de criaturas inocentes perderam a vida.
- Estou ciente disso, Gúbio. Àquela época, porém, eu era desprovido de senso moral e de sentimento de justiça, o que não justifica nem desculpa o meu erro. Depois desses fatos, não nos concedemos mais tréguas. Aquele que se encontrava em situação de relevo espezinhava o outro sem piedade; em outra etapa, as posições se invertiam, mas o ódio continuava o mesmo. Até culminar nessa sua última encarnação, quando o persegui tenazmente, tudo fazendo para destruí-lo. Pela mente passaram-me as cenas da época em que estava preso ao leito. As dores superlativas que me atingiam o corpo enfermo, o sofrimento por não conseguir vencer a doença, a revolta por ver-me, jovem e cheio de vida, lançado a uma cama. Revi cenas em que percebia espíritos vingativos e rancorosos à minha volta. Agora, um deles me chamou a atenção. Era Hassan. Como não o reconheci antes?... Múncio concordou:
- Sim, era eu mesmo. Eu que, tresloucado de ódio e rancor, tudo fiz para prejudicá-lo. Contudo, certa noite, fui socorrido pela Misericórdia Divina e, então, reconheci o mal que havia causado e desejei reparar meus erros. Naquela oportunidade, de tão grandes bênçãos, revi familiares queridos que há muito perdera de vista, o que foi benéfico não apenas para mim, mas também para você. Arrependido, procurei uma vida diferente, buscando encontrar no Evangelho de Jesus as respostas de que eu precisava para vencer a mim mesmo e progredir.
Mais sereno, via-o agora sob uma ótica diferente.
- Mas por que nunca se identificou? Nos encontramos tantas vezes! Aquela noite mesmo, no jardim...
- Ainda não era o momento. Você não me teria perdoado.
Compreendi, afinal, a razão da repulsa que sempre sentira por Hassan. Culpava-me por não conseguir dominar meus impulsos, sem saber que esse sentimento tinha raízes muito antigas.
- A verdade, César Augusto, é que vim para Céu Azul somente quando os nossos superiores julgaram que era tempo de se esclarecer o nosso passado.
Eu estava abalado nas fibras mais profundas. Esse revolver de emoções trouxe-me à lembrança aquela a quem eu tanto amara e que fora sempre o pomo de discórdia entre nós. Eu a via agora como a imagem da jovem loura da aldeia, como Aurélia Regina, e também a reconheci como tantas outras mulheres que passaram pela minha vida através do tempo.
- Onde estará ela? - pensei em voz alta.
Hassan lançou-me um olhar velado por lágrimas que não chegaram a cair.
- Ainda não percebeu?
À medida que falava, ele lançava um olhar para a criança, que, sob os cuidados de Matheus, dormia um benéfico sono. O véu que me toldava a visão descerrou-se de súbito. Era ela! Como não tinha notado antes? Estivera todo o tempo a meu lado, e eu, cego, não percebera! Rojei-me de joelhos ao lado da cama e pus-me a chorar convulsivamente. Pegando-me pelos ombros, Henrique fez com que me levantasse e alertou-me:
- César, contenha suas emoções! Precisamos preservar o ambiente da nossa pequena Sheila. Não seria conveniente agora despertar nela o conhecimento do passado. Haverá tempo para isso mais tarde, quando suas condições reencarnatórias estiverem sedimentadas. Por enquanto, deixemo-la dormir tranqüilamente.
As palavras do amigo espiritual trouxeram-me à realidade. Ergui-me, respirando fundo e procurando refazer-me emocionalmente. Olhei para Hassan, que aguardava calado. Por fim, senti-me liberto das nuvens escuras de ressentimento e de ódio que por tanto tempo me mantiveram preso ao passado. A mente estava lúcida, clara e livre de pensamentos hostis. Estendi a mão para Hassan.
- Amigos?
- Perdoe, César, todo o mal que lhe fiz.
- Como você mesmo disse, nos fizemos muito mal, Hassan. É hora de esquecer o passado e de reconstruir para o futuro. Também preciso de seu perdão.
- É justo. O perdão tem que ser mútuo. E que Deus nos ajude para que possamos refazer nossos passos, reparando os erros cometidos.
Olhei Sheila, que dormia, incapaz de perceber a importância do momento, e considerei:
- Hassan, juntemos os nossos esforços em benefício daqueles que precisam do nosso concurso. Sejamos para Sheila amigos desvelados e benfeitores anônimos.
Matheus sorriu e informou:
- Espero que não apenas para Sheila...
- ... Mas também para alguém que renascerá em breve...
- Quem?
- Você verá!...

37 - NOVAS LEMBRANÇAS

Surpreso, ao perceber que ainda teríamos novidades, troquei um olhar com Hassan, tão admirado quanto eu, pois certamente julgava-se muito bem informado.
- Venham comigo! - disse Matheus. Atendendo ao convite, atravessamos o corredor e nos encaminhamos para o outro lado da casa. Entramos na sala de jantar, onde os demais membros da pequena família faziam a refeição.
Sentados em torno da mesa, vimos os pais de Sheila. Ambos jovens e simpáticos, no início da vida conjugal. O pai, alto, magro, cabelos escuros e lisos, fisionomia agradável e sorriso fácil. A mãe, estatura mediana, a tez clara e transparente dos descendentes de italianos; olhos azuis, de uma tonalidade mais intensa, mansos e risonhos; os cabelos, castanhos, ondulados e longos, emolduravam-lhe o rosto de menina. Era meiga, delicada e gentil. Sheila parecia-se com a mãe. Conversavam sobre os acontecimentos do dia. Danilo relatava, com bom humor e tranqüilidade, os problemas que enfrentara na empresa onde trabalhava. Alice contava episódios engraçados acontecidos com a filhinha na escola, e eles, orgulhosos, riam, divertindo-se com as graças da pequena. Respirava-se um ambiente sereno e de emanações agradáveis. Além de nossa velha conhecida, irmã Eunice, avó de Sheila, estava ali também uma entidade desencarnada. Era um homem que tinha dificuldade para se expressar. Henrique fez as apresentações:
- Este é nosso irmão Leocádio, que está se preparando para retornar ao planeta em novo corpo.
Nós o cumprimentamos efusivamente.
- Então, vai reencarnar breve? - perguntei, curioso.
Demonstrando certo embaraço para concatenar as idéias, ele respondeu com leve gesto de cabeça. Ao olhá-lo com mais vagar, meu coração agitou-se e senti como se o conhecesse. De onde? Matheus veio em meu socorro, explicando:
- Depende do que se possa entender por breve, César. Leocádio está agora harmonizando-se com a família, especialmente com a futura mãezinha, para que a execução do projeto reencarnatório se torne mais fácil, sem rejeições.
- Rejeições? - indagou Alberto.
- Exato. Nosso amigo renascerá, apresentando deficiências na região cerebral.
Conquanto tenha sido combinado – ainda no plano espiritual, quando se projetava a reencarnação de Alice - que nossa irmã receberia Leocádio como filho, sempre se teme uma desistência de última hora. Muitas vezes, através da intuição, a futura mãezinha fica sabendo que o filho nascerá com dificuldades e, não raro, recusa-se a ser mãe.
- Por que razão ele renascerá com problemas? - inquiriu Adriana.
- Leocádio comprometeu-se gravemente com a lei divina no início do século 19. Cometeu suicídio, estourando os miolos com um tiro, o que lhe acarretou muito tempo de sofrimentos acerbos. Teve outras reencarnações dolorosas, mas, sempre rebelde e agressivo, não soube aproveitá-las. Agora, consciente do que lhe cumpre fazer, mais permeável às sugestões do Bem, candidatou-se a novo mergulho na carne, para expungir do como espiritual danificado os resquícios do ato delituoso. Somente então ficará livre das distonias que ele mesmo criou para si, quando destruiu a roupagem carnal que o Senhor lhe concedera como bendito veículo de progresso.
Enquanto Matheus falava, olhei para aquele homem ainda jovem, deitado no sofá, e tentei descobrir de onde o conhecia. Onde já teria visto aqueles olhos, aquele perfil, aquela expressão do rosto? Nesse momento, a emoção aflorou em mim novamente, em catadupas irrefreáveis, e as lágrimas brotaram sem que pudesse contê-las. Lembrei-me, então, da época em que Sheila estava conosco na Espiritualidade e do desespero que senti ao saber de sua provável reencarnação. Recordei o momento em que falei com Eduardo, abrindo-lhe meu coração, quando ele sugeriu fôssemos ao Setor de Programação de Renascimentos, onde Antero, generoso amigo espiritual, mostrou-me o prontuário de Sheila. Nessa ocasião, tive acesso a episódios de sua vida pregressa que também me afetavam. Na tela da memória, as cenas deslizavam à minha frente. Uma jovem muito bela, em quem reconheci a atual Sheila, movimentava-se rindo e divertindo-se numa festa. O salão, luxuoso, estava repleto; pessoas muito bem vestidas, perfumadas, com muitas jóias, transitavam pelo recinto ou dançavam ao som de uma orquestra. Em determinado momento, essa jovem, a quem vou continuar chamando de Sheila, conversa com um rapaz. Profundamente perturbado, o moço cobra-lhe demonstrações de amor e atenções a que se julga com direito. Ela, vaidosa e cheia de orgulho, olha-o com desprezo, humilhando-o sem piedade. Depois, para completar, vira-se para as demais pessoas e, em alta voz, chama a atenção de todos, tornando público, com palavras ácidas e irônicas, o pedido de núpcias que o jovem enamorado lhe havia feito pouco antes. Os convidados caem na gargalhada, divertindo-se com o sofrimento do infeliz rapaz que, em tão má hora, havia ousado propor-lhe casamento. Cabisbaixo, o moço deixa o salão ao som das risadas e das chacotas impiedosas que Sheila havia provocado. Sem grandes recursos, visto ser de família humilde, o jovem tentava sobreviver num ambiente requintado, porém depravado e fútil. Incapaz de conviver com o sentimento de perda, pois via ruírem as esperanças de ser feliz com aquela a quem amava profundamente; sem forças para suportar a humilhação e o descrédito ante a sociedade frívola da época, que, a partir desse momento, o renegaria, entrega-se ao desânimo e à revolta. Chegando em casa, senta-se defronte à escrivaninha e redige um bilhete de despedida para a família. Depois, como que anestesiado, tira uma pistola da gaveta, verifica se está carregada, levanta o braço encostando a arma na cabeça e aperta o gatilho, estourando os miolos. Era ele! Como não o reconhecera? Àquela época, Leocádio tinha sido meu colega no regimento e, embora não fôssemos particularmente amigos, nos encontrávamos sempre em sociedade, e merecia meu respeito. Contudo, apaixonara-me também por Valéria (Esse era o nome de Sheila naquela existência.) e não hesitei em tirá-la dos braços do namorado. Jamais, porém, imaginei que Leocádio fosse capaz de atitude tão extrema. Seu gesto ficou martelando-me a mente durante muito tempo. Não consegui encontrar a felicidade, que sempre me escapava. Depois, lembrei-me igualmente de acontecimentos de uma outra época. Vejo Sheila num convento, vestida com hábitos eclesiásticos, a caminhar por um corredor sombrio. Uma sineta soa insistente e ela vai atender. Abre a porta e se depara com uma criança cuja cabeça é toda defeituosa; os olhos, esbugalhados, parecem saltar das órbitas. Nota-se claramente tratar-se de um deficiente mental. Atônito, reconheço naquele infeliz que bate às portas do convento o pobre suicida. Com grunhidos, o menino estende as mãos suplicando ajuda, mas a monja o expulsa sem piedade. De alguma forma sei, sem que alguém precise afirmar-me tal coisa, que a criança é filho espúrio daquela religiosa, abandonado à própria sorte pela mãe, para manter as aparências, fato não incomum naquele tempo.2 Agora, ao rever essas cenas que presenciei, extraídas do prontuário de Sheila, a memória se me alarga e vou mais longe. Recordo-me que também eu era religioso nessa época e, como confessor das freiras daquele convento, muitas vezes abusei da autoridade e do poder de sedução que exercia sobre aquelas pobres mulheres, mantendo relacionamento mais íntimo com muitas delas. Sheila, por quem eu sentia singular atração, acabou tendo um filho, esse filho que não hesitei em entregar a uma família de camponeses da aldeia mais próxima, para que o criasse por um punhado de moedas de ouro. Meu Deus! Leocádio então tinha sido meu filho? Quantos compromissos eu adquirira através do tempo! Quantas lágrimas eu fizera brotar no coração das pessoas! Quanto sofrimento poderia ter sido evitado, se minha conduta tivesse sido outra!... Entregue a profundo desespero, olhei em torno procurando amparo naquela hora tão grave da minha vida. Nisso, ouvi soluços ao meu lado. Era Hassan, que, segurando a cabeça com as mãos, desatara em pranto convulsivo. Parei de chorar ao ver seu sofrimento. Ficamos em suspenso, aguardando que ele falasse. Henrique aproximou-se dele, encorajando-o:
- Lembre-se de tudo o que aconteceu. É chegada a hora. Abra seu coração, meu amigo!
Ele ergueu a fronte e, mal conseguindo articular as palavras, desabafou:
- Sou culpado! Sou culpado desse horrendo crime!
- Continue! Não pare! - incentivou-o o orientador.
Procurando conter os soluços, Hassan continuou:
- Sou culpado pelo suicídio desse rapaz. Naquela época, eu era um rico banqueiro judeu. Leocádio procurou-me. Precisava de dinheiro. Fizera muitas dívidas, grande parte das quais no jogo, e estava sendo pressionado por seus credores. Eu não ignorava que ele era apaixonado pela jovem Valéria e que contava resolver seus problemas financeiros casando-se com ela. Contudo, também eu havia planejado desposá-la. Assim, não emprestei a importância que me pedira, por saber que ele não suportaria a situação. Seria fatal. Era a bancarrota. E foi o que aconteceu.
Ele parou de falar por segundos e olhou para nós, justificando-se:
- Eu não esperava, porém, aquela atitude extrema. Entendem? Queria apenas desacreditá-lo como pretendente à mão da bela e rica herdeira. No entanto, ele pôs fim à própria vida. Muitas vezes eu o via a meu lado, com a cabeça arrebentada e sangrando muito. Suplicava piedade, gritava por socorro, e eu ficava apavorado. Nunca mais tive paz...
Hassan fez nova pausa e aproveitei para perguntar:
- Conseguiu casar-se com Valéria?
Com sorriso triste e melancólico, ele meneou a cabeça:
- Não... Ela não tinha nenhum interesse por mim. Eu era bem mais velho e sem atrativos, e minha única vantagem era a fortuna. Não, Valéria jamais aceitou minha corte. Foi apenas um sonho, nada mais...
Parou de falar, olhou em torno e concluiu:
- Como podem ver, sou culpado pelas desventuras desse homem.
Matheus aproximou-se, falando-lhe com carinho:
- Sem dúvida, você tem sua cota de responsabilidade nesse episódio tão triste. Não tem, porém, toda a culpa. É hora de reconstruir e o importante é o conhecimento da realidade dos fatos, para melhor avaliarmos nossa parcela de comprometimento perante a lei. Na verdade, vários fatores contribuíram para que Leocádio tomasse a drástica decisão de destruir a própria vida. A rejeição da noiva; o surgimento de um novo pretendente, no caso, Basílio (o nosso César Augusto); a falta de recursos, agravada com o indeferimento do pedido de vultoso empréstimo; a presença de antigos desafetos do passado que, revoltados, procuravam vingança pelo mal que Leocádio lhes tinha feito. Além de todos esses fatores, existe ainda a responsabilidade pessoal do nosso irmão, que não se pode deixar de analisar. Se outra tivesse sido sua conduta, se não houvesse se entregado ao vício do jogo, não teria feito tantas dívidas. Se tivesse aceitado a rejeição da noiva com outra disposição, como fazem tantos pretendentes desprezados, poderia ter tido uma existência melhor, encontrando outra mulher que o fizesse feliz - como estava programado -, porque Valéria não o amava e, se tivessem se consorciado, fatalmente o teria desgraçado. Enfim, se tivesse enfrentado com coragem os infortúnios; se houvesse adotado comportamento mais firme e combativo; se fosse menos orgulhoso; se tivesse cultivado o hábito da oração, outro teria sido o desfecho da sua história e, certamente, não teria sofrido por tanto tempo.
Controlando a emoção com dificuldade, prosseguiu Matheus:
- Com certeza estão pensando que estou muito bem informado. A verdade é que nossos laços são bem mais profundos. Em épocas recuadas, convivi com Hassan, César, Leocádio, Sheila, entre outros, com os quais me comprometi muito gravemente. Através do tempo, porém, senti a necessidade de trilhar outros caminhos e progredi, enquanto vocês continuaram inconseqüentes e rebeldes. Há muito, venho tentando diminuir a hostilidade entre Hassan e César. Mas, graças a Deus, a hora do entendimento chegou.
Conscientes do passado, dos erros cometidos, mas também do que nos cabe realizar, caminharemos juntos em busca de tempos melhores. Fez uma pausa e, abrindo os braços, aconchegou Hassan e a mim junto ao coração. A emoção que experimentávamos era indescritível. Abraçado a ele, lembrei-me da primeira vez que o vi. Acompanhado de Eduardo, entrei na sala dele. Eu estava tenso. Sentado atrás de uma mesa, vi um senhor de meia-idade que nos recebeu, risonho. Ao olhar aquele homem - cabelos grisalhos, expressão suave e serena, olhos claros -, aflorou-me uma emoção profunda. Lembrava-me de tê-lo visto algumas vezes em meu quarto de doente, enquanto encarnado. Senti que o conhecia, sua presença me era familiar.
- Eu sabia.
- É verdade. Porém, eu não podia dizer-lhe nada. Tudo tem seu tempo certo, César - esclareceu Matheus.
Nesse momento, olhei para o sofá onde Leocádio estava deitado e, num impulso irreprimível, aproximei-me dele, a quem eu devia tanto. Recordei a conversa que tivera com Matheus há alguns anos e das informações que ele me dera. Que Sheila seria a responsável por um irmão menor, após a desencarnação da mãe. Era ele esse irmão. Abracei-o com carinho, enquanto o coração parecia querer explodir de tanta emoção:
- Leocádio, perdoe-me. Sei que o prejudicamos muito, mas é chegada a hora da reparação. Aceite o meu afeto, afeto que nunca lhe dei, nem mesmo quando foi meu filho. Quero ajudá-lo em tudo o que puder, ressarcindo uma parte dos meus débitos. A partir de hoje, conte comigo como um fiel companheiro e servidor devotado. E quando você retomar o corpo material, estaremos por perto, protegendo e amparando-o.
Hassan igualmente hipotecou-lhe amizade e ajuda incondicional. Leocádio entendia perfeitamente o que lhe dizíamos, tentava falar, mas encontrava dificuldade. Mas as lágrimas que umedeceram seus olhos expressavam seus sentimentos, sem que as palavras fossem necessárias. Estávamos todos felizes e agradecidos. Os companheiros da equipe nos abraçaram com carinho, cumprimentando-nos pela abençoada oportunidade que tivéramos naquela hora. Uma coisa, porém, ficou martelando-me a mente.
- Matheus, sei que tenho muitos desafetos. Onde estão neste momento? Não podemos ajudá-los também?
Matheus sorriu, esclarecendo:
- Calma, César! Uma coisa de cada vez. Alguns estão aqui na Espiritualidade...
- Aqui?... E posso me encontrar com eles?
- Por hora, é impossível. Ainda não estão em condições de receber ajuda.
- Ah!... E os outros?
- Estão encarnados.
- Podemos visitá-los?
Com sorriso misterioso, Matheus concluiu:
- Quem sabe? Vamos aguardar! Talvez no futuro...
Percebi que Matheus não nos diria mais nada. Mas isso não era importante. O momento era de grande significação para nós. Particularmente, sentia como se um peso enorme me tivesse sido retirado dos ombros. Estava leve e bem-disposto. Tudo caminhava bem. A Misericórdia Divina, estendida sobre todos, nos propiciava novas oportunidades de reajuste e progresso. Só nos restava elevar os pensamentos ao Alto, agradecendo a Deus as infinitas dádivas que nos propiciara naquela noite, o que fizemos de coração aberto, envolvendo todos daquele lar em vibrações de paz, amor e confiança. Terminada a prece, despedimo-nos de Eunice e de Leocádio, prometendo retornar em breve. Abraçamos nossa querida Sheila, impregnando-a de nosso carinho, e deixamos a casa onde vivêramos momentos tão gratificantes. Aspirando o ar fresco da noite, olhei para o alto. As estrelas nos fitavam à distância, parecendo mandar-nos silenciosas mensagens. Olhei para Hassan, que se postara a meu lado, e sorri. Teríamos ainda muito o que conversar.
- Amigos? - disse, estendendo-lhe a mão.
- Amigos!

1 - Remissão à narrativa constante do livro "Céu Azul" Capítulo 31º, do mesmo autor.
2 - Idem.

38 - DESPEDIDAS

Enquanto nos dirigíamos para o local da reunião, eu me perdia em divagações. Quantas coisas tinham acontecido durante aquele período em que nos dedicáramos com carinho às atividades propostas!... À distância divisei o Centro de Estudos da Individualidade, onde nos aguardavam. Intensamente iluminado, o grande salão achava-se todo decorado com guirlandas de flores que, envolvendo as colunatas, recendiam delicado perfume. Melodia suave inundava o ambiente, convidando-nos à elevação e proporcionando-nos intraduzível bem-estar. No recinto já se encontravam centenas de pessoas. Ali se congregavam os companheiros do curso, os participantes das inúmeras equipes, os orientadores responsáveis pelos grupos, amigos e familiares desencarnados ligados a cada um de nós, além de muitos encarnados que também se faziam presentes, facilmente reconhecíveis pelo cordão fluídico que os ligava aos corpos. Eram pessoas com as quais convivêramos durante aquele período e que tinham sido convidadas em virtude de suas condições vibratórias e da ligação com os atendimentos desenvolvidos. Não tivemos que esperar muito. Alguns minutos depois, deu entrada no salão um grupo de entidades de elevada hierarquia. No centro, destacava-se irmã Anita, ladeada por duas senhoras de grande distinção. Dirigiram-se para a mesa central, na frente. O silêncio se fez no recinto. A benfeitora, cuja presença tinha sempre o condão de nos sensibilizar, levantou-se e, espraiando o olhar pelo salão, exorou a proteção divina para quantos ali estavam. Em seguida, começou a falar sem qualquer afetação:
- Queridos irmãos em Cristo Jesus! Conceda-nos o Senhor a sua paz! Este momento se reveste de profunda significação para todos nós, especialmente para os que participaram das equipes de trabalho nos últimos meses, sob a orientação desta Casa.
Após uma pausa, prosseguiu:
- Saídos da mais absoluta ignorância e simplicidade, mas amparados pelo Amor Divino, através dos milênios acumulamos valores, transitando da animalidade para a racionalidade em busca da consciência interior. Nessa trajetória, as dificuldades têm sido imensas, os obstáculos de vulto e as dores acerbas. No tempo e no espaço, temos reunido experiências, muitas vezes desastrosas, não obstante se revestirem de valioso meio de progresso. A despeito da crença, que insistimos em manter por tanto tempo, de que Deus é um senhor arbitrário e cruel, injusto e prepotente, só temos recebido amor e amparo em todas as épocas da vida, sustentados e protegidos pela Divina Providência. Pai amoroso, criou-nos para a felicidade e não para a desdita, dando-nos sempre as condições necessárias para o nosso aprendizado. Todavia, enveredamos por caminhos ínvios, infringindo a lei divina, e nos candidatamos a séculos de tormentos. Sofremos e fizemos sofrer, inconscientes da nossa vocação para o progresso e do que nos compete realizar em benefício próprio e dos que nos rodeiam. As inferioridades avultam na individualidade do ser pensante, provocando desequilíbrio e gerando desconforto. Contudo, chega a hora em que, conscientes da condição de Espíritos criados para a evolução, reconhecemos a mensagem de Jesus como o roteiro indispensável que precisamos trilhar, e, corrigindo o curso de nossas vidas, buscamos palmilhar outros caminhos. Arrependemo-nos dos erros cometidos, desejamos reparar o mal e, então, como sublime dádiva de Deus, surgem as oportunidades de redenção. Através do acervo de conquistas inalienáveis do conhecimento pelo estudo e pela prática, a vida nos coloca diante dos desafetos do passado, de forma que possamos, adotando conduta diferenciada, refazer os laços afetivos danificados e aparar as arestas da animosidade. Dessa forma, pelo ciclo de aprendizado nas vivências da carne - as múltiplas personalidades - e no mundo espiritual, assimilamos as lições, introjetando-as na individualidade, isto é, no ser integral. Todavia, em regressando à verdadeira vida, guarda ainda o Espírito os condicionamentos da última romagem terrena, cujos resquícios só irão desaparecer com o passar do tempo. Em virtude desse fato, os recém-desencarnados chegam ao além-túmulo trazendo vícios, necessidades, sentimentos, sensações, dores, dos quais aos poucos se libertam. A memória do ser encontra-se restrita à última encarnação, não tendo ele acesso a seu arquivo espiritual. Por exigência, no entanto, do processo evolutivo, chegará o momento em que precisará tomar conhecimento do pretérito. E é exatamente isso o que este setor se propõe: prepará-los para enfrentar a realidade.
Anita interrompeu por momentos sua alocução, percorrendo com doce olhar a assistência que a ouvia embevecida. Aproveitei para olhar em torno e percebi que muitos não continham as lágrimas, sensibilizados. Ela sorriu, prosseguindo:
- Congratulo-me com as equipes pelo profícuo trabalho realizado. Todos portaram-se à altura do que se esperava, demonstrando os nobres valores já adquiridos. Isso, porém, é apenas o início. Muitos outros combates terão que travar consigo mesmos. E é na análise criteriosa do próprio caráter que cada um conseguirá descobrir o que precisa ser feito. Conhece-te a ti mesmo é uma advertência que tem atravessado os milênios da nossa pequenez, buscando-nos a memória profunda para que saibamos extrair dela o necessário ao nosso aprimoramento moral. Esse é um trabalho individual e solitário que nos cabe executar interiormente. O autoconhecimento é conquistado pela dedicação e boa vontade que dispensemos para descobrir a própria realidade. Agora, queridos irmãos, no terreno arroteado das nossas almas, as sementes, aquecidas pelo sol do amor, deverão germinar com maior pujança, sob a chuva das bênçãos divinas. Intimamente, cada um sente o que deve fazer. De nossa parte, estaremos abertos para orientá-los e ampará-los nessa decisão. Contem conosco!
Para finalizar, a benfeitora elevou a nobre fronte para o Alto, ergueu os braços níveos e vimos que, do seu tórax, das mãos e da cabeça saíam jatos de luz que buscavam o infinito.
- Senhor da Vida! Corações sedentos de luz erguem-se ao teu encontro, buscando-te a presença. Confiantes na tua misericórdia e no teu amor, desejamos deixar para trás as mazelas que nos prendiam ao charco de nossas dores e imperfeições, para encetarmos o esforço da ascensão espiritual. Ainda nos reconhecemos pequeninos e insignificantes. Entretanto, o desejo de progresso já nos inunda a alma. Em busca da paz e da felicidade que almejamos, ansiamos espalhar a alegria nos corações ulcerados pelas nossas atitudes infelizes. De ora em diante, Senhor, nosso objetivo será o de curar feridas, acalmar dores, levantar os caídos, sustentar os desalentados, consolar os tristes, dar esperança aos desesperados. Assim, depositamos a teus pés nossa boa vontade, rogando-te a convertas em dínamos de força e coragem para impulsionar as ações nobilitantes e reparadoras que nos compete exercitar em tua seara. Para isso, contamos contigo, Senhor, certos de que nunca nos deixarás sozinhos. Envolve-nos em tuas bênçãos e multiplica nosso desejo de servir hoje e sempre.
Ao terminar a oração, percebemos, maravilhados, que do Alto caíam minúsculas bolhas de luz como orvalho iridescente, que, em contato com nossos corpos, desfaziam-se delicadamente. Intensa emoção nos invadia o íntimo a par de inefáveis sensações de bem-estar, coragem e bom ânimo. Naquele momento, nos sentíamos com forças para vencer todas as dificuldades e obstáculos que pudessem surgir em nossa trajetória. Após alguns minutos, em que o tempo parecia ter parado, Anita e suas acompanhantes vieram ao nosso encontro. A reunião ficou menos formal e aproveitamos para confraternizar. Abraçamos velhos amigos, cumprimentamos antigos companheiros, trocando idéias e sugestões. Os grupos se formaram naturalmente. Irmã Anita e os orientadores responsáveis pelas equipes atendiam a todos os necessitados de orientação. Alberto, Viviane, Adriana e eu conversávamos, recordando as experiências profundamente gratificantes que tivéramos, quando Viviane exclamou surpresa e alegre:
- Vejam! A nossa querida Marilda acompanhada de Vinícius e de Orlando!
Aproximamo-nos satisfeitos. Os três amigos demonstravam perfeita consciência do que estava acontecendo e se movimentavam com naturalidade.
- Que bom reencontrá-los! Como estão? E seus familiares, Marilda? - indagou Viviane.
- Muito bem. Infelizmente, não puderam nos acompanhar. Cada qual tem suas limitações - considerou Marilda.
Concordamos.
- E o José Domingos? - perguntei.
- Tem melhorado bastante, César. Ele e o nosso Dr. Vinícius têm feito grandes progressos - respondeu a mocinha.
Vinícius sorriu, completando:
- Sem dúvida. Naturalmente, com a ajuda dos amigos espirituais. Sabemos que vocês estão sempre conosco.
- É verdade. Sempre que possível mantemos contato -concordou Viviane. - De ora em diante, estarei mais próxima ainda. Solicitei autorização a nossos superiores para trabalhar junto com vocês, e eles consentiram. Assim, estarei prestando serviço na casa espírita que freqüentam e, ao mesmo tempo, no grupo de vocês, tanto no Evangelho no Lar como na reunião de estudos doutrinários.
Marilda, radiante, abraçou a amiga:
- Que ótimo! Obrigada, Jesus! Agora estaremos mais unidas do que já somos.
Com os olhos úmidos, Viviane emendou:
- Eu é que devo agradecer a Deus a oportunidade de servir. Peço sempre a Maria de Nazaré a bênção de poder ser útil e de reparar um pouco dos muitos males que fiz.
Era gratificante ver Marilda, Vinícius e Orlando ali, juntos; percebia-se a grande afinidade que se desenvolvera entre eles. Particularmente, notamos com satisfação que Orlando olhava para Marilda de uma forma muito especial, envolvendo-a em emanações de carinho, no que era correspondido por ela. Entre nós, trocamos um olhar de entendimento e cumplicidade. Enlaçando a jovem com o braço, Orlando confirmou:
- É isso mesmo, meus amigos. Marilda e eu temos descoberto muitas afinidades e estamos planejando nos casar.
- Verdade? Que excelente notícia! - disse Alberto.
- Como afirmou Orlando, nossa pretensão está apenas em fase de projeto. No mundo material, nem sempre estamos conscientes de acordos preestabelecidos, mas, conversando com Henrique, ele nos assegurou que assumimos esse compromisso antes de encarnar - afirmou Marilda com ar de felicidade.
- Bem que adivinhava que essa amizade iria acabar em casamento! - exclamei.
Todos se emocionaram. Aquela mocinha franzina que conhecêramos, como que florescera naqueles meses! Estava mais bonita, a pele mais viçosa, o ar radiante. Com certeza o amor ajudara a promover essas mudanças. Nesse instante, fomos requisitados por alguém que se aproximava. Era Dona Gema. Junto dela, Glauco, o amigo desencarnado, que se fazia acompanhar de José e de sua esposa, Sandra, além de Lígia e de Júlio. Dentre os encarnados, José e Júlio pareciam mais conscientes da situação; Sandra e Lígia mostravam-se algo alheias, como se não soubessem bem o que estava acontecendo. Alberto, mais ligado ao grupo, mostrou-se sensibilizado vendo o filho, Júlio. Abraçamo-nos pedindo notícias dos que ficaram.
- Como vai Sandoval? - indaguei a Glauco.
- Tem-se esforçado para vencer as más tendências. Agora trabalha e cuida dos velhos pais.
- Não diga! Puxa! Está dando a volta por cima, como diríamos lá na Terra - exclamei, fazendo os demais rirem.
- É verdade! Trabalha como representante comercial e está se dando bem. Dessa forma, viaja bastante e, num futuro relativamente próximo, acabará por se reencontrar com Lígia.
- Que barato! Quer dizer que ainda vai rolar alguma coisa entre eles?...
- É o que está programado, César. Sandoval e Júlio foram pai e filho em anterior existência. Espiritualmente mais elevado, o menino tem grande ascendência sobre o pai e poderá auxiliá-lo bastante. Essa é uma das razões por que a aproximação com Lígia se fará, visto que o casal tem também pendências antigas - confirmou Glauco.
Alberto, que até aquele momento se mantivera calado junto do filho, falou:
- Isso mesmo, César. Estou estudando até a possibilidade de renascer como filho de Lígia e de Sandoval.
Não contive o assombro. Estava perplexo. Como a vida dá voltas! Delineavam-se novos compromissos para nossos amigos. Em vista disso, não contive uma pergunta:
- Glauco, como ficará a situação de Sandoval perante a justiça? Não desconhecemos que ele cometeu muitas infrações e se comprometeu gravemente...
O bondoso amigo respirou fundo e aduziu:
- Todos somos responsáveis pelos nossos atos, e Sandoval não é uma exceção, César. A Misericórdia Divina, contudo, ante o arrependimento sincero da criatura e a boa vontade que demonstre em reparar seus erros, funciona amenizando as conseqüências e proporcionando oportunidades para que o faltoso salde seus débitos. Sendo Pai, e não um cobrador duro e implacável, Deus permite, em alguns casos, que a cobrança da lei seja suspensa por tempo indeterminado. Isso ensejará que o devedor possa trabalhar em benefício próprio progresso - mesmo porque, no caso de Sandoval, há deveres para com os genitores idosos -, desde que se mantenha dentro do estrito cumprimento do dever. Se, no entanto, esquecer as boas disposições e tiver novas recaídas, aí, então, não se poderá evitar que a justiça terrena o alcance.
Eu continuava de boca aberta, quando Adriana adiantou-se, perguntando a Alberto:
- E para quando está previsto seu retorno?
- Levará algum tempo ainda. Todavia, começarei a me preparar imediatamente. A princípio, estarei mais perto de Lígia para facilitar o entrosamento com a minha futura mamãe.
A emoção nos envolveu a todos. Abraçamo-nos, antecipando as despedidas e desejando-lhes felicidades. Um pouco adiante, vimos um outro grupo de pessoas conhecidas e para lá nos dirigimos. Eram Dora, Lúcio e o menino Fábio; Marieta, Maneco e a pequena Janaína, todos amparados por Germano e Rinaldo, amigos desencarnados. Foi com grande alegria que nos abraçamos, trocando cumprimentos. Dora, que fizera bons progressos, apressou-se em contar-nos como estava trabalhando com a mediunidade, concluindo:
- Graças a Deus e a vocês, que tanto nos têm assistido, tudo agora caminha bem. Entretanto, preocupo-me com Azambuja. Vocês o têm visto?
- Temos estado com ele. Está bem e se recupera, estudando e se reeducando à luz do Evangelho de Jesus. Certamente, assim que for possível, irá visitá-los - respondi.
Adriana, mais vinculada ao grupo por laços do passado, emocionada, agia como uma galinha com seus pintainhos, distribuindo carinho e atenções, em especial às crianças. Em certo momento, pediu a palavra:
- Quero comunicar a todos que solicitei e obtive a permissão de estar mais diretamente ligada a vocês. Estarei exercendo minhas funções junto às famílias de Dora e Lúcio, de Maneco e Marieta.
As crianças bateram palmas, alegres. Durante esse período, tinham-se afeiçoado muito a Adriana, com quem se encontravam durante o repouso noturno e de cuja companhia gostavam. Após algum tempo, nos despedimos deles. Era preciso aproveitar a oportunidade para rever todos os amigos e conhecidos. Depois que nos afastamos, pus-me a pensar no meu próprio problema. Nesse exato momento, como resposta a meus íntimos questionamentos, vi Hassan que me acenava de longe. Fui ao encontro dele.
- E então? - perguntei, brincalhão.
- Tudo bem! A festa está uma beleza. Parabéns, César!
- Parabéns para todos nós - respondi.
- O que pretende fazer agora?
- Bem, Hassan, estive pensando bastante. Desejo continuar por aqui mesmo, exercendo as tarefas costumeiras. Por outro lado, pretendo ajudar Sheila e participar do processo reencarnatório de Leocádio. Isto é, se me aceitarem. Além do mais, temos muito o que conversar, não é? A propósito, ainda não me contou por que agora se chama Hassan.
Ele concordou e riu, achando graça.
- Se você se comportar, quem sabe um dia eu lhe conto?
O clima entre nós agora era completamente diverso. Olhamo-nos e trocamos um longo e afetuoso abraço. Deus estava sendo muito pródigo conosco. O que mais poderíamos desejar? O coração parecia querer explodir de felicidade. E isso só porque conseguíramos vencer uma parcela ínfima de nossos compromissos. Imagine o que será quando nos libertarmos de todas as mazelas! Agora posso entender a felicidade e o bem estar que gozam os Espíritos superiores. Aos poucos o salão se esvaziou, Os encarnados, acenando adeuses, foram reconduzidos de volta ao corpo físico. Ficamos apenas os amigos e orientadores mais afins. Matheus aproximou-se e dirigiu-me carinhoso olhar, colocando o braço no meu ombro. Ali estavam também Galeno, Eusébio, Henrique, além dos companheiros Eduardo, Marcelo, Gladstone, Paulo, Padilha, Giovanna, Ana Cláudia, Betão e tantos outros. Nesse momento de grande alegria, não pude deixar de me lembrar da bela entidade vestida como um romano, que me visitara certa noite em meu quarto e que tão grande impressão me causara. Quem seria aquele Espírito? Onde estaria naquele instante? Algum dia, com certeza, teria mais informações a respeito dele, pois sinto que laços profundos nos unem através do tempo. Suspirei. Essa era a nossa vida. Uma etapa tinha-se encerrado e começaria outra. Entendíamos agora o valor do tempo e as razões pelas quais não devemos desperdiçá-lo em vão. Principalmente no atual estágio de entendimento que já nos é dado possuir. Saímos. A noite estrelada era uma bênção de paz. Um imenso sentimento de gratidão ao Criador me inundou o íntimo. De repente, me dei conta de que estava mais maduro e responsável. Nisso, vejo alguém no meio da rua que vinha ao nosso encontro. É Gustavo.
- Olá, César! Preciso de sua ajuda - falou, esbaforido.
- O que houve, Gustavo?
- É o Alessandro. Está dando muito trabalho na enfermaria e não consigo acalmá-lo.
Lembrei-me de todas as dificuldades que tive de enfrentar com Gustavo quando chegara ao mundo espiritual, e sorri.
- Vamos, Gustavo! Alessandro nos espera. E preciso manter a esperança. As coisas mudam!








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Laços Eternos ROMANCE MEDIÚNICO Ditado por Lúcius
Médium Zibia Milani Gasparetto


Laços Eternos


É noite. Tudo caminha em plácido silêncio. Na aurora cálida do amanhecer, só a pipilar das aves notívagas parecem dar um sopro de vida à paisagem sombreada da Terra.
Em uma janela, às escuras, um vulto quieto observa o es- tertorar silencioso da noite que se finda e a dealbar da alvorada iniciante.
Seu rosto é pálido sob a luz diáfana da madrugada; seu corpo franzino procurando enxergar o rumo, descobrir os primeiros raios de luz que desenharão a verdadeira estrada.
Soluças angustiados quebram a quietude fresca da aurora.
O corpo franzino apoiado ao peitoril sacode-se ritmicamente, embalado pela dor em davas de angústia.
Lenço à boca, a tosse aponta sufocante. A pureza do branca tinge-se de vermelho e o sangue quente em golfadas insopitáveis mancha a camisola pura. O magro corpo jovem, num esforça hercúlea procura er- guer-se e fita? o céu, em derradeiro esforço. Seus olhos encovados, abertos, procuram ainda indagar o porquê de tanta dor nos seus quatorze anos.
Lentamente, como flor que se abate frente à tempestade, a figura pálida desfaleceu e seu corpo deslisando rente à janela, pendeu para o chão, mas sua cabeça, recostada na espaldar, conservou- se voltada para o dia que nascia. Os olhos continuaram abertos, ainda que enevoados. Pareciam indagar dos mistérios profundos que separam a vida da morte.
Após alguns minutas, uma emanação radiante desprendeu- se do corpo hirto, adensando-se corporificando-se em perfeita réplica da jovem estendida.
Como se por autêntico milagre, de gigantesca potência, ela se tivesse multiplicado.
Surpreendida, a forma radiante e translúcida, olhou para o corpo que acabava de deixar. Seu semblante denotava piedade e amor.
Sentia-se leve e saudável. Porém, quando olhava para o corpo inerte, um vivo sentimento de piedade a invadia; parecia- lhe momentaneamente regressar ao jugo de pesadas cadeias de uma prisão aniquilante. Num deseja instintiva de libertação, procurou afastar-se dele.
Foi então que viu uma figura radiosa e querida caminhar para ela, braças estendidas, rosto banhado por suave bondade. Onde teria vista esse rosto? Que santa seria ela? Respeitosamente ajoelhou-se diante da forma resplandecente. Sobre seu espírito ainda atemorizado c inseguro derramou-se uma brisa suave e perfumada, beijando- lhe as faces, com o orvalho da manhã, enquanto que uma voz dulcíssirma lhe alcançava o espírito: - Nina. Estás livre! Na rudeza das provas, qual pássaro feudo e aprisionada, aguardaste a libertação. Hoje, viemos buscar-te. Irás conosco para mundos felizes, onde poderás usufruir a paz e a calma que almejaste sempre. Poderás tra- balhar em tarefas nobilitantes c gozarás boa disposição, bem- -estar.
Nina alçou o olhar para o alto e lágrimas insopitáveis lhe escorriam pelos alhos em transbordante emoção: - Senhora! Bendita sais, enviada do Altíssimo. Viestes buscar-me. Meu coração estremece de ventura diante das sua- ves emoções desta hora sublime que não mereço. Sentir-me-ia feliz de seguir adiante, rumo aos mundos encantados onde re- sidis, a gozar a paz e a serenidade. Entretanto, neste lar que com tanto amor fui acolhida, minha mãe na carne enfrenta com dificuldade a prova da miséria e da renúncia.
Meu pai, senhor nobre de antanho, hoje luta contra a orgulho e a prepotência trabalhando duramente a soldo insignificante, cavando a terra dura para mal conseguir um pouco de pão. Quatro anjos do Senhor, meus irmãozinhos na Terra, despertam para a vida, em condições difíceis de impaludismo e desnutrição. Se eu me for, com certeza, eles se irão logo após, pois a fraqueza e a tuberculose ceifará suas vidas ainda em fase delicada nesta encarnação. Par isso, se passível. roga-vos senhora: todo bem que por acréscimo a misericórdia divina me concedeu, seja revertido em favor dos entes que amo e a quem devo devotamento e carinho. Perdoai-me tamanha ousadia, mas podeis ler a sinceridade do meu coração e sentir a dor que me causa partir agora rumo à felicidade enquanto eles sofrem!
Curvada, em atitude submissa, Nina esperou. A entidade iluminada aproximou-se e a1çando a destra com suavidade alisou-lhe a cabeça com imensa ternura: - Nina! O que desejas?
Nina levantou o olhar que refletia respeito e amor: - Senhora, permiti-me ficar. Embora doente, cuido do lar para que, minha mãe possa ganhar algum dinheiro. Se eu for embora, ela terá que deixar de trabalhar e menos pão entrará nesta casa.
A bela mulher, comovida, sorriu e tomou: - Sabes o que me pedes? Se Deus te permitisse o regresso, certamente sofrerias muito. O corpo que usaste na carne está macerado.
Quantas vezes mentiste dizendo-se alimentada para que a tua pequena ração beneficiasse os demais? Quantas vezes atravessaste as 24 horas sem provar alimentos, numa renúncia verdadeiramente admirável?. Sofreste bastante.
Eu te ofereço a paz, a fartura, a tranqüilidade e tu me pedes a dor, a doença, a miséria e a morte?
Nina soluçava: - Pedi a Deus que me permita ficar. É só o que eu peço.
A entidade fixou-lhe o olhar com imensa bondade, ande se refletia um brilho de energia.
- Não posso atender-te. Precisas vir comigo. Um dia compreenderás porque. Só posso dizer-te que tua estada na Terra terminou. Tua presença doente e sofredora não iria contribuir para aliviar os problemas deste lar. Todavia, não temas. Ninguém permanece abandonado na Terra.
Os problemas de teus pais, só eles poderão resolver, lutando, sofrendo, aprendendo. Irmãos devotados zelam pelos teus irmãozinhos. Deus permite prova para que o espírito se redima. Os sofrimentos sublimam o espírito e o reconduzem a Deus.
Abraçando-a com carinho continuou: - Depois, quando estiveres em condições, se quiseres, poderás vir ter com eles, trabalhar para sua redenção. Agora, vamos!
A jovem, cujos soluços tinham cessado, levantou-se e abraçada pela sua protetora, prontificou-se a seguir. Sentindo-se liberta de um grande peso, pareceu-lhe que seu peito dilatava-se em alegria nunca sentida, enquanto que enorme sensação de bem-estar lhe invadia o ser.
Entregou-se suavemente e saíram da choupana humilde.
Enquanto os primeiros raios solares abençoavam o dia nascedouro, transmitindo mensagem de vida, dois vultos enlaçados desapareciam rumo ao infinito; permaneceu apenas um corpo pálido e emagrecido, um rosto seráfico e sereno, uma camisola manchada de sangue, abandonados para sempre, como veste inútil e rota que o tempo se encarregada de transformar e destruir na constante mutação da natureza.



CAPÍTULO 1
A família sofredora Na fazenda do Lageado, em Minas Gerais, o dia começava cedo.
Havia muito serviço por fazer e os colonos precisavam madrugar para estar no terreiro quando o velho sino tocasse na varanda convocando-os ao trabalho.
O Coronel Gervásio Fartes não era homem para brinca- deiras. Exigia dos colonos rigoroso cumprimenta das suas tarefas c era o terror das homens quando montado em seu baia aparecia na lavoura ou no pasto. Não tolerava atrasos. Levantava-se muito cedo e quando o capataz bimbalhasse o sino já os homens precisavam estar no terreiro para que o serviço fosse distribuído.
José Mota trabalhava na fazenda desde. a adolescência. Filho de colonos, não se conformando com a miséria da casa paterna, aos doze anos resolvera tentar a sorte. Para a Lageado e nunca pudera sair. Sempre ganhara muita pouco, e além do mais não pudera aprender a ler, o que o tornava bastante desconfiada.
Apesar de nunca ter podido melhorar de vida, não se habituara às candições humildes de seu trabalho. Odiava o Coronel Gervásio. Invejava-o, mas temia-o. Para ele, era Deus no céu e o Coronel, coma o diabo, na Terra.
Revoltava-se com frequência contra sua situação, mas por mais que se esforçasse não conseguia sair dela. Conhecera Maria na própria fazenda. Desde a juventude iniciaram namoro. Ela, de início, sonhava ir morar na vila. Aos quinze anos, por pouco não fugiu com um mascate ruma a outras cidades. Mas a ambição do Zé a tentava. Seu incon- formismo casava-se bem com sua ambição. Juntos, iriam para a cidade e Ganhariam dinheiro. Usariam boas roupas e muitos enfeites, como a sinhá dona Eugênia, esposa do Coronel, moça letrada, do rosto pintado, que guiava automóvel e fumava como um homem.
Casaram-se. Ela aos dezesseis anos, ele aos dezoito.
A palhoça de pau-a-pique foi levantada pouca antes com consentimento do Coronel e auxílio de alguns compa- nheiros aos domingos depois do trabalho. A cama fora presente de D. Eugênia. Estava velha, quebrada, mas o Zé consertou.
Seu coração encheu-se de ódio diante da cama de pé quebrado.
Não era homem que se conformasse com as migalhas dos outros.
Disfarçando as seus sentimentos, procurou arranjar-se da melhor maneira. O colchão foi feito por Maria que durante dois meses secou e selecionou palha de milho para esse fim. O farra era desbotado e remendado.
A festa consistiu apenas de café com bolo de fubá, que os pais de Maria ofereceram aos amigas, e duas garrafas de pinga que o Zé ganhara do patrão.
Começou para eles uma vida dura. Mas, ambos trabalha- vam na roça e assim, à custa de algumas privações e muita luta, conseguiram comprar alguns utensílios, alguma roupa. O tempo foi passando. Os filhos começaram a chegar. A primeira, nasceu farte e bonita. Deram-lhe o nome de Nina. Seu nascimento provocou alguns distúrbios na saúde de Maria, prejudicada pela absoluta falta de cuidados médicos. Por isso, só depois de seis anos pôde ter outros filhos. Aí, não pararam mais, vieram um após outro. A cada filho o Zé dizia à mulher: - Maria! Por causa dele não podemos ir prá cidade, por enquanto. O dinheiro não dá. Quando ele estiver cresci- dinho, nós vamos.
Mas, não podiam ir. Se não tinham ido quando eram só os dois, coma poderiam fazê-lo agora com tantos filhos? Apesar disso o Zé era pai extremoso. Sua revolta aumen- tava a cada filho, por não poder dar-lhes o que gostaria. O que sempre quisera ter e lhe fora negado. Aos poucos começou nascer-lhe no peito um ódio intenso da pessoa do Coronel Gervásio. Cada vez que ele dava uma ordem incisiva, enérgica, que não admitia resposta, José vibrava de rancor.
Invejava a casa solarenga da fazenda com suas cortinas vermelhas e suas cadeiras estofadas. Os arreios luzidios do filho do patrão, suas botas brilhantes de couro e seu riso ruidoso de criança de trato e feliz.
Obedecia de olhos baixos para que o Coronel não lhe visse o brilho de revolta. Assim era seu dia de trabalho.
À tardinha, de volta à casa pobre, irritava-se com os calos das mãos grossas, que ardiam tanto quanto seu pensamento.
Calado, desanimado, sentava-se à mesa tosca para a refeição que lhe parecia sem gosto. Feijão, mandioca, fubá ou farinha. Às vezes arroz, com alguma hortaliça colhida no quintal. Ficava imaginando sentar-se à mesa limpa e bem posta de D. Eugênia, com copos limpos, comida cheirosa e variada.
Maria, com suas lamentações, causava lhe mais revolta. Para ela que imaginara vida melhor na cidade, a trágica realidade a tornara infeliz- O marido, a cada dia, tornava-se mais taciturno. Por mais que se esforçasse para multiplicar seus recursos a fim de atender bem aos seus, jamais eram reconhecidos seus intensivos esforços.
A princípio, procurava ser otimista, estimular o marido. Aos poucos as dificuldades foram matando suas ilusões e enchendo seu coração de infinita amargura.
Depois de alguns anos de casamento, nem se assemelhava mais à jovem bonita que sempre foi.
Nina cresceu nesse ambiente. Entre as queixas da mãe e a revolta do pai. Entretanto, em seu rostinho magro e moreno havia sempre um sorriso. Seus olhos brilhantes e negros pareciam duas estrelas a irradiar alegria e amor.
Desde a mais tenra idade demonstrara grande compreensão e ternura para com tudo e todos. Procurava com seu corpinho franzino ajudar a mãe no que podia. Levantava-se cedo e aos sete anos já se encarregava de acender o fogo, buscar água e tratar das poucas aves que possuíam. Nunca se queixava. Se lhe davam um trapo velho, sorria feliz com gratidão.
Aturava as queixas da mãe e sempre procurava ministrar -lhe palavras de compreensão e otimismo. Quando o pai che- gava do trabalho, com a carranca habitual estampada na face e palavras ríspidas nos lábios, ela o enlaçava com os braci- nhos magros e beijava-lhe a face queimada de sol e de luta. Embora ele não fosse pródigo em afagos, ia aos poucos sere- nando e as noites podiam ser um pouco menos amargas.
Mas eles não davam por isso- Tanta suavidade e bondade havia em Nina que eles, embrutecidos pelas paixões, não podiam compreender.
À medida que nasciam seus irmãozinhos, dedicava- se a eles com desvelos maternais. Nina tinha doze anos mas já substituía a mãe que ia a roça cedo, cuidado dos irmãos, cozinhando. Quando a mãe regressava, ia lavar roupa no riacho. Seu corpinho enfraquecido. curvado sob o peso da trouxa molhada ou da lata.
( Aqui houve um erro de scaneamento, um trecho do livro foi apagado )
envelope meio amassado lhe caiu nas mãos.
Ansiosa, Geneviève tirou o bilhete que continha e leu: "Sei de tudo. Preciso vos ver hoje às 14 horas. Entrarei de qualquer jeito. Vamos acertar tudo de uma vez!"
Não trazia nem direção, nem assinatura, mas era evidente que se tratava de uma ameaça. Que fazer?
Com mãos trêmulas Geneviève guardou as roupas e com o bilhete na mão foi até a sala contígua em busca de Ana, a camareira.
Fechou a porta com cuidado e interrogou: - Ana, vais me dizer tudo agora A serva protestou: - Não sei mais nada senhora, Tudo quanto sabia já vos contei.
- Não acredito. Estavas com ela quando recebeu este bilhete. Estavas também com ela quando a visitante chegou.
A outra continuou protestando, mas não podia negar que estivera presente até a chegada da estranha mulher e que por ordem da própria Condessa se retirara logo após.
Tomada de firme determinação, Geneviève advertiu a serva aflita : - Não adianta querer encobrir. Ou contas o que sabes, ou mostrarei ao Senhor Conde este bilhete e serás acusada como cúmplice daquela mulher. Além do mais não acredito que diante de tantos mistérios, não tenhas ficado escutando atrás da porta, como é de teu hábito.
A mulher tremia e seu rosto foi ficando alternativamente do pálido ao vermelho. Impiedosa, Geneviève continuou: -Várias vezes te surpreendi espiando e ouvindo atrás das portas; não creio que não estivesses lá durante a visita daquela mulher.
- Por piedade senhora, nada sei, jura, nada sei…
- Escolhe! Ou contas tudo e a casa fica entre nós ou vou levar ao conhecimento do Sr. Conde a que sei e ele acusar- -te-á de cúmplice do crime.
- Não deveis fazer isso. Pelo amor de Deus! Sou fiel à minha ama até a morte. Sempre guardei segredo dos problemas da senhora Condessa e não passo revelá-los sem trair sua confiança. Irritada Geneviève sacudiu a serva pelos ombros e tomou : - Queres ajudá-la encobrindo uma assassina. Não sabes que ela, quando souber que seu crime não foi irremediável, tentará voltar? Não vês que a vida da Sra. Condessa corre perigo com essa assassina à solta sem que possamos saber quem é?
- Senhora… - tomou a serva com vós trêmula -acreditais que ela volte?
- Odeia minha mãe. Se não puder matá-la mondará alguém, armará uma cilada. Não entendes que preciso conhecer onde está essa inimiga para poder defendê-la? Que preciso conhecer a extensão do .periga para evitá-lo?
A mulher tremia violentamente.
- Tendes razão. Perdão para mim que não soube defender minha ama com a vida. Contar-vos-ei tudo quanto sei. Trata-se da Baronesa de Varene. Disfarçou-se muito bem, cobriu o rosto, mas quando ela entrou, espiei pela porta e vi quando se descobriu.
Discutiram e a Baronesa estava muito nervosa. A Sra. Condessa respondia com calma até que de repente ela sacou de um punhal e investiu contra minha ama. Corri, mas não tive tempo de impedi-la. lá de véu sobre o rosto, ela saía correndo e eu assustada corri por minha vez em busca de ajuda. Bem nessa hora a Sra. Marquesa chegou. Geneviève estava assustada. A Baronesa era uma mulher jovem, muito fina e equilibrada. Parecia-lhe impossível! Seu marido era muito amigo do Conde de Ancour, apesar da diferença de idade entre eles.
- Porque discutiam? A razão?
mes da Sra. Condessa.
- Ciúmes?! - Estranhou Geneviève. A Baronesa era muito bonita e bem mais jovem do que a Condessa. - Ciúmes? - repetiu - Porquê?
- Do senhor Barão.
Vivo rubor tingiu as faces da jovem senhora.
- Que horror! - pensou ela - Minha mãe e o Barão? Que absurdo! A Baronesa deveria estar transtornada!
Vendo que nada mais poderia arrancar da serva, Geneviève voltou ao quarto materno e sentou-se novamente ao lado da cama.
A Condessa dormia, vencida por extrema fraqueza. A moça tornou a ler o bilhete: "Sei tudo". Tudo o quê?
Felizmente sua mãe estava melhor e logo poderia esclarecer o assunto. Restava apenas aguardar.
A oportunidade apareceu dias depois, quando mais refeita a Sra. Condessa tomava sua refeição a que a filha dedicada fazia questão de assistir.
Com carinhosa solicitude, Geneviève esperou que a Condessa terminasse. Sentou-se ao pé da cama, envolvendo-a num olhar de carinho, e tornou: - Minha mãe, preciso falar-te.
Cerrando os olhos com um pouco de fraqueza, a Condessa respondeu distraída : - Podes dizer.
- Sentes-te melhor?
A bela senhora suspirou com certo alívio - Sim. Sinto-me melhor.
A moça emocionada tornou com carinho: - Deu-nos um susto!
- É. Já passou. Felizmente a cicatriz não vai aparecer quando eu usar meus decotes preferidos. A infeliz não conseguiu atingir-me o coração como queria. Desviei-me a tempo.
A Condessa falara como que para si mesma, sua voz registrava indisfarçável rancor. Geneviève aproveitou a deixa: - Jamais pensei que a Baronesa de Varene chegasse a esse ponto. Intriga-me a causa do seu proceder. Terá enlouquecido?
Marguerit sobressaltou-se e por instantes seus olhos aflitos perscrutaram a fisionomia da filha com preocupação.
- Porque achas que foi ela? Que sabes? Geneviève receosa redargüiu: - Não te preocupes com isso. Não te vai fazer bem. Conversaremos outro dia.
- Não, Estou bem. Falemos agora. Que sabes?
- Nada. Ou quase nada. No dia em que vim ver-te e te encontrei ferida, vi saindo dos portões do castelo a carruagem da Baronesa. Deduzi que era ela que se escondia lá dentro.
Marguerit pareceu serenar um pouca. Permaneceu silenciosa. Geneviève receava prosseguir perguntando. Ao cabo de alguns minutos a Condessa abriu os olhos e fixando a filha com calma tornou : - Geneviève! Preferia que ninguém soubesse. Principalmente o Conde.
- Podes ficar tranqüila. Não contei a ninguém. Aguardava tua palavra esclarecedora.
A Condessa sorriu visivelmente aliviada.
- Fizeste bem. O Barão é muito amigo do Conde e não gostaria de envolvê-los nessa intriga. Deixemos tudo no esquecimento. Geneviève protestou: - Mas, porquê? Essa mulher é perigosa. Vai continuar a freqüentar nossa casa depois do que fez? Não achas que ela precisa ser punida? Podia ter-te matado!
A Condessa tomou a mão da filha e olhando-a bem nos olhos pediu: - Filha, esquece o que houve, eu te peço. Tenho motivos para recear pela sanidade da Baronesa. O próprio Barão confidenciou-me que tenciona interná-la em uma casa de tratamento. Ultimamente tem se portado de maneira estranha. Ele receia que ela esteja a caminho da loucura. Falarei com ele para que a interne e então tudo estará em paz, sem que o es- cândalo possa abalar o nome das duas famílias. Prometa-me que ninguém saberá a verdade.
A moça estava mais calma. Na verdade sua mãe tinha razão. O melhor era guardar discrição e cuidar que a Baronesa fosse internada onde não pudesse ferir mais ninguém.
- Está bem, mamãe. Nada direi.
A Condessa acariciou a mão da moça: - Orgulho-me de ti. £s uma boa filha. Agora deixa-me descansar.
A jovem senhora assentiu e mais serena dirigiu-se aos seus aposentos. Na verdade, o caso estava esclarecido, Só a loucura podia justificar a horrível agressão que cometera.
- Pobre mãe querida - pensou. - Como era bondosa e nobre perdoando sua agressora! - Sentia-se culpada por haver suspeitado, ainda que de longe, do procedimento de sua mãe.
Entretanto, assim que a filha saiu dos seus aposentos, Marguerit levantou-se e ainda com sinais de fraqueza, começou a procurar na arca de roupas o bilhete que recebera no dia da agressão. Não o encontrou. Muito preocupada, sentindo-se ainda fraca, deitou-se novamente, tocando a sineta. A camareira atendeu solícita: - Ana, dê-me papel e tinta! Preciso escrever.
A serva obedeceu com presteza colocando um suporte para que a Condessa pudesse apoiar o papel.
- Espera! Preciso dos teus serviços. Madame Henriet não pode saber, como sempre.
- Sim, senhora Condessa.
Com mão trêmula, a Condessa escreveu no papel perfumado, mas sem as atinas do condado de Ancour.
"Preciso ver-te, Se não vieres será tarde demais. M."
Apenas. Fechou o envelope também sem timbre e lacrou. Em seguida ordenou : - Vai, Ana. Sabes onde encontrá-lo. Entrega esta carta. Se ele não estiver, basta colocá-la no lugar de sempre.
Vendo a serva sair apressada, depois de haver colocado num dos bolsas do vestido o bilhete, sem nome ou destinatário, a Condessa demonstrou mais tranqüilidade. Fechou os olhos desejando dormir, mas em sua mente desenhava-se a figura moça e bonita da Baronesa de Varene, Ela não perdia por esperar. Negro sentimento de ódio anuviou o semblante ainda jovem da Condessa - ela não viu que vultos sombrios, nesse instante, aliaram-se a ela, como que alimentando e reforçando seus planos de vingança!
Nina assistia à cena angustiada. Surpreendera novos detalhes na rememoração do passado que agora, auxiliada pelas imagens que revivia, começavam a ressurgir novamente em seu coração.
Mas, era diferente ter vivido, assistido e tomado parte nos acontecimentos de então, sem conhecer a verdade total que agora se refletia sem ilusões ou parcialidade na tela luminescente da sala de rememoração.
Mas, as imagens iam continuar, Com o coração temeroso, Nina esperou.



CAPÍTULO V
Mistério desvendado e consciência homicida O castelo do Barão de Varene não ficava distante das terras de Ancour, mas embora fossem quase vizinhos a propriedade do Barão diferia bastante no gosto extremamente moderno dos seus jardins guarnecidos caprichosamente de graciosas folhagens como na arquitetura arrojada do seu castelo.
Dir-se-ia que o Barão, homem viajado e culto, colhera na Grécia inspiração para construí-lo. Mármore e pedras artisticamente guarnecendo a parte baixa da magnífica propriedade, enquanto Que no andar superior a leveza da construção de alvenaria cerca-se de graciosos arcos de ferro artisticamente trabalhados A escada na entrada conduzia diretamente ao pavilhão superior, porquanto, a parte baixa, cuja porta era pelos fundos, destinava-se ao serviço de criadagem e armazenagem de mantimentos, adega, cozinha etc.
Pela originalidade era o castelo bastante admirado pelos nobres da época. O luxo interno confirmava o gosto particular do Barão, muito fino e personalíssimo.
A carruagem parou na entrada principal e uma mulher, correndo, penetrou no castelo. Trazia grosso véu sobre o rosto, que tirou com mão nervosa. Era uma mulher de rara beleza. Alta, bem feita de corpo. Cabelos louros artisticamente penteados. Olhos verdes, que naquele instante pareciam refletir toda tempestade emotiva que lhe bramia na alma Deslizando com rapidez pelos salões, dirigiu-se aos seus aposentos, correndo o ferrolho. Que fizera, santo Deus! Olhou estarrecida para suas mãos nervosas que estremeciam como que tocadas de excitação irreprimível. Viu então que seu vestido estava sujo de sangue. A Condessa ao tentar arrancar-lhe o punhal das mãos, atracara-se com ela, mas dominada por força duplicada a Baronesa conseguira atingi-Ia com golpe certeiro.
O rosto de Lívia estava sem cor. Por mais que desejasse, a sensação que sentira de enterrar o punhal no peito formoso da Condessa não a deixava, repetindo-se em sua mente a cena brutal em que por fim Marguerit tombara, fixando-a com ódio, tentando inutilmente com as mãos estancar o sangue que bordejava abundante.
Apavorada, quis livrar-se do vestido ensangüentado. O fino e perigoso punhal atirara ao fundo de um poço na saída do castelo da Condessa.
Precisava limpar os últimos vestígios. Teria alguém a reconhecido? Algum criado teria suspeitado? Usara espesso véu e traje escuro. A carruagem, sem brasões, que o próprio Barão usava quando pretendia sair incógnito.
Certamente ninguém a teria reconhecido! Com febril agitação trocou o traje e embrulhou-o cuidadosamente em um pano velho. Atou com um cordel e escondeu-o com cuidado. No dia seguinte, atirá-lo-ia no rio. Olhou-se no espelho. Estava muito pálida. Precisava evitar suspeitas, principalmente do seu perspicaz marido. Não tinha dúvida de que Marguerit estava morta. Mesmo com sua inexperiência tinha como certo tê-la atingido no coração.
Qual seria a atitude de Gustavo, sabendo que sua amada não mais existia? Sentou-se em uma poltrona sem encontrar posição nem tranqüilidade. Os arrepios nervosos percorriam-lhe o corpo e embora fizesse o possível para fugir a ela, lá estava de novo em sua mente, a repetição automática e terrível da cena do crime.
Um princípio de arrependimento surgiu no coração da Baronesa. Jamais se levantara para ferir quem quer que fosse. Jamais prejudicara alguém. Porque aquela mulher se colocara em seu caminho? Não lhe bastavam os apaixonados na Corte? Porque ultrajara seu lar, roubando-lhe o amor do marido?
No início, Lívia não percebera as atenções e os meneios de Marguerit para interessar Gustavo, Mas, à medida que a tempo decorria, sentiu que o Barão, sempre atencioso, distanciava-se do lar, desinteressava-se dela, relegando-a a piano secundário. Ultimamente, raramente a procurava nos seus aposentos, saindo contentemente e tratando-a como se não existisse.
Casara-se com ele por amor. A figura atraente do Barão, sua personalidade en- volvente e exótica, tinham despertado em Lívia ardente paixão que para sua felicidade foi correspondida.
O casamento de ambos havia sido um dos maiores acontecimentos sociais da época, porquanto Lívia vinha de excelente linhagem e possuía grande tradição de família. Tudo decorrera com felicidade. Apenas havia a falta de um herdeiro que naqueles primeiros anos não viera, mas que para a alegria do casal há dois anos lhes enriquecia o lar.
Sentindo o desinteresse do marido, Lívia procurou a causa e investigando descobriu a verdade. Gustavo mantinha en- contros clandestinos com a Condessa de Ancour.
Sentiu-se revoltada. Trocá-la por uma mulher mais velha e esposa de um dos seus melhores amigos. Tudo fizera para separá-los. O Barão negava sempre que mantivesse com Marguerit outra relação que não a de amizade que unia as famílias. Mas a Condessa tinha na Corte a fama de mulher devassa, rodeada de admiradores, que conseguia prender com constância. Dera causa já a muitos duelos, mas com habilidade espetacular conseguia sempre salvaguardar as aparências.
Numa das festas em que se encontrara com a rival, Lívia pudera manter com ela reservada palestra onde lhe suplicara que deixasse o Barão em paz.
Extremamente lisonjeada com a humildade da Baronesa, manejou a ironia como arma, concitando-a a que reconquis- tasse o marido, afirmando nada poder fazer porquanto absolutamente não se interessava pelo Barão, insinuando que talvez se ela conseguisse atraí-lo de novo, o Barão voltasse ao lar como dantes. Lívia detestou aquela vaidosa mulher. Usara humildade, franqueza, suplicara com o coração. Ela a humilhara, ferira, açoitara com palavras duras de vencedora, sem nenhum respeito pela sua dor.
Foi naquele momento que Lívia jurou vingar-se. Passou a seguir disfarçadamente o Barão, principalmente nos misteriosos passeios que ele fazia certas tardes a cavalo.
Não teve dificuldades em saber onde ia. No bosque do castelo de Ancour, pavilhão de caça. Tinha visto o Barão entrar e, logo após, a Condessa acompanhada da camareira que ficava do lado de fora vigiando.
Com cautela, Lívia, pelos fundos, acercara-se da janela e por uma fresta pode ver o Barão e a Condessa abraçados. A emoção que sentiu foi tão violenta que Lívia precisou de alguns minutos para poder raciocinar outra vez. Não teve coragem de entrar. Retirou-se ruminando o que deveria fazer.
A fisionomia do marido, expressando amor, fitando aquela mulher, seus abraços, seus beijos, não lhe safam da mente, como que estabelecendo uma corrente de fogo. Lívia nunca pensou que tivesse tal capacidade de odiar! Haveria de vingar-se! Seda uma obra útil livrar o mundo daquela mulher destruidora de lares, fútil e vaidosa.
Planejou tudo cuidadosamente. A arma sem brasão, o bilhete sem assinatura, a adesão do cocheiro pago a bom dinheiro. Mas agora que realizara sua vingança, não estava tranqüila. Os olhos terríveis e rancorosos da Condessa pareciam olhá-la e por mais que tentasse não conseguia desvencilhar-se dela.
- Estou nervosa - pensou, procurando algum calmante no toucador. - Amanhã estarei mais calma.
Fiz o que devia. Agora é tarde.
Ingeriu as gotas que generosamente servira em um cálice de água. A cabeça doía-lhe tenazmente. Resolveu deitar-se um pouco, deixando o aposento na penumbra.
Uma hora depois, cansada e insone, levantou-se de novo. Não podia fechar os olhos. Sempre que o fazia, acentuava-se-lhe na mente a falta cometida. Rememorava-a com tal nitidez, que parecia-lhe a estar cometendo novamente.
Quando a camareira veio prepará-la para o jantar, Lívia fez tremendo esforça para dominar-se.
Precisava descer ao salão. Gustavo não podia desconfiar de nada. Ansiosa, olhou- se no espelho e sentiu-se alarmada. Viu seu rosto pálido ostentando fundas olheiras como se estivesse levantando-se após grave enfermidade. Sentia as pernas trêmulas e as mãos imersas em suor frio.
Febrilmente procurou encobrir seu estado.
- Estais doente, senhora Baronesa. Quereis que avise o Sr. Barão? Lívia segurou a camareira com violência: - Nada disso. Estou bem. Apenas ligeira dor de cabeça. Anda, ajuda-me. Quando Lívia entrou no salão, o Barão já a esperava, lendo distraidamente belíssimo livro preciosamente encadernado. Saudou-a cortesmente, Seu olhar breve e indiferente, não se demorou no rosto jovem e macerado da esposa. Essa indiferença que tanto feria Lívia, naquela noite foi-lhe providencial, mas, mesmo assim, não pôde deixar de atingi-la.
- Pensa nela certamente - pensou a Baronesa - Não sabe que está morta! A esse pensamento sentiu as pernas fraquejarem.
- Assassina! Assassina! És uma assassina!". - Um estremecimento percorreu-lhe o corpo e teria caído se não se sentasse imediatamente.
Felizmente o Barão continuava entretido com o livro e não notou o mal-estar da esposa.
Durante o jantar ela mal tocou nos alimentos, mas a mesa era muito grande e Gustavo na outra ponta não o notou.
Foi com dificuldades sem conta que Lívia conseguiu dissimular seu real estado de espírito, no salão, onde o Barão recostado em cômoda poltrona, tendo aos pés seu enorme cão pastor, retomou o livro e continuou a leitura. Lívia dirigiu-se ao piano, mas sentiu-se sem ânimo para tocar. Se o fizesse a emoção transbordaria e nada a poderia deter. Preferiu retomar seu bordado e fingir que bordava. Quando o relógio deu dez badaladas, resolveu ir para seus aposentos. Retardou o mais que pôde, mas já era muito tarde. O Barão irritava-se por ter que esperá-la acomodar-se para, por sua vez, sair do salão. Muito cavalheiro, jamais o fazia antes dela.
Entretanto, Lívia temia a solidão. Tinha ímpetos de chorar, contar-lhe tudo, dividindo com ele sua mágoa e seu temor. Mas o medo do seu desprezo a conteve. Certamente a odiaria se a soubesse uma assassina. Teve impulso de pedir-lhe que fosse ao seu quarto naquela noite.
Precisava tanto de conforto! Mas não teve coragem. Despediu-se como de costume c dirigiu-se aos seus aposentos, depois de beijar o filhinho que já dormia.
Pobre Lívia! Insone e apavorada, aflita e infeliz, começava já a enfrentar na consciência as conseqüências de seu cri- me. Como estava iludida pensando em libertar seu lar da influência daninha da rival! Inspirada pelo ciúme e pelo ódio, Laços Eternos conseguira imantar-se com o crime ao sofrimento e à escravidão maior do erro cometido, do crime perpetrado, que certamente viria agravar ainda mais as dificuldades para a conquista da felicidade almejada.
Mas os tormentos de Lívia apenas tinham se iniciado Re- crudesceram nos dias subsequentes, sem que pudessem atenuar-se.
A cada ruído, esperava a notícia da morte da Condessa, a cada momento ansiava e temia ao mesmo tempo, conhecer a extensão do seu crime.
Laços Eternos Porém, tudo continuava na mesma e nada conseguia descobrir do que realmente havia acontecido. Entretanto, à medida que os dias transcorriam nessa angústia constante, mais e mais sua saúde ia se arruinando. Mal se alimentava e os pesadelos povoavam suas noites mal dormidas. A ponto de Gustavo interessar-se pela sua saúde.
Mas, Lívia, temerosa de que o marido descobrisse seu crime, sentia-se piar em sua presença que lhe provocava mais tormentos e mais sensação de culpa Estava recolhida ao leito, febril e agitada, quando o Barão recebeu a carta de Marguerit, solicitando-lhe uma entrevista. Fazia muitos dias que não recebia nenhum recado da Condessa, por isso, regozijou-se com a oportunidade de vê-la. Não sabia parque deixara-se envolver pelo fascínio daquela bela mulher, Quando estava a seu lado, sentia-se dominado por uma atração fone e constante que o consumia cada vez mais, sem esgotar-se. Quando se afastava, vivia ansioso e insatisfeito, vivendo apenas do desejo de voltar a vê-la e ficar a seu lado. Tudo o mais era-lhe indiferente, consumido na chama constante e ardente daquela paixão avassaladora.
Preparou-se rapidamente e sem paciência para suportar o trote pausado da carruagem, mandou selar o cavalo e partiu a galope. Ia ao castelo de Ancour. Marguerit estava doente. Era amigo da casa, podia visitá-la sem protocolo, mesmo que o Conde não se encontrasse em casa.
Procurando ocultar a emoção, o Barão deixou-se conduzir para a sala do castelo onde Geneviève o recebeu com cortesia e atenção.
- Perdoai Sra. Marquesa a ousadia de apresentar-me nestes trajes em hora tão imprópria. Soube que a Sra. Con- dessa está enferma e vim informar-me sobre sua saúde.
- Muita gentileza, Sr. Barão. Somos gratos. Minha mãe sofreu um atentado e só não morreu pela graça de Deus.
- Um atentado?! - o Barão empalideceu.
- Sim. Minha mãe foi vítima de uma tentativa de morte. Em poucas palavras Geneviève colocou Gustavo a par do acontecido. Temerosa de que o Barão descobrisse que sua esposa era a autora do crime. O Barão estava revoltado.
- Quem poderia fazer semelhante coisa? Quem ousaria?
- Não sei. Meu pai investiga, mas ainda nada descobriu.
- A Sra. Condessa pode receber-me? Gostaria de pres- tar-lhe minhas homenagens.
Geneviève sentiu uma onda de repulsa. Fez tremendo esforço para dominar-se.
- Esperai.
Verei se pode receber-vos.
A jovem senhora, embora confiasse na honradez de sua mãe, instintivamente sentia ciúmes do Barão, tinha ímpetos de impedir que ele entrasse no quarto, como desejava ardentemente que ele partisse. Mas encontrou sua mãe bem disposta, sorridente. Ao anunciar-lhe a presença do Barão de Varene, ela afetando um ar de encantadora ingenuidade sorriu ao dizer: - Minha querida, ele pode entrar. Vou ver se consigo conversar com o Barão para que trate da insanidade mental da esposa. Preciso da tua cooperação. Ele é muito afeiçoado à Baronesa, vai receber um rude golpe. Infelizmente preciso desfechá-lo para evitar um mal maior. Deixa-nos a sós, por favor. Olhando o rosto sorridente e sereno da mãe, Geneviève sentiu-se mais calma. Foi com gentileza que convidou o Barão a entrar e acomodando-o em agradável poltrona, retirou-se.
Assim que a porta se fechou o Barão levantou-se num impulso, tomou a mão bem cuidada da Condessa e levou-a aos lábios com acentuada emoção.
- Agradeço a Deus ter te poupado a vida, Marguerit! Nem quero pensar na dor de perder-te!
Lisonjeada, a Condessa baixou o olhar com meiguice, aparentando certo embaraço.
- Por pouco a mão assassina não me destruiu.
Num arroubo de emoção o Barão ajoelhou-se ao lado do divã elegante onde entre almofadas e rendas Marguerit con valescia, e cobria de beijos suas mãos, seu rosto. Marguerit abandonava-se languidamente até que com voz trêmula reco- mendou: - Por favor, Barão, peço-lhe calma. Se minha filha o surpreender! Compromete-me. Vamos conversar.
Gustavo procurou conte -se e tomou assento novamente na cadeira ao lado.
- Estou calmo. Revolta-me saber que alguém tentou roubar tua vida. Reivindico o direito de vingar-te!
Um brilho de satisfação fulgurou fugitivamente nos olhos de Marguerit. Procurou ocultá-la cerrando-os languidamente: - Comove-me tua dedicação. Contudo, temo dar-te um desgosto! Por nada deste mundo revelarei a verdade, Gustavo sobressaltou-se.
- Tu sabes? Sabes quem ousou…
A Condessa meneou cabeça negativamente: - Não… não… Foi só um instante de fraqueza. Não devo falar!
O Barão levantou-se : - Não confias em mim ? Conta-me tudo, saberei ajudar- te. Tremo só em pensar que esse braço assassino pode tentar de novo! Não vês que perigo te expões?
A Condessa levou as mãos aos olhos deixando escapar um soluço angustiado.
- Eu te amo Gustavo. Quero poupar-te!
O Barão tornou-se pálido. Parado frente ê Condessa com voz onde a suspeita mesclava-se à ira, exigiu: - Quero a verdade Sou homem de honra e de caráter. Justiça será feita doa a quem doer.
Olhando-o de frente com voz firme, Marguerit declarou: - Contar-te-ei tudo. Esse segredo sufoca-me.
Foi a Ba ronesa Lívia que me quis matar.
O semblante do Barão fez-se pálido e cerrou os olhos vencido pela violenta emoção. Lívia ousara! Chegara a tanto! Assassina! Assassina!
Como pudera?
Ao cabo de algum instantes, Gustavo deixou-se cair na poltrona desalentado. Sentia-se um pouco culpado também por não ter pressentido e evitado a tragédia.
Ordenou à Condessa que lhe contasse tudo, com todos os detalhes. Ouviu estarrecido a narrativa que Marguerit fez, com voz compungida.
Ao cabo de alguns momentos de silêncio, torrou com voz entrecortada : - Marguerit, como posso recompensar-te por todo este sofrimento? Como apagar a ofensa que suportou? Perdoa-me! Perdoa-me pelo mal que te causei!
Imperceptível enfado refletiu-se no semblante de Marguerit, dominando-se porém, aparentando resignação respondeu : - Nada tenho a perdoar de quem recebi tanto amor. Entretanto…
Fez uma pausa, baixou o olhar com timidez.
- Continua, peço- te.
- Entretanto, tenho sofrido muito. À noite, mal posso dormir. Temo que ela volte, de arma em punho para atingir me. Vivo assombrada. Vejo-a por toda parte, brandindo a arma assassina! Oh! Gustavo - continuou soluçante -, como vencer essa terrível ameaça que me tira o sossego? Como evitar que ela volte para atingir-me de novo?
Gustavo estava estarrecido. Era verdade. Lívia podia armar outra cilada. Como evitá-la? Sacudiu a cabeça com determinação : Laços Eternos - Não te preocupes. Colocarei guardas em seu quarto e de lá não poderá sair. Vigiarei. Sossegue. Não correrás mais perigo algum. A Condessa aparentou mais calma. Depois de alguns minutos de silêncio tornou com voz persuasiva: - Sinto-me confortada por poder partilhar contigo este terrível segredo.
Se calei, foi para poupar-te. Sinto dar-te este desgosto. Todavia, sentir- me-ia mais serena se ela fosse encerrada em algum lugar onde não pudesse sair. Aos criados pode-se iludir com dinheiro e promessas, e o perigo continuaria. Quem não hesita em cometer um crime, deve ser encerrado, em seu próprio benefício.
O Barão titubeou: - Não sei… Encerrá-la!
- Sim. Num lugar de onde jamais pudesse sair e não mais representasse perigo para ninguém. Sua mulher está de- - Só assim me sentirei tranqüila. Sabia que podia confiar em tua dedicação e em teu afeto.
E envolvendo os olhos lânguidos em um assomo de carinho acentuou: - Agora, sinto-me protegida. Não precisas contar a ninguém a verdade. Tu és meu defensor. Estou em paz.
O Barão sentiu-se realmente comovido. Que boa alma a da Condessa! Quanta generosidade não querendo revelar a verdade! Afastou os últimos escrúpulos que lhe nasciam na consciência e prometeu- lhe tudo quanto da desejava obter.
Após reiterados protestos de amizade e de afeto, retirou-se.
Não pôde ver o brilho vitorioso que se refletiu no olhar modificado de Marguerit, nem Geneviève o percebeu quando sua mãe a chamou para participar-lhe que o Barão de Varene, homem honesto e bom, por amar profundamente a esposa, prometeu-lhe conduzi-la a um local onde os médicos pudessem tratá- la convenientemente, a fim de que pudesse recuperar- se.
Na quietude da sala de rememoração, ouviu-se um soluço irreprimível de Nina, restabelecendo a lembrança do passado, sem que a cortina da hipocrisia a acobertasse. Imediatamente a tela reflexiva apagou-se e o silêncio estabeleceu-se. Uma aragem suave, de forças delicadas e sublimes, banhava-lhe o espírito emocionado, sustentando- lhe o equilíbrio, e doce e delicado perfume espargia no ar, acordando-lhe as lembranças da espiritualidade maior. Somente quando Nina tornou-se tranqüila e serena a teta voltou a iluminar-se. A rememoração ia continuar.



CAPÍTULO VI
Desajustes causados pela omissão De volta ao seu castelo, o Barão ia menos disposto do que viera. A idéia de que Lívia houvesse cometido tão grave crime obscurecia-lhe a razão. E se a Condessa tivesse morrido?
Um arrepio de horror percorria-lhe o corpo. Entretanto, como evitar nova tragédia? Como defender Marguerit da maldade e do ciúme de Lívia?
A necessidade de enclausurá-la era evidente. Contudo, e a sociedade? Como explicar? E a Corte? Haveria de dar um jeito em tudo. Afinal, ela era uma criminosa. Precisava pagar. Pagaria.
Quando chegou, a n9ite já havia descido.
Imediatamente dirigiu-se à procura de Lívia, que em seus aposentos preparava-se para o jantar. Vendo-o entrar, violenta emoção a dominou. Pressentiu que ele sabia de tudo.
Aqueles dias de incerteza e de insônia haviam marcado o belo rosto de Lívia. Estava pálida e seus olhos refletiam certa agitação, enquanto que as mãos não conseguiam suster entre os dedos nem o pequeno lenço de linho que caiu ao chão.
A uma ordem a camareira afastou-se e o Barão cerrou a porta correndo o ferrolho. Procurando controlar-se, a Baronesa alçando a cabeça inquiriu com certa ironia: - A que devo o privilégio da tua visita?
- Precisamos conversar. Senta-te.
Foi com- alívio que Lívia procurou a cadeira. Às pernas tremiam, temia cair. Gustavo permaneceu em pé e parando em sua frente com olhar acusador perguntou: - Por que tentaste contra a vida da Condessa de Ancour?
Lívia, apesar de esperar pela pergunta, estremeceu: Devia negar? Devia confessar? Até que ponto ele conhecia a verdade?
Vendo sua indecisão o Barão aproximou-se ainda mais e sem poder conter-se acusou: - Foste tu. Foste tu! Assassina. Assassina!
Lívia levantou as mãos como que querendo afastar de si uma visão de horror, A voz extinguiu-se na garganta como que estrangulada.
Impiedoso, Gustavo quase encostou o rosto no rosto de sua mulher, Com voz carregada de ódio continuou: - Alma negra! Mulher perversa. Assassina. Tua vida não valeria nada neste momento se ela tivesse morrido! Meu ódio, meu despreza, hão de perseguir-te até o fim dos teus dias!
Lívia sentiu que tudo girava ao seu redor, enquanto que seu rosto pálido contraía-se em rito dolorosa. Caiu. redonda- mente no chão.
Gustavo assustou-se realmente. Lívia estava transfigurada.
Manchas arroxeadas tingiam-lhe a face branca, enquanto que uma espuma viscosa saía-lhe pelos cantos da boca cerrada.
- Fui longe demais - pensou ele - Se ela morrer? Movido pela remorso, puxou o cordão chamando a camareira, e correu a abrir a porta, ordenando assim que ela surgiu: - A Baronesa está mal. Chama o cocheiro imediatamente.
Enquanto a serva saía esbaforida, Gustavo carregou o corpo hirto da jovem esposa, estendendo-o no leito alvo. Pegou um copo de vinho e procurou fazer com que Lívia sorvesse algumas gotas. Contudo, dentes cerrados, não conseguiu fazê- la sorver nenhum gole.
- Lívia, Lívia. Na verdade, excedi-me. Perdoa-me. Perdoa-me!
Mas a Baronesa não lhe podia ouvir as palavras entrecortadas e aflitas. Seu corpo permanecia lívido, lábios roxos, manchas roxas nos braços e no pescoço, boca cerrada sem a mínima expressão de vida. Só o peito arfando fracamente demonstrava que ainda estava viva.
Assim que despachou o cocheiro à procura do médico, sentou-se ao lado do leito com ansiedade estampada na face.
Quando o velho doutor Villefort chegou, com a serenidade estampada na face e a paciência que só os que se habituaram a tratar face a face o sofrimento humano possuem, sentiu-se mais amparado.
Sem nada indagar, o médico examinou a enferma cuidadosamente, Tirou da maleta uma comprida cânula de borracha que cuidadosamente inseriu em uma narina da Baronesa, derramando por ela algumas gotas de medicamento. Sentou-se ao lado do Barão e com voz bondosa tornou: - A Baronesa sofreu uma emoção violentíssima! Está presa de comoção que agindo no seu cérebro provocou uma paralisação do comando orgânico.
- Comoção cerebral? - Inquiriu o Barão apavorado.
- Sim. Confiemos em Deus. Aguardemos que a crise passe.
- Há risco?
O médico permaneceu. indeciso por alguns instantes: - Esperemos o melhor. ir. Quando ela recobrar os sentidos, saberemos a extensão do mal.
- Pode morrer?
- Aguardemos confiantes. O senhor crê em Deus?
Apanhado de surpresa o Barão estremeceu. Esse era um assunto de que não se ocupava muito.
- Creio que sim - foi a resposta evasiva.
- Pois é hora de pensar nele- - volveu o médica com voz firme.
Gustavo apavorou-se. Sentiu que o caso era grave. Que fazer? Orar? Mas ele nunca se lembrava de havê-lo feito. Obrigado à frequência de missas na infância as assistira contrafeito e indiferente. Não tinha nunca sentido a presença de Deus em parte alguma. Existiria ele?
Pela sua mente perpassavam as idéias religiosas que esporadicamente tomara conhecimento, mas sem que elas pudessem naquele momento difícil dar-lhe conforto e serenidade. Envergonhado, tornou ao cabo de alguns minutos: - Doutor, eu não posso! Não consigo orar. Eu não sei!
O médico pousou a mão com carinho no ombro do Barão. Sentiu-lhe a carência de compreensão. Conhecia-o desde a infância. Era amigo a família. Estimava-o, apesar de conhecer-lhe fundo o caráter vaidoso e extravagante.
Conhecia sua leviandade. Lívia confiava no velho amigo, contando-lhe o desapego do marido. Há muito receava que o drama daquele lar se agravasse. Contudo, o que teria acontecido?
Era evidente que a Baronesa encontrava-se doente. Há dias viera vê la, notando-lhe o abatimento e a depressão nervosa. Temia um desfecho pior. Algo acontecera com ela, que ele desconhecia. Algo que a reduzira à triste condição de precariedade física.
- Para falar com Deus através da oração, não é preciso fórmula alguma. Deixai que vossa pensamento fale e Deus, que tudo vê, e tudo sabe, saberá vos ouvir e ajudar-vos.
O Barão nada disse, mas um arrepio de terror invadiu-lhe o coração assustado. Deus teria visto tudo quanto ele havia feito? Saberia que ele era o culpado do estado da esposa? Não teve ânimo para pensar em Deus.
Incomodava-o a idéia de que alguém pudesse saber tudo quanto havia feito e, principalmente, o que planejara em relação à reclusão de Lívia. Baixou o olhar confundido, simulando um recolhimento que estava longe de sentir.
O medo, o remorso, já se misturavam aos seus sentimentos atormentando-o dolorosamente.
Durante muitas horas a situação não se modificou e Gustavo, vendo que já começava a amanhecer nos albores dos pri- meiros raios de sol, não sabia ainda se o novo dia lhe traria a força da vida ou o pesa da morte. O médico não podia definir se Lívia sobreviveria ou não.
Nina, estava profundamente emocionada. Todo passado se encadeava frente aos seus olhos marejados e só agora come- çara a entender outras tantas coisas que dantes jamais pudera imaginar tivessem ocorrido, Mais do que nunca, conhecendo a tragédia de Lívia, sentia-se culpada por ter-se omitido, por não ter procurado compreender e perdoar, por não ter acordado a tempo a fim de evitar tão dolorosas conseqüências. Sempre havia ignorado o passado em toda sua extensão, mas agora que começara a vê-lo por inteiro, uma ânsia incontida lhe acudia ao coração. Ânsia de saber de tudo. De enxergar tudo.
De arrancar a venda da ilusão e ir ao fim de tudo, para depois, só depois de conhecer toda extensão da verdade, poder estabelecer novos rumos e recomeçar.
A pausa que se fizera na tela de rememoração como que para permitir ao espírito de Nina que se edificasse com a verdade, iluminou-se de novo, indicando que a volta ao passado ia continuar.



CAPÍTULO VII
A recuperação de Gustavo de Varene Na tarde ensolarada de junho, Geneviève servia apetitosa merenda aos seus dois filhos. Gerard completara cinco anos e Caroline três. A jovem mãe sorria feliz observando os filhos queridos. Eram lindos e saudáveis.
Cinco anos tinham decorrido do atentado que Marguerit sofrera e o Conde de Ancour jamais pudera saber quem tinha sido seu autor. Conformara-se com o tempo a deixar impune o culpado, vendo que a Condessa refizera-se completamente, continuando a ser a mesma mulher festejada e bela.
Geneviève também prazerosamente procurava esquecer essas dolorosas reminiscências, porquanto, considerava a moléstia de Lívia como punição do seu crime.
A Baronesa, jamais se havia recuperado por completo da crise sofrida. Nunca mais a vira depois do ocorrido, porém, informara-se de sua saúde amiudadas vezes pelos criados, e soubera que ela após demorado tratamento, andava com extrema dificuldade, quase se arrastando.
Sabia ainda que sua beleza fanara-se na magreza extrema e na palidez constante. Vivia apavorada, em permanente angústia e por vezes esquecia-se até do próprio nome. Em outras ocasiões, era acometida de depressão extrema, recusando alimento com obstinação. Jamais saía do quarto e seu olhar apenas abrandava-se quando lhe levavam o filho que adorava. A presença do pequeno tinha sempre o condão de serenar-lhe o semblante infeliz.
Geneviève soubera também que Gustavo desvelara-se em atenções para com a esposa enferma. Compreendeu-lhe o gesto e em seu coração generoso viu sublime perdão numa atitude ditada pelo sentimento de culpa c pelo remorso.
Conhecendo as atitudes do Barão em relação a Lívia, Geneviève sentiu que sua repulsa por ele diminuía. Gustavo nunca mais fora à casa do Conde de Ancour e Geneviève entendia que certamente nada houvera entre ele e sua mãe. E, se algo houvera, eles se tinham penitenciado.
Tudo voltara ao normal em seu lar e eram felizes. Naquela tarde, sentia-se particularmente alegre. Talvez fosse a beleza do dia que se findava ou talvez fosse a própria alegria dos filhos que enchiam o ar de risadas e ditos jocosos. Nada prenunciava a iminente dor que desabaria sobre aquele lar tão feliz.
Mas a vida tem suas razões e o destino dispõe das criaturas colocando-as à prova no cadinho da Terra. Geneviève ouviu ruído de patas de cavalo. Visitas àquela hora! Quem? A carruagem parou na alameda principal e logo após a fisionomia pálida de Gustavo de Varene auscultava com ansiedade o rosto curioso de Geneviève.
Senhor Barão! - exclamou ela admirada - A que devo a honra da vossa visita?
- Sinto incomodar-vos, senhora, mas aconteceu um acidente. Encontrei o Marquês caído na estrada. Está desacordado. Trouxe-o para cá. Vinde senhora Marquesa, precisamos socorrê-lo!
Geneviève empalideceu.
- Gerard! - exclamou assustada. - O que aconteceu?
- Deve ter sofrida uma queda. Encontramos seu cavalo há poucas passos da estrada.
- Oh! meu Deus! - gemeu ela - Onde está ele? Na carruagem. Vinde.
Ambos dirigiram-se à carruagem enquanto que a ama conduzia os dois pequenos para dentro da casa. Gerard estava pálido e não dava acordo de si. Com cuidado, dois servos o transportaram para seus aposentos enquanto que o próprio Barão saiu em busca do Dr. Villefort.
Geneviève estava assustada. Tentava reanimar o marido chamando-o e chegando-lhe o frasco de sais ao nariz, mas Gerard não reagia. Estava cada vez mais pálido e sua respiração a cada instante tornava-se mais fraca.
Quando o médico chegou, nada mais conseguiu fazer. Gerard, vítima de hemorragia interna provocada pela queda, veio a falecer.
Foram momentos de desespero e dor para Geneviève. Amava com ternura o marido que sempre fora amigo e bom. Era o companheiro que a deixava com dais filhas menores para enfrentar a vida sozinha.
Entretanto, a jovem senhora acreditava em Deus. Foi- lhe de grande consolo a presença amiga do Dr. Villefort, acordando em seu coração a responsabilidade das filhos, que sem pai, dependiam mais dela e também a confiança de que a vida continuava depois da morte.
Dizia a doutor: - Minha filha: não deveis chorar; a morte não é o fim; o corpo morre, mas a vida é eterna! A vida na Terra é um momento breve e todos nós um dia voltaremos ao mundo de onde viemos. Lá, estarão à nossa espera todos os que nos precederam e que nos amam.
- Acreditais realmente? - Geneviève levantou para ele os olhos cheios de lágrimas.
- Por certo minha filha. Deus experimenta nossa fé para que possa nos oferecer um lugar melhor no seu reino. Estais, com certeza, sendo provada nesta hora difícil! Se vencerdes, enfrentando com coragem o momento presente, certamente Deus vos compensará.
- Mas, sem ele, doutor, eu não poderei…
- Pois eu creio que podereis. Deus tudo sabe, tudo vê. Se Ele permitiu que isso acontecesse, foi porque sabe que sereis capaz de continuar com coragem e fé a dirigir este lar com honra e dignidade.
Geneviève acalmou-se. Lágrimas ainda lhe molhavam a face pálida mas compreendeu que o médico tinha razão.
Foi com coragem e dignidade que enfrentou as cerimô- nias do passamento. O Barão de Varene mostrou-se infatigável no andamento das providências necessárias, a que lhe valeu a gratidão do Conde de Ancour.
O Barão, durante aqueles anos, modificara-se bastante. Retirara-se para seus domínios, não mais aparecendo nos salões da Corte. Quando as circunstâncias o exigiam sua presença era protocolar e rápida, restringindo-se apenas ao indispensável.
Seu rosto perdera o ar alegre de sempre e os olhos retratavam tristeza e determinação. Os portões do seu castelo nunca mais se tinham aberto para recepções. E os amigos de outrora , que lhe acorriam aos salões festivos, desambientaram-se e, aos poucos, rarearam suas visitas o que de certa forma era o que ele queria. Não encontrava mais prazer nas reuniões frívolas e pueris.
Seu amor concentrava-se todo no filho já com sete anos. Esmerava-se em sua educação e amava-o de todo coração.
A presença de Lívia sempre o entristecia. Que fizera da sua bela mocidade? Que fizera da jovem alegre e ingênua que lhe entregara amor e carinho?
Durante a fase aguda da sua moléstia, observando-lhe o acerbo sofrimento, sentiu despertar agudos remorsos em seu coração. Vendo-lhe o rosto pálido, transmudado pela dor, lutando para sobreviver, parecia-lhe ser joguete de algum pesadelo cruel e odioso.
Rememorou o namoro, o noivado, o casamento, com as emoções dulcíssimas do amor correspondido. Como ela era linda! Como a tinha amado!
Depois, o tédio, a inquietação, o fascínio dos salões e a figura experimentada e bela da Condessa de Ancour.
Ela lhe penetrara o coração como uma labareda ardente queimando e aquecendo, cada vez mais sem jamais apagar-se tornando-se insuperável e imperiosa. Naquelas horas, acossado pelo ardor das reminiscências e pelo remorso, Gustavo começou a perceber quão culpado fora nos acontecimentos dolorosos que lhe envolveram a vida.
A tentativa de homicídio, a doença grave, as horas de angústia, os conselhos ponderados e sábios do médico amigo cuja dedicação foi abnegada, contribuíram para modificar profundamente o caráter do Barão.
Sentia, que se Lívia morresse a culpa seria dele, que além de traí-la ainda a impulsionara ao crime e por pouco lhe causara a morte com crueldade e incompreensão.
Certa noite, quando Gustavo velava a enferma, o doutor, preocupado, notou que o pulso de Lívia parecia enfraquecido. O rosto pálido envolvido em suores, alguns gemidos surdos, revelavam que o momento era extremo, Gustavo curvou-se para ela temendo o pior, emocionado chamou -Lívia, não me deixes. Fica comigo.
Ela que até aquele instante parecia inconsciente, estremeceu e seus olhos abriram-se fixando o rosno contraído do marido. Mexeu os lábios evidenciando tremendo esforço, mas não conseguiu falar. Comovido, o Barão suplicou novamente: -Lívia, perdoa-me. Não me deixes. Não me deixes! Outra vez a doente o fitou retratando aflição e temor nos olhos mortiços. Fez supremo esforço para falar, não conseguindo, desfaleceu.
Apavorado, Gustavo caiu de joelhos exclamando no paroxismo da angústia e da dor: -Ela está morta! Ela está morta! Doutor, ela está morta! O médico tomou o pulso da paciente e procurou constatar seu estado.
-Não posso negar que está muito mal. Digo-vos que se sabeis rezar, é hora de fazê-lo.
Gustavo teve então, mais do que nunca, a consciência de sua culpa. Apavorado, de joelhos, pela primeira vez em sua vida, voltou seu pensamento para Deus com sinceridade e pôde murmurar, sentindo que o pranto lhe descia pelas faces cansadas e pálidas : -Deus! Senhor Deus! Sou culpado. Sou o único culpado. Fere-me a mim, Deus, mas deixai que ela viva! Deixai que ela viva para que eu possa resgatar minha culpa. Dá-me, senhor Deus, a oportunidade de ser para ela o que devia ter sido e não fui. Deixai-me Senhor provar meu arrependimento. Conservai lhe a vida e eu vos prometo dedicar-me totalmente a redimir meu erro.
O Barão falava com tanta veemência e valor que pare- cia colocar a própria alma em cada palavra.
-Senhor Barão, senhor Barão. Deus ouviu vossas pa- lavras. A senhora Baronesa vive, e c que é melhor, está apenas adormecida.
Gustavo levantou-se ainda inseguro sem compreender bem o que o médico lhe dizia. Quando conseguiu saber o que se passava, foi acometido de grande alívio. Apesar de saber que o estado de Lívia, mesmo fora de perigo, não era de re- cuperação total, ainda assim Gustavo' considerou-se ouvido por Deus em suas rogativas.
A partir daquele dia, modificou sua vida completamente, dedicando-se exclusivamente à recuperação de Lívia, à gestão dos seus negócios e ao filho.
Em seu coração aflito começou a nascer um lastro de fé, tendo então início sua procura de Deus. Recorreu ao médico que com paciência e amor o visitava freqüentemente, mantendo com ele longas e edificantes palestras onde lhe falava de Jesus, do Evangelho, da reencarnação e do amor.
Das provações da Terra, da nossa luta interior, da necessida- de do progresso e da compreensão.
E, à medida que o velho doutor amiudava suas visitas a pedido do Barão, interessado e ansioso, firmava-se entre os dois os laços da mais firme e sincera amizade.
Era sempre com prazer que Gustavo o recebia, e depois do exame cuidadoso à enferma, sentavam-se na saleta próxi- ma para trocar idéias.
- Então, como está ela hoje?
O médico, procurando expressar otimismo respondia sor rindo: - Melhor. Vai melhor.
Certo dia, Gustavo acicatado pela melancolia e pelos re- morsos, sentia-se deprimido e desalentado. Sua casa parecia lhe particularmente triste naquele dia, e nem a figura alegre e querida do filho conseguiu arrancá-lo daquele assomo de tristeza. Na presença do médico amigo não se conteve: - Doutor achas que ela ficará boa? Voltará a ser como antes?
O médico levantou o olhar onde se lia uma pena infinita, mas ao mesmo tempo uma chama de energia: - Deveis reagir Sr. Barão. Não vos deixeis abater agora. As cousas já estiveram piores. A Sra. Baronesa está fora de perigo e nossa gratidão a Deus deve ser constante. Quanto à cura radical, confesso que ainda não posso determinar ou. prever.
- Acontece que cada vez que a vejo, pálida, quase sem poder mover-se, quase sem poder articular as palavras, acuso me de assassino e não suporto o peso de minha culpa.
- De que vos acusais?
- Da crime de levá-la pelo ciúme ao estado em que se encontra.
- Não vos acuseis. Isto apenas piorará as coisas. Não vai beneficiá-la vossa atitude.
- São os remorsos. Não me deixam em paz.
- Sr. Barão, não vos escravizeis à angústia e ao fracasso. Quem pode ser juiz dos acontecimentos? Só Deus. Tanto o Sr. Barão como a Sra. Baronesa erraram, entretanto, quem nos pode garantir que a sua doença já não estivesse determinada pelo destino, mesmo que nada disso tivesse Acontecido?
- Acreditais nisso? A Lívia sempre bondosa e pura, teria Deus destinado tão triste sorte? Achais justo?
- Meu amigo. Sempre que desejarmos analisar as nossa provações e os nossos infortúnios, não podemos nos es- quecer das nossas anteriores existências na carne.
- Já me tendes falado sobre isso. Acreditais mesmo que possa ser verdade?
- Tive várias comprovações e há muito que não tenho nenhuma dúvida a esse respeito. Por isso, sem nos recordar- mos das vidas passadas não temos elementos para formar juí- za algum. Nesse caso, devemos nos abster de fazê-lo. Entre- tanto, considerando a perfeição de Deus, sua bondade, sua justiça, devemos compreender que todos seus desígnios são sábios e justos.
As palavras confiantes e serenas do médico iam aos poucos devolvendo a Gustavo a serenidade e o equilíbrio.
- Acreditais que a vida não se acaba com a morte?
- Achais justo que Lívia, moça e bela, seja destruída pouco a pouco presa a essa cama?
- A situação da Sra. Baronesa é dolorosa. Se dependesse de mim, se pudesse fazer algo para ajudá-la a recuperar a saúde, de bom gosto o faria. Todavia, só Deus tem o poder de curá-la. Apesar de tudo, Sr. Barão, acredito que um dia ela se libertará de toda essa angústia. Porque ainda que arraste esta existência toda enferma, seu espírito é eterno, portanto, chegará a hora da recuperação e da paz.
- Se nada se perde na Natureza e tudo se transforma, porque só nós e a nossa vida deveriam terminar? Porque Imitas diferenças de inteligência, de honestidade, de respon- sabilidade e de moral entre os homens? Porque uns sofrem tanto e outros levam vida mais tranqüila? Nunca havíeis per- guntado onde está na Terra a Justiça de Deus?
É sobre isto que tenho pensado todo tempo. Deus ouviu- me o apelo no momento da aflição e da dor, não posso negar- lhe a existência. Contudo, não consigo compreender sua justiça. É por isso que fico desalentado. Como confiar?
O médico sorriu meneando a cabeça e respondeu : - Podeis duvidar? Duvidar depois das vossas preces te- rem sido ouvidas?
- É verdade. Nunca pude aceitar a religião por causa dos seus mistérios.
- O povo costuma dizer que "Deus escreve direito por linhas tortas", porém, eu, acredito que Deus estabeleceu Leis imutáveis para nos guiar na senda da evolução, que nos en- sinam a linha direta e mais curta. Nós é que abraçados às ilusões e ao imediatismo a que nos habituamos no mundo, caminhamos por linhas tortas e tortuosas. Deus, apesar de tudo, como pai amoroso que é, acaba no fim por surpreender- nos, fazendo redundar em bem o mal que levianamente teimamos em fazer. Gustavo admirou-se.
- Nunca pensei nisso. Mas assim nos colocais em posi- ção de criaturas perversas e viciosas.
- Por acaso seremos puros?
Gustavo sobressaltou-se. Apanhado de surpresa pela pergunta do médico, corou fortemente. A sensação de sua culpa e dos erros cometidos provocaram involuntário sobres- salto.
- Sois rude.
- Não tenho mais ilusões para com nossas fraquezas. Sei o que somos e o que valemos. Até nas crianças, seres que nos despertam amor e ternura. surpreendemos a semente da inveja, do ciúme, do orgulho, da rebeldia e do egoísmo.
- Sois muito pessimista e contraditório.
O facultativo abanou a cabeça com suavidade, Em seu olhar havia um brilho profundo e alegre.
Absolutamente. Estou apenas colocando as coisas nos devidos lugares. Só Deus é perfeito. é sábio, é bom. Quanto a nós, somos seres ainda imperfeitos, que caminhamos na escola da vida para progredir. Onde a contradição?
- Ao mesmo tempo que nos convida à fé e à resignação, ao esforço e à luta para conquista da felicidade, nos taxa de egoístas e perversos. Não será tudo inútil?
- De forma alguma. Se ainda somos falíveis e cheios de imperfeições Deus nos convida a melhoria interior, dando- nos a certeza de que a vida na Terra é transitória e que os sofrimentos aqui, quando bem suportados nos purificam e nos fazem aprender e progredir, Gustavo permaneceu pensativo por alguns minutos.
-É cruel essa forma de ascensão.
Talvez não o fosse se fôssemos mais dóceis, Mas, o próprio Cristo que veio à Terra para nos ensinar tudo isso, sofreu o peso da nossa maldade.
-É verdade. Não será isso uma injustiça?
-Da parte dele foi de abnegação e de amor, da nossa parte, como sempre, foi um crime, uma infâmia. Analisando bem, sempre chegaremos à conclusão de que no quinhão da responsabilidade a pior parcela tem sido sempre a nossa. E como Deus dá a cada um segundo as suas obras, sempre que sofremos devemos pedir a Deus perdão porque é certo que estamos recebendo de volta as conseqüências das ações praticadas. Hoje? Ontem? Há duzentos anos? Há mil anos? Não importa quando, mas o fizemos.
-E agora, como agir?
-Agora? Fazer o melhor que pudermos para refazer o erro.
-No meu caso, doutor. Como proceder?
-Continua como até aqui. Dedicai-vos à Sra. Baronesa com amor e abnegação. Deus a confiou à vossa guarda e certamente espera que façais o melhor que puderdes para ajudá-la. É a forma que Deus nos está indicando como repa- ração pelos erros que vos pesa no coração. Quereis melhor oportunidade?
Essas palestras com o velho médico produziam salutar efeito no espírito deprimido de Gustavo. Tinham o poder de levantar-lhe o moral abatido, a coragem ameaçada.
Aos poucos, com o correr dos meses, grande mudança operou-se naquele espírito fraco, que começava a despertar para a vida espiritual. Inspirado pelos sábios conselhos do amigo médico, dedicou-se exclusivamente ao filho amado e à esposa doente.
Foi em vão que os convites sociais lhe buscaram a figura nobre. Com polidez e educação, pretextando a falta de saúde da Baronesa e a necessidade de sua constante presença a seu lado, foi aos poucos esquivando-se do bulício dos salões e das amizades dos cortesãos.
Também a condessa Marguerit procurou de todas as maneiras atraí-lo na mesma sedução de outros tempos. Mas Gustavo estava muito mudado. Seu remorso era real e sin- cero. Sacudido pela realidade, pela dor, compreendia que sua paixão pela Condessa fora apenas uma atração tão avassa- ladora quanto passageira.
Não querendo ser descortês para com uma dama, atendeu ao seu apelo indo ao seu encontro ainda uma vez, na cabana de caça do castelo de Ancour.
Achava útil um entendimento franco com ela. Devia-lhe uma explicação.
Quando se viram frente a frente na cabana, olharam-se com curiosidade. Ela, arrumada com esmero, tendo nos olhos o brilho de uma paixão avassaladora. Ele, procurando não magoá-la, desejando ser compreendido em sua nova disposi- ção. Fazia seis meses que ele a visitara no leito de enferma. Vendo-a, sua ferida, seu remorso se reavivava.
Após as perguntas iniciais, Marguerit sentiu-se decepcionada e temerosa. Não notava em Gustavo a chama ardente de outros tempos. Percebeu que tinha perdido terreno. Ele, mantendo atitude sóbria e correta, procurou fazê-la entender que nada mais era possível entre os dois. Que era tempo de evitarem um mal maior do que aquele que já tinha acontecido.
Marguerit sentiu-se agastada com essa atitude. Não esperava encontrá-lo tão diferente. Sem poder compreender o drama de consciência do Barão, preferiu acreditar que por falta de amor ele queria descartar-se dela, Seu coração vibrou de ódio. A cada dia sentia um medo terrível de envelhecer.
Todas as manhãs estudava o seu rosto no espelho, procuran- do descobrir alguma ruga ou um sinal premonitor de envelhe- cimento. A atitude de Gustavo para ela representava um sinal inequívoco de que já não possuía o mesmo fascínio.
Resolveu utilizar todos os recursos de mulher experimentada e bela para reconquistá-lo.
Demonstrou que o compreendia e partilhava de seus escrúpulos e desatou a chorar desconsoladamente dizendo- se também culpada pela tragédia de Lívia.
Fosse em outros tempos, teria conquistado seu objetivo. Gustavo comovia-se diante das lágrimas daquela bela mulher, mas agora mais experimentado não se rendia com a mesma facilidade. Havia surpreendido um brilho duro no olhar dela que instintivamente o colocara de sobreaviso. Fora um fulgor rápido, porém, revelador.
Imune aos seus encantos, o Barão agora surpreendia-se por não encontrar naquele rosto bem cuidado a chama de outros tempos. Achava-a calculista e superficial e admirava- se por ter perdido a cabeça e prejudicado seu lar por causa dela.
Foi com alívio e certa pressa, como quem se livra de uma obrigação desagradável que o Barão despediu-se e retirou-se afinal.
Seu alívio evidente em despedir-se, evidenciando seus sentimentos, tornou mais sombria a fisionomia de Marguerit que, vendo-o sair, deixou-se cair sobre uma poltrona e mur- murou entre dentes levantando o punho ameaçador: - Pagará por isto, Gustavo de Varene. Nunca sofri tamanha afronta. Juro que me vingarei!


Capítulo VIII
Sábias lições do Dr. Villefort
Recostada em uma poltrona artisticamente lavrada, Geneviève, trajando rigoroso luto, empunhava um livro sem ler. Seu pensamento, sem poder fixar-se na leitura, vagava pelo passado, na tristeza da separação do companheiro que desde os dias da sua juventude lhe fora amparo e dedicação.
Quanta falta lhe fazia! Encontrara nele todo apoio ao seu coração inexperiente e agora que ele lhe faltava, tornava- se difícil prosseguir. Consultava-o sobre tudo nas mínimas coisas, e se alguma mágoa lhe feria o coração, era com ele que desabafava e procurava conforto.
Como era difícil assumir a liderança de tudo, cuidando das propriedades e da família. Tinha o auxílio do Conde de Ancour, mas mesmo assim não se sentia em segurança.
Constantemente, naqueles seis meses de solidão, seu pensamento procurava o passado, recordando os tempos felizes. Apesar da juventude bem cuidada ao lado dos pais, sempre vivera só, porquanto eles envoltos nos compromissos sociais, não dispunham de tempo para fazer-lhe companhia. Com o casamento sentira-se amada e feliz. Mas agora, apesar dos filhos muito amados, a solidão voltara trazendo saudade e tristeza!
Não viu quando a criada entrou na sala e tornou: - Sra. Marquesa, o doutor está aí. Arrancada do seu mundo íntimo, Geneviève sobressaltou- se. Quando a serva repetiu a frase ela sorriu: -Faze-o entrar.
A presença do médico sempre lhe causava alegria.
Apesar de não conhecê-lo senão no dia em que seu marido mor- reu, ele por sua bondade, sua compreensão, sua dedicação e sua inteligência, conquistara-lhe a simpatia. Confiava em sua figura encanecida e experiente. Sentia-se segura e amparada contando-lhe seus receios e problemas. Era na qualidade de amigo muito querido que o recebia.
O médico, entretanto, preocupado com o abatimento da jovem senhora, examinava-a com cuidado, ministrando-lhe sedativos e conselhos.
Vendo-o entrar, Geneviève levantou-se com um brilho fugidio de alegria no rosto entristecido: - Senhor doutor! Que prazer!
- Como vai senhora Marquesa?
Curtindo a minha solidão. Sinto-me feliz com vossa presença.
- Noto que conservais a tristeza no semblante. Não sabeis que alimentando sempre esse pensamento, podereis adoecer? hora de esquecer!
Geneviève baixou a cabeça desanimada: -Não posso!
-Nesse caso, permiti dizer-vos que causais imensa dor ao vosso pobre marido.
Geneviève arregalou os olhos e pareceu não entender: - Como?!
-Digo-vos que é verdade. Porque tanta tragédia em torno da morte? Claro está que sentimos a dor da separação daqueles que amamos. Mas a vida continua e a separação é temporária. Depois, Deus é bom e justo. Se assim determinou foi porque era necessário em benefício de todos.
Sacudida pelas enérgicas palavras do médico, a jovem senhora pareceu sair do marasmo em que deliberadamente se mantinha.
-Por que não devo entristecer-me com a viuvez? Dizeis que a separação é temporária, mas, todos acham que quem morreu nunca mais volta.
- Onde está vossa fé em Deus? Acreditais em Deus?
Um pouco picada pela pergunta ela respondeu: - Certamente, doutor!
-Então porque não confiais nele?
- Mas eu confio!
- Então porque achais que a vida acaba com a morte? Que os que se foram não voltam?
Geneviève baixou a olhar confundida. Muitas vezes ape- lara em preces e recebera ajuda e consolo. Vendo-a calada o doutor continuou: - Nunca vos ocorreu que o espírito é eterno e, que sendo assim, depois da morte do corpo ele deve viver em algum lugar, que por agora não sabemos, mas que nem por isso deixa de existir? Nunca meditastes que essas mesmas almas um dia deverão reencarnar na Terra que é uma escola para os sentimentos, além de uma penitenciária onde sempre a justiça de Deus se cumpre e de onde ninguém poderá sair sem pagar até o último ceitil?
- Falais de forma extravagante. Onde encontrastes essas teorias?
- Na vida, senhora Marquesa. Os orientais sempre acre- ditaram na transmigraçâo das almas. Sócrates também a divulgava na Grécia antiga. Mas nunca eu as teria aceitado se a vida cotidiana não pudesse comprová-las.
- Quereis dizer que tendes provas?
O médico sacudiu a cabeça afirmativamente.
- Ao observador atento e interessado em encontrar a verdade, elas se revelam com abundância. Basta submeter os acontecimentos que tomamos conhecimento à análise para verificarmos que somente a reencarnação pode explicá-los com clareza, ao mesmo tempo evidenciando a justiça perfeita de Deus. Apesar de tudo, sempre fui daqueles que precisa compreender para aceitar seja o que for. Talvez por isso jamais tenha me submetido ao domínio de uma religião, que considero meramente humana. Pondo de lado a Igreja instituída pelos homens, procurei investigar racionalmente o Cristianismo e quanto mais o fazia, mais e mais compreendia sua profunda sabedoria. Foi preciso tempo, observação e estudo, mas cheguei finalmente à conclusão de que representa o caminho que nos levará à redenção espiritual.
Geneviève escutava atenta, querendo penetrar fundo no pensamento do médico. Percebendo que era ouvido com interesse o médico continuou: - Parti do princípio de que todos os acontecimentos, os fenômenos, que dantes ocorriam e dos quais nos fala a Bíblia, certamente, deveriam poder acontecer em nossos dias. Se acon- teceram ontem, poderão repetir-se hoje ou amanhã, Do que se depreende que aqueles que representam lendas são frutos da imaginação fértil do povo; naturalmente não se repetiriam.
Assim, comecei a submeter todos os fatos extraordinários que chegavam ao meu conhecimento. ao raciocínio e à observação e classificando-os pude apreender certas manifestações que pela repetição insuspeita, por terem acontecido desde o início da nossa civilização, devem ser catalogados como reais e naturais. A manifestação dos espíritos daqueles que se foram deste mundo é um desses fatos tão notórios que só os cegos voluntários não querem ver. Sempre têm ocorrido.
Rara é a família que não possa contar em seu próprio lar, com pelo menos uma manifestação dessas. Um aviso providencial, uma despedida de um parente ausente que morre, um socorro num momento de aflição. Não conheceis nenhum caso desses em vossa família?
- Minha mãe sempre contava que viu meu avô sentado no leito de minha avó, na hora de sua morte. Mas ela estava muito nervosa, teria sido alucinação.
- Isto é o que alguns dizem. Pensando assim, envergonhados, jamais contam o que viram ou sentiram nessas ocasiões. Contudo, trata-se de fenômeno normal. Pela repetição em todos os tempos e em todas as partes do mundo, não resta dúvida, é uma realidade. Partindo daí, logo somos levados a pensar. Se voltam, então continuam vivendo em outro lugar, e assim sendo, como será ele?
Geneviève surpreendeu-se.
- Talvez um lugar de nuvens e fumaça como eles mesmos.
O médico abanou a cabeça: - Não creio, O que sempre dizem, tal qual são vistos, comprova o que o Cristo disse no Evangelho : A cada um será dado segundo suas obras. Estarão felizes se tiverem sido bons, e desgraçados se fizeram mal ao seu próximo.
Geneviève suspirou com certo alívio: - Nesse caso meu Gerard estará no céu. Sempre foi muito bom.
- Concordo. Deverá sentir-se em paz, pelo menos. Mas senhora Marquesa, assim, de raciocínio em raciocínio, de observação em observação, cheguei à conclusão de que a vida -continua depois da morte. Que o espírito é eterno, mas para que possa depurar-se e conseguir alcançar a perfeição, deve voltar a nascer na Terra muitas vezes.
- Como chegou a essa conclusão?
- Observando o sofrimento humano, a maldade de mui- tos a bondade injustiçada de alguns. Só a reencarnação pode explicar tantas anomalias no mundo, conciliando-as com a perfeição de Deus e sua justiça.
- Em que bases?
- Na da única que podemos aceitar: de que quem fez o mal, deve voltar para a devida reparação e purificação. Existem dores que só nos sensibilizam quando a sentimos dilacerando-nos o coração. Se as causamos aos outros é justo que as sintamos para aprendermos a moderar nossos impulsos no mal. Tudo na vida, na Natureza, é manifestação de amor e por isso devemos aprender a amar para estar com Deus.
- Essa justiça é dura. Não será muito rigorosa?
- Que vos parece melhor? Que vossos filhos paguem pelos vossos erros ou que sejais vós mesmos forçados em vidas futuras a resgatá-los?
- Para ser justa, tendes razão. Prefiro pagar por minhas faltas a que meus filhos sofram inocentes, - Se nós, apesar da nossa insignificante compreensão humana pensamos assim, Deus será pior do que nós castigando inocentes por pecadores?
- Isto nos torna muito responsáveis de repente - co- mentou Geneviève pensativa.
- Que bom se todos fossem compreensivos como sois - comentou o médico - mas estou aqui a falar e acredito haver-vos cansado com meus arroubos.
- Pelo contrário, doutor. Estava triste e deprimida, vossa palestra confortou-me. Fico-vos muito grata.
- Sinto-me feliz quando posso reacender a chama da fé em um coração sofredor. Hoje tive um dia triste. Venho do castelo de Varene. A Baronesa anda muito mal.
Comove- me a desolação do Barão e do filho. Geneviève sentiu o coração angustiado: - Acreditais que ela possa recuperar-se? O médico abanou a cabeça.
- Infelizmente não. Teve ontem uma recaída e está prostrada. Talvez seja o fim, Vou para casa ultimar alguns afazeres e regresso ao castelo de Varene à noite. Pretendo permanecer ao lado daqueles amigos a quem estimo com carinho. Geneviève considerou : Pobre Barão. Devemos-lhe muitos favores por ocasião da morte de Gerard. Desejo que ela possa salvar-se.
- Deus vos ouça.
Quando o médico se foi a jovem senhora encostada à janela olhava as árvores do parque; e uma lágrima assomou- lhe aos olhos comovidos.
- Pobre Barão. Se errara na mocidade - pensou ela - sua dedicação, para com a esposa enferma e quase assassina o redimira. Amaria realmente sua mulher? Não o sabia.
Pensou em Gerard e lembrou-se das afirmativas convictas do médico sobre a continuidade da vida. A figura querida do esposo surgiu-lhe na mente e num assomo de emoção seu pensamento chamou : - Gerard, onde estás? Porque me abandonaste? A figura que via em pensamento pareceu-lhe ter vida própria, alisou-lhe os cabelos e beijou-lhe a testa contraída.
Geneviève sentiu um doce calor envolver-lhe o corpo como que restaurando-lhe as energias adormecidas. Abriu os olhos aliviada, sentindo-se leve e disposta a recomeçar a luta no lar e da administração da família.
Não compreendeu bem o que ocorrera, mas sentiu que daquele dia em diante não mais choraria por Gerard. Sentia-o a seu lado e percebeu que de algum lugar, fosse onde fosse, ele estaria velando por ela.



CAPÍTULO IX
Beneficio do perdão a moribundo O dia estava frio e triste. O inverno vestira de cinzento a paisagem e já as geadas contínuas pelas madrugadas anunciavam que dentro em breve a neve começaria a cair.
Apesar disso, Geneviève saíra, ao cair da tarde, dirigin- do-se ao castelo de Varene. Sabia que a Baronesa definhava e resolvera visitá-la, num impulso do seu caráter generosa.
Sentira-se muito sensibilizada pelos préstimos do Barão e pensando no problema doloroso daquela família, decidiu mostrar-lhes sua gratidão.
Entretanto, enquanto a carruagem corria pela estrada bem cuidada, a jovem senhora pensava e chegava à conclusão de que outro motivo ainda mais importante a conduzia a Varene.
Pretendia com sua presença, dar a entender tanto a Lívia como ao Barão que o atentado horrível em que sua mãe fora envolvida, estava esquecido. Queria que a pobre senhora tão sofredora, que arrastara as penas do seu crime com tantos sofrimentos, pudesse ao menos no momento supremo partir em paz.
-Geneviève sentia por ela muita piedade. Horrorizava-se a pensar que se estivesse no lugar dela não poderia desertar da vida sem o consolo do perdão.
Reviveu mentalmente as cenas do passado e com alívio percebeu que restava apenas muita piedade por aquela infeliz criatura. Quanta dor, quanto remorso devia guardar em seu coração. Pobre senhora!
Levava seu filho mais velho para cumprimentar o filho da Barão, pensando na infelicidade daquele menino, tão só, sem amigos e que estava prestes a ficar sem a mãe.
Foi recebida pelo Barão com extrema delicadeza. Fi- xando-lhe o semblante cansado e entristecido, percebeu um vislumbre de alegria quando os dois meninos, abraçados, com a simplicidade própria das crianças, se foram para o outro lado da salão, na amizade espontânea e efusiva.
Vendo-os entretidos, o Barão tornou: - Sou-vos muitíssimo grato pela gentileza. Só um coração de mãe como o vosso poderia lembrar-se de alegrar uma criança tão só como meu filho. Geneviève sorriu: - Gerard apreciou muito esse encontro, Sr. Barão. Não tem o que agradecer.
Depois de alguns segundos de silêncio, acomodada em elegante poltrona, Geneviève continuou: - Minha visita prende-se a outro motivo. Soube pelo Dr. Villefort que o estado da Sra. Baronesa tem se agravado. Vim saber da sua saúde e desejar-lhe pronto restabelecimento. Pela fisionomia contraída do Barão perpassou uma onda de tristeza.
- Infelizmente Lívia esta mal. Desde o início da sua moléstia vimos lutando para devolver-lhe a saúde. Graças ao auxílio do doutor, sua dedicação e a ajuda de Deus, chegamos a alimentar esperanças, mas surgiu a recaída e agora sentimos que tudo está perdido.
Gustavo baixou a voz que lhe morreu na garganta como que a disfarçar um soluço. A jovem senhora sentiu-se tocada pelo seu sofrimento.
- Como o Barão devia amar sua mulher! - pensou.
Olhando sua fisionomia que já se recompusera aparentando calma e cortesia Geneviève mais do que nunca acreditou que seu romance com a Condessa Marguerit, sua mãe, não passara de mal- entendido, de intrigas e ciúmes.
Laços Eternos - Coragem, Barão. - disse ela pousando levemente a mão delicada em seu braço, buscando confortá-lo. - Também sofri a imensa dor de perder meu querido Gerard. Compre- endo como vos sentis diante dessa possibilidade. Devo lem- brar-vos de que nem tive o consolo de prestar-lhe assistência em seus últimos instantes. Mas Deus assim o quis e preciso ser forte para poder criar meus filhos com o mesmo cuidado e carinho que o Marquês o faria. Coragem.
Gustavo fixou o expressivo rosto de Geneviève com emoção. A sua jovem e elegante figura cujo vestido preto tornava ainda mais delicada, seu rosto sincero cujos lábios tremiam traindo emoção, os olhos puros, brilhantes, num desejo ardente de suavizar-lhe a dor, fizeram-lhe grande bem, Uma sensação de serenidade o envolveu e distendeu- lhe a fisionomia angustiada. Num gesto espontâneo colocou sua mão sobre a dela enquanto dizia com contida emoção: - Sois muito bondosa. Vossa presença trouxe um pouco de paz e conforto em meio à nossa dor. Estremecendo ligeiramente ao contato da mão de Gustavo, ela retirou a sua um pouco corada.
- Se não incomodar e se vossa graça permitir, gostaria de cumprimentar a Sra. Baronesa. Gustavo levantou-se.
- Ela está mal e nas brumas da inconsciência. Nosso doutor faz-lhe companhia. Talvez nem note vossa delicada presença. Aos amigos que nos têm visitado, não temos permitido a entrada em seu quarto, mas rogo-vos que me acompanhe. Um motivo especial leva-me a pedir-vos que não se vá antes de vê-la! Geneviève levantou-se curiosa.
- Motivo especial?
- Sim. Lamento tocar em um assunto tão doloroso quanto desagradável para nós, que a vossa generosidade e delicadeza de coração não desejou mencionar: a terrível tentativa de assassinato que Lívia cometeu na pessoa da Condessa vossa mãe e que tão generosamente ambas ocultaram.
Geneviève baixou a cabeça, embaraçada, evitando fixar o rosto do Barão, pressentindo-lhe a dificuldade e o sofrimento na menção de um assunto tão doloroso que todos desejariam esquecer.
- Gostaria que a visse em seu leito de dor e a perdoasse. Por várias vezes, em seu delírio inconsciente, tem pronunciado o nome da Condessa, entre o pavor e a angústia. Várias vezes pensei em enviar um portador a Ancour solicitando a presença da Condessa, rogando-lhe perdão para minha pobre Lívia. Entretanto, deteve-me o receio de perturbar-vos com a recordação de tão terrível momento e reconheço que não temos esse direito depois de tudo.
Geneviève ouvia de cabeça baixa a voz grave do Barão que se esforçava visivelmente para aparentar serenidade. Duas lágrimas silenciosas desceram-lhe pelas faces ç ela não as enxugou buscando não as tomar evidentes.
- Lívia tem sofrido muito, senhora Marquesa. Deve ter- se arrependido imensamente do erro que cometeu.
Sou mais culpado do que ela por não ter sabido dar-lhe todo afeto que ela merecia e gostada de ser eu o punido em tudo isto, não ela. Mas isso agora não importa. Peço-vos senhora, como filha da Condessa, conhecedora da verdade, tendo sofrido também as conseqüências do seu crime, que tranqüilize uma agonizante com a paz e o conforto da perdão.
Gustavo calou-se. Não teve coragem de dizer que por duas vezes mandara um portador ao castelo da Condessa, solicitando-lhe a presença naquela hora difícil sem que ela concordasse em aquiescer-lhe o pedido. Seu lacônico bilhete recusando- se a ir e a perdoar Lívia fora mais uma angústia acrescentada ao coração atormentado de remorsos do Barão. Por essa mulher fútil e má ele tinha destruído o amor, a paz, a felicidade do seu lar, do seu filho e de sua jovem esposa.
A presença espontânea de Geneviève causou-lhe por isso grande bem. Devolveu-lhe um pouco a confiança na bondade, na generosidade e na compreensão das criaturas. Na porta do quarto o Barão ao colocar a mão na maça- neta parou e olhou-a com olhos suplicantes. Geneviève levantou o rosto ainda molhado onde se refletiam compreensão e firmeza.
- Sou-vos muito reconhecida por todos os obséquios por ocasião da morte do Marquês, mas não foi apenas esse o motivo que me trouxe aqui. Também me preocupava o passado e não- me compete julgar ninguém porque isso só a Deus diz respeito. A Sra. Baronesa deve saber, se possível, se Deus o permitir, que tudo já foi esquecido, perdoado. Para isso vim. Para dizer-lhe o que sinto. Tenho certeza de que minha mãe diria o mesmo.
Emocionado, Gustavo abriu a porta convidando Geneviève a entrar. Atravessaram a antecâmara e penetraram no quarto de Lívia.
As cortinas estavam cerradas e a enferma imóvel, no meio do enorme leito guarnecido de cortinas vermelhas, parecia ainda mais pálida e mais magra.
Sentado ao seu lado, o velho doutor alegrou-se vendo Geneviève que parada em respeitosa atitude não se atrevia a aproximar-se, O médico levantou-se e pegando a mão da jovem senhora conduziu-a à cabeceira da enferma. Fitando-lhe o rosto abatido e magro, Geneviève assustou-se: - Está morta? - perguntou num sussurro.
- Não ainda - respondeu o médico - mas falta pouco.
De fato a respiração de Lívia era tão imperceptível que mal se notava. A gravidade do estado da doente comoveu ainda mais o generoso coração da jovem senhora.
- Cheguei muito tarde? Não poderá ouvir-me?
- Penso que não. Entretanto, algumas vezes tem tido algumas reações de consciência que nos faz suspeitar que há momentos em que nos pode ouvir.
Nina, continuava assistindo a rememoração entre lágrimas e emoções revividas e surpreendeu-se vendo aparecer na tela refletora, o espírito de Lívia desligando-se do corpo no momento extremo. Estava amparada por duas figuras iluminadas que a ajudavam a desatar os últimos laços e pôde observar emocionada que ao ver a figura de Geneviève quis aproximar- se do seu corpo, agonizante, colando-se a ele por instantes num esforço supremo.
Ninguém na alcova triste da enferma podia saber disso. Contudo, Geneviève fitando o rosto magro da Baronesa reparou que seus olhos se abriram fixando-a com extrema lucidez. Fitando-lhe o olhar profundo Geneviève disse-lhe com carinho e energia: - Lívia, vim trazer-te a amizade e a paz. Rogo a Deus que te abençoe e que te encaminhe para suas moradas de luz. O passado está esquecido. Perdoa-me se alguma vez não te soube compreender. Parte em paz.
O peito cansado de Lívia arfou em um suspiro fundo enquanto que seus olhos de carne fechavam-se para sempre. Duas lágrimas de despedida rolaram-lhe pelas faces pálidas. Estava morta!
E enquanto o médico curvado sobre o frágil corpo da enferma procurava constatar as batidas do seu sofrido coração, Gustavo abatido, ajoelhara-se ao lado da cama curvado pela dor e Geneviève rezava comovida, o vulto delicado de Lívia, amparado por duas entidades luminescentes, lançava um derradeiro olhar pelo lar que era forçada a deixar. Mas confortada pelas palavras de Geneviève, pôde adormecer nos braços generosos dos seus companheiros e suavemente ser conduzida para as moradas do Pai.
Ia redimida pelo sofrimento suportado com paciência e pelo remorso que lhe amargurara os dias sem cessar. Mas, competia-lhe ainda aprender mais sobre o sagrado direito de viver, para poder voltar à Terra e reparar o seu crime.
Nina não pôde dominar a emoção. Era sua história.
Sentia reviver as emoções experimentadas em cada cena que se desenrolava na tela reflexiva da sala de rememoração, Mas só que agora a diferença era imensa porque as imagens refletiam a realidade, em todos os detalhes, retratando até os acontecimentos de ordem espiritual enquanto que, quando ela vivera na Terra como Geneviève. via apenas uma parcela particular e filtrada pelos seus próprios sentimentos.
A luz acendeu-se na pausa necessária para descanso de Nina que abraçada pela amiga generosa e solícita considerou: - Como a realidade é diferente! Ah! se quando na Terra pudéssemos saber o que vislumbramos aqui!
- Seria pior, minha querida. - respondeu Cora suavemente. Na Terra, para que possamos conviver relativamente em paz, é imperioso que ignoremos certas verdades. Elas são muito duras para que as possamos suportar sem desilusão e desespero. Isso será possível no futuro quando os homens forem melhores e a verdade mais agradável.
Nina serenou. Dirigindo-se ao instrutor que a seu lado permanecia silencioso e cortês pediu: - Por favor, podemos continuar. O instrutor sorriu e respondeu: - Mas sua memória já está recordando o passado!
- Sim. Está. Mas recordando a minha versão. Preciso ver a realidade.
- Sim, minha filha, Para isso estamos aqui. Contudo, basta por hoje. Amanhã à mesma hora nos reuniremos para continuar.
Nina concordou sem coragem para dizer da sua vontade de saber porque lembrava-se de muitas coisas que lhe tinham toldado a felicidade. Seriam verdadeiras? Mil perguntas lhe sur- giam à mente febricitante, despertada pela força de um passado que ainda vibrava no mais recôndito do seu ser.
Laços Eternos Cora abraçou-a com doçura sentindo o que lhe ia no íntimo e sussurrou-lhe aos ouvidos com carinho: - Nina, sê paciente. Todos estamos desejosos de buscar a melhor solução para tua felicidade e daqueles a quem amas Confiemos em Deus e em nossos maiores.
Nina acalmou-se e dirigiu o olhar para o orientador que a fitava com amizade.
- Perdoai-me tanta emoção. Sabeis o que mais convém. Que Deus vos abençoe.
E as duas abraçadas saíram para a alameda perfumada onde o crepúsculo já começara a descer a cortina de penumbra sobre os últimos raios solares, desenhando no céu suave e belo formas fantasiosas de nuvens douradas e caprichosas.
A brisa agradável movimentava as copas frondosas das árvores e Nina sentiu despertar em seu coração um sentimento novo de paz e de esperança como jamais pensara poder experimentar.



CAPÍTULO X
O amor brotando nos corações de Gustavo e Geneviève No dia imediato Nina preparou-se com alegria para comparecer à sala de rememoração.
Entretanto, curioso fenômeno operara-se nela, Olhando se ao espelho sorriu alegre: sua aparência modificara-se um pouco. Parecia mais velha e seu rosto tinha agora uma tez mais aveludada e formas mais delicadas. Assemelhava-se mais com Geneviève do que com a Nina pálida e doente de outros tempos.
Até sua indumentária pareceu-lhe desagradável e a jovem apressou-se em colocar-lhe novos arranjas que a tomaram mais graciosa.
Vendo-a, Cora emocionou-se.
- Estou começando a reconhecer-te - disse quando a viu. - Agora estás reencontrando tua personalidade.
- Gostas? - perguntou Nina referindo-se ao seu traje.
- Certamente, meu bem, Mas a que mais aprecia são as virtudes do teu coração amorosa e amigo. Vamos que está na hora.
Saíram alegres. Nina sentiu o coração vibrar emocionado ao tomar assento frente à tela de rememoração que dali a instantes passou a iluminar-se. A volta ao passado ia continuar : Na sala de estar Geneviève observava com emoção as crianças que com alegria jogavam dardo na varanda. Deixou cair a mãe que sustinha o livro em que se entretinha e pensou nos últimos acontecimentos.
Seu filho Gerard e Gustavo, filho de Lívia, tinham se estimado desde o primeiro momento em que se viram. Amizade sincera e simples entre dois meninos quase da mesma idade.
Com a morte de Lívia, Geneviève tomou-se de piedade pelo órfão, desejosa de dar-lhe um pouco de carinho que o seu própria filho desfrutava. Um era órfão de pai e o outro de mãe. Isto a comovia, principalmente porque o pequeno Gustavo era de saúde delicada, introspectivo, maduro para seus oito anos. Era sóbrio e educado e Geneviève surpreendia-lhe sempre um fulgor de tristeza no olhar vivo e brilhante.
Expandia-se sempre em companhia de Gerard. Quando juntos, sorria e brincava, tomava-se mais falante e aquele ar adulto desaparecia de seu rasto. Por esse motivo, um mês após as cerimônias dos funerais de Lívia, a Marquesa solicitava a permissão do Barão para convidar o menino a passar as tardes em sua casa.
Gustavo viera triste e abatido dentro do seu luto rigorosa, mas aos poucos a delicadeza de Geneviève, as gentilezas e os agrados de Gerard e Caroline tiveram a poder de devolver-lhe um pouco a alegria de viver. Olhando os meninos entretidos e alegres, a jovem senhora sentia-se mais feliz. A figura delicada do filho do Barão causava-lhe sincera emoção. Sentia despertar em seu coração profundamente maternal grande afeto pelo menino.
- Sra. Marquesa, a Barão de Varene pede licença para ser recebido. Geneviève, arrancada da sua meditação, surpreendida levantou o olhar e viu a figura esguia de Gustavo desenhar-se através do vitral da porta principal. Levantou-se admirada: - Que entre o Sr. Barão.
Há um ano já que Lívia tinha morrido e nunca mais .se tinha avistada com o Barão, após as cerimônias fúnebres, embora o menino viesse com muita frequência em sua casa. Por isso, a inesperada visita provocou-lhe justa surpresa. Geneviève pensara a princípio que após a morte de Lívia o Barão retomasse suas atividades mundanas das quais se afastara desde a moléstia da esposa. Mas não. O Barão continuava levando vida retraída e sóbria, imerso em profunda solidão.
Conduzido ao salão, Gustavo inclinou-se beijando com delicadeza, sem roçar, a mão que Geneviève lhe estendeu dando-lhe as boas-vindas, - Sinto-me muito honrada em receber-vos. Acomodai-vos.
Gustavo acomodou-se fixando o rosto jovem e delicado da Marquesa com gentileza.
- Peço-vos perdão pela intromissão. Mas precisava conversar convosco. Sou-vos muito grato pelo que tem feito a meu filho. Só um coração maternal como o vosso poderia ter-lhe oferecido tanto carinho. Meu pequeno Gustavo a adora.
Geneviève sorriu com prazer: - Podeis crer que o considero como a um filho. Sinto-me feliz por poder dar-lhe um pouco de alegria, mas sei que ninguém jamais poderá substituir em seu coração o amor da mãe que ele perdeu.
Gustavo suspirou imperceptivelmente enquanto que a sombra de tristeza que lhe era habitual refletiu-se-lhe na fisionomia.
- Na verdade, Lívia representava muito para ele. Porém a Sra. Marquesa tem conseguido ajudá-lo muito, prestando-lhe uma assistência que eu diria de um anjo guardião. Tendes conversado com ele, explicado muitas coisas, orientado de tal sorte que mesmo em seu sofrimento conseguiu conservar a fé em Deus, a alegria e a esperança. Não sei como vos agradecer tanta generosidade!
Geneviève sentiu profunda emoção. A voz do Barão estava vibrante e um pouco embargada e em seus olhos havia o brilho de uma lágrima que ele conseguia reter.
- Que homem estranho! - pensou ela. Vira-o sempre tio discreto que jamais pensara que ele pudesse guardar tanta emoção.
- Vossa amabilidade confunde-me Sr. Barão. Se quiserdes demonstrar vossa gratidão, permiti que vosso filho venha mais vezes nos ver. Tanto eu como meus filhos nos sentimos muito felizes com sua presença.
O Barão calou-se pensativo. Depois tornou : - Vim justamente para despedir-me. Tenciono viajar um pouco. Ir à Itália, à Alemanha. Talvez a outros países; não sei ainda, Eu e Gustavo, precisamos esquecer! Geneviève sentiu-se triste.
- Pretendeis demorar-vos?
- Não sei ainda. Talvez seis meses, um ano, ou mais.
- Tanto tempo? Vamos ficar muito sós sem Gustavo!
O Barão olhou para a varanda onde os meninos riam e brincavam felizes. Nesse instante o pequeno Gustavo, como que atraído pelo olhar penetrante do pai, voltou-se e vendo-o surpreendido parou de brincar: 81 - Vamos até lá - propôs Geneviève evidraçada seguida pelo Barão.
- Papai! Que alegria!
- Não viestes buscar Gus, não? - perguntou Gerard meio aborrecido. - Ainda é muito cedo.
- O Sr. Barão veio despedir-se. Eles vão viajar por algum tempo. Pela fisionomia de Gus passou uma sombra de pavor. Instintivamente abraçou-se à Geneviève como quem procura proteção.
A Marquesa sentiu-se embaraçada, mas ao mesmo tempo comovida pela prova de afeto do menino. A eles juntaram-se os outros dois e a jovem senhora passou o braço em volta deles enquanto dizia com amor: - Que é isto? O Sr, Barão sabe o que convêm ao seu filho. Não temos o direito de intervir.
- Não quero que Gus vá embora. Por favor, mamãe, não deixe!
- Eu também não quero mamãe, suplicou Caroline já em pranto.
O Barão olhava admirado e sem saber o que dizer. Por fim dirigiu-se ao filho: - Vamos viajar, meu filho, conforme planejamos. Há muito tempo temos feito planos de viagem. Tinhas tanto entusiasmo! Esqueceste de tudo?
O menino que escondera o rosto no braço de Geneviève tornou : - Não esqueci, papai. Mas eles não podem ir conosco? Dessa vez foi Geneviève quem respondeu: - Infelizmente não. Mas ficaremos esperando teu regresso; e nos contarás tudo direitinho. Os passeios, os divertimentos, tudo. Sabes aonde vais? Vem comigo, vou mostrar-te.
- Posso ver? - perguntou Gerard.
- Eu também? - inquiriu Caroline.
- Certamente.
Lançando um olhar significativo para o Barão, Geneviève conduziu-os à biblioteca enquanto dizia: - Mostrar-vos-ei quantas coisas bonitas existem e merecem ser vistas.
Escolhendo um enorme volume Geneviève tomou assento em uma poltrona, tendo as três crianças ao redor. E com voz sonhadora abriu o volume e começou a contar: - Ireis à Itália, terra dos grandes pintores e dos grandes tribunos. Vede: esta gravura é de Roma, cidade que dominou o mundo.:.
E a Marquesa com voz doce e imaginosa foi contando histórias de forma atraente e romanesca sobre cada gravura que examinavam.
As crianças ouviram com interesse e entusiasmo, bebendo-lhe as palavras com avidez e encantamento. O Barão, sentado a um lado, não pôde furtar- se ao encanto da narrativa feita com erudição, maestria e graça.
Olhava a figura de Geneviève com enlevo enquanto pensava: - Que mulher!
Jamais conhecera outra que guardasse tanta beleza, tanta finura, tanto amor. - É linda por dentro e por fora - pensou observando-lhe o rosto expressivo a transbordar emoção, transmitindo aos que a ouviam tudo quanto desejava sobre a colorida narrativa da suposta viagem.
Quando terminou, não só o pequeno Gus desejava ir, como os outros dois. Olhavam o amigo com respeito enquanto Gerard dizia: - Será bom veres tudo isso. Um dia nós também iremos, não é mamãe?
- Certamente, meu filho. Agora está na hora da merenda. Espero que o Sr. Barão aceite tomar chá conosco.
- É muita gentileza, senhora Marquesa.
Enquanto os meninos merendavam na varanda, Geneviève mandou servir o chá na sala. Vendo-se a sós com ela Gustavo tornou: - Mais uma vez devo agradecer-vos pelo socorro providencial. Não pensei que a noticia da viagem pudesse causar tanto transtorno. Fico pensando se valerá a pena. Geneviève surpreendeu nos olhos de Gustavo um brilho novo de admiração. Ele continuou: - Temos vivido muito Laços Eternos sós. Não temos tido a ventura de encontrar tanto aconchego como o que nos agasalha aqui. Perdoai-me Sra. Marquesa se vos digo, mas eu e meu filho não encontramos alegria em nossa casa vazia de amor e de carinho. Não sei se faço bem levando meu filho para longe.
O amor é um sentimento tão precioso e profundo que quando o encontramos sincero, jamais o devemos menosprezar. Geneviève levantou o olhar e fixou-lhe os olhos expressivos.
- Tendes razão. A presença de Gustavo nos traz sempre muita alegria. Sensibiliza-me saber que ele também nos aprecia. Quando perdi meu marido, aprendi a valorizar a presença daqueles que nos são caros. Ninguém sabe por quanto tempo estaremos juntos. Apeguei-me mais aos meus filhos, procurei dar-lhes mais do meu tempo e para falar com fran- queza, estamos : juntos o mais que podemos. Quero vigiá-los, ama-los, fazer o que puder para que sejam felizes.
Geneviève falava com sinceridade, sem perceber que adentrara o terreno das confidências. Parecia-lhe que o Barão podia compreendê-la, porquanto valorizando o amor chorava a esposa perdida tão prematuramente.
Gustavo tornou : - Não freqüentais a Corte?
Geneviève sacudiu a cabeça negativamente.
- Apesar da alegria aparente, sinto-me sempre triste quando tenho de freqüentar-lhe os salões. Reminiscências da minha juventude talvez. Não me agrada a hipocrisia, Sr Barão.
- E não vos sentis só?
- Às vezes. Mas as festas da corte jamais poderiam varrer essa solidão. Prefiro a companhia dos meus filhos. É muito triste para uma criança a falta de afeto materno. Desejar estar com ela, confidenciando suas dúvidas, procurando apoio e não poder. E um vazio que nada e ninguém poderá preencher.
Pela primeira vez Gustavo pensou na Condessa orno mãe. Era evidente que a vaidade não lhe dera tempo para dedicar-se à filha como esta desejaria. Compreendeu como a menina Geneviève se sentira infeliz. Ele também se sentia órfão de carinho e de compreensão. Tinha remorsos sempre que se lembrava de Lívia e atormentava-se com a consciência da sua culpa.
Conversaram ainda por meia hora e quando Gustavo saiu, levando o, filho pela mão, guardava um sentimento de paz que havia muito não experimentava. A presença moça e serena, amorosa de Geneviève, sua compreensão inata, sua cultura, sua sinceridade, tiveram o dom de ar tranqüilidade ao seu coração amargurado.
Sentiu vontade de desistir da viagem, mas não queda dar impressão de leviandade filho, já agora desejosa de partir. Sabia que essa viagem azia parte da educação do menino e não podia descurar desse dever.
Assim uma semana depois viajavam para o exterior.
Geneviève sentiu muito a falta de Gus, mas as crianças saudosas, antegozavam a alegria da volta e sempre que podia a Marquesa era obrigada a tomar o livro das gravuras, procurando imaginar por que lugares os dois estariam.
Dois meses depois, em uma tarde de outono, os tão esperados viajantes regressaram.
Estavam reunidos no salão, como sempre, conversando animadamente quando foi anunciada a presença de Gus, acompanhado pelo pai. Traziam no olhar a alegria da volta e o prazer do reencontro.
Recebidos com surpresa e muita alegria, contaram as peripécias da viagem da qual Gus trouxera muitos presentes para os amigos.
Enquanto as crianças ruidosamente entregavam-se à palestra fraterna, Geneviève um pouco emocionada, palestrava com o Barão.
- Resolvemos voltar. As saudades eram muitas e tanto Gus como eu, chegamos à conclusão que não podíamos mais ficar longe de casa.
Os olhos escuros e profundos do Barão procuravam os de Geneviève com insistência, A jovem senhora sentia-se perturbada com esse olhar tão emotivo onde havia um interesse maior do que o usual. Mas Gustavo naquele momento estava sendo sincero.
Durante sua ausência a figura de Geneviève, sua doçura, sua beleza, não lhe saíra da mente. Gus em sua ingenuidade mais contribuía para isso, falando constantemente dela com admiração e carinho.
Gustavo sentia-se profundamente só. Entretanto, o sentimento que começava a despontar em seu coração era muito diferente de todos os outros que já experimentara antes. Nem a afeição ingênua e insegura de Lívia, nem a paixão irrequieta e desordenada de Marguerit. Sentia um calor agradável quan85 do a fitava. Um sentimento misto de respeito, admiração, mas ao mesmo tempo de plenitude que às vezes assustava pela profundidade.
Geneviève sentiu que o Barão interessava-se por ela mais do que deveria.
A princípio assustou-se. Parecia-lhe estar sendo desleal para com Lívia c com Gerard, Mas, ao mesmo tempo, as emoções que Gustavo deixava transparecer discretamente, faziam seu coração bater descompassadamente, Seu amor com Gerard fora tranqüilo e calmo.
Insegura e inexperiente, frente aos primeiros contatos com a vida, ávida de emoções e de carinho, desde muito jovem encontrara nele o amparo, a compreensão e o carinho que lhe deram segurança e paz.
Assustou-se diante de um possível interesse amoroso do Barão e resolveu evitar sua presença que, ao contrário de Gerard, provocava-lhe inquietação e certo temor.
Mas o Barão era muito delicado. Percebendo certo constrangimento em Geneviève, conduziu o assunto de forma impessoal e aos poucos a Marquesa sentiu-se tranqüila rendendo- se ao encanto de uma boa conversação. Gustavo era um prosador inato. Sua voz grave de entonações veludosas, guardava a riqueza de modulações encantadoras, extravasando finura, cultura e brilhante inteligência, prendendo a atenção do m exigente interlocutor.
Durante os últimos anos, tinha vivido entre o remorso e a depressão, tornara-se triste e calado. Mas, naquele instante, reavivado por novas e acalentadoras emoções, instintivamente mostrava-se tal qual era. Geneviève estava encantada. Entregou-se de corpo e alma ao prazer da palestra, procurando afastar os pensamentos inoportunos, E os dois foram ficando. Convidados para jantar aceitaram com prazer e o encantamento prolongou-se por mais duas horas.
Estavam no salão os dois palestrando animadamente. Geneviève sentada em uma poltrona diante do Barão. Caroline brincava entre os dois, carregando com alegria uma linda boneca de porcelana com que Gus a presenteara.
Houve um momento em que seu pezinho falseou e teria caido se o Barão com impressionante rapidez não a houvesse segurado . Geneviève também quis impedi-la de cair, lançando-se sobre ela, procurando sustê-la. Abraçando o Barão e a filha, seu rosto roçou a face morena de Gustavo, suas mãos estre- meceram ao contato de seus braços vigorosos e suas mãos fortes. Geneviève, ruborizou-se enquanto sentia-se presa de grande emoção. Ergueu-se imediatamente murmurando desculpas, procurando consolar a menina cuja boneca espatifara-se no tapete: Não chores, Caroline. Mandarei buscar outra para ti.
- Mas esta era minha - soluçou a menina, - Gus me deu!
Procurando serenar as emoções Geneviève tomou a filha nos braços, procurando acalmá-la.
- Não chores. Não sabias que se quebrava? Vamos, aprende a ser paciente.
Aos poucos a menina acalmou-se e concordou em ir para a cama com a governante.
Quando o Barão se despediu Geneviève tornou: - Talvez não aproveis a maneira livre de educar meus filhos, tão diferente da rigidez dos nossos costumes. Acontece que somos muito unidos e penso de maneira diferente. Acredito no amor como fator preponderante da educação. Não aprovo o rigor dos castigos e das punições.
Gustavo olhou-a bem nos olhos. Sentia-se tentado a beijar-lhe os lábios recordando a maciez de sua tez no leve e involuntário roçar de momentos antes.
- Vossos filhos são encantadores, senhora Marquesa. Providenciarei outra boneca para Caroline.
- Descuidou-se, não sei se ela merece..
- Pois eu acho que merece muito mais. É com prazer que trarei a boneca. Não me priveis da alegria de lha oferecer.
Geneviève sentiu-se embaraçada. Felizmente Gus aproximou-se para as despedidas e não teve que responder. E, olhando pela janela a carruagem que se afastava, considerou que aquele fora um dia feliz, tão feliz que não se recordava de ter vivido outro igual.



CAPÍTULO Xl
As forças do mal reagindo Os dias subsequentes continuaram felizes e alegres. Pouco importava o vento que soprava fora desvestindo as árvores, afastando os pássaros habituais que emigravam em busca do sol e do calor, pressentindo a chegada da estação fria.
Todas as tardes Gus comparecia ao castelo de Trussard, com grande prazer dos seus moradores. Embora Gus chegasse acompanhado pela ama, era o próprio Barão que habitualmente passava para buscá- lo, invariavelmente tomando o chá da tarde com eles.
Isto tornara-se um hábito e Geneviève compreendeu certo dia que sentia grande amizade por Gustavo. A convivência, a conversação íntima no recanto agradável da sua sala de estar enquanto as crianças brincavam em seu redor, fizera-a conhecer com bastante profundidade os sentimentos, o caráter, os hábitos, a inteligência, a cultura do Barão, Sua personalidade afigurava-se-lhe fascinante.
Na verdade, ele o era. Jamais deixara de conseguir conquistar uma mulher quando desejasse. Com Geneviève era sincero. Preso ao fascínio da jovem senhora, encantado com sua beleza física, mas ainda mais descobrindo sua beleza morai e espiritual, compreendera que aquela bela mulher representava seu sonho tantas vezes procurado nos sorrisos embonecados dos salões, nos contatos aventurosos e ocasionais.
Identificava-se tanto com Geneviève, com seu modo de ser, de sentir, de sorrir, de falar, que lamentava do fundo do coração não havê-la conhecido antes do seu infeliz casamento.
Amava-a. Descobrira isso durante a viagem que fizera. Entretanto, temia não ser correspondido. Temia, ainda, que o amor de Gerard estivesse muito vivo em seu coração para que pudesse aceitá-lo.
Às vezes lembrava-se com temor da sua aventura com a Condessa Marguerit, Até que ponto Geneviève conhecia a verdade? Saberia que fora mais do que um simples flerte? Envergonhado, procurava afastar essas importunas lembranças como se nunca tivessem acontecido.
Freqüentava-lhe a casa com assiduidade. Tinha esperanças de que ela viesse a amá-lo. Para isso esforçava-se sem no entanto sair da posição respeitosa de amigo da família com a qual fora recebido. Contava que o tempo fizesse o resto. Não lhe passava despercebida a emoção de Geneviève quando a surpreendia, aparecendo inesperadamente. Nem do seu tremor quando pousava os lábios com carinho em sua mão macia no cumprimento usual.
Uma tarde, quando os primeiros albores do inverno co- meçavam a vergastar as folhagens do Parque e o fogo crepitava agradavelmente na lareira, as crianças brincavam como de hábito e o Barão, sentado em confortável poltrona saboreava gostosa chávena de chá. Seus olhos fitavam amorosamente a figura de Geneviève ocupada em atar a fita de Caroline que se desprendera.
Amava-a! Amava-a! Era imperioso que ela lhe correspondesse.
Terminada a tarefa! Caroline juntou-se aos outros dois e a Marquesa levantando os olhos surpreendeu-lhe o olhar ardente em súplica muda. Enrubesceu. Coração aos saltos apanhou umas gravuras ao acaso para desviar a atenção, mas suas mãos tremiam.
Gustavo não mais podia silenciar. Ordenou à ama que levasse os meninos para a sala de jogas o que provocou o fácil entusiasmo infantil.
Vendo-se a sós com ela, não mais se conteve. Aproximou- se e tomou-lhe as mãos com ardente emoção: - Geneviève! Preciso falar-te!
Ela levantou-se nervosa tentando impedi-lo, arrancando sua mão de entre as dele com inquietação.
- É melhor não dizer nada, Gustavo. É impossível.
Frente ao primeiro impecilho Gustavo acovardou-se. Teve medo de perdê-la. Dominado por ardente emoção segurou-a com determinação, procurando-lhe a boca numa necessidade inconsciente de saber se era amado. Geneviève não mais reagiu. Sentiu-se morrer. Parecia-lhe que a vida se resumia nesse beijo, nessa emoção delirante da qual nunca se julgara capaz. Compreendeu que jamais houvera conhecido o amor, antes de Gustavo, Ele também, inebriara-se de emoções nunca imaginadas e não se podia conter. Beijava-lhe os lábios, as faces, os cabelos, numa vertigem inconsolável.
Assustada com o volume das emoções que os envolvia, brandamente ela tentou serená-lo murmurando com carinho: - Tem calma. Não somos crianças. Por favor!
Por instantes os olhos dele procuraram os dela com ardente fulguração.
- Geneviève, eu te amo! Eu te amo! Jamais amei al- guém como a ti. Nenhuma mulher penetrou em meu coração dessa maneira. Há dias queria perguntar-te se posso ter esperanças. Não somos crianças, é certo, mas agora, para mim é como se fosse o primeiro amor! Podes compreender isso?
Trêmula e feliz a Marquesa sem desviar os olhos dos dele, murmurou : - Sim. Posso. Eu também te amo e parece que em minha vida acontece-me pela primeira vez.
Arrebatado, Gustavo cobriu-lhe de beijos ardentes o rosto corado e quando a jovem senhora conseguiu acalmá-lo um pouco, sentaram-se um ao lado do outro em um sofá, na amorosa troca de confidências dos namorados.
Falaram das emoções do passado, das alegrias do presente e principalmente dos projetos para o futuro. Gustavo desejava casar-se o quanto antes, mas Geneviève desejava esperar pela primavera. Queria preparar a casa, mas Gustavo não pretendia habitar no castelo de Trussard. Depois, compreendeu que Geneviève não se sentiria feliz em morar onde Lívia vivera. Por fim concordaram que seria pela primavera e enquanto isso o Barão procederia a uma reforma completa em seu belo castelo, inclusive construindo nova ala para habitar com Geneviève.
Nina deixou escapar fundo suspiro. A rememoração da- quelas cenas de grande emoção tinham revivido em seu cora- ção o fundo sentimento de amor que a ligara a Gustavo. Vens do-o amoroso, apaixonado, reacendia-se em toda sua plenitude, no íntimo do seu ser, o grande sentimento que ainda se conservava vivo e candente, muito embora o tempo os houvesse Lágrimas dolorosas de saudades corriam-lhe pelas faces, enquanto que de seus lábios, como que inconsolável partia esse grito de dor: - Gustavo, meu amor, onde estás?
Imediatamente a luz acendeu-se e Cora carinhosa tomou as mãos da amiga acariciando-as. Trazida à realidade, Nina procurou conter-se. Teve receio de que sua interrupção a privasse de assistir ao restante do seu dramático passado.
- Peço-vos perdão. Não interromperei mais. Podeis continuar.
O instrutor olhou-a com compreensão e bondade acon- selhando: - Aguardemos alguns instantes. Temos tempo. Não te preocupes.
Colocou a destra sobre a fronte de Nina e aos poucos ela foi se acalmando, sentindo que brando calor penetrava-se o corpo, em doce e sereno aconchego Pouco depois a teia voltou a iluminar-se. A revivescência ia continuar.
Nina pôde, comovida, rever os dias subsequentes, plenos da mais completa felicidade.
As crianças, foram os primeiros a saber e, para alegria dos pais, sentiram-se contentes e felizes. A amizade espiritual. que os unia ia concretizar-se na junção das duas famílias.
Geneviève transbordava de felicidade. Gustavo era o namorado ideal. Galante, atencioso, apaixonado. Parecia remoçado frente ao amor que lhe inundava a alma de calor e de compreensão.
Vivera sempre só, ainda mesmo quando em companhia dos familiares, e da própria esposa. Agora, encontrara a companheira com a qual identificava seus mais caros ideais. Parecia-lhe a Terra o próprio paraíso.
Geneviève, radiosa, trazendo no olhar o brilho esfuziante do amor correspondido, procurou a casa paterna para as primeiras participações.
Apesar da viuvez, a moça respeitosamente desejava pedir-lhes consentimento. Fazia-o por uma questão de ordem e piedade filial. Estava certa de que os seus sentir-se-iam felizes por vê-la realizar seu grande sonho, refazer a vida. Considerava com alegria que o Conde sempre distinguira Gustavo com amizade e deferência. Conhecera-lhe o pai de quem fora amigo de infância. Quanto à mãe, não sentia receio. Certamente compreenderia. Mostrara-se sempre muito amiga do Barão, ao ponto de sofrer em silêncio o horrível atentado de Lívia para não envolvê-los em um escândalo.
Geneviève não tinha dúvidas quanto às relações da Condessa com o Barão. Acreditava-os vítimas do doentio ciúme de uma mulher tão descontrolada ao ponto de chegar ao crime por causa disso No auge da felicidade, não via Gustavo como um homem passivo de erros e de enganos, bem como seu amor pela mãe, sua consciência sempre reta, não a julgava capaz de chegar ao adultério. Preferiu ver em Lívia uma mulher enferma cujo ciúme infelicitara a vida do casal.
Foi com ares misteriosos que visitou a mãe em sua sala particular e pediu com insistência a presença do Conde.
Um pouco assustado frente ao convite da filha, ele penetrou na sala particular de sua mulher um pouco constrangido. Não tinha o hábito de entrar ali, pois a Condessa não o permitia por estar sempre às voltas com suas máscaras de beleza e seus cuidados excêntricos.
Sentados em artísticas poltronas, ambos olhavam a filha com curiosidade e certa preocupação. Mas a exuberância de Geneviève os tranqüilizou : - Peço-vos desculpas se vos tomo o tempo, mas o assunto é tão importante que não pude mais esperar. A Condessa, alçando as sobrancelhas, considerou: - Será algo inusitado porque pareces uma menina estouvada e não uma Marquesa. - E voltando-se para o marido: - Viste como entrou aqui?
O Conde limitou-se a olhar a filha esperando a explica- ção que veio em seguida: - Vim consultar-vos sobre um assunto muito sério! Pretendo casar-me outra vez!
Oh! - fez a Condessa procurando não enrugar a face a fim de não marcá-la.
O Conde permaneceu calado alguns segundos, por fim pronunciou-se : - Quando Gerard morreu, deixou-te muito jovem. Não posso esconder-te que isso tem me preocupado. Precisas de uni marido. Um homem da nobreza que possa dirigir teus bens com segurança e educar teus filhos. Já quis falar-te várias vezes sobre isto, mas sempre te negavas a ouvir-me.
- Tens razão. Nunca pensara antes em casamento. Entretanto, agora, amo e sou amada. Um homem de bem, tão rico como eu, que meus filhos adoram, e que por ser vosso amigo, certamente será muito bem aceito em nossa família.
A Condessa parecia satisfeita. Considerava a filha muito só, enterrada em seu castelo sem querer freqüentar a Corte, vivendo reclusa como uma freira.
Faltava-lhe certamente um marido que a orientasse. O Conde sorriu aliviado:- Alegra-me que seja pessoa de nossas relações, A que família pertence?
Geneviève levantou-se revelando com alegria: -E o Barão de Varene!
Enquanto a face do Conde se distendia em emocionada alegria, ele corria abraçar a filha, a Condessa empalidecia mortalmente. Seu rosto contraiu- se em um rito de ódio que a custo conseguiu dissimular. Percebendo que a olhavam esperando uma reação procurou sorrir: -Parece que não te sentes feliz com minha felicidade. Desaprovas minha escolha por acaso? A Condessa procurou esconder o que lhe ia no íntimo e argumentou : -Não se trata disso, minha filha. Acontece que o teu casamento com Gerard foi muito feliz. És ingênua e desconheces a maldade da vida. O Barão apesar de ser nosso amigo, é um homem sofrido, que foge ao convívio de todos, envolvido pelos seus problemas do primeiro casamento. Além do mais, tem um filho, que certamente te trará problemas. Temo pela tua felicidade.
A moça sorriu com doçura: - Sempre foste mãe extremosa. Teus receios não têm razão de ser. O pequeno Gus é muito amigo dos meus filhos e foi por causa dessa nossa amizade, desse afeto que nos une que Gustavo nos tem visitado. Conheço-o bem. É um homem sincero e encantador. Sofreu, é verdade, mas por isso mesmo merece ter uma chance para refazer a vida. Sentimo- nos felizes juntos e todos nós nos amamos muito. Picada pelo despeito, a Condessa inquiriu: - Ele disse que te ama? Geneviève corou: - Disse, mas mesmo que se calasse, eu sei que ele me ama! Tanto como eu a ele. Nosso amor é verdadeiro e puro. Tanto ele como eu, apesar do primeiro casamento, não sabíamos bem o que era o amor. Agora sentimos que realmente o encontramos.
A jovem senhora falava, olhos perdidos na distância e seu rosto refletia toda fé, toda euforia que lhe ia na alma.
A Condessa calou-se. O Conde ajuntou sereno: - Gustavo sempre foi um homem de bem e um nome dos mais ilustres. Têm minha aprovação e penso que de tua mãe.
Instada a responder a Condessa sorriu: - Certamente, minha querida. Se te sentes feliz, seja! A Marquesa abraçou a mãe efusivamente e passaram a tratar dos detalhes do casamento. E quando o conde acompanhado da filha se retirou da sala, desapareceu o sorriso do rosto da Condessa que tomou-se ameaçador e sombrio.
- Miserável! - pensou ela. - Desprezou-me porque julgava-me velha! Não sabe que sou muito mais mulher do que minha filha, inexperiente e ingênua. Uma menina que não sabe amar!
A figura de Gustavo surgia-lhe na mente obscurecida.
- Talvez seja melhor assim. Estará em minhas mãos. Ajustaremos contas. Certamente, ele me pagará!
E diante da surpresa dolorida de Nina frente à desola- dora realidade, três vultos sombrios de entidades infelizes e trevosas, que se encontravam na sala, envolveram a Condes- sa, colando-se a ela, alimentando seus pensamentos infelizes que naquele instante pareceram recrudescer e intensificar-se. Brandindo a mão com raiva ela murmurou, com vibrações de ódio: - Ele não perde por esperar!



CAPÍTULO XII
O orgulho e o egoísmo pondo em risco a felicidade de uma família A tarde estava agradável e morna. Geneviève sentada em confortável poltrona, em alegre e luxuosa sala, repousava no salão de música. Ao lado, as crianças tomavam lições com o professor de piano. Olhos cerrados, Geneviève meditava no rumo inesperado que sua vida tinha tomado.
Seu casamento com Gustavo, realizado em luminoso dia primaveril, há três meses atrás, dera-lhe grande emoção e alegria. Fora trêmula e comovida que se deixara conduzir por seu pai à Capela do Castelo de Trussard onde se casaram. Essa união trouxera-lhe uma felicidade nunca experimentada. A cada dia o Barão revelava-se mais amoroso, mais efusivo, mais encantador.
O belo castelo de Varene sofrera imponente reforma e nova aia fora construída para receber o casal, Tanto ela como o Barão desejavam a máxima simplicidade no casamento, mas tanto o Conde quanto a Condessa não concordaram. Não querendo desgostá-los, ambos concordaram em oferecer uma recepção no castelo da Marquesa. Embora não apreciasse a Corte, existiam tradições de família e costumes, as amizades etc. Submeteram-se portanto às exigências sociais, mas sentiram se infinitamente felizes quando dirigiram-se ao castelo de Varene.
Antes de se recolherem, foram olhar uma a uma as crianças que já se encontravam instaladas no novo lar. Depois abraçados ternamente, encaminharam-se para seus aposentos.
Geneviève amava profundamente o 'marido. Com um arrebatamento que nunca se julgara capaz. Às vezes pensava em Lívia e compreendia o seu ciúme. Também ela sentia dentro de si o receio de a perder Parecia-lhe tão grande sua felicidade que temia não a merecer.
Vivia para ele. Pensava sempre nele, procurava dar-lhe alegria e paz. Amava Gus com enternecimento e distribuía equilibradamente seu afeto com os três filhos.
Sua meditação foi quebrada por um ruído vindo de fora. Teve tempo de levantar-se e já a Condessa entrava elegantemente na sala.
Surpreendida, Geneviève não conteve uma exclamação: - Mamãe! Que alegria!
Beijou-lhe a mão que a mãe lhe estendia procurando instalá-la confortavelmente.
- Tive saudades e vim ver-te. Não. me esperavas natu- ralmente!
Um pouca envergonhada a Baronesa notou que na repouso de momentos antes, seus cabelos se tinham desajeitado um pouco: - Perdoe-me mamãe. Sentei-me aqui e adormeci um pouco. Permita-me sair alguns segundos. Volto em seguida. Apesar de não ser mais uma criança, Geneviève, guardava ainda grande receio da desaprovação materna.
Percebera que sua aparência a desagradara.
Quando a filha saiu, a Condessa com o olhar perscrutador, percorreu toda a sala. O casamento da filha com o homem que a recusara trouxera-lhe grandes emoções. A presença de Gustavo reavivara a paixão que ele um dia despertara. Não considerava a filha como uma rival. Em sua enorme vaidade a condessa se colocava em melhores candições para dar ao Barão o amor que ele precisava ter. No auge de sua ilusão, chegava por vezes a supor que Gustavo lhe procurara a filha pata poder voltar ao seu convívio com intimidade e segurança. Era verdade que ele sempre a tratara com polidez e respeito, nunca dando ensejo a qualquer pensamento referente ao passado, mas Marguerit tinha esperanças que decorrido certo tempo ele encontrasse oportunidade de manifestar-se.
Apesar de ser mulher experimentada, estremecia de paixão e de emoção ao pensar no dia em que novamente pudessem encontrar-se a sós como dantes.
Geneviève regressou alegre, preocupada em recebê-la com carinho e atenção.
Conversaram alguns minutos e nesse colóquio foram sur- preendidas por Gustavo. O Barão cumprimentou a sogra com delicadeza e seus olhos procuraram logo o rosto corado e querido da esposa.
Beijou-lhe a face com ternura. Amava-a perdidamente. A cada dia ela se lhe revelava em novo encanto. Sentia-se só quando longe dela e fazia o possível para voltar à casa com toda rapidez. A presença da Condessa o desagradou um pouco. porquanto, gostava de estar a sós com Geneviève, para poder acariciá-la livremente, sentar-se de mãos dadas no divã, con- tando as novas do dia, deitar a cabeça no seu colo, olhando seu rosto alegre onde a vida parecia refletir-se em doce encantamento.
A presença da Condessa sempre o incomodava. Quando resolvera casar-se com Geneviève sabia que teria que enfrentar essa convivência desagradável. Temia mesmo que para vingar- se Marguerit tentasse impedir o casamento. Como isso não aconteceu, supôs que ela houvesse compreendido que o erro passado fora esquecido. Os dois tinham errado. Dando-lhe a filha em casamento, certamente ela o tinha perdoado. Talvez até lhe fosse grata por tê-la impedido de errar mais colocando as coisas nos devidos lugares.
Por isso, resolveu dar-lhe um tratamento cortês, cordial, deferente e respeitoso. Jamais lhe passou pela mente que a Condessa quisesse disputá-lo com a própria filha. Conversaram sobre diversos assuntos, e Geneviève percebeu com alegria que sua mãe estava bem humorada, mostrando- se encantadora.
Na verdade, a Condessa procurava mostrar-se atraente e fina. Sabia sê-lo quando queria, Entretanto, no íntimo, estava enraivecida. Surpreendera os olhares ardorosos de Gustavo para a esposa, observara a transformação ardente do seu rosto quando se dirigia a ela. Naquele instante, a Condessa começou a perceber, a sentir que de fato o Barão amava sua mulher. Um sentimento misto de desilusão, ódio e revolta começou a manifestar-se em seu coração. Ao mesmo tempo tomou a deliberação de lutar.
Haveria de reconquistá-lo! Precisava fazê-lo! Julgava-se mais bonita e encantadora do que a filha cuja simplicidade a desagradava. Compreendeu que precisava agir com inteligên- cia e astúcia a fim de alcançar seus objetivos.
98 Tão encantadora se mostrou que o próprio Barão chegou a esquecer sua impressão desagradável sempre que a via.
Quando ela retirou-se uma hora depois, Geneviève feliz confidenciou ao marido: - Não é encantadora?
- Certamente - respondeu com gentileza e sinceridade.
Geneviève alçou-se na ponta dos pés e beijou com garri- dice a face morena do marido.
- Sinto-me feliz e te agradeço por teres sido tão gentil com ela. Nunca a vi tão alegre.
Gustavo enlaçou-lhe a cintura atraindo-a para si, apertando-a com força de encontro ao peito: - Não posso esquecer que foi ela quem te trouxe ao mundo. Ser-lhe-ei eternamente grato por isso.
Sentindo o agradável aconchego da esposa querida, bei- jou-lhe os cabelos, os lábios com carinho e ternura. Daquele dia em diante, a Condessa passou a freqüentar com assiduidade a casa da filha bem como insistir para que eles fossem visitá-la amiudadamente. Com habilidade e carinho, arranjava pretextos e ocasiões que justificassem essas visitas. Mostrava-se sempre encantadora para com todos, inclusive para com as crianças, o que para ela representava inaudito sacrifício. Ao mesmo tempo solicitava à filha auxílio nas pequenas coisas, principalmente nas suas atividades sociais, procurando envolvê-la de tal maneira que ela não tivesse muito tempo livre.
Gustavo aborrecia-se por ver a esposa sempre ocupada, às voltas com os problemas fúteis e snobs de sua mãe. Manifestou-se a Geneviève que o repreendeu com doçura, alegando que não lhe custava nada prestar esses pequenos serviços à mãe cujo devotamento sempre fora constante.
E a jovem senhora desdobrava-se por agradá-la cada vez mais, feliz por sentir-se alvo das atenções maternas que durante a infância e a juventude sonhara poder conseguir. Entretanto, a Condessa envolvida por sonhos e ilusões, acalentava cada vez mais sua louca paixão pelo Barão. A custo conseguia disfarçar seus sentimentos e já não suportava mais esperar.
Uma tarde, dirigiu-se ao castelo do Barão. Ia só e seu coração batia descompassado, apesar de todo seu controle emocional.
Conseguira reter a filha com os netos em sua própria casa e pretextando necessidade urgente de sair, recomendara a Geneviève que a aguardasse. Certa de que seria obedecida, rumou para o Castelo de Varene, A oportunidade tão esperada chegara!
Como previra, encontrou o genro na biblioteca- O Barão entristecido e só, procurava entreter-se com alguma leitura, mas a presença dos seus entes queridos era-lhe muito cara. Por isso, ansioso, a cada momento perscrutava o parque que se estendia através da janela à espera do seu regresso.
Vendo a Condessa chegar só, preocupou-se. Recebeu-a com cortesia perguntando por Geneviève.
- Estão bem, Gustavo. Vim até aqui porque passava por perto e sentia-me fatigada. Desejo repousar um pouco.
Acomodando-a em um sofá, Gustavo nem por sombras podia imaginar os pensamentos ardorosos da Condessa, - Doem-me os pés. Tira-me os sapatos, por favor. Um pouco aborrecido, Gustavo curvou-se e meio sem jei- to, descalçou com delicadeza os caprichosos sapatos da sogra. A instâncias suas, colocou-lhe os pés sobre almofadas. Pretextando indisposição, a Condessa pediu-lhe para co- locar uma almofada sobre a cabeça: Solícito, o Barão curvou- se sobre ela e Marguerit enlaçou-lhe o pescoço com violência. Sobressaltado, Gustavo quis afastar-se, mas ela abraçou o suplicando com voz sumida.
- Por favor! Sinto-me mal. Acho que vou morrer! Apanhado de surpresa o Barão não sabia o que fazer.
Uma dúvida o assaltou quanto ao súbito mal- estar da Condessa. Essa possibilidade deixou-o estarrecido por um momento sem capacidade de reagir.
Com braços que pareciam de ferro, a Condessa envolvia- lhe o pescoço e seu rosto bem empoado encostava-se-lhe na face.
- Largai-me, Condessa. . - pôde balbuciar Gustavo assustado - Deixai-me socorrer-vos, chamar um médico.
Sentindo a aflição por livrar-se dela e a indiferença com que recebia sua proximidade, a Condessa desesperou-se. Seu corpo tremia de emoção ao contato com a pele morena de Gustavo e a proximidade de seus lábios que noutros tempos lhe suplicavam a dádiva de um beijo.
Sentiu-se desfalecer. Sem poder sustar a avalanche das emoções, apertou-o com mais força e seus lábios ardentes buscaram os de Gustavo com desesperada paixão.
O Barão, ainda perturbado pelo inesperado, horrorizou- se sentindo o ardor daquela mulher e o contato de seus lábios volumosos. Não retribuiu o beijo e Marguerit não encontrando reciprocidade afastou um pouco seu rosto e olhando-o nos olhos tornou: - Não me amas mais? Não me desejas mais? Como pudeste esquecer tempos tão felizes? Não tens dentro de ti nem um pouco de amor por mim?
Sentindo-se mais livre, Gustavo, com delicada determi- nação tirou-lhe os braços de volta do seu pescoço e respirou fundo.
Era-lhe profundamente desagradável aquela cena. Enojava-se diante daquela mulher, mas ao mesmo tempo tinha-lhe pena. Sentia-se embaraçado e sujo.
- Por favor, senhora Condessa. Acalmai-vos.
Ela, sentindo-se impossibilitada de alcançar o que desejava, deixou que algumas lágrimas lhe deslizassem pelas faces.
- Não pensei que pudesses ter esquecido tudo. Desposaste minha filha. Porque foi senão para te aproximares de mim?
Sacudido por essas palavras Gustavo reagiu: - Pensastes isso de mim?
Acreditastes que eu pudesse fazer de Geneviève um meio para chegar até vás? Cometestes terrível engano. Agora sabeis. Casei-me com ela porque a amo verdadeiramente. Não pensastes nisso. Eu a amo! Amo como jamais havia amado antes c como certamente jamais amarei outra mulher. Humilhada, a Condessa chorava baixinho. Seu plano falhara! Seu amor não fora correspondido. Mal ouvia as palavras explicativas com as quais o Barão queria esclarecer de uma vez aquela questão, para evitar futuros aborrecimentos.
Infelizmente, não podia pô-la para fora, ou impedir que Geneviève a visse. Esperava, pelo menos, que ela compreen- desse esse sentimento impossível.
Entretanto, Marguerit ruminava pensamentos de ódio e de vingança. Não querendo que ele percebesse levou o lenço aos olhos e disse com voz sumida: - Perdoa-me, Gustavo. Foi mais forte do que eu! Sinto me muito infeliz! Isto não voltará a acontecer.
Um pouco aliviado, Gustavo generosamente declarou que esqueceria o sucedido e que tudo seria como antes. Quando a Condessa demonstrando pudor e fraqueza partiu, Gustavo suspirou aliviado. Abriu as janelas para entrar ar fresco.
Apesar da atitude de arrependimento que ela assumira Gus- tavo sentia-se apreensivo. Quando já tinha se esquecido do passado, eis que tudo vinha à tona torturando-lhe a mente com a sensação de culpa.
Sentia ímpetos de fugir dali com a família, indo morar em nutro lugar. De impedir a todo custo a convivência da esposa com aquela mulher sem caráter e sem sentimentos que não tripudiava em roubar o marido da própria filha.
Entretanto, temia que a Condessa, em sua vingança, contasse a Geneviève toda a verdade. Era esse o seu maior suplício.
Seu amor pela esposa era sincero e profundo. Ela era para ele o símbolo das coisas puras e belas. Sentia-se tocado de terror só ao pensar que aquela sórdida história pudesse ser-lhe revelada.
Se fosse com outra mulher encontraria maneira de explicar- lhe, mas com sua própria mãe, era-lhe sumamente difícil. Enterrou a cabeça entre as mãos em desespero. Pressentia que a Condessa não desistiria com facilidade.
Resolveu procurar o velho médico amigo. Precisava de conselho e conforto.
Encontrou-o em casa e entre embaraçado e aflito, contou- lhe o desagradável incidente.
- A situação é delicada, doutor. Temo pela nossa felicidade. O médico sacudiu a cabeça concordando.
- Tendes razão, Barão, A Condessa não é mulher que esqueça. Quero crer mesmo que seu orgulho encontra-se feri- do. Tem sempre dominado, imposto seus caprichos. Sua bele- za tem despertado muitas paixões.
- O que aconselhais? Tenho vontade de ir para longe com minha família.
- A fuga apenas contemporiza.
Quando temos um inimigo, o melhor é tentar fazer dele um amigo.
- Foi o que fiz. Mas minha sogra parece que perdeu .a razão, Se Geneviève souber a verdade sofrerá muito e talvez não possa perdoar-me!
O médico olhou o rosto torturado do Barão buscando estudar-lhe os sentimentos.
- Meu filho, nesses casos, é preciso ter coragem e enfrentar a realidade. O melhor que tendes a fazer é contar tudo à Sra. Baronesa.
Gustavo assustou-se: - Como?! Enlouquecestes? Pois é justamente isso que quero evitar a qualquer preço! Jamais o farei.
O Dr. Villefort abanou a cabeça exclamando: - Pois é a única solução possível, se quiserdes evitar males maiores. Escutai-me. Há longos anos conheço a Sra. Condessa e permiti dizer-vos que seu caráter volúvel, vingativo, mau, sempre evidenciado, não nos tranqüiliza de forma alguma. Naturalmente desde o vosso casamento tem se preparado para a satisfação desse capricho, do qual não desistirá jamais. Acredito mesmo que envidará todos os esforços para vingar- se caso não consiga o que pretende.
- Esse é o meu receio.
- Uma das maneiras talvez seja de contar à filha, a seu modo e em versão sua, essa aventura passada. Penso ainda, que ela vá mais longe, procurando afastar a filha do vosso convívio.
Gustavo levantou-se e sem poder conter-se ergueu o punho encolerizado : - Se fizer isso eu a mato! Mato como se mata uma cobra venenosa!
- Acalmai-vos, Sr. Barão. Essa seria a pior solução. A Sra. Baronesa é uma mulher compreensiva e avançada.
Deveis procurar contar-lhe tudo. Juntos procurareis solução para o caso. Estou certo que ela a encontrará.
- Pedis o impossível. Como aparecer aos seus olhos como um conquistador vulgar e leviano de sua própria mãe?
O médico suspirou preocupado: - o tributo pelos vossos erros passados. Cedo ou tarde teremos que arcar com as conseqüências das nossas ações. A verdade a fará sofrer menos do que as armadilhas e as intrigas de sua mãe.
Gustavo, inquieto, andava de um lado a outro.
- É esse vosso conselho?
- Sim Não tendes outra saída. Ou cantais toda verdade prevenindo vossa esposa, conquistando-lhe a confiança e a ajuda ou tereis que ficar à mercê da Condessa e das suas ameaças. Sabeis a que ponto vos poderão levar?
- Certamente à loucura e ao crime. Meu amor por minha mulher é tão grande que jamais permitirei que alguém nos separe. Ai daquele que se interpuser entre nós.
O médico pousou a mão sobre o ombro do Barão com amizade : - Deveis lutar contra esses pensamentos violentos. A violência só cria violência e não nos ajuda de maneira alguma. Sois homem de coragem. Fazei da Sra. Baronesa uma aliada.
- Impossível!
- Meditai no que conversamos.
- Farei o possível. mas não terei essa coragem. O médico abanou a cabeça pesaroso.
Gustavo retirou-se meia hora depois, ainda abatido e preocupado. Não podia aceitar a solução que o amigo aconselhara. Seu coração ensombrecido pela tristeza sentiu a sombra do ódio a envolver-lhe o pensamento cansado.
Sua mulher representava em sua vida a concretização máxima do ideal. Por ela sentia-se inclinado a um conceito mais enobrecido da vida, Fora a seu lado que conseguira esquecer um pouco o remorso e a sensação de culpa do passado.
Com o peito oprimido por angustioso receio, retornou ao lar. Ao entrar, vendo a família reunida no salão, comoveu-se. Beijou-os com infinito carinho e passando o braço sobre os ombros da esposa querida, conduziu-a a um sofá com ternura enorme.

Atentando para seu rosto emocionado, Geneviève perguntou : - O que se passa? Noto que estás diferente. Gustavo olhou-a nos olhos e pediu: - Não me deixes. Preciso muito de ti. Não poderei viver sem teu amor!
Geneviève sorriu: - Sabes que te amo! Porque me falas assim?
- Quero pedir-te que fiques mais a meu lado. Sinto-me muito infeliz quando não estás em casa. Peço-te! Fica comigo! Necessito tanto de ti!
O acento sincero e profundo do Barão impressionou Geneviève que respondeu: - Certamente. Se achas que tenho estado fora muitas vezes, procurarei restringir minha ausência. Sabes que saio contrariada, apenas para não ofender minha mãe a quem tanto devemos.
Vendo mencionar a Condessa o Barão estremeceu. Sua lembrança causava-lhe sensação desagradável de repulsa.
- Eu sei, minha querida. Contudo, és minha esposa, minha companheira. Sinto-me muito só. Peço-te que fiques mais a meu lado!
- Por certo, Gustavo. Digo-te que não desejo outra coisa senão isso.
Ele beijou-lhe a face corada e macia. O simples pensamento de perdê-la o desesperava, Por enquanto podia ficar tranqüilo, mas, até quando?



CAPÍTULO XIII
Uma vitória do mal A tarde ia em meio e o sol estava alto, penetrando alegre pelos reposteiros do gabinete povoando-o de luz e sombras, fazendo refulgir os metais dos candelabros ou esmaecer o colorido dos quadros da parede.
Indiferente à beleza da tarde, Gustavo ia e vinha num irrequieto caminhar, cenho franzido, rosto preocupado, onde se refletia certo temor.
Trazia entre os dedos um bilhete perfumado que relia de quando em quando, procurando penetrar nas entrelinhas, um tanto comuns.
"Preciso ver-te urgente na cabana de costume. Ainda hoje, espero-te. Vamos resolver de uma vez nossos problemas?
Não estava assinado, mas o Barão sabia bem do que se tratava. O que desejaria aquela perversa mulher?
Resolveu não ir. Ignorar o bilhete, O que poderia ela fazer? Talvez seu receio fosse infundado. Se contasse à filha a verdade, ela seria a primeira a ficar em dificuldade, porquanto além de adúltera, podia acusa la de querer destruir-lhe o lar.
Ao mesmo tempo sobressaltava-se ao pensar: Geneviève compreenderia? Não iria defendê-la acusando-o? Conhecia- lhe o profundo amor pela mãe. Temia que a defendesse. Deveria ir? Pata quê? Para suportar novas cenas desa- gradáveis?
Não. Não iria. Amarrotou o bilhete e o queimou atirando fora as cinzas.
Durante o resto do dia procurou esquecer o fato, mas não estava tranqüilo. Foi com horror que viu chegar a Condessa, já nos derradeiros raios solares, quando o crepúsculo começava a descer, enchendo de sombras as árvores do Parque. Geneviève recebeu-a com a gentileza e a alegria habituais e Marguerit parecia alegre e indiferente.
Mas no momento em que o Barão a ajudava a subir na carruagem sussurrou-lhe com energia : - Preciso ver-te. Urgente. Vai à cabana amanhã às 16 horas. Procurando disfarçar, conservando o sorriso, Gustavo respondeu : - Não irei. Nunca mais. A Condessa não titubeou: - Espero-te. Se não fores, conto à Geneviève toda a verdade. Escolhe.
- Não farás isso! - exclamou ele aterrado.
- Sabes que farei. Nada mais me importa agora.
Vendo-a partir sorrindo, dando os últimos acenos à filha, Gustavo sentiu-se enraivecido e triste.
O que lhe preparava aquela mulher? Como desiludi-la? Notando-lhe o olhar entristecido Geneviève tornou: - Gustavo, o que tens? Noto-te estranho, pareces triste. O que te preocupa? O Barão sorriu: - Nada. Ligeira indisposição. Passará logo, tenho certeza. E enquanto a abraçava com ternura e a conduzia para o interior do castelo, sentia uma imensa tristeza, um vago pressentimento desagradável a envolver-lhe o coração.
Por um momento pensou em seguir o conselho do Dr. Villefort, mas observando o rosto ingênuo e tranqüilo da esposa faltou- lhe coragem.
Apesar do receio que tinha da Condessa, bem no fundo, não acreditava que ela fosse capaz de cumprir a ameaça.
Entretanto, se pudesse ver o que se passava no íntimo daquela mulher teria duvidado, A Condessa planejava sua vingança antegozando o prazer de ver a homem que a desprezara chorar e ser desprezada pela mulher que amava. Tudo estava bem delineado. Não podia falhar.
No dia imediato esperou ansiosamente a visita da filha que solicitara de maneira irrecusável.
Geneviève chegou sorrindo, alegre e bem disposta. Conversavam muito e a Condessa solicitou-lhe a prestação de alguns delicados serviços que a moça procurou executar com prazer.
Pretextando lembrar-se de um compromisso urgente e ter que ausentar-se, a Condessa pediu-lhe que acabasse a tarefa, antes de sair.
A passos rápidos, dirigiu-se ao Pavilhão de caça, tendo nos lábios pérfido sorriso.
Assim que a mãe saiu, a Baronesa procurou ultimar as documentos que sua mãe lhe pedira e as cartas.
Tinha urgência de voltar ao lar, do qual agora procurava ausentar-se o menos possível.
Encontrava-se na sala particular da Condessa e a ca- mareira cuidava de alguns arranjos.
- Ana, sabes onde está o lacre?
Com os olhos brilhantes a serva abriu uma gaveta da escrivaninha elegante. Logo, demonstrando nervosismo, fechou depressa.
- Perdão, senhora. Essa gaveta não. Ninguém pode abri-la.
- Porquê?
- Não sei . . Mas, peço-vos por tudo, não deveis abri- Ia.
Geneviève estremeceu. Quando Ana abrira a gaveta. não tivera suficiente rapidez para fechá-la sem que Geneviève visse um papel com a letra conhecidissima de Gustavo. Vencida por um sentimento indominável, a jovem senhora afastou a serva que se havia interposto entre ela e a gaveta e com rapidez a abriu.
Apanhou o bilhete que dizia: "Minha amada. Morro de saudades, Preciso ver-te no lugar de costume. Não suporto mais esta ausência. Beija-te com ardor o teu maior admirador."
- Vos acompanho, senhora.
Geneviève, empalideceu mortalmente. Não estava assinado, mas não havia necessidade. Conhecia a letra muito bem. Apavorada olhou a serva que a um canto soluçava assustada. Com a mão gelada, o coração batendo descompassado, a Baronesa procurou na gaveta e encontrou diversos bilhetes que falavam da avassaladora paixão, na necessidade de suportar uma esposa sem amor.
Levada ao paroxismo da angústia, Geneviève segurou .2 serva pelos ombros sacudindo-a com violência: - Ana. Tu sabias! Tu sabias! Conta tudo. Quero saber toda a infâmia!
- Não posso - choramingou ela - A Sra. Condessa me mata.
- Se não falas, mato-te eu! Vamos, conta-me ou chamo o Conde e a ele contarás o que sabes.
A serva enxugou uma lágrima inexistente e tornou : - Pobre Sra. Condessa! Tem sido vítima desse homem toda a vida! Ele a tem perseguido; antes quando a primeira esposa vivia. Nunca lhe deu sossego, ameaçando-a, obrigando-a a aceitar o seu amor. Sabeis como fez sofrer a Baronesa Lívia, que tentou contra a vida da Sra. Condessa, quando descobriu a verdade. Eles são amantes há muitos anos. Jamais deixou de persegui-Ia. Contra a vontade a Sra. Condessa concordou com vosso casamento, ameaçada por ele que queria fazer parte da família para bem poder estar com ela, não lhe dando chance de escapar.
Cada palavra de Ana atingia fundo o coração angustiado de Geneviève, que se sentia morrer. O golpe brutal que fizera ruir seus sonhos e ilusões, provocava-lhe terrível sensação de peso no peito, como se estivesse esmagado pela dor.
- Ainda hoje - fez a serva com voz compungida -obrigou-a a ir ao seu encontro no Pavilhão de Caça. Ameaçou-a de contar-vos tudo, caso ela se recusasse.
Comprimindo o peito com as mãos, Geneviève pálida como cera murmurou: - Não pode ser. Não acredito. Não acredito.
- Ide, certificai-vos…
- Sim - ajuntou a jovem senhora meio atordoada -sim, é preciso verificar. Irei.
Sem atinar bem o que fazia, Geneviève dirigiu-se ao Pavilhão de Caça. Cautelosa, aproximou-se de uma janela procurando ouvir o que diziam. Percebeu a voz de Gustavo suplicante, mas não entendeu as palavras.
Foi nesse momento que viu a figura do Conde surgir de uma moita e dirigir-se à porta da cabana. Apavorada quis impedi-lo. Era tarde. Seu pai, de um só golpe com violência abriu a porta. Geneviève, correu para ele. A cena que presenciaram os deixou estarrecidos: Ajoelhada aos pés do Barão, Marguerit soluçava convulsivamente.
Vendo a porta abrir-se e o marido surgir enraivecido, Marguerit levantou-se, correu para ele e implorou : - Salve-me. Salve-me desse monstro!
O Conde, rosto inflamado pelo ódio sacou de um revólver e insensível ao grito de Geneviève, apontou e deu ao gatilho.
O corpo do Barão rolou por terra enquanto que seu peito tingia-se de sangue.
Meu Deus, meu Deus! - Soluçou Nina comovida. Que tragédia!
As imagens da tela desapareceram enquanto que as luzes da sala se acenderam. Cora afagava com ternura a cabeça delicada de Nina procuran do sustê- la.
Sentindo as lágrimas descerem-lhe pelas faces a jovem, voltando-se para o instrutor, pediu: - Tende piedade de mim. Tenho sofrido muito. Agora quero saber a verdade. Começo a perceber que fui enganada. Que fui injusta! Oh! meu Deus, mostra-me a verdade! Quero saber!
- Acalma-te, Nina. Teu pedido é justo. Terás a verdade. Mas procura agora serenar um pouco para que possamos continuar.
Envolvida pelas vibrações suaves dos circunstantes, Nina sentiu que uma doce serenidade lhe envolvia o espírito aflito e pouco a pouco conseguiu acalmar-se. As luzes se apagaram, a rememoração ia continuar.



CAPÍTULO XIV
Gustavo perde a vida numa cilada O Barão estava visivelmente preocupado. Caminhava de um lado a outro do seu gabinete imerso em profundas pensamentos. Finalmente, tirou novamente do bolso o bilhete de Marguerit, leu-o. e amassou-o com raiva. Se tivesse coragem, contaria tudo a Geneviève. Mas não tinha. Sabia que Marguerit já o esperava na cabana. Não queria ir, mas por fim, resolveu. Haveria de enfrentá-la. Convencê-la a deixá-lo em paz.
Apanhou o sobretudo e saiu. A cavalo, dirigiu-se ao local do encontro. A porta da cabana estava fechada, mas Gustavo a abriu com facilidade. Entrou. A Condessa já o esperava sentada a uma cadeira. Estava só. Gustavo nem percebeu que a ama não a acompanhava como de costume para vigiar a porta do lado de fora.
Cumprimentou-a friamente dizendo lago após: • Não desejava este encontro. Contudo vim para que possamos resolver nossos problemas de uma vez.
Um brilho de ódio perpassou pelos olhos pintados da Condessa.
• Também não desejo outra coisa - acentuou com alguma ironia. - Parece que vossa leviandade não deixa margem à dúvida. Depois do amor que me jurastes, de tudo quanto houve entre nós, soubestes ferir meus sentimentos de mulher. Acreditando-a mais compreensiva, o Barão argumentou com sinceridade : O que houve entre nós foi um erro. Muitos males oca- sionaram para nós dois.Compreenda, Condessa. Eu era jovem e a amar de minha primeira mulher não me tocava de ma- neira profunda. Gostava dela, mas hoje sei que nunca amei com plenitude. Vossa beleza fascinou-me e os costumes libertinos da Corte nos empurraram ao adultério, Entretanto, a paixão é um vício e jamais nos poderá tornar felizes, princi- palmente quando traímos nossos deveres. Quase fizemos de Lívia uma assassina e por pouca não perdestes a vida. Destruímos Lívia que muito sofreu pelo nosso crime. O Conde sempre foi um homem de bem e não merece que lhe manchemos a honra.
A Condessa sentiu recrudescer o ódio dentro de si. Sorriu maldosa quando disse: • Dizeis isso agora. Quando já não tendes mais amor por mim.
A Condessa, num arroubo de emoção levantou- se aproximando-se do Barão que de pé a fitava com serenidade.
• Entretanto, Gustavo, eu ainda te amo! Eu te amo! Não sentes que possa suportar teu desprezo? Gustavo olhou-a com firmeza : • Por favor, Condessa. Eu vos peço. Desejo que possais compreender que não vos desprezo. Gostaria que perdoásseis se vos fiz algum mal.
Porém, só agora sou feliz. Só agora encontrei a paz, a ternura de um amor verdadeiro. A plenitude que sempre busquei encontrei na amor de Geneviève e sou sincero. Desejo apenas fazê-la feliz!
A Condessa não conteve a avalancha de revolta.
• Não posso crer que ela seja mais mulher do que eu. Uma criança! É ridículo!
Gustavo procurou acalmá-la.
• Voltai à realidade, Condessa, Ela é vossa única filha. Pretendeis destruí-la?
• Claro que não, Mas és meu muito antes dela. E depois, ela não precisará saber.
Lançando olhares misteriosos ao redor ela tornou: • Se quiseres, ainda posso salvar-te. Dize que serás meu como dantes e tudo estará resolvido. Caso contrário, destruirei tua felicidade. Se não me quiseres, não a terás também.
Gustavo perdeu a calma, Compreendeu que ela tramara Laços Eternos alguma coisa terrível. Uma sensação de perigo iminente o acometeu.
• Que fizestes. Condessa? Que planejastes para me destruir?
Ela parecendo dominada pela emoção violenta, abraçou-o com força; • Gustavo, sê meu. Dize que me amas!
Revoltado ele a repeliu procurando desvencilhar-se dela, tentando sair dali o mais breve possível, Mas ela o agarrava febrilmente. Entre soluços suplicou ardentemente, ajoelhando- • se a seus pés: • Concorda, Gustavo. Eu te amo, concorda c posso salvar-te.
Nesse exato instante a porta abriu-se estrepitosamente e a figura agressiva do Conde surgiu na soleira. O Barão viu horrorizado que a Condessa se lançou nos braços do marido, suplicando ajuda.
Dolorosamente surpreendido pode ver a figura de Geneviève, com o rosto transmudado de dor pedir que o poupassem, depois, sem que pudesse dizer nada ou tentar explicar-se sentiu que o sangue lhe corria pelo corpo empapando-lhe a roupa. Seus olhos turvaram-se e suas pernas se foram dobrando inapelavelmente. Quis gritar para a esposa que era inocente, mas não conseguiu.
Caiu ao chão e por mais que lutasse para reerguer-se, seus pensamentos perderam-se nas brumas da inconsciência.
Geneviève lançou-se sobre Gustavo chorando copiosamente enquanto que o Conde, ainda pálido e enraivecido abraçava a Condessa que em lágrimas assustadas, extravasava suas emoções.
Não planejara a presença do Conde. Como ele descobrira o encontro? Desejava apenas que Geneviève soubesse a verdade para separar-se do Barão, mas não desejara que o marido se envolvesse. Ele era mais perspicaz do que a filha e seria mais difícil iludi-lo. Em todo caso, saíra-se bem. Ele a julgava vítima não culpada. Vendo a filha em prantos, ergueu-a dizendo-lhe com carinho: • Não chores por ele. Era um canalha. Neste mundo não há lugar para eles.
A jovem Baronesa transida de dor, parecia morrer. A Condessa abraçou-a enquanto dizia com fingida ternura : • Filha. Não queria causar-te esse desgosto. Mas a perseguição do Barão não me dava sossego. Supliquei que me deixasse em paz. Já no tempo da primeira mulher ele me perseguia tanto que ela quase me assassinou por isso. Quis impedir teu casamento, mas parecias tão feliz! Pensei que ele tivesse mudado. Porém, isso não aconteceu. Continuou a perseguir-me sem descanso. Hoje vim implorar-lhe que me esquecesse. Porém, não sabia que nos iriam encontrar.
• Por sorte - ajuntou o Conde - ouvi a conversa de Ana com Geneviève e consegui chegar primeiro. O canalha está morto. Ambas estão livres. Geneviève não suportou mais.
Sentiu uma dor profunda no peito e lançando furtivo olhar para o corpo de Gustavo estendido no chão, caiu, perdendo os sentidos.
No silêncio da sala de rememoração ouviu-se a voz entre- cortada de Nina num desabafo incontrolável : Laços Eternos • Meu Deus. Tende piedade de mim. Ele era inocente! Ele era inocente! Abraçou-se a Cora soluçante enquanto as luzes se acendiam novamente.
• Acalma-te, meu bem, Agora sabes a verdade. Agora sabes!
• Pobre Gustavo! Quanta injustiça lhe fizemos! - Suspirava ela enternecida - Meu Deus, como poderei repará-las? Cora afagava carinhosamente a cabeça da amiga, aconchegada ao seu ombro.
• A verdade, seja qual for, sempre nos beneficia se soubermos aproveitar os erros passados como preciosas lições de aprimoramento espiritual. Deus permitiu hoje que a mágoa secreta do teu coração se esvaísse, embora a revelação tivesse reservado dolorosa surpresa.
• Tens razão. Gustavo sempre foi o maior amor de minha vida. Recordo-me com desoladora tristeza dos dias que se seguiram à sua morte. Apesar da imensa desilusão, que me corroía a alma, eu era uma mulher forte moralmente. Durante aqueles dias, muitas vezes pensei enlouquecer. Ninguém soube a causa da tragédia. Um acidente com a arma durante a preparação de uma caçada foi a justificativa dos meus pais para a trágica morte do Barão. Confesso que estava aturdida e não tomei parte nas explicações do acidente, onde ninguém ousaria duvidar da palavra do Conde de Ancour. Meu marido não tinha parentes próximos que pudessem esmiuçar a questão e, assim, o crime ficou impune pelas leis humanas, tão deficientes na ocasião.
114 Nina fez uma pausa, enquanto que o orientador perguntou sereno : • Lembras-te de tudo com clareza?
• Sim - respondeu Nina. - Parece que um véu foi me arrancado da mente e todos os acontecimentos de então me acodem à memória.
• Poderá descrevê-los?
- Perfeitamente. Como já disse, apesar do golpe mortal que recebera, reagi. Tinha três filhos que precisavam de mim e do meu carinho. Gus encontrava- se inconsolável, Não se conformava de perder o pai, logo depois de ter encontrado a alegria de um novo lar e acusava Deus de injusto e mau. Foi•me preciso muita coragem para vencer minha própria dor e poder socorrê-los.
Apesar de tudo quanto Gustavo fizera, o filho era ino- cente e não devia jamais saber a verdade. Eu não tinha o direito de destruir-lhe no coração os nobres sentimentos que seu pai lhe inspirava.
Voltamos para Varene e nossa dor continuava incessante.
Lá, tudo nos lembrava a forte personalidade de Gustavo, sua figura, suas palavras, seus gestos, sua risada franca e sonora.
Durante o dia, eu fazia o possível para entreter as crianças, usando toda minha força de vontade para isso, mais do que nunca disposta a educá-los para que fossem homens úteis e de bem, para que jamais se deixassem arrastar pelas paixões e pelos erros humanos, como Gustavo.
Mas, à noite, quando me recolhia na solidão triste dos meus aposentos, onde o eco alegre da sua voz jamais soaria, quando me estendia no leito enorme e vazio, onde suas mãos fortes e meigas jamais me aconchegariam, toda dor, toda mágoa profunda se extravasava na avalancha de lágrimas e de angústia. Jamais duvidara do seu amor por mim. Jamais pensara que pudesse ter sido mentira. No entanto, era para minha mãe que ele vibrava de amor, enquanto que eu tinha sido apenas pretexto, servindo de meio para que ele pudesse atingir um fim. Às vezes pensava que meu amor por Gus, tão correspondido, o tivesse também influenciado ao nosso casamento. Revirava- me no leito aflita e angustiada e muitas vezes cheguei a indagar em alta voz, como se ele me pudesse ouvir: • Porque fez isso comigo Gustavo? Porquê? Chorava copiosamente e quase não dormia.
Emagrecia a olhos vistos e a custo mantinha a calma diante das crianças.
A princípio evitava a presença de meus pais. Mas sempre tive horror às injustiças. Acreditava minha mãe inocente. Ela era minha mãe! Jamais pensei que pudesse ocultar-me a verdade.
Mas, no meio da provação mais rude, Deus sempre coloca mão amiga e sustentadora. Para mim o amparo nessa hora Dr. Villefort. Amigo dedicado e querido, soube multiplicar-se em cuidados, Como o faria o pai mais extremoso. Sua presença tinha o condão de dar-me forças novas.
Foi graças a ele que consegui perdoar. Agora sei que ele sabia da verdade e que falava com conhecimento de causa. Nunca aceitou a culpabilidade de Gustavo. Contei-lhe tudo num desabafo e para surpresa minha tornou: • A tragédia consumou-se. Pobre Barão. Como deve estar sofrendo!
• Se como pensamos, a alma sobrevive após a morte do corpo, certamente os remorsos não lhe darão tréguas.
Ele me olhou com firmeza e declarou: • Para mim as coisas ainda não estão claras. Gustavo vos amava com sinceridade e arrebatamento Não acredito nessa historia. Sobressaltei-me • Achais que minha mãe teria mentido? Nós vimos com nossos próprios olhos!
• Não quero julgar. Porém, as aparências enganam. Confio no caráter e no amor do Página 59 Laços Eternos Darão. Era um homem de bem. Algo deve ter acontecido, alguma coisa que não podemos compreender por agora, que determinou a tragédia.
• Dizeis isto para confortar-me.
Tudo está muito claro. Preferia ter morrido do que descobrir a verdade.
• O tempo provará quem tem razão. Vereis, Sra. Baronesa.
Hoje, depois de tanto tempo, compreendo que estava certo. Mas, naquele tempo, a mágoa era muito profunda e a confiança em minha mãe, cega.
Não esconda que por vezes, na intimidade do coração sentia um ímpeto de revolta, mas fazia tudo por dominá-lo.
Acreditava piamente na sobrevivência do espírito após a morte e aprendera a aceitar a reencarnação, bem como a justiça perfeita de Deus que dá a cada um segundo suas obras.
• Dr. Villefort, meu amigo predileto, foi meu orientador. Lia-me o Novo Testamento e explicava-me as parábolas de Jesus com simplicidade e firmeza. Foi o que me deu forças para não sucumbir e continuar lutando. Foi também o que me valeu durante as provas que em minha atribulada encarnação ainda me Testava suportar.
• Minha filha - tornou o orientador - se quiseres poderemos parar aqui, no que diz respeito à rememoração. Não há mais necessidade.
Nina colocou a mão timidamente no braço do dedicado assistente: • É verdade. Contudo, existem ainda algumas coisas que eu gostaria de saber. Onde está Gustavo? Porque não o encontrei ao regressar da Terra?
• Está bem. Podemos continuar então. É necessário que conheças toda a verdade. Acomodemo-nos.
Sentaram-se silenciosos. Nina conservou a mão de Cora entre as suas. A penumbra se fez e a tela reflexiva iluminou-se novamente. A rememoração ia continuar.
Na sala do Pavilhão de Caça do Castelo de Ancour ainda a cena fatal. O Barão apavorado, querendo desvencilhar-se e a Condessa ajoelhada a seus pés suplicante.
A porta abriu-se e Gustavo no auge da angústia divisa a figura do Conde e atrás o rosto conturbado de Geneviève. Compreendeu a cilada em que caíra, mas era tarde. Num segundo, a tragédia consumou-se.
Na teta de rememoração, todos os personagens falavam muito baixo e ela agora focalizando mais a figura do Barão, registrava-lhe os pensamentos de tal sorte que os presentes o ouviam perfeita e distintamente.
Sentindo que o sangue escorria do peito ferido e que a vista se lhe turvava tentou inutilmente gritar: • Geneviève, sou inocente. Eu te amo. Eu te amo. Não me deixes, nunca. Não me deixes!
Estendido no chão, Gustavo lutava com todas suas forças para evitar que a morte o arrebatasse. Foi inútil, seu corpo não mais lhe obedecia o esforço desesperado e percebendo que não poderia mais resistir, num rápido segundo viu desfilar em sua memória todos os acontecimentos de sua vida. Seus erros e fraquezas, suas lutas, seu amor por Geneviève. Seu último pensamento foi para Deus. Depois, mergulhou nas brumas da inconsciência.
A perturbação de Gustavo Acordou alguns dias depois em local estranho e deserto.
Atordoado, sentia enorme fraqueza e um tanto desmemoriado, olhou ao redor querendo compreender o que se passava.
Aos poucos a paisagem foi se aclarando e ele verificou que se encontrava absolutamente só. Um lugar desagradável e escuro. Procurou erguer-se, o que fez com alguma dificuldade. Onde estaria? Tentou acalmar-se, mas sentia uma tristeza enorme invadindo-lhe o coração. Levou a mão ao peito dolorido e num átimo sentiu novamente o sangue bordejando e o desespero por não poder estancá-lo.
Lembrou-se de tudo. Um pensamento de terror e de revolta o acometeu. Não desejava morrer! Separar-se de Geneviève, de sua família querida, sua casa feliz.
Sentindo novamente que ia perder as forças, lembrou-se de Deus e implorou: - Pai de Misericórdia, tende piedade de mim, pobre pecador. Socorrei-me!
Ajoelhou-se no auge da dor e por entre lágrimas suplicou ajuda. Ele não pôde ver, mas duas entidades iluminadas o envolveram com eflúvios de amor. O sangue estancou e o seu estado geral melhorou sensivelmente.
Reconfortado, levantou-se e apalpando-se com alívio balbuciou exultante: Estou vivo! Estou vivo! Marguerit não conseguiu destruir-me.
Vou procurar Geneviève. explicar-lhe tudo. Há de compreender-me e perdoar-me.
Um pensamento de rancor o envolveu por instantes.
- Assassina! Falsa! Perversa! Ainda pagarás pelos teus crimes! Não erguerei meu braça contra ti, porque és mãe de minha querida esposa. Não quero que ela me odeie e despreze por tua culpa. Meu Deus há de punir-te com rigor. Mentirosa, assassina!
A lembrança do crime e de Marguerit perturbou-o novamente c súbito mal-estar o acometeu. Assustado, levou a mão ao peito que novamente lhe doía e cujo sangue recomeçava a gotejar. Surpreendido, amedrontado, deixou-se cair de joelhos e num acesso de pranto pediu em tom suplicante: - Oh! Deus! tem piedade de mim. Não sei o que acontece, a cada pouco sinto-me morrer! Tem piedade de mim, Socorre-me! Vendo que não melhorava, aflito, murmurou sentida prece pedindo esclarecimento.
Foi quando tênue luz acendeu-se-lhe diante do olhar enevoado de lágrimas e uma figura delicada de mulher apresentou-se. Acreditando-se frente a uma manifestação sobrenatural, Gustavo calou-se respeitoso em atitude humilde. A entidade aproximou-se estendendo-lhe as mãos, tornou com suavidade: - Vim buscar-te. Tua existência terrena terminou. Tem coragem e vem comigo.
Gustavo, fitando a mensageira divina pediu entre soluços: - Senhora! Eu vos peço, deixai que eu continue vivendo! Geneviève precisa de mim. Gus também. Depois, como sucumbir perante a infâmia e a mentira? Deus permitirá tamanha injustiça? Eu estou inocente!
Com voz calma, mas enérgica a mensageira respondeu : - Nada podemos fazer. Teu corpo já está morto há vários dias. Precisas de socorro e atendimento. Vem comigo!
Vendo que Gustavo magoado e triste mentalizava a Condessa com rancor, ela continuou: Laços Eternos - Não guardes ódio ou ressentimentos em teu coração. A justiça de Deus é perfeita. Confia nela e perdoa. Nenhum de nós é inocente ou injustiçado. Cedo ou tarde colhemos -sempre o que semeamos. Todo aquele que erra e prejudica seu próximo, é candidato certo ao sofrimento depurador. Ninguém sairá da Terra sem pagar o última ceitil do mal que houver feito. Confiemos na sabedoria divina e aguardemos dias melhores. Aceita a prova rude coma salutar remédio e vem comigo.
Às palavras da entidade bondosa envolveram o espírito sofredor de Gustavo com eflúvios suaves e amorosos. Contudo, a perturbação do recém-desencarnado era evidente.
- Não - murmurou ele visivelmente angustiado. -Ninguém poderá afastar-me dela. Preciso de Geneviève como do ar que respiro. Não posso deixá-la. Deixai-me. . . não irei. Não irei!
Sentindo que a interlocutora o atraía com eflúvios de com- preensão e paz, arrojou-se à distância como querendo subtrair-se à sua influência e entre o terror e a tristeza repetia como que para si mesmo: - Não é verdade. Eu estou vivo. Sinto-me vivo. Ferido, é verdade, mas vivo! Quero ir para casa. Ninguém conseguirá impedir- me.
A forma luminosa apagou-se-lhe do olhar atemorizado c novamente viu-se só dentro da escuridão.
- Onde estou? - pensou ele procurando identificar a paisagem triste que vagamente vislumbrava ao seu redor.
Não se lembrava daquele lugar. Mas haveria de voltar para casa. Por algum tempo perambulou sem encontrar o que buscava, Por mais que procurasse sair daquele lugar escuro, não conseguia. Estava agoniado e triste. Já passara por diversas crises de humor, indo da revolta à exasperação, do desespero à súplica. Parecia-lhe estar vivendo um pesadelo.
Numa dessas crises, após chorar copiosamente, conseguiu finalmente adormecer. Quando acordou, pareceu-lhe que a escuridão estava menos densa e sentado a um canto da estrada solitária e de vegetação escassa, começou a analisar com mais calma sua situação, Teria mesmo morrido? Seria verdade que o espírito eterno?
As palavras do Dr. Villefort acudiam-lhe ao pensamento dorido: Apalpou-se com cuidado. Como era possível? Sentia-se respirar, viver, sofrer, amar, existir. Seu peito doía-lhe ainda. Como podia ser? Se estava morto, continuaria eternamente nesse lugar triste e solitário?
- Preciso sair daqui - pensou -. Quero ir para casa! Preciso saber a verdade.
Seu pensamento foi tão positivo que pareceu-lhe de repente divisar um caminho conhecido e que certamente o conduziria ao lar. Resoluto, criou novas forças e começou a andar. À medida que avançava emocionado, as trevas foram clareando, como se estivesse amanhecendo e ao chegar frente aos enormes portões do Castelo de Varene, não pôde evitar que funda emoção o acometesse. Duas lágrimas rolaram-lhe dos olhos cansados.
Precisava entrar, Os portões estavam fechados. Aflito, pendurou- se na sineta, para chamar o porteiro, mas não ouviu nenhum ruído. Preocupado, aproximou-se do gradil da janela, e viu que na sua pequena sala, o porteiro, sentado displicentemente trocava idéias com o cocheiro.
Gustavo chamou-os várias vezes sem que nenhum dos dois o atendesse. Vendo inúteis seus esforços, abatido, sentou- se no muro, tentando concatenar as idéias.
A atitude estranha dos servos, sempre fiéis e atenciosos, dava-lhe o que pensar. Eles não o tinham visto nem ouvido. Seria então verdade? Teria mesmo morrido?
Agora, mais do que nunca, precisava ver Geneviève, Gus, saber como estavam, procurar qualquer forma de falar-lhes, provar-lhes sua inocência, Mas os portões estavam fechados e precisava esperar que alguém entrasse ou saísse para passar.
Na sua aflição Gustavo não percebeu quanto tempo permaneceu à espera. Era já no entardecer quando uma carruagem aproximou-se e reconhecendo o Dr. Villefort, Gustavo teve uma exclamação de alegria. A carruagem parou frente aos portões e o Barão de um salto penetrou no seu interior. Procurou conversar com o velho amigo, mas vendo que não era visto nem ouvido; encolheu-se a um canto, entre desiludido e triste, O rosto do médico revelava preocupação e abatimento. Em-lhe penoso voltar àquele lar, dantes tão feliz, agora enlutado pela tragédia. Reconhecendo sua casa, seus objetos queridos, Gustavo não conseguiu dominar a emoção. As lágrimas lhe desciam pelas faces pálidas. Ao lado do médico adentrou o pequeno salão, tão seu conhecido, e quando viu a figura pálida e emagrecida de Geneviève, trajada de preto, foi como se violenta pancada lhe tivesse sido desferida no peito dolorido e por pouco não perdeu as forças.
doença de Lívia o transformou, acordando-o para a responsabilidade. Tornou-se um homem de bem. Quando vos conheceu, tornou-se ainda melhor. Não deveis crer nessa infâmia.
Gustavo, por entre lágrimas e com ansiedade, estudava as reações de Geneviève. As palavras do velho amigo lhe balsamizavam o coração dolorido.
Os olhos de Geneviève brilharam com intensidade por alguns momentos. Depois, sacudiu a cabeça desalentada: - Sois um velho e bondoso amigo, incapaz de enxergar os defeitos alheios. Dizeis tudo isto para confortar-me.
Aflito, Gustavo abraçou o velho médico dizendo-lhe ao ouvido com paixão: - Conta-lhe tudo. Dize-lhe a verdade! Desmascara aquela mulher!
O médico, passou a mão pelos alvos cabelos como para afastar uma idéia insensata. Por momentos sentiu ímpetos de revelar-lhe a verdade. Reprimiu o impulso com vigor. Que adiantaria? O Barão já estava morto. Para que dar mais um desgosto à pobre viúva revoltando-a contra a própria mãe? Que lucraria com isto? Apenas distilar ódios e discórdias, Se a verdade tivesse que ser revelada a Geneviève algum dia, Deus se encarregada disso.
Vendo que o médico não lhe atendia os desejos, Gustavo, sem querer perder a oportunidade começou a falar aos ouvidos do velho amigo sobre seu amor pela esposa, sobre os tempos de noivado, sobre a plenitude dos seus sentimentos.
Mais animado Villefort tomou : - Lamento que penseis assim. Sou honesto mas não ingênuo. Conheço as fraquezas humanas e não me deixo ludibriar com facilidade. Quando vos conheceu, o Barão começou a amar-vos e me procurava para trocar confidências. Seu rosto iluminava-se de tal forma quando aludia às visitas que vos fazia que ninguém poderia duvidar da sua sinceridade Procurou- me antes de vos pedir em casamento e depois para contar que tinha sido aceito. Jamais esquecerei sua felicidade, sua alegria, naquela noite! Jamais poderia ser falsa. Não creio.
Por momentos o rosto abatido da Baronesa refletiu saudade e alegria.
- Sim - respondeu ao cabo de alguns segundos -, eu sentia que era amada! Havia tanta luz em seus olhos quando me fitava! Tanta alegria quando me abraçava, tanto enlevo! Sua VOZ morreu num soluço, - Mas, não! Foi tudo ilusão. Um engano terrível, que em minha condição de mulher apaixonada não percebi. Como pôde ser tão cruel?
Lágrimas rolavam-lhe pelas faces emagrecidas enquanto que sua mágoa reaparecia contundente.
O desespero de Gustavo tocava as raias do insustentável. Deu livre curso às lágrimas, a revolta, à violência, à súplica, tez o que pôde para convencer a esposa da sua inocência, mas nada conseguiu senão gastar suas energias.
Caiu em prostração e em funda tristeza. Estava tudo acabado, pensava abatido. Melhor seria para ele se a vida se acabasse no túmulo, Do que lhe servia continuar vivo no além, se não podia provar sua inocência, nem ajudar os entes que amava? De que lhe valia saber que era desprezado por quem mais amava no mundo? Que iria ser de sua vida dali por diante? Ficaria eternamente nesse castigo?

Pensava com raiva na Condessa de Ancour. Era a culpada de tudo. Mulher perversa e traiçoeira. Sentia-se mal quando pensava nela. Odiava-se no fundo da sua revolta- Mas ao mesmo tempo uma ponta de remorso o acometia ao recordar-se que fora ele quem procurara conquistá-la, dando livre curso à vaidade cortesã. Era um homem casado. com uma boa mulher, que certamente não merecia sua traição.
No fundo, a figura do Conde não lhe aparecia na mente corno assassino odioso. Sabia que conspurcara-lhe o lar, tripudiando sobre a honra de uma amizade tradicional de família. Jamais o Conde o ofendera e sempre tivera para com ele gestos afáveis e afetuosos. Não lhe guardava rancor. Tinha-lhe pena e achava que a ele sim, devia uma satisfação.
Porém, doía-lhe tê-la dado justamente quando se tinha regenerado. Quando, tocado pelo amor se transformara num homem correto e responsável e que justamente por isso tivesse pago com a vida a sua regeneração.
A constatação desse fato provocava-lhe acerba mágoa. Se tivesse cedido às pretensões da Condessa, mesmo sem amá-la, certamente tudo teria continuado como dantes. Ser honesto teria sido um mal?
Ao mesmo tempo compreendia que sua consciência não suportaria semelhante situação e, mesmo no auge da desespe- ração, sentia-se algo confortado por não ter cedido, Mas isso de que lhe servia agora?
Incapaz de fazer-se ouvido ou entendido, Gustavo passou a viver no castelo, como uma sombra triste e infeliz. Acompanhando de perto o sentimento da esposa querida, assistindo- lhe a luta interior para suportar os problemas do dia-a-dia com resignação e coragem.
Observando-a, desvelando-se no atendimento e no carinho dos filhos sem preferências ou parcialidades, dispensando a Gus o mesmo carinho que a seus dois filhos, Gustavo reconhecia que seu amor por ela crescia ao mesmo tempo que sua angústia.
Muitas noites, quando na solidão do leito vazio Geneviève dava livre curso ao pranto, chamando por ele com doloroso acento, ele a abraçava com carinho e misturava com ela suas lágrimas e seu desespero. Tentava por vezes aparecer-lhe durante o sono. Aprendera que quando o corpo se acomoda no sono reparador, o espírito liberta- se parcialmente, excursionando pelo mundo espiritual, seu local de origem, sua pátria real.
Vendo-a sair em espírito,. Gustavo procurou falar-lhe, abraçá-la para tentar dizer-lhe a verdade. Contudo, Geneviève quando o via, na semi-obscuridade do quarto, repelia-o vigorosamente, horrorizada, relembrando incontinente o choque sofrido no Pavilhão de Caça. Fugia- lhe com tal pavor, que Gustavo entristecido, abstinha-se de abordá-la, seguindo-a de longe, qual sombra desorientada e infeliz.
Muitas vezes, o pavor de Geneviève era tal, que ela se refugiava no corpo adormecido, acordando-o imediatamente. Faltava-lhe o ar, sentia uma dor funda no peito. Tinha medo de adormecer, procurando vencer o sono para não encontrá-lo de novo.
Esse estado de agitação constante foi abalando a saúde da jovem senhora que emagrecia a olhos vistos, preocupando seus familiares e o médico amigo.
A Condessa ponderava que a filha estava feia nesse estado de magreza. Desejava forçá-la a alimentar-se melhor. Sugerindo que deveria viajar um pouco.
Gustavo, revendo a Condessa, sentiu renascer a revolta que lutava por sufocar. Vendo-a satisfeita, com saúde, desfrutando uma impunidade que lhe parecia acintosa, não conseguiu sopitar a avalanche de ódio que o acometeu. Acreditava-se injustiçado, Se ele fora culpado, ela o fora ainda mais. Porque somente ele arcara com as conseqüências dos erros? Porque ela duas vezes mais criminosa usufruía da vida respeitada e feliz? Sentiu ímpetos de agredí-Ia, de atirar-se a ela dando Livre curso ao que lhe ia na alma. Porém, não teve coragem.
Geneviève doente e debilitada, impunha-lhe desmesurado respeito.

Embora não sendo visto por ela, não desejava magoá-la. Percebera que todas as suas manifestações de revolta e incon- formação, de desespero e angústia, contribuíam de alguma forma para agravar seu estado de saúde. Por diversas vezes calara suas explosões de desespero ao perceber que as transmitia sem o querer à esposa aflita cujo estado se agravava.
Quando isto acontecia, encolhia-se timidamente a um canto e entre lágrimas pedia perdão a Deus por sua incompreensão. Conteve-se diante da Condessa, lutando com todas as suas forças, vendo-a aparentar diante da filha uma ingenuidade e um carinho que não possuía. Mas, para Gustavo, a prova seria ainda mais difícil.
Marguerit, olhando a filha que descansava em um divã tornou: - Não sei porque te deixas conduzir pelo desespero. Quando Gerard morreu, não ficaste nesta depressão. Suportaste com mais coragem. Afinal, ele sim foi um homem de bem que mereceu teu amor! Quanto ao Barão, lamento que não me tivesses ouvido, És uma ingênua sempre trancada em casa. Não conheces os homens. Não freqüentas os salões!
Geneviève fez um movimento nervoso.
- Por favor, mamãe. Não falemos neste assunto que me desgosta muito.
A Condessa, não se deu por vencida.
- Como não falar? Como deixar que definhes por um miserável traidor? Como permitir que continues encerrada neste castelo, carregando o fardo de um filho que não é teu e que te faz recordá-lo cada instante?
Geneviève levantou-se como movida por uma mola. Seus olhos expeliam chispas. Parecia uma gata assustada: - Peço-te pelo que mais queres que não te refiras dessa forma a meu filho, Ele é meu filho. Amo-o e não me separarei dele. É um inocente que tem sofrido tanto quanto nos.
A Condessa, mudou de tom procurando dissimular seus sentimentos: - Acalma-te. Não me agrada ver-te aqui encerrada. És jovem.
Afasta-te desta casa, destas lembranças e certamente a vida te sorrirá de novo. Deixa que eu te escolha um marido conveniente e bom.
Confia em tua mãe que tem experiência e que só deseja o teu bem! Gustavo não se conteve. No auge da revolta aproximou-se da Condessa empurrando-a com força.
- Assassina, infeliz - gritou-lhe exasperado - como podes ser tão má? Deixa-nos em paz. Não vês o mal que causaste? Não estás suficientemente vingada? Ainda não aplacaste o ódio que me devotas e queres atingir-nos ainda mais? Assassina! Vai-te daqui. Assassina! Marguerit, que parecia bem disposta, sofrendo o impacto da fúria de Gustavo, sentiu repentino mal-estar. Uma tontura violenta e um arrepio de pavor percorreu-lhe o corpo bem cuidado.
Num gesto aflito, passou a mão pela testa como querendo afastar de si aquela onda destruidora que a envolvia. Foi quando seus olhos se abriram desmesuradamente e ela viu a figura do Barão, à sua frente, ameaçadora e vingativa.
Foi um segundo, mas o bastante. Apavorada Marguerit gritou: - Me acudam! É ele! Ele que veio vingar-se, Socorro! Tirem-no daqui, levem-no!
Geneviève, apavorada, acercou-se da mãe a tempo apenas para ampará-la, pois a Condessa perdeu os sentidos.
Assustada, Geneviève chamou as servas e procuraram socorrê-la friccionando-lhe os pulsos e afrouxando-lhe as vestes. Achegaram-lhe os sais ao nariz e aos poucos Marguerit foi voltando a si. Abriu os olhos parecendo ainda atordoada, depois tornou nervosa: - Eu o vi. O Barão. Ele estava aqui. Olhava-me com ódio, parecia que queria agredir-me.
Embora impressionada, Geneviève tomou: - Não há ninguém aqui além de nós. Foi uma alucinação, acalma-te, mamãe. - Achegou-lhe aos lábios um cálice de vinho sugerindo: - Bebe e te sentirás melhor.
- Era ele, minha filha. Quer vingar-se; eu o vi. Tinha o peito ferido, coberto de sangue!
Tem calma, mamãe. Todos ainda nos conservamos chocados com a tragédia. S natural que tenhas perdido a calma. Depois, porque haveria Gustavo de querer vingar-se? Não era por acaso culpado? Não, prefiro crer que onde quer que se encontre esteja arrependido do mal que nos fez.
A Condessa calou-se. Estava apavorada. mas fez visível esforço para recuperar a serenidade. Por pouco se tinha traído diante da filha.
Querendo desfazer a impressão de momentos antes, enxu- gou com o lenço rendado duas lágrimas inexistentes. Enquanto que seu peito arfava em soluços ardilosos.
- Foi por isto - ajuntou com voz lamuriosa - que te pedi para deixares esta casa. Está mal-assombrada, Por isso estás doente. Por isso andas nervosa. Quero ir-me daqui. Se quiseres ver-me sabes onde me encontro. Aqui não mais porei os pés. O infeliz quer perseguir-me até depois de morto. Foi a custo que Marguerit concordou em esperar mais um pouco até que estivesse melhor. Nada a deteve assim que pôde equilibrar-se nas pernas. Foi-se, pálida, abatida, apavorada. Geneviève deixou-se cair no divã desalentada. Estranhava a atitude materna. Sempre a soubera descrente e cética Como poderia ter admitido a presença de Gustavo?
Porém, o espírito infeliz e aflito do Barão, encolhido a um canto, parecia a imagem do desespero. Recriminava-se pela cena de momentos antes e não compreendia como Marguerit tinha podido vê-lo.
Estava ali para provar à esposa amada sua inocência e seu amor. Contudo o que tinha conseguido? Apenas aparecer como espectro da vingança e do ódio. Naquele instante, mais do que nunca arrependeu-se profundamente de sua leviandade no pas- sado.
A sociedade concede ao homem, no campo dos sentimentos e das paixões, todas as prerrogativas e liberdades. E, impul- sionado pela tentação e pela impunidade, a maioria entrega-se a ligações ilícitas, fruto das paixões momentâneas, procurando desfrutar o máximo. Sendo por isso louvado pelos outros homens, pela sua posição de virilidade e exuberância. Nenhum homem que comete adultério na Terra tem noção de culpabilidade na consciência. Fazem-no iludidos e ignorantes de que se a sociedade humana os deixa impunes e os impulsiona, as Leis de Deus são iguais para todos independentemente do sexo ou posição social a que pertença.
Gustavo começava a aprender que todo desvio, toda ofensa à moral que venha a prejudicar terceiros ou que nos chafurde no vício e na luxúria, será punido com conseqüências terríveis e inadiáveis.
Começava também a compreender que o castigo sempre chega e irritava-o apenas a impunidade da Condessa. Vagamente sabia que um dia ela seria chamada às contas, mas quando? Até quando permaneceria na impunidade? Até quando poderia viver gozando o aconchego de um lar, desfrutando vida social, intervindo a bel-prazer na vida dos outros, traindo e enganando?
Ele desgraçadamente pagava o preço de um erro. do qual já se encontrava bastante arrependido, e ela? O que a estava preservando? Entretanto, mais experiente e mais lúcido do que a princípio, Gustavo procurou controlar as emoções, temeroso de prejudicar Geneviève.
A pobre senhora sentia-se nervosa e preocupada. Seu pen- samento não se desviava da cena de momentos antes, Só havia alguém capaz de ajudá-la. Era Villefort.
Tocou a sineta e ordenou ao criado que fosse imediatamente buscá-lo. Precisava vê-lo com urgência.
Quando o médico chegou, espelhando certa preocupação na fisionomia bondosa, Geneviève levantou-se angustiada: - Doutor, preciso muito da vossa ajuda.
- Por certo, minha filha, farei o que puder, mas noto que estais perturbada. Deixai-me examinar-vos primeiro.
Tomou-lhe o pulso, permanecendo silencioso por alguns minutos. Gustavo, pálido, abatido, observava ansioso.
Sem esperar que ele terminasse Geneviève tomou: - Mandei vos chamar por causa de um incidente ocorrido hoje à noite. Deixou-me preocupada e nervosa. Sempre temos conversado sobre a vida além da morte e temos fortes razões para acreditar que o espírito sobrevive à morte do corpo de carne.
- S verdade. Quanto a mim nenhuma dúvida resta quanto à sobrevivência do espírito.
- Pois bem. Hoje, ainda há pouco, minha mãe teve uma crise, afirmando ter visto o espírito de Gustavo, E o mais estranho é que ele a queria agredir. Minha mãe falou em vingança e o descreveu com o peito coberto de sangue. Terá sido alucinação?
A fisionomia sempre serena do médico tornou-se muito séria.
Após alguns segundos de meditação, fixando-a com firmeza respondeu : - Não creio. Gustavo teve morte inesperada e violenta. Talvez se acerque do seu lar desejoso de explicar o que não teve tempo de fazer, ou busque o aconchego que lhe era tão caro.
- Era ele então? Estaria em tão lastimáveis condições? Duas lágrimas comovidas rolavam pelos olhos de Geneviève. O médico estava preocupado. Muitas vezes pensara em Gustavo, receoso de que a traição da Condessa o conduzisse ao ódio e à vingança.
Era fora de dúvidas que ele estava ali e pedira contas a Marguerit.
- Minha filha. Deveis conter as emoções. Tendes três filhos que necessitam dos vossos desvelos e não deveis negligenciar a saúde. É natural que Gustavo tenha estado aqui, é possível mesmo que a Condessa tenha podido vê-lo. Contudo, esta circunstância serve para nos lembrar que precisamos assisti-lo com nossas preces. É preciso que ele sinta a vossa compreensão, vosso perdão. Posso afirmar-vos que ele certamente sofre mais com a vossa magoa e a vossa censura do que com a própria morte.
Reconfortado pelos pensamentos de simpatia que em forma de emanações suaves lhe banhavam o espírito atormentado. Gustavo ao lado dos dois, sentiu vislumbrado um átimo de esperança. Iria o velho amigo dizer a verdade?
- Doutor, eu jamais deixei de amá-lo. Não lhe guardo rancor. Mas a mágoa, doutor, como livrar-me dela?
- Deveis pensar, filha, que tudo foi um lamentável engano. Que Gustavo sempre vos amou com ternura e sinceridade. Que nunca vos traiu.
Por momentos a fisionomia de Geneviève distendeu-se em extasiante felicidade, depois. sacudiu a cabeça e ajuntou com voz sucumbida: - Mas não posso. Minha mãe me afirmou que foi verdade. Eu mesma suspeitei, antes de conhecê-lo melhor, das relações de ambos.
- Sempre afirmei sua inocência e continuo afirmando. Um dia ainda concordareis comigo. Porém, acho que o momento é propício para tentarmos ajudá-lo. Não vamos julgar nem ele nem ninguém Deve estar desesperado e abatido. A morte do corpo representa, para a maioria, dolorosa surpresa e a constatação de que a vida continua, de que somos os mesmos, nos sentimentos, nas necessidades, nas dores e nas alegrias, estabelece um cerco emotivo que os enreda constantemente nos problemas que a contragosto deixaram no mundo. Mormente no caso do Barão. Sua figura me é muito querida. Para mim, é alma nobre, dedicada que, envolvida pelas felicidades e tentações do mundo, muito tem sofrido.
Acalentada pelas palavras serenas de Villefort, Geneviève recordou a bela figura do marido, com carinhosa emoção.
Nesse instante, dois espíritos entraram no salão, invisíveis aos demais.
Emocionada, Nina reconheceu Lívia, que amparada por simpática senhora de vestes alvas, e aureoladas por luminosos eflúvios, aproximou-se do grupo.
Com um gesto carinhoso separou-se de Lívia e aproximando-se do médico, colocou a mão sobre sua fronte enquanto que seu pensamento em vigorosas ondas luminosas, envolvia-lhe o tórax. Como que tocado por súbito impulso Villefort ajuntou com voz persuasiva: - Sei que Gustavo está aqui, ao nosso lado. Sei que não encontra meio de falar conosco. - E, dirigindo-se a ele, continuou: - Meu querido amigo, teus sofrimentos são acerbos, bem sei, mas há já em teu coração a semente da misericórdia e do amor! Confia em Jesus, que sofreu todas as infâmias e injustiças dos homens sem merecer, e pensa que as Leis de Deus são justas e sábias e não nos pune senão quando merecemos. Nós é que erramos, nós é que precisamos lutar e sofrer para conseguirmos nossa redenção. Rogo-te que, neste instante, eleves o pensamento a Jesus e peças a ele que te ajude. De nada adianta permaneceres aqui, no estado lastimável de desequilíbrio em que te encontras, pois tua presença angustiada toma maior a mágoa dos que te atuam. Tem coragem para renunciar por agora à presença dos que amas, mas confia que o amor é a maior força que existe. Um dia ele vos reunirá de novo em melhores condições; então, podereis ser felizes. Perdoa e esquece. Deus é juiz imparcial e certo. Confia nele. Podes crer que te devotamos sentimentos de amor e de saudade. Segue em paz.
Em voz comovida, Villefort iniciou um Pai Nosso, secundado por Geneviève que, por entre lágrimas, não conseguia afastar o pensamento da lembrança do marido.
Gustavo, comovido e reconfortado, sentiu que cada palavra do médico lhe banhava o espírito com eflúvios de paz e suavidade. Apesar da dor que ainda lhe acicatava o coração, pensou desalentado: Que adiantava permanecer ali, perturbando a paz da sua família, depois de tê-los deixado na orfandade? Não seria sua culpa pelo que lhe acontecera? Não fura leviano, desrespeitando o lar de um amigo e causando a morte de sua primeira esposa?
Diante do seu pensamento surgiu a imagem de Lívia. Vivo sentimento de remorso o acometeu. Onde estaria? Ferira seus mais caros sentimentos de mulher, causara-lhe dor e morte.
Que destino cruel, pensava ele. Abusara da confiança ingênua da esposa amorosa e sincera e quando fora leal e dedicado. a vida engendrara a farsa e era tido como canalha e traidor. As duas mulheres que amara não tinham sido felizes. A culpa era sua. Pela primeira vez raciocinou com lucidez.
Villefort tinha razão. Deus dá a cada um segundo suas obras. Sua justiça não falha e é tão perfeita que sabe ensinar a cada um de acordo com o erro cometido.
Lágrimas emotivas desciam-lhe pelas faces. Precisava fazer alguma coisa. Não podia permanecer perturbando seu lar tão querido. com seus pensamentos de angústia e dor. Era preciso rezar. Emocionado ajoelhou-se recordando velho hábito da infância e murmurou sentida prece.
- Meu Deus! Tende piedade de mim. Socorre-me senhor Jesus, não suporto mais o peso dos meus erros passados. Vem em meu auxílio, leva-me daqui. para onde eu não posso perturbar os que amo. Perdoa-me, te imploro, pelas exigên- cias descabidas; sou fraco e sozinho. Se quiseres me aceitar, senhor, em algum lugar, procurarei redimir-me, sendo obediente aos teus mensageiros, e farei tudo que puder para que um dia possa reunir-me de novo com meus entes queridos. Senhor, neste instante penso em Lívia, e se tua bondade permitir-me vê-la algum dia, desejo pedir-lhe perdão. Estou aqui, Senhor, não mereço mas espero tua misericórdia, .
À medida que falava, Gustavo vibrava intensamente, ex- travasando sinceridade e emoção. Calou-se porque nesse instante percebeu que a pouca distância uma claridade tênue se estabelecia e extraordinário acontecimento: Lívia sorridente, olhos marejados, face serena, estava diante dele.
Vendo-a surgir naquele momento de prece e meditação, Gustavo arrastou-se de joelhos e suplicou com voz trêmula: - - Lívia, vieste! Deus me ouviu. Quero pedir-te perdão. Reconheço meus erros. Perdoa-me! Perdoa-me!
Naquele instante sublime de reencontro, Lívia carinhosamente procurou erguê-lo enquanto dizia: - Gustavo. Há muito que te perdoei. Também fui muito culpada pelo que nos aconteceu. Era meu dever de esposa estabelecer em nosso lar laços de alegria e de amor. Entretanto, orgulhosa e fútil, não soube ser para ti a companheira, a amiga, a amante, a mãe. Na minha inexperiência e orgulho cultivei o ciúme ao invés do carinho e da compreensão que necessitavas para deixar a aventura. Não soube compreender as tentações e os enganos a que as facilidades da Corte podem nos conduzir, Vi que estavas sendo enredado pela sedução de outra mulher e não soube salvar-te com meu amor e meu carinho. Ao contrário, recorri ao ódio, ao crime e à vingança. Com isso, afastei-me mais de ti e tornei-me indigna da tarefa que a vida me destinara de esposa e mãe. Em tudo quanto te aconteceu, uma parcela de culpa me cabe também.
Gustavo não sabia o que dizer. Sua vítima, dizia-se algoz. Tamanha nobreza de alma o tocava nas fibras mais profundas do coração. Observando a tênue luz que a envolvia, ajuntou comovido : - És uma santa!
- Não. De modo algum. Quando conheceste Geneviève e começaste a amá-la, fiquei triste e o ciúme voltou a lacerar me o coração, principalmente porque percebi que nunca me amaste como a ela. Vi e penetrei teus pensamentos e pude saber que entre nós existiu uma grande amizade, mas que jamais sentiste por mim o mesmo arroubo, a mesma exaltação, a mesma emoção, a mesma profundidade de sentimento que nutrias por ela. Entretanto, uma amiga e conselheira fez-me também penetrar os sentimentos dela e pude ver que era uma mulher boa e sincera. Que te amava com a mesma sinceridade que tu a amavas e o que era muito importante para mim, amava nosso querido Gus com desvelado sentimento de mãe. Como sentir ciúme se ela beijava meu filho com amor e ternura? Como não querê-la se eu precisava dela para dar a ele tudo quanto eu não pudera? Como podia eu, que apressara minha morte com atos criminosos e impensados, deixando-o órfão dos carinhos de mãe, privá- lo agora também do aconchego sincero daquele coração nobre e dedicado? Não seria cair de novo no ciúme destruidor e cruel? Lutei. Lutei, Gustavo, para vencer a mim mesma. Uma vez o ciúme me destruíra, não queria que o fizesse novamente.
Aos poucos fui serenando o coração e pude perceber que a queria com gratidão e amizade. Ela era a depositária do meu lar. dos meus entes queridos. Teria sempre meu apreço e minha gratidão. Estimo-a sinceramente. Apesar da calúnia e da infâmia terem lhe ferido o coração sincero e amoroso, ela em sua nobreza de alma, soube compreender e separar as coisas, e continua dispensando amor e carinho ao nosso filho, ocultando- lhe a dor interior. não destruindo em Gus o amor e o respeito que a memória de seu pai merece.
Com acento dorido Gustavo concordou: - Tens razão. Também tenho observado tudo isso. É uma mulher excepcional. Entretanto, dói-me a calúnia e a aviltação. Deves saber que estou inocente! Deves saber que arrependi-me de tudo quando adoeceste e, desde então, tenho sido leal e fiel aos compromissos do lar!
Lívia sorriu animosa: - Tem paciência. Deus determina sempre os acontecimentos da vida visando nossa elevação moral e espiritual.
- Gostaria pelo menos que Geneviève pudesse saber a verdade.
- Não te lamentes. Aceita as conseqüências de tuas faltas com humildade e resignação. Deus é pai amoroso e justo. Um dia, quando for oportuno, todo mal-entendido estará desfeito. Vim para buscar-te. Não como a esposa de outros tempos, mas como a amiga sincera que desejo ser. Ambos temos interesses comuns na Terra. Nossos entes queridos precisam da nossa ajuda e sustentação nas provas da carne. Somos, porém, espíritos fracos e endividados perante as Leis sacrossantas do Pai. Se quisermos fazer algo por eles, precisamos nos preparar devidamente. aprendendo e servindo, procurando nos tornar discípulos de Jesus Cristo. Há muitas coisas que não sabes ainda sobre nossa vida real, mas quando fores te desligando da Terra aos poucos tua memória irá voltando.
Gustavo lançou um olhar doloroso sobre Geneviève, abatida e orando com fervor, depois deteve-se nos objetos familiares e queridos do seu lar terreno.
- Eu quero ir, mas é doloroso ter que fazê-lo!
- Tens razão. Parece que nosso coração se despedaça nesse último olhar, e nossos pés de repente se tornam como chumbo a nos impedir a partida. Mas é imperioso para teu bem e daqueles que amamos. que partas por agora. Sabes que tua presença aqui tem provocado angústia e depressão. Vem, prepara-te, ergue-te no bem, no trabalho da redenção e breve poderás voltar para com tua luz, tua alegria, tua força, assisti- los e ajudá-los. Vamos.
Gustavo aproximou-se de Geneviève com infinito carinho. beijou- lhe a face abatida, abraçou Villefort. Lágrimas doridas caíam-lhe insopitáveis. Foi aí que ele vislumbrou o espírito iluminado da benfeitora que os assistia com bondade.
- Nossa irmã tem me socorrido. Gustavo, A ela devemos todo auxílio que temos recebido.
Gustavo, perturbado, quis ajoelhar-se diante dela impressionado pela luminosidade de seu olhar. Contudo, num gesto firme e simples, aquela bela figura de mulher enlaçou-lhe o braço dizendo com voz um tanto enérgica: - Vamos, meus filhos. Precisamos partir já. Conversaremos pelo caminho.
Lívia enlaçou-a do outro lado e os três, como que impulsionados por energias novas, saíram do castelo e seus vultos perderam-se na distância.
Fundo suspiro escapou do peito de Villefort.
- Graças a Deus. Parece que agora está tudo em paz. E realmente estava. Geneviève sentia-se mais serena e o ar parecia soprar energias novas ao seu redor.
- Sim, doutor. Seja como for, estas orações fizeram-me grande bem. Sinto-me muito melhor.
- Sempre que possível deveis orar por ele, porém, nunca chamá-lo.
- Confesso, doutor, que às vezes a solidão é tão grande que a saudade nos coloca em situação dolorosa, Se ele agora é um espírito liberto e pode ouvir-me, por que não posso evocá-lo nos momentos difíceis?
- Na verdade, nossos entes queridos que partem da carne, são espíritos libertos, mas carregam consigo todos os problemas que tinham na Terra, todas as imperfeições. Logo após a morte, não se podem furtar à perturbação decorrente do seu estado emocional e lutam para adaptar-se à nova situação. Estão entre dois mundos, sofrendo delicado processo de transformação. De um lado, a Terra que amam apesar de todos os sofrimentos e lutas, seus entes queridos, seus hábitos aos quais desejam e não podem voltar; vida que deixaram e da qual não conseguem desvencilhar-se. Do outro, a paz, o esforço para uma vida melhor, que os atrai e da qual vieram e precisam voltar. S uma luta que existe e na qual muitos têm sofrido largos anos de fracassos e angústia. Os laços do amor e da família dificultam o desligamento do espírito. Deveis pensar que uma evocação inoportuna poderá conduzi-lo à perturbação e aos problemas terrenos dos quais precisa libertar-se. É verdade que os espíritos mais evoluídos podem c nos vêm ajudar, mas nos não sabemos se aqueles que amamos estão nessas condições.
Geneviève permaneceu meditando por alguns segundos, depois disse : - Tendes razão. Compreendo e não quero perturbá-lo. Sinto- me melhor. Deus me dará forças para cumprir minha missão até o fim. Fundo suspiro partiu do coração de Nina. Era muito comovente rever estes acontecimentos e conhecer-lhes a profundidade. A origem dos problema A tela apagou-se e Nina permaneceu: altos enevoados, pensamento perdido nas reminiscências longínquas. Depois, como que obedecendo a uma idéia largamente meditada, alçou os olhos para o orientador e tornou um tanto enleada: - Posso fazer-vos uma pergunta?
- Certamente.
- Sabeis que minha vida na Terra não foi um mar de rosas. Lembro-me bem de tudo que aconteceu depois desse dia.
Procurei ser boa mãe para os três filhos que Deus me havia confiado. Sorvi o cálice de amargura sem me queixar até o fim. Minha esperança maior era o reencontro com Gustavo, depois da morte. Entretanto, nunca mais nos vimos. Por que?
Pelo rosto tranqüilo do orientador passou uma onda de simpatia. Com voz firme tornou: - Esperava por esta pergunta. Sabia que a farias. Sabes que Deus é justo e bom. Todos os seus desígnios são sábios. Para encontrarmos a origem dos nossos problemas precisamos voltar um pouco no tempo. Em encarnação anterior, tu e Gustavo vos amastes Contudo, ele, leviano e fútil, cedeu à tentação de uma cigana que o despojou de todos os haveres e com a qual ele te foi infiel Casado contigo, ocupando alto cargo na nobreza romana, não valorizou o lar que era premiado com quatro filhos. Enleado pela perigosa cigana, que mais tarde renasceu Condessa de Ancour, abandonou o lar e desceu os degraus da miséria moral e material. Vendo-se abandonada pela cigana, arrependido, caindo na realidade, levado pelo desespero. suicidou-se. Teus sofrimentos foram grandes. Na luta para manter o lar e os filhas, dois meninos e duas meninas, empenhaste todos teus haveres e não pudeste impedir que tua filha mais velha, seduzida pela posição e pela fortuna que não mais lhe podias dar, tenha se perdido no torvelinho das facilidades sociais. Cedeu às instâncias de um homem da nobreza que Lhe pôde dar uma situação de riqueza. Infelizmente ele era casado e sua esposa, no auge do desespero, foi definhando até morrer.
Nesse instante, Nina abriu desmesuradamente os alhos e num repente ajuntou: - Sim. Lembro-me agora! Minha filha querida que tanta me fez sofrer é Lívia, de quem nunca senti ciúme apesar de ter sido esposa de Gustavo!
- Sim - disse o instrutor com alegria, - E verdade. Lívia é uma filha muito amada. Meditemos na bondade do Senhor, permitindo a todos nós, apesar dos erros, recomeçar e refazer nossos caminhos! Pois bem - continuou ele - Gustavo, suicida, passou longos anos no vale dos sofrimentos para recuperar um pouco o equilíbrio do seu perispírito lesado. Sofreu muita, até quê pudesse recuperar um pouco de paz. Interessou-se pela sorte da família que abandonara em um momento de desvario. Chorou muito a sorte da filha que seu abandono relegara à queda moral e que não tinha ainda suficiente força para enfrentar a pobreza com dignidade. Longas anos te preparaste em estudos e em tarefas sacrificiais em benefício da próximo, para reencarnar de nova na Terra. Vencedora na luta, estavas em boas condições espirituais e acima de tudo o amavas. Com teu consentimento, foram programadas as realizações necessárias ao reajuste de Gustavo, de Lívia e da cigana, que na bondade do teu coração voltado ao bem, desejavas auxiliar. Ela renasceria primeiro e tu serias sua filha e companheira. Assim, estarias perto dela para amá-la, dar-lhe carinho e, quem sabe, ajudá-la. Sua marte ocorrera em candições muito dolorosas. O espírito de Gustavo, enraivecido e desvairado. a perseguira por toda parte até que ela enlouquecida e na miséria tivesse morte horrível. Por algum tempo os dois espíritos degladiaram-se. A cigana e a suicida. Assistidos por amigos dedicados, quando foi possível, cada um seguiu novo caminho. Entretanto, ligados pelas erras passados precisavam reencarnar para ressarci-los.
Por isso, para ajudar teu marido, concordaste em reencarnar como filha da cigana. Estava estabelecido que ele desposaria Lívia para reconduzi-Ia ao equilíbrio que por sua culpa ela agravara. Estava também previsto que Lívia morreria jovem, estando assim saldado seu débito perante a Lei. Então, ele te desposaria e, juntos novamente, teriam também os três filhos, Gerard, Caroline e Gus que foram seus filhos na anterior encarnação. Lívia deveria reencarnar brevemente em teu lar e, juntamente com a Condessa. tudo caminharia para o reajuste.
Sabia-se que Gustavo não viveria muita tempo. Suas con- dições de ex-suicida não lhe possibilitavam longa vida, contudo era necessário que permanecesse mais alguns anos para terminar a tarefa.
O orientador calou-se e vendo o olhar brilhante de Nina. fixando-o com interesse continuou: - Entretanto, submetido à prova difícil no reencontro com o espírito da cigana, que era a Condessa de Ancour, no- vamente deixou-se seduzir pela sua personalidade avassaladora. Cedeu à paixão e com isso provocou a revolta de Lívia que inconscientemente rememorava a perda do pai e da oportunidade de progresso que se lhe oferecia. Deixou-se levar pelo ciúme e apressou sua morte, desarticulando as forças do bem que a sustentavam.
Gustavo, chocado, procurou reagir, tenda se esforçado por realizar a parte que lhe cumpria. Arrependido, rompeu definitivamente com a Condessa. Porém, ela não fez o mesmo. Deixou-se arrastar pelas emoções do passado, teve vida fútil e novamente destruiu lares com sua leviandade contumaz. Quando Gustavo levado por sincero amor se casou contigo, teve oportunidade de retomar o programa de recuperação delineado antes da reencarnação, mas na luta entre o amor de mãe e o amor de Gustavo, Marguerit não soube ver a realidade. Preferiu manter-se no erro.
Embora Gustavo estivesse arrependido, era ex-suicida e fraquejara novamente, reavivando e alimentando os sentimentos da antiga cigana. Por essa razão, os acontecimentos desencadearam-se e ninguém, nem o seu desejo do bem, sua renovação mental pôde impedir. Como sabes, Marguerit sofreu perturbações mentais nos últimos anos de sua vida. Teve morte atormentada e seu espírito sofreu durante muito tempo nas zonas depuradoras do umbral. Apenas tu conseguiste vencer. Educaste teus filhos com coragem e amor. Sofreste as injurias de tua mãe, doente, que na sua ignorância via em Gus e em sua semelhança com o pai, motivo para odiá-lo. Suas palavras veladas e reticenciosas, cheias de subentendidos, despertaram a desconfiança do jovem sobre a morte do pai. Embora te procurasse sempre para saber a verdade, nunca quiseste revelá-la, temerosa de destruir o respeito e o amor, o exemplo de virtude que sempre Gus vira no pai. Pelo contrário, a cada dia mais o elogiavas, dando a Gustavo todas as grandes virtudes. Gus sentia que havia algo, algum segredo e Marguerit querendo que ele se fosse para sempre, desejosa de esquecer-se da tragédia que já a incomodava, sugeria-lhe a desconfiança de que a infidelidade fora a causa da morte do pai. Não podendo crer que fosse o pai o infiel, principalmente porque o defendias com ardor, suspeitou da tua dignidade.
Sei que teu sofrimento foi inenarrável; tu o amavas como filho muito querido. Suportar suas desconfianças e seu afastamento foi-te dolorosa prova. Porém, tudo suportaste até o fim, sem nada revelar. Reconhecendo-te a bondade, Gus pediu-te perdão na hora extrema e pudeste regressar à Pátria Maior como uma vencedora, aureolada de luz, podendo gozar largo período de paz e de felicidade.
Mas a lembrança dos entes queridos não te deixava usufruir a felicidade tão duramente alcançada. Quiseste ver tua mãe, e o seu estado deplorável e constrangedor comoveu-te o coração amoroso. A ex-condessa, como deves lembrar agora, havia se transformado em uma dementada figura, coberta de farrapos, na colheita irrecusável da sua semeadura.
- Sim - disse Nina num sopro. - Lembro-me bem.
Durante muitos anos dediquei-me às tarefas de socorro em favor dos infelizes na esperança de algum dia poder ajudá-la.
- Certo. E tanto trabalhaste, tanto fizeste que conseguiste te aproximar dela, fazer-se reconhecer e ajudá-la. A desventurada agarrou-se a ti suplicando que a tirasses do inferno onde se julgava atirada. Aos poucos, com perseverança e carinho, a ajudaste a recuperar algum equilíbrio. Foste além; conseguida a oportunidade de uma encarnação redentora, quiseste ajudá-la de perto e pediste para renascer novamente a seu lado, como filha.
- Sim. Lembro-me que a custo consegui esse benefício. No programa elaborado pelos nossos maiores, após longos e minuciosos estudos que fizeram do caso, ficou estabelecido que meu pai, unido a ela pelo crime cometido, renasceria antes e ela iria pouco tempo depois. Foi escolhida uma fazenda no interior de Minas Gerais. Seriam lavradores, aprendendo a lição do trabalho viveriam na pobreza, porque a riqueza fora o motivo do fracasso de ambos. Receberam-me como filha.
O orientador sorriu e esclareceu: - Sim, mas o que ignoravas era que Gustavo renasceria a teu lado, como teu irmão na figura de Roque. Nina, movida por funda emoção levantou a cabeça vivamente considerando: - Roque, era Gustavo? Era por isso que nos amávamos tanto! Ele sempre me cercou de cuidados e atenções. Meu Deus! Eu o encontrei e não sabia!
- Era preciso. Se conhecesse a verdade, seria mais difícil para ti o desligamento na hora precisa, quando o prazo que te foi concedido expirasse.
- Compreendo! - respondeu ela humilde.
- Tua irmãzinha Lívia, era Lívia reencarnada! Verifica bem minha filha como Deus é justo e bom. Permitiu renasceres ao lado dos que amas e recuperá- los no bem. Permitiu à Marguerit e ao Conde dar a vida a Gustavo que tinham tirado e a Lívia, a quem desviaram da oportunidade redentora!
- Meu Deus! - Balbuciou Nina comovida. - Quanta bondade F Como pagar-vos?
Num assomo de intraduzível sentimento, Nina ajoelhou-se e com voz entrecortada tornou: - Senhor! Bendito sejas pela tua bondade e justiça. Na. tua misericórdia infinita, reconduzes os que erraram ao caminho da redenção e permites novamente o recomeço e a retificação. Senhor! Mestre amado, que nos tens sustentado e assistido nas horas difíceis com abnegação e carinho, faze subir aos pés do Pai a gratidão desta serva inútil e cega que tendo recebido tanta felicidade, desejava dirigir os acontecimentos, os que ama, com risco de mal conduzi-los. Senhor Jesus, Mestre dos Mestres, ensina-me a resignação sem reservas, para com os desígnios do Pai, porque só Ele tem sabedoria para nos conduzir, Só Ele pode transformar caos e sofrimentos em redenção e experiência. Ajuda-me ainda Senhor, para que de hoje em diante eu possa ser obediente e submissa às suas santas Leis! Ajuda-me Senhor!
À medida que Nina pronunciava sua prece, seu espírito foi se iluminando, Do seu peito partiam raios de luz que alcançavam o infinito, enquanto que suas vibrações qual flocos minúsculos e perfumados desciam sobre todos que em atitude de respeito e emoção, entregavam-se ao instante sublime.
Quando Nina se calou, o orientador levantou-a, dizendo com bondade: - Hoje, minha filha, só hoje, recuperaste tua personalidade. Realmente a figura franzina de Nina desaparecera. Transformara- se em Geneviève, mas uma Geneviève que, embora jovem, irradiava na luminosidade do olhar toda formosura do seu espirito sublime.
Cora abraçou-a comovida: - Como me sinto feliz!
- Sim - respondeu Geneviève com doçura. - Sinto- me feliz, mas preciso retornar à ação. Há muito sofrimento ao nosso redor. Depois - continuou ela sorrindo -, há a redenção dos que amo! Que farei para ajudá-los?
O orientador sorriu com certa malícia: - Eu sabia que continuadas. Que Deus te ajude e abençoe. E, as duas mulheres abraçadas e quase a uma voz, sussurraram : - Que assim seja!



CAPÍTULO XVII
Roque foge para a cidade A tarde ia em meio Na fazenda e na casa humilde de Maria, apenas se ouvia o barulho da lenha crepitando no fogão e a agita borbulhando na lata, derramando-se nas labaredas que estalavam. Lídia, distraída, entretinha-se em brincar com uma boneca de pano gasta e um tanto encardida. Embalava-a com amor, como se fosse a coisa mais preciosa do mundo. Tio entretida estava que nem percebeu o ruído da porta. Apenas assustou-se ao ouvir a voz da mãe dizendo zangada: - Lídia! O café! Ainda não coou. Menina danada. Vive no mundo da lua. Qualquer dia destes jogo esta porcaria dessa bruxa no fosso.
- Lídia, num gesto rápido, escondeu a boneca embaixo da cama.
- Já ia fazer, mamãe.
Maria olhou a filha. franzina e delicada: - Você nem parece que tem 13 anos. Ainda brinca com boneca. Quando vou ter quem me ajude?
E num gesto de desprezo voltou ao assunto costumeiro: - Se Nina estivesse viva eu não estava tão abandonada. Ela fazia todo serviço da casa desde os cinco anos, Mas você não presta pra nada.
Lídia disfarçou uma careta de ódio: Nina, sempre Nina! Sua mãe só falava na filha mais velha que tinha morrido. Só ela era boa, só ela sabia fazer tudo. Lembrava-se vagamente dela. mas sua mãe parecia que não conseguia conformar-se com a escolha de Deus, tirando-a do mundo em lugar dela, Lídia. Não que não gostasse de Nina, mas a atitude de sua mãe tinha o condão de irritá-la. Momentos havia em que chegava a adiá-la.
Sempre que podia, Maria a criticava procurando justifica- tivas para castigá-la. Jamais a acariciava ou tinha para com ela gestos de amizade. Em contraposição, apegara-se ao irmão mais velho com carinho e dedicação. Roque tratava-a com delicadeza e ternura. Protegia-a contra os castigos da mãe e sempre que ganhava algum dinheiro, comprava-lhe doces ou mesmo algum vestido.
Maria, resmungando ainda, atirou a um canto o feixe de gravetos que trouxera de volta da raça e começou a preparar o café. Logo mais os homens viriam para comer.
Abriu a armário velha e um tanto sujo, procurando o que fazer para o jantar.
- Vida desgraçada. O que temos mal dá pra matar a fome de seu pai. Lídia, vai no cesto vê se tem mandioca pra cozinhar.
Lídia apressou-se a ir ao barracão do lado, que servia de celeiro e de despejo também.
- Não tem não, mãe. Mas trouxe mais batata doce. É só o que tem.
- Batata doce de novo. Um dia eu larga isso e dou o fora com a primeira que aparecer.
Lídia deu de ombros. Estava habituada às queixas da mãe. la saindo quando a ouviu chamar.
- Lídia Teu irmão acordou. Vai dá banho nele.
Lídia obedeceu contrariada. Aquela vida dura e difícil revoltava-a. Sonhava com a riqueza, o luxo. Um dia, iria para a cidade e encontraria um moço rico com o qual se casaria! Deixaria a mãe com alegria e sem saudades. O pai sempre ocupado, trabalhando, revoltado com a patrão, não lhe dava muita atenção. Não lhe alimentava queixas. Bastava a ele seus próprios problemas para que se importasse com a filha.
Página 75 Laços Eternos Chegou para o jantar mal-humorado e sentou-se: - Feijão com batata doce! Outra vez?
- Ah! - ironizou Maria. - Você queda peru ou, quem sabe, um terneiro gordo!
- Quero a carne que estava na banha.
- Acabou - gritou Maria irritada, - Você mesma comeu toda. José resmungou entredentes, mas começou a comer em silêncio.
- O pão é puro fubá - disse por fim - Ainda bem que reconhece. Foi o que pude arrumar. Se você fosse outro homem, tivesse mais cabeça, nós ia teríamos saído desta miséria! A gente podia ir pra cidade..
José passou a mão grossa pelos cabelos castanhos: - Não é fácil. Não temos dinheiro pra agüentar os pri- meiros tempos. Não se pode ficar na rua. Depois, a vida lá é dura. Não sei o que poderia fazer. Só sei lavrar a terra.
- E, por causa da sua burrice, nós vamos ficando por aqui, morrendo de fome.
- Caia a boca, mulher. Estou cansado de suas queixas.
- E, eu deveria ter ido embora mesmo. . . Enquanto tinha só Nina. . . Quem sabe ela não tivesse morrido. Na cidade a vida é melhor. Fui ficando e, agora, cada vez fica pior.
Enchendo de filhos. Às vezes dá vontade de sumir… José Ievantou-se irritado: - Pois suma mulher do inferno. Num presta nem pra me ajudá, Só sabe queixar. Se abrir mais a boca eu sento o braço. Pensa que não sei? O que você quer é andar atrás de homem por ai.
As quatro crianças assustadas, olhavam a semblante congestionado do pai. A cena se repetia com frequência e quase sempre acabava em troca de sopapos.
Roque sentia-se mal cada vez que isto acontecia. Respeitava o pai, temia-o pela sua severidade, mas não gostava da mãe. Evitava-a quanto podia. Ela, entretanto, queria-o sempre perto. Tratava-o ora com excessos de carinhos, ora com repentes de irritação, Roque não compreendia o que se passava em seu coração. Havia certas expressões da mãe, que lhe causavam profunda repulsa. Sentindo-se em erro, procurava combater esse estado de alma e sentia-se culpado por nutrir esse sentimento. Estava agora com 15 anos. Desejava ir-se embora, tentar a vida longe de casa. Mas Lídia era acometida de fundo desespero quando expressava esse desejo, agarrando-se a ele e fazendo-o prometer que não iria.
A mãe, apesar de desejar mudar-se, também o impedia de ir-se.
Roque, menino obediente e educado, grangeara as simpatias de D. Emerenciana. Fora companheiro de brinquedos de Fábio, de quem aprendera as primeiras letras com avidez. Entretanto, quando ele se fora para o colégio interno, Roque se sentira mais só. E a cada ano, mais instruído. Fábio voltava diferente, não encontrando mais prazer na companhia de Roque.
Felizmente Maria calou-se - o que raramente acontecia - e aos poucos José foi serenando.
Roque mal tocou na comida. Saiu andando a esmo, absorvido por seus pensamentos íntimos, sem atentar para a beleza da tarde que morria no sol incendiado, que aos poucos escondia-se na linha do horizonte.
Dirigiu-se a um local sossegado, sob uma árvore, e sentou-se na relva, Seu coração apertava-se em vaga melancolia. Trazia tristeza e saudade, sem poder explicar do que e de quem. De repente, a figura de Nina surgiu-lhe na mente e lágrimas assomaram em seu rostinho magro e moreno. Tinha saudades dela. Sentia falta da sua presença alegre e graciosa. Pobre irmã. Sucumbira de miséria e sofrimento, pensou entristecido.
As coisas em casa iam de mal a pior. Não tinha vontade de acabar como o pai, às voltas com as queixas da mãe e as exigências do patrão. Aspirava ser útil, estudar, aprender a ler direito, como Fábio, Não o invejava certamente, mas em seu coração havia o desejo de ser como ele. De ter a mesma segurança que de tinha.
Fábio lhe contara muitas coisas sobre a cidade e ele ardia de vontade de conhecê-la. Muitos amigos seus tinham deixado a fazenda rumo à cidade. Porque ele não podia fazer o mesmo.?
Nervoso, arrancou um punhado de mato atirando-o longe.
- Vou embora de qualquer jeito - resolveu, - Se não deixarem, eu fujo.
Falaria c om o pai naquela mesma noite se tivesse ocasião.
Dessa conversa dependeria sua atitude. Muitos planos fervilhavam em sua cabecinha jovem quando uma hora depois regressou à casa.
A noite descera de todo e encontrou o pai fumando seu cigarrinho de palha sentado em um caixote na porta da casa. Seu rosto rugoso e maltratado refletia amargura e tristeza. Talvez o momento não fosse oportuno, mas Roque não conseguiu dominar a impaciência.
José levantou os olhos com indiferença.
- Fala! O que é?
- Tenho vontade de ir embora.
- Você também - respondeu irritado.
- E pai. Eu quero tentar a vida na cidade. Quando arrumar serviço e casa. venho buscar o senhor.
José casquilhou uma risada irônica.
- Você?! Quer ir pra cidade? Não sabe o que quer. Que pensa que pode fazer na cidade?
- Trabalhar, pai. Quero estudar e trabalhar.
- Você?! Quem pôs essas idéias na sua cabeça? Sua mãe com certeza. Sua mãe que não pensa em outra coisa senão em ir pra lá. Não sabe o que tem lá. Pensa que é fácil.
- Não tenho medo de trabalhar, pai.
- Loucura! Você precisa me ajudar na roça. Estou velho o sustentei você trabalhando duro durante 15 anos pra depois ficar abandonado na velhice.
- Mas eu volto pra buscar vocês!
- Não quero ouvir mais nada sobre isto. Já chega sua mãe, Se você falar de novo leva couro. Onde já se viu?
José estava ameaçador. Diante disso, decepcionado, Roque se calou. - Fico quieto porque não quero apanhar mas vou pensar no caso. Qualquer dia desses eu fujo dessa casa. -Com raiva foi para trás da casa e seu pensamento. olhando as estrelas que coruscavam no céu, voltou a sentir a vaga melancolia, a saudade indefinida. o anseio de alguma coisa que não podia explicar.
Só muito tarde e a instâncias da mãe entrou para dormir. Daquele dia em diante, foi se firmando no pensamento de Roque a idéia da fuga. Dinheiro não tinha, roupa muito menos. Mas olhava seus braços morenos pensando que haveria de trabalhar. Pensou, pensou e resolveu que nada lhe valia esperar. Para quê? Dinheiro não conseguia ganhar, roupa era difícil.
Naquele dia mesmo falou com D. Emerenciana. se lhe podia arranjar uma calça e uma camisa velha porque andava muito necessitado. Conseguiu mais do que pediu. Duas camisas e uma calça de Fábio. Eram desbotadas, mas sem rasgão. Ficaram-lhe um pouco grandes, mas isto não tinha importância. Embrulhou-as cuidadosamente e escondeu-as. sob uma moita.
O dia seguinte era domingo. Dia de ir à capela e à tarde podia sair um pouco para jogar com os amigos. Planejou tudo.
Seria no domingo.
Sem demonstrar o que lhe ia no íntimo, fez todas as obri- gações do costume e à tarde preparou-se para a fuga.
Tomou Lídia pela mão e conduziu-a longe de todos: Página 77 Laços Eternos - Lídia, jura que não conta o que vou dizer pra ninguém?
- Roque, o que é? Você está esquisito.
- Jura, senão não falo! Lídia olhou assustada: - Juro! Jura por Deus? Juro por Deus.
- Está bem. Vou-me embora, Lídia agarrou-se nele chorosa.
- Não vai não. Eu não quero!
- Boba. Eu vou, arranjo emprego, ganho dinheiro e venho buscar você!
- Eu não quero!
- Não seja boba. Lá na cidade a gente ganha muito di- nheiro, daí eu venho buscar a mãe e você, e todos.
Lídia chorosa murmurou: - Você vai demorar?
- Não sei, Mas só digo que vou e um dia volto. Aí vou levar você pra cidade, comprar vestido bonito, água de cheiro, tudo que você quiser, até sapato! Lídia abriu os olhos admirada: - Tudo isso?
- Sim. Tudo isso. Espere e verá. Agora eu vou. Num gesto carinhoso, abraçou e beijou a irmã.
- Adeus, Lídia. Assim que puder mando notícias.
- Adeus, Roque - respondeu a menina chorosa. um salto, sem olhar para trás, alcançou a moita, pegou a trouxa de roupas e de magras provisões que levava e, ágil, em poucos minutos sua minúscula figura desaparecia em direção da estrada.



CAPÍTULO XVIII
Roque vai buscar a sua família Foi com alegria que Roque contemplou a pequena casa que alugara, dando os últimos retoques nos arranjos que com orgulho preparara. Era uma casa modesta, de quatro cômodos em bairro periférico de São Paulo, mas representava para ele a realização de um velho sonho e o cumprimento de uma velha promessa.
Dez anos se tinham passado desde o dia em que, com o coração inquieto e munido de esperanças, tinha abandonado o teto paterno, vestindo roupas emprestadas. Conseguira chegar ã São Paulo, pedindo carona a um caminhão de transporte. Sofrera fome e frio, trabalhara duro, mas perseverante no esforço e no trabalho, estudando à noite, tinha conseguido alfabetizar-se e aprender ofício de marceneiro.
Ganhava pouco, porém, acomodado e simples, procurava juntar seus parcos recursos para realizar seu sonho de buscar a família. Reconhecia empresa difícil. Não ganhava o suficiente para todos, mas seus irmãos poderiam trabalhar e assim, mesmo que o pai não encontrasse trabalho de pronto, não passariam necessidades. Quando conseguiu economizar o suficiente para mobiliar uma casa e ter o bastante para a mudança, escreveu para o pai, mandando dizer através de carta à D. Emerenciana que tudo estava pronto e iria buscá-los no fim do mês.
Arrumou a casa com alegria, antegozando o prazer da mãe tendo água encanada, luz elétrica, fogão, panelas, conforto que jamais usufruíra. Comprara para cada um uma lembrança.
Nunca mais revira a família. Lídia era já moça. João, Antônio, precisavam estudar e trabalhar.
Arrumara a pequena bagagem e vestira sua roupa melhor. Queria impressionar bem seus antigos amigos. Era como vencedor, como moço experiente que retornava ao lar. Várias vezes tivera notícias dos seus, conseguida através de amigos Página 78
que viajavam por aqueles lados.
Laços Eternos Sabia que o pai ficara furioso com sua fuga, mas confiava que o tempo tivesse feito esmaecer sua revolta.
Durante a viagem sentiu crescer a sua impaciência, seu desejo de chegar. Foi com emoção que reviu os caminhos de sua infância. Estava entardecendo quando cansado chegou ao antigo lar.
Sentiu um aperto no coração. A casa pareceu-lhe mais feia e mais velha. O pai, cama de hábito, sentava-se no caixote na porta e vendo-o, levantou-se fixando-o com o olhar perscrutador.
- Quem é a senhor? - perguntou curioso.
- Sou eu, pai. Roque. Vim para casa.
José procurou fixá-la como que ajuizando seu aspecto. Seu semblante mais enrugado e envelhecido pareceu contrair- se em rito de amargura - Você veio! Foi-se embora, deixou nossa casa. Filho ingrato.
- Sim, pai. Eu fui, mas estou de volta. Quero levar vocês para a cidade. Eu disse que ia mas voltava para buscá- los Chegou o dia!
Abraçou a pai emocionado.
Nesse momento, atraídos pela sua chegada, a mãe e Lídia saíram e vendo-o precipitaram-se para ele com efusões de alegria.
- Meu filho! Você voltou! Coma está bonito! Como está moço!
- Roque, eu estava esperando, você veio! Você veio!
As duas correram para ele abraçando-a e falando ao mesmo tempo. Os dois irmãos mais novos que estavam atrás da casa aproximaram-se abraçando-o efusivamente.
Com exceção de José que observava calado, tudo era entusiasmo e alegria. Roque abriu a maleta que portava e foi distribuindo com orgulho os presentes que trouxera.
Serviram-lhe cate com pão, depois sentaram-se ao redor para ouvi-lo contar coisas da cidade, o que fizera e aprendera durante todo esse tempo.
Ele, embalado pelo entusiasmo foi contando seus sofrimentos, suas vitórias, suas conquistas.
- Agora, vim para levá-los co migo. Tenho tudo pronto. Casa mobiliada, tudo. Quando chegarmos lá, Lídia, o Antônio e o João irão trabalhar de dia mas de noite vão para a escola. Vão estudar, vão ser gente!
Eles ouviam estáticos, como se estivessem diante da descrição do próprio paraíso.
— Bobagem. Eu não saio daqui e ninguém vai, trabalho perdido Roque.
As palavras do velho José provocaram verdadeira estupefação. Maria indignou-se: - Porque não quer ir pra cidade? Não dizia que só ia quando tivesse jeito de viver e dinheiro para os primeiros tempos? Agora o Roque se matou pra buscar a gente e você não quer ir?
- Se matou porque quis. Eu não mandei.
- Pai, nós vamos com ele - advertiu Lídia meio chorosa.
- Pois quem quiser vai. Não seguro ninguém. Eu não vou! Maria respondeu com aspereza e Roque reviveu as cenas costumeiras de sua infância. Procurou intervir e conciliar as coisas. E, tanto falou, secundado por seus irmãos que aos poucos foi vencendo a resistência do José.
O que vou fazer na cidade? Um velho como eu que só sabe lidar na roça?
- Eu arranjo um emprego pro senhor, pai. Se não arranjar logo, não faz mal. O senhor trabalhou muito pra nós e é tempo de trabalharmos para o senhor.
Este argumento pareceu satisfazê-lo. Acalmou-se e aos poucos acabou concordando. Iriam para São Paulo e caso não se acostumassem sempre poderiam voltar à fazenda.
No dia seguinte Roque iria à casa grande falar com D.
Emerenciana. Sabia que ela iria opor alguns obstáculos, mas já tinha em mente argumentos que considerava suficientes para rompei a barreira, sem desfazer a amizade e os favores que a gratidão recomendava por todos aqueles anos de convívio.
Resolvida este detalhe, naquela noite ninguém sentia sono. Excitados com o inesperado, traçaram planos, alguns fantasiosos, mas naturais em criaturas inexperientes que se preparavam para realizar um sonho de tantos anos.
Roque, sorria das infantilidades de Lídia, das perguntas ingênuas da mãe, e do olhar entendido e superior com que o pai o escutava contar coisas e costumes da cidade.
Aos poucos eles iriam se adaptando à nova vida. Roque tinha sofrido muito no início de sua vida citatina, mas conseguira vencer, alcançando um objetivo ardentemente desejado; Amadurecera apesar de jovem. Sentia-se feliz. Só muito tarde recolheram-se naquela noite e de todos só Roque, cansado da viagem, conseguiu dormir.
No dia imediato, levantaram-se cedo e começaram a preparar- se para a viagem. Ninguém foi para a roça a não ser o José que não queria dar motivos de queixa ao seu patrão.
Às nove horas Roque, em companhia de Lídia, foi falar tom D. Emerenciana. Recebido com bondade e alegria, viu a preocupação estampada no rosto redondo de D. Emerenciana.
- Você acha que vai dar certo? Que pode dar à sua família conforto e tranqüilidade?
Roque olhou-a muito sério.
- Acho que ganho o suficiente. Nunca fomos ricos. Aqui, apesar da bondade dos patrões, nossa família vive vida dura e miserável. Gostaria que eles pudessem desfrutar de mais conforto que só a vida da cidade poderá dar. Depois, gostaria que meus irmãos aprendessem a ler, conhecessem a vida, pudessem viver.
D. Emerenciana abanou a cabeça.
- Grande ilusão a de vocês. Aqui a vida é dura mas singela. Há tranqüilidade e paz. A leitura não resolve os problemas do coração. Ler para quê? Que falta faz a seu pai e a sua mãe o saber ler?
Roque olhou-a admirado.
- Espero que a senhora acredite que lhe somos muito agradecidos por tudo quanto nos fez. Mas progredir é um direito que cada um tem. Minha mãe está cansada desta vida dura. Meu pai já sente o peso dos anos no cabo da enxada.
Eu e meus irmãos trabalharemos para eles. Terão vida tranqüila e mais confortável.
- Foi sua mãe que colocou esta idéia em sua cabeça. Maria sempre teve ilusões com a cidade. Nunca se conformou em ter nascido na pobreza!
- Eu também desejava vida melhor.
- Quando pretendem partir?
- o quanto antes.
- Seu pai tem uma dívida conosco. Só pode ir depois da colheita, para pagar. Se não retirar mantimento ou dinheiro, talvez dê para pagar.
Pelos olhos de Roque passou um brilho emotivo.
- De quanto é a dívida?
Com ar triunfante D. Emerenciana dirigiu-se à uma velha secretária a um canto da sala e abrindo uma gaveta tirou um livro meio ensebado. Era o caderno dos apontamentos dos colonos. Jamais conseguiam ficar quites com ele. Roque sabia que esse era o argumento mais forte. Muitas vezes ele detivera famílias em debandada. Outros, tal como ele próprio, fugiam sem pagar nada, jamais retornando.
D. Emerenciana folheava-o com atenção.
- Aqui está. José deve dois contos de réis.
Roque tirou a carteira do bolso e depositou quatro notas sobre a mesa.
- Aqui estão D. Emerenciana. Tenha a bondade de contar.
Visivelmente contrariada a fazendeira pegou o dinheiro e. contando-o meio sem jeito, colocou-o dentro do caderno. Não esperava que o rapaz tivesse o dinheiro. Para os camponeses era difícil reunir aquela soma. Um pouco seca ela retrucou : - Está certo Podem ir, mas lembrem-se de que os preveni Conheço a cidade. Sei que a vida lá é muito pior. Em todo caso, não pensem que somos maus patrões. Apesar da ingratidão de vocês que nos abandonam com tanta facilidade, se um dia precisarem voltar, arranjaremos serviço pra vocês. São crias da casa.
Roque estendeu a mão para ela enquanto dizia: - Somos gratos pela sua bondade. Que Deus abençoe a fazenda e a todos os seus. Peço que nos desculpe de alguma coisa, Acredite que nunca esqueceremos quanto a senhora foi boa para nos.
A fisionomia de D. Emerenciana distendeu-se. Roque tocara-lhe no ponto fraco. Ela gostava de ser elogiada pela bondade e era com alegria que dizia que em sua fazenda os peões eram como filhos. Pena que tudo ficasse nas aparências e no desejo, porque se fosse verdade a miséria seria menos rude àquelas famílias. Ignorância e miséria. A vida simples da roça é uma bênção quando entendida e vivida em plenitude. Para isso, há necessidade de dar cultura e instrução para que especializando-se e cultivando hábitos sadios de higiene e de respeito mútuo, possam estabelecer padrão de vida diferente.
Conservar o homem na ignorância sem os benefícios que a civilização já pode oferecer é rebaixá-lo ao nível do primitivismo e da animalidade.
Foi com alívio que Roque deixou a casa grande, tendo resolvido mais aquele problema.
Assim, tudo preparado, levando roupas e alguns pertences de uso pessoal, a família embarcou rumo a São Paulo. la começar para eles nova vida. Partiam sem penas nem saudades1 com o coração vibrando de entusiasmo e a alma cheia de esperanças.



Capítulo XIX
O Conde de Ancour expiando homicídio O Sol se despedia incendiando o horizonte e Maria atarefada recolhia a roupa seca do varal. Há dois anos estavam na cidade e sua aparência modificara-se bastante. Estava caprichosamente penteada e suas roupas embora de pano barato, eram bem feitas. Seu porte tornara-se altivo e. seu rosto empoado e, por vezes um olhar de altivez a colocava um pouco distante dos demais.
Apesar de não ter havido nenhum atrito com os vizinhos, não era bem vista, pelas mulheres.
- Antipática! - diziam ao vê-la passar altiva e ereta, sempre bem composta. - O que pensa que é?
E outra argumentava: - Você viu a Maria. Olha pra gente como se fosse uma princesa. Seus filhos são operários como nós. Dizem que não come para comprar roupa e sapato! O marido dela que abra o olho. O que ela quer é assanhar o marido das outras!
- Que não se meta com o meu. Faço ela em pedacinhos! Acabo com sua pose!
Na verdade, apesar dos seus cinqüenta anos, Maria ainda era muito bonita e sua elegância, seu perfume, atraiam sempre os olhares masculinos por onde passasse. Não que ela os incentivasse. A bem da verdade, ela nem sequer os olhava, muito embora se envaidecesse dessas atenções. Julgava-os ignorantes e sujos.
Lídia, trabalhava em uma loja como balconista e tomara-se uma jovem encantadora. Seus dois irmãos estudavam c trabalhavam como meninos de recados.
Como moravam na Penha, saíam muito cedo, levando lanche para almoço e só regressavam à noitinha. Quanto ao José, depois de alguns meses sem trabalhar, tinha arranjado um lugar de guarda em uma fábrica, não distante da sua residência. Trabalhava a noite inteira e voltava pela manhã.
Raramente via os filhos e, ao contrário dos demais membros da família, sentia saudades da fazenda, podia es- tar reunido com os seus na contemplação da Natureza, tenda tempo para tudo.
Sentia-se triste. O ruído dos bondes e o bulício da cidade o aturdia. Às vezes falava em voltar para Minas Gerais, mas era tão mal recebido que não tinha condições de alcançar seu objetivo. O que mais a entristecia era verificar que com os filhos trabalhando fora e ajudando a manter a família, pois ele não tinha condições de fazê- lo, sua autoridade de pai diminuíra.
Longe de casa à noite, nem sequer sabia a que horas seus filhos se recolhiam.
Até Lídia, uma moça, ia à escola noturna voltando muito tarde.
Sua mulher, não o ouvia quando tentava impor sua autori- dade. Brigava com ele, obrigando-o a modificar seus hábitos, usar roupas diferentes, temo, sapatos, meias, que o faziam sentir-se ridículo e pouco à vontade. Chamava- o de ignorante, de caipira, esquecida de que ambos tiveram a mesma origem. Seu ordenada era pequeno. mas superava muitas vezes o que ganhava na roça. As despesas eram maiores e ele entregava tudo à Maria para que ela dirigisse a casa.
Sobraçando as roupas secas, Maria colocou-as sobre a mesa da cozinha e começou a dobrá- las.
A noite já descera e o José já tinha ido para a fábrica. Seus filhos logo mais chegariam para o jantar, a que faziam às pressas para irem à escola.
Roque, para incentivar os irmãos, também cursava uma escola de eletro- rádio, desejoso de melhorar as suas candições e um dia poder, quem sabe, trabalhar por canta pr6pria.
Após o jantar, depois da saída dos filhos, Maria sentou- se nos degraus da escada do quintal. Estranha melancolia apossou-se do seu coração. Uma sensação de medo a invadiu enquanto que um sentimento de angústia oprimiu-lhe o peito.
- Bobagem - pensou -, tudo vai tão bem! Sacudiu os ombros e cuidou de ligar o rádio. Estava perto do carnaval c ela apreciava com entusiasmo as marchinhas alegres. Contudo, naquela noite não conseguiu prestar- lhes maior atenção. O ar lhe faltava e tinha a impressão de que o ambiente estava abafado e sombrio.
Fez um chá de cidreira e resolveu deitar-se. Não esperou pelos filhos. Custou a dormir e quando conseguiu seu sono foi cheio de pesadelos.
Via-se em uma cabana de madeira e suas paredes escuras infundiam-lhe incontrolável pavor. Tinha vontade de impedir alguém de entrar ali, porém por mais que tentasse fechar a porta sempre ela se abria.
Acordou assustada e oprimida. Levantou-se. Foi ao quarto dos filhos, estavam já dormindo. Era madrugada. Deitou-se novamente, mas o sono custava aparecer. Finalmente, eram já cinco horas, resolveu levantar. Seu marido lago regressaria e estava na hora de chamar os meninos.
Foi para a cozinha, acendeu o fogo e pôs água na chaleira para ferver. A campainha da porta tocou com força. Maria estremeceu, Com o coração apertado foi abrir. Deparou com um guarda civil.
- A senhora é esposa de José de Souza?
- Sou - respondeu apavorada.
- Venha comigo. Seu marido sofreu um atentado e está muito mal.
Maria não pôde emitir palavra. Dirigiu-se ao quarto dos filhos e sacudiu Roque com força. Este acordou e vendo a mãe preocupada: - O que foi mãe? É ceda!
Maria com voz fraca articulou: - Seu pai. Está mal!
- O quê?
Num pulo Roque se levantou, vestiu-se e vendo que sua mãe estava meio aturdida acompanhou-a. Dirigiu-se ao guarda : - O que aconteceu9 - A fábrica foi assaltada. Seu José foi atacado.
- É grave? - perguntou Roque assustado.
- É. Ele está mal! Convém vir logo. Não sei se escapa. Olhando consternado para a mãe assustada, Roque resolveu : - Fica mãe. Eu vou com ele. Chama Lídia. Hoje ela não vai trabalhar. Fica com Página 83
a senhora. Estou pronta, seu guarda. Vamos.
Laços Eternos Apanhou o paletó rapidamente e saiu.
Na viatura a guarda, olhando-o com algum alívio tornou : - Foi bom ter vindo você. Sua velha me parece muito nervosa e ia dar trabalho.
Roque, olhou-o fixamente: - Ele está morto?
- Está. Não teve tempo nem de ser socorrido.
Roque baixou a cabeça entristecido. Sentia-se com remorso.
Seu pai nunca se adaptara à cidade. Porque não o tinha deixado na fazenda? Seu coração apertou-se.
Quando chegaram, a polícia rodeava o local. Entraram. Vendo o corpo caído em uma poça de sangue, suas pernas enfraqueceram.
- É o filho - disse o guarda ao policial que examinava o local.
- Dêem uma cadeira para o moço, senão ele cai.
Roque estava pálido. Levaram-no para a outra sala e alguém lhe deu um copo de água. Envergonhado, Roque procurou reagir. Afinal era um homem.
Mas sempre que via sangue se perturbava. Principalmente os crimes de morte o afetavam. Quando seus colegas comentavam as notícias dos jornais sensacionalistas, que relacionam as violências, Roque sempre se sentia mal. Envergonhava-se dessa fraqueza, mas não podia evitá-la.
Abaixou a cabeça o mais possível e aos poucos foi melhorando. Quando se sentiu mais disposto, perguntou a um policia! como tinha acontecido.
- Pelo que parece. os ladrões surpreendidos pelo guarda atiraram e fugiram. Acreditamos que tenham sido dois, porque chegaram a arrombar a porta do escritório.
Roque estava arrasado. Sentia-se culpado. Jamais se perdoaria.
Os dias que se seguiram foram tristes para a família. A autópsia, os funerais e as formalidades legais causaram-lhes aborrecimentos e preocupações. Entretanto, aos poucos todos foram se recuperando das emoções.
Afinal, a rotina da casa não se alterou porquanto a presença do pai tinha se tornado ausente desde que ele começara a trabalhar.
Maria foi quem primeiro se recuperou. Roque. entretanto, era o único que não esquecia o pai nem por um instante. Era sua culpa. Se o tivesse deixado na fazenda isso não teria acontecido, Tal pensamento alimentado por ele começou a tomar vulto de tal sorte que passou a ficar nervoso e assustado.
Tinha a impressão de ver o pai na poça de sangue. Parecia-lhe ver seu rosto pálido acusando-o, acusando-o.
Aos poucos foi perdendo o equilíbrio e dando vazão a crises nervosas. Um dia em que teve uma séria alteração na fábrica foi mandado ao exame médico.
O diagnóstico veio acompanhado de muitos calmantes. Distonia do neuro-vegetativo.
Roque começou o tratamento, porém, sem resultados. Os calmantes o atordoavam, porém, a angústia, o pavor, a sensação de culpa. o medo o invadiam cada vez mais. Afastado do emprego por alguns dias, recebeu a visita de um operário seu colega. Suas relações sempre tinham sido discretas, por isso a sua presença foi uma surpresa. O Oswaldo trazia fisionomia alegre e agradável.
- Vim tomar um cafezinho com você, Roque. É do- mingo!
- Entra, Oswaldo. A casa é sua. Lídia, prepara um café pra nós.
A presença do colega sensibilizou Roque, Estava muito deprimido e emotivo. Qualquer demonstração de amizade ou de descaso o tocava profundamente.
- Sa primeira vez que você vem à minha casa e o único que se lembrou de vir até aqui. Obrigado por isso. O outro sorriu.
- Que é isso Roque! Eu sou seu amigo. Não costumo falar muito, mas sou sincero. Tive vontade de conversar com você. Desde que seu pai morreu tenho vontade de vir aqui.
A palestra seguiu amena. Os irmãos de Roque saíram, enquanto Maria na cozinha ouvia seu programa de rádio. Lídia foi à casa da vizinha e os dois ficaram sozinhos.
- E sua saúde, como está? Roque abanou a cabeça com tristeza: - Estou mal. Não sei o que se passa comigo. Não durmo, não como bem. Dói-me o corpo, o estômago e a vida parece-me muito penosa.
Oswaldo fixou-o com olhar firme: - Você é jovem, tem saúde, família, emprego, porque essa tristeza? Não crê em Deus?
Roque olhou o amigo admirado.
- Certamente. Mas foi depois da morte de meu pai. Eu sou culpado. Eu o matei.
- Porque pensa assim?
Roque estava pálido, e suas mãos tremiam denunciando seu estado de alma.
- Ele não queria vir para a cidade. Foi eu quem insistiu. Se estivesse na fazenda ainda estaria VIVO.
- Como pode saber? A morte é uma determinação de Deus, Se seu pai tinha que morrer dessa forma, isso aconteceria onde ele estivesse.
Roque olhou o amigo com admiração.
- Não tinha pensado nisso. O outro continuou: - Acha que Deus não dispõe de recursos para fazer cumprir sua lei, onde quer que nos encontremos? Não seja ingênuo, Roque! A morte violenta representa sempre uma provação, não só para a vitima como para os familiares. A culpa de cada um de nós, nos acontecimentos dolorosos de hoje, se encontra em nossas vidas passadas. Você acredita na reencarnação?
Roque pensou um pouco e respondeu sério.
- Acredito sim.
- Já foi a algum centro espírita?
- Duas ou três vezes, Você sabe que não tenho tempo. Mas às vezes eu sinto que já vivi outras vidas. Em sonho algumas vezes me vejo outra pessoa.
- Eu sei onde você vai em sonhos. Em um castelo na França no tempo antigo.
O outro admirou-se: - Como sabe?
Eu sei. Sei também que sua doença não é causada pela morte de seu pai. Ele resgatou uma dívida, mas você tem uma tarefa a realizar na Terra nesta encarnação. Precisa ter muita paciência com sua mãe.
- Como sabe tudo isso?
- Tem uma moça perto de você que está me dizendo. Interessado, Roque perguntou: - Como é ela?
S um espírito muito bonito. Uma mulher jovem e bela, com roupas antigas, cabelos vastos e cacheados.
Roque sentiu violenta emoção que não podia explicar. Era como se a pessoa que procurara encontrar, ou se, o que sempre inconscientemente tinha buscado, estivesse ali, a seu lado. ao alcance de sua mão.
Nervoso, agarrou o braço de Oswaldo com força e pediu: - Preciso vê-Ia, preciso falar-lhe. Não me abandone, por favor!
- Calma, Roque. Ela diz que se chama Geneviève. Ama-o muito e está a seu lado. Vai ajudar. Mas que você precisa ler o Evangelho. Freqüentar um Centro, trabalhar muito no auxílio ao próximo. Recomenda que jamais abandone sua mãe, aconteça o que acontecer.
Violenta emoção tomou conta de Roque. Lágrimas deslizavam pelo seu rosto, sem que ele pudesse saber o que lhe ocorria . Aquelas palavras, aquele nome, acordaram emoções inusitadas. que nunca dantes sentira.
- Ela diz que estará a seu lado até o fim. Que você precisa lutar para poder conquistar sua libertação espiritual.
Oswaldo levantou-se, espalmou a mão sobre a cabeça do amigo e proferiu comovente prece: - Senhor Jesus! Nós vos rogamos ajuda para este lar! Esse irmão nosso, Mestre, que muito tem sofrido, mas que espera Senhor, poder resgatar seus erros. Dai-lhe. Senhor.
oportunidade de reajuste. Que ele possa. Senhor, ir ao encontro da vossa luz, conquistando com coragem, passo a passo, a própria redenção. Assisti-nos, Senhor, e permiti que nós possamos servir sempre.
Oswaldo calou-se comovido e renovado. Roque estava sereno.
Seu rosto pálido guardava vestígios das lágrimas; em seu olhar estampava-se paz e certa tranqüilidade.
Ficaram calados, cada um guardando em seu íntimo os benefícios balsamizantes da prece. Por fim, Roque tornou: - Sua presença me fez muito bem. Sinto-me aliviado como há muito não me sentia. Quero aprender ser espírita como você.

O outro colocou a mão em seu ombro dando uma palmadinha amiga: - Certamente. É uma alegria poder contar com um amigo como você. Amanhã mesmo você vai comigo ao Centro. Mas é preciso se preparar bem. Estudar o Evangelho de Jesus para poder auxiliar aqueles que como você agora, precisam de uma palavra consoladora.
- Eu irei. Farei o que puder. Sinto-me muito melhor.
- Esta noite você vai dormir bem, Mas lembre-se que é dando que recebemos. Você precisa esquecer suas mágoas, confiar na bondade de Deus e trabalhar muito em benefício de todos, principalmente de sua mãe.
Roque sentiu que era verdade. Entre sua mãe e ele sempre existira alguma coisa diferente que ele não podia explicar. Ela o queria com arroubos excessivos; ele, por vezes, sentia dificuldade de aceitar-lhe os afagos e os carinhos.
O que haveria por trás de tudo isso?
Quando o amigo se foi estava mais animado. Ganhara forças novas, cobrara ânimo, Em seu coração havia mais esperança.
Os acontecimentos daquela tarde, encontraram ressonância nas profundezas de seu ser. A presença desse espírito, dessa mulher que o ajudava, causou-lhe íntima sensação de felicidade. Identificava-a na figura que por vezes delineara em sonhos, e estava certo de que ela desempenhara em sua vida passada importante papel.
Pensou em Deus e, agradecido, sentindo-se amparado, formulou intimamente o desejo de lutar, de conquistar corajosamente sua evolução espiritual.

Capítulo XX
O apostolado de Roque Dois anos se passaram. Roque ingressara de corpo e alma na nova doutrina que em tão boa hora seu companheiro trouxera ao seu coração aflito. Levado ao grupo espírita, sentira-se de início aliviado e sereno.
Já nos primeiros contatos sentira que sua angústia, seus problemas com a morte do pai foram desaparecendo. Ávido de conhecimento, procurou ler a fim de melhor compreender a natureza daqueles acontecimentos que modificaram comple- tamente seus conceitos em relação à vida e ao destino da hu- manidade.
Sempre respeitara a religião católica, a que por tradição sua família se filiara, Mas as superstições e as crendices dos seus pais jamais o atraíram.
Agora, tocado no íntimo do ser, pela doce figura de Jesus, que na sua bondade, colocara a seu lado aquele anjo em figura de mulher, que o comovia e que lhe despertara no coração doce sentimento de felicidade e de esperança, resolvera lutar. Sentia que chegara a hora de conseguir algo que sempre almejara, mas que ainda não conseguira definir.
Lançou-se ao estudo de O Livro dos Espíritos. de Allan Kardec, e apesar da sua pouca instrução escolar, conseguiu penetrar fundo em seus ensinamentos. Deslumbrou-se. Parecia-lhe que um véu lhe fora arrancado dos olhos, e compreendeu perfeitamente a origem da vida na Terra, as Leis de Deus, disciplinando os homens.
A reencarnação consubstanciando a justiça perfeita de Deus. A bondade do Pai permitindo-nos, após o arrependimento dos erros cometidos, a reparação.
Entendeu que a família representa sagrada instituição na reconstrução do bem, unindo espíritos em tarefas redentoras, no ressarcimento das faltas recíprocas. Compreendeu e desejou mais. Leu todas as obras de Kardec, de Léon Denis, de Delane, de Bozzano, que lhe eram emprestadas pelo diretor do centro, com prazer.
Tornaram-se grandes amigos. Roque, renovado, contente, desejou ajudar o próximo e sempre que podia tomava parte nas atividades assistenciais em benefício dos necessitados. Sentia-se útil e feliz.
Suas faculdades psíquicas desabrocharam. Recebia belas mensagens do espírito de Geneviève, falando sobre as virtudes espirituais. Escrevia receituário assinado pelo espírito do Dr. Villefort. Quando falava sobre Evangelho, surpreendia os companheiros pela beleza de suas palavras. em linguagem correta e elegante. Ninguém, vendo-o falar poderia supor que ele houvesse cursado só o primário. Depois, sua delicadeza no trato, sua finura de sentimentos e sua simplicidade, conquistaram logo a simpatia dos freqüentadores que procuravam acercar-se dele, compreendendo talvez seu potencial mediúnico.
Entretanto, embora Roque em tão pouco tempo se modificasse tanto, seus familiares não o seguiam. Com zeloso carinho, Roque procurara transmitir-lhes aqueles conhecimentos que tantas alegrias lhe trouxeram ao espírito Apenas Lídia, sempre muito apegada a ele, interessara-se. Acompanhava-o por vezes e lia alguns livros, embora sem compreender muito bem. Contudo, esforçava-se para agradar a quem adorava. Seu maior prazer era estar com ele, ouvindo-o falar, trabalhando para ele, saindo com ele.
Apesar de querê-la muito, esse apego excessivo preocupava-o. Apesar da idade, Lídia nunca se interessava por nenhum rapaz. Roque, principalmente depois da morte do pai, pensava em seu futuro.
Todavia, um dia Lídia chegou em casa mais alegre do que o costume. Como sempre, procurou o irmão para contar a novidade. Fora promovida no emprego. Passara de balconista a funcionária do escritório.
Roque exultou. Sua irmã conseguira estudar e melhorar suas condições econômicas. Realmente a mudança fez bem a Lídia que foi se desembaraçando cada vez mais, melhorando o vocabulário e, ao contrário de seus dois irmãos, já nem parecia ter sido criada na fazenda. Vestia-se melhor, com gosto apurado e discrição. Vendo- a, Roque sentia-se contente. Parecia- lhe ter contribuído para sua ilustração e isso lhe dava paz e conforto.
Um dia Lídia o procurou para contar que conhecera um moço, com o qual simpatizara muito. Por isso, gostaria de namorá-lo. Preocupado, Roque quis conhecê-lo. Lídia pediu-lhe para esperar um pouco mais. Afinal conheciam-se apenas a algumas semanas e ela não queria convidá-lo a ir à sua casa.
- Como o conheceu? indagou ele curioso.
- No escritório. É amigo do chefe.
- Ele trabalha?
- Não. Estuda apenas.
Roque franziu a testa preocupado.
- Lídia. Cuidado. Nós somos pobres. Moço rico não casa com moça pobre. Não desejo que você sofra.
- Eu sei, Roque. Eu não queria. Há algum tempo ele tem me procurado. Mas não sei, ele me parece tão sincero, tão bom!
Roque sorriu com bondade.
- Confio em você, Lídia. Não entregue seu coração assim, sem ter certeza.
- Hoje ele me esperou na saída e viemos juntos. Disse- lhe tudo. Contei a nossa vida sem esquecer nada. Roque, tive vergonha!
Roque a abraçou com carinho, mas sua voz era um tanto enérgica quando disse: - De que Lídia? Ela pareceu enleada.
- Fale - pediu ele.
- Tive vergonha de que ele viesse, visse nossa casa. Ele é tão distinto, tão fino.
- Não podemos esquecer, minha querida, que viemos de condições humildes, Mas que temos guardado em nossos hábitos a honestidade e o trabalho, preservando-nos da ambição e do orgulho.
Lídia baixou a cabeça confundida.
- Eu sei. Aprecio nossa vida de trabalho e honestidade. Mas gostaria que nossos irmãos fossem tal qual você. Entretanto, suas maneiras, um tanto grosseiras, deixam a desejar. Nossa casa é muito modesta.
Roque olhou a irmã com seriedade: - Lídia! Não se deixe envolver pelas ambições humanas.
Acorda! Se esse moço for bom, procurará apenas as qualidades do coração. Caso contrário, melhor será que siga um rumo diferente, ao encontro de uma moça que pertença à mesma classe social.
Lídia não pôde sopitar as lágrimas.
- Mas eu gosto dele. Sinto que com ele poderei ser feliz. Roque acariciou com delicadeza a cabeça da irmã.
- Não chore. Lembre-se que neste mundo precisamos de muita coragem para enfrentar nossas lutas. Não vai agora desanimar, quando sua vida apenas se esboça.
Lídia olhou para o irmão como que procurando apoio.
- Eu sei, E por isso que tenho medo. Medo de mim mesma. Depois, receio a família dele.
Roque suspirou : - E eu receio que você se iluda com as aparências. Com o fausto de uma vida da qual nunca fizemos parte. Seria melhor se você pudesse afastar-se dele. O ideal seria que o seu futuro marido pertencesse ao nosso meio. Temo pela sua felicidade.
Lídia baixou a cabeça pensativa. Tomou uma resolução: - Acho que você tem razão. Não daria certo. Sei que a família de Geraldo freqüenta a alta sociedade. Não nos veriam com bons olhos. Hoje mesmo acabarei tudo. Acho que cada um deve conhecer seu lugar. Também tenho meu orgulho. Não suportaria nenhuma humilhação.
Roque sorriu aliviado. Beijou a testa da irmã com carinho: - Deus a abençoe por ser tão sensata. Será certamente muito feliz. Você merece.
Lídia sorriu. O apoio do irmão dava-lhe imensa satisfação. Amava-o profundamente. Admirava-o. Aparentando despreocupação, Lídia retrucou sorrindo: - Afinal, ele nunca me pediu em casamento. Nem sequer falou nisso. Acho que nos precipitamos.
- Antes assim, Lídia.
Nos dias que se seguiram não mais voltaram ao assunto. Até que Roque observando o ar despreocupado da irmã inquiriu : - Tudo em paz no seu coração?
- Creio que sim. Tive uma longa conversa com ele. Usei de franqueza e procurei cortar todos os laços amorosos entre nos. A princípio Geraldo não aceitou minha explicação, mas depois, aos poucos, foi se acalmando. Disse-me que se sente muito só. Pediu-me para aceitá-lo como amigo. Não pude recusar. Ele é tão delicado! Gostaria que você o conhecesse! Penso que seriam bons amigos.
- Certamente, querida - tornou Roque pensativo.
- Falou-me com franqueza, fiquei com pena dele. O dinheiro não é tudo neste mundo! Seus pais estão praticamente separados, guardam apenas as aparências. Sua irmã única anda em péssima companhia em noitadas e bebe constantemente. Tem distúrbios nervosos. Já esteve até internada em casa de saúde. Tem apenas 25 anos!
- E sua mãe?
- Passa as noites em uma mesa de jogo. Quanto ao pai, sustenta uma artista de teatro e com ela passa a maior parte do tempo.
Roque preocupou-se : - Lídia, cuidado! Tem certeza que este moço é bem intencionado?
- É sincero. Eu sei. Disse que ao meu lado sente-se bem. Não precisa dissimular ou manter as aparências. Não mais lamenta seus pais, mas sofre muito pela irmã a quem quer muito. Gostaria de ajudá-la, Roque. Quem sabe você, no Centro, poderia pedir em favor dela?
- Certamente, Lídia. Poderemos orar por eles, mas lembre-se: para que uma pessoa possa erguer- se no bem, vencer as tentações, é preciso que ela pelo menos deseje lutar. Em todo caso, Deus é bom e vamos pedir por eles.
Lídia beijou a face do irmão: - Eu sabia! Você é tão bom que certamente Deus o ouvirá.
Roque sorriu.
- Você que pensa, porque me quer bem, Roque ficou preocupado com o problema da irmã. Temia pela sua felicidade. Conhecia a maldade e o lado triste da vida. Sabia que o preconceito e a posição social dominam ainda o coração dos homens.
Nos dias que se seguiram, procurou não demonstrar seu receio. Todas as noites pedia a Jesus em suas orações pela felicidade da irmã e, também, pela família do rapaz.
Certa tarde o jovem acompanhou Lídia até sua casa e Roque pôde ser-lhe apresentado. Seu rosto claro e seu sorriso simples impressionaram favoravelmente. Apertaram- se as mãos com cordialidade e Roque convidou-o a entrar. Maria recebeu-o com simpatia- O ambiente era simples, mas agradável. Convidado a jantar, Geraldo aceitou com alegria e a comida simples e bem preparada agradou-o sobremaneira.
O moço muito à vontade, conversou com naturalidade e, ao sair, apertando a mão de Roque disse- lhe em voz súplice: - Apreciei muito conhecê-los. Queria que me permitisse vir mais vezes.
- Certamente. A casa é sua. Acompanho-o. Tenho vontade de andar um pouco e gozar a fresca ,brisa da noite.
Saíram. Roque desejava conhecê-lo melhor. Foram con- versando sobre vários assuntos e pôde verificar que tinham muitos pontos de afinidade.
O rapaz, sentindo o interesse fraterno de Roque, normalmente enveredou pelo caminho das confidências. Trazia profunda mágoa no coração. Sentia-se só embora em meio à sua família. Não gostava da vida social a qual responsabilizava pelos fracassos dos pais e pelos problemas da irmã.
- Detesto a sociedade falsa de aparência. Gostei de Lídia porque está fora desse ambiente. Se um dia me casar, quero ter uma família de verdade, onde haja amor, compreensão, harmonia e entendimento.
Roque permaneceu pensativo. Depois tornou : - Culpar a sociedade e fugir ao seu contato não melhorará o problema dos seus. Ninguém pode prescindir a convivência com o semelhante, seja qual for o nível social em que viva. É condição para conquista de nosso progresso moral esse convívio. Devemos ter em mente que só nos prejudicam nossas fraquezas e imperfeições.
- Como assim?
- Você vive no mesmo ambiente dos seus, contudo não se deixou arrastar no desequilíbrio. Porquê?
- Porque não gosto.
- Sim. Você tem estado imune às tentações da vaidade, do orgulho, das paixões, porque seu espírito é mais forte. Naturalmente já venceu em encarnações passadas suas batalhas morais .
- Você acredita mesmo nisso?
- Sim. Você teria uma explicação melhor?
Pensativo, Geraldo calou-se. Nunca tinha observado a questão dessa forma. Sua profunda desilusão para com a família tinha-o abalado profundamente. Para poder suportar a dor, procurara revestir-se de indiferença. Não achava possível uma modificação no ambiente doméstico, Por isso. evitava participar de qualquer problema.
Roque continuou : - Certamente, um dia eles conseguirão ser fortes coma você. Compete-nos ajudá-los para que encontrem o caminho da redenção.
- O que posso fazer? A princípio tentei aconselhar, harmonizar. Falei com meu pai tentando acordá-lo para as responsabilidades do lar. Falei com minha mãe inúmeras vezes, tentei retê-la no lar, estabelecer ambiente agradável e amparar Helena que sempre viveu muito só, nas mãos de empregadas e professores. Tudo inútil. Meu pai alegava que minha mãe era indiferente e fútil. Jamais lhe oferecendo o carinho desejado. Ela por sua vez dizia-se abandonada e traída, necessitando aturdir-se nas amizades e no jogo para poder suportar a vida. Quanto a Helena, sempre se sentiu infeliz e só. Atira-se às emoções para fugir à análise da tristeza.
- Quanto a você, desanimou e procurou isolar-se para não sofrer mais e envolver-se na angústia e na dor.
- É verdade - concordou ele pensativo - Mas que podia fazer?
- A fuga não imuniza. Apenas protela a solução dos problemas.
- Sinto que você me compreende! Analisa meu estado de espírito melhor do que eu. O que acha que poderia ter feito?
- o que poderia ter feito não importa agora, mas sim o que pode fazer!
- Acredita que haja alguma esperança?
- Creio em Deus e tenho fé.
- Eu também creio . . . - murmurou Geraldo surpreendido.
- Quando cremos em Deus, nós fazemos nossa parte e Deus, quando for a hora, fará o resto.
- Gostaria de ser como você. Sua segurança me faz grande bem.
- Você pode. o importante é saber qual o seu programa na Terra, o que não é difícil.
- Como assim?
- Quando renascemos trazemos todo um programa de realizações que deveremos concretizar na nossa passagem terrena.
Esse programa visa nosso equilíbrio espiritual através da conquista das virtudes morais, no resgate de nossos erros passados cometidos em existências anteriores. É inegável que você foi colocado junto dos seus familiares com a incumbência de ajudá-los e conduzi-los ao caminho do bem.
Geraldo olhou para Roque admirado.
- De que forma? Tudo quanto podia fazer já fiz.
- Não, meu amigo. A vida ainda os mantêm unidos no mesmo teto, sinal de que a oportunidade permanece.
Geraldo abanou a cabeça desalentado.
- Não sei.. . Não tenho mais esperança de que as coisas melhorem.
- Você dispõe de uma grande força que ainda não utilizou! Seu amor por eles. o pensamento é energia viva e atuante que utilizada sábia e conscientemente poderá modificar o rumo das coisas. Seu desânimo, sua acomodação à situação que considera inevitável, contribui para que o mal se agrave a cada dia. E verdade que você não pode obrigá- los a compreender a realidade que ainda não percebem, mas pode contrapor a sua força mental, o seu otimismo, a sua vontade de conduzi-los ao bem e à felicidade. As forças daqueles que se comprazem nas trevas se utilizam das suas fraquezas para satisfazerem seus apetites materiais e egoísticos.
- Como assim?
- Você não sabe que de acordo com nossos desejos. nossas ambições, nossos pensamentos íntimos e aspirações, somos assediados por espíritos desencarnados que poderão nos atirar ainda mais e mais depressa ao erro e ao sofrimento?
O rapaz sobressaltou-se : - Acha possível que eles estejam sendo subjugados por espíritos do mal?
- Acho. Entretanto, há que compreender como isso é comum em nosso mundo. Quando morremos, nosso espírito, de acordo com sua elevação moral e espiritual, seus atos na Terra, será conduzido para um local, do outro lado da vida, de sofrimentos ou de felicidade. Jesus já nos afirmara no Evangelho que há muitas moradas na casa do Pai, querendo especificar as diversas colônias espirituais que existem no além da vida e que dará a cada um segundo suas obras.
Observamos que na Terra há pessoas bondosas e más, inteligentes e perversas, nobres e dedicadas. Ao morrerem, os bons alçam-se às moradas felizes. os perversos e criminosos são atraídos pelos abismos trevosos, pelo umbral e os espíritos ainda apegados aos bens materiais, aos vícios, à ambição e ao orgulho, permanecem na crosta terrestre, errantes, sentindo dentro de si a manifestação dos mesmos vícios, dos mesmos desejos de quando eram encarnados.
Não podendo satisfazê-los, porquanto não possuem mais um veículo de manifestação que era o corpo carnal, procuram logo alguém desavisado, e que possua os mesmos gostos, e passam a assediá-lo colocando-se em seu sistema nervoso em tal simbiose que possam sentir as sensações que o encarnado sente.
Assim, temos um corpo de carne, sendo usado por dois espíritos. É pois, compreensível que seus apetites e suas paixões aumentem e se tornem irresistíveis. Se bebericava. envolvido por espírito alcoólatra, passa a embebedar-se freqüentemente Se pecava pela gula, passa a comer a todo instante sem poder controlar-se. Se deixava-se envolver pelos excessos do sexo e da luxúria, passa a entregar-se de maneira exagerada ao desregramento dessas paixões.
Geraldo estava pasmado. Pela primeira vez analisava a situação sob esse aspecto e sentia imensa piedade pelos seus.
- Meu Deus! - balbuciou ele, - O que poderemos fazer para libertá-los?
- Há, ainda, fora esses, o assédio de espíritos que em passadas existências ofendemos e ferimos e que transformados em nossos inimigos tramam nossa perda e nos envolvem, pro- curando nos levar à queda na perturbação e no crime!
- Você quer me assustar! Como poderemos lutar contra eles? Como?
- Não - tornou Roque tranqüilo, - Não desejo assus- tá-lo. Quero que compreenda que cruzando os brancos na indiferença, você os deixa à mercê desses perigos, sem tentar sequer uma defesa.
- Eu quero ajudá-los - tornou ele ansioso. - O que devo fazer?
- Precisa saber a extensão do mal, instruir-se nas coisas espirituais, no Evangelho de Jesus. Orar por eles, para ligar-se com os espíritos do bem. Ser paciente, sereno, para não ser envolvido por esses espíritos do mal. Conduzi-los a um tratamento no Templo Espírita. Esclarecê-los quanto aos riscos a que se expõe.
- São materialistas. Não acreditariam - volveu ele preocupado.
- Não importa. Você pode ir por eles. Venha às nossas reuniões e juntos vamos orar por eles. Sei que virão.
O rapaz abanou a cabeça desalentado.
- Será difícil. Roque olhou-o nos olhos.
- Pois eles virão, tenho certeza. Contudo, quero escla- recer desde já que precisaremos tempo para que eles se libertem do problema. Lembre-se que esses espíritos apenas exploram as falhas que eles possuem. Para uma recuperação total há necessidade de que eles compreendam e aceitem a necessidade de melhorar-se intimamente, vencendo suas fraquezas. Esse é o trabalho que compete a você. Precisa preparar-se, fortalecer-se para isso.
- Acha que conseguirei?
- Acho. Deus é bom e justo. Quando nos esforçamos na prática do bem, nos ajuda e nos sustenta.
- Sinto-me melhor agora. Parece que uma grande esperança começa a nascer em meu coração. Eles vão se modificar!
- Esperemos em Deus. Lembre-se que é uma luta. Não sabemos quanto tempo poderá durar! Só Deus o sabe! Às vezes continua após a morte do corpo e em outras encarnações, mas no fim certamente o bem vencerá e felicidade nos felicitará a vida, e a daqueles a quem amamos.
Geraldo pareceu meditar por alguns momentos, depois tomou com seriedade: - Não importa. Agora que eu sei, estou disposto a lutar. Hei de estudar, aprender os segredos da vida espiritual para arrancá-los dos erros e dos sofrimentos.
- Que Deus lhe abençoe os bons propósitos, mas convém não esquecer que só a reforma íntima, na restauração do nosso espírito, procurando nos libertar das nossas próprias falhas, nos tornará resistentes ao assédio dos espíritos infelizes que ainda se comprazem nas trevas. Só nosso próprio equilíbrio, evitando que nos tomemos instrumentos de seus desregramentos e viciações nos poderá defender com precisão. Quem se dispõe a combater o mal precisa, antes, vigiar e precaver-se para que se evitem afinidades que ao invés de nos tornar eficientes no amparo e na defesa dos que amamos. nos poderá transformar em espíritos fracassados iguais a eles. Por isso, pensando nos perigos que nos cercam e em nossas fraquezas contumazes foi que Jesus nos aconselhou a orar e vigiar.
Geraldo comoveu-se : - Ajuda-me! Estou disposto a aprender.
Roque colocou a mão em seus ombros à guisa de conforto.
- Certamente. Juntos procuraremos achar a melhor solução. Agora devo voltar. Amanhã começo cedo no trabalha.
o outro sorriu agradecido.
- Gostaria que me aceitasse como amigo. Seria um privilégio para mim.
O rosto de Roque distendeu-se: - É com alegria que sempre será recebida em nossa casa. Venha quando quiser. Amanhã iremos ao Centro Espírita.
Há uma reunião de estudos doutrinários, que certamente nos será de muito proveito.
Os olhos de Geraldo brilharam.
- Estou ansioso! Até amanhã, Roque. Deus lhe pague por tudo. o outro respondeu com simplicidade: - Até amanhã.
Separam-se e Roque, vendo o rapaz afastar-se, sentia uma onda de paz invadir-lhe o coração. Ganhara um amigo! Lídia podia ser feliz se, como pensava, se unisse a Geraldo. Era um moço nobre e de bons sentimentos.
Enquanto regressava ao lar, olhava o céu coberto de estrelas e sentindo os astros que faiscavam na imensidão, uma saudade indefinida> uma nostalgia imensa e inexplicável dominou- lhe o coração. Sentia falta de alguém. de algo que não podia definir.
Sentia que alguém o esperava mais além, alguém que repre- sentava alegria e amor, felicidade, mas que para alcançar a suprema ventura do seu convívio precisava ainda depurar-se nos sofrimentos redentores do mundo. Seu espírito amoroso lançava uma súplica muda, um apelo, de amor e de saudade. Roque não viu que um vulto suave de mulher se aproximava com inexcedível carinho, beijava-lhe a fronte enobrecida. Mas sentiu que novas forças, novo alento lhe banhava a alma.
Ela suavemente murmurou-lhe aos ouvidos: - Gustavo! Tem paciência. Trabalha e serve em beneficio de todos. Ainda é cedo para vires ao meu lado. Há deveres sa- grados que precisas cumprir. Espera. Não posso buscar-te nem em sonhos, porque vendo-me mais de perto não terias forças para terminar tua tarefa na Terra. Deus te abençoe. Estarei a teu lado sempre que possível!
- Como Deus é bom - pensou Roque, sentindo as suaves vibrações que lhe alimentavam o espírito. Satisfeito e sentindo a leveza do espírito e a paz no coração, regressou ao lar.



Capítulo XXI
Momentos de angústia e aflição Laços Eternos Os dias que se seguiram foram de calma para Roque e sua família. Os irmãos trabalhavam e estudavam, ,progredindo lenta mas seguramente.
João era controlado e sóbrio mas Antônio o caçula, era distraído e fútil. Com paciência e bondade, sem esquecer a energia, Roque conseguia conduzi-los, orientando-os com amor. Respeitavam-no, embora nem sempre concordassem com ele. A adoração que Maria dispensava ao filho mais velho os enciumava e Roque precisava agir com prudência para que a tão evidente predileção da mãe não os revoltasse.
Era uma tarde de domingo. Roque na cozinha colocara água no fogo para passar um café. A mãe deitara-se um pouco e adormecera. Querendo poupá-la, decidiu preparar o lanche para os irmãos que chegariam logo mais, do costumeiro jogo de futebol.
A água borbolejava na chaleira quando Maria surgiu cozinha adentro.
- Deixa que eu faço, Roque.
Com determinação Maria dispôs o bule e o pé de café. Em seguida tomou a chaleira fumegante e despejou a água no coador. Como estivesse ainda meio sonolenta, seus movimentos não foram muito seguros c um jato de água fervente derramou se na mão que segurava o bule.
Assustado, Roque procurou socorrê-la, mas para seu es- panto, Maria sacudiu a mão com indiferença continuando seu trabalho. Admirado, Roque olhou a mão da mãe onde, um vergão vermelho denunciava a formação de uma bolha. Tomou-a preocupado enquanto dizia: - Vamos pôr remédio, mãe . Bem que eu queria fazer esse café.., Venha, a dor vai passar.
Maria sorriu contente: - Não precisa. Não dói. Minha mão é calejada na tra- balho pesado. A água não queima.
- Mas tem bolha, deve estar doendo, não está? Maria sacudiu os ombros com indiferença.
- Não. Não está.
Roque olhou a mãe apreensivo. A ausência de dor não era normal. Assustada procurou examinar a mãe com o olhar para verificar seu aspecto geral. Mas, Maria parecia muito bem. Ca- tada, forte, bem disposta.
Apesar disso, ele não se satisfez. Precisava descobrir por que ela não registrara a dor. Um aperto angustiante envolveu- lhe o coração e resolveu que a faria passar pelo médico no dia seguinte. Não tocou mais no assunto naquele dia mas à noite não conseguiu desvencilhar-se da preocupação.
Por isso, logo na manhã seguinte conduziu-a ao médica. Ela não queria ir, rindo-se da preocupação do filha, para com uma queimadura à-toa. Mas chegados ao consultório a facultativo submeteu-a a rigoroso exame. Maria não só tinha as mãos insensíveis como os pés.
O médico foi clara. Chamou Roque e sem rebuços disse o que pensava: - Os sintomas são claros, entretanto para confirmação é preciso fazer um exame de sangue. Porém o exame clínico e o arroxeamento que já começou nas partes insensíveis, embora ainda pouco se notem, tendem a aumentar.
Observando a palidez de Roque, tornou com voz calma: - Nestes casos, a lepra quanto mais cedo for constata- da melhor. Poderemos intensificar o tratamento com bons resultados. Por enquanto não creio seja necessária a internação. Entretanto, o exame de sangue é que dará a última palavra.
Roque sentiu que sua voz não saía da garganta. Num esforça supremo conseguiu balbuciar: - O Sr. não se terá enganado? O médica olhou-o um tanto irritado: - Conheça esses casos. Fiz curso de Dermatologia. Não me atrevo a dar-lhe esperanças. O Sr. constatará o que afirmo. Leve essa indicação para o exame. Passe pela sala de análises que marcarão hora para D. Maria vir tirar sangue. Passe bem.
Roque não se atreveu a dizer mais nada. Estava habituado ao trato indiferente e um tanto duro dos médicos do Instituto. Mas, naquele dia, diante de tão grande choque emocional, ansiava por um pouco mais de atenção e aconchego. Suas pernas tremiam e ele vendo a mãe que já o esperava no corredor, com fisionomia alegre e confiante, não disse nada.
- Não vou fazer esse exame de sangue - disse ela decidida, - Não estou doente. Não sinto nada.
- Tanto melhor, mas o exame será feito de qualquer forma. Vamos marcar a hora.
Olhando a fisionomia decomposta do filho, coma que um susto turvou- lhe por instantes a alegria do olhar. Depois, dando de ombros, tornou : - Não sei o que puseram em sua cabeça. Esses médicos não sabem de nada. Mas, está certo, faço o exame e vamos ver quem tem razão. A partir desse dia começou para Roque momentos de angustia e preocupação. O exame, infelizmente, confirmou o diagnóstico. Maria contraíra o bacilo de Hansen.
Olhando-a tão vaidosa, tão bela, tão consciente da sua beleza física, como dizer-lhe a verdade? Como contar-lhe que pouco a pouco sua aparência se iria modificando até que todos pudessem perceber sua infelicidade?
Sozinho com seu segredo, Roque sentia-se morrer. Estava preparado pata enfrentar a morte se preciso fora, com calma e compreensão, mas a doença terrível o assustava, causando-lhe funda depressão.
Foi com o coração apertado que compareceu no Templo Espírita para o trabalho de sempre. Sentia-se sem capacidade para orientar e confortar ninguém, carregando uma pedra cortante no coração oprimido.
Logo ao chegar encontrou Geraldo que pela primeira vez comparecia à reunião em companhia da irmã. Um olhar de Roque bastou para que percebesse a evidente obsessão da jovem. Irrequieta, olhar fixo refletindo dureza e certa malícia, riso um pouco forçado e irônico, gestos nervosos, Roque precisava plantar naquele coração sofrido as sementes do Evangelho Cristão, Mas seu cotação pesava como chumbo, Onde encontrar otimismo trazendo a angústia e a dor dentro da alma?
Procurou conter-se. Encaminhou os dois irmãos para o salão onde se realizaria a reunião e a pretexto do adiantado da hora sentou-se por sua vez em torno da mesa onde se realizariam os trabalhos da noite. Profundamente triste Roque entregou-se à prece com sincero fervor. Implorava forças para suportar as lutas que pressentia. Lágrimas rolavam lhe pelas faces, sulcadas pela dor, na obscuridade do salão em penumbra enquanto o dirigente proferia singela oração.
Roque sentiu-se envolto por um torpor, uma sonolência, enquanto que uma brisa leve e suave lhe favorecia o espírito angustiado. Recolhido, em prece, parcialmente liberto do corpo físico, Rogue viu que pouco mais à frente tênue claridade se formava. Interessado, observou que ela foi se adensando e que bem no centro, apareceu delicado espírito de mulher. Trajava roupagem antiga, era moça ainda e de rara beleza.
Sua presença provocou imensa emoção no coração de Roque.
Parecia-lhe que este crescia dentro do peito em Inenarrável júbilo, Sentia que esperara séculos por aquele instante de felicidade suprema e infinita.
Quem era essa mulher que falava às fibras mais intimas de sua alma?
Estendeu os braços para ela querendo abraçá-la. Os belos olhos de Geneviève luziram emotivos. Estendeu as mãos na direção da cabeça de Roque enquanto dizia: - Meu querido. Tem coragem! A luta continua! Já te havia prevenido, que ela seria árdua. Cuida de não fracassar. Estarei sempre a teu lado, pedindo a Jesus que nos fortaleça.
Roque, ainda envolvido por suaves eflúvios, atreveu-se a perguntar: - E minha mãe, poderá curar-se? Geneviève olhou-o com bondade.
- Sim. Um dia quando ela ressarcir todos os seus erros passados. É preciso que cada espírita aprenda a respeitar o instrumento precioso que Deus lhe concede na Terra para o seu aprimoramento. Às vezes, colhendo nossa semeadura, mergulhamos no oceano doloroso dos resgates difíceis mas necessários, que irão reconduzir-nos, ao aprisco do Pai, do qual nos afastamos por nossos erros. Tem confiança, peço- te. Não te deixes levar pelo desânimo justamente agora que tudo se encaminha para o bem, Procura afastar do coração a tristeza, a an- gústia. Lembra-te apenas de que Deus é Pai bom e justo e tudo determina em nosso favor c em favor da nossa felicidade futura. Tem coragem. Cultiva o otimismo apesar de tudo. Algum dia saberás o porquê das dores e dificuldades de agora. Lembra-te, meu querido, que estarei sempre a teu lado, mesmo quando não me possas ver nem sentir. Jesus nos abençoe.
Roque sentiu doce emoção banhar-lhe o espírito aflito. Ondas luminosas partiam do coração da bela e comovente entidade e o envolviam afugentando como por encanto o peso opressor que o angustiava.
Sentia-se leve e feliz como nunca se recordava de haver sentido. Vendo que ela se despedia, desesperadamente tentou retê-la, num esforço supremo.
Ela, porém, enquanto aos poucos se distanciava sussurou-lhe com doçura: - Aprende a esperar, resignadamente. Obedece à vontade de Deus, senão não poderás mais ver-me como hoje, embora eu permaneça contigo.
Roque esforçou-se por resignar-se à separação, procurando equilíbrio e serenidade. Imediatamente voltou ao corpo. Entretanto, profunda modificação se tinha operado em seu espírito. Sentia-se leve, feliz. A visão fizera-lhe enorme bem.
Recordava-se com emoção indescritível da bela mulher. Poderia existir felicidade maior? O que significariam sofrimentos e provações terrenas, por mais dolorosos e difíceis que fossem, comparados à beleza e à felicidade que entrevira da vida espiritual?
Envergonhava-se de sua fraqueza deixando-se mergulhar nas ondas da queixa e do pessimismo. Tudo estava certo. Cada dor, cada luta cada sofrimento tem sua razão de ser na justiça perfeitíssima de Deus.
Ao término da reunião, Roque renovado e sereno, abraçou com carinho fraterno Geraldo e a irmã, que o olhava um pouco assustada. o trabalhador dedicado, voltado às atividades do estabelecimento cristão, ia começar com tranqüila serenidade seu trabalho em favor daquelas almas.



Capítulo XXII
Resgate doloroso da Condessa de Ancour O Sol se escondia no horizonte e o céu belíssimo parecia uma tela pintada por extraordinário artista. Apesar do bulício das águas, Roque olhava o céu e sentia-se maravilhado, refletindo na perfeição da Natureza.
Voltava à casa após um dia de trabalho. Chegou no destino com certa apreensão. Fazia quase um ano que ele descobrira a doença de sua mãe e até ali pudera ocultá-la dos demais, até dela mesma. Não descuidara do tratamento, conduzindo-a ao dispensário especializado, ministrando ele mesmo os remédios necessários. Até ali, a marcha lenta da moléstia, descoberta quase que no início, evitara a internação em hospital.
Roque, porém, não tinha esperanças de cura. Sabia que o caso dela representava uma provação necessária a depuração do seu espírito. As mensagens espontâneas dos mensageiros espirituais aconselhando paciência e resignação o faziam pressentir a marcha inexorável da doença.
E, de fato, a cada dia seus pressentimentos se confirmavam. Apesar de todo tratamento, a melhora. era nula, e a moléstia caminhava lenta e progressivamente. Agora, a aparência de sua mãe modificava-se. Engordara. Sua pele tornara-se mais corada e em algumas partes do corpo, especialmente nas mãos e no rosto, pequenas erupções apareciam engrossando a derme.
Maria, que dantes não admitia estar doente, agora mostrava- se irritada e preocupada. Estranhava a modificação de sua aparência, coisa que mais prezava no mundo.
Asperamente, acusou Roque de envenená-la com remédios inúteis, culpando-o pelas modificações que se operavam em seu corpo.
Roque. com paciência suportava-lhe as ofensas e a revolta. A cada dia encontrava dificuldades mahores em fazê-la ingerir o remédio. O médico aconselhava a contar-lhe a verdade.
Porém, ele não encontrava coragem.
Como dizer-lhe que sua doença era lepra? A ela, que sempre cultivara com vaidade sua beleza física? Como cantar-lhe que tudo se transformaria inapelavelmente.?
Ele compreendia as necessidades espirituais e resignava-se, ela, porém, não possuía esse entendimento. Temia a violência da sua dor.
Ao mesmo tempo os irmãos começavam a reparar na apa- rência materna. Como contar-lhes a verdade? Recordava-se do pavor das pessoas de sua cidade, da proximidade dos doentes de lepra. Fugiam espavoridos, receando até passar pelo lugar onde eles haviam passado.
Conhecendo a verdade, poderiam suportá-la? Roque, Vencendo os pensamentos temerosos, entrou em casa.
O ruído de choro chamou-lhe a atenção. Preocupado entrou no quarto e surpreendeu Maria sentada na cama, com a rosto entre as mãos, em pranto convulsivo. Penalizado, correu para ela abraçando- a.
- Mãe! O que aconteceu?
O pranto aumentou e Roque renovou a pergunta com certa energia.
- Não sei a que tenho. Meu corpo está estranho. Não consigo segurar nada. Os objetos caem-me das mãos com facilidade. Depois, olhe para mim, estou ficando feia, tão feia que hoje na padaria a Nena e a Letícia não me quiseram dar a mão quando dei bom dia. Será que elas pensam que estou pestiada?
Roque procurou ajudá-la, orando em pensamento, enquanto dizia: - Acalme, mãe. Vai ver que elas estavam distraídas e nem viram.
- Viram sim - tornou Maria com voz rancorosa. - Falaram comigo meio assustadas, nem me deram a mão e saíram quase correndo de perto de mim. Eu, que sempre fui notada pela minha beleza, O que elas pensam que são?
Havia tanto rancor em sua voz que Roque estremeceu. Toda a afabilidade de Maria desaparecera.
- Vamos mãe, não chore. Voltemos nossos pensamentos para Deus que nos vai ajudar.
- Não, não quero pensar em Deus. Não acredito que ele possa me ajudar.
- Não fale assim. A doença é condição que todos nós enfrentamos um dia. .. Precisamos confiar no amparo de Deus.
Maria atirou-se nos braços do filho chorando convulsivamente.
- Roque, tenho medo! Muito medo. À noite tenho pesadelos horríveis. Rostos me espreitam, riem de mim, escarnecem da minha aparência.
Roque apertou a mãe comovidamente. Naquele instante, assistindo-lhe o martírio, que estava apenas iniciando pela primeira vez sentiu um impulso de imenso amor no coração por aquela criatura que era sua mãe, mas que sempre despertara dentro de si um sentimento de aversão instintiva, que esforçara- se por combater no cumprimento do seu dever filial. Mas, agora, o gelo rompera-se. Fosse o que fosse que o passado ocultasse, ele, agora, já podia pensar nela com carinho e amor. Condoía-se pela. provação terrível que a aguardava dali por diante e pedia a Deus forças para ajudá-la até o fim.
As vibrações amorosas de Roque caíram como bálsamo de luz sobre aquele coração atormentada. Aos poucos ela foi serenando. enquando que Roque procurava mudar-lhe o padrão mental, falando sobre assuntos alegres e diferentes a goto de Maria.
A certa altura, ela ficou calada e pensativa. De repente tornou com seriedade: - Roque, o que será que eu tenho? É doença ruim?
- Não sei - tornou ele querendo evitar a mentira. -Certas doenças, por nós não conhecermos bem, nos assustam muito. Principalmente nós da roça que não entendemos nada disso. Mas, na cidade, hoje em dia, tudo é diferente. Veja a mãe que, lá na roç a, o mal dos pulmões não tinha cura. Tuberculoso morria mesmo. E todo mundo fugia dele com medo de pegar a doença. Aqui na cidade tem cura.
Quando é tratada direito e logo que começa. Assim são muitas outras doenças que temos medo. Nós não estudamos, mãe. Os médicos é que sabem. Maria encarou-o assustada: - Tísica eu não sou. Não tenho tosse, não estou magra. nem tenho febre. Mas você sabe o que eu tenho, a que é?
Roque sentiu-se desencorajado. O olhar da mãe vibrava inquietude e loucura.
- O que é isso mãe? Tem calma. Seja o que for nós vamos tratar. Estamos tratando, Por que temer? A senhora não sabe que todos nós envelhecemos, adoecemos e morremos? Faz parte da vida, Mas o que morre é o corpo de carne, O espirito é eterno, já existia antes de nascer e vai continuar existindo quando seu corpo morrer. Não devemos temer a doença nem a morte.
- Você é um louco com essas bobagens de Espiritismo. Não acredito. Morreu, acabou. A vida é uma só.
Roque respondeu sereno: - Seria bom para a senhora se modificasse seu modo de pensar! Iria ajudá-la muito.
Maria teve um repente de revolta: - Eu não quero! Sou jovem. Sou mulher! Sou bela! Não aceito a doença. a velhice, a morte. Não, não eu!
Maria desesperada abriu a porta do guarda-roupa, diante do espelho repetia furiosa: - Isto é temporário. Vai passar. Acho que alguma coisa que me fez mal. Amanhã vou fazer regime. Não vou comer. Hei de melhorar. E também não vou tomar remédio mais nenhum. Você que é culpado. Com todos esses remédios me into- xicando. Sinto dor no estômago depois que tomo esses comprimidos Roque colocou suas mãos com firmeza sobre os ombros da mãe. fixando-a bem nos olhos enquanto dizia: - Mãe, esses remédios são necessários à sua recuperação. É preciso tomá-los de qualquer forma.
Ela permaneceu pensativa durante alguns segundos, depois tornou com voz dura: - Você sabe o que eu tenho. Sabe! Não quer me dizer. Por que? Será mesmo doença ruim?
Roque sacudiu a cabeça em negativa: - Não, mãe. É apenas uma suspeita. Não possa afirmar nada, mas os remédios são necessários para prevenir um mal maior.
- Conte-me, o que é?
- Mãe, acalme-se. Sente-se aqui a meu lado. A senhora precisa compreender. Acha que eu faria alguma coisa que não fosse para o seu bem?
Maria olhou-o nos olhos e depois respondeu: - Eu confio, mas acho que preciso saber. Tenho esse direito.
Roque passou o braço sobre os ombros maternos, tornou com calma e firmeza: - Mãe. Sua doença tem cura, Está no início, mas é preciso primeiro saber se ela se confirma. Não deve preocupar-se por ora. confie em mim. farei tudo por ajudá- la.
Maria estava assustada. O tom sério do filho provocava- lhe medo, tanto medo que se conteve e não perguntou mais. Seu coração apertou-se em triste pressentimento. Agarrou a mão de Roque com força: - Roque, me ajude! Pelo amor de Deus, não me deixe morrer! Tenho tanto medo! Não quero morrer.
Roque sentiu um aperto no coração, mas controlou-se com energia procurando expressar serenidade e confiança: - Não tenha medo, mãe. Deus é Pai bom e justo. Confiemos em sua bondade.
Maria teve um repente de fúria.
- Não compreendo sua calma. Eu falo da minha dor, do meu sofrimento e você fala de Deus! O que adianta?
Deus está ocupado e longe, se é que ele existe. Eu estou aqui, preciso resolver meu caso. Como pode cruzar os braços e esperar?
Roque sentiu aumentar sua piedade.
- Mãe, todos precisamos de Deus! Não vê que ele é o Pai que nos deu a vida e tudo quanto nos rodeia? Não vê que tudo veio de Deus e que sem ele nada somos? Maria teve um gesto impaciente.
- O que me irrita é que não desejo ficar esperando uma ajuda que nunca vira.
Roque calou-se. Sabia que a mãe jamais fora devota. Em todos os momentos difíceis de sua vida, sempre procurara vencer sem recorrer à Providência Divina. Costumava dizer que devia cuidar do corpo, porque era a única coisa importante.
Quando ela morresse, tudo se acabaria. Nunca se interessara pela religião ou pelas coisas de Deus.
Ele sabia que a fé não se pode dar. £ uma virtude que cada um vai desenvolvendo dentro de si, com as experiências que for vivendo e sofrendo. Suspirou triste, prevendo os sofrimentos inevitáveis para o futuro.
- o que quer que eu faça, mãe? - perguntou depois de algum tempo.
Maria permaneceu pensativa; depois, num impulso, tornou nervosamente : - Os médicos! Quero ir a outro médico. Acho que esses médicos da Caixa não ligam para nós que somos pobres. Vamos procurar outro médico. Sim, é isso.
Riu, nervosamente, - E isso. Porque não pensei nisso antes? Vai ver se eles estão errados. Vai ver é só intoxicação.
- Os médicos do Instituto são muito bons. Mas se a senhora quiser, iremos a outro médico. Acalme-se. Amanhã mesmo iremos a nova consulta. Mas acho que vão dizer a mesma coisa.
- Pelo menos teremos mais certeza.
- Está certo. Agora vamos deixar isso de lado. Seja o que for, estaremos juntos para lutar.
Pelos olhos de Maria luziu uma chama de paixão. Abraçou o filho e disse com orgulho e confiança: - Sim, Roque. Tudo eu agüento, se você estiver comigo. Roque, fixando os olhos brilhantes da mãe, sentiu uma onda de terror. Teve vontade de sair, deixá-la para sempre. Inexplicavelmente um sentimento de repulsa assomou-lhe ao coração. Procurou dominar- se. Era sua mãe! Devia amá-la Porque aquele sentimento justamente no momento em que ela lhe dizia o quanto o queria?
Ele que, disciplinando seus sentimentos pelo Evangelho de Jesus, procurava amar seus semelhantes - e o fazia com facilidade e alegria - não entendia porque justamente para com ela, a quem deveria amar com mais intensidade, isso não acontecia.
A custo conseguiu conter-se e suportar-lhe a proximidade. Pobre Roque, não sabia que dentro de si as reminiscências da encarnação anterior falavam mais alto, Não era Roque quem sentia a repulsa pela mãe, mas Gustavo que por instantes reencontrara a Condessa cuja paixão ainda o perseguia.
Mas Roque não podia saber. Lutou para dominar-se e, assim, tanto ele tentava modificar seus sentimentos com relação a ela, como ela também, santificava como mãe, sua paixão violenta e infeliz.
Unidos novamente, frente à frente, o choque tornara-se inevitável, mas a sabedoria Divina tudo dispunha para



Capítulo XXIII
O beneficio dos laços familiares A tarde caía de todo e as primeiras estrelas já surgiam no céu quando Geraldo chegou na casa de Lídia. Ia ver Roque. Não esperara pela moça, coma de hábito, na saída do escritório, Sabia que o encontraria a sós.
Tocou o campainha e esperou. Roque veio abrir pessoalmente. Cumprimentou o rapaz com alegria : - Olá ! Você veio mais cedo; e Lídia?
- Não fui buscá-la. Preciso falar-lhe em particular. O outro estendeu a mão: - Entre, Geraldo. Estou tomando café.., aceita uma xícara?
O outro entrou. Depois do cafezinho perguntou: - E D. Maria?
- Mamãe anda adoentada, já se recolheu. Gosta de ouvir rádio na cama. Tem mais tempo depois que meus irmãos foram embora.
- E verdade.
- Bem, mas estou à sua disposição. É sobre sua irmã?
- Não. Ela agora tornou-se outra; depois que temos freqüentado as aulas de Evangelho e as sessões de cura. Deixou cenas amizades, tem dormido melhor e perece-me mais alegre. Temos estado mais unidos e compreendido melhor o problema de nossos pais.
Geraldo calou-se por alguns segundos, depois como que criando coragem tomou: - Roque, eu gosto muito de Lídia, você sabe. Quero seu consentimento pata casar-me com eIa.
Roque olhou-a com certa embaraço. Gostava muito de Geraldo, sabia que Lídia o amava, mas casar-se-ia com ela sabendo que sua mãe estava leprosa?
O momento temido chegara. Precisava contar-lhe a verdade. E sabia que poucos a suportariam. Se ele se recusasse a casar-se depois de saber não poderia condená-lo. Seus próprios irmãos, quando descobriram a doença da mãe. foram-se apavorados, como se todos os demônios os perseguissem. Mudaram-se para longe e nem sequer deixaram endereço. Não sabia sequer onde estavam. A mãe, desde que os filhos descobriram sua moléstia, pouco saía do quarto, e Roque era quem a acalmava e pacientemente a ajudava evitando a suicídio e a loucura.
Lídia, apesar de tudo, desconfiara, principalmente pelas medidas preventivas de Roque, evitando contágio, separando objetos de uso pessoal. Por isso, temerosa da atitude de Geraldo, Lídia começara a evitá-la.
O rapaz, profundamente enamorada, sentira-se ciumenta e preterido e tomara a deliberação de casar-se a quanta antes. Dispunha de sólida situação financeira e estava já para graduar-se.
Roque suspirou funda.
- E então? - inquiriu Geraldo preocupada. - Por acaso não aprova meu pedida?
- Nem pense nisso, Geraldo. Lídia o ama muita e nós todos sabemos que você será para ela excelente marido. - Fez ligeira pausa c prosseguiu. - Contudo, precisa antes contar- lhe uma coisa…
- Estou ouvindo - tornou Geraldo com voz um pouco alterada.
- Sim. Acha que já é hora de você saber. Acredito na sinceridade do seu amor por minha irmã e sei que a felicidade dela está em suas mãos. Mas não quero que tome nenhuma decisão, sem conhecer nosso drama, nossa luta.
Impressionado pelo tom sério de Roque, Geraldo com o coração apertado tomou : - Seja o que for, quero saber.
- Sim. O problema refere-se à doença de minha mãe. E uma doença contagiosa e terrível. Ela está leprosa!
Apesar de toda sua fibra, Geraldo empalideceu, fazendo um gesto de horror, Com a coração apertado e sofrido, Roque tornou sincero: - Agora já sabe. Posso dizer-lhe que em nassa família é o primeiro caso. Sei que depois disso você não renovará seu pedido de casamento e não o censuro por isso.
A voz de Roque era humilde e terna. Continuou: - Meus próprios irmãos fugiram espavoridos. Creia que nossa amizade permanecerá a mesma apesar de tudo. Compreendemos.
Geraldo levantou-se. Seus olhas estavam cheios de lágrimas.
Sempre achara D. Maria esquisita, mas nunca suspeitara da verdade, A voz serena do amigo c seu tom dorido e resignado, tocaram-no fundo. Estava desconcertado.
- Não posso conversar agora. Depois conversaremos.
Saiu rápido. Roque procurou reagir dissipando a tristeza enorme que lhe ia na alma. Sabia que seria assim, mas a constatação do fato em si o deixava profundamente desanimado. Pobre Lídia. Sua irmã era vítima inocente da moléstia materna. Certamente Geraldo não mais voltaria.
Sentindo-se fraco c deprimido, tomou O Evangelho Segundo o Espiritismo, abriu ao acaso, e leu: "Causas anteriores das aflições". Leu com atenção e arrependeu- se de seus pensamentos anteriores. Se Lídia fosse punida pela vida, naturalmente tanto coma ele mesma, é porque tinha dívidas perante a Justiça Divina.
O melhor era orar e pedir forças para levarem a cruz até o fim.
Quando Lídia chegou pouco depois, nem sequer desconfiou do que acontecera. Roque estava sereno e alegre como sempre, mas ainda assim, ela sem saber porque, sentiu um aperto no caração. Alguns dias decorreram e a vida para eles continuava na rotina costumeira.
Roque aceitara intimamente a ausência de Geraldo até que certo dia, também no cair da tarde, ao chegar em casa da trabalho, encontrou o moça à pana, esperando.
Foi com alegria que a reviu e não pôde deixar de notar-lhe a fisionomia atormentada e abatida.
- Roque poderá dar-me um pouco de atenção? Certamente, meu amigo. Vamos entrar. - Vendo o olhar assustado do rapaz, esclareceu com naturalidade. - Mi- nha mãe não sai do quarta. E suas coisas de uso pessoal estão separadas. Nada receie.
Geraldo corou fortemente, mostrando-se embaraçado.
- Não se acanhe - confortou Roque -, somos amigos.
- Claro - tornou o outro meio acanhado.
Roque deixou os pacotes que trazia sobre a mesa e, sentando-se a seu lado, disse calmo: - Estou às suas ordens.
- Bem… No outra dia, comportei-me muito mal com você. Quero pedir-lhe desculpas. Procedi como um adolescente irresponsável Perdoe-me.
- Não se preocupe. Sei compreender. Eu mesmo por vezes sinto ímpetos de fugir.
Geraldo suspirou um pouco mais calmo.
- Você é realmente uma criatura admirável. Invejo-o. Gostaria de ser assim tão humano e tão bom. Mas o que me traz aqui é outro assunto.
Pode falar - encorajou Roque vendo a indecisão do moço.
- Bem. Depois que fui daqui naquela noite, não mais consegui acalmar-me. Saí chocado, mas asseguro-lhe que a doença de sua mãe em nada influenciou em meu amor por Lídia. Tenho sofrido muito, mal tenho conseguido dormir. É mais forte do que eu. Não posso viver sem eIa. Quero desposá-la assim mesmo, Roque sentiu uma onda de calor invadir-lhe o peito. Haveria felicidade para Lídia? Geraldo prosseguiu : - Contudo, Roque, se eu aceito com naturalidade a doença triste de D. Maria, minha família não aceitaria de forma alguma. Eles não teriam a necessária compreensão e certamente interviriam dificultando as coisas e fazendo Lídia sofrer.
Roque olhou a amigo com alguma preocupação.
- Que poderemos fazer?
Geraldo, um tanto embaraçado, passou a mão pela testa e respondeu: - Tenho pensado muito. Como sabe, meus pais levam a vida social intensa, mas são extremamente liberais no que se refere à posição social. Acatam minhas deliberações e não interferem muito em minha vida, dando-me a liberdade de ação. Entretanto, sempre se mostraram extremamente preocupados com a saúde e por qualquer espirro estão às voltas com os consultórios médicos e os laboratórios. Neste particular são intransigentes. Têm horror às doenças e às contaminações. Estão a par de todas as descobertas da medicina.
Tenho a certeza de que se oporiam com veemência ao nosso casamento nas presentes circunstâncias.
- O que pensa fazer - indagou Roque com delicadeza.
- Bem. . . Eu pensei.. Não sei se você poderá compreender.
- Fale, meu amigo, não tenha receio.
O outro pareceu tomar resolução e concluiu: - Bem, eu pensei que Lídia poderia casar-se comigo sem contar à minha família a verdade.
Roque olhou o outro pensativo e esperou que ele continuasse: - Eles não precisarão saber a verdade. Será melhor para nós e principalmente para Lídia. Concorda?
- Bem, se você acha melhor assim. . . mas acha que eles não perceberão?
O outro pareceu inquietar-se. Remexeu-se na cadeira.
- Pensei nisso, pensei muito. E estou disposto a pedir-lhe o sacrifício maior. Meus pais não conhecem sua família e por isso direi a eles que vocês moram em outro Estado. Não é que eu queira que seja assim. Você me conhece bem, sabe o quanto eu os estimo, como tenho sempre me sentido feliz nesta casa, junto a vocês. Ninguém seda mais feliz do que eu se pudesse estar sempre aqui junto a todos, sem que essa doença infeliz nos traumatizasse o coração. Mas sei que eles não aceitarão a verdade. Poderia abandoná-los, mas Jogo agora que minha irmã querida está ingressando no caminho do bem e que minhas esperanças renascem para que minha mie também, como a filha, se modifique. Como deixá-los e permitir que eles caiam mais e mais no abismo de sombras em que resvalaram? Guarda comigo o desejo ardente de ajudá-los. Como separar-me deles cuidando apenas da minha felicidade?
Roque, eu o estimo como a um irmão, diga-me: Lídia também não tem direito à felicidade? Como eu, ela deverá, por causa dessa doença materna, sacrificar seu amor e seus sonhos de mulher?
Roque ouvia pensativo e compreendeu. Geraldo pedia-lhe que assumisse sozinho a cruz que dividia com a irmã. Era uma solução boa. Lídia amava o rapaz e merecia ser feliz. Ele era bom e capaz de orientá-la. Confiava nele. Porque impedi-Ia de ser feliz?
Tomando uma resolução, levantou-se e colocando a mão sobre o braço do moço disse: - Compreendo. Você tem razão. Pode contar comigo. Se você a ama, tudo farei para ajudá-los. Sei que ela o quer muito e serão ambos muito felizes. Deixe por minha conta.
- O que pretende fazer?
- Não se preocupe. Eu e minha mãe sairemos da vida de Lídia.

- De que forma? - indagou Geraldo um pouco alarmado.
- Da melhor possível. Talvez possamos viajar por algum tempo. Será bom para ela.
- Viajar como? Sei que sua situação financeira não permite. Se não se ofender gostaria de oferecer-lhe alguns recursos..
- Roque sacudiu a cabeça negativamente.
- Não se preocupe. Estamos habituados a viver modestamente. O que temos basta. Só tenho pena de não poder dar a Lídia um enxoval à altura.
- Você sabe que o que tenho hasta para nós. Lídia terá todo conforto e será a rainha da minha casa. Eu a quem muito.
- Eu sei - concordou Roque comovido. - Eu sei… Não se preocupe. Venho pensando há algum tempo já, em levar minha mãe para o campo. Lá, quem sabe, ela poderá sentir-se melhor.
O outro respirou aliviado. Se eles partissem, tudo seria mais fácil. Seus pais receberiam Lídia e iodos poderiam viver em paz.
- Roque, gostaria que não contasse a Lídia esse detalhe. Tenho a certeza de que ela não concordaria, É uma filha amorosa e muito apegada a você.
Roque concordou.
- Tem razão. De fato, será melhor que ela ignore esse ponto de nossa conversa. Quando pretende casar-se?
- Se vocês consentirem, dentro de um mês.
Roque sentiu um abalo emotivo. Sua irmã representava o raio de sol de sua vida solitária. Separar-se dela, era-lhe doloroso. Contudo, não deixou transparecer a emoção que lhe pungia a alma e respondeu com um sorriso: - Então, não temos muito tempo. Façamos o seguinte: procure-a hoje mesmo e faça-lhe o pedido. Deixe o resto por minha conta.
- Certo - tornou Geraldo. - Vou agora mesmo. Deus o abençoe por tudo. Você é realmente admirável. Minha gratidão será eterna.
Levantou-se apressado e apertando-lhe efusivamente as mãos saiu quase correndo, la ao encontro de Lídia.
Vendo-o partir, Roque deixou-se cair desalentado sobre a cadeira.
- Meu Deus! - pensou agonizado. - Seja feita a Vossa vontade. Amparai-nos e fortalecei-nos nesta hora difícil! Seu coração dorido implorava forças, socorro. Orou alguns minutos. e reconfortado e animado por novas energias tomou uma resolução.
Levantou-se e foi ao quarto da mãe. Maria, na semi- obscuridade do quarto, estendida no leito, parecia dormir. Roque sabia que ela não estava dormindo. Ficava horas imersa em funda depressão e, por vezes, agitava-se em selvagem desespero. Ele assistira-a em diversas crises e embora sentindo o coração confranger-se procurava dar- lhe um pouco de conforto.
- Mãe! - chamou em voz baixa.
Um movimento revelou que Maria o ouvia.
- Mãe! - repetiu ele aproximando-se e sentando-se ao lado da cama.
- O que quer? - perguntou com voz fraca.
- Precisamos conversar.
- Tem mais alguma novidade? Sobre minha saúde?
- Não, mãe - replicou ele com calma. - Tenho pensado muito. Você vive fechada neste quarto, sem um pouco de sol ou de ar.
- E acha que poderia sair para que todos me vissem? Assim como estou? Para que me demonstrassem o nojo, o horror que sentem por mim? Gostaria que a policia me descobrisse e me obrigasse a ir viver no sanatório, longe de vocês, para morrer como um cão?
- Não mãe. O médico permitiu sua presença entre nós.
O estágio da sua doença não é contagioso. Mas reconheça que isso não é vida. Você estava habituada ao sol e à claridade. É preciso recuperar a alegria. Maria suspirou fundo.
- Você sabe que isso é impossível! Sabe que vou morrer aqui, como um cão monstruoso do qual os próprios filhos têm medo. Eu! Tão bela e tão admirada! Não acha que Deus é injusto e mau?
Vendo-a enveredar pelo caminho da revolta e da queixa, Roque procurou levar-lhe o raciocínio para outro setor.
- Mãe. Vamos viajar. Voltaremos à fazenda de D. Eme- renciana. Ainda posso trabalhar e lá, gozando os ares suaves do campo, a senhora recuperará a saúde.
- Sabe que minha doença é maldita. Não tem cura! Maldita como eu. Porque não pede ao médico um remédio que me tire do mundo? Deste mundo miserável e ingrato que me tirou tudo?
- Mãe, a revolta não vai ajudá-la a recuperar a saúde perdida. Deus é justo e bom. Nós é que erramos muito em outras vidas e renascemos agora para expiar.
- Não acredito. Essas histórias de reencarnação eu não acredito.
Roque, tacitamente mudou de assunto.
- Se a senhora não me deixa falar, vou embora. Conversaremos mais tarde quando estiver mais calma.
Maria sentou-se no leito. A presença do filho era-lhe preciosa bênção que enriquecia sua solidão. Procurava retê-lo o mais que podia. Por isso procurou controlar-se dizendo com voz chorosa: - Não me abandone, Roque. Não agüento mais a solidão. Estou a ponto de enlouquecer!
- Então a senhora vai procurar conter-se para que possamos tratar de um assunto muito sério.
- Veja. Estou calma. Fale.
- Mãe, Geraldo pediu Lídia em casamento.
- É? - fez ela com alguma indiferença. A filha não a preocupava de modo algum.
- É! - tornou ele com firmeza. - Eu sempre quis ir com a senhora para o campo, porque certamente lhe fará tem. Mas me preocupava o futuro de Lídia, maça demais para ficar na fazenda, naquela vida da roça. Geraldo pensa casar-se dentro de um mês e nós podemos, por isso, ir embora.
- Então, ela vai casar-se? - gemeu Maria com voz alterada. Meditou alguns segundos e depois passou a mão pelo resto inchado e cheio de pequenas caroços avermelhadas. -E eu? Como ir ao casamento? Como aparecer diante dos outros em sociedade, como um monstro? Roque, pela amor de Deus, que farei?
Lágrimas desesperadas desciam-lhe pelas faces e Roque alisou-lhe a cabeça com carinho. Tinha-lhe muita pena. Observou que ela nem sequer se preocupara com a felicidade da única filha, mas apenas com sua aparência e com a impressão que poderia causar nos outros.
- Pobre mãe - pensou -, quanta vaidade ainda em seu coração!
- Pensei nisso, mãe. Encontrei a solução. Viajaremos antes do casamento. Amanhã mesmo, se a senhora quiser c assim ninguém precisará vê-la enquanto estiver doente, - É - gemeu ela aflita. - Vamos embora. Não quero que me vejam assim. Pelo amor de Deus, me ajude!
- Certamente, mãe. Tranqüilize-se. Tudo será feito da melhor forma. Amanhã cedo irei procurar um lugar para Lídia ficar até o casamento. Sei de um pensionato de maças onde ela poderá morar.
São poucos dias. E, dentro de uns dais ou três dias, juntos regressaremos ruma à nossa terra.
Maria agarrou o braço do filho com força.
- Meu filho querido! Não me abandone! Todos se foram, mas eu lhe peço, não me deixe! Pelo amor de Deus. Eu não suportaria isto sem você!
Lançou-lhe um olhar tão apaixonado que Roque instintivamente sentiu dentro de si a repulsa que lutava corajosamente por vencer, Mas a figura de Maria, tão diferente do que sempre fora, lhe inspirava muita piedade. Eram sentimentos antagônicos que ele não sabia justificar.
- Mãe! Nunca a deixarei! Ficaremos juntos para sempre!
Mas enquanto dizia isso, sentia dentro de si um desejo imenso de fugir. Conteve-se. Sorriu para ela, enquanto dizia: - Então estamos combinados. Vou tratar de tudo, se a senhora consente no casamento de Lídia.
Maria sacudiu os ombros com indiferença.
- O que você resolver está bem, desde que nós não nos separemos. Todos podem ir, não me importa. Só você é importante para mim. O mais, pouco se me dá.
Roque sentiu um aperto no coração. Tanta vaidade e tanto apego o assustava, Por outro lado, havia a vantagem dela, com sua docilidade, não impedir nem interferir na felicidade de Lídia, Que pelo menos ela pudesse encontrar a amor na construção do lar c da família. Amava muito a irmã. Ela era boa e merecia ser feliz. Saiu do quarto pensativo. Na sala, sentou-se meditando, tecendo planos para o futuro, O que lhe estavam exigindo era sumamente difícil, Não se sentia inclinado ao casamento, Nunca conseguira encontrar a companheira que pudesse amar com sinceridade e alegria, Isso não o preocupava muito, porquanto sentia que sua tarefa na Terra era outra, Todo potencial de amor que sentia no coração procurava extravasar dedicando- se assiduamente ao trabalho da mediunidade e da assistência em favor do próximo.
Sentia-se amparado pela bondade de Deus, resignara-se já a esperar por dias mais plenos de felicidade, talvez em uma vida maior, após a morte. Mas, agora, teria que deixar tudo. Amigos, trabalho, o grupo espírita onde tantas amizades, tanto conforto encontrara, para isolar-se justamente com ela, a mulher que apesar de sua mãe, lhe provocava certa aversão. Porque ele? Porque seus irmãos tinham desertado e só ele teria que suportar a prova 'difícil? Seu coração apertou-se triste, Logo em seguida, duas sombras sinistras penetraram no ambiente, aproximando-se de Roque, imerso em profundo desencanto. Aproximaram-se dele e o envolveram, uma delas sussurrando aos ouvidos com rito maldoso : - Quem o impede de ir-se embora também? Quem pode abrigá- lo a suportá-la até o fim?
O outro sorriu com maldade e disse por sua vez: - A velha megera que o destruiu. Foi por culpa dela que você separou-se da mulher amada. Que você perdeu a vida, lembra-se?
Embora não lhe registrasse exatamente as palavras, Roque sentiu-se envolvido em grande mal-estar. Parecia- lhe que de repente sua revolta se tornara insuportável. A repulsa pela mãe apareceu de forma aguda e terrível. Teve ímpetos de fugir, de sair daquela casa para sempre. Lágrimas rolavam-lhe pelas faces cansadas e curvou-se mais ainda ao peso do sofrimento e da dor.
- Isso - continuou a entidade envolvente. - Larga tudo. Deixa a megera no Leprosário. Não é o lugar certo para a Condessa pagar tudo quanto nos fez? Se você esqueceu, nos não esquecemos. Somos justiceiros por conta própria, Não a deixaremos nunca. Vamos sorver gota a gota a alegria de vê-Ia reduzida a um monte de carne apodrecida e disforme. Mas você nos tem atrapalhado. Larga tudo e ela será nossa! A levaremos à loucura e ao suicídio. Então, ela será nossa, estará em nossas mãos.
Roque sentiu-se envolvido por emoções desencontradas e terríveis, Por mais que Maria fosse difícil e sentisse por ela certa falta de afinidade, era sua mãe. Ele tinha o dever de assisti-la até o fim! Ele que procurava ajudar a todos na assistência aos que sofrem, como poderia ser duro para com sua própria mãe? Não seria ir contra os princípios cristãos do Evangelho do Crista que recomendava: Honrar pai e mãe?
Passou a mão pela fronte cansada. Precisava orar, pensou entontecido. Precisava orar. Procurou concentrar- se em Jesus, mas não conseguiu. No auge da aflição, pediu entre lágrimas: - Ajuda-me, meu Deus! Ajuda-me!
Envolvido pelo magnetismo das duas entidades da sombra, Roque sentia-se sufocar. Seu grito dorido e aflito foi ouvido, porque no mesmo instante entrou no ambiente uma graciosa figura de mulher. Geneviève trazia um ala de luz lhe circundando a cabeça. Seu rosto belo e enobrecido apresentava alguma preocupação e seus olhos luminosos deixavam transparecer emoção e afeto.
Aproximou-se de Roque e as duas entidades sombrias, embora não a pudessem ver, sentiram de repente certo mal- estar. Geneviève colocou a mão sobre a cabeça de Roque com extremo carinho: - Gustavo - disse com voz enternecida -, tem coragem. Não atires fora a oportunidade preciosa que Deus colocou em tuas mãos de progredir e ser feliz. O sofrimento na Terra é abençoada alavanca que conduz ao reajuste. Ampara tua mãe o mais que puderes. Ela precisa de ti. Ajuda-a para que o amor egoísta e terrível do passado, que tantas lágrimas nos causou, se transforme ao influxo da maternidade e da dedicação em sentimento sublime que mais tarde será luz a guiar-nos nos caminhos da redenção!
Roque sentiu-se aliviado, embora não lhe pudesse ouvir as palavras. Um calor agradável inundou-lhe o peito e aos poucos sentiu- se mais tranqüilo.
O espírito de Geneviève, afagando-lhe amorosamente a cabeça onde prematuramente alguns fios brancos começavam a aparecer, continuava sussurrando-lhe ao ouvido: - Gustavo! Reage. As tarefas que te cabem são difíceis, mas lembra-te que elas sempre representam um fator de pro- gresso quando sabemos suportá-las com coragem, sem sairmos do dever que nos cabe. Tua mãe precisa do teu apoio. Que importa onde estejas na Terra, se estivermos juntos? Quis a bondade de Deus conceder-me a ventura de poder estar a teu lado, encorajando-te, orando, esperando. Pensa o quanto Deus é bom, o quanto temos recebido de sua suprema bondade, e vamos orar. Vamos agradecer a Deus, por tudo.
Do seu peito partiam raios de luz que envolviam o frontal e o coração de Roque que sentindo-se envolvido por agradável sensação de bem-estar pensou: - Deus é bom! Pedi socorro e o socorro veio. Posso di- visar a figura suave do anjo amigo que tem me socorrido e sentir que estou amparado.
Lágrimas comovidas banhavam lhe a face e um sentimento de intraduzível felicidade envolvia lhe o coração. Agradecido, proferiu sentida prece e à medida que orava, suaves ondas luminosas partiam-lhe da mente e espalhavam-se ao redor. Vendo-a modificar- se, as duas sombras escuras se afastaram às pressas, enquanto que um dizia: - Com ele não adianta. Vamos com ela.
Nosso lugar é lá, Ela nos escuta. Afinal, o que nos importa ele? É dela que queremos nos vingar.
E, atravessando a porta, dirigiram-se ao quarto de Maria. Roque terminou a prece, e sentindo ainda a presença querida de Geneviève, tornou mentalmente: - Não me deixes, pelo amor de Deus. Tudo suportarei com mais coragem se estiveres a meu lado. Ajuda-me! Não me deixes, fica comigo.
A forma vaporosa de Geneviève abraçou-o com ternura infinita, beijando-lhe a fronte com extremado carinho.
- Gustavo, não desanimes, aconteça o que acontecer. Finda a prova, estaremos juntos para sempre.
Roque sentiu-se tomado de profunda felicidade. Nenhuma emoção na Terra poderia comparar-se àquela sensação de plenitude e de alegria na qual, por alguns instantes, ele per- maneceu imerso.
Quando ela se desfez, ele sentiu-se fortalecido e renovado: O medo e a revolta tinham desaparecido. Fosse o que fosse ele lutaria e haveria de vencer!
que o seu objetivo de fraternidade e reajuste se concretizasse.



Capítulo XXIV
Gustavo e a Condessa unidos pelo sofrimento o trem corria célere e o ruído cadenciado que produzia não conseguiu arrancar Roque da profundidade de seus pensamentos. O sol da tarde que ia em meio, filtrando seus raios por entre os vidros das janelas. Alguns cochilavam na modorra da tarde quente, outros conversavam, raros liam jornais.
Maria, cabisbaixa, fingia dormir, olhos cerrados, mãos es- condidas nos bolsos fartos. Ninguém reconheceria nela a Maria de outrora. Lenço na cabeça, puxado ao máximo sobre o rosto. na tentativa desesperada de ocultar a face inchada e coberta de grânulos avermelhados. Vestido fechado, mangas compridas, parecia uma velha, Entretanto, seu coração ardia qual fogueira insuportável. O que fizera ela para merecer semelhante castigo? Por que tantas mulheres belas e jovens, e só a ela a doença martirizara? Poderia um dia curar-se?
Não queria que a vissem na fazenda. Recusara-se a voltar para a antiga casa onde D. Emerenciana a receberia boamente.
Mas como enfrentar a presença das pessoas que a conheceram no auge da mocidade e da beleza, agora nesse estado horrível?
E as mulheres que sempre a hostilizaram por lhe invejarem a beleza? Como retomar qual um rebotalho humano e uma caricatura do que fora?
Qualquer lugar, qualquer sofrimento, até a morte seria melhor do que oferecer nos que a conheciam o espetáculo da sua tragédia. Não sabia para onde estavam indo. Não lhe importava. Ao lado de Roque sentia-se amparada. ir para onde ninguém a identificasse, onde enterrasse sua dor tão pro funda. Maria passava por sucessivos estados de angústia, de revolta e depois caía em grande depressão.
Roque estava profundamente emocionado. Conquanto pro- curasse conter-se ocultando o montante das preocupações que o afligiam, não podia deixar de se sentir muito triste. Fora-lhe penoso deixar a irmã em um pensionato, sob a alegação de que a viagem era necessária ao restabelecimento de sua mãe. Lídia não queria separar-se deles. Queria ir também, transferindo seu casamento.
A custo, Roque conseguiu convencê-la. Seria por curta permanência. Sua mãe tinha vergonha de apresentar-se na cerimônia matrimonial, O melhor era viajar por algum tempo. Dentro de alguns meses voltariam, então tudo seria diferente. Ela não devia recusar a felicidade e a união com o homem amado, a pretexto da doença materna. Ficasse tranqüila. a melhor solução seria essa.
Falara com o médico que deveriam voltar ao interior e ele concordou, receitando grande quantidade de medicamentos, mas salientando a obrigatoriedade da apresentação periódica de Maria no Dispensário do Estado. Depois de alguns preparativos ele e a mãe rumavam agora para o interior do Paraná.
Nunca tinha ido por aqueles lados, mas confiava em Deus que haveria de conseguir um emprego modesto, mas decente, que lhe permitisse cuidar da mãe com carinho e abnegação.
Fora-lhe muito penoso. também, deixar o Núcleo Espírita, onde durante os últimos anos fizera tantos amigos. Sentida falta das reuniões Evangélicas, do contato amoroso com os amigos espirituais. Porém, sabia que Geneviève, o bondoso espírito que tanto o emocionava, o acompanharia por ande fosse.
Esse pensamento dava-lhe coragem para enfrentar o que ainda viesse a ocorrer. Deus lhe daria forças. Até o dia em que pudesse, redimindo os erros passados, encontrar a vida maior na espiritualidade.
Mas era-lhe sumamente difícil. A vida na Terra determinava certas exigências e a falta de carinho, de amor, de amizade, o deixavam angustiado e triste.
Sabia que lhe cumpria educar os sentimentos, a fim de dar à sua mãe o amor que lhe era devido. Roque sentia-se muito triste, e Maria estava por demais envolvida dentro de si mesma e dos seus problemas para perceber sequer o desgosto do filho.
A viagem durava já algumas horas e nenhum dos dois sentira fome. Não tocaram no cesto onde Lídia, com zeloso carinho, colocara algumas guloseimas, tentando ocultar as lágrimas que lhe rolavam pelas faces delicadas. Custava-lhe muito separar-se do irmão.
Quanto à mãe, habituada ao seu alheamento e à sua voluntária reclusão, não lhe sentia a falta. Aliás, Maria nunca dará à filha a atenção que ela desejaria, tratando-a com indiferença, Mas com Roque era diferente, Obrigou-o a prometer notícias o mais breve possível, porquanto ela ficaria inquieta até que soubesse o paradeiro de ambos.
Ao mesmo tempo, a família de Geraldo dava-lhe medo. Eram pessoas de trato, ela era uma pobre menina roceira, Mas seu noivo a amava ternamente e procura adivinhar- lhe os pensamen- tos buscando ser para ela não só o noivo, mas o irmão e a família que ela perdera.
Roque levado para o desconhecido, conduzindo a mãe doente da alma e do corpo, não sabia bem o rumo que devia tomar.
Chegando a Londrina, resolveria o que fazer. Há muito que não trabalhava na roça, mas se fosse preciso voltaria a fazê-lo. Entardecia quando chegaram ao destino. Roque procurou uma pensão modesta e com cuidado conduziu a mãe ao pequeno quarto. O jantar estava sendo servido, mas Maria não ia aparecer na sala de refeições.
Consciencioso, Roque ficava satisfeito por sua mãe não querer aparecer, porquanto não podia permitir que ela contaminasse os outros. Apesar do médico ter-lhe dito que sua doença não era contagiosa na fase em que estava, ele tomava precauções.
Pediu a refeição no quarto, e com carinho colocou a comida no prato que Maria levava consigo, cuidando para que ela não tocasse nos pertences da pensão. Serviu-a com seus próprios pertences, e depois ele mesmo levou tudo para a cozinha, lavando no quarto, na pia, os objetos de Maria.
Fazia tudo com discrição e carinho tais que Maria nem sequer percebia a intenção.
À noite, naquele local estranho e triste, olhando o teto de madeira que os cobria, a luz fraca e triste, sentiu-se sufocar.
Convidou a mãe para sair, na certeza de que ela recusaria. mas ele não agüentava ficar ali, fechado. Mas Maria, além de recusar-se a sair, lamentosamente pediu-lhe que ficasse.
- Roque, eu não agüento mais isto! Se não tivesse tanto medo da morte, atirava-me no leito do trem… Roque, por que essa cruz? Por que? Que fiz eu para merecer tão grande castigo? Eu não creio na Justiça de Deus! Não creio nem em Deus!
Roque sentiu uma onda de desânimo invadir-lhe o coração. Procurou conter-se, Fez sobre-humano esforço para dominar seus sentimentos, buscou colocar-se em seu lugar, com seus problemas, e uma piedade enorme assomou-lhe ao coração.
Com carinho, tomou-lhe o braço e conduziu-a ao leito, obrigou-a a deitar-se e depois começou a lhe falar de Deus, da Natureza, das lições da vida, da bondade e da Justiça das Leis Divinas.
Maria, apesar de não aceitar o que ele dizia, sentira um calor agradável ouvindo a voz do filho adorado e, ao som dessas palavras, vencida e cansada, adormeceu.
Roque suspirou aliviado. Resolveu sair um pouco. A noite era fria, mas a brisa que o envolveu aliviava-lhe a testa escaldante. A caminhada aos poucos foi cansando foi o corpo e quando voltou ao leito, duas horas mais tarde, conseguiu finalmente dormir.
No dia seguinte, Roque levantou-se cedo e saiu para procurar trabalho. Trazia documentos em ordem e encaminhou-se a uma serraria retirada do centro da cidade. Apesar de inexperiente, agradou ao capataz sua figura humilde e séria. Também sua caderneta de trabalho o impressionou favoravelmente, porquanto eram raros os trabalhadores por ali que a possuíam. Assim foi convidado a iniciar no dia seguinte.
Isto deu-lhe alegria e paz. A ajuda de Deus não faltara no momento azado. O salário era modesto, mas haveria de dar para os dais. Restava-lhe procurar uma pequena casa ande pudesse levar a mãe e onde também ela desfrutasse maior liberdade. Trazia alguns recursos que bastariam pata a aquisição de alguns pertences indispensáveis.
Voltou para dar a notícia à sua mãe e depois de ligeira refeição saiu em busca de uma casa. Levava tristeza ainda no coração, mas sem revolta nem mágoa, nutria também uma pequena esperança de paz e tranqüilidade, felicitando-lhe o intimo.



Capítulo XXV
Ex-amantes, agora mãe e filho em reajuste afetivo A tarde declinava sonolenta e já algumas estrelas luziam no céu, apesar da claridade do dia não se ter esvaído de todo na paisagem simples e singela do campo.
Um homem caminhava pensativo, roupas surradas e simples, rosto moreno crestado pelo sol no trabalho duro da terra, onde uma barba emprestava um aspecto mais sério, apesar dos olhos, brilhantes e lúcidos, revelarem a força e a vitalidade da juventude.
Contudo, dez anos passaram e Roque já não era mais o moço que chegara a Londrina com o coração angustiado e triste. Na verdade, aqueles anos tinham sido difíceis e de muita luta, mas, apesar disso, ele próprio reconhecia que seu espírito tornara-se mais forte e mais corajoso. Olhando o céu límpido e de um azul suave, Roque pensou: Como é bela a obra de Deus! Quanta calma, quanta paz! Sentiu o espírito repleto de quietude e enquanto caminhava mentalizava uma prece de gratidão, quando gritos estridentes cortaram o ar, quebrando a serenidade do dia que morria.
Roque sobressaltou-se e estugou o passo. Quase correndo alcançou uma pequena cabana de madeira, entrou rápido e teve tempo de segurar um vulto de mulher que gritando como louca pretendia sair porta afora.
Com energia ele bradou firme: - Mãe, estou aqui. Tenha calma! Vamos, deite-se. Es- tou aqui.
- Deixe-me ir - berrou ela com voz rouca -, quero fugir deles. Vão matar-me!
Querem me destruir, Onde está Roque? Onde está que não me vem defender?
- Estou aqui, mãe! Olhe pra mim. Estou aqui!
Ela, entretanto, nas brumas da inconsciência se debatia entre o pavor e a revolta. Seu rosto estava deformado e vermelho; placas purulentas marcavam o seu drama terrível. As mãos cobertas de chagas e os pés deformados, enrolados em panos velhos e de cor indefinida.
Sentindo-se incompreendido, Roque enquanto a retinha, murmurou uma prece.
Recorria a Deus, porque sabia que só Ele poderia socorrê-la.
Aos poucos Maria foi se acalmando, caindo em pranto convulso. Com paciência e amor, Roque conduziu-a ao leito e acomodou-a.
- Vamos mãe, deite-se.
Laços Eternos Ela obedeceu qual criança e aos poucos seus soluços se foram acalmando.
Roque fitou-a com piedade. Nada em seu corpo deformado e doente recordava sequer a figura da bela Maria de outros tempos.
O que teria feito aquela criatura para que sofresse tão terrível prova? Sabia que todo efeito tem uma causa.
Que Deus, pai bom e justo, jamais a deixaria sofrer se não hou- vesse necessidade. Como se não bastasse a moléstia dolorosa, Maria acusava perturbação mental. Sem poder resignar-se com a transformação de sua beleza, cheia de revolta e ódio, tornara-se presa fácil nas mãos de espíritos que, seus inimigos de outras vidas, julgavam-se com o direito de feri-la ainda mais, envolvendo-a nas tramas terríveis da obsessão.
A presença de Roque, suas preces, contribuíam sempre para afastá-los, mas voltavam quase sempre atraídos pelos pensamentos dolorosos de Maria.
Apesar de afastado dos trabalhos espirituais nos grupos espíritas, Roque nunca deixou de trabalhar no auxílio ao semelhante.
Sua mediunidade, após a ida para o campo, enriquecera-se, desenvolvendo-se cada vez mais. Era constantemente procurado pelos doentes e endemoninhados que ao seu contato, ouvindo suas preces e os trechos do Evangelho, melhoravam com rapidez.
Aos poucos, uma auréola de mistério foi se criando ao seu redor. Tendo o estado de Maria se agravado, Roque fora forçado a mudar-se para um local solitário e distante. Temia que na cidade fosse forçado a internar sua mãe. Sabia que ela sentia- se melhor com sua presença e sofria horrivelmente quando ele saía para o trabalho. Por outra lado aceitara a missão de tratá-la e, por isso, pretendia fazer todo o possível para dar-lhe o conforto do seu afeto de filho.
Todavia, os gritos de Maria, seu vulto sempre envolvida em panos e véus, com os quais ela procurava ocultar sua deformidade, as atitudes de Roque sempre em casa, só saindo a indispensável, suas atividades espirituais, tudo contribuía para que em uma cidade pequena, se formassem e desenvolvessem as idéias mais disparatadas a seu respeito.
Laços Eternos Havia os extremos. As almas simples, dedicadas e humildes o adoravam e o chamavam santo, principalmente depois que, através de suas orações, tinham sido curados. Outros, os maldizentes e os levianos, materialistas ou presos aos preconceitos religiosos, o acusavam de charlatão e de mistificador. Diziam alguns, tentando impor receio aos mais humildes. que ele tinha satanás preso dentro de casa. Por isso que às vezes se ouviam gritos e imprecações, e um vulto envolto em panos era visto de quando em vez rondando a casa na ca- lada da noite.
A princípio, Roque não os levara muito a sério, mas com o correr do tempo as coisas se agravaram. Uma queixa à polícia, e quando Roque regressou do trabalho, viu que dois soldados tentavam arrombar a porta de sua casa, enquanto que Maria do lado de dentro os mandava embora recusando-se a abri-la.
Assustado, Roque conversou com os policiais explicando- lhes que sua mãe sofria das faculdades mentais e que era perigoso para eles entrar sem que ele estivesse em casa. Conversou com ela, que se acalmou, abriu a porta e convidou-os a entrar. Desconfiados e trêmulos, mal transpuseram a porta e puderam ver Maria que com o rosto coberto com um véu negro repetia apavorada: - Roque, não deixe que eles me vejam. Poupe-me esta dor! Pelo amor de Deus.
Roque, abraçou-a com carinho.
- Venha. mãe. Vamos para o quarto, a senhora vai deitar agora, descansar. Ninguém quer lhe fazer mal. Eu estou aqui. Eles são meus amigos! Não tenha medo.
Ela deixou-se conduzir e pouco depois Roque conversava com os soldados. Fora uma queixa contra ele, por manter presa uma pobre mulher, a quem espancava de quando em vez, fazendo-a gritar.
Um pouco encabulados ouviram as explicações de Roque que justificou: - Minha mãe sofreu um grande desgosto, um abalo nervoso, e ficou assim. Tem mania de esconder-se e embrulhar se em panos. Tem horror a ser vista, por isso reage furiosa- mente sempre que tentam vê-la ou falar-lhe.
Esperem um momento.
Foi até a cômoda tirando alguns documentos de uma gaveta.
Eis aqui nossos papéis. Podem verificar.
Os dois, homens rudes e de pouca instrução, passaram o olhar sobre aqueles documentos e deram-se por satisfeitos. A finura de Roque impunha-lhes respeito e acatamento. Foram- se. Roque, no entanto, temia outros aborrecimentos. O estado de Maria estava se agravando e ninguém seria capaz de prever do que ela seria capaz se alguém se aproximasse em sua ausência. Não podia deixar de trabalhar, porquanto ambos viviam do seu salário, Por isso procurou uma pequena cabana bem distante e para lá se mudou.
Assim, naquele local solitário, Maria poderia usufruir mais liberdade, saindo para tomar ar e caminhar um pouco.
Sua luta era grande. Era um homem moço, cheio de vigor, e em plena força de sua juventude isolara-se do mundo e das afeições mais caras.
Escrevia constantemente para Lídia, que feliz vivia com o marido, tendo já três filhos que constituíam seu mais caro tesouro. Reclamava a visita do irmão que lhe escrevia explicando que não poderia afastar-se da mãe, cujo estado se agravara. Não permitiu a vinda de Lídia, porquanto sabia que Maria não queria que a vissem.
Diversas vezes Lídia e o marido tinham ido a Londrina, mas apesar da insistência de Roque, Maria se recusou a recebe-los A presença da filha e do genro, que a tinham sempre visto no apogeu da saúde e da beleza, causava-lhe enorme angústia. Não só se recusava a vê-los, como debatia-se entre a revolta e o desânimo. Custava a controlar-se, permanecendo agitada durante muitos dias, mesmo após eles terem ido embora. Por isso, para poupá-la. Lídia escasseava as visitas, mantendo correspondência com o irmão, informando-se de tudo quanto ela podia saber.
Roque, a cada dia, mais e mais se via forçado a permanecer ao lado da mãe.
Não ia a parte alguma, e sua única, distração eram os livros que Lídia lhe enviava da Capital.
No trabalho, apesar da sua bondade e correção, era olhado com certa desconfiança por muitos colegas, que não podendo compreender seus atributos mediúnicos, nem conhecer a verdade sobre a sua mãe, levados pela excessiva imaginação, conjeturavam sobre ela, inventando as mais escabrosas histórias. Diziam que ele era um feiticeiro que mantinha um demônio a seu serviço, um gênio do mal que com ele habitava, ajudando-o em sua magias.
Outros garantiam que ele aprisionava sua própria esposa c movido por violento ciúme a obrigava a viver escondida e co- berta de panos, sem que jamais alguém pudesse vê-la.
Muitos outros boatos corriam de boca em boca. Ninguém podia compreender como aquele homem ainda moço não procurava manter relações amorosas com ninguém, controlando sua natureza Entretanto, Roque não era um super-homem. Mas podia controlar seus impulsos.
Não tinha inclinação para o casamento. Sentia falta imensa de carinho e de aconchego; momentos havia em que a solidão lhe doía de forma insuportável, mas não encontrara nunca uma mulher que pudesse amar, extravasando o potencial de sentimento que guardava em seu coração. Roque desejava ardentemente encontrar a mulher amada, mas, não a tendo encontrado, não se podia sujeitar ao extra- vasamento das paixões e sensações físicas.
Assim. por vários motivos, embora sofrendo amargurado, lutando contra seus impulsos amorosos e carnais, Roque conseguia manter- se distante das mulheres, procurando sublimar seus sentimentos, na tolerância com a mãe enferma e com a agressão velada e malévola dos colegas.
Naquele dia, um domingo, Roque entretinha-se cuidando de suas plantas. Apreciava muito esse contato com a Natureza. Dava-lhe alegria cuidar da terra, prepará-la. semear e acompanhar seu crescimento, zeloso e contente.
Aos poucos cuidara do pedaço de terra que não era grande e seu aspecto era viçoso c alegre. Plantara flores ao redor da casa, tentando amenizar o ambiente do lar triste e atribulado. Era também uma maneira de fugir à solidão e à tristeza. Cada flor ele a oferecia aos espíritos amigos que o acompanhavam, Principalmente à suave e comovedora figura de Geneviève.
Era sempre entre a angústia c o êxtase que Roque lhe evocava a presença. Por vezes, ela não vinha responder ao seu apelo, mas quando a sentia perto, um misto de alegria e desespero o acometia. Seu afeto por ela era tão real que se surpreendia tentando abraçá-la fisicamente, beijá-la com infinito amor. Mas ela lhe acariciava a cabeça com ternura e ele por vezes, entre chocado e temeroso, sem compreender bem seus sentimentos, receando ofendê-la com um amor que por vezes se lhe configurava muito humano, sentia tanto desejo de tocá-la, de sentir-lhe a presença de forma mais objetiva, que temia estar, com seu amor, maculando sua figura delicada e sublime.
Algumas vezes caía em pranto, onde a dor, a solidão, a mágoa e o sentimento de inferioridade o dominavam, mas depois, reagia, lutava, e ia trabalhar com a terra, cuidando de suas plantas com amor.
Era de manhã ainda e Roque pacientemente regava os canteiros de rosas com cuidado.. Sua mãe dormia ainda, sob o efeito de um sedativo que o médico lhe receitara para ajudá-la a suportar sua luta dolorosa.
De repente, quebrando a calma da manhã azulada, um carro desceu a estrada, detendo-se subitamente frente ao portão. Uma nuvem de poeira encobriu a entrada, mas apesar disso Roque reconheceu a visitante.
Era a filha de seu patrão. Conhecia-lhe o carro, apesar de tê-lo visto poucas vezes.
Limpando as mãos, Roque dirigiu-se à recém-vinda que rapidamente descera do carro e se dirigia para ele com passos firmes. Parou diante do portão, olhando-o com curiosidade.
Roque apressou-se em abri-lo e tirando o chapéu com respeito, perguntou : - Senhorita, precisa de alguma coisa?
- Sim - respondeu com voz firme. - Venho à sua procura. Preciso falar-lhe.
Um tanto embaraçado, Roque tentou esquivar-se: A moça sacudiu energicamente a cabeça.
- Não. Você é o Roque. Tenho-o visto trabalhando na fazenda de meu pai. E a você mesmo que procuro.
O tom decidido da moça não admitia dúvidas e deixava Roque sem alternativa.
Habituada a mandar, vendo todos os seus caprichos sa- tisfeitos, Leonor não hesitava diante dos seus objetivos. Beirava já os trinta anos, apesar de não aparentar mais do que vinte, graças a seu porte delicado e seus traços miúdos. Apenas o olhar era firme e sua decisão evidente.
Em que lhe posso ser útil? - indagou ele, com humildade.

- Não vai me mandar entrar? - perguntou ela, olhando curiosamente para a casa modesta.
Roque fez um gesto desalentado: - Sinto, senhorita. Casa de pobre não tem conforto para oferecer. £ muita honra recebê-la aqui.
- Mas eu preciso falar-lhe, não posso ficar aqui, em pé. O assunto é muito grave.
Roque não teve outro jeito senão conduzi-la à entrada da casa onde havia um banco acolhedor sob a fronde generosa de uma árvore amiga.
- Venha, senhorita. Aqui poderemos conversar. Ninguém nos interromperá.
Lançando olhares furtivos para a casa, refletia-se-lhe no olhar um brilho mau, Fora até ali decidida a saber o que havia atrás dos boatos que circundavam aquele homem e haveria de descobrir.
Vendo-lhe o olhar manso e a atitude serena, resolveu con- temporizar. Sentou-se no banco. Roque, encabulado, permaneceu em pé. A presença da moça fazia o sofrer. Sentia-lhe os pensamentos curiosos e pressentia que um perigo qualquer o envolvia com aquela visita.
- Seu pensamento procurou refúgio na prece e, aos poucos, recuperou a serenidade e a calma, Fixando a figura da moça, pôde ver- lhe a aura escurecida prenunciando a inferioridade do seu padrão mental, - Sente-se - disse ela. - Precisamos conversar. Irrita-me vê-lo aí em pé.
Roque apanhou um caixote e sentou-se frente à moça.
- Pode falar, senhorita.
- Muito bem. Direi o que me trouxe aqui. Mas antes, responda-me: Por que não me deixa entrar em sua casa e me recebe aqui, quase na estrada?
Roque fixou-a com olhar enérgico : - A casa é de pobre. Além disso, minha mãe é muito doente. Sua doença poderia impressioná-la desagradavelmente.
- Por que? Ela é um monstro por acaso? Estará deformada? formada?
Olhando-a nos olhos com firme energia Roque respondeu: - Sua doença é grave. e pode contaminá-la. Melhor deixá- la em paz. Vamos ao assunto que a trouxe a esta casa. Em que posso ser útil?
Leonor sentiu um arrepio pela espinha ao fixar-lhe o olhar, Havia uma força nele que não pôde definir, mas que a fez mudar o tom de voz. Foi com naturalidade que respondeu conciliadora: - Vim porque preciso dos seus serviços. Disseram-me que você detém poderes especiais. Estou atravessando um gra- ve problema.
- Certamente a informação que lhe deram não foi muito precisa. Não detenho poder algum.
Ela pareceu contrariada : - Por acaso não quer me atender? Eu soube que curou o filho da Jovelina, que estava quase morto; que o Zé deixou da pinga com reza sua e que o Antônio, que tinha saído de casa, voltou pra mulher e os filhos com sua intercessão. Vai negar isso?
Roque, calmo, esclareceu: - Apenas limitei-me a orar por eles, pedindo a Deus e a Jesus que nos socorresse. Mas eles receberam segundo o merecimento.
- Você é um homem estranho ~- murmurou ela, olhando-o com curiosidade, - Mas seja como for, você precisa me ajudar.
Roque olhou-a bem nos olhos enquanto respondeu : - Meus recursos são poucos. Contudo, se depender de mim, estou às ordens.
Ela sorriu com certa frieza: - Está bem. Agora começo a falar Meu caso é simples.
Estou esperando um filho. Não o quero. Depois, sou solteira, já sabe como meu pai é atrasado. Vai me criar problemas. E eu também não quero. Será um impecilho em minha vida. Quero casar. Preciso estabilizar minha vida e isso vai impedir-me.
Roque estava atônito. A crueldade daquela mulher o deixou quase sem resposta. Ela continuou: - Pois bem, preciso de você. Quero que, de qualquer forma, provoque o aborto.
- Eu? !! - - murmurou Roque, aturdido, - A senhora está cometendo um engano. Não tenho nenhum conhecimento de medicina. Depois, o que deseja é um assassinato. Mesmo que soubesse como, eu não o cometeria.
- Por que não? - ajuntou ela, com rancor, - A res- ponsabilidade é toda minha.
Ele sentiu uma piedade imensa por aquela mulher que re- cusava conscientemente a bênção da maternidade.
Procurou dissuadi-la.
- Pense bem, senhorita. Acredito que sendo solteira e conhecendo a maneira de ser do Coronel, esse filho lhe trará muitos problemas,, mas tudo poderá ser solucionado. Nós poderemos pensar numa maneira de salvar essa criança.
- Como? - perguntou ela com ironia.
Ignorando deliberadamente o tom duro, Roque continuou : - A senhorita poderá fazer uma viagem. Seu pai não saberá, quando a criança nascer. Depois, se não quiser ficar com ela dará a alguém para criar.
- Bem, se vê que você não me conhece. Já pensei bem sobre o caso. Não quero que essa criança nasça. E quando eu resolvo, vou até o fim. Incomoda-me esse mal-estar e muito mais me incomodará daqui por. diante. Não quero.
Vendo que Roque ia continuar arrematou com voz fria e colérica: - Vai me ajudar ou não a acabar com isso?
- Não - disse Roque, com firmeza, - Não posso. Não o farei.
- Se você não fizer o que quero, posso arrasá-lo a qualquer hora. Ainda não pensou que está em nossas terras e que a uma palavra minha poderá ser jogado na rua? Roque, com voz triste mas firme, tornou: - Não faça isso. Não mate essa pobre criança que não tem culpa de nada. Acredita que uma vida possa ser por nós inutilizada sem que grandes calamidades nos atinja o coração? Quando um óvulo é fecundado no ventre materno, há um espírito que sob as bênçãos de Deus a ele se une em busca de uma nova encarnação na Terra. Ele traz um programa de ação que, se cumprido, o ajudará a progredir espiritualmente. Deus em sua infinita bondade quase sempre reúne pela reencarnação espíritos que se amam ou que trazem tarefa de reajuste afetivo.
A moça o ouvia um pouco admirada e perguntou: - Você acredita que esse corpo tenha uma alma. é isso?
- Sim. Eu acredito que nós todos somos imperfeitos e reencarnamos muitas vezes na Terra para aperfeiçoamento do nosso espírito. Quase sempre nos unimos a devedores de outros tempos, a inimigos de outras eras para nossa redenção ou reencontramos entes queridos do passado para juntos continuarmos nossa colheita de progresso. Por isso lhe peço. Deixe essa criança nascer! Pode ser alguém que lhe foi muito querido em outra vida!
A moça casquilhou uma risada escarninha: - Você acredita mesmo nisso? Depois, se sua teoria absurda fosse verdade, poderia ser um inimigo meu, portanto é melhor que eu me livre dele enquanto posso…
- O que será pior, porque isso aumentará sua revolta e ele poderá permanecer a seu lado, prejudicando-a muito, levando-a até à loucura ou à morte.
Ela empalideceu: - Cala essa boca agourenta. E isso o que você quer! Mas não adianta. Não me vai convencer. Sei o que estou fazendo. Não acredito no que diz, mas se for verdade corro o risco. Quero ver quem pode mais!
- Vamos logo, Roque, você vai ou não fazer o que quero?
- Não sei fazer isso e você sabe que mesmo que soubesse não faria. £ um crime e nós não podemos executá-lo.
Ela fuzilou-o com o olhar.
- Pois acho bom atender, porque senão você é que ar- cará com as conseqüências. Darei dois dias para você pensar. Já vê que sou paciente. Enquanto isso, pense bem na maneira de resolver meu problema.
Voltarei dentro de dois dias, Pense bem.
E. deixando Roque angustiado, levantou-se bruscamente e saiu levantando grossa nuvem de pá.
Com o coração apertado, Roque sentiu-se envolver por grande melancolia. Como ir novamente em busca de outro lugar para viver? Sua mãe estava cada vez pior. Tinha serias crises de demência, vendo-se apodrecer em vida. Sua moléstia agravara-se e. condoído. Roque procurava aliviar-lhe os sofrimentos. Para onde ir? Ninguém aceitaria a presença de sua mãe. Por isso fora residir tão retiradamente. Pensava permanecer ali até que ela desencarnasse.
Sabia que a filha do Coronel não mentira. Era capaz de fazer o que dizia. Conhecia-lhe as atitudes endurecidas e frívolas.
O crepúsculo caíra de todo. Olhando o céu com preo- cupação e angústia, murmurou com lágrimas nos olhos: - Deus meu! Ajudai-nos mais uma vez. Vós que tanta bondade tendes para comigo. Conduzi nossos passos e protegei minha pobre mãe! Senhor, tende piedade também desta pobre mulher! Esclarecei- lhe o espirito dementado. Dai-lhe compreensão para que não pratique semelhante crime. Oh! Senhor, que aquele espírito possa reencarnar para cumprir vossos desígnios de esclarecimento e de paz!
Roque ajoelhara-se na terra dura, cabeça alçada para o alto, na manifestação de fé. E uma brisa suave, conduzindo branda luz o envolveu, acariciando-lhe o corpo e sossegando- lhe o coração.
Um vulto suave de mulher aproximou-se luminoso e suave. Acariciou a cabeça pendida de Roque, murmurando-lhe ao ouvido com carinho.
- Gustavo! Tem coragem. Deus não dá o fardo maior do que podemos carregar, nem faz com que seus filhos pereçam no abandono. Tem fé. Deus está contigo e não te desampara.
Roque não a viu, nem lhe registrou as palavras, mas uma doce sensação de conforto balsamizou-lhe o coração dolorido.
Sim. Ele tinha fé! Deus os ampararia. Não devia temer as ameaças daqueles que não têm condições ainda de compreenderem a verdade, nem de enxergarem as realidades da vida maior.
Levantou-se decidido e com passos firmes penetrou na casa modesta. Foi até o quarto de sua mãe. Ela, encolhida a um canto, sentada no chão duro, permanecia com a cabeça envolvida em panos de cor indefinida.
Com o coração apertado pela piedade. Roque aproximou- se dizendo com voz doce: - Mãe, sou eu! Tira esses panos de sua cabeça, vem, levanta-te dai.
Ela permaneceu quieta. Ele insistiu: - Mãe. levanta-te. Vem, sou eu. É o Roque que está aqui.
De repente, Maria levantou-se.
- Ela já foi embora? - perguntou desconfiada. Julgando que ela se referisse à visita inesperada, tornou: - Já. Já foi.
Maria descobriu-se lentamente e foi acometida de um acesso furioso.
- Mentiroso! Até você agora mente para mim? Até você? Veja, ela está aí, rindo-se de mim.
- Ela quem? - indagou Roque preocupado.
- Ela! A Baronesa. Ela, linda, rica, poderosa! Ri de mim, do que sou agora! Não a vê?
- Sim - tornou Roque conciliador. - Sim. Não tenha receio, ela não lhe poderá fazer mal.
- Eu sei - reconheceu ela mais calma, - Mas ela vem rir de mim. da minha dor. Olhe, não se ria não.
Seus olhos abriram-se desmedidamente fixando um ponto longínquo, depois continuou: Dizendo isso aprumou-se da pose de receio. e de pavor enrijeceu a fisionomia. Um brilho orgulhoso transpareceu- lhe no olhar.
- Minhas jóias! Quero minhas jóias! Mande entrar minha camareira. Preciso escovar meus cabelos, cuidar de minha pele! Andou pomposamente pelo quarto acanhado, sentando-se no leito pobre com refinada elegância.
- Preciso preparar-me! Vou ver o Barão. Eu quero minhas jóias - bradou colérica -, por que não me obedecem? Ah! aqui estão. E com sorriso de satisfação, ela assumiu a atitude de quem coloca colares e pulseiras. Ajeitava os cabelos desgrenhados, manifestando íntima satisfação. Depois de algum tempo sua fisionomia transformou-se de novo: - O Barão! Ah! o pavilhão de caça. Um encontro de amor! Ele é meu. - Sorriu sinistramente e continuou: - O Barão não me ama. Agora é dela. Mas hoje me vingarei. Traidor imundo, vai pagar-me.
Roque sempre assistira às crises maternas com paciência e tristeza, em preces e cuidados. Muitas vezes ela assumira atitudes de grande dama e títulos de nobreza, mas jamais mencionara esses detalhes e Roque ouvindo-a, sentiu imenso terror, Seu coração foi acometido de um medo inexplicável. Parecia-lhe que algo terrível estava por acontecer.
Lutou para dominar-se. Grossas bagas de suor desciam- lhe pelas têmporas. Sentiu vontade de correr, de abandonar a mãe ali para sempre. Ela continuava: - Ele vai pagar-me. Ela vai deixá-lo para sempre! Mas. . . ele está morto, sangue por toda parte. Sangue!
Gritando assustadoramente, Maria caiu sobre o leito de- sacordada e Roque saiu dali correndo apavorado, sem poder definir ou compreender o que sentia. Correu alguns metros distanciando-se da casa e depois sentou-se sob uma árvore procurando acalmar-se, Não era normal sua atitude. Sua mãe nunca o agredira, não era para temer. Ao mesmo tempo sabia que não era dele que tinha medo, mas de algo desconhecido. Sentia uma inexplicável dor no peito, aguda e terrível.
Aos poucos essa sensação foi se acalmando e ele pôde pensar com mais clareza. Sabia que estava unido à mãe por um drama do passado, do qual precisava libertar-se. Seria isso que o fizera sair apavorado?
Mais calmo, orou novamente, pedindo paciência e com- preensão para suportar a prova até o fim. Sentindo-se mais refeito, voltou sobre seus passos, indo socorrer a pobre mãe desacordada e exangue.



Capítulo XXVI
Uma ameaça inesperada Dezesseis horas. O sol estendia-se sobre a terra. crestando a vegetação empoeirada da estrada. À sombra, sentado sob uma árvore ao lado da casa humilde, Roque entretinha-se com Leitura. Espirito amante do saber, adquiria todos os livros que podia e, com a leitura, tentava manter um padrão de conhecimentos que o colocava a par de tudo quanto ia pelo mundo, embora vivesse recluso naqueles ermos, entre pessoas simples e sem grandes conhecimentos.
De repente, Roque levantou o olhar auscultando a estrada com certa inquietação. Três dias haviam transcorrido e nada da filha do coronel, isto não o tranqüilizava, muito ao contrário, sabia que Leonor não era pessoa de desistir quando se propunha a alguma coisa.

Dera-lhe um prazo: dois dias e; até aquela hora não se manifestara, muito embora já se tivesse esgotado o tempo.
Roque sabia que ela voltaria. Não sabia quando, mas ela viria. Continuou a leitura procurando, sem que pudesse, esquecer a sensação desagradável, Não se enganava. O ruído do automóvel, a poeira, anunciou-lhe que o momento temido chegara. Leonor estava de volta!
Com ar de desafia, pastou-se em frente de Roque que em pé a saudara timidamente: - E então? - indagou com voz cortante. - Vim buscar a resposta. Vai ajudar-me?
Roque olhou-a nos olhos procurando envolvê-la com eflúvios de paz.
- Se eu puder ajudá-la, conte comigo, mas não para um crime e sim para salvar uma vida. Tenha a certeza de que a senhorita mudou de idéia quanto à criança.
Leonor, que às primeiras palavras esboçara irônico sorriso, fechou a fisionomia onde havia fundo rancor.
- É sua última palavra? Recusa-se a fazer o que quero? Roque sem desviar o olhar repetiu: - Estou pronto a cuidar da criança, a fazer o que for possível por ela e por você. o que posso fazer.
Uma onda de rubor coloriu o rosto magro e ossudo da moça.
- Vai arrepender-se. Vai ver. Breve ouvirá falar de mim.
E sem que Roque pudesse detê-la voltou-se rapidamente, tomou assento no carro, manejando-o furiosamente, desapareceu. Roque, apesar de preocupado, sentiu certo alívio Afinal o que poderia ela fazer? Se o coronel o despedisse, não teria outro remédio senão ir-se dali. Para a cidade não lhe era possível com a mãe daquele jeito. O melhor seria embrenhar-se no mato, e arranjar um canto onde pudesse construir uma cabana e viver ao lado da mãe enquanto da vivesse.
Não podia abandoná-la e se a levasse para a cidade, certamente o obrigariam a interná-la. Se não houvesse outro meio, viveriam da pesca e da plantação. Tinham algumas galinhas. Não tinha receio. Sabia que poderia defender-se. Compraria um saco de sal e de açúcar e para os dois daria para muito tempo.
Mais calmo, Roque pensou na criança que não poderia nascer e em Leonor que tão friamente a condenara à morte. Como era infeliz aquela mulher! Num assomo de piedade, orou por ela pedindo a Deus que lhe esclarecesse o espírito endurecido.
A noite começava já a aproximar-se e Roque dirigiu-se apressadamente à cozinha. Precisava aquecer o jantar para os dois. Os dias que se seguiram transcorreram calmamente. Nenhuma novidade na fazenda onde trabalhava nem em casa5 a não ser as costumeiras crises de Maria. Roque, aos poucos, foi-se esquecendo do caso da filha do Coronel.
Uma semana após, soube da alarmante notícia: Leonor estava enferma, passava mal. Durante a madrugada, o corre- corre na fazenda fora grande e quando ao clarear do dia Roque se dirigia ao trabalho, logo notou algo de anormal, Não lhe foi difícil saber do que se tratava.
O coronel, às pressas, mandara buscar o médico na cidade e havia horas que o facultativo estava ao lado da enferma. Diversos medicamentos tinham sido comprados na cidade em correrias e confusão.
Roque sobressaltou-se. O que teria feito Leonor? Apesar da confusão da casa-grande Roque e outros trabalhadores realizaram normalmente sua tarefa. Estava já quase na hora de ir para casa, quando vieram chamá-lo. O Coronel queria vê-lo urgente.
Fundo suspiro saiu do peito do Roque. Pressentia que novos problemas tinham surgido não sabia como, mas via-se em dificuldades. Instintivamente procurou orar em pensamento pedindo forças e proteção.
Limpou as mãos calosas afeitas ao trabalho rude e, ajeitando a camisa modesta, chapéu na mão, dirigiu-se à varanda da casa- grande. A mestiça que trabalhava na cozinha o fez entrar dizendo com ar espantado: - A coisa está feia, Roque. S bom saber. Nunca vi seu Coronel tão brabo. Tá esperando no escritório.
Calado, Roque dirigiu-se à pequena sala de madeira onde o Coronel tratava os assuntos administrativos da fazenda. Bateu na porta discretamente.
- Entra - resmungou a voz forte do Coronel.
Empurrando a porta que se achava apenas encostada, Roque entrou. Embora respeitoso, mantinha uma atitude digna e serena.

- Feche a porta - ordenou o patrão com rispidez.
O Coronel era homem temido nas redondezas… Político e violento, era parcial em suas atitudes, deixando-se inúmeras vezes arrastar pela força das suas paixões ou opiniões nem sempre justas. Cenho carregado, pálido, nunca Roque o vira com tanta violência no olhar nem tanta dureza na voz.
- Aproxime-se - ordenou com dureza.
Roque acercou-se da escrivaninha do patrão conservando-se em expectativa. O Coronel fixou-o como se quisesse ler o que lhe ia na alma.
- Às ordens, Coronel, - O assunto é muito grave. Tão grave que se não desejasse saber algumas coisas, sua vida que não vale nada já teria se acabado. Roque sentiu que a situação era pior do que imaginara. O que lhe teria dito Leonor?
Sem baixar o olhar, Roque controlou o tom de voz t respondeu com delicadeza: - Se eu puder ajudar, com muito gosto.
.A atitude digna e humilde de Roque pareceu irritá-lo ainda mais: - Vai responder o que eu lhe perguntar - berrou ele com raiva. Roque manteve silêncio. O Coronel olhou-o com fúria: - Que sabe sobre minha filha?
Apesar de esperar alga sobre Leonor, a pergunta direta raivosa o desconcertou um pouco: - Como?! Sabe como… - balbuciou ele confuso. O Coronel esmurrou a mesa com força : - Quem pergunta sou eu, cretino. Responda: que sabe sobre minha filha?
- Eu?! Senhor Coronel, quase nada, ou melhor, sei o que os outros sabem sobre ela…
- Não me irrite mais - berrou ele furioso. - Estou procurando ficar calmo. Não me obrigue ao que estou procurando evitar.
Responda: o que foi ela fazer em sua casa nestes dias? Por que ela ia à sua procura? Responda.
Olhava-o colérico e parecia prestes a agredi-lo.
- Bem, Sr. Coronel. Ela foi para pedir um conselho. O si. sabe, as pessoas me procuram pata conversar, pedir conselho.
O Coronel emitiu um grunhido raivoso: - E você acha que eu acredito. Minha filha, moça estudada, que sempre dispensou conselhos e soube se conduzir, ir à sua casa se aconselhar? Acha que vou acreditar nisso?
- É a verdade, Sr. Coronel. Ela queria falar comigo.
- Sobre o quê? - perguntou ele desconfiado.
- Assuntos particulares dela, Sr. Coronel.
- Que intimidade tinha você com ela para que ela o procurasse para aconselhar-se sobre assuntos particulares?
- Nenhuma, senhor. Nunca tinha conversado com ela, mas o povo fala muito e ela pensou que eu pudesse lhe valer. infelizmente, com o Sr. sabe, nada posso; sou ignorante e simples; não pude ajudar. O Coronel cofiava a barba em ponta e seu olhar arguto tentava devassar o íntimo daquele homem. Ao cabo de um segundo de silêncio tornou: - Que espécies de relações mantinha com ela? Roque não entendeu bem: - Como eu disse, senhor, conversei com a senhorita pela primeira vez quando ela foi procurar-me.
Pelo olhar do Coronel passou um brilho malicioso, pareceu acalmar-se e com voz melosa perguntou : - Que acha da fazenda? Surpreendido, Roque respondeu: - É uma bela propriedade, senhor.
- Você gostaria de ter uma igual, não é verdade? Todos os peões como você têm esse sonho.
Sua voz era persuasiva. Roque respondeu serio : - Qualquer homem se orgulharia em possuí-la. Contudo, jamais tive esse pensamento, seu Coronel. Sou homem rude, simples, não saberia cuidar de tudo..
Pelos olhos do Coronel passou um brilho de maldade: - Minha filha é muito rica. Única herdeira. Você gostaria de se casar com ela, não é, de ser o dono de tudo?
Roque empalideceu. Compreendeu onde o outro queria chegar.
- Claro que não, Sr. Coronel. Quem sou eu para aspirar semelhante coisa? Não passo de um pobre diabo sem nada de meu. Nunca ousaria pensar nisso.
- Pois pensou. Pensou, não é? agarrou-o com fúria pelo colarinho - pensou tanto que sabia que eu jamais con- sentiria num casamento desses e por isso iludiu a boa-fé de Leonor e a seduziu. Pensou que iria conseguir seu intento. Roque estava branco e sem ação. Jamais tal idéia lhe passara pela cabeça. Não sabia o que. responder.
O Coronel, notando-lhe a palidez, vociferava com raiva: - Culpado, sim. Sedutor infeliz. Pensa que darei o con- sentimento? Mato-o como a um cão.
Perturbado, Roque não conseguia escapar daquelas mãos que como ferro o seguravam.
- O senhor se engana, Coronel - balbuciou com voz entrecortada, - Não fui eu. A criança não é minha.
Ele deu um pulo de raiva: - A criança? Como sabia? Quem senão o sedutor poderia saber que ela estava esperando criança?
- Coronel, eu juro que não fui eu. Dona Leonor foi me procurar para dar um jeito..
- Assassino! Ainda tem coragem de confessar isso? Leonor passa mal e você confessa que ela o procurou para dar um jeito? Se ela morrer, ouça bem, se ela morrer, você vai pagar caro. Assassino maldito.
Enlouquecido. o Coronel segurava-o com uma das mãos e com a outra dava-lhe murros, dando vazão à féria que o acometia. Roque sentia que o sangue lhe escorria pelo nariz e ficou atordoado. A fúria do Coronel era incontrolável. Roque pro- curava desviar-se sem conseguir.
Foi nesse instante que o capataz irrompeu na sala acompanhado de uma criada.
- Senhor Coronel. Venha. D. Leonor está mal, venha depressa.
Essas palavras foram como um jorro de água fria sobre a fúria daquele homem. Atirou Roque para o capataz com um empurrão dizendo: - Cuide desse cachorro, Não o deixe escapar. Se ela morrer, nem o diabo o poderá salvar.
Saiu furioso enquanto Roque seguro pelo capataz tentava conter o sangue que bordejava impetuoso. Américo o olhava com ar de divertimento: - Então foi você, hein? Bem que eu desconfiava da sua santidade, Onde já se viu homem sem mulher? Não lhe gabo o gosto. Tanta morena bonita e você logo se engajou com d. Leonor.
Roque nem se deu ao trabalho de responder. Que lhe adiantaria? As coisas tinham acontecido de um jeito que por mais que tentasse explicar àqueles homens maliciosos e mal- dosos, eles não iriam acreditar. Suspirou fundo. Confiava em Deus que d. Leonor dissesse a verdade, dando o nome do culpado. Só assim poderia libertar-se de tão desagradável suspeita.
O capataz segurou-lhe o braço com força, empurrando-o para a porta. Roque obedeceu resignado. Confiava em sua inocência. Tudo se esclareceria.
Américo levou-o a um barracão de madeira, no qual guardava material, e brutalmente o empurrou para dentro: - Fica aí, praga. Vou fechar por fora, mas aviso que estou por perto; se tentar fugir leva fogo.
Foi com o peito oprimido de angústia que Roque viu a porta fechar-se e ouviu o ruído da corrente sendo passada no ferrolho, o cadeado se fechando. Estava prisioneiro. Quanto tempo iriam deixá-lo ali?
Subitamente lembrou-se de sua mãe. Era ele que lhe preparava a refeição modesta e que a forçava a lavar-se, a trocar de roupas. Era ele também que lhe ministrava a dosagem de remédio que a ajudava a agüentar a decomposição física sem que o mau cheiro a enlouquecesse ainda mais.
- Meu Deus! - gemeu ele com voz dorida, - O que será dela se eu não voltar?
Se o Coronel o mandasse matar, o que para ele não era difícil, quem olharia pela infeliz? Preocupado. Roque sentiu- se impotente diante dos acontecimentos. Porém, tentou reagir. Era inocente. Tudo não passava de mal-entendido que logo seria esclarecido. Leonor falaria e certamente tudo terminaria bem. Resolveu manter calma e esperar. Não tinha nada a temer.
Sentou-se em uma tábua, procurando serenar o coração atormentado, Se ao menos pudesse orar!
Procurou levar a pensamento em Deus e abriu seu coração pedindo ajuda para sua pobre mãe, para a tresloucada moça, cuja vida corria perigo, e até pelo Coronel tão infeliz quanto ela.
Sentiu-se reconfortado, percebendo a brisa suave que o envolveu e um delicado perfume que o fez identificar plenamente a figura querida de Geneviève. Seus lábios entreabriram em inefável sorriso. Ela estava a seu lado. Não a via, mas sabia que ela estava ali, envolvendo-o com emanações suaves de amor.
Respeitoso murmurou: - Generosa benfeitora, ajuda-nos a todos. Principalmente a mim tão fraco e cheio de falhas! Ampara-me para que eu possa continuar a tratar minha pobre mãe que enlouquece de dor.
Ao cabo de alguns momentos sentiu-se mais calmo. Enquanto a suave presença daquela benfeitora o envolvesse, não poderia temer a maldade de ninguém.
O tempo foi decorrendo e ninguém aparecia. A noite desceu e Roque procurou o lampião, mas não encontrou fósforos para o acender.
Dentro em pouco a escuridão era total e a inquietação voltou a atormentar-lhe o coração. E sua mãe? O que estaria pensando? Ela tinha medo do escuro, havia épocas em que as crises se agravavam à noite. Deveria estar desesperada à sua procura.
Precisava escapar dali de qualquer forma. A escuridão dentro do barracão era total, mas se ele pudesse despregar uma tábua ou duas, poderia passar pelo vão. A noite encobria sua fuga. Depois. quando tudo se esclarecesse, ele poderia voltar e explicar.
Ansioso, procurou alguma coisa para tentar arrancar as tábuas. Havia cordas, barbantes, arames etc., mas não conseguiu encontrar nenhuma ferramenta. Lentamente apalpou tudo que pôde na esperança de achar o que precisava. Mas naquela escuridão não conseguiu localizar nada que pudesse utilizar. Colocando várias tábuas e caixas uma sobre as outras conseguiu subir até o forro que também era de madeira. As tábuas estavam bem pregadas, e nem na parte onde elas se uniam era-lhe possível abrir uma brecha.
Foi quando ouviu o ruído da corrente no trinco da porta. Rápido, espalhou as coisas provocando ruído. O capataz entrou trazendo lampião aceso na mão.
- Que faz você aí dentro com tanto barulho?
- Nada ~- balbuciou Roque. Estava escuro, quis ir perto da porta e caí.
- Hum. . . - resmungou o outro. - Vim aqui pra lhe dizer que as coisas vão de mal a pior. Não queria estar na sua pele, diabo.
D. Leonor? - perguntou Roque aflito.
- É . . D. Leonor - e terminou maldoso, - Está preocupado com ela, não? Pois é pra estar. O Coronel levou ela pro hospital na cidade. Ela parecia morta. Eu vi. Acho que ele não percebeu, mas ela já está morta. Assim a Vitorina me contou.
Uma onda de pavor invadiu o coração de Roque. Se Leonor morresse sem falar, estava perdido. Precisava fugir dali o quanto antes.
- Seu Américo - falou com voz firme, olhando-o bem nos olhos -, deixe-me ir embora.
O outro pareceu assustado : - Embora?! Você conhece o Coronel. Ele manda e eu obedeço.
- Mas eu juro que não fui eu. Nem conhecia d. Leonor de perto antes dela ir à minha casa há duas semanas. Foi um mal-entendido.
- O que você tem é medo. O medo dói. Mas eu não acredito e mesmo que acreditasse nada poderia fazer, Se você escapa eu é que levo - abanou a cabeça decidido. - Fica aí quieto. Num mandei você arranjá encrenca.
- Mas eu preciso tratar minha mãe. Ela é doente e se eu não voltar pra casa ela vai ficar desesperada.
O capataz olhou Roque com certa ironia : - É? Pois chegou a hora de você demonstrar seus poderes, Não é você o "santo" dos milagres? Fica aí e faz uma mágica, se puder.
Sem ligar para o desespero de Roque, saiu rindo maldosamente. Mas, distraído na conversa, Américo deixou o lampião sobre uma mesa rústica, o que de certa forma confortou Roque. A luz o ajudaria a encontrar uma maneira de fugir. Percorreu o olhar pelo barracão onde inúmeras caixas, objetos de uso na lavoura, adubos etc., lotavam boa parte. Começou a busca. Precisava ferramentas. Tinha que sair dali o mais rápido possível, buscar a mãe e irem-se embora daquele local.
Não encontrou nada que pudesse utilizar. A madeira das paredes era grossa e muito bem pregada. Como fazer? Se Leonor morresse o Coronel o mataria, não duvidava disso. Não temia a morte propriamente, mas não queria abandonar a mãe.
De repente teve uma idéia. Podia cavar um buraco no chão por baixo da parede e sair do outro lado. Mas, com o quê? Procurou febrilmente e conseguiu encontrar uma pá entre urna pilha de tábuas usadas. Radiante, apanhou-a, procurou estudar bem a posição do galpão e lembrou-se que um dos lados dava para o mato, distando uns quatro ou cinco metros, sendo fácil escapar. Examinou bem o local e pacientemente começou a escavação.
Porque não pensara nisso antes? O trabalho era demorado e se o Coronel voltasse estaria perdido. Ativamente começou a cavar. A terra era muito dura e o suor em grossas bagas lhe escorreu pelo corpo. Mas Roque não desanimou. Cavava, cavava sempre como se a cada esforço novas energias lhe multiplicassem as forças. Apesar de acostumado ao trato rude da roça, seus braços doíam e as costas pareciam partir-se no esforço hercúleo. Felizmente, os caibros eram distanciados permitindo que pudesse passar.
A noite ia alta e Roque sem descansar continuava abrindo o buraco que o levaria à liberdade.
Os galos cantavam anunciando a madrugada quando ele conseguiu finalmente esgueirar-se pelo vão. Sujo de terra e suor, sentindo na boca um gosto amargo e o corpo semi-adormecido pelo esforço, respirou fundo quando se viu do lado de fora.
Olhou para os lados e não divisou ninguém. Dentro em pouco o dia começaria a raiar e a vida na fazenda se movimentaria. Precisava agir depressa. Sabia que ao darem por sua fuga o caçariam como bicho.
De um salto, ganhou o mato, rumo à sua modesta casa. Ao chegar, cauteloso, não divisou nenhuma luz. Tudo escuro e silencioso. Foi até o poço puxou um balde de água e lavou-se.
Sentiu-se mais refeito depois disso. Cautelosamente entrou. Maria estirada no leito gemia desalentada.
- Mãe - disse com doçura.
Apenas um gemido foi a resposta.
- Mãe - renovou ele dirigindo-se ao leito - levanta, vamos partir.
- Para onde? Sinto-me cansada, não quero ir.
- É preciso.
Certificando-se de que ela estava calma, rápido, enquanto falava, estendeu um lençol e colocou dentro as roupas de Maria fazendo uma trouxa com seus pertences.
- Levanta, mãe Vamos embora. Depois eu explico tudo, precisamos sair daqui antes de amanhecer Correu do lado de fora e pegou a pequena carroça arte- ando o burro que possuía e em poucos minutos foi colocando a modesta mudança dentro dela. Tudo pronto, as provisões, a água nos garrafões. mas Maria apática negava-se a ir.
- Mãe, a senhora gosta de mim? Maria olhou-o com adoração.
- Pois o Coronel quer me matar. Se não formos embora minha vida corre perigo.
Maria saiu da apatia habitual.
- Matar?
Levantou-se apavorada e acompanhou o filho subindo na carroça. Os primeiros raios solares já coloriam o céu nos albores do amanhecei quando eles deixaram a casa modesta rumo ao desconhecido.

Capítulo XXVII
A fuga espetacular Conduzindo a modesta carroça, Roque insistiu com a mãe que comesse um pedaço de pão. Ele mesmo procurou alimentar-se para ganhar novas energias. Desde a véspera não comiam e o estômago lhe doía de ansiedade e fome. Não foi pela estrada usual. Quando dessem pela sua fuga certamente o procurariam por toda parte. Tomou um atalho que o levaria para longe da cidade. Pretendia esconder-se temporariamente na mata até que pudesse dar um rumo definido às suas vidas. Levava provisões para algum tempo. Conhecia bem aquelas zonas. Várias vezes embrenhara-se na mata para atender algum doente em lugares distantes. Sabia onde poderiam esconder- se.
Maria obedecia apática às determinações do filho querido. Deprimida e acovardada frente à doença horrível, extravasava sua revolta nas crises de inconformismo e demência. para depois mergulhar esgotada na depressão e na indiferença. Não perguntou o porquê da fuga nem da perseguição do Coronel. Nada lhe importava senão o filho e sua própria doença.
Estando a seu lado, acalmava-se. Assim, viajavam em silêncio. Roque, mergulhado em seus intimos pensamentos conduzia com a máxima pressa a humilde carroça. Embora lutasse por manter o ânimo forte seu coração estava pesado e oprimido. O Sol ia alto já e a tarde em meio, e Roque lutava de- sesperadamente contra a angústia e o desânimo. Olhou de relance para a figura curvada de Maria e a piedade confrangeu- lhe o coração. Parecia um espantalho envolta naqueles panos de cor indefinida, procurando ocultar até dos próprios olhos o estigma doloroso da deformidade e da putrefação de seus membros que a cada dia mais se evidenciava. O líquido, a serosidade que escorria das mãos, da ponta das orelhas e dos pés, manchava os trapos que a envolviam, rescendendo desagradavelmente . O sol era forte e Roque sabia que fazia-lhe muito mal expor-se a ele. Abriu um guarda- chuva e obrigou-a a cobrir-se.
A viagem decorria com calma e cada vez mais embrenhavam- se na mata. Roque pretendia distanciar-se o máximo da fazenda: Quando a noite começou a descer, procurou lugar para descansarem. Desejava continuar viagem, mas o animal precisava refazer-se; e eles também. Estava exausto. Preci- sava dormir. Encontrou uma pequena clareira onde parou e procurou acomodar a mãe da melhor maneira, estendendo o velho colchão sobre alguns panos e obrigando-a a deitar-se. El a relutou porquanto queria que ele se acomodasse nele4 concordou por fim quando viu que o filho improvisou na relva uma cama onde dizia estar muito bem. A noite descera de todo e Roque sentindo o cheiro forte do mato e o ruído dos grilos, olhou o céu que por entre os galhos das árvores aparecia estrelado.
Tudo era calmo ao redor, A Natureza indiferente ao sofrimento e às lutas dos homens e apesar de ver-se constantemente agredida e depredada sabiá manter a serenidade, continuando seu trabalho incessante de mutação e progresso na manutenção do equilíbrio de suas forças, preservando a vida. Olhando o céu, Roque pensou em Deus! Murmurou sentida prece, agradecendo a bênção da liberdade, pedindo roteiro para seus passos futuros. Vencido pelo cansaço, adormeceu profundamente.
Quando acordou, já os primeiros albores da manhã des- pontavam no céu. O ruído dos pássaros alegres, o cheiro da mata, deram-lhe agradável sensação de viver. Levantou-se rápido. Sua mãe dormia. Acordou-a. Precisavam seguir viagem.
Fizeram uma refeição rápida e prepararam-se para partir. Antes do dia amanhecer de todo, já tinham reiniciado a viagem.
Roque eslava mais calmo. O repouso fizera-lhe muito bem. Maria também parecia melhor. Gostava de ficar longe do contato dos outros. Ninguém para recordar-lhe seu pre- cário estado, olhando-a com repugnância e curiosidade.
Durante mais três dias viajaram pela mata, por estreitas picadas onde a custo a pequena carroça conseguia passar, até chegarem às margens de um rio onde pararam por dois dias até que Roque pudesse construir uma balsa e com ela poderem atravessá-lo. Continuaram ainda mais dois dias, até que Roque divisou a pequena cabana onde - há algum tempo pernoitara, quando fora até ali em socorro do seu morador.
Chegara tarde e não pudera evitar a morte do seu ocupante. Entretanto comprometera-se com o agonizante em socorrer-lhe a pequena família, levando esposa e dois filhos pequenos para a cidade. Assistiu como pôde a todos e depois de sepultar o pobre homem conforme o prometido levara-lhe a esposa e os filhos à casa de parentes em Londrina.
A pequena cabana ficara abandonada. Lembrando-se da dificuldade de achar aquele local que ninguém conhecia, pois chegara lá com um parente do enfermo que fora buscá-lo es- pecialmente, tivera a idéia de esconder-se ali durante algum tempo.
- Chegamos, mãe. Eis nossa nova casa. Ficaremos aqui por enquanto.
Maria não respondeu. Era-lhe indiferente onde ficar. O importante era estar com ele e longe da curiosidade dos outros. Entraram. Apesar de humilde a cabana era bem protegida e seca. Apenas um cômodo. Uma mesa tosca, uma cama de casal. Havia poeira em todo lugar.
Apesar de cansado, Roque lançou-se à faxina. Limpou tudo e arrumou seus pertences da melhor maneira. Saiu em busca de lenha para o fogão e água. Sabia que havia uma nascente logo atrás da casa e que certamente por isso aquela família se instalara ali. A horta ainda estava viçosa, apesar do mato que parecia querer tomar conta de tudo. Alegre, conseguiu achar algumas verduras e algumas mandiocas. Providenciou logo o fogo e preparou uma refeição para os dois.
Maria não se interessava por esses trabalhos caseiros e Roque a poupava por causa da doença. Depois, queria evitar que ela contaminasse os alimentos com suas mãos sofridas.
A noite, estendeu a rede do lado de fora e enquanto olhava o céu pensava nos estranhos desígnios de Deus, que os levara até aquelas paragens perdidas, sozinhos e sofridos. Porquê?
Qual a ratão de tudo isso? Porque tinha que ficar solitário em companhia de sua pobre mãe. cuja vida a cada dia se esvaía?
Sabia que todo efeito tem uma causa. Que a justiça de Deus age sempre com a finalidade dotem.
O que se esperava dele nessas circunstâncias para que o bem se fizesse? Porque lhe concediam aquela oportunidade de isolamento completo em companhia da mãe, com a qual jamais tivera afinidade, mas que lhe competia compreender e amar?
Foi então que suave emoção o envolveu. Sentiu que a figura de Geneviève se desenhava li sua frente. Uma onda de calor banhou-lhe o coração carente de amor e de compreensão.
- Estás aqui - pensou com alegria, - Não nos abandonaste apesar de tudo.
Percebeu que ela sorria com doçura. Sentiu que suave emanação de luz saía-lhe do tórax iluminado, envolvendo-o em alegria e paz.
- Sim. Sou eu. Estou aqui. Jamais te abandonei. Continua tua tarefa, com a bênção de Deus.
Roque sentia-se mergulhado em suprema felicidade. Es- forçava-se por ver melhor a figura delicada de Geneviève sem poder compreender a avalanche de sentimentos que lhe bro- tava no íntimo.
- Ouve. Perguntavas o porquê da tua situação. Confia em Deus. Por ora dizer-te que tens a tarefa sagrada de iluminar esse espírito que está sob tua orientação. Ajuda Maria a compreender Jesus. Ama-a bastante para conduzi-la ao regaço do Senhor e só então, liberto do compromisso que te algema a ela, poderás alçar vôo rumo a planos maiores.
Abalado por intensa emoção, Roque sussurrou comovido.
- Fica comigo! Não me deixes! Tua presença nutre minha alma de paz e de alegria!
Geneviève sorriu com bondade: - Não posso estar constantemente aqui. mas virei vê-los sempre que puder. Mas estaremos unidos pela força do pen- samento. Que Deus te dê muita força e vos abençoe.
A figura radiosa diluiu-se ante os olhos ávidos de Roque e a sensação deliciosa da sua iluminada presença foi aos pou- cos desaparecendo.
Refeito das emoções, Roque procurou entender o que es- peravam dele. Iluminar a alma de Maria! Sim. Era isto. Sabia-a endurecida e indiferente, atravessando seu drama sem que pudesse amparar-se na fé e na resignação.
Ele tinha procurado orientá-la quanto à vida espiritual. mas ela se mantinha indiferente e fria.
- Preciso conseguir esclarecê-la - pensou -; e isso. Para isso estamos aqui, isolados e unidos pela mão de Deus.
Decidiu-se então a dedicar todos os minutos que pudesse nesse esforço. Deus certamente o ajudaria. E cerrando os olhos cansados, adormeceu sentindo dentro de si o dealbar de novas esperanças.



Capítulo XXVIII
A evangelização de Maria O vento soprava forte, balançando os galhos das árvores, e o céu coberto de densas nuvens anunciava a boerasca iminente. Afobado, Roque procurava recolher boa quantidade de lenha. pois não sabia quanto tempo a borrasca ia durar. Fazia duas semanas que estavam ali na cabana e Roque procurara com esforço e habilidade tornar a pequena cabana mais confortável. Atarefado, ia e vinha procurando recolher os utensílios c as roupas que estavam fora. Logo, grossos pingos de chuva começaram a cair e Roque entrou rápido, fechando a porta com cuidado de forma que a tranca de madeira grossa a prendesse com firmeza.
Suspirou aliviado. Conseguira recolher verdura, boa parte de lenha e prevenir-se do temporal que já desabava com força. Só então procurou a mãe que estava acocorada em um canto, cabeça enterrada na parede como querendo esconder-se. Roque procurou erguê-la.
- Mãe! Que foi! O que aconteceu…?
Maria não respondeu obstinando-se em permanecer como estava.
- Mãe - tornou ele com doçura. - Levanta-te, vem, estou aqui. Vem comigo.
Ela refutou, procurando resistir o mais possível. A custo o filho conseguiu levantá-la e fazer com que se sentasse na cama tosca. Maria soluçava doridamente. Comovido, Roque indagou : - Roque, eu preciso morrer! A loucura talvez venha em meu socorro! É tudo tão horrível!
Roque admirou-se. Raramente Maria durante suas crises apresentava tanta lucidez. Abraçou-a com carinho.
- Mãe! Devemos ter fé em Deus! Seremos resignados diante dos sofrimentos e provações que nos cumpre passar neste mundo. Maria soluçou ainda mais.
- Mas não é justo, Roque. O que me aconteceu não é justo! Seu desespero era tão evidente e dilacerante que as lágri- mas vieram aos olhos de Roque.
- Não diga isso, mãe. A justiça de Deus escreve direito por linhas tortas. Acredite que nós reencarnamos muitas vezes na Terra e resgatamos numa existência o mal que fizemos em outras.
- Não é verdade - gemeu ela. - Como posso pagar por faltas que não me lembro?
- Mãe, o esquecimento nos permite recomeçar nova vida, convivendo com pessoas que prejudicamos sem que a lembrança do passado dificulte ainda mais esse relacionamento. E bom esquecermos o mal que fizemos, mas todo mal revela ignorância e inferioridade e precisamos nos despojar dele para evoluir. Nunca lhe ocorreu que nós podemos ser companheiros de outras vidas reunidos no mesmo lar?
Por alguns instantes Maria olhou roque fixamente e estremeceu violentamente como que sacudida por forte emoção. Por um segundo pareceu-lhe ver o filho querido como um outra homem e essa percepção abalou-lhe profundamente os sentidos. Calou-se.
A impressão fugidia esvaiu-se, mas Maria não achou argu- mento para refutar.
- Filho, por mais que eu tenha sido culpada a punição é horrível!
- Sim, mãe. Compreendo sua dor. Mas Deus por vezes nos oferece o remédio amargo do sofrimento como forma piedosa de refazimento e de cura. E depois, mãe, que importa uma vida na Terra diante da eternidade? Que importa que todo nosso corpo de carne apodreça se nosso espírito há de libertar-se e seguir feliz, sereno, edificada e mais puro ruma a mundos de luz e de felicidade sem fim? Mãe, um dia deixaremos a Terra, iremos para a Pátria espiritual, nossa pátria maior. Teremos cumprido nossa missão na Terra. Estaremos leves e felizes.
- Filho - sussurrou Maria com voz triste -, estou tão cansada! Você diz isso com tanta certeza! Ah! como eu gostaria de pensar como você. Como eu gostaria de acreditar que algum dia, em algum lugar, eu poderei arrancar esses panos imundos sem que alguém me olhe com horror! Roque - soluçou ela com desespero -, hoje dois dedos da minha mão caíram em pedaços. como poderei atravessar isso sem enlouque- cer?
Laços Eternos Era a primeira vez que Maria aludia à sua doença com sinceridade. Roque sentiu-a mais consciente Imensa piedade banhou-lhe o espirito amoroso e ele começou a falar-lhe demoradamente sobre a vida espiritual.
— Mãe, a dor representa na Terra o chamamento eficaz para acordar nossos espíritos para a vida verdadeira. Deus é pai justo e bom.
- Mas Roque - objetou ela, com voz triste -, nunca fiz mal a ninguém. Como acreditar que minha doença seja justa? Como não me sentir abandonada por Deus, vendo a vida sem piedade arrancar-me o corpo aos pedaços, sem que eu possa sequer ter um pouco de esperança? Não - soluçou ela angus- tiada. - Não vejo essa justiça que me pune tão rudemente.
Lágrimas amargas escorriam-lhe pelas faces avermelhadas e intumescidas. Roque abraçou-a com carinho tornando com voz terna: Mãe! Não devemos julgar o que não Conseguimos entenda.
A senhora sempre foi uma boa pessoa, não tendo agravado a ninguém, mas isso aconteceu agora em sua existência atual. Como podemos saber a extensão dos nossos erros em vidas anteriores? Como não ver o que nos acontece hoje, dentro de um fatalismo que não podemos evitar, seja fruto do que fizemos em outros tempos, habitando outro corpo de carne? Como não entender que ninguém pode fugir ao cumprimento das Leis de Deus que dão a cada um segundo suas obras? Pense mãe e sentirá que a doença dolorosa que a atingiu tem sua origem em épocas passadas e representa a colheita da sua própria semeadura.
Maria ergueu para ele os olhos cheios de lágrimas.
- Você acredita mesmo nisso? Teremos vivido em outro lugar como outra pessoa?
- Sim - garantiu Roque com voz firme. - Vivemos em outras épocas com outros homens, mas nosso espírito é sempre o mesmo. Estagiamos diversas vezes na Terra, para aurir lições de tolerância e de amor. de evolução e progresso. Mãe, a senhora não sente por vezes como que repetindo cenas já vi- vidas? Não lhe parece por exemplo que estamos unidos nós dois por sentimentos fortes e antigos?
- Sim - murmurou ela pensativa. - Quando olho para você não sei.
explicar o que sinto vergonha por me ver nesta miséria, tristeza por ver sua mocidade perdida, só no meio do mato com uma velha doente. Eu que queria dar tudo a você. Queria viver a seu lado toda a vida, bonita como eu era, feliz e contente. Mesmo sem você se casar, eu não gostaria que você se casasse, queria estar a seu lado.
- E Lídia -. volveu ele - é tanto sua filha como eu.
Maria deu de ombros.
- Sim, é, mas é a você que eu quero mais. Ela não me faz falta, mas sem você eu não poderia suportar a vida.
- Não lhe parece que isso seja um reflexo do nosso passado? Porque essa preferência que nada justifica? Lídia sempre foi boa filha, amorosa e honesta.
? Maria permaneceu calada cismando. Roque guardou silêncio, Era a primeira vez que a mãe se mostrava mais esclarecida e mais equilibrada. Sabia, entretanto, que necessitaria de muita paciência, porquanto muita havia ainda por semear naquele coração acordando ao toque rude da dor e do sofrimento. Depois de alguns minutos Maria tornou: - Roque, será mesmo? Teremos vivido outras vidas na Terra? É de admirar!
Laços Eternos - Porque? - volveu ele com simplicidade. - Acredita que Deus tenha fechado a porta ao pecador que errou e que arrependido deseja recomeçar refazendo seus erros passados?
Novo silêncio. Ao cabo de longos minutos Maria ajuntou num suspiro: - Roque, acho que eu em outras vidas devo ter errado muito para receber pena tão horrível.
- Sim, mãe. a justiça de Deus é perfeita, se sofremos é porque merecemos, Entretanto, se sabemos conservar e fé, com resignação, sem nos deixarmos abater, nos esforçando por melhorar nosso espírito, certamente pagaremos as dívidas passa- das e poderemos então usufruir a felicidade completa em outros pianos da vida. Jesus disse: Há muitas moradas na casa de meu Pai. Moradas de luz, de amor, de beleza e de alegria. Um dia mãe, tenho a certeza, estaremos em um mundo melhor.
Maria olhou o filho com ingênua adoração, transparecendo no olhar cuja beleza ainda se mantinha: - Roque, ensina-me a conhecer esse lugar. Preciso pensar que um dia tudo isso terá passado. Como um pesadelo odioso e interminável!
- Sim, mãe. Agora que a senhora deseja saber será mais fácil explicar. E um dia que será luz em nossas almas, estaremos juntos e felizes em planos mais altos, onde o anjo bom que nos tem guiado nos ensinará ainda uma vez o caminho do amor e da alegria.
Roque alçou os olhos para o alto esperançoso e feliz. Fi- nalmente depois de tantos anos, Maria começara a melhorar. E Roque pôde sentir na brisa leve que volatilizava o ar, o perfume suave de Geneviève.
Daquele dia em diante começou para Roque o trabalho de Evangelização de Maria. Durante o dia ele desdobrava-se nas lides duras do amanho da terra e dos afazeres domésticos, mas à tardinha. invariavelmente sentava-se ao lado da mãe, na porta da casa, quando o bom tempo permitia, ou ao lado do leito, para a conversa amorosa e educativa. Procurava variar a palestra ora falando de reencarnação, da Justiça de Deus, ora do mundo espiritual, através dos livros espíritas que lera,- alguns dos quais conseguira guardar apesar da rudeza das lutas vividas. Ora contava-lhe a vida de Jesus, dos apóstolos, dos mártires cristãos. Diante de suas narrativas coloridas e belas, Maria não raro emocionava-se até as lágrimas sofrendo e rindo com as emoções dos personagens.
Roque possuía o dom da palavra. Com rara maestria discorria sobre lugares e fatos, dando novo colorido as suas narrativas, fazendo toda sua beleza evidenciar-se. Maria embevecida o contemplava, esquecida de suas misérias e de seus sofri-me n to s.
Embora não conseguisse penetrar fundo as lições elevadas e os nobres conceitos Evangélicos que o filho procurava transmitir, tocava-lhe o coração a figura encanecida do ser que adorava acima de qualquer coisa no mundo. Orgulhava-se da sua sabedoria, da sua inteligência e fixando-lhe o rosto emocionado ao calor das narrativas, não podia dominar a emoção que a acometia, Seu olhar brilhante e lúcido, suas palavras belas proporcionavam-lhe, não raro, lágrimas que transbordavam, banhando-lhe o coração sofrido, trazendo-lhe alívio e conforto.
Era com sincera alegria que Roque percebia a modificação lenta mas evidente de Maria, Não se revoltava mais como antes, não se desesperava, embora seu sofrimento permanecesse o mesmo.
Certa vez surpreendida em lágrimas pelo filho, que a abraçou com ternura, perguntou com voz triste: - Roque, minha doença será mesmo uma punição de meus erros passados?
Com olhos brilhantes Roque respondeu: - Mãe, Deus é pai justo e bom. Se sofremos, nosso sofrimento tem uma causa. Às doenças dolorosas do corpo, representam a misericórdia de Deus agindo em nosso favor.
- Filho, como pode ser misericórdia esse sofrimento horrível?
- A senhora se esqueceu de que no mundo gozamos de liberdade para escolher este ou aquele caminho e que muitas vezes escolhemos os caminhos enganosos da ilusão, que nos levam a prejudicar os outros. Esse comportamento cobre nossos espíritos de forças destruidoras, que avariam seriamente o corpo espiritual que nos liga ao corpo de carne. Quando desencarnamos, essas lesões permanecem em nosso corpo espiritual, acarretando sofrimento e desequilíbrio. Só um novo corpo de carne que absorva essas energias desequilibradas e as extravase poderá aliviar nosso sofrimento nos reconduzindo ao equilíbrio. Naturalmente, o nosso espírito, responsável por tudo sofrerá as conseqüências, e gravando as experiências nessa fase dolorosa aprenderá a valorizar o corpo como precioso instrumento de trabalho, fazendo aos outros o que gostaria que os outros lhe fizessem.
Maria olhou-o com olhos molhados e brilhantes.
- Então, Roque. que crime terei cometido para sofrer tanto?
- Mãe, deixemos o passado que a bondade de Deus acobertou. Basta-nos a certeza de que erramos muito; mas depois da prova rude estaremos redimidos e felizes em planos melhores. Fundo suspiro escapou do peito de Maria.
Não posso. Agora que penso nisso, sinto que minha consciência me acusa. À noite, ouço vozes reprovando meu proceder. risadas, insultos; sonho com sombras que me perseguem querendo me destruir. Filho, muitas vezes tenho rezado, mas nunca senti proveito em minhas orações. Percebo que sua prece é cheia de fé, você fica transfigurado. Estou com medo de ter errado muito, queria rezar como você. Pode me ensinar?
Fundamente comovido Roque abraçou-a enquanto dizia: - Mãe. não há segredo algum em minha prece. Todos somos filhos de Deus que nos escuta igualmente.
Naturalmente, suas orações se limitam a preces decoradas que o hábito mecanizou. Experimente conversar com Deus. Deixar falar seu coração, contar a Ele suas mágoas, suas angústias, faça-o com humildade e verá como se sentirá reconfortada. Não nos esqueçamos que a bondade dê Deus é fonte inesgotável e generosa.
- Deus! Pai! Perdão! Perdão!
Havia tal vibração de sinceridade em. sua voz, tanta consciência da própria culpa que uma luz branda e cariciosa, vinda do alto, envolveu-lhe o tórax enegrecido, e ao seu contato, a espessa camada escura que lhe envolvia o coração, agitou-se e diminuiu substancialmente.
Maria acalmou-se e respirou mais aliviada. Empalideceu um pouco, parecendo que ia cair.
- Mãe. está melhor? - perguntou ele ansioso. - Sim - balbuciou ela -, muito melhor, mas estou cansada, muito cansada.
Deite-se e procure descansar, vou buscar um caldo quente. Sentir-se-á melhor depois disso.
Ela deixou-se acomodar no leito, e aceitou com prazer as solicitudes do filho. Depois de ingerir o caldo, adormeceu tranqüilamente.
Roque sentiu-se agradecido e feliz. Finalmente aquela alma indiferente e sofredora encontrara o caminho da iluminação e da fé. Sentiu-se recompensado por todas as lutas e sofrimentos, na certeza de que estava colaborando no cumprimento de sua mais difícil tarefa.
E envolvido seu coração agradecido em júbilos espirituais, sentiu no ar o doce perfume de Geneviève. Roque percebeu que não estava só. Aquele ser tão amado estava compartilhando de sua alegria. Novas forças banharam-lhe o ser enternecido e olhando para o alto, não pôde conter duas lágrimas que lhe banharam as faces em júbilos de paz.
Nos dias que se seguiram, Roque continuou sua tarefa abençoado. Trabalhava desde o amanhecer no cultivo da terra. Comprara algumas galinhas de um viajante na estrada do outro lado do rio e juntando às poucas que possuíam, puderam enriquecer as refeições com ovos. A anemia de Maria preocupava o filho que envidava todos os esforços para nutri-la o mais possível, Mas os remédios fortes que Maria tomava dificultavam-lhe o fígado, provocando náuseas e pouco apetite.
Três meses depois que Roque se instalara com a mãe, os remédios, o sal, o açúcar terminaram e ele precisou dirigir-se a uma vila para negociar alguns gêneros e conseguir o que precisavam. Procurou local oposto à fazenda do Coronel, e conseguiu provisões para mais algum tempo. Mas os remédios eram difíceis e ele precisou ir à cidade para adquiri-los.
Receoso de encontrar algum conhecido, procurou modificar sua aparência, o que não foi difícil. Sua barba crescera tanto que lhe modificara o aspecto totalmente. Os cabelos também, caídos nos ombros, e encanecidos prematuramente, davam-lhe o aspecto de um eremita. Sua alimentação frugal e simples, o trabalho duro em contato com a Natureza, deram-lhe novas energias a refletir-se no olhar bondoso e belo.
Apesar disso, procurou modificar as roupas a fim de não ser reconhecido. Vestiu uma camisa grosseira e uma calça que era do antigo morador da cabana, muito diferente dos costumes locais, e foi para a cidade recomendando a Maria que esperasse com calma seu regresso.
Se procurara modificar sua aparência não era em si mesmo que pensava, mas em sua pobre mãe que dependia exclusivamente do seu amparo. Foi à cidade e ninguém o molestou.
Parecia muito mais velho do que o Roque que fugira da fazenda do Coronel meses antes. Só ao médico confidenciou-se, pedindo-lhe segredo. Precisava obter os remédios indispensáveis ao tratamento da mãe. Conseguiu algum dinheiro, vendendo frangos pelo caminho e assim pôde comprar algumas guloseimas singelas e o indispensável para mais alguns meses.
Foi com alegria que tornou ao lar humilde. Maria o aguardava ansiosa e quando o viu murmurou aliviada: - Deus ouviu minhas preces. Você voltou bem! Seus olhos ansiosos fixaram-no por entre lágrimas de júbilo e emoção.
- Sim, mãe. Estava ansioso por chegar. Trouxe-lhe algumas coisas da cidade.
Ela o olhou nos olhos enquanto dizia: - Sua presença é o que mais desejo. Sofri tanto em sua ausência que peço a Deus nunca mais nos separar. Ele sorriu com bondade.
- O que é isso? Estou aqui e sempre estaremos juntos. Agora vamos ver os pacotes.
Roque reparou que apesar de enrolada em panos as mãos, o pescoço e os pés, evidenciando seu precário estado físico, Maria parecia mais animada e lúcida, Seu olhar se humanizara e perdera muito daquele brilho duro e arrogante de outros tempos.
Durante dois anos eles viveram tranqüilos, E se a doença inexorável de Maria descarnava-lhe o corpo, lenta mas progressivamente seu espírito melhorava também.



Capítulo XXIX
Mediunidade a serviço do bem Numa tarde, Maria, esbaforida, chamou Roque, que cuidava da plantação perto da casa.
- Roque, depressa, um homem pena de casa. Parece mal!
Roque largou a enxada e a passos rápidos galgou a encosta. Um homem estava parado, evidenciando cansaço, frente à cabana. Aproximou-se. Notou-lhe a extrema palidez e as mãos crispadas. Parecia que ia cair. Correu para ele sustentando-o com firmeza e
perguntando-lhe com bondade.
- O que foi? O que lhe aconteceu?
- Perseguem-me - balbuciou o mísero com olhar esgazeado e fixo. - Querem levar-me para o hospício mas não sou louco, moço, eu juro que não sou louco! Vendo-lhe o ar ensimesmado. Roque procurou acalmá-lo.
- Claro que não. Venha comigo, vou ajudá-lo.
- Você não vai me entregar? - perguntou desconfiado.
- Por que faria isso?
- Eles fizeram isso. Eu precisei fugir. Queriam me matar.
- Pois eu não deixo ninguém levá-lo, você é meu convidado. A minha casa é aqui. Vem, vamos entrar.
Maria olhava assustada, sem conseguir vencer o medo que o desequilíbrio evidente do homem lhe inspirava.
Olhando fixo para Roque. o recém-vindo, que a princípio pareceu hesitar, obedeceu prontamente. Roque estava- penalizado. Vislumbrara os vultos escuros de espíritos perturbadores ligados ao inesperado visitante, colados como reflexos dos seus próprios movimentos, demonstrando simbiose significativa.
- Vem- - continuou Roque -, sente-se aqui, vamos conversar. Tem fome? O outro, meio encolhido, um tanto assustado, sentara-se na tasca cadeira que Roque lhe oferecera.
- Fome? - balbuciou. como se não entendesse.
- Não. Não tenho fome. Quero descansar. Depois continuarei minha viagem. Vendo-lhe o olhar inquieto e abatido, Roque ajuntou: - Sim. Depois você poderá continuar. mas agora precisa refazer-se um pouco. Fique calmo, estamos longe da cidade e dos outros homens. Só nós, tu e minha mãe, moramos por estas paragens. É um bom lugar e ninguém virá procurá-lo aqui.
O outro pareceu acalmar-se um pouco, embora continuasse a olhar para todos os lados com receio.
Roque encheu uma caneca de água fresca e a colocou sobre a mesa. - Meu nome é Roque. E você como se chama?
- Mário. Venho de longe. Eles acham que sou louco. Mas é mentira. Quando às vezes eles me querem pegar, eu preciso esconder-me. Mas meus irmãos não acreditam no que digo e querem internar-me no Sanatório. Dizem que eu estou alucinado, que é tudo ilusão, que as pessoas que me perseguem só existem na minha imaginação. Você também acha? Às vezes tenho medo. Penso que vou mesmo ficar louco.
Tenho vontade de me matar. Acabar com tudo. É isso que eles querem.
Roque, vendo-lhe a palidez e o olhar aterrorizado, colocou sua mão com firmeza sobre o seu braço e olhando-o com energia bem nos olhos falou com serenidade: É isso o que "eles" querem, mas você não vai fazer. Eles querem destruí-lo; vai ceder sem lutar?
Um lampejo de lucidez perpassou-lhe o olhar estranhamente fixa.
- Você me acredita?
- Claro, O que lhe acontece tem acontecido a muita gente. Espíritos, seus inimigos de encarnações passadas, que não perdoaram, hoje desciam fazer justiça com as próprias mãos, esquecidos de que a justiça pertence a Deus que para isso estabeleceu Leis que funcionam dando a cada um segundo suas obras.
Surpreendido. Mário olhava-o, parecendo não compreender.
- Sim - continuou Roque com enérgica sinceridade nós todos somos devedores da eterna justiça e por isso necessitados de perdão, não temos condições de julgar ninguém sem incorrermos em erros graves que nos causarão muitos sofrimentos futuros. Amai os vossos inimigos, disse Jesus. Perdoai setenta vezes sete vezes.
O interlocutor, que ouvia com aparente calma, de repente foi empalidecendo ainda mais1 enquanto seu corpo tremia qual folha batida pelo vento.
Profundamente penalizado Roque orou em espírito suplicando ajuda. Pôde vislumbrar que à medida que falava, Mário como que se transformava e agora outro rosto, frio e contorcido pelo ódio, pálido e evidenciando duro brilho no olhar de fogo, o encarava enfurecido. Colado ao coronário e ao cerebelo de Mário, por um grosso fio escuro e viscoso como piche, expelia tremenda carga de energia destruidora que atingindo os centros de força do perispírito, descontrolava todos os plexos do corpo de Mário, acelerando-lhe o ritmo cardíaco, baixando sua pressão sangüínea, provocando-lhe náuseas e mal-estar.
Roque olhou o espírito infeliz que o enfrentava e queria demonstrar sua posse sobre o pobre corpo de Mário, como a sugerir que naquelas condições ninguém poderia ajudar. Roque, contudo, imbuído de enorme sentimento de piedade, olhou para ele, sem temor. enquanto via Mário cair violentamente ao chão, debatendo-se dolorosamente, dentes trincados, músculos endurecidos em pungente crise. Colocando-lhe a mão sobre o alto da cabeça foi dizendo: Você está enganado se pensa que pretendo lutar contra você. Não é esta minha intenção. Cada um possui o livre arbítrio e por isso, cada um é responsabilizado por seus atos, prestando contas às Leis de Deus que cobra sempre. Não conhecia a ele, como não conhecia a você, não pretendo envolver- me em seus problemas particulares do passado nem saber qual dos dois tem melhores razões.
Contudo, não me negará o direito de conversarmos para que, se possível, possamos melhorar a situação de ambos.
A entidade espiritual olhava-o com raiva e indiferença. Roque continuou: - Eu sou muito cheio de defeitos e errei muito em minha vida. Mas tenho vontade de melhorar, porque sofri muito e sei que o sofrimento é fruto das minhas falhas. A prece tem me ajudado muito. Permita que eu ore em nosso favor.
A entidade olhou-o com desprezo e dando de ombros tornou com ironia: - Cheguei a ter medo de você. Um fraco! Que ainda acredita nos milagres e nos santos. Não vou me preocupar mais, mas previno-o: não tolerarei interferências, Ele é meu, sou o chefe. Os outros trabalham para mim, sob meu comando. Se não se meter, não lhe acontecerá. nada. Não temos nada contra você. Mas fique longe dele. É nosso. Qualquer traição, você verá!
Roque, humilde, cerrou os olhos e orou com fervor. Pediu esclarecimento e auxílio para os espíritos sofredores que não conseguiram ainda esquecer e perdoar. Â medida que orava, safirínea luz foi se formando sobre sua cabeça e, de seu peito, partiam raios luminosos que buscavam o tórax de Mário.
Assustado pela claridade que vislumbrara, a entidade infeliz afastou-se para um canto, olhando Roque com desconfiança. Não viu o vulto luminoso de Geneviève que, entrando na choupana humilde, a inundou de luz, mas sentiu-se dominado por um receio indefinível, enquanto que vaga tristeza lhe envolvia o intimo.
A figura brilhante de Geneviève, parando atrás de Roque, colocou a mão espalmada sobre sua cabeça, emitindo poderoso jato de energia que, entrando pelo coronário dele, acelerava as movimentações eletromagnéticas do sistema nervoso. Das mãos de Roque, estendidas sobre Mário, começaram a jorrar Luzes de diversas cores, que circulavam ao redor do seu corpo doente, buscando penetrar através da grossa camada viscosa e negra que o envolvia.
Apesar da dificuldade de penetração das energias renovadoras, Mário pareceu acalmar-se e caiu em branda sonolência. Sua respiração normalizou-se pouco a pouco. Roque, após a prece, curvou-se para ele e cuidadosamente o colocou sobre o leito. O sono do qual se vira privado durante muito tempo, seria generosa fonte de recuperação f 1sica. Preparou um caldo quente enquanto o doente dormia. Acalmou a mãe assustada, que se recusava a aceitar a presença daquele homem doente em sua casa.
Só duas horas depois foi que Mário acordou. A princípio olhou em volta demonstrando alheamento e surpresa. Mário passou a mão trêmula pela testa.
- O que aconteceu? Tive o ataque de novo?
- Você adormeceu. Acho que estava cansado. Beba isso, lhe fará bem. Apresentou-lhe a caneca com o caldo de galinha. Mário aceitou um pouco, parecendo desmemoriado.
- Beba. Vamos. - Colocou a caneca em seus lábios. Mário, obediente, bebeu até o fim.
Suspirou com alívio.
- Então? - fez Roque com um sorriso, - Está melhor?
- Sim - respondeu ele -, muito melhor.
Roque sentiu brando calor envolver-lhe o coração. Estava feliz. A misericórdia de Deus lhe permitira auxiliar um companheiro necessitado. Naquele mesmo dia Roque providenciou um pequeno cômodo, se é que podemos chamá-lo assim, ligado à casa para abrigar o doente. Era uma saliência ligada à pequena sala onde apenas cabia uma cama tosca que o próprio Roque confeccionou de tronco de árvores e folhas. Vendo a disposição e a alegria de Roque, enquanto trabalhava duro para acomodá-lo, Mário se comoveu. Olhava todos os seus movimentos, mas não conseguia levantar-se, tal a prostração e a fraqueza que o acometera.
- Você ficará alguns dias conosco. Até melhorar, Quando ficar bom prosseguirá viagem.
- Gosto daqui - disse o doente com voz cansada -se deixar eu fico mesmo. Roque olhou-o satisfeito.
Os dias que se seguiram foram de trabalho para Roque, porquanto Mário necessitava de vigilância constante. Por diversas vezes, Roque vislumbrava a presença doentia e infeliz que continuava ligada por escuro cordão mesmo quando se distanciava um pouco de Mário.
Todas as tardes, após o jantar, Roque lia o Evangelho em voz alta, comentando com simplicidade suas páginas de luz. As primeiras reações de Mário foram violentas, Era só Roque iniciar a leitura ele se sentia terrivelmente mal, algumas vezes chegando a sofrer o ataque, rolando no chão de terra dura da casa modesta. Mas Roque, imperturbável, prosseguia, como se nada houvesse, comentando as sábias lições de Jesus, com ternura e sinceridade, Por isso Mário tinha medo desse momento e várias vezes afastou-se da casa escondendo-se para evitar a participação na reunião singela. Pacientemente, Roque o procurava e conduzia entre suores e angústia à sala e segurando-lhe as mãos frias e atormentadas procedia à prece com fervor, e lia pequeno trecho do Evangelho. Apesar disso, aos poucos, pequenos sinais de melhora foram aparecendo em Mário. Ganhou ligeira cor nas faces, alimentava-se melhor, não se negava ao. banho diário e, por fim, as crises foram espaçando cada vez mais.
Roque não conversara mais com a entidade obsessora de Mário. Vislumbrava-a muitas vezes, olhando com desconfiança para ele, entre o ódio e o receio. Continuava orando amorosamente por ela, por seus companheiros, cujos vultos conseguia também perceber.
Com o correr do tempo percebeu que sua fisionomia também ia se modificando. A tristeza se acentuara, embora ainda o ódio e a cólera fossem freqüentes em suas atitudes. Sempre, ao terminar a prece, Roque oferecia à mãe c a Mário uma caneca de água fresca que colocava sobre a mesa no início da leitura.
Mário tinha por Roque um afeto respeitoso de irmão. A cada gesto ou atitude esperava sempre a sua palavra. Queria fazer tudo quanto Roque mandasse. Sua palavra era lei. Diante disso, Roque, à medida que Mário melhorava, levava-o para a lavoura, encarregando-o de pequenos trabalhos, dando-lhe responsabilidade e perscrutando sua opinião sobre a tarefa que executavam.
A cada dia Mário parecia melhor. Seu raciocínio mais lúcido, suas cores renovadas. Roque, a essa altura, mantinha com ele longas conversas ensinando-o sobre a vida além da morte. Sempre que podia repetia: - A mediunidade é uma sensibilidade nervosa que nasce com o indivíduo. S condição física. Age sempre reagindo ativamente ao contato com as forças da Natureza, distribuída em múltiplas condensações de energia. Quem a possui precisa estudá-la cientificamente e à luz do Evangelho de Jesus para que possa equilibrá-la, usufruindo as bênçãos e as belezas que ela proporciona, tanto para si como para a coletividade. Negar sua existência, bem como negar a ação das leis divinas, não impede seu funcionamento, com a agravante dolorosa do desequilíbrio pela assimilação e fixação mental das faixas de energias negativas e pesadas que desorganizam todo equilíbrio dos centros de força que estabelecem o fluxo nervoso dos plexos responsáveis pelas funções vegetativas Também conduzem à exaustão pela anemia, pela exploração do vampirismo das entidades presas às paixões carnais, que ligadas ao médium sugam-lhe as forças vitais conduzindo-o às obsessões dolorosas que por vezes terminam na ceia escura do hospício.
Ante o olhar surpreendido e assustado de Mano, Roque procurava explicar de forma mais simples, ensinando sempre, oferecendo lições preciosas de Jesus. Diversas vezes envolvido por espíritos infelizes que o assediavam. Mário não pudera dominar a manifestação mediúnica e Roque conversava com esses espíritos procurando renovar-lhes a mente para a vida superior.
A própria Maria habituara-se a Mário e acabara por conversar com ele sem receio, embora nunca retirasse seus panos diante dele que nunca pudera ver-lhe bem as faces. Numa tarde quente Mário resolveu ir visitar a família. Animado por Roque, aprontou-se para a viagem. Voltaria dentro de alguns dias com algumas compras que Roque lhe pediu. Seu medo passara. Estava calmo e bem disposto. Antegozava a alegria dos seus que, reconhecia, desejavam apenas vê-lo curado. Despediu-se alegre.
Roque sentiu sua falta, mas estava contente porque a luta fora vencida. Dependia agora apenas dele, consolidar suas melhoras, dedicando-se abnegadamente ao auxílio do próximo e ao estudo. Uma semana depois, Mário estava de volta, mas não vinha só. Seu irmão mais velho o acompanhava. Era homem de condições humildes, lavrador, mas não se pudera furtar ao desejo de abraçar o homem que tanto bem fizera a seu irmão. Trazia com seu abraço algumas mudas de plantas e alguns frangos de raça para Roque criar: envergonhava-se da oferenda singela. mas queria que ele sentisse sua gratidão. Roque sorriu meio encabulado, mas não pôde recusar sem ferir a delicadeza daqueles homens simples. Àquela tarde fizeram juntos o culto do Evangelho e, tocado pelas lições sublimes de Jesus, o irmão de Mário, homem rude e sem muita fé, pediu a Roque que o ensinasse para que seu irmão pudesse recuperar-se para sempre.
Conversavam muito sobre as verdades do espírito e quando dois dias depois eles partiram. Roque tinha a promessa de que ambos procurariam uma casa espírita em sua cidade e a freqüentariam com regularidade.
Esse foi o primeiro caso que Roque atendeu desde que fugira da fazenda, mas desse dia em diante, outras pessoas angustiadas e aflitas começaram a aparecer em sua casa modesta. Todos conheciam Mário e, admirados com sua cura, por sua vez iam ao seu encontro, na esperança de dias melhores.
Eram doentes, aleijados, cegos, desequilibrados, pessoas atormentadas pelo jugo das paixões violentas, viciados.
Maria não via com bons olhos essa intromissão em suas vidas, mas Roque, com paciência, bom humor e alegria, ajudava como podia.
- Disseram que eu curo? Que idéia! Não faço nada.
- dizia meio sem jeito. - Apenas oramos juntos. S de Deus que fluem todas as bênçãos para nós. A prece tem uma força espantosa.
- O Sr. vai rezar por mim "seu" Roque? - pediam eles imperturbáveis.- - A sua reza Deus ouve!
E por mais que Roque explicasse a justiça de Deus que ama igualmente a todos os seus filhos, eles pareciam não compreender.
Então, Roque os colocava ao redor da tosca mesa e lia o Evangelho, explicando-o depois com palavras simples. Todas as tardes. ao regressar do trabalho, Roque procedia a essa leitura e aos poucos sua casa humilde, perdida na mata, tornou-se ponto de reunião dos aflitos que caminhavam longo tempo, para ouvi-lo. S que ao término da reunião havia o passe e muitos ficaram curados depois que Roque orava sobre suas cabeças impondo-lhes as mãos.
E por mais que afirmasse sua desvalia, nos poucos sua faina de curador foi crescendo. Com sua dedicação e bondade, muitos se beneficiaram renovando a fé na misericórdia de Deus.



Capítulo XXX
O trágico desenlace de Maria
A tarde era quente c pressagiava chuva, Por isso Roque apressou-se a regressar à casa, porquanto sua mãe não passava bem.
Cinco anos fazia já que se tinham refugiado naquele local. O tempo de Roque era escasso, porquanto, além de além da pequena lavoura, das galinhas que lhes forneciam o sustento, atendia todo serviço doméstico, porquanto Maria não podia fazer nada. Suas mãos estavam semidestruídas pela moléstia e seu estado geral agravava-se dia a dia.
Roque apressou o passo porque quando chovia o estado de sua mãe piorava. Havia ainda o atendimento aos doentes que Logo mais começariam a chegar pura as orações de costume Ao chegar, viu dois cavalos atados à cerca e vozes que partiam de dentro da casa.
- Chegaram cedo - pensou ele, apressando-se ainda mais. Sua mãe não estava por perto.
Sempre que vinha gente, se ocultava no quarto e raramente saia.
Roque entrou na casa. Dois homens conversavam e ao vê-lo levantaram-se rápidos. Finalmente encontramos você - disse um com voz irônica.
Roque empalideceu. O capataz da fazenda do Coronel e um peão estavam diante dele.
- O que querem aqui?
— Pergunta o que queremos! - disse ele dirigindo-se ao companheiro. Não sabe?
- Como posso saber?
- Certo. Você é "santo" inocente. Quando ouvi o povo falando de suas curas disse ao Coronel: pronto, seu Coronel, esse é o nosso homem, Por isso vim aqui. Roque refez-se um pouco e com voz calma perguntou: - E o que quer o Coronel de mim?
- Você não sabe! Quer dizer que não sabe da morte de sinhá Leonor. Por sua culpa!
Seu Coronel não descansa enquanto não põe a mão em cima da sua carcassa. Roque procurou manter-se calmo enquanto dizia: - Nada tenho com a morte de D. Leonor. Ela me procurou; queria um remédio para matar a criança que ia nascer. Não dei. Ela revoltou-se e contou ao pai que fui eu, para vingar-se. Eis a verdade. Ela fez aborto, não sei com quem e morreu por isso. Nada tive com o que aconteceu O outro, embora tentasse ser irônico, perturbou-se um pouco com o ar humilde mas sincero de Roque.
Mas reagiu.
Deu de ombros e disse: - Nada tenho contra você, Mas são ordens do Coronel: levar você. Se reagir, morre. O que ele quer é ver você para se vingar. Nunca mais teve sossego depois que a filha morreu. Vive pensando só em vingança.
Num gesto rápido, Américo puxou a arma que trazia na cinta.
- Vamos, vou cumprir a ordem. Você vai por bem ou por mal.
- Você pode dizer que não me encontrou - disse Roque tentando convencê-lo, - Se fosse por mim, não me importo, mas minha mãe é muito doente e não posso deixá-la.
- Não sei de nada nem quero saber. Você vai comigo, já. Dito, pegue a corda e vamos amarrá ele.
Enquanto o nutro saía para cumprir a ordem ele continuou: - Se reagir, vai morrer como um cão.
Um terror muito grande tomou conta de Roque, uma dor fina brotou-lhe no peito e parecia-lhe sentir o sangue bordejando. Grossas bagas de suor desceram-lhe pela fronte Contraída. Não sabia explicar o terror que as armas lhe inspiravam. Apesar disso não era covarde, reagiu.
Rápido, abaixou-se fechando a porta da cabana e atirou- se ao solo, enquanto Américo atirava na porta, sem que acertasse.. Roque rolou no chão, apanhou um pedaço de pau e atirou no braço do capataz, que urrou de dor, mas não largou a arma.
- Agora, bandido, acabo com você.
Fez pontaria e, nesse instante, um grito terrível ecoou no ar. Maria, saindo do quarto onde ouvira a conversa, vendo a arma apontada para Roque abaixado no chão, atirou-se sobre ele, protegendo-o com seu próprio corpo.
Os tiros ecoaram e forte rumor vindo de fora fez com que o capataz, sem balas no revólver, abrisse a porta e saísse correndo, enquanto que os amigos de Roque que vinham orar com ele, estarrecidos, entraram na cabana.
Roque, lívido, com a roupa empapada de sangue, lágrimas escorrendo silenciosas pelas faces, sustentava o pobre corpo mutilado de Maria, inerte entre os braços, Ninguém teve coragem de dizer nada. Silenciosos, ajudaram Roque a colocar o corpo sobre o leito.
Roque abriu- lhe as vestes, seu tórax fora atingido, estava morta!
Salvara-lhe a vida com heroísmo à custa da sua própria vida, Com infinito amor, Roque procurou limpar-lhe a ferida fatal e pediu aos amigos que se reunissem na pequena sala e esperassem.
Com zeloso carinho procurou melhorar seu aspecto físico. Sabia-a vaidosa. Procurou seu mais bonito vestido que ela guardara como lembrança dos dias felizes e vestiu-a. Tirou-lhe os panos escuros, penteou-lhe os cabelos e, coisa estranha, seu rosto havido readquirira sua beleza antiga, voltando quase ao normal. Piedosamente, Roque envolveu-lhe as mãos com uma exarpe e calçou meias em seus pés.
Depois, chamou os visitantes e pediu, com voz que a dor modificara: - Meus amigos. Há hora de dar e hora de receber. Vocês vieram aqui hoje para dar. Precisamos das suas orações. Ela partiu, Deu sua vida por mim. Morreu por causa da intriga e da maldade de alguns. Mas eu não acuso ninguém. Acima da nossa justiça há a justiça de Deus que permitiu que isso acontecesse, E ela atua sempre para o nosso bem, Só ela pode saber o grau da culpa que ora resgatamos. Pedi mas forças para suportar a prova. Mas, eu peço aos meus amigos, vamos orar pelos nossos inimigos, que cui4am realizar justiça e caem no crime. Eles deverão aprender por si mesmos através de muitas lutas e sofrimentos as lições de tolerância e de amor, de compreensão e de perdão. Quero também pedir por minha mãe! Ela sofreu muito neste mundo, vitimada pela doença dolorosa. Que Deus a abençoe e conduza.
Lágrimas desciam pelas faces da pequena assembléia que, genuflexa, orava em silêncio. O exemplo sublime de compreensão de Roque naquela hora, orando pelo assassino de sua própria mãe, calou fundo naquelas almas simples e rudes.
A morta, estendida na cama tosca, a figura digna e nobre do homem que eles respeitavam e amavam, tudo lhes vibrava na alma tocando os sentimentos como nunca mais haveriam de esquecer.
Terminada a prece, um a um abraçaram Roque, e alguns saíram, voltando com flores dos campos, que depositaram ao lado de Maria, com respeito.
Ninguém perguntou o porquê da agressão. Alguns chegaram antes e ouviram a troca das palavras entre Roque e o capataz, mas ninguém teve dúvidas quanto à inocência de Roque. Durante a noite, muitos chegaram enquanto outros se foram, todos procurando demonstrar seu respeito e gratidão. Foi aí que Roque sentiu como aquela gente simples e modesta o estimava. Sentiu-se confortado.
Por sua culpa, Maria encontrara morte dolorosa, O que haveria por trás de tudo isso? Qual o crime que ela cometera para sofrer prova tão rude? Um dia haveria de saber.
No dia seguinte procederam ao enterro, e Roque escreveu longa carta a Lídia explicando tudo. Pediu a um amigo que a despachasse.
Nos dias que se seguiram procurou analisar sua situação. Poderia regressar a São Paulo, Mas, ao mesmo tempo, seus amigos pediam-lhe para ficar, pois por ali não dispunham de ninguém que os ensinasse e ajudasse.
Haviam-se habituado às leituras do Evangelho e Roque resolveu ficar pelo menos por algum tempo, até decidir o que fazer.
Alguns temiam que os homens do Coronel voltassem, mas, por estranho que fosse, desapareceram. Roque não os temia. Confiava em Deus e em sua inocência. Foi ficando, e sua vida continuou normalmente, dividida entre o trabalho e o atendimento dos aflitos que o buscavam sempre.
Foi um ano depois que soube da morte do Coronel em uma emboscada, logo após a morte de sua mãe.
Compreendeu por que não fora mais perseguido. Orou por ele e em seu coração não brotou nenhum sentimento maldoso. Sabia que ele fora conduzido pela paixão e pela mentira. Apiedava-se da sua dor com sincera emoção. Já não seria cruel descobrir que ferira pessoas inocentes, tirando a vida de uma pessoa enferma? Só isso já representava pesado fardo, pensava ele, Continuou vivendo da mesma maneira no mesmo local. Era retirado, mas muito procurado por necessitados. Tanto, que Roque construiu uma cabana ao lado para abrigar alguns doentes. Os recursos em espécie chegavam sempre e como alguns recuperados não se queriam afastar, aos poucos, novas choupanas foram sendo levantadas nas redondezas e o círculo de amigos foi aumentando.
Roque continuava a rotina de sempre e todas as tardes a leitura do O Evangelho Segundo o Espiritismo. complementada com explicações de outros livros espíritas, água fluidificada e passes, já agora ministrados por alguns freqüentadores selecionados por ele.
Mas suas atividades estendiam-se, porquanto era ouvido com respeito nas divergências familiares e muitos o procuravam para pedir conselho. E as bênçãos do Senhor desciam sobre aquela gente simples.
Muitas curas eram realizadas principalmente no campo das obsessões e dos desequilíbrios nervosos.
Na estrada começaram a surgir pequenas casas e um botequim floresceu com o movimento sempre crescente de viajantes. Mas Roque, embora o tempo fosse passando, permanecia no mesmo local, na mesma cabana, com a mesma humildade.
Porém, se a aparência exterior era a mesma, somente seus olhos retratavam um pouco do profundo amadurecimento do seu espírito. A vida para ele por vezes representava pesado fardo, porquanto cada vez mais sensível, sentia com mais força o peso da solidão. Pressentia que alguém o esperava mais além, mas a ninguém deixava perceber sua tristeza. Trabalhava com alegria e incansavelmente em favor do bem de todos, pois compreendia vivamente a preciosa oportunidade que detinha nas mãos. Agarrava-a com unhas e dentes. Diante da própria consciência queria tornar-se digno de uma vida melhor no futuro.
Conseguia manter-se mentalmente ligado a pensamentos elevados e suas percepções do mundo espiritual ampliavam-se a cada dia.
É verdade também que isso não o isentava do ataque dos espíritos das trevas que pretendiam dominá-lo constantemente. Mas sentindo-lhes a presença lutava bravamente para não entrar em suas faixas negativas e vinha conseguindo vencê-los em toda linha, furtando-se às suas armadilhas.
Com o correr dos anos esses ataques foram diminuindo à medida que Roque crescia em humildade, dedicação e trabalho. E ao seu redor também crescia pequeno vilarejo, que progredia à custa dos muitos peregrinos das mais variadas classes sociais que procuravam a cabana humilde como um refúgio para suas dores e retempero para suas lutas.
A figura encanecida de Roque, barbas brancas, cabelos longos, olhos vibrantes e alegres, sua serenidade, sua bondade, sua palavra esclarecida, despertavam nos sofredores fundo respeito, que raiava à veneração, na certeza de que ali se encontrava um verdadeiro apóstolo e discípulo do Senhor.



Capítulo XXXI
A volta à pátria espiritual
A noite ia em meio e as estrelas faiscavam refletindo a beleza e a glória do Criador. Cortando o espaço, um grupo harmonioso de espíritos desencarnados voltava rumo à crosta terrestre, À frente, duas mulheres seguiam comandando a comitiva e à medida que percorriam a distância que as levaria à Terra, numerosos espíritos juntavam-se a elas em festiva alegria. Em cada coração um pensamento de gratidão e de amizade. Preparavam-se para receber de volta o companheiro que galhardamente vencera nas duras lutas do mundo terreno. Muitos dos presentes tinham sido beneficiados pelas atividades apostólicas daquela alma que regressaria redimida. Queriam dar-lhe as boas-vindas e o ósculo da gratidão.
As duas figuras de mulher, que abraçadas seguiam à frente, trocavam palavras de júbilo e esperança: - Cora, mal posso conter a emoção! Finalmente vamos nos ver frente a frente! A interpelada sorriu com bondade: - Sim, Geneviève. Grande. é a alegria dos que sabem construir com paciência e amor, perseverança e trabalho, a felicidade. Gustavo é digno e bom. Merece a colheita do amor e da paz!
Geneviève sorriu pensativa, Em seu coração cantava a alegria pura dos seres que amam acima de todas as circunstâncias e condições da vida humana.
A comitiva festiva, que alegre entoara hinos pelo caminho, silenciou com respeito. Tinham chegado ao destino. A um sinal de Cora, esperaram, cercando a cabana humilde, enquanto as duas penetraram em seu interior.
Se a luz no plano espiritual formara uma clareira ao redor da cabana, o seu interior iluminado pela luz bruxoleante de um Lampião era triste e tosco. Cercado por algumas mulheres piedosas e dois amigos, Roque vivia suas derradeiras horas no corpo físico. Rosto moreno e queimado de sol, estava lívido A respiração irregular deixava escapar por vezes dorido suspiro do seu peito cansado.
Dormia, mas seu sono revelava a presença do coma. Dois assistentes do plano espiritual, vestidos de branco, postados à sua cabeceira, ministravam-lhe cuidadosa assistência. Vendo as mulheres que entravam, um deles apressou-se a recebê-las com atencioso carinho: - Como vai ele, doutor? - inquiriu Geneviève, um pouco preocupada.
- Muito bem. Iniciamos o desligamento há poucos instantes. Felizmente nosso caro amigo alimentava-se frugalmente e tendo dominado suas paixões carnais, torna-nos muito mais fácil o dcsenlace. Não vai demorar. Podem ajudar com suas orações. Esta pobre gente não quer que ele parta e é o único elo que ainda o retém.
Geneviève relanceou o olhar pelas pessoas presentes e sentiu-lhes os pensamentos dolorosos e angustiantes.
- Meu Deus - pensava uma delas com olhos cheios de lágrimas -, quem cuidará de nós agora?
Quem fará as preces conosco? Quem nos ajudará quando adoecermos? A outra pensava: - Não quero que ele morra, Se ele se vai, quem colocará o Zé no caminho certo? E se ele der pra beber de novo?
Um deles pensava: - Ele não pode morrer. Quem vai cuidar da Ritinha quando o espírito mau a pegar? Como ficar sem ele?
Vendo o ar preocupado de Geneviève, o médico espiritual confortou-a: - o preço do apego na Terra. As criaturas habituam- se rapidamente a receber e esquecem-se de dar quando chega o momento. Mesmo Roque dedicou- se a vida inteira ao bem dos outros, mas eles não conseguem entender a sua bondade e o seu sacrifício que lhe dá o direito à libertação.
Invés de terem aprendido com ele suas lições de amor, para poderem caminhar por sua vez em busca do próprio progresso, acreditam poder usufruir sem esforço, receber indefinidamente, viver à sua sombra enquanto puderem.
- Tem razão - ajudou Cora, pensativa, - A ingratidão e o egoísmo nos têm dificultado a marcha, mas cuidemos para que seus pensamentos não interfiram no processo do nosso tutelado. Realmente, as energias escuras que saíam do frontal de cada um envolviam Roque cujo mal-estar aumentava.
- Ótimo - disse o médico satisfeito. - Cuidem deles e do paciente nós cuidaremos agora mais objetivamente.
Cora e Geneviève movimentaram-se envolvendo cada um dos encarnados do pequeno aposento, procuraram alijar energias depressivas e com as mãos estendidas sobre suas cabeças, emitiam pensamentos otimistas.
- Ele vai melhorar - disse uma das mulheres presentes - sinto um bem-estar muito grande. Acho que veio ajuda.
- Certamente - tornou a outra, - Deus não nos vai deixar órfãos. Ele vai se curar! Olhe seu parece que ele agora dorme mais calmo.
Realmente, protegido pelos dois assistentes espirituais que lhe ministravam passes longitudinais Roque mostrou sinais de melhora. Seu sono tornou-se aparentemente normal. Os presentes suspiraram aliviados.
- Ainda bem. Parece que o perigo passou. Acho que vou pra casa ver o Zé.
- Pode ir, dona Ana, eu fico até amanhã cedo. Não arredo pé. A mulher concordou, levantando-se.
- Vou com você - disseram as outras duas. - O Antônio fica e se precisar é só chamar.
E lançando um olhar perscrutador para o rosto do enfermo vendo-o ressonar tranqüilo, saíram todos permanecendo apenas um no quarto humilde.
Cora sorriu com satisfação, Aproximando-se de Antônio sugeriu-lhe ao ouvido: - Descanse um pouco, aproveite enquanto nosso amigo está dormindo. Cansado e indormido o homem recostou-se na cama ao lado e sem perceber, adormeceu em seguida.
As duas mulheres aproximaram-se do leito em respeitoso silêncio. Oravam com fervor enquanto que, ajudado pelos assistentes do plano espiritual. Roque desligava-se dos despojos e aparecia diante dos companheiros emocionados, como quem desperta de pesado sono. Abriu os olhos, nos primeiros instantes pareceu ainda inconsciente. Olhou o assistente que o sustinha enquanto ele dizia: - Roque, você já deixou o corpo. Bem-vindo à Pátria Maior. Um lampejo de emoção brilhou no olhar do recém-liberto.
- Oremos - continuou o assistente -, agradecendo ao Pai tantas bênçãos.
Roque, embora semi-consciente, assinalou-lhe as palavras que vibravam com enorme intensidade dentro de si.
- Já morri - pensou ele. - Preciso orar.
Embora não conseguisse balbuciar palavra, seu pensamento dirigiu-se Deus implorando auxílio e lucidez. Quando terminou sentiu-se fortalecido e imediatamente seus olhos fixaram os dois assistentes com alegria.
- Meu Deus, que alívio!- - balbuciou respirando a largos haustos como há muitos dias não conseguia. - E muita bondade. Agradeço a ajuda que me deram - continuou, diri- gindo-se aos dois que o sustinham.
Sua voz era fraca, mas firme. Ambos sorriram com satisfação. A tarefa estava realizada e o desligamento completo.
Roque relanceou o olhar ao redor e divisou as duas mulheres que a olhavam com emoção. Deteve- se em Coro e pareceu reconhecê-la sem saber de onde, esforçava-se para lembrar-se quando ela o abraçou dizendo: - Bem-vindo entre nós. Jesus o abençoe. Mais tarde vai lembrar-se de tudo. Aquele abraço amigo como que deu ao recém-desencarnado novas energias, sorriu emocionado e foi então que fixou a figura delicada de Geneviève. Olhou-a e em seu rosto refletiu-se intraduzível emoção. Era sua luz, sua musa, a figura adorada que o acompanhara vida afora, assistindo-o nos momentos difíceis, nas horas dolorosas de solidão, Ela que despertara em seu íntimo o eco de perdidas emoções e a glória de sentimentos puros e profundos.
Sem poder conter-se ajoelhou-se a seus pés, beijando-lhe a fímbria do vestido enquanto dizia: - Anjo do bem! Deus é pródigo em bondade e permitiu sua presença nessa hora para conceder-me o prêmio supremo que sempre desejei embora sem merecer.
Lágrimas corriam-lhe pelas faces, enquanto genuflexão beijava-lhe a barra do vestido com veneração.
Com olhar brilhando de emoção, mas serenidade na voz Geneviève curvou-se para ele procurando levantá-lo enquanto dizia : - Roque, profícua foi tua vida na Terra. Bem-vindo sejas entre nós. Levanta-te porquanto não possuo as qualidades que tua dedicação me assinala. Deixa-me abraçá-lo, pois é o que eu mais desejo.
Como que fascinado, Roque levantou-se c não saberia descrever a torrente de sentimentos e emoções que lhe brotou na alma que vibrava ao toque delicioso da presença daquela mulher.
Ela emocionada, enlaçou-o beijando-lhe a fronte com infinito amor. Roque estremeceu. Seu peito cantava de alegria indescritível enquanto que as palavras morriam-lhe na garganta sem poder sair.
- Certamente existe o paraíso balbuciou sem querer quando pôde falar. - Estou no paraíso?
- Engana-se, meu amigo - ajuntou o assistente bem humorado dando-lhe palmadinha amigável no ombro. - Continuamos na Terra mesmo. Mas precisamos ultimar nosso trabalhe para partir.
O dia amanhecia e como que pressentindo a desgraça iminente, Antônio acordou sobressaltado.
Relanceou o olhar para o corpo de Roque e deu um grito assustado: - Santo Deus? Socorro! Ele está morto! Socorro?
Saiu correndo apavorado por ter dormido sem socorrer o amigo e mais ainda por ter dormido ao lado do defunto. Logo a pequena casa encheu-se de gente e de lamentos.
Roque, bruscamente chamado à lembrança do desenlace. recente, sentiu-se enfraquecido enquanto com tristeza olhava o desespero dos amigos.
- Roque, não se deixe envolver pela lamentação deles. Deu-lhes tudo que podia e certamente ainda poderá fazer muito cai favor deles no futuro. Deus chamou-o a outras atividades e certamente mas não deixa ao desamparo nenhum de seus filhos. Não fique triste. Precisamos partir.
Roque, ouvindo a palavra esclarecedora do assistente que vibrava com enérgica entonação, procurou controlar as emoções. Mas era-lhe difícil. Sentia que suas emoções vibravam com nova e funda intensidade, muito mais vivas, dificultando- lhe o controle. Todavia, habituado à disciplina, meta de sua vida durante os longos anos de solidão na Terra, conseguiu dominar-se.
- Muito bem - disse-lhe o assistente Aníbal. - Venham, vamos preparar os despojos.
Foram todos ao redor do leito onde jazia o cadáver de Roque. Olhando-o, esquisita sensação o dominou. Um misto de pena, gratidão, amor, para com aquela massa que o servira durante 75 anos, em cuja face podia observar cada ruga que a luta dura desenhara.
- Façamos a prece - disse Aníbal. - Agradeçamos a Deus a bênção do corpo físico que nos serve como instrumento fiel e amigo, sofrendo nossas imperfeições sem reclamar, aos golpes que muitas vezes desfechamos sem respeito ou compreensão, envenenando-o aos poucos com substâncias corrosivas ou pensamentos destruidores. Precioso amigo que suporta e fardo das nossas iniquidades para que possamos aprender a lição da vida e sublimarmos nossos espíritos. Oh! Deus! Como é grande a vossa bondade. Como é perfeita a Criação! Amparai-nos Oh! Pai Celeste para que aprendamos a preservar, não destruir; a compreender, não a exigir; a respeitar, não a conspurcar; para melhoria nossa e felicidade futura.
Aníbal colocou-se profundamente emocionado, onde e reflexo de um passado não muito distante punha mais brilho em seus olhos.
Os outros oravam em silêncio. Roque comovido e num sentimento profundo de respeito, olhou para Aníbal como a solicitar-lhe algo.
- Pode - volveu o outro com delicadeza.
Roque aproximou-se do corpo que estava rodeado dos seus amigos terrenos, chorando desconsolados, e com zeloso cuidado depositou um beijo na testa do instrumento que durante tantos anos o servira.
A um gesto de Aníbal, o outro assistente encaminhou-se para o despojo aplicando-lhe passes, extraiu-lhes as últimas energias, visando preservá-lo do vampirismo. Quando julgou tudo pronto, Aníbal determinou : - Partamos agora. Os amigos nos esperam com impaciência. Roque surpreendeu-se : Amigos?
Ladeado pelos dois assistentes e pelas duas mulheres Roque galgou a saída. Nova surpresa e aguardava. Pequena multidão o saudava cantando hinos de alegria. Os primeiros raios solares iluminavam a Terra e as vibrações amorosas daqueles corações agradecidos envolviam Roque em raios luminosos de suave deslumbramento.
A comitiva parou mais adiante, onde uma clareira se estendia ao canto alegre dos pássaros e a beleza azul de um céu de verão. Aníbal tomou a palavra: - Companheiros, grande é nossa alegria pelo servo do Senhor que regressa. Louvamos a bondade do Pai que nos permite essa benção.
Roque, humilde, não conseguia reter as lagrimas. Reconhecia algumas fisionomias e sua alegria não tinha limites. Abraçaram-no efusivamente enquanto que ele balbuciava: - Vocês são muito bons. Eu não fiz nada. Não mereço, por favor, eu não mereço?
Aníbal a certa momento interrompeu as manifestações dizendo: - Amigos! Partamos, outras oportunidades teremos para visitar nosso companheiro; por agora urge regressar.
A comitiva pôs-se em movimento por aquela multidão de almas amigas, entoando hinos de alegria e louvor a Deus, dentro de alguns instantes desapareceu no horizonte.



CAPÍTULO XXXII
A recompensa dos justos
A noite estava cálida e perfumada, O céu rutilante de estrelas refletia a beleza da lua, clara e enorme.
O jardim era gracioso e perfumado. Sentado num banco rústico, Roque parecia absorto em fundos pensamentos.
Fazia um mês que regressara da Terra. Estava bem instalado na colônia espiritual, em graciosa casa, visitado sempre por muitos amigos, e auxiliado por Aníbal, seu conselheiro e benfeitor.
Roque fortalecia-se a cada dia conquistando maior equilíbrio.
Apesar de tudo, lutava por lembrar-se do passado. Aníbal o aconselhara a esperar, pois isso ocorria de maneira espontânea, porquanto Roque tinha condições espirituais de vencer a amnésia da reencarnação recente. Contudo, sentimentos impetuosos brotavam-lhe no íntimo sem que pudesse defini-los.
A presença de Geneviève emocionava a profundamente, mas assustava-o o volume de seus sentimentos que longe de serem apenas a veneração devida ao seu espírito luminoso, mesclava-se a um sentimento de amor humano, que o perturbava, Ao vê-la, desejava Tomá- la nos braços, beijá-la e embora esses impulsos fossem gerados por um sentimento de respeito e amor, não deixavam de representar uma emoção fone, intensa, quase irresistível, que o faziam suspirar por sua presença, desejar vê-la, ir ao seu encontro. Duas vezes recebera sua visita e de Cora, desde que fora instalado na casa graciosa, mas não pudera dizer-lhe o que lhe ia na alma. Agora estava disposto. Iria procurá-la assim que soubesse onde encontrá-la e ter com ela uma conversa franca. Ela lhe diria o que desejava saber. Sabia que havia um passado onde ela deveria ter representado grande papel em sua vida, Só isso poderia explicar a avalanche de emoções que o acometiam, bem como a amor que lia em seu olhar enternecido.
- Meu Deus! - balbuciou ele. - Faze com que eu possa vê-Ia! Preciso conversar com ela. Sinto necessidade de sua presença!
Laços Eternos Fechou os olhos com a força do seu desejo, quando os abriu, Geneviève, a bela e generosa figura de mulher, estava diante dele.
Vendo-a, Linda e graciosa, olhando-a com emação, Roque não conseguiu dominar-se. Atirou-se a seus pés enquanto dizia: - Você veio! Você veio! Vê-Ia era o que eu mais desejava neste instante. por favor, tem piedade de mim, não tenho força para dominar mais meus sentimentos! Geneviève! Sinto que há muito tempo não estamos juntos, contudo temo nos visto constantemente. Como posso entender? Que força misteriosa une meu espirito ao seu?
Geneviève curvou-se sobre ele forçando-o a erguer-se.
- Gustavo, precisamos conversar. Vem comigo.
Fisionomia contraída pelo esforço, Roque ouvindo esse nome levantou-se e deixou-se conduzir por ela a um banco gracioso do pequeno jardim. Cenas curiosas desenhavam-se em sua mente. Passando a mão pela testa como quem desperta de um sono profundo. Roque balbuciou: - Gustavo.. Barão de Varene.. Geneviève… Gus. Condessa de Ancour. A cabana de caça. Lívia, minha pobre esposa. Gerard, caiu do cavalo,.
Enquanto Roque em supremo esforça rememorava o passado, Geneviève orava em silêncio com fervor.
A certa altura Roque sentiu-se sacudido por farte emoção. Tomando as mãos de Geneviève, tornou com voz trêmula: - Geneviève, meu amor, minha esposa!! Agora eu sei. eu me recordo, minha amada esposa!
Lágrimas desciam-lhe pelas faces contraídas enquanto que aos poucos sua aparência modificava-se, transformando-se na bela figura de Gustavo. Em silêncio, Geneviève continuava a orar.
- Mas houve algo que nos separou e tornou minha vida um inferno! Uma força maior do que eu esmagou-me e nos separou. Foi ela! Ela! Que não se conformou com minha recusa e levantou a calúnia!
Gustavo, pálido, revivia cenas dolorosas do passado na rememoração espontânea. Sua mente como que voltara ao tempo distante enquanto repetia angustiado: - Sou inocente, vou morrer inocente! Preciso cantar. Não passa! Penalizada, Geneviève alisou-lhe a face com brandura.
- Eu sei, Gustavo. Sei de tudo.
Mas, impulsionado pela força do passado, ele parecia não ouvi-la.
- Vou ao encontro - repetia aflito. - Desta vez ela vai ouvir-me. Deixar-nos-a em paz! Agora ela vai pensar que é verdade! Estou morrendo, não posso falar! Deus! Preciso cantar- lhe. Sou inocente, Geneviève. Eu te amo! Eu te amo!
Geneviève abraçou-o com suavidade aconchegando-lhe a cabeça em seu peito amoroso. Gustavo, sem forças, parecia haver perdido os sentidos.
Geneviève permaneceu quieta, afagando-lhe os cabelos com doçura, enquanto que eflúvios amorosos e suaves saiam em forma de luz do seu tórax, envolvendo-o.
Ao cabo de alguns instantes ele abriu os olhos, vendo-a, sentindo-se aconchegado em seus braços balbuciou: Estou sonhando! Estou sonhando! Geneviève! Seu grito de amor vibrou intensamente no ar: - Geneviève! Finalmente. Finalmente! Abraçou-a com emoção intensa. Quis falar mas não pôde.
- Sou inocente! Sou inocente! - balbuciou quando conseguiu vencer um pouco a emoção.
- Sei de tudo! Houve tempo em que eu também fui fraca duvidando da tua sinceridade. Poderás perdoar-me?
- Geneviève! Eu?!! Que não tenho feito outra coisa senão errar? Espírito fraco e leviano, certamente jamais mereci o teu amor que veio a mim pela bondade de Deus, a iluminar-me o caminho para que eu pudesse caminhar. Perdoar-te, eu? Espírito culpado de tantas falhas e imperfeições? Geneviève, deixemos as tristezas, conta-me tudo o que tens feito, todo este tempo que estivemos separados! Quero saber, receio que isto acabe novamente e estejamos separados. Certamente esse sonho bom vai dissipar-se!
A moça sorriu com bondade: - Gustavo. Não temas. Vou contar-te tudo e assim poderemos compreender melhor a bondade de Deus.
Segurando as mãos de Gustavo, Geneviève narrou todo o passado, sua reencarnação como Nina, e a Condessa como Maria.
Por isso eu amava tanto a Nina e não me sentia feliz perto de Maria.
A figura irônica e arrogante de Marguerit surgiu em sua mente para logo em seguida aparecer Maria, com o corpo coberto de trapos, na destruição da doença horrível.. Num arrepio, lembrou-se dela colocando-se entre o revólver de Américo e ele, dando a vida para salvá-lo.
- Pobre Condessa - balbuciou compadecido. - Houve tempo em que a odiei! Contudo, ela me amou muito, deu sua vida pela minha!
- Sim - tornou Geneviève com emoção. - Tua dedicação para com ela trouxe- nos a libertação de pesados encargos do passado. Ela, após a última encarnação, encontra-se bastante melhor, em local de regeneração, graças ao teu trabalho amoroso e perseverante.
- Pobre criatura! Sofreu tanto, Era tão bela e saudável! Depois, transformou-se em um espectro, escondida, do qual todos fugiam.
- Sim. A vaidade excessiva tem seu preço. A vida cobra, procurando ensinar às criaturas o verdadeiro valor das coisas, que estão nas conquistas sagradas do espírito e longe das belezas transitórias do mundo material.
- Alegra-me saber que ela está melhor. Sua morte violenta traumatizou-me bastante.
- Sim. Tanto ela como o Conde resgataram a divida contigo perante as Leis
Divinas. Agora poderemos caminhar juntos para o futuro que nos aguarda mais além.
Gustavo estremeceu. Tomou Geneviève nos braços como se receasse perdê-la: - Geneviève! Sei que és mais perfeita e melhor do que eu, Vi a luz que irradias e compreendo que sou muito pobre, indigente de espiritualidade para merecer viver a teu lado para sempre. Entendo, mas não suportaria separar-me de ti novamente. Agora que te encontrei, agora que tenho-te em meus braços, agora que meu peito pulsa de ventura pela tua presença, agora, que estamos juntos, dize-me o que preciso fazer para merecer a glória infinita de estar contigo.
Não medirei sacrifícios, não me importo de sofrer. Trabalharei em favor de todos, serei o servo mais pequeno, mas desejo poder ver-te como agora, abraçar-te, ouvir tua voz! Vem: vamos orar, quero pedir a Deus que me ajude a estar contigo para sempre.
Geneviève, tocada nas fibras mais íntimas do coração, fechou os olhos marejados e permaneceu em silêncio, não conseguia expressar-se. Gustavo, sentado a seu lado no banco tosco, segurando suas mãos, cerrou os olhos e começou a orar: - Senhor Jesus! Mestre amoroso a quem veneramos. Eis-me aqui, servo fraco e inútil que tem pretendido servir-te nas obras do bem. Tantas alegrias nos reservaste que nos comovemos com a tua generosidade.
Mestre! Quantas vezes nos socorreste com a mão compassiva, nos sustentando no momento mais difícil da luta! Quantas vezes nos amparaste afastando o perigo e preservando-nos a vida em generosa oportunidade de trabalho e regeneração!
Temos recebido tanto, Senhor, que justo será nos esforcemos por servir-te mais e melhor cada dia, na esperança de podermos aprender contigo as lições de vida e de luz, de felicidade e de amor. Neste instante, divino e generoso Senhor, quero renovar meus propósitos de servir-te para sempre, intensificando o trabalho em favor de todos, divulgando a Boa Nova na Terra sofredora, para alívio dos que sufocam ao peso da angústia e da dor.
Dispõe deste servo inútil que obedecerá sem reservas, com alegria. Apenas. Senhor, te rogo a felicidade de poder subir para estar com ela, a quem amo para sempre, espírito eleito pelo meu coração, a cujo impulso devo o que sou, que conseguiu arrancar-me do erro e das trevas do orgulho. Senhor, eu te rogo como bondade suprema, poder estar com ela de quando em quando, para alento do meu espirito nas lutas do porvir.
Enquanto Gustavo orava, tal era a intensa sinceridade que vibrava em suas palavras, que aos poucos, intensa luz foi iluminando seu tórax, irradiando-se a seu redor, derramando-se sobre o delicioso jardim e subindo rumo ao céu estrelado.
Geneviève, enlevada, sentia-se transportada a um mundo de emoções dulcíssimas que palavras não poderiam expressar.
Gustavo caiou-se, abriu os olhos e surpreendeu-se com a intensidade da luz que os envolvia, Antes que pudesse falar, viu uma esplêndida figura que se aproximava, descendo do alto em preciosa faixa luminosa.
Ambos, de mãos dadas, não encontraram palavras para dizer. A figura venerável de um homem maduro, trajando alva túnica delicada, rosto emoldurado por diáfana barba, tinha olhos de um azul profundo, de tão intenso brilho que os dois não conseguiram fixá-lo.
- Jesus vos abençoe. Trago mensagem amorosa do plano superior para ambos. De agora em diante, estarão sempre unidos no trabalho do bem. Almas gêmeas, ambos lutaram e sofreram, impondo-se duras disciplinas souberam dar prioridade aos interesses supremos do espírito na sua ascensão para Deus.
Calaram seus impulsos na renúncia, para dedicarem-se ao próximo sofredor, em nome do Cristo. Por isso, em nome dele, Mestre generoso e justo, vos convido a continuar vosso trabalho em favor dos que sofrem, na certeza de que, unidos, saberão tratar dos desígnios do Pai, com coragem e dedicação, abnegação e amor! Que a vossa felicidade seja eterna, como é eterna a alegria dos justos no reino de Deus.
Abençoou-os e desapareceu. A alegria refletia-se nos rostos de Gustavo e Geneviève. Abraçaram-se comovidos.
- Estaremos juntos para sempre, meu amor - disse ela com radiosa alegria, - Sim — murmurou Gustavo sufocado de emoção. -Estaremos juntos para sempre! Poderá haver felicidade maior?
Enlaçados e felizes, caminharam rumo à habitação, enquanto que no ar envolvido por suave vibração de amor, melodia belíssima se ouvia, tangida por mãos diáfanas e misteriosas que no silêncio cálido da noite reverenciavam felizes a glória de Deus.






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NO LIMITE DA ILUSÃO
SÔNIA TOZZI
(ESPÍRITO IRMÃO IVO)


SINOPSE

Casar, ser dona-de-casa e mãe não estava nos planos da jovem Marília, uma moça lindíssima e de contornos perfeitos que vivia em pacata cidade do interior com seus pais e irmãos. Obstinada, ela queria ser modelo, mudar-se para a cidade grande, conquistar a fama, o sucesso e ficar rica. Sonhava alto e não mediria esforços para atingir seus objetivos. Para sua alegria, em uma festa de aniversário, ela conhece Marcelo, dono de uma agência de modelos e amigo de Carlos, um conhecido seu da cidade. Imediatamente Marília "apaixonasse" por Marcelo e rompe seu namoro com Luiz, um bom moço de seu bairro. Envolvido por Marília, Marcelo apaixona-se pela tentadora jovem e traz sua nova descoberta para a cidade grande. Faria dela uma modelo e ganharia muito dinheiro com ela. Aí começam os problemas e a ruína de Marília. Aos poucos, a jovem vai descobrindo em que mundo de ilusão se meteu... Mas Deus não desampara seus filhos em sofrimento. Por intermédio do espírito Amélia, Júlia, a irmã de Marília, irá interferir para resgatar sua irmã de uma vida infeliz e doentia. Este é o envolvente enredo que Irmão Ivo, pela psicografia da médium Sônia Tozzi, oferece-nos com No Limite da Ilusão, uma obra atual e verdadeira que mostra quais as conseqüências de nossos atos quando escolhemos o caminho fácil das conquistas passageiras da matéria.


PREFÁCIO

Quando fui convidada pela autora, minha sogra, para fazer o prefácio deste No Limite da Ilusão, imaginei que esta seria uma tarefa muito fácil, afinal, nunca tive problemas para escrever. Ledo engano. Ao contrário, eu me senti impotente incapaz de escrever algo que chegasse aos pés dessa grande mulher, que permitiu que eu fizesse parte da família, que me deu carinho, amor, compreensão, e que foi e é uma grande mãe para mim. Como escrever sobre alguém que admiramos sem parecer piegas, sem parecer que estamos apenas querendo agradar? Seus ensinamentos são as diretrizes da minha vida. A cada livro que psicografa, vejo que partilha com outros, aquilo que um dia já passou para nós e que coloca em prática todos os dias de sua vida. Nos meus rascunhos, sempre começava com a frase: "Falar da autora e do livro é tão fácil como falar com Deus", mas era só esse o início fácil, o resto não foi assim. Foi difícil, foi uma terapia, tive que colocar no papel algo que tenho no meu coração. Ela é fantástica, mãe na acepção da palavra, avó prestimosa, amiga para todos os momentos, conselheira. Entretanto, tenho que falar também sobre o livro, o qual li quase que o devorando, como todos os outros, pois sua leitura fácil, seus detalhes, suas explicações, fazem com que a gente consiga estar lá dentro da história, sair desse mundo por instantes e viver junto com os personagens. Creio que o livro No Limite da Ilusão se destaca pela sua narrativa rica em detalhes, mostrando-nos as diferenças entre ajudar e cobrar, entre as ilusões passageiras e as descobertas verdadeiras do espírito, entre o orgulho e a verdadeira caridade e que, mesmo quando não sabemos a razão das coisas estarem acontecendo, precisamos caminhar sempre para frente, com fé. Tudo tem uma explicação, talvez possamos conhecê-la, talvez não. Nosso caminho no bem pode ser trilhado colaborando, ajudando, dividindo, pois é importante lembrarmos a todo o momento dos nossos semelhantes, seguindo sempre a maneira correta de ajudar e de amparar: sem propaganda, sem alarde e sem esperar algo em troca. Espero que todos os leitores de No Limite da Ilusão consigam colocar em prática a verdadeira caridade. Quem sabe hoje você, leitor amigo, não se anime a doar um pouco do que existe de bom em seu coração?


CAPÍTULO I - SONHANDO ENTRE OS GIRASSÓIS

Marília corria graciosamente por entre o campo de girassóis cultivado com dedicação e carinho por seu pai. Seus cabelos cor de mel esvoaçavam, acompanhando o vaivém da brisa que refrescava a manhã ensolarada. Com todo o vigor dos seus quinze anos, parecia incansável usufruindo a beleza dos girassóis, flores que exerciam grande fascínio em sua mente de adolescente. Antunes recebera as terras de seu pai, que por sua vez herdara de seu avô, e ao longo do tempo foi se formando uma imensa manta amarela proveniente dos exuberantes girassóis. Marília era a segunda filha de uma família de classe média e dividia a atenção dos pais com Júlia, a irmã mais velha, e os gêmeos Rafael e Felipe. Marta, sua mãe, dedicava-se com esmero à educação dos filhos e ao bem-estar de Antunes, companheiro que amava e com o qual compartilhava todas as questões referentes ao núcleo familiar. Júlia e Felipe eram dóceis e tinham como objetivo o próprio crescimento espiritual, dedicando-se ao amor ao próximo e à construção da felicidade, que acreditavam ser verdadeira se nascesse das atitudes nobres em relação aos seus semelhantes. Marília possuía a beleza da mãe e o gênio determinado e autoritário do seu avô paterno, o que a fazia sentir-se orgulhosa, pois tinha verdadeira adoração pelo avô, desencarnado havia dois anos. Embora com apenas quinze anos, sabia bem o que queria para sua vida e estava disposta a conquistar seu objetivo: ser famosa, elegante e por que não dizer dona do mundo. Tinha ao seu lado Rafael, que como ela também sonhava abandonar o campo, a cidade pequena, e transferir-se para a capital, onde acreditava poder conquistar todos os seus sonhos de consumo.
- O mundo é de quem o conquista - dizia Marília à sua mãe, certa do que queria para sua vida.
- Filha, cuidado, a vida não é feita de ilusão, muito ao contrário, é feita basicamente de trabalho e consciência do papel que cada um possui na sua realidade. Nossos propósitos e nossos sonhos só têm valor se estiverem alicerçados na moral e na dignidade cristã.
Nessas horas, Marília balançava os ombros e respondia:
- O meu papel na vida eu já descobri e conheço bem. Sei o que quero e a que tenho direito, e para alcançar meu ideal vou lutar com todas as armas que possuo; a principal delas é sem dúvida a minha beleza. Não pretendo escondê-la neste campo, onde somente as flores podem ver. Não quero ser como à senhora, mãe, que passa o dia às voltas com casa, panelas e filhos. Tenho direito de ir em busca do meu próprio prazer.
Percebendo a apreensão e a contrariedade de sua mãe, Marília saía em disparada e se refugiava em meio aos girassóis que tanto a atraíam, mas que não faziam parte do seu futuro. Foi o que fez naquela manhã de sol. Cansada, jogou-se preguiçosamente no chão, por entre as flores grandes e majestosas. Era nessa hora que seu pensamento mais e mais viajava e se via como gostaria de ser: rica, famosa e bela.
- Hei de vencer! - exclamava. - Conquistarei o mundo e mostrarei à minha mãe e à tola da Júlia que tenho razão. No mundo sempre vence o melhor, quem não tem medo de correr atrás do que quer.
Admirava os girassóis e gritava para o vento:
- Quero ser como vocês, imponentes e belos. Maiores que todas as outras flores que desaparecem diante de sua altivez e da formosura desses campos. Hei de vencer! - afirmava com vigor.
Nesses momentos, como uma brisa a soprar em sua mente, Marília se lembrava das palavras de Júlia, sempre sensatas e prudentes:
- Marília, você já se deu conta de que as flores menores possuem mais perfume, mais suavidade em sua forma delicada?
- Pode ser. Mas também são frágeis e tombam ao primeiro rajar do vento mais forte. Não, Júlia, quero ser igual ao girassol: forte, sempre voltado para o sol; não importa que não tenha perfume atraente, contanto que se mantenha de pé.
- Você não conhece as flores em toda a sua essência, Marília - dizia-lhe Júlia. - Todas são belas e atraentes, e não competem entre si. Sabem que são importantes na criação divina e dão à humanidade o que têm de melhor, brilhando e deixando que todos brilhem. Vivem em harmonia no grande jardim de Deus. Assim devemos agir Marília, buscar o nosso espaço para brilharmos nele, juntos, todos os homens, cada um cumprindo o seu papel com dignidade e amor universal. Vivendo e deixando os outros viverem, como as flores e a natureza.
Marília olhava o céu e deixava-se envolver pelos sonhos e ilusões. Não compreendia bem o que Júlia queria dizer nem se esforçava para isso; não separava a realidade do devaneio, tampouco do engano dos seus sentidos. Assim ficou horas a fio até voltar à realidade com os gritos de Rafael, que ecoavam pelos campos:
- Marília... Marília, onde está? Mamãe pediu que viesse chamá-la, está precisando de você. Onde está? Responda!
Com irritação, ela o chamou:
- Estou aqui! - Levantou-se e foi ao encontro de Rafael.
- Que gritaria! - exclamou assim que o viu.
- Claro, há tempos estou a chamá-la!
- Pronto, já achou. O que aconteceu?
- Não aconteceu nada, mamãe pediu apenas que viesse chamá-la porque precisa de sua ajuda.
- E Júlia?
- Está na escolinha rural dando aula para os filhos dos colonos. Esqueceu que ela faz isso todos os dias?
- É verdade, esqueci que é a boa samaritana da região. Tudo bem, vamos.
Enlaçou o irmão pela cintura e seguiram em direção a casa. No caminho, Rafael interrogou a irmã:
- Marília, você fica oras aqui. O que faz sempre que vem ao campo de girassóis?
- Sonho, Rafael. Venho pensar na minha vida, traçar meus planos, criar uma maneira de sair daqui e ir para a cidade grande viver a vida que quero, ou seja, uma vida de glamour e brilho. É errado isso? É proibido viajar no sonho, idealizar o modo como gostaria de viver?
Os olhos de Rafael cintilaram de desejo.
- Eu também acredito que não; acalento os mesmos ideais seus, mas não vejo como poderia realizar cada sonho meu.
- Lutando por eles, Rafael.
Após pensar por alguns instantes, o garoto indagou:
- Marília, quando conseguir ir para a capital, você me leva junto? Também não quero passar toda a minha vida nesta cidade medíocre, sem oportunidade. Você me leva?
- Levo Rafael, levo sim. Nós dois juntos podemos ganhar o mundo.
- Promete?
- Prometo. Somos diferentes de Júlia e Felipe. Eles se contentam com pouco, com o básico. Nós dois, não; queremos muito mais do que viver em meio à mediocridade. Pode acreditar que irei embora e, quando for, levarei você comigo.
- Mas só tenho treze anos, pode ser que nossos pais não permitam.
- Calma Rafael. Não irei amanhã, tudo leva tempo. O importante é não deixar passar a oportunidade quando ela aparecer, e tenho certeza de que um dia vai acontecer.
Abraçados chegaram a casa, onde Marta os aguardava na varanda. Pela expressão de seu rosto, os dois irmãos perceberam a contrariedade da mãe.
- Posso saber o porquê da demora?
- Calma mamãe - respondeu Marília.
- Viemos conversando, não sabia que tinha tanta urgência.
- Entrem!
Marta, virando as costas, seguiu em direção, à cozinha. Marília e Rafael a acompanharam.
- O que quer que eu faça mãe?
- Quero que vá com o Rafael até a escolinha levar este bolo para Júlia oferecer aos alunos. E levem também o suco de goiaba que está na jarra.
- Para que isso, mãe?
- Hoje é o Dia das Crianças, e sua irmã quer fazer uma pequena comemoração com seus alunos.
- Onde está Felipe?
- Na escolinha com Júlia.
- Não sei aonde esses dois vão parar com essa mania de querer consertar o mundo. A gente não pode interferir na vida das pessoas, mãe, não pode dar o que não faz parte do mundo deles. Júlia e Felipe não entendem isso.
- Eu também penso como Marília, mãe.
- Filhos, não entendo por que vocês têm tanta resistência em amar o próximo. É tão digno praticar a fraternidade, fazer alguém feliz, principalmente crianças. Faz bem para o coração.
- Olha mãe, vou ser sincera; o mundo pertence àqueles que lutam, trabalham para conseguir seu espaço. Se ficarmos cobrindo a preguiça, a ociosidade dessa gente, eles jamais sairão da miséria.
- Marília, sua irmã não está cobrindo a preguiça de ninguém. O que ela faz é dar a essas crianças a ferramenta fundamental para que possam conquistar o espaço ao qual você se refere, ou seja, o conhecimento e o estudo aliados ao aprimoramento moral. Com essas aquisições, terão mais chances de conquistar com dignidade o lugar que buscam. Júlia simplesmente as prepara para reconhecerem as oportunidades quando elas aparecerem em suas vidas.
- Desculpe mãe, eu admiro Júlia e Felipe, mas sou diferente. Não penso como eles. Sonho com algo muito maior para mim, uma posição condizente com minha postura, minha beleza; enfim, uma vida de destaque.
- É exatamente isso o que preocupa a mim e o seu pai. Você sonha alto demais, e nos seus sonhos não vejo lugar para ninguém que não seja você mesma. Além do mais, não está nem um pouco preparada para sequer chegar perto de tanta pretensão.
Querendo encerrar a conversa que não a agradava, Marta disse:
- Bem, vamos deixar isso tudo para mais tarde. Já deve estar próxima a hora do recreio, vão logo levar o bolo.
- É para já, dona Marta - disse Marília, sorridente.
- Vamos, Rafael, pegue o suco.
Rapidamente os dois irmãos seguiram para a escolinha rural. Assim que se aproximaram puderam ouvir as vozes e as risadas daquelas crianças simples, carentes, mas que se sentiam felizes em poder brincar e comemorar o dia dedicado a elas ao lado da tia Júlia e do tio Felipe. Naquele momento as tristezas deixaram de existir dando lugar à alegria de se sentirem amadas e valorizadas pela professora e seu irmão. Por um momento, Marília deixou-se contagiar por aquele momento mágico, e num ímpeto disse sorridente:
- Crianças, vejam quem chegou!
- Quem? - perguntaram ao mesmo tempo.
- O bolo de chocolate!
- E o suco de goiaba! - completou Rafael.
Em instantes ouviu-se o som das palmas que as mãozinhas magras batiam forte, traduzindo a alegria que reinava em seus corações. Não precisou de muito tempo para que devorassem o delicioso bolo e esvaziassem a jarra do suco.
- Gostaram? - Júlia indagou, feliz.
- Gostamos tia! Quando vamos ter outro?
- Não sei, mas, se se comportarem direitinho, estudando e obedecendo a mamãe de vocês, prometo que logo trarei outro. Tudo bem?
- Tudo! - responderam em coro.
Assim, em meio a muita alegria, Júlia ofereceu para aqueles pequeninos a oportunidade de comemorar realmente o tão sonhado dia a elas dedicado. Enquanto os quatro irmãos voltavam para casa, Júlia percebeu o silêncio de Marília e questionou:
- Por que está tão quieta Marília? Não gostou da nossa festinha?
- Claro que gostei Júlia, mas...
- Mas?
- Fico sem jeito de dizer.
- Pare com isso, Marília. Fale o que é?
- Por mais que eu admire o trabalho que você realiza com essas crianças, a sua dedicação, não consigo aceitar essa vida monótona, sem nenhum atrativo, sem brilho e principalmente sem futuro.
- Marília, o brilho da nossa vida somos nós que colocamos. Sou feliz assim, e isso não quer dizer que terei uma vida monótona. Ao contrário, pretendo realizar o meu sonho.
- Seu sonho?
- Por que o espanto?
- Porque nunca pensei que tivesse um sonho. Parece-me tão conformada com nossa vidinha pacata. Posso saber qual é o seu objetivo?
- Claro. O meu objetivo de vida, minha irmã, é estudar e aprender cada vez mais. Conhecer as pessoas, suas necessidades, limitações e anseios.
- Como assim, Júlia?
- Sonho em promover aqui, nesta cidade sem futuro, como você diz uma grande obra social na qual todos possam ter as mesmas oportunidades de aprendizado, se preparando para ganhar a cidade grande e tornando-se pessoas dignas e cheias de esperanças.
Marília estava boquiaberta.
- Não acredito no que estou ouvindo! - exclamou perplexa. - Júlia, você só tem dezoito anos, não pode pensar somente nos outros. Tem que pensar em você primeiro, na sua ascensão social.
- Mas, Marília, estou pensando em mim. Por que acha o contrário?
- Tem que se concentrar em crescer, tornar-se importante, quem sabe famosa, enfim, construir uma vida diferenciada. Deixe que cada um cuide se si mesmo.
- Ainda não lhe disse, mas nossos pais permitiram que eu fosse complementar meu estudo na cidade vizinha. Quero me formar, estar preparada para quando o momento chegar eu o reconhecer. Ambiciono fazer a diferença na vida dessas pessoas sofridas; construir o que falta, Marília. Você consegue me compreender?
- Posso até compreender, mas não consigo aceitar.
- Por quê?
- Porque não vejo uma razão forte em se preparar para auxiliar, tratar da vida das pessoas. O certo não seria cada um cuidar de seu próprio bem-estar?
- Analisando pelo lado da responsabilidade, você não deixa de ter razão. Cada um de nós é responsável pelo que faz consigo mesmo. Somos nós que direcionamos nossa existência, fazemos a escolha do caminho que pretendemos seguir. Mas auxiliar os menos afortunados, criar oportunidade para que possam seguir em frente, mostrar o valor do trabalho e a importância de caminharmos com dignidade cultivando os valores morais são deveres de todo aquele que se diz cristão. Quando conseguimos perceber a potencialidade dentro das pessoas, a vontade de lutar pelo próprio aprimoramento moral e espiritual é caridoso e fraterno mostrar isso a elas.
- Não sei Júlia. Pode ser que tenha razão, mas para mim é difícil pensar em outra possibilidade que não seja a realização dos meus ideais.
Júlia abraçou a irmã. Demonstrando uma maturidade que ia além dos seus dezoito anos, disse-lhe:
- Calma, minha irmã. Muita prudência para não se perder na ilusão, que poderá derrubá-la, e, na maioria das vezes, o tombo é feio; eu não gostaria de vê-la sofrendo. Tome muito cuidado.
Rafael e Felipe caminhavam ao lado das irmãs em silêncio, mas sem desviar a atenção do teor da conversa.
- Sabe, Júlia, eu penso igual a Marília. Quero muito sair aqui, levantar vôo e correr atrás do que almejo.
- Rafael, sair daqui e ir para a cidade grande buscar seus objetivos de vida não é de maneira nenhuma uma atitude condenável, é o direito de cada um. O que quero dizer é que se deve tomar cuidado para não cair em armadilhas que trazem o sofrimento. Os sonhos são bonitos e devem fazer parte da nossa existência, mas não devem ser maiores que a realidade para não anular o equilíbrio que deve estar presente em nossas atitudes, mesmo em nossas ilusões. É preciso saber distinguir o falso do real e o bem do mal. Vocês conseguem compreender o que estou tentando lhes mostrar?
- Como você é sábia, Júlia! - comentou Felipe.
- Não sou sábia, sou apenas atenta.
- Eu sou como você, Júlia - tornou Felipe. - Quero muito ser alguém; um médico, por exemplo, e dedicar minha vida a salvar pessoas. Deve ser muito boa a sensação de se sentir útil, contribuir para a felicidade de alguém.
- Que bom Felipe. Comece então a se preparar para conquistar o que quer.
Marília, não fugindo a sua maneira de ser, falou:
- Ainda bem que a divisão foi certa. Somos dois contra dois. Vamos ver quem vence primeiro.
Assim que Antunes entrou em casa, Marta o abordou:
- Antunes, há tempo quero falar-lhe sobre Marília. Podemos conversar?
- Claro Marta. O que tem Marília? Está doente?
- Não, não está.
- Então por que a preocupação?
- Pode ser que eu esteja exagerando, que não tenha nenhum fundamento a minha preocupação, mas estou confusa.
- Fale Marta, o que a está preocupando?
- É que me aflige a maneira de pensar e de falar de Marília. Nunca a vejo comentar sobre coisas que possam ajudá-la a construir o futuro, como o estudo, por exemplo.
- Marta, ela é ainda uma criança. É igual a todos os jovens desta cidade pequena e sem perspectivas que sonham em ir para a capital. Que mal há nisso?
- Não sei se há algum mal, o que sei é que me incomoda seu modo de se expressar, tão diferente do de Júlia.
- Diferente do de Júlia porque são duas pessoas diferentes, Marta. Cada uma pensa e age de acordo com sua personalidade, com seu modo de encarar as coisas. E depois você há de concordar que Júlia é bem diferente da maioria dos jovens da sua idade.
- Nisso você tem toda a razão. Ela é sem dúvida uma pessoa especial.
- Então, querida, não compare as duas; sua preocupação não tem fundamento.
- O que me assusta é saber que o mundo com o qual Marília sonha é um mundo falso. Tenho receio por ela, acho que está se enganando com seus próprios sonhos.
Após ponderar um pouco, Marta disse ao marido:
- Talvez você tenha razão; devo estar exagerando.
- O que se pode fazer é ficar atento. Marília é ainda uma criança e nem sabe direito o que quer. Ilude-se com revistas, reportagens de artistas... Acredito que tudo isso irá passar. Vamos dar tempo ao tempo, como se diz.
- Impressiona-me a grande diferença entre Júlia e Marília. Enquanto uma possui uma maturidade notória, apesar da pouca idade, sonha em se formar, ser alguém por meio de suas escolhas, de suas conquistas, que serão frutos do seu trabalho e dedicação, a outra se dedica apenas a sonhar e alimentar ilusões de como se dar bem sem grande esforço.
- Marília irá amadurecer e tudo isso passará.
- Rezo muito a Deus para que isso aconteça, Antunes.
A conversa foi interrompida com a chegada dos filhos, que encheram a casa com alegria contagiante. Antunes deu um beijo em cada um e saiu.
- Então, como foi à festa? As crianças gostaram do bolo e do suco?
- Nossa, mamãe, a senhora nem imagina como ficaram felizes! Já queriam saber quando teriam outro bolo igual aquele.
- Que bom! Sempre que você quiser pode me pedir que faço com alegria.
- Obrigada, mãe. - Júlia abraçou Marta e estalou um gostoso beijo em seu rosto.
- E você, Marília, gostou da festinha?
- Gostei. As crianças reagiram como se tivessem recebido o maior presente da Terra.
- Na realidade para elas foi, Marília. Ou você acha que eles comem bolo de chocolate todo dia?
- Se comem eu não sei Felipe. O que achei foi um tremendo exagero.
- São apenas crianças, filha - completou Marta.
- Bem, se me permitem vou tomar um banho. Estou cansada e tenho muito que estudar.
- Vá, Júlia. Enquanto isso vou preparar o jantar; logo seu pai chegará.
Marta não conseguia deixar de admirar a sensatez com a qual Júlia sempre direcionava sua vida. Preciso tomar cuidado, pensava. Antunes tem razão, tenho que parar de comparar Marília a Júlia. São duas irmãs completamente diferentes uma da outra; aliás, como os filhos são diferentes uns dos outros... Os mesmos pais, a mesma educação, e cada um seguem uma direção. Voltou-se para a cozinha e percebeu Marília distraída folheando uma revista, alheia a tudo à sua volta, mas atenta às pequenas coisas que as páginas coloridas e atraentes exportavam para o mundo, atraindo os jovens que se deixavam levar pelo fascínio. Exibiam um mundo irreal onde o poder e o glamour reinavam soberanos, como se a vida nada mais fosse que um palco de fantasia. Os olhos de Marília brilhavam. A jovem aspirava para si todo aquele mundo de ilusão.
- Mãe, veja como são lindas estas roupas!
Marta aproximou-se, olhou com indiferença e disse à filha:
- Marília, acha mesmo que a vida é feita somente de futilidade? Tudo isso é cuidadosamente construído. Sem dúvida são muito bonitas, mas não é essa a parte mais importante da nossa existência, essa não é a realidade concreta.
- Tem algum mau querer possuir coisas bonitas, mãe?
- Não, Marília, não á nenhum mal desde que não se ultrapassem os limites do bom senso e da prudência, principalmente quando esses bens são adquiridos com nosso esforço.
- Então não é errado querer ser alguém na vida.
- E como eu disse filha: todos têm o direito e merecem sonhar, correr atrás do seu objetivo, firmar-se como cidadão; não é essa a questão. O que não se pode esquecer é da razão principal por que Deus enviou o homem a Terra, ou seja, o seu crescimento moral e espiritual, o seu melhoramento como criatura do Pai, e isso só se consegue por intermédio do bem, da solidariedade e do amor ao próximo.
- A senhora não gosta da minha maneira de pensar, não é, mãe?
- Filha, não é que eu não goste. Assusta-me um pouco essa sua ambição de querer fortuna, brilho, sucesso; tudo me parece tão fútil... Estaria mais tranqüila se você se ocupasse mais de seus estudos e sua formação, e não colocasse tanta expectativa em sua beleza como se fosse ela a sua provedora.
- Desculpe, mas não sei ser de outro jeito.
- Você irá aprendendo com o tempo. Isso se der uma chance para si mesma.
- O que quer dizer?
- Quero dizer que os melhores propósitos, as melhores aquisições são aquelas que nos transformam em pessoas de valor; pessoas que lutam, persistem e conseguem êxito através da dignidade do seu aprimoramento moral. O que se veste Marília possui uma vida curta, mas o que se adquire com o estudo e o trabalho suado, mas honesto, ninguém nos tira.
- Em sua opinião, temos que viver pobremente, é isso?
- Não, Marília, não é isso.
- O que é então, mãe? O sucesso, o brilho, as roupas bonitas devem vir como coadjuvantes na nossa vida, e não como os protagonistas da nossa história. É preciso que seja conseqüência do esforço de cada um, do entendimento e da sabedoria com a qual é prudente nortear nosso caminho. A consciência do bem e do que é certo é que nos protege dos enganos que geralmente aparecem embrulhados para presente e impedem os incautos de ver a realidade, e o abismo que muitas vezes engole os imprudentes. Quando questiono os seus sonhos é porque receio o que possa vir a acontecer se não se dedicar mais aos estudos, que com certeza lhe darão suporte em suas decisões.
- Mãe, vou lhe dizer uma coisa, mas não brigue comigo.
- Fale filha.
- Sei que possuo grande beleza. Considero um desperdício ficar enterrada nesta cidadezinha medíocre; sei que posso brilhar na cidade grande e ter o mundo a meus pés.
Marta estremeceu.
- Marília, com todo o meu amor vou lhe dizer uma coisa e espero que nunca se esqueça: se um dia tiver o mundo a seus pés, tenha humildade, amor e sabedoria para trazê-lo até o seu coração, que é o lugar onde ele deve estar.
- Só quero ser feliz, mãe.
- Francisco de Assis nos esclarece que "A felicidade é uma conquista interior; é um estado que só nós podemos criar, cultivando nossos valores e alegrias da nossa alma". Nossa alma não necessita se revestir de luxo, mas sim de amor. Lembre-se sempre disso, filha. - Marta suspirou. - Bem, já conversamos o suficiente por hoje. Tenho que preparar o jantar. E você, mocinha? Não tem nenhuma tarefa por fazer?
Marília deu um pulo.
- Nossa claro que sim! Amanhã tenho prova.
- Então, sonhadora, acorde e vá estudar.
Os dias transcorriam vazios e monótonos para Marília e cheios de expectativas e esperanças para Júlia. Eram dois espíritos que caminhavam em paralelo, mas que agasalhavam ideais e objetivos completamente diferentes. Enquanto uma se dedicava ao sonho sem nada construir de real, esperando a chegada do mensageiro que iria levá-la para a fantástica vida dos salões, a outra se esforçava no aprendizado, correndo ao encontro do que acreditava ser sua missão na Terra, ou seja, auxiliar de alguma forma o próximo, fazer a diferença mesmo que pequena na vida das crianças e jovens de sua cidade. O tempo seguia seu curso, e cada um se mantinha fiel aos seus hábitos. Marta desistira de conversar com Antunes a respeito de Marília, que, sem se importar muito com o que sua mãe dizia, continuava alimentando seus devaneios fúteis. Em um de seus momentos em meio aos girassóis, Marília foi surpreendida com a presença de Luiz, filho de um casal de grandes amigos de seus pais.
- Luiz! - exclamou surpresa. - O que faz aqui? Nunca o vi nestes campos.
- Oi, Marília, desculpe-me se a assustei. Vi quando você tomou esta direção, e logo imaginei que viria para o campo. Vim ao seu encontro. Fiz mal?
- Não, Luiz, de maneira nenhuma. Aconteceu alguma coisa?
- Não. Queria apenas conversar com você. Atrapalho?
- Não seja bobo, Luiz, é claro que não me atrapalha. Sente-se aqui, vamos conversar um pouco.
Luiz acomodou-se próximo de Marília.
- Você gosta destes campos, não?
- Adoro Luiz. Amo essas flores enormes, majestosas. Vou lhe dizer uma coisa: gostaria de ser como elas.
- Igual a elas?
Como assim? Não acho que são tão belas como fala.
- Não posso crer que não ame essas flores. Veja o porte delas: altivas, sempre procurando a direção do sol, em busca da vida. Para mim não existem flores mais belas.
- Não posso dizer que são feias porque não são, mas prefiro as violetas, os jasmins ou as acácias. São suaves, delicadas... Enfim, falam mais à minha alma.
- Não sou como você. Pareço-me com os girassóis, altivos, ocupando mais espaço. Veja esses campos, Luiz. Pode imaginar algo mais belo?
- Concordo que são realmente belos, mas em tudo existe afinidade, que é uma questão de alma. Compreende?
- Não muito. O que sei é que quero construir minha vida como os girassóis: ocupar o maior espaço que puder estar sempre voltada para o sol, para a vida, poder olhar do alto para aqueles que não têm forças para lutar, para vencer, e dizer: "Olhem para mim aqui, bem acima de vocês. Eu consegui".
Luiz estava admirado com a reação e a postura de Marília, aquela menina linda que ele conhecia desde criança e que amava desde muito cedo, mas a quem jamais tivera coragem de se declarar.
- Marília, se a sua intenção é dominar o mundo, não se deve espelhar nas flores.
- Por que, Luiz, que mal há nisso?
- Não haveria nenhum mal se você conseguisse entendê-las, mas percebo que não é o seu caso.
- Explique-se melhor, realmente não consigo captar aonde você quer chegar.
- Preste atenção: as flores são criações de Deus, portanto todas são belas e possuem um papel importante em todo o universo.
- Qual papel senão o de enfeitar o mundo?
- O de ensinar os homens a se respeitar, Marília, como criaturas do mesmo Criador.
- Aonde quer chegar, Luiz?
- Marília, as flores não competem entre si. Cada uma tem sua beleza própria. Todas florescem e deixam as outras também florescerem; dão o melhor de si cumprindo o seu papel no universo, desabrocham de acordo com seu tipo sem se importar com as cores e o perfume das outras. Dão o melhor de si porque sabem que para o Criador toda a sua criação tem a mesma importância. Nenhuma flor ambiciona o jardim da outra; apenas mostra sua beleza onde quer que esteja.
- E daí?
- Daí que os homens deveriam agir como as flores. Saber que existe no universo espaço para todos e que cada um está no lugar certo para cumprir sua tarefa na Terra. Não é preciso ambicionar o lugar de ninguém, Marília, nem desejar o que não lhe pertence porque não está nos planos de Deus pertencer. O prudente é fazer do seu espaço o melhor local. A partir desse entendimento, do seu próprio esforço e dedicação nas suas escolhas e conquistas, tudo o mais lhe será acrescentado.
Marília estava surpresa.
- Você fala igual à Júlia, que sempre nos compara com as flores. Ela já me disse mais ou menos isso que você acaba de dizer. Nunca imaginei que fosse tão eloqüente Luiz. Está me surpreendendo.
- Você nunca se interessou em me conhecer direito, como realmente sou.
- É, parece que não o conheço mesmo.
Balançando a cabeça com graça, como se quisesse mudar o rumo da conversa,
Marília perguntou a Luiz:
- Vamos correr um pouco em meio aos girassóis?
- Vamos.
Os dois jovens saíram correndo, sorridentes e felizes, por entre as flores amarelas. Só perceberam o adiantado da hora quando, cansados, jogaram-se no gramado próximo ao riacho que compunha a beleza daquela paisagem.
- Cansou? - perguntou Marília.
- Um pouco, não estou acostumado a correr tanto assim como você. Mas a minha felicidade é maior que o cansaço - disse, fitando o belo rosto da amiga.
- Nunca imaginei que gostasse de brincar por entre as flores.
- Não é estar entre todas essas flores que me deixa tão feliz; é estar perto da única que me interessa.
- O que disse? - Marília ficou surpresa e sentiu certa ansiedade.
Encorajado, Luiz respondeu, segurando as delicadas mãos da amiga:
- Disse, ou melhor, quero dizer que amo você.
- O que?
- Isso mesmo que ouviu. Eu estou apaixonado por você.
- Mas desde quando, Luiz? Eu nunca percebi.
- Posso dizer que desde sempre.
- E por que nunca me falou?
- Falta de coragem, medo de ser rejeitado e perder até a amiga. Mas hoje não sei bem por que considerei o momento adequado. Gostaria de ser minha namorada?
Marília fitou Luiz, esboçou um tímido sorriso e respondeu:
- Gostaria, sim, de ser sua namorada.
- Você fala sério?!
- Falo!
- Também me ama?
- Não sei se amo você, Luiz, sei que me sinto bem em sua companhia e que me agrada a idéia de namorá-lo. Podemos tentar.
- Isso me basta por enquanto.
Num impulso, ele abriu os braços e acolheu amorosamente Marília contra o peito. Com delicadeza, deu um beijo em seus cabelos sedosos.
Entrelaçaram suas mãos e, felizes, retornaram à casa de Marília.

CAPÍTULO II - ENCONTRO COM UM CORAÇÃO SINCERO

- Que alegria é essa que vejo estampada no rosto de vocês? - Marta quis saber assim que Marília e Luiz chegaram.
- Nossa, mãe, é tão evidente assim?
- Mais do que possam imaginar. Posso saber a razão, apesar de pressentir qual seja?
- Claro dona Marta. Vim mesmo para falar com a senhora e o seu Antunes.
- Pois então aproveite a oportunidade de me encontrar em casa a esta hora - disse o pai de Marília, entrando na sala.
Meio sem jeito, Luiz olhou para Marília, que o incentivou:
- Fale Luiz!
- Bem, eu queria pedir o consentimento dos senhores para namorar Marília.
Marta sentiu uma grande satisfação invadir seu coração. Encarou o marido ansiando por sua resposta, temendo uma negativa por ser Marília ainda tão jovem.
- Ora, Luiz, é evidente que consentimos. Somos amigos de seus pais á muito tempo e conhecemos você desde pequeno. Causa-nos muita alegria o namoro de vocês. Coloco apenas uma ressalva.
- Qual, seu Antunes?
- Que não esqueçam que são ainda muito jovens. Gostaria que fosse um namoro compatível com a idade de vocês e que não interferisse nos seus deveres diários. Sabem o que estou querendo dizer, não?
Luiz timidamente respondeu:
- Quanto a isso vocês não têm com que se preocupar. Gosto muito de Marília e a respeito; nada faremos que possa magoar ou trair sua confiança.
- Pois bem, meu rapaz, a permissão está dada. Seja muito bem-vindo a nossa casa.
- Espero que consiga colocar um pouco de juízo na cabecinha de minha filha.
- Mãe! - quase gritou Marília, indignada. - Quem a ouve falar na certa pensará mal de mim.
- Ela tem razão - completou Antunes. - Isso não é jeito de falar da nossa filha! Não me agrada quando a ouço dizer coisas assim, Marta.
- Por favor, me desculpem, não falei no sentido real da palavra; o que quis dizer foi...
- Eu sei o que a senhora quis dizer, dona Marta. Esta tarde mesmo conversamos muito sobre isso, não foi, Marília?
- É verdade, mãe. Conversamos sobre isso e aproveito para deixar bem claro que o fato de estar namorando Luiz não implica a mudança da minha maneira de ser e do meu modo de pensar.
- O que é isso, Marília?
- Quero apenas dizer, pai, que tenho a minha personalidade e vou permanecer como sempre fui. - Virou-se para Luiz e continuou: - Espero que não tenha a intenção de me transformar, Luiz, porque se seu desejo for esse é melhor nem começarmos o namoro.
Com voz firme Antunes a interrompeu:
- Marília! Que modos são esses?
- Estou falando a verdade, sendo sincera, pai. Quero ser respeitada como sou, pelo senhor, minha mãe, meus irmãos, Luiz... Enfim, quero que me aceitem assim, da maneira que sou. O que trago dentro de mim me pertence e não dou a ninguém o direito de pretender-me mudar.
- Calma, Marília, quem foi que lhe disse que quero namorar você para tentar mudá-la? Em nenhum momento foi dito isso. Gosto de você, e é por isso que quero tê-la comigo, nada mais.
Marília, acalmando-se, aproximou-se de Luiz.
- Desculpe, não quis magoá-lo.
- Tudo bem. - Luiz sentiu que teria um namoro difícil com aquela garota voluntariosa acostumada a defender com afinco sua posição.
- Percebi que ficou tenso. Posso saber por quê?
- Foi só impressão sua, Marília, está tudo bem.
- Que bom!
Assim que Luiz fez menção de se retirar, Marta convidou:
- Fique mais um pouco, jante conosco.
- Obrigado, dona Marta, fica para outro dia. Preciso ir, já estamos quase no final da tarde e ainda não fui ao serviço. E o pior é que nem avisei meu pai.
- Ora, quem tem o pai como patrão não precisa se preocupar tanto, Luiz.
- Não é bem assim, seu Antunes, meu pai é rígido nas questões de trabalho, e eu estou de pleno acordo com ele. É preciso ter responsabilidade. Geralmente não faço isso, mas hoje foi um dia especial para mim.
- Gostei - disse Antunes. - Era o que esperava ouvir de você, conhecendo seus pais como conheço. Luiz sorriu.
- Se me derem licença, tenho que ir. - Aproximou-se de Marília e, gentilmente, depositou um beijo em seu rosto. - Amanhã a gente se fala.
- Tudo bem - foi à resposta lacônica de Marília.
Mal Luiz havia saído Marília deixou-se cair sobre o sofá.
- Esse namoro não vai dar certo.
- O que é isso, minha filha? Mal começou e já sabe que não dar certo? Qual o motivo?
- Mãe, a senhora não percebeu o jeito dele?
- Que jeito?
- Luiz é todo certinho.
- Certinho? Como assim, não estou entendendo.
- Preste atenção, mãe. Nós estamos iniciando simplesmente um namoro, mas Luiz precisou fazer um pedido formal como se fôssemos nos casar. Depois, aquela conversa do respeito e sei mais o quê. Não bastasse, não pôde ficar com a namorada porque tem responsabilidade no trabalho, que, diga-se de passagem, é com o pai dele.
- E o que tem isso? É louvável a atitude dele - disse Antunes.
- Pai, não estou me casando com Luiz, mas apenas iniciando um namoro, que, a bem da verdade, nem sei quanto tempo vai durar.
- Não gosta dele, filha?
- Gosto, mãe. Mas tanto eu quanto Luiz somos jovens demais, como papai bem disse, e eu não quero me envolver seriamente com ninguém, porque não vou permitir, pelo menos por enquanto, que um namoro interfira nos meus planos.
- E o que você quer, então?
- Quero ter uma companhia para sair, passear, conversar. Alguém que esteja ao meu lado para eu não me sentir sozinha.
- Filha, não faça esse rapaz sofrer, e acima de tudo não brinque com os sentimentos dele.
- Não vou brincar com os sentimentos de ninguém, mãe. Apenas falei que sinto que nosso namoro não irá durar muito tempo, só isso.
- Bem, vamos com calma - concluiu Marta.
Luiz, ao sair da casa de Marília, caminhava pensativo em direção ao comércio de seu pai, onde trabalhava. Era o filho mais velho de Waldemar e Ângela e, aos vinte e dois anos, já se portava com maturidade e grande responsabilidade em tudo o que fazia. Seu pai considerava-o seu braço direito, confiando plenamente em suas decisões. Tinha mais um irmão menor, que adorava, pois a diferença de idade era grande, fazendo com que Luiz se sentisse um pouco "pai" de Mateus, o que deixava Waldemar e Ângela muito felizes. Meu Deus, pensava, não sei se fui prudente em me declarar a Marília, talvez tenha sido um pouco precipitado. Ela é tão jovem, voluntariosa, agindo sempre de acordo com sua vontade, sem se importar muito com o que possam pensar ou sentir as outras pessoas. Deveria ter sido mais sensato e esperado um pouco mais, não sei. Nossos objetivos são outros, temos metas diferentes. Ponderou mais alguns instantes e disse a si mesmo:
- Bem, agora está feito. É melhor aguardar para ver no que vai dar.
- Luiz! - exclamou seu pai assim que o viu chegar. - Onde esteve até esta ora? Fiquei preocupado, pois não é seu costume desaparecer assim sem avisar, sem vir à loja.
- Desculpe, mas hoje fiz uma coisa seguindo o impulso do meu coração. Porém, para ser sincero, não sei se foi à atitude mais acertada; pelo menos por enquanto.
- Posso saber de que se trata? Se for algo pessoal, íntimo e não quiser se expor, tudo bem, meu filho, sem nenhum problema.
- Não, pai, quero mesmo me aconselhar com o senhor.
- Então me diga o que é.
- Fui até o campo me encontrar com Marília. Sei que todos os dias ela vai até lá, e realmente nos encontramos.
- Qual o mal nisso, meu filho? Marília é filha dos nossos melhores amigos.
- Sei disso, pai. Não sei se há bem ou mal, o fato é que disse a ela que a amava e perguntei se queria me namorar.
- Luiz, para mim isso é uma surpresa! Não sabia que gostava dela. Para ser sincero, sua mãe e eu sempre torcemos para que você e Júlia se entendessem.
Luiz ficou desconcertado.
- Pai, ninguém manda nos sentimentos. Também gostaria que tivesse sido Júlia, porque somos muito parecidos, mas quem vai dizer isso para o coração?
- Tudo bem, filho, é a sua escolha e não temos nada contra. Só não entendo essa sua... Vamos dizer... Aflição em falar que não sabe se fez a coisa certa ou não. Ela o aceitou?
- Sim. Mas deixou claro que não sabe se gosta ou não de mim, e depois...
- Depois?
- Os objetivos, as ambições, os ideais dela nada têm a ver com o que quero para mim.
- Não compreendo. Que metas são essas?
- Marília sonha em sair daqui e ir para a capital. Quanto a isso acho normal. O que me preocupa é que ela não se importa em como irá fazer isso, entende?
- Não!
- Pai, Marília quer o sucesso a qualquer preço; quer dinheiro, fama, mas não se prepara para alcançar seus objetivos com o trabalho e o esforço. Confia cegamente na beleza que tem. Acha que são os seus dotes físicos que irão abrir as portas da fama, e é esse ponto que não gosto; aflige-me. Penso que fui precipitado e temo vir a sofrer.
- Filho, agora já está feito. A melhor atitude a tomar, se de fato gosta dela, é investir nesse relacionamento. Quem sabe você não consegue fazê-la enxergar outros valores, outros propósitos? Você é um bonito rapaz, honesto, trabalhador, tem tudo para conquistar o amor de Marília. Qualquer moça se apaixonaria por você. Se a ama de verdade, invista nesse namoro para ganhar seu coraçãozinho.
- Pode ser que o senhor tenha razão. Mais uma vez estou me precipitando, sofrendo por antecipação, na hora errada.
- Isso, filho, é apenas o começo, e, por ser o começo, é muito cedo para qualquer conclusão. Se vocês tiverem que construir uma vida juntos, o tempo irá contribuir para que tal aconteça. O que está reservado para nós sempre acaba acontecendo.
- Tem razão. Obrigado. Agora me deixe trabalhar, seu Waldemar, não posso perder esse emprego.
Pai e filho se abraçaram, sorrindo.
- Jamais perderia meu melhor funcionário!
- Tem alguma entrega para fazer, pai?
- Tinha, sim, mas não se preocupe que Pedro já foi levar? Está tudo em ordem.
Marília, assim que viu Júlia entrar, foi correndo em direção à irmã.
- Júlia, você nem imagina o que me aconteceu hoje!
- O que pode ter sido, para deixá-la assim tão eufórica, tão entusiasmada?
- Luiz!
- O que tem Luiz?
- Hoje ele foi ao campo para se encontrar comigo. Conversamos bastante, corremos entre as flores, e no final, quando nos jogamos no chão para descansar, Luiz disse que me amava e me pediu em namoro!
Se Marília fosse mais observadora, teria percebido o impacto que a notícia causara em sua irmã, que, disfarçando o desapontamento, falou, tentando parecer calma e indiferente:
- Que bom Marília. Você aceitou?
- Aceitei claro!
- Gosta dele?
- Vou ser sincera com você, Júlia. Sinto que gosto como amigo, mas achei que seria bom ter uma companhia, alguém com quem sair e conversar. É bom ter alguém perto de mim para ajudar a passar o tempo nesta cidade sem nada para fazer. Luiz é um rapaz bonito, e aprecio a companhia dele.
- Mas, agindo assim, não está brincando com os sentimentos dele, iludindo-o?
- Pelo amor de Deus, Júlia, deixe disso! Tenho só quinze anos; Luiz tem vinte e dois. Acha mesmo que vou levar a sério um namoro com alguém sete anos mais velho que eu, principalmente alguém tão careta, assim como você? O dia em que pensar em coisa séria vou arrumar um rapaz que pense como eu, que queira aproveitar a vida sem ficar enfiado nesta cidade.
- Por que você diz "assim como você"? Não entendi.
- Luiz diz as mesmas coisas que você.
- Explique melhor, Marília, me conte.
- Lembra-se daquela conversa sobre as flores que você me disse?
- Claro que me lembro.
- Pois acredita que ele veio com a mesma conversa, igualzinho a você? Acho até que vocês dois têm muita coisa em comum, e se dariam bem juntos.
- O que é isso, Marília? Como pode falar assim do seu namorado?
- Calma, Júlia, não á nada de mais. Mesmo porque Luiz está apaixonado por mim, não por você.
Júlia não suportando mais a dor que sentia em seu coração, disse à irmã:
- Dê-me licença, Marília; essa conversa já me cansou. Você coloca as coisas de um jeito que eu não gosto. Vou para o meu quarto, tenho que estudar.
- É a única coisa que você sabe fazer: estudar!
Júlia ainda escutou a voz de sua irmã, mas sem se voltar saiu, deixando Marília entregue a si mesma. Entrando em seu quarto, trancou a porta e, jogando-se na cama, permitiu que lágrimas quentes caíssem sobre seu rosto.
- Meu Deus, por que teve que ser assim? Por que Luiz não se apaixonou por mim, por que nunca percebeu o grande amor que sinto por ele? Foi amar justamente Marília, que com certeza o fará sofrer.
As lágrimas desciam copiosas sobre suas faces enquanto seus olhos tristes se perdiam no vazio. Recordava a história da sua infância ao lado de Luiz as brincadeiras, o sorriso sempre presente em seus lábios por conta da alegria que experimentava ao estar junto daquele menino que desde muito cedo tocara seu coração infantil. Criara e alimentara durante todos esses anos uma situação que gostaria de viver com o amigo, que se tornara homem feito, mas mantinha a mesma postura correta e gentil que ela tanto amava.
- Logo Marília! - exclamou. - Por que ela? Por que não eu? Como encontrar força para esconder meu sentimento presenciando esse namoro, sabendo que ele a ama e que para ela esse amor não representa quase nada? Com certeza minha irmã o fará sofrer.
Com o rosto escondido no travesseiro, chorou até que, venda, adormeceu. Seu espírito liberto do corpo físico foi logo atraído por um chamado que a levou até o campo dos girassóis. Perdida, Júlia procurava quem a atraíra para aquele lugar, quando se encontrou com o espírito de uma mulher aparentando a idade terrena de cinqüenta anos. Admirou-se.
- Quem é a senhora? - perguntou, sobressaltada. - Por que me chamou até aqui, se não a conheço?
- Porque tenho a missão de acompanhá-la em sua jornada terrena, o que faço com muita alegria e agradecimento a Jesus por permitir minha volta ao meu núcleo familiar do mundo físico e poder auxiliar.
- Não compreendo muito bem. Pode explicar melhor?
- Fui na Terra sua bisavó paterna; desencarnei cedo, vítima de um ataque do coração. Ao chegar à espiritualidade, fui beneficiada com a bênção de Jesus, graças aos créditos adquiridos no decorrer de minha existência terrena. Hoje me dedico a tarefas de auxílio aos encarnados, e uma delas é acompanhá-la, Júlia, inspirando-a para o bem, para que não fuja da sua missão.
- E qual é a minha missão?
- Ser a voz defensora dos mais fracos, criar possibilidades para que os esquecidos possam encontrar o caminho seguro para crescer moral e intelectualmente.
- Desculpe, a senhora diz que é minha bisavó, entretanto não tenho nenhuma lembrança de ter ouvido falar em seu nome. Posso saber como se chama?
- Eu me chamo Amélia. Porém, não tem a menor importância o nome; o principal é o que sustenta o coração que anima o corpo e que acompanha o espírito no seu retorno, ou seja, o amor aprendido e vivido. O seu coração, Júlia, agasalha as virtudes que necessita para cumprir a tarefa para a qual veio ao mundo: o amor e a generosidade.
- O que vem a ser essa missão?
- Você veio a Terra com uma missão específica que você mesma solicitou ao Mais Alto: melhorar as condições precárias dos excluídos da sociedade. Ajudá-los a emergir do descaso e projetá-los na conquista de seus objetivos nobres. São espíritos que vieram com a finalidade de aprender a superar as dificuldades através do próprio esforço.
- Não sei se tenho forças para fazer tudo sozinha. Ajude-me então a não desanimar, pois sei que será uma tarefa árdua.
- Com certeza não caminhará sozinha. Terá ao seu lado um espírito nobre, forte e decidido que a auxiliará nisso tudo. Na espiritualidade, a tarefa de inspirá-la será minha, e contarei com o auxílio dos bons espíritos para cobri-la de energia salutar. Confie em Jesus, sem ter dúvidas em seu coração.
- E na Terra, quem é esse espírito que me acompanhará nessa missão?
- Felipe!
- Felipe! Meu querido irmão!
- Sim, Júlia, ele será seu acompanhante nesse caminho de amor e caridade.
- Lembrarei tudo o que está me dizendo assim que eu acordar?
- Não, não se lembrará, mas terá a sensação de amparo que lhe trará paz ao coração e força para seguir em frente.
- Diga-me então por que estou sofrendo tanto com a indiferença de Luiz. Por que não foi por mim que ele se apaixonou, já que o amo tanto?
- Calma, Júlia, tudo á seu tempo. Cada um cumpre seu resgate, quita suas dívidas com a lei. Ninguém escapa das relações de suas ações pretéritas. Não se esqueça nunca de que o amor fraternal é mais importante que tudo, pois é ele que transforma o homem na digna criatura de Deus.
- Ajude-me, por favor, não quero fracassar.
- Vim para isso. Preste atenção as suas intuições, pois falarei com você por intermédio delas; e principalmente lembre-se do que disse nosso Mestre: orai e vigiai. Volte agora para seu corpo físico, e que Jesus a abençoe em todos os minutos.
Em segundos Júlia retornou ao corpo adormecido, que, ouvindo o chamado de sua mãe, despertou.
- Júlia, desça, a refeição está servida.
Júlia, despertando, sentiu um bem-estar geral.
- Que estranho... Sinto minha alma leve, em paz. Parece até que dormi durante horas, entretanto não passou tanto tempo assim.
Passou as mãos sobre os olhos, ajeitou seus lindos cabelos pretos e respondeu a Marta:
- Já vou, mãe, só um instante!
Assim que se reuniu à família, Júlia comentou com o pai:
- Papai, nesse pouco tempo que adormeci tive um sonho que está me deixando intrigada.
- Que sonho é esse?
- Sonhei com minha bisavó, avó do senhor. Mas nem a conheci; como posso sonhar com ela?
- Isso acontece - falou Marta. - Pode ser que ela tenha vindo proteger você.
- Mas sem me conhecer?
- Filha, você não a conheceu, mas ela com certeza a conhece. Os espíritos conhecem aqueles que fazem parte de sua família terrena, e muitas vezes, com permissão dos superiores, vêm ajudar.
- Como se chamava ela?
- Júlia, ela já desencarnou há tanto tempo... Por que quer saber agora o nome? - perguntou-lhe o pai.
- É verdade, por que esse interesse súbito? - quis saber Marta.
- Já disse, porque sonhei com ela.
- E como sabe que era minha avó? - tornou Antunes.
- Porque no sonho ela me dizia que era minha bisavó paterna, papai.
- Mas você sonhou o quê?
- Não sei. Na verdade não me lembro direito, mas sei que sonhei com ela. Estranho, não é?
- Nossa! - exclamou Marília. - Isso é coisa de fantasma.
- Não seja boba, Marília, os sonhos muitas vezes querem dizer alguma coisa, podem nos trazer alguma mensagem - afirmou Felipe.
- De onde você tirou essa conclusão, Felipe?
- Ora, Marília, já li qualquer coisa a esse respeito.
- Leu nada - comentou Rafael. - Ele às vezes vai à sessão do centro espírita, deve ter ouvido lá.
- Tem alguma coisa errada, mãe, em ir à reunião da mocidade no centro espírita?
- Claro que não, Felipe, lá você irá aprender somente coisas boas, isso é o que importa.
- Eu disse a Rafael para ir comigo, mas ele acha que é bobagem!
- Não gosto disso, mãe. Prefiro as coisas que se relacionam com matéria, coisas palpáveis, que podem ser vistas, tocadas e usadas. As outras são só suposições.
- Engano seu, meu filho. As outras é que possuem real valor, ou seja, são as que nos levam a nos aproximar de Deus.
- Não fique brava comigo, mãe, mas não acredito muito em Deus. Penso que isso tudo que as religiões ensinam são conceitos inventados pelos homens.
- Não filho, não são. Todos somos criaturas de Deus e, como tal, devemos viver. Acreditar que é possível viver sem Deus é o mesmo que pretender evitar a morte, ou seja, impossível.
Júlia prestava atenção à conversa sem tirar os olhos de Felipe. Admirava seu irmão, tão jovem ainda e com opinião própria e bem definida. Sem saber o motivo disse a ele:
- Engraçado, Felipe. Só agora, observando você, pude reparar em como é bonito. Não tanto por fora, mas inteiramente belo por dentro. Confio em você.
- Nossa, que badalação! - disse Rafael, meio enciumado.
- Não precisa ficar com ciúme, Rafael, você também é lindo. E não podia ser diferente; são tão parecidos.
- Mas você não confia em mim como em Felipe, não é?
- Para dizer a verdade, não!
- Por quê?
- Não sei. Talvez por pensar tão igual a Marília.
- Quer dizer então que você não confia em mim? - Marília reclamou.
- Adoro você, minha irmã, mas não a acho confiável.
- Por quê?
- Não sei; deixe para lá.
- Pode confiar mesmo em mim, Júlia. Quero estar sempre ao seu lado, para o que precisar.
- Obrigada, Felipe, é bom saber disso.
- Eu não digo Rafael? - falou Marília. - São dois ingênuos que pensam que vão poder ganhar o mundo usando apenas o coração. Vão quebrar a cara!
Rafael riu.
- Penso como você, Marília; se Júlia pode contar com Felipe, você pode contar comigo.
- Sei disso, Rafael.
- Vamos parar com essa conversa - falou Marta, com autoridade.
Sem dar muita atenção para o que sua irmã dizia, Júlia tornou a questionar o pai, que em silêncio só ouvia os comentários dos filhos.
- Pai, você não respondeu. Como se chamava nossa bisavó?
- Amélia, Júlia.
- Quando morreu?
- Não sei ao certo. Eu era muito pequeno. O que sei é que faleceu ainda nova, após um fulminante ataque do coração.
- Amélia! - exclamou Júlia. - Estranho, tive uma sensação tão boa ao ouvir esse nome...
- Minha sogra sempre dizia que dona Amélia era uma pessoa muito boa, caridosa e admirada pela gentileza com que tratava todas as pessoas, sem se importar com raça, cor ou credo, e muito menos com posição social.
- Estranho eu ter sonhado com ela, não acha, pai?
- Isso acontece, filha - disse Antunes. - Sonhamos com pessoas, coisas e situações que nem sequer imaginamos. Não fique impressionada.
- Não estou. Ao contrário, sinto-me muito bem. É um sentimento de amparo, proteção... Não sei explicar direito.
- Isso é bom.
- Acho que ela não gostou de saber do meu namoro com Luiz.
- Não seja boba, Marília. O que tenho eu a ver com isso, que não passa de um assunto que só diz respeito a você e Luiz? Vocês é que devem se entender.
- Nossa, Júlia, não precisa ficar tão brava.
- Marília, você tem de aprender a respeitar um pouco mais as pessoas. Cuide dos seus sentimentos, mas não me envolva nessa questão, porque não tem nada a ver comigo.
- Tudo bem - respondeu Marília.
Júlia sentiu novamente seu coração se apertar. Preciso aprender a me controlar, Júlia disse para si mesma. Ninguém pode descobrir o que sinto por Luiz. Por que tudo tinha que seguir esse rumo, meu Deus, por quê? Agora o melhor a fazer é tentar esquecer, mudar o foco do meu coração. Nenhum dos dois tem culpa de nada, alimentei sozinha esse sentimento. Marta, após atender à campainha da porta, gritou para Marília:
- Filha, Luiz quer falar com você. Desça.
- Ele está aí?
- Claro, não a estou chamando?
- Já vou!
Com movimentos rápidos, Marília passou a escova nos cabelos, iluminou os lábios com batom e, ajeitando o vestido, desceu ao encontro do namorado.
- Oi, Luiz, tudo bem? O que o traz aqui há essa hora?
- E se eu disser que foi saudade?
- Fico mais contente ainda - respondeu Marília.
Marta se afastou, deixando os namorados à vontade.
- Senti saudade e saí mais cedo da loja com a intenção de convidá-la para um passeio. Aceita?
- Claro que sim! Acho ótima idéia - respondeu Marília, com charme.
- Aonde gostaria de ir? Não... Espere, acho que sei o que vai sugerir.
- Então diga logo, seu sabichão!
- Ao campo dos girassóis.
- Acertou!
- Sabia que não seria outro lugar a não ser esse. Vamos, então.
Marília, após avisar a mãe, seguiu de mãos dadas com Luiz em direção ao campo. Assim que chegaram usufruíram do encanto do local caminhando por entre as flores que tanto impressionavam Marília. A brisa gostosa do vento batia-lhe nos cabelos. Luiz sentiu forte em seu peito o amor pela namorada, disse-lhe:
- Marília, não sei ao certo o que você sente por mim, mais meu amor por você torna-se cada dia mais forte e verdadeiro.
- É melhor irmos com calma, Luiz. Estamos namorando somente há cinco meses, é pouco tempo para as coisas se definirem. Não concorda?
- Não, não concordo. O que sinto por você não nasceu agora, Marília, por esse motivo afirmo com certeza o que realmente vai a meu coração.
- Luiz, eu nunca o enganei. Desde o início disse-lhe que gosto de você, mas também fui muito clara em afirmar que não sei se isso é amor. Sinto-me bem a seu lado, gosto da sua companhia, mas amar é um sentimento muito forte e definitivo. Sou jovem, tenho ânsia de viver, realizar meus sonhos e objetivos, enfim... Tenho bastante o que fazer nessa vida.
- Devo entender que não estou incluído nesses planos, é isso?
- Não foi o que eu disse. O que falei é que é muito cedo para qualquer atitude mais séria.
- Por que, Marília?
- Porque não vou desistir das minhas aspirações por nada nem por ninguém, já afirmei isso mil vezes.
Luiz sentiu uma dor no peito. Pressentiu que fatalmente cairia no sofrimento. Mas o que fazer, pensava ele. Desistir e tentar esquecer ou seguir em frente na esperança de as coisas mudarem?
- Ficou pensativo. Por quê?
- Por nada, Marília. Na verdade existem situações na vida da gente que não sabemos como resolver, ou de que maneira agir. A impressão que dá é que nos tornamos impotentes diante de fatos que poderão acontecer, mas nada podemos fazer para evitar.
- Como assim, Luiz?
- Simples. Acontece às vezes que ficamos sem ação diante de um impasse. Não sabemos se o melhor e mais prudente é investir ou desistir.
- Se está se referindo a nós, a decisão é somente sua, e é você quem tem que saber o que é melhor para sua vida. Sou sincera quando exponho meus pensamentos, mas também não posso afirmar que jamais sentirei algo maior em relação a você. É uma incógnita, Luiz. Quem poderá dizer quem manda no coração?
- Você é uma pessoa obstinada, Marília, vai fundo no que quer e acredita. O que me assusta é justamente essa sua determinação.
- Tudo bem, mas não pode dizer que não sou franca, que o engano. Desde o início sempre falei a verdade; pelo menos essa qualidade eu possuo.
Luiz abraçou a namorada e respondeu:
- Tem razão. Pelo menos até hoje nunca me enganou. Só não posso compreender o porquê desse desejo tão forte de partir em busca de aventura. Sim, porque seus sonhos não passam de aventuras, ilusões.
- O que tem de mal nisso?
- Sonhar nada tem de mal quando os sonhos nos levam a crescer, criar coisas boas elevando-nos como seres humanos, mais os seus sonhos...
- O que têm eles?
- Pense comigo, Marília. Você ambiciona tornar-se famosa, poderosa, enfim, viver no luxo e na riqueza. Mas o que faz para que isso provenha do seu esforço, da luta prudente, sensata e equilibrada? Nada. Esconde-se atrás de sua beleza e aguarda o dia em que ela a levará para a glória. Aí está o perigo.
- Meu Deus do céu, que mal há e que perigo é esse?!
- O mal está na razão de que a beleza é uma qualidade efêmera, passageira. Se não aliarmos a ela o conhecimento, a força moral, o aprimoramento como pessoa digna, correta e equilibrada, essa mesma formosura poderá levá-la ao sofrimento profundo. Não é a melhor qualidade porque é traiçoeira, pode acabar em um piscar de olhos, Marília, e se a pessoa não está preparada acaba no abismo da desilusão e do descaso de si mesma. Você conseguiu acompanhar o meu raciocínio?
- Mais ou menos, Luiz. De todo modo, posso dizer que não tenho medo. Quem poderá tirar de mim o que Deus me deu?
- Suas aquisições morais ninguém poderá tirar de você, mas a beleza pode desaparecer em um piscar de olhos. Se isso acontecer, o que sobrará se o conteúdo de sua mente estiver apenas ligado à formosura?
Marília calou-se, dando a Luiz a impressão de abatimento.
- Ficou triste?
- Não.
- Parece-me que sim.
- Não, Luiz, não estou triste. Só não compreendo por que todas as pessoas que convivem comigo e que eu amo fazem tanta questão de tentar anular minhas ilusões, tirar de mim o que alimenta minha alma.
Luiz, sentindo ternura pela namorada, respondeu imprimindo à própria voz um tom carinhoso:
- Porque são ilusões, e você mesma afirmou isso agora. As ilusões, quando acabam, geralmente deixam uma realidade cruel, um rastro de dor; e sabe por quê? Porque a ilusão é o engano dos sentidos, ou da mente, e nos faz tomar uma coisa pela outra. Aí está o perigo de muitos devaneios. As pessoas que a amam receiam por você, pelo que possa vir a sofrer no futuro se não levar sua vida mais centrada na realidade.
- Tem hora em que você fala igual à Júlia. Aliás, vocês são muito parecidos um com o outro. Não sei por que não se apaixonou por ela, e sim por mim, Luiz.
- Simplesmente porque me apaixonei por você, e não por ela! - exclamou Luiz, sorrindo. - Quero deixar bem claro que não estou exigindo que você seja como eu acho que deve ser. A maneira de cada um é pessoal, e nenhum de nós conhece a si mesmo. Em vista disso, não se pode pretender conhecer a alma do outro. Gostaria apenas que você conseguisse considerar a possibilidade de construir sua vida, que apenas começa, com recursos mais profundos, e não só com a sua beleza, que poderá facilmente enganá-la.
Cansada de falar sempre no mesmo assunto, Marília respondeu:
- Tudo bem, Luiz, vamos mudar de assunto. Que tal corrermos um pouco?
- Ótimo, vamos ver quem ganha à corrida.
Felizes, os dois jovens começaram a correr e a brincar por entre os vibrantes girassóis. Enquanto isso, Júlia, chegando a casa, perguntou pela irmã.
- Onde está Marília, mamãe?
- Faz algum tempo saiu com Luiz.
- Nem é preciso perguntar aonde foram.
- Isso é verdade, não sei como Marília não se cansa de ir ao campo; faz isso todos os dias.
- Ela se queixa de que a cidade não tem nada a oferecer, mas também não vai a lugar nenhum a não ser ao campo dos girassóis.
- Sua irmã age assim desde bem pequena porque herdou de seu avô a paixão por essas flores.
- Mãe, se não estiver muito ocupada gostaria que me falasse mais sobre a minha bisavó Amélia. A senhora chegou a conhecê-la?
- Não, Júlia, não a conheci. Quando comecei a namorar seu pai ela já havia desencarnado.
- Mãe, cada vez que me lembro de dona Amélia, experimento uma sensação muito boa, de paz, de amparo... Não sei dizer ao certo. Não é estranho?
- Deve existir alguma razão. Se lhe faz bem, o motivo deve também ser bom.
- Gostaria de saber um pouco mais sobre sua vida quando encarnada.
- Filha, não posso lhe dizer muita coisa, a não ser o que minha sogra me dizia.
- Diga-me então o que sabe.
- Ela também não a conheceu pessoalmente, mas todos que a conheceram não poupavam elogios em relação ao seu caráter e suas atitudes humanitárias. Diziam ser uma pessoa muito nobre. Mulher valente, sempre pronta a ajudar os necessitados, ampará-los em suas aflições. Enfim, muito caridosa. Era temente a Deus, e seu intenso amor ao Criador transformou-a em uma fiel criatura do bem, que se dedicava incansavelmente à prática da caridade. Como você já sabe, dona Amélia desencarnou relativamente nova e deixou saudade no coração de quantos privaram de seu convívio. Só posso lhe dizer isso, filha, não sei muita coisa mais.
- Estou satisfeita, mãe, não há necessidade de mais; isso me basta. Queria apenas saber do seu relacionamento com as leis divinas, a sua postura de vida e se de verdade tinha amor pelas criaturas.
- Quanto a isso, Júlia, dona Amélia era positivamente uma criatura de Deus.
- Isso caracteriza sua posição elevada no reino dos céus!
- Acredito que sim, porque nunca se soube de um gesto seu que a afastasse do caminho do bem.
- Devo crer que é um espírito de luz, possuindo condições de auxiliar os encarnados por inspirações, para o caminho reto?
- Júlia, não conheço muito sobre a Doutrina Espírita, mas, se a luz espiritual é a reação das boas ações praticadas na Terra, devo crer que dona Amélia possui, sim, condições para amparar os encarnados sob a permissão de Jesus. Mas diga-me o porquê de tanto interesse repentino sobre a vida de sua bisavó.
- Para ser sincera, nem eu mesma compreendo. De uns tempos para cá, tenho pensado muito nela, aliás, desde aquele sonho que tive há alguns meses, lembra? Achei muito significativo, trouxe-me uma sensação de amparo, de suporte para minha vida... Não sei explicar direito, mas é com certeza uma impressão muito boa. Ocorrem-me às vezes idéias que parece não vir de mim, mas que me levam a pensar, refletir sobre mim mesma e o que realmente quero.
- Isso é bom, filha, mas não fique assim tão sugestionada.
- Não estou sugestionada, mas relatando o que acontece e me faz muito feliz e confiante. "Espíritos bons: predomínio do espírito sobre a matéria; desejo do bem." Suas qualidades e seu poder de fazer o bem estão na razão do grau que atingiram. Compreendem Deus e o infinito e gozam já da felicidade dos bons. Sentem-se felizes quando fazem o bem e quando impedem o mal. Suscitam bons pensamentos, desviam os homens do caminho do mal, protegem durante a vida aqueles que se tornam dignos e neutralizam a influência dos espíritos imperfeitos sobre os que não se comprazem nela. Quando encarnados são bons e benevolentes para com os semelhantes; não se deixam levar pelo orgulho, nem pelo egoísmo, nem pela ambição; não provam ódio, nem rancor, nem inveja ou ciúme, fazendo o bem pelo bem. Sua qualidade dominante é a bondade; gostam de prestar serviços aos homens e de os proteger; mas o seu saber é limitado: seu progresso realizou-se mais no sentido moral que no intelectual. "Pertencem à quinta classe: Espíritos Benévolos." (O Livro dos Espíritos - Allan Kardec - Capítulo I - item 114)

CAPÍTULO III - TRÊS ANOS DEPOIS

Marília acordou feliz. O sol entrando pela fresta da janela de seu quarto anunciava um dia lindo, cheio de calor, de acordo com a expectativa que sentia de completar, naquele dia, dezoito anos. Levantou-se e, abrindo a janela, deu bom-dia à natureza, que se agigantava majestosa diante de seus olhos. A grande cadeia de montanhas que compunham o horizonte visto de seus aposentos despertava nela as mesmas ilusões que os girassóis.
- Vocês são belas e poderosas como os girassóis - dizia -, e é assim que quero ser. Faço parte desse contexto, dessa energia, desse vigor. E como vocês vou dominar o mundo e ser alguém de destaque nessa sociedade hipócrita, repleta de gente que deseja o mesmo que eu, mas não tem coragem de admitir e se esconde no falso moralismo. Prometo a mim mesma!
Acreditando que tudo mudaria a partir dessa data em que completava os tão esperados dezoito anos, Marília rodopiava exultante, ensaiando passos de valsa e entregando-se, como sempre fazia aos seus devaneios. Completara os estudos, e nem de longe considerava a hipótese de seguir em frente, preparando-se como fizera sua irmã, que dentro de mais um ano receberia seu diploma universitário. Ao se lembrar de Júlia, disse a si mesma:
- Como Júlia pode ser tão ingênua e tão boba? Em vez de se importar consigo mesma, dedicou esses anos a estudar para se formar assistente social com a finalidade de passar a vida toda ouvindo lamentação e tentando resolver problemas que não lhe pertencem. Comigo, com certeza, será diferente. Agora sou maior de idade e, no momento certo, quando a oportunidade aparecer, poderei seguir o meu caminho.
Nem por um instante lembrou-se de Luiz, que continuava ao seu lado tentando, como sempre, abrir-lhe os olhos para a realidade da vida, que poderia ser de felicidade se agisse com sensatez e equilíbrio. Nada importava a Marília, que continuava perdida em sua obstinação de ser famosa. Confiava cegamente em sua beleza, que, com o passar do tempo, ficava cada vez mais exuberante. Marília voltou à realidade ao ouvir sua mãe batendo levemente na porta e dizendo:
- Filha, levante-se. Hoje o dia será de muito trabalho. É seu aniversário, esqueceu? Temos muito que fazer até a noite. Não quis uma linda festa? Pois então venha ajudar a prepará-la.
- Já vou, mãe, um minuto só! - respondeu eufórica.
- Minha mãe acha que por um instante eu poderia esquecer o dia de hoje, pensou ela. Justo hoje, que marca a minha liberdade para dar a minha vida o rumo que eu quiser. Meu coração vai estar onde estiver à possibilidade de me tornar alguém de verdade, não me importa como.
O coração do homem é sua bússola; ele o leva para o bem ou para o mal, depende do amor que balsamiza a alma. Não se consegue felicidade sem coração limpo. Não se constrói um mundo melhor sem aprender a amar com a dignidade e a transparência que o verdadeiro amor possui. (A Essência da Alma - Irmão Ivo)
Ao entrar na sala, Marília deparou com seus pais e irmãos, que assim que a viram, começaram a cantar Parabéns a você com toda a alegria e carinho que sentiam por ela. Abraçaram-se, e a festa programada para a noite começou naquele momento em que os corações sinceros se encontravam, tentando mostrar a Marília que, mais importante que qualquer sucesso material, a felicidade é ser alvo da atenção das pessoas que nos amam. O desjejum transcorreu em meio à alegria de todos.
- Agora você já é maior de idade e pode fazer o que quiser Marília - disse Rafael à irmã, imprimindo à voz o tom de apoio às suas decisões.
- Rafael, o fato de Marília completar dezoito anos, assim como aconteceu com Júlia, não significa que deixou de ter pais para cuidar dela e orientá-la – afirmou Antunes, incomodado com o que Rafael dissera.
- Vamos deixar claro que o que muda é somente sua idade cronológica, porque o restante continua a mesma coisa, como sempre foi. Não fique colocando mais idéias na cabeça dela, que não sabe nem coordenar as que já têm.
- Não sei não, pai! - disse Júlia.
- Júlia - respondeu Marília -, não sei por que estão preocupados com isso. Eu mesma não falei nada. Vamos deixar o tempo correr, não é melhor?
- Bem, mudemos de assunto - disse Marta, - Agora é ora de alegria. Depois teremos muito que preparar, e não podemos perder tempo.
Enquanto saboreavam o gostoso café da manhã preparado com dedicação por Marta, a campainha tocou.
- Deixe que eu atendo.
E Felipe se levantou, indo em direção à porta. Voltou trazendo nas mãos um encantador ramalhete de flores do campo. Entregou-o a Marília, que, ansiosa, abriu o pequeno envelope. No cartão, os dizeres: "Meu amor, parabéns. Acredito ser hoje o nosso dia de felicidade. Beijos, Luiz".
- Nossa, que romântico! - exclamaram juntos Rafael e Felipe, ao ouvirem a irmã ler o cartão em voz alta.
Marília leu e releu o cartão, tentando entender o que ele queria dizer com "nosso dia de felicidade".
- Não compreendo mãe. O que Luiz quer dizer com isso?
- Ora, Marília - foi Júlia quem respondeu -, vocês namoram há três anos. É justo que ele se imagine fazendo parte deste dia, que considera tão importante.
- Não sei Júlia, senti alguma coisa que não me agradou...
- Filha, precisa parar de estar sempre na defensiva - falou Marta.
- A senhora tem razão, mãe. Tudo o que se fala com Marília, ela logo responde como se estivesse se defendendo de algo.
- Pára com isso, Felipe!
- É verdade. Acha que só você tem razão e sabe das coisas. Prefiro mil vezes conversar com Júlia do que com você.
- Pois então converse com ela. Não faço questão nenhuma de saber o que vai a sua cabeça. Aliás, disso todo o mundo já sabe.
- Do mesmo jeito que todo mundo também já conhece quais são os seus sonhos e ilusões, não é, Marília? Nada para você importa a não ser o que sonha e quer. Desculpe, mas você passa de uma egoísta.
- Chega! Vamos parar com isso! - exigiu Antunes, com autoridade. - Hoje é o aniversário de Marília. Vamos respeitá-la e passar este dia em paz e com alegria.
- Você tem razão, Antunes, não devemos estragar um dia auspicioso como este. Vamos terminar logo com esse café e começar a preparar a festa. Trabalho é que não nos falta - completou Marta.
Entregue aos afazeres, Marília nem percebeu o escoar das horas. No início da noite, entrava ela na sala de sua casa, linda, sob aplausos e olhares de admiração de seus convidados. Luiz aproximou-se da namorada e beijou-lhe o rosto.
- Você está linda, Marília!
- Obrigada, Luiz - disse sem muita emoção, preocupada apenas com o efeito que causava nas pessoas presentes.
Os comentários corriam soltos, e Marília cada vez mais acreditava ser o início de uma nova vida, a vida que realmente queria e esperava que acontecesse o mais rápido possível.
- Como sua filha é linda, Antunes - dizia Waldemar. - Luiz soube escolher minha futura nora.
- É verdade - concordou Ângela.
- Marília é uma moça encantadora.
- Você é um homem de sorte. Tem duas filhas dignas de admiração; diferentes uma da outra, mas ambas possuem encanto e beleza.
- Realmente Marta e eu temos muito orgulho de nossos filhos.
Marília circulava por entre os presentes entregue à sua excessiva vaidade. Tinha consciência do poder que exercia sobre os outros por seus incontestáveis dotes físicos.
- Marília? - Júlia se aproximou da irmã. - Notei a sua falta de atenção em relação a Luiz. Ele está sozinho em um canto, enquanto você circula como se não o conhecesse.
- Pelo amor de Deus, não comece. E, por favor, não estrague a minha noite, nem a minha festa. Sem sermão, pelo menos hoje.
- Marília, isso não é um sermão - defendeu-se Júlia. - Luiz é seu namorado, está praticamente sozinho enquanto você é toda sorrisos para os outros.
- Você pode me fazer um favor?
- Claro, o que quer?
- Vá fazer companhia a Luiz, já que está com tanta pena dele. - Dizendo isso, afastou-se da irmã, não lhe dando chance de resposta e deixando-a boquiaberta.
Júlia olhou em direção a Luiz e condoeu-se em vê-lo afastado dos demais. Seguindo seu impulso, foi em sua direção.
- Por que tão sozinho Luiz? Vá para junto de Marília.
- Não, Júlia, é melhor deixá-la livre. Você sabe o quanto ela gosta de se promover.
- Desculpe-me, mas isso não está certo. Vocês são namorados devem ficar juntos, principalmente na noite de hoje, que é de festa e alegria.
- Penso como você, Júlia, mas infelizmente Marília não se afiniza com nossas idéias.
- Luiz, sei que não deveria me intrometer, mas acho que você precisaria se impor um pouco mais, defender com mais firmeza suas vontades, e não aceitar tudo passivamente, permitindo que as coisas aconteçam como Marília quer. O que me passa é que gosta de estar sempre à sombra dela. Estou errada?
- Não totalmente, Júlia.
- E porque que não reage dando vazão à sua própria personalidade?
- Por medo de perdê-la.
- E agindo assim você acha mesmo que a tem?
Luiz levou um susto.
- O que quer dizer com isso?
- Que vocês namoram há três anos e ninguém nota progresso nenhum em seu relacionamento. É um namoro morno, sem carinho, companheirismo ou cumplicidade. Pensam diferente e agem mais diferente ainda.
- Júlia, Marília é muito nova, é preciso ter paciência!
- Até onde deve ir essa paciência, Luiz? Para um relacionamento dar certo o carinho e a atenção deve ser recíproco. É necessário que um se preocupe com o outro. Além do mais, Marília sabe muito bem o que quer. Defende suas idéias com todo o vigor sem dar nenhuma chance a quem quer que seja de contrariá-la. Isso prova que não é tão nova assim, que tem capacidade de perceber as coisas e definir seus sentimentos. Deve saber o que espera de você, se é que espera alguma coisa.
Pelo olhar triste de Luiz, Júlia percebeu que tinha ido longe demais. Tentando aliviar a tensão que criara, disse-lhe:
- Perdoe-me, estou constrangida. Acho que exagerei. Não devia ter me intrometido; afinal, esse é um assunto que só diz respeito a vocês, e não a mim.
Desculpe-me, por favor!
- Não me peça desculpas, Júlia, sei que quer o nosso bem. Ou, melhor dizendo, o meu bem, porque para Marília tudo está indo às mil maravilhas, conforme ela deseja.
- Não vou negar que quero o seu bem, Luiz, talvez mais do que você possa imaginar. Mas isso não me dá o direito de me intrometer na sua vida.
- Eu lhe dou esse direito.
A conversa foi interrompida pela chegada de Marília.
- Vocês dois até parecem namorados conversando sozinhos no canto a sala.
- Marília, não gosto nem acho elegante esse seu jeito de se expressar - protestou a irmã.
- Júlia, nada do que faço ou falo você aprova ou acha elegante, como disse. Por isso, não me surpreende nem me preocupa o fato de você não gostar.
- Virou-se para Luiz e, autoritária, falou ao namorado: - Venha, vou soprar as velinhas do bolo, e o mínimo que posso esperar do meu namorado é que esteja comigo nesse momento.
Luiz olhou para Júlia, novamente para Marília, e disse:
- Não estivemos juntos até agora porque você não quis. Estava muito ocupada consigo mesma para se lembrar de que tem um namorado.
- Está pegando a mania de Júlia? Pare de reclamar e me siga! - E o puxou pela mão.
Antes que os convidados iniciassem a canção, a porta da frente se abriu, e Carlos, amigo de Luiz, entrou acompanhado de Marcelo. Luiz, assim que o viu, foi ao seu encontro acompanhado de Marília e feliz com a presença do amigo.
- Carlos, pensava que não viesse mais! Já é tarde!
- Desculpe o atraso, Luiz, tive um contratempo. Sei que é tarde, mas não poderia deixar de vir cumprimentar sua namorada.
Respondendo ao olhar indagador de Luiz, Carlos apresentou o amigo:
- Este é Marcelo. Convidei-o sem avisar e espero que não se importem e me desculpem. Marcelo, este é Luiz, e esta, Marília, sua namorada e a aniversariante.
- Muito prazer. - Luiz estendeu-lhe a mão. - É bom tê-lo aqui conosco. Fique à vontade.
Marília, educada, seguiu o gesto do namorado e também lhe estendeu a mão, fitando-o demoradamente. Que belo rapaz, pensou.
- Carlos, somos amigos há bastante tempo e não me lembro de ter visto Marcelo por aqui.
- Não deve ter visto mesmo, Luiz. Ele mora na capital e vem muito pouco aqui, devido aos seus afazeres.
- É verdade, Luiz, não tenho muito tempo para o meu lazer. Viajo muito por conta do meu trabalho, mas hoje tenho o enorme prazer de conhecê-lo. Carlos fala muito bem de você, com grande admiração.
- Obrigado. Carlos é um amigo querido. Mas, diga-me, qual é o seu ramo de atividade? - perguntou Luiz, interessado.
- Sou sócio de uma empresa de modelos e viajo muito por conta dos contratos.
Essas coisas relacionadas à moda em geral.
Marília levou um choque. Não desviava os olhos de Marcelo. Estava impressionada com o porte físico do rapaz e, sobretudo com sua condição de morar na capital, e mais ainda por trabalhar no lugar onde sua vida inteira sonhara estar. Preciso me aproximar dele. Aí está a minha grande e talvez única oportunidade de entrar nesse mundo que me fascina. Júlia, aproximando-se, foi apresentada a Marcelo, que, galante, disse:
- A beleza é um bem de família?
- Obrigada... - Júlia respondeu, meio sem jeito.
Marília fuzilou a irmã com o olhar. É melhor não criar nenhuma ilusão, queridinha, porque esse será meu. Ou não me chamo Marília! Júlia, conhecendo a irmã, percebeu um brilho diferente em seus olhos e um ar de desafio em seu rosto que tão bem conhecia. Com naturalidade, convidou:
- Bem, vamos todos cantar os parabéns para Marília!
Júlia notara o interesse no semblante da irmã e sabia quanto ela era impulsiva e voluntariosa; daí para alguma situação desagradável ocorrer era apenas um passo. Seguindo a sugestão de Júlia, todos se reuniram e, com alegria, cantaram para Marília, que, sem se importar muito com o entusiasmo dos presentes, procurava Marcelo com os olhos, no que era correspondida. Marcelo percebera o interesse que despertara em Marília e, por sua vez, impressionado com sua beleza e porte, devorava-a com o olhar insistente. É uma questão de tempo, disse a si mesmo. Aliás, muito pouco tempo.
- Carlos, que moça linda é essa! Parece até uma deusa. Você não me disse que a aniversariante era essa beldade toda.
- Calma, Marcelo, ela é namorada de Luiz, esqueceu? Não me meta nem me coloque em situação difícil.
- Namorada não é esposa; hoje é e amanhã pode não ser. Vamos falar a verdade, é uma pena esconder esse rosto numa cidade sem nenhuma chance. Marília deve ser mostrada ao mundo, meu amigo.
- Deixe-a em paz, Marcelo. Marília não é para você.
- Aí é que você se engana. É o tipo de garota que realmente é para mim, basta que você preste atenção.
- O que está querendo dizer?
- Carlos, escute. Se ela estiver bem com o namorado, se de fato gostar dele, o que não me parece, nada irá separá-los. Mas, analisando os olhares que ela está me dando devo crer que Luiz não está tão seguro assim.
- Pelo amor de Deus, Marcelo, o que está inventando?!
- Eu, inventando? Carlos, essa garota está me paquerando abertamente. Nem se importa que os outros possam perceber. Se prestar mais atenção, poderá constatar o que estou dizendo. Ela não tira os olhos de mim. É ou não um convite? Por falar nisso, há quanto tempo eles namoram?
- Parece-me que há três anos.
- Puxa! Esse Luiz ou é muito ingênuo ou é trouxa mesmo.
- Marcelo, não vou permitir que fale assim do meu amigo, que, aliás, recebeu você muito bem. Ele é uma das melhores pessoas que conheço! - exclamou Carlos, com indignação.
- Calma. O que eu disse não anula o caráter dele. O rapaz continua sendo a melhor pessoa que você conhece. Talvez o fato de ser assim tão correto o impeça de perceber o tipo da namorada dele.
- Como assim? O que você quer dizer?
- Nada de mais, Carlos. Apenas percebo a realidade, e essa intuição, vamos dizer assim, adquiri em todos esses anos com meu trabalho. O tempo dirá meu amigo.
- Eu o trouxe para prestigiar meu amigo, e não para ficar de prosa com você analisando uma questão que não nos diz respeito. Vamos mudar de assunto.
- Tudo bem!
Júlia não deixou de observar os dois rapazes. Incomodada, aproximou-se e os convidou:
- Venham mais para perto. Luiz quer dizer algumas palavras para Marília.
Carlos e Marcelo trocaram olhares e, gentis, seguiram Júlia. Ao ver todos reunidos, Luiz, um pouco nervoso, dirigiu-se primeiro aos pais de Marília, dizendo:
- Seu Antunes e dona Marta, se me permitem, gostaria de me dirigir aos senhores e fazer um pedido a Marília.
- Fique à vontade, Luiz!
- É do conhecimento dos senhores o tanto que amo sua filha e meu desejo sincero de fazê-la feliz. Nosso namoro já dura três anos, nossas famílias se conhecem há longo tempo se estimam e se respeitam. Portanto, não vejo motivo para adiar mais este pedido.
Marília sentiu uma agonia inexplicável e encarou o namorado.
- Luiz!
O rapaz, interpretando o chamado como algo positivo e emocionado, sentiu-se encorajado, e continuou feliz:
- Calma querida! - Olhou para Antunes e Marta. - Quero pedir a mão de sua filha em casamento.
Luiz retirou do bolso um pequeno estojo, abriu-o e deixou à mostra um lindo anel de brilhante. Segurando a mão da namorada, ofereceu-lhe a jóia, perguntando:
- Marília, você quer se casar comigo?
Ela nada respondeu, nem demonstrou emoção alguma. Sua reação provocou nos presentes um incômodo silêncio. A expectativa foi geral. Júlia, sem conseguir se controlar permitiu que seus olhos se enchessem de lágrimas, que escorreram soltas por suas faces. Meu Deus pensou tudo perdido. O momento que mais temia chegou. Ninguém tirava os olhos de Marília, que continuava parada, sem reação e sem saber o que fazer. Docemente, Luiz repetiu a pergunta, acreditando estar à namorada sob o efeito de grande emoção:
- Querida, você quer se casar comigo?
Deixando todos os presentes perplexos, Marília respondeu com firmeza:
- Não!
Sem entender, Luiz indagou:
- Não?
- Não, Luiz, não quero me casar com você.
Marcelo sussurrou para Carlos:
- Não disse? Foi mais rápido do que eu mesmo imaginei.
- Fique quieto, Marcelo!
- Mas, Marília... Eu pensei... - continuou Luiz.
- Pensou o que, Luiz? O fato de estarmos namorando há alguns anos não lhe dá o direito de achar que quero me casar com você.
- Marília! - Antunes ficou pasmo com a atitude da filha.
- Desculpe pai, mas Luiz deveria ter falado comigo antes, para não fazer o papel ridículo que está fazendo!
Júlia, indignada, correu para a irmã e lhe disse, quase aos gritos:
- Você não tem o direito de dizer isso a Luiz, humilhando-o perante as pessoas!
- Por quê?
- Porque é preciso respeitar os sentimentos dos outros, Marília. Se você quer mais um tempo para pensar, diga isso de uma maneira mais sensata e generosa, em um lugar mais adequado, onde possam estar mais à vontade para falar.
- Não, Júlia, não irei a nenhum lugar mais adequado, porque o que tenho para falar não preciso esconder. Foi bom que aconteceu agora, porque já não suportava mais essa situação. Será que alguém pode me entender?
- O que quer dizer, filha? - perguntou Marta, constrangida.
- Quero dizer o que sempre disse a minha vida inteira e a que ninguém deu importância. Não quero me casar com Luiz, nem hoje, nem nunca, porque não vou passar minha vida nesta cidade em meio a panelas e filhos. Quero alçar vôo, mãe, entende isso?
- Por que então me namorou todo esse tempo? - questionou Luiz, com o fio de voz que ainda lhe restava. - Por que brincou com meus sentimentos?
- Luiz, eu gosto de você; não da maneira que você gostaria, mas como amigo. Não tive a intenção de brincar com seus sentimentos, apenas não o amo. Se fiquei com você todo esse tempo foi porque me sinto bem em sua companhia, gosto de conversar com você... Enfim, é bom ter com quem sair e me divertir.
Luiz mal podia acreditar no que estava acontecendo. Sentia-se vazio, tonto, como se o chão lhe faltasse sob os pés. Lentamente fechou o estojinho e guardou-o no bolso. Não sabia o que fazer, que atitude tomar; não conseguia definir o que realmente sentia naquele instante. Seus pais, envergonhados com toda aquela situação, pegaram-no pelos braços e convidaram-no a sair.
- Vamos, filho, você não tem mais nada o que fazer aqui. Chega de humilhação por hoje.
Como um autômato, Luiz saiu acompanhado de seus pais e seu irmão. No instante em que atravessava a porta, Marília o chamou.
- Luiz!
Ele se virou para responder:
- Chega Marília, não temos mais nada a nos dizer. Acabou.
Antunes e Marta correram ao encontro de Waldemar e Ângela. Antunes, tomando a frente de Marta, disse-lhes, embaraçado:
- Amigos, estamos tão aturdidos quanto vocês com o procedimento inesperado e desagradável de minha filha. Peço-lhes que nos desculpem em nome de todos os anos de nossa amizade. Não sei o que fazer para reparar a decepção que com razão, devem estar sentindo.
- Nunca poderíamos imaginar que fosse acontecer esse episódio tão triste em meio à alegria da festa que preparamos com tanto gosto - Marta afirmou. - Gostamos e admiramos muito seu filho, e sempre vimos com alegria o namoro dos dois, acreditávamos mesmo que daria certo.
- Acredito dona Marta. Ângela e eu sabemos que vocês não tinham conhecimento de nada, e muito menos tiveram participação de alguma forma. Não os culpamos de absolutamente nada e nossa amizade não irá se abalar por essa atitude tão leviana de Marília.
- Só não compreendo por que ela deixou o namoro ir tão longe, chegando a ponto de Luiz acreditar no casamento. Por que sua filha alimentou o sentimento de meu filho? - perguntou Ângela, com lágrimas nos olhos.
- Isso eu também me pergunto! - respondeu Antunes.
- Desculpem-me o que vou dizer, mas muitas vezes disse a Luiz que ele não havia feito a escolha certa. Júlia é a pessoa certa para ele, mas os jovens nunca escutam os conselhos dos pais. Agora é amargar a dor do desprezo feito na frente de todos - desabafou Waldemar.
Luiz, que até então ouvira tudo em silêncio, respondeu sem conter sua irritação:
- Gostaria que parassem com esses comentários. Marília está no direito dela de não aceitar. Não quer se casar comigo, quanto a isso não temos mais o que questionar. O assunto está morto; nosso caso, encerrado. Não vou ficar me lamentando por alguém que não teve a preocupação e a consideração de me poupar diante de tantos convidados. Humilhou-me sem pensar no que eu poderia estar sentindo naquele momento, em meu sonho de felicidade, que caía por terra. Se houvesse pelo menos respeito por mim, a mesma atitude poderia ter sido tomada de uma maneira mais delicada, sem a clara intenção de me machucar. O ponto final foi colocado. Obrigado, dona Marta e seu Antunes, por terem me recebido tão bem em sua casa.
Virou-se e, sem esperar pelos pais, alcançou a rua.
- Luiz, espere-nos!
- Não, pai, eu já vou. Prefiro caminhar sozinho. Assim coloco meus pensamentos no lugar.
Retornando à sala, Antunes e Marta aborreceram-se com os comentários que se faziam entre os convidados. Marcelo, no íntimo, se deliciava com o ocorrido.
- Vamos embora, Marcelo - convidou Carlos.
- Calma, vou me despedir de Marília.
- Aproximou-se dela, segurou-lhe as mãos, e levou-as aos lábios. - Boa noite senhorita. A festa estava excelente. Espero tornar a vê-la.
Marília respondeu com um sorriso nos lábios:
- Boa noite, Marcelo, foi um prazer conhecê-lo. Com certeza nos veremos novamente.
Júlia, observando a irmã, percebeu sua intenção e pensou você não toma jeito! Aproximou-se mais um pouco e se despediu:
- Boa noite, seu Marcelo!
- Não acha que sou muito novo para ser tratado com tanta cerimônia?
- Imagino ser o tratamento adequado quando não se tem nenhuma intimidade.
- Pára com isso, Júlia, Marcelo já é nosso amigo; estou enganada? - Marília o encarou.
- De modo algum. Eu já os considero meus amigos.
E deu uma piscadinha para Marília, que respondeu com mais um caprichado sorriso.
Júlia puxou a irmã para um lado, irritada.
- Não tem vergonha, Marília?
- Não, Júlia, não tenho.
- Grosseiramente dispensa seu namorado sem a menor preocupação em poupá-lo do vexame, e, nem bem acaba a festa, derrete-se toda para outro convidado.
Acha que não percebi seu interesse por esse tal Marcelo a noite toda? Um rapaz que mal conhecemos!
- E daí? Não terminei o namoro com Luiz? Não tenho que dar satisfação a ninguém do que faço da minha vida, simplesmente porque é um problema meu, e muito menos a você. A não ser que também esteja interessada nele. Acertei?
- Não seja boba, Marília. Sabe o que mais me intriga?
- O quê?
- De que será feito o seu coração?
- Ele é feito de vontade de viver, que é exatamente o que falta em você.
- Marília, vá despedir-se dos convidados. A festa acabou - disse Marta, chegando perto das filhas.
- Mãe, é muito cedo!
- Não, já é muito tarde, considerando o estrago que você fez.
- Mas...
- Chega! Despeça-se das pessoas. Antes de dormir, temos muito que conversar.
Marília obedeceu. Em menos de trinta minutos, a casa estava vazia.
- Felipe e Rafael, vão para o quarto - ordenou Antunes.
- Pai deixe-nos ficar, já somos grandes - pediu Rafael.
- Não vou falar duas vezes. Minha paciência chegou ao fim, Marília se encarregou disso.
- O senhor prefere que eu saia também?
- Você não, Júlia. Quero que fique.
- A queridinha vai ficar. Já sei, lá vem sermão...
- Cale-se, Marília! Tenha pelo menos o bom senso e o respeito de ouvir seus pais e dar a eles uma boa explicação.
Diante do tom enérgico de Antunes, Marília não ousou dizer nada. Sentou-se e, em silêncio, ouviu o que seu pai tinha a dizer.
- Muito bem, imagino que deva ter uma explicação aceitável, que justifique sua atitude desagradável humilhando seu namorado, na frente de todos os convidados, deixando todos nós, sobretudo os pais dele, em uma posição desconfortável, vexatória mesmo. Não reaja como se nada tivesse acontecido, porque aconteceu, e o mal que você fez a Luiz pode ter uma conseqüência maior do que possa imaginar.
Nesse momento, Marília caiu em si. Percebeu a real extensão do que fizera e o quanto havia magoado Luiz e seus pais. Não sabia o que dizer, pois compreendeu naquele instante que tinha ido longe demais. Conscientizou-se da sua presunção e de seu enorme egoísmo. Sem saber como explicar, balbuciou apenas:
- Desculpe-me, pai!
- Tudo bem, Marília, sua mãe e eu podemos até desculpá-la, mas como tirar a dor da humilhação, a mágoa e a decepção do coração de Luiz? Por mais que você peça desculpas, minha filha, o cravo da dor já marcou o coração dele.
- Luiz irá me esquecer logo, vocês verão.
- Marília, preste atenção. As pessoas esquecerão o que nós dissemos um dia; esquecerão o que nós fizemos, mas nunca a maneira como nós as tratamos. É isso que eu gostaria que você aprendesse: como tratar as pessoas.
Marília, após alguns segundos calada, voltou à sua natureza voluntariosa e respondeu ao pai:
- Pedi desculpas ao senhor e a mamãe. Posso até me desculpar com Luiz e seus pais. Mas tirar a mágoa do coração dele não posso, isso é um fato. O que fiz está feito e não tem conserto. Ele vai ter que aceitar e levar a sua vida como quiser, contanto que não atrapalhe a minha.
- Marília! - Marta a admoestou.
- É isso mesmo, mãe. Não amo Luiz, não vejo motivo algum para casar com ele e estragar minha vida que está apenas começando, anulando os meus sonhos, minhas ilusões e meus objetivos.
- Filha, por que namorou o rapaz por três anos? Por que brincou com os sentimentos dele, iludindo-o?
- Não brinquei nem iludi ninguém. Luiz deveria ter me consultado antes, para não fazer o papel ridículo que fez hoje.
- Posso dar minha opinião, pai?
- Claro Júlia.
- Penso Marília, que ele confiou no relacionamento de vocês, que já durava três anos, porque ninguém namora uma pessoa tanto tempo sem gostar dela.
Ninguém podia imaginar o quanto Júlia sofria por saber que o homem que ela amava enfrentava o desprezo de sua própria irmã.
- Júlia tem razão!
- Então vocês gostariam que me casasse com ele e fôssemos os dois infelizes? É isso?
- Não, minha filha - voltou a dizer Antunes. - Todos querem a sua felicidade e a de Luiz. O que questionamos foi à maneira cruel de recusar o pedido feito com tanto amor; foi jogar no chão as esperanças dele. Você expôs o rapaz que a ama fazendo sofrer seus pais. Entende?
- Tudo bem. Eu deveria fazer o quê? Falar como?
Marta sentiu certa aflição ao perceber claramente que sua filha estava presa a conceitos sem nenhum fundamento mais nobre ou altruísta. Sua avaliação da vida estava relacionada à falsa ilusão de ser alguém por sua exuberante beleza. Carinhosa, segurou as mãos de Marília, para lhe dizer:
- Quando respeitamos alguém, sempre temos a preocupação de não ferir essa pessoa, agindo com sensatez e prudência.
- O que a senhora queria que eu tivesse dito?
- Não teria sido melhor dizer que, apesar de se sentir lisonjeada, considerava importante conversarem sobre isso só os dois, com mais calma, no momento em que ele assim o desejasse ou no dia seguinte, quando estaria mais tranqüilo?
- Mãe, em que isso mudaria minha decisão?
- Sua decisão com certeza não mudaria em nada, mas a sua delicadeza, o respeito com os sentimentos dele e com os presentes decerto não provocaria tanto impacto como causou sua resposta inesperada e imprevista.
- Sua mãe tem toda a razão, Marília. Existem várias maneiras de se dizer a mesma coisa, e a que você escolheu não fui a mais acertada. Tudo depende da generosidade com que se fala.
- Marília não se importa com isso, pai.
- Por que diz tal coisa, Júlia?
- Porque percebi Marília a noite toda se insinuando para aquele amigo de Carlos.
- Que amigo é esse que não me apresentaram?
- O nome dele é Marcelo, e eles não tiravam os olhos um do outro.
- Isso é verdade, Marília?
- Eu odeio você, Júlia! - foi sua resposta.
- Não perguntei se ama ou odeia sua irmã; perguntei se é verdade o que Júlia está falando.
- Pai, não tenho culpa se ele não tirava os olhos de mim.
- Mas tem culpa de não tirar os olhos dele - respondeu Antunes, cada vez mais nervoso. - Você precisa se conscientizar de que age de um modo imprudente e muitas vezes leviano. Descarte da sua vida essa mania de grandeza, minha filha. Isso, além de não levá-la a nada, poderá trazer-lhe muita dor.
- Dor de que, pai?
- Dor da solidão, Marília, que machuca muito o coração.
- Você se interessou por esse Marcelo? - Marta quis saber.
- Sim, mãe. Interessei-me muito.
- Meu Deus, não posso acreditar! Três anos namorando o mesmo rapaz e vem me dizer que se interessou por um que mal acabou de conhecer! É de enlouquecer, Antunes.
- Mãe, deixe de drama. O que eu percebo é que todos vocês fazem um cavalo de batalha por qualquer coisa. Até hoje não compreendem minha personalidade; entendam que não se muda a própria natureza. Aceitem-me como sou sem querer me modificar, porque não vão conseguir. Tenho traçado um plano para minha vida e não tenho o menor interesse em me desviar da minha rota.
- Nem por nós, minha filha?
- Eu os amo muito, mãe, mas mesmo assim afirmo que nem por vocês, porque simplesmente luto por mim, pelo meu destino. É justo, porque a vida é minha e sou eu quem deve direcioná-la.
Marta não resistiu ao desapontamento ao ouvir tal declaração da própria filha. Cobriu o rosto com as mãos e chorou, desabafando sua decepção.
- Viu o que você provocou em mamãe? Está satisfeita, dona do mundo?
Júlia abraçou Marta, falando-lhe com carinho:
- Mãe, não chore! Tudo vai dar certo, fique calma. Marília com certeza não quis dizer isso, ela está sob o efeito de forte emoção. Amanhã estará pensando diferente.
- Onde foi que eu errei com Marília? Por que ela não pensa e age como você, Júlia?
- Porque somos diferentes. Somos dois espíritos distintos, e cada um com a sua natureza. Nem a senhora, nem papai erraram sempre nos ensinaram a maneira certa de agir. Quem está errando é ela, e por conta própria. Não soube compreender nada do que disseram ou mostraram com a generosidade que possuem. Só Marília é a responsável, mãe, mais ninguém.
- Pare com isso, Júlia. Que direito acha que tem para opinar sobre mim?
- O direito de defender nossos pais, a quem você vive desafiando como se fosse dona da verdade ou do próprio nariz. Você é ainda uma criança, Marília, e como tal tem muito que aprender.
Antunes não suportava mais aquela situação. O que era para ser uma noite feliz transformara-se em decepção e angústia. Com voz enérgica que não admite ser contrariado, disse a Marília:
- Chega por hoje. Vá para o seu quarto!
Marília não ousou mais provocar o pai. Levantou-se e, ao passar perto de Júlia, lançou-lhe um sorriso malicioso e falou baixo, para que os pais não ouvissem:
- Fique com Luiz. Agora ele é todo seu!
Devemos orar com sinceridade para que nosso espírito se fortaleça no bem e na moral. É preciso vigiar com cuidado nossas atitudes para não cairmos no abismo do qual a volta se torna difícil e sofrida. (A Essência da Alma - Irmão Ivo)

CAPÍTULO IV - O ABISMO SE APROXIMA

Os dias de Luiz desde a festa de Marília transcorriam como se pertencessem há um tempo só, sem hora, sem dia e sem noite, tal era o sofrimento que abatera sua alma. Trabalhava como um autômato. Falava pouco, sorria nunca. Por mais que seus pais se dedicassem a alegrá-lo não obtinham êxito. Tudo lhe parecia igual; perdera o ânimo e praticamente a vontade de viver. O coração de Ângela se apertava ao se lembrar do filho sempre tão alegre, disposto a tudo sem nunca esmorecer, e agora vê-lo cabisbaixo e tristonho. Mateus ressentia-se da falta do irmão; até as brincadeiras feitas diariamente com ele tinham se acabado.
- Meu filho - dizia sua mãe -, não suporto mais vê-lo assim tão triste. É preciso aceitar as coisas como são e reagir, assumir a realidade que, parece-me, não irá mudar. Tudo indica que não há mais nada a fazer porque, com toda a certeza, Marília não irá mudar de opinião. Sendo assim você deve retomar o ritmo de sua vida. Posso estar sendo cruel, mas meu coração de mãe sofre muito por você, porque o conheço e sei que não merece o que está passando.
Nessas horas Luiz apenas respondia:
- Eu sei mãe, a senhora tem toda a razão.
Mas sentia não ter forças para lutar, tal a desilusão que tomara conta de seu peito. No silêncio em que mergulhava, pensava: Marília nunca mais me procurou. Não teve a delicadeza de vir falar comigo, para se explicar melhor. Tantos anos um ao lado do outro, namorando com todo o respeito, para no final sofrer esse descaso e perceber que por três anos vivi um engano. Nesses momentos de desabafo consigo mesmo, não se importava de que as lágrimas molhassem seu rosto. Sofria, e isso ele não podia negar. Vinte dias haviam se passado desde o rompimento de Marília e Luiz. Enquanto ele, mais sensível, amargava o sofrimento pela separação, ela, escondida de seus pais, encontrava-se com Marcelo todos os dias em suas idas ao campo dos girassóis. Somente Rafael tinha conhecimento desses encontros e acobertava a irmã. Nem estranhara o fato de Marília assumir outro pretendente logo após o rompimento com Luiz. Tudo o que sua irmã fazia ele achava perfeitamente natural.
- Rafael, ninguém manda no coração - Marília lhe falava.
- O que importa na vida é saber aproveitar a oportunidade quando ela aparece.
- Como assim?
- Ora, você conhece meus sonhos, minha meta de vida, não conhece?
- Claro, cresci ouvindo você falar deles.
- Então deve me entender. Acha que vou desprezar a chance que apareceu com Marcelo por aqui, de conseguir ir embora e alçar voo na capital?
- Imagino que não.
- Imaginou certo, porque não vou mesmo.
- Mas o que ele pode fazer por você?
- Rafael, Marcelo é sócio de uma grande agência de modelos quer me levar para a capital. Ele acredita que possuo beleza suficiente, charme e carisma para brilhar nas passarelas, e é o que pretendo fazer.
Meio confuso, Rafael respondeu:
- Marília, você o conhece há pouquíssimo tempo, menos de um mês. Como tem certeza de que pode confiar nele? Marcelo não mora aqui, logo irá embora. Como você ficará?
- Eu sei Rafael, daqui a uma semana ele irá voltar para a capital.
- E você?
- Eu? Enquanto Marcelo estiver fora, vou preparar minhas coisas, falar com nossos pais... No máximo em dois meses ele acha que tudo estará pronto e virá me buscar.
- Tudo bem. Você vai, e aí? Onde irá morar se não conhece ninguém por lá? Pensa que é fácil, Marília? Nem tem dinheiro para levar, não tem ainda trabalho. O que fará até conseguir o que Marcelo prometeu?
- Rafael, pensei que fosse mais esperto!
- Por quê?
- Quando falei que ele irá arrumar tudo é tudo mesmo, ou seja, apartamento, mobília e outras coisas, meu irmão.
- Ele vai investir tudo isso em você sem saber se dará certo ou não?
- Tudo na vida tem um preço, e eu estou disposta a pagar o meu. Você é criança mesmo. Vou morar com Marcelo.
- Vai morar com ele? Marília, você está se vendendo?!
- Essa sua colocação é muito forte, Rafael. Digamos que estou cedendo à exigência dele. Marcelo está apaixonado por mim.
- E você por ele?
- Rafael, quando temos um objetivo bem firme para alcançar temos que esquecer o coração para não perder a direção do que buscamos. Vamos dizer que me apaixonei pela vida que Marcelo poderá me proporcionar.
- Isso lhe basta?
- Neste momento sim.
- Sempre ouvi você dizer que jamais se amarraria a alguém.
- A ninguém que me colocaria entre panelas e filhos. Marcelo não é assim. Ele abrirá as portas do mundo da fantasia, do fascínio, o mundo com que sonhei minha vida inteira.
- Tudo bem, se você quer assim... Mas e se amanhã vier a se apaixonar de verdade por alguém, como vai ser?
- Se isso acontecer já estarei pronta para caminhar sozinha. E só dar um até logo e estarei livre.
- Deixando Marcelo, é isso?
- É isso. Com minha carreira estruturada, minha posição financeira sólida, despeço-me dele e vou tratar dos meus interesses.
Rafael ficou confuso. Sempre apoiara a irmã em suas loucuras, mas jamais pensara que chegaria a esse ponto. Pela primeira vez sentiu que Júlia poderia estar certa; Marília não possuía nenhum sentimento, pois seu egoísmo excessivo não permitia.
- Não sei se isso dará certo, Marília. Acho que você está exagerando.
- Rafael, preste bem atenção ao que vou lhe dizer. Esquece tudo o que lhe falei. Se abrir a boca para alguém e contar meus planos, vai se ver comigo.
- E nossos pais?
- Na hora certa eu direi a eles. Mas eu farei isso, entendeu? Rafael estou estranhando você. Sempre disse que queria ir comigo para a capital, e quando a hora está próxima você questiona, fica indeciso. Não estou compreendendo.
- Não sei explicar, Marília, mas de repente comecei a achar tudo muito estranho.
- O que, por exemplo?
- Você usa as pessoas como se fossem brinquedos em suas, mãos, sem se importar com o que possam estar sentindo ou sofrendo. Vou pensar muito sobre tudo isso.
- Você é quem sabe. Pense o quanto quiser, só não me atrapalhe nem me cause problemas.
- Assusta-me saber que quer ir morar com uma pessoa que mal conhece só para se projetar na vida. Acho que você corre um risco grande. Para mim é como se estivesse se vendendo.
- Já disse isso, meu irmão. Vendendo é uma palavra muito forte. Estou investindo em mim; na verdade, dando a mim mesma a chance de encontrar meu verdadeiro amor, que poderá até ser Marcelo.
Rafael sorriu com ironia.
- Sei! Desde o dia em que teve essa conversa com Marília, Rafael ficou incomodado. Não sabia o que fazer. O certo seria trair sua irmã e revelar aos pais tudo o que tinham conversado ou deixar que ela mesma cuidasse de sua vida?
- Talvez seja melhor deixar o tempo passar - disse a si mesmo, e tirou o problema da cabeça.
Após uma semana, Marcelo realmente retornou à capital, deixando Marília na expectativa de sua breve partida para a cidade grande.
- No máximo em dois meses estarei de volta para buscá-la - o rapaz lhe dissera. - Vou transformá-la na maior modelo que o mundo já viu. Todos irão se curvar diante de sua beleza, pode apostar.
- Confio em você. Estarei esperando.
- Posso lhe pedir uma coisa?
- Claro!
- Não quero que se aproxime de Luiz.
- Por quê?
- Receio que possa ter uma recaída.
Marília riu gostosamente.
- Está com ciúme?
- Estou. Quero você só para mim.
- E eu sou sua, querido. Nunca mais falei com Luiz, nem pretendo falar. Aliás, nunca fui dele de fato, porque meu coração sempre foi livre.
- E agora?
- Agora lhe pertence.
- Ótimo!
Abraçou Marília e a beijou com paixão, Júlia sentou-se à mesa da cozinha para tomar o café da manhã. Após alguns momentos de silêncio, disse a Marta:
- Mãe, a senhora não percebeu nada de estranho em Marília?
- Estranho propriamente dito não, noto apenas que ela anda meio calada, pensativa. Às vezes me pergunto se ela se arrependeu de ter terminado com Luiz. O que você acha?
- Não crie ilusões em relação a Marília. Seu jeito arredio me faz crer que está pretendendo aprontar alguma.
- Júlia, você é muito severa com sua irmã. O que ela poderia aprontar?
- Não é que eu seja severa, mãe. Acontece que conheço muito bem Marília. Alguma coisa ela está arquitetando, e procura disfarçar.
Nesse momento, Rafael ia entrando, e Júlia, sabendo da forte ligação dos dois, perguntou-lhe:
- Rafael, você, que é tão unido a Marília, sabe se está acontecendo alguma coisa com ela?
- Por quê?
- Não sei ao certo. Acho apenas que nossa irmã está muito estranha. Parece-me que tenta disfarçar alguma coisa, não sei.
Aflito, Rafael afirmou:
- Eu não sei de nada, não. - E apressou-se em sair.
- Calma, por que tanto nervosismo?
- Nada, não, Júlia, tenho que sair mesmo.
Júlia não deixava nada escapar de sua observação.
- Mãe, acho melhor ficar atenta. Aí tem coisa, e aposto como Rafael sabe do que se trata.
Marta sentiu um desconforto em seu coração, como um pressentimento de que algo muito grave poderia acontecer envolvendo toda sua família. Diante de seu silêncio, Júlia se assustou.
- Mãe, está pálida! O que houve? Parece-me angustiada.
- Nada, filha. Ou melhor, tive um pressentimento ruim. Mas deve ser bobagem minha.
- Que pressentimento? Diga.
- Não sei explicar nem definir o que possa ser. O que sei é que senti um aperto no peito totalmente inexplicável.
Júlia a abraçou.
- Mãezinha, a senhora ficou impressionada com o que eu falei. Desculpe-me, deveria ter ficado quieta, não tenho o direito de colocar dúvidas em seu coração.
- Filha, não é nada disso. Você está certa, Marília anda mesmo muito esquisita. Afasta-se de nós, evita qualquer tipo de conversa que possa envolvê-la... Seu comportamento mudou de uns dias para cá.
- Como lhe disse, eu também notei isso.
Após algum tempo calada, Júlia voltou a se manifestar:
- Mãe, a senhora está lembrada do que conversamos sobre a vó Amélia?
- Claro que sim.
- Pois bem, tenho tido uma intuição muito forte a respeito de Marília.
- Pensa que dona Amélia está se comunicando com você? Que vem dela essa sensação?
- Não posso afirmar com certeza, mas suspeito que sim.
- E o que sua intuição lhe diz?
- Mãe, uma intuição é como se fosse um pressentimento, igual ao que a senhora acabou de dizer que sentiu. Não sei explicar direito, mas sinto-me como se estivesse em estado de alerta, como se esperasse que alguma coisa fosse acontecer. E o que mais me intriga é que acredito firmemente que Rafael tem conhecimento do que possa ser.

Segundo Allan Kardec, a intuição e a inspiração têm a mesma finalidade [...]. Modo de comunicação ao qual vulgarmente se deu o nome de voz da consciência [...]. Cada encarnado sintoniza com os seres do plano espiritual, captando-lhes as influências que advêm em forma de conselhos elevados ou inferiores. No entanto, aceitar ou repelir esses conselhos é de sua livre escolha, de acordo com os próprios sentimentos, maneira de ser e interesses que o caracterizam. (Revista Espírita Allan Kardec - 12 volumes - Tradução: Júlio Abreu Filho - Edicel)

- Por que diz isso, Júlia?
- Porque hoje eu sei que todos nós temos uma voz interior que nos fala, e o nosso mal, mãe, é não escutá-la sempre. Se cada um de nós pensasse melhor nisso, com mais freqüência, com mais atenção, a humanidade inteira estaria melhor.
- Júlia! Estou admirada com você. Onde está aprendendo tudo isso?
- Tudo isso o que, mãe?
- Essas coisas com mais conteúdo que você anda falando.
- No centro espírita que estou frequentando.
- Centro espírita? Você não me disse nada.
- Desculpe-me não ter falado disso com a senhora, foi esquecimento meu. Há algum tempo vou às reuniões do centro, onde estou aprendendo a Doutrina Espírita.
- Eu não sabia filha. Por que não me contou?
- Não sei mãe. Não existe nenhum motivo para não ter lhe contado, foi esquecimento mesmo, talvez por causa do meu envolvimento com a faculdade, a escolinha, sei lá. A senhora sabe que o último ano é sempre mais complicado. Desculpe-me.
- Não tem importância, Júlia. Falei apenas porque, se soubesse, teria ido com você, só isso.
- Mas a partir de agora poderemos ir sempre juntas. O que acha?
- Adoraria. Mas onde fica esse Centro?
- Passando a Praça da Matriz, a segunda rua à direita. É bem pertinho. Chama-se
Centro Espírita Deus é Luz.
- Bonito nome! Qual é o dia da reunião?
- São realizadas diariamente às vinte oras. Mas eu nunca fui à noite; vou sempre na quinta-feira à tarde, porque assim posso ir após a escolinha. Gosto tanto, mãe, me faz muito bem. Aprendemos bastante e nos conscientizamos da nossa responsabilidade perante a vida e nós mesmos. É como se adquiríssemos força para prosseguir vencendo os obstáculos que aparecem no nosso caminho, com equilíbrio e sem perder a fé em Deus.
- Fico muito feliz ouvindo isso de você. Como gostaria que Marília também pensasse assim, e desse a ela mesma a oportunidade de aprender sobre as questões espirituais, que com certeza a tornariam mais humilde, menos vaidosa e mais alerta aos conselhos das pessoas que a amam.
- Mãe, na última reunião tive a oportunidade de conversar com o mentor espiritual do centro e revelei a ele a minha preocupação com essa intuição, pedindo proteção e ajuda para que Marília não cometesse nenhuma imprudência, nada que pudesse prejudicá-la; enfim, que ela conseguisse se situar mais na realidade e nas coisas verdadeiras e elevadas.
Aflita, Marta perguntou:
- Qual o conselho que ele deu?
- Disse-me que realmente eu tinha ao meu lado um espírito familiar cuja missão era me inspirar para que cada vez mais eu pudesse auxiliar o semelhante, não fugindo do meu compromisso espiritual. Que eu estava sendo preparada para, no momento certo, cumprir a tarefa que eu mesma havia pedido por ocasião do meu reencarne, e esse espírito iria acompanhar a minha trajetória dando-me o suporte, a coragem e a fé para que tudo se cumprisse.
- Quanto a Marília, o que ele disse?
- Em relação a minha irmã, o que ouvi foi:

Os obstáculos aparecem para que se possa aprender a vencê-los. Como evoluir e crescer sem ter passado por nenhuma situação de aprendizado mais forte? Deus dá o principal, que é a vida, e cabe a cada um direcioná-la para o destino seguro. (A Essência da Alma - Irmão Ivo)

- E completou: "Essa irmã que tanto a preocupa vem tendo, ao longo dos anos, pessoas dispostas a auxiliá-la, mostrando-lhe com clareza o caminho do equilíbrio e da felicidade. Imprudentemente ela vem desprezando as palavras sensatas daqueles que a amam, por direcionar sua atenção apenas para si mesma e para as coisas efêmeras da vida. Todas as ações realizadas na existência física, minha filha, provocam uma reação; têm um preço, e se paga muito caro quando elas são levianas, insensatas e imprudentes". Perguntei-lhe o que eu podia fazer para ajudá-la.
- E qual foi à sugestão?
- O que você sempre fez mamãe: mostrar-lhe que o brilho da ilusão é passageiro, e, quando ele se vai, deixa atrás de si o desavisado mergulhado na dor. Todos nós já tentamos por diversas vezes abrir os olhos dela, mas Marília não ouve ninguém.
- Então, filha, cubra-a com a energia positiva de suas orações, seja generosa e incansável em seu auxílio. Marília usará o seu livre-arbítrio, a sua liberdade de escolha, e quando isso acontecer não perca a fé e continue orando a Jesus por ela.
- Veja mãe, não tenho motivos para estar preocupada?
- Não só você, mas todos nós temos razões de sobra para nos afligir por ela, como sempre tivemos.
- Volto a afirmar: algo me diz que minha irmã está planejando algo que não quer que saibamos, e Rafael tem conhecimento do que possa ser. Não seria o caso de a senhora conversar com ele e tentar descobrir de que se trata?
- Vou fazer isso. Fique tranqüila, Júlia, tomarei providência a esse respeito.
Após alguns instantes em que mãe e filha permaneceram em silêncio, cada uma com suas conjecturas, Marta comentou com a filha:
- Há tempos não vejo Luiz. Sabe como ele está? Waldemar e Ângela desapareceram daqui de casa, e não tenho tido mais nenhuma notícia deles.
- Natural que seja assim, mãe. Depois do que aconteceu, devem estar evitando encontrar Marília. É difícil superar a humilhação que enfrentaram por causa da inconsequência de minha irmã. Quanto a Luiz, estive com ele uma semana atrás, conversamos durante algum tempo e ele me pareceu um pouco diferente do que era antes.
- Como assim?
- Não sei bem explicar, mas senti que fazia cerimônia comigo, que perdeu a naturalidade. Tive a impressão de que minha presença o incomodava.
- Foi realmente uma pena tudo o que aconteceu!
- Concordo. Mãe, por que a senhora não os procura? Vá até eles, demonstre sua vontade de recebê-los aqui em casa. Pode ser que estejam esperando que a senhora e o papai tomem essa atitude.
- Talvez tenha razão, querida. Vou combinar com seu pai para irmos até lá. Gostaria que tudo voltasse ao normal, como era antes.
- Isso vai acontecer. Acredito que é uma questão de tempo.
- Júlia, há dias quero fazer-lhe uma pergunta, mas temo machucá-la.
- Nada disso, mãe, pode perguntar o que quiser.
- Algumas vezes escutei Marília fazer insinuações sobre você e Luiz. Depois da festa de aniversário dela, quando seu pai a mandou para o quarto, ouvi Marília lhe dizer: "Agora ele é todo seu!". O que ela quis dizer com isso?
- Não sei mãe. Apenas uma provocação, imagino.
- Essa provocação não existiria se na cabeça dela não houvesse uma suspeita. Você gosta de Luiz?
Com essa pergunta Marta deixou a filha completamente desconcertada. Suas faces enrubesceram, e seus olhos úmidos traíram seu coração.
- Responda sem constrangimento, Júlia, quero apenas saber, e não julgar.
- Mãe, jamais interferi no namoro de Marília e Luiz; ao contrário, sempre a aconselhei, tentando abrir os olhos de minha irmã para a pessoa especial que tinha ao seu lado. Nesses três anos de namoro, percebi claramente que Marília não o amava, apenas o usava para ter companhia. Juro que, apesar de ter conhecimento da total falta de amor de Marília, nunca aproveitei para me insinuar para Luiz, ou coisa parecida. Antes, fiz o possível para que ela entendesse a pessoa especial que ele é.
- Calma, não duvido disso, sei quem você é. Porém, não é isso que está em questão. Quero saber é do seu coração. Você gosta dele de verdade?
Júlia correu para os braços da mãe. Entre lágrimas, disse-lhe:
- Mãe, perdoe-me. Sempre amei Luiz, mas nunca fiz nada para atrapalhar o relacionamento de Marília. Sabia que Luiz a amava, e respeitei seu sentimento.
Marta acarinhou a filha.
- Fique calma, Júlia, não precisa se angustiar. Seu pai e eu conhecemos você, seu caráter, sua generosidade. Entristece-me apenas saber que sofre há anos por um sentimento não correspondido.
- Não sei o que fazer mãe, não consigo tirá-lo da cabeça, e muito menos do coração. Luiz nunca se interessou por mim, e agora menos ainda.
- Vamos dar tempo ao tempo; não é o que se diz? Ele se encarregará de apagar as cicatrizes. Quando tudo passar, é possível que Luiz passe a enxergá-la com outros olhos.
- A senhora acredita ser possível?
- Lógico. Se o seu destino for ser feliz com ele, será.
- E Marília? Se isso acontecer ela irá aceitar?
- Sua irmã não o quis, portanto, não terá direito de cobrar nem reivindicar nada. Ela mesma deu a liberdade para o rapaz, e o direito de agir como bem entender.
- A senhora aliviou meu peito. Não aguentava mais sufocar isso sozinha. É muito bom dividir com alguém as questões que nos angustiam.
- Você merece ser feliz, minha filha, e será; com Luiz ou com quem estiver destinado por Deus.
- Obrigada, mãezinha.
De repente se deram conta de que Marília estava encostada na porta, observando as duas.
- O que é isso? - perguntou quase irônica. - Segredinhos de família?
- Oi, filha! Junte-se a nós, venha.
Percebendo os olhos lacrimejantes da irmã, Marília se dirigiu a ela:
- Chorando, Júlia?! A poderosa está com problemas?
- Marília, por que gosta sempre de dizer coisas desagradáveis? - repreendeu-a Marta.
- Deixe mãe. - Júlia fez menção de ir para o quarto.
Ao passar por Marília, esta mais uma vez alfinetou a irmã:
- Aposto que é por causa de Luiz. Ainda não conseguiu agarrá-lo, Júlia?
Júlia passou por ela sem dar-lhe nenhuma resposta.
- Por que provoca tanto sua irmã, Marília?
- Ora, mãe, pensa que não sei que Júlia sempre foi apaixonada por Luiz? Fiz um favor a ela quando terminei com ele, e espero que faça bom proveito.
- Por falar nisso, quero mesmo conversar com você.
- Sobre o quê? Algum problema? O que foi que fiz que a senhora não gostou?
- Espero que não tenha feito nada, Marília, nem pretenda fazer.
- Por que a senhora me controla tanto, mãe? Tenho idade suficiente para conduzir a minha vida. Vocês não percebem que já não sou mais criança?
- Você se engana, filha. É ainda muito nova para pretender assumir o controle geral da sua existência, e espero que seja prudente o suficiente para não se meter em confusão.
- A senhora não confia em mim!
- Não é uma questão de confiar ou não; você é muito sonhadora, ambiciona coisas que não fazem a felicidade de ninguém.
- O que importa é o que eu penso. Para mim fazem, sim; é a felicidade em que acredito e que quero o resto não me interessa. Vou mais uma vez deixar bem claro: não nasci para ser mais uma no mundo, mas para ser diferente, para conquistar o meu espaço.
- A que preço, minha filha?
- O preço é o que menos importa. Pagarei o que for preciso para realizar o meu desejo, porque considero que nenhum preço é alto demais quando se trata da satisfação pessoal.
- Não fale assim, Marília!
- Mãe, a vida é muito curta e uma só. É preciso aproveitar as oportunidades e correr atrás da felicidade que se almeja.
Que diferença de Júlia..., pensava Marta, sentindo uma grande angústia e ansiedade oprimindo-lhe o peito. Não sabia mais o que dizer. Percebia ser inútil qualquer tentativa de ponderação com Marília. Sua filha ouvia somente a si mesma.
- O que foi mãe? Calou-se de repente. Cansou de me censurar?
- Filha, temo por você. Não posso concordar com seus argumentos, pois são frágeis e sem conteúdo. Receio que venha a sofrer.
- Isso só acontecerá se eu ficar presa para sempre nesta cidade vazia e sem nenhuma expectativa de futuro.
- Pois bem, minha filha, já falou tudo o que queria, agora sou eu que lhe pergunto: o que está planejando?
- Como assim, mãe, o que quer dizer?
- Ando observando você, e sinto que há algo de muito estranho acontecendo.
- Não há nada de estranho nem de errado - falou Marília, irritada. - Se a senhora me der licença, preciso sair.
Sem esperar resposta, a jovem se virou, deixando Marta entregue a suas angústias. Júlia tem razão, essa menina está escondendo algo. E deve ser coisa séria. Marcelo conversava com Daniel, seu sócio e amigo.
- Marcelo, você já tem uma data certa para buscar essa "deusa" de que tanto fala?
O rapaz sorriu.
- Daniel, você brinca porque não a conhece, não tem a mínima noção de como é realmente uma deusa. E o mais importante: não tem nenhum escrúpulo quando o assunto é seu futuro, ou melhor, sua fama.
- Como assim?
- A menina tem uma obsessão em ser famosa, virar celebridade. Tem plena consciência da sua beleza e quer brilhar a qualquer preço.
- Conclusão: é tudo de que precisamos!
- Claro! E só adoçar sua vaidade e nossos problemas se resolvem, entendeu?
- Você enxerga longe, amigo. Mas espere aí, ela não tem família?
- Evidente que sim, Daniel.
- E eles permitirão que ela venha para cá assim, sem conhecer você direito, sem saber ao certo o que faz como a garota vai viver, onde irá morar, essas coisas?
- Daniel, você pode achar que exagero, mas a menina é dona de uma personalidade forte, marcante; é voluntariosa e não liga a mínima para o que os outros dizem. em aos conselhos dos pais e da irmã mais velha ela dá ouvidos. Está absolutamente focada em seus interesses e não admite interferência de quem quer que seja.
- E é maior de idade?
- Completou dezoito anos em uma festa que foi o alvo de comentários na cidade.
- Por quê?
Marcelo narrou com detalhes os acontecimentos da festa de Marília. Daniel a tudo ouvia boquiaberto.
- O que está me contando, Marcelo? Não pode ser. Essa menina parece não ter limites quando se trata dela mesma.
- É isso mesmo, ela não tem limites.
- Mas e o namorado dela, como ficou nessa história?
- Arrasado. É amigo de um amigo meu, excelente rapaz, de fibra; um pouco pacato para o meu gosto, porque, se fosse comigo, o resultado teria sido outro.
- Eles namoravam havia muito tempo?
- Acredite: namoraram por três anos. Foi um impacto para todos os presentes, nem os pais dela sabiam o que estava acontecendo.
- E como você entrou na vida dessa moça, já que mal a conhecia?
- Durante a festa, percebi qual era a dela no exato momento em que ela soube do meu trabalho na agência. Nem se preocupava em disfarçar os olhares que me dirigia durante toda a noite. Agora você vai se surpreender mais ainda. Dois dias após essa noite inesquecível para quantos estiveram lá, ela me procurou.
- E...
- E aí passamos a nos encontrar todas as tardes em um vasto campo de girassóis. A bem da verdade, nunca vi coisa igual em beleza.
- E onde fica esse campo?
- Na zona rural da cidade, e pertence aos pais dela, que herdaram do avô paterno. Por conta desses encontros, acabei me envolvendo emocionalmente com a menina com uma intensidade que me deixou admirado. Acabei fazendo-lhe um convite para vir para á tentara carreira de modelo, garantindo-lhe que a ajudaria a se firmar no mundo com o qual tanto sonhava.
- Pelo que já sei, ela aceitou!
- Imediatamente, sem esperar que eu perguntasse duas vezes. Já lhe disse Daniel, ela não tem limites nem pudor quando deseja alguma coisa, e o que de verdade ela quer é dinheiro, poder e brilho. Mergulha na própria beleza e na certeza de que ainda terá o mundo a seus pés. Possui uma ilusão desmedida que nem eu sei aonde irá chegar.
- Enfim, quando pretende buscá-la?
- Em breve. Já aluguei um apartamento, e espero que esteja pronto dentro de no mais tardar vinte dias.
- Espere aí, Marcelo. Não vai me dizer que tem a intenção de morar com ela; ou tem?
- Morar propriamente não. Vamos dizer que pretendo visitá-la algumas vezes para que não se sinta tão só. Por que você acha que estaria preparando um apartamento, gastando sem economizar, se não fosse para receber o que espero?
- Amigo, não está se esquecendo de nada?
- Do quê?
- De Letícia!
- E o que tem Letícia?
- Tem que ela é sua mulher!
- Não, Daniel, não esqueci. Não é porque sou casado que morri para a vida, meu amigo. Existem muitas coisas que podemos fazer mesmo estando casados.
- Mas e se ela descobrir?
- Letícia saberá se você contar - falou Marcelo, irônico. - E imagino que não fará isso. Estou certo?
- Claro. A vida é sua, não tenho que me meter. Mas responda-me uma última pergunta.
- Faça!
- A garota sabe que você é casado?
- É vidente que não!
- E qual será a desculpa para vocês não morarem juntos?
- A mais simples. Tenho uma mãe doente que precisa de meus cuidados, não posso deixá-la só, e ela não aceita ninguém ao meu lado devido ao excessivo apego que tem por mim, seu único filho.
- Acha que essa mentira se sustentará por quanto tempo?
- Pelo tempo que eu quiser. Já lhe disse Daniel, mesmo que ela venha a descobrir a verdade, nada fará, para não perder o que tanto quer.
- Você é quem sabe o que deve fazer na sua vida. Que ela seja bem-vinda. A agência a aguarda de portas e braços abertos.
- É isso aí, sócio. Sabia que iria me compreender.
- Compreender, na verdade, não compreendi, mas, se tem que ser assim, que seja.
Luiz, como era seu costume desde o dia em que seu coração fora magoado terrivelmente por Marília, caminhava devagar, preso aos pensamentos, em direção à loja em que trabalhava, quando ouviu uma voz que o chamava com insistência:
- Luiz... Luiz...
Virou-se sem grande entusiasmo e deparou com o sorriso sempre cativante de Júlia.
- Júlia! - exclamou.
- Nossa você custou a me ouvir!
- Desculpe. Estava mesmo muito distraído.
- Como você está Luiz?
- Posso dizer que estou bem.
- Como assim? Não entendi.
- Quero dizer que fisicamente estou muito bem, mas...
- Mas?
- Com você acho que posso me abrir, Júlia, pois sempre foi minha amiga.
- Claro, vamos conversar.
- Ando muito desanimado, apenas vivendo sem grande expectativa. Você me entende?
- Posso até entender, mas não consigo aceitar que um rapaz tão especial como você ainda se encontre nesse esta do de desânimo, angustiado por causa de uma leviandade de Marília. Acha que ela merece a mudança total da sua vida?
- Júlia, me admiro por você se referir assim à sua irmã.
- Luiz, amo muito Marília, mas não concordo com a maioria de suas atitudes, que geralmente sempre são a favor dos próprios interesses.
- Pode ser, mas não é fácil esquecer algo que se alimentou por tanto tempo. Sinto-me como se alguma coisa tivesse sido arrancada de dentro de mim, deixando um vazio que não tenho a menor noção de como preencher.
O coração de Júlia se apertou. Por que não consegue perceber o amor que sinto por você, Luiz? Pensou. Movida pelo seu sentimento e decidida a lutar por ele, Júlia respondeu:
- É preciso querer esquecer e dar a si próprio oportunidade para enxergar outro caminho, notar outras pessoas, acreditar em outras possibilidades, Luiz. Precisa considerar que tem uma vida inteira pela frente e não deve se negar a chance de encontrar outra pessoa que o admire e o ame realmente, como você merece, e voltar a ser feliz.
- Você diz outra pessoa, Júlia, mas não quero ninguém. Prefiro seguir sozinho a ter que sofrer outra desilusão.
- Está sendo muito radical. As pessoas são diferentes umas das outras e age de modo diferente, cada uma de acordo com sua natureza. É preciso crer na vida e no ser humano.
- Pode ser...
- Luiz poderíamos conversar sobre esse assunto mais detalhadamente. Que tal nos encontrar para falar com mais calma? Penso que se você desabafar irá se sentir melhor. O que acha?
- Talvez você tenha razão.
Animada, Júlia prosseguiu:
- Então vamos aproveitar amanhã, que é sábado. Fica bom para você?
- Se você quiser, para mim está ótimo. Mas vou adiantar que temo não ser uma boa companhia, e poderei aborrecê-la.
- Não me aborreço em sua companhia. Além do mais, interessa-me ajudá-lo a se sentir melhor e mais animado para retornar a alegria de antes. Você é muito jovem e deve agir de acordo com o vigor de sua juventude.
Luiz fixou os olhos em Júlia e lhe disse:
- Obrigado pelo seu interesse. Admiro você, que é muito diferente de Marília.
- Vou repetir o que já lhe falei Luiz: não se pode julgar uma pessoa pela atitude de outra, porque todos somos diferentes e agimos de acordo com nossa natureza. Pense bem nisso.
Luiz se animou.
- Então está combinado, vamos nos encontrar amanhã. Passo na sua casa às dezoito horas e iremos jantar em algum lugar. Está bem assim?
- Por mim está ótimo. Espero você.
- Agora tenho de ir. Meu pai deve estar estranhando minha demora.
- Também já estou um pouco atrasada.
Despediram-se, e Júlia seguiu seu caminho levando o coração feliz e cheio de esperança. Certo dia, Rafael se aproximou de Marília querendo saber de seu assunto com Marcelo.
- Ele já lhe mandou notícias, Marília? Faz tanto tempo que viajou...
- Sim, Rafael, não se preocupe, já falei com Marcelo.
- Quando e como?
- Há dois dias, por telefone.
- No telefone de casa?! Duvido!
- Deixe de ser bobo, Rafael. Quando Marcelo partiu, ficou combinado que eu ligaria para ele em dia e hora marcados, e foi o que fiz. Fui até o posto telefônico e liguei. Satisfeito?
- E daí, o que ele disse?
- Marcelo confirmou que dentro de no máximo quinze dias estará aqui para me buscar. Pediu que eu deixasse tudo pronto porque não poderá demorar.
- Marília, estou com medo dessa história. Acho que você deveria conversar com nossos pais, pedir opinião, saber o que eles acham disso tudo.
- Nem pensar, e eu o proíbo de falar qualquer coisa a respeito. Ouviu bem? Não quero opinião de ninguém, ainda mais quando sei qual vai ser.
- Calma, não vou dizer nada. - Rafael pensou por alguns instantes e por fim disse: - Marília tive uma idéia!
- Sim? E qual é?
- Marcelo é amigo de Carlos. Isso quer dizer que ele deve conhecê-lo bem. Por que não vai falar com ele para lhe dar informações concretas sobre Marcelo?
- Que informações?
- Já sei o que precisava saber. Isso basta.
- Minha irmã, pensou na hipótese de ele ser casado?
- Você está maluco? Claro que é solteiro. Se assim não fosse, não teria se envolvido emocionalmente comigo, ou, melhor dizendo, se apaixonado por mim.
- Isso não quer dizer nada, minha irmã. Sou mais novo que você, mas às vezes acho que você é muito bobinha. Acredita em tudo.
- Aí é que você se engana, Rafael. Acredito naquilo que quero acreditar por achar que me convém.
- Não sei, não. Continuo achando que nossos pais deveriam saber. Eles vão sofrer muito, Marília.
- No começo pode ser que sim. Depois superarão e tudo voltará ao normal, como sempre foi. Não se esqueça de que existe a possibilidade de irem me visitar.
- Bem, você é quem sabe. Afinal, a vida é sua.
- Disse bem: a vida é minha.
Enquanto o coração de Marília batia descompassado, ansioso pela nova existência de luxo e fama, o de Júlia abrigava a esperança de finalmente ter alguma chance de penetrar no coração de Luiz. Uma sonhava com a felicidade efêmera, nascida de uma ilusão, enquanto a outra tinha como objetivo viver a ventura de um amor sincero e duradouro.

A vida é um bem precioso, e não é prudente desperdiçar essa oportunidade que nos foi dada alimentando ilusões vãs. Tudo o que se semeia nesta vida terrena colhe-se na vida espiritual, e será cobrado até o último ceitil, como disse Jesus.
(A Essência da Alma - Irmão Ivo)

CAPÍTULO V - O PIOR CEGO É AQUELE QUE NÃO QUER VER

O sábado tão esperado por Júlia finalmente chegou. Às dezoito horas, como havia combinado, Luiz tocou a campainha de sua casa. Ansiosa, a jovem correu para abri-la.
- Oi, Luiz! Gosto de gente pontual.
- Não houve nenhum contratempo. Consegui chegar no horário. E, como você, também não gosto de me atrasar, mas às vezes é impossível ser pontual.
- Quer entrar? - convidou Júlia, sem a menor preocupação em esconder seu entusiasmo.
Luiz ficou indeciso, e finalmente respondeu:
- Melhor não, Júlia. Prefiro aguardá-la aqui fora.
Júlia compreendeu o receio de Luiz e julgou melhor não insistir. Ele tem medo de se encontrar com Marília, concluiu.
- Tudo bem faça como quiser. Vou pegar minha bolsa e avisar minha mãe que estou de saída. Não me demoro.
Assim que Júlia se afastou, Luiz deixou que os pensamentos povoassem sua mente, provocando certo desconforto no coração. Meu Deus, o que faço para esquecer Marília? Quanto mais o tempo passa, mais eu sofro por esse rompimento tão inesperado. Que amor é esse que tanto me faz sofrer machuca minha alma e não me deixa entender que ela não me quer, porque na realidade nunca me amou? Preciso tirá-la de vez da cabeça, do coração e da minha vida. Estava tão absorto que não ouviu a voz de Júlia chamando-o delicadamente:
- Luiz, onde você estava que não me escutou?
Meio constrangido, desculpou-se:
- Perdoe-me, Júlia, estava mesmo muito distraído. Não fiz por mal.
- Tudo bem, não vou perguntar onde estava sua atenção, nem em quem pensava, porque sei perfeitamente a resposta.
- Desculpe-me, Júlia, não quis de forma alguma magoá-la.
- Você não me magoou de jeito nenhum. Não me deve nenhuma explicação, somos apenas amigos - completou, com grande tristeza.
Eu daria tudo para ser mais que uma simples amiga, pensou melancólica.
- Vamos, então - convidou Luiz.
- Claro, vamos.
Da janela de seu quarto, Marília observava os dois se retirando.
- É uma pena, Luiz, que você não passe de um rapaz comum sem nada de especial para me oferecer. Se não fosse assim, nosso caso teria tomado um rumo bem diferente - dizia a si mesma, sentindo a contragosto uma leve ponta de ciúme ao ver Júlia ao lado do ex-namorado.
- Mas não estou disposta a me esconder aqui para sempre. Quero voar mais alto, e só Marcelo poderá me proporcionar esse voo tão cobiçado.
Luiz e Júlia, alheios ao olhar de Marília, seguiam lado a lado, cada um com suas conjecturas. Para quebrar o silêncio que se fizera, Luiz disse a Júlia:
- O que acha de tomarmos um sorvete? É muito cedo para jantarmos.
- Por mim está perfeito.
Dirigiram-se a uma aconchegante sorveteria e se acomodaram a uma mesa rodeada de plantas, no meio de um pequeno, mas pitoresco jardim.
- Aqui está bem para você, Júlia?
- Está ótimo.
Fizeram o pedido. Júlia, ansiosa para entrar no assunto, perguntou a Luiz:
- Você ainda ama minha irmã?
Um pouco encabulado, ele afirmou:
- Júlia, não se arranca do coração, de uma hora para outra, um sentimento que foi alimentado por tantos anos. É preciso tempo.
- Concordo com você. Realmente é necessário tempo e uma dose de boa vontade. É importante que se queira extinguir o sentimento que a outra parte desprezou, para que se possam enxergar outras maneiras de ser feliz.
- Pode se explicar melhor?
- Claro. Quero dizer que o sentimento declaradamente sem futuro acaba nos fazendo um mal tão grande que, sem que nos demos conta, mergulhamos no lago escuro da tristeza e passamos a não ver saída. Ficamos impedidos de enxergar nova oportunidade de construir nossa felicidade por conta da teimosia de querer o que não nos querem dar. Você me entende?
Luiz ficou pensativo.
- Quer me dizer que não há nenhuma chance de Marília reconsiderar?
- Importa-se se eu for absolutamente sincera, Luiz?
- Não! Quero que responda com toda a clareza.
- Pois bem. Para mim, não há a menor chance. E vou mais além, afirmando que tenho toda a certeza de que esse rompimento é definitivo.
Ao ver o rosto triste de Luiz, Júlia se apiedou.
- Perdoe-me, mas o seu erro foi ter colocado sua felicidade nas mãos dela, sem perceber que para Marília a felicidade está em outro lugar.
- Continue.
- Minha irmã nunca escondeu de ninguém, nem de você, que não queria viver aqui. Sempre soube disso, Luiz. Ela sonha com um mundo diferente do seu, do meu, enfim, é o mundo que Marília idealiza como sendo a felicidade. Você nunca fez parte desse universo, porque os seus anseios não combinam com os dela. Ao rejeitá-lo, minha irmã se permitiu mostrar como realmente é e o que de fato quer. Não a culpo pelo que fez. O indesculpável foi à maneira desrespeitosa como agiu. Marília poderia ter sido mais ponderada, prudente e generosa, evitando levar tanta mágoa a seu coração e ao de seus pais.
- Pode ser que tenha razão. Mas olhe só o que ela fez comigo. Estou desesperançado, sem ânimo e sem vontade de assumir minha vida de antigamente.
- Mais uma vez peço que me desculpe Luiz, mas quem está fazendo isso com você não é Marília, mas você mesmo.
- Como assim, Júlia? - Dessa vez, Luiz ficou irritado.
- Você aceitou a mágoa de forma definitiva, e não permite que seu coração reviva, ressurja que busque soluções.
- E como se buscam soluções? Eu não sei!
- Você se afastou dos amigos, não quer sair, não sorri e passou a ostentar no rosto a fisionomia dos derrotados.
- Eu sou um derrotado!
- Não... Não é. Você é apenas mais um entre muitos que não teve seu amor correspondido, e isso não quer dizer de forma alguma ser um derrotado.
- Júlia, você não está sendo severa demais?
- Não. Apenas falo a verdade, Luiz. Estou fazendo com você um tratamento de choque para ajudá-lo a compreender que somos nós que comandamos nossa vida, que fazemos nossas escolhas, e, acredito eu, a sua não foi à opção mais acertada.
- Você fala como minha mãe.
- Estou falando como as pessoas que amam você falariam.
- Amam?!
- Sim, amam - afirmou Júlia. - Parece-me que você não percebe mais a vida acontecendo alheia ao seu desapontamento. Penso que, misturada a esse amor, pode existir uma ponta de orgulho por ter sido rejeitado. Será que não?
- Orgulhoso, eu?
- Luiz, as pessoas lançam flechas que podem nos ferir profundamente, mas sempre temos a opção de querer emergir da decepção, do desapontamento, e continuar vivendo, percebendo que a felicidade não está nas mãos de um único alguém, mas sim no nosso empenho em querer colorir a nossa vida.
Luiz estava estupefato com a veemência com que Júlia explanava suas ideias.
- Nunca imaginei que você possuísse essa capacidade e eloqüência para se expressar!
- Pode ser que esteja lutando por mim mesma, Luiz.
- Não entendi!
- Não faz mal, não é hora ainda de entender. Tudo no tempo certo.
O sorvete foi servido. Saboreavam a guloseima em silêncio quando Luiz dirigiu a Júlia uma questão inesperada:
- Desculpe-me perguntar, Júlia, mas somente agora me dei conta de que nesses anos todos de amizade nunca vi você com nenhum namorado. Por quê?
Ela, surpreendida com a indagação imprevista, sentiu- se ruborizar.
- O que é isso? Por que essa pergunta?
- Nada de especial. Perdoe-me se a ofendi, não tive a intenção. Se não quiser, não precisa responder.
- Você não me ofendeu, de maneira nenhuma, apenas não entendi o interesse.
- Curiosidade apenas - respondeu o amigo sem perceber o quanto a magoava com essa resposta sem nenhum conteúdo.
- É que acho você uma garota muito bonita, inteligente, com todos os predicados que um homem poderia desejar em uma mulher. Entretanto está sempre sozinha.
- Engana-se; não estou sempre sozinha. Tenho o meu trabalho, convivo com as crianças, tenho amigos. Como pode perceber, não vivo só, principalmente porque faço parte de uma família linda que amo e que me ama.
- Tudo bem, mas estou me referindo ao coração. Como ele está? Nunca se apaixonou por ninguém?
Mais uma vez Júlia sentiu o rosto corar.
- Quem sabe? Pode ser que sim.
- Entendi, um amor não correspondido. Isso explica por que entende tão bem o meu sofrimento.
- Nossa diferença, Luiz, é que não deixei de viver por causa desse amor. Muito ao contrário, acredito que se essa pessoa tiver de ser minha será. Se nada acontecer durante certo tempo, não pretendo anular a minha capacidade de amar, darei um novo rumo ao meu coração.
- Júlia, se você consegue administrar tão bem assim o que sente, acredito que não seja amor verdadeiro.
- Engana-se, Luiz, é amor verdadeiro sim, e de muitos anos; o que não quero é passar minha vida inteira em branco no que diz respeito ao amor, pois sonho em construir minha família, com um bom marido e filhos correndo pela casa. Creio que, se não for essa pessoa, com certeza Deus colocará outra no meu caminho. E se isso acontecer quero estar preparada e aberta para perceber.
- É o que você sempre me aconselhou a fazer, não?
- Claro! Não vou ficar a vida toda presa a um amor impossível, sombra de alguém que não me quer. Na criação de Deus existem inúmeras pessoas notáveis; alguma há de estar reservada para mim.
- Como a admiro, Júlia! Gostaria muito de conhecê-la melhor.
- Luiz, você me conhece há tantos anos!
- Sim, mas pode ser que não tenha notado, durante todo esse tempo, quem você é na realidade.
- Nossa, que transformação!
- Ainda não é uma transformação, mas quem sabe você não poderá me ajudar nessa busca, nessa mudança a que tanto me aconselha? Bem, isso se...
- Se?
- Se você quiser, é óbvio. Sei que tem um amor não correspondido e não quero me impor nem prejudicá-la em relação a essa pessoa.
- Como você é bobo, Luiz... Bobo, ingênuo e desligado.
- Nossa, por quê?
- Por nada!
- Como por nada? Existe alguma coisa que eu ainda não percebi?
- Se existe e você ainda não percebeu, é como eu disse: não chegou a hora ainda. Huuuum, este sorvete está mesmo uma delícia! - completou Júlia, querendo encerrar o assunto.
- Quer que eu peça outro?
- Nem pensar. Depois, terei que correr atrás do prejuízo, para tentar eliminar as gordurinhas.
- Você não precisa se preocupar com isso. Possui um corpo muito bonito.
- Obrigada. Vejo que de repente você resolveu ficar galanteador. Posso saber por quê?
- Como você mesma diz, por nada.
Sorriram felizes.
- Afinal, vamos ou não jantar?
- Se eu lhe disser que este sorvete tirou-me totalmente a fome, você acredita?
- Acredito, porque aconteceu a mesma coisa comigo.
- Nesse caso, não se importará se cancelarmos o jantar, não é?
- Evidente que não. O que faremos então, Júlia? Bom, é melhor voltarmos para casa. Aqui não existe mesmo outra opção.
- Você é quem sabe.
Luiz pagou a conta, e logo os dois seguiam lado a lado, até alcançar o portão da residência de Júlia. Trocaram durante o trajeto poucas palavras, cada um seguindo entregue a seus pensamentos. Assim que chegaram, Luiz segurou as mãos dela, dizendo-lhe:
- Muito obrigado por esse passeio. Fez-me um bem enorme estar com você.
- Posso dizer o mesmo, Luiz. Você é uma companhia muito agradável.
- Não concordo. Você é uma companhia agradável, e não eu. Conversar com você proporcionou-me muita serenidade. Parece-me que a partir de agora tudo irá ficar mais fácil.
- Não fui eu quem fez isso; é você que está se permitindo renascer para a vida.
Luiz ia se despedir de Júlia quando, de repente, Marília apareceu à porta. Assim que a viu, Luiz sentiu um forte desejo de feri-la, mostrar-lhe que não significava mais nada para ele. Num impulso, segurou o rosto de Júlia e a beijou. Júlia, que também havia visto a irmã, logo entendeu a intenção dele, e se desvencilhou magoada.
- Luiz, se sua pretensão foi ferir Marília, garanto que não conseguiu. A única que saiu ferida fui eu, por ter sido usada em sua tentativa de mostrar-lhe que a esqueceu. Não se importou se estava me magoando ou não. Pensei que me respeitasse como eu o respeito; pelo visto, me enganei. Nem amiga você me considera, ou não teria se comportado de maneira tão grosseira comigo.
- Júlia... - Luiz, aflito, caiu em si, compreendendo a leviandade que cometera. - Deixe-me explicar...
- A explicação eu já conheço. Suas palavras ditas durante o nosso passeio a partir de agora tomam sua dimensão real. Passe bem, Luiz.
Júlia deu-lhe as costas e entrou. Luiz, envergonhado por sua atitude, baixou a cabeça e ia saindo quando Marília, que tudo presenciara, aproximou-se do antigo namorado e disse-lhe, com ironia:
- Queria tanto conhecer os motivos pelos quais nunca me apaixonei por você, Luiz. Agora conhece um deles: você não enxerga nada que acontece a sua volta, e principalmente não conhece nem um pouco as pessoas que o cercam.
Antes que o rapaz pudesse dizer alguma coisa, Marília voltou-se e entrou também, deixando-o angustiado pela atitude deselegante que tivera. Júlia, uma vez em seu quarto, jogou-se na cama e chorou. Pela porta semi-aberta, Marília observava a irmã. Pela primeira vez sentiu uma real vontade de se aproximar de Júlia como uma verdadeira amiga.
- Posso entrar? - perguntou baixinho.
- Por favor, Marília, quero ficar sozinha, me deixe em paz.
Marília insistiu:
- Deixe-me entrar, Júlia, quero estar com você. Acredite, é de coração.
Não esperou a resposta da irmã. Entrou e se aproximou. Contrariando sua natural maneira de ser, afagou os cabelos de Júlia com um carinho até então desconhecido por ela mesma.
- Não fique triste, minha irmã. Um dia Luiz enxergará que é você quem o ama de verdade. Ele só precisa de tempo.
Júlia, confiando na sinceridade de Marília, levantou-se a abraçou.
- Não adianta mais negar, Marília, eu amo Luiz, sempre o amei. Mas hoje tomei consciência de que preciso me esforçar para esquecê-lo. Ele não me ama, e não vejo nenhuma possibilidade de que isso venha a acontecer.
- Discordo. Creio mesmo que ele esteja com o orgulho ferido, e muito perdido. É preciso dar-lhe um tempo maior para que consiga perceber e compreender de uma vez que o nosso caso terminou e não existe nenhuma chance de retorno.
- É mesmo verdade o que diz? Não há nenhuma possibilidade de você se arrepender e querer voltar?
- Pode apostar nisso, minha irmã. Não tenho o menor interesse nele. Se assim não fosse, não teria tido o menor sentido agir como agi. Não acha? Dou-lhe a maior força; lute por Luiz da mesma maneira como estou lutando para conquistar o espaço que sempre sonhei ocupar.
- O que quer dizer com isso?
- É melhor lhe contar, Júlia. Sente-se aqui ao meu lado.
Júlia passou as mãos sobre os olhos enxugando as lágrimas que escorriam por suas faces. Acomodou-se mais perto de sua irmã.
- Fale Marília, o que quer me contar?
- Vou dividir com você os meus planos, mas peço-lhe que ouça com atenção. Se não concordar, dê sua opinião, não me oponho, mas faça-o sem me agredir. Pode ser?
- Claro. Sou grata pela sua confiança em mim.
Marília respirou fundo, esperando com esse gesto adquirir coragem para revelar à irmã seus planos até então secretos. Júlia, notando sua indecisão, encorajou-a:
- Vamos, Marília, o que quer me contar que necessita de tanta coragem? Não tenha receio, não vou recriminá-la por nada.
- Jura?
- Juro. Não vou censurá-la, mas também não posso prometer que irei concordar certo?
- Certo.
- Em se tratando de você, minha irmã, não se pode prometer nada, pois tudo pode acontecer, até as coisas mais inusitadas.
Marília sorriu.
- Você exagera, não é tanto assim...
- Ande Marília, fale logo!
- Sabe o que é? Só sei viver de maneira intensa, indo em busca do que realmente quero, e o que quero não está aqui.
- Tudo bem, continue.
Com coragem Marília disse, sem hesitar:
- Eu vou embora desta cidade.
Júlia levou um susto.
- Você vai o quê?!
- Embora daqui - repetiu Marília.
- Você enlouqueceu?!
- Com certeza, não.
- Para onde irá?
- Vou ao encontro dos meus sonhos, dos meus objetivos de vida.
- Espere aí, vamos com calma, Marília. Conte-me essa história desde o início. Quem é que está metido nisso? Sim, porque imagino que não irá sozinha.
- Não, não irei. Você se lembra de Marcelo, o amigo de Carlos?
- Aquele rapaz que veio à sua festa de aniversário e que não tirava os olhos de sua pessoa, sendo correspondido levianamente por você, Marília?
- Ele mesmo.
- O que tem esse moço a ver com tudo isso?
- Pois bem. Logo depois de meu rompimento com Luiz, encontrei-me com Marcelo no campo de girassóis. Desde então estamos namorando e nos apaixonamos.
- Mas ninguém sabia que vocês estavam namorando. Pensávamos que o rapaz tinha embora.
- Nós nos encontrávamos às escondidas. Achamos que assim não daríamos motivos para falatório. Ele ficou aqui mais ou menos um mês e retornou para a capital.
- E como vocês se comunicam?
- Através de cartas e alguns telefonemas.
- Eu sabia que você andava escondendo alguma coisa de todos nós. Diga-me uma coisa: Rafael sabe disso tudo?
- Sabe. Mas ele não tem culpa de nada. Eu o ameacei, caso viesse a contar para alguém.
- Imagino que Rafael deva ter concordado com essa loucura.
- Muito ao contrário, Júlia. Nosso irmão tentou me convencer a não fazer isso, mas não lhe dei ouvidos.
- Marília, por favor, explique-me isso direito.
- É muito simples. Estamos namorando e resolvemos que eu vou para a capital com ele. Dentro de poucos dias Marcelo virá me buscar.
- Marília! - Júlia estava atônita. - O que você vai fazer? Vocês nem se conhecem direito, faz tão pouco tempo!
- Ora, conheço-o o suficiente para saber que somente ele poderá-me proporcionar o que tanto quero.
- Como assim?
- Preste atenção. Marcelo é sócio de uma grande empresa de publicidade, onde também trabalham com modelos de foto e passarela. Todas essas coisas que me atraem.
- E daí?
- Daí que Marcelo me convidou para ir embora com ele e fazer parte do quadro de modelos da empresa. Disse ter certeza de que a minha beleza abrirá todas as portas desse imenso universo de glamour.
Júlia estava completamente confusa. Mal acreditava no que ouvia.
- E você aceitou o convite?
- Claro Júlia! Não é isso o que sempre quis?
- Marília, pense melhor. Você vai arriscar sua vida com alguém que mal sabe quem é e que talvez queira apenas usá-la para enriquecer mais. Ninguém o conhece; pode até ser que seja casado. Você pediu informações dele ao Carlos?
- Evidente que não. Confio nele, pois sei que está apaixonado por mim.
- E você? Está apaixonada por Marcelo?
- Júlia, vou ser muito sincera com você. Não acredito em amor, paixão, essas coisas que só dão certo em romances. Estou apaixonada pelo mundo dele, e essa paixão eu sei que não acaba. A outra, minha irmã, dura muito pouco e só nos traz sofrimento.
- Não acredito no que estou ouvindo! Você não tem medo de se frustrar?
- Não, porque a minha expectativa é apenas conseguir ingressar no mundo da moda, do brilho. Estando dentro desse universo, não me importa o resto.
- E o amor, Marília? Seu coração, como é que fica?
- Já lhe disse que não acredito no amor. Ele acaba, e nem sempre nos proporciona o que realmente queremos e precisamos. A realização dos nossos sonhos, Júlia, não tem preço, porque o que conta é a satisfação de conseguir trazer a ilusão para a própria realidade. Para mim, minha irmã, isso é felicidade.
Júlia ficava cada vez mais surpresa com os conceitos errados de sua irmã.
- Marília, você não deve se esquecer de que a ilusão tem limites. Quando nos iludimos demais, o tombo é muito grande e deixa marcas profundas.
O silêncio se fez entre as duas irmãs. Júlia sentiu que Amélia se aproximava. Sem demora, captou a benéfica inspiração de sua bisavó. Elevou seu pensamento ao Mais Alto e rogou auxílio. Confiando na proteção divina, serviu-se de instrumento entre os dois mundos.
- Marília, em momento algum você mencionou Jesus, falou de fé ou pediu ajuda na sua decisão. Por que não crê que poderia ser ajudada nesse momento?
- Júlia, se Deus realmente existir deve estar sabendo dos meus planos e com certeza trabalhando para que tudo dê certo. Não dizem que Ele quer a felicidade do homem? Devia estar promovendo a minha quando enviou Marcelo para junto de mim.
- Você está muito enganada, Marília. Jesus não invade o nosso coração, é preciso abri-lo para que o Cristo entre. Pelo menos uma vez na vida é necessário reconhecer Deus e se ligar a Ele pelo amor. A tarefa da construção da nossa felicidade é nossa. Deus ofertou ao homem os meios, as condições físicas e intelectuais para essa conquista; ama tanto as Suas criaturas que enviou Jesus para esclarecer a humanidade, exemplificar o amor universal, falar do que realmente importa para a evolução da alma e levantar o obscuro véu para que o homem saísse da ignorância espiritual. É preciso reconhecer Jesus como o grande farol a iluminar nossas buscas.
Marília ficou pensativa por alguns instantes.
- Nunca a ouvi falar assim!
- Talvez porque o momento certo não tivesse chegado ainda.
- Diga-me então como os excepcionais, aqueles portadores de enfermidades, anomalias que os impedem de construir essa felicidade de que você fala, podem ser felizes se não possuem essa chance. Isso não é injusto?
- Marília, São Francisco de Assis dizia: "A felicidade é conquista interior; é um estado que só nós podemos criar, cultivando nossos valores e alegrias da nossa alma". Isso quer dizer que a felicidade não pode ser confundida com as alegrias materiais, passageiras, porque é algo muito mais profundo. Aqueles que se encontram por ora impedidos de agir fisicamente em benefício de si mesmos estão fortalecendo o seu espírito no aprendizado moral e espiritual do amor. Aprendendo á valorizar cada célula do seu corpo; enfim, progredindo espiritualmente e quitando seus débitos pretéritos com a Lei divina. Nada na criação de Deus é por acaso, Marília, porque Sua justiça se faz presente sempre em benefício de todos.
- Tudo bem, mas o que tem isso a ver comigo?
- Tem a ver que devemos pensar muito bem nas atitudes que tomamos, sobretudo quando elas estão fundamentadas na vaidade, no orgulho ou egoísmo. Poderemo-nos tornar vítimas de nós mesmos, e quando isso acontece é muito comum ouvirmos pessoas dizerem que Deus se esqueceu delas. Culpam o Criador pela própria imprudência.
Mais uma vez o silêncio reinou entre as irmãs. De repente, Júlia indagou:
- Marília, e nossos pais? Não pretende informá-los dessa decisão fora de propósito?
- Não é fora de propósito, Júlia, esforce-se para me entender.
- Tudo bem. Já pensou no sofrimento deles?
- Eu queria que me ajudasse a convencê-los.
- Eu?!
- Sim, Júlia, eles sempre aceitam tudo o que você fala.
- Desculpe, mas não posso Marília, porque não concordo e não aceito essa sua leviandade. Não vou ser falsa comigo mesma.
- Júlia! O que lhe custa me ajudar?
- Custa a minha sinceridade, estar em paz com a minha maneira de enxergar a situação. Não acho que isso seja ajudar, muito pelo contrário. Eu estaria colaborando com uma situação que considero perigosa pelo único motivo de ser completamente imprudente.
- Mas, meu Deus, por que você acha ser tão ameaçador para minha vida o simples fato de querer realizar um sonho acalentado durante anos?
- Não é o sonho, Marília, é a maneira como você quer realizá-lo: unindo-se a um rapaz que mal conhece. Não sabe nada da família dele, se é casado ou não... E, além do mais, não tem certeza se a intenção dele é realmente séria, como ele diz. Querem realizar um sonho sufocando seus sentimentos mais nobres, seus princípios. Só sei que não consigo concordar com você, com sua maneira de pensar. Não quero ser coadjuvante nessa peça leviana e imprudente que está pregando em você mesma.
Marília se irritou.
- Tudo bem, Júlia. Sabia mesmo que não poderia contar com você, que nunca concordou ou me apoiou em nada.
- Você não está entendendo. Não é uma questão de concordar ou apoiar, é...
- Chega! Estou compreendendo muito bem. Só lhe peço que não atrapalhe meus planos e que não conte nada aos nossos pais por enquanto. Deixe que eu mesma farei isso na hora certa. Não atrapalhe, já que se nega a me ajudar. Júlia ainda tentou fazer uma última pergunta:
- Marília, diga-me, quando é que Marcelo vem buscá-la?
- Não vou lhe dizer mais nada. Você ficará sabendo no momento certo. Sempre estive sozinha nesta casa. É bom mesmo que eu me vá, assim não trarei mais problemas para vocês.
- Não faça drama. Todos nós queremos o seu bem-estar. Queremos que seja feliz.
- Sim, desde que seja do seu jeito, do modo como vocês encaram a felicidade, sem se importarem se é a minha maneira de ver e sentir essa tal felicidade. E eu que vim aqui para consolar você, ajudá-la! Entretanto, tive mais uma decepção; sempre foi assim.
Júlia tentou mais uma vez argumentar com sua irmã, mas Marília, sem lhe dar ouvidos, saiu do quarto batendo a porta com força, acreditando ser uma maneira de agredir sua irmã. Júlia sentiu-se abatida. Culpava-se por não conseguir resolver nem o seu problema e muito menos o de Marília. Por mais que pensasse, não era capaz de vislumbrar nenhuma ideia que pudesse abrir os olhos da irmã, impulsionando-a pelo menos a ponderar, avaliar melhor a situação. Seu pensamento e sua força de vontade para tentar fazer alguma coisa por Marília levou-a a lembrar-se de Amélia, a bisavó querida que tanto a auxiliava-nos momentos de indecisão. Com doçura e confiança, dirigiu sentida prece a Jesus:
- Senhor, venha em meu auxílio. Permita que meu espírito protetor ajude-me a encontrar um modo de abrir os olhos de minha irmã para que ela não caia no abismo da ilusão. Que o espírito de minha bisavó Amélia possa clarear meus pensamentos, mostrando-me a direção certa a seguir. Obrigada, Senhor.
Em segundos, Júlia sentiu-se envolvida pela inspiração de Amélia.
- Por que não pensei nisso antes? Carlos! Ele poderá fornecer informações seguras sobre Marcelo. São amigos; um pouco de sua vida Carlos deve saber. Vou procurá-lo amanhã logo cedo. Animada, foi se preparar para dormir!
Aconchegada em sua cama, não conseguia se entregar ao sono reparador. Ansiosa, rememorava tudo o que Marília lhe dissera. Ficara impressionada com a intenção de sua irmã. Temia por ela, pelo que poderia acontecer caso concretizasse seu propósito, que considerava imprudente.
- O que devo fazer meu Deus? Coloco nossos pais cientes desse seu objetivo ou deixo que ela mesma resolva? - Lembrou-se de Rafael. - Por que ele não comentou sobre os planos de Marília, já que está ciente de tudo?
As perguntas vinham à sua cabeça, mas continuavam sem respostas. Cansada,
Júlia apagou as luzes, tentando adormecer. Amélia, aproximando-se, aconselhou-a:
- Júlia, ore a Jesus.
A prece é uma invocação, e através dela os bons espíritos se aproximam para auxiliar e inspirar pensamentos edificantes, ajudando a adquirir a força moral necessária para se vencer as dificuldades que muitas vezes o próprio homem cria para si mesmo. (A Essência da Alma - Irmão Ivo)

Júlia, sensível à inspiração do querido espírito, elevou seu pensamento a Jesus e orou com fé. Ao terminar sua prece, disse a si mesma:
- Vou dormir em paz. Amanhã será outro dia, e com certeza saberei o que fazer.
Enquanto Júlia finalmente entregava-se ao sono reparador, Marília, em seu quarto, ainda remoia a mágoa que sentia da irmã por ter se negado a ajudá-la.
- Como Júlia é ingrata! - dizia a si mesma. - Fui com toda a boa vontade, com carinho, confortá-la, e ela tem coragem de me negar um pedido de auxílio! Isso é para eu aprender a não me meter nos problemas dos outros. Tenho certeza de que se Júlia ficasse do meu lado nossos pais acabariam aceitando a minha decisão. Mas, como sempre, ela se volta contra mim, e pelo jeito vai ser muito difícil convencê-la do contrário. Lembrou-se do namorado.
- Meu Deus, em breve Marcelo estará aqui para me buscar! Tenho que resolver isso o quanto antes. Caso contrário, como irei preparar minhas coisas para ir embora? Não dá mais para adiar, preciso enfrentar isso logo.
Inquieta, demorou a adormecer. No dia seguinte Marta e Antunes tomavam junto o desjejum quando Antunes interrogou sua esposa:
- Marta, tenho observado que você de uns tempos para cá vem se mostrando muito tensa. Não prefere dividir comigo o que a está afligindo?
Marta tentou desconversar, mas Antunes insistiu:
- Confie em mim e diga-me o que é. Duas pessoas sempre pensam melhor e podem juntas, encontrar mais facilmente a solução.
- Não lhe disse nada, Antunes, porque não existe nada de concreto. Mas é que tenho experimentado uma sensação estranha que me incomoda muito em relação a Marília.
- Mas o que ela fez para deixá-la assim tão preocupada e ansiosa?
- Como falei nada de concreto.
- Então!
- É que ando sentindo uma coisa estranha, uma intuição não muito boa.
- Sobre o quê?
- Há tempos Marília vem se comportando de uma maneira que me aflige.
- Como assim?
- Está com um comportamento diferente do habitual. Júlia também percebeu isso.
- Explique-se melhor, Marta.
- Desde o rompimento dela com Luiz, ela começou a sair sempre no mesmo horário sem dizer para onde ia, sem dar nenhuma satisfação. Quando a interrogava, respondia de maneira evasiva, como se usasse de subterfúgio para me enganar. O tempo passou e suas saídas diminuíram, mas soube por Vera que...
- Quem é Vera?
- A telefonista do posto telefônico. Pois bem, soube por ela que Marília quase diariamente faz uma ligação para a capital.
- Para a capital? - Antunes espantou-se. - Mas não conhecemos ninguém na capital!
- Pois é. Com quem ela fala e o que está pretendendo?
- Você perguntou isso a nossa filha?
- Várias vezes.
- E o que Marília respondeu?
- Não responde. Apenas diz que o assunto é dela e que não tenho o direito de me intrometer, pois já é maior de idade e tem condições de agir por conta própria.
- Devia ter insistido, Marta.
- Insisti. Aí ela veio com uma resposta que não me convenceu.
- Qual?
- Disse que se tratava de uma menina que havia conhecido na casa de Laura, e que as duas se tornaram ótimas amigas. Completou dizendo que não via nenhum mal nisso.
- Por que não telefonava daqui de casa?
- Porque você não gosta que se use o telefone por bobagem, e no posto telefônico podia conversar mais à vontade.
Antunes pensou por um tempo e finalmente disse a Marta:
- Você tem razão. Aí tem coisa, e não estou gostando nada disso.
- É o que estou lhe dizendo.
- Mas isso será esclarecido hoje mesmo. Vou esperar Marília se levantar. Ela terá que me explicar essa história direitinho, e vai ser agora pela manhã.
- E o seu trabalho? Irá se atrasar.
- Não importa, chego mais tarde. Essa história, pelo que me disse, já foi longe demais.
Em silêncio terminaram a refeição. Enquanto Marta ocupava-se na cozinha, Antunes foi para a sala ler o jornal e aguardar por sua filha.

CAPÍTULO VI - RASTRO DE SOFRIMENTO

Após uma hora de espera, Antunes, impaciente, disse à sua mulher:
- Marília está demorando muito, e essa demora está me deixando nervoso. É melhor você ir até seu quarto e chamá-la.
- Por que o senhor está nervoso, pai? - perguntou Felipe, entrando acompanhado de Júlia e Rafael.
- É mesmo, pai. Aconteceu alguma coisa que o deixou assim?
- Se aconteceu, não sei. Mas espero que não, Rafael, para o bem de Marília. Não entendo por que ainda não desceu. Já passou da hora de levantar.
- Calma pai - disse Júlia. - Ela deve estar dormindo ainda. Fomos-nos deitar muito tarde ontem.
- Que ela está dormindo eu imagino Júlia. - Dirigindo-se a Felipe, pediu: - Faça-me um favor filho vá até o quarto de sua irmã e diga-lhe para descer, que estou esperando.
- E se ela estiver dormindo?
- Acorde-a. Preciso ter uma conversa com Marília, e quero que seja agora - disse Antunes, cada vez mais irritado.
Felipe, obediente, subiu apressado e foi chamar a irmã. Júlia, sem entender a razão do nervosismo de seu pai, aproximou-se de sua mãe.
- Mamãe, o que há? Por que papai está nervoso desse Jeito?
- Júlia, acho melhor você ficar quieta e esperar. Demorou, mas chegou à hora de esclarecermos algumas coisas com Marília.
Júlia sentiu que o momento era de muita tensão e começou a ficar preocupada com seus pais. Pensou que seria melhor colocar a mãe ciente de sua conversa com Marília, acreditando que se Marta soubesse poderia evitar uma atitude mais seria de Antunes.
- Mãe, preciso muito falar com a senhora.
- Depois, minha filha, agora não é o momento.
- Desculpe-me se insisto, mas é muito importante. É sobre um assunto do qual só tomei conhecimento ontem à noite.
- Filha, seja o que for, deixe para mais tarde. Outra hora conversaremos com calma. Seu pai está muito nervoso, e eu nem sei se realmente tem motivo para tanto. Vamos esperar tudo se acalmar, está bem?
- Tudo bem, mãe, outra hora conversaremos.
Marta, tentando se mostrar calma, disse a Júlia e Rafael:
- Enquanto aguardamos Felipe e Marília, sentem-se e tomem seu café. As torradas estão quentinhas.
Júlia admirou a postura de sua mãe. Sempre equilibrada, hein, dona Marta? Pensou. Enquanto isso, Felipe batia na porta do quarto de Marília.
- Marília, acorde!
Reconhecendo a voz do irmão, Marília respondeu:
- Só podia ser você, Felipe, para vir me acordar a esta ora. O que quer?
- Eu, nada. Foi papai quem mandou chamá-la, e mandou que descesse o mais rápido possível, pois quer conversar com você.
- O que ele quer?
- Não sei, mas é melhor obedecer, porque papai está muito nervoso.
- Diga que já estou indo.
- Tudo bem.
Marília se espreguiçou. Enquanto se trocava, pensava: Nesta casa não se tem direito nem para dormir e acordar em paz. O que será que vou enfrentar desta vez? Recordou-se da conversa que tivera com Júlia, na véspera.
- Meu Deus, será
que Júlia contou a eles o que conversamos? Não, não é possível, ela não iria desrespeitar a minha confidência, tudo o que lhe revelei. Júlia não faria isso. O motivo deve ser outro. E espero que seja mesmo, porque, se foi minha irmã quem provocou em nosso pai essa vontade sem razão de querer falar comigo logo cedo, juro que nunca mais troco uma palavra com ela. Não suporto traição! Terminando de se arrumar desceu em seguida.
- Até que enfim, Marília. Estou cansado de esperar por você. Qual a razão da demora?
- Estava-me arrumando para não descer de qualquer jeito. Que mal há nisso?
Antunes, não conseguindo mais controlar o nervosismo, disse, um pouco alterado:
- Por favor, não me provoque, porque não estou para brincadeira!
- Pelo amor de Deus, pai, não estou provocando! Apenas estranhei o senhor ficar tão tenso por uma coisa sem importância. Que mal existe em levantar um pouco mais tarde? Sempre fiz isso.
- Das outras vezes não a esperava, e acreditava não haver motivo para tanto. Hoje é diferente.
- E posso saber por que hoje é diferente? - indagou Marília começando a se inquietar.
Olhou para Júlia, tentando perceber através de sua expressão se ela havia comentado alguma coisa. Mas Júlia permanecia completamente impassível.
- Porque tenho motivos para suspeitar que você nos esconde alguma coisa, e temo ser algo grave, ou você não esconderia de seus pais. Pretendo esclarecer tudo agora, de uma vez por todas.
- Pai, quem lhe disse que escondo algo de vocês? - Marília se voltou para a irmã, encarando-a.
Júlia percebeu seu receio e sustentou o olhar, dizendo:
- Não tenho nada a ver com isso. Pode acreditar.
- Não foi Júlia, se é o que está pensando.
- Foi quem, então? - Marília devolveu a pergunta. - Já sei: Rafael!
- Errou de novo.
Seus irmãos se sabem de alguma coisa, não disseram nada. Acredito que estejam esperando que você mesma o faça.
- Quem foi papai?
- Foi sua mãe quem me alertou sobre o seu comportamento.
- Mamãe! Mas o que foi que eu fiz?
Em poucos, instantes Marta a colocou ciente de tudo o que a preocupava.
- É isso, Marília - concluiu. - Estou realmente muito preocupada com você, pois não sei aonde vai, o que faz com suas longas ausências... Você não me dá nenhuma satisfação sobre a sua vida!
- Mas o que a senhora quer saber?
Antunes se adiantou:
- Ora, não se faça de desentendida. Que tal começarmos com os seus telefonemas quase diários para a capital?
- Quem lhes disse isso?!
- Foi Vera quem me contou - afirmou Marta.
- E a senhora acreditou? Mãe, Vera é uma fofoqueira, não se pode dar crédito ao que ela fala.
- Chega Marília! - Antunes ficava cada vez mais alterado.
- Não é fofoca dessa moça, é a verdade, e você sabe disso. Com quem fala todos os dias pelo telefone?
- Já disse que é com uma amiga que conheci na casa de Laura. Mamãe sabe disso.
- Isso é o que você diz, mas não corresponde à realidade, e eu quero apenas a verdade, nada mais. Com quem tem falado ao telefone?
Júlia, impaciente, falou para a irmã:
- Fale de uma vez, Marília, não adianta ficar escondendo.
- Cale a boca e não se meta! O assunto é meu!
Antunes, no auge da impaciência, dirigiu-se a Marília quase gritando:
- Não mande sua irmã calar a boca! - E voltou-se para Júlia. - Se você sabe de alguma coisa a esse respeito, por favor, conte-nos.
- Ela não sabe de nada, papai.
- Deixe que ela mesma responda Marília. - Sem dar chance à filha mais nova, tornou a se voltar para Júlia. - Posso até compreender o fato de você não querer se intrometer no assunto de sua irmã. Mas, se sabe de algo, é melhor e mais prudente nos dizer. Seu silêncio poderá ocasionar uma desgraça na vida de Marília e na nossa. Volto a insistir: se tem conhecimento de alguma coisa, diga-nos. Sua mãe e eu temos o direito de saber.
Júlia se sentiu acuada. Marília, receosa do que a irmã poderia revelar, tentava de todos os modos impedi-la de se pronunciar. Antunes, cada vez mais nervoso e certo de que realmente existia um segredo, com autoridade ordenou que uma ou outra o revelasse. Júlia fez menção de contar, mas Marília, em uma última tentativa de fazê-la mudar de idéia, quase gritou:
- Não, Júlia, por favor, não!
- Sinto muito, Marília, mas não posso omitir de nossos pais o que pretende fazer; se você não falar, falo eu.
Diante do silêncio de Marília e da expectativa de seus pais, Júlia tomou coragem.
- Pai, a pessoa com a qual Marília vem falando ao telefone é Marcelo.
- Quem é Marcelo?
- Aquele amigo de Carlos que esteve no aniversário dela, lembra?
- E por que sua irmã fala com ele com tanta assiduidade?
- Porque estão namorando.
- Namorando?! Você sabia disso, Marta?
- Não, Antunes, mas deve ser o motivo das saídas dela. Marília, sem esconder a raiva que sentia da irmã, disse, rancorosa:
- Você me paga, Júlia.
- Pare de ameaçar sua irmã e diga-me por que esconde esse rapaz. Existe algum problema com ele que não podemos saber?
- Não, pai, problema algum.
- Vocês estão mesmo namorando?
- Sim. Desde meu rompimento com Luiz.
- Todo esse tempo e não nos falou nada! - exclamou Marta, decepcionada.
- Com certeza, Marta, é alguma brincadeira de criança, por isso ela preferiu não nos dizer. E isso, Marília?
- Digamos que sim, pai. Ainda não é sério, então não quis adiantar nada. Pode nem dar certo.
Júlia estava atônita. Marília perdia a oportunidade de revelar a eles a verdade, tudo o que estava pretendendo fazer. E, além do mais, mentia sem o menor respeito por seus pais. Não suportando mais vê-los serem enganados levianamente pela irmã, resolveu acabar com aquilo:
- É mentira, pai, não é um namoro de brincadeira.
- O que diz? Como assim?
- Pare Júlia - Marília tomou a gritar com a irmã.
- Sinto muito, mas não posso parar. Eles têm o direito de saber o que você está tramando.
- Então nos diga minha filha.
- Pai, esse namoro é sério. Marília vai embora com ele.
- O quê?! Você disse que ela vai embora?!
- Sim. Marcelo virá buscá-la em poucos dias.
- Vocês vão se casar? - questionou Marta, com um fio de voz.
- Não é possível - completou Antunes. - Você mal o conhece.
- Eles não vão se casar; Marília vai morar com ele.
- Sem se casar? Não posso permitir isso.
- Calma, Marta, vamos ouvir o que Marília tem para nos dizer. Explique-se, menina.
- Explicar o que, pai?
- É verdade o que Júlia disse?
- Sabe o que é pai...
- Só quero uma resposta: é verdade ou não? Tímida, Marília confirmou:
- Perdoe-me, pai, mas é.
Marta não agüentou.
Sentou-se e cobriu o rosto com as mãos. Antunes não sabia o que dizer, tamanho o impacto que a notícia causou em seu coração. Sentia-o bater forte e descompassado em seu peito magoado. Custava a acreditar no que sua filha confirmara.
- Por favor, filha, diga que não é verdade, que tudo isso não passa de uma brincadeira.
Resoluta e senhora de si, Marília respondeu:
- Já que tudo veio à tona, serei franca. É verdade, sim, pai, não vou mais negar. Irei embora com Marcelo para a capital. Vou em busca do meu sonho, da minha vida, ou seja, da vida que desejo para mim.
- Mas a sua vida é aqui, junto de sua família!
- Engano seu, pai. Minha vida é no lugar onde está o que ambiciono desde sempre: ser famosa, ser alguém.
- A fama nem sempre traz a felicidade. É um erro pensar que somente os famosos são felizes.
- Se eles são eu não sei, nem me interessa. O que sei é que serei feliz com Marcelo, pois só ele pode me dar o que quero.
- Filha, você nem o conhece o bastante para tomar essa decisão, está sendo precipitada.
- Conheço o suficiente para saber que é isso o que quero.
- Nós não o conhecemos, não sabemos nada sobre sua família. O rapaz pode estar enganando você. Já pensou que ele pode até ser casado? Pense melhor,
Marília, não faça nada por impulso, ou poderá se arrepender amargamente.
- Desculpe-me, pai, mas vou fazer sim, e sei que não me arrependerei. Como já disse, Marcelo possui o que desejo, sem dizer que está apaixonado por mim.
- Se está tão apaixonado por você, qual a razão de não ter pedido sua mão em casamento? Por que nunca quis vir falar conosco sobre vocês? Não acha estranho?
- Não. Acho perfeitamente normal. As coisas hoje são diferentes pai, porque o mundo se modificou nada é mais como em seu tempo.
Enquanto Antunes conversava com Marília tentando trazê-la de volta à razão, Marta, em um canto, chorava desesperada. Júlia, Rafael e Felipe não sabiam que atitude tomar, nem o dizer para aliviar a dor de sua mãe. Entretanto, Marília permanecia fria, irredutível e insensível à dor que causava a seus pais.
- Pode me dizer o que pretende fazer na capital, Marília?
- Ora, pai, vou trabalhar em uma grande agência de modelos. Em pouco tempo poderão ver meu nome brilhando nas revistas mais importantes.
- Marília, não permitirei que faça essa loucura. Desta casa você não sai!
Mais audaciosa ainda, Marília respondeu:
- Se eu fosse o senhor, não tentaria me impedir.
- Posso saber por quê?
- Porque eu irei o senhor deixando ou não. Não vou permitir que ninguém atrapalhe meus planos; nem mesmo o senhor.
- Não lhe darei um centavo sequer, Marília!
- Pai, o senhor ainda não entendeu, portanto, não se desgaste. Não preciso do seu dinheiro. Marcelo é rico, possui uma posição social invejável. Assim, não precisarei de nada nem de ninguém. Ou, melhor dizendo, vou precisar apenas de
Marcelo e da minha beleza.
Júlia, decidida, aproximou-se da irmã, segurou-a pelo braço e falou com autoridade:
- Chega, Marília, você já atingiu nossos pais o suficiente para deixá-los tristes e preocupados. É melhor parar!
- Eu disse para você que isso não ia dar certo, eu avisei - falou Rafael.
- Não seja bobo. O que foi que não deu certo? Tudo está evoluindo para a finalização concreta do meu desejo.
Felipe, sempre sensato, expressou-se com cautela:
- Marília, se você quer colocar sua vida em risco tudo bem, é um problema seu. Mas o que não pode fazer é magoar, desafiar nossos pais da maneira como está fazendo. Isso eu não vou deixar.
- E quem é você para falar comigo desse modo?
- Sou apenas um filho que não tem medo de defender seus pais, e o farei caso você insista em feri-los. Portanto, abaixe seu tom de voz e trate-os com respeito.
Marília, sentindo a força moral de Felipe, conteve-se. Todos admiravam a firmeza com a qual Felipe contornara a situação. Antunes, aproveitando o instante de calma, mostrando-se cansado e abatido, dirigiu-se à filha:
- Pelo que senti ninguém poderá detê-la nessa sua loucura. Mas vou dar-lhe um aviso: não se esqueça de que enquanto estiver na minha casa deverá seguir as regras impostas por mim e sua mãe, comportando-se da maneira como sempre ensinamos e que exigimos. Sobretudo não ouse desrespeitar sua mãe. Agora, suba para seu quarto.
- Mas, pai, nem tomei meu café...
- A hora já passou. Daqui a pouco o almoço será servido. Por enquanto, faça o que estou mandando: suba!
Marília, querendo demonstrar sua irritação, subiu as escadas batendo os pés com firmeza. Chegando ao quarto, bateu a porta com violência. Júlia abraçou a mãe, dizendo-lhe com carinho:
- Não fique assim. Quem sabe ela não muda de idéia?
Marta fixou seus olhos tristes e úmidos na querida filha.
- Era sobre isso que você queria conversar comigo, não era?
- Sim, mãe. Mas agora não tem mais importância. Foi melhor assim; pelo menos tudo será feito às claras.
- Marília não tem noção do espinho que cravou em nosso coração, meu e de seu pai.

De todas as provas, as mais penosas são as que afetam o coração; alguém suporta com coragem a miséria e as privações materiais, mas sucumbe ao peso dos desgostos domésticos, esmagado pela ingratidão dos seus.
(O Evangelho Segundo o Espiritismo - Allan Kardec - Capítulo XIV)

Júlia, após auxiliar sua mãe nos afazeres domésticos, tomou a decisão de ir à procura de Carlos. Acreditava que talvez ele tivesse informações sobre a vida de
Marcelo que pudessem transformar a decisão leviana de Marília.
- Mãe, estou pensando em procurar Carlos. Ele é amigo de Marcelo, e foi quem o trouxe à nossa casa. Acredito que poderá nos ajudar nessa questão contando-nos o que sabe sobre a vida de Marcelo. O que a senhora acha?
- Não vejo mal nenhum, Júlia, tudo é válido para ajudar Marília a desistir dessa loucura. Assim ficaremos sabendo mais sobre esse moço. Acho que deve ir, sim.
Felipe, que escutara a conversa, disse à irmã:
- Júlia, quero ir com você.
- Que bom Felipe. Vou até meu quarto e volto em seguida.
- Tudo bem, eu espero.
Júlia subiu. Ao passar pela porta do quarto de Marília, ouviu os soluços da irmã.
- Posso entrar Marília?
- Não, Júlia, não pode. Vá embora e deixe-me em paz!
- Marília, está agindo como uma criança mimada. Deixe-me entrar. Preciso falar com você, é de seu interesse.
Após alguns instantes de silêncio, Marília resolveu abrir a porta.
- O que quer ainda? Acabar de me destruir?
- O que é isso, Marília? Calma, não vim aqui para discutir ou destruir ninguém, quero apenas ajudar.
- Sei! Só rindo! O que você fez foi colaborar para piorar as coisas para mim!
- Não, não fiz isso. Você é que ainda não entendeu que tudo se torna mais fácil quando usamos de sinceridade e transparência ao tratar com as pessoas, principalmente nossos pais. Mas isso não vem ao caso agora; o que está feito não se precisa fazer.
- O que quer?
- Lembra-se de Carlos?
- Claro, é o amigo do Marcelo, foi ele quem o trouxe aqui.
- Isso. Agora, a questão maior é que ninguém conhece nada da vida de Marcelo, concorda?
- Concordo.
- Carlos é o único que poderá nos dar informações concretas sobre ele, pois o conhece há muito tempo. Isso lhe dá condições de saber quem Marcelo é na realidade.
- E daí?
- Daí que eu e Felipe vamos falar com ele, e gostaria que você viesse conosco. Seria bom para você.
- Vocês vão falar o que, Júlia?
- Ora, o que eu lhe disse: tentaremos descobrir um pouco sobre ele.
- Sinto muito, mas não irei.
- Por quê?
- Porque não quero.
- Qual a verdadeira razão, Marília?
- Nenhuma em particular, apenas não quero saber nada mais do que já sei.
- Está com medo?
- Medo de que, Júlia? Não é isso, apenas não acho certo ficar investigando a vida da pessoa à qual vou me unir.
- Mas é justo; por isso deve investigar Marília.
- O que ele me contou me basta, e vou adiantando que nada que você vier a me contar como sua grande descoberta irá me fazer mudar de idéia.
- Você se julga adulta o bastante para tomar decisões importantes e tem medo de enfrentar revelações que poderiam salvá-la dessa loucura.
- Por favor, Júlia, saia do meu quarto; cansei de ouvi-la. Deixe-me em paz e não se meta mais nesse assunto, que só diz respeito a mim.
- Tudo bem, Marília, você é quem sabe. Aprendi que devemos respeitar o livre-arbítrio de cada um, e eu vou respeitar o seu.
- Acho muito bom. Agora me deixe sozinha.
Júlia desceu decepcionada. Ela está com medo de descobrir alguma coisa que a obrigue a alterar seus planos, concluiu.
- Demorou Júlia - disse-lhe Felipe.
- Estava tentando convencer Marília a ir conosco.
- Conseguiu?
- Não, mãe. Ela está irredutível, acredito mesmo que nada nem ninguém a faria mudar de idéia.
- Filha, vá assim mesmo conversar com esse rapaz. Talvez através dele tenhamos alguma chance de modificar essa situação.
- Claro, mãe, já estamos indo. Vamos, Felipe.
Os dois irmãos seguiram em direção à residência de Carlos. Lá chegando, foram informados de que o rapaz se encontrava no trabalho. Anotaram o endereço e seguiram até a empresa onde Carlos trabalhava. A recepcionista, atendendo-os com gentileza, os conduziu até a sala de Carlos.
- Como vai, Carlos? Lembra-se de mim?
- Deixe-me ver... Já sei... Você é a irmã de Marília, ex-noiva de Luiz. Acertei? - perguntou sorrindo.
- Acertou. Meu nome é Júlia, e este é meu irmão, Felipe.
- A que devo a alegria de revê-los?
- Precisamos de sua ajuda.
- Se estiver ao meu alcance, com o maior prazer.
- Carlos, o que nos traz aqui é um assunto muito delicado.
- Fiquem à vontade.
- Gostaríamos que você nos contasse um pouco sobre a vida daquele seu amigo, Marcelo.
- Falar sobre Marcelo? É um pedido difícil.
- Eu sei.
- Posso saber o motivo dessa curiosidade?
- Evidente que sim.
Júlia e Felipe narraram tudo o que sabiam sobre o envolvimento de Marília com ele. Carlos ficou surpreso.
- Como aconteceu isso, como Marília foi se envolver com ele? Espere aí, então foi por causa dele que ela rompeu o noivado com Luiz?
- Não podemos dizer ao certo, mas da maneira como se olhavam podemos até concluir que é possível.
- Lembro-me bem do quanto ele ficou impressionado com a beleza dela. Cheguei a pedir-lhe que não se envolvesse com Marília, pois era uma moça de família. Meu Deus lembro-me muito bem disso.
- Enfim, aconteceu. Meus pais estão desesperados com a idéia de Marília se unir a ele indo para a capital em uma aventura que tem tudo para dar errado.
- Acredito que dará mesmo.
Júlia e Felipe se olharam assustados.
- Como assim, Carlos? O que o faz pensar assim?
- Embora Marcelo diga para todo o mundo que toma conta de sua mãe doente para justificar sua ausência em determinados lugares e compromissos, não é verdade.
- Não?
- Não. Ele é casado, e nem sempre consegue sair sem a mulher.
Júlia e Felipe empalideceram.
- Não é possível! Marília sabe disso, Júlia?
- Penso que não, Felipe; ela não chegaria a tanto.
- E nunca se importou em saber?
Quem respondeu foi Carlos:
- Desculpe-me me intrometer, mas pode ser que ela tenha medo de perder a oportunidade com que sonhou a vida inteira. Não é isso o que Marília sempre quis? Pelo menos era o que Luiz me dizia.
- Ele vive de que, Carlos? Pelo menos é verdade que é dono de uma agência de modelos?
- Isso é verdade. Tem um sócio chamado Daniel e trabalham juntos há muito tempo.
- É uma agência grande?
- Aparentemente sim.
- Não entendi.
- O porte de sua agência chega a levantar suspeita, considerando os poucos trabalhos que realiza com as modelos.
- Explique isso melhor, por favor.
- Paralelamente eles realizam transações que nada têm a ver com as modelos, e são essas atividades que dão sustento financeiro à agência.
- Que atividades são essas, Carlos?
- Não sei responder, Júlia. O que posso lhe dizer é que Marcelo não serve para Marília, que pertence a uma família bem estruturada, com formação decente e digna.
- O que vamos fazer Felipe?
- Não sei Júlia, estou tão desorientado quanto você.
- Perdoem-me, mas por que permitiram que esse relacionamento chegasse a esse ponto?
- Porque ninguém sabia Carlos. Marília escondeu de todos nós, e só hoje pela manhã tomamos conhecimento de seus planos. Nossos pais estão sofrendo muito, e não sabemos o que fazer para ajudá-los.
- Gostaria muito de colaborar, mas não vejo como.
- Você já fez o que estava ao seu alcance, Carlos. Mostrou-nos quem é Marcelo de verdade, e somos muito gratos. Agora teremos de pensar, para agir enquanto é tempo.
De repente passou pela cabeça de Júlia uma idéia que considerou viável.
- Carlos, já que se mostrou disposto a nos ajudar, posso pedir-lhe um grande favor?
- Claro, Júlia, peça o que quiser. Como disse, gostaria muito de colaborar.
- Vocês são amigos... Seria possível que conversasse com Marcelo e tentasse dissuadi-lo de vir buscar Marília?
- Posso fazer isso sim, com certeza. Tentarei convencê-lo a desistir de Marília.
- Que ótima idéia você teve, Júlia! - apoiou Felipe.
- Ficaremos muito gratos pela sua gentileza e compreensão, Carlos.
- Assim que conseguir falar com Marcelo entrarei em contato com vocês e os colocarei a par de nossa conversa. Está bem assim?
- Ótimo. Carlos, você é um bom amigo, não sei como poderemos agradecer.
- É verdade, Carlos, muito obrigado.
- É o mínimo que posso fazer. Afinal, fui eu quem o levou para dentro de sua casa. Num certo ponto, sinto-me responsável.
- Nem pense nisso. Se existe um culpado, só pode ser Marília. É ela que não consegue se situar na realidade e vive em uma redoma de sonhos. Bem, ficaremos aguardando notícias suas.
- Espero tê-las o mais rápido possível.
Despediram-se. Júlia e Felipe caminhavam conversando, tentando achar um jeito menos sofrido de revelar aos pais a verdadeira situação de Marcelo.
- Júlia, estou pensando que é melhor esperarmos a resposta de Carlos. Pode ser que ele convença Marcelo a desistir de Marília, e se isso acontecer não precisaremos dizer aos nossos pais que ele é casado. Será um sofrimento a menos.
- Tem razão, Felipe, não aumentaríamos a dor que já estão sentindo.
Marta esperava ansiosa a volta de Júlia e Felipe. Sem esconder a preocupação, correu ao encontro dos filhos assim que os viu chegar.
- Como foi à conversa com o Carlos? Ele esclareceu alguma coisa sobre a vida de Marcelo?
- Calma mãe! - pediu-lhe a filha.
- Não me peça para ficar calma, Júlia, por favor. Não tenho a mínima condição de controlar minha ansiedade e meu receio em relação ao futuro de Marília, por isso, seja lá o que for que ele tenha dito não me escondam absolutamente nada.
Os dois irmãos se olharam. Felipe antecipou-se a Júlia:
- Fique tranqüila, não vamos esconder nada da senhora. Mas por enquanto não temos nada a dizer de concreto.
- Como assim, Felipe? Não entendo. Carlos não o conhece ou não disse nada para não contrariar o amigo?
Júlia, com cautela, interveio:
- Mamãe, sente-se aqui, vou explicar tudo para a senhora.
Marta obedeceu, sentando-se próxima à filha e esfregando as mãos, nervosa.
- Carlos é uma ótima pessoa, demonstrou boa vontade e muita consideração conosco. Prometeu verificar tudo o que diz respeito a Marcelo, e assim que tiver as informações irá nos colocar ciente de tudo. É sem dúvida um ótimo caráter, mãe, além de solidário e gentil.
- Não compreendo a razão dessa demora. Se ele é amigo de Marcelo deve conhecê-lo, pelo menos saber das questões mais importantes da sua vida, por exemplo, se é casado ou não. Isso é o que mais preocupa a mim e o seu pai.
- Mãe, Carlos sabe sim muita coisa a respeito do Marcelo, mas preferiu ser cauteloso para não se enganar em um assunto tão sério.
- Tudo bem. Quanto tempo vamos ter que esperar?
- É rápido, mãe, não mais que dois ou três dias.
Vendo a grande inquietação no rosto de Marta, Júlia voltou a dizer:
- Mãe, não fique assim. Ele apenas não quis se precipitar preferiu ser prudente para não cometer nenhum engano.
- Tudo bem, filha, Carlos está certo. Eu é que estou muito assustada. Mas vamos esperar.
- E Marília? - Felipe quis saber. - Já saiu do quarto?
- Ainda não. Está trancada desde cedo. Nem obtive resposta quando bati em sua porta.
- É melhor deixá-la quieta! - exclamou Júlia. - Acredito que deve estar confusa.
Lembrando de algo, Marta dirigiu-se à filha:
- Estava me esquecendo, Júlia: Luiz ligou para você.
O coração de Júlia se sobressaltou.
- O que a senhora disse mãe? Luiz me telefonou?
- Sim, filha, disse-me que precisava falar com você.
- A senhora não falou que tinha ido falar com o Carlos, não é?
- Lógico que não, filha. Disse apenas que havia saído com Felipe.
- Ele perguntou para onde?
- Não. Falou que queria conversar com você e que liga mais tarde.
Júlia se encheu de esperanças. Meu Deus será que ele sentiu saudade de mim?
Rafael entrou correndo na cozinha, dizendo, afobado:
- Mãe, é melhor irmos até o serviço do papai. Parece que ele não está se sentindo bem.
Todos se assustaram.
- Como soube?
- Eu vinha para casa quando me encontrei com Pascoal, um rapaz que trabalha na mesma firma que papai. Pascoal estava vindo nos avisar.
Sem perguntar mais nada, Marta saiu apressada em direção à firma, seguida dos filhos. Meu Deus socorra-me, e muito problema para um dia só, pensava. Ao chegarem, foram encaminhados para a sala de enfermagem, onde os empregados recebiam os primeiros atendimentos. Encontraram Antunes deitado, pálido, e quase não esboçou nenhuma reação quando os viu.
- Meu querido - disse Marta, carinhosamente -, o que aconteceu? O que está sentindo?
A enfermeira se antecipou:
- Dona Marta, acalme-se, seu marido já está bem.
- Por favor, diga-me o que ele tem.
- Sua pressão subiu muito, e, em conseqüência, seu Antunes se sentiu mal. Mas já está medicado, a pressão baixou um pouco. Ele precisa apenas descansar.
- Tem certeza de que ele está bem?
- Por ora, sim. O que recomendo é encaminhá-lo para um médico a fim de examiná-lo e decidir o que fazer para controlar sua pressão, evitando a repetição desse episódio.
- Nós procuraremos um médico, com certeza.
- Desculpe-me perguntar, dona Marta, mas seu Antunes passou por algum aborrecimento importante?
- Por quê?
- Todos notaram que ele chegou muito aborrecido, angustiado... Parecia não estar bem, mesmo.
- Sim. Meu marido passou por uma grande contrariedade, que o deixou muito nervoso e bastante abalado.
- Isso pode explicar a pressão ter se elevado. Esperem que descanse mais um pouco, e então poderão levá-lo para casa. Aconselharia evitarem tocar no assunto que o abalou tanto. É importante que repouse, e, assim que puderem, levem-no ao médico para investigar se ele não é hipertenso ou se tem algum outro problema.
- Obrigada. Posso ficar aqui com ele?
- Claro dona Marta, eu também estarei aqui o tempo todo. Mas fique tranqüila, seu marido já está bem.
Marta pediu aos filhos que fossem para casa e avisassem Marília do ocorrido. No caminho, Júlia notou que Rafael estava mais silencioso que de costume.
- Rafael, o que você tem? Está tão calado... Se for por causa de papai, ele está bem. Não ouviu a enfermeira falar?
- Não é nada, Júlia, estou apenas pensativo.
- Não quer me dizer o que o preocupa? Podemos conversar, e talvez você se sinta mais aliviado. O que acha?
- Fale Rafael, posso apostar que sei do que se trata - disse Felipe.
Júlia insistiu:
- Seja o que for, diga, desabafe. Dê-nos a oportunidade de ajudá-lo. Somos irmãos, e os irmãos ajudam uns aos outros.
Encorajado, Rafael se abriu:
- Sabe o que é Júlia? Estou impressionado com Marília. A que ponto ela chegou para alcançar seu objetivo! Nunca pensei que ousasse tanto. Está passando por cima de sua família, de seus pais, em nome de algo que ela nem sabe o que de verdade lhe reserva.
- Marília está enganando a si própria, Rafael; anda pela vida muito distraída e não consegue assimilar os verdadeiros valores da alma.
- O que me angustia é que durante anos a fio fui conivente com seus conceitos, admirando sua maneira de ser. Pensei e agi como ela. Assumo que escondi muitas atitudes dela, e hoje reconheço que, se tivesse pensado e agido diferente, revelando aos nossos pais sua intenção desde muito nova, pode ser que não tivesse chegado a esse ponto. Sinto-me muito culpado por isso.
- Não carregue culpa, irmão. Marília já está bem crescidinha para saber o que fazer. Sempre deu prioridade aos seus impulsos e não consegue perceber que, quando os instintos nos dominam, estamos mais próximos do ponto de partida do que do objetivo.
- O que isso quer dizer?
- Marília está se perdendo na ilusão, e se esquece de que o amor, em todas as suas formas, é a primeira palavra do alfabeto divino, e a tarefa do amor é longa e difícil, mas se cumprirá, porque assim Deus o quer. Infelizmente, aqueles que vivem escravos da ilusão, como diz a palavra, estão se iludindo, e a realidade será mais dura quando chegar.
- Tenho receio por Marília.
- Nós também temos, não é, Felipe? Mas o que estiver por vir é a própria Marília quem está semeando. O fato de sentir-se culpado é o prenúncio do acordar de sua consciência, ou seja, você passará a perceber agora que tudo se deve questionar; deve-se analisar o verdadeiro conteúdo dos fatos, e não tão-só aceitar.
Felipe, que até o momento apenas ouvia sentindo admirarão pela irmã, disse ao irmão:
- Concordo com Júlia, Rafael. Esse seu despertar irá com certeza lhe proporcionar atitudes mais nobres que lhe mostrarão uma direção mais segura.
Rafael alegrou-se com a compreensão dos irmãos e sentiu-se protegido.
- Obrigado. Jamais pensei que me compreenderiam. Imaginei que me apontariam como culpado; entretanto, sou aceito por vocês, apesar dos meus erros.
- Somos seus irmãos, esqueceu-se disso? Além do mais, você não errou tanto assim como pensa. Não julgue a si mesmo de maneira tão severa. Marília está agindo dessa forma porque quer; nem você, nem ninguém está induzindo seu comportamento. Somos responsáveis por nós, e não devemos-nos esquecer disso. Somos os responsáveis por nossa vida, e mais ninguém.
- Sente-se mais aliviado, Rafael?
- Sim, Felipe. Agradeço muito pelo carinho de vocês; sempre agem como verdadeiros irmãos, e eu na maioria das vezes não consegui entender isso. Sei que estão protegendo nossos pais não dizendo que já sabem que Marcelo é casado.
Júlia e Felipe o encararam surpresos.
- Por que acha que sabemos?
- Porque os vi saindo do trabalho de Carlos. Imaginei que foram buscar informações sobre Marcelo, e Carlos sabe que ele é casado.
- Espere aí, Rafael. Como sabe disso, e desde quando?
- Mais ou menos um mês atrás tomei conhecimento de que Marcelo é casado através do primo de um amigo meu lá do clube. Ele mora na capital e viu Marcelo aqui algumas vezes; reconheceu-o e me contou que ele é marido de um parente distante de sua namorada.
- Por que não nos disse?
- Falei para Marília. Tentei convencê-la a desistir desse relacionamento, mas ela ignorou e me proibiu de comentar com quem quer que fosse.
Júlia e Felipe ficaram atônitos.
- Marília sabe que ele é casado?
- E mesmo assim continuou com essa loucura! - completou Felipe.
- Foi por isso então que ela se recusou a ir conosco falar com Carlos e disse que nada a faria mudar de opinião. Agora estou entendendo.
- Rafael, Marcelo tem conhecimento de que ela sabe que é casado?
- Não, Júlia. Ele pensa que a está enganando, nem imagina que nossa irmã sabe a verdade. Marília descobriu logo depois que ele foi embora; disse-me que não falaria nada para não estragar seus planos.
- Marília enlouqueceu! - exclamou Júlia, indignada.
- Ela não gosta dele; quer apenas usá-lo para alcançar seu objetivo.
- Por favor, Rafael, não me diga mais nada, estou absolutamente boquiaberta.
- Viu por que eu sentia tanta culpa Júlia?
- Já conversamos sobre isso, Rafael.
- Aprendi a lição. De agora em diante pretendo levar minha vida com mais prudência.
- Até os sonhos, Rafael!
- Entendi Júlia, até os sonhos.
Antes de chegarem em casa, Júlia e Felipe contaram a Rafael a conversa que tiveram com Carlos e a tentativa deles de fazer Marcelo desistir de Marília.

CAPÍTULO VII - CONSOLO EM MEIO À TEMPESTADE

Assim que entraram em casa depararam com Marília deitada preguiçosamente em um sofá, lendo uma revista. Apesar de ver os irmãos, a jovem não esboçou nenhuma reação, e continuou com sua leitura. Júlia inconformada com o que acabara de saber por Rafael, aproximou-se dela e lhe disse:
- Tudo bem, Marília?
A irmã respondeu-lhe apenas com um sussurro:
- Tudo...
Impaciente, Júlia retrucou:
- Precisamos conversar. Pode ser agora?
- Não. Não tenho o menor interesse em conversar com você.
- Mas eu tenho, e vou conversar agora. Se não quiser responder, é um problema seu, mas vai ter que me ouvir.
Marília fechou a revista, sentou-se e encarou os irmãos.
- O que será que a dona do mundo quer me dizer com tanta pressa? Mais sermão? Se for, vou logo dizendo que estou farta da sua "sabedoria", ou, melhor, da sua mania de acreditar que sabe tudo, que entende tudo e pode ir falando o que quer para as pessoas sem considerar que elas podem não querer falar com você.
Júlia, impaciente e sem ligar para o que Marília falava, respondeu:
- Não me interessa o que pensa, porque quem está farta de sua leviandade e falta de respeito com nossos pais e com você mesma sou eu, minha irmã. Será que não consegue ver a realidade das coisas? É impossível acreditar que você, por livre e espontânea vontade, se lança em um abismo, correndo todos os riscos de estragar sua vida, talvez para sempre... Não receia o sofrimento que a espera?
- Do que está falando? Que sofrimento é esse, Júlia? De onde você tirou isso? Como estragar a minha vida se estou a um passo de conquistar meu espaço no mundo em que escolhi para viver?
- Tudo bem, mas a que preço, Marília? Será que para conseguir o que quer é válido se unir a um homem casado, destruindo sua vida e a de uma família já constituída? É esse o preço de sua ambição?
Marília empalideceu. Com ódio no rosto transfigurado, olhou para Rafael.
- Foi você, seu traidor! Jamais esqueço quem me trai, e você vai me pagar muito caro por isso.
- Não foi ele quem nos contou Marília.
- Quem foi então, se só Rafael sabia?
- Carlos também sabe. Eu lhe disse que iria falar com ele. Convidei você para irmos juntas, mas não quis. Agora entendo por que: teve medo de se trair e percebermos que você já sabia, não foi isso?
- E como soube que eu já tinha conhecimento desse detalhe, se nem Marcelo sabe?
Rafael adiantou-se e enfrentou a irmã.
- Marília, esse é o pormenor mais importante, e fui eu quem contou a Júlia e Felipe. Falei para eles que você já sabia, mas que não se importava. Disse também que Marcelo nem desconfia que você tem conhecimento da situação dele.
- Eu sabia que não podia confiar em você!
Felipe, dirigindo-se à irmã, lhe disse:
- Você perdeu mesmo a noção exata das coisas. Está tão preocupada consigo mesma que não consegue imaginar o mal que faz a si própria e aos nossos pais.
- Pode me explicar o que foi que eu fiz?
- Posso dizer o que está fazendo com nossos pais, porque, quanto a você, aprenderá com o tempo.
- Tudo bem, e o que fiz a eles?
- Papai passou mal no trabalho. Sua pressão subiu muito em virtude do desgosto que você não percebe que está causando. Mamãe ficou com ele, e, enquanto os dois sofrem você fica aí, mais preocupada com o ódio que sente de todo o mundo.
Marília calou-se. Inesperadamente, começou a chorar.
- O que foi agora, Marília?
- Eu não queria que nada disso acontecesse. Bastava apenas que vocês se esforçassem para compreender a importância que tem para mim essa oportunidade de ir para a capital com Marcelo, mas nem acreditam que ele me ama!
- Mesmo que ele a ame, Marília: o rapaz é casado e não lhe contou, portanto está enganando você. E tem mais: você está anulando seus sentimentos, porque não o ama. Assim, também o está enganando. Está usando Marcelo e destruindo o casamento de uma pessoa que, como você, acreditou no sonho de uma união. Não se pode construir a felicidade passando por cima dos sentimentos dos outros, querida, e é o que você pretende fazer.
- Quero que me perdoem, mas é mais forte que eu. Tenho que ir preciso acreditar que tudo dará certo. Afinal, Marcelo é um bonito rapaz, e, para completar, é rico. Tente entender, Júlia, talvez seja a única oportunidade que terei e não posso desprezá-la. Sei que vocês jamais me entenderão, mais o dia em que eu estiver muito rica... Creio que aí vocês irão me aceitar.
- Por que acha isso?
- Porque o dinheiro compra tudo, Júlia, até o esquecimento das pessoas. Acho melhor encerrarmos esse assunto.
- E nossos pais, o que irão sentir ao saberem que está morando com um homem casado?
- Se vocês não contarem, eles não saberão, e assim sofrerão menos.
- Marília, estou perplexa. É difícil acreditar que você se tornou essa pessoa egoísta, insensível à dor alheia, principalmente à dos seus pais.
- Se para você é difícil acreditar, é muito simples: não acredite, pois para mim não fará a menor diferença. O que não posso e não quero é abdicar dos meus sonhos por causa do que pensam os outros, mesmo os meus pais, que para mim estão parados no tempo, querem que tudo seja como na época deles e não aceitam que as coisas mudaram.
- Marília, percebe que fala dos nossos pais como "os outros"? Eles são a nossa família! Isso para você não conta?
- Conta, e muito. Lamento decepcioná-los e ser a causa das aflições deles, mas deve concordar que não posso abri mão dos meus desejos e minhas ilusões.
Escutaram o barulho da chave na porta da frente.
- Eles estão chegando - disse Felipe. - É melhor pararmos com essa conversa.
- Tem razão. Papai não pode sofrer mais aborrecimentos, pelo menos por uns dias. Mais tarde pensaremos numa maneira mais tranqüila de esclarecer tudo isso.
Marta e Antunes entraram, e Marília foi ao encontro do pai. Abraçou-o, desconcertada, e disse-lhe:
- Perdoe-me, pai, não tive a intenção de magoá-lo tanto.
- Tudo bem, filha - foi à resposta de Antunes.
Temendo que acontecesse de novo o mesmo falatório a respeito da decisão de Marília, Marta logo definiu a situação que considerava melhor para o marido:
- Meninos, cada um que procure o que fazer. O pai de vocês precisa descansar. - Virando-se para o marido, completou:
- Querido, prefere ficar aqui na sala ou no nosso quarto?
- Prefiro subir, Marta. Sinto-me cansado, e gostaria que ninguém me incomodasse, com exceção de você.
- Fique tranqüilo, não deixarei que ninguém o incomode. Vocês ouviram, não?
- Sim, mãe - todos responderam.
Três dias se passaram desse episódio. Embora Júlia tivesse esperado com ansiedade, Luiz não a procurara mais. O telefonema esperado não acontecera. Pensamentos de angústia tomavam conta do seu íntimo, trazendo-lhe na maioria das vezes a desesperança. Nessas horas conversava consigo mesma, buscando uma solução que não encontrava:
- Começo a crer que é bobagem lutar para conquistar o amor de Luiz. Há anos venho esperando, mas acho que ele jamais irá me enxergar como uma possível namorada, alguém que possa vir a amar e com quem pretenda construir uma família. Serei sempre o ombro amigo que escuta e consola, enquanto Marília permanecerá sempre em seu coração como uma sombra entre nós dois.
O som do telefone trouxe-a de volta à realidade. Mais uma vez, independente de sua vontade, seu coração disparou. Correu a atender.
- Júlia? - disse uma voz ainda pouco conhecida. - Aqui é o Carlos.
Novamente a decepção.
- Oi, Carlos, tudo bem? Tem notícias para mim?
- Tenho Júlia. Cumpri o prometido, e quero colocá-la ciente do que foi minha conversa com Marcelo.
- Claro. Que bom que você conseguiu. Quando podemos nos encontrar?
- Se estiver bom para você, por mim estaria perfeito se fosse agora.
- Para mim também. Mas terei que ir sozinha, porque meus irmãos não estão em casa. Quer que eu vá até o seu trabalho?
- Se não se importa, prefiro que não seja aqui. Pode ser na praça em frente à igreja daqui quinze minutos?
- Estarei lá.
Meu Deus permita que tenha dado tudo certo. Meus pais não vão agüentar o desgosto de ver Marília morando com um homem casado. Lembrando-se de Amélia, solicitou auxílio através do pensamento sincero: Querida avó, meu espírito protetor, alivie a angústia de minha alma e proteja minha irmã. Não demorou e o auxílio se fez presente pela inspiração de Amélia:
- Júlia, a partir do momento em que o coração se enche de certeza de que a Terra é um lugar temporário, passamos a aceitar as aflições da vida com mais serenidade e equilíbrio, resultando disso a paz de espírito que ameniza todas as dores. Deus não quer ver nenhuma de Suas criaturas sofrendo, mas respeita a vontade de Seus filhos porque deu a eles o livre-arbítrio. - E continuou: - Marília está agindo de maneira imprudente e sofrerá as conseqüências desses atos levianos. Não se esqueça que todos colherão os frutos da árvore que plantar. Podemos inspirar o caminho seguro inspirando o bem e a prudência, mas não mudar a rota traçada pelo homem, porque respeitamos a vontade de cada um.
Meu Deus pensou Júlia, devo concluir que nada deu certo. Embora triste, despediu-se de sua mãe e foi ao encontro de Carlos. Aproximando-se do local, Júlia avistou o amigo sentado em um banco, esperando-a.
- Olá, Carlos!
- Oi, Júlia. - O rapaz se levantou e a cumprimentou, gentil, com um ligeiro beijo no rosto.
- Carlos, estou muito ansiosa para saber o que aconteceu. Sinto um aperto no peito, como um pressentimento de que as notícias não são boas.
Carlos olhou penalizado para a amiga e convidou-a a sentar.
- Sinto muito, Júlia, mas você tem razão; as notícias de fato não são boas.
- Pode falar.
- Conversei longamente com Marcelo.
- E aí?
- Ele não está disposto a abandonar Marília. Afirmou estar apaixonado por ela e a quer junto dele.
- Mas confirmou que é casado?
- Confirmou. Disse ter dois filhos ainda pequenos, mas que não via nenhum impedimento de manter um relacionamento com Marília.
Indignada, Júlia exclamou:
- Céus, o que ele pretende na realidade fazer com Marília?!
- Levá-la para um apartamento mobiliado com requinte e viver com ela.
- Como uma amante.
- Fico constrangido em dizer, mas foi o que ele disse.
- Não é possível que Marília concorde com isso!
- Júlia, é preciso avisá-la, pois está sendo enganada por Marcelo.
Envergonhada, Júlia não ousou dizer a Carlos que Marília sabia da condição de
Marcelo e não se importava. Ela também o estava enganando, pois queria apenas o sucesso que acreditava poder alcançar ao lado dele, não se importando com o preço que teria que pagar. Angustiada e mal podendo suportar a verdade, Júlia deixou que lágrimas copiosas descessem pelo seu rosto. Carlos delicadamente puxou-a para si e encostou sua cabeça em seu ombro, passando as mãos em seus cabelos e dando-lhe o apoio necessário naquele momento.
- Não fique assim desesperada, acalme-se. Pode ser que Marília, ao saber da verdade, desista dessa loucura.
Enxugando o pranto com o lenço oferecido por Carlos, Júlia respondeu:
- Nada irá fazê-la mudar de idéia, Carlos, tenho absoluta certeza disso.
- Não sei o que dizer Júlia, apenas afirmar que pode contar com minha amizade para o que precisar.
- Sei disso, e agradeço de coração. Agora, se você não se importa, gostaria de ir para casa. Preciso pensar em um jeito de contar aos meus pais. Mais uma vez, obrigada pelo seu empenho em nos ajudar.
- Lamento não ter conseguido trazer-lhe boas-novas, mas Marcelo não aceitou nenhum dos meus argumentos. Está mesmo decidido.
- A culpa não é sua, fez o que estava ao seu alcance. O resto é com Marília. Somente ela poderá determinar o que quer para sua vida.
- Tem razão. Em todo caso, estarei sempre à disposição para o que vocês precisarem.
- Tenho certeza de que sim.
Despediram-se. Júlia, a passos lentos, retornou à sua casa. Quatro meses se passaram. Marcelo, como prometera, foi em busca de Marília, que, alheia aos conselhos de sua família, resolvera firmemente seguir o namorado. Antunes, em uma última tentativa de evitar a insensatez da filha, proibira-a de sair de casa, mas Marília, no dia combinado com Marcelo, fugira e fora ao encontro do rapaz, convicta de que com esse gesto iniciaria uma nova vida, com a qual sempre sonhara cheia de brilho e luxo. Seu pai se recuperava de um infarto que o surpreendera dois dias após sua partida. Para ele fora difícil - quase impossível - aceitar a filha envolvida com um homem casado destruindo um lar onde havia duas crianças, e deixando para trás os valores que aprendera desde criança.
- Não foi isso o que ensinamos Marta - dizia sempre a esposa. - O desgosto é muito grande, a sensação de ter falhado machuca minha alma e é difícil suportar.
Realmente não agüentara. Poucas vezes tocara no nome de Marília, e esta, entregue no seu novo mundo, esquecera-se de sua família; não enviava nenhuma notícia. Embora a tristeza machucasse seus corações, Marta e Antunes tentavam reorganizar suas vidas. Entenderam que nada mais podiam fazer, e Marília, passando por cima de tudo, conseguira o que queria. Luiz poucas vezes procurara Júlia, que, desiludida, esforçava-se para eliminá-lo de vez de seu coração.
- Preciso entender que não posso mudar o coração de Luiz, pois ele irá sempre pertencer a Marília, talvez por toda a vida - dizia a si mesma. - É necessário aprender a esquecê-lo e direcionar minha vida afetiva para outro caminho.
Nesses momentos, não conseguia impedir que lágrimas descessem pelo seu rosto. Sua amizade por Carlos se fortalecia a cada dia por conta da compreensão e do ombro amigo que lhe oferecia, assim como ela mesma fizera com Luiz, ou seja, mostrando-lhe que é necessário enxergar uma alternativa para, quem sabe, encontrar um novo amor. Quando isso acontecia, Júlia pensava: A posição se inverteu. Hoje sou eu quem não está aceitando o que não se pode mudar. Entregava-se ao trabalho humanitário e liderava o projeto que beneficiava as crianças da região. Marília, assim que chegou à capital, se instalou no confortável apartamento alugado por Marcelo. Ansiava por começar seu trabalho de modelo, acreditando que tudo aconteceria como um passe de mágica. Rodopiava feliz por entre os móveis elegantes, mal acreditando que tudo que tão ardentemente desejara se tornará real. Após dois dias de sua chegada, Marcelo veio no final da tarde, elegante, perfumado e segurando nas mãos um ramalhete de rosas vermelhas e uma garrafa de champanhe.
- Nossa! - exclamou Marília, entusiasmada. - O que vamos comemorar com tanto requinte? Já sei, não precisa nem falar. O início da minha carreira; é isso?
Marcelo aproximou-se mais de Marília, pegou-a fortemente nos braços e lhe sussurrou:
- Não, querida, vamos comemorar o início do nosso casamento.
Beijou-a com ardor, externando toda a sua paixão. Surpresa, Marília mal conseguia corresponder ao furor do namorado, e foi tomada por um forte receio.
- O que está querendo dizer, Marcelo? Você nunca me beijou assim.
- Por favor, Marília, não vá agora se fazer de desentendida, posar de santinha. Você teve dois dias para arrumar suas coisas e se adaptar à nova casa. Agora o momento é só nosso, vamos pensar só em nós dois.
Marília se apavorou.
- Mas eu pensei que...
- Pensou o quê? Não me diga que achou mesmo que eu a trouxe para a capital instalei-a neste confortável apartamento apenas para iniciá-la na carreira de modelo.
Diante do silêncio dele, ele voltou a perguntar:
- Foi o que pensou?
Completamente perdida, Marília, por segundos, reviveu tudo o que dissera à sua irmã e tudo o que ouvira dela. Sempre soube que seria assim. Conhecia a verdadeira intenção de Marcelo. Então, por que chegada a ora estou fraquejando? Impaciente, Marcelo tornou a falar:
- Você não me respondeu!
Diante da indecisão da namorada, ele, irritado, continuou:
- Preste muita atenção. Não me faça de bobo, e é melhor fazer o que eu quero. Não gosto de ser contrariado, e se isso acontecer...
- Se acontecer... - repetiu Marília.
- Aconselho-a a não pagar para ver.
Sem esperar resposta, Marcelo a pegou no colo e levou-a para o quarto. Tinha início para Marília uma longa caminhada de desilusão. Depois de tudo consumado, Marília sentiu-se vazia, como se aquele ato que ela julgara saber controlar tirasse da sua alma qualquer possibilidade de amar alguém. Deitada ao lado de Marcelo lembrou-se de Luiz. Que diferença, meu Deus! Um é só amor; o outro, apenas desejo. Esse é o preço que devo pagar. Olhou para Marcelo, adormecido ao seu lado. Ao contrário do que você pensa, meu caro, quem vai dominá-lo sou eu. Você não me conhece, portanto não sabe com quem está lidando. De você quero apenas o dinheiro e o que poderá me proporcionar.
Levantou-se e foi beber o último gole de champanhe, fazendo um brinde para si mesmo.
- Ao meu sucesso!
E completou:
- Se tem que ser assim... Que seja.
A rotina se estabeleceu. Marcelo a visitava três vezes por semana. Quando questionado do porquê de somente comparecer no período da manhã ou da tarde, ele respondia a mesma história ensaiada havia tempos:
- Querida, é impossível, para mim, sair à noite ou mesmo dormir com você. Já lhe disse que cuido de minha mãe, que é enferma e mora comigo; não posso deixá-la sozinha. A pessoa que toma conta dela permanece em casa até as dezoito horas. Você compreende, não?
Marília sorria e, enquanto afirmava que entendia sua posição e o admirava pelo bom filho que era, pensava: Seu mentiroso ordinário! Acho que está me enganando, mas quem o engana sou eu. Aceito isso porque você me é útil, mas chegará o dia em que lhe darei um chute muito bem dado. Conscientizando-se da demora de iniciar sua carreira, Marília perguntou-lhe:
- Marcelo, estamos juntos há algum tempo e nada aconteceu para eu começar a trabalhar. Você conseguiu o que queria, mas eu ainda não. Pode me dizer quando irá me levar a agência para fazer os testes?
Sempre versátil nas mentiras que contava, Marcelo de pronto afirmou:
- Foi bom mesmo você tocar nesse assunto, pois queria falar-lhe sobre isso.
Marília se alegrou:
- Finalmente!
- Estive conversando com Daniel, e chegamos à conclusão de que, para você, o melhor é a agência de Londres com a qual mantemos um negócio. Se não se importar de ter que viajar todos os meses para tirar as fotos, poderemos investir na carreira internacional. O que acha?
Marília, sempre ambiciosa, nada questionou e imprudentemente disse:
- Londres! Marcelo, você disse Londres? Para mim está mais do que ótimo, é muito mais do que eu esperava. Fechado, faça o que achar melhor.
Por dentro, Marcelo sorriu. Ela caiu. Eu apostava nisso. Vai ser muito útil.
- Nesse caso, vou acertar com Daniel todos os detalhes, entrar em contato com a agência de lá, e creio que não haverá nenhum problema. Em breve você estará iniciando seu trabalho, Marília.
Ela correu a abraçar o namorado.
- Você só precisa confiar em mim - disse-lhe Marcelo. Nunca faça perguntas e obedeça cegamente tudo o que lhe for instruído. Certo? Posso confiar?
- Claro, Marcelo, pode confiar em mim. Não lhe trarei nenhum problema.
- Ótimo. Deve saber como são essas agências estrangeiras, cheias de quesitos que nem sempre compreendemos, ou dos quais discordamos, mas como são elas que projetam as modelos, temos que aceitar. Se for isso mesmo o que você deseja...
A felicidade de Marília era tão grande que nem prestava atenção às palavras dele.
- Marcelo, nada me importa, faço o que quiserem. Como disse, pode confiar em mim, pois farei tudo o que você quiser. A mim só interessa viajar para Londres ou para qualquer outro lugar que for necessário. Você sempre soube que é tudo o que mais quero.
Como é ingênua e imprudente essa menina! Dá a alma para conseguir o que quer. Exatamente como eu disse a Daniel, tempos atrás, Marília é perfeita para nosso objetivo, ambiciosa demais. É só lhe dar um pouco de brilho e ela cai como um patinho. Voltou a dizer para Marília, alimentando seu ego vaidoso e egoísta:
- Referente a outros lugares, veremos mais tarde. Pode ser que aconteça, não sei ainda. Tudo irá depender de como você se sairá. Se for positivo, estudaremos a possibilidade. Tudo bem?
Marília nem sequer ouvia o que Marcelo falava. Já se via em Londres sendo alvo de todos os olhares e muita bajulação.
- Não me importa.
E rodopiou pela sala feito uma criança inconseqüente.
- Marília, é importante que, enquanto aguarda o momento de viajar, cuide bem desse rosto lindo e desse corpo adorável que é só meu.
Preciso distraí-la enquanto montamos todo o esquema para que não haja erros, pensava Marcelo. Mais uma vez, enlaçou a namorada com paixão. Marília alimentava o desejo de Marcelo, acreditando que enquanto o satisfizesse ele estaria em suas mãos. Ao ser beijada com ardor pelo namorado, passava-lhe pela mente: Aproveite Marcelo, porque não será por muito tempo. Assim que as portas do sucesso se abrirem, partirei sozinha rumo ao meu prestígio e popularidade. Quanto a você, continuará tomando conta da sua "mãe" doente e de seus filhos. Por ora, o melhor é aproveitar o momento. E entregava-se ao namorado, não se importando com a violência moral que provocava em si mesma. Marta procurou Júlia em seu quarto e disse-lhe, preocupada:
- Filha, ando muito aflita com seu pai.
- Por que, mãe, o que está havendo?
- Tenho observado que ele anda muito quieto. Quase não fala e, quando o faz, é por monossílabos. Receio que esteja acontecendo algo mais grave. Antunes já teve um infarto, temo que possa se repetir.
- A senhora está me assustando!
- Desculpe filha, mas realmente estou preocupada.
Júlia levantou-se apressada e disse resoluta:
- Mãe, não vamos nos apegar a suposições.
- O que quer dizer?
- Que vamos agora mesmo levá-lo ao médico para descobrirmos o que há.
- Tem razão.
Foram até o quarto de Antunes e o encontraram deitado, com o olhar vago em direção ao teto. Júlia correu a abraçá-lo. Antunes continuou imóvel, sem nenhuma reação. Júlia disse-lhe, carinhosa:
- Pai, o que está havendo com o senhor? Por que está assim?
Diante do silêncio dele, Júlia elevou o pensamento ao Mais Alto, clamando por auxílio: Jesus, Divino Amigo, tenha compaixão de nós. Se for da sua vontade, alivie nossa aflição; mostre-nos o caminho a seguir neste momento de ansiedade. Confio que o auxílio virá, e aceito seu desejo, porque sei ser justo. Amélia, cumprindo sua tarefa de anjo protetor, colocou-se ao lado de Júlia, inspirando-a. A jovem, após alguns poucos segundos, como se um véu que a impedisse de raciocinar com clareza fosse retirado, falou para Marta:
- Mãe, senti em meu coração uma intuição que considero a mais viável para o caso de papai.
- Como assim?
- O que papai tem, sem dúvida, é emocional, uma imensa tristeza. Não me parece ser patológico, ou seja, caso para o médico. Acho que devemos levá-lo à asa espírita. Lá ele receberá um passe, terá o benefício da água fluidificada e receberá orientação para adquirir forças a fim de aceitar o que tanto o está machucando. O que acha?
- Acho que você pode ter razão. Mesmo porque, se houver necessidade de levá-lo ao médico, eles com certeza orientarão.
- Isso mesmo, mãe. Acredito que papai deve estar sentindo uma tristeza muito grande, e as orientações da espiritualidade lhe serão valiosas.
- Quando poderemos levá-lo? Não vejo motivo para não ser hoje mesmo. É bom não adiar a energia salutar, as palavras de conforto. Ele, sentindo-se amparado, terá mais coragem para enfrentar o que não podemos mais mudar.
- Tem razão, filha, vamos sim.
Júlia aproximou-se de seu pai e deu-lhe um beijo.
- Pai, lute contra o desânimo, confie que tudo se resolve quando entregamos a Jesus nossas dores, confiamos no auxílio divino e nos esforçamos para vencer nossos problemas. Na casa espírita o senhor será amparado, mas é necessário compreender que a luta é sua, e é o senhor quem deve se esforçar para melhorar. Está me entendendo?
Antunes balançou a cabeça, dando sinal de que entendera.
- Gostaria de ir ao centro espírita?
Mais uma vez ele fez que sim.
- Por que não responde com sua voz, meu querido? - perguntou Marta.
Diante do silêncio do marido, beijou-lhe o rosto.
- Não se preocupe Antunes, tudo voltará ao normal.
- Então, mãe, iremos hoje mesmo. A reunião se inicia às vinte horas.
- Tudo certo, Júlia, iremos hoje.
- Eu também gostaria de ir - ouviu-se a voz de Felipe.
- Também vou - foi à vez de Rafael, que desde a partida da irmã sentia em seu coração o peso da culpa por não ter revelado aos pais sua intenção.
- Tudo bem - disse Marta aos filhos. - Iremos todos.
A cabeça de Antunes era povoada de pensamentos de tristeza e melancolia. No decorrer do tempo, sua dificuldade em aceitar a escolha de Marília aumentava, tornando-se insustentável.
- Ela irá sofrer - dizia a si mesmo constantemente. - Marta e eu com certeza erramos em algum ponto. Não é possível tanta insensatez, tanta obstinação em querer realizar o seu sonho de uma maneira imprudente, a qualquer preço.
Seu sofrimento era tanto que nem orar pedindo auxílio conseguia. Entregava-se rigorosamente ao próprio sofrimento e decepção sem dar a si mesmo a chance de emergir da dor que o sufocava e o mantinha alheio à vida, que seguia o seu curso. Às vinte horas em ponto, Marta e Antunes entravam na casa espírita acompanhados de seus filhos. Lugar simples e discreto, onde apenas se via uma tela retratando o rosto de Jesus com os dizeres: "Jesus te ama!". Uma mesa com alva toalha era enfeitada com um vaso de flores brancas e perfumadas, compondo o ambiente daquela casa pequena no tamanho, mas gigante na prática do bem, que exercitava os ensinamentos de Jesus com total fraternidade. Acomodaram-se entre os presentes e em silêncio aguardaram o início da reunião. Sem demora, o orientador iniciou a prece de abertura e leu um trecho de O Evangelho Segundo o Espiritismo, seguido de edificante explanação sobre ele. Ao final disse:
- Deus é bondade suprema, e terá misericórdia de todos os seus filhos. Mas Ele nos dá a liberdade de querer ou não essa misericórdia. Quando clamamos por Ele com sinceridade absoluta, Seu auxílio vem de imediato, de uma forma ou de outra. Nenhum de nós será abandonado, mas seremos respeitados no nosso desejo, mesmo se o que queremos for contra nós mesmos. Inseguranças todos têm medo também, mas é preciso acreditar que a felicidade é uma conquista nossa que alimenta nossa alma com valores verdadeiros. Não devemos exigir demais de nós, mas também não se pode cair na lentidão, é preciso encontrar o equilíbrio.
(A Essência da Alma - Irmão Ivo)

- Meus irmãos - continuou o orientador -, quando não podemos mudar a situação que nos aflige, quando alguém machuca nossa alma, devemos orar ao
Senhor, emitir energia positiva para essa pessoa que imprudentemente nos magoou, e não percebendo que machuca a si mesma violenta sua integridade espiritual. O prudente é não cairmos no desânimo, na melancolia, que nos levam à enfermidade. Necessário se faz respeitar o livre-arbítrio de cada um, porque o Criador respeita, e quem somos nós para questionar ou mudar as leis divinas?
Marta apertava a mão de Antunes querendo, com esse gesto, dar força ao marido, que mal conseguia agüentar sua dor. Antunes fitava-a, deixando transparecer em seu olhar a timidez por sua fraqueza. O orientador prosseguia:
- Deus concede a seus filhos a liberdade de escolha, mas deixa-lhes toda a responsabilidade de seus atos e conseqüências que decerto virão. É preciso distinguir o que é a vontade de Deus e o que é a vontade do homem. Devemos amar e auxiliar o nosso próximo o quanto pudermos, mas não esquecer que não temos a capacidade de modificar nada no coração do homem se este não permitir ou não quiser.
Após a explanação, convidou os presentes a se beneficiarem com a energia do passe magnético, finalizando com a oferta da água fluidificada. Os presentes se retiraram e as luzes se apagaram, mas no coração de cada um a chama da esperança permaneceu acesa; e com Antunes não foi diferente. No caminho de volta, antes que qualquer um fizesse algum comentário, Antunes se antecipou:
- Por favor, não digam nada. Amanhã conversaremos.
Marta e seus filhos, sem dizer nenhuma palavra, entenderam que a esperança renascia no coração de Antunes. Seguiram seu caminho, felizes.

A esperança é a filha dileta da fé. Ambas estão uma para a outra como a luz reflexa dos planetas está para a luz central e positiva do sol. A esperança é como o luar que se constitui dos bálsamos da crença. A fé é a divina claridade da certeza.
(O Consolador - Chico Xavier - espírito Emmanuel - questão 257)

CAPÍTULO VIII - A DURA REALIDADE SE REVELA

Júlia, acompanhada de Felipe, cruzava a rua onde se localizava a firma na qual Luiz trabalhava. Assim que a avistou, Luiz pegou um jornal colocado em cima de sua mesa e, segurando-o nas mãos, rápido se aproximou da jovem.
- Júlia! - gritou seu nome com a voz um pouco alterada.
Ela se assustou com a afobação que tomava conta dele.
- O que será que aconteceu para Luiz estar assim tão ansioso, Felipe?
- Nem imagino, mas ele está mesmo bastante alterado.
- Júlia! - repetiu Luiz.
- O que foi Luiz, por que está desse jeito?
- Veja você mesma. - E ofereceu-lhe o jornal.
Júlia pegou-o e, ao abrir, teve um impacto.
- Meu Deus, não posso crer! Ela conseguiu!
Felipe, tirando das mãos de Júlia o periódico, pôde verificar com os próprios olhos a causa de tamanho espanto. Marília, em uma foto bem elaborada, mostrava seus lindos traços acompanhados dos dizeres: "A mais nova aquisição do mundo da moda. A dona deste belo rosto chama-se Marília e é a nova musa das passarelas, a sensação do momento".
- Ela conseguiu! - Júlia tornou a dizer.
Mas a que preço? Pensou.
- Vocês não acham que foi muito rápido? - perguntou Luiz. - E tão estranho tudo isso acontecer assim de uma hora para outra...
Felipe, com a intenção de abortar qualquer insinuação maldosa em relação à sua irmã, respondeu:
- Era de esperar que fosse rápido Luiz. Quando Marília se foi, tudo já estava devidamente combinado com a agência. Ela havia até mesmo enviado as fotos. Enfim, acredito que não deve ter acontecido nenhum problema.
Luiz ponderou por alguns instantes e por fim concordou:
- É, tem razão. Desculpem-me, estou enciumado e desesperado por saber que a perdi de vez. - Voltou-se para Júlia.
- Gostaria de conversar com você, estou precisando de sua ajuda. Podemos nos encontrar?
Júlia surpreendeu a si mesma ao dizer:
- Não, Luiz, não podemos.
O rapaz se espantou com a resposta inesperada.
- Júlia, não estou entendendo você. Sempre me ajudou a superar meus maus momentos. Por que isso agora?
- Porque não sou sua babá, Luiz. Cansei de ser a sua lixeira onde você joga seus problemas para que eu resolva um a um.
- Júlia! - Luiz arregalou os olhos.
- É isso mesmo. Pensei que fosse no mínimo meu amigo, mas me enganei. Para você sou aquela que só é lembrada nos seus momentos de busca, nas suas intermináveis crises existenciais.
- Mas sempre achei que gostasse de mim!
- Infelizmente gostei mesmo, Luiz, e muito. Mas hoje consigo enxergar que para você não passo de uma bengala para amparar seus passos indecisos e sem atitude. Mereço mais que isso. Você insiste em continuar se fazendo de vítima, chorando por Marília, não sei até quando. Eu quero viver tendo ao meu lado alguém que, como eu, possui objetivos mais nobres do que apenas lamentar.
- Mas eu estou sofrendo, Júlia, é difícil entender isso?
- Sofre porque gosta de sofrer. Não permite a você mesmo nenhuma outra chance que não seja chorar por algo que não terá mais. Cheguei a crer que poderia haver um futuro para nós dois, sonhei com isso, mas me enganei; você só me procura quando se sente acuado, perdido, sem saber o que fazer com sua saudade, e eu não quero passar a minha vida sendo substituta.
Felipe olhava Júlia com admiração. Até que enfim, minha irmã. Custou a perceber o egoísmo de Luiz. Luiz tentou ainda uma vez convencer Júlia:
- Ouça-me, vamos nos encontrar e começar de novo. Tudo pode ser diferente.
- Não.
- Por quê?
- Porque não tenho mais interesse algum por você. Alimentei durante anos um sentimento, mas graças a um bom amigo com o qual tenho saído dei a mim mesma uma nova chance de ser feliz.
- Ainda não. Mas não amar você já é um bom começo.
- Está sendo muito radical.
- Não, estou sendo prudente e sábia ao perceber que com você só teria mágoas. Prezo muito a mim mesma para me transformar em uma pessoa amarga. Quero ser feliz e promover a felicidade alheia, e isso só é possível quando temos o coração limpo, livre e cheio de esperança na vida presente e futura.
Júlia se despediu de Luiz e, de mãos dadas com Felipe, seguiu rumo à sua casa.
Vendo-a distante, Luiz concluiu: Fui um tolo.
- Júlia, qual acha que será a reação de nossos pais quando virem à foto de Marília?
- Não sei Felipe. Espero que não sofram tanto, principalmente papai, que passou por um momento difícil e agora está mais conformado. Por enquanto não diremos nada. Vamos esperar; em algum momento com certeza irão ver.
Ao entrarem em casa avistaram Marta e Antunes sentados próximos um do outro e segurando nas mãos o jornal com a foto da filha. Não perceberam a chegada dos filhos. Júlia sussurrou para o irmão:
- Que Jesus proteja nossos pais, Felipe; eles estão sofrendo muito!
Imprimindo um ar de alegria à própria voz, Júlia disse, sorrindo:
- Vocês viram como Marília está linda nessa fotografia?
- Sim, muito linda - concordou Antunes. - Mas me pergunto: a que preço? O que teve que fazer para conseguir tão rápido um espaço em um jornal importante e
se consagrar como uma musa internacional? O que me preocupa são os meios que ela possa estar empregando para conseguir essa projeção.
Carinhosa, Júlia abraçou o pai.
- Papai, não fale assim, está se magoando. Isso era previsto, iria acontecer mais cedo ou mais tarde. Não foi para realizar o seu sonho que ela nos deixou? Então,
Marília conseguiu, temos que nos acostumar. Ela não deve estar fazendo nada de vergonhoso. Essa é a primeira de muitas outras que com certeza virão.
- Júlia tem razão, Antunes, vamos dar esse caso por encerrado, porque não podemos fazer mais nada por nossa filha a não ser orar e pedir proteção dos bons espíritos e a bênção de Jesus.
- Mamãe tem razão, pai.
- Eu sei Felipe, Marta está coberta de razão, mas tudo isso me causa muito sofrimento.
- Preocupo-me com você, Antunes. Não quero vê-lo de novo entrando em depressão. O que temos que fazer é tentar levar a nossa vida com alegria e fé em Deus, e tudo dará certo. Temos ao nosso lado três filhos que, apesar de grandes, necessitam do nosso afeto e atenção.
- Fique tranqüila, Marta, não vou me deixar abater.
- Assim é que se fala pai. - Felipe abraçou Antunes.
Mudando de assunto, Marta indagou:
- Vocês sabem onde está Rafael? Não o vejo desde cedo.
- Fique calma, dona Marta - brincou Júlia -, ele está correndo atrás de algo que deixará à senhora e papai muito felizes.
- Diga-nos o que é filha.
- Não posso pai, não vou estragar a surpresa. No entanto, posso adiantar que é uma coisa boa.
Retornaram a seus afazeres. Marta foi para o jardim molhar seus canteiros de lindas flores. Algum tempo se passou. Assim que Marta entrou novamente assustou-se com a voz alta e alegre de Rafael:
- Mãe! Pai! Onde estão vocês?
- O que é isso, Rafael, por que essa gritaria?
- Tenho uma boa notícia. Onde estão todos?
- Estamos aqui - respondeu Antunes, seguido de Júlia e Felipe.
- Vamos, Rafael, diga logo o que é.
- Arrumei um trabalho! Estou empregado, pai!
- Você o quê?
- Disse que eu arrumei um emprego.
- Mas, filho, e os seus estudos?
- Não irá atrapalhar pai, vou trabalhar só no período da tarde. Não é ótimo?
- Claro, filho, claro que é ótimo.
- Podemos saber onde irá trabalhar? - perguntou Marta.
- Fui falar com o Carlos. Ele está precisando de um rapaz para fazer o serviço de rua da firma, e contratou-me na hora. Estou empolgado!
- O que acha disso, Antunes?
- Fico feliz e aliviado em saber que Rafael mudou sua maneira de se comportar. O trabalho enobrece e não deixa tempo livre para pensar em bobagens. Tem o nosso apoio, filho. Estamos felizes por você.
- Obrigado, pai. Não vou decepcioná-los, podem ter certeza. A saída de Marília desta casa me fez reavaliar todos os conceitos que tinha. Quero uma vida diferente, junto de vocês.
Marta e Antunes se emocionaram e abraçaram o filho, felizes. Enquanto isso, na capital... Marília, irritada, dizia a Marcelo:
- Você não me disse que seria assim.
- Mas o que você queria Marília? Que tudo caísse do céu como num passe de mágica? Não era o que esperava? Não foi isso o que acalentou durante anos como sua prioridade: ver o seu rosto estampado em jornais e revistas internacionais? Pois bem, está vendo.
- Porém, não desse modo.
- Marília, tudo tem o seu preço. Você é uma garota linda, mas ninguém chega a uma carreira internacional em tempo recorde sendo uma desconhecida, como aconteceu com você, se não for por esse caminho. Ou percorre o trajeto normal para se chegar ao topo, ou seja, com trabalho, experiência, persistência e capacidade, galgando degrau por degrau, como a maioria fazem, ou envereda pelo atalho, que é o que você fez. Você escolheu.
- Não tive escolha, já estava lá mesmo.
- Podia ter recuado, mas preferiu ir até o fim. Não me venha agora com dramas de consciência. Você quis o sucesso fácil, a escolha foi sua, e agora, querida, ou é assim ou volta para sua pequena e pacata cidade natal. Você marcou seu nome e terá que conviver com isso. Aliás, não foi tão ruim assim, foi?
Marília ainda tentou convencê-lo por meio da sedução:
- Você não fica enciumado?
- No meu negócio, meu bem, quem tem ciúme ou escrúpulos se dá mal, dança.
Entendeu?
- Como assim, Marcelo, o que quer dizer?
- É bom que saiba que neste ramo quem entra não tem como sair. Você já entrou, e é melhor não questionar nada. Siga o caminho que escolheu e tente ser feliz brincando com suas fantasias e ilusões. Afinal, Marília, os homens que conhece, ou irá conhecer, serão sempre finos, elegantes e ricos.
O que será que ele quer dizer com "irá conhecer", pensou Marília. Após alguns instantes, Marcelo voltou a dizer:
- A encomenda que levou foi entregue nas mãos do destinatário?
- Claro. Já lhe disse mais de uma vez que pode confiar em mim. O que me intriga é ter que levar uma encomenda toda vez que viajo e não ter a menor noção do que se trata.
- Marília, são documentos importantes, secretos. Só colocamos esses documentos nas mãos de pessoas confiáveis. Você sabe como é a concorrência, não se pode bobear. Mas está recebendo por isso, não está?
- Estou Marcelo, estou sim.
- Então, por favor, não me faça perguntas às quais não poderei responder.
- Tudo bem, para ser sincera isso não me interessa. O que quero mesmo saber é quando irei para Londres para um novo trabalho.
- Calma mocinha. Existe um momento certo para tudo, as coisas precisam caminhar com segurança. Talvez o próximo trabalho não seja em Londres.
- Verdade, você está falando sério?! - exclamou Marília, deslumbrada.
Querendo encerrar o assunto, Marcelo disse-lhe:
- Agora... - puxou-a para si -... Vamos aproveitar esses momentos que estamos juntos. Pode ser que daqui a pouco esteja tão famosa que mal teremos oportunidade de ficarmos juntos. Quero você todinha só para mim. Feliz - em sua imprudência e leviandade, e achando estar conseguindo tudo o que queria - Marília se entregava a Marcelo sem se dar conta de em que realmente estava se transformando. Os dias transcorriam, e Marcelo, com a única finalidade de distrair a atenção de Marília, liberava quantias altas para que se deliciasse com as compras que fazia compulsivamente. Marília, em seu delírio inconseqüente, achava tudo natural. Receava questionar ou desobedecer ao namorado, temendo perder o que para ela era o sinônimo da felicidade. Sob a recomendação de Marcelo, estava sempre preparada para viajar de repente. Quando questionado,
Marcelo respondia que as grandes agências trabalham assim, ou seja, não esperam.
- Querem tudo para ontem - dizia. - Você conquistou uma posição que não pode perder. Eles apostam na sua beleza e no carisma que possui.
Marília sorria, envaidecida.
- Por mim tudo bem, não há problema. Procuro fazer bem o meu trabalho e estar sempre à altura de uma modelo internacional.
Marcelo, nessas oras, pensava: Meu Deus como pode alguém ser tão leviano a ponto de não perceber o que faz? Ela nem nota que o seu trabalho só acontece com as pessoas que indico, sempre levando documentos que nem questiona e moças bem crescidinhas que poderiam muito bem viajar sozinhas. Sua cega vaidade a impede de enxergar que nada acontece além de algumas fotos em uma revista paga para publicar. Desde que a conheci, percebi que seria presa fácil. Marília faz de tudo para viver no luxo. Voltando à realidade, respondeu:
- Assim é que se fala meu amor.
Certo dia, Marília, atendendo ao telefone, ouviu a voz do namorado:
- Fique pronta que dentro de duas horas passarei aí para apanhá-la. Consegui um ótimo trabalho para você. Como sempre, irá acompanhada de duas moças que estão se mudando para lá.
- Outra vez, Marcelo? Nunca viajo sozinha!
- Porque, como já lhe falei, confiamos em você e sabemos que as levará ao lugar aonde pretendem ir. Elas não conhecem nada por lá. Algum problema para você?
- Não, de jeito nenhum, fique tranqüilo. Só não entendo o porquê de acompanhá-las se também não conheço nada. Mas tudo bem, se é assim que quer. Afinal, aonde irei desta vez?
- Você vai ficar contente, meu amor. Irá para a Califórnia, Estados Unidos. O que achou?
- Marcelo, mal posso acreditar! Não precisa dizer mais nada, estarei pronta e ansiosa.
- Até já, meu amor.
Desligando o telefone Marília disse a si mesma:
- Não entendo Marcelo. Cada vez que viajo tenho que levar documentos, moças que nem conheço e que se mudam para lá. Poderiam ir sozinhas, já que são adultas. Bem, isso pouco me importa; enfim, não me diz respeito.
Sem querer se aprofundar na questão, ocupou-se entusiasmada com os preparativos da viagem, sonhando com o dia em que alçaria vôo sozinha deixando Marcelo e suas exigências para trás.
- Ele não perde por esperar...
Chegando ao destino traçado, as jovens foram encaminhadas - Marília e suas duas acompanhantes - para um hotel de luxo, onde um homem, segundo Marcelo lhe dissera, estaria esperando para receber o envelope que ela trazia e encaminhar as garotas para outro local. Rodolfo era elegante, bonito e galanteador. Beijando-lhe as mãos, disse-lhe com charme:
- Tenho imenso prazer em conhecê-la pessoalmente, Marília. Já me falaram de você, e sou um admirador da sua beleza, que conheci nas fotos publicadas nas revistas. Mas devo confessar que elas não fazem jus a você, pois é sem dúvida a mulher mais linda que meus olhos já viram.
Marília, mal suportando o peso de sua vaidade, que crescia a ponto de quase sufocá-la, respondeu:
- Obrigada, fico lisonjeada com suas palavras gentis. E, se me permite dizer, o senhor é também um homem muito atraente e charmoso.
- Isso me envaidece. Bem, agora vou deixá-la descansar da viagem e acompanharei essas duas moças até o lugar aonde irão se hospedar. Mais tarde, às vinte oras, virei buscá-la para jantar. Está bem assim?
- Está ótimo, senhor...
- Rodolfo. Mas, por favor, chame-me apenas de Rodolfo.
- Estarei esperando, Rodolfo.
- Imagino que deva ter trazido uma encomenda para mim, estou certo?
- Ah! É verdade. - Marília retirou da bolsa um pequeno envelope e o entregou a ele.
Rodolfo se retirou com as duas garotas. Que homem atraente, pensou Marília. Bem mais bonito e atraente que Marcelo. Talvez seja ele o caminho para eu me libertar de Marcelo e fixar residência aqui, onde tudo de bom acontece. Uma vez em seu quarto, Marília arrumou suas coisas no armário, deliciou-se em admirar o requinte do aposento e, como uma criança, relaxou na enorme e reconfortante banheira. Às vinte horas, arrumada com esmero, esperava por Rodolfo, que pontualmente tocava a campainha da suíte. Fazendo pose de uma verdadeira diva, ela abriu a porta usando seu charme e todo o poder de sua sedução. Na sua inconseqüência brincava com situações que a levariam a dolorosas lágrimas mais tarde. Assim que chegou, Rodolfo não agüentou suportar seu desejo despertado assim que viu aquela mulher sedutora, que levianamente brincava com as emoções dos homens. Fechou a porta rápido, e, antes que Marília pudesse repudiar seu impulso quase animalesco, tomou-a com violência em seus braços e beijou-a. Marília fingiu tentar repeli-lo - o que no fundo desejava fazer -, mas, imprudente, entregou se à volúpia. Quando tudo terminou, como sempre acontecia, Marília experimentou um grande vazio dentro de si. Sem que pudesse entender ou controlar, duas lágrimas rolaram por suas laces. Rodolfo, ao perceber seu estado emocional, segurou suas mãos e beijou-as.
- O que foi Marília, está arrependida? Foi tão ruim assim?
- Não sei - respondeu, angustiada. - Em certas ocasiões eu mesma não compreendo minhas reações e emoções. Desculpe-me, Rodolfo, não sei se estou arrependida ou não, mas nada tem a ver com você.
Após pensar alguns instantes, Rodolfo voltou a falar:
- Marília, isso não era para estar acontecendo com você. Imaginei que já estivesse acostumada, e até esperasse por isso. Entretanto, surpreendo-me com sua reação, que não cabe em uma pessoa como você.
- O que está querendo dizer com isso? Por que deveria estar acostumada ou mesmo esperar por isso?
Rodolfo não sabia o que responder. Compreendeu que Marília não tinha conhecimento de nada do que fazia ou do que era na verdade.
- É melhor esquecermos tudo. Vamos para o nosso jantar, estou com muito apetite. - Aproximou-se dela e, passando as mãos sobre seu rosto, disse-lhe: - Você é o máximo, garota, sabe cativar como ninguém.
Levantando-se, Marília foi se arrumar, enquanto Rodolfo se entregava aos seus pensamentos. Meu Deus estou confuso. Ou essa garota é mesmo muito ingênua - coisa em que não acredito - ou é absurdamente esperta, o que acho mais provável. Marcelo me garantiu que ela estava acostumada; deve representar muito bem, é a única conclusão possível. Vou levar esse assunto adiante. Em instantes, dirigiram-se ao restaurante. Enquanto saboreavam deliciosos pratos feitos com sofisticação, como era do gosto de Marília, ela interrogou Rodolfo sobre Clara e Laís, as duas garotas que a acompanharam na viagem.
- Não se preocupe com elas, Marília, estão bem instaladas e em plena atividade.
- Não entendi. Você disse plena atividade? Chegamos hoje, e em poucas horas já estão trabalhando?
- Você sabe muito bem que esse trabalho não requer muito tempo para que a pessoa se adapte. Deve estar acostumada. Pelo que sei, é sempre você quem as traz.
- Rodolfo, que trabalho é esse? São fotos?
Cada vez mais espantado com a reação de Marília, Rodolfo respondeu, um pouco irritado:
- Vou ser bem claro, minha querida. Ou você é muito esperta ou, desculpe-me, apenas possui um rosto bonito e nada mais.
- Não entendo...
- Marília, é difícil acreditar que é inocente nessa história toda.
Marília sentiu um tremor percorrer-lhe todo o corpo.
- Pelo amor de Deus, o que você está querendo dizer?!
- Digo que não é possível que durante todo esse tempo que trabalha com Marcelo ainda não tenha percebido quem você é na verdade e qual a sua função nesse esquema.
Marília sentiu algo indescritível, como um pressentimento de ter se metido em alguma grande encrenca. Ficou pálida.
- Se eu não sei quem sou e em que trabalho, diga-me você.
- Quer mesmo saber?
- Pode apostar que sim.
Rodolfo teve certeza de que a moça trêmula e medrosa que tinha à sua frente não sabia mesmo de nada, nem desconfiava da verdadeira atividade da agência de Marcelo. É inacreditável que ainda existam jovens tão alheias à realidade que se entregam facilmente, acreditando em promessas que não se cumprem. E nem se dão conta disso, tão envolvidas estão com a própria vaidade...
- Marília, você notou que em cada viagem sua traz uma pasta em que estão alguns documentos para serem entregues a uma pessoa específica, determinada por Marcelo?
- Claro que notei Rodolfo.
- Pois bem. Percebeu também quantas vezes trouxe com você uma, duas e até três garotas que estavam se mudando para o mesmo destino seu?
- Como poderia não notar, se sempre sou eu quem as entrego para a pessoa que nos aguarda no hotel?
- Por favor, Marília, você nunca questionou nada disso?
- O que eu deveria questionar? Marcelo sempre pediu que eu não fizesse perguntas e que apenas cumprisse suas ordens.
- Mas não achava estranho?
- Algumas vezes sim, mas...
- Mas preferia acreditar na sua ascensão como modelo internacional e não se dava conta de que suas fotos não passavam de umas poucas em revistas e jornais pagos pela agência de Marcelo. Marília, você não tem uma carreira de modelo. Não vê que suas fotos jamais foram ligadas a nenhum produto?
- Não?!
- Não. Nunca desfilou, nem fez campanhas importantes. Apesar disso acredita estar subindo na profissão.
- Mas e tudo o que dizem a meu respeito?
- Matéria paga; com o único intuito de distrair sua atenção. Nenhuma agência a conhece ou a quer.
- Por quê? - Marília se sentia mal, oprimida e envergonhada.
- Porque todas a conhecem e sabem o que você faz.
Marília achou que ia desfalecer. Rodolfo gentilmente ofereceu-lhe um copo de água.
- Beba; irá se sentir melhor.
Passados alguns minutos, Marília, se recompondo, disse a Rodolfo:
- Você começou, agora termine. Em que estou envolvida?
- Já ouviu falar em tráfico de mulheres, ou, melhor dizendo, garotas de programa?
- Você não está querendo me dizer que eu...
- Sim. Você está envolvida nesse esquema, infelizmente para você.
- Os documentos tão secretos, como diz Marcelo, estão relacionados com esse esquema?
- Estão. São documentos falsos para que as garotas não sejam encontradas.
- Quer dizer que todas essas moças que me acompanharam durante todo esse tempo estão iludidas, vieram para isso?
- Marília, ilude-se quem se deixa iludir. Todo procedimento deixa marcas, mas a obsessão pelo sucesso, o luxo, a realização dos sonhos a qualquer preço impedem o envolvido de se dar conta. Aconteceu com você. Quis o dinheiro de qualquer jeito, sabia que o preço a ser pago era alto demais, mas não recuou. Não foi em busca da verdade com receio de perder o que imaginou ter conquistado.
- Dentro desse esquema do qual está falando, quem eu sou?
- Cada vez que você viaja alguém a espera no hotel, não é assim?
- É.
- E o que em geral acontece?
Diante do rubor das faces dela, o próprio Rodolfo respondeu à pergunta que fizera:
- Exatamente o que aconteceu conosco, porque todos a esperavam por causa disso. Assim era o combinado.
- Combinado com quem? Com Marcelo?
- Sim, com Marcelo.
- Quer dizer então que para você eu não passo de uma...
- Sim, uma garota de programa. Por isso senti dificuldade em entender suas lágrimas e aceitar seu arrependimento. Se fosse uma moça séria que não se sujeita a esse tipo de coisa com certeza impediria o meu impulso, mas não o fez. Ao contrário, entregou-se ao prazer tanto quanto eu.
Marília não suportou mais o peso de tão terrível revelação e deixou que lágrimas impiedosas molhassem seu belo rosto. Em fração de segundo vieram-lhe à mente as palavras amorosas de seus pais e de Júlia, conselhos que imprudentemente repudiara. Voltara-se contra a sua família, as únicas pessoas que, hoje reconhecia a amavam de verdade. Para quê? Por conta de um sonho, de um castelo que edificara na areia e via agora desmoronar, de uma maneira humilhante e perigosa. Vendera-se; arquitetara planos para se separar de Marcelo julgando-se muito esperta. Entretanto fora ele quem a enganara cruelmente. Sou a culpada, pensou. A única culpada.
- Marília? Vamos voltar ao hotel, você não está bem.
- Espere um pouco, falta ainda uma explicação, Rodolfo.
- O que mais quer saber?
- O motivo pelo qual está me revelando toda essa sujeira em que me meti.
Rodolfo silenciou. Nem ele mesmo sabia o porquê dessa atitude de trazer à tona um esquema do qual também fazia parte.
- Não sei dizer. Pode ser que tenha ficado tocado com suas lágrimas assim que terminamos a relação. Achei inadequada aquela reação em alguém acostumada a agir daquela maneira, alguém que sabia o porquê de estar ali. Alguma coisa em mim fez-me suspeitar de que você não sabia de nada, que entrara nisso por conta de uma insensatez. O motivo pelo qual revelei tudo não sei dizer. O que sei é que você mexeu comigo.
- Rodolfo, não compreendo por que é preciso fazer uma viagem tão longa, internacional, se poderia ser no nosso próprio país.
- Nesse esquema estão envolvidos homens de poder, de muito dinheiro, que são exigentes e não querem aparecer; no exterior fica mais difícil serem reconhecidos, entende? Além do mais, existem muitas garotas incautas que sonham com cidades atraentes do primeiro mundo, assim como aconteceu com você. Não analisam as promessas tentadoras e imprudentemente se entregam e se vendem para obter o que julgam ser o ápice da felicidade.
- Elas não querem voltar quando percebem o verdadeiro trabalho para o qual vieram?
- É incrível, mas poucas querem voltar. Muitas se deixam atrair e se envolvem com a vida com que sonharam, ou seja, uma vida sem dignidade, sem conteúdo moral, que lhes proporciona apenas a ilusão de uma vã felicidade; preferem a vida fácil regada a dinheiro e prazer. Não percebem que se tornam pessoas descartáveis que duram enquanto durar a sua beleza.
- E quando não servem mais, o que acontece?
- Na maioria das vezes, se vendem por qualquer tostão.
Marília, não suportando mais o mal-estar que sentia, pediu a Rodolfo que a levasse de volta para o hotel.
- Rodolfo - pediu Marília assim que entraram em seu quarto -, poderia providenciar a minha volta para amanhã?
- Mas o seu trabalho não terminou. Tem algumas fotos agendadas para você.
- Fotos ou encontros? - indagou com tristeza. - Que se dane Marcelo. Irei embora ao primeiro vôo que tiver. Poderia ajudar-me?
Após ponderar um pouco, Rodolfo decidiu:
- Está bem, vou providenciar para você. Só não posso garantir que seja para amanhã, mas reservarei o primeiro vôo.
- Obrigada, muito obrigada.
Assim que Rodolfo saiu, Marília se jogou na cama luxuosa que fora palco de sua leviandade e chorou muito.
- Meus pais e Júlia me avisaram tanto! O que fui fazer da minha vida? Sou tão tola e superficial! Que sonho é esse que construí e alimentei durante anos e que me derrubou, jogando-me na vergonha e na decepção? Que desgosto para a minha família! O que vou fazer agora? Recupero minha dignidade ou me vingo de Marcelo? Não sei o que fazer...
Lembrou-se de que fazia tempo que não dirigia uma prece ao Criador. Vivia tão-só para si, alimentando sua vaidade e sua ambição de dominar o mundo, como achava, em sua inconseqüência, que acontecia com os girassóis, sem perceber que essas flores grandes e majestosas apenas davam testemunho a presença do Criador em todas as formas de vida do planeta. Nesse emaranhado de confusões, enganos e ilusões perdera-se no caminho, e não encontrava a direção da volta. A dura realidade machucava sua alma. Ambicionara chegar ao topo do sucesso fácil, usara as pessoas, mentira e enganara; entretanto, tornara-se vítima dela mesma, transformando-se em uma boneca de luxo que satisfazia apenas desejos e violentava sua dignidade. Deixara-se levar pela paixão e pela atração violenta pelo sucesso, fama e dinheiro. Essa ilusão louca levara-a a condição de garota de programa internacional, sem dignidade e sem vontade própria, aceitando tudo sem questionar e vivendo à mercê de homens que não a respeitavam. O princípio das paixões não é um mal em si. A paixão está no excesso provocado pela vontade, pois o princípio foi dado ao homem para o bem, e as paixões podem induzi-lo a grandes coisas. O abuso a que ele se entrega é que causa o mal. As paixões são como um cavalo que é útil quando governado e perigoso quando governa. Uma paixão se torna perniciosa no momento em que a deixais de governar e quando resulta num prejuízo qualquer para vós ou para outro. As paixões são alavancas que decuplicam as forças do homem e o ajudam a cumprir os desígnios da Providência. Mas, se em vez de dirigi-las o homem se deixa dirigir por elas, cai no excesso, e a própria força que em suas mãos poderia fazer o bem recai sobre ele e o esmaga. A paixão propriamente dita é o exagero de uma necessidade ou de um sentimento; está no excesso, e não na causa; e esse excesso se torna mal quando tem por conseqüência algum mal. Toda paixão que aproxima o homem da Natureza Animal o afasta da Natureza Espiritual. Todo sentimento que eleva o homem acima da Natureza Animal anuncia o predomínio do
Espírito sobre a matéria e o aproxima da perfeição. (O Livro dos Espíritos - Alan Kardec - Capítulo VII - perguntas 907 e 908)
Marília, cansada, adormeceu. Vinte e quatro oras após esses acontecimentos, ela embarcava no avião que a traria de volta ao seu país. Rodolfo fizera-lhe companhia até o último momento antes do seu embarque, respeitando seu silêncio. Marília, dando vazão aos pensamentos, se lembrava das últimas palavras que trocaram ao se despedir.
- Marília, crie coragem e saia dessa vida enquanto é jovem e tem um futuro pela frente. Busque outra realidade para você; não ultrapasse os limites da ilusão para não ser engolida por ela. Corra atrás dos seus objetivos com dignidade, e não a qualquer preço.
- Por que se preocupa tanto comigo?
Um pouco desconcertado ele respondeu:
- Sei que é difícil acreditar, e nem deveria estar falando por ser algo ainda muito precoce, mas você me impressionou muito desde o primeiro instante em que a vi, e gostaria de vê-la fora disso tudo.
Como fui boba, mais uma vez! Poderia ter tirado proveito disso e me acertado com ele, mas não, fui novamente impulsiva e coloquei tudo a perder. Recordou o que lhe respondera:
- Rodolfo, se é assim, por que está me deixando partir? Vamos ficar juntos.
Rodolfo percebera que infelizmente Marília estava querendo usá-lo; na realidade, continuava ambiciosa e, passado o susto e a indignação, alimentava ainda o mesmo desejo e ambição.
- Não, Marília. Impressionei-me, sim, mas você tem um longo caminho a percorrer se quiser mesmo ser alguém pelo próprio esforço; não quero construir nada que sejam apenas momentos fugazes que só deixam marcas de prazer.
Tudo se misturava na cabeça de Marília. Preciso pensar muito. Chegou o momento de decisão; ou conquisto tudo o que sempre quis ao lado de Marcelo, aceitando-o como é, ou deixo tudo para trás e volto para a pacata cidade onde nasci e passo minha vida na obscuridade.
Recostou a cabeça e fechou os olhos, enquanto a aeronave cortava veloz o céu azul rumo ao seu país. Devemos ter consciência de que, quando os instintos nos dominam, estamos mais próximos do ponto de partida do que do objetivo. O amor é a primeira palavra do alfabeto, e a tarefa do amor é longa e difícil, mas se cumprirá porque assim Deus o quer. (A Essência da Alma - Irmão Ivo)

CAPÍTULO IX - CADA UM COLHE O QUE PLANTA

Júlia entrou radiante na sala onde seus pais se encontravam.
- O que é isso, minha filha? - perguntou Antunes, observando sua alegria.
- Parece que viu o passarinho verde - completou Marta.
Contente, respondeu Júlia:
- Mãe, vi o passarinho verde, azul, amarelo, enfim, de todas as cores, tal é a minha felicidade.
- E podemos saber a razão de tamanho entusiasmo?
- Claro! E exatamente isso que vim lhes contar.
- Então satisfaça nossa curiosidade.
- Carlos se declarou para mim, disse que me ama e pediu-me em namoro.
- E você, o que respondeu?
- Ora, Antunes, considerando tanta alegria só podemos deduzir uma resposta afirmativa.
- Acertou mãe. Eu disse "sim", mil vezes sim! Confesso que estou apaixonada por ele á algum tempo.
- Desculpe-me a pergunta, mas e o Luiz? Enfim conseguiu esquecê-lo?
- Mãe, parece incrível que perdi parte de minha vida alimentando um sentimento por Luiz, que hoje, baseada no que sinto por Carlos, deixou de ter qualquer significado. Creio que só agora sei o que é o amor. Estou feliz, mãe, muito feliz!
- Sua felicidade é também a nossa, filha, é o que sempre sonhamos para você, uma vida plena de felicidade.
- Obrigada, pai. Sabia que me apoiariam e aceitariam Carlos como genro, espero
- brincou Júlia.
- Ele é um ótimo rapaz, temos certeza de que será um ótimo marido e genro, se esse for o seu destino.
Júlia enlaçou seus pais em um gostoso abraço e beijou-os com carinho.
- Amo vocês! - exclamou carinhosa,
- Nós também amamos você, filha, muito.
Júlia percebeu uma leve sombra de melancolia no rosto deles. Viu que, discretos, tentavam esconder tímidas lágrimas que molhavam seus olhos. Lembraram-se de Marília. Jamais irão aceitar a situação que ela criou.
- O que aconteceu? Por que ficaram tristes de repente?
- Perdoe-nos, Júlia, mas não conseguimos deixar de pensar em sua irmã; não sabemos como ela está. Há tempos não envia nenhuma notícia. O que sabemos dela é através de pequenas fotos com dizeres que pouco ou nada esclarecem o que de verdade está fazendo; são notícias vagas, sem conteúdo algum.
- Isso nos preocupa - completou Marta.
- Marília deve estar bem. Sempre se cuidou muito bem e soube o que queria. Deve estar batalhando para alcançar seus objetivos. Além do mais, notícia ruim chega logo, bem rápido.
- Tem razão, Júlia, mas a saudade de nossa filha machuca muito nosso coração.
- Vamos voltar a falar de alegria, nossa vida está aqui. Além do mais, Marília sabe que pode contar conosco sempre que precisar.
Voltando ao assunto inicial, Júlia disse aos pais:
- Carlos quer vir conversar com vocês. Posso convidá-lo para jantar conosco, mãe?
- Evidente que sim, filha. Quando quiserem. Farei um jantar bem gostoso.
- Obrigada, mãe, vou combinar com ele.
Deu meia-volta e subiu para o seu quarto, feliz como uma criança. Luiz aproximou-se do amigo para lhe dizer:
- Carlos, tenho notado que há algum tempo você tem se encontrado com Júlia assiduamente. Desculpe a pergunta, mas vocês estão namorando?
- Não só namorando, Luiz. Melhor que isso: estamos apaixonados.
Luiz sentiu um desconforto em seu coração. Como fui tolo! Eu a perdi para sempre. Tentando disfarçar o desapontamento, continuou:
- Devo crer então que o relacionamento de vocês é coisa séria?
- É seriíssimo. Júlia é, sem dúvida alguma, a mulher da minha vida. Afirmo sem receio de errar que ela é uma das melhores pessoas que conheci um verdadeiro presente que a vida me deu.
- Desejo de verdade que sejam felizes!
- Já somos meu amigo.
- Carlos... - disse Luiz, mudando o rumo da conversa - , tem tido notícia de Marília, já que é amigo de Marcelo?
- Não, nenhuma. Não sei nada dela, e, para ser sincero, minha amizade com Marcelo esfriou bastante, para não dizei que terminou.
- Algum inconveniente em me contar o motivo?
- Nenhum inconveniente, Luiz, apenas descobri que ele é mau-caráter. Enganou Marília, e ela caiu feito uma criança ingênua.
- Calma lá, Carlos, Marília não é e nunca foi uma criança ingênua. Tive um relacionamento longo com ela, conheço-a muito bem e sei que é capaz de tudo para conquistar o que chama de "seu sonho". É ambiciosa e vaidosa o suficiente para aceitar qualquer coisa que projete para o mundo a sua beleza.
- Puxa Luiz, não a imaginava dessa maneira. De qualquer forma, não quero falar nem me envolver nesse assunto, não tenho esse direito. Além do mais, Marília é a irmã da mulher que eu amo, e por causa disso a respeito.
- Tudo bem, falei por falar.
- Já que estamos nesse tema, você não acha que já é tempo de tirar Marília da cabeça? Ou pretende ficar ligado a ela para o resto da vida?
- Não estou mais ligado a ela, Carlos. Interessei-me por outra pessoa, só que me dei conta disso tarde demais. Fui cego o suficiente para não enxergá-la. Agora minha oportunidade de uma aproximação maior passou.
Carlos entendeu que ele se referia a Júlia. Sentindo-se um pouco incomodado, perguntou ao amigo:
- Está falando de Júlia?
- Sim. Mas pode ficar tranqüilo; jamais farei coisa alguma para prejudicar o amor de vocês. Quero sinceramente que sejam felizes, os dois merecem.
- Acredito em você, Luiz, conheço o seu caráter. Júlia contou-me o que sentia por você tempos atrás, mas garantiu-me que esse sentimento deixou de existir, ficando apenas uma boa amizade. Confio no caráter e no amor dela por mim. Em vista disso, Luiz, não me preocupo. Júlia não é pessoa de fazer armações. Só aceitou o meu amor a partir do momento em que percebeu que eu fazia parte de sua vida e que também me amava. Sinto muito por você, mas deixou escapar uma grande oportunidade de ser feliz com uma pessoa muito especial.
Luiz só conseguiu repetir:
- Faço votos de que vocês sejam muito felizes.
- Obrigado, amigo, acredito em suas palavras.
Despedindo-se dele, Luiz caminhou com passos lentos, sentindo no peito a dor de não haver notado antes o quanto Júlia era incrível. Marília, ao desembarcar do avião, tomou um táxi e dirigiu-se ao seu apartamento, amargando ainda a decepção da descoberta.
- Marcelo me paga - disse a si mesma.
Somente percebeu que havia falado em voz alta quando o motorista do táxi perguntou:
- O que disse senhora?
Surpresa, respondeu:
- Quem, eu? Nada. Desculpe por ter falado; alto, não percebi.
- Não tem importância, isso acontece.
O restante do trajeto foi feito em silêncio. Uma hora depois, após arrumar suas coisas nos devidos lugares, Marília tomou um banho e sentou-se para saborear o lanche que havia preparado. De repente, ouviu a fechadura da porta se abrir, e Marcelo entrar furioso sala adentro.
- Quem lhe deu autorização para voltar sem o meu consentimento e principalmente sem cumprir sua obrigação? Quero uma boa explicação!
Tentando manter a calma, Marília disse:
- Como soube que eu havia voltado? Acabei de chegar.
- Rodolfo me ligou e colocou-me ciente de tudo o que ouve. Ficou maluca? Já estava acertado. Como vou explicar para os...
- Meus clientes? É isso?
- Já que sabe de tudo, Marília, não há necessidade de esconder mais nada. É isso mesmo. Seus clientes pagaram uma nota para ficar com você, e o que faz? Vem embora, deixando-os na mão. Você é muito cara, Marília. Quem ficou em situação difícil fui eu.
Marília sentiu uma raiva enorme tomar conta de todo o seu corpo.
- Seu canalha! Você me usou esse tempo todo com suas mentiras e suas falsas promessas. Transformou-me em uma garota de programa para satisfazer os magnatas internacionais!
- Calma aí. Eu a transformei, não! Você se posicionou assim.
- O que quer dizer?
- Quero dizer, minha querida, que você se vendeu desde o início, ou não teria vindo comigo para esta cidade sem sequer saber quem sou na verdade e o que faço. Quis acreditar em tudo o que lhe falei porque lhe era conveniente. Aceitou minhas condições só por não querer perder a condição confortável na qual a coloquei. Não percebeu nada porque se negou a perceber, Marília. Não me venha agora posar de vítima.
- E as garotas que viajam comigo?
- Buscam o mesmo que você: vida fácil, dinheiro e luxo. Quanto a isso, você não tem do que reclamar, pois tem de sobra.
Marília não sabia o que dizer nem que atitude tomar. Reconhecia que Marcelo falava a verdade. Ela fora à culpada, a responsável por tudo o que estava acontecendo. Marcelo continuou:
- Nem perca tempo me dizendo que vai sair desse esquema, porque não vai.
- Como assim? Está me ameaçando?
- Não. Estou sendo franco. Lembra que certa vez lhe disse que não teria volta? Esqueceu-se de quantas vezes assinou documentos sem ao menos ter a curiosidade de ler? Pois bem, esses documentos assinados por você comprovam que é a única dona da agência de modelos; é a pessoa que leva as interessadas para fora do país. Todas as pessoas que receberam aqueles documentos de você podem comprovar isso. Portanto, aconselho-a a continuar nesse esquema ou vai mofar na cadeia.
- Custo a acreditar que você fez isso comigo, Marcelo.
- Marília, por que reclama? Recebe um bom dinheiro por isso, sua conta bancária é recheada. Relaciona-se somente com homens elegantes, cultos e milionários. Não foi isso o que sempre quis com que sonhou?
- Não! Mil vezes não! Queria apenas ser modelo.
- Mas começou errado, minha querida. Creio mesmo que seria uma ótima profissional, mas seu erro foi querer o sucesso antes do esforço e do trabalho. Não se preparou, e o preço da sua imprudência foi muito alto. Nada cai do céu, Marília, tudo tem que acontecer como conseqüência. Se existe algum culpado nessa história é você mesma.
Como sempre, o arrependimento chega tarde, e nem sempre se consegue consertar o erro que a leviandade ocasionou.
- Marília, o melhor a fazer é você relaxar e continuar levando sua vida como tem feito até agora. Afinal, tudo isso sempre lhe deu prazer; ou não? Agora que já sabe de tudo, poderá ganhar mais dinheiro ainda. Se continuarmos juntos, ficará mais rica. A vida é para ser aproveitada, e é o que estamos fazendo.
- Preciso de um tempo para pensar, Marcelo. Agora, por favor, deixe-me sozinha. Imagino que amanhã estarei mais calma e poderemos conversar melhor sobre o rumo que quero dar à minha vida.
Aproximando-se de Marília de uma maneira provocante, Marcelo enlaçou-a trazendo-a bem junto ao seu corpo.
- Neste momento vamos pensar somente em nós dois e ficar juntos para aliviar a tensão.
Marília o empurrou.
- Não, hoje não. Aliás, já que é a ora da verdade, porque não esclarece tudo de uma vez?
- Esclarecer o quê? O que está faltando?
- Quero saber a verdade a seu respeito.
- Qual verdade? Já lhe disse tudo o que tinha de dizer. O que mais quer saber?
- Quero saber se você é mesmo casado.
Surpreendido com essa pergunta, Marcelo, após ponderar um instante, afirmou:
- Você tem razão, é bobagem continuarmos com qualquer mentira, já que agora vamos ser parceiros de verdade. Sim, Marília, sou casado, e muito bem casado.
- Tão bem casado que necessita estar com outra.
- Existem mulheres que nasceram para serem esposas e mães dos nossos filhos, e outras para serem companheiras de prazer. Entendeu?
As palavras de Marcelo soaram como uma bofetada no rosto de Marília, que sentiu o gosto amargo de seus sonhos fracassados por terem sido alimentados com leviandade e inconseqüência. Marcelo sentiu que o melhor a fazer era retirar-se a deixando só para digerir os últimos acontecimentos. Depositou um tímido beijo em sua face, dizendo-lhe:
- Amanhã virei vê-la. Tome um calmante e procure dormir.
Assim que Marcelo saiu, Marília chorou convulsivamente. Teve a exata noção de haver destruído sua vida, na flor da idade, com uma opção cuja volta seria difícil e sofrida.
- Se meus pais souberem o que sou realmente, qual é na verdade o meu trabalho creio que morreriam de vergonha. O que foi que eu fiz meu Deus?!
Seguindo o conselho de Marcelo, tomou um calmante e deitou-se, acreditando que algumas horas de sono poderiam aliviar sua tensão e tornar as coisas mais amenas. O que ela não sabia era da lei que diz: a dívida dorme com o devedor e com ele acorda. A vida é um bem precioso, e não é prudente desperdiçar essa oportunidade que nos foi dada. Tudo o que semearmos nesta vida colheremos na outra, e nos será cobrado até o último ceitil, como disse Jesus. (A Essência da Alma - Irmão Ivo)
Marília, contrariando o que imaginara, entregou-se a um sono agitado e conflitante, que em nada parecia com a calma e o repouso que esperava. Via-se em um lugar feio e esfumaçado. Sentia-se sufocada, sem respiração e ouvindo sugestões que cada vez mais a levariam para o sofrimento, comprometendo ainda mais suas aquisições espirituais já tão abaladas e fracas. Vozes encarniçadas lhe diziam:
- Você é uma das nossas e tem que ir em frente. Pense no dinheiro que lhe dá prazer e deixe sua beleza brilhar, não importa onde. É o sucesso!
Ouvia gargalhadas em meio à orgia. Marília acordou sobressaltada.
- Meu Deus, que sonho horrível! Um verdadeiro pesadelo.
Levantou-se e lavou o rosto molhado de suor. Saboreou um delicioso desjejum e sentiu-se melhor.
- Ainda é bem cedo, Marcelo virá mais tarde. Tenho bastante tempo para pensar melhor em tudo o que me aconteceu.
Colocou uma música, abriu bem as janelas afastando as cortinas brancas e admirou a vista privilegiada de seu apartamento, que ficava no décimo andar. Que cidade majestosa..., - pensou. Lembra-me em grandeza o campo de girassóis da minha cidadezinha, apesar de ser um campo de pedra em vez de flores. - Suspirou. - O que será melhor para mim? Continuar a minha ascensão financeira, solidificando meu patrimônio, exibindo minha beleza sem importar de onde vem meu sucesso, ou voltar para minha pequena cidade e retomar uma vida sem graça, sem futuro, sem emoção, tendo que prestar contas aos meus pais de tudo o que faço?
Recordou o sonho. Mais uma vez permitiu que sua leviandade sem limites falasse mais alto e forte. Talvez esse sonho não seja um pesadelo, e sim uma revelação. Sua absurda inconseqüência justificava mais uma vez suas atitudes irresponsáveis e de total inconsciência espiritual.
- Por que meio se pode neutralizar a influência dos maus espíritos?
Fazendo o bem e colocando toda a vossa confiança em Deus repelis a influência dos espíritos inferiores e destruís o império que desejam ter sobre vós. Guardai-vos de escutar as sugestões dos espíritos que suscitam em vós os maus pensamentos, que insuflam a discórdia, excitam em vós todas as más paixões. Desconfiai, sobretudo, dos que exaltam o vosso orgulho, porque eles atacam na vossa fraqueza. Eis por que Jesus vos faz dizer na oração dominical:
"Senhor, não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal".
(O Livro dos Espíritos - Allan Kardec - Capítulo IX - pergunta 469)
Por volta da hora do almoço, Marcelo entrou no apartamento de Marília.
- Como está linda, Marília! Linda e atraente! - exclamou confiante de que os dois se entenderiam.
- Oi, Marcelo - respondeu Marília, sem muito entusiasmo. - Poupe-me dos seus elogios; sei do fascínio que exerço, e nosso jogo agora será absolutamente claro.
- Vejo que já tomou uma decisão, acertei?
- Acertou. Já sei o que quero.
- Então...
- Então que decidi continuar nesse caminho. Já que comecei, nada mais me importa a não ser o retorno financeiro. Quero ter minha independência econômica e não precisar de ninguém, muito menos de você.
- Nossa, senti firmeza!
- Mas tem uma condição.
- Diga qual é.
- Não sou mais sua subordinada; não obedeço mais suas ordens.
- O que quer dizer com isso?
- Que a partir de agora sou sua sócia, e tudo será repartido em duas partes iguais. Todo o esquema será decidido por nós dois; ficarei com quem eu quiser, e não com quem você decidir.
Marcelo ponderou e respondeu.
- Só existe uma questão a ser resolvida, Marília.
- Qual é?
- Daniel é meu sócio.
Sem maior constrangimento,
Marília disse:
- Seremos três, então. E nem tentem me passar para trás porque sou uma leoa quando defendo meus interesses.
Marcelo, eufórico, abraçou-a entusiasmado.
- Querida, vamos para nosso quarto. Precisamos comemorar nossa sociedade.
- Calma. A partir de agora você não é diferente dos demais, portanto também paga. Como você mesmo disse, meu preço é alto. E nem pode reclamar, pois foi você mesmo quem estipulou.
Marcelo, chocado, afastou-se de Marília, mal podendo acreditar no que acabara de ouvir.
- Marília! O nosso relacionamento não significa nada para você?!
- Negócio é negócio, Marcelo. Quanto ao nosso relacionamento, você sabe tão bem quanto eu que nunca foi verdadeiro.
- Como assim?
- Marcelo, jamais ouve nenhum sentimento entre nós dois. O que sempre existiu foi desejo e interesse.
- Você enlouqueceu?
- Não. Apenas estou tirando a máscara e falando pela primeira vez a verdade. Você sempre me desejou como a mulher bonita e sensual que sou, e eu sempre o usei como o único meio de conseguir o que pretendia, ou seja, sair da minha cidade. Mas agora isso não tem mais importância, é passado. Sempre dei a você o que queria, e você retribuiu compensando-me com a realização do meu sonho. A partir deste momento, iremos nos preocupar com o futuro, somente com ò futuro, porque é ele que importa. Isso não impede que tenhamos momentos de
grande prazer; desde que você pague, é lógico.
Marcelo estava desnorteado com a franqueza de Marília. Nunca imaginara que sua reação seria aquela. Meu Deus, que mulher é essa?! Respirou fundo.
- Será como você quer Marília.
- É exatamente o que quero Marcelo. A minha prioridade é acumular riqueza e poder, sem me importar com o lugar de onde venha. Quem me quiser vai ter que pagar muito caro.
- Assim é que se fala sócia! - exclamou Marcelo, exultante.
Enquanto Marília preparava uma bebida para servi-lo, Marcelo, olhando aquela bela mulher à sua frente, pensava: Como você é tola. Não consegue perceber o abismo no qual está se metendo? Afunda-se na ilusão do prazer sem sequer temer a dura realidade que com certeza um dia chegará. Bem, o problema é seu, minha querida. Daniel e eu vamos ficando cada vez mais ricos por conta de garotas volúveis feito você. Marília agia de maneira imprudente, e com certeza pagaria caro por tanta leviandade. Ocupava sua mente tão-só com questões vazias e sem conteúdo. Os pensamentos desagradáveis e nocivos trazem à tona desejos pouco recomendáveis que atraem para si as moscas com as quais se afinam. A vida nos testa a cada dia, e cabe a cada um persistir nos padrões morais e cristãos, se quiser alcançar o equilíbrio e conseqüentemente, a felicidade com que sonha. Quem se prepara para esta vida, mas não para a vida
eterna, é sábio por um momento, mas tolo para sempre. Os sonhos fazem parte do dia-a-dia do homem, mas é preciso não permitir que eles sufoquem a realidade da vida com a qual o homem precisa aprender a conviver. Necessário se faz aprender a construir a sonhada felicidade, ou seja, as pessoas felizes vivem no mesmo mundo que aqueles que se consideram infelizes. Sofrem as aflições da vida, enfrentam dificuldades, dores e enfermidades como tantos outros. Por que então são felizes enquanto muitos se entregam às lamentações e mágoas por sonhos não realizados? Porque optaram pela felicidade. Parece estranho, não? O que significa optar pela felicidade? O que é se sentir feliz em meio a tantos conflitos, decepções e necessidades? Optar pela felicidade é superar a tendência que o homem possui de se julgar vítima da vida, machucando-se com uma visão absolutamente pessimista, desajustada e cheia de mágoas. Ser feliz é ter forças para lutar contra as adversidades, cultivando dentro de si a coragem e a esperança para viver em um mundo de expiações, porque se sabe da existência da vida futura e se agasalha a confiança e a fé no Criador. Ser feliz é ter consciência de que a vida física é a oportunidade de se melhorar como criatura de Deus; sanar dia após dia as próprias imperfeições, abençoando cada situação vivida por saber que cada uma delas tem um papel importante na evolução do ser. Enfim, a felicidade é subordinada ao que fazemos dela; a maneira como acreditamos que ela seja e à nossa sabedoria em inserir os sonhos dentro da realidade cristã. Daniel, da mesma maneira que Marcelo exultou de alegria ao saber da decisão de Marília. Repetia sem cessar para o amigo:
- É muito bom o que aconteceu! De fato não poderia ser melhor. Tudo agora será mais fácil.
Marcelo sorriu.
- É, meu amigo - tornou Daniel a dizer -, você nunca se enganou com Marília, ela é tudo o que pensava e mais um pouco.
- A vaidade dessa menina não tem limites, nem sua ilusão de se considerar a maravilha do século.
- Melhor para nós.
- Sabe Daniel, às vezes chego a me impressionar com Marília.
- Por quê?
- Uma garota nova, vinda de uma excelente família do interior, família estruturada, decente... Entretanto ela possui um verdadeiro vulcão dentro de si. Para Marília nada basta, quer sempre mais.
- Esse vulcão tem nome, meu amigo. Chama-se vaidade, ambição e extremo egoísmo.
- É uma completa falta de moral. Pode esperar Daniel. Se conheço Marília isso ainda vai longe!
- Como assim?
- Não sei dizer, mas, do jeito que ela gosta de dinheiro e tendo um desejo insaciável de aparecer, ainda vai dar um baile em nós dois. Pode esperar.
- Você, falando assim, até me assusta. Mas, se entrar dinheiro, não teremos do que reclamar.
Seis meses se passaram. Júlia, feliz, enlaçou sua mãe em um grande e forte abraço.
- Bom dia, mamãe! Sabe quantos dias faltam?
Querendo brincar com a filha, Marta respondeu:
- Quantos dias faltam para que, filha? Não me lembro de nada!
- Ah, é, dona Marta? Vai me dizer que não se lembra do casamento de sua filha, é isso?
Marta a tomou nos braços.
- Jamais se esqueceria dessa data tão importante para você e para nós também, Júlia. Poderia me esquecer de tudo, menos da sua felicidade.
- Eu sei mãe!
Mãe e filha sorriram uma para a outra. Marta, notando uma sombra de preocupação no rosto de sua filha, quis saber:
- O que foi? Parece-me que ficou preocupada, tensa. Alguma coisa que eu não sei?
- Nada que a senhora possa mudar.
- Diga-me, filha, o que a está preocupando?
- Mãe, faltam apenas dez dias para o meu casamento... Tentei de tudo, mas não consegui uma maneira de avisar Marília. Gostaria tanto que ela estivesse presente!
- Seu pai e eu também, querida. Seria uma bênção reunirmos toda a família. Mas o que podemos fazer? Ninguém sabe o endereço dela. Tanto tempo se passou e nunca recebemos um bilhete sequer que pudesse nos dizer onde Marília mora. Não entendemos por que ela cortou toda e qualquer relação conosco.
- Talvez por medo.
- Por medo?
- Sim, mãe. Medo de ter sua vida invadida por nós; medo de conviver com a reprovação da senhora e do papai, enfim, medo de não ser dona da sua vida e da sua vontade.
- Inicialmente víamos suas fotos em algumas revistas, mas agora nem isso.
- O que será que está acontecendo com ela?
- Não sei. Seu pai e eu sofremos muito por causa dessa situação. Agora, apesar de o sofrimento ainda ser grande, procuramos nos ocupar só com vocês que estão aqui ao nosso lado. É a maneira que encontramos para termos um pouco de paz.
- Não posso tirar-lhes a razão. Ela se afastou porque quis, foi escolha dela, mãe, e só nos resta aceitar e aguardar.
- Aguardar?
- Sim. Tenho guardado em meu coração que um dia Marília irá voltar. Não imagino como, nem quando, mas acredito que um dia isso irá acontecer.
- Espero que esteja certa.
- O importante é não ficar triste. Se algo de ruim tivesse acontecido Marcelo teria nos avisado, ou pelo menos avisado Carlos.
Marta enxugou as lágrimas que desciam pelo seu rosto triste, mostrando a dor que ainda oprimia seu coração. Com voz quase trêmula, disse à filha:
- É melhor deixarmos esse assunto de lado. A ora agora é de alegria pelo seu casamento, e é justo que esse momento seja só seu e de Carlos. Não vamos mesclar sua felicidade com situações que não podemos mudar. Você merece essa ventura, filha, e será feliz, com a graça de Deus.
O som da campainha fez com que Júlia corresse a atender.
- Para a senhorita - disse o mensageiro, entregando-lhe um lindo ramalhete de
flores.
Júlia agradeceu e correu para mostrá-lo a sua mãe.
- Veja que rosas lindas! Só podem ter sido enviadas por Carlos.
- Abra logo o cartão, Júlia.
Entusiasmada, Júlia leu a delicada mensagem do noivo. Em um gesto quase infantil, beijou o cartão, colocando-o junto ao peito. Marta observava a felicidade da filha sem poder deixar de pensar em Marília, que, ao contrário de Júlia, preferira uma vida de sonhos efêmeros longe de todos.
- Vou ler para a senhora o que Carlos escreveu.
- Leia filha.
- Querida, todos os dias, neste mesmo horário, as rosas lhe dirão que te amo. Beijos, amor da minha vida.
- Muito lindo e romântico Júlia. Ele está mesmo apaixonado.
- A senhora ainda tinha dúvidas?
- Não, nenhuma dúvida.
Antunes pôde compartilhar da alegria da filha ao chegar acompanhado de Felipe e Rafael.
- Nossa, será que um dia vou conseguir amar alguém assim? - perguntou Rafael sorrindo.
- Irá, meu irmão, é só aguardar e preparar seu coração para reconhecê-lo quando seu grande amor chegar.
Carlos, sabendo do desejo de Júlia em ter sua irmã ao seu lado no dia do casamento, comunicou-se com Marcelo pedindo-lhe que sugerisse a Marília um contato com a família, o menor que fosse. Forneceu-lhe todos os dados da cerimônia e finalizou dizendo:
- Marcelo, todos estão muito preocupados com a falta de notícias de Marília. Se ela não quiser comparecer, ao menos lhe peça que telefone.
Marcelo prometeu interceder, sugerindo a Marília um contato.
- Pode ficar tranqüilo, Carlos, verei o que posso fazer.
Marcelo, como prometera ao amigo, empenhou-se em tentar convencer Marília: - Um telegrama, um telefonema... Mas entre em contato, Marília. Faça isso em consideração a seus pais, eles merecem essa atenção. Devem estar sentindo muito sua falta.
- Está bem - ela acabou concordando. - No dia do casamento de Júlia telefonarei desejando-lhe felicidades.
- E seus pais?
- Marcelo, falta-me coragem para falar com eles. Receio que descubram a verdadeira vida que levo o trabalho que faço. Sei que os fiz sofrer muito.
- Marília, pelo telefone, se você não disser nada, eles jamais saberão. Se perguntarem, diga qualquer outra coisa. Tudo indica que jamais virão até aqui. Quanto ao sofrimento que lhes causou isso você terá que levar para sempre. O que poderá fazer é amenizar essa tristeza comunicando-se mais vezes com sua família.
- É você tem razão. Vou fazer isso. Telefono para Júlia e converso com eles. Realmente não mando notícias há muito tempo.
- Precisamente desde que se mudou para cá.
- É verdade. Sabe o que é Marcelo? Não queria interferência de ninguém na minha vida, ou seja, na maneira como decidi levá-la. Gosto de ser dona de mim mesma, fazer o que quero no momento que desejo, porque acho importante satisfazer a mim mesma, pensar na realização dos meus sonhos, ter como prioridade a realização da minha própria satisfação.
- Desculpe-me, Marília, mas não acha tudo isso egoísmo da sua parte?
- Essa é a lei da vida. Cada um por si.
Meu Deus pensou Marcelo. Marília consegue ser bem pior do que eu. Seu egoísmo não tem limites.

As guerras nascem nas mentes doentias, egoístas e sedentas de poder. A fome de adquirir, de conquistar a qualquer preço, faz o homem perder a razão e o equilíbrio.
Devemos propagar ao mundo que, enquanto a guerra mata, o amor transforma o homem. (A Essência da Alma - Irmão Ivo)

CAPÍTULO X - MAIS UMA CHANCE DESPERDIÇADA

O dia amanheceu com o clima agradável, como Júlia esperava. O sol brilhando no azul do céu provocava em seu coração uma sensação de paz que se espalhava por toda a casa. Sua família, e principalmente ela própria, experimentava a ansiedade natural quando se está próximo a uma grande mudança. Sem dúvida alguma era a manhã mais especial da vida de Júlia. O dia em que se uniria para sempre a Carlos, o companheiro com o qual havia sonhado. O sonho acalentado com sabedoria e equilíbrio tornara-se realidade. Sentada à mesa na companhia de seus pais e irmãos para saborearem o desjejum preparado com todo o carinho por Marta com o intuito de agradar sua filha na despedida de solteira, Júlia pediu licença para fazer uma prece, no que foi prontamente atendida. Cerrou os olhos úmidos e entregou seu coração e sua emoção ao Senhor da vida e do seu destino.
- Senhor, Criador de todo o universo e de todas as formas de vida; sou feliz e agradecida por fazer parte dessa criação. Vi que depende só de eu optar pela felicidade conquistando-a através do aprendizado do amor e exercitando esse sentimento poderoso que transforma o homem. Se a aflição vier nublar meu convívio com o homem que amo, que eu saiba e consiga vencê-la alicerçada na minha fé; que eu tenha lucidez suficiente para a cada novo dia redescobrir a vida e o poder do bem. Que tanto eu quanto Carlos saibamos abraçar o mundo, falando de amor o mais que pudermos, transformando nossos corações em um doce lar onde os sofridos possam encontrar abrigo e, junto a eles, transformarmos nossos passos em pegadas firmes, marcando o chão por onde passarmos com os ensinamentos do Evangelho de Jesus. Assim, Senhor, a felicidade se fará. Obrigada pela minha família, e que minha querida irmã, Marília, possa receber onde estiver a vibração do meu carinho e da minha saudade. Ilumine-a, Senhor, e proteja-a. Assim seja.
Logo após terminar sua oração, ouviu:
- Obrigada, minha irmã. Estou aqui bem perto, para receber o seu carinho e a sua saudade.
Todos abriram os olhos e exclamaram a uma só voz:
- Marília!
- O que é isso? - disse Marília, divertindo-se com o espanto que via no rosto de todos. - Parece que viram um fantasma. Estou tão feia assim?
Aconchegada nos braços de seu pai, ouviu-o dizer:
- Não, filha, continua linda como sempre.
- É verdade - completou Marta. - Linda como sempre foi desde pequenina.
- Não esperávamos vê-la, filha, por isso o espanto. E a saudade nos machuca muito, porque não vai embora. E hoje, de repente, deparamos com você aqui, na sua casa de novo, e isso está mexendo com nossas emoções.
- Pai, controle-se. A excitação não deve fazer bem para o senhor. - alertou Júlia.
- Tem razão, o importante é que Marília está aqui.
Após todas as manifestações de carinho, Antunes voltou a se manifestar:
- Como soube do casamento de Júlia? Imagino que esse seja o verdadeiro motivo de sua presença aqui.
- Não vim só por isso, mas também pela saudade que sinto de vocês. Creio ter chegado na hora certa, pois tive o prazer de ouvir a linda prece de Júlia.
- Como entrou sem que percebêssemos?
- A porta da cozinha, como sempre, estava aberta. Cheguei ao instante em que
Júlia orava, e não quis interromper. Muito linda a sua prece, minha irmã.
- Abrindo os braços, enlaçou Júlia. - Parabéns pelo dia de hoje. Desejo-lhe muitas e muitas felicidades.
Comovida, Júlia respondeu:
- Marília, sua presença foi o melhor presente que recebi; jamais esperei que isso acontecesse.
- Que coincidência! - disse Felipe.
- Felipe, Júlia vive dizendo que coincidências não existem, e não existem mesmo. Vim para participar do casamento dela.
- Mas como soube do casamento, afinal?
- Carlos ligou para Marcelo, mamãe, e disse-lhe da vontade de Júlia de que eu estivesse presente para que a família ficasse reunida. Marcelo adorou saber da união de vocês e prometeu a Carlos que iria me falar sobre isso, e realmente o fez. Não pensei duas vezes e aqui estou feliz por revê-los, sobretudo meus pais.
- Que bom que você veio, Marília! Completou minha felicidade.
Antunes não conseguia conter tanta emoção ao ver suas filhas juntas e em paz. Aproximou-se de Marília, beijou-lhe o tosto e lhe disse:
- Obrigado por nos trazer tamanha alegria.
Marília também ficou emocionada em abraçar seu pai após tanto tempo de separação.
- Acredite papai, sua alegria não é maior que a minha. Senti muita saudade de vocês todos, principalmente do senhor e da mamãe. Mas agora vamos aproveitar esses breves momentos e matar a saudade.
- Por que breves Marília? Marcelo não veio com você?
- Não pôde vir pai, por essa razão não posso me ausentar por muito tempo.
- O que o impediu?
- Temos uma empresa que, graças a Deus, está indo muito bem, cresceu muito, e torna-se impossível ausentarmo-nos os dois ao mesmo tempo. Nosso quadro de modelos é grande e não podemos deixar tudo nas mãos de funcionários. O senhor entende?
- Entendo minha filha, mas é uma pena tê-la conosco por pouco tempo depois de longa ausência.
Marta, seguindo o instinto materno, quis saber:
- E sua situação com Marcelo, filha, como está?
Desconcertada, mas aparentando uma falsa tranqüilidade, Marília afirmou:
- Ótima mãe. Assim que chegamos à capital nossa situação foi resolvida, e hoje vivemos bem e felizes. Quanto a isso, podem se tranqüilizar.
Seu olhar cruzou com o de Júlia, que pensou: Você continua a mesma, Marília. Sabemos que Marcelo é casado, tem filhos, portanto nada foi resolvido. Sinto que nada mudou em você, a não ser sua maneira sofisticada de se vestir, e pressinto que essa mudança não foi para melhor. Marília, receosa de encarar a irmã, desviou o rosto.
- Não vemos mais suas fotos nas revistas, Marília. Desistiu da carreira?
- Da carreira de modelo, sim, Júlia. Como já disse, nossa empresa se expandiu muito. Viajo sempre acompanhando as modelos em seus contratos no exterior. Hoje comando a agência, e concluí que realmente é o que gosto de fazer.
- Isso nos alegra muito - disse Marta. - Gostaríamos que nos fornecesse seu endereço, para que possamos ir visitá-la. Não sabemos nem mesmo o nome de sua agência.
Marília, mostrando uma desenvoltura que estava longe de sentir, respondeu:
- Depois, mãe. Claro que vou deixar tudo certinho com vocês, pode ficar sossegada.
Meu Deus, não posso ficar nem mais um dia aqui ou eles irão descobrir tudo sobre mim, Marília concluiu.
- Claro, filha, não quero pressioná-la, desejo apenas saber onde posso encontrar minha filha.
Júlia apenas observava Marília sentindo em seu peito uma enorme inquietação. Por que será que tenho a impressão de que ela está mentindo? Desde que chegou, noto em sua expressão certo receio; seu olhar me sugere que está mentindo, não sei explicar por quê. Acho que ela não se modificou em nada, e se isso aconteceu com certeza não foi para melhor. Seu pensamento foi interrompido pela voz de sua mãe:
- Rafael, pegue a bagagem de Marília e leve para seu antigo quarto.
- Não é preciso, meu irmão, não trouxe bagagem. Não foi necessário.
- Não? - perguntaram todos, surpresos.
- Você viajando sem bagagem é de estranhar.
- Trouxe apenas esta maleta de mão com o necessário: uma troca de roupa e o vestido da cerimônia, que, aliás, escolhi com todo o cuidado, porque quero estar bem bonita no casamento de minha irmã querida.
- Estranho você não ter trazido bagagem, filha.
- Pai, terei de voltar amanhã bem cedo. Vim apenas para a cerimônia, mostrar para vocês que estou bem e feliz, enfim, tranqüilizá-los. Logo cedo o helicóptero da agência virá me buscar.
- Não consigo enxergar uma razão para tanta pressa.
- Mãe, amanhã à tarde vamos realizar um importante desfile, e terei que estar à frente desse evento. Foi o que já expliquei. - Marília, inquieta com tantas perguntas e temendo se trair mudou o rumo da conversa. - Vamos parar de falar de mim. Hoje o dia é de Júlia, e eu quero saber de todas as novidades sobre esse casamento. Vejo a felicidade nos olhos dela. Conte-me tudo, minha irmã. Júlia sorriu.
- Você tem razão, minha felicidade salta aos olhos, não é?
- Nunca a vi assim tão feliz, confiante, apaixonada... Nem quando amava o Luiz.
- Marília, com Carlos aprendi o que é amar de verdade. Conheci esse sentimento na sua melhor essência. Luiz é passado, Carlos é o meu presente e o meu futuro. Hoje Luiz é apenas um amigo, e Carlos é o meu grande amor.
Marília, ouvindo a irmã falar com tanta emoção e sinceridade, experimentou uma ponta de inveja pela consciência de que jamais viveria algo tão especial e profundo, pois conhecia apenas o prazer que passa como um vendaval e deixa marcas para sempre.
- Torço por você, Júlia. Sem dúvida merece essa felicidade.
- As horas estão passando - interrompeu-as Marta. - Temos questões a resolver antes da cerimônia. Vamos, meninas, mexam-se.
Todos se dispersaram, cada um indo em busca de sua tarefa. Sem que seus pais percebessem, Júlia chamou Marília em seu quarto.
- Marília, gostaria de ter uma conversa com você, pode ser?
- Claro, Júlia, o que é?
- Alguma coisa me incomoda. Sinto que o que você disse com tanta ênfase a seu respeito não corresponde à verdade. Gostaria apenas de lhe fazer uma pergunta.
- Pode fazer.
- Você é feliz?
Não passou despercebida aos olhos de Júlia a contração nos lábios de Marília.
- Por que isso agora?
- Por favor, Marília, apenas responda.
- Considerando que alcancei meu objetivo, ou seja, juntar dinheiro suficiente para obter tudo o que sempre desejei, posso dizer que sou feliz. Moro em um apartamento de luxo, possuo carro e viajo para o mundo todo. O que mais posso querer?
- O amor, Marília. Estou falando de amor, companheirismo, dignidade. Sentir-se amada e respeitada; saber o que na verdade é amar.
- Isso já está fora de moda, Júlia. Prefiro ser dona da minha vida e ter dinheiro, que me proporciona autonomia e poder.
- Sabe, o que me causa estranhamento é uma agência, cujo nome ninguém sabe, dar tanto lucro assim. Em geral as grandes empresas estão sempre em evidência.
- Você está se metendo em um assunto que não lhe diz respeito.
- Tem razão, Marília, mas tenho um conceito tão diferente do seu! Preocupo-me tanto com sua maneira de agir, sem nenhuma cautela, que ouso até me intrometer, sim. Afinal, você é minha irmã mais nova. Que mal há nisso?
- Você conhece melhor do que eu o livre-arbítrio; por que interfere no meu?
- É verdade, não posso interferir no seu livre-arbítrio, mas posso lhe pedir um pouco mais de cautela. Cuidado com suas atitudes para não sofrer mais tarde, prejudicando sua integridade física e moral. Não entre no caminho da ganância, Marília; é um caminho perigoso que nos tira toda e qualquer noção de bom senso e prudência. Espero que você consiga ser feliz à sua maneira, se é o que você realmente quer, e se conseguir.
Uma sombra turvou os olhos de Marília, que pensou com tristeza: Se soubesse o que realmente eu faço, Júlia, se imaginasse para onde minha leviandade me levou, ficaria estarrecida. Hoje só me resta me contentar com o dinheiro, pois nem mais respeito eu recebo dos homens. Sou o que eles chamam uma boneca de luxo, que sabe dar prazer como ninguém. Júlia, sentindo-se inspirada por Amélia, continuou:
- Sempre podemos reconsiderar e mudar nosso plano de vida se ele agride nossos princípios morais, consertando os erros e enganos nos quais caímos. Lavando nossa alma com pensamentos nobres e atitudes edificantes, que nos levam, a readquirir os valores que nos trazem elevação e dignidade podemos anular, sim, condutas infelizes que nos fazem sofrer e mancham nosso corpo físico e astral. Pense sobre isso, minha irmã. Reavalie seus conceitos e traga conteúdo para sua existência; errar é humano e todos erram, mas é importante se esforçar para vencer as tentações e sair do lamaçal de enganos nos quais muitas vezes nos aprisionamos.
Júlia notou uma vaga tristeza no semblante de Marília.
- Por que está me dizendo tudo isso, Júlia? O que sabe da minha vida?
- Na realidade, não sei nada, e é isso o que me assusta. Para ser sincera, até eu estranhei falar tudo isso para você, mas uma força maior me impulsiona a dizer, e o faço com tranqüilidade por saber que é para sua felicidade. Não é humilhante
reconhecer nossos erros; ao contrário, é altamente edificante, é sinal que nossa
consciência está nos avisando do perigo que muitas vezes corremos. Triste é continuar em um caminho cujo destino é a dor e a desmoralização da próprio honra e não se dar conta disso.
Céus, o que está acontecendo? Parece até que Júlia sabe de toda a verdade sobre o meu trabalho!
- Marília, conte comigo, estarei sempre pronta para ajudá-la. Quando achar conveniente e considerar que à ora chegou, enfrente o problema que porventura
possa estar afligindo você. Crie o hábito de orar e suplicar a Deus por auxílio. Peça coragem para romper a barreira que distancia você do Criador; cuide de eliminar suas imperfeições procurando enxergar o brilho real, que nos faz bem e que se encontra nas virtudes que elevam e enobrecem o homem.
Completamente atônita Marília disse à irmã:
- Júlia, o que deu em você? Fala como se eu estivesse me afundando em um poço escuro e tenebroso. O que é isso? O que a faz pensar que tenho problemas graves?
- Sendo sincera, nem eu mesma sei por que estou falando assim, mas sinto estar sendo intuída, e acredito que algum motivo á de ter. Se existe a interferência espiritual, o motivo deve ser justo e sério, porque nada acontece se não for para o benefício de alguém. Aconselho-a a prestar muita atenção, lembrando que ouvir conselhos não significa obedecer ordens, e sim proporcionar a si mesma oportunidade de renovação.
Diante do silêncio de Marília, Júlia colocou fim à conversa. A tarde passou rápido.
Às dezoito oras, Júlia, de mãos dadas com Antunes, deu entrada no pequeno salão enfeitado com lírios e rosas brancas graciosamente amarradas com fita de cetim. Usava um vestido simples, mas elegante, condizente com a simplicidade da sua alma. Carlos, emocionado, esperava pela noiva em um perfeito terno cinza. Ao seu lado, o juiz de paz, as testemunhas e Josafá, orientador do Centro Espírita Deus É Luz, que a família de Júlia freqüentava. Dos presentes saía energia de paz e amizade para aquele casal tão estimado por todos. Após a cerimônia civil, Josafá dirigiu aos noivos algumas palavras de paz:
- Queridos irmãos Júlia e Carlos. Meu coração quase não suporta a alegria que sente com a oportunidade de poder estar aqui com vocês, meus irmãos de fé, neste dia tão importante e significativo. Este é o momento em que o amor que os une se agiganta a ponto de abranger todos os presentes, fazendo-nos compreender que tudo podemos ter tudo podemos saber, mas, se não tivermos amor em nós, nada teremos e nada saberemos, porque somente o amor nos coloca na posição de verdadeiras criaturas de Deus. Hoje é para vocês o início de uma nova caminhada. Algumas vezes irão chorar; muitas outras irão sorrir. Que vocês saibam entender os sorrisos e as lágrimas, e que cada um desses dois exerça a função adequada na vida de vocês, pois que ambos possuem notável importância na evolução do ser. Construam um lar de paz e dignidade, preparando-o para receber, no momento propício, os enviados de Deus para formarem uma verdadeira família. Que seus corações se abram sempre para receber o respeito, a fraternidade e o perdão, sem o preconceito, que fere a alma humana. Essas são virtudes necessárias para aquele que pretende alcançar a felicidade. Cultivem o Evangelho de Jesus, permitindo que o Divino Amigo possa guiá-los na senda do bem. Nossa alma, na realidade, é um imenso jardim onde nós, os jardineiros, devemos com precisão e paciência cuidar das flores que
poderão brotar nessa terra fértil, se soubermos retirar com sabedoria os espinhos que se cravam no egoísmo e mutilam nossa alma. Sejam felizes, queridos irmãos, percebam as marcas de Deus pelo caminho, em todos os cantos do universo, e a felicidade se fará em suas vidas. Josafá abraçou o casal, e os dois, emocionados, agradeceram as palavras de carinho. Antunes convidou os amigos presentes para uma pequena recepção em sua casa.
Durante toda a festa, Marília notou que Luiz não tirava os lhos dela, o que a envaidecia. Como ele está bonito, pensava. A passagem do tempo favoreceu mais ainda o seu porte físico. Como seria a minha vida se tivesse me casado com ele? Com certeza não passaria de uma dona de casa envolvida com o trabalho doméstico e a educação de filhos, igual a tantas nesta cidade. Mas não
posso negar a mim mesma que ele ainda mexe comigo, apesar de achar que agi certo. Luiz aproximou-se, tirando-a de seus devaneios.
- Oi, Marília, como você está?
- Olá, Luiz, que bom revê-lo! Estou muito bem, e você?
- Bem. Levo minha vida da maneira como escolhi.
- Vejo que está sozinho. Não se casou?
- Não, Marília. Não encontrei ainda alguém que tocasse meu coração, mas não me preocupo com isso. No tempo certo aparecerá alguém que valha a pena.
- Parece amargo!
- Amargo, não, apenas não me iludo mais. Hoje sou um homem bem objetivo, sei o que não quero, e o que quero um dia vai aparecer. Agora me fale de você.
- Desculpe-me, Luiz, mas detesto falar de mim. Posso dizer apenas que sou feliz e realizada. Agora, se me der licença, vou cumprimentar alguns amigos de outrora.
E Marília afastou-se. Continua linda, incrivelmente linda. Não me pareceu tão feliz como quis demonstrar, mas, se realmente não estiver, estou pronto para cuidar disso, pensou ele. A recepção transcorria em meio ao entusiasmo e alegria geral. Após algum tempo, Júlia e Carlos apareceram prontos para seguir viagem.
- Viva os noivos! - alguém gritou.
- Viva! - exclamaram os demais.
Assim que o casal partiu, após as despedidas, a maioria dos convidados se retirou. Luiz, sentado em um canto, não cansava de admirar a beleza de Marília. Todo o sentimento que nutrira por ela no passado e que julgava esquecido aflorava em seu coração com a mesma força. Preciso descobrir seu endereço. Só não imagino como, no entanto, pois nem seus pais têm conhecimento. Mas tenho que descobrir uma maneira de encontrá-la na capital. Marília, por sua vez, também olhava para Luiz, sentindo despertar em seu peito um forte desejo de ficar com ele. Depois de trocarem olhares e sorrisos, Luiz decidiu convidá-la para sair, o que Marília de pronto aceitou.
- Marília, você é uma mulher casada - disse Marta ao vê-la saindo com Luiz. - Não fica bem, minha filha.
- Mãe, não vamos fazer nada de mais, apenas conversar um pouco, relembrar o
passado, matar saudade.
- Fique tranqüila, dona Marta, é apenas um encontro de amigos. Não vamos demorar apenas tomar um sorvete falou Luiz.
- Tudo bem - concordou Marta. - Mas, por favor, Marília, não demore.
- Prometo mãe.
Saíram. Enquanto saboreavam o sorvete, Luiz e Marília, muito animados, rememoravam o tempo do namoro da juventude. Reviveram os momentos passados no campo dos girassóis, das brincadeiras e, sobretudo, a impetuosidade de Marília, seus impulsos e sua teimosia. Constantemente seus olhares se cruzavam, e cada um parecia penetrar no íntimo do outro. Luiz, sentindo-se incentivado pela antiga namorada, segurou suas mãos, apertou-as com força e perguntou-lhe:
- Por que você fez aquilo comigo?
- Aquilo o que, Luiz, o que está dizendo?
- Estou dizendo que gostaria de saber por que me humilhou daquela maneira na frente dos convidados, justo no dia que imaginei que seria o mais feliz da minha vida. Diga-me por quê.
Sem jeito, Marília respondeu:
- Luiz, tanto tempo se passou... Por que tocar nesse assunto?
- Porque, apesar de muitas tentativas, não consegui esquecê-la. Na busca do seu sonho, você destruiu o meu. A ferida não cicatriza, preciso de uma resposta, preciso pelo menos entender. - Após breve pausa, tornou a indagar: - Por que, Marília?
- Tudo bem, Luiz, vai ter a sua resposta. Não quis me casar com você porque me recusava a aceitar a vida que com certeza iria me proporcionar. Perdoe-me, mas não nasci para me esconder atrás de um fogão, cuidar de crianças choramingando e suportar marido acomodado. Queria e precisava de muito mais; mais do que você podia me oferecer.
- Isso significa que nunca sentiu nada por mim? Enganou-me o tempo todo?
- Nunca o enganei, pois sempre lhe disse a verdade a respeito do que queria para minha vida, lembra?
- E quanto ao sentimento?
- O sentimento existiu, Luiz, e talvez ainda exista. Sufoquei meu coração para alcançar meu objetivo.
- E conseguiu?
- Claro! Não percebe como estou bem? Rica e feliz.
- Não sei... Noto em sua expressão algo que não consigo definir.
- Nossa Júlia me falou a mesma coisa! O que vocês querem de mim?
- Júlia eu não sei; eu, com certeza, quero você, Marília desesperadamente.
- Luiz, sou uma mulher casada! - afirmou, sem muita convicção.
- Após algum tempo de sua partida, descobri que Marcelo é casado, e acredito que você sempre soube. - Diante do embaraço que notou nela, Luiz continuou:
- Não precisa se intimidar, não a estou julgando, nem rotulando você de nada. Quero apenas você, nem que seja uma única vez. Pode ser que assim eu consiga tirá-la da cabeça.
Sentindo o aperto da mão de Luiz na sua, Marília, imprudente como de costume, permitiu que todo o seu corpo fosse tomado pelo mesmo desejo.
- Fique comigo, Marília, satisfaça minha paixão incontida.
Não tenho nada a perder, ela decidiu. Se fico por dinheiro, porque não ficar com o único homem por quem cheguei a sentir amor? O olhar que dirigiu a Luiz o encorajou a dizer:
- Vamos!
Entregue nos braços de Luiz, Marília se esquecera completamente das oras, de sua mãe e de sua vida.
- Você é maravilhosa! - disse-lhe Luiz, ao deixá-la no portão de sua casa. - Tenho inveja de Marcelo.
Sem responder, Marília desejou-lhe boa-noite e entrou. Para evitar acordar a mãe, não acendeu a luz nem fez barulho. Mas, ao se dirigir ao seu quarto, foi surpreendida pela voz de Marta, que, iluminando a sala, disse-lhe:
- Filha, por onde andou? O que foi que você fez?
- Mãe, que susto a senhora me deu! Por que está acordada até essas horas?
- Por que será, Marília, que apesar do meu cansaço pelo dia de hoje ainda estou aqui na sala à sua espera? Onde esteve?
Marília tentava encontrar uma desculpa que convencesse sua mãe.
- Ora, estava onde disse que estaria: na sorveteria. Que mal á nisso? Eu e Luiz relembrávamos o passado e perdemos a noção do tempo. Já sou bem crescidinha, mãe!
- Não haveria nada de mal se fosse verdade, mas sei que não é. E poupe-me de suas mentiras. Não subestime minha capacidade de raciocinar. Nasci e me criei aqui, Marília, sempre vivi nesta cidade, conheço seus costumes. Portanto, quero dizer que sei muito bem a que oras fecha a sorveteria: às vinte e três horas e trinta minutos; o que significa que isso aconteceu uma hora e quinze minutos após a saída de vocês daqui de casa.
- Mãe, não precisa ser tão minuciosa.
- Preciso, porque você parece não se dar conta de que são quase quatro da manhã.
- Nossa, perdi mesmo à hora...
- Não seja cínica! Diga-me o que oferece esta cidadezinha de tão interessante para prender a atenção de vocês por tanto tempo. Existe alguma explicação?
Marília percebeu que não iria adiantar dizer nada, porque na verdade havia uma única explicação. Sentou-se ao lado de Marta e, um pouco constrangida, falou:
- Desculpe-me. Realmente não estávamos na sorveteria, nós...
- Poupe-me de ouvir o lugar onde estavam, porque já imagino. Só não entendo a razão de ter feito isso, minha filha. Será que faz sempre tudo errado de uma maneira imprudente, diria mesmo, leviana?
- Não sei. Ficamos conversando, relembrando nossos momentos de namoro e, sem que percebêssemos, estávamos nos braços um do outro.
- E Marcelo?
- Ah, não seja tão ingênua! É claro que Marcelo não precisa saber de todos os meus passos; a vida é minha, e dela faço o que quiser. A vida é muito curta, e o melhor que temos a fazer é aproveitá-la o máximo, e é assim que ajo. Estou errada?
- Está, filha. Qual o preço que você paga por querer aproveitar a vida tão intensamente?
- O preço da minha felicidade, da satisfação dos meus desejos. Não é o que realmente importa?
- Não. O que realmente importa é conquistar a felicidade através do esforço, da luta para vencer nossas imperfeições, promovendo nosso aprimoramento moral. O que não estiver dentro desse conceito não é felicidade, e sim prazer efêmero.
Marília em segundos reavaliou seu trabalho e sua existência. Se minha mãe soubesse, morreria de tristeza. Marta insistiu:
- O que você me diz?
- Não tenho argumentos para contradizê-la, mãe. Minha personalidade é diferente, não sei se feliz ou infelizmente. Gosto de desafios, de viver de maneira intensa tudo o que me causa prazer. É assim que encaro a vida, e gosto.
Marta teve uma sensação desagradável. Foi tomada de um receio que a incomodou sem que ela mesma pudesse saber a razão. Segurou as mãos de sua filha e falou:
- Marília, não se pode perder a dignidade nem a integridade física e moral por conta de emoções levianas que geralmente atiram os imprudentes na dor muitas vezes irreparável. Todas as coisas são bonitas e possíveis desde que sejam feitas dentro dos padrões morais e éticos; do respeito pelos outros e por si mesmo. O amor verdadeiro não pode ser sufocado para dar lugar às paixões, que chegam avassaladoras, mas que vão embora com o mesmo furor.
- Por que está me dizendo isso, mãe; o que pensa de mim?
- Nada, filha, não penso nada. Pelo menos por enquanto, e gostaria de continuar assim, sem pensar nada.
- Por que então está me dizendo essas coisas? Não entendo!
- Preocupou-me sua atitude de hoje, Marília, que julgo perigosa.
- Foi só um momento, e nada mais.
- Por isso mesmo. Por ter sido somente um momento sem nenhum conteúdo e sem razão que o justificasse, mas que deixa marcas na alma.
Marília enrubesceu. Envergonhada do que havia feito, não conseguiu dizer mais nada.
- Boa noite, mãe, estou com sono. Amanhã partirei logo cedo, vou me recolher.
- Boa noite, filha. Seu pai e eu vamos levá-la até o local aonde o helicóptero virá buscá-la. A que oras pretende ir?
Marília pensou e achou melhor sair sem se despedir dos familiares. Eles irão fazer muitas perguntas, e não quero responder a nenhuma delas. Vou mudar o horário, assim poderei sair sem que me vejam.
- Pode dormir tranqüila, mãe, não sairei muito cedo. Imaginei que estariam cansados após a festa e combinei por volta das dez horas. Podemos sair daqui as nove e trinta, tudo bem?
- Claro filha. Eu me levanto às nove oras e preparo seu café.
- Obrigada. Poderia me acordar?
- A que horas?
- Assim que a senhora se levantar.
- Certo. Durma bem, querida. Não se esqueça de deixar anotado o seu endereço.
Logo que entrou em seu quarto, Marília arrumou suas coisas.
- Preciso sair daqui às sete e meia. O helicóptero chegará às oito.
Escreveu rápido um bilhete para seus pais, colocou-o sobre a mesa-de-cabeceira e se deitou.
- Marília, levante-se. São nove horas.
Sem receber resposta, Marta repetiu as batidas duas, três vezes, até que, estranhando o silêncio, abriu a porta do quarto. Negava-se a acreditar no que via. A cama de sua filha, arrumada; a janela aberta recebendo os primeiros raios de sol e, sobre a mesinha, um bilhete de Marília: "Amo muito vocês! Perdoem-me".
- Por que isso, meu Deus? - perguntava Marta a si mesma, sem conseguir imaginar qual o motivo dessa atitude da filha.
Vasculhou o aposento tentando encontrar em algum lugar o endereço de Marília. Desolada, constatou que ela não o deixara. Correu a chamar Antunes, que, como ela, também não entendia a reação da filha, indo embora sem ao menos se despedir. Um pensamento ruim passou pela cabeça de Marta. Antunes percebeu a expressão de preocupação da esposa e perguntou-lhe:
- Conheço você o suficiente para saber que alguma coisa a está preocupando. Pode me dizer?
Marta contou-lhe o acontecido na noite anterior.
- Não acho prudente esconder nada de você, Antunes. É muito estranho o modo
como Marília se comporta.
- O que quer dizer?
- Saiu com o Luiz como se fosse à coisa mais natural do mundo, fica com um homem mesmo sendo uma mulher casada, sem se importar com o que poderia pensar seu marido. Vai embora às escondidas, com certeza para evitar encontrar-se com você e ter que responder a mais perguntas, dar explicações. Tenho comigo que ela fez isso para não ter que fornecer seu endereço. Antunes,
Marília não quer nossa presença em sua casa na capital, e não me pergunte por que; não sei e tenho medo de saber.
- Marta, você não está pensando...
- Não estou pensando nada.
- Está. Está sim, e não venha me enganar, conheço muito bem você.
- Sinto muito, Antunes, não tenho nada de concreto, mas estranho a vida de Marília. Toda essa riqueza... Ela tem até um helicóptero! Tudo por ter uma empresa que não conhecemos e da qual nem sabemos o nome. Não acha esquisito?
- Tem razão. É, no mínimo, surpreendente.
- Para ela tudo é normal. Marília ter ficado com o Luiz durante quase toda a noite e a sua naturalidade a respeito causou-me espanto.
- O que podemos fazer Marta?
- Acho que nada. Nem sabemos onde ela mora! Tudo o que nos resta é orar por ela, para que compreenda que seus sonhos não a levam a lugar algum, para que
Marília viva a realidade.
Antunes abraçou a esposa, que, angustiada, permitiu que pesadas lágrimas descessem pelo seu rosto.
- Onde foi que erramos com Marília, Antunes? Em que momento perdemos o controle de sua vida, em que instante ela deixou de ouvir a nossa voz?
- Em nenhum momento, minha querida. O mesmo ensinamento que demos para os outros três filhos demos para Marília. A diferença é que ela fez a opção errada. Veja, enquanto Júlia escolheu a real felicidade, Marília preferiu o prazer, e infelizmente os frutos de sua imprudência ela vai ter que colher. O erro não foi nosso; foi nossa filha que não quis compreender.
- Por que será que as pessoas relutam em praticar o bem? Parecem ter vergonha de serem boas, amigas e fraternas...
- Porque são mal informadas, Marta, vivem distraídas e não percebem os valores reais que nos aproximam de Deus. Não devemos nos envergonhar de ser bons e ter fé; de amar a Deus e confiar Nele. Deus jamais se envergonhará de nós, apesar de todos os nossos erros. A paternidade é uma missão e um dever muito grande. Deus põe a criança sob a tutela dos pais para que estes a dirijam no caminho do bem. Se o filho sucumbir por culpa dos pais, terão de sofrer a pena, e os sofrimentos da criança na vida futura recairão sobre eles, porque não fizeram o que lhes competia fazer para o seu adiantamento nas vias do bem.
- Se uma criança se transviar, apesar dos cuidados dos pais, estes são responsáveis? Não. Mas, quanto piores as disposições da criança, mais a tarefa é pesada e maior será o mérito se conseguirem desviá-la do mau caminho. (O Livro dos Espíritos - Allan Kardec)

CAPÍTULO XI - DIAGNÓSTICO ATERRADOR

Marília retomou suas atividades normais. Sua conta bancária crescia a cada dia, todavia seu corpo começava a dar os primeiros sinais de cansaço e saturação em
virtude das constantes agressões físicas e morais. Marcelo e Daniel, como empresários de sua agência, como ela mesma denominava, escolhiam com cuidado os interessados, levando em conta a posição financeira que possuíam.
- Descobrimos a mina de ouro - dizia Daniel ao amigo.
- Sempre lhe disse isso - respondia Marcelo, orgulhoso por haver descoberto Marília.
- Está provado que não me enganei.
- Vou aproveitar e comentar algo que venho observando á algum tempo.
- Pode falar Daniel, o que é?
- É sobre Marília. Tenho a impressão de que algo não vai bem com ela.
- Explique-se melhor.
- Acho-a abatida, meio desanimada, não sei ao certo. Parece-me que está
perdendo o vigor. Você não notou nada de diferente?
- Sendo sincero, nem presto muita atenção a ela; com exceção dos lucros que nos dá, é claro.
- Eu também, Marcelo, mas ando preocupado com a saúde de Marília. Não se esqueça de que nossos lucros dependem do bem-estar dela.
- Tem razão, vou ficar mais atento - afirmou Marcelo, colocando um fim no assunto.
Naquele momento, Marília, sentada preguiçosamente na sala de seu apartamento, saboreava uma xícara de café enquanto consultava sua agenda.
- Meu Deus, dois clientes no final do dia... Estou tão cansada que gostaria mais de voltar para a cama e lá ficar o dia inteiro.
Sentiu-se tentada a desmarcar os compromissos, mas logo a "mosquinha da cobiça" deu-lhe uma mordidinha, e ela repensou. Não faz sentido cancelar. São clientes milionários que vêm de longe. É melhor não perder essa oportunidade. Vou tomar um banho reconfortante, descansar e logo estarei em forma. Seria imprudência passar meus melhores clientes para minhas "modelos" sem correr o risco de começar a decair. Às dezesseis horas estarei linda para receber o primeiro. Levantou-se de novo, jogou-se na cama e fechou os olhos. Trouxe à sua frente à figura de Luiz. Que noite linda passei com ele! Acho que sempre o
amei de verdade, só não consegui me dar conta dessa realidade. Agora, infelizmente, é tarde demais. Tomou uma decisão. No final deste ano vou largar
minha profissão e voltar para minha cidade, para tentar construir uma nova vida ao lado de Luiz. Tenho dinheiro suficiente para sustentar meus caprichos, quanto a isso não preciso me preocupar. Abandonou seus pensamentos ao ouvir o som
estridente do telefone.
- Marília? - ouviu a voz de Marcelo. - Você não sabe com quem fechei agora um encontro com você.
- Com quem? - indagou, sem muito ânimo.
- Lembra-se daquele empresário espanhol?
- Como não me lembrar de um homem tão bonito e cavalheiro como ele?
- Pois Juan que chegou ontem ao Brasil e retorna amanhã cedo para a Espanha. Ele quer se encontrar com você ainda hoje.
- Sinto muito, Marcelo, mas não vai dar. Sabe que não gosto de me exceder e já tenho dois encontros marcados.
- Marília, ele disse que paga o dobro, mas quer vê-la hoje.
- Sendo assim, não dá para recusar. Tudo bem. A que oras?
- As vinte e duas, pode ser?
- Claro tudo bem.
Faltando uma ora para o encontro com Juan, depois de haver estado com outros dois, Marília sentiu um ligeiro mal estar. Tomou outro banho e em seguida um remédio qualquer, acreditando ser o cansaço o causador do desconforto. Sem dar maior importância ao fato, aprontou-se e ficou à espera de seu admirador. Terminado o encontro no início da madrugada, tornou a sentir o incômodo, dessa vez um pouco mais acentuado. Ficou preocupada.
- Vou ligar para Marcelo - decidiu.
Assim o fez. Do outro lado da linha, ouviu-o atender, irritado.
- Você ficou doida?! O que quer a esta ora? Já a proibi de ligar para minha casa. Espero que seja realmente algo importante para ter a ousadia de me acordar assim!
- Não estou bem, Marcelo, preciso ir ao médico.
- Médico? A esta ora da madrugada, só pode estar maluca! Não posso sair agora, o que vou dizer para minha mulher?
- Nem imagino Marcelo. A única coisa que sei é que preciso ir a pronto-socorro, pois não estou bem.
- Vá se deitar e tente dormir; amanhã logo cedo irei vê-la. - E desligou, deixando Marília sem saber o que fazer.
Lembrou-se de Daniel e fez a ligação.
- Tente relaxar um pouco, Marília, você trabalha demais. Prazer também cansa minha amiga.
Nesse momento, Marília entendeu que não tinha ninguém a quem recorrer.
- Não tenho amigos. Meus sócios só se interessam pelo dinheiro que ganham com o meu trabalho, e os outros, apenas pelo meu corpo.
Pela primeira vez, ela se sentiu sozinha e tomou consciência do mal que fazia a si
mesma. Pensou em Luiz.
- Como fui tola em abandonar o, homem que me amou de verdade!
Deitou-se e tentou adormecer. Júlia, assim que retornou de sua viagem de núpcias, se instalou em uma pequena, mas graciosa casa, próxima à de seus pais. Retomara suas atividades com a comunidade e prosseguia sua caminhada de fraternidade, espalhando ao seu redor todo o bem que podia fazer. Carlos admirava a esposa e apoiava todos os seus projetos, sempre direcionados para beneficiar o próximo. Marta escondera de Júlia o que acontecera entre Marília e Luiz, assim como a maneira como a filha fora embora. Não queria aborrecê-la no
momento especial que vivia, nem queria falar nada sobre Marília, receando pensamentos desagradáveis sobre sua filha. Apenas ela e Antunes tinham conhecimento do caso. Certa tarde em que Júlia visitava seus pais, conversando sobre seu casamento, comentou como Marília continuava bonita.
- Ela não mudou nada, sempre elegante e atraente.
- Tem razão, filha, sua irmã está como sempre foi.
- Estive falando com Carlos sobre a possibilidade de irmos todos visitá-la na capital. Fazer-lhe uma surpresa. O que a senhora acha mãe?
Marta, desconcertada, não sabia o que responder, e tentou desconversar:
- Talvez não seja o momento certo.
- Momento certo? O que é isso, mãe? Sempre sonhou visitá-la, e agora diz que não é o momento certo. Marília veio ao meu casamento, deixou seu endereço... E a senhora não quer mais ir a sua casa? Desculpe-me, mas não a compreendo.
Marta não tinha como se justificar. Júlia voltou a questionar, logo que percebeu o embaraço de sua mãe:
- A senhora tem o endereço de Marília, não tem?
Diante do silêncio de Marta, Júlia, sempre perspicaz, tirou suas conclusões:
- Já posso imaginar o que aconteceu. Marília enrolou e não deixou seu endereço. Por favor, mãe, conte-me o que houve. Não adianta tentar esconder nada de mim, pois conheço muito bem a minha irmã.
- Não aconteceu nada, pare de cismar com Marília.
- Verdade que não aconteceu nada, dona Marta? Pois não acredito. A tristeza que vejo em seus olhos me diz o contrário, trai a senhora. - Segurou entre as suas as mãos da mãe. - Confie em mim. Conte-me o que aconteceu depois que parti. Bobagem esconder o que seus olhos me dizem.
Como uma criança, Marta enxugou algumas lágrimas que caíam discretas, em seu rosto, e pôs Júlia a par de tudo.
- Ela teve coragem de ficar com Luiz, traindo o marido?!
- Sim, Júlia.
- Marília está passando todos os limites da prudência e do bom senso; age como uma pessoa completamente leviana. E ainda teve coragem de enganar a senhora, indo embora na surdina!
- Receio pelo que ela possa estar fazendo, Júlia.
- Temos que ter receio mesmo, mãe. Alguma coisa há que ela não quer que saibamos.
Diante do choro mais intenso de sua mãe, Júlia abraçou-a tentando acalmá-la:
- Fique tranqüila. Eu e Carlos vamos dar um jeito de descobrir o paradeiro dela e o que vem fazendo com sua vida.
- Obrigada, minha filha. Você sempre foi um anjo.
- Não, mãe, anjos são vocês, que me deram educação, amor e me ensinaram a ter limites com exemplos de amor e respeito.
- E Marília? Por que não aprendeu, como você?
- Ela apenas está usando o livre-arbítrio de forma errada, enganosa. A responsabilidade é dela, vocês estão isentos de culpa, pois sempre ensinaram o bem. E da lei, mãe, que cada um colha o resultado do seu plantio. Foi isso o que Jesus ensinou, e Marília não vai fugir à regra.
- Estou mais aliviada, Júlia. É muito bom poder dividir nossas aflições com alguém em quem confiamos desafogar nosso coração.
- Como lhe disse, fique tranqüila. Conversarei com o Carlos e arranjaremos um
meio de encontrar Marília.
Marília a cada dia sentia-se mais fraca e desanimada. O médico que a examinara
diagnosticara uma virose. Pedira-lhe alguns exames, temendo uma infecção. Assim que ficaram prontos os resultados, ela retornou ao consultório, acompanhada de Marcelo. Qual não foi seu espanto ao ouvir do doutor o diagnóstico: soropositiva. Marília era portadora do vírus HIV... Marília desmaiou.
Atendida prontamente, mal conseguia ouvir as orientações que o médico lhe passava:
- No seu caso, Marília, a doença já se manifestou. Está com a imunidade muito baixa.
- Como sabe?
- Através da contagem dos linfócitos CD4 e carga viral. Eles me dão a idéia de como está à defesa do seu organismo, e infelizmente não é nada boa. A enfermidade já se manifestou, e sua baixa imunidade é responsável pela infecção importante da qual sofre.
- Não quero ouvir mais nada! - disse Marília, e saiu do consultório arrasada.
Marcelo, ao alcançá-la, lhe disse impiedoso:
- Chegou o fim de sua carreira, Marília. Você sabe que não podemos trabalhar com pessoas doentes, que colocariam em risco os clientes.
- O que vou fazer agora?
- Isso é um problema seu, minha querida. Você tem dinheiro suficiente para se
tratar, mas eu não tenho dom para enfermeiro. Terminamos aqui.
Marília, caindo das nuvens, compreendeu que sua ilusão chegara ao fim da maneira mais cruel. Alcançara o limite da própria ilusão; ou voltava para a realidade da vida ou se precipitava no abismo de seus sonhos irreais e desfeitos.
Marcelo continuou:
- Vou cancelar seus encontros. A partir deste momento é com você, faça o que achar melhor. Mas, se continuar, será por sua conta e risco.
- Marília, o que faz seu dinheiro guardado no banco? Este é o momento de usá-lo com algo mais sério e importante. Financeiramente você não está na rua da amargura, possui mais que o necessário para se cuidar.
Marília percebeu que a partir daquele instante estava completamente só. Marcelo e Daniel nada fariam para ajudá-la, pois para eles não passava de um corpo que se tornara fonte de dinheiro fácil. O que farei meu Deus? Meus sonhos ruíram, minhas ilusões desabaram sobre minha cabeça, e a solidão, daqui para frente, será minha única companheira, mesmo rodeada por inúmeros empregados. Dei
importância apenas ao meu corpo, e até ele me traiu, pensou ela. Ao chegar a casa, chorou até adormecer de cansaço. Após tomar conhecimento de tudo o que Júlia lhe contara, Carlos teve uma idéia que acreditava ser muito boa:
- Vou telefonar para Marcelo sem me identificar. Direi que sou um velho amigo de Marília, que estou na cidade e gostaria muito de revê-la. O que acha?
- Você deve tentar meu amor, pode dar certo. Quero muito amenizar a angústia dos meus pais. No dia seguinte,
Carlos colocou em prática o plano que imaginara:
- Marcelo, aqui quem está falando é um velho amigo de Marília. Cheguei à cidade há dois dias e gostaria muito de encontrar-me com ela. Sei que ficará feliz em me rever. Esqueci-me de trazer seu endereço. Você poderia fazer a gentileza de fornecê-lo?
- Sem problemas, senhor...
- Antônio.
- Senhor Antônio, devo avisá-lo, contudo, de que Marília não está atendendo mais.
Carlos sentiu como se tivesse levando uma tapa no rosto, tal o susto que levou com a colocação de Marcelo. Querendo saber mais, insistiu:
- Como assim? Por quê?
- Ela vai fechar a agência, e estou cancelando todos os seus encontros. Não está sendo fácil, pois os fregueses usuais estão revoltados. Marília é muito requisitada. Afinal, é uma bela mulher, e tem sempre a agenda lotada.
- Perdoe-me a insistência, mas o que houve para ela tomar essa decisão?
- Está doente. Contraiu o vírus HIV, e a doença já se manifestou.
Carlos precisou se segurar para não deixar escapar toda a sua indignação. Com o propósito de alcançar seu objetivo, continuou:
- Mesmo assim gostaria de me encontrar com ela. Somos muito amigos. Poderia dar-me o endereço?
- Tudo bem, pode anotar.
Assim que teve a informação nas mãos, Carlos desligou o telefone, sentou-se ao lado de Júlia e, com profunda tristeza, disse-lhe:
- Querida, consegui o endereço, mas prepare-se para o pior.
- Por que diz isso? O que está havendo?
Ao tomar conhecimento do que se tratava Júlia, em um primeiro impulso, chorou
todas as lágrimas possíveis.
- Minha irmã é uma garota de programa, não é possível! - exclamou, indignada. - O que vamos fazer Carlos?
- O que é certo. Contar a verdade a seus pais, e em seguida ir até a capital buscá-la.
- Eles morrerão de tristeza...
- Não, Júlia, nada disso. Sofrerão, sim, mas irão se agigantar para cuidar da filha, e nós os ajudaremos nessa tarefa.
A reação de Marta e Antunes não foi diferente do que esperavam. Depois de darem vazão à angústia que se apossara de seus corações, Antunes disse a Carlos:
- Agradecemos muito a você, meu genro, por nos proporcionar a oportunidade de cuidar de nossa filha. Não concordamos com o que ela andou fazendo e nos
entristece muito saber que Marília enveredou por um caminho perigoso e sem dignidade, mas é nossa filha, e tudo faremos para que possa retomar o caminho seguro da moral cristã.
- Não me agradeça seu Antunes. Sou da família, e o que os atinge toca a mim também. Fiz o que deveria ser feito, e deixo claro que pode contar conosco em tudo o que precisar, em qualquer situação.
- Esperava isso de você, Carlos, e mais uma vez agradeço. Júlia mereceu se unir a um homem tão digno.
- Nós iremos buscá-la - disse Júlia.
- Quando?
- Amanhã mesmo. Sairemos pela manhã e logo após o almoço estaremos lá.
- Quero ir com vocês - pediu Marta, chorosa.
- Não, mãe, é melhor a senhora ficar. Iremos nós dois. Acredito que Marília se sentirá mais à vontade para conversar.
- Júlia tem razão, Marta, é melhor ficar e esperar. Eles sabem o que fazer.
- Quero conversar com ela, mãe, saber o que está sentindo e verificar a real intenção dela, porque, se continuar com a teimosia de sempre, muito pouco poderemos fazer.
- Confie em Júlia, dona Marta. Ela sempre sabe o que dizer na hora certa.
- Voltaremos assim que deixarmos tudo resolvido por lá.
- Jesus os acompanhe, meus filhos, e permita que tudo se resolva para a felicidade de todos.
- Agora tente se acalmar, mãe, Marília precisará muito do seu apoio e da sua compreensão. Ela tem um gênio difícil, e não deve estar sendo fácil para minha irmã admitir que errou nas suas ilusões.
- É verdade, Marta, nossa filha enganou-se no plantio, e agora é a hora da colheita. Não podemos colher por ela, mas devemos ajudá-la a carregar o peso da imprudência, mostrando-lhe que o sentimento do amor verdadeiro abre as portas da felicidade, ao contrário da alegria efêmera do prazer, que, mais cedo ou mais tarde, cobra dos incautos sua leviandade.
- Vão com Deus - repetiu Marta -, que tudo aconteça de acordo com a vontade de nosso Pai.
No dia seguinte, como previsto, Júlia e Carlos seguiram para a capital. Ao chegarem ao prédio onde Marília morava, espantaram-se com tanto luxo. Subiram até o andar indicado pelo porteiro e, antes mesmo que tocassem a campainha, a porta se abriu e saiu um homem bem-vestido, que, se voltando, disse a alguém que deveria estar do lado de dentro:
- Até outro dia, garota. E pare com a conversa de se aposentar, porque não vou aceitar. Sabe que quero você, e para isso pago o que for preciso.
A porta se fechou sem que eles ouvissem resposta. Júlia precisou de algum tempo para se recompor, tal o susto que levou ao confirmar o que temiam. Carlos, atencioso, passou o braço pelo ombro da esposa.
- Vamos, meu bem, estamos aqui e precisamos ir até o fim.
- Tem razão, Carlos, toque a campainha.
Esperaram alguns minutos, e foi à própria Marília quem atendeu, longe de imaginar a surpresa que teria. Vestia um robe azul-claro. Os cabelos estavam soltos, e o rosto, completamente limpo, sem nenhuma maquiagem. Linda como sempre.
- O que vocês estão fazendo aqui?! - perguntou, embaraçada.
Foi Carlos quem respondeu:
- Viemos buscá-la, Marília.
- O quê?
- Isso mesmo que você ouviu - completou Júlia.
- Como descobriram meu endereço?
- Isso não importa Marília. O importante agora é levá-la daqui o mais rápido possível.
- Não me lembro de ter pedido nada a vocês.
- O seu orgulho não iria permitir que pedisse, por isso tomamos a iniciativa.
- Não vai nos convidar a entrar? - Carlos indagou.
- Desculpem. Entrem, por favor - convidou Marília, com timidez.
Ao entrar não puderam deixar de observar o requinte da decoração do apartamento, fruto do trabalho leviano e da grande ambição de Marília.
- Parabéns. Sua casa é muito elegante. - Carlos sorriu-lhe.
Júlia, não contendo sua indignação, revidou:
- Mas fruto da vaidade, do desejo e da volúpia; conseqüência da imprudência e da leviandade de Marília.
- Júlia!
- É verdade, Carlos. De que adianta todo esse luxo, Marília, se os ensinamentos de nossos pais ficaram perdidos lá atrás, sufocados na ilusão boba e sem conteúdo de uma menina vaidosa e prepotente?
- Júlia! - Carlos tornou a exclamar, espantado com a atitude da esposa.
- Confirmo tudo o que disse. Chegou a ora da verdade, minha irmã. Qual é, na realidade, o seu trabalho? Que agência é essa que ninguém conhece nem nome têm? Pelo que acabamos de ver minutos atrás, só podemos tirar uma conclusão:
trata-se de uma agência de garotas de programa. E isso dá cadeia, Marília!
Marília permanecia silenciosa e envergonhada. Sabia que sua irmã estava certa,
coberta de razão. Comprometera seu futuro, e, quanto ao seu passado, sabia ser impossível apagá-lo. Carlos aproximou-se de Júlia para lhe dizer:
- Chega, meu bem, ela já ouviu o necessário.
- Não, Carlos, não ouviu. - Voltando-se para a irmã, seguiu em frente: - Marília sabemos tudo o que está acontecendo com você, ou seja, que está doente. viemos buscá-la para viver conosco, retomando a postura digna de gente de bem, em meio à família construída com muito amor pelos nossos pais. Mas de nada adiantará se você não reformular seus conceitos, sua maneira de encarar a vida, querendo preservar sua integridade física e moral e voltar a ser aquela menina mimada, sim, mas que corria alegre pelos campos dos girassóis. Para que isso aconteça, minha irmã terá que mudar seus valores e aprender a respeitar o próximo, e principalmente a si própria. A beleza maior, e que não acaba com o passar do tempo, é a beleza da alma, e é para ela que se deve dar maior atenção. Por isso, pergunto: quer voltar conosco e retomar sua vida de dignidade ao lado de seus pais e irmãos, que a amam e querem a sua felicidade ou prefere continuar alimentando os sonhos e ilusões vazias que lhe trouxeram
enfermidade e solidão? Quer ser alguém, importante para nós ou prefere continuar na sua posição de objeto de prazer para vários?
- Está sendo muito dura com ela, Júlia!
Marília, até então em silêncio, respondeu:
- Não, Carlos, ela não está sendo dura, mas apenas me mostrando outro caminho. Júlia não disse nada que não fosse à expressão absoluta da verdade, e agradeço por isso.
Aproximou-se da irmã e deu-lhe um abraço apertado, como se quisesse se deitar no colo de alguém que de fato a amasse.
- Obrigada, Júlia. Levem-me com vocês; não sei como sair deste tormento sozinha, mas afirmo que não quero mais. Apenas tenho receio pelos meus pais.
- Quanto a eles, fique tranqüila, estão ansiosos por tê-la casa. Querem cuidar de você; todos nós queremos Marília.
Retribuindo o abraço, Júlia passou as mãos pelos cabelos da irmã.
- Acalme-se, Marília, confie naqueles que nunca deixaram de amá-la e estão dispostos a ajudá-la nesse retorno. Gostaria apenas que me dissesse uma coisa.
- Diga Júlia, peça o que quiser.
- Conte-nos como foi que entrou nesse trabalho, que, mais que o dinheiro, provoca marcas profundas na alma.
Sentaram-se próximos um do outro, e Marília narrou toda a sua trajetória, desde o dia em que deixara a cidade com Marcelo. E sua descoberta do que realmente era o trabalho que ele dizia ser de modelo.
- Marcelo é um mau-caráter - considerou Carlos.
- Concordo com você, meu amor. Mas a culpa não foi só dele. Marília não quis enxergar, permitiu que tudo fosse acontecendo, porque considerou mais importante a posição, o brilho, o luxo que proporcionava, do que a própria dignidade.
- Júlia tem razão, Carlos, a culpa maior, e talvez única, é minha. Não lutei por mim, e sim por uma conta bancária. Desde nova agi sempre com imprudência e leviandade, não ouvia ninguém, nem mesmo Júlia, que tantas vezes conversou comigo. Escondi-me atrás de minha beleza, esqueci-me de que tudo passa e somente nosso aprimoramento moral é definitivo. Peço perdão e ajuda - completou Marília com humildade.
- Muito bem, tudo ficou explicado. Você se posicionou em favor da mudança, conscientizou-se do abismo no qual se meteu. Acredito eu que seu desejo de se transformar seja verdadeiro e que pretende mesmo retomar sua vida que ficou lá para trás. Sendo assim, vamos tomar as primeiras providências e retornar o mais breve possível.
- Júlia, explique-me apenas como conseguiram me encontrar, se nunca dei meu endereço, justo pelo medo de que isso acontecesse.
Carlos falou de seu telefonema e a conversa que teve com Marcelo.
- Vamos colocar uma pedra sobre tudo isso, Marília.
- Júlia, tenho medo dos moradores da nossa cidade, que ao saberem dos fatos, irão me desprezar. Ficarei falada e humilhada. Estou perdida!
- Eles ficarão sabendo se nós contarmos, querida, e é claro que não faremos isso. Nem Felipe e Rafael têm conhecimento dessa história. Você voltou e pronto.
- Tornei-me a vergonha de nossos pais! - exclamou Marília.
- Não vou dizer a você que eles estão felizes com essa situação, porque não seria a verdade. Sofrem muito, e seria de estranhar se agisse diferente; mas o amor por você é maior que as lágrimas que derramam, e os dois anseiam tê-la perto para ajudá-la a se reerguer.
- Júlia, por que essas coisas acontecem com as pessoas? Como me deixei levar por tanta ilusão, por tanto sonho? Sou a pior cega, aquela que não enxerga porque não quer.
- Marília, muita coisa acontece com as pessoas porque os homens andam distraídos e prestam atenção somente a seus interesses, deixando de lado os valores morais e espirituais, que nos fazem perceber outras pessoas caminhando como nós na grande casa de Deus. Nós nos aproximamos de Jesus através do bem que fazemos ao nosso próximo, do exercício da fraternidade, e não da satisfação de nossos próprios desejos, nem sempre louváveis.
- Eu sou uma dessas pessoas!
- Chegou ao limite da sua ilusão, minha irmã. Agora só você poderá reverter essa situação que criou. Mas tenha muito cuidado para não cair na auto-compaixão, não se julgar vítima de um sistema, porque a porta de entrada quem abriu foi você.
- Não sei como começar, Júlia.
- Comece com a mesma determinação com a qual sempre lutou para alcançar o que considerava felicidade. Use-a agora para transformar essa aflição em aprimoramento moral, crescimento espiritual. Sua experiência lhe dará o rumo certo, mais seguro. Porém, para que tudo isso aconteça dentro do equilíbrio, é necessário querer com firmeza; haver conscientização do engano cometido e entender que os sonhos equilibrados e justos trazem e representam crescimento
evolutivo do ser na questão física e espiritual. Passe, Marília, a sonhar em se tornar uma pessoa melhor e lute com todas as forcas para que isso aconteça. Inicie compreendendo que ouvir conselhos não significa obedecer a ordens, e passe a escutar as vozes que lhe querem bem.
Marília e Carlos ouviam atentos e impressionados com a sabedoria de Júlia.
- Querida, agradeço a Deus por tê-la conhecido e me apaixonado por você.
- E eu fui tola o suficiente para não ouvi-la... - concluiu Marília.
- Não se deixem enganar, não sou sábia. Tento apenas colocar em prática o que estudo no Evangelho de Jesus. Conhecer Jesus e não segui-lo é apagar a luz do
próprio caminho. Deus deu a todas as Suas criaturas o livre-arbítrio, ou seja, podemos escolher o caminho que queremos seguir, mas nem sempre fazemos a
opção certa, nem sempre pisamos em terreno fértil. A decisão sempre será nossa, mas é verdade que cada um irá colher os frutos da árvore que plantou; é da lei. Mas cobertos pelo amor e plena misericórdia de Deus, sempre teremos a chance de recomeçar quantas vezes forem necessárias. A cada tombo sairemos
mais fortalecidos se compreendermos que a culpa é toda nossa na ação de empregar mal o nosso livre-arbítrio, por termos permitido que a imprudência e a
leviandade exercessem presença forte nas decisões.
Marília, não podendo agüentar mais, caiu num choro convulsivo.
- Marília, não se desespere. Esse caminho chegou ao fim tudo dará certo.
- Eu sei Carlos. Minhas lágrimas são porque sei que estou no fim, não só desse caminho, mas também da minha vida.
- Por que diz isso?!
- Estou com AIDS, meu cunhado. Não sou somente soro positiva. A doença já se manifestou.
- Nós já sabemos Marília, mas nem tudo está perdido. Hoje os tratamentos são mais eficazes, vamos confiar. Lutaremos contra essa doença.
- Marília, sabe que pode contar conosco. Usaremos de todos os esforços em seu tratamento. Ajudaremos você a passar essa fase com dignidade.
- Agradeço muito a você e a Carlos. Sei que não mereço o que estão fazendo por mim, mas mesmo assim agradeço muito mesmo, e aceito o auxílio.
- Bem, já falamos tudo o que era necessário. Vamos agora decidir as coisas práticas. O que pretende fazer com seu patrimônio?
- Penso ser mais prudente vender tudo, Carlos. Não pretendo mais voltar a esta cidade, porque não quero que vejam a minha decadência.
Júlia interferiu de novo:
- Marília, você está enganada, invertendo os valores. Está saindo da decadência e
entrando na dignidade espiritual e moral.
- Só preciso de um tempo para coordenar minhas idéias, modificar meus conceitos, como você disse, e me transformar em uma pessoa melhor.
- Claro, meu bem, ninguém muda de uma hora para outra. O importante é se conscientizar da necessidade da mudança e querer mudar.
- Eu quero Júlia, pode confiar em mim.
- Confio em você, Marília. Sei que é uma boa menina, apenas se enroscou ao redor de si mesma e se viu presa na própria teia da inconseqüência. Mas sempre há uma saída para aqueles que confiam e se esforçam para seguir Jesus.
- Posso lhe dar um beijo?
- Não tem medo?
- Medo de quê?
- De se contaminar.
- O que é isso, Marília? Beijo não contamina.
Abraçaram-se fraternalmente.
- Carlos, poderia cuidar dos negócios para mim?
- Marília, só poderei fazer isso através de uma procuração.
- Eu sei, vamos até o cartório, e passarei uma procuração para você com plenos poderes para fazer o que achar melhor.
- Você confia nele, irmã?
- Evidente que sim, Júlia, plenamente.
Nos quatro ou cinco dias que se seguiram, tomaram todas as providências necessárias para o andamento dos bens de Marília. Na manhã ensolarada de uma quinta-feira do mês de outubro, Marília despediu-se da capital, levando suas coisas pessoais nas malas e seus sonhos e ilusões desfeitas no coração sofrido.

Quando se inicia a vida sexual, deve-se fazê-lo com responsabilidade, sem transformar o corpo na fonte única de prazer, mas sim no instrumento de completa integração física e espiritual com o ser que se ama. Deve-se dar ao amor sua real dimensão; quando se age assim, cuida-se da saúde e preserva-se a integridade moral da própria pessoa e daquele que se lança com ela nesse sentimento. Agir com equilíbrio e sensatez é trazer felicidade para a própria vida; permitir o abuso, o desregramento e o vício é abrir espaço para as doenças, a infelicidade e o sofrimento do corpo e da alma. (Irmão Ivo)

CAPÍTULO XII - BRILHA A LUZ EM UMA ALMA FERIDA

Marília chegou de volta à pacata cidade onde nascera cabisbaixa e insegura. O lugar que tanto desprezara seria agora o palco de uma colheita de sofrimento.
Embora seus corações estivessem sangrando uma dor profunda, Marta e Antunes receberam a filha com os braços aconchegantes e um sorriso que reconfortava o coração de Marília, que mal suportava o medo que sentia do futuro.
- Filha! - disse Marta, abraçando-a com carinho. - Que grande bênção poder tê-la de novo conosco!
- É verdade, filha, sua mãe tem razão. Estamos felizes em reunir nossa família outra vez. Seu lugar sempre foi aqui, do lado daqueles que a amam e querem estar com você em qualquer circunstância. - Abraçou-a e fez menção de beijá-la,
mas Marília instintivamente o repeliu.
Surpreendido, Antunes indagou:
- Por que isso? Um pai que esperou tanto por este momento não pode beijar a filha que ama?
- Quero apenas preservá-lo, pai. É mais prudente não ter nenhum contato comigo, o senhor deve saber o que quis dizer. É perigoso.
Amorosamente, Antunes pegou-a pelas mãos, fez com que se sentasse a seu lado e lhe disse:
- O beijo não é transmissor do vírus; só no caso de se ferida na boca. A quantidade de vírus na saliva é mínima, portanto, deixe-me beijar o rosto de minha menina querida e dê-me a alegria de receber um beijo seu filhinha.
Marília fechou os olhos e, emocionada, recebeu o beijo de seu pai.
- Como o senhor sabe que o beijo não contamina? - perguntou em seguida.
- Porque desde que soube desse problema procurei me informar, só isso.
- Quer dizer que posso tocar as pessoas e beijá-las no rosto?
- Claro filha. A transmissão se faz pelo contato com sangue contaminado, através da secreção vaginal e do esperma do homem, e também do uso das drogas, quando se compartilham agulhas e seringas. AIDS não se pega no toque. Entretanto o simples toque pode dizer àquele que o recebe que o amamos sem julgamento ou preconceito; o que queremos é o seu bem-estar, porque ele é importante para nós. Fique confiante, minha filha, amanhã mesmo sua mãe e eu a levaremos ao nosso médico. Ele lhe explicará tudo direitinho. Você não ficará desamparada, tudo faremos para auxiliá-la nesse momento difícil.
- O que importa minha irmã - disse Júlia -, é não perder a fé em Deus; é aliar o tratamento físico à esperança e à fé. Confie no Divino Amigo e se entregue livre ao amor de Deus.
- Ajudem-me - suplicou Marília, chorosa. - Quero sair desse vendaval que me arrasta; esquecer o que fiz e o que sou. Perdoem-me!
- Filha, no coração que tem fé não cabe o desespero, mas sim a esperança de que tudo poderá se transformar se assim o quisermos. O que está feito não se pode mudar, mas pode-se impedir a repetição das atitudes ruins, que muitas vezes tomamos por cegueira espiritual.
- Eu quero mudar, pai.
- Então conseguirá.
- Mas e a doença? Como vencê-la?
- A enfermidade, minha filha, é a fermentação de muitas existências vividas desregradamente. É a resposta, a conseqüência. Por isso, às vezes a dor é a própria cura.
- O que quer dizer?
- Quero dizer que ela se instalou porque alguma porta foi aberta. Vamos lutar para vencê-la, mas, se não acontecer à cura, não se pode amaldiçoar nada, porque não sabemos a importância da dor e do sofrimento na nossa evolução espiritual e na recuperação da nossa alma. Concluímos Marília, que as dores e as
aflições da nossa vida são as respostas dos atos infelizes que praticamos.
Júlia levantou-se e, tentando trazer alegria para o ambiente; disse, com um sorriso nos lábios:
- Vamos encerrar esse assunto. Sugiro fazermos uma prece ao Senhor para que
nos ampare e nos fortaleça a fim de enfrentarmos nossos problemas com dignidade cristã.
Todos concordaram. Deram-se as mãos e oraram.
- Senhor de todos os mundos E de todos os seres, Enfraquecidos estamos porque temos medo. De nos perder nesse sofrimento Que julgamos não suportar. Venha em nosso auxílio, Senhor, Ajude-nos a limpar da nossa alma Os sentimentos menores que porventura venham A nos atirar na indignação. Clamamos por Sua piedade. Socorre-nos! Confiamos no Senhor E mergulhamos na certeza de que o amparo virá. Fechamos nossos olhos à dor E abrimos nosso coração para aquecê-lo No sopro doce do Seu amor.
Dez dias se passaram sem que Luiz fosse visitar Marília. Instalada em seu antigo
quarto, ela repousava, convalescendo da infecção que abalara sua saúde. Sempre que se encontrava a sós, seus pensamentos brincavam em sua mente confundindo-a e provocando-lhe ansiedade e angústia.
- O que será de mim daqui em diante? - indagava a si mesma. - Que futuro me aguarda?
Nesses momentos, lágrimas amargas desciam pelo seu rosto. Como fui tola, caprichosa e frívola! De que vai me adiantar agora essa beleza se meu corpo está saturado de tanta futilidade e falta de respeito comigo mesma? Pensava ela. Marta, entrando em seu quarto, interrompeu as divagações da filha:
- Com se sente hoje? Está melhor?
- Aos poucos vou melhorando, mãe; graças aos cuidados da senhora e do papai. - Esticou os braços e tomou a mão dela. - Sente-se aqui ao meu lado, por favor.
- Claro filha. O que foi? Quer me dizer alguma coisa? Se quiser, não se intimide. Diga.
- Mãe, preciso pedir mais uma vez que me perdoe por tudo o que fiz vocês sofrerem. Hoje sei que não tinha o direito de; atingi-los tão impiedosamente e me envergonho demais por isso. Não sei o que fazer para compensá-los por tanta aflição que sentiram por minha causa. Perdoe-me, mãe, perdoe-me! Marta, emocionada, respondeu:
- Minha filha, já conversamos sobre isso, e tudo já foi falado e explicado. Nós já a desculpamos, e creia que será para nós sempre a nossa filha querida. Não se
culpe tanto, porque agora o melhor a fazer é lutar a favor da sua recuperação, física, moral e espiritual.
- Estou deixando me levar pela auto-compaixão, e segundo diz Júlia isso não é bom.
- Ela tem razão, Marília. Em vez de deter sua atenção no passado, olhe para o futuro e selecione seus melhores pensamentos e sentimentos para sua recuperação.
- O que seria de mim sem vocês? Marcelo me "amava" enquanto era útil para ele, mas ao perceber meu declínio afastou-se sem ao menos prestar auxílio, por
menor que fosse. Deixei de existir para ele e Daniel.
- E que foi que ganhou existindo para eles? Eu mesma respondo: nada, a não ser o dinheiro. E o que vale o dinheiro ganho de maneira menos digna em detrimento dos valores morais que ficaram para trás? Não questione mais isso, filha, siga essa nova etapa de sua vida com confiança e fé no Criador; traga-o para seu coração, de onde Ele nunca deveria ter saído, e Ele enviará auxílio.
- Mãe, Marcelo não terá que prestar contas também?
- Sem dúvida, mas deixe que a vida se encarregará de puni-lo, mais cedo ou mais tarde. Entregue tudo nas mãos de Deus, Ele sabe o que é melhor para cada uma de suas criaturas. Não pense mais em Marcelo; foi por ele que você se precipitou no abismo.
- A senhora tem razão, vou esquecê-lo de uma vez.
- Mudando o rumo de nossa conversa, vim aqui informá-la de que hoje à tarde iremos ao médico.
- Já marcou consulta?
- Sim. Seu pai e eu iremos com você. Irá gostar dele; aliás, deve se lembrar do doutor Alcides, pois é nosso médico há muitos anos.
- Claro, lembro-me dele, sim.
- Vou descer e preparar-lhe um suco.
- Obrigada, mãe.
Assim que Marta se foi, Marília exalou um suspiro.
- Meu Deus, por que fui tão cega a ponto de não perceber a família que tenho? Vou levar essa culpa para sempre.
Na hora marcada, Antunes, Marta e Marília entraram no consultório do Dr. Alcides. Após os cumprimentos e o minucioso exame feito pelo médico, ele conversou com Marília, explicando-lhe mais delicadamente sua situação.
- Marília, de início aconselho-a a não se entregar ao desânimo, à tristeza e ao medo. É importante manter a confiança e a esperança. Quero dizer que seu estado emocional é de grande importância. Vamos dar muita atenção ao grau de comprometimento imunológico, sua carga viral, enfim, estará sob nossos cuidados, mas peço-lhe que controle seu estado emocional e ajude-me a ajudá-la. Veja bem, o vírus HIV ataca o organismo procurando as células e destruindo toda a defesa. A pessoa soropositiva deve se prevenir para evitar a recontaminação, que pode agravar seu estado de saúde. A infecção pelo HIV, se descoberta a tempo, pode ser controlada, o que evitará que evolua para AIDS; mas infelizmente não é o seu caso, porque a doença já se manifestou.
- Quer dizer que é o início do meu fim?
- Somente Deus poderá dar-lhe essa resposta, Marília. Mas faço-lhe outra pergunta: o que é o princípio, e o que é o fim?
- Como assim, doutor?
- Marília, quando passamos por uma estrada espinhosa com humildade, aceitando a decisão divina sem revolta e compreendendo que não somos vítimas,
e muito menos inocentes, mas sim os responsáveis por nossos atos, com certeza chegamos ao fim dos nossos débitos quitando-os com coragem, e o fim dos nossos débitos equivale ao princípio da nossa elevação espiritual. Veja como o fim e o princípio se mistura, dando-nos oportunidade de entrar vitoriosos na grande casa de Deus.
- Obrigada, doutor, deixou-me mais calma. Seguirei todas as suas orientações. Lutarei enquanto puder.
- Gostei de ouvi-la.
Levantaram-se, e Marília, segurando as mãos de seus pais, deixou o consultório mais animada.
- Quer passear um pouco antes de voltarmos para casa?
- Prefiro voltar, mãe, estou um pouco cansada.
Acomodados no carro e prontos para partir, Marília assustou-se com Luiz, que, se aproximando da janela, disse lhe, seco:
- Soube da sua chegada e preciso muito falar com você. Podemos nos encontrar?
Antes que Marília respondesse, Marta se antecipou:
- Luiz, Marília não anda muito bem; não é o momento para passear.
- Não estou interessado em passear com ela, dona Marta. Quero apenas conversar um assunto muito importante, e não posso esperar.
- Se é assim, vá até nossa casa. Poderão se falar lá.
- Pode ser amanhã?
- Claro Luiz - Marília respondeu.
- Vá à hora que achar melhor.
- Sendo assim, irei logo após o almoço. Tudo bem?
- Estarei esperando.
Partiram. Marília ia absorta, pensando que motivo teria Luiz para tratá-la tão secamente e estar ansioso para encontrá-la. O que terá acontecido, meu Deus? Nosso último encontro, meses atrás, foi maravilhoso. Que razão ele teria para mudar seu comportamento comigo?
No dia seguinte, logo após o almoço, como prometeu Luiz foi até a casa de Marília. Marta recebeu-o e, sempre discreta, deixou-os sozinhos na varanda.
- Luiz, senti saudade de você!
Ignorando-a, Luiz, com agressividade na voz, perguntou:
- Por que fez isso comigo, Marília? Pela segunda vez você me atinge impiedosamente.
- O que foi que eu fiz?
- Você não tem que perguntar o que você fez, mas explicar por que fez.
- Meu Deus, o que está dizendo? Não tenho a menor noção do que possa ter feito de tão ruim para você, a não ser amá-lo naquela noite como nunca julguei ser possível.
- Não seja cínica!
Irritada, Marília revidou:
- Chega de me ofender, Luiz, e diga de uma vez do que me acusa.
- Pois vou dizer com todas as letras. Foi uma coisa bem simples, Marília - disse irônico. - Você me contaminou tom o vírus HIV!
Marília empalideceu.
- O que está dizendo, Luiz?!
- Vou repetir bem devagar, Marília, para que entenda bem e possa se dar conta do mal que me fez. Estou contaminado com o vírus HIV. Tornei-me soropositivo através da insanidade de uma pessoa inconseqüente como você. Compreendeu?
- Como pode ter tanta certeza de que foi comigo que se contaminou? Estivemos juntos uma única vez.
- Não seja ridícula! Tenho toda a certeza do mundo, e vou odiá-la para sempre. Como pude ser tão ingênuo? Devia ter imaginado quem você era, na realidade, por isso foi tão fácil levá-la para a cama.
- E quem eu sou, Luiz?
- Uma garota de programa que se esconde atrás de uma beleza que fascina, mas que na realidade apenas camufla sua falta de moral.
- Como pode dizer isso de mim? Não deve falar do que você não sabe.
- Falo do que sei Marília, e não adianta tentar encobrir sua história, porque Marcelo contou-me tudo sobre você.
- Marcelo!
- Sim. Consegui o telefone dele por intermédio de Carlos. Senti-me tão apaixonado depois daquela noite em que estivemos juntos que a única coisa que queria era correr ao seu encontro para pedir-lhe que ficasse comigo para sempre. Marcelo percebeu que eu não sabia nada sobre você e, querendo impedir-me de cair na sua teia, contou-me toda a verdade, inclusive que você contraíra o vírus. "Você não merece ser enganado" disse-me. "Já foi humilhado uma vez, não é justo que seja de novo." Fiquei enlouquecido. Decepção e medo
tomaram conta de meu coração. Custava a acreditar que a mulher que amava não passava de uma garota de programa. Procurei um médico e após os exames que ele pediu constatou o vírus. Sou soropositivo, Marília. A doença não se manifestou, mas o vírus está no meu sangue, vindo da única mulher que amei na vida e que é a causadora do meu sofrimento, passado e presente.
- Luiz, perdoe-me. Só posso dizer que quando ficamos juntos não sabia ser portadora do vírus. Jamais teria cometido ato tão vil se tivesse conhecimento disso. Fiquei com você por amor.
- Não sei se o que me dói mais é ter o vírus no meu sangue ou saber que você se tornou uma garota de programa cujo trabalho é dar prazer para quantos pagarem.
Marília baixou a cabeça, envergonhada.
- Sei que não mereço perdão, mas, se algum dia achar que está preparado, me perdoe, Luiz.
- Por que estragou sua vida dessa maneira? Que sonhos são esses que jogaram você no abismo da amargura?
- Desculpe-me, mas não quero mais falar sobre isso. Já sofri demais. É o meu passado, e não vou poder mudá-lo. Mas posso, e vou cuidar do meu futuro para ter a chance de, mesmo sozinha, tentar ser feliz.
- Você destruiu sua vida e a minha. Poderíamos ter sido felizes se a sua teimosia e vaidade não tivessem ocupado o lugar mais alto.
- Já pedi perdão; e é a única coisa que posso fazer. Não quero e não vou mais falar sobre minha vida, e não dou a ninguém mais o direito de vir questionar o que fiz dela, a não ser minha família. Portanto, nos despedimos aqui. Até outro dia, Luiz.
- Até nunca mais, Marília, não quero tornar a vê-la. Faça da sua vida o que quiser e achar melhor. Espero que consiga ser feliz, se a sua consciência deixar.
Virou-lhe as costas e partiu sem perceber as lágrimas que molhavam o rosto de Marília, quando ela constatou mais uma vez seu erro. Atingira com sua inconseqüência um homem como Luiz.
- Meu Deus, que peso vou carregar nos ombros... Quantas pessoas não devem ter se contaminado através de mim? Não podia imaginar que era soropositiva. Que imprudência me relacionar com os outros sem a devida precaução. Se houver outras vítimas, que elas possam me perdoar.
Lembrou-se de que tempos atrás, assim que chegou a capital, Marcelo insistira para que se operasse evitando uma gravidez indesejada, que poderia prejudicar
sua carreira de modelo.
- Como não percebi a verdadeira intenção dele? Evitei uma gravidez e esqueci-me das doenças sexualmente transmissíveis. E hoje sou a única que sofre pela
imprudência e leviandade de outrora. Que Jesus possa me perdoar, porque eu mesma não me perdoei. Marta, percebendo a inquietação da filha, aconselhou:
- Vá se deitar um pouco. Precisa descansar, está ainda muito fraca.
Seguindo o conselho da mãe, Marília recolheu-se em seu quarto.
- Antunes, preocupo-me com ela. Penso que já era para estar melhor, mais forte, mais disposta. Entretanto, acho que ainda tão fraquinha...
- Está seguindo as recomendações do doutor Alcides?
- Rigorosamente.
- Deve ser assim mesmo. Essa doença é muito grave.
- Você percebeu como Marília emagreceu?
- Percebi Marta, e acho melhor aceitar que seu estado é grave. É uma luta constante, mas não podemos perder a fé .
- Isso não Antunes, jamais.
Passados quatro meses, Marília contraiu outra infecção que a deixou mais debilitada ainda. Magra e abatida, passava longos momentos em silêncio. Certa tarde, Carlos e sua mulher chegaram sorridentes à casa dos pais de Júlia.
- Que alegria é essa?
- Tenho boa notícia para você, Marília.
- Para mim? Diga o que é, Carlos.
- Até que enfim finalizei as negociações do seu patrimônio. Tudo vendido e devidamente acertado. O dinheiro recebido já está depositado em sua conta.
- Conseguiu vender tudo a vista?
- Isso não foi possível, Marília, em virtude de a quantia ser muito elevada, mas os imóveis de menor valor, esses sim, foram vendidos a vista. Os outros, com uma entrada e parcelas mensais. No prazo de um ano terá tudo quitado. Fiz o melhor que pude.
- Fez muito mais do que eu esperava, Carlos. Ótimo trabalho. Vamos acertar agora sua comissão.
- Não fiz nada com o intuito de ganhar comissão; minha intenção foi apenas ajudá-la a colocar um ponto final nessa história.
- Não acho isso justo. Você perdeu seu tempo, deixou seu trabalho para cuidar das minhas coisas, empenhou-se ao máximo para resolver minhas questões. Gostaria de recompensá-lo.
- Agradeço, mas realmente não me sentiria bem. Fiz por você, e alegro-me que tenha ficado satisfeita.
Marília calou-se, e um pensamento lhe ocorreu: Ele não aceita porque com certeza considera um dinheiro sujo. Será que Carlos tem razão? Novamente dirigindo-se ao cunhado, perguntou-lhe:
- Você se importaria de cuidar de tudo para mim? Não tenho condições, e acho que não voltarei a ter.
- Não diga isso Marília, é preciso ter esperança.
- Mas também é preciso ser realista. Não quero me iludir, prefiro encarar a verdade. Você aceita, Carlos?
Carlos olhou para a esposa, e Júlia balançou a cabeça afirmativamente, querendo dizer: "Aceite".
- Tudo bem, Marília, se acha mesmo necessário, farei o que me pede.
- Acho necessário e confio plenamente em você.
- E o que pretende fazer, Marília? - perguntou Júlia.
- Ainda não sei, mas a recusa de Carlos fez-me pensar em algo de que até então não havia me dado conta. Gostaria de conversar a respeito com você.
- Quando você quiser.
- Daqui a alguns dias falaremos disso. Quero amadurecer a idéia.
- Você é quem sabe, minha irmã.
A partir desse dia, Marília começou a pensar que poderia dar uma finalidade mais útil àquele dinheiro, que parecia incomodar a sua família por ter sido ganho à custa de sua dignidade. Certa tarde, enquanto conversava com sua mãe e Júlia, indagou à irmã:
- Você, que sempre gostou de ler, poderia selecionar alguns livros para mim. Quero tentar ser uma pessoa melhor, e creio que os livros poderão me auxiliar nesse processo. Cresci vendo-a estudar o Evangelho, nunca entendi o porquê de
tanta leitura, mas hoje penso diferente. Imagino que se fez bem para você fará para mim também. Dizem que tudo acontece na ora certa; talvez a minha tenha chegado.
- Claro que posso lhe trazer alguns livros, Marília, e alegra-me muito o seu interesse. Amanhã mesmo estarão em suas mãos.
Marta e Antunes, que haviam se afastado, observavam tudo em silêncio. Embora
se esforçassem para não deixar transparecer, sofriam com a situação de sua filha.
- Antunes, acredito que dessa vez Marília irá percorrer o caminho certo.
- Deus a ouça, Marta. Nunca é tarde para reavaliar conceitos e selecionar os que trazem elevação.
Conforme prometera, no dia seguinte Júlia chegou com os livros. Entregando-os a Marília, disse-lhe:
- Aqui estão, minha irmã; escolha por onde quer começar.
Felipe e Rafael observavam atentos tudo o que acontecia a sua volta desde a volta de Marília.
- Não sei não, Felipe - dizia Rafael ao irmão. - Estou achando que algo mais grave está acontecendo com Marília.
- Por que diz isso?
- Ora, veja a mudança dela. Nunca se interessou por leitura sobre elevação moral. Aliás, moral era o que menos importava para Marília. De repente ela volta trazida por Júlia e Carlos. Está adoentada desde que chegou e várias vezes a vi chorando. Não sei, mas imagino que esteja acontecendo alguma coisa mais grave do que a explicação que nossos pais nos deram.
- Acho que tem lógica. O que podemos fazer para ajudá-la?
- Ficar atentos, nos aproximar dela e sermos o mais amigos possível.
- Vamos fazer isso. Creio que ela deve estar sofrendo, com o temperamento que tem.
Marília abriu um pequeno livro com mensagens diárias Na primeira página leu: "O tempo que realmente temos é o presente, é ele que nos dá a chance de nos melhorarmos como pessoa". Essas poucas palavras tocaram seu coração.
- Sábias palavras.
De fato a única chance que tenho de me tornar melhor é hoje, sempre o hoje. Se quero reaver minha dignidade, preciso agir em vez de chorar e me culpar. Não sei quanto tempo me resta, se pouco ou muito, mas quero empregar essa oportunidade fazendo o bem para o próximo, nem que seja uma única vez, como Júlia sempre fez. Só não sei ainda como e o que fazer. Continuou lendo até que deparou com os dizeres: "Amparar os desvalidos é um desafio que precisa ser vencido, se quisermos realizar o sonho de um mundo melhor".
- Amparar os desvalidos. Meu Deus é isso o que Júlia faz há anos com muita dificuldade sem nunca desanimar! Rafael?
- Que foi Marília, por que esse grito?
- Rafael, por favor, vá depressa até a casa de Júlia e peça-lhe que venha aqui o quanto antes.
- Está sentindo alguma coisa?
- Sim. Um desejo enorme de consertar meus erros. A luz se acendeu na minha alma, Rafael. Por favor, vá buscar Júlia. Preciso falar com ela agora.
- Estou indo! Em pouco tempo Júlia estava ao lado de Marília, atendendo com entusiasmo ao chamado da irmã.
- Marília, o que aconteceu para tanta pressa?
- Preciso urgentemente falar com você, Júlia. Descobri o que quero, e você poderá me ajudar.
- Está me deixando curiosa. Deixe de suspense e fale logo. O que será que descobriu?
- Júlia, não brinque, é muito sério e importante para mim.
- Desculpe Marília.
- Desde aquele dia em que Carlos se recusou a receber qualquer recompensa pelo trabalho que fez, alguma coisa mudou em minha cabeça. Interpretei esse seu gesto como uma repulsa em se envolver com um dinheiro considerado...
Vamos dizer... Indigno.
- Marília, Carlos não quis...
- Calma, não precisa explicar, compreendo perfeitamente sua posição. Carlos sempre foi um homem íntegro. A partir daí, comecei a questionar se ele não tinha razão, e cheguei à conclusão de que deveria estar certo.
- O que quer dizer?
- Ele tem razão, Júlia. Não vou me aprofundar na questão porque você sabe tanto quanto eu a maneira como ganhei todo esse dinheiro. Esses dias, lendo os livros que me trouxe, deparei com um ensinamento que tocou meu coração e me mostrou um caminho.
- Continue.
- Quero dar a esse dinheiro um destino útil e nobre, ou seja, decidi empregá-lo na realização de seu ideal, que sempre foi abrir uma creche para as crianças carentes da região, onde elas pudessem ter a oportunidade de aprender os valores que eu, insensível a todos os conselhos, não aprendi.
- Marília, mal posso acreditar no que está me dizendo! Tem mesmo certeza disso?
- Pode acreditar minha irmã. Esse dinheiro é seu para ser empregado nas atividades fraternas que há anos você vem desenvolvendo. Use-o como achar melhor. Quero apenas uma pequena parte para garantir meu tratamento na luta
contra essa doença que está me consumindo.
Marta, que ouvia silenciosa a conversa das filhas, aproximou-se de Marília, beijou-lhe o rosto e falou:
- Graças a Jesus você enxergou o caminho da felicidade; não é o caminho mais fácil, mas o que proporciona a felicidade real. Quanto ao seu tratamento, filha,
não precisa se preocupar, seu pai possui o suficiente para não deixar lhe faltar nada. Terá tudo o que for necessário. Limpe o seu dinheiro com atos de caridade.
Marília continuou:
- Júlia, empregue tudo em suas obras. Carlos é meu procurador, está autorizado a fazer o que for necessário para aliviar as aflições dessas mães que não têm onde deixar seus filhos para ir à busca do seu sustento. Acredito que o montante é suficiente para seu trabalho fluir.
- Mais que suficiente, Marília, e eu não sei como posso agradecer por tamanha generosidade.
- Agradeça fazendo apenas o que você faz, ou seja, continue sendo a pessoa maravilhosa que eu não consegui enxergar, a criatura nobre que em todos os momentos e situações segue Jesus.
Júlia deu vazão à emoção e abraçou Marília, misturando suas lágrimas às dela. Marta, também comovida, disse:
- Parabéns, minha filha. Encerra com chave de ouro o ciclo menos feliz da sua existência.
- Tenho pensado muito, mãe, e concluí que não se deve ter vergonha de ser simples, de ser bom, de amar e confiar em nosso Pai que está no céu, porque Deus jamais se envergonhará de uma só criatura sua, apesar de todos os seus erros. Infelizmente, não consegui aprender pelo amor, e só estou aprendendo agora através da dor.
- Que alegria ouvi-la falar assim, Marília! Que Jesus abençoe você, minha filha, e lhe dê muita coragem e fé para passar por essa aflição.
- Vamos trabalhar juntas, Marília, fazendo todo o bem que pudermos.
- Se eu tiver forças, Júlia, com o maior prazer e alegria, mas...
- Nada de "mas". Você vai ficar boa logo.
- Não quero criar expectativa, mas apenas ter tempo de consertar alguns dos muitos erros que cometi.

Para que tudo aconteça na paz almejada é fundamental aprender a exercitar o respeito, a compreensão e o amor fraternal; não querer o que pertence a outrem, não dificultar o caminho do semelhante e não ludibriar os corações simples para conquistar riquezas. (A Essência da Alma - Irmão Ivo)

CAPÍTULO XIII - TRISTE DESPEDIDA

Antunes e Marta agradeciam a Deus pelo início da transformação de sua filha. Percebiam o esforço de Marília para se tornar mais receptiva aos conselhos que
amorosamente lhes davam. Tornara-se mais ligada a Júlia e aos irmãos, Felipe e
Rafael, que, conforme haviam combinado, estavam mais presentes e mais amorosos com a irmã. Eram testemunhas do enfraquecimento de Marília, que bem mais magra e abatida começava a perder o viço.
- Quem viu a exuberância da beleza de Marília e a vê agora sente dor no coração - dizia o mais inconformado dos irmãos, Rafael, que, por um determinado tempo, fora seu seguidor fiel.
- Rafael, a dor nunca é a origem - dizia Felipe para o irmão -, mas sempre a conseqüência dos enganos cometidos. Infelizmente nossa irmã se enganou, e hoje colhe do seu plantio.
- Como você consegue falar assim, Felipe, não tem coração?
- Tenho coração e sofro por ela, Rafael, porque a quero muito bem. Mas tenho consciência das leis divinas e sei que nada se perde no espaço; nossas ações são
registradas, e irão com certeza interferir em nossa vida no momento certo. Nada se perde no vasto universo de Deus.
- Não sei onde você e a Júlia aprendem essas coisas tão diferentes.
- Aprendemos no Evangelho de Jesus, que é o lugar onde se busca a verdade.
Júlia, sempre amiga e carinhosa, passava suas horas vagas ao lado da irmã querida, respondendo às perguntas que lhe fazia a respeito da espiritualidade, que começava a aceitar. O lar de Marta e Antunes perdera um pouco da alegria que sempre reinara ali; tornara mais silencioso e melancólico. Todos sofriam muito com a situação de Marília, que enfrentava o peso de uma doença que castigava seu corpo. Receavam um possível desencarne, visto estar Marília cada
dia mais debilitada. O projeto social de Júlia prosseguia com força, devido aos recursos financeiros doados por Marília.
- Para quando está prevista a inauguração da creche? - perguntava sempre Marília.
- Para breve. Estamos na finalização de todo o equipamento necessário para suprir as exigências das crianças. Mas por que pergunta tanto a data dessa inauguração?
- Não sei Júlia, pressinto que não tenho muito tempo, e é melhor que não me pergunte à razão, porque não tenho resposta. Está ficando bonito, do jeito que imaginou?
- Está lindo, Marília, do jeitinho como sempre imaginei, e agradeço a você por isso. Quando estiver tudo pronto, vou levá-la até lá para dar a palavra final. Estando tudo do seu agrado, marcaremos o dia da inauguração.
- Sinto um contentamento muito grande, Júlia, por ter podido pelo menos uma vez na vida fazer algo útil para alguém.
- Que bom! Agora que experimentou a sensação gostosa que temos quando ajudamos o próximo, creio que não irá parar mais. Mas é preciso decidir o nome da creche. Tem alguma sugestão?
- Eu? Você quer que eu dê o nome?
- Claro você é a benfeitora. É justo que escolha o nome.
Marília pensou um pouco e disse:
- Gostaria muito que se chamasse Fonte do Saber. O que acha?
- Ótimo! Gostei muito, mas... Por que escolheu esse nome? Algum motivo especial?
- Quero que todas as crianças que por ali passarem tenham a oportunidade de
aprender os melhores conceitos sobre a vida, principalmente entender que ser
uma criatura de Deus não significa abortar os seus sonhos e ilusões, muito pelo contrário. Ser uma criatura de Deus é dar aos seus sonhos e ilusões a dimensão real, e não permitir que eles sufoquem a verdade da vida. Foi isso o que me neguei a aprender, a aceitar, e permiti que minhas ilusões vãs me colocassem como se fosse o centro do universo. O meu universo ruiu porque ele era só meu, e não de Deus.
- Você está certa, Marília. É muito sugestivo o nome, porque a creche será o primeiro contato dessas crianças com o saber, e o alicerce é que sustenta a edificação.
- Gostaria que fizesse um jardim em frente à casa com várias espécies de flores, inclusive o girassol.
- Por que misturar as espécies das flores? Não seria mais adequado apenas uma?
- Não, quero que as crianças aprendam que todas as flores possuem beleza própria, cada uma com sua característica, mas todas são belas e frágeis, e, se não forem cuidadas, morrem. Aprendi que assim também somos nós; se não cuidarmos da nossa raiz, que é a nossa alma, iremos sucumbir na primeira rajada de vento.
Júlia, com os olhos lacrimejantes, disse à irmã:
- Marília, você me surpreende a cada dia. Onde está aprendendo todas essas coisas que anda dizendo?
- Ora! Onde poderia ser senão nos livros que me emprestou? Lamento ter sido tola o bastante para não conseguir enxergar a beleza em todas as formas de vida. Quis ser como um girassol, na ilusão de que nenhum vento mais forte me derrubaria. Entretanto, tombei na primeira brisa.
Júlia abraçou a irmã.
- Nada mais importa Marília, porque agora você reconhece onde realmente está a verdade. Aceitou os valores espirituais e compreendeu que maior que a beleza
física é a beleza da alma. Amo você, minha irmã.
- Obrigada, Júlia, eu também sempre a amei. A minha cegueira egoísta é que não permitiu que eu entendesse isso.
Os dias passavam lentamente, seguindo a rotina diária. Aproximava-se a comemoração do Natal. A pequena cidade, com suas luzes e enfeites natalinos, alegrava os corações de todos. Júlia e Carlos, entusiasmados, deram a Marília a
notícia de que a Fonte do Saber estava completamente pronta.
- Tudo saiu como você queria Marília, agora é preciso marcar o dia da inauguração, e queremos que você decida - disse Carlos à cunhada.
- Que dia você prefere? Tem alguma data especial?
- Venho pensando nisso, Júlia, e considero interessante inaugurarmos no dia 25 de dezembro, dia em que a humanidade comemora o nascimento de Jesus.
- Excelente Marília!
- Pensei assim: Jesus é a maior fonte do saber; poderíamos inaugurar a creche com uma festa natalina para as crianças a quem o Papai Noel nunca foi visitar. Achei que seria a melhor maneira de comemorar o nascimento de Jesus: ao lado dos pequenos excluídos.
Todos ficaram surpresos com o raciocínio de Marília. Sem que dissessem uma só palavra, pensaram e sentiram a mesma emoção. Marta orou em silêncio, agradecendo ao Pai pela bênção recebida:
- Agradecemos Senhor, pela transformação de nossa filha, que, graças a Sua bondade, teve tempo e lucidez para se reerguer.
Alegres, concordaram com Marília e a festa foi marcada. Iniciaram-se os preparativos, que levariam alegria aos corações sofridos das crianças da periferia.
Marcelo e Daniel continuavam com o mesmo esquema da empresa-fantasma, que nada mais era que uma geradora de prazer inconseqüente. Percebendo que com a saída de Marília os negócios tinham caído muito, acharam que deveriam introduzir outro procedimento que garantisse o sucesso financeiro. Assim, entraram para o tráfico de drogas usando as "modelos" como "mulas", que são as pessoas que levam a droga ao seu destino. Certo domingo, Carlos e Júlia chegaram como de costume para o almoço com a família. Carlos trazia nas mãos o jornal da capital.
- Marília, veja essa manchete. - Entregou-lhe a página onde estava estampada a foto de Marcelo e Daniel.
Marília levou um susto e, atônita, perguntou:
- Carlos, o que é isso?
- Marcelo e Daniel foram presos ontem, em flagrante.
- Acusados de quê?
- Formação de quadrilha, comércio de mulheres e tráfico de drogas.
- Meu Deus! Com quem eu fui me meter! Poderia estar sendo presa também. Que vergonha!
- Percebe Marília, a oportunidade que Deus lhe concedeu?
- O que quer dizer, Júlia?
- Ele a retirou da lama e lhe deu a chance de rever sua vida.
- Mas me deu a doença.
- Não. A doença foi você mesma quem buscou, atraiu com seus atos, e esse mal que a consome hoje está sendo a cura da sua alma. Quanta coisa aprendeu, aceitou e modificou?
- Você nunca ouviu dizer que Deus escreve certo por linhas tortas?
- Já ouvi, sim, Carlos.
- Pois então. Esse mal que atormenta e aniquila seu corpo na realidade é um bem para sua alma agredida tantas vezes por você. É da nossa alma que devemos cuidar com esmero, Marília, porque ela sobrevive ao corpo, que desaparecerá na terra.
Marília silenciou por longo tempo. Por fim, voltou a dizer:
- Reconheço que vocês têm razão. Deus sabe sempre o que é melhor para Suas criaturas. Sou agradecida a Ele por haver permitido que eu voltasse à minha origem, descobrisse que a beleza interior é superior à que ostentamos para o mundo, porque essa o tempo se encarregará de apagar.
- Minha irmã, todos temos o bem dentro de nós; é o homem que se recusa a cuidar dos sentimentos nobres que possui em si mesmo, e, em conseqüência disso, eles morrem. Mas Deus, na Sua infinita bondade, sempre age em nosso benefício, mesmo, e principalmente, nos momentos de dor e sofrimento. O homem anda pela vida tão distraído que deixa de plantar as sementes e, ao chegar à primavera, percebe que não nasceram às flores, pois nenhuma delas foi plantada no outono que se passou.
- O que será de Marcelo?
- Chegou à hora do acerto, Marília. Agora ele irá prestar contas do seu desprezo às leis dos homens, e não ficará impune das leis de Deus.
Marília deu mostras de cansaço.
- O que há minha filha, sente-se mal?
- Tenho uma sensação de fraqueza, mãe.
- Voltaremos ao consultório do doutor Alcides. Com certeza ele recomendará algumas vitaminas para deixá-la mais bem-disposta.
- Não sei mãe, acho que não é só fraqueza.
- Por que, filha?
- Sinto dores nas costas, no peito e um pouco de dificuldade para respirar.
- Você precisa se animar, minha irmã. Amanhã será a inauguração da creche. Queremos você junto de todas as crianças. Sentirá a energia gostosa que elas nos transmitem.
- Ainda bem que já é amanhã; se demorar mais, receio não estar aqui nesse dia tão importante.
- Não fale assim, você irá melhorar.
- Tenho certeza de que sim - respondeu Marília, sem convicção.
Então, fechou os olhos. Estou chegando perto do fim. Permita Senhor, que eu possa estar presente amanhã na única vez em que pensei mais nos outros do que em mim. No dia seguinte, pela manhã, Marília foi levada por seus pais ao consultório do Dr. Alcides, que, examinando-a detalhadamente, constatou grave
pneumonia, aconselhando a sua internação imediata. Com os olhos marejados de lágrimas, Marília implorou:
- Por favor, doutor, daqui a duas horas será a festa de inauguração da creche, não tire de mim talvez a minha última alegria. Deixe-me participar dessa festa. Assim que terminar, irei me internar.
O Dr. Alcides olhou para os pais de Marília, dando mostras de que não sabia o que fazer, visto seu estado ser de grande preocupação. Tanto Antunes quanto Marta consentiram no pedido da filha, balançando a cabeça afirmativamente.
- Está bem, Marília. Mas quero que levem o pedido de internação; assim que a festa terminar, dirijam-se ao hospital. Quando me avisarem de sua chegada, irei vê-la de imediato.
- Obrigada, doutor Alcides. O senhor, além de ótimo profissional, é antes de tudo um amigo.
- Espero que esteja fazendo a coisa certa! - exclamou o médico, realmente preocupado.
Enquanto Marília saía acompanhada de sua mãe, Alcides segurou o braço de Antunes para lhe dizer:
- Não deixe de levá-la para o hospital o mais rápido possível, seu estado é grave. Tenho dúvidas de que esteja agindo corretamente. - Fique tranqüilo, doutor, sei que minha filha está prestes a nos deixar. E, se for verdade isso, por que não lhe satisfazer a vontade?
- Bem, se o senhor pensa assim...
- Será por pouco tempo. Logo ela estará onde Deus achar que é o lugar adequado.
Em meio aos balões, doces e brinquedos que faziam a alegria da criançada, a creche Fonte do Saber foi inaugurada. Marília, sentindo-se fraca, esforçava-se ao máximo para demonstrar a alegria que trazia na alma ao ver implantado o lugar onde crianças, cujos olhares não possuíam brilho algum e os lábios não sabiam sorrir, iriam aprender a ser felizes, sentindo-se incluídas num conceito de fraternidade e amor. Em dado, momento Marília chamou seu pai e lhe pediu:
- Faria algo por mim, que considero de suma importância?
- Claro, filha, tudo o que você quiser.
- Não me sinto bem. Tenho a sensação de que estou muito perto do fim, e gostaria bastante de ir até o campo de girassóis. Poderia me levar lá?
- Marília, vamos imediatamente para o hospital.
- Por favor, não, pai; vamos primeiro ao campo, que é o que mais quero. De lá, seguiremos para o hospital. Faça isso por mim!
- Você não está bem. Temos que tratar de sua saúde. Depois iremos.
- Primeiro ao campo, pai, por favor - suplicou, num fio de voz.
Antunes chamou Marta, e os dois, com os olhos tristes trazendo à tona o que lhes ia à alma, colocaram Marília no carro, e, pedindo a Felipe que os acompanhasse, dirigiram-se ao campo de girassóis, que sempre exercera grande fascínio sobre Marília. Antes de sair, Marília chamou Júlia e Rafael, abraçou-os com amor e, quase sussurrando, falou:
- Perdoem-me por tudo o que fiz, a minha petulância, teimosia, enfim, a minha falta de humildade me direcionou para o engano. Não sigam nenhuma de minhas idéias; Rafael esqueça tudo o que lhe disse sobre a vida. Eu estava errada. Júlia sempre esteve certa, siga-a. Quero dizer que sempre amei vocês, só não sabia como expressar esse sentimento, porque achava que possuir beleza fazia de mim a dona ou o centro do universo.
- Marília, nós também sempre a amamos, e em nenhum momento deixamos de lado esse sentimento.
- Cuide da creche, Júlia, você é a pessoa mais nobre que conheci.
Júlia, ao abraçar a irmã, experimentou uma estranha sensação de despedida.
- Irei com vocês até o campo!
- Não, Júlia, seu lugar é aqui, ao lado dessas crianças cujos sorrisos tocam meu coração. Você e Carlos caminharão juntos, lado a lado. Tenho certeza de que essa creche se tornará um lar de verdade.
Marília caminhava devagar, apoiada em seu pai, por entre as flores do imenso campo de girassóis. Encostava seu rosto nas flores e pensava: Vocês continuam belas e majestosas, enquanto eu, frágil e desiludida, sinto meu corpo tombar. Vocês se mantêm fiéis. Àquele que as criou assim tão imponentes, enquanto eu, mergulhada na tola ilusão, me mantive fiel à minha vaidade, à minha ambição e à tola pretensão de querer dominar o mundo, esquecendo que acima de mim e da humanidade está o Criador. Sentiu-se desfalecer. Antunes e Felipe, com rapidez, a seguraram e cuidadosamente colocaram-na deitada no chão, onde Marta, com presteza, colocara a echarpe que trazia nos ombros. Antunes, apressado, foi em busca do automóvel, que ficara um pouco distante. Marília em poucos minutos soltou um fraco suspiro e deixou o mundo físico em meio às grandes flores amarelas do campo dos girassóis. Enquanto na creche todos cantavam felizes comemorando o nascimento de Jesus, Marta, Antunes e Felipe, abraçados ao corpo sem vida de Marília, choravam a separação da jovem que entregara sua vida aos sonhos inúteis que a levaram até o topo da inconseqüência, no limite da ilusão. Nenhum de nós se beatifica simplesmente porque deixou o envoltório carnal se não adquiriu conhecimento, se não houve esforço, trabalho e dedicação. Para que se processe a evolução, necessário se faz compreender o valor infinito do bem que praticamos conosco e com o nosso próximo. (A Essência da Alma - Irmão Ivo)

CAPÍTULO XIV - A CHANCE DE UMA NOVA VIDA

A partida de Marília deixou no coração de seus pais e irmãos uma tristeza e um vazio muito grandes. Sentiam dificuldade em entender por que tudo acontecera tão rápido.
- Será que fizemos tudo que era necessário para ajudá-la? - perguntava Marta, chorosa.
- Deveríamos ter insistido com ela para que se internasse, conforme a orientação do doutor Alcides? - questionava Antunes.
- Erramos Antunes, em levá-la para a inauguração da creche. - dizia Marta.
Júlia ouvia as lamentações de seus pais em silêncio. Achava que era justo deixá-los desabafar, mas se mantinha sempre atenta para sustentá-los, caso viessem a se entregar ao desespero.
- Pai, acredito que Marília tinha uma intuição de que há sua hora estava se aproximando. Creio ter sido mais feliz para ela partir em meio às flores que adorava do que ficar em uma cama de hospital, presa a tubos, para adiar por uma ou duas oras sua partida, conforme explicou doutor Alcides.
- Sei que tem razão, Júlia, mas será que foi certo levá-la até o campo?
- Pai, foi um desejo dela. Quem poderia adivinhar que iria partir naquele momento?
- A dor dos pais ao se separarem de um filho, Júlia, é sem duvida a pior que um ser humano pode agüentar.
- Mas nós suportaremos essa prova com coragem e sem perder a fé em Deus, Antunes, porque sabemos que não cai uma folha sequer sem que o Criador permita. Se Deus nos deu essa prova é porque Ele sabe que nossos ombros podem agüentar, e agüentarão, porque cremos Nele - falou Marta ao marido.
- Mãe, devemos considerar que a doença de Marília foi o veículo que a retirou daquela vida que fatalmente a levaria, a passar por dores maiores, fazendo-os chorar e embranquecer os cabelos pela vergonha.
- Júlia tem razão, Marta. Hoje choramos por uma filha que errou, sim, mas que aproveitou o tempo e a oportunidade desses últimos meses para se arrepender e
tentar deixar na Terra a prova de seu arrependimento.
- Prova pai? Do que o senhor está falando?
- Rafael, falo da Fonte do Saber, meu filho. Essa creche é a prova de que sua irmã reconheceu seu erro e lutou contra seus antigos conceitos, tentando melhorar como criatura de Deus.
A campainha da porta se fez ouvir.
- Deixe que eu atendo - disse Felipe, e correu a abrir.
Assim que girou a maçaneta, Felipe, surpreso, viu à sua frente à figura de Luiz.
- Como vai, Felipe? Posso entrar? Gostaria de falar com seus pais.
- Claro, entre.
Luiz percebeu a surpresa de Marta e Antunes.
- Desculpem-me incomodá-los, mas preciso mostrar-lhes algo que lhes interessa.
Júlia, se antecipando a seus pais, convidou:
- Sente-se, Luiz, e fique à vontade.
Luiz se acomodou um pouco intimidado.
- O que o traz aqui de tão importante?
- Seu Antunes, hoje faz dez dias que Marília se foi. Esperei que passasse esse tempo para vir lhes mostrar isto.
Retirou do bolso um envelope que entregou a Antunes. Dentro havia uma carta.
- Mas é uma carta endereçada a você, Luiz. O que temos a ver com isso?
- É de Marília seu Antunes, e eu gostaria que tomassem conhecimento. Ela escreveu para mim poucos dias antes da sua partida.
- E como minha filha lhe entregou essa carta, Luiz, se ela não saía mais de casa? - questionou Marta.
- Fui eu quem a levou para Luiz, mãe.
- Você? Por que fez isso, Rafael?
- Marília pediu-me que levasse esse envelope para Luiz, dizendo que era importante. Precisava resolver uma questão com ele. Apenas atendi ao seu pedido. Fiz mal?
- Não - respondeu Marta, meio sem jeito. - É que não sei que questão ela teria com ele, só isso.
- Posso ler?
- Claro, seu Antunes, eu a trouxe para isso. Quero que tomem conhecimento do teor dessa mensagem.
- Pai, leia em voz alta - pediu Júlia.
Antunes assim o fez:

Querido Luiz, talvez esta seja a última vez que me dirija a você, mas é muito importante para mim. Sei do ódio que nutre por minha pessoa e não lhe tiro a razão. Apenas peço-lhe mais uma vez que me perdoe se puder. Naquela noite em que estivemos juntos, creia, eu o amei de verdade. Aliás, sempre o amei de verdade. Não vou aqui discutir mais uma vez os motivos que me levaram a preteri-lo, isso já não importa mais. Para mim é importante que saiba que não tinha conhecimento e nem fazia a menor idéia de ser uma pessoa soropositiva. Não o contaminei de propósito.

Nesse ponto, Antunes parou surpreso com o que acabar de ler.
- Ela está dizendo que contaminou você com o vírus HIV? É isso?
- Sim, seu Antunes, sou soropositivo, mas graças a Deus a doença ainda não se manifestou.
- Meu Deus!
- Calma dona Marta, não vim aqui para deixá-los mais tensos do que já estão nem pretendo cobrar ou exigir nada. Ao contrário, minha intenção é somente pedir-lhes desculpas.
- Mas quem deve pedir desculpas somos nós!
- Gostaria que o senhor terminasse de ler, depois conversaremos sobre isso.
Antunes prosseguiu:

- Quando você jogou na minha cara que me odiava, e que seu ódio me acompanharia por toda a vida, pude sentir o peso do mal que lhe fizera. Se isso o faz sentir-se melhor, Luiz saiba que sofro muito mais que você, não tanto pela doença que castiga meu corpo, mas pela dor de ter causado tanto sofrimento a tantas pessoas, sobretudo a meus pais, que, apesar da tristeza que lhes causei, receberam-me de volta e cuidam de mim com carinho e muito amor. Nunca saberão o imenso amor que sinto por eles. Aprendi Luiz, que aquele que ofende sofre mais que o ofendido; por essa razão peço-lhe mais uma vez que me perdoe, não envie seu ódio para onde eu for. Sei que me aproximo do fim, nada poderei fazer para apagar o mal que lhe fiz; se pudesse tiraria de você o fantasma desse vírus, e é essa impotência que machuca minha alma em uma proporção que você está longe de imaginar. Se não posso apagar o erro cometido, posso pelo menos recompensá-lo. Procure Júlia ou Carlos dizendo que quero ajudá-lo no seu tratamento, ou seja, quero que assumam todas as despesas que você tiver a partir de agora. Sei que nada compra a saúde, mas é só o que posso fazer para redimir um pouquinho minha culpa. Não me odeie Luiz, deixe que eu mesma faça isso. Lembre-se de mim como aquela garota que corria entre os girassóis tentando ser um deles, mas que apenas jogou fora sua felicidade e sua vida. Vou lhe confessar uma coisa: meu desejo é morrer entre as grandes flores dos girassóis. Que Deus ouça meu pedido.

Beijos, Marília.

Todos permaneceram em silêncio. Após alguns instantes, Júlia, enfim, se manifestou:
- Não sei o que dizer a esse respeito; pela primeira vez não sei o que dizer. Quero apenas que saiba que cumprirei o desejo de Marília, Luiz. Toda sua despesa de saúde que se relacione ao vírus HIV será custeada por nós.
- Você me ofende dizendo isso, Júlia. Não vim aqui para cobrar ou exigir nada, como já disse. Tenho condições de tomar conta de mim mesmo. A minha intenção foi tranqüilizar dona Marta e seu Antunes mostrando-lhes o quanto Marília os amava, e principalmente tirar-lhes a culpa que sentem por não a terem encaminhado para o hospital. Era seu desejo ir embora a meio ao campo dos girassóis. Se aconteceu foi porque Deus assim o permitiu. Ninguém deve se culpar. Preciso dizer-lhes também que não sinto raiva de Marília. Fiquei muito zangado no primeiro momento da descoberta, e foi uma imprudência dizer isso a ela, porque foi fruto do enorme ciúme que senti ao saber o que ela fazia da vida. Não suportei imaginá-la nos braços de outros homens apenas por dinheiro, se havia recusado estar nos meus por amor. Quis ofendê-la em razão da mágoa que trazia no peito. Peço-lhes que não se preocupem comigo, estou bem, com uma ótima defesa, segundo disse meu médico. A lembrança de Marília está guardada em meu coração como uma querida recordação.
Os pais de Marília, assim como seus irmãos, choravam, dando vazão à enorme tristeza e saudade que invadiam seus corações.
- Luiz, só podemos pedir-lhe desculpas e dizer-lhe que somos agradecidos por você ter exposto a questão dessa maneira mais amena. Acredite, não sabíamos de nada, por isso não o procuramos. Quero que saiba que somos seus amigos e estamos dispostos a ajudá-lo no que vier a precisar.
- Sei disso, Júlia, e também me coloco à disposição de vocês para o que quiserem. Sempre os admirei muito.
Marta se aproximou de Luiz e deu-lhe um beijo no rosto.
- Que Jesus o abençoe sempre, meu filho.
Luiz se retirou da casa de Antunes sentindo-se mais leve. Agora posso pensar em minha própria vida. Meu caso com Marília terminou para sempre. Olhou para o céu e disse:
- Onde estiver, Marília, procure ser feliz!

Quando teimamos ou relutamos em perdoar, desculpar outras pessoas é sinal de que estamos ainda perdidos no orgulho ferido, na vaidade de nos julgar melhores ou superiores àqueles que nos magoaram, e isso é sinal de que o amor não entrou ainda em nosso coração. (A Essência da Alma - Irmão Ivo)

Marília despertou sobressaltada. Olhava de um lado para o outro sem saber onde estava sem se dar conta do que acontecera. Confusa, andava sem destino, procurando o caminho de sua casa em um imenso labirinto. A última visão que seus olhos físicos tinham guardado foram às flores que tanto amava. Entretanto, o que via eram galhos secos e sem nenhum encanto. O sol, que tanto atraía a sua atenção, dera lugar a nuvens cinzentas, sombrias. Perturbada, Marília caminhava, caminhava, sem chegar a lugar algum. Olhava seu corpo, e não conseguia perceber a diferença que se operara nele. Via apenas uma aparência oposta às roupas elegantes que sempre usara.
- O que será que aconteceu comigo? Por que não encontro o caminho de casa?
Ao cruzar com um grupo de mulheres que passavam por ela, rindo de uma maneira espalhafatosa, tentou se aproximar e indagar que lugar sombrio era aquele, e por que estava ali.
- Você não pertence mais ao mundo físico, companheira, agora aqui é o seu lugar.
- Por que está estranhando? Você é uma das nossas, agora é só aproveitar.
- Não quer se juntar a nós? A gente se diverte bastante, você vai gostar.
Assustada, Marília saiu em disparada, sem destino algum. O tempo passava, e Marília, culpando-se severamente, perambulava sem rumo, acreditando ser o seu sofrimento eterno. Passaram-se dez anos desde o seu desencarne. Marília dava sinais de cansaço. Começava a se lembrar das coisas que Júlia várias vezes lhe dissera, e nesse momento sua memória trazia-lhe tudo o que fizera na sua estada terrena. Nessas ocasiões, batia-lhe forte o arrependimento, causando-lhe uma imensa dor. A figura de Jesus começava a tomar forma em seu pensamento, até que, não agüentando mais, caiu de joelhos clamou por misericórdia com a sinceridade e a confiança de uma criança em busca do colo de sua mãe.
- Jesus, venha em meu socorro. Errei, mas clamo por Seu auxílio e perdão. Socorra-me. Tire-me desse sofrimento no qual eu mesma me atirei. Misericórdia,
Senhor!
No mesmo instante, uma forte e brilhante luz foi se aproximando de Marília, e o espírito Amélia enlaçou-a nos braços com amor, fazendo-a adormecer. Marília, entregando-se confiante a esse aconchego e agradecida a essa mensageira da paz e da misericórdia de Jesus, adormeceu. Fora resgatada da zona menos feliz para a qual acabou atraída por afinidade. Iniciaria para ela o caminho de elevação, onde aprenderia os verdadeiros valores, as virtudes desprezadas e o respeito por si mesmo. Quando a porta da casa de Marta se abriu, a alegria de seus netos invadiu o ambiente.
- Por que tanta gritaria? - disse contente. - A vovó está aqui.
Júlia e Carlos acompanhavam as crianças, pedindo-lhes que não fizessem tanto barulho.
- O vovô pode estar dormindo - diziam.
- Mas a vovó está acordada - afirmou Larissa, a filha mais velha de Júlia e Carlos.
- É mesmo, mamãe, a vovó gosta do nosso barulho - disse Natália, a mais nova.
- Quem lhe disse isso, Natália?
- Ela mesma, papai!
Marta se divertia com as netas.
- Deixem-nas fazerem o que quiserem, elas têm razão: alegram a casa. Felipe e Rafael não virão para o almoço, Júlia?
- Felipe já deve estar chegando, mamãe. Quanto a Rafael, deve estar impaciente, como sempre, esperando Meire arrumar as crianças.
- Coitada, é difícil arrumar três crianças pequenas.
- Marta meneou a cabeça. - Rafael não ajuda em nada.
- Bem faz Felipe, que não quer ter filhos - Carlos suspirou. - Eles dão muito trabalho... Mas dão alegria também - completou, abraçando as filhas.
- Felipe tem muito pouco tempo de casado, quer esperar um pouco mais - falou Marta, em defesa do filho.
- Nós sabemos mãe.
A harmonia e felicidade haviam retornado ao lar de Marta e Antunes, que já andava um pouco cansado, pois completara setenta e seis anos. O tempo se encarrega de colocar tudo de volta em seus devidos lugares, mas isso acontece quando se acredita e se tem fé nos ensinamentos de Jesus, que pregou sobre a vida futura aos seus seguidores. A creche Fonte do Saber cumpria os propósitos de Marília. Júlia se desdobrava em manter tudo dentro do que se espera de um estabelecimento focado na formação moral de uma criança. Sua recompensa estava em ver o sorriso e a alegria reinante nos rostinhos de quantos freqüentavam a creche. Quatro anos atrás foram implantados cursos profissionalizantes, e a creche se tornara, na realidade, a grande geradora de oportunidades para aqueles que um dia era os excluídos. Júlia sempre emitia pensamentos de amor para sua irmã. Marília, onde você estiver, deve estar contente com o rumo que tomou a creche. Graças a seu incentivo, minha irmã, o bem está sendo colocado em evidência, dizia sempre. As vibrações de amor que se enviam para os desencarnados provocam-lhes uma sensação de paz, e, se ainda estiverem em perturbação ou agonia, sentem o alívio para as aflições. Durante dez anos Marília recebeu de seus familiares pensamentos de saudade equilibrada, amor e o sentimento de gratidão de todos que foram de uma forma ou de outra, beneficiados pela creche. Essas vibrações aliviavam suas aflições e traziam-lhe a sensação de que havia uma forma mais feliz de se viver na espiritualidade. Através do benefício que recebia dos que ficaram na Terra, conseguiu trazer para si a fonte real de elevação moral: Jesus. O arrependimento verdadeiro e sincero, tomando conta de todo o seu ser, fez com que compreendesse sua situação e os enganos nos quais se envolveu. Implorou por misericórdia a Jesus, e foi resgatada. Marília, recolhida por Amélia, foi levada ao Hospital Maria de Nazaré. Sob o efeito de passes magnéticos e água fluidificada, permaneceu adormecida por mais quinze dias. Foi ao entardecer que Marília despertou, com uma sensação de paz envolvendo todo o seu corpo perispiritual.
Surpresa olhava ao redor, e o que via inundava-lhe o espírito de gratidão por ter sido atendida em sua súplica. O quarto simples e perfumado encantava pela simplicidade. Pela primeira vez ao tentar levantar-se percebeu que seu corpo estava diferente. Que estranho..., pensou. Como vou fazer para sair da cama? Sentia meu corpo pesado, feio, meio sujo, e agora experimento uma leveza estranha. Mas por que será que ele mudou? Passados alguns instantes, Jacob entrou no quarto de Marília e saudou-a com gentileza.
- Como se sente minha irmã?
- Quem é o senhor?
- Meu nome é Jacob. Sou responsável por esta unidade do hospital e estou aqui para ajudá-la nesses primeiros dias em seu novo lar.
- Agradeço muito ao senhor. Poderia dar-me algumas explicações?
- Se forem para seu benefício, sim, mas nada que tenha como finalidade satisfazer curiosidade.
- Estranha-me ver meu corpo diferente, mais leve. Sei que estou desencarnada, mas inquieta-me a condição do meu veículo físico. Há quanto tempo deixei a Terra?
- Há dez anos.
- Dez anos! Não pode ser. Ontem mesmo eu estava com meus pais no campo de girassóis quando, sem perceber, adormeci. Acordei em um lugar sombrio onde me disseram que eu havia morrido. Lembro-me de ter suplicado a Jesus por auxílio, e agora acordo e me vejo em outro lugar, e percebo que estou diferente.
- Marília, você, ao desencarnar, foi atraída para o local aonde sua afinidade a levou, por conta de suas atitudes desajustadas e imprudentes, quando ainda encarnada. Entregou-se a pratica nociva do sexo, desrespeitando seu corpo e sua alma. Marília se envergonhou.
- Sei do que o senhor está falando.
Jacob continuou:
- Não seria melhor conversarmos sobre isso mais tarde? Creio ser ainda cedo para tocarmos nesse assunto.
- Irmão Jacob, se pudesse me atender, gostaria que fosse agora. Tenho consciência do que fui... Ou sou... O que quero de verdade é livrar-me desse peso que foi minha atuação na Terra.
- Pois bem, Marília. O sexo sem a dignidade do amor rebaixa, desarvora o desejo, embrutecendo-o e deixando-o insaciável. O passo seguinte são esses mesmos desejos ressurgirem mais violentos e embaraçosos. Você usou esse recurso para ganhar dinheiro, enriqueceu atirando-se nessa ilusão e experimentou a dor. O espírito Emmanuel nos explica, no livro Vida e Sexo: "Sexo é espírito e vida a serviço da felicidade e da harmonia do universo; por conseguinte, reclama responsabilidade e discernimento onde e quando se expresse. Por isso mesmo, nossos irmãos e nossas irmãs precisam e devem saber o que fazer com as energias genésicas, observando como, com quem e para que se utilizam de semelhantes recursos, entendendo-se que todos os compromissos na vida sexual estão igualmente subordinados à lei de causa e efeito".
- Mas eu me arrependi. Doei todo o dinheiro para a construção de uma creche.
- Sabemos disso, e esse bem voltou para você. A gratidão dos pais das crianças que freqüentam a creche e os pensamentos de amor enviados por sua família, acompanhados de preces sentidas, auxiliaram-na a compreender sua situação e clamar por misericórdia com sinceridade real. Como disse Marília, o bem praticado sempre retorna em nosso favor.
- Por que fiquei dez anos em aflição?
- Porque tudo na lei de Deus precisa ser resolvido. Todos os seres prestarão contas de seus atos, do que fizeram com a oportunidade recebida de estar na Terra. Nada na espiritualidade se perde ou se esquece, e tudo está relacionado com a lei de ação e reação.
- Ajude-me, irmão Jacob, quero me livrar dessa culpa, aprender e melhorar, tornar-me verdadeira criatura de Deus.
- Alegre-se, minha irmã. Inicia-se para você uma nova etapa, um novo aprendizado. Permaneça com seu pensamento voltado para nosso Divino Amigo e agradeça pelo benefício recebido.
- Apenas mais uma questão. Por que meu corpo está diferente? Sentia-o pesado, entretanto agora o sinto tão leve que quase não consigo tocá-lo.
- Você limpou-o quando permitiu a entrada de Jesus em seu pensamento, entregou-se ao Mestre, e a partir daí deixou que a paz do Senhor a envolvesse. Jesus não invade o espírito de ninguém, Marília, espera que O chamem; não arromba a porta do coração dos homens nem dos espíritos, aguarda que eles mesmos abram e permitam Sua entrada. Esse é o seu corpo perispiritual, aquele que envolve o espírito. É feito de uma substância vaporosa para os encarnados, mas bastante grosseira para nós.
- Gostaria de saber mais sobre isso, irmão.
- Ainda é muito cedo. O momento agora é de se fortalecer, equilibrar-se e aprender, para, no tempo apropriado dar início a seu trabalho aqui na espiritualidade.
Dedique-se a retirar de seu espírito os resquícios da vaidade e da ambição, dos desejos egoístas, e traga para si mesma as virtudes que cada vez mais a aproximarão de Jesus, tornando-a verdadeira tarefeira de Cristo. Se entregue às preces e aos pensamentos nobres.
- Chegará o dia em que poderei visitar minha família?
- Sem dúvida. Mas lembre-se de que para todos os propósitos existe um tempo, e no caminho da evolução não se podem pular etapas. Por enquanto, descanse.
- Voltará a me ver?
- Claro. Se precisar de alguma coisa para seu equilíbrio, aperte esse botão logo acima da sua cabeceira; o auxílio virá. Não pense no passado, mas no futuro de paz e luz que a aguarda, se mergulhar no amor de Jesus.
O tempo passou. Marília esforçara-se e encontrara seu equilíbrio. Trabalhava e
freqüentava as palestras de Madre Teresa. Dedicava-se ao trabalho de auxílio aos irmãozinhos recém-chegados da Terra. Certa tarde de descanso, Marília dialogava com Jacob, ouvindo seus conselhos que tanto a ajudavam, quando perguntou:
- Irmão Jacob, por que desenvolvi tanta vaidade entregando-me à ilusão passageira do sucesso?
- Marília, no momento oportuno terá essa resposta. Tenha paciência e aguarde.
- E quanto a minha ida a Terra visitar meus pais, que já devem estar idosos? Há dezessete anos estou desencarnada.
- Sim, eles estão idosos, não fugiram à ação do tempo.
- Quando poderei vê-los?
- Daqui a dois dias uma equipe irá até a Terra. Nós iremos junto.
- Poderei ir também?!
- Teve permissão para nos acompanhar, mas devo adverti-la de que não poderá interferir no trabalho da equipe. Irá permanecer em equilíbrio orando a Jesus para que tudo corra bem. Essa é a missão dos espíritos, Marília: auxiliar os encarnados sem interferir diretamente no seu livre-arbítrio.
- Eu entendo Jacob. Mas essa missão é na casa de meus pais terrenos?
- Sim. No dia e hora combinados, Marília reuniu-se a Jacob, e eles, acompanhando a equipe, desceram até a crosta terrestre.
Marília mal conseguia controlar a emoção por estar de novo, após tantos anos, vendo a cidade onde nascera. A cidadezinha mudara, crescera, e Marília começava a sentir essa mudança.
- Posso ir até o campo dos girassóis, Jacob? Imagino que deva estar exatamente como deixei, com as belas flores voltadas para o sol.
- Calma, Marília, uma coisa de cada vez. É preciso que esteja bem equilibrada. Iremos mais tarde.
- Jacob, por que perderia meu equilíbrio ao ver o campo que tanto amei na Terra?
- Antes precisa tomar conhecimento dos fatos que se sucederam ao seu desencarne. Passaram-se muitos anos, e nada é como antes. É necessário aceitar que a vida na Terra segue o seu curso, o tempo não pára porque partimos para a espiritualidade, e as pessoas que ficam tentam amenizar a dor da separação, cada uma a sua maneira.
- O que quer dizer com isso, Jacob?
Enquanto a equipe seguia para o local onde cumpririam a missão para a qual tinham vindo, Jacob sentou-se com Marília na antiga pracinha, agora ostentando a graciosidade de flores bem cuidadas, bancos confortáveis e uma bela fonte.
- Vamos aguardar aqui a hora de nos juntar à equipe - disse Jacob.
- Como a cidade mudou!
- É como lhe disse: a vida não pára Marília, é preciso seguir em frente. As lembranças dos que partiram permanecem no coração daqueles que os amam, sempre viva; mas não se podem mudar os acontecimentos nem parar o tempo.
- Sinto que quer me preparar para alguma coisa que poderá me deixar angustiada. Estou certa?
- Está. Lembre-se: do mesmo jeito que retornamos, as pessoas que amamos também retornam no momento em que Jesus as chama. E, quando recebemos a
bênção de poder recebê-los, temos que agradecer ao Mestre. É um merecimento para os dois, quem chega e quem recebe.
- Fique tranqüilo. Jesus irá me amparar, seja no que for. Confio no Mestre.
- Muito bem, Marília. Na realidade, viemos acompanhar a equipe do desencarne para recebermos um irmão muito querido que deixará a Terra dentro de poucos instantes.
- Eu o conheci?
- Sim, e muito bem.
Marília sentiu em todo o seu ser que era alguém muito especial para ela.
- Diga-me quem é irmão Jacob, por favor.
- Nosso querido Antunes, seu pai terreno.
Marília sentiu uma emoção tão grande que Jacob, rápido e experiente, teve que ampará-la. Emitiu energia salutar, trazendo-a de volta ao equilíbrio.
- Pense em Jesus - recomendou Jacob -, e receberá auxílio. Agradeça ao Divino Amigo a bênção de poder receber seu pai, estar presente nesse momento importante para esse espírito que deixa seu envoltório carnal. Ele irá se tranqüilizar ao vê-la. Você já sabe que é uma libertação para o espírito. Antunes cumpriu sua tarefa na Terra com valentia e sabedoria, é um espírito vencedor, não há o que temer. Para o homem de bem, Marília, como esse querido irmão, o despertar é tranqüilo, sereno e sem angústia; ele nada sofrerá.
- Diferente do meu, Jacob, que sofri por dez anos até entender a verdade da vida.
- Marília, não volte ao passado, esqueça seus erros. Preste atenção ao presente e se esforce para melhores realizações no futuro; dedique-se inteira a esse momento, nessa tarefa bendita de receber seu pai terreno que volta para casa.
- Está bem, Jacob, podemos ir.
Em poucos segundos, entraram na antiga residência terrena de Marília. Marta, ao lado de toda a sua família, orava em volta da cama onde Antunes, assistido pelo doutor Alcides, acabara de dar o seu último suspiro. Todos sofriam a dor da separação, mas, confiantes, entregaram-se a Jesus, suplicando ao Divino Amigo amparo para suportar o sofrimento. Rapidamente a equipe responsável acabou de desligar o corpo perispiritual de Antunes do corpo físico que jazia sem vida e Antunes entregou-se ao amor dos que o socorriam. Foi-lhe permitido ver a filha antes que adormecesse e fosse levado para o hospital Maria de Nazaré. Marília aproximou-se do pai e emitiu todo o amor que sentia por ele.
- Seja bem-vindo no reino de Deus, pai querido.
Terminado seu trabalho, a equipe partiu com Antunes.
- Jacob, posso me aproximar de Júlia?
- Certamente.
Feliz, Marília aproximou-se da irmã. Beijou-lhe a face e lhe disse:
- Júlia, estou bem e papai também. Já foi levado para o hospital do espaço para sua recuperação. Ele sempre foi um homem de bem e fez por merecer essa bênção de um desencarne sereno. Estarei ao lado de nosso pai. Cuide de nossa mãe. Quanto a mim, farei o que me for permitido para fortalecê-la cada vez mais. Obrigada por cuidar com tanto desvelo da creche, ela está linda, bem cuidada e atuando de acordo com os ensinamentos de Jesus. Que Deus a proteja, minha irmã, você é um espírito nobre. Amo todos vocês.
Júlia, intuitiva como sempre fora, sentiu a presença de Marília e experimentou enorme bem-estar. Chegando perto de sua mãe, disse-lhe:
- Mãe, Marília está aqui. Manda-lhe um beijo e diz que papai já foi levado para o hospital de refazimento. Ele está bem; aliás, os dois estão. Pede que a senhora não perca a confiança e a fé em Jesus, o Mestre lhe dará suporte para atravessar esse momento difícil.
- Marília... Filha querida, que Jesus a abençoe sempre!
Jacob e Marília permaneceram juntos à família até que terminasse o sepultamento do corpo de Antunes. Quando todos retornaram para casa, Jacob disse a ela:
- É hora de irmos!
- Leve-me até o campo.
- Vamos.
Chegaram a uma imensa horta, onde diversas qualidades de legumes e verduras se misturavam, dando um colorido que encantava os olhos de quem os visse.
- Linda horta, não, Marília?
- Linda, Jacob, mas eu lhe pedi que me levasse ao campo de girassóis, e não a uma horta.
- Aqui é o antigo campo de girassóis.
Atônita, Marília respondeu:
- Deixe de brincadeira, Jacob, onde estão minhas flores? Por Deus, o que fizeram com elas?
- Seus pais não suportaram mais vir ao campo dos girassóis após a sua partida. As flores aumentavam ainda mais o sofrimento deles. Acharam por bem dar uma finalidade mais útil e importante a esse campo, transformando-o nessa viçosa horta, para suprir todas as necessidades da creche, que a cada dia recebe mais crianças necessitadas. Os girassóis são frágeis, Marília, apesar de aparentar fortaleza, assim como você também foi frágil ao desprezar os valores morais; assim como todas as formas de vida também são frágeis diante da soberania de Deus. Marília compreendeu o que Jacob queria dizer.
- Entendi Jacob. Eu quis só para mim as flores, julgando-as poderosas; quis ser igual a elas. Entretanto, assim como elas, também tombei quando o vento soprou mais forte, não tive resistência e me deixei levar.
- Seus pais perceberam a necessidade dos menos favorecidos e, dando maior ênfase à fraternidade, deram a este campo outra finalidade: a de alimentar as crianças que pouco ou nada tinham, proporcionando-lhes uma vida mais saudável através de uma alimentação mais equilibrada. Mas tenho uma surpresa para você.
- Qual?
- Venha.
Foram um pouco mais além e, para surpresa de Marília, avistaram em uma pequena área os girassóis, lindos, imponentes e voltados para o sol.
- O que significa isso? Não estou entendendo.
- Seus pais quiseram mostrar que os dois lados podem andar juntos, se entrelaçando, quando o coração abriga a fraternidade. A beleza se mistura à utilidade. Isso é possível quando existe amor no coração, Marília. O "eu e o nós" podem caminhar lado a lado; é preciso apenas entender que todos somos criaturas fortes e frágeis, porque somos seres em evolução. Para amar o próximo não é preciso destruir nossos objetivos, e ao entender isso eles se tornam mais dignos.
- O meu erro foi amar apenas as flores e a mim mesma. Esse amor se tornou pequeno e vazio. Envergonho-me diante da sabedoria de meus pais. Por que não consegui compreendê-los como devia?
- Isso é passado. Agora o momento é para se concentrar no seu aprimoramento.
- Você sempre sabe o que diz Jacob. Preciso vencer minhas tendências ruins. Um dia retornarei a Terra, e não quero cometer os mesmos erros.
- Vamos voltar à colônia, Marília.
- Certo.
Os dois espíritos seguiram junto rumo à colônia que habitavam.

Se os encarnados imaginassem a vergonha que sente o espírito ao chegar à espiritualidade e ficar frente a frente com seus erros, enganos e leviandades, prestariam mais atenção às atitudes que tomam muitas vezes precipitadas, algumas vezes intencionalmente maldosas, e não raras atitudes que levam às últimas conseqüências. A vida é um bem precioso, Marília, e não é prudente desperdiçar essa oportunidade que nos foi dada. Tudo o que semearmos na vida terrena colheremos na outra até o último ceitil, como diz Jesus. Acreditando ou não na vida futura, a lei se cumprirá. A busca desenfreada pela felicidade com que sonhamos nos faz perder o controle de nós mesmos, e facilmente caímos no abismo da inconseqüência. "A felicidade não é deste mundo." Assim, pois, aqueles que pregam ser a Terra a única morada do homem, e que só nela e numa só existência, lhe é permitido atingir o mais alto grau das felicidades que a sua natureza comporta, iludem-se e enganam aqueles que os escutam; já que está demonstrado, por uma experiência arqui-secular, que este globo não encerra senão excepcionalmente as condições necessárias à felicidade completa do indivíduo. Em tese geral, pode-se afirmar que a felicidade é uma utopia, na busca da qual as gerações se lançam sucessivamente sem poder jamais alcançá-la; porque, se o homem sábio é uma raridade neste mundo, o homem absolutamente feliz nele se encontra menos. (O Evangelho Segundo o Espiritismo - Allan Kardec - Capítulo V)

- Marília, nosso irmão Antunes acordou e demonstrou o desejo de vê-la - disse Claudete, responsável pelo setor onde Antunes se encontrava.
- Posso?
- Claro. Ele está bem. Um pouco fraco o que é normal logo após o desencarne, mas em paz e consciente de tudo o que aconteceu.
Marília dirigiu-se ao quarto onde se encontrava seu pai. Assim que entrou, Antunes sorriu ao ver a filha querida.
- Como se sente pai?
- Bem, minha filha. Estou sendo fortalecido, e acredito que logo terei permissão para sair. Quero muito ouvir as palestras de Madre Teresa. Falam muito dessa irmã, e sei que tenho muito que aprender com ela. E você, Marília, como está?
- Já estou aqui nesta colônia há sete anos, pai. Trabalho e estudo o Evangelho de Jesus e assisto às palestras de Madre Teresa todos os dias.
- Se minha memória não me trair, parece-me que você retornou há dezessete anos. Por que está aqui só há sete?
- Envergonho-me de dizer, pai, mas fiquei dez anos em uma zona infeliz, cheia de aflições e sofrimento.
- Por quê?
- O senhor deve imaginar. Mas não vamos falar sobre isso, não é bom para o senhor. Além do mais, Jacob diz que devemos pensar no presente, porque é agora que temos que trabalhar para promover nossa evolução, e deixar o passado como um alerta para não cairmos nos mesmos erros.
- O que importa é vê-la em paz.
- Preciso ir querido, tenho tarefas a cumprir. Em nossa casa terrena estão todos bem, com muita saudade do senhor, mas resignados porque sabem que está amparado. O senhor sempre foi um homem de bem, fez por merecer o desencarne tranqüilo.
Marília saiu, e Antunes, ainda sofrendo inquietação natural, voltou a adormecer. Em suas horas de descanso Marília passeava pelas alamedas floridas da colônia. Orava ao Senhor; refletia e se questionava se fazia em seu trabalho tudo o que podia. Era severa consigo mesma.
- Já errei muito, preciso agora de acertos!
Nesse dia, achava-se particularmente inquieta. Pensava em como havia comprometido sua existência na Terra em sua última encarnação. Como pude ser tão tola, meu Deus? Comportei-me levianamente, comprometendo minha existência terrena, e agora liberta, percebo o quanto fui volúvel e inconseqüente. Dezessete anos desencarnada e ainda sofro pela minha leviandade, por haver brincado com a oportunidade concedida por Deus. Escondi-me atrás de minha inigualável beleza, e hoje sei que nada adianta ostentar um rosto belo se o coração abriga só a vaidade a ambição. Quantas pessoas prejudiquei, nem me dei conta disso! Recordou-se de Luiz.

Querido Luiz,

Não tive capacidade para enxergar e valorizar sua dignidade e o amor sincero que sentia por mim. Apesar de amá-lo, só lhe dei tristeza, culminando por contaminá-lo com uma doença que o levaria ao sofrimento; justo você, um rapaz tão bom. Que todas as pessoas que contaminei ou prejudiquei de alguma forma possam ter me perdoado. Não conseguia enxergar nada além de mim mesma. Que angústia só em pensar que posso ter destruído a vida dele! O que posso e faço é orar e pedir a Jesus que o abençoe.

Sentindo uma grande inspiração, Marília falou:
- Vou procurar Jacob. Preciso ouvir seus sábios conselhos.

CAPÍTULO XV - TUDO TEM UMA RAZÃO

Marília sabia onde encontrá-lo, e para lá se dirigiu, não sem antes orar a Jesus suplicando auxílio.
- Se for o momento, Senhor, que eu encontre a solução para essa inquietação que interfere em meu equilíbrio.
Seguiu confiante. Jacob, assim que a avistou, percebeu o motivo pelo qual Marília o procurava. Aproximou-se.
- Então, minha irmã, em que posso ajudá-la? Parece-me ansiosa.
- E estou Jacob, meu amigo, preciso de você, de seus conselhos - respondeu Marília, com agitação.
- Noto mesmo que está agitada; diria até angustiada. O que a perturba a ponto de deixá-la nesse estado?
- Sinto uma inquietação que só aumenta a cada instante, comprometendo meu equilíbrio. Creio não ter forças suficientes para controlar a mim mesma. Necessito de seus conselhos e esclarecimentos. Jacob, como de costume, deu vazão aos seus sentimentos de verdadeira fraternidade.
Apiedou-se daquela irmã, que havia tempos lutava contra si mesma, com sua dificuldade em promover sua reforma interior, mergulhar no amor de Jesus e seguir o caminho da sua evolução espiritual. Elevou seu pensamento ao Mestre, e a resposta ao seu pedido veio de imediato. Feliz e agradecido, disse:
- Venha, Marília.
Foram para um lugar onde a paz reinava absoluta. Suave música se fazia ouvir, transmitindo a paz de Cristo e o equilíbrio necessário aos espíritos. Sentaram-se em um canto, e Jacob paternalmente lhe perguntou:
- O que na verdade a está consumindo, minha irmã?
- Jacob, a cada dia nesses anos todos vou tomando consciência dos desatinos que cometi. Agradeço a Jesus por haver permitido ter você como conselheiro, pois foi através de sua atenção em me explicar e orientar que fui entendendo e tentando evoluir. Mas nem tudo ficou bem explicado para mim, e algumas coisas ainda me perturbam.
- Como, por exemplo?
- Por que fui prejudicar alguém tão especial como Luiz, que só fazia o bem, principalmente para mim? Qual a razão que me fez desprezar toda a oportunidade de ser feliz de verdade lado dele? - Marília silenciou por alguns instantes.
- Continue.
- Outra coisa que me perturba é por que me detive tanto em mim mesma, sendo escrava de algo tão passageiro como a beleza física, prejudicando quem de verdade me amava?
Nesse momento, Marília chorou.
- Calma, minha irmã, muita calma. Não é bom se descontrolar assim. Vamos fazer uma prece ao Senhor solicitando auxílio.
Os dois espíritos oraram com fervor ao Divino Mestre, clamando por paz e equilíbrio para aquela irmã perdida nos próprios sentimentos. Assim que terminaram, pequenos flocos azuis caíram sobre a cabeça de Jacob e Marília.
- Está mais calma?
- Estou sim, Jacob, bem mais tranqüila.
- Quer continuar?
- Quero. Se Jesus permitir, gostaria muito de saber como está Luiz. Se continua na Terra ou se já retornou à espiritualidade. Afinal, ele era soropositivo, e já se passaram tantos anos... - Criando coragem, Marília indagou: - Jacob é possível tomar conhecimento dos reais motivos dessa minha imprudência que me levou até o limite da ilusão?
- É possível. Já solicitei autorização e fui atendido. Primeiro é necessário que você se equilibre; é importante se desligar dos atos de outrora se quiser encontrar a paz. Os erros do passado devem nos dar forças para enfrentar o desafio de nos tornar melhores, sanando nossas imperfeições, e não nos jogar na auto-compaixão, que nos enfraquece. As vicissitudes da vida são de duas espécies: uma tem sua causa na vida presente; outras, fora dela. Remontando à fonte dos males terrestres, se reconhecerá que muitos são as conseqüências naturais do caráter e da conduta daqueles que os suportam. Quantos homens tombam por suas próprias faltas? Quantos são vítimas de sua imprevidência, de seu orgulho e de sua ambição? Quantas pessoas arruinadas por má conduta e por não terem limitado seus desejos? Quantos males e enfermidades são as conseqüências da intemperança e dos excessos de todos os gêneros? [...] Mas a experiência, algumas vezes, vem um pouco tarde; quando a vida foi dissipada e perturbada, as forças desgastadas, e quando o mal não tem mais remédio, então o homem se põe a dizer: se no início da vida eu soubesse o que sei agora, quantas faltas teria evitado? Se fosse recomeçar eu faria tudo de outro modo; mas não há mais tempo! Como o obreiro preguiçoso, diz: "Eu perdi minha jornada", ele também se diz: "Perdi minha vida"; mas da mesma forma que para o obreiro o sol se ergue no dia seguinte e uma nova jornada começa, permitindo-lhe reparar o tempo perdido, para ele também, depois da noite do túmulo, brilhará o sol de uma nova vida, na qual poderá aproveitar a experiência do passado e suas boas resoluções para o futuro. (O Evangelho Segundo o Espiritismo - Allan Kardec - Capítulo V)
- Marília, vamos até o departamento responsável pelas encarnações passadas. Lá você poderá conhecer a sua história, que gerou a causa de seu tombamento.
Gostaria de ir?
- Claro, Jacob, é o que mais espero. Pode confiar, terei força para vencer a mim mesma.
Seguiram. Jacob apresentou Marília a Samuel, o responsável pelo departamento, colocando-o ciente do assunto. Marília foi então encaminhada para a sala de projeção, onde havia enorme tela que a deixou admirada. Instruída por Jacob, acomodou-se em uma das poltronas, solicitando ao amigo que permanecesse ao seu lado, pois se sentiria mais tranqüila. Jacob se acomodou junto dela, pedindo-lhe que orasse a Jesus com sinceridade, para que
permanecesse em equilíbrio. Marília assim o fez.
- Está pronta? Posso iniciar?
- Pode, sim, Samuel - respondeu Marília. Sinto-me preparada.
As luzes se apagaram, e na grande tela apareceram às imagens que revelariam para Marília a história vivida em sua encarnação anterior. Ano de 1904. Cidade localizada na região Centro-Oeste do Brasil. Atravessando os campos verdejantes de importante fazenda da região, corria como uma pequena lebre uma garota de apenas quinze anos. Ao primeiro contato com aquela cena, Marília se identificou como sendo aquela jovem, vestida de maneira simples. Sou eu! A cena continuou. Ao avistar a figura de um rapaz elegante, com um porte garboso, sentado embaixo de frondosa árvore, a menina gritou alegre:
- Antônio... Antônio!
Assim que a avistou, o rapaz levantou-se e correu ao seu encontro. Abraçaram-se.
- Querida, como você demorou!
- Queria vir antes, mas não deu para sair. Sua mãe precisou de mim até mais tarde, e não teve outro jeito senão esperar - respondeu Lucila aconchegando-se
nos braços de Antônio, por quem estava perdidamente apaixonada.
- Não importa. Agora você está aqui, e é melhor aproveitarmos o momento.
Deitaram-se na relva e, abraçados, aproveitavam a brisa suave do campo. Os sonhos de Lucila não combinavam com os de Antônio, pois apenas se divertia com a moça pobre e sem atrativos da fazenda. Lucila alimentava o sonho de contrair casamento com Antônio, pois acreditava que o rapaz a amava. Antônio era filho de importante fazendeiro proprietário da maioria das terras da redondeza, que, respeitado por todos na cidade, era chamado de coronel. Lucila era a filha mais velha de Jurema, cozinheira da fazenda, e José, responsável pela imensa criação de gado. Lucila era uma menina pobre, sem instrução e sem beleza expressiva. Marília, inquieta, remexeu-se no assento. Identificou Luiz na figura de Antônio. Jacob percebeu sua inquietação e perguntou-lhe:
- Quer desistir, Marília, deixar para outra ocasião?
- Não, Jacob, preciso desvendar a mim mesma. Pode continuar Samuel, por favor.
As cenas prosseguiram.
- Quando você vai dizer aos seus pais que nos amamos, Antônio?
- Calma, meu bem, essas coisas têm que ser ditas com cuidado. Preciso esperar o momento certo.
Acreditando no namorado, Lucila se entregava confiante no amor e na sinceridade de Antônio. Os dias se passavam sem que houvesse nenhuma atitude por parte do namorado. Nessa altura, a tela se apagou.
- Acabou?
- Não, Marília. Fique atenta, vai começar novamente.
Mais uma vez a tela se iluminou, mostrando cenas de seis meses após. A criadagem da fazenda corria de um lado para outro com os preparativos para a noite, que, segundo o patrão, seria da maior importância.
- Cuide para que tudo saia bem - dizia a mãe de Antônio para Jurema. - Hoje teremos uma grande surpresa. É dia de festa! - exclamava sorridente. - Quero todos bem-arrumados, principalmente você, Lucila, pois estará na sala comigo.
Lucila sentia o coração disparar. Jesus, me ajude, é hoje! Antônio deve ter falado de nós dois para seus pais. Essa festa com certeza é para comemorar nosso noivado! Arrumou-se com o maior cuidado e, na hora marcada, estava ao lado de dona Eugênia, recebendo os convidados. Estranhava Antônio não lhe dar nenhuma atenção. Ele finge que nem me vê, pensava. Justo no dia mais importante para nós. A comemoração seguia, animada, até que em dado momento o coronel, com toda a pose que lhe era peculiar, pediu a atenção de todos para uma grande notícia. Meu Deus é agora! Lucila se sentia tremer. Em meio à alegria geral, foi anunciado o casamento de Antônio com a filha de um grande amigo de seu pai, tão o mais rico do que ele. Lucila correu para seu quarto sem ao menos pedir licença a dona Eugênia, que, sem saber de nada, estranhou seu comportamento. A jovem se jogou na cama e derramou todas as lágrimas que podia. Durante dois dias, não saiu de seu quarto, alegando uma doença qualquer. No terceiro dia levantou-se e, sem avisar sua mãe, dirigiu-se até o local onde se encontrava com Antônio. Para sua surpresa, ele estava lá esperando por ela.
- Demorou a vir Lucila. Há dois dias venho aqui para encontrar-me com você.
- Tem coragem de me dizer só isso, Antônio?
- E o que queria que eu dissesse?
- Que pelo menos explicasse por que esse casamento de repente. O que significa isso? E nós, como ficamos?
- Como sempre, Lucila. Meu casamento não irá atrapalhar nossos encontros, vamos continuar do mesmo jeito.
- Antônio, eu pensei que...
Sem deixar que ela terminasse a frase, Antônio lhe disse:
- Não estava pensando que eu me casaria com você, não é? - Diante do silêncio da namorada, prosseguiu: - Lucila meu casamento será a realização dos meus sonhos, a união das nossas fortunas. E com a moça que meus pais escolheram. Agrada-me ter uma esposa tão bela.
- E eu?
- Você é apenas a satisfação dos meus desejos de homem. Não possui beleza, instrução ou qualquer outro atrativo que possa levar um homem ao casamento.
Lucila sentiu uma raiva gigantesca tomar conta de todo o seu ser. Aos gritos, despejou todo o seu ódio por Antônio:
- Eu o odeio, Antônio, e hei de odiá-lo por toda a minha vida e até depois dela. Um dia iremos nos encontrar, nem que seja no inferno, que é para onde você deve ir!
Nesse instante, a tela se apagou de novo. Marília tremia e se inquietava, tomada de enorme angústia.
- Acalme-se, Marília - pedia-lhe Jacob. - Pense em Jesus, rogue por auxílio, para que volte o seu equilíbrio.
Jacob ministrou-lhe um passe, transmitindo-lhe energia de paz e tranqüilidade. Sentindo-se mais calma, Marília pediu que ele mesmo terminasse sua história, pois não tinha mais condições de assistir a si mesma. Jacob, atendendo ao seu pedido, gentilmente completou:
- Os dias e os anos se passaram sem que Lucila conseguisse se casar. Todos souberam que se entregara a Antônio, e ela imprudentemente deixava que cada vez mais o rancor tomasse conta de seu coração. Desencarnou ainda jovem e, após anos vagando na erraticidade, blasfemando e clamando por vingança, cansou de tanto sofrimento e rogou por misericórdia. Socorrida, foi levada ao hospital de refazimento, onde recebeu tratamento adequado. Preparou-se por longo tempo e, ao se achar apta, pediu ao Mestre bênção de uma nova oportunidade na Terra. Através da misericórdia divina, foi-lhe concedida à reencarnação. Mesmo sendo advertida dos perigos, pediu a prova da beleza. O resto Marília, você já sabe.
- Mas por que me encontrei novamente com Antônio, agora na figura de Luiz?
- Antônio arrependeu-se sinceramente do que havia feito a Lucila; quando desencarnou, sofreu muito por conta do remorso. No devido tempo, solicitou nova oportunidade de retornar e sanar o mal que fizera a Lucila, encontrando-se com ela e dando-lhe o amor que lhe negara. Antônio, encarnando-se como Luiz, encontrou-se desde muito cedo com Lucila, agora você, Marília, e amou-a desde o primeiro instante. Cumpriu o seu propósito de regeneração e deu a você o que deveria ter sido seu em encarnação passada, ou seja, o amor verdadeiro.
- E por que tudo deu errado, Jacob? Se tudo estava planejado... Não posso entender.
- Porque você não esqueceu o mal recebido e quis obter tudo o que lhe fora negado antes: beleza, riqueza e sexo. Apesar de amar Luiz, rejeitou-o. Exibiu a beleza que faltou na vida passada e que tanta tristeza lhe causou; procurou a riqueza sem dignidade moral, entregou-se ao desatino sexual querendo compensar o que lhe negaram, e o respeito ao próximo não foi sua virtude. Como disse, Luiz cumpriu o que se propôs; mesmo no momento da descoberta de sua doença, transmitida por você, sua ira durou pouco tempo. Logo ele a perdoou.
- Quer dizer que ele é bem melhor do que eu! - exclamou Marília, triste.
- Quer dizer que soube usar melhor a oportunidade recebida; não se entregou à auto-compaixão, cometeu enganos comuns aos encarnados, mas trouxe para o seu coração o melhor dos sentimentos: o perdão; e foi esse sentimento que fez a maior diferença, Marília.
- O que faço agora, Jacob?
- O que vem fazendo, ou seja, estude o Evangelho de Jesus; aprenda a usar melhor o seu livre-arbítrio, ame o seu semelhante trabalhando para o benefício do próximo, e, acima de tudo, Marília, aprenda a perdoar.
Após alguns minutos de silêncio, Marília voltou a indagar a Jacob:
- Eu poderia saber o que aconteceu com Luiz? Se ele já reside na espiritualidade ou se ainda está encarnado? É possível, Jacob?
- Tão possível que lhe digo já: Luiz retornou seis anos após o seu desencarne, vítima da doença que havia se manifestado dois anos antes.
- E como chegou?
- Muito bem, Marília. Jamais reclamou ou questionou as razões de tudo acontecer. Perdoou-a mesmo. E na época em que ele afirmou "Minha história com Marília terminou para sempre", disse uma verdade, minha irmã. Hoje Luiz não possui nenhuma ligação ou questão mal resolvida com você. Os laços que os uniam foram desfeitos por ele mesmo, ao lhe dar a oportunidade de fazê-lo sofrer a mesma dor que havia lhe imposto outrora. Mas o que realmente o separou de você foi o perdão.
- Ele habita outra colônia, trabalha junto de uma equipe socorrista. Dedica-se a resgatar os irmãozinhos que clama por misericórdia, aliviando-os da dor.
Jacob percebeu que Marília sentia-se envergonhada.
- Jacob, ajude-me a vencer minhas imperfeições. Tenho vergonha de tudo o que fiz.
- Não se martirize. A maior felicidade que temos é que sempre existe uma saída, uma maneira de consertar nossos erros, enganos e ilusões vãs. Carregar nas costas o saco de culpas em conseqüência dos muitos equívocos que cometemos só irá dificultar nossa caminhada. Quando nos conscientizamos das nossas imperfeições já é um bom sinal; porque a partir dessa conscientização adquirimos coragem para vencê-las. Não se deve trabalhar apenas para ser rico, Marília, porque o segredo da felicidade não está em ganhar dinheiro, mas ter sabedoria para fazer com o nosso trabalho uma diferença na vida do nosso semelhante e na nossa própria. Você não aceitou sua encarnação passada, e por conta disso cometeu os maiores desatinos. Agora é se preparar para quando nosso Mestre achar que o momento é oportuno para nova encarnação, estando fortalecida para enfrentar com valentia as provas que decerto virão. Nosso Criador sempre nos concede oportunidade para recomeçar. Essa é a nossa alegria.
Marília, emocionada, agradeceu ao querido amigo:
- Obrigada, Jacob, por tudo o que me ensina. Você é, sem dúvida, um espírito nobre.
- Não agradeça a mim, mas sim a Jesus, que abre as portas para todas as criaturas buscarem sua própria evolução.
- Você fala de evolução, e eu estou tão longe dessa elevação... Sou muito pequena ainda.
- Todos estamos no caminho da evolução, que é longo e nada fácil. Depende de cada um avançar mais ou menos rapidamente, e esse avanço está relacionado ao que agasalhamos dentro de nós, sem máscaras. Sentimentos e pensamentos nobres impulsionam o ser para a felicidade, porque levam aqueles que os sentem a praticar a caridade; a serem humildes generosos e dignos, entrelaçando a própria vida à do semelhante. Os sentimentos menores, pequenos e mesquinhos, em oposição, levam os incautos a rodopiar em volta de si mesmos no egoísmo que os leva à perdição. Todos nós devemos ter consciência de que pela fé subiremos ao Senhor, através da nossa súplica, mas, pelo amor ao próximo, pela prática da caridade, o Senhor descerá ao nosso encontro, e a felicidade duradoura, aquela que nos acompanha pela eternidade, nascerá desse encontro. (A Essência da Alma - Irmão Ivo)
O tempo seguiu seu curso. Anos se passaram. Marília, aceitando os conselhos de Jacob, dedicava-se ao estudo e ao trabalho edificante. Sentia-se recompensada e agraciada pela bênção divina. Sentada no auditório, em meio a tantos outros espíritos, ouvia atentamente a palestra de Madre Teresa. A querida irmã discursava sobre a bênção da reencarnação e a importância dessa experiência na Terra, onde o espírito exercitava o aprendizado adquirido na espiritualidade, consertava seus erros e se apaziguava com seus desafetos do pretérito. Enfatizava os riscos que correm aqueles que, nascendo no mundo físico, entrega-se aos delírios da matéria, abafando a voz da consciência, que sem cessar alerta os distraídos.
- A prece - dizia - nos aproxima do Senhor, do nosso Criador, que tudo promove para que Suas criaturas alcancem a elevação. Acalma a alma sofrida aliviando suas dores. Encarcerado no corpo de carne, o espírito tem a oportunidade de vencer a si mesmo, e a sua vitória sobre suas imperfeições é o que o aproximará do Criador, através de Jesus. Após singela prece, Madre Teresa encerrou a palestra. Marília esperou que todos se retirassem e, assim que se viu só, caiu de joelhos e deixou seu sentimento correr livre e solto em direção a Deus.
- Pai, meus olhos se abriram para o mundo da matéria porque o Senhor assim o permitiu. Consegui perceber a luz que brilhava ao meu redor emanada dos braços amorosos de minha mãe terrena, que me aconchegaram. Nasci. Cresci. Caminhei entre rosas que não consegui sentir. Vi-me entre espinhos que não consegui aceitar. Perdi-me. Andei sem rumo, perdida na ilusão de mim mesma, sem ver aqueles que me direcionavam o caminho. A minha cegueira espiritual jogou-me no infortúnio, e nem quando cheguei de volta tive lucidez para enxergá-Lo, Senhor. Não O vi pelo amor, Senhor, mas O chamei pela dor. Hoje posso sentir a doçura de Seu olhar nesse aconchego de carinho e misericórdia. Posso sentir a rosa; consigo compreender os espinhos, e por isso suplico Senhor da Vida: conceda-me mais uma oportunidade de renascer no corpo físico para que eu consiga retirar de mim esse miasma da mágoa do pretérito. Dê-me em abundância tudo de que preciso para aprender a amar de verdade, a perdoar com transparência, a respeitar meu próximo e a mim mesma, e compreender que a maior beleza é a da alma, e não do corpo. Assim seja, Senhor.
Dois dias após o clamor de Marília, ela foi chamada ao Departamento Reencarnatório.
- Irmão Samuel, vim assim que recebi seu chamado.
- Estava aguardando-a, irmã. Tenho algo muito importante para comunicar-lhe.
Ansiosa, Marília respondeu:
- Por favor, do que se trata?
- Marília, já é do seu conhecimento que a reencarnação é uma bênção que o Senhor concede ao espírito, estou certo?
- Claro, irmão, já estudei muito sobre reencarnação e os seus benefícios para o espírito, e espero ansiosa pelo dia que serei agraciada com essa oportunidade.
- Pois então pode agradecer ao Senhor, Marília, pois acaba de ser agraciada com a bondade divina. Vamos iniciar o processo de sua reencarnação.
Marília, tomada de surpresa, ajoelhou-se e entre lágrimas exclamou:
- O Senhor ouviu a minha prece!
- Tem dois dias para se despedir dos amigos e, ao fim desse prazo, venha se internar para a preparação.
- Obrigada, irmão. Dentro de dois dias eu me apresentarei.
Saiu do departamento levando a alegria e o agradecimento em seu coração.
- Preciso encontrar Jacob. Ele irá me aconselhar e me dará forças e coragem para enfrentar essa nova experiência na Terra, para que volte como uma vencedora, assim como Luiz.
Cheia de esperança, foi à procura de Jacob. Encontrou-o em prece no salão onde se realizavam as palestras. Temendo interromper o amigo, Marília sentou-se em uma das últimas cadeiras do salão e aguardou. Não demorou muito e Jacob aproximou-se dela, dizendo-lhe:
- Querida irmã, sei por que veio me procurar. Estou feliz por você.
- Jacob, preciso dos seus conselhos. Tenho medo de falhar de novo.
- Nada tema irmã, confie em Jesus e vá confiante. Está preparada, fortalecida, conheceu e aprendeu o amor verdadeiro, aquele que Jesus tão bem exemplificou para os encarnados por ocasião de Sua estada na Terra. Volte sua atenção para o seu interior e ouvirá a voz da sua consciência mostrando-lhe o caminho seguro. Não queira falar mais alto que o Pai, porque para ouvir o Senhor é necessário calar a nossa voz. Não se revolte contra a vida, pois ela será para você apenas o cenário que precisa para aprender a ser humilde, generosa e altruísta, virtudes que lhe faltaram na existência passada. Não é fácil promover a reforma interior porque é necessário extirpar primeiro os sentimentos menores que mutilam a alma, e essa é uma tarefa árdua. Devemos visitar nosso coração todas as noites e retirar o bolor que a nossa imprudência permitiu entrar. Assim poderemos acordar com a alma brilhando com a luz do amor, e é essa luz que a trará de volta à eternidade. Com a permissão de Jesus estaremos acompanhando sua caminhada na Terra, inspirando-a no bem e fortalecendo-a para que cumpra a tarefa a que se propõe. Vá em paz, querida irmã, Jesus estará com você.
- Obrigada, Jacob, espero reencontrá-lo no meu retorno. Que Jesus me conceda essa graça.
Marília se despediu do amigo e seguiu para o Departamento Reencarnatório, onde se prepararia para nova experiência no mundo físico. Desta vez, tentaria uma experiência construtiva, edificante, longe das paixões terrenas e dos enganos que muitas vezes nos levam ao limite da ilusão. A reencarnação é um dos princípios da Doutrina Espírita e se funda sobre a justiça de Deus e a revelação, pois não nos cansamos de repetir: um bom pai deixa sempre uma porta aberta ao arrependimento. A doutrina da reencarnação, que consiste em admitir para o homem muitas existências sucessivas, é a única que corresponde à idéia da justiça de Deus; a única que pode explicar o nosso futuro e fundamentar as nossas esperanças. A cada nova existência o Espírito dá um passo na senda do progresso; quando se despojou de todas as suas impurezas, não precisa mais das provas da vida corpórea. (O Livro dos Espíritos - Alan Kardec - Capítulo IV)

CONSIDERAÇÕES

Jesus, durante todo o tempo que ficou na Terra entre os homens, foi incansável em falar sobre a vida futura. Sua intenção era prevenir os homens de que um dia todos iriam se apresentar perante o Criador e seria necessário prestar contas do que fizeram e que utilidade deram à oportunidade recebida de estar no mundo físico, cuja finalidade única é de se tornarem pessoas melhores e verdadeiras criaturas de Deus. O Divino Amigo tentou acordar a humanidade para a importância de trazer para si as virtudes que os elevariam à condição de homem de bem. Entretanto, os homens continuam adormecidos e não escutam a palavra de Jesus. O que na verdade é ser um homem de bem? Homem de bem é aquele que pratica as leis divinas com transparência de alma. Suas atitudes estão sempre ligadas às leis da caridade,da justiça e do amor, porque já compreendeu e aceitou a palavra de Jesus. Já se conscientizou da necessidade de respeitar a si mesmo, não violando sua essência com práticas que só se relacionam com a matéria. O homem de bem não dá tanta importância à riqueza, à beleza física ou corre atrás de vantagens pessoais, pois sabe que tudo o que possui pode lhe ser retirado no momento em que Deus achar por bem retirar. Os homens possuem apenas o usufruto de suas aquisições materiais. Elas aqui ficarão, pois pertencem ao mundo da matéria; entretanto, ao adquirir as aquisições espirituais provenientes do bem praticado, essas sim o acompanharão para sempre e lhe abrirão as portas dos mundos mais felizes. É preciso reconhecer as próprias imperfeições e lutar fortemente para superá-las. Imperfeitos todos somos, mas a maior alegria é saber que temos oportunidade de rever e reconsiderar nossa maneira de pensar e de agir. Por que não o faz? Por que se perder em ilusões e sonhos tolos que nada acrescentam ao aprimoramento moral e espiritual? Por que correr tanto, querer tanto alcançar a felicidade se ela existe a partir do que se faz para obtê-la? A felicidade é muito mais profunda do que a alegria efêmera, que dura poucos minutos, algumas horas ou dias, e logo vai embora. Felicidade, meus irmãos, é sentida na alma; faz-se presente nas mãos laboriosas que trabalham sem cansar ou reclamar para o bem-estar do semelhante. Felicidade está na proporção do bem que se faz a outrem. Quem de verdade é feliz não sente ódio ou desejo de vingança; espelha-se em Jesus e perdoa, esquecendo as ofensas. Valoriza as bênçãos e os bens recebidos, porque sabe da importância de se voltar para Deus e agradecer; emprega seus recursos de maneira justa, sem se elevar perante os menos favorecidos, e sabe que nada é mais prejudicial a si mesmo do que ser escravo de suas paixões. Não usa seus irmãos para sua conveniência, mas se coloca à disposição para ajudar sempre que possível. Aquele que entender isso, e se colocar a serviço da caridade, encontrará em seu caminho a verdadeira felicidade. A intenção ao mostrar para os homens a vida futura como realidade, não é outra senão desvendar o véu do medo e da incerteza do futuro que espera todos que abandonam o corpo físico. E também orientar quanto à responsabilidade da sua própria vida, esclarecendo-os de que tudo o que se faz gera uma reação; feliz através do bem; infeliz através do egoísmo em que se vive. O tarefeiro de Cristo não sente receio do retorno, porque seu coração e sua existência estão quites com as leis divinas. Morte não é destruição, é apenas uma transformação que nos leva de volta à casa do Pai. Feliz aquele que retorna trazendo suas lições feitas em sintonia com o amor de Jesus. São vitoriosos! Ninguém se beatifica apenas porque desencarnou ou deixou seu corpo de matéria. É preciso muito mais, ou seja, trabalho caritativo, porque, se tivermos apenas a teoria sobre o que realmente representa o amor, o coração se transforma em fonte seca, pois o amor sendo praticado vivifica. Tentamos mostrar-lhes que é possível caminhar por entre espinhos e não se ferir; por que se afogar em águas rasas? O respeito e a fraternidade impedem-nos de cometer absurdos. Fazem-nos olhar o semelhante como igual a nós e impulsionam-nos a desejar o melhor para ele, assim como desejamos para nós mesmos. Acordem irmãos meus, abram realmente o coração e recebam essa dádiva preciosa da vida. Usem com sabedoria a oportunidade de evolução que o Senhor nos concede. Vivam para evoluir... E alcançar o céu! Até mais ver!

Irmão Ivo


PALAVRAS DA MÉDIUM

Todos os nossos atos esquecidos na Terra continuam lembrados na eternidade, e, mesmo que nossa mente não se recorde mais, pagaremos por eles na mesma proporção do estrago espiritual que causamos aos nossos irmãos. Ninguém, nenhuma criatura fica esquecida da misericórdia de Deus, porque nosso Pai acompanha toda a nossa trajetória respeitando nosso livre-arbítrio e aguardando o momento em que, limpos de pensamento, de sentimentos e verdadeiramente arrependidos, possamos abrir nosso coração e com sinceridade dizer: Pai segure minhas mãos e leve-me para o Seu caminho. Deus não nos castiga, e a vida na Terra ou na espiritualidade apenas responde aos nossos atos na maioria das vezes impensados. A misericórdia de Deus está presente sempre no nosso sofrimento e na nossa dor, mas nossos olhos cegos nos impedem de ver. Antes de tomarmos atitudes que poderão nos comprometer perante Deus, pensemos em nosso Pai misericordioso e infinitamente justo, no quanto Ele ama Suas criaturas; nos Seus ensinamentos e nas palavras contidas no Evangelho. Assim, creio eu, agiremos com mais prudência e como seus filhos verdadeiros. A oportunidade de rever nossos conceitos e nos transformarmos em pessoas de bem recebemos do Criador a cada novo amanhecer. Mas, acostumados que estamos a viver sempre apressados, deixamos de observar todas as manifestações naturais da presença divina, sempre no nosso caminho. Como somos distraídos! Distraídos, sim, para as coisas de Deus; não para satisfazer nossos desejos, que pouco ou nada contribuem para a elevação e o aprimoramento moral. Não temos tempo de perceber o sorriso de uma criança ou uma manifestação de amizade, ou mesmo a fidelidade daquele cãozinho que temos em casa. Nossa atenção se volta sempre para a satisfação de nossos desejos e do que julgamos não raro enganados, ser a felicidade. Ser cristão não implica esquecer totalmente as satisfações do mundo em que vivemos. É necessário apenas regrar nossos impulsos e desejos para que sejam coerentes saudáveis e, sobretudo prudentes. Pode-se auxiliar o próximo sem que com isso seja necessário esquecer-se de nós; e pode-se lembrar de si mesmo sem que seja preciso esquecer o semelhante; porque somos um todo sem deixarmos de ser um. Essa é a mágica da evolução do ser, ou seja, integração com o semelhante, por que: "Fora da caridade não há salvação". Com este livro o querido espírito Irmão Ivo nos alerta quanto aos perigos das ilusões passageiras. Nada fica sem resposta, e elas virão mais cedo ou mais tarde. A dor é sempre uma consequência dos atos impensados, imprudentes e por vezes levianos. Nós não somos a peça principal desse imenso tabuleiro que é o universo. Dividimos o espaço com milhões e milhões de criaturas que, como nós, têm o mesmo direito à grande casa de Deus. É necessário pensar e repensar a respeito da nossa permanência na Terra, é feliz aquele cuja conclusão está relacionada ao amor fraternal, ao respeito pelo próximo e a si mesmo, não se tornando um agente de sofrimento para o outro, mas sim um verdadeiro representante de Deus. Que Jesus abençoe a Humanidade!



1


EXILADOS

POR

AMOR

Psicografia de Sandra Carneiro
Espírito de Lúcius

OBS: Os direitos desta obra foram doados às obras assistenciais do Grupo
Cristão Assistencial Casa do Pão XXXI, Atibaia, SP.

As pessoas que leram esta obra digitalizadas podem fazer uma contribuição
diretamente visitando: http://www.vivaluz.com.br/vivaluz/casa-do-pao.html



Pesquisa liderada por James Hansen, da NASA, publicada em outubro
de 2006 na revista PNAS (da Academia Nacional de Ciências dos EUA),
constata que nas últimas três décadas a Terra esquentou mais do que em
toda a era industrial. O aumento foi de 0,2°C por década, uma aceleração
sem precedentes que põe fim à esperança de estabilização do clima.

O pesquisador afirma que, se o aquecimento alcançar mais 2°C ou
3°C, provavelmente veremos mudanças que tornarão a Terra um planeta
diferente do que conhecemos hoje. A última vez que ela esteve tão quente
foi no Plioceno, há 3 milhões de anos, quando o nível do mar era 25 metros
mais alto que hoje.

Já o Relatório Stern, comandado por Nicholas Stern (ex-economistachefe
do Banco Mundial), divulgado em outubro de 2006, mostra que as
evidências científicas do aquecimento global são impressionantes e decisivas.


Segundo o relatório, a elevação da temperatura global e o conseqüente
aumento do nível do mar, devido à expansão do oceano e ao derretimento de
geleiras de terra firme, poderão causar inundações que obrigarão até 100
milhões de pessoas a abandonarem regiões costeiras. No outro extremo, o
aumento das secas em determinados países também poderá criar milhões
daquilo que o estudo chama de refugiados do clima.

O primeiro-ministro britânico Tony Blair, que encomendou o relatório,
afirmou: "Este desastre não vai acontecer em um distante futuro de ficção
científica, mas ainda durante a atual geração".

A ciência apenas comprova, dia a dia, o que diversos textos bíblicos,
profecias e mensagens mediúnicas já alertaram quanto às calamidades que
se abaterão sobre a Terra, trazendo dias de tormento e perplexidade:

4



"Porque haverá então grande aflição, como nunca houve desde o
princípio do mundo até agora, tampouco há de haver" (Mateus, 24:21)

"E, logo depois da aflição daqueles dias, o sol escurecerá, e a lua não
dará a sua luz e as estrelas cairão do céu, e as potências dos céus serão
abaladas" (Mateus, 24:29)

"Eu vi um novo céu e uma nova terra, porque o primeiro céu e a primeira
terra desapareceram, e o mar j á não existia" (Apocalipse, 21:1)

"Os períodos de expurgo estão também prescritos nesse planejamento
imenso. Quando os orbes se aproximam desses períodos, entram em uma
fase de transição durante a qual aumenta enormemente a intensidade física
e emocional da vida dos espíritos encarnados ali, quase sempre de baixo
teor vibratório, vibração essa que se projeta maleficamente na aura própria
do orbe e nos planos espirituais que lhe são adjacentes; produz-se uma onda
de magnetismo deletério que erige um processo, quase sempre violento e
drástico, de purificação geral. Estamos agora, em pleno regime dum período
desses" (Trecho de mensagem mediúnica, extraído do livro Exilados da
Capela, de Edgard Armond - Editora Aliança)

"Ele era a luz dos homens, a luz resplandeceu nas trevas e as trevas
não a receberam" (João, 1:4-5)

Compreendemos, portanto, diante dos acontecimentos que envolvem
nosso mundo, que é imprescindível despertar. Jesus continua com seus amorosos
braços abertos, a esperar por nós, pela nossa decisão de segui-lo e
amá-lo, resgatando nossas almas e construindo definitivamente um futuro de
glória.

Não nos demoremos mais; não desperdicemos o precioso tempo, a
grande oportunidade que Deus nos oferece, aqui e agora.

Está em nossas mãos, amigo leitor, a decisão de partilharmos com o
Mestre Divino a construção do Reino de Deus sobre a Terra, poupando-nos
de maiores dores e sofrimentos. Ele nos quer ao seu lado, mas para isso é
preciso combater em nós aquilo que nos afasta do Criador e de suas leis perfeitas,
que o Bom Pastor veio exemplificar.

5



É preciso transcender o momento presente e enxergar, um pouco mais

além, nossa origem divina e nossa destinação gloriosa.

Lucius

1ª. Parte

"Há muitos milênios, um dos orbes do sistema da estrela
Capela, na Constelação do Cocheiro, localizado a cerca de
42 anos-luz da Terra, atravessava importante momento de
transformação, passando da posição de mundo de expiações
e provas para a de mundo de regeneração.

Através de incessantes esforços evolutivos, o povo atingira
um novo estágio para o orbe, que não mais poderia abrigar
aqueles que insistiam em opor-se ao bem e à luz. Esses
espíritos rebeldes e recalcitrantes no mal-milhões deles -
foram então, por decisão de entidades elevadas que
dirigem o Cosmo, exilados de seu mundo e enviados para a
Terra, um orbe primitivo e em início de desenvolvimento.

Na Terra, essas almas que haviam recusado
render-se diante do Criador do Universo teriam nova
oportunidade -através da dor e do sofrimento a que
seriam submetias pelas condições naturais do planeta
em formação -de lapidar seus sentimentos e, finalmente,
aceitar sua destinação gloriosa, no caminho para Deus"

6



CAPÍTULO 1

Não bastasse aquele corre-corre a que se habituara, Ernesto assumia ainda
mais atividades. Constantemente, a família reclamava-lhe a presença;
Elvira pedia toda manhã:

-Volte mais cedo hoje. Seria possível, querido? Os meninos têm sentido
muito a sua falta e eu também...

-Como você choraminga, Elvira! Temos estado juntos todos os finais de
semana; tenho procurado dar maior atenção aos nossos filhos.

- Seja honesto consigo próprio, querido! Seus finais de semana são sempre
ocupados com reuniões de negócios, seja com o pessoal do escritório ou
com o pessoal do laboratório; estamos sempre cercados de outras pessoas!
Seus filhos sentem falta de você, querido, da sua companhia!
Ernesto beijava-lhe a mão e sorria, sem dizer nada. Descia pelo elevador
expresso, direto para o carro aéreo, e seguia para a fundação que presidia.
Ele estava completamente absorvido pela inquieta aspiração de encontrar
um modo de extinguir o maior sofrimento humano: a morte.

Esse era o objetivo final de suas pesquisas e experimentos. Médico brilhante
e bem-sucedido, há muito trocara o jaleco branco dos hospitais pelo
pesado avental do laboratório que o protegia das radiações. Não atendia
mais os pacientes sofredores, e sim participava de intermináveis reuniões
com os pesquisadores e acionistas da organização.

Desde que obtivera sucesso com a clonagem de seres humanos, os convites
se somavam em sua mesa e em seu aparelho de intercomunicação; ele
já nem os atendia mais. No entanto, foi do centro de pesquisas em que trabalhava
que recebeu o convite mais tentador: realizar toda e qualquer experiência
com a clonagem humana, sem limites de recursos e com proteção legal
de um séquito de advogados bem-sucedidos e até mesmo de juízes, para
não ser incomodado pelas instituições que protestavam em oposição aos
experimentos que utilizavam embriões humanos, entre outros.

Na noite em que acertou os últimos detalhes da nova empreitada, chegou
em casa eufórico.

- Prepare-se, Elvira, vamos comemorar.
-E o que aconteceu de tão especial?
7



- Eu consegui, Elvira, finalmente consegui!
-O que, Ernesto? Vai começar outra experiência?
-Muitas, minha querida! De fato, vou presidir a maior organização de
pesquisas médicas do mundo! Sem restrições e com total liberdade para
expandir minhas experiências ao infinito.

Ela empalideceu e sentiu fugir-lhe o sangue da face. Apoiou-se no primeiro
móvel que tinha à frente, quase a desfalecer. Ernesto socorreu-a:

-O que foi? O que está sentindo?

Elvira não podia falar. Auxiliada pelo esposo, sentou-se no sofá e apoiou
a cabeça nos joelhos. Ernesto fez-lhe algumas massagens na nuca e ela recobrou
a cor.

-O que aconteceu? Não vá me dizer que está grávida outra vez.

Séria, ela fitou-o fundo nos olhos e respondeu:

-Você sabe o que penso sobre suas atuais atividades, Ernesto. Jamais

concordei com elas e jamais haverei de concordar, nem que viva mil anos.
Só Deus tem poder sobre a vida e a morte. Suas experiências com clonagem
já foram contra a minha vontade. Mas agora é muito pior: sei de suas intenções.
Quantos embriões serão utilizados para tentar impedir o acontecimento
absolutamente inevitável para todo homem? Afinal, por que a
morte o assusta tanto, Ernesto?

- Do que você está falando? A morte não me assusta em nada.
- Como não? Por que deseja impedi-la a qualquer custo? A morte não é
ruim, Ernesto, é apenas uma mudança de estado energético. Você sabe que a
alma continua vivendo...
-Lá vem você outra vez com essas estórias de faz-de-conta. Eu é que deveria
estar cobrando. Você deixa de me apoiar, a mim, o mais reconhecido
pesquisador científico da atualidade, aclamado pela imprensa e por toda a
classe médica como o maior realizador do século, homenageado pelo mundo
inteiro por aquilo que conquistei. Nem sequer me acompanha aos eventos de
que participo, onde usualmente sou prestigiado e aguardado. E por quê?
Para ir a essas suas reuniões místicas.

Agora o olhar de Elvira se tornara triste e lágrimas se formavam em seus
lindos olhos castanhos. Ela encarou o marido com extremada ternura e disse:


- Ernesto, Ernesto, você brinca com fogo; sabe muito bem do que eu
participo. Foi você mesmo que me levou lá.
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- Mas foi há muito tempo e já mudei de opinião, evoluí! Não creio mais
em nada daquilo.
- Como pode dizer isso? O que foi que cegou você, querido? O que aconteceu
com aquele jovem sonhador que conheci, cheio de esperança e
vontade de mudar o mundo?
-E você quer mudança maior do que dominar a morte? Ter poder sobre
ela?
Ignorando o que o marido dizia, Elvira prosseguiu:

-Eu me lembro bem da indiferença que sentia quando entramos naquele
núcleo de estudos pela primeira vez. Havia estudado quase todas as religiões
e nenhuma delas me atraía. Não havia encontrado nada que me respondesse
às indagações mais profundas da alma. Então você me convenceu, com seu
habitual entusiasmo, sua persistência em argumentar...
—Já conversamos sobre isso antes. Agora preciso me deitar porque tenho
obrigações me aguardando amanhã. De novo ela o ignorou:

- Mas quando entrei naquela pequena sala, senti algo especial. Sei que
abri minha alma à verdade e ela me iluminou a consciência.
-Já basta, Elvira. Chega!

- Nunca mais fui a mesma pessoa, Ernesto. A paz que me envolve é enorme.
Sei que a morte é apenas uma transformação pela qual passamos e,
muito embora nos separe temporária e fisicamente daqueles a quem amamos,
continuamos a nos encontrar em sonhos, em espírito, enfim...
-Boa noite, Elvira. Essa conversa já me aborreceu!

Ernesto virou as costas e, deixando a mulher com as últimas palavras a
lhe morrerem na garganta, sumiu no longo corredor que terminava no quarto
do casal.

Elvira viu com profunda tristeza o marido sair da sala. Limpou as lágrimas
que agora lhe desciam pela face, juntou as mãos e chorou amargamente
por algum tempo. Alheia, não percebeu que o filho de quinze anos a observava.
Foi somente quando sentiu sua mão carinhosa a tocar-lhe os cabelos
que ergueu o rosto, banhado pelo pranto:

-Não chore, mãe, não vai adiantar. Ele está completamente cego. Pensa
que pode brincar de Deus...

- Não fale assim, Henrique.
-Mas é verdade. Você sabe que é verdade. Ele está enlouquecendo!
- Ele conquistou muitas coisas...
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-E isso o fez pensar que pode avançar mais e mais, sem parar? Mãe, ele
já foi longe demais, você sabe disso. Fomos avisados. Se não mudar, nada
poderá ajudá-lo.

Abraçando-se ao jovem, Elvira disse entre soluços:

-Temos de fazer algo, filho, precisamos ajudá-lo!

- Mãe, acalme-se. Sei o quanto o ama e eu também, mas não temos forças
para lutar contra sua crença cega!
- Deve haver alguma forma de tocá-lo; afinal, ele já acreditou tanto nas
coisas boas, em Deus, no bem! Deve haver um jeito de fazê-lo reencontrar-
se com a verdade, com o amor, com o equilíbrio...
Henrique abraçou-a forte, depois a segurou pelas faces e disse:
-Dona Elvira, você nunca desiste dele, não é?


-Enquanto eu puder lutar...
-Há quantos séculos será que vocês estão juntos, mãe?
- Há pelo menos cinco, disso eu tenho certeza.
-Cinco séculos!
-Seu pai é um homem que tem princípios...
-Mae, não tente atenuar os defeitos dele; é claro que tem suas qualidades,
porém o orgulho o cega cada vez mais. Infelizmente ele acha que pode
tudo! Além disso, você percebe como a cada dia mais se afasta de nós?
Elvira concordou com a cabeça e o filho continuou:

- Só parece satisfeito quando está sob os holofotes, diante do público,
sendo aplaudido e elogiado.

-Ele é um homem tão inteligente, Henrique...

-E de que isso tem adiantado, mãe? Eu acho até que o está prejudican


do...
Enlaçando suas mãos nas do filho, Elvira silenciou entristecida.

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CAPÍTULO 2

Os dias iam passando e Ernesto cada vez se afastava mais do ambiente
familiar. Primeiro, começou a acordar bem cedo e sair antes que a família
estivesse em pé. Do mesmo modo, à noite retornava muito tarde, evitando
encontrar a esposa. Elvira mais e mais se preocupava com a conduta do marido.
Ele já estivera distante em outros momentos. Quando prestes a obter
sucesso com a clonagem humana, ficara duas semanas no laboratório trabalhando
dia e noite. Mas ao menos se comunicava de vez em quando, dando
notícias. Agora parecia que algo estava diferente; era como se Ernesto não
quisesse contato com ela.

Na semana seguinte, ausentou-se de casa durante seis dias. Elvira não
agüentou, fez o que detestava fazer: arrumou-se e foi até o laboratório.

Ferdinando, o assistente, entrou na sala de testes e disse próximo ao ouvido
de Ernesto:

-Sua esposa está aí fora.
Sem tirar os olhos do que fazia, o cientista respondeu:
- Mande-a embora, diga que estou muito ocupado e que falo com ela à
noite.
-Acho melhor atendê-la. Tentei dizer que você estava muito ocupado,
mas ela insistiu em vê-lo de qualquer modo. Não consegui dissuadi-la. Você
conhece sua esposa melhor do que qualquer um. Elvira é muito decidida;
quando coloca alguma coisa na cabeça, ninguém tira. Às vezes, nem mesmo
você!

-Pois vá até lá e diga que estou ocupado -se quiser, que espere.

Ferdinando transmitiu o recado. Entretanto, não convenceu Elvira a ir
embora. Ela insistiu:

-Eu espero o tempo que for necessário. Uma hora ele terá de sair de lá
para comer, ir ao banheiro... Não é possível que passe todo o tempo dentro
da sala de testes...

- Ernesto está muito envolvido com sua pesquisa. Tem certeza de que
em breve encontrará a chave que abrirá os conhecimentos para derrotar a
morte.
-Você sabe que isso é impossível!

11



-Não, eu não sei. Se ele foi capaz de clonar com sucesso um ser humano,
quem sabe do que mais aquela mente brilhante é capaz? E não sou só eu que
aposto em Ernesto. Os acionistas da indústria farmacêutica que controla a
fundação estão investindo milhões, talvez bilhões, nessas experiências. Eles
também acreditam.

- E quanto vão lucrar com o remédio que acabará com a morte? Ora, você
bem sabe como são esses homens de negócios: insensíveis e ambiciosos.
Só pensam no dinheiro e mais nada. Não pode ser assim, Ferdinando. E a
ética?
- Que ética, Elvira? As pessoas estão morrendo e querem deixar de morrer.
Você imagina um produto que venda mais do que este? Se Ernesto conseguir
seu intento, será o homem mais poderoso do mundo. Todos se curvarão
diante dele.
- Os donos do negócio, sim, é que serão ainda mais poderosos.
-E o que você acha que Ernesto é?
Elvira espantou-se com a pergunta. Refletiu por alguns instantes, tentando
entender a que Ferdinando se referia; depois respondeu:

- Um médico, cientista e pesquisador. Ferdinando sorriu, irônico:
- Vejo que desconhece seu marido, minha prima. Ligeiramente impaciente
com as sucessivas ironias do rapaz, ela indagou:
-Se você o conhece tanto assim, o que sabe mais do que eu?

- Ernesto tornou-se importante acionista da indústria que controla a fundação.
- Como assim? E onde ele arranjou dinheiro?
-Minha ingênua priminha, Ernesto associou-se ao negócio autorizando a
utilização de todos os resultados de cada etapa das pesquisas, como bem
quiserem os demais investidores.

Ela empalideceu e silenciou. Ferdinando esperou por uma resposta, mas
Elvira se calou. Recostou-se no confortável sofá da sala do marido e, depois
de longa pausa, reafirmou:

-Vou ficar até que ele retorne. Uma hora isso tem de acontecer.
Satisfeito com o que causara, Ferdinando saiu.
Elvira aguardou horas, sentada ou andando de um lado para outro da sala.
Foi várias vezes até o corredor, sem ver sinal de Ernesto. Por fim, adormeceu
no sofá. Nem percebeu por quanto tempo dormiu. Despertou ouvindo
vozes no corredor, vozes que sussurravam:

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-Traga-me mais esta, vou precisar.

-Ela está no quinto mês de gestação, é perigoso.

-Não se preocupe, Ernesto sabe o que está fazendo. Já fez isso antes. Ela
não quer a criança, quer?

-São gêmeos.

—Tanto melhor. Assim ganhamos tempo.

-Insisto que é arriscado; vamos esperar que chegue outra no começo da
gestação.

-Nem pensar. Precisamos de material para continuar os testes.

—Está bem, mas a responsabilidade é toda sua.

- E nossa. Não adianta esquivar-se, pois é responsável também.
Elvira conhecia uma daquelas vozes, mesmo sussurrada: era Ferdinando.
Ao notar que vinham em sua direção, desesperou-se. Não podia deixá-los
saber que ouvira tudo. Ainda que totalmente atordoada com o que acabara
de escutar, ela tentava pensar e pedia baixinho:

—Meu Deus, por favor, me ajude. Não permita que me descubram aqui,
por favor, me ajude.

Agachou-se atrás do sofá e ficou imóvel. Alguém tocou na maçaneta da
porta, e já ia abri-la, quando Elvira viu sua bolsa em cima da mesa do marido.
Num ímpeto, saltou por sobre o sofá e deitou-se, fingindo dormir. Rapidamente,
enquanto Ferdinando acendia a luz da sala, fez alguns exercícios
de relaxamento e controle mental que conhecia muito bem e num segundo
atingiu um estado semelhante ao de sono profundo.

Ao acender a luz, Ferdinando viu a prima. Desconfiado, aproximou-se
cauteloso, buscando sinais de que ela realmente adormecera. Ao chegar bem
perto, convenceu-se de que dormia como um bebê. Pegou sua bolsa na mesa
e vasculhou-a. Olhou o intercomunicador e verificou se havia feito ou recebido
alguma ligação. Tudo estava tranqüilo. Elvira devia estar dormindo há
muito tempo, pensou ele; afinal, já era quase manhã.

Sentou-se perto da prima e sacudiu-a sem dó:

- Elvira, acorde, acorde! Vá dormir em casa!
Elvira fez que despertava lentamente e sentou-se. Ele então a levantou,
colocou a bolsa em seus braços e disse:

- Vamos, tem de ir para casa. Ernesto não volta tão cedo para esta sala.
Está atolado em afazeres e vai passar o resto do dia trabalhando.
E, puxando a prima pelo braço, finalizou:

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-Meu motorista vai levá-la para casa.

—Mas, meu carro...

-Ele leva mais tarde para você.

Elvira acatou e entrou no elevador. As portas estavam se fechando,
quando Ferdinando as segurou e disse:

- Não venha mais ao centro de pesquisas, Elvira. Agora Ernesto é um
homem importante demais para ficar perdendo tempo com uma mulher que
não o apoia. Se mudar de idéia quanto às experiências, me avise; caso contrário,
deixe-o trabalhar em paz.
Ele soltou as portas, que se fecharam, barulhentas. Enquanto o elevador
descia, Elvira sentia todo o corpo tremer. No entanto, dominou-se, ciente de
que o prédio era controlado por circuito interno de televisão.

O retorno para casa foi longo e doloroso. Somente quando o motorista
do primo sumiu na esquina foi que ela, entrando em casa, se entregou a sentido
pranto, aliviando a dor que a sufocava.

CAPÍTULO 3

Elvira entrou em casa e, mal podendo andar, foi direto para seu quarto.
Fechou a porta atrás de si e sentou-se na cama, tentando colocar alguma
ordem na mente agitada. Ficou quieta por alguns instantes, depois se levantou,
foi até a janela e observou o novo dia que raiava. No horizonte a gigantesca
Capela despontava radiante, acompanhada por outra estrela menor,
orbitando ao seu redor. Elvira, então, respirou fundo e ergueu os olhos ao
firmamento, suplicando:

- Deus misericordioso e cheio de bondade, agradeço a beleza deste dia
que começa, e lembra ao meu coração que a sua generosidade também se
renova a cada instante. Sei que posso contar sempre com o seu amparo e a
sua luz, Criador de amor; por isso rogo neste momento que venha em meu
auxílio. Ampare meu querido Ernesto, Pai eterno, ajude-o Senhor da vida,
tenha misericórdia, Senhor!
Sua voz sumiu, cortada pela angústia e pela dor. Nesse momento, suave
melodia se fez ouvir no quarto da bela mulher, enquanto intensa luz tomava

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conta do cômodo confortável. Uma figura iluminada se fez visível; envolvendo
Elvira com emanações de amor e paz, falou:

- Não se angustie tanto, irmã. De que adiantará ficar assim desesperada?
Acha que poderá auxiliar Ernesto nessas condições?
Elvira, sem tirar os olhos da luminosa figura, chorou por alguns instantes.
Depois, cercada pela energia restauradora daquele ser que a visitava,
acalmou-se e, refeita, agradeceu:

-Obrigada pelo seu socorro, querido amigo. O que seria de mim sem a
sua companhia constante?

-Sabe que trabalhamos juntos, Elvira, e que igualmente tenho por você
elevado apreço. Agora peço que se mantenha serena; de nada adiantará alimentar
o desespero.
-Tem toda a razão, meu bom Jonefá. É que fiquei tão chocada com o que
ouvi naquele laboratório... Não esperava que Ernesto estivesse envolvido
desse modo...

-Tem certeza, Elvira? Acho que bem no fundo você sabia. O que realmente
queria era confirmar...
Ela assentiu:

- Acho que tem razão. Eu tenho esse pressentimento, esse medo a me
rondar como uma sombra escura. Sinto que a cada dia Ernesto se distancia
mais do bem e da luz; e isso há muito tempo.
- Você está consciente de que fez tudo ao seu alcance para ajudá-lo?
- Sim, porém não foi o bastante. Não consegui inspirá-lo como deveria...
- Apazigúe seu coração, minha irmã. Ernesto teve oportunidades abundantes
na presente existência. Tudo foi cuidadosamente preparado: sua mente
brilhante foi contida pela pobreza e pelas dificuldades; a aspereza da infância
e da adolescência associou-se à sua lucidez mental e à sua sensibilidade
para fazer com que ele dobrasse um pouco seu tremendo orgulho. Depois,
a paixão por você e o casamento ainda muito jovem vieram protegê-lo
de outros tantos enganos... Sua companhia dedicada e amorosa o preservou
até onde foi possível, bem como a chegada dos filhos, espíritos tão queridos.
Vocês todos reunidos o envolveram em afeto e carinho, para tocá-lo nas fibras
mais profundas e ajudá-lo a reconhecer o que de fato tem valor. Mas
nem com todo o esforço que você e seus filhos empreenderam, aliado à dedicação
de nossas equipes espirituais, foi possível afastá-lo daquilo que tem
dentro de si; Ernesto só poderá vencer o orgulho que o ofusca, experiência
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após experiência, se efetivamente abrir a alma a Deus e se render à sua
grandeza e ao seu amor. Enquanto não se reconhecer como criatura limitada,
dependente do Criador, ele viverá iludido e emaranhado em suas mentiras
interiores, em suas ilusões, dando abertura para que sua inteligência impressionante
o afunde ainda mais no lodo do orgulho e da prática do mal.

E ajoelhando-se respeitoso diante de Elvira, que sentada à beira da cama
o ouvia em atento silêncio, o amigo espiritual prosseguiu:

-Receio que pouco se poderá fazer por ele agora, Elvira. Os pesados
compromissos que está assumindo com seus atos nefastos extinguiram de
vez a luz que ainda restava acesa em sua consciência. Ernesto mergulhou
nas trevas do próprio coração. É noite escura para nosso amigo e melhor
será que abandone o corpo físico o mais breve possível, para que cesse o
mal que tem causado a tantos espíritos que tentam regressar ao nosso mundo.


Elvira balançou a cabeça, concordando com o amigo. E levando as duas
mãos ao rosto, em longo suspiro, perguntou:

-Quanto tempo ele terá?

-Muito pouco, Elvira. Terá de deixar o corpo imediatamente.
-Ainda hoje?
-Será o melhor. Ele não pode realizar o aborto que planeja fazer esta
noite. As almas que ameaça deter precisam regressar ao orbe; são espíritos
de luz que chegam ao lar difícil para ajudar antiga companheira. Ernesto não
pode interromper aquela gestação.

- Eu compreendo. Gostaria de estar presente...
- Poupe-se, minha irmã. Ore por ele aqui mesmo, durante o dia de hoje.
Sustente-o com seu amor, como sempre fez.
-E o que será dele depois? Quando poderei reencontrá-lo? Jonefá, amoroso,
disse:

- Muitos lhe agradecem alegres pelo trabalho que vem realizando, Elvira.
Você tem servido ao bem com devotamento e abnegação... Gostaria de
poder ajudá-la mais com Ernesto; todavia, nada se pode fazer sem que ele
queira.
- Eu sei, Jonefá. Sei quanto auxílio ele tem recebido e as muitas oportunidades
que tem desperdiçado. Muito me empenhei em ajudá-lo, mas também
meus esforços foram em vão... Ernesto terá de recomeçar e sabe-se lá
em que condições...
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Jonefá fitou Elvira com extremado e paternal carinho e afirmou:

- Deus jamais nos abandona. Um dia, Ernesto haverá de compreender a
grandeza e o amor de Deus e retornará aos braços do Criador.
O gigantesco sol que iluminava o orbe brilhava então com toda a intensidade
e Jonefá despediu-se:

-Preciso partir.

Elvira, apesar do coração magoado pela dolorosa situação do companheiro,
sorriu e agradeceu:

-Uma vez mais, Jonefá, obrigada pelo socorro e pelo amparo tão amorosos.


Jonefá desapareceu de sua vista e ela, resignada, permaneceu em oração
pelo marido que tanto amava.

Enquanto isso, no laboratório da fundação, Ernesto se preparava para
dar seqüência a suas atividades criminosas. Ao ver o sol se erguendo imponente
no horizonte, resolveu subir até a cobertura do prédio para contemplar

o belo dia que surgia. Antes, porém, procurou por Ferdinando e pediu que
providenciasse um refresco e frutas. O assistente trouxe pessoalmente a
bandeja:
- Aqui está, Ernesto. Não seria bom você descansar um pouco, para depois
seguirmos com a agenda de hoje? Parece cansado.
- Não quero parar agora, Ferdinando. Sinto que algo está prestes a acontecer
e quero que aconteça logo!

Ferdinando sorriu discretamente e disse, ao fechar a porta atrás de si:

-Você é quem sabe, Ernesto. Se precisar de mim, estarei por perto.

Ernesto tomou a bandeja nas mãos e subiu. Acomodou-se no conforto
do espaçoso sofá que ficava no centro da cobertura e, concentrando-se no
grande e pesado teto de vidro, abriu-o usando apenas o pensamento. O frescor
da manhã dominou seu rosto e seu corpo, dando-lhe uma sensação de
satisfação e bem-estar. Naquele momento, sentia-se imensamente poderoso.
Sorveu o suco devagar e saboreou as frutas, uma a uma, enquanto planejava
os próximos passos que deveria dar para atingir o sucesso com seus experimentos.


Ainda estava longe da resposta que desejava, mas sabia que poderia obtê-
la; afinal, já alcançara tantos outros sucessos... A uma ordem de sua mente,
os objetos se movimentavam até onde ele desejasse. Sua força mental era
enorme, e ele praticara sem cessar. Agora, com os conhecimentos que ad


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quirira, não só em relação à medicina, como também à manipulação da energia,
Ernesto se dedicava arduamente a desvendar os mistérios da energia
condensada; sabia que por esse caminho haveria de descobrir o princípio da
vida e, então, poderia controlá-la, como fazia com os objetos, e mesmo com
as pessoas de mente um pouco mais fraca, através da telepatia. Nada o deteria;
seu poder seria ilimitado. Seus conhecimentos eram vastíssimos e ele se
orgulhava deles. Dedicara anos a fio a estudar, a experimentar o que aprendia
e a usar a intuição na consecução de seus objetivos. Estava satisfeito
com o andamento de seus projetos. Entretanto, bem no fundo, algo o incomodava,
sem que se desse conta.

Ao observar a imensidão do armamento, ele pensou em Elvira. Forte aperto
no peito o assaltou. Levantou-se enérgico e expulsou do pensamento a
delicada figura da esposa, dizendo em voz alta:

- Não é hora para sentimentalismos!
Ao levantar-se, porém, sentiu intensa dor, agora no peito e na cabeça.
De súbito, violenta tontura o fez sentar-se de novo na poltrona. Ernesto não
compreendia o que se passava. Nunca sentira aquele mal-estar. Lutou para
se levantar, mas não teve forças e permaneceu sentado, quase deitado, com

o rosto voltado para o céu.
O sol vibrante banhava-lhe a face e ele mal podia mover-se. Apenas respirava,
e com dificuldade. Queria gritar, mas não conseguia. Esforçava-se
para se levantar, e o corpo o desobedecia. Num impulso inimaginável, procurou
dominar o pavor que sentia, diante de situação tão inesperada, e acal-
mar-se para raciocinar e compreender o que estava ocorrendo. Tampouco a
mente o obedecia. Ele, então, pensou em Ferdinando, desejando chamá-lo.

Decorridos alguns instantes, notou que algo encobria o sol, sombreando
seu rosto. Percebeu que a sombra se aproximava, e viu que era Ferdinando.
Num supremo esforço, tentou comunicar-se mentalmente com o assessor:

-Ferdinando, ajude-me. Algo está acontecendo. Não consigo me mover,
tenho uma dor intensa no peito e...

-Na cabeça. - completou Ferdinando, aproximando-se mais de Ernesto
- Eu sei, o veneno causa essa sensação. E também a morte lenta e dolorosa.
Ernesto arregalou os olhos, apavorado, e continuou a comunicar-se mentalmente
com Ferdinando:
-Do que está falando?

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Sentando-se no espaçoso sofá, bem ao lado do cientista, o assistente
prosseguiu:

-Poupe suas derradeiras energias. Não há nada que possa fazer. O veneno
bloqueia sua capacidade mental e energética; não adianta tentar comunicar-
se com ninguém, nem mesmo com Elvira - aliás, principalmente com
Elvira. Sinto-lhe a presença aqui hoje, claramente, mas ela não poderá mais
interferir nos acontecimentos... Interessante...

Ernesto não conseguia articular sequer um pensamento completo. A dor
aumentava, dominando seu corpo inteiro. Incapaz de pensar, ele olhava Ferdinando,
estupefato. E este confessou:

- Há muito venho planejando livrar-me de você. Só precisava que confiasse
em mim o suficiente para me transmitir todos os seus conhecimentos.
Agora que já tenho acesso a quase tudo, não preciso mais de você. Vou terminar
suas pesquisas, obter o resultado e receber todos os louros, que de
fato mereço. Se não fosse por mim, você jamais teria realizado a clonagem,
muito menos chegado até aqui. O serviço sujo quer que eu faça, e os resultados
ficam sempre exclusivamente com você -ou melhor, ficavam.
Usando a força da mente em Ernesto, o assessor o fez erguer-se lentamente
no ar e volitar até alcançar o parapeito do prédio. Então, ergueu-se do
sofá e, mantendo a concentração inalterada, caminhou lentamente até onde
estava o médico e disse:

- Eu assumo daqui por diante. Adeus, Ernesto.
Foi sem nenhuma resistência que Ferdinando empurrou o corpo imobilizado
de Ernesto prédio abaixo.

CAPÍTULO 4

Elvira ainda estava em seu quarto, meditando e orando, quando Henrique
bateu à porta:

-Mãe, venha depressa.

Embora totalmente preparada, Elvira sentiu sumir-lhe o sangue do corpo.
Seu coração batia descompassado; suas mãos suavam e sua boca estava
seca. Mesmo assim, levantou-se devagar e atendeu ao chamado:

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- O que foi, meu filho?
- E da fundação. Pediram que fosse depressa até lá. Parece que algo muito
sério ocorreu com papai.
-Acalme-se, meu filho. Lembremos que a Providência Divina jamais
nos desampara.
- Por que está falando assim? Sabe de alguma coisa? Elvira o olhou fixamente
e não respondeu. O jovem, que
conhecia bem a mãe, disse entristecido:

- Você já sabe o que está acontecendo, não é? Foi avisada, mãe?
- Hoje pela manhã.
- E o que houve com ele?
- Tenha fé em Deus, Henrique. Ele nunca nos abandona.
Mesmo quando o momento é difícil, de dor, de sofrimento, continua
querendo o melhor para nós. Você sabe disso, não é? Precisamos estar confiantes
e unidos, mais do que nunca, filho. Seus irmãos ainda não têm capacidade
de compreender como você e precisarão de nosso apoio.

Henrique fitou a mãe, preocupado, e uma vez mais questionou:

- Mas, afinal, qual é o problema?
- Não sei maiores detalhes, filho. Apenas fui informada de que seu pai
teria de deixar a encarnação prematuramente, por não ser mais possível sua
permanência no corpo denso. Suas escolhas estão prejudicando muitas vidas
e a espiritualidade superior não teve alternativa, senão permitir que se encerrasse
esta oportunidade a ele concedida.
Henrique suspirou, desolado:

- Que tristeza, mãe! Sabemos o quanto ele pediu para voltar, o quanto
prometeu que se esforçaria para acertar desta vez. Quanto tempo foi preciso
para que todos nós pudéssemos estar juntos de novo!... Especialmente você,
mãe.
Elvira o encarou com doçura e disse:

- Deus respeita nossas escolhas, filho; embora tudo tenha limite, quando
estas vão contra as suas leis perfeitas. Seu pai falhou, porém terá nova oportunidade...
-Sabe-se lá quando...
- Vamos acreditar, Henrique, confiemos em Deus. Nesse instante, Felipe,
o filho mais velho, bateu à porta desesperado:
- Mãe, venha depressa! Aconteceu uma desgraça! O papai, ele...
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Imediatamente Elvira abriu a porta e abraçou o filho, que tremia:

- Uma desgraça, mãe! Ele morreu!
Elvira continuou enlaçada ao filho, enquanto pesadas lágrimas lhe desciam
pela face. Henrique abraçou-se aos dois e chorou com eles. Assim
permaneceram longo tempo, até que todos se acalmassem. Então, Elvira
limpou os olhos úmidos e vermelhos e pediu:

- Fique aqui, Felipe, e espere pelo seu irmão, que em breve chegará. Ainda
é muito pequeno e precisa que cuide dele...
Felipe não deixou a mãe terminar:

- Não, quero ir com você. Quero ver meu pai... Elvira segurou carinhosamente
a face do filho ao dizer:
- Seu pai já não está conosco. O que se pode ver é apenas a vestimenta
física, material, que ele usou no tempo que esteve entre nós. Seu pai está
agora em outra dimensão, iniciando uma nova fase em sua existência... Não
há nada para você ver. Fique aqui.
- Só se o Henrique ficar também.
Elvira olhou suplicante para Henrique, que perguntou: -Pode mesmo ir
sozinha, mãe? Vai ficar bem? Eu posso ficar com o Felipe e o Lucas, mas
seria bom se você fosse com alguém...

- Eu não estarei sozinha, pode ficar tranqüilo. Enquanto conversava com
os filhos, Elvira viu a figura amiga de Jonefá, que se mantinha a certa distância,
respeitoso.
Henrique assentiu com a cabeça, entendendo que a mãe estava em companhia
espiritual que a ampararia naquela hora.

Elvira saiu depressa. Assim que chegou ao prédio do centro de pesquisas,
teve de enfrentar o assédio dos repórteres que se aglomeravam atrás de
um cordão de isolamento. Ela se identificou e conseguiu andar até onde estavam
alguns funcionários da instituição, junto com policiais e investigadores.
Um dos funcionários logo a identificou:

-Elvira, eu sinto muito. Estamos todos comovidos. Sabíamos que doutor
Ernesto estava sob forte pressão, mas jamais poderíamos imaginar que fosse
capaz de fazer algo assim...

-E o que houve, Marcelo?
-Ainda não sabe, Elvira?
- Só sei que ele está morto.
- Não sabe como aconteceu?
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- Por favor, conte-me. Como foi?
- Doutor Ernesto atirou-se da cobertura do prédio; ele se suicidou.
Elvira sentiu as pernas fraquejarem. Confiava profundamente em Deus,
mas aquela notícia a tomara de assalto.

-Tem certeza, Marcelo? Como sabe?

-Ele estava sozinho na cobertura; as câmaras de segurança não registra


ram mais ninguém subindo.
-Não poderia ter sido um acidente? Será que ele não se distraiu, pensando
em suas experiências, e caiu?

- Tudo indica que não, Elvira. Sei que é muito difícil aceitar... Especialmente
de alguém tão confiante e seguro como doutor Ernesto.
- Por isso mesmo, Marcelo. Não posso imaginar Ernesto, empolgado
como estava com seus experimentos, dando fim à vida, quanto se sentia tão
perto de concretizar seus planos...
- É mesmo sem sentido, mas foi o que disseram os primeiros policiais.
Elvira despediu-se e foi à procura do investigador responsável.
- Seu marido foi levado ao hospital.
-Vão fazer autópsia?
-Vai ser difícil, senhora. Estão tentando.
- Qual a provável causa?
-Ainda não sabemos; mas presumimos ser suicídio.
- Não é possível! Tenho certeza de que isso não aconteceu!
- Seu depoimento será importante para nós; logo que estiver mais calma,
poderemos conversar - concluiu o investigador, atendendo ao chamado de
alguns colegas que o requisitavam.
Elvira afastou-se do aglomerado e foi para o hospital. No caminho meditava
e conversava mentalmente com seu amigo e protetor, que insistia em
dizer-lhe:

- Fique tranqüila, Elvira. Esse crime ele não cometeu.
Os dias que se seguiram foram de intensa dor para Elvira e seus familiares.
Todos suportaram interrogatórios intermináveis, em meio ao doloroso
sepultamento do chefe da família. Elvira era assediada por amigos, curiosos,
parentes e admiradores do marido, que queriam detalhes sobre o falecimento
e as investigações. Sentia-se atordoada e cansada. Em meio a tamanho tumulto,
tinha pouco tempo para estar consigo própria e refletir sobre o ocor


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rido - e, principalmente, para orar pelo marido. Isso era o que mais a entristecia.


Enfim, depois de algumas semanas, o ambiente começou a se acalmar e
no final do segundo mês Elvira experimentou relativo alívio. Após refazer-
se física, emocional e espiritualmente, passou a pedir a Deus pelo companheiro,
a quem amava com desvelo. Sabia que sua situação no mundo espiritual
seria difícil e queria ajudar em tudo o que lhe fosse possível.

Em uma noite calma, seu fiel amigo espiritual Jonefá veio falar-lhe, durante
o sono. Desprendida do corpo físico, recebeu-o ansiosa:

- Meu amigo, como é bom vê-lo! Tem notícias de Ernesto? Preciso muito
estar com ele!
O amigo, contudo, estava sério.

- Não creio ser este o melhor momento para vê-lo, Elvira. Ele não passa
bem e você ainda está abalada. Descanse, serene seu coração e, em ocasião
oportuna, poderá encontrá-lo.
- Esteve com ele?
-Eu o vi.
-Onde ele está?
-No momento certo saberá, Elvira. Agora descanse. Seus filhos precisam
muito de você.
Impondo as mãos sobre o corpo físico de Elvira, que permanecia igualmente
inquieto na cama, Jonefá procurou auxiliar a amiga a refazer-se. Em
alguns instantes, ela dormia profunda e mansamente.

CAPÍTULO 5

Enquanto dormia, Ferdinando debatia-se, agitado: -Vá embora! Livrei-
me de você, o que ainda faz aqui? Suma, vamos!

De um salto, sentou-se na cama, apavorado. Tomando consciência de
que acabava de acordar e pensando que tivera um pesadelo terrível, levantou-
se e caminhou até a janela. Entreabriu a elegante cortina e observou a
cidade a seus pés. Poucos eram os transeuntes e veículos que se moviam.
Tudo estava calmo.

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A cidade era de uma beleza estonteante. Apesar dos recursos tecnológicos
de que dispunha - permitindo, por exemplo, que os veículos se movessem
sem tocar o solo e alcançarem rapidamente o destino desejado -, a movimentação
era organizada e sincronizada. Os condutores educados e cuidadosos
dirigiam sempre com muita gentileza e cortesia, ao menos na grande
maioria. O combustível utilizado era a energia solar armazenada, o que garantia
que o ar se mantivesse limpo e puro. As ruas eram bem cuidadas,
limpas e arborizadas. Tudo evidenciava as transformações que se vinham
acentuando naquele belo e rico mundo.

Ferdinando respirou longamente, sentindo o aroma delicado no ar da
madrugada. Depois, voltou a se deitar e disse a si mesmo, como para se
convencer:

-Preciso descansar. Foi só um pesadelo. Se bem que se repita quase toda
noite, é apenas um sonho.
Quando se deitava, procurando a melhor posição no travesseiro, alguém

o espreitava, atento:
-Pode tentar se enganar quanto quiser, meu caro, mas não vou deixá-lo
em paz até acabar com sua vida! Confiei em você, Ferdinando; confiei-lhe
meus mais preciosos segredos e você, o que fez? Destruiu-me. Eu estava tão
perto... Mas você me paga! Vai se ver comigo. Não sossego enquanto não o
destruir também.
Ferdinando se remexia na cama, sem conciliar o sono. Embora não escutasse
Ernesto, que em espírito estava agarrado fortemente ao seu pescoço,
registrava-lhe as palavras, pois não conseguia relaxar. Virava-se de um lado
para o outro, inquieto, sentindo faltar-lhe o ar.

Noite após noite, Ferdinando rolava na cama, buscando em vão o repouso.
Quando chegava a adormecer, dava com a figura raivosa de Ernesto,
tentando enforcá-lo, sem que ele nada pudesse fazer. Acordava então sobressaltado,
angustiado, e o medo o impedia de voltar a dormir.

Naquela manhã, no laboratório, Ferdinando mal conservava os olhos abertos.
Estava exausto, sem forças para prosseguir os experimentos. A pressão
dos acionistas por algum progresso era constante e Ferdinando não podia
mais sequer raciocinar. Ele sabia que havia algo errado; aqueles sonhos
eram muito reais. Mesmo assim, insistia em não pensar naquilo e concentrar-
se no trabalho a fazer.

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Tão logo souberam da morte de Ernesto, o presidente e os acionistas da
indústria farmacêutica controladora da fundação se preocuparam em encontrar
um sucessor para o renomado cientista. Ferdinando, rapidamente, tratou
de assegurar-lhes que possuía todas as informações e os planos que Ernesto
estava desenvolvendo - como seu assessor direto, tinha acesso a tudo, quase
ao que ia na mente do grande médico e cientista. Não foi difícil convencê-
los e sem demora ocupou o lugar que pertencera a Ernesto. O rapaz, ambicioso
e audacioso, havia premeditado tudo com muito cuidado.

Relembrando os esforços que empreendera para chegar até aquela posição,
Ferdinando deu um soco na mesa e gritou como se falasse diretamente
com Ernesto:

- Nada vai me impedir de obter meus intentos! Nada! Não importa que
eu não durma pelo resto da vida. Vou conseguir tudo o que desejo. Tudo!
Cerrando o punho, ia socar novamente a mesa, quando o telefone tocou.
O rapaz atendeu, e do outro lado da linha o telefone estava mudo. A cena se
repetiu por cinco vezes, até que Ferdinando ignorou o toque e se levantou
irritado. Andou de um lado para outro na sala, cada vez mais enervado com
aquele som que não cessava. Aproximou-se do aparelho, arrancou-o com
toda a força e o lançou à parede, despedaçando-o. Em seguida foi seu intercomunicador
que começou a chamar sem parar. Não encontrando ninguém
na linha, ele desligou. O toque recomeçou. De novo ele atendeu e foi então
que escutou claramente a voz de Ernesto:

-Desta vez não vai conseguir livrar-se de mim!

Ferdinando atirou o aparelho na parede e saiu da sala, em desespero.
Passou pela assistente como um furacão e, ao invés de tomar o elevador,
desceu as escadas apavorado, gritando:

- Eu já me livrei de você, Ernesto! Desapareça! Vá embora! Gritava e
descia as escadas cada vez mais depressa, como se visse nitidamente Ernesto
correndo atrás dele. A assistente acompanhou, assustada, o comportamento
do chefe. Há dias vinha estranhando as atitudes de Ferdinando, inclusive
já havia comentado com vários colegas que ele parecia ter perdido o juízo.
Ao constatar seu estado naquele dia, não teve dúvidas: ligou para o hospital
psiquiátrico que mantinha convênio com a fundação e informou o que estava
acontecendo.
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Ao chegar no andar térreo, Ferdinando estava lívido e completamente
sem fôlego. Sem forças, confuso e aturdido, sentou-se no meio do saguão
principal do prédio e se pôs a chorar, bradando:

-Por favor, vá embora! Não me atormente mais! Por favor! Deixe-me
em paz!

Não demorou muito e uma ambulância encostou à porta do prédio. Três
homens trajando branco se dirigiram para Ferdinando, que já chorava como
criança. Quando viu que se aproximavam, foi se arrastando pelo chão, encostado
à parede, enquanto gritava:

- Não, por favor, afastem-se de mim! Não me toquem! Não! Não!
Incapaz de se controlar, teve de ser imobilizado e sedado pelos enfermeiros,
sob a ordem do médico que os acompanhava. Foi levado ao hospital
psiquiátrico e, após minucioso exame, considerado portador de distúrbio
mental grave.

Imediatamente os responsáveis pela fundação iniciaram a busca de outro
cientista que pudesse dar andamento às pesquisas; candidatos não faltavam
e logo encontraram outro médico que se dispôs prazerosamente a prosseguir
as análises de onde Ernesto e seu assistente haviam parado.

Passados alguns meses Ferdinando não falava nem andava mais, paralisado
no leito, de onde nunca saiu, até ser encontrado pela enfermeira, sem
respirar, com os olhos arregalados, como se o tivessem asfixiado.

Ao desprender-se do corpo físico, a dor de Ferdinando foi ainda maior.
Em seus derradeiros instantes ele gritava:

- Pare, por favor! Não consigo respirar!
E o drama não cessou com o desenlace. Seu corpo espiritual continuava
agarrado por Ernesto e ambos, perseguido e perseguidor, foram sugados
para o espaço ao redor do orbe, arrastados para tenebrosa região de dor e
sofrimento.

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CAPÍTULO 6

E ira, não obstante recuperada por completo do momento ficil pelo qual
passara, continuava extremamente preocupada com a situação espiritual de
Ernesto. Ela conhecia bem a condição das almas que deixam o mundo sob o
domínio do orgulho e do egoísmo e, sobretudo, longe de Deus.

Inabalável, intercedia por ele em oração, rogando ao Pai que o auxiliasse.
Ao deitar-se, noite após noite, pedia ao bom amigo Jonefá que a conduzisse
até onde estava o marido.

Naquela noite, Elvira se deitou e, entre lágrimas, suplicou a Deus que
ajudasse Ernesto a reerguer-se da sombra onde provavelmente se encontrava.
Jonefá, afável e amoroso, apareceu no quarto, dizendo:

- Minha querida irmã, precisa ter paciência e aguardar confiante a restauração
espiritual de seu companheiro. Deus nos deu o livre arbítrio e infelizmente,
por ora, Ernesto preferiu o caminho que o afastou do bem e da luz.
Quanto a você, minha irmã, tem usado suas oportunidades para fazer o bem
e acender a luz divina ao seu redor e dentro de seu coração. Por isso, não
poderão estar juntos por enquanto.
- Eu desejo ajudá-lo, Jonefá. Não me peça para ficar longe dele. Sabe há
quanto tempo o acompanho, encamação após encarnação.
-Sim, Elvira, eu sei. Contudo, vocês escolheram caminhos opostos, e para
Ernesto o regresso levará muito tempo. Assim, vocês terão de ficar sepa


rados por um período.
-Mas ele precisa de mim...
Envolvendo-a carinhosamente em intensa luz, Jonefá prosseguiu:

- Prepare-se. Em breve virei buscá-la para um encontro que a ajudará a
entender melhor o que estou falando.
-Vai me levar até ele?

- Nós vamos tentar.
Elvira olhou para o amigo e, intrigada, perguntou:
-Como "tentar"? Não sabe onde ele está? Sei que deve ser um lugar
triste e sombrio, mas quantas vezes o acompanhei a tais ambientes, para
resgatarmos irmãos em situação semelhante à do meu querido Ernesto?
27



-Acontece, Elvira, que agora é diferente. Estamos diante de um momento
singular para o nosso mundo. O resgate não será mais tão simples...

Elvira, séria, silenciou por instantes. Depois questionou:

-Do que está falando, Jonefá?
-É chegado o momento de se consumar a transformação pela qual tanto
temos ansiado. O orbe está se modificando e, em breve, será um mundo de
regeneração, onde somente as almas mais conscientes e afeiçoadas ao bem
poderão habitar.

Elvira encarou Jonefá enlevada. Seu rosto doce e meigo cintilava e dele
emanavam luzes radiantes. De seu peito, luzes azuis e rosadas se expandiam
ao infinito. Sua beleza espiritual era encantadora. Seus olhos brilhavam como
estrelas no firma-mento. Ela não conseguia falar. Sentia o coração pulsar
num misto de júbilo e tristeza.

Jonefá tocou-lhe os cabelos ternamente e acrescentou:

- Sim, querida irmã, chegou a hora de se completar a mudança. Veremos
por fim a violência dar lugar à paz; o ódio ser trocado pelo amor; o orgulho
ceder vez à humildade; e o mal, enfraquecido, ser vencido pelo bem. É o
triunfo de Deus nos corações dos homens de nosso mundo!
Elvira fitou Jonefá com emoção, sorrindo. Depois, como a se lembrar de
algo, estremeceu e perguntou:

-E o que será de Ernesto, justamente agora? Sabíamos que seria sua última
chance. O que vai acontecer com ele?
- Entendo sua angústia, minha irmã, e por isso obtive autorização para
levá-la comigo a importante reunião no plano espiritual, para que possa
compreender o destino de nosso irmão.
-E acha que verei Ernesto, nessa reunião?

- Elvira, não há como ter certeza. Mas insisto em que descanse e se prepare;
é possível que encontremos Ernesto entre aqueles que irão participar
desse encontro especial. Em breve virei buscá-la, durante o sono físico.
Movendo a cabeça em sinal afirmativo e sorrindo com doçura para Jone-
fá, ela concordou:

- Haverei de estar pronta, com a graça de Deus, meu bom amigo. A-
guardo-o com o coração preparado.
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CAPÍTULO 7

A vida fluía com toda a intensidade naquele orbe admirável, cujas belezas
o colocavam entre os mais lindos do Universo. A movimentação era
grande nas ruas e nos prédios; homens e mulheres iam e vinham; jovens e
crianças se dedicavam com alegria às suas atividades.

A humanidade estava otimista. Nunca antes um governo mundial tivera
tanta confiança e credibilidade por parte das populações. Pela primeira vez
na história, os povos tinham um só governo para todos os países. As barreiras
entre as diferentes nações haviam caído e uma ampla coalizão política
fora capaz de eleger, num esforço gigantesco, um governo único. Havia os
que resistiam; muitos interesses se opunham a esse avanço. Não obstante,
com o crescimento econômico unindo as nações, derrubando taxas e impostos
entre os povos, a economia global se consolidara e de tal modo se fortalecera
igualmente seu órgão representativo (constituído de enviados de todos
os países) que fora possível convencer a coletividade a eleger um governo
centralizado.

As populações estavam cansadas da violência e das guerras sucessivas;
famílias incontáveis haviam sido dizimadas e as pessoas ansiavam por alguém
em quem pudessem confiar; esperavam por uma transformação; desejavam
como nunca antes que houvesse paz, finalmente, entre todos os homens.


O governo único se iniciara há alguns anos e os resultados se faziam notar
em toda parte: o mundo, outrora à beira da destruição em conseqüência
do contínuo desrespeito e das agressões sofridas por seus habitantes, atravessava
uma fase de harmonia e restauração, ainda que lenta e gradual, de
suas reservas naturais. Nenhuma árvore fora derrubada nos últimos anos,
nenhuma sequer. E novas reservas florestais vinham sendo cultivadas, dia
após dia. Eram grupos enormes de jovens, estudantes, que deixavam as salas
de aula e iam às áreas completamente destruídas para, sob a orientação de
técnicos agrônomos, começar o reflorestamento das extensões devastadas. A
princípio, muitos acharam que os esforços seriam em vão - nada mais poderia
ser feito para salvar o mundo. Muitos acreditavam mesmo que a destrui


29



ção total era inevitável. No entanto, passados alguns anos, eles viam reflorir
a esperança, nos grandes parques que se formavam em toda parte. As árvores
nativas de cada região eram semeadas e, com a vegetação pouco a pouco
recuperada, ia também ressurgindo a fauna original.

Nas cidades, abandonadas e empobrecidas, destituídas de beleza, a mudança
fora ainda mais radical: o governo vinha atuando diretamente na educação
da população e já o próprio povo, consciente e esperançoso, buscava
alternativas para melhorar os centros urbanos. Grandes mutirões se realizavam
com freqüência, entregues à tarefa de elevar a qualidade de vida nas
regiões mais pobres das cidades. A população, outrora esmagada pela desesperança,
pela pobreza e pela fome, agora respirava aliviada, cheia de otimismo
e confiança.

Investimentos constantes em pesquisas, com resultados bem direcionados,
traziam avanço tecnológico para todas as áreas. O orbe experimentava
um progresso jamais visto em todos os seus setores de atividades. Os interesses
pessoais, aos poucos, cediam lugar ao bem comum, graças à consciência
reta e ao amor, que prevalecia invariavelmente, inclusive nas almas
daqueles que governavam. O respeito ao próximo e a Deus era assunto rotineiro
nas reuniões políticas.

Entretanto, havia os que ainda se opunham duramente, ignorando ou
mesmo rejeitando os resultados que se vinham obtendo; viam, mas não queriam
aceitar que aos poucos brotava uma nova civilização. Não cediam às
evidências, contrariados em seus interesses particulares.

Dentre esses grupos que se opunham ao progresso, havia um em especial,
constituído de importantes figuras sociais e políticas: eram homens de
negócios, que viam seus lucros diminuírem por conta da mudança de hábitos
das populações. Dentre eles, muitos também tinham forte influência junto
a membros do governo único.

Esse pequeno mas poderoso grupo se reunia tentando, sucessivamente,
diversas ações para desestabilizar o governo e tomar o poder nas próprias
mãos. Eles estavam adotando estratégias cada vez mais agressivas e naquela
tarde, discutiam, ardorosos, como haveriam de proceder com relação às últimas
propostas do governo.

Marcelo, um dos mais poderosos, dizia:

- Não concordo em absoluto! Temos de tomar providências. Se deixarmos
que continuem, perderemos de vez o controle.
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-Que se há de fazer, Marcelo? Eles agora são maioria! - redargüiu Felício,
dividido entre o bem-estar que constatava no povo e os interesses de
seus amigos, que vinham sendo afetados.
- Que nada! Um bando de frouxos, isso é o que eles são. Tão ingênuos...
Nesse ponto Maurício interveio, convicto:
- Olhe, Felício, se não tomarmos atitude agora, ficará cada vez mais difícil.
Tenho conexões no mundo inteiro, com aqueles que continuam insatisfeitos
com o rumo que as coisas estão tomando.
-Temos apoio em todo lugar. É só mover um dedo (e muito dinheiro) e
poderemos insuflar metade da população do globo contra o governo. - desta
vez foi Rodolfo quem tomou a palavra.
Felício argumentou, receoso:

- Porém não poderemos saber quais as conseqüências dessa nossa atitude...
Parece que as coisas estão indo realmente bem.
- Felício, você sempre esteve do nosso lado; mas, se ainda tem dúvida,
por que não tira umas férias? Não tem de participar, se não quiser.
O homem de seus cinqüenta anos calou-se, pensativo. A reunião já durava
horas quando Marcelo sugeriu aos participantes, que somavam mais de
meia centena:

- Vamos dominar um dos submarinos nucleares e ameaçar explodi-lo. O
pânico será geral e ficará muito fácil tomarmos o poder, com o apoio de
todas as facções que se opõem ao governo atual.
A sala explodiu em discussões. Todos falavam ao mesmo tempo, uns
mais receosos do que outros. Marcelo pediu:

- Senhores, vamos manter a ordem. As manifestações devem ser enviadas
ao nosso telão; caso contrário não conseguiremos chegar a um consenso.
Perguntas e sugestões se somavam. Depois de muitas horas de acalorada
discussão, finalmente a maioria concordou: tomariam o controle de um dos
submarinos nucleares mais potentes do mundo. Essa seria a mensagem direta
ao governo de que ele não tinha o poder absoluto - eles, sim passariam a
ter.

Era uma medida drástica. Outras menores já haviam sido tentadas, sem
êxito. Atos terroristas tinham sido incentivados em diversas partes do globo,
mas o povo contribuía, os casos eram solucionados e os executantes dos
crimes, quase sempre presos, estavam começando a delatar a procedência
das ordens.

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Marcelo representava grande número de interessados em refrear a qualquer
custo o progresso que se via de forma generalizada. Eles simplesmente
não queriam viver sem o controle que sempre haviam detido. Sentiam-se
ameaçados pela força que a população global vinha demonstrando e tudo
fariam para que o progresso fosse impedido.

Algumas semanas se passaram. Aquele dia amanheceu com frescor incomparável
e Felício - que depois da conturbada reunião decidira afastar-se
temporariamente de suas atividades - olhava pela janela o tráfego das crianças
indo para a escola. Sentia-se profundamente incomodado naquela manhã.
Observava tudo e pensava em como as coisas haviam chegado àquele
ponto, quando a esposa chegou, pálida e ofegante, quase sem conseguir falar:


-Venha ver... Felício! É uma... catástrofe de dimensões incomparáveis!
- O que aconteceu, Melissa? -Ligue a televisão.
Felício empalideceu também. Lembrou-se de que aquele deveria ser o
dia da ação que seu grupo planejara. Ligou a televisão, que noticiava em
todos os canais:

"A poeira radiativa alcançará algumas cidades. Aqueles que têm abrigo
nuclear devem buscá-lo imediatamente".

Felício passou de um canal a outro, atrás de mais informações:

"O mais poderoso submarino nuclear afundou e em seguida explodiu,
gerando onda gigantesca que encobriu grande parte dos continentes Houve
destruição maciça. Segundo informações colhidas com diversas áreas de
controle e operações, tudo indica ter sido uma ação terrorista sem precedentes
".

Sem esboçar reação, completamente atônito, Felício olhava para a mulher,
que chorava desesperada.

Naquela mesma hora, longe dali, Elvira igualmente assistia ao noticiário,
incrédula, junto dos filhos, que assustados perguntavam:

- E agora? O que vai acontecer? Vai morrer muita gente? Henrique questionou:
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- Como é que pode ser isso? Esse submarino era de segurança máxima,
utilizado apenas para pesquisa em águas profundas...

Elvira respirou fundo e respondeu:

-Eu não sei o que dizer, meu filho. Agora que nosso mundo parecia de


finitivamente melhor, vemos esse desastre monstruoso... Não sei, Henrique,
não sei mesmo o que dizer...

- Por que Deus permitiu uma coisa dessas, mãe? - questionou Lucas, o
filho mais novo.

Elvira fitou o jovem e explicou:

-Meu filho, Deus nunca quer o mal, somente o bem para todas as suas
criaturas. Ele nos ama infinitamente. Só quer o nosso bem. Creia-me, Lucas,
se algo tão terrível aconteceu, foi porque alguém agiu contra a vontade de
Deus.

-Mesmo assim, por que Deus deixou alguém tentar destruir tudo?

-Porque ele nos dá liberdade, meu filho. Somos livres para agir de acordo
com nossa vontade. Ele nos deu esse poder. No entanto, é para usarmos
isso em nosso benefício, para o nosso bem e o bem geral de nossos semelhantes,
e não para satisfazer nosso orgulho e nosso egoísmo. Esse tem sido

o maior problema humano, você bem sabe. É contra isso que lutamos incessantemente...
Apesar da resposta sábia da mãe, Lucas não se convenceu e, balançando
a cabeça em sinal negativo, repetia:
-Isso não está certo... Não está certo... Como isso foi acontecer, meu
Deus? Por quê?
Dor, sofrimento e estupefação: era o que se via estampado em todos os
rostos. Era inacreditável que, após tantos esforços bem-sucedidos do governo
único para melhorar as condições do mundo, muitos ainda agissem para
destruí-lo.

O número de mortes em decorrência das ondas radioativas foi enorme.
Só não foi maior porque a população há muito se preparara para enfrentar
algo semelhante, e muitos possuíam abrigos anti-radiação.

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CAPÍTULO 8

O dia foi de agitação e angústia em toda parte. Mesmo assim, Elvira não
esquecia a recomendação de Jonefá e, em meio à tragédia que se abatera
sobre seus amigos, filhos e vizinhos, seu coração se mantinha ligado a Ernesto
e à possibilidade de encontrá-lo.

Já era noite alta e seus filhos ainda estavam grudados no aparelho de televisão,
esperando novas informações referentes aos fatos atordoantes que
sobre o orbe se haviam abatido. Elvira entrou na sala e pediu:

- Muito bem, rapazes, acho que já chega por hoje. Vamos nos deitar e
procurar descansar. Não se preocupem, pois amanhã, logo que levantarem,
todas as emissoras continuarão noticiando o que aconteceu. E repetindo as
transmissões de agora. Vocês não perderão nada.
Cansados, e sem ter muito como argumentar com a mãe, eles acabaram
cedendo e foram para a cama.

A casa estava silenciosa. Elvira rolava de um lado para o outro, tentando
se acalmar, pois queria estar pronta para a oportunidade com que o amigo
espiritual lhe acenara. Jonefá a acompanhara ao longo do dia, embora sem
se fazer perceber ostensivamente; agora, próximo à cabeça dela, aplicava-
lhe fluxos de energia tranqüilizadora sobre os centros nervosos, procurando
serenar sua mente. Pouco a pouco, Elvira, que orava em pensamento, entregou-
se ao sono reparador.

Logo que seu corpo entrou em sono profundo, seu peris-pírito, liberto,
ergueu-se com a ajuda de Jonefá. Ela lhe disse:

- Meu bom amigo, como me alegra vê-lo! Que dia difícil tivemos hoje...
Sinto-me esgotada.
Amparando-a gentilmente, Jonefá respondeu:

- É chegado o momento tão esperado, Elvira; sigamos sem demora. Somos
chamados a comparecer a importantíssima reunião no espaço, próximo
ao nosso orbe, e cabe-nos acima de tudo auxiliar no padrão vibratório necessário
para a realização de encontro de natureza tão singular. Deixemos para
discutir assuntos menos elevados em nosso retorno, se você ainda o desejar.
Está certo?
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O semblante de Elvira radiava luz intensa, de beleza admirável. Seus olhos
vibravam amor e emoção iluminada, e ela respondeu, compassiva e
submissa:

-Está certíssimo, meu amigo. São os vícios da matéria, que não conseguimos
ainda superar. Vamos sem demora.

Em segundos, à simples expressão da vontade de ambos, estavam diante
de majestoso portal. Muitos acorriam ao local, em pequenos grupos de três
ou quatro; entidades espirituais acompanhavam almas que, desprendidas do
corpo físico durante o sono, compareciam à solene reunião.

Respeitosos, entraram. Assim que cruzaram o portal avistaram ao longe,
sobre colina verdejante, grande número de entidades que chegavam e procuravam
se acomodar. O ambiente era de luz e beleza sublimes. Árvores frondosas
e flores delicadíssimas que exalavam suave aroma compunham o cenário
deslumbrante. No cume do monte, instrumentos estavam colocados e
alguns lugares preparados para aqueles que iriam conduzir a reunião. Luzes
intensas eram vistas de longe, roscas, azuladas, lilases. Muitos eram os que
as emitiam e o lugar transbordava harmonia e paz indescritíveis.

Logo Elvira e Jonefá alcançaram os outros. Ela, então, fitou o amigo e
perguntou com delicadeza:

-Não vejo nossos amigos, Jonefá, onde estão?

-Muitos se encontram em tarefa na crosta, auxiliando nossos irmãos em
transposição de planos. Outros obedecem às orientações de nossos superiores,
participando das equipes de busca aos nossos irmãos recalcitrantes no
mal, que se escondem da luz. Eles deverão apresentar-se esta noite, para
colher os frutos de seu orgulho e sua iniqüidade.

Jonefá se calou por alguns instantes. No breve silêncio que se fez entre
eles, o semblante de Elvira era de expectativa, até que o amigo continuou:

- Esta noite será o início da grande transição; não é mais possível esperar.
Para que nosso mundo não seja destruído e ganhe forças para se regenerar,
milhares de almas serão transferidas para um planeta ainda primitivo,
cujos obstáculos e limitações permitirão que recebam novas oportunidades
de reabilitação e progresso. Você não ignora que as falanges dos irmãos que
se comprazem no erro estão dificultando o desenvolvimento de nosso orbe.
-Eu tenho plena consciência disso, Jonefá; só não sabia que estávamos
tão perto desse momento. Foram tantas as profecias que pareciam não se
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cumprir que muitos acabaram por esquecer que um dia se daria o fato marcante
da transição.

- Pois bem, Elvira, acheguemo-nos mais; a reunião está para começar.
Os dois se aproximaram do ajuntamento, tomando assentos confortáveis,
entre os que se espalhavam pela ramagem fresca. Elvira avistou rostos de
alguns conhecidos e queridos, que cumprimentou mentalmente.

Em poucos instantes, o silêncio se fez absoluto. Todos oravam, pedindo
as bênçãos de Deus para o encontro. Elvira, conquanto feliz por presenciar
episódio tão singular na história daquela humanidade, sentia o coração apertado
e inquieto, pois temia pelo destino de Ernesto. Jonefá tocou-lhe as
mãos com ternura e advertiu:

- Elvira, procure não pensar em Ernesto agora. Deixe que o Criador
conduza aquele a quem você tanto ama e coloque seu amor a Deus adiante
de tudo.
Acatando a sugestão do amigo, Elvira concentrou o pensamento nas
verdades eternas e na beleza daquela ocasião, serenando desse modo o próprio
coração.

No cume do monte surgiram luzes tão fulgurantes que alguns não as podiam
fitar. Aos poucos elas tomaram a forma humana e se fizeram visíveis a
todos. A mais radiosa das luzes permaneceu brilhando, fortemente; dela
emanava suave fragrância que imediatamente inundou todo o ambiente, e
encheu de alegria o coração de cada um dos participantes. Era o governador
espiritual daquele mundo, que se apresentava à distinta audiência. Saudou a
todos e, após sublime e elevada prece, deu início à esperada reunião.

Aquela alma de absoluta pureza abraçou a todos com sua energia de
amor e explicou a importância do momento. Ressaltou que, no Universo
criado por Deus, todos os mundos evoluem da mesma maneira que os seres
por Ele criados. Disse, jubiloso, que havia chegado o dia que Deus determinara
para a depuração do querido orbe a que pertenciam, após as duras lutas
e os sofrimentos superados pela maior parte de seus habitantes. Não haveria
mais catástrofes naturais, nem a predominância do mal. O Reino de Deus se
fizera finalmente vitorioso no coração daquele povo, cheio de piedade e
virtudes. O mal estava controlado. E se o povo, bondoso e misericordioso,
continuasse a vigiar o coração e as tendências inferiores, submetendo-se à
vontade de Deus, o mundo que habitava seguiria seu curso na espiral de
transformação que o levaria a se tornar um mundo evoluído. O orbe passava

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por significativa mutação e abrigaria, a partir daquele momento, almas em
regeneração. Por causa disso, e conforme a determinação de espíritos elevados
que controlam o Universo, as milhares de almas que persistissem no
mal, rejeitando o amor e a verdade, seriam banidas do orbe, temporariamente,
para que pudessem, através de sérias dificuldades, de lutas dolorosas e
experiências expiatórias em um planeta jovem e com habitantes primitivos,
sujeitar-se finalmente aos desígnios divinos, que até então renegavam.

Depois de breve pausa, ele retomou a palavra:

-Não é mais possível que permaneçam conosco. As almas que começam
a retornar para nosso mundo, neste novo ciclo evolutivo de regeneração, e
que darão grande impulso ao seu desenvolvimento, necessitam de ambiente
onde vicejem o bem, o amor e a fraternidade. Não há mais lugar para o ódio
e o egoísmo consciente, tampouco para o orgulho tenaz. Em um ambiente
de tamanha harmonia e tanto bem-estar, nossos irmãos que ainda desprezam
a Deus não terão como renovar-se pela dor; é preciso que sejam lançados
em maior abismo, onde o sofrimento os desperte para o Criador e para sua
própria felicidade. Muitos partirão deixando aqui entes queridos, que seguirão
sua jornada evolutiva. Mas eu lhes asseguro que os que estiverem preparados
e tiverem condição espiritual poderão visitá-los no orbe para onde
serão encaminhados.

Que Deus nos abençoe a todos.

O governador interrompeu seu discurso. Suave cântico espalhou-se pelo
ambiente e apresentou-se um coral reluzente, de vestes branquíssimas, aliviando
com a música elevada a dor do coração de muitos que por tempo indefinido
perderiam contato com aqueles a quem amavam.

Elvira escutava com o coração opresso, porém resignado. Pesadas lágrimas
desciam-lhe pela face e foi somente ao final dos cânticos que sentiu
algum alívio.

Após a doce apresentação, nova e fulgurante luz surgiu no meio dos dirigentes.
O governador daquele mundo em transição saudou o governador
da Terra, planeta para onde seriam enviados os exilados.

Lentamente, a intensa luz que aparecera, cujo brilho ofuscava a visão da
maioria dos presentes, se condensou na figura amorosa de um ser fisicamente
semelhante aos capelinos. De feições meigas e suaves, ele atraía todos os
olhares. Retribuindo o carinho com que era recebido, aquele ser de luz saudou:


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-Que a paz de Deus esteja com todos vocês e que ele abençoe essa transição
bendita por que passam neste momento. Nosso Senhor, que tudo sabe
e tudo vê, recompensa sempre as obras de nossas mãos e a colheita, boa ou
má, é sempre certa.

Depois da breve saudação se fez silêncio expectante. Em alguns instantes,
grande tumulto à distância foi ouvido. Abriu-se o éter ao longe e das
entranhas das trevas subiu uma espaçonave enorme, com muitas almas em
seu interior. Algumas gritavam, amaldiçoando a Deus por estarem presas
naquelas condições. Outras vertiam doloroso pranto de arrependimento e
remorso. Havia as que clamavam por misericórdia e gritavam por socorro.
Umas gemiam, tão-somente. Outras lamentavam, angustiadas, o destino que
as aguardaria.

CAPÍTULO 9

Aquela seria a primeira grande transferência de almas que partiriam para
a Terra, deixando para trás o belo mundo em regeneração. Milhões de outras
ainda haveriam de ser exiladas. Muitas estavam sendo presas e confinadas
pelos trabalhadores da luz que as recolhiam em profundos e escuros abismos.


Elvira desejou aproximar-se da espaçonave, na esperança de ver Ernesto.
Angustiosa expectativa pairava no ar. Ela pensava no marido e em qual
seria seu destino, no novo lar onde iria viver. Foi então que o governador da
Terra se aproximou da gigantesca espaçonave e falou afetuosamente às almas
que ali se encontravam:

- A partir de agora, eu os recebo no orbe da Terra, planeta em estágio inicial
de evolução. A misericórdia divina jamais abandona criatura alguma.
Meus irmãos, é forçoso recomeçar e os habitantes da Terra precisam da contribuição
de vocês. Lá, junto aos irmãos primitivos, vocês poderão colaborar
para a sua evolução, o seu adiantamento, enquanto resgatam os pesados débitos
contraídos para com a justiça divina. E a nova oportunidade que Deus
oferece a vocês. Ainda que distantes do lar, eu prometo que estarei sempre
cuidando de todos. No princípio, chegando à Terra, serão habilitados para
aprender a viver em um ambiente primitivo, com todas as dificuldades que
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vocês superaram nos primórdios de seu próprio mundo e, portanto, já esqueceram.
Serão preparados para viver em um corpo mais grosseiro e denso,
com suas necessidades e seus desafios. E um dia, quando for o momento
propício, eu mesmo descerei à Terra e estarei encarnado junto com vocês, a
fim de ajudá-los na conquista de suas almas para o glorioso destino que os
aguarda. Vocês jamais serão desamparados, ainda que tenham virado as
costas e desprezado as leis divinas. Nosso Pai jamais os abandonará; exercerá
sua justiça, porém o fará com profundo amor.

As palavras daquele ser de pura luz eram doces e suaves, causando forte
emoção. Os capelinos que seriam exilados o ouviam com atenção e muitos
corações se abrandaram diante das promessas que fazia. A maioria não o
podia mirar, tamanha era a luz que dele emanava; escondiam os olhos e apenas
ouviam suas abençoadas palavras. Outros, entretanto, manti-nham-se
cegos e surdos às suas palavras, nutrindo revolta profunda contra Deus e
seus desígnios.

Quando o divino embaixador da Terra terminou, afastou-se da grande
nave. O governador daquele orbe autorizou a aproximação dos presentes
que tivessem pessoas amadas entre os que partiriam. Elvira imediatamente
levantou-se, mas Jonefá a deteve:

- Ernesto não está entre os que vão partir hoje. Surpresa, ela se sentou e
perguntou:
-Sabe onde ele está?

- Recebemos informações sobre sua localização antes do início da reunião.
Ele deve partir muito em breve, assim que puder ser resgatado.
- E onde está? Podemos vê-lo?
Jonefá pousou em Elvira os olhos límpidos e amorosos e disse:
- Querida Elvira, tem certeza de que quer vê-lo nas condições em que se
encontra? Pelo que fui informado, seu estado é de demência total. Está enlouquecido
pelo ódio e pela vingança que empreitou.
-Vingança?

- Não bastassem as suas deploráveis atitudes contra a vida, ele foi o responsável
pela loucura e morte de Ferdinando. Os dois estão ligados de maneira
lamentável e será difícil dissociá-los.
Elvira calou-se, desolada. Depois, fitando o olhar bondoso de Jonefá,
pediu:

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- Podemos vê-lo? Eu realmente gostaria de ajudá-lo. Sentindo as forças
lhe faltarem, derramou amargo pranto

e falou entre soluços:

-Meu Deus, como foi possível que Ernesto se afastasse tanto assim do

Senhor?
Depois, ergueu a cabeça e encarou o amigo:

-Ah, Jonefá, como isso pôde acontecer? Ernesto havia melhorado muito...
Já se redimira de tantos débitos... Como foi cair tão fundo?
Jonefá a abraçou carinhosamente e respondeu, também entristecido:

-O orgulho, Elvira, essa chaga tomou conta de nosso Ernesto. Ele, de
fato, havia melhorado muito em suas duas últimas encarnações. Tínhamos
grandes esperanças para sua atual experiência, mas ele sucumbiu por essa
imperfeição atroz. Ante a oportunidade de experimentar a expansão de sua
inteligência, não teve amor suficiente e falhou tremendamente.
De olhos ainda úmidos, Elvira suplicou:

- Podemos vê-lo?
Jonefá assentiu com a cabeça, dizendo:
- Quando a reunião terminar, vamos procurá-lo.
A atenção de Elvira e Jonefá se voltou para a movimentação que acontecia
a meia-distância. A grande nave se afastou, sob o olhar pesaroso de milhares
de capelinos que viam pessoas próximas deixarem o espaço etéreo do
sistema de Capela para só se reencontrarem num futuro remoto. Eram almas
afins que se separavam dolorosamente, por tempo indeterminado.

Mais alguns cânticos ecoaram no espaço, enquanto os gíu-pos se afastavam
lentamente. Muitos ainda buscavam orientações sobre como poderiam
ajudar seus amados que partiam, mas aos poucos a multidão se dispersava.

Elvira, Jonefá e uma equipe de mais sete trabalhadores abnegados dirigiram-
se para onde Ernesto estava. Dois deles eram os responsáveis por prendê-
lo assim que fosse encontrado.

Caminharam para região de sombras densas. O cenário tornava-se tenebroso.
Gritos e grunhidos eram ouvidos, bem como muitas ameaças. O grupo
estava protegido por energias luminosas para que pudesse transpor o escuro
abismo. Bandos de entidades deformadas tentavam atacá-los, sem poder
atingi-los, e eles prosseguiam. Ao se aproximarem da entrada de uma
caverna, Jonefá disse a Elvira:

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- É aqui, eles estão lá dentro. Eram prisioneiros de um grupo insolente,
mas os mais perigosos já partiram para a Terra. De qualquer modo, Elvira, é
melhor que fique aqui com os outros. Eu, Manasses e Sadraque vamos entrar.
- Por favor, Jonefá, posso ser útil lá dentro. Vocês podem precisar de
mim; eu vou entrar também, por favor.

Jonefá trocou rápido olhar com os companheiros, depois disse:

-Pois bem, venha conosco; mas daqui por diante precisará fazer exatamente
o que lhe pedirmos, ou seu corpo físico, ora em repouso, poderá ser
afetado.

Elvira concordou. Ela sentia dificuldade para respirar, pois a atmosfera
era densa e pesada e o cheiro de enxofre, misturado a outros odores fétidos,
era repugnante. Entraram.

Após pequena caminhada, Jonefá, que ia adiante, estacou perto de uma
massa disforme, com duas cabeças bem nítidas. Ele se virou para Elvira,
sinalizando que os haviam encontrado. Ao constatar que aquela criatura
monstruosa que via à sua frente fora outrora Ernesto, ela caiu de joelhos
rogando mentalmente a Deus por piedade e misericórdia. Manasses e Sadraque
plasmaram uma maça e se acercaram de Ernesto, que atado a Ferdinando,
em simbiose doentia, estava completamente deformado. Entretanto, ao
perceber o movimento, Ernesto começou a gritar e esbravejar que ninguém
se aproximasse ou ele atacaria. Elvira levantou-se e, achegando-se um pouco
mais às entidades doentias, suplicou:

- Ernesto, sou eu, Elvira. Por favor, vocês precisam deixar que os ajudemos.
Precisam de socorro. Ernesto querido, deixe-nos ajudá-los...
Todavia, não pôde continuar. Das duas entidades, rajadas de energias
deletérias começaram a ser arremessadas. Sadraque, então, apontou para os
dois um objeto que disparou raios neutralizadores e as entidades foram de
imediato sedadas. Jonefá e Manasses colocaram a massa disforme na maça e
Elvira, junto ao rosto de Ernesto, afagou-lhe a testa e em lágrimas disse:

-Descanse, meu amado. Onde você for, aí estarei também eu para orar
por você, para sustentá-lo com o meu amor. Jamais o abandonarei, Ernesto.
Um dia, haverá de voltar-se para Deus e nunca mais precisará passar pelo
que vive agora. E eu estarei ao seu lado, sempre.

A cena era comovente. Elvira, que emitia intensa luz, de joelhos acariciava
com desvelada ternura aquela massa pegajosa e cinzenta. Por um breve

41



instante o grupo permaneceu em profundo e respeitoso silêncio. Depois,
Manasses tomou Elvira pelo braço, levantou-a delicadamente e pediu:

-Querida irmã, nós temos de ir, pois nossa empreitada é perigosa. Certamente
Deus já lhe ouviu as súplicas de amor. Agora devemos ir.

Imediatamente o grupo levou os prisioneiros para um posto de socorro
próximo, onde aguardariam, sob detenção, nova partida de exilados para a
Terra. Ainda uma vez, Elvira aproximou-se do corpo do marido, jungido ao
de Ferdinando. Ajoelhou-se à beira da maça simples que os acomodava, tocou-
lhe a face com indizível ternura e pediu que ambos fossem ajudados a
encontrar o caminho de volta ao divino Criador, enquanto pesadas lágrimas
corriam pela sua face iluminada. Após curto silêncio em que os amigos espirituais
presentes acompanharam com reverência a oração que ela proferia,
Jonefá ergueu-a e lembrou:

-Agora vamos, minha irmã, é hora de partir.

Ela o seguiu em silêncio durante a rápida viagem de retorno. De volta ao
seu lar, ao adentrarem o quarto, Jonefá recomendou:

- Descanse um pouco, Elvira, que logo amanhecerá. Seus filhos precisam
de você; muitos dependem de sua ajuda no momento crucial pelo qual
está passando o orbe. Muitos estão desencarnando e outros tantos desencarnarão
brevemente em conseqüência da explosão nuclear, sendo sem demora
transferidos para a Terra.
Acomodando-se a seu corpo físico também agitado, Elvira perguntou:

-O que será de Ernesto agora? Quando partirá para o novo planeta?
-Ele ficará em tratamento por algum tempo e, logo que tiver o mínimo
de condições, será levado.
-Gostaria imensamente de vê-lo, de falar com ele outra vez, tão logo
seja possível.
- Seus pedidos foram atendidos, Elvira. Você tem a seu favor anos de
trabalho e dedicação aos semelhantes, em serviço reverente ao Criador. Tem
o merecimento e suas preces foram ouvidas. Contudo, por enquanto seu
concurso não será salutar. Outros necessitam de você aqui mesmo. Desse
modo, acompanharei pessoalmente o desenvolvimento de Ernesto, tanto
aqui como quando de sua transferência para a Terra. Esporadicamente, irei
visitá-lo e, ainda que a distância, darei a ele amparo e cuidados constantes.
Tão logo ele esteja em condições de vê-la, de falar com você -ou seja, assim
que esse encontro puder ser útil de fato —, providenciaremos que estejam
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juntos. Agora, Elvira, tranqüilize seu coração. Você poderá estar perto de
Ernesto, desde que seja proveitoso, especialmente para ele. Confie e trabalhe,
como tem feito, e um dia, pela misericórdia de Deus, estará de novo ao
lado dele.

- Você me trará notícias de seus progressos?
-Sempre que as tiver.
Elvira sorriu e ajustou-se por completo ao corpo físico, adormecendo
profundamente.

CAPÍTULO 10

Jonefá acompanhava dia a dia o estado de Ernesto. Durante várias semanas
ele permaneceu em sono angustiado e delirante, tendo o perispírito
ainda ligado fortemente ao de Ferdinando. Ambos ocupavam um quarto de
segurança no posto de recuperação, próximo à crosta do orbe. Todos os dias
numerosa equipe de magnetizadores participava das preces, ao entardecer da
crosta, e vibrava energias de restauração tanto para o corpo espiritual, como
para o espírito dos enfermos, marcados pelo ódio e pela rebeldia.

O tempo passava sem que nenhum progresso se obtivesse no tratamento
espiritual de Ernesto e Ferdinando. Os espíritos encarregados de administrar

o posto de socorro decidiram, então, que seria mais proveitoso transferi-los
sem demora, para que na Terra iniciassem a nova fase de penosas reencarnações.
Na noite prevista para a transferência, Jonefá levou Elvira para se despedir.
Ela chorou entristecida ao constatar que nenhum progresso se efetuara
naqueles dois corações, obstinados no mal.

Foram conduzidos, enfim, para o espaço espiritual ao redor da Terra e
preparados para o próximo reencarne. Iriam renascer nas condições em que
se encontravam no espaço para que do choque com o corpo físico, com a
matéria densa, pudesse advir algum benefício para aquelas almas.

Foram encaminhados para uma tribo de seres primitivos, onde a linguagem
falada ainda não existia. Reencarnaram ambos, filhos do mesmo casal,
como irmãos siameses e disformes, assustando a pequena aldeia. Abando


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nados pela mãe no meio de densa floresta tropical, foram rapidamente devorados
por animais selvagens.

Ao longo de muitos séculos, em igual situação renasceram seguida e
compulsoriamente, inconscientes do que se passava ao seu redor, e na mesma
condição lamentável retornaram vezes sucessivas ao plano espiritual da
Terra, até que em uma dessas reencarnações, pela misericórdia do Criador e
sob a proteção dos benfeitores espirituais, uma mulher já mais evoluída,
espírito também originário da civilização do sistema de Capela, recebeu-os
como filhos e afeiçoou-se a eles, apesar de todos os defeitos que apresentavam.
Com esforço e dedicação, conseguiu mantê-los com vida por cinco
anos. Mesmo dispondo de curto período sobre o solo terreno, ao regressarem,
estavam ligeiramente separados, um pouco menos ligados um ao outro.
Era o primeiro progresso realizado desde que haviam deixado o lar longínquo.


Elvira acompanhava, sempre esperançosa, as reduzidas notícias que Jonefá
lhe trazia. Agora ela já estava no plano espiritual, bem como seus filhos.
Ela continuava, incansável, trabalhando para o bem daqueles que amava
e de tantos quantos necessitassem de sua ajuda. Dedicava-se especialmente
às crianças que desencarnavam em difícil condição. Era infatigá-vel
colaboradora nos serviços de auxílio àqueles que, mesmo encarnados naquele
mundo em regeneração, se distanciavam gradualmente do bem. Por isso
ela permanecia no plano espiritual; não mais reencarnara, desde sua última
experiência junto com Ernesto. Foi com alegria que recebeu a notícia sobre
a pequena melhora apresentada por Ernesto e Ferdinando.

- Fico muito grata por manter-me informada, Jonefá. Não seria o momento
de estar com ele e ajudá-lo a conquistar um pouco mais de equilíbrio
para sua próxima experiência na crosta da Terra?
- Incansável Elvira, eu sabia que desejaria vê-lo, tão logo trouxesse
qualquer notícia animadora. No entanto, ainda não é o momento. Seu concurso
agora pouco poderá contribuir para a melhora espiritual de Ernesto. É
preciso esperar; somente com o concurso do tempo, seu auxílio será efetivo.
Aguardemos a hora oportuna. Ernesto está apenas começando seus passos
na Terra a ainda precisará muito de sua ajuda.
Consciente da ansiedade que dominava Elvira e do imenso amor que ela
nutria por Ernesto, tocou-lhe suavemente o ombro e consolou-a:

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-Minha irmã, continue confiando em Deus. Ele jamais desampara um
sequer de seus filhos amados. Somos criaturas de suas mãos, que ele amorosamente
acompanha passo a passo, na trajetória evolutiva.

Ela suspirou e sorriu. Depois de alguns instantes, respondeu:

-Tem razão, esperemos o melhor momento, o mais proveitoso para todos.


Séculos se passaram. Ernesto e Ferdinando, em melhores condições,
permaneciam no espaço espiritual denso em torno da Terra, sendo preparados
para nova experiência. As equipes espirituais finalmente conseguiram
razoável separação de seus perispíritos, que se completaria quando voltassem
como irmãos gêmeos. Após cuidadosa preparação, reencarnariam afinal
em uma região em franco desenvolvimento, filhos de pais também vindos
do sistema de Capela, para que a sintonia se fizesse maior, auxiliando no
progresso de que todos necessitavam. Renasceram no continente de Atlântida.
Contudo, ambos traziam deformações físicas ao nascerem, sendo que as
de Ferdinando eram mais graves. Sem pensar duas vezes, o pai escolheu o
pequeno com menos defeitos e sacrificou o outro. Ernesto e Ferdinando se
separavam, depois de prolongado estado de inconsciência.

Naquela família, o menino cresceu até completar doze anos e depois,
não resistindo a uma série de doenças físicas e mentais, voltou ao plano espiritual.


A partir daquela experiência, Ernesto e Ferdinando seguiriam caminhos
distintos, pois o segundo já estava reencarnado quando o primeiro regressou.
Além do mais, Ernesto, após indispensável preparação, retornaria à
vida física sem perda de tempo, para que pudesse recobrar a consciência e
iniciar o trabalho pessoal e intransferível de resgate de sua alma para Deus.
Mais uma vez, renasceria em Atlântida, na mesma família que havia deixado;
seria neto daquela que fora sua mãe. Começava para Ernesto nova fase
de sofridas reencarnações na Terra.

Ainda semiconsciente de sua realidade, o espírito de Ernesto não compreendia
o que se passava. Quando chegou à adolescência, torturado por
profunda angústia, cometeu suicídio, regressando ao plano espiritual em
situação agravada. Apesar disso, aquele espírito começava a despertar.

* * *

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Ao longe, Elvira contemplava seu orbe amado, enquanto tratava de algumas
de suas plantas preferidas. Pensava nas crianças que recebera naquele
dia, quando Jonefá despertou-a de seu torpor:

-Elas crescem lindas sob seus cuidados, Elvira.

-Crescem lindas aqui, sob os cuidados de quem quer que as ame -ela
sorriu, serena.

Jonefá abraçou Elvira carinhosamente e disse:

- Chegou o momento pelo qual você tanto ansiava. Instantaneamente os
olhos de Elvira encheram-se de lágrimas e ela indagou:
-É verdade, Jonefá? Vou poder enfim reencontrar meu querido Ernesto?
- Sim, partiremos em algumas horas. Prepare-se. Virei buscá-la assim
que estiver pronta.
-Não perderei nem um minuto. Vou tomar todas as providências para
que o trabalho aqui continue sem interrupções e ficarei livre para acompanhá-
lo.

Parando, olhou para Jonefá e perguntou, séria:
-Como ele está?


-Sofre bastante. Seu espírito começa a despertar lentamente e está muito
difícil para ele compreender o que se passa à sua volta. No presente momento
se encontra sob o domínio de entidades muito agressivas, que o fazem
refém. Mesmo assim, convém que o encontremos e resgatemos, para
que retome sua caminhada. Nesta etapa, seu concurso poderá auxiliar o trabalho
de evolução de Ernesto.
-Estarei pronta rapidamente.

-Virei buscá-la.

Algumas horas depois, partiram junto com outros dois companheiros em
direção à Terra. Depois de percorrerem longa jornada entre os dois mundos,
foram direto para as regiões umbralinas do planeta, densas, pesadas, de amarga
aflição. Elvira assustou-se. Até as regiões mais obscuras em derredor
de seu mundo não se pareciam em nada com o que via e sentia naquele ambiente.
Era difícil, quase doloroso, respirar e sentia-se sufocar pelo mau-
cheiro que havia ali. Foi à custa de grande esforço que pôde seguir os companheiros
e ajudá-los a resgatar Ernesto.

Horas depois, enquanto ele dormia em uma enfermaria, num hospital logo
acima da crosta, Elvira trocava impressões com Jonefá:

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-Estou impressionada com o peso que sinto neste planeta. -Já vivemos
em condições semelhantes a estas um dia, em nosso mundo.

- É impressionante refletir sobre o quanto já caminhamos. Graças a
Deus! Graças a Deus, que nos concede a possibilidade da transformação e
do crescimento, de nossa evolução.
-Sim. A Terra tem um longo caminho até alcançar condição espiritual
diferente. Hoje, porém, é o lar que oferece abrigo aos nossos irmãos capelinos,
não é mesmo, Elvira?

- Abençoado planeta que os acolheu. Por outro lado, imagino que deve
ser muito difícil para eles viverem aqui. Quando encarnados, não suspeitam
que existe algo além, que não compreendem e de que sentem falta? Não têm
saudade de seu verdadeiro lar, dos afetos que deixaram para trás?
- Na realidade, é o que mais os aflige, Elvira. Saudade de algo indefinível,
que não podem entender, nem imaginar exatamente o que seja.
-E estão conseguindo ajudar de alguma forma o planeta?

- Ainda não. A bem da verdade, Atlântida, onde Ernesto esteve encarnado
nas últimas experiências, deverá desaparecer do orbe terreno em futuro
não muito distante.
- Desaparecer?
-Sim. Será outro expurgo, para purificação da raça, e nova tentativa de
acelerar o aperfeiçoamento do planeta. Nossos irmãos encarnados na Terra
depressa tomaram o poder e hoje dominam tudo; mas neles a inteligência
tem prevalecido sobre o coração e, endurecidos, estão trazendo mais dor e
sofrimento àqueles a quem deveriam auxiliar. O progresso se faz vagarosamente.


Elvira ouvia atenta os detalhes da narração de Jonefá sobre o que se passava
em Atlântida, quando foram chamados para ver Ernesto, que despertava.
Ao entrar no quarto, ela procurou em derredor por alguém semelhante à
imagem que guardava do marido; foi um enfermeiro que, aproximando-se,
cumprimentou os recém-chegados e apontou uma das maças do enorme galpão:


-Está ali, eu os levo até ele.

Elvira chegou perto da cama onde um jovem jazia amarrado e, em desespero,
gritava palavras incompreensíveis. Tocando o rosto do rapaz, ela
orou a Deus, pedindo amparo para aquele a quem tanto amava e começou a
vibrar intensa energia impregnada de amor. De seu coração emanavam jatos

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dulcificantes que envolviam o corpo espiritual do jovem e o acalmavam. Ele
adormeceu novamente, já em condições um pouco melhores.

Por longo período Elvira auxiliou os trabalhadores responsáveis por acolher
os recém-chegados da crosta. Ernesto recebia seus efiúvios de amor e
desvelada ternura, e, envolvido naquela energia que era tão familiar para ele,
melhorava gradativamente. Por fim, encontrou-se acordado e em condições
de conversar com Elvira. Estava ainda semiconsciente e confuso, quando ela
chegou. Olhou-a de alto a baixo e disse, sonolento:

- Conheço-a de algum lugar...
-Procure descansar. Você precisa se recuperar, pois tem muito trabalho a
fazer.
-Eu sinto que tenho muito a fazer, só que não posso lembrar o que é...
Seu rosto... Agora me lembro! Elvira!
Ernesto se pôs de joelhos, chorando copiosamente. Seu perispírito
transmutou-se de imediato e ele retomou a forma que tinha ao deixar Capela.


Elvira ajoelhou-se ao seu lado e abraçou-o, sustentando-o em silêncio.
Quando finalmente conseguiu se acalmar, ele ergueu os olhos e indagou:

- O que aconteceu comigo, Elvira? Tenho lembranças estranhas, entrecortadas,
como num sonho. Não sou capaz de me lembrar direito dos fatos,
do que houve comigo... Ferdinando... Onde está aquele...
Elvira o impediu de terminar o que tencionava dizer. Colocou o dedo
sobre seus lábios e pediu:

-Ernesto, agradeçamos ao Criador as oportunidades que nos dá e deixemos
para trás nossos antigos desafetos. Olhe para a frente e prossiga, meu
amado! Não se prenda mais ao que passou!

Ernesto sentou-se de novo na cama, atordoado. Elvira pediu:
-Acho melhor descansar agora, você precisa recobrar as forças.
Ernesto segurou-a pela mão e implorou:


- Não se afaste de mim. Tenho medo de ficar só!
-Você não está só, querido, nunca esteve. Olhe à sua volta, quantos irmãos
trabalhando para que outros, como você, se recuperem.

Ernesto deu uma breve olhada em redor e falou outra vez, suplicante:

-Não me deixe. Só com você me sinto seguro. Elvira o abraçou com ca


rinho e procurou acalmá-lo:

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-Não se preocupe, não vou deixá-lo. Descanse. Assim que acordar estarei
aqui para conversarmos.

- Promete?
- Sempre estarei ao seu lado, querido, sempre.
Ernesto ajeitou-se na cama e, segurando as mãos de Elvira, adormeceu.
Depois de prolongado descanso, despertou mais refeito, embora sentindo
dores violentas. Elvira trouxe-lhe o medicamento indicado e as dores
diminuíram. Aí ele perguntou:

-Que dor é essa? Onde estamos, Elvira? Que lugar é este? Parece-me
muito estranho... É tudo tão esquisito...

-Sente-se bem para caminhar?

-Sim.

Ela estendeu as mãos, sorrindo:

-Então venha, temos muito que conversar...

Elvira e Ernesto caminharam para fora do ambulatório e sentaram-se
num banco. Ela pôs-se a contar ao companheiro um resumo do que se passara
até aquele momento, selecionando os fatos adequados para seu estado
momentâneo.

Quando terminou a narrativa, Ernesto gritava descontrolado:

-Não! Não! Não é possível! Não! Não quero viver nesta prisão!

Elvira pedia, suplicava:

-Vamos, Ernesto, acalme-se. Pense em quanta misericórdia tem Deus,
proporcionando-nos este reencontro...

-Não! Não quero viver longe do meu mundo! Longe de você e neste
planeta inculto e grotesco!

-Ernesto, acalme-se, estamos em um hospital. Muitos ainda estão na
condição em que você se encontrava há pouco: completamente inconscientes.
Eles, do mesmo jeito que você, precisam de paz e de silêncio para melhorar.


Tomando-lhe as mãos com doçura, irradiou intensa luz sobre ele e pediu

uma vez mais:
-Por favor, acalme-se.
-Não! -ele continuava -Não quero!
Jonefá aproximou-se dos dois e chamou:

- Elvira, é hora de partirmos. Sua presença começa a ser prejudicial para
Ernesto.
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Ernesto o fitou e disse, agarrando-se a Elvira:

-Ela não vai a lugar algum.
Jonefá fez menção de tocar Ernesto, mas Elvira, sabendo o que ele estava
para fazer, pediu ao dedicado amigo:

- Dê-me só mais um instante, por favor.
- Como assim, só mais um instante? - perguntou Ernesto, fitando-a assustado.
Elvira baixou a cabeça e começou a orar cheia de fé. Mais uma vez, de
seu coração doces vibrações partiam em direção a Ernesto, que, envolvido
por completo, acabou por se acalmar. Foi quando ela esclareceu:

-Não há como fugir das leis divinas, Ernesto. Foi escolha sua e agora colhe
as conseqüências de suas decisões. No estado espiritual em que se encontra,
não pode mais viver em nosso mundo, ao menos por enquanto.

Ernesto a fitava e segurava suas mãos com firmeza. Ela prosseguiu:

- É essencial que transforme sua vibração, que renove seu coração, sua
mente, que as leis divinas tomem conta de seu ser, para que então você possa
regressar... Não precisa ficar aqui para sempre. Se aproveitar bem suas
oportunidades, suas experiências no corpo físico e fora dele também, se,
sobretudo, você aprender a ser grato a Deus por cada uma delas, um dia estaremos
reunidos outra vez.
- E por que não posso melhorar lá, ao seu lado? Por que tem de ser aqui,
neste planeta miserável?
-Ernesto, não maldiga o lar que o acolhe. Nosso orbe é agora um mundo
de regeneração. A dor e o sofrimento foram substancialmente banidos. A
boa vontade e o amor reinam nos corações. Não seria possível resgatar os
seus débitos lá.

-E por que não?
- Ernesto, já não há quase dor em nosso orbe.
Ele a olhava sem entender o significado do que dizia. Elvira continuou:
- A Terra é um planeta primitivo que atravessará longo caminho até se
desenvolver. Aqui, a dor o ajudará na transformação que precisa realizar em
si mesmo.
Ernesto ia rebelar-se, indignado, quando ela se levantou primeiro e disse:
-Agora preciso partir. Você jamais estará só. A justiça divina é sempre
aplicada com amor. Siga com determinação, meu querido, e um dia nos jun


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taremos outra vez, em nosso lar. Meu amor por você é imenso, porém preciso
ir.

Ernesto, gritando, insistia para que ela ficasse. Elvira sabia que seria
inútil tentar mudar o que ele sentia ou pensava e dirigiu-se a Jonefá, que
aguardara a distância:

-Podemos ir.

Alguns trabalhadores do ambulatório tiveram de segurar Ernesto, que
gritava e tentava seguir Elvira, que dessa vez partiu sem olhar para trás. A
despeito das lágrimas que corriam incessantes por sua face doce e meiga, ela
não se voltou para a direção onde estava Ernesto e acompanhou Jonefá em
total silêncio, até o regresso ao lar. Quando chegaram ela afirmou, pesarosa:

-Foi mais difícil do que eu imaginava.

-Sei que foi, mas ajudou-o muito, Elvira.

- Espero que sim. Só não sei se foi acertado despertar daquele modo sua
consciência.
- Só você poderia fazê-lo, sem que ele enlouquecesse. Foi acertado, sim.
Agora, mais consciente, ele tem melhores possibilidades de progresso. Que
Deus o ampare e abençoe em sua nova chance.
-Ele reencarnará em breve?

- Logo que estiver preparado, regressará. Na condição em que se encontra,
é inútil prorrogar demasiadamente sua estada no plano espiritual.
Elvira fitou o infinito por instantes, depois olhou para Jonefá e perguntou,
ainda com os olhos rasos de lágrimas:

- E será que desta vez terá sucesso?
Jonefá tomou carinhosamente as mãos da amiga entre as suas e disse,
afetuoso:

-Viverá várias experiências, sofrendo e aprendendo, até que um dia possa
aproveitar melhor sua permanência na Terra; então, iniciará o caminho de
regresso ao lar...
Elvira silenciou por mais tempo, pensativa, e enfim disse, suspirando
fundo:

-E quanto tempo isso levará? Gostaria de ajudar mais Ernesto.
- Você já o está auxiliando muito, Elvira. Veja o progresso que obteve
com sua visita... Levaria muito tempo para que ele conseguisse despertar do
torpor em que mergulhara...
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-Eu sei, meu bom amigo, mas desejo tão ardorosamente estar ao seu lado...
Sinto falta dele e gostaria de estar mais perto, apoiando-o mais. Não
seria possível ficar junto dele, Jonefá? Acompanhar seu progresso e ajudá-lo
de perto? Não poderia ser seu anjo protetor na próxima existência?

Com as mãos de Elvira seguras firmemente, Jonefá respondeu:

- Você poderá estar junto dele, mas é preciso que espere a melhor oportunidade.
No estágio atual, ele não conseguirá acatar-lhe os conselhos nem
aceitar a sua preciosa ajuda, que acabará se perdendo. E você sabe que há
muito a ser feito aqui também, pelos nossos irmãos em árduo trabalho de regeneração.
Jonefá fez longa pausa, fitou Elvira com o carinho de um pai e prosseguiu:


-Quando ele atingir uma fase de maior iluminação interior e estiver vivendo
uma encarnação em que sua ajuda seja decisiva, tenho certeza de que
você poderá acompanhá-lo. Até lá, oremos e aguardemos.

Satisfeita com as colocações do amigo, Elvira sorriu e, tomando o braço
de Jonefá, convidou:
-Quer acompanhar-me até onde estão as crianças recém-chegadas, para
ver o trabalho que está sendo desenvolvido?
-Com muita alegria.

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2ª. Parte


"A civilização egípcia -abrigando milhares

de almas provenientes do sistema de Capela —
desenvolveu-se às margens do imponente rio Nilo, repleta
de conhecimentos ignorados pelos povos primitivos da
Terra e que ainda hoje exerce fascínio e admiração

sobre o homem moderno.

Por volta de 3200 a.C. o Baixo e o Alto Egito
unificaram-se sob a condução de um só faraó, tendo
Mênfis como capital do chamado Antigo Império; seu
domínio se estendia por todo o Oriente.

Nesse idílico cenário, Ernesto renasceu
na Terra mais uma vez"

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CAPÍTULO 11

As águas do Nilo refletiam com perfeição a lua e pareciam redobrar seu
brilho, envolvendo tudo em suave claridade prateada.

Sentado à beira de elegante e extensa varanda, Amenhotep observava a
beleza da noite. O cheiro das plantações, irrigadas pelo rio e banhadas pelo
luar, dominava o ar, conferindo diferentes aromas ao ambiente. Era uma
noite quente, depois de um dia de trabalho intenso. Ele contemplava o luar
com estranha ansiedade. Olhava para as estrelas, desejando algo que não
sabia explicar. Não obstante sua respeitada posição no império, as conquistas
e vitórias que acumulara, Amenhotep, quando sozinho, sentia-se inquieto
e cansado.

Usava ornamentos incrustados com detalhes em ouro, ao redor do pescoço
e enfeitando-lhe a cabeça; vestia túnica de seda pura e prazerosamente,
de quando em quando, ajeitava a roupa alva e acariciava o adereço atado ao
pescoço. Ele apreciava o luxo e a beleza e, ao mesmo tempo em que experimentava
indefinível angústia assaltar-lhe o coração, saboreava exultante a
concretização de seus planos. Sentia-se o próprio dono do Egito.

Djoser, o grande faraó, acabara de lhe dar inteira liberdade para a execução
de almejado projeto arquitetônico: construiria a maior e mais portentosa
câmara mortuária que um faraó havia visto. Tinha certeza de que seu nome
ficaria gravado na história para sempre. Além disso, o líder do império oferecera-
lhe vasto séquito de servidores para colaborar em suas pesquisas na
área médica, autorizando-o inclusive a utilizar escravos doentes para experiências.
O que mais ele poderia ambicionar? Tinha tudo o que sempre desejara
e estava perto, agora, de ser imortalizado pelas suas grandiosas realizações.


Amenhotep se levantou e caminhou devagar. De súbito, notou que a cortina
de tecido finíssimo que ornava a saída do seu quarto para a varanda se
mexeu levemente. Uma silhueta feminina apareceu por trás da cortina. Sem
se mover, Amenhotep perguntou:

- Quem está aí?
Abrindo lentamente a cortina, Iaret surgiu, linda e sedutora. Aproximando-
se e enroscando-se em seu pescoço, disse:

- Como viu que havia alguém atrás da cortina? Não fiz nenhum barulho!
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-O que faz aqui, Iaret?

-Fiquei com saudade e vim vê-lo. Não consigo ficar longe de você, como
bem sabe. Vamos, Amenhotep, vamos ao meu quarto agora!

Afastando-a, com gentileza, ele alertou:

- Você se arrisca demais!
E sussurrando no ouvido da moça, acrescentou:
- Se ele descobrir, ambos pereceremos.
- Ele está muito ocupado agora, com outra de suas mulheres.
-Iaret, não seja cínica. Sabe que você, e ninguém mais, é a preferida do
faraó. E perigoso demais! Devemos ter mais cuidado. Tenho muitos inimigos;
e quanto a você -a favorita —, também traria grande prazer às suas rivais,
se o faraó nos descobrisse. Não, meu amor, temos de nos afastar. É
necessário.

Iaret se ergueu devagar, foi até o alpendre, observou o luar e o Nilo, com

sua vigorosa correnteza, e depois, virando-se para ele, desafiou:
-Já me usou o bastante, é isso?
Ele, ajoelhando-se aos seus pés, explicou:

- Não é nada disso, Iaret. Temo por nós; precisamos ser prudentes. Sabe
que estamos conquistando uma posição de muito destaque e isso desperta a
fúria de nossos inimigos. É necessário ter cautela. Djoser está organizando
uma longa viagem para a Palestina; quer, ele mesmo, liderar essa batalha
para dominar os inimigos. Quando ele for, boa parte de seu séquito de abutres
o acompanhará; mas eu ficarei. Estou arranjando tudo para que possa
permanecer aqui, cuidando dos interesses do grande faraó.
Na pausa que se fez, ele estreitou nos braços a bela mulher do rei do Egito;
depois prosseguiu:
-Então teremos mais condições para nos encontrar. Até lá, vamos ser
cautelosos.
Ainda contrariada, Iaret suspirou fundo e disse:

-Muito bem, senhor arquiteto, vamos aguardar que se cumpram suas
promessas. Minha ansiedade não tem fim...
-Não se arrependerá!
Ela já estava saindo, quando se virou e perguntou:
-Em que pensava quando cheguei? Estava tão distante e parecia triste...

- Triste, eu? E por que estaria? Não! Tenho quase tudo o que desejo e o
que ainda não tenho, obterei em breve! Estava pensando na construção que
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deverá começar; fazendo cálculos de tudo o que preciso para ver esse magnífico
edifício construído. Serei uma lenda, Iaret.

- Você já te tornou uma lenda, querido Amenhotep. Sem esperar resposta
a moça desapareceu pelo corredor.
Ele sorriu por suas palavras e olhando o comprido corredor e a porta do
seu quarto, para certificar-se de que ninguém os ouvira, fechou-a e retornou
à varanda. Mais uma vez admirou a lua e as estrelas, encantado com a beleza
da distribuição dos astros na abóbada celeste, e tentou imaginar o que
existiria fora da Terra, longe, nesses pequenos pontos de luz espalhados pelo
céu. Decerto haveria vida em outra parte; ele não tinha dúvida disso.

Em seguida Amenhotep se sentou, tomou nas mãos objetos que havia
criado e começou a fazer cálculos e mais cálculos. O dia estava amanhecendo
quando ele, ainda debruçado sobre a mesa, bradou:

- Descobri! Finalmente, consegui!
Levantou-se eufórico e já ia saindo do quarto quando jovem escrava
chegou, carregando um jarro com água. Ao vê-la, disse:

- Ótimo que tenha me trazido água fresca. E disso que preciso agora.
Coloque na bacia.
Imediatamente ela despejou o conteúdo do jarro na bacia de cerâmica.
Como fosse muito pesado, uma parte da água escorreu pelo chão. Ao ver o
pequeno acidente, ele gritou:

- Você não presta para nada, mesmo! Preciso me lembrar de livrar-me
de você!
Ela se pôs a chorar, apavorada. Mas ele disse, enquanto a escrava enxugava
o rosto e saía:

- Sua sorte é que estou muito feliz hoje! Nada me incomodará!
Caminhou alegre pelos corredores do palácio que levavam até Djoser.
Ao aproximar-se da porta dos cômodos reais, as sentinelas lhe barraram a
entrada. Ele pediu:

- Digam ao faraó que Amenhotep quer vê-lo. Tenho boas notícias.
Do fundo do corredor, o sumo-sacerdote apareceu e, desdenhoso, perguntou:


- O que inventou desta vez? Traz mais um de seus planos fantasiosos
que são desperdício de riquezas e de tempo do nosso bem-amado Djoser?
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-Não é nada com que precise se preocupar, Rudamon. Estou fora de
seus domínios. Meus interesses não se opõem aos seus, são de outra natureza.
Com sorriso irônico, o sacerdote respondeu apenas:

- Você está sempre no meu caminho. Estou farto disso!
-Não entendo seu desprezo! Poderíamos trabalhar juntos e ninguém nos
deteria - Amenhotep insistiu.
-O faraó não poderá recebê-lo hoje. Está muito ocupado organizando a
próxima viagem. O Egito está em guerra, você sabe. Ou não sabe?

- Quem poderia ignorar? Nossas fronteiras se alargam dia a dia!
- Não graças a aventureiros como você. Agora vá embora. O faraó está
ocupado, tem muito trabalho a fazer.
Rudamon ia prosseguir, quando foi interrompido pelo próprio Djoser,
que, ouvindo o barulho à porta, reconheceu as vozes e veio até os seus mais
fiéis servidores:

-Amenhotep! Entre! Venha, Rudamon, você também. Conversemos em
meus aposentos.
-Se me permitir, senhor, tenho deveres a cumprir. Não quero perder
meu tempo com amenidades!
- Pois bem, Rudamon. Pode ir. Vamos, Amenhotep, entre. O que deseja
falar-me?
-Eu consegui! Fiz alguns cálculos pela posição das estrelas, que venho
acompanhando há alguns anos, e cheguei à conclusão de que posso prever
as enchentes das margens do Nilo; quanto elas deverão avançar na próxima
estação das cheias. Isso nos poderá ajudar no planejamento da produção
agrícola para o abastecimento das cidades e para o comércio.

-Vamos saber antecipadamente quanto as águas subirão?

- Quando e quanto. E, com base nisso, poderemos calcular a produção
agrícola.
-Extraordinário, Amenhotep. Você me surpreende sempre! Não sabia
que também sabia ler as estrelas.
Dobrando o corpo em reverência, Amenhotep respondeu:

-Estou aqui para servi-lo, faraó.
- E eu estou satisfeito com seus serviços. Pretendo trazer mais escravos
em minha viagem. Assim poderá começar a construir imediatamente meu
templo mortuário. Minha passagem para o mundo dos mortos.
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-Fico muito feliz em poder servi-lo.

Sentando-se e tomando nas mãos um papiro, o faraó escreveu nele algumas
letras. Depois, chamou um dos guardas e ordenou:

-Leve imediatamente ao meu sumo-sacerdote. E, virando-se para Amenhotep,
disse:

-Vou nomeá-lo meu ministro-chefe. Assim, poderá cuidar do Egito enquanto
expando as fronteiras do meu reino.

Amenhotep quase não podia disfarçar seu contentamento, mas conteve-
se, mostrando o ar grave que o momento exigia.

Em alguns segundos, Rudamon entrou na câmara real, visivelmente contrariado.
Djoser ordenou:

- Organize a solenidade. Vou nomear Amenhotep meu ministro-chefe.
- Não acha uma decisão um tanto precipitada, senhor? Não tivemos muito
tempo para discutir o assunto.
-Rudamon, todos admiram Amenhotep. Ele é de longe um dos mais inteligentes
homens do meu reino. O que mais precisamos conversar? Organize
a solenidade. Quero oficializar minha decisão amanhã pela manhã.
Rudamon assentiu com a cabeça e retirou-se, calado. Amenhotep aproximou-
se do faraó e disse:
-Acho que ele realmente não gosta de mim.

- Não se impressione. Rudamon serve fielmente ao Egito há muitos anos.
Confio extremamente nele. Contudo, já é um ancião e, às vezes, cauteloso
em demasia. Agora, vamos, me explique melhor o cálculo das estrelas.
Amenhotep sentou-se ao lado do faraó e passou a detalhar os cálculos
que havia feito.

CAPÍTULO 12

Quando recebeu a notícia de que Djoser escolhera Amenhotep como
ministro-chefe, Iaret gritou de alegria. Estava cada vez mais perto dele e
isso lhe agradava profundamente.

Amenhotep retornou ao seu quarto satisfeito e surpreso. Não imaginara
que em tão pouco tempo atingiria tamanho prestígio no topo do poder no
Egito. Ele se esforçara para que isso acontecesse. Usara toda a sua capaci


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dade intelectual e toda a sua astúcia para colocar-se no lugar que agora ocupava,
mas custava a acreditar que conquistara tudo tão depressa.

Ainda estava perdido em pensamentos, sentado em sua agradável varanda,
quando sentiu braços delicados a envolvê-lo. Levantou-se assustado e,
ao ver que era Iaret quem o abraçava, afastou-a irritado:

- Iaret, eu já disse que devemos ter cautela. O que há com você, afinal?
- Vim apenas parabenizá-lo, meu amor.
-Você tem de ir embora. Se alguém nos vê, estaremos os dois condenados,
sabe muito bem disso...
-Não tinha tanto medo quando me seduziu e invadiu meu quarto pela
primeira vez, querido!

-Meu amor, eu a quero com todas as minhas forças, e tanto, que não
posso permitir que arrisque nosso futuro. Por favor, agora vá!
Iaret, insistente, agarrou-se ao pescoço dele e o beijou com ardor. Amenhotep
não pôde resistir àquele arroubo e entregou-se ao beijo apaixonado.
Os dois perderam-se no tempo e no espaço e tão entregues estavam à emoção
avassaladora que não ouviram a porta do quarto se abrir.

Quando os viu, Nitetis espantou-se e esbarrou em pesada jarra que ficava
no corredor, junto do amplo quarto, derrubando-a. Ao escutar o estrondoso
barulho, Amenhotep afastou-se de Iaret, apavorado. Deparando com a
irmã, ele gritou:

- O que faz aqui, Nitetis? Você me assustou!
-Perdoe-me, Amenhotep, mas papai não está passando bem. Vim procurá-
lo porque seu estado de saúde piorou; ele precisa de você. Creio que somente
com sua ajuda poderá melhorar. Por favor, venha comigo. Temos de
fazer alguma coisa...

-Não posso ir agora, não hoje. E impossível.
- Mas ele está piorando muito, meu irmão. Não teme que não possa ser
salvo?
-Creio que os deuses têm o controle da situação, minha irmã.
E olhando-a detidamente, disse:
- Você está diferente. O que aconteceu? Ela sorriu e respondeu:
-Eu cresci, meu irmão. Faz tempo que não nos vemos. Por favor, Amenhotep,
precisamos de você. Venha comigo, papai nos aguarda.
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- Não se preocupe, Nitetis. Vou entregar-lhe um remédio que fiz e você
o leva ao nosso pai. Farei também uma oferenda a Anúbis pela melhora dele;
e assim que resolver tudo por aqui, vou ao encontro de vocês.
Ela tentou argumentar: -Mas...

- Hoje é impossível. Receberei amanhã das mãos de Djoser a nomeação
para a função de ministro-chefe do Egito. E tudo com que sempre sonhei,
Nitetis. Não posso me ausentar agora e correr o risco de que algum inimigo
tente se opor e consiga influenciar o faraó. Assim que tudo estiver oficializado,
irei ver nosso pai.
Nitetis o fitou com tristeza. Levantou-se, conformada:

- Está bem. Levo o remédio e espero que venha o mais breve possível.
Precisa ajudar a organizar o trabalho em nossa fazenda. Papai já está sem
forças para distribuir os afazeres e eu não consigo fazer isso sozinha.
Amenhotep trouxe um frasco com o remédio que preparara e o colocou
nas mãos de Nitetis, dizendo:
-Agora vá e não conte nada a ninguém sobre o que viu aqui hoje. Está
me entendendo, Nitetis?
Ela sorriu docemente ao falar:

- Sabe que eu o amo profundamente, não é, meu irmão? Jamais faria
qualquer coisa que pudesse prejudicá-lo.
Cheio de ternura por aquela jovem atraente em que sua irmã se tornara,
ele abraçou-a amoroso e disse:

- Que Anúbis a acompanhe e ajude nosso pai até que eu os encontre.
Retribuindo o olhar carinhoso do irmão, ela respondeu:
- Que Anúbis nos acompanhe, Amenhotep.
E retirou-se do quarto, cumprimentando com a cabeça Iaret, que se mantivera
calada.
Logo que a jovem saiu, Iaret disse, enciumada:
-Bonita, sua irmã. É irmã realmente?

- Iaret, agora que percebeu o risco que estamos correndo, quer, por favor,
ir embora? Aviso-a quando tudo se acalmar.
Levando a esposa do faraó até a porta, Amenhotep repetiu:
-Vá, por favor!
-Você não me leva a sério. Deveria tomar mais cuidado comigo...
Dizendo isso, soltou-se das mãos dele e saiu correndo pelo corredor. E


le, parado à porta de seu quarto, mais uma vez examinou os dois lados do

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corredor para certificar-se de que estava só; depois entrou e trancou a porta
por dentro. Não notou que atrás de uma das pilastras, no final do corredor,
uma figura encapuzada observava atentamente o movimento em seu quarto.

O dia amanheceu fulgurante. Assim que os primeiros raios de sol surgiram
no horizonte, Amenhotep levantou-se e se preparou para o importante
momento que o aguardava. Relembrou rapidamente os anos de trabalho duro
no campo, ajudando o pai; o esforço para convencê-lo a deixá-lo ir para o
palácio, comparecer diante do faraó e apresentar-lhe seus conhecimentos e
sua capacidade.

Ele não tivera grandes oportunidades de estudo, mas as parcas informações
a que tivera acesso pareciam multiplicar-se dentro dele. Amenhotep era
um homem brilhante: inteligente, conhecedor de medicina, astrologia e arquitetura.
Ainda muito criança, já modelava palácios e construções com o
barro do Nilo. Depois, orientado por um mestre contratado pelo pai, Tanutamun
-que bem cedo percebera que o filho era especial -, absorveu os ensinamentos
e ofereceu soluções para alguns problemas com raciocínio espantoso.
Ele era um gênio. Tanutamun tentara demovê-lo da idéia de viver no
palácio. Temia que o ambiente do poder fosse prejudicial a Amenhotep,
influenciando-o negativamente. No entanto, a mãe o apoiou e ele partiu. Os
outros irmãos continuaram o trabalho na fazenda e mais tarde nasceu Nitetis,
a única mulher entre os filhos da família, enchendo de luz aquele lar.

Ela era meiga e doce, alegre e iluminada. Tanutamun a amava profundamente.


Amenhotep sorriu ao lembrar-se de como a irmã estava crescida e bela.
Ajoelhado frente ao seu altar, ele se preparou pedindo ajuda aos deuses de
sua devoção e especialmente a Anúbis. Em seguida, dirigiu-se ao salão principal
onde assumiria o cargo de ministro-chefe, o mais alto do Egito, depois
do faraó. Dividiria o poder apenas com o sumo-sacerdote, Rudamon.

A cerimônia estava para começar. O faraó já ocupava o trono real ao lado
da esposa predileta, Iaret. O salão estava repleto de admiradores e também
de inimigos. Ao ver o salão lotado, Amenhotep ergueu a cabeça, estufou
o peito e caminhou vitorioso pelo corredor, cumprimentando a todos
com ligeiro sorriso.

Ao cruzar com Rudamon, pôde sentir o ódio em seus olhos e ouviu-o
murmurar:

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-Aproveite o momento, sua glória será efêmera. Ligeiramente perturbado,
Amenhotep logo recobrou o

controle e seguiu triunfante até o trono do faraó. Iaret estava especialmente
bela naquela manhã e ele mal conseguia desviar o olhar dos olhos
dela.

Djoser o designou ministro-chefe do Egito, assegurando-lhe plenos poderes
até que regressasse de sua viagem. A seguir, comunicou a todos:

- Estarei ausente por tempo indeterminado. Assim que obtiver o controle
das primeiras cidades, enviarei os escravos para que Amenhotep dê início
imediato à construção de minha fabulosa câmara mortuária. Será a mais
espetacular de que se terá notícia em todo o Egito. Quando voltar, Amenhotep,
desejo que ela esteja pronta.
-Encarregar-me-ei pessoalmente da supervisão, senhor.
Tomando as mãos de Iaret e beijando-as enquanto dirigia o olhar para as
demais esposas, Djoser disse:

-Ótimo. Quero comunicar a todos que, desta vez, farei algo diferente.
Levarei Iaret comigo, para que minhas noites não sejam tão solitárias.
A jovem mal disfarçou a decepção e a frustração que a dominaram. Amenhotep,
igualmente, buscou fixar o olhar em Djoser, desviando-o quanto
pôde da cobiçada Iaret. O faraó encerrou a solenidade:

- Conto com o apoio de vocês, fiéis servidores, para que minhas conquistas
sejam de fato valiosas. Deixo aos seus cuidados o mais precioso dos
tesouros: o Egito. Que Aton-Ra esteja com todos. Partiremos imediatamente.
Djoser ergueu-se e estendendo a mão esquerda para Iaret, que também
se levantou, saiu com a esposa, direto para seus aposentos. A jovem sentia o
coração bater descompassado e a face se lhe fizera rubra. Djoser percebeu
sua reação e deduziu tratar-se da alegria de poder viajar em sua companhia.

Amenhotep, juntamente com os demais, permaneceu em posição de reverência
até o faraó deixar o salão de cerimônias. No instante em que o monarca
desapareceu no corredor ele tentou sair, porém foi circundado por
muitos dos presentes que faziam questão de cumprimentar o novo ministro-
chefe. Os ministros se aproximaram e comunicaram ao novo chefe que tinham
muito que conversar e muitas medidas a tomar. Amenhotep seguiu
com eles para sua primeira reunião, sob o olhar sinistro de Rudamon.

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CAPÍTULO 13

Nitetis chegou à pequena propriedade da família e foi diretamente para
casa à procura do pai. Pegou com cuidado o pequeno frasco que o irmão lhe
dera e, embrulhando-o em um tecido de linho puro, levou-o junto ao peito
até Tanutamun.

Deixara uma amiga da família, ex-escrava, tomando conta dos irmãos
mais velhos e do pai, pois todos haviam sido contrários a que ela pedisse a
ajuda a Amenhotep. Ao entrar em casa, cruzou com Raquel, que preparava a
refeição. Buscando alguma esperança nos olhos da amiga, Nitetis perguntou:


-Como ele está, Raquel, alguma melhora?

Limpando as mãos para achegar-se mais a Nitetis, ela respondeu:

- Por infelicidade, está absolutamente igual a quando você partiu, dois
dias atrás. E você, traz boas notícias? Amenhotep virá em breve ver Tanutamun?
Como foi o encontro com ele, Nitetis?
A jovem sentou-se e suspirou fundo, desenrolando lentamente o precioso
pacote que trazia nas mãos; quando tinha o frasco todo à vista, disse:
-Trouxe este remédio que Amenhotep preparou. Ele não pôde vir, embora
eu tenha insistido muito.

- Eu sabia, Nitetis. Seus irmãos tinham razão, a viagem foi em vão!
- Eu pensei que pudesse convencê-lo a me acompanhar. Sei que Amenhotep
ama o nosso pai!
- Só que agora ele é poderoso demais, ocupado demais para dar atenção
a questões domésticas, não é verdade?
- Não é bem assim, Raquel. Realmente ele tornou-se alguém muito importante.
Ontem o faraó o nomeou ministro-chefe do Egito.
- Ministro-chefe?
- Sim, a mais alta posição, depois do faraó.
-Agora é que ele não virá mesmo!
- Ele me prometeu que virá, Raquel. Pediu-me apenas alguns dias para
se adaptar na nova posição, e então virá. Ele fez um remédio para o pai; isso
não prova seu interesse?
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A jovem argumentava com os olhos marejados, a ponto de desabar em
pranto. Raquel abraçou-a com ternura:

- Meiga Nitetis, não fique assim. Quem sabe eu e seus irmãos não estamos
enganados? Quem sabe se não está mesmo certa e ele virá em breve,
tratar seu pai? Vamos esperar que isso aconteça!
Nitetis esboçou ligeiro sorriso e falou, levantando-se:

- Com certeza ele virá. Agora quero ver meu pai. Apertando o frasco nas
mãos, Nitetis caminhou até o quarto onde Tanutamun repousava. Abriu a
fina cortina que circundava o leito do pai e se aproximou dele, que, ao vê-la,
fez um esforço para sentar-se:
- Nitetis, minha filha, que bom que voltou! Venha cá, dê-me um abraço.
Senti muito sua falta, minha doce Nitetis.

Correndo e enlaçando-se nos braços do pai, ela disse:

-Também senti sua falta, mas foram somente dois dias, papai! Fiz uma
boa viagem e olhe o que trouxe: um remédio que Amenhotep preparou especialmente
para você.

Com cuidado para evitar nova crise de tosse, Tanutamun ajeitou-se para
abraçar melhor a filha. Ainda enlaçando-a, olhou para o remédio e perguntou:


- Como está seu irmão, Nitetis?
-Ele está bem, papai.
-Continua bonito?
-Mais lindo do que nunca!
-Que bom! Eu sabia que seria um homem muito bonito! Prolongado silêncio
se fez entre eles. Foi Nitetis quem o quebrou:

-Vamos, papai, tome o remédio agora mesmo. Precisa ficar bom logo.
Temos muito trabalho, e meus irmãos não conseguem fazer nada sem você.

Tanutamun sorriu, fixando o olhar na bela jovem que lhe oferecia o remédio.
Observou atentamente os traços suaves de Nitetis, lembrando-se da
esposa, Bint-Anath. A filha não se parecia exatamente com ela, mas tinha o
mesmo olhar cheio de bondade e os mesmos gestos carinhosos. Os longos
cabelos lisos e negros lhe desciam pelos ombros, enfeitando-lhe o rosto, que
a quase ausência de ornamentos no colo delicado tornava cada dia mais admirável.


Ele sentiu imensa ternura pela filha. Ela enchera aquela casa de luz e de
amor. Jamais conhecera alguém como ela. Nitetis era especial. Parecia com


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preender cada um ao seu redor e buscava, incessantemente, a harmonia e o
bem-estar de todos; não só da família, como dos amigos, e até daqueles que
nem conhecia. Fora Nitetis que lutara pela libertação de Raquel. Fizera muitas
viagens para convencer o irmão a lhe dar a liberdade. Amenhotep trouxera
Raquel ainda jovem para servir na casa dos pais. Fora sua última visita
à família, já fazia mais de seis anos. A princípio ele relutara, pois não admitia
libertar qualquer escravo. Mas Nitetis tinha seu jeito peculiar e acabara
convencendo o irmão. Uma vez livre, ao invés de retornar à Palestina, Raquel
preferiu continuar com eles no Egito.

Os irmãos mais velhos não compreendiam Nitetis. Apesar da distância e
da indiferença de Amenhotep para com a família, era ele quem a entendia
melhor. Tanutamun estava absorto em seus pensamentos quando sentiu a
filha tocar-lhe o ombro:

- Vamos, pai, tome o remédio, vai lhe fazer bem. Sem responder, ele obedeceu
e deitou-se de novo.
- Sinto-me cansado...
-Descanse. Eu não deveria ter deixado que se levantasse e se movimentasse.
Precisa repousar.

Ela já ia saindo, quando o pai a chamou:

-Filha...

-O que é?

-Obrigado por ter ido até seu irmão. Saiba que aprecio muito seus esfor


ços...
Ela interrompeu-o, colocando o dedo em seus lábios, e pediu:

- Não faça mais nenhum esforço, pai. Precisa descansar. Deite-se, vamos.
Ajudando-o a se acomodar, ela finalizou:
- Agora durma, descanse. Sei que em breve estará muito melhor.
Tanutamun fechou os olhos e balançou a cabeça concordando.
A jovem saiu do quarto e, ao ver-se longe do pai, no jardim da casa, caiu
em pranto doloroso. Raquel a viu e, correndo ao seu encontro, perguntou:

- O que foi, Nitetis? O que houve?
-Ele está piorando, Raquel, posso sentir.
-Não, acho que está do mesmo jeito, nem melhor, nem pior.
- Está piorando. Sinto suas forças vitais diminuindo.
-Suas o quê?
-Forças vitais.
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-O que é isso?

-As forças que fazem com que vivamos. Essas forças estão acabando.
Por alguma razão, ele vai nos deixando aos poucos.

Limpando as lágrimas que insistiam em banhar-lhe a face, ela continuou:


-O remédio não vai resolver nada, eu sinto isso.

-Não fale assim, tem de haver alguma esperança! Vou pedir ao meu
Deus por seu pai. Meu Deus é poderoso e forte. Ele vai ajudá-lo!

-O chefe de todos os seus deuses?

-Não, Nitetis, o único Deus que existe.

-O único Deus?

-Sim. Você sabe que meu povo acredita em Jeová, que é o único e verdadeiro
Deus.

-Você já me falou dele. E sabe de uma coisa, Raquel? Eu acredito nisso:
que só existe um Deus, dono de tudo, criador de tudo!

-É mesmo?

-Sei que só existe um Deus, que cuida de todos nós. Portanto, o seu
Deus deve ser o mesmo que cuida de meu povo.
Surpresa e sem saber o que responder, Raquel disse:

- Então vamos pedir ao Deus verdadeiro por seu pai. Ele vai nos escutar!
As duas se ajoelharam ali mesmo, no meio do jardim, e Raquel elevou
aos céus sentida prece. Ela não compreendia bem seus sentimentos, mas
gostava demais de Nitetis e de seu pai. Quando se vira livre do cativeiro em
que vivera nos últimos quinze anos, não tivera coragem para deixá-los. Algo
a prendia a eles.

Ainda estavam de joelhos quando os três irmãos de Nitetis -luseneb, Ineni
e Ikeni - chegaram, ruidosos. Ouvindo-os, Raquel se levantou depressa,
seguida por Nitetis. Mas eles perceberam sua rápida movimentação e foi
Iuseneb, o mais velho, quem perguntou:

- O que as duas faziam?
- Orávamos ao Deus todo-poderoso - respondeu Nitetis, sem hesitar.
- Deus todo-poderoso? Sei. Pedia que seu irmãozinho querido voltasse
para casa?
-Não. Pedíamos pela saúde de nosso pai.
66



- Desista, Nitetis. Ele não vai melhorar. Está velho demais. A hora de
cruzar o grande vale está chegando. Ele irá juntar-se em breve aos nossos
ancestrais. Não há o que ser feito.
-Não fale assim!

- Não foi o que lhe disse o velho e bom Amenhotep?
- Não! Ele virá logo ver nosso pai. Deu-me até um remédio para ajudá-
lo enquanto ele não chega.
-Como você é tola, Nitetis. Amenhotep não virá. Recebemos
notícias de que ele foi escolhido pelo faraó para ser o ministro-chefe. Tem
idéia do poder e da influência que estão agora depositados nas mãos de Amenhotep?
Ele não virá. Tem muitas coisas para fazer, muito para cuidar.
Tem o Egito em suas mãos. Acha que irá se preocupar com o velho pai moribundo?
-Você não tem coração, Iuseneb!

- Ele não virá porque não se importa com ninguém além dele próprio.
Foi isso que quis desde o princípio. Está agora onde sempre desejou estar.
Não ama ninguém, a não ser ele mesmo. É ele que não tem coração, e não
eu. Mas parece que isso você não enxerga. Nunca quis enxergar. Vive preocupada
com o irmãozinho Amenhotep...
Nitetis afastou-se correndo dos irmãos, na direção da plantação, à beira
do Nilo. Raquel fitou Iuseneb e censurou:

-Por que faz isso com ela? É apenas uma criança.

Erguendo a cabeça e medindo Raquel de alto a baixo, ele entrou na casa

sem dizer nada.

CAPÍTULO 14


67



Depois da partida do faraó, Amenhotep, satisfeito pela posição alcançada,
embora frustrado pela súbita ausência de Iaret, entregou-se completamente
ao trabalho. Gastava horas debruçado sobre o projeto arquitetônico da
câmara mortuária de Djoser, pensando e repensando cada detalhe da construção.


Os seus dias eram ocupados ainda pelos difíceis problemas a serem solucionados
junto aos ministros. Pouco tempo lhe sobrava para qualquer outra
atividade. Os reduzidos momentos livres dedicava a cultuar as divindades
que adorava.

Seus conhecimentos rapidamente se tornaram respeitados por todos os
ministros do reino; Amenhotep conquistou-lhes a reverência e a admiração.
Entretanto, Rudamon mantinha-se à espreita, aproveitando todas as oportunidades
para questioná-lo e diminuir-lhe os atributos e qualidades.

Em frente às primeiras pedras que iriam ser depositadas na ansiada construção,
Rudamon levantava e abaixava os braços, e alçava a voz em súplica:

- Oh! Grande e poderosa Isis! Proteja e conduza a construção da tumba
de Djoser! Proteja a tumba do faraó, desde agora e para sempre!
Ajoelhou-se apoiado em seu cajado, que na ponta trazia a imagem da
respeitada deusa guardiã de túmulos e urnas mortuárias. De joelhos permaneceu
longo tempo, até ouvir a batida dura de soldados a aproximar-se do
local onde se ergueria aquela obra monumental que passaria para a história
do Egito.

Pôs-se em pé e olhou a movimentada chegada dos soldados. Diante da
expressão reprovadora do sacerdote, o oficial se aproximou e disse:

-Perdoe-nos interromper seu culto, grande Rudamon. Acabamos de
chegar da Palestina e trouxemos escravos que o faraó ordenou fossem enviados
para a construção do túmulo.
- Todos os escravos passam por minha supervisão e são por mim destinados
ao trabalho que deverão assumir.
E olhando em redor, o sacerdote continuou:

- Trazem, por alto, mais de 2 mil escravos. São muitos. Quero uma centena
deles para outras finalidades.
O oficial, mantendo o corpo ereto e os olhos baixos, sem fitar diretamente
Rudamon, afirmou:

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- São precisamente 2 256 escravos, entre homens e mulheres, e o faraó
nos ordenou que fossem encaminhados ao ministro-chefe, para que definisse
o destino dos mesmos.
Rudamon bateu o cajado com toda a força no chão, retrucando indignado:
-Maldito seja! Como ousa discutir minhas ordens? O oficial, tremendo,
respondeu:

- Senhor, estamos obedecendo às ordens do faraó.
Sem dizer palavra, Rudamon afundou seu cajado no solo arenoso, fixando
o soldado sem piscar. Este, tomado de súbita dor no peito, caiu no chão e
começou a gritar, pedindo socorro. Assustados, os demais não ousaram aproximar-
se enquanto o soldado gritava desesperado, até, poucos minutos
depois, desfalecer completamente. Ao ver o pobre soldado estirado, sem
vida, Rudamon arrancou o bordão do solo e acercou-se lentamente do homem.
Olhou-o sem clemência e disse:

-Na próxima vida, aprenda a respeitar o representante deRa!
Depois se voltou para os outros soldados, que de olhos arregalados e
sem ação testemunhavam os acontecimentos. Rudamon, então, determinou:

- Levem os escravos e tranquem-nos até que eu decida o que será feito
deles.
Nesse momento, Amenhotep surgiu em companhia de seus guardas pessoais
e contestou:

- Os escravos ficam, Rudamon. O faraó deseja ver seu templo mortuário
construído e vamos começar já! Preciso de todos os escravos, além daqueles
que já foram destinados para esse fim. E não serão suficientes. O faraó promete
enviar mais, assim que avançar sobre o seu território.
- É insolente, Amenhotep!
-Não tenho tempo a perder, Rudamon.
Chegando mais perto de Amenhotep, o sacerdote disse:
- Se quer tantos trabalhadores, por que liberta escravos pessoais, domésticos?
-Se está se referindo à mulher que trabalha para meu pai, desista! Ele é
um velho cansado e doente e precisa da mulher para cuidar dele. Pediu-me
que a libertasse e eu não quis entregar-me a atritos com um homem daquela
idade. Afinal, o que deseja, Rudamon?

69



-Repito, mancebo, você é insolente demais! Para que tantos escravos? O
poder lhe subiu à cabeça muito depressa!

E, fincando o cajado no solo, passou a fitar Amenhotep, raivoso.

O rapaz, tranqüilo, sustentou-lhe o olhar e aproximou-se dele. Pôs as
mãos sobre as de Rudamon e, com esforço, arrancou o cajado da areia e
depois das mãos do sacerdote, lançando-o longe:

-Basta de ameaças que não têm razão nem fundamento. Se tiver algo
contra mim, diga logo! Não tenho medo de você, Rudamon.

Caminhando vagaroso em direção ao cajado, Rudamon abaixou-se, tomou-
o nas mãos e limpou-o cuidadosamente. Depois, virou-se para Amenhotep
e disse:

- Eu o amaldiçôo até sua quinta geração! Seus dias estão contados!
Sem prestar atenção às reações de Rudamon, Amenhotep ordenou:
-Vamos, acomodem os escravos que amanhã começarão o trabalho. E
vocês, levem este infeliz daqui e o enterrem dignamente. Ao menos cruzou
as portas da morte servindo ao faraó.
Virando-se para alguns jovens que, assustados, mantinham-se ao seu lado,
continuou:
-Tenho definido cada detalhe da construção. Vocês não terão problema
algum e eu acompanharei, sempre que puder, as etapas da obra.
E olhando com desdém para o sacerdote, que se afastava, aduziu:

- O importante é que a construção comece e não seja mais interrompida,
por ninguém, a não ser o próprio faraó! Vocês me entendem?
-Sim, senhor. Conte conosco.

- Ótimo. Assim está bem melhor.
Rudamon seguiu para o templo, enfurecido. Entrou em sua câmara e, ajoelhado
diante de muitas imagens, amaldiçoou:
-Para cada pedra que ele colocar no edifício, uma chaga se abrirá em seu
corpo! Ao final da construção, ele morrerá!
E pôs-se a abrir diversos papiros e a fazer várias anotações. De quando
em quando, levantava a cabeça e se lembrava do ministro-chefe, lançando
odiosos pensamentos em direção a ele, que a distância, sem perceber, os
recebia em sua aura.

Amenhotep prosseguiu o trabalho, incessante, sem ao menos recordar a
família e sua casa, onde os dias transcorriam sem novidades.

70



Nitetis, ansiosa, esperava a chegada do irmão, enquanto piorava o estado
de saúde de Tanutamun. Passaram-se semanas. Naquela tarde, o pai chamou-
a:

-Peça a um de seus irmãos que me leve até o jardim.

- Não pode, papai, assim vai piorar. Afagando-lhe os cabelos sedosos,
ele disse:

-Querida, não há como ficar pior do que já estou.

Ela baixou os olhos, tentando controlar as lágrimas que neles assoma


vam. Tanutamun ergueu seu rosto suavemente e falou:

- Nitetis, minha filha, não vê que estou morrendo?
-Não, papai, não é verdade!
- Filha, não fique triste, morrer não é ruim, e continuamos a viver em
outra dimensão. A vida sempre continua.

Ela calou-se, pensativa. O pai insistiu:

-Quero ver o sol, senti-lo tocando minha pele. Quero que Aton-Ra me

envolva antes que eu vá cruzar o grande vale.
Assentindo com a cabeça, ela disse:

- Vou ver quem está por perto para levá-lo.
-Qualquer um deles, menos seu irmão mais velho.
- Tudo bem, papai.
Em alguns segundos, Ineni, Nitetis e o pai estavam no belo jardim da casa.
A tarde era esplendorosa e o sol iluminava o jardim inteiro. Sentados sob
os galhos de uma árvore frondosa, protegiam-se do sol direto. Ineni acomodou
o pai e perguntou:

-De que mais precisa? Tenho de voltar ao trabalho.
-Vá, meu filho, não se preocupe comigo. Quando retornarem me levam
para dentro.

- Não vai se cansar demais, pai? - o jovem insistiu.
-Não é possível ficar mais cansado do que já estou.
-Pois bem, se precisar de alguma coisa, Nitetis sabe onde me encontrar.
- Obrigado, meu filho.
Ineni afastou-se rápido e Nitetis ajeitou-se perto do pai, que fitou o céu
luminoso e sorriu, satisfeito.

Nitetis acariciou-lhe as mãos cansadas e comentou:

-Ra lhe faz bem, pai. Há tempo não o vejo sorrir assim. Ele tomou-lhe as

mãos entre as suas e disse:

71



-Há muito tenho saudade do lar, minha filha. Estou cansado e quero regressar.


-Para o vale dos mortos, pai?

-Não, Nitetis. Para o nosso verdadeiro lar. Quando olho as estrelas e o
céu iluminado por elas, sinto enorme saudade. Sei que em algum lugar está
meu lar. E é para lá que desejo voltar.
Sem titubear, a jovem abraçou-o com desvelado carinho e disse:
-Sim, pai, sei que sente saudade de seu verdadeiro lar. Mas em breve estará
unido àqueles que mais ama...

- De quem está falando? De sua mãe?
-Não só dela, mas dos outros que deixou para trás ao partir.
- A que se refere, minha filha? Eu lhe falei de algo impreciso que sinto
dentro de mim, e você me fala de algo tão preciso...
-Seu coração é grandioso, papai. Por certo há muitos que o antecederam
e que o esperam com amor.
Tanutamun continuou a fitar a filha, sem entender claramente o sentido
de suas afirmações. Depois a abraçou e sorriu, dizendo:

- Sempre com suas frases misteriosas... Deveria ser sacerdotisa, Nitetis.
Você sabe dos segredos do Universo mais do que qualquer um que eu tenha
conhecido. É na realidade uma enviada de Ísis.
- E você, papai, é uma das almas mais generosas que já conheci. Tem o
coração em paz?
- Só Amenhotep me preocupa. Devo ter falhado com ele.
- Sabe que não é verdade, pai. Fez o melhor que podia por ele também.
-Mas não foi suficiente...
- Ouvindo aquelas palavras, Nitetis ergueu-se, com o coração opresso e
angustiado, como se elas lhe trouxessem triste lembrança. Virou-se para o
pai e perguntou:
- Quer um pouco de refresco?
- Não, minha filha. Venha, sente-se aqui, ao meu lado. Ela tornou a sentar-
se, ainda angustiada. O pai abraçou-a ternamente e disse:
- Você me fez muito feliz, filha. Só me trouxe alegrias. Tenho orgulho
de ser seu pai.
Ela sorriu, sem responder, e Tanutamun prosseguiu:

- Sempre amei todos os meus filhos igualmente, e os tratei com o mesmo
carinho e respeito.
72



-Sei disso, pai.
Como se relembrasse o passado, ele emendou:
- Mas com Amenhotep nada funcionou. Usei tudo o que sabia para ajudá-
lo a compreender o que realmente tem valor na vida, e ele ignorou tudo o
que lhe ensinei. Não vejo sequer vestígios de nossos valores na vida de seu
irmão. Isso é o que mais me desgosta. Sempre soube que ele seria grande no
Egito.
Desde pequeno revelava uma inteligência fora do comum e algumas de
suas habilidades me assustavam; matava os animais que o incomodavam, só
de olhar para eles. Por causa disso, redobrei minha atenção sobre ele. Contudo,
mesmo assim, Amenhotep partiu e esqueceu de tudo o que lhe ensinei.
Ele fez uma pausa e a jovem considerou:

-Você fez tudo o que podia, pai, não fique triste. Um dia ele compreenderá!


- Não sei, Nitetis. O coração dele fica cada vez mais endurecido. Sinto
isso. Deveria usar tudo o que sabe para ajudar o povo do Egito, para promover
o bem entre a população, e o que faz? Só pensa em si mesmo, em autopromoção.
Quantas oportunidades já teve de utilizar seus conhecimentos
para o bem geral? E nunca o fez!
-Por mais que isso o aflija, peço que fique tranqüilo, pois eu sempre estarei
perto de Amenhotep, a lembrá-lo de seus deveres e responsabilidades!

- Como, Nitetis, se ele nem nos visita?
-Não sei ao certo, pai, porém algo me diz que ficarei muito próxima dele.


-Mais uma vez, você com seus segredos...

Tanutamun começou a tossir sem parar, e a crise se intensificou. Assustada,
sem afastar-se do pai, Nitetis gritou por Raquel, que acudiu correndo.
Quando as duas tentaram carregá-lo, Tanutamun tossiu mais e mais; não
conseguiam movê-lo.

Depois de alguns minutos, tendo a crise cedido ligeiramente, Nitetis
procurou erguê-lo outra vez. Ele fez sinal para que parasse e alçou o olhar
para o sol. Quis falar algo, mas foi impossível. Nova crise o assaltou e então
ele, sem forças, caiu ao chão. Após ameaças de tosse que lhe morriam na
garganta, fitou o sol uma vez mais e se imobilizou.

Nitetis inclinou-se sobre seu peito e auscultou-lhe o coração. Ao levantar
o rosto, grossas lágrimas desciam-lhe pela face rubra. Ela, ajoelhada,

73



-Que Deus o abençoe, papai.
seguiu com os olhos a direção do olhar do pai e tentou mirar o sol. Sem conseguir,
fechou-lhe os olhos com delicadeza, depois disse para Raquel:

- Ele partiu para a grande viagem.
Raquel, que também chorava, disse:
-Que Deus todo-poderoso o abençoe.
E Nitetis, segurando as mãos de Raquel, repetiu:
CAPÍTULO 15

Sentado à mesa de trabalho, Amenhotep meditava, examinando a planta
do monumento em construção. Olhava detidamente os detalhes da entrada
da câmara mortuária que se erguia lentamente do chão. Queria ter certeza de
que aquele templo dedicado a Djoser fosse perfeito.

Verificando os pormenores da saudação a Isis que desejava gravar no
corredor principal de entrada, pensava em qual artesão seria o mais indicado
para receber incumbência de tal envergadura. A quem daria a honra de pintar
as paredes da entrada da tumba? - conjeturava. Conhecia diversos artistas,
mas queria que a pintura tivesse beleza ímpar, bem como estilo diferenciado,
superior ao de todos os artesãos que conhecia. Levantou-se e caminhou
até a varanda. Observou a abóbada celeste, cravada de estrelas, que ele
tanto admirava, e deixou o pensamento vaguear. Com os olhos no firmamento,
pensava: em algum lugar daquele céu haveria outros povos, semelhantes
ao seu próprio povo, ou estariam sozinhos no Universo? Em um
espaço tão gigantesco, seriam os únicos? Não, por certo; sendo os deuses
sábios e poderosos, devia haver outros seres humanos, em outra parte. Ele
sabia que existiam.

Enquanto fitava o infinito, recordou-se de uma peça curiosa que a irmã
pintara. Retratava o céu estrelado e um grupo de homens que chegava à Terra,
descendo de um objeto voador indecifrável. Disse, então, em voz alta:

- É isso! Nitetis é a artista certa para pintar a entrada do túmulo. Não conheço
ninguém que pinte como ela, que tenha os traços tão lindos e tão marcantes!
Ela é capaz de fazer o que eu imagino que tem de ser feito!
74



Feliz, saiu do quarto, procurou a escrava que o assistia e ordenou:

- Vou viajar até a casa de meu pai. Prepare tudo para partirmos amanhã,
sem perda de tempo. Não me demorarei muito; levaremos o essencial. Preciso
retornar em breve. As fundações do templo estão prontas e começaremos
a erguer as paredes da tumba. Vamos, depressa. Quero sair logo pela
manhã.
A escrava curvou-se diante do seu senhor e saiu com rapidez para obedecer-
lhe as ordens. Amenhotep se vestiu e foi ao templo, pela segunda vez
naquele dia, verificar a construção. Tinha colocado escravos trabalhando dia
e noite. Dispunha de supervisores treinados e formados por ele - homens de
sua confiança - acompanhando a obra; no entanto, queria certificar-se de que
tudo corria como planejara.

Assim que chegou, notou ligeiro tumulto no local. Ouvia gritos e homens
corriam de um lado a outro. Segurou um deles pelo braço e gritou:

-O que aconteceu?

O escravo, que mal falava a língua egípcia, fez sinal negativo com a ca


beça e correu para junto dos demais escravos. Amenhotep seguiu rápido até

o centro da construção e logo encontrou o seu supervisor:
- Amy, o que aconteceu?
- Tivemos um acidente, senhor. Algumas pedras rolaram e... Bem...
-Diga logo, o que houve?
-Dois escravos ficaram sob as pedras.
-Foi só isso?
- Bem, creio que perdemos esses dois homens.
- É pena, porém em breve receberemos mais escravos para acelerar a
construção.
- Só que agora os escravos não querem trabalhar, estão com medo.
- Como, não querem trabalhar? Eles não têm querer!
-Mas, senhor, eles estão assustados. Seus amigos acabaram de morrer!
-Muito bem, trate de enterrá-los, conforme os seus costumes, e depois
ordene que continuem. Aqueles que se recusarem irão para a prisão. Está
entendendo, Amy?

- Sim, senhor. E se muitos forem para a prisão, como poderemos manter
o ritmo da obra?
-Não se preocupe. É o começo da estiagem do Nilo; muitos colonos virão
para trabalhar conosco, em troca de alimento. Eles serão de grande utili75



dade neste momento. Livre-se logo dos corpos dos escravos acidentados, e
trate de silenciar os outros, para que não espantem também os colonos. E
quero saber por que as pedras deslizaram. Fizemos todos os cálculos para o
transporte delas.

- É um sistema muito novo, senhor; ainda estamos aprendendo a fazer
tudo exatamente como nos ensinou. Ninguém utilizou antes pedras tão
grandes e tão pesadas para uma construção.
Sorrindo satisfeito, Amenhotep respondeu com os olhos brilhantes:

- Sei disso. Essa obra será grandiosa e inesquecível! Cada nível abrigará
uma tumba de influente súdito real, e no topo da escada ficará o túmulo do
glorioso faraó! Imponente, elevado, divino! No lugar que lhe cabe de direito!
O supervisor olhava-o maravilhado; ainda assim, insistiu:
-Acho que é preciso rever os cálculos e o método da movimentação das
pedras, para evitar futuros acidentes.
Amenhotep puxou-o pelas vestes, impaciente:

- Calculei cada décimo de movimentação das pedras, de cada uma delas.
Se alguma coisa deu errado, pode ter certeza de que não foi o cálculo, e sim
quem executou meus planos. Concentre-se em seguir minhas orientações e
pode estar certo de que não haverá mais acidentes!
- Sim, senhor.
-Quero que comecem amanhã a erguer as paredes.
- Para isso precisamos ter por aqui o artista que vai pintá-las, para começar
o trabalho de ornamentação.
- Já tenho a pessoa que irá pintar as paredes. Limite-se a colocar meus
planos, à risca, em prática e deixe o restante comigo.
O rapaz sorriu, reverente:

- Sim, grande Amenhotep!
O ministro-chefe despediu-se do supervisor e retornou ao palácio.
Na manhã seguinte, antes que o sol estendesse seus raios sobre o Egito,
Amenhotep seguia viagem rumo à casa paterna. Já era noite quando avistou

o amplo portal que delimitava o início da propriedade da família. Entrou
determinado. Trazia consigo mais alguns medicamentos que havia preparado,
com ervas novas que descobrira terem efeito regenerador do sistema
respiratório; dessa maneira, esperava poder ajudar o pai a recuperar-se.
76



Ao se avizinhar da casa com seu séquito, esperou que logo alguém viesse
recebê-lo, mas surpreendeu-se com o silêncio no interior da residência.

Em alguns segundos estava cruzando as portas da conhecida moradia em
que vivera toda a infância e parte da juventude. Foi Iuseneb, o irmão mais
velho, que ele encontrou na sala de refeições.

Ao vê-lo, Iuseneb levantou-se abruptamente:

- Amenhotep!
-Como vai, Iuseneb? Onde estão todos? Nitetis, meu pai... Iuseneb sorriu,
irônico, ao responder:

- Seu pai? Você tem pai, Amenhotep? Estranho, pensei que tivesse esquecido
totalmente disso.

Amenhotep ignorou o tom de ironia do irmão e reiterou:

-Onde estão todos?

Raquel apareceu trazendo a singela refeição. Ao vê-lo, sentiu o corpo estremecer
num mal-estar indescritível. Ela temia Amenhotep. Trazia dolorosas
recordações de sua experiência no cativeiro, e assim que o viu suas lembranças
afloraram. Ela se deteve, muda. Iuseneb chamou-a à realidade:

-Vamos, Raquel, sirva-me o jantar! Não fique aí parada! Com as mãos
trêmulas, sem dizer nada, aproximou-se da mesa e colocou sobre ela os utensílios
que trazia. Depois saiu, igualmente em silêncio. Correu para o
quarto de Nitetis, ofegante:

-Nitetis...
-O que foi, Raquel?
-Seu... Seu irmão...
- Quem? O que aconteceu? Iuseneb?
-Não... Amenhotep.
- O que foi? O que tem ele?
-Está na sala de refeições!
Nitetis fitou Raquel espantada e, com intenso brilho nos olhos, saiu correndo
do quarto. Ao deparar com o irmão na sala, correu ao seu encontro e
agarrou-se ao seu pescoço, beijando-lhe a face com ternura. Amenhotep
abraçou a irmã, e logo a afastou gentilmente, perguntando:

- Você está bem, Nitetis?
- Com muita saudade, Amenhotep! Demorou muito para chegar!
- Tenho muitas responsabilidades pesando sobre meus ombros. O futuro
do Egito depende de mim.
77



Iuseneb soltou uma gargalhada.

-Ah, essa é muito boa! O futuro do Egito depende de você? Não seja
ridículo!
- Veja lá como fala comigo, Iuseneb. Respeite-me pela posição que ocupo,
ou então...
- Ou então o que você vai fazer?
-Mando prendê-lo por desacatar-me!
- Respeito? Quem é você para falar em respeito? Não tem consideração
por ninguém.
- Iuseneb, estou avisando. Não abuse da minha paciência e boa vontade.
Respeite-me, sou ministro-chefe, o poder máximo do Egito na ausência do
faraó.
-Para mim você não é ninguém!
-Vou prendê-lo agora mesmo!
Quando Amenhotep fez menção de sair para chamar um de seus guar


das, Iuseneb empunhou uma lança que estava junto à porta de entrada e avançou
sobre o irmão, gritando:

- O que quer aqui? Vá embora! Não tem nada para fazer nesta casa!
Nitetis colocou-se entre os dois, pedindo ao irmão mais velho:
- Por favor, Iuseneb, acalme-se. Amenhotep não vem à nossa casa há
muito tempo!
-Pois deveria continuar onde estava!

- Minha visita é breve, não tenho intenção de demorar-me. Quero apenas
ver meu pai e falar com Nitetis.
A jovem insistiu com autoridade:

-Vamos, Iuseneb, abaixe essa arma! Papai não gostaria nada dessa atitude!
Tinha horror a brigas entre nós!
luseneb afastou-se, jogou a lança brutalmente contra a parede e saiu irritado,
deixando os irmãos na sala. Amenhotep olhou para a irmã, surpreso.
Ela disse:

-Nosso pai cruzou o grande vale. Já não faz parte deste mundo. Iremos
encontrá-lo um dia no paraíso, ou quem sabe aqui mesmo, quando voltarmos
para o Egito, em nossa próxima reencarnação.

Sentindo-se constrangido pela situação, o irmão recém-chegado perguntou:


- Quando aconteceu?
78



-Faz alguns meses...

-Por que não mandou me avisar? Poderíamos embalsamá-lo e dar-lhe
um enterro com honra!

-Ele teve um enterro com honra e foi devidamente em-balsamado. Está
enterrado sob as areias quentes perto das margens do Nilo, na divisa de nossa
propriedade. Seu corpo está preservado, pode ficar tranqüilo.

Amenhotep sentou-se à mesa calado e se deixou ficar meditando. Nitetis
aproximou-se e, tocando-lhe as mãos, questionou:

- Por que demorou tanto? Eu lhe disse que ele não estava bem, que precisava
de você!
- Eu sei, Nitetis. Sinto muito. Fiquei envolvido com meus deveres. São
muitas as minhas obrigações agora.
Ela baixou a cabeça e, suspirando, falou com a voz embargada:

-Ora, Amenhotep, nunca veio nos visitar, nem antes de se tornar ministro-
chefe! Todos nós sentimos muito a sua falta. Papai foi quem mais sofreu
com a sua ausência; ele falava muito em você. Que pena não ter podido vê-
lo antes de partir...
Amenhotep se levantou, andou de um lado para outro na sala, depois se
sentou outra vez e disse, constrangido:
-Eu sinto muito.

CAPÍTULO 16

Nitetis sorriu para o irmão com doçura e exclamou: - Que bom que está
aqui; tardou, mas não falhou... Tenho certeza de que nosso pai, onde quer
que esteja, sente-se feliz por saber que você veio. Apesar de todas as suas
responsabilidades, está aqui.

Amenhotep observava a irmã, procurando ensejo para tocar no real motivo
de sua visita. Ele disse:

-Sabe que não poderei demorar-me. Preciso retornar o mais rápido possível;
como você mesma reconhece, muitos deveres me aguardam. O faraó
está viajando e em breve retornará; não posso decepcionar o representante
dos deuses, você sabe, minha irmã.
- Mas acabou de chegar...
79



-Contudo, não poderei delongar esta visita; vou conversar com nossos

irmãos para saber se há algo que possa fazer por eles, depois partiremos.
Nitetis o olhou, surpresa, e perguntou:
-O que quer dizer com isso? Partiremos?
Tomando as mãos delicadas da irmã entre as suas, ele falou:
-Quero que venha comigo, Nitetis. Perplexa, ela indagou:

-Não estou compreendendo. Por que deseja que eu o acompanhe?
Ele não respondeu de pronto. Apertou as mãos da irmã com mais força,
olhou-a nos olhos e disse:

-Existem certas coisas que foram determinadas pelos deuses, Nitetis.
Nosso destino não nos pertence, e sim a eles.
A jovem permanecia atenta ao irmão, que prosseguiu:
-Preciso de você.
-De mim? Por quê? - ela cada vez mais se surpreendia.

-Preciso de um artista talentoso - o mais talentoso do Egito - para decorar
o túmulo de Djoser. Quero que pinte o templo mortuário do faraó.
Nitetis olhava o irmão, atônita, incrédula. Ele perguntou:
-Você me acompanha, Nitetis?

- Mas, meu irmão, sabe que uma mulher dificilmente poderia fazer esse
trabalho, menos ainda vê-lo aceito...
- Não se preocupe, terá ajudantes, todos eunucos, que poderão dividir
com você a tarefa. Seu trabalho será aceito dessa forma. Ninguém precisa
saber que é a verdadeira responsável. O importante é que todo o seu talento
será finalmente consagrado. Não há ninguém no Egito que faça o que você
faz com as tintas. Quero o melhor para esse empreendimento fenomenal.
Portanto, quero que seja você a ilustrá-lo, Nitetis.
- Sinto-me lisonjeada, Amenhotep. Contudo, não gostaria de me afastar
de casa neste momento. Nossos irmãos precisam de mim.
- Eles têm Raquel. Tão logo termine as pinturas, você regressará, se assim
o desejar. Por outro lado, se preferir continuar no palácio, poderei providenciar
novas obras para você ornamentar com seu notável talento.
Nitetis encarou o irmão, pensativa. Calado, ele esperava pela resposta.
Ela, então, abriu um grande sorriso e decidiu:

-Está bem, vou acompanhá-lo. Farei o que me pede. Porém ao terminar
voltarei para casa.
80



Raquel, que ouvia toda a conversa, não ousou dizer palavra. Amenhotep
se levantou satisfeito:

- Excelente! Arrume suas coisas que partiremos imediatamente. Não
precisa levar muitas roupas, pois quando chegarmos mandarei que lhe confeccionem
vestes especiais, de linho puro. Ficará deslumbrante, Nitetis.
-Ora, Amenhotep, isso não me interessa. Quero apenas fazer o que me
pede. Se isso vai deixá-lo feliz...
- Sim, é fundamental para mim.
-E isso é o que me importa.
Nitetis foi para o quarto preparar suas coisas. Raquel seguiu-a e, assim
que se viram a sós, repreendeu-a:

- O que está fazendo, Nitetis? Vai abandonar seu lar também? Esse Amenhotep
a enfeitiça! Não é possível!

-Ele precisa de mim, Raquel. Não percebe?

-Vai usar seu talento em favor dos interesses dele; é só isso que está

querendo!
Nitetis abraçou Raquel amorosamente e admitiu:

- Eu sei, Raquel. Amenhotep é muito egoísta. No entanto, tenho uma
oportunidade a mais de ficar perto dele, de tentar auxiliá-lo, falando-lhe com
maior freqüência. Quem sabe não consigo algum resultado? Aqui, longe
como estou, pouco poderei fazer por ele. Devo acompanhá-lo, Raquel. Preciso
aproveitar a oportunidade que a vida me oferece.
- Seus irmãos não vão gostar nada disso, Nitetis. Já estou prevendo a reação
deles.
A linda jovem de cabelos negros refletiu por alguns instantes e depois
disse:

- Pode ser que não aceitem; mesmo assim, tenho de arriscar. Preciso tentar,
Raquel. Sei que bem no fundo Amenhotep tem muitas coisas boas, eu
posso pressenti-las. Preciso ajudá-lo a achá-las dentro de si.
-Você é muito boa, minha amiga, vendo sempre o que há de melhor em
todos à sua volta.
E abraçando a jovem com ternura, Raquel suspirou fundo e concluiu:

- Ah! Nitetis, desejo que Deus a abençoe e acompanhe.
-Peça a seu Deus por mim, Raquel. Precisarei de todo o amparo possível.


81



As duas ouviram gritos vindos da sala de almoço. Nitetis, que acabara
de preparar seus poucos pertences, correu para a porta do quarto, com a intenção
de ir ao encontro dos irmãos. Foi detida pela entrada de Ikeni:

-O que está fazendo, Nitetis? Não pense em fazer isso!

- Eu preciso, Ikeni, embora você não possa compreender.
-Está querendo destruir sua vida, abandonando o lar, os nossos cuidados,
para enfiar-se no palácio, justamente onde o pai detestava que Amenhotep
estivesse?

- Ele é igualmente meu irmão, também poderá cuidar de mim.
- Não seja ingênua. Amenhotep não tem qualquer intenção de cuidar de
você. Estará sozinha lá, em meio a estranhos, em meio a disputas constantes,
orgulho, vaidade, jogo de poder. É isso que deseja para sua vida? E
quanto a seu noivo, Bek? O que vai dizer a ele?
- Não vou dizer nada agora. Assim que tiver idéia do tempo que vou levar
para pintar as paredes da construção, enviarei uma mensagem a Bek.
Espero que ele entenda...
-Não está em seu juízo perfeito. O que aconteceu com você, Nitetis?
- Ikeni, sabe que os amo a todos e amo nosso lar. Jamais faria algo para
magoá-lo, ou a Ineni ou a Iuseneb. Da mesma forma, amo muito Amenhotep
e ele é quem mais precisa de apoio neste momento. Tenho de fazer alguma
coisa, e estar perto dele poderá ajudar. Agora devo ir. Por favor, procure
compreender.
Lágrimas corriam pela face de Raquel, que chocada assistia à discussão
dos dois irmãos. Nitetis desvencilhou-se do irmão e foi ao encontro de Amenhotep.
Ao chegar ao salão de refeições, o embate seguia acalorado e
Amenhotep estava sob a proteção de seus soldados. Iuseneb gritava:

-Você é um covarde! Tem de esconder-se atrás de seus homens para resolver
um problema de família...

-Chega, Iuseneb. Estou indo com Amenhotep, e não há nada que me
possa impedir!

-Se sair com ele por aquela porta, Nitetis, nunca mais porá os pés nesta
casa, está ouvindo? Tem de escolher. Se for com ele, terá de viver com ele
para sempre!

Ela ficou paralisada. Olhava para Amenhotep e para os outros irmãos
sem saber o que fazer. Enfim disse:

- Nosso pai não concordaria com isso, Iuseneb! Está sendo egoísta.
82



- Nosso velho pai jamais permitiria que fosse com ele, Nitetis, isso nunca!
Estou tentando fazer o que é melhor para você, como ele também faria.
Desista dessa idéia maluca.
E aproveitando-se da hesitação da jovem, virou-se para Amenhotep e
gritou:
-Desista também, egoísta! Ela não irá com você! Nitetis caminhou com
firmeza e colocou-se ao lado de
Amenhotep, afirmando:

- Vamos, estou pronta.
Protegidos pelos soldados do faraó e pela guarda pessoal de Amenhotep,
saíram em direção aos animais que os levariam para a capital. Iuseneb gritava,
impedido pelos soldados de se aproximar:

- Nunca mais volte, Nitetis, está ouvindo bem? Você não tem mais casa,
não tem mais família!
Raquel chorava baixinho, vendo Nitetis desaparecer junto da comitiva
que acompanhava o ministro-chefe do Egito.
Nitetis permaneceu muda a viagem inteira. Olhava a paisagem com o
pensamento distante, nos irmãos que deixara para trás. Amenhotep também
seguiu calado. Sentia-se desconfortável pela situação que acabara de provocar
para a irmã. Sabia que ela não poderia mais regressar ao lar e que teria
de preparar um lugar para ela viver, agora no palácio. Pensou no pai e em
tudo o que ele lhe dizia sobre a família, o amor que seus membros deveriam
ter entre si, bem como para com os outros. Subitamente, profunda tristeza
apossou-se dele e tudo lhe pareceu sem sentido.

Foi assim ensimesmado que Amenhotep retornou ao palácio. Ao chegar,
acomodou a irmã em um quarto contíguo ao seu:

-Tenho certeza de que vai ficar bem aqui, Nitetis. Terá tudo de que precisa.
Amanhã mesmo providenciarei uma escrava exclusivamente para atendê-
la. Procurarei alguém que conheça bem o palácio e possa auxiliá-la em
tudo de que necessite.

- Não quero uma escrava. Sei me virar sozinha e tenho você para me ajudar,
se precisar de alguma coisa.
Amenhotep olhou-a preocupado, e avisou:

- Não teremos muito tempo juntos. Tenho muito trabalho a fazer, minhas
responsabilidades são imensas. Preocupo-me com você sozinha aqui, em um
lugar estranho e...
83



A jovem olhava-o, aguardando, até que ele encerrou a frase cortada:

- Vou providenciar uma escrava e não se discute mais o assunto. Sei de
uma jovem palestina que chegou há algum tempo. Acho que se darão bem,
ela é muito parecida com Raquel.
Cansada, Nitetis não discutiu com o irmão. Ajeitou-se na cama confortável,
em meio a almofadas macias, e suspirou fundo:

- Como quiser, meu irmão.
- E não adianta me pedir para libertá-la. Nitetis reagiu, surpresa:
-Eu nem conheci a moça ainda!
- Mas eu conheço você muito bem. Não adianta vir me pedir que a liberte.
Estamos no palácio e, aqui, há inumeráveis interesses em jogo. Fui interpelado
por Rudamon quanto à liberdade que concedi à Raquel. Isso quase
me prejudicou. Não fosse a desculpa de que cedia a um velho doente, e ele
teria conseguido criar-me problemas com o fato. Portanto, aqui viveremos
de acordo com as minhas regras. Agora descanse, que amanhã tomaremos
juntos o desjejum e em seguida iremos para a construção. Quero que comece
seu trabalho o mais rápido possível.
Depois que Amenhotep saiu, Nitetis ficou observando detidamente as
paredes do quarto, o teto e os objetos de decoração distribuídos pelo aposento.
Apesar de oprimida pela situação, sentia-se feliz por estar perto do irmão
que tanto amava.

CAPÍTULO 17

Amenhotep deixou a irmã e foi para seu quarto. Andou mecanicamente
pelo belo aposento, com a mente distante. Caminhou até a varanda e passou
longo tempo contemplando o reflexo da luz e das estrelas sobre o esplendoroso
Nilo. A imagem do pai vinha-lhe constantemente à cabeça. Exausto da
viagem, ajeitou-se na cama e procurou dormir. Não obstante o cansaço que
sentia, teve dificuldade em conciliar o sono. Indefinível angústia tomava-lhe

o peito; era a mesma aflição que já o havia dominado muitas outras vezes.
Por fim, vencido pelo cansaço, adormeceu.
Sonhou que estava em um lugar maravilhoso, repleto de árvores muito
verdes, com todo tipo de flores coloridas enfeitando o jardim. Uma linda
mulher aproximava-se dele, suavemente. Via crianças correndo ao seu en


84



contro, com roupas estranhas e completamente diferentes das que usavam
no Egito. Os meninos se agarravam ao seu pescoço e chamavam-no de pai.
Então, aquela mulher o abraçava com carinho. Aos poucos, porém, a mulher
se transformava e, quando a olhava outra vez, era Nitetis quem sorria para
ele. Despertou assustado.

Antes que pudesse levantar-se, viu Nitetis sentada à beira de sua cama,
tocando-o com delicadeza:

- Acorde, Amenhotep. Não queria estar cedo na construção, para começarmos
o trabalho decorativo?
Meio atordoado, sem saber se dormia ou estava acordado, ele sentou-se
na cama, esfregando os olhos. Fitou Nitetis e perguntou:

-O que faz aqui?

-Vim acordá-lo, meu irmão. Faz muito tempo que estou aguardando,

mas como demorou demais vim ver o que se passava. Pedi à sua... Sua serviçal
que preparasse algo para comermos e já está tudo pronto. O que aconteceu?
Sempre acordou tão cedo!

-Custei a pegar no sono ontem à noite, e creio que não dormi muito
bem.
Suspirou fundo, levantou-se e observou o sol que ia alto no céu, derramando-
se pela varanda. Disse, então, agitado:

-Já é tarde, vamos depressa; tenho muito que fazer.

Estavam prestes a sair quando um mensageiro do faraó apareceu na por


ta do quarto e entrou, seguido pela escrava:
-Trago mensagem do grande Djoser.

-Pois fale, rapaz.
- Ele deve retornar em cerca de dois meses e quer saber notícias da construção.
-Venha conosco e recolha suas próprias impressões. Estou certo de que
Djoser se surpreenderá ao chegar. A edificação já está bastante avançada.
Hoje mesmo começaremos o trabalho decorativo das paredes do templo.
Acompanhe-nos e faça seu relatório.

O jovem obedeceu sem dizer nada. Nitetis também seguia em silêncio,
admirando a grandiosidade das construções que via ao redor. O palácio era
soberbo, com colunas altas e elegantes espalhadas por toda parte. Acostumada
que estava à visão da natureza, às margens do Nilo, encantava-se com
a beleza da cidade.

85



Amenhotep também ia calado. Parecia triste e preocupado. De quando
em quando, Nitetis observava o semblante do irmão, no qual transparecia
sua exasperação. Ao se aproximarem da imponente construção, Nitetis exclamou:


- Amenhotep, que maravilha! Como é ampla! Tudo isso para abrigar o
corpo do faraó? Somente o dele?
-Não, Nitetis. Pretendo que este seja também o repouso dos ministros e
sacerdotes do faraó: a elite política e religiosa do reino.
Sem falar, a jovem caminhava entre os escravos e camponeses que dedicados
erguiam, pedra por pedra, o grandioso monumento. Nitetis tocava as
paredes com as duas mãos, impressionada com sua solidez. Disse então:

- Que pedras, Amenhotep! É magnífico.
-E vai ficar muito mais, com o seu trabalho. Do que é que precisa para
iniciar? Diga-me, e providenciarei tudo. E você, eunuco, já pode ir contar ao
faraó que seu templo mortuário será incomparável. Falta muito para que
fique pronto, porém será a mais bela edificação do Egito, isso eu garanto.

O rapaz moveu a cabeça afirmativamente e, dando uma última olhada
em torno, pegou o caminho que o levaria ao palácio e de lá direto ao faraó,
que ainda se encontrava em terras palestinas.

Nitetis e Amenhotep andaram por todo o sítio, estudando cada detalhe
da construção que se erguia. Ele havia encomendado aos artesãos da corte
todo o material de que Nitetis necessitava para começar o trabalho. Assim
que o material foi trazido, ele disse à irmã:

- Nitetis, quero um esboço completo do que pretende fazer. Desejo que
descreva em detalhes a história de nosso povo; tudo o que é relevante para
nós precisa estar gravado nessas paredes. Use tudo o que sabe. Quero que
supere o que já realizou antes.
- Pode ficar tranqüilo, meu irmão, terá o melhor de mim.
- Muito bem. Aqui estão os eunucos que irão ajudá-la. Agora preciso ir,
tenho muito trabalho a fazer.
Amenhotep pôs-se a caminho do palácio, mas pouco se afastara quando
ouviu Nitetis que corria em sua direção. Alcançando-o, ela segurou-o pelo
braço e indagou:

-Você está bem, meu irmão? Qual é o problema, o que o aflige?

-Nada!
86



- Eu o conheço e sei quando algo não vai bem. O que há? Diga-me para
que eu tente ajudar.
- Estou apenas preocupado com as muitas responsabilidades que pesam
sobre mim. Concentre-se no seu trabalho. Você ouviu o mensageiro: o faraó
volta em breve e quero que fique totalmente fascinado pela beleza da construção.
Sem esperar resposta, Amenhotep partiu. Nitetis ficou a observá-lo até
desaparecer na estrada. Então se virou e fitou a esplêndida construção de
pedras que o irmão havia projetado. Sorriu impressionada com sua habilidade
e seguiu a passos firmes para principiar o trabalho.

Uma semana transcorreu. Amenhotep dedicava-se ao trabalho, mas tinha
dificuldade de concentração. Algo lhe faltava; sentia-se oprimido e entristecido,
sem entender o porquê de seus sentimentos. Tentava empenhar-se
mais no trabalho, buscando aliviar o coração.

Nitetis quase não via o irmão, a não ser à noite, quando chegava da
construção para o jantar. Nesses momentos, pouco conversava, atendo-se a
acompanhar o andamento do trabalho que ela executava. Sempre que Nitetis
insistia em falar do que se passava com ele, Amenhotep voltava a atenção
para os assuntos do ministério e afastava-se dela.

Naquela tarde, Nitetis estava radiante. Terminara a parede da entrada da
câmara, e as inscrições em homenagem a Isis haviam ficado esplêndidas.
Ela contemplava o resultado do trabalho, junto com os auxiliares, quando se
ouviu inesperado burburinho, seguido de silêncio absoluto.

Uma mulher jovem e sensual, lindamente vestida e com ar soberbo, entrou
na construção. À medida que ela passava, todos lhe faziam reverência.
Assim que pôs os pés na edificação, ela perguntou:

- Onde está Amenhotep? Quero vê-lo. Amy aproximou-se e ajoelhou-se
reverente:
- Alteza, não sabíamos que o faraó já havia chegado. Perdoe-nos, por favor.
Amenhotep não está aqui.
- O faraó ainda deverá demorar um pouco. Algumas batalhas foram muito
difíceis e, preocupado, o faraó quis colocar-me em segurança e ordenou
que eu regressasse.
Ela calou-se por alguns segundos e olhou ao redor; depois continuou:

87



-É pena que Amenhotep não esteja. Trago-lhe mais escravos e tenho
certeza de que irá apreciar. Gostaria também de dar-lhe pessoalmente as
últimas instruções do faraó.
Observando com mais atenção em derredor, disse:

-Vejo que as obras vão adiantadas.
Ao olhar a pintura nas paredes, sem deter-se nas figuras, viu Nitetis; acercou-
se dela com evidente desagrado:
-Quem é você? O que faz aqui, em meio à construção? Sem saber ao
certo de quem se tratava, mas reconhecendo estar diante de importante autoridade
real, respondeu:

-Estou ajudando os eunucos no trabalho de pintura das paredes do templo.
Iaret examinou novamente as pinturas, depois dirigiu-se a Amy:

- Não estou compreendendo. Por que necessitamos de uma mulher para
esse trabalho? Mande-a embora imediatamente. Exijo somente eunucos.

Nitetis baixou os olhos e esperou pela resposta de Amy.

-Esta é Nitetis, uma artesã talentosa, contratada pelo próprio Amenhotep

para colaborar com os eunucos. Antes de dispensar seus serviços, preciso
comunicar a Amenhotep. Ele não vai admitir atrasos na obra.

- E eu estou ordenando que a despeça agora. Não quero mais vê-la aqui.
Amy curvou-se em sinal de reverência e ao erguer-se disse a Nitetis:
- Deixe tudo como está e vá embora.
Nitetis fitou-o sem saber o que falar. Levantou-se, tomou alguns de seus
pertences pessoais e saiu.
Assim que a jovem deixou a construção, Iaret determinou:

- Voltem ao trabalho. Tenho mais de trezentos escravos, Amy. Muitos
são soldados e bem fortes. Aproveite todos e coloque-os para trabalhar!
Quero que Amenhotep termine essa construção ao menor prazo possível, e
que tudo fique como ele deseja.
Iaret saiu e seguiu direto para o palácio. O sol que se punha no horizonte
transformava a paisagem em um espetáculo inebriante. Os tons alaranjados
se espalhavam por sobre o Nilo, refletidos em suas águas, tornando difícil
saber onde terminava o céu e começava a terra.

Amenhotep entrou em seu quarto apressado, à procura de um de seus
planos para a construção do grande templo deRa. Deparou com Nitetis, que,
nervosa, apertava as mãos. Ao ver a irmã, ele indagou:

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-O que faz aqui a esta hora?
- Ora, não é tão cedo assim.Ra já está indo dormir. Você se acostumou
mal a minhas longas jornadas de trabalho.
Antes que ele respondesse, Nitetis aduziu:
-Além do mais, fui dispensada.

- O quê? Como, dispensada?
-Aquela jovem que vi em seu quarto, quando vim procurá-lo há algum
tempo, apareceu na construção e me mandou embora.

Amenhotep arregalou os olhos, que brilharam intensamente:

-Iaret... Então o faraó chegou?!

Ao perceber a reação do irmão, Nitetis emendou:

-Não, ainda demora um pouco. Mas, afinal, quem é ela? Pareceu-me tão

poderosa!
Respirando fundo e aliviado, ele sorriu:

-É a esposa preferida do faraó.
-Isso explica sua autoridade. Ela não quer que eu trabalhe na pintura das
paredes...
Amenhotep sorriu satisfeito, ao perceber o ciúme da mulher que desejava,
e assegurou à irmã:
-Não se preocupe, vou falar com ela.
Eles conversavam, quando Iaret entrou, procurando pelo amante:

- Amenhotep...
Ao ver a jovem que havia dispensado da obra em construção, ela empalideceu
de raiva:

- O que faz aqui? Veio reclamar ao seu contratante? Já disse que não a
quero trabalhando no templo funerário de meu marido!
Amenhotep aproximou-se de Iaret e, reverenciando-a, disse:

- Com sua permissão, senhora, posso explicar tudo.
-Estou esperando... Voltando-se para Nitetis, pediu:
-Vá, Nitetis, depois conversamos.
A jovem levantou-se e saiu, fazendo antes sinal de reverência à rainha
do Egito. Iaret encarou Amenhotep com firmeza e perguntou:

- O que significa isso? Como ousa permitir que uma mulher entre em
seu quarto, sobretudo em minha ausência? E o que ela fazia na tumba? Por
que a contratou?
- Acalme-se, por favor.
89



E olhando-a apaixonado, tomou-a nos braços:

- Como está linda! Não sei por que retornou antes do faraó, mas estou
muito feliz em vê-la. Morria de saudade de você, minha amada!
-Não tente distrair-me, Amenhotep. Quero uma explicação!
Ele sorriu e beijou-a com fervor. Após entregar-se à carícia apaixonada
sem resistir, Iaret se desvencilhou dele e cobrou:

-Estou esperando sua explicação.

-Nitetis é minha irmã. Não se recorda daquele dia, antes de minha indicação,
antes de você viajar? Ela esteve aqui, quando estávamos juntos. Veio

procurar-me porque meu pai estava doente. Lembra-se?
-Não, não me lembro. Ela é sua irmã?
-Sim, Iaret.
-Mas por que está ajudando os eunucos?
-São os eunucos que a estão ajudando.
-Como?

- Nitetis é a mais talentosa artesã de todo o Egito. Eu a trouxe porque
quero o melhor para o templo mortuário de Djoser.
Ela sorriu cinicamente:

- Você quer que todos se ajoelhem aos seus pés reconhecendo quanto é
inteligente e capaz!
- E desejo o melhor para o faraó também.
-Pois eu não a quero lá.
- Ora, vamos, Iaret, que diferença isso faz para você? Ela é muito boa no
que faz!
-Eu a expulsei! Como poderia readmiti-la?

- Vá comigo à obra amanhã. Observamos juntos o trabalho e depois você
comenta com todos que até seria interessante que a artesã voltasse. O que
acha?
-Não a quero por lá; não a quero perto de você.
-Iaret, pare com isso. Ela é minha irmã!
- E daí? A primeira esposa do faraó também é irmã dele!
-Mas é diferente, eu não tenho esse tipo de atração por ela.
Atirando-se nos braços de Amenhotep, ela insistiu:
- Não tem?
- Não. Quero apenas que ela faça o trabalho no qual é habilidosa, nada
mais.
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-Pois bem, que volte, mas eu a quero bem longe de você! Ele a abraçou
novamente e pediu:

- Agora que está mais calma, conte-me todos os porme-nores da viagem.
Quero saber de tudo o que aconteceu, desde a sua partida.
CAPÍTULO 18

As pedras eram sobrepostas cuidadosamente. Cortadas com medidas
precisas e instrumentos projetados e construídos especialmente para essa
finalidade (sob orientação do próprio arquiteto), assombrava aos escravos e
aos assessores egípcios a engenhosidade das técnicas empregadas por Amenhotep.
Os escravos trabalhavam desde o amanhecer até noite alta; muitos
deles não suportavam a jornada exaustiva e tombavam sob o peso da labuta
infindável.

Nitetis não podia ignorar o que se passava à sua volta. Dedicava-se à
pintura com desvelo, mas corria em socorro dos escravos assim que percebia
que um deles estava exausto demais. Rapidamente ela conquistara a
simpatia de Amy, que fingia não notar como tratava os escravos. Sem condições
de ajudá-los pessoalmente, pois tinha de cumprir as ordens de Amenhotep,
ele deixava que Nitetis atendesse a todos que necessitassem de ajuda.


Amenhotep, por outro lado, entregue à paixão desenfreada por Iaret, tornava-
se dia a dia mais distante e insensível. Afastava-se da irmã, dificultando
a convivência que ela tanto havia desejado; viam-se pouco, e quando
conversavam era na construção, sempre ocupados com as pinturas e as esculturas
em andamento na câmara mortuária. Nessas raras oportunidades,
Nitetis procurava aproximar-se o mais que podia do irmão, recordando algum
episódio agradável da infância, ou a imagem querida dos pais. Quase
nunca obtinha sucesso, porque pouca atenção Amenhotep dava às lembranças
de família. Parecia hipnotizado e dominado por Iaret e pela própria ambição
de poder.

Naquela tarde, Nitetis trabalhava em uma das ilustrações do faraó, diante
da efígie dera, numa seqüência de imagens que pretendiam retratá-lo como
enviado e escolhido dos deuses. Amenhotep chegou sem que ela perce


91



besse e ficou avaliando a perfeição do trabalho da irmã. Encantou-se com a
maestria com que ela transferia para as pedras a história do Egito e de seu
povo. Analisou detidamente cada detalhe, demorando-se em notar a perfeição
das vestes do faraó, seus adornos e traços fisionômicos. Totalmente
compenetrada, entregue à tarefa que executava, Nitetis estava linda, esplendorosa.
Amenhotep a observava enlevado. Pouco reparava na irmã, porém
naquele momento, tendo a atenção despertada pelo trabalho grandioso que
ela desenvolvia, percebeu como era, e pensou que parecia uma deusa trabalhando
no paraíso.

Subitamente, Nitetis sentiu a presença do irmão e virou-se para ele perguntando,
surpresa:

- Há quanto tempo está aí, me olhando?
Ele sorriu e respondeu:
-Faz bastante tempo. Você está divina, tão compenetrada no trabalho; e
sua pintura está admirável! É muito mais talentosa do que eu havia imaginado!
Fiz muito bem em traze-la para cá. Está maravilhoso, Nitetis. O resultado
de sua arte é perfeito, como se viesse diretamente das mãos dos deuses.

Achando graça no entusiasmo do irmão, Nitetis respondeu:

- Ora, Amenhotep, está ficando bonito, mas também não é tudo isso que
está dizendo!
- Como não? Ninguém encontrará uma obra tão linda em todo o Egito!
Você me surpreendeu, Nitetis!
Feliz por ver o irmão satisfeito, ela abriu um lindo e sincero sorriso e afirmou,
com sua peculiar simplicidade:
-Você exagera, meu irmão! Amenhotep abraçou-a com carinho e ralhou:

- Pare de se diminuir! Seu trabalho é esplêndido!
Os dois sorriam, abraçados, enquanto examinavam os detalhes da pintura,
quando atrás deles ouviram a voz irritada de Iaret:
-Alguma coisa de bom você devia ter, Nitetis; do contrário seu irmão já
a teria mandado daqui para bem longe. Não é, Amenhotep?
Imediatamente ele soltou a irmã e afastou-se dela. Em seguida falou, aproximando-
se de Iaret:

- O que faz aqui? Andar no interior da obra pode ser perigoso. Temos
pedras subindo e descendo em todos os lados. Vamos, é melhor que volte
para o palácio.
92



Estacando à frente de Nitetis e mantendo o olhar fixo na irmã do poderoso
ministro-chefe, Iaret mediu-a de alto a baixo e, com desprezo, interpelou-
os:

- Quando termina seu trabalho?
Nitetis buscou com os olhos apoio do irmão, que permaneceu calado,
sem olhar para ela. A jovem, então, respondeu:

- Não sei dizer ao certo; creio que ainda deve demorar um pouco, pois a
construção é grande...
- Acho melhor se apressar, pois o faraó manda avisar que deve chegar
em breve.
Amenhotep tomou Iaret pelas mãos e insistiu:

- Venha, Iaret, temos muito que conversar.
Ela, entretanto, olhou firmemente para Nitetis, dizendo:
- Acho que teria sido melhor você ir embora enquanto pôde.
Quando Nitetis fez menção de responder, Iaret colocou a mão sobre a de
Amenhotep, e encerrou:

- Vamos! Quero que faça um relatório minucioso do andamento da obra!
Meu marido quer encontrar tudo de acordo com o planejado!
Amenhotep acompanhou Iaret sem olhar para Nitetis, que ficou a observá-
los abandonando a construção, até finalmente desaparecerem. Sem poder
acreditar na conduta de Amenhotep, suspirou e voltou-se para a pintura em
que estivara trabalhando. Diante da imagem deRa, que havia ilustrado com
primor; tocou suavemente a figura e ergueu os olhos ao céu rogando aos
deuses pelo irmão; especialmente ao Deus de Raquel, que em segredo amava
e respeitava. Era naquele Deus que ela pensava diariamente; era a ele que
dirigia suas preces e seus mais sinceros sentimentos.

Algumas semanas se escoaram velozmente. Aproximava-se o dia do retorno
triunfante do faraó. Ele havia conquistado novos territórios, expandindo
as fronteiras de seus domínios para além do deserto de Zim, e trazia
grande número de escravos para servirem ao reino do Egito.

Nitetis dedicava-se com maior intensidade ao trabalho, na certeza de que
Amenhotep esperava que a obra estivesse bem adiantada para receber Djoser.
Naquele dia, no entanto, ela estava inquieta. Olhava para a porta com
freqüência, como se esperasse alguém. Não conseguia concentrar-se e sentia-
se mais cansada do que de hábito. Amy não pôde deixar de notar a agitação
da moça e perguntou:

93



- Você está bem, Nitetis? Parece apreensiva.
-Sinto-me angustiada e não sei explicar o porquê.
- Não seria melhor tirar o dia de folga, para descansar um pouco? Tem
trabalhado em excesso, Nitetis.
-De modo algum! Ainda tenho muito que fazer! Sabe quando chegará o
grande Djoser?
- Muito breve.
- Pois então! Como poderia esmorecer logo agora?
-Mas se não descansar, pode até cair doente de exaustão.
- Não se preocupe, meu bom amigo Amy; não cairei. Após a pequena
pausa, prosseguiram com o trabalho. Pelo meio do dia, um dos escravos
caiu, desfalecido. Nitetis, prontamente, correu até ele e ajoelhou-se ao seu
lado, tentando avaliar seu estado. Entretanto, ao ser tocado, ele a agarrou e
puxou com toda a força para o chão; deitou-a, beijando-a com sofre-guidão,
enquanto dizia:
-Não posso mais viver sem você! Deixe os outros, fique somente comi


go!
Debatendo-se para soltar-se do rapaz, Nitetis repetia:
-Pare com isso! Solte-me! Está me machucando!

-Você é que me machuca! Quero-a só para mim! - ele insistia.
- Do que é que está falando? -perguntou Nitetis, tentando desvencilhar-
se do jovem escravo.
Novamente foi beijada à força, até que enfim conseguiu livrar-se e se levantou
depressa, limpando as vestes. Deparou, então, com a rude figura do
sumo-sacerdote, em companhia de Iaret, que com sorriso maldoso e olhar
fulminante falou:

- Eu não o preveni, Rudamon? Essa mulher está desrespeitando o túmulo
do faraó! Quero que seja expulsa imediatamente!
Nitetis tentou explicar:

- Está havendo algum engano... Rudamon interrompeu-a, ríspido:
-Cale-se! Eu não podia acreditar até ver com meus próprios olhos! Que
imundície! Saia já e não ponha mais seus pés sujos neste santuário.

-Mas...
- Saia e não diga nem mais uma palavra, se não quiser morrer aqui
mesmo!
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Assustada e humilhada diante de todos, Nitetis saiu cabis-baixa e muda.
Quando estava fora da câmara, ainda tentando entender o que se passava,
Rudamon saiu e ordenou a dois soldados:

- Levem-na para a prisão. Depois decidirei o que fazer. Nitetis gritou:
-Por favor, senhor, não fiz nada! Está havendo algum engano. Aquele
escravo agarrou-me à força!
-Sei bem o que os meus olhos viram. Cale-se e obedeça! Ao retornar ao
interior do templo, dizia:

- Que idéia, deixar uma mulher fazer o trabalho que pertence aos homens!
Só poderia vir de um homem como Amenhotep.
Iaret olhou de viés para Rudamon, observando-lhe as reações, depois
disse:

- É aviltante! É melhor que fale com o irmão dela! Amenhotep precisa
saber o que andava fazendo quando ele não estava por perto!
Nitetis gritava, desesperada, enquanto era levada pelos guardas:

-Por favor, deixem-me falar com Amenhotep! Está havendo um engano
muito grande, por favor!
Escutando o som abafado da voz de Nitetis, a distanciar-se da construção,
Iaret sorriu satisfeita, e já se dirigia à saída quando Rudamon perguntou:


- O que realmente deseja, senhora?
Ela virou-se, mediu Rudamon de alto a baixo e respondeu:
-A glória absoluta do faraó!
E afastou-se depressa, à frente de seus guardas pessoais.
Rudamon a acompanhou com os olhos, depois contemplou o monumento
inacabado e sorriu, exultante. A obra estava parada e isso certamente prejudicaria
Amenhotep.
Ao receber notícia do ocorrido, o arquiteto indignou-se. Foi o próprio
Amy quem lhe trouxe as informações.
-Não posso crer, Amy! Minha irmã!

- Não consigo compreender, senhor. Nitetis sempre foi tão comedida e
recatada; não posso imaginá-la fazendo aquilo de que a acusaram.
Amenhotep pensou por instantes e perguntou:
-Levaram-na para a prisão?
-Sim.
-Não dá para acreditar! Agora, a obra está parada!

95



Sem dizer mais nada, Amenhotep saiu nervoso e foi direto para o quarto
de Iaret. Esta, que já o esperava, ao ser interrogada respondeu ardilosa:

- Ela se encontrava com eles às escondidas. Ninguém nunca viu, mas tenho
meus súditos fiéis, que não deixam nada passar despercebido. Assim
que soube como ela estava se comportando, tomei as medidas necessárias
para protegê-lo, meu querido. Se o fato se espalhasse, poderia prejudicar a
construção de Djoser.
E abraçando-se a ele, continuou:

- Mande-a para longe daqui. Os eunucos terminam o trabalho que ela
começou. Não perca mais tempo com ela. Liberte-a, pois é sua irmã, e mande-
a embora.
Ela improvisou ligeira pausa e em seguida, acariciando-lhe a mão, deu o
golpe final:

-Ou, melhor ainda, deixe comigo. Eu mesma vou pedir clemência a
Rudamon, em seu nome. Você nem precisa desgastar-se indo até ele. O
tempo corre e Djoser está para chegar. Não perca mais tempo, Amenhotep.
Deixe que agora eu resolvo a situação. Mando-a embora e logo o caso estará
esquecido. Após breve reflexão, Amenhotep concordou:
-Está bem. Não estou em condições de me indispor com minha irmã.

Mande que meus soldados a levem para casa.
E saindo do quarto de Iaret, beijou-a com paixão e disse:
-Tenho pouco tempo e muito que fazer.
Sorrindo, Iaret falou baixinho, enquanto ele se afastava:

- Isso mesmo, Amenhotep, deixe que eu resolvo seus problemas.
CAPÍTULO 19

Quando alcançou os portões de sua casa, Nitetis ainda trazia os olhos
vermelhos do pranto derramado por horas. Chegou sozinha e caminhava
como se trouxesse sobre os ombros pesado fardo.

Ao avistá-la, Raquel correu ao seu encontro:

-Nitetis! O que houve?
96



A jovem abraçou-se à amiga e mais uma vez deixou que as lágrimas lhe
inundassem a face. Raquel emudeceu e a deixou desabafar. Quando se acalmou,
Nitetis perguntou:

-Onde está Iuseneb?
-Seus irmãos estão viajando.
-Os três?
- Sim, estão trabalhando na construção de um palácio, ao sul. Como a
estiagem se prolongou, acharam melhor partir e garantir o sustento dessa
maneira. Não devem retornar tão cedo.
-Eu posso ficar, Raquel?
-Querida Nitetis, o que me pergunta? É claro que pode ficar! Não importa
o que tenha acontecido, você tem em mim uma amiga, e sabe disso. Venha,
vamos entrar. Vou preparar-lhe alguma coisa para comer. Parece faminta.


Nitetis sorriu levemente, ao confirmar:

- E estou mesmo!
Aconchegando-se no confortável ambiente doméstico, Nitetis contou em
pormenores o que vivera. Falou da alegria que sentia na companhia do irmão,
e das raras oportunidades em que haviam podido conversar. Enxugando
as lágrimas, ela disse:

-Foi tudo tão rápido... Mal posso acreditar que tenha acabado dessa
forma. Eu tinha tantas esperanças, Raquel... Desejava muito ajudar meu
irmão. Infelizmente, acho que não será possível. Agora entendo a tristeza
que vi nos olhos de meu pai, pouco antes de partir. Ele sentia imenso pesar
por não ter conseguido auxiliar Amenhotep. Sentia-se como que responsável
pelo caminho que ele escolhera trilhar. Naquele momento eu não compreendia
o que hoje entendo. É doloroso ver alguém que amamos tomar um caminho
que, sabemos, irá levá-lo à dor e ao sofrimento e não podermos fazer
nada! É um sentimento enorme de impotência... A única coisa que me anima,
Raquel, é pensar no seu Deus. Quando me sinto frágil e sem esperanças,
penso nele e minhas forças se renovam. Fico revigorada e cheia de alegria
de viver. Seu Deus é também o meu Deus, Raquel. Eu posso percebê-lo em
tudo à minha volta: no céu cheio de estrelas, na manhã radiante de luz, no
anoitecer suave que tudo envolve em serenidade. Posso senti-lo em seu abraço,
minha amiga, e em seu sorriso meigo.
97



Raquel enlaçou a amiga com lágrimas nos olhos. As duas permaneceram
abraçadas em doce permuta de amor e carinho. Depois, Raquel propôs:

-Agora é melhor descansar um pouco. Seus últimos dias foram muito agitados.
Venha, depois preparo um jantar do jeito que você gosta e amanhã,
com certeza, sua disposição será completamente diversa.

Nitetis acompanhou a amiga até o quarto, que continuava exatamente
como o havia deixado. Sorriu ao ver que estava intacto. Raquel disse:

-Não permiti que seus irmãos tocassem em nada. Surpreendentemente,
eles não me contrariaram. Acho que também queriam tê-la de volta.
-Não sei, Raquel. Iuseneb foi bem enfático quando me proibiu de retornar.


- Estava nervoso. Assim que você saiu, ele se sentou e, inconformado,
quase se pôs a chorar. Só não o fez por minha causa, para não demonstrar
fraqueza. Eu acho que você não precisa se preocupar com isso. É claro que
ele não vai admitir, e pode até ser ríspido com você, quando chegar, mas no
fundo sei que deseja que fique. Penso mesmo que ele sentiu ciúme de Amenhotep
e de seu carinho por ele.
- Ciúme, Raquel?
-Por que não? É bem comum entre irmãos. Ela refletiu por alguns segundos
e disse:

-Você pode ter razão.
E ajeitando-se na cama, confessou:
- É muito bom estar em casa, Raquel.
-Agora descanse.
Ao voltar de seu exaustivo dia de trabalho, Amenhotep passou pelo cômodo
vazio, que a irmã havia ocupado. Sentou-se e acariciou as roupas que
ela deixara jogadas sobre a cama. Recordou-a por poucos instantes, pois foi
interrompido por ruídos junto à porta de seu quarto. Ao sair, deparou com
Iaret.

- Meu amor! Tive muita saudade.
- Não podemos nos arriscar, Iaret. Rudamon anda à espreita.
- Eu sei, não se preocupe; sei muito bem cuidar de Rudamon. Agora venha
comigo, vamos para o meu quarto.
- De forma alguma, é muito perigoso.
Indiferente aos apelos de Amenhotep, ela o arrastou até seu quarto.
98



Embora a construção da pirâmide continuasse sem grandes problemas,
tal como ocorria com as atividades do ministério, Amenhotep sentia-se aflito.
Iaret percebia certa tristeza no amante, e buscava distraí-lo fazendo o que
mais sabia: cobrar-lhe maior atenção. Todavia, ele se mostrava distante e
preocupado. Passava longos períodos sentado à varanda, meditando. Amenhotep
não compreendia a razão dessa perturbação: as coisas pareciam caminhar
conforme desejava; tinha tudo o que queria. Mas sentia estranha
inquietude. Era como se algo indefinido estivesse para acontecer.

As paredes da câmara mortuária de Djoser subiam dia a dia, com elaborada
e perfeita sobreposição de pedras. O trabalho de pintura prosseguia,
conforme os planos deixados por Nitetis. A olhos mais atentos seria notada
a mudança na qualidade dos traços, porém a olhos menos treinados certamente
o detalhe passaria despercebido. Amenhotep estava satisfeito com o
resultado. Caminhava por entre os escravos, observando atentamente o trabalho
que faziam, quando Amy anunciou a chegada de um mensageiro:

- Ele o aguarda na entrada do templo.
-Que espere! Terminarei a verificação e então o atenderei. Ao acabar de
inspecionar a construção, Amenhotep saiu e recebeu o mensageiro, que informou:


- Venho da parte do grande faraó. Ele manda avisar que em duas semanas
estará de volta. Trará consigo mais escravos, para dar rápido andamento
à obra. Está muito satisfeito com as notícias que tem recebido sobre a edificação
da pirâmide.
Amenhotep convidou o mensageiro a averiguar pessoalmente os progressos
da elaborada construção, para que pudesse manter Djoser informado.
Depois se despediu e retornou ao palácio, não sem antes notificar seu
supervisor:

—Amy, o faraó estará aqui em duas semanas. Quero que ponha todos os
escravos para trabalhar até caírem, está me entendendo? Que trabalhem inclusive
à noite; quando um cair, você o coloca de lado. Quero que o faraó se
surpreenda com a construção.

- Mas ele já não está contente com o que tem escutado sobre a obra?
-Já disse que desejo surpreendê-lo. E não diga a ninguém que estamos
trabalhando nesse ritmo acelerado.

99



Amy balançou a cabeça em sinal afirmativo e retirou-se, obediente. Apesar
de não concordar com as ordens de Amenhotep, não ousava questioná-
lo.

Assim que voltou ao palácio, Amenhotep foi direto aos aposentos de Iaret.
Porém, antes de alcançá-los, encontrou Rudamon no corredor, como se

o aguardasse. O sacerdote o segurou pelo braço e perguntou:
-O que faz aqui? Por que não está em sua construção? O faraó logo
chegará. Por certo irá tentar impressioná-lo com suas bobagens.
-Como sabe que ele está para chegar?

- Por que acha que eu não saberia? Se meu senhor, meu faraó, está chegando,
é claro que posso senti-lo. Bem como outras coisas que aconteceram
em sua ausência.
Rudamon proferiu essas palavras olhando para o final do corredor - a
porta do quarto de Iaret. Depois soltou seu braço e falou:

-Vá, pode ir, ela o espera.
Sem saber como agir, Amenhotep olhou fixamente para os olhos de Rudamon
e perguntou:

- Por que me odeia tanto? O que foi que lhe fiz? Tenho procurado colaborar
com você em tudo. Não compreendo.
- Vá, aproveite sua glória passageira.
Sem dizer nada, Amenhotep seguiu até o quarto de Iaret. À porta, virou-
se, mas Rudamon já desaparecera. Quando Iaret o recebeu, ele disse:
-Rudamon sabe de tudo.

-É claro que sabe.
-E como você conserva toda essa calma?
-Ele é o sumo-sacerdote deRa, é claro que sabe. Rudamon sabe de muitas
coisas, assim como você, meu amor!

-Iaret, é sério. Ele poderá entregar-nos a Djoser.
-Acalme-se, Rudamon não fará isso. Tem seus segredos e seus planos.
Eu conheço alguns e sei como utilizá-los a meu favor. Já disse que não se
preocupe com ele.

Iaret sentou-se sobre a confortável cama coberta de grandes almofadas e,

ajeitando-se, indagou:
-O que o trouxe aqui a esta hora?
-Djoser está a poucos dias do Egito; seu mensageiro acaba de retornar.

100



- Muito bem. Faremos uma grande festa para recepcioná-lo. Vou organizar
tudo junto com Rudamon. Eu mesma dançarei para o faraó.
-Você?

- E por que não? Uma surpresa assim o encantará.
-Você se arrisca demais, Iaret.
- Eu gosto do perigo. Ele me instiga.
-Que bom que pensa desse modo. Observando intrigado a reação de Iaret,
ele disse:

- Parece feliz com a notícia da chegada do faraó.
- Já tinha conhecimento de seu breve regresso. Mas estou feliz porque
tivemos todo esse tempo para estar juntos. Djoser continuará mais interessado
em suas conquistas e na construção de seu monumento do que em qualquer
outra coisa. Teremos tempo para nos vermos.
Amenhotep despediu-se de Iaret e retomou suas tarefas. Seu coração ainda
estava pesado e triste.

Depois de receber a notícia da volta de Djoser, a esposa do faraó não
descansou um só minuto. Preparava com cuidado a celebração da vitória do
poderoso rei. Pensou em todos os por-menores: a exibição das melhores
dançarinas, a comida preferida do marido, a certeza de ter os convidados
apreciados pelo faraó. Montou para si as roupas especiais com que se apresentaria
diante dele e criou uma coreografia sensual e provocante.

Na véspera da chegada do marido, foi ter com Amenhotep, vestindo a
roupa de sua apresentação. Ao abrir a porta do quarto, ele ficou atônito. Iaret
estava deslumbrante.

-Quero dançar só para você nesta noite.
- Está maravilhosa, Iaret, mas é muito perigoso. Por favor, volte para o
seu quarto. O palácio está agitado com os preparativos da festa.
- Justamente. Todos estão muito ocupados para prestar atenção em nós.
- Não Rudamon. Irritada, ela retrucou:
- Já disse para deixar o sacerdote comigo. Você não me escuta!
-Não devemos nos arriscar. Ele nos vigia; não quero que tenha nenhuma
prova contra nós.
Empurrando Amenhotep para dentro do quarto, ela fechou a porta e disse:


-Meus eunucos o estão vigiando.
-Você pensa em tudo... -ele respondeu, sorrindo.
101



-Em tudo.

Na tarde seguinte, o salão estava repleto de convidados de honra; muitos
haviam vindo de outros reinos, para celebrar a vitória de Djoser.

Após breve descanso da longa jornada, o faraó tomou seu lugar no trono,
cercado por Rudamon, Amenhotep e os demais ministros. Notou a ausência
de Iaret, mas logo lhe comunicaram que ela faria uma surpresa.

A festa era uma das mais grandiosas já vistas naquela dinastia. A dança
de Iaret causou no faraó profunda admiração. Assim que terminou, ele a
convidou para sentar-se ao seu lado. Depois, agradeceu aos visitantes de
regiões distantes e convidou-os ao jantar. Antes, porém, elogiou efusivamente
o trabalho de Amenhotep:

-Estou honrado com esta magnífica festa, e muito impressionado com
seu trabalho, Amenhotep.
Sorrindo, o arquiteto curvou-se ligeiramente em reverência ao faraó.

- Seu trabalho ficou conhecido em toda parte. Não foi somente de meus
mensageiros que recebi notícias da construção e de suas ações cuidando do
Egito. Sua previsão de estiagem e estocagem prévia de alimentos garantiu a
fartura dos grãos para o povo e o tornou famoso.
- Fico feliz que esteja satisfeito, senhor.
- Satisfeito? Você é o melhor ministro-chefe que um reino já teve! É
nossa melhor arma, Amenhotep!
Rudamon irava-se com cada palavra que ouvia. Quando o faraó concluiu
seu pequeno discurso de agradecimento, sentaram-se todos à mesa e o sacerdote
ocupou lugar em frente a Amenhotep. Este, sentado ao lado do faraó,
tinha dificuldade em desviar os olhos dos de Rudamon.

O sacerdote manteve-se calado durante a noite inteira. Amenhotep brilhava,
feliz pelo triunfo que obtivera.

Era madrugada alta quando a comemoração terminou. Ao se recolher, já
deitado em sua cama, Amenhotep sorriu realizado. Depois, lembrou-se de
Iaret dançando, do olhar raivoso de Rudamon e de como evitara fitá-lo por
toda a noite. Procurou acalmar a mente para descansar. Adormeceu. Seu
curto sono foi agitado e antes que o sol raiasse ele já estava acordado. Vestia-
se, quando Iaret apareceu. Ela o abraçou e depois, vendo uma grande
mancha em seu ombro, perguntou:

- O que é isso? Essa mancha no seu ombro.
Ele olhou a mancha avermelhada, apertou-a e não sentiu nada.
102



-Estranho, não sinto nada. A pele está dormente. Essa mancha não estava
aí ontem.

- Deve ter se machucado na construção e não percebeu. Ele respondeu
enquanto se vestia, encobrindo a mancha:
-Decerto foi isso.
CAPÍTULO 20

Ajoelhada no meio do jardim, Nitetis retirava delicadamente cada planta
indesejada que crescia entre as abundantes flores e folhagens. Raquel apareceu
na porta da casa e olhou em volta, em busca da amiga. Ouvindo a sua
voz, percebeu que ela estava no jardim, mas não conseguia vê-la e na ponta
dos pés a procurava. Quando finalmente a achou, aproximou-se e comentou:

- O jardim está lindo, Nitetis. Somente suas mãos poderiam torná-lo tão
belo outra vez. Seu pai amava sentar-se aqui, sob as árvores, para contem-
plá-lo. Lembro como costumava ficar horas apreciando as flores.
Nitetis, que se levantara, caminhando em direção a Raquel, disse:

- Ora, você também tratou bem dele, durante minha ausência.
- Nem de longe tenho esse talento com as plantas. Suas mãos são mágicas.
Sob seus cuidados, as flores são fartas e viçosas; as folhagens ficam
verdes e bonitas. Tudo ganha beleza. Não, eu não sou tão talentosa...
Nitetis a olhou com carinho e sorriu, mas Raquel a conhecia bem:
-Noto certa tristeza em seu olhar. Ainda Amenhotep?

- Embora me esforce para esquecer tudo o que ocorreu, fico preocupada
com ele. Será que está tudo bem?
-E por que não haveria de estar, Nitetis? Ele é um dos homens mais importantes
do Egito.

- Eu sei, e é isso o que me inquieta: quanto mais poder, mais perigo.
-Precisa esquecer o que houve.
- Não consigo. De vez em quando até sonho com ele, e em meus sonhos
está sempre precisando de mim.
- Mesmo que fosse verdade, ele nunca admitiria precisar de ajuda; Amenhotep
é muito orgulhoso. Acha-se auto-suficiente.
-É verdade, ele nunca pediria ajuda.

103



-E você não pode fazer mais nada. Agora precisa esquecer o que aconteceu
e voltar a ser a nossa alegre Nitetis.

A jovem sorriu e abraçou a amiga, sentindo-se animada pelo carinho que
recebia dela.

Na manhã seguinte, as duas tomavam o desjejum quando escutaram
conversas ruidosas próximo à casa. Os irmãos de Nitetis regressavam. Ineni
e Ikeni entraram primeiro. Ikeni dirigiu a Raquel ligeira saudação, depois
olhou firme para Nitetis, que apreensiva o fitava quase sem poder respirar.
Temia por sua reação ao vê-la. Por fim ele disse, risonho:

-Dava para saber que você tinha voltado só de olhar o jardim lá fora. Fez
muita falta, Nitetis!

Envolvendo a irmã num abraço apertado, ele continuou:

-Senti sua ausência!

Ineni também se aproximou da irmã e abraçou-a com carinho. Depois
olhou para Raquel, aprovador:

-Agiu bem ao deixá-la ficar. Nitetis foi quem respondeu:

- Espero que Iuseneb pense como vocês. Ele foi muito claro quando me
falou que não retornasse nunca mais.

E abraçada aos dois irmãos, acrescentou, entre lágrimas:

-Vocês são minha família, e eu os amo muito. Como poderia ficar lon


ge?
Iuseneb deu a resposta, já dentro da casa:

- A escolha foi sua. Você preferiu Amenhotep à sua família. Os dois irmãos
se afastaram um pouco, enquanto Nitetis levantou-se para receber o
irmão mais velho. Limpando as lágrimas que lhe desciam pela face, ela se
defendeu:
- Ele precisava de mim, Iuseneb. Qualquer um de vocês que necessitasse
teria de mim carinho e dedicação iguais. Mas todos aqui estão bem, posso
ver claramente, e fico feliz por isso. Era ele quem precisava mais de mim.
-E de que adiantou, Nitetis?
Ela baixou a cabeça e, com o semblante entristecido, respondeu:
-De fato não deu certo.


- Eu sabia! - disse Iuseneb, quase exultante - Amenhotep desconsidera
sua família. Não temos importância alguma para ele.
-Justamente porque não está bem, Iuseneb. Nosso pai tinha a mesma
preocupação.

104



-E morreu desgostoso.

Colocando pesadas bolsas sobre a mesa, ele considerou:

-Muito bem, você voltou, afinal. Eu deveria mandá-la embora imediatamente,
como disse quando partiu.

Os dois irmãos olhavam para Iuseneb, quase implorando que não expulsasse
a irmã. Nitetis pediu:

-Por favor, Iuseneb, não tenho para onde ir. Vocês são minha família.
Ikeni reforçou o pedido:
-Por favor, seja condescendente.
luseneb sinalizou com a mão para que Ikeni se calasse e consentiu:
-Poderá ficar, com uma condição.
Nitetis ouvia o irmão atentamente. Ele prosseguiu:
- Terá de me obedecer, de hoje em diante.
- O que quer de mim?
-Quero o melhor para você. E para ficar conosco terá de prometer que
irá me obedecer, acatar o que lhe pedir. Sou o irmão mais velho e vocês
devem confiar em mim. Então, posso esperar que acate minhas posições?

Ela respondeu, sorrindo:

- Sempre teve meu respeito e meu carinho.
-Quero mais do que isso. Quero que me obedeça. Caso contrário, pode ir
já!

- Está bem, Iuseneb, você venceu. O que quer de mim?
-Nada, por enquanto. Logo que tiver decidido o que fazer com você, eu
aviso. Agora vou descansar. Ineni, por favor, guarde as provisões das sacolas;
precisamos das sementes. As cheias estão apenas no início, e logo que o
Nilo baixar suas águas começaremos a plantar.

Sem falar, os dois irmãos levaram as sementes para o lugar seguro da
casa. Iuseneb entrou no corredor que levava aos quartos e Nitetis correu a
abraçar Raquel:

- Acho que ele vai me perdoar!
- Espero que sim, Nitetis.
Algumas semanas se passaram. As águas do Nilo baixaram lentamente e
a plantação começou com intensidade. O húmus deixado pela cheia do rio,
rico em nutrientes, proporcionaria farta colheita, se aproveitado no momento
certo. Os três irmãos dedicavam-se de sol a sol à plantação, contando com o
auxílio de mais alguns camponeses.

105



Nitetis e Raquel cuidavam da casa e ajudavam os irmãos no tempo que
lhes sobrava. Ao chegarem em casa, naquela tarde, Iuseneb disse:

-Nitetis, quero que saiba que contratei com Bek e sua família o casamento
de vocês.

Nitetis olhou atônita para os irmãos e para Raquel, que baixou os olhos.
Iuseneb continuou:

- Assim que a época de semear terminar, vocês se unirão. Nitetis não sabia
ao certo o que dizer. Gostava muito de
Bek, porém não se encontravam desde a sua partida para a capital. Finalmente,
falou:
-Mas por que tanta pressa, Iuseneb?
-Para evitar que faça outra besteira.

- Eu quero me casar com Bek!
-Que bom, desse modo será melhor para você!
- Só que desejo fazer isso na ocasião oportuna. Não precisa demorar,
não é isso; mas também não precisa ser às pressas. Por favor, Iuseneb, deixe
que nós dois conversemos para resolver.
-Vamos recebê-los aqui amanhã à noite, e já está tudo decidido. Bek
concordou em perdoá-la e recebê-la como esposa. Fique feliz, Nitetis. Ele é
melhor do que eu, que não a perdoaria!
luseneb não esperou pela resposta da irmã, desaparecendo casa adentro.
Nitetis, sentada à mesa, disse a Raquel:

- Não compreendo a pressa!
Raquel sorriu, afagando os sedosos cabelos negros da bela Nitetis:
- Será melhor para você. Terá sua própria família, filhos... Seu lar...
Nitetis tentou sorrir para a amiga. Depois meditou por alguns instantes e
comentou:

- É estranho, Raquel, nunca pensei em ter filhos. Sempre amei as crianças,
mas jamais me imaginei sendo mãe.
- E por que não? Será uma mãe maravilhosa! Bek sabe bem o que está
fazendo; ele é um rapaz sério.
-Por que diz isso?
-Ele não quer perdê-la. Soube que o pai dele ficou um pouco inseguro
pela sua decisão de acompanhar Amenhotep para Mênfis, e foi Bek que o
convenceu. Acho até que foi ele quem procurou Iuseneb.
- E por que não procurou a mim, a maior interessada?
106



- Acho que por medo.
-Medo de quê?
-De perdê-la outra vez, Nitetis. Os homens usam meios um pouco atrapalhados
para expressar seus sentimentos. Tenho certeza de que Bek a ama
e quer seu bem.

Nitetis fitou Raquel e afirmou, séria:
-Não pretendo me casar agora. Concordo em me casar com Bek, mas
não vai ser do jeito de Iuseneb. Será à minha maneira.

- Não vá criar problemas com seu irmão!
- Não, de forma alguma, não se preocupe. Se foi Bek quem primeiro
procurou meu irmão, saberei convencê-lo.
CAPÍTULO 21

Amenhotep voltou mais cedo da construção, naquela tarde, e se trancou
no quarto. Estava muito aflito com as feridas que aumentavam e se espalhavam
por todo o seu corpo. Sentou-se na varanda e observava atento as manchas
pelos braços e pernas. Tocava-as com os dedos sem nada sentir. Levantou-
se e entrou no quarto, para logo retornar à varanda trazendo nas mãos
uma faca. Sentou-se de novo e, decidido, enfiou-a na pele, superficialmente,
sobre uma das manchas. Esperou pela dor, que não veio. Ergueu-se, desesperado,
andando de um lado a outro, sem saber o que fazer. Depois, vestiu-
se e foi até o templo deRa, onde ajoelhado rogou ajuda aos deuses.

Ali permaneceu por horas, suplicando auxílio. A situação o preocupava,
não apenas por não sentir dor, mas porque as manchas estavam aumentando.
Ele já vira alguns escravos com doença parecida, e alguns poucos egípcios
haviam relatado casos semelhantes. Todos se tinham revelado incuráveis.

Era noite alta quando regressou ao palácio e deitou-se; queria sair bem
cedo pela manhã. Assim que o sol raiou, ele acordou e em vão tentou levantar-
se; um mal-estar súbito o prendeu na cama. Com muito esforço, sentou-
se e vestiu-se, temeroso de que alguém chegasse e visse as feridas.

Estava acabando de se vestir quando bateram à porta com insistência.
Ouviu a voz abafada de Iaret, que pedia:

107



-Abra, Amenhotep, quero falar-lhe. Apressando-se em cobrir as manchas
dos braços, ele respondeu:

- Só um instante, Iaret.
Tão logo ele entreabriu a porta, Iaret enfiou-se no quarto. Fechando a
porta e abraçando-se a Amenhotep, disse:
-Meu amor, abrace-me.

- O que houve, Iaret? Parece preocupada.
- É verdade, estou muito preocupada.
- O que aconteceu?
-É que...
- O quê? Fale!
Ela acariciou a barriga e olhou para ele de modo provocante:
- Vamos ter um bebê.
-O quê?
-É o que acabou de ouvir. Vamos ter um bebê!
-Tem certeza de que está grávida?
-Absoluta certeza de que estou grávida e de que o filho é seu.
- Como sabe que não é de Djoser?
-Ora, Amenhotep, as mulheres sabem dessas coisas.
- Então não tem certeza?
-Claro que tenho. Estou com mais de dois meses de gravidez e Djoser
regressou há apenas um; portanto, o filho não pode ser dele.

- E como está certa quanto ao tempo de gestação?
- A parteira de minha mãe veio ver-me em segredo. Ela já trouxe ao
mundo mais de duzentas crianças e conhece bem cada fase. Garantiu que a
criança já tem dois meses.
Amenhotep sentou-se na cama, apoiou a cabeça nas duas mãos e ficou
quieto, a meditar. Iaret ajoelhou-se perto dele:

- O que foi, querido, não está feliz? Vai ser pai!
-Não sei o que dizer, Iaret. Por um lado sinto-me feliz, mas sei que jamais
poderei assumir a paternidade dessa criança. E bem sabe o porquê.
Iaret fechou o semblante e sentou-se ao lado de Amenhotep; suspirou
fundo e concordou:

- Tem razão. Djoser nunca me perdoaria, nem a você. A não ser...
-A não o quê?
-Que ele não fosse mais o faraó.
108



-Não estou entendendo, Iaret.
Com um brilho estranho nos olhos, ela sorriu desdenhosa, dizendo:
-Você não teria coragem, não é mesmo? Amenhotep, compreendendo o
que ela sugeria, ergueu-se de súbito e reagiu:
-Você enlouqueceu? Jamais insinue isso novamente. Segurou-a firme
pelo ombro:

- Está indo longe demais com seus caprichos! Não pode estar falando sério.
Diga-me que está apenas brincando...
- Pois não estou. Se Djoser desaparecesse de nosso caminho, poderíamos
viver plenamente nosso amor e cuidar de nosso filho juntos. Seria maravilhoso,
meu querido!
- Seria maravilhoso se fosse possível. Só que não é. Você é a esposa favorita
de Djoser e terá de criar essa criança como herdeira do trono do Egito.
Não existe outra solução.
Irritada e inconformada, Iaret ergueu-se num ímpeto:

- Você é um frouxo! Prefere renegar seu filho, deixar que ele cresça sem
saber quem é o verdadeiro pai, a assumir comigo a melhor solução para nosso
futuro.
- Não podemos fazer uma coisa dessas, Iaret, é muito perigoso. Se nos
descobrirem, morreremos também. E Djoser tem guardas junto dele o tempo
todo; não seria algo fácil de executar.
-Deixe que eu pense em um plano minucioso. Preciso apenas ter a certeza
de que poderei contar com você.
Hesitante, Amenhotep disse:
-Não quero que nos envolvamos nessa espécie de ação, Iaret.

- Quem sabe não seja você mesmo escolhido o próximo faraó?
-Djoser tem seus herdeiros.
-Todavia, você é muito apreciado pelos ministros; pelo menos boa parte
deles. Não seria difícil convencê-los a mudar a dinastia de mãos.
-Acha que seria possível?
- Tenho quase certeza. Muitos deles lhe têm demonstrado admiração e
respeito, mais do que sinto que nutrem pelo faraó.
- Não, Iaret, seria muito arriscado.
E estreitando a bela jovem nos braços, ele continuou:
- Quero que tome conta de si e que cuide bem de nosso filho.
-Vou pensar em algo, um plano infalível para nos livrarmos do faraó.
109



Ele ia responder, quando sua escrava pessoal bateu à porta:
-O grande faraó quer vê-lo, meu senhor; seu mensageiro está aqui.
-Avise que logo estarei lá. Olhando fixo para Iaret, ele pediu:


- Diga que não vai fazer nada sem falar comigo antes, por favor.
-Vou pensar em todos os detalhes. Assim que souber o que fazer, conversaremos.
Ele acompanhou a jovem até a saída e reforçou o apelo:

- Não faça nada antes de falar comigo.
Assim que Iaret se retirou, Amenhotep certificou-se de que ninguém os
vira e então foi diretamente ter com o faraó. Djoser o aguardava na sala do
trono, cercado pelos ministros e por alguns dos sacerdotes.

Ao adentrar o recinto, Amenhotep estranhou a presença de todos naquela
reunião. E extremamente preocupado ficou quando notou o olhar triunfante
que Rudamon lhe dirigia. De imediato imaginou que haviam sido descobertos
seu romance com Iaret e a gravidez dela. Temeroso, controlou as
emoções e se aproximou do faraó, fazendo reverência. Djoser lhe ordenou:

- Levante-se, Amenhotep.
O ministro-chefe mostrou intenção de chegar mais perto, sendo detido
por Djoser:

- Pode ficar aí mesmo, onde está. Ele estacou, ainda mais assustado. O
faraó prosseguiu:
-Amenhotep, tenho muito a lhe agradecer pelos serviços prestados ao
Egito. Confiei-lhe meu reino e você não me decepcionou em momento algum.


- Sou eu quem agradece, grande faraó.
-O meu túmulo está ficando magnífico e tenho certeza de que você será
lembrado como o maior arquiteto de meu reinado.
Amenhotep escutava quase sem respirar a manifestação do faraó:
-Gosto de você, Amenhotep, sempre admirei seus conhecimentos. Você

é especial. Entretanto, fui informado de que está envolvido em um problema
muito sério.

Amenhotep ergueu a cabeça devagar, buscando na mente um jeito de
desmentir qualquer acusação referente ao seu relacionamento com Iaret. O
faraó prosseguiu:

110



- Infelizmente, se o que me informaram for verdade, você não poderá
continuar no palácio; sequer poderá entrar nas redondezas da cidade. Mais
que isso: sinto muito, Amenhotep, mas será banido do Egito.
Amenhotep fazia menção de caminhar em direção ao trono quando Rudamon
esticou seu cajado, desenrolando-lhe a veste de um braço e deixando
algumas de suas manchas à vista de todos. Então disse:

- Está doente, Amenhotep, e já deveria ter se afastado do palácio por sua
própria vontade. Não pode colocar em risco um só dos ministros e muito
menos nosso grande faraó.
-Não creio que seja uma doença grave.
E ajoelhando-se diante do faraó, ele asseverou:


- Senhor, as manchas começaram a aparecer há algumas semanas. Só
preciso me tratar, para ficar curado. Se me expulsarem do Egito, não mais
terei acesso aos medicamentos e certamente a recuperação será impossível.
Rogo que não faça isso comigo, faraó. Permita-me permanecer -com restrições,
eu as aceito, porém autorizado a ser atendido e medicado.
Foi Rudamon quem respondeu:

- Sua doença é incurável e letal. Embora leve algum tempo, mata invariavelmente.
Sei de várias pessoas que apresentaram esse mal e não tiveram
esperança. Console-se, pois irá viver junto delas.
-O quê?
Rudamon sentenciou, satisfeito:
- Há um lugar em Hermon onde vivem muitos que têm essa praga. Será
levado para lá. É o mais seguro a fazer.
-Faraó, não pode fazer isso comigo, preciso tentar a cura! Ajeitando-se
no trono, Djoser falou austero:

-Sinto muito, Amenhotep. Não gostaria de decidir isso, mas não tenho
alternativa. Como disse Rudamon, é o mais garantido a fazer. Alguns servos
de minha guarda pessoal o seguirão a distância para ter certeza de que irá
para o lugarejo onde ficam os degredados.
Amenhotep sentiu as forças lhe fugirem do corpo. De joelhos, enfraquecido,
envergonhado, humilhado e desamparado, suplicou:

- O Egito é minha vida! Rudamon olhou-o fixamente e disse:
-Sua vida acabou.
Amenhotep levantou-se e ameaçou avançar sobre Rudamon, no que foi
impedido pelos guardas do faraó. Djoser ordenou:

111



- Levem-no. Deixem-no ir até o quarto e recolher seus pertences pessoais.
Nada além disso. Ele não deve sair do quarto pondo outros em risco.
Agora podem ir; ele deve partir imediatamente.
Desesperado, após ser largado em seu quarto, Amenhotep andava de um
lado a outro sem saber o que fazer. Não podia acreditar no que lhe estava
acontecendo. Andava e procurava uma forma de impedir que o levassem.
Pensou então em Iaret. Decerto o ajudaria. Mas como encontrá-la? Sentou-
se na cama, avaliando como poderia falar com a jovem esposa do faraó. Foi
até a porta e viu os guardas postados ao longo de todo o corredor. Mais de
quinze homens o vigiavam. Dirigiu-se à varanda e deparou com outros três
guardas. Um deles lhe disse:

- Depressa, temos ordens de levá-lo sem demora. Tem pouco tempo. Se
não estiver pronto logo, irá sem seus pertences.
Em extrema aflição, Amenhotep gritava:

- Não podem fazer isso comigo! Não podem! Eu sou Amenhotep! Não
podem fazer isso!
Sua atitude era dramática. Os guardas permaneciam imóveis, observando-
o. Ele, então, implorou:

- Permitam que fale com Iaret, por favor!
-A esposa do faraó? Para quê?
-Ela conhece meu trabalho, poderá defender-me junto ao grande Djoser.
-Nem pense em vê-la. Não pode sair desse quarto, a não ser para abandonar
o Egito.
Ele continuou a suplicar:

- Pelo menos levem a ela meu recado. Por favor, digam o que está acontecendo
e peçam que interceda por mim.
Penalizado com a situação do notável arquiteto, o chefe dos guardas cedeu:


- Muito bem, vou enviar um mensageiro até ela. Amenhotep entrou e
sentou-se na beira da cama em angustiosa espera. Algum tempo se passou.
Desolado, ele viu quando o mensageiro retornou e conversou em segredo
com o guarda. Este, então, trouxe-lhe a informação:
- Iaret mandou dizer que não o conhece a ponto de intervir junto ao faraó
em seu favor. Disse que sabe de seu trabalho e que lamenta a constrangedora
situação; no entanto, entende que o melhor que lhe cabe fazer é obedecer
ao faraó, partindo imediatamente.
112



Amenhotep ajoelhou-se outra vez no chão, rasgou as roupas que vestia,
deixando à mostra as feridas que lhe cobriam o corpo, e gritou num lamento
incontrolável:

-Não! Pelos deuses, não!

* * * *

Carregada por vários escravos, a Uteira conduzindo Amenhotep seguia
bem atrás aos soldados, a uma distância que consideravam segura.

Dentro dela, o grande arquiteto chorava como criança. Seu coração estava
dilacerado pela dor e pela vergonha; fora humilhado e abandonado. A
mulher que o procurara momentos antes daquela hora nefasta agora o desprezava,
dizendo que nem o conhecia. Amargurado, derramava doloroso
pranto.

A viagem até a região de Hermon durou muitos dias. Assim que se avizinharam
do destino, puderam ver ao longe homens e mulheres miseráveis,
que ocultavam suas chagas sob restos de vestes rotas e paupérrimas. O séquito
parou. A lacônica ordem dada aos soldados por um dos guardas do
faraó, os escravos abandonaram suas posições e dispararam na direção contrária
à entrada dos rochedos. Queriam regressar com os demais. Todavia o
chefe comunicou:

- Vocês ficarão aqui, ou poderão ir para onde quiserem. Estão livres.
Um deles gritou em desespero:
-E de que adianta a liberdade, num lugar destes? Por que não nos deixaram
morrer na tumba do faraó? Que faremos agora? Morreremos neste local,
junto com os banidos.
O soldado argumentou:

- No entanto, podem ir para onde quiserem.
Os escravos se entreolharam e alguns saíram em disparada, distanciando-
se dos soldados e de Amenhotep. Os soldados igualmente partiram em
retirada, abandonando a liteira bem próximo à área onde estavam os leprosos.


Alguns dos habitantes do lugar, curiosos, começaram a se aproximar da
peça que transportara o arquiteto. Amenhotep permanecia em tamanho desalento
que não percebera a movimentação dos escravos nem dos soldados.
Ainda tinha o pensamento longe e o rosto banhado em lágrimas, quando

113



notou a face oculta por panos de alguém que o observava, em silêncio. Ele
olhou para o rosto parcialmente coberto e gritou, assustado:

- O que é isso? Quem é você?
Era uma mulher que não respondeu, apenas continuou a encará-lo. Logo
outros rostos curiosos vieram juntar-se ao dela. Amenhotep, imóvel, ante
aqueles olhos semicobertos a fitá-lo, de novo gritou, apavorado:

- Pelos deuses, onde estou? Quem são vocês? Para onde foram os soldados
e os escravos?
A mulher que há algum tempo o olhava enfim respondeu:

- Todos se foram.
- E quem são vocês? Que lugar é este? - perguntou Amenhotep, saindo
da liteira. Ao vê-lo descer, os que estavam mais perto se afastaram. Ele caminhou
olhando desconfiado ao redor, enquanto os outros o examinavam
atentamente. Perguntou, irritado:
-Afinal, alguém pode me dizer onde estamos? O que todos vocês fazem

aqui? Parecem doentes! O que está acontecendo?
Um homem sisudo acercou-se dele e indagou:
-Não sabe para onde o trouxeram? De onde veio?

-De Mênfis, no Egito.
- Pois é hora de saber que foi abandonado, como prisioneiro deste lugar.
-Como prisioneiro? Não vejo os guardas.
-Na entrada de todas as cidades encontrará sempre um soldado para impedir
nossa passagem.

- E por que não podem sair daqui?
Abrindo os panos que o envolviam, o homem deixou que o recém-
chegado lhe visse os braços purulentos. Amenhotep não suportou e se pôs a
vomitar. Quando por fim conseguiu se controlar, olhou para as pessoas à sua
volta e gritou:

-O que são vocês? Onde estamos? Por que não saem daqui e procuram
ajuda?

- Somos prisioneiros nestes rochedos.
-Insistem nisso, porém não vejo os guardas.
- Não precisam colocar guardas aqui. Há soldados em todas as cidades
que poderíamos alcançar; todos devidamente instruídos a nosso respeito,
para impedir-nos a passagem. Para chegarmos a regiões mais distantes, pre114



cisaríamos de provisões, obtidas nas províncias mais próximas. E isso é impossível.
Logo, somos prisioneiros.

-E por que foram deixados aqui? Afinal, que doença é essa?
- Em minha terra a chamam lepra - disse uma senhora no fundo do povaréu.
-Já experimentaram as ervas?

-Esta doença não tem cura. Todos nós vamos morrer aqui, como muitos
já morreram.
-E não procuram fazer alguma coisa? Buscar socorro em outra parte?

- Não escuta? E inútil. Muitos já tentaram e acabaram morrendo no caminho
ou sendo mortos pelos soldados quando se aproximavam da cidade a
que se dirigiam. Aceite seu destino. Estamos condenados a viver aqui até o
fim de nossos dias. E para muitos, os dias de vida neste lugar esquecido se
tornam bastante reduzidos. Quem sabe você tem a sorte de ser um deles?
- Não é possível que não haja algo a fazer. Não acredito! Tem de haver
um modo de sair daqui.
Uma mulher com o rosto parcialmente envolto em trapos achegou-se um
pouco mais ao pequeno grupo que se fizera em torno do recém-chegado, e
disse:

- Moço, acho que ainda não compreendeu sua real situação.
Ela abriu os trapos que tampavam seu rosto e deixou que todos vissem
as profundas chagas que lhe desfiguravam o semblante. Depois, cobrindo-se
novamente, continuou:

-Não podemos mais viver entre os sãos. Quem aceitaria viver ao lado de
seres humanos que se deformam a cada dia? Tornou-se impossível. É melhor
aceitar logo sua condição e acomodar-se à nova vida. Assim os dias lhe
serão menos penosos. Se é que isto é vida.

Caindo em si, Amenhotep perdeu o resto das forças que o animavam e
sentou-se no chão, vencido e cansado. Lembrou-se de suas feridas e da reação
de repugnância do faraó e de todos os seus ministros. Por mais que lhe
doesse concordar, por mais que desejasse lutar contra a situação em que se
via, tinha de admitir que a mulher estava certa. Ele fora banido. Aquele mal
que o acometera transformara para sempre sua vida. Nunca mais seria a
mesma.

Sentado no chão, ele colocou a cabeça entre os joelhos e entregou-se a
profundo e sentido pranto, enquanto os outros se afastavam em silêncio.

115



CAPÍTULO 22

A noite estava clara e antes de se deitar Nitetis contemplava o luar, sentada
no jardim de sua casa. Raquel se aproximou suavemente e, notando o ar
distante da jovem, perguntou:

- Você está bem, Nitetis?
- Sinto-me triste hoje, como se algo doloroso me atingisse.
-Não seria a questão do casamento que a preocupa?
- Não, Raquel, conversei com Bek e ele está propenso a me atender. Preferia
casar-se logo, é bem verdade. Por ele, até já nos teríamos casado, conforme
Iuseneb desejava. Mas Bek me respeita e vai aguardar que eu diga
qual o momento certo.
- E quando será esse momento, Nitetis? O que está esperando? Bek a
ama.
Suspirando fundo, Nitetis respondeu:
-Eu sei, e também gosto muito dele.

- Gosta?
- Sim, aprecio bastante a sua companhia. Para mim isso já é suficiente
para compartilharmos a vida. Bek é ótima pessoa.
- Então não compreendo o que está esperando. Alguém a quem ame
mais do que a ele?
- Não sei, Raquel. Seja como for, você tem razão, eu já deveria ter me
decidido; só que algo me impede e não sei explicar o que é.
Abraçando ternamente a amiga, Raquel lembrou:

- Seu coração é complicado, Nitetis; muitas vezes eu não a entendo.
Mas, como seu pai sempre dizia, sua alma é especial, e está além de nossa
compreensão.
Deixando-se envolver pelo abraço reconíbrtante, após alguns instantes
de silêncio Nitetis falou:

- Hoje, em particular, sinto-me atormentada. Meu coração está opresso e
entristecido.
Levantando-se c estendendo as mãos para a jovem, Raquel pediu:

116



- Vamos dormir, querida. Quem sabe amanhã se sentirá melhor? Seu
noivo vem vê-la, não é certo?
- Sim, logo pela manhã. É melhor mesmo ir dormir; preciso estar bem
disposta para argumentar contra seus apelos veementes para apressarmos o
casamento.
As duas seguiram enlaçadas para o interior da casa. Nitetis acomodou-se
no leito e, não obstante o pensamento que insistia na figura de Amenhotep,
logo adormeceu.

Assim que seu sono se fez pesado, desprendido do corpo denso seu corpo
espiritual surgiu, nimbado de intensa luz rosa e azul. Próximo de seu
leito ela viu Jonefá, que a saudou atencioso:

- Olá, minha irmã, recorda-se de mim?
Abraçando com ternura o aliado de tantas jornadas, ela respondeu:
-E como esquecer o irmão querido? Parece que ficamos muito tempo
sem nos encontrarmos.

- Sim, faz algum tempo. Não foi necessário antes, visto que você vem
cumprindo com excelência sua missão.

-Porém, fracassamos outra vez.

-De maneira alguma. Nosso irmão é chamado agora à sua experiência

mais difícil. Desejamos que Deus lhe dê muita força para aproveitar a lição
que está para iniciar. Lembra-se?

- Imprecisamente.
-Amenhotep adoeceu gravemente e foi levado para o lugar dos enjeitados,
onde ficam os leprosos. Neste momento, está desolado, pensando em
tirar a própria vida.

- Não podemos permitir, Jonefá.
- Fique tranqüila, temos muitos amigos de nosso plano com ele, amparando-
o e sustentando-o nesta hora dolorosa. Não obstante, urge que ele
receba ajuda direta, do plano terreno.
-Estou pronta para ir ao seu encontro.

- Sabe dos riscos implícitos, minha irmã?
- Sei e estou disposta a aceitá-los.
Abraçando-a outra vez com imenso carinho, ele disse:
- Pois bem, que Deus a ampare e abençoe. Vá, minha irmã, vá ao encontro
de nosso irmão.
117



Nitetis despertou e sentou-se na cama, sobressaltada. Não se lembrava
de todos os detalhes do sonho que acabara de ter, mas com clareza ecoava
em sua mente a frase: Amenhotep adoeceu gravemente e f oi levado para o
lugar dos enjeitados, onde ficam os leprosos.

Levantou-se, caminhou até a sala de refeições e tomou um pouco de água
fresca. Sentou-se em um dos bancos, tentando organizar os pensamentos
e raciocinar sobre o que deveria fazer.

Ainda meditava quando Iuseneb aproximou-se sem fazer barulho. Ao
vê-la distraída, disse:

-Deveria estar dormindo. Seu noivo chega em algumas horas e vem para
decidir tudo. Eu próprio quero participar dessas decisões. Você está protelando
de novo esse casamento e seu noivo deixa que o domine. Pretendo
esclarecer que, a menos que tome uma atitude depressa, ele terminará por
perdê-la de vez.
Nitetis ouvia Iuseneb, sem conseguir parar de pensar em Amenhotep e
na frase que se repetia em sua mente. Ela precisava saber se aquilo era verdade.
Precisava descobrir se ele de fato estava doente e se tinha sido levado
para longe. Mas como?

luseneb insistia, exasperado:
-Está escutando, Nitetis? Está me ouvindo? Ela por fim respondeu:


- Sim, claro, Iuseneb, você tem razão.
-Do que está falando?
-De tudo. Tem razão em tudo. Preciso tomar uma atitude. Vou ao encontro
de Bek agora mesmo.

- O quê? Está maluca?
- Não, você está correto. Preciso tomar uma atitude drástica, não é isso?
Então, que seja agora! Vou à casa dele, assim podemos resolver já essa situação.
Perplexo, Iuseneb custou um pouco a responder:

- Não é necessário. Ele estará aqui em algumas horas e poderão definir
os pormenores desse casamento.
- Quero vê-lo já, meu irmão. Agora. Tenho urgência em vê-lo.
- Nitetis, estou cansado de suas atitudes impensadas. Para que...
Ela o interrompeu:
-Ora, ele já deve estar em pé, a esta hora. Veja, está quase amanhecendo.
Raquel pode ir comigo.

118



-Vocês não irão sozinhas a parte alguma.

-Então, venha conosco.

Depois de instantes de indecisão, ele capitulou:

-Muito bem, vá chamar Raquel e ver se concorda em nos acompanhar.
Se ela vier, preparo os animais.

Nitetis levantou-se sem dizer palavra e correu ao quarto de Raquel, que
já estava desperta e quando a viu indagou:

- O que está havendo, Nitetis? Você e seu irmão estão discutindo outra
vez?
- Nós a acordamos, Raquel? Desculpe.
-Meu sono estava leve, escutei as vozes. O que está havendo?
-Confia em mim, Raquel?
-Por que pergunta?
-Preciso desesperadamente de sua ajuda.
-O que foi?
- Tive um sonho, eu acho. Sonhei que Amenhotep está seriamente enfermo,
em um lugar onde vivem os leprosos e banidos da sociedade.
- O quê?! O lugar dos leprosos, em Hermon?
-Acho que sim.
- Que coisa terrível!
-E creio que não é somente um sonho, Raquel. É um aviso. Meu irmão
está doente e precisa de mim.
-Ainda que isso fosse verdade, o que você poderia fazer?

- Tenho de saber se é verdade ou nada mais que um sonho, e você precisa
me ajudar.
- Como?
-Pedi a Iuseneb que nos leve agora à casa de Bek.
-A esta hora?
- Está quase amanhecendo, Raquel. Por favor, não negue.
E por isso que estava tão angustiada ontem à noite. Meu irmão está muito
doente, está sofrendo demais.

-Nitetis...
-Por favor, Raquel, só preciso que descubra se é verdade. Enquanto
converso com Bek, você vai até o mercado e pergunta pelos últimos acontecimentos
do palácio. Bek mora bem perto do mercado e muito mais próximo
ao palácio do que nós. Lá devem saber de alguma coisa.
119



-Nitetis, tente se acalmar e pensar melhor...

As duas conversavam quando Iuseneb apareceu à porta anunciando:

- Seu noivo acaba de chegar. Vá trocar de roupa e venha recebê-lo. Raquel,
prepare o desjejum para nossos hóspedes.
Imediatamente Raquel se levantou e começou a se arrumar. Nitetis olhou
firme para Iuseneb e foi para seu quarto. Em alguns segundos estava de
volta à sala de almoço para encontrar Bek:

-Veio só?

-Achei melhor. Temos muito que conversar e decidir. Meu pai está impaciente,
Nitetis, e por isso preferi vir sozinho.

luseneb, que escutava a conversa, interveio:

-E ele está certo. Eu também estou impaciente com essa demora. O que
estão esperando, afinal?

Nitetis olhava para Raquel, como a implorar que tocasse no assunto relacionado
a Amenhotep, mas ela se mantinha calada. Após tomar alguns
goles de suco de uva, Bek se levantou, aproximou-se de Nitetis, tomou-lhe
as mãos delicadas e beijando-as, disse:

-Esperamos tão-somente que Nitetis se sinta segura com a decisão.

- Ela já está segura, Bek. Devem casar-se imediatamente. Nitetis continuava
a olhar suplicante para Raquel, que não
conseguiu mais se conter:

- Afora a impaciência, seu pai e sua família estão bem de saúde, senhor
Bek?
-Estão todos bem. Os negócios é que não andam muito promissores.
-E por quê? - perguntou Iuseneb, interessado.

- As recentes mudanças no palácio deixaram todos alvoroçados.
-E o que houve?
- Ainda não sabem? - ele hesitava, olhando fixo para Nitetis, que logo
falou:
- Amenhotep está afastado do palácio e de suas funções, não é, Bek?
Percebendo que ela já sabia do fato que tentava ocultar, Bek prosseguiu:
- Sim, definitivamente.
-Por quê? -questionou Iuseneb.
-Ele está doente... Parece que é um mal incurável. Olhando para Raquel,
Nitetis disse:

120



- Foi banido do Egito para sempre, Iuseneb fitou a irmã e, intrigado, indagou:
- Você já sabia disso e não me disse nada?
-Foi esta noite que descobri.
- Como? - foi a vez de Bek interrogar.
- Devo ter sonhado e ao acordar tive a certeza de que ele está muito doente.
Bek apertou a mão da noiva entre as suas e disse:

- Sei o quanto isso a machuca, Nitetis, mas não há nada que possamos
fazer para ajudá-lo. Ele foi banido, e onde está agora ninguém poderá acompanhá-
lo.
Pesado silêncio dominou o ambiente, enquanto Raquel mantinha os olhos
em Nitetis, penalizada.

Mais de duas semanas haviam transcorrido desde que chegara. Arqueado
e ofegante, Amenhotep caminhava na direção de um pequeno riacho que
por ali passava. Ajoelhou-se à beira das águas tranqüilas, que naquela parte
formavam um pequeno lago, e viu sua imagem refletida. Tirando a túnica
que lhe cobria o corpo, pôde observar as feridas que aumentavam no peito e
nos ombros. Ele as tocou de leve, sem ter dor ou qualquer outra sensação.
Levantou-se, ergueu os olhos para o céu e gritou alto:

- Por que os deuses estão fazendo isso comigo? O que foi que eu fiz de
tão abominável?
Ajoelhando-se outra vez, chorou amargurado até que as lágrimas secassem
em seu rosto. Ele sabia que sua situação era terrível. Sentia que nunca
mais deixaria aquele lugar e, mesmo que uma vez ou outra lhe viesse à cabeça
a idéia de retornar à Mênfis, faltavam-lhe forças para sair dali. Sua
mente estava confusa e seu coração profundamente magoado. Amenhotep
sentia-se traído, abandonado e sem esperanças.

Cambaleando, alcançou a sombra de uma árvore; deitou-se sob sua ramagem
farta e adormeceu. Quando acordou o sol já desaparecera no horizonte.
Ele recordou o esplendoroso entardecer que via de sua sacada, no
palácio, e teve imenso desejo de voltar. Pensou em seu quarto e subitamente
lembrou-se de que havia dias não comia nada; apenas bebia a água pura.
Notou, então, que tinha muita fome. Olhou para o alto da árvore que o protegia
e percebeu que era uma tamareira. Tentou subir para colher alguns
frutos, sem êxito. Não tinha forças.

121



Sentou-se novamente e, com o olhar perdido no horizonte, recomeçou a
pensar em morrer. Somente a morte lhe restava como saída. Sabia que não
poderia mais voltar para seu lar, para a vida que deixara. Portanto, que a
morte viesse o mais depressa possível.

Com enorme esforço, levantou-se e andou na direção da fumaça que via
ao longe, em uma clareira. Ainda não se aproximara de nenhum dos outros
que viviam ali, tampouco permitira que alguém se aproximasse dele; não
quisera conversa, mantendo-se isolado de todos.

Teve muita dificuldade até chegar a um grupo de pessoas sentadas ao
redor de uma fogueira. A princípio o olharam com certa curiosidade, para
em seguida, ignorando-o, continuarem o assunto que os entretinha. Amenhotep
avançou mais e perguntou:

-Sabem qual erva é a mais venenosa deste lugar?

Os que o ouviram se entreolharam sem responder. Uma mulher se levantou
e perguntou:

- O que pretende fazer? Não há ervas venenosas aqui. Fomos abandonados
neste lugar para morrermos aos poucos...
- Não acredito que não haja em algum ponto desta região uma planta que
se possa tornar veneno. Tem de haver; elas existem em toda parte.
Um homem que estava bem próximo do fogo disse, erguendo um pouco
a cabeça:
-Deve até haver alguma planta assim, porém ninguém aqui sabe qual é.
Terá de descobrir sozinho... Indignado, Amenhotep bradou:

- Vocês não fazem nada? Ficam aqui, como um bando de imprestáveis,
esperando que seus corpos apodreçam? Inúteis!
Outro dos homens que rodeavam a fogueira se ergueu e, agarrando Amenhotep
pela garganta, apertou-a até quase sufocá-lo. Quando conseguiram
afastá-lo do arquiteto, ele arrancou a túnica e gritou, exibindo o corpo
desnudo e com um só braço, pois o outro já fora devorado pela lepra:

- Todos sofremos muito! Basta-nos a dor de nossa solidão, a tortura de
morrermos aos poucos! Não precisamos suportar alguém a nos insultar!
Chega! Se o vir por perto de novo, não vai precisar de nenhuma planta venenosa.
Eu mesmo, com esta minha única mão, acabarei com sua vida, imbecil!
122



Ao ver o estado lastimável daquele jovem, Amenhotep afastou-se enojado
e correu como pôde para a margem do riacho. Recostou-se sob a tamareira
e adormeceu ao relento, coberto pelo céu cintilante de estrelas.

O tempo cumpria seu papel: Amenhotep mal conseguia comer as tâmaras
que caíam da árvore frondosa; estava a cada dia mais magro e cansado;
as chagas se aprofundavam lentamente, e ele já sentia dores pelo corpo todo.

Às margens do Nilo, na propriedade de Nitetis e de seus irmãos, Iuseneb
e Bek acertaram a data e os detalhes para a realização do casamento. Entretanto,
Nitetis sentia-se infeliz. Estava sendo pressionada pelo irmão a aceitar

o casamento com Bek, quando intimamente sabia que tinha de fazer outra
coisa.
Naquela noite, Iuseneb trouxe os últimos animais que seriam preparados
para as bodas, que aconteceriam dali a três dias. Nitetis, em seu quarto, cruzava-
o de um lado a outro, até que se sentou na cama, pensativa. Então, tomou
sua decisão. Sob a cama guardava alguns trabalhos que executara antes
que o pai partisse. Embrulhou-os com cuidado; eram três pequenas esculturas
primorosamente entalhadas em pedra. Ela sabia que mais perto do palácio,
com algum mercador, conseguiria uma boa troca.

Silenciosamente, preparou-se. Separou algumas roupas e as esculturas,
colocando tudo em uma sacola. Foi até a porta do quarto, abriu a cortina e
observou o movimento que vinha da sala de almoço. Todos estavam entretidos
com os preparativos para os festejos do casamento. Desejou chamar
Raquel, mas temia que dessa vez ela não ficasse do seu lado. Hesitou. Por
fim, ainda escutando a voz carinhosa da amiga, que falava animada de uma
das receitas de família que trouxera de seus parentes, saiu pelo outro lado da
casa e rápido desapareceu na estrada que levava à capital do reino.

Caminhou durante toda a noite, cuidadosa, para que ninguém a visse. Já
era manhã quando avistou um pequeno povoado, com um mercado movimentado.
Foi até um dos comerciantes, que tinha obras artesanais à venda.
Mostrou-lhe uma das estátuas. Impressionado, o mercador declarou só ter
visto algo tão belo e perfeito na câmara mortuária do faraó, que estava sendo
construída. Sem vacilação ficou com a peça, dando em troca mantimentos
e uma mula bem tratada.

Nitetis ficou satisfeita; era tudo de que precisava. Subiu no animal e já
se afastava quando perguntou:

-Sabe alguma coisa sobre o ministro-chefe do Egito, senhor?
123



- Amenhotep?
Ela anuiu com a cabeça e o homem respondeu, num sussurro:
-Ele foi enviado para o lugar dos degredados.
-Que lugar?
- O lugar para onde vão todos os que têm aquela doença horrenda.
-Sabe onde fica?
-Fica a caminho da Palestina, entre o deserto de Sur e Amom. Mas por
que pergunta? Qual o seu interesse?
- Apenas curiosidade.
Depois de pequena pausa, ela indagou:
- E as pessoas não saem de lá?
- Os doentes não podem entrar em parte alguma. Para onde quer que se
dirijam, levam consigo as marcas de sua sina. Nunca lhes permitiriam viver
perto de outras pessoas.
Nitetis agradeceu e iniciou sua jornada. Mas como chegar lá, se não conhecia
o caminho? Decidiu então que iria até mais próximo ao palácio, onde
conseguiria mais informações que a levassem até o irmão doente.

Quase sem perceber, ela foi direto para a imponente construção do templo
mortuário do faraó. Logo reconheceu o lugar e apressou-se. Desmontou
sem dificuldade e viu Amy, que veio saudá-la à entrada da edificação:

- Nitetis, o que faz por aqui? Pensei que tivesse voltado para casa.
Cumprimentando com um aceno de cabeça o antigo supervisor de obra
de seu irmão, ela começou a conversa:

- Como está, Amy? Como anda a construção?
-Um pouco lenta, agora que nosso mestre foi afastado.
- Sabe como ele estava quando partiu?
-Parecia bem, apenas um pouco preocupado.
- Tem alguma notícia dele, Amy?
- Não, nenhuma.
-Quem assumiu a responsabilidade pela obra?
-Rudamon assumiu a construção juntamente com Iaret, porém eles não
entendem nada do assunto e estão tornando o trabalho muito difícil.

- Pobre Amy, não deve estar sendo fácil mesmo! Observando a grande
construção que se erguia, ela continuou:
-Está muito bonita e por certo Amenhotep estaria muito orgulhoso de
você. Amy, sabe para onde o levaram?

124



-Para o lugar dos degredados, em Hermon; é para onde vão os doentes e

banidos do reino.
-E onde fica exatamente?
-Para que quer saber, Nitetis?
-Sabe como posso chegar lá?

-Você pretende ir até Hermon? Está louca? Ninguém volta de lá! Não
faça isso. É muito jovem e tem toda a vida pela frente. Por que estragar tudo?
Não poderá ajudar Amenhotep.
- Tenho certeza de que ele precisa de mim e de que posso ajudá-lo. Sabe
como se vai até lá?
- Não importa o que eu diga, não vai desistir, não é? Não importa quão
perigosa seja e viagem, nada a impedirá.
Ela sorriu ao confirmar:

- Nada. Tenho viajado por estradas muito mais longas para estar com
Amenhotep, acredite-me.
Amy a fitou sem compreender. Nitetis perguntou novamente:

- Pode me ajudar, Amy?
- Poderia pedir a algum escravo conhecedor do caminho que a levasse;
só que nada tenho para dar em troca...
Ela tirou outra escultura da sacola e entregou-a ao amigo:

- Tome, talvez isto sirva. Com outra peça consegui de um mercador
mantimentos e o animal...
Amy tomou a estátua nas mãos e examinou-a com atenção. Era linda. Ia
questionar a jovem, mas achou melhor dizer apenas:
-Fique aqui, vou ver o que consigo.
Depois de algum tempo de espera, Nitetis viu Amy chegando com dois

homens muito simples. Ao se aproximarem, Amy explicou:

- Estes são servos de minha confiança. Eles conhecem o caminho e a levarão
até bem perto do lugar; depois voltarão e lhes entregarei a escultura.
-Ótimo. Podemos ir já?

- Não prefere passar a noite aqui e viajar pela manhã? É mais seguro.
Temendo que Iuseneb enviasse alguém atrás dela, Nitetis pediu:
- Quero ir imediatamente, preciso chegar depressa. Estou muito preocupada
com o estado de Amenhotep. Receio que ele não suporte o sofrimento
e acabe com a própria vida.
-O que seria até um bem para ele...

125



- Não diga isso, Amy. A vida é nossa oportunidade. Enquanto estamos
aqui, podemos lutar, vencer, renovar, construir.
- Mas a situação dele é muito difícil.
- Eu sei, por isso quero estar ao seu lado nesta etapa. Ela já se preparava
para subir na mula, quando Amy a segurou pelo braço e perguntou:
- E você, Nitetis, vai entregar a vida dessa maneira? Não deveria também
lutar, construir, como você mesma disse?
- É exatamente o que estou fazendo; para isso estou aqui. Sem dizer
mais nada, ela montou no animal e agradeceu:
-Muito obrigada por tudo, Amy. Nunca vou esquecer quanto me ajudou,
meu amigo. Seu coração é generoso e bom. Que o Deus único esteja sempre
com você.

Antes que ele pudesse indagar que deus era aquele, ela se virou e partiu,
seguida pelos dois servos, que também levavam grande quantidade de mantimentos
obtida por Amy.

Ele acenou admirando profundamente aquela jovem mulher, determinada
e corajosa, que iria sacrificar a vida para ajudar o irmão.
Após longa e exaustiva jornada, a pequena caravana avistou finalmente

o lugar que buscava. Assim que o viu, um dos escravos parou e se virou
para a jovem:
- É somente até aqui que a acompanhamos. O local fica ali, depois daquele
estreitamento nos rochedos. Pode vê-lo?
Ela observou a área que se espalhava aos pés da colina:

- Sim, estou vendo. Sabe se todo esse espaço está destinado aos banidos?
- Acredito que sim, pois ninguém ousa ir além deste ponto. Tem certeza
de que quer prosseguir?
- Tenho, sim, e agradeço muito por sua companhia.
- Ao descer o morro, vá em direção àqueles rochedos. Está vendo, lá
embaixo?
-Estou vendo.

-Logo que entrar pelo estreito rochoso estará no lugar dos abandonados
e esquecidos. Desejo que encontre o que procura.
Mais uma vez, ela olhou para os dois homens e disse:

- Que o Deus único os guarde. Obrigada, novamente, por me trazerem
em segurança até aqui.
126



Em silêncio eles acomodaram na mula os sacos com man-timentos que
vinham carregando e puseram-se no caminho de volta à capital do império.
Nitetis ficou parada, contemplando o local à distância. Notou a beleza das
árvores que sobressaíam na paisagem e respirou fundo, como a haurir forças
da natureza para ir até o fim em seu objetivo. Olhou para o céu de intenso
azul e pediu ao Deus que ela não conhecia bem, mas que já amava e em
quem confiava, que a amparasse em seu empreendimento. E começou a descer.


O estreito, que do alto parecera tão próximo, ficava mais distante à medida
que ela descia. Nitetis chegara de manhã com os dois escravos e foi
somente ao entardecer que finalmente atingiu a pequena passagem que logo
se abria, expondo a farta vegetação. Ao atravessar a fenda entre as rochas,
viu algumas pessoas que a olhavam a certa distância. Parou o animal e perguntou:


- Procuro por um homem chamado Amenhotep. Sabem onde posso encontrá-
lo?
Vários rostos -ocultos em trapos -continuavam a espreitá-la desconfiados.
Ela, então, esclareceu:
-Por favor, ele é meu irmão e preciso achá-lo. Sabem onde está?
Um dos homens se manifestou, enfim:

-O que deseja aqui? Veio buscá-lo?
- Bem que eu gostaria, mas sei que ele não poderá entrar em parte alguma.
Vim para ficar com ele e ajudá-lo.
- Não sei quem é esse de quem você fala.
-Ele não deve estar neste local há muito tempo; no máximo três ou quatro
meses...
-Aqui aparecem estropiados todos os dias. Como vamos saber quem é
esse tal que procura?

-Não ouviram ninguém mencionar esse nome?

Uma das mulheres, que até aquele momento apenas ouvia a conversa,

disse:
-Só se for aquele impertinente de quem não sabemos sequer o nome. É
insuportável e ninguém fala com ele desde que chegou.

- Talvez seja ele mesmo. Sabem onde posso encontrá-lo?
- Não, ele nunca fica com o grupo; está sempre perambulando...
O homem que primeiro respondera a Nitetis interveio:
127



-Pode ser que encontre esse de quem lhe falamos perto das árvores, na
parte de cima do riacho. Ele gosta de ficar por ali.

Tomando o animal pela corda que o prendia, ela começou a andar rumo
ao riacho, dizendo:

- Muito agradecida, vou até lá agora mesmo. A mulher lhe perguntou:
- Sabe o que está fazendo? Sabe realmente que lugar é este?
Nitetis sorriu, serena, e respondeu:
-Eu sei, senhora, não se preocupe.
A jovem caminhou até a beira do riacho e ali deixou que o animal se
dessedentasse da longa jornada. Ela também se abaixou e tomou grandes
goles da água cristalina que descia pelas rochas. Ao erguer a vista notou que
sob uma frondosa árvore, acima da outra margem do rio, alguém estava estendido
no chão. Puxou o animal com a corda, cruzou o riozinho e aproximou-
se do homem prostrado sobre as folhas secas e a relva.

Já bem perto, constatou que era Amenhotep. Instantaneamente seus olhos
encheram-se de lágrimas que desciam pesadas, escorrendo-lhe pela
face. A condição do irmão a penalizara de imediato. Seu corpo estava coberto
por chagas pu-rulentas, suas roupas eram trapos imundos e seu abatimento
era indescritível. Ele parecia dormir. Nitetis andava devagar, para não
acordá-lo. Prendeu a mula em uma pequena árvore e sentou-se ao lado de
Amenhotep, limpando-lhe delicadamente o rosto com água fresca que trouxera
do riacho. Ele abriu os olhos, tentando ver o que o tocava, e espantou-
se ao deparar com o olhar doce e terno de Nitetis. Sentou-se, tirou as mãos
dela de seu rosto e inquiriu:

-O que faz aqui?
- Vim cuidar de você, meu irmão.
-Vá embora, não preciso de ninguém. Calmamente, ela propôs:
- Então cuide de mim. Eu preciso muito estar perto de você.
Ele a fitou nos olhos tranqüilos e amorosos, molhados pelas lágrimas, e
indagou:
-O que deseja, humilhar-me ainda mais?

-Sabe que não é isso. Quero ficar aqui com você, para ajudá-lo nesta
hora difícil.
- Não acredito nisso. Todos me abandonaram.
Ela sentou-se ao seu lado e, segurando-lhe a mão, disse:
128



- Vamos cuidar desses machucados. Trouxe algumas ervas que podem
aliviar sua dor. Sente dor, Amenhotep?
Ele puxou a mão doente ao responder:

-Muita.
Ela tornou a pegar-lhe a mão. Tirando alguns frascos de um dos sacos,
começou a fazer compressas em ambas as mãos do irmão, enquanto dizia:

-Vamos cuidar desses machucados.

Ele emudeceu e ficou a observá-la, sem ação. Seu coração orgulhoso es


tava tocado de profunda ternura pela irmã e, a despeito da revolta que o dominava,
não teve coragem de reagir; ficou calado algum tempo, depois perguntou:


- Sabe que nada disso vai adiantar, não é? Esta praga não tem cura! Eu
vou morrer de qualquer jeito. Por que não me deixa morrer sozinho? De que
adianta ficar aqui, desperdiçando seu tempo e sua vida? Será inútil, Nitetis.
Eu não ficarei curado e você acabará morrendo também.
Com os olhos fixos nos do irmão, sentindo emoção intensa, ela disse:

- Amenhotep, a vida é uma grande oportunidade. Todos os momentos
são preciosos para nossa alma imortal. E sua alma é o mais importante para
mim. Quero estar ao seu lado, ajudando-o a atravessar este momento tão
difícil em sua existência. Para isso vim: para ficar ao seu lado. Não importa
o que vai acontecer depois: quero ajudá-lo; sempre quis, meu irmão.
Angustiado, ele se levantou e ficou andando de um lado para outro, sem
falar. Depois se virou para a irmã:

-Não consigo compreendê-la, Nitetis. Por que quer jogar fora sua vida?
Você mesma está dizendo que a vida é uma oportunidade. Por que então não
quer aproveitar a sua, estragando-a por minha causa?
Ela fitou-o e disse:

-Porque o amo muito e não posso viver longe daqui, sabendo que precisa
de apoio e de alguém tão-somente para conversar, aliviando assim a dor do
seu coração. De que me valeria estar distante, com o coração triste, angustiado,
desejoso de saber notícias suas? Serei mais feliz aqui, ao seu lado.

Tocado no mais íntimo pelas palavras amorosas da irmã, ele ajoelhou-se

e verteu copioso pranto. Nitetis o abraçou e aconchegou-o junto ao ombro:
-Chore, meu irmão, que as lágrimas vão aliviar um pouco o seu coração.
Ele alçou um pouco a fronte e disse:

129



- Duvido. Chorar é só o que tenho feito e meu coração está ainda mais
pesado e oprimido. Perdi tudo o que possuía, tudo com que sempre sonhara.
Eu tinha conquistado tudo, Nitetis, tudo. Tinha tudo aquilo que desejei, inclusive...
-Inclusive?

- Um filho.
- Um filho?
-Iaret está esperando um filho meu. E agora eu perdi tudo! Minha vida
não tem mais sentido, não tenho mais razão para existir!
Ele chorava convulsivamente e Nitetis calou-se por alguns minutos.
Quando Amenhotep sossegou um pouco, ela ergueu seu rosto, limpou as
lágrimas que teimavam em correr e disse:

-Sei que é difícil para você compreender, por ora, mas às vezes quando
pensamos perder é que realmente estamos ganhando. O Deus único, que
sabe todas as coisas, cuida de nós e nunca nos abandona.

- Que deus é esse? Nunca ouvi falar nele.
-Mas sabe, bem no fundo da alma, que ele existe. E, mais do que isso,
vai enviar para a Terra alguém muito especial, que ensinará aos homens o
caminho da luz.

-Do que está falando, Nitetis?
-Do enviado dos céus que virá ensinar o amor e ajudará todos os homens
a se reaproximarem de Deus.
-Afinal, que deus é esse? Onde ouviu falar dele?

-Foi Raquel quem me falou do Deus único, criador de todo o Universo.
E eu creio nele.
-Só podia ser idéia da Raquel...

- Acredito nele, e não é só pelo que ela contou. Na verdade é como se eu
soubesse desde sempre da existência desse Deus. Por mais que aprendesse
sobre os nossos deuses e sobre o respeito que lhes devíamos, sentia que havia
alguém mais poderoso e superior a todos eles, e que esse era o verdadeiro
Deus. Quando Raquel me falou sobre ele, apenas o reconheci.
-Não a compreendo, Nitetis.
- Tem certeza? Sei que no fundo você também sabe de todas essas coisas,
apenas não quer admitir.
- E que tem esse deus a ver com o que estou vivendo?
-Ele só quer o nosso bem.
130



O irmão gritou, dilacerado pela dor:

- E por isso nos põe doentes e nos mata? Ela enlaçou-o com amor e disse:
- Entendê-lo, e perceber o sentido de tudo isso, é nossa tarefa. E o mensageiro
de Deus, o enviado de que lhe falei, nos ajudará a conhecê-lo e
compreendê-lo.
-Foi Raquel quem lhe falou desse tal enviado?


- Ela falou algumas coisas, mas eu já sabia de tudo o que me disse.
-E quando ele virá?
-Não sabemos; mas é certo que um dia virá. Envolvido pelas suaves vibrações
que Nitetis irradiava enquanto conversavam, Amenhotep sentou-se
ao seu lado. A irmã lhe deu pão, frutas e vinho e ele, por fim, adormeceu em
seu colo e repousou como há muito não conseguia.

CAPÍTULO 25

O sol raiou no horizonte e seu brilho feriu os olhos de Amenhotep, que
dormia sono profundo. Ao sentir os raios do astro-rei lhe tocarem a face,
despertou vagarosamente. Abriu os olhos e fitou o céu de azul intenso. Sentou-
se sem pressa e procurou por Nitetis. Não a vendo em parte alguma,
levantou-se e caminhou devagar até a beira do riacho. Avistou a irmã conversando
com algumas pessoas na outra margem. Teve vontade de chamá-
la, porém desistiu e voltou, sentando-se outra vez embaixo da tamareira.
Notou que sobre um forro de linho alvo ela havia deixado algumas frutas e
suco de uva. Comeu e bebeu, enquanto Nitetis retornava de sua caminhada.

-O que estava fazendo? O que conversava com aquela gente?

- Estava oferecendo um pouco de comida a eles.
- Não devia fazer isso, Nitetis.
-E por que não?
- Vamos acabar ficando sem nada!
-Não se preocupe. Amy vai providenciar mais alimento daqui a poucos
dias.
-Amy?

131



-Sim, deixei com ele duas esculturas que fiz há algum tempo. Ele está
trocando por alimentos e mandará alguém para nos deixar as provisões num
lugar combinado, no alto da montanha.
Amenhotep observou-a enquanto se movimentava, organizando tudo à
sua volta. Depois, quando ela se sentou, perguntou:

-Por que estava ajudando aquelas pessoas?
- Porque precisam de ajuda. É tão simples...
- Vai acabar sendo atacada e roubada por eles e por outros, quando souberem
que trouxe comida.
- Não se inquiete, meu irmão; teremos o suficiente. Depois de longa
pausa, Nitetis questionou:
-Ontem você falou que Iaret espera um filho seu. Tem certeza disso?
-Foi ela própria quem me contou, e não tinha razão para mentir.
Demorado silêncio se fez entre eles. Por fim, Amenhotep perguntou:
- Você me faria um favor?
-O que estiver ao rneu alcance.
- Quando vierem trazer mantimentos, se é que realmente virão, poderia
tentar obter notícias da capital, de Iaret e de meu filho?
- Não sei se vou conseguir, mas posso tentar. Amenhotep se levantou,
caminhou até a beira do riacho e
agachou-se. Fitou longamente as feridas que já cobriam grande parte de
seu corpo; olhou uma a uma as que sua vista alcançava. Em seguida voltou e
sentou-se, calado. Nitetis, que o observara sutilmente, também permaneceu
em silêncio, até que perguntou:

-Quando começaram?

- Há alguns meses.
- Sentiu alguma coisa diferente? Teve contato com alguém doente?
-Não, foi tudo de repente, de uma hora para outra. Quando apareceram
eram somente manchas avermelhadas. Não dei muita importância; quis acreditar
que não era nada sério e que sumiriam logo. No entanto, ao invés de
desaparecerem elas começaram a aumentar até se transformarem nessa coisa
horrenda que tenho agora.
- Não diga isso, meu irmão.
- Estou horrível! E vou ficar cada vez pior. Alguns daqueles homens que
ficam do outro lado do rio... Eles são verdadeiros monstros...
132



Nitetis o olhou com piedade e não alimentou o assunto. Apenas foi ao
encontro dele e ofereceu-lhe o braço:

-Vamos dar uma caminhada? Este lugar é muito bonito e sei que você
não saiu desta banda desde que chegou.

Amenhotep olhou-a incrédulo e perguntou:

-Está brincando?

-Claro que não!
- Não quero andar, não quero fazer nada! Quero morrer, é somente isso
que desejo!
Pacientemente, Nitetis tomou a mão dele entre as suas e, puxando-o suavemente,
reiterou:

- Venha, vamos caminhar um pouco. Há paisagens magníficas ali adiante.
Às vezes o espaço que nos separa da felicidade é bem menor do que podemos
imaginar. Venha caminhar ao meu lado. Vamos conversar um pouco,
meu irmão. Que mais pode fazer agora, a não ser aproveitar o tempo para
ver e sentir coisas belas?
- Você não entende. Eu estou morrendo... Que beleza posso ver naquilo
que me cerca?
-Existe beleza em toda parte, Amenhotep. E além do mais, a vida continua
sempre, sabe disso. Portanto, preparemos nossos corações para encontrar
com a eternidade...

Sem saber o que responder, ele a acompanhou em agradável caminhada
à margem do riacho, por entre clareiras e mata fechada, vendo muita beleza
natural.

Iniciou-se assim um hábito diário. Nitetis e o irmão andavam bem cedo,
pela manhã, quando ele tinha mais disposição e suportava melhor a exposição
ao sol.

Durante os passeios, os dois conversavam muito sobre diferentes assuntos.
Nitetis pôde compartilhar com ele tudo o que vivera ao lado do pai,
lembrar todo o carinho que este lhe dedicara, e mostrar a Amenhotep quanto
lhe queriam bem.

Quando a revolta dominava Amenhotep, as longas caminhadas o ajudavam
a espairecer. Quase sempre, ao retornar em companhia da irmã, ele
estava de ânimo um pouco mais elevado. Entretanto, ao mesmo tempo, seu
corpo se deteriorava rapidamente sob a ação voraz da doença que o consumia.


133



Em alguns meses, Amenhotep não conseguia mais se mirar nas águas do
riacho. Seu corpo estava desfigurado e passou a ocultar-se em panos, como
via os outros fazerem quando chegara. As feridas exalavam forte odor, e os
panos o continham ligeiramente.

Amenhotep sentia as forças lhe sumirem aos poucos do organismo cansado.


Naquela manhã ele não quis caminhar. Nitetis saiu para buscar as provisões
que os escravos trouxeram e ocultaram atrás das plantas, no alto do
morro. De longe, fizeram sinal para Nitetis, que então subiu para apanhar os
alimentos. Ainda que a distância, deram-lhe breves notícias do palácio.

Assim que ela regressou o irmão perguntou, ansioso:

- Soube alguma notícia de Iaret? Ela está bem? Já deve ter tido o bebê,
ou ele está para nascer. O que soube?

Nitetis acomodou-se ao seu lado e ofereceu:

-Quer um pouco de leite? Aproveite enquanto está fresco... Amenhotep,

junto dela, insistiu:

- Conte logo, o que soube de Iaret? Eles disseram alguma coisa, não disseram?
Com o semblante preocupado e entristecido, ela respondeu, ante a insistência
do irmão:

- Iaret está bem.
-Que bom! E o bebê?
-Ela não teve bebê algum.
-E quando vai nascer?
-Não vai nascer.
-Como assim?
- Iaret não está mais grávida.
-O que me diz? Ela perdeu o bebê?
-Eles disseram que houve boatos abafados sobre uma gravidez, porém
o falatório logo se dissipou. Iaret, que tivera diversos mal-estares, recuperou-
se plenamente e nunca mais teve qualquer problema. Muitos dizem que
tirou o bebê.
-Isso não é possível! Ela não...
Amenhotep calou-se. De súbito, lembrou-se vivamente de Iaret, de seu
temperamento impetuoso e de seu comportamento. Não disse mais nada.

134



Sabia que os boatos podiam ser verdadeiros. Lágrimas ardentes rolaram pelo
seu rosto. Nitetis achegou-se ainda mais a ele e tentou animá-lo:

- Não fique triste assim, meu irmão. Vamos caminhar? -Não!
Ele se abaixou e tomou nas mãos punhados de terra misturada à areia,
que jogou sobre a cabeça. Depois se sentou e disse:

- Estou de luto, Nitetis. Já perdera quase tudo, mas tinha a luz da esperança
na imagem que fizera de meu filho. Agora perdi a nesga de luz que
ainda restava em minha alma.
Abraçando-o com ternura, ela pediu:

- Tem de continuar a acreditar no bem.
-Como? Eu não tenho mais nada! Tiraram-me tudo. Nitetis o olhou nos
olhos e disse num profundo suspiro:
-Eu sei que é difícil. Chore, que o pranto lhe fará bem. Quando o irmão
parecia mais calmo, ela continuou:
-Tudo tem uma explicação. Precisamos aprender a ler os sinais da divindade
a nos guiar em tudo o que nos acontece.

Enfurecido, com alguma dificuldade ele se levantou e gritou:

-Não agüento mais seus sermões ridículos! Não me venha outra vez com
essa história de que tudo é para o bem! Não é verdade! Se existe mesmo um
deus único, como você vive falando, ele deve se divertir muito às nossas
custas! É um monstro!

Sem dizer nada, Nitetis foi até as sacolas com as provisões, pegou alguns
mantimentos e saiu levando-os consigo. Já era madrugada quando retornou
e encontrou Amenhotep delirando, com febre muito alta. Ela o protegeu
com mais cobertas e preparou-lhe um chá, que ele bebeu sem relutar.

Depois daquela noite, o estado físico de Amenhotep piorou rapidamente.
Ele não mais se levantou e Nitetis cuidava dele com extremado carinho,
fazendo compressas em suas feridas para atenuar as fortes dores que sentia.

Paciente, ela lhe falava com doçura do Deus único e da grande oportunidade
que a vida representa. Quase sem poder falar, ele apenas a ouvia e,
ainda que entorpecido pela situação, percebia o amor que a irmã lhe dedicava.


Algumas noites depois, sob o frio cortante da madrugada, Amenhotep
chamou pela irmã, que dormia a seu lado. Sua voz fraca sumia na garganta:

-Nitetis...
A jovem se levantou de imediato e se debruçou sobre ele, solícita:
135



-O que foi, meu irmão?

Apertando-lhe a mão com força, Amenhotep balbuciou:

-Perdoe-me...

Nitetis olhou firme em seus olhos e, antes que pudesse dizer qualquer
coisa, viu que estavam imóveis. Compreendendo que Amenhotep partira
para a outra vida, fechou-lhe os olhos com carinho. As lágrimas corriam
pela sua face ao se despedir:

- Que Deus todo-poderoso o receba em seu lar. Quando o dia amanheceu,
Nitetis terminava de enterrar o irmão. Exausta, sentou-se à sombra da
frondosa árvore que os abrigara e adormeceu. Enquanto seu corpo dormia,
seu espírito desprendeu-se do corpo físico e encontrou o corpo espiritual de
Amenhotep, ainda sob a árvore, deitado exatamente na posição em que estava
ao expirar. Então ela avistou Jonefá e, aliviada, disse:
-Que bom vê-lo, meu amigo.

- Sua missão está encerrada. Deve regressar em breve ao nosso plano.
-Deixe-me ajudar um pouco mais esses homens e mulheres que estão
aqui. Gostaria de falar-lhes do amor divino e consolar-lhes o coração sem
esperança.
Afagando-lhe a fronte com carinho paternal, Jonefá as sentiu:

-Está bem, permaneça um pouco mais com nossos irmãos necessitados.
Contudo, não deveremos prolongar em demasia sua estada. Sua missão terminou.
Olhou para o corpo espiritual de Amenhotep que gemia sobre a relva:
-Vão levá-lo agora ao hospital, para que se recupere?

- Vamos levá-lo, fique tranqüila. Apesar da rebeldia renitente que abriga,
o coração de nosso irmão está abrandado. A doença prolongada lapidou
seu interior; ele está pronto para receber ajuda de kmãos que já transitam em
esferas superiores. Vamos fazer tudo o que for possível por ele, enquanto
aguardamos seu retorno, minha irmã.
Abraçando Jonefá com carinho, ela agradeceu e voltou ao corpo físico.

Jonefá tomou nos braços o corpo espiritual de Ernesto, ainda sob a forma
de Amenhotep, e, em companhia de outros irmãos que também vinham
ajudar, levou-o consigo para uma colônia de socorro em ambiente próximo
à crosta da Terra.

136



CAPÍTULO 26

Quando Nitetis despertou o dia já ia alto. Embora entristecida pela partida
do irmão, sentia-se afeiçoada aos habitantes daquele lugar. Ela se levantou,
juntou os pertences e foi em direção ao grupo que se mantinha no centro
da região. Aproximou-se e serenamente disse:

-Meu irmão morreu ontem; já não tenho mais ninguém. Posso ficar com
vocês?

Os homens e mulheres doentes se entreolharam e um deles falou:

-Não nos importa que fique, mas você não contraiu a doença, ainda. Por
que não volta para casa, já que seu irmão está morto? O que mais tem para
fazer aqui?

Nitetis fitou o homem e pensou por alguns segundos antes de responder:

-Tem razão, eu deveria partir; no entanto, é imensa minha vontade de
continuar aqui. Se não os incomodar, pretendo ficar.

E abrindo uma das sacolas, ela tirou pão e frutas secas que ofereceu aos
circundantes:

-Tenho comida, querem um pouco?

Uma das mulheres achegou-se desconfiada e aceitou a comida. Depois
outra e mais outra vieram para perto da jovem. Lentamente, um após outro,
foram todos se juntando ao redor da bondosa moça. Ela, então, disse:

- Quando vim para cá, trouxe algumas ervas para ajudar no tratamento
de meu irmão. Apesar de não poderem curar essa doença, elas aliviam a dor.
Se desejarem, ainda tenho bastante aqui comigo.
A mulher que se aproximara primeiro comia sofregamente um pedaço
de pão, ouvindo Nitetis. À sua última oferta, a doente informou:

- Sei de alguns que estão muito mal, quase sem poder andar. Moram para
lá do riacho, mais abaixo de onde você e seu irmão costumavam ficar.
Talvez possa ajudá-los.
-Claro, vamos até lá. Podem levar-me até eles? Concordando com a cabeça,
a mulher caminhou na direção dos mais necessitados, seguida pela
jovem egípcia.

Nitetis passou a tratar dos doentes mais graves, enquanto espalhava suavidade
e doçura com sua presença e suas palavras. Além de cuidar do corpo

137



degenerado daqueles homens e mulheres excluídos e esquecidos, tinha sempre
uma mensagem de esperança a dirigir-lhes.

Em muitas noites frias, sentava-se ao lado deles, em volta da fogueira, e
falava-lhes do salvador prometido que viria à Terra para socorrer a humanidade;
abrandava a revolta e a desesperança com suas palavras de compreensão
e incentivo. Freqüentemente dizia:

-Tenham paciência, meus irmãos, pois toda a dor há de passar.

Fitava os olhos sofridos daqueles seus irmãos e prosseguia, cheia de
compaixão e misericórdia:

-Não se sintam abandonados. O Deus único e verdadeiro, que nos criou
a todos, está sempre conosco, por mais difíceis sejam os momentos que vivemos
sobre a Terra. Ele nos mandará o Messias, e esse enviado encherá
nosso planeta de amor e de novas esperanças.

Eles a olhavam sem coragem para responder. Entre aqueles seres degredados,
muitos eram egípcios e nunca haviam ouvido falar em um deus único.
Todavia, aquela jovem perfeitamente sã, cuidando deles com tanto amor,
tocava até o mais endurecido coração. E eles a ouviam e se enterneciam com
suas doces palavras e seus gestos de bondade.

Em uma colônia espiritual, próximo à crosta da Terra, Amenhotep descansava
sobre um leito limpo e confortável. Às vezes acordava e via a seu
lado um jovem de vestes alvas e resplandecentes que lhe dirigia palavras
tranquilizadoras e lhe dava água; ele bebia e logo, outra vez sonolento, voltava
a dormir.

Assim permaneceu por várias semanas. À medida que se fortalecia, os
períodos de vigília começaram a se ampliar. Ele passou a sentar-se na cama
e por algum tempo conseguia permanecer desperto.

Naquele dia, abriu os olhos sentindo-se bem melhor. Sentou-se na cama
e não viu ninguém por perto. Tudo lhe parecia estranho: a construção em
que estava era diferente de todas que conhecera antes. Mas pequenos desenhos
familiares estavam distribuídos pelas paredes do quarto, semelhantesàs esculturas que Nitetis fazia. À lembrança da irmã o estranhamento foi
ainda maior. A última coisa de que se lembrava era de estar com ela no local
dos banidos. Onde estaria agora? Que lugar era aquele? As dúvidas se acumulavam
na mente de Amenhotep. Ele tentou se levantar e teve de sentar-se
de novo, assaltado por forte vertigem. Ouviu uma voz já familiar:

-Não queira se levantar, você precisa descansar.
138



- Onde estou? Que lugar é este? Quem é você? Onde está Nitetis?
-Calma, uma coisa de cada vez. Tome um pouco de água. Amenhotep
recusou:

- Não. Toda vez que bebo dessa água volto a dormir. O que estão colocando
nela?
- Meu irmão, essa água só lhe tem feito bem. Você já está mais forte.
Amenhotep olhou para seus braços e pernas e viu que as feridas tinham
quase desaparecido.

-Estou curado! Veja, as feridas estão sumindo... É essa água?
O rapaz sorriu e disse:
- Essa água faz muitos milagres, mas sua recuperação se deve também a
outros fatores.
-Foram as ervas de minha irmã, não foram? Elas estão me curando!
Pacientemente, o jovem prosseguiu:
-Acha que consegue caminhar apoiado em mim? Erguendo-se, Amenhotep
respondeu:
-Vou tentar. Para onde vai me levar?

- Vamos dar uma caminhada. Quero mostrar-lhe algo. Apoiado no rapaz,
Amenhotep acompanhou-o para fora do quarto. Assim que saíram, olhou
com surpresa o ambiente onde se encontrava:
- Afinal, que lugar é este? Quem são vocês e todas essas pessoas? São
outros leprosos?
E fitando seu acompanhante com estranheza, insistiu:

- Onde está minha irmã?
O rapaz apenas respondeu:
- Venha comigo, vamos ver uma pessoa. Alcançaram uma construção
bela e simples, rodeada por flores de uma espécie que Amenhotep nunca
vira, e que ainda assim lhe pareciam familiares. Parou diante das flores e
ficou a apreciá-las. O rapaz lhe perguntou:
-Gostou das flores?
-Estou intrigado. Não me lembro de ter visto flores iguais antes, porém
ao mesmo tempo parece que as conheço...

-Vamos entrar. Há muitas coisas que você já viu e das quais agora não
se lembra.
139



Amenhotep seguiu-o em silêncio. Ao chegarem à ampla sala, repleta de
livros, o jovem certificou-se de que ele estava bem e, acomodando-o em
uma confortável poltrona, pediu:

- Fique aqui um instante, vou chamar alguém que quer muito vê-lo.
Confuso e agitado, Amenhotep ficou a observar a poltrona e os livros,
sem entender o que era tudo aquilo. Que tipo de artefato seria aquele em que
se sentava? O que seriam todos aqueles objetos colocados lado a lado em
escadas de madeira? Ele se fazia muitas outras perguntas, ao mesmo tempo
em que olhava os braços e especialmente as mãos, limpos das feridas que
tanto o haviam torturado.

O rapaz voltou junto com Jonefá. Ao vê-lo, Amenhotep teve outra forte
vertigem. Prestes a perder a consciência, foi acudido pelo jovem, que lhe
aplicou passes restauradores. Com isso, aliado ao amparo de Jonefá, Amenhotep
conseguiu refazer-se e, apoiando-se no rapaz, sentou-se de novo na
poltrona.

Jonefá se acomodou em uma cadeira ao lado e disse:

-Você deve estar se fazendo muitas perguntas. Tenha paciência. A memória
virá gradativamente. Se fizer maior esforço para recordar tudo de uma
vez, a vertigem que sentiu agora voltará mais forte. Precisa ter paciência.

-Eu o conheço... Não sei de onde, mas sei que conheço. Tocando o ombro
do antigo amigo, Jonefá disse:

-Sim, meu irmão, você me conhece, bem como a este lugar; e muitas outras
lembranças que hoje lhe parecem confusas retornarão à sua mente aos
poucos.

-Onde estou?
-Esta é uma colônia espiritual, situada próximo à crosta da Terra.
-Colônia espiritual...
-Exatamente. Você não está mais em Hermon, nem na Terra; Nitetis
continua lá, porém você deixou o planeta; você desencarnou.
-O quê?

- Você morreu, Amenhotep.
-Mas como? Não entendo...
- Seu corpo mais denso, que usou na Terra, está morto, vítima da lepra
que o consumiu. Você se encontra numa colônia de recuperação, onde poderá
restaurar as energias para então compreender seu passado e preparar-se
para o futuro que o espera.
140



Fitou o jovem que também se sentara ao seu lado:

- Eu o conheço igualmente... Mas de onde?!
De súbito, imagens vagas apareceram na mente de Amenhotep:
- Vejo uma casa estranha... Um lugar distante... Você... Ele parou de falar.
Seus olhos miraram o infinito. Então deu um grito doloroso e caiu em
pranto convulsivo:
-Elvira!
Amparado novamente por Henrique, que acabara de reconhecer, e por
Jonefá, que lhe aplicava passes na região da glândula pineal, Amenhotep
adormeceu.

Ao despertar de um longo período de descanso e refazi-mento, estava de
volta ao leito. Só que dessa vez as lembranças afloravam uma após outra.
Assim que despertou, sentou-se e viu Henrique. Exclamou, quase gritando:

-Eu me lembro, Henrique! Lembro-me de muita coisa... De sua mãe...
Onde está Elvira?
Henrique sentou-se na cama ao lado de Amenhotep; dando-lhe água,
respondeu:

- Precisa se acalmar. As lembranças não podem vir todas de uma vez,
como Jonefá lhe disse; têm de vir aos poucos, ou você não suportará.
-Onde está ela?
- Lembra-se de sua recente estada na Terra?
- Estou confuso. Sinto-me várias pessoas ao mesmo tempo...
-Você estava vivendo no Egito, recorda?
-Sim, claramente! Disso eu não tenho dúvida alguma. São outras lembranças
sobrepostas que me perturbam.
-São suas outras vidas, suas outras encarnações. Por isso deve ir com
calma.

-Mas por que me lembro tão nitidamente de você e de Elvira? Onde está
Elvira?
- Permanece encarnada na Terra. Fitando o rapaz longamente, ele disse:
-Lembro-me de outro lugar, outro país, outro... mundo!
- Sim, um mundo do sistema de Capela. É de lá que viemos.
-Estou confuso...
-Com o tempo tudo ficará mais claro.
- Disse que Elvira está na Terra? Ela também veio conosco de Capela?
141



- Eu e ela viemos de maneira um pouco diferente da sua. Amenhotep ia
prosseguir, quando Henrique o deteve:
-Agora descanse, precisa estar calmo para que as lembranças não o perturbem
tanto. Durma um pouco. Eu ficarei aqui mesmo, não vou sak. Quando
despertar, continuaremos nossa conversa. Você se sentirá melhor ao acordar.


Sem discutir, sentindo-se profundamente cansado, Amenhotep acomodou-
se e adormeceu novamente. Ao despertar, viu Henrique sentado em
uma poltrona perto de sua cama, lendo tranqüilo. Sentou-se e perguntou:

-O que é isso que tem nas mãos?

-É um livro.

-Livro... Livro... Sim, livro. Muitos livros... Sei que tenho muitos li


vros...

- Como se sente?
- Melhor.
Encostando-se na cabeceira da cama, ele perguntou:
-Onde está Jonefá?
-Está ocupado agora, cuidando de assuntos importantes.
- Ele sabe onde está Elvira?
-Lembra-se de seu nome, quando esteve com Elvira pela última vez?
Ele pensou um pouco, depois respondeu:
- Não me lembro.
-Não faz mal. Vai se lembrar.
- E por que a recordação de Elvira é tão clara?
-Porque você a ama profundamente.
- Sim, eu a amo muito.
-Ela também o ama muito.
Amenhotep fitou Henrique e seu semblante se fez sério; depois ele disse,
entristecido:

- Agora eu me lembro. Fui expulso de meu mundo, por isso vim para a
Terra. As lembranças voltam... Ferdinando... Onde está ele?
-Está no Egito.
-O Egito... Lembro-me do palácio, de Iaret... Nitetis... Ela ainda está no
lugar dos banidos?

-Está.
-Por que continuou lá? Poderia ter ido embora...
142



- Ela ficou para ajudar aquelas almas sofridas.
- E Ferdinando?
- É agora Rudamon.
-Claro! Aquele monstro só poderia ser Ferdinando. E Nitetis... Aqueles
olhos ternos...
Subitamente o semblante de Amenhotep se transformou. Ele arregalou
os olhos, empalideceu e disse, trêmulo:

-Não me diga que Nitetis... Elvira... Não pode ser. Ela não pode ser Elvira...
Eu não posso tê-la tratado tão mal. Meu Deus, não... Diga-me que
não, Henrique, por favor... Por favor, meu Deus, não pode ser...
-Calma, precisa se acalmar.
Agarrando o rapaz pela túnica, ele se pôs a chorar:
-O que ela foi fazer na Terra? Por que foi para lá? Deveria estar em Ca


pela...
-Veio para ajudá-lo. Sem o apoio de Elvira, dificilmente você estaria aqui
agora.
Com um sinal afirmativo da cabeça, Amenhotep encostou-a nos joelhos
e entregou-se ao pranto doloroso.

CAPÍTULO 27

Enquanto, no plano espiritual próximo a Terra, Amenhotep recuperava
as forças e as lembranças, Nitetis se dedicava incessantemente aos doentes.
Seu carinho constante se derramava como bálsamo sobre os corações revoltados
e tristes dos prisioneiros daquele lugar esquecido. Incansável, ela servia
aos enfermos com bondade e resignação.

Naquela tarde ela cuidava de uma das doentes. A jovem mulher, entretanto,
mostrava-se revoltada e descrente. Nitetis buscava consolá-la:

- Samira, tente descansar. Venha, sente-se aqui, sob a ta-mareira.
Cambaleando, Samira respondeu:
-Não quero me sentar. Se tiver de morrer, que seja em pé.
- Não precisa se impor sofrimento maior do que o que já está suportando.
Venha, sente-se.
143



- Pensa que é muito boa, não é mesmo, Nitetis? Só porque vem cuidar
de nós, pobres desamparados do mundo! Só que você não tem a menor idéia
do sofrimento pelo qual passamos. Eu estava noiva, ia me casar, e fui abandonada
por todos.
- Não é verdade, Samira. Jeová não a abandonou.
-Ele foi o primeiro! Sou filha de um sacerdote hebreu -um levita, servo
especial de Jeová. Se isto fosse verdade, se Jeová de fato se importasse conosco,
como essa coisa terrível teria acontecido comigo?
Caminhando até onde a jovem tentava ficar em pé, Nitetis apoiou-a e carinhosamente
a conduziu para a sombra de frondosa árvore. Depois, carregando
água fresca do riacho, serviu-a, dizendo:

-Os caminhos de Deus são muitas vezes incompreensíveis para nossa
mente; é então que devemos procurar compreendê-los com nosso coração,
com nossa fé, com nossos sentimentos. Deus não erra, Samira, e nos ama a
todos sem distinção.

—Jeová está muito distante de nós. Como pode permitir que esse lugar
exista e que pessoas vivam aqui como fantasmas?
Nitetis calou-se por instantes e refletiu. Depois, fitando firme os olhos
da moça, ela disse:

- Não podemos tentar explicar nossa existência apenas por esta vida de
hoje; é necessário entender que já vivemos muitas outras vidas e que tudo o
que nos acontece hoje, tanto de bom como de ruim, é conseqüência de nossos
atos, daquilo que semeamos no passado.
- Do que está falando? Já ouvi alguma coisa a esse respeito, mas meus
pais disseram que não é verdade.
-Certamente é verdade. No entanto, é preciso que busquemos a confirmação
dentro de nós mesmos. Essas vidas que já tivemos estão gravadas em
nosso interior e nos apontam de alguma forma o caminho que devemos seguir
hoje, na presente experiência.
- Diz isso porque os egípcios crêem que vivemos outras vidas.
Parecendo distante, Nitetis redargüiu:
-Tem razão. No meu povo, muitos acreditam que a vida continua depois
de morte. E os que detêm conhecimentos mais profundos sabem que ela
começou antes de estarmos no corpo que ora usamos, e que continuará em
outros corpos que haveremos de usar.

- Chega! Não quero ouvir mais essas estórias...
144



Samira ia se levantar, mas Nitetis segurou-a pelo braço com suavidade e
disse:

-Se não quer acreditar no que lhe digo, tudo bem, mas pense: estou aqui
apenas para ajudar. Não ganharei nada com isso, e posso até perder minha
vida. Por que acha que faço isso? É que algo dentro de mim aponta o
caminho que devo trilhar.
Sem saber o que responder, Samira ficou em silêncio, só rompido quando
Nitetis perguntou: -Quer comer alguma coisa?

- Não tenho fome, estou com muita dor.
Nitetis se aproximou da jovem e imediatamente começou a fazer-lhe
compressas balsamizantes.
Durante a noite, Nitetis acordou muitas vezes, sentindo o corpo febril.
Pela manhã, assim que o sol despontou no horizonte, ela foi até o riacho,
desejando banhar-se na água fresca. Ali chegando, encontrou-se com alguns
de seus assistidos que a olharam estranhamente. Ao mirar sua imagem nas
águas cristalinas, constatou que seu rosto apresentava várias manchas. Tocou
nelas e percebeu que não sentia nada naqueles locais. Teve então certeza:
havia contraído lepra.

Seus olhos encheram-se de lágrimas, que escorreram, densas, pela sua
face. Sentou-se à beira da água e, abraçada aos joelhos, chorou baixinho.

Quando se acalmou, sentiu que alguém a abraçava. Ergueu a cabeça e
viu à sua volta muitos habitantes do lugar. O abraço era de Samira, que vertia
lágrimas silenciosas. Muitas outras mulheres choravam também e alguns
homens tinham os olhos vermelhos. Nitetis fitou-os com carinho. Aquelas
almas sofridas e maceradas pela dor haviam se tornado sua família. Samira
lhe disse:

- Perdoe-me pelo que falei ontem. Não poderia imaginar que hoje mesmo
você estaria como nós...

Nitetis limpou os olhos e sorriu:

-Não tenho nada para perdoar. Agora poderei realmente sentir o que vo


cês sentem.
Samira lamentou:
-Não queria que isso lhe acontecesse.

- Não foi culpa de ninguém, Samira. Eu sabia que poderia ficar doente.
Peço ajuda ao seu Deus, Jeová, o único Deus, e sei que a recebo.
145



Aceitando sua situação, Nitetis continuou quanto pôde a auxiliar os demais
doentes. Aos poucos, porém, a doença se alastrou e tomou conta de
todo o seu corpo, até que, sem forças, caiu prostrada, em condições lastimáveis.


Alguns dos que ela assistia já haviam morrido, e outros mostravam estado
idêntico ao dela; assim, contava com pouca ajuda. Entretanto, toda noite,
durante o sono físico, seu corpo fluídico se desprendia e encontrava-se com
Jonefá e Henrique; além deles, outros irmãos a amparavam agradecidos,
pois muitos eram amigos e entes queridos dos que ela ajudara. Com as forças
renovadas, quando despertava Nitetis trazia no coração a calma e o ânimo
que lhe permitiam suportar as limitações temporárias com absoluta resignação.


Muitos daqueles que, ainda em pé, tinham os corações revoltados e que
haviam recebido assistência da jovem egípcia, sentiam-se transformados
pelo exemplo de suas atitudes e de suas palavras.

Certa noite, enquanto ela se revirava de um lado ao outro, com dores por
todo o corpo, Jonefá chegou em companhia de vários amigos, trazendo também
Amenhotep. Ao ver seu estado ele se prostrou em lágrimas, pedindo:

- Perdoe-me, Nitetis; perdoe-me, Elvira. Como fui tolo em não perceber...
Meu Deus, como fui tolo!

Jonefá acercou-se e o ergueu:

-Amenhotep, nós o trouxemos porque insistiu em vê-la. Mas deve ajudá-
la. Concentre-se em Nitetis. Sua necessidade agora é de carinho, respeito e
consideração. Lastimar-se não irá ajudá-la e ainda poderá prejudicá-la. Envolva-
a com todo o seu amor. Depois, quando se encontrarem em nosso
plano, poderá conversar com ela e então contar tudo o que lhe vai ao coração.
O momento é de trabalho ativo pelo bem de nossa irmã.

Limpando as lágrimas, Amenhotep respondeu:

-É claro, tem razão. Jonefá asseverou:
- Isso, assim está melhor. Ajudemos nossa irmã a adormecer.
Aplicando passes longitudinais sobre o corpo de Nitetis, os amigos do
espaço a auxiliaram a adormecer. Assim que se viu desprendida do envoltório
denso, ela abraçou Jonefá e, com voz fraca, o saudou como sempre:

- Como é bom vê-lo, meu amigo. Jonefá lhe disse:
-Tenha só mais um pouco de paciência. Sua energia vital está prestes a
terminar e muito em breve estará conosco.

146



-Anseio por esse momento, meu bom amigo.

-Trouxemos alguém que lhe é muito querido. Afastando-se ligeiramente,
Jonefá deixou que Nitetis visse Amenhotep, e informou:

- Nosso amigo finalmente está se recuperando.
Ao ver aquele a quem tanto amava, ela estendeu-lhe a mão e sorriu:
-Meu amor, como me alegra vê-lo tão bem! Amenhotep, que já trazia de
novo no perispírito traços de sua vida como Ernesto, ajoelhou-se diante de
Elvira e disse, segurando-lhe as mãos:

- Amor da minha vida! Jamais poderei agradecer todo o bem que você
me fez!
Percebendo que não conseguiria controlar por mais tempo a emoção, ele
se calou, apertou as mãos de Nitetis entre as suas e beijou-as com ternura;
depois olhou para Jonefá, como a pedir socorro. Este afastou Amenhotep e,
amparando a jovem, recomendou:

- Agora descanse que o desenlace se aproxima. Durma, será melhor.
Quando despertar já estará definitivamente junto anos.
Extenuada, imediatamente ela aquiesceu. Enquanto o corpo fluídico de
Nitetis descansava ao lado de Amenhotep, que lhe afagava os cabelos, seu
corpo denso vivia os últimos instantes na Terra.

A equipe que viera em companhia de Jonefá realizou, dirigida por ele, a
tarefa de desligamento definitivo dos fios energéticos que ligavam o corpo
espiritual ao corpo físico. Henrique mantinha no colo aquela que uma vez
fora sua mãe, e Amenhotep não se cansava de tocar-lhe com carinho os cabelos
e o rosto.

O trabalho de desligamento se completou e Jonefá disse aos dois:

- Está consumado. Podemos partir.
Fitando o corpo desfigurado de Nitetis, Amenhotep questionou:
- Como pôde sacrificar-se desse modo?
- Ela o fez por amor.
-Eu também a amo demais. Entretanto, por que ela, depois da minha partida,
continuou a correr o risco de ter de passar por todo esse sofrimento?
Jonefá encarou o amigo e, depois de curto silêncio, respondeu:

- Logo poderá perguntar a ela, mas Nitetis o fez igualmente por amar
aos irmãos da Terra.
147



Incapaz de alcançar a compreensão daquele sentimento, Amenhotep se
calou. Henrique tomou nos braços o corpo fluí-dico adormecido de Nitetis e
partiram, deixando seus despojes.

O dia amanhecia e em pouco tempo o grupo de leprosos chorava a perda
da mais querida amiga que por ali havia passado.

CAPÍTULO 28

Depois de alguns dias de repouso, Nitetis já havia assumido a forma perispiritual
que tivera enquanto fora Elvira e caminhava de braços dados com
Henrique, no grande jardim da colônia próxima à Terra. Calmamente, trocavam
impressões sobre a experiência que ela vivera:

- Sem dúvida, Henrique, é difícil a adaptação de nosso corpo fluídico ao
corpo denso que por ora é utilizado na Terra.
- E você esqueceu tudo enquanto esteve lá?
- Tinha muitas lembranças e sentia uma força a me guiar. Acho que era
minha própria consciência.

-Foi como você imaginou, Elvira?

-Não exatamente. Acho que a infância foi a parte mais difícil para mim.
Sentia uma tristeza indefinida e uma ansiedade muito grande...

Sentaram-se sob a copa imensa de uma árvore, diante de belo e sereno
lago. Henrique ficou meditando no que acabara de ouvir e logo depois Elvira
prosseguiu:

-É como se em minha mente tudo estivesse turvo, confuso. Achava-me
inadequada, uma verdadeira estranha. Aos poucos, foram surgindo algumas
informações daquilo que eu já sabia e sentia. Especialmente no que se refere
à noção de Deus. Chegava mesmo a ser sufocante ter de ajoelhar-me diante
de tantos deuses diferentes, sentindo claramente em meu coração, desde a
mais tenra idade, que havia um único Deus.

Ela ficou pensativa. Então sorriu, segurou a mão de Henrique e perguntou:


-Como está Raquel? Nutro por ela um carinho muito grande.
148



- Ainda está na Terra. Cuida dos rapazes com o mesmo carinho de sempre.
-Quanta dedicação!... Ela é mesmo muito especial. Lembro-me das
conversas que tivemos antes de todos nos encarnarmos na crosta. Ela me
abraçou e prometeu que não falharia. E realmente cumpriu.
- Mas foi difícil. Muitas vezes ela quase sucumbiu frente aos ensinamentos
que recebeu de seu povo.
- Só que o amor falou mais alto, Henrique, e assim ela foi vitoriosa.
- Sim, o amor falou mais alto. Raquel é uma alma nobre e amorosa.
Creio que não demorará a retornar a Capela.
- Sem dúvida. Não sei dos detalhes de seus débitos com a Lei divina,
mas creio que ela progrediu muito nas sucessivas encarnações na Terra.
Os dois emudeceram por longo tempo, na contemplação do cenário de
suave beleza da colônia. Depois Elvira perguntou:
-E você, Henrique, julga-se preparado?

- Estou me preparando, Elvira, para poder contribuir com nosso querido
Ernesto, bem como com nossos irmãos da Terra.
Ainda conversavam, quando Elvira sentiu o toque de mãos carinhosas
sobre seus ombros e então escutou a voz familiar de Ernesto:
-Estão falando de mim? Escutei meu nome. Elvira tocou-lhe as mãos delicadamente
e perguntou:
-Por que acha que era sobre você que falávamos? Não é o único Ernesto
que existe, sabia?
Ele sorriu:
-Posso acompanhá-los?
Abrindo espaço para Ernesto sentar-se entre eles, Elvira indagou:
-Já está em condições de caminhar sozinho?

-Hoje foi meu primeiro dia. Venho me recuperando bastante.
- Fico feliz, Ernesto. Vendo-o sério, Elvira repreendeu:
-Deveria estar contente também, Ernesto. Você já está quase bom.
- Das feridas, pode ser; porém continuo triste e cansado.
- Você fez progressos incríveis em sua última experiência. Deveria ficar
feliz!
- Não posso estar feliz, Elvira, com minha consciência cobrando dia e
noite os erros que cometi, especialmente com você.
-Não diga isso.
149



- Tenho de dizer. Como posso ter paz, se sei que falhei? Tendo todas as
possibilidades de realizar muito em favor dos irmãos da Terra, e resgatar
grande parte de meus débitos com Deus, falhei novamente. E agora tenho
medo de falhar outra vez.
-Não tenha medo, Ernesto; você está avançando, e isso é o mais importante
- insistiu Elvira.
Ele tocou seu rosto em leve carícia:

- Como pude fazer o que fiz com você, minha doce Elvira? Disse coisas
horríveis, agi de maneira infantil e não a valorizei.

-Ora, querido, não sabia que era eu.

-Não é desculpa. A figura de Nitetis falava por si; não poderia ter des


prezado o afeto e a dedicação de alguém como ela, como você!

- Isso já não importa. Você precisa se recuperar totalmente e recomeçar
seus estudos e sua disciplina de trabalho em favor do próximo, para fixar em
seu coração as lições que aprendeu, de modo a estar verdadeiramente preparado
quando chegar o momento de voltar para a Terra.
Ele sorriu e, com os olhos rasos de lágrimas, disse:

- Quando nos preparávamos para essa experiência no Egito, confiava
tanto que não falharia... Queria me dedicar ao bem dos companheiros encarnados;
cheguei a nutrir secretamente a esperança de terminar meu tormento
na Terra e regressar a Capela. Isso é o que mais desejo. Sinto muita saudade
de nosso mundo, da vida que tínhamos lá.
Com a voz embargada pela emoção, ele se calou. Elvira também se
manteve quieta, e foi Henrique que enfim quebrou o silêncio:

-Ernesto, sei que não é fácil, mas veja quanto você já melhorou!

-Não sei, Henrique. Tive oportunidade de recordar minha situação e as
promessas que fiz pouco antes da última reencar-nação em nosso orbe. Tudo
parecia perfeito para meu êxito e, mesmo assim, falhei fragorosamente. Não
consegui vencer meu orgulho, não consigo vencer a mim mesmo. Acho que
nunca vou conseguir.

Elvira colocou o dedo sobre os lábios de Ernesto e censurou:

-Nunca mais diga isso, Ernesto. Seja grato a Deus pelo que já alcançou.
Seu estado ao deixar Capela era tão deplorável que foram necessários muitos
milênios para que pudesse recobrar a situação que tem agora. Continue
acreditando, jamais desista. Você conquistou muito e pode terminar sua jor


150



nada de redenção, tenho certeza. Não demorará muito e estaremos reunidos
outra vez em nosso mundo.

Enquanto Elvira falava, seu rosto irradiava luz tão intensa que quase ofuscava
a visão de Ernesto. Ele não pôde dizer mais nada e ficou pensativo.
Estavam os três em silêncio quando Jonefá se aproximou, firme e amoroso
como sempre:

- Vejo que está completamente refeita, Elvira.
- Estou refeita e feliz, cheia de esperança. Vejo que Ernesto está melhorando,
apesar de não reconhecer o próprio progresso.

Jonefá olhou para o amigo e comentou:

-Ernesto não obterá a paz para seu coração enquanto não adquirir o con


trole sobre seus impulsos inferiores, que o arrastaram para a Terra. Esse tem
sido um lar abençoado para nossos irmãos de Capela, no qual, porém, a dor
e o sofrimento ainda são muito intensos. O remorso, a culpa, a dor das separações
e a falta de autodomínio têm protelado indefinidamente o regresso de
nossos irmãos ao lar. Alguns já retornaram. Por outro lado, muitos afundaram
mais no abismo da escuridão. São os que, ao invés de contribuir para o
progresso da Terra, vêm desviando os irmãos primitivos cuja evolução deveriam
auxiliar. E para esses, que usam seu potencial, seus conhecimentos e
sua liderança para reter na estagnação os irmãos mais atrasados, o sofrimento
será longo e tenebroso.

- De qualquer forma, nosso Ernesto fez progressos, não concorda?
- Sim, fez muitos. Mas poderia ter aproveitado ainda mais seu tempo.
-Também acho. Só que agora estou muito inseguro. Temo falhar de novo.


- Tranqüilize seu coração, Ernesto. Estamos fazendo os planos para suas
próximas experiências.
Elvira interrogou:
-Próximas? Quer dizer que já sabem que necessitará de mais de uma?

- Sem dúvida. Ernesto precisa vencer esse medo de falhar e readquirir
confiança. Ele deverá viver na Terra em um corpo de mulher, frágil e doente,
com limitações de toda ordem, para que possa, através das dificuldades,
superar outros limites e preparar-se para uma encarnação onde terá novamente
condições plenas para liquidar seus maiores débitos com o Criador.
Então poderá voltar para casa e prosseguir no caminho da união perfeita
com Deus.
151



Depois de breve pausa, Jonefá continuou:

-Estamos preparando para Ernesto uma reencarnação na Grécia, em que
terá toda a sua capacidade intelectual e osyseus conhecimentos adormecidos.
Enquanto aguarda o tempo certo para o regresso, irá se preparar aqui, na
colônia, em companhia de Henrique.

Ernesto refletia. Não apreciava a idéia de retornar num corpo feminino,
numa sociedade que maltratava e desmerecia constantemente as mulheres.
Sobretudo sabendo que teria diversas limitações. Não obstante, não se sentia
em condições de fazer qualquer tipo de exigência. Sentia-se fraco interiormente.
Tinha vergonha da maneira como havia conduzido sua experiência
no Egito, pois sabia que jogara fora uma grande oportunidade. Estava consciente
de que ter Elvira, também encarnada, ao seu lado havia sido um privilégio
inimaginável que ele menosprezara por completo. A culpa e o remorso

o devoravam. Portanto, sentia-se compelido a fazer o que lhe dissessem,
sem reclamar ou exigir o que quer que fosse.
Quando Jonefá quis saber o que pensava em relação aos planos, ele perguntou:


-Quanto tempo viverei?
-Não está definido ainda. Por quê?
-Tenho pressa.
-Não tenha, Ernesto. Cultive desde já a paciência, que será sua mais
importante companheira na próxima jornada.

Elvira, que ouvira Jonefá em silêncio, indagou:

-E depois, já tem algum plano para a etapa seguinte?

-Se conseguir permanecer na Terra sem rebeldia e submeter-se aos aprendizados
necessários -em que haverá muito perigo de falhar, dadas as
suas graves limitações -, ele terá a benção de voltar à Terra no mesmo período
em que o Messias do planeta descerá para a redenção da humanidade.
Será contemporâneo de Jesus.

Ernesto não disse nada. Elvira perguntou:

-E como poderei ajudar?

-Por enquanto, deverá regressar a Capela, onde seus antigos deveres a

aguardam. Durante sua próxima encarnação, Ernesto, não contará com a
presença de Elvira. Depois, quando estiver preparado para outro retorno, ela
irá acompanhá-lo, do plano espiritual. Não deverá mais reencarnar, por muito
que deseje. Poderá ajudá-lo melhor de nosso plano, assistindo-o de perto

152



em todas as suas experiências. Na verdade, ela será seu anjo da guarda, seu
espírito protetor. Espero que desenvolva mais sua intuição e sua sensibilidade,
vestindo um corpo de mulher, e que assim possa estar mais receptivo aos
conselhos e orientações que ela irá transmitir-lhe.

Fez-se prolongado silêncio, até que Jonefá prosseguiu:

- Henrique se prepara a fim de reencarnar juntamente com Ernesto, ao
tempo do Messias. Unidos, poderão colaborar com o divino enviado, para
resgatar as criaturas da escuridão.
Ernesto olhou para os amigos com gratidão genuína e afirmou:

-Sinto-me fraco e entristecido; a angústia e a dor dominam meu coração.
Ao mesmo tempo, vendo vocês três aqui, por minha causa, quando poderiam
estar desenvolvendo suas tarefas em nosso orbe, sinto-me comovido e
agradecido ao Criador por tal auxílio. Obrigado, meus amigos, muito obrigado.
Em reconhecimento a vocês, meus irmãos, farei o melhor que puder,
me empenharei ao máximo para vencer em todas as etapas. Não quero decepcioná-
los mais.

Jonefá, que normalmente trazia o semblante sereno e grave, sorriu satisfeito
e aprovou:

-Isso mesmo, Ernesto, assim é que deve sentir e pensar daqui para a
frente. Você pode vencer, se concentrar seu potencial em uma vontade firme
de triunfar, de se superar. Deus o ampara, e seus amigos estarão ao seu lado
para ajudar. A misericórdia divina nos sustenta os passos sempre, impreterivelmente.
Cabe-nos desejar com sinceridade melhorar e vencer nossas limitações,
para que a bondade divina se manifeste através de nós, fazendo-nos
os primeiros beneficiados.

Jonefá fez uma pausa. Depois, dirigiu-se a Elvira:

- Vamos partir em alguns dias.
- Estarei pronta.
Abraçando Ernesto com carinho, ela concluiu:
- Aproveitaremos cada instante que nos resta, Ernesto.
153



CAPÍTULO 29

Elvira partiu com Jonefá, deixando Ernesto entregue aos cuidados dos
orientadores da colônia e na amorosa companhia de Henrique. Assim que
regressou ao lar, ela retomou suas atividades, dedicando-se com carinho às
crianças. Contudo, seu coração permanecia fortemente unido ao de Ernesto,
sustentando-o em oração e vibrações diuturnas.

Ernesto, a despeito das angústias que o assaltavam, da culpa que não esquecia
e da dor pela separação de Elvira, dedicava-se aos estudos e à meditação
no núcleo que o acolhia. Sempre que podia, Henrique o acompanhava
em longas caminhadas e até mesmo em atividades educativas na crosta da
Terra. Juntos realizavam muitos serviços de socorro e apoio aos irmãos mais
primitivos do planeta. Para enfrentar suas tendências de orgulho e arrogância,
egoísmo e vaidade, Ernesto era mantido em tarefas singelas; propositadamente
suas aptidões e sua alta capacidade intelectual eram deixadas em
segundo plano, o que muitas vezes o incomodava. Nessas horas, Henrique
vinha em seu auxílio:

-Não importa quanto se saiba, quanto se tenha de inteligência, Ernesto.
O essencial é o que se faz com essa capacidade. O fruto de nossas habilidades
para a humanidade é que será avaliado. O amor precisa ser desenvolvido.
Muitos de nossos irmãos de Capela seguem cultivando dores ainda maiores
para o porvir, por desprezarem aquilo que lhes parece menos importante:
o amor. Continue trabalhando seu coração; combata a negatividade
em seus impulsos e tendências. Somente assim sua futura experiência na
crosta poderá ser proveitosa.

-Sei de tudo isso, e você está correto. É disso mesmo que necessito. Mas
às vezes sinto-me quase descontrolado no meu anseio por atividades mais
complexas.

-Detenha-se na simplicidade. Não tire o olhar de seu próprio interior e
do que ali precisa trabalhar. Muitos dos seus impulsos são contidos devido à
energia predominante na colônia, que não lhe facilita exteriorizá-los. Não
será assim na Terra. Precisa prosseguir trabalhando, servindo, Ernesto. Os
serviços aos irmãos do planeta o auxiliarão enormemente. Deixe de pensar
um pouco em você mesmo e olhe para aqueles que carecem de ajuda.

154



Ernesto baixou a fronte e ficou em silêncio por instantes. Depois olhou
para Henrique, encostou a mão na do rapaz e disse:

- Como é difícil para mim, Henrique! Nunca pensei que fosse tão custoso.
Quando menos espero me pego pensando em mim, nas minhas necessidades,
naquilo que desejo... Devo confessar que até em meio a tarefas de
socorro das mais tocantes me surpreendo pensando em mim, e não naquela
alma que tanto está precisando de amparo!
- Sei disso, Ernesto. Seus orientadores também. E é por isso que você ficará
ainda por muito tempo na esfera espiritual, trabalhando junto aos irmãos
da Terra e estudando a si mesmo, conhecendo-se mais profundamente,
para que possa, no futuro, voltar e realizar algum progresso espiritual efetivo.
Sorrindo, ele abraçou Ernesto carinhosamente, e aduziu:

- Não desanime, você conseguirá. Um dia todos conseguirão compreender
que a verdadeira felicidade consiste mais em dar do que em receber.
Ernesto também sorriu, aliviado, e prosseguiu conversando com Henrique
sobre os desafios que enfrentava.
Era naquele ambiente de restauração interior e trabalho abundante em
favor do próximo que Ernesto se preparava para a futura encarnação. Os
séculos passavam céleres, mesmo para ele, na dimensão espiritual da Terra.
Transformações ocorriam no planeta e Ernesto acompanhava com interesse

o progresso do orbe.
Certa tarde, quando retornava de uma de suas mais árduas tarefas na
crosta, foi convocado pelos orientadores para uma conversa. Um deles lhe
disse:

-Tarefa difícil essa, Ernesto.

-Sim, muito difícil.

-Saiu-se bem. Estudando detidamente seu processo, consideramos que

chegou o momento de você retornar à Terra. Cremos que já está adequadamente
preparado para enfrentar a si mesmo, na crosta do planeta.

- Acham mesmo? Será que já estou pronto?
- Totalmente pronto nunca estará, ou nem precisaria regressar. Mas já
angariou recursos interiores suficientes para que tenha possibilidade de êxito.
Nossa equipe de trabalhadores especializados nas tarefas de reencarne já
estão tratando das condições para seu retorno.
-Em quanto tempo?

155



- Daqui a algumas semanas. Procure pelo nosso irmão Tobias. Ele o colocará
a par dos detalhes do planejamento para sua nova etapa evolutiva.

Neste ponto Ernesto desabafou, emocionado:

-Eu ainda sinto muito medo de falhar, de não conseguir. Esse medo é
como um monstro a devorar minhas energias. Quando tento focar a atenção
e a vontade em um recomeço, numa vida de êxito espiritual, não demoro a
me apavorar e tenho quase a certeza de que vou falhar novamente. Apesar
de tudo o que tenho aprendido, não me sinto forte o bastante para vencer
esse medo.

-Fique tranqüilo. Sabe que retornará na condição feminina, não é?

-Sim, fui informado há muito tempo, quando regressei ao plano espiritual.


-Pois bem, sua vida como mulher será complicada e cheia de limitações.
Estará sob a tutela de um pai severíssimo, que lhe deixará poucas oportunidades
para se expressar. Casar-se-á muito cedo, sem poder usufruir plenamente
as alegrias do amor verdadeiro. Depois de um segundo parto difícil,
ficará acamada por longos anos. Sua trajetória será penosa, mas não terá
muitas alternativas para falhar. O sentimento religioso será profundo em seu
coração e a ajudará a ter forças nos momentos mais críticos.

Ernesto permanecia sério, atento às palavras de Marcos, o orientador.
Sentia-se sufocar só de ouvi-lo descrever suas próximas experiências. Notando-
lhe a angústia, Marcos interrompeu a narrativa e disse:

- Calma, Ernesto, sua vida não será somente dor e sofrimento. Você terá
a doce alegria de ser criado por uma mãe carinhosa e dedicada, quase abnegada.
É uma das irmãs que você ajudou na crosta nesses anos de serviços;
extremamente grata a você, ela aceitou a tarefa de auxiliá-lo. Além disso,
contará com dois filhos que, apesar do caráter dominador do pai, lhe serão
igualmente amigos consagrados; também são socorridos seus, que se ofereceram
para apoiá-lo.
Os olhos de Ernesto encheram-se de lágrimas. Marcos continuou:

-Você terá ainda a amorosa companhia espiritual de Henrique, que o
guiará e protegerá, consolando sua alma e fortalecendo suas esperanças.
Como disse, tudo está sendo detalhadamente organizado para que essa experiência
seja bem-sucedida, preparando-o para o desafio decisivo, que virá no
tempo oportuno. Quer falar alguma coisa, Ernesto?
156



- Só que estou muito comovido pelo carinho que recebo desses irmãos.
Estou pronto a tentar. Não quero mais me furtar às experiências reparadoras.
Sinto muita saudade de Elvira e de meu mundo. Meu coração chega até a
doer. Mas compreendo hoje que colho aquilo que semeei.
-E já está começando a colher o que de bom vem semeando.
Ernesto se preparava para sair quando Marcos disse: -Você renascerá na
Grécia. Ao menos estará vivendo no local de maior adiantamento intelectual
da atualidade na Terra. Respirará uma atmosfera de cultura, embora não
possa efetivamente fazer parte dela. Mas isso lhe dará certo conforto emocional.


Ernesto sorriu e mais uma vez disse:

- Agradeço a Deus pela oportunidade e aos irmãos, por me ajudarem de
todas as formas.
CAPÍTULO 30

Tempos depois, no momento propício, Ernesto renascia no seio de uma
tradicional e influente família de Creta.

Os anos na Terra foram de grande sofrimento para ele. As profundas limitações
que lhe marcaram a vida física o impediam de reagir, porém sua
alma se rebelava constantemente contra a condição opressiva em que se
encontrava.

Henrique improvisava recursos de auxílio, solicitando amparo de outros
trabalhadores da esfera espiritual para impedir que Ernesto, no novo corpo,
cometesse suicídio. Especialmente depois que ficou imobilizado em uma
cama, seu desejo de morte era freqüente. Em sonhos, Henrique lhe falava
sobre a coragem que deveria ser renovada, e em geral ao acordar Helena era
esse seu nome na nova existência -estava mais aliviada e esperançosa.
Foram anos de luta e de intenso trabalho das equipes espirituais para sustentar
a experiência de Ernesto.

Determinada manhã, depois de quase quinze anos sem poder se levantar,
Helena sentia-se mais cansada. Pediu que a colocassem à beira da janela,
pois desejava ver o mar. Os filhos, dedicados e amorosos, ainda adolescentes,
atenderam-na de pronto.

157



Assim que se viu diante da imensidão do mar, ela falou:

- Como é maravilhoso o mar! Tenho vontade de sair voando sobre as
águas do oceano. Às vezes, sonho que vôo sobre ele, mas de repente algo
me puxa para cá e desperto assustada.
-Que estranho, mãe -disse um dos filhos.
-É, meu filho, é um sonho muito estranho mesmo. Onde está seu pai?
-Já foi para a assembléia.
Helena suspirou profundamente, sentindo a suave brisa do mar a beijar-


lhe a face envelhecida pelo sofrimento. Observou o sol esplendoroso que
iluminava o horizonte e, virando-se para os jovens, disse:

-Estou me sentindo muito cansada. Por favor, chamem sua avó, preciso
dela aqui.
Eles saíram e em pouco tempo voltaram com Isadora, uma senhora de
feições doces e ternas. Logo que viu a filha, perguntou:

-O que tem hoje, minha querida? Parece abatida. Que aconteceu?
-Nada de novo ou diferente aconteceu. Acordei muito cansada, exausta
mesmo. Mas não posso apontar nenhum motivo em especial.
Como a intuir a real situação da filha, Isadora aproximou-se dela e afa-
gou-lhe os cabelos, aconchegando-a ao ventre. Enquanto era assim acalentada,
Helena foi perdendo mais e mais a cor, até empalidecer totalmente. Os
filhos perceberam o agravamento do seu estado e gritaram:

-Vovó, ela está ficando branca!
Isadora, com a ajuda dos netos, recolocou-a na cama, ajeitando-a em altos
travesseiros. Helena então disse:

- Obrigada, mãe; obrigada, meus filhos. Estou muito cansada...
Depois, vendo ao lado da cama a figura amiga de Henrique, saudou:
- Olá. Sei que o conheço, mas não me lembro de onde. Sim, sei que o
conheço muito bem.

E virando-se para a mãe, perguntou:

-Quem é ele mesmo, mãe?

Isadora olhou na direção que Helena lhe apontava e, não vendo nin


guém, trocou um rápido olhar de estranheza com os dois netos, depois respondeu:
-Também não me lembro do nome dele.

- Ele me estende a mão e me diz algo. Espere. Vejo outros com ele. Esses
eu não conheço. Quem são vocês?
158



Isadora, compreendendo que a filha em breve não mais estaria junto deles,
apertou-lhe as mãos com força. Helena prosseguiu:

-Ele continua dizendo alguma coisa. Afinal, o que quer? Henrique chegou
mais perto dela e tocando-lhe o corpo etéreo, já quase totalmente desprendido
do corpo denso, chamou:

-Venha, Helena, está na hora de partir. Cumpriu bem sua missão e seu
sofrimento está concluído. Venha comigo.

Helena estendeu a mão e falou com a mãe e os dois filhos:

- Quer que eu vá com ele. Disse que minha missão está encerrada. O que
isso significa, mãe?

Com lágrimas escorrendo pela face, Isadora concordou:

-Então vá com ele, minha filha, vá em paz. Eu cuido dos meninos enquanto
estiver fora, não tem com que se preocupar. Que os deuses a abençoem,
minha querida Helena.

Arqueando o peito, com muita dificuldade de respirar, Helena enfim silenciou
para sempre. Ao passo que seu corpo físico desfalecia, seu corpo
espiritual se desprendia e era desligado por completo pelos socorristas. Henrique
a segurava firmemente. Ela se virou e viu seu corpo físico sobre a cama.
Observou a mãe e os filhos em torno dele, vertendo lágrimas de dor.
Então, voltou-se para Henrique e perguntou:

-O que acontece aqui?

-Vamos voar sobre o oceano, venha.

O convite lhe pareceu irrecusável e ela o obedeceu sem discutir, embora
insistentemente olhasse para o quadro comovente que aparecia através da
janela, enquanto se afastavam.

À medida que voavam sobre o mar, Helena, ainda confusa, registrava
algumas lembranças do pretérito lhe assomando à mente. Ao chegarem à
colônia espiritual, foi acomodada em uma grande enfermaria e medicada,
para que dormisse e descansasse até se recompor.

Meses depois, com a memória e a forma perispiritual quase completamente
recuperadas, Ernesto recebeu a alegre visita de Henrique:

-Vejo que já está refeito, Ernesto.
-Estou muito bem, meu amigo. Obrigado por sua paciente e dedicada ajuda!


- Foi bem difícil, Ernesto. Quase o perdemos por duas vezes.
-Eu sei.
159



-Sua rebeldia esteve prestes a colocar a perder a frutífera experiência.
Mas graças a Deus você não sucumbiu.

-Graças a Deus e a você. Como estão Isadora e os rapazes?
-Estão bem, recebendo muito consolo e alívio de nosso plano. Logo terão
a paz interior restaurada. Assim que for possível, os traremos para visitá-
lo.

-Ficarei muito feliz em vê-los.
Depois de alguns minutos de silêncio, Ernesto perguntou:


- Acha que fui capaz de me aprimorar um pouco?
-Fez diversas conquistas interiores. Sua alma adquiriu um pouco mais de
paciência e tolerância. E aprendeu a dar valor às coisas simples.
Ernesto sorriu, relembrando suas últimas experiências.
-E o medo de fracassar, diminuiu? -indagou Henrique.

-Eu quase falhei, não foi?
-Quase, mas não falhou. E o medo, diminuiu?
- Não totalmente.
- Nem conviria, algum medo nos traz prudência. Mas a sensação de agonia
e desespero foi superada?
- Creio que sim.
- Isso é muito bom.
-Quando volto ao trabalho?
- Assim que for liberado pelos médicos do hospital. Temos muito serviço
a fazer.
Prosseguiram a conversa animadamente. Ernesto tinha o coração aliviado
e sua esperança havia sido restaurada. Logo que recebeu alta, voltou ao
trabalho, acrescentando a suas tarefas, mais uma vez, o amparo aos novos
familiares espirituais: Isadora e os dois jovens que haviam sido seus filhos.

Não tardou a receber a inesperada visita de Elvira e Jonefá, que contentou
ainda mais seu coração. Ela permaneceu pouco tempo, mas o período
em que estiveram juntos foi de extrema alegria.

Na colônia espiritual, por longos anos Ernesto se dedicou ao trabalho e à
contínua busca do autoconhecimento. Sabia que lhe faltava superar muitas
imperfeições, que não se haviam manifestado pelas restrições que tivera na
última encarnação. Embora feliz, ele não se iludia. Com as repetidas visitas
de Elvira e a atenção constante de Henrique, fazia planos para o futuro.

160



Naquela manhã, Elvira veio e lhe pareceu ainda mais radiante. De seu
coração partia intensa luz rosa-azulada, que se difundia ao seu redor. A beleza
da cena o embeveceu. Sabia da superioridade desse espírito amado;
porém, sempre que via sua luminosidade, surpreendia-se com a constatação
da própria inferioridade. Ao se aproximar, ela disse:

- Não pense mais nisso. Sua grande oportunidade chegou. Temeroso,
Ernesto perguntou:
-O que quer dizer?
-Agora, vim para ficar com você e o acompanharei em sua próxima experiência,
que está por vir.
Ernesto sentiu sumir-lhe a cor. Elvira segurou-lhe a mão:

- Não tenha medo, querido, Deus estará amparando sua jornada. A hora
é de grande felicidade.
-Percebo que está radiante. O que está acontecendo de tão especial?
- Avizinha-se o momento da descida de Jesus ao planeta.
-Tenho ouvido bastante sobre isso. Todos nos preparamos para recebê-lo
no orbe. Já há muito podemos pressentir sua presença.

- É verdade. A atmosfera do planeta está muito diferente. Para vir, ele se
preparou durante longo tempo.
- De fato, teve de se despojar de sua grandiosidade, adensar seu corpo
espiritual, e isso leva tempo.
- Mas o momento está próximo. O Messias prometido e tão esperado pelos
nossos irmãos da Terra está chegando.
Ernesto ficou sério. Elvira fitou-o e ele indagou:

- Será que estamos realmente em condições de recebê-lo?
-Confiemos em Deus, que é todo sabedoria. E você, querido, vai poder
viver com toda a intensidade esse momento; estará na Terra, encarnado,
vivendo junto de Jesus.

-Junto de Jesus?


- Sim, Ernesto, muito perto.
-Disseram-me que viveria na Terra na época em que Jesus ali estivesse,
mas não sabia que o veria de perto.
Elvira sorriu, e o brilho de seus olhos acentuou-se:

-Foi para não assustá-lo, querido. Mas agora você está pronto e já pode
saber. Antes de vê-lo, falei com os irmãos responsáveis pela sua reencarna161



ção. Estou com todo o plano de sua próxima experiência. Venha, vamos
estudá-lo detidamente.

Acariciando o rosto de Ernesto, ela exclamou:

-Que oportunidade bendita, querido: estar ao lado do Messias!
Ele, por sua vez, com os olhos rasos de água, disse emocionado:
-Eu não mereço uma benção como essa, não me sinto digno. A única
coisa que posso fazer é servi-lo com todo o meu coração; sacrificar-me por
Ele, dedicar-me a segui-lo e amá-lo com todo o meu ser!
Elvira abraçou-o longamente, sentindo imenso júbilo a lhe invadir a alma:


-Que Deus o abençoe!
3ª. Parte


" Na plenitude dos tempos, quando tudo estava
Preparqado, Jesu, o arquitetio do planeta, desceu
à Terra como havia prometido para ensinar aos
homens com o exemplo de sua própria viva o
caminho para a regeneração de suas almas.

O Messias, já anunciado e esperado pelos
povos desde as mais priscas eras, veio ao orbe
para aproximar as criaturas, sofridas

e angustiadas, do Criador do Universo."

162



CAPÍTULO 31

Os três andavam pela estrada poeirenta que levava a Jerusalém. No caminho,
discutiam sobre aqueles que em segredo procuravam o Mestre. Pedro
disse, exasperado:

-Acho absurdo que o Rabi continue a recebê-los em horários tão inapropriados.
Por que não vêm até ele quando está pregando? Na hora em que
precisa repousar, depois de longas jornadas junto às multidões, é que o procuram!
E bem de madrugada! Não concordo e vou falar outra vez com o
Mestre!

João, sempre amoroso, interveio:

-Pedro, sabe que Jesus jamais se negaria a atender quem quer que fosse,
a qualquer hora. Ele está sempre pronto a ajudar quem o busca!

Pedro insistiu:

-Não concordo, João. O que pensa, Tiago?

Tiago parecia distante e não respondeu. Pedro insistiu:

-E você, Tiago, o que acha? Tiago sorriu e disse:

- Acho que nunca compreenderemos totalmente as atitudes de Jesus. Elas
sempre nos causarão surpresa. Vejam o caso de Judá, o jovem rico. E um
exemplo de conduta para nosso povo: cumpre a lei de Moisés e todas as
orientações de nosso pai Abraão. Não há um sábado sequer em que não seja
o primeiro a chegar à sinagoga. Mesmo assim, Jesus não parecia completamente
satisfeito com ele, pois pediu que vendesse todos os seus bens e os
distribuísse aos pobres, e por fim que o seguisse. Nunca tinha escutado isso
do Mestre.
Pedro ouvia atento. Depois de breve pausa, Tiago continuou:

-Agora, veja a diferença no caso de Zaqueu: a ele o Mestre não pediu
nada. Justamente a ele, um cobrador de impostos! Há muitas coisas que não
entendemos, Pedro. Não adianta, devemos segui-lo e aprender com ele. Só
isso.

João concordou:
-Tem toda a razão, Tiago. Não podemos compreender tudo o que Jesus
nos ensina, mas precisamos confiar nele.

163



Sem saber o que argumentar, Pedro calou-se e os três seguiram, pensativos,
o restante da longa viagem de Nazaré até Jerusalém. Ao chegar, uniram-
se aos outros discípulos de Jesus, bem como aos demais que o seguiam.

Enquanto isso, José de Arimatéia, em sua mansão, caminhava de um lado
para outro, inquieto. Esperava com ansiedade por Nicodemos. Logo que
Timóteo o avisou da chegada do amigo, José solicitou:

- Leve-o à sala central e peça que me aguarde; já vou recebê-lo. E sirva-
nos algo bem fresco; está muito quente hoje.
Timóteo saiu imediatamente e conduziu Nicodemos à sala principal. A
imensa propriedade ficava no alto de uma colina. Da rua era possível observar
as lindas colunas dispostas uma ao lado da outra, com perfeição e harmonia,
ao melhor estilo arquitetônico romano. Os belos jardins que circundavam
a residência também seguiam a tendência das mais exuberantes mansões
romanas.

Na realidade, embora fosse judeu, membro de uma das famílias mais
importantes, tradicionais e influentes de Jerusalém, José gozava de alto conceito
junto aos dominadores da Palestina. Quando Pilatos assumira seu cargo
como governador da Judéia, fora levado a procurar por ele, dados o prestígio
e o poder que fruía perante os conterrâneos. Sua riqueza e sua influência
eram amplamente conhecidas pelas maiores autoridades de toda a Palestina.


Tão logo o conhecera, Pilatos se encantara com o hebreu. José de Arimatéia
era um homem de aparência impecável, elegante e de porte atlético.
Além do mais, tinha uma fluência verbal invejável e era possuidor de inteligência
brilhante, o que o havia tornado um dos mais bem-sucedidos negociantes
da Judéia. Dispunha de uma frota de barcos que faziam o comércio
com diversas cidades ao longo do Mediterrâneo, e inclusive com regiões
mais distantes, como a Gália e a Britânia.

Como tivesse grande habilidade com as palavras, ele se destacara como
admirável contador de histórias, narrando suas façanhas e experiências através
de terras longínquas, quando, com apenas dois barcos pequenos, iniciara
suas atividades e a expansão dos negócios da família.

Pilatos o admirara imediatamente, e nascera entre eles sólida amizade.
Assim que lhe fora possível, promovera José de Arimatéia a uma espécie de
embaixador de exportações, concedendo-lhe exclusividade no comércio de
estanho com as regiões sob o controle de Roma.

164



Nem bem o jovem Timóteo tinha deixado Nicodemos acomodado, José

entrou, fechou a porta e, cumprimentando o amigo, perguntou:
-E então? Esteve novamente com o Mestre?
-Sim, estive com ele, de madrugada.
-E dessa vez, sobre o que conversaram?

- Sobre muitas coisas, José, mas a maior parte não consigo entender; Jesus
me faz sentir tão pequeno e ignorante!
- É verdade. Tudo o que conhecemos se torna insignificante em sua presença.
Toda a sabedoria de nossos antepassados se reduz a nada em sua luminosa
companhia.
- Para mim, José, basta estar com ele. Como é doce ficar ao seu lado...
Como me sinto venturoso e feliz!... Os momentos que passei com Jesus até
agora, apesar de breves e fugidios, foram os mais jubilosos de minha vida.
Quanta sabedoria em suas palavras, quanto amor em seus olhos! Não deixo
de pensar em seu olhar um instante sequer. Desde que o vi pela primeira
vez, que meus olhos viram o olhar de Jesus, nunca mais fui o mesmo.
José ajeitou-se na cadeira, ouvindo o amigo com atenção. À primeira
pausa de Nicodemos, ele disse:
-Sinto-me da mesma forma. É tão bom estar com o Mestre... - e suspirou
profundamente - Pena que não possamos encontrá-lo mais freqüentemente.

-Tenho pensado sobre isso, José. Incomoda-me ver Jesus às escondidas,
como se ele fosse um ladrão! É muito constrangedor.
José fitou o amigo com olhar triste e considerou:

- E o que podemos fazer? Eu também penso muito nisso, mas se nos expusermos
mais do que já o fazemos, correremos sérios riscos. Muitos, no
Sinédrio, andam fazendo perguntas sobre os possíveis seguidores ocultos de
Jesus. Existem rumores de que há alguns de seus membros que lhe dedicam
simpatia. Não, Nicodemos, infelizmente não há nada que possamos fazer. É
muito arriscado. Se descobrirem que somos seguidores dos ensinamentos de
Jesus, perderemos tudo o que temos, tudo...
Fez-se abrupto silêncio quando Timóteo entrou, trazendo um refresco
para o dia quente que já ia adiantado. Assim que o rapaz saiu, Nicodemos
perguntou:

- Ele sabe de algo?
-Não, ninguém em minha casa suspeita de nada; não desconfiam nem de
longe.

165



-Nem mesmo Sara?

-Muito menos ela. Sabe como a família dela é apegada às tradições. Não
posso permitir que ninguém descubra. Seria um desastre para mim. Você me
compreende, não é?

-Claro, José; em sua posição, seria absolutamente desastroso. Alguém
com o seu poder e a sua influência, que pela própria situação já tem alguns
rivais gratuitos, de imediato os teria como inimigos.
- Pois é isso; também penso assim. Infelizmente, não há o que fazer. Teremos
de continuar encontrando-o às escondidas. Entretanto, deixar de ouvi-
lo e falar com ele, isso eu não vou fazer. Para mim, ninguém jamais falou
como Jesus. Sinto-me verdadeiramente mais perto de Deus, quando estou
em sua companhia.
Os dois prosseguiram em animada palestra, trocando impressões sobre
os ensinamentos essenciais daquele que ambos reconheciam ser o Messias
prometido.

Algumas semanas mais tarde, José, ao retornar de viagem que realizara
até a Fenícia, foi informado de que Jesus estava em Cafarnaum. Fazendo
uma parada não programada na região, dirigiu-se ao lugar onde esperava ver

o nazareno. Não teve dúvida: dispensou todos os servos e empregados, dando-
lhes um dia de folga. Depois, trocou suas vestes elegantes e sofisticadas
de ancião judeu pelas roupas rotas que comprara de um mendigo e, usando
pesada túnica que lhe escondia a cabeça, buscou o local onde soubera que
Jesus estaria.
Cercado por grande multidão, o Mestre, do alto de um monte, falava ao
povo. Assim que José o localizou, enfiou-se no meio do povo, procurando
chegar o mais perto possível. Não conseguiu ficar muito próximo, mas podia
vê-lo ao longe e escutar claramente as suas palavras:

-"... Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. Bem-
aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos... Bem-
aventurados os que padecem perseguições por amor da justiça, porque deles
é o Reino dos Céus..."
Enlevado, José de Arimatéia, anônimo entre a multidão, bebia sofregamente
cada palavra de Jesus, que lhe ressoava profundamente no coração.

166



CAPÍTULO 32

Ao regressar a Jerusalém, nem bem José entrara em casa e Sara veio ao
seu encontro, preocupada:

-Atrasou-se, José. Nós o esperávamos há dias. O que houve?
- Tive de parar em Cafarnaum, a pedido de Pilatos.
-E por quê?
- Queria que eu visitasse alguns negociantes, para tratar de assuntos pessoais
dele.
Aparentemente distraída, ela se calou por instantes. Depois, como a se
lembrar de algo, disse:
-O Sinédrio se reunirá hoje.

-Hoje? O que aconteceu? Não temos nenhuma reunião marcada, a não
ser dentro de algumas semanas.
- Trata-se de uma reunião especial; foi convocada às pressas.
-E sabe por quê?
- É sobre o tal Jesus de Nazaré. Parece que esse homem está criando
problemas. Querem discutir sobre ele. Já ouviu falar nele, não é?
- Claro, muito se tem falado a respeito de Jesus.
-E o que sabe sobre ele?
José fitou-a, buscando em seus olhos algum sinal das intenções que lhe
iam na mente ao fazer aquela pergunta. Sem sucesso, desviou os olhos e
respondeu:

-Quase nada. Apenas que ajudou a muitos e que o povo lhe procura a
companhia.
Sorrindo ironicamente, ela afirmou:

-O povo não sabe nada, José. Quero a sua opinião.
-Minha opinião sobre o quê?
- Sobre esse tal Jesus. O que pensa dele? José custou um pouco a responder,
hesitante:
- Não sei nada sobre ele, Sara, além do que já lhe disse. Não tenho opinião
formada.
E antes que a mulher fizesse mais perguntas, foi ele quem indagou:

167



-A que horas deverei estar no Sinédrio?

- A reunião já deve estar começando. É bom se apressar.
Ele encerrou imediatamente a conversa e entrou pelo corredor da mansão,
seguindo na direção do quarto, enquanto dizia à esposa:
-Vou trocar-me e logo sairei para juntar-me aos demais membros do Sinédrio.
Peça ao Timóteo que me prepare algo para comer no caminho.
Sem responder, Sara ficou pensativa enquanto o marido se afastava; então
foi até a cozinha e deu ordem a Timóteo, conforme José pedira.
Após cumprimentar os membros aos quais era mais ligado, José acomodou-
se em sua cadeira. Assim que o viu, Nicodemos levantou-se e, devagar,
aproximou-se dele. Cumprimentou um, depois outro, até ficar perto do amigo
José de Arimatéia. Saudou o ancião que estava sentado bem atrás dele, e
depois, simulando surpresa, disse:

-José! Pensei que ainda estivesse viajando.

- Cheguei hoje, pela manhã.
Nicodemos acomodou-se ao lado do amigo. Ao ver Caifás, o sumo-
sacerdote, ocupar a tribuna, José sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo.
Ajeitou-se melhor na cadeira e, sério, atentou para o início da reunião.

Jesus começava a incomodar muito as autoridades religiosas de Jerusalém.
Aquela seria a primeira de muitas outras reuniões que se realizariam,
em torno de seus atos e palavras. Com o passar dos dias, crescia o número
de doentes que eram curados por ele: cegos, paralíticos, mudos, surdos de
nascença, leprosos. Muitos começaram a vir de longe para vê-lo, e os doutores
da lei, os escribas e os sacerdotes de Jerusalém sentiam-se mais e mais
ultrajados com seus atos.

Durante essas discussões acaloradas entre os seus companheiros do Sinédrio,
em geral José de Arimatéia permanecia calado. Ele, um dos setenta
membros da instituição que era o grande conselho político e religioso e a
suprema corte de justiça de Jerusalém, sentava-se e escutava, mudo, todo
tipo de acusações e suspeitas contra Jesus. Ele sabia que eram ataques infundados;
conhecia as mensagens amorosas do Mestre e sabia que eram
verdadeiras. Não obstante, sentia-se constrangido diante dos demais, e na
maioria das vezes não dizia nada. Raramente, quando tinha oportunidade,
levantava-se e questionava as acusações, tentando fazer os outros refletirem
melhor sobre o que estava por trás daqueles ensinamentos. Sugeria, então:

168



- Ilustres companheiros, não seria conveniente enviarmos um grupo para
ouvi-lo e avaliar-lhe melhor as intenções?
Era sempre automaticamente repelido. Algumas vezes estabelecia-se um
burburinho entre os participantes da assembléia e Caifás, o sumo-sacerdote,
intervinha:

- Silêncio, senhores! Não acho necessário enviarmos ninguém para ou-
vir-lhe as blasfêmias. Esse homem está instigando o povo contra Roma, e
ainda nos trará problemas...
E as reuniões seguiam infindáveis, às vezes noite adentro, discutindo o
comportamento de Jesus. José se calava. Normalmente saía dali cansado e
abatido. Voltava para casa desalentado. Sentia que deveria ter sido mais
enfático, mais firme na defesa de Jesus, mas não conseguia fazê-lo. Receava
muito as conseqüências que poderiam atingi-lo se demonstrasse explicitamente
a simpatia pelo nazareno.

Antes do início de cada reunião, ele prometia a si próprio que daquela
vez exporia seu ponto de vista e falaria em defesa de Jesus. Porém, quando a
ocasião se apresentava, de novo ele se sentia acuado pelos outros e silenciava.


Naquela tarde, terminada mais uma das reuniões cujo tema invariável
eram acusações a Jesus de Nazaré, ele voltou para casa devagar, triste e acabrunhado.
À noite, revirava-se de um lado ao outro na cama, sem poder
dormir. Levantou-se e caminhou até o alpendre, de onde se tinha uma bela
vista do céu estrelado. Olhou ao seu redor observando o vento movendo as
folhas das árvores, e ficou imaginando o que aconteceria com sua vida se
ele ousasse erguer-se com firmeza, em meio à próxima reunião, e defender
Jesus. Outra vez o gelo de um calafrio percorreu-lhe o corpo. Sentia medo.

Já era madrugada quando, vencido pelo cansaço, ele conseguiu adormecer.
Assim que seu corpo denso entregou-se ao sono reparador, seu corpo
espiritual desprendeu-se, atordoado. Ouviu, então, uma voz suave e terna:

-Sente-se, José, ainda está tonto.
Ele viu a luminosa figura à sua frente e ajoelhou-se, exclamando, impressionado:


- Meu Deus! É um anjo do Senhor que vai me punir!
Estendendo os braços e erguendo-o suavemente, aquele ser falou:
- Acalme-se, José. Ninguém vai puni-lo a não ser você mesmo.
169



Confuso, ele sentou-se na beira da cama. Fitou então a imagem que tinha
diante de si: uma jovem delicada e meiga, com cabelos que cintilavam;
os olhos e o coração emitiam luz tão forte que ele mal podia olhar. Então,
perguntou:

- Quem é você? É uma enviada do Altíssimo?
-Sim, José, sou enviada de Deus; mas não tenha medo, quero ajudá-lo.
Primeiro precisa se acalmar. Anda muito preocupado, não é?
-Eu não estou feliz.
- Eu sei, nem poderia estar, José. O que estão fazendo com Jesus é muito
injusto.
- Então, estou certo? O Todo-Poderoso está mesmo com ele?
- Sim. Jesus é o Messias prometido em todas as escrituras, aquele anunciado
pelos seus antepassados.
- Eu sabia! Pelas suas palavras plenas de sabedoria e entendimento, amor
e misericórdia, eu o reconheci.
- Todavia, nem todos o aceitam, não é?
-Acho que muitos ainda não b reconheceram. Mas por que Jesus os incomoda
tanto?
-Porque ele diz a verdade sobre o coração do homem, que está repleto de
impurezas e imperfeições. Ele pede transformação, e os homens não querem
mudar, José.

José ficou pensativo. Com voz ainda mais suave, ela prosseguiu:

- Entretanto, você o reconheceu, e isso é uma grande benção. Agora é a
sua vez de também mudar. Assuma sua posição ao lado de Jesus; siga-o e
deixe para trás o velho homem. Esta é a sua grande oportunidade de transformação.
Não a desperdice. Aproveite! Você esteve com ele, já sentiu o
poder do seu amor.
José respondeu, entristecido:
-É isso o que mais quero, porém... Não consigo.


- Não tenha medo, José. Você não estará sozinho. O Senhor Deus estará
amparando e abençoando sua decisão e suas atitudes. Aja no bem, sem se
importar com as conseqüências. Escolha o bem, a verdade, o amor, custe o
que custar. Coloque os verdadeiros valores, que são eternos, acima das ilusões
da Terra, e entregue-se ao Salvador com alegria.
José baixou a fronte e grossas lágrimas rolaram pelo seu rosto. Enfim,
afirmou:

170



- Vou me esforçar... Vou tentar. Tocando-lhe as mãos, ela disse:
- Você conseguirá, José. Abra seu coração a Deus, com sinceridade, e
ele o ouvirá e lhe dará forças. Agora, é hora de descansar. Logo o sol brilhará
no horizonte.
José fitou-a nos olhos e perguntou:


- Qual é o seu nome?
-Elvira.
Antes que ele pudesse dizer palavra, seu corpo físico foi despertado por
uma agitação incomum.

CAPÍTULO 33

Ainda envolvido pela doce energia de Elvira, José despertou e olhou em
torno. Sara já estava de pé, e à beira da janela, dizendo:

- Isso é uma blasfêmia! Ele se deixa aclamar como se fosse o Todo-
Poderoso. É uma blasfêmia!
José se levantou e, ainda sonolento, aproximou-se da janela:

-O que está acontecendo? O que te incomoda tanto? -perguntou.
Ela apontou na direção do templo de Jerusalém:
- Veja! É aquele Jesus, aclamado pelo povo! Ele tem de ser detido!
Dizendo isso, afastou-se da janela e ia deixando o quarto quando ele,
depois de tentar ver o que se passava, indagou:

- Como sabe que é ele? Não consigo ver direito. Só vejo a multidão e...
- Timóteo me disse. Mandei-o bem cedo à casa de meu pai para buscar
algumas roupas que minha mãe comprou para mim, e ele voltou contando
tudo em detalhes. Não posso acreditar que não o tenham detido!
- Afinal, Sara, que mal ele lhe fez?
-Do que está falando, José?
- Que mal esse homem lhe fez para causar tamanha aversão?
-Ora, ele se mostra inimigo de nossa tradição, de nossos antepassados!
Eu é que não compreendo por que você sempre parece ter por ele certa simpatia...
Estou certa?

Erguendo um pouco mais o corpo, José limpou a garganta e retrucou:

171



- Não é isso; apenas não compreendo por que todos lhe têm tanta hostilidade.
Até onde sei, ele não fez nada contra nossas tradições.
- José, ele fala em igualdade, em perdão das ofensas, em humildade, em
justiça...
-E não é isso mesmo que Moisés nos ensinou, através das leis?
Sara fechou ainda mais o semblante ao dizer:
- Não há justiça em termos de pagar tão altos tributos aos nossos dominadores.
Os romanos estão nos espoliando e precisamos de um libertador, de
um verdadeiro emissário do Alto para nos restaurar a liberdade. Somos o
povo eleito do Todo-Poderoso e esperamos pelo emissário dele que nos salve,
finalmente, dos opressores. Esse Jesus é patético! Apregoa ser enviado
dos Céus, e sabe como entrou em Jerusalém?
José não respondeu. Ouvia atentamente a esposa, que prosseguiu:

- Entrou em um burrico! Veja se ele poderia ser nosso libertador! Não!
Jeová nos fará justiça! Somos um povo especial, os escolhidos, e não podemos
mais viver sob a opressão de nenhum soberano que não seja o Senhor!
Nós é que devemos dominar, com as leis de Deus e com a tradição de nossos
antepassados.
Sem saber o que dizer, José permaneceu ora olhando a esposa, que continuou
a falar, ora tentando identificar, pela janela, algo em meio à multidão.
Finalmente, ela veio até a janela, olhou mais uma vez para fora e virou-se
para José:

-Isso tem de acabar! O Sinédrio precisa tomar uma providência definitiva
contra esse... esse agitador!
Olhando fixo para José, que manteve silêncio, Sara saiu do quarto, resmungando:


- Alguma coisa tem de ser feita...
José ficou encostado à janela por mais algum tempo, tentando enxergar
o que ocorria, porém àquela distância só via a multidão. Vestiu-se, tomou
um rápido desjejum e saiu direto para o templo. Assim que se aproximou da
multidão, perguntou a um homem, que parecia saber o que se passava:
-O que está acontecendo?
-É Jesus de Nazaré. O povo o saúda como a um grande rei.
- E ele, o que faz?
-Apenas acena para o povo e sorri.
- Aceita, então, a aclamação?
172



O homem mediu José de alto a baixo e perguntou:

-Quem é o senhor? Não é José de Arimatéia, o rico mercador?
José empalideceu e respondeu:
-Não, acho que está me confundindo com alguém. O homem insistiu:
- Como não? Lembro-me de o ter visto quando chegou trazendo tecidos
de uma de suas viagens. Também sou mercador.
Aflito e temeroso, José disse:

- Deve estar me confundindo. De qualquer modo, só estava querendo entender
o motivo de tanto tumulto. Tenho trabalho a fazer e meu acesso está
sendo dificultado por essa confusão.
Sem esperar resposta, ele voltou para casa. Entrou e enfiou-se em uma
das salas, onde costumava planejar suas viagens e seus negócios. Ali, sentado
diante de uma ampla janela, ficou absorto, observando o horizonte.

Perto das onze da manhã, Sara entrou e perguntou:

- Não vai se arrumar?
José, como se despertasse de um sonho, olhou-a por instantes e perguntou:


- Para o almoço? Mas é cedo...
-José, você me avisou que Pôncio Pilatos viria almoçar conosco hoje,
esqueceu? Ainda que os romanos me causem náuseas, admito que a convivência
com eles é boa para os seus negócios. Já está tudo pronto. Não diga
que desmarcou o almoço e não me comunicou!

-Tinha esquecido completamente, Sara. Que bom que me lembrou! Vou
preparar-me agora mesmo.

Abraçou a esposa à porta, agradecendo:

-Obrigado, querida, você sempre me ajuda em tudo. Sara observou o

marido e disse:
-Está estranho, José. Não costuma esquecer seus compromissos. O que o
preocupa? E esse Jesus, não é? José fitou-a e respondeu:

- Sim, Sara, é esse Jesus...
O almoço transcorreu com tranqüilidade, e o assunto principal foi o nazareno,
que tanto atraía a atenção do povo. José esforçou-se o quanto pôde
para desviar a conversa para temas que naquela circunstância lhe interessava
mais focalizar. Contudo, era Pilatos quem insistia em retornar ao jovem de
Nazaré:

173



-Não entendo, José, por que os conselheiros do Sinédrio têm tanto medo
desse homem. Ele não é um impostor?

Diante dos olhos atentos da esposa, José procurava contemporizar, sem,
no entanto, defender Jesus de qualquer modo que fosse. E foi Sara quem
interveio:

-Ora, senhor governador, o que diria se ele se colocasse acima de seus
deuses?

-Seria inadmissível!

-Pois é exatamente isso que os integrantes do Sinédrio pensam. Eles estão
lá para zelar pela ordem, pelo bem do povo, pelo cumprimento das leis.
E creio que tomarão as medidas necessárias para acabar com essa situação.
José ouvia calado. Pilatos também emudeceu e ele aproveitou, então, para
mudar de assunto:

- Pilatos, trago ótimas novidades da Britânia.
-Esteve lá?
-Desta vez não fui pessoalmente; enviei um homem de minha inteira
confiança. Eles estão interessados em nosso estanho. Temos ainda de acertar
pequenos detalhes quanto às condições do pagamento, porém o interesse é
grande. Acho que faremos bons negócios por lá.

Desviada totalmente a atenção de Pilatos, eles terminaram o almoço e
José o levou até sua sala. O domingo passou calmo e Pilatos, que viera acompanhado
da esposa Cláudia, deixou a casa de José ao entardecer. Tão
logo eles saíram, José foi para o quarto e ali ficou.

A atmosfera era tensa em toda Jerusalém, como se alguma coisa grave
estivesse em suspenso, prestes a se desencadear. A despeito dos preparativos
para a celebração da Páscoa, algo parecia diferente. José sentia-se angustiado,
triste.

Naquela noite, não suportando a sensação opressiva, resolveu procurar
Jesus outra vez. Esperou que a esposa adormecesse e saiu cuidadosamente,
sem fazer barulho. Envolvido em uma bela e pesada túnica, foi ter com os
discípulos de Jesus. Quando o viu, Pedro inquiriu:

-O que faz aqui, José?
-Preciso falar com o Mestre.
-Agora é muito tarde, ele precisa descansar.
-Preciso muito vê-lo, por favor.
174



- Por que não vem durante o dia, como todos os outros? Tem de aparecer
furtivamente, no meio da noite? Não vê que o Mestre necessita descansar?
José baixou a cabeça, envergonhado. Sabia que Pedro estava certo, que
ele deveria fazer o que sua consciência lhe cobrava, mas não conseguia.
João saiu para ver o que estava acontecendo e, ao ver o visitante, saudou:

—José, seja bem-vindo.

-Como vai, João? -Veio ver Jesus?

-Eu gostaria muito, mas Pedro diz que o Mestre precisa descansar.

-É verdade, ele tem se sacrificado muito nos últimos dias. Não sei como

consegue...
Depois, dirigiu-se a Pedro:

-Acho melhor dizer a ele que José está aqui. Talvez o receba...
Pedro continuou firme em sua posição:
- É muito tarde, João. O Mestre precisa descansar. João, calmamente,
respondeu:
- Eu sei, Pedro, tem razão. Porém, vejo que José está aflito; precisa falar
com Jesus. Vamos ao menos avisar que ele está aqui.

Conduzindo José até a sala da entrada, pediu:

-Aguarde um pouco. Vou ver se Jesus pode recebê-lo. Pedro os acompa


nhava e encarava José, visivelmente contrariado. João logo reapareceu,
chamando:

-Venha, José, o Mestre o espera.
Quando Pedro fez menção de objetar, João disse:
- Vai ser um encontro breve, fique tranqüilo.
José penetrou rapidamente o interior da pequena casa, à procura de Jesus.
João e Pedro retomaram a questão das visitas, e este esclareceu:

- Não é isso que me incomoda. O que não tolero é que esses homens o
aceitem em segredo, sem ter a coragem de assumir que são seus seguidores.

Novamente João intercedeu em favor de José:

-A situação de José é complicada. Ele ama Jesus, posso perceber isso em

seus olhos.

- Não a ponto de segui-lo - Pedro redarguiu, firme. João suspirou:
- Quem sabe isso não mude hoje? Temos de acreditar, Pedro.
Negando com a cabeça, Pedro resmungava:
- Não acho isso correto. Ele é um medroso, um covarde! Não tem coragem!
175



João se calara. Não demorou muito e José surgiu outra vez na entrada da
casa. Com os olhos vermelhos e rasos de lágrimas, agradeceu, apertando a
mão do discípulo:

- Obrigado mais uma vez, João; sempre é muito generoso comigo.
João abraçou-o e respondeu:
- Não me agradeça. Eu tenho por você um grande carinho, José, e espero
que encontre muito em breve o que está procurando.
-Obrigado, meu amigo; uma vez mais, obrigado. Enxugando as lágrimas
que insistiam em descer-lhe pelo rosto, José despediu-se de João, de Pedro e
de alguns outros que estavam à porta da casa, e voltou depressa para a mansão.


Assim que chegou, enfiou-se na cama em silêncio, para não acordar a
esposa. Ajeitou-se nas almofadas e, fitando o teto, começou a relembrar a
conversa que tivera com Jesus. Evocou cada frase, cada palavra, extremamente
comovido com a recepção amorosa do Mestre. Ao mesmo tempo, seu
coração doía e sua mente estava dividida. Sentia que devia unir-se a Jesus e
assumir de vez sua posição em favor dele. Por outro lado, resistia a colocar
em risco sua condição e suas conquistas sociais e materiais. Sabia que era
radical a rejeição dos principais de Jerusalém a Jesus. Segui-lo abertamente,
naquelas circunstâncias, poderia significar transformar-se em inimigo de seu
povo.

Os primeiros raios do sol encontraram José ainda acordado, refletindo e
recordando; ele não pudera dormir um minuto sequer naquela noite.

CAPÍTULO 34

José estava à mesa, em companhia da esposa, quando Nicodemos foi
anunciado por Timóteo. José recebeu o amigo com entusiasmo:

- Bom dia, Nicodemos. Sente-se e tome o desjejum conosco.
Nicodemos, deixando transparecer grande nervosismo, respondeu:
-Não, agradeço, mas estou sem fome.
Olhando para Sara e em seguida para José, disse a este:
-Precisamos conversar.
176



Compreendendo de imediato que Nicodemos desejava falar-lhe a sós,
José levantou-se, dizendo:

- Sara, peça a Timóteo que nos leve alguns pães; estaremos em minha
sala.
Sara não respondeu, apenas ergueu-se e foi à procura de Timóteo. Nicodemos
acompanhou o dono da casa e fecharam-se os dois na sala de negócios
de José de Arimatéia. Assim que ficaram sozinhos, José perguntou:

- O que houve, Nicodemos? Parece nervoso.
- Estou, José, e muito preocupado.
-O que está acontecendo?
- Estou com um terrível pressentimento a respeito de Jesus.
-O que foi? -insistiu José.
- Caifás quer fazer uma reunião amanhã cedo, para discutir o que fazer
com Jesus. Eles estão muito revoltados com o que aconteceu ontem. Não
aceitam que ele tenha sido recebido pelo povo de Jerusalém como um rei.
Estão cheios de ódio, José. Estou preocupado. Vi bem a maneira como Caifás
se referiu... - baixou o tom de voz - ao Mestre. Seus olhos revelavam
rancor e ressentimento. Não estou gostando nada disso. O que faremos?
Levantando-se e caminhando até a janela, José pensou por instantes e
respondeu, desanimado:

- Não sei o que podemos fazer para ajudar. O Sinédrio tem setenta
membros; não representamos praticamente nada. Acaso sabe de mais alguém,
entre nossos companheiros, que simpatize com as idéias de Jesus?
Nicodemos refletiu um pouco e fez sinal negativo com a cabeça, dizendo:


- Só sei que alguns dos anciãos são menos resistentes ao Mestre. Se ao
menos os essênios fizessem parte do Sinédrio... Eles, sim, na grande maioria
são simpatizantes de Jesus. Sabe disso, não é?
Num suspiro profundo, José respondeu:
-Sim, os essênios o apoiam totalmente. Aliás, creio que Jesus é um deles.


- Também acho. Infelizmente, nossos irmãos essênios se afastaram por
completo de Jerusalém e não têm qualquer influência sobre as decisões do
Sinédrio. Portanto, não poderão ajudar. Fico remoendo a situação, tentando
achar uma forma de colaborar com o nosso Mestre, mas...
177



A voz morreu-lhe na garganta. José, que desolado ouvia o amigo, aduziu:


-Temos medo, não é, Nicodemos? Tememos nossos próprios conterrâneos.
Sabemos do que eles são capazes, não é mesmo?

-José, eu receio que desta vez eles tomem medidas drásticas contra Jesus.
Estão falando até mesmo em... matá-lo! José empalideceu:

- O quê? Quem disse isso?
-Há rumores por todo o Sinédrio. Embora ninguém assuma diretamente,
ouve-se em todos os cantos... Eles estão mesmo furiosos...

- Especialmente Caifás...
-Especialmente ele. Como sumo-sacerdote, não admite os ensinos de Jesus.
Ele é o pior de todos os inimigos do Mestre...

-E de qualquer um que o siga...

Os dois calaram-se por largo tempo. Afinal, José levantou-se, foi até o

amigo e tocou-lhe o ombro com gentileza:

- Vamos pedir a Deus que nos inspire para encontrar um modo de ajudar,
Nicodemos.

Este, erguendo-se e fitando José, respondeu:

-Espero que possamos contribuir. E insuportável ver esse homem justo,

bom, puro e verdadeiro - o Messias prometido pelos nossos antepassados -
ultrajado e humilhado por seu próprio povo.

-É impressionante a cegueira de nossos religiosos! Eles são incapazes
de ver que Jesus é o Messias. O enviado!
-Não conseguem. Estão cegos pelo orgulho e pela vaidade. Jesus lhes
toca nas feridas quando aponta suas imperfeições. Eles se julgam superiores.
-Julgam-se acima do próprio Messias. Chegam a colocar-se no lugar de
Deus!
-E o povo é quem sofre as conseqüências. Está desamparado. É por isso
que Jesus está sempre cercado pelos sofredores e desprezados.

-Até leprosos ele curou. Imagine a reação dos sacerdotes!

-Eu me lembro da reação de Caifás. Perdeu a cor de tanta raiva, e então

bradou em alta voz: Ele cura pelo poder de Belzebu.
Mais uma vez os dois se calaram por longo tempo. Depois, Nicodemos
despediu-se:

- Amanhã, na primeira hora, o Sinédrio se reunirá. Espero que possamos
fazer algo em favor de Jesus.
178



-Então nos vemos amanhã, a menos que surja alguma idéia antes.
O dia se arrastou para José. Procurou entregar-se aos seus afazeres, sem
conseguir concentrar-se em nada. Foi até o centro comercial verificar alguns
de seus negócios e seus carregamentos, mas tinha o coração pesado e a mente
distante do trabalho. Pensava apenas em Jesus: em seu olhar vivo e poderoso,
em sua mensagem de luz e amor, em sua presença gloriosa. Queria
ajudar e, ansioso, buscava alguma idéia que lhe permitisse agir. Tomou a
firme decisão de defender o Mestre perante o Sinédrio, custasse o que custasse.


Ao voltar para casa, encontrou Sara pensativa. Logo que o viu, ela disse:

- O que Nicodemos queria? Por que estava tão nervoso?
-Negócios, Sara. Ele estava preocupado com alguns servos que lhe têm
trazido problemas.

- Pensei ter ouvido falarem no nome do nazareno.
-Estava escutando nossa conversa?
- Claro que não. Passei pela sala umas duas vezes, eu acho, e em ambas
ouvi o nome de Jesus. Era sobre ele que falavam, não é verdade? Tenho
percebido que simpatiza com ele, José.
- Não vejo mal algum em seus ensinamentos, apenas isso.
- Não ouse apoiá-lo, José. Ele é inimigo do nosso povo! Blasfema contra
Deus e contra seus representantes na Terra.
-Não é bem assim, Sara. Você está equivocada, como a maioria dos nossos
líderes religiosos.
-José, nós somos o povo escolhido, a nação eleita. Nossos líderes têm
contato direto com o Deus vivo no tabernáculo, dentro do templo. Esse rebelde
deve ser apedrejado! E aqueles que o seguem também!

José emudeceu, assustado. Não imaginava que Sara se sentisse daquela
forma em relação a Jesus. Ela o fitou detidamente e exigiu:

- Não ouse envergonhar nossa família. Afaste-se dele imediatamente e
esqueça qualquer iniciativa de apoiá-lo.
Antes que o marido pudesse dizer mais alguma coisa, ela saiu da sala.
José, sentindo-se desfalecer, sentou-se em ampla cadeira e deixou que o
corpo todo pesasse sobre o assento. Estava só e desalentado. Naquela hora,
desejou profundamente nunca ter feito parte do Sinédrio.

Na manhã seguinte, ao se aproximar da luxuosa construção que abrigava

o conselho máximo de Jerusalém, José percebeu a movimentação intensa.
179



Muitas pessoas se amontoavam diante da porta principal. Assim que conseguiu
entrar, José encontrou Nicodemos, que avançou ao seu encontro e falou
baixo, junto a seu ouvido:

-Ele está aqui. Trouxeram Jesus ao Sinédrio.
José e Nicodemos tomaram seus lugares. Sob a condução de Caifás, sumo-
sacerdote em Jerusalém, a sessão começou. Todos queriam falar. Caifás
procurava colocar ordem nas per-quirições que eram dirigidas ao nazareno.
O Sinédrio, na figura de seus membros, desafiava Jesus de todas as maneiras
possíveis, questionando seus ensinos, seus atos.

Jesus, pacientemente, respondia a todas as perguntas que Lhe eram dirigidas,
procurando esclarecer e orientar aqueles corações endurecidos pelo
orgulho e pelo egoísmo. Suas palavras eram firmes e amorosas, cheias de
sabedoria e de luz.

José e Nicodemos tudo ouviam calados. Percebiam a quantidade desmedida
de questões, muitas até sem sentido, com que o assaltavam. Mas não
ousavam dizer nada. Tenso, José desejava ardentemente que aquele suplício
terminasse. Sentia-se torturado no mais profundo de seu ser.

Horas mais tarde, no instante em que a sessão era encerrada, José despediu-
se discretamente de Nicodemos e saiu depressa. Quando alcançou certa
distância do prédio, inspirou o ar fresco e se deu conta de que mal conseguira
respirar durante toda a manhã. Sem vontade de voltar para casa, ele caminhou
a esmo por muito tempo. Lágrimas corriam, incessantes, pela sua face.
Cheio de angústia, sentou-se em um local afastado, baixou a cabeça sobre os
joelhos e chorou amargamente.

Já era noite quando José foi para casa. Logo que entrou, a esposa veio ao
seu encontro e perguntou:

- Onde esteve? Nicodemos veio aqui à sua procura.
-Cuidando dos negócios. -respondeu lacônico -Vou me deitar.
-Tão cedo? Não quer... Ele a interrompeu:
-Não, estou sem fome e muito cansado. Amanhã conversaremos, Sara.
Sem esperar pela resposta, entrou em seu quarto, lavou-se e enfiou-se na
cama. Nem bem adormeceu, exausto pelo dia cansativo e desgastante, seu
corpo espiritual, com a ajuda de Elvira, desprendeu-se do corpo denso e
sentou-se na beira da cama. Ele olhou para ela, banhada em intensa luz, e
perguntou:

180



- Você é o anjo do Senhor, que veio me orientar quanto à maneira de ajudar
Jesus?
- Não sou anjo, José, mas estou aqui para ajudá-lo - ela respondeu a sorrir.
- Então me diga: o que devo fazer para ajudar Jesus? Ela segurou-lhe as
mãos entre as suas e afirmou:
- Você já sabe o que deve fazer, só está temeroso. Sim, meu amado José,
você sabe o que deve fazer. Sua consciência lhe tem dito diariamente, mas é
uma decisão difícil.
- Quer dizer que devo apoiar Jesus, custe o que custar... Mas isso pode
significar a minha morte!
A voz suave e meiga de Elvira respondeu:

- Nada nos acontece sem a permissão de Deus. Ele sempre nos ampara e
nos supre com a força necessária.
- Temo pela minha vida, pela minha família.
-O que mais teme, José, é você mesmo. Tem medo de não ter fé suficiente
para fazer o que deve ser feito. Por isso está sofrendo. Confie em Deus,
ele estará sempre ao seu lado.

José não respondeu e continuou a fitá-la, assustado. Ela, então, ajoelhou-
se à sua frente e, tomando-lhe as mãos, disse:

- Deus me enviou para ajudá-lo, confie em mim. José olhou-a longamente
e enfim disse:
- Eu a conheço. Seus olhos me são tão familiares... Quem é você?
Elvira, ainda ajoelhada diante dele, respondeu:
- Já nos conhecemos há muito tempo, José, e estou aqui para auxiliá-lo,
por isso não deve temer. O Pai jamais nos abandona.
Com o olhar fixo nos olhos de Elvira, José sorriu ao comentar:
-Você fala como Jesus...
Elvira retribuiu o sorriso e respondeu:

- Quem me dera, José, ao menos ser digna de ter palavras semelhantes às
do enviado de Deus.
- Ele é mesmo o enviado de Deus!
-Jesus é o Messias prometido, que vem ensinar ao mundo o caminho para
Deus.

- Então por que tenho tanta dificuldade em segui-lo?
181



- É seu passado que lhe pesa sobre os ombros, José, tentando arrastá-lo
para as regiões sombrias de onde há muito se esforça para sair. Não desanime.
Lute!
Os primeiros pássaros anunciavam o alvorecer de um novo dia. José
despertou ainda inebriado pela impressão que lhe causara a presença amorosa
de Elvira. Sentou-se na cama e tentou compreender aquilo que, para ele,
havia sido um sonho. Como acreditava que os sonhos eram mensagens de
Deus para os homens, procurou lembrar e guardar tudo o que pôde. Por fim,
levantou-se lentamente, tentando fixar as imagens que ainda estavam diante
de sua retina. Aos poucos elas foram esmaecendo e ele começou a pensar
nos preparativos para a celebração da Páscoa, que seria realizada em breve.

CAPÍTULO 35

A grande mesa do salão principal estava ocupada por parentes mais chegados
e amigos de José. A preparação para a Páscoa, que para o povo hebreu
recordava o fim da escravidão no Egito, era realizada todos os anos. O
vinho estava sobre a mesa e, enquanto os presentes cumpriam cada etapa do
ritual, atentos aos mínimos detalhes, José parecia distante. Apenas acompanhava
os demais, que eram dirigidos pelo sogro, escolhido havia muitos
anos para conduzir as cerimônias religiosas mais importantes.

Sara não podia deixar de notar que o marido estava distante. Embora José
executasse todos os atos, como os outros, ela, que o conhecia bem, percebia
que ele fazia tudo de modo automático, sem prestar a menor atenção em
nada.

Não muito longe da elegante mansão de José de Arimatéia, Jesus estava
reunido com os apóstolos para a ceia. Ajoelhado diante dos seus seguidores,
ele, o Mestre dos Mestres, o Messias enviado por Deus para resgatar a humanidade,
lavava os pés dos discípulos. Gentilmente, segurou os pés de
Pedro, que, muito constrangido, quase os puxava. Jesus, no entanto, suavemente
lavou seus pés e depois os enxugou. Em seguida, fez o mesmo com
João, e Tiago, e André, e um a um lavou-lhes os pés. Apesar de a lição ter
enorme profundidade, os discípulos ainda não podiam apreender-lhe o sentido
por completo.

182



Ao final da cerimônia, Jesus deu as últimas orientações aos seus eleitos,
preparando-lhes o coração para o momento difícil que os aguardava. Depois
da comemoração, seguiu com eles para o Monte das Oliveiras.

Enquanto isso, na mansão à beira-mar, também terminava a ceia preparatória
para a grande celebração. Quando o último convidado saiu, José, que

o acompanhara até a porta, caminhou devagar em direção ao seu quarto. Ao
passar pelo salão que há pouco acomodara os convidados, encontrou Sara,
ainda sentada à mesa.
—Já é tarde, por que não foi se deitar? -ele indagou.

Ela não teve pressa em responder. Levantou-se, ajeitou alguns enfeites
que estavam sobre a mesa; só então se virou para o marido e lançou-lhe outra
pergunta:

-O que você tem hoje, José? Está distante e pensativo.

-Ora, Sara, estou apenas cansado.
-José, eu o conheço bem. Sei que alguma coisa o preocupa. O que está
havendo?
-Já disse, Sara, estou cansado; tenho trabalhado muito. Sentando-se novamente,
ela insistiu, exasperada:
-Eu sei que não é isso, José. Está preocupado com o nazareno, não é
mesmo?
José se impacientou:

- Como você é insistente, Sara! Já cansei de dizer que para mim não há
nada de especial nesse homem. Apenas acho que o Sinédrio se impressiona
em excesso com ele.
- Pois acho que existe algo mais. De qualquer forma, ele não vai durar
muito. Provocou demais a ira de nossos sacerdotes. Esse homem não vai
sobreviver por muito tempo.
José fitou-a longamente antes de falar:

- Por que se incomoda tanto com ele? O que Jesus faz que a ameaça?
Sara ergueu-se e respondeu, olhando firme para José:
- Ele não significa nada para mim. O que me aborrece é ver você se interessar
tanto por ele. Por mais que não admita, sei que o aprecia e está preocupado
com seu destino. Insisto, José, tome cuidado. Esqueça esse homem,
ou terá graves problemas. Todos aqueles que se aproximarem dele sofrerão
as consequências.
183



José andou até a porta que dava para o corredor dos quartos e, virando-
se, disse à esposa:

-Vamos nos deitar, Sara. Estou cansado e quero dormir. Amanhã conversaremos
sobre suas inquietações descabidas, está bem?

Ela caminhou até ele, tomou-lhe o braço e então disse:

-Vamos.

José dormia, mas seu sono era agitado. Virava-se de um lado para o outro
na cama, e transpirava muito. Era madrugada quando batidas na porta o
fizeram erguer-se, aturdido:

-Senhor, acorde!

Sentado na cama, José tentava entender a situação. Sara também acordou
e avisou:

-Timóteo está batendo. Vá ver o que é, José. Cambaleando, ele abriu a
porta do quarto. Timóteo disse:

-Desculpe-me acordá-lo à essa hora, senhor, porém um mensageiro acaba
de informar que Caifás convocou alguns membros do Sinédrio para uma
sessão extraordinária.

-Agora?! Mas é muito cedo! O que haverá de tão importante que não
possa esperar até amanhã?

Fitando o servo, ele indagou:

- Ele disse qual o motivo da urgência?
- Sim, senhor. Prenderam Jesus, o nazareno, e vão julgá-lo agora mesmo.
- O que disse, Timóteo?
-Foi o que o mensageiro falou. Antes de vir acordá-lo, insisti em saber
a razão de tamanha urgência; ele contou que haviam prendido Jesus e que
Caifás quer resolver a situação o mais rápido possível.
Sara, que não escutara com clareza, perguntou:

- O que está havendo, José? O Sinédrio está reunido a esta hora?
- Prenderam Jesus. Querem julgá-lo já.
Sara se levantou, veio até a porta e questionou o marido:
- Mas não é proibido fazer qualquer reunião durante a noite e pela madrugada?
Não é da lei que qualquer julgamento ocorra depois da oferenda
matinal?
- Sim, Sara, é contra a lei julgar quem quer que seja antes das três horas
da manhã. Mas, obviamente, Caifás está ignorando nossas leis.
184



- Então, ele deve ter uma razão muito forte para isso. Vá, José, meu pai
com certeza já deve estar no Sinédrio.
José pediu a Timóteo:

- Prepare-me algo para comer.
Em seguida, virando-se para Sara, recomendou:
- Volte para a cama, eu vou me preparar.
Sem discutir, Sara voltou e enfiou-se na cama. José estava começando a
se vestir quando Timóteo bateu outra vez.
-Estou quase pronto, Timóteo, espere um pouco! -disse.

- O senhor tem uma visita.
-Quem é agora?
O servo não respondeu. José aproximou-se da porta e en-treabriu-a. Ao
vê-lo, Timóteo sussurrou:

-Pedro está aí fora, querendo vê-lo.
- Quem? Que Pedro é esse?
- É Simão Pedro, o zelote, seguidor de Jesus. Está acompanhado de um
tal de João, filho de Zebedeu.

Imediatamente José saiu do quarto, fechou a porta e indagou:

-Tem certeza de que são Pedro e João?

-Tenho. Disse a eles que não sabia se o senhor poderia vê-los, que está
de saída para o conselho, mas insistiram muito. José refletiu por um instante,
depois determinou:

-Diga que estou acabando de me vestir e que já vou vê-los. Leve-os para
a sala de audiências. E não conte a ninguém que eles estiveram aqui; nem
mesmo a sua senhora. Está entendendo bem?

-Sim, senhor.
Timóteo saiu depressa e José entrou de novo no quarto, para terminar de
se arrumar. Sara, que ainda estava acordada, perguntou:
-O que foi desta vez?

-Sabe como é Timóteo, estava em dúvida sobre o que eu desejo comer.
Ele sempre está em dúvida quanto à melhor maneira de agradar.
- Ele é muito medroso... -comentou Sara, virando-se na cama.
José, já vestido, disse à esposa ao sair:
-Durma, Sara. Assim que a assembléia terminar eu retorno.
185



Sem resposta, fechou a porta atrás de si e foi direto para a sala de audiências.
Entrou e viu Pedro em pé, próximo à janela. João foi ao seu encontro
e justificou:

-José, perdoe-nos vir tão tarde a sua casa, porém a situação é desesperadora.


Abraçando-o carinhosamente, José respondeu:

-Não se preocupe, João, sente-se. São bem-vindos à minha casa.

João insistiu:

- Agradeço, José, mas deve saber que prenderam Jesus.
-Eu já soube. Infelizmente, aconteceu. Pedro aproximou-se dos dois e
disse:

- Está indo reunir-se com o conselho, não é mesmo?
- Sim, estava acabando de me aprontar quando chegaram.
- Tem de fazer alguma coisa para ajudá-lo, José.
-Digam-me, como ocorreu a prisão? Foi Pedro quem respondeu:
-Estávamos com ele no Monte das Oliveiras quando Judas o entregou
aos soldados romanos. Ele o traiu.

—Judas! Não é possível... -disse José, surpreso. Pedro o segurou firme
pelo braço e afirmou:

-Você pode ajudá-lo, José. É o único a quem nos resta recorrer nesta hora.
André e Tiago estão tentando falar com Nicodemos. Só vocês podem
depor a favor dele no Sinédrio.

Trêmulo, José se levantou, soltou-se das mãos de Pedro e caminhou até
a janela, buscando ar fresco. A respiração estava ofegante. Suspirou fundo e
respondeu:

—Não é tão simples, Pedro. Somos somente eu e Nicodemos contra todos
os demais. Não é fácil!
Pedro aproximou-se, fitou-o de alto a baixo e disse, erguendo a voz:

- Não seja covarde! Faça alguma coisa por ele! Você o segue desde o
princípio, sempre às escondidas! Agora tem de assumir sua crença! Ajude-
o!
-Não há muito que eu possa fazer. Eles são absoluta maioria e estão com
muita raiva de Jesus.
João, procurando abrandar os ânimos, acercou-se dos dois e pediu:

- Acalme-se, Pedro.
E tocando no ombro de José, falou:
186



-Apenas pedimos que faça o que for possível, José. Estamos assustados
e não temos a quem recorrer.
José baixou os olhos ao responder:

- Eu sei, João. Também estou assustado. Não queria fazer parte desse
conselho. Como gostaria de não fazer parte dele! Receio o que possa acontecer
ao nosso Mestre.
Pedro fitou-o e protestou:

- Se não é capaz de ajudá-lo, tenha ao menos a dignidade de não chamá-
lo assim.
João pegou Pedro pelo braço, com firmeza, e disse:

- Chega, Pedro. Fizemos o que podíamos, agora vamos voltar ao Sinédrio;
o julgamento já deve estar começando.
Ainda olhando fixamente para José, Pedro foi quase arrastado para a saída
por João. Estático, José ficou à beira da janela, olhando o céu, com o
pensamento distante. Foi interrompido por Timóteo, que bateu de leve à
porta:

- Senhor, preparei comida, conforme pediu. Tudo está pronto. Quer que
o sirva aqui?
Sem tirar os olhos do horizonte, José respondeu:
-Não, vou comendo enquanto me dirijo ao Sinédrio.
CAPÍTULO 36

Ao entrar no tribunal, José procurou Nicodemos, que também o aguardava
com ansiedade. Sentou-se ao seu lado e indagou:

- Como vão as coisas, Nicodemos? O amigo sussurrou:
- Estão péssimas. Jesus já foi combatido mais de uma vez por este conselho;
contudo, hoje sinto que estão decididos a levar a sentença até o fim.
-O que estão fazendo é ilícito. Todos nós sabemos que é contra a lei fazer
um julgamento antes da oferenda da manhã.

- Seja como for, conseguiram reunir quase metade dos membros do Sinédrio
e parece que ninguém se importa com a legitimidade desse julgamento.
Estão todos encolerizados, alterados.
-E onde está Jesus?
187



- Deve estar em alguma das salas anexas; eu ainda não o vi.
-Então não o trouxeram para cá?
-Até agora, não.
- E o que esperam?
-Não se sabe bem, mas parece que estão acertando os últimos detalhes
sobre os depoentes, as testemunhas, você sabe.
Fez-se pequena pausa. Em seguida, José suspirou longamente e afirmou,
irritado:

- Tudo isso é absurdo! Está tudo errado! Por que estão fazendo isso com
ele?
Nicodemos, temendo que os anciãos que estavam mais próximos o escutassem,
tocou-lhe o braço:

-Calma, José, fale mais baixo.

José se calou, olhou ao redor e depois segredou:

-Pedro foi me procurar; pediu que ajudemos Jesus, testemunhando a seu
favor.

-José, até onde percebo, esse julgamento não passa de uma grande farsa.
Na verdade, o sumo-sacerdote nada tem de concreto contra o Mestre; e está
determinado, mesmo assim, a encontrar uma forma de o condenar. Ele fará
qualquer coisa para conseguir seu intento.

- Acha que podem até...
Ele parou, horrorizado. Nicodemos foi quem completou:
- Sei que estão preparando falsas testemunhas, para acusá-lo. Como disse,
José, estão dispostos a tudo para silenciá-lo de vez.
José se conservou pensativo. O ambiente estava alvoroçado: anciãos, sacerdotes
e escribas -os principais membros do Sinédrio - falavam todos de
uma só vez. Passado algum tempo de espera, finalmente Caifás assumiu o
seu lugar de juiz da sessão e, após cumprimentar seus cúmplices, mandou os
soldados trazerem o acusado. José mexeu-se na cadeira, inquieto. Nicodemos
quase não podia respirar, tal a angústia que sentia.

Jesus entrou, com as mãos amarradas nas costas. Embora atado e aparentemente
subjugado, sua figura era de majestade singular. Suas vestes
simples e amassadas, agora sujas pelos maus-tratos recebidos, pareciam
reluzir ao olhar dos seus acusadores. Ele entrou sem qualquer resistência e
foi colocado no centro do conselho. O Sinédrio emudeceu diante da grandeza
daquele homem.

188



O silêncio incomodou Caifás, que apressado deu início à sessão:

- Filhos de Abraão, nós estamos aqui hoje para determinar o destino deste
homem, que nos tem trazido demasiados aborrecimentos. Temos mais da
metade do nosso conselho reunido e muitas testemunhas aguardam para
serem ouvidas. Nada nos impedirá de concluir este julgamento. E olhando
para Jesus, perguntou:
-Tem algo a dizer em seu favor, antes que comecemos o julgamento?
Jesus permaneceu calado.

- Muito bem, diante do seu silêncio, compreendemos bem o que devemos
fazer. Que entre a primeira testemunha.
Uma a uma, as testemunhas foram entrando e dando seus depoimentos.
Todos falsos. A cada nova testemunha que deixava o salão, José olhava para
Nicodemos sem entender como pretendiam concluir o julgamento, uma vez
que cada depoimento diferia do anterior e não havia concordância nas descrições.
Quando um dos depoentes saiu, ele sussurrou para o amigo:

-Não combinam em nada! Não poderão condená-lo com base em testemunhos
discordantes. Ao menos dois testemunhos terão de ser idênticos
para que Caifás dê prosseguimento às suas intenções. Do jeito que as coisas
estão caminhando, não irão conseguir.

-Tomara que esteja certo, José, porém tenho minhas dúvidas. Pressinto
que Caifás não poupará esforços para condenar Jesus ainda hoje, de qualquer
modo... E se meus pressentimentos se confirmarem, o que faremos?

- O que poderemos fazer, Nicodemos? Conhece mais alguém que esteja
a favor de Jesus?
-Não, os poucos que nutrem por ele alguma simpatia não chegaram a ser
convocados, por causa da hora avançada.
-Pois então, o que poderemos fazer apenas nós dois?

- Eu não sei, mas temos de fazer algo. Quem sabe se testemunhássemos
a favor dele?
-Nicodemos, eles querem condená-lo! Somos minoria insignificante.
Se nos colocarmos do lado de Jesus, eles nos prenderão imediatamente.
-Não podem fazer isso, somos membros do Sinédrio!

- Meu amigo, pense bem, veja a sucessão de atitudes reprováveis: estão
realizando uma assembléia ilegal, convocaram uma reunião em horário
completamente fora de nossas leis e agora estão trazendo para depor testemunhas
falsas, como você mesmo disse, para cometerem perjúrio! Eles es189



tão enlouquecidos e não pouparão ninguém! Por que acha que terão alguma
tolerância conosco?

Nicodemos calou-se, observando o semblante contrariado e raivoso de
Caifás. Depois olhou em volta, para os companheiros de conselho, e identificou
em seus rostos o mesmo ódio que via no sumo-sacerdote. Voltou o
olhar para Jesus, no centro do conselho. Suspirou, profundamente entristecido,
e respondeu:

- Acho que nem mesmo se o Todo-Poderoso descesse para defender Jesus
eles o ouviriam!
- E o que penso também. Não podemos fazer nada... Calados por longo
tempo, os dois observavam a farsa que
se desenrolava à sua frente. Crescia a indignação de Nicodemos, que de
súbito afirmou:

-Independentemente do resultado, José, devemos manifestar apoio ao
Mestre. É o certo a fazer, sejam quais forem as conseqüências. Não podemos
nos omitir ao presenciar tamanha injustiça!
- Não vai adiantar nada, Nicodemos.
- Não importa, José! Precisamos agir corretamente, qualquer que seja o
resultado.
Nicodemos fez menção de levantar-se, mas José o deteve, dizendo:

-Espere, sejamos astutos. Vamos ouvir um pouco mais para ver se não
encontramos a melhor maneira de ajudá-lo.
Nicodemos ajeitou-se outra vez na cadeira e silenciou. O julgamento
prosseguiu, com outras falsas testemunhas se contradizendo. Por fim, duas
delas fizeram declarações semelhantes. A segunda afirmou:

- Ele disse: eu destruirei esse santuário e em três dias edificarei outro,
sem que mãos humanas o toquem.
Profundamente irritado, Caifás ergueu-se num impulso, desceu alguns
degraus e foi até Jesus. Caminhou ao seu redor e, fitando-o firmemente,
inquiriu:

-O que falam é verdade? O que me diz?

Jesus, entretanto, continuou em silêncio. O sumo-sacerdote, então, voltando
ao seu lugar, sentou-se e perguntou:

-Diga-nos de uma vez: é o Libertador que havia de vir? É você o Filho
de Deus?

Jesus, erguendo a cabeça e fitando Caifás, respondeu:

190



- Eu sou, e em breve voltarei a ocupar o meu lugar ao lado de meu Pai
que está nos céus, e uma vez mais tornarei a reinar sobre as hostes celestiais.
Tão logo Jesus terminou de falar, Caifás desceu novamente até ele e o
esbofeteou. Depois, rasgou as próprias vestes e disse, em alta voz:

-Varões hebreus, ouviram a blasfêmia! Não precisamos escutar mais
nada. Ele acaba de condenar-se a si mesmo!
Imediatamente outros membros do Sinédrio rasgaram suas vestes, como
era costume em tais situações, e concordaram que o herege deveria ser condenado
à morte.

Foram descendo, em bandos, e ao passarem por Jesus muitos cuspiam
nele, outros lhe davam socos e tapas. A cena era animalesca. As criaturas,
ao mesmo tempo frágeis e brutalizadas, ofendiam e maltratavam o arquiteto
do planeta, o Messias prometido e esperado por milênios. O homem bom e
sublime que caminhara entre elas ensinando, sobretudo pelo exemplo, a
humildade, a bondade e o amor era agora alvo de sua ira descontrolada.

José permaneceu inerte, estarrecido diante do espetáculo chocante a que
assistia. Nicodemos fitou-o, incrédulo:

- E agora, o que faremos?!
-Eu não sei! -José respondeu e balançou a cabeça, sem conseguir tirar os
olhos de Jesus.

CAPÍTULO 37

Por volta das seis horas daquela manhã, Jesus foi levado à presença de
Pôncio Pilatos, para que o procurador romano na Judéia confirmasse a sentença
de morte que o Sinédrio havia proferido contra ele.

Só quando o luxuoso salão de pedra lavrada localizado no templo de Jerusalém
ficou vazio, José de Arimatéia e Nicodemos se levantaram e saíram.
Abatidos, caminharam devagar em direção à fortaleza do governador.

Ao se aproximarem, porém, Nicodemos indagou:

- Será que você não poderia conversar com Pilatos? Ele é seu amigo.
José parou observando o tumulto que se formara na porta do palácio do
procurador e, apontando a turba com a cabeça, respondeu:

191



-Acho que já é tarde. Veja.
Nicodemos olhou o alvoroço que se formara logo adiante e insistiu:
- Talvez encontre um jeito de falar com ele, a sós. Temos de tentar, José.
José refletiu por instantes e respondeu:
- Não é possível que levem esse julgamento desonesto e ilícito até o
fim...
- Pois acho que vão até as últimas conseqüências. Você viu o ódio nos
olhos de Caifás e dos demais. Todos estão contra ele.
José respirou fundo; depois virou-se para o amigo, tocou-lhe o ombro e
disse:

- Vá descansar um pouco, Nicodemos. Eu acompanharei de perto a intervenção
de Pilatos, para ver se posso falar com ele em particular; não sei
se terei condição de me aproximar. Além do mais, Pilatos teme os principais
sacerdotes. Não dá para ignorar o fato de que já não é capaz de se impor, e
os nossos líderes acabam fazendo o que querem dele. Desde que cedeu às
rebeliões organizadas pelos sacerdotes, e deixou-se vencer pelas suas artimanhas
políticas junto a César, ele se enfraqueceu. Não consegue tomar as
decisões baseado na imparcialidade e no bom senso.
Nicodemos ouviu o amigo e a seguir opinou:

- Ele quer mesmo é garantir sua posição e legisla somente em causa própria.
As palavras de Nicodemos tocaram sensivelmente o coração de José. Ele
considerou a situação de Pilatos e perguntou-se o que faria se estivesse no
lugar dele. Passou longo tempo calado. Por fim, Nicodemos perguntou:

- Vai mesmo acompanhar o julgamento?
- Vou, Nicodemos, vá descansar. Você me parece exausto. Então foi Nicodemos
quem tocou levemente o ombro do amigo e disse:
-Ficarei também. Não conseguirei descansar enquanto não souber o
que vai acontecer com o Mestre.
Ambos se aproximaram e se embrenharam no meio do aglomerado que
se formara nas escadarias da entrada principal do pretório, construção anexa
ao palácio e fortaleza de Pilatos. Os sacerdotes diziam:

-Queremos julgá-lo aqui mesmo, Pilatos. Não nos é lícito entrar em um
prédio de gentios durante a preparação da Páscoa.
Depois de muita discussão, Pilatos acabou por aquiescer:

-Pois bem, que seja. Que acusação pesa sobre este homem?
192



Os detratores de Jesus não queriam apresentar a conclusão a que tinham
chegado; apenas afirmaram que era um perigoso malfeitor, e por isso o haviam
trazido até ele.

Quando percebeu que os judeus estavam relutantes em formalizar as acusações
que tinham contra Jesus, mesmo depois de passarem toda a madrugada
avaliando-lhe a conduta, Pilatos questionou:

- Se não têm uma acusação determinada para me entregar, por que não o
levam de volta e o julgam conforme as suas leis?
Em resposta eles argumentaram:

- Não podemos condená-lo, mas ele é perigoso; é um agitador do povo.
Nós o trouxemos até aqui para que você, Pilatos, o condene à morte.
Pilatos estava visivelmente contrariado pelo modo como o Sinédrio o
tratava. Sentia-se desrespeitado e manipulado. Além do mais, sua esposa,
Cláudia, tinha grande interesse em Jesus e já lhe falara muito sobre ele. Então,
afirmou:

-Não vou condenar este homem sem um julgamento justo, tampouco
vou interrogá-lo até que me apresentem as acusações formais, por escrito.

Ao escutar isso, Caifás pediu ao escrivão do tribunal do Sinédrio que entregasse
a Pilatos as acusações que já estavam lavradas.

À medida que o calor do sol se fazia mais intenso, crescia o número de
pessoas que se amontoavam aos pés das escadarias. Muitas, ao passarem,
viam do que se tratava e paravam, curiosas. José estava bem próximo ao
topo das escadas, atrás de alguns companheiros do tribunal máximo dos
judeus.

Ele notava a hesitação de Pilatos, sentindo na própria pele o medo e a
incerteza que deveriam assaltar o governador, especialmente por saber que
ele era um homem fraco; ainda que fosse um bom administrador, era moralmente
covarde, deixando-se dominar e manipular pelos líderes religiosos
de Jerusalém.

Quando terminou de ler as acusações feitas contra Jesus, Pilatos disse:

-Vou interrogá-lo a sós. Levem-no a uma das salas anexas. Seguido de
João, que nunca o deixava, Jesus foi levado para uma das salas no interior
do pretório. Lá chegando, Pilatos sentou-se ao lado dele, e, tentando compreendê-
lo, questionou o Mestre a respeito das acusações que lhe eram dirigidas,
uma a uma. Ao final da conversa particular que entabularam, o gover


193



nador estava profundamente impressionado com as respostas firmes, brandas
e pacíficas que Jesus lhe oferecera.

Colocando-se outra vez diante do povo, Pilatos comunicou aos judeus:

- Não encontro neste homem mal algum. Acho que ele deve ser libertado
agora mesmo.
José prendeu a respiração, quase aliviado, ao escutar o parecer do representante
de Roma. No entanto, os principais sacerdotes instigavam os demais
membros do Sinédrio e grande burburinho se formou ao redor do procurador.
Todos falavam a um só tempo, contestando sua interpretação dos
fatos e insistindo para que condenasse o nazareno.

Depois de demorada discussão, em que buscava dissuadi-los de seus
propósitos, Pilatos sentiu-se exaurido. Pressionado pela insistência irreverente
dos sacerdotes e anciãos, ele já não sabia o que fazer. E como Jesus
fosse galileu, decidiu mandá-lo a Herodes, responsável por toda a região da
Galiléia, que naqueles dias se encontrava em Jerusalém para a celebração da
Páscoa judaica.

Embora absolutamente desapontados, os sacerdotes não puderam contestar
a ordem do governador e seguiram os guardas do templo que conduziam
Jesus até Herodes. Enquanto eles se afastavam, na frente de uma multidão,
José de Arimatéia pensou em aproveitar o momento e disse a Nicodemos:


-Acho que vou ficar aqui e tentar falar com Pilatos.

- É uma boa idéia, José. Eu vou com Jesus.
Quando o enorme cortejo enfim desapareceu, José se acercou de um dos
guardas, para pedir que o levasse a Pilatos. Porém, assim que se viu sozinho,
sentiu o corpo tremer e as mãos suarem frio. Pensou: e se Pilatos resolver
usar meu testemunho a favor de Jesus e, por medo e insegurança, o tornar
público? O que farei?

Deteve-se e ficou empacado, diante do soldado, que fitando-o pergunta


va:
-Deseja alguma coisa?
Como José não respondia, ele insistia:

- É do Sinédrio também, não é? Deseja algo? Sentindo um calafrio percorrer-
lhe todo o corpo, José apenas disse:
- Não, estou aqui aguardando os acontecimentos. Enquanto isso, Jesus
foi posto diante de Herodes, que o interrogou sem sucesso, já que perante
194



ele o Mestre não disse uma única palavra. Depois de ouvir dos sacerdotes as
mesmas acusações que haviam sido transmitidas à Pilatos, igualmente Herodes
não encontrou motivos para condená-lo. Ainda assim, desejou humilhá-
lo perante o povo; irônico, mandou trazerem um velho manto real, de
cor púrpura, e sarcasticamente colocou-o sobre os ombros de Jesus, dizendo:


- Vá, rei dos judeus, volte a Pilatos, já que estamos na Judéia e é ele o
responsável por consumar seu julgamento.
Sem demora, Herodes retirou-se e ordenou que reconduzissem Jesus a
Pôncio Pilatos. Contrariados e ainda mais irritados, os principais de Jerusalém,
acompanhados por pequeno bloco, retornaram ao pretório.

Antes mesmo que o acusado despontasse, trazido pelos guardas, nas vizinhanças
da fortaleza de Pilatos grande multidão se formara. Os guardas
tiveram dificuldade para passar com Jesus, até que finalmente o deixaram
no topo da escadaria, enquanto Pilatos era avisado.

Pilatos saiu e ocupou uma cadeira que fora colocada no topo da escadaria
para que ele desse sequência ao julgamento romano. Ele, então, declarou:


-Trouxeram-me este homem com acusações de que incita o povo à rebelião,
orientando-o a não pagar impostos, e afirma ser rei dos judeus. Entretanto,
eu o interroguei e declaro que não encontrei nele falta alguma que
justifique a sentença que me exigem. Vou puni-lo e libertá-lo.

Nesse exato momento, novo bando de pessoas aproximou-se do prédio
clamando pela libertação de um preso chamado Barrabás, visto que os governantes
romanos costumavam conceder clemência a um condenado durante
a celebração da Páscoa.

Pilatos observou os recém-chegados e logo foi informado de que vinham
pedir que se respeitasse o costume, libertando um sentenciado. Virou-se
para o povo, certo de que apoiaria Jesus. Sabia que muitas daquelas pessoas

o haviam seguido e que o nazareno havia curado boa parte delas; explicou-
lhes que Jesus estava diante dele como prisioneiro e que, embora os sacerdotes
quisessem condená-lo, não via nenhuma culpa naquele homem. Convicto
de que o ajudariam a libertá-lo, solucionando sua difícil situação, perguntou
ao povo:
- Quem preferem que eu perdoe? Barrabás, um criminoso confesso, ou
esse Jesus da Galiléia?
195



Sem esperar que o povo se manifestasse, os sacerdotes, os anciãos e os
demais membros do Sinédrio bradaram em uníssono e bem alto:

- Barrabás! Solte Barrabás!
Quando o povo ouviu os seus líderes pedirem enfaticamente a libertação
de Barrabás, formou-se um grande coral secundando-os no apelo.
Pilatos estava certo de que Jesus era inocente e o teria libertado, se tivesse
a coragem que a sua posição e o seu dever requeriam. Todavia, com
medo de desafiar os judeus, ele indagou à multidão:

-E o que devo fazer com Jesus?
Novamente, numa só voz, a multidão gritava, liderada pelos sacerdotes:


- Crucifique-o! Crucifique-o!
Pilatos, então, cogitou uma última tentativa de comover o coração daqueles
homens endurecidos pelo orgulho: deu ordem para que os soldados
judeus e romanos levassem Jesus ao pátio interior do pretório e o açoitassem.


Antes de prendê-lo para o golpearem com seus chicotes, os soldados fizeram
uma coroa de espinhos e a cravaram em sua cabeça. Pegaram um talo
de cana e o colocaram em suas mãos, como se fosse um cetro. Depois lhe
cuspiram na face e o esbofetearam.

Quando puseram Jesus outra vez diante do povo, seu corpo estava dilacerado
e ensangüentado. Ao vê-lo, José quase desmaiou. Sentiu fugir-lhe o
ar e mal pôde fitá-lo. Seus olhos encheram-se de lágrimas, que começaram a
escorrer-lhe pela face. O coração parecia que ia saltar-lhe do peito. Seu desespero
foi tamanho que ele sentiu forte vertigem e prostrou-se de joelhos
em meio aos companheiros ensandecidos.

Pilatos tinha a esperança de que ao ver em tal estado aquele homem
bom, que os havia ajudado, curado e alimentado física e espiritualmente, os
assistentes se compadecessem e o escolhessem para ser libertado, ao invés
de Barrabás.

Dirigiu-se novamente ao povo:

-Eis aqui Jesus. Eu insisto que o interroguei e não achei nele nenhum
mal. Já foi açoitado por ter causado distúrbio religioso entre seu povo, e
agora desejo libertá-lo.

Contudo, os gritos foram ainda mais altos, em uníssono:
-Crucifique-o! Crucifique-o!


196



Aturdido, sem saber o que fazer, Pilatos retirou Jesus de novo para uma
das salas do pretório e voltou a conversar a sós com ele. O governador estava
atemorizado e desnorteado. Por um lado, sentia a fúria dos judeus e não
queria contrariá-los. Por outro, recebera havia pouco um recado de sua esposa,
pedindo-lhe que tivesse muito cuidado na condução das questões ligadas
a Jesus; explicava que tivera um sonho muito triste e doloroso com o
nazareno, que era um homem justo e bom, um verdadeiro enviado de Deus.

Mais uma vez Pilatos retornou com Jesus e insistiu com a multidão:

-Este homem é inocente e não merece que eu o condene à morte. Por
que não o levam e o julgam conforme as suas leis?

Pilatos estava prestes a soltar Jesus, quando Caifás aproximou-se e ameaçou,
revoltado, gritando para que todo o povo o escutasse:

- Se libertar este inimigo de César, farei com que o Imperador saiba de
sua conduta!
A essa intimidação pública Pilatos não conseguiu resistir. Olhou para Jesus
e ordenou:

- Soltem Barrabás!
Jesus permaneceu mudo, de olhos baixos, sem alterar em nada sua postura,
nem sua expressão de piedade e misericórdia, que tanto impressionara
Pilatos, a ponto de convencê-lo de sua inocência.

Depois, Pilatos mandou vir uma bacia com água e, lavando as mãos, disse:


-Sou inocente do sangue deste homem. Querem que morra, mas eu não
encontrei nele nenhuma culpa. Vão e cuidem disso por sua conta. Os soldados
o levarão.

Diante daquela atitude de Pilatos, muitos dentre a multidão gritaram,
embrutecidos:

- Se estivermos errados, que o sangue dele recaia sobre nós e sobre nossos
filhos!
197



CAPÍTULO 38

José de Arimatéia, agora ao lado de Nicodemos, a tudo assistia atônito.
Seu coração batia descompassado e suas mãos tremiam muito. Ao ouvir a
sentença proferida por Pilatos, autorizando a crucificação de Jesus, ele falou
ao companheiro:

- Preciso sair daqui um pouco, estou a ponto de desfalecer. Nicodemos
fitou-o com o mesmo olhar de desespero e perguntou:
-Vai sair agora?
-O que mais há a ser feito, Nicodemos? Vão crucificar Jesus! Vão matá-
lo!
- Ele disse algumas vezes que assim seria.
-Eu sei, mas testemunhar esse julgamento injusto e leviano, e essa atitude
de Pilatos? Ele sabe que Jesus é inocente!

Nicodemos curvou a cabeça ao admitir:

-Ele sabe. Porém, como nós, tem medo...

José fitou-o longamente e disse, tentando abrir espaço na massa compac


ta que se juntara em redor do pretório:

- Preciso sair daqui, preciso de um pouco de ar fresco. Nicodemos, sem
saber o que fazer, foi atrás do amigo. Ao se afastarem da turba, perguntou:
- Para onde vai, José? Não quero me afastar daqui. Quero estar perto do
Mestre nessa hora tão dura...
- Vou até minha casa. Preciso de um pouco de silêncio, tenho de pensar.
-Eu vou acompanhar Jesus.
- Será um longo caminho até o Gólgota. Ele vai demorar a chegar lá carregando
a trave da cruz sobre os ombros. Será um trajeto humilhante e doloroso.
Venha comigo e coma alguma coisa.
Nicodemos refletiu por instantes, e então disse:

- Está bem, vou com você; mas retorno logo em seguida.
-Sabe onde estão os seus discípulos?
- Não. Somente João não o deixou desde que foi preso, de madrugada.
Os outros desapareceram.
- Não me lembro de ter visto algum deles em meio à multidão.
-Eu também não, porém havia muita gente.
198



José silenciou, enquanto atingia o grande portal de entrada de sua luxuosa
residência. Subiu alguns degraus da escada que levava ao pórtico e disse:

-Venha, vamos descansar um pouco e comer algo. Não nos alimentamos
desde a madrugada. A vigília foi longa.

Nicodemos hesitou um pouco, e José insistiu:

- Venha, meu amigo, está bastante abatido. Repouse um pouco e seguiremos
juntos ao encontro do Mestre.
Ao dizer isso, José recordou os encontros maravilhosos que tivera com
Jesus. Todos lhe vinham à mente, um após outro. Sentiu doloroso aperto no
peito e se sentou ali mesmo, nos degraus da escadaria. Chorou amargamente
e lamentou:

-Não fizemos nada...

De repente a imagem de Jesus ferido e coberto de sangue surgiu em sua
lembrança. Ele então dobrou o corpo sobre os joelhos e seu pranto foi convulsivo.


Nicodemos também tinha os olhos molhados. Mesmo assim, tentou consolar
o amigo:

- Calma, José.
- Não posso me acalmar! Nós o abandonamos, Nicodemos. Podíamos ao
menos ter tentado alguma coisa, e não fizemos nada...
Percebendo a conversa, Sara apareceu, assustada:

- O que está acontecendo? O que houve, José? Escutamos seu pranto lá
de dentro...
Com os olhos vermelhos e quase sem fôlego, José respondeu:
-Eles vão crucificá-lo, vão matá-lo!

- Quem vai ser crucificado, José? -Ele!
-O nazareno?
- Sim, foi o julgamento mais injusto de que participei nesse conselho!
Ela disse em tom áspero e reprovador:
- E você chora? Deveria estar feliz!
- Como pode pensar isso?
- Ora, esse homem é um desordeiro, um agitador! Desrespeita nossas
tradições e se confere poderes que não tem. Ele deve mesmo morrer!
José se levantou exasperado e subiu as escadas, deixando a esposa e Nicodemos
para trás; indignado, afirmou:

-Você não sabe o que fala!
199



José foi direto para a sua sala pessoal de despachos e lá se fechou; alcançou
a janela, abriu-a, respirou profundamente e depois sentou-se, enquanto
as lágrimas teimavam em correr-lhe pela face. O semblante doce e
amoroso de Jesus, desfigurado pela crueldade de seu povo, o magoava profundamente.
Cerrando os olhos, ele dizia em voz alta:

-Eu não fiz nada... Eu não fiz nada...
Ainda com os olhos fechados, viu uma luz intensa vindo em sua direção.
Assustado, abriu os olhos, mas a luz continuava a se aproximar e era cada
vez mais brilhante. Então, do interior da luz fez-se visível uma imagem de
mulher, vestindo longa túnica branca. Ela se aproximou e saudou:

-Deus o abençoe, José.
Ele, atemorizado, tinha os olhos arregalados e com esforço conseguiu
balbuciar:
-Quem é você? Ela respondeu:

-Não tenha medo, fui enviada para ajudá-lo. José, não se prenda ao que
não fez. Não se deixe imobilizar pela culpa! Levante-se e faça o que pode
ser feito. Há muito que você ainda pode fazer por Jesus!
-Como? Eles vão crucificá-lo! E eu não pude impedir.
-Não poderia impedi-los, José.


-Acha que não deveria me sentir responsável pelo que aconteceu?
- Pelo que aconteceu a Jesus? Claro que não. No entanto, não é isso que
o está torturando, e sim aquilo que poderia ter feito.
Como ele guardasse silêncio, tentando entender, ela continuou:
- Sua consciência o cobra por aquilo que deveria ter feito e não conseguiu.
Você poderia ter assumido o seu apreço e defendido o Mestre, mesmo
que isso não fosse suficiente para impedir a sentença que recaiu sobre ele.
-Então, de que adiantaria?

- Adiantaria muito para você, para a sua consciência. Ele é seu Mestre,
José.

-Vê o que eu digo? Você está certa.

-Pois faça o que pode ser feito a partir de agora! Jesus será crucificado,

pela condição de barbárie da humanidade. Para isto ele veio à Terra: para
salvar essa humanidade a que tanto ama. E precisa de servos fiéis, que colaborem
com ele na disseminação de seus ensinamentos.

- Seus ensinamentos?
-Sim, José, a Boa Nova de que Jesus tanto falou.
200



José a olhava, sem dizer nada. Ela, então, ajoelhando-se diante dele e tocando-
lhe as mãos com suavidade, disse:

-José, meu querido amigo, não troque o que é eterno por alguns efêmeros
anos na Terra. Você está diante do Messias prometido, e pode agir agora
mesmo para tornar digna a sua atitude diante dele.

-Como, se já foi condenado?

- Mas não permanecerá morto.
-Ele disse que ressuscitaria... Então é verdade...
-Não tema seguir a voz da sua consciência. Aproveite a oportunidade,
não a desperdice mais. Não fique prostrado, assustado. O apego à sua posição
social, à sua fortuna, ao seu bem-estar, é que o está impedindo de fazer
o que deve ser feito. Todavia, no fundo você sabe que não pode adiar mais a
decisão.
Depois de fitá-la demoradamente, calado, José perguntou:

- De onde a conheço? Quem é você, afinal? É um anjo de Deus? Sei que
a conheço de algum lugar, mas de onde? Não consigo lembrar.

Elvira levantou-se, tocou-lhe os cabelos com ternura e disse:

-Fui enviada para ajudá-lo nesta hora de testemunho. Para este momento

você renasceu.
Olhou para José com infinito amor e após alguns instantes voltou a falar:

- Vá, José, o momento é grave. Jesus logo estará no Gólgota. Querem
lançá-lo nas valas dos malfeitores, para que seja devorado pelos predadores.
Não permita que isso aconteça.
-É tarde -José respondeu.

-Não, José, ainda não é tarde. Porém, se não tomar uma atitude enérgica
imediatamente, não poderá fazer mais nada.

Foram suas últimas palavras. A figura de Elvira foi desaparecendo devagar,
diante do olhar atônito de José. Ele, então, caminhou até a janela,
buscando compreender o que acontecera, e de súbito sentiu nova força brotar
de seu coração. A despeito de não entender completamente aquele anjo
que o visitara, ele sentia no íntimo cada palavra que ela dissera. Agora, quase
sem pensar, apenas seguindo o que o seu coração mandava, ele abriu a
porta e saiu, decidido.

Na sala, encontrou Nicodemos em pé, andando de um lado a outro, aflito.
Assim que o viu, disse:

201



-Vamos, José, temos de voltar. Não queria deixá-lo sozinho; fiquei preo


cupado com seu estado.
José sorriu ligeiramente e respondeu: -Já estou bem, Nicodemos.
-O que aconteceu? Vejo que seu rosto parece iluminado.
-Recebi a visita de um anjo do Senhor.

- Um anjo?
-Sim, veio ajudar-me a decidir o que fazer.
-E o que vai fazer?
- Não temos como impedir que o Mestre seja crucificado, mas podemos
dar a seu corpo a dignidade que merece e, assim, agir corretamente a partir
de agora. Não vou mais me esconder. Sou seguidor de Jesus e vou contar
isso a todos.
Nicodemos fitou o amigo, confuso. Sara entrou na sala e, vendo José,
disse:

- Até que enfim apareceu! Que vergonha, José! Um homem de sua posição
mostrar-se simpatizante desse rebelde...
Fitando a esposa, José a interrompeu:

- Jesus não é um arruaceiro. Ele é o Messias, prometido pelas escrituras
e esperado pelo nosso povo. E eu não sou um simples simpatizante: sou um
seguidor de Jesus.
Sara estava atônita. Ia responder, quando ele atalhou:

- Vamos, Nicodemos, quero falar com Pilatos. Ao vê-los sair, Sara tentou
deter o marido:
-Vai se arrepender, José. Volte ou falarei com meu pai sobre o que acabou
de me dizer. Ele não terá piedade de você.
Sem se virar, José apenas retrucou:

- Faça o que a sua consciência mandar, Sara. Eu estou fazendo o que
sinto que devo fazer. Se isso a ofende, lastimo, porém nada mais me deterá.
Enquanto desciam as escadas, Nicodemos, surpreso, indagou:

- E o que vai falar com Pilatos?
- Vou pedir que me autorize a enterrar o corpo de Jesus em uma tumba
nova, de minha família.
Nicodemos estacou e segurou o braço de José:

- Está louco? Perdeu o juízo? Sabe que não pode fazer isso!
-Eu vou fazer. Se não quiser vir comigo, entenderei.
202



-Mas, José, você sabe que os romanos não permitem de forma alguma
que os crucificados sejam enterrados. É termi-nantemente proibido!

- Sim, eu sei disso, Nicodemos, e vou pedi-lo assim mesmo. Algo me
diz que Pilatos dará a autorização para cuidar do corpo do Mestre e enterrá-
lo com dignidade.
-Os sacerdotes não vão aceitar isso, José. Bem sabe que tampouco eles
admitem que os crucificados sejam sepultados, para não ultrajar a terra.

-Também sei disso, Nicodemos; por isso entenderei se não quiser vir
comigo. O risco é grande, mas é algo que tenho de fazer.
Nicodemos olhava para José sem compreendê-lo inteiramente. Não obstante,
suspirou fundo e respondeu:
-Eu vou com você.

CAPÍTULO 39

Subiram com pressa a escadaria do pretório e encontraram dois soldados
à entrada. José se identificou, pedindo:

- Preciso falar com Pilatos. Sisudo, um deles respondeu:
- O governador não vai atender mais ninguém hoje. Voltem outro dia.
- Diga a ele que é José de Arimatéia. -José insistiu - Somos amigos e sei
que me receberá.
O soldado o olhou de alto a baixo e em seguida fez o mesmo com Nicodemos.
No entanto, a atitude de José era tão segura que ele acabou cedendo
e entrou para falar com seu senhor. Em. alguns instantes retornou, dizendo:

- Podem entrar. Ele os receberá em instantes.
Acompanhou-os até uma das amplas salas internas do prédio elegante e
se retirou. José andava de um lado a outro, meditando, em busca da melhor
forma de abordar o assunto com o responsável pela administração da Judéia.

Após algum tempo de espera, finalmente Pilatos apareceu. Entrou na sala
devagar, aparentando cansaço, e, vendo os dois visitantes, cumprimentou
José e tentou sorrir ao perguntar:

-A que devo a honra da visita?
José se aproximou de Pilatos e, tocando-lhe levemente o braço, comentou:


203



-Está abatido, meu amigo. Enfrentou um dia muito difícil. Pilatos, que
tentava manter o autocontrole, sentou-se em

uma das poltronas e desabafou:

-Realmente, sinto-me exausto! Não me lembro de ter vivido horas tão
difíceis como essas últimas. Eu, que já servi a César em campos de batalha,
nunca passei por uma situação tão constrangedora, desagradável e cansativa.
Definitivamente, meu bom José, sou incapaz de entender seu povo.

José, sério, olhou fixamente o amigo por alguns instantes, depois disse:

- Compartilho esse sentimento. Tampouco eu consigo compreender meu
próprio povo. Presenciei sua dificuldade no julgamento de Jesus. Vi como
os sacerdotes o trataram, bem como o povo, por eles insuflado.
Pilatos se levantou, foi até a bandeja e serviu-se de vinho, que ofereceu
também aos visitantes:
-Somente uma boa especialidade local para me fazer tolerar seus conterrâneos.
Bebem comigo?
José antecipou-se e respondeu:

-Agradeço, mas o momento para nós é muito grave. Nosso Mestre está
sendo crucificado e gostaríamos de estar com ele o quanto antes.
Pilatos fitou José, estranhando o que ouvira:

- Escutei bem o que disse? Chamou o nazareno de mestre?
-Sim, Pilatos, somos seguidores de Jesus.
- Nunca me falou sobre isso! Ainda há alguns dias, quando estivemos
juntos e comentamos a entrada dele em Jerusalém, como um verdadeiro rei,
você não me disse nada!
José baixou os olhos, mas logo o encarou, resoluto, e admitiu:

-Até hoje, temi assumir que sou seguidor de Jesus. Só que ao vê-lo durante
o julgamento, e ao observar o desvario de meu povo e os desmandos
de nossos dirigentes, não pude mais esconder.
Pilatos sentou-se novamente e, com o olhar perdido, ficou alguns instantes
pensativo, até que se virou para José e disse:

-Por mais que me esforce, não posso compreender por que o odeiam tanto.
Interroguei Jesus e realmente não encontrei o menor motivo para dar-lhe
a sentença que me pediram com tanta veemência.

José, inspirado pelo espírito de Elvira, que não se afastara do seu lado,
voltou a tocar levemente o braço de Pilatos, dizendo:

204



- Sei que lhe foi penoso conduzir esse julgamento tão injusto e ilegal;
percebo sua posição e suas dificuldades. Contudo, venho pedir-lhe agora, a
sós, que nos ajude a dar ao Mestre ao menos um sepultamento digno.
- Não estou entendendo - afirmou o governador, surpreso ante essas palavras.
Nicodemos mantinha-se calado. José esclareceu:

-Peço que nos autorize a cuidar do corpo de Jesus, tão logo ele morra, e
que nos permita enterrá-lo em uma tumba de minha família.
Incrédulo, Pilatos considerou:

- Sabe que não se pode enterrar alguém que é crucificado. O corpo fica
por dias exposto, sendo devorado pelas aves e outros animais, para servir de
exemplo ao povo.
- Esse é o castigo imposto por Roma aos malfeitores. Mas Jesus é um
homem justo, condenado injustamente pelo seu próprio povo. Não lhe negue
esse ato de respeito e consideração, por favor.
-Está ciente do risco que irá correr, se eu lhe conceder o que me pede?
Quando souberem que está responsável pelo corpo de Jesus, que é simpatizante
do nazareno, todos se voltarão contra você. Além do mais, sei que seu
povo também não permite que se enterrem os crucificados.
José, olhando firme para Pilatos, assegurou:

- Já não estou preocupado com o que meu povo fará de mim. Entrego a
Deus o cuidado pela minha vida. Quero que Jesus seja tratado com dignidade,
ao menos depois de sua morte. Não lhe negue isso, Pilatos. Você mesmo
afirmou que ele é inocente.
Pilatos ficou muito tempo de olhos fechados, pensativo. Depois, olhando
para Nicodemos e em seguida para José, concordou:
-Pois bem, não tenho motivo algum para impedir. Se deseja arriscar-se
por seu mestre morto, é um direito que tem.
José sorriu ligeiramente, ao dizer:

- Agradeço-lhe meu amigo.
Pilatos, então, chamou um de seus escriturários e ordenou que lavrasse
um documento atribuindo a José total responsabilidade pelo corpo de Jesus.
Assim que o escriturário voltou com os papéis, Pilatos assinou-os e se-
lou-os, entregando-os a José. Este agradeceu mais uma vez e já ia saindo
com Nicodemos, quando o romano ainda questionou:

205



- Só não entendo por que não se manifestou antes, em defesa de seu
mestre.

José, com olhar triste, voltou-se e respondeu:

-Porque não tive coragem suficiente para fazer o que devia ter feito. E

por isso que, agora, não me deixarei vencer pelo medo ou por ameaças.
E baixando a cabeça, continuou:

- Não sou digno do privilégio que acaba de me conceder, mas assim
mesmo, em honra ao meu Mestre, farei a única coisa que me resta fazer por
ele. E de hoje em diante serei testemunha viva de todos os seus atos. Contarei
a todos o que fez, quem foi e o que ensinou. Embora ele tenha morrido,
suas lições e seus exemplos viverão para sempre!
Pilatos o olhou com respeito e disse:

- Vá, José, que seu mestre o aguarda.
Quando Nicodemos e José deixaram o prédio, depararam com uma cena
assustadora: o céu escurecera por completo, forte e estranho vento soprava
por todos os lados e sons que pareciam lamentos soavam pelo ar. Os dois se
entreolharam e José falou:

- Vamos logo, o Mestre está agonizando.
Ambos foram depressa para o monte onde ocorrera a cru-cificação.
Quando chegaram ao Gólgota, surpreenderam-se ao ver que Jesus já havia
morrido e que os soldados o desciam da cruz. Normalmente, os crucificados
levavam muito tempo em martírio, até expirar. Encontraram também muitos
representantes do Sinédrio, que ali estavam para garantir que nenhum dos
seguidores de Jesus tivesse acesso ao seu corpo, e que este fosse lançado na
vala comum dos malfeitores.

José adiantou-se, passando por entre os companheiros, foi até o centurião
e disse:

-Ele realmente já...

O centurião apenas maneou a cabeça, em sinal afirmativo. José, então,

apresentou ao chefe dos guardas a ordem assinada por Pilatos. O centurião
leu atentamente os papéis e comunicou aos soldados:

- Este homem irá levar o corpo de Jesus.
Os membros do tribunal se entreolharam, revoltados, e um deles reclamou:


- O que significa isso? Esse corpo nos pertence! Viemos aqui para assegurar
que a lei seja cumprida!
206



O centurião, que durante o tempo em que Jesus estivera na cruz pudera
reconhecer o que ele era verdadeiramente -um homem justo, enviado por
Deus -, respondeu:

- É exatamente o que estou fazendo: cumprindo a lei. Os sacerdotes e
anciãos ameaçaram arrancar o corpo de Jesus à força, porém o centurião
gritou, com a espada em punho:
-Parem ou não hesitarei em usar minha espada!

E imediatamente leu para eles a ordem de Pilatos autorizando José a levar
o corpo de Jesus. Dirigiu-se aos soldados, enquanto devolvia o documento
a José:

- Estes homens têm a autorização para levar o corpo e enterrá-lo em um
túmulo da família. Vamos ajudá-los e protegê-los para que nada lhes aconteça.
Imediatamente os soldados romanos tomaram Jesus nos braços e seguiram
José e Nicodemos. Ao passarem pelos sacerdotes, alguns cuspiram na
face de José, em sinal de desprezo; outros diziam palavras agressivas, e um
deles bradou:

-Prepare-se para ser o próximo a enfrentar a cruz! Dissimulado, mentiroso
e traidor!
A medida que se afastavam ouviam muitas outras ameaças e o vozerio
das lideranças indignadas. José, à frente, caminhava com passos firmes, tendo
o pensamento fixo em Jesus e no que poderia fazer para redimir-se com
seu Mestre. De vez em quando, olhava para trás para o corpo ensangüentado
e mutilado, carregado inerte pelos soldados. Limpava as lágrimas que lhe
desciam pela face e dizia para si próprio que nunca mais teria medo de assumir
a crença em Jesus, o enviado de Deus.

CAPÍTULO 40


207



Tão logo se afastaram do alvoroço, distanciando-se dos sacerdotes, José
estendeu sobre o chão alvo tecido de linho puro, que havia comprado com
aquele propósito, e pediu aos soldados de Pilatos que ali colocassem o corpo
de Jesus. Auxiliado por Nicodemos, envolveram-no firmemente no tecido e,
então, José disse aos soldados:

- Nós o levaremos daqui por diante.
Os soldados olharam para o centurião, que assentiu com a cabeça. José e
Nicodemos levantaram o corpo de Jesus, envolto pelo nobre tecido, e não
tardou para que João -que de longe observava as últimas ocorrências - os
alcançasse; achegando-se aos dois, ele os auxiliou no transporte do corpo.

Chegaram ao túmulo adquirido por José, que nunca fora utilizado antes;
era incrustado em uma rocha, com uma câmara quadrada em seu interior.
Como fosse costume dos judeus embalsamar seus mortos, José e Nicodemos
haviam trazido mirra e babosa e, embebendo grandes ataduras nesses líquidos,
devagar as colocavam sobre o corpo de Jesus. Quando acabaram, envolveram
também o rosto do Mestre e o depositaram em um dos patamares
da tumba recém-aberta.

Concluídos esses procedimentos, saíram todos e o centu-rião ordenou
aos soldados que rolassem a enorme pedra que fecharia a entrada do túmulo.

Ao sair do sepulcro, José notou que algumas mulheres os observavam a
distância. Sendo terminantemente proibido a elas participar desse tipo de
cerimônia, ele se manteve calado até se afastarem dos romanos, que permaneceram
guardando a entrada do túmulo. Quando se viu a sós com Nicodemos
e João, disse:

- Notei algumas mulheres logo que deixamos o sepulcro. Acredito que
sejam seguidoras do Mestre. Gostaria de ajudá-las.
E voltando-se para João, perguntou:

-Sabe quem são elas?
João parou, fitou José por um instante e indagou:
-Por que decidiu se expor, José?
O companheiro o olhou com profundo respeito e respondeu:
-Não tive a sua coragem, João. Você foi o único que o seguiu até o fim.
Como me arrependo de não ter feito o mesmo!
- Mas se arriscou também, José, pedindo o corpo de Jesus às autoridades
romanas. Está se colocando contra todos os sacerdotes, escribas e fariseus.
208



- Eu sei; foi o mínimo que pude fazer pelo Mestre, depois de ter sido um
covarde.
Calou-se por um breve instante, e insistiu: —João, sabe quem são as
mulheres?

- Sim, eu as conheço.
-Diga-lhes que venham à minha casa. E chame também os demais, João,
para que nos encontremos todos. Lá, com meus servidores, ficaremos um
pouco mais seguros.

- Falarei com as mulheres. Quanto aos outros, estão espalhados por toda
parte. Não creio que consigamos reunir sequer a metade.
- De qualquer modo, insisto que venham à minha casa. Poderemos celebrar
a Páscoa lá. Está tudo preparado.
Nicodemos, que até então apenas escutava, perguntou:

-Mas, José, acha que Sara irá concordar?
-Ela fará o que eu lhe disser que faça.
Nicodemos calou-se, preocupado. João foi até onde estavam as mulheres
e, com muita discrição, transmitiu a elas o convite.
Assim que chegaram, o dono da casa antecipou-se ao grupo, subindo as
escadas à procura de Timóteo. Quando o encontrou, José perguntou:

- Como estão os preparativos para a celebração?
- Sua esposa o aguarda, com seus filhos.
-E quem mais?
- A senhora Sara me informou que serão somente os da família.
-Pois bem, teremos mais... - virando-se para os convidados, contou-os e
completou - Serão mais sete convidados. Prepare tudo.
O servo olhou para os recém-chegados, depois para José, hesitante. Este
lhe disse:

- Vamos, rapaz, faça o que lhe pedi. Não se preocupe com sua senhora;
sou eu quem está mandando que prepare a ceia para mais alguns convidados.
O rapaz foi para os fundos da mansão, enquanto José entrava na sala
principal, onde era esperado pela esposa e pelos filhos. Ao vê-lo, Sara exclamou:


- Até que enfim aparece... - interrompeu-se tão logo viu que atrás do marido
vinham outras pessoas.
- Sara, estes são meus convidados; celebrarão a Páscoa conosco.
209



A esposa, tentando controlar-se, perguntou:

- São seus amigos?
- Sim.
-Inclusive essas mulheres?
- Sim.
Levantando-se indignada, ela disse em alta voz:
- Pois celebre a Páscoa com seus amigos. Você não tem mesmo respeito
algum pelas nossas tradições. Vou ter com meu pai.
Saiu da mesa e os dois filhos a seguiram. Maria de Magdala, uma das
convidadas de última hora, disse:
-Não deveríamos ter vindo, senhor. Veja o que aconteceu! Depois de la-
var-se longamente, como era costume dos judeus, José sentou-se à mesa e
afinal respondeu:

-Sei que vieram da Galiléia e devem estar cansadas. Quero que ceiem
comigo e depois descansem. Quanto ao que acabaram de presenciar, peço
que me perdoem. Isso nada tem a ver com vocês. Sara não compartilha minha
devoção ao Mestre Jesus.
Nicodemos, então, despediu-se de José e do grupo:

- Também preciso ir para casa; passarei o sábado com minha família.
Assim que decidir o que fazer, avise-me, José.
O amigo tocou-lhe o ombro com estima e disse:

- Vá, meu bom Nicodemos. Obrigado por ter ficado ao meu lado.
Enquanto tomavam seus lugares à mesa, Maria de Magdala afirmou:
-Foi muito corajoso em proporcionar um descanso digno ao nosso Mestre.
José apenas sorriu suavemente e falou:

- Permitam-me perguntar às senhoras o que pretendiam às escondidas,
próximo ao sepulcro de Jesus. Por acaso planejavam passar ali a noite?

A outra, também chamada Maria, respondeu timidamente:

-Não tínhamos para onde ir, e agradecemos por nos ter oferecido um lu


gar para descansar.
José permaneceu calado, para que ela prosseguisse, porém foi Maria de
Magdala quem tomou a palavra:
-Perdoe-nos a intromissão, senhor, mas fazemos isso porque amamos
profundamente o Mestre de Nazaré.
José olhava-a com atenção. Ela continuou:

210



-Nós queríamos completar a preparação do corpo de Jesus. Trouxemos
especiarias e unções com que melhor prepará-lo para o descanso da morte.
José olhou aquela mulher simples, com semblante sofrido, e perguntou:

-Querem voltar no domingo pela manhã, para terminar de arrumá-lo?
-Sim, senhor, isso mesmo.
-Obedeçam a seus corações. Jesus merece o melhor de cada um de nós.
Conseguirei a autorização para que entrem novamente no túmulo.
As mulheres sorriram, agradecidas. E todos entabularam longa conversação
sobre os fatos de que haviam participado, em especial sobre os preciosos
ensinamentos de Jesus. Ao final do jantar, José virou-se para João e perguntou:


- E agora, João, o que faremos daqui para a frente? Não devemos permitir
que as lições do Mestre sejam esquecidas. Temos de levá-las ao maior
número de pessoas possível.
João, envolvido pelas energias protetoras e inspiradoras de Elvira, Jone-
fá e outros amigos espirituais de elevada condição, respondeu:

-Aguardemos. Amanhã é sábado e nada poderemos fazer. Os outros estão
em suas casas ou escondidos. No domingo procuraremos por Pedro e por
alguns outros, e conversaremos. Por ora, devemos descansar, refazer nossas
energias, que se esvaíram nos últimos dias.

Deixando escapar sentido suspiro, e limpando as lágrimas dos olhos,
Maria de Magdala endossou:

- Sim, foram muitas horas extremamente dolorosas. Tocando-lhe as
mãos com carinho fraternal, João disse:
-Sobretudo você, Maria, deve repousar.
Durante todo o sábado, o grupo trocou experiências e lembranças sobre
Jesus e os seus feitos e ensinos. Desfrutando a companhia amorosa de João,
José sentiu crescer no coração profunda afeição por ele. Admirava-o pela
dedicação a Jesus, a que aliava a suavidade e a perseverança.

Ocupado em conseguir a autorização para que suas convidadas entrassem
outra vez no túmulo do Mestre, o dia passou depressa para José de Arimatéia;
Sara e os filhos não regressaram.

No domingo, logo pela manhã, João saiu à procura dos outros discípulos.
José preparava-se para novamente acompanhar as mulheres da Galiléia
ao túmulo de Jesus, quando Timóteo entrou na sala esbaforido:

- Senhor... Soldados romanos... Procuram pelo senhor...
211



- Acalme-se, Timóteo, respire.
O jovem acalmou-se ligeiramente e emendou:
-Estão subindo para prendê-lo...
Ele nem terminou a frase e vários soldados romanos entraram na sala.
Um deles antecipou-se com um papel nas mãos, indagando:

- É José de Arimatéia?
- Sim, sou eu -José respondeu de pronto.
-Venha conosco. Está preso.
-E por qual motivo?
-O tribunal do Sinédrio expediu ordem para sua prisão.
-E de que sou acusado?
-De traição. Venha, acompanhe-nos.
Sem oferecer resistência, José deixou que o soldado o amarrasse, enquanto
perguntava:
-Meus amigos podem sair?

- Por ora, nada temos contra eles.
Virando-se para Maria de Magdala, que observava a cena com visível
agonia, José pediu:

- Minhas irmãs, vão fazer o que é necessário, eu ficarei bem.
CAPÍTULO 41


212



Hesitantes, as mulheres deixaram a mansão, quase ao mesmo tempo em
que José era levado pelos soldados. Ao descer as escadarias, José encontrou-
se com Sara, que chegava em companhia do pai. Aproximou-se dela e, o-
lhando-a nos olhos, disse:

- Deveria repensar os seus atos, Sara. Sei que seu pai tem parte nisto que
acontece comigo.
Ela respondeu-lhe ao olhar e ao comentário: -Não devia ter se envolvido
com esse que chamavam de Jesus. Tinha o melhor que um homem pode
desejar e, ainda assim, arriscou tudo por um malfeitor qualquer, que depois
de vergonhosamente crucificado j az, como todos os outros, no sepulcro.
Entregou a vida nas mãos de um impostor e mentiroso. Só que agora é tarde
para arrependimentos. O que está feito, está feito.

José sorriu serenamente, enquanto repetia para a esposa:

- Sim, de fato: o que está feito, está feito. Que Deus a ampare e abençoe.
- Você irá necessitar de socorro e amparo, não eu -Sara respondeu, irritada.
José baixou a cabeça e, num sinal para o guarda, disse:

- É hora de partirmos.
Sem falar mais nada, ele seguiu junto dos guardas na direção do Sinédrio.
Sara ficou no topo da escada, até os homens desaparecerem. Seu pai
tomou-a pelo braço e chamou:

-Venha, Sara, vamos para dentro. Não permitirei que seja ainda mais
envergonhada diante dos transeuntes.
Voltando-se para o pai, ela perguntou:

- O que houve com ele? Não compreendo.
-Alguns homens são insatisfeitos por natureza. Nada lhes basta e estão
sempre à procura do perigo. Parece que agora José encontrou um desafio
difícil de ser superado.

-E o que será dele?
-Dependerá do que ele disser no tribunal.
Colocado no centro da grande sala, diante dos ex-companheiros em semicírculo,
José estava exatamente onde, dois dias antes, Jesus fora julgado.
Ele pensava na ironia dos fatos e procurava manter-se calmo. Ao seu lado,
envolvendo-o em eflúvios de paz e confiança, estavam Elvira e Jonefá, além
de outros amigos que, em grande número, chegavam da espiritualidade para

213



dar apoio e amparo aos cristãos em sua árdua tarefa de disseminar o Evangelho
pelo mundo.

Apesar de preocupado, José sentia o coração imerso em suave calma e
profunda confiança; não obstante o momento ser de ameaça e dificuldade,
sua alma estava tranqüila e forte.

Presente a maior parte dos membros do Sinédrio, Caifás ocupou seu lugar
e iniciou o julgamento:

-José de Arimatéia, é acusado de trair o povo judeu tornando-se um seguidor
de Jesus, em segredo. Se, diante desta assembléia, negar seu envolvimento
com esse rebelde, que já não traz qualquer ameaça ao nosso povo, e
reconhecer que ele é apenas mais um traidor de nossa pátria e de nossas tradições,
poderá responder ao restante do julgamento em sua residência. Do
contrário, será encarcerado no pretório.

Caifás fez breve pausa e saiu do seu lugar, encaminhando-se para perto
de José. Então continuou:

-Estou exausto. Nem bem tivemos um dia para o sagrado descanso, e
aqui estamos novamente - e com um membro desta casa! Diga, José, admita
logo que se enganou!

José fitou-o sem rancor e afirmou:

-Caro Caifás, não sabe o que me pede. Não posso negar que segui Jesus,
embora não tivesse a coragem de outros, de seguir-lhe os passos abertamente.
E como me arrependo por isso... Jesus, a quem crucificaram, era um homem
puro e santo, um homem enviado por Deus. Era verdadeiramente o
Messias prometido ao nosso povo desde nosso pai Abraão. Era o cordeiro
anunciado, e cumpriu tudo o que Elias, Isaías e os outros profetizaram. Por
que, meus irmãos, não querem ver que ele é o envidado de Deus?

Um quase tumulto tomou conta da sala. Os líderes estavam enfurecidos.
Caifás prosseguiu:

- Se pensa tudo isso sobre ele, por que não o defendeu, diante de nós?
Por que se calou?

Sem titubear, José confessou:

-Porque fui um covarde. Tive medo exatamente do que hoje está aconte


cendo. E, no entanto, vejo que estou preparado para o que quer que desejem
fazer comigo. Se quiserem me crucificar, como ao meu Mestre, estou pronto!


214



O burburinho se intensificou. Caifás ia responder, mas Anás, seu sogro,

o mais respeitado de todos os sacerdotes, que se man-tivera calado, fez sinal
para que o genro lhe falasse a sós. Foram até uma sala anexa e conversaram
rapidamente. Anás disse:
- Caifás, seja astuto. Ainda que esse José, traidor, mereça a morte, não
devemos precipitar-nos. Se ele for condenado agora, outros adeptos de Jesus
aparecerão. Ele será transformado em mártir e seus seguidores poderão inflamar-
se.
-E o que devo fazer, então? Soltá-lo?

-Não, de modo algum. Prenda-o até que os ânimos se acalmem, e o povo
esqueça esse tal Jesus. Logo que tudo estiver mais tranqüilo, poderá trazê-
lo outra vez a julgamento e, aí sim, condená-lo. Não dê mais ensejo a
esses rebeldes de prosseguirem com sua insensatez. Temos de amornar os
ânimos, sem dar sinais de fraqueza, é claro. Seja duro, porém com astúcia.
Caifás pensou por instantes e concordou:

- O senhor está certo, meu sogro.
Dito isso, retornaram de imediato ao salão. Quando entraram, formara-
se um tumulto. Alguns membros estavam em pé, outros andavam de um
lado a outro, indignados. Assim que viram Caifás, aproximaram-se dele,
apontando para José de Arimatéia:

-Ele sumiu com o corpo do nazareno! Faça que o devolva imediatamente!


- O que me dizem?
-Os soldados que guardavam a tumba acabaram de voltar de lá afirmando
que o corpo desapareceu. -um deles esclareceu.

-Como, desapareceu? Eles não estavam tomando conta da entrada do
sepulcro?
- Sim, e por isso estão muito assustados; temem o que lhes sucederá,
mas juram que vigiaram a porta durante toda a noite de sexta, o sábado inteiro
e também a noite de sábado. Fizeram turnos e não se afastaram da pedra
que tampava a entrada do túmulo. Entretanto, o fato é que o corpo sumiu.
Só pode ter sido levado por seus seguidores, numa tentativa de provar
que as palavras do mestre deles eram verdadeiras. José certamente é o responsável,
pois afinal o túmulo lhe pertence; deve ter alguma saída secreta.
Caifás, enraivecido, aproximou-se de José e, batendo-lhe no rosto, ordenou:


215



- Diga já onde puseram o corpo! José não respondeu. Caifás insistiu:
- Onde o puseram? Iremos descobrir, mais cedo ou mais tarde. Diga-nos
já, José, onde pôs o corpo do nazareno?
José disse apenas:

- Nós o depositamos na tumba na sexta-feira, e não voltamos mais lá. Jesus
ressurgiu, como havia prometido!
Indignado, Caifás sentenciou, dirigindo-se aos guardas do Sinédrio:

- Prendam-no já para que não contamine mais ninguém com suas idéias.
E voltando-se para José, alertou:
-Vai ficar preso até que nos diga onde está o corpo do na2areno. Quando
o disser, reveremos seu caso. Até lá, estará confinado na pior das prisões.
Arrepender-se-á de nos ter enfrentado.
José foi levado pelos guardas. A distância, Nicodemos acompanhava os
acontecimentos, calado. Ele matutava, buscando um jeito de ajudar o amigo.
Assim que José foi retirado, saiu imediatamente à procura de outros seguidores
de Jesus. Como não achou ninguém, decidiu ir até o túmulo onde haviam
depositado Jesus, na sexta-feira. No caminho, encontrou Maria de
Magdala e as outras mulheres com quem estivera após a crucificacão. Comentou:


-Estão dizendo que o corpo de Jesus desapareceu. Maria de Magdala
confirmou:
-Sim, Jesus não está mais no túmulo. Ele ressurgiu! Nicodemos olhou-a,
tentando compreender:
-O que diz?

- Ele ressurgiu e está vivo novamente.
- Porque o corpo desapareceu, acha que ele voltou à vida?
- Não, mas porque nós o vimos e falamos com ele. Nicodemos empalideceu
e quase sucumbiu ao ouvi-las.

Maria então prosseguiu:

—Jesus está vivo, e falou conosco. Disse que irá encontrar-se com seus

discípulos e precisamos contar-lhes imediatamente.

- O que diz, mulher? Não pode ser verdade.
-E por que não, senhor? Ele disse que iria ressurgir. É uma grande alegria!
Ele está outra vez entre nós! Não nos abandonou! Agora, precisamos
ir; temos de avisar os outros.

-Sim, claro.

216



Nicodemos ficou paralisado, observando as mulheres desaparecerem
rumo à Galiléia. Pensou em seu amigo e afligiu-se. O que seria de José?

CAPÍTULO 42

Os soldados abriram a pesada porta da cela onde José haveria de permanecer;
empurraram-no com toda a força, fazendo-o cair ao entrar. Em seguida
trancaram a porta e a cela ficou na penumbra.

Aos poucos, os olhos de José se acostumaram à escuridão e ele pôde
perceber que o espaço era pequeno, com uma cama de pedra e uma janela
minúscula no topo da alta parede da construção. Fora levado por muitos
lanços de escadas até alcançar sua exígua acomodação. Levantou-se devagar,
limpou as vestes e sentou-se na cama sem conforto. Olhou para o alto,
vendo a nesga de luz que entrava pela janela. Ouviu poucas vozes, daqueles
que se movimentavam nas ruas, em redor do prédio, e deitou-se, tentando
repousar o corpo, na esperança de encontrar serenidade para o coração aflito.
Embora sentisse que tomara as atitudes que deveria tomar, temia pelo
futuro, pelo que viveria a partir daquele momento.

Depois de muito tempo em absoluto silêncio, revivendo mentalmente
tudo o que vinha acontecendo desde que Jesus fora preso, José adormeceu.
Assim que seu corpo físico entregou-se ao sono, seu corpo espiritual desprendeu-
se, com a colaboração de Elvira e de Jonefá. Ela então sentou-se ao
seu lado e, tomando-lhe as mãos, beijou-as, dizendo:

- Querido José, não tema pelo seu futuro. Confie em Deus e em Jesus, a
quem de fato entregou sua vida, e espere. Ele haverá de guiar os seus passos,
de hoje em diante.
Confuso, José procurava compreender o que aquela voz doce lhe dizia.
Tomando-a novamente por um anjo, ele perguntou:

- E o anjo enviado por Deus para ajudar-me, não é mesmo?
-Não, José, mas sou uma amiga que o ama muito e deseja o seu bem ela
respondeu, sorrindo.
-Seu rosto me é muito familiar e sei que não é a primeira vez que conversamos.
Quem é você, afinal? É meu anjo da guarda?

217



-Sou uma amiga e venho acompanhando seus passos, auxiliando-o no
que me é possível.

Jonefá acercou-se dele também e disse:

- Não se preocupe, por agora, em buscar entender tudo; apenas confie
em seu coração. Você sabe, bem no íntimo de sua alma, que somos amigos e
aqui estamos para ajudá-lo.
José sorriu, feliz, e concordou:

-De fato, sei que estão aqui para me ajudar e agradeço profundamente.
Sei que não teria a força para agir corretamente, se não fosse o apoio dos
emissários dos céus.
Ele ficou calado alguns instantes, fitando o olhar amoroso e doce de Elvira;
depois, continuou:
-Mesmo assim, devo confessar que temo pelo futuro. Não sei o que será
de mim agora.
Elvira, tocando suavemente suas mãos, insistiu com ternura:

- Não tenha medo, José. Do mesmo modo que conseguiu encontrar dentro
de você a força para agir com coragem e determinação, saberá o que
fazer daqui para a frente. Embora não nos possa ver com os olhos materiais,
estaremos sempre ao seu lado; você jamais estará sozinho.
Os olhos de Elvira encheram-se de lágrimas, enquanto ela olhava para
Jonefá, agradecida. Fitou José com carinho e prosseguiu:

- Sua jornada tem sido longa, José; mas Deus, que é todo misericórdia e
bondade, nunca desampara suas criaturas. Não importa quão distante dele
escolhemos caminhar, jamais nos abandona. E é pela misericórdia divina
que você está despertando, enfim.
Ainda que sem compreender bem, ele continuou atento à figura angelical
de Elvira e às suas palavras, que lhe traziam alento e paz. Por fim, ela
disse:

-Agora, descanse. Não esqueça que sempre, haja o que houver, estaremos
ao seu lado.
Ajudando José a acomodar o corpo fluídico sobre o corpo físico, Elvira
beijou-lhe a face na despedida:

-Que Deus o abençoe, Ernesto.
Passados alguns dias, José foi chamado outra vez a comparecer perante
os membros do Sinédrio. Pressionado para dizer o que fizera com o corpo

218



de Jesus, José lhes deu a mesma resposta que dera antes, e novamente não a
aceitaram. E Caifás ameaçou:

- Olhe bem, já perdeu tudo o que possuía. Quer também perder a vida?
Se não nos contar o que fez com o corpo de Jesus, nós o condenaremos por
traição! Sabe qual é a sentença, não é?
José estremeceu. Respirou fundo e respondeu:

-Não posso dizer o que não sei. Se querem o corpo de Jesus, definitivamente
não sou eu quem pode entregá-lo.

Mais uma vez, cheio de ódio e desejo de vingança, Caifás mandou que
trancassem José na cela. E repetidamente, durante algumas semanas, ele foi
levado à presença das autoridades, interrogado e devolvido à cela. José emagrecera
alguns quilos desde sua prisão, pois a comida que recebia era em
pouca quantidade e de péssima qualidade.

Quando o retiraram do Sinédrio, finda outra sessão de interrogatório, os
sacerdotes e anciãos permaneceram no salão, determinados a pôr termo àquele
julgamento. Caifás, sentado em sua ampla poltrona, ouvia os comentários:


- Temos de acabar de uma vez com esse julgamento. Não podemos continuar
com esse vaivém.
- Não temos provas contra ele.
-E por isso iremos soltá-lo?
- Não digo soltá-lo, mas também não podemos condená-lo!
-Ele aviltou nossa terra e rebelou-se contra nossa religião, ao enterrar
um crucificado. Voltou-se contra nós! Logo um membro de nosso tribunal!
Anás levantou-se e pediu:

-Silêncio, senhores.
O salão, aos poucos, aquietou-se. Anás prosseguiu:
- O sumo-sacerdote me permite falar?
- Como não? É o nosso mais ilustre membro!
- Pois bem, senhores: não aconselho que condenemos José de Arimatéia.
Por muitos anos ele foi um respeitável e reconhecido membro desta casa. Se
o sentenciarmos e o executarmos, todos saberão que dentro do Sinédrio existem
simpatizantes do nazareno, e isso poderá fortalecer seus seguidores e
influenciar o povo. Não, senhores, neste caso, o ostracismo é a melhor alternativa.
Virando-se para o escrivão, ele perguntou: -José tem recebido visitas?

219



O homem vasculhou alguns pergaminhos, e por fim respondeu:

- Não, ninguém.
- Entendem o que estou dizendo? Ele ficará esquecido, para sempre.
Deixemo-lo entregue à própria sorte. Morrerá desprezado e abandonado.
Satisfeito, Anás constatou que os companheiros compreendiam seu raciocínio
e concordavam com ele. Leve bur-burinho seguiu-se à sua colocação,
mas depois o silêncio retornou ao salão. Anás sentou-se, enquanto dizia,
esboçando malicioso sorriso:

-Deixemo-lo apodrecer na prisão.

Quando os guardas levaram José de volta à cela, um deles disse:

-Vai acabar seus dias nesta cela. É melhor que diga logo onde pôs o traidor.
Não vê que não recebe sequer uma visita? Ninguém fala em sua defesa!
Sua família o abandonou, e nenhum dos seguidores do tal nazareno se interessa
por você. Por que não o entrega logo?

José fitou o guarda que o interpelava, sem forças para responder. Entrou
cambaleante e sentou-se na cama, a ponto de desfalecer. Pesadas lágrimas
corriam por seu rosto quando, minutos após ser trancada a porta da cela, o
espaço acanhado começou a encher-se de intensa claridade. Uma luz ofuscante
invadiu o ambiente e José mal podia erguer a cabeça, cobrindo os olhos
com o braço. De súbito, infinita paz e intraduzível alegria inundaram-
lhe o coração. Ouviu, então, a voz doce e amiga do Mestre dos Mestres:

- Não tema, José, sou Jesus, e quero falar-lhe. Envolvido por sua energia
divina, José ajoelhou-se e, encostando a testa no chão, clamou:
- Não sou digno de que fale comigo! Jesus, então, ergueu-o delicadamente
e disse:
-Esqueça o passado, José. Olhe para o futuro. Milhões de almas necessitam
conhecer as verdades libertadoras que vim trazer ao mundo, e os trabalhadores
são poucos. Se quiser, tenho muito trabalho para você. Junte-se
àqueles que vão disseminar o Evangelho sobre a Terra e não tema, que eu
sempre estarei com você. Leve a Boa Nova aos lugares mais distantes, que
outros precisariam de muito mais tempo para alcançar. Você conhece as
regiões longínquas; leve aos povos dessas terras meus ensinamentos.
Do lado de fora, os guardas, assustados, percebiam a luz que brilhava na
pequena câmara, e não conseguiam enxergar em seu interior. Um deles ficou
vigiando, enquanto o outro foi à procura do chefe, que tinha a chave,
para verem o que acontecia.

220



Quando o chefe da guarda chegou, a luz quase desaparecera por completo.
Ele então perguntou:

-O que está havendo, afinal?

- Não sabemos -respondeu o que ficara vigiando. Entraram na cela e encontraram
José sentado na cama, em estado de deslumbramento. Sorria,
sereno, e seu rosto irradiava suave luminosidade. Assombrados, os guardas
saíram de imediato, trancaram a porta e se entreolharam sem atinar o que
havia acontecido. O chefe dos guardas determinou:
- Não contem a ninguém o que pensamos ter visto nesta cela. É mais
prudente...
Depois de ter recebido a mais importante das visitas que poderia desejar,
José encheu-se de ânimo e de esperança. Seu coração transbordava de alegria
e ele aguardava, ansioso, o momento de começar o seu testemunho.

Os dias se passaram. José foi posto mais algumas vezes diante do Sinédrio,
com intervalos de tempo cada vez mais espaçados, e por fim ficou esquecido
na prisão, por longo tempo. Mesmo assim, ele esperava, confiante,

o momento de atender ao chamado do seu Mestre.
CAPÍTULO 43

Logo que José foi preso, Nicodemos retirou-se do conselho, alegando
questões de saúde. Muitos dos colegas tentaram enredá-lo em acusações,
mas imediatamente após apresentar seu pedido formal de desligamento do
Sinédrio ele empreendeu longa viagem. Antes, porém, foi ter com Pilatos,
na esperança de obter ajuda para a libertação de José. Encontrou o governador
indiferente e apático:

- Não poderei ajudá-lo, infelizmente. Estou sendo transferido temporariamente
para outra região. Sinto muito, Nicodemos, mas terá de resolver o
problema de José junto ao seu próprio povo. Além do mais, estou farto das
desagradáveis e infindáveis discussões com os sacerdotes; de todos os povos
que já conheci, o seu é o mais difícil.
Nicodemos encarou Pilatos com profunda tristeza e tentou uma vez
mais:

221



-Temo pela vida de José. Caifás ainda está irritado com tudo o que aconteceu
com Jesus, e o desaparecimento do corpo apenas agravou a situação.

Pilatos, que estava sentado à mesa, assinando mandados e preparando
suas últimas ordens antes de desligar-se do governo da Judéia, ergueu os
olhos e respondeu:

-O tempo esfriará os ânimos de seus líderes religiosos. Por ora eu não
quero saber de seus problemas. Deixe que se passe algum tempo e depois
volte para conversarmos. Farei tudo para retornar em breve ao governo da
Judéia, e então veremos o que é possível fazer em favor de José.
-Mas isso poderá demorar muito.

- É justamente o tempo que poderá ajudá-lo. Qualquer tentativa de demover
o conselho do Sinédrio neste exato momento será inútil e poderá piorar
ainda mais a situação. É preciso esperar até que esqueçam o ódio que
alimentam contra Jesus e seus seguidores.
Nicodemos suspirou e, fitando o governador da província, perguntou:
-E será que esse ódio vai um dia desaparecer?

- Por certo, Nicodemos. Aguarde, não tenha pressa.
-É doloroso pensar em José sozinho, preso... Levantando-se e indo em
direção à porta que dava para o interior do pretório, Pilatos concluiu:

- Antes preso do que morto. Adeus, Nicodemos.
Nicodemos despediu-se de Pilatos e saiu. Triste e desnorteado, foi até os
limites da cidade e sentou-se. Observando o movimento constante de viajantes,
meditava no que deveria fazer. Sentia-se desanimado e sem estímulo
para retomar seus afazeres cotidianos e, depois de muito pensar, decidiu
procurar os discípulos de Jesus. Voltou para casa e em alguns dias, feitos os
preparativos, partiu para a Galiléia.

Procurou por João, que o recebeu alegre:

- Nicodemos, como é bom vê-lo... Que faz na Galiléia?
-Senti-me desnorteado e resolvi procurar os mais íntimos do Mestre, talvez
para fortalecer-me.

João continuou atento. Após breve pausa, ele disse:

-José de Arimatéia está preso.

João acomodou o visitante em cadeira confortável, sentou-se ao seu lado

e perguntou:
-Sob que acusação o prenderam?
-Traição.

222



- Foi por ter pedido o corpo de Jesus para ser sepultado, não é?
- Sara e o pai o acusaram de ser seguidor de Jesus. Como o sepultamento
já deixara os membros do Sinédrio suficientemente irritados, não foi necessária
mais nenhuma incriminação.
- Eles o julgaram devidamente?
- Ainda o estão interrogando, mas não tenho participado. Retirei-me em
definitivo do conselho.
João tocou fraternalmente o braço de Nicodemos:

- Meu bom Nicodemos...
- E sobre o corpo do Mestre, têm alguma notícia?
-Então ainda não sabe?
-O quê?
-Jesus não está mais entre os mortos. Ele ressurgiu!
- O que me diz?
- Temos estado com ele, Nicodemos. Ele nos tem orientado quanto ao
futuro que nos espera, e as dificuldades que haveremos de enfrentar para
difundir a Boa Nova pelo mundo.
Nicodemos ouvia com atenção e, à primeira pausa, disse:
-Então as mulheres falaram a verdade... A morte não o deteve...
João continuou:


- Ele nos ensinou como viver em paz e como enfrentar os momentos difíceis;
acima de tudo, ensinou-nos o verdadeiro amor.
-Gostaria muito de poder ver nosso Mestre.

- Pois fique conosco. Jesus ainda estará entre nós por algum tempo, até
voltar para seu lar espiritual, que também o aguarda.
-Não sei...
-Fique, Nicodemos. Muitos ainda estão assustados e com muito medo;
por isso estamos organizando pequenas reuniões noturnas em que Jesus
muitas vezes vem nos encontrar. Fique pelo menos um pouco.

Nicodemos não respondeu. Encostou-se na cadeira, fechou os olhos e
evocou a figura doce e meiga de Jesus. Depois, abrindo os olhos, disse:

- Ficaria muito feliz em permanecer alguns dias com vocês.
João abraçou-o e disse:
- É sempre bem-vindo.
-E quanto aos outros, pensarão o mesmo?
223



- Não se preocupe, Nicodemos. Devemos aprender que somos irmãos e
que Jesus precisa de todos nós para levar suas lições ao mundo.
Nicodemos ficou com os discípulos mais do que pretendera. Ele esperava
poder conversar com o Mestre, falar-lhe sobre José e pedir-lhe ajuda.
Certa noite, perguntou a João:

-Já estou aqui há muitos dias, e ainda não pude ver Jesus...

-Antes que ele volte ao lar, certamente falará conosco uma vez mais; então
você terá oportunidade de vê-lo.

Nicodemos, apreensivo, foi mais uma vez até o local onde se reuniam.
Queria pedir o auxilio de Jesus e entender muitas coisas. O encontro acontecia
em meio a tumbas abandonadas, com poucas pessoas. João explicara a
Nicodemos que tinham de ser muito cuidadosos com os próprios judeus, que
espreitavam, procurando motivo para prender os seguidores do Mestre. Acomodaram-
se. Pedro conduziu a reunião, com perceptível emoção na voz.

Estavam juntos havia algum tempo, quando o lugar subitamente encheu-
se de luz. Jesus surgiu diante deles, resplandecente. Ao vê-lo, Nicodemos
ajoelhou-se, profundamente comovido. Lágrimas corriam-lhe pela sua face
e ele não podia dizer palavra. Seu coração batia descompassado. Sentindo a
energia pura e imensa que de Jesus emanava, Nicodemos deixou-se ficar,
envolvido pela intraduzível alegria de sua presença.

O Mestre falou-lhes naquela noite e comunicou que seria seu último encontro.
Em breve, retornaria aos paramos espirituais de onde havia descido.
Recomendou que seus seguidores se unissem mais, pois precisariam estar
fortes para enfrentar os desafios que viriam. E reafirmou:

- Nisto conhecerão que são meus discípulos: se se amarem uns aos outros.
Jesus despediu-se da assembléia e logo depois todos regressaram para
seus lares com os corações jubilosos.
Nicodemos ainda estendeu a visita aos discípulos de Jesus. Encontrou-se
com Maria de Magdala, que imediatamente lembrou-se dele e perguntou:

- Como está José de Arimatéia?
-Infelizmente, está preso.
Ele contou em detalhes a prisão de José e sua situação no cativeiro. Por
fim, visivelmente entristecido, disse:
-Nem sequer pude vê-lo. Temi que me prendessem também, o que seria
inútil. Mas não deixo de pensar nele e de pedir a Deus por sua vida.

224



Maria sorriu e respondeu:

-Continuemos a orar por ele. Decerto, Jesus tem planos para José. Nicodemos
sorriu ligeiramente, e calou-se.

As reuniões prosseguiam e se intensificavam. O número de cristãos que
delas participavam também aumentava dia a dia.

Depois de uma estada prolongada, Nicodemos decidiu que era hora de
voltar para casa. Despediu-se dos amigos:

- Vou retornar a Jerusalém. Não posso ausentar-me por mais tempo de
minha casa e de minha família. Sabe se há cristãos se encontrando em Jerusalém,
João?
-Tenho notícias de que um pequeno grupo começou a se reunir.

- Vou juntar-me a eles e auxiliá-los em tudo o que me for possível.
- Se acontecer de ver José, leve meu abraço e a certeza de que Jesus está
com ele. -disse João ao abraçar o amigo.
Nicodemos regressou a Jerusalém e à sua família. Retomou seus negócios
e procurou o pequeno grupo de que João lhe falara. Somando esforços,

o grupo começou a crescer.
O tempo passava. José ficara esquecido, largado na prisão. Recebia alimento
dentro da cela e saía de lá muito raramente. Há largo tempo não via a
luz do sol e sentia falta do mar. Quando a saudade crescia demais, ficava
abatido e suas forças se esvaíam.

Nesses momentos, em particular, ele recebia a visita de Elvira, que o
consolava e fortalecia. Muitas vezes, sentava-se ao seu lado na cama, punha-
lhe a cabeça sobre o colo e acariciava-lhe a fronte com ternura, pedindo:


-Tenha fé, José, pois haverá de vencer. Confie em Jesus, mantenha a esperança.


Naquela noite, José deitou-se com o coração excessivamente doído e o
corpo cansado. Perdera a conta do tempo que já passara preso; tinha a impressão
de que se haviam escoado muitos anos e sentia a esperança diminuir.
Começava a pensar que talvez fosse mesmo acabar morrendo ali.

Quando se deitou, lembrou-se do anjo que sempre o visitava em sonho,
e pediu:

- Se puder vir ver-me hoje, anjo de Deus, eu agradecerei... Estou cansado.
225



Ainda tinha lágrimas nos olhos quando adormeceu. Assim que seu corpo
espiritual desprendeu-se do corpo denso, ele notou que tinha muitas visitas.
Elvira disse:

-Trouxemos uma visita muito especial. É um amigo que lhe quer muito
bem e que está muito preocupado com você.

Elvira afastou-se e João se aproximou; sentou-se ao lado do amigo e, tocando-
lhe o braço, disse:

- Não desanime, José, seu suplício não durará para sempre. Com extrema
alegria ele fitou João e disse:
-João, que bom vê-lo, meu amigo. Como estão os outros?

- Estamos todos bem. A luta é árdua para todos, porém estamos felizes
por poder trabalhar para a disseminação da Boa Nova.
João falou sobre as reuniões nas catacumbas e o número de cristãos que
não parava de crescer. Narrou os fenômenos espirituais que ocorriam durante
os encontros e relatou como muitos doentes eram curados nessas ocasiões.
Deu notícia dos outros discípulos e também do período que estivera
com Nicodemos. Por fim, abraçou-o novamente, dizendo:

-Muitos oram por você todos os dias, meu irmão. José, emocionado, fitou
o amigo e declarou:

—João, como fico feliz em vê-lo! Sempre nutri por você um afeto profundo,
como se o conhecesse há muito tempo.

Elvira aproximou-se do discípulo amado de Jesus, abraçou-o com ternura
e, virando-se para José, disse:

—João é um grande amigo e sua tarefa na Terra conta com o apoio de
todos nós.

Ela fez breve pausa, e então concluiu:

-Há muitas coisas que ainda não podemos explicar-lhe, José, mas que

um dia você compreenderá perfeitamente. Por ora, só pedimos que mantenha
acesa a chama da esperança.

CAPÍTULO 44

Os dias corriam céleres. Os cristãos continuavam a se encontrar às escondidas
para orar, e juntos meditar nos ensinamentos de Jesus. O número

226



de seguidores das lições do nazareno crescia rapidamente e perturbava cada
vez mais os líderes religiosos judeus.

Pilatos nunca mais retornou à Judéia. Morreu depois de ter sido afastado
de seu posto por César. Alguns administradores romanos enviados à região
não conseguiram adaptar-se. Por fim, César enviou Tibério Alexandre, um
governador que parecia entender as difíceis questões judaicas.

Tão logo soube da habilidade do novo dirigente em lidar com os costumes
de seu povo, Nicodemos solicitou uma audiência com o intuito de melhor
conhecê-lo. Discutiram os intrincados problemas políticos e religiosos
na Judéia e os negócios e oportunidades da região como um todo. Ao se
apresentar a ocasião, Nicodemos falou-lhe de José e de sua influência no
comércio internacional, bem como dos excelentes resultados que ele havia
obtido em suas exportações. O governador, interessado, opinou:

-Gostaria de conhecer esse judeu! Por certo poderemos fazer muitos
planos em conjunto.

Os olhos de Nicodemos cintilaram de esperança. No entanto, ele se conteve,
sem alterar o tom da conversação que vinha mantendo:

- Infelizmente José está preso; por motivos religiosos, é claro.
Pego de surpresa, o governador fez uma pausa, depois lamentou:
- É pena; não podemos fazer nada quanto a isso. Não devo interferir no
campo religioso.

Tibério Alexandre se levantou e emendou:

-Pelo menos por enquanto.

Trocaram mais algumas impressões, e logo Nicodemos despediu-se e saiu.


O governador ficou a pensar na conversa que tivera e, por mais que tentasse,
não conseguia afastar o pensamento de José. Embora ocupado com as
intermináveis audiências em que buscava familiarizar-se com as questões
locais, e conhecer bem os cidadãos mais influentes e poderosos, não deixava
de pensar em José de Arimatéia.

Passados vários meses, Tibério procurou mais informações sobre o comerciante
judeu. Não demorou a descobrir que se tratava de um dos homens
mais ricos da região, e que antes de sua prisão fora também um dos mais
respeitados em toda a Judéia. Positivamente impressionado, pediu que o
trouxessem para uma audiência. Queria conhecer aquele José de Arimatéia.

227



José foi retirado de sua cela. Durante meses não saíra do estreito cubículo
em que havia sido colocado. Os cabelos crescidos e a longa barba não
bastavam para encobrir os negros olhos brilhantes e vivos, que cintilavam
como estrelas no firmamento. A companhia freqüente de Elvira e especialmente
a visita espiritual de João haviam fortalecido sua alma, elevando-lhe
os sentimentos e a esperança.

Quando José entrou, Tibério Alexandre mirou-o de alto a baixo, admirado
com o corpo magro e sujo daquele prisioneiro. Movido por estranha simpatia,
pediu que os soldados se retirassem, deixando-o sozinho com o preso.

Assim que todos saíram, ele olhou longamente para José, depois apresentou-
se e disse:

-Sente-se e acomode-se. Está com fome, eu presumo.

- Agradeço seu interesse, mas estou bem - limitou-se a responder.
- Não deseja que lhe tragam algo para comer?
-Estou bem —José repetiu.
Sentindo inexplicável desconforto, Tibério ajeitou-se na cadeira e disse:
- Pois bem, que seja. Quero conhecê-lo melhor. Tenho ouvido muitas
coisas a seu respeito. Algumas boas, outras nem tanto. Fale-me um pouco de
sua vida, seu trabalho, sua família, suas conquistas...
José sorriu ligeiramente e indagou:

- O que exatamente deseja saber a meu respeito, senhor?
-Quero saber tudo o que ache relevante para que eu me convença a soltá-
lo.

- Sou um seguidor de Jesus. Creio ser esse o fato mais importante no caso.
É por esse motivo que estou preso.

Tibério surpreendeu José ao dizer:

-Isso eu já sei. E, embora seja absolutamente sigiloso, também simpatizo
com alguns dos ensinamentos do seu Mestre. Minha esposa esteve com ele e
o ouviu falar muitas vezes. Ela me contou alguns fatos muito interessantes
com relação àqueles que são chamados cristãos. Mas não se empolgue muito.
Sou apenas um simpatizante. Agora, fale-me sobre sua vida.

José fitou-o espantado e, abrindo sincero sorriso, disse:

- Acho que vou aceitar o que me der para comer.
O elegante e jovem governador saiu por um instante da sala e ordenou
ao servo que providenciasse farta refeição. Depois voltou e entabularam
animado colóquio. Laços de simpatia uniram de imediato os dois homens.

228



Conversaram por horas e ao final, quando se despediam, Tibério tocou o
ombro de José e garantiu:

- Não permanecerá por muito tempo na prisão. Tenha um pouco mais de
paciência.

José agradeceu e saiu, levado pelos soldados romanos.

Poucos dias depois, foi chamado novamente por Tibério Alexandre. Este

então lhe disse, mostrando-lhe um pergami-nho enrolado:
-Aqui está sua liberdade. Obtive junto ao Sinédrio e estou homologando.
José olhava-o entre surpreso e intrigado. Ele prosseguiu:

- Tive longo e persuasivo diálogo com o sumo-sacerdote, Caifás. Ele
tem muitos interesses que podem ser atendidos por Roma. Não me foi difícil
dobrar-lhe as preocupações espirituais: a ganância falou mais alto. Agora
tome, José: sua liberdade.
José esticou o braço para pegar o decreto, mas Tibério puxou o precioso

documento, dizendo:
-Tenho apenas uma condição.
José ficou a fitá-lo sem dizer nada. Ele prosseguiu:

-Quero que retome seus negócios de exportação e que vá até a Britânia
e outras ilhas, onde o ouro é farto e nossos minérios alcançarão valor inestimável.
À mente de José assomou o momento inesquecível em que Jesus o visitara,
pedindo-lhe que levasse o Evangelho a terras distantes, e de pronto ele
respondeu:

- Nessas viagens, depois de efetuar os negócios para Roma, poderia dedicar-
me a divulgar e Evangelho de Jesus?

Tibério olhou-o com simpatia e respondeu:

-Desde que os lucros não diminuam por causa disso, nada tenho em contrário.


José estirou o corpo e disse, resoluto:

-Serei seu servidor.

-Muito bom. Mandei preparar um navio com tudo de que necessita; as


sim, pode viajar em breve. A tripulação está completa, mas pode recrutar
quem mais desejar.
José, mostrando estranheza, questionou:

- Por que me dá um navio, se tenho uma frota completa?
- Porque há muito não a tem mais, meu amigo.
229



-O que diz?
-Seus companheiros do Sinédrio são ambiciosos. Você foi expulso de
sua religião e confiscaram todos os seus bens. Como era prisioneiro e eles,
astuciosamente, recolheram impostos generosos, nada poderei fazer quanto
a isso.
-E minha família, em que situação se encontra?
-Se eu fosse você, não me preocuparia com a família.


- Mas eles estão bem?
- Decerto que sim. Foram grandemente beneficiados na partilha de seus
bens.
José empalideceu. Lembrou-se do desprezo com que Sara o fitara na última
vez que a vira e imediatamente compreendeu toda a situação. Suspirou
fundo e disse:

-Então, nada me resta senão aceitar sua oferta e agradecer-lhe imensamente.


-Não quero seu agradecimento, José; em contrapartida, aceitarei prazerosamente
os lucros de suas operações comerciais. É claro que terá uma
grande parte. Com o tempo, conseguirá até recompor as riquezas que perdeu.
José sorriu mais uma vez e perguntou:

-Quando posso partir?
-Quando quiser.
- Assim que tiver conversado com alguns amigos, estarei pronto. Venho
informar-lhe a data exata da partida.
- Não se preocupe, envie alguém de sua confiança. Já será suficiente.
Despediram-se. José foi imediatamente procurar Nico-demos, que ficou
abismado ao avistar o amigo livre. José contou-lhe sobre a atraente proposta
do governador, deixando Nicodemos absolutamente satisfeito e recompensado.
Depois de tantos anos, seus esforços tinham sido coroados de êxito.

Os dois amigos compartilharam experiências e aprendizados por quase
dois dias. Nicodemos descreveu em minúcias o que se passara com a família
do amigo; a intervenção do sogro e o apoio de Sara para que o Sinédrio confiscasse
os bens que lhe pertenciam. Ela e o pai, bem como os filhos, haviam
recebido mais da metade de tudo que lhe fora tirado. José ouviu a narrativa
com tranqüilidade e disse apenas:

230



-Pelo menos eles não passaram por nenhuma privação na minha ausência.


-Certamente por nenhuma, José.

- Fico feliz com isso.
Depois de prolongado silêncio, que Nicodemos não ousava quebrar, José
perguntou:
-E como estão João, Pedro, Tiago e todos os outros? Nicodemos sorriu
feliz e respondeu:
-Estão todos bem. Jesus esteve conosco depois que ressurgiu e, antes de
voltar para sua elevada morada espiritual, orientou-nos sobre muitas coisas.

- Esteve com ele?
-Sim, somente uma vez.
José sorriu e continuou atento. Era noite e suave brisa entrava pela janela
aberta. De onde estava, José podia ver o céu cintilante de estrelas. Respirou
profundamente, satisfeito por estar, afinal, em liberdade. Nicodemos
prosseguia:

- Pedro mudou-se para uma casa mais ampla, à beira da estrada da Galiléia.
Lá, junto com outros seguidores do Mestre, atende muitos doentes e
necessitados, saciando-lhes o corpo e também a alma. São muitos os que
acorrem à singela moradia. Ela permanece dia e noite com as portas abertas
a todos os que ali chegam.
- E a família de Pedro?
Nicodemos hesitou por instantes, depois respondeu, tocando de leve o
braço do amigo:

-Eles o apoiam, José.

E confortadora conversa se estendeu noite adentro. Nicodemos discorreu

em detalhes sobre os encontros secretos dos agora chamados cristãos e as
belas reuniões que aconteciam durante as madrugadas. Esclareceu ainda que

o ódio de Caifás não havia cedido o mínimo; antes, pelo contrário, ele estava
sempre à procura de oportunidades para submeter seguidores de Jesus ao
arbítrio do Sinédrio. A perseguição era constante e acirrada.
Era quase manhã quando José e Nicodemos se recolheram para o descanso.
Poucas horas depois, José já estava de pé, preparando-se para se despedir
do amigo. Ao vê-lo pronto para sair, Nicodemos indagou:

- Por que tanta pressa? José sorriu e respondeu:
231



- Jesus me pediu que levasse o Evangelho a terras distantes. Estou certo
de que foi ele quem garantiu minha saída da prisão, e não quero decepcioná-
lo. Vou partir o mais depressa possível e começar a executar minha tarefa.
Há muitos que precisam ouvir sobre Jesus e seus ensinos luminosos.
Nicodemos comentou:

- Poderia levar alguns cristãos, para que o ajudem. Os sacerdotes estão
no encalço de vários de nossos irmãos. O que acha?
- Seria ótimo! Tenho autorização para levar quem eu deseje.
-Pois vou já procurá-los e arranjar tudo.
Após acertarem os pormenores para o encontro com os amigos cristãos,
José saiu. Haviam sido mais de treze anos na prisão e finalmente tomara um
banho agradável, cortara os cabelos e aparara a barba. Tal como Nicodemos,
ele tinha os cabelos mais grisalhos do que na época em que fora preso.

Caminhou por algum tempo pelas ruas de Jerusalém e acabou por se aproximar
de sua antiga residência. Aos pés da escadaria, hesitou. Olhou para
a esplêndida mansão e observou os admiráveis detalhes da construção. Estava
distraído, quando Timóteo chegou sutilmente dizendo:

- Senhor! Soube que havia sido libertado, mas tomei a notícia como um
falso boato. Vejo que felizmente é verdade.
- Como estão todos, Timóteo?
-Bem, senhor.
-Gostaria muito de vê-los antes de partir.
- Sinto muito, mas a senhora Sara o proíbe de entrar. Ela o viu pela janela
e ficou muito nervosa. Ameaça chamar os soldados do Sinédrio, se o senhor
insistir. Ofereci-me para falar-lhe. Por favor, eu sei que já sofreu muitas
humilhações. Não necessita passar por mais esta. Ela não o compreende,
senhor. Será inútil qualquer tentativa de entendimento.
José baixou a cabeça, limpando as lágrimas que lhe desciam pelo rosto.
Seu coração estava profundamente dolorido, machucado pelo desprezo daqueles
que eram os seus mais próximos na Terra. Olhou para Timóteo e
perguntou:

- Como estão meus filhos?
- Eles estão bem, senhor.
José calou-se. Timóteo o observava, igualmente em silêncio, até que José
concluiu:

232



- Muito bem, Timóteo, leve um recado aos meus filhos. Diga-lhes que
sinto muito por ter de me afastar deles e que, se um dia eles quiserem me
ver e falar comigo, ficarei feliz, muito feliz em estar com eles. Não guardo
ressentimentos. Meu coração está aberto para eles a qualquer momento -
inclusive para Sara.
Timóteo assentiu com a cabeça e garantiu:
-Fique tranqüilo, transmitirei o recado.


CAPÍTULO 45

Na manhã seguinte, antes que o sol raiasse, José de Arimatéia partia em
sua primeira viagem à região da Britânia. Levava grande quantidade de estanho
para comercializar com os povos daquelas terras distantes. Com ele
partiram também Felipe, Maria de Magdala, Marta, Lázaro e alguns outros
cristãos que vinham sendo alvo da suspeita dos sacerdotes.

Logo estavam no porto e mais tarde em alto mar. A viagem transcorreu
calma. José, do convés do navio, sentia com prazer o vento a soprar-lhe os
cabelos. Estava em paz. Começava uma nova etapa em sua vida e seu coração
transbordava de contentamento, por ver sua esperança recompensada
com a tão desejada liberdade e a possibilidade de trabalhar para Jesus.

A empreitada comercial foi um grande sucesso, e outras se seguiram, igualmente
lucrativas. Tibério Alexandre estava muito satisfeito com os resultados
que tais viagens proporcionavam.

Entretanto, os maiores beneficiados não eram os cofres romanos. José e
os companheiros se tornaram ativos missionários do Evangelho, levando os
ensinos de Jesus às regiões mais longínquas. Com tamanha alegria compartilhavam
a Boa Nova, e o fato de que o Messias tão esperado por fim descera
à Terra, que muitos aderiam aos princípios cristãos. Logo fundaram o
primeiro núcleo na Britânia. Depois de alguns anos dedicados ao trabalho
missionário em terras estrangeiras, Maria de Magdala e outros cristãos voltaram
à Palestina.

José tornou-se um incansável e eloqüente pregador. Trabalhava arduamente
para atender às expectativas que Tibério depositava nele e, tão logo

233



obtinha os seus objetivos, dedicava-se com alegria e intensidade àquilo que
realmente amava: falar de Jesus e levar conforto e ajuda aos corações necessitados.


Sempre que comparecia à presença do governador para os acertos de
contas sobre os negócios, recebia polpudas comissões. Ele retirava o indispensável
para o próprio sustento e, do excedente, enviava uma parte para os
amigos na Britânia e outra para Pedro e João utilizarem com os abrigados na
casa do caminho.

Quanto mais crescia o lucro obtido com seus negócios, mais aumentavam
os recursos doados por José. Para si mesmo, quase nada tirava. Ele realmente
entregara tudo o que possuía nas mãos de Jesus.

O tempo seguia seu curso. Depois de Tibério, outros ocuparam o cargo
de procurador na Judéia. Na tentativa de evitar maiores conflitos com os
judeus, César procurava trocar com maior freqüência o titular do cargo administrativo
na região. No entanto, nenhum deles aventurou-se a retirar José
de Arimatéia da função que exercia. Embora os detentores do poder do Sinédrio
sempre tentassem difamar e destruir José, os lucros que ele oferecia
ao Imperador eram significativos demais para serem colocados em risco.
Assim, José envelhecia feliz pela escolha que fizera, trazendo o coração
sereno e em paz. Vez por outra ainda lhe doía a saudade de Sara e dos filhos,
porém ele nunca mais tornara a vê-los.

Muitos anos se passaram. Naquela manhã o mar estava mais agitado.
Durante a noite fortes ventos tinham desviado o navio da rota e fora com
dificuldade que José, ao lado do timoneiro, conseguira recolocá-lo no rumo
pretendido.

Amanhecia quando José finalmente desceu ao quarto, para descansar.
Sentou-se na cama, sentindo-se exausto. Dedicava-se tão intensamente aos
compromissos com Jesus que mal descansava. Deitou-se e fechou os olhos,
procurando dormir. De súbito, inexplicável melancolia apossou-se dele, ao
mesmo tempo em que forte dor no peito o acometeu. Ele gritou por ajuda e
em alguns instantes o seu quarto estava cheio. Ajoelhado à beira da cama,
um médico o examinava. Depois, virando-se para os outros, disse:

-Lamento muito, mas não creio que nosso amigo suportará até o fim da
jornada. Parece que seu coração está fraco.

- Quer que voltemos a Jerusalém, José? -perguntou o timoneiro.
Mal conseguindo falar, ele sussurrou:
234



-Não, prossigamos até o final da viagem. Se eu não suportar, lancem
meu corpo ao mar.

Alguns dos marinheiros eram judeus e um deles disse:

-Se algo lhe acontecer, senhor, deverá ser enterrado em sua terra, junto
dos seus.

José sorriu, segurou a mão de Nicodemos, que daquela vez os acompanhava,
e afirmou:

- Estou em casa.
Depois arqueou o peito, voltando a gritar de dor, e então silenciou. Suas
mãos se desprenderam das do amigo, que as colocou sobre seu peito e, fechando-
lhe os olhos, disse profundamente emocionado:

-Descanse, valente servo de Jesus.

CAPÍTULO 46

Elvira, ao lado de José, acompanhava com igual emoção o esenrolar dos
fatos. Assim que os olhos dele se fecharam para o mundo material, sua alma
despertou, cheia de luz, no plano espiritual. Elvira o aguardava de braços
abertos e o saudou com alegria:

- Que o Deus da glória o abençoe! Bem-vindo ao lar, amor de minha alma.
José de Arimatéia fitou aquele rosto meigo, a mirá-lo com ternura, e depois
de algum tempo recordou-se da mulher tão amada, que aparecia em
todos os seus sonhos. Abraçou-se a ela e ainda enfraquecido sorriu, dizendo:

- Como é bom vê-la! Como é bom estar de volta, sobretudo com a paz
que sinto no coração.
-É a paz abençoada que flui de todos os corações que cumprem o seu
dever. Que Deus o abençoe.
Outros que também testemunhavam o sublime momento se juntaram a
eles, abraçando o amigo e celebrando a grande conquista de sua trajetória
terrena. Reunidos, partiram para colônia próxima, que aguardava José para o
refazimento após o desencarne.

235



Ali chegando, foram acolhidos com extrema alegria, expressa em cânticos
de júbilo e gratidão a Deus. O governador da colônia recebeu José pessoalmente:


-Amado irmão, que Deus o abençoe! Que o seu infinito amor o envolva
e recompense seus esforços no bem!

José, que à medida que se recordava de sua realidade espiritual tinha o
corpo etéreo transmutado outra vez na antiga forma de Ernesto, sorriu e notou
que pela primeira vez seu corpo espiritual emitia luz própria. Não a
mesma luz que via em sua amada Elvira, cujo brilho tornava seu contorno
tão fulgurante que era difícil para ele fixá-la sem ter a vista ofuscada. Mas
ele adquirira luz. Ainda era tênue, mas estava presente, brilhando com suavidade.


Depois do encontro efusivo, ele retirou-se para o repouso necessário.
Alguns dias foram suficientes para que Ernesto se recuperasse da pequena
perturbação que o desenlace terreno lhe causara. Assim que o viu refeito,
Elvira convidou-o a participar de importante reunião.

Ocupando lugar na tribuna, Ernesto foi recebido carinhosamente pelos
amigos da colônia, participando de cerimônia encantadora de boas-vindas a
grande número de espíritos que acabavam de regressar. Em determinado
momento, o governador proferiu sentida prece e pediu a todos que focassem
os pensamentos no Mestre Jesus, agradecendo seus esforços pelo bem da
humanidade terrena. No centro da tribuna surgiu radiosa luz e, projetada a
distância, a imagem de Jesus se fez visível, tal qual fora conhecida em sua
passagem recente pelo planeta. Seu semblante amoroso comoveu a todos os
presentes, que derramavam lágrimas de alegria e gratidão por aquele ser
luminoso, que ainda trazia as marcas da coroa de espinhos na testa resplandecente.
Jesus, então, disse:

- Que Deus, nosso Pai, abençoe a todos. Que seu amor infinito os fortaleça
hoje e sempre. Meus queridos irmãos, hoje é um dia de alegria. Muito
embora os homens ainda sofram por manter-se afastados do Pai, o Evangelho
se espalha por toda a Terra. Não será sem dor e sofrimento, porém a
transformação acontecerá. Testemunhamos essa conquista gloriosa nas almas
de muitos irmãos que aqui estão; que puderam, por fim, resgatar os
débitos com as justas leis divinas e hoje estão preparados para voltar ao verdadeiro
lar. Nosso querido planeta Terra começará a despertar lentamente
para sua destinação gloriosa, para sua realidade espiritual. O caminho a per236



correr ainda é íngreme. Muitos haverão de sofrer, por causa do meu nome.
Mas aqueles que perseverarem terão a vitória, como vocês nesta noite. A
jornada é penosa e precisamos de todos aqueles que, com o coração cheio de
amor, queiram prosseguir auxiliando os irmãos que ainda estão distantes da
luz de Deus.

E dirigiu-se mais especialmente ao grupo de capelinos que, em pé, o escutava
atentamente:

- Longa foi a sua trajetória, irmãos, permeada pela dor e pelo sofrimento.
Agora, com a benção do Pai, que é todo justiça e todo bondade, estão
livres para retornar ao seu verdadeiro lar.
Os componentes do reduzido grupo se entreolharam cheios de contentamento.
Finalmente, poderiam regressar ao lar, onde entes saudosos os aguardavam.
Alguns choravam de alegria, outros apenas sorriam, cheios de
gratidão àquele Mestre que os ajudara tão amorosamente no resgate de suas
almas.

O Divino Amigo prosseguiu esclarecendo e orientando a grande audiência.
Explicou mais uma vez que enviaria, no futuro, na plenitude dos tempos,
quando a humanidade estivesse mais preparada, o Consolador, na pessoa
de diversos amigos dedicados que iriam instruir a humanidade naquilo
que ele mesmo não pudera transmitir até aquele momento, desvendando os
mistérios do mundo espiritual. E uma vez mais convidou a todos para continuarem
unidos, amando e servindo a Deus, dedicando-se ao progresso daquela
humanidade que apenas iniciava o seu despertar.

A inesquecível reunião prolongou-se até o amanhecer terreno. O grupo
de capelinos preparava-se para partir. Ernesto, entretanto, mantinha-se calado,
profundamente compenetrado. Elvira, que há muito o observava, aproximou-
se e perguntou:

- Quer mesmo permanecer no orbe da Terra? Erguendo os olhos límpidos,
ele respondeu:
- Gostaria de voltar com os outros, sempre desejei regressar ao lar. Mas
meu coração transborda de gratidão a Jesus pelo seu infinito amor, e seu
exemplo de renúncia toca o fundo da minha alma. Como posso afastar-me
agora deste planeta, tão carente de luz, de auxílio e de amor? Como posso
manifestar a Jesus minha gratidão eterna, pela conquista de minha alma para
Deus, senão ficando aqui e engrossando a fileira daqueles que cooperam
com o Senhor?
237



Elvira o ouvia emocionada; ele prosseguiu:

- Não, amada Elvira, não posso regressar, ainda. Sei que você compreende
meus sentimentos. Vou me oferecer para ficar e colaborar com o advento
do Consolador ao planeta. Além do mais, nosso querido Henrique está
na Terra, enfrentando pesados aguilhões, preso na ilha de Patmos; quero
ajudá-lo. Em alguma coisa, minha experiência poderá auxiliar. Mas eu voltarei.
Assim que o Consolador descer à Terra e lançar suas raízes, eu irei
encontrá-la, minha amada.
Lágrimas desciam pela face de Elvira, que, satisfeita, respondeu:

- Vejo que a sua transformação é completa e compreendo o que deseja
fazer. Estarei com você sempre que me for possível, auxiliando-o e colaborando
com suas experiências.
E abraçando Ernesto com imenso carinho, ela disse:

- Que Deus o abençoe e o ajude na tarefa sublime que se propõe realizar
com Jesus. Que seu coração experimente a paz perfeita, todos os dias. E
sempre que quiser falar comigo, é só me chamar e estaremos juntos, em
pensamento.
Ernesto abraçou Elvira demoradamente, despedindo-se mais uma vez
daquele anjo em forma de mulher. Ela se afastou e juntou-se ao grupo que
partia rumo ao sistema de Capela. Ele permaneceu em pé, observando a caravana
desaparecer.

Leve melancolia apossou-se do coração de Ernesto, que logo procurou o
grupo de trabalhadores da colônia e ofereceu-se para o serviço que tivessem.
Queria contribuir para a redenção da humanidade, para a conquista das almas
rumo ao seu destino glorioso junto ao Criador.

"Quando o homem gravar na própria alma
Os parágrafos luminosos da Divina Lei,
O companheiro não repreenderá o companheiro,
O irmão não denunciará outro irmão.
O cárcere cerrará suas portas,
Os tribunais quedarão em silêncio.
Canhões serão convertidos em arados,
Homens de armas volverão à sementeira do solo.
O ódio será expulso do mundo,
As baionetas repousarão,


238



As máquinas não vomitarão chamas para o
incêndio e para a morte,
Mas cuidarão pacificamente do progresso planetário.
A justiça será ultrapassada pelo amor,
Os filhos da fé não somente serão justos,
Mas bons, profundamente bons.
Aprece constituir-se-á de alegria e louvor
E as casas de oração estarão consagradas ao trabalho sublime da
fraternidade suprema.
A pregação da Lei
Viverá nos atos e pensamentos de todos,
Porque o Cordeiro de Deus
Terá transformado o coração de cada homem
Um tabernâculo de luz eterna,
Em que o seu Reino Divino
Resplandecerá para sempre."


Do livro "Pão Nosso"-Psicografado por Franásco Cândido Xavier Pelo
Espírito Emmanuel-FEB.

Para saber mais sobre a saga dos capelinos e o desenvolvimento espiritual
da Terra, leia também:

A CAMINHO DA LUZ Emmanuel -Francisco Cândido Xavier - FEB

Este livro enfoca, desde a gênese planetária até as perspectivas para o
futuro da humanidade.

OS EXILADOS DA CAPELA EdgardArmond - Editora Aliança

Obra que trata de forma abrangente a evolução espiritual da humanidade
terrestre, segundo tradições proféticas e religiosas, apoiadas em considerações
de natureza histórica e científica.

239



Para conhecer melhor os princípios espíritas, recomendamos a leitura
dos seguintes livros:

O QUE É O ESPIRITISMO (1859) Allan Kardec
Esta obra refere-se às noções elementares do mundo invisível e contém

o resumo dos princípios da Doutrina Espírita. Allan Kardec esclarece de
forma objetiva e sintética, que o Espiritismo é uma ciência que trata da natureza,
origem e destino dos espíritos, bem como de suas relações com o
mundo corporal.
O LIVRO DOS ESPÍRITOS (1857) Allan Kardec

Lançado em 18 de abril de 1857, este livro é a pedra fundamental do espiritismo,
sobre ele ergue-se toda a estrutura da Doutrina Espírita.

O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO (1863) Allan Kardec

Este livro contém comentários e explicações dos ensinamentos de Jesus,
sua concordância com o Espiritismo e sua aplicação às diversas situações
cotidianas da vida. É o Cristianismo, em sua mais pura essência. Além disso,
seus ensinos consolam e facultam paz a todos quantos lhe buscam as
páginas iluminadas.

O AMOR É PARA OS FORTES
MARCELO CEZAR
(ESPÍRITO MARCO AURÉLIO)

Era meio da tarde de um dia quente e abafado, bem típico de verão. Fazia dias que não caía uma gota de água e a sensação térmica nas ruas era infinitamente maior do que a exibida nos termômetros espalhados pela cidade. Edgar encostou o carro na calçada, apertou o botão do pisca - alerta e desceu. Nem ligou para o sopro quente e conseqüente suor que começava a escorrer pela testa tão logo abrira a porta do veículo. Ele sorriu para si e deu de ombros. Estava feliz. Era um dia especial e ele havia se esquecido das rosas vermelhas - as preferidas de sua esposa.
- Denise vai adorar a surpresa! - murmurou enquanto caminhava em direção a uma das bancas de flores espalhadas ao longo dos muros do cemitério do Araçá. Até poderia parecer algo mórbido comprar flores para a amada nas banquinhas que ficam encostadas no muro que circunda um cemitério, no entanto, o local é bem freqüentado e é costume do paulistano comprar flores nessas bancas, não importa a ocasião, pois elas funcionam todos os dias da semana, sem fechar, além de oferecerem flores sempre bonitas, fresquinhas e o preço ser bem em conta.
Edgar escolheu rosas vermelhas colombianas, aquelas com pétalas grandes e cores bem vivas. Apontou para o vaso e disse:
- Quero uma dúzia dessas.
- Quer que embale para presente?
- Não, é um arranjo que eu mesmo vou fazer para a minha esposa - respondeu ele, largo sorriso nos lábios.
Assim, apanhou o ramalhete de rosas, pagou a atendente e saiu feliz. Não se importava com o calor insuportável, cujo relógio ali perto, na esquina da Rua Cardeal Arcoverde, marcava inacreditáveis 36 graus. A atendente suspirou e fechou os olhos enquanto se abanava com um leque.
- Que homem romântico! Como eu queria um desses na minha vida.
- Feio isso, Berenice - protestou, num tom de brincadeira, a senhora da banca ao lado. - Você é casada, dê-se ao respeito!
- Casada com um homem nada romântico! Wesley não é um marido, é um tremendo encosto. Depois que nos casamos ele nunca mais me levou para jantar fora ou pegar um cinema.
- Por quê?
- Não sei, eu reclamei e ele me disse que quando namorávamos a vida era diferente, não tínhamos filhos, contas para pagar. Disse que agora estamos cheios de responsabilidades, que diversão quem tem é namorado. Marido, não.
- Jura?
- E sabe o que ele teve o atrevimento de me dizer também?
A vizinha estava interessadíssima no assunto:
- O quê?
- Por que iria pagar por uma sessão de cinema se na televisão tem filmes aos montes! De graça! Ai, que raiva.
A vizinha da banca de flores empinou o peito.
- Por essa razão nunca me casei. Só quero sabe de namorar. É mais fácil, não dá trabalho e cada um vive na sua casa. Não deu certo? Arrume a trouxa e vá embora.
- Esse homem que acabou de sair daqui é romântico, simpático, perfumado...
- Mas tem cara de sonso. Deve ser escravo da mulher.
- Você mal viu o rapaz. Como pode falar com tanta certeza?
- Sou mulher vivida, namoradeira e, além do mais trabalho nesta banca há muitos anos, conheço os tipos masculinos mais variados. Esse que saiu agora é um paspalhão, do tipo que tem até medo da esposa que não discute jamais. Só diz sim. Pode acreditar.
- É verdade. Ele é simpático, contudo tem cara de cachorro sem dono.
A conversa continuou entre as duas donas da bancas de flores até aparecer outro cliente. De uma coisa Berenice tinha razão: Edgar era um romântico incorrigível. Era apaixonado pela esposa, marido devotado. Fazia todas as vontades e caprichos de Denise. Não reclamava absolutamente de nada. Ao contrário, beijava o chão que a esposa pisava. Ele não era nem feio, nem bonito. Tinha um rosto quadrado, bem comum. Possuía estatura média cerca de 1,75 de altura, corpo esguio em função da alimentação saudável e exercício, muito exercício físico. Edgar tinha sido um menino obeso e lutara a vida toda contra a balança, até que conseguira atingir peso adequado depois de aderir regularmente prática de exercícios físicos. A pele branca contrastava com os cabelos negros e levemente ondulados penteados para trás; os olhos verdes e expressivos ficavam escondidos atrás dos óculos de grau, que de certa forma deixavam seu semblante mais sério do que o usual, conferindo-lhe um ar sisudo. O rapaz tomou o sentido do bairro do Sumaré e seguiu feliz da vida em direção a sua casa. Era meio da tarde e o trânsito ainda fluía tranqüilo. O engarrafamento ainda não havia começado. Depois de contornar uma pracinha repleta de muito verde e belo jardim, embicou o carro na garagem do prédio e apertou o controle remoto. Nada. Deu duas buzinadas leves.
- Desculpe, mas o portão ainda não foi consertado. O rapaz da manutenção vai arrumá-lo amanhã - informou João, o porteiro.
- Anda rapaz! Estou com pressa, homem - disse Edgar, esbaforido, mas gentil e sorridente. - Preciso deixar tudo preparado antes que minha esposa chegue.
O porteiro aproximou-se do portão de ferro e passou a chave. Enquanto empurrava o gradil para dentro, sinalizava com as mãos para Edgar entrar sem raspar o carro na parede.
- O senhor está bem animado hoje! - exclamou.
- João, hoje celebramos cinco anos de casados!
- Tudo isso?
- Cinco! - ele abriu a mão e a colocou para fora do veículo.
- O tempo passa rápido.
- Estou muito feliz.
- É um homem apaixonado. Denise é mulher de sorte.
- Eu é que sou um homem de sorte, João. Eu! A Denise é e sempre será a minha princesa, a minha rainha, a minha deusa. Vou lhe fazer uma surpresa daquelas - disse, enquanto balançava a ponta da orelha com os dedos.
João riu e meneou a cabeça para os lados.
- Esse rapaz é apaixonado mesmo pela esposa. Pena que ela seja tão estúpida e antipática. Bonita, mas grossa e sem educação. Trata a mim e aos demais funcionários do prédio como se fôssemos animais. Ela não tem coração. Não merece um homem bom como Edgar - disse em pensamento. Edgar entrou com o carro e parou ao lado do porteiro.
- Chegou encomenda para mim, João?
- Sim, senhor. A Delis levou os pacotes e colocou-os na geladeira. Aqui está a sua chave.
- Obrigado.
O rapaz agradeceu fazendo aceno com a cabeça. Subiu o vidro do carro e desceu até a sua vaga. Estacionou e em instantes estava no seu apartamento no décimo andar. Tudo estava limpo e arrumado. Pedira para Delis, à empregada que trabalhava para o casal havia anos vir um dia antes - ela costumava vir às sextas-feiras, a fim de deixar o apartamento impecavelmente em ordem para a comemoração desta data tão especial. Gostou da casa limpa e asseada. O cheiro de limpeza com leve toque de lavanda no ambiente deixou-o contente e satisfeito. Edgar arrumou a mesa da sala de jantar com esmero. As castanhas, nozes e damascos foram delicadamente colocados em travessinhas de porcelana; sobre a toalha de linho, presente de uma tia que; bordara lá em Funchal, na Ilha da Madeira, e mandara para ele como presente de casamento. Delis seguiu suas ordens e deixara o salmão pré-cozido devidamente embrulhado numa das prateleiras da geladeira. Era só aquecer no micro-ondas e despejar o molho de páprica doce sobre o peixe. Em seguida, ele conferiu a sua mini adega. O vinho branco para acompanhar o jantar estava na temperatura ideal. As rosas vermelhas foram delicadamente ajeitadas num vaso de cristal que, em seguida, ele colocou no canto da mesa da sala de jantar. Edgar pegou um CD de músicas românticas de Roberto Carlos e colocou no aparelho. Consultou o relógio e foi banhar-se, cantarolando as canções. Caprichou no banho e arrumou-se com apuro. Vestiu calça de sarja, camisa pólo, um blazer de bom corte e cinto combinado com os mocassins. Depois de borrifar sobre si mesmo o perfume que Denise afirmava amar de paixão, espalhou pétalas de rosas pelo chão, desde a entrada social até o quarto do casal, fazendo um simpático caminho, terminando-o com outro pequeno e delicado arranjo sobre a cama. Era uma cesta de vime com um ursinho de pelúcia dentro, vestido com uma camiseta vermelha onde estava bordada a frase Eu te amo. Sentou-se no sofá e ficou com os olhos ora fixos na porta, ora fixos no relógio de pulso. Denise costumava chegar por volta das oito da noite. O relógio marcava oito e vinte e nada. Coçou a cabeça, ansioso.
- Será que teve mais uma reunião de última hora? - perguntou para si. Como minha esposa é responsável, como trabalha! Sinto tanto orgulho dela! Ou então deve estar presa no trânsito. Cada dia está pior.
Ele ligou para o celular dela. Deu caixa postal. Ligou de novo. Outra vez caiu na caixa postal.
Edgar respirou fundo e procurou ocultar a ansiedade cantarolando as músicas do CD. O telefone tocou e ele atendeu de pronto:
- Até que enfim!
- Edgar?
- Ele.
- Oi, sou eu.
- Oi, Adriano. Desculpe atender de maneira ansiosa. Pensei ser Denise. Não havia reconhecido a sua voz de imediato. Está um barulho danado aí.
- Estou na academia.
- Hã?
- Você não vem para a aula de spinning? Já vai começar. Está atrasado.
- Eu o avisei que hoje não iria à academia. É meu aniversário de casamento, esqueceu?
- É mesmo. Você comentou. Havia me esquecido! Parabéns.
- Obrigado.
- Vai levar a Denise para jantar em algum restaurante simpático lá da Vila Madalena?
- Não. Preparei umas coisinhas aqui em casa. Espalhei rosas vermelhas e pétalas pelo chão do apartamento todo.
- Uau! - sibilou Adriano.
- Depois vou lhe servir salmão grelhado com molho. Peguei no programa da Ana Maria Braga dia desses. Ah, e também comprei um ursinho de pelúcia.
Adriano riu do outro lado da linha.
- Denise não gosta dessas coisas. Por que insiste em fazer isso?
- Deixe de besteira, homem. Denise adora. Ela faz cena por puro charminho, só para apimentar a nossa relação. No fundo, ela adora esse romantismo todo.
- Sei, não. Sua esposa não gosta desse tipo de demonstração de carinho.
- Parece que você não nos conhece, Adriano.
- Saímos algumas vezes e a Patrícia me assegurou que a Denise não é do tipo romântica.
- A sua esposa é que não é nada romântica. Nunca vi Patrícia ficar grudada em você.
- Não fica mesmo. Nossas demonstrações de carinho deixamos para a privacidade do nosso lar. Patrícia comentou comigo que notou, no último encontro, como Denise o tratou de maneira ríspida por diversas vezes.
- A sua esposa está enganada, meu amigo - falou num tom que tentava ocultar a contrariedade. Edgar não gostava que falassem mal de Denise. Nem amigos, nem ninguém. Fez um muxoxo e concluiu:
- A minha princesa adora essas coisas. Ela se faz de difícil só para me provocar, para injetar mais charme na nossa relação. Ela é muito feminina, diferentemente de outras mulheres.
Naturalmente, as outras mulheres eram Patrícia. Adriano não deu trela para a cutucada. Estava de certa forma, acostumado com a atitude protetora de Edgar com relação à esposa. Achou melhor encerrar a conversa.
- A aula vai começar. Boa sorte. Antes que eu me esqueça, por acaso amanhã vamos correr no Parque do Ibirapuera?
- Vamos. Eu ligo antes de sair de casa.
- Mas e se a noite prometer?
- Não tem problema - Edgar sorriu malicioso. Vou perder a aula de hoje por um motivo para lá de especial. Não posso e não quero deixar de me exercitar amanhã. Sabe que não me atraso nunca. Eu ligarei para você antes de sair de casa. Vai ver só: amanhã, logo cedinho, vamos correr juntos, faça chuva ou faça sol.
- Combinado. Divirtam-se.
- Obrigado.
- Boa noite.
Edgar desligou o telefone e pendeu a cabeça para os lados.
- Meu amigo Adriano não conhece as mulheres. Aposto que a Patrícia deve sentir falta de carinho, de mimo. Deve ser por esse motivo que ela é um tanto fria e até meio antipática. Coitada. As mulheres gostam de ser bem tratadas, paparicadas. Eu nunca vi o Adriano comprar um ursinho de pelúcia para a Patrícia. Nunca.
Edgar consultou novamente o relógio e nada da esposa aparecer. Ele começou a ficar impaciente. O CD acabou e ele pegou outro na estante. Dessa, vez escolheu um do Tim Maia. Enquanto Denise não aparecia, ele procurava ocultar a ansiedade cantarolando a canção:
- Você, é algo assim, é tudo pra mim, é como eu sonhava baby. Sou feliz agora, não, não vá embora não, vou morrer de saudade...
Do outro lado da cidade, num charmoso flat encravado no meio do bairro de Moema, Denise espreguiçava-se nua na cama e sorria feliz. Sentia-se a mulher mais realizada do mundo. Leandro sim era homem de verdade, com H maiúsculo. Não se comparava àquele paspalho do marido. Estava cansada de fingir ter prazer com Edgar. Ao lado de Leandro era impossível fingir o clímax. Ele era ótimo amante. Ele sim sabia das coisas. Leandro saiu do banho e enquanto se enxugava Denise passava maliciosamente a língua pelos lábios, soltando gemidinhos de prazer. Puxou o lençol até cobrir o corpo e sentou-se na beirada da cama.
- Como ele é bonito - suspirou.
De fato, Leandro era um homem muito bonito. Era alguns centímetros mais alto que Edgar, loiro, os cabelos e pelos do corpo eram bem clarinhos. Forte, corpo esguio e bronzeado. Mesmo aos quarenta e cinco anos de idade, tinha um físico e apetite sexual de colocar qualquer garotão no chinelo. Leandro era diretor de uma grande empresa fabricante de aparelhos eletrônicos, localizada no norte do Estado de São Paulo. Era considerada uma das maiores fabricantes de TV de plasma e monitores do país, nacionalmente conhecida como "a Companhia". A sua família morava na cidade do Rio e o trabalho o mantinha mais na capital paulista, visto que toda a parte administrativa da Companhia fora transferida para a metrópole, dois anos atrás, num moderno e elegante edifício construído na marginal do rio Pinheiros. Denise era gerente de vendas de uma grande loja de varejo atuante na região sudeste do país - a Dommênyca. Os dois conheceram-se numa reunião trivial de negócios. Além de conseguir um bom desconto na compra de televisores para a cadeia de lojas, Denise também ganhou um admirador. Depois das trocas de olhares furtivos e um bom jantar, a tal admiração cresceu e ambos terminaram aquela noite na cama. Fazia pouco mais de um ano que se encontravam religiosamente todas as quintas-feiras. Leandro era casado, tinha um filho e, embora tivesse uma linda esposa, não se sentia realizado ao lado da mulher. Letícia tornara-se fria e não tinham mais intimidade. Ele a procurava e ela afirmava ter dores de cabeça ou então inventava um rol de desculpas esfarrapadas: uma hora era a menstruação, depois os problemas da casa, o filho... Cada dia tinha uma desculpa na ponta da língua para não se entregar ao marido. Essas atitudes da esposa o entristeciam profundamente. Depois que Emerson - pai de Letícia - faleceu, a cama esfriou por completo e o distanciamento entre ambos se tornou tão patente, que nem mais dormiam no mesmo quarto. Cada um tinha a sua suíte. A intimidade, de certa forma, morrera entre eles. Desta feita, Leandro foi procurar fora o que não tinha dentro de casa. Freqüentou alguns bares especializados na venda de bebidas e serviços sexuais, porém o ambiente não lhe agradava e ele não tinha prazer em sair com garotas novinhas. Queria uma mulher de fato, na casa dos trinta anos de idade, e não uma menina de dezoito, mal saída das fraldas. Leandro tinha amigos que haviam trocado suas esposas por brotinhos, meninas mais jovens, e percebia que esse tipo de relacionamento não durava muito. Passado um tempo, depois da aventura de viver uma relação calcada tão somente no prazer e exibir a namoradinha aos amigos como um grande prêmio os maridos tentavam voltar para a família e para o lar. Poucos eram perdoados.
Leandro não cogitava ter uma amante. Para ele, se uma mulher dava trabalho, imagine duas! Precisava de uma mulher para o sexo, mais nada.
- Se Letícia colaborasse - repetia para si - eu não precisaria ficar à procura de sexo. Ela não me ama mais. Não posso ficar preso a uma mulher que não sente desejo por mim. Tenho a minha dignidade. Se não fosse pelo meu filho, eu já teria me separado dela, infelizmente.
Até que Denise apareceu em seu caminho. Denise era mulher fogosa e Leandro encontrou em seus braços os carinhos e prazeres que Letícia não lhe dava havia anos. Bonita, trinta e dois anos de idade, corpo bem feito, pele amorenada e sedosa cabelos curtos cortados à moda. Sempre bem-vestida e perfumada, a morena sabia equilibrar-se num salto quinze com maestria. Rebolava naturalmente ao andar e, evidentemente, chamava a atenção dos homens por onde quer que passe. E o melhor de tudo, Denise também não queria nada sério com ele. Quer dizer, isso era o que Leandro pensava. Ela levantou-se da cama e o abraçou.
- Queria ter você todos os dias. Todos.
- Iríamos enjoar um do outro.
- Seria ótimo.
- Mas aí seríamos amantes.
- E qual o problema?
- Eu não quero compromisso.
Denise passou a língua pelos lábios. Era mulher de temperamento forte e odiava ser passada para trás. Mantinha o casamento porque sabia ter controle absoluto sobre o marido. Ela tinha o poder. E, se tinha o poder, podia controlar e manipular Edgar a seu bel-prazer. O problema é que Denise estava começando a se envolver demais com Leandro. Ela bem que tentara lutar contra esse sentimento, contudo, mesmo não querendo admitir a si mesma, estava caidinha por ele. Procurou ocultar a sensação de fragilidade e dar um tom natural e amável a sua voz. Disse de pronto:
- Você bem que podia deixar a sua esposa, eu prometo largar o Edgar. Por que não fazemos isso?
- Para quê?
- Ora, para ficarmos juntos - arriscou.
- Não. Eu ainda amo Letícia.
- Ama? Tem certeza?
- Sim. Se ela fosse menos fria e não me rejeitasse, eu não estaria aqui com você. Sabe muito bem disso.
- Eu só sirvo para esquentar a sua cama.
Leandro deu de ombros.
- Eu nunca a enganei, Denise. Nunca. Sempre fui sincero. Eu só quero sexo, mais nada. Você concordou.
- É verdade, você nunca mentiu. Entretanto, estamos saindo há mais de um ano. Pensei que...
Leandro a cortou com docilidade.
- Pensou errado.
Ela mordeu os lábios e rangeu os dentes para controlar a raiva.
- Eu trabalho na empresa do pai dela.
- E o que a Companhia tem a ver com tudo isso?
- Muita coisa. Letícia é filha única e a mãe que ela tome a frente do conselho de acionistas a fim de vigiar meus passos.
- As sogras sempre estão atrapalhando o nosso caminho.
- Não sei ao certo. Eu e minha sogra não simpatizamos um com o outro, todavia, percebo que ela quer superproteger a filha. Teresa tem faro apurado e seu instinto percebe que estou pulando a cerca. Eu não a culpo por não gostar de mim. Se eu estivesse no lugar dela, talvez agisse da mesma maneira.
- A minha sogra também é difícil. Aposto que sua esposa e sua sogra estão mancomunadas.
- Duvido. Letícia tinha uma relação mais forte com o pai. Teresa sempre foi muito presa aos ditames da sociedade.
- Sempre vejo fotos de Teresa nessas revista de celebridades.
- Teresa dá muito valor ao que os outros dizem. É o jeito dela. Não guardo rancor por conta disso. Temos uma relação bem formal, distante. Mas no fim das contas, ela é boa mãe e boa avó.
Denise sorriu.
- Uma tratante, isso sim.
- Por que afirma isso? Nem a conhece!
- Sou vivida, mulher experiente. As sogras sempre estão tramando alguma coisa contra suas nora ou genros.
- A minha sogra não é assim.
- O meu santo não bate com o da minha sogra. Eu adoraria que o meu santo batesse, de verdade, isso sim! Ela, porém, é muito chata.
- Não posso simplesmente sair de casa. Assim que o inventário ficar pronto, Letícia vai se tornar oficialmente sócio-majoritária da empresa, portanto, minha chefe.
- Ah, agora entendi por que não quer se separar. Tem muita grana em jogo.
Ele meneou a cabeça negativamente para os lados.
- Está enganada. Nós nos casamos com separação total de bens. Eu nunca seria capaz de me envolver com uma mulher por interesse. Eu me casei porque amei Letícia desde o primeiro instante que a vi. Não estou casado por conta da empresa. Longe disso. Não sou aproveitador.
- Sei.
- Aos poucos, depois que tudo se assentar e meu filho estiver maiorzinho, se ela realmente não me quiser, infelizmente não terei outra saída: terei de me separar.
- Ricardo tem doze anos. É um mocinho. Hoje em dia um menino nessa idade sabe lidar bem com a separação dos pais. É algo natural.
- Não para mim. Eu não acho que separação seja algo natural. Eu me casei e fiz votos na casa de Deus. Até que a morte nos separe. Sabe muito bem, e volto a repetir, para não deixar nenhum tipo de dúvida em sua cabeça, que se Letícia não fosse tão fria e não me negasse carinho e sexo, eu não estaria aqui com você. Denise sentiu uma ponta de raiva. O que essa tal de Letícia tinha que ela não tinha? Será por que essa dondoca estava sempre chamando a atenção onde quer que esteja? Se esse fosse o ponto, Denise não tinha como lutar de igual para igual. Letícia era uma socialite paparicadíssima pela mídia e amada pelo país inteiro. Fora igualada à princesa Diana no que se referia a carisma. Fora comparada à Jacqueline Onassis, pela maneira discreta de ser, e à Audrey Hepburn, pela forma elegante de se vestir. Denise levou o dedo ao queixo e lembrou-se de uma entrevista que Letícia dera num programa de TV, alguns anos atrás. Ela era uma mulher fina, elegante, simpática e bonita. Denise sentiu mais raiva.
- Claro que ele não vai largar da esposa tão facilmente. A tonta é benquista pela sociedade, tem Cortez, faz doações para esses desgraçados vitimado: por catástrofes e aos infelizes que quase morrem de fome por esse país afora. É a lindinha da mídia - falou para si. Depois, virando-se para Leandro, emendou - A diferença entre mim e ela é que eu não apareci tanto nessas revistas idiotas de celebridades. Eu não sou mulher fútil, não sou dondoca. Trabalho duro. Sou mulher séria e procurada pela mídia para assuntos relacionados à economia. Se quiser saber, em termos de beleza sou até mais gostosa que ela. Por que raios você se derrete tanto por essa mulher?
Leandro simplesmente respondeu:
- Porque a amo. Eu amo a minha mulher.
Denise sentiu uma pontada no peito. A sinceridade dele era desconcertante. Leandro sempre lhe fora sincero, desde o início do caso. Dissera que amava a família, mas que precisava descarregar as bateria porque a esposa não se deitava com ele havia séculos. Gostara de ficar com Denise porque ela, aparentemente, não pegava no seu pé. A princípio, Denise também não queria compromisso sério, estava à procura de um homem interessante para poder ter momentos de prazer, pois se deitar com Edgar tornara-se tarefa árdua e enfadonha. O fato é que o tempo foi passando e Denise foi se apegando a Leandro. E, na sua cabeça contaminada pelo orgulho, ela é que poderia se cansar dele. Jamais o contrário. Falou rapidamente num tom bem irônico:
- Você a ama, mas Letícia não o ama! Por que ficar casado com alguém que não o ama?
Leandro largou a toalha sobre a cama e começou a se vestir. Ele tinha um grande sentimento pela esposa. Se ela fosse uma mulher que seguisse à risca os votos do casamento, ele não estaria com Denise. Nem com ela, nem com qualquer mulher que fosse. Ele ficou pensativo por instantes.
- Já disse a você que não sabe o que é amor. Eu amo Letícia, apesar de ela me tratar tão friamente. Você, porém, não ama seu marido, aposto.
Ela fez um muxoxo e respondeu com desdém:
- Não agüento mais ficar casada.
- Você não tem motivos para continuar casada. Não ama seu marido.
- E terei de continuar a ter você apenas uma vez por semana?
- Sim.
- É muito pouco.
- É o que posso lhe oferecer.
- Podemos esticar nos fins de semana.
- Sabe que todo e qualquer fim de semana dedico única e exclusivamente ao meu filho Ricardo.
Denise sorriu mordendo os lábios. Se não fosse o fedelho de doze anos de idade, ela teria Leandro também nos fins de semana, ou até mesmo ele estaria separado daquela esposa desprovida de desejo sexual. Tinha raiva do menino porque acreditava ser ele um grande estorvo, que atrapalhava a relação dela com Leandro. Contudo, no devido tempo, iria tê-lo como amante todos os dias. Denise era cobra criada, mulher com forte experiência em manipular as pessoas, principalmente os homens. E era esperta! Ninguém duvidava de sua esperteza.
- Posso morar neste flat, por exemplo.
- Você não gosta daqui. Sempre afirmou que gostaria de morar numa bela casa nos Jardins.
- Verdade. Nasci e fui criada no bairro do Cambuci, numa rua que sofria enchentes constantes. Saí de casa para morar com uma tia no Pacaembu. Foi aí que tive contato com o conforto, com o belo.
- Separe-se e vá viver novamente no Pacaembu
- Fica fora de mão. Aqui eu tenho tudo o que preciso. Uma suíte espaçosa, uma sala, uma cozinha bem equipada. Tem arrumadeira todos os dias, lavanderia, manobrista. O trabalho fica aqui perto e não pegarei tanto trânsito. E você não precisará mais ficar no hotel pago pela empresa.
- De forma alguma. Não misturo vida pessoal com trabalho. Este flat serve tão somente para os nossos encontros.
- Mas...
Leandro a cortou com amabilidade.
- Nem pensar, Denise. Às vezes recebo mensageiros da empresa no hotel e não seria de bom-tom eu ser visto com você ao meu lado. Sou discreto praticamente uma figura pública, casado com uma mulher bonita e adorada pela mídia.
Denise odiava cada palavra positiva que ele creditava à esposa. Estava a ponto de explodir, mas precisava, tinha de manter a fleuma a todo custo. Rangeu os dentes e emendou:
- Mas sempre saímos daqui juntos!
- Somos discretos. Eu saio primeiro, você sai de minutos depois.
- Mas os funcionários sabem o que se passa aqui.
- Eles são treinados para não ver, não ouvir, não comentar. E é um entra e sai neste flat que as pessoas mal reparam. Lá no hotel há outros funcionários da empresa que vêm diretamente da fábrica. Não quero dar bandeira.
Ela sorriu contrariada:
- Não queria voltar para casa. Não hoje.
- Por quê?
- Depois de momentos tão bons ao seu lado, ter de encarar um fim de semana ao lado daquele paspalho... Vai ser difícil.
Leandro terminou de se vestir. Enquanto ajeitava a gravata ao redor do colarinho, sugeriu:
- Amanhã retorno para casa. Não tem como escapar do trabalho e vir comigo passar o dia?
- Passar o dia?
- Podemos ficar hospedados num hotel bem charmoso no Flamengo. O pessoal do hotel me conhece, são pessoas muito discretas, respeitam a privacidade do cliente e...
Ela exultou de felicidade.
- Viajar com você para o Rio? Amanhã?
- Estou carente de companhia. Tenho de assinar alguns papéis do inventário num escritório de advocacia no centro da cidade. Vou pegar a primeira ponte-aérea. Deverei estar livre da hora do almoço até as cinco da tarde. Poderemos ficar juntos, passear, ir a um bom restaurante...
- Eu vou. Claro que vou!
- Pode tirar o dia de folga?
- Eu ligo para a minha assistente e invento uma desculpa qualquer.
- E seu marido?
- O que tem ele?
- O que vai pretextar?
- Nada. Não sou de dar satisfações.
- Ele pode questionar o motivo da viagem.
- Bobagem. Ele está acostumado com minhas viagens a trabalho. Nesse casamento sou eu quem dou as cartas.
- Eu gostaria de entender melhor: eu tenho um filho, mas você não tem crianças. Se não ama se marido, por que continua casada?
Denise mordiscou os lábios e ficou pensativa por instantes.
- Estive aqui pensando e não sei por que ainda estou presa a esse casamento sem sal e sem tempero.
- Creio que só ficamos amarrados em quem amemos de verdade. Senão, é pura perda de tempo.
- Sabe que você me deu uma ótima idéia? Vou me separar.
- Já é tempo. Pelo menos você liberta seu parceiro e o deixa livre para ser feliz ao lado de outra pessoa.
Denise gargalhou, uma risada debochada e histérica.
- Não consigo imaginar quem pudesse se interessar pelo Edgar. Ele é tão bobão, tão sem tempero, cama com ele tem gosto de salada de chuchu.
Leandro riu.
- Não diz o ditado que toda panela tem a sua tampa?
- É verdade.
- Vai ver você não é a tampa certa para o Edgar.
- Definitivamente, não.
- Ele ainda pode ser feliz.
Ela deu de ombros.
- Vou até em casa fazer a mala para a viagem direi na cara dele que não quero mais manter esse casamento chato. Semana que vem, depois do nosso delicioso fim de semana juntos, estarei morando aqui. Poderá vir mais vezes, claro, se quiser.
Leandro nem deu ouvidos ao que ela dizia. Terminou de se vestir, arrumou algumas peças de roupa na sacola e pediu:
- Encontre-me no saguão do aeroporto de Congonhas às seis da manhã.
- Dorme comigo hoje, vai.
- Não posso. Tenho alguns contratos para analisar e não quero tomar decisões erradas. Preciso de concentração. Estamos em época de crise e não posso dar mole. Qualquer decisão errada - ele fez um sinal com o polegar para baixo - e afundo a Companhia. E tem outra coisa.
- O que é?
- Vou logo avisando para não se empolgar tanto. Ficaremos juntos somente amanhã. Fiz o convite porque você é liberal, tem uma cabeça boa e não pega no meu pé. Somos amigos que de vez em quando têm intimidades, mais nada. Sabe que todo fim de semana fico com Ricardinho. É algo sagrado para eu ficar ao lado de meu filho nos fins de semana.
- Podia abrir exceção nesse próximo fim de semana, não?
- Negativo. Passaremos somente o dia de amanhã juntos. No fim da tarde eu subirei para a Barra da Tijuca.
- E ficarei sozinha na cidade?
- Vamos ficar juntos amanhã durante a tarde toda, não está bom? É só o que posso lhe ofertar. Passeamos, comemos algo, e outras coisinhas mais. A diária valerá até o meio-dia de sábado. Você aproveita o dia e no fim da tarde retorna a São Paulo.
- Pode ser. Quero ficar mais, aproveitar a cidade.
- Bom, se quiser poderá sair e fazer seus passeios. Você é livre. Mas o fim de semana eu passo com Ricardo, de qualquer jeito. Não abro mão disso.
Denise mostrou cara de poucos amigos. Mordiscou novamente os lábios para ocultar a contrariedade. Disse entre dentes:
- Esse pirralho filho da mãe tinha de estragar o meu fim de semana?
- O que foi que disse?
- Nada - ela desconversou e consultou o relógio - Passa das nove. Preciso ir. Vou me arrumar e volto mais tarde para o flat. Amanhã cedo ligarei para a minha assistente e invento qualquer mentira. O povo morre de medo de mim lá na Dommênyca.
- Chegue ao aeroporto no horário marcado. Quero pegar o primeiro vôo da ponte-aérea.
- Combinado.
Despediram-se e Leandro saiu primeiro, como de costume. Denise fechou a porta e sentou-se na cama Enquanto escovava os cabelos, vociferava:
- Maldito filho! Porque ele tem de estar no meio de nós? Quero o Leandro só para mim.
Leandro tomou o elevador, desceu e foi até a área dos manobristas. O carro chegou à seguida. Ele acomodou-se no banco, acelerou e pegou o caminho do hotel. Chegou, passou no bar, tomou um uísque e subiu para o quarto, pensando em ligar para a esposa. Embora mantendo uma relação distante fosse bem ligado à família. Preocupava-se verdadeiramente com Letícia e Ricardo. Colocou o celular para carregar a bateria, deitou-se na cama, afrouxou o nó da gravata. Pegou o telefone e ligou. Procurou ser simpático.
- Boa noite, Letícia, tudo bem?
- Olá, Leandro. Estou bem, e você?
- Para variar estou correndo muito, mas tudo ótimo.
Houve um silêncio constrangedor. Leandro pigarreou e perguntou:
- Como estão as coisas?
- Muito bem - disse ela, num tom que lutou para manter frio e ocultar a emoção que sentia toda vez que escutava a voz do marido.
- O que fez de bom?
- Precisava de um par de tamancos. Fui ao Barra Shopping e almocei com a Mila.
- Gosto que saia com a Mila.
- É como se fosse minha irmã. Temos muitas afinidades e ela entende o meu gosto.
- Ela é excelente amiga.
Letícia fechou os olhos e suspirou profundamente. Sentia ciúmes do marido, inclusive desses comentários inocentes. Contudo, como cobrar algo de Leandro? Ela perdera o interesse pelo sexo e não achava justo demonstrar seu ciúme. Ela não tinha o direito de cobrar absolutamente nada dele. Uma pena. Perguntou:
- Volta na sexta à noite?
- Volto - mentiu ele.
- Ricardinho está contando as horas.
Leandro sorriu feliz. Só de tocar no nome do filho seus lábios abriam largo sorriso e seu peito se enchia de contentamento.
- Diga a ele que comprei mais um game novo para o Playstation.
- Você vai estragar esse menino.
- Por quê? Ele é ótimo filho. Sei que os pais sempre dizem que os seus filhos são especiais, diferentes... Mas Ricardinho é fora de série. Que garoto de doze anos que gosta tanto de ler os clássicos da literatura universal como também jogar videogame ou andar de skate?
- Tem razão. Hoje mesmo começou aqui no condomínio um campeonato de skate. Adivinha quem bolou o campeonato?
- Ricardo.
- Ele mesmo. Está todo contente.
- Além do mais, ele tem tirado notas ótimas na escola, nunca nos deu um pingo de trabalho em nada. Absolutamente nada.
- Concordo. Sabe que hoje no almoço ele leu uma entrevista do primeiro ministro inglês na revista e passou a tarde toda me fazendo perguntas sobre o Reino Unido, a rainha Elizabeth II, o primeiro-ministro...
- Ele é inteligente e um filho maravilhoso. Merece um jogo novo.
- Merece sim, você está certo.
Leandro queria perguntar como iam as sessões no analista, se Letícia sentia-se mais à vontade pare conversar sobre suas intimidades, mas teve receie de constrangê-la. Em vez disso, simplesmente discorreu sobre problemas da empresa, os efeitos da crise econômica mundial, a demora no fechamento do inventário do pai dela e desligou o telefone com um singelo boa-noite.
Letícia desligou o telefone e suspirou triste.
- Por que estou tão triste?
Ela não escutou, entretanto uma voz masculina fez-se ouvir no quarto:
- Não fique triste. Esse traste não merece o sei amor. Eu vou cuidar de você, como sempre venho cuidando.
Enquanto dirigia para sua casa, Denise imaginava maneiras, as mais disparatadas, de ter Leandro em seus braços, longe da esposa e do filho. Conforme dava largas à imaginação negativa, obviamente, começou a se formar em torno de sua cabeça, uma energia de coloração escura que, a cada pensamento sórdido, tornava-se mais espessa e enegrecida. Numa curva de uma rua, depois de quase atropelar um pedestre, ela mudou o teor dos pensamentos.
- Depois penso num jeito de ter esse homem comendo aqui na palma da minha mão. Os homens sempre comeram na minha mão.
Denise pensou um pouquinho e se lembrou de Edson, um gerente de Banco que conhecera pouco antes de se casar com Edgar. A coloração da sua pele ficou avermelhada de ódio por alguns instantes. Embora quisesse apagar esse homem de sua vida, a memória parecia ter enorme prazer em fazê-la se lembrar dos acontecimentos passados. Também pudera.
Denise conhecera Edson quando foi abrir uma conta corrente. Eles trocaram olhares significativos, houve uma paquera e interesse de ambas as partes. Edson era um homem bonitão, na casa dos trinta e poucos anos, alto, forte e viril. Casado e pai de três filhos, saía com Denise por pura diversão. Ele gostava da esposa, mas, como dizia, não gostava de comer arroz e feijão todos os dias. Precisava variar o cardápio. E Denise fora à alternativa. Alguns meses depois ele decidiu terminar o caso. Denise não aceitou. Edson foi duro e até um pouco agressivo. Ele também era o tipo de homem que fazia toda e qualquer mulher comer na palma de sua mão. Estavam empatados. Denise estava à frente de alguém que tinha o mesmo jeito que o dela. Denise não se deu por vencida. Falou para si mesma:
- Ah, é assim? Aguarde o troco.
Vingativa e cheia de ódio, um dia ela estacionou na garagem do Banco, pretextou ir ao caixa eletrônico para sacar dinheiro e, ao descer de volta à garagem, sem ninguém perceber, riscou toda a lateral do carro de Edson com um canivete. Dos dois lados. Depois, não satisfeita, esvaziou os quatro pneus do carro. Para completar o quadro, entortou os dois pára-brisas. Sorriu aliviada e sentiu-se vingada. Entrou no seu carro e saiu da agência gargalhando feito uma doidivana. De volta ao presente, Denise começou a gargalhar.
- Aquele idiota do Edson levou o troco. Esse foi o único homem que tentou me fazer de boba. O único. Leandro que não brinque comigo - ela afastou os pensamentos balançando os cabelos para os lados - agora preciso chegar a casa e terminar meu casamento. De uma coisa eu tenho certeza: não passa de hoje. Não sei por que não tomei essa resolução antes.
Ela embicou o carro na porta da garagem e apertou o controle remoto. Nada. Enfurecida, soltou um grunhido e meteu a mão na buzina, fazendo um barulho estridente. João veio correndo.
- Desculpe senhora. O portão ainda está quebrado.
- Como? Ainda não mandaram consertar essa joça? Para que serve o dinheiro do condomínio, que é bem alto por sinal?
- Amanhã cedo o técnico virá arrumar. Tenha um pouco de paciência, d. Denise.
- Vou falar com o síndico e fazer reclamação dessa sua lerdeza.
- O portão é pesado. Tenha um pouco mais de calma, por gentileza.
- Funcionários como você merecem estar na rua. Não sei por que temos de pagar salários para pessoas tão incompetentes como você, Zé. Ande logo abre logo esse portão, ô infeliz!
João fez sinal afirmativo com a cabeça e abriu. Assim que ela passou com o carro para dentro ele suspirou:
- Edgar não merece essa mulher. E ainda por cima sempre erra meu nome. Chama a mim e a todos o demais funcionários de Zé.
Denise estacionou, saiu do carro e mal cumprimentou a empregada do vizinho que acabava de chegar. Pelo contrário, saiu apressada para pegar o elevado sozinha. A moça apertou o passo tentando equilibra as sacolas do mercado, esbaforida até o elevador, mas não conseguiu entrar. Denise ainda viu o rosto de frustração que a pobre coitada fez enquanto a porta se fechava, mas deu de ombros.
- Detesto pegar elevador com empregada. Gente folgada. Ela que pegue o elevador de serviço. Olhou para um aviso anexado próximo à porta e viu o nome do síndico. Resmungou: - Para que vou perder meu tempo em falar com o síndico? Vou embora mesmo deste buraco. Esse prédio que se dane. Ela chegou ao andar, saiu e meteu a chave na porta. Ao abri-la notou algo de diferente. As luzes estavam apagadas. Muito estranho. Várias velas, de cores, tamanhos e odores variados faziam interessante caminho do corredor até a sala de estar. Ela olhou para aquilo tudo com um esgar de incredulidade.
- O que é isso?! Algum despacho?
- Surpresa! - Edgar apareceu segurando um pequeno arranjo de rosas entre as mãos.
- Edgar...
Ele não deixou que ela falasse. Abraçou-a e a beijou várias vezes no rosto.
- Eu a amo! Eu a amo!
- Me solta, Edgar. Está me melando toda. Parece um cachorro babão. Que coisa!
- Parabéns.
- O que estamos comemorando? - perguntou ela enquanto entrava na sala e tirava os sapatos de saltos altíssimos.
- Hoje é o nosso aniversário.
- Hã?
- Cinco anos.
Denise fez um esforço mental e lembrou-se do dia em que assinara os malditos papéis no cartório.
- Nem me lembrava.
- Eu sei que você não se liga em datas. Mas eu me importo.
Ela abriu e fechou a boca. Estava cansada dessa relação. Por que se casara com ele? Por que fizera aquilo? Desde a saída do flat até agora, sua mente não encontrara resposta. Vasculhou o escaninho da memória... Denise tinha sido uma garota bem sapeca. Namorara os meninos do quarteirão da rua em que morava e do bairro todo; em seguida, quando sua mãe deu graças a Deus de ela ir morar com a tia no Pacaembu, envolvera-se com outros tantos na redondeza, no colégio e na faculdade. Quantas e quantas vezes fora flagrada no estádio de futebol, perto de casa, em cenas dignas de filmes liberadas somente para maiores de dezoito anos. A tia; já velhinha e meio senil, não entendia direito o que se passava e Denise não era levada à delegacia, tampouco fichada porque se deitava também com os policiais. Era uma garota para lá de liberal, promíscua até, do tipo muito fácil e mal falada. Não estava nem aí com os comentários dos outros. Por milagre, nunca contraíra nenhum tipo de doença sexualmente transmissível. Ela conheceu Edgar numa festa de formatura de um de seus conhecidos. Saiu com ele, levou-o para casa e não gostou nem um pouco da intimidade compartilhada. Segundo ela, Edgar não tinha pegada. Iria dispensá-lo no dia seguinte. Ocorre que a tia simpatizou com o rapaz e prometeu à sobrinha substancial aumento na mesada caso ela namorasse aquele menino. Denise fazia tudo por dinheiro mesmo e assim foi levando o namoro, sem deixar, no entanto, de sai com outros homens ao mesmo tempo em que namorava Edgar. Saía com outros homens às escondidas. Depois vieram os sites de relacionamentos da internet e tudo ficou mais fácil. Marcava os encontros com homens que vinham a negócios na capital paulista. Aliás, foi num desses encontros que ela conheceu um alto funcionário da Dommênyca. Depois de alguma saídas e ameaças - o homem era casado - Denise conseguiu uma vaga na conceituada empresa. E ela não tinha dó de meter chifres no namorado. Edgar não percebia. Quando algum amigo, como Adriano, por exemplo, vinha lhe dar indiretas sobre as saídas de Denise, ele ficava possesso. Achava que os amigos inventavam histórias estapafúrdias a fim de melar o namoro dos dois. Tudo por inveja o acreditava. Pura inveja. Até que Denise engravidou, sabe-se lá de quem. Tentou fazer um aborto. Não conseguiu. Ela chegou à clínica clandestina de aborto, um lugar sujo e fedido no centro da cidade e marcou de voltar dali a dois dias. Qual não foi a surpresa ao encontrar uma amiga da tia - sempre a tia! - na saída do prédio. A mulher, muito esperta, juntou dois com dois e logo deduziu o que Denise estava fazendo por lá. Não deu outra: descobriu sobre o aborto e contou tudo para sua tia. Mabel - esse era o nome da tia - estava ficando senil, mas tinha uma religiosidade sem precedentes. Era católica fervorosa e totalmente contrária ao aborto.
- Se você tirar essa criança, eu a deserdo.
- Eu sou jovem, tia. Essa criança vai estragar o meu futuro profissional. Agora que minha carreira deslanchou na empresa, não poderia engravidar.
- Pensasse na carreira enquanto fazia... Fazia... Essas coisas na cama, sua pecadora!
- Eu errei titia, contudo...
- Não vai ficar com nada de herança. Vai ficar pobre, sem casa, e voltar para aquele buraco de onde veio.
Denise teve um sobressalto. Voltar a morar naquela rua sempre cheia de água e ratos? Nunca.
- Não volto para casa. Nem morta.
- Então vai ter essa criança.
- Mas, tia, com relação ao pai...
Denise hesitou. Não podia dizer que não sabia quem era o pai. Deitara-se com muitos homens.
- Claro que sei quem é o pai - disse Mabel, num raro momento de aparente lucidez.
- Sabe?!
- Por certo. Claro que você seduziu e engravidou daquele menino, o Edgar.
Denise mordiscou os lábios e abaixou a cabeça. Sorriu maliciosamente. Mudou propositalmente modulação da voz.
- É verdade. Eu não queria contar-lhe. Estava com medo. A família de Edgar não gosta de mim e ele não teve culpa. A camisinha estourou e...
Mabel ficou ruborizada. Era mulher séria e recatado.
- Nem ouse me contar como aconteceu tudo isso. Poupe-me dos comentários sórdidos. O que me interessa é que você se case com esse rapaz e tenha criança. Ou vou doar este casarão para a prefeitura. Estamos combinadas?
- Se a senhora conseguir dobrar aquela cobra da mãe dele...
E assim foi feito. Mabel, humildemente foi até casa dos pais de Edgar e contou sobre a gravidez. Foi uma confusão dos diabos. Os pais de Edgar, portugueses católicos e éticos até o último fio de cabelo conversaram com o filho à exaustão. Ele era jovem recém-saído da universidade, tinha um bom emprego. Se não quisesse casar, teria o apoio de seus pais desde que assumisse a criança. Mabel não arredou pé. Só sairia daquela casa com a promessa de que a sobrinha teria a criança e que Edgar se casaria com ela. Edgar optou pelo casamento e nem cogitou a possibilidade de um exame de DNA. Na sua cabeça ingênua e apaixonada, Denise era-lhe fiel. A mãe dele, d. Maria José, era uma portuguesa perspicaz, desconfiada de Denise e nunca gostara ou aprovara o namoro do filho. Se por um lado Mabel era intransigente, por outro Maria José exigia o teste de paternidade. Depois de muito bate-boca, Edgar aceitou desposar Denise sem fazer o teste.
- Esse filho pode não ser teu - disparou a mãe.
- Jamais volte a dizer uma barbaridade dessas, mamãe. Denise me ama e só se deitou comigo.
Maria José mediu a futura nora de cima a baixo. Levantou o sobre olho e meneou a cabeça negativamente para os lados. Aproximou-se de Denise e sussurrou em seus ouvidos:
- Poderás te casar com meu filho, mas estarei sempre vigilante.
Denise sorriu e devolveu a afronta em novo sussurro:
- Não tenho medo de você. Nem de você nem do seu bigode, sua víbora portuguesa.
- Não me conheces, sua sirigaita.
- Opa! Nem você me conhece! - retrucou Denise, num tom jocoso em relação à expressão muito utilizada entre os portugueses, que seria algo como o nosso corrente "Puxa"!
- Se magoares meu filho, juro que vou odiar-te pelo resto dos meus dias.
Denise deu de ombros.
- Minha tia quer que eu me case com seu filho. Aqui há um jogo de interesses. Eu me caso, tenho a criança e, depois que minha tia morrer, eu me separo.
- Não tens coração! Como pode ser tão fria e mesquinha?
- Eu faço o que é melhor para mim. Dane-se os outros. Eu vou lá me preocupar com os outros? Desde que eu me dê bem...
- Cuidado! Eu sou mãe coruja e Edgar é tudo o que tenho. Se magoares meu menino, eu juro que vou rezar muito para que Deus te dê uma grande lição.
- Faça o que achar melhor, Carlota Joaquina - retrucou num deboche.
Assim foi feito e no mês seguinte eles se casaram. Maria José fora uma jovem bem bonita e muito inteligente. Estudante de ciências sociais, ela e Fernando, seu marido, participaram ativamente pelo fim da ditadura em Portugal. Logo depois da Revolução dos Cravos ela engravidou e na seqüência prestou concurso e ganhou bolsa para fazer doutorado no Brasil. O casal, jovem e apaixonado, fez as malas e emigraram para cá alguns meses depois. Fernando havia recebido dinheiro proveniente de uma pequena herança e decidiu abrir uma loja de materiais elétricos na Rua Florêncio de Abreu, no centro da cidade. Apaixonaram-se pelo país à primeira vista e nunca mais quiseram voltar. Instalaram-se numa confortável casa no Pacaembu. Lá, Maria José podia cultivar suas orquídeas, numa grande estufa que Fernando construíra nos fundos da casa, especialmente pare esse fim. No comecinho do outro ano, depois de uma gestação difícil e parto complicado - que a impediu de gerar outros filhos - nasceu Edgar. Filho único, ele crescera um romântico obstinado. Queria viver uma história de amor igual à dos pais. Esse casamento com Denise parecia ser o seu conto de fadas. Ia se casar com a sua amada, a sua princesa. Dois meses depois do casamento, Denise teve uma cólica seguida de forte hemorragia e perdeu o bebê. Continuou levando o casamento adiante como também traindo o marido a torto e a direito, sem que ele jamais suspeitasse. Até conhecer Leandro e cansar-se de vez do marido. Estava mais do que na hora de pôr fim nessa relação sem sal, sem atrativos. Denise estava cansada de manter uma relação desgastada. Edgar era um bom homem, mas era muito pegajoso, melado. Fazia e concordava com tudo. Nunca discordava de nada. Não escolhia lugares para saírem ou viajarem. Deixava para Denise escolher absolutamente tudo. E, segundo opinião dela própria, ele era muito convencional na cama. Enfim, era um robozinho que vivia apenas para agradar a esposa. Denise espantou os pensamentos fazendo gesto enérgico com uma das mãos. Voltou à realidade como se tivesse saído de um choque anafilático.
- Eu me perdi nos pensamentos. Deve ter sido a bebida - ela beliscou a pele do braço e bradou - Não é possível! Não foi um sonho!
- Claro que não, meu amor. É dia das nossas bodas!
- O quê?!
- Cinco anos! - Edgar exclamou. Depois a pegou na mão e a conduziu até o quarto.
Ela entrou e fez cara de nojo.
- Olha o ursinho. Ele diz o que eu sinto: Eu te amo.
Denise teve vontade de pegar o ursinho e trucidar o bichinho com as unhas longas, afiadas e vermelhas.
- Sabe que eu odeio bicho de pelúcia. Tenho alergia à pelos.
- Ah, mas esse ursinho é especial. E tem também esse casalzinho abraçado, esculpido em madeira - mostrou.
Ela pegou o bichinho e jogou-o de volta à cama. Exalou suspiro desagradável:
- Cada ano eu ganho um bichinho. Que coisa! E esse casalzinho de madeira? Que tosco! Não pensou numa jóia, por exemplo?
Edgar riu e balançou a cabeça para os lados.
- Meu amor, meu benzinho, estamos casados há cinco anos. Estamos comemorando bodas de madeira! Comprei na feirinha de Embu das Artes.
- Bodas de madeira, Edgar? Eu nunca ouvi falar.
- Mas é. Por essa razão resolvi lhe dar essa estátua de madeira. Ano que vem vamos fazer bodas de açúcar e, quando completarmos quinze anos, que são bodas de cristal, juro que lhe darei uma jóia dentro de uma taça de cristal. Prometo!
Denise não estava nem um pouco interessada em saber sobre as bodas. Só um lunático abobado feito o marido poderia ter conhecimento sobre o significado das bodas de casamento. Ela suspirou contrariada:
- Edgar...
- Você nem tem idéia do que fiz - disse ele cortando-a animado e feliz. - Comprei essas rosas vermelhas porque são as suas preferidas. Também encomendei salmão fresquinho e fui buscar lá no mercadão. A Delis temperou seu prato predileto. Não me esqueci do vinho branco.
Ele correu até a cozinha, abriu a pequena adega e pegou a garrafa. Abriu-a e encheu duas taças. Voltou correndo para o quarto e entregou uma taça à esposa.
- Um brinde. Que possamos renovar nossos votos por mais cinco, dez, vinte, cinqüenta anos!
Denise pegou a taça e bebeu num gole só. Precisava da bebida para não explodir de ódio. Não dava mais para continuar. Estava cansada de tanta melação. Ela só tinha olhos para Leandro. Só para ele. Respirou fundo, pegou a garrafa das mãos do marido e entornou o gargalo.
- Calma amor. Vai ficar altinha.
Edgar aproximou-se e tentou beijá-la. Denise o empurrou com força.
- Chega de me melar com esses beijos nojentos!
Ele parou atônito. Nunca a vira tão ríspida.
- Ei! O que foi?
- Chega Edgar. Chega!
- O que aconteceu, meu amor?
- Não aconteceu nada. Quer dizer, vai acontecer. Ela colocou a taça sobre o aparador e correu a porta do closet. Entrou e apanhou uma mala. Voltou e a jogou sobre a cama.
- O que está fazendo? - perguntou ele, sem entender.
- Vou deixá-lo.
- Como?
Denise deu um grito que ecoou pelo apartamento todo.
- Vou deixá-lo, entendeu agora?
- Deixar-me?
- É. Vou me separar de você. Ou preciso pegar um papel e desenhar?
Ela virou-se e voltou ao closet. Apanhou umas roupas, ajeitou-as de qualquer jeito na mala. Em seguida caminhou até o banheiro e pegou artigos de higiene e cuidados pessoais. Pegou também dois frascos de perfume e colocou tudo numa nécessaire.
- Eu vou embora. Para sempre.
- Eu a amo. Não pode fazer isso comigo.
- Estou fazendo. Nosso casamento acabou.
- Vamos conversar. O que foi que eu fiz?
- Nada.
- Algo errado? Eu corrijo.
- Não.
Edgar ajoelhou-se e agarrou-se nas pernas dela.
- Por favor, benzinho, diga: o que foi?
- Pare de cenas, nem parece homem. Que coisa mais feia.
- Você é tudo para mim.
- Tenha um mínimo de dignidade!
As lágrimas escapavam sem controle. Edgar entrou num estado de total desequilíbrio.
- Não me deixe! Você é a mulher da minha vida. O meu grande amor!
- Não sou não.
- Claro que é.
Ela precisava acabar com aquela cena constrangedora. Disparou num grito:
- Eu tenho outro!
Edgar sentiu uma dor no peito sem igual. Denise o empurrou com violência. Fechou a mala e calçou um par de sandálias.
- Segunda-feira eu passo aqui para pegar o resto das roupas. Não quero mais nada deste lar - ela fez cara de nojo - tinha de ser decorado pela sua mãe, claro! Odeio cerejeira. É tão brega, tão cafona. A única coisa que presta aqui neste cubículo são as minhas roupas e sapatos. Ah, e meus perfumes importados.
- Não vá, por favor. Um casamento de cinco anos não acaba assim de um dia para o outro.
- O nosso acabou no dia que assinei os papéis.
- Não diga uma sandice dessas.
- Eu nunca o amei de fato.
- Não tem problema. O meu amor é suficiente para nós dois.
- Já disse não.
- Por favor, fique. Eu prometo que vou mudar, vou melhorar e serei o melhor marido do mundo.
- Não dá mais, Edgar. Perdi o interesse por você.
- É uma fase. Vai passar.
- Não vai.
- Você tem trabalhado à exaustão. Vamos tirar umas férias.
Denise sabia que se não usasse sua força, Edgar iria passar a noite toda tentando desesperadamente convencê-la de voltar atrás. Ela estava determinada e disparou, somente para dar um basta na discussão:
- Sabe de uma coisa?
- Não.
- Eu amo outro homem - disse num tom provocativo. - Eu me deito com outro homem e tenho prazer com ele.
Edgar ficou pálido, sua cor desapareceu e a voz quase sumiu.
- Como?! Outro homem?
- É. Melhor ser sincera e falar de uma vez.
- Isso é uma brincadeira de mau gosto. Você não pode ter se apaixonado. Trabalha tanto, vive para a empresa e...
Ela o cortou de maneira abrupta, fazendo gestos largos com as mãos.
- Estou apaixonada e assim que os papéis da separação ficarem prontos vamos nos casar.
- Você me traiu?
Denise não respondeu. Ele repetiu:
- Você me traiu?
- Um pouquinho, se é que traição se mede. Mas não esperava me apaixonar.
- Quem é ele?
- Não lhe interessa.
Edgar a pegou pelos braços e os sacudiu com força:
- Quem é o desgraçado?
- Não lhe interessa, já disse! - ela gritou. - Agora me solte. Está me machucando.
- Se não vai ser minha, não vai ser de mais ninguém.
Ela gargalhou alto.
- Cão que late não morde! Você é um fraco. Um nada!
- Não sabe do que sou capaz.
- Vai fazer o que comigo? Amarrar-me e obrigar-me a ficar acorrentada ao seu lado pela eternidade?
- Por favor, não vá. Fique. Por mim!
- Você é um molenga. Não serve nem para segurar mulher.
- Não me ofenda.
- Tem razão. Não temos mais nada o que conversar.
- Por favor...
- Pare de falar, por favor! Está me irritando.
Denise puxou a alça da mala para cima e a colocou no chão. Foi puxando e caminhando até a porta da cozinha, passando por cima das pétalas e assoprando as velas.
- Adeus.
Ela rodou nos calcanhares, saiu e bateu a porta. Edgar correu, porém ela já havia entrado e o elevador de serviço descia em direção à garagem. Ele agarrou-se à porta do elevador. Chorou sem parar. Soluçava e sentia uma dor que mal podia explicar. O peito parecia estar estraçalhado. Deixou o corpo escorregar e deslizar pela porta até parar no chão.
- Ela não pode me deixar. Não pode.
Depois de uns minutos levantou-se, procurou se recompor e olhou para os lados para ver se algum vizinho tinha visto a cena. Nada. Entrou no apartamento e mal fechou a porta. Sentiu outra dor no peito sem igual.
- Denise é o amor de minha vida. Sem ela esta casa não tem vida.
O rapaz foi se arrastando pelos cômodos e por fim se jogou pesadamente sobre o sofá, as mãos seguravam a cabeça, que doía sem cessar.
- Ela não pode me deixar, ela não pode me deixar - repetia.
As horas foram passando e Edgar não conseguia estancar o choro. Estava desesperado. O que fazer? Amava Denise com toda a sua força. Ela era a mulher de sua vida. Não conseguia ver-se ao lado de outra mulher. Tampouco conseguia ver a sua esposa ao lado de outro. Era pura fixação, puro apego, uma paixão desenfreada e sem o mínimo de equilíbrio emocional. Isso que ele sentia por Denise não era amor. Edgar não sabia disso. Confundia apego, dependência e carência afetiva com amor. Ele estava num estado de fazer dó. De repente, levantou-se e caminhou até a varanda. Olhou para baixo. Pensou em se atirar lá de cima. Hesitou:
- Não. Não tenho coragem.
Depois, voltou até a cozinha e abriu outra garrafa de vinho. Bebeu até a metade.
- Denise não pode me deixar. Não pode!
Disse isso várias vezes em alto e bom som. Andou pelo apartamento e cada cômodo lhe trazia uma lembrança agradável. Moravam lá desde o casamento. Ele fizera todas as reformas que ela quisera que ela desejara. Tudo bem que a mãe escolhera os móveis, mas, no geral, o apartamento tinha ficado a cara dela. A esse pensamento o jovem chorava mais ainda. O dia estava nascendo e Edgar não conseguia pregar o olho. Empanturrou-se de castanhas, damascos e nozes. Escutou o interfone tocar, mas não quis atender. O rapaz estava muito perturbado das idéias. Os primeiros raios de sol atravessaram as persianas e atingiram a sala; ele correu mais uma vez para a cozinha. O relógio marcava dez minutos para as seis da manhã.
- Dane-se. Não vou trabalhar.
Ele bebeu mais um tanto, outro tanto e, enquanto ingeria a terceira garrafa de vinho, tropeçou e caiu no chão. A garrafa veio junto e espatifou-se. Edgar olhou para os cacos de vidro e pensou em cortar os pulsos.
- Isso é coisa de mulher! Tenho de pensar numa outra forma de acabar com toda essa dor.
Levantou-se, apoiou um das mãos no granito da pia. Foi até a área de serviço pegar vassoura e pano para limpar a sujeira. Ao abrir o armário sobre o tanque, seus olhos fixaram no rótulo: veneno para rato. Embora fosse quase impossível um rato aparecer no apartamento, tal produto no armarinho era coisa de Delis. Um vizinho havia comprado um hamster para o filho e certa vez o bichinho escapara e fora parar na cozinha de Edgar. Delis ficara apavorada e comprara o veneno, mesmo depois de Edgar explicar-lhe várias vezes que aquele rato branco era inofensivo e não tinha nada a ver com as ratazanas de esgoto. Um brilho sinistro perpassou pelos seus olhos tristes e inchados de tanto chorar.
- Veneno de rato. É tóxico e mortal.
Ele até escutou uma vozinha amiga lhe pedir:
- Por favor, não faça essa besteira.
- Minha vida sem Denise não tem sentido.
- Você é jovem e pode ter uma nova chance, outra vida amorosa pela frente. Você ainda pode ser feliz.
- Não posso. Não quero. Denise é a mulher da minha vida.
- Pense, não faça besteira. Reflita. Tudo isso vai passar, inclusive essa dor.
- Não.
- Por favor, Edgar...
Ele afastou os pensamentos com as costas das mãos.
- Já disse não!
- Mas...
- Chega! - bramiu.
Edgar pegou a lata de veneno e voltou à cozinha. Abriu nova garrafa de vinho e misturou com uma colher da substância tóxica. Não teve mais tempo de raciocinar. Bebeu o copo num gole só. Sentiu um gosto amargo e fez careta. Em seguida, levou as mãos ao estômago e seu corpo caiu sobre o chão da cozinha. Logo, uma espessa camada de líquido de coloração indefinível escorria pelo canto de sua boca. Adriano consultou o relógio. Edgar já deveria ter ligado. Era hábito o amigo dar uma ligadinha antes de sair de casa, só para informar de que estava a caminho da corrida. Adriano não dormira direito à noite. Tivera pesadelos e estava com estranha sensação no peito.
- Devo ter exagerado no jantar - comentou com a esposa, assim que pôs os pés para fora da cama.
- Sinto que devo ligar para Edgar.
- Por quê? Daqui a pouco ele me liga.
- Estou com uma sensação esquisita.
- Você e suas sensações esquisitas! Logo cedo, amor?
Patrícia revirou-se na cama e apanhou um livrinho de orações sobre a mesinha de cabeceira. Abriu ao acaso e leu uma frase. Em seguida, fez sentida prece dirigida a Edgar.
- Não sei o que acontece, sinto que seu amigo não está bem.
- Impossível. Ele e Denise iam comemorar o aniversário de cinco anos. Edgar estava feliz. Com certeza a noite foi boa e ele ainda deve estar dormindo.
- Não sei, não.
- Edgar comprou até um ursinho para presenteá-la. Ah, e lembra aquele passeio que fizemos com ele no Embu no mês passado?
- Sim.
- Na feirinha, Edgar comprou uma estátua de um casalzinho abraçado feita em madeira.
- Comprou o presente errado para a pessoa errada. Denise odeia esse tipo de presente. Não consigo imaginá-la agarrada a um ursinho ou a um casalzinho de madeira, contente e feliz.
Adriano riu.
- Confesso que eu também penso o mesmo. Ele deu uma piscadela e continuou: - ao menos aprendi com Edgar que nós também fizemos bodas de madeira.
Patrícia sorriu e beijou o marido delicadamente nos lábios.
- Nós não ligamos para datas. Somos apaixonados e felizes. Isso é o que importa, de verdade.
- Eu a amo muito.
- Eu também, querido.
- Se você visse como Edgar estava feliz com os preparativos!
- Denise não gosta desse tipo de demonstração de carinho. Depois de tanto tempo Edgar ainda não aprendeu?
- Não sei querida. Ele é um romântico incurável. Edgar a ama de verdade.
- Aquilo não é amor, é apego. Embora o mundo tenha evoluído em várias áreas, ainda somos analfabetos no quesito amor.
- Será?
- Veja ao seu redor, Adriano. Muitas pessoas têm uma vida afetiva tosca, pobre, cheia de problemas. Poucos são os que se sentem felizes de fato ao lado daquele que afirmam amar.
- É. Hoje há mais separações do que uniões. As pessoas não ficam tanto tempo juntas.
- Não ficam porque não aprenderam a olhar para dentro de si e ver o que a natureza lhes deu: a imaginação!
- E o que isso tem a ver com sentimento, com amor?
- Tudo. Eu tenho lido e estudado sobre o assunto. A nossa imaginação é funcional, permite-nos a capacidade de lidar com as formas. Podemos imaginar o que quisermos.
- E isso não é ótimo?
- Depende - respondeu Patrícia, séria. - A imaginação pode ser responsável pelas piores tragédias humanas. A loucura, a demência...
- Acha que Edgar está louco?
- Não. Não diria louco, mas ele não usa a imaginação com inteligência. Esse é o trunfo de uma mente sadia. Isso posto quem não souber amar, vai sofrer.
- Por quê?
- Porque a imaginação provoca reações em nosso senso afetivo, que são a emoção e os sentimentos.
- Para mim é tudo a mesma coisa - disse ele enquanto terminava de se vestir.
- São bem diferentes, querido. As emoções são nossos impulsos vitais, são o nosso combustível. Elas são representadas, por exemplo, por raiva, entusiasmo, prazer, riso. Já o sentimento é a satisfação, a realização, o gostar...
- Você deve fazer muito bem aos seus alunos. Por que não tive uma professora de psicologia tão bonita e tão didática?
Ela beijou-o, piscou e continuou:
- É bom ensinar os jovens sobre os atributos do senso afetivo. O equilíbrio afetivo é vital para uma vida harmoniosa, plena e feliz. A imaginação está muito ligada ao domínio das emoções, porque é ela quem as provoca.
- Provoca de que maneira?
- Feche os olhos.
Adriano obedeceu.
- E agora, o que faço?
- Imagine você comigo numa praia deserta, num dia lindo de sol, com a água azul do mar numa temperatura bem agradável...
Adriano sorriu com malícia.
- Estou gostando da brincadeira.
- O que sente quando imagina a cena?
- Uma sensação agradável, boa, gostosa. Um prazer indescritível.
- Viu? Você sentiu porque imaginou uma cena bonita, agradável. Ela provocou suas emoções. Agora imagine o seu time levando uma goleada do adversário!
- Não gostei - protestou ele, entre risos. - Não quero nem pensar numa possibilidade dessa.
- Porque agora sua mente projetou uma cena desagradável. Nós acreditamos no que imaginamos. Infelizmente, nosso querido Edgar acredita que amar é chorar, sofrer, fazer tudo pela amada, sem respeitar as próprias escolhas. Ele perdeu a noção da realidade.
- Falando dessa maneira, fico até preocupado.
- Por essa razão, orar faz bem. Vamos visualizá-lo bem, alegre, contente.
- Difícil imaginá-lo assim ao lado da Denise. Mas vou tentar.
Adriano fechou os olhos e lembrou-se de cenas felizes ao lado do amigo. Depois, Patrícia emendou:
- Edgar está casado com a mulher errada. Denise não tem nada a ver com ele.
- Também concordo. Mas não podemos nos meter na vida deles.
- Claro que não. Bom, eu vou até a cozinha preparar nosso café da manhã.
- Ainda é cedo, durma mais um pouco.
- Estou bem-disposta. Tenho o dia cheio pela frente. Embora vá dar aulas só na parte da tarde, tenho mercado e Banco para fazer.
- Quer ir comigo ao parque respirar um pouco de ar puro e dar uma caminhada, uma corridinha?
- Boa idéia.
Patrícia abraçou e beijou o marido. Em seguida Adriano terminou de calçar o par de, foi até cozinha e tomou um copo de suco. Prendeu o se IPOD no shorts, arrumou os fones de ouvido e logo depois ele e a esposa saíram caminhando até o parque do Ibirapuera, a poucos metros do prédio onde moravam. Chegaram ao local de costume e nada de Edgar aparecer. Adriano pegou o celular e ligou. Tocou, tocou e nada. Caía direto na caixa postal.
Ele deu de ombros.
- Vai ver a noite foi boa. Só pode ter sido isso.
- Essa sensação esquisita me diz que há algo estranho. Você é muito amigo do Edgar. Vai ver ele não está bem.
- Não pode ser. Se tivesse acontecido alguma coisa, ele teria ligado do mesmo jeito.
- Tem certeza, querido?
Adriano coçou a cabeça e lembrou-se do que amigo lhe falara antes de desligar o telefone: - Sabe que não me atraso nunca. Eu ligarei para você ante de sair de casa. Vai ver só, amanhã, logo cedinho vamos correr juntos, faça chuva ou faça sol... Patrícia nada disse. Fez nova prece em favor a Edgar. Sabia que se falasse novamente sobre a sensação esquisita, Adriano iria começar uma discussão. Ela era sensitiva, além de estudiosa dos problemas humanos. Percebia claramente as energias ao seu redor. Tinha certeza de que Edgar não estava bem, mas fazer o quê?
- Em determinados momentos, a prece é a nossa única contribuição.
Patrícia sorriu para o marido e iniciaram a caminhada. Adriano continuava a sentir aquela dor esquisita. Não se tratava de dor física, mas um incômodo, uma sensação estranha de fazer gosto. Procurou afastar os pensamentos com as mãos.
- Estou parecendo minha mulher. Para a Patrícia, toda sensação desagradável é um aviso. Que coisa mais besta - disse para si, enquanto ligava seu tocador de músicas e deixava-se envolver, cantarolando uma canção.
Adriano esboçou leve sorriso, encostou-se a uma árvore e começou a fazer sua série de alongamentos. Patrícia continuou sua caminhada e Adriano, depois, juntou-se a um grupo de amigos que se reuniam para correr no mesmo horário praticamente todos os dias.
- Você não está com a cara boa - comentou um colega.
- É, parece que não dormiu nada - ajuntou outro.
- Cadê o companheiro de corrida? Adriano não respondeu de pronto.
- Por onde anda Edgar? - indagou outro. Ele procurou disfarçar a animosidade.
- Tinha um jantar com a esposa e iam esticar a noite numa boate - mentiu. Creio que está tendo o sono dos justos.
Enquanto fazia seu exercício matinal ele bem que escutou uma voz amiga:
- Pense coisas boas sobre Edgar. Ele precisa receber boas vibrações.
Por mais que Adriano tentasse, a imagem de Edgar não saía de sua mente. Ele sorriu ao imaginar uma cena vivida tempos atrás em que ambos riam a valer. No flat, Denise espreguiçava-se enquanto seu celular a despertava com uma música romântica.
- Preciso mudar essa música. Coisa do Edgar. Que brega!
Ela levantou-se, calçou as pantufas e foi para banheiro. Estava com sono, dormira pouco, contudo prometera chegar ao aeroporto às seis da manhã conforme combinado com Leandro. Por essa razão colocara o celular para despertá-la as cinco em ponto. Ainda estava escuro quando ela saiu do banheiro e arrumou-se com capricho. Deu-se conta de que os sapatos de salto ficaram no apartamento. Esquecera-se deles. Também, depois de toda aquela cena tétrica com Edgar, o que poderia fazer?
- Ai que raiva! Fiquei dando trela para aquele infeliz e esqueci os meus saltos. Eu preciso desse sapatos. Não vou viajar sem eles. De sandália rasteirinha? Eu? Nem morta.
Denise imediatamente ligou para sua assistente. Caiu na caixa postal. Ela ficou irritada e ligou novamente. Marina atendeu ao telefone com a voz pastosa.
- Pois não?
- Você deve me atender tão logo eu ligue.
- Desculpe, mas quem fala? - indagou Marin ainda sonolenta.
- Marina, sou eu.
Ela estava com sono, no entanto, assim que reconheceu a voz da chefe acordou de imediato. Marina pigarreou e disse:
- Olá, Denise. Aconteceu alguma coisa?
- Claro que aconteceu. Por que diabos eu iria ligar à uma hora dessas para você, criatura? Para saber se teve bons sonhos?
Marina meneou a cabeça para os lados. Como poderia esquecer as grosserias da chefe? Ela se ajeitou na cama e perguntou:
- Em que posso ajudá-la?
- Tenho de fazer uma viagem urgente.
Marina passou a mão pelos olhos. Procurou se sentar e pegou a agenda na mesinha de cabeceira. Abriu-a e verificou.
- Você tem reunião hoje ao meio-dia com o Dr. Inácio.
- Desmarque.
- Essa reunião foi marcada e desmarcada várias vezes.
- Remarque mais uma vez, oras.
- O Dr. Inácio não vai gostar. Ele estava intratável ontem. Passou mais de duas vezes na minha sala para confirmar o horário, para saber se estava tudo certo para hoje.
- Deixe que depois eu cuido disso. Ligue para ele e diga que houve um imprevisto.
- Ele está há mais de uma semana tentando marcar essa reunião. Quer rever alguns contratos. Sabe como é ele é o responsável pela área jurídica da empresa e...
Denise a cortou secamente.
- Feche essa matraca! Dane-se o Inácio. Ele e aquele bando de advogados que ele lidera podem esperar.
- Está certo.
- Não é ele que joga charme para cima de você?
- Ei, o que isso tem a ver com a reunião?
- Pois bem, aproveite e contorne a situação. Fale manso e com jeitinho. Inácio vai compreender.
Marina enrubesceu do outro lado da linha.
- Imagine Denise.
- Inácio é louco por você, sabia?
Marina sentiu um arrepio pelo corpo. Tinha repulse do homem.
- Eu nunca dei confiança para ele.
- Pois deveria.
- Perdão...
- Inácio é um advogado bem conceituado. Este na empresa há anos, é queridinho dos donos. Tudo bem que não é o homem mais lindo do mundo. Mas beleza não paga as contas, certo? Inácio está muito bem de vida e poderá realizar todos os seus sonhos. Ele pode tirá-la dessa vidinha classe baixa por exemplo.
- Estou muito confortável aqui onde moro.
- Inácio pode lhe dar um carro melhor que essa carroça que você tem. Não é o seu carro que este sempre quebrando e indo para o conserto? Acaso esse carrinho russo modelo mil novecentos e antigamente está funcionando?
Marina não respondeu, não queria discutir com ela Mudou o assunto:
- Você precisa de mais alguma coisa?
- Terá de passar na minha casa agora.
- Como?
- Isso mesmo. Agora. Eu tenho uns pares de sapatos que preciso levar para o Rio. Pegue-os no meu closet. Estão na sapateira...
Denise foi explicando onde os sapatos estavam. Marina escutou tudo e fez algumas anotações. Era eficiente, mas achava um absurdo ter de fazer esse tipo de serviço para sua chefe. Denise não respeitava o limite entre trabalho e pedidos pessoais descabidos. Achava que seus funcionários eram secretários particulares, entregadores, pessoas prontas para qualquer coisa, a qualquer momento. Quando um funcionário mais irritado tentava se safar de um pedido esdrúxulo, Denise vinha com a conversa da crise financeira que assolava o mundo. Coagia o funcionário, gritava e dizia que iria demiti-lo. Muitos deles, com família para sustentar, acabavam cedendo e se submetiam aos seus caprichos. Marina tentou argumentar e falar o óbvio ululante, ou seja, que seria impossível ir ao apartamento pegar os sapatos e chegar antes das seis horas no aeroporto.
- Eu moro longe. Creio que não vou conseguir chegar a tempo.
- Pense no seu emprego. Com tanta gente procurando um posto de trabalho neste tempo de crise, garanto que você vai fazer milagre e chegará ao saguão do aeroporto bem antes de eu embarcar.
- Mas Denise...
Denise desligou o telefone. Tinha essa mania deselegante de desligar no meio da conversa quando o assunto não mais lhe interessava. Marina pousou o celular no criado-mudo e balançou a cabeça para os lados.
- Isso é um abuso. Não gosto de ser pressionada assim dessa maneira. Eu não vou conseguir chegar ao aeroporto daqui à uma hora. Se eu não dependesse tanto desse emprego estaria longe das garras dessa mulher.
Marina levantou-se e dirigiu-se ao banheiro, contrariada. A conversa com Denise parecia ter saído de um filme de ficção. Ela deixou os pensamentos de lado e fez uma toalete básica. Marina era uma mulata bem bonita. Simpática, olhos grandes, verdes e expressivos, os cabelos eram longos e naturalmente encaracolados. Filha de uma mistura de raças - uma branco com uma negra - possuía um corpo escultural, similar ao de uma passista de escola de samba. Ela era linda e assediada, mas não dava trela para ninguém. Era a bondade em pessoa. Tinha uma alma generosa, um coração puro. Tivera uma vida muito dura, difícil mesmo, e agora estava conseguindo ter melhores condições de vida. Consuelo, a mãe, tivera vida difícil. Pernambucana, abandonada pelo marido e com um filho pequeno, trocara a vida árida no agreste por uma melhor na cidade grande. Arrumou emprego como doméstica e tempos depois nasceu Marina. Aos onze anos de idade, Marina arrumou emprego de empacotadora num supermercado. O irmão mais velho era o clássico vagabundo, largara os estudos e nunca quisera saber de trabalhar. Jofre tinha ume espécie de aversão natural ao trabalho e crescera rodeadas de amigos marginais e viciadas em drogas, amizades para lá de suspeitas. Aos catorze anos ele envolveu-se num pequeno assalto e foi parar num reformatório para menores infratores. Numa rebelião, Jofre fugiu, teve uma discussão feia com a mãe e nunca mais deu as caras. Sumiu no mundo. Consuelo se desgastava com tanta preocupação. Passava noites sem dormir. Tinha medo de que Jofre se envolvesse com bandidos de alta periculosidade. Dois anos antes ela recebera um pacote com algumas notas de dinheiro. Era um presente de Jofre. Além das notas havia uma pequena carta, escrita com um português bem ruim e com uma letra bem infantil, cheia de garranchos. Num texto curto, ele afirmava estar bem, morando em outra cidade e torcia para que ela também estivesse bem. Que se precisasse de alguma coisa, era só enviar uma carta ao endereço que constava atrás do envelope. Consuelo chorou muito. Colocou os três mil reais numa poupança e enviou uma, duas, três, várias cartas ao filho, porém todas voltavam constando endereço inexistente. Aos poucos, seu coração de mãe percebeu que o filho estava mesmo vivendo uma vida marginal e tentou deixar seu desespero nas mãos de Deus. Rezava todas as noites pedindo proteção para Jofre. Marina nunca se dera bem com Jofre. Desde pequena ele implicava com a irmã, chamando-a de nomes feios. Consuelo dava uns tapas no garoto e ele sossegava. Contudo, sempre que possível, infernizava a irmãzinha. Quando ele foi preso e depois sumiu, Marina deu graças a Deus. Vira que o irmão recebera inúmeras oportunidades de emprego e sempre se deixava levar pela vida mansa. Era um vagabundo nato e jamais iria mudar. O tempo passou e Marina adaptou-se à cidade grande; trabalhava de dia e estudava à noite. Com muito custo, cursou uma faculdade particular, fez curso de inglês e tinha um bom emprego. Terminara uma relação afetiva algum tempo atrás e não pensava em namorar. Queria subir na carreira e dar mais conforto à mãe. Cuidava com carinho de Consuelo, hipertensa havia alguns anos. Consuelo escutou o passos da filha e indagou:
- Caiu da cama?
- Não caí, mãe. A minha chefe me tirou da cama.
- Aquela antipática veio importuná-la logo cedo?
- Hoje começou de madrugada!
- Não entendo porque ainda continua trabalhando para essa mulher. Você é tão competente, tão esforçada. Merecia emprego melhor.
- O emprego é bom, o salário até que é bom também, mas o que importa são os benefícios. Graça a esse emprego você tem uma assistência médica de qualidade. Eu não poderia lhe pagar um plano de saúde. Custa caro. É por essa razão que eu não posso perder esse emprego, por ora.
- Posso usar o serviço público de saúde.
Marina bateu três vezes na cabeceira da cama.
- Deus me livre e guarde! Você não vê o sofrimento das pessoas que dependem dos hospitais públicos. Não quero ver minha mãe largada num corredor do hospital e demorando a ser atendida.
Consuelo emocionou-se com o carinho da filha.
- Eu dou trabalho, não?
- De forma alguma. Quem me dá trabalho é a minha a chefe.
- Se eu pudesse voltar atrás...
- E voltar atrás para quê? Fez tudo direitinho criou-me com amor e carinho. Transmitiu a mim e ao Jofre valores éticos e morais a fim de nos tornarmos pessoas de bem. Sou uma mulher de valores íntegros graças à educação que me deu. Pena não poder dizer o mesmo do meu irmão.
- Não fale assim do Jofre. Ele sofreu muito, coitado.
- Sofreu?
- Passou fome, viemos num pau de arara de Caruaru até São Paulo. Moramos num cortiço sujo e malcheiroso por anos. Quando você nasceu, a nossa vida já estava mais ajeitadinha.
- Isso é desculpa. Passou sempre a mão na cabeça dele e veja no que deu. Deve estar por aí, assaltando, ou, sei lá, fazendo até coisa pior.
- Não fale assim de seu irmão. É sangue do seu sangue.
- Esse não aprendeu valor algum. Anda perdido por esse mundo.
Marina ia andando de um lado para o outro, atarefada. Não gostava nem um pouco de falar sobre Jofre. Sentia uma sensação muito ruim toda vez que se lembrava do irmão. Os pelos de seu corpo chegavam a eriçar. Cortou a mãe com delicadeza.
- Tenho um bom emprego e temos uma boa assistência médica. Não posso me dar ao luxo de largar tudo por conta do gênio ruim da chefe.
- Tem razão, meu bem.
- Não vai dar para chegar a tempo. Impossível. É uma questão de pura lógica.
- Vou rezar para você arrumar um bom marido - retrucou Consuelo.
- Por quê?
- Daí não vai mais precisar trabalhar, oras. Um marido bonito, honesto, trabalhador, que a sustente...
Marina riu.
- Não precisa se preocupar comigo, d. Consuelo Não preciso me dependurar em homem para me sustentar. Sei me virar. Sempre soube desde que nasci.
- Fala isso porque sofreu com o término do se noivado.
- Não quero falar sobre isso. - Marina mudou rumo do assunto de maneira abrupta, foi até a cozinha, pegou um copo com água e duas caixinha de medicamentos. Voltou ao quarto. - Trouxe-lhe o remédios da manhã.
Consuelo ajeitou-se na cama e com certa dificuldade conseguiu manter-se sentada. Pegou o copo com água e os comprimidos. Marina pegou o aparelho de pressão e mediu.
- 14 por 10. Está alta.
- Fiquei agitada com as lembranças de seu irmão.
- Pois então não pense nele.
- Sou mãe.
- Você fez tudo o que podia tudo o que estava a seu alcance. Se ele não aproveitou, problema dele. Agora vamos, tome seu comprimido.
- As pernas doem muito - falou Consuelo, enquanto engolia o comprimido e bebericava um copo de água.
- Estão inchadas. O médico sugeriu caminhar um pouco. Não pode ficar o dia todo sentada na cama o no sofá, assistindo à televisão.
- Essa sua mãe preta lhe dá trabalho, não?
- Já disse que de modo algum.
- Mas o tempo passou e o que me resta?
- Quer saber? Acredito que nós influenciamos bastante o nosso destino, mãe. Comece a pensar nas suas pernas curadas.
- Os médicos não acham nada. Dizem que minha pernas nada têm de anormal. E que a pressão sobe porque fico nervosa à toa. Também, com tanta desgraça na TV.
- Deixe de assistir a esses programas. Leia um livro.
- Sabe que tenho dificuldade em ler.
- Eu lhe compro um áudio-livro. É só escutar.
- Me dá sono.
- Folheie uma revista de moda. Ou vá conversar com alguma vizinha.
- Perigoso. Acontece cada barbaridade nas ruas...
- Mais um motivo para mudar esse jeito. Seja mais positiva. Sua vida pode ser melhor.
- Obrigada pelo estímulo, filha.
- Agora tenho de ir. Se precisar de algo, ligue no meu celular.
- Pode deixar. Bom trabalho.
Marina beijou a mãe no rosto, apanhou a sua pasta, a bolsa e saiu. Morava num prédio bem antigo, de três andares, sem elevador, no bairro do Tatuapé. O apartamento ficava no térreo, tinha dois quartos pequenos, uma sala, cozinha, banheiro e uma pequena área de serviço. Marina cumprimentou uma vizinha, consultou o relógio e deduziu que talvez não pegasse aquele trânsito pesado do dia a dia para atravessar a cidade. Deu partida no carro - aquele tal do modelo russo bem velhinho - e ligou o rádio em busca das notícias da cidade e do trânsito. O som era meio ruim, tinha interferência. Marina meteu a mão para fora da janela, mexeu na antena enferrujada. O som melhorou.
- Mesmo sem trânsito, não vou conseguir chegar a tempo.
Ela deu de ombros. Paciência. Não ia correr feito uma louca e colocar a própria vida e a de outros em risco por conta de um capricho da chefe. De repente, o carro começou a falhar como de costume. Ele não agüentava e parava de funcionar.
- Bem que Denise falou. Deve ter sido praga dela. Agora estou danada! Não chegarei ao aeroporto na hora que ela quer.
Acostumada com os problemas constantes no carro, Marina conseguiu fazê-lo chegar, aos trancos e barrancos, até um posto na esquina de casa. Ao lado havia uma borracharia e uma oficina mecânica. O rapazes a conheciam de longa data e estavam acostumados a fazer o conserto do veículo. Com muita sorte, deu para ela pegar um táxi logo em seguida e chegar ao prédio de Denise meia hora depois. Desceu em frente à portaria. Estava havendo troca de turno e João aproximou-se e a cumprimentou de maneira jovial. Marina sorriu, retribui o cumprimento e explicou ao porteiro o motivo de estar lá.
- Não pode subir.
- É urgente, senhor.
- Eu tenho de ter uma autorização por escrito o então ter a permissão do marido dela.
- Pois interfone para o marido dela. Edgar me conhece por nome, conversamos algumas vezes por telefone. Se quiser eu falo com ele daqui da portaria explico tudo e o senhor me deixa subir.
João coçou a cabeça e interfonou para o apartamento. Nada. Ligou de novo. Ninguém atendia.
- Edgar deve estar dormindo. Vai ter de esperar.
- Por favor, eu não posso esperar. A mulher dele quer que eu pegue umas coisas aí no apartamento e leve até o aeroporto. Se eu não chegar a tempo, ela vai comer o meu fígado!
João mordiscou os lábios e coçou a cabeça de novo.
- Tem razão. A d. Denise é mulher muito brava.
- Se é!
- Mas a senhorita entende né? Eu não posso deixá-la entrar. São as normas.
- Por favor, tente de novo. Ainda é muito cedo, ele não deve ter saído para trabalhar.
- Não mesmo. O portão está quebrado e sou eu quem abre. Edgar não sai antes das sete e meia.
- Ligue de novo, por favor.
O rapaz interfonou mais uma vez.
- Não atende. Talvez esteja no banho.
João notou o ar preocupado de Marina. Sentia que ela era uma boa pessoa e que precisava subir de qualquer jeito. Mas ele devia seguir as ordens do condomínio, caso contrário seria demitido. Ele pensou, pensou e decidiu:
- Bom, eu tenho de levar o jornal e posso tocar a campainha. A senhorita aguarda mais um pouco?
Marina consultou o relógio. Faltavam dez minutos para as seis da manhã. Mesmo o rapaz a deixando subir e mesmo que o trânsito ajudasse, ela não chegaria a tempo em Congonhas. Denise deveria estar prestes a embarcar. Mas fazer o quê? Ela estava lá no prédio e deveria seguir ordens. No caminho do aeroporto ligaria e deixaria uma mensagem na caixa postal da chefe. Depois agüentaria, por alguns dias, os gritos e impropérios. Ela olhou para João e disse:
- Eu espero.
João chamou outro funcionário e pediu para que ficasse na portaria. Pegou o jornal e subiu pelo elevador de serviço. Ao chegar próximo da porta da cozinha do apartamento de Edgar, notou-a encostada e vislumbrou uma réstia de luz.
- Estranho. A porta está desencostada e a luz acesa.
João olhou para os lados, caminhou até a lixeira perto. Voltou e bateu na porta. Nada. Quando foi bater novamente escutou um grito. João desesperou-se e entrou. Ao ver Edgar caído no chão e com as mãos no estômago, fez um esgar de espanto e terror:
- Minha nossa senhora! Aproximou-se, ajoelhou-se.
- O que você fez Edgar?!
- Eu fiz besteira.
- O que bebeu?
- Ingeri veneno de rato. Ajude-me e leve-me a hospital.
João lembrou-se de acontecimento ocorrido anos atrás com um parente. Seus olhos perscrutaram o ambiente e ele viu a lata sobre a mesa.
Perguntou rápido:
- Homem de Deus! Foi aquilo que você tomou?
- Sim...
Ele nem hesitou. Meteu o dedo na garganta de Edgar e o induziu ao vômito. Por sorte, o rapaz expeliu rapidamente tudo o que havia ingerido. João foi ao tanque, lavou as mãos e correu ao interfone. Pediu para que o funcionário mandasse Marina subir pelo elevador de serviço, rápido.
Quando ela chegou ao andar e saiu do elevador, teve uma sensação estranha. Caminhou até a porta abriu e, ao ver o homem caído no chão, apertou o passo.
- O que aconteceu?
- Ele tomou veneno, moça.
- Veneno? Santo Deus!
- Acho que consegui fazer sair tudo, mas precisamos chamar uma ambulância.
Marina esqueceu-se dos sapatos de Denise. Sentiu tremenda compaixão por aquele homem que conhecia somente por telefone. Abaixou-se e perguntou:
- Pode falar?
Ele assentiu de maneira positiva com a cabeça.
- Tem convênio médico?
Edgar fez sinal com a cabeça. Marina acompanhou seus olhos e viu a carteira sobre a mesinha da cozinha. Abriu e pegou a carteirinha do convênio. Ligou e conseguiu uma ambulância.
- Ele precisa de socorro imediato - disse ela.
- O pior já deve ter passado. Eu o fiz colocar o veneno para fora.
João agachou-se de novo e perguntou:
- Há quanto tempo tomou isso?
Edgar olhou para o relógio da cozinha.
- Acabei de tomar. Faz alguns minutos.
Logo depois, a ambulância chegou e um dos paramédicos pediu a embalagem do veneno e solicitou a presença de um parente para acompanhar Edgar. Marina já havia ligado várias vezes para o celular de Denise e nada, só caía na caixa postal.
- Denise já deve estar dentro da aeronave - disse para si.
- Ele tem um grande amigo, o Adriano - tornou João - mas não sei o telefone dele, não.
Edgar pegou na mão de Marina. Estava desesperado.
- Não quero ficar sozinho. Venha comigo.
- Eu não o conheço.
- Por favor!
- Vou tentar mais uma vez localizar sua esposa e...
Ele a cortou, as lágrimas escorrendo pela face:
- Por favor. Não chame a Denise. Não faça isso. Estou com medo. Venha comigo.
O que fazer? Ela estava profundamente abalada e sentiu tremenda piedade pelo rapaz. Marina percebeu como se uma leve brisa tocasse sua fronte. Parecei escutar nitidamente uma voz suave e amiga:
- Vá com ele.
Marina até olhou para os lados para ver de onde vinha a voz. Só viu os paramédicos preparando Edgar para o resgate e João atônito, no canto da cozinha.
- A senhorita faria a gentileza de acompanhá-lo? Edgar é um bom moço.
- Eu vou sim. Vou ligar para o escritório e informa que vou chegar mais tarde. A minha chefe viajou e não vão precisar de mim. Sinto que devo acompanhar esse rapaz até o hospital.
Outro funcionário do prédio apareceu na porta da cozinha.
- Eu vi a d. Denise sair ontem era bem tarde da noite. Ela estava carregando uma mala e com uma cara de poucos amigos.
- Eles devem ter brigado.
João viu um nome e número de telefone preso a um imã de geladeira. Era de Maria José.
- Eu vou ligar para a mãe dele e informar que está no hospital. - Ele tirou um bloquinho do bolso e anotou um número: - Ligue e me dê notícias. Espero que ele fique bem e volte logo para casa. Nós gostamos muito desse moço.
Ela fez sinal afirmativo com a cabeça e desceu atrás dos paramédicos. Marina entrou na ambulância e Edgar pegou em suas mãos.
- Obrigado por estar aqui.
Em seguida, ele pendeu a cabeça para o lado e adormeceu.
Foi difícil dissimular a raiva. Denise fazia beicinhos, caras e bocas para ocultar o ódio que sentia de Marina naquele momento.
- Ela me paga! Parece que fez de propósito. A hora que chegar ao Rio vou ligar e lhe falar um monte de desaforos. Ela que prepare os ouvidos para os desaforos. Estou com ela por aqui - fez um gesto com a mão próxima ao pescoço. Segunda-feira eu pegarei ela de jeito.
Leandro estava lendo o jornal no assento ao lado. Desviou a atenção ao vê-la fazer o gesto com a mão.
- O que foi que resmungou?
- Nada, querido. Estou pensando na incompetência de uma funcionária.
- A situação está difícil e há muita gente que tem emprego e não honra o cargo que tem.
- Pois é. A minha assistente é muito incompetente. Vou passar-lhe um corretivo na segunda-feira.
Ele sorriu.
- Isso mesmo. Na segunda-feira. Se eu fosse você, só voltaria a ligar o celular depois do horário de expediente. Nada de pensar em trabalho hoje.
- Tem razão. Hoje somos só eu e você.
- Até o fim do dia.
Leandro piscou e voltou a ler o jornal. A comissária de bordo aproximou-se e perguntou a ela:
- Deseja água, café, um suco?
- Quero paz, pode ser? - respondeu estúpida.
A comissária sorriu sem jeito e fez a mesma pergunta para Leandro. Ele aceitou um copo de café.
- Não precisa descontar a sua raiva em cima da comissária de bordo.
Denise ficava raivosa quando chamavam a sua atenção. Mas naquele exato momento precisava aparentar ser a criatura mais dócil da face da Terra.
- Desculpe querido. É que fiquei brava com a atitude irresponsável da minha assistente. Realmente a aeromoça não tem nada a ver com isso. - Denise levantou o rosto e procurou fingir um sorriso: - Desculpe queridinha. Um suco de laranja, por favor.
Por dentro ela estava se lixando para a comissária. Tinha vontade de se levantar e arranhar o rosto da moça, ou desfazer o coque da própria coitada. Se escolher aquele emprego era porque nascera para servir e não sabia fazer outra coisa, conjecturava Denise. Leandro voltou à leitura do jornal e ela sorriu feliz. Em instantes o avião aproximou-se da cidade. Denise soltou um gritinho de prazer ao ver a ponte Rio - Niterói e a Ilha Fiscal. Num piscar de olhos, já estavam num táxi rumo ao bairro do Flamengo. Eles se hospedaram num simpático e discreto hotel e descansaram um pouco. Depois de amarem-se e banharem-se foram para a rua.
- Vou seguir seu conselho e manterei o telefone desligado. Ligarei o aparelho somente no fim da tarde ou amanhã. Hoje quero ficar só com você - tornou Denise, colada no braço de Leandro.
- Vamos fazer um belo programa.
Leandro fez sinal para um táxi e pediu que os levasse até o Jardim Botânico.
- Quero que conheça.
Enquanto o motorista fazia o trajeto, Denise admiravam paisagem do aterro do Flamengo. O celular dele tocou.
- Faça como eu - tornou ela. - Não atenda. Desligue.
- Não posso. É lá de casa.
Denise fez ar de mofa.
- Deve ser a esposa aflita, a dondoca querendo saber o que vai servir no jantar - pensou ela.
Leandro se desvencilhou delicadamente dela e pegou o aparelho. Fez sinal com as mãos para Denise ficar quieta e atendeu, reconhecendo a voz da empregada.
- O que foi Iara?
- A d. Letícia está desesperada. O Ricardinho caiu do skate e se machucou...
A empregada relatou em poucas palavras o pequeno acidente. Ricardo havia se machucado na área de lazer dentro do condomínio e estava no hospital fazendo curativos. Nada de grave. Mas Leandro nem terminou de escutar. Desligou o telefone. Virou-se atônito para Denise:
- Aconteceu um acidente com meu filho.
- Um acidente?
- Sim. Ele está no hospital, parece que não é nada grave.
- Se não é nada grave, melhor sossegar.
- Não posso.
- Ligue depois para a sua esposa.
- De maneira alguma. É meu filho que está no hospital. Preciso ir até lá.
- Mas sua família pensa que você está em São Paulo.
- Dane-se o que pensam. Eu invento uma desculpa. Preciso ver meu filho. Teremos de cancelar a nossa programação. Lamento Denise.
Leandro falou e pediu para o motorista retornar ao hotel. Desceram e na recepção ele acertou os valores. Perguntou à Denise:
- Quer ficar até quando?
- Por mim iria embora agora mesmo. Qual a graça de ficar sozinha? - disse, num tom seco e irritado.
- Pode aproveitar e fazer bons programas pela cidade. Faremos o seguinte: para compensá-la desse furo, vou pagar mais uma diária. Poderá ficar na cidade até domingo.
Ela fez um muxoxo.
- Tudo bem.
- Prometo que vamos fazer outro programa, num outro fim de semana.
Ele nem a beijou. Pegou a mala que o rapaz trouxera havia poucos minutos e partiu rumo ao hospital. Denise sentiu um ódio surdo brotar dentro de si.
- Desgraçado! Esse pirralho tinha que se machucar logo agora? Por que não caiu, bateu a cabeça e morreu de vez? Que estorvo.
Ela respirou fundo e resolveu meio a contragosto, aproveitar a cidade. Iria valer-se da estadia paga, do conforto do hotel e partiria no domingo de manhã. Ainda queimava dentro dela uma pontinha de esperança em ver Leandro logo mais à noite. Denise apanhou um táxi e foi visitar pontos turísticos da cidade. Não tinha a mínima vontade de ir ao Jardim Botânico e ser picada por uma infinidade de insetos. Pensou em pegar o bondinho no Pão de Açúcar.
- É para lá que eu vou - disse para si e para o motorista.
Leandro chegou ao hospital, apresentou-se na recepção, perguntou pelo filho e foi encaminhado para uma sala de espera. Avistou Letícia sentada numa cadeira.
- Oi, Letícia.
Ela levantou delicadamente os olhos. Surpreendeu-se ao vê-lo.
- O que faz aqui?
- Iara me ligou.
- Como veio tão rápido?
Ele mordiscou os lábios, apreensivo e emendou:
- Quando Iara me disse que Ricardo estava no hospital, não hesitei. Peguei um avião e corri para cá.
- Chegou rápido.
- É, cheguei rápido - respondeu ele, meio sem-graça.
Letícia nem percebeu a mentira. Estava deveras preocupada com o filho.
- Estou aflita.
Leandro aproximou-se e pegou em suas mãos frias.
- Suas mãos estão geladas.
Ele começou a fazer movimentos delicados sobre suas mãos, a fim de esquentá-las. Letícia sentiu agradável bem-estar. Fechou os olhos por instantes. Como era bom o contato das mãos dele!
Leandro indagou:
- O que aconteceu?
- Ricardinho acordou bem-disposto, tomou café e foi brincar com os amigos do condomínio. Lembra-se do campeonato de skate que ele organizou?
- Lembro, sim.
- Pois é. Meia hora depois um dos meninos veio até em casa me avisar do acidente. Fiquei sem saber o que fazer. Imediatamente peguei a bolsa e corri com ele para cá.
- Ele está bem?
- Parece que levou alguns pontos na altura do joelho. É que na hora fiquei desesperada. Era tanto sangue e você não estava. Se meu pai estivesse aqui... - ela começou a choramingar.
Instintivamente Leandro aproximou-se e apoiou a cabeça dela em seu peito.
- Não fique assim. Eu estou aqui com você.
- Desculpe-me pela fraqueza.
- Chi! Está tudo bem.
Letícia foi tomada por nova sensação agradável. Sentia-se segura ao lado do marido. Amava-o acima de tudo, mas parecia que algo a impedia de uma aproximação maior.
- Canalha! Pensa que nos engana? Pode ludibriar a minha filha doce e ingênua, mas a mim você não engana! - vociferou uma voz masculina.
Leandro sentiu súbito mal-estar. Afastou-se de Letícia e passou a mão pela testa.
- Você está pálido! O que aconteceu?
- Não sei, senti súbito mal-estar.
- Vamos chamar um médico.
- De forma alguma. Vai ver é o estômago vazio. Eu não tomei café da manhã.
Letícia levantou-se.
- Vou providenciar algo para você comer.
Enquanto ela se dirigia à cafeteria do hospital, Leandro continuava com aquele estranho mal-estar repentino.
- Idiota! Eu consigo fazer você passar mal. Você não consegue me ver, não consegue me escutar, não sabe como se defender. Eu vou fazer você sofrer.
Leandro passou nervosamente as mãos pelos cabelos e apoiou os cotovelos sobre os joelhos.
- Eu estava bem até agora. Por que esse incômodo?
O espírito ao seu lado iria atormentá-lo ainda mais, não fosse uma voz conhecida e cheia de amor a afastá-lo momentaneamente daquela sensação ruim:
- Papai!
Leandro olhou para o fim do corredor e avistou o filho. Abriu largo sorriso e, nesse instante, envolvido por uma onda sincera de amor, ficou livre daquela influenciação negativa. Correu e abraçou o menino, enchendo-o de abraços e beijos.
- Ricardinho, meu filho amado. O que aconteceu?
- Estava brincando com meus amigos e quis arriscar uma curva. Foi maneiro! Parada sinistra!
- Filho, eu não entendo essas gírias.
Ricardinho riu.
- Esqueci que você é muito velho! - Leandro riu, meneou a cabeça para os lados e o filho continuou: - Foi legal, a galera se divertiu, mas aí eu tropecei no skate e meti o joelho na cerca do jardim.
- Quantas vezes pedi para você se proteger e usar joelheiras?
- Nem me dei conta. Mas olhe - ele apontou para o curativo - levei três pontinhos. Não derrubei uma lágrima. Sou forte, assim como você.
Leandro o abraçou e o beijou no rosto.
- Você é destemido e forte, como eu. Teve mesmo a quem puxar.
- Vai passar o dia comigo?
- Hum, hum. Vamos para casa, você precisa descansar e...
- Que descansar, que nada! Estou muito bem. O médico recomendou que eu não ande tanto, pelo menos hoje. E subir no skate só depois que tirar os pontos...
- Passarei o dia ao seu lado.
- E o trabalho?
- Nada de trabalho hoje. Chega. Até domingo serei seu companheiro.
- Oba! - Ricardo o abraçou. - Vamos assistir àqueles seriados de TV juntos?
- Todos os que você quiser.
Ricardo abraçou novamente o pai e, olhando em seus olhos, disse com largo sorriso:
- Você é o melhor pai do mundo!
Letícia aproximou-se com uma bandejinha. Nela havia um sanduíche de queijo quente e um copo com suco de laranja. Entregou-a ao marido.
- Precisa se alimentar.
- Obrigado.
- Mãe, o papai não vai trabalhar mais hoje e vai passar o dia inteiro, quer dizer, o fim de semana todo comigo. Acredita?
Ela afagou-lhe os cabelos sedosos e alourados.
- Acredito, sim.
- Vamos para casa, mãe?
- Tenho de assinar uns papéis e já vamos.
- Vamos juntos - disse Leandro. - Eu vim de táxi e volto dirigindo.
Letícia sorriu. Pegou a chave do carro e a entregou ao marido. Os dois, pai e filho, acenaram com a cabeça e partiram felizes rumo ao estacionamento. Letícia até conseguiu manter bom humor. O espírito que estava próximo deles resmungou a certa distância:
- Agora não tenho como me aproximar de Leandro. Quando ele está com Ricardo eu não consigo fazer nada. Que maçada!
O espírito falou e em seguida desvaneceu no ar. Edgar recebeu tratamento adequado e foi transferido para um quarto. Ficara em observação e fora liberado no fim da tarde. Marina conversou com os médicos e recebeu orientações.
- Seu marido vai ficar bem, sem seqüelas. Foi de suma importância ter trazido a latinha do veneno. A minha colega vai conversar com você e lhe dar mais detalhes.
O médico disse e se afastou rapidamente. Marina nem teve tempo de dizer que ela não era casada com Edgar, mas deu de ombros. Uma simpática médica veio ao seu encontro.
- Você é a acompanhante do Edgar?
- Sim, sou.
- Sou a Dra. Helma.
- Prazer.
- É necessário eu lhe passar algumas informações.
- Pois não.
Helma indicou uma cadeira ali próxima e ambas se sentaram. De maneira didática, a médica falou:
- Os sintomas, no envenenamento com raticidas que são engolidos, dependem do produto e da quantidade ingerida, graças a Deus, Edgar ingeriu uma quantidade muito pequena. Se a vítima estiver inconsciente, sonolenta ou com crises convulsivas, não se pode, de maneira alguma, induzir o vômito, pelo risco de aspiração pulmonar.
- Como assim? - perguntou Marina.
- O alimento vai para o pulmão, podendo causar broncopneumonia aspirativa.
- No caso dele, que estava consciente...
- No caso do seu marido, como estava consciente, induzir o vômito, posicionando-o deitado de lado, foi à melhor solução. Da maneira como vocês fizeram. A médica, de uma simpatia sem igual, procurava ser bem didática: - Em casos assim, se possível, é bom identificar o tipo de veneno que foi ingerido e a quantidade. Caso a vítima esteja consciente como aconteceu com seu marido só devemos induzir o vômito se os agentes tóxicos forem medicamentos, plantas, comida estragada, álcool, bebidas alcoólicas, cosméticos, tinta, fósforo, naftalina, veneno para ratos ou água oxigenada.
- Não fui eu quem fez isso. Foi o porteiro do prédio. Em todo o caso, como se faz para induzir o vômito?
- Coloque o dedo na garganta da vítima o modo mais popular. A seguir, leve-a ao hospital mais próximo, preferencialmente, munida do rótulo da embalagem do veneno. Como você agiu. Ele já havia feito isso antes?
- Não sei.
- Cabe ressaltar que o vômito deverá ser provocado em qualquer tipo de intoxicação em que o dano do ato de vomitar for inferior ao dano provocado pelo produto ingerido.
- Como assim, doutora? Não entendi.
- Nas intoxicações advindas por derivados de petróleo, ácidos e afins não se deve provocar vômito. De qualquer maneira - tornou a médica de maneira jovial - ele ficará até amanhã em observação. Depois, vamos dar alta e eu solicito que ele receba acompanhamento psicológico.
Marina agradeceu as observações e afastou-se.
- Hum, todos aqui pensam que Edgar é meu marido. Que coisa! Pelo menos agora sei tomar providências no caso de algum envenenamento - disse pare si enquanto caminhava na direção do quarto. Sorriu ao entrar e vê-lo com aparência melhor.
- Como se sente?
- Muito melhor. O susto passou.
- Ainda bem que chegamos praticamente na hora em que você ingeriu aquilo. Se demorássemos, talvez os procedimentos fossem mais agressivos ou até você não estivesse vivo.
Uma lágrima escapou pelo canto do olho do rapaz. Edgar virou o rosto para o lado, na direção da parede, sentindo enorme culpa.
- Quase destruí a minha vida.
- O que aconteceu?
- Não quero falar sobre isso agora.
- Tem todo o direito de permanecer quieto, afinal mal nos conhecemos.
- Sempre me atendeu de maneira simpática. Gostava da sua voz quando ligava para falar com Denise lá na empresa.
Marina sorriu.
- Agora me conhece pessoalmente. Sabe que tenho muito trabalho, não posso ficar aqui o tempo todo e, por essa razão, o João ligou para sua mãe. Ela está por chegar.
- Ele ligou para meus pais? Por quê?
- Eu não sou sua parenta e não nos conhecemos. Como cheguei aqui no hospital ao seu lado, devo permanecer até que chegue um parente ou responsável. Não consegui localizar sua esposa e João pegou o número de telefone de sua mãe fixado num imã da geladeira e ligou para ela.
- Falou com Denise?
- O celular dela está desligado.
- Para aonde foi?
- Viajou para o Rio, a trabalho.
- Por favor, tente localizá-la. Eu gostaria muito de poder falar com ela.
- Farei o possível.
Maria José entrou no quarto e, ao ver o filho conversando e aparentemente bem de saúde, levantou os braços para o alto.
- Graças a minha Nossa Senhora de Fátima! - disse ainda num forte sotaque lusitano.
Ela aproximou-se da cama, abraçou e beijou Edgar várias vezes no rosto.
- Aposto que isso foi briga com aquela sirigaita! Aposto!
- Mãe... - ele fez sinal com a cabeça e Maria José acompanhou os olhos do filho. Foi naquele instante que ela percebeu a presença de Marina.
- Foste tu quem o acompanhaste?
- Sim, senhora. Prazer - ela estendeu a mão - sou Marina.
Maria José abraçou-a com carinho e derrubou algumas lágrimas. Estava emocionada.
- Salvaste o meu filho!
- Imagine senhora. Quem o salvou, na verdade, foi o porteiro do prédio. Eu só o acompanhei até o hospital.
- Estiveste ao lado do meu filho quando ele mais precisou. Serei eternamente grata a ti.
- Fiz o que qualquer outra pessoa faria.
- Fez o que qualquer pessoa de bom coração faria. - retrucou Fernando, que acabava de entrar no quarto.
O casal encheu Marina de perguntas e ela ficou até meio tonta com o jeito rápido de Maria José lhe dirigir as indagações. Ela relatou o que a médica acabara de lhe dizer acerca dos procedimentos no caso de ingestão de venenos. Maria José não se conformava. Escutava Marina e balançava a cabeça para os lados de maneira negativa. Mesmo cravada de perguntas, Marina sentiu-se bem ao lado deles. Percebeu que eram uma família unida e que havia muito amor e carinho entre os três. Notou a emoção com que Fernando abraçou o filho. E em seguida perguntou:
- Onde está Denise?
- Ela viajou pai.
- Como assim, viajou?
Edgar deu de ombros. Não queria falar sobre a discussão que tivera com Denise. Fernando estava irredutível.
- Era ela quem deveria estar aqui. A sua esposa. E não uma estranha. - Ele dirigiu o olhar a Marina e completou: - Desculpe-me a franqueza, mas é uma estranha em nosso seio familiar. A esposa é quem deveria estar aqui ao lado dele.
- Nós brigamos pai.
- E daí? Brigas entre casais são comuns.
Edgar abriu e fechou os olhos. Suspirou num murmúrio:
- Denise me deixou...
Marina notou que era hora de partir.
- Preciso voltar ao trabalho. E ainda tenho de saber se meu carro vai ficar pronto. Adorei conhecê-los, embora numa situação nada agradável.
- Pois fique - solicitou Fernando.
- Não posso. Mesmo.
A jovem aproximou-se de Edgar e passou delicadamente a mão sobre seu rosto.
- Sente-se melhor?
Ele apertou a mão dela e sorriu.
- Obrigado. Mil vezes, obrigado.
- Fiz o que meu coração mandou.
- Quando estiver melhor, aparecerei na empresa. Tomaremos um café juntos, pode ser?
- Fique bem. Espero que tudo se resolva e você seja feliz.
- Denise vai voltar e tudo vai ficar bem.
Marina não respondeu. Apertou a mão do rapaz e esboçou tímido sorriso. Em seguida, despediu-se dos pais dele.
- Simpatizei muito contigo. Foste o anjo bom que apareceste na hora certa na vida de meu filho. Nunca vou me esquecer disso.
- Até mais, d. Maria José.
- Fica com meu cartão. Vem tomar um chá comigo qualquer hora. Farei pastéis de Belém. É receita que está há várias gerações na minha família.
- Tenho trabalhado muito, mas farei o possível para nos vermos e nos conhecermos melhor. Também gostei muito da senhora.
Abraçaram-se e a jovem despediu-se de Fernando. Quando ela saiu do quarto, Fernando soltou um assobio.
- Que bela morena. Conhece-a de onde?
- É secretária da Denise.
- Pobrezinha! Trabalha para aquela cobra? - falou Maria José.
- Mãe!
- Ninguém merece trabalhar ao lado daquela mulher impertinente. Denise é o cão em forma de mulher.
- Você implica com ela. Sempre foi assim, desde o começo do namoro.
- Acaso te lembras de como ela entrou para a nossa família? Tive de aceitá-la. Tu não quiseste fazer aquele teste de DNA e casaste.
- Eu a amava. Nunca suspeitei de seu comportamento.
Maria José prosseguiu:
- A única coisa boa dessa história toda foi que a pobre da Mabel morreu em paz. Lembro-me até hoje da sua fisionomia alegre quando Denise entrou na igreja.
Fernando interveio:
- Deixemos o passado para trás, querida. De que adianta lembrarmos isso tudo agora. E, virando-se para o filho, falou e lhe piscou: - Bonita e simpatia essa rapariga que saiu daqui. Gostei muito dela.
- Eu também a achei bem simpática - emendou Maria José.
- Agora nos conte o que aconteceu, sem rodeio - exigiu Fernando.
- Meu pai, não quero falar sobre isso agora.
- Por que, não?
- Não é o momento.
- Nada disso. Nada de fugir do assunto. Eu o conheço muito bem. Se estiver aqui nesta cama de hospital nos deve satisfação. O que aconteceu entre você e sua esposa para tomar atitude tão dramática? Brigaram feio desta vez?
- Ela te deixaste? - indagou Maria José.
Edgar assentiu com a cabeça. Maria José sorriu por dentro.
- Sabia que um dia ela sairia da vida de meu filho.
Depois, com olhos úmidos, Edgar passou a relata o dia anterior, desde a saída do escritório até o fim da noite, quando Denise batera o pé na sua decisão e afirmara que iria embora para valer.
- Melhor assim. Ela não prestava e...
Fernando fez sinal negativo com a cabeça e ela entendeu o recado. Parou de falar. Edgar estava frágil, as lágrimas escorriam sem parar. Maria José abraçou o filho e o beijou no rosto.
- Acalma-te. Tudo vai ficar bem.
- Será, mãe?
- Claro. Tudo passa. Logo vais para casa, retomar tua vida.
- Assim espero. Desde que Denise volte para mim...
Fernando sentiu pena do filho. Sabia o quanto Edgar gostava de Denise. Sabia o quanto era duro para o filho ter de lidar com essa separação, que para ele, desde o início, estava com os dias contados. Ele só não esperava que o filho tomasse atitude tão dramática.
Maria José fingia consternação e por dentro estava feliz.
- Nossa Senhora de Fátima escutou as minhas preces! Preciso ir à igreja e agradecer a graça alcançada. Denise saiu da vida de meu filho e Edgar vai ser muito feliz. Muito feliz.
Denise não estava se sentindo muito confortável em sua estada na cidade maravilhosa. O calor estava praticamente insuportável e a fila para pegar o bondinho era um pouco extensa. Ela odiava filas. Achava coisa de pobre. Havia um grupo de turistas japoneses que não entendia patavina sobre as orientações da guia turística. O sol estava muito forte e ela se esquecera de usar protetor solar ou mesmo de colocar um chapéu. Começava a sentir a pele do rosto e dos ombros arderem.
- Que saco! Estou suando bicas e morrendo de sede.
Ela saiu da fila e foi até uma barraquinha ali perto. Comprou uma garrafinha de água e, depois de bebe uns goles, sentiu-se melhor. Voltou para a fila. Uma senhora bem baixinha, mais baixa do que a média, nanica mesmo, com cara de poucos amigos, disparou:
- Ei! Aonde pensa que vai?
Denise não lhe deu ouvidos. A mulher baixinha continuou voz meio esganiçada:
- Está furando fila, ô branquela.
Denise voltou o pescoço para trás e mediu a mulher de cima a baixo. Fez muxoxo.
- Está falando comigo?
- Por acaso tem outra branquela furando fila aqui na minha frente?
- Vai-te catar! Larga do meu pé, meia-entrada. Eu estava na fila e fui pegar uma garrafinha de água. Voltei ao meu lugar.
- Seu lugar é atrás de mim.
Denise estufou o peito.
- Quero ver se você é mulher para me tirar daqui, seu protótipo de gente. Vai, vem me tirar daqui.
- Olha que eu vou. Sofro de nanismo, sou pequena, mas destemida.
- Vê se enxerga! Volte para a nave da Xuxa. Não é lá que habitam os duendes e gnomos?
Algumas pessoas riram, outras ficaram constrangidas. Um senhor, tomando as dores da mulher, retrucou:
- Muito feio ofender assim outra pessoa. Ela não é anã, é prejudicada verticalmente.
Denise jogou o rosto para trás, numa gostosa gargalhada.
- Agora anão é prejudicado verticalmente? Anão é anão e ponto final. Essa mergulhadora de aquário está me importunando e ninguém vai me tirar daqui.
A confusão se instaurou. Um grupo defendia a senhora, que, tão logo percebera a atenção recebida pelas pessoas, adotou uma postura de vítima da situação. Mostrou-se ofendida e começou a choramingar. Outro grupo achava um absurdo Denise dirigir-se de maneira tão vulgar a uma pessoa. Era muita falta de educação. E outro grupo achava tudo engraçado. Divertiam-se com as tiradas dela e com os atrapalhados japoneses.
- Ela pode me xingar de branquela e eu não tenho o direito de me defender? Que democracia é essa?
- Branquela, não. Está ficando um pimentão - gritou um.
- Odeio gente grossa - falou uma outra mais atrás.
Denise botou a mão na cintura e balançou a cabeça para os lados.
- Gente nojenta! Odeio povo.
Um homem aproximou-se e murmurou em sei ouvido:
- Ta a fim de sair daqui?
Denise voltou-se para a voz logo atrás de si. Abriu largo sorriso ao ver aquele homem moreno alto, corpulento.
- Adoraria - respondeu alegre.
- Venha comigo. Daqui a pouco vão querer esfolarem você viva.
Denise percebeu o português errado, mas gostou do rapaz. Falou:
- Não fui eu quem começou a confusão. Foi essa locutora de radinho de pilha quem começou. - E, voltando-se para a mulher, sugeriu: - Por que não enfim a cabeça numa tomada e se mata? Ou por que não se atira do primeiro andar de um prédio? Quer ver que nem vai pagar ingresso para ir ao bondinho? Vão permitir que passe por debaixo da catraca. O homem a tirou dali. Se Denise abrisse a boa para falar mais um impropério para a pobre mulher com certeza seria executada sumariamente por um grupo indignado com tantas tolices.
- Venha comigo.
Ela ainda virou para trás e fez uma careta pan a baixinha. Mais adiante, longe do grupo e da confusão, quando ele tirou os óculos escuros e Denise notou o par de olhos esverdeados, não se conteve.
- Meu Deus! Que olhos são esses?
- Meu charme.
- São verdadeiros? - ela levantou uma das mãos e tocou no seu rosto.
- Originais de fábrica!
- Estou impressionada.
- Quando minha fala não seduz, a gente fazemos uso de outros atributos que a natureza deu pra mim de presente.
Ela pegou a garrafinha de água e bebericou. Fingiu não escutar o assassinato que ele cometia com o idioma. Em seguida, passou a mão pela testa suada.
- Obrigada. Se ficasse mais um pouquinho ali, seria esfolada viva.
- Aquelas pessoas não entenderam o seu senso de humor.
- Agradeço a gentileza em me tirar de lá.
Ele estendeu a mão.
- Prazer, Jofre.
- Eu me chamo Denise - ela também estendeu a mão e o cumprimentou. Sentiu agradável sensação ao tocar naquela mão grande, áspera e forte.
- É paulista, certo?
- Como adivinhou? - perguntou ela.
- Pelo sotaque.
- Está tão na cara, ou melhor, na fala, assim?
Ele riu.
- Está. Tem um sotaque gostoso, fala cantando as palavras.
Ela sentiu-se lisonjeada.
- Nunca dei atenção ao meu jeito de falar.
- Morei em São Paulo por uns tempos.
- É mesmo?
- E também notei que não é daqui pelo tom da pele. Tu é muito branquinha para ser carioca. Sua pele está avermelhada.
Ela notou o vermelhão ao redor das alças do vestido.
- Não estou acostumada a pegar sol e esqueci completamente de passar protetor solar.
- Se ficar mais um pouco aqui embaixo do sol, vai ganhar umas bolha pelo corpo.
- Tem razão.
- E esse grupo não quer você por perto. Quer mesmo subir até o Pão de Açúcar, mina?
- Eu não tinha muita opção. Pensei em ir ao Jardim Botânico, mas não quero ser picada por pernilongos Eu os atraio assim como o mel atrai as abelhas.
- A gente temos muita coisa boa para se fazer na cidade.
- Aceito sugestões.
- Que tal uma volta no meu iate? - perguntou ele num ar de soberba.
- Iate? - ela indagou surpresa.
- Sim. Iate, tipo esses barco de luxo.
Jofre era um belo tipo, mas não tinha cara de bem-nascido ou postura de um homem endinheirado, como se pessoas com dinheiro tivessem postura diferenciada nos dias atuais. E o português errado sem concordância, mostrava mesmo que ele não tinha freqüentado uma sala de aula.
- Por que a surpresa? Só por conta da minha cor de pele?
- De modo algum. Eu não tenho nenhum tipo de preconceito, muito pelo contrário.
- Ah, bom.
- Quando era mais novinha namorei um rapaz bem mais escuro que você, um negro mesmo.
- E gostou? - perguntou ele, num tom carregado de malícia.
- Adorei! Jamais vou me esquecer daquele homem. Alto, forte, musculoso.
- Se continuar falando assim, a gente ficaremos com ciúmes desse cara.
Denise riu e fez charme. Estava gostando desse joguinho de sedução.
- Não fique com ciúmes. Primeiro porque faz anos que eu me relacionei com ele e segundo, você é muito, mas muito mais interessante que ele.
Jofre riu e piscou.
- Assim está deixando eu amarradão em você.
- Logo de cara? Você é tão rápido assim?
- Somente com mulher que desperta em mim o desejo. A gente se interessamos por você desde o momento que a gente te vimos.
- Estava na fila? - ela nem mais ligava para os erros de concordância. A língua pátria saía esfolada da boca dele, mas Denise estava interessada em outros atributos do rapaz.
Jofre respondia de um jeito diferente. Era como se falasse de outra pessoa. Sempre usava a gente no lugar de eu e conjugava de forma errada na primeira pessoa do plural. Achava que era uma forma de impressionar as pessoas.
- Não. A gente viemos encontrar um amigo e pegar uma encomenda. Moro aqui faz anos e nunca pegamos o bondinho. Acho que vamos ter de esperar outra oportunidade. Meu carango está logo ali - apontou para um automóvel importado, último tipo.
Denise abriu novo sorriso.
- É meu dia de sorte! - disse para si enquanto o acompanhava até o veículo. Ela entrou e sentou-se. Jofre deu partida e ligou o ar condicionado. Denise soltou um gritinho de prazer e recostou-se no banco de couro.
- Ar condicionado! Que delícia!
- Vamos colocar no máximo, mina.
- Aonde vamos?
- Na Marina da Glória. Meu barco está ancorado lá.
- Nunca andei de barco ou de lancha aqui no Rio
- Se depender de mim vai andar sempre que quiser. E não é barco, é um iate, como esses das novela das oito.
Jofre falou e encostou propositalmente a mão na coxa dela. Denise sentiu um frêmito de prazer.
- Esse homem tem pegada do jeito que gosto. Mais pegada que Leandro até...
Letícia pediu para a empregada servir o almoço e em seguida caminhou até a saleta de TV.
- O almoço está servido.
- Agora? - indagou Ricardo.
- Você precisa se alimentar mocinho.
- Eu e papai estamos assistindo a outro episódio de CSI - Crime Sob Investigação.
- Depois continuam a assistir.
- Ah, mas agora é que o Grissom vai provar quem matou? Espere mais um pouquinho, vai.
- Nada de esperar. Afinal de contas, quem vai dar conta de tanta batata frita que a cozinheira fritou?
- Batata frita? Oba!
Leandro desligou o aparelho de DVD.
- Vamos almoçar filho. Depois voltamos e assistimos ao restante da temporada.
Ricardo levantou-se e foi caminhando com cuidado até a copa. Leandro levantou-se em seguida e acompanhou-o.
- Devíamos nos reunir mais vezes - sugeriu Leandro.
- Pena que os negócios tomem tanto o seu tempo - finalizou Letícia.
- Preciso estar em São Paulo. É imprescindível que os negócios sejam dirigidos de lá. Além do mais, a fábrica fica no interior daquele Estado. Seu pai, anos atrás, fez um acordo com o governador. Recebeu subsídios, abatimento nos impostos. Não consigo vislumbrar a troca da empresa de lugar.
- Nem cogito isso. São muitos empregados, mais de quinhentos. Há muitas famílias envolvidas.
- Muitas famílias e muitos interesses, até políticos. A Companhia se tornou a número um na fabricação de televisores de plasma e de LCD. Também somos imbatíveis na produção de monitores para computador. Estamos derrubando os chineses!
- Eu sei de tudo isso. Papai era homem de visão e transformou uma oficina de reparos de tubos de televisão numa grande empresa, admirada inclusive no exterior. Sei também que por conta dos impostos e outras burocracias é melhor que a administração fique em São Paulo, mas você se desgasta muito, viaja toda semana. Não acho justo.
- Não me faz mal algum. São Paulo fica aqui ao lado. Meia hora de avião e pronto. Eu não me desgasto.
- Todavia, Ricardinho sente muito a sua falta. Sabe, durante a semana, ele comenta que gostaria de tê-lo por perto para ajudá-lo nas lições do colégio. Outro dia queria que você estivesse aqui para assistir com ele o jogo do campeonato carioca. Pobrezinho, ficou sozinho na sala.
Leandro meneou a cabeça para os lados.
- Eu sinto muita falta dele. Talvez possamos arrumar uma alternativa.
- Qual seria?
- Assim que o inventário ficar pronto, você vai se tornar a acionista majoritária, certo?
- E daí?
- Deverá participar de reuniões importantes. A sua presença será exigida cada vez mais.
- Eu já pensei no assunto e decidi que vou deixa você a cargo disso.
- Não pode Letícia. A empresa é sua.
- E, de certa forma, é sua também. Você se esforça e se dedica para que a Companhia continue crescendo. Viaja o mundo todo atrás de novas tecnologias, procura dar boas condições de trabalho ao funcionários. Você é um executivo excepcional e merece representar-me no conselho. Confio em você.
Leandro sentiu leve calor no peito.
- Obrigado por confiar em mim. Mas eu tenho muitos afazeres. Uma pessoa de confiança poderia tomar seu lugar. Que tal a Mila?
- Ela não precisa. Tem muito dinheiro. Podemos pensar em nos mudar para São Paulo.
- Deixaria de viver na cidade que mais ama na vida? - perguntou ele, surpreso.
- Sim - Letícia encarou-o nos olhos. - Eu faria tudo para manter minha família unida por mais tempo.
- Creio não ser necessário. Eu vou estudar meu compromissos com carinho e prometo que vou ser um pai e marido menos ausente.
Leandro falou e pegou na mão dela. Letícia senti os pelos do braço eriçarem. Adorava sentir as mãos sempre quentes do marido. Estava louca de deseje, mas algo a impedia de ser mais carinhosa com Leandro. O que acontecia?
Ela sorriu e o acompanhou até a copa. Sentaram-se e Ricardo falou, enquanto devorava as batatas fritas
- Amo vocês. Adoro quando estamos os três juntos.
Letícia abaixou os olhos timidamente.
Leandro respondeu:
- Eu também gosto muito quando estamos juntos.
Continuaram a conversar até ouvirem a voz de Teresa, mãe de Letícia, vinda da outra sala. Leandro exalou longo suspiro de contrariedade. Não se dava bem com a sogra. Nem com a sogra, tampouco se dava com o falecido sogro. Não fosse Letícia ter engravidado o casamento não teria sido consumado. Emerson e Teresa nunca aprovaram Leandro como genro. Teresa queria que a filha se casasse com alguém da alta sociedade e não com um rapaz classe média. Ela e o marido nunca foram favoráveis ao namoro, porém, quando descobriram a gravidez da filha, ficaram consternados. Como toda família que se encontra presa aos ditames sociais e que dá ouvidos aos comentários maledicentes das pessoas, exigiram que sua única filha fosse parar no altar antes de a barriga crescer. Letícia tinha sido uma menina tímida e quieta, muito reservada, de poucos amigos. Para falar a verdade, amiga mesmo, só a Mila, desde a infância, quando se conheceram na segunda série do antigo primário. Eram como unha e esmalte e Mila fazia o papel de irmã mais velha e protetora, embora tivessem uma diferença de idade de pouco mais de um ano. Letícia tinha trinta anos e Mila estava com trinta e um anos. Quando garota, Letícia nunca fora chegada a namoro. Pensou até em se tornar freira, pois não gostava de sair, de paquerar, de se envolver com os meninos, fosse aos bailinhos da escola, fosse às festas das poucas amiguinhas. Adorava freqüentar a igreja e estava sempre se comungando. O prazer sempre fora algo difícil de ela alcançar. No dia em que viu Leandro pela primeira vez, apaixonou-se à primeira vista. Foi incontrolável, uma onda de calor que se apoderou de todo seu corpo. Jamais sentira algo igual antes na vida. Letícia deixou-se seduzir por Leandro e numa festa depois, de muitos goles de champanhe e uma dança de rosto colado ao som de George Michael, aconteceu à primeira intimidade entre ambos. Ela engravidou, eles casaram e logo depois do nascimento de Ricardinho ela fora perdendo o interesse por sexo. Cumpria o papel de esposa ao menos uma vez por semana. Desde a morte do pai, contudo, era com se ela tivesse perdido completamente o prazer em se relacionar com Leandro. Não se deitava mais com ele e mudara-se para outra suíte. Teresa entrou e espantou-se ao ver o genro a sentado.
- Meu Deus! Vai cair um raio sobre esta casa.
- Sobre esta casa, não! Aqui vive uma família feliz.
Ela deu de ombros e retrucou:
- Sei, sei. Você por aqui há esta hora?
- Qual o problema?
- Foi despedido?
- Engraçado. Muito engraçado.
- Para mim é engraçado. Se Letícia quisesse, poderia demiti-lo. Deixou a empresa às moscas?
- Não é bem assim. Há funcionários competente cuidando do seu patrimônio, Teresa.
- Você respira trabalho vinte e quatro horas por dia. Daí a minha estranheza.
- Para ver como sou bom profissional e bom pai.
- Bom pai, essa é boa. - Ela fez uma careta e beijou o neto: - Como vai querido? Sente-se melhor?
- Sim, vovó. Bem melhor. Isso foi coisa boba. Semana que vem tiro os pontos e estarei pronta para outra.
- Vire essa boca para lá, Ricardinho - tornou ela, voz ríspida. - Chega de dar trabalho para sua mãe. Olhe como ela está! Coitada. - Em seguida, abraçou a filha: - Meu bebê. Está pálida!
- Que nada, mamãe, estou bem.
- Precisa se alimentar melhor. Está muito magra. Viu a sua foto naquela revista de celebridades? Todas as minhas amigas comentaram que você está muito magra, Letícia. Pensam que está com anemia ou bulimia.
- Quanta bobagem, mãe. Sempre fui magra.
- Quero dar uma olhada no cardápio e ver o que você está mandando fazer. Nunca teve jeito para lidar com a casa e...
Leandro e Ricardo trocaram olhar significativo. Em seguida, levantaram-se. Leandro sugeriu:
- Vou pedir para Iara servir a sobremesa na saleta de TV.
- Depois conversamos vovó.
Os dois saíram e Teresa continuou:
- Você precisa aplicar um corretivo em seu marido.
- Por quê?
- Ele precisa ficar mais perto de você e de seu filho.
- Eu sei mamãe. Mas Leandro se esforça. Trabalha bastante.
- Sei o quanto trabalha. Pensa que sou tonta? Somos conhecidos na sociedade. Já ouvi comentários maledicentes sobre o comportamento de seu marido. Lá no clube falam que ele anda de caso com uma morena.
Letícia estremeceu. Não conseguia se relacionar intimamente com Leandro, mas era louca por ele. Amava-o de verdade. O fato de saber que ele pudesse estar supostamente envolvido com outra mulher deixava-a aflita e insegura. Ela espantou os pensamentos ruins que começavam a se formar na sua mente.
- Bobagens. Essas suas amigas levam uma vida fútil e adoram uma fofoca.
- Bom, onde há fumaça, há fogo. Fique de olho em seu marido.
- Podemos mudar de assunto?
- Está certo. Mês que vem teremos a reunião de conselho. Assim que o inventário ficar pronto...
- Não quero mesmo assumir o conselho.
- Imagine! Você é a herdeira legítima! Eu não tenho tino para os negócios. Nunca tive.
- Eu também não.
- Seu pai sempre disse que você seria a sucessora dele. É importante que alguém do mesmo sangue de continuidade aos negócios. É a única filha.
- Mas eu não gosto de nada disso. Vou deixar que Leandro tome conta de tudo. Ele é competente e ótimo profissional.
- Vai entregar a empresa de mão beijada para esse homem? E se ele conduzir mal os negócios? E se ele tentar nos enganar e tomar toda nossa fortuna? Conheço casos de conhecidas que, quando se deram conta, já era tarde demais e só ficaram com a roupa do corpo. Pobrezinhas. E ainda foram trocadas por meninas mal saídas das fraldas. Quanta falta de vergonha
- Leandro é um bom homem. É bom profissional trabalha com amor. Desde que assumiu os negócios quando papai morreu a Companhia só cresceu. Disso você não pode reclamar. As ações da Companhia dispararam na bolsa de valores. Nem a crise financeira as fizeram cair.
- Você tem razão. Não gosto do seu marido, ma ele é bom profissional. Ouço comentários ótimos em relação à sua postura profissional. Mas em relação sua conduta pessoal...
Letícia a cortou com delicadeza.
- Por favor, mamãe. Não quero falar sobre isso.
Teresa sabia o quanto a filha era apaixonada por Leandro. No entanto, estava desconfiada. Algumas amigas juravam ter visto Leandro com outra mulher, em gestos nada profissionais, num restaurante badalado de São Paulo. Ela sabia que ele devia estar aprontando. Mas deu de ombros. Para ela os homens eram todos iguais, Emerson também pulara a cerca, algumas vezes, quando eram casados. Desde que ela continuasse com uma vida confortável e luxuosa, não ligava para as escapadelas do marido. Cada comentário que ela escutava acerca das aventuras extraconjugais de Emerson, Teresa não tinha dúvidas: comprava uma jóia bem cara como forma de compensara traição. Fez uma coleção de jóias maravilhosas. Guardava-a num Banco, tamanha a quantidade e valor altíssimo. Letícia não era como ela. Nada esperta, acreditava. Achou melhor contemporizar.
- E vai ficar em casa o dia todo? Fazendo o quê?
- Qual o problema? Eu gosto da minha casa, de cuidar da educação do Ricardo. Mês que vem começarei um novo curso. História da arte.
- História da arte? Para quê?
- Para enriquecimento cultural. A Mila vai comigo.
- A Mila. Sempre a Mila. Não tem outra amiga?
- Qual o problema? Você implica com a Mila desde sempre.
- Acho que Mila coloca idéias de jerico na sua cabecinha.
- Não coloca.
- Ela é muito estranha. Não se casou até agora. Será que gosta mesmo de homem?
- Você não existe, mãe. Vou fazer de conta que não escutei esse comentário infeliz.
- Também falam dela no clube. Uma pessoa não pode ter um comportamento tão irrepreensível assim. Mila deve ter algum deslize de conduta.
- Não tem. É uma mulher rica, porém leva uma vida discreta, longe dos holofotes. O pai era ator de teatro e a mãe milionária. Ela nunca se deixou levar pele fama dos pais, por conta de ser filha de gente rica e famosa. É uma pessoa de um coração enorme. Uma das pessoas mais adoráveis que conheci na vida.
- Pode ser.
- É uma ótima amiga - Letícia emendou. - Como se fosse uma irmã.
Teresa deu de ombros e continuou, como se não tivesse escutado a filha:
- Não pode fazer ou pertencer a outro círculo de amizades? O pessoal do clube sente sua falta. Perguntam sempre de você. Dizem que vêem você mais nas fotos das revistas do que ao vivo e em cores.
- Não gosto de fuxicos. Suas amigas só falam mal dos outros, ou de quem tem mais dinheiro, quem viajou para não sei onde, quem traiu e foi traída... Não, mãe, nossos gostos são bem diferentes.
- Bem que se vê. Você não puxou a mim. É meio caipira. Não consigo imaginar porque as revista: sempre lhe chamam para dar palpites de etiqueta. Justo você! Temos tanto dinheiro e você se veste assim com tanta simplicidade.
- Não sou perua como você. Não gosto de anda cheia de jóias. É uma questão tão pessoal! Sou chamada para dar palpites porque sou discreta.
Teresa levantou-se e vasculhou o ambiente com olhar perscrutador, investigativo mesmo, bem ao seu estilo. Tirou e moveu objetos de lugar. Chamou uma das empregadas e mandou mudar um quadro para outra parede.
- Eu gosto do Portinari nesta parede - apontou Letícia.
- Mas fica feio. Não combina com a decoração de que tanto gosto.
- Trata-se da minha casa, mamãe.
- Se tivesse bom gosto, de fato, eu não daria palpites.
Letícia seguia impotente atrás da mãe. Teresa dava ordens, mudava objetos de lugar, pedia para colocar um quadro aqui, mudar outro e assim alterava toda a decoração dos ambientes, metendo-se em tudo. A filha não se atrevia a contrariá-la. Não adiantava tentar argumentar. Teresa não lhe dava ouvidos. Depois de redecorar a copa e a sala de estar, Teresa avistou um livro sobre o piano. Bisbilhoteira, foi aproximando o rosto na direção da capa, mas Letícia acelerou o passo e o pegou.
- O que é isso?
- Um livro, oras.
- Deixe-me ver.
- Coisa minha, mãe.
- Letícia...
Esse tom na voz de Teresa era desagradável. Letícia suspirou e, ainda com o livro por trás do corpo, falou de maneira delicada:
- Um romance.
- Que romance?
- Uma história de ontem.
- Nunca ouvi falar. É tradução de Sidney Sheldon ou de algum outro autor americano?
- Não. É um romance da escritora Mônica de Castro. É um livro muito bom e...
Teresa avançou sobre a filha e tomou o livro de suas mãos. Olhou para a capa e deu um gritinho de indignação.
- Um livro ditado por um espírito? Que maluquice é essa?
Letícia ia falar, mas Teresa fez um gesto intempestivo com a mão, censurando-a de abrir a boca. Em seguida, virou e leu a quarta capa do exemplar.
- Um romance espírita! Que horror!
- Não é um horror, mãe.
- Desde quando você lê esse tipo de bobagem?
- Não é bobagem. Faz bem para mim.
- Não importa o que me diga. Desde quando lê esse tipo de livro?
- Desde que papai morreu.
- O que tem esse livro a ver com a morte de seu pai? Acaso vai trazê-lo de volta?
- Não, claro que não. Mas a leitura tem confortado meu coração. Eu não consigo aceitar o fato de papai ter morrido e tudo ter acabado. É difícil aceitar a morte, tentar me conformar de que nunca mais vou encontrar aquela pessoa que tanto amei na vida.
- É duro, mas é a realidade. Nascemos, vivemos, morremos e ponto final.
- A Mila me deu de presente esse livro para que eu pudesse abrir meus olhos e minha mente e entendesse um pouco mais sobre os mistérios da vida. Eu jamais havia perdido algum ente querido antes. Quando nasci, meus avós já haviam morrido. Por essa razão, nunca havia me ligado nesses assuntos de morte, de espiritualidade.
- Só podia ter o dedo da Mila aí. Ela está enchendo a sua cabeça de caraminholas, isso sim.
- Este livro traz conforto à minha alma. Desde que comecei há ler alguns dias atrás, tenho me sentindo mais leve e dormido melhor.
- Quanta besteira!
- Não é besteira. É fato.
- Eu não quero vê-la mais lendo esse tipo de romance.
- Esse livro é meu, mamãe. Por favor. Dê-me aqui.
- Não, senhora. Este livro vai para o lixo. Esse tipo de leitura só nos faz mal. Faz-nos acreditar em algo fantasioso. Reencarnação é conversa para boi dormir.
Teresa afastou-se e tropeçou sobre algo. Desequilibrou-se e ouviu atrás de si:
- Você está em nossa casa. Exigimos respeito. Leandro falou e tirou o livro das mãos dela. Entregando-o à esposa.
- Depois que terminar, eu gostaria de dar uma lida. Sempre tive curiosidade em relação aos assuntos espirituais e já ouvi comentários bem positivos acerca dessa escritora. Sabia que ela é carioca como nós?
Letícia abriu franco sorriso. Adorou o marido ter tomado aquela atitude. Abraçou o livro com enorme carinho.
- Isso aqui tem me ajudado a compreender muita coisa. A Mila sempre quis conversar comigo sobre esses assuntos, mas eu não tinha o menor interesse. Depois que papai morreu bom, comecei a ler aos poucos e estou gostando muito, além de a história ser envolvente e dinâmica.
- Não vou permitir que essas bobagens cheguem aos ouvidos do meu neto - disparou Teresa.
- O que vai ou não chegar aos ouvidos do seu neto cabe a mim e à minha esposa decidirmos - respondeu Leandro de maneira firme. - Do nosso filho cuidamos nós. Agora, por favor, se não tem mais nenhum móvel ou quadro para mudar de lugar, favor se retirar. Você está tirando a paz desta casa, para variar.
Teresa sentiu uma raiva muito grande. Quase partiu para cima do genro. Mordiscou os lábios e escutou:
- Atrevido! Desgraçado! Quem esse homem pensa que é? Não pode nos desrespeitar.
Teresa simplesmente repetiu. Foi como se ela tivesse sido tomada por uma força maior, como se aqueles pensamentos, de fato, fossem dela própria.
- Atrevido! Desgraçado! Quem pensa que é?
Letícia e Leandro olharam-se com verdadeiro estupor.
- Mamãe! Que jeito mais grosseiro é esse de falar com Leandro? Como ousa?
Ela caiu em si e vociferou:
- Você está fazendo a cabeça de minha filha contra mim! Quer colocar lenha na fogueira e nos afastar. Você é mau.
Disse isso entre lágrimas, rodou nos calcanhares e saiu, batendo o salto. Letícia aproximou-se do marido e instintivamente o abraçou.
- Tudo bem?
- Tudo. Nunca vi sua mãe agir de maneira tão grosseira.
- Nem eu.
- Nem parecia ela.
- Ela ficou nervosa quando viu o romance espírita.
- Pode ser. Mas ela teve um comportamento para lá de estranho.
- Mamãe está nervosa. Tem amigos interesseiros não sai daquele clube. Tem uma vida muito infeliz.
- Porque quer. Poderia viajar o mundo, conhecer outros lugares, culturas, travar amizades interessantes ou arrumar um marido. Teresa ainda está em forma e mal passou dos cinqüenta anos.
- Também acho.
Leandro olhou para a capa do livro e perguntou, entre sorrisos:
- O livro está lhe fazendo bem?
- Oh, sim. Tenho me sentido menos triste. Pelo menos quando o leio sinto-me muito bem.
- Então, se lhe faz bem, continue lendo. Ela sorriu timidamente e ele sugeriu:
- Por que não liga para Mila e marcam uma ida ao shopping?
- Ricardo pode precisar de alguma coisa.
- Deixe disso. Vá se divertir. Eu não tenho mais nada de trabalho para fazer. Acabei de ligar para São Paulo, chequei meus e-mails e encerrei o expediente. Vou passar o fim de semana grudado no Ricardinho, conforme lhe prometi no hospital. Saia um pouco para espairecer.
- Tem razão. Eu vou sair. Mamãe me tirou do sério e preciso dar uma volta. Vou ligar para Mila.
- Faça isso.
- Obrigada.
- Não há de quê. Divirta-se.
Leandro falou e deu uma piscadela. Letícia sentiu um friozinho no estômago. Fazia tempo que o marido não se mostrava tão amável. Ela subiu, entrou no quarto e ligou para Mila. A amiga ficou de passar com o carro e pegá-la no condomínio dali a meia hora. Edgar recebeu alta do hospital e foi-lhe recomendado alguns dias de descanso. Embora não tivesse um histórico de suicídio na família, tampouco houvesse atentado contra a própria vida antes, mesmo assim o psiquiatra do hospital recomendou tratamento psicológico. Sugeriu um acompanhante terapêutico. O rapaz acabou na casa dos pais, sob protesto.
- Não quero ficar aqui. Tenho a minha própria casa.
- Não tens condições de ficares sozinho, por ora - ponderou a mãe. - Vais ficar conosco o fim de semana todo.
- Fim de semana?
- É. Pedi para a Dra. Vanda vir até aqui. Ela é excelente psicóloga.
- Não preciso de terapia. Não sou louco.
- Embora terapia não seja para loucos, o que fizeste foi insano.
- Eu sei. Precisa repetir isso quantas vezes?
- Quantas vezes for necessário para que acordes e despertes para a vida. Chega de sofreres - falou Maria José.
- É difícil. É duro sofrer por amor.
- Vês como precisas de tratamento psicológico? Ninguém morre por amor. Um sentimento tão lindo como esse não pode causar dor ou sofrimento. Ainda não sabes o que significa o amor.
- Sei, sim! - protestou Edgar.
Maria José sabia ser impossível continuar a conversa. Edgar andava irredutível, parecia estar com a idéia fixa na cabeça. Ela perguntou:
- Querias mesmo tirar a própria vida por conta daquela sirigaita?
- Você sempre a chamou de sirigaita. Desde a primeira vez que a viu.
- Eu reconheço uma sirigaita a distância.
- Não fale mal de Denise, mamãe. Ela estava nervosa.
- Nervosa? - bradou Maria José. - Aquela sirigaita é da pior espécie. Nunca simpatizei com ela.
- Fica difícil conversarmos. Denise é boa pessoa. Ela vai esfriar a cabeça e vamos voltar a nos entender.
Maria José ia falar, mas Fernando fez gesto negativo com a cabeça. Acomodaram o rapaz em seu antigo dormitório.
- Descanse meu filho - tornou o pai. - Tome esse remedinho. É para acalmar seus ânimos. Mais tarde voltamos a conversar.
Edgar assentiu com a cabeça e tomou o medicamento. Em instantes, adormeceu. Fernando tranqüilizou a esposa:
- O médico solicitou dar-lhe esse sossega-leão e que, em hipótese alguma, o deixemos sozinho. Não sabemos se ele voltará a cometer desatinos.
- Estou indignada. Meu filho, um homem tão bom e correto, tão amável, deixar-se cair em tristeza por essa mulher. Eu fico irritada com essa falta de amor-próprio de nosso miúdo.
- Edgar é humano, feito de carne e osso. Tem sentimentos. Sempre foi apaixonado por Denise.
- Isso não é amor, é praga.
- Talvez agora ele comece a refletir sobre sua vida. Um acontecimento desses sempre faz a pessoa parar para pensar na própria vida.
- Nosso filho ainda não encontrou o amor.
A empregada apareceu no corredor e avisou:
- O enfermeiro está lá embaixo.
- Pode mandar subir.
Em poucos instantes um rapaz alto e forte, vestido de branco, subiu as escadas, dobrou o corredor e cumprimentou Fernando e Maria José. Em seguida, eles o acompanharam ao quarto. Edgar dormia placidamente.
- Deixem comigo. Estou acostumado com esses casos. Vou cuidar do seu filho.
- Agradecida.
Eles desceram as escadas e foram para a biblioteca.
- Não me conformo.
- Com o quê?
- Meu filho ter de ser vigiado vinte e quatro horas. Pode?
- É preciso - respondeu Fernando.
- Será mesmo?
- É duro entendermos essa sandice, mas Edgar tentou matar-se. Não pode ficar sozinho e precisa de acompanhamento terapêutico.
- Vou ligar para a Dra. Vanda.
- Ela não virá logo mais à noite?
- Quero que venha logo. - Maria José consultou o relógio de pulso. - Não a acho muito convencional, mas parece que resolve os casos. Lembras da filha do reitor da universidade?
- E como esquecer? Foi abandonada pelo noivo uma semana antes do casamento.
- Um escândalo na época.
- Lembro-me bem. Foi um escândalo que tomou conta das revistas de mexericos por muito tempo.
- Pois bem. A menina ficou num estado de dó, nem comia tamanha tristeza. Depois de algumas sessões com a doutora transformou-se em outra mulher. Hoje está casada, tem dois filhos lindos e vive muito bem ao lado do atual marido. É uma mulher feliz.
- Tem razão, quanto mais cedo, melhor. Ligue sim. Nosso menino precisa de nossos cuidados.
Maria José assentiu com a cabeça. Pegou o cartão na bolsa e discou para o consultório da psicóloga. No fim da tarde do mesmo dia, Denise estava em outra sintonia. Sentada numa cadeira, fechou os olhos, respirou o ar puro e abriu os braços para a imensidão do mar azul.
- Isso aqui é o paraíso.
- É uma delícia.
- Nunca me senti tão leve, tão bem!
- O pôr do sol é dez.
- É mesmo?
- Hum, hum. Você vai adorar.
Jofre sorriu e entregou-lhe uma taça de champanhe. Ela bebericou e coçou o nariz.
- As bolhas da champanhe me fazem cócegas.
- Você é um espetáculo de mulher.
- Obrigada pelo elogio tão direto.
- É casada, certo?
- Era. Eu me separei recentemente - mentiu. - Faz alguns meses. Em breve vou assinar os papéis da separação e serei uma mulher livre.
- Já é livre.
- Pelos olhos da lei ainda sou casada. Mas não quero mais vínculos com meu ex-marido.
- Tem filhos?
- Não tivemos.
- Gosta de crianças?
- Gosto de ver, bem de longe.
Jofre riu e disse num tom irônico:
- Também não gosto muito de crianças. Elas são um pé no saco.
- Combinamos em alguma coisa.
- Faz o quê da vida?
- Sou executiva da Dommênyca.
Jofre soltou ligeiro assobio.
- Uau! É a loja de eletrodomésticos mais famosa do Brasil.
- É sim. Crescemos a olhos vistos. Nosso concorrente mais próximo está a anos luz de distância. Somos os melhores. Eu me orgulho do meu trabalho.
- Bem que a gente achávamos que te conhecia de algum lugar. Você já deu entrevistas na televisão, não?
- Sim. Às vezes apareço no noticiário noturno de alguma emissora. Agora com essa crise econômica sempre sou requisitada para entrevistas.
- Essa crise vai passar?
- Como tudo na vida.
- Uma mulher como você precisa de homem por quê? Aliás, as mulheres estão ficando cada vez me nos dependentes de nós.
Denise sorriu.
- Nem tanto. Ainda precisamos muito dos homens.
- Será?
- Eu pelo menos preciso de um.
- Isso me deixa animado.
Trocaram olhares significativos. Denise bebericou mais do champanhe e procurou mudar o rumo da conversa. Estava interessadíssima em Jofre, mas queria se fazer de desinteressada e difícil.
- O que é essa medalhinha no seu peito?
Jofre pegou a medalhinha e a beijou.
- É Santo Antônio, padroeiro da minha cidade. Quer dizer, da cidade que eu escolhi e me acolheu como filho.
- Qual é?
- Duque de Caxias.
- Não conheço pessoalmente, mas já ouvi falar. É um município situado na Baixada Fluminense. Sabia que a cidade deve seu nome ao patrono do Exército Brasileiro, Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, nascido naquela região?
- A gente não sabíamos.
- Fica longe daqui, não?
- É só pegar a linha Vermelha e num pulo chegamos. Meus amigo tudo moram lá. Mudei pra cá fazem alguns anos.
- E o que você faz?
- Trabalho com importação e expo... Com comércio de carnes.
- Tem escritório próprio?
- Sim. Meu escritório fica em Duque de Caxias. Como tenho muitos dos negócios espalhados pela cidade, tem vez que fico em São Conrado. A gente temos uma bela cobertura com piscina.
Os olhos de Denise brilharam de cobiça.
- Cobertura com piscina?
- Com piscina e cascata! Mandei instalar dois peixes dourados que cospem água. Lindos!
Denise tentou imaginar os tais peixes. Logo notou que Jofre podia ser rico, mas tinha um gosto para lá de duvidoso. Era só notar o colar pesado ao redor do pescoço, a pulseira de ouro no pulso, o relógio excessivamente chamativo, além dos tropeços no idioma... Mas e daí? Ele era um charme e ela estava gostando de sua companhia.
- É casado?
Jofre deu uma risadinha bem sapeca.
- Tive uns rolo, se é que me entende, mina! Tenho dois filhos espalhados por aí. Pago pensão pras mulheres.
- Não tem contato com eles?
- Não. Já disse que acho criança um pé no saco Aconteceu e eles nasceram. Elas acharam que iam me prender por conta da barriga. Qual nada. A gente não somos de ficar preso em mulher. Quer dizer, se quando a mulher interessa.
Ele disse e piscou para Denise. Ela estava leve por conta da taça de bebida. Sorriu e não disse nada. Jofre podia ser brega e vestir-se de maneira cafona e espalhafatosa. Mas era um bonito mulato na casa dos trinta, corpo atlético, tórax bem desenvolvido e naquela hora da descida do sol, seus olhos pareciam duas pedras preciosas que faiscavam de desejo. Denise levantou-se e desequilibrou-se. Ele foi rápido, aproximou-se e a tomou nos braços. Foi inevitável. Beijou-a com sofreguidão, demoradamente. Denise percebeu-se tonta, tamanho prazer que sentira.
- Você beija muito bem. Muito bem.
- Não viu nada. Fazemos outras coisas bem melhores do que beijar.
- Mesmo? - a indagou de maneira provocativa.
- Vem - convidou ele, fazendo sinal com os olhos na direção do quarto que ficava na parte de baixo da embarcação de luxo.
Denise desceu com Jofre e amaram-se por horas a fio. Até que seus corpos cansados, suados e satisfeitos pelo ato sexual sentiram-se fatigados. Dormiram a sono solto e só acordaram quando a noite ia alta. Jofre voltou com o iate até a Marina da Glória e deixou Denise em terra firme.
- Lamento não poder acompanhá-la. Ainda temos negócios a tratar.
- Adoraria vê-lo de novo.
- Quando volta pro Rio?
- Não sei ao certo, trabalho muito.
- E o outro fim de semana?
- Não me recordo de algum compromisso na semana que vem. Em todo caso vou checar minha agenda e...
Ele a cortou com delicadeza. Apanhou a bolsa dela, pegou o celular e apertou alguns números.
- Aí está marcado o meu número particular. Só pra pessoas especiais. Liga pra gente a hora que quiser.
Denise adorou a atitude. Sentiu um calorão apoderar-se do seu corpo e um desejo incontrolável por Jofre. Ela abanou o rosto.
- Adorei o dia. Pensei que fosse ficar ali, no meio daquela gente idiota, e acabei tendo um dia para lá de especial. Você foi meu salvador da pátria.
- A gente podemos ser tudo o que você quiser.
- Além de tudo, é um sedutor nato.
- Você merece tudo de bom que podemos ofertar.
- Assim fico envaidecida.
- É para ficar. Estamos ao seu dispor.
Jofre a beijou novamente com volúpia. Denise sentiu as pernas tremerem e nova onda de desejo a dominou. Precisava se recompor. Afastou-se com delicadeza e despediram-se. Ele voltou para seus negócios e ela tomou um táxi até o hotel. Pegou a chave na recepção e subiu. Entrou no quarto, despiu-se e se jogou na cama grande e confortável.
- Estou tão feliz!
Denise virava-se para um lado e para outro da cama. Abraçou-se a um travesseiro macio.
- Não consigo imaginar tudo o que me aconteceu desde ontem. Briguei com Edgar, deixei-o de uma vez por todas. Pensei que fosse ter um dia adorável ao lado do Leandro e acabei conhecendo Jofre. Como a vida é divertida!
Em instantes, recapitulou tudo, desde a saída de casa na noite anterior, passando pela expectativa de um dia feliz ao lado de Leandro e o término da noite completamente saciada nos braços de Jofre.
- Esse homem é até melhor que Leandro. Deve valer mais a pena investir nele. Ou nos dois. Vou levando as histórias paralelamente. O que importa que eu me dê bem e que nunca seja passada par trás. O resto que se lixe!
Ela gargalhou, levantou-se e foi tomar uma gostosa chuveirada. Horas antes, naquela tarde, Letícia arrumara-se com capricho. Colocara um vestido florido, colar de pedras, sandálias, fizera um rabo de cavalo. Estava animada, mas de repente sentiu uma onda de tristeza. Foi rápido demais, assim, num instante. Ela começou a bocejar, sentiu um pouco de tontura e jogou-se numa poltrona perto da penteadeira.
- Que vida triste - disse num gemido enquanto se abanava com as mãos.
Ela não percebeu, mas um espírito aproximou-se e murmurou em seus ouvidos.
- Sua vida é triste por conta desse canalha. Leandro não a merece.
Letícia sentiu ligeiro desconforto. Era como se aquela voz viesse de sua própria cabeça. Argumentou:
- Leandro é bom pai.
- Mas não é bom marido.
- Ele é bom marido. Se eu sentisse um pouco mais de prazer, talvez pudéssemos voltar a ser um casal apaixonado e feliz.
- Nunca! Jamais! - esbravejou a voz.
O suor começou a escorrer pela sua testa.
Iara bateu na porta. Letícia mandou-a entrar. Ela viu a patroa sentada na poltrona, branca como cera. Preocupou-se.
- O que foi Letícia? Está passando mal?
- Nada de mais, Iara. Um leve desconforto.
- Mesmo?
- Sim. Não estou acostumada com ventilador. Você ligou para o técnico vir consertar o ar condicionado?
- Ele virá logo mais à tarde. Ligou agora pouco para confirmar o horário.
- Ai que bom. Ao menos vou dormir bem esta noite.
- Quer um copo de água? Um refresco?
- Não. Vou sair.
- Subi para avisar que Mila a está aguardando no carro.
- Ótimo.
- Peço para ela subir?
- Não será necessário, Iara. Estou de saída.
Ela falou, levantou-se, apanhou a bolsa grande sobre uma cômoda e desceu. Despediu-se do filho e do marido.
- Você está pálida e com suor escorrendo pela testa - observou Leandro.
- É o calor.
- Quer um copo com água, mamãe?
- Não, meu querido. Sinto pequeno desconforto. Coisas do calor. Como pode? Eu nasci no Rio e nunca me habituei com o calor.
- Tem certeza? - perguntou Leandro.
- Tomei um banho rápido e me arrumei depressa. Logo passa.
Leandro beijou-a na face e continuou ao lado do filho, assistindo aos seriados.
Ela respirou fundo, colocou os imensos óculos escuros e saiu. Entrou no carro de Mila.
- Amiga, que cara é essa?
- Que cara?
- Eu a conheço desde que nascemos.
- Dá para perceber?
- Mesmo atrás desses óculos gigantescos nota-se que está pálida.
- Não sei.
- Vamos, diga-me, o que foi?
- Um torpor, uma sensação desagradável. Acho que é o calor.
- Calor?
- Hum. Hum. Está fazendo mais de 40 graus! A sensação térmica chega a mais de 50.
- E por acaso estava na Sibéria? A vida inteira sentiu esse calor.
- O ar condicionado do quarto está quebrado, Providenciei o conserto e só tenho usado ventilador de teto.
- Calor nada! Você não está com boa aparência.
- Acho que exagerei no almoço. Estou me sentindo meio melancólica.
- Isso está me cheirando à interferência espiritual.
- Tudo para você é interferência espiritual.
- É o que estou sentindo.
- Que coisa, Mila.
- Tirando a preocupação com o Ricardinho e o hospital, como tem sido o seu dia?
- Normal. Senti-me mais segura quando o Leandro apareceu. Tudo correu bem, eles estão na sala assistindo a DVDs de seriados americanos, que Ricardo adora.
- Que mais?
- Minha mãe esteve a pouco em casa, tivemos uma discussão boba por conta do livro que você me deu, mas nada que pudesse me abalar. A bem da verdade, eu até estava me sentindo muito bem.
- Nenhuma indisposição, nada?
- Nada.
- Pois vejamos: você estava bem, não tinha nada, e de repente começou a suar frio, passar mal, ter repentes de humor...
- Talvez tenha sido a presença de minha mãe. Ela foi muito estúpida com o Leandro. Nunca a vi tratá-lo tão mal.
- Está acostumada com esse tratamento entre eles desde sempre.
- Você não estava lá para ver.
- Teresa nunca engoliu seu casamento. Tinha planos para você se casar com aquele rapaz, herdeiro da siderúrgica.
- Minha mãe queria que me casasse com qualquer homem, exceto Leandro.
- E o que mais?
- Hoje notei que ela falou com ódio. Muito ódio. Minha mãe é uma pessoa difícil, mas nunca a vi tão transtornada.
- Já lhe disse que sinto algum espírito rondando a sua casa.
- Será?
- Tenho estudado os fenômenos mediúnicos com seriedade e afinco. Olho para a sua casa e sinto uma coisa esquisita.
- Mesmo?
- Afirmativo. Agora mesmo, esperando você, notei que havia uma sombra próxima ao jardim - apontou para o local.
- Não gosto nem de ouvir falar.
- É para o seu bem. Ao menos você toma consciência dessa realidade, estuda, aprende.
- Para quê? - indagou Letícia, sem ânimo.
- Para se defender e afastar esse espírito com essas energias nocivas que estão perturbando você e seus familiares.
- Somos pessoas de bem.
- E qual o problema?
- Por que um espírito iria nos atrapalhar?
- Porque estamos rodeados de espíritos. Os nossos olhos não os vêem, mas isso não quer dizer que eles não existam. Se não os vemos, precisamos saber como lidar com esses seres, principalmente os negativos, que carregam ódio no coração, entende?
- Entendo. É que me dá medo.
- Se propuser a ler e entender do assunto aposto que o medo vai se dissipar.
Letícia abraçou a amiga.
- Oh, Mila. Confio tanto em você! Se me diz que está sentindo um espírito nos rondando, é porque deve ser verdade.
- Pois sim, minha querida.
Mila deu partida e saíram do condomínio. Logo ganharam a Avenida das Américas. Mila dirigia com atenção.
- O que mais quer saber? Pode perguntar.
- O que mais percebe?
- Posso ser sincera? De verdade?
- Claro que pode! Nunca houve segredos entre nós duas.
- A minha intuição diz que seu pai está por perto.
Letícia remexeu-se no assento e tirou os óculos escuros.
- Não fale nem por brincadeira uma coisa dessas!
- Acho que o Dr. Emerson está por aqui. Em espírito, claro.
- Não é possível. Eu cremei o corpo do meu pai. Ajudei a fechar o caixão. Peguei suas cinzas e as espalhei no mar. Não pode ser.
- Você cremou o corpo físico do seu pai, o corpo de carne. O espírito continua mais vivo do que nunca.
- Não me disse certa vez que quem morre vai para outras dimensões?
- Por certo.
- Meu pai com certeza não se encontra mais entre nós.
- Depende.
- Como depende? A pessoa morre e vai para um mundo de luz ou para o Umbral, certo? Você é quem disse.
- As coisas não são tão fáceis assim. Estudar sobre os mistérios da vida e mais, sobre o que ocorre depois da morte do corpo físico é assunto complexo que exige estudo, muito estudo. Tem espíritos que depois da morte do corpo físico ficam aqui na Terra. Geralmente, eles não conseguem fazer a passagem para o lado de lá, pois estão presos à família, têm assuntos pendentes, estão aflitos, querem dizer um adeus, dar uma comunicação ou mesmo não têm consciência de que estão mortos.
- Meu pai deve estar num bom lugar. Num plano superior, como se diz. Era ótimo pai.
- E um péssimo sogro. Lembra-se das brigas homéricas que ele tinha com Leandro?
- Eles nunca se bicaram. Mas isso não é motivo para afirmar que o espírito de papai esteja por perto, e ainda por cima nos influenciando de maneira negativa. Se estivesse, com certeza estaria me ajudando e não me atrapalhando. Eu e papai éramos muito ligados.
- É relativo. Emerson pode estar enxergando coisas que você não vê.
- Como assim?
- Os espíritos têm uma capacidade formidável de perceber nossos pensamentos, por exemplo. Além disso, quando estão vagando pela Terra, geralmente se encontram em desequilíbrio emocional, o que os torna mais amargos e perturbados. Eles ficam tomados por uma energia densa, pesada. Quem é sensível percebe logo a presença deles. É algo forte e perturbador.
- Tudo é muito novo para mim. Nunca quis me interessar por religião ou espiritualidade. Fui batizada na igreja católica, depois fiz primeira comunhão. Aos poucos fui me afastando da missa, dos eventos ligados à igreja. Deixei de freqüentar a missa de domingo e, às vezes, rezo em casa.
- A oração é importante, não importa se temos ou não algum tipo de religiosidade. Mas só a oração não basta para que fiquemos livres dessas influências negativas.
- O que sugere? - indagou Letícia bastante interessada.
- Nunca é tarde para começar a estudar e tentar entender essa fantástica relação entre os mundos.
- Desde que me deu aquele romance espírita, tenho pensado na possibilidade concreta da continuação da vida, tenho repensado nas desigualdades sociais...
Letícia falou e Mila desacelerou o carro. O sinal num dos cruzamentos da Avenida das Américas ficou vermelho. Pararam próximas à faixa de pedestres e logo duas crianças aproximaram-se com balas e chicletes nas mãozinhas sujas e maltratadas. As duas dentro do carro fizeram sinal negativo com a cabeça e elas se afastaram, indo em direção a outro veiculo tentar vender os produtos.
- É disso que falo amiga - Mila apontou para as crianças. - Por que elas estão aí, largadas nas ruas sem abrigo, sem direito à educação e sem um teto decente para morar? Por que não estão na escola recebendo ensino, aprendendo a ser cidadãs, recebendo amor e carinho de seus pais ou responsáveis?
- Fruto da desigualdade social.
- Ao menos acredita em Deus?
- Por certo! Por mais que não seja tão religiosa como antes, acredito numa força que rege nosso mundo.
- Se Deus, ou essa força, rege a vida e nos trata a todos de maneira igual, por que essas crianças estão levando uma vida dura e triste e seu filho está em casa, no aconchego do lar, ao lado do pai, rodeado de amor e carinho e com toda sorte de conforto e cuidados? Ricardinho nasceu em um lar abençoado, tem o amor dos pais e essas crianças estão aí, passando fome, desprotegidas, talvez órfãs ou convivendo com pais violentos. Por quê?
Letícia sentiu um aperto no peito. Não sabia o que responder. Abriu a janela do carro e fez sinal com uma das mãos para uma das menininhas. A pequena se aproximou e abriu largo sorriso.
- Quer um saquinho de bala, tia?
- Claro. Quanto custa?
- Um real o pacote.
- Quantos anos tem?
- Nove.
- Não deveria estar na escola?
A garota sorriu com ironia.
- Eu não posso ter esse luxo.
- Por que não?
- Tenho de trabalhar.
- Sua mãe não a colocou na escola?
- Não tenho mãe nem pai. Eu e meus três irmãos somos criados pela minha avó, que é doente. Tenho de ajudar a comprar comida e remédio. Vovó disse que Deus não paga as contas nem manda comida ou remédio lá do céu. Letícia sentiu-se muito triste. Se Deus tratava a todos da mesma maneira, por que deixaria aquela criancinha tão indefesa largada no mundo, correndo o risco de passar fome, frio ou sofrer abusos? Começou a entender um pouquinho do que Mila estava lhe falando. Abriu a bolsa e entregou para a pequenina uma nota de dez reais. Os olhos da menina brilharam emocionados.
- Tudo isso para mim?
- É.
- Vai levar toda a caixa de balas?
- Vou sim - Letícia pegou a caixa com as jujubas.
A menina saiu correndo, feliz da vida, mostrando às outras crianças a nota de dinheiro. O sinal ficou verde e Mila deu partida.
- Tudo bem, você vai me dizer que o governo não ajuda que as crianças merecem cuidados, atenção especial etc. No entanto, vamos olhar a situação com olhos mais espirituais e racionais, desprovidos de emoção.
- Essa cena de há pouco me cortou o coração.
- Se nascemos e morremos uma única vez, pois que essa menininha tem de viver tão pobremente e o seu filho tem direito a tudo?
- Seria uma grande injustiça viver uma vez só.
- Percebe? Já que somos iguais perante a vida, todos deveríamos nascer viver e morrer da mesma forma.
- Isso não acontece. Eu mesma não me conforme com essas crianças abandonadas.
- Claro que podemos fazer alguma coisa para ajudá-las a ter uma vida melhor. Podemos criar organizações, ajudar na educação, fazer várias ações humanitárias que possam dar uma possibilidade de vida mais positiva e um futuro prazeroso para essas crianças. Mas o que quero dizer é que elas não estão vendendo balas num sinal fechado somente por uma questão de desigualdade social. Isso existe, mas o problema é muito mais complexo e profundo.
- Já pensei nesse assunto algumas vezes. Tenho conhecidas que mal se relacionam com seus pais. Eu, por outro lado, perdi o meu que tanto amava.
- Acontece com todos nós. Parece que somos todos iguais, mas na verdade não somos. Somos semelhantes, contudo jamais seremos iguais.
- Isso é fato.
- Nossa vida pode ser parecida, Letícia, entretanto, é carregada de significados muito particulares e únicos. A minha vida, as minhas experiências, minhas alegrias e dores são muito importantes para mim, e talvez não sejam importantes para você, contudo elas vão moldar o meu espírito, de acordo com a trajetória de minha vida aqui no planeta.
- Amiga você é tão mais esclarecida do que eu!
- Eu sempre me interessei pelo assunto.
- Sinto até vergonha de ser tão tosca na questão espiritual.
- Eu comecei a pensar no assunto desde pequena. Não me conformava de ter perdido meus pais tão cedo.
- Também pudera. Mal havia nascido quando seus pais morreram naquele acidente horrível.
- Eu era um bebê, tinha acabado de nascer e meu pai precisava fazer uma apresentação, acho que recebeu convite para uma peça. Minha mãe deixou-me com minha tia. Era para ser assim. Como cresci sem conhecê-los, parece que tudo foi mais fácil. Talvez se os tivesse perdido na adolescência, ou mesmo na fase adulta, os sentimentos tivessem sido diferentes.
- Como aconteceu comigo. Dói muito a perda de meu pai.
- E, com você foi diferente. No fim das contas cresci rodeada de muito carinho. Meus tios foram ótimos e fizeram o possível para eu não sentir tanto a falta dos meus pais.
- Houve momentos em minha vida que eu achei muito injusto você ter ficado órfã.
- Não enxergo como injustiça. Tenho plena convicção de que meu espírito quis passar por essa experiência a fim de valorizar a família. Hoje não damos mais valor aos pais, aos entes queridos, aos laços de sangue que nos unem. Não temos mais respeito por aqueles que nos deram a vida, que nos deram a chance de reencarnar e amadurecer o nosso espírito por meio de uma série de ricas experiências que se a vida na Terra é capaz de nos oferecer.
- Nunca sentiu falta dos seus pais?
- Sim. Muitas vezes, mas nunca me revoltei. Quando titia me deu de presente O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, fiquei maravilhada. Mais de mil perguntas e respostas esclareceram muitas das dúvidas que eu carregava em meu íntimo.
- Leu o livro e tudo se resolveu? Todas suas dúvidas foram dissipadas? Acreditou sem ter provas?
- Aí é que você se engana. Na adolescência, minha tia me deu de presente livros que comprovam cientificamente a reencarnação.
- Só encontrou respostas nos livros? Qualquer um pode escrever o que quiser e publicar. Isso não me convence.
- Já mocinha, eu reencontrei meu pai.
- Como assim? Ele morreu e...
Mila a cortou com delicadeza. Sorriu:
- Eu tive um sonho, muito embora tenha sido tão vivo aquele encontro, que depois de muito estudar tive a certeza de que saí do corpo físico para me encontrar com ele. Faz um bom tempo que aconteceu, mas parece que foi ontem.
- Nunca me contou isso.
- Você nunca perguntou, oras.
- Não queria tocar no assunto e vê-la triste. Sabe que é como uma irmã para mim - disse Letícia, apertando delicadamente a mão da amiga.
- Também gosto muito de você, como uma irmã.
- Esse assunto não me entristece.
- Não? - perguntou Mila surpresa.
- De maneira alguma. - Letícia interessou-se. - Como foi esse sonho?
Mila sorriu ao recordar-se da primeira vez que sonhara com o pai.
- Meu pai estava muito bem no sonho. Explicou-me que seu espírito decidira desencarnar naquele acidente. Afirmou que nós três - eu, ele e minha mãe havíamos traçado esta vida antes de nascermos, prevendo esses acontecimentos.
- Voltou a reencontrá-lo, quer dizer, a sonhar outras vezes?
- Faz muito tempo que não sonho com ele. Papai tem sua própria vida, vive numa outra dimensão.
- Se eu pudesse acreditar nisso!
- É só abrir sua mente e seu coração para as verdades da vida. Quando acreditamos que a vida continua após a morte, parece que nosso coraçãozinho fica menos apertado. A saudade é grande, e nunca vai nos abandonar, mas não há desespero ou revolta. Temos plena convicção de que vamos reencontrar nossos entes queridos quando a nossa jornada terminar neste mundo. Tudo é uma questão de tempo.
- Acha mesmo que estou sofrendo interferência espiritual?
Mila assentiu com a cabeça.
- Seu pai está rondando sua casa... Não tenho dúvidas.
- O que faço?
- Mantenha bons pensamentos. Estude mais a respeito do mundo dos espíritos. Precisa aprender lidar com o invisível.
- Não tenho livros. Só aquele romance que você me deu.
- Vou comprar O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns para você.
- Não precisa, não. Eu os compro.
- Quero lhe dar de presente. Estou com uma forte intuição de que esses livros vão ajudá-la bastante compreender tudo o que diz respeito à espiritualidade você vai aprender a lidar com essas energias.
- Obrigada, Mila. Vou ler com carinho e enchê-la de perguntas. Prepare-se.
A amiga sorriu.
- No que puder esclarecer, será um prazer ajudá-la. Aproveite e converse com Leandro a respeito. Ele me parece uma pessoa de mente aberta par esses assuntos.
- É sim. Disse-me que quer ler Uma história de ontem tão logo eu o termine.
- Parece que estão se reaproximando. Estou certa?
Letícia suspirou contente.
- Precisamos conversar sobre isso. Tenho sentido enorme desejo de me entregar a ele.
- Pois se entregue. É seu marido.
- Eu quero, mas depois não quero. Parece que há duas Letícias.
- Conversou com seu analista?
- Sim.
- Temos a tarde toda para conversar. Chegamos.
Mila entrou no estacionamento do shopping, colocou o carro numa vaga e logo estavam entretidas entre vitrines e sacolas de compras. Mais um episódio do seriado CSI chegou ao fim e Ricardinho sentiu fome. Sugeriu ao pai:
- Vamos fazer um lanche?
- Mesmo? Tem fome?
- Bastante!
- Isso é bom sinal.
- Acho que foram os pontos no joelho que abriram meu apetite.
Leandro passou delicadamente as mãos pelos cabelos do filho.
- Vou pedir para a Iara fazer um lanche para nós,
- Não, pai. Vamos os dois até a cozinha. Aprendi a fazer um sanduíche muito maneiro. Vem comigo.
Ricardo foi puxando o pai até a cozinha. No caminho, Leandro quis ir ao banheiro.
- Vai à frente e num minuto estarei na cozinha.
- Está certo, pai.
Leandro entrou no lavabo e Ricardo foi até a cozinha. Iara estava na área de serviço. O menino abriu a geladeira, pegou alguns frios e o pote de maionese. Colocou-os sobre a bancada próxima da pia e, ao virar-se, viu nitidamente uma forma humana, embora meio esfumaçada, quase transparente, encostada na porta do armário. A forma humana estava constrangida. Não queria ser vista. Ricardo sorriu e cumprimentou:
- Oi, vovô. Como está?
Emerson sentiu um nó na garganta. Era a primeira vez que o menino lhe dirigia a palavra.
- Você pode me ver?
- Posso.
- Já me viu aqui na sua casa antes?
- Já.
- Por que nunca falou comigo?
- Porque achava que era coisa da minha imaginação. Na semana passada vi um filme na televisão sobre espíritos chamado O Sexto Sentido e perdi o medo de falar com você. Percebi que sou igual ao garoto do filme. Como tem passado? - perguntou Ricardinho, com tremenda naturalidade.
- Estou bem.
- Eu soube no filme que aqueles que morreram e continuam aqui no planeta têm coisas mal resolvidas, assuntos pendentes. É isso?
O avô ia responder, apesar de estar atônito, contudo, Leandro entrou na cozinha.
- Falando sozinho, filho?
- Não, pai.
Leandro olhou ao redor e não viu ninguém.
- A Iara não está na cozinha.
- Mas meu avô está. Quer dizer, estava. Sumiu.
- O quê?
- É. O vovô estava aqui. Começamos a conversar, mas você apareceu e ele sumiu.
- Deve estar brincando. O seu avô morreu. Faz um tempinho.
- Eu sei né, pai? Fui ao velório e ao enterro. Eu me lembro. Mas o espírito dele está vivo.
Leandro assustou-se com a desenvoltura do filho. Ricardo falava com naturalidade desconcertante. Pego de surpresa, indagou:
- O que ele lhe disse?
- A conversa estava engrenando quando você chegou. Agora só vai aparecer de novo quando ele quiser.
- Vou tirar você desta casa, seu cretino - sussurrou o espírito.
Leandro sentiu os pelos dos braços eriçarem e um arrepio na espinha, além de uma sensação pesada no estômago. Ele não escutou a frase, mas sentiu a presença de Emerson na cozinha.
- O vovô disse alguma coisa no seu ouvido e partiu. O que foi que ele disse?
- Não sei, não escutei nada. Leandro tentou disfarçar o incômodo.
- Eu não queria que você assistisse àquele filme na televisão. Viu no que deu? Ficou impressionado.
- Fiquei nada. O filme me ajudou a entender algumas coisas.
- Que coisas, Ricardo?
- Depois vamos conversar mais sobre o assunto.
O menino falou, pegou a bandeja com os sanduíches e foi para a sala. Leandro estava boquiaberto com a naturalidade com que o filho entabulara aquele conversação surreal. Quando Letícia chegasse mais à noite, ele contaria sobre essa estranha conversa do filho e a sensação ruim que se apoderara de seu corpo. Leandro espantou os pensamentos desagradáveis com as mãos Acompanhou Ricardo até a sala. A noite chegou. Letícia e Mila entraram na casa carregadas de sacolas de compras. Leandro e Ricardo brincavam no videogame.
- Acho melhor ir para minha casa.
- Imagine Mila. É nossa convidada para o jantar.
- É noite de sexta-feira.
- Você não gosta de sair nessas noites. Sempre me disse que sextas e sábados devemos ficar em casa ou ir à casa dos amigos, pois os lugares todos estão sempre lotados.
Mila riu.
- Tem razão. Os bares, restaurantes e cinemas ficam apinhados de gente. Prefiro o aconchego do lar e um filminho, uma pipoca. Passei da idade de enfrentar filas e mais filas.
- Assim nunca vai encontrar um bom partido.
- Que nada! Viu como fui paquerada no shopping?
- Mas não deu trela.
- Não me interessei por nenhum deles. Sinto que na hora certa eu vou encontrar um homem que me desperte os sentimentos mais puros e verdadeiros. E isso poderá acontecer na rua, no trânsito, na fila do supermercado. Eu não preciso estar em lugares cheios de gente para me apaixonar. E, de mais a mais, as mulheres de nossa idade estão muito competitivas. Até brigam por homem, veja só!
Letícia riu.
- As mulheres estão perdendo a vergonha. Estão mais atiradas.
- Eu não tenho pressa de nada. No momento certo vou encontrar o homem de minha vida.
- Você fala com tanta propriedade. Sempre me disse isso desde a adolescência. Namorou poucos meninos.
- É o meu jeito. Eu sinto que na hora certa eu vou saber.
- Eu quero muito que você seja feliz, Mila.
- Eu também quero de coração, que você se acerte com o Leandro. Formam um lindo casal. Eu sempre apostei na relação de vocês.
- Pois é. Eu também.
- Lembre-se de nossa conversa no shopping. Deixe seu orgulho de lado. Abra seu coração e tente se entender com seu marido.
Letícia deixou as sacolas de compras sobre um sofá e abraçou a amiga.
- Não sei o que seria de mim sem você. Obrigada.
Mila emocionou-se e a beijou no rosto.
- Sou feliz por compartilhar sua amizade.
- Podemos jantar e depois assistimos a um DVD. Tenho vários títulos na sala de TV.
- Você tem aquele filme - Mila coçou o queixo - O Melhor Amigo da Noiva, com o Patrick Dempsey?
- Se tenho? Claro. Adoro esse ator. Ele é um gato!
- Queria arrumar um namorado assim, no estilo dele, sabe?
- Ótimo. Escolhemos o filme. É uma comédia romântica deliciosa. Depois, faremos baldes de pipocas. Se ficar muito tarde, você dorme no quarto de hóspedes.
- Combinado. Vou ficar.
- Assim me ajuda a espantar algum fantasma, caso apareça.
- Não estou sentindo nada.
- Não disse que foi impressão?
Leandro deixou o filho jogando sozinho e foi ao encontro delas.
- Como foi à tarde? Divertiram-se?
- Bastante - tornou Letícia. - Compramos umas besteirinhas. Coisas de mulher.
- Um batom, um par de sandálias - prosseguiu Letícia.
Leandro passou a língua pelos lábios, nervoso.
- O que foi? Está apreensivo.
Mila sorriu e foi caminhando para outra sala.
- Fiquem à vontade.
- Não - sugeriu Leandro. - Fique. Acho que você pode me ajudar a entender o que aconteceu aqui nesta tarde.
- Alguma coisa com nosso filho? - perguntou Letícia preocupada.
- Sim. Mas não se desespere, não é nada grave, creio.
- O que aconteceu?
Ele fez sinal para elas se afastarem da saleta de TV. Entraram na sala de jantar e Leandro cerrou as portas de correr. Começou a contar o episódio surreal:
- No meio da tarde, Ricardo sentiu fome e propôs fazermos um lanche. Fui ao banheiro primeiro e quando entrei na cozinha ele falava sozinho.
- Sozinho?
- Sim. Disse-me que estava conversando com o avô.
- Como assim? - perguntou Letícia, sem entender.
- Ele me afirmou que estava conversando com o espírito do seu pai.
Letícia levou a mão à boca.
- Não pode ser!
- Ele falou com naturalidade. Afirmou se tratar do espírito do avô.
- Ricardinho teve muitos amiguinhos imaginários na infância, mas depois dos sete anos tudo se acalmou.
Mila interveio.
- Ricardinho tem sensibilidade apurada.
- Mas ele é muito novo, Mila.
- E daí? Geralmente nessa idade a criança começa a despertar sua sensibilidade.
- Você mesma disse que é perigoso uma criança desenvolver mediunidade. Falou isso lá no shopping.
- Forçar uma criança é perigoso. No entanto, no caso do seu filho, é natural, espontâneo. Ricardinho não é bem uma criança. Tem doze anos. Depois do jantar, vamos fazer o Evangelho no Lar.
- Como assim?
Mila sorriu.
- O Evangelho no Lar é uma prática comum entre os espíritas. Trata-se de uma reunião familiar, em torno do livro O Evangelho Segundo o Espiritismo ou outro que tenha mensagens que discutem os textos sagrados como Pão Nosso ou Fonte Viva. Todos se sentam ao redor da mesa e é feita uma prece. Depois, inicia-se uma leitura de algum trecho do Evangelho ou de um dos livros citados. Faz-se comentários, debate-se e encerra-se com nova prece. É simples, dura entre quinze e trinta minutos.
- E serve para quê?
- Para manter a casa protegida pelos espíritos de luz, para afugentar o lar de espíritos que queiram nos perturbar. Daí precisarmos fazer essa reunião uma vez por semana, preferencialmente no mesmo dia e horário.
- Gostei - disse Leandro.
- Hoje, depois que fizermos nossas orações e estivermos protegidos e amparados pelos amigos espirituais, vou ler algumas partes de O Livro dos Médiuns e tirarei suas dúvidas, na medida do possível - disse Mila.
- Bem que você insistiu em me comprar os livros hoje.
- A minha intuição não me engana amiga.
- Eu sou a culpada disso.
- Por que diz isso, Letícia?
- Eu deixei Ricardinho assistir a um filme na televisão semana passada. Ele ficou radiante.
Leandro emendou:
- Fui eu quem o deixou assistir a esse filme sobre espíritos. O menino ficou impressionado.
- Calma. Não é isso, não - tornou Mila com amabilidade na voz. - Ricardo tem doze anos de idade. Geralmente a sensibilidade começa a despertar por volta dessa idade, entre doze, treze anos. Seu filho é muito esperto, inteligente. O filme somente despertou e aguçou sua sensibilidade. A leitura e compreensão dos livros que comprei, ao contrário do que você imagina, vão ajudá-lo a entender melhor o mundo invisível que nos rodeia.
- Não sei ao certo. Tenho medo. Falar de espíritos, mexer com os mortos...
- Ninguém está aqui mexendo com os mortos - emendou Mila. - Estamos falando sobre uma eventual comunicação com alguém que não se encontra mais neste mundo. Só isso.
- Mas Ricardinho assustou-se? - indagou Letícia ao marido.
- De forma alguma. Falava naturalmente. Parecia que o avô estava vivo, na frente dele. Não vi nada, contudo senti um arrepio estranho, uma sensação desagradável.
- Você não viu, mas Emerson esteve aqui. - E, virando-se para Letícia: - Não lhe disse que percebi uma presença estranha no seu jardim esta tarde?
- Foi.
- Agora tenho certeza de que era o espírito do seu pai.
- Se vocês vissem Ricardinho falar com ele! Foi de arrepiar!
- Emerson nunca gostou de você, Leandro - tornou Mila. - Quando o espírito desencarna, quer dizer, quando deixa o corpo físico, torna-se mais sutil e mais sensível às irradiações de pensamentos das pessoas. Dessa forma, as emoções do desencarnado se fundem às do encarnado ou encarnados ao seu redor. Se você é feliz aqui no planeta, ao morrer vai sentir muito mais felicidade. O mesmo ocorre com a raiva e mágoa. As emoções se agigantam fora do corpo físico. Daí necessitarmos ter alto grau de equilíbrio emocional.
- Se tudo isso é verdade, por que ele esteve aqui?
- Não sei ao certo. Cada caso é um caso. Depois do jantar vamos fazer o culto do Evangelho no Lar. Deixaremos o filme para outro dia, amiga.
- Vou colocar Ricardinho para dormir mais cedo e...
- Qual nada! - protestou Mila. - Ele deve estar presente. Quanto mais cedo entender do assunto, melhor.
- Ele é muito novo.
- Engana-se, minha amiga. Seu filho pode aparentar ser jovenzinho, entretanto seu corpo físico abriga um espírito maduro que viveu muitas e muitas vidas.
- Não sei. Esses assuntos sempre me deixaram nervosa.
- Não tem por que ficar nervosa. Quanto mais souber acerca do mundo espiritual, mais fácil aprenderá a lidar com os espíritos e as energias que deles emanam, permitindo receber as vibrações salutares dos amigos invisíveis e defender-se das energias perniciosas daqueles que não a querem bem.
- Vou falar com Iara para colocar mais um prato à mesa.
- Eu vou conversar com o Ricardo.
- O que vai perguntar a ele, Mila?
- Nada de mais. Quero saber como foi essa visita do avô, mais nada.
- Está sentindo a presença do meu sogro?
- Estou Leandro. Emerson está por perto.
- E agora? Temos de saber o que ele quer.
Edgar abriu e perpassou os olhos pelo ambiente tentando imaginar onde se encontrava. Avistou uma figura alta e forte sentada logo à sua frente.
- Eu morri?
- Não, por que pergunta? - indagou o enfermeiro.
- Não sei onde estou, e você está todo de branco...
- Está na casa dos seus pais.
O rapaz passou as mãos pela testa. Lembrou-se de tudo.
- Essa não! Eu não queria vir para cá.
- Tinha de ser assim - o enfermeiro levantou-se, aproximou-se da cama e mediu a pulsação. Em seguida, perguntou: - Como se sente?
- Bem.
O enfermeiro tocou uma sineta e em instantes Maria José apareceu na soleira. Correu até a cama do filho.
- Como andas minha criança?
- Melhor, mãe. Melhor.
- Sentes fome?
- Não. - Edgar ajeitou o corpo e sentou-se na cama. Maria José apoiou os travesseiros entre suas costas e a cabeceira da cama.
- Precisamos conversar.
- Não quero conversar, mãe.
- A Dra. Vanda está lá embaixo. Chegou há pouco.
- Quem é essa?
- Uma psicóloga. Ela é muito gira! - disse Maria José animada, usando a expressão portuguesa que significa legal, bacana, interessante. E emendou: - Vai ajudá-lo e...
Edgar cortou a mãe secamente.
- De maneira alguma! Recuso-me a falar com uma psicóloga.
- É importante. É bom conversar com um profissional e receber tratamento adequado.
- Tratamento? Acaso me acha louco?
- Não, todavia o que tentaste fazer não é normal.
- Foi um ato desesperado. Não vai mais se repetir.
- Ela vai ajudar-te a equilibrar teus sentimentos, dominar tuas emoções.
- Não quero.
Maria José levantou-se e exalou profundo suspiro.
- Na minha casa mando eu! Estou farta de ver-te nesse estado. A Vanda vai subir e tu vais, ao menos, conversar um bocadinho com ela, nem que seja por um minutinho.
- Mas...
- Nada de, mas! Não se encontras em teu juízo perfeito. Eu tomo as rédeas e, enquanto estiveres em casa, vai ser assim, como eu quero.
Ela falou, virou-se de maneira abrupta e saiu do quarto. Logo a psicóloga entrou e encostou a porta.
Vanda era uma mulher de presença, muito simpática. Tinha um semblante tranqüilo; andava e vestia-se elegantemente. Fez uma mesura com a cabeça para o enfermeiro e este se retirou do quarto.
Ela aproximou-se da cama e sentou-se numa cadeira. Sem tirar os olhos dos de Edgar, cumprimentou-o.
- Como vai?
Ele fez cara de pouquíssimos amigos.
- Vou indo.
- Sente-se bem?
- Hum, hum.
- Precisa de alguma coisa?
- Quero sossego. Não preciso de nada.
- Por que tentou o suicídio?
A palavra era muito forte para ele. Sabia ter atentado contra a própria vida, no entanto, a palavra suicídio não lhe caía bem aos ouvidos. Era como se sentisse fraco, impotente, um nada. Edgar percebeu sua face avermelhar-se.
- Eu não tentei nada.
- Não?
- Foi um momento de fraqueza. De repente, quando eu me dei conta do ato insano, estava lá, caído no chão. Ainda bem que não aconteceu nada.
- Descreva-me os seus sentimentos em relação à Denise.
- Como?!
- O que você sente por sua esposa?
Ele revirou-se nervosamente na cama. Abaixou os olhos.
- Eu amo a minha mulher. Amo-a com todas as minhas forças.
- Tem certeza?
- Claro. Denise é a mulher da minha vida. Sem ele não sei viver.
- E se tivesse de viver sem ela? Como seria?
- Não imagino. Ela vai voltar. Foi uma briguinha à toa. Ela me ama. Vai voltar e tudo vai ser como antigamente.
- Você já parou para pensar que não existe relação perfeita, e sim a relação possível?
- Mas a minha relação é perfeita! - disse Edgar sem dar atenção ao comentário.
- Vamos imaginar o pior. Suponha que ela não volte.
Edgar falou num tom acima do normal.
- Ela vai voltar!
- Calma. Estou conversando com você.
- Não quero conversar com você. Por favor, retire-se.
Vanda não disse nada. Meneou a cabeça para cima e para baixo, fez algumas anotações num bloquinho, guardou-o na bolsa e levantou-se. Saiu do quarto e em seguida o enfermeiro entrou.
Edgar começou a chorar e gritar por Denise. O rapaz teve de lhe aplicar um sedativo. Vanda desceu e sorriu para Maria José e Fernando.
- Ele está muito resistente, mas vai mudar.
- Tens certeza, Vanda?
- Absoluta.
- Estou nervosa. Edgar gritou contigo.
- É normal. Ele está se sentindo fraco e impotente. Não quer demonstrar sua fraqueza e acredita piamente que a esposa vai voltar para ele.
- Mas sabemos que não vai.
- Não sei - tornou Fernando. - Essa rapariga bem que pode querer voltar. Denise é temperamental e manipuladora.
- Não vou permitir - protestou Maria José. - Essa mulher não vai mais se aproximar do meu filho.
- Vamos aguardar - retrucou Vanda. - Eu sinto que o ciclo entre seu filho e Denise ainda não terminou. Ele tem uma dependência emocional muito grande em relação a ela. Talvez com o tempo ele mude.
- Vais ajudar-nos, não?
- Farei o possível. Retornarei amanhã de manhã.
- Obrigada, Vanda.
Eles se despediram e a psicóloga foi embora.
- Acha mesmo que ela é boa?
- Tenho as melhores referências, Fernando. Vanda vai ajudar nosso filho. Eu sinto isso - disse Maria José, enquanto levava a mão ao peito.
Depois de um jantar leve e descontraído, Letícia convidou a todos para irem ao escritório. Era uma mistura de biblioteca com escritório, local que Leandro usava nos fins de semana para seu trabalho. O cômodo era todo em tons claros, móveis modernos e bem distribuídos. Havia duas poltronas e um sofá de dois lugares, bem confortáveis. Mais ao canto havia uma mesa redonda para reuniões, com quatro cadeiras. Mila fez sinal para sentarem-se.
- Aqui está perfeito. O ambiente exala tranqüilidade.
Leandro saiu e voltou em seguida com uma bandeja. Nela havia uma jarra com água e quatro copos. Mila indicou que ele colocasse a bandeja sobre a mesa.
- Eu gosto muito daqui - ponderou Leandro. - É o meu cantinho predileto quando estou sozinho na casa. Aqui trato de alguns assuntos da empresa e vez ou outra, sento-me com Ricardinho e lemos algum livro juntos.
- É. Papai e eu lemos em silêncio e depois paramos e discutimos o texto. Acabamos de ler Quintessência, do Jorge Desgranges. É um livro maneiro, e eu sabia que o Santiago não tinha cometido aquele crime horroroso. Não é, pai?
- É sim. No momento estamos fazendo a análise de Dom Casmurro, de Machado de Assis.
- Você conhece o livro, Mila? - indagou Ricardo.
- Conheço. É um clássico da literatura brasileira. Aprecio demais os livros de Machado, mas você não é muito jovem para ler e entreter-se com esse tipo de leitura?
- Imagine! Eu tenho quase treze anos. Sou praticamente um homem.
Todos riram. Letícia o abraçou e o beijou no rosto.
- Esse menino é diferente. Sei que todas as mães dizem o mesmo de seus filhos, entretanto, Ricardo tem uma sensibilidade ímpar. Ele se diverte com a leitura de um clássico nacional, assim como se diverte com o videogame.
- Gosto de muitas coisas.
- E qual o seu parecer em relação ao livro do Machado de Assis? - indagou Mila com os olhos brilhantes e curiosos.
- Eu acho que a Capitu não traiu o Bentinho. Ele deixou-se levar pela maledicência dos outros. Ela é pura e apaixonada pelo marido. Meu pai acha que ela traiu o marido. Ficamos horas discorrendo sobre o tema, não é papai?
Leandro abriu largo sorriso.
- É. Ricardo tem razão. Divagamos e imaginamos o pensamento dos personagens.
Mila sorriu e conversaram sobre outros livros de Machado. Sentaram-se à mesa e ela pediu que fechassem os olhos.
- Vamos nos desligar de tudo o que conversamos até agora. Deixemos o assunto dos livros de lado, as conversas do jantar. Vamos respirar e soltar o ar bem devagar.
Eles a obedeceram. Ela continuou:
- Agora vamos fazer a prece inicial.
Mila fez sentida prece de abertura. Em seguida, leu um trecho de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Discutiram o tema, fizeram uma prece por eles pelos familiares e amigos. Pediram proteção para a casa e que, se algum espírito ali estivesse que recebesse auxílio dos amigos ali presentes. Terminaram com nova prece e marcaram de se reunirem no mesmo dia da semana seguinte, no mesmo horário.
- Estou sentindo uma agradável sensação - disse Letícia.
- Eu também - emendou Leandro. - Devemos fazer essa reunião mais vezes.
- Interessante seria vocês se reunirem ao menos uma vez por semana e fazer o que fizemos. O Evangelho no Lar nos fortalece, ajuda a manter a harmonia, além de os espíritos amigos virem e nos inspirarem coisas boas. Embora o recomendado seja fazer a reunião com pelo menos duas pessoas, em casa eu faço sozinha.
- Venha fazer aqui conosco também - pediu Ricardo.
- Adoraria participar. Senti-me muito bem.
Todos concordaram afirmando com a cabeça.
- Agora vamos tomar a água. Ela está fluidificada.
Em seguida, Mila tirou de sua bolsa um livro de capa verde, com o título em dourado. Foi Ricardo quem leu.
- O Livro dos Médiuns. O que é isso?
- Esta obra foi escrita por Allan Kardec, o codificador do espiritismo. Já ouviu falar?
O menino fez um gesto afirmativo com a cabeça.
- Conheço-o. Não sei de onde, mas já ouvi falar.
- O Livro dos Espíritos trata dos fundamentos da doutrina. É um livro rico em ensinamentos. Já O Livro dos Médiuns, lançado alguns anos depois, é uma espécie de guia que Kardec escreveu para ajudar as pessoas a lidarem com a sensibilidade. Segundo o autor - Mila correu os olhos no texto - seu objetivo consiste em indicar os meios de desenvolvimento da faculdade mediúnica, tanto quanto o permitam as disposições de cada um, e, sobretudo, dirigir-lhe o emprego de modo útil, quando ela exista.
- A leitura parece bem agradável. Ele é repleto de perguntas e respostas.
- Isso mesmo, Ricardinho, do mesmo modo que O Livro dos Espíritos.
- Às vezes acontece algo estranho comigo, sabe Mila?
- Como o quê, por exemplo?
- É como se eu já conhecesse esse livro. Parece que eu já o li. É como o sonho que tenho com uma moça linda. Ela me leva até um teatro cheio de jovens da minha idade. Todos ficam sentados e em silêncio. Dos auto-falantes sai uma melodia linda, que nos inspira à introspecção. É feita a leitura de uma pergunta retirada de O Livro dos Espíritos. - Ricardinho fez um sinal afirmativo com a cabeça. - Já sei! É do sonho que conheço esses livros!
- É mesmo? - indagou Leandro.
- Sim, pai. Alguém voluntariamente se levanta, lê a resposta e um professor nos explica melhor, caso a gente não entenda.
- Você sai do corpo físico e vai até uma colônia espiritual destinada a estudos mediúnicos - complementou Mila.
- Puxa, que legal!
- Nunca nos contou antes, filho - disse Leandro.
- É tão natural, pai. Isso acontece já faz um bom tempo. Eu não comento porque a mamãe fica nervosa. Não gosta que eu fale sobre espíritos.
- Porque não é assunto para garotos de sua idade. Você tem que brincar com seus amigos, joga videogame...
- Não concordo. Vovô me disse que você sempre foi medrosa.
Letícia sorriu ao lembrar-se do pai. Emerson dizia que a filha era medrosa, insegura, e que ele estaria sempre por perto para ampará-la.
- Papai falava isso com freqüência. Mas ele morreu. Eu o cremei.
- Já conversamos sobre isso, amiga - pondero Mila. - O que morreu foi o corpo físico do seu pai. O seu espírito está vivo. É eterno.
- Repito que acho tudo fantasioso demais.
- Vamos aproveitar e fazer uma pequena leitura de O Livro dos Médiuns? - perguntou Mila de maneira jovial.
Todos assentiram. Ricardinho sorriu animado. Mila abriu o livro e, por coincidência, tratava da mediunidade das crianças. Ela leu boa parte das pergunta e discutiram sobre o tema. Leandro interessou-se tomou o livro das mãos dela. Leu:
- Mas há crianças que são médiuns naturais, seja de efeitos físicos, de escrita ou de visões. Haveria nesse caso o mesmo inconveniente?
- Não. Quando a faculdade espontânea se manifesta numa criança, é porque isso pertence à sua própria natureza e a sua constituição é adequada. Não se dá o mesmo quando a mediunidade é provocada, excitada. Observem que crianças que têm visões geralmente pouco se impressionam com isso, é o caso de Ricardinho com o avô - ponderou Mila. - As visões lhe parecem muito naturais. A criança lhes dá pouca atenção e geralmente as esquece. Mais tarde, a lembrança lhe volta à memória e é facilmente explicada, se ela conhecer o espiritismo.
Letícia interessou-se e cravou Mila com outras perguntas. Na medida do possível ela foi respondendo, intuída pelos amigos espirituais ali presentes por conta do Evangelho no Lar, e assim mantiveram o ambiente com energias positivas ao redor.
- Está vendo, mãe? Nunca forcei nada. E não sou mais criança.
- Ricardo tem razão. Nem nós, tampouco ele, procuramos por esse assunto. O espiritismo tem entrado em nossa vida de maneira natural. Eu sempre fui simpático à doutrina, contudo, acho que devemos procurar estudar e entender melhor o assunto.
- Tenho medo - ponderou Letícia.
- Por essa razão devemos estudar querida - replicou Mila. - Conforme estudamos e compreendemos melhor o assunto, o medo naturalmente se dissipa. Existe muita crença ruim acerca da morte. Precisamos mudar nossos conceitos em relação a ela.
- Tem razão. E por falar em morte, vovô está na porta do escritório - falou Ricardo, num tom natural.
Letícia levou a mão ao peito. Sentiu um misto de excitação e medo.
- Onde está? Eu não o vejo.
- Está ali na soleira - apontou o garoto. - Tem um moço simpático ao lado dele. Está falando que veio buscar o vovô.
Mila e Leandro olharam para a porta e nada viram. Mila sentiu leve torpor. Percebeu que o espírito de Emerson estava ali. Ricardo continuou:
- Ele não pode ficar porque disse que a energia da sala não permite. Disse que é uma energia diferente da que ele pode suportar.
- Seu avô não deve estar bem. O que ele quer? - indagou Mila.
Ricardo ficou olhando para a porta e fez sinal positivo com a cabeça.
- Está falando que está por aqui, que continua tomando conta de minha mãe, mas que, infelizmente, vai ter de partir.
- Ele não vive mais neste mundo. Não foi chamado para ir para outro local?
- Foi. Mas está resistente. Está dizendo que, agora que vamos nos reunir toda semana para fazer orações, ele não mais poderá ficar na casa.
- Vamos orar por ele.
Ricardo fez sinal negativo com a cabeça.
- Não vai adiantar.
- Por quê? - perguntou Leandro.
- Ele gargalhou e disse que orações não vão ajudar. Quer que mamãe abra os olhos. Ricardo espremeu os olhos e perguntou - O quê? Como? Tem certeza, vovô? Isso que diz é muito grave. Ah, que pena.
- O que foi?
- Ele sumiu com o outro moço. Foram embora.
- O que ele disse? - perguntou Leandro.
Ricardinho falou com a maior naturalidade do mundo:
- Que você tem uma amante.
Fazia semanas que Leandro não retornava as ligações de Denise. Ela estava nervosa e irritada. Jamais homem algum havia deixado de ligar. Era sempre ela quem sumia. Sempre. Estava perdendo a concentração no trabalho. Durante uma importante reunião de negócios sua mente estava em outro lugar. Inácio a chamou por mais de três vezes:
- Denise, o que acontece?
Ela voltou a si e perguntou, sem jeito:
- O que foi? Desculpe-me. Estava com a cabeça longe daqui.
- Bem longe, eu percebi.
- Desculpe mesmo, Inácio, onde estávamos? Ele leu a minuta do contrato e ela assentiu.
- Está certo. Vou fazer pequena anotação e pedir para Marina digitar dez por cento.
- Excelente. O departamento financeiro não vai perceber essa diferença?
- Mantive a mesma porcentagem, mas diminuí a margem de lucro da empresa. Estou vendendo nossos produtos para aquela outra empresa, por valor abaixo do mercado. Depois você nos revende por preço bem maior e me repassa meio a meio o lucro. E, obviamente, o Evaristo, chefe da contabilidade, recebe bom dinheiro para maquiar os balancetes. Sem a ajuda dele seríamos pegos. Facilmente.
- Confia mesmo nesse homem?
- Ele ganha um bom salário, mas é homem ganancioso e sem escrúpulos profissionais. Do jeito que gosto. Pode confiar em mim.
- Se você diz isso, eu acredito.
- Vou mandar redigir dessa forma. Depois, entrego o contrato para o contador. Vamos ganhar um bom dinheiro com essas cláusulas adulteradas.
- Muito dinheiro. Garanto que sua comissão será bem mais apetitosa. Vou fazer de você uma mulher rica. A rede Dommênyca é tão forte que não vai perceber essa mordidinha no seu lucro.
- Não mesmo. Como você é advogado de confiança da empresa, há anos, tudo fica mais fácil. E quero ficar rica para gastar os tubos na Daslu. Quero viajar sempre de primeira classe. Odeio viajar na classe econômica, espremida entre aquela gente sem educação. Dinheiro me dá uma sensação muito grande de poder. Adoro ter poder sobre as situações, sobre as pessoas! Quero comprar meu casarão no Jardim Europa e sair daquele maldito flat.
- Não está feliz no flat? Você mesma o recomendou aos meus clientes chineses.
- Lembranças desagradáveis.
Inácio aproximou-se e passou o braço pelos ombros dela.
- O que está acontecendo com você?
- Nada.
- Eu a conheço bem, sua danada! Desde a semana passada tem conversado pouco, a sua fala tem sido monossilábica. Nossas reuniões eram animadas, discutíamos preços, e agora você mal abre a boca. Concorda com tudo. Não discute mais com os outros advogados. Soube aí na empresa que você se separou, é esse o problema?
- Qual nada! A separação foi um bálsamo pare mim. Deveria ter me separado do Edgar há muito mais tempo. Eu me casei com ele por conta de uma herança ridícula deixada pela minha tia.
- A casa do Pacaembu.
- Que estava caindo aos pedaços. Vendi por uma ninharia. Apliquei o dinheiro, mas eu sou uma mulher cara. Gastei em roupas, carros último tipo. Não sobrou nada.
- E por que então... - Inácio sorriu malicioso. - Hum tem outro na parada! Está apaixonada por outro e ele sumiu, desapareceu. Estou certo no meu diagnóstico?
- Não é questão de estar apaixonada. É o desplante mesmo. Estou me sentindo usada e descartada. Este tão na cara assim?
- Se está!
- Não sei o que fiz. Leandro não retorna minhas ligações. Sumiu do mapa. Ninguém me passa a perna desse jeito.
- Eu sabia que você e Leandro estavam juntos.
- Como? - Denise fuzilou o colega com os olhos - Sempre fui muito discreta.
- Eu percebo as coisas. Você era muito dócil ao lado dele. Negociava sempre com um largo sorriso nos lábios. Algumas vezes percebi seus pés roçando-nos dele por debaixo da mesa de reuniões. E, de mais a mais, sou homem experiente e sei das coisas.
- Tomei um belo pé do Leandro. Não esperava que fosse acontecer dessa forma.
- Tenho a impressão de que você nunca foi rejeitada. Estou certo?
- Eu?! - ela jogou a cabeça para trás e deu sonora gargalhada. - Imagine! Sempre dei as cartas, constantemente fui mulher que sabia das coisas e deixava os homens se arrastando aos meus pés. Nunca senti o que estou sentindo. Quer dizer, anos atrás senti um pouquinho desse desplante e acabei com o carro do sujeito.
- Está sentindo o gosto amargo da derrota.
- Isso me dá um ódio! Tenho vontade de esganar o Leandro.
- Estava muito envolvida com ele?
- Um pouco. Mas vamos deixar esse assunto de lado.
- Vamos nada. Eu posso ajudá-la.
- De que maneira?
- Nunca pensou em vingança?
- Como assim?
- Vingança, o mesmo que desforra, vendida, castigo, punição...
Denise sorriu diabolicamente.
- Hum, gostei!
- Precisa dar uma lição nesse homem.
- Castigo, punição... Muito me interessa. Leandro merece uma punição.
- Vamos almoçar? Eu pago. E aproveito para lhe dar dicas de vingança.
- Isso me anima. Não sou de ficar para trás. Bem que preciso dar uma saída. Não quero comer aqui no refeitório da empresa. Estou enjoada da comida e de olhar para a cara desses funcionários incompetentes.
- Vamos almoçar num restaurante badalado nos Jardins. Poderemos conversar e esticar o papo.
- Combinado.
Bateram na porta e Denise pediu para entrar. Era Marina.
- Está na hora do almoço e...
- Por falar em incompetência, olha quem aparece - falou Denise, fuzilando a assistente com o olhar.
- Deseja alguma coisa, Denise?
- Sim, que você suma da minha frente.
Inácio interveio:
- Não pode tratar sua assistente assim. Tenha modos.
- Estou ainda engasgada com o não comparecimento da senhorita lá no aeroporto.
- Eu lhe expliquei o que aconteceu. Faz semanas.
- Mesmo que faça anos eu nunca vou me esquecer.
- Não tive culpa. Não podia deixar seu marido ali, largado, necessitando de ajuda.
- Devia, sim. Devia deixar Edgar morrer. Aquele fraco, idiota, merecia esse fim. E por que foi se meter em assuntos de família? Tinha de acompanhá-lo ao hospital?
- Foi preciso.
- Sei. Mais uma dessas e eu a coloco no olho da rua.
Marina não moveu um músculo, continuou olhando Denise nos olhos.
- Vou almoçar. Precisa que eu redija o contrato agora ou pode ficar para quando eu retornar?
- Pode ser na volta do almoço - tornou Inácio.
- Denise está com a cabeça quente. Prometo que vamos sair e na volta ela estará mais calma.
Marina fez uma mesura com a cabeça e saiu. Fechou a porta e fungou.
- Essa mulher me tira do sério.
- Vai ver a menstruação dela desceu - sussurrou Elisa, a secretária da diretoria.
- É grossa, estúpida, grita. E insensível. O marido quase morreu e ela não está nem aí. Ainda por cima fica em reuniões fechadas com o Dr. Inácio. Não gosto dele. Sinto que é um tremendo vigarista, isso sim.
- Eu também não gosto dele, Marina. Tem cara de safado, no mau sentido mesmo. Não me inspira confiança, mas fazer o quê? Os donos o idolatram, assinam tudo o que ele entrega. Confiam nele de maneira cega. Quer saber? Melhor não nos ligarmos na energia que dele emana.
- É um tremendo salafrário. E me olha com aquele olhar de homem babão, sabe? Como se quisesse me comer viva. Não gosto de homem assim.
- Vamos almoçar?
- Vamos, sim.
- Os deixemos de lado.
- Um pouco difícil, né, Elisa? Eu trabalho o dia todo ao lado dessa mulher. Passo mais tempo ao lado dela do que ao lado de minha mãe.
- Por esse motivo, devemos manter um bom clima no ambiente de trabalho. Passamos muitas horas aqui dentro.
- Horas demais, confesso.
- Quanto menos falarmos deles, melhor. Sabia que quando falamos mal de alguém nós nos ligamos negativamente a essa pessoa e a energia dela fica no nosso campo energético, na nossa aura?
- É mesmo, Elisa?
- É. Tem mais: quando alimentamos sentimentos negativos, a nossa aura fica com uma coloração escura, meio marrom. Eu percebo isso nas pessoas e posso garantir que a sua, por exemplo, é dotada de cores claras.
- E é bom sinal?
- Por certo. Cores claras significam que você tem uma boa saúde emocional, bons pensamentos, sabe?

A aura é um elemento etéreo, imaterial, que emana e envolve seres ou objetos; é um atributo inerente aos seres vivos. Há quem diga que vê a aura de seres vivos, e que a forma e a cor da aura refletem o estado físico, mental e emocional da pessoa (N.A.)

Elisa foi discorrendo naturalmente sobre o assunto enquanto ambas se dirigiam ao refeitório da empresa, no primeiro andar do prédio. Pegaram a bandeja, escolheram a comida, apanharam um copo de suco e sentaram-se ao lado de outros funcionários.
- Você está com a aparência tão boa! O que tem feito Elisa?
- Exercícios.
- Se eu tivesse tempo! O trabalho e a pós-graduação me consomem.
- Tempo a gente arruma, é só querer. Agora pratico corrida. Adoro correr. Quer dizer, sempre sonho em participar de uma maratona, mas preciso ainda de muito treino. Fiz amizade com um grupo muito bom. A gente se reúne três vezes por semana no parque do Ibirapuera.
- Adoraria fazer algum exercício físico.
- Correr não custa nada. Você não paga e ainda melhora seu condicionamento físico, sua saúde e faz boas amizades. As pessoas são muito simpáticas.
- É tão bom assim?
- Se é, menina! Eu não movia um músculo para fazer nada. Agora sou viciada em corrida. Chova ou faça sol.
- Percebi mesmo a mudança no seu corpo. Está mais magra, mais durinha, a pele está com mais viço.
- O exercício físico melhora e fortalece a nossa auto estima.
- Interessante. Se eu morasse perto do parque talvez encarasse esses exercícios ao ar livre.
- Isso é desculpa Marina. Onde você mora?
- Não é desculpa. Moro no Tatuapé. No outro lado da cidade.
- Não me diga! Somos vizinhas. Eu moro no Jardim Anália Franco.
- Do lado de casa, maneira de dizer.
- No começo foi difícil. Depois me acostumei a dormir mais cedo e acordar mais cedo ainda. Acordo lá pelas cinco da manhã me arrumo, não pego nada de trânsito. Depois da corrida venho direto ao vestiário da empresa. Estamos a dez minutos do parque.
- E podemos usar o vestiário?
- Sim. O chuveiro daqui é muito bom. Tomo banho, me arrumo, tomo meu café aqui no refeitório e em dois minutos estou na minha sala. Não é o máximo?
- Puxa, Elisa, você me animou.
- Vamos sair no sábado e fazer um passeio no shopping? Compramos shorts, camiseta e um bom tênis. O resto é com você.
- Sinto que o exercício físico poderá tirar todo esse estresse que tem sido a minha vida. Além dos problemas de casa, sou obrigada a engolir essa mulher - fez sinal apontando na direção da sala de Denise.
- Você precisa mesmo do emprego?
- E como! Sou eu quem paga todas as contas de casa. Minha mãe é doente.
- Não tem aposentadoria?
- Não. Ela foi doméstica por muitos anos, e naquele tempo as empregadas não tinham direito a nada, nem carteira assinada. Entramos com os documentos no INSS para ela receber um salário-mínimo. É pouco, mas ajuda nas despesas.
- Tem algum parente próximo, um irmão?
Marina lembrou-se de Jofre e fez muxoxo.
- Tenho um irmão - ela abaixou o tom de voz - e vou lhe confessar: ele é um tremendo marginal.
- Marginal no sentido de sacana ou no sentido de bandido?
- De bandido mesmo. Jofre cresceu torto, como se diz, aprontou muito, foi preso, encaminhado para a FEBEM e fugiu. Nunca mais nos vimos. Alguns anos atrás mandou um dinheiro para minha mãe. Acho que ele é metido com tráfico, sabe Elisa?
- Bom, melhor se manter afastada dele. Mas, quando se lembrar do seu irmão, mande vibrações positivas.
- Difícil.
- Tente. As pessoas não percebem, mas as nossas vibrações chegam até elas.
- Jofre nunca gostou de mim.
- Problema dele.
- Tampouco gosto dele.
- Tudo bem. Mas, quando ele aparecer em sua mente, envie-lhe vibrações de paz, ao menos. Vai ajudá-la a ficar afastada das energias ruins dele. Se ficar ligada negativamente no seu irmão, vai atrair coisas ruins para seu lado.
Marina bateu três vezes na mesa do refeitório.
- Deus me livre e guarde!
- Precisa ter outra postura diante da vida, Marina. Marina desconversou:
- A assistência médica da empresa é muito boa. Minha mãe é doente e usa muito o convênio médico.
- Concordo com você. Nosso plano de saúde é excelente, um dos melhores do mercado. Ainda bem que pudemos incluir nossos pais como dependentes.
- Eu não posso, no momento, pedir as contas. Preciso agüentar essa jararaca da Denise. Gosto da empresa, dos funcionários, o ambiente de trabalho é muito bom. O único problema é a chefe. Só isso.
- Se o problema é só em relação à Denise, precisa aprender a ser impessoal.
- Como assim?
Elisa sorriu.
- Mudar a postura diante das situações. Eu faço sempre isso, seja aqui, com amigos ou familiares. Ser impessoal é escutar o problema do outro sem entrar no problema, entende?
- Mais ou menos.
- É escutar sem se envolver emocionalmente com o outro. Dessa forma, ficamos mais lúcidos e equilibrados para ajudar a encontrar uma saída para a situação, geralmente desagradável e que, por estarmos envolvidos com ela, não enxergamos soluções práticas.
- Você tem um jeito tão interessante de falar. Sinto-me bem ao seu lado.
Elas terminaram o almoço, tomaram o elevador e encontraram colegas de outras áreas. Entabularam conversação animada e, por ora, Marina esqueceu-se das grosserias da chefe e animou-se em acompanhar Elisa nas corridas matinais, além de se interessar pelo assunto da impessoalidade. Denise e Inácio entraram no restaurante apinhado de gente e sentaram-se numa mesa mais ao fundo, que os deixava em privacidade e em liberdade para tratar de assuntos de foro íntimo. O garçom aproximou-se.
- Queremos duas cervejas bem geladas.
- Denise, eu posso beber porque vou para casa, encerrei o expediente. Mas você vai voltar à empresa.
- Para agüentar aqueles tolos, nada como uma boa cerveja gelada. - Ela encarou o garçom e ordenou: - Traga logo duas cervejas e dois copos bem gelados. Vá, corra!
O rapaz se afastou meio sem-graça. Enquanto ela e Inácio aguardavam a bebida, disparou:
- Estou possessa. Ninguém me deixa assim. O patife do Leandro me deixou feito boba naquele fim de semana lá no Rio.
- Faz semanas. Eu sou partidário da vingança, mas quer mesmo perder tempo com Leandro?
- Quero. Ele tem de me dar explicações, exijo satisfações. Ele pensa o quê? Que me encontrou na rua, na sarjeta, no lixo?
- Está nervosa. Acalme-se.
O garçom voltou com a bandeja e dois copos bem gelados. Em seguida, despejou delicadamente a cerveja em cada tulipa. Denise pegou a sua, bebericou e estalou a língua no céu da boca.
- Está divina.
- Esquecemos de brindar.
- Não tem problema, Inácio. - Ela encostou a sua tulipa na dele: - Um viva à vingança!
Inácio esboçou um sorriso sinistro.
- Um brinde à vingança.
Fizeram o pedido, o garçom se afastou e ela prosseguiu:
- O babaca tem um filho e é Deus no céu e o filhinho na Terra. Ficou de me ligar no dia seguinte e sumiu, desapareceu.
- Pode ser algum problema de família - tornou ele, em tom jocoso, somente para provocá-la. Denise não percebeu e continuou:
- Que nada, Inácio. Cheguei ao flat depois da viagem e não havia um resquício do Leandro. Nem sombra. Mandou um funcionário de a empresa ir lá e pegar tudo. Levou até o aparelho de barbear. Não deixou nada. Ele não é homem de verdade. Não teve coragem de ir sozinho e me enfrentar. Mandou um motoboy durante o dia, depois de uma semana desaparecido, e, sorrateiramente, solicitou que o garoto pegasse suas coisas e sumisse.
- Vai ver voltou para a esposa. Afinal de contas, não é comum ser casado com uma mulher bonita e carismática feito Letícia. Ontem mesmo seu nome foi citado por uma atriz famosa como símbolo de simpatia, bondade e generosidade.
- Ai que ódio. Essa Letícia se faz de santa, mas para mim, não passa de fachada.
- Não é fachada. Ela é benquista pela sociedade. Uma mulher bonita, fina, requisitada para dar dicas de etiqueta...
- Pare Inácio! Assim me irrita. Sei que é advogado. Mas precisa ser advogado do diabo? Está do meu lado, ou não?
- Claro que estou.
- Pois pare de falar bem dessa mulher. Letícia não gosta de sexo, é frígida, além de ser uma dondoca fútil e cheia de regras rígidas de etiqueta. Para que precisamos de etiqueta nos dias de hoje? É um salve-se quem puder. Vivemos num outro século. Cada um por si.
- Esse é o seu ponto de vista.
- Meu e de toda pessoa esperta. Ninguém mais tem um pingo de civilidade. Este país está de pernas para o ar. Não há respeito, nada.
- Tem alguma coisa aí. Quer que eu investigue? Eu tenho amigos espalhados pelo mundo todo.
- Conheço bem seus amigos - replicou ela, fazendo mesura com as mãos.
- Poderemos descobrir o que aconteceu. Ninguém muda assim de uma hora para outra.
- Faria isso por mim, Inácio?
- Você é minha amiga. Está me tornando um homem rico. O que você quiser eu faço.
Denise pegou o celular da bolsa e discou. Caiu na caixa postal.
- Está vendo? Leandro não atende às minhas chamadas. Deve ter trocado o número do celular. Não é possível!
- Claro que eu vou ajudá-la.
- Entre em contato com Leandro.
- Vou pensar numa maneira. Eu mal o conheço. Não somos íntimos.
- Sei lá. Arrume uma desculpa.
- O que vou dizer? Como vou entrar num assunto tão íntimo?
- Tem razão. Procurá-lo assim, sem mais nem menos, é ridículo. Vai fazer eu me passar por carente e magoada.
- Deixe comigo. Passe o número do celular dele para mim. Eu sou mestre em arrancar confidencias sem que as pessoas desconfiem. Sou um manipulador de primeira.
- Obrigada, Inácio. Sabia poder contar com você.
Em seguida, o garçom aproximou-se com os pratos e ambos voltaram à atenção para a comida. Na hora de pedir o café e a conta, Inácio sorriu de maneira maliciosa.
- O que foi? - indagou Denise, tentando acompanhar os olhos de Inácio.
- Não viu?
- O quê? - perguntou ela, sem entender.
- Seu amado acaba de entrar.
- Edgar? Aqui?
Inácio deu gostosa gargalhada.
- Não. Leandro acaba de entrar no restaurante.
Ele fez um sinal com os olhos e Denise acompanhou. Ao avistar Leandro ela quase teve uma síncope. E não é que o filho da mãe estava mais lindo do que nunca? O terno escuro, de corte impecável, deixava-o parecido a um lorde inglês. Os cabelos estavam curtos e sua aparência estava ótima. Além de tudo isso, estava abraçado a uma linda mulher, que despertava e atiçava o desejo dos homens e a admiração das mulheres ao redor. Houve até garçom que disfarçou para apreciar aquela socialite carioca tão famosa colada ao bonitão. Denise sentiu uma raiva sem igual. Levantou-se de maneira abrupta. Inácio levantou em seguida e tentou segurá-la.
- O que vai fazer?
- Tirar satisfações com esse patife.
- Não vai ser assim que você vai resolver a situação.
- Eu vou resolver do meu jeito - bradou ela ensandecida.
- Por favor, não faça cenas - implorou Inácio.
Denise nem deu ouvidos. Estava cega de ódio. Desvencilhou-se de Inácio e apertou o passo até o casal. Disse em alto e bom tom:
- Quem Leandro pensa que é?
Voltando um pouquinho nas semanas anteriores a essa tarde, assim que Ricardo verbalizara as palavras de Emerson, o ambiente tornara-se constrangedor.
- É verdade, pai? - perguntou o menino, sem jeito.
- Seu avô nunca simpatizou comigo. Está de brincadeira, isso sim.
- Pode ser.
- Seu avô continua entre nós?
- Ele falou, riu e sumiu com um rapaz bem simpático. O rapaz mandou um beijo para a Mila.
Mila se emocionou e lembrou-se imediatamente do pai. Sorriu e indagou com naturalidade:
- Você sabe se ele vai voltar?
- Não sei se ele vai aparecer de novo.
Leandro deu um sorrisinho amarelo, sem graça. Encarou Mila e ela percebeu sua angústia. De súbito ela levantou-se e disse de maneira alegre:
- Bom, terminamos por hoje. Ricardinho fique com O Livro dos Espíritos e, se aparecer alguma dúvida, anote-a num caderninho. Na semana que vem retomaremos a reunião e nossos estudos, o que acha?
- Eu acho maneiro!
- Que bom!
- Sinto-me pronto para começar a estudar os mistérios da vida. Ainda bem que você está me dando essa força.
O rapazinho pegou o livro das mãos de Mila, beijou-a no rosto e, sem perceber o clima tenso entre Leandro e Letícia, perguntou a eles:
- Vamos assistir a mais um episódio de CSI?
- Creio que fizemos muito esta noite - ponderou Letícia. - Melhor você se recolher, deitar-se. O dia foi cansativo, você enfrentou hospital. Amanhã assistiremos a quantos episódios você quiser certo?
- Tem razão, mãe. A bem da verdade estou cansado. Você me acompanha até o quarto?
Letícia fez gesto afirmativo com a cabeça. Ricardo despediu-se de Leandro e Mila. Subiu abraçado à mãe. Leandro aproximou-se de Mila.
- Desculpe-me pelo ocorrido. Jamais poderia imaginar uma coisa dessas, uma situação tão vexatória e...
Mila o cortou com gesto suave.
- Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher, diz um sábio ditado. Eu não tenho nada que ouvir, você não precisa se desculpar.
- Você é a melhor amiga de minha esposa.
- Sempre serei. Eu vou estar sempre ao lado de Letícia, embora isso não queira dizer que eu vá destratá-lo por algum motivo. Não tenho nada a ver com a vida íntima de vocês. Ambos são adultos e têm condições de resolver seus problemas.
- O que faço?
Ela pegou delicadamente em seu braço e disse voz amiga:
- Diga a verdade. Abra seu coração.
- Tenho medo de perdê-la.
- Pois diga isso a ela. Aproveite que Emerson foi tirado aqui da casa. O ambiente está em harmonia, foi higienizado pelos espíritos amigos. Mesmo com essa notícia tão constrangedora, a paz ainda reina nesta casa. Se você ama Letícia de verdade, abra seu coração. Aproveite o clima de paz. Não esconda nada.
Ele a abraçou e percebeu uma lágrima escorrer pelo canto do olho.
- Você é uma grande amiga. Não tenho palavras para agradecê-la.
- Não tem de quê. Vou ao lavabo retocar a maquiagem e depois irei embora. Com licença.
Mila saiu e Leandro deixou-se jogar pesadamente sobre uma poltrona. Colocou as mãos sobre a cabeça e cobriu o rosto.
- Meu Deus, por que fui deixar as coisas chegarem a este ponto?
Enquanto ele se lamentava, Emerson dava gargalhadas do lado de fora da casa.
- Agora começarei a destruí-lo - disse com um misto de sarcasmo e fúria.
O espírito de aspecto jovem e esbanjando simpatia, que o tirara da casa minutos antes, foi enfático:
- Posso saber a piada?
- Que piada?
- Não sei, mas se você está rindo tanto, só pode ser de uma piada. E das boas.
Emerson fechou o cenho. Encarou o rapaz de cima a baixo com olhar investigativo.
- Quem é você? Por que entrou na casa?
- Tive condições de interceder assim que terminaram de fazer o Evangelho no Lar. O ambiente transmitia paz e serenidade. Daí pude entrar, tirar você e deixá-los em paz, por ora.
- Nunca o vi por aqui antes.
- Prazer, meu nome é Leônidas - disse o espírito, enquanto estendia a mão para Emerson. Este retribuiu o aperto de mão e inquiriu:
- O que faz aqui? É servo dos chamados espíritos de luz?
- Trabalho para eles, sim.
- Tem algum parente no condomínio?
- Sou amigo da família - apontou para a casa.
- Nunca o vi antes. Eu, sim, pertenço a essa família.
- Pertencia quando vivo. Agora não pertence mais.
- Leônidas, Leônidas - Emerson coçou o queixo - nunca ouvi esse nome quando estava vivo. A não ser que seja um parente do Leandro.
- Tenho ligações afetivas com Leandro e Ricardo.
- Só podia ser! Bem que desconfiei dessa cara de anjo. Quer me afastar daqui, não?
- Não preciso fazer isso. A própria vibração energética da família o mantém afastado. Já notou que quando os três estão em harmonia, você mal consegue chegar próximo da porta da casa?
- É verdade, porém a harmonia dura pouco. Eu tenho poder sobre minha filha. Ela acata todas as minhas sugestões.
- As coisas vão mudar, pode apostar.
- O que quer dizer?
- Que eles se amam e esse sentimento é mais forte do que qualquer negatividade, não importa de onde e de quem venha.
- Oras bolas!
- Você não vai mais atrapalhar a paz desta casa.
- Eu?! Atrapalhar?
- Toda vez que entra na casa cria confusão.
- Como ousa me dar ordens, seu moleque?
Leônidas permanecia calmo e sereno. O sorriso jamais saía de seus lábios.
- O que falou para seu neto...
Emerson o cortou secamente:
- Falei a verdade, oras!
- Não foi para criar desarmonia na vida do casal?
- Foi. Eu tenho de afastar Letícia desse pulha.
- Eu me preocupo com o que acontece a essa família. A sua atitude não foi das mais simpáticas.
- Eu digo a verdade para minha filha e sou acusado de atrapalhar a paz?
- Não deve se meter na vida dos outros.
- Trata-se da vida da minha filha! Leandro é que deveria pensar mil vezes antes de traí-la. Mil vezes! - bradou.
- Às vezes, a omissão é a melhor saída. Às vezes, não estamos preparados para escutar a verdade.
- E viver na mentira? Olha - Emerson passou a mão pela cabeça -, você não deve ser do lado da luz, não. Fala tanta barbaridade!
- Não falei em mentira, mas em omissão do fato. Deixar de falar não tem a ver com mentir.
- Sou partidário da verdade.
- É mesmo?
- Sempre.
- E o que me diz de sua última vida no planeta?
- O que tem a minha última encarnação a ver com este assunto?
- Foi permeada tão somente pela verdade?
- Claro que foi.
- Ah, foi? - indagou Leônidas curioso.
- Fui um pai amoroso, marido exemplar, trabalhador.
- Pai amoroso, eu concordo. Já em relação a ser um marido exemplar... Você sempre deu suas puladas de cerca. Não era sincero com sua esposa.
- Não admito que remexa assim a minha vida. Na minha época as coisas eram diferentes.
- Entendo.
- Construí um império. A Companhia é uma das únicas empresas do país com excelente reputação no exterior. Deixei a minha família muito bem. Teresa vai morrer rica e Ricardo, se quiser, nunca vai precisar trabalhar.
- Concordo com quase tudo o que disse. De fato, foi um empresário de sucesso, sua empresa gerou muitos postos de trabalho e ajudou a melhorar a economia do país. Contudo, foi, de fato, marido exemplar?
- Absolutamente! Uma ou outra traição, nada de mais. Coisas de homem.
- E qual a diferença entre as suas puladas de cerca e as de Leandro?
- É completamente diferente. Nada a ver. Leandro é casado com a minha filha. Mexeu com minha família, arrumou briga.
- Você só enxerga o que lhe convém, Emerson Theodoro Ferraz.
- Ei, cuidado no tom de sua voz, ô espírito de luz. Pensa que pode falar assim comigo?
- Por que não?
- Minha morte foi anunciada em todas as emissoras de TV, em horário nobre!
- Sei de muitas coisas a seu respeito. Emerson deu novo olhar investigativo sobre o moço, de cima a baixo.
- Sabe o quê?
- Algumas coisas.
- O que deu nos jornais por conta de minha morte? Eu era figura conhecida, todo o país sabia da minha vida.
- Por exemplo, sei que teve um filho fora do casamento e nunca quis saber dele.
- Eu?!
- Sim.
- Mentira - tentou defender-se Emerson.
- Pode mentir para o mundo, mas não para a sua consciência. Eu consigo ler os escaninhos de sua alma.
Emerson estremeceu. Leônidas falou com uma firmeza estonteante. Parecia mesmo que ele era capaz de perscrutar e vasculhar a alma de Emerson.
- O que quer dizer com isso?
- Você dormiu com uma de suas empregadas. Ela engravidou e teve um bebê. Você procurou abafar o caso, afastou-a de casa, deu-lhe dinheiro para ficar quieta e sumir de seu caminho.
- E ela sumiu mesmo.
- Sumiu porque tinha medo de você. Ela sentiu-se humilhada. A mulher era pobre, tinha outro filho, como não aceitar a sua oferta? Para onde ela iria? Morar embaixo da ponte, e, ainda por cima, grávida? Aceitou seu dinheiro, claro. Você era rico e ela sentiu medo de enfrentá-lo. Comprou uma casinha e continuou tendo uma vida honesta.
- Ela poderia ter abortado e ficado com o dinheiro.
- Foi escolha de ela ter o filho.
- Quem me garante que o filho nasceu? Ela pode ter perdido a criança.
- Não perdeu.
- Pode ter se deitado com outros homens. Quem garante que eu sou o pai?
- Você bem sabe que ela não saía com ninguém. Vivia para o trabalho e para o filho.
- Pode ser.
- Você nunca se interessou pela filha bastarda. Só teve olhos para Letícia.
- Aquilo foi um acidente - esbravejou Emerson.
- Acidente? - perguntou Leônidas, impávido.
- É. Foi um acidente, um desvio de rota. Não usávamos preservativo naquele tempo. Não havia tantas doenças sexualmente transmissíveis. Ela me deu bola e transamos. Umas vezes. Mais nada. Foi puro acidente.
- Acidente?
- É.
- Acidente é quando batemos o carro, escorregamos numa casca de banana e tropeçamos. Fazer um filho fora do casamento não é acidente.
- Nem sei se a criança sobreviveu. E, além do mais, faz muitos anos. Por que você veio me perturbar com esse assunto agora?
- Porque você só quer saber de Letícia. E se sua outra filha estiver viva e passando necessidades? Nunca parou para pensar nisso?
- Não! - bramiu Emerson. - Nunca parei e nunca vou parar. Você estragou a minha noite.
- Estamos aqui para conversar.
- Eu não quero mais conversar com você. Voltarei em outro momento.
Emerson falou e sumiu no ar. Leônidas deu de ombros. Fez estranho sinal com a mão esquerda voltada para o alto, e logo dois guardiões do astral apareceram na sua frente.
- Pois não, chefe - disse um.
- Quero que fiquem de sentinela e vigiem a casa até o fim da madrugada. Durante o dia quero dois sentinelas rondando o condomínio. Não quero nenhum espírito estranho aqui por perto. Pelo menos nos próximos dias. Vocês sabem por que estou aqui?
- Sim, sabemos. Pode deixar com a gente. Vamos limpar a casa das energias negativas e ficar de prontidão. Qualquer problema avisaremos imediatamente.
- Obrigado.
Leônidas despediu-se dos guardiões e partiu para a sua colônia espiritual. Dentro da casa, Letícia fazia o que podia para disfarçar o choque daquele comentário do filho. Num primeiro momento suas pernas falsearam e ela sentiu falta de ar. Procurou recompor-se de maneira rápida. Dotada de elegância natural, conduziu Ricardo até seu quarto, sem deixar que o menino notasse qualquer traço de contrariedade em seu semblante.
- Mãe, o que o vovô disse é verdade?
- Sobre o quê?
- Sobre papai ter uma amante? Eu não acredito nisso.
- Eu tampouco.
- Será que escutei direito? Pode ser que ele tenha dito outra coisa, talvez amoque. O som parece com o de amante.
Letícia esboçou um sorriso.
- Amoque? Nem sei o que é.
- Amoque é o mesmo que amouco. Quer dizer mal humor.
- Como sabe dessas coisas?
- Aprendi com as palavras cruzadas. Gravei esse nome.
- Pode ser.
- É, vai ver vovô quis dizer que papai é dotado de mau humor. Não é?
- Sim, meu querido - Letícia afagou seus cabelos anelados e o beijou na testa. - Agora precisa dormir. Amanhã eu prometo que vamos assistir a todos os episódios de CSI.
- Jura?
- Prometo - ela fez uma cruz com os indicadores e os beijou.
- Eu amo muito você e papai. Somos uma família feliz.
Letícia teve vontade de abraçar o filho e chorar. Ricardo tinha um coração puro. Ele ainda não entendia nada do mundo dos adultos. Respirou fundo e o beijou novamente na testa.
- Também o amo demais. Mais que tudo. Boa noite.
- Boa noite, mãe.
Despediram-se, ela se afastou e desceu. Mila e Leandro estavam sentados na sala de estar, sem trocar uma palavra. Letícia sorriu para a amiga:
- Importa-se se não assistirmos ao filme com o Patrick Dempsey hoje?
- De forma alguma, querida.
- Eu pediria que você fosse para sua casa. Quero ter uma conversa com Leandro.
- Estava esperando você descer para me despedir. Mila levantou-se e despediu-se de Leandro. Letícia acompanhou-a até a porta.
- Você está bem? - inquiriu Mila.
- Não. Estou aturdida.
- E Ricardo?
- Deitou-se e me parece bem. Ele acha que entendeu errado, que o avô disse outra palavra.
- Se quiser, eu fico.
- Não, querida. Preciso conversar a sós com o Leandro.
- Não prefere esfriar a cabeça, descansar e conversar amanhã ou num outro momento?
- De jeito nenhum.
- É um assunto delicado, Letícia.
- Se eu não falar agora, vou ficar entalada, perturbada e não vou pregar o olho à noite toda. Fizemos orações e a casa está em paz, não é mesmo? Preciso falar com ele para que a paz continue reinando. Você me entende?
- Pensando assim, você tem razão. Para que deixar para amanhã?
- Trata-se de nossa vida íntima. Não posso mais ficar calada.
- Se acha melhor assim... Quer dizer, Ricardinho está engatinhando para a adolescência, pode ser mesmo que escutou errado, fez confusão com o que o avô disse e...
Letícia a cortou com delicado gesto de mão.
- Por favor, Mila. Você é minha melhor amiga. Uma irmã para mim. Não me faça eu me sentir mais idiota do que estou me sentindo. Meu filho não faria um comentário assim tão vil à toa. Ricardinho é ingênuo ainda. Ele tem um coração puro e talvez tenha mesmo se confundido ou queira acreditar que ouviu errado. Mas nós duas somos adultas. Sabemos o que ocorre. Minha mãe já tinha me alertado que amigas lá do clube viram Leandro ao lado de outra mulher.
- São mexeriqueiras, fofoqueiras. Não pode ligar para esses comentários. Você é uma pessoa pública e sabe que seus passos são vigiados pelo mundo todo. Somos pessoas conhecidas da sociedade. Qualquer deslize aparece imediatamente.
- Por essa razão você tem uma vida discreta. Eu deveria fazer o mesmo.
Mila passou delicadamente a mão sobre o ombro de Letícia.
- Somos diferentes. Você tem um carisma excepcional e é benquista. Eu gosto de ficar anônima. Em todo caso, saiba que o espírito de seu pai está perturbado. Pode ter inventado e provocado. Sabe que os dois nunca se deram bem. Converse com Leandro.
- Pode deixar - elas se abraçaram e Letícia sorriu - Prometo-lhe que não vou fazer barraco. Não é do meu feitio.
- Estarei vibrando positivamente por ambos. Sei que Leandro e você têm muito que conversar. Espero que se entendam de uma vez por todas.
- Obrigada. Boa noite.
Letícia esperou Mila entrar no carro, dar partida e sair. Depois, fechou a porta e caminhou vagarosamente até a sala de estar. Leandro estava ainda sentado, tamborilando nervosamente os dedos sobre uma mesinha lateral.
- Importa-se de conversar comigo na biblioteca?
- Vamos, sim.
Ele levantou-se e acompanhou a esposa. Letícia entrou no cômodo, fez sinal para ele entrar e se sentar. Em seguida, ela fechou a porta e sentou-se próxima do marido, mantendo relativa distância.
- O que tem a me dizer? - perguntou, encarando-o nos olhos.
Leandro não sabia o que falar. Sentia o ar lhe faltar, o rosto arder em chamas. Tinha mesmo vontade de que um buraco se abrisse ali mesmo e ele pudesse ser tragado e sumisse, sem ter de enfrentar sua esposa. O que fazer? Ele tinha medo de contar a verdade e perdê-la. Amava Letícia e não queria, de maneira alguma, ferir seus sentimentos. Uma voz amiga sussurrou em seu ouvido:
- Conte a verdade.
Leandro registrou as palavras, porém estava com medo. Muito medo.
- Se eu lhe contar a verdade, meu casamento vai acabar. Letícia não vai me perdoar - falou para si em pensamento.
- Seja verdadeiro. Não fuja. Fale com seu coração.
- Não sei se devo.
- Ela vai lhe entender.
Ele respirou fundo e começou a falar, desviando o seu olhar do dela.
- Eu poderia dizer que Ricardinho escutou errado, estava delirando, ou usar de outras desculpas esfarrapadas. Poderia inventar histórias e daríamos o caso por encerrado.
- Quero que me diga a verdade. Só isso.
- Bom - Leandro procurou forças para continuar. A voz estava entrecortada pela emoção, mas ele assim mesmo prosseguiu: - Tudo começou quando seu pai morreu...
Num relato verdadeiro, com a voz muitas vezes embargada, repleta de sinceridade, Leandro falou sobre o desinteresse de Letícia por ele, as desculpas que arrumava para não terem intimidade. Contou tudo sobre seu envolvimento com Denise, sem esconder absolutamente nada.
- Ela não é minha amante. Eu nunca quis ter uma. Eu me encontrava com ela porque você não me queria. Eu me senti perdido, largado. O seu desinteresse muito me machuca porque prova que você não gosta de mim. Eu fiz votos na casa de Deus e sempre desejei ficar ao seu lado até que a morte nos separasse.
Letícia sentiu um nó na garganta. Ela o amava acima de tudo, porém não conseguia explicar o que acontecera desde a morte do pai. Era como se houvesse uma grande barreira que a impedia de aproximar-se do marido. O simples toque de Leandro a deixava enjoada. Achava isso tudo natural, pois ela nunca fora uma mulher de ardentes desejos. No início do casamento ela até que se deitava com o marido com certa regularidade. Mesmo assim, era um tormento para ela. Conseguia disfarçar e logo em seguida virava-se e procurava esquecer o ato sexual e dormir. Quando o pai morreu, Letícia não conseguia nem mais disfarçar a falta de desejo como também nascera, nessa mesma época, a súbita repulsa ao menor contato com Leandro. Emerson aproveitara-se dessa certa falta de libido da filha e passara a influenciá-la de maneira a não mais se relacionar com Leandro. Ele vinha fazendo isso havia dois anos, desde que morrera e descobrira que seu espírito estava mais vivo do que nunca. Ao perceber que a filha acatava a sua aversão como se fosse dela própria, urrou de felicidade. Afinal, seu real desejo era separar Letícia de Leandro. Tinha muita raiva do genro, sem motivo aparente. Leandro achegou-se a ela, ajoelhou-se e finalmente a encarou:
- Letícia, escute. Eu sou homem e tenho vontades e desejos. Você foi me repelindo, fazendo eu me sentir um lixo. Eu a amo e sempre quis me relacionar tão somente com você. Eu posso jurar que Denise nunca significou nada para mim. Nada. Eu amo você. Se me der uma chance, prometo-lhe ser o melhor marido do mundo e...
Ele não conseguiu terminar de falar. As lágrimas escorriam incontroláveis e sinceramente Leandro mostrava estar arrependido. Se pudesse voltar no tempo, nunca teria se envolvido com Denise. Letícia relutou o quanto pôde, contudo, amava o marido. De verdade. Havia sido criada com tantos condicionamentos errados acerca da sexualidade que achava a intimidade algo ruim, sujo e pecaminoso. Fora criada sob os ditames da igreja. E, na sua religião, sexo fora do casamento era um tremendo pecado. Como ela se deixara envolver e engravidara antes de se casar, sentia que tinha cometido grave pecado e que Deus um dia iria julgá-la. O seu analista a ajudava a livrar-se dessas crenças e mostrava que ela deveria deixar-se guiar pelo sentimento de amor. Letícia mordiscou os lábios e, ao ver aquele homem apaixonado ali agachado, chorando e dizendo que a amava, não resistiu. Abaixou-se e o abraçou com força.
- Desculpe querido. Eu fui uma tola.
- Não diga isso.
- Estava afastando você de mim e iria perdê-lo.
- Desculpe-me. Jamais quis ferir seus sentimentos.
- O meu afastamento estava contribuindo para destruir nossa família. Eu o amo tanto!
- Verdade?!
- Você não tem idéia do quanto eu o amo, Leandro.
- Mas nunca demonstrou.
- Eu tenho aprendido. Quero mudar para melhor. Você é o homem da minha vida!
Os dois abraçaram-se e beijaram-se com sofreguidão, misturando beijos e lágrimas. Leandro e Letícia sentiam os corpos estremecerem tamanha emoção.
- Você me perdoa?
- Eu?! - perguntou ele, atônito.
- Sim.
- Eu é que preciso de seu perdão. Prometo-lhe que vou ser mais paciente. Sei que sou ótimo pai. Também quero ser um ótimo marido.
- Você sempre foi um marido exemplar, de conduta irrepreensível.
- Eu falhei. Cometi adultério.
- Não pense dessa forma. Adultério seria se você se deitasse comigo e com outra. Eu não queria me deitar com você. Acabei empurrando-o para os braços de outra.
- Fui um fraco.
- E eu fui intransigente - finalizou Letícia. - Sou mulher, de carne e osso, e também sinto desejos. Eu estou aprendendo a lidar melhor com minha sexualidade. Tenha paciência comigo.
- Oh, minha querida. Eu a amo! Amo!
Leandro a beijou novamente nos lábios. Não falaram mais nada. Levantaram-se. Ele estendeu o braço e ela tomou sua mão. Subiram até o quarto em silêncio e fecharam a porta.
- Vamos deitar e dormir um pouco. Foi uma noite muito difícil - tornou ele.
Letícia sorriu maliciosamente.
- A noite mal começou...
Ela falou e foi desabotoando o vestido de maneira sensual. Leandro mal podia acreditar no que via. Abriu largo sorriso e abraçou a esposa.
- Eu a amo. Muito!
- Eu também o amo. Demais!
Foi a primeira vez que Letícia entregou-se totalmente ao marido. Sem repúdios, sem medo. De corpo e alma. Foi uma noite inesquecível de prazer e reconquista, para ambos. Depois que espíritos guardiões e sentinelas passaram a fazer ronda Emerson não podia mais se aproximar da casa de sua filha, todavia podia influenciai negativamente as pessoas ao seu redor. Quer dizer podia influenciar as pessoas que eram invigilantes que não tomavam conta dos próprios pensamentos. Era uma questão de afinidade energética. Se a pessoa tivesse uma cabeça boa e estivesse ligada no bem, com bons pensamentos, ele não conseguiu estabelecer nenhum tipo de influência. O contato, ou a influência, eram nulos. Se a pessoa tivesse uma cabeça cheia de dúvidas, preocupações e negatividades tornava-se prato cheio para que Emerson pudesse transferir por meio dessa vibração pesada toda a sua ira. No Rio de Janeiro ele tinha algum domínio energético sobre Teresa. Sua esposa era mulher fútil e deslumbrada. Teresa era muito ligada nas aparências e vivia dentro de um mundo de regras rígidas de comportamento. Seguia à risca todas as grandes cartilhas de comportamento. A palavra dos outros era muito mais forte do que a palavra dela própria. De certa maneira ela tornara-se escrava dos comentários maledicentes dos outros. E também agiu dessa forma. Adorava falar mal de alguém e fofocar sobre a vida alheia. Não por maldade. Teresa fora criada assim e acreditava que falar mal de alguém era algo absolutamente natural. Afinal de contas, todas as suas amigas também agiam dessa forma. Por esse motivo era muito fácil mesclar suas energias com as de Emerson para atazanar a vida de Letícia e Leandro. Ocorre que desde o incidente com o romance espírita, Teresa evitava visitar a filha. Sempre à distância, Emerson perseguia o casal. Estava possesso. Dissera para a filha - por intermédio do neto - que o marido a traía e agora os via juntos, abraçadinhos e cheios de amor para dar. Tentava emitir vibrações de desconforto, mas elas iam e se desmanchavam no ar ao se aproximar do casal.
- Não pode ser! Se eu fosse dado a beber, talvez estivesse alucinando. Depois que revelei a verdade e o caráter duvidoso do meu genro, parece que minha filha está mais ligada a ele! Eu não entendo. Confesso que não entendo. Estão mais unidos do que nunca. Deveriam estar separados, isso sim!
Estava ele perambulando nas proximidades do condomínio, alguns dias depois, quando leu o pensamento do motorista. O rapaz iria levar a filha e o genro até o aeroporto. Ele não teve dúvidas. Esperou-os entrar no carro e em seguida transportou-se até a área de embarque do Santos-Dumont. Meia hora depois, Emerson viu os dois saírem do carro rumo ao balcão da companhia aérea. Pareciam dois enamorados. O espírito irritado tentou aproximar-se, mas uma barreira energética o mantinha a alguns metros de distância. Mesmo assim escutou-os:
- Confesso que abrir meu coração, falar a verdade foi à melhor coisa do mundo. Lavei a alma.
- Eu também, querido.
- Eu a amo e sempre vou amá-la. Minha vida não tem sentido sem você por perto.
Letícia abriu largo sorriso.
- A minha também não.
- Nascemos um para o outro.
- Acho que Mila me ajudou muito mais que o analista. Eu me machucava emocionalmente para não ter prazer. Eu também sempre o amei. Fui à culpada por ter feito você se aninhar nos braços de outra.
- Não diga isso.
- Vamos ser verdadeiros. Eu sempre senti deseje por você, mas algo dentro de mim evitava a aproximação. Entendo que você deve ter se sentido rejeitado.
- Perdi minha auto-estima. Passei por períodos difíceis. Eu a amava e não podia tê-la. Imagina o sofrimento?
- Claro que imagino. Como também acredito que você possa sentir a minha angústia toda vez que tinha de me deitar ao seu lado.
- Faz parte do passado. Quero tê-la sempre!
- Agora pode. Sempre vai me ter.
- Eu sou o homem mais feliz do mundo. Nada vai atrapalhar a nossa união.
Beijaram-se com carinho e Emerson quase explodiu de raiva.
- Maldição! Mil vezes maldição! Como Letícia pode se deixar levar pelas palavras desse cretino? O que eu fiz de errado? Ela deveria estar odiando esse homem.
- Não está. Muito pelo contrário.
- Eu tentei abrir o olho dela. Revelei ao meu neto a verdade. Não entendo. Sinceramente, não entendo.
- Eu disse que não seria fácil.
Emerson por um momento perdeu o contato com a filha e o genro. Olhou para Leônidas e falou com desdém:
- Ah, você de novo. O tal espírito de luz.
- Por que não vai cuidar dos seus sentimentos, meu amigo?
- Por que não vai cuidar da sua vida? - rebateu Emerson.
- Não entendo por que se preocupa com pessoas e com um mundo que não lhe pertence mais.
- Eu pertenço a este mundo.
- Como? Diga-me.
- Hã?
- Consegue interagir e participar? Não. Você só consegue atrapalhar as pessoas com a sua energia de desequilíbrio. Por que não vem comigo para um tratamento?
- Nem mil vezes morto! Daqui não saio. Aliás, estou perdendo-os de vista. Preciso saber onde os pombinhos estão indo. Até.
Leônidas deu de ombros. Vislumbrou um halo de luz violeta e o projetou em direção a Leandro e Letícia. Desejava o bem-estar do casal. Na chegada a São Paulo, Leandro hospedou-se com a esposa num luxuoso hotel. Ele era benquisto pelos funcionários, tinha carisma e era muito simpático. Letícia era figura conhecida e também benquista. Não fizeram reserva, o hotel estava lotado, contudo não foi difícil para que lhes arrumassem rapidamente uma excelente suíte. Leandro cochichou algo no ouvido do gerente do hotel. O rapaz sorriu e fez sinal afirmativo com a cabeça. Em seguida, Leandro conduziu a esposa até o bar.
- Não podemos subir?
- Ainda não. As camareiras estão arrumando. Quer tomar um refresco, um drinque?
- Um suco de tomate.
Leandro fez o pedido no bar e meia hora depois subiram para a suíte. Quando Letícia entrou no quarto, seus olhos amendoados brilharam emotivos.
- Como fez tudo isso?
- Pedi ajuda aos funcionários.
Havia um balde de prata, finíssimo, com gelo e champanhe sobre uma das mesinhas de cabeceira. Um lindo vaso com rosas amarelas e brancas foram colocado sobre uma mesa lateral. O quarto estava agradavelmente perfumado e sobre a cama havia uma pequena caixa de veludo.
- Não vai abrir?
Ela sorriu e correu até a cama. Sentou-se e abriu a caixinha, mãos trêmulas de emoção.
- Oh, Leandro, é lindo!
Letícia levantou-se e o beijou emocionada. Era uma corrente de ouro com dois menininhos também feitos do mesmo material. Num estava escrito com amor, Leandro, e no outro com amor, Ricardo.
- Que coisa mais linda.
- Foi idéia minha e de nosso filho. Para você estar sempre conosco.
Leandro pegou a corrente e delicadamente colocou sobre o pescoço da esposa. Letícia fez gesto delicado e levantou os cabelos acima da nuca.
- Pronto. Agora você está cercada pelos dois homens de sua vida.
Ela riu e o beijou com ternura.
- Por falar em dois amores, preciso ligar para Iara saber se Ricardinho chegou da escola, se ele não se acidentou novamente...
- Por certo. Ligue para casa enquanto eu ligo meu notebook. Preciso responder a alguns e-mails do pessoal do escritório.
Foi na hora do almoço que ambos decidiram ir ao restaurante ali perto. Entraram sorridentes e abraçados. Letícia estava se sentindo a mulher mais feliz do mundo e exalava uma energia inebriante, contagiosa, gostosa, que naturalmente atraía a atenção das pessoas. Não parava de passar os dedos sobre as miniaturas em seu pescoço. Denise deixou Inácio falando sozinho e caminhou de maneira abrupta, batendo o salto com força. Quase derrubou o garçom que passava ao lado. Feito um tufão, foi cortando as mesas até parar na frente de Leandro. Ele a olhou de cima a baixo e fingiu não conhecê-la. A atitude só contribuiu para Denise querer matá-lo de tanto ódio. Disse com voz tremendamente irritadiça e quase esganiçada:
- Como vai, Leandro?
- Oi - falou ele com a voz fria e lacônica.
- Temos reunião amanhã.
- Não quero tratar de negócios agora.
- Estamos tentando ligar e você não atende. Precisamos acertar alguns detalhes antes.
- Olha, eu não participo mais dessas reuniões. Um funcionário competente será designado para tratar do assunto - ele retirou um cartão e anotou um nome. - Ligue para a Companhia e procure por este funcionário. Garanto que será prontamente atendida.
Denise espumava de ódio. Mediu Letícia com olhar odioso.
- Eu sou Denise.
Com a maior delicadeza do mundo, Letícia respondeu:
- Prazer. Eu sou Letícia, esposa de Leandro.
- Ele já falou de mim?
- Querida, vamos para a nossa mesa. O maître está chamando - emendou-o, tentando evitar dissabores.
Letícia fez uma mesura negativa com as mãos.
- Imagine querido. Já vamos - e, virando para Denise, respondeu de forma natural - Leandro já falou de você. Eu sei de tudo.
- Tudo o quê? Quero saber!
- Tudo sobre o envolvimento de vocês dois.
- Mesmo? - perguntou Denise, acreditando que Letícia estivesse blefando por pura educação.
- Sim, tudo. Sei que Leandro se deitava com você por exemplo. Sei que foram amantes por um período. Mas agora ele não vai se deitar mais com você.
- Ele não pode me largar assim, sem mais nem menos. Eu tenho sentimentos - mentiu.
- Não acredito. Soube que estava casada quando teve um caso com meu marido.
Denise fechou os punhos para conter a raiva.
- Eu faço um escândalo! Vamos todas parar no jornais. Não teme pela sua reputação? - arriscou.
- Nem um pouco.
- As pessoas podem rir de você.
Letícia deu de ombros.
- Não me importo com o comentário dos outros. Não me importo com os seus comentários. Tudo que me interessa é que eu viva em paz com me marido e meu filho. Mais nada. Denise alteou o tom da voz:
- Eu disse que faço um escândalo! Vou naquele programas vespertinos que adoram espinafrar a vida das pessoas. Conto tudo sobre meu envolvimento com Leandro.
Letícia meteu-lhe o dedo em riste. Encarou-a nos olhos. Denise recuou o passo.
- Eu não tenho medo de você.
- Não?! Duvido.
- Faça um escândalo que eu faço outro. Vamos ver de que lado as pessoas vão ficar: do meu lado, que sou uma mulher de bem, ou do seu lado, sua víbora. - Letícia abaixou o tom de voz: - Vá procurar outro homem para se deitar, sua vadia!
Denise levantou a mão, porém Leandro foi mais rápido e a segurou no ar.
- Se encostar um dedo em minha mulher eu não sei do que sou capaz.
- Solte-me, seu cretino!
- Por favor, saia da nossa frente, suma da nossa vida.
- Se continuar a se comportar de maneira inconveniente, vamos à polícia dar queixa.
- De nada vai adiantar.
- Acaso não tem dignidade? - perguntou por fim Letícia, de maneira surpreendentemente firme. - Vá procurar as pessoas da sua laia.
- Vocês me pagam! Seus ordinários.
Denise falou e saiu pisando duro. Nem esperou por Inácio. Chegou à porta do restaurante, passou na frente de outros clientes e gritou com o manobrista para pegar seu carro. No estado de fúria em que se encontrava, bateu boca com clientes. A fim de evitar mais confusão, o manobrista correu e passou o carro dela na frente. Denise entrou, bateu a porta com força e acelerou feito uma desvairada, cantando os pneus. Dentro do restaurante, já sentados, o maître perguntou sem graça:
- Está tudo bem?
- Sim.
- Peço desculpas em nome de toda nossa equipe. Lamentamos o incidente - continuou o maître.
- Não se preocupe. Estou bem. Já passou - falou Letícia.
- O almoço será por conta da casa.
- Imagine - protestou Leandro.
- Fazemos questão.
Alguns minutos depois uma simpática garçonete trouxe um buquê de rosas e o entregou para Letícia.
- Em nome de todos os funcionários do restaurante, d. Letícia.
- Oh, são lindas - ela aspirou o perfume suave das rosas. - Obrigada. De coração.
- Admiramos muito a senhora. É uma honra servi-la. Com licença.
A moça fez uma mesura com a cabeça e retirou-se. Leandro sorriu e pousou as suas mãos sobre as da esposa.
- Você é uma mulher carismática, uma mulher que exala bondade. Sinto tanto orgulho de você, minha querida.
- Estou emocionada com o carinho dessas pessoas que mal conheço. Quanta gentileza!
- Você foi forte. Corajosa.
- Nunca pensei que tivesse de passar por uma situação dessas.
- Nem eu. Você foi espetacular. Foi digna.
- Fiz tudo isso guiada pelo meu coração. Não quero ninguém atrapalhando a nossa vida daqui por diante, nem essa mulher, nem minha mãe, nem ninguém. Mila sempre me falou que somos responsáveis por tudo o que nos acontece. Agora começo a entender o significado disso. Se não formos firmes e claros, as pessoas não nos entendem.
- Você se fez respeitar. Denise é mulher agressiva e vingativa.
- Mas não deixa de ser uma mulher como qualquer outra. Nem ela, nem ninguém, poderão ser mais fortes do que o amor que sinto por nós.
Ele levou delicadamente a mão dela até os lábios e beijou-a.
- Obrigado por tudo. Eu a amo.
Longe dali, Emerson era pura alegria. Estava tão feliz! Encontrara uma parceira na cidade. Denise dava largas a todo pensamento vil que ele emitia.
- Eles não prestam! - esbravejou ela, depois de cortar um veículo à sua frente e parar sobre a faixa de pedestres, assustando os passantes.
Emerson, sentado no banco do passageiro, mexia a cabeça para os lados.
- Não! Ele é que não presta. Letícia não tem nada a ver com isso.
Denise registrava a fala do espírito como se fosse dela própria. Repetia em alto som:
- E, a mulher foi meio dura, mas caiu na lábia dele. Leandro não presta. Ele é que é o safado da história.
- Precisamos dar uma lição nele.
- Isso. Preciso dar uma lição nele - repetia ela. Enquanto ela praguejava, Emerson se contorcia de felicidade.
- Mais uma aliada!
Os dias passados na casa dos pais fizeram muito bem a Edgar. Algumas semanas depois ele estava de volta às suas atividades rotineiras. O amigo Adriano fez questão de pegá-lo e levá-lo até seu apartamento.
- Não precisavas te incomodar. Eu e Fernando faríamos isso.
- De maneira alguma, d. Maria José. Eu e Patrícia queremos levar seu filho para a casa dele.
- Está tudo arrumado?
- Sim. Conversamos com a Delis. Ela fez uma bela faxina, escondeu porta-retratos. Deixou o apartamento bem arrumadinho, sem rastros aparentes de Denise.
- Edgar vai se lembrar de tudo o que aconteceu assim que colocar os pés lá dentro.
- Precisa entender que seu filho não pode fugir da realidade - tornou Patrícia com a voz doce, porém firme.
- Meu filho não é um fujão. Foi abandonado por aquela mulher. Vanda muito o ajudou na recuperação, mas ainda sinto que Edgar precisaria ficar mais um pouco conosco.
- Ele precisa ir para sua própria casa, ter contato com as suas coisas. Ele não é mais um garoto e precisa tomar as rédeas de sua vida.
- Ela tem razão - disse Fernando ao entrar na sala. - Nosso filho precisa voltar a ter uma vida normal.
Maria José ficou um tanto contrariada. Acostumada sempre a ditar as regras e proteger o filho, sentiu que não tinha como argumentar. Sempre tivera forte ascendência sobre Edgar e, nesses dias em que ele ficara em sua casa, ela pôde novamente exercer as funções de mãe super protetora.
- Podemos passar essa noite ao lado dele.
- Negativo Maria José. Edgar precisa enfrentar sozinho a realidade dos fatos.
Patrícia interveio:
- O apartamento agora está com uma energia boa. Antes de vir para cá eu passei lá e conferi o serviço da empregada. Depois, fiz sentida prece para que Edgar volte a ser feliz naquele lar abençoado. Seu filho vai se recuperar prontamente.
- Energia boa? Que história é essa de energia? - perguntou Maria José, interessada nas palavras doces daquela moça tão simpática.
- O apartamento está com bom astral - respondeu Patrícia. - O ambiente está agradável. A gente sente paz e serenidade quando entra. Posso tentar explicar. A senhora gostaria de me ouvir?
- Por certo.
- Vou subir e ver se Edgar está pronto - disse Adriano.
- Eu o acompanho - tornou Fernando.
Patrícia sorriu e conduziu Maria José até o sofá. Sentaram-se lado a lado.
- Dona Maria José, algum tempo atrás uma amiga me convidou para jantar em sua casa. Aceitei o convite, pois ela é uma pessoa ótima, bem-humorada, uma companhia muito agradável. Iríamos aproveitar para matar as saudades também.
- Continues.
- Quando eu estava pronta para sair de casa, ela me ligou pedindo para desmarcar o jantar. De uma hora para outra ela ficou com dor de cabeça, mal-estar, quebradeira...
- Assim, de repente?
- De repente. Num estalar de dedos.
- Pobrezinha. Deve ter tido um mal-estar súbito.
- Por acaso, a senhora já se sentiu tomada por um desconforto, sem motivo aparente?
- Sim.
- Já aconteceu de estar bem, alegre, disposta e, numa questão de horas ou até minutos, ficar irritada, ou como se diz popularmente, de bode?
- Afirmativo.
- Já sentiu aquela coisa esquisita no quarto, como se fosse uma presença, sendo que estava sozinha?
- Acontece muitas vezes. Penso ser Fernando passando no corredor e não há ninguém. Chego até a sentir arrepios e calafrios pelo corpo.
- Tanto a senhora quanto eu sentimos essas coisas porque a natureza nos deu a sensibilidade, a amplitude de percepção. Dona Maria José, já percebeu como à senhora é uma pessoa sensível?
- Que eu saiba assuntos ligados à sensibilidade são características de médiuns, fenômenos espíritas, Centro Espírita, não?
- De forma alguma. A sensibilidade é uma característica do ser humano. Tanto eu, como à senhora, seu marido e o meu, seu filho, enfim, todas as pessoas neste mundo a têm. Compreenda que todos nós temos sensibilidade, e que algumas pessoas têm a sensibilidade mais aguçada que outras só isso. Ninguém é melhor ou pior por ter essa qualidade mais forte. Só é diferente!
- Não existe o mais burro ou o menos burro, mas aquele que se prontifica a estudar, entender, absorver conhecimentos, e aquele que não gosta muito de dar atenção ao estudo, sendo que a inteligência também está aí para todo mundo. Vejo muito isso acontecer no meio acadêmico.
E com a sensibilidade não é diferente. Se passar a dar mais atenção à sua sensibilidade, a como sente as coisas e às pessoas, o mundo vai lhe dar o alimento para que essa característica cresça em você. Tudo o que pomos atenção, tudo o que estimulamos dentro de nós, acaba crescendo, sempre. Isso me fez perceber como todos nós somos sensíveis.
- Isso é verdade, miúda. Não quero que meu filho pegue as energias perniciosas daquela mulher. Gostaria de evitar um mal maior. O meu coração está tão apertado!
- Edgar precisa tornar-se emocionalmente forte. Só dessa maneira vai se livrar das influências de Denise. Ele tem seus amigos, a mim e Adriano, tem seu Fernando e tem a senhora, que é uma mulher de fibra, inteligente, determinada e boa.
Maria José emocionou-se. Abraçou-a com carinho.
- Tuas palavras tocam fundo a minh'alma.
- É porque falo também com o coração.
- Que Deus nos abençoe para que possamos ajudar o meu filho.
- Todos vamos nos fortalecer com isso. Pode acreditar.
Logo ouviram passos na escada e Edgar descia acompanhado do pai. Adriano vinha logo atrás carregando pequena mala. Ele sorriu e disse:
- Bom, acho que está na hora de eu partir.
Ele abraçou a mãe. Maria José beijou-o nas bochechas com carinho.
- Sabes que esta casa é tua.
- Claro que sei mãe. Agradeço imensamente a hospitalidade, o carinho e dedicação que me dispensou nestas últimas semanas.
- Volte sempre que quiseres.
- Obrigado, mãe. Tudo vai ficar bem.
- Juras?
- Prometo. Juro.
Maria José procurou retribuir o sorriso. Queria e desejava o melhor para seu filho, mas seu coração de mãe não acreditava na melhora súbita de Edgar. No entanto, depois da conversa agradável com Patrícia, resolveu não falar. Abraçou-o com carinho, beijou-o novamente na face e finalizou:
- Que Deus te acompanhes meu filho.
Em seguida, Edgar abraçou-se ao pai e saiu. Entraram no carro e o trajeto transcorreu agradável. Chegaram ao prédio no finzinho da tarde. O porteiro abriu largo sorriso ao vê-lo no banco de trás do carro.
- Seja bem-vindo, Edgar.
O rapaz abriu a janela e acenou.
- Hum, o portão foi arrumado. Até que enfim.
- Sim, Edgar. Está tudo em ordem.
- Obrigado, João.
- Não tem que agradecer rapaz.
Edgar saiu do carro e foi até o porteiro. Abraçou João e o agradeceu com sinceridade tocante.
- Você salvou a minha vida.
- Que nada - respondeu ele, meio sem jeito, desacostumado a receber esse tipo de tratamento.
- Muito obrigado por tudo.
João não respondeu tamanha emoção. Edgar deu as costas e entrou no carro. Adriano desceu a rampa da garagem. João disse para si:
- Esse homem merece uma mulher de coração tão nobre quanto o dele. Espero que a d. Denise suma de vez da vida dele. Que ela nunca mais apareça por aqui. Que Deus a mantenha afastada desse rapaz.
Dentro do apartamento, Edgar sentou-se no sofá.
- A casa está arrumada e perfumada do jeito que eu gosto.
- Delis veio ontem. Deixou tudo em ordem. Há até uma travessa com berinjela à parmegiana na geladeira. É só esquentar no micro-ondas.
Ele esboçou leve sorriso.
- Delis sabe do que gosto. Adoro esse prato.
- Só que tenho uma notícia chata - emendou Patrícia.
- O que foi?
- Delis disse que não vem mais.
- Por quê? - perguntou Edgar. - Sempre nos demos tão bem!
- Ela recebeu uma proposta de trabalho em outra casa. Parece que é uma família dos Jardins, bem rica. Ela vai ganhar bem mais do que ganhava como diarista.
- Se for para o melhor da Delis, ótimo.
- Se quiser - disse prontamente Patrícia - posso perguntar para minha empregada se ela tem algum dia de folga.
- Você cuidaria disso para mim?
- Claro Edgar. Somos seus amigos.
- É que a Denise é quem cuidava desses assuntos. Agora não sei como fazer. Sinto-me meio perdido ainda.
- É natural. Logo você aprende. É bom aprender a gerenciar a casa, as compras, as coisas.
- Não sei. Denise é quem fazia tudo. Tudo.
Adriano percebeu que o assunto iria ficar pairando sobre Denise. Procurou dar outro rumo à conversa: - Pois bem, campeão.
- Diga!
- Quando vamos retomar nossas corridas no parque?
Edgar olhou para o teto, pensativo.
- Não sei. Estou parado há semanas. Não sei se quero voltar.
- Nada disso - protestou Patrícia. - Você precisa se exercitar. Está um pouco cheinho.
Edgar tinha pavor de voltar a engordar e ser aquele bolachão que fora na adolescência. Preocupou-se:
- Acha mesmo que engordei?
Adriano assentiu com a cabeça.
- Acho, sim. Mas nada que a retomada da rotina de exercícios, da corrida principalmente, para você voltar logo à forma antiga.
- Então vamos recomeçar amanhã.
- Gostei de ver. Senti firmeza - respondeu o amigo.
- Logo cedo vamos correr e depois vou trabalhar. Quero estar com boa aparência ao chegar à empresa.
- Você está com bom aspecto. Um tanto melancólico, mas no geral está bem.
- Sinto saudades de Denise. Aonde foi parar o porta-retrato de nosso casamento? - ele se levantou e foi até uma pequena cômoda.
Adriano e Patrícia entreolharam-se.
- Delis o guardou - falou o amigo.
- Não gosto que mexam nas minhas coisas. Onde ela colocou o porta-retratos?
- Meu amigo, por favor...
Patrícia silenciou o marido.
- Deixe Adriano. Eu vou pegar. A Delis me disse onde o guardou. Volto num instante.
Ela saiu na direção dos aposentos e Adriano sentou-se ao lado do amigo.
- Edgar, não quero mais vê-lo sofrer.
- Eu preciso falar com Denise.
- Para quê?
- Que seja uma vez só. Se ela não me quiser, eu juro que nunca mais vou procurá-la. Mas eu tenho o direito de saber o que aconteceu.
- Ela o abandonou. Ponto final.
- Cadê a notificação do juiz?
- Que notificação?
- Se ela quis mesmo separar-se de mim, por que não fui notificado ou intimado? Faz semanas que tudo aconteceu e pelo que consta ainda somos legalmente casados.
- Tem razão. Se a separação for mesmo definitiva, Denise deveria já ter entrado com pedido de separação consensual.
- Como assim?
- O casal por consentimento mútuo requer a dissolução da sociedade conjugal estabelecendo, no seu caso, a partilha de bens.
- Ela não deu sinal de vida. Nada. Acho que vai voltar para mim. Eu sinto isso.
Adriano ia falar, porém Patrícia entrou na sala, trazendo o porta-retratos.
- Aqui está.
Os olhos de Edgar brilharam emocionados. Pegou o objeto e o levou ao encontro do peito. Depois, beijou a foto.
- Adoro esse retrato.
- Lembro-me bem, afinal fui seu padrinho de casamento.
- Foi o dia mais feliz da minha vida.
- Você terá outros dias felizes, meu amigo.
- Eu sei. Pode ser.
- Precisa de mais alguma coisa? - perguntou Patrícia.
- Não, meus queridos. Está tudo bem.
- Mesmo?
- Sim. Podem acreditar em mim. Eu gostaria de ficar sozinho. Tudo bem?
- A Dra. Vanda afirmou que você está se recuperando maravilhosamente bem - ponderou Adriano.
- Estou fazendo três sessões por semana. Logo ela me disse que vamos passar para duas, depois para uma sessão, até eu receber alta.
- Fico feliz que esteja cuidando de sua cabeça.
- Vocês também têm vida. Vão cuidar dos seus afazeres.
Patrícia consultou o relógio.
- Temos hora marcada no dentista.
Adriano levantou-se e o abraçou:
- Amanhã, às seis da manhã.
- Contem comigo. Amanhã, às seis da manhã estarei no parque, no mesmo local.
- Não deixe de ir.
- Nosso grupo aumentou - disse Patrícia.
- É mesmo?
- Sim. Temos outros corredores. Os velhos amigos de corrida estão com saudades de você.
- Amanhã mataremos as saudades. - Ele virou-se para Adriano e perguntou: - As pessoas sabem por que sumi por uns tempos?
- Não. Dissemos que você teve de fazer uma viagem de negócios e que voltaria em breve.
- Fomos discretos - tornou Patrícia.
Edgar sorriu e a abraçou.
- Você é muito legal, Patrícia. Obrigado por tudo, viu?
- Gostamos de você. Não é isso que os amigos fazem?
Eles se despediram. Depois de fechar a porta, Edgar correu até o telefone e ligou no celular de Denise. Deixou um recado curto, porém carregado de saudades. Em seguida foi tomar uma ducha.
- Ai que saudades de Denise...
Marina acordou bem cedinho, como vinha fazendo havia algumas semanas. Levantou-se bem-disposta. Espreguiçou-se, foi até o banheiro, fez a toalete e colocou a roupa do trabalho cuidadosamente num cabide. Em seguida, vestiu a roupa de ginástica que comprara com a ajuda de Elisa. Olhou-se no espelho e gostou do que viu:
- Meu corpo está mais fino, mais torneado. A corrida tem me feito tremendo bem. Vale à pena.
No começo tinha sido difícil programar-se para dormir cedo e acordar mais cedo ainda. Na primeira semana sentiu-se muito cansada. Chegava a casa, jantava e mal conseguia estudar as matérias da pós-graduação. Ela foi perseverante e na terceira semana já estava totalmente adaptada aos novos horários, Sentia-se mais leve, com mais pique para tudo.
- Ainda bem que posso contar com Elisa - disse para si enquanto se preparava para sair.
Elisa passava em sua casa às cinco e quinze da manhã, segundas, quartas e sextas-feiras. Chegavam ao parque pouco antes das seis da manhã. O grupo do qual elas faziam parte era diversificado composto por homens e mulheres de várias idades. Todos tinham em comum a vontade de manterem-se saudáveis, cultivarem uma amizade sincera, conservando sempre a simpatia e o alto-astral. Marina terminou de fazer sua malinha, foi até a cozinha, tomou um iogurte e comeu uma fruta. Encheu sua garrafinha de água e passou no quarto da mãe para lhe dar um beijo de despedida.
- Daqui a pouco tem remédio para tomar. Não esqueça.
- Pode deixar minha filha. Mas por que tem de sair tão cedo?
- Para me exercitar e ficar com boa saúde.
- Entendi o recado. Não quer ficar doente como sua mãe.
- Não foi o que disse. Você não é doente. Está assim mais pelo seu lado emocional. O médico disse que precisa fazer pequenas caminhadas, tomar um pouco de sol, ver gente. Você vive trancafiada nesta casa.
- Mas e a violência? Esta cidade não é a mesma de anos atrás. Tudo é perigoso.
- E vai ficar encarcerada, vendo TV o dia todo? Isso não é vida, mãe.
- E o que vou fazer? Tenho medo de sair.
- Por essa razão é que a sua pressão sobe. Está sempre tensa, nervosa.
- E não é para menos! Cadê seu irmão que sumiu e nunca mais entrou em contato conosco?
Marina virou os olhos.
- De novo esse assunto?
- É meu filho.
- Belo filho.
- O que posso fazer? Esquecê-lo?
- Sim, esquecê-lo. Ele não se esqueceu de nós?
- Sinto que existe algo estranho.
- Não há nada de estranho, mãe. Essa é a verdade. Você não enxerga a realidade porque não quer. Quantas e quantas vezes lhe disse que Jofre não quer saber de nós?
- Como pode falar com tanta propriedade? Porque nunca gostou de viver aqui. Nunca se deu bem comigo. Não queria trabalhar, tampouco estudar.
- E se ele estiver doente, precisando de algo?
- Não acredito.
- Você podia tentar ter notícias dele.
- Você não aprende mesmo! Se Jofre quisesse contato, teria mandado o endereço certo naquele envelope.
- Vai ver escreveu errado, o pobrezinho. Ele tinha dificuldade em juntar as letras.
- Porque não estudava. Nunca teve vontade de aprender.
- Não fale assim do seu irmão. Ele não conseguia aprender porque era desnutrido. Eu não o alimentava direito. Éramos muito pobres.
- Bobagem, mãe. O Jofre adorava cabular aula. Não sei por que o defende tanto.
- Ele é meu filho. Ficou bravo comigo e partiu.
- Como assim?
Consuelo mordiscou os lábios. Não tencionava abrir a boca. Pelo menos não naquele momento.
- Um dia eu e seu irmão tivemos uma discussão feia. Ele ficou muito nervoso, bravo mesmo. Disse-me que ia embora. E foi.
- E nunca mais voltou.
- Sinto pena de mim mesma - falou tristemente Consuelo.
- Sentir pena de si mesma é julgar-se incapaz de mudar os fatos ao redor.
- O que fazer para mudar?
- Mãe - Marina sorriu de maneira jovial. Segurou as mãos de Consuelo e tornou com a voz amável: - Cada um neste planeta tem sua necessidade, está aqui para cuidar da sua evolução.
- Acha que preciso tomar um passe?
- Pode ajudar, contudo saiba que tratamento espiritual dá alívio, mas não resolve o problema. Perceba mãe, é a sua vida que está doente e não você.
Uma lágrima escapou pelo canto do seu olho. Consuelo fora uma mulher forte e destemida no passado. Trabalhara duro na cidade grande. Mas a vida não lhe sorriu. O filho sumira de casa por culpa dela, acreditava. Desta feita ela entregara-se ao desânimo e estava sempre com um probleminha de saúde aqui, outro ali. Acreditava que estava ficando velha e que isso era algo natural.
- Eu gostaria de mudar, Marina. Sinceramente. Mas não consigo.
- Precisa mudar seu jeito de encarar os fatos. Está na hora de aproveitar o tempo que tem e fazer uma higiene mental, mexer no seu subconsciente. A higiene mental altera a freqüência das ondas mentais, mexendo com as idéias e promovendo mudanças positivas no pensamento.
- Não sei se conseguiria. Estou velha.
- Nunca é tarde para mudar.
- E as dores que sinto nas pernas?
- Os médicos não encontraram nada que justificasse essas dores. A fisiologia da doença está ligada à estrutura do pensamento. A mente é composta de milhares de conceitos. Ligue-se em pensamentos positivos, pense num corpo sadio, alimente sua alma com bons pensamentos. Isso vai ajudá-la a mudar. E, evidentemente, se você andasse um pouco mais, se exercitasse talvez o inchaço pudesse ter chances reais de diminuir.
Consuelo pendeu a cabeça para cima e para baixo.
- Está certa. Preciso promover mudanças.
- Fico feliz que queira mudar.
- No entanto, se você arrumasse alguém...
- De novo essa história?
- É. Se o Erivaldo não tivesse rompido o namoro...
Marina respirou fundo e pediu forças para não estourar. O dia mal estava começando e ela tinha de ouvir toda essa ladainha do passado. Aproximou-se da mãe.
- De uma vez por todas, vamos ser francas. Quero encerrar esse assunto agora. Eu não amava o Erivaldo. Eu gostava muito dele. Namorávamos desde a adolescência quando eu era empacotadora do supermercado. Depois, ele se apaixonou pela Elisete e se casou. Tiveram filhos. São felizes.
- Ele não podia ter desfeito o noivado.
- Qual nada. Noivado é coisa superada, antiga. Colocamos o anel mais por convenção social. Creio que ele queria casar porque se sentia responsável por estarem tantos anos ao meu lado. Erivaldo foi sincero mãe. Aprecio pessoas sinceras.
- Nunca mais você se apaixonou. Nunca mais saiu com outro rapaz.
- Porque ainda não apareceu um rapaz que desperte os meus sentimentos. Na hora certa, no momento certo, quando eu estiver preparada, tudo vai acontecer naturalmente.
- Fico feliz que pense assim. Pensei que não quisesse mais saber de envolvimento afetivo.
- Eu tenho muitas coisas para fazer, mãe. Tenho trabalho, estudo, exercícios... - Marina passou delicadamente a mão sobre o rosto cansado de Consuelo. - Não foi fácil recomeçar, mas estou aqui. Depois isso já faz alguns anos.
Ouviram uma buzina. Era Elisa.
- Preciso ir. Deixemos esse assunto enterrado lá no passado, de uma vez por todas. Entende que não fui abandonada pelo meu ex-noivo?
- Entendo, sim.
- Não fiquei com nenhum trauma e, caso apareça alguém, só para seu registro, mais uma vez vou avisá-la: vou me deixar envolver, sim.
- Vou rezar para você encontrar um bom homem.
- Reze para você ficar boa, isso sim. Marina falou, beijou a mãe e saiu.
Consuelo remexeu-se nervosamente na poltrona. Marina havia dito algo no meio da conversa que de certo modo a deixara profundamente perturbada: Aprecio pessoas sinceras.
- Fui sincera com Jofre e ele sumiu. Se eu fizer o mesmo com Marina e lhe contar a verdade, será que ela poderá fazer o mesmo? Oh, meu Deus! Será que serei punida?
Nova lágrima escorreu pelo canto de seu olho. Consuelo corroia-se de remorso por dentro. Sentia uma necessidade louca de revelar à filha absolutamente tudo sobre o seu passado Tim-Tim por Tim-Tim. A voz do seu coração lhe dizia para sentar-se com Marina e conversar. A voz da razão, por outro lado, dizia-lhe para continuar quieta. Afinal, de que adiantaria falar sobre um assunto tão espinhoso? Consuelo chegou a ter palpitações. Remexia-se na cama de maneira agitada. Pensou e pensou, remoeu o assunto por tantas outras vezes. Mas cadê a coragem?
- Não tenho coragem. Prefiro morrer a falar a verdade.
Elisa sorriu ao cumprimentar a amiga.
- Bom dia!
- Bom dia, Elisa.
- Você não está com a cara boa. Aconteceu alguma coisa?
Marina fez sinal afirmativo com a cabeça. Elisa acelerou o carro, pegou a Avenida Radial Leste e perguntou:
- Quer falar sobre o assunto?
- Você é boa amiga, Elisa. Nunca houve segredo entre nós.
- Obrigada pela confiança.
- Minha mãe defende meu irmão com unhas e dentes e isso me irritam profundamente.
- Por quê?
- Oras, por quê! Porque Jofre sempre foi um mau elemento, uma pessoa ruim mesmo. Nunca se deu bem comigo, destratava a minha mãe, gritava com ela. As nossas discussões eram acaloradas. Vivi anos terríveis ao lado dele. Quando foi embora, eu senti um alívio tão grande! E não me arrependo de ter tido esse sentimento.
- Também pudera. Você já me contou cada barbaridade que Jofre aprontava. É natural ter sentido alívio,
- Os anos foram passando, fomos melhorando de vida. Mamãe adoeceu e eu tenho tomado as rédeas da casa. Pago todas as contas, encho a geladeira, pago uma empregada que vem uma vez por semana.
- E, no entanto d. Consuelo sente saudades de Jofre.
- Não só sente saudades, Elisa, como também o defende! Diz que foi responsável por ele não ter concluído os estudos. Um absurdo. Ele não concluiu os estudos, ao menos o ensino fundamental, porque era vagabundo mesmo. Sempre foi.
- Sua mãe vive em outra realidade. Ela tem outra visão acerca dele, afinal é filho dela. As mães geralmente passam as mãos sobre a cabeça dos filhos. Sempre. É uma questão cultural. Eu, particularmente, creio que sua mãe saiba de fatos que você não tem conhecimento.
- Como assim?
- Eu sinto que D. Consuelo está aflita, agitada.
- Hoje ela pareceu-me estar assim. Hoje e todos os dias dos últimos meses - Marina falou num sorriso irônico. - Minha mãe fica nervosa por qualquer motivo.
- Você precisa encorajar sua mãe a falar mais sobre a vida dela, sobre a relação dela com o Jofre.
- Esse assunto me desagrada.
- Ainda continua se envolvendo emocionalmente nos assuntos. Não aprendeu nada sobre o que lhe disse sobre se manter na impessoalidade?
- E fácil falar, Elisa. Colocar em prática é outra realidade, bem diferente. Eu até que tenho tentado, contudo, confesso que dá trabalho.
- Mudar para melhor sempre dá trabalho. Somos obrigados a olhar para dentro de nós e escolher os pensamentos que queremos cultivar e os que não queremos mais que nos importunem. É importante aprendermos a conversar com as pessoas sem nos envolvermos emocionalmente em seus problemas. Caso contrário, vamos nos impressionar e, em vez de ajudar, estaremos criando um ambiente propício para atrair mais confusão.
- Você tem razão. Preciso me controlar mais.
Elisa estacionou o carro próximo à pista de corrida. Desceram do carro com suas garrafinhas de água. As duas cerraram os olhos e aspiraram o ar puro do parque.
- O dia hoje amanheceu tão lindo!
- Tem razão, Marina. Não há uma nuvem no céu.
Foram caminhando até o local em que o grupo se encontrava nos dias de corrida. Faltavam alguns minutos para as seis da manhã, porém quase todos os freqüentadores de praxe lá estavam. Marina havia se enturmado com todos e havia sentido especial afeição por Patrícia e Adriano. Estava sempre correndo ao lado do casal, recebendo dicas, instruções de como melhorar a sua performance, a sua respiração, como promover mudanças em seus hábitos alimentares etc. O casal aproximou-se e eles se cumprimentaram. Elisa foi alongar o corpo com parte do grupo. Patrícia a convidou para alongarem-se ali perto.
- Como andam as coisas?
- Estou bem. Tenho me adaptado com tremenda rapidez a esse novo e saudável estilo de vida.
- O corpo gosta de ser exercitado.
- A mente também.
- Esqueceu-se de falar do espírito. O nosso também gosta dos exercícios físicos. É sinal de que estamos tratando bem o nosso corpo físico, que estamos procurando dar boas condições de durabilidade à matéria - apontou para o próprio corpo - que abriga o nosso espírito.
- Nunca fui de me ligar muito em assuntos espirituais.
- Mas acredita em algo além do que nossos olhos possam ver?
- Como assim?
- Acredita que estamos aqui por um curto período de tempo, para que nosso espírito aprenda com as experiências da Terra e volte à pátria espiritual mais esclarecido e lúcido?
- Não sou especialista no assunto - Marina sorriu -, mas, diante de tanta violência e catástrofes naturais, não consigo imaginar que tudo ocorra tão somente por conta da fatalidade.
- Não ocorre da maneira como pensamos. O assunto é complexo, exige estudo e uma mente aberta, sem dogmas ou idéias preconcebidas sobre vida ou morte.
- Podemos sair um dia desses e conversar mais profundamente acerca desses assuntos. Falar sobre espiritualidade me causa tremendo bem.
- Também aprecio o assunto. Será um prazer sair para conversar com você, querida.
- Eu simpatizei muito com você e Adriano.
- Nós também gostamos muito de você.
Marina posicionou-se atrás de Patrícia e a ajudou no alongamento. Foi puxando e esticando o braço da amiga para cima e para os lados, até que os largou e ficou paralisada.
- O que aconteceu Marina?
- Nada.
Patrícia acompanhou seus olhos.
- Seu semblante mudou de uma hora para outra.
- Desculpe. É que... Eu conheço aquele rapaz ali - apontou.
Patrícia espremeu os olhos para ver melhor, contudo era um grupo com alguns homens.
- Qual deles?
- Aquele, de camiseta branca e shorts preto.
- Aquele é o Edgar.
- Acho que o conheço, sim. Está um pouco mais cheio, mas é ele.
- Ele é nosso amigo.
- Mesmo?
- Ficou parado por uns tempos e está retornando hoje as práticas esportivas. Você o conhece de onde?
Marina era muito discreta e preferiu omitir a verdade. Tratava-se de assunto delicado, de foro íntimo, e ela jamais exporia os reais motivos que fizeram Edgar estar afastado dos exercícios. Ela jamais imaginaria que Patrícia e Adriano fossem amigos de Edgar. Procurou falar num tom natural e impessoal.
- Sou assistente da esposa dele.
Patrícia levou a mão à testa.
- Coitada! Trabalha para a Denise?
- Hum, hum.
- Você merece receber adicional por insalubridade! Isso, sim.
Ambas riram. Adriano aproximou-se com Edgar.
- Oi, Marina, gostaria que conhecesse nosso amigo.
Edgar engoliu em seco. Reconheceu Marina imediatamente e sentiu medo da moça. Ela sorriu e, antes de ele concatenar os pensamentos, ela estendeu a mão.
- Muito prazer, Marina. Eu o conheço de nome. Sou assistente da Denise.
- Assistente da Denise? Ninguém merece! - falou Adriano.
Eles riram e Marina comunicou-lhes:
- Vou fazer uma caminhada rápida antes do trote. Encontramo-nos mais tarde.
Edgar alongou-se rapidamente. Adriano o alertou:
- Faz tempo que não corre. Veja se pega leve hoje.
- Vou fazer somente uma caminhada. Fique sossegado.
Ele falou e saiu em direção à Marina. Apertou o passo e alcançou-a no meio da trilha.
- Como está? - a indagou, olhando para frente.
- Estou bem.
- Não imaginava que fosse amigo de Patrícia e do Adriano.
- O mundo é mesmo pequeno. Somos amigos há anos, mesmo eles não gostando muito da Denise.
- Sei quem é sua esposa, mas concordo com eles. Denise é uma mulher de temperamento difícil.
- Com o tempo a gente se acostuma.
Caminharam mais um pouco sem falar nada até que ele perguntou:
- Como anda a Denise? Está bem?
- Aparentemente, sim. Como de costume.
- Poderia lhe dar um recado?
- Um recado?
- Não consigo falar com ela. Tenho receio de ir até a Dommênyca para conversar. Ela não atende minhas ligações e...
- Sinto muito. Não misturo negócios com vida pessoal. Sou funcionária de sua esposa. Não é de bom-tom que eu seja uma espécie de pombo-correio do marido.
- Não é isso.
- Claro que é. Vá até a empresa e converse com ela. Não fica mais fácil?
- O ambiente de trabalho não é propício para uma conversa entre marido e mulher.
- Vocês não se separaram? - perguntou Marina.
- Temporariamente. Não recebi nenhum papel do advogado, nenhuma intimação de juiz. Creio que no momento ela queira esfriar a cabeça, vamos voltar a nos entender.
- Se acredita que vai ser assim, ótimo.
Depois de um pouco mais de silêncio ele baixou o tom de voz:
- Queria agradecer-lhe por não fazer nenhum comentário sobre como nos conhecemos de verdade Patrícia e Adriano sabem que tentei fazer aquele besteira, mas ignoram como tudo aconteceu. Eu não tive coragem de lhes contar os detalhes.
- Sou discreta e odeio mexericos. A maneira como nos conhecemos não importa a ninguém, não é mesmo? - retrucou Marina de maneira nada simpática.
- Por que está sendo rude comigo?
- Eu, rude?! Imagine.
- Mudou o tom de voz. Acaso eu a importuno?
- Não me importuna. Por que seria rude com você? - ela desconversou. - Preciso começar a correr, com licença.
Marina se afastou e ele continuou fazendo sua caminhada. Estava com raiva, muita raiva. Não de Edgar, mas da situação.
- Ele sofre com aquela mulher e ainda quer mandar recadinho? Como pode ser tão cego e não perceber que Denise não gosta dele e que não vai mais voltar para seus braços? Eu a vi acertando os detalhes da separação com o crápula do Inácio.
Patrícia a alcançou.
- Falando sozinha?
- Desculpe. Estava pensando em voz alta.
- Gostou do Edgar?
- Simpático, mas parece abatido.
- Passou por uma fase ruim, mas agora está se reerguendo.
- Casado com aquela mulher? Imagino como ela deva ser em casa. Deus me livre!
- Também não gosto muito da Denise. A gente nunca se deu bem.
- Ninguém se dá bem com ela. Grita e xinga todo e qualquer funcionário, toda hora. Parece que está sempre de mal com o mundo.
- Edgar ainda é louco por ela.
- Uma pena. Se ela ao menos correspondesse...
- Vi que seus olhos iluminaram-se quando ele se aproximou.
- Que bobagem, Patrícia. É o sol.
Patrícia deu uma risadinha.
- Estou enganada ou você sente atração por ele?
- Não está enganada, Patrícia - declarou Marina. - Mas como posso permitir me interessar por um homem que é doente de paixão por outra?
- Aproximando-se aos pouquinhos, com jeito.
- Enquanto ele estiver ligado emocionalmente em Denise, não quero saber de nada.
- Edgar está fazendo terapia com uma psicóloga competente, séria e respeitada. Não acredito que essa paixão por Denise dure tanto. O prazo de validade desse casamento já expirou. Edgar é que não percebeu. Mas logo vai perceber.
- Ademais - concluiu Marina -, se Denise é odiosa como chefe, imagino como seja quando o assunto resvala para o pessoal. Não quero saber de encrenca na minha vida.
- Você está certa. Denise é mulher perigosa.
Leandro chegou à casa aturdido. Letícia estava lendo uma revista de moda e levantou-se de um salto
- O que foi? Que cara é essa?
- Venha comigo.
Ela o seguiu e Leandro a levou até a garagem. Mostrou a traseira do carro.
- Pode uma coisa dessas?
Letícia viu a traseira toda batida, os faróis quebrados. Um grande estrago.
- Bateram no seu carro. Que judiação. Não fique nervoso. Logo vai para o conserto e...
Leandro a cortou com ansiedade. Estava fulo da vida.
- Eu fui ao caixa eletrônico sacar dinheiro e vi tudo pela porta de vidro.
- Tudo o quê?
- Denise. Ela bateu no meu carro de propósito!
- Tem certeza? Era ela mesma?
- Sim.
- Ela mora em São Paulo.
- Vi com meus próprios olhos. Eu estava quase entrando no carro. Ela buzinou, eu a reconheci e antes mesmo de entrar, ela acelerou e bateu. Deu ré e fugiu, como se nada tivesse acontecido. Estava usando um veículo velho, tenho certeza de que não era o carro dela. Não estou louco, Letícia, mas ele veio de São Paulo só para fazer essa cena.
- Houve testemunhas?
- Não me lembro. Fiquei tão aturdido que entrei no carro e vim correndo para cá.
Letícia o abraçou.
- Oh, querido, não fique assim.
- Como não ficar, meu bem? Essa mulher não para de nos importunar. Ela começou com as ligações telefônicas. Agora bateu no meu carro. Desse modo, o que mais essa louca pensa em fazer? Tenho medo de que ela cometa algo mais grave.
- Não pensemos nisso, meu amor.
Leandro passou a mão sobre o ventre avantajado da esposa. Letícia estava grávida de sete meses e o médico fora categórico: ela deveria repousar o máximo possível, descansar e, acima de tudo, não enfrentar nenhuma situação de estresse.
- Não quero que nada de mal aconteça a você ou ao nosso bebê. Você tem enfrentado uma gravidez difícil.
Letícia o abraçou com carinho. Pareciam dois enamorados. O amor entre ambos florescera de tal maneira que tinham certeza: nada poderia atrapalhar ou ser mais forte do que o amor que os unia.
- Tudo vai dar certo. Ela não vai mais nos importunar.
O telefone tocou e Leandro pegou o aparelho do bolso do paletó.
- Está vendo - disse ele. - Número desconhecido. É ela.
- Atenda.
Leandro levou o celular ao ouvido.
- Alô.
Do outro lado da linha ouvia-se uma gargalhada estridente. Depois falou:
- Idiota. Hoje foi o carro...
- Denise, pare de nos importunar. De que adiante tentar atrapalhar nossa vida? Você não vai nos separar.
Ela sentiu um ódio surdo.
- Não vou? Quer apostar? Dois por um que eu vou acabar com você, sua esposa e seu filhinho. Por falar em filho, onde está Ricardo?
- O que foi que disse?
- Seu filho está em casa?
- Ricardo está na escola e...
Nova gargalhada e Denise desligou. Leandro apavorou-se.
- Ela perguntou por Ricardo.
- Ricardo? O que ela queria saber? - perguntou Letícia, já demonstrando sinais de preocupação.
- Se ele está em casa.
- Há essa hora ele está na escola.
Ambos se entreolharam. Leandro entrou no carro e disse:
- Ligue para a escola enquanto eu vou até lá.
- Está certo.
Com alguma dificuldade Letícia caminhou até a cozinha. Pegou o telefone da escola anotado na agende e ligou. Foram minutos de desespero, parecia durar uma eternidade. Letícia contorcia as mãos no aparelho num gesto nítido de aflição.
- Ricardo está na classe - tornou a monitora.
- Tem certeza? Viu meu filho?
- Sim, d. Letícia.
- Poderia chamá-lo para eu me tranqüilizar?
- Os alunos estão terminando uma prova de geografia. Se for urgente...
Letícia acreditou na atendente. A escola era tradicional, conhecida e segura. Tinha um ótimo esquema é de segurança. Ela ficou mais tranqüila.
- Se me afirma que Ricardo está em aula, eu acredito. Mas assim que a prova terminar pode pedir para ele me ligar? Por favor?
- Sim, senhora.
Uma hora depois Leandro chegou a casa com o filho. Letícia o abraçou e o beijou.
- Está tudo bem, filho?
- Claro que está mãe. Fiz uma prova maneira! Acho que vou tirar dez.
Ela sorriu.
- Bom você estar em casa.
Ele a beijou no rosto e foi correndo para a cozinha.
- Estou morrendo de fome!
Leandro aproximou-se.
- Fui até a escola, conversei com os seguranças, dei a descrição física de Denise. Disseram-me que não viram ninguém com essas características rondando a escola.
- Graças a Deus!
- Ela fez isso para nos infernizar e tirar nosso sossego. Eu sou o culpado.
- Não diga isso, meu bem. Você não é culpado de nada.
- Se eu não tivesse me envolvido com ela, nada disso estaria acontecendo.
- Faz parte do passado. Vamos encontrar uma maneira de afastar Denise definitivamente de nossa vida.
- Assim seja.
No entanto, o sossego do casal durou pouco. Denise passou a ligar para o celular de ambos, de hora em hora, falando coisas disparatadas.
- Letícia, essa criança vai nascer mesmo sadia? Tem certeza? Será que você não está carregando um feto doente?
Letícia desligava, mas Denise deixava recados m caixa postal.
- Você vai ter essa criança e vai morrer. Quem disse que a felicidade existe para vocês? A felicidade não existe. Não para vocês. Se depender de mim vocês vão todos morrer infelizes.
Letícia estava cansada e aflita. Não sentia ter forças para lutar contra aquele demônio em forma de gente. Ligou para Mila pedindo socorro. Meia hora depois a amiga chegou e tentou tranqüilizá-la.
- Calma.
Mila pediu para Iara ir buscar um copo de água com açúcar. Iara voltou com uma bandejinha com o copo cheio e o colocou sobre uma mesinha.
- Quer mais alguma coisa?
- Está tudo bem, Iara. Pode ir.
Mila apanhou o copo de água com açúcar e o entregou para a amiga.
- Está muito nervosa. Não pode ficar assim no estado em que se encontra. Vai ter um bebê.
- Não estou nervosa - ela passou a mão sobre barriga - estou aflita, é diferente.
- Dá no mesmo. Eu não gosto disso. Você precisa ser mais forte do que essa mulher.
- Difícil. Ela bateu no carro de Leandro de propósito. Deixa recados horríveis na minha caixa postal. Liga perguntando se Ricardo está mesmo em casa se ele já voltou da escola. Eu tenho medo só de pensar em alguma besteira que Denise possa nos fazer.
- Você precisa se defender.
- De que maneira, amiga? Essa mulher não para de ligar e atazanar nossa vida. Leandro não sabe mais o que fazer.
- Compre outra linha. Mude o número do celular.
- Já fizemos isso. Leandro tinha uma agenda telefônica grande, mudou o número, filtrou seus contatos. De que adiantou tomar essas providências? Denise descobriu o novo número. Vamos ter de trocar de número toda semana? Não acho justo.
- Nem eu - Mila pousou suas mãos nas da amiga. - Você precisa ser forte, Letícia. Não pode deixar-se abater por uma estranha. Tem que ser mais forte que ela. Está dando muita força a essa negatividade que dela emana.
- Complicado, Mila. Estamos a algum tempo vivendo uma fase ótima do nosso casamento e essa infeliz insiste em nos atormentar. Tenho medo de ela ir mais longe, fazer o mesmo que a personagem da Glenn Close fez no filme Atração Fatal.
Mila levantou o sobrolho.
- Acha que chegaria a tanto?
- Ela quase destruiu o carro do Leandro. Que mais será capaz de fazer?
Mila pensou e sugeriu:
- Por que não vamos até uma delegacia prestar queixa? Você faz um boletim de ocorrência contra Denise. Eu entro como testemunha. Precisamos arrumar uma maneira de fazê-la parar.
- De que vai adiantar?
- Ora, Letícia. Você é pessoa conhecida da sociedade. É respeitada e admirada. A gente nunca sabe o que as pessoas loucas como Denise são capazes de fazer.
- E o que vou alegar? Que ela me liga? Em relação ao carro do Leandro não podemos fazer nada. Ela foi esperta, usou outro veículo e não o dela.
- No entanto, essa mulher é tão estúpida que deixa recados no seu celular. Esse material pode ser prova de que ela está ameaçando você e sua família. Temos como provar que ela está tentando tirar o sossego de sua família.
- Denise tem me tirado o sono. O tempo passa e, em vez de esquecer e tocar a vida adiante, procurar outro homem, procurar ser feliz, ela prefere nos infernizar e quer a todo custo destruir nossa felicidade.
- Vamos também importuná-la. O que essa mulher faz é crime contra a liberdade individual. Eu vou acompanhá-la até a delegacia. Mas prepare-se.
- Com o quê?
- Com o assédio da imprensa. Por mais discretas que formos, quando o assunto resvala sobre pessoas conhecidas, todos querem saber.
- Não tenho medo de fofocas ou do assédio da imprensa. Sempre fui uma mulher de bem. Não vou me deixar intimidar. E, se quer saber, depois de uma semana outro escândalo tomará conta dos jornais.
- Gostei da sua postura firme e decidida.
- Obrigada, Mila. Vou ligar para Leandro.
Letícia ligou para o marido e ele achou pertinente irem até a delegacia. Pediu uma hora para terminar um assunto importante com dois diretores.
- Um beijo. Até logo.
Ela desligou o telefone sentindo certo alívio.
- Leandro vem daqui à uma hora. Importa-se de me fazer companhia?
- Pois claro - ela passou a mão sobre o barrigão da amiga. - Como tem passado?
- Bem. Gosto do outono. A temperatura é mais amena. O frio é mais a minha cara. Sou uma carioca fajuta!
Elas riram. Mila completou:
- Eu também prefiro a temperatura mais branda. Tem tido muito inchaço?
Letícia levantou o vestido.
- Não. As pernas estão ótimas. Noto uma ou outra vez o tornozelo inchar, mas aí me deito na cama, elevo um pouco as pernas. Passa.
Ficaram conversando amenidades e Mila fez de tudo para tranqüilizar a amiga e não deixar que o assunto esbarrasse em Denise.
- Vamos fazer uma prece antes de ir até a delegacia.
- Boa idéia, Mila.
As amigas deram-se as mãos, fecharam os olhos e oraram com sinceridade, pedindo orientação e proteção dos amigos espirituais para que tudo se resolvesse da melhor maneira possível. Mila pediu para que pudessem ter forças para enfrentar essa situação tão constrangedora. Leandro chegou uma hora depois, conforme prometido, e os três rumaram até a delegacia mais próxima.
- Nunca entrei numa delegacia antes - suspirou Letícia.
- Sempre tem uma primeira vez - respondeu Mila. - Vamos, dê-me sua mão que eu a ajudo a subir os degraus.
Letícia esticou o braço e elas entraram. Um policial reconheceu Letícia e foi todo simpático. Levou os três até uma salinha.
- O delegado já vem.
Elas se acomodaram em cadeiras e Leandro ficou em pé.
- Sente-se, querido.
- Estou muito nervoso para me sentar.
Alguns minutos depois o delegado entrou. Era um homem na faixa dos trinta anos, alto, ombros largos, olhos amendoados, grandes e expressivos. Tinha um sorriso encantador.
- É uma honra tê-los aqui - ele cumprimentou Letícia e Leandro. Depois estendeu a mão para Mila.
- A senhora é?
- Senhorita.
- Ah, perdão.
- Sou Mila. Amiga da família e possível testemunha.
- Muito prazer. Carlos Alberto Tavares Branco.
Ela sorriu e afirmou:
- Bonito nome.
- Obrigado. - O delegado sentou-se na mesa e indagou-os: - O que fazem aqui?
Leandro estava muito nervoso. Mila fez sinal para ele se acalmar e tomou a palavra:
- Sabe, seu delegado, meus amigos estão sofrendo ameaças de uma mulher.
- Ameaças, que tipo de ameaças?
Letícia falou:
- Não temos nada a dizer e vou ser sincera...
Leandro a cortou com amabilidade.
- Estou calmo agora, querida. Posso falar. Assim, ele foi relatando ao delegado sobre tudo.
Contou de como conhecera Denise, do envolvimento de ambos, da separação e das ameaças que vinham sofrendo por telefone, além do constrangimento quando a encontravam em lugares públicos.
- Ela bateu no meu carro alguns dias atrás.
- Tem como provar? Havia testemunhas? - indagou o delegado.
- Não, infelizmente. Mas ela ligou para casa e está fazendo ameaças ao nosso filho. O problema é que ela liga de telefones diversos, ora de número desconhecido, não identificado, ora de telefone pré-pago.
- Fica difícil rastrearmos as ligações.
- Ah! - tornou Mila. - Ela deixou um recado na caixa postal de Letícia. - E, virando-se para amiga perguntou: - Tem o recado guardado?
Letícia assentiu com a cabeça.
- Tenho sim - ela revirou a bolsa e pegou o telefone. Ligou para a caixa postal, pegou o recado e entregou o celular para o delegado. Ele escutou, fez uma careta e concluiu:
- Trata-se de ameaça.
- E, então, doutor?
- É crime. O Código Penal trata do assunto. Capítulo 6, dos crimes contra a liberdade individual, artigo 147. - Carlos Alberto impostou a voz e ditou o artigo, de cor e salteado: - Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico de causar-lhe mal injusto ou grave.
- Podemos fazer um boletim de ocorrência?
- Sem sombra de dúvidas - respondeu o delegado.
- Essa mulher também pode ser enquadrada nos artigos que englobam crimes contra a honra? - indagou Mila.
Carlos Alberto abriu largo sorriso e ela notou seus dentes alvos, bem distribuídos e perfeitamente enfileirados.
- Você é uma mulher inteligente. Ela também pode ser indiciada de acordo com o testemunho de vocês, por difamação e injúria.
- E não é tudo a mesma coisa, delegado? - indagou Leandro confuso.
- De forma alguma. Difamação e injúria são crimes contra a honra. Já a ameaça é crime contra a liberdade individual. As diferenças são as seguintes: difamação ocorre quando alguém ofende a reputação de outra pessoa, tece comentários que tem por único objetivo exatamente difamá-la. Injúria ocorre quando alguém ofende a dignidade e o decoro de outra pessoa, principalmente insultando-a, proferindo ofensas verbais. E, ainda há, evidentemente, o crime de dano. A pena para esses crimes variam de um mês a três anos de prisão, ou multa. Infelizmente, a justiça é branda e quem comete esse tipo de crime faz a compra de algumas cestas básicas para doar a alguma instituição de caridade.
- Mesmo assim, vocês prometem apurar? Sei que há fatos mais relevantes aqui na delegacia, no entanto, queremos tão somente a paz em nossa vida - interveio Leandro.
- Estamos aqui para servi-los. Vou encaminhá-los para outra sala, onde um policial vai registrar a queixa. Ah, e mais uma coisa - ajuntou Carlos Alberto -, não tenham, em hipótese alguma, vergonha de contar tudo, sem omissões, sem mentiras, porque todo e qualquer detalhe sempre é muito importante na caracterização do delito. - Ele encarou Mila e perguntou: - Importa-se de ser arrolada como testemunha?
- Por certo - ela fez gesto afirmativo com a cabeça. - Eu vim aqui para dar meu depoimento, para servir de testemunha.
Depois de tudo finalizado, o delegado informou que o boletim de ocorrência poderia ajudar na apuração dos fatos, mas foi sincero em afirmar que não poderia garantir a paz que Letícia tanto procurava.
- Ela não vai ser chamada para depor? - indagou Letícia.
- Sim. Vou mandar uma carta precatória para o delegado de São Paulo. Denise será intimada. Aí, vamos ouvir a versão dela.
Leandro exasperou-se.
- Denise bateu no meu carro aqui no Rio. Por que não a chamam para depor aqui?
- Porque, em fase investigatória, Denise poderá prestar depoimento na capital paulista. O delegado de São Paulo vai reunir as informações e enviá-las para mim. Diante disso, eu mando tudo para o Ministério Público e...
Mila meneou a cabeça para os lados.
- Desculpe-me, delegado. Por que tudo é tão demorado? As coisas não poderiam ser mais simples?
- Infelizmente, não.
Eles se levantaram e se despediram.
- Fique sossegados, eu vou ser muito discreto na condução dessa queixa. O delegado de São Paulo é meu amigo, faremos o possível para que nada vaze na imprensa.
- Obrigada, delegado.
O rapaz sorriu e disse:
- A senhora pode me chamar de Carlos Alberto. Minha mãe é sua fã.
Letícia sorriu e pegou no braço de Leandro. Mila foi logo atrás, mas antes se virou para o delegado e perguntou:
- Desculpe-me, mas estou com uma pulga atrás da orelha.
- O que é?
- É um tanto pessoal - ela ficou encabulada. Carlos Alberto notou e foi gentil:
- Policiais e delegados podem parecer homens duros e insensíveis, mas temos coração. Eu assusto pelo tamanho, mas sou um bom moço.
Ela sentiu-se mais à vontade e indagou:
- Você se chama Carlos Alberto por causa daquele famoso ator de televisão que faleceu recentemente?
- Sim. Minha mãe era apaixonada pelo ator Carlos Alberto Soares. Achava-o lindo. Ela me conta que não perdia um capítulo da novela Bravo! , só para ver o maestro interpretado pelo ator. Alguns meses depois que a novela acabou ela engravidou e, quando eu nasci, homenageou-me, dando-me seu nome.
- Espere um pouco. Você nasceu em que ano?
- 1977.
- Eu também.
- Não me diga! Pensei que você tivesse uns vinte, vinte e dois anos, no máximo.
- Ela envaideceu-se.
- Obrigada pelo elogio. Eu nasci em fevereiro de 1977.
- Coincidência. Eu nasci em fevereiro, no dia... - Carlos Alberto sussurrou no ouvido dela.
Mila abriu e fechou a boca, estupefata.
- No mesmo dia que eu? Impossível?
- Por quê? - Carlos Alberto sacou a carteira do bolso e mostrou-lhe a identidade.
Mila fez o mesmo. Abriu a bolsa, tirou a carteira e mostrou-lhe a identidade.
- Está vendo? Mesmo dia, mesmo mês, mesmo ano! Somos gêmeos! Quer dizer, aquarianos!
Ele a encarou nos olhos e emendou:
- Ou almas gêmeas.
Ela sentiu um friozinho gostoso no estômago. E, antes de ela perguntar, Carlos Alberto respondeu:
- Sou solteiro, filho único, 32 anos, formado em Direito, delegado de polícia. Moro com minha mãe. Meu pai morreu há dez anos e não tenho irmãos. Namorei uma garota por três anos e estou livre há dois. Respondida a pergunta?
Ela riu gostoso.
- Você deve ser médium! Eu iria mesmo perguntar. Agora sei tudo sobre você!
- E você, tem alguém? Aposto que sim. Uma mulher tão fina, tão elegante e bonita, não deve estar só.
- Não tenho ninguém. Sou um pouco diferente das mulheres da minha idade. Tenho outros interesses. Não gosto de clubes, barzinhos, baladas... Prefiro filmes, jantar na casa de amigos.
- E qual a sua profissão?
- Sou rica!
- Adorei a sinceridade - respondeu Carlos Alberto, encantado com a beleza e o jeitinho brejeiro de Mila.
- Se quiser saber mais sobre mim...
- Adoraria! Quer jantar comigo?
- Aceito - Carlos Alberto tirou um cartão do bolso e pousou-o delicadamente na mão de Mila. - Aí estão os números de casa e do celular. Ligue-me a hora que quiser. Despediram-se e ele finalizou:
- Cuide bem de sua amiga. Tranqüilize-a. Farei o possível para que ela não seja mais importunada por quem quer que seja. Tenho muito carinho e admiração pela d. Letícia. Ela é uma pessoa de bem.
Mila concordou com ele. Sua amiga era, de fato, uma mulher de bem. Entrou no carro e Letícia disse:
- Pensei que tivesse se perdido. Mas vi a senhorita batendo um papão com o delegado bonitão.
Leandro interveio:
- Falar assim me deixa com ciúmes.
- Bobinho. Você é o meu amor maior. Só tenho olhos para você. Acontece que o delegado é boa pinta.
- Devo admitir que ele seja boa pinta, sim.
- E parece que minha amiga gostou bastante dele.
Mila estava radiante. Enquanto Leandro dava partida e seguia o caminho de casa, ela contava tudo o que conversara com Carlos Alberto.
- Foi falar com ele sobre novela antiga, Mila? Que cantada mais original!
- Não foi cantada. Foi curiosidade mesmo.
- Sei! - Letícia falou e piscou para o marido.
Mila continuou:
- Ele nasceu no mesmo dia, mês e ano que eu! Isso não é coincidência demais?
Foram conversando animadamente e, por ora, esqueceram de Denise, das ameaças, de tudo. Leandro, ao prestar queixa com a esposa, dera o endereço do escritório da Dommênyca. Denise recebeu a intimação no trabalho. Ela estava sentada em sua cadeira executiva, olhando a paisagem ao redor. Sentia-se a dona do mundo.
- Adoro importunar o casalzinho. Vou fazer isso até causar a separação.
Inácio entrou na sala com ar preocupado.
- Falando sozinha?
- Estava aqui divagando. Pensando em outras possibilidades de infernizar a vida do Leandro. O que foi por que essa cara dura?
Inácio entregou-lhe o papel. Denise abriu e não deu um grito. Deu três, seguidos e agudos.
- Ai! Ai! Ai!
Inácio tapou os ouvidos.
- Sabia que iria ficar nervosa.
- Nervosa? Estou possessa! Eles tiveram a coragem de prestar queixa contra mim?
- Sim. No boletim de ocorrência consta tudo desde o dia que se conheceram, as intimidades, o locais freqüentados, as ameaças. Mas esse tipo de intimação não dá em nada. No máximo umas cestas básicas e...
Denise espumava de ódio. Uma babinha branca formou-se no canto dos lábios.
- Malditos! Desgraçados! Eles expuseram a minha intimidade num boletim de ocorrência?
- Você pediu.
Ela avançou sobre Inácio e meteu-lhe o dedo em riste.
- Escute aqui. Está do lado deles? Desses dois infelizes?
- Não se trata de estar do lado deles. Você foi longe demais!
- Eu? Não fiz quase nada.
- Como, não, Denise? Você chegou a pedir para aquele seu amante...
Ela o cortou ríspida.
- Jofre não é meu amante. Eu sou separada. Ele é um ficante, como se diz nos dias atuais.
- Está bem. Você pediu um carro roubado para o seu ficante. Saiu daqui, foi para o Rio, pegou o carro no quinto dos infernos e bateu no de Leandro. Depois largou o veículo no estacionamento do aeroporto e voltou para São Paulo. Não acha que está indo um pouco longe demais?
Ela gargalhou.
- Aquilo foi só um susto. Leandro não tem como provar que fui eu quem bateu no carro dele. O meu carro não tem um risco sequer.
- E as ligações que tem feito?
- Uso celulares pré-pagos. O Jofre me arrumou um pacote com vários chips. Cada semana eu uso um diferente.
- Mas aí no boletim de ocorrência eles afirmam que você deixou recado no celular de Letícia.
- Foi um deslize, eu sei. Mas não prova nada. Eu posso afirmar que deixei recado por engano. Eu me passo por tonta, entende? Vai ser a minha palavra contra a deles. E quer saber mais?
- O que é?
- Não vou à delegacia. Simplesmente não vou.
- As coisas não funcionam assim. Eu, como advogado, sugiro que você vá. É melhor assim. Eu conheço os policias desta delegacia. Dou uns trocados e essa acusação não irá adiante. Fique tranqüila.
- Vou fazer o que me pede.
- Seja uma boa garota.
Denise concordou, mas estava fula da vida. Disse para si:
- Como se atrevem? Foram até a delegacia! Como são ordinários! Estão com medo. Eles vão ver só!
Na delegacia, Denise comportou-se como se fosse outra pessoa. E, de fato, parecia que ela havia incorporado outra pessoa. Fez ar de séria, recatada a fala bem mansa, os trejeitos bem delicadamente ensaiados por Inácio. O delegado Paranhos, amigo de Carlos Alberto, fazia as perguntas e ela as negava. Por fim, de maneira bem dócil, afirmou que o boletim não tinha razão de existir. Quando o delegado mostrou a cópia da conversa ao celular transcrita e gravada, desconversou:
- Não sei de quem se trata.
- Não reconhece a própria voz ao telefone?
- Não é a minha voz. Eu juro.
No fim dos depoimentos, Denise assinou alguns papéis e saiu da delegacia, acompanhada de Inácio Tomaram um táxi e, quando ela desceu na portaria do prédio de Inácio, explodiu com o advogado. Denise soltava chispas de ódio pelas ventas.
- Estou inconformada. Além de ser passada pare trás, fui humilhada numa delegacia. Pode?
- Não foi humilhada. O delegado até que foi simpático.
- Só de entrar numa delegacia me sinto assim.
- Deixe Leandro de lado. Você tem uma boa vida, um bom emprego. Para que continuar azucrinando a vida do casal?
- Não está adiantando nada.
- Não está mesmo. Letícia está grávida. Eles parecem felizes. Você não está feliz ao lado do Jofre?
- Feliz estou. Ele me trata muito bem. Você tem razão, eu tenho de ficar na minha e deixá-los em paz. Com a justiça não se brinca. Eu não gostei nem um pouco desse delegado.
- Tome tento!
Denise deu de ombros e fez leve muxoxo. Despediu-se de Inácio.
- Obrigada. Quer saber? Depois de tanto nervoso, melhor eu pegar uma ponte-aérea e me aninhar nos braços do Jofre. Cuide bem dos nossos negócios.
- Combinado.
Inácio despediu-se e entrou no prédio. Denise continuou no táxi e seguiu até o aeroporto. No trajeto ligou para Marina e inventou uma desculpa de que voltaria somente no dia seguinte. Chegou ao balcão da companhia aérea e exigiu passagem para ontem.
- Imediatamente! - gritou com a atendente.
- Mas, senhora, o próximo vôo foi cancelado e...
- Não quero saber! Pode tratar logo de me colocar num avião. Por acaso, sabe com quem está falando?
A moça sentiu o sangue gelar, tamanha fúria e arrogância.
- Desculpe senhora, vou ver o que posso fazer.
- Isso mesmo, sua insolente! Vá chamar o gerente desta joça, agora. Preciso embarcar para o Rio, entende?
Depois de um qüiproquó danado, similar ao ocorrido tempos atrás na fila do bondinho do Pão de Açúcar Denise pegou seu bilhete e subiu para a área de embarque. Uma hora e meia depois, saltou do táxi, gritou com o porteiro do prédio, subiu e encontrou Jofre deitado à beira da piscina, balançando uma das mãos na água fria.
- Tire essa roupa e venha para a água. Está uma delícia.
Ela fez que sim com a cabeça. Foi até o quarto, trocou-se e vestiu um biquíni. Olhou-se no espelho e gostou da imagem refletida. Em seguida, caminhou até o andar de cima. Beijou Jofre nos lábios, acariciou seu corpo moreno e entrou na água.
- Como foi?
- Consegui me fazer de santa. Não sei se o babaca do delegado acreditou ou não, mas fiz a minha parte.
- Não gosto de polícia. A gente queremos essa gente longe do nosso pé.
- Estou muito irritada, sabe? O Inácio tentou me demover da idéia de continuar assediando o casal 20.
- Ele está certo.
- Até você, Jofre?
- Ô mina, pra que fazer esse tipo de brincadeira dessa maneira fica parecendo ser uma mulher desequilibrada, desesperada e que quer si vingar do óme que te deu um pé. Não pega bem.
- Eu só queria infernizá-los.
- Há outros meio de conseguir o que quer.
- Eu queria que algo pior acontecesse ao casalzinho - Denise riu sarcástica. - Eu até me deleitei de prazer em imaginar Letícia escorregando e batendo aquele barrigão no chão, mas isso não é sofrimento Eu queria algo que mexesse com a família toda, que causasse dor e sofrimento geral.
- Uma morte acidental?
- Não. De que adiantaria Letícia morrer? Do jeito que estão se amando, Leandro vai se tornar um viúvo inconsolável e a brincadeira vai acabar, vai perder a graça. Quero todos vivos para eu tripudiar sobre seus sentimentos.
- Quer dar uma surra em Leandro?
- Uma surra?
- Sim. A gente conhecemos umas pessoas que pode aplicar um corretivo nele.
- Isso seria bom, mas eu mesma gostaria de esbofeteá-lo.
- Não sabemos mais o que sugerir.
- Você é tão bom em pensar coisas ruins. Vamos, tente me ajudar.
Jofre pensou, pensou e indagou:
- O que gostaria de fazer para anilicar com o Leandro?
- Você quis dizer aniquilar?
- É. Isso.
- Matar a esposa não posso. Isso não vai me ajudar em nada. Eu quero que Letícia também sofra.
Nesse instante, Emerson foi atraído até ela. Estava tão acostumado a incutir pensamentos negativos na mente de Denise que, tão logo ela começava a entrar numa faixa mental bem pesada, bem negativa, ele era imediatamente atraído até ela. Ele não gostou de ouvir sobre Letícia ter de sofrer. Sussurrou no ouvido de Denise:
- Minha filha não tem nada com isso. O problema é o Leandro. Ele sim merece sofrer até os últimos dias de sua vida na Terra.
Ela registrou as palavras, porém sua raiva era maior que tudo.
- Letícia é uma pobre coitada. Vai ser enganada logo. Preciso arrumar um jeito de fazê-la se sentir mal. Fiquei possessa quando me enfrentou aquele dia no restaurante. Ela se sentiu poderosa.
- E agora a madama fez entrar numa delegacia. Não acha que ela está indo longe demais? - indagou Jofre.
- Hum. Adoraria vê-la sofrer, sofrer muito. E chorar.
Emerson fez sinal negativo com a cabeça.
- Não! De forma alguma! Ela não merece sofrer. Eu já lhe disse nada de mexer com a minha filha.
Leônidas aproximou-se.
- Algum problema?
- Vários!
- Calma. Você está agitado.
- É que eu leio os pensamentos de Denise. Eles não são nada agradáveis. Antes eu me aproximava e ela registrava o que eu sentia. Agora ela não acata o que digo.
- Não é isso. Denise sente naturalmente raiva. Quando você se aproxima, ela sente mais raiva ainda. No entanto, ela tem livre-arbítrio, pode decidir o que escolher pensar ou sentir. Você não consegue mais manipulá-la a seu bel-prazer. O seu ódio somado ao dela a fez se tornar uma mulher que, simplesmente perdeu o medo de fazer o mal ao próximo.
- Estou aqui falando de minha filha. Ela não pode fazer nada contra Letícia. Não vou permitir.
- Você mesmo a ajudou a alimentar tamanha ira. Se não estivesse tão próximo de Denise, ela não sentiria tanta raiva assim e talvez os acontecimentos que estão por vir não seriam materializados.
- O que está por vir?
- Coisa boa não é. E não podemos intervir na vida dos amigos encarnados. Só podemos vibrar e orar por eles, pedir para que Deus os ilumine e permita que dêem ouvidos aos bons espíritos.
- Desse jeito você me assusta - tornou Emerson. - Parece que algo muito grave poderá acontecer.
- E o que você espera de uma pessoa mesquinha, rancorosa, com o coração tão duro e cheio de ódio feito o de Denise?
- Você é da luz. Tem de impedi-la - implorou Emerson.
- Eu não tenho que fazer nada.
- Como não?
- Não posso intervir somente vibrar.
Emerson colocou a mão na cabeça, num claro gesto de desespero.
- E agora?
- Bom, num primeiro momento, seria interessante você se afastar de Denise. Assim, talvez a raiva que ela sente possa diminuir e os acontecimentos possam tomar outro rumo.
- Ela é a única fonte que tenho para arrancar notícias de minha filha. Seus guardiões não me deixam chegar sequer na porta do condomínio. Nem do meu neto eu posso me aproximar.
- Você escolheu ficar nessa faixa negativa, preso ao ressentimento, ao ódio, às situações desagradáveis que vêm de outras vidas.
- Nem quero saber sobre isso. Tudo bobagem.
Leônidas deu de ombros.
- Você pode pensar no que quiser. Entretanto, vim para lhe fazer uma proposta.
Emerson olhou-o de soslaio.
- Que proposta?
- Vamos deixar Denise de lado? Que tal não querer se envolver nos problemas de Letícia e Leandro?
- É a minha filha!
- Já lhe disse que ela foi sua filha. Você morreu! Os laços de amor continuam, mas os de sangue não tem mais valor. Pare de agir como se estivesse vivendo neste planeta.
- Hum - retrucou Emerson.
- Não quer ajudar o bebê que colocou no mundo? - sugeriu Leônidas.
- O filho bastardo? Aquele do acidente?
- Chame-o como quiser. Mas essa pessoa, sua outra filha, vai ter de enfrentar alguns problemas. Você poderia ajudar só isso.
- Só faço isso se você prometer que Denise não vai fazer nenhum mal à minha filha, que nada de ruim vai acontecer a Letícia.
- Não posso prometer nada. Posso assegurar que Letícia está protegida, ainda mais pelo estado em que se encontra.
Emerson não registrou o que Leônidas lhe disse.
- Estou cansado de sentir raiva.
- É uma energia muito pesada mesmo. E, volto a dizer você não pertence mais a este mundo. Aqui tudo é meio caótico, as ondas mentais são fortes demais. Vamos conhecer o lugar onde moro?
- Não sei...
Leônidas aproveitou a hesitação e propôs:
- Façamos o seguinte: eu o levo para dar um beijo rápido em sua filha e, em seguida, você segue comigo para a colônia espiritual.
Emerson abriu largo sorriso.
- Vou poder me aproximar de Letícia?
- Por alguns minutinhos.
- Combinado! Uma mão lava a outra. Os dois sumiram no mesmo instante.
Denise continuava presa ao sentimento de ódio. Entre uma e outra braçada na piscina, disparava:
- As coisas não podem ficar assim. Não podem!
- A gente somos sacana, mas não sou ruim - ponderou Jofre. - Não sabemos o que fazer.
- Vou ser muito sincera.
- Diga.
- Não vou sossegar enquanto eles não sentirem um pouco de sofrimento.
Jofre falou sem pensar.
- Pensou em seqüestro?
- O que foi que disse?
- Seqüestro.
- Vou seqüestrar Leandro para quê?
- Não. A gente vamos seqüestrar o menino.
Denise sorriu, mas sentiu medo. Sem Emerson por perto, a sua raiva era menor e, portanto, o seu discernimento em relação aos fatos em geral era mais lúcido. Sentiu uma pontinha de medo.
- Aquele fedelho é um insuportável.
- Pois então, aproveita e dá nele uma lição.
- Não teria coragem.
- Você é quem sabe.
- Estou com fome - desconversou Denise. - Vamos nos arrumar e almoçar num restaurante bem aconchegante?
- Podemos lancharmos aqui. Por que sair?
- Não quero atrapalhar.
- Nunca me atrapalha, mina. Não tem de voltar pra São Paulo?
- Quer que eu volte?
Ele sorriu malicioso.
- Sabe que não. Se dependesse de nós, ficaria aqui para sempre.
Denise fez sinal sensual com os dedos e Jofre entrou na piscina. Ele tirou a sunga e a despiu. Beijaram-se e amaram-se. O carro de Marina falhou mais uma vez. Novamente ela encostou o veículo no posto e o deixou na oficina ao lado para consertar. Estava cansada de gastar com o carro. Pegou um táxi e foi até o parque para os exercícios matinais. Cumprimentou os colegas de maneira menos efusiva do que a convencional. Patrícia perguntou:
- O que aconteceu? Está abatida.
- Não é nada.
- Eu há conheço a um bom tempo. O que foi?
- A Elisa não pôde vir hoje. Daí resolvi vir com meu carro. Ele quebrou de novo. Não agüento mais essa vida pagar conta de oficina.
- Por que não o vende?
- Tenho minha mãe. Ela acredita estar doente e, algumas vezes, tenho de levá-la ao hospital. Tenho medo de não ter carro na hora da emergência.
- Chame um táxi.
- E se o táxi demorar e algo pior lhe acontecer?
- Nada acontece por acaso. Creio que você está muito presa à sua mãe.
- Não seria esse o termo. Sinto-me responsável, afinal ela só tem a mim. Meu irmão Jofre sumiu de nossa vida.
- E você não tem ou sonha em ter a sua própria vida?
- Sim.
- Venda o carro.
- Será?
- Claro! Pare de gastar dinheiro à toa. Melhor comprar um novo à prestação. Hoje há inúmeras maneiras de comprar um bom carro sem ter de gastar muito.
- Você tem razão, no entanto, não quero mais fazer dívidas. Estou terminando minha pós-graduação e não vejo a hora de procurar novo emprego.
- Por que não faz isso agora?
- Dependo desse emprego. O convênio médico é muito bom. A empresa não é ruim, muito pelo contrário. Trabalhar na Dommênyca dá até status. Mas enfrento um problema sério lá dentro.
- Imagino que o problema tenha nome.
- Nome, certidão de nascimento e identidade!
As duas riram. Começaram a fazer uma corrida leve.
- Se Denise não fosse minha chefe, eu jamais cogitaria sair da companhia.
- Não há como ir para outra seção?
- Não tem como.
- Nem pedir para mudar de chefe? Você é tão competente.
- Sou, mas muita gente morre de medo dela. O ambiente às vezes fica muito carregado. Prefiro tentar outra companhia.
- Gostaria de tomar um passe dia desses?
- Um passe?
- Já ouviu falar?
- Já. Alguns anos atrás freqüentei um Centro Espírita perto de casa, mas confesso que não gosto de ficar presa a lugar algum.
- Esse lugar que freqüento é bem gostoso. O ambiente é sereno e tranqüilo. Você precisa se livrar dessas energias ruins que a circundam.
- Gostaria muito Patrícia.
- Tem compromisso sábado de manhã?
- Não. Não tenho aula, nada.
- Eu passo em sua casa e vamos juntas. Será um prazer acompanhá-la.
- Moramos em lugares muito distantes.
- É verdade. Contudo, será um prazer acompanhá-la.
- Vocês moram na Vila Mariana, certo?
- Isso mesmo.
- Eu moro perto da estação Tatuapé do metrô. Eu desço na estação Vila Mariana?
- É. O Centro Espírita fica bem pertinho.
- Qual o horário?
- Começa às nove e meia da manhã. Se puder me encontrar às oito e meia, será perfeito.
- Eu vou, sim. Sinto que preciso descarregar as energias pesadas e receber energias boas, de equilíbrio.
- Eu a sinto muito tensa.
- É uma fase. Vai passar Patrícia. Vai passar.
Edgar aproximou-se e elas abriram espaço para ele correr ao lado delas. Marina deu leve suspiro e Patrícia, de maneira elegante e educada, afastou-se. Edgar perguntou:
- Como tem passado?
- Bem. E você?
- A terapia tem me ajudado bastante. A Dra. Vanda é fantástica!
- É mesmo?
- Sim. Estou me sentindo um novo homem. Estou aprendendo a usar meu pensamento com inteligência. Chega de sofrer por amor.
- Fico feliz em saber.
- Como anda a Denise?
- Eu já falei que não gosto de misturar as estações. Por que falar dela? Eu a vejo como chefe, e uma chefe chata. Não tenho como fazer comentários positivos acerca dela.
Edgar sorriu.
- Fique sossegada. Eu estou me libertando dela.
- Pensei que já estivesse livre.
- Até estou. Assinei os papéis da separação. Num primeiro momento me senti muito mal, precisei fazer sessões com a Dra. Vanda durante a semana toda. Foram cinco dias de sessão. Entendi que era o fim e que deveria aceitar. Afinal, quando um não quer, dois não fazem. Não é esse o ditado?
- É sim.
Diminuíram o passo e Marina consultou o relógio.
- Preciso me alongar. Está na hora de ir para a empresa.
- Eu queria muito me sentar frente a frente com Denise.
- Ligue para ela.
- Mudou de celular.
- Vá até a empresa. Ela não vai ter como fugir.
- Você me deu uma boa idéia. Será que pega bem ir até o local de trabalho?
- Se ela não o atende e você quer porque quer falar com ela, creio que ir até a empresa não seja tão ruim. Assim você acaba com essa história de vez, coloca um ponto final.
Edgar animou-se.
- Vou me arrumar e, antes de ir para meu trabalho, passarei na empresa.
- Ela não está. Foi para o Rio de Janeiro ontem e não voltou ainda. Deixou um recado grosso e estúpido no meu celular, afirmando que retorna hoje após o almoço.
- Você me faria uma gentileza?
- Qual?
- Poderia me avisar quando ela chegar?
- Não gosto disso - disse Marina, com veemência.
- Por favor. É uma última chance de poder trocar algumas palavras com Denise. Só peço que me ligue quando ela chegar, mais nada.
- Está certo. Eu farei isso, contudo espero que não se acostume.
- Não vou.
- Já lhe disse antes que não sou pombo-correio ou garota de recados.
- Combinado. Prometo que vai ser a última vez que lhe peço algo dessa natureza. Você é tão legal, Marina.
Ela deu um sorrisinho amarelo e ele afastou-se. Patrícia aproximou-se e foi se alongar com Marina.
- O que foi?
- Esse Edgar. Acredita que ele ainda sente alguma coisa pela ex-esposa?
- Ele disse alguma coisa? - indagou Patrícia.
- Não diretamente. Mas se percebe no jeito que fala. Ele ainda fica todo animadinho. Como pode um homem ser largado e ainda morrer de amores pela mulher?
- É desequilíbrio afetivo. Edgar nunca amou de verdade.
- Ele era louco pela Denise.
- Mas não é amor. Está claro que o que ele sentiu ou sente nada mais é do que uma paixão, um foguito. Edgar foi se acostumando com Denise, foi se acomodando na relação.
- Será?
- Marina, muitas pessoas são dependentes emocionais. Elas acreditam que aquele que escolheram para amar será a sua tábua de salvação. Entregam o seu poder, a sua vontade ao outro assim, num estalar de dedos.
- Eu nunca faria isso. Tenho a minha dignidade.
- Muitos não a têm. Preferem viver de migalhas afetivas, preferem sofrer, mas não largam o parceiro. É o velho ditado: há pessoas que preferem ficar mal acompanhadas a sós, e acham que ruim com ele, pior sem ele.
- Eu nunca ficaria ao lado de quem me despreza ou não me trata bem.
- Você é diferente. Parecida comigo. Nós sabemos do valor que temos como mulheres. Somos fortes, independentes, queremos viver uma relação afetiva séria, prazerosa, que nos dê satisfação.
- Eu não estou desesperada atrás de homem.
- Desesperada não, entretanto eu percebo claramente que você está a fim do Edgar.
- Para você não posso mentir. Tem se tornado uma boa amiga nesses meses.
- Estou enganada?
- Não está, Patrícia. Eu me apaixonei por ele.
- E por que não se declara?
- Não.
- Por que não? Ele é descompromissado, separou-se legalmente. É um homem livre.
- Edgar pode ser um homem livre aos olhos da lei. Mas ainda está preso em Denise.
- Porque até agora ninguém apareceu para ele e disse: Ei estou gostando de você!
- E acha que vou fazer isso?
- Pois deveria. Edgar é um homem interessante. Tudo bem, não faz o meu tipo, é meio sisudo, não me agrada. E, aqui entre nós, eu sou apaixonada pelo meu Adriano. Mas se Edgar toca o seu coração, o que está esperando?
- Vou pensar no assunto.
- Promete?
- Sim. Vou olhar aqui para dentro - apontou para o peito - e ter uma conversa com esse coração inquieto.
Na tardinha daquele dia, Denise ligou para Marina a fim de a assistente fazer as alterações na sua passagem aérea. Marina estava almoçando fora da empresa, não havia sinal suficiente e caiu direto na caixa postal. Denise bufou:
- É só eu sair um pouco que ela deixa de me atender. Não está no escritório e o celular não atende.
Ela discou de novo, Marina não atendeu e ela deixou um recado nada simpático na caixa postal.
Jofre entrou no quarto, sentou-se na cama e a beijou nos lábios.
- Vai embora mesmo, mina?
Ela inclinou o corpo para frente e passou o lençol pelo corpo, cobrindo o corpo nu.
- Estou tão leve! Depois de me amar na piscina e me trazer para a cama, eu não tenho vontade de sair daqui.
Ele riu.
- A tarde está muito boa. Fica.
- Vou ficar. Estava aqui tentando avisar a idiota da minha assistente, porém ela não me atende.
- Você se esquenta à toa.
- Eu?!
- É. Porque não demite ela? Arrume outra melhor.
- Você é tão prático, Jofre. Nada como um homem de atitude para me ajudar.
- A gente gostamos de você.
- Eu também - respondeu ela, espreguiçando-se e bocejando um pouco.
- Estamos com um apetite danado. Passamos do horário de armoço faz algum tempo. Vamos descer pro lanche. Pedi pros empregados fazerem tudo pra ti agradar.
- Você é tão gentil.
Eles beijaram-se. A paixão voltou forte e eles amaram-se novamente. Depois de uma boa chuveirada, Denise colocou um robe de seda branco - presente de Jofre - e dirigiu-se para o lanche. O apartamento era bem espaçoso, uma cobertura com vista indevassável para a praia de São Conrado. O fato era que Jofre fazia parte do grupo chamado novo-rico, do tipo com muito dinheiro no bolso, e, em contrapartida, com um gosto bem duvidoso. Tudo era extravagante, com cores que não combinavam entre si, tapetes e quadros muito feios. O apartamento tinha uma decoração espalhafatosa e sem cuidados.
- Falta aqui um toque feminino. Vou dar uma geral neste apartamento - disse, enquanto passava pela sala.
Depois Denise deu de ombros. Afinal de contas, estava mais interessada no homem do que no gosto dele. Nem se importava mais com os erros crassos que ele cometia ao falar. Até achava bonitinho. Denise caminhou até a varanda onde a mesa fora posta. Sentou-se e comeu com vontade. Jofre aproximou-se e a beijou.
- Está com fome!
- Estou faminta. Você acabou com minhas energias!
Eles riram.
- Estamos amarradão em você.
- Eu também gosto muito de você, Jofre, mas sabe que não podemos ter nada sério.
- Por que não?
- Porque você não é homem de se prender a uma mulher só.
- No momento temos só você.
- No momento...
- Pois é. O momento é o que importa certo? Hoje estamos se amando. Isso é o que vale. Amanhã a Deus pertence.
- Por essa ótica até que vale viver essa aventura.
- Não é mais casada.
- Isso é fato. Sou uma mulher livre, aos olhos da lei e aos olhos dos homens.
- E aos olhos de Deus e do Diabo - ele emendou.
- É. Sou livre e desimpedida. Ainda sinto uma pontinha de ódio daquele casalzinho. Mais nada.
- Ainda presa nisso? Foi até a delegacia, cumpriu sua parte. A história se acabou.
- Difícil Jofre. Já se sentiu passado para trás?
- Eu?
- É. Já se sentiu enganado, ludibriado?
Jofre não respondeu de pronto. Virou o rosto na direção do mar. Seus olhos verdes perderam-se naquela vista deslumbrante. Foi obrigado há voltar alguns anos no tempo. Jofre crescera um menino problemático. Viu o dia em que o pai, um italiano bêbado e sem escrúpulos, espancou a mãe, pegou o pouco dinheiro que tinham guardado e sumiu com uma menina novinha lá da redondeza. Largou a família e sumiu do mapa. Consuelo pediu ajuda a um parente distante. Ganhou o dinheiro da passagem para São Paulo. Ela pegou o filho e subiram num pau de arara - espécie de caminhão que transporta nordestinos para o Sudeste e Sul do país. Depois de uma viagem de dias sobre o pau de arara sacolejante, quente e apinhado de gente, passando fome e sede, chegaram moídos em São Paulo. Jofre não tinha idéia do dia ou do mês, mas sabia o ano exato em que botara os pés na capital paulista: 1980. O menino, de dez anos de idade, surpreendeu-se com aquele agito todo e teve medo da cidade grande. Aquilo era muito diferente do sertão nordestino. Jofre ficara impressionado com a quantidade de gente andando nas ruas, dos edifícios que acreditava tocarem o céu. Sentiu medo, agarrou-se no braço da mãe, sentindo-se um estranho naquele mundo tão diferente de sua realidade. Foram parar num cortiço úmido, quente e fedido na região central da cidade. Consuelo arrumou emprego de doméstica, o dinheiro era bem pouco, mas eles tinham ao menos um teto para dormir e se proteger do frio e um prato de comida por dia, geralmente uma mistura de feijão com farinha. Jofre engraxava sapatos na Praça da Sé. Acordava cedinho, tomava um copo de café e um pão duro e seco de dias atrás. Para melhorar o sabor do pão, que mais parecia uma pedra, o menino o mergulhava no copo com café. Depois, ele saía e ia andando até a praça. Ganhava uns troquinhos e com um dos engraxates aprendeu a aspirar cola de sapateiro. Jofre entrou em êxtase. O produto deixava-o leve, anestesiado. Parecia não sentir as dores do mundo. Por alguns momentos ele podia ficar em paz consigo próprio, vivendo numa outra dimensão. Ele viciou-se em cola. Depois, vieram as drogas mais pesadas. Consuelo desesperava-se, tentava ajudar o filho, mas não tinha muito que fazer. Iriam recorrer a quem? Eram muito, mas muito pobres. Num dia, com uns trocados no bolso e sob o efeito da cola, Jofre entrou num cinema voltado para o público adulto no centro da cidade. Queria assistir aos filmes proibidos, aqueles de sacanagem, que os companheiros tanto diziam que ele deveria assistir. Anestesiado pela cola de sapateiro, o menino entrou na sala de exibição errada. Quando a tela começou a projetar as imagens, ele fixou os olhos e só os desviou quando as luzes se acenderam e a sessão acabara. Tratava-se do filme Pixote - A Lei do Mais Fraco, que tinha acabado de estrear e fazia grande sucesso de crítica e público. O filme retratava a vida de um garoto da mesma idade que Jofre. Pixote era um menino de rua recolhido num reformatório para menores. Lá, faz amizade com outros meninos. Numa rebelião, essas crianças fogem e formam uma espécie de família, vivendo de pequenos assaltos, lutando pela sobrevivência. O efeito da cola havia passado e Jofre deixou as lágrimas correrem livremente. Assistiu à próxima sessão e depois a mais outra. Saiu do cinema cabisbaixo e triste.
- Eu vou acabar como esse garoto - disse para si. Jofre praticou pequenos furtos, depois se envolveu num assalto e foi parar na FEBEM - Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor - na época, uma autarquia cuja função era executar medidas sócio-educativas aplicadas pelo Poder Judiciário aos adolescentes autores de atos infracionais.
Ele ficou lá por mais de um ano. Depois de uma rebelião, ele e outros meninos fugiram. Jofre voltou para casa e descobriu Consuelo grávida.
- O que é isso, mãe?
- Estou esperando um filho.
- O pai voltou? - indagou ele, temeroso.
- Não.
- Mas você está grávida! Consuelo estava cheia de vergonha.
- Aconteceu.
- Você se deitou com outro homem?
- Foi.
- Quem é ele, mãe? Quem? - Consuelo não respondeu. - Eu exijo saber!
Ela desconversou.
- O que faz aqui? Fugiu da FEBEM?
- Fugi daquele inferno.
- Tudo vai melhorar meu filho.
- Você me enganou. Não merece minha confiança.
Ela tentou abraçá-lo e Jofre se esquivou. O relacionamento deles nunca mais foi o mesmo. Consuelo enchia-se de culpa. Acreditava que ela não tinha sido uma boa mãe e por essa razão ele crescera daquela forma. Marina nasceu e o ambiente em casa ficou péssimo. Jofre olhava para a irmã e tentava imaginar quem seria o pai. Infernizava a pequena por qualquer motivo e um dia até bateu em Marina, machucando-há. Um dia, depois de uma discussão com Consuelo, saiu de casa. Jofre sumiu. Envolveu-se com o crime pesado e foi levado por uns traficantes para viver no Rio de Janeiro. Instalou-se em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, e, conforme os anos foram passando ele foi se tornando um traficante temido e respeitado. Muitos anos se passaram desde aqueles dias de 1980, mas a dor de sentir-se enganado e traído continuava viva, pulsando em seu peito apertado e magoado. Denise precisou cutucá-lo para que ele lhe desse ouvidos.
- O que foi? - perguntou ela.
- Hã?
- Parece que você sumiu por instantes. Foi parar na lua?
Jofre balançou a cabeça para os lados.
- A gente se perdemos no tempo. Nada de mais - ele sorriu e perguntou: - O que foi que disse mina?
- Que eu adoraria me vingar do desgraçado. Leandro me largou feito um cão sem dono. Eu não mereço ser passada para trás assim, dessa forma.
- O que pensa fazer? - indagou ele enquanto sorvia um gole de suco de laranja com vodca.
- Sei lá. Pensei em tanta coisa! Tanta barbaridade!
- A gente iríamos sugerir apagar a esposa, mas se você quer que ela sofra, não vai adiantar morrer.
- Estou sem saber o que fazer. Só quero me vingar. Depois, sigo minha vida adiante.
- Disse que ele ama a mulher e o filho.
- É. Um fedelho que vive grudado com o pai. Uma coisa! Ficávamos juntos, contudo o fim de semana era sagrado. Leandro sempre corria para ver e ficar com o filho.
- Já sabe o que fazer.
- Como assim? - perguntou Denise, sem entender.
- Você diz que quer se vingar desse homem, certo?
- Sim.
- E também quer que a mulher dele sofra né?
- Exatamente.
- Para atingir os dois ao mesmo tempo, marido e mulher, você tem que atacar o filho. A gente já tínhamos comentado contigo do seqüestro, lembra?
Denise havia rejeitado a idéia por medo. Nunca pensara chegar tão longe. Mas que risco corria? Nenhum acreditava. Jofre era homem de vida marginal, experiente e malandro, poderia ajudá-la a dar um susto na família. Ela levantou-se excitada, abraçou e beijou Jofre várias vezes na boca.
- Você é demais! Precisamos atacar esse menino. Assim, tanto Leandro quanto Letícia vão sofrer à beça. Mas como fazer?
- Isso é fácil. Somos bem relacionado, temos uns amigos e podemos apagar o menino.
- Matar o fedelho?
- É.
Denise mordiscou os lábios.
- Não precisamos chegar a tanto. Só queria um susto, um bom susto.
- Seqüestro o menino por uns dias.
- Uns dias?
- É. Podemos seqüestrar o garoto e levar ele para um esconderijo. A gente conseguimos fazer isso rapidinho. Se vai te deixar feliz, fazemos.
- Eu quero. Quero muito. Adoraria ver Leandro e Letícia desesperados. Acho que essa é a forma de me vingar. Como podemos fazer?
Jofre sorriu e começou a falar. Foi explicando à Denise como podia seqüestrar o filho do casal. Pediu que ela juntasse informações sobre a vida da família: onde morava, qual a escola que o menino freqüentava quem eram as empregadas, se havia motorista, absolutamente tudo, Tim-Tim por Tim-Tim. Denise respondia tudo com os olhos cheios de rancor:
- Eles vão pagar caro por toda humilhação que me fizeram passar!
Depois da leitura de um trecho de O Evangelho Segundo o Espiritismo, Mila pediu que os presentes dessem as mãos, formando um círculo, e fez sentida prece de agradecimento. Terminada a prece, ela sentiu ligeiro bem-estar. Havia dias estava com uma sensação esquisita no peito e não conseguia identificar o porquê. No finzinho da reunião espiritual na casa de Letícia, que já ocorria com regularidade havia alguns meses, foi que ela se lembrou: fazia dias que vinha sonhando com o pai. Sempre o mesmo sonho. Ainda agora, na hora de tomar o copo com a água - fluidificada pelos amigos espirituais durante o Evangelho no Lar - lembrou-se com maior nitidez de tudo o que vinha sonhando. Mila saía do corpo físico, andava pelo quarto e seu perispírito atravessava a parede. Numa fração de segundos ela chegava perto de um acidente, os aviões em chamas, pessoas mortas e carbonizadas de um lado, outras sentindo terrivelmente o corpo arder em chamas e outras ainda clamando por socorro. Uma cena muito triste. Ela levava a mão à boca para abafar o grito de pavor. Logo em seguida, o pai aparecia do meio dos escombros, cheio de fuligem sobre o corpo, as roupas rasgadas, a pele bem queimada. Mila não conseguia se mover, tamanho medo. Fechava os olhos.
- Não se assuste, sou eu, papai.
Ela escutou a voz familiar e abriu os olhos. Apertou-os para enxergar melhor.
- Papai? Você?
- Sim, querida, sou eu.
Mila deu-se conta do acidente que vitimara o pai e a mãe, muitos anos atrás.
- Você morreu neste acidente! Faz muitos anos.
- Sim, faz.
- Estou de volta ao passado, é isso?
- Não. Eu plasmei cenas do passado para você saber que sou eu de verdade.
- Você as recriou?
- De certa forma, sim, porquanto foi à única maneira de você saber que sou eu, minha filha. O acidente aconteceu há muito tempo, é verdade, todavia eu precisei recriar algumas cenas para que você soubesse que não se trata de um espírito impostor.
Ambos abraçaram-se.
- Quanta saudade, papai. O espírito sorriu.
- Também sinto muita saudade. Antes você sonhava comigo, encontrávamo-nos e depois que retornava ao corpo físico não se lembrava de nada. Hoje está mais lúcida, tem estudado bastante e evidentemente volta ao corpo físico com a memória mais fresca.
- Comento com Letícia que desde que passamos a nos reunir semanalmente para as orações, sonho com você, mas é algo que não me lembro, só sinto. Agora, não. É tudo tão real!
- Mas é real, filha. Não está falando comigo?
- Tanto tempo sem o seu abraço!
- Entendo que a separação foi benéfica e muito importante para o nosso crescimento espiritual.
- Pode acreditar, já faz algum tempo, tenho dado incrível valor à família.
- Esse foi o motivo maior para que eu e sua mãe não compartilhássemos do seu crescimento. Seu espírito queria viver sem os pais.
Ela o abraçou de novo, sentindo o perfume que ele usava toda vez que fazia a barba, um suave cheiro de lavanda. Uma lágrima escorreu pelo olho. Mila secou-a delicadamente com os dedos. O pai lhe estendeu as mãos e imediatamente a conduziu até um lindo jardim. O cheiro das flores perfumadas era inebriante. Mila sorriu e apertou a sua mão. Na Terra, em última encarnação, ele fora Artur, pai de Mila. Depois do seu desencarne, no plano espiritual, preferiu ser chamado pelo nome que tivera numa vida anterior a esta: Leônidas. Mila estava emocionada.
- Você me faz tanta falta. Cresci sem você e mamãe por perto.
- Seu espírito precisava valorizar a família. Havia algumas encarnações que você não dava o devido valor aos seus familiares. Antes de nascer, pediu para encontrar uma família que só tivesse você como filha e que estivessem destinados a morrer cedo. Daí você nasceu minha filha.
- Então você sabia que iria morrer naquele acidente horrível?
- Em total consciência, não. Mas meu espírito sabia.
- O acidente já estava previsto?
- De forma alguma. Antes de reencarnar, dependendo do nosso grau de lucidez, podemos traçar a nossa vida futura na Terra. Existem departamentos no mundo astral que cuidam disso, são os chamados Departamento de Reencarnação, subordinados ao Ministério do Auxílio.
- Não sabia que o mundo espiritual era tão organizado.
Leônidas abriu largo sorriso.
- Somos muito organizados, até mais do que na Terra.
Mila interessou-se.
- E daí, o que acontece nesses departamentos?
- O espírito é atendido por um cooperador técnico, uma espécie de funcionário capacitado do departamento. Há a chance de se conhecer a família, pedir para nascer em determinado país, claro que tudo depende do grau de evolução do espírito requerente. Eu sabia que iria morrer jovem, mas não imaginava a maneira como iria desencarnar. O processo de morte é muito complexo e a morte de cada um está relacionada ao conjunto de crenças e valores do espírito, dentre outras peculiaridades que ainda não temos maturidade espiritual para entender.
- Quer dizer que a vida aproveitou aquele acidente para levar você e mamãe de volta ao mundo espiritual?
- Com certeza.
- Como ela está? Mal me lembro de seu rosto.
- Você era muito pequena. Nem de mim deveria lembrar-se.
- Por que me lembro bem de você e não me lembro quase nada dela?
- Porque eu e você estamos ligados por laços de amor, de amizade, há muitas vidas. Sua mãe é uma querida amiga minha não tinha vínculos com você. Agora, há um amor de mãe e filha que foi germinado nesta vida e que talvez vocês aprofundem em futuras existências. Conversaram bastante e, no fim, Mila confessou:
- Essa sensação estranha diminuiu, contudo não abandona o meu peito.
- Momentos difíceis estão por vir.
- Algo grave?
Leônidas procurou tranqüilizá-la.
- O que é grave diante dos olhos de Deus? Veja minha filha, tudo é aprendizado, tudo é experiência.
- Fico aflita só de pensar que algo ruim possa acontecer comigo ou com as pessoas de quem gosto.
- Faça prece.
- E o que mais?
- Faça prece - Leônidas repetiu.
- Só?
- Você não tem idéia da força que a prece tem. Uma ligação com Deus ou com os amigos espirituais do plano superior, por menor que seja, desde que sincera e verdadeira, tem uma força incrível e pode, inclusive, mudar o curso dos acontecimentos. Muitas tragédias no orbe terrestre foram evitadas por conta de oração.
- Não sinto que algo vá acontecer comigo.
- E não vai. Você já conheceu alguém que lhe quer muito bem. Serão muito felizes.
Mila imediatamente lembrou-se de Carlos Alberto. No entanto, eles só tinham saído algumas vezes para jantar. Eram bons amigos, mais nada. Ela esboçou sorriso tênue e o pai emendou:
- No momento vim para lhe pedir que fique em prece, sempre que puder. Ore bastante, qualquer parte do dia ou da noite. Entre em contato com Deus toda vez que sentir vontade. Você precisará estar em total equilíbrio emocional a fim de ajudar aos seus amigos.
- Eu tive mesmo a impressão de que seja algo relacionado com Letícia e sua família.
Leônidas desconversou.
- Está na hora de eu ir. Não se esqueça de rezar. O poder da oração vai ajudar muito a todos os envolvidos.
Leônidas abraçou a filha com enorme carinho. Beijou-a na testa e sumiu. Ela voltou imediatamente ao corpo físico e despertou ainda sonolenta. Não se recordava de muita coisa, a não ser sobre o poder da oração. Abriu os olhos e encarou os amigos ao redor.
- Desculpem, acho que cochilei um pouquinho. Ricardo levantou-se e a beijou.
- Obrigado por nos fazer tão bem.
Mila emocionou-se, mas sentiu novamente a sensação esquisita no peito. Então o problema era com Ricardinho! Agora ela lembrara-se de parte da conversa com o pai. Ricardo poderia correr risco. Mas que tipo de risco? Ela procurou ocultar a angústia. Beijou-o também e pediu:
- Não quer pedir para Iara nos fazer uns lanchinhos?
- Pedirei agora mesmo. Estou com fome! Com licença.
Ela o encarou e percebeu algo estranho, uma luz escurecida em torno do menino, como se fosse uma energia diferente, mais densa, que tentava se aproximar de Ricardo. Mila fechou os olhos e por alguns instantes ligou-se aos amigos espirituais. Fez rápida, porém sentida prece. O ambiente tornou-se novamente mais leve e tranqüilo.
- Adorei sua prece - comentou Leandro. - Foi sincera e tocou meu coração.
- O meu também - emendou Letícia. Tenho me sentido mal nos últimos dias. Embora esteja enjoada, meu coração serenou um pouco. Tive a nítida sensação de que alguém estivesse querendo nos fazer mal.
- Imagine meu bem! - tornou Leandro, alisando delicadamente a mão sobre o braço dela. - Nada de mal pode nos acontecer. Leandro levantou-se. - Vou ver se os lanches estão à mesa.
Assim que ele saiu, Mila indagou:
- Foi ao médico?
- Fui. Ele pediu uns exames, mas tudo de rotina.
- Se precisar, eu posso acompanhá-la. Letícia sussurrou à amiga:
- Acho que o bebê vai nascer logo.
- Sério?
Mila teve um lampejo e lembrou-se da conversa com o pai. Tudo veio à sua mente, cada detalhe. Agora ela ficara em dúvida: será que o problema era com Ricardinho ou com o bebê que estava prestes a nascer? Ela suspirou e abraçou Letícia. Falou sem pensar:
- Essa criança vai trazer muita felicidade para vocês.
Letícia abraçou-se a ela novamente. Sentiam carinho sincero e especial uma pela outra. Seus corações estavam ligados havia muitas vidas. Numa vida anterior a esta as duas foram primas. Foram criadas juntas, mas Mila, não suportando as regras rígidas impostas por sua família, fugiu com um estrangeiro e fora morar em terras distantes. Por muitos anos corresponderam-se por carta. Letícia sabia que a prima tinha problemas de relacionamento com a família - não se dava bem com os irmãos, mas entendeu e nunca sentiu nenhuma mágoa pelo sumiço da prima. Sentia, de verdade, que Mila gostava dela e precisava viver longe dali. Anos depois, muito velhas, tiveram a chance de se reencontrar e reviver alguns momentos de alegria... Depois do abraço afetuoso, as amigas deram-se as mãos e foram até a copa para o lanche. Edgar melhorou sobremaneira com as constantes sessões de terapia. Aprendera a se dar valor, a elevar sua auto-estima. Percebera, com a prestimosa ajuda da Dra. Vanda, que ele era mais importante do que Denise, que ele deveria ser amigo de si próprio em primeiro lugar e que o casamento de ambos jamais teria chances de um final feliz; afinal de contas, para um relacionamento durar bastante, é necessário que os envolvidos queiram e desejem, de coração, que ele dure. Obviamente, ele teve de aprender a abandonar o sonho de querer viver a mesma história que seus pais. Edgar precisava viver a sua vida, do seu jeito, de acordo com a sua personalidade e com as necessidades do seu espírito. Depois de alguns meses, as sessões diminuíram para uma vez por semana. Vanda até quis lhe dar alta, contudo ele estava adorando conhecer a si mesmo cada vez mais. Isso o fortalecia e o tornava um homem mais confiante, firme e, porque não dizer, mais bonito. Sim. Edgar parecia estar mais bonito. Trocara os óculos por lentes de contato. Os cabelos estavam mais curtos, cortados à moda. O rapaz adotara um charmoso cavanhaque e percebia, envaidecido, que despertava a atenção das mulheres. Aproveitou-se dessa nova fase e começou a sair com algumas moças. Nada de compromisso sério. Ainda sentia que precisava de certo tempo para iniciar e se entregar a um novo relacionamento afetivo. Ele bem que tentou entrar em contato com Denise. O tempo foi passando, a vontade de conversar com ela foi diminuindo e agora ele não mais queria saber de nada que estivesse relacionado ao seu tempo de casado. Adotara uma postura tão firme e de auto-estima tão alta que jogara no lixo o porta-retrato com a foto do casamento de ambos - aquela foto que ele tanto amava e beijava sempre. O que Edgar ainda não entendia é que ele deveria sentir-se bem consigo próprio e não ter de mostrar ao mundo que era o homem mais confiante do Universo. Aos poucos, ele estava - e iria - aprender a lição da verdadeira auto-estima. Foi numa noite, saindo de um badalado restaurante na região dos Jardins e acompanhado por uma loira de fechar o comércio, que ele ficou frente a frente com Denise. Ela estava com Inácio. Ao vê-lo, Denise procurou fingir não notar sua presença e baixou os olhos.
- Como vai, Denise?
Ela levantou a cabeça e sorriu irônica.
- Vou bem.
Inácio o cumprimentou. A loira foi para a mesa e ele continuou:
- Quanto tempo, hein? Está tudo bem, tudo em ordem?
- Sim.
- Bom lhe ver. Vamos tomar um café qualquer dia.
- Creio que não temos nada para trocar, uma idéia sequer.
- Fomos casados por cinco anos.
- Estamos separados há mais de um ano.
- E daí? Não acha que podemos ter uma amizade!
- Não. Eu não quero a sua amizade.
- Você é mesmo dura e seca. Uma mulher prepotente e arrogante. Como pude me envolver com você?
- Porque é um idiota, um imbecil que não sabe segurar mulher. Dou graças a Deus de estar livre de você.
- Eu agradeço todos os dias por você ter saído da minha vida. Não sabe o quanto sofri, o quanto chore por sua causa.
Ela deu de ombros.
- Quer que eu sinta pena de você? Pois não sinto.
- A minha terapeuta está certa. De nada adianta tentar uma aproximação com você. Pura perda de tempo.
Edgar estava se afastando e Denise correu e sussurrou em seu ouvido:
- Olha, aqui neste restaurante não servem porções de veneno para rato. Se quiser tentar se matar de novo eu lhe dou uma arma bem potente. É tiro e queda!
Ele meneou a cabeça negativamente para os lados,
- Você não presta Denise. Não vale nada. Até nunca mais.
Edgar falou e foi até o toalete. Entrou, aproximou-se da pia, abriu a torneira e jogou muita água fria no rosto. Olhou para a sua imagem refletida m espelho. Disse para si:
- Não se preocupe. Sou um homem de bem. Mereço ser feliz. Nunca mais vou pensar em Denise. Nunca mais.
Edgar falou, enxugou o rosto e foi até a mesa. Sentou-se ao lado da loira e tentou entabular conversação agradável.
- Quem era aquela mulher? - indagou à loira.
- Minha ex-esposa.
- Bonita ela.
- Você é mais bonita.
- Obrigada.
- Importa se eu fizer o pedido?
- De maneira alguma. Gostaria de um refresco.
- Não vai me acompanhar num drinque?
A loira riu-se e enrubesceu.
- Você me parece um bom sujeito. Vou aceitar. Mas um drinque só está bem?
Edgar acenou com a cabeça e fez sinal para o garçom.
Do outro lado do restaurante, sentados e bebericando um drinque, Inácio não conteve a curiosidade.
- O que foi que sussurrou no ouvido do seu ex?
Denise deu uma gargalhada.
- Eu já lhe contei que quando eu o deixei, o infeliz do Edgar tentou se matar, ingerindo veneno de rato?
- Pesado, hein?
- Pesado nada. Quem quer se matar de verdade arruma um jeito certeiro de morrer. Joga-se do vigésimo andar de um prédio, atira-se sobre um trem em movimento, dá um tiro certeiro no coração. Ou toma os remédios certos e com as doses cavalares certas. Edgar não queria se matar queria chamar atenção, mais nada.
- Ele está bem. Não parece um fraco.
- Mas é. Um bobão. Sabe o que disse a ele? Que aqui neste restaurante não servem porções de veneno para rato.
Inácio teve forte acesso de riso.
- Você é impossível! Uma mulher terrível, Denise.
- Convenhamos que tenho senso de humor.
- Sarcástico.
- Não importa. Um tonto é sempre um tonto. Esse é o babaca que atrasou minha vida em cinco anos.
- Ele está muito bem. Mais corado, mais forte, bonitão eu diria. E olha que ele tinha cara de picolé de chuchu. Está acompanhado de uma linda loira.
- Aquela lá? É uma tremenda pistoleira.
- Como sabe disso?
- Sou experiente e vivida, Inácio. Já subi o morro com o Jofre. Sei diferenciar uma mulher de uma piranha.
- O que importa é que ele está muito bem acompanhado.
Denise deu de ombros.
- Dane-se ele. Eu o desprezo totalmente. Não sinto nada pelo Edgar, nem raiva.
- Nada de nada? Nem um pingo de sentimento?
- Para ser franca, se ele morresse hoje eu não sentiria absolutamente nada. Percebe o meu grau de sentimento por esse infeliz? Nulo, zero.
Inácio bebericou sua vodca e completou:
- Agora que está amarrada no ricaço da Baixada...
- Jofre é homem para mulher nenhuma botar defeito. É homem com H maiúsculo.
- É homão, tudo bem, mas não o fez esquecer o Leandro.
- Por que você tem de tocar em assunto tão desagradável?
- Foi só um comentário.
- Comentário infeliz. Peça a conta e vamos embora.
- Acabei de pedir os pratos.
- Inácio! - Denise falou num tom mais alto que o habitual: - A conta!
Ele fez gesto afirmativo com a cabeça. Pediu a conta, pagou e saíram do restaurante. Inácio deu o tíquete para o manobrista pegar seu carro. Denise estava de cara amarrada. Eles entraram no carro e Inácio foi dirigindo.
- Desculpe-me. Não queria deixá-la nervosa.
- Tudo bem. Mas vou lhe falar de Jofre. Ele me fez esquecer todo e qualquer homem que conheci na vida.
- Mesmo? Ele fala errado, tem cara de bandido. Não sei...
Denise fechou os olhos e suspirou.
- Adoro os tipos perigosos. Esse homem me deixa de quatro. Jofre pode falar errado, ter cara de bandido e ter amigos barra-pesada. Não me importo, porque ele me tem como nenhum homem me teve antes. Jofre faz com que eu me sinta mulher desejada. Ele me valoriza.
- E por que quer tanto atazanar o Leandro? Se sente valorizada, amada e desejada...
- A minha história com Leandro é pura vingança. Só isso.
- Quer mesmo seguir seu plano adiante?
- Quero.
- Eu acho tudo muito arriscado.
Denise o fuzilou com os olhos.
- Eu só não puxo o freio de mão deste carro porque não quero provocar um acidente e morrer. Tenho muito que viver, muito que me divertir, vou ficar muito rica. E vou assistir de camarote à destruição daquela família carioca.
- Você tem dinheiro, abriu conta em Bancos estrangeiros, desfalcou a Dommênyca em milhares de dólares. Pode viver muito bem em qualquer parte do planeta. Hoje, eu deixaria essa vingança de lado.
- Está amarelando?
- Eu?!
- Sim. Que história idiota é essa agora de tentar fazer com que eu pare com meu plano?
- Porque acho que dá tempo de desistir.
- Não sou mulher de desistir.
- Denise, você tem tudo, dinheiro, homem. É saudável, jovem e bonita, tem muitos anos pela frente. Vá curtir a sua vida.
- Não foi você quem me incitou?
- Fiz um comentário sobre vingança tempos atrás, achei que tudo era brincadeira, nunca pensei que fosse querer chegar tão longe, arriscar-se tanto.
- Tem coisa melhor do que arriscar? Dá até um friozinho gostoso na barriga.
- Denise, pare e reflita.
- Eu vou ir muito longe. Conto com a sua ajuda, Inácio.
- Sabe o que acontece...
Denise o cortou violentamente.
- Não! Não sei o que acontece, Inácio! E nem quero saber! Você prometeu me ajudar.
- Estamos falando da vida de um garoto, filho de gente conhecida da sociedade. É muito arriscado.
- Já disse que adoro correr riscos.
- Pense e reflita.
- Não tenho o que pensar. Mas você tem o que pensar e refletir.
- Eu?!
- Sim. Sabe que tenho todos os documentos que você adulterou na Dommênyca. Eu tenho os originais guardados num cofre. Você também levou muita grana. É só eu estalar os dedos e esses maníacos da Polícia Federal virão como abutres sobre você. Vão comer você vivo, sem dó nem piedade. Quer aparecer em rede nacional, sendo algemado por aqueles brutamontes e um repórter falando: Foi preso hoje o advogado Inácio Mello Farias, que liderava uma quadrilha...
Inácio engoliu em seco e parou num sinal. Olhou para ela com o suor escorrendo pela testa.
- Não precisa continuar. Sei que tenho o rabo preso contigo. Eu vou fazer o que me pediu.
- E o que lhe pedi? - perguntou ela.
- Você, Denise, é a mentora do seqüestro de Ricardo Ferraz Dantas, filho do empresário Leandro Dantas e de Letícia Theodoro Ferraz.
- Gravou bem os nomes! E que mais?
- Quer que eu tome providências para transformar meu sítio em cativeiro do menino. Preciso demitir ou afastar meu caseiro e deixar o pessoal do Jofre ficar lá por pelo menos uma semana. Devo providenciar mantimentos e...
- Isso mesmo! - Ela bateu palmas. - Parabéns. Sabe que quero o sítio pronto para a semana que vem. Esse fedelho tem ser seqüestrado logo. Sem falta. Sabe que sigo um cronograma rígido.
- Por certo - concordou ele.
Denise falou e quando percebeu estava na porta de seu novo endereço, um suntuoso casarão no Jardim Europa, um dos endereços mais chiques e caros da cidade.
- Chegamos - disse Inácio ao encostar o veículo no meio-fio. - Pode contar comigo. Sabe que farei o que quer, mas que fique claro uma coisa.
- O que é?
- Se algo der errado, eu mal sabia do que estava acontecendo no meu sítio. Vou negar tudo, como Judas. Não serei preso por conta de um capricho seu.
- Pode ficar tranqüilo, nada vai dar errado.
- Assim espero.
- Boa noite.
Ela bateu a porta do carro, um holofote acendeu-se imediatamente na calçada. O portão automático abriu-se e um segurança apareceu.
- Boa noite, d. Denise.
Ela nem cumprimentou o rapaz. Entrou em casa, tirou os sapatos e jogou-se sobre uma poltrona. Delis veio ao seu encontro.
- Deseja alguma coisa, senhora?
- Por acaso eu chamei você, idiota? Chamei?
- Desculpe, é que...
- Nem sei por que lhe convidei para trabalhar comigo, Delis. Você serve para trabalhar para o Edgar. Uma idiota servindo a outro idiota.
- Se não precisar de mais nada vou me retirar.
- Aproveitando que a songamonga está na minha frente, vá me preparar um Martini. Preciso de um drinque antes de dormir.
Denise terminou de falar, fechou os olhos e começou a imaginar o desespero de Leandro e da esposa. Não via a hora de Jofre botar as mãos naquele garoto estúpido. Delis abaixou a cabeça envergonhada, tentava a custo segurar as lágrimas. Correu para a cozinha.
- Que vontade de matar essa mulher! Como ela pode ser tão grossa, tão estúpida?
O segurança entrou pela porta da cozinha e emendou:
- Fique triste não, Delis. Aqui se faz aqui se paga.
- Mas essa daí só se dá bem. Olha o casarão, o luxo, o dinheiro...
- E, no entanto, vive sozinha, presa à arrogância e à ilusão.
- Se eu não tivesse filhos pequenos para criar, juro que iria embora agora mesmo. Até hoje me arrependo de ter deixado o trabalho de diarista. Eu tinha patrões bem legais e o ex-marido dela, o Edgar, era um doce de patrão. Uma das pessoas mais boas que conheci na vida.
- Provavelmente veio para cá para ganhar mais.
- A proposta na época era irrecusável. O salário é bom, mas estou deveras arrependida. Se pudesse voltar no tempo!
- Confie em Deus que tudo vai ficar bem. Você é boa pessoa, Delis.
- E você também, Chico. É um bom homem. Temos de dar duro, sacrificarmo-nos. Somos pessoas honestas e educadas. E olhe para essa aí: vive bem, tem uma vida confortável, um emprego excelente. Não sei como ela tem tudo isso, sendo tão mal-educada - falou Delis, enquanto preparava o Martini para Denise.
- Não se compare a ela. Você tem um bom coração. Pessoas como Denise nunca se dão bem na vida.
- Ela sempre se deu bem na vida, Chico. Sempre.
- Um dia a casa cai. A casa sempre cai...
Na rua, Inácio espumava de ódio. Deu partida e saiu cantando os pneus.
- Quem Denise pensa que sou? Um idiota tal qual o ex-marido dela? Que acata tudo, que a obedece feito um escravo? Ela não me conhece. Chantageou-me e não sabe com quem está se metendo!
Ele foi ruminando os pensamentos até chegar a casa. Estacionou o carro e disse:
- Essa mulher vai me pagar caro por tentar me chantagear - ele olhou para o gravador de MP3 discretamente colocado próximo ao banco do passageiro. O dispositivo eletrônico era eficiente para gravar conversas. Quantas vezes Inácio se utilizara dele pare gravar reuniões sigilosas e depois chantageava Deus e o mundo com as conversas gravadas. Arrancou dinheiro de muitos empresários que pagavam propinas para vender seus produtos na Dommênyca.
Ele sorriu e introduziu o dispositivo no som do carro:
- E o que lhe pedi?
- Você, Denise, é a mentora do seqüestro de Ricardo Ferraz Dantas, filho do empresário Leandro Dantas e de Letícia Theodoro Ferraz.
- Gravou bem os nomes! E que mais?
- Quer que eu tome providências para transformai meu sítio em cativeiro do menino. Preciso demitir oi afastar meu caseiro e deixar o pessoal do Jofre ficar lá por pelo menos uma semana. Devo providenciai mantimentos e...
- Isso mesmo! - Ela bateu palmas. - Parabéns. Inácio não cabia em si tamanha alegria. Saberia dar o troco em Denise. E não iria demorar muito.
No restaurante, enquanto comiam, Edgar começou a se cansar da loiraça. Embora linda, ela só queria falar das plásticas a que se submetera nos últimos meses para ficar com aquele corpo escultural. Ele arrependera-se amargamente de tê-la convidado para sair. Num dado momento, Edgar percebeu, duas mesas à frente, um grupo de conhecidos que acabava de se sentar. Reconheceu imediatamente Adriano e Patrícia. Pediu licença e foi ao encontro do casal.
- Olá, queridos.
Adriano levantou-se e abraçou o amigo.
- Seu sumido!
- Tenho saído bastante. Como vai. Patrícia?
- Bem - respondeu ela, curta e grossa.
- Vocês não sabem quem eu encontrei aqui hoje.
- Quem? - indagou Adriano, curioso.
- A Denise.
- Mesmo?
- Em carne e osso. Conversamos um pouco, ela foi muito estúpida. Eu a enfrentei, mesmo ouvindo coisas desagradáveis de sua boca.
- Denise sempre foi desagradável - tornou Patrícia.
- Sabe que foi somente hoje que a minha ficha caiu? Eu não consigo imaginar o porquê de ter arrastado um bonde por uma mulher tão arrogante.
Adriano o abraçou.
- Parabéns. Você a enfrentou e agora não vive mais atormentado pelo fantasma dessa mulher. Que você seja feliz!
- Eu quero mais é aproveitar. Trouxe uma loiraça que conheci na internet - apontou para a mesa logo atrás.
- Bonita a moça - disse Adriano.
- E você, o que acha Patrícia?
- Não acho nada.
- O que foi?
- Que foi o quê?
- Está sendo ríspida comigo. Eu lhe fiz alguma coisa?
- Você é tão patético, Edgar. Eu sempre o achei um sujeito formidável, um homem fantástico. Sempre teci elogios a seu respeito e Adriano é prova disso - o marido pendeu a cabeça em sentido afirmativo, para cima e para baixo. - Não sei o que aconteceu, porque, de uns tempos para cá, você sai com uma mulher atrás da outra, como se estivesse brincando de bonecas. Não acho uma atitude legal de sua parte.
- Natural. Depois do que passei com Denise sinto-me no direito de aproveitar a vida.
- E aproveitar a vida para você resume-se em sair com uma mulher diferente por noite? É isso?
- É sim.
- Só para alimentar seu ego? Depois de tantas sessões de terapia ainda não aprendeu a ter equilíbrio e procurar conhecer alguém que possa amá-lo e ser correspondido?
- Isso não existe. Eu não caio mais nessa arapuca de casamento. Quer fazer duas pessoas se odiarem? É só fazer com que elas se casem.
Ele falou e deu uma sonora risada. Adriano ia rir, mas diante do olhar de reprovação da esposa, baixou os olhos, constrangido.
Marina apareceu.
- Desculpem a demora. Peguei o ônibus errado e saltei algumas quadras lá atrás.
Edgar fechou o cenho.
- Vocês me trocaram pela Marina. Agora é Marina para cima e para baixo.
- Ao menos ela não nos envergonha.
- O que é isso, Patrícia? É pessoal? - indago ele, atônito.
- Sim. Você, sempre tão amoroso, tão sensível, um marido fantástico, de repente se transformou nessa galinha, só para satisfazer ao seu ego doente. Não percebe que existem mulheres muito mais interessantes do que essas loiras e morenas plastificadas cheias de botox? Não percebe que pode viver um relação tão boa quanto a minha e de Adriano? Acho que todas as mulheres são como Denise? Pois saiba que não são.
- Até agora não conheci nenhuma mulher que me atraísse, se quer saber. Um bando de fúteis. São boas para a cama, nada mais - fez sinal apontando novamente para a mesa em que estava sentado.
- A sua energia de garanhão atrai esse tipo de mulher fútil, que não quer saber de compromisso. Se estivesse mesmo querendo se envolver com alguém que valesse a pena, teria de mudar essa postura de galanteador barato. Acredita que ainda tem dezessete anos de idade? Você agora é um homem, o deveria se portar como um. Vê se enxerga! Adriano balançou a cabeça para os lados. Patrícia retrucou:
- Volte para a sua mesa e para a sua loira divina. Alimente e satisfaça seu ego e deixe que o verdadeiro amor escorra pelas suas mãos. Seu cego!
- Bom, eu vou para a minha mesa. Acho que não sou benquisto aqui.
- Não é mesmo - finalizou Marina.
- Até você? Pensei que fosse minha amiga.
- Pensou? - ela falou sustentando o olhar. - Que pena.
Edgar não entendeu, despediu-se com um aceno e voltou para a sua mesa. Os três se sentaram e Adriano sussurrou:
- Vocês pegaram pesado com ele. Sabemos o quanto ele sofreu. Precisa se divertir oras!
- Divertir-se? - indagou Patrícia incrédula.
- O rapaz tentou se matar. Chorou e sofreu por amor. Vamos ter um pingo de piedade.
- Eu não tenho pena dele - replicou Patrícia. - Edgar não usa a imaginação com inteligência. A imaginação desenfreada, sem controle, pode nos causar sérios problemas, não só nesta encarnação, como por vidas e mais vidas à frente. Concordo que a terapia o ajudou. Ao menos Edgar parou de reclamar, parou de chorar e de sofrer.
- Isso é ótimo, não é?
- Até certo ponto, Adriano. Edgar vem fazendo isso há meses. Flertou com todas as solteiras do nosso grupo de corrida. Não pode ver um rabo de saia que logo monta em cima da coitada. Isso não é vida. Edgar sempre foi um homem apaixonado, nasceu para o matrimônio.
- Ficou traumatizado depois do que Denise lhe aprontou.
- Não acredito em vítimas. Nós podemos escolher, somos dotados de livre-arbítrio. Ninguém obrigou Edgar a se casar com Denise.
- Não se esqueça de que ela engravidou.
- Vai saber de quem! Sabemos que Denise saía com todos os homens do bairro. Não deixava escapar quase nenhum.
- Eu não dei bola para ela - respondeu Adriano.
- Nós namorávamos. E você nunca foi o tipo da Denise.
- Edgar tem direito de levar a vida que quer.
Marina levantou-se.
- Vou ao toalete refazer a maquiagem. Transpirei um pouquinho vindo do ponto de ônibus até o restaurante.
Ela caminhou até o lavatório e Patrícia cutucou o marido.
- Não estou defendendo a moral e os bons costumes. Sabe que não sou hipócrita e aceito as pessoas como são.
- Então deixe o nosso amigo em paz.
- Não percebe - Patrícia bebericou um pouco de guaraná e baixou o tom de voz - que Marina está apaixonada por Edgar?
- Marina? - indagou Adriano, estupefato.
- Sim. Ela apaixonou-se e...
- E por que não se declarou?
- Olhe para seu amigo. Ele só quer saber de farra. Marina não é mulher de farra.
- Foi por essa razão que disse a ele agora a pouco que está deixando o amor escorrer pelas mãos? Agora entendo você, amor.
- Óbvio Adriano. Marina deu várias indiretas. Depois que percebeu Edgar interessado superficialmente em toda e qualquer mulher, preferiu ficar na dela, quieta.
- Precisamos fazer alguma coisa, querida.
- O infeliz está se sentindo o rei da cocada preta. Quer porque quer sair com todas as mulheres do mundo.
- Nós vamos dar um jeito nisso - Adriano falou e pousou delicadamente a mão sobre a da esposa. Patrícia sorriu e o beijou nos lábios.
- Sabia poder contar com você.
Marina voltou e sentou-se. Estava mais bonita por conta do efeito da maquiagem, mas Patrícia percebeu que ela havia chorado. Marina estava apaixonada por Edgar e estava difícil sufocar esse amor.
- Você está bem? - perguntou Adriano.
- Sim. Estou cansada, mas bem.
- Vamos pedir os pratos? - sugeriu Patrícia.
- Estou com pouca fome.
- Precisa comer. Está muito magra. Tem trabalhado muito.
- Ainda bem que aos sábados vou tomar passe. Se não fosse o passe, acho que estaria de cama.
- Não é fácil ter uma chefe como Denise.
- Não é mesmo, Adriano.
- Por que não se demite? - indagou ele.
- Porque a empresa oferece um excelente convênio médico. Eu não tenho condições de bancar um plano de saúde sozinha. Minha mãe está doente e precisa da assistência médica. Não tenho coragem de deixá-la num hospital público.
- Entendo - respondeu Adriano, penalizado.
- Você pode procurar outro emprego que lhe pague mais - sugeriu Patrícia.
- E a crise econômica? Está difícil arrumar emprego.
- Difícil para quem acredita que seja difícil - emendou Patrícia. O nosso país já está praticamente livre dos efeitos da crise mundial. Há emprego, sim.
- Acaso acha que faço corpo mole?
- De maneira alguma, no entanto está se sentindo muito vítima da situação, como se Denise fosse o lobo mau e você a pobre menina indefesa que não consegue se livrar dele.
- Isso não é maneira de falar com sua amiga - protestou Adriano.
- Por isso mesmo. Ela é minha amiga. Amigos falam a verdade. Marina está se deixando levar pelo vitimismo, está paralisada num medo imaginário, tendo só pensamentos negativos e não toma atitude. Eu sei que o mundo vem enfrentando uma crise econômica muito séria, porém nosso país está se saindo muito bem. Os postos de trabalho estão crescendo na indústria e eu, particularmente, acredito que quem quer de verdade arrumar emprego, vai arrumar um.
- Eu assisto ao noticiário na televisão e me assusto.
- Porque se impressiona negativamente com as notícias. Veja quantas pessoas estão aqui sentadas, neste ótimo restaurante, comendo e pagando suas contas. Creio que todos aqui estão empregados. Todos devem trabalhar. Acha que não existe uma vaga para você numa cidade que abriga dez milhões de pessoas?
- Creio que sim.
- Você é competente, Marina. Eu já lhe pedi seu currículo algumas vezes. Tenho uma boa rede social e profissional de amigos. Quem sabe alguém não lhe oferece um bom trabalho, com melhor remuneração e até com uma melhor assistência médica? Por que pensar só no pior?
- Isso mesmo - concordou Adriano. - Por que pensar que vai arrumar um emprego menor e ganhar um salário menor? Por que não acredita no seu potencial e vai atrás de algo melhor?
Patrícia ajuntou:
- De nada adianta tomar passe e ficar cultivando esses pensamentos que só nos aterrorizam o espírito e nos paralisam. Você precisa reagir, Marina. Precisa começar a mudar seus conceitos, rever suas crenças e posturas diante da vida. É uma mulher forte, batalhadora, que nasceu pobre, viveu muitos anos na mais absoluta pobreza. Conseguiu concluir os estudos, está terminando a pós-graduação, fala idiomas. Depois de tudo o que passou na vida, tem medo de mudar de emprego?
Adriano interveio:
- Para quem passou necessidades na vida, como fome e sede - que é o seu caso - ir atrás de um posto de trabalho não é um bicho de sete cabeças.
Marina assentia com a cabeça. Mexia para cima e para baixo, concordando com tudo. Patrícia propôs:
- Façamos o seguinte: você providencia seu currículo para mim e Adriano. Vamos enviar e-mails para os amigos, espalhando-o por aí, entre nossos conhecidos, até que num determinado momento alguém vai ler, interessar-se e chamá-la para uma entrevista. Vá lá, minha amiga, acredite. Confie na vida.
Conforme iam conversando, mais e mais Marina sentia uma gostosa sensação de bem-estar. A amizade de Adriano e Patrícia estava lhe fazendo tremendo bem e ela, pela primeira vez em muito tempo, começava a criar forças para tomar uma atitude em relação ao seu atual emprego.
Ela estava tão entretida e interessada na conversa que, por ora, esqueceu-se do sentimento forte que nutria por Edgar. Marina mal conseguiu pregar o olho naquela noite. A conversa sobre emprego que tivera com o casal de amigos a animara sobremaneira. Sentia-se encorajada a enfrentar as grosserias de Denise. Uma voz amiga soou em seu ouvido:
- Tenha coragem e força. Faça o que seu coração achar melhor.
Marina conversava com a voz como se estivesse falando consigo própria:
- Nunca gostei de trabalhar com a Denise. Fui ficando porque o emprego é bom, os funcionários são ótimos e foi-me oferecido um bom plano de assistência médica. Estou cansada de ser maltratada.
- Cultive pensamentos positivos. Fique no bem. Não se misture às energias perniciosas emanadas por Denise ou Inácio. Confie porque você tem tudo para viver uma vida plena e feliz.
- Eu preciso confiar. Sou uma boa pessoa. Quero o bem para mim e para os meus amigos. Não vou mais admitir ser espezinhada na frente dos meus colegas. Não vou.
Leônidas aproveitou a passagem e deu um passe restaurador em Marina. Aos poucos, ela foi perdendo os sentidos, o sono foi chegando forte e ela adormeceu.
- Que menina bonita.
- Achou mesmo, Emerson?
- Sim. Estava um pouco preocupada com o trabalho, mas depois você serenou seu espírito. Ela dorme feito um anjo.
- Marina precisa recarregar suas energias. Precisará estar em equilíbrio para lidar com o que vem pela frente.
- Já fizemos isso com minha filha, meu genro... - Emerson balançou a cabeça. - O que vai acontecer que eu não sei? Você não está visitando todas essas pessoas à toa.
- Não. Muitos acontecimentos estão por vir e vão transformar sobremaneira a vida desta moça - apontou para Marina - como também vão modificar em muito a vida de sua filha, de seu genro e de seu neto.
- O que vai acontecer?
- Aguarde e verá.
- Não gosto de segredinhos!
- Por falar em segredinhos, quer me acompanhar, por favor?
Emerson deu de ombros, sorriu para o corpo de Marina deitado na cama e seguiu Leônidas até outro cômodo da casa. Era o quarto de Consuelo. Estava dormindo, porém seu perispírito estava agitado. Sua mente estava muito confusa, agitada, triste, preocupada...
- Nossa essa daí está muito tensa, preocupada.
- Essa é a mãe de Marina.
- Hum. Seus pensamentos estão agitados. A sua mente está muito acelerada. Ela vai acordar moída, corpo alquebrado, sentindo-se cansada.
- Nos últimos dias Consuelo tem acordado assim, tensa, preocupada. Não sei quanto tempo mais seu corpo físico vai resistir. Ele está dando sinais claros de esgotamento.
- O que podemos fazer?
- Dar um passe nela. Você me ajuda Emerson?
- Eu?!
- Sim, você mesmo. Está na hora de fazer alguma coisa boa para as pessoas aqui do mundo. Você andava perdido, alheio, depois ficou anos influenciando negativamente sua filha e atormentou seu genro além da medida.
- Agora vai ficar me jogando na cara os meus deslizes?
- De forma alguma. Pare de se comportar como um pobre coitado, porque, de coitado, você não tem nada. - Leônidas esticou o olho para baixo: - Eu o conheço muito bem.
- Nunca fiz essa transmissão de energia antes.
- É fácil. É só se concentrar, levantar suas mãos, pegar energia do Alto e em seguida pousar as mãos alguns centímetros acima do perispírito dela. Vamos tentar?
- Pode ser.
Leônidas esfregou as mãos e as elevou. Emerson fez o mesmo. Logo os dois estavam transmitindo energias revigorantes e de equilíbrio para Consuelo. Aos poucos, seu perispírito ficou menos agitado e sua mente serenou um pouco.
- Olha como deu certo! - vibrou Emerson.
- Consuelo vai ter um sono reparador, ao menos nesta noite.
- E agora, o que vamos fazer?
- Ainda vamos ficar aqui, só mais um pouquinho. Leônidas aproximou-se de Emerson e perguntou:
- Não se lembra dela?
- Não.
- Tem certeza? Olhe com mais calma.
Emerson espremeu os olhos.
- Não. Não faço a mínima idéia de quem seja.
- Não vou fazer você voltar outras vidas, mas vamos nos lembrar de alguns fatos desta última encarnação?
- Até que enfim vou ter acesso a uma vida passada!
- Negativo. Vamos voltar a algumas épocas desta última, de quando foi casado com Teresa, e foi pai de Letícia.
- E de que vale eu me lembrar dessa vida? Eu me lembro de tudo!
- Tudo?
- Sim. Nasci em 1949, fundei a Companhia em 1971, casei-me com Teresa em...
Leônidas aproximou-se e colocou a mão direita sobre a testa de Emerson. Ele sentiu um torpor, as idéias tremulando na mente. Da mão de Leônidas saía uma luz de coloração amarelada. Emerson fechou os olhos e as cenas vieram vibrantes, bem nítidas. Consuelo era uma bela negra na casa dos vinte e poucos anos quando foi trabalhar na casa de Emerson. Ele havia alugado um apartamento em São Paulo, vivia mais na capital paulista do que com sua família no Rio. Era uma época de hiperinflação, de preços descontrolados, economia caótica. Ele precisava estar à frente dos negócios para não falir, como vinha acontecendo com os concorrentes menos preparados para enfrentar as constantes crises econômicas pelas quais o país passara no início da década de 1980. Emerson trabalhava bastante, isso não se podia negar, fazia de tudo para que a Companhia continuasse sólida no mercado. O trabalho o consumia a tal ponto que ele ia do apartamento para o trabalho e vice-versa. Foi uma época que ele sequer podia cogitar a possibilidade de dar umas escapadas e se divertir, como faziam alguns amigos. Consuelo trabalhava no apartamento três vezes por semana. Fora indicada por uma amiga que não tinha os três dias livres. Ela aceitou de pronto e levava o serviço nas costas. Afinal, no apartamento só vivia uma pessoa e Emerson só o utilizava para dormir. Era muito fácil limpar os cômodos, pois estavam sempre em ordem. Num dia, Emerson chegou cedo do trabalho. Houve um comício, confusão, e muitos setores da sociedade, cansados de enfrentar os valores galopantes da inflação, entraram em greve. Os funcionários de sua empresa também aderiram ao movimento e ele não teve alternativa - teve de voltar para casa antes do fim do expediente. Consuelo estava de saída. Ela o cumprimentou.
- O senhor está gostando do serviço?
- O apartamento está sempre limpo.
- Falta eu fazer alguma coisa? Quer que eu cozinhe algo?
- Não. Não precisa.
- Ah - ela falou de maneira jovial - eu comprei tudo o que o senhor colocou na lista. Aproveitei e também comprei umas frutas e verduras. As maçãs estavam ótimas, a alface estava bem fresquinha. Quer ver? Estão aqui na prateleira. Consuelo abriu a geladeira e inclinou o corpo para frente. Naturalmente o vestido subiu, e Emerson deparou-se com um par de coxas esculturais.
- Uau! - assobiou.
- O que foi seu Emerson? Comprei muitas maçãs? - indagou ela, sem imaginar que ele estivesse medindo-a de cima a baixo com olhos de pura volúpia.
Emerson estava sem se deitar com uma mulher havia meses. Justo ele, que no Rio de Janeiro deitava-se com a esposa e com algumas garotas que encontrava em bares. O desejo foi forte. Ele a abraçou por trás e murmurou em seu ouvido.
- Estou louco de desejo!
Consuelo deixou-se entregar. Ela era uma mulher séria. Casara-se aos catorze anos, tivera um filho. Tivera uma vida infeliz, rude. O marido a abandonara e ela vivia havia algum tempo na capital. Jamais cogitara sair com outro homem, mas ela era mulher de carne e osso, tinha desejos. Ela fechou os olhos, gemeu de prazer e entregou-se a ele, ali mesmo no chão da cozinha. Assim foram levando. Toda semana Emerson arrumava um jeito de chegar a casa mais cedo e deitar-se com Consuelo. Eles se davam muito bem na cama. Ele era bem viril e ela extremamente feminina. Faziam estripulias na cama. Até que ela engravidou.
- Você vai ter de tirar essa criança - dizia ele, de maneira intempestiva.
- Isso eu não vou fazer. Não tiro essa criança.
- Eu não quero um filho.
- Pois eu quero.
- Para quê? - perguntou ele raivoso. - Para me chantagear?
Consuelo era mulher ingênua, tinha um coração puro. Nunca imaginara ficar grávida para tirar algum proveito da situação.
- Assim me ofende! Eu não quero nada do senhor, nada - gritou ela enquanto as lágrimas rolavam incontroláveis.
Emerson percebeu que Consuelo estava sendo sincera. Ela não era uma aproveitadora. Eles não se protegiam, porquanto naqueles tempos não era usual a utilização de preservativos. Ele a abraçou e levou sua cabeça ao peito.
- Chi! Calma. Tudo vai dar certo.
- Como? Eu sou pobre, moro num cortiço. Tenho um filho adolescente que me dá muito trabalho. Eu não tenho condições de cuidar dessa criança sozinha. Por favor, ajude-me.
Tomado de pena, Emerson resolveu ajudá-la. Pegou um dinheiro no Banco, uma quantia na época suficiente para Consuelo comprar uma casinha e ter um rendimento razoável. Duas semanas depois, entregou-lhe o envelope com a seguinte condição:
- Eu espero que isso lhe ajude. Não temos mais nada o que conversar.
Ela pegou o pacote de dinheiro, as mãos trêmulas. Abaixou a cabeça, rodou nos calcanhares e foi embora. Nunca mais se viram. Consuelo nunca mais o procurou. E, com o passar dos anos, outras mulheres apareceram. Emerson foi se esquecendo e nunca mais quis saber do paradeiro de Consuelo. Era assunto do passado, morto e enterrado. Emerson parecia sair de um transe.
- O que foi isso? - perguntou ele, sentindo leve mal-estar, a respiração ofegante.
- Agora se lembrou de tudo?
- Meu Deus! Quantos anos! Eu era jovem.
Leônidas apontou para a cama onde Consuelo dormia a sono solto. O passe vai ajudá-la a se desligar um pouco da mente perturbada por tantos problemas e preocupações.
- Ela também era jovem. Uma jovem muito bonita e fogosa.
Emerson olhou, olhou e, aos poucos, foi reconhecendo aquela mulher.
- Mas não pode ser! Esta é a mulher que engravidei?
- Sim.
- Está velha, acabada.
- Não está velha, mas está bem acabada. Os anos não lhe sorriram. Consuelo teve uma vida dura, sofreu - e ainda sofre com os desatinos do filho, perdido nesse mundo de Deus. Ela teve uma linda menina e, se não fosse por Marina, ela teria desencarnado há muitos anos.
Emerson levou a mão à boca para evitar um gemido de surpresa.
- Ela teve o filho!
- O filho, não. A filha.
- Você está querendo me dizer...
Leônidas moveu a cabeça para cima e para baixo.
- Que aquela moça no outro quarto é sua filha.
Emerson botou a mão na cabeça.
- Tantos anos se passaram... Nunca iria imaginar que ela estivesse viva e que tivesse tido a criança.
- Teve a criança e depois comprou este apartamento com o dinheiro que você lhe deu.
- Pensei que ela pudesse estar bem, afinal, dei-lhe um bom dinheiro na época, suficiente para ela parar de trabalhar se assim o desejasse.
- Consuelo usou a cabeça. Comprou esse apartamento e aplicou o dinheiro na poupança. Mas você bem sabe como a economia do país sofreu altos e baixos. Houve um governo que confiscou a poupança de todos os cidadãos.
- Eu me lembro dessa época horrível. A sorte é que eu transformava meu dinheiro em dólar. Guardava os maços de dólar no cofre da empresa. Se não fizesse isso, talvez tivesse quebrado.
- Consuelo perdeu o pouco dinheiro que tinha. Marina transformou-se numa moça responsável. Trabalhou desde cedo, estudou, concluiu o curso de inglês e de espanhol. No momento está fazendo pós-graduação. É uma moça competente, tem tino para os negócios, igual ao pai.
Emerson sentiu uma dor no peito sem igual. Seu espírito saiu em disparada e ele literalmente voou até o quarto de Marina. Parou diante dela e fitou-a por longo tempo. Ela dormia placidamente e ele, lágrimas nos olhos, mexia a cabeça para os lados, contemplando aquele ser que fora gerado dele.
- Minha filha. Olha que morena bonita!
- Muito bonita. E de coração puro, igual ao da mãe. Marina é um espírito ligado nas forças do bem.
- O que vai lhe acontecer? Você me disse a pouco que a vida dela vai mudar sobremaneira.
- Marina está a ponto de ser demitida. O convênio médico vai lhe dar cobertura por mais um mês. Depois disso, sabe-se lá Deus o que vai acontecer.
- Eu preciso fazer alguma coisa. Ela precisa saber que sou seu pai, que ela tem direito à parte da minha herança.
- Por esse motivo o trouxe aqui. Dependendo do seu esforço e da vontade de Consuelo, talvez o futuro de Marina seja diferente. Você não gostaria de ajudá-la?
- Pois claro! Mas e Teresa? Minha esposa tem muito apego ao dinheiro. Pode arrumar encrenca, pagar excelentes advogados e esticar o caso na Justiça.
- Negativo. Teresa vai sofrer muito com o que vem pela frente. Eu sinto que seu espírito vai amadurecer, vencer a ilusão e ela vai concordar em repassar uma parte da herança para Marina.
- Você me deixa preocupado. Conte-me o que vai acontecer.
- Não. Agora você precisa se concentrar para ajudar Marina a ter conhecimento sobre você.
- Mas como? Quer que eu incorpore num Centro Espírita e lhe conte a verdade?
- Isso não se faz.
- Não imagino como vou fazê-la saber a verdade.
- Ficando ao lado de Consuelo. Inspirando bons pensamentos nela. Tente convencê-la de contar a verdade para a filha.
- Marina não tem a mínima idéia de quem seja o pai?
- Consuelo disse que foi um namorado. Que ele sumiu ao saber da gravidez. Ao menos ela não mentiu para a filha. Só deixou de contar quem fora o homem que a engravidou.
- Realmente ela é uma mulher de fibra, decente, honesta e batalhadora. Não quis saber de meu dinheiro.
- E se não estivéssemos aqui, ela nunca pensaria em contar nada para Marina. Consuelo morre de medo de a filha rejeitá-la. Tem medo de Marina ir embora, assim como Jofre. A sua vida na Terra está com os dias contados. Entretanto, se ela desencarnar e não contar vai sofrer muito aqui no astral. Eu sinto que seu espírito ficaria tão perturbado que ela iria parar direto no Umbral.
- Naquele lugar onde ficam as pessoas perturbadas?
- Esse mesmo. E, quer saber? Se você ficar mais um tempo aqui também será transportado para o Umbral.
Emerson arregalou os olhos, atônito.
- Já ouvi comentários horríveis a respeito desse lugar. Você que conhece tantos lugares astrais, pode mesmo me dizer se esse lugar é tão ruim?
- Como diz nosso querido amigo André Luiz, o Umbral funciona como região destinada a esgotamento de resíduos mentais; uma espécie de zona purgatorial, onde se queima a prestações o material deteriorado das ilusões que a criatura adquiriu por atacado, menosprezando o sublime ensejo de uma existência terrena.
Emerson arrepiou-se todo.
- Dá até para imaginar como é.
- Pois é, meu amigo. Você é um espírito de sorte. Se eu não estivesse por perto e você continuasse influenciando sua filha, naturalmente seria transportado para lá.
- Longe de mim. Eu não quero. Já não chega o que eu passo mal aqui entre esses encarnados?
- Passa mal porque quer. Assim que desencarnou, recebeu uma visita para ir fazer tratamento numa colônia espiritual, não foi?
- Foi. Eu fui chamado por um parente, não me recordo ao certo. Mas preferi ficar aqui porque tinha de alertar minha filha e...
Leônidas o cortou com firmeza.
- Pare! Não vamos trazer lembranças desagradáveis ao ambiente. A sua aura está limpa. A casa está higienizada e se começar a pensar por que ficou na Terra depois da morte, vai desequilibrar energeticamente o ambiente. Nada de pensamentos negativos.
- Entendi - respondeu Emerson envergonhado.
- Fique aqui até elas acordarem. Eu preciso sair.
- E o que faço?
- Procure ter bons pensamentos. Chegou a hora de fazer exercícios para melhorar o teor de seus pensamentos.
- Como?
- Se aparecer algum pensamento desagradável, ruim, trate de transformá-lo imediatamente em algo bom, positivo. Você viveu muitas coisas boas, teve uma vida dura, eu sei, mas obteve sucesso. Foi um homem respeitado, empresário de sucesso.
Emerson afirmou com a cabeça.
- Fui mesmo.
- Construiu uma empresa sólida. Gerou empregos que tem ajudado muitas famílias a prosperar. Tem uma filha, quer dizer, duas filhas lindas, boas, de alma nobre. Pense nessas coisas boas. O resto não interessa.
Emerson sorriu.
- É verdade. Por que raios vou pensar em coisas ruins? Você está certo - ele se animou. Deixe comigo, quando voltar, esta casa estará radiante, cheia de energias benéficas que vão fazer tremendo bem às duas.
- Obrigado. Até mais tarde.
Leônidas falou e desapareceu no ar. Emerson foi até a sala e sentou-se na ponta do sofá. Enquanto Consuelo e Marina dormiam a sono solto, ele trazia na mente as mais felizes recordações de sua última existência no planeta. De repente, teve um lampejo e sua memória voltou a uma encarnação passada. Emerson viu-se como um nobre português vivendo num casarão, na época do Império. Era casado com Letícia, uma linda jovem que perdera o noivo na Guerra do Paraguai. Letícia não gostava do marido. Casara-se porque os pais a obrigaram. Se ao menos ela tivesse a presença da prima... Mas Mila fugira com um estrangeiro e elas se correspondiam por cartas. Letícia cuidava da casa e tinha uma governanta. Consuelo fazia bem o trabalho, era uma mulher de princípios. Tinha uma filha, Marina, uma menina mimada, fútil, e que odiava ser pobre. Um dia Marina flagrou Emerson deitado com um dos escravos, Josias. A jovem caminhou sorrateiramente pelo corredor e ficou num canto escondida, esperando que eles terminassem a brincadeira. Se nos dias de hoje a bissexualidade é algo ainda complexo de entender e de aceitar, imagine cento e cinqüenta anos atrás. Os padrões morais eram muito, mas muito mais rígidos e se essa preferência de Emerson por rapazes fosse levada a público, seria o seu fim. Emerson terminou de se vestir e, ao sair, Marina estava parada bem na sua frente, olhos brilhantes de cobiça.
- Eu vi o que o senhor fez. Emerson lhe deu um tapa no rosto.
- Sua insolente, eu negarei tudo. Sou nobre, você é filha da governanta. Em quem vão acreditar?
Marina sorriu maliciosa.
- O Josias é meu amante também. Estamos decididos a revelar essa sua preferência - salientou.
Emerson empalideceu. Se Marina e Josias levassem o intento adiante, seria um escândalo sem precedentes.
- O que querem?
Marina exigiu boa soma em dinheiro. Em seguida, fugiu com o escravo. Anos depois, no Umbral, eles se reencontraram. Marina havia se arrependido amargamente da atitude tomada. Sentia-se mal por ter chantageado Emerson. Arrependera-se sobremaneira e clamava por seu perdão. Emerson voltou a si e olhou ao redor.
- Meu Deus! Nós três vivemos juntos em outras vidas!
Ele ficou ali no sofá, pensando em tudo, nesta última vida e nos flashes que surgiam da anterior. Depois de muito pensar e refletir, Emerson disse para si:
- Todos mudamos bastante. Entendo por que Marina teve uma vida tão difícil. Mas agora tudo vai ser diferente. Seu espírito aprendeu a lição e ela vai colher bons frutos. Que Deus a ajude!
Marina despertou sentindo tremendo bem-estar. Estava disposta, o corpo descansado, a mente serena.
- Nossa! Há quanto tempo não dormia tão bem!
Ela bocejou, espreguiçou-se e levantou da cama. Não era dia de treino, dessa forma ela podia acordar um pouquinho mais tarde. Caminhou até o banheiro e antes passou pelo quarto da mãe. Consuelo dormia e seu semblante parecia sereno. Marina sorriu e entrou no banheiro. Abriu o chuveiro e, enquanto a água morna caía sobre seu corpo, ela lembrou-se dos acontecimentos da noite anterior. Marina gostara de Edgar desde o primeiro instante. Prometera anteriormente a si mesma, que nunca mais iria se apaixonar, depois do que passara com o ex-noivo. Mas quem disse que mandamos no coração? Podemos até tentar sufocar nossos sentimentos, mas o amor é mais forte que tudo; ele é como um rolo compressor que passa por cima de todas as desilusões, todas as mágoas. E como se fosse um tsunami que se apodera de nosso corpo e nos abre o coração para viver tudo de novo, arriscando nossos sentimentos, apostando novamente numa chance real de felicidade. Marina percebeu que não queria mais lutar contra seu coração. Iria procurar Edgar para uma converse e ser franca. O pior que poderia acontecer seria ele dizer que no momento não queria nada.
- Daí eu paro de alimentar esse sentimento e parto para outra. Melhor assim. Não gosto de ficar em cima do muro - disse, depois de fechar o registro e começar a se enxugar.
A moça espantou os pensamentos com as mãos e sua mente trouxe-lhe outro assunto: a conversa que tivera com Patrícia e Adriano no jantar da noite anterior.
- Eles são pessoas de bem. Ajudaram-me com dicas muito interessantes de trabalho e de postura diante da vida. Os passes têm me feito um bem danado, assim como a corrida, e essas novas amizades, seja com eles, seja com Elisa. A única coisa que falta eu me empenhar é em cima dessa relação ruim com Denise. Mais nada - concluiu.
Marina começou a questionar seus valores, sua postura diante do trabalho, diante de Denise, diante da vida, inclusive. Acreditava que pessoas medrosas e com baixa auto-estima profissional se deixavam ser conduzidas e maltratadas por chefes como Denise, espalhadas por vários cantos de empresas nacionais e ao redor do mundo. Por outro lado, havia bons chefes, bons profissionais que reconheciam os talentos de seus funcionários e os tratavam com um mínimo de cordialidade, com um pingo que fosse de educação. Marina pensou, pensou e decidiu que, na próxima vez que Denise a maltratasse, pediria as contas. Precisava dar um basta nessa relação profissional tão desgastante - e por que não dizer - degradante.
- Marina, está acordada? - indagou Consuelo, do seu quarto.
Ela enrolou-se numa toalha e utilizava outra para enxugar e prender os cabelos.
- Sim, mãe.
- Perdemos a hora.
- Não, hoje não é dia de treino. Posso me dar ao luxo de acordar um pouquinho mais tarde.
Ela falou do corredor e em seguida entrou no quarto. Sentou-se na beirada da cama, abaixou-se e beijou Consuelo no rosto.
- Dormi tão bem, mãe. Que sono reparador.
- Nem me diga. Eu também. Fui dormir preocupada, mas acordei tão bem.
- Preocupada com o quê?
- Não sei. Eu fique pensando com meus botões sobre a venda do carro. Deu quase nada.
- Eu estava a ponto de dar o carro para os rapazes da oficina. Aquilo é praticamente uma sucata. E eles me deram mil e quinhentos reais. Não contava com esse dinheiro, mãe. Coloquei na poupança. Pelo menos, temos um dinheirinho para emergências.
- Você é tão positiva.
- E não é para ser? Moramos nesta casinha, tudo bem que é bem apertadinha, mas é nossa mãe. Temos um teto, tenho um bom emprego, as nossas contas estão em dia...
- É tão esforçada, filha. Faz tanto por mim. Nem sei como lhe agradecer.
Marina beijou-lhe a fronte novamente.
- Não tem o que me agradecer. Você é minha mãezinha querida e eu a amo muito.
- Eu também a amo muito, minha filha.
- Agora preciso ir. Tenho de me arrumar rápido e pegar metrô e ônibus. Deus me ajude a chegar no horário.
Marina saiu do quarto e foi trocar-se no quarto dela. Consuelo mordia os lábios, numa dúvida cruel. Emerson estava tocado. Sentia o quanto Marina amava a mãe, o quanto era uma menina esforçada e um espírito ligado às forças superiores do bem. De quando em vez, quando ela conversava com a mãe, sua aura emitia uma coloração próxima do lilás. Parecia estar em paz consigo e ser uma pessoa verdadeira, de bom coração. Nem mais se assemelhava à menina sem escrúpulos e que o chantageara em outra vida. O espírito de Marina arrependera-se com sinceridade daquele comportamento tão ruim para ela e para aqueles que viviam ao seu redor. Aprendera muito, fosse nos anos que passara no Umbral, fosse agora diante de uma vida tão difícil. Emerson sentiu tremenda simpatia pela menina.
- Nossa como ela é bonita e agora tem, de fato, o coração puro. Se parece muito com Consuelo na época em que nos conhecemos.
Assim que Marina saiu do quarto da mãe, Emerson captou os pensamentos de dúvida que pairavam sobre a mente de Consuelo.
- Se eu contar a verdade, Marina vai se decepcionar comigo. Não posso permitir que isso aconteça.
Ele se aproximou e sentiu piedade da pobre mulher. Aproximou-se e cochichou em seu ouvido:
- Conte a verdade.
Consuelo captava a voz de Emerson como sendo de sua cabeça. Respondeu em voz alta:
- Não posso contar a verdade. Se eu contar, Marina vai desaparecer como Jofre. Se ele sumiu depois de saber, por que Marina faria diferente?
- Porque ela não é como Jofre - comentou Emerson. - Marina é uma boa menina, tem um coração puro e cheio de amor por você. Se contar a ela toda a verdade, a vida de vocês poderá se transformar positivamente. Terão dinheiro para comprar uma casa melhor. Marina poderá estudar outros cursos sem depender de um emprego. Ela será uma moça independente, rica e, pelo que sinto muito feliz. Por que furtar sua filha dessa nova e fascinante possibilidade de vida?
- Eu tenho medo de ela descobrir.
- Consuelo, você não vai ficar muito mais tempo aqui no planeta. Sua existência está chegando ao fim. Seu corpo físico está no limite de suas forças. Aja com o coração, não deixe que seu ego interfira numa decisão tão importante. Não leve esse segredo para o túmulo, por favor.
As lágrimas escorriam pelo rosto e Consuelo estava desesperada. Não sabia o que fazer. O seu coração lhe pedia para contar toda a verdade. Contudo, o medo e desespero eram bem maiores.
- Senhor! Ajude-me, por favor, a encontrar uma saída!
O trânsito de São Paulo é conhecido em todo o país por ter engarrafamentos quilométricos e atrapalhar a vida de muita gente. Nesse começo de manhã, para variar, houve um acidente na marginal do Tietê. Marina e o restante da população não contavam com o tamanho do congestionamento. E ela chegou atrasada ao serviço. Denise estava sentada em sua cadeira. Ela tomou um susto.
- O que faz em minha mesa?
- Vim dar uma olhadinha - disse Denise, olhos injetados de fúria.
Marina tentou recompor-se. Estava transpirando muito, ficara muito tempo presa no ônibus.
- Eu cheguei atrasada por conta do congestionamento e...
Denise a cortou de maneira abrupta.
- Olha lá! Dar desculpa de trânsito congestionado nesta cidade é redundância. Não cola. Sabemos que São Paulo vive com suas vias engarrafadas. Saísse mais cedo de casa.
- Eu saí. Bem cedo. É que...
- Nada de explicações. Estou farta das suas desculpas esfarrapadas.
- Não são desculpas e...
- Cale-se! Não agüento mais ouvir a sua voz - bradou Denise.
Ela estava incontrolável havia alguns dias. Conforme se aproximava o dia do seqüestro, mais nervosa e ansiosa Denise ficava. Se ela era um bicho em dias normais, agora estava praticamente se comportando como um monstro. Ninguém mais tinha paciência com ela. Os vizinhos haviam feito abaixo-assinado para ela deixar a casa, pois ligava o som no último volume e não respeitava horário, nada. Alguns fornecedores estavam irritados com seu comportamento. Muitos começaram a cancelar pedidos e trabalhar com outra empresa do ramo, cujo gerente era um rapaz muito mais simpático e profissional. Denise estava, simplesmente, irascível. Marina tentava argumentar:
- Eu me atrasei porque o trânsito estava pesado mesmo. O que importa é que cheguei. Estou aqui, não estou? O que precisa?
Denise não esperava por uma atitude tão firme. Estava acostumada a ver Marina abaixar a cabeça e não retrucar. Ela levantou-se de um salto e quase avançou sobre a moça. Os funcionários ficaram estáticos. Esperavam pelo pior. Com o dedo em riste, quase tocando a face de Marina, Denise explodiu:
- Olha aqui, sua insolente. Quem pensa que é? Sou sua chefe e exijo respeito.
- Sou sua funcionária e também exijo respeito. Não vou mais permitir que me trate como se eu fosse uma qualquer.
- O que se passa?
- Eu tenho dignidade.
- Resolveu me enfrentar da noite para o dia?
- Não a estou enfrentando. Só quero ser minimamente bem tratada.
Denise respirou fundo e fechou os olhos para não estapeá-la ali, na frente de todo mundo. Precisava ter controle total da situação.
- Pode passar imediatamente no departamento de Recursos Humanos. Você está despedida. Entendeu! Des-pe-di-da!
Marina levou a mão ao peito.
- Despedida? Só porque não abaixei a cabeço para você?
- E pode ir embora agora! Nem precisa cumprir aviso-prévio. Estou enjoada de ver essa cara de pobre coitada. Rua!
Ela gritou, virou-se abruptamente estugando o passo até sua sala. Bateu a porta com tremenda força. Alguns funcionários aproximaram-se de Marina. Elisa foi até a copa buscar um copo de água com açúcar. Veio apressada e o entregou à amiga.
- Obrigada - disse Marina, enquanto bebericava um gole. - Estou bem, por incrível que pareça. Já esperava por isso, mais dia, menos dia.
- A empresa lhe custeia a assistência médica. Não era esse o motivo de ficar agüentando os impropérios dessa mulher?
- Eu sei Elisa. Mas não dava mais para segurar essa situação. Eu sou uma pessoa que merece respeito. Eu dou respeito e exijo o mesmo dos outros.
- É que me preocupo com a saúde de sua mãe.
- Eu sei, mas eu vendi o carro, ganhei uns trocados. Tenho mais um dinheirinho na poupança.
Um rapaz se aproximou e tranqüilizou:
- Fique sossegada, Marina. Eu trabalho no Recursos Humanos e vou informar ao convênio médico de sua saída somente daqui um mês, como se você estivesse cumprindo aviso-prévio.
Marina comoveu-se:
- Obrigada, Paulo. Você é muito bacana. Obrigada mesmo.
- Não há de quê, Marina. Você é mais competente do que a megera ali - apontou para a sala de Denise.
- É sim. Você é competente, e, além de tudo, carismática - emendou Elisa.
- Vai arrumar emprego fácil, fácil - finalizou Paulo. Marina emocionou-se com o gesto de Elisa. Abraçou-a com carinho.
- Sei que sempre poderei contar com sua amizade.
- Sempre - replicou Elisa. - Você é excelente amiga e ótima profissional.
Dessa forma Marina foi envolvida por uma onda de ânimo e serenidade. Estava muito bem consigo própria, nem parecia ter acabado de ser demitida. Despediu-se dos funcionários da sua área, um por um, e Elisa foi com ela até o Recursos Humanos. Marina assinou os papéis e Paulo a acalmou:
- Fique tranqüila quanto ao convênio médico.
- Eu preciso mesmo, Paulo. Minha mãe vive doente.
- Você vai dar a volta por cima. É uma boa pessoa e boas pessoas sempre se dão bem na vida.
Ela ficou sinceramente tocada. Mal conhecia o rapaz do Recursos Humanos. Apertou a mão dele e agradeceu.
- Obrigada, Paulo. Você e Elisa são pessoas das quais vale a pena compartilhar e fortalecer os elos de amizade. Jamais vou esquecer o que fizeram por mim no dia de hoje.
Ela se despediu do rapaz, depois, Elisa a acompanhou até sua mesa. Marina pegou seus pertences colocou-os numa caixa de papelão e saiu acompanhada por um segurança da empresa. Elisa pegou uns trocados da bolsa e colocou o punhadinho de notas discretamente em sua mão.
- O que é isso?
- Um dinheirinho.
- Não precisa...
Elisa sussurrou em seu ouvido:
- Para o táxi. Não vai carregar essa caixa pesada no ônibus. Lá na frente, qualquer dia, você me paga.
Assim que ganhou a rua, Marina, olhos marejados, olhou para o Alto e fez sentida prece.
- Obrigada, meu Deus, por estar ao meu lado. Se que jamais haverá de me abandonar. Confio na Sua força e sei que em breve minha vida vai ficar melhor.
Em seguida, fez sinal para um táxi. Deu a direção de casa ao motorista e sorriu. Tinha certeza de que iria dar a volta por cima. Quando chegou a casa, Consuelo assustou-se. Estava sentada em frente à TV, assistindo a um programa feminino, anotando a receita da torta salgada que a apresentadora acabara de tirar do forno.
- O que faz em casa tão cedo? Entraram em greve?
- Fui despedida, mãe.
Consuelo levou a mão à boca.
- Não pode! Você precisava, quer dizer, nós precisávamos muito desse emprego.
- Eu sei mãezinha. Mas o que fazer? A minha chefe hoje estava insuportável. Destratou-me na frente de outros funcionários. Foi tudo muito chato, muito triste, muito constrangedor.
Ela falou e colocou a pesada caixa sobre a mesa da cozinha. Consuelo levantou-se com dificuldade e a seguiu.
- E a assistência médica?
- O rapaz que trabalha no Recursos Humanos vai segurar o convênio até o mês que vem. Temos trinta dias de cobertura.
- E depois?
- Depois, se eu ainda estiver desempregada, vou procurar um convênio mais em conta.
- Eu sou doente. Eles vão cobrar caro. Pode haver carência a cumprir.
- Não vamos nos exasperar. Temos um dinheirinho na poupança. Não é muito, mas dá para segurar as pontas.
- Como vai arrumar emprego com essa crise? -perguntou Consuelo, em franco desespero.
- Não sei. Vou começar a procurar amanhã. Vou naquela Lan House na esquina de casa para acessar a internet e procurar nos sites de empregos.
- Vi na televisão agora a pouco que o número de desempregados cresceu bastante nos últimos meses.
- Emprego a gente arruma mãe, nem que seja de faxineira. Você não foi faxineira? Perdão? Não foi doméstica?
- Fui, e o que isso tem a ver com a conversa?
- Você conseguiu comprar esta casa. Eu sou jovem, tenho saúde e disposição. Em último caso, vou trabalhar de doméstica.
Consuelo desesperou-se.
- Não! Você estudou muito, fez curso de línguas. Não pode trabalhar de doméstica.
- Por que não? É um emprego digno como outro qualquer. Posso trabalhar na casa de estrangeiros, pois falo inglês e espanhol. Poderei até ganhar mais do que se estivesse numa empresa. Sabe que é uma boa idéia?
- Boa idéia?
- É sim, mãe. Estou cansada do mundo corporativo.
- Está prestes a terminar a sua pós-graduação.
- Se eu não arrumar nada até o mês que vem vou ter de trancar a matrícula. Agora preciso corta todos os gastos possíveis.
Consuelo sentiu forte dor no peito.
- Sente-se bem, mãe?
- Uma dorzinha no peito. Logo passa.
- Sente-se aqui. Fique calma.
Consuelo obedeceu. Estava nervosa. Se ao menos tivesse coragem para contar à filha sobre seu passado... Mas sentia medo de Marina rejeitá-la, repudiá-la. Ela era muito ligada à filha e preferia morre a contar-lhe a verdade sobre o passado. Sua mente estava em total desespero:
- Se eu contar como consegui esta casa, Marina é capaz de me odiar pelo resto da vida. Vai me culpar como Jofre. Ele teve razão. Fui uma vadia, uma vagabunda que se deitou com o patrão. Não mereci perdão, não mereço perdão...
Por mais que estivesse se atormentando com pensamentos tão negativos acerca de si própria, Consuelo tinha real noção de que estavam agora vivendo uma situação difícil. O dinheiro ficaria curto, com certeza. Ela tinha medo de que tivessem de vender a casa. O que seria de suas vidas dali em diante? Ela procurou espantar os pensamentos negativos com as mãos, mas eles persistiam e a incomodavam. Consuelo adotara uma postura pessimista em relação à vida. Tornara-se mulher amargurada e desconfiada de tudo e de todos. Sofrera no passado e tinha medo de que o seu deslize de conduta a afastasse da filha que tanto amava. Emerson, mais uma vez, insistia. Pedia para Consuelo mandar o medo às favas e contar toda a verdade para Marina. Por mais que tentasse, Consuelo não conseguia se livrar dos pensamentos negativos que alimentara por tantos anos. Eles estavam se tornando mais fortes que ela. Mais fortes que tudo.
- Chega! - ela gritou. - Não agüento mais!
Marina veio correndo até a sala.
- O que foi mãe?
Consuelo não respondeu. Sentiu uma forte dor na nuca, seus braços começaram a formigar e ela perdeu o equilíbrio. Caiu sobre si mesma. Consuelo acabara de ter um acidente vascular cerebral, ou, na linguagem comum, um derrame.
Denise largou todo o trabalho nas mãos de Elisa.
- Eu não tenho condições de cobrir o trabalho da Marina.
- Não quero nem saber, vire-se. Vou viajar e volto daqui uma semana. Os diretores estão sabendo.
- Mas, D. Denise, os gerentes vão reclamar sua presença na reunião.
- Danem-se todos! - ela explodiu. - Preciso ir urgente ao Rio de Janeiro. Volto daqui uma semana, no máximo dez dias.
Elisa abaixou a cabeça e nada disse. Os demais gerentes da empresa vinham reclamando havia algum tempo da postura desleixada de Denise. Havia inclusive boatos de que ela estava prestes a ser demitida.
Denise até chegou, a saber, dessa possibilidade e estava pouco se lixando. Ela havia desfalcado a empresa e tinha uma boa quantia de dinheiro aplicado em Bancos estrangeiros. Assim que terminasse o seqüestro, ela iria viver com Jofre bem longe dali longe do país. Ela saiu da empresa, pegou o carro e dirigiu-se até sua casa. Buzinou várias vezes, até que uma vizinha apareceu e bateu levemente no vidro de seu carro. Denise não abriu. Mesmo com uma fina película preta sobre os vidros a vizinha a reconheceu e bateu novamente no vidro, com delicadeza. Denise soltou um grunhido. Estava irritada com a demora do segurança.
- Vou mandar esse desgraçado embora! Vou mandar todos esses incompetentes embora.
Ela conhecia aquela perua que morava na casa ao lado. Estava acostumada com suas reclamações. Denise bramiu e desceu um pedacinho do vidro.
- O que é?
- Boa tarde.
Denise não respondeu. A mulher falou:
- Eu queria conversar com você sobre...
Denise a cortou.
- Eu não a conheço não lhe dou o direito de ter intimidades comigo. Me chame de senhora.
A moça corou do lado de fora. Pigarreou:
- Eu gostaria de pedir à senhora que diminuísse o volume do seu aparelho de som, ao menos depois da dez da noite. Eu tenho um bebê e...
- Eu quero que você e seu bebê se danem! - gritou ela.
Chico abriu o portão e ela acelerou, cantando os pneus. Quase atropelou o segurança. Parou o caro do lado dele e saiu feito uma leoa.
- Eu fiquei mais de dois minutos parada na porta.
- Desculpe D. Denise.
- Eu poderia ser assaltada por conta de tanta demora - ela olhou para a vizinha, ainda parada no portão -, seria melhor ser assaltada do que ouvir as baboseiras dessa gente chata que mora do lado de casa. Ainda bem que vou embora desta cidade, deste país ordinário. Eu não mereço viver no terceiro mundo. E quanto a você, Chico...
- Pois não, D. Denise.
- Pode fazer a sua trouxa, metê-la no meio das pernas e ir embora. Está demitido.
- Mas, d. Denise.
- Rua! Entendeu? Vou ligar agora mesmo para a empresa de segurança. Não o quero mais aqui na minha casa, seu incompetente.
Chico abaixou a cabeça, desconsertado.
- Sim, senhora.
Denise bateu o salto e entrou em casa. Chamou por Delis e pediu para ajudá-la a fazer a mala. Delis fez tudo sem abrir a boca. Tinha visto como Denise tratara Chico e sabia que se falasse um "a" que fosse também seria verbalmente agredida. Arrumou as malas da patroa em total silêncio. Chico caminhou até o portão e desculpou-se com a vizinha.
- Ela está nervosa.
- Não pode tratar a você e a mim dessa maneira. É uma mulher muito sem educação. Nunca tivemos vizinhos assim tão mal-educados.
- Desculpe-me, senhora.
- Eu moro aqui do lado e o conheço. Sei que é um bom empregado.
- Obrigado.
- Se quiser, eu tenho uma amiga que mora na outra quadra e precisa dos serviços de um segurança. Quer que eu fale com ela?
- A senhora faria isso por mim?
- Faria. Vá arrumar suas coisas e depois passe em casa. Sabe onde moro.
Ela despediu-se e Chico sorriu emocionado.
- Ainda há gente boa no mundo. Graças a Deus vou me livrar dessa patroa tão prepotente e arrogante.
Chico entrou pelos fundos da casa e encontrou Delis chorando na cozinha.
- O que foi?
- Ela o despediu.
- Não se preocupe comigo - ele se aproximou e a abraçou. - Calma.
- Não é justo, Chico. Essa mulher não tem limites para a maldade. Será que Deus não vê tudo isso? Por que não coloca um freio nessa mulher?
- Deus faz tudo certo, Delis. Pessoa como Denise nos ajudam a ser mais fortes.
- Ela é uma víbora.
- Não pense negativo. Ela vai viajar você vai ter uns dias de paz.
- Tenho medo de ficar aqui sozinha neste casarão.
- A empresa de segurança vai mandar outro funcionário.
- E o que será de você? Denise vai reclamar e talvez eles o demitam de fato.
Chico sorriu.
- Eu estou me sentindo muito bem.
- Como pode? Acabou de ser demitido e se sente bem?
- Deus fecha uma porta e abre outra.
- Não entendi.
- A vizinha da casa ao lado viu Denise me demitir e me informou que uma vizinha do quarteirão precisa dos serviços de um segurança. Parece que ela vai me indicar.
Delis o abraçou com carinho.
- Que bom Chico. Fico tão feliz! Você é bom e merece trabalhar com patrões bacanas.
- Se quiser, eu posso conversar com a vizinha e saber se ela precisa de uma empregada.
- Eu faço qualquer coisa: lavo passo, cozinho. Faria isso por mim?
- Claro! Sabe o quanto gosto de você.
Delis sentiu um frêmito de emoção. Gostava do Chico. Fazia muito tempo que não sentia atração por homem algum. Ela era separada, tinha dois filhos para criar. Fazia anos que estava sozinha. Desde que o conhecera vinha sentindo algo diferente, especial. Chico, por sua vez, também gostava de Delis. Era viúvo, tinha uma filha que estava noiva, e também estava só. Daquele abraço surgiu, na mente de ambos, outras possibilidades além da amizade. Nascia o amor entre eles. Denise estava impossível. Excitada e nervosa com a aproximação do rapto de Ricardinho, ela descontava sua ansiedade em ondas de gritos com Deus e o mundo. Não via à hora de estraçalhar o coração de Leandro, e, por conseguinte o de Letícia. Sentia um ódio grande do menino, sem motivo aparente.
- Agora vamos ver! Quero dar um susto nessa família. Quero ver esse menino se borrar todo.
Ela falou e gargalhou, enquanto puxava sua mala de mão até o táxi que a esperava na porta de casa. Ela nem se despediu de Delis. Entrou no carro, pediu ao motorista correr até o aeroporto, evidentemente, de maneira ríspida e estúpida, como era de seu feitio. Afinal, em que consistia esse seqüestro? Era algo nem tão complexo assim. Jofre e seus comparsas pegariam o menino e o levariam para o sítio de Inácio. Em torno de dez dias eles deixariam o menino numa estrada e assim Denise poderia sentir-se vingada de Leandro. Uma brincadeira de tremendo mau gosto, que poderia trazer conseqüências terríveis a todos os envolvidos. Jofre era traficante e trabalhava para um figurão que dominava o ponto de drogas num dos morros do Rio. Era valente, temido e conhecido por eliminar friamente seus adversários. Ele havia matado muita gente. E não sentia um pingo de remorso por isso. Seu espírito não sabia fazer diferente. Havia algumas vidas matava sem dó nem piedade. Deus, em Sua misericórdia, oferecia a ele a chance de reencarnar ao lado de espíritos que se preocupavam com a sua evolução espiritual e que tentavam ajudá-lo a seguir outro caminho que não fosse o do crime. Em última fase de preparação para reencarnar no planeta, ele fora avisado por um dos colaboradores do Ministério do Auxílio à Reencarnação:
- Ficou muitos séculos no Umbral. Sabe que está aqui comigo porque ainda há espíritos que acreditam na sua recuperação.
O funcionário falava de Consuelo. Ela havia reencarnado ao lado de Jofre por muitas vidas, e sempre fora um espírito amigo. Ao longo das encarnações Jofre fora contraindo cada vez mais inimigos e, na atual conjuntura, só lhe restara Consuelo.
- Eu vou melhorar. Quando estou ao lado de Consuelo fico bem.
- Aqui não enganamos ninguém. Se não cumprir com o que lhe traçamos, sabe que nem mais para o Umbral você vai voltar.
- Eu sei. Fui informado de que, se eu falhar nos meus intentos, irei para este outro planeta, que fica próximo do orbe terrestre.
- Esse planeta, que os astrônomos já descobriram, fica próximo da Terra. Muitos espíritos, como você, estão sendo obrigados a reencarnar e, digamos, endireitar-se. Se você falhar, não haverá mais perdão. Irá diretamente para esse lugar, tão ruim ou pior que o Umbral. Sabe que lá só vivem espíritos que não querem, de forma alguma, melhorar e crescer. Lá todos são iguais em termos de maldade e crueldade. Matam-se por um punhado de comida. É como se voltassem à época pré-histórica, onde a lei é a do mais forte. Não há leis, justiça, nada que possa proteger o indivíduo, a não ser o seu instinto de sobrevivência. Lá você poderá utilizar de toda sua ira, toda sua raiva para poder se manter vivo. Poderá matar quantas vezes quiser, poderá ser morto quantas vezes for necessário.
- E, se eu me desviar da rota na Terra e for para lá, quanto tempo ficarei nesse planeta?
- Alguns séculos ou milhares de anos, tudo depende. Os primeiros habitantes da Terra também eram assim como você. Aliás, você não mudou muito desde que viera de Capela para o orbe terrestre. Como você, há muitos espalhados pelo mundo terreno. Todavia, a Terra passa por um período de mudanças, para melhor evidentemente, e a energia do planeta está mudando. Somente quem tiver o sincero desejo de progredir e crescer, de cultivar a bondade e percorrer o caminho do amor é que vai poder ter o direito de lá reencarnar. Os brutos de coração, infelizmente, terão de reencarnar em outro planeta. Fui claro?
- Foi. Eu juro que vou permear o caminho do bem.
Depois desta reunião, Jofre preparou-se para o reencarne e voltou a Terra. O seu espírito deveria passar fome e necessidade. Levaria surras do pai, comeria o pão que o diabo amassou, mas teria o amor de Consuelo. Juntos eles iriam vencer as adversidades da vida. Estava previsto Consuelo reencontrar Emerson. Eles teriam uma filha e Jofre teria de dar duro para trabalhar e sustentar mãe e irmã. Se ele perseverasse, mais à frente Consuelo revelaria a verdadeira identidade do pai de Marina, eles receberiam um bom dinheiro e sua vida poderia seguir um caminho feliz e cheio de recompensas. Haveria ainda a possibilidade de ele reencontrar desafetos do passado e aí seria uma roleta-russa, dependeria do grau de evolução de cada espírito reencarnado. Jofre poderia fundar uma organização não-governamental e cuidar de crianças carentes - espíritos que ele ceifara a vida em outros tempos - ou até poderia ser morto por um desafeto. Tudo poderia acontecer. Infelizmente, como sabemos Jofre não seguiu a rota traçada. Seu espírito resvalou em erros graves, ele preferiu seguir e continuar, por conta do livre-arbítrio, no caminho do crime. Ainda havia chance de ele mudar. Tudo dependia única e exclusivamente de suas escolhas. O dia seguinte chegou e o sol estava a pino quando Denise acordou. Ela espreguiçou-se demoradamente, remexendo-se na cama, virando o corpo nu para um lado e para o outro. Jofre vestia um jeans e uma camiseta.
- Está atrasada. Dormiu demais da conta, mina.
- Você me deixou desgastada esta noite - ela sorriu maliciosa. - Nunca tive um amante tão viril, tão ardente como você!
Jofre aproximou-se e a beijou nos lábios.
- A gente fazemos o que podemos.
Denise sentiu leve irritação nos ouvidos.
- A gente faz o que pode querido.
- Ta certo. Hoje é o grande dia.
Ela consultou o relógio. Eram dez e meia da manhã.
- Não se preocupe. O fedelho sai da escola meio dia e meia. Temos duas horas de sobra.
- Negativo. Os comparsa me ligaram. Estão de tocaia.
- Quem vai pegar o menino? O pai ou o motorista?
- Pelo dia da semana é o pai.
Denise sentiu um arrepio de prazer.
- Ai, que maravilha! Leandro vai buscar o filho na escola?
- Afirmativo.
- Quero ver a cara dele quando vocês pegarem o fedelho.
- Não. Você não pode estar perto.
- Eu queria tanto.
- Não pode, é arriscado. Tu segue direto pro sítio.
- Mas vou poder ver o menino depois, certo?
- A gente botamos um capuz nele e...
- Não! - protestou ela. - Eu quero ver a carinha dele. Quero ver aqueles olhinhos cheios de pavor. Eu quero, eu preciso ver a cara desse menino.
- Por que odeia tanto ele?
Ela deu de ombros.
- Não sei. Acho que não é ódio. É uma vontade mórbida de ver o infeliz sofrer. Não sei explicar. Coisas que estão aqui e que a gente sente - ela apontou para o peito.
Jofre a beijou e lhe entregou um envelope.
- Pega o carro na garagem. Vá pro sítio do seu amigo. O Dimas e o Tinhão vão levar o menino direto para lá. Quero que você recebe eles. O menino vai ta encapuzado. Nada de ver ele antes de mim chegar.
- Vou seguir à risca as suas ordens. Vou controlar minha ansiedade. Eu espero você chegar para me mostrar o menino.
- Ótimo.
Jofre terminou de se arrumar, pegou uma pistola automática. Meteu a arma por trás da calça. Em seguida, pegou o celular e ligou:
- Como estão as coisa, Tinhão?
- Tudo certo, chefe. Estamos aqui de tocaia. A hora que o menino sair à gente avança no carro. Deixe com a gente.
- Qualquer pobrema, me ligue.
- Não vai ter problema algum. Vai dar tudo certo. Pode acreditar.
- Valeu compadre.
Jofre desligou e foi tomar seu desjejum. Enquanto se servia de café e leite, lembrou-se dos últimos dias, dos acontecimentos, das ordens dadas para a execução do plano. Os capangas de Jofre eram figuras perigosas, frias e muito violentas. Eles estudaram minuciosamente os passos de Ricardo, a hora que saía para a escola, a hora que voltava os horários de natação e de inglês. Verificaram o esquema de segurança do condomínio e perceberam que lá seria impossível fazer alguma coisa. O condomínio - um dos mais nobres, caros e seguros da Barra da Tijuca - era dotado de forte esquema de vigilância, dotado de muitas câmeras e seguranças bem treinados. O menino deveria ser pego na saída da escola. Mesmo que de maneira ousada, à luz do dia. Esses marginais adoravam causar terror na população. E não fariam diferente no caso do seqüestro de Ricardo. Jofre sorriu sinistramente. Finalmente, o dia para a realização do plano sórdido havia chegado.
- É agora que metemos a mão na grana dessa família - disse para si, em voz alta. - Denise pensa que somos otário. Achou que a gente tava realizando um capricho seu. Claro que vamos realizar, mas a tonta não falou que a gente iríamos seqüestrar o filho de um figurão, do Leandro Dantas. A gente vamos fazer o capricho dela, seqüestrar o menino e dar um susto na família. Mas também queremos botar a mão na grana. E falo em grana preta. Vou querer uns milhão pra torrar... Ricardinho acordou com dor de cabeça nesse dia.
- Acho melhor você não ir à escola hoje, filho - disse Letícia, depois de colocar a mão sobre a testa do filho. - Está febril.
- Bobagem, mãe. Eu sou forte, saudável. Deve ser uma indisposição. Ontem eu exagerei no açaí com granola. Deve ter sido isso.
- Já falei para não comer açaí antes de dormir.
- Eu sou um homenzinho. Preciso comer açaí para ficar forte. Meus amigos são todos fortes.
- E para que quer ser tão forte?
- Para proteger a nossa família: o papai, você, esse nenê que está para nascer - ele passou delicadamente a mão sobre o ventre avantajado de Letícia.
Ela se emocionou. Beijou-o várias vezes no rosto.
- Você é o meu herói! Meu meninão!
- Sou mesmo - ele se levantou e calçou os chinelos para ir ao banheiro. - Quando vai nascer minha irmã?
- Como você soube? Era para ser uma surpresa.
- Eu a escutei conversando com a Mila outra noite. Vocês estavam escolhendo o nome da menina. Falaram em Gabriela, Júlia, Camila...
- Você anda escutando atrás das portas. Que coisa feia! - disse num tom de censura, brincando com o filho.
- Eu fiquei contente. Não fiz por mal.
- E qual o nome que você mais gostou?
- Eu?!
- É, Ricardinho. Que nome você mais gostou.
Ele levou o dedo ao queixo e pensou por instantes.
- Gostei muito do nome Camila.
- É mesmo?
- É. Acho bonito. Camila.
- Eu estava na dúvida entre Júlia e Camila. Já que você gostou do nome, sua irmãzinha vai se chamar Camila.
- Pena que eu não vou acompanhar o seu crescimento.
- O que foi que disse?
- Que eu não vou acompanhar o crescimento da minha irmã.
- Por que diz isso? - Letícia levou a mão ao peito. - Sente alguma coisa? Está com alguma sensação de coisa ruim? O que...
O menino a tranqüilizou.
- Calma mãe. Falei por falar. Sei lá. Desculpe-me. Ricardo aproximou-se de Letícia e a abraçou com carinho.
- É a melhor mãe do mundo. Amo você.
Ele a beijou e Letícia sentiu uma desagradável sensação no peito. A pressão caiu e, se não fosse Ricardo, ela iria ao chão.
- O que foi mãe? Não está se sentindo bem?
Ele conduziu Letícia até sua cama. Ela se sentou com dificuldade.
- Não foi nada. A pressão caiu só isso.
- Mesmo?
- Sim. O médico disse que sua irmã deve nascer entre semana que vem e dez dias.
- Vai ser uma festa só!
- Vai sim - falou ela, o rosto pálido feito cera.
- Melhor eu chamar o papai.
- Não. Deixe seu pai descansar. Ele tem se esforçado muito para ficar mais aqui do que em São Paulo a fim de estar mais perto de nós. Não vamos acordá-lo por besteira.
- Mas eu vou para a escola. O motorista vai me levar e não pode ficar aqui assim, desse jeito.
- Mila vem tomar café comigo. Daqui a pouco ela chega.
- Está certo. Fique aqui descansando na minha cama. Eu vou colocar o uniforme da escola.
Ricardinho levantou-se e foi até o banheiro. Letícia abanava o rosto com as mãos. Estava sentindo uma fraqueza sem igual. O seu coração de mãe já estava prevendo o pior, porém ela, envolvida com a gravidez, pensou:
- Logo passa.
No dia anterior, Consuelo dera entrada no hospital e fora levada diretamente para a UTI - Unidade de Terapia Intensiva. Seu quadro de saúde inspirava cuidados e não era dos melhores.
Uma simpática médica veio ao encontro de Marina.
- Você é parente de Consuelo Maria da Silva?
- Sou eu, sim.
- Preciso ser franca com você. O estado de saúde de sua mãe é grave.
Marina levou a mão ao peito. Recompôs-se e falou:
- Mamãe há anos é hipertensa e vinha tomando seus remédios. Cada mês estávamos num médico diferente.
- Ela sofreu um acidente vascular cerebral. Faremos o possível para que o AVC isquêmico não se transforme num acidente hemorrágico, o que pode ser fatal. Vamos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para salvar sua vida.
- Obrigada, doutora. Muito obrigada.
Marina continuou com a médica mais uns minutos. Ela podia visitar a mãe duas vezes ao dia, à tarde e a noite, por meia hora cada visita. Ela também teve de assinar os papéis de internação, fazer toda a parte burocrática. Uma hora depois, aflita e sem querer sair do hospital, ligou para Patrícia. Contou sobre c ocorrido e Patrícia lhe pediu calma, em duas horas no máximo, estaria no hospital. Ela anotou o endereço e finalizou:
- Agüente firme que logo eu e Adriano estaremos aí.
- Obrigada.
Patrícia ligou para o marido e sugeriu:
- O que acha de ligar para o Edgar?
- Marina e ele não se bicaram no jantar. Acha mesmo que devo chamá-lo?
- Sinto que sim. Se Edgar sente algo por Marina, vai ser agora que vai poder mostrar. Ela está fragilizada. Contou-me superficialmente que hoje não foi um bom dia para ela. Sabia que Denise a demitiu?
- Sério?
- Pois é. Ela foi demitida e, ao que tudo indica, quando d. Consuelo soube do ocorrido, passou mal e teve o derrame.
- Puxa vida! Marina não merece passar por isso.
- Acho que por ora os amigos devem estar ao seu lado. Ela não tem família, não tem parentes, não tem ninguém. Nós somos a família dela.
- Tem razão, amor. Eu vou sair mais cedo do trabalho e pego você no seu. Vou ligar agora mesmo para o Edgar.
Desligaram o telefone e Adriano ligou para o celular de Edgar. Caiu na caixa postal. Adriano ligou mais uma duas vezes. Nada de atender. Ele ficou ressabiado.
- Estranho. Edgar sempre atende ao telefone, mesmo no trabalho.
Não satisfeito, Adriano ligou para a empresa onde Edgar trabalhava. A secretária atendeu e o cumprimentou:
- Como vai, Adriano? Tudo bem?
- Tudo.
Antes de ele perguntar ela disparou:
- Por onde anda seu amigo?
- Eu iria lhe fazer a mesma pergunta, Rose.
- Edgar não veio trabalhar hoje. E eu achei muito esquisito porque os diretores marcaram uma reunião importantíssima para logo cedo. Essa reunião estava marcada havia dias. O Edgar nunca foi de faltar assim. Quer dizer, teve aquele afastamento por conta da caxumba meses atrás, mas nunca faltou um dia sequer. E, quando se atrasa, sempre me liga.
- Você tentou o celular dele?
- Liguei umas cinco vezes. Só deu caixa postal. Adriano desligou o telefone e nem achou graça na desculpa que Edgar inventara ao pessoal do escritório quando ficara afastado por conta da tentativa de suicídio. Rose era funcionária competente, trabalhava para Edgar havia anos e não era mexeriqueira. Se ela não conseguira localizar o chefe, coisa boa não havia de ser.
Adriano pousou seu celular na mesa e sentiu um gosto amargo na boca. Enfiou o dedo no colarinho e afrouxou a gravata. Teve a mesma sensação de quando Edgar tentara se matar. Idêntica. Uma sensação estranha no peito.
- Ele estava tão bem ontem no jantar. Estava acompanhado de uma loira de fechar o comércio.
Adriano ficou pensativo por instantes e pensou em ligar para João, o porteiro do prédio. Desde a tentativa de suicídio, ele mantinha em sua agenda todos os telefones de pessoas ligadas a Edgar: os pais dele, a secretária e o porteiro do prédio.
João atendeu:
- Olá, seu Adriano.
- Como vai, João, tudo bem?
- Tudo em ordem. O senhor deseja alguma coisa?
- Diga-me, você está no prédio?
- Estou. Hoje entrei às seis da manhã e vou ficar até as seis da tarde. Por quê?
- Você viu que horas o Edgar foi trabalhar?
- Olha, eu acho que ele não foi trabalhar, não. Não o vi sair com o carro da garagem e também não o vi sair pela portaria.
Adriano desesperou-se. Procurou manter a voz menos tensa.
- João, por favor, interfone agora mesmo para o apartamento dele.
- Sim, senhor - João interfonou, uma, duas, três vezes. - Ninguém atende.
- Você faz uma gentileza? Suba e dê uma olhada.
- Eu não tenho autorização, seu Adriano. Se eu for lá e abrir o apartamento, posso ir para o olho da rua.
- Mas sabe o que aconteceu no passado.
João coçou o queixo, pensativo.
- Tem razão.
- Por favor, João, vá até o apartamento. Pegue aquela chave reserva que eu lhe dei. Eu me responsabilizo por tudo. Fique sossegado.
- Não sei, não, seu Adriano.
- Por favor. Eu sinto que Edgar não esteja bem.
- Está certo.
- Vá até o apartamento e me ligue em seguida, pode ser?
- Combinado.
Adriano desligou o telefone, mas não esperou pela ligação de João. Terminou o expediente, entregou uns relatórios para a sua assistente e foi embora. Pegou o carro no estacionamento do prédio em que trabalhava na região da Avenida Paulista. De lá, seguiu direto para a casa de Edgar. Quando estava próximo ao prédio, coisa de dez minutos, o celular tocou. Ele colocou no viva-voz e continuou prestando atenção no trânsito.
- Seu Adriano...
João estava com uma voz chorosa, desesperado.
- O que foi?
- Corra para cá, pelo amor de Deus! Acho que seu Edgar dessa vez conseguiu se matar...
Faltavam vinte minutos para Ricardo sair da escola. As terças e quintas-feiras, Leandro viajava para São Paulo e cuidava dos negócios. Havia contratado um ótimo executivo para ficar em seu lugar nos outros dias da semana. Ele decidira desde que Letícia engravidara ficar mais próximo dela e do filho. Estavam estudando a possibilidade de mudar para São Paulo, mas isso tudo eram conjecturas. Eles iriam conversar depois que a menina nascesse. Leandro buscava o filho as segundas, quartas e sextas-feiras. Nesta sexta-feira ele estava radiante Acordou bem-disposto, cumprimentou Letícia, tomou café da manhã com ela e Mila. Depois, trancou-se no escritório e por meio do computador conversava com funcionários, realizava conferências. Ele deixava um despertador para tocar por volta do meio-dia. Era o momento de buscar o filho na escola. Leandro chegou próximo à escola e entrou com seu carro no pequeno pátio destinado aos pais. Esperou um pouco, escutava uma estação que tocava música antigas. Ficou cantarolando uma até que o filho apareceu. Ele destravou as portas do carro e Ricardo entrou. Eles se beijaram e o filho disse todo animado:
- Tirei dez na prova, pai.
- É mesmo?
Leandro deu partida e saíram por uma ruazinha que dava acesso à Avenida das Américas. Ricardo estava todo empolgado.
- É. Eu sabia que era bom em história e geografia.
- Difícil um garoto na sua idade gostar dessas matérias. Aliás, na sua idade, eu francamente não gostava de nenhuma.
Os dois riram.
- Eu adoro pai. Conhecer outros países, outras culturas. Acho o mundo uma maravilha, um lugar delicioso de se viver.
- O que tem vontade de ser quando crescer?
- Não sei. Talvez trabalhar no mundo todo, ser um funcionário da ONU ou mesmo um embaixador do Brasil lá no estrangeiro.
- Muito me admira você pensar tão grande assim.
- Eu penso.
- Fico feliz, porque sua mãe hoje, na mesa do café, disse-me que você não iria acompanhar o crescimento da sua irmã. Por que disse isso, meu filho?
Ricardo ia responder, mas subitamente Leandro foi obrigado a frear bruscamente. Um carro veio feito louco na contramão e o fez frear, caso contrário iriam se chocar. Leandro achou se tratar de um louco varrido, desses delinqüentes que usam o carro como se estivessem guiando um tanque de guerra.
- Você está bem, meu filho?
- Estou pai. Ainda bem que estou usando o cinto de segurança.
Leandro ia sair do carro, mas aconteceu tudo rápido demais. Dois homens encapuzados saíram do veículo e cada um foi para um lado da porta. O que parou ao lado da porta de Leandro apontava um pistola. O que estava parado na porta de Ricardo apontava um fuzil. Não tiveram tempo de fazer nada. Tinhão gritou mandou abrirem a porta. Leandro apavorou-se e não conseguia apertar o botão de destravamento da portas. O capanga então meteu o fuzil no vidro do lado do passageiro. Arrebentou o vidro e mandou o menino sair. Ricardo estava apavorado e paralisado pela brutalidade. Leandro fez um movimento para tirar o cinto de segurança e ajudar o filho a tirar o dele. Tinhão achou que ele fosse reagir, nem pestanejou. Disparou a arma e meteu três tiros nele. Ricardo deu um grito de pavor.
- Pai!
Os rapazes arrancaram o menino do carro e o levaram para outro veículo. Fizeram Ricardo cheira um pano com éter, ele desmaiou e eles o encapuzaram, jogando-o dentro do porta-malas do veiculo. Os dois marginais saíram em disparada, cantando pneus e atirando para os lados e para o alto, assustando os passantes. A última cena que o menino viu foi o pai cerrando os olhos, inconsciente. Ensangüentado e sem força para reagir, Leandro sentiu o gosto amargo de sangue e foi perdendo a consciência. Antes de ver o filho sumir, seus olhos se fecharam e seu corpo pendeu pesadamente para a frente. Leandro em espírito viu seu corpo físico inerte caído sobre a direção do veículo. Não entendeu nada. Ele olhava para o seu perispírito e para seu corpo sem nada entender. O que estaria acontecendo? Eu não conseguia concatenar os pensamentos. Em seguida, olhou para a frente e viu o filho sendo encapuzado e colocado no porta-malas do veículo. O seu espírito se sentiu tão mal que não suportou. Também perdeu a consciência e desmaiou. Adriano jogou o carro praticamente no meio da rua, saiu correndo e entrou o prédio. João estava aflito.
- Eu não tive coragem de ficar lá. Acho que ele endoidou antes de morrer. Os móveis estão revirados, tudo fora do lugar. Uma bagunça. O corpo está caído no chão do quarto, pelado. Eu coloquei um lençol sobre o corpo, pobrezinho.
Adriano entrou no elevador e parecia uma eternidade chegar ao décimo andar do edifício. Entrou no apartamento e não acreditou no que viu. Estava mesmo uma bagunça. Ele correu até o quarto. Edgar estava estendido no chão, um lençol cobria seu corpo até o pescoço. Adriano se aproximou e instintivamente colocou o nariz próximo da boca de Edgar. Ele respirava!
- Graças a Deus!
Adriano enlaçou o amigo, sentou-o e posicionou-o para que suas costas ficassem encostadas nos pés da cama. Bateu levemente no rosto do amigo. Edgar não respondeu.
- Por favor, Edgar. O que você fez desta vez? O que tomou homem de Deus?
Ele continuou de olhos fechados. Adriano foi ao banheiro, pegou um copo com água fria e começou a passar nos pulsos e rosto do amigo.
- Acorde, Edgar, pelo amor de Deus, acorde. Não vai morrer agora, por favor.
Adriano começou a chorar e abraçou o amigo. Como era triste ver Edgar daquele jeito. Sabia que, em alguns casos, o suicida fazia nova tentativa de tirar a vida. As lágrimas escorriam insopitáveis.
- Por que, Edgar? Por quê?
Aos poucos, Edgar foi balbuciando.
- Hã, eu... O que... Fiz... Não quero... É 34-00-03...
- Graças a Deus! - Adriano vibrou contente. - Seja lá o que tomou, está recobrando a consciência.
- 34-00-03. Edgar não parava de repetir essa estranha combinação de números.
Adriano correu até a lavanderia e pegou o amoníaco. Misturou com água e trouxe para o amigo cheirar. Edgar foi abrindo os olhos e de repente deu um grito:
- O que foi?!
- Eu é que pergunto homem. O que aconteceu?
Edgar foi concatenando aos poucos os pensamentos. Olhou ao redor, reconheceu o quarto. Depois, olhou para o corpo desnudo e em seguida para Adriano.
- O que aconteceu?
- Não faço idéia, mas antes de qualquer coisa, diga-me: o que você tomou desta vez?
- Hã?
-Tomou barbitúricos, ansiolíticos, o quê? Eu não achei nada de remédio, nada de veneno. Com o que tentou se matar desta vez, Edgar?
- Eu não tentei...
- O que você tomou?
- Não sei.
- Vou ligar imediatamente para uma ambulância. Precisamos ir urgentemente ao hospital.
Edgar mexeu a cabeça para os lados de maneira negativa.
- Não. Não é preciso ligar.
- Como não? Olha o seu estado!
- Estou me recompondo. Calma. Me dê um copo com água. A minha garganta está seca, muito seca.
- Preciso saber o que você tomou.
- Não sei, mas me dê um copo com água.
Adriano foi até o banheiro e encheu um copo. Voltou correndo.
- Tome.
Edgar tomou de maneira apressada, quase num gole só. Engasgou-se e tossiu.
- O que foi? O que está acontecendo? - indagou o amigo, aflito.
- Calma Adriano. Eu me engasguei. Só isso.
- Sente-se melhor? Vou ligar para a emergência.
- Não precisa. Agora eu me lembro.
- Se lembra de quê?
- De tudo. Lembra-se da loira que eu levei para jantar?
- Sim.
- Pois bem. Depois do jantar ela foi se insinuando, falando melado e eu não resisti. Eu a convidei para vir aqui em casa. Fiz um drinque para ela, outro para mim. Fui ao banheiro e quando voltei bebi meu drinque e apaguei.
Adriano passou a mão na testa.
- Ufa! Menos pior.
- O que acha que aconteceu? Eu apaguei e acordei agora, com você gritando no meu ouvido.
- Desculpe amigo. Pensei que você tivesse cometido aquela loucura novamente.
- Qual nada! Aquilo foi um ato desesperado para chamar a atenção da Denise. Eu queria que ela sentisse pena de mim, fosse correndo ao hospital e falasse que me amava mais que tudo. Fiz de caso pensado. Tanto que tomei um pouquinho só de veneno.
- Mas não deixou de ser loucura. Você nos preocupou muito daquela vez.
- Mas o que me aconteceu?
- Você foi vítima do chamado Boa-Noite Cinderela. Só isso.
- Eu? Imagine. Eu sou esperto.
- Muito esperto. Tão esperto, que o seu apartamento está todinho revirado. Os móveis estão fora do lugar, às gavetas remexidas. Olhe seu closet -apontou - está todo bagunçado.
- Minha nossa!
Edgar levantou-se sentindo pequena tontura. Vestiu uma cueca e, conduzido por Adriano, foi olhando cômodo por cômodo da casa.
- Fui roubado!
- Onde está a sua carteira?
- Ali em cima da mesa de jantar.
A carteira estava aberta e vazia. Somente com uma folha de louro que Edgar ganhava da mãe no réveillon. Era para ter a carteira sempre cheia, o ano inteiro.
- A loira levou seus cartões e dinheiro. Você tem talões de cheque, dinheiro ou jóias?
- Não. Só tenho os cartões de crédito. Os talões ficam no cofre da empresa. Eu não tenho jóias. Quer dizer, tinha um relógio do meu pai, antigo.
Foram até o armário e o relógio havia sumido. Adriano falou de forma inesperada:
- Você ficava repetindo 34-00-03. O que quer dizer?
- O quê?
- Você falou algumas vezes essa seqüência numérica: 34-00-03.
Edgar levou a mão à testa.
- Putz!
- O que foi?
- Essa é a senha do meu cartão do Banco!
- Acho melhor você ligar imediatamente para o Banco e para as operadoras de cartão.
Edgar ligou e cancelou o cartão do Banco e os de crédito. Em seguida, tomou um banho bem demorado mais frio que morno. Saiu do banho e Adriano falou:
- Vamos ao hospital.
- Estou bem.
- Não sabemos o que tomou. Não temos idéia do que essa loira meteu na sua bebida.
- Você não lê jornais? Não vê como esse crime tem se disseminado no país todo? São homens e mulheres bem-vestidos, aparentemente cultos e refinados, que entorpecem o outro para roubar e também matar. Santo Deus, Edgar!
- Pare de gritar comigo. Fui vítima, fazer o quê?
- Onde estão os copos?
- Os copos estão em cima da mesa da sala. Adriano foi até a sala e nada. Foi até a cozinha e os copos estavam lavados e secos. A loira fora esperta, não deixara marcas de batom ou mesmo impressões digitais. Seria praticamente impossível descobrir a autora do atentado. Em todo caso tinha sido uma grande lição para Edgar. Nunca mais levaria estranho que fosse até o seu apartamento. Ele voltou ao quarto.
- Ela foi esperta. Lavou os copos e aparentemente não deixou impressões. Acho que não vamos conseguir pegá-la. Em todo caso, se quiser prestar queixa...
- Quero ir à delegacia, sim. Não importa. Tenho de denunciá-la. E, ademais, precisarei do boletim de ocorrência caso tenha problemas com saques nos cartões do Banco e gastos com as administradoras de cartão de crédito.
- Bem pensado. Vamos até a delegacia e depois ao hospital. Você conhece o Hospital São Basílio?
- Sim. Acho que meu convênio me dá direito a usar esse hospital. Por quê?
- Porque depois de fazer o boletim de ocorrência vamos para lá. Os médicos podem fazer alguns exames e nos tranqüilizar.
- Você se preocupa muito comigo.
- Claro! Você é meu irmão. Atrapalhado e inconseqüente, mas é meu irmão. De coração.
Edgar o abraçou com carinho.
- Obrigado, Adriano. Você é meu grande irmão. Meu protetor.
- Aproveitamos e matamos dois coelhos com uma cajadada só.
- Como assim?
- A mãe da Marina teve um derrame e foi internada nesse mesmo hospital.
- Puxa! Sério?
- É. Ela está sozinha e fragilizada. Não tem parentes, ninguém.
- Ela é muito bacana - disse Edgar, enquanto se vestia.
- Bacana e apaixonada.
- A Marina está apaixonada? Aposto que deve ser por um dos fortões do nosso grupo de corrida.
- Você não sente nada por ela? - indagou Adriano.
- Acho ela bonita inteligente. Mas é muita areia para o meu caminhão.
- Você acredita nisso?
- Hum, hum. Marina nunca iria olhar para mim. Bobagem.
- Prepare-se para escutar a bomba do ano.
- O que foi?
- Marina está apaixonada por você!
Ricardo abriu os olhos e pendeu a cabeça para os lados. Havia uma luz fraca no quarto. Ele estava numa cama, ao lado havia uma pequena mesinha para refeições e duas portas mais à frente. Uma era do banheiro e outra da saída do quarto. A janela estava vedada com uma lâmina de madeira. O ambiente estava bem abafado e ele pensou que iria sufocar, de tanto calor. O menino foi mexer as mãos e percebeu um dos pulsos algemado à estrutura de ferro da cabeceira da cama. Ele respirou fundo, revirou-se sobre o colchão duro e pensou no pai. As lágrimas desceram rápidas. A cena tinha sido muito forte. Ver o pai morrer, ali na sua frente o devastara, estraçalhara seu coraçãozinho de doze anos de idade. Naquele momento, Ricardo pensou na mãe e na irmã que estava por nascer. As idéias estavam meio embaralhadas. Mas suspeitava que fora seqüestrado. Tinhão entrou no quarto. Estava com um capuz sobre a cabeça.
- E aí, garoto, ta com fome?
- Não. Não quero comer.
- Desse jeito vai morrer. Precisa comer alguma coisa. Faz um dia que você está aqui e o chefe mandou você comer.
- Não vou comer.
Tinhão deu de ombros. Pegou o sanduíche de presunto e jogou sobre a mesinha. Saiu e voltou em seguida com uma garrafa de guaraná.
- O prato do dia é esse. Se quiser, coma. Se não quiser, o problema é seu. É a sua barriga que vai roncar, e não a minha.
Ele riu e saiu. Bateu a porta e passou o trinco. Do lado de fora, ordenou para Dimas:
- Fica de olho na porta. O garoto ta arredio. Acho que vai dar trabalho.
- Deixa comigo. Se ele der uma de engraçadinho eu lhe aplico um corretivo. Sabe que eu sou bom com crianças.
Tinhão riu.
- Seu filho da mãe! Ta a fim de abusar do garoto, né?
Dimas deu uma gargalhada maliciosa.
- Pode crer! Se esse garoto der mole eu traço. Adoro garotinhos.
- Seu sem-vergonha.
Tinhão falou e saiu. Ricardo estava no quarto da casa do caseiro, um pouco afastada da casa principal do sítio. Nela, Denise estava deitada no sofá, a cabeça no colo de Jofre.
- Pena que tiveram de apagar o Leandro. Eu não queria que chegasse a tanto, mas paciência.
- Ele tentou revidar e levou chumbo. O meu bando não perdoa - ele bebericou um pouco de cerveja, estalou a língua no céu da boca e emendou: - Não saiu nada nos jornais.
- Esse tipo de seqüestro, de gente rica e conhecida não sai na mídia. É sigiloso.
- Eu liguei pra a casa deles hoje e falamos com uma mulher. Acho que era a sogra do falecido.
Denise interessou-se.
- O que você disse?
- Que o garoto ta vivo e bem. Que queremos dez milhões de dólares para domingo à noite. Ou eles me dão o dinheiro, ou apagamos o menino.
Denise levantou de um salto.
- Não!
- Como não?
- Não foi o combinado.
- E eu com isso? Assinei algum papel?
Denise exasperou-se.
- Eu só queria dar um susto na família, Jofre. Tudo bem que os planos não saíram como o combinado, o Leandro morreu. Mas a gente acertou de largar o menino semana que vem na estrada, num ponto da rodovia Fernão Dias.
Jofre balançou a cabeça para os lados.
- Negativo mina. Queremos arrancar muita grana dessa família. Eles têm grana pacas. Queremos botar a mão na grana e depois a gente largamos o menino na estrada. Mas só depois de receber meus milhão.
- Jofre, eu acho arriscado demais. O Leandro é profissional conhecido no país todo, a polícia já deve estar atrás de pistas. Se devolvermos o menino rapidamente, não corremos riscos. Mas se você o mantiver preso aqui até receber o dinheiro, podemos entrar numa fria.
Ele gargalhou.
- Qual é que é agora? Ta me gorando?
- Não é isso. Mas veja bem...
- Cala a boca, mina.
Jofre falou e deu-lhe um sonoro tapa no rosto. Denise sentiu a face arder e desequilibrou-se. Escorregou e esparramou-se no sofá.
- Como pode me bater?
- Tu merece. Ta esgotando a minha paciência. Não para de falar. Que coisa!
- Jofre...
- Se abri a boca de novo te enchemos de porrada, ta ligada? Ta entendendo ou precisa levar outro tapa?
Ela encolheu-se toda no sofá.
- Não. Não preciso.
- Acha que a gente íamos perder essa oportunidade? Quando falou do menino, a gente achamos graça. Faria o seqüestro pra te agradar. Sabia que era um capricho. Mas depois descobrimos de quem se tratava, aí, mina, os olho cresceram. Resolvemos tirar proveito.
- Dessa forma vamos ser presos. Eu não quero ser presa!
Jofre não agüentava mais escutar a voz irritante e esganiçada de Denise. Deu um grito, um assobio, e chamou Tinhão.
- Pega essa daí e leva pra fazer companhia pro menino.
Os olhos de Tinhão iam de Jofre a Denise e voltavam. O rapaz estava numa dúvida tremenda.
- O que foi? Não entendeu? Leva essa daí - apontou para Denise - pro cativeiro.
Tinhão obedeceu com um aceno de cabeça. Pegou Denise pelos braços.
- Solte-me! Está me machucando.
- Se ela der trabalho, mete bala. Pode apagar.
Denise entrou em pânico.
- Como pode fazer isso comigo, Jofre? Fui eu quem bolou o plano. Espere aí, vamos conversar.
- Não temos nada pra conversar contigo.
- Podemos dividir o dinheiro, eu fico com quarenta por cento e lhe dou sessenta.
Jofre deu nova gargalhada.
- Ta pensando o quê? Que somos otário?
- Eu fico com vinte por cento. Desculpe-me querer parecer mesquinha...
Denise falava para ganhar tempo e acalmar os ânimos de Jofre. Negativo. Ele fez um sinal com a cabeça e Tinhão foi arrastando-a até a casa do caseiro. Dimas estava sentado na porta, de tocaia. Ao vê-lo levantou-se imediatamente.
- O que aconteceu?
- O patrão mandou botar essa daí na casinha com o garoto.
Dimas abriu largo sorriso. Seus dentes eram manchados de nicotina. Ele mastigava um palito de fósforo entre os dentes amarelados.
- Sabia que ia dar nisso.
Ele abaixou-se e pegou um frasco que estava ao seu lado. Molhou um pedaço de pano com éter e virou-se abruptamente na direção do rosto de Denise. Ela nem se debateu. Desmaiou no mesmo instante. Tinhão a tomou nos braços, Dimas abriu a porta. Ricardo acordou num susto.
- Calma aí, garoto. Não se assusta, não. Trouxemos companhia.
Tinhão deitou o corpo de Denise no chão, próximo à cama. Sacou uma algema do bolso de trás da calça e prendeu o pulso esquerdo dela ao pé da cama.
- Não quero ninguém fazendo sacanagem aqui - disse Dimas. - Só eu é que posso brincar - e dei uma gargalhada que ecoou por todo o cômodo.
Ricardo acuou-se na cama. Os olhos de Dimas lhe causavam medo. Puro medo. Tinha idade suficiente para saber o que significava brincar. O medo apoderou-se do menino e ele orou, orou com uma força descomunal. Os rapazes saíram do quarto e trancaram a porta. Ricardo fixou os olhos em Denise. Ela parecia morta. Ele esticou o braço que estava livre, colocando-o próximo à boca dela. Respirava. Ele ficou observando aquela mulher. O rosto não lhe era estranho. Ele sabia que ela não era conhecida, mas de onde achava que já tinha visto aquela mulher. Edgar foi atendido por dois médicos no hospital. Depois de minuciosos exames, um deles comentou:
- Vamos aguardar pelos exames de sangue e urina, mas posso adiantar-lhe que, aparentemente, o senhor não tem nada.
- O que pode ter acontecido, doutor?
- Provavelmente você ingeriu um coquetel feito à base de tranqüilizantes com algum anestésico poderoso que causa sonolência, perda de memória, alheamento, e também delírios.
O outro médico comentou:
- Desculpe eu me intrometer...
Edgar fez aceno com a cabeça.
- O que é doutor?
- Bom, faz algumas semanas recebemos um jovem na mesma faixa etária sua e que apresentava os mesmos sintomas. Ele também disse ter saído com uma loira...
O médico descreveu a mulher e Edgar falou:
- Só pode ser a mesma mulher que me atacou.
- Você deve tomar cuidado - ponderou o médico. - Se sair para conhecer uma pessoa e ela lhe oferecer bebida, diga educadamente que prefere pegar a sua no balcão do bar ou peça diretamente ao garçom.
Nunca se afaste do seu copo por nada. Jamais leve uma desconhecida para dentro de sua casa.
- Pode deixar doutor. Eu aprendi a lição. Sempre me julguei esperto e achava que quem sofria esse tipo de assalto, digamos assim, eram caras babacas e...
Os auto-falantes anunciaram:
- Doutor Eduardo e Dr. Lopes, pronto-socorro... Doutor Eduardo e Dr. Lopes, pronto-socorro.
- Precisamos ir. Assim que os exames ficarem prontos, traga-nos para darmos uma olhadinha.
- Sim, senhor.
Eles fizeram ligeiro aceno com a cabeça e saíram. Adriano bateu de leve no ombro do amigo.
- Então, você achava que só caras babacas caíam nessa armadilha? A carapuça lhe serviu?
Edgar deu de ombros e falou com desdém:
- Eu sempre me achei imune a esse tipo de ataque, só isso. Mas aprendi a lição, se quer saber. No caminho até o hospital fiquei pensando em tudo o que aconteceu. Não me sinto vítima da situação. Eu facilitei, estava mesmo me comportando como um babacão. Era uma maneira de não me sentir sozinho. Precisava mostrar a mim mesmo que era irresistível com as mulheres.
- Aprendeu a lição, Don Juan?
- Aprendi. E tenho pensado no que me falou sobre os sentimentos de Marina em relação a mim.
- Pensou?
- Sim. Sabe que meu peito se abriu quando você me falou que ela gostava de mim?
- Será que não está querendo dar um de gostosão? Não vá ferir os sentimentos dela. Eu gosto muito de você, considero-o um irmão. Mas Marina é muito bacana, moça séria, de valores nobres, coração puro. Se você aprontar com ela, vai arrumar briga comigo.
- Está me tomando por quem? - indagou Edgar, entre surpreso e nervoso.
- É que você tem se comportado como um garotão que acabou de sair da adolescência. Sabe aquele que acabou de completar dezoito anos e ganhou um carrão de presente dos pais? É, aquele engraçadinho que sai cantando pneus, mostrando a máquina para Deus e o mundo e acha que vai ter todas as mulheres do mundo por conta do carrão. Você passou da idade de querer impressionar. Faz tempo.
- Acabou o discurso?
- Por ora. Vamos até a sala de espera da UTI. Patrícia e Marina estão lá.
Edgar acompanhou o amigo e subiram até o terceiro andar. Logo que saíram, avistaram Patrícia e Marina abraçadas, chorando. Marina estava de costas e Patrícia estava com o rosto voltado na direção dos rapazes. Adriano encarou a esposa com os olhos como a perguntar se o pior havia acontecido. Patrícia fez que sim com a cabeça. Consuelo tinha acabado de falecer. A situação na casa de Letícia e Leandro não era das melhores. Desde o seqüestro de Ricardinho, a tensão, o desespero e uma indefinível onda de tristeza pairavam sobre a casa. Na entrada do condomínio, discretamente havia um carro da polícia à paisana. Na porta da casa, dois policias. Dentro do imóvel, dois profissionais da indústria de segurança pessoal. Trabalhavam em parceria com a polícia. Eram os profissionais do risco que trabalham negociando com seqüestradores de todas as partes do mundo pela libertação de suas vítimas. Um deles estava sentado próximo à extensão do telefone principal da casa, no escritório. Mila tentava a todo custo acalmar os nervos de Letícia.
- Sei que a situação é a pior possível, mas você não pode se entregar ao desespero.
- Como não? Levaram meu filho não sei para onde e mataram meu marido. O que você quer que eu faça Mila? Eu sinto calafrios só de olhar para aquele telefone - apontou para o aparelho na mesinha lateral. - Sei que vão pedir resgate, fazer ameaças. Eu não vou resistir.
- Vai. Claro que vai. Você é forte. Sua filha está prestes a vir ao mundo. Se continuar tão desesperada assim, vai transmitir esses sentimentos desagradáveis ao bebê. Por favor, Letícia, imagino o tamanho de sua dor, mas pense em Camila, querida.
Letícia respirou fundo e fechou os olhos. Lembrou-se da conversa que tivera com o filho logo de manhã. As lágrimas teimavam em escorrer pelos cantos dos olhos.
- Ricardo pressentia algo de ruim. Ele bem que falou que não iria ver a irmã crescer. Oh, Mila, acho que vão matar meu filho. Eu não quero isso. Não mereço essa desgraça.
Mila não sabia o que fazer. Era difícil falar alguma coisa. A situação exigia oração e um grande respeito à dor de Letícia. Ela abraçou-se à amiga e também chorou.
- Eu a amo muito, Letícia. É a minha irmã de coração. Eu juro que vou ficar ao seu lado até tudo se resolver. Conte comigo, querida. Conte comigo.
Teresa e Carlos Alberto estavam sentados no sofá oposto a elas. Ambos se sentiram tocados. Teresa estava diferente. Toda essa tragédia havia provocado mudanças significativas e positivas em seu espírito. Antes, uma mulher arrogante e fútil, agora começava a abrir o coração para entender mais sobre os fatos da vida, e, por que não dizer, da morte.
Ela esfregou as mãos num gesto desesperador.
- Sempre achei que a violência era algo somente visto na televisão. O máximo que aconteceu comigo foi o roubo de um relógio, muitos anos atrás. Foi uma empregada quem roubou. Mas assim, esse tipo de violência, nunca.
- Muitas famílias no país todo enfrentaram ou enfrentam o mesmo que vocês, d. Teresa - falou Carlos Alberto. - Eu tenho visto barbaridades como delegado. Infelizmente, esse tipo de ocorrência acontece com qualquer família, independentemente de classe social. É um mal nacional.
- Não suporto ver minha filha assim. Se estou sofrendo, imagino a dor dela. Sabe-se lá onde está meu neto. E meu genro - ela pigarreou, emocionada - eu não me dava bem com o Leandro, mas o que lhe fizeram foi terrível, inadmissível.
- Os médicos estão fazendo de tudo para salvá-lo.
- Será? Ele levou três tiros, está inconsciente. Para mim, ele teve morte cerebral e os médicos não querem nos falar a verdade.
- Vamos orar e confiar, d. Teresa.
- Não temos o que fazer, a não ser rezar. Só a oração para tirar esse peso tão grande do meu peito. É estranho um delegado me falar em oração.
- E por que não falaria? Atrás do delegado há um homem de carne e osso, que tem sentimentos e que, mesmo lidando com crime e violência todos os dias, acredita piamente em Deus.
- Quisera eu ter essa força.
Eles continuaram a conversa e o telefone tocou. Letícia arregalou os olhos. Mila segurou em suas mãos.
- Calma.
Um dos rapazes da agência pegou a extensão. Teresa atendeu.
- O menino ainda está vivo. Queremos dez milhões de dólares em notas de cem para domingo à noite. Amanhã ligaremos para dar instruções para onde deverão levar o dinheiro.
Desligaram. Letícia estava aflita.
- Eram eles, os seqüestradores?
Teresa fez sinal afirmativo com a cabeça.
- Meu filho? - indagou com a voz trêmula.
- Está vivo. Querem dez milhões de dólares para domingo à noite.
- Arrumamos o dinheiro. Vamos até o cofre da empresa. Pegamos o dinheiro, damos a eles e resgato meu filho. Por favor, vamos.
Ela fez sinal para se levantar e Carlos Alberto tentou acalmá-la.
- Não é assim que se faz Letícia.
- Eles querem o dinheiro, certo? Entregamos a quantia que desejarem e eles soltam meu filho, concorda?
Um dos profissionais acostumados a lidar com esse tipo de situação meneou a cabeça negativamente para os lados.
- O chefe da delegacia anti-seqüestros foi acionado. Tenho de passar as informações para ele. Precisamos ter sangue de barata nessas horas. Não podemos agir com a razão.
- Eu não tenho sangue de barata - protestou ela.
- Precisa ter. Desculpe-me a franqueza, d. Letícia, mas qual é a garantia de que depois de receber o dinheiro vão nos entregar Ricardinho vivo? Não podemos simplesmente sair e levar uma mala cheia de dólares e achar que tudo estará resolvido.
Mila assentiu com a cabeça.
- Ele está certo, amiga. Vamos aguardar instruções da polícia. Confiemos nesses profissionais e nos policias. Eles sabem o que fazem.
O telefone tocou novamente. O rapaz da empresa de segurança pessoal correu para a extensão e Teresa atendeu, estado aflitivo:
- O que querem?
- Aqui é do hospital. Precisamos da autorização da família para fazer uma transfusão de sangue e...
Depois de desligar o telefone, Teresa falou:
- Leandro precisa de uma transfusão. O banco de sangue do hospital está à zero.
- Qual o tipo sanguíneo de Leandro? - indagou Mila.
- A Positivo.
- Eu não sei qual é o meu tipo sanguíneo - disse Mila.
- Não me lembro do meu - tornou Teresa.
- Eu sou B Negativo - sibilou Letícia. - Não posso nem ao menos doar sangue ao meu marido - choramingou.
- Eu posso - falou Carlos Alberto.
- Pode? - perguntou Mila.
- Sim. O meu sangue é O Negativo, conhecido como universal. O meu sangue pode ser transfundido em qualquer pessoa. Fiquem aqui que eu vou até o hospital, imediatamente.
Ele saiu e avisou os dois policiais na porta da casa. Carlos Alberto entrou no seu carro e rumou para o hospital. Leônidas e Emerson procuraram limpar o ambiente das energias pesadas que todos emitiam na casa. Por mais que tentassem, uma pontinha de medo pairava no ar. E os espíritos tentavam dar passes nas mulheres para que ficassem a maior parte do tempo em calma, algo bem raro de se conseguir. Emerson estava desolado.
- Eu sou o responsável por tudo isso. Fiquei influenciando negativamente a Denise e olha no que deu. Seqüestraram meu neto.
- Não se sinta culpado - tornou Leônidas. - Você não teve culpa. Denise usou de seu livre-arbítrio. Fez sua escolha. Ela poderia ter outro comportamento.
- Mas eu contribuí para essa catástrofe. Se meu neto morrer, eu não vou agüentar.
- Calma homem. Claro que vai agüentar.
- Eu me tornei obsessor de Denise. Eu fui mau.
- Você bem sabe que a obsessão nada mais é do que a entrega da nossa vontade aos outros. O obsidiado vive da influência constante dos outros. Daí precisarmos ser vigilantes nos nossos pensamentos e não acatar tudo o que aparece em nossa mente. Temos de ter responsabilidade com o que pensamos. Se somos conscientes com o tipo de comida que ingerimos - sabendo qual faz bem e qual faz mal - também temos de aprender a fazer o mesmo com os nossos pensamentos. Há os que servem e os que não servem para nada, que são fruto das influenciações de outros encarnados ou até mesmo de desencarnados, como foi o seu caso. Denise podia receber suas sugestões, mas tinha a escolha de aceitá-las ou não.
- Eu quero que minha filha seja feliz. Cansei de querer ficar ao lado dela. Sinto que ela e Leandro se amam de verdade.
- Sim. Eles se amam. Você era muito apegado à sua filha. Está aí à grande chance de você aprender a se desapegar dos outros. Precisamos respeitar a vontade daqueles que amamos. Essa é uma grande lição.
As palavras ecoaram fortes em Emerson: - Precisamos respeitar a vontade daqueles que amamos. Um tipo de bip soou e Leônidas pegou o aparelho e disse:
- Precisamos ir. Consuelo acabou de desencarnar.
Emerson arregalou os olhos e, com o peito apertado, seguiu Leônidas até o Hospital São Basílio, na capital paulista. Os dois chegaram ao hospital no exato momento em que Marina recebera a notícia dos médicos. Emerson sentiu tremenda dor ao ver a filha naquele estado tão lastimável. Marina chorava um pranto dolorido, triste. Ela amava Consuelo e estava sendo difícil encarar aquela realidade. Emerson aproximou-se e a abraçou com carinho. As suas lágrimas misturavam-se às dela.
- Não fique triste, minha filha. A morte é algo natural e a separação é temporária. Logo estaremos todos juntos, em espírito, traçando novos planos de vida. Não fique assim.
Leônidas chegou rapidamente.
- Afaste-se dela, porquanto as suas emoções estão sendo transmitidas à Marina. - Emerson se afastou e ele continuou:
- Se quiser mesmo ajudá-la, vá atrás daquela enfermeira - apontou.
- Por quê?
- Vá até ela e descubra por si só.
Emerson beijou Marina na fronte e seguiu atrás da enfermeira. Ao se aproximar da moça, escutou seus pensamentos:
- Será que a paciente do leito 43 estava falando coisa com coisa? Será? Ela me disse, antes de morrer, num acesso de tremenda lucidez, que a filha deveria procurar a família de Emerson Theodoro Ferraz. E agora? Conto isso à filha ou não?
Emerson grudou-se na enfermeira e tentava influenciá-la, agora positivamente, a acreditar no que ouvira e transmitir o recado para Marina. Carlos Alberto chegou a casa com um sorriso contagiante. Mila não entendeu aquele ar de satisfação enquanto elas choravam por Leandro e Ricardinho. Ela tentou censurar o namorado, mas ele foi logo dizendo:
- Primeiro, gostaria de dizer que eu doei o sangue, a transfusão foi um sucesso e Leandro respira sem aparelhos.
Letícia levou a mão ao peito.
- Leandro acordou?
- Ainda não. Está em coma, mas sem o auxílio de máquinas.
Mila sorriu.
- Leandro é forte, vai vencer essa batalha.
- Outra coisa mais importante ainda, e fantástica - ele falou e pediu para que elas o acompanhassem até a saleta de TV. Ninguém entendeu nada, mas pelo ar de felicidade de Carlos Alberto, levantaram-se. Mila e Teresa ajudaram Letícia a se levantar. Ela estava exaurida em suas forças, a bolsa prestes a estourar. Foram caminhando lentamente e Carlos Alberto ligou o aparelho de TV. Até os dois rapazes da empresa de segurança sentiram curiosidade e os acompanharam. O noticiário corria, com imagens da Polícia Federal e dois homens algemados:
- A Polícia Federal prendeu hoje em São Paulo o advogado Inácio Mello Farias, numa operação de mais de um ano em conjunto com a Receita Federal e o Ministério Público. Inácio é acusado de formação de quadrilha, de montar um esquema supostamente fraudulento na importação de aparelhos eletrônicos para a rede de lojas Dommênyca, além de falsidade ideológica. Outras duas pessoas foram condenadas no mesmo caso: o contador da empresa, Evaristo Nascimento e a gerente geral da Dommênyca, Denise Sanches Arruda, não encontrada. A Operação da Polícia Federal foi iniciada ano passado para combater suspeitas de sonegação fiscal. Inácio Farias e Evaristo Nogueira foram levados para a sede da Polícia Federal, no bairro da Lapa, onde geralmente os suspeitos são interrogados e presos. A polícia não soube informar o paradeiro de Denise Arruda...
Carlos Alberto apertou o controle remoto e desligou a televisão. As três se entreolharam e o fitaram. Mila perguntou:
- Por que nos chamou para mostrar essa matéria no jornal? Estamos acostumados a ver esse tipo de gente ser presa todos os dias.
- Eu também não entendi. Se você queria me distrair - emendou Teresa - não conseguiu.
Letícia não respondeu. Estava de cabeça abaixada, passando delicadamente a mão sobre sua barriga, alheia a tudo.
Carlos Alberto estava radiante.
- Esse advogado, o Inácio Farias, foi preso agora à tarde. Assim que foi interrogado, entregou provas que ligam Denise Arruda ao seqüestro do Ricardinho.
Letícia levantou o sobrolho:
- O que foi que disse? Eu não entendi.
- O advogado da Dommênyca estava sendo chantageado pela Denise Arruda para emprestar o sítio dele como cativeiro para receber Ricardinho. Inácio gravou num aparelho de MP3 a parte da conversa em que Denise acerta os detalhes do seqüestro.
- Isso é tudo muito surreal - tornou Teresa. - Quem pode dizer que o que esse homem falou é verdade?
- Ele tem o aparelho com a gravação. Deu orientação para a polícia para salvarem Ricardinho, claro que tudo em troca da redução de pena.
- Denise! - gritou Letícia. - Eu não acredito que essa víbora tenha tido coragem de machucar meu filho.
- Também não pensei que ela chegaria a tanto - tornou Mila.
- Eu juro que, se acontecer alguma coisa com Ricardo, eu vou até o inferno atrás dessa mulher. Juro que a mato! - falou Letícia num tom que espantou a todos na sala.
A denúncia de Inácio não poderia chegar à melhor hora. Munidos da informação sigilosa, a Polícia Federal entrou em contato com o delegado, chefe da delegacia anti-seqüestros do Rio de Janeiro. A polícia estourou o cativeiro na madrugada de domingo. Tinhão e Dimas, surpreendidos, foram algemados e presos. Jofre saiu disparando tiros para tudo quanto foi lado e acabou sendo fatalmente atingido. Morreu na hora. Assim que desencarnou, seu perispírito foi arrancado do corpo físico e sugado para outra dimensão, para outro mundo, muito mais violento e atrasado que o nosso. Como Leônidas havia mencionado anteriormente, Jofre tivera a chance de mudar o seu destino. Preferiu seguir outro caminho. Deu no que deu. Ricardo e Denise foram desalgemados e um dos policiais tranqüilizou o menino.
- Fique tranqüilo, tudo acabou bem. Ricardo abraçou-se ao policial.
- Obrigado. Eu quero ir para casa, cuidar de minha mãe. Eu perdi meu pai e ela deve estar muito só e...
O menino estava muito excitado, a adrenalina nas alturas. O policial levou sua cabeça ao encontro do peito:
- Chi! Calma. Vamos para casa. Sua família o espera.
- Eu preciso sair daqui.
- Fique tranqüilo.
Denise estava aliviada.
- Até que enfim. Esses marginais quase nos mataram. Fico feliz de a polícia ter sido tão eficiente.
Um policial sorriu para ela e imediatamente a algemou.
- Denise Sanches Arruda. Você está presa.
Ela meneou violentamente a cabeça para os lados.
- Não pode ser! O que é isso?
- Não vou me pronunciar - o policial falou. - Seu amigo Inácio Mello Farias foi preso ontem à tarde em São Paulo e nos mostrou a gravação onde você acertava os detalhes do seqüestro e do esconderijo.
Denise debateu-se, esperneou. Gritou com os policiais, cuspiu na cara de um.
- Também será indiciada por desacato à autoridade.
Ela foi jogada num camburão e levada para a delegacia. No dia seguinte, acompanhada de dois policiais, Denise foi algemada num avião e encaminhada para o Presídio Feminino do Carandiru, na zona norte de São Paulo. Denise foi julgada e condenada a vinte e oito anos de prisão. Ela não se deu bem no presídio. Com seu temperamento forte e gênio irascível, em pouco tempo foi hostilizada pelas detentas. Por razões de segurança, Denise foi transferida para a Penitenciária Feminina de Tremembé, no Vale do Paraíba. Leandro abriu os olhos e primeiramente tateou a cama. Em seguida, olhou para os lados. Estaria morto? Como se tivesse lido seu pensamento, Leônidas respondeu:
- Ainda não morreu.
- Não?
- Não. Depende de você ficar aqui ou voltar pare a Terra.
- Como assim? - ele estava confuso. A cabeça doía e sentia fortes dores no braço esquerdo e ombro.
- Você entrou em coma.
- Em coma?
- Sim. Seu corpo físico está debilitado, entretanto não respira mais com a ajuda de aparelhos. Isso e sinal de que seu espírito deseja viver.
Leandro foi tomando consciência de tudo. Lembrou-se dos marginais, das armas, do desespero de Ricardo e dos tiros.
- Eu pensei que tivesse morrido. Vi meu corpo ensangüentado, pendendo sobre a direção.
- Mas não morreu. Com o choque dos tiros, seu perispírito desgrudou-se do corpo físico e você teve um lampejo de consciência. Veio para esse local de refazimento próximo à crosta terrestre enquanto não decidir se volta ou não.
- Meu filho! Estou preocupado com meu filho.
- Ricardo está bem. Ele foi resgatado pela policia e passa bem.
- Estou cansado e confuso. Por que fomos vítimas de tamanha brutalidade?
- Aos olhos do mundo terreno, você é considerado uma vítima, mas aqui nesta dimensão, tudo tem ume explicação plausível.
- Explicação plausível? Tentaram me matar e seqüestraram meu filho. Há explicação plausível para isso?
- Há. Você acredita em reencarnação?
- Comecei a estudar o tema não faz muito tempo Gosto das reuniões na minha casa, das orações, mas às vezes duvido de tudo. Eu não vejo, não enxergo os espíritos. Será que é verdade?
- Mas Ricardo diz ver e conversar com os espíritos. Acaso seu filho é louco?
- Não. Muito pelo contrário. Ricardo é inteligente e esperto, um menino de inteligência excepcional, além de ter tremenda sensibilidade.
- E, se o seu corpo está em coma e você está aqui nesta cama - Leônidas sorriu -, está conversando com quem?
Leandro não soube responder de pronto. Pensou, pensou e respondeu:
- Você é um espírito?
- Sou um amigo da família. Eu, você e Ricardo estamos ligados há muitas vidas.
- Eu não me recordo de você.
- Não reencarnei perto de vocês desta vez, por ora. Há planos de eu voltar a Terra, caso Ricardo me aceite como filho, daqui uns vinte anos.
Leandro forçou a vista, comprimiu os olhos.
- Seu rosto não me é estranho, mas o conheço de onde mesmo?
Leônidas inclinou o corpo e pousou sua mão na testa de Leandro. Ele fechou os olhos, fez sentida prece ao Alto e Leandro adormeceu. Entrou num sono profundo, quase hipnótico, que o levou a uma viagem de duzentos anos no tempo. Inglaterra, 1809. A Revolução Industrial estava no auge e as fábricas, de todos os tipos e tamanhos, não paravam de crescer, principalmente indústrias têxteis e mineradoras. John e Edward eram prósperos irmãos, donos de mineradoras e cotonifícios - fábricas de fiação de algodão. Eram gêmeos idênticos e muito bonitos. Por conta da amizade que mantinham com o rei Jorge III, tinham o monopólio de mina: numa região próxima à Londres. Eles eram temidos porque, assim como alguns outros donos de fábrica da época, mantinham criança: no campo de trabalho. Sim, naquela época crianças de até seis anos de idade trabalhavam cerca de dezessete horas por dia, de segunda a segunda, sem descanso, sem condições mínimas de higiene. Vivian espremidas nos porões das fábricas ou das minas de carvão e a expectativa de vida dessa população específica girava em torno dos dezesseis, dezessete anos de idade. John era mais sério. Sempre atento aos negócios queria saber de enriquecer e não media esforço: para que suas minas trabalhassem a todo vapor, extraindo carvão quase vinte e quatro horas por dia. Edward era mais relaxado. Típico burguês da época, amigo da rainha Carlota Sofia, freqüentava as altas rodas de Londres e era um conquistador nato. Deitava-se com toda sorte de mulheres. Havia um lado sombrio na personalidade de Edward. Ele tinha desejo por meninas novinhas. E havia muitas delas que trabalhavam em suas fábricas. Um monte. Ele gostou muito de uma menina de catorze anos recém-completados, Emily. Ela era bonitinha, a pele alva, os cabelos ruivos compridos e encaracolados. Edward exigiu que a menina se deitasse com ele e Emily esquentou a sua cama por três anos. Ela trabalhava das seis da manhã às seis da tarde. Tinha uma hora para almoço, onde lhe eram servidos pão com manteiga, sem nada para beber. À noite, tinha de se banhar e corria sorrateiramente para a casa de Edward. Entrava pela cozinha e se deleitava com a comida. Descansava um pouco na cozinha mesmo e, lá pelas dez da noite, Edward a chamava para ir ao seu quarto. Quando ela completou dezessete anos, Edward perdeu o interesse. Estava ficando adulta e, na concepção dele, muito velha para deitar-se em sua cama. Emily foi despedida da algodoaria e vivia mendigando nas ruas, comendo sobras e restos de comida, dormindo em galerias e esgotos fétidos sob a cidade. Numa tarde, ela avistou John saindo de uma taverna, um tanto embriagado. Ela acreditou ser Edward. Aproximou-se e lhe pediu ajuda. Estava morrendo de fome, havia sido mordida por ratos no esgoto e precisava de ajuda, caso contrário morreria. John nem imaginava quem era aquela doidivanas. Empurrou-a com força na rua. Emily perdeu o equilíbrio, caiu e avistou uma pedra. Foi uma reação de instinto de sobrevivência. Ela pegou a pedra e avançou sobre John. Bêbado, e com as forças reduzidas, ele não conseguiu se defender a tempo. Emily esmigalhou o seu rosto e o matou na hora. Edward chorou muito a morte do irmão e quis de toda sorte vingá-lo. Espalhou cartazes de recompensa por toda cidade para quem desse uma pista que fosse para localizar o paradeiro da menina assassina. Emily foi facilmente encontrada e Edward a aprisionou num quartinho minúsculo e sem janelas, úmido, abafado e fedido, num dos subsolos da mina. Deixou-a lá, presa, cheia de ratos e água ao redor.
- Você merece morrer! - bramiu ele, tão logo a trancafiara no quartinho.
Dez dias depois, quando a porta do quarto foi aberta, um cheiro fétido tomou conta das narinas de Edward. O corpo de Emily, morto, estava coberto de ratos que já devoravam as suas vísceras. Leandro abriu os olhos e fez um esgar de incredulidade.
- Meus Deus! Eu vivi essa história!
- Viveu. Claro que viveu. Foi sua penúltima encarnação na Terra.
- Tanto tempo assim?
- Hum, hum. Depois de seu desencarne, você Emily viveram muitos anos no Umbral, um querendo se vingar do outro, por conta de acontecimentos relacionados a vidas anteriores a esta vivida em Londres. John, que havia entendido o porquê de morrer daquela maneira e perdoar Emily, foi encaminhado para uma colônia astral e lá estudou muito. Conseguiu, depois de anos, localizá-lo e convencê-lo deixar os ressentimentos para trás e tratar de segui adiante na jornada evolutiva do seu espírito. Para ficar um pouco afastado de Emily, você reencarnou no Brasil por pouco tempo. Morreu na Guerra do Paraguai. Depois de quase duzentos anos, contando partir da encarnação na Inglaterra, a vida colocou novamente Emily no seu caminho e no de John, a fim de vocês se acertarem e deixarem de lado a mágoas e ruindades praticadas entre todos os três ao longo de muitos séculos.
- Então eu sou Edward?
- Sim. E John hoje é Ricardo.
- E você?
- Eu era o pai de vocês, Robert. Eu me senti culpado pela criação solta que dei a vocês. Julguei ser o responsável pela morte de Emily, porquanto eu havia dado ao meus filhos uma educação libertina e sem freios.
- Emily...
- É Denise.
- Eu a matei.
- Você provocou a morte dela, sim.
- Por esse motivo ela odeia Ricardo sem motivo aparente...
- Tudo fica registrado na memória do espírito. Denise ainda tem flashes desta encarnação passada. Seu espírito odeia Ricardo porque ele a fazia trabalhar quase vinte horas por dia na fábrica.
- E o marido dela nessa história toda? Sim, porque Edgar era alucinado por ela.
Leônidas esboçou um sorriso.
- Sabe Leandro, quando reencarnamos na Terra, oitenta por cento das pessoas que cruzam nosso caminho são espíritos que já viveram conosco ao longo de muitas vidas. Somente vinte por cento são espíritos que atravessam nosso caminho por conta da afinidade energética. É como se fôssemos imãs atraídos pelo ferro, ou como abelhas atraídas pelo mel.
Leandro escutava a tudo com tremenda atenção. Leônidas prosseguiu:
- Depois que você e Emily, quer dizer, Denise, deram uma trégua no astral inferior, ela, atormentada e cheia de ódio no coração, regressou ao planeta, por volta de 1866, precisamente no Brasil. Os mentores acreditavam que, longe de você e de John ela pudesse ter a chance de viver uma vida diferente, sem atormentações ou rancores.
- Mas você disse que eu vivi no Brasil, nessa mesma época.
- Sim, no entanto você desencarnou durante um confronto na Guerra do Paraguai em 1865. A vida não quis que ambos estivessem na mesma dimensão. Você regressou à pátria espiritual e Denise retornou a Terra.
Denise voltou como uma mulher rica, dona de fazendas de café. Casou-se com Edgar e viveram juntos por alguns anos. Um dia, desconfiado, ele a flagrou nos braços de um escravo, Jofre. Indignado, exigiu satisfações. Denise, fria e desprovida de qualquer tipo de sentimento, pagou uma boa quantia para o escravo matar o marido.
- Denise está severamente comprometida com tantas ações ruins - rebateu Leandro.
- Aqui no mundo espiritual não julgamos as atitudes das pessoas como boas ou ruins. Elas é que vão julgar a si próprias no momento do desencarne. Cada um é dono de sua consciência e a dor que delas advém recairá sobre o próprio espírito. São vocês que entram em pânico quando desencarnam.
- Por quê?
- Porque muitos ainda acreditam que ao morrer tudo se acaba. Ledo engano.
Leandro queria continuara conversa, mas uma voz familiar ecoava na sala:
- Pai! Pai! Sou eu, estou vivo. Volta para mim e para mamãe. Volta para casa. Volta para a vida!
- A voz é de Ricardo!
- É sim - respondeu Leônidas.
- É meu filho. Está chamando por mim.
- Está ao lado de seu corpo na UTI.
- O que faço?
- Você quer voltar ou...
Leônidas não precisou terminar a frase. O desejo de voltar à vida no planeta, o desejo de estar ao lado do filho e da esposa amada eram mais fortes que tudo. Leandro fechou os olhos e adormeceu.
Ricardinho continuava chamando, chamando. A enfermeira aproximou-se e disse:
- Você não poderia estar aqui. Diante dos acontecimentos, permitimos que viesse ver seu pai apenas por alguns minutos. Agora precisa ir.
- Só mais um pouquinho.
- Precisa ir, meu querido - tornou a enfermeira, amável. - São normas do hospital.
Ricardo, com um nó no coração, despediu-se de Leandro. Beijou-o na testa e saiu, mantendo a cabeça virada para trás. Leandro mexeu lentamente a cabeça, virou para o lado e abriu os olhos. Balbuciou:
- Filho!

EPÍLOGO

Seis meses se passaram. Leandro recuperou-se bem do atentado. Levara um tiro na cabeça, sendo que a bala não afetou, milagrosamente, nenhuma parte de seu cérebro. Outro tiro pegou no ombro e outro no braço esquerdo, deixando-o condenado a viver com o braço paralisado. Talvez, no decorrer dos anos, ele pudesse a voltar ter algum movimento no braço esquerdo. Mas ele era um homem feliz. Estava segurando sua filha, Camila, nos braços, quando Ricardo entrou no quarto.
- Os homens chegaram!
- Segure sua irmã, Ricardo. Avisou sua mãe?
- Sim. Ela, Mila e vovó estão perdidas lá embaixo no meio de tantas caixas.
- É melhor não nos metermos nesse assunto.
- Eu também acho.
Leandro aproximou-se do filho. Abraçou Ricardo e beijou Camila na testa.
- Vocês são as pessoas mais importantes da minha vida. Amo vocês. E sou seu fã.
- Meu fã?
- É, filho, você é meu herói.
- Puxa, pai, quando estava no esconderijo, fiquei imaginando o que o Grissom faria, sabe? Lembrei-me daquele episódio do CSI...
Enquanto pai e filho entabulavam conversação, Teresa indicava aos rapazes as caixas que deveriam seguir primeiro para o caminhão de mudanças. Estava um pouco agitada e eufórica. Mila a tranqüilizou:
- Fique tranqüila que tudo vai dar certo.
- Sei disso, querida - respondeu Teresa. - Deixe comigo que eu adoro dar ordens. Vá para a cozinha e faça um café para você e Letícia. - Teresa falou e fez sinal com a cabeça. Mila olhou para a amiga.
Letícia estava parada perto da janela da sala, olhando para a movimentação na porta de sua casa. Ela estava feliz. Enquanto sorria, seus dedos esfregavam delicadamente os três bonequinhos de ouro que rondavam seu pescoço. Agora, além dos dois pingentinhos com os nomes do marido e do filho havia outro, de uma menininha. Nele estava escrito: com amor, Camila. Mila aproximou-se e cutucou a amiga.
- Está sonhando?
- Estava com o pensamento longe - Letícia falou e virou-se para Mila.
- Sua mãe pediu que fôssemos fazer um café. Letícia olhou para Teresa e disse:
- Embrulhamos tudo, mãe. Todos os utensílios da cozinha foram guardados. Como vamos tomar café?
- Eu trouxe uma cafeteira elétrica de casa. Estou acostumada com mudanças. Vá, tome um café com sua amiga. Aproveite porque não vão se ver com tanta freqüência.
Letícia mordiscou os lábios e sorriu.
- Estou feliz por ir embora do Brasil, mas sinto um aperto em deixar minha mãe, minha amiga querida...
Teresa piscou para a filha e continuou dando ordens. Mila enlaçou Letícia pela cintura e foram caminhando até a cozinha.
- Nem acredito que mamãe está assim, tão bem.
- Ela tem freqüentado o espaço esotérico lá no Recreio. Vai comigo todas as quartas-feiras, religiosamente.
- Depois do ocorrido, a vida de todos mudou muito.
- Para melhor, Letícia - complementou Mila. - Veja Teresa sofreu muito com o seqüestro, contudo acredito que ela sofreu mais com a humilhação sofrida com as amigas do clube.
Letícia abriu o potinho de café, pegou uma colher e despejou um pouco de pó no coador de papel. Em seguida apertou o botão da cafeteira.
- Sinto que foi duro para ela ver que fazia parte de um mundo cheio de aparências, cheio de pessoas sem um pingo de espiritualidade. Ela foi execrado em praça pública. Quando vazou na imprensa que meu pai tivera uma filha fora do casamento e, ainda por cima, com uma empregada doméstica, ninguém a perdoou.
- Pois foi. Teresa sofreu todo tipo de chacota, escárnio. Se não estivesse aberta aos ensinamentos espirituais, talvez tivesse sucumbido.
- Também acho.
- Tem visto sua irmã?
Letícia riu.
- Acho tão estranho! Eu sempre fui filha única e depois de trinta anos descubro que tenho uma irmã.
- Uma irmã de coração puro.
- Sem sombra de dúvidas. Marina é uma menina brilhante, carismática.
- Até que o processo de reconhecimento de paternidade foi rápido, não?
- Porque eu e mamãe não entramos na Justiça, caso contrário essa pendenga se arrastaria por anos. Para quê? Somos pessoas de bem. E o caso, em si, não foi tão complexo. Marina ajuizou uma ação de reconhecimento de paternidade por conta do espólio de papai. Em seguida, fizemos o exame de DNA.
- Eu, na minha ignorância, acreditei que fosse necessário exumar o corpo do pai, visto que a mãe biológica de Marina também morrera.
- Eu não entendia muito do assunto, mas soubemos que quando o suposto pai é falecido, faz-se necessário o comparecimento de parentes que tenham tido vínculo genético direto com ele, no caso irmãos consangüíneos ou filhos biológicos. Foi a partir disso que se tornou viável concluir a possível paternidade. Sem a recomposição genética do falecido, através de seus parentes consangüíneos, não há como ser aferida a suposta paternidade.
- Nossa, que aula!
- Um advogado nos contou. Eu estou feliz porque vamos nos mudar, recomeçar nossa vida em outro país. A presidência da Companhia foi entregue à Marina.
- Achei tão bonita a atitude do Leandro.
- Ele fez o certo. Mas ele não deu a direção da empresa nas mãos dela porque de um dia para o outro descobriu que era minha irmã. Marina é competente, tem um currículo fantástico. Uma profissional que vai cuidar direitinho da nossa empresa.
- Mudar para o Canadá! - Mila suspirou e passou as mãos pelos braços. - Muito frio.
- Eu não suporto mais tanto calor. Não nasci para viver nos trópicos. Devo ter uma alma européia.
As duas riram.
- Agora que Carlos Alberto e eu oficializamos nossa relação, tencionamos passar a lua de mel em Toronto. O que me diz?
Letícia exultou de felicidade.
- Ai, amiga! Que maravilha. Vamos poder nos ver logo.
- Vamos. Não vejo a hora. Talvez mês que vem depois do réveillon.
Letícia a abraçou.
- Fico feliz que tenha encontrado um homem tão bom como o Carlos Alberto. Que Deus abençoe essa união.
Mila pegou duas canecas, encheu-as de café e ofereceu uma à Letícia.
- Um brinde à nossa felicidade!
- Viva!
Marina abriu e fechou os olhos. Respirou fundo, rodopiou pela sala imensa e jogou-se nos braços de Edgar
- Oh, meu amor! Que cobertura linda!
- Eu sabia que você iria gostar desta. O corretor me disse que é a mais cobiçada da região.
Ela o beijou várias vezes nos lábios.
- Estou tão feliz! Eu queria mesmo morar perto da Elisa. Ela é praticamente minha irmã. E tornou-se o meu braço direito na Companhia.
- Ela e o Paulo, não?
- O Paulo foi promovido lá na Dommênyca. Tem um futuro promissor. Ele fez muito por mim. Ajudou-me quando mais precisei. Merece tudo o que tem de bom.
- Ele poderia trabalhar com você.
- Paulo tem um futuro promissor lá. Ele sabe que se quiser as portas da Companhia sempre estarão abertas. Pode acreditar!
- Gostei de eles terem nos convidado para sermos padrinhos de casamento deles.
- Eu também. Exultei de felicidade. Do mesmo modo que Patrícia e Adriano.
- O que têm eles?
- Lembra-se de como ficaram felizes quando os convidamos para padrinhos do nosso casamento?
Edgar sorriu.
- É mesmo. Foi o dia mais lindo da minha vida.
Marina o censurou.
- Fiquei sabendo que você disse o mesmo quando se casou com - ela abaixou o tom de voz - aquela mulher.
- Eu era um bobo, um idiota. Não sabia o que era amar. Eu tinha fixação na Denise. Descobri isso com terapia e tive certeza quando me apaixonei por você. Você, sim, é a mulher da minha vida.
Marina o abraçou e o beijou. Depois de olharem alguns cômodos, Edgar coçou a cabeça e perguntou:
- Bom, posso trazer a Delis para começar a limpeza?
- Não, amor. O apartamento vai ficar um inferno. Pedreiros, marceneiros, vou contratar muitos profissionais para deixar este apartamento transformado num lar. Num doce lar.
- Continuaremos mais uns meses no meu apartamento?
- Sim. Mas só alguns meses - ela desconversou e perguntou:
- O que acha deste quarto em particular?
- Para nós?
- Não! Imagine. O nosso será a suíte máster - apontou na direção do corredor.
- Quer fazer o que nele?
- Decorá-lo para o nosso bebê.
Edgar abriu um sorriso encantador.
- Não imaginava que você quisesse ter filhos tão cedo.
- Eu também, não.
- Você agora dirige a maior empresa fabricante de monitores de TV, aparece em capas de revistas, assediada pela imprensa...
Marina levou o indicador até a boca de Edgar e delicadamente o calou.
- Psiu! Você está falando muito. Pode atrapalhar o bebê.
Edgar não entendeu. Marina pegou a mão do marido e levou até o próprio ventre.
- Ainda está pequenininho, mas está vivo e pulsa dentro de mim!
Edgar não acreditou.
- Quer dizer que você...
- Hum, hum. Estou grávida, meu amor. Esperando um filho seu.
Edgar não disse mais nada. Enlaçou Marina no braços e a beijou com amor. Em seguida, ajoelhou-se, abraçou-se a sua cintura e, com lágrimas de felicidade, beijou-lhe várias vezes o ventre. Sobre o casal irradiavam luzes dos mais variado: matizes, vindas do Alto. Marina e Edgar finalmente estavam felizes e apaixonados. Haviam encontrado o verdadeiro amor!



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SÓ O AMOR LIBERTA

CÉLIA XAVIER DE CAMARGO

ESPÍRITO PAUL0 HERTZ


APRESENTAÇÃO

Diante dos inúmeros casos que nos chegam com solicitações de ajuda e que, em virtude disso, nos dispomos a acompanhar, auxiliando na medida do possível, um imenso aprendizado se delineia. Passamos a observar todas as situações com os olhos da misericórdia e da compaixão, do entendimento e da compreensão, diante dos erros gerados pelo mal, conseqüência da imperfeição humana. Tornamo-nos mais sensíveis e tolerantes, por sabermos que todas as vivências representam etapas úteis e necessárias ao processo evolutivo. A cada novo acontecimento, o espírito se torna mais forte e amadurecido, adquire consciência nova, analisa melhor os fatos, compreende que, à medida que erra, sofre o mesmo que fez o outro sofrer; em contrapartida, ganha em experiência, e, ao entender que o bem gera o bem, carreia para si mesmo bem-estar, harmonia e felicidade. Aprende que, à medida que exercita a compreensão, a tolerância e a paciência, perdoando as ofensas que lhe foram feitas, torna-se um ser melhor, mais livre e mais tranqüilo. Por outro lado, ao reconhecer que errou, a consciência o acusa e, conforme o grau de entendimento alcançado, se arrepende, desejando reparar o prejuízo causado a seu semelhante e, candidatando-se, assim, à mudança de atitudes, passa a trabalhar em benefício do próximo, gerando o bem. Essa transformação produz tal sensação de bem-estar íntimo que o espírito sente-se repleto de contentamento e paz. Certamente, para que essas mudanças ocorram, faz-se necessário o despertamento da consciência, o que nem sempre se dá naquela oportunidade, exigindo do faltoso ainda mais tempo de aprendizado. No entanto, ao perceber que os obstáculos se dissolvem, que os problemas se resolvem, que as situações se aclaram e os envolvidos caminham no rumo do entendimento e da concórdia, vencendo rancores, mágoas, ressentimentos e gerando clima de fraternidade entre si, quando não de amizade, experimentamos imensa satisfação de dever cumprido. Posso afirmar tal coisa, pois, durante a execução deste trabalho, defrontei-me com uma situação de conflito que durante longo tempo gerara trauma em mim, levando-me à amargura e à revolta, por não conseguir perdoar. Quando a situação se apresentou, e fui obrigado a enfrentar o problema, sofri bastante. Diante, porém, do sofrimento daquele que considerava meu algoz, consegui vê-lo como realmente era, alguém ainda lutando com suas imperfeições. E como exigir de alguém algo que ainda está além de sua capacidade? E analisando com sinceridade e isenção de ânimo, quem de nós não está lutando para vencer a si mesmo? Ao conseguir perdoar aquele que considerava meu desafeto, o benefício maior foi meu, pois me libertei das amarras do passado e passei a vê-lo como um irmão com dificuldades, sofredor e aflito. Tornamo-nos bons amigos e hoje trabalhamos juntos. Espero que as experiências aqui relatadas possam trazer para os leitores idêntica compreensão e o mesmo crescimento que trouxe à nossa equipe. Agradeço a confiança que Jesus depositou em mim, concedendo-me a oportunidade de realizar este trabalho, que é fruto de serviço em equipe, mas que coube a mim a responsabilidade de traduzi-lo em palavras, enviando-o em textos para conhecimento dos encarnados. Agradeço também aos nossos benfeitores que nos orientaram, e a todos os que colaboraram para que este livro viesse a lume. Esclareço, também, que os nomes foram modificados para evitar uma identificação, conforme manda a caridade cristã, não obstante a concordância dos envolvidos na divulgação das histórias. Quanto a mim, em virtude do entendimento que me felicitou o espírito em relação ao meu antigo confessor, e da melhor compreensão dos fatos, passei a repensar a primitiva idéia de assinar este livro com meu verdadeiro nome para que meus genitores, ainda encarnados, pudessem inteirar-se do passado. Não poderia mais fazer isso. Assim, escolhi um sobrenome fictício, mantendo o anonimato, e o faço com a mais pura alegria. Que as bênçãos de Deus nos iluminem no roteiro, de modo a executarmos a mudança interior que ora nos esforçamos para implantar, como conseqüência do aprendizado das inolvidáveis lições evangélicas. Que Jesus nos envolva em paz e desejo de servir!


CAPÍTULO 1 - O COROINHA

"As contrariedades da vida são de duas espécies, ou, pode-se dizer, de duas origens diferentes, as quais é muito importante distinguir: umas têm sua causa na vida presente, outras, não nesta vida." (O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, ALLAN KARDEC, CAP. 5, ITEM 4)

Nasci em uma família de tradição católica apostólica romana; meus pais sempre foram bastante religiosos. Desde pequeno fui encaminhado à igreja e obrigado a participar de todas as atividades compatíveis com minha faixa etária. Assim, quando chegou a época de fazer a primeira comunhão, minha mãe pegou-me pela mão e, cheia de orgulho, levou-me para a catequese. Gostava dos amigos, das meninas, e, para mim, aquela reunião - mais um divertimento do que outra coisa - dava a oportunidade de nos encontrarmos após as aulas, o que era sempre gratificante. Todavia, as noções que nos eram passadas, apesar do meu pouco discernimento, pareciam-me falhas, sem conteúdo real. Meus pais, como afirmei, eram muito devotos e possuíam livros que, a bem da verdade, não eram lidos, mas que serviam para dar-lhes status, como se a biblioteca lhes atestasse o grau de religiosidade. Quando o padre vinha nos visitar, e o fazia com freqüência, convidado para almoços e jantares, chás e festas de aniversário, era com orgulho que meus pais exibiam as obras na estante de jacarandá. Sempre curioso e gostando de ler, vez por outra pegava um desses livros e mergulhava na leitura. O que eu mais apreciava era uma obra que contava a história de Jesus, suas curas, seus feitos. No entanto, nas aulas de catequese, tudo o que nos era passado referia-se à Igreja. Perguntas e respostas entediantes que éramos obrigados a decorar, e, o mais importante, jamais fazer questionamentos à catequista. Ela era uma senhora alta e magra, de cabelos grisalhos amarrados em coque na nuca; trazia consigo sempre um xale, ora usado nos ombros para se agasalhar, ora para cobrir a cabeça ao entrar na igreja. Àquela época, é preciso que se diga, mulher alguma entrava na igreja sem cobrir-se. Pois esta senhora e seu xale eram motivos de brincadeiras e chacotas entre nós, seus alunos, irreverentes e imaturos, que a imitávamos. Lembro-me com saudade daquela época, das amizades puras, da alegria, da escola. Freqüentava havia tanto tempo a igreja que me parecia não saber viver longe daqueles ambientes. Contando com o ardoroso entusiasmo de minha mãe, desejei ser coroinha. O padre incentivou-me, e era uma honra apresentar-me na missa, todo paramentado, diante da igreja lotada de fiéis. Era a glória! Meus pais acompanhavam-me os movimentos cheios de orgulho, completamente esquecidos do padre, que oficiava a missa, do sermão (tenho certeza de que eles não saberiam dizer o tema) e do real sentido da liturgia. Ainda hoje tenho na lembrança o odor característico da sacristia, misto de poeira, mofo, naftalina e cera; cheiro de coisas velhas, antigas, guardadas há longo tempo. Quando volto ao passado, lembro-me da luz difusa, das sombras existentes que me pareciam tão ameaçadoras e que nos levavam a falar baixo, como se a voz alta fosse uma profanação daquele ambiente que eu julgava sagrado. A cena que se repete em minha tela mental, porém, e que me emociona até hoje, é uma que ocorria quando eu estava perto do altar. A imagem central da igreja, em posição de relevo, colocada atrás e acima do altar, era uma belíssima escultura de madeira, em tamanho natural, obra de um artista da própria cidade. Com rara sensibilidade, esculpira Jesus na cruz, mostrando tal sofrimento em seu divino rosto, nos cambiantes de sombra e luz, que a imagem parecia ter vida! Das feridas abertas pelos cravos nas mãos e nos pés, o sangue parecia gotejar, vivo, pulsante. Pois bem. Durante certo momento do dia, lá pelas quatro horas da tarde, dependendo da época do ano, uma réstia de luz se escoava pelos vitrais e incidia exatamente sobre a imagem do Cristo crucificado, no altar-mor. E eu gostava de apreciar esse momento mágico e cheio de encanto, mas fugaz, porque logo o sol mudava de posição e a magia era rompida. Gostava de ver os infinitos grãos de poeira existentes no ar e que viajavam nessa réstia de luz, à semelhança de mundos que rodopiassem pelo céu; tinham cores diferentes e pareciam ter vida própria. Nessas ocasiões, eu conversava com Jesus, falava-lhe das minhas dificuldades, dos meus problemas, das travessuras e até das coisas de que me sentia culpado e não tinha coragem de contar a ninguém, nem ao meu confessor. E, na verdade, fui um menino muito travesso. Certa ocasião aconteceu um fato que marcou o início do meu desligamento da igreja. Estava com dois amigos na sala da catequese. Por qualquer razão, a professora não compareceu aquele dia, e, na falta de atividades, resolvemos fazer uma brincadeira: testar se realmente a hóstia se transformava no corpo de Cristo, como o padre afirmava. Aproveitamos que o pároco tinha saído em visita a duas beatas enfermas e roubamos um punhado de hóstias, que, a tremer de medo, fomos comer debaixo de uma mesa, cuja ampla toalha branca bordada nos esconderia de eventuais olhares indiscretos, se alguém aparecesse repentinamente. Naquela hora, começou a ruir minha crença nos dogmas da Igreja, em especial, a eucaristia, cuja legitimidade púnhamos em dúvida, listávamos realmente apavorados. Arrependidos já da brincadeira que os custaria caro se alguém descobrisse. Cada um de nós mastigou uma hóstia trocando olhares cúmplices e assustados, esperando pelo pior. Porém, nada aconteceu conosco, e os castigos horríveis com que o padre nos ameaçava se comêssemos o "corpo de Cristo" não se verificaram. Então, pela lógica, chegamos à conclusão de que o sacerdote estava mentindo, ou realmente acreditava nas coisas que nos ensinava, caso em que estaria se iludindo. Esse fato foi apenas o começo. Continuei com minhas atividades na paróquia, embora sem tanto entusiasmo, até porque minha mãe não entenderia nem aceitaria se eu quisesse deixá-las. O ambiente, porém, começou a ficar muito ruim; eu não tinha mais o mesmo empenho de antes, e o padre também se tornara diferente. Ou talvez, na minha boa fé, nunca tivesse notado suas atitudes estranhas. Um dia, em que eu estava sozinho colocando as vestes para a missa da manha de domingo, vi que ele se aproximara de mim. Achegou-se com naturalidade e afagou-me os cabelos e o pescoço. Ele já tinha feito isso outras vezes, mas nesse dia pareceu-me diferente, com outra intenção. Fiquei tenso. Como estava na hora da atividade litúrgica, caminhei apressado para o altar. Depois da missa, meus pais se aproximaram e ficaram conversando com o padre, que me pareceu ter voltado ao normal, mostrando-se digno, alegre e bem-humorado como sempre. Alguns dias depois, no entanto, tudo mudou. Eu tinha ido à igreja buscar um livro da escola que esquecera por ocasião da aula de catequese. Já nem me lembrava mais do acontecido no domingo de manhã. Estava só, pegando o livro que deixara sobre um móvel, quando o padre chegou. Brincou comigo e me convidou para ir à sua casa, onde tinha um bolo de chocolate à minha espera; sabia que eu apreciava muito. Aceitei sem reservas uma vez que este era um procedimento normal. Chegando lá, porém, ele fechou a porta à chave e depois me chamou para junto dele, alegando que precisávamos conversar. Queria mostrar-me um novo livro que recebera pelo correio. Quando me sentei no sofá, ele me agarrou e, respiração opressa, fungando, começou a acariciar meu corpo. O padre era um homem de seus quarenta e cinco anos, grande, robusto, e tinha muita força. Eu, ao contrário, era um menino pequeno, franzino, e, naquele momento, muito assustado. Não consegui me soltar dos seus braços possantes. Murmurava palavras indecentes ao meu ouvido enquanto me tocava todo o corpo. Apesar dos meus gritos, dos meus rogos e das minhas lágrimas, ele não me soltou. O desespero, a humilhação, a dor que senti então, só quem passou por esse tipo de violência pode compreender. Depois desse dia, recusei-me terminantemente a voltar à igreja. Não podia dizer a verdade a meus pais. Tinha vergonha e asco, por eles e por mim. Então, inventava desculpas e mais desculpas: que estava doente, tinha trabalhos da escola para fazer, tinha jogo de futebol marcado, e outras mais. Com o passar dos dias, fui-me acalmando. Meus pais entenderam que, agora com mais idade, eu tinha outras atividades que não poderia relegar a segundo plano, se quisesse realmente ir para a universidade algum dia. Acabaram por esquecer o assunto, embora contra a vontade, sempre procurando justificar meu comportamento perante o pároco. Esse fato deixou marcas profundas no resto da minha curta existência. Nunca ninguém desconfiou da verdade, e hoje confesso que, se tivesse sido mais corajoso, teria denunciado o padre. Vim a saber, muitos anos depois, que ele também abusara sexualmente de outras crianças, as quais, como eu, esconderam o fato sem coragem de contar a alguém. Por um tempo, o remorso me consumiu, pois tivera, à época, a oportunidade de salvar esses meninos. No entanto, eu era apenas uma criança assustada, insegura e envergonhada. Se tivesse contado a verdade a meus pais, certamente eles não me teriam dado crédito, visto que jamais se tinha ouvido qualquer referência menos digna a respeito da conduta desse sacerdote. Ao contrário, ele era sempre elogiado, tanto é que gozava da absoluta confiança de todos os pais da comunidade, que lhe entregavam os filhos com tranqüilidade, acreditando estarem em boas mãos. Talvez vocês possam pensar que esse relato agora, tanto tempo depois, irá expor minha família sem necessidade e causar-lhe maior sofrimento. Posso assegurar-lhes que meus pais dificilmente irão ler estas linhas, uma vez que continuam sendo católicos fervorosos e tradicionais. Jamais se aproximariam de um livro espírita, que têm até medo de tocar, julgando-o obra do demônio. E se porventura vierem a folhear estas páginas, tomarão conhecimento de fatos que ocorreram há dezenas de anos e que, na verdade, ignoravam. Se tivessem sido informados, com certeza teriam compreendido melhor minhas atitudes naquela época, minhas reações, meu estado emocional e até meus desequilíbrios graves, o que os levou a procurar um psicólogo para me ajudar. E entenderiam também por que me mantive calado e me neguei a dar qualquer tipo de informação. Nem mesmo diante do profissional contei a verdade, conservando o sigilo que, se rompido conforme eu acreditava, respingaria lama em mim e me teria desacreditado perante todos. Na minha inocência, de alguma forma julgava-me culpado, uma vez que aquele padre tinha reputação inatacável, e todos acreditariam nele, e não em mim. Só mais tarde vim a saber que o que sofri foi uma violência inominável. Exatamente por isso é que tive vontade, num primeiro momento, de revelar o meu verdadeiro nome, para que meus pais se inteirassem daquilo que de fato aconteceu e passassem, principalmente, a acreditar que seu filho está vivo e muito vivo, numa outra realidade - o que julgo bem mais importante. Essa revelação, no entanto, não é ainda oportuna. Minha esperança é de que meus pais venham a crer na imortalidade da alma - não da forma que aprenderam (a alma tem um destino certo e inexorável), mas do modo mais racional (ela é o princípio inteligente criado para a perfeição) - e na comunicabilidade existente entre os dois mundos, o que nos permite manter um contato maior e nos dá a esperança de estarmos reunidos um dia. Visito regularmente o lar terreno, porém meus entes queridos mantêm uma postura tão rígida e negativa em relação à espiritualidade que não consigo aproximar-me e conversar com eles. Certa ocasião, num momento em que julguei ter criado um clima mais propício a um intercâmbio, cheguei perto de meu pai, e ele sentiu minha presença.
Imediatamente, aterrorizado, levou a mão ao crucifixo que trazia pendurado ao pescoço e falou em voz alta:
- Arreda-te de mim, satanás!
Desnecessário dizer que não tentei outras aproximações. E espero que o tempo siga seu curso e possa modificar o entendimento deles. Sabemos que tudo se transforma, tudo evolui, e meus pais não constituem uma exceção à regra. Em minha existência terrena passada, cheguei à fase adulta. Era um rapaz bem apessoado, de estatura alta, de pele clara e cabelos escuros, que as garotas achavam bonito. Dediquei-me aos estudos, com ênfase para outros idiomas. Fui muito popular, especialmente entre as mulheres; tive muitos relacionamentos, várias namoradas, porém nunca deixei de sofrer o trauma causado por aquela violência da infância. Agora tudo isso pertence ao passado. Retornei mais cedo para a verdadeira vida, por imprudência na condução de uma moto, cujo acidente, felizmente para mim, só fez uma vítima: eu. Ajudado pelos amigos e benfeitores da espiritualidade, recuperei-me mental e emocionalmente. Hoje tenho uma visão mais clara do problema e não acuso ninguém. Ao contrário, sinto compaixão por todos os que erram.


CAPÍTULO 2 - DIMENSÃO DO PROBLEMA

"O dever íntimo do homem é governado pelo seu livre-arbítrio, este aguilhão da consciência, guardião da integridade interior, o adverte e o sustenta; mas permanece, muitas vezes, impotente perante os enganos da paixão. O dever do coração, fielmente observado, eleva o homem, mas, como este dever pode ser determinado? Onde ele começa? Onde termina? O dever começa precisamente no ponto onde ameaçais a felicidade ou a tranqüilidade de vosso próximo, e termina no limite em que não desejaríeis vê-lo transposto em relação a vós mesmos." (O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, ALLAN KARDEC, CAP. 17, ITEM 7)

Fatos como esse que narrei acontecem com freqüência na sociedade terrena. Todavia, como a luz - que vara as trevas mais espessas levando a claridade a todos os lugares, mesmo aos mais recônditos -, a verdade acaba sempre surgindo para dar a devida dimensão da realidade. Felizmente, agora, relatos emergem de todos os lados abordando o assunto, sendo de extrema importância que isso ocorra. A Igreja Romana, na atualidade, passa por inúmeras provações, amargas e difíceis de digerir. Os meios de comunicação em todo o mundo têm divulgado sucessivos escândalos envolvendo padres pedófilos e crianças desprotegidas. Diante da avalanche de novos casos, não há mais como ocultar essas mazelas. Por longo tempo, a Igreja fez vista grossa para os escândalos que ocorriam em seu seio, dentro de paróquias, de seminários e conventos. Conhecia o problema, porém evitava falar no assunto. Mais do que isso: escondia a verdade, mantendo a impunidade dos seus sacerdotes, não raro à custa de grandes somas com que comprava o silêncio das vítimas inocentes. Talvez muitos estranhem a colocação neste livro de fatos de tal natureza. Contudo, julgo necessário que assim seja. Basta de enfiarmos a cabeça num buraco, como o avestruz tentando se esconder, achando que estamos protegidos. A verdade cedo ou tarde aparece. Por muito tempo, a Igreja se recusou a falar no assunto, mantendo sigilo sobre os atos hediondos que aconteciam sob suas asas e gerados pela tolerância que sempre demonstrou no correr dos séculos para com aqueles que os praticavam, o que a tornou conivente com tais delitos. É a própria instituição multissecular que está em jogo e que precisa discutir suas regras em face dos resultados negativos que vem colhendo, conseqüência da fragilidade de seus postulados. E não se pense em culpar apenas os sacerdotes por esses crimes e violências que ocorrem à sombra das sacristias e sob a vista das imagens sacras.
Não, certamente. Eles também são vítimas da instituição. São vítimas e algozes. Na verdade, toda uma série de fatores entra na composição da ocorrência desses abusos. Para que eu visualizasse a verdadeira dimensão do problema, foram necessárias décadas. Eu não conseguia perdoar a violência que fora cometida contra mim; fiquei traumatizado. E esse choque me abalou profundamente, desencadeando perturbações emocionais e orgânicas durante a existência. Na espiritualidade, felizmente, recebi amparo e orientação de muitos instrutores. Além disso, freqüentei inúmeros cursos, o que me permitiu conhecer as verdades eternas, que se desvendavam diante de meus olhos e me foram de capital importância. Esses ensinamentos já faziam parte da cultura de civilizações mais antigas da Terra, mas somente foram estudados e analisados em profundidade com o advento da Doutrina Espírita, pelo trabalho notável de Allan Kardec, que codificou as orientações dos espíritos. E, sem dúvida, o estudo metódico do Evangelho de Jesus, que nos faz ver o semelhante como um irmão necessitado de entendimento e ajuda. Freqüentei o Centro de Estudos da Individualidade, onde participei de reuniões evangélico-doutrinárias, em que eram analisados temas de conteúdo moral. Elas funcionavam como uma terapia em grupo, pois percebíamos nossas falhas morais em sessões de auto-analise e aprendíamos com a troca de experiências de cada participante, conforme já relatou o César Augusto Melero. Hoje acredito poder dizer que não mais guardo mágoas pelo que me fizeram, pelo menos conscientemente. Compreendo que nós, espíritos, não somos diferentes uns dos outros, criados por Deus da mesma maneira e sujeitos a erros e acertos. Que, ao longo do tempo, podemos ter cometido faltas muito mais graves do que aquelas de que acusamos nosso irmão. Desse modo, com a visão ampliada e clarificada pelo Evangelho do Cristo, esforcei-me por ver naquele sacerdote alguém necessitado de compreensão e ajuda. Movido de compaixão pelas suas fraquezas, dispus-me a ampará-lo. Ainda não me deparei com ele do lado de cá da vida, mas sei que precisarei fazê-lo, e os amigos espirituais encontrarão uma ocasião adequada. Tenho notícias de que ele, desencarnado, sofre e expurga seus erros em região sombria do umbral, sem condições ainda de receber socorro. O conhecimento da Doutrina Espírita nos leva a refletir sobre o tema de forma bem mais profunda. Não ignoramos que todos somos espíritos criados para a perfeição, ora estagiando em níveis diferentes de evolução. Que, através do tempo, progredimos sempre, adquirindo conhecimentos e valores morais que nos tornarão um ser melhor no futuro. Não ignoramos que, ao renascer, fomos beneficiados pelo esquecimento do passado, trazendo conosco as conquistas e os fracassos, as tendências instintivas e a voz da consciência que nos alerta diante de possíveis erros. Que, com o livre-arbítrio, conquista que nos permite o direito de escolha, podemos decidir como agir, mas ficaremos condicionados às conseqüências que gerarmos com nosso comportamento, em observância à Lei de Causa e Efeito que vigora na obra da criação. Assim, trazemos como bagagem o nosso acervo individual: tudo de bom e de ruim que já realizamos, e que permanece arquivado em camadas profundas da memória integral. Dessa forma, os encarnados devem entender que, quando os pais recebem uma criança no lar, não sabem quem é esse espírito, onde e por que fracassou, quais suas potencialidades e imperfeições. Ao espírito é concedido um novo corpo, pequeno e indefeso, que representa sua possibilidade de construir uma nova vida, progredir e realizar o melhor. Esse espírito, porém, não é um bebê, como geralmente se pensa. Apenas o é o corpo material, dependente e frágil, e Deus assim o permite para que ele possa despertar o amor no coração das pessoas, em virtude dos cuidados e da proteção de que necessita para o seu desenvolvimento. Na realidade, ali está um espírito antigo, que já teve uma infinidade de existências e que volta à carne trazendo seus vícios e defeitos, virtudes, inclinações, valores ético-morais conquistados. O sexo, criado por Deus para servir à reprodução, é lei natural e fundamento da vida, atendendo ao impositivo da evolução dos seres, das raças, da própria humanidade, sendo imprescindível ao progresso dos espíritos.
Através do tempo, o ser imortal tem desenvolvido qualidades de masculinidade ou feminilidade, de acordo com as características mais acentuadamente ativas ou passivas que conserve. Desse modo, todos os espíritos poderão encarnar na condição de homem ou de mulher. Condenável, portanto, não é o sexo, mas o abuso, o excesso e o aviltamento das energias sexuais pelas criaturas. Numa nova existência, acredita-se que o sexo só irá despertar na fase da puberdade. Todavia, o espírito renasce com todas as condições para que os impulsos sexuais se manifestem mais tarde, jamais perdendo a sexualidade mesmo em criança; que, na puberdade, irá apenas acentuar-se uma tendência que já existe no espírito, em decorrência dos hormônios que são liberados, quando o corpo físico se desenvolve e se prepara para a vida adulta e para exercer funções fundamentais com vistas à conservação e perpetuação da espécie. Então, o espírito não está iniciando sua vida sexual; está retomando a sexualidade que trouxe de outras experiências. Dessa forma, deve-se ter o maior cuidado com a educação da criança, com a orientação que os pais passam a ela, especialmente as de caráter ético-moral-religioso, que lhe irão servir de balizas no futuro, direcionando seu comportamento. A fase infantil é a oportunidade dos pais de transmitirem bons conceitos para seus filhos, e é imprescindível que assim o façam enquanto há tempo, porque, depois de crescidos, será mais difícil, não impossível, uma vez que o espírito aprende sempre, mas os obstáculos serão muito maiores, visto que o espírito terá retomado sua verdadeira identidade. Enfocando o assunto, necessário entendermos que a homossexualidade, hoje também conhecida por transexualidade, representa a tendência da criatura para a comunhão afetiva com outra criatura do mesmo sexo. A psicologia, em bases materialistas, não encontra explicação fundamental para tais ocorrências, que são absolutamente compreensíveis sob a ótica da reencarnação. É necessário esclarecer também que homossexualidade e homossexualismo são diferentes. O indivíduo pode ter tendências homossexuais, isto é, ter afinidade e/ou atração por pessoas do mesmo sexo, e não ser homossexual. Em outras palavras, não se dá à prática do homossexualismo, o que equivale a não ter comportamento homossexual. Nesses casos não incluímos aqueles espíritos que, em virtude da necessidade de realizar uma missão em área específica, por ocasião do planejamento reencarnatório, pedem para voltar à carne com caracteres sexuais diferentes dos da encarnação anterior, renunciando aos mais belos e íntimos sentimentos. Trata-se de Espíritos com elevação moral e espiritual, o que lhes garante a disciplina das emoções e a responsabilidade no exercício das tarefas que escolheram executar a benefício da humanidade. Para isso, procuram se prevenir contra situações que poderiam facilitar-lhes condutas inadequadas e colocar em risco o objetivo reencarnatório. Imprescindível estabelecermos essas diferenças tendo em vista as vivências anteriores do ser espiritual. A Doutrina Espírita nos alerta para a nossa realidade como espíritos, afirmando que fomos criados simples e ignorantes, mas com infinitas possibilidades de evolução, objetivo esse que alcançaremos mediante nosso próprio esforço e vontade perseverante; que a sede real do sexo se encontra radicada na estrutura complexa do ser espiritual, e não no veículo físico que lhe serve à manifestação. Assim, o espírito não tem sexo da forma como se entende na Terra e considerando-se as características sexuais apenas pelos órgãos genésicos - uma vez que Deus não criou espírito-homem e espírito-mulher, mas apenas espíritos; que, dessa forma, os sexos só existem no organismo, sendo necessários à reprodução dos seres materiais; todavia, os espíritos não se reproduzem uns pelos outros, razão por que o sexo é inútil no mundo espiritual; que não sabemos quais as tendências sexuais do espírito reencarnante, uma vez que as desenvolvem através do tempo, em virtude da constância em reencarnações neste ou naquele sexo, inclinações e afinidades essas que são predominantemente masculinas ou femininas, conforme as características mais acentuadamente ativas ou passivas que conservem. Existem espíritos que se sentem melhor renascendo como mulheres, outros como homens.
Salvo em casos de inversão sexual gerada por disfunções orgânicas, quando o espírito reencarna para sofrer determinadas limitações, o que vai prevalecer em matéria de sexo serão suas tendências íntimas já desenvolvidas; que, em razão dessas vivências mais num determinado sexo, ao precisar mudar de polaridade sexual, encontre dificuldades para exteriorizar suas tendências. Não raro, isso ocorre tanto no sexo masculino quanto no feminino, como conseqüência de abusos perpetrados contra o sexo oposto, quando tem necessidade o espírito de renascer com inversão sexual, o que se constitui numa grande expiação, servindo-lhe também de prova. Por conta disso, o ser espiritual passando da experiência masculina para a feminina ou vice-versa, ao envergar o veículo corpóreo, inevitavelmente irá demonstrar as características de masculinidade em que terá transitado durante vários séculos, apesar do corpo feminino que enverga no momento, o mesmo ocorrendo com o espírito feminino que passe a ocupar um corpo masculino. Esses casos de anomalias são claramente percebidos em mulheres que carregam um corpo másculo e agem como homens, e homens que possuem uma estrutura física mais delicada, com traços claramente feminis, o que lhes demonstra as inclinações, independente de manterem ou não relações sexuais. Muitas vezes pode ocorrer de não existir inversão sexual, mas comportamento que redunda da influência do meio ou depois de experiências homossexuais em que a pessoa pode ficar condicionada àquele tipo de conduta. Desse modo, pode iniciar-se um problema quando se colocam meninos de várias faixas etárias, com amadurecimento orgânico e psíquico diferenciado, em colégios internos e seminários para conviverem sob o mesmo teto. Não raro os maiores, com a libido exacerbada pelo início da fase de puberdade, quando modificações psicofísicas começam a ocorrer, os abusos vão acontecendo, geralmente contra os menores e mais fracos, sem o conhecimento das autoridades responsáveis pela instituição e dos vigilantes, que ignoram o que se passa na calada da noite. Prossegue o problema quando o rapaz é levado a ordenar-se ainda muito jovem e sem consciência do que realmente deseja, visto que por muitos anos foi mantido entre quatro paredes sem participar da sociedade, o que limita sua capacidade de análise e decisão. A obrigatoriedade do celibato para os sacerdotes é uma regra injusta, artificial e que tem causado imensos males aos padres e às comunidades em que vivem. O mesmo acontece com as freiras, que sofrem iguais restrições. Certamente importante considerar aqui a responsabilidade das pessoas que chegam a praticar tais abusos, sem dúvida por inferioridade do espírito. Os que se permitem tais condutas demonstram que são criaturas com dificuldades na área sexual e que renasceram para tentar corrigir esse desajuste. Não raro, porém, influenciados pelo meio, podem voltar a errar. Provavelmente trata-se de uma expiação, que poderá até servir-lhes de prova, e tanto maior a dificuldade que encontre, maior mérito terá aquele que conseguir vencer suas tendências negativas. E não estamos nos referindo aqui apenas às pessoas de comportamento homossexual, e sim do heterossexual, cuja prática de atos pedófilos e homossexuais fica facilitada pelo meio e pelas condições que a Igreja estabelece. Entregar os filhos a Deus...! Não deveria ser outro o motivo que levava famílias a encaminharem seus jovens para os seminários, desejando vê-los seguindo a carreira religiosa. Antigamente, duas situações básicas se apresentavam ao rapaz: ou servia à Igreja, ou ao Exército. Hoje isso já não ocorre. Grande parte dos jovens que opta pelo seminário, porém, o faz por apresentar propensão para os estudos e não ter recursos, utilizando-se das excelentes condições que a Igreja oferece para poder estudar. Uma pequena parcela deles tem real vocação para o sacerdócio, objetiva servir a Deus na pessoa do próximo e sonha orientar e consolar o rebanho que lhe for destinado. São religiosos que, não importa a tentação, se manterão firmes em seus propósitos, não se deixando levar por tendências negativas, portando-se sempre como dignos representantes do clero. E não pensem que esses problemas ocorram somente com indivíduos do sexo masculino. Muitas moças também, por vontade própria ou não, acabam internadas em colégios ou conventos.
Para elas, antigamente, a situação era ainda pior, não lhes restando senão a submissão: sem direitos, sem poder estudar ou decidir sobre a própria vida, livravam-se da autoridade dos pais passando para a do marido, pelo casamento, ou eram encaminhadas aos conventos para servir a Deus. A realidade é que os abusos são igualmente praticados em todos os lugares, tanto nos redutos masculinos quanto nos femininos, já que o ser humano é o mesmo onde quer que esteja e carregará sempre suas tendências e dificuldades. A convivência em claustro tem gerado forte tendência para o homossexualismo, problema que a Igreja evita olhar de frente com medo de encará-lo. Atualmente o Vaticano vem sofrendo campanha cerrada contra padres pedófilos, e a imprensa de todo o mundo faz denúncias nesse sentido, revelando casos e apontando culpados pelo abuso perpetrado contra crianças. E a sociedade, horrorizada, se movimenta e exige uma postura firme das autoridades para reprimir e evitar esse tipo de crime. Também os pais deveriam ter mais cuidado com seus filhos, não confiando cegamente nos indivíduos que trabalham com crianças e cuidam delas, especialmente aqueles a quem está afeta a educação religiosa. Muito já se falou sobre os problemas gerados pela imposição do celibato religioso. Quantos males causou à sociedade e às pessoas a obrigatoriedade da confissão? É possível imaginar a extensão dos danos quando se colocam padres carentes e atormentados por secretos desejos diante de mulheres jovens, bonitas e igualmente carentes, com problemas conjugais e emocionais, obrigadas a relatarem seus dramas em minúcias, criando vínculos afetivos e propiciando atração sexual? Quantos lares foram desfeitos, famílias destroçadas, separações conjugais ocorreram através do tempo por relacionamentos espúrios nascidos no confessionário? Quantos abortos cometidos, na impossibilidade de se tornar pública uma relação? Quantas crianças cresceram à sombra das sacristias, ao lado de pais- sacerdotes, sem conhecerem sua verdadeira filiação? Dentre as páginas mais tristes e escabrosas da História, está este capítulo da Igreja, com os problemas gerados pelo celibato sacerdotal e os crimes cometidos dentro de conventos e seminários para esconder relacionamentos entre padres e freiras, e entre padres e paroquianas. Não nos cabe aqui o levantamento desses dados, que já foram divulgados à saciedade por quantos se interessaram em estudar o assunto. Todos esses abusos só terão fim quando a Igreja modificar suas leis, tornando-as mais humanas e mais justas, e quando resolver enfrentar os problemas com transparência e lisura, deixando de acobertar erros e crimes hediondos para manter as aparências. Sobretudo, tais violências desaparecerão quando o homem ascender-se moralmente, transformando-se à luz do Evangelho redentor, e vivenciar o mandamento cristão de fazer ao próximo o que gostaria que os outros lhe fizessem. Quando, direcionado pelo amor, o ser humano passar a viver fraternalmente com todos os seus irmãos. A luz da Doutrina Espírita, que se alteia como libertadora de consciências, compreende-se perfeitamente que as opções em matéria de sexo são da responsabilidade do espírito e diz respeito às suas escolhas afetivas, tendo como parâmetro o livre-arbítrio que deve ser respeitado. Tratando de assunto tão polêmico na atualidade, não nos cabe aqui emitir julgamentos quanto às escolhas de ninguém em relação a comportamentos sexuais, sabendo que cada um estagiará em níveis de entendimento e amadurecimento que já conseguiu alcançar no seu trajeto para a perfeição. Hoje, facilitado pelo fenômeno da globalização, temos acompanhado a saga de milhões de pessoas em experiências desse gênero e que merecem atenção e respeito, consideração e ajuda, em igualdade de condições com a grande maioria de criaturas da sociedade terrena que é constituída de heterossexuais, que nem por isso estão livres de problemas e dificuldades. Com o tempo, a sociedade terrena entenderá que os conceitos de normalidade e de anormalidade carecem de substância, olhando-se apenas do ponto de vista da estrutura física, quando o que realmente importa é a dignidade humana que se alteia por meio do comportamento ético a favor do bem de toda a comunidade, e se degrada diante do mal que espalha, prejudicando a si próprio e a todos com quem convive.


CAPÍTULO 3 - SEMENTES DE ERLAN

"Bem-aventurados os que choram, pois que serão consolados." JESUS (MATEUS, 4: 5)

A exortação de Jesus para que nos amemos uns aos outros é divino convite ao entendimento e à paz. Quando o ser humano consegue pensar nas outras pessoas e não apenas em si mesmo, deixando de lado o egoísmo, denota expressivo progresso, uma vez que o amor é sentimento que brota e lentamente se desenvolve no íntimo da criatura após longo trajeto ascensional. Não raro, vemos exemplos de dedicação, renúncia e altruísmo em pessoas nas quais nunca suporíamos tal atitude. Contudo, dão-nos exemplos de rara beleza e de uma grandeza tocante. Certa ocasião, era virtude de apelos provindos de uma colônia espiritual localizada no continente europeu, a qual pedia a colaboração de outras cidades espirituais na forma de envio de pessoal para trabalhar em favor das populações envolvidas com a guerra na Bósnia-Herzegovina, candidatei-me ao serviço. Pela experiência anterior e pelo conhecimento de idiomas ao qual me dedicara, fui aceito. Reuni-me ao contingente de Céu Azul, visto que outras pessoas atenderam ao chamado, e partimos após os necessários preparativos, inclusive um treinamento de emergência, uma vez que nenhum de nós tinha trabalhado em situação de guerra. Não obstante alertados para o que iríamos encontrar, em palestras e por um farto material de imagens que mostrava os horrores do conflito, estávamos animados e estimulados pela oportunidade de servir que se nos deparava. Era um serviço em terras estranhas, diferente de quantos havíamos realizado, e isso nos entusiasmava. Ao chegarmos, porém, sofremos um duro impacto. Conquanto a veracidade e crueza das imagens que tínhamos visto antes, dos alertas que recebêramos de nossos superiores, a realidade superava em muito todas as expectativas. Cenas de selvageria campeavam em todos os lugares. A dor, a morte, o desespero e a miséria eram companheiros inseparáveis daquela população que sofria toda sorte de necessidades: sem água, sem comida, sem agasalho, sem teto. O pior, entretanto, era a desesperança que víamos nos olhares tristes e melancólicos. Especialmente nas crianças, cujos olhos grandes, encimados por longas pestanas, se mantinham secos, já sem lágrimas para chorar em face do excesso da dor e das perdas sofridas. A população civil, composta basicamente de mulheres, crianças, velhos e doentes, não tinha como se proteger, visto que os homens válidos tinham sido recrutados e estavam todos nas frentes de batalha. Quando os inimigos chegavam - e me refiro a ambos os adversários; os dois lados eram igualmente cruéis -, torturavam e matavam com requintes de crueldade. Estupravam as mulheres, muitas delas jovenzinhas, ainda crianças, como se tivessem perdido todo o senso da realidade, e como se os valores que haviam cultivado até aquela época nada significassem. O mais absurdo é que não eram criminosos à solta. Não. Eram pessoas comuns, amantes da paz e da ordem, religiosas, que tinham tido uma existência pacífica, ordeira, de trabalho, até então. Mas o sentimento de ódio liberado pela guerra faz com que os seres humanos se modifiquem radicalmente. No afã de vencer o inimigo, usam a violência até como tática de combate, para despertar insegurança, minar a resistência e a disposição dos adversários, causando desânimo, angústia e dor. Contudo, não se dão conta de que as mesmas coisas podem estar acontecendo do lado oposto com suas mulheres, filhas, irmãs, namoradas. As cenas eram tão fortes que precisávamos de todo o nosso equilíbrio para nos mantermos isentos. Nossa atividade principal era ajudar na retirada dos espíritos de combatentes mortos, para que não continuassem a guerrear, acirrando ainda mais os ânimos.
Amparávamos também a população nas suas dificuldades, consolando, dando ânimo, esperança, instilando fé nos corações desvalidos. Durante esse período, fiquei conhecendo um garoto de uns dez anos aproximadamente, e me liguei a ele, comovido com sua história, narrada por um dos nossos colegas de trabalho que estava havia mais tempo na região. O garoto chamava-se Erlan. O pai estava na guerra, e a mãe sobrevivia como possível junto aos seis filhos. Erlan era o mais velho e se dedicava à mãe e aos irmãos com veneração. O pai, antes de partir, lhe dissera:
- Você é meu primogênito. Agora, meu filho, você é o homem da casa e tem o dever de proteger sua mãe e seus irmãos menores.
Erlan aceitara a incumbência, cumprindo à risca sua tarefa, com orgulho e coragem. No fundo, gostaria mesmo era de estar lutando ao lado do pai, como um homem, mas, em virtude da pouca idade, não podia. Assim, teve de ficar em casa e cumprir sua missão. Certo dia, nosso grupo saiu para uma de nossas rondas. Éramos três: um francês, um angolano e eu. Passávamos por uma rua quando ouvimos choro convulsivo em uma das ruínas, justamente o lugar onde essa família estava abrigada. Imediatamente nos dirigimos ao local. Deparamo-nos com uma das mais tristes cenas que tive a oportunidade de presenciar: as seis crianças estavam ao redor do corpo da mãezinha, que tinha sido atingida por uma bala, e não resistira. Chegamos a tempo de ver o espírito da mãe se desligando do veículo corpóreo, sem mais condições de sobrevivência. Louis, o francês, era o chefe da equipe e sem demora acabou de cortar os últimos elos que mantinham o espírito preso ao organismo físico. Tobi, o angolano, e eu o auxiliamos na operação, ao mesmo tempo suplicando ajuda do Alto. A mãe, recém-liberta, ignorando que já passara para o outro lado da vida, mas sentindo-se atingida, com as mãos tentava conter o sangue que se esvaía da ferida. Desesperada ao ver os filhinhos chorando, com dificuldade procurava tranqüilizar as crianças:
- Não chorem, não foi nada! Vou ficar boa para cuidar de vocês. Confiem em Deus! Erlan, meu filho, cuide de seus irmãos.
Os pequenos, porém, não podiam mais ouvi-la. Nós nos aproximamos, fazendo com que ela nos visse, e a convencemos de que precisava de socorro médico. Aceitando o tratamento, ela foi retirada do local e levada para um de nossos hospitais de emergência, para que não piorasse, com suas condições, a situação das crianças. Erlan, entendendo sua responsabilidade diante dos irmãozinhos, enxugou as lágrimas e, abraçando-os, disse:
- Agora eu sou o chefe da família. Não deixarei que nada de mal lhes aconteça.
- Prometo.
Desse dia em diante, a vida dos garotos tornou-se pior, pois não mais tinham pai nem mãe que pudesse protegê-los. Erlan arrumou um lugar para ficar com os irmãos, visto que tinham sempre de mudar de esconderijo, e empenhava-se em suprir as necessidades da família, arranjando comida e água. Passaram a viver escondidos num tipo de gruta que Erlan descobrira por acaso ao andar pela cidade à procura de algo que pudessem comer. Como fosse protegida do vento e da chuva, achou que era o local adequado às suas necessidades. Certa manhã Erlan saiu com os irmãos para dar uma volta. Tudo estava tranqüilo. Desde a noite anterior, o barulho de explosões havia cessado e nenhum tiro se ouvia. Estavam com fome e resolveram arriscar. Sempre encontravam algo nos bolsos dos soldados mortos, ou nas casas abandonadas pelos moradores. Nisso, ao virar uma esquina, no meio dos escombros, Erlan viu um grupo de soldados inimigos que vinha em sentido contrário, ao encontro deles. Em silêncio, fez sinal aos irmãos para se esconderem. Todavia, o movimento já tinha sido detectado pelos soldados, que imediatamente reagiram, jogando uma granada de mão. Atônitas, as crianças viram cair o objeto no meio delas e ficaram paradas, sem ação. Erlan virou-se e, vendo o perigo, não teve dúvidas: jogou-se, pegou a granada, evitando que estourasse no meio dos irmãozinhos, e correu para longe. Não teve tempo, porém, de largá-la.
A granada estourou na sua mão. Morreu bravamente. Seu gesto heróico foi um exemplo para todos nós. Os inimigos se aproximaram de armas em punho, gritando:
- Alto! Não se mexam! Saiam com as mãos para cima.
Após alguma hesitação, os pequenos começaram a sair. Os soldados ficaram perplexos: eram apenas cinco crianças aterrorizadas e uma delas não tinha mais do que dois anos! Ficaram olhando aqueles rostinhos sujos de fuligem, as roupas esfarrapadas, sem saber o que fazer. Perguntaram pela família e ouviram a história do maior deles, menino de oito anos e agora o chefe da família. Ficaram sabendo que os ferozes soldados que pensaram estar atacando eram seis crianças indefesas, e que o irmão mais velho havia se sacrificado heroicamente para salvar suas vidas. Trocaram um olhar, como que se consultando sobre o que fazer. Todavia, nada poderia ser feito. A guerra era cruel e milhares de crianças estavam nas mesmas condições, sem família e sem lar. Em seguida, viraram as costas e foram embora. Jamais esqueci Erlan, o garoto que conheci na Bósnia. Ele foi atendido em um de nossos hospitais itinerantes e fiz questão de acompanhar-lhe a recuperação. Naturalmente, foi um longo período, em que tivemos oportunidade de conversar muitas vezes. A princípio, ele ficou espantado ao perceber o conhecimento que eu tinha da sua vida e da sua família. Depois, mais perplexo ainda, quando lhe contei que o conhecia havia meses e que sempre procurávamos ajudá-los. Com olhos arregalados, ele exclamou:
- Vocês, anjos da guarda! Paulo, meu anjo da guarda!
- Bem, nem tanto, Erlan. Apenas amigos - tentei explicar.
Em nossos encontros, procurava levar-lhe notícias dos irmãos, e ele mostrava-se satisfeito e agradecido, conquanto um pouco triste por não poder estar ao lado deles. Todavia, inteligente e desejoso de aprender, em pouco tempo entendeu que era preciso recuperar-se para ter condições de amparar os irmãozinhos. Quanto à mãe, ficou contente de saber que ela tinha sido encaminhada para um local de atendimento na espiritualidade, e que logo poderiam se encontrar. As histórias de guerra são sempre tristes e raramente têm um final feliz. Neste caso, os garotos sobreviveram, e, depois que os conflitos terminaram, foram levados para um abrigo de atendimento a crianças desamparadas, visto que nenhum parente foi localizado. Nessa instituição, apesar da precariedade, eles têm a felicidade de crescer juntos, como uma família, cada vez mais unida. Este foi dos exemplos mais belos que tive a oportunidade de ver. Erlan demonstrou generosidade e renúncia pela vida ao proteger seus irmãos. Sua recuperação foi rápida, porque dotado de bom coração e nobres princípios. Adquirindo condições, recebeu dos orientadores a bênção de continuar amparando os irmãos. Juntamente com a mãe, participa de equipe que executa dignificante trabalho na ajuda aos encarnados com problemas gerados pela guerra, e assim tem a oportunidade de permanecer perto dos irmãos e do pai que, atingido por uma explosão, desmemoriado e em estado gravíssimo, foi levado para um hospital. Permanece encarnado, porém sem condições de procurar e ajudar os filhos. Erlan denota grandeza de alma e profundo amor, sentimento que ele nutre por sua família. Da última vez que o encontrei antes de retornar para Céu Azul, conversamos longamente. Ao nos despedirmos, falou-me de seus propósitos: quer trabalhar pela paz para evitar que irmãos se destruam barbaramente, como na guerra. Trabalhará como desencarnado e, mais tarde, quando estiver preparado, pretende reencarnar no seio do seu povo para plantar sementes de paz e de luz, direcionando os corações para o exercício da fraternidade e da solidariedade universais.

CAPÍTULO 4 - MALEFÍCIOS DA GUERRA

"Qual é a causa que leva o homem a guerra?" "Predominância da natureza selvagem sobre a espiritual e satisfação das paixões. No estado de barbárie, os povos conhecem apenas o direito do mais forte; é por isso que a guerra é para eles um estado normal. Contudo, à medida que o homem progride, ela se torna menos freqüente, porque evita as suas causas, e quando é inevitável sabe aliar à sua ação o sentimento de humanidade." (O LIVRO DOS ESPÍRITOS, ALLAN KARDEC, QUESTÃO 742)

A história de Erlan ilustra bem os malefícios da guerra. Na verdade, as pessoas que habitam países em que não existem conflitos armados, que estão legalmente em estado de paz, dificilmente poderão entender o que seja viver no meio de combate, destruição e morte. Seria necessário estar lá, viver e sofrer com essas populações, para se ter uma idéia dos horrores da guerra. Manter-se em estado de tensão física, mental e emocional, retesado como um arco cuja flecha deva ser atirada a qualquer momento, permanentemente em guarda, inseguro e angustiado, estremecendo de medo a cada ruído por menor que seja; sempre dormir preocupado, acordar durante a noite com o coração disparado, ao ouvir uma explosão, os clarões das bombas, os tiros soando bem próximo. Difícil sentir alívio quando o silêncio se faz, e poder respirar mais tranqüilamente. Mas não é só isso. Além do medo e da insegurança, as populações convivem com a mais absoluta miséria. Muitas vezes, não morrem por um ferimento à bala, mas de fome. De todas as dores, a moral é a que mais atormenta e desencoraja o ser humano. Como é difícil para o homem, quando distante, não saber o que está acontecendo com os entes queridos, não poder defendê-los; e quando perto, presenciar o desespero de um familiar ou amigo sendo abatido por uma rajada de metralhadora; ver uma filha, esposa, mãe, irmã ou noiva, aos gritos de horror, sendo estuprada por soldados violentos e de mentes ensandecidas, sem poder fazer nada para ajudar, casos em que se prefere a morte do ente querido para livrá-lo dos sofrimentos e das humilhações. Isso acontece, na atualidade, em diversos pontos do globo. E por quê? Como pólo central de onde partem e para onde convergem essas questões, temos sempre o egoísmo, o orgulho e a ambição dos homens, que lutam para defender seus interesses, sejam raciais, territoriais ou econômicos. A luta sempre acontece porque uns se consideram injustiçados e, outros, detentores de todo o direito. Estabelece-se aí, sem dúvida, um contra-senso, pois todos esses absurdos irrompem em sociedades que, no fundo, desejam a paz. Mas o que é paz? É poder viver num mundo sem violências ou perturbações sociais, onde exista concórdia e entendimento entre as pessoas e entre os inúmeros grupos da sociedade, como conseqüência da tranqüilidade da alma, da ausência de conflitos íntimos do homem. Dessa forma, três situações básicas se deparam na relação entre os seres humanos: problemas sociais, públicos e grupais ou com outras pessoas. Problemas individuais, de foro íntimo. Desde que o homem existe sobre a crosta planetária, a defesa dos seus interesses sempre foi primordial. No começo, para preservar-se dos animais selvagens, da natureza inclemente e de outros seres humanos hostis. A existência era simples, despojada. À medida que progride, o homem sente-se compelido a viver em grupo, para uma mais eficiente defesa. Com a vida grupai, surge a necessidade de serem criadas normas para defender os interesses de cada um em particular e do grupo como um todo. Aparecem as primeiras regras para uma convivência pacífica e harmônica, possibilitando grande salto para o progresso social. Enquanto os grupamentos se desenvolvem, as relações se complicam. Das tribos surgem as nações, depois as sociedades organizadas em Estados; os conflitos, porém, jamais cessam, aumentando sempre em intensidade, com a progressiva complexidade das sociedades até atingir seu clímax nas civilizações atuais. Alguns países chegam a ser habitados por bilhões de pessoas, com cidades de vida tão complexa e sofisticada que se configuram em verdadeiras megalópoles. Outros em exíguo território. Neste ponto, aos interesses da nação juntam-se os interesses de grupos econômicos, de cidadãos que ganham enormes fortunas, não raro incentivando os conflitos armados, como guerrilhas, revoluções, guerras civis ou guerras entre países, para auferirem exorbitantes lucros com a venda de material bélico, que fabricam e estocam, mancomunados com políticos e autoridades corruptas. Só falamos até agora dos prejuízos materiais. E os danos causados ao homem como ser integral? Aos males tipicamente orgânicos somam-se outros de ordem emocional, mental, espiritual, que o atingem causando doenças psicossomáticas, neuroses, psicoses e todo tipo de loucura. Os povos envolvidos na guerra, inclusive os próprios soldados, são incapazes de digerir as cenas violentas que deparam. Se, por um lado, se vêem obrigados a matar outras criaturas iguais a eles, por outro, vivem o temor do que encontrarão ao virar uma esquina e a incerteza do futuro, tudo isso gerando desequilíbrio íntimo devastador, que os deixa enlouquecidos. Também as emanações pútridas de corpos de animais e de seres humanos em decomposição, denominadas miasmas, causam terrível mal-estar e doenças infecto-contagiosas gravíssimas, visto que a freqüência e a continuidade dos combates nem sempre permitem que as pessoas neles envolvidas enterrem os mortos. Existe, porém, outro tipo de prejuízo de valor incalculável: o que se refere à contaminação ambiental por miasmas psíquicos. Liberadas pelos encarnados envolvidos na luta, as emissões mentais de ordem inferior, como sentimentos de revolta, ódio, desejo de vingança, crueldade, geram miasmas - larvas psíquicas contagiosas de alto poder de destruição -, que atingem rapidamente populações inteiras. Acrescente-se a isso a participação dos desencarnados em combate, os quais, pelas suas condições, continuam guerreando e ajudando os que ficaram. Com isso, tem-se farto e explosivo material que, se não for retirado das frentes de batalha, só irá piorar o ambiente, produzindo por sua influência maléficas verdadeiras epidemias. Em vista disso, formam-se grandes nuvens fluídicas de material psíquico inferior que se aglutinam sobre as regiões em conflito. Como existem inúmeros focos de combate na atualidade, notadamente no Oriente Médio, na África, na Europa e na América, essas nuvens caminham pelo espaço e já tomam grandes territórios, uma vez que, pelo processo de sintonia, são atraídas pelos sentimentos inferiores das populações. No caso específico dos Estados Unidos da América e de sua vinculação em recentes guerras, conquanto não haja combate dentro de seu território, o povo americano acaba envolvido, ficando em sintonia com as emanações maléficas. Não percebem como os conflitos se alastram? Quantas guerras aconteceram no pequeno espaço de alguns anos - em regiões asiáticas -, só para falarmos das mais recentes? E as do continente africano? Imprescindível trabalharmos no sentido de não permitir a entrada dessas nuvens deletérias em território brasileiro, evitando-se assim males maiores. Ainda bem que o modo de ser do brasileiro é diferente. As populações são mais humanas, fraternas, solidárias e religiosas, tornando o ambiente mais preservado. Não quero dizer que inexiste o mal dentro de nossas fronteiras; existe sim, e muito. Seria preciso ter uma venda nos olhos para não enxergá-lo. Felizmente, a atmosfera fluídica é afetada de maneira positiva pelo sentimento de uma parte da população que se dedica ao bem e cujos pensamentos são de ajuda ao semelhante, de doação em serviços comunitários, de voluntariado na assistência social, o que produz, na média, um tônus vibratório especialíssimo e mais elevado. Parece que estou sendo condescendente demais com o nosso povo? Afinal, muitos acham que este país não tem jeito, que só existem corruptos, criminosos, traficantes. Que a violência existe em todos os níveis da sociedade e que não se pode sair à rua nas grandes cidades sem temer um assalto ou um acidente. Tudo isso acontece, sim. Morrem muitas pessoas no trânsito e vítimas de assassinato tanto quanto numa guerra. Contudo, a situação é diferente. Não existe aquele clima contínuo de pânico e insegurança que se experimenta no meio de uma região de combate. Aqui no Brasil, de modo geral, as pessoas vivem normalmente, têm seu emprego, sua família, saem para passear, vão à praia, comem e dormem sem escutar barulho de bombas o tempo inteiro. As cidades geralmente são tranqüilas, limpas; as casas bem construídas, que oferecem segurança, não irão desabar com uma explosão; as crianças vão à escola, passeiam, brincam. Nas regiões de conflitos, só se conhece destruição e morte; as crianças vivem assustadas, não vão à escola, e, se brincam, é com armas de verdade, artefatos que matam e destroem as esperanças de uma vida melhor e mais feliz. Por tudo isso, nós, da espiritualidade, pensamos de forma diferente. A verdade é que, se uma parcela da população pensa no mal, envolvendo-se com drogas, criminalidade, corrupção e malandragem, uma grande parte é constituída de pessoas ordeiras, amantes da paz, que trabalham muito, se esforçam e desejam o melhor para si e para os outros. O sol brilha no céu, as árvores se enchem de flores na primavera, os animais domésticos correm satisfeitos, os pássaros voam pelo espaço com seus gorjeios, as crianças brincam nas calçadas, os pais vão trabalhar. Só a felicidade de olhar para cima e ver o céu limpo, as cores do entardecer quando o sol se põe; as estrelas que brilham na imensidão, convidando a elevar o pensamento a Deus... É uma grande bênção. Não, nada disso existe num país em conflito, porque o céu está sempre carregado de fumaça. Não existe perfume de flores na primavera, só o cheiro de enxofre, de pólvora, de queimada. O grande público só enxerga aquilo que a mídia deseja que veja, ou seja, o pior: desastres, tragédias, crimes, corrupções. Contudo, examinando a vida nas cidades, nos bairros, o que vemos? Uma população constituída de famílias que trabalham muito para sobreviver, de crianças que freqüentam escolas, de jovens que estudam ou trabalham, não raro fazendo as duas coisas ao mesmo tempo. Como podemos pensar que o mal está vencendo? Basta ter "olhos de ver e ouvidos de ouvir", analisando tudo o que nos cerca, para termos a certeza de que o bem está vitorioso e que o amor é a resposta para nossos problemas. Certamente o ser humano está longe da perfeição. Embora venha, através do tempo, progredindo paulatinamente e acrescentando valores morais às suas conquistas, a caminho da felicidade, não conseguiu ainda vencer os vícios e defeitos que lhe atestam a condição de espírito em evolução. A Terra é um planeta de provas e expiações em final de ciclo, devendo transformar-se lentamente em mundo de regeneração, o que representa importante etapa evolutiva. E essa mudança de nível é patenteada pela média do progresso moral e intelectual da civilização. As criaturas que resistirem a essa transformação, imprescindível ao novo estágio terrestre, prosseguindo no mal, chafurdando-se na lama da criminalidade e nos interesses pessoais egoísticos, não poderão mais permanecer neste planeta, sendo alijadas para mundos de categoria inferior compatíveis com a faixa vibratória delas. O saneamento já começou e de forma tão natural que nem se percebe. Um grande número de espíritos rebeldes, entre eles criminosos de alta periculosidade para a sociedade terrena que vierem a desencarnar, ou que já se encontram no Além, não poderão mais voltar ao planeta, sendo atraídos magneticamente para outros mundos. "Bem-aventurados os que são brandos, porque possuirão a Terra. Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus". Em face dessas afirmações do Cristo, mas sem o conhecimento da lei das vidas sucessivas ou reencarnação, impossível nos seria entender seu verdadeiro significado. Com a chave que as múltiplas existências propiciam, torna-se fácil a compreensão, visto que ninguém poderia transformar-se em brando e pacífico no exíguo espaço de uma única existência, deixando de lado a agressividade e a violência. Aí entra outro problema que o ser humano enfrenta e ao qual já me referi anteriormente: as dificuldades dele para consigo mesmo e para com os semelhantes. O mundo íntimo é complexo; renasce o espírito trazendo a bagagem que conquistou em sua trajetória ao longo do tempo. Traz vitórias e fracassos clamorosos, construiu relacionamentos de afetos e desafetos, plantou o bem e o mal. Na verdade, errou bastante, prejudicando outras criaturas, e, no seu retorno ao mundo material, Deus lhe concede abençoada oportunidade de aprendizado, para refazer seus passos, reparar os danos causados a outrem e a si mesmo. Ao deixar o corpo físico, estará mais amadurecido e terá galgado mais um degrau na escala evolutiva. Daí a necessidade de buscar sempre o aprimoramento íntimo, crescendo moralmente à medida que reduz as próprias imperfeições. Devemos aprender a nos relacionar de maneira pacífica e harmoniosa com outros seres, lembrando-nos a cada momento de fazer ao próximo o que gostaríamos que ele nos fizesse, conforme ensinou Jesus. E de desenvolver o amor em suas múltiplas facetas, respeitando o semelhante, bem como toda expressão viva em que a natureza se manifesta. Por essa razão é que só de modo muito lento o progresso moral se instala e se consolida no íntimo das criaturas, diferentemente do material, do científico e do tecnológico, que crescem bem mais rápido, porque a eles o ser humano tem dado prioridade através do tempo. Mediante as múltiplas experiências, o homem vai despertando a consciência, exercitando a aprendizagem, desenvolvendo os sentimentos, amadurecendo física, moral e espiritualmente, e preparando um futuro melhor e mais feliz, para si e para toda a humanidade.


CAPÍTULO 5 - DECISÃO FILIAL

"Se há males dos quais o homem é a principal causa nesta vida, há outros que, pelo menos na aparência, lhe são completamente estranhos e parecem atingi-lo como que por fatalidade." (O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, ALLAN KARDEC, CAP. 5, ITEM 6)

Sentada ao lado da janela, nas mãos uma revista aberta, Adelaide pensa. Olhos fixos ao longe, não vê o belo céu azul nem sente o ar fresco que entra quarto adentro. Alheia a tudo, também não ouve o burburinho da rua, o trânsito intenso àquela hora do dia. Pela tela da memória, passam-lhe imagens de seis meses atrás, levando-a a recordar-se de como tudo tinha começado... No confortável quarto de hospital, o leito está vazio. Nesse momento, uma atendente entra e Adelaide pergunta:
- Os exames ainda demoram?
- Não. Estão quase terminando. Logo irão trazer o paciente para o quarto - responde a moça, ajeitando rapidamente os lençóis.
A atendente sai e Adelaide volta seus olhos para a ampla janela, de onde descortina o belo dia de sol, o céu sem nuvens e o jardim do hospital. Cinco minutos depois, a porta se abre e dois enfermeiros entram empurrando uma maça. Com a agilidade daqueles que estão familiarizados com a tarefa, passam o enfermo para o leito, cobrem-no com o lençol e lhe ajeitam o travesseiro. Adelaide aproxima-se do doente, que geme baixinho.
- Como está, papai? Sente dor?
O paciente responde com uma careta.
- Quer tomar um analgésico?
- Agora não, minha filha. Mais tarde.
- Acho que já pode se alimentar, papai. O que deseja?
O doente balança a cabeça negativamente. A moça insiste:
- Papai, o senhor está fraco. Desde ontem está de jejum. Precisa se alimentar. Um chá, talvez?
- Não, filha. Quero apenas descansar. Estou exausto. Ela entendeu. Não insistiu. Ele queria sossego. Alisou os lençóis delicadamente e concordou:
- Está bem, papai. Descanse. Está precisando mesmo dormir um pouco. Se precisar de algo, estarei aqui a seu lado.
Voltou para a cadeira perto da janela, observando o pai, que fechara os olhos tentando dormir. Achou-o muito pálido, emagrecido. O doente era um homem de sessenta e oito anos de idade, forte e resistente, que até o último ano nunca apresentara problemas de saúde. De repente, passou a ter alguns sintomas inquietantes que os médicos não conseguiam diagnosticar.
A circulação estava alterada e a pressão, instável; o eletrocardiograma acusava também problema cardíaco. Tinha desmaios, e, muitas vezes, Adelaide o encontrara caído no chão, desacordado. Com o passar do tempo, as coisas foram piorando e agora os médicos estudavam a possibilidade de fazer uma cirurgia, desde que o estado do paciente permitisse. Mais tarde, o médico entrou no quarto para a visita habitual. Adelaide abriu a boca para falar, mas antes que lhe perguntasse, ele adiantou-se, informando ao paciente:
- João, os exames mostram que suas condições orgânicas no momento são boas, estáveis, e achamos que é a ocasião mais adequada para a cirurgia. O que acha?
O enfermo, confortavelmente recostado nos travesseiros tomando uma xícara de chá, respondeu com voz fraca:
- Você é meu amigo, Monteiro, e mais do que ninguém sabe como me sinto, o que estou passando. Se você acha que essa é a solução, eu aceito.
Adelaide, de pé ao lado do leito, questionou preocupada:
- Meu pai ficará curado, doutor Monteiro? Quais são suas chances? Correrá perigo?
- Sua preocupação é legítima, Adelaide, porém nada posso garantir. Toda cirurgia envolve riscos, e a do seu pai é uma cirurgia extensa e de gravidade. O que posso lhe assegurar é que ele tem chances de uma existência mais normal se for operado.
- E se não for?...
- Lamento - murmurou o médico com expressão grave. Assustada, Adelaide virou-se para o pai com os olhos úmidos, apertando-lhe a mão. Com ternura, João fitou a moça a seu lado, afirmando com voz embargada:
- Não se preocupe, minha querida, confie em Deus; tudo correrá bem.
E, virando a cabeça, olhou para o médico, que esperava uma decisão:
- Monteiro, estou pronto. Confio em você.
- Ótimo. Agradeço-lhe a confiança, João. Você estará sob os meus cuidados, como também de toda uma equipe de médicos, os melhores desta cidade. Comeu alguma coisa, João?
- Não, doutor. Estava começando a tomar este chá por insistência minha - respondeu a filha.
- Bem, como ficou de dieta durante todo o dia, em virtude dos exames, não há problema. Pois então, João, saboreie bem o seu chá. É só o que terá por hoje. Amanhã cedo virão prepará-lo e conduzi-lo à sala de cirurgias. Durma bem.
O médico saiu e João acabou de tomar o chá. Ambos permaneceram calados. Aquela noite, Adelaide não conseguiu dormir. Na manhã seguinte, João foi levado para o centro cirúrgico. Durante muitas horas, ela aguardou notícias do pai. Pelo meio da tarde, o cirurgião entrou no quarto informando que tudo correra bem, que o paciente ficaria na UTI por algum tempo.
- Mas por que, doutor Monteiro?
- É de praxe, Adelaide. João está sendo monitorado por aparelhos, e lá terá o acompanhamento direto de que precisa, em virtude da gravidade da cirurgia. Você poderá vê-lo, com os cuidados devidos. Não podemos correr o risco de infecção.
- Entendo doutor. Obrigada.
Tudo corria bem. Na véspera de sair da UTI e voltar para o quarto, o quadro clínico se complicou. João teve uma parada respiratória e entrou em coma. Às pressas foi levado para o centro cirúrgico e a equipe médica tudo fez para ajudá-lo, sem resultados. Desse dia em diante, João não mais acordou. Continuou em coma profundo por longos meses. Como o estado do paciente permanecia inalterado, a direção do hospital sugeriu a Adelaide que o melhor seria levar o enfermo para casa e contratar enfermeiras. O próprio Monteiro aconselhou essa decisão porque, não obstante João ser um homem rico, a sua permanência no hospital era desnecessária, acarretando sem razão gastos expressivos para a família e submetendo-o ao risco de contrair uma infecção hospitalar, sempre temível.
Adelaide tomou todas as providências: adaptou o quarto do pai, equipando-o com o indispensável para seu atendimento, e contratou enfermeiras para assisti-lo o tempo todo. Quando tudo estava pronto, uma ambulância levou-o para casa. A partir desse dia, a vida de Adelaide se resumiu à preocupação e aos cuidados com o pai. Deixou o emprego, os amigos, os divertimentos, tudo, para dedicar-se a ele. Nos primeiros tempos, cuidava do enfermo com desvelo e carinho. Depois, como não visse mudança, cansou-se. Com o passar dos meses, a rotina dessa situação foi deixando-a insatisfeita, irritada, descontente. Afinal, sou solteira, tenho vontade de sair, arranjar um namorado, casar, ter filhos, trabalhar, e não posso, irremediavelmente presa ao meu pai. E eu não tenho muito tempo! A vida é curta. Estou com quase 40 anos e quero viver! Mas como? A moça começou a acalentar pensamentos menos puros. Também precisava de dinheiro e estava tudo em nome do pai. Enquanto ele estivesse vivo, tinha de se contentar com a retirada mensal estipulada, conforme cláusula estabelecida na empresa. Nada lhe faltava, é certo, mas Adelaide queria ter liberdade para gastar dinheiro como lhe aprouvesse, comprar roupas, jóias, um carro novo. Seu pai, conquanto muito rico, sempre fora comedido nas despesas. Sem a influência benéfica que o pai exercia sobre ela - falando-lhe de religião e incutindo-lhe nobres valores morais -, Adelaide se deixou envolver por vibrações nocivas de entidades desencarnadas, inimigas de João e dela própria, que desejavam destruí-los. Assim, passou a considerar-se injustiçada pela vida, uma vez que, tendo tudo, não podia usufruir de coisa alguma. Certo dia, fazendo compras, casualmente encontrou um antigo namorado, e o coração bateu forte. O rapaz convidou-a para tomar um suco e Adelaide aceitou, satisfeita. Era a primeira coisa interessante que acontecia em sua vida desde que o pai ficara doente. Humberto, o antigo namorado, retornava à cidade depois de passar dois anos fora. Estava curioso para saber das novidades, queria notícias dos amigos. Adelaide, sorridente, contou-lhe tudo o que sabia. Depois, desculpou-se:
- Lamento não poder dar-lhe outras informações, Humberto. Embora tenha permanecido na cidade, ao contrário de você, quase não saí de casa em virtude do estado de meu pai. E contou ao rapaz tudo o que tinha acontecido nos últimos meses. Penalizado, ele confortou-a. Saíram outras vezes, reatando o namoro, e, uma noite, Humberto foi até a casa de Adelaide fazer uma visita ao doente. Assustou-se com a aparência do enfermo. No passado, conhecera um executivo forte, decidido, cheio de vida, e agora o encontrava nessa situação - quase vegetativa. Apesar da compaixão que sentiu pelo enfermo, passou a vibrar no mesmo padrão da namorada.
- É uma pena que continue sofrendo desse jeito. Afinal, já está praticamente morto.
- Pensa realmente assim, Humberto?
- Claro! Ele não está sendo mantido com vida apenas pelos aparelhos?
- Sim. Mas meu pai sempre me afirmou que a vida é sagrada; e, se há vida, há esperança.
- Não neste caso, meu bem. Só existe vida vegetativa. Adelaide ficou pensativa. Após a saída de Humberto, retornou ao quarto do pai, onde a enfermeira vigiava. Verificou se estava tudo bem, deu um boa-noite para a moça e foi para seus aposentos.
Sozinha no escuro, não conseguia dormir. Sentiu um arrepio, e uma sensação de medo fez com que acendesse a luz do abajur. A pequena claridade espalhou-se no ambiente, deixando-a mais tranqüila. As idéias começaram a se avolumar em seu íntimo, idéias que tinha medo até de pensar. Mas... E se os aparelhos fossem desligados? Eu ficaria livre dessa prisão e meu pai também, visto que ele deve estar sofrendo, embora não demonstre. Papai sempre me falava da "outra vida". Assim, ele ficaria livre para viver a "verdadeira vida", e eu ficaria pronta para recomeçar a viver. Seus pensamentos se voltaram para o namorado, a quem se sentia presa por intenso amor. Lembrou-se de que, alguns dias antes, Humberto, delicadamente, deixou escapar que não desejava ficar preso a nada; não estava se adaptando bem ao Brasil, sentia falta da vida que levava na Europa. Queria encontrar a mulher ideal para casar-se e aproveitar a vida, viajar pelo mundo inteiro e divertir-se muito. Não posso perder essa oportunidade de ser feliz! - pensou ela. Não queria perder o namorado, de quem tão oportunamente se reaproximara. Humberto era um rapaz bom, gentil, delicado, mas não tinha tido muitas oportunidades na vida. Falava em viagens, em divertimentos, porém não tinha recursos. Ele lhe confidenciara que tinha voltado ao Brasil com os recursos que conseguira economizar trabalhando no exterior, porém não eram muitos e logo acabariam. Portanto, vamos precisar do "meu" dinheiro, ou melhor, do dinheiro que receberei de herança quando meu pai morrer. E daí? Isso não tem nenhuma importância! Para que serve o dinheiro se não for para gastar? Com certeza meu pai compreenderá minha atitude e me perdoará, como sempre fez desde que eu era criança e fazia alguma arte. Acalmada a consciência com essas justificativas, decidiu que realmente o melhor a ser feito era desligar os aparelhos. Mas como agir? Como desligar os aparelhos? Não poderia envolver mais ninguém, e as enfermeiras não desgrudavam de seu pai, por ordem dela mesma. Resolveu que daria um sonífero à enfermeira da noite. Depois, seria fácil. Desligaria os aparelhos sem problemas. Assim resolvida a questão, Adelaide teria de pensar no melhor momento para agir. Era uma quarta-feira. Decidiu que seria na sexta-feira, quando a responsável pelo turno da noite seria Clara, moça boa, mas desatenta, e que por duas vezes já estivera para ser dispensada, exatamente por dormir em serviço. Os desencarnados vingadores vibraram com a decisão. Tudo caminhava bem. Se ela titubeasse, eles estariam ali para garantir o sucesso da operação.


CAPÍTULO 6 - SOCORRO INESPERADO

"Temos pensamentos próprios e outros que são sugeridos?" "Vossa alma é um Espírito que pensa; não ignorais que muitos pensamentos vos ocorrem às vezes ao mesmo tempo sobre um mesmo assunto e freqüentemente bastante contrários uns aos outros; pois bem, nesses pensamentos há sempre os vossos e os nossos. Isso vos coloca na incerteza, porque, então, tendes duas idéias que se combatem." (O LIVRO DOS ESPÍRITOS, ALLAN KARDEC, QUESTÃO 460)

Esta era a situação no momento e, em virtude da emergência da crise em via de manifestar-se, pedidos de socorro começaram a chegar à espiritualidade. Nossa equipe, sob a orientação de Eusébio, dedicado benfeitor espiritual, foi chamada para atender ao caso. Deslocamo-nos de Céu Azul rapidamente, vencendo as distâncias, e ainda era manhãzinha quando chegamos à grande cidade, buscando o endereço que nos tinha sido passado. Não foi difícil localizar a casa, situada em bairro nobre da cidade. Entramos. A cena que se apresentou a nossos olhos era comovente. João, considerado organicamente em coma, incapaz de reagir, conservava-se lúcido espiritualmente. Eram dele os pedidos de socorro que nossos delicados sensores do Além tinham captado. Ajoelhado em espírito, suplicava de mãos postas:
- Senhor Jesus! Ajude-me. Não posso morrer ainda! Não quero morrer! Sinto que preciso ficar mais algum tempo na carne para ajudar minha filha. Porém, estou assustado! Minha querida Adelaide, razão da minha vida, planeja matar-me. Não quero que ela se comprometa com mais esse crime. Por favor, Jesus, socorra-me!
A cena era tocante e nos sensibilizou. Logo em seguida, notamos duas entidades, servidoras do bem, que se mantinham no ambiente e protegiam o enfermo das investidas das sombras. Aproximamo-nos. A primeira era Amália, esposa de João e mãezinha de Adelaide; a outra era seu avô Terêncio, ambos desencarnados fazia muitos anos. Receberam-nos com carinho, agradecendo nossa presença. Feitas as apresentações, Amália esclareceu-nos:
- João, meu esposo na encarnação passada, está extremamente preocupado desde que percebeu as intenções de nossa filha, Adelaide. Por isso, também solicitamos reforços espirituais, porque vamos precisar de muita ajuda. Temos boa vontade, caro Eusébio, mas nossas condições são limitadas, como pode perceber.
Eusébio ofereceu-se, gentil:
- Conte conosco, minha irmã. Estamos aqui prontos para o trabalho e desejamos ser úteis.
Demonstrando grande inquietação, Terêncio implorou:
- Alguma coisa precisa ser feita em caráter de urgência, nobre Eusébio. A situação é crítica. Adelaide pretende desligar os aparelhos ainda esta noite!
- Estou ciente, caro Terêncio. Mantenha a serenidade e confie. Vamos ver o que pode ser feito - disse o orientador.
Depois, como João continuasse repetindo suas súplicas, Eusébio achegou-se a ele, tranqüilizando-o. Com as mãos sobre a cabeça do enfermo, envolveu-o com energias balsamizantes:
- João! Acalme-se, meu amigo. Confie em Jesus. Você está muito agitado, nervoso e tal estado lhe é prejudicial. Tranqüilize-se. Estamos atentos. Nada tema. Repouse.
Ouvindo essas palavras, como se tivesse recebido uma ordem, João acomodou-se numa cama ao lado do seu leito, serenando o espírito. Víamos-lhe o corpo de carne, com as funções reduzidas ao mínimo, completamente imóvel, quase um cadáver. Ao lado, o corpo espiritual repousando. Percebíamos que, à medida que o organismo físico se enfraquecia paulatinamente, o corpo espiritual se fortalecia na mesma proporção. Algumas horas depois, Adelaide chegou da rua. Sua escolta consistia em três entidades de aspecto vingativo e cruel que não se afastavam dela um momento sequer, mantendo-se ligadas ao seu psiquismo. Notamos fios escuros e viscosos que saíam da mente de Vado, aquele que parecia ser o chefe da pequena falange, e ligavam-se à mente da jovem. Quando Adelaide aproximou-se da porta do quarto do pai, ficamos um pouco preocupados, conquanto soubéssemos que o enfermo estava sob a proteção do Alto. Todavia, uma cena interessante deparou-se a nosso olhar, tranqüilizando-nos: seus acompanhantes não puderam entrar, sendo obrigados a retroceder, permanecendo fora do aposento, a contragosto.
- Perceberam? Ninguém está desamparado sob a vista de Deus. A proteção de que goza o enfermo não é favoritismo divino, mas representa conseqüência justa de uma existência reta e digna, das boas ações que ele praticou, créditos esses que agora o beneficiam e o envolvem em branda luminosidade, afastando os adversários e impedindo-os de atormentá-lo - comentou Eusébio discretamente.
Aproximando-se do leito, Adelaide olhou o pai imóvel. Naquele momento, nenhum sinal de afeto, nenhum gesto de carinho. Sem olhar para a enfermeira, ela resmungou:
- Que calor! Tudo bem por aqui, Ema? Precisa de algo?
- Está tudo em ordem, dona Adelaide. Não preciso de nada.
- Ótimo. Então vá almoçar que eu ficarei aqui. Tomei um suco na rua e estou sem fome. A enfermeira saiu, estranhando a inusitada delicadeza da patroa. Adelaide sentou-se junto à janela pondo-se a pensar. E chegado o dia. Já que preciso tomar uma atitude, que seja o mais rápido possível. Tem de ser esta noite. Só assim ficarei livre desse empecilho a minha felicidade. Na espiritualidade, nós percebíamos-lhe os criminosos pensamentos. Julgando-se sozinha, refletia com frieza, mentalmente estudando os passos que teria de dar para terminar com a vida do pai. Felizmente, João dormia em espírito; caso contrário, ficaria deveras decepcionado ao ver a filha do coração referir-se a ele como um traste inútil e incômodo, depois de toda uma vida de dedicação e carinho. Aproveitando a oportunidade, Eusébio pediu que Amália se acercasse da filha e a envolvesse em emanações benéficas, sugerindo-lhe atitudes mais sadias.
- Adelaide, minha querida filha, pense bem no que vai fazer. Lembre-se do amor que sempre recebeu de seu pai, que agora aí está indefeso. João não apenas lhe deu a oportunidade de viver, mas como pai amoroso, durante toda a sua existência, ele a cercou de cuidados, dando-lhe o melhor. Quando fui obrigada a deixá-la, por determinação divina, partindo para a espiritualidade, foi ele quem me substituiu, suprindo minha falta e tornando-se pai e mãe para você, de modo que nada lhe faltasse. É justo que agora, quando ele mais precisa, você lhe negue amparo? Não se macule minha filha, sujando as mãos com o ato nefando que planeja. Acredite seu pai não permanecerá muito tempo na Terra. Tenha um pouco mais de paciência, Adelaide, e você ficará legalmente com tudo a que tem direito. Piedade, minha filha. Lembre-se da orientação de Jesus: fazer aos outros o que gostaríamos que os outros nos fizessem.
A mãezinha fez breve pausa, dando à filha tempo para refletir, enquanto acariciava delicadamente seus cabelos. Notamos que fios brilhantes e tenuíssimos ligavam a fronte de Eusébio à cabeça de Amália. Depois ela prosseguiu:
- Você é jovem, minha filha, ainda tem uma existência pela frente. Seu pai já está no término da dele, e precisa desse tempo, infinitamente precioso para concluir seu aprendizado aqui na Terra. Pense Adelaide. Eleve seu pensamento a Jesus, o Mestre Maior, libertando-se da influência desses inimigos que tentam destruir seu pai por suas mãos. Que Deus a ampare e ilumine para que tome a decisão certa.
Enquanto Amália falava, Adelaide não a ouvia com os ouvidos do corpo, mas recebia as sugestões na acústica da alma. A imagem do pai, sempre cheio de amor e carinho, surgiu-lhe em diversos momentos de sua existência, evocados pela mãezinha: consolando-a numa queda da bicicleta, levando-a para passear, para tomar sorvete, comprando-lhe presentes, ajudando-a nos deveres escolares, orando com ela antes de dormir, e muitos outros que agora lhe afloravam à mente. A imagem da mãe surgiu nítida e forte em sua tela mental, com intenso sentimento de amor e saudade. Sim, desde que a mãezinha morrera, o pai fora toda a sua família, cercando-a de cuidados e de atenções. Como havia se esquecido disso? O coração se lhe confrangeu ao pensar na atitude que iria tomar. Sentiu-se indecisa, sem forças. Quem sabe não é melhor aguardar? Talvez ele morra logo, está tão fraco! Por que sujar minhas mãos com esse crime? As idéias plantadas na sua mente por Amália vingavam. Respiramos mais aliviados, considerando afastado o perigo. Eusébio, cauteloso, considerou:
- Não cantem vitória antes do tempo. O perigo ainda não foi afastado. Adelaide terá de enfrentar sérios problemas durante o resto deste dia. Observem.
Nesse momento, Ema voltava do almoço e Adelaide, entregando-lhe o posto, saiu do quarto para igualmente fazer a refeição. Algo havia mudado nela. A diferente disposição íntima deixou os adversários em alerta vermelho. Sentando-se à mesa, onde as iguarias estavam servidas, Adelaide continuava pensativa. Os acompanhantes Vado, Crepaldi e Quintino, igualmente se aproximaram e passaram a inalar as substâncias nutritivas por meio do vapor que se desprendia dos alimentos, com isso demonstrando enorme satisfação. Adelaide continuava refletindo na situação do pai e no pouco tempo de vida que provavelmente ele teria. Se a mãe falecida estivesse viva em algum lugar e pudesse vê-la desejando a morte do pai, o que pensaria dela? Percebendo que ela lhes escapava, os obsessores aumentaram o cerco. Vado, incisivo, considerava:
- Deseja passar o resto da vida sozinha e sem dinheiro? Sim, porque é isso o que vai acontecer! Humberto não terá paciência de esperar, partindo para outra. Tome uma atitude. Você já decidiu! Por que esperar mais? O tempo urge! Amanhã mesmo, a esta hora, você será uma mulher rica. Pense em como sua vida será diferente e feliz com o homem que ama, vivendo ao lado dele e com muito dinheiro para satisfazer seus caprichos. Pense! Pense! Não hesite!...
À medida que a envolviam com suas sugestões maléficas, os adversários do bem readquiriam seu império sobre ela, e tínhamos dificuldade em nos aproximar.
- E agora, o que faremos? - indagou Amália, apreensiva. - Acalme-se, minha irmã. Confiemos em Jesus. Não nos esqueçamos, todavia, de que o livre-arbítrio é atributo do espírito e cada um é livre para tomar as próprias decisões, ficando responsável pelas conseqüências geradas por elas.
- Concordo caro Eusébio. No entanto, minha infeliz Adelaide está sendo coagida pelos seus obsessores.
O generoso orientador ponderou:
- Sim, certamente Adelaide não está sozinha em suas decisões. Cabe-nos lembrar, porém, que os inimigos desencarnados apenas se beneficiam das brechas morais que nossa irmãzinha exterioriza, incentivando-lhe os desvios de comportamento, mediante clichês que ela própria mantém em seu psiquismo. Os adversários não criaram nada. Apenas sugerem-lhe as idéias negativas. Percebe a diferença? Se nossa Adelaide pensasse de outra forma, conservando o respeito à vida, a dignidade própria e o amor filial, como seria de esperar, nada disso estaria acontecendo. Amália baixou a cabeça, aceitando as ponderações de Eusébio, justas e sábias.
- Sei que tem razão, meu amigo. Compreendo-o e lamento por minha pobre filha.
Então, nada podemos fazer? Temos de aceitar passivamente os acontecimentos?
- De forma alguma, minha irmã. Vamos usar todos os recursos à nossa disposição para evitar o pior, ajudando não apenas João, mas também Adelaide e os irmãos desencarnados, vítimas de ontem, evitando que se comprometam ainda mais com a justiça divina.
Durante o resto do dia, Adelaide manteve-se inquieta, atormentada e indecisa. Em sua mente, duas posições antagônicas se entrechocavam. Uma, continuar a cuidar do pai, que provavelmente não duraria muito, pelo estado de fraqueza orgânica de que dava mostras. Outra, desligar os aparelhos e provocar-lhe a morte, ficando livre para decidir o que fazer de sua vida. Os inimigos desencarnados não lhe davam tréguas, mas percebiam que ela estava em dúvida. Trocaram idéias entre si e decidiram: precisavam de reforço. A presença de Humberto era indispensável naquela casa. Uma hora depois, a campainha toca. Era o namorado que chegava, acompanhado de Quintino e Crepaldi, os obsessores que tinham ido buscá-lo. Adelaide recebeu Humberto, satisfeita pela visita inesperada do amado, secundada por Vado, que exultava diante da operação vitoriosa. Beijaram-se. Humberto percebeu que ela estava pálida e abatida. Adelaide levou-o para um sofá, onde se acomodaram. Com carinho ele perguntou:
- Noto que você está inquieta, nervosa... Aconteceu alguma coisa, minha querida?
- Não suportando mais a pressão, ela caiu em pranto. - É meu pai, Humberto. Essa situação me enlouquece. Vejo-o definhar a cada dia sem poder fazer nada.
Aconchegando-a ao peito, com delicadeza e extremo tato, o rapaz considerou:
- Ele deve estar sofrendo muito com essa situação, apesar de só existir vida vegetativa. Se pudéssemos fazer alguma coisa para ajudá-lo, libertando-o desse sofrimento inútil!...
Adelaide desejou confessar seus planos ao namorado, contudo um resto de prudência fez com que se calasse. Deu um suspiro e concluiu, desalentada:
- Quem sabe Deus resolve libertá-lo? E. Nunca se sabe quando chegará a hora. Pode ser amanhã, como daqui a dez anos - ele ponderou, lentamente, frisando as palavras.
Ouvindo-o, Adelaide arregalou os olhos, espantada. É verdade! Não tinha pensado nisso. E se ele durar mais dez anos? Ou vinte? Meu Deus! Conversaram mais um pouco, depois Humberto despediu-se, alegando providências urgentes a tomar. Pretendia viajar por alguns dias e precisava ultimar negócios. Adelaide sentiu todo o seu sistema de defesa em alerta.
- Você pretende viajar, meu amor? E não me disse nada? Com quem? Quando?
Humberto desconversou:
- Ainda não sei Adelaide, estou analisando a situação. Vai depender de alguns negócios que tenho em vista. Vamos ver. Quando souber, lhe comunico, está bem? Boa noite, querida.
Reconhecendo a ameaça de abandono vibrando no ar, a jovem sentiu-se ainda mais desnorteada. Compreendeu que se não fizesse algo rápido, perderia o impaciente namorado para sempre. Naquele momento, sentimos que a vida de João corria sério risco. Os adversários desencarnados comemoravam por antecipação fazendo grande algazarra. Eram nove horas da noite; às dez, haveria a troca de plantão das enfermeiras. Eusébio pediu que ficássemos atentos. Ele teria que se ausentar, mas voltaria no menor espaço de tempo possível. Quando Clara, a plantonista da noite, chegou, nosso orientador ainda não tinha retornado, o que nos deixou preocupados. Adelaide, gentil, se pôs a conversar com a enfermeira. A certo momento comentou:
- Está tão quente hoje! Quer um suco de laranja bem geladinho? - Aceito com prazer, dona Adelaide. A senhora acertou. Estou mesmo com sede.
A dona da casa saiu para providenciar o suco. Alguns minutos depois, voltou com dois copos, oferecendo um deles à enfermeira. Depois de tomar a bebida refrescante, Adelaide alegou estar com sono e despediu-se:
- Boa noite, Clara. Se precisar de alguma coisa, não hesite em me chamar.
- Chamarei não se preocupe. Boa noite, dona Adelaide. Adelaide ainda não tinha começado a subir as escadas quando ouviu o som da televisão, que fora ligada. Sorriu. Agora sim é que Clara dormiria ainda mais rápido. Logo em seguida, Eusébio entrou acompanhado de uma senhora de elevada hierarquia espiritual, deixando-nos mais aliviados. Antes que ele fizesse as apresentações, Amália adiantou-se, abraçando a recém-chegada com grande respeito e admiração:
- Esta é Laura, que na encarnação passada foi mãe de João e avó de Adelaide.
Trocamos cumprimentos. Depois, aguardávamos os acontecimentos conversando sobre elevados assuntos com Amália, Terêncio, Eusébio e Laura, quando fomos alertados de que a filha de João se aproximava. Fazia uma hora que ela se recolhera. Desceu a escadaria sem fazer ruído e abriu a porta do quarto do pai. Aliviada, reconheceu que a enfermeira dormia a sono solto. Também, com a quantidade de sonífero que lhe dei! - pensou. Nesse momento, a um gesto de Eusébio, acercamo-nos, fazendo um círculo em torno de João. Vimos quando Adelaide aproximou-se do leito paterno e, sem titubear, desligou os aparelhos, retirando da tomada o fio condutor de energia. Quase a correr, abandonou o aposento. Naquele instante, sentiu medo das conseqüências da sua ação, como toda criatura covarde. No entanto, sem que ela pudesse imaginar, ali estávamos nós, reunidos em prece em torno do leito de João. Laura, espírito de maior elevação presente no ambiente, orava, elevando os braços para o Alto e suplicando às potências superiores da vida socorro naquele momento tão delicado.
- Senhor da Vida! Pai Amantíssimo! Neste momento, externando nossos melhores sentimentos e irmanados em pensamento, nos dirigimos a Ti, sabedores de que jamais deixas um filho Teu desamparado. Suplicamos-Te por todos os envolvidos neste drama que se arrasta há longos séculos; contudo, Senhor, direciona Tuas bênçãos para nosso irmão João, mais necessitado de socorro nesta hora. Rogamos Tua permissão, Senhor, para que ele permaneça algum tempo ainda na matéria densa, de modo a cumprir a tarefa de ajuda com a qual se comprometeu se for da Tua vontade.
"Lança também, Pai, Teu olhar compassivo sobre os demais envolvidos. Não desejamos emitir julgamentos, pois tanto nossa querida Adelaide quanto os infelizes irmãos desencarnados que a influenciam são necessitados de socorro e de assistência. Apesar da nossa súplica, reconhecemos que nada sabemos e que Tu tens o conhecimento de todas as coisas. Dessa forma, curvamo-nos diante de Ti, pedindo que se cumpra sempre a Tua vontade, Senhor, em todos os momentos e em todos os lugares. Abençoa-nos a todos, Senhor, e aceita a nossa gratidão, envolvendo-nos com Tua luz terna e misericordiosa."
À medida que Laura orava, todo o seu corpo se modificava, ficando nimbado de luz. Suas vestes pareciam tecidas em delicados arabescos luminosos; seus cabelos, seu rosto, seus braços, brilhavam intensamente. Sentimos que as vibrações do ambiente se tornavam suaves e elevadas, enquanto uma claridade azulada, um foco de luz iridescente, descia sobre o leito, envolvendo o enfermo, que passou a refletir a luminosidade que vertia sobre ele. O bem-estar, a alegria, a harmonia interior que senti então eram desconhecidos para mim. Em minhas lembranças mais caras desde que aportara na espiritualidade, jamais tinha experimentado tal sentimento de plenitude. Deixei que lágrimas de emoção rolassem pelo rosto. Num relance, abri os olhos e percebi que os demais também choravam, sensibilizados e irmanados pelas mesmas impressões que me atingiam. Por alguns minutos, o ambiente permaneceu nas mesmas condições. Terminada a oração, aos poucos tudo foi voltando ao normal. Olhei para João. Oh! Maravilha! Conquanto Adelaide tivesse desligado os aparelhos, ele continuava respirando. Estava vivo! Sorrimos, satisfeitos e agradecidos. Todos estavam felizes. Nosso amigo João permaneceria mais algum tempo encarnado na Terra.


CAPÍTULO 7 - O DESPERTAR DA CONSCIÊNCIA

"Onde está escrita a lei de Deus?" "Na consciência."
(O LIVRO DOS ESPÍRITOS, ALLAN KARDEC, QUESTÃO 621)

Adelaide acordou com fortes pancadas na porta do seu quarto. A noite tinha sido difícil e quase não conseguiu dormir, só o fazendo às primeiras claridades do dia. Assim, levantou-se sonolenta, sem entender o que estava acontecendo. Era a empregada, extremamente aflita.
- O que houve? Você quase derrubou a porta, Mercedes! A mulher torcia as mãos em extremo nervosismo.
- Fale logo, criatura! O que houve? E com meu pai?
- Rápido senhora! Clara pede sua presença imediata no quarto do senhor João. Adelaide, meio atordoada, somente naquele momento lembrou-se da atitude que tinha tomado na noite anterior.
- Meu pai! Meu querido pai! - gritou ela, saindo a correr pela casa e descendo as escadas como louca, enquanto a serviçal tentava acompanhá-la.
A jovem entrou nos aposentos do pai e jogou-se sobre seu peito, chorando convulsivamente por acreditá-lo morto.
- Papai! Papai! O senhor me deixou! Por que, papai? Por quê? Os empregados, de olhos arregalados, acompanhavam a cena sem conseguir dizer nada. Até que a enfermeira, controlando o nervosismo, tocou no ombro da patroa.
Virando-se, Adelaide viu quem estava a seu lado.
- Clara, como foi acontecer isso? Por que não me chamou? - inquiriu a moça.
- Não sei senhora. Não entendo!
- Meu pai morreu e a culpa é sua, imprestável! - gritou ela, recomeçando a chorar.
Compreendendo o que se passava na cabeça da patroa, a enfermeira esclareceu:
- Acalme-se, senhora! Creio que há um engano. Seu pai não está morto!
- O quê? Não está morto?... - balbuciou ela, incapaz de acreditar.
- E isso o que estou tentando lhe dizer, dona Adelaide - respondeu Clara, trêmula.
Rapidamente dirigiu-se para a parede do fundo e levantou o cabo elétrico, desligado da tomada, mostrando-o à patroa:
- Veja! Não sei como tal fato sucedeu. O fio que mantinha os aparelhos funcionando amanheceu desligado da tomada. Mas, apesar disso, o senhor João continua vivo!
Procurando readquirir o equilíbrio, Adelaide questionou:
- Mas... Mas... Como isso foi acontecer? Ainda ontem estive aqui até tarde e tudo estava bem! - gritou exasperada.
- Não sei senhora. Só sei que hoje cedo os aparelhos estavam desligados. Achei muito estranho...
- Certamente você, andando pelo quarto, desligou sem querer. Ou então dormiu e teve um ataque de sonambulismo! Se meu pai morrer, eu processo você por negligência profissional. Chame o médico imediatamente.
- Já chamei senhora. Ele não deve demorar.
Poucos minutos depois, a campainha soa. Era o doutor Monteiro, que foi rapidamente introduzido nos aposentos do enfermo. Adelaide acompanhou-o, aproximando-se do leito com expressão preocupada. O médico examina cuidadosamente o doente. Sua fisionomia é grave e compenetrada. Quando termina, pergunta à enfermeira:
- Clara, desde quando os aparelhos estão desligados?
- Ignoro doutor. Até ontem à noite tudo estava normal. Verifiquei pessoalmente, como sempre faço. Não sei como isso foi acontecer, doutor. Depois que dona Adelaide saiu ninguém mais entrou no quarto. E estranho... Só se eu desliguei sem perceber. Mas não consigo entender como faria isso. Estou pasma!
Monteiro ouviu calado. Depois, passou a mão na cabeça e sentou-se, observando o enfermo.
- E então, doutor? Como está meu pai? - indagou Adelaide, tentando parecer aflita.
O médico olhou para a moça e sorriu:
- Acalme-se, Adelaide. Seu pai está bem. Contra todos os prognósticos, as funções vitais dele estão normais! E surpreendente!
- Normais? O que isso quer dizer? O que vai acontecer com ele agora, doutor?
- Não sei Adelaide. Só Deus o sabe!
- Como assim? Meu pai não deveria estar morto?
- Sem dúvida. Porém, existem outros casos iguais ao dele na literatura médica. Pessoas que viveram anos em coma profundo e depois, ao serem desligados os aparelhos que lhes mantinham a vida orgânica - até em cumprimento de decisão judicial, é preciso que se diga! -, não morreram. Você mesma já deve ter ouvido falar de casos assim.
Adelaide jogou-se numa cadeira, apoiando a cabeça com as mãos.
- Sim, já ouvi falar desses casos. Raros, por sinal. E têm que acontecer logo comigo?
Tudo está perdido! Eu me arrisquei para matar meu pai e ele continua vivo! O que pode significar isso?
Entendendo equivocadamente os sentimentos da moça, que julgou fossem os de uma filha preocupada com o pai, Monteiro consolou-a:
- Minha filha, acalme-se! O pior já passou. Este é um momento de alegria! Afinal, seu pai está vivo e poderá continuar com você por mais algum tempo.
Entendendo que precisava conter-se para não levantar suspeitas, Adelaide ergueu a cabeça, chorosa:
- Eu sei, doutor Monteiro. Estou contente, sim. Só o fato de meu querido pai não ter morrido é suficiente para mim. Mas... Tenho medo dessa mudança, do que poderá vir depois...
- Por quanto tempo o senhor acha que ele permanecerá assim... Como está agora?
O médico olhou para o enfermo e, encolhendo os ombros, virou-se para a jovem:
- A medicina não tem resposta para todos os nossos questionamentos, Adelaide. Também nós, os médicos, muitas vezes ficamos pasmos diante de determinadas situações. Esta é uma delas. Não posso fazer prognósticos. João poderá ficar assim um dia, um mês, um ano, dez anos... Quem sabe? É imprevisível. Só Deus tem a resposta para essa pergunta.
Nada mais tendo a fazer ali, o médico despediu-se, colocando-se à disposição para o que fosse necessário:
- A qualquer hora do dia ou da noite, se houver alguma mudança no quadro, por menor que seja, avisem-me. Vou mandar um amigo, especialista na área, neurologista famoso, para examiná-lo e dar sua opinião sobre o caso.
- Sim, doutor. Se acha que é importante, faça o que for preciso - concordou Adelaide.
O médico fez mais algumas recomendações à enfermeira e deixou a casa. Aos poucos, tudo foi voltando ao normal. Os empregados retornaram às suas ocupações e Adelaide sentou-se numa poltrona, ao lado do leito, ali permanecendo, calada e imóvel. Olhava fixamente o pai, porém sua expressão era vaga, distante. Na verdade, sua cabeça fervilhava. Aquele fato a tinha deixado muito mais abalada do que gostaria de admitir. No momento em que o médico se referiu a Deus, como se a vida de seu pai estivesse nas mãos Dele, Adelaide sentiu um calafrio da cabeça aos pés. Tinha de reconhecer agora que, além da vontade dela e até da medicina terrena, alguma força superior existia e governava. Suas esperanças de libertação e felicidade estavam destruídas. De vez em quando, um das criadas entrava no quarto, ficava um pouco e saía. Estavam todos preocupados com Adelaide, vendo-a naquele estado. Certo momento em que ela deu acordo de si notou que a enfermeira Ema estava a seu lado, já no cumprimento de suas obrigações. Ao chegar para o plantão, Clara a informara das novas condições do enfermo, das recomendações médicas e da necessidade de ficar atenta à menor mudança em seu estado. Afeiçoada a Ema, que sempre havia demonstrado mais equilíbrio e competência, Adelaide perguntou-lhe:
- O que acha de tudo isso, Ema?
A enfermeira pensou um pouco, como se refletindo na conveniência do que iria dizer.
Depois, falou suavemente:
- Penso que é a bondade de Deus se fazendo presente na vida do senhor João e também na sua.
- Como assim?- Significa que ainda não chegou a hora dele partir, entende? Certamente seu pai tem necessidade de permanecer mais um tempo aqui na Terra.
- Você acredita realmente? Supondo-se que isso seja verdade, Ema, do jeito que meu pai está, em que lhe poderia ser útil esse tempo? - indagou Adelaide, cética.
A enfermeira explicou-lhe que todos somos espíritos imortais a caminho do progresso. Que já vivemos outras existências, sempre aprendendo, para nos tornarmos pessoas melhores moralmente. Que, através do tempo, nos comprometemos perante a justiça divina, ao prejudicarmos o próximo e a nós mesmos. E que, em virtude disso, somos constrangidos a enfrentar a conseqüência de nossos atos, reparando os erros cometidos e nos reajustando com os desafetos. A medida que ela falava, Adelaide fitava-a, cada vez mais perplexa. Jamais tinha cogitado dessas coisas. Aproveitando uma pausa que Ema fizera, perguntou:
- Qual a sua religião?
- Sou espírita.
- Ah! Logo vi. Meu pai também tinha uma queda por essas coisas.
- "Essas coisas", como você diz, são muito sérias e respeitáveis. O Espiritismo é baseado num corpo de doutrina sintetizado em O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec. Se tiver interesse em ler, Adelaide, posso emprestar-lhe essa obra, que, tenho certeza, lhe trará muitos esclarecimentos.
Lembrando-se de algo, Ema levantou-se, foi até o lugar onde guardava sua bolsa, abriu-a e retirou dali um volume, que passou às mãos de Adelaide:
- Olhe, Adelaide, não tenho aqui O Livro dos Espíritos, do qual lhe falei. Porém, aqui está um livro que, acredito, lhe fará bem. Trata-se de O Evangelho Segundo o Espiritismo, que é um trabalho do mesmo autor, e que sempre trago comigo. Gosto de ler e, nas horas vagas, aproveito o tempo com leituras edificantes.
Adelaide pegou o volume nas mãos, agradecendo à enfermeira.
- Obrigada, Ema. Agora vou descansar um pouco. Qualquer novidade me chame.
- Fique tranqüila. Estarei atenta.
A dona da casa procurou uma pequena sala onde gostava de passar o tempo e acomodou-se num aconchegante sofá. Abriu o livro e tentou ler algumas linhas, mas seu pensamento estava muito tumultuado. Fechou os olhos procurando relaxar. Acabou por adormecer. Algum tempo depois, a criada veio acordá-la, avisando que um senhor a procurava.
- Quem é, Mercedes? - perguntou.
- Veio a mando do doutor Monteiro. - Ah, eu já sei de quem se trata.
Adelaide levantou-se, passou as mãos pelo rosto, pelos cabelos, ajeitou a roupa e, respirando fundo, foi atender o recém-chegado. Era um homem alto, moreno, ainda novo e de semblante sereno. Ao vê-la, leve sorriso abriu-se em seu rosto, tornando-o mais simpático.
- Bom dia! Senhorita Adelaide?
- Sim.
- Como vai? Sou Fernando Amaral, e fui enviado pelo doutor Monteiro.
- Muito prazer, doutor. Eu o aguardava. O senhor é o neurologista que veio examinar meu pai, não é?
- Exato. Poderia levar-me até o doente?
- Claro. Por obséquio, acompanhe-me, doutor Fernando. Adelaide levou o médico até o quarto do pai. Aproximando-se do leito, ele examinou o paciente meticulosamente. Fez algumas perguntas à enfermeira Ema e, ao terminar, virou-se para Adelaide e informou:
- Parece que, dentro das suas condições, está tudo normal. Gostaria de submetê-lo a um eletroencefalograma e fazer outros exames. Mas não se preocupe. Trarei meu aparelho aqui para não precisarmos locomover seu pai.
- E quando fará isso, doutor?
- O mais rápido possível. Infelizmente, hoje terei a tarde toda ocupada. Tenho três cirurgias e não sei quando ficarei livre. Amanhã cedo, porém, por volta das nove horas, estarei aqui. Combinado?
- Claro. Estarei esperando. Aceita um café, doutor?
- Com muito gosto.
Adelaide virou-se para a criada, que aguardava.
- Mercedes, duas xícaras de café, por favor. Estaremos na sala íntima.
Conversando gentilmente, Adelaide conduziu-o até a pequena sala onde estivera repousando. Sentaram-se, e ele pegou um volume que estava na mesa ao lado do sofá.
- O Evangelho Segundo o Espiritismo! Você é espírita? Adelaide justificou-se com certo constrangimento:
- Não, claro que não! Ema, a enfermeira, emprestou-me este livro, desejando ajudar-me, mas ainda não tive tempo de lê-lo. Na verdade, nem sei se o farei. Aceitei-o para não ser indelicada.
- Pois creio que deve ler. É excelente obra, e Ema tem razão; com certeza lhe fará muito bem. É uma visão extremamente lúcida do Evangelho de Jesus. Creio que irá gostar. Eu mesmo o tenho como livro de cabeceira.
- É espírita?
- Sim, com muita satisfação. O Espiritismo nos auxilia a ver tudo o que se passa conosco e ao redor de nós com outra visão.
Mercedes serviu o café, fumegante e de agradável aroma. Conversaram mais um pouco, o médico lhe fez perguntas sobre o doente. Em seguida, ele ergueu-se, despedindo-se:
- Agora devo ir. A conversa está muito agradável, porém meus pacientes me aguardam. Senhorita Adelaide, aceita uma sugestão? Abra o livro ao acaso, leia algumas páginas. Geralmente, o assunto tem relação com nossas necessidades mais íntimas. Amanhã voltaremos a conversar. Passe bem.
Adelaide acompanhou-o até a porta e, ao fechá-la, percebeu que estava encantada com o carisma do médico. Ele era gentil, delicado, simpático, sereno; passava segurança, deixando-a mais confiante. Sentia-se ansiosa para vê-lo novamente. Teria de esperar até o dia seguinte. Pegou o livro com renovado interesse, apertando-o entre as mãos. Foi para o quarto, acomodou-se na cama e, abrindo-o ao acaso, como ele sugeriu, leu em voz alta: - "Deve-se pôr um fim às provas do próximo?" Assustada, com o coração acelerado, empurrou o livro, afastando-o de si. Encolhida na cama olhou ao redor com medo de que alguém tivesse ouvido. Depois, deu-se conta de que sua preocupação era bobagem. Estava sozinha no aposento! A curiosidade fez com que pegasse o livro de novo. Com as mãos trêmulas de medo, abriu-o e, para surpresa sua, caiu na mesma página. Achou que, de alguma forma, "alguém" estava querendo que a lesse. Munindo-se de coragem, leu: - "Deve-se pôr um fim às provas do próximo, ou é preciso, por respeito às vontades de Deus, deixá-las seguir o seu curso? Começou a ler a mensagem, e os conceitos ali expressos atingiam-lhe profundamente o íntimo. Sentia-se culpada, embora ninguém a estivesse julgando. O texto, ao contrário, não era de acusação, mas de incentivo a fazer o melhor, ajudando e abrandando a expiação dos semelhantes, de acordo com a lei de amor e de caridade. Logo em seguida, leu outra mensagem: "É permitido abreviar a vida de um doente que sofre sem esperança de cura?" "Um homem está agonizante, vítima de cruéis sofrimentos. Sabe-se que seu estado não tem esperanças. É permitido poupar-lhe alguns instantes de agonia, apressando o seu fim?" "Quem, no entanto, vos daria o direito de prejulgar os planos de Deus? Não pode o Senhor conduzir um homem à margem do abismo para retirá-lo de lá, a fim de fazê-lo voltar-se sobre si mesmo e de conduzi-lo a outros pensamentos? Ainda que se pense que haja chegado o momento final para um moribundo, ninguém pode dizer com certeza que essa hora tenha chegado. A Ciência nunca se enganou nessas previsões? Sei muito bem que há casos que se podem considerar, com razão, como desesperadores. Mas, se não há nenhuma esperança fundada de um retorno definitivo à vida e à saúde, não há também incontáveis exemplos de que, no momento de dar o último suspiro, o doente se reanima e recobra sua lucidez por alguns instantes? Pois bem! Essa hora de graça que lhe é concedida pode ser para ele da maior importância, pois ignorais os pensamentos que seu Espírito pôde fazer nos momentos finais da sua agonia e quantos tormentos pode lhe poupar um minuto, um momento de arrependimento. O materialista que apenas vê o corpo e não se dá conta da alma não pode compreender estas coisas. Mas o espírita, que sabe o que se passa Além-túmulo, conhece o valor do último pensamento. Suavizai os últimos sofrimentos tanto quanto vos seja possível fazê-lo; mas guardai-vos de encurtar a vida, que seja apenas por um minuto, pois esse minuto pode poupar muitas lágrimas no futuro." Ao acabar de ler toda a página, que vinha assinada com o nome venerável de São Luís, Adelaide percebia que uma nova concepção de vida se delineava diante de seus olhos. Essa vida futura que ela nunca entendera nem aceitava, por desconhecimento, agora aflorava com contornos mais nítidos em sua mente. Buscou o índice. Desejava ver os assuntos enfocados. Deteve-se no Capítulo 14, "Honrai vosso pai e vossa mãe". Abriu e leu "A ingratidão dos filhos e os laços de família". Chorou copiosamente. Depois leu vários outros capítulos, surpreendendo-se e maravilhando-se a cada passo. Era tarde quando conseguiu conciliar o sono. Sentia-se leve, e uma nova esperança vibrava em seu íntimo, como prenuncio de paz e de crescimento espiritual. Pela primeira vez, elevou o pensamento numa prece de agradecimento a Deus. A mãezinha, a seu lado, sorria com imenso carinho, também se associando à filha querida na prece de gratidão ao Criador, pelas bênçãos desse dia, envolvendo em seus braços o ente querido que despertava para as realidades espirituais.

CAPÍTULO 8 - A BÊNÇÃO DO SOFRIMENTO

"Se perdoardes aos homens as faltas que cometerem contra vós, também vosso Pai Celestial vos perdoará os pecados." JESUS (MATEUS, 6: 14)

Desse dia em diante, Adelaide passou a interessar-se pela literatura espírita, na qual encontrava respostas para seus questionamentos mais íntimos. Sentia cada vez mais prazer em ler, se entrosando com seu conteúdo, até para poder dialogar com o jovem médico por quem tanto estava atraída. Logo passou a demonstrar certa familiaridade com os livros que ele lhe emprestara. E o que havia começado por interesse, numa tentativa de prender a atenção do atraente doutor, acabou por se tornar vital para ela. Agora, quando Adelaide se aproximava do leito paterno, trazia outros pensamentos na mente. Tentava adivinhar se o pai saberia o que estava acontecendo, se ele estaria ali, lúcido, vendo-a a seu lado, e, em caso positivo, o que estaria pensando. O mais importante: ele saberia o que ela fez? Teria visto a ação dela, naquela noite, desligando os aparelhos? Por tudo o que já tinha lido na literatura espírita e pelas informações de Fernando, seu novo amigo, sim, seu pai deveria estar ciente do que ela tinha feito. Essa constatação caiu com a violência de um raio em sua cabeça. Não era o fato da sua atitude criminosa o que mais a incomodava, e sim saber que essa ação teve observadores. Que, enquanto ela agia, certa de estar sozinha, o pai - sua vítima - poderia estar vendo tudo! Essa possibilidade levou-a a outra sensação profundamente incômoda: a vergonha perante esse pai que tanto a amava e que agora deveria odiá-la. Meditando sobre o assunto, que se lhe tornou uma idéia fixa, passou Adelaide a sentir remorso pela atitude indigna, criminosa e covarde que tomara contra alguém indefeso, que, além de tudo, era seu pai. Olhando-o deitado, inerte, sem reações, fisionomia cadavérica, sentiu necessidade imperiosa de conversar com ele, de pedir-lhe perdão. O momento era favorável: a enfermeira tinha saído, e ela estava a sós com ele. Adelaide levou a mão para acariciar-lhe o rosto, mas não teve coragem. Afinal, respirando fundo, murmurou:
- Papai, se você realmente puder me ver, se estiver consciente, por favor, me ouça! Sei que tenho errado muito, mas estou só, papai, sem ter alguém para me ajudar, esclarecer, amparar. Mamãe partiu há muito tempo e nós dois ficamos sozinhos. Por longos anos, você foi meu esteio, minha proteção, meu tudo. Depois, você também se afastou de mim, entrando nesse seu mundo particular e indevassável que só você conhece. Quando mais precisava de você, fiquei desamparada, sem ter quem me aconselhasse, quem em guiasse através da vida.
Fez uma pausa, tentando perceber alguma reação no rosto do pai, mas foi inútil. Adelaide tomou fôlego e prosseguiu:
- Você sabe papai, nunca fui ligada à religião. Jamais tive interesse por Deus nem por essas coisas transcendentais. Para mim, morreu acabou. E quando o vi nesse estado, sem poder falar comigo, sem um gesto amistoso, sem poder responder a meus questionamentos e dúvidas, me desesperei. Achei que estaria sofrendo! E pensei: se meu pai não tem condições de voltar à vida, não será melhor morrer de uma vez? Depois, a verdade é que também senti desejo de ser dona da minha vida, de poder comandar meus atos, namorar, casar, ser feliz! Parou de falar, enxugou uma lágrima e continuou:
- Hoje eu sei papai, que as coisas realmente não são assim. Aprendi que ninguém morre e que o espírito continua vivo, mais vivo do que nunca; que a morte é apenas uma mudança de endereço. Porém aprendi mais: que a vida nos foi dada por Deus para nosso aprendizado intelectual e crescimento moral, e que deve ser aproveitada ao máximo. Que, se você está neste estado de coma, é que, por algum motivo, precisa ainda desse prazo aqui na Terra, e que ninguém tem o direito de decidir o contrário. Hoje eu sei que nada acontece por acaso, papai, e que esse período é muito importante para você.
Fez nova interrupção, colocou a mão sobre o braço do doente e, ganhando forças, prosseguiu:
- Por isso, humildemente, quero lhe pedir o seu perdão, papai, pois eu não sabia o que estava fazendo. Deus foi muito bom comigo, pois impediu um mal maior, permitindo que você continuasse vivo. Perdoe-me, papai!
Nesse instante, por entre as lágrimas, Adelaide teve a impressão de que o semblante de seu pai ficou mais ameno e que um ligeiro sorriso tinha surgido em seus lábios. Segurou a mão do pai e - coisa extraordinária! - sentiu uma leve pressão dos dedos dele na sua mão. Forte emoção tomou conta de Adelaide, que se pôs a abraçar e a beijar o pai, chorando convulsivamente:
- Papai! Você me perdoou! Sei que me perdoou. Obrigada! Obrigada!
O médico, que tinha acabado de chegar àquela hora, entrou no quarto e admirou-se ao ver a reação de Adelaide.
- O que houve Adelaide?
- Fernando, meu pai se comunicou comigo! Ele sorriu e até apertou minha mão! Não é uma alucinação. Eu vi! Eu senti! Ele realmente se comunicou comigo. Isso é possível?
- Sem dúvida! Pode acontecer, sim. Nunca sabemos quando o estado do paciente vai sofrer alteração, para melhor ou para pior. Neste caso, para melhor!
Enquanto examinava João, o médico pediu para Adelaide descrever o que havia acontecido. E ela começou a relatar com entusiasmo a ocorrência. Como Fernando ignorava completamente a participação dela no desligamento dos aparelhos, ela contou apenas que estava falando com o pai, desabafando, sem especificar o assunto. Os criados, atraídos pelo barulho, correram aos aposentos do patrão, encontrando Adelaide risonha e feliz. Ao serem informados do acontecido, eufóricos, puseram-se a agradecer a Deus pela melhora do enfermo. Desse dia em diante, Adelaide tornou-se mais tranqüila e mais atenta às necessidades do pai, não se afastando dele um momento sequer. Quando Humberto se dignou a aparecer, ela o tratou com gentileza, mas sem intimidades. Algo dentro dela se rompera em relação a ele; não sentia mais o mesmo interesse e entusiasmo de antes pelo rapaz. Agora ela o olhava e o via como realmente era: interesseiro, egoísta e manipulador. Ele não a amava de verdade, e Adelaide sentiu-se livre. Certo dia, sem avisar, Humberto voltou a procurá-la. Estava cansado de evasivas. Telefonava, mas, invariavelmente, a criada informava que Adelaide não podia atender, dando as mais diferentes desculpas: ora porque tinha saído, ora porque estava cuidando do pai, ou qualquer outra justificativa. Por isso, tinha decidido ir sem avisar. Adelaide voltou a recebê-lo com atenção e cortesia, como se faz com qualquer visita, mas se comportou de maneira fria e distante. Quando Humberto tentou abraçá-la, ela o afastou firme.
- O que aconteceu, minha querida? Não está com saudade de mim? - reclamou ele com voz melosa.
Munindo-se de coragem, Adelaide respirou fundo e considerou:
- Humberto, foi bom você ter vindo. Precisávamos mesmo conversar e colocar tudo em pratos limpos.
Falou longamente com ele, enfatizando a necessidade de terminar a relação. Explicou que já não sentia nada por ele e queria dedicar toda a sua atenção ao pai doente. Humberto reagiu. Esperava outra atitude da namorada, uma vez que ela, havia algum tempo, mostrava-se distante e desinteressada. Ele porém, contava dissuadi-la com sua presença, com a influência e a atração que sempre exerceu sobre ela. Como Adelaide permanecesse irredutível, desequilibrou-se, perdeu o controle, ficou bravo, agitado, nervoso e sentiu-se impotente diante da firmeza dela. Quando Humberto ainda tentava convencê-la a mudar de idéia, chegou Fernando. Ao ver os olhares que Adelaide e o médico trocaram, percebeu que não havia mais jeito. Ele era realmente "carta fora do baralho". O rapaz deixou o quarto tremendo de raiva.
Não se conformava em perder Adelaide, cuja riqueza tanto o interessava. Além disso, tinha até reservado passagem para a Europa, contando com o dinheiro dela... E agora, tudo caíra por terra!
- Maldito intruso! - resmungou entre dentes, encaminhando-se para a porta, a pisar duro.
Após a saída de Humberto, Adelaide respirou aliviada, satisfeita por ter-se livrado do incômodo rapaz.
- Desculpe-me ter entrado assim, sem avisar, Adelaide. Interrompi alguma coisa? - perguntou o médico com delicadeza.
- Não, em absoluto, Fernando. Humberto é alguém que fez parte da minha vida, mas que não me interessa mais. Estava exatamente explicando-lhe que meus sentimentos mudaram, quando você chegou.
- Namorado?
- Sim. Felizmente acordei a tempo. Ele só queria meu dinheiro. Fernando abriu um grande sorriso e fez uma carícia no rosto dela, enquanto dizia:
- Não posso dizer que lamento sua atitude.
Adelaide sentiu-se dominar por grande emoção. Aquele era o primeiro momento mais íntimo que surgia entre eles. Durante os últimos trinta dias, não conseguia pensar em outra coisa. Só tinha olhos para o jovem doutor, cuja presença se tornava cada vez mais freqüente na casa, sendo motivo até de cochichos por parte dos criados, o que a enchia de prazer. Passaram-se três meses. O estado de João piorou de repente. O médico diagnosticou pneumonia dupla. Alguns dias depois, João se despediu da vida sem voltar à consciência. Adelaide aceitou o falecimento do pai com naturalidade e fortaleza de ânimo. No velório, os amigos mais chegados, as pessoas que a conheciam, estranharam seu comportamento, tentando saber o que a fizera modificar-se tanto. Estava mais segura, equilibrada e serena, mesmo diante da morte do pai, a quem tanto amava. Na espiritualidade, a alegria era imensa. João foi recebido com carinho por amigos e familiares desencarnados. Ao abraçar a esposa, trazia o coração pleno de satisfação.
- Querida Amália! Graças a Deus conseguimos encaminhar nossa Adelaide a novos rumos. Sinto-me aliviado por deixá-la sob os cuidados de Fernando, criatura excelente e que terá todas as condições para ampará-la. - Sim, meu querido João. Agora que nossa filha encontrou aquele que lhe foi destinado e com quem programou a realização de importante tarefa, teremos algum tempo de paz, que você aproveitará para o refazimento espiritual a que faz jus. Agora, descanse. Teremos bastante tempo para conversar.
João foi colocado numa maça e levado para um local da espiritualidade onde seria atendido e receberia toda a assistência de que precisava. Antes de adormecer, com um resto de consciência, João olhou para a esposa desejando dizer algo. Seu olhar era eloqüente, e Amália entendeu.
- Conheço sua preocupação, meu querido. Quer notícias dos adversários que tanto tentaram prejudicá-lo. Fique tranqüilo. Eles estão sendo socorridos e, quando for possível, poderá vê-los. Agora, pense em você.
João sorriu levemente e murmurou:
- Obrigado.

CAPÍTULO 9 - REFLEXÕES

"Aquele que dentre vós estiver sem pecado, atire a primeira pedra." JESUS (JOÃO, 8: 7)

Alguns meses depois, estavam todos reunidos na antiga residência de João. Adelaide e Fernando iam se casar. A cerimônia seria simples, porém elegante e de bom gosto. Em virtude do recente falecimento de João, os noivos preferiram uma recepção pequena, para a qual foram convidados apenas os familiares e amigos mais íntimos. Quase na hora do casamento, uma criada veio chamar Fernando a pedido de Adelaide, que não estava bem. O noivo apressou-se a ir ao encontro da amada. Bateu levemente na porta e entrou no quarto, encontrando-a chorosa. Ainda não estava pronta; vestia apenas um roupão e mostrava-se tensa e preocupada. O noivo abraçou-a ternamente.
- Saudades do pai? Ele certamente estará aqui conosco, minha querida.
Enxugando as lágrimas, Adelaide meneou a cabeça:
- Não, não é por isso, Fernando. É que sinto necessidade de falar com você, contar-lhe um segredo que muito me angustia. Não posso casar-me sem abrir-lhe meu coração.
- Adelaide, nada do que me possa dizer vai mudar meus sentimentos em relação a você. Mas, se deseja desabafar, estou aqui.
Fernando sentou-se na frente dela, segurando-lhe as mãos para transmitir-lhe forças e coragem. - Pode falar, minha querida. Estou ouvindo.
Com dificuldade, Adelaide começou a contar a ele sobre sua vida desde o princípio. Lembrou a perda da mãe, falou a respeito da doença do pai; a relação com Humberto, seu desejo de liberdade para viajar com o namorado e ser feliz. Depois, veio a parte mais dolorosa. Respirou fundo e prosseguiu: lembrou como tinha resolvido desligar os aparelhos que mantinham a vida orgânica do corpo do pai, mas que, graças a Deus, não deu certo. Ele continuou vivo. Após a confissão, não conseguia erguer a cabeça e olhar o noivo nos olhos. Depois de uma pausa, ela comentou:
- Foi exatamente nessa época que você entrou em minha vida, lembra-se? Doutor Monteiro chamou-o para examinar meu pai e, desse dia em diante, senti que você era o homem da minha vida. Meus conceitos mudaram. Passei a conhecer a Doutrina Espírita, e a enormidade do que tinha feito me assustou. Sou uma criminosa, Fernando, e se você não quiser mais saber de mim, posso entender perfeitamente. Tentei muitas vezes encontrar coragem para contar-lhe este segredo, mas não consegui. E você sabe como é... O tempo passa tão rápido que a gente nem percebe. Afinal, chegou o dia do nosso casamento. Eu não podia adiar mais, convencida de que não seria feliz construindo o nosso futuro baseado numa mentira.
Parou de falar. Após alguns segundos, ergueu a cabeça, fitando o noivo que a ouvia calado.
- Fale Fernando, diga alguma coisa. Se não pode me perdoar, se me julga um monstro, faça o que quiser. Saberei entender. Dispense os convidados. Avise a todos que não haverá mais casamento. Invente uma desculpa qualquer...
Fernando, com os olhos úmidos, murmurou:
- Adelaide, não imagina há quanto tempo espero ouvir isso de você.
- Você sabia? - gaguejou perplexa.
- Intuitivamente, percebi o que tinha acontecido naquela noite. Os aparelhos não se desligam sozinhos. Depois, tive ocasião de ver o espírito de seu pai abalado com seu comportamento, e não tive mais dúvidas...
- Mas... Por que não me disse?
- Cabia a você me contar. O segredo era seu, e eu não tinha o direito de tocar no assunto.
- Que vergonha! Você não me perdoará nunca!
- Deus é Pai e quer o melhor para seus filhos, minha querida. Não os premia nem os pune; dá-lhes oportunidade de reparar o erro que cometeram. Se Deus não a condena, também eu não posso fazê-lo. Mesmo porque nossa responsabilidade é sempre proporcional ao conhecimento que tínhamos no momento do fato. E você ignorava tudo sobre espiritualidade, reencarnação, Lei de Causa e Efeito e tantas outras coisas que nos modificam a maneira de pensar, embora soubesse que eutanásia é crime segundo as leis de nosso país. Sua situação só não ficou mais grave, porque seu pai, felizmente, sobreviveu.
- Quer dizer que você me perdoa?
- Nada tenho a perdoar Adelaide. Agora, lave o rosto, retoque a maquiagem e se vista, porque nossos convidados já devem estar impacientes.
- Sim, meu amor. Obrigada pela compreensão que demonstra diante do meu erro.
Antes, porém, gostaria de lhe dizer algo que venho amadurecendo nos momentos de íntima reflexão. Depois que meu pai desencarnou, de certa forma minha existência ficou vazia de atividades.
- E eu não represento nada? - brincou ele.
- Você é tudo para mim, sabe disso, meu querido. Falo de serviço, de objetivo de vida.
Daqui por diante, terei os cuidados da casa, naturalmente; todavia, sempre poderei dispor de algumas horas para trabalhar.
- Acho muito louvável, querida. O que está pensando fazer?
- Bem, gostaria de ajudar pessoas que possam estar enfrentando as mesmas dificuldades que meu pai passou, conscientizando famílias da importância da continuidade da vida, essas coisas... O que acha?
Fernando abraçou-a, comovido.
- Creio que encontrou um grande objetivo para sua existência, meu amor. Desde que não se esqueça de mim, naturalmente.
- Nunca... Nunca... Ter encontrado você foi o que de mais importante me aconteceu até hoje.
- Então, vamos! Arrume-se, que os convidados já devem estar pensando que não haverá mais casamento!
Meia hora depois, Adelaide desceu. Estava linda no seu vestido branco de noiva e tinha um ar de radiante felicidade. Todos, encarnados e desencarnados, estavam contentes, vibrando amor e alegria pela vitória alcançada. O respeito à vida é algo que, se deixarmos de observar, vai nos comprometer gravemente. Indivíduos materialistas, homens de ciência, equivocadamente, muitas vezes baseiam suas teorias sobre a eutanásia vestindo-as com palavras delicadas e dourando a ação maléfica sob a forma de morte suave", "morte digna", e afirmando que temos o direito de dispor de nossa vida conforme nossa vontade. Os que assim pensam cometem terrível engano e serão responsabilizados por suas ações delituosas, uma vez que, não tendo condições de dar a vida, também não têm o direito de tirá-la, nem a própria nem a de outrem. E essa é uma realidade que salta aos olhos. As leis da grande maioria das nações atestam essa verdade, punindo como crime a interrupção da vida, tanto em casos de aborto quanto em relação à eutanásia. Que não nos passe pela cabeça cometer um ato tão bárbaro, interrompendo a vida por um minuto que seja. A existência, não importa o tempo que ainda se tenha, seja uma hora, um dia ou um ano, é sagrada e merece ser preservada. Não conhecemos as razões que determinaram o sofrimento do nosso ente querido, uma vez que ignoramos seu passado. Deus, porém, que é a suprema sabedoria, misericórdia e justiça, que tem a ciência de todas as coisas, não estará lhe dando o que precisa? Tudo tem uma razão de ser e um motivo justo. O que podemos afirmar com certeza é que aquele período de dores acerbas, de extraordinária importância para o espírito, permitirá que ele deixe esta existência em situação bem melhor do que a que tinha quando aqui chegou. O sofrimento pode associar-se à expiação pela qual o encarnado precisa passar para liberar-se de compromisso assumido anteriormente; ou a uma prova que ele pediu, para verificar se já consegue vencer determinada imperfeição. É irrelevante saber se o sofrimento se refere a expiação ou prova. O que importa é conseguir vencer, tornando-se moralmente melhor. Não raro, o sofrimento é maior para quem acompanha a dor do outro, como familiares e amigos, do que para quem passa por ele. Normalmente, a assistência dos amigos da espiritualidade é tanta, que o doente vive mais do lado de lá da vida do que do lado de cá. Na verdade, é uma preparação para o retorno ao verdadeiro lar. Existem casos em que a demora em partir tem relação com a presença de inimigos desencarnados ao pé do leito. Quando o enfermo é espírito bastante comprometido, em virtude de erros cometidos no passado, quando prejudicou muitas pessoas - hoje desencarnadas e que ainda não lhe perdoaram, mantendo-se irredutíveis no mal e no desejo de vingança -, a bondade do Pai faz com que o faltoso permaneça no corpo físico para ajudar aqueles que um dia lesou. Esse tempo, então, é utilizado no socorro a essas entidades obsessoras, de modo que ele, ao voltar à espiritualidade, encontre um caminho mais aplainado. Caso contrário, o recém-desencarnado poderá ficar nas mãos dos seus inimigos e irá sofrer muito mais ainda. Os sofrimentos superlativos que terá de enfrentar no Além-túmulo nem de leve poderão ser comparados aos que ele atravessou no mundo material. A prisão, as torturas, as dores, as necessidades cruciais a que estará submetido, o farão lembrar com saudade do tempo em que estava encarnado e cujas dores lhe pareciam insuportáveis. Assim, mesmo que o enfermo implore pela sua morte, os familiares e amigos deverão conscientizá-lo de que só Deus poderá libertá-lo do sofrimento. E incutir nele pensamentos de fé e de confiança no Criador, ajudando-o a orar. Todas as pessoas têm o amparo divino e sempre poderão contar com os recursos do Alto. Todavia, aos espíritas é facultada melhor utilização desses recursos, com maior eficácia, pelos conhecimentos que a doutrina propicia. A prece, quando feita com amor, é veículo de bênçãos infinitas, a qual deverá ser potencializada com a aplicação de energias por meio do passe e da água fluidificada, momento em que o Alto aproveitará para socorrer o necessitado, proporcionando-lhe mais paz, tranqüilidade, confiança e amenizando-lhe as dores. Uma coisa é certa: mesmo que o organismo do enfermo esteja em estado de vida vegetativa ou de coma, não importa, e que a ciência julgue que ele não mais ali está, mas somente o seu corpo físico, mantido vivo unicamente com a ajuda de aparelhos, mesmo assim, o espírito continua ligado àquele corpo, aguardando a decisão do Criador. Há a crença, entre os profissionais da saúde materialistas, de que, pelas conquistas da ciência, a vida corporal poderá ser mantida por tempo indefinido. No entanto, se enganam esses profissionais, pois em vários casos, depois de desligados os aparelhos, o veículo físico continuou vivo. Se assim ocorreu, mesmo nos aparelhos, é porque ainda existe fluido vital, e o espírito - responsável e inquilino daquele corpo - ainda estava ligado ao organismo pelo seu envoltório semi material ou perispírito. A grande verdade é que, nesses fatos, vemos a presença de Deus. Só a vontade divina tem condição de saber o que o espírito precisa ou o que merece. Pense nisso!


CAPÍTULO 10 - O JOGO DE FUTEBOL

O Conselho Federal de Medicina estabeleceu, em 1991, por meio da Resolução nº 1346, que a morte encefálica corresponde a um estado definitivo e irreversível de morte, condição que permite, sem dúvida, a retirada de órgãos para transplantes. Morte encefálica significa que as estruturas vitais do encéfalo, necessárias para manter a consciência e a vida vegetativa, encontram-se lesadas irreversivelmente. Em outras palavras, o tronco cerebral não funciona, não existe mais a atividade cerebral, há total ausência de circulação sangüínea no cérebro e o eletroencefalograma mostrará o silêncio elétrico cerebral. Não confundi-la com estado vegetativo, pois neste uma parte do cérebro ainda funciona, visto que a lesão terá atingido parte das células neurológicas, mas não as estruturas do encéfalo. "Por que a vida ê muitas vezes interrompida na infância?" "A curta duração da vida de uma criança pode ser, para o Espírito que nela está encarnado, o complemento de uma existência anterior interrompida antes do tempo. Sua morte é, muitas vezes, também uma provação ou uma expiação para os pais."
(O LIVRO DOS ESPÍRITOS, ALLAN KARDEC, QUESTÃO 199)

Cheio de alegria, Carlinhos preparou tudo o que precisava. Vestiu a camisa do time do coração, pegou a bandeira, um boné e correu para a sala.
- Papai, estou pronto!
- Então vamos. Temos um longo trajeto pela frente e quero achar um bom lugar para assistirmos ao jogo.
O garoto despediu-se da mãe, que recomendou:
- Tenham cuidado! Fuja de confusão, Jairo. Sabe como é... Futebol pode acabar em briga, especialmente esse jogo que é decisão de campeonato. Temos visto tantas notícias de violências!...
Jairo abraçou a esposa, serenando-lhe o espírito:
- O que é isso, Marta? Não se preocupe! Sei tomar conta de nosso filho. E, afinal, ele já é um rapazinho de sete anos! No final da tarde, estaremos de volta com uma pizza e refrigerante para comemorar a vitória do nosso time, não é Carlinhos?
O garoto sorriu. Marta, porém, não estava tranqüila. Com o coração apertado, viu os dois se dirigirem até o ponto do ônibus. Não gostava de futebol, porém não tinha o direito de impedir Carlinhos de sair com o pai, especialmente para assistir a um jogo do Tricolor, do qual era torcedor fanático. Entrou em casa e logo, envolvida com o serviço doméstico, esqueceu-se do assunto. Era domingo, considerado dia de descanso, mas ela tinha uma pilha de roupas para passar. Rumo ao campo, Carlinhos ia eufórico. Tudo era novidade. Pela primeira vez, iria assistir a um jogo no campo. Estava acostumado a ver partidas pela televisão, porém agora era diferente. Aproximando-se do local, a multidão impressionou o garoto. Como o pai tinha comprado os ingressos com antecedência, entraram sem grande dificuldade, apesar da aglomeração no portão de entrada.
- Viu filho, como foi bom ter comprado os ingressos antes? Esses torcedores querem entrar e não podem porque a lotação do estádio está completa.
Assim falando, o pai agarrou a mão do menino para não correr o risco de se perderem um do outro na multidão, enquanto caminhava apressado. Carlinhos, quase arrastado, nem via por onde estavam andando, pois, como era pequeno, só enxergava homens grandes à sua volta. Quando afinal encontraram um bom lugar na arquibancada, Carlinhos sentou-se e só então conseguiu olhar em torno. Prendeu o fôlego. A vista do estádio enorme, o barulho ensurdecedor da multidão, as bandeirinhas tremulando, o colorido das torcidas, fizeram com que seu coração batesse mais forte. Era um espetáculo impressionante!
- E então, meu filho? O que acha?
Com os olhos úmidos de emoção, o menino olhou para o pai.
- Papai, eu jamais vou esquecer este dia em toda a minha vida. Obrigado. Aconteça o que acontecer, papai, lembre-se de que este é o dia mais importante da minha vida.
Jairo percebeu que o filho estava emocionado. No olhar do garoto notou um brilho diferente como jamais tinha visto. Por um momento, sentiu como se aquilo fosse uma despedida, como se estivesse para perder seu filho. Que bobagem! - pensou. Depois, com um nó na garganta, quase sem poder falar, disse:
- Isto não é nada, Carlinhos! Espere para ver quando o nosso time entrar em campo.
E, realmente, o garoto prendeu a respiração quando o Tricolor pisou no gramado. Fogos de artifício estourando, a gritaria da torcida, que se tinha colocado de pé, davam a impressão de que o estádio viria abaixo. O jogo começou e Carlinhos concentrou-se na partida. No intervalo, o pai comprou um saco de pipocas e refrigerante. Era preciso relaxar. O time não estava jogando bem, embora o placar marcasse 1 a 0 para o Tricolor. No segundo tempo, a situação se complicou. Um jogador do Tricolor se desentendeu com outro do time adversário, e a agressividade explodiu no gramado. Com os ânimos à flor da pele, a violência foi aumentando entre os jogadores, tanto que o árbitro, sem muita experiência, não teve pulso para controlar a situação. De repente, a um golpe mais forte, um jogador caiu no chão, desacordado. O juiz apitou, paralisando o jogo. Correu para verificar o que aconteceu. O jogador continuou imóvel no meio do campo. Os demais jogadores se aproximaram e, de um lado e de outro, passaram a se agredir, acusando-se mutuamente. Golpes, bofetões, pontapés surgiram - agora sem a bola, com violência explícita -, e a confusão armou-se. Os policiais responsáveis pela segurança entraram em campo e cercaram os agressores. Prenderam alguns jogadores mais violentos e membros da torcida que tinham invadido o campo. Contudo, eram impotentes para conter a enxurrada de gente que, deixando as arquibancadas, derrubaram o alambrado e partiram para a briga dentro do gramado. A polícia pediu reforços. O jogo foi suspenso. Não havia condição de dar prosseguimento à partida. Carlinhos estava assustado. Sem que se soubesse como, surgiram pedras e paus nas mãos de torcedores, que se agrediam. De longe, Jairo e Carlinhos viam pessoas feridas, algumas sangrando, caídas no gramado; além de outras, atropeladas pela multidão enfurecida. Viam também inúmeros torcedores sendo levados presos para os camburões da polícia. A ambulância entrou em campo e o atendimento de urgência começou. Mas era precário, ante a necessidade do momento. Médicos e enfermeiros que estavam na assistência, bem como outros torcedores, se apresentaram para socorrer os feridos, sendo que muitos destes, pela gravidade do quadro, eram encaminhados para o hospital mais próximo. Jairo, preocupado e inquieto pela segurança do filho, pegou Carlinhos pelo braço e, ao ver que a situação tendia a se complicar ainda mais, correu em direção à saída:
- Vamos, meu filho! E perigoso ficar aqui. Vamos rápido!
O acesso à saída, porém, não estava fácil. Pelos corredores, a mesma confusão. Todo mundo querendo sair ao mesmo tempo, o que dificultava a passagem. Afinal, quando ultrapassaram os portões e chegaram à rua, Jairo respirou aliviado.
- Graças a Deus! - murmurou.
Andaram apressados até o ponto do ônibus. Contudo, também na via pública as coisas estavam agitadas. Tinham caminhado aproximadamente uns cem metros, quando viram alguns torcedores brigando; ao mesmo tempo, com alívio, notaram a polícia que chegava, trazendo reforços, com os cassetetes em punho, prontos para enfrentar os rapazes. Nesse momento, um dos contendores tirou uma faca que trazia escondida na bota; um dos policiais percebeu a manobra e, imediatamente, sacou o revólver e mirou o rapaz, que se virou. O policial acompanhou seu movimento e atirou. A vista do perigo, Jairo segurou com força a mão do menino e, assustado, jogou-se no asfalto ao mesmo tempo em que gritou:
- Pro chão, meu filho!
Tarde demais, porém. O projétil atingiu Carlinhos em pleno peito. O menino caiu, desamparado. Num primeiro momento, Jairo não percebeu o que tinha acontecido. Depois, viu seu querido filho caído no chão, a seu lado, em meio a uma poça de sangue. Começou a gritar desesperado:
- Socorro! Acudam! Meu filho foi atingido!
Os policiais ouviram os gritos, perceberam o drama ocorrido e apressaram-se a socorrer o garoto. Ambulâncias chegaram, atendendo ao alerta que fora expedido pelas autoridades. A primeira delas foi interceptada pelos policiais, e Carlinhos prontamente foi conduzido para o hospital mais próximo, inconsciente. Jairo acompanhou-o na ambulância. Desnorteado, confuso, não conseguia entender o que havia acontecido. Carlinhos foi levado às pressas para o centro cirúrgico. Só restava aguardar. Na sala de espera, Jairo lembrou-se da esposa. Fez uma ligação, e, não muito tempo depois, a esposa chegou apavorada. Ao vê-la, Jairo abraçou-a com desespero.
- Perdoe-me, Marta. Foi culpa minha. Não devia ter levado nosso filho ao jogo.
- Como está ele? - ela balbuciou num fio de voz. Limpando as lágrimas, Jairo respirou fundo e conseguiu responder:
- Não sei. Ninguém diz nada, nenhuma informação por enquanto. Temos de aguardar.
Marta entrou em estado de choque; nem pôde falar. Apenas os olhos retratavam a dor que estava sentindo. No fundo, durante todo o dia, ela tinha se preparado para o que ia acontecer. Eles se acomodaram num banco e se dispuseram à longa espera. Duas horas depois, um médico se aproximou.
- E então, doutor? Como está nosso filho? - perguntou Jairo.
- Lamento. Ele não resistiu.
O mundo desabou sobre a cabeça dos pais. O filho querido, a luz de seus olhos, não existia mais. Uma bala perdida pusera fim a uma vida plena de esperanças e alegrias. Após o enterro, a vida do casal mudou radicalmente. Não tinham mais razão para lutar, para viver, para trabalhar, para nada. Jairo e Marta, que eram tão ligados, que possuíam tantas afinidades, afastaram-se. Já não encontravam mais satisfação na companhia um do outro. Na verdade, Marta não conseguia perdoar Jairo pela morte do filho. Considerava-o culpado por ter levado o menino ao campo, acusando-o diretamente pela morte do garoto. Jairo, por sua vez, tentava conversar com a esposa, explicar em detalhes o que tinha acontecido que ele fizera tudo para proteger o filho, que fora uma fatalidade, mas ela se recusava a falar com ele, a ouvi-lo. E, no íntimo, ele também se sentia culpado. Se não tivesse tido a infeliz idéia de levar Carlinhos para assistir àquela partida, tudo seria diferente. Acompanhariam o jogo pela televisão, como tantas outras vezes fizeram. Tranqüilamente acomodados no sofá da sala, comeriam pipocas, tomariam refrigerantes, e o filho querido ainda estaria vivo. Lembrava-se das cenas de violência que presenciara; pessoas batendo em outras pessoas; jovens gritando, xingando e esmurrando outros jovens; mãos que surgiram portando pedras, pedaços de concreto, de madeira e de metal - provavelmente da queda do alambrado - e que atacavam indiscriminadamente criaturas indefesas, que não estavam envolvidas na briga, que apenas observavam a confusão, tal como ele. Mas como as pessoas chegam a esse nível de violência? Nos seus momentos de reflexão, Jairo lembrava-se dos dias em que ele também tinha dito palavrões, xingado a mãe do juiz e dado vazão a instintos brutais, colocando para fora tudo o que trazia dentro de si, enfim comportando-se exatamente como qualquer outro torcedor. E o mais grave é que até se vangloriava disso na roda de amigos, ou mesmo em família, afirmando que essa atitude era positiva porque descarregava as tensões. Dizia também que depois voltava para casa mais tranqüilo e em condições de enfrentar os problemas do dia-a-dia. Reconhecia que nesse último jogo fora diferente porque, como estava acompanhado de Carlinhos, não quis dar mau exemplo ao filho, comportando-se de maneira civilizada. Só por isso. Agora, refletindo sobre o assunto, pensava se também não havia colaborado para que a violência eclodisse no campo. No fundo, todos haviam colaborado inclusive ele. Talvez não nessa oportunidade, mas em muitas outras. E os cônjuges cada vez mais se afastavam um do outro, ficando em cantos diferentes da casa, entregues aos próprios pensamentos, chorando e lembrando-se do filhinho que tão cedo os tinha deixado. Os amigos mais chegados se preocupavam com a situação, mas nada podiam fazer para ajudá-los. E além de todo o sofrimento, ainda havia a imprensa, que não lhes dava tréguas, batendo à porta da casa, tocando a campainha, ou procurando Jairo na empresa onde ele trabalhava. Queriam detalhes, lembrar o acontecimento, expor ao público a dor dos pais. Marta e Jairo não podiam sair de casa, que topavam com os repórteres. Já tinham dado entrevistas, falado do assunto, mas eles queriam mais, sempre mais.
Certo dia eles não conseguiram impedir que esses profissionais entrassem em sua casa. A moça que passara a ajudar Marta nos serviços domésticos - filha de uma vizinha que se condoera da situação dela, depressiva e incapaz de fazer serviço algum -, jovem e inexperiente, não conseguiu evitar a invasão. Diante do inevitável, Jairo e Marta aceitaram voltar ao assunto. Sentaram-se na sala, lado a lado. Os repórteres, com microfones e câmeras funcionando, flashes espocando de todos os lados, começaram a entrevista.
- Como estão se sentindo? - perguntou um deles, mostrando total insensibilidade diante do sofrimento e da tragédia que se abatera sobre o casal.
Jairo devolveu a pergunta, irritado:
- Como acha que estamos nos sentindo? - Por que acha que tudo isso aconteceu? Digo a morte de Carlinhos e tudo o mais? - contra-atacou o repórter, sem parecer ter ouvido a pergunta do dono da casa.
Naquele instante, Jairo se lembrou de todas as reflexões que tinha feito desde a morte do filho e, com muita gravidade, considerou:
- Por falta de educação. Nossa sociedade não foi educada para a paz. As famílias não se preocupam em passar valores morais para os filhos, conscientizando-os de que devem agir de forma diferente, respeitando o próximo.
- De quem é a culpa, então? Do governo? - indagou outro.
- De todos nós. Do governo também, claro, por não fazer a parte que lhe cabe. Mas, a culpa é de cada um de nós, pelas atitudes que tomamos, pelo comportamento que assumimos perante o semelhante. Cada pessoa é uma potência em si mesma e dela depende modificar o mundo em que vive.
- Por que você levou Carlinhos àquele jogo?
- Ele nunca tinha assistido a uma partida no campo e gostava muito de futebol.
Acreditando que fosse seguro, eu o levei, contra a opinião de minha esposa, que não desejava que ele fosse. O repórter virou-se para Marta:
- É verdade que a senhora não queria que Carlinhos fosse ao campo?
- Sim. É verdade.
- Por que, dona Marta?
- Não sei ao certo. Não gosto de futebol. Mas não foi só por isso. Na verdade, tive a impressão de que alguma coisa iria acontecer. Estava com o coração apertado e sentindo uma angústia muito grande.
- A senhora acha que tudo isso já estava previsto, então?
- Não sei. Não posso responder a essa pergunta.
- Jairo, quais foram as últimas palavras de seu filho?
O pai ficou pensativo. Buscando na memória, voltou no tempo até o momento em que ele e Carlinhos estavam no campo, sentados na arquibancada, e ele percebia a emoção do filho diante do estádio repleto. Lembrou-se de que perguntou se Carlinhos estava gostando, e a resposta dele veio nítida à sua mente:
- Papai, eu jamais vou esquecer este dia em toda a minha vida. Obrigado. Aconteça o que acontecer, papai, lembre-se de que este é o dia mais importante da minha vida.
Jairo enxugou uma lágrima e completou:
- Não me lembro quais foram as últimas palavras de meu filho, porém estas foram as mais significativas. Marta olhou para o marido, espantada, e começou a chorar. O repórter ficou parado, sem ação. Depois, voltou a perguntar:
- Interessante. Novamente surge a idéia de que algo estava previsto. Como se Carlinhos soubesse o que estava para acontecer. Vocês acreditam nisso?
Jairo ergueu-se, irritado e descontente.
- Não acreditamos em nada! Agora, basta! Vejam o estado de minha esposa! Tenham piedade!
Os repórteres insistiram mais um pouco, porém Jairo e Marta deixaram a sala, e a mocinha indicou-lhes a porta da casa. Nos aposentos do casal, Marta continuava chorando. Jairo, diante da janela, as mãos nos bolsos, olhava o céu que se descortinava sem dizer uma palavra. Afinal, rompendo o silêncio, ela indagou:
- Jairo, você nunca tinha me falado sobre as últimas palavras de Carlinhos.
Ele virou-se lentamente, fitando a esposa.
- Na verdade, não foram as últimas palavras dele, Marta, porém as mais importantes.
- Por que nunca me contou?
- Você nunca quis saber.
Marta enxugou os olhos, pensativa. Era verdade. Sempre que o marido tentava falar sobre aquele dia, relatar como tudo acontecera, ela se recusava a ouvir. Mas agora era diferente. Tinha de saber.
- Acredita que ele sabia que ia morrer?
- Não sei. Pode ser.
Permaneceram calados por algum tempo. Depois, Marta voltou a perguntar um tanto constrangida:
- Você acredita em vida após a morte? Isto é, acha que nosso filho pode estar em algum lugar?... Ele era um garoto tão especial!
Jairo deixou-se cair na poltrona com a cabeça entre os braços. Nunca tinham falado sobre esse assunto. Ambos não eram ligados a religião.
- Eu não sei Marta. Mas gostaria muito de poder acreditar.
- E se procurássemos saber?
- Como assim? Com quem?- Bem, existem pessoas que acreditam que os mortos continuam vivos e se comunicam conosco, você sabe.
- Sei. Os espíritas. É uma possibilidade.
- Sim! Minha amiga Flora é espírita. Podemos procurá-la.
- Está bem. Faça o que achar melhor.
Aquela noite eles dormiram mais tranqüilos. Tinham resolvido buscar informações com Flora, e uma suave esperança começou a luzir em seus corações.


CAPÍTULO 11 - NOVOS CONHECIMENTOS

"Aquele que concentra seus pensamentos na vida terrena é como um homem pobre que perde tudo o que possui e se desespera, ao passo que aquele que crê na vida futura é semelhante a um homem rico que perde uma pequena soma sem se perturbar."
(O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, ALLAN KARDEC, CAP. 2, ITEM 6)

Na manhã seguinte, Marta telefonou para sua amiga Flora, e combinaram um encontro para aquela mesma tarde. Era sábado e teriam tempo livre. Flora ficou muito satisfeita com a ligação de Marta. Por ocasião do falecimento de Carlinhos, condoera-se da tragédia que se abatera sobre o lar da amiga e, desde que recebera a trágica notícia e também durante todo o velório, não tinha se afastado do casal, procurando ajudá-los. Na impossibilidade de fazer alguma coisa, já que o fato era irreversível, tentava consolá-los com sua simples presença como se dissesse: Se precisarem de mim, estou aqui. Foi com profunda tristeza que acompanhou o féretro até a sepultura e que se despediu dos amigos, após o enterro, no cemitério já vazio. Depois, nos dias subseqüentes, tinha tentado falar com Marta e Jairo, sem resultado. Sentiu que os amigos estavam fugindo dela, evitando sua presença; era como se a dor deles fosse tão grande, tão intensa, que precisavam ficar sozinhos, isolados de todos. Sabia que essa reação deles não era apenas com ela; outros amigos comuns reclamavam também. Então, Flora resolveu aguardar, consciente de que só o tempo poderia amenizar-lhes o sofrimento. Assim, ao leve toque da campainha, foi com imensa alegria que abriu a porta para receber os amigos. Abraçaram-se, trocaram algumas palavras gentis e, depois, conduziu-os até a sala de estar. Havia dois meses Flora não os via. Achou-os emagrecidos, pálidos; naquele breve período haviam envelhecido anos.
- Que satisfação recebê-los aqui em casa! Estava com saudades.
- Sabe como é, Flora, depois da morte de nosso filho, perdemos o chão - justificou-se Marta, com lágrimas.
- Entendo perfeitamente o que estão sentindo, Marta. Porém, a vida continua e precisam prosseguir vivendo. Tenho certeza de que Carlinhos não gostaria de vê-los tristes e desanimados.
Jairo trocou um olhar com Marta e disse:
- É exatamente por causa dele que estamos aqui hoje, Flora. Sabemos que é espírita e gostaríamos que, se possível, nos desse algum esclarecimento. Diga-me, o que acontece com aqueles que morrem? Você falou como se nosso filho continuasse vivo. Existe essa possibilidade?
Com firmeza e seriedade, Flora considerou:
- Sem dúvida, Jairo. Em primeiro lugar, a morte é uma ilusão. Não existe a morte.
Aqueles que partem desta vida para outra realidade continuam vivos, mais vivos do que nós, uma vez que a verdadeira vida é a espiritual.
- Mas... Como assim? - gaguejou ele.
- Normalmente, as pessoas pensam que o corpo físico é tudo. Na verdade, o corpo de carne é apenas uma vestimenta que o espírito usa durante certo período e que abandona quando não serve mais. Somos todos espíritos, ou almas, criados por Deus, transitoriamente vestindo um corpo. Não é o corpo que pensa que aprende que ama. É o espírito. O corpo material só tem vida orgânica. Jairo estava perplexo.
- Mas, o que você está nos dizendo é impressionante!
- No entanto, é a mais pura verdade.
- E de onde lhe vem essa certeza? - indagou Marta.
- Da reflexão, do estudo, da análise dos fatos da vida e da própria natureza.
- Explique-se melhor - pediu Jairo.
Flora pareceu concentrar-se, como se estivesse procurando as palavras, e prosseguiu:
- Alguma vez vocês já pensaram por que teríamos sido criados? De onde viemos? Para onde vamos? O que estamos fazendo aqui na Terra? Sim, porque certamente o Criador deve ter um propósito. Se nós, meros habitantes deste planeta, seres imperfeitos, nada fazemos sem um objetivo, quanto mais Deus, que é todo amor, sabedoria, misericórdia, bondade, justiça e muito mais! Enfim, Ele, que é a suprema perfeição, teria criado o universo, e a nós, seres inteligentes, sem uma finalidade?
O casal trocou um olhar surpreso, como se jamais tivesse cogitado essas coisas. Jairo abriu um sorriso tímido.
- Flora, desculpe nossa ignorância. Marta e eu nunca fomos muito "ligados" em religião, você sabe. Somos católicos por tradição, porém raramente vamos à igreja. Agora, você nos abre um mundo novo no qual jamais pensamos. Quer dizer então que a vida continua depois da morte?!...
- Com certeza! Todavia, estranho seu espanto, Jairo, uma vez que a religião católica, à qual você afirma pertencer, prega a imortalidade! A única diferença, nesse caso, em relação à Doutrina Espírita, é que o Catolicismo admite um destino inexorável, sem possibilidade de mudança para as criaturas. Aqueles que morrem vão para o céu, para o inferno ou para o purgatório, segundo o bem ou o mal que plantaram aqui na Terra, enquanto nós acreditamos que aqueles que partem desta vida para outra apenas mudam de endereço. Continuam vivendo, mais ou menos da mesma maneira que o faziam aqui, uma vez que ninguém se transforma de repente. A vida espiritual é uma continuidade da existência terrena, na qual prosseguimos aprendendo e evoluindo rumo à perfeição. Carlinhos deve estar sendo muito bem amparado, recebendo amor e carinho de amigos e familiares que partiram antes. Provavelmente, está com a vovó Efigênia.
- Minha avó! - exclamou Marta.
- Por que não? Sua avó é uma criatura extraordinária, lembro-me bem dela, Marta.
- Sempre foi muito boa, de sentimentos elevados e ajudava a todos os que a procuravam. Só fez amigos, todos sentiram sua falta. Está no mundo espiritual há vários anos, e demonstrava um carinho especial pelo bisneto. Acho natural que tenha se preocupado em recebê-lo na nova vida e em ampará-lo, já que os pais ficaram na Terra. Não é o que fazemos quando alguém viaja para algum lugar e tem parentes nessa cidade?
Marta estava comovida com a lembrança da avó querida. Seus olhos brilhavam de emoção.
- É verdade! É verdade! Você faz com que as coisas pareçam tão simples e lógicas! E como eles vivem?
- Da mesma maneira que aqui. Lá existem cidades, com casas, jardins, escolas e tudo o mais. Carlinhos, após adaptar-se à vida espiritual, com certeza fará amigos, irá à escola, terá divertimentos, brincadeiras e passeios, como qualquer criança.
- Tem certeza? E tudo tão inusitado!
- Como você mesma disse, é lógico. Acha que Deus teria nos dado todo o conforto aqui na Terra e, no Além, não tivesse nada? Na realidade, nossa vida aqui é que é uma cópia imperfeita de tudo o que existe por lá. Porque, repito, a verdadeira vida é a espiritual.
Jairo e Marta estavam perplexos, mas animados. Era muita informação de uma só vez. Trocaram um olhar, depois Jairo respirou fundo e perguntou:- Onde podemos encontrar esses conhecimentos? Gostaríamos de saber mais sobre o assunto. Flora sorriu:
- E fácil. A Doutrina Espírita coloca à nossa disposição uma quantidade enorme de informações que nos foram trazidas pelos espíritos superiores, e que um emérito professor francês codificou, adotando o pseudônimo de Allan Kardec, para não influenciar as pessoas com seu nome verdadeiro, uma vez que ele era muito conhecido na França, tendo já várias obras publicadas. Afirmo-lhes, porém, que a Doutrina Espírita nada inventou, nada criou. Apenas nos trouxe verdades eternas e reconhecidas desde a mais remota Antigüidade, mas que os homens da nossa época ignoravam. Vou emprestar-lhes alguns livros.
Flora pediu licença e foi até o interior da casa, voltando em seguida com dois volumes, que entregou ao casal.
- Aqui estão as obras sobre as quais lhes falei. De início, O Livro dos Espíritos e O Evangelho Segundo o Espiritismo, ambos de Kardec. O primeiro, porque nele encontrarão o embasamento lógico para os fenômenos da vida, e o segundo, porque traz a consolação de que estão precisando por intermédio da parte moral do Evangelho de Jesus. Estarei à disposição de ambos para qualquer esclarecimento que precisarem.
Jairo, mais afeito a leituras, abriu O Livro dos Espíritos e correu a vista pelo índice. Cada vez mais surpreso, à medida que lia arregalava os olhos.
- Estou impressionado. Aqui trata de assuntos muito sérios.
- Exatamente. Tenho certeza de que vão gostar. Leiam, e depois que se inteirarem do conteúdo, voltaremos a conversar. Se desejarem, poderemos até estudar juntos. Eu freqüento um curso num centro espírita que fica aqui perto.
- Vocês têm cursos? Nunca pensei! - disse Jairo.
- Eu sei o que você pensava, Jairo - afirmou Flora, sorrindo. - Julgava que Umbanda, Candomblé e outras seitas, que representam o sincretismo afro-brasileiro, fossem Espiritismo. Puro engano. Apesar do respeito que temos por todas as expressões religiosas, o Espiritismo é a doutrina codificada por Allan Kardec no século dezenove, na França. Fazemos cursos, sim, porque nossa doutrina baseia-se na razão, e liberta nossa consciência pelo estudo, alargando-nos a visão.
Nesse momento, a criada entrou na sala e avisou que o lanche estava sendo servido. Flora conduziu seus amigos até a copa, onde passaram o resto da tarde conversando, tomando chá e se deliciando com as guloseimas que lhes tinham sido carinhosamente preparadas. Quando se despediram da dona da casa, Jairo e Marta estavam completamente diferentes de quando haviam chegado. Tinham o semblante mais tranqüilo e o coração cheio de esperança. E uma constatação surpreendente: naquelas horas haviam esquecido completamente suas tristezas. Era a primeira vez que isso acontecia desde a morte de Carlinhos. Dois dias depois, voltaram a se encontrar. Marta e Jairo mostravam-se encantados com os livros e, como não poderia deixar de ser, cheios de questionamentos.
- Há muitas coisas que não conseguimos entender direito, Flora, certamente porque nos falta embasamento no assunto. Pensamos bem e gostaríamos de freqüentar aquele curso sobre o qual você nos falou. Será possível?
- Sem problemas. Sempre temos novas turmas começando. Vamos combinar um dia para vocês conhecerem a casa espírita. Isso é importante para saberem onde irão estudar. Se gostarem do ambiente e sentirem afinidade pelas pessoas, tudo ficará mais fácil.
- Interessante! - exclamou Marta.
- E essencial também. Se não gostamos do ambiente nem das pessoas com as quais iremos conviver, o trabalho em conjunto fica difícil. Não nos sentiremos bem. Amanhã é dia em que teremos uma palestra e depois, a aplicação de passes. Gostariam de ir?
- Claro. Com prazer - concordaram ambos.
- Ótimo. Como a reunião começa às vinte horas, eu e o Ronaldo passaremos às dezenove e trinta para pegá-los. É bom chegarmos antes para vocês irem se adaptando ao ambiente.
No dia seguinte, Marta e Jairo, acompanhados de Flora e Ronaldo, foram ao centro. Estavam cheios de expectativa, ansiosos. Nunca tinham entrado numa casa espírita e não sabiam o que iam encontrar lá. Logo, porém, se tranqüilizaram. Era um salão normal de palestras, com as cadeiras enfileiradas simetricamente; na frente, ao centro, uma mesa coberta por uma toalha limpa e clara, na qual se via um arranjo de flores, uma jarra com água e um copo, e alguns livros. Atrás da mesa, na parede, apenas um quadro negro. Portanto, como Flora afirmara, era um local de estudos. O ambiente sereno, a música suave que se espalhava no ar encheu-os de bem-estar e paz, induzindo à elevação mental. Iniciando a reunião, um homem no verdor dos anos fez uma prece. Conclamou os presentes a elevar o pensamento e, com palavras singelas, buscou a figura meiga de Jesus de Nazaré e solicitou seu amparo para todos os presentes e suas famílias, o que aumentou sobremaneira o bem-estar que já sentiam. Nunca tinham ouvido uma prece tão simples e ao mesmo tempo tão bela, em que a intenção e o coração da pessoa extravasavam na súplica, emocionando-os. O tema da palestra programada para aquela noite era a necessidade de transformação moral, à luz do Evangelho do Cristo, para alcançar a felicidade futura que todos almejam, abordado com bastante competência pelo expositor, um senhor de cabelos brancos e fisionomia afável. Acompanharam com interesse a exposição. Depois, tomaram passe e água fluidificada. Quando as atividades terminaram, Flora apresentou-os ao dirigente da casa, Euclides, falando sobre o desejo de ambos de iniciar os estudos oferecidos. O simpático senhor deu-lhes as boas-vindas e passou-lhes o dia e horário do início do curso. Algumas outras pessoas se aproximaram risonhas e simpáticas. Eram amigos de Flora e de Ronaldo, que foram apresentados para os recém-chegados. Alguns iriam começar o Curso Básico de Espiritismo, como introdução ao estudo de O Livro dos Espíritos e Marta e Jairo já se sentiram entrosados com os novos colegas. Passaram alguns minutos agradáveis conversando, depois foram até a livraria, cuja porta dava para a entrada do salão, gastando mais algum tempo a examinar os livros.
- Estou impressionado - afirmou Jairo. - Nunca pensei que existissem tantas obras espíritas!
Ronaldo sorriu:
- E você ainda não viu nada, meu amigo. Aqui temos uma pequena amostra de títulos, porque nossa livraria é pequena.
Jairo escolheu alguns livros que lhe tinham sido recomendado por Ronaldo e, em seguida, despediram-se dos companheiros do centro. Por sugestão dos maridos, foram a um restaurante jantar. Estavam com fome e seria oportunidade de continuarem juntos, conversando. Era tarde quando se separaram. Marta e Jairo entraram em casa com os pensamentos elevados e com excelente disposição de ânimo.


CAPÍTULO 12 - SUPERAÇÃO DO SOFRIMENTO

"Deus consola os humildes e dá a força aos aflitos que a imploram. Seu poder cobre toda a Terra e, por toda a parte, ao lado de cada lágrima, Ele colocou um alívio que consola. O devotamento e a abnegação são uma prece contínua e contêm um ensinamento profundo. A sabedoria humana reside nessas duas palavras. Possam todos os Espíritos sofredores entender esta verdade, ao invés de protestar contra as dores, os sofrimentos morais que aqui na Terra são a vossa herança."
(O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, ALLAN KARDEC, CAP. 6, ITEM 8)

Desse dia em diante, iniciou-se uma nova vida para o casal. Vincularam-se ao centro espírita e passaram a freqüentar os cursos oferecidos, aprendendo cada vez mais. Um ano depois estavam envolvidos com a assistência social e participando do trabalho com crianças e jovens na periferia da cidade. Felizes, tinham muitos amigos e vida ativa e movimentada. Lembravam-se sempre do querido filho, Carlinhos, sem dúvida, mas já não era com aquela dor e o desespero dos primeiros meses. Sentiam falta do filho, sim, no entanto tinham a convicção de que ele estava bem, feliz e adaptado à vida na espiritualidade e, consoante os conhecimentos recebidos, evitavam incomodá-lo com pensamentos negativos. Sabiam que, quando fosse possível, teriam notícias dele. Precisavam ter paciência e esperar. Certo dia, Jairo começou a lembrar, mais do que nunca, de Carlinhos. Era como se ele estivesse ali na casa, com eles. Era uma terça-feira, dia da semana consagrado ao Evangelho no Lar. Sentados em torno da mesa, após a leitura do texto evangélico, Jairo sentiu muita emoção e comentou com a esposa:
- Querida, hoje, de uma maneira muito forte estou sentindo a presença de Carlinhos aqui entre nós. E como se eu o estivesse vendo sentadinho naquela cadeira ali, participando da nossa reunião.
Marta, comovida, concordou com ele:
- Sinto a mesma coisa, Jairo. Tenho certeza de que nosso filhinho está aqui conosco.
Comentaram o texto do Evangelho e, depois, encerraram com uma prece, agradecendo o amparo do Alto e as visitas que porventura tivessem recebido naquela noite e, especialmente, a presença do filho querido. Fizeram um lanche ligeiro e se recolheram mais cedo para dormir, continuando a sentir a mesma emoção. Pouco depois, Jairo teve a sensação de ter passado por um sono e estar acordando. Levantou-se, olhou em torno e estranhou ao ver seu corpo deitado, adormecido. Viu o livro que estava lendo, e que escorregara de suas mãos, cair no chão. Ao seu lado, na cama, a esposa. Lembrou-se das informações que recebera e entendeu que estava desprendido em espírito, fora do veículo corpóreo. Não teve tempo, porém, de estudar a situação. Olhou para o lado direito e viu o filho parado, sorridente, se divertindo com a surpresa do pai.
- Carlinhos! Meu filho!
- Papai! Estou aqui, papai!
Aproximaram-se e trocaram um grande, um longo abraço, cheio de amor e saudade.
- Meu filho, que alegria! Bem que percebemos sua presença hoje à noite. Como você está? Está ótimo, posso ver. Mais crescido, mais bonito até. Nesse instante, Marta, em espírito, aproxima-se também desprendida do corpo, surpresa. Entre lágrimas, abraça o filhinho com infinito amor:
- Meu filho! Meu querido filho! Quanta saudade! Deixe-me ver. Você está muito bem!
Conversam carinhosamente. Fazem perguntas e o garoto sorri:
- Estou muito bem mesmo, papai e mamãe. Estudo e aprendo bastante, como vocês. Vovó Efigênia é meu anjo bom e tem-me ensinado muito. Fico feliz com o rumo que as coisas tomaram. Vocês não imaginam quanto bem me fez se ligarem à casa espírita. Foi a vovó que se esforçou para que vocês buscassem ajuda com a tia Flora, porque minha situação aqui na espiritualidade era muito difícil. Eu estava sendo atingido pelo sofrimento de vocês. Tive várias recaídas, o que dificultou minha recuperação. Porém, tudo passou, estou bem e vocês também, isso é o que importa.
Num átimo, enquanto ouvia o filho falar, pelo pensamento de Jairo passou a idéia de que estava tudo bem, mas se não o tivesse levado ao campo nada teria acontecido e Carlinhos ainda estaria encarnado, com eles, em casa. Passando a mão pelo braço do pai, Carlinhos considerou, mostrando que identificara o pensamento paterno:
- Paizinho, não se sinta culpado. Esqueça esses pensamentos porque ninguém teve culpa. O meu tempo tinha chegado ao fim. Eu precisava regressar à verdadeira vida. Por motivos que mais tarde saberemos, eu tinha de passar por isso. Não se sinta culpado. Tinha de acontecer.
Abraçam-se novamente. Fitando-os com muito amor, Carlinhos afirma, como que se despedindo:
- Papai! Mamãe! Continuem trabalhando e ajudando àqueles que precisam. Especialmente, se esforçando para divulgar a necessidade da paz e da fraternidade entre todas as pessoas. Vovó Efigênia contou que nós tivemos problemas em outras existências por incentivar a guerra, a violência. Agora, é o momento de reconstruir. Lembrem-se disso. Que Jesus os proteja sempre. Qualquer dia desses, eu levarei vocês para ver onde vivo. Até breve!
Carlinhos desapareceu com um aceno; Jairo e Marta acordaram no leito, debulhados em lágrimas, experimentando uma alegria intensa e indescritível, como nunca tinham sentido. Olharam um para o outro, e perceberam que ambos estavam se recordando de tudo o que tinha acontecido naquela noite memorável. Abraçaram-se e ficaram assim, mergulhados nas lembranças, sem trocar palavras desnecessárias. Na manhã seguinte despertaram com a recordação clara do encontro com o filho querido, porém não conseguiram reter integralmente o teor da conversa que tiveram. Todavia, Jairo acordou com a convicção de que precisavam fazer alguma coisa para melhorar a sociedade. Durante o café-da-manhã, comentaram sobre o encontro com Carlinhos, mantendo a mesma alegria e otimismo. Jairo, pensativo, falou para a esposa:
- Marta, depois de tudo o que aprendemos das circunstâncias em que ocorreu a desencarnação de nosso filho, sinto que precisamos começar a conscientizar as pessoas da necessidade da paz. No íntimo, sinto que este é o desejo de nosso filho.
- Também penso assim, querido. No fundo, já trabalhamos nesse sentido, quando ajudamos crianças e jovens a vencer os vícios, quando orientamos as famílias a educar seus filhos com base nos preceitos evangélicos.
- Concordo com você. No entanto, sinto que nossa ação tem de ser mais direcionada por meio de palestras em escolas, em grupos da periferia, em clubes de mães e, também, aglutinando os jovens por meio do esporte, do lazer, da dança, da música e das artes de modo geral. E preciso dar-lhes também uma profissão, em que terão a oportunidade de ganhar seu próprio sustento, e crescer como pessoa. Estou com a cabeça repleta de idéias!
É como se elas surgissem de repente, impulsionando-me para frente, para o trabalho. Será importante criarmos um grupo de apoio e, para isso, teremos de contar com a Flora, o Ronaldo e com o pessoal da casa espírita. O entusiasmo de Jairo era contagiante. Continuaram conversando. Na espiritualidade, Carlinhos, vovó Efigênia e outros amigos ali estavam satisfeitos e sorridentes. Com os pensamentos elevados ao Alto, agradeceram a Deus a nova oportunidade de trabalho que surgia e que seriam as sementes de bênçãos futuras. Diante das adversidades, dos problemas e dos obstáculos que a vida nos apresenta, gerando não raro tristezas, amarguras, dores e sofrimentos acerbos, busquemos o Pai Maior, sabendo que Ele deseja sempre o bem de seus filhos e procuremos analisar e entender o que essa situação significa para nosso crescimento espiritual. Se acreditarmos que Deus é perfeição infinita, não podemos concebê-lo sem a totalidade de seus atributos, ou pelo menos, aqueles que já temos condições de identificar, isto é, Deus é eterno, infinito, imutável, imaterial, único, onipotente, soberanamente justo e bom. Se Deus é perfeito, tudo o que Ele faz é correto e está sujeito a leis naturais e imutáveis, porque provenientes do Criador. Então, tudo o que acontece se submete à Lei de Ação e Reação que vigora no universo. Cristo ensinou que cada um receberá de acordo com as próprias obras. Plantando, colheremos. As sementes que lançarmos à terra do nosso coração produzirão as bênçãos ou os malefícios correspondentes às nossas ações. A Doutrina Espírita nos ensina que nossas aflições podem ser de duas espécies: relativas à existência atual ou às existências anteriores. Quando não encontramos razões para nosso sofrimento na vida presente, é porque elas se vinculam a encarnação anterior, caso contrário Deus não seria justo. Desse modo, podemos entender a importância do conhecimento espírita, que nos aclara a mente e dilata os horizontes. Compreendemos, então, a necessidade de observar a lei, admitindo nossos erros e entendendo que somente a reparação poderá nos libertar do sofrimento. Assim, os desafios da existência são oportunidades que o Senhor nos concede para aprendizado e elevação, permitindo-nos também refazer relacionamentos afetivos danificados pela mágoa, pelo rancor ou pelo ódio. Somente a vivência dos postulados cristãos mostrará que, intimamente, já incorporamos os ensinamentos morais evangélicos. E, somente estando em paz com nós mesmos é que poderemos auxiliar a sociedade em que vivemos, repassando, com nossos exemplos, a verdadeira paz e tranqüilidade para todos os que convivem conosco. Começando no ambiente familiar, pela melhoria das relações com os entes queridos; pelo exercício da paciência, da tolerância e do diálogo amigável, tornando a vida de todos mais agradável e carinhosa, modificando o tônus vibratório do nosso lar e gerando o conseqüente bem-estar de todo o grupo. Do ambiente doméstico, passaremos a entender e a respeitar os vizinhos, os colegas de trabalho, os transeuntes das ruas, os outros motoristas no trânsito, e em todos os lugares onde nós formos chamados a colaborar, inclusive na casa espírita. Nela nos portaremos como cristãos e espíritas que temos a honra de nos considerar. O exercício da fraternidade, da solidariedade e do amor, como Jesus exemplificou, fará com que o ambiente a nosso redor se transforme, gerando emanações de luz. As bênçãos se espalharão e, por nosso exemplo, seremos agentes de mudança da sociedade em que vivemos, modificando os grupos dos quais façamos parte e estendendo, por meio das nossas vibrações, a paz e o amor entre todas as pessoas. Somente assim nossa sociedade poderá se transformar para melhor, e nós viveremos num mundo mais pacífico, fraterno e igualitário. Para que isso ocorra, entretanto, é imprescindível que cada um faça a sua parte. "O servo que souber da vontade do seu amo e que, entretanto, não estiver pronto e não fizer o que dele queira o amo, será rudemente castigado. Mas aquele que não tenha sabido da sua vontade e fizer coisas dignas de castigo menos punido será. Muito se pedirá àquele a quem muito se houver dado e maiores contas serão tomadas àquele a quem mais coisas se haja confiado", assevera Jesus, alertando-nos para a responsabilidade que assumimos perante o conhecimento adquirido e as conseqüências geradas por nossos pensamentos, palavras e atos. A sabedoria divina tem nos envolvido com bênçãos sem fim, tornando-nos a existência mais fácil, protegendo-nos das dificuldades, aparando-nos os problemas, fortalecendo-nos em momentos de aflição, consolando-nos nas horas de sofrimento. Todavia, essas dádivas têm um preço. Deus nos ajuda para que, por nossa vez, possamos ajudar a outros que necessitam mais. Assim como recebemos, temos de aprender a doar de nós mesmos. É dessa forma que a humanidade cresce, amadurece e se aperfeiçoa... Pelos esforços daqueles que mais têm em conhecimento, criatividade, elevação moral, e que servem de parâmetros para os que vêm atrás. Por essa razão, em todas as épocas, Deus sempre enviou missionários à Terra, que pudessem servir de modelo à população, ajudando-a na absorção de conceitos mais elevados e proporcionando novos saltos para o progresso. Jesus Cristo foi o mais elevado espírito que veio ao planeta trazer as leis de Deus, a benefício da humanidade. Na atualidade, pelas bênçãos da Doutrina Espírita e das informações dos espíritos superiores, que Allan Kardec codificou, possuímos condições de transformar a sociedade. Basta que o desejemos e nos esforcemos para isso. Todos nós estamos sendo chamados a colaborar, executando nossa parte e disseminando os valores do Evangelho de Jesus e as importantes revelações que o Consolador Prometido trouxe à Terra. Nosso planeta, no futuro, será um mundo de paz, sem violência, agressividade, maldade, sem miséria, sem doenças. Onde cada um se preocupará com o próximo, de modo que nada lhe falte, e onde o amor direcionará nossas atitudes para o bem. Pense nisso.


CAPÍTULO 13 - MOMENTOS DE DECISÃO

"O aborto provocado é um crime, qualquer que seja a época da concepção?" "Há sempre crime quando se transgride a Lei de Deus. A mãe, ou qualquer outra pessoa, cometerá sempre um crime ao tirar a vida de uma criança antes do seu nascimento, porque é impedir a alma de suportar as provas das quais o corpo devia ser o instrumento."
(O LIVRO DOS ESPÍRITOS, ALLAN KARDEC, QUESTÃO 358)

Caminhando pelas ruas, Marina observava os edifícios. O local era o pior possível: Ruas feias, sujas, construções velhas e prédios pichados, caindo aos pedaços. Olhou novamente o pequeno papel amassado que tinha nas mãos e confirmou o endereço: Rua Santa Marta, 225. Por onde passava, porém, não havia nenhuma placa ou indicação com o nome das ruas. Pediu ajuda a um moço, que a informou:
- Siga reto e, na terceira travessa, vire à direita e já estará na rua que procura.
Marina estava tão nervosa que nem se lembrou de agradecer a gentileza do rapaz. Apressou o passo e, em dez minutos estava defronte ao número. Parou. Era um sobrado velho e de pintura indefinível. Não havia placa na porta. Mas o endereço estava certo, era aquele mesmo. Enchendo-se de coragem, entrou. Na sala, escura e abafada, a secretária atendia de má vontade, mascando chicletes. Aproximou-se do balcão.
- Sou Marina Cintra e tenho hora marcada com o doutor Adelmo.
- Todas aqui têm a mesma hora marcada, moça. O atendimento é pela ordem de chegada.
- Quanto devo pagar?
A atendente disse o valor, que Marina não discutiu. Qualquer que fosse o preço, ela pagaria. Estava preparada.
- Há muita demora?
- E isso importa? Vai demorar, sim. Sente-se e espere. A próxima!
Diante do pouco caso da arrogante secretária, Marina achou melhor não dizer mais nada. Procurou um lugar vago e sentou-se, apesar da repugnância que lhe causou o sofá sujo, malcheiroso e esburacado.
Sempre tinha primado pela limpeza e aquele lugar deixava-a horrorizada. Olhou em torno. Contou mentalmente: seis mulheres aguardavam naquela sala, fora ela. Todas eram jovens; duas mal tinham entrado na adolescência. Só então se deu conta de que em todos os olhares havia o mesmo desespero, o mesmo medo, a mesma ansiedade. Entendeu perfeitamente a intenção da secretária quando disse e isso importa?" Ela não ignorava que cada uma das infelizes que estava ali tinha urgência em resolver seu problema, e não sairia sem solucioná-lo. Pegou os restos de uma antiga revista de páginas desfolhadas e tentou fixar-se na leitura, já que teria de esperar. A sala não tinha ventilação e o calor era insuportável. Com a revista nas mãos, o pensamento vagava sem rumo e não conseguia fixar-se na leitura. Com extrema dificuldade havia se decidido pela interrupção da gravidez. Não tinha saída. O rapaz com quem ela estava se relacionando, assim que soube da novidade, desapareceu. Seus pais jamais admitiriam uma filha em casa com um bebê sem pai e dependente deles. Marina era de uma família muito pobre e cada um cuidava de si. Quatro pessoas trabalhavam: a mãe, empregada doméstica; o pai, ajudante de pedreiro, e os dois irmãos, que nunca quiseram estudar e, na falta de coisa melhor, iam para a roça como bóias-frias; isso quando havia serviço. E mesmo com todos trabalhando a renda familiar era insignificante, pois recebiam uma miséria no final do mês. Sendo a caçula e mimada pelos demais, só ela havia estudado, o que a colocava num nível diferente dentro da família. Seus amigos eram todos da classe média, e talvez essa fosse a causa de seus problemas. Para poder sair com as colegas e freqüentar lugares melhores, tivera de "se virar". Todos diziam que ela era bonita, elegante, atraente, e resolveu tirar partido disso. Se Deus havia lhe dado aquele corpo bem-feito e aquele rostinho bonito, era deles que iria tirar seu sustento. Passou a trabalhar, então, como "garota de programa", procurando manter o máximo sigilo. Ninguém poderia desconfiar. Na cidade grande, onde ninguém se conhecia, isso era coisa fácil, e ela era cuidadosa em ficar sempre bem distante do bairro pobre onde morava. Desde que tinha entrado nessa vida dupla, sempre soube se cuidar e nunca tivera problemas. No entanto, quando apareceu Adriano, rapaz charmoso e simpático, deixou-se envolver sentimentalmente e descuidou-se. Estavam juntos havia quatro meses quando percebeu que estava grávida. O que fazer? Tentou falar com o namorado, mas ele não quis nem saber. Ficou irritado e alegou com frieza: como pode afirmar que esse filho é meu, Marina? Pode ser de qualquer outro! Sentiu profunda mágoa e humilhação. Desde que eles estavam juntos, ela só fora dele, de ninguém mais. Pensava que Adriano a amasse, porém percebia, tarde demais, que ele apenas tinha se aproveitado dela. E a família? Como contar aos pais que estava grávida? Justo ela que só estudava, por quem os pais e os irmãos tinham se matado de trabalhar para dar melhores condições de vida? O bebê seria mais uma boca para alimentar naquela casa. Além disso, seus irmãos eram bons, mas violentos. Se soubessem, lhe dariam uma grande surra e não descansariam enquanto não acabassem com Adriano. E ela? Como manter seu padrão de vida? Como comprar as roupas, os sapatos, os produtos de maquiagem que estava habituada a ter? Sempre que chegava com algo novo em casa, alegava ser presente de amigas ricas, e todos na família acreditavam. Marina respirou fundo. Diante desses pensamentos, um suspiro abafado saiu-lhe do peito opresso. Lembrou-se da vida que se acostumara a levar: bons restaurantes, lanchonetes finas, comida e bebida da melhor. Tudo isso fatalmente acabaria, caso essa gravidez prosseguisse, e ela se habituara a viver assim. Não, não podia permitir. Pensou bastante e decidiu. Faria o aborto. Para isso, começou a buscar informações com as colegas de ofício e descobriu esse endereço onde estava agora. Por mais alguns dias prosseguiu aceitando convites para"programas", e juntou uma boa quantia que iria precisar, tanto para pagar o serviço quanto para sua recuperação, remédios etc. Preparou tudo. Depois que marcou hora no médico, avisou a família de que havia sido convidada por Natália, uma amiga, para um passeio; iriam para uma fazenda, distante uns 50 quilômetros da cidade. Que não se preocupasse, ela ficaria bem. Iriam acompanhadas pelos pais de Natália, e, como se tratasse de um final de semana prolongado, só voltariam na segunda-feira. Depois, reservou vaga numa pensão, em bairro distante para não ser reconhecida e deixou tudo certo, pagando adiantado. Na véspera da pretensa viagem, arrumou sua bagagem, uma mochila pequena na qual colocou algumas peças de roupas e, no dia seguinte, despediu-se dos pais e dos irmãos, ouvindo mil recomendações. Saiu de casa levando tudo. Dirigiu-se primeiramente à pensão, deixando a mochila no quarto; depois, foi para a clínica médica, cujo endereço tinha em mãos. E agora ali estava ela, aguardando a sua vez. Observando o movimento, estranhou que as pacientes entravam, mas não saíam pela mesma porta. Deduziu que deveria ter outra saída dando para a rua. A seu lado, uma mocinha, que deveria ter no máximo 13 anos, mostrava-se apavorada. Extremamente agitada e nervosa, esfregava as mãos. Vez por outra, enxugava discretamente uma lágrima. Marina se condoeu da situação da menina e puxou conversa com ela. - Como demora, não é? Você está com medo? A menina balançou a cabeça afirmativamente.
- Como é seu nome?
- Vanessa.
- Lindo nome, Vanessa. O meu é Marina. Quer conversar comigo? Talvez desabafar lhe faça bem.
A menina, de cabeça baixa, contou que seu padrasto abusava sexualmente dela todos os dias. Horrorizada, Marina indagou:
- E sua mãe sabe?
- Não. Nunca contei a ela.
- Por que, Vanessa? Ela é a única pessoa que pode ajudá-la!
- Minha mãe gosta muito desse homem e ele ameaçou-me, dizendo que, se contasse, ele jogaria a culpa sobre mim. E agora que engravidei, ele me deu dinheiro para fazer o aborto. Não quer que minha mãe perceba. Afinal, é ela que trabalha e sustenta a casa. Ele é um malandro que só vive pelos bares. Marina estava perplexa. Notou que existiam problemas piores do que os seus. Vanessa parou de falar, continuando de cabeça baixa. Marina sentiu vontade de animá-la, de dar-lhe algum consolo, mas não sabia o que dizer. Afinal, ela também estava em situação semelhante. Naquele instante, Marina sentiu vontade de pensar em Deus, pedindo ajuda para aquela menina, quase uma criança que estava ali, apavorada, sem ninguém da família para socorrê-la. A emissão do seu pensamento foi suficiente para que nós, da espiritualidade, alertados para o que estava acontecendo, pudéssemos agir, procurando evitar um mal maior, isto é, que os crimes se perpetrassem naquela casa. Aproximamo-nos, envolvendo Marina em emanações benéficas e tranqüilizantes, para que mantivesse a serenidade e a confiança em Deus. Atos contínuos sugeriram que ela saísse da sala sufocante para respirar ar puro lá fora. E ela o fez, convidando Vanessa a acompanhá-la. Marina e a companheira estava havia cerca de quinze minutos na calçada conversando, quando chamamos sua atenção para uma das pacientes que saía por uma porta secundária, que dava para o quintal da casa. A adolescente tinha um aspecto abatido e lágrimas desciam pelo seu rosto. Amparada por uma mulher de branco, mal conseguia caminhar, praticamente sendo arrastada para um carro que aguardava ali perto. Da cintura para baixo, especialmente na região das coxas, suas roupas estavam sujas de sangue. Certamente estava tendo uma hemorragia. Ao ver as duas moças na calçada, a paciente lançou um olhar aflito, mas cheio de compaixão, como se dissesse: Não façam isso que eu fiz! Vejam como estou! Marina tentou aproximar-se dela, mas a mulher de branco, sua acompanhante, não deixou, dizendo com voz ríspida, mas não isenta de preocupação:
- Deixem-na. Ela precisa ir embora imediatamente. Marina trocou um olhar com Vanessa. Com certeza, algo dera errado. A moça corria risco de morte, sem dúvida. Naquele instante, envolvidas por nós, ambas sentaram-se no meio-fio e puseram-se a conversar. Não queriam arriscar a vida, não valia a pena. Mas o que fazer? Marina, mais velha e mais experiente, rapidamente, amparada pela nossa equipe que a intuía, decidiu:
- Vanessa, nós não podemos fazer o aborto. Esse lugar é um açougue!
- Também sinto isso. E agora? Quanto a você não sei, mas eu não posso voltar para casa grávida. E, além disso, todo o dinheiro que eu tinha usei para pagar esse serviço.
- Resolveremos isso depois. Agora, venha comigo. Já sei o que fazer.
Entraram e se aproximaram do balcão. Marina, resoluta e fortalecida pela nossa presença, ordenou à secretária: - Devolva nosso dinheiro. Não desejamos mais o atendimento. Com ar arrogante, a secretária retrucou:
- Impossível. Já pagaram. Se não quiserem o serviço é problema de vocês, mas não posso devolver o dinheiro. Tenho ordens expressas do doutor.
Marina agarrou o braço da antipática atendente e ameaçou:
- Devolva nosso dinheiro ou chamo a polícia. Tenho certeza de que os policiais ficarão muito satisfeitos ao descobrir esta pocilga. Escolha. E rápido, porque não temos tempo a perder.
Ao ouvir falar na polícia, a arrogante atendente pôs-se a tremer de medo. Abriu a gaveta, pegou o dinheiro e entregou nas mãos de ambas.
- Calma! Está bem! Está bem! Não precisa brigar. Pode levar. Está tudo aqui.
Vanessa e Marina saíram da clínica de cabeça erguida. Antes, porém, Marina ainda virou-se para as pacientes que aguardavam e alertou:
- Acho melhor vocês não entrarem nesse consultório. Há pouco saiu daqui uma paciente muito mal. Esse lugar não é uma clínica, é um matadouro.
Mas as mulheres que ali estavam já conheciam a clínica e os serviços oferecidos e, mesmo arriscando a vida, preferiram permanecer. Algo decepcionada, Marina fez um gesto largo com os braços, olhando para sua companheira, como se dissesse: Bem, tentamos. Depois, voltando-se para as demais, desejou:
- Boa sorte!
Fora da clínica, andaram apressadas, desejando colocar a máxima distância entre elas e aquele lugar horrível. Ao chegar a uma praça, sentaram-se num banco para descansar um pouco. Estavam ofegantes. Vanessa, preocupada, perguntou:
- E agora, Marina? Conseguimos evitar o pior, e temos nosso dinheiro de volta, mas o que faremos? Nosso problema continua!
A outra, mais tranqüila, que intuitivamente sabia o que fazer, afirmou:
- Não se inquiete, Vanessa. Como você disse, agora temos o dinheiro que iria para os bolsos daquele médico. Venha comigo. Sei para onde podemos ir.
Pegaram um ônibus e em meia hora estavam na pensão. Marina pagou outra vaga para Vanessa e ficaram no mesmo quarto.
- Você mora aqui, Marina?
- Não, claro que não. Aluguei este cômodo para poder me recuperar após o serviço.
Minha família pensa que estou viajando com uma amiga. Estavam cansadas e deitaram para repousar, uma ao lado da outra. Enquanto descansavam, aproveitavam para conversar. Marina contou à Vanessa a sua história. Quando terminou, a outra suspirou:
- Gostaria de estar no seu lugar. Você pelo menos tem pais que a amam, irmãos... Se eu tivesse irmãos como você, nada disso teria me acontecido, Marina.
- Talvez não, Vanessa. Porém, você tem mãe e ela deve amá-la muito. Acho que deveria ter confiado mais em sua mãe e contado os abusos que tem sofrido.
- Pode ser. Não sei o que vai ser da minha vida agora...
- Fique calma. Tenho a íntima convicção de que tudo vai dar certo, pode crer.
- Invejo você, Marina. Parece tão segura de si, tão resolvida. Enfrenta tudo.
Marina levantou um pouco o corpo para olhar a outra.
- Você se engana, Vanessa. Sempre fui insegura. Também estou surpresa com meu comportamento. De repente, sinto-me forte, confiante e amparada, como se soubesse o que devo fazer!
- Fala sério? E quando houve essa mudança? Marina pensou um pouco, puxando pela memória.
- Interessante. Parece que foi quando fiquei preocupada com você, que estava ao meu lado, aflita e nervosa. Senti imensa compaixão por você e enorme desejo de ajudá-la. Até pensei em Deus - coisa que raramente faço - pedindo que a amparasse.
- Verdade? E depois?
- Depois, as idéias começaram a vir a minha cabeça. Até a vontade de sair da sala parece que foi sugerida por alguém. Ouvi a voz suave de um rapaz e obedeci. Não é estranho?
- Estranho e providencial! Não fosse isso e ainda estaríamos lá naquele chiqueiro. Mas já ouvi falar dessas coisas. Tenho uma tia que é espírita e ela vê e ouve as almas daqueles que já morreram. Acho que é isso o que aconteceu com você. Ela diz que todo pensamento bom encontra ressonância na espiritualidade e nossa prece é atendida por amigos espirituais, pelo anjo da guarda, pelo santo da nossa preferência, enfim, por quem puder atender. Creio que foi isso o que aconteceu com você. Preocupando-se comigo, você deu oportunidade para que amigos do além ajudassem a mim e a você.
- É mesmo? Faz sentido.
Continuaram conversando até que, aos poucos, um sono benéfico passou a envolvê-las.
Havia sido um dia difícil e precisavam repor as energias.


CAPÍTULO 14 - NUVENS QUE SE DISSOLVEM

"Quando alguma coisa feliz nos acontece, é ao nosso Espírito protetor que devemos agradecer?" "Agradecei a Deus, sem cuja permissão nada se faz; depois, aos bons Espíritos, que são seus agentes."
(O LIVRO DOS ESPÍRITOS, ALLAN KARDEC, QUESTÃO 535)

Marina e Vanessa estavam tão cansadas que dormiu a tarde toda. Despertaram ao cair da noite e, após tomarem um banho, já refeitas, foram jantar. A refeição não era lá essas coisas, mas comeram com vontade. Estavam famintas. Depois, voltaram para o quarto e retomaram o diálogo. Imprescindível decidir o que fazer. Como Marina tivesse tempo, uma vez que, para todos os efeitos estava viajando, o mais urgente era resolver o problema de Vanessa.
Após refletir um pouco, Marina perguntou:
- Vanessa, você tem alguém em quem possa confiar? Uma pessoa com quem poderia contar num momento de dificuldade?
A outra pensou um pouco e respondeu:
- Tenho uma tia, irmã de minha mãe, com quem sempre me dei muito bem. Acho que posso confiar nela. Por quê?
- Ótimo! E se falássemos com ela?
- Contar da minha gravidez? Nem pensar! - retrucou a outra, taxativa.
- Vanessa, nós temos de começar de algum ponto! Acho que ela precisa saber não apenas a respeito da gravidez, mas sobre toda a sua história.
Vanessa ficou pensativa por alguns instantes, depois considerou:
- O fato é que minha mãe a ouve muito. Talvez você tenha razão; pode dar certo. Além disso, talvez seja minha única opção.
- Muito bem. Você sabe o número do telefone dela?
- Sei.
- Então, o que estamos esperando? Vamos telefonar para sua tia. Tem um orelhão logo ali, na esquina.
Rapidamente saíram da pensão e se dirigiram ao telefone público. Vanessa discou, e logo uma voz de mulher atendeu.
- Oi, tia Amélia. E a Vanessa.
- Olá, querida! Estou com saudades! Como vai?
A garota titubeou um pouco, escolhendo as palavras para responder.
- Não muito bem... Preciso falar com a senhora o mais rápido possível.
- Ótimo! Estava mesmo pensando em ir amanhã à sua casa.
- Não, não, tia Amélia. Em casa não. Encontre-me na... na... Marina pensou rápido, e assoprou o nome de uma lanchonete conhecida.
- Encontre-me na Lanchonete Recanto, no centro da cidade. Sabe onde fica?
- Sei. Quando?
-Amanhã cedo, às nove horas. Pode ser?
- Sem dúvida. Mas... Aconteceu alguma coisa?
- Amanhã conversaremos tia Amélia. Posso pedir-lhe mais um favor?
- Claro, querida, pode dizer. O que deseja?
- Que não conte a ninguém que falou comigo. Nem à mamãe.
- Nem à sua mãe? - indagou, preocupada.
- Especialmente a ela - respondeu a sobrinha com firmeza.
- Está bem. Fique tranqüila, Vanessa, ninguém ficará sabendo.
- Obrigada. Sabia que poderia contar com a senhora. Um beijo, tia Amélia. Até amanhã.
No dia seguinte, as novas amigas tomaram café e se dirigiram até o ponto de ônibus. Vanessa estranhou o fato de Marina ter marcado o encontro tão longe de onde estavam hospedadas, mas a outra, mais viva, explicou:
- Por enquanto, é bom ninguém saber onde estamos. E se sua tia não quiser nos ajudar e contar onde você está? Melhor prevenir.
- Você não a conhece e não confia nela. Mas verá que está errada. Minha tia é muito boa. Se ela prometeu que não contaria a ninguém, não contará.
- Bem, nunca se sabe. Afinal, ela e sua mãe são irmãs! Chegaram mais cedo ao local combinado, acomodaram-se e pediram um pingado. A lanchonete estava quase deserta àquele horário.
Dez minutos depois, Amélia chegou. Era uma simpática senhora de uns 50 anos, bem vestida e fisionomia afável. Aproximou-se da mesa, sorridente, espalhando delicioso perfume de flores:
- Como vai, Vanessa?
- Apesar de tudo, vou bem, tia Amélia. Esta é Marina, uma amiga.
Aquele apesar de tudo preocupou ainda mais a recém-chegada. Trocaram cumprimentos e se acomodaram. Após pedir um café, Amélia perguntou:
- Estou curiosa, Vanessa. O que está acontecendo? Por que quis conversar comigo longe de sua casa?
Algo temerosa, gaguejando, Vanessa começou a falar:
- Tia Amélia, eu não dormi em casa esta noite. - Eu sei. Sua mãe me telefonou, aflita. Queria saber se você estava em minha casa.
- A senhora contou que falou comigo? - indagou a menina, trêmula.
- Não, claro que não. Como percebi sua voz bastante tensa ao telefone, deduzi que tinha acontecido alguma coisa e não disse nada, aguardando nossa conversa de hoje. Mas agora preciso saber. O que houve? Você e sua mãe brigaram?
- Não, não brigamos. Vou explicar tudo, tia Amélia. E uma longa história.
Fez uma pausa, respirou fundo e, ganhando coragem, começou a falar:
- Desde que aquele homem entrou em nossa casa, tudo mudou. A senhora sabe como minha mãe é louca por ele. Não admite que se diga nada contra aquele safado. Estou numa situação muito difícil, quero abrir meu coração, porém nem sei como lhe dizer...
Nesse ponto, ela começou a chorar e não conseguiu continuar. Marina resolveu a situação, tomando a dianteira:
- A verdade, dona Amélia, é que Vanessa tem sofrido muito. Vou direta ao ponto: o padrasto tem abusado dela sexualmente todos os dias.
- Não é possível! - exclamou a senhora, com olhos arregalados, perplexa.
- Contudo, é a mais pura verdade. E tanto é possível que ele engravidou Vanessa.
Atônita, a tia olhou para a sobrinha, incapaz de acreditar naquela monstruosidade, enquanto uma palidez marmórea invadia-lhe o rosto:
- Vanessa, você está grávida?
A garota recomeçou a chorar, concordando com um gesto de cabeça. Marina prosseguiu:
- E tem mais. Quando Vanessa falou ao padrasto sobre o problema, ele deu-lhe dinheiro para fazer um aborto. Mas vou lhe contar tudo...
Diante da estarrecida senhora, Marina relatou o encontro que teve com Vanessa na clínica e falou sobre a decisão de ambas de não se submeterem ao atendimento daquele médico. Quando terminou, Amélia estava ainda mais perplexa. Todavia, precisava de uma confirmação desses absurdos da boca da própria sobrinha:
- Tudo isso é verdade, Vanessa? E sua mãe, por que não lhe contou?
Levantando a cabeça, a garota limpou as lágrimas e explicou com expressão de profunda tristeza:
- A senhora conhece mamãe melhor do que ninguém, tia Amélia. Sabe bem como ela é. Em relação àquele homem, mamãe é completamente cega, surda e muda. Todas as vezes que tentei fazê-la enxergar o comportamento dele, foi em vão, não me deu crédito. Além disso, João ameaçou dizer à minha mãe que era eu que dava em cima dele. Ele tem uma arma, e ameaçou até me matar se eu abrisse a boca. - Que absurdo! O que pretende fazer agora, Vanessa?
- Não sei tia Amélia. Achei que a senhora talvez pudesse, de alguma forma, me ajudar a resolver.
Amélia, já readquirindo o controle das emoções, tirou da bolsa um lencinho de papel e entregou-o à sobrinha lavada em lágrimas. Depois, assumindo o lado prático, perguntou:
- Bem. Onde você dormiu essa noite, Vanessa?
- Numa pensão, junto com Marina.
A senhora pensou um pouco e depois disse:
- A primeira providência será levá-la para a minha casa. Depois, decidiremos o que fazer. Chamarei sua mãe e conversaremos. Ela me escuta e me respeita, e nessa hora isso é fundamental.
Lançando um olhar para Marina, a mocinha considerou:
- A senhora tem razão, tia Amélia. No entanto, ficaria mais tranqüila se encontrasse minha mãe num lugar neutro. Tenho medo de que ela não aceite a realidade e conte para o marido. Ele me mataria se soubesse que abri a boca, como me ameaçou várias vezes. Se minha mãe o colocar para fora de casa e ele perder as mordomias que tem, com certeza me matará, e eu acredito, porque aquele homem é capaz de tudo.
- Quanto a isso você tem razão, Vanessa. Também tenho certeza de que João não quer perder essas facilidades. Afinal, ficar o dia inteiro em casa sem trabalhar, ser sustentado pela mulher e ainda abusar da filha, não é para qualquer um. Porém, acho que você se engana, Vanessa, em relação à sua mãe. Ela adora você e se souber de tudo a protegerá, fique certa disso. Ponho minha mão no fogo por ela.
- Está bem. Então, vamos fazer o que a senhora sugeriu, tia Amélia. Marque com minha mãe um encontro para hoje à tarde na sua casa e conversaremos. Só faço uma exigência.
- Qual é?
- Que Marina venha conosco. A presença dela é muito importante para mim, tia Amélia. Ela tem me ajudado bastante e sinto-me segura com ela ao meu lado, apesar de só a ter conhecido ontem e em circunstâncias tão difíceis.
Marina ficou emocionada. Não imaginou que Vanessa se tivesse ligado tanto a ela a ponto de sentir-se segura a seu lado. Abraçou a amiga e considerou:
- Agradeço suas palavras, Vanessa, mas não sou tão segura como você pensa. E também tenho um problema para resolver, lembra-se? Amélia olhou a outra e, penalizada, mentalmente considerou que Marina teria apenas alguns anos a mais que sua sobrinha. Também era uma adolescente com o mesmo grande problema nas mãos.
No carro, a caminho de casa, Amélia delicadamente indagou:
- E você, Marina, como é sua história?
A jovem relatou por alto, falando apenas do namorado que tinha desaparecido ao saber da gravidez, e da família, à qual não tinha coragem de contar a verdade. Amélia pensou um pouco, em seguida considerou com voz serena:
- Compreendo que vocês estejam apavoradas diante da situação. Na posição de vocês, eu igualmente estaria. No entanto, acredito também que, tanto Vanessa quanto você, Marina, estão subestimando o amor de seus pais. Pensem nisso.
Chegaram. A casa era simples e acolhedora, cheia de plantas e de árvores. Amélia explicou à Marina que morava sozinha desde que o marido faleceu. Não tiveram filhos, e a sobrinha, na verdade, era a filha que sempre sonhara ter. O ambiente da casa foi um bálsamo para as moças. A decoração, a música suave que tocava invadindo todos os ambientes e um agradável odor de incenso que se espalhava no ar. Tudo transpirava serenidade e bem-estar. Depois de instalar as jovens num quarto agradável e aconchegante, Amélia telefonou para a irmã; a voz, do outro lado da linha, soou desesperada pela ausência da filha.
- Neide, fique tranqüila. Vanessa está bem. Venha tomar um café comigo à tarde e conversaremos.
A mãe de Vanessa, mais aliviada, prometeu que iria. Depois do almoço, simples, mas muito apetitoso. Amélia sugeriu fazerem um bolo para esperar Neide, a mãe de Vanessa. Alegremente, as três ficaram na cozinha preparando o lanche. Quando Neide chegou, sentiu um cheiro agradável de bolo recém-assado. Era uma mulher de tez clara, cabelos e olhos castanhos, miúda, magra, de traços regulares bem parecidos com os de Vanessa, e gestos nervosos e mãos trêmulas. Recebida com alegria pela dona da casa, a irmã nem tinha colocado os pés dentro da porta e já perguntava:
- Amélia! E então, tem notícias de minha filha? Sei que tem! Estou quase louca, sem saber o que fazer! Não me deixe nessa agonia. Nem dormi a noite passada preocupada com minha filhinha.
Abraçando a recém-chegada, que falava sem parar, Amélia tranqüilizou-a:
- Acalme-se, Neide. Vanessa está aqui comigo. Ao ouvir falar no seu nome, Vanessa entrou na sala. Ao vê-la, Neide correu ao seu encontro.
- Vanessa, minha filha! Por que fez isso com sua mãe? Desaparecer sem deixar recado, sem uma palavra, nada!
A mocinha, tímida por natureza, estava trêmula diante da mãe e não conseguia abrir a boca. Amélia, notando o constrangimento da sobrinha, interferiu:
- Neide, sente-se. Temos muito que conversar. Você ficará sabendo de tudo.
- Tudo? Tudo o quê? O que aconteceu? Falem de uma vez! Não estão vendo meu estado, como estou nervosa? E essa moça aí, quem é? - indagou com rispidez.
Amélia abraçou a irmã, conduzindo-a ao sofá como se fosse uma criança. Depois apresentou:
- Marina é uma amiga de Vanessa. Agora, acalme-se, Neide. Tenha paciência, já vamos conversar.
Em seguida, virando-se para a sobrinha, notou-lhe os olhos arregalados de medo e condoeu-se do seu estado.
- Vanessa, querida, melhor você aguardar lá dentro com Marina enquanto falo com sua mãe, está bem?
Vanessa concordou imediatamente, aliviada e agradecida. Não queria mesmo enfrentar a mãe. Preferia que a tia contasse tudo para ela. Depois que as jovens saíram, Amélia começou a falar:
- Neide, existe muita coisa que está acontecendo debaixo do seu nariz e que você ignora.
- Pode falar. Estou ouvindo.
- Tem a ver com seu marido. Neide quase deu um pulo, assustada:
- João? O que o João tem a ver com isso? -Tudo. Vou lhe contar.
Procurando elevar o pensamento ao Alto para obter ajuda, Amélia começou a falar, medindo bem as palavras. Quando terminou, Neide estava lívida, trêmula da cabeça aos pés e em lágrimas.
- Não acredito! Como você soube de tudo isso? - murmurou.
- Vanessa me contou.
- Por que ela não disse nada a mim, a mim que sou sua mãe?
- Por motivos óbvios, Neide. Você acabou de dizer que não acredita! A verdade é que sua filha é uma criança ainda e está apavorada. Temos de procurar ajudá-la da melhor maneira possível. Especialmente você, que é mãe.
- Se isso é verdade, como foi acontecer debaixo do meu teto, sem que eu percebesse, minha irmã? Não é possível!
Amélia pensou um pouco e lentamente ponderou:
- A paixão que tem por seu marido deixou-a cega, Neide. Confiou demais nesse homem. Saía para trabalhar deixando sua filha desamparada nas mãos de alguém que não conhece realmente. E ele, criatura sem princípios morais, não teve dúvidas em abusar da sua confiança.
- Não pode ser! Isso só pode ser mentira! Quero falar com ela. Ouvir da sua boca a confirmação dessa história sórdida.
- Vou chamá-la. Mas, acalme-se. Veja bem o que lhe vai dizer. Lembre-se de que ela é a vítima - alertou a irmã.
Amélia saiu por alguns instantes, voltando com Vanessa e Marina.
Neide, descontrolada, olhou para a filha com expressão grave; depois para Marina, sem conter a irritação, e perguntou à irmã, com arrogância:
- Temos que falar de coisas tão íntimas diante de uma estranha? Vanessa, tomando as dores da amiga, retrucou incisiva:
- Essa estranha como a senhora diz, mamãe, foi a única pessoa que me amparou quando mais precisei. Ela fica.
- Tudo bem. Creio que hoje devo beber o cálice da amargura até o fim.
Fez uma pausa e, olhando a filha nos olhos, indagou:
- É verdade o que sua tia me contou Vanessa?
- Sim, mamãe. A mais pura verdade.
- Por que nunca me disse nada?
- Mamãe, eu creio que está enganada... Ou esquecida. Por várias vezes tentei abrir-lhe os olhos, mas a senhora não quis me ouvir.
- É verdade que está grávida e que ia fazer o aborto?
- Sim, é verdade.
- Onde arrumou o dinheiro? Essas coisas custam caro. Você roubou de minha bolsa, como fez tantas outras vezes?
Ao ouvir palavras tão duras, Vanessa teve que se controlar para não chorar. Embora tivesse os olhos úmidos, ergueu a cabeça, com altivez e dignidade, e respondeu:
- Engana-se novamente. Apesar de ser minha mãe, a senhora não me conhece, se me julga capaz de um ato como esse. Quem rouba da senhora não sou eu. É seu marido. Foi ele que me deu o dinheiro necessário para pagar o médico e fazer o aborto. Como foi ele também que me passou o endereço da clínica, uma vez que eu desconhecia completamente a existência desses lugares. A prova aqui está.
A mocinha tirou do bolso da calça jeans um papel onde havia um endereço, escrito pelo punho de João. Neide, vendo a caligrafia tão conhecida do marido, abaixou a cabeça, arrasada, chorando copiosamente. Naquele momento, compreendeu a imensidão do seu erro, trazendo para dentro do próprio lar um homem desconhecido por quem tinha se apaixonado perdidamente. Com voz entrecortada, confessou em voz baixa:
- Reconheço que errei muito. Sabia que aquele miserável não me era fiel. Várias vezes eu tive a prova de que ele mantinha relacionamentos com mulheres do nosso bairro, vizinhas até, mas sempre lhe perdoei. Todavia, jamais o julguei capaz de abusar da minha própria filha, aquela que ele afirmava amar e considerar como sua filha também.
Nessa altura, todas tinham os olhos úmidos. Afinal, Neide levantou o olhar para Vanessa, implorando:
- Minha filha, você pode me perdoar?
A garota aproximou-se da mãe, ajoelhando-se a seu lado e abraçando-a com emoção.
- Perdôo mamãe, perdôo. A senhora desconhecia meu sofrimento. Vamos começar uma nova vida. Só eu e a senhora. Promete?
- Prometo minha querida. Mas, o que vou fazer agora? Você, minha filha, que criei com tanto amor, está esperando o filho de um celerado. Como suportar isso? Talvez seja melhor fazer o aborto mesmo - murmurou mais para si mesma.
Nesse momento, Amélia interferiu:
- Não, mana. Não podemos consertar um erro cometendo outro maior ainda. Quando um óvulo é fecundado, uma nova vida começa a surgir e um espírito vem habitar aquele corpo em formação. O aborto é crime perante as leis dos homens e perante as Leis Divinas. A criança não tem culpa pelo acontecido e merece nascer.
- E quanto ao João? O que vou fazer com esse miserável? Ele não aceitará sair de casa sem criar problemas.
- Seja firme, Neide. Coloque-o diante da enormidade do crime que ele praticou e expulse-o de seu lar, uma vez que a casa é sua. Se insistir em ficar ou criar dificuldades, ameace chamar a polícia. Creio que ele desaparecerá. Mesmo porque, penso até que João já é procurado pela polícia. A informação que ele tinha sobre essa clínica abortiva e o endereço pronto, à mão, indicam que já fez uso desse expediente. Talvez outros pais estejam atrás dele pelo mesmo motivo, ou outras mulheres por terem sido enganadas. Neide balançou a cabeça, concordando:
- Amélia, como eu pude ser tão cega? Deixar minha filhinha à mercê daquele infame?
Não me conformo!
Amélia ponderou com tranqüilidade:
- Minha irmã, agora é hora de reconstrução. Não pense mais no que passou. Sua filha precisa de atenções e cuidados que só você pode lhe dar. Vamos ajudar nossa querida Vanessa a superar essa etapa e, tenho certeza, o bebê será uma bênção em nossa vida.
- Tem razão, Amélia. Bem, agora vou para casa. Preciso acertar as contas com João o mais rápido possível. Vanessa ficará com você.
- Sim, minha irmã. Antes, porém, vamos fazer uma oração agradecendo a Jesus a ajuda que recebemos hoje, que permitiu esclarecer tudo da melhor maneira.
Fecharam os olhos e acompanharam mentalmente a prece singela, mas cheia de emoção, que Amélia proferiu, e da qual nós, da espiritualidade, participamos comovidos. Ao término, todas estavam sentindo grande bem-estar. Depois, Vanessa lembrou:
- Mamãe, antes que vá embora, vamos tomar um chá com bolo que preparamos com muito carinho para recebê-la.
Tomaram lanche e o clima se desanuviou por completo. Mais tarde, Neide despediu-se da irmã, da filha, abraçando-a mais uma vez, e de Marina, agora em clima mais cordial, agradecendo tudo o que ela tinha feito por Vanessa até aquele momento. Ao abraçar a irmã, Amélia sugeriu:
- Vá com calma e em paz, Neide. Prepare-se para conversar com João; eleve o pensamento em prece pedindo ajuda, e terá o equilíbrio necessário para enfrentar essa situação tão espinhosa. Tenho certeza de que tudo vai se resolver bem, com o amparo de Deus.
Depois que Neide saiu, elas trocaram um olhar satisfeito pelo resultado do encontro. Amélia, sorridente, considerou:
- Não disse que precisamos confiar mais nas pessoas? Graças a Deus, conseguimos dissolver as nuvens que se acumulavam sobre Vanessa, ao mesmo tempo resolvendo o problema da gravidez e da presença do famigerado João em sua vida.
Fez uma pausa, fitou com carinho a outra e afirmou:
- Agora, Marina, nós temos de pensar no seu caso.


CAPÍTULO 15 - SOLUCIONANDO PROBLEMAS

"O mérito consiste em suportar sem lamentação as conseqüências dos males que não se podem evitar, em continuar na luta, em não se desesperar se não for bem-sucedido (...)"
(O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, ALLAN KARDEC, CAP. 5, ITEM 26)

Marina permaneceu hospedada na casa de Amélia, a pedido desta, junto com Vanessa. Assim, logo na manhã seguinte a adolescente foi até a pensão, ordenou o fechamento da conta, pagou e retirou sua bagagem. Depois, já instalada no quarto que passaria a dividir com Vanessa, as três mulheres puderam conversar e estudar qual a melhor atitude a ser tomada com respeito à nova hóspede. Chegaram à conclusão de que o mais urgente era informar a família de Marina. Amélia prontificou-se a procurar os pais dela e explicar-lhes a situação. A adolescente aceitou a medida, com a condição de a família não saber seu novo endereço, e justificou:
- Tenho medo de meus irmãos. São rapazes de coração boníssimo e me querem muito bem, porém são impulsivos e violentos.
- Não se preocupe Marina, direi apenas o suficiente - tranquilizou-a Amélia.
Ao entardecer, a dona da casa convidou as moças para orar. Fizeram uma prece pedindo o amparo divino para que sua tarefa fosse coroada de êxito. Antes de sair rumo ao endereço da casa de Marina, orientou as jovens para que mantivessem o pensamento elevado de forma que tudo desse certo. Entrando no bairro humilde de periferia, sem grande dificuldade Amélia localizou o endereço que tinha em mãos pelas informações de Marina. Como todos os membros da família passavam o dia trabalhando, aquele era o melhor horário para encontrá-los em casa. Antes de descer do carro, Amélia novamente pediu a Jesus que a orientasse, e envolveu igualmente os moradores da casa em vibrações positivas, de modo a ter as melhores condições para expor o problema sem criar obstáculos. Percebeu luz acesa, sinal de que já haviam chegado. Bateu palmas e esperou. Não pôde deixar de notar que a casa era velha e pobre, com a pintura descascando; que a cerca necessitava de reparos; porém, apesar do aspecto de abandono da moradia, plantas viçosas alegravam e coloriam-na pela beleza das flores. Depois de alguns minutos, uma mulher de aspecto cansado e sofrido abriu a porta. Com um sorriso, Amélia cumprimentou-a:
- Boa noite! A senhora é dona Antônia?
- Isso mesmo.
- Gostaria de falar com a senhora. Meu nome é Amélia.
A mulher, que segurava a porta com o pé demonstrando certo receio, com ar de dúvida respondeu: - Se for para vender alguma coisa dona, não tenho dinheiro. Amélia sorriu discretamente.
- Não se preocupe. Não estou vendendo nada. Gostaria de lhe falar sobre sua filha.
- Marina? O que tem ela? Olha se andou aprontando...
- Não, fique tranqüila. Posso entrar?
A dona da casa finalmente abriu a porta, convidando:
- Entre, dona, entre. A casa é de pobre, não repare a bagunça. Acabei de chegar do serviço agorinha mesmo.
Amélia entrou. A sala limpa e arrumada, quase sem mobiliário, tinha apenas um sofá e duas cadeiras. A recém-chegada respirou aliviada. Pelo jeito, os irmãos ainda não tinham voltado do serviço. Melhor assim.
- Antônia, posso chamá-la assim? Afinal, temos quase a mesma idade, não é? Vim aqui para lhe falar de Marina.
- A senhora conhece minha filha?
- Conheço e gosto muito dela. E uma boa moça, simpática, muito bonita...
- E estudada. Olha dona Amélia, aqui em casa vivemos com dificuldade e ninguém pôde freqüentar a escola direito, mas com Marina foi diferente. Fazemos questão de que ela tenha o melhor. É muito inteligente e prendada. Por isso, todos nós trabalhamos para dar um futuro melhor a ela. A senhora vê, já é noite e os meninos ainda nem voltaram do serviço!
- O que eles fazem?
- Trabalham na roça, são bóias-frias.
- E serviço pesado! - exclamou Amélia.
- É verdade. Mas eles não se incomodam não. Querem trabalhar e fazem questão de ajudar a irmã, pagando a escola dela.
A mãe falava com tanto orgulho dos filhos que Amélia ficou comovida. Marina era muito amada por todos, não havia dúvida. Lembrando-se da moça, do seu porte, das suas maneiras delicadas, sua elegância, das roupas boas, entendeu que ela se beneficiava do amor da família. Mas como conseguia comprar roupas de marcas como aquelas? A família era muito pobre e os recursos, escassos. Era evidente que todos se sacrificavam por ela, para dar-lhe melhores condições de vida. Imediatamente, Amélia sentiu um carinho enorme por aquelas pessoas que nem conhecia, mas que passou a admirar. Estava um pouco emocionada e Antônia percebeu.
- Aconteceu alguma coisa com minha filha? Ela está viajando e, a senhora sabe como é, a gente se preocupa. Ela nunca tinha viajado antes sozinha.
- Não. Marina está bem, fique tranqüila.
Fez uma pausa e, percebendo a aflição da mãe, começou a falar:
- Marina é uma boa moça, Antônia. Ela é muito jovem, ainda adolescente, tem a cabecinha cheia de sonhos, e a vida muitas vezes prega peças na gente. Bem... A verdade é que sua filha está grávida.
- Grávida? Está de barriga? Como assim? - indagou a mãe, aflita.
- Marina estava namorando um rapaz que ela amava muito e que também dizia amá-la.
Sem experiência da vida, inocente, Marina confiou nele, por amor. Depois, quando ele ficou sabendo da gravidez, a abandonou, foi embora. Antônia estava em estado de choque, sem querer acreditar no que estava ouvindo. Cobriu o rosto com as mãos, incapaz de digerir a informação. Depois, com voz sumida, perguntou:
- Onde está Marina agora? Se a conheço bem, deve estar escondida por medo da reação da família.
- Marina está em lugar seguro no momento, posso lhe garantir Antônia. Mas correu grave risco. Vou contar-lhe tudo.
Respirando fundo, com tato e delicadeza, Amélia relatou a história toda: o medo que a filha sentira de enfrentar a família, de confessar o seu erro aos pais e aos irmãos, a decisão de livrar-se do bebê, o episódio da clínica e como Marina ajudara sua sobrinha Vanessa, mais jovem e ainda mais inexperiente do que ela. Atônita, a pobre mãe indagou, mostrando a confiança que depositava na filha:
-Tem certeza? Mas, quando foi isso? Porque minha filha- talvez a senhora não saiba -, este final de semana foi viajar com a família de uma amiga de escola!
Procurando as palavras certas para não machucar ainda mais aquele confiante coração de mãe, Amélia considerou:
- Marina incumbiu-me de pedir o seu perdão, Antônia. Mas não é verdade que ela esteja viajando. Lamento informá-la de que Marina inventou essa história da viagem para ter tempo de fazer o aborto e de se recuperar, de modo que ninguém ficasse sabendo.
Com a cabeça entre as mãos a mãe chorou amargamente, incapaz de acreditar na realidade.
- Pobre da minha menina. Onde está ela agora?
- Fique tranqüila. Marina está comigo, e está bem. Apenas não veio por medo, o que é perfeitamente compreensível. Naquele momento, o pai saiu do banho e entrou na sala, ao mesmo tempo em que os dois rapazes chegavam. Vendo a mãe com os olhos vermelhos e uma estranha dentro de casa, ficaram assustados. Um deles, Jesiel, o mais velho, foi logo perguntando:
- Que houve mãe? Quem é essa mulher?
Os rapazes eram bem como Marina tinha descrito: fortes, grandes e de temperamento impulsivo. Amélia teve vontade de rir, mas não o fez porque a situação não estava para brincadeira. Apresentou-se, estendendo a mão para cumprimentá-los:
- Meu nome é Amélia. Sou amiga de Marina.
Antônia contou ao marido e aos filhos o que estava acontecendo. Eles ficaram agitados, queriam brigar. Amélia deixou que colocassem para fora toda a dor, a indignação e a revolta que estavam sentindo. Aos poucos, eles foram se acalmando. Os rapazes desejavam saber da boca de Amélia a história toda. Mais uma vez, ela relatou os fatos, falando do sofrimento de Marina, que era apenas uma adolescente pura e ingênua, e que depois de confiar cegamente no rapaz, fora abandonada por ele. Contou-lhes como ela tinha ajudado sua sobrinha de apenas 13 anos, nas mesmas condições, e como ficaram amigas. A ira dos rapazes foi aumentando à medida que as informações chegavam.
- Eu vou matar esse cara. Ninguém desgraça minha irmã e fica vivo para contar. Quem é ele? Onde está esse verme? - indagou Jesiel, que parecia ser o mais violento.
- Não sei nem o conheço. Deve estar longe - afirmou Amélia, serena.
Fez uma pausa, analisando a reação dos rapazes. Depois, ponderou:
- O importante agora, me parece, é ajudar Marina. Ela está precisando de ajuda, de amparo, e é isso que conta. É apenas uma menina assustada, confia em vocês e precisa do amor da família. O resto não interessa.
Amélia percebeu que suas palavras tinham surtido o efeito desejado, que tinha conseguido tocar o coração de todos. Concluiu:
- Posso assegurar-lhes que Marina está muito triste com essa situação, sente muita saudade de todos e da casa. Ela os ama imensamente.
Foi a gota d'água que faltava. Imediatamente, Jairo, o mais novo dos irmãos, perguntou comovido:
- Onde está ela? Queremos vê-la!
- O lugar de Marina é aqui com a gente. Nós vamos tomar conta dela. Podemos buscá-la? - indagou Jesiel.
Sorridente, Amélia sugeriu: - Fico feliz que pensem assim. Podem buscá-la sem problema. Contudo, se vocês preferirem, posso trazê-la. Estou de carro e será um prazer acompanhá-la até seu lar e entregá-la a vocês, que tanto a amam. A família aceitou sem problemas a sugestão.
- Então, amanhã logo cedo trarei Marina. Acredite, ela ficará muito feliz ao saber que vocês lhe perdoam e a querem de volta - confirmou Amélia.
A senhora despediu-se. O ambiente agora era bem diverso. Os rapazes tinham os olhos mansos e meigos como os de crianças. Sem dúvida eles eram bondosos como a irmã afirmara, no entanto, também impulsivos e temperamentais. Ao retornar, Amélia informou o resultado da missão para as jovens, que ficaram aliviadas pelo bom êxito obtido. Vanessa, apesar de contente pela amiga, lamentou separar-se de Marina, à qual tinha se apegado bastante. Na manhã seguinte, após arrumar a mochila, Amélia e Vanessa levaram Marina para sua casa. Com surpresa, viram que toda a família estava reunida para esperá-la. Ninguém tinha ido trabalhar naquele dia! O encontro de Marina com a família foi comovente. Todos choravam de emoção por tê-la novamente em casa com eles. Ao se despedirem, Marina percebeu que Vanessa estava tristonha, embora procurasse disfarçar. Com carinho, ela abraçou a amiga e afirmou:
- Vanessa, agora que somos amigas, nada vai nos separar. Poderei ir visitá-la e você também, sempre que quiser, poderá vir aqui, não é? Mesmo porque teremos muita coisa para conversar a respeito dos bebês, do enxoval...
- É verdade. Não posso ser egoísta e querer você só para mim. Virei mesmo, muitas vezes, pode aguardar.
Amélia e a sobrinha despediram-se da mãe, do pai e dos irmãos de Marina. A gratidão que sentiam pela ajuda daquela bondosa mulher, que até o dia anterior era uma estranha, deixava-os comovidos. Um clima de paz e de harmonia pairava no ar. Todos estavam satisfeitos e cheios de esperança no futuro. As crianças que estavam a caminho com certeza iriam proporcionar momentos de grande felicidade para todos. Antônia, pegando as mãos de Amélia, agradeceu sensibilizada:
- Obrigada, Amélia. Jamais poderemos pagar tudo o que fez por nossa filha e por todos nós.
- Não agradeça a mim, Antônia, mas a Jesus. Ao deixarem a casa, Amélia e Vanessa estavam com o coração leve e um bem-estar imenso inundava-lhes o íntimo.
Sabiam que teriam ainda muitos problemas e dificuldades pela frente. Estavam, porém, no caminho certo e Deus não iria desampará-las. A Doutrina Espírita nos orienta sobre a importância da preservação da vida, considerando o aborto um crime que se comete contra outro ser, de danosas conseqüências para quem o faz. Espíritos em evolução, ora estagiamos no planeta Terra com objetivo de aprendizado e de aprimoramento moral, como parte de um processo educativo que nos leva à perfeição e que nos concede as condições e as oportunidades imprescindíveis para alcançar nossos objetivos. Desse modo, quando uma vida se inicia no ventre materno, não é um fato desprovido de importância. Ao contrário. Representa o retorno de um espírito que aceitou renascer naquele lar e que foi aceito por aqueles que serão seus pais. Já existe vida, portanto, e qualquer ameaça à continuidade daquela vida representa uma contravenção às leis divinas. O que as pessoas de modo geral não entendem é que ali está não apenas um embrião que ganha aos poucos aspecto de um ser humano, mas um espírito, uma individualidade com longo trajeto realizado, que volta ao mundo terreno trazendo suas experiências; alguém que já obteve vitórias, mas que também teve muitos fracassos; que fez afetos e desafetos prejudicou e foi prejudicado. É um espírito que retorna com uma programação de vida para a qual se preparou exaustivamente, comprometendo-se, perante si mesmo e perante seus Maiores, a ser melhor, esforçando-se para aprender cada vez mais, reparar os erros cometidos no passado, ajudar aqueles a quem prejudicou e perdoar àqueles que o prejudicaram. Com certeza, encontrará dificuldades pelo caminho. Até na própria família, uma vez que Deus colocará o reencarnante perto das pessoas com as quais precisará se reajustar. Poderá enfrentar rejeição da própria mãe, mas o desejo de vencer o ajudará a continuar preso ao feto. Em virtude do campo energético de um e de outro estarem mais próximos, as vibrações misturadas poderão interferir na gestação. A mãe enfrentará sintomas diversos como mal-estar, náuseas, desejo de chorar e muitos outros, porque é um outro ser que ali está grudado nela, uma outra individualidade, que chega trazendo suas emanações mentais, seus sentimentos, sua alegria ou sua tristeza. Natural que a mãezinha sinta o reflexo de tudo isso, uma vez que a convivência é a mais estreita possível, mas o feto também experimentará essas dificuldades, especialmente se sentir rejeição por parte da futura mãe. Desse modo, imprescindível a maior boa vontade de parte a parte, para vencer esses empecilhos naturais no início da gestação. Aos poucos, à medida que seus laços com o corpo físico se intensificam, o espírito vai perdendo a consciência e tudo fica mais fácil, a adaptação se faz sem maiores problemas para o bebê e para a mãe, que deixa de sentir os incômodos iniciais da gravidez, passando a curtir a gestação e se preparando para a chegada do filho. Entretanto, quando as coisas não correm bem e, apesar dos esforços da espiritualidade maior, o aborto acontece, uma sensação de tristeza e de desapontamento toma conta de ambos. Se a interrupção da gravidez se deu por motivos físicos, por exemplo uma enfermidade ou alguma falha no organismo da gestante - certamente ambos teriam de passar por essa experiência frustrada -, haverá a possibilidade de o espírito candidato à reencarnação retornar em outra oportunidade, naquela mesma família, sanado o problema. Se porventura o aborto aconteceu por desejo e ato da própria mãe, incapaz de suportar a presença do espírito reencarnante, normalmente um inimigo do passado, as conseqüências são graves e duradouras. O candidato a filho não aceitará a rejeição, o que aumentará a distância entre ambos, predispondo-se a mãe a sérios problemas de saúde orgânica, emocional e espiritual. Inclusive, existe caso, acompanhado por nossa equipe, em que o filho - rejeitado, mas desejando desesperadamente a continuidade da vida, oportunidade valiosa para ele -, no momento em que estava sendo expulso do claustro materno, agarrou-se fortemente ao corpo da mãe, tentando evitar o pior, e acabou ocasionando a ruptura de um vaso sangüíneo, provocando grave hemorragia. Dessa maneira, retornaram à espiritualidade mãe e filho, imantados um ao outro, tendo a futura mãezinha de suportar o ódio e a revolta daquele que seria seu filho, numa obsessão terrível e de longo curso. Esse caso, ainda em andamento, só irá ter um desfecho favorável quando ambos entenderem a necessidade do perdão recíproco. Certamente, terão de retornar ao mundo terreno para, em nova encarnação, se reajustarem mutuamente, aprendendo a se amar, o que ainda não foi possível. De qualquer maneira, mesmo que o reencarnante, em melhores condições espirituais, não lhe guarde rancor, a distonia causada pela interrupção da gravidez e a consciência da mãe não vão dar paz a ela própria, em virtude da gravíssima infração cometida contra as leis divinas. Não raro, a mulher começará a apresentar distúrbios emocionais e, pela insistência da mente criminosa em conservar pensamentos negativos, também apresentará problemas orgânicos. Que se livrem as futuras mães de cometer tamanha insensatez se não quiser sofrimentos acerbos sobre sua cabeça. Afirma-se na atualidade que o sexo é livre e que a mulher tem direitos sobre o seu corpo e pode fazer dele o que desejar. Todavia, desde que seja atingido o direito de outrem, cometemos um crime. Ninguém desrespeita o direito do próximo sem assumir séria responsabilidade com seu ato. Se o fato ficar impune perante as leis humanas, o mesmo não acontecerá diante das leis de Deus, que são justas, sábias e perfeitas. Entretanto, sempre existirá uma nova oportunidade para os faltosos. Qualquer que seja o erro que tenhamos cometido inclusive o aborto, Deus nos concederá novas ocasiões de repararmos o prejuízo que causamos ao próximo, quando teremos a bênção de nos reajustarmos perante aqueles que prejudicamos. Em encarnação futura, a mulher poderá renascer estéril, sentindo a dor de desejar ardentemente um filho e não poder gerá-lo; poderá resgatar seus erros, porém, adotando crianças órfãs, ou amparando outras, em creches, sempre necessitadas, ou ajudando famílias carentes a cuidar de seus filhos, dedicando-lhes atenção e amor. Falamos aqui de reencarnações planejadas e acompanhadas com carinho pelo trabalho intercessório de benfeitores espirituais, quando o reencarnante faz jus a essa ajuda pela condição espiritual e serviços prestados ao próximo. Muitas vezes, porém, o espírito que necessita reencarnar não está em situação de decidir o seu futuro, muito menos de auxiliar no planejamento reencarnatório. Em virtude dos compromissos assumidos, dos erros praticados, a volta ao corpo físico lhe é imposta por Deus. Em uma infinidade de casos, a reencarnação se dá em processos naturais, obedecendo às determinações da própria natureza - como a semente que caindo em solo fértil germina em condições adequadas -, pela vinculação do espírito à futura mãe ou ao futuro pai. Não raro, acompanhante pertinaz por processo obsessivo, gerado na afinidade moral que possibilita a sintonia vibratória, é atraído para o ventre materno, dando-se a concepção. Apesar de não haver uma programação prévia, não se creia que o espírito reencarnante seja um estranho ao casal. De alguma forma, se ele é ligado ao psiquismo do homem ou da mulher, é sinal que faz parte do passado de um ou de outro, ou de ambos, com quem tem compromissos cármicos. Assim, diante da maternidade, que as mulheres não fujam ao seu dever, aceitando a determinação divina com coragem e boa vontade, mesmo em situações adversas. Muitas vezes, aquela criança, a princípio indesejada, é a resposta para suas necessidades de regeneração e seu esteio no futuro. As nossas homenagens às mães que, desprovidas de recursos, sem um companheiro que lhes dê amparo, muitas delas mal entrando na adolescência, enfrentam a oposição das famílias, as dificuldades e problemas e assumem a gravidez decidindo ter o filho, com uma coragem e determinação verdadeiramente extraordinárias. Se todas as futuras mães gozam de um amparo especial, aquelas certamente terão um acréscimo de proteção do Alto para poderem levar adiante a gravidez, trazendo ao mundo mais um espírito necessitado de nova experiência na carne.


CAPÍTULO 16 - ASSÉDIO SEXUAL

"Todas as paixões têm seu princípio num sentimento ou necessidade natural. O princípio das paixões não é, portanto, um mal, uma vez que repousa sobre uma das condições providenciais de nossa existência. A paixão, propriamente dita, conforme habitualmente se entende, é o exagero de uma necessidade ou de um sentimento. Esta no excesso e não na causa; e esse excesso torna-se mau quando tem por conseqüência um mal qualquer. Toda paixão que aproxima a pessoa da natureza primitiva a afasta de sua natureza espiritual." (O LIVRO DOS ESPÍRITOS, ALLAN KARDEC, QUESTÃO 908)

A chuva que caía desde a noite anterior continuava agora ainda A mais forte. Nas ruas encharcadas, a enxurrada aumentava sempre, obrigando os transeuntes, para atravessar a via pública, a procurarem os locais em que o volume de água fosse menor. De tempos a tempos, faíscas elétricas cortavam os ares, seguidas do barulho de trovões, assustando as pessoas. Eram nove horas da manhã, mas as luzes dos postes estavam acesas, tal a escuridão que se abatera sobre a cidade. Encontrando uma marquise protetora, Valéria resolveu se abrigar da tempestade, visto que lhe era impossível prosseguir. O guarda-chuva mostrava-se insuficiente para protegê-la daquele verdadeiro dilúvio. Olhou para os sapatos que engraxara pouco antes, agora encharcados; para a roupa, que passara cuidadosamente e que agora estava toda molhada. Descontente, ela levou a mão aos cabelos que penteara com capricho, de onde a água escorria pelo pescoço, penetrando em sua roupa. Faria uma triste figura chegando ao escritório daquele jeito. Sua aparência estava péssima. Se pelo menos eu tivesse um carro!, pensou, tremendo de frio. Agora, protegida da chuva, olhava os grossos pingos que caíam lavando as calçadas. Profunda preocupação a dominava. Sabia que estava muito atrasada para o trabalho, e o patrão, ríspido e prepotente, talvez não entendesse seus motivos, ainda mais que ele estava sempre procurando desculpas para despedir os empregados. E Valéria sabia que ele não simpatizava nada com ela. Ou talvez simpatizasse muito, pensou com ironia. Respirou fundo, enquanto uma dor quase física atingia-lhe o coração. Se perdesse esse emprego, não saberia o que fazer da sua vida, já tão complicada. Lembrou-se da família, distante. Não podia contar com ela. Seus pais residiam no Ceará, numa cidadezinha que nem aparecia no mapa, e eram muito pobres. Mauro, seu marido, homem bom e trabalhador, desempregado havia um ano e cinco meses, não podia contribuir financeiramente para a manutenção da casa, e as duas filhas, Marcela e Roberta, de quatro e cinco anos, tinham necessidades básicas que precisavam ser atendidas: alimentação, roupas, calçados, remédios e a creche, entre outras. Além disso, o aluguel (o senhorio não costumava esperar) e as contas de água, luz e telefone eram alguns itens que a afligiam sobremaneira nessa manhã chuvosa. O que fazer? Valéria deixou que as lágrimas rolassem, aproveitando o rosto molhado pela chuva. Certamente ninguém iria notar. Cada um estava preocupado com os próprios problemas. E não era só isso. Tudo parecia estar ruindo à sua volta. Tinha consciência de que, se aceitasse as propostas do patrão, tudo seria diferente. Repugnava-lhe, todavia, ceder aos caprichos daquele homem asqueroso e lascivo e, por isso, ele passou a mostrar-se hostil para com ela. No entanto, sua honestidade e sua honra estavam acima de tudo, e conservava-se digna e de cabeça erguida. E era exatamente isso que aquele homem não suportava. Nesse momento, pelo movimento de pessoas que voltavam a transitar, notou que a chuva diminuíra de intensidade. Deixando também a proteção da marquise, abriu o guarda-chuva e, caminhando tão rápido quanto suas pernas o permitiam, tomou o rumo da empresa. Ao aproximar-se do grande prédio, o coração começou a bater mais rápido. As luzes estavam todas acesas e o movimento era intenso. Tomou o elevador que a levaria ao andar onde ficava sua sala, intimamente suplicando ajuda divina. Quando o elevador parou e a porta se abriu, respirou fundo. Enchendo-se de coragem, caminhou pelos corredores da grande fábrica de confecções, deixando-se envolver pelo cheiro característico dos tecidos, das tintas e pelo barulho das máquinas que trabalhavam a pleno vapor. Dirigiu-se primeiramente à toalete, onde deixou o guarda-chuva molhado. Rapidamente se arrumou, compondo melhor a aparência; enxugou o rosto e os cabelos, prendendo-os na nuca, ajeitou a roupa e fez uma maquiagem discreta. Depois, olhando-se no espelho e considerando-se mais apresentável, dirigiu-se ao escritório. Preparava-se para começar a trabalhar, quando ouviu uma colega sussurrar:
- Hoje a coisa está preta. Ele já perguntou por você, Valéria. O "homem" parece uma fera. De carneiro não tem nada, está mais para lobo! - comentou com ironia, fazendo um trocadilho com o nome do proprietário, José Carneiro.
Apesar da aflição, Valéria não pôde deixar de rir. A colega, sempre bem-humorada, tinha os cabelos compridos, lisos e avermelhados.
- Infelizmente, a chuva fez com que me atrasasse, Janete.
- E eu não sei? Muita gente não conseguiu chegar no horário hoje. Mesmo quem tem carro ficou preso no trânsito. Também, que dilúvio! Quer um café? Vou pegar para mim e trago para você também.
Valéria respondeu com sorriso agradecido:
- Obrigada, amiga. Estou mesmo precisando de um café bem quente.
Não quis dizer que nada havia tomado antes de sair de casa. Na verdade, havia um pouco de chá, que ela deixou para as crianças. Nesse dia, Marcela e Roberta não iriam à creche em virtude da chuva e, infelizmente, não teriam a alimentação que lá era servida, uma bênção nesses tempos de crise. Atendeu ao telefone, tomou o café que a colega lhe trouxe, arrumou a mesa, tirou o material das gavetas e começava a trabalhar nos relatórios quando recebeu um chamado. O chefe queria falar com ela. Muniu-se de coragem, ergueu a cabeça e foi até a sala do senhor Carneiro. Bateu delicadamente, e entrou.
- O senhor mandou me chamar? - perguntou polidamente. O homem que ali estava era troncudo, baixo, de pescoço curto e grosso enterrado nos ombros. Carneiro olhou-a de alto a baixo, com seus olhinhos apertados, e respondeu:
- A senhora atrasou-se bastante hoje, dona Valéria. Tentando não demonstrar seus verdadeiros sentimentos em relação a ele, a funcionária respondeu:
- O senhor tem razão. Peço-lhe desculpas. Mas a chuva... Interrompendo-a, ele não permitiu que ela continuasse:
- Desculpas, sempre desculpas. Deveria ter previsto que com a chuva, levaria mais tempo para chegar aqui e que, por isso, tinha de sair mais cedo de casa.
- Concordo com o senhor. Errei, com certeza. Mas, quando saí de casa não estava chovendo tanto e resolvi vir a pé. Esse foi meu erro. Peço-lhe mais uma vez que me perdoe, senhor Carneiro. Isso não acontecerá mais. Prometo-lhe - justificou-se, sem dizer que, na verdade, não tinha vindo de ônibus por falta de dinheiro.
Vendo-a compungida e medrosa à sua frente ele sentiu uma satisfação toda especial. Gostava de espezinhá-la e vê-la entregue em suas mãos; sentia um prazer quase físico. Considerou, porém, que por agora, era suficiente.
- Está bem, dona Valéria. Aceito suas escusas. Mas que isso não se repita. De outra vez, talvez não seja tão generoso. Pode ir.
- Obrigada, senhor. Prometo-lhe que o problema não voltará a ocorrer.
Virou-se e saiu da sala pisando firme. Ao chegar em sua mesa, desabou sobre a cadeira. Lágrimas silenciosas corriam-lhe pelo rosto.
- Como foi? - quis saber Janete, curiosa e preocupada ao ver o estado da amiga.
- Você pode imaginar. Insinuou que chego tarde constantemente e que vivo dando desculpas. Logo eu, que procuro chegar sempre antes do horário.
- Ele quer pisá-la o máximo que puder, você sabe - considerou a colega.
- Sim, eu sei.
- Humilhei-me, pedi perdão, fiz tudo o que precisava. Não posso correr o risco de perder este emprego, minha amiga. Nossa situação em casa já está complicada o suficiente sem isso. Mas, vamos trabalhar. Não quero que ele passe, nos veja conversando e tenha outros motivos para reclamação.
Envolvida no serviço, Valéria não viu o tempo passar. Quando soou a campainha, ela levou um susto. Hora do almoço. Janete veio buscá-la. Sempre almoçavam juntas. Era o tempo que tinham para colocar a conversa em dia. No refeitório, havia um burburinho diferente no ar.
- O que será que aconteceu? - indagou Valéria para a amiga.
- Não sei. Mas vejo Ruth chorando. Vou me informar e já volto com notícias.
Janete voltou com uma bomba:
- Você não vai acreditar. Ruth foi demitida!
- Demitida? Qual o motivo?
- O mais usado quando não se tem motivo: contenção de gastos.
- Ah!...
- Agora vai começar uma corrida. O cargo de secretária do chefe atrairá o interesse de muita gente - considerou Janete, pensativa.
Naquele instante Valéria sentiu uma fisgada no coração. Uma luz vermelha de alerta começou a piscar dentro dela indicando perigo. Nada havia que justificasse sua preocupação, no entanto, a partir daquele momento, passou a sentir-se tensa e inquieta. Por que demitir Ruth, reconhecida e elogiada pela sua competência? Não fazia sentido. O resto do dia passou sem incidentes. Ao chegar em casa, o marido já tinha feito uma sopa de legumes com a ajuda das meninas, que estavam felizes por poder mostrar sua boa vontade à mamãe, que voltava cansada do serviço.
- Boa noite, minhas queridas! Como passaram o dia? E você, meu amor? Sua sopa está com um aroma que a gente pode sentir lá da rua!
O clima era de alegria e paz. Valéria sentiu-se recompensada pela canseira do dia. Estar com os familiares queridos no ambiente do seu lar era uma bênção de valor inestimável. Sentaram-se e jantaram, enquanto Marcela e Roberta comentavam o que tinham feito naquele dia.
- Ainda bem que parou de chover, mamãe. Amanhã vamos poder ir à creche, não é?
- Claro, filhinha. Mesmo porque, não é bom perder aula.
Conversaram animadamente por algum tempo, depois a mãe ordenou que fossem colocar o pijama e escovar os dentes para dormir. Colocou as meninas no leito, contou-lhes uma história e em seguida fez uma oração com elas. Beijou-as, apagou a luz e saiu, deixando a porta encostada. Retornando à sala, sentou-se no sofá ao lado do marido. Mauro abraçou-a com carinho.
- Você tenta disfarçar, mas está preocupada. O que houve?
Sem desejar afligir o marido, que ignorava o assédio do chefe a ela, explicou:
- Nada de importante. Hoje foi um dia difícil. Levei uma bronca do patrão por ter chegado tarde e isso me deixou chateada.
- Você não se justificou, minha querida?
- Claro. Ele aceitou minhas desculpas.
- Então? Esqueça o incidente.
- Tem razão. Não vou pensar mais nisso. Vamos dormir? Estou exausta.
- Vamos. Amanhã não posso perder a hora. Tenho uma entrevista logo cedo. E uma proposta de emprego.
- Mauro, que bom! Você não tinha me contado!
Com jeito meio constrangido, ele comentou de cabeça baixa:
- Não queria dar-lhe falsas esperanças, querida. Vamos ver como me saio na entrevista. Não quero nem posso me decepcionar novamente.
Abraçando o marido, Valéria o animou:
- Confie em Deus, meu bem. Tenho certeza de que desta vez dará tudo certo.
- Deus a ouça!
Na manhã seguinte estavam todos animados. As crianças porque iriam para a escola, e Valéria e Mauro pela expectativa de um bom emprego para ele. Despedindo-se do marido, Valéria desejou-lhe boa sorte. Em seguida, tomou o rumo da empresa. Chegou bem antes da hora e poucas pessoas ali estavam. Foi para sua mesa e começou a trabalhar. O tempo passou rapidamente. Na hora do almoço, sentou-se com Janete numa mesa de canto. Sentia-se feliz e queria compartilhar suas esperanças com a amiga, contar-lhe sobre a possibilidade de um bom emprego para o seu marido. Nisso, notou, com estranheza, que os outros colegas a olhavam e cochichavam.
- O que está acontecendo, Janete? O ambiente está estranho! A amiga abaixou a cabeça, pensou um pouco e depois disse, lentamente:
- Corre um boato de que a nova secretária do chefe será você, Valéria.
Perplexa, ela se defendeu:
- Eu?! Mas, por quê? Se há alguém que não deseja esse cargo sou eu, você sabe!- Eu sei, amiga, mas os outros não.
- Você sabe quanto gosto da Ruth. Seria a última pessoa a trabalhar contra ela. Além disso, tenho outros motivos que você não ignora.
- Certo. Nossas colegas, porém, pensam que você se utilizou exatamente da queda que o nosso "carneirinho" tem por você para subir.
Indignada, Valéria ameaçou levantar-se e tomar uma atitude, mas Janete a impediu.
- Isso é um absurdo! Vou lá falar com elas, Janete.
- Não faça isso, Valéria. Não vai adiantar. Aja de forma normal e, se for consultada para o cargo, não aceite. E a melhor resposta que poderá dar-lhes.
- Tem razão. Quem não deve não teme. Bem, vamos voltar ao serviço porque este ambiente está me incomodando.
Retornaram e mergulharam no trabalho. Por volta das cinco horas da tarde, Valéria foi chamada à sala do patrão. Pedindo licença, entrou e ficou em pé aguardando suas ordens.
- Sente-se - ordenou ele.
- Não, obrigada. Estou bem assim. O senhor deseja alguma coisa?
- Sente-se, já disse.
A contragosto, Valéria sentou-se.
- Com certeza a senhora já sabe que dona Ruth foi demitida.
Ela permaneceu impassível, sem confirmar ou negar.
- Preciso de uma nova secretária. Estive analisando cada funcionária da empresa e cheguei à conclusão de que a senhora, dona Valéria, é a mais indicada.
Tentando manter a tranqüilidade e o equilíbrio, ela respondeu:
- Creio que se engana, senhor Carneiro. Outras funcionárias existem com mais condição do que eu. Além disso, não poderia aceitar o cargo porque tenho um marido e duas filhas pequenas que dependem de mim. Não poderia ficar além do horário habitual, como muitas vezes acontece nesse caso - considerou com um pouco de ironia.
- Pense bem, dona Valéria. O cargo que estou lhe oferecendo representa um salário bem melhor, além de outras vantagens.
Ele fez uma pausa, analisando a reação dela. Como Valéria continuasse calada, prosseguiu ardiloso:
- Por falar nisso, como vai seu marido? Ainda desempregado? Não creio que possa se dar ao luxo de recusar um salário mais atraente e que representa o sonho de todas as nossas funcionárias. Pense bem.Valéria, nervosa, levantou-se, respondendo grave e digna:
- Já pensei, senhor Carneiro. Prefiro ficar onde estou. Gosto do meu serviço.
- Infelizmente, devo dizer-lhe que se não aceitar minha proposta não poderá permanecer nesta empresa. Será demitida. Então, não me dê a resposta agora. Reflita até amanhã, pelo menos. Consulte o travesseiro, pese os prós e os contras, ouça seu esposo, e depois voltaremos a conversar. Está bem?
Valéria concordou, quase desfalecendo. Reunindo as poucas forças que lhe restavam, caminhou até a porta, deixando a sala. Sem condição de voltar para sua mesa, dirigiu-se à toalete. Ali, sozinha, desatou em pranto convulsivo. Janete, percebendo que a colega tinha saído do gabinete do chefe e se dirigido diretamente à toalete, foi atrás dela, encontrando-a lavada em lágrimas.
- O que houve, Valéria?
- Aquele homem terrível ofereceu-me o cargo de sua secretária. Janete esteve a ponto de pronunciar um "eu não lhe disse?".
Todavia, conteve-se a tempo, vendo o desespero da amiga.
- E você, aceitou?
- Claro que não! Mas aquele sádico colocou-me diante de um impasse: ou aceito ou sou demitida. Percebe?
Em grande desespero, Valéria deixou-se escorregar pela parede caindo estatelada no piso.
- Então, como vai ficar? Você disse que não aceitava?
- Isso mesmo. Mas ele insistiu para que eu não desse uma resposta hoje. Que pensasse até amanhã. Minha esperança é que o Mauro consiga o emprego que tem em vista.
- Viu? Acalme-se. Sempre tem uma saída, amiga. Deus sempre nos ampara.
- É verdade. Entretanto, Janete, mesmo que Mauro consiga o emprego, preciso do salário que ganho aqui. Meu dinheiro não está dando, temos passado necessidades.
- Confie em Deus. O amanhã nos reserva sempre novas oportunidades.
- Espero que o Mauro tenha conseguido aquele emprego.
Tentando parecer mais serena, Valéria lavou o rosto, recompôs a fisionomia e voltou para sua mesa. Felizmente estava quase na hora de encerrar o expediente. Janete tem razão. Necessário ter confiança. Amanhã será outro dia, cheio de novas esperanças. Elevando o pensamento a Jesus, Valéria suplicou:
- Senhor, me ajude!


CAPÍTULO 17 - TOMADA DE DECISÃO

"Pela prece, o homem atrai para si o auxílio dos bons Espíritos que o vêm sustentar nas suas boas resoluções e lhe inspirar bons pensamentos. Ele adquire assim a força moral necessária para vencer as dificuldades e voltar ao bom caminho, se dele se afastou."
(O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, ALLAN KARDEC, CAP. 27, ITEM 11)

Entrando em casa, Valéria encontrou Mauro na cozinha preparando um lanche. Ao mesmo tempo, ouviu o barulho do chuveiro e a risada das meninas, que tomavam banho, o que lhe deu um agradável sentimento de paz e aconchego. Aproximou-se do marido, ansiosa:
- E então, querido? Como foi a entrevista? Coando o café, ele respondeu sem se virar:
- Nada feito. Ainda não foi dessa vez. Infelizmente.
- Mas, como? Você estava tão cheio de esperanças, parecia ser o emprego sob medida!
- Pois é. Eu fui muito bem na entrevista, mas chegaram à conclusão de que não tenho o perfil ideal para aquele cargo.
- Mas...
Valéria caiu sentada numa cadeira. Naquele instante, viu suas esperanças se escoarem pelo ralo. E agora? Teria que aceitar a proposta daquele infame? Colocando o café na mesa, Mauro percebeu quanto sua esposa estava decepcionada. Abraçou-a com carinho, consolando-a:
- Não se preocupe, querida. Trouxe o jornal para examinar os classificados, e amanhã mesmo voltarei às ruas. Não é possível que não surja algo. Não sou exigente. Qualquer coisa serve!
Viram as meninas que saíam do banheiro enroladas em toalhas, e pararam de falar. Evitavam sempre que as filhas participassem de seus problemas. Valéria colocou um sorriso no rosto e elas beijaram a mãe, alegres. No quarto, enquanto as ajudava a vestir o pijama, Marcela e Roberta tagarelavam contando tudo o que tinham feito na creche, o que aprenderam, o passeio a um bosque, ali perto. Prontas para dormir, sentaram-se para tomar o lanche. Roberta estava sem fome. Marcela comeu com satisfação o sanduíche que a mamãe preparou, acompanhado de um copo de leite com café.
- Por que não quer comer, minha filha? - perguntou à maior.
- Comi muito na creche hoje, mamãe. Tinha arroz-doce, que adoro!
- Ah, então entendo porque Marcela está com fome. Você não gosta de arroz-doce, não é querida?
- É. Mas na creche tomei dois pratos de sopa, mamãe.
- É que ela é esfomeada mesmo! - retrucou Roberta, fazendo todos caírem na risada. Acabaram de tomar lanche, e as meninas puderam ficar na sala assistindo a um desenho de que elas gostavam muito. Depois, Valéria colocou-as para dormir. Voltando para a sala, sentou-se junto do marido, que assistia a um jornal na televisão. Ela precisava falar com Mauro, mas não sabia como. Precisava resolver, com a ajuda dele, se aceitaria o cargo de secretária do chefe. Porém, como fazer isso sem contar-lhe sobre o assédio sexual que estava enfrentando no serviço? Mauro diminuiu o volume do aparelho e abraçou-a.
- Fique tranqüila, querida. Você está triste porque não consegui o emprego hoje, mas amanhã poderá ser diferente. Precisamos ter esperança! - consolou ele, julgando fosse esse o motivo de Valéria estar tão calada.
Como ela continuasse com ar preocupado, ele olhou-a, sorridente, e concluiu:
- Vamos, querida, ânimo! Afinal, nada mudou de ontem para cá. Tudo continua da mesma maneira. É apenas uma expectativa que não se concretizou. Só isso. Felizmente, podemos contar com seu salário. Enquanto não arrumo serviço, continuo levando e buscando as crianças na creche, fazendo as tarefas domésticas e procurando trabalho. Deus tem sido bom para nós. Não podemos nos queixar, não é?
Valéria tinha um nó na garganta e um imenso desejo de chorar e de abrir seu coração ao marido. Todavia, não podia deixar que ele percebesse seu estado de espírito. Assim, respirou fundo, contendo as lágrimas. Estava decidido. Não poderia desistir do emprego agora. Precisava enfrentar a situação, custasse o que custasse.
- Você tem razão, querido. Felizmente, não nos faltam recursos. Não é muito, mas o que ganho na empresa dá para nos mantermos.
Fez uma pausa e, com os olhos úmidos, deu a notícia:
- Hoje recebi uma proposta da empresa: o cargo de secretária do chefe. O salário é maior e terei outras regalias. Fiquei de dar a resposta amanhã. Não queria decidir sem ouvir sua opinião.
Mauro arregalou os olhos, radiante.
- Querida, mas isso é ótimo! Mas parece que você não está muito contente. Por quê?
- Bem, talvez tenha que trabalhar mais, fazer horas extras, e você...
- Entendi. Está preocupada com as meninas, caso eu comece a trabalhar também.
Porém, se você ganhar mais, poderemos contratar alguém para ir buscá-las na creche e ficar com elas até voltarmos para casa. Veja! As coisas estão melhorando! Tudo vai dar certo - disse o marido todo animado.
- Você tem razão, Mauro. Tudo vai dar certo. Valéria tinha o coração apertado, mas não podia jogar balde de água fria no entusiasmo do marido. Teria de enfrentar a situação.
Deitada, não conseguia conciliar o sono. Sentia medo do futuro, medo do que poderia acontecer. Estava sem ânimo e desejando que o novo dia não chegasse nunca. Amanhecia quando conseguiu cochilar. O despertador, porém, acordou-a, lembrando-a de seus deveres. Levantou-se com o corpo todo dolorido. Tomou banho, acordou Marcela e Roberta, arrumou-as, enquanto Mauro preparava o café-da-manhã. Depois do lanche matinal, saíram juntos, tomando rumos diferentes: Mauro com as filhas a caminho da creche, e ela, para a empresa. Entregue a si mesma, Valéria ia pensando em seus problemas. Gostaria de ter a fé de sua amiga Janete, mas não conseguia. Ensinava as filhas a rezar, por tradição, porém não se sentia próxima de Deus. Passando perto de uma igrejinha, aquilo lhe pareceu um sinal. Ainda tinha tempo. Resolveu entrar. O ambiente tranqüilo da igreja reagiu favoravelmente sobre seu ânimo. Sentiu-se melhor, mais serena. Ajoelhou-se, pedindo a Jesus que a ajudasse a resolver seus problemas. Rezou um pai-nosso e saiu. Reconhecia que estava melhor. A tensão diminuíra e o coração já não batia descompassado. Por que se preocupar tanto? Aceitaria a proposta. Uma mulher sempre tem meios de se defender, escapando do assédio do patrão. Resolveu que levaria a situação em banho-maria, dando tempo para que Mauro encontrasse um emprego. Depois, nesse período, ela mesma poderia ir sondando espaço em outras empresas. Sabia de pelo menos duas que estavam contratando funcionárias para escritório. Como isso não lhe passara antes pela cabeça?! Era uma boa solução. Cheia de novas esperanças, chegou ao prédio da empresa. O burburinho era grande. Percebia pelos olhares e cochichos que estavam falando dela. Era o assunto do dia. Entrou calada, agindo normalmente; cumprimentou a todos e fingiu não notar o que estava acontecendo. Acomodou-se em sua mesa e, baixando a cabeça, concentrou-se no trabalho. Não daria o primeiro passo. Ficaria esperando que o patrão a chamasse, rezando para que ele tivesse mudado de idéia. Conquanto procurasse manter uma atitude serena e equilibrada, no fundo estava tensa e angustiada. O coração batia forte e, ao menor ruído, estremecia. Em torno das dez horas, Janete, que tinha ido até o gabinete do chefe entregar um relatório, passou por sua mesa e avisou:
- Valéria, o patrão quer vê-la. Coragem!
Ela levantou-se de pernas trêmulas, respirou fundo e caminhou até a sala do senhor Carneiro, acompanhada pelos olhares dos demais funcionários. Bateu delicadamente e entrou.
- Mandou me chamar, senhor?
- Sim, dona Valéria. Sente-se. Conforme conversamos ontem, aguardo sua resposta. Aceita o cargo como minha secretária?
Tentando ganhar tempo, Valéria ponderou:
- O senhor acha que vou dar conta do serviço? Afinal, existem pessoas aqui dentro da empresa mais qualificadas para o cargo.
- Não concordo dona Valéria. A senhora é a pessoa ideal. Tem presença, sabe tratar as pessoas, se expressa bem. Quanto ao mais, o que não souber, aprenderá com o tempo. E então?
- Bem, se o senhor pensa assim, aceito.
Carneiro fingiu não perceber o ar acabrunhado dela.
- Ótimo. Então, a partir de hoje, seu lugar é aqui na sala ao lado. Pode ir buscar suas coisas.
Ao sair, Valéria percebeu que havia um silêncio estranho na grande sala, quase palpável; todos haviam parado de trabalhar. De repente, ao vê-la, todos recomeçaram a trabalhar ao mesmo tempo, disfarçando. Se seu ânimo fosse outro, teria começado a rir. Sem olhar para os lados, caminhou pelo corredor até sua mesa, onde começou a arrumar seus pertences. Janete aproximou-se:
- E então, amiga?
- Não teve jeito. Ou eu aceitava ou ia para o olho da rua, e com marido desempregado em casa não posso me dar a esse luxo.
- Entendo. E agora?
- Agora tenho de enfrentar a fera. A partir de hoje, todavia, começo a procurar outro emprego.
Com uma caixa nos braços, cruzou de novo o corredor sob os olhares irônicos e atentos dos demais. Contendo as lágrimas, tomou posse da sala contígua à do chefe. Tensa, permaneceu todo o dia tentando aprender o serviço e nem viu o tempo passar. Aos poucos, foi relaxando ao ver que Carneiro portava-se com delicadeza e correção. Não tendo motivo para medo, Valéria ficou mais tranqüila. No dia seguinte, menos tensa, ela enfrentou os problemas normais do cargo, atendendo às pessoas, visitantes, credores e fornecedores, com naturalidade. No final do expediente, ao passar por sua mesa, o chefe a cumprimentou:
- Parabéns, dona Valéria. Hoje só recebi elogios à sua pessoa. Todos foram unânimes em gabar-lhe a eficiência e finura de trato.
- Obrigada, senhor.
- Pode ir agora.
Valéria estava começando a achar que se equivocara. Afinal, ele não era tão terrível assim como diziam.

CAPÍTULO 18 - AJUDA PROVIDENCIAL

"Pedi e se vos dará; buscai e achateis; batei a porta e se vos abrirá; porquanto, quem pede recebe e quem procura acha e, àquele que bata a porta, abrir-se-á."
JESUS (MATEUS, 7: 7 E 8)

Uma semana depois, Valéria estava adaptada à situação, segura e confiante. Na sexta-feira, quase no encerramento do expediente, o chefe chamou-a:
- Dona Valéria, infelizmente surgiram problemas urgentes que tenho de resolver ainda hoje. Preciso que me faça algumas correspondências, pode ser?
- Claro, senhor Carneiro. Pode ditar.
Depois de fazer as anotações, a secretária sentou-se defronte do computador para digitar as correspondências, visto que teriam de ser enviadas no mesmo dia, por meio de portador. Quando Janete veio chamá-la para irem embora, Valéria explicou:
- Não posso, Janete. Ainda tenho serviço urgente para fazer. Pode ir, irei quando terminar.
Janete despediu-se e saiu. Dentro em pouco, não havia mais ninguém no prédio. Só o pessoal da limpeza. Todo o barulho cessara. Carneiro assinou os documentos e disse:
- A senhora trabalhou muito hoje. Precisa relaxar um pouco. Aceita um copo de vinho?
Valéria ficou constrangida, julgando que seria indelicadeza recusar.
- Aceito. Só um pouquinho. Mas, e as correspondências?
- Não se preocupe. Eu mesmo entregarei em mãos. Tenho um jantar ainda hoje com empresários e pessoas do governo. Carneiro entregou-lhe uma taça de vinho enquanto falava de como estava satisfeito com seus serviços, quanto era eficiente e como gostava dela. Valéria, nesse momento, percebeu que ele já tinha bebido.
Delicadamente, ela tomou um gole de vinho e respondeu:
- Agradeço-lhe, senhor, mas não faço mais do que cumprir minhas obrigações. Preciso ir agora - disse, fazendo menção de levantar-se.
O chefe, que se erguera para servir-se de nova dose de bebida e passava por detrás da poltrona onde Valéria estava sentada, impediu-a, inclinando-se e cheirando seus cabelos:
- Seu perfume é delicioso, Valéria.
Estendeu os braços para envolvê-la; mas quando ela sentiu o resfolegar dele no seu pescoço, seu hálito quente e o odor de bebida que tresandava, foi mais ágil. Levantou-se de um pulo e fugiu do abraço dele.
- Senhor Carneiro, é tarde e preciso ir para casa.
- Não, fique. Vamos jantar juntos para comemorar.
- Não posso. Lamento. E comemorar, o quê? Além do mais, o senhor disse que já tem um compromisso para esta noite - lembrou-o, como secretária eficiente, pensando que ele já tinha bebido demais e poderia se esquecer.
Assim dizendo, pegou a bolsa e saiu correndo do escritório. O coração batia forte no peito. Só ficou mais tranqüila ao ver-se em plena rua. Andou apressadamente por muitas quadras até que, cansada, resolveu parar um pouco para descansar. Valéria sentou-se numa pequena praça. O que fazer? Não podia voltar para casa naquelas condições: completamente desequilibrada, nervosa, angustiada, lágrimas correndo pelo rosto, mãos trêmulas. Como justificar seu estado perante o marido e as filhinhas? Estava entregue a si mesma, sem saber o que fazer, sem coragem para voltar para casa, quando uma senhora chegou de mansinho e sentou-se a seu lado no banco. Com delicadeza, ofereceu-lhe um lencinho:
- Posso ajudar, moça?
Valéria virou-se, viu uma mulher desconhecida e sentiu vergonha de estar chorando em plena praça. Aceitou o lenço, assoou o nariz e enxugou as lágrimas, depois murmurou:
- Obrigada. Agradeço sua atenção. Estou realmente desesperada, mas ninguém pode me ajudar.
- Quem sabe? Não há problema sem solução, minha filha. Confie em Deus. Olhe, está vendo aquele pequeno portão, ali na frente?
Valéria olhou e viu um portãozinho de ferro.
- Sim.
- Pois bem. Nesta noite, ali mesmo, temos um trabalho de ajuda aos sofredores e aflitos. Quer participar? Asseguro-lhe que se sentirá muito bem. Sua privacidade será respeitada. Se não quiser falar, não será obrigada. Terá, no entanto, um ambiente tranqüilo para se acalmar e depois voltar para sua casa. O que acha?
Valéria, que não queria mesmo retornar para o lar naquelas condições, aceitou. Adélia, a nova amiga, conduziu-a. A casa era antiga, com paredes brancas e as janelas com detalhes em azul. Na frente, uma placa com o nome: "Centro Espírita Amor e Paz". Valéria gostou do nome e pensou que sempre tivera curiosidade de entrar num centro espírita, sem nunca ter coragem. Tinha chegado a hora. Atravessaram a rua e entraram. Além do portão, surpreendente e lindo jardim surgiu cheio de arbustos e flores. Uma música suave tocava, levando Valéria a sentir inusitado bem-estar. No salão, que caberia no máximo uma centena de pessoas, tudo era serenidade; os que ali já se encontravam mantinham-se em recolhimento íntimo. Tudo transpirava tranqüilidade e paz. Adélia, em voz baixa, explicou à nova amiga que haveria uma palestra e, depois, o trabalho de aplicação de passes; em seguida, ela poderia, se assim o desejasse, conversar com alguém do Serviço de Atendimento Fraterno. Durante a prece inicial e a palestra, Valéria sentiu grande emoção, sentimento esse que aumentou na hora do passe. Como se as comportas de sua alma não suportassem mais a pressão, chorou copiosamente. Encerrada a reunião, como sentisse vergonha de conversar com uma pessoa estranha, foi introduzida numa pequena sala, no fundo, abrindo seu coração para Adélia, sua nova amiga e trabalhadora da casa. Quando terminou de falar, suplicou de forma comovente:
- Ajude-me, Adélia. Não sei o que fazer.
Com serenidade, a senhora, que a ouvira de forma atenta e respeitosa, considerou:
- Você me disse que nunca foi ligada a religião e que não tem o hábito de orar. No entanto, reconhece que o ambiente da nossa casa, a prece, a palestra e a aplicação de energias por meio do passe lhe fizeram muito bem. Tudo isso, Valéria, é o resultado da fé.
Prosseguiu falando, calmamente, de forma concisa e clara, do amparo de Deus que nunca abandona seus filhos e que grande parte das vezes as pessoas não percebem essa ajuda. Explicou sobre a necessidade de elevação do pensamento para sentirmos a proteção divina. Considerou que, provavelmente, seu patrão também estaria necessitado de ajuda, o que demonstrava com suas atitudes, e orientou-a a orar por ele.
- Quando pensar em seu patrão, ao invés de mandar-lhe pensamentos negativos, de desprezo, raiva e rancor, ore por ele. Ao entrar na empresa envie pensamentos bons para todos, especialmente para seu chefe, desejando-lhe um bom dia e o amparo de Deus para ele e sua família. Você verá a diferença, Valéria.
- Será? Justo para esse homem que me atormenta? - considerou.
- Experimente. Você vai se surpreender. E, para completar, sugeriu:
- Como você disse que nada conhece sobre Doutrina Espírita, se tiver interesse, venha estudar conosco. Garanto-lhe que vai gostar.
Despediram-se e Adélia deu-lhe de presente um exemplar de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Valéria agradeceu a gentileza e prometeu voltar. Estava ótima. Uma sensação de bem-estar, de otimismo e de confiança a dominava por inteiro. Sentia-se fortalecida, segura, e com a sensação de que poderia resolver qualquer problema. Entrou em casa e todos perceberam que estava alegre e bem-disposta. Naquela mesma noite, antes de dormir, leu um trecho do novo livro e encantou-se. O Evangelho de Jesus surgia-lhe renovado e as explicações falavam-lhe de uma maneira que nunca tinha lido antes. No dia seguinte, agiu como se nada tivesse acontecido. Conforme Adélia tinha sugerido, entrou fazendo uma prece e enviando bons pensamentos ao chefe e a todos os funcionários. Então, no escritório as coisas começaram a mudar como conseqüência da sua própria mudança de atitude. Um fato novo aconteceu, que Valéria julgou ser obra do "acaso". Ao atender uma ligação telefônica, uma mulher desejava falar com o senhor Carneiro. Como ele não estivesse, perguntou o nome para ligar de volta assim que ele chegasse.
- Diga-lhe apenas que Norma telefonou. Sou a esposa dele.
- Ah! Pois não, dona Norma. Darei o recado.
Trocaram algumas palavras e houve uma imediata simpatia entre elas.
A partir daquele dia, Norma voltou a telefonar outras vezes; gostava de conversar com Valéria. Um dia, convidou-a para tomarem um lanche após o serviço. Valéria aceitou e, no horário combinado, encontraram-se na porta da empresa. Dirigiram-se a uma elegante casa de chá, e conversaram bastante. Norma abriu o coração:
- Tenho muitos problemas com meu marido, Valéria. Ele gosta de beber e faz coisas que não deve. Não gosta que eu telefone, nem vá à empresa, talvez para se considerar mais livre. Não quer que eu veja as mulheres com as quais se relaciona.
Norma parou de falar, tomou um gole de chá, depois prosseguiu:
- Vou lhe confessar uma coisa, Valéria. Quando telefonei a primeira vez, e perguntei por meu marido, queria na verdade falar com você. Tinha ouvido alguns comentários maldosos, que afirmavam que meu marido estaria tendo um relacionamento com a secretária.
Valéria empalideceu. Abriu a boca para explicar-se, mas Norma não permitiu:
- Não, minha amiga, não se preocupe. Sei que meu marido não é um modelo de fidelidade conjugai. Sei que já manteve casos com várias das funcionárias da empresa. Por intermédio da sua voz, porém, aprendi a conhecê-la. Percebi a sinceridade de suas intenções, o carinho com que se refere ao seu marido, Mauro, e o amor que dedica às duas filhinhas.
- Asseguro-lhe, Norma, que entre o senhor Carneiro e mim nunca houve nada - afirmou Valéria.
- Eu sei, minha querida. Conheço, porém, meu marido de sobra para saber que ele não deixaria passar uma bela moça como você, sem tentar seduzi-la. Confesso que, antes de conhecê-la, fiquei com ciúmes. Depois, senti que poderia ter confiança em você, o que hoje se confirmou com nosso encontro. Você não me parece o tipo que aceita esse gênero de relação, Valéria.
- Tem razão, Norma. Jamais aceitaria uma situação ambígua como essa. Fui educada segundo padrões morais rígidos. Além disso, já tenho problemas suficientes na vida. Pode confiar em mim.
Norma percebeu uma expressão preocupada no rosto da outra e teve vontade de conhecer seus problemas. Queria ajudar, contudo Valéria não parecia disposta a abrir-se. Resolveu deixar que o tempo se encarregasse de mostrar à nova amiga que ela também era digna de confiança. Continuaram conversando. Norma contou como era sua vida ao lado do marido, e Valéria encheu-se de compaixão por aquela mulher tão rica e tão infeliz. Reconheceu que ambos estavam precisando de ajuda. Com delicadeza e "pisando em ovos", sugeriu:
- Norma, não sei o que você pensa sobre o assunto, mas estou freqüentando um lugar que me tem feito grande bem. E um centro espírita. Acho que tanto você quanto seu esposo estão precisando de ajuda.
Fez uma pausa, e perguntou:
- Você acredita "nessas coisas"?
- Não sou preconceituosa, se é o que você quer saber, Valéria. Estou aberta a tudo que possa mudar nossa vida. Devo dizer-lhe, inclusive, que já freqüentei outras religiões, sem encontrar o que procurava. Aceito qualquer coisa. O ambiente em casa é péssimo e meus filhos não suportam ficar dentro de casa. E eu, sinto enorme solidão. Conheço muita gente, mas não tenho amigas. No fundo, todos nós estamos sofrendo bastante. Sim, concordo que precisamos de ajuda.
- Então, a reunião é sexta-feira, às vinte horas.
- Ótimo. Passarei para buscá-la na saída do serviço. Tomamos um lanche e vamos para a reunião. Combinado?
- Combinado.


CAPÍTULO 19 - MUDANÇAS IMPORTANTES

"(...) somente é inabalável a fé que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da Humanidade."
(O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, ALLAN KARDEC, CAP. 19, ITEM 7)

Valéria e Norma chegaram à casa espírita meia hora antes do horário marcado para início da reunião. Ao entrar, Valéria logo procurou sua amiga Adélia, que a abraçou com imenso carinho. Depois, fez as apresentações:
- Norma, esta é Adélia, a amiga sobre a qual lhe falei e que tanto me tem ajudado.
Adélia, esta é Norma, esposa do senhor Carneiro, o dono da empresa onde trabalho. Adélia, gentil e sorridente, cumprimentou a nova freqüentadora, abraçando-a e dando-lhe as boas-vindas.
- Espero que goste da nossa casa, Norma. Fiquem à vontade. Tenho tarefa urgente e peço-lhes desculpas. Conversaremos após a reunião.
E, antes de se afastar, sugeriu:
- Valéria, deixo-lhe o encargo de orientar Norma e explicar-lhe como funciona a reunião. Mostre-lhe nossas instalações, com as quais você já está bem familiarizada, não é?
- Claro, Adélia. Deixe por minha conta.
Visitaram o salão de palestras, as salas de cursos, de atendimento, de aulas de moral cristã infanto-juvenil, a biblioteca, a livraria. Nesta última permaneceram mais tempo, pois Norma se encantou com os livros. Dez minutos antes do início das atividades, dirigiram-se ao salão. Norma, assim como tinha acontecido com Valéria, também se encantou com a música suave que tocava, incentivando a elevação do pensamento, o bem-estar e a paz que o ambiente proporcionava. Ao terminar a reunião, Norma estava fascinada com tudo: a palestra, o passe, o ambiente fraterno e aconchegante. Pela primeira vez, tinha podido encontrar realmente Jesus. Lembrava-sedas muitas igrejas que tinha freqüentado. Em todas elas havia o culto exterior da religião, sem o apelo à razão. Entrara em templos cujo objetivo primordial era o dinheiro, nos quais a atenção que se recebia era proporcional aos recursos que se tivesse; em alguns, a gritaria era tamanha que a deixava aturdida, como se, para conversar com Deus, fosse necessário elevar o tom de voz para fazer-se ouvido; em outros, sentiu ambiente de paz, de harmonia e a elevação das intenções, contudo, como as orações fossem realizadas em língua estranha ao seu entendimento, reconheceu-se incapaz de acompanhá-las; em muitos desses templos utilizavam recursos exteriores para atingir o bem-estar e a paz que desejavam, como indumentárias, incensos perfumados, gestos estudados e repetição de palavras e frases. Nunca, porém - mesmo em suas viagens pelo mundo -, tinha deparado com uma reunião tão singela, tão desprovida de aparatos e ao mesmo tempo tão pródiga de resultados e com tal apelo à razão. A mensagem de Jesus Cristo surgia diferente; ao mesmo tempo que falava de coisas velhas, já bastante conhecidas, vestia-se com uma roupagem nova, encantadora, fascinante. Incrível! Era como se nunca tivesse ouvido as lições evangélicas antes. Por isso, estava maravilhada; experimentava enorme bem-estar e tranqüilidade, alimentados por bons pensamentos e pelo desejo de melhorar e de aprender. A palestra tinha sido tão esclarecedora, que nem sentiu necessidade de conversar com alguém. Entendeu que a felicidade depende da própria pessoa, que pode fazer-se infeliz ou venturosa, conforme seu comportamento. Que era necessário aprender a aceitar o próximo, exercitando a compreensão, a tolerância, a paciência e o amor. Estava disposta a fazer tudo isso. Queria estudar e aprender. Começaria a freqüentar o grupo de estudos junto com Valéria. Depois da reunião, dirigiram-se à livraria. Norma tinha visto alguns livros que desejava adquirir. Comprou várias obras, algumas por orientação de Valéria, que, por sua vez, a tinha recebido de Adélia, e outras cujos títulos e assuntos a interessaram. Ao deixar Valéria em seu lar, Norma estava completamente diferente.
- Agradeço-lhe, Valéria, a oportunidade que você me proporcionou hoje de conhecer algo diferente. Como lhe afirmei antes, já li bastante sobre religião e freqüentei muitos templos. Nunca, porém, encontrei o que senti hoje, naquela casa simples e despojada. Obrigada, amiga, pela sugestão. Valeu a pena. Olhe, pretendo participar do grupo de estudos com você!
- Ótimo. Iremos juntas. Quer entrar um pouco? Faço um café e apresento-lhe minha família.
- Adoraria. Mas fica para outro dia. Hoje, sinto que preciso ficar quieta num canto para pensar, colocar em ordem meus pensamentos. Amanhã conversaremos. Além disso, tenho muita coisa para ler. Boa noite!Valéria estava feliz. A satisfação de Norma era muito gratificante. Ela tinha a sensação de que estava no caminho certo e que suas vidas iriam mudar, para melhor.
Alguns dias depois, Valéria estava trabalhando, entretida na leitura de um documento, quando Norma entrou na sala. Surpresa, Valéria cumprimentou a amiga:
- Bom dia, Norma! Você por aqui? O que a trouxe tão cedo à empresa?
- Bom dia, minha querida! Vim conversar com meu marido, e desejo que você esteja presente.
A secretária "tremeu nas bases". Não sabia o que Norma tinha em mente.
- Norma, o que você vai fazer? - indagou-lhe, cheia de medo.
- Não se preocupe. Relaxe!
Norma piscou um olho e, sorridente, entrou na sala do marido, que a recebeu com estranheza.
- O que houve, Norma? Você não costuma vir ao meu ambiente de trabalho.
- E verdade. Porém, José, hoje é um dia diferente. Lembra-se daquela conversa que tivemos ontem à noite?
- Lembro. Mas o que tem a ver nossa conversa com sua vinda aqui?
- É que tomei a liberdade de trazer, para que você conheça, a pessoa da qual lhe falei, que me tem ajudado muito, o que melhorou nosso relacionamento.
- Sim! Terei imenso prazer em conhecê-la. Mande entrar.
- Ela já está aqui, querido. E Valéria, sua secretária. Carneiro, ao perceber a presença da funcionária, que se mantivera discretamente no fundo da sala para não incomodá-los, sentiu-se constrangido. O sangue afluiu em seu rosto.
Norma notou que ele não estava à vontade e fingiu não ter percebido, mostrando-se alegre e descontraída:
- Tinha certeza de que ia surpreendê-lo, querido. Mas... Não nos convida para sentar?
Recompondo-se, ele tomou pé da situação, tratando as duas como visitas.
- Sem dúvida! Sentem-se, senhoras. Desejam tomar alguma coisa? Um café, um suco, uma água?
- Eu quero uma água e um café - pediu Norma.
Valéria fez menção de se levantar para atender ao pedido, como de hábito, porém o chefe a interrompeu:
- Não, dona Valéria. Sente-se. Pedirei pelo telefone.
Levantou o fone e pediu à copeira que trouxesse água e três cafés. Depois, virando-se para Valéria, indagou-lhe:
- Mas então é a senhora que está acompanhando minha esposa ao centro espírita? Não conhecia essa sua inclinação, dona Valéria. Nunca me disse nada.
- Porque aqui só tratamos de assuntos de serviço, senhor Carneiro.
- E verdade, é verdade. Norma fala maravilhas desse lugar que tem freqüentado!
- E você prometeu me acompanhar, querido, na próxima reunião. Lembra-se? - disse Norma.
- Prometi e irei, querida, não se preocupe. Mas, dona Valéria, o que a fez interessar-se por essas coisas?
- Bem, senhor Carneiro, eu estava com muitos problemas e precisando de ajuda.
Aconteceu, simplesmente. Encontrei uma senhora que me ajudou e sugeriu-me freqüentar o centro. Aceitei, e estou ótima.
- Muito bem. Muito bem. Temos bastante o que conversar. Quem sabe marcaremos uma ocasião para isso?
Visivelmente incomodado, fez uma pausa e depois, dirigindo-se à esposa, suplicou:
- Agora, querida, infelizmente preciso trabalhar. Se me der licença, tenho ligações urgentes a fazer. Desculpe-me.
Norma entendeu a mensagem e ergueu-se. Apesar da pressa do marido em livrar-se delas, no fundo sentia-se muito satisfeita.
- Estou indo, querido, tenha paciência. Só vim mesmo para apresentar-lhe Valéria, minha melhor amiga. Eu o verei na hora do jantar. Até mais tarde!
Saíram as duas e Valéria a acompanhou até a outra sala, fechando a porta. Depois, abraçaram-se, sorridentes:
- Então, você conseguiu mesmo falar com seu marido! E se ele não tivesse aceitado? - considerou Valéria.
- Conversamos bastante ontem, Valéria. Ele reconhece que, desde que comecei a freqüentar o centro espírita, as coisas em casa melhoraram muito. Tenho feito prece por ele quando dorme, conforme aprendi no centro. José reduziu a ingestão de bebidas alcoólicas e o relacionamento dele com nossos filhos, que não toleram bebida, melhorou bastante também.
Meu marido reconhece que não está bem e que precisa de ajuda, aceitando acompanhar-me na próxima reunião. E tudo o que mais quero!
- Vou orar para que tudo dê certo! - disse Valéria, animada.
- Confio em Deus. Vai dar certo, Valéria. Até outro dia! - despediu-se Norma, contente. Ao ficar sozinha, a secretária tentou trabalhar, voltar sua atenção para o documento que estava lendo, entretanto a conversa que tinham tido não lhe saía da cabeça.
Meia hora depois, o senhor Carneiro a chamou.
- Pois não, senhor. Deseja alguma coisa?
- Dona Valéria, por obséquio, traga-me a pasta de contratos. Ela saiu e voltou com uma volumosa pasta, depositando-a sobre a mesa do patrão. Ele a abriu e começou a folhear os documentos. De repente parou e, fitando-a, observou:
- Jamais pensei que a senhora pudesse se interessar por esses assuntos, dona Valéria.
- Por que, senhor Carneiro?
- Bem, não me parece o tipo. É centrada, equilibrada, racional. Ao contrário de minha esposa, que é dada a misticismos e que vive à cata de novidades.
Com leve sorriso, Valéria retrucou:
- Pois Norma me parece bastante racional e equilibrada, senhor Carneiro. O fato de ter-se interessado anteriormente por várias religiões é positivo, pois indica um desejo imenso de encontrar a verdade, a razão de ser da existência do ser humano e o porquê de todas as coisas.
- Não creio. Conheço-a muito bem e sei que está sempre em busca de coisas novas.
Norma é fútil, e o interesse dela pela Doutrina Espírita não vai durar muito, acredite.
Valéria ficou pensativa durante alguns momentos, depois ponderou:
- Certamente o senhor deve conhecê-la bem mais do que eu. No entanto, tenho opinião bem diversa a respeito de sua esposa. Vamos ver. Só o tempo vai mostrar quem tem razão. Deseja mais alguma coisa, senhor?
- Sim. Explique-me a senhora, que julgo tão séria. Por que se interessou por essa doutrina? Vocês acreditam na reencarnação, segundo ouvi dizer. Só isso?
- De forma alguma. A reencarnação é um dos fundamentos do Espiritismo, que nos mostra a justiça e a bondade do Criador. Nossa doutrina abrange ciência, filosofia e religião.
Melhor, porém, seria se o senhor mesmo lesse O Livro dos Espíritos, obra que contém toda a base da Doutrina Espírita. Nele poderá verificar a verdade do que lhe afirmo.
- Onde posso encontrar esse livro?
- Nas boas livrarias da cidade. A propósito, tenho aqui comigo um exemplar e poderei lhe emprestar, se o senhor quiser.
- Aceito seu oferecimento. Obrigado.
Valéria saiu por instantes e retornou com um livro nas mãos. - Aqui está, senhor Carneiro. Leia, e depois, se o senhor desejar, conversaremos a respeito. Ainda não sou grande conhecedora da Doutrina Espírita, mas posso indicar-lhe alguém que tire suas dúvidas.
- Obrigado.
Valéria retornou para sua sala, mergulhando no serviço. Naquele dia, o chefe não a chamou mais, e nos dias seguintes não tocaram mais no assunto, mantendo relações estritamente profissionais. Na sexta-feira, dia da reunião no centro espírita, Valéria e Carneiro estavam no escritório estudando as modificações que seriam implantadas nas cláusulas de um contrato, quando Valéria notou que o chefe a olhava de forma diferente. Aliás, percebera que ele a estava tratando de maneira mais cortês, mais delicada e com mais respeito. Sentiu-se um pouco constrangida, porém se manteve calada. Ao encerrar aquele serviço, antes que ela saísse para digitar o novo texto, Carneiro comentou:
- Dona Valéria, não conversamos mais sobre aquele assunto, mas asseguro-lhe que tenho lido o livro que me emprestou e que estou realmente impressionado pela lógica, pela seriedade e pela grandeza com que são abordados todos os temas. Estou modificando meus conceitos antigos e agradeço-lhe por ter-me aberto os olhos. E toda uma proposta de mudança de vida e de comportamento que se nos depara naquelas páginas.
- Sem dúvida. A medida que nossa visão se alarga, podemos identificar nossos erros, e tentar mudar - concordou ela.
Ele abaixou a cabeça, contrafeito.
- Agora percebo melhor como tenho errado na vida. Tem razão a senhora em dizer que temos de mudar. Peço-lhe perdão pela maneira como agi com a senhora, dona Valéria, tratando-a de maneira grosseira e tentando seduzi-la.
Também constrangida, ela se justificou:
- Desculpe-me, senhor Carneiro. Quando falei da necessidade de mudança, não queria em absoluto referir-me ao senhor. Pensava em mim mesma e nos erros que tenho cometido. Não me cabe julgar os atos de outrem. A responsabilidade pelos seus atos é da sua estrita competência.
- Essas palavras denotam sua generosidade. Sei que não contou à Norma o que aconteceu entre nós. Poderia tê-lo feito e não o fez. Por quê?
Valéria fitou-o com serenidade, explicando:
- Por que o faria? Não vejo motivo para isso. Todos nós temos fraquezas e reconheço que aquele foi apenas um momento de invigilância, em razão de o senhor ter bebido um pouco mais. Só isso.
- Obrigado, dona Valéria. É generosa. Sinto que não guardou ressentimento por mim. Agradeço-lhe profundamente. Bem, hoje à noite também irei à reunião. Peço-lhe apenas um favor: não conte à minha mulher que estou lendo sobre Espiritismo. Quero surpreendê-la.
- Claro. Pode ficar descansado, senhor Carneiro.
Saindo da sala do chefe, Valéria sentia-se emocionada e envolta em intensa sensação de bem-estar e tranqüilidade. Agradeceu mentalmente a Jesus o amparo que estava recebendo. Tudo caminhava melhor do que poderia esperar. Após o expediente, Valéria foi até uma lanchonete nas imediações da empresa e tomou um lanche rápido. Ela também tinha combinado com o marido e as filhas irem todos à casa espírita. Mauro estava curioso para conhecer o local que Valéria vinha freqüentando ultimamente, o qual ela reconhecia como responsável pela mudança que se operara no seu comportamento. Tornara-se mais tranqüila, mais paciente, mais equilibrada. Então, convidou-o para acompanhá-la.
- E as meninas? Não temos com quem deixá-las! - lembrou Mauro, pesaroso.
- Não há problema, querido. Marcela e Roberta ficarão junto com outras crianças em uma sala especial, onde receberão aula de moral cristã, que se realiza no mesmo horário, enquanto assistimos à palestra. Como não terei tempo de ir para casa, você e as meninas me aguardarão na pracinha; o endereço já lhe entreguei. Certo?
Afastado o obstáculo, no horário aprazado Mauro e as garotas tomaram o ônibus que os levaria ao endereço indicado. Quando chegaram à pequena praça, Valéria já os esperava. Abraçaram-se com amor e alegria por estarem juntos.
- Aonde vamos, mamãe? E longe? - indagou Roberta, curiosa.
- Não, filhinha. E ali mesmo! Olhe, é naquele portão de ferro pintado de azul.
Atravessaram a praça e entraram nas instalações do centro. Pouco tempo depois, Norma e Carneiro chegaram. Foi com imensa satisfação que se cumprimentaram. Valéria apresentou o chefe e a esposa dele ao marido e às filhas. Os homens não estavam à vontade. O ambiente era novo para eles, estavam ali pela primeira vez e sentiam-se deslocados. Logo, porém, começaram a conversar entre si, encontrando pontos em comum. Após a reunião, sentiam-se ótimos. As crianças adoraram a aula. Os homens igualmente estavam com expressão diferente: mais tranqüilos e serenos. O ambiente estava tão bom que Carneiro sugeriu que fossem comer uma pizza.
- Vocês aceitam? Será bom conversarmos mais um pouco, Mauro.
- Sem dúvida. Acho que será ótimo para todos nós. Além disso, amanhã é sábado e as meninas não têm aula. Portanto, hoje, excepcionalmente, podem dormir mais tarde.
As garotas vibraram com o novo programa. No restaurante, puderam trocar idéias, conversando sobre o tema da palestra e seus desdobramentos no cotidiano de cada um. Carneiro mostrava um conhecimento sobre Doutrina Espírita que deixou Norma perplexa.
- Você está me surpreendendo, José! Onde foi que aprendeu tudo isso? Ele deu risada, respondendo com bom humor:
- Há muito tempo conheço Espiritismo - afirmou, lançando para Valéria um olhar cúmplice.
Norma, com ar de incredulidade, retrucou:
- Conte a verdade, José! Você tinha preconceito contra essa doutrina. Não podia nem ouvir falar. Confesse!
- Está bem. Está bem! Andei lendo alguma coisa no escritório, graças à dona Valéria que me emprestou O Livro dos Espíritos.
- Ah, bom! Agora posso entender essa sabedoria repentina. Todos caíram na risada. O ambiente era fraterno e amigo. Ao saírem do restaurante, lamentaram ter de se separar. Assim, combinaram que, na semana seguinte, repetiriam a dose. Naquela noite as duas famílias tiveram sono tranqüilo e cheio de paz. E nós que, da espiritualidade, havíamos trabalhado intensamente para que tudo se resolvesse de maneira benéfica para todos os envolvidos, vibramos de satisfação.


CAPÍTULO 20 - NOVOS TEMPOS

"E sucedeu que, estando ele em casa, à mesa, muitos publicanos e pecadores vieram e tomaram lugares com Jesus e seus discípulos. Ora, vendo isto os fariseus, perguntavam aos discípulos: Por que come o vosso Mestre com os publicanos e pecadores? Mas Jesus, ouvindo disse: Os sãos não precisam de médico, e, sim, os doentes."
JESUS (MATEUS, 9: 10 A 12)

Novos tempos se descortinavam trazendo prenúncios de paz. Com certeza, toda mudança pede confiança e determinação, esforço e perseverança. Nossos amigos, amparados pelos servidores do bem que, da espiritualidade, velavam por eles, puderam dar novo impulso à vida que levavam. Despertando para a realidade maior, acrescentavam conhecimentos e responsabilidades, que precisavam aproveitar, mostrando-se dignos da ajuda recebida. Vários adversários desencarnados, ligados às duas famílias, foram socorridos, instalando-se uma nova era de paz, em que teriam condições de sedimentar os valores conquistados, as informações recebidas e, por intermédio da terapêutica espírita, adquirir maior dose de equilíbrio e maturidade emocional e espiritual. Nessa nova fase, uma das primeiras preocupações de Carneiro, conhecendo as dificuldades de Mauro, seu novo amigo, foi de providenciar-lhe uma oportunidade de emprego. Não em sua empresa, naturalmente, já que, de modo geral, evitava vincular amizade com negócios profissionais. Não que fosse errado, longe disso. Visava com essa atitude preservar o relacionamento, uma vez que não desejava que o beneficiado se sentisse preso a ele por gratidão. Desse modo, julgou mais conveniente mandar o currículo de Mauro para um velho amigo, proprietário de uma indústria, para que, na medida do possível, o encaixasse entre seus funcionários. Tudo isso sem o conhecimento de Mauro para não gerar expectativas que poderiam não se confirmar. E tal manobra deu tão certo que o amigo lhe respondeu afirmando que precisava exatamente de alguém com o perfil de Mauro, e tanto isso era verdade, que entraria imediatamente em contato com ele. Alguns dias depois, Mauro telefonou para Carneiro, radiante. Após os cumprimentos e troca de amabilidades, disse:
- Carneiro, estou ligando para fazer-lhe um convite: aceita almoçar em nossa casa no domingo?
- Sem dúvida, Mauro! Com o maior prazer. Tenho certeza de que Norma também ficará encantada. Mas, existe algum motivo especial?
- Sim. Muito importante. Arrumei um emprego!
- Excelente! Então, temos mesmo de comemorar.
- Com certeza! É numa indústria de componentes eletrônicos e, como você sabe, essa é minha área. Estou muito feliz!
Mauro falou o nome da empresa e perguntou:
- Carneiro, você conhece o proprietário? Estranhei ser chamado porque não mandei meu currículo para essa empresa.
- Ah, compreendo. Mas Valéria enviou, Mauro! Ela não lhe contou? Sua esposa trouxe alguns exemplares de seu currículo aqui no escritório e, de passagem, eu vi sobre a mesa dela. Pediu-me algumas sugestões, que eu dei, e uma das empresas de que me lembrei naquele momento foi a de Paulo Evaristo, que é amigo de muitos anos e excelente pessoa. Parabéns, meu caro! A empresa é sólida, bem conceituada e o proprietário considerado um bom patrão. Você está muito bem colocado, acredite.
- Então, devo a você essa alegria, Carneiro. Obrigado.
- Não, não. Você não me deve nada. Conseguiu o emprego por seus próprios méritos. Nada tive a ver com isso.
- Pois então, temos mais a comemorar: a sua sugestão! Estaremos esperando você e toda a sua família no domingo. Certo? Antes disso, porém, nos veremos na reunião de sexta-feira. Um abraço, amigo. Tenha um bom dia!
Carneiro despediu-se. Sentia-se intimamente bastante satisfeito. Não sabia o que fazer para agradar aos novos amigos. Em relação à Valéria, reconhecia-se um pouco culpado pela sua conduta passada, no entanto sabia que ela não pensava mais no assunto. Generosa, ela lhe havia perdoado, com isso demonstrando superioridade moral. Curioso que, vez por outra, vinham-lhe à mente algumas cenas estranhas: via-se, satisfeito, entrando com seu exército em uma aldeia devastada pela guerra; entre os sobreviventes que ali estavam cheios de ódio e de humilhação, e que se curvavam à sua passagem, notava uma jovem de tez morena, bastos cabelos negros que lhe caíam em cascata até a cintura. Parava o cavalo e ela erguia a fronte altiva; imediatamente sentia-se mergulhar naqueles olhos negros e profundos que o fitavam com repugnância, enquanto grande atração o dominava. Poderoso, tomou-a a seu serviço, conquanto lhe notasse a rejeição. O interessante é que nessa jovem, embora o envoltório fosse diferente, reconheceu Valéria, por quem sentira idêntica atração desde o primeiro momento. Com o conhecimento espírita já adquirido, entendeu perfeitamente que esse fato fazia parte de um passado distante; ao mesmo tempo, sentia, inconscientemente, que ele e Valéria tinham tido outros encontros em épocas diferentes, criando elos e compromissos que geraram responsabilidade de parte a parte. Agora, surgia a oportunidade de reparar os erros cometidos e terem um relacionamento saudável e equilibrado. Carneiro estava consciente disso e da importância de se regenerar. Deus lhe havia concedido essa nova aproximação, que ele pretendia aproveitar. Até entendia que, embora o relacionamento entre ele e Valéria fosse cortês, ela procurava manter sempre certa distância, como se, temerosa, aguardasse que as mudanças fossem corroboradas pelo tempo. Carneiro sabia que tinha errado muito, por isso aceitava tudo com humildade e resignação, esperando que o tempo pudesse modificar o relacionamento entre eles. Com relação a Mauro, de quem se sentia devedor, e em quem reconhecia o chefe daquela pequena aldeia destroçada, incomodava-o o desemprego. Agora sentia alívio por ter ajudado a resolver esse problema, com a graça de Deus. Também a situação em seu lar se acomodara. Seu relacionamento com a esposa melhorara bastante, e os filhos - em quem reconhecia valentes moradores da aldeia mortos no combate - mostravam-se mais acessíveis depois que ele abandonara o vício de beber. É bem verdade que o fumo ainda se lhe constituía num problema. Mais do que da bebida, sentia falta do cigarro, mas procurava, apesar de tudo, manter-se firme em seus propósitos de parar de fumar, reduzindo gradualmente a dependência. Tudo tinha ficado muito claro em sua mente e ele agora conseguia entender perfeitamente as dificuldades de relacionamento que tivera a vida toda com a esposa, com os filhos e com os empregados. A existência não tinha se transformado num céu sem nuvens, todavia Carneiro enfrentava os desafios da vida com firmeza, escorado nas lições evangélicas e nos conhecimentos espíritas. Dentre os que mais estranharam sua mudança estavam seus subordinados. Ele tornara-se menos grosseiro e arrogante, mais afável e cortês; procurava ser justo e evitava demissões. De modo geral, o pessoal passou a relacionar o início das atividades de Valéria no cargo de secretária com as mudanças do patrão. Mesmo porque, quando em dúvida sobre alguma decisão, Carneiro sempre solicitava a opinião de Valéria, que respeitava bastante, não fazendo segredo da influência dela em suas decisões. Ainda aqui o passado se fazia presente. Espírito forte e combativo, ela sempre o havia influenciado, muitas vezes de maneira negativa, gerando compromissos graves para ambos. Agora, tinham a oportunidade de reparar uma parte desses erros, ajudando aqueles mesmos comandados que ora surgiam como operários da fábrica. Dessa forma, a situação de todos, como um todo, melhorou muito, e, em vista disso, os colegas passaram também a respeitá-la, reconhecendo-lhe o equilíbrio, a ponderação das atitudes e a justeza nas decisões, quase sempre a favor dos empregados. Carneiro tinha muitas outras imperfeições íntimas para trabalhar, porém uma das mais difíceis para ele era a sexualidade. Temperamento fogoso e sensual, até essa época vivera pensando prioritariamente nisso. Diga-se de passagem, não deixava passar oportunidade de um relacionamento mais íntimo quando a ocasião se apresentava. Toda mulher bonita e atraente era, potencialmente, sua presa. O fato de conhecer a Doutrina Espírita, felizmente, fê-lo começar a pensar diferente, a analisar a responsabilidade que assumia perante seus atos e a temer-lhe as conseqüências, segundo a Lei de Causa e Efeito. Sempre utilizara o livre-arbítrio sem qualquer limite, usando e abusando de suas condições em busca do prazer puramente instintivo e material. Agora, tinha aprendido que todo relacionamento gera vínculo e comprometimento, por menor que seja. Passava em revista seu comportamento anterior e sentia-se envergonhado. Desejava mudar, crescer, melhorar. Não que tivesse se libertado do problema, de forma alguma. A tendência ainda era muito forte nele, mas agora, ao ter um mau pensamento em relação a uma mulher, imediatamente tentava se corrigir. Todos na fábrica percebiam sua mudança, pois parará de assediar as funcionárias. Como conseqüência, a convivência com a esposa tornou-se muito melhor e mais agradável. Norma reconhecia-lhe o esforço e ajudava-o, dando-lhe sustentação e confiança. Através do Evangelho no Lar, que passaram a fazer semanalmente, o ambiente doméstico modificou-se sensivelmente, o que atraiu os filhos para a pequena reunião, intuitivamente compreendendo os jovens que dali provinham os recursos que geravam a harmonização da família. Também na residência de Valéria e Mauro, com o amparo e a assistência dos benfeitores espirituais, tudo caminhava bem. Afastado o fantasma do desemprego, ganhando bem e suprindo as necessidades da família, Mauro tranqüilizou-se, passando a dedicar-se mais à área do labor no bem, que tanto apreciava. Dessa forma, a casa espírita ganhou excelentes trabalhadores na pessoa dos novos amigos, que se engajaram no serviço com boa vontade, determinação e amor aos sofredores. Certamente, os problemas desse grupo de espíritos não estavam resolvidos, porque viriam outros em conseqüência de necessidades regeneradoras que a vida se encarregaria de lhes apresentar no momento propício, em virtude dos compromissos assumidos ainda na espiritualidade, por ocasião do planejamento reencarnatório. Todavia, o conhecimento espírita mostrava-se poderosa alavanca que lhes possibilitaria melhores condições para vencer. Esses personagens, que não se reuniram por acaso na esfera terrena mas foram aproximados pela vida, que busca juntar afetos e desafetos do passado para o devido entendimento e harmonização, estavam aparelhados para o sucesso da encarnação. Graças à bondade divina, nossos amigos teriam uma fase de tranqüilidade e paz, para fixação dos novos conhecimentos, e oportunidade de crescimento espiritual, amadurecendo os sentimentos. A área sexual, das mais antigas e importantes conquistas do ser imortal a caminho da evolução, também é a que lhe propicia maiores dificuldades. Com a finalidade de procriação para o povoamento do planeta, Deus concedeu ao homem também o prazer no ato sexual, de modo a ganhar-lhe o interesse e a colaboração necessária a seus propósitos. Com o passar do tempo e o progresso conquistado, o ser humano saiu da área puramente instintiva, desenvolvendo as sensações e lançando-se ao prazer puramente material. Longo período decorreu até que aprendesse, no despertar da consciência, a distinguir o bem do mal, sublimando as sensações e transformando-as gradativamente em sentimentos. Nessa época, passou a dar maior valor aos vínculos afetivos. Despertou-se nele o interesse pela família, passando a proteger a prole. Dentro desse processo evolutivo, a sexualidade sempre desempenhou importante função, ajudando o homem, mas também sendo motivo de quedas fragorosas, gerando-lhe profundos comprometimentos na área afetiva. Pouco a pouco, o ser imortal se espiritualiza, ganhando novas luzes e amadurecendo emocionalmente. De forma lenta e gradual, liberta-se da canga das paixões inferiores que o prendem ao solo, buscando as alturas pela elevação dos sentimentos, especialmente o amor em sua maior pureza, que lhe constitui a meta sublime de ascensão. E a evolução, que atinge todas as áreas do conhecimento humano, influencia a ciência, a filosofia e a religião. Esse avanço ético-moral, que foi plantado pelo Cristo há dois mil anos, permanece como bússola norteadora para o homem, indicando o rumo que lhe compete trilhar. Os nobres valores evangélicos instalam-se, pouco a pouco, mudando os usos, costumes e tradições, regendo a legislação dos países, transformando socialmente os povos, gerando sociedades mais livres, mais fraternas e mais justas. O avanço é lento, gradativo, mas constante. No esforço ascensional, o maior desafio do espírito é vencer a si mesmo, dominando suas tendências inferiores e transformando imperfeições em virtudes. A modificação moral é obra que se realiza no íntimo de cada ser, pelo esforço constante, em que a vontade de vencer a si próprio surge como condição prioritária e indispensável. Para alcançar essa vitória, porém, podemos contar sempre com o amparo de Deus, que por meio de seus mensageiros - generosos benfeitores que nos orientam, protegem e fortalecem no curso das existências -, oferece-nos o necessário estímulo para as mudanças que precisamos realizar em nós. Assim, diante das imperfeições, dos defeitos ou dos vícios, jamais desanimar, trabalhando sem cessar para vencer a si mesmo. A sensualidade é um dos grandes problemas que ainda conservamos como espíritos imperfeitos, o qual pode ser equacionado ao influxo do amor e da elevação dos sentimentos. Desse modo, diante de relacionamentos que envolvam a área dos sentimentos, notadamente a sexualidade, mantenhamos o maior equilíbrio possível, lembrando que a regra sempre é a do respeito ao semelhante, consoante a advertência de Jesus de que devemos fazer aos outros tudo o que gostaríamos que os outros nos fizessem. Dramas comoventes e dores indescritíveis campeiam atualmente na sociedade pelo desrespeito ao direito do próximo. Imensa quantidade de pessoas se comprometeu na área afetiva, através do tempo, criando elos que não podiam manter, fazendo promessas que não pretendiam cumprir, enganando, espoliando e traindo seres que confiavam cegamente nelas. Em razão desse comportamento desequilibrado, infinidade de seres sofre hoje na Terra pelos desregramentos de ontem: muitos apresentam enfermidades adquiridas em virtude da inconseqüência dos relacionamentos fortuitos; outros voltam ao palco do mundo mostrando as condições do corpo espiritual danificado, trazendo no veículo físico as marcas de um passado de degradação e de erros, seja no aparelho genésico seja em qualquer outra parte do corpo, inclusive no cérebro, comprometido pelas loucuras de antanho. Outros mais renascem desajustados com o meio em que vivem, com sérias inversões da polaridade sexual para aprenderem a respeitar o sexo oposto. Os que não valorizaram o instituto familiar retornam para uma vida de solidão, desejando ardentemente um lar que não conseguem obter. Mulheres que desvirtuaram a sublime função da maternidade cometendo aborto nascem desejando ardentemente uma maternidade, sem conseguir concretizar seu anseio. Em outros casos, são obrigadas a passar pelo mesmo sofrimento que geraram, ficando grávidas, não conseguindo levar a termo a gestação e sofrendo o processo abortivo que tanto buscaram no passado. Ainda outras, dependendo da gravidade e das condições que trazem no perispírito, são levadas a sofrer elas próprias o aborto, na frustração de serem despejadas do claustro materno, sentindo na própria pele a dor que geraram anteriormente a seus filhos. E as marcas emocionais permanecem por longo tempo, provocando também remorso lancinante, só amenizado com o reconhecimento da própria culpa e conseqüente arrependimento. Depois, partirão para a reparação dos erros cometidos, ajudando aqueles que prejudicaram no pretérito, o que lhes trará a regeneração perante a própria consciência, perante o semelhante e perante Deus. Só assim conseguirão a paz que tanto buscam, candidatando-se a um futuro mais feliz. Desse modo, diante de um problema que envolva a sexualidade, lembrar-se de manter o equilíbrio das emoções, não se deixando levar pelas tendências instintivas, e procurar sempre a elevação do pensamento, pela prece, pela leitura edificante, pelo estudo e pelas boas obras, para ter o amparo dos bons espíritos. Perante qualquer relacionamento que se delineie, colocar-se no lugar do outro e pensar: se isso estivesse acontecendo comigo ou com minha irmã, eu gostaria? Em caso de dúvida, sempre remeter o pensamento a Jesus e ao seu Evangelho, procurando refletir: qual seria a atitude do Mestre em idêntica situação? Dessa maneira, encontraremos a medida exata do que podemos e do que não devemos fazer, comportando-nos como pessoas dignas e úteis à sociedade em que vivemos.


CAPÍTULO 21 - PREPARATIVOS

"O homem nem sempre é punido, ou completamente punido em sua existência presente, mas nunca escapa as conseqüências de suas faltas. A prosperidade do mau é apenas momentânea; se não for punido no hoje, o será no amanhã, e, sendo assim, aquele que sofre está expiando os erros do seu passado. A infelicidade, que à primeira vista nos parece imerecida, tem, pois, sua razão de ser, e aquele que sofre pode sempre dizer: "Perdoai-me, Senhor, porque errei."
(O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, ALLAN KARDEC, CAP. 5, ITEM 6)

Abrindo os olhos, ainda sonolenta, Juliana reconheceu o próprio quarto. Espreguiçou-se, feliz. Ansiosa, fez mentalmente as contas. Faltavam exatos trinta dias para seu casamento. Nesse instante, deu-se conta de que o tempo era curto e havia muitas providências a tomar. Levantou-se rápido e foi para o banheiro cantarolando. Tomou banho, arrumou-se cuidadosamente e, após conferir com satisfação a imagem no espelho, pegou a pequena lista de prioridades para o dia, organizada na noite anterior, colocou-a na bolsa e saiu do quarto. Agradável aroma de café recém-coado inundava a casa toda. Na cozinha, a mãe acabava de arrumar a mesa. Cumprimentou-a com um beijo:
- Bom dia, mamãe!
- Bom dia, minha filha. Dormiu bem?
- Otimamente! Demorei um pouco a adormecer procurando lembrar tudo o que precisava fazer hoje.
- Então se apresse ou chegará atrasada ao serviço. Faltam quinze minutos para as oito.
- E verdade, mamãe. Vou comer algo rapidinho. Sentou-se, preparou uma xícara de café com leite, passou manteiga na metade de um pãozinho e comeu com prazer. Olhou o relógio e levantou-se, apressada. Foi até a estante, pegou a bolsa, as chaves do carro e, dando um beijo na testa da mãe, despediu-se:
- Tenha um bom dia, mamãe. Ah! Não se esqueça de falar com a costureira. Ela precisa marcar a prova do meu vestido de noiva.
- Não esquecerei, filha. Vá com Deus!
Juliana tirou o carro da garagem e tomou o rumo da empresa onde trabalhava. O fluxo de veículos era intenso naquele horário e o exercício da paciência no trânsito, uma necessidade. Quando isso acontecia, para não se estressar, procurava lembrar-se de coisas boas, dos momentos felizes e, sempre, como era natural, do noivo, Renato. Era a solução que encontrara para não ficar nervosa e irritada com os engarrafamentos, tão comuns na grande capital, e, assim, nem ver o tempo passar. Com o trânsito parado, fez uma ligação no celular para o noivo. Conversaram um pouco e ela explicou que estava retida no trânsito. Renato, felizmente, já estava no escritório de engenharia que dividia com um amigo, Danilo.
- Já lhe disse que eu a amo, querida? Não concebo mais a vida sem sua presença. Você é a luz do meu caminho. Não vejo a hora de estarmos casados e unidos para sempre - dizia ele, carinhoso e bem-humorado.
- Eu também, meu amor. Só vivo para você e aguardo com ansiedade a hora de estarmos finalmente juntos, aproveitando as nossas merecidas férias. Por falar nisso, já conseguiu escolher o terno?
- Ainda não. Estou me esforçando, pode crer. Não se preocupe.
- Olha lá, não vá me deixar esperando na porta da igreja por não saber que roupa usar - brincou ela.
- Pode ter certeza de que estarei na igreja na hora combinada. Quanto a você, só Deus sabe! O atraso das noivas é conhecido.
- Chegarei no horário, garanto. Não correrei o risco de perder você. Vou desligar, querido. Os carros estão começando a se movimentar. Ainda bem! Até mais tarde. Um beijo.
- Outro. Tenha um bom dia, querida.
Realmente os veículos tinham começado a rodar, e Juliana desligou o aparelho. Contente, ria sozinha. Nada podia alterar seu bom humor nessa fase que antecedia o casamento. Meia hora depois, estava na empresa. A financeira localizava-se bem no centro da cidade, o que dificultava seu acesso. Juliana teve dia agitado e cheio de serviço. Mal teve tempo de engolir alguma coisa na hora do almoço. Para não perder tempo, pediu um sanduíche e um suco numa lanchonete ali perto. A tarde, ao encerrar-se o expediente, estava cansadíssima e irritada. O bom humor, que ela julgava eterno, fora para o espaço. Não tinha feito nada do que programara fazer; as providências que ia tomar, aproveitando a hora do almoço, ficaram somente no papel. Tirando o carro do estacionamento, lembrou-se de que precisava passar numa loja e comprar alguns materiais que estavam faltando para terminar de confeccionar as lembrancinhas do casamento. Lembrou também que essa loja costumava ficar aberta até mais tarde em virtude do grande movimento de fregueses. Um pouco mais animada, estudando o trajeto, resolveu estacionar o carro numa avenida, cortando caminho por uma pequena rua transversal, pouco conhecida e sem movimento, que daria acesso à loja aonde pretendia ir. Esse expediente economizaria tempo e dinheiro, pois chegaria rapidamente à loja atravessando a viela, e não teria de gastar combustível dando uma grande volta. Satisfeita com sua esperteza, chegando ao local, ela estacionou o carro, e entrou na pequena rua deserta. Ao dar os primeiros passos, sentiu um calafrio de medo. A viela era escura, quase sem iluminação. Teve desejo de desistir, deixando a compra para o dia seguinte. Juliana, porém, tinha temperamento forte, era corajosa, decidida, e não se intimidou, continuando a caminhar. Apressou o passo. À sua frente, para incentivá-la, como no final de um túnel, via as luzes da avenida e da loja que ficava bem na esquina. Que bom! Como imaginei, está aberta! Juliana não percebeu que um rapaz, na avenida, encostado num poste, perto do local onde deixara o carro, a observava, interessado. Quando ela entrou na pequena rua, ele a seguiu. Não tinha andado muito, quando se sentiu agarrada por um braço forte enquanto a outra mão lhe tapava a boca, arrastando-a para um canto escuro, entre dois prédios. Apavorada, sem poder reagir, ouviu alguém murmurar:
- Não grite nem faça nenhum movimento, ou morre aqui mesmo. Estou armado.
Ele apenas sussurrava no seu ouvido. A jovem sentiu seu hálito, o cheiro de tabaco, de suor, de sujeira e um cheiro estranho, que não sabia precisar, extremamente desagradável. Sentiu nojo. Nisso, o frio do metal tocou seu pescoço. Com os olhos arregalados de pavor e o coração disparado, sentiu que ia morrer. O homem segurou-a com brutalidade e, juntando-lhe as mãos, a amarrou. Em seguida, arrastou-a pela viela de volta para o carro, ameaçando matá-la se fizesse um gesto, um grito ou se chamasse atenção de qualquer modo. Já na avenida, pegou as chaves, abriu a porta e empurrou-a para dentro do veículo. Ele olhou em torno, vigilante. Ninguém tinha percebido nada. Deu partida no carro e saíram.
- Sabe que esses vidros escuros são uma boa? Ninguém vê o que se passa dentro de um carro - comentou irônico.
Juliana olhou para o homem. Somente agora podia vê-lo melhor. Era um rapaz novo, de boa aparência, embora malvestido e sujo. Os olhos injetados pareciam os de um louco. Deveria estar drogado. Ele não me parece estranho. Onde já o teria visto? Tentou conversar enquanto ele dirigia:
- Por favor, moço. Deixe-me ir! Pode ficar com o carro, mas solte-me. Tenho algum dinheiro na bolsa, relógio, anéis. Pode ficar com tudo, mas solte-me, por piedade!
- Cale a boca! Não pretendo machucá-la. Se for boazinha, não correrá perigo algum.
- Meus pais estão me esperando. Eles ficarão preocupados se eu não chegar, e chamarão a polícia.
O rapaz soltou uma gargalhada.
- A polícia não poderá fazer nada por você. Agora, cale-se. Deixe-me dirigir em paz. O trânsito está infernal.
Juliana achou melhor ficar quieta. O rapaz parecia muito nervoso com o movimento do trânsito naquela hora do rush. Levou-a para fora da cidade. Estavam rodando, pelos cálculos de Juliana, havia uma hora, quando, chegando perto de um bosque de pinheiros, ele parou o carro, desceu e, dando a volta, abriu a porta, agarrou-a pelo braço e obrigou-a a descer sem se impressionar com o pavor estampado nos olhos dela.
- Agora, gatinha, vamos dar uma volta.
- Não! Por caridade! Deixe-me ir! - implorava ela, aos gritos, chorando.
- Pode gritar. Aqui ninguém vai ouvi-la.
Com o coração aos saltos, desesperada, Juliana gritava, esperneava, mas ele continuava arrastá-la para o bosque, em meio à escuridão da noite. Naquele momento, Juliana não conseguia pensar em nada. Só em si mesma. Olhou para o céu, onde infinidade de estrelas luzia à distância, indiferentes à sua situação e ao perigo que estava correndo. As únicas testemunhas não podiam socorrê-la. Tomando consciência, a um leve movimento, sentiu o corpo todo doer. Abriu os olhos lentamente. Só viu galhos de árvores e achou que estava sonhando. Tentou levantar-se, mas uma dor lancinante obrigou-a a deitar-se de novo. Apalpou o chão e pegou folhas secas. Estranhou. Não estava em sua cama. Procurou refazer mentalmente seus passos e, finalmente, se lembrou de tudo. Não estou sonhando! Caiu novamente em pranto convulsivo. As imagens brutais voltaram-lhe à mente, trazendo humilhação, medo e dor. Depois de algum tempo, foi se acalmando e reconheceu que estava com vida, graças a Deus. Olhou em torno. Estava sozinha no meio do mato e não sabia quanto tempo teria transcorrido, mas era muito tarde, pois as primeiras luzes da manha surgiam clareando levemente o lugar. Refletindo sobre sua situação, decidiu procurar ajuda. Precisava sair dali. O criminoso poderia voltar e concluir o que não tinha feito, isto é, tirar-lhe a vida. Lembrou-se de uma frase que ouvira na televisão: todo criminoso volta sempre ao local do crime. Definitivamente, não poderia continuar ali, mesmo porque tinha medo de animais, de bichos e de insetos que com certeza haveria em grande quantidade naquele lugar. Com grande esforço, tentou colocar-se de pé. Despencou novamente. A dor era insuportável, como se estivesse ferida por dentro. Apalpou-se e percebeu que estava se esvaindo em sangue. Não poderia perder tempo. Já que não conseguia ficar de pé, resolveu arrastar-se no meio do mato. Felizmente, ele a desamarrara. Assim, com grande dificuldade, gemendo e chorando, arranhando-se nas pedras e nos galhos caídos no chão, conseguiu aproximar-se da estrada. Ao ver o asfalto, muniu-se de coragem e, num esforço inaudito, colocou-se de pé, caminhando alguns passos, escorada nos troncos das árvores. Quando chegou ao acostamento, viu as luzes de um carro que se aproximava. Levantou o braço, gritando por socorro. Todavia, o esforço foi demais para ela. As forças lhe faltaram e não viu mais nada, mergulhando novamente na inconsciência. Despertou num leito de hospital. Olhou em torno e viu duas pessoas estranhas: um rapaz e uma moça. Tentou movimentar o braço e não conseguiu. Gemeu e, em seguida, viu o rosto de sua mãe, surpreso e aliviado, inclinado sobre ela:
- Oh! Minha filha, que bom que acordou! Como está se sentindo?
- O que aconteceu?
Os dois jovens se aproximaram do leito, satisfeitos e emocionados. A mãe respondeu, perguntando com suavidade:
- Você não se lembra?
Juliana fez um gesto negativo com a cabeça. - Você sofreu uma violência, minha filha, mas está tudo bem. Foi encontrada numa estrada por Leandro e Meire, que a socorreram trazendo para este hospital. Desde esse dia, eles têm sido incansáveis em nos ajudar. São grandes amigos nossos. Juliana olhou os dois jovens, agradecendo.
- Há quanto tempo?...
- Quinze dias, minha filha.
- Tudo isso? Por quê?
A mãe olhou para os jovens, indecisa. Não sabia se podia contar toda a verdade para a filha.
- Bem, minha querida, você estava machucada e passou por uma cirurgia. Entrou em coma e... Enfim, seja bem-vinda, minha filha!
- Estou começando a me lembrar. E meu carro?
- Não se preocupe com ele, Juliana. Isso é o de menos. A polícia está procurando o criminoso, mas até agora nada. Não existe pista alguma.
Meire aproximou-se, lembrando com carinho:
- Você terá tempo para saber de tudo, Juliana. Agora, seria melhor descansar um pouco. Está muito debilitada.
Os demais acompanhantes concordaram. Leandro, com senso prático lembrou:
- Vou avisar a enfermeira que Juliana acordou.
Ele apertou a campainha e, em seguida, uma enfermeira entrou no quarto.
- Chamaram?
- Sim, temos novidades. Veja! Juliana acordou! - disse a mãe, emocionada.
- Que bom! Como está, Juliana?
- Bem.
- Ótimo. Vou avisar o médico.
Quando uma enfermeira chegou para verificar a pressão e a temperatura da paciente, Juliana já estava dormindo de novo. O médico entrou no quarto, sorridente.
- Ora, então nossa Juliana acordou, dona Helena?
- É verdade, doutor Bruno. Conversou conosco, só que já caiu de novo no sono! - informou a mãe, lamentando.
- Não se preocupe, dona Helena, é natural que isso aconteça. Ela está muito fraca, sem energias. Esse fato, porém, denota que está se recuperando. Quando acordar, me chamem sem falta. Despediu-se. Após a saída do médico, Leandro, Meire e Helena lembraram que precisavam comunicar a novidade aos familiares, parentes e amigos. Helena telefonou para o marido, dando-lhe a boa-nova. Quinze minutos depois, Antero entra no quarto de hospital, ansioso. Cumprimenta os jovens, aproxima-se do leito onde Juliana ainda dorme e, passando a mão pelos cabelos da filha, pergunta para a esposa:
- Como ela está, Helena?
- Muito bem. Conversou conosco e agora está dormindo de novo, mas o doutor Bruno disse que é normal. Estamos esperando-a acordar.
Duas horas depois, Juliana desperta e logo vê o rosto do pai inclinado sobre ela.
- Papai...
- Minha filhinha! Que bom que você voltou para nós. Ela sorriu de leve, balançando a cabeça:
- Vocês não se livrarão de mim tão fácil.
Nesse momento, a porta abriu e o médico entrou. Tratava-se de um senhor de cabelos grisalhos, fisionomia simpática e olhos serenos.
- Ora, vejam! Resolveu acordar, não é? Seja bem-vinda ao nosso mundo, Juliana - brincou, já pegando o estetoscópio para examiná-la. - Podem dar licença?
Os demais saíram deixando-o a sós com a paciente.
- Meu nome é Bruno, Juliana. Você não me conhece, mas eu a conheço bem. Estivemos juntos todos estes dias.
- Como estou, doutor?
- Diga-me você. Como se sente?
- Acho que estou bem. A cabeça está um pouco confusa...
- E natural. Aos poucos voltará ao normal. Sente dor?
- Sim. Doutor, o que aconteceu comigo? Ninguém quis dizer nada.
O médico sentou-se na beirada da cama e explicou de maneira sucinta:
- Vou lhe contar a verdade, pois você irá se lembrar mesmo. Quando a trouxeram, seu estado era muito grave, Juliana. Você ficou muitas horas sem receber socorro. Tinha perdido muito sangue e seus sinais vitais estavam em franco declínio. Foi submetida a uma cirurgia reparadora.
- Cirurgia reparadora?
- Sim, você ficou bem machucada. Teve um problema após a cirurgia e entrou em estado de coma, ficando na Unidade de Terapia Intensiva por vários dias. Mas melhorou e foi trazida para o quarto, onde poderia ficar com a família. Em relação à cirurgia, você está bem, tenho-a examinado diariamente. Um pouco de dor é normal, especialmente quando quiser se levantar. Enfim, está em franca recuperação, especialmente agora que voltou à consciência. Mas, teremos tempo para conversar. Está com fome?
- Um pouco.
- Ótimo. Vai uma feijoada?
Ao ver a surpresa e o sorriso que aflorou no rosto dela, retificou:
- Estou brincando! Queria mesmo ver como fica sorrindo. Parabéns! Tem um sorriso lindo! Vou mandar trazer-lhe um caldo leve. Amanhã logo cedo estarei aqui. Até logo.
Antes que o médico saísse, uma cara diferente e gorda assomou à porta.
- Bom dia, doutor. Soube que a nossa paciente acordou e vim tomar-lhe o depoimento.
Assustada, Juliana repetiu:
- Depoimento?
Ao mesmo tempo, o médico recusou de maneira firme:
- Impossível, delegado. A minha paciente não está em condições de falar sobre o acontecido.
- Voltarei amanhã, então. Apavorada, Juliana perguntou ao médico:
- Por que depoimento?
- Você foi vítima de um estupro, roubaram seu carro, e a polícia precisa conhecer a sua versão dos fatos, como as coisas se passaram, já que não há ninguém de testemunha.
- É verdade. Não disse ao senhor que estou confusa?
- Isso passa. Fique certa, porém, que só falará quando achar que está preparada. Certo?
- Certo. Obrigada, doutor. Até amanhã, então.
- Até amanhã.


CAPÍTULO 22 - VOLTANDO À VIDA

"Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados." JESUS (MATEUS, 5: 5)

Com a mudança das condições da paciente, o médico aconselhou às pessoas que permaneciam mais com ela no hospital que relaxassem um pouco. Juliana estava bem e ele deixaria uma enfermeira atenta, assistindo-a. Desse modo, naquela noite, a paciente ficou algum tempo sozinha, aos cuidados da enfermeira que, a espaços regulares, vinha vê-la. Meire e Leandro tinham ido para a faculdade. Dona Helena aproveitou para ir descansar em casa, tomar um banho, fazer uma refeição e verificar como estavam as coisas, no que foi acompanhada pelo marido. Juliana cochilava quando a porta se abriu de mansinho. Um rapaz aproximou-se do leito sem fazer barulho. Era bonito, alto, tez morena. Juliana sentiu a presença de alguém e abriu os olhos.
- Minha querida, como está? Senti tanta saudade!
- Renato!
Só naquele momento ela lembrou-se do noivo. Meu Deus! E o nosso casamento? - pensou. Tudo lhe parecia tão distante! Começou a chorar. Sentia-se culpada por estar causando transtornos a ele. Afinal, tinham projetado o casamento havia meses. Como ficaria?
- Perdoe-me... - balbuciou.
- O que é isso, querida? Você não teve culpa!
- Se eu não tivesse ido àquela loja nada disso teria acontecido. E agora? Estávamos a poucos dias do nosso casamento! Os convites já haviam sido enviados. Como vai ser?
Ele afastou-se, buscando o vão da janela, onde ficou olhando para fora, fixando o vazio.
- Você ouviu minha pergunta? - tornou a indagar.
Com expressão tensa, denotando certo constrangimento, ele respondeu a contragosto:
- Infelizmente, não vamos mais nos casar, Juliana. Não agora. Lembrando-se da sua situação, ela questionou:
- O que aconteceu naquela noite mudou alguma coisa para você? Não quer mais se casar comigo, é isso?
Vendo-lhe a expressão de sofrimento no rosto, ele contemporizou:
- Não, querida, não é isso. E que na data prevista não dará mais tempo. Mesmo porque já avisamos os convidados de que não haveria casamento, isto é, nem sabíamos se você... Enfim...
- Se eu sobreviveria?
- Juliana, ninguém sabia o que ia acontecer. Você estava em coma, os médicos não sabiam se ia voltar à consciência. E se isso acontecesse, quando poderia ocorrer. Entende?
Com um gesto de cabeça, Juliana demonstrou que compreendia. No entanto, ela notou uma frieza tão grande no noivo que ficou decepcionada. Sempre carinhoso, Renato não a tinha beijado, nem lhe dirigira aquelas lindas palavras de amor que dizia quando se encontravam. Algo tinha mudado. Munindo-se de coragem, Juliana respirou fundo e disse:
- Quero que saiba, Renato, que não é obrigado a casar-se comigo. Compreendo que a situação mudou desde aquele dia em que conversamos pela última vez, lembra-se? Para mim o tempo não passou e parece que aconteceu ainda ontem.
- Porque você estava em coma e é natural que se sinta assim - interrompeu-a ele.
- É verdade. Lembro-me como se fosse hoje. Eu estava num engarrafamento e sentia-me tão feliz que nada daquilo me incomodava, a irritação dos motoristas, as buzinas estridentes, os palavrões, nada. Liguei para você, conversamos. Você disse que me amava loucamente e que não via a hora de estarmos juntos para sempre.
O rapaz olhou para a noiva. Ela parecia tão frágil, tão indefesa naquela cama de hospital, que ele se emocionou.
- Lembro-me sempre desse dia. Nada mudou entre nós, querida. O casamento será adiado por algum tempo até você se recuperar. Só isso. Não se preocupe.
Juliana permaneceu calada, pensativa. Depois perguntou num fio de voz:
- Você ainda me ama?
Renato, que parecia alheio, levou um susto.
- Claro que eu a amo. Você tem alguma dúvida?
Juliana sorriu levemente e não respondeu. O rapaz agitou-se, incomodado, e apressou-se em se despedir:
- Querida, não quero cansá-la. Voltarei amanhã quando estiver melhor. Ah, meus pais mandaram-lhe um abraço e lhe desejam feliz recuperação. Amanhã eles virão lhe fazer uma visita. Boa noite!
- Boa noite!
O noivo saiu e Juliana não conteve as lágrimas. Estava convicta de que Renato não a amava mais. Lembrou-se do relacionamento de ambos antes do acontecido, do carinho, das atenções, do amor sempre presente. Agora, Renato estava distante, frio e alheio. Como quinze dias poderiam ter feito tanta diferença? A enfermeira assomou à porta e encontrou-a em prantos. Assustou-se.
- O que houve, Juliana? Pensei que fosse ficar feliz com a visita do noivo!
- Sinto que o mundo está ruindo à minha volta - murmurou. Havia uma dor tão profunda na sua voz e tanta tristeza e desesperança no olhar, que a enfermeira se comoveu.
- Não chore, Juliana. Você está bem, todos estão felizes. Se você teve uma briguinha com o noivo, isso acontece. Logo passa.
- Ele não me ama mais. Ele não me ama mais - repetia ela, mais para si mesma. Juliana chorava copiosamente e nada conseguia diminuir seu sofrimento. Diante do descontrole da paciente, a enfermeira rapidamente consultou o médico, que mandou aplicar-lhe um sedativo. Após a injeção, ela mergulhou novamente no sono.
No dia seguinte, o movimento de visitantes era intenso: familiares, amigos, colegas de serviço, todos queriam vê-la. Quando o médico chegou, o tumulto era tão grande que ele foi taxativo. Só os acompanhantes permaneceriam no quarto. Juliana precisava mais do que nunca de tranqüilidade para se recuperar. Os pais de Renato também compareceram trazendo um lindo ramalhete de flores. Helena e Antero levaram o casal para uma sala ali perto, pequena e aconchegante, onde poderiam conversar. Justificaram a ausência do filho, alegando que ele tinha um projeto urgente para entregar, e cujo prazo estava se esgotando; que ele viria assim que concluísse o trabalho. Ansiosos, queriam resolver logo o problema do casamento, mas os pais de Juliana se mantiveram discretos, cordiais e ponderados. Helena e Antero, que tinham sido informados, pela enfermeira, da crise que Juliana teve depois da visita do noivo, acharam melhor dar tempo ao tempo. Para eles, a única coisa que contava era o bem-estar da filha. O resto era secundário. Assim, Helena ponderou:
-Temos de deixar que eles resolvam. Não devemos interferir. E Juliana, no momento, ainda não está em condições de decidir nada. Vamos aguardar.
O casal trocou um olhar, concordando. Logo em seguida despediram-se, para alívio de Helena e Antero. O delegado também compareceu. Queria falar com Juliana. Helena imediatamente se posicionou ao lado da filha, para defendê-la:
- Minha filha precisa de sossego, delegado. Não pode pretender incomodá-la agora, enferma como está.
Juliana interferiu, concordando:
- Pode deixar, mamãe. Conversarei com ele. Quero saber o que tem a me dizer. Se precisar, chamarei.
Assim que ficaram a sós, o delegado puxou uma cadeira e sentou-se ao lado do leito.
- Todos me chamam de Gonzaga. Não se preocupe, Juliana. Só pretendo fazer-lhe algumas perguntas.
- Pode falar, doutor Gonzaga.
- Conte-me como tudo aconteceu. Juliana relatou como tinha resolvido fazer compras numa loja e resolvera estacionar o carro na avenida próxima, cortando caminho pela pequena rua transversal.
- Sei qual é. Você tinha visto o rapaz que a abordou?
- Não. Só quando ele me agarrou pelas costas e tapou minha boca.
Nesse instante, Juliana começou a ficar agitada e o delegado acalmou-a:
- Fique tranqüila. Tudo já passou. Como era o rapaz? Conseguiu vê-lo bem?
- Não naquele momento. Estava escuro e ele se mantinha às minhas costas. Só pude vê-lo quando entramos no carro.
- Descreva-me. Como era ele?
- Bem, ele era um rapaz de boa aparência, embora malvestido e sujo. Pele clara, cabelos loiros penteados para cima, espetados. Olhos claros, verdes talvez.
- Altura?
- Talvez um metro e oitenta, mais ou menos.
- Algum detalhe especial que tenha chamado sua atenção?
- Como assim, delegado?
- Um tique nervoso, uma mancha na pele, uma marca de nascença. Essas coisas são importantes para identificar o criminoso.
- Nada. Não me lembro de nada.
- Está bem. Se lembrar, me avise. Quando estiver melhor, marcarei um horário para tomar seu depoimento. Obrigado, moça. Fico feliz que esteja se recuperando. Até logo.
Alguns dias depois, Juliana teve alta e pôde retornar ao lar, cercada pelo carinho dos familiares e amigos. Cheios de alegria, entraram em casa; ao abrir a porta do seu quarto, Juliana chorou de emoção. Ainda precisava de cuidados, de repouso e de medicação calmante para dormir, mas o fato de estar no seu ambiente dava-lhe mais segurança. As imagens do acontecido assomavam-lhe sempre à memória e, nesses momentos, ela entrava em crise; agitava-se e gritava, em profundo desespero. Não raro tinha sono tumultuado e acordava em pânico, chorando e gritando, com os olhos esgazeados. A mãe corria para perto dela e abraçava-a, fazendo com que voltasse à realidade.
- Calma, filhinha, já passou. Você está aqui em casa, conosco. Calma.
Aos poucos, ela serenava, e voltava a dormir, depois de nova dose de remédio. Com o passar dos dias, as crises foram se espaçando e Juliana já conseguia até sorrir. Na semana seguinte, tinha horário marcado com o médico. Compareceu ao consultório. Ele a examinou, cuidadosamente. Depois, fez algumas perguntas.
- Como está se sentindo, Juliana?
- Bem, doutor. As dores diminuíram e estou andando bem melhor.
- E a menstruação?
- Ainda não veio, doutor.
- É normal. Sempre que o organismo é agredido, ou sofre um abalo, ocorre um descontrole nas regras. E, no seu caso, além da violência, você foi submetida a uma cirurgia.
Conversaram mais um pouco e marcaram o retorno dela para a semana seguinte. Na despedida, o médico, lembrou:
- Se houver mudanças, me avise. E como ficou com a polícia?
- Irei prestar depoimento amanhã cedo.
- Muito bem. Mantenha-se equilibrada, serena. E importante tomar um tranqüilizante antes. Se precisar de mim, estarei à sua disposição, Juliana. Passe bem. Até logo, dona Helena.
Juliana saiu do consultório médico e, caminhando na rua, uma desagradável sensação de que estava esquecendo algo importante vinha-lhe à mente.
- O que foi, minha filha? Parece tensa.
- Nada, mamãe. Tenho a sensação de que preciso me lembrar de algo, e não consigo.
- Qualquer hora você acabará se lembrando. Esqueça. A recordação virá quando menos esperar. Esta é a primeira vez que você sai de casa, filha. Vamos a um shopping! Veremos lojas bonitas e tomaremos um lanche, como você sempre gostou de fazer.
Juliana concordou. Mãe e filha passaram horas agradáveis conversando e se divertindo, esquecendo um pouco dos problemas. Helena sabia que a filha estava tensa com a ida à delegacia no dia seguinte. Naquela noite, Juliana demorou a conciliar o sono. Sentia que algo estava lhe escapando. Sempre aquela incômoda sensação de uma lembrança que foge. Afinal dormiu, mas teve sono agitado. Despertou no meio da noite em pânico, banhada em suor.
- Calma, filhinha, isso passa. Estou aqui com você - disse o pai, abraçando-a com carinho.
- Sempre a mesma cena, papai. Aquele homem horrível me arrastando para o meio do mato. Procuro esquecer, mas não consigo.
- Não seria melhor telefonar para o delegado avisando que você não pode comparecer, filha?
Juliana pensou um pouco e resolveu:
- Não, papai. Tenho de enfrentar meus fantasmas. Não posso continuar fugindo do problema. Acho que vou aceitar a ajuda daquele psicólogo que o doutor Bruno indicou.
- Ótimo. Tenho certeza de que lhe fará bem, filha. Agora durma um pouco. Ficarei aqui a seu lado.
Na manhã seguinte, Juliana se dirigiu à delegacia junto com seus pais. O delegado a fez entrar, com gentileza. Depois, solicitou a um investigador que ali estava:
- Tadeu, sirva um café para o casal.
Juliana sentou-se. Nunca tinha entrado numa delegacia. Viu um rapaz que estava trabalhando num computador e que continuou na sala. Sentiu-se mal com a presença dele. O delegado Gonzaga sentou-se do outro lado da mesa, sorridente.
- Bem, vamos começar. Você vai repetir aqui o que me disse no hospital, está bem Juliana? Pode começar.
- Ele vai ficar aqui? - questionou, olhando constrangida para o rapaz, que continuava trabalhando.
- É preciso, Juliana. Ele vai anotar tudo o que você disser. Depois, você vai ler o depoimento e assinar, se estiver tudo conforme. Certo? Muito bem. Comece do começo. Terminava o expediente na empresa. O que você fez?
Juliana começou a contar e envolveu-se com o relato, esquecendo-se de que havia uma terceira pessoa na sala.
- Quando parou na avenida, notou alguém por perto?
- Várias pessoas, o trânsito era intenso, mas não vi ninguém em especial.
- Continue. Você entrou na ruela e...
- Senti um arrepio de medo. Quis retroceder, mas decidi prosseguir.
- Interessante. Já tive ocasião de perceber esse fato inúmeras vezes. É como se a pessoa fosse alertada de algum perigo iminente. Se déssemos mais atenção a esses avisos, nos livraríamos de muitos acontecimentos funestos.
Juliana fitou o delegado sem saber o que dizer. Ele tinha razão. Se ela tivesse ouvido sua voz interior, nada teria acontecido.
- Desculpe-me a interrupção. Continue, Juliana. Você prosseguiu...
- Sim. De repente, senti um braço forte me agarrando enquanto a outra mão me tapava a boca.
Ela começou a ficar agitada, nervosa. Gonzaga percebeu.
- Relaxe, Juliana. Aceita uma água? Um café? Quer parar um pouco? Não temos pressa. - Aceito uma água, por favor. Não, não quero parar. Quanto antes acabar, melhor.
Discretamente, o rapaz do computador levantou-se e trouxe um copo com água, colocando-o à frente dela. Juliana tomou alguns goles, respirou fundo e disse para o delegado:
- Podemos continuar.
- Ótimo. Vamos em frente.
Aos poucos, ela foi relatando tudo como tinha acontecido. O trajeto no meio do trânsito intenso, suas súplicas para que ele a deixasse ir embora, a parada na estrada em local isolado perto de uma mata. Contou como ele a arrastara pelo mato, afastando-se da estrada. Como a espancara porque não parava de gritar. Parou de falar por alguns momentos, concluindo:
- Depois não me lembro de mais nada.
- Você foi estuprada. Não se lembra de nada?
- Não. Devo ter desmaiado. Ele batia minha cabeça no chão, repetidas vezes, me dava socos no rosto...
- Então você não viu mais nada. E depois?
- Acordei sem ter noção de onde estava, o que tinha acontecido e quanto tempo se passara. Entrei em pânico. Sentia dores lancinantes no corpo todo, especialmente na região de baixo. Percebi que estava sangrando e entendi que precisava buscar ajuda. Ele não estava mais por ali, tudo estava quieto. Só ouvia o barulho dos animais noturnos, o que me deixava apavorada.
Contou como tentou se levantar várias vezes, mas as dores eram insuportáveis e não conseguia. Então, resolveu se arrastar, se ferindo em galhos, pedras e asperezas do solo, até que chegou à estrada. Vendo as luzes de um veículo que se aproximava, levantou-se com esforço inaudito e ergueu um dos braços. Em seguida, perdeu os sentidos de novo.
- Daí em diante eu já conheço os fatos. Leandro e Meire vinham de uma festa em cidade próxima e notaram alguém que pedia socorro. Pararam e, percebendo que seu estado era grave, chamaram a ambulância. Você teve sorte, garota, aquela é uma estrada secundária, de pouco movimento, e poderia levar muito tempo antes que alguém transitasse por ali. Sem contar que muitas pessoas nem param, achando melhor não se envolver.
O delegado fez uma pausa, olhando a moça ali à sua frente, depois disse:
- Bem, por hoje é só. Sei que foi muito difícil para você reviver os fatos, mas era absolutamente necessário, Juliana. Peço-lhe desculpas, mas faz parte do meu trabalho.
- Foi difícil, sim, doutor Gonzaga, mas agora me sinto mais aliviada. Como estão as investigações? O senhor tem idéia de quem possa ser o criminoso?- Infelizmente não, Juliana. Temos alguns palpites, mas nada de concreto. Se você pudesse se lembrar de alguma coisa que nos ajudasse, algo de diferente nesse homem, uma peça de roupa, uma tatuagem, uma marca, qualquer coisa serve.
Ao ouvir essas palavras, Juliana finalmente se lembrou:
- Meu Deus! Como pude me esquecer? Sim, ele tinha uma tatuagem no ombro direito!
Era isso o que eu estava tentando recordar e não conseguia. Ele estava com uma camiseta regata preta sob uma jaqueta jeans velha e suja, sem mangas, como um colete; então pude ver a tatuagem. Não era grande, no alto do braço.
- Como era essa tatuagem?
- Parece-me que era um animal. Talvez um crocodilo ou um dragão. Não posso afirmar com certeza. Não estava em condições de prestar atenção.
- Entendo. Muito bem, Juliana. Esse detalhe vai poder nos ajudar bastante, tenha certeza. Você está liberada agora. Qualquer notícia, eu volto a me comunicar com você.
- Obrigado. Tenha um bom dia.
Na sala de espera, o delegado declarou para o casal que aguardava impaciente, enquanto se despedia:
- Tivemos uma manhã produtiva. Juliana lembrou-se de um aspecto importante.
Obrigado. Se tiver notícias, entrarei em contato.
Juliana voltou para casa mais tranqüila e bem mais aliviada.


CAPÍTULO 23 - TOMANDO DECISÕES

"Em que momento a alma se une ao corpo?" "A união começa na concepção, mas só se completa no instante do nascimento. No momento da concepção, o Espírito designado para habitar determinado corpo se liga a ele por um laço fluídico e vai aumentando essa ligação cada vez mais, até o instante do nascimento da criança. O grito que sai da criança anuncia que ela se encontra entre os vivos e servidores de Deus."
(O LIVRO DOS ESPÍRITOS, ALLAN KARDEC, QUESTÃO 344)

Aos poucos, Juliana foi voltando à sua rotina. Recomeçou a trabalhar, sair de casa, fazer compras, ver as amigas e, especialmente, a encontrar-se com o noivo. Pelo visto, tudo parecia ter voltado ao normal. Todavia, algo dentro dela mudara. Não sentia mais a mesma satisfação nas coisas que fazia antes. Quanto a Renato, embora continuasse a afirmar que a amava, o relacionamento entre eles era morno, para não dizer frio. Ele evitava ficar a sós com Juliana, procurando estar sempre no meio de pessoas, se cercando de gente. Nova data fora marcada para o casamento, que se realizaria dentro de dois meses. As famílias estavam felizes, esmerando-se em organizar os preparativos, dos quais os noivos não participavam. Juliana, intimamente, sentia que o casamento não se realizaria. Fazia algum tempo que vinha experimentando estranhas sensações. Sentia-se irritada, nervosa; diziam-lhe que era a falta da menstruação, que ainda não viera, porém que isso se resolveria em pouco tempo. Certo dia, Juliana passou mal na empresa, perdeu os sentidos e caiu no chão. Assustada, resolveu ir ao médico. Telefonou, e como era uma emergência, a secretária encaixou-a entre as consultas marcadas para aquele mesmo dia. Quando ela entrou na sala, o médico a cumprimentou sorridente:
- Boa tarde, Juliana! Que prazer revê-la!
- Boa tarde, doutor Bruno.
- Sente-se, Juliana. Como tem passado? Alguma novidade? Os olhos da jovem se encheram de lágrimas, que não chegaram a cair.
- Não sei o que está acontecendo comigo, doutor Bruno. Ando nervosa, irritada, descontente e sinto algumas coisas estranhas. Hoje, pela manhã, tive um mal-estar no serviço e cheguei a desmaiar! O que pode ser isso, doutor?
O médico acalmou-a com sua voz serena:
- Fique tranqüila. Vou examiná-la.
Delicadamente, fez com que a paciente se deitasse na mesa de exames clínicos e começou a examiná-la. Vez por outra fazia alguma pergunta, que ela respondia.
- Está se alimentando direito, Juliana?
- Não, doutor. Não consigo comer nada. Se insisto, tenho até náuseas.
- Tem dormido bem?
- Muito bem. Durmo até demais. Tenho enfrentado dificuldade para sair da cama e ir trabalhar de manhã.
- Como está a urina?
- Normal.
Quando terminou o exame, ela indagou:
- E então, doutor?
- Aparentemente, você está saudável. Deve ter tido alguma queda de pressão em virtude do calor excessivo que tem feito nesses últimos dias. Vou pedir alguns exames de sangue e de urina. Quando estiverem prontos, retorne.
Juliana, ainda não satisfeita, voltou a inquirir o médico:
- O senhor acha que eu estou doente, doutor?- Não, Juliana, ao contrário. Acho que você está bem saudável.
- Então, por que esse mal-estar que venho sentindo? O profissional fitou-a sério, e depois lhe disse:
- Juliana, gosto de você como se fosse uma filha, a filha que não tive. Durante aquele período passado no hospital, afeiçoei-me a você.
- Obrigada, doutor. Mas noto, pela sua expressão, que o senhor está analisando se me deve contar a verdade. Pode falar que vou saber entender e aceitar, doutor.
- Juliana, não gostaria de afligi-la sem motivo. Por isso solicitei os exames. Vamos aguardar.
Percebendo que estava certa, que o médico estava escondendo alguma coisa, reagiu enérgica:
- Não, doutor. Quero saber agora. O que está acontecendo comigo? Não sairei daqui enquanto não souber a verdade.
Ele respirou fundo, olhou-a fixamente e falou:
- Você está grávida.
Olhos arregalados, boca aberta, Juliana julgou não ter entendido.
- O que disse, doutor?
- Que você está esperando uma criança, Juliana.
- Não pode ser! Isso é alguma brincadeira de mau gosto?
- Acha que eu brincaria com você? Por isso pedi os exames, que vão confirmar meu diagnóstico.
Juliana começou a chorar, desesperada:
- Mas o senhor disse que minha menstruação não tinha vindo em virtude da cirurgia e de tudo o mais!
- Sim, e era verdade. Porém, suas regras já deveriam ter vindo. Juliana, procure manter a calma, ter um bebê não é o fim do mundo.
- Meu Deus! Doutor, o que eu faço? Meu casamento está marcado para breve, os preparativos sendo feitos. Agora, essa bomba? Como Deus foi fazer isso comigo?
Com o corpo todo a tremer, demonstrava um desespero enorme.
- Parece que minha cabeça vai explodir, doutor. O que vai ser da minha vida agora? Temo enlouquecer. De um tempo para cá, sinto que o mundo está desabando sobre mim.
Em vista do seu estado emocional, o médico ministrou-lhe um calmante. Depois, sentou-se na frente dela e, tomando suas mãos nas dele, considerou com imensa ternura:
- Juliana, minha filha, sei que foi um golpe muito forte, especialmente depois de tudo o que você passou. Mas, veja! Para tudo existe uma solução! Pode ser que seu noivo aceite essa criança...
- Conheço Renato, doutor. Não aceitará.
- Bem, existe uma saída que a lei lhe oferece. Quando a gestação é oriunda de um estupro, pode-se interromper a gravidez.
- Fora de cogitação, doutor. Minha consciência nunca aceitou o aborto. Tenho respeito demais pela vida para tomar tal atitude.
O médico sorriu com os olhos úmidos de emoção:
- Sinto um profundo respeito por você, Juliana, e suas palavras só fizeram aumentar minha admiração por sua pessoa.
Ela levantou os olhos vermelhos de chorar e a expressão era de uma imensa dor.
- Agradeço-lhe. Mas isso não resolve o meu problema, doutor.
- Eu sei e compreendo o que está sentindo. Aconselho-a a voltar para casa e refletir bem no que quer fazer. Coloque seus pais a par do que está acontecendo. Seja qual for sua decisão, terá de ter o apoio deles. Conte comigo em qualquer circunstância. Está bem?
Despediram-se com um grande abraço. Antes de Juliana sair, ele mostrou preocupação.
- Você veio sozinha? Quer que minha secretária a leve em casa? Não pode dirigir neste estado.
- Não, doutor. Já estou bem, pode crer. Até logo.
Saindo do consultório, Juliana pensou que teria de enfrentar momentos difíceis. O primeiro, seria contar a seus pais. Ao entrar em casa, a mãe estranhou ao vê-la chegar tão cedo do trabalho, ao que ela deu uma desculpa, alegando que estava com dor de cabeça e saíra antes do horário.
- Vou descansar um pouco, mamãe. Quando o papai chegar, me chame, por favor.
- Certo. Então, vou preparar o jantar mais cedo.
Juliana fechou-se em seu quarto, jogou-se na cama e cobriu a cabeça com a colcha. Ali, quietinha, chorou bastante. Quando Helena foi avisar que o jantar estava na mesa, estranhou vê-la com a cabeça coberta com o calor que estava fazendo. Não fez comentários, entendendo que alguma coisa estava acontecendo. Juliana beijou o pai e sentou-se à mesa. O ambiente da sua casa, que sempre fora alegre e descontraído, tornara-se pesado e triste. Helena notou que a filha mal tocara na comida, mas não disse nada. Quando terminaram a refeição, foram para a sala, como de hábito. Antes que o pai ligasse a televisão, Juliana informou, reunindo as forças:
- Preciso conversar com vocês dois.
- Sim, filha, pode falar. Seja o que for, sabe que pode contar comigo e com sua mãe - disse o pai, preocupado.
- Estou grávida.
- O quê?!... - disseram ambos ao mesmo tempo.
- Sinto-me desesperada! Nem por um momento pensei nessa possibilidade.
- Esse filho é do Renato? - gaguejou o pai.
- Claro que não, papai. Se fosse, não haveria problema. Renato e eu não tivemos relacionamento algum nesse período.
- Então...
- ... É um filho daquele miserável que estou esperando. Entendem meu desespero? O que será de mim agora? Minha vida está destruída.
Cobriu o rosto com as mãos a chorar convulsivamente. Os pais a abraçaram, também em lágrimas.
- Tem certeza, minha filha? - indagou a mãe.
- Hoje tive um desmaio no serviço, e fui ao médico. Doutor Bruno mandou fazer alguns exames, mas percebi que ele sabia o que estava acontecendo comigo. Apertei-o, ele contou-me a verdade.
- Filha, ele pode ter-se enganado. Não seria o primeiro médico que erra. Olhe, acalme-se. Amanhã logo cedo vamos ao laboratório. Quem sabe tudo não passa de um engano?
- Eu "sinto" que estou grávida, mamãe. Helena, que tinha feito uma pausa, prosseguiu:
- E se estiver? Você teve relacionamento com Renato antes, não foi? Então, mesmo que esteja grávida, não se desespere. Pode ser que a criança seja do seu noivo e não daquele criminoso. Faremos um teste de DNA e tudo será esclarecido. Vamos! Não chore, minha querida. Relaxe. Vou buscar o remédio para que você possa dormir bem. Precisa descansar.
Com as ponderações da mãe, Juliana aos poucos se acalmou. Essa criança pode ser filho de Renato! Uma réstia de esperança surgiu em seu íntimo. Nem tudo estava perdido. Na manhã seguinte, Helena e a filha levantaram bem cedo e foram ao laboratório. A coleta do sangue teria de ser feita em jejum. Depois, como Juliana estivesse muito combalida, não foi trabalhar. Passado o período de espera, ficaram prontos os exames; elas pegaram o resultado no laboratório e dirigiram-se ao consultório médico. Como o doutor Bruno previra, o diagnóstico se confirmou. Juliana estava grávida. Mãe e filha conversaram com o médico sobre o desejo de fazer o teste de DNA. A dificuldade é que Juliana não queria que o noivo ficasse sabendo.
- Fazer o teste sem o conhecimento de Renato não é difícil. Pode ser feito com um fio de cabelo, um pedaço de unha etc. O problema é que, se ele souber que você está grávida, também ficará em dúvida sobre a paternidade da criança, Juliana. Já pensou nisso? Você terá de contar a ele! Não vejo outra saída.
- Não posso, doutor. Não tenho coragem - disse a jovem, nervosa, roendo as unhas.
Com serenidade, mas firme, ele insistiu:
- Você não tem alternativa, Juliana. Mesmo porque, se resolver abortar, o tempo é curto.
- Isso eu não farei, doutor - reafirmou, decidida.
- Você poderá mudar de idéia. Se o filho não for de Renato, provavelmente ele exigirá que você tome essa decisão drástica. Por enquanto, fale com ele e explique a situação. Depois, voltaremos a conversar.
Despediram-se. Juliana estava com o coração opresso. Como contar seu problema ao noivo? Entendeu, porém, que o médico tinha razão. Renato precisava saber, tinha o direito de saber. E se era necessário tomar uma decisão, que fosse o mais rápido possível. Entrando em casa, enquanto a mãe se dirigiu à cozinha para preparar o almoço, Juliana pegou o celular e ligou para o noivo.
- Renato, eu preciso falar com você.
- Olá, querida! Precisa falar comigo? Está bem. Hoje à noite passarei na sua casa e jantarei com vocês. Depois, vamos ao cinema.
- Cinema? - ela estranhou.
- E. Lembra-se de que tínhamos combinado de assistir "aquele" filme?
- Ah! Não vai dar, Renato. Não estou com cabeça para isso. E também não posso esperar até a noite para falar com você. E urgente.
- Bem, se é tão urgente assim - disse, olhando para o relógio de pulso -, está quase na hora do almoço. Podemos fazer a refeição juntos. Que tal aquele restaurante pequeno e tranqüilo de sempre?
- Certo. São onze horas. Esperarei você lá às onze e trinta. Está bem para você?
- Combinado. Mas estou preocupado, Juliana. Não quer mesmo me adiantar nada?
- Não. Até lá.
Ainda era cedo, contudo Juliana dirigiu-se para o restaurante. Escolheu uma mesa e acomodou-se. Pediu um suco e ficou esperando. Um pouco depois da hora combinada, Renato chegou.
- Desculpe-me, querida. Estava atendendo a um cliente e não podia sair. Estou fazendo um projeto para ele e precisávamos combinar algumas adaptações.
Parou de falar e notou que a noiva não parecia bem. Segurou a mão dela sobre a mesa e percebeu que estava trêmula.
- Juliana, você está pálida. Aconteceu alguma coisa? Essa pressa em falar comigo... tem relação com nosso casamento?
- Diz respeito ao casamento, sim. Preciso falar...
- Depois, querida - interrompeu-a. - Antes, vamos almoçar. Estava mesmo com fome.
Renato chamou o garçom e fez os pedidos rapidamente. Conheciam o restaurante e tinham já suas preferências. Depois, conversaram sobre amenidades. Tentando arrancar-lhe alguma coisa, ele perguntou como estava o serviço dela, como iam os preparativos para o casamento, se estava tudo certo. Ela respondeu dizendo que o serviço ia bem e que, quanto aos preparativos para o casamento, também acreditava que estavam caminhando a contento, pelo que sua mãe dizia. Falaram sobre o tempo e sobre muitas outras coisas. Nada, porém, que lhe desse alguma pista. Quando o garçom trouxe os pratos, foi um alívio. Renato, como sempre, almoçou com satisfação, enquanto ela comeu pouco e com dificuldade. Após terminarem, o garçom tirou os pratos, trouxe o café e era hora de enfrentar o assunto que os tinha levado até ali.
- Bem, Juliana, diga o que a preocupa. Noto você tensa, comeu pouco e está trêmula. Aconteceu alguma coisa?
Juliana pretendia fazer uma introdução, ensaiara algumas palavras enquanto esperava por ele, mas quando percebeu já tinha falado:
- Estou grávida.
Renato, que levava a xícara de café à boca, ficou parado, olhando para ela, incapaz de falar.
- Você ouviu? Estou grávida, Renato!
Ele pousou lentamente a xícara no pires, como se estivesse refletindo.
- Sim, ouvi. Mas, nós não...
- Esse é exatamente o problema. Tivemos relações antes do que me aconteceu.
- Mas esse filho pode não ser meu, Juliana!
- E verdade. Mas também pode ser seu - respondeu ela, jogando a dúvida no ar.
- O que você sugere?
- Que façamos um teste de DNA. É o único meio de podermos ter certeza.
- Está bem. Concordo. Mas, e se o filho não for meu? Você fará o aborto?
Juliana respirou fundo e respondeu:
- Uma coisa de cada vez. Veremos isso depois. Primeiro, o teste de paternidade. Vou marcar e depois aviso você.
Juliana ficou olhando para o noivo e ele para ela. Em nenhum momento ela notou que Renato estivesse preocupado com a situação dela. Só pensava nele.
- Não tem nada para me dizer, Renato? - perguntou, tentando conseguir uma reação dele.
- Não sei o que lhe dizer, Juliana. Estou em choque.
- Imagino. Eu também fiquei. Bem, tenho de ir agora. Até logo!
Ela saiu, deixando sentado no mesmo lugar o noivo, que fora incapaz de dizer-lhe uma palavra de carinho, de consolo, de ajuda. Naquele momento, tentando conter as lágrimas, Juliana chegou a desejar que o filho não fosse dele. Não desejava um pai tão insensível e egoísta para seu filho.


CAPÍTULO 24 - ENFRENTANDO AS ADVERSIDADES

"A liberdade de consciência é uma conseqüência da de pensar?" "A consciência é um pensamento íntimo que pertence ao homem, como todos os outros pensamentos."
(O LIVRO DOS ESPÍRITOS, ALLAN KARDEC, QUESTÃO 835)

Algum tempo depois, ficou pronto o exame de comprovação de paternidade. Apesar de extremamente ansiosa, Juliana não quis ver o resultado no laboratório. Controlou-se e, com o envelope a queimar-lhe as mãos, caminhou até uma praça, ali perto, escolheu um banco, onde se sentou automaticamente. O medo era tanto que seu corpo todo tremia. Quebrou o lacre do envelope e retirou as folhas cujas letras pareciam dançar diante de seus olhos. Concentrou-se, respirou fundo e leu o resultado. Juliana ficou parada, em estado de choque, incapaz de ter uma reação. O teste só veio provar o que ela temia: o filho não era de Renato. Então, a criança era mesmo do desconhecido! Sem dúvida tinha refletido nessa possibilidade, durante noites e noites em que não dormira pensando no assunto, mas ver confirmadas suas suspeitas era terrível, mais do que isso, era monstruoso. Além de ter sofrido uma violência, carregar o resultado dessa violência parecia-lhe desumano. Onde estava Deus quando permitiu que isso acontecesse?, pensava desesperada. Naquele momento, mais do que nunca precisava de alguém a seu lado, e estava sozinha, entregue a si mesma. Na verdade, Renato quis acompanhá-la, ansioso pelo resultado, no entanto ela não permitiu. Seus pais também se dispuseram a ir junto, mas Juliana não aceitou. Queria estar a sós quando visse o resultado do teste. Não gostava de expor suas emoções diante dos outros, especialmente do noivo. Agora, tinha dúvidas se agira corretamente. Sentia necessidade de alguém a seu lado que a abraçasse, que a consolasse, que a amparasse nesse momento difícil, e não havia ninguém. O que fazer? Não tinha ânimo para sair do lugar. Olhar perdido ao longe, fisionomia atormentada, ela continuou sentada no banco da praça durante horas. De repente, deu-se conta de que o celular estava tocando. Abriu a bolsa e atendeu. Era Renato.
- Juliana? Onde você está? Liguei várias vezes, mas você não atendeu!
- Oi, Renato. Não ouvi o telefone tocar.
- Pegou o resultado do teste?
- Peguei.
- E então? O que deu? Fala, Juliana, estou ansioso!
- Ainda não abri - mentiu, tentando ganhar tempo.
- Não acredito!
- Está lacrado. Vou ao médico. Lá ficarei sabendo.
O rapaz estranhou a reação da noiva. Afinal, mais do que ninguém, ela tinha pressa em conhecer o resultado. Ele ficou preocupado; notara a voz do outro lado estranha, diferente. Porém, naquele momento, não podia fazer nada, a não ser concordar. Respirou fundo tentando conter a irritação e a impaciência:
- Está bem, Juliana. Quando souber o resultado da paternidade, me avise. Afinal, sou parte interessada!
Juliana desligou o telefone sem despedir-se do noivo. Tinha tomado uma decisão. Aquilo que afirmara como desculpa lhe parecia a melhor solução: sim, iria ao médico. O consultório distava poucas quadras dali, e o doutor Bruno era a única pessoa que poderia ajudá-la naquele momento. Como um autômato dirigiu-se à clínica. Não se deu conta do trajeto, nem de como atravessou as ruas. Chegando ao endereço, subiu até o quinto andar, caminhou até a sala do médico, abriu a porta e sentou-se. A secretária estranhou o comportamento da recém-chegada. Geralmente afável, naquele dia Juliana nem sequer a cumprimentou. Não tinha hora marcada nem perguntou se o médico podia atender; apenas tinha se acomodado sem dizer uma palavra, e continuava ali, alheia a tudo. A secretária, sensível e delicada, que já tinha visto de tudo naquele consultório, percebeu que a moça estava emocionalmente perturbada. Conhecia sua história, os problemas que tinha enfrentado e achou que ela estava precisando de tempo para se recuperar de alguma coisa. Uma hora depois, o médico chamou a assistente.
- E então? Parece que as consultas terminaram por hoje.
- Sim, doutor. Porém, tem uma moça aguardando. Parece que não está nada bem. É a Juliana.
O médico demonstrou surpresa no olhar.
- Juliana? Faça-a entrar!
A assistente saiu e, logo em seguida, Juliana entrou. Bruno tinha se levantado para cumprimentá-la, mas ela apenas estendeu o braço e entregou-lhe o envelope. Ao ler o resultado, o médico entendeu o estado emocional de sua paciente.
- Seu noivo já sabe?
- Não. Ainda hoje vou romper o nosso compromisso. Não tenho escolha.
- Não faça isso, Juliana. Dê-lhe uma chance de mostrar o que pensa. Pode ser que você se engane. Quem sabe? Ele pode surpreendê-la! Já tive ocasião de ver casos cujos resultados pareciam certos e que as pessoas se equivocaram em seus julgamentos - ponderou o médico.
Juliana abriu um sorriso triste e melancólico.
- Não no caso de Renato. Conheço-o muito bem para poder me enganar. Mas está bem, doutor, já que insiste. Vou tentar.
Em torno das vinte horas, Renato chegou. Vinha tenso, angustiado. Cumprimentou Antero e Helena, trocaram algumas palavras cordiais. Logo em seguida, Juliana entrou na sala e os pais saíram, deixando-os a sós. Renato viu o envelope nas mãos dela e suplicou:
- Por favor, Juliana. Não me deixe mais nessa dúvida cruel. Sou eu o pai?
Calada, ela estendeu a mão e entregou-lhe o envelope. Depois, lentamente se dirigiu para o vão da janela, examinando a rua tranqüila, onde um vento leve agitava as copas das árvores. Renato leu o resultado e caiu sentado no sofá, lívido. - Meu Deus! E agora, Juliana? De costas para ele, a moça continuou impassível como se não tivesse ouvido. Ele repetiu a pergunta:
- Juliana, o que vamos fazer?
Ela ainda permaneceu calada por alguns segundos. Depois, deixando o vão da janela, virou-se, fitou o noivo e devolveu-lhe a pergunta:
- Diga-me você, Renato. E agora? Como fica nossa situação? Nervoso e trêmulo, ele passava a mão pelos cabelos; os olhos vermelhos demonstravam grande agitação emocional. Ela continuou:
- Você aceitaria o filho de outro homem, sabendo que não tive culpa naquilo que me aconteceu, que fui apenas uma vítima?
Profundamente abalado, ele gaguejou:
- Não sei o que dizer, Juliana. Não me sinto preparado para ser pai. Começar uma vida de casado, com uma criança que nem sequer é meu filho. Você não pode exigir de mim tal coisa!
Renato fez uma pausa, olhando para a noiva que chorava silenciosamente, e depois prosseguiu mais esperançoso:
- Olhe, temos uma saída legal: a interrupção da gravidez. Andei me informando e a lei permite que se faça o aborto em casos como este.
Juliana balançou a cabeça:
- Sei disso, Renato. Mas não estou disposta a transformar-me numa criminosa para me casar com você. Se o preço é esse para ficar a seu lado, não pretendo pagar. É alto demais.
- A verdade é que você não me ama, Juliana. Se me amasse, faria esse sacrifício por mim. Você não entende? Ainda não existe uma vida! Esse bebê não é ninguém e você não o desejava!
- Engana-se, Renato - retrucou ela, incisiva. - A vida já existe e está pulsando dentro de mim. Essa criança, sim, é que não tem culpa de nada.
Os dois permaneceram em lados opostos da sala, calados, cada qual entregue aos próprios pensamentos. O ambiente da sala estava opressivo, tenso, irrespirável. Afinal, ele exigiu uma definição:
- Esta é sua última palavra? Não vai mudar de opinião?
- Não, Renato. Lamento. Não posso fazer o que você deseja. Perderia o respeito por mim mesma.
- Então nosso compromisso está desfeito? Nada de casamento, de festa, de viagem de núpcias, de uma vida a dois? - insistia ele.
- Nada. Lamento. Completamente transtornado, Renato fez meia-volta e saiu batendo a porta. Antero e Helena, ao ouvirem o estrondo, entraram na sala e encontraram a filha chorando convulsivamente.
- Está tudo acabado. Tudo!
- Não se preocupe, filhinha. Nós estaremos sempre junto com você. Coragem. Confie em Deus.
Em prantos, ela repetia:
- Tudo acabado. O sonho de toda uma vida desapareceu, virou pó.
Os pais de Juliana ajudaram-na a se erguer e a levaram para o quarto, colocando-a na cama. Antero foi buscar o remédio, enquanto a mãe a abraçava, chorando também.
- Filha, tudo passa na vida. Você ainda vai ser muito feliz, acredite.
- Não vou tomar o remédio, mamãe. Pode prejudicar meu filho. Tenho de aprender a me controlar, enfrentar meus problemas sem precisar da ajuda de medicamentos.
A mãe concordou com a decisão da filha e foi fazer um chá calmante. Juliana tomou o chá, deitou-se e, aos poucos, os soluços foram diminuindo até cessarem de todo. Finalmente Juliana adormeceu e seu semblante se distendeu, mais sereno. Por alguns dias, Juliana permaneceu em casa, sem condição para sair e trabalhar. Não queria ver ninguém. Os pais de Renato vieram visitá-la, mas ela não os recebeu. Renato veio visitá-la, mas também não quis vê-lo. Era uma página virada em sua existência. A vida seguia seu curso, inexorável. Com o passar dos dias, tudo foi voltando ao normal. Juliana, que nunca mais tinha se encontrado com o ex-noivo, ficou sabendo, por uma amiga, que ele tinha sido visto com uma moça. Fingiu não se abalar, afirmando tranqüila: "Desejo que ele seja feliz". No fundo, porém, sentiu uma fisgada de ciúme, que procurou abafar pensando em outras coisas. Afinal, tinha muito por fazer. Teria de encher-se de ânimo para cuidar dos preparativos: comprar o enxoval do bebê, o bercinho, a cômoda, o carrinho, arrumar o quarto para esperar sua chegada e tantas outras coisas. Com o passar dos meses, a gravidez começou a aparecer e a barriga a crescer, conscientizando-a de que seria mãe de verdade. Ainda não sabia o sexo, mas a ultra-sonografia deixou-a emocionada. Era a primeira vez que via o seu bebê. Quanto ao pai da criança, procurava nunca pensar nele. Na verdade, seu filho só teria mãe. Certo dia, recebeu um recado do delegado Gonzaga para que comparecesse à delegacia. Preocupada, Juliana compareceu no horário estipulado. Ao chegar, ficou sabendo o motivo: entre seis rapazes, teria de reconhecer se um deles tinha sido seu estuprador. Juliana estava extremamente nervosa. Pensar que poderia rever o criminoso deixou-a em pânico. Enquanto aguardava, ficou sentada no gabinete do delegado. O mesmo rapaz que tomara seu depoimento ali estava. Notando-lhe o nervosismo, ele começou a conversar com ela, tentando acalmá-la.
- Não se preocupe, nem se sinta intimidada. Vocês não se encontrarão. Fique tranqüila.
O rapaz era simpático e de voz agradável. Parecia realmente querer ajudá-la.
- Mesmo assim, é difícil para mim.
Iniciada a conversação para passar o tempo, ela indagou polidamente:
- Você trabalha aqui faz tempo?
- Alguns anos. Comecei como office-boy. Depois, completei meus estudos e tornei-me escrivão.
- Mas você é bem jovem!
- Comecei muito cedo, ainda garoto. Além disso, não sou tão jovem assim. Tenho 26 anos.
- Pois não parece. Tem família? É casado?
- Não, sou solteiro. Moro com minha mãe e dois irmãos.
- Ah!
- E você? - ele perguntou - Lembro-me de que estava noiva. Casou-se?
Juliana balançou a cabeça, negativamente. Percebeu que o rapaz olhara disfarçadamente para sua barriga e entendeu o porquê da pergunta. No mesmo momento, ele deu-se conta do que estava acontecendo. Sentiu-se constrangido e penalizado diante da situação que ela estava atravessando.
- Desculpe-me. Não quis ser indiscreto.
- Não se preocupe. Estou acostumada com reações bem piores do que a sua. Há pessoas que, ao ficarem sabendo que eu não quis fazer aborto dessa criança, fruto de uma violência, não entendem nem aceitam minha decisão.
Os olhos do rapaz brilhavam de emoção ao fitá-la. Quando ele ia falar alguma coisa, o delegado entrou avisando:
- Está tudo pronto, Juliana. Vamos lá?
Ela olhou para o rapaz buscando ajuda. Ele entendeu e disse em voz baixa:
- Não se preocupe, Juliana. Tudo vai dar certo. Gonzaga e eu estaremos com você.
Nada vai acontecer. Venha.
Caminharam por um corredor até uma porta fechada. O delegado abriu-a e entraram. O mobiliário constava de uma mesa e algumas cadeiras. Sentaram-se. Numa das paredes, havia um grande vidro e, do outro lado, uma outra sala, completamente vazia. O delegado explicou:
- Por aquela porta vão entrar seis rapazes. Observe bem e diga-me se reconhece algum deles. Não temos pressa. Você terá todo o tempo necessário. Está pronta?
- Sim.
Logo em seguida os rapazes foram introduzidos, em fila. A uma ordem do delegado, permaneceram na posição em que tinham entrado, de lado. Após alguns minutos, a uma nova ordem, viraram-se de frente. Juliana, trêmula e gelada, sentia o coração bater acelerado. Olhou para os homens que ali estavam do outro lado do vidro e se encolheu, assustada.
- Fique calma. Eles não podem vê-la - informou o delegado. Juliana examinou cada um deles, em ordem. Quando chegou ao quinto rapaz, levou um susto. Estava com outra roupa, mas era ele mesmo.
Gonzaga mandou que tirassem a camisa e se posicionassem de lado. Juliana não teve dúvida: era ele mesmo, o rapaz daquela noite e a tatuagem ali estava para confirmar.
- É ele, o quinto.
- Tem certeza?
- Absoluta.
Saindo da sala, Juliana pôs-se a chorar, convulsivamente. Seus nervos estavam à flor da pele, sentia falta de ar. A vista do rapaz, as imagens daquela noite voltaram à sua mente, perturbando-a emocionalmente. Ao ver seu estado, o delegado levou-a para sua sala e pediu que o assistente lhe trouxesse um copo de água.
- Está mais calma? Você nos prestou um grande serviço, Juliana. Aquele rapaz é velho conhecido da polícia. De boa família, rico, vive nas ruas em virtude das drogas. De outras vezes já esteve envolvido em casos graves, mas sempre conseguiu se safar, porque o papai interfere, usando suas ligações políticas. Chama-se Luciano de Castro.
O criminoso agora tinha um nome: Luciano. Juliana não sabia se ficava contente por ele ter sido preso, ou se lamentava o fato, pois seria mais difícil esquecer. Era como se agora ele estivesse mais perto dela. Como ela estivesse ainda muito nervosa e sem condições de dirigir, Gonzaga pediu ao assistente que levasse Juliana de volta para casa. O rapaz perguntou onde tinha ficado o carro. Juliana explicou, entregando-lhe a chave. Ele foi buscar o veículo e parou em frente à delegacia, onde Juliana o aguardava. Fizeram o trajeto em silêncio. Diante da casa, estacionou o carro, desceram e o rapaz entregou à Juliana as chaves. Ela agradeceu a gentileza e somente então se lembrou:
- Você tem sido tão gentil comigo e nem ao menos sei seu nome.
- Francisco - informou sorridente.
- Francisco. Obrigada. Quer entrar, tomar um café?
- Não, Juliana. Agradeço-lhe o convite. Fica para outro dia.
- Então, mais uma vez, obrigada, Francisco. Boa noite.
- Boa noite.


CAPÍTULO 25 - REENCONTRO

"Reconciliai-vos o mais depressa possível com o vosso adversário enquanto estais com ele no caminho, para que ele não vos entregue ao juiz, o juiz não vos entregue ao ministro da justiça e não sejais metido em prisão. Digo-vos, em verdade, que daí não saireis, enquanto não houverdes pago o último ceitil." JESUS (MATEUS, 5: 25 E 26)

Algum tempo depois, Juliana havia tirado uma tarde inteira para ir a um Shopping Center. Faltavam vários itens do enxoval do bebê e precisava fazer as últimas compras. Passando por uma sorveteria, pediu um sorvete de chocolate, seu preferido, e o saboreava olhando as vitrinas, quando se deteve diante de uma loja infantil decorada lindamente. De todos os produtos ali expostos, o que mais chamou sua atenção foi um belo carrinho em tons de rosa - agora já sabia que era uma menina! - bem no estilo e marca que estava procurando. Nisso, ouviu alguém dizer perto do seu ouvido: - É lindo! Virou-se para ver quem tinha falado e levou um susto. Ficou parada, em pânico. O sorvete e as sacolas caíram de suas mãos. Era ele! O maldito! Notando que ela estava em choque, o rapaz estendeu os braços, dizendo em voz mansa:
- Por favor, não vou lhe fazer mal algum. Só desejo conversar. Falar com você.
Em pânico, incapaz de ouvir e entender direito o que ele dizia, Juliana começou a gritar:
- Socorro! Socorro! Acudam!
O rapaz, que se abaixara e tentava pegar as sacolas de compras que estavam no chão, suplicava:
- Por favor, não grite. Só quero conversar. Deixe-me pegar... Os transeuntes, porém, ouvindo o barulho começaram a parar e, ao ver uma grávida apavorada, a gritar por socorro, julgaram que o rapaz tentava roubá-la.
Alguém gritou: pega ladrão! E o rapaz, percebendo o perigo, saiu em disparada, desceu a escada rolante e logo desapareceu no meio da multidão. Nesse momento, um moço abre caminho no meio do povo para ver o que estava acontecendo e depara com a jovem mulher grávida, em prantos, enquanto duas mocinhas recolhiam as compras caídas no chão.
- Juliana! O que houve?
Ela levantou a cabeça ao ouvir a voz conhecida.
- Francisco! É você? Ajude-me!
Notando que a gestante estava fraca, quase desmaiando, o rapaz envolveu-a com os braços e conduziu-a para uma mesinha ali perto, ao mesmo tempo em que ordenava, dirigindo-se aos curiosos:
- Não se preocupem. Podem ir agora. Eu a conheço e tomo conta dela. Obrigado.
Obrigado.
Os curiosos foram se dispersando. As duas garotas que estavam com as compras seguiram a ambos; depois, colocaram as sacolas numa mesa que ele tinha escolhido. Francisco agradeceu-lhes a gentileza. Acomodou Juliana numa cadeira e sentou-se defronte dela. Pediu uma água à garçonete, depois a examinou preocupado:
- Está bem, Juliana? Não se machucou? O que aconteceu? Com olhar esgazeado, ela lançou um olhar para os lados, como se esperasse ver aquele rapaz de novo. Os transeuntes tinham se dispersado e não havia mais ninguém por ali. Assustada, ainda com o coração aos saltos, ela informou, apertando a mão dele sobre a mesa:
- Era ele, Francisco.
- Ele, quem?
- Ele! Luciano. Aquele monstro que me agrediu.
A garçonete trouxe uma garrafinha de água e dois copos. Francisco pôs um pouco de água num copo e deu-o para Juliana, colocando-o nas mãos dela, que mal o conseguia segurar. Enquanto ela tomava um gole, Francisco prosseguiu tentando entender o ocorrido:
- Ele estava aqui? Você o viu? Luciano falou com você?
- Sim! Ele está solto? Pensei que estivesse na cadeia, que é lugar de criminosos!
Com expressão compungida, Francisco confirmou:
- Sim, ele está solto. Foi julgado, mas como é dependente, o advogado conseguiu que fosse encaminhado a um hospital para tratamento. Mas o que Luciano queria?
- Não sei. Fiquei apavorada ao vê-lo. Lembro-me apenas de que ele disse que queria falar comigo.
- Quando cheguei, as pessoas falavam em tentativa de roubo. É verdade? Ele tentou roubá-la?
- Não. Fiquei com tanto medo que comecei a gritar e as compras caíram da minha mão.
Ele tentou recolher as sacolas do chão.
A expressão de Juliana era de desespero, suas mãos tremiam.
- Você percebe a gravidade da situação, Francisco? Ele sabe que estou grávida, talvez tenha até me seguido... Será que não terei paz?
- Calma, Juliana. Pode ter sido apenas uma coincidência. Como o fato de nós dois termos nos encontrado aqui, neste local e nessa mesma hora. Não se desespere. Vou avisar o Gonzaga e procurar manter aquele delinqüente sob vigilância para que não a aborreça mais. Está bem?
Ela concordou com um gesto de cabeça. Ficaram ambos, calados e pensativos, de mãos dadas sobre a mesa. De repente, Juliana comentou:
- Analisando melhor o que aconteceu, agora com mais tranqüilidade, penso que talvez ele não quisesse me agredir; seu rosto estava diferente, sua voz suplicante...
Francisco ouviu-a falar e com serenidade considerou:
- Quem sabe? Talvez esteja arrependido. O tempo que passou em tratamento pode tê-lo feito pensar melhor, refletir sobre o mal que lhe fez e desejar repará-lo.
- Acha realmente possível?
- Por que não? Acredito que todos nós já erramos muito e temos recebido de Deus a oportunidade de reparar o mal praticado. São fases de aprendizado necessárias ao nosso progresso.
Revoltada, ela reagiu:
- Como assim? Eu nunca fiz mal a ninguém nesta vida. E, no entanto, você sabe tudo o que sofri sem merecer. Quando ouço falar em Deus, fico pensando: que Deus é esse? Um carrasco sem piedade? Onde Ele estava quando aquele miserável me agarrou e me levou para o mato?
De repente, ela se deu conta que se inflamara, aumentando o tom de voz e calou-se, olhando em torno para ver se alguém ouvira. Todavia, o movimento tinha diminuído, e poucas pessoas estavam ainda ali na praça de alimentação, pois era quase hora de fechar o shopping. Respirando fundo, mais tranqüila, ela olhou para Francisco que a fitava, compreensivo.
- Talvez este não seja o momento nem o lugar para falarmos de coisas tão sérias, Juliana.
- Não, por favor, Francisco. Desculpe-me. Continue. Estou interessada em ouvir o que tem para me dizer.
- Então, vamos lá! Tudo depende da visão que tenhamos do mundo e de Deus, Juliana. Certamente você não fez mal algum nesta vida, porém poderá tê-lo feito em outras.
Com expressão levemente irônica, Juliana interrompeu-o:
- Está por acaso querendo sugerir a idéia de reencarnação? Francisco fitou-a, sério, demonstrando que não estava a brincar:
- Tem outra idéia melhor? Se pensar com seriedade sobre o assunto, vai perceber que é a única coisa que pode explicar as diferenças que existem entre as pessoas, sejam elas sociais, individuais, culturais ou morais.
- Mas isso é um absurdo!
- Ao contrário. É a chave que nos faz entender a justiça divina. Se nós sofremos hoje é porque geramos sofrimento no passado. Com nossas ações, colocamos em movimento a Lei de Causa e Efeito. O mau uso do livre-arbítrio nos leva a enfrentar as conseqüências de nossos atos e a responsabilidade que assumimos perante o nosso próximo e perante Deus.
Francisco fez uma pausa, analisando a reação dela.
- Já ouviu falar em livre-arbítrio?
- Claro. É quando podemos fazer escolhas. Você se esquece, porém, de que eu não tive escolha.
- Talvez não, naquele momento, mas certamente exerceu seu direito de escolha antes.
- Lá vem você de novo com essas idéias. Quer dizer que se alguém nasceu cego nesta vida é porque fez alguém perder a visão no passado? Você realmente acredita nisso, não é?
- Tem alguma outra sugestão? O Evangelho diz que é melhor entrarmos na vida sem um olho do que ele vir a ser causa de queda para nós.
- É a lei do olho por olho, dente por dente, de Moisés. Isso faz do seu Deus um ser cruel e vingativo, não acha?
- De forma alguma. Penso que isso quer dizer que recebemos sempre de acordo com o que semeamos. Quem planta, colhe. Não vejo nisso crueldade e vingança, mas justiça e eqüidade. Além do mais, Deus é nosso Pai, e como pai quer o melhor para nós, seus filhos. Assim, quando recebemos o sofrimento, não devemos enxergá-lo como vingança ou punição, mas como oportunidade de reeducação que o Senhor nos concede para nosso aprendizado. Estamos sempre aprendendo, com a dor e o sofrimento, a nos tornarmos criaturas melhores, mais pacíficas, mais ordeiras, mais humildes, menos egoístas, menos orgulhosas e mais fraternas e solidárias.
A medida que Francisco falava, Juliana percebeu que um sentimento misto de admiração e respeito por ele nascia em seu íntimo. A ironia e o pouco caso desapareceram do seu rosto.
- Talvez você tenha razão, Francisco. Confesso que nunca pensei nesse assunto, mas gostei de ouvir você falar. E um mundo novo que se abre para mim. Percebi que leva a sério esse negócio de Deus. Qual a sua religião?
- Sou espírita.
- Logo vi. Para falar de reencarnação e dessas coisas você só poderia ser espírita mesmo.
- Engana-se. As grandes religiões antigas e as atuais existentes no mundo, como o Budismo, o Hinduísmo e outras, pregam a idéia das vidas sucessivas. Apenas os cristãos ignoram essa realidade, apesar dos ensinamentos que Jesus nos deixou. Olhe, o assunto é vasto e complexo. Se quiser saber mais, tenho livros que posso lhe emprestar. São bastante esclarecedores.
- Gostaria muito. Agora, com a gravidez avançando, não vou poder sair muito de casa e terei tempo para me dedicar à leitura.
- Está combinado. Levarei alguns livros para que se inteire melhor do assunto. E então, está mais calma? - perguntou ele, olhando-a com carinho.
- Sim. Foi muito bom tê-lo encontrado, Francisco.
- Quer tomar um lanche? Um sorvete? Afinal, o seu caiu no chão.
- Não, obrigada. Perdi a vontade. Fica para outro dia. Agora preciso ir. Já é tarde.
Ele levantou-se também, segurando-a pelo braço e afirmando com naturalidade:
- Não permitirei que volte sozinha. Vou levá-la.
No carro, Juliana sentia uma agradável sensação de segurança ao lado dele. Era com prazer que o observava dirigindo com calma em meio ao trânsito sempre caótico da grande cidade. Quando ele estacionou defronte da sua casa, Juliana permaneceu alguns segundos sem descer, calada, pensando. Notando que ela queria dizer-lhe alguma coisa, o rapaz esperou calmamente. Afinal, tomando coragem, Juliana perguntou:
- Francisco, e o meu caso? Como se explica o fato de ter enfrentado uma situação tão dramática de violência, e ainda, por cúmulo, ficar grávida? E o bebê que vai nascer, o que tem a ver com isso? Ele desligou o motor, apagou as luzes e virou-se para ela. No escuro Francisco podia ver-lhe o rosto tenso, a ânsia de entender o seu problema, a angústia que essa situação lhe causava.
- Estava esperando que me perguntasse isso, Juliana. Na verdade, a vida se incumbe de nos aproximar das pessoas com as quais precisamos nos reajustar. Somos em parte responsáveis pelo que as pessoas as quais prejudicamos ou desencaminhamos no passado se tornaram hoje.
Juliana balançou a cabeça, confusa.
- Não sei. Confesso que sinto dificuldade de entender essa lógica. E a criança que vai nascer?
- Esse espírito que se prepara para fazer sua entrada no mundo certamente tem a ver com vocês. Pode fazer parte das suas ligações do passado, ou das ligações dele, ou companheiros que se associaram por afinidade a você ou a ele.
- Como assim?
- Bem, nós atraímos para o nosso campo vibratório, por meio: do princípio da sintonia aqueles que têm afinidade conosco, seja pelas nossas qualidades ou pelas nossas imperfeições. Se nós pensamos no bem, atraímos espíritos bons; se procuramos o mal ou os vícios, atrairemos os que pensam como nós. Entendeu? Por isso, teremos sempre as companhias que desejarmos.
- Se entendi bem, essa alma pode ser de um viciado, como aquele criminoso? E se é viciado, pode nascer com problemas?
Percebendo que uma ruga de preocupação surgia na testa de Juliana, Francisco procurou modificar o tom da conversa, tranqüilizando-a:
- Não se preocupe, Juliana. Confie em Deus. Ele sempre sabe o que faz. Pense que esse filho vai trazer, a você e aos seus, muita alegria.
- Espero! Gostaria de saber mais sobre esse assunto. Achei extremamente interessante. Poderíamos voltar a falar disso outro dia?
- Claro. Estou à sua disposição, Juliana. Aqui estão suas chaves. Ela lançou-lhe um olhar intrigante e comentou, com um sorriso:
- Você é uma caixinha de surpresas, Francisco! Ah! Não se esqueça dos meus livros.
Obrigada e boa noite.
Francisco sentiu uma emoção diferente dentro de si, enquanto o coração parecia querer pular fora do peito.
- Boa noite, Juliana.
Enquanto ele aguardava, na calçada, para vê-la entrar, Juliana parou no portão, virou-se, e perguntou interessada:
- Francisco, naquele dia em que eu compareci à delegacia para fazer o reconhecimento do rapaz, nós estávamos conversando e falávamos sobre minha situação. Lembra-se? Você ia me dizer alguma coisa quando o delegado entrou na sala. Fiquei curiosa. O que era?
Ele baixou a fronte e balançou a cabeça, concordando. Quando a levantou, Juliana viu que Francisco estava comovido. Seus olhos umedeceram-se e um brilho diferente surgiu neles. Lentamente, o rapaz deu alguns passos vencendo a distância que os separava, aproximou-se dela, segurou com delicadeza sua mão, depois disse pausadamente:
- Queria lhe dizer que, ao saber que você se decidiu pela vida, não interrompendo a gravidez, apesar das circunstâncias, despertou em mim uma enorme admiração e imenso respeito por você. Era isso.
Em seguida, Francisco beijou-lhe a mão, emocionado. Depois deu meia-volta e caminhou para o ponto de ônibus, com as mãos nos bolsos das calças, sem se voltar. Juliana ficou parada, sob o impacto do momento, incapaz de falar, vendo-o se afastar. Depois sorriu, respirou fundo e entrou. Também estava emocionada.

CAPÍTULO 26 - RECONCILIAÇÃO

"Não julgueis, afim de não serdes julgados; porquanto sereis julgados conforme houverdes julgado os outros; empregar-se-á convosco a mesma medida de que vos tenhais servido para com os outros." JESUS (MATEUS, 7: 1 E 2)

Depois daquele dia no shopping e do encontro horrível com Luciano, que a deixou extremamente assustada, Juliana não conseguia se esquecer dele. Afinal, ele estava por perto, e esse fato a tornou insegura e cheia de preocupação. Apesar das palavras do seu amigo Francisco, continuava sentindo mágoa, repugnância e indignação contra aquele homem que a marcara de forma tão profunda, gerando desequilíbrio em sua vida e destruindo-lhe a esperança de felicidade. Na manhã seguinte, como prometera, Francisco levou os livros na casa dela, antes de ir para a delegacia, deixando o pacote com a mãe, dona Helena. Juliana ainda dormia. Ao acordar, encontrou o embrulho de papel pardo em sua mesa de cabeceira. Revirou-o nas mãos procurando uma identificação. Nada. Nem anotação, nem remetente. Surpresa e intrigada, ela rasgou o papel, encontrando dois livros: O Evangelho Segundo o Espiritismo e O Livro dos Espíritos, ambos de Allan Kardec. Sorriu. Francisco cumprira a promessa. Imediatamente abriu o primeiro ao acaso, e leu: "Não julgueis para não serdes julgados. Aquele que estiver sem pecado atire a primeira pedra". Leu os itens de 11 a 13, referentes a esse assunto e constantes do capítulo 10. Pensativa, folheou algumas páginas e seus olhos caíram sobre um trecho que falava a respeito da indulgência, e leu, desse mesmo capítulo, o item 17: "Sede indulgentes para com as faltas dos outros, quaisquer que sejam. Julgai com severidade apenas vossas próprias ações e o Senhor usará de indulgência para convosco, do mesmo modo como a usastes para com os outros." Interessada, Juliana voltou algumas páginas e, no início do capítulo, leu o título: "Bem-aventurados os que são misericordiosos". Mergulhou na leitura. Vez por outra parava, meditando nas palavras que lia; de outras vezes, não tendo entendido direito, voltava e relia os trechos que mais a tinham tocado, refletindo sobre o tema. Assim, as idéias de perdão, de reconciliação com os adversários, de indulgência, aos poucos foram calando em seu coração, como chuva mansa e benéfica que, ao cair sobre o solo ressequido e árido é rapidamente assimilada, fertilizando-o. A leitura, ao mesmo tempo que lhe proporcionava conhecimentos (reconhecia que os textos faziam abordagens sobre o Evangelho de Jesus de uma forma inusitada e lógica como jamais tivera oportunidade de ver), trazia-lhe profunda sensação de bem-estar e tranqüilidade. Nos dias subseqüentes, fazia suas tarefas, ajudava a mãe nos serviços domésticos, depois mergulhava na leitura que tanto a atraía, mostrando-lhe um mundo novo e insuspeitado, onde a imagem daquele Deus de que Francisco falava passou a ter a conotação de verdadeiro Pai, segundo os ensinamentos evangélicos. Apaixonou-se pela obra O Livro dos Espíritos. Reconhecia nos textos um repositório de idéias e notícias fascinantes que muito a encantaram, fazendo com que todos os fatos da vida passassem a ter lógica, objetivo e justiça. Ela e Francisco passaram a se encontrar com mais freqüência, para discutir pontos que Juliana não havia entendido bem ou sobre os quais tinha dúvidas. Algum tempo depois, Juliana estava em casa entregue às suas ocupações. Era um dia típico de outono: céu azul, temperatura amena e um lindo sol a brilhar deixando a tarde ainda mais bonita. Havia na casa um jardim interno, escondido de olhares indiscretos por alto muro e bela vegetação. Era o lugar de que Juliana mais gostava e onde costumava ficar quando o tempo permitia. Sentada num banco de madeira, com uma caixa de costuras ao lado, ela terminava de pregar botões e colocar fitas em algumas peças do enxoval do bebê. De súbito, parou o que estava fazendo, com nítida sensação de que havia mais alguém no jardim. Virou-se, e não viu nada. Bobagem! Devo ter-me enganado. Esse muro é tão alto! Voltou os olhos para a costura e absorveu-se naquilo que estava fazendo. Alguns minutos depois, novamente teve uma sensação estranha, como se um vulto tivesse passado a alguns metros dela. Inquieta, perguntou:
- Quem está aí?
Nada. Levantou-se do banco e repetiu a pergunta:
- Quem está aí? Se há alguém, que apareça.
Depois de alguns segundos de espera, um tufo de folhagens se agitou e um vulto surgiu por detrás dele.
- Sou eu.
Ao ouvir a voz, Juliana virou-se, e a costura caiu de sua mão.
Meu Deus! É ele!
Era o criminoso. Apavorada, sentiu que o sangue lhe fugia do rosto e uma sensação de dormência a dominou. Pensou que fosse desmaiar. Assustado, o rapaz aproximou-se, segurando-a e evitando que caísse na grama. Ajudou-a acomodar-se no banco e suplicou:
- Por favor, só quero conversar! Não me mande embora, Juliana.
- O que você quer aqui? - perguntou ela num fio de voz.
- Já disse. Quero falar com você.
- Pois eu não quero falar com você. Nada temos para conversar. Se meus pais ou a empregada perceberem qualquer movimento estranho, chamarão a polícia. E se alguém o pegar aqui você vai preso.
- Ninguém sabe que estou aqui.
- Vou gritar e alguém virá me socorrer - afirmou ela, tentando aparentar firmeza, apesar do medo que sentia.
- Não tem ninguém dentro de casa. Sua mãe e seu pai estão trabalhando e a empregada já foi embora. Por favor, não quero fazer-lhe mal algum. Escute o que tenho para lhe dizer.
Vendo que ele estava a par dos movimentos da casa, e que não tinha como evitá-lo, ela concordou:
- Muito bem. Diga rápido o que deseja e vá embora.
- Posso me sentar?
Ela fez um gesto de assentimento e Luciano sentou-se delicadamente na outra ponta do banco. Nem sabia como começar. Tinha tanta coisa para dizer e agora a voz não lhe saía. o ver que ele não falava, Juliana, que até aquele momento evitara fitá-lo, arriscou um olhar disfarçado. O rapaz tinha a expressão triste e parecia emocionado. Afinal, criando coragem, ele começou a falar:
- Juliana, quero desculpar-me por ter agido de maneira tão agressiva e tão sórdida naquele dia. Não, não diga nada. Deixe-me falar. Sei que nada justifica meu ato, mas deixe-me dizer-lhe como me sinto. Depois, pode falar o que quiser.
Luciano fez uma pausa como se procurando as palavras, depois continuou:
- Nasci em um lar - se é que se pode chamar aquilo de lar - muito rico. Meu pai é de família tradicional e sempre teve poder e dinheiro. Desde criança acostumei-me a fazer tudo o que queria e a ter todos os meus desejos satisfeitos. Os problemas que eu criava eram sempre resolvidos por ele. Qualquer coisa que eu fizesse, meu pai acertava com dinheiro, comprando o silêncio das pessoas.
Ele parou de falar para tomar fôlego, e Juliana murmurou:
- Eu sei. Seu pai tentou esse método conosco também.
- Imagino que sim. Sinto-me muito envergonhado por tudo isso. A verdade é que cresci sem conhecer limites e tendo todos os meus desejos realizados. Ainda adolescente, nada mais era novidade para mim. Não consegui estudar, fazer uma faculdade, mas meu pai providenciou-me um diploma. Viajei pelo mundo todo, tive os mais belos carros, e tudo o que o dinheiro pode comprar. Como ansiasse por emoções novas, mergulhei nos vícios. Primeiro foi o álcool, porta de acesso a drogas mais fortes, até que já não tinha mais o que me satisfizesse. Meus pais, assustados, talvez percebendo tardiamente a educação que tinham me dado, começaram a negar-me dinheiro. Passei a pegar, além do dinheiro, tudo o que podia dentro de casa para vender: carros, obras de arte, as jóias de minha mãe, objetos valiosos, aparelhos eletrônicos, roupas, tênis, tudo. Acabando com as coisas de valor que existiam em nossa casa, passei a roubar na rua. Tornei-me um ladrão no verdadeiro sentido da palavra. Não havia o que me fizesse parar.
O rapaz fez nova pausa. Juliana o olhava agora com mais interesse percebendo sinceridade em suas palavras. Ele prosseguiu:
- Até que aquela noite... Eu estava completamente drogado e ainda precisando de mais dinheiro para satisfazer o vício. Quando a gente começa, não há o que chegue. Por isso a ataquei. Eu a vi, tão desprotegida e tão frágil, entrar naquela ruela, que não resisti. Enfim... você sabe o que aconteceu. Ele colocou as mãos sobre o rosto como se tentasse expulsar imagens indesejáveis. Depois de alguns segundos, recompondo-se, continuou: - Você acreditaria se lhe dissesse que me lembro de poucas coisas daquela noite? Não estou querendo me justificar, mas só mostrar a quais extremos um ser humano pode chegar sob o efeito da droga. Bem, alguns meses depois eu fui preso e encaminhado para um hospital onde teria de me submeter a um tratamento de desintoxicação. Era a primeira vez que isso acontecia. Fiquei louco! Pirado! A fase de abstinência é extremamente dolorosa. Passei dias e dias de sofrimento inconcebível. Aos poucos, comecei a melhorar. A terapia psicológica ajudou-me bastante. Nunca tinha aceitado esse tipo de tratamento e reconheço que foi muito benéfico. Ele parou novamente de falar, virou-se para Juliana e contou:
- Foi só aí que percebi tudo o que tinha feito. Um atendente do hospital - por coincidência, amigo de um colega seu, da empresa onde trabalha -, que sabia da minha história e tudo o que tinha feito, contou-me sobre a sua gravidez. Aquilo mexeu comigo. Eu ia ter um filho! Comecei a pensar mais, a refletir sobre minha vida, sobre tudo o que já tinha aprontado. Conversava sobre isso com o psicólogo, que me ajudou bastante, esclarecendo-me e abrindo-me a mente para outras idéias. Então, resolvi mudar. Não posso dizer que esteja livre da dependência porque ainda é cedo, mas até agora estou conseguindo vencer. Participo de um grupo de apoio para egressos do hospital, nos encontramos todas as semanas e falamos de nossos problemas, dificuldades e obstáculos; fazemos um balanço de nossa existência, nos auto-analisamos para saber como somos realmente e o que desejamos da vida. Então, depois de muito pensar - apesar do medo que eu sentia da sua reação ao ver-me -, resolvi procurá-la. Confesso que a tenho visto muitas vezes, escondido. Tenho acompanhado quando sai de casa, e visto nosso filho, digo, nossa filha, crescer junto com sua barriga. Aquele dia no shopping não queria assustá-la. Só conversar com você.
Pela primeira vez, Juliana abriu a boca.
- Eu entendi. Embora tivesse ficado assustada, entendi.
- Agradeço-lhe. Eu precisava expor minha vida, falar das minhas dificuldades, dos meus problemas, enfim... Sei que nada justifica meu ato, o crime que pratiquei contra você, mas quero poder reparar o mal que lhe fiz. Meu pai queria procurá-la, pagar tudo, responsabilizar-se pela criança que vai nascer e que, afinal, será seu neto, mas não permiti. Disse a ele que eu cuidaria disso. Sei como ele é prepotente, orgulhoso e egoísta. Acabaria magoando ainda mais você e sua família. Entende?
Juliana estava séria e compenetrada ao responder:
- Entendo. Contudo, não precisa se preocupar. Minha filha terá tudo o que precisa. Não somos ricos, porém trabalhamos e temos condição de dar-lhe o necessário sem que você precise se preocupar. Não se sinta obrigado a nada. O rapaz sorriu, melancólico.
- Juliana, você não entendeu. Não estou me dispondo a ajudar por obrigação, embora a tenha como pai. Quero ajudar por prazer, por amor. Não me negue esse prazer, que é um direito.
- Ah! Vai começar com exigências? - ela retrucou, com ironia. Luciano respirou fundo, explicando com delicadeza:
- Não me entenda mal. Não estou fazendo exigências agora, nem farei no futuro. Gostaria apenas, se você me permitir, de poder conhecer nossa criança quando ela nascer, dar-lhe presentes, vê-la crescer, brincar com ela.
Juliana notou que a voz do rapaz estava embargada pela emoção e que ele não conseguia continuar. Enxugando as lágrimas e tomando fôlego, fazendo um tremendo esforço sobre si mesmo, ele suplicou:
- Por favor, Juliana, não me negue essa oportunidade. Mudei muito, estou mantendo-me longe do vício, exatamente porque a vida me acenou com essa expectativa de ser pai, de ter um objetivo na vida, coisa que até agora eu não tinha nem sabia o que era. Atualmente, desejo crescer, ser alguém para que minha filha se orgulhe de mim. Quero passar o melhor para essa criança que ainda nem nasceu e que já é tão importante na minha vida. Por favor, tenha piedade!
Juliana, também emocionada diante do que ouvira, lembrou-se de tudo o que já lera nos últimos dias, das conversas com Francisco, das informações que tivera por intermédio da literatura espírita. Parecia-lhe que tudo o que aprendera tinha uma finalidade: era prepará-la para este momento, de modo que ela soubesse como agir na hora certa, tendo a compreensão necessária e aproveitando a oportunidade para o exercício do perdão. Diante daquele rapaz que ali estava, ajoelhado a seus pés, humilhado diante da própria consciência, pedindo-lhe ajuda, Juliana considerou em voz pausada:
- Luciano - era a primeira vez que o chamava pelo nome -, Jesus disse certa vez que aquele que estivesse sem pecados que atirasse a primeira pedra. Diante disso, quem sou eu para julgar?
O moço ergueu a fronte, com os olhos brilhantes e úmidos, incapaz de acreditar naquela felicidade.
- Então você me perdoa, Juliana?
- Já perdoei, Luciano.
Ele teve ímpeto de levantar-se e abraçá-la, mas se conteve. Sem saber como expressar sua alegria, o rapaz tomou a mão dela, segurando-a entre as suas, e ali, com extremo carinho, depositou um terno e delicado beijo orvalhado de lágrimas.
- Obrigado. Juliana sentiu nesse instante uma felicidade imensa, como se tivesse tirado de seus ombros um peso enorme. Sentia-se leve, cheia de paz e de harmonia. Intuitivamente, tinha certeza de que, com aquele gesto de perdão, um grande problema fora resolvido.
Na espiritualidade, nós, os amigos que acompanhávamos o desenrolar da cena, também nos regozijávamos pelo feliz desfecho. O caso não estava resolvido, muitas coisas ainda iriam acontecer, e a solução dependeria da boa vontade e do desejo de acertar das partes envolvidas. Juliana tinha razão. Um sério desentendimento de vida anterior estava caminhando para uma solução satisfatória. Cerca de 300 anos antes, quatro pessoas envolveram-se em sério compromisso, ficando responsáveis perante a lei divina. Esse drama relato de forma resumida:
Lívia, de 14 anos, menina boa e prendada, estava apaixonada por Pietro, um rapaz do vilarejo onde moravam, na Itália. Todavia, Berta, amiga de Lívia, morria de ciúme e inveja, pois amava o mesmo rapaz e não se conformava por ter sido preterida. Envolvendo-se em vibrações negativas, cultivando revolta e ódio, planejou um crime contra Lívia. Convenceu Guido, um amigo seu, a ajudá-la. Rapaz sem escrúpulos e havia anos interessado em Lívia, Berta sabia que Guido aceitaria de bom grado participar da trama. Assim, combinaram que Guido prepararia uma armadilha para Lívia, levando-a para um lugar isolado e onde se incumbiria de desonrá-la, para que a jovem ficasse em suas mãos, o que foi feito conforme o planejado. Naquela época, esse fato equivalia à mais completa desonra, passando a moça a ser desprezada por toda a sociedade, caso o homem responsável não se casasse com ela. Quando Pietro ficou sabendo do que tinha acontecido, rompeu o noivado com Lívia, que, ao contrário do que Guido esperava, jamais o aceitou. Apesar de repudiada pela família e pela sociedade, ela manteve-se firme; uma senhora muito idosa que morava num casebre no meio do mato abrigou e ajudou Lívia até o nascimento do bebê. Alguns meses depois, mais fortalecida, a jovem mãe preferiu desaparecer da região com seu filho, passando o resto da vida solitária sem nunca ter se casado. Ninguém mais soube dela. Após longo tempo e várias experiências reencarnatórias, já em outro nível de progresso, o pequeno grupo teve a oportunidade de voltar, renascendo para o reajuste necessário. Berta, a amiga autora intelectual do crime, era Juliana; Pietro retornou como Luciano; Guido, em outro nível evolutivo e desejoso de reparar o mal praticado outrora, como Francisco. E a doce Lívia, tão sofredora, viria para os braços daquela que a prejudicara no passado e que agora seria mãezinha dedicada, e teria por pai aquele que a tinha desonrado e que agora lhe daria tudo o que lhe tinha tirado antes, ou seja, uma vida digna. Cresceria sob a assistência amorosa de Luciano, o antigo noivo Pietro, por quem fora abandonada e de quem era credora. Berta, agora em outro nível de entendimento e evolução, inconscientemente sabe que "precisa" ter aquela criança, conquanto produto da violência. Essa a razão que leva Juliana a enfrentar a sociedade, os amigos, a família, o noivo, para ter sua filha. Intuitivamente, ela sabe a importância daquela criança em sua vida, e mostra que já havia aprendido a valorizar a vida, como bênção de Deus. Tudo poderia ter acontecido de maneira mais tranqüila, visto que estava previsto que a vida se encarregaria de aproximar Juliana, Francisco e Luciano para a necessária reparação. No entanto, a situação se complicou em virtude da vida desregrada e viciosa de Luciano, levando-o a cometer uma violência contra Juliana. Felizmente, a presença de Francisco, que viera para amparar, foi fundamental. Transmitindo, no momento certo, conhecimentos espíritas para Juliana, ajudou-a na decisão que teria de tomar, perdoando a Luciano. Como podem perceber, mesmo nos mais intrincados relacionamentos, nada acontece por acaso. A bondade e misericórdia de Deus nos socorrem em todas as circunstâncias, por meio da providência, e a vida, mediante a Lei de Causa e Efeito, se incumbe de aproximar os participantes do drama para o aprendizado e o amadurecimento que se faz imprescindível, visando à reconciliação dos envolvidos. Certamente, os criminosos terão de saldar seus débitos contraídos perante aqueles que prejudicaram e perante a sociedade. Não obstante, uma visão mais humana e evangélica deve nortear nosso julgamento: qual a criatura que pode se considerar isenta de culpas? Especialmente considerando os conhecimentos que a Doutrina Espírita nos favorece, enfatizando a lei das existências sucessivas, necessárias ao aprendizado e ao progresso do espírito? Pelas inúmeras experiências terrenas que já tivemos, no tempo e no espaço, construímos vivências boas e ruins, fizemos amizades e desafetos, ajudamos e prejudicamos pessoas. Todo esse acervo, que é conquista nossa, revive no presente, por meio das facilidades ou dificuldades que tenhamos de enfrentar, dos sofrimentos, dos obstáculos e das rejeições que precisemos suportar. Dentro da própria família, encontramos vínculos de amor e ódio, sabiamente colocados por Deus ao nosso lado para aprendermos a exercitar o perdão, a compreensão, a tolerância, a paciência, e, principalmente, o amor. As afinidades e rejeições que surgem em nosso carreiro são apenas oportunidades de aprendizado que o Senhor nos possibilita para refazermos nossos passos, desafios de convivência, que tornarão no futuro os elos mais fortes e duradouros, gerando felicidade, bem-estar e paz da consciência. Assim, diante dos erros dos outros, que nos causam repulsa e horror, vejamos apenas a condição espiritual de irmãos nossos que ainda não tiveram a dádiva de aprender o que já sabemos hoje, e que, com o tempo, também eles se tornarão pessoas boas e úteis à sociedade. Pense nisso!

CAPÍTULO 27 - ESTRANHO COMPORTAMENTO

"Os Espíritos influem sobre nossos pensamentos e ações?' "A esse respeito, sua influência é maior do que podeis imaginar. Muitas vezes são eles que vos dirigem."
(O LIVRO DOS ESPÍRITOS, ALLAN KARDEC, QUESTÃO 459)

Sob profundo desânimo, Manuela sentou-se à mesa apoiando a cabeça com as mãos. Trazia o coração dilacerado; angústia e tristeza imensa a dominavam. As lágrimas rolavam de seus olhos, lavando-lhe o rosto. As lembranças dos últimos acontecimentos vinham-lhe à memória sem que pudesse evitar. As brigas constantes, os desentendimentos sem motivos, o mal-estar que se instalara no lar, antes tão harmonioso e pacífico. O ambiente tornara-se insuportável. Seu filho Rodolfo, ou Rúdi, como carinhosamente era chamado por todos, antes um bom rapaz, amável e obediente, modificara-se por completo, tornando-se agressivo, cobrador, exigente. Agora, quando Rúdi a olhava, Manuela notava algo diferente em sua expressão, um ódio estranho em seus olhos. Era como se o filho, de alguma maneira, a julgasse culpada por alguma coisa que ela porventura lhe tivesse feito. Mas o quê? Sempre o tratara com amor! Em vão procurava na memória uma palavra, um ato, uma reação sua que pudesse ter gerado essa situação. Aliás, seu relacionamento com Rúdi sempre fora mais de amigo e companheiro que de mãe e filho. Entendiam-se. Completavam-se. Porém, do jeito que estavam as coisas, não sabia o que fazer nem a quem apelar. Sentia-se perdida. De repente, Manuela sentiu um cheiro estranho atingindo seu olfato. O feijão! Levantou-se da cadeira, enxugando as lágrimas no avental, enquanto corria até o fogão. Retirou a panela do fogo, irritada. E essa agora! Matias vai chegar para o almoço e o feijão está queimado. Vamos ver o que posso fazer. Com presteza, Manuela retirou o feijão da panela e colocou-o numa tigela, tendo o cuidado de não raspar o fundo para não contaminar o feijão com o cheiro de queimado. Depois, pegando outra panela, colocou azeite, um pouco de alho e cebola para Carlinhos, deixou fritar e acrescentou os grãos cozidos; em seguida, despejou um pouco de água, orégano e folhas de louro. Dentro em pouco, um odor agradável de tempero se espalhava pela cozinha. A urgência em terminar o almoço fez com que se esquecesse de seus problemas. Quando Matias chegou e abriu a porta, respirou fundo exclamando:
- Hum! Que cheiro bom! Ainda bem!, pensou Manuela.
Enquanto Matias se dirigiu ao banheiro para lavar as mãos, ela colocou a mesa. A refeição consistia de arroz, feijão, couve refogada, bife e salada. O marido, servindo-se de bife, perguntou:
- E Rúdi? Não vem almoçar?
Agora, com tudo pronto para o almoço, mais tranqüila, sentou-se. A pergunta do esposo fez com que se lembrasse dos problemas. De cabeça baixa, ela continha as lágrimas. Um nó estrangulava-lhe a garganta e respondeu com dificuldade:
- Talvez não. Saiu bravo, batendo a porta. Nem sei se ele volta para casa.
Matias sorriu de leve, acalmando a esposa:
- Claro que volta, querida. Para onde ele irá? Brigas são normais em família! Logo estará aqui lhe pedindo desculpas. Não se preocupe.
Manuela não respondeu. Na verdade, Matias não tinha noção de como estavam as coisas. Ele não sentia o rancor do filho, seus olhares carregados de mágoa e ressentimento eram dirigidos particularmente a ela. Mas mágoa de quê, meu Deus? Não fazia sentido. Mudanças não acontecem de repente, e era o que tinha ocorrido com ele. O que fazer? A quem procurar? Se fosse problema de saúde, procuraria um médico; se problema mental, um psiquiatra... Manuela parou com o garfo no ar. Uma idéia surgiu em sua mente. Sim! Por que não? Virou-se para Matias, perguntando:
- O que você acha de nosso filho fazer uma terapia?
- Terapia? Com quem? Um psicólogo?
- Sim. Por que não?
- Rúdi é normal, Manuela. Não está doido. Não precisa de psicólogo nem de psiquiatra. Nosso filho está bem! Vai à escola, estuda, passeia, pratica esportes, namora... O que há de errado com ele? Além disso - e aí falou o seu lado prático -, essas coisas custam caro e não podemos pagar.
Manuela respirou fundo. Deveria ter imaginado que Matias não aceitaria nunca sua sugestão. Tinha cabeça dura e para ele problema emocional era "frescura", coisa de quem não tem o que fazer. Acabou de comer calada. Depois, tirou os pratos da mesa e arrumou a cozinha, sem dizer uma palavra. Matias despediu-se, saindo para trabalhar, e ela ficou sentada, pensando. Não que não tivesse o que fazer. Ao contrário. Era costureira e tinha uma montanha de tecidos para cortar e costurar, porém não tinha ânimo nem vontade de nada, muito menos para confeccionar roupas. Era como se suas forças estivessem se esvaindo. Sentou-se na sala e ligou a televisão. Assistiu ao jornal e acabou cochilando. Acordou com a sensação de que havia mais alguém em casa. Deve ser o Rúdi. Foi até a cozinha e encontrou o filho com a porta da geladeira aberta, tomando água no gargalo da garrafa. Ia corrigi-lo, porém achou melhor ficar calada. O rapaz olhou a mãe e, sem dizer palavra, pegou a embalagem de leite, o pão, um pote com geléia de laranja e colocou na mesa. Depois, sentou-se e começou a comer. Havia tal rusticidade nas atitudes dele, uma grosseria tão grande nos gestos, que Manuela ficou horrorizada. Rúdi era alto, rosto bem-feito, olhos escuros e cabelos ondulados; seu sorriso cativante conquistava as garotas. Uma sensação de orgulho materno a envolveu. Meu filho é lindo! De relance, Rúdi olhou para a mãe, que continuava parada na porta.
- O que foi, nunca viu? - perguntou, irritado.
- Calma, meu filho. Não quero brigar com você. Como foi na escola hoje? - disposta a não responder à provocação, ela acalmou-o com voz serena, tentando entabular um diálogo.
- Uma droga. Não vou mais à escola.
- Por que, meu filho? Você sempre gostou de estudar, dos seus amigos, dos professores.
O que houve?
- Tudo isso é culpa sua, maldita. Detesto você. Tudo o que estou passando é por sua culpa - acusou-a com voz grossa e de tonalidade rouca.
- Meu filho!... O que é isso? Como pode falar assim com sua mãe? - reagiu, indignada.
- Cale-se. Não fale comigo. Não sou seu filho. Nunca mais me chame de filho. Você vai ter de pagar por tudo o que me fez. Entendeu?
Ele levantou-se, dirigindo-se com passos duros e pesados para a porta da rua. Manuela foi atrás dele, suplicando:
- Meu filho, volte. Vamos conversar. O que é que eu fiz? Por favor, Rúdi, volte. Não me deixe assim sem uma explicação.
Tudo inútil, porém. Rúdi já tinha saído batendo a porta com violência. Manuela jogou-se no sofá desesperada, em prantos. Quando o esposo voltou para casa, encontrou Manuela de olhos vermelhos, rosto inchado, ainda chorando. Ela contou o que tinha acontecido entre eles, as palavras incompreensíveis que ele dissera, falou sobre os hábitos estranhos dele, suas maneiras grosseiras.
- Querida, não está exagerando? Além disso, tomar água e leite no gargalo é comum na adolescência! - considerou ele, tentando contemporizar.
- Não para nosso filho, Matias. Não foi essa a educação que lhe demos. Além disso, Rúdi nunca agiu assim antes. Você o defende porque não viu como ele me tratou. Acusou-me de alguma coisa. Disse que vou pagar por tudo o que lhe fiz. Chegou a chamar-me de maldita! Não entendi nada. Ah, também disse que detesta a escola e não ia mais às aulas. Você acredita numa coisa dessas?
Matias sorriu, conciliador.
- Talvez você não tenha entendido direito, querida. Quem sabe você esteja com uma visão distorcida da realidade? Tenha mais paciência com ele. Talvez Rúdi tenha tido um dia ruim e sinta-se irritado. Só isso.
- Visão distorcida da realidade? Você quer dizer o quê com isso? Que estou ficando louca? Ou que não estou escutando direito? A culpa, então, é minha? - reclamou ela surpresa e indignada com a reação do marido.
Matias colocou-lhe a mão na cabeça, acariciando-lhe os cabelos, conciliador:
- Talvez eu tenha me expressado mal. Vamos, não se aflija sem motivo, Manuela. Nosso filho sempre foi um bom menino. Olhe, prometo-lhe que vou conversar com ele assim que surgir a ocasião.
- Promete?
- Prometo. Acho que está estressada. Fique tranqüila e não trabalhe tanto. Relaxe.
Estressada, eu? Agora a culpa é minha? Essa é boa!
Quando Rúdi chegou, tarde da noite, o pai estava acordado esperando para falar com ele.
Conversaram. Matias achou o filho normal, como sempre.
- Meu filho, sua mãe disse que você a destratou hoje.
- Não, pai, não foi nada disso. O senhor sabe como a mamãe é, fica cobrando, reclamando, e tem horas que não agüento.
- Eu sei, filho, mas tenha paciência com ela. Evite discussões.
- Mas não discuti com a mamãe, pai! - retrucou o rapaz, inconformado.
- Está bem, meu filho. Eu entendo. Mas evite brigas. Agora, vamos dormir que já é tarde.
Despediram-se e Matias foi para seu quarto. Manuela, que aguardava acordada, quis saber:
- E daí? Falou com ele? Como foi a conversa?
- Foi boa. Ele prometeu que vai tomar jeito. Agora, durma. Deve estar cansada.
Desse dia em diante, as coisas se complicaram. As brigas se tornaram mais freqüentes, os desentendimentos mais sérios. Rúdi a cada dia mostrava-se mais grosseiro e agressivo. Geralmente, na presença do pai, comportava-se bem. Era a mãe ficar sozinha e ele se transformava. Manuela parou de reclamar para o marido, vendo que ele não lhe dava crédito. Talvez até a julgasse louca pelo modo como a olhava em determinados momentos. Manuela estava cada vez mais desesperada. Perdida, sem saber o que fazer ou a quem recorrer, sentia-se escorregando para um abismo fundo e amedrontador, que a estava engolindo, sem que pudesse reagir.


CAPÍTULO 28 - VISITA OPORTUNA

"Seja o que for que peçais na prece, crede que o obtereis e concedido vos será o que pedirdes." JESUS (MARCOS, 11: 24)

Dois meses se passaram. Certa ocasião, Manuela estava sozinha em casa e chorava na sala, sem saber o que fazer, inconformada com as atitudes do filho, cada dia pior. Nisso, ouve a campainha da porta. Uma vez, duas vezes. Na terceira vez, como a pessoa não desistisse, enxugou os olhos e foi atender.
- Olá, Manuela, boa tarde! Cheguei em momento errado?
- Não, Terezinha. Entre, por favor. Como vai? Desculpe a demora em atender.
A recém-chegada entrou sorridente.
- Tudo bem por aqui?
- Tudo bem. Você veio experimentar seu vestido? - perguntou Manuela, tentando disfarçar seu estado de espírito.
- Isso mesmo. Tinha esquecido e somente hoje me lembrei.
- Está pronto para a prova. Vamos até minha sala. Acompanhando a dona da casa, Terezinha sentia-se preocupada.
Ao chegar, quando Manuela abriu a porta, imediatamente notou que ela estivera chorando. O rosto inchado e os olhos vermelhos eram vestígios difíceis de ser ignorados. De temperamento afável, naturalmente alegre e bem-disposta, nesse dia achou-a triste e melancólica. Experimentando a roupa, observava Manuela que se controlava com dificuldade, parecendo prestes a cair no choro. Com delicadeza, Terezinha indagou:
- Desculpe se sou indiscreta, Manuela. Mas está acontecendo algo? Você não me parece bem...
Manuela, que, naquele momento, marcava a altura da barra da saia com alfinetes, confessou:
- Estou passando por alguns problemas difíceis, Terezinha. É tão evidente assim?
- Talvez não para outras pessoas, minha amiga, mas como a conheço de longa data, não pude deixar de perceber. Você sempre foi alegre, risonha, dinâmica. Notei-a o oposto de tudo isso: está triste, séria e parece cansada, sem disposição.
- Pois é exatamente como me sinto. Um trapo.
- Não foi isso o que eu quis dizer - explicou Terezinha, sorrindo.
- Mas é a pura verdade. Você não imagina como tenho sofrido. Depois, voltando a uma atitude mais profissional, Manuela perguntou:
- Está bom neste comprimento?
- Sim, está perfeito.
Nada mais havendo a observar, Terezinha tirou o vestido. Ambas deixaram a sala de costuras e Manuela levou a amiga para a cozinha e colocou água no fogo para fazer um chá. Enquanto esperava a água ferver, pegou as xícaras e um pote com biscoitinhos de nata. Depois, coou o chá e sentaram-se para conversar. Respirando fundo, Manuela contou à Terezinha o problema que estava passando dentro de casa. A outra ouviu com interesse, sem interromper. Depois de desabafar, Manuela concluiu, afirmando em lágrimas:
- Eu precisava mesmo falar com alguém, colocar para fora tudo o que tem acontecido durante esses últimos meses e que tenho guardado dentro de mim. O pior, Terezinha, é que esse estado de coisas está me deixando doente. Tenho dores no corpo inteiro, sem explicação. Nunca tive problemas de saúde, nem gripe pego!
Terezinha pensou um pouco e considerou:
- Não sei se você acredita no que lhe vou dizer, Manuela. Porém, já lhe passou pela cabeça que pode ser um problema espiritual?
- Como assim? - indagou a outra, surpresa.
- Bem... você mesma disse que seu filho parece outra pessoa. Não é verdade?- Sim. Fala e coisas que eu teria feito e de que não me lembro. Sua conduta, suas maneiras, sua voz, tudo está diferente nele. De outras vezes, especialmente com o pai, parece o mesmo de sempre. Estou a ponto de enlouquecer! Acho até que Matias julga que estou louca.
- Pois é. E se não for realmente ele?
- Explique-se melhor, Terezinha. Não entendi.
- E se quem estiver fazendo cobranças a você não for realmente seu filho?
- Aí, eu enlouqueço de vez - respondeu, arregalando os olhos.
Terezinha acomodou-se melhor na cadeira e, pensando um pouco, explicou:
- Manuela, nós somos amigas há anos e nunca falamos sobre religião, porém eu sou espírita.
Diante da expressão assustada da dona da casa, ela esclareceu:
- O Espiritismo é uma Doutrina codificada por Allan Kardec, um pedagogo francês do século 19. Não se trata de uma seita afro-brasileira, Umbanda ou Candomblé. Vou explicar-lhe direitinho.
Terezinha falou dos postulados da Doutrina, da imortalidade da alma e da meta que é a evolução; falou da comunicabilidade entre os dois mundos e sobre as vidas sucessivas, como uma conseqüência lógica da imortalidade e do progresso. Afirmou também que, nessas múltiplas existências, fazemos o bem e o mal, adquirindo com nossas atitudes afetos e desafetos. Aqueles que nos querem bem procuram nos auxiliar, secundando-nos na vida e tornando-se anjos da guarda, espíritos protetores, amigos espirituais, benfeitores enfim. Aqueles a quem fizemos mal e que, portanto, não gostam de nós, tentam nos prejudicar, vingando-se, para que soframos o que os fizemos sofrer. A essa altura, Manuela que ouvia calada e cada vez mais interessada, sugeriu:
- Você quer dizer que junto de Rúdi pode ter alguém que já morreu e que é um inimigo meu?
- Exatamente.
Manuela refletiu por alguns instantes, depois disse:
- Faz sentido. Sua teoria explicaria por que ele parece ser outra pessoa e age de modo tão estranho, grosseiro mesmo. Supondo-se que isso seja verdade, por que normalmente não acontece quando meu marido está perto?
- Porque, provavelmente, Matias tem ascendência sobre ele. Ademais, o problema dele é com você, não com seu marido, segundo o que me contou.
- Tem razão.
Manuela estava surpresa e maravilhada. Terezinha lhe apresentara coisas de que nunca tinha ouvido falar antes. Era um novo mundo de idéias e conhecimentos que se abriam à sua frente. Verdade ou não, explicaria muitas coisas. Manuela refletiu um pouco, depois perguntou interessada:
- Terezinha, tudo o que você me disse tem lógica. Então, se tudo isso for verdade, o mais importante para mim no momento é saber como posso resolver esse problema.
Com delicadeza e seriedade Terezinha explicou:
- Manuela, em primeiro lugar, é importante você entender que, quem estiver ao lado de seu filho, seja quem for, é um irmão nosso que precisa de ajuda. E alguém que foi prejudicado no passado e que agora deseja se vingar de você. Não é um estranho, geralmente. E alguém muito ligado à sua vida e que se considera seu credor.
- Faz sentido - murmurou Manuela. - Meu filho, ou seja quem for, sempre diz que vou pagar por tudo o que o fiz sofrer.
- Exatamente. É alguém que, muitas vezes, foi da nossa família e que traímos, prejudicamos, roubamos, destruímos a existência, e muito mais. Quem sabe o que já fizemos?
- Então, para que você e seu filho sejam ajudados é imprescindível socorrer o desencarnado antes. Caso contrário, ele continuará em seu processo de vingança.
- Entendo. E como se faz isso? Isto é, como ajudar essa alma penada?
Terezinha sorriu ao vê-la se utilizar de uma expressão corrente no vulgo.
- Essa "alma penada" como você diz, é um espírito como nós; a única diferença é que já deixou o corpo material que usava quando aqui na Terra. Para ajudar, se faz preciso, em primeiro lugar, manter o pensamento elevado. Você tem uma religião? Costuma orar?
- Sou católica por tradição, mas raramente assisto missa ou vou à igreja rezar. Mesmo porque não tenho tempo.
- Tempo é algo que se arruma quando se quer, Manuela. Para orar não é preciso gastar muito tempo, poucos minutos bastam. Além disso, você pode orar em casa mesmo, varrendo, costurando, cozinhando. Se seu pensamento estiver elevado, sua prece é válida esteja você onde estiver, independente do que está fazendo. O que importa é a intenção. Também seria importante - isto é, se você concordar - fazermos uma reunião, aqui em sua casa, que chamamos de Evangelho no Lar. Essa providência irá ajudá-la bastante.
- Sem problemas. E quando podemos fazer isso?
- Vamos estudar um dia da semana e um horário que não atrapalhe outras obrigações já estabelecidas. Disponho ainda de algum tempo e, se você quiser, agora mesmo podemos orar em conjunto.- Ótimo! Já me sinto mais esperançosa.
Terezinha pediu licença e foi até o carro buscar O Evangelho Segundo o Espiritismo. Retornando, ela solicitou à dona da casa que trouxesse uma jarra com água pura e dois copos. Em seguida sentaram-se em torno da mesa da cozinha para orar. Terezinha pediu que Manuela abrisse o livro ao acaso. A página mostrava a abertura do capítulo 6, cujo título é "O Cristo Consolador", e a página, "O jugo leve". Manuela leu o texto deixando que aquelas palavras impregnassem seu íntimo. "Vinde a mim, vós todos os que andais em sofrimento e achais carregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e achareis repouso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve. (Mateus, 11:28 a 30)" Ao terminar de ler todo o texto, Manuela sentia-se mais leve e tranqüila. As palavras de Jesus eram confortadoras e davam-lhe esperança, confiança e paz. Terezinha teceu alguns comentários sobre a vida futura, a que Jesus se refere no texto, e, em seguida, fez uma prece de agradecimento, suplicando ao Mestre que amparasse a família, especialmente o jovem Rúdi e os desencarnados que porventura estivessem junto com ele, e impregnasse toda a casa com eflúvios balsâmicos e renovadores. Ao terminarem esse primeiro Evangelho no lar, Manuela sentia-se outra. Estava maravilhada. Um bem-estar enorme inundava-lhe o íntimo fazendo-a ver as coisas com muito mais clareza e serenidade. Agradeceu à Terezinha o auxílio que lhe dera naquela tarde, perguntando:
- O que mais posso fazer para que a situação melhore?
- Essa sua disposição, Manuela, já é de grande ajuda. Procure manter o ambiente da sua casa sempre saudável, pela elevação mental. Conservar o otimismo, o bom ânimo e a confiança em Deus, pois representam cuidados básicos para que todos possam sentir-se bem dentro de casa. Quando seu filho estiver para chegar, ou quando se lembrar dele durante o dia, faça uma prece, mesmo rápida, pedindo a Deus que o abençoe.
- Só isso?
- Por enquanto, só. Deixarei este livro com você para que o leia sempre que tiver vontade ou quando não estiver bem. Depois, voltaremos a conversar.
Terezinha saiu, deixando a amiga com outra disposição. Ainda teria outras importantes informações para passar-lhe, porém preferia dar tempo para que Manuela assimilasse tudo o que ouvira naquele dia. A terapêutica espírita teria de ser aplicada para um melhor resultado, contudo desejava que ela mesma sentisse a necessidade de procurar ajuda. Enquanto isso, na reunião da casa espírita que freqüentava, iria pedir vibrações a benefício daquela família. No dia seguinte, Manuela telefonou-lhe informando que a costura estava pronta. Poderia ir buscá-la à tarde. Terezinha entendeu que a outra tinha pressa em conversar com ela novamente e foi logo perguntando:
- Como estão as coisas, Manuela?
- Maravilha! Conversaremos quando vier buscar o vestido.
Mais tarde Terezinha dirigiu-se à casa da costureira. Ao ver Manuela, que atendeu à porta, notou a mudança que se operara. Fisionomia radiante, ela trazia um largo sorriso na face e um brilho nos olhos.
- Minha amiga, seja bem-vinda! Não sabe o bem que me fez. Abraçou a recém-chegada com imenso carinho.
- Você mudou minha vida! Nem sei como lhe agradecer! - dizia eufórica.
Terezinha cortou aquelas efusões, serenando-a:
- Calma, Manuela. Primeiro, eu nada fiz. Simplesmente orei com você. Tudo o que você possa ter recebido veio do Alto, da ajuda de Deus, de Jesus.
- Sim, mas seja o que for não importa. Você não acredita! Ontem, quando estava na hora de meu filho chegar, fui para meu quarto e li uma página do Evangelho, depois fiz uma oração. Ele entrou em casa completamente diferente, voltou a ser o que era. Nem acredito que tudo passou!
Terezinha levou-a para o sofá e fez com que ela se sentasse, segurando-lhe as mãos entre as suas.
- Manuela, as coisas não são tão simples assim. É todo um processo que precisa ser revertido. Ninguém muda da noite para o dia. Certamente, o acompanhante de Rúdi deve ter sido afastado para que seu filho tenha demonstrado essa melhora, porém o processo é longo e difícil. Temos todo um caminho a percorrer. Não estranhe, até, se Rúdi tiver uma reação e ficar pior. É normal nesses casos. Acontece que, ao perceber que estão perdendo terreno, os inimigos desencarnados reagem com nova ofensiva. Tudo isso, porém, está previsto e não nos assusta.
- Você acha mesmo? - indagou Manuela, preocupada.
- Acho. Então, você precisa se fortalecer, estudando o Espiritismo para entender o que está acontecendo aqui dentro da sua casa e com seu filho, se quiser realmente ajudá-lo.
- Estou disposta a tudo. O que devo fazer? Percebendo-lhe a firmeza, Terezinha prosseguiu:
- Muito bem. Então, temos que agir. Venha comigo ao centro espírita. Aos sábados temos uma reunião com palestra, sempre de conteúdo evangélico e, depois, são aplicados passes. Você vai gostar; além disso, terá ocasião de ver como trabalhamos.
- Existem outras reuniões?
- Sim. Temos todos os dias ocupados com cursos, reuniões mediúnicas e assistência social.
Combinaram que, no sábado, meia hora antes do horário marcado para início das atividades, Terezinha passaria na casa de Manuela para irem juntas à reunião. Manuela sentiu-se muito bem na casa espírita. Gostou bastante da palestra, cujo tema enfocou os relacionamentos familiares, o que parecia que lhe fora particularmente endereçado. Especialmente, guardou o que o palestrante tinha afirmado: o melhor antídoto para qualquer problema é o amor. Logo após o passe, a reunião foi encerrada. Manuela experimentava um bem-estar que havia muito não sentia. Notava-se mais fortalecida, confiante e desejosa de trabalhar a benefício de todos. Uma nova esperança inundava seu íntimo de felicidade e paz.


CAPÍTULO 29 - TUDO SE ENCAIXA

"O sono é o repouso do corpo; o Espírito, porém, não tem necessidade de repouso. Enquanto os nossos sentidos físicos estão adormecidos, a alma se liberta em parte da matéria e assume o domínio de suas capacidades espirituais. O sono foi dado ao homem para a reposição das forças orgânicas e das forças morais. Enquanto o corpo recupera as energias que perdeu pela atividade no dia anterior, o Espírito vai fortalecer-se entre outros Espíritos. As idéias que encontra ao despertar, em forma de intuição, ele as obtém do que vê, do que ouve e dos conselhos que lhe são dados. Equivale ao retorno temporário do exilado à sua verdadeira pátria, como um prisioneiro momentaneamente libertado."
(O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, ALLAN KARDEC, CAP. 28, ITEM 38)

Naquela noite, Manuela foi deitar pensativa. Por tudo o que já lera sobre Doutrina Espírita, que não era muito, juntando com o que Terezinha lhe explicara e acrescentando ainda a palestra que ouvira na casa espírita, podia ter uma noção mais clara da situação. Terezinha afirmou que os espíritos continuam nos vendo e pensando como éramos no passado. Então, se prejudiquei alguém, certamente esse alguém estará com raiva de mim. E com toda razão. Jesus ensina que devemos nos colocar no lugar do outro, e, em caso de dúvida, é o que sempre faço. Então, se eu, Manuela, estivesse no lugar do desencarnado, como estaria? Com certeza, com o mesmo ódio que ele demonstra agora, tentando fazer justiça. Refletindo sobre o assunto, Manuela decidiu que, se o caminho era o amor, desse dia em diante ela procuraria mudar. Faria orações pelo desafeto desencarnado sempre que se lembrasse dele, e, ao encontrar-se com Rúdi, procuraria demonstrar amor, exatamente o que não conseguia fazer desde que tudo tinha começado. Como Rúdi estivesse sempre com uma pedra na mão, disposto a atacá-la, agredi-la com palavras, acusando-a de alguma coisa, ela se afastara dele até por temer os encontros - sempre extremamente difíceis -, que a deixavam aflita e angustiada. Assim, no dia seguinte, quando o filho se levantou, Manuela muniu-se de coragem para enfrentar a rejeição que ele sentia. Aproximou-se como se nada estivesse acontecendo, envolveu-o com olhar carinhoso e perguntou, afável:
- Bom dia, meu filho. Dormiu bem?
- Pessimamente - grunhiu ele, mal-humorado.
Ela acercou-se dele e, antes que Rúdi pudesse impedir, abraçou-o, afirmando:
- Você vai ficar bem, meu filho. Deus vai ajudá-lo e você terá um bom dia. Vamos tomar café?
Surpreso, ele não conseguiu reagir. Ficou calado. Colocou um pouco de leite numa caneca, que bebeu de um gole, e saiu mastigando um bocado de pão, a caminho da escola. Era a primeira tentativa de aproximação. Manuela, esperançosa, notou que ele, diante do comportamento dela, ficara sem ação. Pelo menos, não a agredira verbalmente, o que já era um avanço. Dali por diante, mais animada, passou a agir diferente, trabalhando naquilo que denominava sua "campanha de desarmamento". Perto do horário de Rúdi voltar, Manuela orou a Jesus, elevando o pensamento em súplicas ao Mestre para que o filho chegasse bem, ao mesmo tempo que o envolvia com ternura. Lembrava-se também do desafeto desencarnado, mentalmente pedindo-lhe perdão pelos males que lhe causara e dispondo-se a ajudá-lo no que fosse possível. Apesar dos seus esforços, nos momentos que Rúdi entrava em crise e soltava uma enxurrada de acusações, com os olhos a lançar chamas odientas, Manuela procurava vencer a rejeição. Aproximava-se dele cheia de coragem e determinação, abraçava-o com amor, afirmando em lágrimas:
- Perdoe-me. Ignoro o que lhe fiz, mas sei que o magoei muito. Perdoe-me. Quero ajudá-lo. Acredite em mim, aceite minha boa vontade e meu carinho. Manuela sabia que estava falando com o desencarnado e procurava envolvê-lo com amor, o que o deixava sem defesa. A entidade começava a chorar e se afastava. Então, Rúdi voltava a si dizendo:
- O que está acontecendo aqui, mamãe? Parece que andei chorando. Tem horas que não sei o que faço.
- Está tudo bem, meu filho. Está tudo bem.
- Sinto-me tão estranho às vezes! Não sei o que está havendo comigo. Mamãe, acreditaria se lhe dissesse que tem hora que parece que sou outra pessoa? Nesses momentos, fico muito mal.
Manuela acariciou os cabelos do filho, enquanto lhe dizia:
- Acredito, meu filho. Talvez você esteja precisando de ajuda. Quer me acompanhar a uma reunião espírita? Tenho participado algumas vezes e asseguro que você vai gostar e lhe fará muito bem.
Rúdi aceitou, embora com reservas. Nada conhecia sobre Espiritismo, todavia, intimamente, sabia que estava precisando de ajuda, o que deixou Manuela surpresa e animada. A situação começou a melhorar, porém Manuela ainda sentia, algumas vezes, rejeição nas atitudes do filho, conquanto de forma bem menos acentuada. Certa noite, alguns meses depois, Manuela deitou-se e demorou a dormir, pensando em seu filho e no espírito tão necessitado de socorro. De repente, se viu num lugar desconhecido. Era uma sala ampla e bonita, onde estavam várias pessoas, inclusive seu filho e seu marido. Cogitava que reunião seria aquela, quando viu alguém se aproximar. Era um senhor alto, de cabelos brancos e idade indefinível; simpático, tinha sorriso terno e olhos expressivos. Manuela nunca o tinha visto, e, todavia, experimentou íntima certeza de que já o conhecia de longa data. Acercando-se dela, ele falou, com uma voz firme e serena, que ela tentou encontrar nos refolhos da memória onde já a teria ouvido:
- Minha filha, existe um momento que é crucial em nossa existência. O momento de assumirmos a responsabilidade pelos atos praticados e tentar repará-los, socorrendo aqueles que prejudicamos no passado.
Aquela voz doce e, ao mesmo tempo enérgica, fazia Manuela sentir uma alegria enorme por estar a seu lado, como se por longo tempo tivesse sido privada desse prazer. Agora, dando um passo para o lado, o benfeitor apresentou um homem que ela ainda não tinha notado: extremamente magro, nas faces encovadas havia tristeza e dor; trazia os olhos vermelhos e congestos, a cabeleira suja e desgrenhada, as roupas maltrapilhas. Uma figura de causar piedade. Com ternura, o benfeitor aproximou-os um do outro e disse:
- Manuela, este é Cirilo, nosso irmãozinho que precisa de amparo. Só você pode ajudá-lo.
Ao ouvir essas palavras, Manuela entendeu. Ao fitar o infeliz que ali estava à sua frente, viu a mesma expressão que havia no olhar de Rúdi quando a fitava. Entendeu que era ele, Cirilo, o desafeto que a acusava de tê-lo feito sofrer.
Diante dele sentia-se culpada, sem saber por quê.
- Perdoe-me, meu irmão - repetiu novamente, levada por incoercível impulso, como tantas vezes o fizera.
Incentivado gentilmente pelo orientador, o desconhecido que ali estava fitou-a e disse, com alguma dificuldade:
- Tenho... ouvido suas preces... e... seus... pedidos de perdão. Acredito que esteja... sendo sincera. Sua atitude... me tem... comovido bastante. Resolvi... aceitar sua vontade... de reparar o passado.
Aquela voz vinha lá do pretérito, revolvendo em seu peito emoções adormecidas.
- Sim, meu irmão. Sou sincera em minhas intenções. Acredite-me. O que posso fazer por você?
Cirilo tentou falar, mas não conseguiu. Seu olhar era um pedido de socorro, porém, inclinou a cabeça e pôs-se a chorar. Euclides, o generoso benfeitor envolveu-o com os braços, aconchegando-o ao coração, e explicou:
- Cirilo precisa tomar um novo corpo, Manuela. Dentro de sua família ele encontrará o ambiente adequado para refazer a vida, quando poderá estar sob sua responsabilidade e amparo, para ser educado e protegido com amor.
Manuela experimentava imenso júbilo ante a idéia de receber alguém em seu lar. Todavia considerou, desapontada:
- Bondoso amigo, teria enorme satisfação em aconchegar Cirilo em meus braços como filho, todavia minhas condições orgânicas não o permitem. Não posso mais ser mãe.
Euclides sorriu como se estivesse ciente desse fato, e esclareceu:
- Não se preocupe, Manuela. Ele voltará a seus braços, minha irmã, como neto do coração. Será filho de Rodolfo.
O benfeitor fez uma pausa, depois esclareceu, vendo a expressão de surpresa de sua interlocutora:
- Esses planos só serão executados daqui a alguns anos. Enquanto isso, o nosso Rodolfo terá ocasião de amadurecer para a vida, e, Cirilo, de se preparar convenientemente para essa nova empreitada.
Manuela experimentava grande alegria. Vendo aquele ser que ali estava defronte dela, de cabeça baixa, humilhado pela sua condição, experimentou imensa compaixão. Com espontaneidade, aproximou-se de Cirilo e abraçou-o com amor. Depois, fitando Rúdi e seu marido que estavam mais distantes a palestrar com outras pessoas, alheios, como se não soubessem exatamente a importância do que estava acontecendo, indagou vertendo lágrimas:
- Rúdi já sabe?
- Ainda não foi consultado, porém não encontraremos dificuldade em conseguir sua aprovação. Entre o planejamento reencarnatório de Cirilo e a sua preparação, teremos alguns anos, como já expliquei. Tenho certeza de que Rodolfo não se recusará a prestar ajuda a nosso irmão Cirilo, mesmo porque eles têm grandes afinidades entre si.
Sem que Manuela precisasse exteriorizar seu desejo de conhecer o passado, o benfeitor espiritual se antecipou:
- Em reencarnação pretérita, ambos foram suas vítimas, Manuela, o que explica a afinidade e a empatia que sentem um pelo outro, e foi exatamente essa ligação que possibilitou a ação de Cirilo através de Rodolfo, naturalmente facilitada pela sensibilidade mediúnica que seu filho possui. No fundo, ambos pensam da mesma forma. No entanto, na época, Rodolfo, menos rebelde e em melhores condições espirituais, aceitou o socorro que lhe era oferecido e renasceu em seu lar, ao contrário de Cirilo, que se recusou terminantemente a perdoar e a mudar de vida.
Manuela começava agora a entender a mecânica celestial, percebendo a bondade e a justiça de Deus em tudo. Com os olhos úmidos, comentou emocionada:
- Bem dizem que não existe o acaso.
- Sim, minha irmã. Tudo tem sua razão de ser, mesmo aquilo que nos parece estranho e sem propósito. No fundo, tudo se encaixa perfeitamente, quando analisamos o passado e conhecemos todos os fatos.
Manuela ficou pensativa por alguns minutos, depois perguntou:
- E agora, meu irmão, o que preciso fazer? Como devo agir?
- Necessário sedimentar o interesse de Rodolfo pelas coisas do espírito. Não deixe de levá-lo à casa espírita. Ele possui uma faculdade que precisa ser estudada e trabalhada para, futuramente, prestar socorro a outras pessoas. Ao mesmo tempo, continue orando por Cirilo que, ainda muito frágil e indefeso, ensaia uma nova vida e precisa de sustentação nas diretrizes que estabeleceu para o futuro. Nosso irmãozinho, após recuperar-se na espiritualidade, preparando-se e reeducando-se à luz do Evangelho do Cristo, voltará para junto de vocês, onde permanecerá algum tempo, fazendo as ligações vibratórias com a família, em virtude da futura encarnação. Todavia, não tema. Dessa vez a presença dele não será mais para perturbar e influenciar de forma negativa. Será para ajudar. Manuela experimentava indizível bem-estar e uma alegria contagiante. O futuro delineava-se de maneira promissora. Fiel aos costumes ancestrais, fitou aquele ser iluminado que ali estava e ajoelhou-se, tomando-lhe a mão e fazendo menção de depositar ali um beijo. Percebendo-lhe a intenção, o amigo espiritual levantou-a, colocando-a de pé.
- Minha irmã, não me creia um ser especial. Sou apenas Euclides, alguém que lhe quer muito bem e que tem acompanhado seus passos em diversas épocas. Somos velhos conhecidos e espíritos ligados por laços de profunda simpatia.
Abraçou-a longamente, transmitindo-lhe energias fortalecedoras e benéficas. Ao afrouxar os braços, Manuela inclinou-se diante dele, afirmando:
- Deixe-me pelo menos pedir sua bênção como o faria a um pai. Tomando-lhe a mão, beijou-a com ternura, enquanto as lágrimas banhavam seu rosto.
- Sua bênção, meu pai.
- Deus a abençoe, minha filha.
Nós que estávamos ali juntos, percebemos nos olhos dele um brilho intenso e uma luz radiante de emoção. Sentimos, também, que nosso benfeitor estava muito mais ligado àquela família do que poderíamos supor. Levantando a nobre fronte, ele dirigiu os olhos para o Alto, pondo-se a orar. E nós o acompanhamos, elevando os pensamentos, gratos pela oportunidade de servir e de participar de momento tão especial. Manuela despertou no corpo físico com a sensação de que tivera uma reunião de extraordinária importância para sua existência. Acordou em lágrimas, sentindo ainda repercutir em seus ouvidos a prece que um ser iluminado fizera, mexendo com suas fibras mais profundas. Permaneceu a imagem indelevelmente gravada em sua memória: um senhor de beleza serena, rosto afável e olhos ternos. Ao lembrar do seu sorriso, um misto de amor, veneração e saudade inundou-a por dentro. Intimamente, tinha a convicção de que o conhecia de longa data. A sensação que a presença dele lhe dava era a de um pai. Por mais que tentasse, não conseguia lembrar-se de onde. Como era o nome dele mesmo? Sentada para tomar o café-da-manhã, não conseguia conter as lágrimas.
- Aconteceu alguma coisa, Manuela? - perguntou o marido, preocupado.
- Tive um sonho lindo, Matias. O melhor que já tive em toda a minha vida.
Rodolfo, que levava a caneca de leite à boca, parou a meio caminho, pensativo por alguns instantes, e comentou em seguida:
- Ouvindo-a falar, mamãe, lembrei-me de que também sonhei esta noite, o que raramente acontece. Estava numa sala clara e grande com várias pessoas, algumas que não conheço. O que me causou estranheza foi ver um maltrapilho naquele lugar elegante, o que me encheu de compaixão.
- Pois eu não me lembro de nada, nunca. Acho que não costumo sonhar. Durmo como uma pedra - resmungou Matias.
Manuela sorriu levemente, sem esclarecer o filho que tinham estado no mesmo lugar, entendendo que as lembranças de Rúdi confirmavam o sonho que tivera. Concluiu também que, cada pessoa guarda o que tem condições de assimilar; e que o esposo, talvez por não aceitar a idéia de espiritualidade, permanecia embotado durante a noite, sem conseguir liberar-se como espírito para vôos mais altos. Durante todo o dia esteve emocionada, envolta em harmonia e bem-estar, sem conseguir esquecer-se daquele belo sonho. Sensibilizada, compreendeu que era a misericórdia divina agindo em sua vida. Com o socorro do Alto, tudo mudaria desse dia em diante. Levantou o olhar para o céu, onde brilhava um lindo sol, e agradeceu a Deus, sem palavras, a ajuda que recebera.


CAPÍTULO 30 - EXCURSÃO DE RESGATE

"Deus quer o progresso de todas as suas criaturas, e é por isso que nenhum desvio do caminho reto fica impune. Não há uma só falta, por menor que seja, uma única infração a sua lei que não tenha forçosas e inevitáveis conseqüências, mais ou menos lastimáveis, e disso conclui-se que, tanto nas pequenas como nas grandes coisas, o homem sempre é punido pelo erro que cometeu."
(O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, ALLAN KARDEC, CAP. 5, ITEM 5)

Entregues às nossas atividades cotidianas não víamos o tempo passar, célere. As tarefas eram muitas, vários projetos em andamento, o que nos tomava grande parte do tempo. O livro, sob a minha responsabilidade, estava bem adiantado e eu não tardaria a terminá-lo; assim, ultimávamos os preparativos para o próximo. Tudo isso me proporcionava satisfação íntima e agradável sensação de dever cumprido. Então, por que, bem lá no fundo, havia alguma coisa a me incomodar, como um espinho na carne? Era algo pequeno, qual ferida não cicatrizada, que refletia um sentimento inquietante que me pressionava, produzindo certa ansiedade e tensão, que eu não conseguia definir. Por que nem tudo era perfeito como eu desejava acreditar que fosse? Todavia, como as bênçãos que fluíam em minha vida fossem muitos maiores, procurava não prestar atenção a esse ligeiro incômodo que por vezes me assaltava. Nesse dia, ao término de uma reunião no Centro de Estudos da Individualidade, nos separamos em grupos e passamos a conversar informal e animadamente sobre os assuntos abordados de mais interesse. Não demorou, porém, em virtude do horário, os participantes foram se retirando; muitos retornaram para casa, buscando o repouso necessário, após uma jornada de trabalho; outros, apressados para entrar em serviço, encaminharam-se para os locais onde dariam plantão; os demais, que estavam de folga, como no meu caso, tinham tempo para dialogar sem pressa. Em poucos minutos, o salão estava quase vazio, permanecendo apenas os falantes inveterados. Henrique, com quem tenho grande afinidade, após despedir-se de alguns amigos, aproximou-se de mim.
- Quase não temos conversado, Paulo. Mal trocamos algumas palavras, sempre ocupados com a execução de nossas tarefas.
- E verdade, Henrique, e sinto falta dos nossos longos papos. Trocando idéias sobre o aproveitamento da noite, deixamos o salão e saímos do prédio, procurando refúgio num banco do agradável jardim. Na noite aprazível, o aroma das flores trazido pela aragem fresca nos envolvia em bem-estar.
- Está tudo bem com você, Paulo?
- Muito bem. Melhor não poderia estar. Sinto-me em paz comigo mesmo - respondi com meu melhor sorriso.
Henrique balançou a cabeça, fitando-me sério e compenetrado.
- A que se deverá, então, esse brilho de inquietação que vejo no fundo de seus olhos?
Henrique me conhece melhor do que eu mesmo! - pensei.
Ele sorriu ante minha surpresa. Levantei a cabeça e olhei o céu, onde miríades de estrelas cintilavam. Não adiantava fugir de mim mesmo. Melhor encarar a realidade.
- Também ignoro, Henrique, o que está acontecendo comigo - confessei em voz baixa. - Alguma coisa dentro de mim não vai bem, mas não consigo detectar o problema. E sensação de algo muito pequeno, insignificante, mas que cresce, lentamente, ameaçando dominar-me por inteiro.
O amigo deu uma batidinha amigável em meu ombro, tranquilizando-me:
- Não se preocupe, Paulo. Você sabe, muitas vezes acontece de sentirmos o impacto de pensamentos que nos são enviados da crosta, ou mesmo de desencarnados. Isso não é nada. Talvez algo que tenha ficado sem solução, quem sabe? Você acabará por descobrir a origem. Pense, reflita, e encontrará a resposta.
Como já era tarde, e no dia seguinte teríamos serviço logo cedo, nos despedimos. Antes que eu me afastasse, Henrique lembrou:
- Não se esqueça de que amanha teremos uma atividade socorrista.
- Sim, estou ciente. Boa noite, Henrique.
- Boa noite, Paulo.
No dia seguinte, à hora combinada, nos reunimos em nossa sede para dar seqüência à programação estabelecida. A caravana constituía-se de alguns dos membros da nossa equipe de jovens: Marcelo, Eduardo, Irineuzinho, César Augusto, Virgínia, Padilha, Melina e eu, além de Henrique e alguns outros servidores que eu não conhecia. Após a oração em conjunto, suplicando o amparo de Mais Alto para a nossa excursão, nos locomovemos pelo espaço rumo a nosso objetivo: certa região de trevas densas próxima da crosta terrestre. Após algumas horas, atingimos "Luz Bendita", posto de socorro localizado no umbral inferior e mergulhado em névoas, instituição benemérita que nos serviria de base e sustentação para a ação de resgate. Fomos recebidos com imenso carinho pelos irmãos da instituição. Silas, o responsável, abriu os braços fraternalmente, sorrindo:
- Nós os esperávamos, meus irmãos. Sempre gratificante recebermos visitas de esferas mais elevadas.
Henrique nos apresentou ao dirigente Silas, de quem era velho amigo, trocando cumprimentos efusivos. Todos se mostraram extremamente simpáticos e acolhedores. Dentro em pouco, era como se nos conhecêssemos de longa data. Silas e seus assistentes mais diretos, Dario, Rogério e Vilmo, nos conquistaram o coração. A atividade socorrista estava planejada para o dia seguinte. Assim, aproveitamos as horas disponíveis para conhecer as instalações e as diversas atividades que ali se realizavam. Na manhã seguinte, logo cedo nos pusemos a caminho, assessorados por Dario, profundo conhecedor da região. Com extrema dificuldade, atingimos um local em que havia algo que se poderia chamar - na falta de expressão melhor -, de aldeia. Tudo ali era coberto de lama, inclusive algumas taperas, que se espalhavam pelo terreno encharcado. Jamais tínhamos presenciado algo semelhante. Com a experiência de anos de serviço naquela região, em voz baixa, Dario deu uma ordem aos tarefeiros e rapidamente algumas maças surgiram. Movimentando-se pelas ruas da aldeia, sabendo exatamente onde procurar, os servidores entravam nas casinholas e traziam as entidades em condições de serem socorridas. Ao cabo de uma hora de serviço, deram por encerrada a operação. Seis entidades seguiriam conosco. Os infelizes habitantes do lugar, em silêncio, acompanhavam toda a movimentação, aguardando ansiosamente serem escolhidos. Em seus olhos, as únicas coisas que escapavam à lama geral, notava-se a esperança de sair daquele antro de sofrimento. Todavia, ao perceberem que nos dispúnhamos a partir, sem levá-los, puseram-se a gritar, suplicando ajuda em pranto comovente. Seus brados nos cortavam o coração. Lançando um olhar para o responsável pela expedição, analisamos a difícil decisão do companheiro, também condoídos da situação daqueles infelizes. Dario, porém, mais experiente, não se deixou convencer, explicando com serenidade:
- Sei o que estão sentindo, meus amigos, ante a situação dessas criaturas. No entanto, não se iludam. Apesar das súplicas comoventes, esses irmãos não têm condição de serem resgatados. São perversos, maus e vingativos. O que fazemos, normalmente, é dar-lhes palavras de consolo e de esperança. A um gesto seu, os padioleiros se afastaram com as maças, transportando os irmãos que tinham sido socorridos. Dario fez outro gesto, quase imperceptível, e um dos servidores trouxe uma grande rede com uns três metros de altura e pelo menos trinta de largura, presa por tubos que pareciam de metal que foram fincados no solo, o que permitiu à imensa rede ficar estendida a alguns metros à nossa frente, separando-nos e protegendo-nos dos habitantes do lugar, que ameaçavam atacar nossa equipe. Depois, acenderam-se luzes, visto que a escuridão era grande, o que nos permitiu enxergar melhor o mar de lama que tínhamos diante de nós. Em seguida, Dario pediu a Henrique que dirigisse algumas palavras aos habitantes do lugar. Nosso orientador adiantou-se alguns passos, aproximando-se da rede magnética, e, depois de concentrar-se por alguns segundos, começou a falar:
- Meus irmãos! Que a paz de Jesus esteja com todos! O Cristo legou-nos em sua passagem pela Terra lições de extraordinária importância e que nos compete lembrar. "Vinde a mim, vós todos os que andais em sofrimento e vos achais carregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e achareis repouso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve. "
As palavras do Mestre não são expressões vazias de significado. Jesus nos convida a segui-lo, acenando-nos com a felicidade futura. Somos todos nós filhos de Deus, Pai Misericordioso que nos ajuda e ampara em qualquer situação. Mesmo quando nos consideramos sozinhos e abandonados, Ele está sempre conosco. Todavia, é necessário fazermos por merecer o amparo divino, realizando a parte que nos compete. Por isso, o Cristo afirma: "Pedi, e se vos dará; buscai, e achareis; batei, e se vos abrirá. Pois todo que pede, recebe; o que busca, encontra; e a quem bate, a porta lhe será aberta. Ou qual dentre vós é o homem que, se porventura o filho lhe pedir um pão, lhe dará pedra? Ou se pedir um peixe, lhe dará uma serpente? Ora, se vós, que sois maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai que está nos céus dará boas coisas aos que lhe pedirem?" Henrique fez uma pausa, perpassando o olhar sereno sobre todos os que o ouviam. Ao recomeçar a falar, o vozerio era grande. As primeiras palavras foram saudadas com gritos, palavrões obscenos, insultos. Alguém mais afoito gritava:
- Cale-se! Fora daqui! Não precisamos de vocês. Desapareçam! Aqui mandamos nós!
Henrique prosseguiu, porém, e, diante de sua voz serena e de timbre agradável, mesmo os mais exaltados foram se calando aos poucos, e agora havia o maior silêncio. Nosso instrutor aproveitando o momento continuou:
- Meus irmãos! A hora da libertação chegará para todos. Imprescindível, porém, nos despojarmos dos sentimentos inferiores, de ódio, de vingança, de mágoa, de ressentimento.
Modificando nossas disposições íntimas, serenando o coração e elevando a mente para Jesus, pela oração, estaremos prontos para uma vida melhor e mais feliz. Por ora, meus queridos irmãos, permaneçam em paz, meditando em tudo o que eu lhes disse e preparando-se para um futuro encontro com os servidores do bem. Que o Mestre Jesus, Divino Amigo de todos nós, nos envolva em amor e paz! Por alguns segundos, a multidão dos ouvintes ainda permaneceu estática. Depois, percebendo que nada tinha se alterado, que não seriam socorridos, puseram-se novamente a gritar, blasfemando e deblaterando contra Deus, contra Jesus e contra todos nós. Dario mandou apagar as luzes, recolher a rede e todo o material de apoio que ali estava, e afastamo-nos sem demora. Com a escuridão, o vozerio foi diminuindo até cessar de todo, retornando eles para suas taperas. Em nós permanecia uma desagradável sensação de incapacidade, de impotência. Era sempre assim que nos sentíamos ao terminar uma ação de resgate, em que a grande maioria dos irmãos sofredores não recebia socorro. Ao nos ver com o semblante desconsolado, Dario animou-nos:
- Sei exatamente o que estão sentindo. Também nós, que habitamos estas plagas, nos primeiros tempos não nos conformávamos por não podermos socorrer a todos os irmãos em sofrimento. No entanto, vocês tiveram a oportunidade de ver como as súplicas mais enternecedoras transformam-se em dardo venenoso a expelir emanações maléficas, quando não recebem o que pedem.
O assistente de Silas parou de falar por alguns instantes, depois prosseguiu compenetrado:
- Na verdade, são como crianças que não sabem o que é melhor para elas, que querem um brinquedo e se irritam se o pai lhes nega, jogando-se no chão e pondo-se a chorar. Por isso, em nossas atividades, todo cuidado é pouco. A responsabilidade do trabalhador do bem é imensa no que tange aos socorros que presta. Devemos entender que as conquistas do espírito são lentas, que seu amadurecimento se denota pelas emanações mentais. Além disso, aqueles que não foram socorridos hoje poderão sê-lo em uma nova oportunidade, quando de nossas excursões periódicas. Deus é Pai e nenhum de seus filhos está perdido. Ao contrário, todos atingirão a felicidade um dia. Quando terminou de falar, concordamos com ele. Sim, sabíamos dessa realidade, visto já termos participado de outras atividades do gênero. Contudo, ainda encontrávamos dificuldade de nos afastarmos deixando aqueles irmãos infelizes em seu ambiente, mesmo sabendo que não estavam sendo injustiçados e que colhiam o que tinham plantado. Henrique, que permanecera calado, considerou:
- Não devem se envergonhar desse sentimento de impotência, nem do desejo de ajudar que agasalham no coração. Tudo isso faz parte do nosso crescimento como seres que já pensam no próximo e que ensaiam o amor mais amplo, como Jesus ensinou. Devemos, isto sim, temer-nos mantermos insensíveis diante dos irmãos que sofrem, em qualquer lugar que estejam.
Dario concordou com Henrique:
- Sem dúvida, meu amigo. O fato de entendermos a impossibilidade de socorrer a todos não significa que estejamos livres de sentimentos mais nobres. Mostra, apenas, que confiamos em Deus, e que entendemos que para tudo existe uma ocasião certa.
Conversando, chegamos aos muros do posto de socorro. Conquanto fosse dia, as luzes permaneciam sempre acesas, em virtude da escuridão ambiente. Fomos recebidos com alegria por Silas, que exaltou o sucesso da excursão de resgate. As seis entidades foram recolhidas, recebendo os primeiros cuidados. Depois de devidamente higienizadas, alimentaram-se e foram levadas para uma enfermaria, onde repousariam em leitos limpos e macios, o que não acontecia fazia muito tempo. No dia seguinte, três prosseguiriam conosco com destino à casa espírita, na crosta, onde ficariam albergados, aguardando a ocasião de serem levados a uma reunião mediúnica. Lá teriam a oportunidade de se comunicar com os encarnados, através de um médium, dando seqüência à atividade de socorro. No dia seguinte, nos despedimos dos novos amigos de "Luz Bendita", em transportes de carinho fraternal. Silas havia nos cedido um veículo fechado para a locomoção das três entidades necessitadas. Após despedir-me dos servidores de "Luz Bendita" com os quais tivemos mais contato, aproximei-me dos companheiros que aguardavam no pátio, e percebi que as entidades socorridas já estavam dentro do veículo. Acenando uma última vez para nossos novos amigos, iniciamos a viagem de volta, que transcorreu sem maiores problemas. Ao chegar à crosta planetária, nos dirigimos à cidade onde se localiza a casa espírita em que ficariam os três enfermos espirituais. Deixem-me explicar a situação para que possam entender-me, pois não desejo parecer insensível diante dos leitores com relação às entidades enfermas e necessitadas. A verdade é que, em nossas atividades de socorro aos irmãos em sofrimento, lidamos com uma infinidade deles, espíritos que geralmente não conhecemos, não tendo nenhuma ligação conosco. É raro encontrarmos algum conhecido no meio deles. Não tive maior contato com esses irmãos em virtude de essa tarefa não estar a meu cargo. Sei que ali eles permaneceriam por algum tempo até que estivessem em condições de serem levados a uma reunião de desobsessão.


CAPÍTULO 31 - APRENDENDO A PERDOAR

"Então Pedro, aproximando-se, lhe perguntou: Senhor, até quantas vezes meu irmão pecará contra mim, que eu lhe perdoe? Até sete vezes? Respondeu-lhe Jesus: Não te digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete." (MATEUS, 18:21 E 22)

A vida continuava seu curso. Entregue às tarefas sob minha responsabilidade, mantive-me afastado dos irmãos que tinham sido socorridos. Alguns dias depois, lembrando-me deles, busquei notícias e fui informado de que dois dos espíritos resgatados, conduzidos para esclarecimento numa reunião, a seu tempo foram ajudados, recomeçando uma nova vida plena de esperanças. O terceiro espírito, embora submetido ao mesmo processo, recusava-se a modificar suas idéias, atitude imprescindível para a renovação de sentimentos, mostrando-se impermeável à ajuda que lhe ofereciam. Permaneceu mais algum tempo em local adequado às suas condições e, como não demonstrasse desejo de melhora, nossos maiores permitiram que seguisse seu curso. Explico-me. Aqui, na espiritualidade, não podemos obrigar ninguém a agir contra sua vontade. Tentamos ajudar, esclarecer; oferecemos informações, expomos a realidade. Todavia, não podemos desrespeitar o livre-arbítrio de ninguém. Se o espírito, apesar de nossos esforços e das condições que lhe são dispensadas, opta por prosseguir em sua vida de erros, nada podemos fazer a não ser entregá-lo a si próprio, deixando que siga seu caminho. Mesmo porque a condição vibratória o atrai para os sítios onde estão seus interesses maiores, sejam afetos, desafetos, tesouros amoedados, poder de mando e/ou de autoridade. Aqui, do outro lado, a densidade vibratória é algo que arrasta irresistivelmente, tanto para mais alto quanto para mais baixo. Informado do fato, lamentei o ocorrido, porém estava fora do nosso âmbito de ação. Como os necessitados não parassem de chegar, acabei por esquecer-me daquele caso. Algum tempo depois, logo pela manhã chegamos à casa espírita onde nosso grupo presta colaboração na crosta. Como haveria reunião mediúnica à noite, conforme programado, nosso dia seria intenso e logo começamos as tarefas de rotina. A equipe da qual faço parte tem a função específica de percorrer as residências de todos os integrantes do grupo encarnado, especialmente os médiuns e doutrinadores, para conferir se está tudo bem, em ordem, e se nenhum deles vai deixar de comparecer à atividade mediúnica. Caso haja algum problema, buscamos a solução, auxiliando para que a paz se restabeleça, seja em virtude de problema material ou espiritual. Apesar dos nossos esforços, nem sempre conseguimos realizar nossa tarefa a contento, isto é, tendo a presença de todos os companheiros encarnados, em vista das dificuldades e obstáculos que fazem parte da vida material. Nesse dia, muitas horas depois, quando as sombras da noite desciam sobre a Terra, estando tudo em ordem e as atividades preparatórias encerradas, quase no horário de dar início à reunião, tive vontade de ver quem eram os irmãos candidatos à comunicação mediúnica naquela noite. Entrei no recinto onde eles eram mantidos separados dos demais, assistidos por auxiliares da nossa equipe. Passei os olhos sobre eles, cheio de compaixão. Eram cinco. O primeiro gemia de dor, curvado sobre si mesmo, com o abdome aberto e o sangue a escorrer da ferida, um corte longitudinal, evidentemente feito à faca. O segundo e o terceiro, pelas expressões zombeteiras e os olhares cáusticos, pelas vibrações pesadas que exteriorizavam, deixavam visível a condição de obsessores contumazes, vingadores impenitentes; eram estranhos para mim, provavelmente ligados a alguém da equipe encarnada ou a pessoas necessitadas, cujos nomes constavam do caderno de preces, por intercessão de um amigo ou parente preocupado. Os dois últimos eram sacerdotes, fato comum em reuniões mediúnicas, em vista das tradicionais e constantes perseguições religiosas que atingem o movimento espírita, o que não me causou nenhuma surpresa. Ao fitar um deles, no entanto, algo dentro de mim se agitou. Senti-me dominado por uma sensação profundamente desagradável. Parecia-me conhecer aquele padre. Mas, de onde? Em virtude das nossas diferenças vibratórias, ele não conseguia perceber-me a presença. Discretamente observei-o por alguns instantes. Tratava-se de um homem de idade avançada, alto, algo encurvado, e com a barriga saliente dos que se alimentam em profusão; cabelos brancos, fisionomia avermelhada e intumescida, característica dos usuários de substâncias alcoólicas. Na expressão atormentada, os olhos claros, injetados, impressionaram-me sobremaneira. Onde já o teria visto? Por mais que rebuscasse na memória, não conseguia localizar onde o teria encontrado. Quedei-me por alguns minutos, pensativo e preocupado, tendo em vista o mal-estar que sua presença me causava. De repente, eu me lembrei. Era aquele mesmo sacerdote que conheci na minha infância e que me deixara marcas indeléveis por toda a existência. O sangue subiu-me à cabeça sem que pudesse evitar. Afastei-me dali, tentando controlar meus sentimentos, e confesso que tive grande dificuldade. Discretamente procurei um recanto mais tranqüilo e deixei-me cair numa cadeira. Com a cabeça entre as mãos, dobrei-me sobre mim mesmo entregue a um turbilhão de sensações diferentes e contraditórias, permitindo que lágrimas amargas corressem pelo meu rosto. Sim! Era ele mesmo! Não havia dúvida possível. Diferente, bem mais velho, porém era ele mesmo. Como e por que aquela criatura estava ali? Nesse momento, senti uma mão pousar sobre minha cabeça e levantei os olhos nublados de pranto. Era meu amigo Henrique. Fitava-me com afeto e uma profunda piedade.
- Acalme-se, Paulo. E chegada a hora da verdade para você, companheiro. Nosso irmão aqui está por misericórdia divina, para receber o socorro de que precisa.
De repente, ao ouvi-lo, me dei conta do absurdo do que pensara. Está claro que, se aquele padre se encontrava ali, na casa espírita, era porque precisava de socorro!
Henrique colocou delicadamente a mão em minhas costas, perguntando:
- Está melhor?
- Sim, Henrique. Abalou-me rever essa criatura depois de tanto tempo. Foi um choque. Não estava preparado para esse encontro. Sabia que isso fatalmente iria acontecer, mas não esperava que fosse hoje.
- No entanto, meu amigo, você estava sendo preparado para este momento e já esteve bem perto do seu desafeto em outras ocasiões, conquanto não tenha notado. Esse religioso, que hoje tanto o impressionou, é um daqueles irmãos que foram resgatados nas imediações de "Luz Bendita", quando de nossa última excursão. Percebe que a bondade divina laborava para criar as condições necessárias à imprescindível reaproximação de ambos? A hora é agora, Paulo. Aproveite a oportunidade que se lhe oferece, meu amigo.
Com os olhos arregalados de espanto, dei-me conta, tardiamente, da ajuda do Alto a meu favor. Como fora cego! Por que não prestei atenção aos fatos, à época? Balancei a cabeça, concordando com Henrique, ainda incapaz de falar. Depois, limpei o rosto e respirei fundo, procurando readquirir o controle das emoções. Mais equilibrado, afirmei:
- Não se preocupe comigo. Já estou bem. Afinal, tudo o que aprendemos tem de servir para alguma coisa, não é verdade?
- Sem dúvida. E você, Paulo, tem todas as condições para vencer. Estes anos de vivência e aprendizado aqui na espiritualidade lhe deram o suporte imprescindível. Agora, vamos. Faltam poucos minutos para o início da nossa reunião.
Dirigimo-nos à sala, onde todos da esfera material já se encontravam reunidos, em silêncio, buscando as ligações com a nossa esfera. A equipe espiritual, cada qual em seu posto, auxiliando os irmãos encarnados. No horário determinado, o dirigente encarnado deu início à reunião com uma prece, rogando o amparo divino, e as atividades passaram a transcorrer normalmente. Após as leituras de praxe para preparar o ambiente, passou-se à fase de intercâmbio mediúnico. As entidades comunicantes foram se sucedendo, e auxiliadas cada uma a seu turno. Em determinado momento, Henrique aproximou o religioso de uma médium, o qual, acoplando-se à senhora, se pôs a falar. Irritado, nervoso, mostrava grande agitação, que era transmitida fielmente por ela. Bradava, chorava, demonstrando enorme desespero.
- Não basta tudo o que já passei? Por que ele faz isso comigo? Não vê como estou sofrendo? Não chega a humilhação e o remorso que tenho enfrentado? Agora, fica aí, anotando, anotando. Precisa ficar escrevendo e expondo minha vida? O que ele pretende? Expor-me aos olhos de todos para ser julgado? Nesse instante, percebi a quem se referia. Aquele "ele" era eu! Eu, que estava enviando um livro por meio da psicografia, e que fizera questão de iniciar a obra falando sobre minha vida, meus problemas, desejando realmente que todos soubessem do meu drama, que era ignorado por meus pais e por todos os que conviveram comigo. Sim, era verdade! Eu queria expor o criminoso aos olhos do mundo. Não pretendia nomeá-lo, mas iria assinar o livro colocando meu nome e sobrenome, desejando que meus pais, católicos ortodoxos, algum dia viessem a tomar conhecimento do que eu tinha sofrido em vida, e que eles ignoravam. Queria tornar pública, sim, a minha experiência, alertar meus pais e todos os outros para que tomassem mais cuidado com seus filhos; que não os entregassem aos cuidados de pessoas que não conheciam devidamente e nas quais não podiam confiar. Nesse momento, uma senhora do grupo captou o meu pensamento e, compreendendo a situação, afirmou:
- Sinto que esse caso tem a ver com um livro que a Célia está recebendo.
Ao ouvir essas palavras, a médium de que me sirvo percebeu o que estava acontecendo na espiritualidade. Como sabia que o comunicante era um sacerdote, imediatamente lembrou-se da obra que estou a escrever por seu intermédio, vinculando a comunicação à história que inicia o livro e relata minha experiência de vida. Com serenidade, ela dirigiu-se ao inconformado espírito:
- Meu irmão, não se preocupe. Acalme-se. Ninguém deseja prejudicá-lo. O seu nome não será citado, fique tranqüilo.
No auge do desespero e da indignação, ele gritou:
- E precisa? E precisa? O nome dele é suficiente! Não percebem? Ao ver-lhe o nome no livro, todos na nossa cidade saberão que se refere à minha pessoa! Por quê? Por quê? Já não basta o que tenho sofrido?
E ele continuou falando, expondo o seu sofrimento, as torturas por que tinha passado durante esse período no Além-túmulo, enquanto o doutrinador dialogava com ele, lembrando-lhe a necessidade de buscar Jesus por meio da oração, de modo a obter uma vida nova, ao mesmo tempo que lhe acenava com o socorro que lhe seria prestado no hospital da espiritualidade. Aos poucos, o religioso foi serenando, auxiliado pelas vibrações amoráveis do ambiente com o apoio de todos os integrantes do grupo, condoídos da sua situação e do seu desespero. Ele acabou por adormecer, e deixou o recinto numa maca, amparado por servidores do bem. Eu estava pasmo. Nesse momento, me dei conta de que só pensara em mim, em meus próprios problemas, traumas e sofrimentos. Não me dei conta de que poderia prejudicar outras pessoas. Que, desejando expor fatos que se passaram comigo havia tantos anos, atingia emocionalmente alguém que também estava sofrendo. A verdade é que eu não fazia idéia de que ele sofresse tanto. Como disse no início do livro, nunca mais tivera contato com esse sacerdote, nem tinha idéia de onde ele poderia estar. Em nossas reuniões na espiritualidade, tínhamos tocado no assunto algumas vezes, como terapêutica de ajuda e análise das emoções, mas os orientadores sempre disseram que tudo aconteceria na hora certa e que eu não me preocupasse por antecipação. Então, o momento havia chegado!


CAPÍTULO 32 - LIBERTAÇÃO

"Perdoar aos inimigos é pedir perdão para si mesmo. Perdoar aos amigos é dar-lhes uma prova de amizade. Perdoar as ofensas é mostrar que se tornou melhor do que se era antes." (O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, ALLAN KARDEC, CAP. 10, ITEM 15)

A atividade mediúnica terminou e nem me dei conta. Permaneci entregue a mim mesmo, pensando nos novos fatos. Os demais companheiros se aproximaram cercando-me com carinho, em silêncio; notei que eles estavam cientes das ocorrências. Henrique envolveu-me os ombros com o braço.
- Como está, Paulo?
Sem responder diretamente à sua pergunta, levantei para ele os olhos úmidos:
- Não sabia que "ele" estava sofrendo tanto, Henrique. Lamento profundamente tudo isso, o fato de escrever sobre o passado...
Estávamos numa sala, no próprio ambiente terreno, utilizada para fazermos uma reavaliação das atividades, após as reuniões. Os demais foram se acomodando em silêncio, enquanto Henrique considerava:
- Não lamente, Paulo. Tudo tem uma razão de ser. O fato de escrever sobre o tema possibilitou-nos ajudar a você e também ao seu desafeto, o antigo confessor.
- Já era tempo, meu amigo. Você precisava enfrentar "seus fantasmas". O alívio será muito grande, acredite - afirmou César Augusto, que estava a meu lado.
Reconhecia-me bastante reconfortado com as emanações de carinho que vinham dos companheiros. No fundo, porém, sentia-me envergonhado, embora ninguém me acusasse, e externei meus sentimentos:
- Agradeço-lhes o apoio e a compreensão diante das minhas dificuldades. No entanto, não posso deixar de lamentar o vexame pelo qual estou passando. Refletindo com tranqüilidade, depois de tudo o que estudamos, aprendemos e vivenciamos aqui no Além, julgo inconcebível que eu ainda dê vazão aos pensamentos e sentimentos que experimentei nessas últimas horas. Julgava-me superior a tudo isso. Acreditava piamente que não mais conservava mágoa pelo que me fizeram, compreendendo que todos nós estamos sujeitos a erros e acertos.
Parei de falar por alguns momentos, fitando a cada um dos companheiros da equipe que ali estavam preocupados comigo, e concluí:
- Chego à dolorosa constatação de que, depois de todos esses anos, ainda não mudei intimamente.
Os amigos sorriram trocando um olhar de cumplicidade e entendimento.- E não é exatamente esse o sentimento que nos domina a todos? - considerou Eduardo, externando o pensamento dos demais. O processo evolutivo não é rápido nem fácil, meu amigo, você sabe disso. E cada um, a seu tempo, é levado a enfrentar o passado. Henrique concordou, considerando com seriedade:
- Paulo, veja o meu caso! Tenho maior tempo de vivência aqui na espiritualidade do que vocês. Contudo, acredita você que estou livre de enfrentar o pretérito? Não, meu amigo! A misericórdia de Deus é tão grande que nos manda as contas parceladas, porque não teríamos condições de enfrentar nossos débitos em bloco, na totalidade. E o Pai, certamente, manda os menores problemas em primeiro lugar, para nos preparar o íntimo e amadurecer na trajetória, testando nossa capacidade de resolução. Se conseguirmos reparar esses erros menores, aos poucos nos mandará outros, proporcionalmente maiores e mais complexos. E assim que funciona a misericórdia divina.
Concordei com um gesto de cabeça. Depois, indaguei:
- E agora? Terei forças para procurá-lo, conversar com ele? Sim, porque sei que é isso o que tenho de fazer.
- Vamos devagar. Tudo a seu tempo, Paulo. Hoje você o enfrentou pela vez primeira. Relaxe. Tranqüilize-se. Digira o encontro e reflita sobre essa ocorrência. Quando estiver em condições, sentirá espontaneamente o desejo de procurá-lo, conversar com ele. Agora, deve repousar, agradecendo a Jesus a oportunidade de aprendizado que lhe proporcionou nesta noite.
Eu sabia que Henrique tinha razão. Nas horas que se seguiram, a sós, refleti bastante e supliquei o amparo do Mestre para meu coração atormentado. Não ignorava que precisava perdoar, sentia que o esquecimento daquilo que considerava um crime era fundamental para minha paz de espírito e bem-estar futuro. Estava consciente do mal que a mágoa e o ressentimento causam naquele que o sente. Sim, estava convencido de que precisava perdoar. Não apenas esconder, jogar para os porões escuros da mente, mas perdoar de forma profunda e verdadeira. E isso só aconteceria se conseguisse digerir o fato que tanto dano tinha me causado e, por conseqüência, compreender que as imperfeições são etapas de aprendizado úteis e imprescindíveis ao progresso do espírito. Durante muitas horas orei, dando o melhor de mim, buscando em pensamento as esferas superiores da vida, de modo a encontrar forças e vencer a mim mesmo. Afinal, adormeci, exausto. Vi-me em um lugar estranho, onde se realizava um banquete. O burburinho era grande; sons de vozes e risadas misturavam-se ao tinir dos metais. No imenso salão, belo e suntuoso, as paredes e o piso eram de mármore; guirlandas de flores contornavam as colunatas, produzindo lindo efeito decorativo, enquanto de tripés colocados em pontos estratégicos ervas odoríferas queimavam, perfumando o ambiente e misturando-se aos odores das iguarias e dos vinhos capitosos. Chegou o momento em que os participantes, já completamente embriagados, iniciavam uma orgia. A época, a depravação dos costumes era grande e todos se comportavam de forma lasciva. A certa altura, quando a noite avançava pela madrugada, para aumentar ainda mais as sensações dos convidados, já amodorrados pela comida e pela bebida, foram trazidos vários garotos, que entraram no salão apavorados e trêmulos, chorando e se apoiando uns nos outros. As cenas que presenciei, então, são terríveis, não me cabendo descrevê-las, para não criar imagens negativas na mente de ninguém. Só posso afirmar, com profundo asco, que eu fazia parte daquele banquete. Reconheci-me num daqueles convidados, bêbados e debochados, que abusaram de crianças indefesas. Acordei assustado, banhado em suor álgido. As cenas não me saíam da memória. Chorei. Chorei muito. Compreendi que a divina misericórdia atendera às minhas súplicas, socorrendo-me. Permitira-me ver uma réstia do passado, mostrando-me que a ninguém é lícito julgar o semelhante. Que a colheita é sempre proporcional à sementeira. Na manhã seguinte, logo cedo, dirigi-me ao local onde se encontrava albergado meu antigo confessor. Entrei na enfermaria e lentamente caminhei pelos leitos, até que o avistei. Estava deitado, de olhos cerrados, testa franzida e fisionomia atormentada. Aproximei-me. Sabia que ele estava acordado. Parei ao lado do leito, sem dizer nada. Sentindo a presença de alguém, ele virou-se lentamente. Quando me viu, de pé, se assustou e seus olhos se arregalaram. Depois, o instinto de defesa o fez reagir; preparava-se para recriminar-me, provavelmente jogar-me no rosto tudo aquilo que já dissera na reunião, quando o interrompi com um gesto amigável.
- Como vai, meu irmão?
Fitou-me sem responder. Esperava tudo, menos que eu o chamasse de "irmão". A princípio, ele ficou alguns segundos calado, examinando-me. Ao perceber que não havia ironia, que minha atitude era de paz, sua fisionomia foi serenando aos poucos. Afinal, murmurou:
- Você... Não me odeia? O que faz aqui?
- Vim visitá-lo. Saber como está.
- Você me odeia. Não deseja acusar-me? Destruir-me? - questionou-me, de testa franzida.
- Não, meu irmão. Não tenho a intenção de acusá-lo ou destruí-lo. Por muito tempo, confesso-lhe, conservei mágoa em meu coração. Porém, não agora; não mais.
De seus olhos azuis o pranto jorrou, abundante.
- Você me perdoa o mal que lhe fiz?
Pensei um pouco e respondi consciente de que estava sendo verdadeiro:
- Meu irmão, eu compreendo hoje que não temos o direito de julgar ninguém. Atire a primeira pedra aquele que estiver sem pecado, foi a lição de Jesus aos acusadores da mulher adúltera, legando à posteridade um dos mais belos ensinamentos evangélicos. Todos nós somos imperfeitos e já erramos muito, precisando extirpar de nosso íntimo as mazelas que ainda conservamos. Não nos cabe, portanto, o direito de apontar erros. Tudo o que fazemos de negativo redunda em nosso próprio prejuízo. Ele fechou os olhos, respirou fundo e disse, mais tranqüilo:
- Há quanto tempo não escutava palavras tão consoladoras! Tenho sofrido muito, Paulo. As vítimas me perseguem e a própria consciência não me permite ter paz. Você não conhece a imensidão dos meus erros. Na existência terrena fiz muito mal aos outros e a mim mesmo. Cometi muitos crimes e me afundei na degradação e nos vícios. O remorso faz com que eu viva num inferno permanente. Ah! Tão diferente do Céu que eu esperava encontrar, segundo a promessa de meus direitos como servo do Cristo! Fitei-o, penalizado, depois considerei:
- Padre, o Céu é local reservado para aqueles que cumprem as leis do Senhor da Vida. O fato de ser sacerdote não lhe daria direito a uma posição de relevo após a morte do corpo físico. Seu problema é que lhe informaram que o Evangelho de Jesus era para ser ensinado e não vivido, quando o Mestre disse que o reino de Deus está dentro de nós.
Humildemente, ele respondeu:
- Agora compreendo essa verdade. No fundo, conhecer a Bíblia não significa mudança interior, não é?
- Exato, meu amigo. As lições evangélicas são luzes para nos iluminar por dentro, extirpando as trevas existentes em nós. Certamente, seus superiores erraram, seguindo a tradição da Igreja, ao não lhe passar a necessidade da vivência dos postulados cristãos. Todavia, uma parte da responsabilidade lhe cabe, pois a consciência, onde estão nossas conquistas através do tempo, nos mostra como devemos agir.
- Tem razão. Como estudioso do Novo Testamento, por que não percebi essa verdade que salta aos olhos? Como ele permanecesse alguns instantes pensativo, preocupado, procurei mudar o tom da conversa:
- Mas não se aflija demasiadamente, padre. O Pai sempre tem muito a nos conceder.
Aqui, terá oportunidades de aprender, de entender a mecânica das leis divinas e também de reparar os erros cometidos. Há tempo para tudo.
Ele sorriu mais confiante. Senti que estava emocionado.
- Você é bom, Paulo. Ouvi-lo chamar-me de amigo fez-me enorme bem. Não me deixe sozinho.
- Engana-se, padre. Não sou bom. Sou apenas alguém que também tem problemas, mas que se esforça por aprender alguma coisa do lado de cá da vida. Não o deixarei sozinho. Pode contar comigo. Temos muito que conversar. Virei vê-lo sempre que me for possível. Agora, repouse. Fique com Deus.
Lançando-me um olhar úmido e agradecido, ele murmurou:
- Obrigado. Esperarei sua visita.
Afastei-me do leito e caminhei pela enfermaria, sentindo-me muito leve.
Ao sair do hospital, contemplei o belo sol que iluminava o jardim e sorri para mim mesmo, grato a Jesus pela bênção daquela hora.
Tive vontade de contar ao padre o que descobrira sobre o meu passado, para que se sentisse menos culpado, mas achei que não era o momento. Voltaria a procurá-lo e não faltariam, mais tarde, oportunidades para isso. Entendi, finalmente, por que o perdão transforma as pessoas, liberando-as do sofrimento, da inconformação, da mágoa. Sentia como se densas nuvens escuras saíssem de dentro de meu corpo espiritual, tornando-me mais leve e mais luminoso. Nada há no mundo que possa se comparar ao sentimento de paz, de harmonia e de bem-estar que envolve aquele que conseguiu perdoar, liberando-se de resquícios do passado. Lembrei-me de uma mensagem do apóstolo Paulo, recebida na cidade de Lyon, em 1861, e inserida em O Evangelho Segundo o Espiritismo, cujo texto tem uma frase que sempre me tocou o coração e que agora se mostrava de grande verdade: "Perdoar aos inimigos é pedir perdão para si mesmo. Perdoar aos amigos é dar-lhes uma prova de amizade. Perdoar as ofensas é mostrar que se tornou melhor do que se era antes". O coração enchia-se de paz e amor. Sim, conceder o perdão ao inimigo é pedir perdão para si mesmo, é libertar-se de elos de ódio que nos acorrentam ao solo.Intima convicção afirmava-me que minha vida na espiritualidade seria bem diferente depois daquele dia. Sentia-me pronto para mais altos vôos da alma, rumo às moradas celestes.


CONCLUSÃO

"Tendo-lhe feito os fariseus esta pergunta: Quando virá o Reino de Deus? Respondendo-lhe Jesus, disse: O Reino de Deus não virá com mostras algumas exteriores; nem dirão: Ei-lo aqui ou ei-lo acolá. Porque eis aqui está o Reino de Deus dentro de vós."
(LUCAS, 17: 20 E 21)

Diante da imensidão dos problemas que observamos todos os dias em contato com as pessoas, nos veio o desejo de relatar esses dramas, tornando-os públicos, de modo que os irmãos ainda na carne possam beneficiar-se das lições de vida que deles extraímos. Interagindo com encarnados e desencarnados, percebemos que os problemas atingem a uns e outros, indistintamente, causando sofrimento e dor. Na ação, porém, que nos compete, temos visto tristeza se transformar em alegria, sofrimento em consolo, desespero em esperança. Para isso, basta que saibamos entender que os problemas que nos são apresentados exigindo uma solução são oportunidades de aprendizado e crescimento, na íntima análise da razão dos obstáculos que surgem e o que a vida quer nos ensinar com isso. De modo geral, ao refletir na dificuldade que nos aflige mais profundamente, com isenção de ânimo e sinceridade de intenções, no real desejo de encontrar a solução, a resposta brota de nosso interior com clareza e tranqüilidade. Basta que saibamos olhar para dentro de nós, sem medos, sem máscaras e sem justificativas, procurando analisar nosso comportamento, a situação de outros envolvidos na questão, e nos colocando no lugar deles. Quando deixamos de pensar de forma egoísta - enxergando apenas a nós mesmos - e passamos a pensar no problema dos outros, reconhecendo nossa parcela de responsabilidade no acontecido, aceitamos o processo doloroso como etapa necessária de reparação, entendendo a dinâmica da Lei Divina que, através da vida, nos impulsiona para o aprendizado; passamos, então, a colaborar com as situações que surgem, transformando-as a nosso favor pelas ações direcionadas para o bem de todos. Seja qual for o erro que tenhamos cometido ou o problema que nos surja, sempre despontará oportunidade de reparação. Nada há que seja definitivo sob as bênçãos do Criador. A Doutrina Espírita nos esclarece que tudo o que semeamos ontem reaparece hoje como colheita obrigatória. Todos nós, como espíritos imperfeitos em processo evolutivo, por meio de múltiplas existências, temos nos cercado de amigos e inimigos, conseguido vitórias e fracassos, virtudes e defeitos. Conquistamos um acervo individual, pessoal e intransferível, que permanece arquivado em camadas profundas da nossa memória integral. Desse modo, a vida atual tem tudo que ver com a individualidade que somos, isto é, com o que pensamos, sentimos, desejamos e agimos. Quando o espírito renasce, Deus lhe deixa a voz da consciência e as tendências instintivas como balizas que servirão para norteá-lo na nova existência. Retira-lhe as lembranças do passado que poderiam ou prejudicá-lo ou levá-lo a sentir-se em situação de vantagem diante daqueles que o prejudicaram, ou de humilhação perante aqueles que ele prejudicou. Assim, as situações conflitantes que surgem têm que ver com a necessidade de reencontro com nossos desafetos, inimigos, adversários, rivais, ou qual for o nome que se lhe dê, e a conseqüente reparação dos erros cometidos. Nada acontece por acaso. Então, devemos estar atentos aos desafios que a vida nos apresenta para não perdermos a oportunidade que se apresenta a nosso benefício. Diante dos dramas da nossa vida, dos erros cometidos, em relação aos quais somos algozes ou nos consideramos vítimas; diante de uma gravidez indesejada; de uma violência na rua, no esporte ou no reduto doméstico; da violência social de grupos que agem e assustam a população, da revolução ou da guerra; diante da tentação de cometer uma eutanásia, um aborto ou um homicídio; diante de uma agressão física, sexual, econômica, virtual ou de qualquer outro gênero; diante de uma obsessão grave, com a qual a maioria das pessoas se sente incapaz de lidar, e tantas coisas mais que ocorrem no dia-a-dia, devemos lembrar que tudo tem uma razão de ser. Muitos problemas ou obstáculos surgem como conseqüências de nosso comportamento como pessoa, da maneira como tratamos os demais, de como falamos, das expressões que usamos, das atitudes que tomamos, no lar, no trabalho profissional, numa reunião social, na escola, no trânsito, na rua. Se agimos mal, tratando com indelicadeza especialmente subordinados ou aqueles que estejam sob nossa guarda, se não exercitamos a compreensão e a tolerância, podemos estar gerando antipatias que, dependendo do grau de insatisfação que criem no outro e da personalidade do descontente - mais pacífica ou mais rancorosa -, provavelmente trarão para nós mesmos problemas graves que poderão redundar até num crime, conforme a intensidade do ressentimento do ofendido. Por essa razão, as lições evangélicas são tão importantes em nossa vida, norteando-nos para o perdão, a paciência, a tolerância, a compreensão, a mansuetude, enfim, para o amor. Tratando as outras pessoas como desejamos ser tratados, colocando-nos no lugar do outro para saber o que ele está sentindo, viveremos bem melhor, gerando um grau de satisfação muito maior para todos, a começar por nós mesmos. Quando os problemas que despontam são resistentes aos nossos esforços para saná-los e que persistem não nos dando tréguas, entendamos que são aqueles que irão requerer maior paciência e de compreensão de nossa parte. A resignação diante daquilo que não podemos mudar nunca deve ser passiva, mas caracterizar uma aceitação ativa, isto é, devemos nos esforçar para vencer os obstáculos com todos os meios de que dispomos. Se a questão diz respeito a uma enfermidade grave, buscar todos os recursos possíveis para reverter o problema, mesmo que não possa ser sanado de todo. Diante das dificuldades que surgem independentes da nossa vontade - e que muitas vezes entram por nossa casa como um furacão, levando a destruição e a dor, a perplexidade e o sofrimento -, manter inalterável a confiança em Deus, que nunca nos desampara. Não raro, são situações por que temos de passar e para as quais a vida se utiliza de pessoas como instrumentos da vontade divina. "Ai do mundo por causa dos escândalos; porque é inevitável que venham escândalos, mas ai do homem pelo qual vem o escândalo", disse Jesus, nos acautelando sobre tudo o que pode levar o homem à queda. Não podemos perder de vista que Jesus falava a homens de um mundo de expiações e de provas, em que a predominância do mal e da ignorância era uma realidade. Não foi Deus quem criou o sofrimento e a dor, mas as criaturas humanas ao se afastarem das leis divinas. Sofrem, por isso, as conseqüências de seus atos e dos seus vícios, até que se cansem do mal, pelos efeitos que experimentam, ou aprendam a fazer o bem, de cujos benefícios usufruirão intensamente. O grau de inferioridade de um espírito é sempre proporcional ao mal que ele pratica. Na obra da criação, nada é inútil e assim o mal pune o mal e, em contrapartida, ajuda a promover o bem. Cada criatura traz em si dois objetivos fundamentais: deve agir a benefício de sua própria evolução e, ao mesmo tempo, colaborar para o progresso da sociedade na qual está inserido. E assim que do mal se pode extrair o bem, visto que a criatura que praticou o mal e experimentou em si as conseqüências desse mal, isto é, o choque de retorno pela ação da Lei de Causa e Efeito, evitará igual atitude, tornando-se mais maleável e propenso a realizar o bem no futuro. Mais adiante, Jesus recomenda: "Se a vossa mão ou o vosso pé é objeto de escândalo, cortai-os e lançai-os longe de vós; melhor será para vós que entreis na vida tendo um só pé ou uma só mão, do que terdes dois e serdes lançados no fogo eterno. Se o vosso olho vos é objeto de escândalo, arrancai-o e lançai-o longe de vós; melhor para vós será que entreis na vida tendo um só olho, do que terdes dois e serdes precipitados no fogo do inferno". Por certo, o Mestre não deseja que saiamos cortando mãos e pés, ou arrancando olhos, tornando-nos uma sociedade de deficientes físicos. Suas palavras representam apenas imagens de colorido vibrante para gravar suas lições com tintas indeléveis na mente daqueles que o ouvem, fazendo-as repercutir nas fibras mais profundas, para que as pessoas entendam a necessidade de extirpar de si toda causa de mal, isto é, de não manter vícios, nem guardar no coração sentimentos impuros, nem defeitos de qualquer ordem. Mostra-nos Jesus, por meio dessas imagens fortes, as conseqüências que advirão através das vidas sucessivas, se não destruirmos em nós o mal que ainda carregamos no íntimo. Por isso nos diz que é melhor entrarmos na vida tendo uma só mão, um só pé ou um só olho, do que termos dois e sermos atirados ao fogo do inferno, isto é, de nos comprometermos com a Lei Divina e sofrermos as conseqüências do nosso comportamento negativo. Cristo deixa claro que, sempre que reencarnamos com deficiências é porque estamos colhendo hoje o que semeamos no passado. Dessa forma, diante do sofrimento que nos advém, seja ele físico ou moral, mantenhamos a irrestrita confiança em Deus, sabendo que estamos recebendo o remédio que irá produzir a cura. A sociedade terrena sonha transformar a Terra em um mundo de paz e de harmonia, onde não existam mais ódios, guerras, doenças, fome, ignorância, miséria; onde todos os seus habitantes possam conviver como irmãos, unidos por laços de fraternidade e solidariedade, sendo pacíficos, indulgentes, benevolentes e amorosos entre si. Esse sonho só se tornará realidade quando extirparmos de nosso coração o egoísmo, o orgulho e a ambição (esta última, descende dos dois primeiros), e que constituem nossas maiores chagas. Quando isso acontecer, não haverá mais ódios, ressentimentos ou desejos de vingança; não haverá mais ambição desmedida que leva o ser humano a apropriar-se do que pertence a seu irmão; não haverá mais fome e miséria, pois o que sobrar da mesa de um abastado reverterá em benefício de outro que tem menos; não haverá mais enfermidades, pois os recursos serão utilizados em saneamento básico, em atendimento médico, em hospitais para socorro à população e, especialmente, quando a educação for uma conquista de todos, a ignorância deixará de existir. As conquistas irão muito mais além. Livre do egoísmo e do orgulho, terá o espírito conquistado nobres valores morais, o que fará com que se ilumine, libertando o ser humano de vibrações pesadas e nocivas que lhe facilitavam as doenças psicossomáticas. O perispírito, menos denso, lhe proporcionará maior nível de elevação, com a conseqüente sensação de bem-estar e harmonia. Nessa fase, o homem terá suas potencialidades mais desenvolvidas, sua visão ampliada e pensará no próximo antes que em si próprio. Desse modo, viverá o bem, exercitando-o em todos os momentos. E a felicidade, sonho a que todos aspiramos, estará ao alcance de nossas mãos, pois será uma conquista do ser imortal, vivendo em plenitude. Será em vão procurar a felicidade em coisas exteriores, em valores materiais, em poder, notoriedade, glória ou nos prazeres da carne, buscando a satisfação dos sentidos e afundando-se nos vícios. Não. A felicidade, fugidia e tênue, é diferente para cada um. Preocupado com o assunto, Allan Kardec questionou: "'A felicidade terrena é relativa à posição de cada um; o que basta a felicidade de um faz a infelicidade de outro. Existe, entretanto, uma medida de felicidade comum a todos os homens?" E os espíritos responderam; "Para a vida material, é aposse do necessário; para a vida moral, a pureza da consciência e a fé no futuro". Realmente, aqui na Terra, o homem só será verdadeiramente infeliz se não tiver condições de sobrevivência. Assim, a posse do necessário lhe permitirá viver com relativa tranqüilidade, desde que não deseje o supérfluo, o que o levará a sofrer inutilmente. Com respeito à vida moral, a paz de uma consciência tranqüila é bênção que não sabemos valorizar devidamente. Poder colocar a cabeça no travesseiro e adormecer serenamente, em paz, é algo que muita gente não logra. Quanto à fé no futuro, é sem dúvida essencial para nos sentirmos bem. Ter consciência de que a morte não existe, e que preexistimos ao corpo material e sobreviveremos a ele, dá ao ser humano uma visão ampla e cósmica a respeito de Deus e da Criação. Faz com que entendamos a beleza das vidas sucessivas e da comunicação existente entre os planos físico e espiritual, que interagem. Leva-nos a aceitar melhor os problemas, os obstáculos, os sofrimentos e as dores que surgem em nosso trajeto, e a compreender que estamos recebendo hoje o que plantamos ontem, como oportunidade de aprendizado, de reparação e de amadurecimento espiritual, na execução da Lei de Causa e Efeito. Resignados, aceitaremos melhor as pedras do caminho, ultrapassando-as ou contornando-as à medida que surjam. E a benevolência fará com que tratemos a todos como irmãos, exemplificando-a com a indulgência para com as imperfeições alheias, entendendo a grandeza do perdão das ofensas pela tolerância, pela paciência e pela compreensão para com todas as pessoas que fazem parte da nossa vida, conforme Cristo ensinou. A grandeza de Deus, sua misericórdia e seu amor por todos nós, seus filhos, se patentearão diante de nossos olhos, pois, sempre ao lado de um problema ou de uma desgraça, Ele coloca uma consolação e os meios de vencermos as dificuldades. Entenderemos assim, analisando nossa existência, que sempre, mesmo nas maiores dificuldades, recebemos o sustentáculo por intermédio de amigos generosos, desta e da outra vida, de criaturas que nos amam e nos amparam com seu amor e sua presença - seja um familiar querido, um amigo, seja um companheiro, um irmão. Não há quem não receba fortalecimento através do amor, da amizade, do companheirismo. E, do Além, seres muito amados, muitos dos quais conhecidos de outras existências e dos quais não nos lembramos na atualidade, torcem por nós, dando-nos amparo moral, conforto espiritual, sustentação nas horas de dificuldade, orientações e sugestões, assistindo-nos nas vicissitudes da vida e alegrando-se com nossas vitórias. Graças a esses generosos amigos e benfeitores, temos mais facilidade para enfrentar os problemas, as situações e os obstáculos, e mais coragem para vencer a nós mesmos, buscando o aprimoramento moral. E aí entenderemos mais claramente as palavras de Jesus quando afirmou: "O reino de Deus está dentro de vós". Ao terminar a leitura deste livro, talvez você tenha ficado com algumas dúvidas e perguntas a fazer, o que é um bom sinal. Sinal de que está em busca de explicações para a vida. Todas as respostas que você precisa estão nas Obras Básicas de Allan Kardec. Se você gostou deste livro, o que acha de fazer com que outras pessoas venham a conhecê-lo também? Poderia comentá-lo com aquelas do seu relacionamento, dar de presente a alguém que talvez esteja precisando ou até mesmo emprestar àquele que não tem condições de comprá-lo. O importante é a divulgação da boa leitura, principalmente a da literatura espírita. Entre nessa corrente!



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A VIDA SABE O QUE FAZ

ZIBIA GASPARETTO
(ESPÍRITO LUCIUS)

SOBRE A AUTORA

Sou muito grata a Deus por ter aberto minha sensibilidade. Através do exercício da mediunidade, durante mais de sessenta anos, pude manter contato com espíritos evoluídos e aprender com a sabedoria deles. Sou médium consciente. Quando um espírito de luz se aproxima e nossas auras se tocam, minha lucidez aumenta, meu conhecimento se amplia e fica muito mais claro. Às vezes, as sensações são tão fortes que os ensinamentos recebidos ficam registrados na minha mente, permitindo que eu note detalhes mais sutis e esclarecedores. Eles nos inspiram a agir no bem, a sermos otimistas, a valorizarmos nossos espíritos, a confiar em Deus e cooperar com a vida. Mas a luz que esses espíritos possuem é mérito deles, pois que se esforçaram para conquistá-la. Ela não acrescentará nada em nosso progresso. Esse é um trabalho pessoal e intransferível. A mediunidade nos faz sentir com mais força o teor das energias que nos rodeiam, as quais, quando são negativas, além de perturbar o mental, podem atingir o corpo físico e criar sintomas de doenças de difícil diagnóstico. Durante dois anos, passei por esses problemas. Ficava mal, os médicos não achavam nada, os calmantes me deixavam pior. Eu culpava os maus espíritos pelo assédio, mas era eu quem os atraía por não assumir minha própria força, não cuidar do meu mundo interior, não melhorar meu nível de conhecimento espiritual. Eu nunca fiz mal a ninguém, mas isso não é suficiente. É preciso elevar o espírito, aprender a viver melhor, evoluir. Esse é o preço do equilíbrio, do progresso e da paz. A mediunidade revela o nível espiritual, pressiona para que ocorram mudanças e, se nos ligarmos à luz e persistirmos no bem, é uma fonte de conhecimento, saúde e lucidez.

GUIA ESPIRITUAL

O romance "O amor venceu" foi a primeira obra ditada pelo espírito Lucius que publiquei, e, quando fui pela primeira vez a Uberaba, visitar o Chico Xavier, dei um exemplar a ele e ao doutor Waldo Viera, que na época trabalhava ao seu lado. Depois de alguns meses, quando voltei a visitá-los, o Chico, depois de me abraçar, pegou esse livro e, folheando-o, comentou sorrindo:
- Que bom aqueles tempos em que você e o Lucius estavam no Egito. Quantas coisas aconteceram!
Esperei que continuasse, mas ele se calou. Apesar da curiosidade que senti, não perguntei nada. Sei que os espíritos só dizem o que podem e querem, mas eu sinto mesmo que os laços que me unem ao Lucius são muito fortes. Por sua sabedoria, conhecimento e visão elevada da vida, muito o admiro. É um mestre. Ele tem ditado todos os romances. Apesar disso, tenho notado que em alguns o estilo muda. O Lucius tem muita facilidade de ligar-se comigo, o que pode não ser comum. Acredito que outros autores o procurem, contem algumas histórias, e ele as repasse para que eu as publique, divulgando seus ensinamentos. Que Deus abençoe sua trajetória e permita que continue nos ensinando a entender o que é espiritualidade e a olhar os fatos do dia a dia com os olhos da alma.
Os últimos raios de sol coloriam o céu naquele fim de tarde e Isabel olhava sem pôr atenção, perdida em seus pensamentos. Nem o mar, em seu vaivém, espalhando sua espuma branca na areia molhada, conseguia fazê-la notar a beleza da tarde e a paisagem à sua frente. Desde que chegara ao Guarujá, não conseguia pensar em outra coisa. Precisava tomar uma decisão, mas estava confusa, não tinha certeza de nada. Como seria seu futuro? Deveria ficar com Carlos ou com Gilberto? Carlos fora seu grande amor e desde criança eles haviam se prometido um ao outro. Quando ela completou vinte anos e ele, vinte e cinco, ficaram noivos. Ambas as famílias aprovaram o noivado e o casamento era coisa decidida. Isabel nunca imaginara sua vida longe dele. Mas a guerra na Europa estava no auge. O Brasil havia declarado guerra contra o Eixo, aliando-se aos Estados Unidos e convocando rapazes para combater na Itália. Carlos foi um dos primeiros a ser convocado. Isabel precisou aceitar sua partida no primeiro batalhão da Força Expedicionária Brasileira. Chorosa, despediu-se dele rezando para que voltasse são e salvo. O tempo foi passando, e ela lhe escrevia todas as semanas, apesar de as respostas serem raras. Nas três cartas que recebeu, durante todo tempo que durou a guerra, ele falava da saudade que sentia de todos, especialmente dela, e do horror da guerra, revoltado com a violência que era obrigado a suportar todos os dias. Finalmente a guerra chegou ao fim e o coração de Isabel encheu-se de esperança. Fazia mais de seis meses que ela não tinha notícias e esperava com ansiedade a volta de Carlos. A cidade de São Paulo engalanava-se para receber os soldados que retornavam da guerra e desfilariam pela Avenida São João. O povo foi para a rua saudá-los, e Isabel estava lá, esperando ver Carlos entre eles. Quando começaram a desfilar, o povo misturou-se a eles, que só conseguiam andar em fila indiana, parando aqui e ali, sendo abraçados e beijados pelas moças que festejavam a volta. As pessoas aplaudiam com entusiasmo e faziam com os dedos o V da vitória. Foi com o coração aos saltos que Isabel viu um por um desfilar entre os abraços e beijos da multidão, porém Carlos não estava lá. Quando o desfile acabou, ela voltou para casa decepcionada. Sua mãe tentou consolá-la:
- Não desanime. Outros batalhões vão chegar. Eu li no jornal.
- Amanhã mesmo vou procurar notícias no regimento dele.
No dia seguinte Isabel foi ao quartel, mas não conseguiu as informações que desejava. Havia muita confusão e eles a aconselharam a esperar um pouco mais. O tempo foi passando e ela não obtinha nenhuma notícia de Carlos. Nenhuma carta ou bilhete. Foi diversas vezes à casa da família dele em busca de notícias, mas todos estavam apreensivos, porquanto todos os batalhões já tinham voltado e ninguém sabia nada sobre ele. Por fim, Carlos foi dado como desaparecido. Nos primeiros tempos ela manteve esperança de que ele voltaria, mas depois, à medida que o tempo passava, foi desanimando. Três anos depois, certa de que ele havia morrido, como a maioria das pessoas acreditavam, ela decidiu reagir e tocar a vida para frente. Trabalhava como secretária bilíngue em uma grande empresa, esforçou-se para progredir na carreira e voltou à vida social e habitual. Apesar da saudade que sentia de Carlos, procurou a prima Diva, com quem frequentava teatros, cinemas, bailes. Em um dia chuvoso, quando as duas, tendo saído do cinema, abrigaram-se embaixo de uma marquise próxima esperando que o tempo abrandasse, um rapaz aproximou-se correndo, esbarrando nas duas. Ele as olhou e disse sorrindo:
- Desculpe. Foi sem querer.
As duas, que haviam se encolhido um pouco, sorriram e não disseram nada. Ele olhou a chuva caindo e considerou:
- Está ventando muito. Se ficarmos aqui até a chuva passar, ficaremos muito molhados.
- Se formos embora será pior - considerou Diva dando de ombros.
- Tenho uma sugestão melhor. Caminhando alguns metros, no fim desta marquise, há uma confeitaria onde poderemos nos sentar, tomar alguma coisa e esperar a chuva passar.
Elas olharam indecisas. Ele continuou:
- Permitam que me apresente. Meu nome é Gilberto de Souza Mendes. Médico. E vocês?
- Eu me chamo Diva Santana.
- E eu Isabel Marques.
- Já estamos apresentados. Vamos?
- Tem certeza de que há mesmo essa confeitaria? - indagou Diva. - Não quero estragar meu vestido novo.
- Claro. Já estive lá algumas vezes.
Eles foram caminhando com alguma dificuldade, tentando não desviar da cobertura, uma vez que várias pessoas estavam abrigadas ali. Foi com alívio que entraram na confeitaria.
- Vamos procurar uma mesa.
Gilberto conversou com um garçom, que lhe indicou uma mesa em um dos cantos. Era pequena, mas havia três cadeiras. Ele esperou que as duas se acomodassem e sentou-se também. As moças seguraram o riso. Gilberto, alto e de ombros largos, teve certa dificuldade para se acomodar. Foi então que os três se olharam. Diva era magra, morena, cabelos lisos, traços delicados. Já Isabel era alta, corpo bem-feito, cabelos castanho-claros, ondulados e na altura dos ombros. Gilberto sorriu e seus olhos cor de mel brilharam maliciosos, quando perguntou:
- Passei no exame?
As duas riram e foi Isabel quem respondeu:
- Desculpe se nossos olhares foram indiscretos. Lá fora estava escuro. Foi aqui que realmente nos vimos.
- Eu logo vi que vocês eram bonitas.
- Ah! Foi por isso que se preocupou em nos abrigar? - indagou Diva maliciosa.
- Claro. Se fossem feias, eu as deixaria na chuva.
Elas riram e a conversa fluiu fácil enquanto tomavam um café e saboreavam alguns salgadinhos que Gilberto pedira. Apesar da brincadeira, Gilberto não demonstrou interesse particular por nenhuma das duas. Uma hora mais tarde, quando a chuva passou, trocaram telefones e se despediram. Uma semana depois, Gilberto ligou para Isabel convidando-a para sair. A princípio, ela não se entusiasmou, mas tanto Diva como Laura, sua mãe, incentivaram-na a ir.
- O rapaz é bonito, agradável, educado. Você deveria conhecê-lo melhor - disse Laura.
- Mas não estou interessada - replicou Isabel.
- Pois eu, se ele me convidasse, iria.
- Vá você em meu lugar.
- Claro que não. Ele preferiu você. Depois, você não está sendo pedida em casamento. Poderá passar algumas horas agradáveis e, se não quiser continuar, não precisa.
- Você vai querer ficar sozinha em casa pensando nos problemas da vida? - indagou Laura.
- Está bem. Eu vou.
Laura continuou:
- Ele disse aonde vai levá-la?
- Convidou-me para jantar. Vai passar em casa às oito para me buscar.
- Já pensou em que roupa vai pôr? - perguntou Diva.
- Não. Resolvo na hora.
- Que falta de entusiasmo! Se fosse comigo, iria ao cabeleireiro, compraria um vestido bem bonito.
Isabel deu de ombros e encerrou o assunto. Oito horas em ponto a campainha tocou e Laura foi abrir. Gilberto estava na soleira, e ela disse sorrindo:
- Você deve ser o Gilberto. Entre, por favor.
Ele entrou e Laura continuou:
- Isabel está se arrumando. Sente-se. Vou mandar avisá-la que chegou.
Laura foi ter com Berta e pediu-lhe que avisasse a filha. Depois se aproximou de Gilberto, dizendo:
- Meu nome é Laura, sou mãe de Isabel.
Ele se levantou e apertou a mão que ela lhe estendia com certa reverência:
- É um prazer conhecê-la.
- Sente-se. Aceita tomar um copo de vinho, uma água ou um café?
- Não se incomode. Estou bem assim.
Laura acomodou-se na poltrona ao lado, mas não teve tempo de continuar a conversa porque Isabel aproximou-se acompanhada pela prima. Gilberto levantou-se e estendeu a mão a Diva, que estava na frente, dizendo enquanto sorria:
- Como vai?
- Estou bem. E sua aparência está ótima.
Isabel, por sua vez, aproximou-se estendendo a mão para cumprimentá-lo. Estava linda em seu vestido de seda verde-escuro, e os grandes olhos cor de mel de Gilberto fixavam-no curiosos. Ele não se conteve:
- Você está linda!
- Obrigada. Você também está muito elegante.
Ele sorriu e, olhando para Diva, convidou:
- Você vem conosco?
- Não. Hoje tenho outro compromisso - mentiu ela.
Sentiu que ele a convidou por gentileza e que realmente estava interessado em Isabel, o que a deixava muito contente, pois desde que Carlos fora dado como desaparecido e ela soubera que ele provavelmente não voltaria, nunca mais se interessara por outro homem. Diva gostaria que ela se apaixonasse de novo e voltasse a viver.
- Vamos? - perguntou Gilberto.
Isabel concordou, eles se despediram e saíram. O carro dele estava diante da casa e ele abriu a porta para que Isabel se acomodasse. Depois deu a volta e sentou-se ao lado dela.
- Você tem preferência por algum lugar?
- Não. Escolha você.
- Eu reservei uma mesa em um restaurante muito agradável. Espero que você goste.
Isabel assentiu. Ele colocou o carro em movimento e pouco depois disse:
- Desde aquela noite em que nos conhecemos venho pensando em você.
Isabel fez um gesto quase imperceptível de contrariedade, mas ele notou e mudou de assunto. Perguntou que tipo de música ela preferia. Ela disse, ele ligou o som, começou a comentar sobre as músicas em voga e, para alívio de Isabel, não voltou mais ao assunto pessoal. O restaurante era muito elegante, estava lotado, e Gilberto comentou:
- Se eu não tivesse reservado, não poderíamos jantar aqui.
- O lugar é muito agradável.
Foram conduzidos a uma mesa perto de uma janela, ao lado de um grande vaso com um maravilhoso arranjo de flores naturais. Isabel não se conteve:
- Que lindo!
Gilberto puxou a cadeira para que ela se sentasse e perguntou:
- Nunca veio aqui?
- Nunca.
- Meus amigos gostam muito deste lugar.
- Além de tudo tem música ao vivo.
- Você gosta de dançar?
- Adoro.
Pediram uma bebida. A música estava convidativa e Gilberto a chamou para dançar. O rapaz dançava muito bem e, a partir de então, começaram momentos de encantamento para Isabel, que esqueceu todo o sofrimento da espera pela volta de Carlos, sua solidão e a frustração de seus sonhos da adolescência. Para ela, naquele instante, só havia a beleza do lugar, a pegada firme de Gilberto, que a conduzia de maneira leve e gostosa, e o delicioso perfume que vinha dele. Dançaram muito e Isabel, rosto corado e sorriso de prazer, sentia-se feliz. Jantaram muito bem e continuaram a dançar. A partir daquela noite, começaram a sair e Isabel cada vez mais apreciava a gentileza de Gilberto, sua firmeza, seu temperamento alegre, sua inteligência, sua postura elegante e bonita. Envolveram-se e começaram a namorar. Uma noite, ele a pediu em casamento e Isabel aceitou. A lembrança de Carlos estava distante e esquecida. Até o dia em que recebeu um telefonema da mãe de Carlos, dizendo haver recebido uma carta do filho. Ferido e encontrado sem documentos, fora feito prisioneiro de guerra. Estava na Alemanha Oriental sob o domínio russo e tivera dificuldade para conseguir ser libertado. Quando conseguiu, a confusão era grande e ele não pôde obter documentos para regressar. Além disso, não tinha dinheiro para passagem e não conseguia um passe para voltar. Precisou trabalhar, ganhar algum dinheiro e, por fim, através da Cruz Vermelha, enviar a carta. Nela, pedia à mãe que procurasse Isabel e lhe dissesse que estava com muita saudade e em breve voltaria para ela. A notícia caiu sobre Isabel como uma bomba. Ficou alegre por ele ter sobrevivido, mas sua vida tinha mudado. Estava apaixonada por outro e muito feliz ao lado dele. Naquela noite, encontrou-se com Gilberto e contou-lhe a novidade. Ele, que sabia de toda a história do noivado, permaneceu sério enquanto ouvia as notícias. Ela finalizou:
- Eu sofri muito por ele não ter voltado, julguei-o morto. Procurei virar a página. Conheci você e minha vida mudou. Voltei a ser feliz. Agora, de repente, ele vai voltar de uma guerra, procurando aconchego com as pessoas que ama.
- O que pensa em fazer?
- Sinceramente, não sei.
- Consulte seu coração. Eu a amo de verdade e sinto que sou correspondido.
Ele segurou as mãos dela e continuou:
- Quando estamos juntos, a vida corre alegre, somos felizes, nos compreendemos. Temos afinidade em muitas coisas. Sinto que nascemos um para o outro.
- Também sinto isso. Mas como lidar com uma situação tão triste? Como dizer a ele que mudei, que não o amo mais, e deixá-lo ir, depois de tudo que ele sofreu lá fora?
Gilberto abraçou-a e beijou-a longamente nos lábios. Foi um beijo emocionado, em que ele depositou toda a emoção, como a dizer-lhe o quanto a amava. Isabel correspondeu. De fato, Gilberto a fazia feliz e os momentos ao lado dele a deixavam de bem com a vida. Sentia-se bem por saber que Carlos estava vivo, mas ao mesmo tempo se perguntava por que ele tivera de voltar em um momento em que não o desejava mais. Ao pensar assim, nascia uma desagradável sensação de culpa e ele se perguntava: que amor era aquele, que o esquecera e o trocara por outro? Nos dias que se seguiram, ela não conseguia encontrar uma saída. Quando recebeu uma carta de Carlos dizendo que dentro de uma semana estaria de volta, apavorou-se. Precisava decidir o que fazer. Teve vontade de sumir, desaparecer para não ter de decidir nada. Reconhecia que não tinha condições para isso. Por esse motivo, resolveu ir para o Guarujá. Acreditava que longe de todos, sozinha com seus pensamentos, encontraria a solução. Mas estava difícil. Já estava lá há cinco dias e ainda não tinha tomado uma decisão. O sol havia ido embora, estava escurecendo e Isabel levantou-se, apanhou suas coisas e dirigiu-se ao hotel onde estava hospedada. Andava devagar, envolvida em seus pensamentos íntimos, querendo que o tempo parasse para que ela não precisasse fazer nada. Isabel acordou e olhou as horas assustada. Passava das onze. Levantou depressa e lembrou-se de que era o dia da chegada de Carlos. Suas mãos estavam frias e sentia arrepios pelo corpo. Ainda não havia tomado nenhuma decisão. Na véspera, conversara com Gilberto, pedindo-lhe um tempo para decidir. Ele reagiu:
- Diga a verdade. Quer esse tempo porque decidiu ficar com ele?
- Não é isso! Na verdade sinto que desejo ficar com você, mas não encontrei um jeito de dizer isso a ele. Vou conversar, saber como ele está, prepará-lo para contar-lhe a verdade. Não quero provocar um choque. Em sua carta ele conta comigo, com meu amor, não quero magoá-lo.
- De qualquer forma, se ficar comigo ele irá se magoar. Se fosse comigo, preferiria que fosse sincera.
- Você está bem, não esteve em uma guerra cruel, nem foi prisioneiro do inimigo. Não sabemos as feridas que ele carrega dentro de si. Pretendo fazer as coisas de maneira mais delicada.
- Está certo. Não me deixe esperar muito tempo. Ligue assim que resolver a situação.
Isabel sentia a cabeça pesada e decidiu tomar um banho. Precisava conservar a calma para conversar com Carlos. Ela havia dito à mãe de Carlos que não iria à casa dele no dia da chegada, para que a família pudesse usufruir mais de sua companhia. O que ela desejava era ganhar tempo, mas Albertina, mãe de Carlos, não concordara, objetando que Carlos desejava vê-la assim que chegasse. Eles só sabiam que ele chegaria depois das duas da tarde, e, apesar de desejar retardar esse momento, ela prometera estar lá naquele horário. Tomou um banho, deixando-se ficar embaixo do chuveiro um bom tempo enquanto tentava se acalmar, mas, apesar disso, suas pernas tremiam quando, depois de pronta, desceu para conversar com a mãe. Vendo-a chegar, Laura não disse nada, olhou-a e percebeu logo o quanto ela estava nervosa.
- Filha, quer um café?
- Não, mãe. Vai me deixar mais nervosa.
- Tem razão. O almoço está quase pronto.
- Estou sem fome.
- Foi o que pensei. Não pode ficar de estômago vazio. Vamos à copa, vou preparar-lhe um chá.
Isabel aceitou e acompanhou a mãe. Enquanto ela esquentava a água, Isabel disse:
- Fico imaginando como Carlos estará.
- Certamente feliz por estar de volta para a família.
Isabel suspirou e não respondeu. Laura fez o chá e colocou a xícara fumegante na frente da filha.
- É melissa. Beba. Vai fazer-lhe bem.
- É difícil para mim conversar com Carlos. Ele vai querer me acariciar, me beijar. Como aceitar isso se em meu coração só há amor por Gilberto?
- Você está se sentindo culpada por não tê-lo esperado. Mas ele foi dado por morto, passou muito tempo. Você tinha todo o direito de refazer sua vida.
- Você leu a carta dele. Continua apaixonado. Isso me penaliza.
- Quer saber? Você está fazendo uma tempestade em um copo de água. Se fosse comigo, eu lhe diria que o tempo passou e você mudou. Não há nada melhor do que a franqueza. Ele se decepcionaria, sofreria um pouco, mas você ficaria livre para continuar sua vida com Gilberto e ele pensaria em também refazer a dele.
- Eu não tenho essa coragem. Gostaria de ter, mas odeio ter de machucar os outros, principalmente Carlos que me ama tanto.
- Você não quer machucá-lo, então prefere machucar-se. Está errado. Você deve se colocar em primeiro lugar. Pensando dessa forma, você acabará por sacrificar-se para não decepcioná-lo e poderá fazer três pessoas infelizes.
- Como assim?
- Está muito claro. Se ficar com ele mesmo amando Gilberto, ele acabará percebendo isso e serão três infelizes em vez de um.
- Não posso ser egoísta pensando só em mim.
- Não é egoísmo. Casar com um homem amando outro é enganá-lo e levá-lo a casar-se com uma mulher que não o quer. Quem pode ser feliz em uma situação dessas?
- Começo a pensar que você tem razão.
- Pense, filha, e, assim que estiver a sós com ele, abra seu coração e diga a verdade. A vida é assim mesmo e ele terá de conformar-se, afinal esteve ausente por alguns anos e agora as coisas mudaram.
- É. Quando penso em tomar essa atitude, sinto um grande alívio. Seria bom que eu tivesse força para agir assim.
- Peça ajuda espiritual. Sozinha você pode ser fraca, mas se unindo a Deus vai se tornar forte. Depois, Ele sempre ajuda quem pede para fazer alguma coisa certa. Essa é a atitude certa.
- É uma boa ideia.
Laura segurou as mãos da filha, fechou os olhos e fez uma oração pedindo a Deus que lhe desse força para tomar a melhor atitude. Isabel sentiu uma onda de calor agradável envolver seu peito e a inquietação desapareceu como por encanto.
- Tome o chá, filha.
Isabel bebeu e sentiu-se bem mais calma.
- Se soubesse que você tinha a resposta, não teria ido isolar-me no Guarujá. Agora penso que estou fortalecida para encontrar-me com Carlos.
Às duas horas em ponto, Isabel tocou a campainha da casa de Carlos. Imediatamente Albertina abriu. Seus olhos ansiosos pousaram em Isabel, que notou logo o quanto ela estava nervosa. As duas abraçaram-se e Albertina comentou:
- Entre. Quando a campainha tocou, pensei que fosse Carlos. Nem parece verdade que ele está de volta!
- De fato, eu já havia perdido a esperança.
- Eu não. Deus é grande. Desde que ele partiu, não deixei um dia sequer de rezar por ele e pedir que Deus o trouxesse de volta são e salvo.
- A senhora foi ouvida.
O pai e a irmã de Carlos foram para a sala ao mesmo tempo e também não escondiam a ansiedade. Abraçaram Isabel. Inês, olhando-a fixamente, disse:
- Não pensei que viesse.
- Carlos me escreveu, eu não poderia faltar.
Inês lançou-lhe um olhar inquisidor, mas nada disse. Várias vezes ela vira Isabel na companhia de Gilberto e sabia que ela estava namorando.
- Obrigada por ter vindo, minha filha. Eu temia que não quisesse vir - comentou Antônio.
- O que vocês estão dizendo? - tornou Albertina. - Isabel ama Carlos. Ela pensou que ele tivesse morrido e tentou retomar a sua vida, mas agora que ele está de volta, tudo será como antes. Um amor como o deles não acaba nunca.
Isabel tentou dissimular o desagrado. Sentiu que tanto o pai como a irmã de Carlos a estavam criticando por estar namorando Gilberto. O fato de Albertina dar como certo que ela voltaria para Carlos começou a incomodá-la. O clima não era favorável para que tomasse a atitude que desejava. A campainha tocou novamente e, dessa vez, era Carlos que chegava. Assim que a porta abriu, os pais e a irmã dele correram a abraçá-lo, dando curso à emoção. Isabel, mais atrás, esperou que eles se acalmassem. Enquanto Albertina beijava o filho e deixava as lágrimas molharem seu rosto, Isabel notou que Carlos estava diferente. Mais alto, um pouco mais magro, seu rosto adquirira traços mais firmes, seus olhos verde-claros, que ela achava lindos, tinham se tornado mais escuros e revelavam a emoção do momento. Assim que se libertou um pouco da família, ele fixou Isabel, correu para ela e abraçou-a com força beijando seus lábios com paixão. Isabel sentia o coração bater mais forte, preocupada com a atitude dele. Diante da família que esperava e dava como certo que ela voltaria para os braços de Carlos, ela sentia-se sem forças, desejando sair dali o quanto antes e acabar com aquela cena desagradável. Naquele momento, percebeu o quanto havia mudado durante aqueles anos todos. Lembrou-se de que tanto o pai como a irmã de Carlos não viam com simpatia o relacionamento deles, sempre procurando alguma coisa para criticar. Já Albertina, extremamente apegada ao filho, uma vez que ele sentia-se feliz ao lado de Isabel, não questionava nada. Aceitara o namoro com alegria e desde o começo tratara Isabel com carinho e atenção. Cenas daquele relacionamento que tinham vivido passavam pela cabeça de Isabel, que não encontrava palavras para dizer. Ainda abraçado a Isabel, Carlos disse com emoção:
- Você não imagina como sonhei com este momento! Durante todo o tempo, imaginava estar chegando aqui, com minha família, abraçando e beijando você!
- Nesse caso, seria bom marcarem esse casamento o quanto antes - sugeriu Inês, olhando maliciosa para Isabel. - Vocês precisam recuperar o tempo perdido.
- É o que eu mais desejo - disse Carlos. - Mas primeiro preciso retomar minha vida. No momento não tenho nada para oferecer a Isabel nem como sustentar uma família.
Albertina veio em socorro dele:
- Nós estamos aqui. Apoiaremos tudo. Vocês podem se casar quando quiserem. Depois você tratará do resto.
Os três olharam para Isabel, que a essa altura não sabia o que dizer. Notando que eles esperavam sua resposta, disse:
- O momento é de alegria pela sua volta. Mais tarde conversaremos sobre o futuro.
- Eu temia que você tivesse me esquecido. Tive alguns pesadelos em que você me dizia que estava apaixonada por outro. Sem poder me comunicar, sem notícias, sofri muito por causa disso. Felizmente, nada disso era verdade. Você está aqui, ao meu lado, ficou me esperando.
Isabel tentou sorrir, mas não conseguiu dissimular totalmente o que sentia. Inês comentou:
- Parece que você não ficou muito contente com a volta de Carlos. Dá para notar que não está à vontade aqui.
Isabel apressou-se a responder:
- Claro que fiquei. Saber que ele está vivo deixou-me muito feliz. Mas a emoção do momento me fez ficar sem palavras e não estou em condições de falar sobre o futuro.
Albertina tinha preparado um lanche com algumas das guloseimas prediletas de Carlos e convidou-os para comer na copa. Isabel sentiu-se aliviada, notando que as pessoas desviaram um pouco a atenção dela. Procurou recobrar a calma e não demonstrar o desagrado. Sentia-se como um peixe fora da água e, naquele momento, perguntava-se como pudera dar-se bem naquele ambiente, desejar casar com Carlos. Pela circunstância ou pela emoção do momento, o que ela mais queria era ir embora, não ter de dar satisfações de sua vida a nenhum deles. Instado a responder às perguntas dos pais, Carlos começou a contar tudo o que lhe acontecera sem muitos detalhes. Isabel notou que era penoso para ele falar sobre a guerra e que, ao mencionar certos momentos, seus olhos tornavam-se frios, impessoais, como se ele não tivesse sido o personagem principal naquela história. Quando foi feito prisioneiro do Exército russo, estava sem documentos e foi levado para o quartel general que atuava em Berlim. A guerra tinha terminado e as potências vencedoras dividiam os louros. Berlim ficou dividida e os russos ficaram com o lado oriental. A disciplina era dura. Os prisioneiros eram obrigados a trabalhar exaustivamente na reconstrução da cidade, mantidos sob severa vigilância. O tempo passou e os prisioneiros de guerra comuns foram sendo aos poucos libertados. Carlos contou com a ajuda da Cruz Vermelha, que tinha trânsito livre entre as potências e realizava o trabalho humanitário. Foi assim que conseguiu a liberdade, mas os registros de documentos estavam confusos, muitos tinham sido destruídos. Uma vez livre, ele procurou trabalho a fim de conseguir recursos para voltar. Se ele tivesse os documentos, teria sido repatriado com mais rapidez. Mas não os tendo, só depois de muito tempo conseguiu comunicar-se com a família e poder voltar. Isabel olhava o rosto de Carlos pensativa. Aquele homem na sua frente lhe parecia desconhecido. O Carlos que tinha amado era outro. Rosto mais leve, sorriso fácil, gestos delicados. O homem que estava diante dela parecia tenso, inquieto, o olhar perdera a ternura de antes. Isabel sentia que havia qualquer coisa nele que a intimidava, fazendo-a desejar ir embora o quanto antes. Seu beijo tinha sido desagradável e fora preciso controlar-se para não empurrá-lo para longe. Depois do lanche, Isabel levantou-se dizendo:
- Eu preciso ir. Você deve estar cansado da viagem, deve descansar.
Carlos abraçou-a e respondeu:
- De maneira alguma. Você vai ficar aqui. Tenho todo o tempo do mundo para descansar. Hoje quero ficar com você.
- Não vai dar. Estou preocupada. Mamãe não está bem e preciso ir para casa - mentiu ela.
- O que é que ela tem? - indagou Inês provocativa, completando: - Ainda ontem eu a vi fazendo compras e parecia estar muito bem.
- É verdade. Mas hoje pela manhã passou mal. Eu deveria tê-la acompanhado ao médico para uma consulta. Nem poderia ter vindo aqui.
- Mas você veio, o que me deixou muito feliz - respondeu ele, olhando-a firme nos olhos, como querendo penetrar fundo nos íntimos pensamentos dela.
Isabel baixou o olhar e apressou-se a responder:
- Me desculpem, mas tenho mesmo que ir - e, dirigindo-se a Carlos, continuou: - Foi muito bom vê-lo de volta. Muitas coisas mudaram em nosso país depois dessa guerra. Ambiente-se, integre-se aos novos tempos, retome sua vida. Mais tarde conversaremos sobre nosso futuro.
- Faremos isso juntos. Conto com seu apoio para retomarmos nossas vidas.
- Está bem. Dona Albertina, obrigada pelo lanche.
- Eu vou com você até a porta - disse Carlos.
Isabel despediu-se e foi saindo. Carlos a acompanhou, abriu a porta e Isabel saiu para o jardim. Não queria que ele a beijasse novamente e, por esse motivo, apressou-se a estender a mão e a dizer:
- É muito bom tê-lo de volta. Até outro dia.
Ignorando a mão estendida, ele a abraçou com força e beijou-a várias vezes enquanto ela se esforçava para se desvencilhar de seu abraço. Quando conseguiu afastá-lo, ela disse com raiva:
- Não devia ter feito isso.
- Por que não? Quero que saiba que você é minha. Pertence a mim. Só Deus sabe o que passei longe de você.
- Você está agindo de forma diferente do que era. Não parece mais o mesmo.
- E não sou mesmo. A vida me ensinou que é preciso tomar o que se deseja. Você me pareceu distante e eu desejo que saiba que o tempo só fortaleceu meu amor, que de forma alguma vou abrir mão de você.
Isabel sentia a cabeça rodar e tinha vontade de gritar que ela não era dele nem de ninguém, que não gostava de seus beijos e que ele se tornara um estranho para ela. Mas achou melhor ir embora, tentar se acalmar para resolver o assunto de uma vez por todas.
- Tenho que ir. Até outro dia.
Ela abriu o portão e saiu quase correndo sem olhar para trás. Foi para o ponto pegar o ônibus, que felizmente estava chegando. Subiu, sentou-se e, quando o coletivo passou diante da casa de Carlos, ele ainda estava lá olhando para ela, que fingiu não tê-lo visto. Quando Isabel entrou em casa, Laura notou logo que ela não estava bem. Olhou-a em silêncio, esperando que ela falasse.
- Mãe, foi horrível. Carlos é outra pessoa, está muito diferente e eu não gostei de tê-lo encontrado.
- Calma, filha. Ele enfrentou uma guerra sangrenta. Ninguém fica impune depois de uma tragédia dessas.
- Eu não sei como pude gostar dele, querer me casar. A Inês, detestável como sempre, fica fazendo ironias, joguinhos para me deixar sem jeito. Seu Antônio, sempre antipático com cara de poucos amigos. Só dona Albertina é agradável.
Laura fixou-a séria e comentou:
- Pelo jeito você não teve como dizer-lhe o que planejou.
- Como poderia? Com os dois abutres torcendo para eu me perturbar e Carlos deixando claro que é meu dono?
- Como assim, dono?
- Pois é, mamãe. Foi como ele se posicionou na hora em que nos despedimos. Garantiu que eu pertenço a ele e que não vai aceitar um rompimento. Chegou a parecer ameaçador. Odiei a atitude dele.
- Carlos sempre foi um rapaz delicado.
- Foi, mamãe. Mas voltou diferente. Há algo nele que me intimida. Sinto que preciso acabar com as pretensões dele o quanto antes.
Laura ficou alguns momentos pensativa, depois disse:
- Se é assim, você precisa ter cuidado, fazer o que deseja de uma forma sensata e esperar o momento certo.
- Foi você mesma quem me aconselhou a dizer a verdade. Por que mudou de ideia?
- Porque precisamos saber se ele estava tenso por causa das emoções da volta ou se o que ele viveu durante esses anos todos causou danos mais sérios em seu emocional.
- O tempo passou, ele foi dado como morto e eu não fui responsável por isso. Desequilibrado ou não, não vou aceitar ficar com ele, uma vez que eu mudei e não o amo mais, se é que um dia amei de verdade. Nós crescemos juntos e ele foi meu primeiro namorado. Se fosse mesmo amor, agora eu o receberia de braços abertos, mas não foi o que aconteceu.
- Está bem, filha. Você também está muito nervosa. A tensão em que viveu nos últimos dias a está atormentando. Agora precisa se acalmar. Sente-se aqui no sofá ao meu lado.
Isabel obedeceu e Laura segurou a mão dela com carinho.
- Vamos nos ligar aos nossos amigos espirituais, que sempre nos auxiliaram. Feche os olhos, mentalize uma luz azul descendo do alto e chegando até nós.
Depois de alguns minutos de silêncio, ela começou a falar com voz calma:
- Nós somos pessoas do bem, estamos ligadas com a luz da espiritualidade. Somos gratas à vida que tem nos favorecido com o amor divino. Pedimos à inteligência universal que nos inspire e mostre o melhor a se fazer nesse caso, que beneficie todos os envolvidos. Vamos ficar em paz e esperar um sinal das forças divinas indicando o momento de tomarmos nossa decisão. Enquanto esperamos confiantes, ficaremos em paz.
Laura calou-se, Isabel abriu os olhos e suspirou.
- Obrigada, mamãe. Sinto-me aliviada. Abençoada ajuda espiritual.
- Ela sempre está disponível, basta abrirmos o canal para que se manifeste.
Isabel respirou mais calma:
- Vou descansar um pouco antes de ligar para Gilberto, conforme prometi.
- Sinto que você já escolheu com quem quer ficar. Não deseja refletir mais um pouco?
- Não. Ao rever Carlos, tudo ficou claro na minha cabeça. Não quero ficar com ele. Vou para o meu quarto, estou com um pouco de dor de cabeça.
- Vá. Vou lhe levar um chá de melissa.
Isabel foi para o quarto, tirou os sapatos, afrouxou a roupa e estirou-se na cama pensativa. As cenas que acabara de viver persistiam em sua lembrança. Ao fixar o pensamento na figura de Carlos, sentia um aperto desagradável no peito e arrepios pelo corpo. Pouco depois, Laura trouxe o chá. Isabel sentou-se na cama e segurou a xícara, dizendo:
- Não sei se conseguirei descansar. Não gostei de ter visto Carlos nem de ter ido até lá.
- Esse encontro mexeu muito com seu emocional. Tente mudar o foco de seus pensamentos. Desde que chegou a carta de Carlos, você tem vivido em um clima de muita tensão. Procure não levar esse fato tão a sério. Você não é obrigada a ficar com ele se não quiser. Estou certa de que, com calma, tudo vai se esclarecer e voltar ao normal.
Isabel devolveu a xícara à mãe e deitou-se novamente, dizendo:
- Assim espero. O chá me fez bem. Vou tentar dormir um pouco para ver se minha dor de cabeça passa.
Laura deixou o quarto e Isabel fechou os olhos. Sua mãe estava certa. Ela não tinha obrigação de se casar com Carlos só porque ele insistia nisso. Assim que se sentisse mais calma, conversaria com ele, esclareceria sua posição. Ele teria que aceitar sua decisão. Esse pensamento a ajudou a relaxar e, dentro de alguns minutos, conseguiu adormecer. Depois que Isabel tomou o ônibus e se foi, Carlos entrou em casa irritado. Notou que ela tinha mudado. Durante todos aqueles anos de separação, nos momentos mais difíceis que vivera, sonhara com a volta e principalmente com o amor dela, idealizando o momento em que se veriam novamente. Imaginava-se abraçando-a, beijando-a com paixão e sendo correspondido. Esses pensamentos tinham povoado sua mente durante todo o tempo. Estava sofrendo, tendo que suportar a violência, o desconforto, o medo, a insegurança e, na tentativa de preservar sua lucidez, mergulhara em um faz de conta no qual Isabel era o prêmio que receberia ao voltar e que o faria esquecer tudo o que sofrera. Contudo, ela não correspondera aos seus sonhos. Parecera distante, indiferente, como se eles não tivessem vivido tantos momentos de amor. Nervoso, passou a mão nos cabelos, como se tentasse jogar para longe aqueles pensamentos ruins. Tentou conter a raiva. Talvez Isabel estivesse muito tensa, tentando controlar a emoção. Julgara-o morto, assim como pensaram sua própria família e seus amigos. Tentara levar a vida para frente, buscara esquecer para não sofrer. Mas agora ele estava de volta, e aos poucos tudo voltaria a ser como antes. Tentando controlar a contrariedade, entrou em casa. Foi ter com seus familiares, que estavam na cozinha conversando.
- E agora, meu filho, o que pensa em fazer para recuperar o tempo perdido? Vai continuar os estudos? - indagou Antônio.
- Ainda não sei, pai. Quando fui convocado, estava no segundo ano, mas agora não sei se teria paciência para continuar.
- Você queria muito ser engenheiro. É uma boa profissão. Fácil de arranjar emprego e ganhar muito dinheiro.
- Vai demorar muito até eu me formar. Preciso refazer minha vida depressa. Perdi muito tempo. Quero me casar, ter família. Preciso encontrar outra forma de ganhar dinheiro rápido.
Albertina interveio:
- Seu pai tem razão. O melhor seria continuar os estudos e se formar. Não precisa esperar concluir o curso para se casar. Vocês podem morar aqui, seu quarto está disponível. Nós o ajudaremos no que for preciso.
- Não sei. Tenho que pensar.
- Vocês estão decidindo o futuro sem perguntar para Isabel se ela quer se casar com você - disse Inês.
Carlos olhou-a desconfiado:
- Por que está dizendo isso?
- Porque ela já está em outra. Há pouco tempo eu a vi com um rapaz, dançando de rosto colado.
- É mentira! Isabel não faria isso!
- Por que não? Você ficou cinco anos desaparecido, julgamos que tivesse morrido. Acha que ela ficaria chorando todo esse tempo? Claro que arranjou outro. Um rapaz bem bonito e rico.
- Você está exagerando - atalhou Albertina nervosa. - Ela pode mesmo ter tentado refazer a sua vida com outro, mas ela gosta mesmo é de Carlos. Não tenho nenhuma dúvida de que ela quer é se casar com ele.
- Você sempre muito crédula! - comentou Antônio meneando a cabeça. - Ela pode muito bem ter se deixado seduzir por um homem bonito e principalmente em boas condições financeiras. Afinal, Carlos voltou da guerra, terá de recomeçar a vida, ainda não tem muita coisa a oferecer.
- O amor é o mais importante! - tornou Albertina. - Isabel adora Carlos. E vocês parem de colocar caraminholas na cabeça dele.
- Só estou tentando impedir que ele continue se iludindo. Precisa abrir os olhos - interveio Inês. - Afinal, cinco anos é muito tempo e Isabel não me pareceu muito saudosa. Estava inquieta o tempo todo, não via a hora de ir embora. Eu, se fosse você, não alimentaria muitas ilusões com ela.
- Talvez Inês tenha razão. O melhor é ficar esperto, não se deixar enganar - reforçou Antônio. - Se ela estiver em outra, deixe-a ir. Estou certo de que você vai refazer sua vida, sua situação financeira e mostrar pra ela o quanto você vale.
- Não se preocupem. Eu resolvo isso. O que eu quero mesmo é esquecer os momentos duros que passei. De qualquer forma, é muito bom estar de volta, deixar aquele inferno.
- Isso mesmo, meu filho. O melhor é esquecer o passado. Acabou. Você tem a vida toda pela frente. Descanse, reflita. Não se precipite.
- Tem razão. Eu vou subir, tomar um banho, descansar um pouco. A viagem foi cansativa. Depois, quero rever os amigos, saber o que aconteceu por aqui enquanto estive ausente. Estou precisando me situar, voltar a levar vida normal.
Todos concordaram, ele subiu e Inês acompanhou-o até o quarto.
- Arrumamos tudo do jeito que você gosta!
Carlos olhou em volta emocionado. Havia flores no vaso, roupas novas na cama, um cheirinho gostoso de alfazema no ar.
- Estou em casa! Parece mentira! Houve momentos em que cheguei a pensar que nunca mais voltaria para cá.
Inês o abraçou:
- Mas você conseguiu. Agora está aqui, junto com as pessoas que lhe querem bem. Não tome nenhuma decisão apressada, não se amarre em um casamento que pode trazer-lhe muitos problemas.
Carlos colocou as mãos nos braços dela com firmeza, olhou-a nos olhos e disse sério:
- O que mais você sabe sobre Isabel? Do jeito que está falando, dá para entender que ela não gosta mais de mim.
- O tempo não passou para você. Noto que continua gostando dela como sempre. Só que ela não quis esperar. Está noiva de outro. Eles são vistos juntos em todo lugar. Mamãe pediu que não lhe contasse, mas eu acho melhor que você saiba a verdade. Para mim, se o amor que ela dizia sentir por você não foi suficiente para que ela, mesmo julgando-o morto, continuasse fiel, não merece sua confiança.
Carlos franziu o cenho nervoso. Inês tinha certa razão. Isabel o traíra. Mas agora ele estava de volta disposto a lutar para reconquistá-la. Houve um tempo em que a única coisa que o fazia suportar o sofrimento era o amor de Isabel. Se isso também lhe fosse tirado, o que lhe restaria? Seria o caos total. Não. Ele não desistiria nem aceitaria que ela o deixasse.
- Eu não penso como você. Não vou desistir dela.
- Pense bem, Carlos. Dê um tempo. Não tenha pressa de se casar. Primeiro arrume sua vida financeira, não concorde em morar aqui depois de casado. Isabel está habituada a uma vida boa, não vai se sentir bem casando-se e morando em um quarto de nossa casa.
- Deixe-me, Inês. Não quero pensar em nada agora. Estou no limite de minhas forças.
Inês beijou-o levemente na face:
- Está certo. Vá tomar seu banho. Deixei no banheiro sua colônia preferida. Se precisar de alguma coisa, é só chamar.
Ela deixou o quarto, Carlos abriu a mala, olhou as peças de roupas e sentiu vontade de jogá-las no lixo. Abriu a cômoda e lá estavam algumas camisas suas. Apanhou uma delas e coçou a cabeça pensativo. Ele estava mais alto, mais forte, elas não serviam mais. O jeito era conformar-se em vestir as roupas que a Cruz Vermelha lhe dera. Esse detalhe o fez pensar em suas necessidades básicas. Enquanto estava embaixo do chuveiro, deixando que a água morna banhasse seu corpo, teve a certeza de que, para seguir em frente, reconquistar tudo o que a guerra lhe roubara, teria de se esforçar muito. Naquele momento sentiu-se injustiçado pela vida, por aquela guerra que não criara e que lhe roubara anos de sua mocidade, acabara com seus projetos para o futuro e, além de tudo, estava acabando com o amor de sua vida. Enquanto a água continuava lavando seu corpo, ele firmou o propósito de que, dali para frente, reconquistaria tudo quanto lhe fora tirado. Queria de volta o que perdera e estava disposto a passar por cima de tudo e de todos. Julgava-se vítima das circunstâncias e merecia ser feliz. Na manhã seguinte trataria de organizar seus documentos e procuraria um emprego. Não queria ficar dependente de ninguém. Quanto aos estudos, decidiria mais tarde. Isabel não lhe contara que estava noiva e ele não sabia se fora de propósito, por sentir-se arrependida, ou por falta de oportunidade. Preferia a primeira hipótese, mas em nenhum momento pensou em desistir. Isabel lhe pertencia. E, mesmo que a distância e o pensamento de que ele nunca mais voltaria a tivessem influenciado, ele tinha certeza de que, com o tempo, tudo voltaria a ser como antes. Mais calmo, sentiu-se confiante e alegre. Depois do banho, estendeu-se na cama para descansar. Viajara durante a noite inteira sem conseguir pregar olho. A emoção da volta e a incerteza de como seria sua vida dali por diante não o deixaram dormir. Acomodou-se melhor, sentindo o prazer de estar ali e, em poucos minutos, adormeceu. Sonhou que estava em um lugar úmido e escuro, onde caminhava ansioso, procurando por alguém. O barulho incessante das metralhadoras que pipocavam em volta e as balas que passavam sibilando rente à sua cabeça faziam-no estremecer de medo, e ele deslizava procurando se proteger. Alguém agarrou seu braço e ele reconheceu Adriano, cujo rosto pálido por onde o sangue escorria assustou-o. Ele gritou:
- Você está ferido! Onde se escondeu? Eu o estava procurando.
Vendo que ele estava caindo, segurou-o, acomodando-o com cuidado sobre a relva. Adriano segurou os braços dele com força, dizendo:
- Estou morrendo, Carlos. Preciso falar.
- Calma. Não vou sair de perto de você. Assim que o ataque passar, irei atrás de socorro. Você não vai morrer!
- Não me deixe. Me ouça. Tenho de pedir-lhe uma coisa. Jure que fará o que eu disser.
- O que é?
- Jure.
Ele fechou os olhos e Carlos, notando que ele estava sem forças, disse:
- Eu juro. Prometo fazer o que pedir. O que é?
- Quando você voltar a Paris, vá procurar Anete. O endereço dela está na minha carteira, com o retrato. Diga-lhe que o meu último pensamento foi para ela e que...
De repente o ruído cessou e Carlos viu-se em outro lugar. Era um bairro de Paris, e ele estava abraçado a uma moça de rara beleza. Beijavam-se com paixão e ele sentia o peito oprimido.
- A guerra está no fim - disse ela. - Prometa que quando tudo passar você não vai me abandonar.
- Pode esperar. Eu voltarei.
Carlos remexeu-se na cama, inquieto, e acordou sentindo o rosto coberto de suor. Sentou-se e passou a mão nos cabelos preocupado. Desde que ingressara no batalhão expedicionário e começara o treinamento, tornou-se amigo de Adriano, um soldado dois anos mais velho do que ele. Tornaram-se inseparáveis. Infelizmente, Adriano foi ferido e morreu diante dele sem que pudesse fazer alguma coisa para salvá-lo. Antes de morrer, ele lhe pedira que procurasse Anete, a mulher que ele amava e que trabalhava como voluntária em uma unidade de socorro próxima de onde seu batalhão ficara durante vários meses. Mas a morte o surpreendera antes que pudesse dizer o que queria, e Carlos nunca a procurou. Desde então, sempre que ele ficava muito tenso com algum problema, sonhava com o amigo repetindo aquele pedido. Quando isso acontecia, perdia o sono e ficava se perguntando o que Adriano tentara lhe pedir para fazer. Mas nunca tinha sonhado com essa mulher desconhecida, com a qual trocara beijos apaixonados. Quem seria ela?
- Foi só um sonho - pensou. - Fiquei preocupado com Isabel e acabei misturando as coisas.
Apesar disso, sentia-se mexido, emocionado. A emoção daqueles beijos tinha sido muito forte. Havia amor entre eles e nem quando beijava Isabel, nos velhos tempos, sentia tanto envolvimento. Era bobagem continuar pensando naquilo. Aquela mulher não existia. Ele nunca a conhecera. Sorriu e decidiu esquecer o assunto. Levantou-se, lavou o rosto, penteou os cabelos e decidiu descer. Não queria perder tempo. Procurou os jornais. Desejava informar-se, encontrar um emprego. Na manhã seguinte, iria à Associação dos Expedicionários dar baixa do batalhão, refazer seus documentos. Encontrou a mãe na cozinha, pediu o jornal. Ao entregá-lo, Albertina comentou:
- Você não descansou muito, mas está com a fisionomia melhor.
- Dormi um pouco, mas ainda estou meio fora do natural. A alegria de voltar, a emoção da liberdade e de reencontrar a família e a vontade de recuperar o tempo perdido mexeram comigo.
- Tudo isso, além do que passou na guerra. Mas estou certa de que dentro de pouco tempo você conseguirá dar a volta por cima.
- Vou me esforçar para refazer minha vida.
- Posso servir o jantar? Estávamos esperando por você.
- Já? Eu comi muito no lanche, estou sem fome. Mas é melhor servir. Não quero que vocês mudem seus hábitos por minha causa. Pelo contrário. Eu é que vou me esforçar para entrar na rotina da casa. Vai me fazer bem e ajudar a retomar a vida com naturalidade.
Enquanto Inês ajudava a mãe a colocar a comida na mesa, Carlos conversava com o pai, informando-se sobre as mudanças que ocorreram no país durante sua ausência. O jantar decorreu alegre. Carlos estava muito interessado em saber tudo e todos faziam comentários animados sobre vários assuntos. Em meio àquilo tudo, de vez em quando Carlos pensava em Isabel e sentia um aperto no peito. O fato de ela não ter ficado mais tempo revelava que ela se habituara a viver sem ele, não sentia mais sua falta. Entretanto, ele controlava a sensação desagradável, não demonstrando o que sentia para não preocupar os demais. Ao mesmo tempo, alimentava a esperança de recuperar o tempo perdido e reacender a antiga chama. Eles tinham vivido momentos felizes desde a adolescência. Isabel lhe pertencia e ele também só pensava em viver para sempre ao lado dela. Durante todos aqueles anos em que estivera longe, ele se relacionara ocasionalmente com várias mulheres, mas seu interesse por elas não ia além de um passatempo que o ajudava a quebrar a tensão e esquecer momentaneamente as dores que estava vivendo. Durante o tempo em que fora prisioneiro dos russos em Berlim Oriental, não tivera muitas oportunidades de relacionar-se com mulheres. Elas não tinham permissão para visitá-los e até nas enfermarias do casarão transformado em presídio, onde permanecera mais tempo, só havia enfermeiros homens. Depois de um mês preso, por causa do seu bom comportamento, Carlos foi chamado para trabalhar na adaptação do prédio. Isso lhe dava um pouco mais de liberdade dentro do casarão e permitia que ele, mesmo sem sair, pudesse observar um pouco do movimento das ruas do lado de fora. Havia muita miséria. Pessoas andando à procura de algum trabalho ou em busca de parentes desaparecidos. Depois de alguns meses, Carlos já conseguia se comunicar em alemão e, por esse motivo, foi chamado para trabalhar na seção de informações do prédio. Foi então que ele conheceu a extensão da tragédia que a guerra havia significado para aquele povo. A confusão era muito grande e a maioria dos registros da população havia sido destruída. Muitos buscavam a casa de parentes e só encontravam os restos de suas casas em ruínas. Não tinham como saber se alguém daquela família havia sobrevivido. Foi durante esse tempo que Carlos conheceu muitas mulheres de todas as idades e bonitas, mas abatidas, tristes, marcadas pelo sofrimento. Admirou-se da valentia daquele povo que, destruído pela loucura de um político ambicioso, procurava se reerguer das cinzas e refazer a vida, restaurar a dignidade. Naquela época, apesar de ter conhecido mulheres belas e carentes de afeto, não se apaixonara por nenhuma delas, só pensava em voltar para Isabel. Era a Cruz Vermelha que realizava um vasto trabalho de assistência aos órfãos e de recadastramento dos prisioneiros de guerra, fazendo o possível para que pudessem ser libertados e repatriados. Carlos conseguiu a ajuda deles para que seu caso fosse examinado. O Exército russo também desejava se ver livre dos prisioneiros comuns, cuja manutenção lhes custava muito dinheiro. Por esse motivo, aceitava a colaboração da Cruz Vermelha, que lhes fornecia gêneros alimentícios, medicamentos e até roupas, além de resolver o destino dos prisioneiros. Era uma troca boa para ambas as partes e, embora muito do auxílio que a Cruz Vermelha prestasse fosse para Berlim Ocidental, por ser administrada pelos americanos, com quem tinham mais afinidade de princípios, eles também atendiam os russos, já que eles haviam feito muitos prisioneiros que lhes interessava libertar. Quando finalmente Carlos ficou livre da prisão, foi informado da possibilidade de ser repatriado através da Cruz Vermelha, mas ele teria de esperar e não havia um prazo certo. A embaixada brasileira também não facilitou sua volta. Ficaram de estudar o caso, mas não tinham nenhuma data. Ansioso por retornar, Carlos decidiu trabalhar, ganhar algum dinheiro para poder sobreviver e comprar a passagem de volta. O problema foi que havia pouco dinheiro em circulação e, embora se esforçasse, o trabalho era sempre à base de troca roupas, objetos de uso pessoal. Na maior parte das vezes, procurava a sede da Cruz Vermelha e enfrentava as longas filas para obter comida. Soube, então, que no lado ocidental as coisas estavam rapidamente voltando ao normal e fez de tudo para ir para o outro lado do muro. Mas a vigilância era grande e. Carlos descobriu logo que seria muito perigoso tentar atravessar. Os russos tinham muita dificuldade para entender e se fazerem entender pela população. Não tinham iniciativa para nada, porquanto em seu país estavam habituados a esperar tudo do governo. Já os americanos, sempre práticos, contando com a colaboração de pessoas que, apesar da guerra, haviam conservado suas fortunas e estavam dispostas a colaborar para a reconstrução da Europa destruída, em pouco tempo restauraram os serviços de atendimento à população, cadastrando os sobreviventes. Alguns capitalistas montaram fábricas e ofereceram trabalho, o que ajudou aquela parte da Alemanha a se recuperar rapidamente. Carlos não teve essa facilidade. Fazia tudo o que podia e, depois de algum tempo, conseguiu economizar algum dinheiro para comprar a passagem de volta. Quando a Cruz Vermelha o avisou de que o mandaria de volta ao Brasil dentro de alguns dias, pensou em usar o dinheiro para comprar roupas decentes. Mas o dinheiro não foi suficiente e ele teve de viajar com as que ganhara da Cruz Vermelha. Estava ansioso, contava os minutos para embarcar de volta, rever a família, abraçar Isabel. Na chegada, o encontro com sua amada tinha sido diferente do que imaginara, mas ele confiava que, com o tempo, tudo voltaria a ser como antes. Depois do jantar, apanhou o jornal e sentou-se na sala determinado a procurar trabalho. Estava disposto a aceitar o que aparecesse. O importante era retomar a vida, ganhar algum dinheiro pelo menos para comprar roupas. Decidido, abriu o jornal, procurou a seção de oferta de empregos e começou a ler. Na manhã seguinte, ao acordar, Isabel lembrou-se do encontro com Carlos e foi dominada por uma sensação desagradável. Ele chegara saudoso, certo de que ela o estaria esperando, o que não era verdade. Ao reencontrá-lo, todas as suas dúvidas desapareceram. Teve a certeza de que amava Gilberto e era com ele que preferia ficar. Teve vontade de esclarecer logo esse assunto, mas era-lhe penoso, porquanto ele continuava a manter os mesmos sentimentos de antes. Diante da família dele não tivera coragem. Ela prometera a Gilberto dar-lhe notícias, mas ainda não o fizera. Tomou café e foi para empresa, passou a manhã muito ocupada e só na hora de almoço foi que ligou para Gilberto. Depois dos cumprimentos, ele não perguntou nada, esperando que ela tocasse no assunto.
- Ontem fui à casa de Carlos - começou ela. Como ele não disse nada, continuou: - Não foi nada fácil, para mim, rever a família dele e descobrir que ele acreditava que eu o estava esperando. Foi horrível! Não me senti à vontade e mal podia esperar para sair de lá.
- Por quê?
- Só a mãe de Carlos me recebeu de coração aberto, como sempre, mas Inês, a irmã dele, fez de tudo para me indispor com todos. Quanto ao pai, mostrava claramente que não estava contente com minha presença.
- Eles sempre a trataram dessa forma?
- Inês sempre foi implicante, mas pelas suas atitudes e suas palavras imaginei que ela deve ter nos visto juntos e ficado com raiva.
Gilberto ficou calado por alguns segundos, depois disse:
- E... quanto a ele. Como se sentiu?
- Antes de ir eu já tinha tomado minha decisão. Senti que ele não significa mais nada para mim. Eu amo você. Meu encontro com ele só fez esclarecer meus sentimentos ainda mais. Disse à mamãe o que decidi e chegamos à conclusão de que o melhor seria esclarecer o assunto com Carlos o quanto antes. Fui até a casa dele disposta a dizer-lhe a verdade.
- E como foi?
- Não tive oportunidade. Ele mudou muito durante esses anos todos. Está muito diferente do rapaz que eu conheci, mais duro, mais controlado, não sei explicar. A família estava emocionada com sua volta, ele também, e eu fiquei nervosa sem conseguir me sentir à vontade. Não tivemos nem um minuto a sós para que eu pudesse me abrir e ir embora. Ele falava como se tivéssemos nos separado na véspera. Fez questão de falar sobre nosso casamento e projetos para o futuro. Quando ele fazia isso, Inês intervinha dizendo que eu tinha sido vista com outro, que ele precisava saber se eu estava namorando, etc. Eu me sentia mal sem poder falar o que desejava. Mas como fazer isso diante do resto da família? Saí de lá sem ter esclarecido nada, com uma terrível dor de cabeça.
- Sente-se melhor agora?
- Sim. Mas enquanto não contar a verdade a ele, não me sentirei bem. É cruel, depois do que ele sofreu longe de casa, ter de dizer que não o amo mais. Entretanto, é muito mais cruel deixá-lo iludido, esperando um amor que já não tenho condições de lhe dar.
- Está certo. Desde o momento em que fiquei sabendo que ele chegaria e que vocês estariam frente a frente, fiquei preocupado. Tive receio de que você escolhesse ficar ao lado dele. Eu não sabia o quanto esse amor ainda significava para você, temia ser preterido. Tenho pensado muito, mas, para lhe ser franco, se você não me quisesse mais, sofreria, seria cruel, mas muito pior seria não saber a verdade. Por mais dolorosa que ela seja, sempre será a melhor solução em qualquer caso.
- Estou pensando em chamar Carlos para vir à minha casa conversar. Então poderei me libertar dessa tarefa tão desagradável.
- Quando pensa em fazer isso?
- Talvez esta noite. Se ele puder vir, resolverei esse caso definitivamente.
- Então é melhor não nos encontrarmos antes que tudo esteja esclarecido. Eu também não gosto de situações dúbias.
- Estou me sentindo angustiada, ansiosa. Não gosto de me sentir assim. Quero resolver tudo ainda hoje.
- É isso mesmo o que você quer?
- Sim. Quero recuperar meu equilíbrio.
- Saiba que estarei pensando em você e esperando que possamos nos ver, retomar nossa paz e nossos projetos para o futuro. Vai dar tudo certo.
- Isso mesmo. Ele terá de conformar-se, afinal cinco anos é muito tempo, levando em conta que eu pensava que ele estivesse morto.
- Você mudou. Ele terá que entender. Ninguém teve culpa do que aconteceu. Foi a vida; as circunstâncias os separaram.
Isabel concordou, e eles despediram-se. Ela pensou em ligar para Carlos, mas sentiu um aperto no peito e deixou para mais tarde. Sabia que o melhor seria acabar logo com o assunto, mas era-lhe penoso dizer-lhe que amava outro. Ele sofrera muito aqueles anos todos e parecia-lhe crueldade rejeitá-lo. Queria ganhar um pouco de tempo, mas estava segura de sua escolha. Passou a tarde agitada, pensando o que lhe diria quando chegasse o momento. Estava quase na hora de deixar o trabalho quando Carlos ligou:
- Estou com saudades. Temos que recuperar o tempo perdido. Vou passar em sua casa às sete. Está bem?
Isabel hesitou um pouco, mas respondeu:
- Precisamos conversar. Estarei esperando.
Desligou o telefone preocupada. Ele falava como se todos aqueles anos nunca houvessem passado. Essa atitude dificultava as coisas. Ele não perguntara se ela ainda tinha por ele os mesmos sentimentos. Era como se ele fosse o dono de sua vida e estivesse tomando posse dela. Inês dissera que a vira com outro. Entretanto, Carlos fazia de conta que não ouvira nada. De repente ela entendeu: ele fingira ignorar o assunto porque temia saber a verdade. Preferiu pressionar, passar por cima dos sentimentos dela, não lhe dar espaço para que se colocasse. Esse pensamento irritou-a. Carlos sempre fora controlador. Quando namoravam, ela sempre cedia aos seus argumentos e fazia como ele queria. Naquela época era muito jovem e deixava passar, mas agora era diferente. Estava mais amadurecida, sabia o que queria e não aceitaria mais ser manipulada. Gilberto era muito diferente de Carlos. Não a sufocava com seu ciúme, de forma que ela podia continuar sendo como sempre fora e agir livremente. Eles trocavam opiniões, mas tinham liberdade para agir conforme desejavam. Quando entrou em casa, Laura notou logo que Isabel não estava bem:
- Aconteceu alguma coisa?
- Carlos ligou. Vai passar aqui logo mais. Desta vez não vou deixar passar. Vou esclarecer tudo.
- Nesse caso, é melhor procurar se acalmar. Peça ajuda espiritual e seja sincera. Quem fala a verdade pode contar com a proteção divina.
- Eu sei, mãe. Vou tomar um banho, relaxar. Depois que me arrumar, gostaria que fizesse essa oração comigo.
Isabel foi para o quarto e Laura ficou pensativa. Ela confiava que tudo sairia bem, mas, apesar disso, ao pensar em Carlos sentia o peito oprimido. Foi por esse motivo que, depois de meia hora, quando Isabel já estava pronta para o encontro, ela a procurou e considerou:
- Vamos rezar, sim. Carlos está precisando de ajuda espiritual. Quando penso nele sinto um aperto no peito.
- Ele deve ter passado por dolorosas experiências. Suas lembranças desse tempo ainda devem perturbá-lo.
Laura segurou a mão da filha e sentaram-se no sofá da sala. Fecharam os olhos e Laura tornou:
- Vamos focalizar uma luz acesa dentro do nosso peito e sentir o agradável calor que ela nos dá. Vamos sentir que estamos ligados à divina essência que está dentro de nós e glorificar a Deus por todas as bênçãos que nos tem dado.
Ela ficou silenciosa durante alguns segundos, depois continuou:
- Agora vamos mentalizar Carlos e envolvê-lo com a luz do amor divino que está em nós, entregando-o aos cuidados de Deus, que sabe o que é melhor para ele. Nós o abençoamos e desejamos que ele seja muito feliz.
As duas sentiram uma brisa suave envolvendo-as. Abriram os olhos.
- Estou me sentindo muito melhor! - disse Isabel sorrindo.
- O aperto no peito desapareceu. Graças a Deus! - respondeu Laura sorrindo.
- Abençoada prece! Sinto que estou preparada para fazer o que preciso.
- Antes de Carlos chegar, vamos tomar um lanche. Berta fez um bolo maravilhoso.
- Sônia ainda não chegou?
- Ela virá mais tarde hoje.
As duas foram comer. Estavam terminando quando Carlos tocou a campainha. Berta, que atendeu, voltou logo segurando um ramalhete de rosas vermelhas.
- Carlos está na sala e trouxe estas rosas para dona Laura - informou ela.
As duas entreolharam-se, depois foram para sala. Laura abraçou Carlos, deu-lhe as boas-vindas, agradeceu as flores. Conversaram durante alguns minutos, depois Laura pediu licença e os deixou a sós. Carlos abraçou Isabel e aproximou-se para beijá-la, mas ela afastou dizendo:
- Temos de conversar, Carlos.
- Depois falaremos do casamento. Eu quero matar a saudade. Sofri muito quando estava longe. Vivia imaginando como seria quando estivéssemos juntos de novo. A hora chegou e não quero mais perder um minuto.
Ele a abraçou e tentou beijá-la, mas Isabel virou o rosto. Ele franziu o cenho nervoso. Ela tornou:
- Sente-se, Carlos. As coisas mudaram muito. Não podemos fazer de conta que nos despedimos ontem e tudo continua igual.
- Para mim, esse tempo só fez aumentar o meu amor.
Ela sentou-se no sofá e pediu:
- Sente-se do meu lado, Carlos.
Ele obedeceu e ela continuou:
- Quando você foi embora, sofri muito. Os dias não passavam e eu só fazia rezar para que nada de mal lhe acontecesse. Cada carta sua que chegava era lida muitas vezes e, quando a saudade aumentava, eu lhe escrevia mesmo sem obter respostas ou saber se você as tinha recebido. Quando a guerra acabou, eu vibrei. Assim que os soldados regressaram fui correndo ver o desfile pensando em encontrá-lo, matar as saudades.
Ela fez ligeira pausa enquanto Carlos, olhos indagadores pousados nela, cenho franzido, ouvia em silêncio. Isabel continuou:
- Mas você não voltou. Sua família é testemunha de quantas vezes procurei notícias suas, tanto em sua casa quanto no Exército, até que você foi dado como desaparecido e, segundo o tenente do seu batalhão, considerado morto.
- Mas eu estava vivo, sofrendo por não poder me comunicar com vocês.
- Agora eu sei. Acreditando que você nunca mais voltaria, tentei reagir, retomar minha vida. Terminei os estudos, arrumei emprego. Fui em frente, sem fazer planos para o futuro. Você tornou-se apenas uma lembrança boa. Durante esses anos todos, eu nunca saíra com ninguém, não me interessara por outro homem. Até quase um ano atrás, quando acidentalmente conheci um rapaz que despertou em mim um novo interesse pela vida. Começamos a sair e há pouco tempo ficamos noivos.
Carlos levantou-se e gritou nervoso:
- Você, noiva de outro? Como pode me trair dessa forma, esquecer nossos juramentos? Isso não pode ser verdade! Diga que está brincando comigo! Depois de tudo que passei, não vou suportar mais essa desgraça!
Isabel aproximou-se dele dizendo:
- Acalme-se, Carlos. Estou sendo sincera como sempre fui. Não houve traição. Você não pode me culpar disso.
- Você não pode imaginar o inferno que vivi durante esse tempo. O que me dava forças para continuar lutando era a certeza de que você estaria à minha espera quando regressasse. Nunca passou pela minha cabeça que você pudesse me trair, amar outro homem! Não posso acreditar!
- Estou dizendo a verdade. Eu mudei, dei um outro sentido à minha vida. Não quero voltar atrás. Não torne esta situação mais difícil do que é. Entenda que estou sendo sincera.
Ele colocou ambas as mãos nos braços dela, segurando com força, olhos muito abertos, rosto contraído enquanto dizia:
- Não vou aceitar essa decisão. Você é minha, só minha. Não permitirei que seja de mais ninguém!
- Largue-me, Carlos! Está me machucando!
Laura entrou e interveio aflita:
- Não faça isso! Largue-a, Carlos!
Ele a soltou e Isabel respirou fundo. Rosto corado pela indignação, ela olhou-o nos olhos:
- Você não tem o direito de agir dessa forma! Não sou culpada pelo que lhe aconteceu. Não posso manter um compromisso que não desejo mais. Você é livre. Procure uma outra que possa amá-lo como você merece. Esqueça que eu existo.
Carlos, olhos muito abertos, rosto pálido, olhou-a com raiva durante alguns segundos, depois disse entre dentes:
- Isso não vai ficar assim. Não vou aceitar sua decisão.
Laura aproximou-se dele tentando acalmá-lo:
- Venha, Carlos, sente-se aqui ao meu lado. Vamos conversar. Um relacionamento só pode acontecer quando os dois querem. Isabel não quer voltar para você. Entenda...
Ela o fizera sentar-se a seu lado no sofá, mas ele levantou-se, olhando-as nervoso:
- Isso não vai ficar assim. Vocês vão ver!
Sem dizer mais nada, saiu rapidamente. Isabel tremia e tentava controlar-se. Laura fechou a porta que Carlos deixara aberta, apanhou um copo de água com açúcar e o deu à filha:
- Beba, Isabel, acalme-se. Ele já foi.
- Estou com medo, mãe. Ele parecia um louco. Nunca o vi desse jeito!
Laura escondeu a preocupação e disse, tentando demonstrar calma:
- Foi a surpresa. Ele não esperava.
- Foi embora nos ameaçando.
- Falou isso em um momento de descontrole. Logo vai passar e quando refletir melhor, perceberá que não tem outra saída.
- O que me assusta é que ele mudou muito. Parece outra pessoa.
- Não sabemos o que ele teve de enfrentar durante esse tempo todo. Seria bom conversar com a mãe dele, dizer-lhe que Carlos precisa de um tratamento psicológico. O filho de dona Norma, quando regressou da Itália, precisou de tratamento. Ficou durante dois anos tomando remédio.
Isabel suspirou triste:
- Não sei se ela me ouviria.
- Você não disse que ela a recebeu bem? Talvez não tenha notado o estado dele e seria bom que você lhe contasse, sugerisse um tratamento.
- Não sei... Não sei se ela vai acreditar. Diante da família ele parecia calmo, amável. Eu não tenho vontade de voltar lá, ainda mais depois do que ele fez hoje.
- Entendo que você não queira ir, mas eu vou tomar uma providência.
- O que vai fazer?
- Vou ligar e pedir-lhe que venha aqui para conversarmos.
- Seria bom. Assim estaríamos longe do resto da família. Tenho certeza de que eles reagiriam mal.
- Falarei com ela agora mesmo.
Albertina a atendeu ao telefone. Depois dos cumprimentos, ela lhe deu os parabéns pela volta do filho e continuou:
- Dona Albertina, eu e Isabel desejamos conversar com a senhora sobre Carlos.
- Por quê? Aconteceu alguma coisa?
Laura hesitou um pouco e depois disse:
- Sim.
- O que foi?
- Nós queremos falar pessoalmente. Por esse motivo pedimos que venha até aqui.
- Tenho estado muito ocupada, não posso ir. Melhor virem até aqui.
- O assunto é delicado. Preferimos conversar só com a senhora.
Ela ficou silenciosa durante alguns segundos, depois respondeu:
- Não dá para eu ir até aí. Se desejarem falar comigo, estarei esperando em casa.
- O assunto é do seu interesse. Seria melhor vir. Não vamos tomar muito do seu tempo. Não dá para falar pelo telefone. Por favor, não deixe de vir.
- Está bem... irei. Estarei aí dentro de meia hora.
- Obrigada. Agradeço sua compreensão. Estaremos esperando.
Laura desligou e comentou:
- Ela estava resistente. Será que Carlos já lhe contou o que houve?
- Não sei. Tomara que ela venha mesmo. Não vejo a hora de acabar com esse tormento.
Vinte minutos depois, Albertina tocou a campainha. Laura abriu e a agradeceu por ter ido, levando-a até a sala onde Isabel esperava.
- Peço que seja breve. Não posso demorar.
- Sente-se, por favor - vendo-a sentada, Laura continuou: - A senhora sabe que, depois do desaparecimento de Carlos e de acreditar que ele tinha morrido, Isabel chorou muito, foi incansável na busca de informações. Durante mais de três anos, permaneceu reclusa, triste, sem motivação de viver. Mas a vida segue seu rumo, e felizmente ela decidiu retomar sua vida. Há um ano e meio ela conheceu outro rapaz e apaixonou-se por ele. Hoje estão noivos, pensam em se casar, só falta marcar a data.
Laura fez ligeira pausa. Isabel, que observava em silêncio, interveio:
- Quando soube que ele estava vivo fiquei muito feliz, mas ao mesmo tempo fiquei em dúvida sobre um futuro relacionamento. Recolhi-me para pensar, analisar meus sentimentos e saber que rumo daria à minha vida. Ontem, quando fui à sua casa e nos encontramos, percebi que não o amava mais como antes. Decidi ficar com meu noivo.
Albertina ouvia tentando esconder a emoção, mas continuava calada. Isabel prosseguiu:
- Ontem mesmo eu desejava esclarecer a verdade, porém não tive coragem, principalmente por notar que ele se referia a mim como se o tempo não tivesse passado. Hoje ele veio aqui, querendo marcar a data do casamento. Eu disse-lhe que não queria mais me casar com ele.
Isabel se calou e Laura continuou:
- Ele reagiu de forma violenta. Segurou Isabel com força, gritava nervoso. Precisei intervir, pedir que a soltasse. Nós sentimos que ele não está bem. Por esse motivo a chamamos aqui.
- Depois de uma notícia dessas, que ele não esperava, como queriam que ele ficasse? Têm ideia do que vocês fizeram com ele, depois de tudo que sofreu, perdendo anos preciosos de sua juventude na matança da guerra? Durante esses anos de horror, o amor por você foi seu único ponto de apoio. Ele ficou sem chão. Temo o que será dele agora, depois disso.
Lágrimas desciam pelas faces de Isabel enquanto Albertina, dedo em riste, dizia todas essas coisas em tom de acusação.
- Carlos é jovem e vai refazer sua vida. Pior seria enganá-lo, forçando um casamento sem amor - tornou Laura. - A senhora precisa aconselhar Carlos a fazer um tratamento psicológico. É difícil sair impune de uma guerra. Ele precisa de ajuda para recuperar o equilíbrio.
Albertina levantou-se, mãos na cintura encarando-as desafiadora:
- O quê? Vocês fazem a maldade e querem que meu filho seja punido? Ele é o desequilibrado? Foi você, Isabel, que foi inconstante e agora quer jogar a culpa sobre ele. Mas não vou aceitar isso. De hoje em diante, esqueçam que nos conhecem. Não quero ouvir falar de vocês nunca mais!
Ela saiu pisando firme, bateu a porta com força. Isabel soluçava nervosa. Laura a abraçou:
- Calma, filha. Não fique assim. Essa megera não merece que você chore por ela. Afastando esse casamento, a vida evitou que você se unisse a pessoas que pensam de forma muito diferente de nós. Vamos elevar nosso pensamento e pedir a Deus que nos proteja e os ajude a encontrar um caminho melhor.
Albertina chegou em casa irritada. Arrependia-se de ter ido à casa de Isabel. Pouco antes de Laura ligar desejando falar com ela, Carlos já havia chegado em casa pálido e nervoso.
- Você não está bem. Aconteceu alguma coisa?
Ele pareceu nem ouvir, subiu e trancou-se no quarto. Albertina sentiu um aperto no peito e uma sensação desagradável. Inês entrou na sala e perguntou:
- O que foi, mãe? Você está com uma cara...
Albertina balançou a cabeça negativamente e respondeu:
- Seu irmão. Entrou nervoso, perguntei o que tinha acontecido, mas ele fechou a cara, não respondeu e foi trancar-se no quarto. Quando saiu estava alegre, pensando em arranjar emprego para se casar logo. Pouco depois voltou de cara amarrada.
- Com certeza levou um fora de Isabel.
- Ela não faria isso com ele. Sofreu tanto quando ele esteve ausente!
- Só você pensa isso. Há muito tempo ela desistiu dele, arranjou outro. Cansei de vê-la ao lado dele toda amorosa. Carlos voltou só pensando nela. Para ele, parece que o tempo não passou.
- Custo a crer. Isabel é uma boa moça, sincera, apaixonada. Tem certeza mesmo de que ela está namorando outro?
- Tenho, mãe! Eles estão noivos de aliança e tudo.
- Ontem ela não estava com aliança...
- Acha que ela viria ver Carlos usando uma aliança de outro? Claro que ela tirou. O melhor que ele tem a fazer agora é esquecer essa traidora e cuidar da própria vida de outra forma.
- Não sei... ele parece tão apaixonado! Não vai se conformar.
Inês deu de ombros dizendo:
- Não tem outro remédio. Terá de se conformar. Ele merece coisa melhor. Ela provou não ser de confiança.
Quando o telefone tocou e Laura chamou-a para ir à sua casa, Inês não gostou:
- Não vá, mãe. Elas querem é que você se meta no meio da briga deles. Sabem que Isabel está errada, temem a ira de Carlos. Não vale a pena perder tempo com isso.
- Eu vou. Quero ouvir o que elas têm a dizer.
Ela foi. Ao entrar em casa de volta, foi à cozinha em silêncio. Inês ouviu-a entrar e aproximou-se:
- E então?
- Você tinha razão. Eu não deveria ter ido. Isabel terminou tudo com Carlos.
- Eu sabia! Mas o que elas queriam com você?
- Laura veio com uma conversa de que Carlos estaria desequilibrado por causa da guerra e eu deveria levá-lo a um psicólogo. Ficaram com medo porque ele ficou nervoso, reagiu e as ameaçou.
- Viu que espécie de gente elas são? A cara de santa de Isabel nunca me enganou. Se eu estivesse lá lhes diria poucas e boas. Certamente você não deixou por menos.
- Não mesmo. Rompi com elas de uma vez. Pobre filho, além de desprezado é taxado de louco... Que maldade!
- É bom para você ver que eu tinha razão. O que temos a fazer agora é ajudar Carlos a esquecer. Estou certa de que ele vai refletir melhor e perceber que Isabel não merecia o amor que ele lhe dedicava.
- Isso mesmo. Meu filho é um moço bom, bonito, trabalhador. Vamos motivá-lo a tocar a vida pra frente. Pensando bem, foi melhor assim.
Albertina caprichou no jantar e, quando Antônio chegou, Inês contou-lhe tudo e ele as apoiou. Pensava da mesma forma. Quando ia servir o jantar, Inês foi chamar o irmão. Bateu várias vezes, chamou, mas ele não respondeu. Preocupada, ela voltou à copa:
- Tem certeza de que Carlos está no quarto?
- Tenho. Ele subiu e ouvi o barulho da porta.
- É que eu bati, chamei, mas ele não respondeu.
- Vai ver está dormindo.
As duas foram até lá, bateram novamente, mas não obtiveram resposta. Preocupada, Albertina girou a maçaneta e abriu. O quarto estava vazio.
- Ele deve ter saído e você não viu - comentou Inês.
- Será? Eu não ouvi nenhum ruído. Ele não disse nada. Onde terá ido?
- Queria ficar sozinho para pensar. Deve ter ido caminhar um pouco para tentar clarear as ideias. Quando voltar estará melhor.
- Tomara. Fiz uma comida que ele adora. Se ele demorar vai perder o sabor.
- Vamos comer, fazer jus a esse jantar. Logo ele estará aqui, você vai ver.
Albertina concordou e foi servir o jantar. Elas comeram, o tempo foi passando e Carlos não voltava. Albertina esperava ansiosa. Passava das onze quando Antônio aproximou-se:
- Vamos dormir. É tarde.
- Vá você. Eu vou esperar Carlos chegar. Estou preocupada.
- Bobagem. Ele deve ter ido ver a namorada ou procurar os amigos. Daqui a pouco estará em casa.
- A Isabel rompeu o compromisso e ele estava muito nervoso.
- Ele lhe contou?
- Não. Laura me ligou e chamou para conversar com Isabel. Elas que me contaram.
Antônio meneou a cabeça e exclamou:
- Inês tinha razão. Aquela gente não é de confiança.
- Sabe o que me disseram? Que Carlos não está bom da cabeça por causa da guerra e que eu deveria levá-lo ao psicólogo.
Antônio levantou-se irritado:
- Como? Agora o caso é comigo. Vou até lá tomar satisfações. Não admito que caluniem meu filho. Quem elas pensam que são? Isso é caso de polícia!
- Também acho. Carlos é um herói de guerra! Deveria ser respeitado. Ele não esperava esse desfecho. Aonde será que foi?
Antônio ficou pensativo durante alguns segundos, depois disse:
- Você está exagerando. Vou dar uma volta pra ver se o encontro.
- Faça isso. Ficarei esperando.
O tempo foi passando e Albertina sentia o coração apertado. Uma hora depois, Antônio voltou sozinho.
- E então?
- Andei pelo bairro inteiro e nem sinal dele. Onde terá se metido?
- Talvez seja bom avisar a polícia. Temo que ele tenha feito alguma bobagem.
- Não. Ele deve estar pensando na vida, tentando esfriar a cabeça. Logo vai aparecer. Vamos dormir.
- Não vou conseguir. Vá você. Eu ficarei esperando.
Antônio foi para o quarto e Albertina sentou-se disposta a esperar. Sua cabeça doía e sentia o peito oprimido. O dia estava amanhecendo quando ela ouviu o barulho da porta. Pouco depois, Carlos entrou. Rosto contraído, fisionomia abatida. Albertina correu para ele dizendo:
- Graças a Deus que voltou. Onde esteve até esta hora?
Carlos olhou-a admirado:
- O que está fazendo acordada?
- Estava preocupada com você. Saiu sem dizer nada, não veio jantar, seu pai andou o bairro inteiro à sua procura sem encontrá-lo. Onde estava?
- O que é isso agora? Não sou mais uma criança que precisa dar satisfações quando sai. Não gosto de ser vigiado. Basta o que passei no Exército. Agora sou livre para fazer o que quiser.
Albertina sentiu cheiro de álcool e dissimulou a contrariedade. Disse com voz que procurou tornar calma:
- Não fiz por mal. Estive em casa de Isabel e sei que ela terminou o namoro. Fiquei com medo que fizesse alguma bobagem.
Ele franziu a testa irritado:
- Você foi à casa dela me procurar? Não tinha esse direito. Não quero que ninguém se meta em minha vida.
- Eu não me meti. Laura me ligou e pediu que eu fosse lá para conversar. Atendi para saber o que ela queria.
- Não acredito! O que elas lhe disseram?
Albertina hesitou um pouco:
- Bem... Isabel explicou que refez a vida acreditando que você tivesse morrido. Seus sentimentos mudaram e ela não quer reatar o noivado com você.
- Para isso ela não precisava incomodar você. Já tinha me dito. Só que não vou aceitar. Isabel é minha e não vou admitir que ninguém a tire de mim.
- Você vai ter de aceitar. Não pode obrigá-la. Ela deixou de amá-lo, se é que algum dia o amou. O melhor que tem a fazer é tentar esquecer. Há muitas moças boas e mais bonitas do que ela à sua volta. Poderá escolher a que mais lhe agradar.
Carlos cerrou os dentes e disse com raiva:
- É ela que eu quero! Isabel não será de mais ninguém. Não vou deixar. Ela vai voltar para mim arrependida e submissa. Você vai ver.
Olhando o rosto contraído do filho, Albertina sentiu o peito oprimido e uma sensação de medo. Alguma coisa no olhar dele e no tom de sua voz a assustou. De repente, sentiu-se exausta, sem forças. Respondeu com voz sumida:
- Está bem, meu filho. Vamos para a cozinha. Vou preparar alguma coisa para você comer.
- Não precisa. Não quero nada.
- Pelo menos um chá...
- Não quero. Vá dormir. Eu vou para meu quarto.
Ele subiu e Albertina, depois de verificar se a porta estava fechada, foi para o quarto. Deitou-se, mas, apesar de cansada e sem forças, não conseguia dormir. Parecia ouvir a voz de Laura dizendo: "A senhora precisa aconselhar Carlos a fazer um tratamento psicológico. É difícil sair impune de uma guerra. Ele precisa de ajuda para recuperar o equilíbrio." Ela não deveria impressionar-se com as palavras de Laura. A reação dele era natural. Não tinha nada que ver com problemas emocionais provocados pela guerra. Mas, por mais que se esforçasse, aquelas frases não lhe saíam do pensamento. Na manhã seguinte, quando Carlos sentou-se à mesa para tomar café, Antônio disse sério:
- Você já decidiu o que vai fazer?
- Por que pergunta?
- Você já perdeu tempo demais nessa guerra. É hora de pensar no seu futuro. Eu gostaria que retomasse os estudos.
- Esse tempo passou. O que eu quero agora é ganhar dinheiro. Estou pensando em trabalhar.
- No quê? Você não tem profissão. Ganhar dinheiro como?
Carlos olhou-o sério e disse com voz firme:
- Vou encontrar um jeito. A vida me roubou muita coisa. Agora que estou livre, não vou permitir que isso aconteça de novo.
- Ganhar dinheiro não é fácil. Tenho me esforçado e, até hoje, nunca consegui mais do que pagar as despesas.
Albertina interveio:
- Não seja injusto. Temos vivido com muito conforto.
- Pois eu não quero só conforto - tornou Carlos. - Quero ser rico, muito rico.
Antônio balançou a cabeça negativamente:
- Sonhar é bom, mas para isso você vai precisar de muito mais. Ainda se tivesse algum capital...
- Estive pensando e tenho algumas ideias. Para começar preciso arranjar um bom emprego.
- Não vai ser fácil. Você está fora do mercado de trabalho há muitos anos.
Carlos ficou pensativo durante alguns segundos, depois disse:
- Não importa. A vida foi dura, mas, apesar da guerra, aprendi muito nesses anos todos. O mundo mudou, meu pai, e eu sei que de alguma forma vou conseguir o que quero.
Inês apareceu na copa apressada e sentou-se à mesa, dizendo:
- Perdi a hora. Estou atrasada, mas vou tomar meu café.
Carlos olhou-a e perguntou:
- Você gosta do seu emprego?
Ela deu de ombros:
- Mais ou menos. Eu trabalho porque preciso, não porque gosto.
- Eu já lhe disse que não precisa trabalhar. Sou suficiente para sustentar minha família. Depois, a miséria que você ganha não significa nada - tornou Antônio.
- Pai, pode chamar de miséria, mas é com esse dinheiro que eu compro as coisas de que gosto. Você fala, mas reclamava sempre que eu lhe pedia dinheiro. Gosto de ser independente.
- Na Europa, as mulheres trabalham. A princípio era para substituir os homens, mas, depois que a guerra acabou, a maioria quis continuar.
- Espero que esse costume não venha para o Brasil. Mulher deve ficar em casa, e não tirar o lugar dos homens.
Inês sorriu e respondeu:
- Esse costume já chegou aqui. No escritório o número de moças tem aumentado. Quando eu entrei éramos apenas quatro, agora somos dez.
- É o progresso. É como eu digo. Os costumes estão mudando e aqui não será diferente. É com isso que eu conto para encontrar uma atividade rendosa que me satisfaça. Eu mereço. Passei anos correndo risco de morrer em uma guerra que não era minha. Agora tenho o direito de receber a recompensa.
- Como pensa fazer isso? Quem vai lhe pagar? - indagou Inês.
- A sociedade. Vou tirar dela tudo de que tenho direito. Ela vai me pagar, e com juros.
- Você sonha alto. É melhor não se iludir - comentou Antônio.
Carlos olhou-os sério e respondeu com voz firme:
- Vocês vão ver. Vou conseguir tudo que quero.
Albertina observou um brilho diferente no olhar do filho e sentiu um aperto no peito. Carlos nunca fora apegado ao dinheiro. Suas palavras traziam uma intenção que, para Albertina, não parecia boa. Mas acalmou-se, pensando que seria difícil ele conseguir e que logo desistiria. Afinal, ganhar dinheiro não era fácil. Inês levantou-se para sair. Carlos disse:
- Vou com você. Hoje tenho de tirar alguns documentos e receber o dinheiro que falta.
Depois que eles se foram, Albertina comentou com o marido:
- Não gostei do jeito que Carlos falou. Ele nunca foi ganancioso.
- Não se preocupe. Ele vai quebrar a cara e desistir. Se ganhar dinheiro fosse fácil, todos seriam ricos neste mundo.
Albertina sorriu aliviada. Estava se preocupando sem motivo. Antônio tinha razão. Sentados no bonde a caminho do centro da cidade, Inês perguntou a Carlos:
- Para onde você vai?
- Descobri que tenho algum dinheiro para receber do Exército. Se sair hoje, vou fazer umas compras. Sempre gostei de me vestir bem.
- De fato. Precisa mesmo. Nem de longe você lembra o rapaz elegante que sempre foi.
Carlos trincou os dentes com raiva:
- Isso vai mudar. Logo terei dinheiro não só para ter tudo o que tinha antes, como muito mais. Eu mereço. Comi o pão que o diabo amassou e perdi a mulher que amo. Isso tem um preço e eu vou cobrar.
- Cobrar de quem?
- Da vida. Ela vai me devolver tudo que me tirou e muito mais. É meu direito.
- Você fala como se fosse fácil. Você nem chegou a se formar. As coisas não estão fáceis para ninguém.
Os olhos de Carlos brilharam quando respondeu:
- Você vai ver. Eu quero mais, muito mais. E sei que vou obter.
Inês meneou a cabeça:
- É melhor ser modesto para não quebrar a cara. Quanto a Isabel, você não perdeu nada. Logo vai aparecer outra e você vai esquecer. Ela não merece seu amor.
- Não vou desistir, apenas dar uma pausa enquanto me preparo para uma nova investida.
- Não é uma boa ideia. Ela não o ama mais. Não se humilhe diante de quem não o valoriza.
Carlos mordeu os lábios e respondeu:
- É negócio meu e não aceito palpite de ninguém. Sei o que estou fazendo. Guarde sua opinião e deixe-me em paz.
- Está bem. Não precisa brigar. Sou sua irmã e desejo sua felicidade. Não tocarei mais no assunto.
- É melhor assim.
No centro da cidade se separaram. Inês foi trabalhar e Carlos tentar receber o dinheiro. Depois de subir e descer no prédio da sede do Exército e conseguir os documentos de que precisava, finalmente conseguiu receber o dinheiro a que fazia jus. Era menos do que esperava. Para que seu plano desse certo, ele precisava comprar roupas elegantes e de qualidade. Sabia que no mundo dos negócios a aparência é importante. Passou o dia inteiro fora, voltou para casa no fim da tarde carregando seus pacotes, cansado, mas satisfeito. Vendo-o chegar, Albertina comentou:
- Você demorou! Pelo visto recebeu o dinheiro.
- Deu trabalho, mas recebi.
- Quanto foi?
- O suficiente para comprar as roupas de que precisava para começar a procurar emprego.
Quando ele foi para o quarto, Albertina foi atrás. Carlos abriu os pacotes e estendeu tudo sobre a cama.
- Você comprou roupas caras.
- Preciso me apresentar bem.
- Poderia ter comprado algo mais modesto e guardado o dinheiro para as primeiras despesas até arranjar emprego, o que não vai ser fácil.
- Tenho meus planos e sei o que estou fazendo. É melhor não dar opinião.
Albertina não esperava essa reação e franziu o cenho:
- Falo para o seu bem. Não precisa ser grosseiro.
Carlos justificou-se:
- Estou sendo franco. No Exército, durante anos, só fiz o que os outros mandavam. Agora que estou livre, quero agir do meu jeito. Desde que cheguei, notei que vocês pensam muito diferente de mim.
- Nós somos os mesmos. Você é que voltou diferente.
- O mundo mudou, mãe. As pessoas mudaram. É preciso andar para frente. Vocês continuam no mesmo lugar. Eu quero progredir e vou conseguir.
Depois que Albertina deixou o quarto, Carlos passou a chave na porta e sentou-se diante da pequena mesa, disposto a decidir quais seriam os primeiros passos. Começou por anotar o que tinha a seu favor. Primeiro, era um ex-combatente, e isso lhe dava uma aura de herói. Aprendera a falar inglês, italiano e um pouco de alemão e russo. Os costumes do pós-guerra mudaram e a cultura européia era muito diversa da brasileira. Reconhecendo isso, Carlos adquiriu valores novos. Aprendeu a valorizar a arte, a ouvir boa música, a respeitar os bens públicos. Descobriu que, lá, os bons profissionais eram mais valorizados e os chefes, mais exigentes. Além do mais, querendo virar a página depois dos sofrimentos da guerra, havia no ar uma euforia positiva, mesmo nos países ocupados, e uma vontade grande da população de retomar os prazeres da vida. A descoberta do holocausto e dos horrores da ocupação chocou nos primeiros tempos, mas o desejo de retomar a vida normal e viver em paz prevaleceu. Sem documentos, Carlos precisou trabalhar para manter-se. Fez de tudo. Trabalhou na limpeza, na cozinha dos restaurantes e no que aparecesse, às vezes em troca de comida ou de alguma roupa. Agora, relembrando toda a sua experiência, reconheceu que tinha aprendido muito. Pensou durante muito tempo, depois decidiu. Ele merecia da vida uma recompensa pelos sofrimentos que foi forçado a suportar. Tinha valor e não aceitaria qualquer coisa. Na manhã seguinte, bem vestido e de cabeça erguida, visitaria algumas empresas para oferecer seus préstimos. Tendo programado sua vida, pensou em Isabel e seu rosto contraiu-se. Não pretendia desistir. Ela seria dele e de mais ninguém. Recobraria tudo que a vida lhe tirara. Era uma questão de honra. Albertina bateu na porta avisando que o jantar estava servido. Ao chegar à copa, a família já estava à mesa. Vendo-o sentar-se, Inês perguntou:
- E então, como foi, conseguiu o que precisava?
- Sim. Está tudo bem. Amanhã começarei a procurar emprego.
- E o que pretende fazer? O mercado não está fácil...
- Não se preocupe, Inês. Está tudo sob controle.
Antônio interveio:
- Sua irmã tem razão. Você não tem diploma nem profissão. Vai precisar começar de baixo.
Carlos franziu o cenho irritado:
- Nada disso. Tenho valor e vou conseguir um bom começo.
- Ele gastou todo o dinheiro que recebeu em roupas caras. Quer começar de cima - tornou Albertina.
- Vai quebrar a cara - disse Inês.
- Depois de tudo que passei esses anos todos, pensei que iriam me apoiar. Estava enganado. Vocês querem é me derrubar. Não vou tolerar esse tipo de intromissão na minha vida. Não lhes pedi opinião. Por favor, deixem-me em paz.
Albertina fez cara de choro, Inês abaixou a cabeça sobre o prato e Antônio ia retrucar, mas, olhando o rosto do filho, mudou de ideia:
- Vamos mudar de assunto e comer em paz.
- É melhor assim - respondeu Carlos, que continuou comendo em silêncio.
Depois do jantar, ele foi para o quarto, enquanto Albertina foi para a cozinha lavar a louça. Inês tirou a mesa e depois foi ajudar a mãe na cozinha. Antônio sentou-se na sala para ler o jornal. Albertina parou, foi até a porta, olhou para cima, voltou, suspirou e depois disse:
- Ele foi para o quarto.
- Carlos não é mais o mesmo. Mudou muito. Irrita-se por qualquer coisa...
- Estou preocupada. Vai ver que dona Laura está certa. Carlos precisa de tratamento.
- Do jeito que ele anda, quero ver quem é que vai dizer-lhe isso...
- Falarei com o seu pai. Ele precisa fazer alguma coisa.
Pensativas e em silêncio, elas continuaram a trabalhar. Fechado no quarto, Carlos fazia planos para o dia seguinte. A atitude negativa da família não o preocupava nem um pouco. Durante o tempo em que estivera fora, tivera de lutar com suas próprias forças para sobreviver. Isso o fizera desenvolver certo senso de preservação de sua integridade. Passara situações de risco mesmo depois de a guerra ter acabado. Tendo sido feito prisioneiro e vivido na promiscuidade, com desconhecidos tão perturbados e sofridos como ele mesmo, muitas vezes tivera medo de perder a razão. Esforçava-se para isolar-se dos problemas dos outros, mantinha a ideia fixa na certeza de que um dia ficaria livre e voltaria para casa. O fato de ter conseguido sobreviver, manter-se em meio ao caos e ter voltado para casa são e salvo o fizera confiar na própria capacidade. Estava certo de que conseguir o que desejava seria questão de tempo. Por esse motivo, não pretendia insistir com Isabel, mas agir de um jeito que a fizesse voltar a procurá-lo. Para conseguir isso, precisava provar a ela que era mais inteligente, mais capaz e muito melhor que seu rival. Apanhou a lista telefônica comercial e começou a ler os anúncios. Anotou nome e endereço de algumas empresas estrangeiras para visitar na manhã seguinte. Pensou na abordagem que faria, o que lhes poderia oferecer e como se apresentaria. Passava da meia-noite quando se preparou para dormir, mas o sono demorou a chegar. A figura de Isabel não lhe saía do pensamento e a sensação de decepção o atormentava. Para afugentá-la, começou a imaginar que tudo quanto desejava já estava acontecendo. Viu-se vencedor, rico, com Isabel ao seu lado, suplicando para voltar. Aos poucos foi se acalmando e por fim adormeceu. Sonhou que estava na trincheira diante de Adriano ferido, que lhe pedia que procurasse Anete e lhe desse seu recado, sem conseguir dizer tudo o que queria. Angustiado, Carlos acordou sentindo ainda a dor de ver o amigo morrendo, sem poder fazer nada. Nervoso, levantou-se, tomou um copo de água tentando recuperar a calma. Apesar de ter jurado que cumpriria o prometido, ele nunca soube o que aconteceu com Anete. Os acontecimentos se sucederam, o posto de socorro onde ela trabalhava era de campanha e ele não sabia para onde teriam ido. Apesar de Adriano não ter tido tempo de dizer tudo que desejava, ele gostaria de tê-la encontrado para pelo menos dizer que pensara nela em seus últimos momentos. Carlos acreditava que, quando sua vida já estivesse organizada, esses sonhos não mais o atormentariam. Ninguém passa pelo que ele passou sem sentir nada. Com o tempo, eles haveriam de desaparecer. Deitou-se novamente, procurando direcionar o pensamento para as providências que pretendia tomar no dia seguinte. Aos poucos foi serenando e adormeceu novamente, mas dessa vez sem sonhos. Na manhã seguinte, Carlos levantou cedo, vestiu-se e desceu para o café. Vendo-o entrar na copa, Inês admirou-se:
- Como você está elegante! Nem parece aquele que voltou de uma guerra!
Albertina sorriu e aduziu:
- Agora sim, você está bem.
- Obrigado. Papai não se levantou?
- Já, mas ainda não desceu.
- Estou com pressa. Não posso esperá-lo para o café.
Antônio apareceu na porta:
- Você sabe que eu gosto de reunir a família no café.
- Eu sei, pai.
Eles sentaram-se em silêncio. Carlos pensava na abordagem que faria logo mais nas empresas que iria visitar. Antônio quebrou o silêncio:
- Que espécie de emprego você pretende procurar? Vai fazer o quê?
- Tenho algumas ideias. Vamos ver o que consigo.
- Isso é muito vago. Desse jeito não vai conseguir nada.
- Não se preocupe, pai. Sei o que vou fazer.
Albertina e Inês olhavam curiosas, mas como Carlos continuou calado sem adiantar mais nada, elas ficaram quietas, com medo de dizer algo que provocasse uma reação como a da véspera. Depois do café, Carlos saiu dizendo que não sabia a que horas voltaria. Antônio em seguida foi comprar o jornal. Queria ver se encontrava algum trabalho para o filho. Albertina falou primeiro:
- Inês, você não acha que Carlos está fora da realidade?
- Acho. Mas não dá para dizer nada. Ele acha que sabe tudo. Vamos ver como vai voltar.
- Vai quebrar a cara e voltar com o rabinho entre as pernas. Então, sim, nós poderemos dizer o que pensamos e ele terá que ouvir calado.
- Você acha mesmo? Ele está tão bonito, tão confiante... Será?
- Mãe, cai na real! Ele não tem como conseguir o que deseja. Emprego é difícil até para quem tem diploma, quanto mais para quem está há tanto tempo fora, sem trabalhar. Mas deixe que ele aprenda. Afinal a vida ensina.
- Vamos ver. Eu gostaria muito que ele de fato conseguisse um bom emprego.
- Que bom se a vida fosse assim tão fácil: querer e ter.
- É... infelizmente não é assim. Meu pai dizia que só se consegue alguma coisa com muita luta!
- O vovô estava certo. Não vê o papai? E eu, que tenho me esforçado e não consigo nada?
Carlos notara a descrença dos familiares, mas não deu importância. Sabia o que queria. A primeira da sua lista era uma empresa americana de turismo. Vendo-o entrar, bem vestido e elegante, a recepcionista sorriu amável, e ele se apresentou:
- Meu nome é Carlos Vasconcelos, acabei de chegar do exterior. Quero conversar com o diretor.
- Sobre que assunto?
- Tenho um excelente negócio para propor. Como é o nome do diretor?
- Mr. Robinson. Pode adiantar-me alguma coisa sobre o seu assunto?
- Estou retornando depois de cinco anos na Europa. Tenho alguns projetos que gostaria de apresentar a esta empresa. O assunto é do interesse deles.
- Vou ver se pode atendê-lo.
Ela saiu e voltou pouco depois dizendo:
- Mr. Robinson está muito ocupado no momento. Você pode voltar um outro dia.
- Infelizmente, não poderei. Tenho outros compromissos.
Carlos tirou do bolso um cartão em branco, escreveu algumas palavras em inglês e ofereceu à recepcionista, dizendo:
- Entregue a ele, por gentileza. Até outro dia.
Carlos saiu e a recepcionista encaminhou-se para a sala do diretor. Entrou e estendeu o cartão dizendo:
- O rapaz disse que tem muitos compromissos e não poderá voltar um outro dia. Deixou este cartão para o senhor.
Ele segurou o cartão e leu no mais perfeito inglês: "Carlos Vasconcelos. Assessor de negócios" e um número de telefone.
- Como era ele? - perguntou curioso.
- Moço, boa aparência, muito bem vestido.
- É mesmo?
Depois que a recepcionista saiu, ele ficou revirando o cartão entre os dedos.
- Que projetos será que ele tem? Talvez seja bom ligar.
Carlos visitou ainda uma fábrica de tecidos, onde também não foi recebido pelo gerente, mas deixou outro cartão. Foi a uma joalheria sofisticada, onde conversou com o responsável, apresentando-se como assessor de negócios. Ficou sabendo que o dono era um russo, um ourives que emigrara para o Brasil depois da Primeira Guerra Mundial. O gerente da loja era sobrinho do dono, e Carlos conversou com ele em russo, o que despertou seu entusiasmo. Carlos teve a chance de contar-lhe que aprendera o idioma trabalhando com os russos na Alemanha Oriental. Mencionou a música russa, que ele de fato gostava, e falou de sua vontade de conhecer a Rússia, o que encantou Yuri. - Faz uma semana que regressei e preciso começar a trabalhar. O mundo mudou depois da guerra e vai mudar ainda mais. Há um sopro de mudança em tudo. O Brasil ainda é um país jovem, que tem muito a oferecer a quem souber aproveitar. Aprendi muito lá fora e sei como fazer para trazer o progresso para este país. Procurei vocês porque sei que, mais experientes, saberão avaliar meu trabalho. Depois de um café, Yuri considerou:
- Foi bom conhecê-lo. Desejo apresentá-lo a meu tio. Estou certo de que ele terá um trabalho para você.
- Estou certo que sim. Vocês não vão se arrepender de confiar em mim.
Passava das quatro da tarde quando Carlos deixou a joalheria. Sentiu fome, mas preferiu comer alguma coisa em casa. Estava com pouco dinheiro. Chegou em casa satisfeito com o resultado que obtivera. Fizera bons contatos. Mesmo não tendo sido recebido pelos outros, estava certo de que tinha tomado a atitude adequada. Era muito provável que lhe telefonassem. Precisava instruir seus pais sobre como atender a esses telefonemas. Eles poderiam estragar tudo. Depois de comer, conversaria com eles. Isabel olhou-se no espelho e sorriu. Estava linda. Depois de mais um olhar, apanhou a bolsa e saiu satisfeita. Gilberto a esperava na sala enquanto conversava com Laura. Vendo-a chegar, levantou-se, beijou-a na face e não pôde evitar o comentário:
- Você está linda!
- Obrigada. Demorei muito?
- Conversando com sua mãe, não vi o tempo passar.
- Ele diz isso, mas não tirava os olhos da escada - disse Laura, sorrindo maliciosa.
Eles se despediram e saíram. Uma vez no carro, Gilberto estreitou-a de encontro ao peito e tornou:
- Estava com saudades! Desejei que o tempo passasse rápido para que pudéssemos nos ver. Você me deixou de castigo.
- Também senti sua falta. Mas foi preciso. Carlos reagiu mal quando eu disse que preferia ficar com você. Achei melhor deixar assentar a poeira.
- Ele a procurou?
- Felizmente não. Vai ver pensou melhor e se conformou. Ele sabe que eu tive razão e que não houve traição.
- Melhor assim.
- Estou aliviada. Ir naquele dia à casa dele foi um pesadelo. Não sei como um dia pude pensar em me casar com ele e pertencer àquela família. A não ser dona Albertina, o resto da família não gosta de mim. Se eu tivesse me casado, estaria muito infeliz, estou certa disso.
- Você ainda não conhece minha família.
Isabel pensou um pouco e perguntou:
- Acha que eles gostariam de mim?
- Claro que sim. Mas não se preocupe com isso.
- Como não? Eu gostaria de conhecê-los e causar boa impressão. Você me disse que tem dois irmãos. Como são eles?
- O Nivaldo é dois anos mais novo do que eu. Formou-se em agronomia, está morando em Pouso Alegre e cuida da nossa fazenda. Nice é a caçula, atualmente mora no Rio de Janeiro e está para formar-se em direito.
- Você não mora com seus pais?
- Eu moro sozinho. Eles têm apartamento em São Paulo, mas quase não ficam aqui. Passam a maior parte do tempo na fazenda. Minha mãe adora e meu pai tem paixão pela sua criação de gado.
- Não sente saudades deles? Eu não suporto ficar longe dos meus.
Isabel notou que pelo rosto de Gilberto passou uma sombra de tristeza quando disse:
- A gente aprende a lidar com a falta.
Ela, então, percebeu que havia alguma coisa desagradável no ar e mudou de assunto. Não desejou ser indiscreta. Começou a falar sobre alguns acontecimentos engraçados da empresa onde trabalhava, o que deixou o ambiente leve e agradável. Foram jantar e dançar no mesmo restaurante em que estiveram quando saíram pela primeira vez. Gilberto explicou:
- Você preferiu ficar comigo e estou muito feliz. Viemos aqui para comemorar. É hora de falarmos sobre o futuro. Quero marcar nosso casamento. O que acha?
- Para mim está bem.
- Tem certeza de que quer se casar comigo? Está segura?
Isabel olhou nos olhos dele e respondeu:
- Estou. É você que eu amo.
Gilberto segurou a mão dela e a levou aos lábios, beijando-a com carinho.
- É isso que importa. Vamos conversar com a sua mãe e programar tudo. Acha que ela vai concordar?
- Vai. Gosta de você e aprova nossa união.
- Amanhã mesmo falaremos com ela. Venha, vamos dançar.
Isabel levantou-se e, prazerosamente, mergulhou nos braços dele. Dançar era o que ela mais gostava de fazer, e Gilberto dançava muito bem. Ela sentia-se leve tendo ao redor de seu corpo os braços dele, que a faziam sentir-se protegida e feliz. Passava da meia-noite quando voltaram para casa. Beijaram-se várias vezes, depois Gilberto abriu a porta do carro, Isabel desceu e foram caminhando até a porta de entrada. Ela abriu a porta e ele lembrou:
- Amanhã à noite conversarei com sua mãe. Combinado?
- Estaremos esperando.
Beijaram-se novamente. Ela entrou e ouviu quando ele deu a partida do carro e se foi. A casa estava às escuras e Isabel foi para o quarto, procurando não fazer ruído para não acordar ninguém. Preparou-se para dormir. Estava alegre, com vontade de cantar. Deitou-se, recordando com prazer os momentos da noite. Deu graças a Deus por Carlos não tê-la procurado mais. Sentia-se em paz e fazia planos para o futuro. Rezou em agradecimento e logo adormeceu. Na manhã seguinte, quando o despertador tocou, ela acordou, olhou o relógio e levantou-se imediatamente. Arrumou-se para trabalhar e desceu. Laura e Sônia estavam tomando café. Vendo-a chegar, Laura comentou:
- Não vi a hora que você chegou.
- Era quase uma da manhã.
- Pelo brilho de seus olhos, a noite deve ter sido boa - tornou Sônia.
- Foi ótima - comentou Isabel, enquanto se servia de café com leite. - Gilberto virá aqui hoje à noite conversar com vocês.
- Algo especial? - perguntou Sônia.
- Ele quer marcar a data do nosso casamento.
Sônia bateu palmas satisfeita. Laura não disse nada e Isabel perguntou:
- O que foi, mãe? Você parece preocupada.
- Não sei por que me lembrei das ameaças de Carlos. Será que ele já se conformou?
- Penso que sim. Não me procurou mais, então dou o caso por encerrado. Por esse motivo foi que saí com Gilberto. Pode ficar feliz. Ele não voltará a nos incomodar.
- Espero que seja assim.
- A família de Gilberto tem apartamento em São Paulo, mas passa a maior parte do tempo na fazenda que eles têm em Minas. O irmão é agrônomo e cuida da fazenda, a irmã mora no Rio de Janeiro e estuda direito.
- Eles moram longe. Agora entendo por que ele ainda não a levou para conhecer a família - tornou Laura. - Ele vive aqui sozinho.
- Vive. Mas diz que está acostumado. Não sei como eles vão receber a notícia do nosso casamento. Será que vão gostar de mim?
- Eu adoraria ter uma nora como você - brincou Laura. Ele disse quando vai apresentá-la à família?
- Ainda não.
Continuaram conversando animadas, até que as duas irmãs saíram para o trabalho e Laura sentou-se na sala, pensativa. Ela apreciava Gilberto e preferia ele a Carlos. Se Isabel estava feliz, ela também estava. Mas quando pensava no casamento, sentia um aperto no peito e uma ponta de medo inexplicável. Reagiu. Estava impressionada pela reação de Carlos, mas nada indicava que ele fosse trazer-lhes problemas. Levantou-se e foi cuidar de seus afazeres. Pensava em preparar alguma coisa especial para a ocasião, escolher um vinho para comemorar. Eram oito horas quando Gilberto tocou a campainha. Berta atendeu e ele entrou carregando rosas vermelhas.
- Dona Laura está na sala - avisou ela.
Vendo-o entrar, Laura levantou-se. Gilberto entregou-lhe as rosas dizendo:
- Para a senhora, com carinho.
Laura segurou as rosas, sorriu e estendeu a mão dizendo:
- São as minhas preferidas! Obrigada.
Sônia lia um livro no sofá e levantou-se para cumprimentá-lo. Laura entregou as flores a Berta.
- Coloque-as no vaso e avise Isabel que Gilberto já chegou. Voltando-se para Gilberto, que a convite de Sônia sentara-se a seu lado no sofá, continuou:
- Que bom vê-lo! Estava sentindo sua falta.
- Eu também. Foi um retiro forçado e uma situação delicada. Eu queria que Isabel tivesse tempo para analisar a situação e sentir o que desejava fazer. Não queria pressionar. Confesso que fiquei muito feliz com o resultado.
- Foi melhor assim. Carlos voltou muito diferente do que era, pareceu-me mais determinado e exigente. Tornou-se agressivo quando Isabel lhe disse que não queria reatar o noivado. Para ser franca, a atitude dele ainda me preocupa.
- Ele deve ter enfrentado situações de risco, passado momentos difíceis, está estressado. Mas terá de aceitar a decisão de Isabel. A esta altura já deve ter entendido que não poderá obrigá-la a aceitá-lo, tanto que não a procurou mais.
- É, pode ser.
Sônia interveio:
- Claro, mãe. Ele deve ter pensado melhor, entendido que Isabel não o ama e que seria inútil insistir. Deve estar cuidando de sua vida. Cinco anos é muito tempo. Ele terá dificuldade de retomar sua carreira. Estamos vivendo um tempo de mudança.
Isabel estava descendo as escadas e Gilberto levantou-se para abraçá-la. Ela havia se preparado para a ocasião e estava linda. Gilberto a olhava com admiração e carinho. Depois dos cumprimentos, Laura foi à cozinha verificar como estava o jantar. Enquanto isso, Sônia colocou uma bandeja com petiscos sobre a mesinha e perguntou a Gilberto:
- Você aceita uma taça de vinho branco ou prefere outra bebida?
- Vinho branco está bem.
Enquanto Sônia foi buscar o vinho, ele beijou Isabel delicadamente na face e continuou:
- Você está mais linda a cada dia.
- E você mais gentil. Sente-se aqui, do meu lado.
Sentados abraçados no sofá, eles conversavam baixinho, trocando palavras de carinho. Sônia deixou a bandeja com o vinho sobre a mesinha e foi ajudar a mãe na sala de jantar. Meia hora depois, o jantar foi servido. A mesa, arrumada com tudo que Laura tinha de melhor, estava linda e convidativa. O cheiro da comida estava apetitoso e o ambiente, muito agradável. Gilberto não se conteve:
- É um prazer muito grande estar aqui. Dona Laura, muito obrigado por me proporcionar esse jantar. Está tudo muito bonito!
- Espero que você possa dizer o mesmo da comida - respondeu Laura sorrindo.
Sentaram-se e o jantar decorreu de maneira alegre e agradável. Foi na hora da sobremesa que Gilberto levantou-se e pediu solenemente a mão de Isabel. Muito emocionada, deixando as lágrimas caírem, Laura deu o sim, dizendo que falava também em nome do marido, que havia falecido há mais de dez anos.
- Gostaria que Orlando estivesse aqui para compartilhar da nossa felicidade. Estou certa de que ficaria muito feliz. Infelizmente é impossível.
- Quem pode saber? - indagou Gilberto pensativo. - Nós sabemos muito pouco sobre o que acontece depois da morte.
- Eu acredito que a vida continua - respondeu Sônia. Senão, que finalidade teria esta vida? Para que estaríamos aqui, seríamos pessoas de bem, faríamos o nosso melhor, se tudo acabasse com a morte do corpo? Na natureza nada se perde, tudo se transforma. Tenho aprendido isso na faculdade. Por que só nós seríamos destruídos?
- Tem razão. Eu sei que Orlando continua vivo em outra dimensão do universo e, muitas vezes, tenho sentido sua presença. Ele pode mesmo estar aqui neste momento tão especial. É hora de brindar a felicidade de Isabel e Gilberto.
Berta trouxe a bandeja com as taças e Laura serviu a champanhe, fazendo questão de que Berta participasse, e continuou:
- Que todos os sonhos de vocês dois se realizem e que sejam muito felizes!
Na sala havia mais duas pessoas que eles não podiam ver. O espírito de Orlando, de fato, estava lá. Olhos marejados, assistia a tudo, vibrando pela felicidade do casal. Ao lado dele, uma jovem de rara beleza observava comovida. Ela colocou a mão no braço dele dizendo:
- Finalmente! Desta vez tudo vai dar certo!
- É o que mais desejo. Farei tudo para ajudá-los, aconteça o que acontecer.
- Vamos confiar. Tudo foi muito bem programado.
- Estou certo disso. O que me preocupa é a reação deles. Quando estamos na Terra esquecemos quase tudo que aprendemos aqui. O passado volta com força total e eu temo que eles se deixem envolver pelo momento.
- Onde está a sua fé? A vida só trabalha pelo melhor. Às vezes escolhe caminhos diferentes do que gostaríamos, mas o objetivo do amadurecimento de cada um é sempre o mesmo. Pode demorar um pouco mais do que o previsto, mas tudo sempre vai para onde deve ir. Não se deixe envolver pela preocupação. Ela pode inutilizar todo o auxílio que você tem condições de dar.
- Tem razão. Sei que tudo está certo, mesmo quando o caminho parece sem saída.
- Não se esqueça nunca disso. Precisamos ir, temos outro compromisso para esta noite.
Orlando aproximou-se de cada um, abraçou-os com muito amor, enquanto a jovem, de braços levantados e mãos estendidas, orava. Seu peito irradiava uma luz amarelada, e de suas mãos começaram a sair energias brilhantes e multicoloridas que se derramavam sobre todos. A conversa estava animada, mas, naquele momento, como por encanto, ficaram em silêncio durante alguns segundos. Logo, Isabel comentou:
- De repente me lembrei do papai. Foi como se ele estivesse aqui. Eu gostaria muito de poder dividir este momento com ele.
Sônia suspirou e disse:
- Papai sempre estará presente em todos os momentos importantes de nossas vidas.
- Orlando partiu, mas continua em nossos corações. Desejo que, onde ele estiver, possa compartilhar da nossa alegria.
Vendo que Orlando estava muito emocionado, a jovem puxou-o pelo braço dizendo em tom firme:
- Vamos embora.
Na mesma hora os dois se elevaram e em poucos segundos desapareceram. Depois do jantar, todos foram para a sala e conversaram mais um pouco, até que Sônia e Laura se despediram e deixaram os noivos conversando na sala. Abraçado a Isabel no sofá, Gilberto comentou:
- Fazia muito tempo que eu não me sentia tão bem! Você tem uma família maravilhosa!
- Minha mãe tem um jeito especial de lidar conosco. Parece até que sente o que estamos pensando.
Por um segundo, o rosto de Gilberto se contraiu, mas logo se distendeu novamente. Isabel notou, mas não deu importância porque ele parecia muito bem. Trocando beijos e fazendo planos para o futuro, os dois sentiam-se felizes e confiantes. Carlos acordou cedo e desceu para o café. Todos estavam à mesa e o olharam curiosos.
- Bom dia - disse ele, sentando-se e começando a servir-se.
- E então, como foi? - perguntou o pai.
- Muito bem. Visitei algumas empresas, deixei cartão e vão me telefonar.
Sem dar importância aos olhares de dúvida, Carlos continuou:
- Se me ligarem e eu não estiver, quem atender não deve dar nenhuma informação sobre mim. Só anotem muito bem o recado.
Ninguém respondeu e, passados alguns minutos, Inês não se conteve:
- Você acredita mesmo que vão telefonar?
- Uma das empresas que visitei tem boas possibilidades de ligar.
Albertina interveio:
- Vou torcer para que dê certo!
Carlos terminou de comer, levou o jornal para o quarto e fez anotações de novas empresas para visitar, arrumou-se com capricho e, antes de sair, recomendou novamente que anotassem qualquer recado. Passou o dia visitando empresas, não sendo recebido pela diretoria, deixando seu cartão. Eram quase seis horas da tarde quando voltou para casa. Ao aproximar-se da cozinha, ouviu a voz de Inês dizendo:
- É verdade, mãe. Foi ontem à noite.
- Carlos não pode saber. Agora que ele parece estar mais calmo, Isabel inventa essa moda. Ela bem que podia respeitar e esperar um pouco mais.
Carlos não se conteve e entrou na cozinha dizendo:
- O que eu não posso saber?
As duas se olharam assustadas. Ele estava pálido e seus olhos tinham um brilho rancoroso.
- Acalme-se - tornou Albertina. - O que aconteceu era de se esperar.
- O que foi?
Desta vez foi Inês quem respondeu:
- Isabel ficou noiva.
Carlos crispou as mãos com força e não respondeu. As duas temiam uma explosão de raiva, o que não aconteceu. Depois de alguns segundos, ele disse sério:
- Um noivado não é nada. Nós fomos noivos durante anos e estamos separados. Nesta vida tudo pode acontecer. Alguém me telefonou?
As duas respiraram aliviadas.
- Ainda não - tornou Albertina.
- Vou descansar um pouco. Se ligarem, podem me chamar.
Ele subiu e as duas ficaram comentando o acontecido.
- Parece que ele já desistiu dela. Você não acha, mãe?
- Não sei. Ele se controlou, mas ficou furioso. Não viu como ele fechou os punhos?
- Eu esperava uma reação pior. Claro que ele deve ter ficado com raiva. Foi rejeitado e ninguém gosta de sentir-se assim.
No quarto, Carlos sentou-se na cama nervoso. Não iria permitir ser passado para trás dessa forma. Isabel era dele. Fazia parte de sua vida. Não podia aceitar que outro ficasse com ela. Quando conseguisse o que pretendia, Isabel voltaria para seus braços. Era uma questão de tempo. Sua cabeça doía. Ele foi ao banheiro, era lá que sua mãe guardava o armário de remédios. Procurou um comprimido, tomou e voltou para o quarto, onde se estendeu na cama e tentou relaxar. Estava difícil. Em sua mente via Isabel nos braços do outro, trocando beijos e juras de amor. Esforçou-se para banir esses pensamentos, tentando lembrar-se de momentos mais agradáveis. Aos poucos foi relaxando, e estava quase dormindo quando bateram na porta.
- O que foi? - indagou ele.
- Tem alguém no telefone querendo falar com você.
Carlos levantou-se de um salto, desceu as escadas e foi ao hall, onde ficava o telefone:
- Alô, quem fala?
- Yuri da joalheria. Lembra-se de mim?
- Claro. Como vai?
- Bem. Desculpe ligar fora do horário comercial, mas estou conversando com meu tio, ele quer conhecer você. Teria como você ir até a loja amanhã cedo, lá pelas nove?
- Sim. Estarei lá.
- Meu tio o estará esperando.
- Pode contar comigo.
Despediram-se e ele desligou o telefone com euforia. Se o emprego desse certo, logo conseguiria o que desejava. Ao lado dele estava o resto da família, olhando-o com curiosidade. Antônio não se conteve:
- É o que você esperava?
- É, pai. Trata-se de uma empresa de jóias. Amanhã vou conversar com o dono.
- Como você conseguiu isso?
- Conversando em russo com o sobrinho dele.
Inês interveio admirada:
- Você sabe falar russo?
- Por onde você acha que andei enquanto estive fora?
- É verdade - reconheceu Antônio. - Você foi viver no meio dos russos! Mas será que vai conseguir o emprego? Você não sabe nada de jóias!
- Mas posso aprender, pai. O importante é ganhar a confiança deles. O resto será fácil.
Os três o olharam admirados, com ar de respeito, e pensaram que talvez tivessem avaliado mal a capacidade dele. Albertina avisou que serviria o jantar. Ao se dirigirem para a mesa, Carlos notou que o pai o estava tratando com mais deferência, a irmã, com certo carinho, e a mãe assumira uma atitude mais altiva. A dor de cabeça havia passado, Carlos sentiu-se mais alegre e animado. Sabia que no mundo as pessoas valorizam as aparências. Se sua própria família, apenas pelo fato de ele ter começado a vencer uma dificuldade, havia mudado a maneira de tratá-lo, o que aconteceria quando ele conseguisse vencer, ganhar dinheiro e ser alguém? Lembrou-se de Isabel e sentiu muita raiva por ela tê-lo preterido. Prometeu a si mesmo que colocaria todo o seu esforço para conseguir subir na vida e provar a ela que era muito capaz e tinha valor, fazendo-a arrepender-se de trocá-lo por outro. Após o jantar, foi para o quarto preparar a entrevista que faria logo cedo. Separou a roupa com cuidado, depois se estendeu na cama pensando no que faria para impressionar o dono da joalheria e conseguir o emprego. Demonstraria interesse em trabalhar e se colocaria como uma pessoa confiante, mesmo desconhecendo o mercado de jóias. Para isso, teria de demonstrar que, além de capacidade, possuía valores éticos. Esse era um traço cultural muito forte nos russos que conhecera. Quando eles cometiam algum ato duvidoso, jamais o admitiam. Ele havia presenciado vários casos de soldados relapsos que, mesmo torturados, continuavam negando suas ações. Deitou-se querendo dormir logo e acordar com boa aparência, mas estava difícil controlar os pensamentos e ele custou a adormecer. Assim que dormiu, encontrou-se novamente na trincheira, enquanto as balas pipocavam e ele, aterrorizado, segurava o braço de Adriano, que pedia:
- Quando você voltar a Paris, vá procurar Anete. O endereço dela está na minha carteira, com o retrato. Diga-lhe que meu último pensamento foi para ela!
Peito oprimido, Carlos tentou responder, mas a voz não saiu. Nervoso, pensou:
- Estou sonhando de novo! Ele está me cobrando. Eu peguei o endereço, o retrato, mas nunca pude ir a Paris.
Naquele momento a cena se transformou e ele caminhava por uma rua estreita. Abraçado a uma moça, beijavam-se com paixão. Entre um beijo e outro, ela dizia emocionada:
- A guerra está no fim. Prometa que você não vai me abandonar.
Ele prometeu e a cena desapareceu. Encontrou-se diante de uma casa térrea simples, enquanto uma mulher de meia-idade lhe disse chorando:
- Você demorou muito. Agora é tarde demais! Tudo acabou.
Carlos sentiu uma dor muito forte no peito, seus olhos encheram-se de lágrimas e ele acordou angustiado, sentindo falta de ar. Levantou-se de um salto e respirou fundo, tentando concatenar as ideias.
- O pesadelo de novo!
Foi ao banheiro, lavou o rosto e pensou:
- É só um sonho. Vai passar. Preciso esquecer essa guerra. Até quando vou sofrer esse trauma?
Olhou o relógio, eram cinco horas. Muito cedo, mas estava tenso demais para tentar dormir. Desceu até a sala em busca de alguma coisa para matar o tempo. Talvez um livro. Mas não achou nada. Ele gostava de ler, mas seus familiares não tinham esse hábito. Voltou ao quarto e, resignado, apanhou o jornal, que havia lido só para procurar emprego. Passou a ler o noticiário para fugir das lembranças ruins. No horário combinado, Carlos entrou na loja de jóias. Yuri o esperava. Depois dos cumprimentos, conduziu-o ao andar superior por um largo corredor onde havia várias portas. Embora estivesse ansioso, Carlos caminhava com naturalidade. Diante de uma delas, pararam. Yuri bateu levemente, abriu a porta e eles entraram. A sala era sóbria e, atrás da escrivaninha de madeira lavrada, um homem de meia-idade estava sentado. Ao vê-los, levantou a cabeça, fixando em Carlos seus olhos de um azul-escuro com certa curiosidade.
- Tio, este é o moço de que lhe falei - voltando-se para Carlos, continuou: - Meu tio Nicolai.
Carlos sustentou o olhar e curvou a cabeça, à maneira russa.
- Aproxime-se. Sente-se - disse Nicolai, designando a cadeira diante da mesa.
Carlos obedeceu e disse em russo:
- Estou honrado em conhecê-lo, senhor.
- Yuri disse que você serviu na guerra.
- Sim. Corpo Expedicionário Brasileiro. No fim da guerra, fui aprisionado pelos russos e levado para Berlim Oriental.
- Você não estava do lado deles?
- Sim. Mas tinha perdido minha identificação. O frio era grande e meu uniforme estava cheio de buracos. Eu vestia um casaco velho que encontrara. Além disso, não entendia o que diziam, e eles também não.
Notando que Nicolai ouvia com muito interesse, Carlos descreveu em detalhes o que lhe acontecera até conseguir voltar ao Brasil. E finalizou:
- Quando fui para a guerra, estava para casar, mas cinco anos é muito tempo. Ela está noiva de outro e não quer voltar para mim.
Nicolai meneou a cabeça, penalizado, depois disse:
- Você ainda a quer?
- Com todas as forças do meu coração!
Pelos olhos azuis de Nicolai passou um brilho de emoção, e ele tornou:
- Você ainda não se conformou.
Havia qualquer coisa no rosto e nos olhos de Nicolai que fez Carlos esquecer completamente tudo que havia preparado para aquela entrevista e dizer com voz embargada de emoção:
- Nunca aceitarei. Ela é minha! Hei de provar a ela que sou mais capaz do que meu rival! Eles vão ver!
- Isso, meu rapaz! Mostre a sua força! O que pretende fazer?
Carlos respirou fundo tentando se acalmar. Havia planejado mostrar conhecimento, controle. Fora longe demais e não tinha como voltar atrás. Disse com voz firme:
- A guerra me roubou a juventude, larguei os estudos, a família, o conforto. Mas também me ensinou a enxergar o que tem valor de fato. Tenho sede de aprender tudo o que puder e que me faça subir na vida. Quero progredir.
Fez ligeira pausa e, notando que tanto Yuri como Nicolai o olhavam admirados, continuou:
- Se me derem a oportunidade de trabalhar aqui, não vão se arrepender. Não sei nada sobre o negócio de jóias, mas tenho experiência em negociar, sou bom observador, aprendo com facilidade. Quero recuperar o tempo perdido. O mundo está mudando e eu estou pronto para o novo. Vi na Europa a sede de progresso das pessoas, a vontade de reconstruir o que foi perdido e muito mais. Quero conquistar meu lugar e fazer a diferença no mundo novo. Eu sei que posso! Só preciso da primeira oportunidade.
Carlos calou-se. Ficaram em silêncio durante alguns segundos, até que Nicolai disse:
- Ainda não sei se poderia oferecer-lhe essa oportunidade, mas gosto de sua garra! Espero que use de toda essa força para continuar assim, mesmo que sua noiva venha a se casar com outro. Sabe que isso poderá acontecer, você não poderá evitar.
- Sei. Mas estou disposto a vencer, aconteça o que acontecer.
Yuri, que observava calado, perguntou:
- Que tipo de serviço você acha que poderia prestar aqui?
Carlos não pestanejou, respondeu rápido:
- Vocês fabricam seus produtos. Eu poderia vendê-los no exterior. Na Europa, tanto os antigos como os novos ricos querem esquecer, viver bem, gozar a vida. As festas se multiplicam, as mulheres gostam de cobrir-se de jóias. Este é o momento e eu poderia multiplicar as vendas. É um grande negócio, estou certo de que ficaremos todos muito ricos.
Nicolai olhava pensativo. A proposta era sedutora. O momento era oportuno e ele tinha informações a respeito. O que Carlos estava falando era verdade. Ele sabia.
- O problema é que você não conhece nada sobre nosso ramo de negócio.
Carlos levantou-se, dizendo com entusiasmo:
- Proponho-lhe trabalhar aqui durante um mês para conhecer tudo sobre seus produtos. Gostaria de poder fazer isso de graça, mas no momento não tenho como me manter. Minha família trabalha para viver e não posso ser-lhes pesado. Preciso receber para condução e comprar uma ou duas roupas para manter uma boa aparência. Findo esse mês, conversaremos. Se acharem que não sirvo para esse cargo, irei embora sem reclamar. Admiro o trabalho de vocês e gostaria de manter uma relação amistosa, mesmo que eu seja recusado.
Carlos disse as palavras certas. Nicolai gostou do que ouviu. Estendeu a mão dizendo:
- Está certo. Você pode começar amanhã. Yuri vai calcular um valor que cubra suas necessidades. Vamos ver como você se sai. Nós temos interesse em ter alguém que trabalhe nossos produtos no exterior. Se fizer um bom trabalho, o lugar será seu.
- Darei o meu melhor. Estou certo de que não irão se arrepender de confiarem em mim.
Depois de um solene aperto de mão, Yuri levou Carlos para sua sala, onde, sentados lado a lado, calcularam o quanto seria suficiente para as despesas de Carlos durante aquele mês. Yuri estava radiante. Simpatizara com Carlos desde o primeiro instante. Aos dezenove anos, em 1939, viera para o Brasil a chamado do tio. Nicolai viera para cá no fim da Primeira Grande Guerra Mundial, durante a qual perdera os pais e dois irmãos, sendo que da família restara apenas uma irmã. Ele foi obrigado a servir na guerra, sofreu muito, acabou desertando e passou a viver escondido. Quando a guerra acabou, resolveu fugir para cá com o que pôde trazer dos bens que restaram. Ourives por profissão, trabalhou duro e prosperou. Precisava de alguém de confiança para ajudá-lo. Sentindo que poderia acontecer tudo de novo, mandou buscar o sobrinho, tendo-o como auxiliar e evitando que enfrentasse a nova guerra. Mas Yuri sentia muitas saudades de sua terra, das músicas, das moças lindas que conhecia, dos costumes. Sentia-se muito só. Ao conhecer Carlos, que falava russo com sotaque engraçado, mas lhe dizia coisas que lhe eram familiares, sentiu vontade de ganhar sua amizade. Estava disposto a ajudar Carlos o quanto pudesse para que o tio o contratasse. A atitude de Yuri era tão amistosa que Carlos se sentiu apoiado e disposto a se esforçar ao máximo para não desapontá-lo. Ao mesmo tempo, reconhecia que era uma chance muito grande de conseguir tudo quanto sonhara. Depois de tudo programado e de Yuri ter prometido dar-lhe um adiantamento no fim da semana, Carlos despediu-se satisfeito. Era sua primeira vitória. Durante o trajeto de volta para casa, o rosto de Isabel não lhe saía da mente. Ela iria se arrepender de tê-lo trocado pelo médico e voltaria aos seus braços para pedir-lhe perdão. Esse dia seria glorioso. Para vivê-lo, Carlos estava disposto a fazer todos os sacrifícios, a trabalhar de sol a sol, sem reclamar. Estava convicto de que esse dia chegaria. Chegou em casa satisfeito. Vendo-o entrar, Antônio aproximou-se curioso:
- Então, como foi?
- Muito bem. Começo amanhã cedo.
Albertina, que o acompanhara, bateu palmas dizendo:
- Que bom! Eu sabia que você conseguiria!
Antônio indagou:
- Para fazer o quê?
- Depois conversamos, pai - e, dirigindo-se a Albertina: - Mãe, estou com fome. Tem alguma coisa para comer?
- Tem. Não sabíamos se você viria para o almoço. Já comemos. Vou esquentar a comida.
Carlos acompanhou a mãe até a copa e Antônio os seguiu. Não conseguia controlar a curiosidade.
- Para qual empresa vai trabalhar? - insistiu ele.
- Para a loja de jóias.
Ele ainda duvidava:
- O que vai fazer lá?
Carlos foi lavar as mãos e voltou em seguida, sentando-se à mesa.
- Primeiro, aprender tudo sobre a empresa. Depois, viajar para colocar seus produtos no mercado exterior.
Antônio abriu a boca, ameaçando dizer alguma coisa, mas fechou-a de novo, pensativo. Albertina esquentara a comida e estava arrumando tudo diante do filho. Carlos começou a comer com apetite, pensando em seus projetos. Antônio não se conteve:
- E... quanto você vai ganhar? Está sem dinheiro para manter-se até receber.
Carlos levantou os olhos, fixou-o e respondeu:
- Não se preocupe, pai. Eu mesmo sugeri que me pagassem o mínimo suficiente para manter minhas despesas nesse período.
- Puxa, vai trabalhar quase de graça! Deveria ter pedido um bom salário.
Ao que Carlos respondeu:
- O que eles vão me ensinar vale muito mais do que um simples salário. Primeiro vou aprender tudo que eles tiverem para me ensinar. Em seguida, vou mostrar-lhes que sou capaz de vender bem seus produtos e dar-lhes muito lucro.
- E se não der certo? E se não conseguir?
Os olhos de Carlos brilhavam fortes quando fixaram o pai:
- Eu sei o que quero e vou conseguir. Sei que vocês duvidam da minha capacidade, mas não me importo. Vocês pensam pequeno e se conformam com migalhas. Eu conheci coisas melhores e sei que estão a meu alcance. Sou suficiente para realizar meus projetos sem pedir a opinião de ninguém.
Antônio não respondeu. Carlos terminou de comer e saiu da mesa dizendo:
- Vou subir para descansar um pouco.
Depois que ele saiu, Albertina olhou para o marido, dizendo:
- Você poderia ter ficado sem essa. O menino conseguiu um emprego, está entusiasmado, e você, com seu pessimismo, joga um balde de água fria sobre ele.
- Ele está forçando a barra e vai quebrar a cara. Só porque conseguiu um lugar de aprendiz já está se achando poderoso. Quero ver o que ele vai dizer quando der com os burros n'água.
- Ele tem razão quando diz que você pensa pequeno. Vive contando os tostões e está sempre controlando tudo que gastamos.
- A vida é assim mesmo. Eu tenho um diploma e não consegui mais do que esse emprego que mal dá para viver. Inês estudou, é professora, e o que ganha só dá para as despesas dela. Quem sustenta as despesas da casa sou eu! Tenho que fazer o dinheiro render para ter como pagar as contas! Você está sempre reclamando! Se eu fosse fazer tudo que quer, estaria cheio de dívidas.
- Com o que você ganha daria para termos um padrão de vida muito melhor. Mas você sofre quando precisa gastar. Há anos diz que está pensando no nosso futuro. Nunca viajamos nas férias. Falar em dinheiro com você é um drama.
- Chega desse assunto. Você não entende mesmo! Preciso voltar ao escritório.
Albertina balançou a cabeça inconformada e Antônio saiu. No quarto, Carlos, estendido na cama, pensava no futuro. Em um sábado pela manhã, um mês depois do noivado, Gilberto parou o carro diante da casa de Isabel, desceu e tocou a campainha. Berta abriu, ele entrou e Laura o recebeu na sala. Depois dos cumprimentos, ele perguntou:
- Elas estão prontas?
- Sim. Berta já foi avisá-las que chegou.
Berta voltou com duas malas e Gilberto levantou-se, dizendo:
- Deixe-me fazer isso - segurou as duas malas e perguntou a Laura: - Posso colocá-las no carro?
- Pode. Olhe, as duas estão descendo!
Gilberto deixou as malas no chão, abraçou e beijou Isabel na face, e cumprimentou Diva:
- Obrigado por você ter aceitado nosso convite.
- Ela é nossa madrinha. Foi ela quem insistiu para que eu saísse com você!
Ele balançou a cabeça negativamente e disse:
- Isso é desculpa. Eu sei que você estava louquinha para sair comigo!
- Viu, mãe, como ele é convencido?
Laura os acompanhou até o carro e, na hora da despedida, aconselhou:
- Dirija com cuidado! Você está levando duas preciosidades com você.
- Fique tranquila, dona Laura. Sou muito disciplinado.
Despediram-se e entraram no carro. Laura ficou olhando o carro desaparecer na esquina e entrou pensativa. Gilberto tirara alguns dias de folga do hospital e estava levando Isabel a Pouso Alegre para conhecer seus pais. Laura havia sugerido que Isabel convidasse a prima para acompanhá-la nessa viagem. Os pais de Gilberto eram do interior de Minas, e Laura, pelo fato de não conhecê-los, preferiu que a filha viajasse acompanhada da prima. Durante a viagem, eles conversaram animados. Gilberto falou sobre a cidade, que as duas ainda não conheciam, e sobre a fazenda da família.
- Faz tempo que não vou à fazenda. Imagino que esteja tudo bem. Meu irmão é apaixonado por aquelas terras. Depois que se formou fez vários projetos que têm dado certo.
- Você é o primeiro que vai se casar? - indagou Diva.
- Sim.
- Você contou a seus pais que nós pretendemos nos casar?
- Sim. Eles estavam na fazenda. Minha mãe passa a maior parte do tempo lá. Já meu pai prefere ficar na cidade. Ele gosta de política, tem muitos amigos. Ontem pela manhã, quando liguei, ele estava na fazenda, mas ao saber que nós estaríamos lá hoje, disse que voltaria imediatamente para cidade.
Isabel ficou em silêncio durante alguns minutos e Gilberto comentou:
- Você está tão calada... pensando em quê?
- Na sua família. Será que eles vão gostar de mim?
- Estou certo que sim. Já eu não sei se você vai gostar deles.
- Às vezes me parece que você não é muito ligado a eles. Fica muito tempo sem vê-los. Nós já falamos sobre isso.
- Você, ao contrário, é muito ligada à sua família, sempre viveu em casa. Eu não. Saí de casa muito cedo, fiquei internado em um colégio, fui para São Paulo estudar. Depois que me formei, ficou mais difícil sair da cidade. Vida de médico, sabe como é.
Gilberto mudou de assunto. Diva comentou que fazia uma semana que ela havia terminado um namoro de alguns meses, porque ele a atormentava com seu ciúme, e finalizou:
- Foi muito bom vocês terem me convidado para esta viagem. Ronaldo não aceitou o rompimento, ficou me ligando, esperando na porta de casa, insistindo para voltar.
- Você gosta dele? - indagou Gilberto.
- Sentia muita atração. É um homem bonito, está bem na vida, é o que se chama de um bom partido. Mas tem um ciúme doentio que acabou com o meu entusiasmo. Eu decidi: não quero esse tormento em minha vida.
- Parabéns, Diva. Se todas as mulheres agissem assim, não haveria tanta infelicidade nos relacionamentos.
- Ele dizia que ciúme é prova de amor. Mas eu não acredito. Para mim, ciúme é falta de confiança em si, é apego, não amor, é querer dominar o parceiro.
- Não é só o homem que sente ciúme. Eu ainda penso que mulher ciumenta é ainda pior do que o homem.
Durante o resto da viagem, eles conversaram sobre relacionamento afetivo e como avaliar o parceiro ideal. Passava das três e meia quando chegaram a Pouso Alegre. O bairro em que os pais de Gilberto moravam era elegante, todo arborizado. Ele parou o carro diante de um casarão antigo, rodeado por algumas árvores e um jardim bem cuidado. Diante do grande portão de ferro, Gilberto buzinou e, pouco depois, um homem de meia-idade veio abrir. Gilberto pôs a cabeça para fora do carro pela janela e informou:
- Roque, sou eu.
Ele sorriu e imediatamente abriu. Gilberto entrou e parou em seguida. Roque se aproximou e Gilberto estendeu a mão, dizendo:
- Como vai, Roque? E a família?
- Tudo bem, doutor! Que bom vê-lo por aqui!
- Obrigado, Roque.
Ele conduziu o carro pelo caminho que dava para a cobertura da porta de entrada da casa e parou, dizendo:
- Chegamos, meninas. Podem descer.
Roque já estava do lado e Gilberto saiu do carro, abrindo o porta-malas para que ele tirasse a bagagem.
- Papai está em casa? - perguntou.
- Não, senhor. Ele precisou sair. Vou avisar dona Glória que chegaram.
Uma mulher de meia-idade surgiu na porta e, dirigindo-se a eles, disse:
- Sejam bem-vindos. Dona Glória já está descendo. Entrem, por favor.
Eles entraram no hall espaçoso, muito elegante. No centro, uma mesa redonda de mármore, sobre a qual havia um arranjo de flores. No alto, um lindo lustre de cristal, dando um ar imponente à decoração. Uma porta se abriu e uma mulher apareceu, abraçando Gilberto com carinho.
- Meu filho! Que saudade!
Era uma mulher alta, corpo cheio, rosto claro e cabelos escuros. Trajava uma saia preta e uma blusa branca simples.
- Eu também estava com saudades, mãe! Quero lhe apresentar minha noiva!
Isabel viu que havia lágrimas nos olhos dela quando se aproximou:
- Bem-vinda, minha filha.
- Obrigada, senhora. Estava ansiosa por conhecê-la. Esta é minha prima Diva.
Depois dos cumprimentos, Glória perguntou se aceitariam tomar ou comer alguma coisa, e elas recusaram delicadamente. Glória pediu a Dete, governanta da casa, que levasse as duas moças para o quarto, e sugeriu:
- Se estiverem cansadas da viagem, podem se deitar um pouco.
- Obrigada. Fizemos uma ótima viagem e não estamos cansadas - disse Isabel.
- É verdade - completou Diva. - Estamos muito bem-dispostas e queremos conhecer tudo.
- Só vamos lavar as mãos e arrumar a bagagem. Em dez minutos estaremos de volta - tornou Isabel.
Elas acompanharam Dete. Glória, segurando a mão do filho, conduziu-o à sala de estar onde se sentaram lado a lado no sofá.
- Então, você quer se casar!
- Quero, mãe. Estou muito feliz.
- É uma linda moça. Desejo que o faça muito feliz. Você merece.
- É o que eu espero.
Glória baixou os olhos e ficou pensativa. Gilberto olhou-a sério e perguntou:
- Como estão as coisas por aqui? Houve alguma mudança?
Ela balançou a cabeça negativamente e respondeu triste:
- Não, filho. Tudo continua igual. Esta situação não tem remédio. Tenho que carregar essa cruz pelo resto de minha vida.
- Você não precisa fazer isso. Se quisesse, poderia acabar com esse caso de vez.
- Não, meu filho. Sou uma mulher de fé. Vou cumprir meu juramento até o fim.
Ele segurou a mão dela dizendo:
- Mãe! Os tempos mudaram, você não precisa suportar mais essa situação. Não gosto de vê-la nessa tristeza. Se quiser mudar, posso ajudá-la.
- Não, filho. Já me conformei. Às vezes até esqueço de como as coisas são. Vivo a minha vida do jeito que der.
Gilberto ficou calado durante alguns segundos. Depois disse:
- Nivaldo está na fazenda?
- Sim. Você sabe que ele tem suas razões para preferir viver lá.
- Não entendo por quê. Ele tem alguma namorada por lá?
Glória balançou a cabeça negativamente:
- Não.
- O que ele fica fazendo por lá?
- Fica a maior parte do tempo no laboratório. A cada dia se especializa mais na criação de gado.
Gilberto coçou a cabeça pensativo. Isabel e Diva voltaram, e ele se levantou, convidando-as a se sentarem. Glória comentou, dirigindo-se ao filho:
- Você precisa levá-las para dar uma volta pela cidade. O progresso é mais lento por aqui. Não é como São Paulo.
- Mas deve ser mais calmo e agradável morar aqui - respondeu Isabel. - São Paulo tem crescido muito.
- Isso é verdade - concordou Glória -, mas eu gosto mais da paz do campo.
Diva comentou:
- Eu sempre vivi na cidade. Adoro o movimento. Posso ser indiscreta e fazer-lhe uma pergunta?
- Claro, minha filha, faça.
- O que é que a senhora fica fazendo o dia inteiro em uma fazenda?
O rosto de Glória se distendeu e seus lábios se entreabriram em um sorriso que lhe deu um ar de menina travessa, uma aparência mais jovial, quando disse:
- Quero levá-la à fazenda e mostrar-lhe quanta vida há por lá e quantas atividades interessantes ela oferece. Há o que fazer o tempo todo.
- Verdade? - perguntou Diva.
- Na cidade, vocês vivem correndo de um lado a outro, tudo é complicado. Além disso, há o barulho, a fumaça dos carros que contamina o ar. As pessoas vivem estressadas e ansiosas. Basta prestar atenção na fisionomia de quem anda pelas ruas.
- Você está exagerando, mãe - tornou Gilberto rindo.
- Não é verdade? - indagou Glória fixando as duas.
- É - concordou Isabel. - Apesar disso, se eu precisasse morar em um lugar assim, não sei se me habituaria.
- Desse mal você não vai sofrer. Gilberto também não moraria na fazenda. Pode ficar tranquila.
Isabel, sentada ao lado do noivo no sofá, segurou a mão dele dizendo:
- Para ficar ao lado dele, eu moraria em qualquer lugar.
Gilberto levou a mão da noiva aos lábios e respondeu:
- O melhor lugar para eu morar é onde Isabel está. Quando estou ao lado dela, fico feliz.
Uma sombra de tristeza passou pelos olhos de Glória, que baixou a cabeça. Foi apenas um segundo, e logo ela voltou a erguê-la. Fixou-os e disse sorrindo:
- Deus abençoe o amor de vocês.
Dete, então, apareceu para avisar que o lanche estava sendo servido na copa. Glória levantou-se, entrelaçou seu braço ao de Isabel, e disse:
- Venham comigo. Quero mostrar-lhes uma planta rara que tenho lá. Trouxe ontem da fazenda. Está uma beleza. Vocês gostam de flores?
- Adoro! - respondeu Isabel.
- Eu também! - secundou Diva.
- Além de lindas, elas são filtros da natureza. Às vezes, para melhorar o ar que respiramos, elas morrem.
O lanche decorreu agradável. Quando terminaram, Glória perguntou a Isabel:
- Você gostaria de descansar um pouco antes do jantar?
- Não estou cansada. Preferiria dar uma volta, conhecer a cidade. Sei que Diva também quer. O que acha, Gilberto?
- É uma boa ideia - voltando-se para a mãe, continuou: - Há alguma novidade por aqui que seja interessante?
- Não estou bem informada. Tenho ficado mais na fazenda do que aqui. Sei que o novo prefeito recuperou o centro da cidade, construiu prédios novos, há lojas mais modernas, e, além da praça principal, fez duas novas praças. Dizem que são muito bonitas.
- Nesse caso, vamos!
- A senhora vem conosco? - ajuntou Isabel.
- Obrigada, minha filha, mas prefiro ficar. Vão vocês.
Os três saíram. A tarde estava bonita. Eles pararam o carro perto de uma praça e caminharam pelos jardins floridos, aspirando o gostoso perfume das flores. Passava das sete quando voltaram para casa. Vendo-os entrar, Dete aproximou-se dizendo:
- Dona Glória mandou avisar que o jantar será servido dentro de meia hora.
- Obrigado, Dete - respondeu Gilberto.
- Nesse caso, vamos subir rápido. Quero tomar um banho antes do jantar - disse Isabel.
- Eu também. Temos que ser rápidas. Não queremos atrasar o jantar.
- Não se preocupem. O jantar só será servido quando vocês descerem - explicou Gilberto.
As duas subiram apressadas e Gilberto acompanhou-as. Foi até o seu quarto, lavou-se, trocou de camisa, penteou os cabelos e desceu novamente. Ao entrar na sala, viu o pai sentado em uma poltrona, fumando seu charuto enquanto folheava um jornal. Vendo-o chegar, disse:
- Até que enfim você resolveu aparecer.
- Como vai, pai?
- Mais velho e levando a vida como dá. E você? Sua mãe disse que pretende se casar.
Gilberto sentou-se na poltrona diante dele e respondeu:
- Sim. Encontrei a pessoa com a qual quero dividir minha vida.
Alberto meneou a cabeça e respondeu:
- Não sei se é uma boa ideia. Casar significa encher a vida de compromissos que nos aprisionam. No início tudo parece maravilhoso, depois vem a rotina, o sabor desaparece e acaba se tornando um peso.
Gilberto franziu a testa contrariado, e esforçou-se para controlar a irritação:
- Você não deveria dizer isso. Mamãe tem sido uma excelente companheira. É uma mulher maravilhosa. Sinceramente, espero que Isabel seja para mim o que mamãe sempre foi para você.
Alberto tirou uma baforada do charuto, derrubou a cinza no cinzeiro, olhou-o com ar irônico e respondeu:
- Você está falando de sua mãe, eu estou falando da minha esposa. Estamos em situações diferentes. Concordo, sua mãe é uma boa mulher.
Glória entrou na sala e Gilberto não teve tempo de responder.
- Então, o que achou do passeio? Elas gostaram da nossa cidade?
- Adoraram. A nova praça está linda! Toda florida, arborizada, com recantos deliciosos para sentar e observar. Alberto interessou-se:
- Até que enfim esse prefeito fez alguma coisa que preste. Também, foi só. A saúde está uma porcaria, educação, nem se fala. Se o Adolfo tivesse ganhado a eleição, faria muito mais do que jardins floridos.
- Pois eu votei nesse prefeito e não me arrependo. Se a saúde está ruim é graças ao Adolfo que teve chance e não fez nada. Não cuidou da educação, muito menos da cidade.
- Você é do contra. Nunca faz o que eu digo. Já estou acostumado. Não importa o que eu diga ou faça, você é sempre contra.
Glória ficou calada e Gilberto tornou:
- Política não é o meu forte. Como vão as coisas na fazenda?
- O gado está uma beleza! Eu não queria comprar aquele reprodutor neo-holandês, mas dessa vez Nivaldo estava certo. Ele já se pagou e daqui para frente só vai dar lucro.
Isabel e Diva apareceram na porta e Gilberto levantou-se para recebê-las. Alberto colocou o charuto no cinzeiro e levantou-se para cumprimentá-las. Gilberto as apresentou. Glória, depois de perguntar-lhes o que acharam da cidade, foi ver o jantar, enquanto todos continuaram conversando na sala. Ao conhecer Alberto, Isabel notou que ele era muito diferente do noivo. Moreno, forte, atarracado, mais baixo do que o filho, cabelos castanhos curtos e ondulados, olhos pequenos e vivos. Alberto desfez-se em amabilidades com as duas moças, que respondiam sorrindo. Mais tarde, depois do jantar, Glória as convidou novamente para conhecer a fazenda, e as moças aceitaram alegres.
- Quando gostariam de ir? - indagou Glória.
- Elas decidem - respondeu Gilberto. - Não temos muito tempo. Devo estar de volta ao hospital dentro de oito dias.
- Por mim iremos amanhã mesmo - disse Isabel.
- Nós sempre vivemos na cidade. Conhecer uma fazenda deve ser muito interessante - reforçou Diva.
Isabel continuou:
- Mas só se a senhora puder. Acabou de vir de lá. Talvez tenha muitas coisas a fazer aqui.
- Não tenho nada de especial para fazer aqui. Dete cuida de tudo melhor do que eu. Iremos amanhã cedo, está combinado.
Mais tarde, quando as duas moças se recolheram e estavam deitadas, Diva perguntou:
- Então, Isabel, qual sua impressão sobre os pais de Gilberto?
Isabel pensou um pouco, depois respondeu:
- É cedo para dizer. Dona Glória parece uma mulher muito boa, uma mãezona mesmo. Mas sinto que há alguma coisa diferente nela. Um pouco controlada, não é espontânea, natural.
- Há momentos em que seu rosto parece triste, mas logo muda.
- Ah, você também notou?
- Sim. Será que ela tem algum desgosto oculto?
- Pode ser. Notei que Gilberto, quando falava da família, também tinha um ar de contrariedade. Não sei explicar.
- Pode ser apenas uma impressão. Nós podemos estar fantasiando coisas.
- Tem razão. Vamos dormir porque amanhã dona Glória quer sair cedo. Não podemos nos atrasar.
Apagaram a luz e se acomodaram para dormir. O domingo amanheceu ensolarado. Eram nove horas quando eles saíram rumo à fazenda. Ia Gilberto com as duas moças em seu carro, e Alberto e Glória no belo e confortável automóvel, último modelo, comprado dois meses antes. Alberto decidira acompanhá-los, mas quis ir com seu carro, alegando que não poderia permanecer lá por mais de dois dias. Em pouco mais de uma hora, chegaram ao destino. Pararam diante do belo portão de madeira, encimado por uma marquise de alvenaria, sobre a qual estava uma imensa primavera coberta de flores cor de laranja. As duas moças não contiveram suas exclamações de admiração diante de tanta beleza. Logo um empregado surgiu para abrir. Os carros entraram pela estrada de pedregulhos, circundada por árvores floridas e um grande jardim. Pararam em frente à espaçosa varanda, cheia de portas-balcão, diante da porta principal. Foram recebidos por dois rapazes e uma moça que lhes deram as boas-vindas.
- Isto aqui é lindo demais! Entendo por que a senhora gosta tanto de ficar aqui - comentou Isabel.
- É um lugar maravilhoso! - aduziu Diva.
- Está muito bonito! - completou Gilberto.
- Nivaldo tem muito bom gosto - justificou Glória com prazer -, adora este lugar.
Entraram em uma sala espaçosa, mobiliada com móveis tradicionais e antigos, e foram conduzidos para um salão maior, onde havia uma enorme mesa de jantar, sofás e poltronas muito confortáveis. O que encantou as duas moças foi o grande armário de madeira com portas envidraçadas, onde guardavam as louças da família. Estavam na casa grande da fazenda, que possuía seis suítes, além da sala de almoço, cozinha e despensa. Do lado de fora, havia as casas dos empregados. Tudo era muito bem cuidado e rodeado por jardins. Isabel disse a Gilberto:
- Tudo aqui é tão lindo! É um lugar maravilhoso para descansar, refazer as energias. Não entendo por que você demora tanto tempo para vir.
- Tem razão. Estou tão envolvido com o trabalho que por vezes esqueço desse paraíso.
Depois de percorrer todas as dependências da casa, sentaram-se na sala para esperar o almoço. Minutos depois, Nivaldo entrou para cumprimentá-los. Era um rapaz bonito, alto como o irmão, de rosto vigoroso e queimado pelo sol, cabelos castanhos e ondulados, sorriso franco e alegre. Abraçou todos com alegria, dando as boas-vindas. Não tiveram tempo para conversar porque Josefa avisou que o almoço estava sendo servido. Enquanto almoçavam, Gilberto fazia perguntas ao irmão sobre as novidades que ele implantara na fazenda, e Nivaldo, olhos brilhantes de prazer, falava do trabalho que estava desenvolvendo, dos resultados que estava obtendo. Depois de seu comentário, Glória esclareceu:
- Nivaldo foi convidado para fazer uma palestra, na Sociedade Agropecuária do Estado, para falar das suas experiências. Eles se surpreenderam com os resultados que estamos tendo.
- Que experiências são essas? - indagou Gilberto curioso.
Nivaldo sorriu com certa malícia e seus olhos brilhavam quando respondeu:
- Nada de mais. Coisas simples.
Alberto interveio:
- Acho melhor você não fazer essa palestra. Eles vão rir das suas ideias.
- Você não acredita no que eu digo, mas funciona. O reprodutor, as vacas produzem muito mais. Nunca ficam doentes. As pragas passam longe dos nossos currais, os bezerros são fortes e o leite é de primeira. Quer prova maior?
- Isso é porque você cuida muito da higiene, trata o gado com o que tem de melhor, não tem nada a ver com essas ideias malucas.
- Eu peguei a fazenda em péssimo estado. O principal é que consegui fazer um bom trabalho. Isso é o que importa.
- isso você fez mesmo - concordou Alberto.
Depois do café, Alberto foi tirar uma soneca, Glória ajeitar algumas coisas e os dois irmãos e as moças sentaram-se na varanda para conversar. Gilberto voltou ao assunto:
- Que ideias são essas que papai acha malucas?
Nivaldo olhou o irmão nos olhos, pensou um pouco e respondeu:
- São experiências minhas, observações que fiz que mudaram minha cabeça e me fizeram ver a vida de uma outra forma.
- Explique melhor.
Nivaldo sorriu e tornou:
- Talvez não seja o momento para falarmos sobre isso. Não quero entediar as moças.
- Eu estou muito curiosa - disse Isabel.
- Eu adoro pesquisar. Estou sempre à procura de novos conhecimentos - disse Diva.
- Está bem. Desde que eu era adolescente, eu tinha algumas experiências inusitadas. Quando dormia, eu saía da cama, via meu corpo adormecido e circulava pelo espaço sentindo uma leveza diferente. Ia para lugares onde conversava com pessoas que não conhecia. Nas primeiras duas vezes, contei para mamãe e papai, e eles me disseram que eu não estava bem. Levaram-me ao psiquiatra, que receitou um remédio. No primeiro dia que tomei, me senti muito mal.
Os três ouviam com muito interesse e Nivaldo continuou:
- Passei a não falar mais no assunto, fingi que tomava o remédio e eles pararam de se preocupar. Essas experiências continuaram acontecendo e eu me sentia muito bem.
Nivaldo calou-se e Gilberto perguntou:
- Você ainda tem essas experiências?
- Sim. Hoje são mais espaçadas. Mas esse fato modificou completamente a minha percepção da vida, do mundo, das pessoas e até do universo. Elas me abriram a visão para algo muito maior, mais perfeito, e me fizeram compreender o verdadeiro sentido da vida.
Gilberto, que ouvia com muito interesse, comentou:
- Já ouvi falar dessas experiências fora do corpo. Atualmente, há estudos científicos nesse sentido.
- De fato, hoje sei que muitas pessoas já viveram essa realidade, mas a maioria ainda tem dificuldade para aceitar. Se houvesse menos preconceito, esse conhecimento poderia contribuir com a melhoria da qualidade de vida. Para a medicina, isso seria maravilhoso.
- Não creio - respondeu Gilberto. - A medicina se apoia estritamente nas descobertas comprovadas da ciência oficial. Seria perigoso enveredar por um caminho tão pouco conhecido e tão subjetivo.
- Nem poderia ser de outra forma. Estou me referindo às pessoas. O desenvolvimento do sexto sentido facilitaria os diagnósticos, a prescrição do medicamento adequado. No consultório, você já notou que ao fazer a avaliação das queixas do seu paciente lhe ocorrem ideias inesperadas e fora dos caminhos comuns?
Gilberto pensou um pouco e respondeu:
- Já. Mas isso ocorre pela prática no trato com os doentes. Eu nunca tive experiências como as suas. Sou um sujeito comum e equilibrado.
Nivaldo riu gostosamente e tornou:
- O sexto sentido é uma capacidade do ser humano. Todas as pessoas o possuem. A intuição, a telepatia e a premonição são capacidades do nosso espírito. Se prestar atenção no seu sentir, perceberá que seu sexto sentido age dentro daquilo que é, consegue bons resultados. Já o raciocínio lógico, que parte de conceitos humanos, mesmo os que são oficializados pela ciência, nem sempre dão os resultados esperados.
- É, a medicina ainda não cura tudo, mas trata os casos da maneira mais segura. Mesmo se o que você está dizendo for verdade, não creio que seria seguro utilizar esse recurso.
- Não estou dizendo que se deve abolir a medicina tradicional. Ela é indispensável e o melhor caminho para tratar as doenças. Mas, se eu fosse um paciente, confiaria muito mais em um médico que, apesar de utilizar os recursos tradicionais, fosse intuitivo e me olhasse como um todo, tratando o corpo, a mente e o espírito. Esteja certo de que essa será a medicina do futuro. Mas acho que estamos entediando as moças. Vamos parar por aqui. Se quiser, poderemos falar outra hora.
- Nada disso. Eu estou muito interessada e penso como você - disse Diva. - Outro dia acompanhei minha mãe ao médico. Ele sequer a examinou. Ouviu as queixas, pediu uma lista enorme de exames clínicos. Ela estava nervosa, angustiada, saiu de lá mais preocupada e ansiosa. Fiquei decepcionada.
- Tem razão. Quando a pessoa adoece, fica nervosa mesmo. Eu gosto muito de um médico que mora perto de casa. Sempre que precisamos, ele nos ouve atento, orienta, conforta, chega a ser carinhoso. Estou certa de que você, Gilberto, é um desses - disse Isabel sorrindo.
Gilberto considerou:
- Você está colocando essas suas experiências fora do corpo como causa do sucesso que tem alcançado na fazenda. Não estou entendendo. Como foi isso?
- Olhando a vida de uma forma mais ampla, refletindo sobre os assuntos que eu conversava com as pessoas da outra dimensão, aos poucos fui percebendo a grandeza da vida, o que significa viver, estar aqui aprendendo como as coisas funcionam. Tirei algumas conclusões que tenho posto em prática. Os bons resultados começaram a acontecer, sinalizando que estou no caminho certo. Só isso.
Ao dizer essas palavras, os olhos de Nivaldo brilhavam, sua fisionomia tornou-se expressiva e alegre. Os três olhavam admirados e Diva não se conteve:
- Você está sinalizando uma felicidade que eu gostaria de experimentar. Se eu pudesse, ficaria aqui mais tempo para aprender tudo que você poderia me ensinar.
- Nesse caso, fique. Será um prazer.
Gilberto estava pensativo e curioso. Quis voltar ao assunto:
- Ainda não consigo imaginar o que fez você obter resultados materiais utilizando ideias tão abstratas.
- Aí é que você se engana. É o espírito quem tem a força de dar vida, comandar a matéria. Tanto que, quando ele vai embora, o corpo de carne se desintegra. Não é difícil entender. Todos os seres vivos, em qualquer reino da criação, possuem um princípio espiritual que os mantêm vivos, obedecendo às leis da evolução. Sabendo disso, eu tenho procurado me ligar com o princípio espiritual deles, orientá-los a fazer o melhor.
Gilberto o olhava espantado. Ele jamais havia pensado naquela possibilidade e parecia-lhe algo impossível. Foi Diva quem disse entusiasmada:
- Então é isso! Uma vez eu li um livro sobre as pesquisas de um cientista que fez experiências com as plantas. Ele se aproximava delas, elogiando, oferecendo água e carinho a algumas, e maltratando e machucando as folhas de outras. Com isso, descobriu que elas reagiam demonstrando sensibilidade. Eu adoro plantas e experimentei conversar com elas, mostrar afeto, admirá-las. Elas ficaram lindas, exuberantes, nasceram mais flores. Ele estava certo.
Os olhos de Gilberto iam de Diva ao irmão, admirado. Será que funcionava mesmo?
- As flores que Diva cultiva são lindas, chamam atenção. Ela trata suas plantas como se fossem pessoas queridas. Nunca levei a sério. Pensei que fosse só uma mania. Será verdade mesmo? - perguntou Isabel.
- É verdade. Mesmo tendo a prova, você ainda duvida. É isso que tenho feito na fazenda. Trato nossos animais com carinho. Quando noto que um deles está comendo menos, produzindo menos, dou-lhe atenção especial, estímulo, elogio e digo-lhe o que espero dele. É o que tem funcionado. Ele reage e volta ao normal. Raramente aparece alguma doença diante da qual seja preciso chamar o veterinário.
- Você trata os animais como se fossem pessoas. Agora entendo por que papai pediu para você não ir fazer sua palestra. Seus argumentos são difíceis de acreditar - disse Gilberto sorrindo.
- Acho que você está brincando conosco, aproveitando-se porque somos da cidade e ignoramos a vida no campo.
Os olhos de Nivaldo brilharam maliciosos quando respondeu:
- Estou sendo muito sincero. Vocês queriam saber o que fiz para obter sucesso, eu contei e provei que obtive resultados muito positivos. Vocês duvidam. Sou um pesquisador e gosto das coisas claras: que provas podem me dar de que estou errado?
- Eu acredito no que você diz - disse Diva com firmeza. Isabel pensou um pouco e tornou:
- Não sei o que dizer. Não tenho como dar uma resposta.
- Você é bom de argumento. Sabe que não conhecemos o assunto, está se valendo disso para nos confundir. Claro que não podemos lhe oferecer nenhuma prova em contrário. Nunca tivemos experiências iguais às suas, não temos argumentos nem provas para colocar - respondeu Gilberto.
Os lábios de Nivaldo abriram-se em largo sorriso, seus olhos assemelhavam-se aos de um menino travesso quando respondeu com voz doce:
- Nesse caso, só lhes resta colocar em prática minha tese e verificar a verdade. Coloco a fazenda à disposição. Vocês poderão começar amanhã mesmo.
Apanhados em falta, eles riram divertidos. Glória aproximou-se dizendo:
- A julgar pelas risadas, a conversa deve estar muito boa. A Dete fez um bolo de fubá como só ela sabe fazer. Está quentinho e o café está sendo coado. Vim convidá-los para ir à copa experimentar.
Eles obedeceram. Alberto juntou-se a eles e a conversa generalizou-se. Mais tarde, depois do jantar, com todos reunidos na sala, Gilberto e Isabel anunciaram que pretendiam marcar a data do casamento, da cerimônia e da festa, enfatizando o quanto contavam com a presença da família toda. Isabel falou sobre a mãe, Laura, a irmã, Sônia, e sobre o falecimento do pai. A conversa se estendeu até a hora de dormir. O dia seguinte amanheceu lindo, com um céu azul sem nuvens, e as duas moças levantaram cedo. Quando desceram para o café, os demais já estavam à mesa e Gilberto comentou:
- Vocês levantaram cedo!
- Diva me acordou assim que ouviu um galo cantar. Não sabia que ela era tão interessada na vida rural. Quer circular pela fazenda, conhecer tudo.
- Terei o maior prazer em mostrar - disse Nivaldo.
- Quero ouvir mais sobre suas experiências - emendou Diva, acomodando-se para tomar café. - Acho que você descobriu algo importante!
Alberto admirou-se:
- Você levou a conversa de Nivaldo a sério. Só pode estar brincando!
- Estou cansada de ler e estudar teorias que, na prática, nunca funcionam. Nivaldo, com experiências simples, descobriu coisas que estão dando o resultado esperado. Para mim é o bastante - tornou Diva.
- Você é uma moça de bom senso. Obrigado pelo apoio. Se tiver interesse, depois do café posso mostrar-lhe tudo e podemos trocar ideias sobre o processo.
- Claro que eu quero! Pena que vamos ficar tão pouco tempo.
- Vocês não precisam ir embora tão depressa - disse Alberto sorrindo. - Eu tenho que voltar pra cidade amanhã, mas vocês podem ficar na fazenda ou na cidade o tempo que desejarem.
- Nossos compromissos de trabalho não nos permitem alongar a viagem, mas quando for possível voltaremos - disse Diva.
Alberto quis saber quais eram os compromissos de trabalho das duas. Isabel falou de sua formação e da empresa na qual trabalhava. Diva contou que havia se formado em Biologia. Começara como estagiária, em um laboratório de análises de uma fábrica de ração para animais e, com o tempo, foi efetivada.
- Você vai gostar muito de ver o que temos aqui - disse Glória com entusiasmo.
Depois do café, Nivaldo convidou todos para um passeio pela fazenda. O dia estava ensolarado e eles foram primeiro a um galpão onde havia chapéus de palha. Cada um escolheu o seu e saíram caminhando. As flores, a horta, as árvores frutíferas, tudo viçoso e muito bem cuidado, tornavam o passeio muito agradável. Mas foram os estábulos que provocaram mais entusiasmo nos visitantes. Os peões já tinham soltado o gado, então eles puderam observar os animais comendo no coxo ou pastando e perceber que estavam muito bem. Viram algumas vacas sendo ordenhadas, enquanto alguns bezerros estavam presos nos boxes. Tudo estava muito organizado e limpo. Foram ao galpão onde fabricavam queijo, que era de primeira qualidade e até exportado. Havia também alguns cavalos de montaria, o que despertou nas duas moças a vontade de aprender a cavalgar. Retornaram à casa cansados, mas satisfeitos, e foram se refrescar tomando suco de frutas na copa, comentando o passeio. Alberto pediu licença e foi para o quarto. Estavam ainda conversando quando ele reapareceu bem penteado, perfumado e vestindo um terno de linho bege.
- Vim despedir-me, tenho que voltar. Divirtam-se por aqui. Quando voltarem, vou levá-los a visitar o clube e os lugares mais bonitos da nossa cidade.
Todos se levantaram para despedir-se dele, que saiu apressado. Pouco depois, as duas moças foram para o quarto descansar um pouco antes do jantar. Estenderam-se cada uma em sua cama. Isabel estava calada e Diva comentou:
- O que está achando da família de Gilberto?
- Parecem ser gente boa, mas...
- O que tem?
- Não sei explicar. Sinto que há alguma coisa no ar que eles não querem comentar.
Diva sentou-se na cama:
- Você também notou?
- Notei. Gilberto é mais ligado à mãe, mas muito reservado com o pai.
- Dona Glória trata o marido educadamente, mas só conversa com ele o indispensável. Você percebeu?
- Gilberto me disse que dona Glória fica o tempo todo na fazenda e raramente vai à casa da cidade. Ele é muito reservado quando menciona os familiares.
Diva deitou-se novamente, dizendo:
- Pareceu-me que Nivaldo também não é muito ligado ao pai. Sinto que entre eles há alguma coisa que preferem ocultar.
Foi a vez de Isabel sentar-se na cama:
- Sabe que eu também sinto isso? Mas eles parecem gente boa e eu espero que não seja nada grave.
- Eu também. Vou tentar dormir um pouco. Nós madrugamos hoje.
- Vou fazer o mesmo.
As duas acomodaram-se e dentro de alguns minutos ressonavam tranquilas. Carlos chegou à loja e Yuri, assim que o viu, segurou seu braço dizendo com certa euforia:
- Eu estava esperando você. Sabe que dia é hoje?
- Sei. Faz exatamente um mês que comecei a trabalhar aqui.
Levou-o até sua pequena sala e continuou:
- Meu tio quer conversar com você. Está com algumas ideias. Acho que você vai gostar.
- É? Estou curioso. Vamos falar com ele.
- Agora não dá. Ele está atendendo um cliente importante. Mais tarde.
- Não pode me adiantar de que se trata?
Yuri balançou a cabeça negativamente:
- Meu tio não gosta que eu fale nada antes dele. Não estou informado dos detalhes, mas acho que é positivo.
- Está bem. Vamos à oficina. Quero ver como ficou aquele bracelete que eu desenhei.
- Você fez mistério. Não quis me mostrar o desenho. Se ficar ruim meu tio vai brigar comigo. Ele quer que você seja vendedor, não ourives. Só permitiu que eu o ensinasse quando eu disse que era só para facilitar o seu trabalho.
- Sempre gostei de desenhar, pois me acalma e distrai.
Eles foram à oficina. Sobre o balcão havia várias jóias, algumas prontas, outras em andamento, e dois ourives trabalhando. Aproximaram-se curiosos. Yuri passou os olhos rapidamente sobre elas e logo percebeu um bracelete que não conhecia. Apanhou-o, pegou um examinador, colocou em um olho, fechou o outro e começou a examiná-lo lentamente. Carlos esperava ansioso. Como Yuri continuava calado, não se conteve:
- E então, está muito ruim?
Yuri tirou o examinador sobre o balcão, balançou a cabeça dizendo admirado:
- Está lindo! Original, diferente. Você nunca desenhou jóias?
- Não... claro que não.
- Meu tio precisa ver isso.
- Não mostre a ele. Pode não gostar.
- Pois eu acho que ele vai é lançar no mercado, exatamente igual.
- Será?
- Ele não vai deixar passar. Um bom designer é raro. Eu faço peças tradicionais que nunca saem da moda; vendem, mas não causam impacto.
- Você é meu amigo, está exagerando. Eu não tenho todo esse talento, Acho melhor não mostrar para seu tio. Gosto de vocês, preciso do emprego, tenho planos para colocar nossos produtos no exterior e não quero perder esta chance por uma brincadeira.
- Fazer esse bracelete foi uma brincadeira para você?
- Um pouco. Eu queria mostrar que tenho facilidade para aprender qualquer coisa. Eu queria fazer a experiência sem sua ajuda para ver se tinha aprendido a lição.
- Resta saber se isso não foi um sucesso de estreante. Uma obra do acaso.
- Como assim?
- Para saber se você conhece todo o material, sabe como usá-lo e tirou proveito de tudo que lhe ensinei, precisa fazer outros desenhos, utilizando outros materiais. Acha que pode fazer isso?
- Claro. É fácil. Resta saber se Nicolai não vai achar ruim. Não quero contrariá-lo.
- Não se preocupe. Deixe comigo.
- Está bem. Vou para o meu canto estudar os papéis que seu tio me deu. É sobre legislação aduaneira.
- Pode ir. Assim que ele estiver livre, eu aviso.
Carlos deixou a oficina, Yuri voltou para sua sala com o bracelete em mãos. Sentou-se e começou a calcular o custo e o preço a que precisaria ser vendido. Uma hora depois, chamou Carlos e foram conversar com Nicolai. Ele designou a cadeira em frente à sua mesa para que Carlos se sentasse. Depois disse:
- Chegou o dia de avaliarmos seu desempenho. Posso dizer que aprecio sua pontualidade, sua dedicação ao trabalho. Tem facilidade para aprender e noto que tem progredido muito. Mas para fazer o que você pretende, viajar para vender nossos produtos no exterior, é preciso um pouco mais.
Ele fez ligeira pausa, esperou alguns segundos e, vendo que Carlos continuava em silêncio, continuou:
- Acho que é apenas questão de tempo. Desejo propor-lhe que continue estudando aqui, na parte da manhã, e que durante a tarde saia com Yuri para visitar algumas joalherias que vendem nosso material e ver como se sai com os clientes. O que acha?
- É um bom começo, estou disposto a fazer o meu melhor. Mas para isso vamos precisar reajustar meu salário. Preciso cuidar melhor da minha aparência.
Nicolai cofiou a barba pensativo, depois respondeu:
- Yuri só vai apresentá-lo aos clientes. Depois, você vai tentar aumentar a venda e, sobre o que conseguir a mais, pagaremos uma comissão de dois por cento.
- Parece pouco - tornou Carlos.
- Mas não é - justificou Nicolai. - Jóias custam caro e, se trabalhar bem, poderá ter uma boa comissão. Dessa forma, você vai praticando e, quando eu achar que está indo bem, viajará por outros estados do país e, daí para frente, para o exterior, como deseja.
- Gostei do seu plano. Acho que é sensato e sei que vou realizar tudo isso em pouco tempo.
- Vamos ver. Yuri vai acertar o que resta do seu salário. Amanhã à tarde você pode começar a sair com ele, que vai programar tudo.
Carlos deixou a sala de Nicolai satisfeito. As coisas estavam saindo conforme seus desejos. Não duvidava que teria sucesso. No fim do expediente, Yuri lhe entregou o restante do salário. Ao despedir-se, disse desafiador:
- Você disse que é simples desenhar jóias. Eu não acho. Mas é bom que você experimente um pouco mais, crie outras peças. Isso vai ajudar você a observar os detalhes significativos de cada uma e tornar-se convincente diante dos clientes.
Carlos riu e respondeu:
- Para mim é fácil. Desenhar é um prazer.
Carlos despediu-se e saiu. Seus projetos estavam encaminhados e ele acreditava que conseguiria o que pretendia, mas não seria tão depressa como gostaria. Sentiu um aperto no peito ao pensar em Isabel. Ela estava noiva de outro. E se ela se casasse antes de ele ter conseguido subir na vida? Uma onda de raiva brotou em seu peito e deixou-o nervoso. A vontade que sentia era de ir até ela, gritar-lhe todo seu sofrimento, exigir que ela acabasse logo com aquele noivado e voltasse para ele. Controlou o impulso com dificuldade. Não queria que fosse dessa forma. Sonhava que ela valorizasse seus sentimentos, reconhecesse o quanto a amava. As lembranças do namoro, dos beijos e das juras que tinham trocado povoaram sua mente, aumentando sua angústia. Chegou em casa nervoso, ouviu os familiares conversando na copa e subiu para o quarto. Queria ficar sozinho. Não estava disposto para conversar. Fechou-se no quarto, tirou os sapatos e estirou-se na cama, pensativo. Não queria dar vazão à raiva. Precisaria agir com inteligência se quisesse vencer. Mas os pensamentos tumultuados continuavam e foi preciso muito esforço para mudar o enfoque. Começou a imaginar como abordaria os clientes, o que diria, os lucros que teria nas vendas, como cuidaria do seu dinheiro. Dessa forma, aos poucos, dominou a tensão. Na cabeça dele, já estava ganhando muito dinheiro, tendo seu próprio negócio, com sucesso. Aos poucos foi relaxando, até que, cansado, adormeceu. Mas a calma desfez-se em seguida. Sonhou que estava novamente no campo de batalha, debruçado sobre o corpo de Adriano, desesperado. Alguém tocou em seu ombro, ele voltou-se assustado e viu Adriano, em pé, fixando-o aflito.
- Adriano, não pode ser! Você está morto! Veja aqui seu corpo...
Carlos apontou para o chão e, ao voltar-se, percebeu que a paisagem havia se modificado. Não estavam mais na trincheira, nem se ouviam os tiros das metralhadoras. Voltou-se novamente. Adriano continuava lá, em pé, encostado em uma árvore. Vestia uma roupa comum, seu rosto estava abatido e mal se sustentava em pé. Carlos ficou mudo e pensou:
- É apenas um sonho. Adriano está morto!
- Não, Carlos. Eu estou vivo! Preciso de sua ajuda!
- Não pode ser! Eu vi quando você morreu naquele inferno. Você me pediu para procurar Anete. Nunca pude encontrá-la para dar seu recado.
- Você precisa tentar. É importante. Ela precisa de mim e eu não posso fazer nada. Estou muito fraco, não tenho forças para sair daqui. Você é meu amigo, pode me ajudar! Não me abandone! Preciso de ajuda... por favor...
Aos poucos a figura de Adriano foi desaparecendo e Carlos acordou ouvindo as batidas na porta do quarto. Ainda semiconsciente, ele gritou:
- Já vou.
As batidas continuaram e ele pulou da cama, sem saber bem onde estava. A sensação melhorou e ele conseguiu dizer:
- Um momento, já vou abrir. O que aconteceu?
- Mamãe serviu o jantar e mandou chamar você.
A voz de Inês o trouxe de volta à realidade. Respondeu:
- Já vou descer.
Enquanto lavava o rosto e se preparava para descer, Carlos pensava em Adriano. Esse foi um pesadelo diferente. Preciso esquecer tudo que passei, encontrar a paz. Será que algum dia vou conseguir? Quando chegou à copa, a família já estava começando a jantar. Albertina fixou-o e disse:
- Não vi você chegar. Pensei que não estivesse em casa.
- Cheguei no mesmo horário de sempre.
- Você está com uma cara... - comentou Inês. - Aconteceu alguma coisa?
Carlos sentou-se, serviu-se e respondeu:
- Não. Está tudo bem.
Começou a comer em silêncio. Inês continuou:
- Hoje venceu o seu mês de experiência na loja.
Carlos concordou com a cabeça, mas continuou comendo calado. Antônio interveio:
- Pela sua cara, vai ver que foi despedido.
Os olhos de Carlos brilharam satisfeitos quando disse:
- Pelo contrário. Fui promovido. Amanhã cedo começarei uma nova atividade. Vou visitar os clientes e começar a vender os produtos.
Antônio fixou-o admirado:
- Espero que desta vez você tenha sido mais esperto e conseguido um bom aumento de salário.
- Consegui o suficiente. Não se preocupe comigo, pai. Sei o que estou fazendo.
Antônio meneou a cabeça enquanto dizia:
- Espero mesmo. Você não tem experiência, mas pensa que sabe tudo. Não ouve ninguém.
Carlos colocou o garfo no prato, fixou o pai e respondeu:
- Ouço sim, e respeito seus conselhos, mas nem sempre concordo. Quero fazer do meu jeito. É que eu prefiro errar pela minha própria cabeça. Já sei que assim aprendo mais depressa. Até agora, tudo tem dado certo, mas se não tivesse dado, eu teria coragem de assumir meus erros e começar de novo até chegar onde eu quero. Fique tranquilo, pai.
Antônio ia falar, abriu a boca, mas fechou-a de novo, voltou a atenção ao seu prato e continuou comendo em silêncio. Depois do jantar, Carlos foi novamente para o quarto. Antônio foi ler seu jornal e as duas mulheres foram arrumar a cozinha. Inês comentou:
- Acho que Carlos mentiu para não dar o braço a torcer. Pela cara dele vi que não estava bem.
- Você está enganada. Ele disse a verdade. Eu entendo, quer ser auto-suficiente, fazer tudo sozinho. Ele sempre foi assim. Quando queria aprender alguma coisa, era determinado, não queria ajuda de ninguém.
- Não sei, não. A vida não é tão fácil como ele diz. Se é difícil para quem estudou, se formou e tem uma profissão, imagine como deve ser para quem não tem nada disso. Carlos está sonhando muito. Imagine que ele acha que vai ficar rico! Quanto mais alta é a escada, maior o tombo! Nós ainda vamos ver isso.
- Não fale assim, Inês. Parece até que você está desejando isso! Pois eu acredito nele. É inteligente, se esforça, tem garra. Por que não?
Inês deu um risinho irônico e respondeu:
- Mãe é mãe, não é mesmo? Você gostaria que fosse assim e está sonhando também.
Albertina não respondeu. Ela não gostava quando Inês usava aquele tom de deboche. Às vezes ela ficava irritante, negativa, crítica, e isso incomodava Albertina, que tinha outro temperamento e gostaria que a filha fosse diferente. No quarto, Carlos, depois de planejar como deveria ser sua postura no trabalho e o que faria para vender bastante, preparou-se para dormir. Queria descansar para acordar bem-disposto no dia seguinte. Estendeu-se na cama, fechou os olhos, mas receou ter aquele pesadelo que tanto o incomodava. Lembrou-se do sonho, reviu a figura de Adriano fraco, abatido, encostado na árvore. Embora Adriano continuasse insistindo no mesmo assunto, aquele sonho não fora igual aos outros. De onde ele tirara aquela visão, se aquilo nunca havia acontecido? De alguma forma ele havia criado aquela cena, fantasiado. Mas por quê? O que ele mais desejava era esquecer a guerra, a dor de ver o amigo morrer sem poder fazer nada para ajudá-lo. Por que isso não acontecia? Quando partiu para a guerra, Albertina, uma pessoa de fé, deu-lhe para proteção uma medalha de Maria e o fez prometer que rezaria todos os dias. Ele não tinha a mesma fé da mãe, mas, no início, fazia uma oração todas as noites antes de dormir conforme havia prometido. Mas seu choque com a dura realidade de uma guerra sangrenta o fez questionar um Deus que permitia tantas maldades e tantos sofrimentos. Em momentos difíceis, muitos companheiros oravam sem que fossem poupados e, por isso, Carlos deixou de rezar e de acreditar em Deus. Sem fé, ele passou a achar que sua vida dependia apenas dele mesmo, que precisava ser forte, cuidar de si e defender-se das maldades dos homens. Diante dos perigos que precisou enfrentar, mesmo depois de a guerra ter terminado, essa crença ajudou-o a ser forte, cuidar de sua segurança e desenvolver a própria força. Ele acreditava que a morte era o fim de tudo. Não podia imaginar que o espírito do amigo morto continuasse vivo no outro mundo e muito menos que o visitasse durante o sono. Mas a verdade era diferente. O espírito de Adriano, após a morte do corpo, havia sido socorrido por espíritos amigos e levado a um posto de atendimento no astral, onde recolhiam os egressos e cuidavam de sua recuperação. Assim que se recuperou um pouco e soube que havia morrido, Adriano pensou em Anete e se desesperou. Queria sair para procurá-la. Não obteve permissão. Inconformado, passou a procurar um meio de fugir. Tanto fez que conseguiu sair do posto. Assim que deixou o local, sentiu-se fraco, e as feridas do seu corpo, que já haviam cicatrizado, começaram a sangrar de novo. Mas, apesar do mal-estar, ele não desistiu. Não sabia onde estava nem como poderia encontrar Anete. Lembrou-se de Carlos, com quem tinha muita afinidade. Pensou nele e logo se viu em um quarto com o amigo que estava sentado na cama pensativo. Satisfeito, aproximou-se. Tentou conversar com ele, mas não obteve resposta. Notou que ele estava nervoso, revoltado. Insistiu, mas não conseguiu fazer com que Carlos percebesse sua presença. Sem saber o que fazer, Adriano sentou-se na cama ao lado dele. Nesse momento, viu um homem entrar e aproximar-se dele, dizendo:
- Você não pode ficar aqui.
- Quem é você? - perguntou.
- Um amigo. Vim buscá-lo. Você está doente e precisa de tratamento.
- Eu não vou. Quero falar com Carlos. Só ele pode me ajudar.
- É inútil. Carlos não consegue vê-lo.
- Ele tem que me ouvir.
- É melhor vir comigo. Eu sei que você quer encontrar uma pessoa e posso ajudá-lo.
Adriano levantou-se interessado:
- Você sabe onde Anete está?
- Ainda não. Se me der os dados dela, poderemos descobrir, mas terá que vir comigo.
- Você está me enganando. Quer me prender de novo.
- Não é verdade. Sou amigo de Carlos. Soube que ele voltou para casa e vim visitá-lo. Ele tem estado muito nervoso. As coisas mudaram, não saíram como ele esperava. Sua presença pode deixá-lo ainda pior.
- Sou amigo dele. Não vou prejudicá-lo.
- É que você não está bem. Ele vai sentir suas energias, lembrar-se do que aconteceu a você e sofrer. Eu sei como você morreu. Ele sofre muito por não ter conseguido fazer nada para ajudá-lo.
- Mas é por isso que estou aqui. Ele tem que procurar Anete por mim.
- Eu quero ajudá-lo. Meu nome é Orlando, e faz dez anos que deixei a Terra. Desde então, moro em uma comunidade não muito distante. Trata-se de uma cidade muito boa e organizada. Se você for até lá comigo, poderemos descobrir onde Anete se encontra e conseguir ajuda para que você a visite pessoalmente.
Adriano ficou pensativo durante alguns minutos. Depois perguntou:
- Não está me enganando? Pode mesmo me levar até onde ela está?
- Sim. Mas vamos precisar da ajuda de alguns amigos meus que moram lá. São pessoas muito boas e prontas a ajudar.
- Tenho medo. Eu estava em um hospital para tratamento, mas eles não me deixavam sair. Não quero ir para um lugar igual.
- Vou ser bem franco com você. É muito perigoso andar pelo astral sem proteção. Se você cair na mão dos renegados, poderá tornar-se escravo deles. Além de não cuidarem de sua saúde, terá que trabalhar para eles.
- Existe isso?
- Sim. E você não tem medo?
- Eu tenho recursos para ludibriá-los. Aprendi como escapar e, além disso, estou protegido pelos mestres da minha comunidade. No estado em que você está, será presa fácil desses grupos. Se vier comigo, estará seguro. Lá, você poderá aprender a se defender e, então, sim, poderá viajar sem correr nenhum risco.
- Eu preciso muito falar com Carlos. Você poderia também conseguir isso?
- Ele está muito agoniado com o que você passou. Acho mesmo que seria muito bom se vocês se encontrassem.
- Como pode ser isso?
- Durante o sono. Vamos ver o que posso fazer. O que eu mais quero é que Carlos se recupere e seja feliz.
- Nesse caso, eu vou com você.
Orlando segurou no braço de Adriano e os dois foram se elevando, até que deixaram o quarto. Carlos, envolvido em seus projetos, acomodou-se para dormir e esqueceu completamente o medo que sentia de ter o pesadelo novamente. A tarde estava findando e o sol estava prestes a esconder-se no horizonte. Isabel e Gilberto, sentados na varanda da casa grande de mãos dadas, olhavam a paisagem bonita ao lado de Glória e faziam planos para o futuro. O tempo passara depressa. Na manhã seguinte, voltariam à cidade.
- Pena vocês terem de ir embora - comentou Glória. - Há muito tempo não passava dias tão felizes.
- Eu também - disse Gilberto sorrindo. - Se eu pudesse, ficaria um pouco mais.
- Este lugar é mágico e a companhia de vocês é especial. Gostaria muito que mamãe estivesse aqui. Ela teria adorado! - disse Isabel.
- Da próxima vez a traremos conosco. Estou certo de que você gostará muito de conhecê-la. Dona Laura é uma mulher maravilhosa.
- Estou certa que sim.
- A senhora pode ir passar alguns dias conosco em São Paulo - sugeriu Isabel.
Glória baixou os olhos e Isabel notou certo ar de tristeza. Depois ela sorriu e respondeu:
- Talvez eu vá mesmo. Faz tempo que não vou ao apartamento que temos lá. Gosto da fazenda e me envolvo demais.
Ouviram algumas risadas e viram Diva e Nivaldo chegando. Desde o primeiro dia, Diva se interessara muito pelo laboratório, e, nos dias que se seguiram, ela levantava cedo e acompanhava Nivaldo até lá, fazendo pesquisas e voltando para casa apenas para almoçar. A vida de Diva ganhara cores, e ela estava alegre e bem-disposta. Vendo-os chegar, Glória não se conteve:
- Como você está bonita! A vida do campo lhe fez bem!
Diva sentou-se ao lado dela e respondeu:
- É verdade! Adorei este lugar. Nunca pensei que fosse gostar tanto.
- Ela tem alma de fazendeira! - tornou Nivaldo. - Além disso, é boa pesquisadora. Tem me ajudado muito nas pesquisas.
- Pena que temos de ir embora amanhã. Gostaria de poder ficar um pouco mais.
- Então fique. Vocês trouxeram alegria. Estou triste só de pensar que irão embora domingo - reclamou Glória.
- Infelizmente, não posso - respondeu Diva. - Mas voltarei sempre que me convidarem.
- Aqui está tão bom que eu preferia ficar e ir à cidade só na hora de viajar para São Paulo. Mas papai ligou, quer levar vocês ao clube, apresentar aos amigos.
- Ele está sendo gentil, é melhor irmos - disse Isabel.
- Também vou. Quero usufruir ao máximo a companhia de vocês - informou Glória.
Foi a vez de Nivaldo dizer:
- Eu também. O Roque cuidará de tudo enquanto eu estiver fora.
Glória levantou-se:
- Vou à cozinha ver o jantar. Já deve estar pronto.
- Nesse caso, vou tomar um banho rápido - disse Diva.
Nivaldo acrescentou:
- Eu vou fazer o mesmo.
- Vocês têm dez minutos.
Os dois saíram rapidamente. Glória foi para a cozinha. Gilberto comentou:
- Você notou como Nivaldo e Diva estão se dando bem?
- É verdade. Passam o tempo todo juntos, rindo, brincando. Nunca vi Diva tão bem-disposta.
- Estou admirado. Na verdade, saí de casa muito cedo, nunca convivi muito com Nivaldo. Mas ele me parecia tímido, calado, falava pouco. Estava enganado. Ele é bem-humorado, sensato, inteligente, tem ideias próprias.
- Ele é especial. Tem sensibilidade, carisma, e além disso é um líder nato. Você viu como ele trata os peões? Sabe ser enérgico, respeita todos e é adorado por eles.
- E já conquistou você!
- Ele e sua mãe me conquistaram. Não é difícil gostar deles.
Depois do jantar, todos se sentaram na varanda para conversar. A noite estava fresca e agradável, e um pé de dama-da-noite exalava delicioso perfume. Diva aspirou com prazer, dizendo:
- Nunca vou esquecer os dias que passamos aqui.
E Nivaldo completou:
- Nós também não. A presença de vocês me trouxe alegria. Gosto de estar aqui, adoro meu trabalho e não me sinto só, mesmo quando mamãe não está. Mas quando vocês forem embora, sentirei saudades. Seria muito bom se vocês viessem morar mais perto.
- Por que vocês não vêm morar aqui quando se casarem? - perguntou Glória.
- Nunca pensei nisso. Você sabe, tenho uma carreira lá, compromissos. Também não sei se Isabel gostaria. É apegada à família.
- É verdade. Eu não teria coragem de separar-me de mamãe e de minha irmã. Depois que meu pai morreu, ficamos mais unidas. Mas adorei esses dias com vocês e estou certa de que viremos sempre que tivermos alguns dias.
- Serão bem-vindas em qualquer tempo - tornou Nivaldo.
Diva sorriu e olhou para ele, dizendo:
- Você é um ótimo professor e tem muito a ensinar. Tenho muita vontade de continuar as pesquisas que fizemos juntos. Você me fez ver a vida de uma forma diferente, abriu portas que eu nunca havia pensado, eu quero mais. Sinto por ter de parar e vou ficar esperando que me convidem novamente.
Glória segurou a mão dela dizendo:
- Você não precisa de convite. Venha sempre que puder. Ficaremos felizes em recebê-la.
Diva sorriu ao responder:
- Não fale assim, dona Glória, que eu posso aceitar.
- Venha mesmo. Espero que não se esqueça de nós.
Conversaram um pouco mais, até que Gilberto propôs:
- Vamos dar uma volta! A noite está tão bonita e perfumada!
Isabel levantou-se:
- Vamos sim. Na cidade não temos noites como esta.
- Boa ideia - concordou Diva.
- Ótima! - disse Nivaldo. - Você nos acompanha, mamãe?
- Não, filho. Vão vocês. Já vou me deitar. Amanhã quero levantar bem cedo.
Isabel e Gilberto, de mãos dadas, foram caminhando na frente, e os outros dois os seguiram conversando com alegria. Depois de mais de uma hora, recolheram-se para dormir. No quarto, as duas moças trocaram ideias sobre a viagem, lamentando a partida.
- Adorei a família de Gilberto.
- Mas o pai, não sei, pareceu-me um tanto distante. É como se ele não pertencesse à mesma família. Você não notou?
- De fato. Ele é diferente dos demais. Mas nos recebeu bem, tem sido atencioso, educado.
- Isso é. Mas notei que ele conversa com Glória apenas o essencial. Ficam distantes. Nivaldo contou que a mãe fica aqui o tempo todo e o pai raramente vem. Havia mais de quatro meses que eles não se viam. Glória raramente toca no nome do marido e Nivaldo também.
- Gilberto faz o mesmo. Houve tempo em que suspeitei que houvesse algum problema com a família dele.
- Pode ser apenas uma questão de afinidade. Apesar disso eles convivem de forma civilizada. Se não fosse pela tristeza de Dona Glória, eu até acharia normal.
- Você também sentiu isso?
- Sim. Às vezes a expressão do rosto dela muda, os olhos ficam tristes, mas ela disfarça e logo se refaz.
- Eu pensei que fosse impressão minha. Mas se você também notou, deve ser verdade. Tudo parece estar bem, mas pode haver alguma coisa a infelicitando.
- Ela tem a filha que mora no Rio, pode estar preocupada com ela.
- Não creio. Ela fala dela com muito orgulho, elogia. Para mim, só pode ser algum desentendimento com o marido.
- É o mais provável, mas estamos fazendo suposições. O tempo dirá. Vamos dormir que é tarde.
- Durma bem, Diva.
- Você também.
As duas se acomodaram melhor e, dentro de poucos minutos, adormeceram. Na manhã seguinte, passava das dez quando eles voltaram para o casarão de Pouso Alegre. O dia estava lindo e o sol já estava forte, prenunciando que o sábado seria quente. Chegaram à cidade quase na hora do almoço. Alberto os esperava sorridente. Os viajantes, depois de terem lanchado na sala onde Dete colocara jarras com refrescos e alguns salgadinhos, foram para o quarto descansar um pouco até o almoço. Mais tarde, durante o almoço, Alberto pretendia levá-los para conhecer alguns lugares pitorescos da cidade, mas as duas moças preferiam sair mais tarde, quando o sol estivesse menos forte. Eram quase cinco da tarde quando saíram. Isabel e Glória foram com Gilberto, e Nivaldo e Diva com Alberto. Depois de visitarem alguns lugares e serem apresentadas a alguns amigos de Alberto, foram ao clube, onde a diretora social os esperava. Era uma mulher alta, loura, aparentando um pouco mais de quarenta anos, muito elegante, que os recebeu com certa cerimônia. O rosto de Alberto se modificou. Seus olhos brilhavam de prazer quando apresentou as duas moças:
- Isabel, noiva do Gilberto, e Diva, sua prima.
Ela estendeu a mão, dizendo:
- Muito prazer. Sejam bem-vindas.
Depois virou-se para Glória, dizendo:
- Como vai, dona Glória? Faz tempo que não nos vemos.
Glória cerrou os lábios e demorou um pouco para responder. Fingiu não ver a mão que ela estendia e disse:
- Vou muito bem, obrigada.
Nivaldo segurou o braço da mãe, dizendo com voz calma:
- Venha, mãe, quero mostrar-lhe o salão que foi reformado.
O rosto de Alberto enrubesceu e, antes que ele dissesse alguma coisa, Gilberto tornou:
- Eu conhecia outra diretora. A senhora é nova na cidade?
- Não. Vim para cá ainda pequena e sou diretora do clube há cinco anos. Meu nome é Alda. Você é filho do senhor Alberto?
- Sim - segurando o braço de Isabel, continuou: - Venha, Isabel, quero mostrar-lhe a sala de jogos.
Eles se afastaram e Alberto aproximou-se de Alda, dizendo baixinho:
- Você não precisava ter vindo.
- Eu queria ver o rosto de Glória quando me visse.
Alberto afastou-se rápido e alcançou os dois. Enquanto caminhavam, sorriam para alguns amigos que encontraram pelo caminho. Na lanchonete, sentados em uma mesa tomando um refrigerante, estavam Glória, Nivaldo e Diva. Os três aproximaram-se. Nivaldo levantou-se:
- Sentem-se - disse ele colocando mais cadeiras ao redor da mesa. - Querem tomar alguma coisa?
Glória estava pálida e havia certo mal-estar no ar. Gilberto disse:
- Está muito quente. Mamãe não parece bem. Acho melhor irmos embora.
Alberto exclamou:
- Vocês mal chegaram! Marquei com alguns amigos que desejo lhes apresentar. Devem estar chegando!
- Gilberto tem razão. O bem-estar de mamãe está em primeiro lugar. É melhor irmos embora - disse Nivaldo.
Alberto olhou para as duas moças e disse sorrindo:
- Ela vai embora descansar, mas vocês podem ficar.
- Desculpe, mas nós vamos embora com dona Glória - disse Diva. - O senhor certamente encontrará uma boa justificativa para que seus amigos nos desculpem - completou Isabel levantando-se.
As duas se colocaram uma de cada lado de Glória, que se levantou em seguida.
- Vamos, dona Glória - disse Isabel. - A senhora precisa descansar.
As três saíram sem dar tempo para que Alberto dissesse mais alguma coisa, e os dois irmãos as acompanharam. Alberto foi atrás deles, que se apertaram para ir em um carro só. Aproximou-se de Gilberto, que estava à direção, dizendo:
- Sua mãe não gosta de sair de casa. Eu vou ficar para receber meus amigos conforme o combinado.
Gilberto não respondeu. Ligou o carro e saíram. Viajaram em silêncio e, chegando em casa, as duas moças acompanharam Glória até o quarto.
- Sente-se melhor? - indagou Isabel.
- Sim. Vai passar. Vou descansar um pouco, logo estarei bem.
- Está muito quente - tornou Diva. - Vou buscar um refresco.
- Obrigada, não é preciso.
Glória estendeu-se na cama e, vendo que as duas moças se sentaram do lado, disse sorrindo:
- Podem ir descansar. Eu estou bem.
Olhando o rosto pálido de Glória, as duas não queriam se afastar, mas ela insistiu:
- Deixem-me sozinha, por favor. Vou ficar bem.
Elas hesitaram um pouco, mas depois saíram e foram ter com os dois rapazes que conversavam na copa. Ao se aproximarem, ouviram Gilberto dizer:
- É o cúmulo! Ele está exagerando.
- Por que você acha que ficamos o tempo todo na fazenda? Não dá mais para convivermos.
As duas entraram e eles se calaram. Isabel não se conteve:
- Desculpe, Gilberto, mas ouvimos o que vocês disseram.
- Dona Glória ainda não está bem, mas não nos deixou ficar no quarto - tornou Diva.
As duas sentaram-se ao lado deles e Gilberto disse:
- Lamento que vocês tenham presenciado essa cena tão desagradável. Pensei que papai tivesse mudado, mas parece que está pior. Você vai entrar para a família, precisa saber a verdade.
- Não precisa dizer nada - respondeu Isabel. - Vamos esquecer o que aconteceu.
- Não adianta tapar o sol com a peneira. Vocês devem ter percebido a verdade. Há mais de dez anos papai tem um caso com essa mulher. A cidade inteira sabe. Antes ele era mais discreto, mas ultimamente ficou pior. Ela não era nada, agora é diretora do clube mais tradicional da cidade. Como foi isso? - perguntou Gilberto.
- Foi o deputado Rossi quem a colocou no cargo a pedido de papai.
Diva comentou:
- Por que dona Glória suporta tudo isso calada? Se fosse comigo já teria virado a mesa.
- Desde que descobriu tudo, mamãe rompeu com ele. Estão separados.
- Por que vocês não se mudam para o apartamento em São Paulo? Lá ela estaria longe dessa humilhação e ficaria melhor - sugeriu Gilberto.
- Ela acha que quem deve se mudar é a outra. Não quer ir embora e deixar o lugar livre para essa mulher - esclareceu Nivaldo.
Diva balançou a cabeça negativamente enquanto dizia:
- Essa atitude pode custar caro. Hoje ela ficou tão mal que pensei que fosse desmaiar.
- Esse é o meu receio. Vou tentar convencê-la a ir embora conosco.
- Ela não quer me deixar sozinho na fazenda - completou Nivaldo.
- Você não pensou na possibilidade de ir também?
- Já. Mas não é tão simples assim. A fazenda estava abandonada. Eu assumi, tenho me dedicado e consegui levantá-la. Ir embora depois de tudo seria condená-la a perecer. Papai não tem nenhum interesse em mantê-la. Só tem interesses com políticos, sonha conquistar um cargo público de relevância.
Eles ficaram silenciosos por alguns instantes, depois Gilberto disse:
- Apesar disso, ainda acho que vocês dois deveriam resolver os negócios aqui e ir morar em São Paulo. Se mamãe continuar aqui, vai acabar perdendo a saúde.
Nivaldo suspirou triste e respondeu:
- Esse é o meu maior medo.
- Amanhã iremos embora. Vou ver se consigo convencê-la a ir passar alguns dias conosco. Enquanto isso, pense em um jeito de se mudar definitivamente para o apartamento em São Paulo. Lá estaremos juntos e mamãe poderá esquecer um pouco essa triste história.
Nivaldo ficou pensativo por alguns instantes, depois disse:
- Você ainda não sabe do pior. Papai tem um filho com essa mulher e vive circulando com ele pela cidade.
Gilberto levantou-se nervoso:
- Esse é mais um motivo para que vocês deixem esta cidade. Vou falar com mamãe agora mesmo e convencê-la a viajar conosco amanhã.
- Ela não vai querer ir.
Diva interveio:
- Imagino como ela se sente. Ir embora significa abandonar o barco, deixar tudo para essas pessoas de quem ela não gosta.
- É verdade. Mas no momento ela precisa é cuidar de si mesma, do seu bem-estar. Não adianta tentar manter uma situação que a está deprimindo, que não tem mais volta e que a cada dia fica pior. Eles escolheram esse caminho, mas ela pode sair, se libertar, ter uma vida melhor.
- É o que eu penso. Vou falar com ela.
Gilberto foi até o quarto, bateu levemente na porta e entrou. Ao aproximar-se de Glória, notou que estava chorando. Vendo-o, ela voltou o rosto, tentando dissimular. Ele sentou-se ao lado da cama e segurou a mão dela, dizendo:
- Mãe, você não precisa suportar mais isso. Amanhã cedo você vai comigo para São Paulo.
- Não quero sair daqui agora. Não se preocupe. Logo estarei bem.
- Não creio. Por que nunca me contou o que estava acontecendo? Papai parece que perdeu o juízo.
- Não tinha o direito de preocupá-lo com nossos problemas. Faz anos que estamos separados.
- Nesse caso, não há motivo para continuar vivendo aqui. Amanhã você vai conosco.
- Não posso, não é justo. Quando nos casamos, não tínhamos nada. Eu trabalhei muito, ajudei a construir nosso patrimônio e não quero abandoná-lo agora. Depois, não seria justo com Nivaldo. Ele transformou a fazenda e um lucrativo negócio. Ama o que faz. Não posso prejudicá-lo.
- Não creio que ele esteja feliz em uma situação dessas. Se quiserem continuar com esse trabalho, podem comprar terras em outro lugar. Você está vivendo pela metade. Cuide de você. Recupere sua auto-estima e a alegria de viver.
- Minha vida acabou. Não tenho ânimo para fazer nada. Vou seguindo meu caminho como Deus quer.
Gilberto alisou o rosto dela com carinho, dizendo:
- Mãe, reaja. Você está se condenando à infelicidade, enquanto ele mergulha cada dia mais na ilusão.
- Estou esperando a hora em que essa ilusão vai acabar. Quero estar perto para ver.
- Você está se punindo com isso. Vamos embora. Deixe-o definitivamente.
- Não quero. Eu sou a dona desta casa, metade dos nossos bens me pertence por direito. Não vou deixar tudo de mão beijada para ele.
- Procuraremos um bom advogado, faremos o desquite e dividiremos todos os bens conforme a lei. Assim, você estará livre para seguir sua vida, fazer o que quiser.
- Não tenho coragem para uma atitude dessas. Uma mulher desquitada fica marcada e malvista. Não quero que vocês se tornem filhos de uma desquitada.
Gilberto ficou pensativo durante alguns segundos, depois disse:
- Está certo, mãe. Não vou insistir. Mas amanhã você vai conosco para São Paulo, pelo menos para ficar alguns dias, refazer suas energias. Quando estiver bem, posso trazê-la de volta.
- Passar alguns dias fora talvez seja bom. Não ter que olhar para a cara de seu pai é um alívio.
- Isso mesmo, mãe. Vai lhe fazer muito bem.
- Tenho vivido só na fazenda, não tenho comprado roupas. Acho que não estou preparada para ir com vocês.
Gilberto sorriu:
- Não precisa levar nada. Isabel e Diva vão adorar levá-la às compras assim que chegarmos.
- Elas são adoráveis.
- São mesmo. Agora, vamos descer para combinar a nossa viagem.
- Vá você. Não vou aparecer com essa cara chorosa. Vou lavar o rosto, me arrumar um pouco e descer em seguida.
Gilberto levantou-se satisfeito, deu-lhe um sonoro beijo na face e foi ao encontro dos demais, que o esperavam ansiosos. Passava das oito quando eles iniciaram a viagem de volta para São Paulo. Gilberto queria que Nivaldo os acompanhasse, mas ele alegou que havia algumas pesquisas em andamento no laboratório que seriam prejudicadas com seu afastamento. Porém, prometeu passar alguns dias com eles assim que as concluísse. Alberto não apareceu na hora do café e ninguém o tinha visto desde a véspera. Não o mencionaram, nem deixaram nenhum recado de despedida. Durante a viagem, Diva, sentada ao lado de Glória no banco de trás, conversava animada, contando-lhe as novidades da cidade grande, com suas lojas de departamentos e os filmes de sucesso em cartaz nos luxuosos cinemas. De vez em quando, Isabel e Gilberto intervinham para comentar alguns detalhes, prometendo levar Glória para conhecer todas aquelas coisas. Chegaram a São Paulo quase na hora do almoço e Gilberto sugeriu:
- Vamos almoçar em um restaurante. Conheço um lugar ótimo.
- Pensei que fôssemos direto à minha casa.
- Sim, Isabel, mas sei como é sua mãe. É melhor não darmos trabalho a ela. Vamos almoçar primeiro.
- Ela gostaria muito de preparar esse almoço.
- Sei disso. Marcaremos um outro dia, é mais próprio.
Todos concordaram. Depois do almoço, foram à casa de Isabel. Laura os recebeu com alegria. Abraçou Glória com carinho. Sônia juntou-se a eles e divertiu-se com a euforia das duas moças, que falavam de Nivaldo e da fazenda com entusiasmo, lamentando-se:
- Se eu soubesse que seria assim, teria pedido para ir.
Depois de meia hora de conversa agradável, Gilberto e Glória se despediram. Ele prometeu acomodar a mãe e voltar à noite. O apartamento de Glória na Avenida Angélica era espaçoso e bonito. Na portaria, conversaram com o zelador e foram informados de que a faxineira contratada para a conservação do apartamento não aparecia havia mais de um mês. Eles subiram e, ao entrar, sentindo o ar abafado e desagradável, abriram todas as janelas. Os móveis, embora cobertos, estavam empoeirados.
- Acho melhor você ficar no meu apartamento. Eu deveria vir aqui de vez em quando para controlar a faxineira. Não dá para ficar aqui assim.
- Nada disso. Você não tem culpa de nada. Eu é que fui omissa. Vou dar um jeito nisso. Farei uma lista e você vai sair e comprar tudo. Enquanto isso, vou passar o aspirador de pó aqui.
- Não concordo. Você não veio aqui para trabalhar. Meu apartamento tem dois quartos. Você pode ficar comigo. Amanhã conseguirei uma pessoa para vir deixar tudo em ordem.
A campainha soou e Glória foi abrir. Era o zelador com a esposa, que disse sorrindo:
- Que bom que a senhora veio, dona Glória. Sua faxineira sumiu faz dois meses. Eu telefonei para o seu marido e ele ficou de arranjar outra, mas não veio ninguém. Eu poderia, de vez em quando, abrir as janelas, limpar o pó, mas sabe como é. Ninguém me autorizou e fiquei com medo de que não gostassem.
- Obrigada, Lídia. Se eu soubesse disso teria conseguido outra pessoa.
- Eu estou querendo trabalhar para ajudar a pagar os estudos do Joel. Ele quer fazer faculdade.
- Que ótimo! Você é a pessoa ideal para cuidar do apartamento.
- A senhora veio para ficar?
- Apenas alguns dias. Mas entre, vamos combinar tudo. Quero contratar você.
As duas acertaram os detalhes. Lídia saiu e pouco depois voltou com o que precisava, disposta para começar a limpar.
- Mãe, enquanto ela limpa tudo, venha comigo conhecer meu apartamento, fica próximo daqui.
- Eu vou, mas quero ver se tem algum lugar aberto para comprar algumas coisas - voltando-se para Lídia, que já estava começando a faxina, perguntou:
- O que preciso comprar para limpeza?
- Hoje é domingo e não tem nada aberto. Mas eu tenho tudo de que preciso. Amanhã compraremos o que faltar.
Uma vez no carro, Glória comentou:
- Chegamos em boa hora. Não entendo como o Alberto pode ser tão desleixado. Se ele tivesse me avisado eu teria vindo e resolvido isso.
- Contratar a Lídia foi tudo de bom. Ela é nossa amiga, é de confiança, vai cuidar muito bem das nossas coisas. Sem falar que ela gosta muito de você.
- Sempre nos demos bem. Além disso, com ela tomando conta, poderei ir embora sossegada. De hoje em diante, ela e o marido terão de se reportar a mim. Alberto vai ficar fora desse apartamento.
- Isso mesmo. Melhor ainda seria se você viesse morar aqui. Estaria rodeada de pessoas que a respeitam e que fariam tudo para que fosse feliz. Além de Lídia e o marido, há a família de Isabel. Dona Laura é uma mulher excepcional, e estou certo de que gostará muito de conhecer a mãe de Diva também.
Uma sombra de tristeza passou pelos olhos de Glória.
- Não posso. Não insista. O máximo que farei é vir mais vezes aqui.
- Pelo menos isso. Sempre que estiver triste, deprimida, venha para cá refazer as energias.
- É, isso eu posso fazer.
Depois que Glória e Gilberto saíram da casa de Laura, Diva foi para casa, Sônia foi para o quarto ler e Isabel sentou-se na sala, ao lado da mãe.
- Agora que estamos sós, quero saber os detalhes. Quando chegaram, apesar da euforia de vocês, senti que havia uma energia de tristeza. Não sei o que é, mas você vai me dizer.
- Como sempre sua intuição funciona. Tudo que contamos sobre a viagem é verdade. Nivaldo é um rapaz maravilhoso, nos recebeu com carinho.
- Diva falou dele com muito entusiasmo.
- Eles se deram muito bem. Ficavam o tempo todo juntos. Ela fez pesquisas no laboratório da fazenda com ele. Estavam sempre rindo e brincando. Dona Glória também nos tratou com carinho e fez tudo para nos alegrar, mas tanto eu como Diva, desde o começo, sentimos que de vez em quando ela tinha certo ar de tristeza.
- E o pai de Gilberto, como é?
- Nos tratou muito bem, foi amável, mas logo percebe que ele e dona Glória só conversavam o essencial. Não havia entre eles uma ligação próxima. No último dia descobrimos por quê.
- Ele tem outra mulher. Eu senti isso desde que Glória entrou aqui.
- Às vezes eu me espanto com sua sintonia. É incrível como percebe as coisas! Foi isso mesmo.
Em poucas palavras Isabel relatou o que tinha acontecido E por que Gilberto insistira para trazer a mãe, finalizando:
- Ele deseja que ela venha morar em São Paulo definitivamente. Ela não quer nem ouvir falar nisso. Alega que não vai abandonar tudo que lhe pertence por causa dessa mulher. Se fosse comigo, há muito já teria feito isso.
Laura ficou pensativa por alguns segundos, depois disse:
- Essa mulher que o pai do Gilberto tem não é confiável. É ambiciosa, sem escrúpulos, está explorando ele. Se Glória se gastar, em pouco tempo irá arruiná-lo. Estou sentindo isso.
- Ele parece estar muito apaixonado por ela. Olhava-a com uma paixão que mesmo diante da nossa presença não conseguia dissimular. Para suportar isso e continuar ao lado dele, dona Glória deve amá-lo muito.
- Você se engana. Há muito ela deixou de amá-lo. Só continua lá, ao lado dele, para preservar o patrimônio dos filhos.
- Será?
- Pode acreditar. Quem está me informando é o Orlando.
- Papai está presente? O que mais ele diz?
- Que essa mulher tem pacto com espíritos das trevas para mantê-lo cativo. Quando ele a olha, sente tanta atração que é muito difícil conter.
- Pobre senhor Alberto! Nunca imaginei que fosse isso. Estou arrependida por tê-lo julgado mal.
- Procure não fazer mais isso para não atrair as energias deles. Mas ao mesmo tempo é bom saber que, se esses espíritos conseguiram dominá-lo, foi porque ele lhes deu abertura. A vaidade masculina estimulada, quando o homem não tem conhecimento espiritual, costuma facilitar esse domínio.
- Meu Deus! Estou certa de que dona Glória, se tivesse conhecimento disso, procuraria ajuda espiritual e conseguiria ajudá-lo. Gostaria muito de poder fazer alguma coisa! Ela está sofrendo muito.
- Orlando nos aconselha a orar e confiar. Diz que não tem permissão de interferir, mas vai pedir conselho aos seus superiores e, assim que puder, voltará para nos contar. Pede para ficarmos em paz e acreditarmos que tudo quanto nos acontece está sob a proteção divina. Está nos abraçando. Feche os olhos, vamos sentir o amor que nos une.
As duas se abraçaram e, de olhos fechados, sentiram um calor agradável percorrer-lhes o corpo, acompanhado de uma sensação de alegria e prazer. Permaneceram assim, abraçadas e em silêncio, procurando absorver o que sentiam na intenção de guardar esses momentos de plenitude e paz dentro do coração. À noite, Gilberto chegou, encontrou Isabel bem-disposta e alegre. Descreveu-lhe o estado do apartamento, culpando o pai pelo desleixo. No final, comentou:
- Não sei por que mamãe ainda quer continuar ao lado dele. Ela acha que, se vier embora de vez, meu pai vai arruinar tudo que nós temos. Eu não creio. Foi ele quem construiu nosso patrimônio e não tem lógica dizer que agora ele vai jogar tudo fora.
- Sua mãe deve ter motivos para pensar dessa forma.
- Ela alega isso para encobrir o verdadeiro motivo. Está enciumada e não quer vir embora com receio de que ele leve a outra para morar na casa da família.
- Seja como for, se ela prefere ficar lá, não se sentiria feliz aqui. Estaria o tempo todo preocupada. Depois, tem Nivaldo. Ele gosta do que está fazendo. O que ele faria aqui na cidade?
- A meu ver, mamãe deveria separar-se de papai legalmente.
- Desquitar-se? Ela ficaria em uma situação social delicada. O preconceito existe. Você sabe como é isso.
- Sim. Mas haveria uma divisão dos bens nos termos da lei. Ficaria tudo para eles, eu não quero nada. Tenho minha profissão e posso cuidar de nossa vida muito bem. Logo minha irmã estará formada e voltará para casa. Não vai gostar de viver na fazenda, Ela ignora o que está acontecendo. No começo, papai era mais discreto e Nice nunca soube de nada. Quando voltar, perspicaz como é, vai descobrir logo. Não quero que isso aconteça.
- Ocorre que sua mãe não quer tomar essa atitude e você não pode forçá-la. Minha mãe costuma dizer que, quando não sabemos o que fazer, é melhor não fazer nada. Resta rezar e esperar que a vida indique o melhor caminho.
- E funciona?
- Sempre. Nós somos pessoas de fé.
- Não sabia que vocês eram religiosas.
- Não estou falando de religião, mas de espiritualidade. São coisas diferentes.
Gilberto riu:
- Como assim? Não vejo diferença. Rezar é coisa de religião.
- Para nós, rezar é falar com Deus diretamente, expressando nossos sentimentos, pedindo proteção, inspiração e esclarecimento para nossas dúvidas. Ele sempre responde.
Gilberto olhou-a admirado:
- Tem certeza?
- Tenho. Só precisa ficar atento porque a resposta pode surgir de várias formas. Pode vir por meio de um livro que nos chama atenção, de uma frase esclarecedora ouvida ao acaso, de um acontecimento novo, várias coisas.
- Parece algo muito vago. Como vamos saber que é a resposta ao nosso pedido?
- Não é difícil. No momento em que ela acontece, há um insight, tudo fica muito claro em nossa cabeça e sabemos o que é preciso fazer.
- Para mim, é uma maneira nova de rezar. Onde aprendeu isso?
- Com os estudantes da Nova Era. Somos espiritualistas independentes.
- Quando fui me especializar nos Estados Unidos, ouvi alguns colegas mencionarem a Nova Era. Achei que fosse apenas um modismo e não me aprofundei.
Laura entrou na sala carregando uma bandeja. Colocou-a sobre a mesa de centro e disse, sorrindo:
- Trouxe café e um bolo que fiz esta tarde. Quero que experimentem.
- Obrigado, dona Laura.
Laura os serviu e ia retirar-se, mas Isabel a deteve:
- Quando você entrou, eu estava conversando com Gilberto sobre como fazemos nossas preces e esperamos a resposta, que sempre chega.
- Sou leigo no assunto. Isabel mencionou a Nova Era. Ouvi falar, mas não conheço nada sobre o assunto. - Gilberto completou.
Laura sentou-se na poltrona ao lado deles e respondeu:
- Na verdade, nós aprendemos mais com o espiritismo, que temos estudado nos livros de Allan Kardec, o professor e escritor francês que pesquisou a fundo os fenômenos da mediunidade. A continuidade da vida após a morte e a eternidade do espírito. A Nova Era, embora não tenha ido tão a fundo, tem os mesmos princípios básicos.
Gilberto ficou pensativo durante alguns segundos, depois disse:
- Esse é um assunto delicado. A vida é muito difícil de entender. Eu, que no consultório luto para restabelecer a saúde das pessoas sem às vezes conseguir vencer a morte, tenho me perguntado o porquê de tanto sofrimento. Comecei a notar que as pessoas que têm fé enfrentam as doenças, a dor e a morte com mais coragem. Às vezes, isso me impressiona. Gostaria de um dia poder ter essa fé para não ficar tão angustiado quando não é possível curar alguém, pois ainda não consigo.
- De fato, a certeza de que nosso espírito é eterno e de que continuamos vivendo depois da morte do corpo físico conforta e abre nossa mente, fazendo-nos entender melhor os mistérios aparentes que nos rodeiam.
- Como conseguir ter essa certeza? As religiões são cheias de mistérios e de pensamentos humanos.
- É verdade. A revelação espiritual é divina, a verdade é uma só, e tem chegado de várias formas para toda a humanidade. Todavia, tem sido interpretada pelos seres humanos conforme o nível de conhecimento de cada um, o que tem dificultado o entendimento.
- Minha mãe é pessoa de fé. Ensinou-nos a rezar, mas não frequenta nenhuma igreja. - Talvez seja por isso. Mas, então, onde procurar essa certeza?
Os olhos de Laura brilharam quando fixaram Gilberto:
- Estudando a vida. Você conhece a inteligência e a sabedoria do corpo humano. Nunca se surpreendeu com essa perfeição?
- Muitas vezes. Há coisas que até hoje me deixam maravilhado. Mas isso quando o corpo é saudável. E as anomalias? As pessoas que nascem deficientes? As crianças inocentes que já nascem como portadoras de doenças graves? As mortes prematuras?
Laura suspirou, pensou um pouco e respondeu:
- Para entender esse processo é preciso estudar a reencarnação, as leis perfeitas que comandam a vida, a responsabilidade individual de cada espírito.
- A senhora acredita mesmo que possamos nascer de novo?
- Sim. Se você pesquisar vai conhecer muitos casos de pessoas que se recordam de suas vidas passadas. Há estudos científicos sérios sobre o assunto. Se estiver interessado, posso emprestar-lhe alguns livros a respeito.
- Acho difícil aceitar essa possibilidade. Parece-me algo impossível.
- O preconceito ainda é bastante forte, principalmente entre aqueles que olham a vida apenas do ponto de vista material. Quando você conseguir deixar de lado o materialismo e ir fundo na observação dos fenômenos naturais da vida e da morte, encontrará no estudo da reencarnação a origem dos problemas congênitos, das anomalias degenerativas, etc.
Gilberto ficou calado durante alguns segundos, e então tornou:
- Não sou preconceituoso. Acredito que há uma força superior que criou o universo, que age sustentando o equilíbrio da natureza e que não concede a nós, seres humanos, a permissão de conhecer os mistérios da vida.
- Pelo contrário. A vida está sempre pronta a nos mostrar a verdade, mas somos nós que temos medo de encarar a realidade. Como temos medo do desconhecido e acreditamos que a verdade seja cruel, traga sofrimento, preferimos continuar ignorando. Mas quando você ultrapassa a barreira do medo e deseja enxergar a vida como ela é, as portas do conhecimento se abrem, você começa a enxergar detalhes e fatos que antes não notava e que oferecem uma visão mais clara e mais elevada da vida, tornando-o mais lúcido e confiante no futuro. É muito confortável a certeza de que a vida nos protege e cuida do nosso progresso.
Gilberto a olhava sério, refletindo sobre suas palavras, e, quando ela se calou, disse simplesmente:
- Eu gostaria muito que a senhora me emprestasse alguns desses livros. Há momentos na vida em que precisamos muito dessa certeza para conservar o otimismo e seguir adiante.
Laura retirou-se para apanhar os livros. E Gilberto, quando mais tarde se despediu de todos, levava dois deles debaixo do braço. Carlos entrou em casa apressado e foi para o quarto. Albertina foi atrás dele preocupada. Não era hora de ele voltar do trabalho. Como a porta estava aberta, viu que estava tirando a roupa do armário e examinando-a com cuidado. Entrou e perguntou:
- Aconteceu alguma coisa?
Ele a olhou sério e respondeu:
- Sim. Vou viajar esta noite para a Europa.
- Assim, de repente? O que vai fazer lá?
- Trabalhar, mãe. Hoje, quando cheguei, o Nicolai me chamou e disse que estava na hora de expandir o negócio, fez um plano e encarregou-me de executá-lo.
- Acha que você vai dar conta?
- Claro! Fui eu quem sugeriu a ele a ampliação dos negócios há mais de um mês. Ele foi pesquisar e decidiu fazer.
- Para onde você vai?
- Vou começar em uma feira de jóias em Paris, mas devo visitar outros países também. Vim ver o que tenho, e vou sair para comprar o que falta. Yuri foi apanhar a passagem.
- Ainda bem que você regularizou seu passaporte.
- É verdade. Já sei o que preciso, vou sair para comprar. Está quase na hora do almoço. - Não quer comer antes de ir?
- Não tenho tempo.
- Você tem dinheiro para tudo que precisa?
- Nicolai adiantou o necessário. As despesas são por conta dele.
Carlos desceu as escadas apressado e foi embora. Albertina foi para a cozinha pensativa. Seu filho estava há pouco mais de quatro meses naquele emprego e, pelo visto, seu chefe confiava nele a ponto de lhe dar uma função de muita responsabilidade. Sentiu-se orgulhosa e feliz. Carlos estava ganhando melhor a cada mês, vestia-se com apuro, fazia questão de ajudar nas despesas da casa, o que provocava a admiração de Inês e de Antônio que o olhavam com mais respeito e já não faziam tantas críticas. Para Albertina, Carlos era motivo de orgulho. Apesar dos sofrimentos da guerra, de ter perdido o amor de Isabel e ter ficado tanto tempo fora do mercado de trabalho, ele dera a volta por cima. Isabel desprezara o amor de Carlos e, apesar de não querer que um dia ela voltasse para ele, Albertina sonhava com o dia em que ela se arrependesse por tê-lo deixado. Gostaria que ela o procurasse e ele lhe desse o troco, não a aceitando de volta Antônio chegou e entrou na cozinha, logo perguntando:
- Inês já chegou e foi lavar as mãos. O almoço vai demorar?
- Está pronto. Já vou servir.
Ela colocou as travessas na mesa, esperou que ambos se sentassem e contou a novidade.
- Para Paris? - admirou-se Inês.
- Tem certeza? - exclamou Antônio.
- Isso mesmo. Primeiro vai a Paris, depois a outros países da Europa. As despesas todas serão pagas pelo Nicolai.
Antônio abriu a boca e fechou-a de novo.
- Carlos tem muita sorte! - comentou Inês.
Albertina retrucou:
- Sorte? Ele soube é fazer as coisas! Vocês diziam que ele estava sendo explorado, que estava trabalhando quase de graça. Viram só? Ele sabia o que estava fazendo.
- Vamos esperar para ver. Será que vai dar conta do recado? Eu duvido!
Albertina levantou-se irritada:
- Lá vem você com seu negativismo. É por isso que nossa vida não vai pra frente. Você pensa pequeno! Não acredita que é capaz de melhorar de vida. Conformou-se com a pobreza, com a falta de dinheiro, não faz nada para conquistar algo melhor.
- E você está enchendo a cabeça de ilusões. A vida não é assim. Você vai ver que tenho razão. Tudo nesta vida é difícil. O dinheiro não cai do céu. Carlos ainda vai descobrir essa verdade.
Albertina deu de ombros:
- Pois eu não creio. Ele ainda vai ser rico. Vocês vão ver.
Carlos realizava suas compras com prazer. Felizmente, não precisaria de roupas pesadas, pois era primavera na Europa. Tornava-se fundamental, em seu ramo de trabalho, que ele se apresentasse com classe e elegância, o que ele apreciava fazer. Ao vestir um terno bem cortado, olhou-se no espelho e gostou do que viu. Sentiu-se bonito, elegante e pensou em Isabel. Como gostaria que ela o visse assim! Uma onda de tristeza o envolveu. Inês de vez em quando fazia questão de falar sobre ela e o noivo, contando detalhes do que via. Eles falavam em casamento, mas Carlos se recusava a aceitar essa possibilidade. Para ele, era apenas questão de tempo. Isabel lhe pertencia por direito e aquele casamento nunca se realizaria. Caminhava pelas ruas, olhando as vitrines e procurando não se esquecer de nada, quando viu Isabel com Diva andando em sentido contrário. Seu coração disparou e ele tentou controlar a emoção. Ela estava linda, e ele parou na frente delas, dizendo:
- Como vai, Isabel?
Ela o tinha visto e pensara em desviar, mas não dera tempo. Sorriu e apertou a mão que ele lhe estendia.
- Vou bem. E você? Lembra-se de minha prima Diva?
- Claro. Vejo que vocês estão muito bem.
- E você também está muito bem - comentou Diva. - Ainda não o tinha encontrado depois que voltou.
Isabel queria ir embora, mas Carlos convidou:
- A tarde está fria. Vamos tomar um chá, um café?
- Obrigada, mas não posso - respondeu Isabel. - Estou atrasada. Temos que ir.
- Fica para outra vez - prometeu Diva.
- Isso pode demorar. Estou indo embora do Brasil esta noite, não sei quando voltarei. Seria um momento de despedida.
- Você vai morar em outro país? - tornou Isabel.
- Não. Estou indo a trabalho e, se tudo sair como desejo, demorarei para voltar.
Isabel estendeu a mão dizendo:
- Gostei de saber que você está trabalhando, que retomou sua vida. Desejo que consiga superar o tempo perdido e seja muito feliz.
Carlos segurou a mão que ela lhe oferecia, olhou-a firme nos olhos e respondeu:
- Não vai ser fácil, mas estou me esforçando para isso.
Isabel retirou a mão e ele se despediu. Ambas desejaram uma boa viagem e se afastaram. Carlos respirou fundo, entrou em uma confeitaria e se sentou para pedir um chá. Isabel continuava linda e a saudade dos bons tempos em que tinham se amado voltou com força total. Teve vontade de ir atrás dela, de gritar que o amor deles era maior do que tudo e que precisavam ficar juntos para sempre. Tomou alguns goles do chá, olhou o relógio e apressou-se. Precisava arrumar a bagagem e encontrar-se com Nicolai e Yuri no aeroporto, conforme o combinado. Eles iriam levar-lhe a passagem, a mala de mostruário e a lista dos contatos que deveria fazer. Depois que se afastaram de Carlos, Diva comentou:
- Nossa, como Carlos está bonito! Ganhou corpo, está alinhado, elegante!
- É... ele parece estar bem.
- Você não se sentiu balançada olhando para ele? Não se arrependeu de ter preferido Gilberto?
- Claro que não. Eu amo Gilberto. É com ele que quero ficar.
- Você é que tem sorte! Os dois são muito atraentes. Quando Carlos foi embora, era jovem e bonito, mas agora tornou-se um homem. Senti que ele é forte, sabe o que quer. Se ele me quisesse, eu não o deixaria escapar.
- Pois se lhe agrada, fique com ele.
- Não precisa ficar zangada. Ele nem sabe que eu existo. Só tinha olhos para você.
- Não estou zangada. Estou feliz. Quando rompemos, ele me ameaçou e eu cheguei a ficar com medo. Mas parece que ele se recuperou bem. Espero que seja feliz.
As duas entraram em casa. Isabel foi levar os pacotes para o quarto e Diva foi cumprimentar Laura, que lia na sala. Vendo-a chegar, fechou o livro e perguntou sorrindo:
- E então, compraram tudo?
- Só um pouco. Isabel ficou cansada e quis vir embora.
- Por quê? Ela parecia tão entusiasmada! Não gostou de nada?
Diva sentou-se ao lado da tia no sofá e disse:
- Comprou dois jogos de cama lindos.
- E as toalhas de jantar que ela tinha visto e adorado?
- Deixou para outro dia.
Isabel aproximou-se e Laura comentou:
- Onde estão os jogos de cama que você comprou?
- No quarto. Depois você vê.
Laura olhou-a admirada. Sempre que Isabel comprava alguma peça para seu enxoval, mostrava, pedia opinião:
- Diva disse que ficou cansada. Está se sentindo bem?
- Apenas uma ligeira dor de cabeça. Nada de mais.
- Quer tomar alguma coisa, um chá?
- Não, mãe. Já está passando.
- Não vai contar à tia quem nós encontramos na rua?
Laura fixou-as curiosa:
- Quem foi?
- Carlos - respondeu Isabel. - Demos de frente com ele, que parou para nos cumprimentar.
- E... como foi?
- Bem.
Diva interveio:
- Muito bem. Tia, ele melhorou muito. Estava elegante, bonito.
- É. Fiquei aliviada. Ele aceitou nossa separação, retomou a vida. Nós podemos seguir em paz.
- Esta noite ele embarcará para Paris a trabalho e ficará fora durante alguns meses - explicou Diva.
Laura surpreendeu-se:
- Ele está trabalhando em quê?
- Em uma empresa de jóias - continuou Diva. - Está muito diferente do que era. Tornou-se refinado, parece que sabe o que quer.
- Diva está exagerando. Ficou tão entusiasmada com ele! Eu estava vendo a hora em que ela o convidaria para sair.
- Você é quem está exagerando. Depois que ele voltou, eu não o tinha visto. Agora ele ganhou corpo, está mais homem. Foi só isso.
Laura observava em silêncio. Depois disse:
- Vocês marcaram o casamento para daqui a cinco meses. Gilberto já está reformando a casa e o seu enxoval ainda não está pronto.
- Não se preocupe, mamãe. Na semana que vem terei tempo e continuarei as compras.
- Está bem. Só não quero que deixe tudo para a última hora. Vamos fazer o que precisamos, com calma.
Elas continuaram conversando, mas Laura notou que, enquanto Diva falava com animação, Isabel estava mais calada e pensativa. Carlos chegou cedo ao aeroporto, olhou o relógio. Faltavam quinze minutos para a hora combinada, e ele se sentou para esperar Nicolai e Yuri. Pensou em Isabel e sentiu-se triste. Estava difícil suportar a dor da separação. Desde que o deixara, ele se apegava à certeza de que a separação seria temporária. No entanto, depois de encontrá-la e notar sua indiferença, o receio de ter se enganado começava a atormentá-lo. Ela estava linda, feliz, alegre. Não lhe passara despercebido o pequeno gesto de contrariedade ao abordá-la. Ela não tivera nenhum prazer em vê-lo. Certamente já o esquecera de verdade. Aquela realidade o chocou. Sentiu vontade de voltar para casa, desistir da viagem, dos projetos, de tudo. Cabisbaixo, imerso em seus pensamentos íntimos, assustou-se quando ouviu Yuri dizer:
- Desculpe o atraso. Houve um imprevisto e Nicolai não pôde vir. Tive medo de que não chegasse a tempo.
- Ainda temos meia hora.
- Um cliente que ia viajar hoje precisava de alguns produtos e mais ainda da orientação dele. Não podia deixar de atender. Além de desejar-lhe boa viagem, ele fez algumas recomendações por escrito nesta carta. Sabe como ele é, não gosta de mandar recados.
Carlos sorriu:
- Eu sei. Diga-lhe que cumprirei à risca. Quando tiver dúvida ligarei para vocês.
Yuri sentou-se ao lado dele e, fixando-o sério, disse:
- Você não parece bem. Está preocupado com a viagem?
- Não. Meus problemas pessoais estão me atormentando.
- Você estava bem. Aconteceu alguma coisa?
- Saí para fazer compras na cidade e dei de cara com Isabel. Ficamos frente a frente, ela estava junto com a prima. Parei para cumprimentá-la.
- E ela?
- Senti que não gostou de me ver. Penso que só não desviou porque não teve como.
Yuri bateu levemente nas costas do amigo:
- É por isso que está tão pra baixo.
- Dá para notar tanto assim?
- Eu o conheço muito bem.
- Para ser sincero, tive vontade de desistir de tudo, voltar pra casa e não sair mais.
- O que é isso, Carlos? Não se deprima dessa forma! Você é um vencedor. Depois de tudo que já passou na vida, não pode ser derrotado por uma mulher que já o trocou por outro. Você é aquele que um dia entrou em nossa loja com uma mão na frente e outra atrás, sem nada, e soube conquistar não só uma boa oportunidade de trabalho, como nossa amizade e admiração. Nós o admiramos, confiamos em sua capacidade. Estou certo de que você vai vencer essas lembranças do passado. São sonhos da juventude. Outros amores virão, você verá.
Conforme Yuri falava, Carlos foi levantando a cabeça. Quando ele terminou, estava ereto, olhos brilhantes, e abraçou o amigo:
- Obrigado pela confiança. Você está certo. Sou forte e vencerei mais essa dificuldade. Nesta viagem, vou dar o melhor de mim, farei grandes negócios, provarei que podem continuar confiando em minha capacidade.
- Assim é que se fala! Está na hora de você ir. Nesta maleta de mão está nosso mostruário, leve-a com você e tenha cuidado com ela.
- Fique tranquilo, sei o quanto ela vale.
Carlos já havia despachado a mala, então eles se dirigiram ao embarque. Abraçaram-se em despedida. Carlos entrou, procurou o portão de embarque e sentou-se para esperar. As palavras de Yuri tiveram o dom de tirá-lo daquele estado depressivo. Ainda sentia tristeza, mas a vontade de vencer, enriquecer e mostrar a Isabel que era um homem capaz e que ela se arrependeria de tê-lo preterido dava-lhe ânimo para seguir em frente. Com passos firmes, entrou no avião, acomodou-se e, enquanto decolava, olhando a cidade que aos poucos desaparecia de suas vistas, sentiu que o momento era de mudança. Estava voltando à Europa, começando uma nova etapa longe de tudo e de todos, sozinho naquela grande e nova aventura. O que lhe reservaria o destino? Não importava o quê; ele estava pronto para lutar e vencer. Com coragem, enfrentaria todos os desafios que surgissem, seria forte o bastante para seguir em frente na realização de seus projetos para o futuro. Fazia uma semana que Carlos estava em Paris e o movimento renovador que sentia em todas as áreas da cidade o entusiasmava. Durante a guerra, ele estivera em Paris apenas de passagem e não tivera tempo de conhecer quase nada. Mas mesmo assim admirava-se com o progresso e a recuperação da cidade, onde o movimento turístico lotava os hotéis, teatros e museus, as agendas culturais fervilhavam e as novidades trazidas pelos desfiles de moda atraíam jornalistas do mundo inteiro. Já havia visitado alguns futuros clientes que Nicolai lhe indicara. Houve relativo interesse, mas Carlos não ficou satisfeito. Sentia que poderia conseguir muito mais. Decidiu pesquisar novas possibilidades. Não falava francês, apenas medianamente o russo e o inglês. Aproximou-se de alguns hóspedes mais acessíveis no hotel em que estava. Entre eles havia dois vendedores, um de tecidos e o outro de couro, ambos italianos, falantes, alegres e que, como ele, desejavam ganhar dinheiro. Os dois eram amigos e estavam em Paris havia mais de seis meses, conheciam o mercado, deram-lhe excelentes informações sobre os negócios e sobre empresas que se dedicavam ao comércio de jóias. De posse dessas informações, Carlos começou a agendar visitas para apresentar seus produtos. Interessou-se particularmente por uma importadora de jóias que comprava em grande quantidade em Nova York. Apesar de a secretária dizer que o chefe não o receberia, Carlos não desistiu. Ana era jovem, bonita, e Carlos começou a provocar encontros "casuais" com ela fora da empresa. Ela se esquivava, mas ele insistia, dizendo que estava muito só e que queria conversar. Aos poucos, ela foi se interessando e ele passou a esperá-la na saída do trabalho. Nunca falava do interesse em apresentar seus produtos ao dono da empresa. Até que, depois de alguns encontros, foi ela quem tocou no assunto:
- Você é muito ousado em vir vender jóias aqui. O Brasil, que eu saiba, não fabrica jóia. De onde sua empresa importa os produtos?
- Minha empresa não importa, mas fabrica jóia. São lindas, o preço é muito bom e temos exportado para vários países. Você que trabalha no ramo e não sabia disso?
Notando sua provocação, ela mordeu os lábios e desafiou:
- Pois eu gostaria muito de vê-las.
- Elas ficam guardadas no cofre do hotel, mas, se quiser ir comigo até lá, terei prazer em lhe mostrar.
- Agora?
- Por que não? Depois, poderemos jantar e a levarei até sua casa.
- Está bem, aceito.
Carlos sorriu satisfeito. Uma vez no hotel, ele retirou a maleta de jóias do cofre e a levou para o quarto. Ana o acompanhou curiosa. Carlos colocou a maleta sobre uma cadeira, abriu-a, estendeu uma toalha de veludo azul sobre a mesa e começou a tirá-las lentamente, uma a uma, colocando-as sobre o veludo. Pôde observar que, embora Ana se controlasse, seus olhos brilhavam de cobiça a cada peça que ele retirava.
- Nós temos muito mais, somos fabricantes e podemos nos dar ao luxo de fazer peças exclusivas para grandes damas.
- Devem cobrar um preço muito alto para essa especialidade.
- Apenas o preço justo. Vale mais a satisfação das nossas clientes. Somos artistas, amamos a beleza.
Ana sorriu:
- De fato, estou encantada. Vou conversar com monsieur La Belle e contar o que vi aqui. Acho que ele vai concordar em recebê-lo.
Carlos fez uma reverência e levou aos lábios a mão dela, dizendo:
- Obrigado. Agora deixemos os negócios para depois. Vamos jantar e comemorar.
- Ainda é cedo para isso.
- Eu sei. Vamos comemorar nosso encontro de hoje e o começo de uma parceria maravilhosa que faremos juntos.
Ela riu bem-humorada. Carlos guardou as jóias na maleta, devolveu-a ao cofre do hotel e, juntos, eles foram para o restaurante. Carlos sentia-se particularmente alegre naquela noite. Durante o jantar, Ana falou sobre os lugares da moda onde se podia comer bem, dançar e assistir aos filmes de sucesso, e sobre as casas de show. Passava da meia-noite quando Carlos a deixou em casa. Ao despedir-se, ela prometeu ligar assim que conseguisse a entrevista prometida. Carlos regressou satisfeito ao hotel. Cansado, preparou-se para dormir. Ao se deitar, ficou pensando em como abordaria o empresário na entrevista. Pela admiração com que Ana recebera sua demonstração, tinha certeza de que em breve teria a entrevista. Pensando nisso, adormeceu. Sonhou que era noite e andava pelas ruas de Montmartre. Algumas pessoas passavam indiferentes, mas ele sentiu que conhecia aquelas ruas, embora nunca tivesse estado ali. Sentiu-se ansioso, inquieto, como se estivesse procurando alguma coisa. Ao virar uma rua, viu uma mulher se aproximando. Seus olhos se encontraram e ela atirou-se em seus braços, dizendo emocionada:
- É você, meu amor! Finalmente nos encontramos. Há muito tempo o procuro.
Carlos sentiu o corpo tremer, enquanto um sentimento forte brotou em seu coração. Apertou-a de encontro ao peito, dizendo emocionado:
- Que saudade! Quanto tempo!
Beijaram-se longamente durante alguns minutos, depois ele disse:
- Sei que estou sonhando, não quero acordar. Você vai dizer-me onde mora? Não quero perdê-la de novo!
- Eu também quero ficar com você! Não suporto mais a nossa separação. Volte pra mim! Estou esperando!
Beijaram-se novamente e ele insistiu:
- Onde você está? Diga-me agora. Irei buscá-la!
- Não estou em Paris. Vivo na Itália, não se lembra?
Carlos acordou emocionado, ainda a ouvindo repetir a mesma frase. Sentia-se mexido, apaixonado, saudoso. Como podia ser? Ele não se recordava de ter conhecido essa mulher. Por que sentia por ela um amor que nunca sentira por ninguém, nem mesmo por Isabel? Sentou-se na cama pensativo. Essa mulher só existia em sua imaginação. Talvez, por ter sido rejeitado por Isabel, tivesse forjado aquela história como uma compensação, para sentir-se amado. Foi ao banheiro, lavou o rosto, deitou-se novamente. As cenas do sonho reapareceram em sua lembrança, despertando as mesmas emoções de antes. A sensação de realidade era muito forte, dando-lhe a certeza de que aquele encontro acontecera de fato. Como poderia ser isso? Carlos deitou-se, tentou dormir, mas as cenas do sonho voltavam, deixando-o intrigado. O dia já estava clareando quando, cansado, finalmente adormeceu. Dessa vez sem sonhos. Acordou tarde na manhã seguinte, tomou um banho e saiu para comer alguma coisa. Lembrou-se que Ana combinara de ligar à noite para falar se havia conseguido a entrevista. Estava quase no meio do dia e precisava aproveitar o tempo. Voltou ao hotel para pegar suas anotações e decidir o que faria. No hall encontrou Benito, o vendedor de couro, que, ao vê-lo, aproximou-se:
- Bom dia. Como vão os negócios? Conseguiu alguma coisa?
- Bom dia. Tenho algumas possibilidades. E você?
- Estou plantando. Se der certo como espero, receberei uma bolada e tanto.
- Você vai conseguir.
- Você também. Não aguento mais viver fora de casa. Sabe como é, sinto saudades da família, da minha cidade, dos amigos! Se esse negócio sair mesmo, voltarei para Milão. Aqui, sou um peixe fora d'água.
- De fato. Tudo é muito bonito, a cidade é maravilhosa, mas não é nossa casa, não tem nossos costumes. No início é excitante, mas depois de um tempo queremos voltar para casa.
- Quero ir assim que puder e levar presente para todos.
- Sua família é grande?
- Somos apenas quatro. Minha mãe, eu e duas irmãs. Meu pai morreu no começo da guerra em um acidente. E você?
- Nós também somos quatro: meus pais e uma irmã. Quando embarquei para a Itália durante a guerra, senti muitas saudades de casa no começo. Mas, em meio aos problemas, lutando pela sobrevivência, não tive tempo de sentir saudades da família e do Brasil.
- Sei como é isso. Ainda bem que tudo acabou e podemos cuidar de nossas vidas. No encontro que terei esta tarde, se a resposta for positiva, dentro de uma semana voltarei para Milão. Não vejo a hora.
Carlos bateu levemente no braço do amigo sorrindo:
- Será positiva!
Benito se despediu e Carlos foi para o quarto. Queria aproveitar a tarde para tentar a sorte em uma outra empresa. Em sua lista havia mais duas e ele gastou o tempo visitando-as, sem conseguir o que queria. Sentiu fome, fez um lanche e regressou ao hotel, tomou um banho. Em seguida apanhou o livro de francês que estava estudando, acomodou-se na poltrona e começou a ler enquanto esperava pelo telefonema de Ana. Passava das nove quando Ana ligou para dizer que ele tinha uma entrevista com monsieur La Belle às dez horas da manhã seguinte. Recomendou que fosse pontual, porquanto seu chefe era muito exigente com o horário. Carlos exultou, mas respondeu com naturalidade que estaria lá na hora marcada. Não queria demonstrar demasiado interesse. Mais tarde, ao deitar-se, recordou-se do sonho. Aconteceria novamente? Sentiu grande euforia só em pensar naquela possibilidade. Acomodou-se e ficou durante algum tempo recordando aqueles momentos, até que adormeceu. Ao acordar na manhã seguinte, lembrou-se do sonho e sentiu certa frustração por não ter acontecido novamente.
- Estou me iludindo com esse sonho! Que bobagem! É tudo coisa da minha imaginação. Não vou pensar mais nisso.
Levantou-se, tomou um banho e escolheu uma roupa clássica e elegante que julgou boa para a ocasião. Cinco minutos antes das dez, adentrou a sala de Ana. Vendo-o chegar, ela se levantou dizendo:
- Que pontual! E como está elegante!
Depois dos cumprimentos, ela continuou:
- Está nervoso? Quer um café ou uma água antes de ir para a entrevista?
- Obrigado. Estou muito bem.
- Vou avisá-lo que você chegou.
Ana voltou pouco depois e convidou-o a entrar na sala de monsieur La Belle. Era um homem magro, de meia-idade, elegante e sóbrio. Cumprimentou-o sério. Carlos apresentou-se, ia falar da empresa que representava, mas ele cortou o assunto dizendo:
- Seja breve. Tenho pouco tempo. Só o recebi porque Ana pediu.
Carlos abriu a maleta, monsieur La Belle designou uma mesa lateral, e Carlos, depois de estender o pano azul, tal qual fizera com Ana, começou a desfilar as peças em silêncio. Monsieur La Belle assistia sem mexer um músculo. Quando acabou, ele pediu que Carlos guardasse tudo e deixasse todas as informações possíveis com sua secretária. Deu a entrevista por terminada. Carlos saiu um tanto decepcionado. Sabia que seus produtos eram muito bons. Esperava notar alguma reação dele, o que não acontecera. Na sala de Ana, a sós, ele desabafou:
- Esperava que fosse diferente. Acho que ele nem olhou direito meu material!
Ana sorriu:
- Você é que pensa! Monsieur La Belle é a pessoa mais observadora que conheço. Nenhum detalhe lhe escapa. Como bom negociante, nunca demonstra o que pensa. Acredite, ele gostou do que viu. Eu notei.
- Não está dizendo isso para me animar?
- Por que faria isso? Ele o deixou expor todo o material. Se não estivesse gostando, o mandaria embora antes de terminar.
- Ele é sempre assim tão formal?
- Ele sabe o que está fazendo. É conhecido na Europa como um dos maiores negociadores e conhecedores de jóias do mundo.
- Como posso saber se ele ficou interessado?
- Monsieur La Belle não ilude ninguém. É muito honesto e não vai demorar a dar-lhe uma resposta. Pode esperar.
Carlos agradeceu e despediu-se. Como não tinha marcado nada, voltou ao hotel e, depois de colocar a maleta no cofre, foi para o quarto pensando no que faria. Ligou para Nicolai, deu-lhe ciência do que fizera e finalizou:
- Foi o que consegui aqui em Paris. Acho que não vai dar em nada. Há poucos importadores. Visitei-os, mas não deu negócio. Estou pensando em viajar para outros países.
- Não faça isso! Fique aí e espere. Você conseguiu o que eu nunca consegui: uma entrevista com La Belle! Ele é o máximo! Se ele comprar, a porta do nosso material estará aberta para toda a Europa!
- Você acha? Ele não comentou nada, parecia pouco interessado.
- Bem se vê que você não sabe nada sobre ele! Claro que ele tem interesse! Assistiu à sua demonstração até o fim! Isso só acontece quando ele está gostando. Não saia daí antes de receber uma resposta dele e, a qualquer novidade, ligue imediatamente.
- Está bem.
Carlos desligou pensativo. Não é que ele conseguira alguma coisa importante? Sentiu fome e desceu para ir comer alguma coisa. No hall encontrou Benito, que disse eufórico:
- Estou mandando fechar minha conta! Amanhã à noite viajarei de volta para a Itália. A resposta foi positiva, fechamos negócio.
- Você não ia ficar mais uma semana?
- Ia, mas o cliente tem pressa, não posso perder tempo. E você, como foi?
- Ainda não sei. Achei que não daria em nada, tanto que pensei em ir embora, tentar em outro país. Mas, pelo que contei a meu chefe, ele acha que pode dar certo. Vamos ver.
- Tenho pouco tempo e muitas coisas para fazer. Como não sei se o verei antes de ir, vamos nos despedir agora.
Benito abriu a carteira, tirou um cartão e entregou-o, dizendo:
- Gostei muito de tê-lo conhecido. Se algum dia for a Milão não deixe de me procurar. Quero apresentá-lo à minha família e mostrar-lhe minha bela cidade.
Carlos segurou o cartão e respondeu:
- Eu também gostei de conhecê-lo. Pretendo ir à Itália, sim. E logo que chegar, irei procurá-lo. Pode esperar.
Depois de comer, Carlos voltou ao quarto e passou em revista o roteiro de viagem programado por Nicolai. Saindo de Paris, ele deveria descer pelo sul e visitar três cidades até a Itália. Ana lhe garantira que monsieur La Belle lhe daria uma resposta. Assim que a obtivesse, deixaria a cidade. Gostaria de dar uma volta, conhecer os lugares da moda, mas resolveu ficar esperando o telefonema. Quando o telefone tocou passava das três horas, e Ana deu-lhe o recado:
- Monsieur La Belle quer vê-lo amanhã às duas horas para examinar novamente seu material, com possibilidade de algumas encomendas. Seja pontual.
Carlos exultou, mas controlou-se. Respondeu com naturalidade:
- Está bem. Serei pontual.
Desligou o telefone radiante. Era sua primeira vitória importante. Pensou em ligar para Nicolai, mas depois decidiu esperar para saber se ele faria mesmo o pedido e de quanto seria. Pegou a maleta de jóias, arrumou-as com capricho, depois pegou o catálogo onde havia informações mais completas sobre os produtos, inclusive sobre a oficina de montagem das peças. Ele já havia mostrado tudo na entrevista com La Belle, que não demonstrara interesse. Mas desta vez certamente olharia tudo com mais atenção. Depois de guardar a maleta no cofre, Carlos resolveu sair para passear. Ao andar pela Champs-Élysées, imaginou como deveria ter sido a marcha sobre Paris com as tropas da resistência francesa, sob o comando do general De Gaulle. Depois, foi ver o Teatro da Ópera. Com as luzes acesas, parecia estar diante de um cartão postal. Naquela noite, levariam a ópera Carmem, de Bise. Durante um tempo, ficou olhando as pessoas elegantes que entravam para assistir ao espetáculo. Observando o luxo e os olhos brilhantes de expectativa e de prazer que eles demonstravam, Carlos sentiu no ar certa euforia, uma vontade de esquecer o passado e aproveitar todas as coisas boas da vida. Na tarde seguinte, às duas horas, quando chegou à empresa de La Belle, Ana já o esperava. Depois dos cumprimentos, levou-o imediatamente à presença do chefe. Desta vez, La Belle lhe pareceu mais cordial e amável. Pediu que mostrasse novamente todo o material. Separou algumas peças e começaram a discutir os preços, suas diferenças por quantidade. Depois de informar minuciosamente suas possibilidades de compra e submetê-las ao preço que ele queria pagar, finalmente fez uma proposta. O preço que ele desejava estava bem abaixo do que Nicolai queria, mas a quantidade era muito boa. Carlos disse que precisava consultar Nicolai.
- Preciso saber a resposta o mais tardar até amanhã cedo. Se não aceitarem meu preço, não haverá negócio. A entrega terá que ser estritamente dentro do prazo que estipulei. Se atrasar, devolverei a mercadoria. Diga-lhes isso.
- Está bem. Espero poder dar-lhe essa resposta ainda hoje.
Dez minutos depois, Carlos deixou a empresa nervoso. Nicolai nunca baixava seus preços, por isso temia que ele não concordasse com o fechamento do negócio. Era um pedido grande para Nicolai, mas, segundo Ana informara, pequeno para La Belle. Assim que chegou ao hotel, ligou para Nicolai e passou-lhe o pedido. Ele ouviu tudo e ficou em silêncio. Depois de alguns segundos, Carlos perguntou:
- E então, vamos aceitar esse pedido?
- Ligue-me dentro de dez minutos. Preciso fazer algumas contas.
Carlos desligou e pensou:
- Ele não vai aceitar. Tanto trabalho para nada.
Tomou um copo de água, esperou ansiosamente o tempo passar e ligou novamente:
- E então, Nicolai, o que resolveu?
- Falei com Yuri e decidimos aceitar o pedido.
Carlos suspirou aliviado:
- Ótimo. Amanhã cedo mandarei uma cópia do pedido assinada. Lembre-se que a data de entrega não pode atrasar.
- Eu conheço a fama de La Belle. Sei como ele faz. A mercadoria será entregue até a data marcada. Parabéns, Carlos. Yuri está lhe mandando um abraço. Pode comemorar.
- Obrigado, Nicolai. Diga Yuri que Paris está linda. Eu gostaria que ele estivesse aqui comigo para apreciá-la.
Carlos desligou, sentou-se aliviado. Havia realizado seu primeiro grande negócio. Pensou em Isabel. Ela ainda se arrependeria de tê-lo trocado por outro. Sua grande vitória estava a caminho. Quinze dias depois, Carlos chegou a Milão. Assim que se instalou no hotel, ligou para Benito, que, ao informar-se do local onde ele estava hospedado, disse com entusiasmo: - Precisamos nos encontrar! Você tem algum plano para esta noite?
- Não. Acabei de chegar.
- Tenho um compromisso agora, mas no final da tarde irei vê-lo. Você já esteve em Milão?
- Estive na Itália durante a guerra, mas nunca em Milão.
- É uma cidade maravilhosa! Você vai adorar. Vou levá-lo a muitos lugares, apresentá-lo à minha família, a meus amigos, levá-lo a comer. É o melhor lugar do mundo!
- Estou ansioso para conhecer!
Benito continuou falando entusiasmado e Carlos divertia-se com sua euforia. O que ele queria mesmo era conhecer o mercado, vender seus produtos. Depois que saíra de Paris, parara em Nantes, Mônaco e Bergamo, fizera alguns contatos, apresentara seus produtos, mas não vendera nada. Já Milão era uma cidade grande e ele esperava conseguir fazer mais. Tomou um banho, estendeu-se na cama para descansar, acabou relaxando e pegando no sono. Acordou com o toque do telefone. Atendeu ainda um pouco sonolento e ouviu a voz de Inês:
- Como vai, Carlos?
- Bem. Como vão todos aí?
- Como sempre. Mamãe reclamando que você não tem ligado, papai dizendo que você não deveria ter viajado para tão longe e eu tentando escapar do mau humor dos dois. E você, como está se saindo com o trabalho?
- Estou conhecendo o mercado, aprendendo a negociar. Mas estou bem. Diga à mamãe que tenho viajado e trabalhado muito. Não telefono porque custa caro. Prometo escrever e mandar notícias.
- Eu direi. Quando você vai voltar?
- Não sei. Estou no meio da viagem. Por quê?
- Isabel marcou a data do casamento. Se quiser impedir esse casamento, precisa voltar o quanto antes.
Carlos empalideceu e ficou calado durante alguns segundos. Inês insistiu:
- Carlos, você ouviu o que eu disse?
- Ouvi.
- E o que pretende fazer?
- Não é da sua conta! Não precisava ter ligado para dar-me essa notícia. Vou desligar.
Antes que ela respondesse, ele colocou o telefone no gancho e sentou-se nervoso. Uma raiva absurda contra a irmã o acometeu:
- Ela fez isso só de maldade - pensou. De propósito, para contrariá-lo e provar que ela estava certa ao dizer que Isabel não merecia seu amor.
Passou a mão pelos cabelos tentando controlar-se. Ele não queria perder Isabel! Teve vontade de fazer as malas e voltar imediatamente para o Brasil. Respirou fundo, tomou um copo de água, tentando reagir, mas as palavras de Inês não saíam de sua mente. A lembrança dos anos felizes que tinham vivido juntos apareceu forte e ele deixou que as lágrimas corressem livremente pelo seu rosto. Depois, uma tristeza muito grande o acometeu. Lembrou-se de Adriano, seu amigo falecido. A angústia de vê-lo morrer sem que pudesse fazer nada reapareceu forte. A sensação de impotência voltou a incomodar. A raiva por não poder fazer nada para mudar a situação o deprimiu. Sofrendo o impacto do que Inês lhe dissera esqueceu onde estava e todos os seus planos, imerso na sua dor. Não se deu conta de quanto tempo ficou ali, sentado na cama deprimido, quase anestesiado, preso às suas recordações. A campainha da porta soou várias vezes e Carlos estremeceu, levantou-se e foi abrir. Benito estava à sua frente, sorridente, bem vestido e discretamente perfumado. Abraçou-o alegre, dizendo:
- Bem-vindo à minha cidade!
Notando a palidez de Carlos, perguntou assustado:
- O que há com você? Está doente?
- Não. Desculpe. Não estou nada bem... recebi uma notícia ruim e ainda não me recuperei.
Benito o abraçou:
- O que foi, morreu alguém?
- Mais ou menos...
- Como mais ou menos? Morreu alguém mesmo?
- Morreu para mim.
- Não estou entendendo.
- Desculpe. Vou explicar.
Carlos contou-lhe detalhadamente toda a sua história. Enquanto falava, parecia estar vivendo novamente as emoções daqueles tempos. E finalizou:
- Foi por ela que eu reagi, que quis me tornar um vencedor. Sonhava com o dia em que ela reconheceria que me amava e voltaria para mim.
- Sei como você se sente. Também já tive uma desilusão amorosa. Mas quando uma mulher não valoriza o nosso sentimento, é melhor que saia do nosso caminho para não causar uma dor ainda maior.
- Isabel era a mulher da minha vida!
Benito meneou a cabeça negativamente, dizendo:
- Isso não é verdade. Nós podemos amar muitas vezes. Eu sou testemunha disso. Conheci uma mulher linda, delicada, que me ama e, no momento, estou apaixonado. Um dia vai acontecer com você. Tenho certeza disso! O que não pode é se entregar dessa forma! Vamos sair. Vou apresentar-lhe algumas garotas e logo terá esquecido essa notícia desagradável!
- Hoje não. Não estou em condições de conversar com as pessoas, nem tenho disposição para sair.
Benito levantou-se:
- Nada disso! Você vai tomar um bom banho, vestir sua melhor roupa e vamos sair, sim.
- Acredite, não vai dar...
- Você não vai me fazer essa desfeita! Está se colocando na posição de vítima. Não se maltrate dessa forma! Aproveite a mocidade porque ela passa depressa. Depois, o que pensa conseguir ficando aqui, sozinho, sofrendo? Vai acabar com uma tremenda dor de cabeça.
Benito pegou Carlos pelo braço e o levou ao banheiro, dizendo:
- Vamos logo. Dizem que a água ajuda a tirar as energias negativas do corpo. Deixe-a correr sobre você e se sentirá melhor. Estou esperando, não demore! - depois fechou a porta e, enquanto esperava, ligou o rádio, deixando que uma música suave enchesse o ar.
Carlos obedeceu, colocou-se embaixo do chuveiro, sentindo alívio quando a água escorreu pelo seu corpo. Ao vestir o roupão, sentiu arrepios e pensou que estivesse com febre. Quando saiu do banheiro, encontrou Benito acomodado na poltrona e, na mesinha diante de si, uma bandeja com uma garrafa de vinho, dois copos e um prato cheio de fatias de pão torrado cobertas com queijo, presunto, tomate e ervas. Vendo-o aproximar-se, Benito segurou o prato e o ofereceu a Carlos:
- Essas são as bruschetas, especialidade da nossa cidade. Experimente uma!
Carlos estava sem fome, mas, não querendo ser indelicado, pegou uma e começou a mordiscar. Benito serviu o vinho e entregou-lhe um copo, dizendo:
- Vamos comemorar este nosso encontro. Estou seguro de que esta será uma noite mágica que mudará a sua vida!
Carlos sentou-se na poltrona ao lado do amigo. Benito queria animá-lo e esforçou-se para não decepcioná-lo. Comeu o pão, tomou alguns goles do vinho e sentiu que um calor gostoso o fez relaxar. Benito falava com entusiasmo dos passeios que fariam e das pessoas que Carlos conheceria. Quando todas as bruschetas acabaram e a garrafa de vinho estava quase pelo fim, Carlos percebeu que se sentia melhor.
- Vamos sair um pouco, dar uma volta.
Então, Carlos concordou e eles saíram. A noite estava fria, mas agradável. Enquanto caminhavam, Benito falava sobre a cidade, contanto fatos engraçados sobre a ocupação americana e o modo como os italianos lidavam com a situação. Sua narrativa bem-humorada e seu jeito descontraído distraíram Carlos, fazendo com que esquecesse suas preocupações. As pessoas elegantes que circulavam pelas ruas e enchiam os bares e as lojas, com suas vitrines iluminadas, fizeram Carlos observar:
- Tudo está muito lindo. Nem parece que este país esteve durante tantos anos em guerra!
- Todos nós passamos por situações dolorosas, sofremos perdas irreparáveis, mas elas acabam e queremos esquecer, varrer da nossa lembrança os horrores que fomos forçados a suportar.
- É verdade. Eu tenho feito tudo para esquecer, mas, de vez em quando, ainda sou assombrado pelos fantasmas que ficaram para trás.
Carlos logo se lembrou de Adriano e uma sombra de tristeza o acometeu. Benito, percebendo, pousou o braço sobre o do amigo, dizendo:
- Espero que nunca mais voltem. Todos já pagamos nossa cota de sofrimento. De agora em diante, só vale a alegria. Estamos vivos, somos jovens, temos muitos anos pela frente. Temos o direito de ser feliz!
Carlos suspirou e não respondeu. Benito continuou:
- Tenho aprendido que cultivar a tristeza atrai sofrimento.
- Ninguém fica triste porque quer.
- Depende. Há pessoas que só olham o lado ruim, dramatizam fatos, exageram, pensando sempre no pior. Você nunca conheceu alguém assim? Benito fez cara de tristeza e começou a falar com voz fina como se fosse uma mulher idosa reclamando da vida, dizendo-se vítima da maldade alheia. Em seguida engrossou a voz respondendo a ela, querendo fazê-la mudar. Carlos riu com gosto e, no final, comentou:
- Você é um bom comediante. Nunca pensou em ser ator?
- Nos tempos de colégio. Mas veio a guerra e a vontade passou. Apesar de tudo, continuo bem-humorado, o que tem me ajudado muito. Tenho certeza de que o bom humor atrai coisas boas.
- De onde tirou essa ideia?
- Tenho observado que as pessoas bem-humoradas são as que vivem melhor, com mais saúde e disposição, são aceitas e queridas. Nunca notou?
- De fato. Pensando assim... Mas a vida tem surpresas desagradáveis e nem sempre podemos estar bem.
Caminhavam por uma praça quando Benito parou diante de um banco e sugeriu:
- Vamos nos sentar um pouco. Quero contar-lhe o que aconteceu comigo durante a guerra.
Acomodaram-se e Benito tornou:
- Fui mandado para a guerra em outubro de 1943, depois de alguns meses de treinamento. Como você deve saber, o povo italiano preferia que o Duce tivesse se aliado aos americanos. Sabendo disso, os alemães não confiavam em nós. Instalaram-se em nosso país e mandavam mais do que nossos generais, o que fez com que muitos dos meus compatriotas passassem a odiá-los.
- Isso ficou claro quando os americanos invadiram a Itália. O povo os recebeu como libertadores.
- É verdade. Em uma noite escura, fomos colocados em um trem, viajamos durante algumas horas, e eu nem sabia onde estava. Passávamos por cidades cujos nomes eu não conseguia ler nem entender. Desembarcamos em uma pequena vila onde só podíamos ouvir o ruído das metralhadoras.
Benito fez uma ligeira pausa, depois continuou:
- Em um albergue de campanha, onde havia também um hospital, nós nos preparamos para ir às trincheiras. Nosso capitão recebeu as ordens de um oficial alemão e, sem ao menos descansar, nos colocamos a caminho.
"Ao chegarmos à primeira trincheira, nos jogamos dentro e ficamos à espera. O ruído havia parado, mas sabíamos que poderia recomeçar a qualquer momento. Poucos minutos depois, recebemos ordem de deixar a trincheira e avançar. Saímos e começamos a correr. Era madrugada, a noite fria e a fumaça não nos permitiam enxergar nada. Fomos avançando e, de repente, fomos atacados e cercados pelos inimigos, que caíram sobre nós de todos os lados. Em meio aos gritos de dor, aos clarões das bombas e ao zunir das balas, de repente eu fui arremetido para o alto, e o ruído cessou. Senti-me leve, olhei para baixo e vi os clarões, a luta, tudo, mas não ouvi nada.
Parecia estar sonhando. Então eu pensei: estou morto! Comecei a apalpar meu corpo, mas não encontrei nenhum ferimento e também não sentia nenhuma dor. Nesse momento, vi um homem aproximar-se. Era alto, moreno, cabelos grisalhos, vestia um jaleco branco. Segurou meu braço e disse:
- Eu sou o Mário. Vou levá-lo a um lugar para refazer suas energias.
Deixei-me levar com naturalidade. Era bom poder sair daquele inferno e eu estava me sentindo muito bem. À medida que seguíamos, eu me sentia cada vez melhor, como nunca havia me sentido antes.
- Acho que eu morri! - pensei.
Ele ouviu meu pensamento e respondeu:
- Seu corpo continua vivo, não se preocupe.
Encantado, eu olhava para baixo e, algumas vezes, via as luzes acesas de alguma cidade, até que chegamos diante de um prédio. A porta abriu e entramos."
Benito fez uma pausa e Carlos perguntou:
- Como pode ser? Você dormiu e sonhou em plena batalha?
- Estou contando como tudo se passou. Ao entrar na casa, senti que conhecia aquele lugar. E uma felicidade muito grande brotou no meu peito. Fui abraçado por pessoas que eu conhecia, mas não me lembrava de onde. Depois, fui conduzido a uma sala, onde uma senhora muito bonita e delicada conversou comigo durante algum tempo. Suas palavras me tocaram. Na hora entendi tudo, mas agora não consigo lembrar o que ela disse:
"Ao deixar essa sala, Mário me esperava.
- Vou levá-lo de volta.
- Não quero voltar para aquele inferno. Vou ficar aqui!
- Ainda não é sua hora. Vamos embora.
Segurou em meu braço e fomos deslizando. O dia já tinha amanhecido e fomos descendo. Reconheci o hospital ao lado do nosso alojamento. Mário conduziu-me até lá e, assustado, vi meu corpo deitado em um dos leitos.
- Não se preocupe. Está tudo bem. Você vai acordar, lembrar-se do que for possível, mas nós estaremos sempre do seu lado para ajudá-lo em sua tarefa. Fique com Deus.
Ele me conduziu até meu corpo, e eu parecia estar caindo. Senti um peso muito grande e, em seguida, abri os olhos. Uma enfermeira segurou minha mão dizendo:
- Está se sentindo melhor?
Demorei um pouco para responder. Sentia-me um tanto confuso. E perguntei:
- O que aconteceu, como vim parar aqui? Não me lembro de nada.
- Você foi encontrado desacordado e trazido para cá. Parecia morto, quase não respirava. Mas não tem nenhum ferimento. Estava em estado de choque. Tentamos reanimá-lo de diversas formas, mas não reagia de jeito nenhum. Você costuma ter essas ausências?
- Nunca tive nada.
- Foi seu primeiro combate?
- Estou lutando há mais de um ano!"
Benito fez uma breve pausa, e continuou:
- Mais tarde, o médico do hospital conversou comigo e tentou me explicar: eu tinha tido um colapso nervoso provocado pela situação. Tive algumas alucinações e precisava ficar algum tempo em observação. Seria perigoso voltar a combater, pois poderia acontecer coisa pior. Receitou-me calmantes e fiquei afastado dos combates. Eu me sentia muito bem e passei a auxiliar os médicos no atendimento aos feridos até o fim da guerra.
- Esse fato pode ter salvado sua vida.
- Não foi apenas isso. Minha vida mudou radicalmente depois daquela noite.
- Por quê?
- Eu não aceitei as explicações do médico, nem tomei os calmantes. Os fatos daquela madrugada reapareciam fortes em minha lembrança nos mínimos detalhes, provocavam fortes emoções e eu tinha certeza de que tinham acontecido de verdade. Estive com Mário, viajei com ele pelo espaço, fui a um lugar conhecido, vi pessoas amigas. Vejo aquela senhora conversando comigo, só não consigo me recordar do que ela me disse.
- Você sonhou. Há sonhos que parecem reais. Tem acontecido isso comigo.
Em poucas palavras, Carlos falou sobre a morte de Adriano, sobre os sonhos que tivera com ele, e finalizou:
- Nosso encontro foi tão forte que até hoje, quando me recordo, fico emocionado. Mas ele está morto e deve ser coisa da minha imaginação.
- Não foi apenas um sonho. Você esteve mesmo com o espírito do Adriano.
- Isso não pode ser...
- Essa é a verdade da vida. Nosso espírito é eterno e continua vivo depois da morte. Pode acreditar. Depois do que me aconteceu, o Mário tem me procurado e me ensinado muitas coisas. Falou das outras dimensões do universo para onde vão os que morrem aqui. Ele é um deles. Nós nascemos na Terra para desenvolver nossos potenciais e aprender a lidar com as nossas emoções. Somos livres para escolher nosso caminho e colhemos os resultados. Assim, entre erros e acertos, vamos evoluindo, aprendendo a viver dentro das leis espirituais que comandam a vida.
- Será isso mesmo? Está me dizendo que o Adriano continua vivo? Mas ele estava muito ferido. Se isso for verdade, ele pode estar sofrendo. Não seria melhor acabar de uma vez?
Benito sorriu e respondeu:
- O corpo que estava ferido morreu. O espírito se libertou e não está sentindo nenhuma dor.
- No meu sonho ele estava em pé, encostado em uma árvore. Parecia muito mal, magro, abatido, sofrido.
- Os ferimentos dele estavam sangrando?
- Não. Mas estava mal, parecia doente, fraco.
- Pelo que me conta, ele ainda deve estar sofrendo as impressões do que lhe aconteceu. Está angustiado, deprimido, confuso. Você pode ajudá-lo.
- De que forma?
- Antes de dormir, faça uma oração. Peça a Deus que o ajude a encontrar a paz. Se sonhar com ele novamente, diga-lhe que o espírito é eterno e que ele continua vivo, mas está sofrendo e precisa de ajuda. Certamente, a essa altura, os espíritos que prestam socorro já estarão ao lado dele. Diga-lhe que aceite ir com eles para um tratamento. Quando ficar bem, ele mesmo poderá procurar a moça e ajudá-la de alguma forma. Assim, tudo ficará bem.
Benito falava com voz firme. Tinha tanta certeza do que afirmava, que Carlos começou a sentir que poderia ser verdade: Adriano poderia estar vivo no outro mundo. Sentiu-se dominado por forte emoção. Quis saber detalhes e Benito explicava o que sabia. Enquanto os dois amigos conversavam, Carlos não sabia, mas dois espíritos estavam ao lado deles. Mário e uma senhora bonita, de traços delicados, sorriso leve. Ela colocava a mão sobre a testa de Carlos com carinho, enquanto Mário, ao lado de Benito, o inspirava. Benito sentia a presença do amigo espiritual e Carlos se sentia sensibilizado, bebendo das palavras que ouvia, enquanto novas indagações apareciam em sua mente e ele desejava saber mais e mais. Na manhã seguinte, Carlos acordou ouvindo o telefone tocar. Atendeu meio atordoado. Era Nicolai, querendo informar-se de como estava o comércio da cidade e passar-lhe algumas indicações de possíveis clientes. Recomendou muito cuidado com o material, porquanto Milão era famosa por causa dos ladrões de jóias, sempre prontos a atacar. Anotou tudo, ouviu as recomendações. Depois de desligar o telefone, sentiu sono, pois fora dormir muito tarde na noite anterior. Mas resolveu reagir, levantar, começar logo a trabalhar, aproveitar o tempo. Tomou um banho, arrumou-se, pegou as anotações e desceu para tomar café. O salão do hotel estava lotado. Depois de comer, passou na recepção e pediu um mapa da cidade. Em seguida, sentou-se, fez um roteiro de suas visitas e começou a trabalhar. Foi visitar os endereços que Nicolai lhe dera, levando consigo apenas o catálogo. O tempo passou rápido e, quando começou a escurecer, ele se assustou ao ver que eram mais de oito horas. O tempo estava agradável e as ruas, cheias de gente elegante. Carlos viu muitas mulheres bonitas. Começou a pensar que precisava melhorar seu guarda-roupa. Pediria a Nicolai que lhe mandasse mais dinheiro a fim de vestir-se melhor. Voltou ao hotel para tomar um banho, sair novamente e conhecer melhor a cidade. Assim que entrou no quarto, o telefone tocou. Era Benito, dizendo que sua mãe o convidara para um jantar em sua casa na noite seguinte. Carlos aceitou.
- Você vai conhecer a boa cozinha italiana! - disse ele. - Passarei às sete para buscá-lo. Como foi o seu dia?
- Comecei a trabalhar, mas ainda não tenho ideia do que poderei conseguir. Gostei do movimento. Notei que os clientes que visitei têm gosto refinado, são muito exigentes e bons na hora de regatear os preços.
Benito soltou uma gargalhada sonora e respondeu:
- Esses são os italianos. Mas se você souber fazer uma boa parceria, costumam ser fiéis e amigos. Tem programa para esta noite?
- A cidade está muito atraente. Estou pensando em dar uma volta, olhar o movimento.
- Faça isso. Você vai gostar. Esta noite estarei ocupado. Vou ver aquela garota de que lhe falei. Amanhã, durante o dia, se precisar de informação ou alguma coisa mais, pode me ligar. Estarei no escritório o dia inteiro. Não se esqueça que à noite passarei no hotel às sete para apanhá-lo.
- Não vou esquecer. Se precisar, eu ligo. Agradeça à sua mãe pelo convite.
Carlos desligou, arrumou-se e saiu para jantar. Escolheu um pequeno e charmoso restaurante, comeu uma massa, tomou um copo de vinho, depois foi dar uma volta. Mas o sono apareceu forte e ele voltou ao hotel para dormir. No dia seguinte, depois de trabalhar até o fim da tarde, voltou ao hotel para esperar Benito. Havia comprado algumas rosas para presentear a mãe do amigo e um elegante blazer na cor vinho, que ficaria muito bem com sua calça de casimira bege e uma camisa de seda da mesma cor. Benito foi pontual, elogiou a elegância de Carlos. Desceram e entraram no carro do amigo. Durante o trajeto, Benito explicou:
- Você vai conhecer as mulheres da minha família. Minha mãe é Lúcia, minhas irmãs se chamam Gina e Marta. Somos só nós quatro. Meu pai morreu durante a guerra.
- Agradeço sua mãe por ter me convidado.
- Ela acha que você deve estar com saudades de casa.
Carlos não soube o que responder. Na verdade ele não sentia saudades dos seus. Saíra de casa muito cedo, estivera fora durante muito tempo e, ao regressar, não encontrara o apoio e o carinho que esperava.
- Ela deve ser uma boa mãe - disse pensativo.
- A melhor do mundo! É aqui, chegamos.
Estavam diante de um sobrado estilo antigo, com jardineiras nas janelas e duas portas. Benito parou diante da porta de ferro, atrás da qual havia uma escada, e tocou a campainha. Ouviu-se um estalo e a porta se abriu.
- Vamos subir - convidou Benito.
Ao chegar no topo, uma mulher ainda jovem, de cabelos escuros, lindos olhos verdes, com um sorriso nos lábios, abraçou-os. Corou ao receber as flores, agradeceu e disse:
- Vamos entrar, sinta-se em casa.
A casa era ampla e possuía um teto alto, o que não se notava do lado de fora. Um cheiro agradável pairava no ar. Carlos gostou do que viu. Os móveis clássicos, a sala, os quadros, era tudo muito bonito. Ele admirava o ambiente, quando Benito disse:
- Estas são minhas irmãs: Gina e Marta.
Carlos voltou-se, viu as moças e empalideceu. Seus olhos se turvaram e ele pensou que fosse desmaiar. Todos os presentes, assustados, rodearam-no. Lúcia foi buscar um copo de água, enquanto Carlos se esforçava para recobrar a calma. Ele reconhecera uma das moças como aquela com quem sonhava e trocava apaixonadas juras de amor. Aos poucos foi se controlando. Enquanto todos se esforçavam para ajudá-lo, Carlos, já mais senhor de si, pensava: É ela! Meu Deus! Estarei sonhando? O que está acontecendo comigo? Como é possível? Não poderia falar que a conhecia, que costumava se encontrar com ela em sonhos apaixonados. Estava diante de uma terrível coincidência! Segurou o copo com mãos trêmulas, bebeu alguns goles querendo ganhar tempo, depois disse:
- Desculpe-me. Não sei o que aconteceu. Pensei que fosse perder os sentidos, mas já está passando.
Benito segurou a mão de Carlos, que fechou os olhos durante alguns segundos e começou a respirar melhor, sentindo-se aliviado.
- Você costuma ter esses sintomas? - indagou Lúcia preocupada.
- Não. Foi a primeira vez! Já passou.
Benito segurou-o pelo braço e levou-o até o sofá:
- Sente-se, descanse um pouco.
As duas moças olhavam sérias. Benito continuou:
- Você olhou para minhas irmãs e sentiu-se mal. O que aconteceu?
Carlos não respondeu imediatamente. Não queria dizer a verdade. Tentou contemporizar:
- Do jeito que você coloca, o que elas vão pensar de mim? - e, fixando as duas, continuou: - Vamos fazer de conta que não aconteceu nada.
Carlos levantou-se, aproximou-se delas e estendeu a mão dizendo:
- Eu sou Carlos e tenho muito prazer em conhecê-la.
- Eu sou a Marta, prazer!
Depois de apertar a mão que ela lhe oferecia, Carlos voltou-se para Gina e, quando fixou seus olhos nos dela, sentiu o coração descompassar. Controlou-se e estendeu a mão, dizendo:
- E você deve ser a Gina. Estou feliz por encontrá-la!
Gina apertou a mão que ele lhe oferecia e, olhando fixamente nos olhos dele, perguntou:
- Nós nos conhecemos de algum lugar?
Carlos sentiu a emoção aumentar. Ela também se lembrava dele. Teve vontade de perguntar se também costumava sonhar com ele, mas se conteve. Ao sentir o calor da mão dela na sua, a atração que o acometia durante os sonhos reapareceu com força e ele teve de se esforçar para agir com naturalidade. A conversa generalizou-se. Lúcia tinha muita curiosidade e fazia perguntas sobre o Brasil. Contou que, quando ainda era criança, uma tia, irmã de sua mãe, havia se apaixonado, a família não aprovou e ela fugiu com o namorado. Mais tarde, souberam que eles estavam morando no Brasil. Desde então, ela se interessara pelo país. Aos poucos, Carlos foi voltando ao normal, mas de vez em quando notava que Gina o fixava com interesse. Sentiu que precisava conversar a sós com ela, fazer-lhe as perguntas que o incomodavam. Queria entender o que estava acontecendo. Como ele poderia ter sonhado com ela antes de conhecê-la e, ainda mais sentir tanta emoção? O jantar foi servido e a conversa fluiu alegre. Carlos, já mais controlado, gostou da atmosfera que ali reinava. Lúcia era uma senhora inteligente, culta, de classe, e as duas moças eram muito educadas e amáveis. O ambiente era muito agradável. Depois do jantar, Benito e Carlos tomavam licor na sala e, enquanto Lúcia e as duas moças cuidavam da cozinha, Carlos não se conteve:
- Entendo por que você deixou Paris e preferiu voltar para casa. Tem uma família especial, muito agradável.
- Também acho. Este é o meu paraíso. Às vezes cogito me casar, formar família, mas ao mesmo tempo penso: estou tão bem! Não preciso de nada!
- Não sente falta de um amor?
- Conforme eu já lhe disse, estou começando a me apaixonar. Namorar é muito bom, mas casar e dividir problemas pode acabar com qualquer relação.
Carlos riu e respondeu:
- É verdade. Olhando dessa forma...
- Foi por isso que, quando me contou que perdeu seu grande amor, eu lhe disse que talvez fosse melhor assim. Um dia você ainda vai me dar razão.
- Em que se baseia para afirmar isso? Eu sofri muito por ser rejeitado, ver todos os meus sonhos destruídos.
- Eu gosto de respeitar o que a vida quer. Não gosto de forçar nada. Se ela afastou essa moça de sua vida, é porque está lhe reservando algo melhor, mais adequado ao que você precisa.
- De onde tirou essa ideia? A vida é resultado do que nós queremos. Ela não tem nenhum poder de intervir. Eu decido o que e como quero fazer as coisas.
- Então, como explica que os resultados não saíram como você esperava?
- A culpa foi dela, que não teve paciência de esperar, que me esqueceu e preferiu ficar com outro.
- Jogar a culpa nela não esclarece nada, apenas faz de você uma vítima, o que não é verdade.
- Como não? Eu voltei disposto a cumprir minha parte em nosso compromisso. Ela não quis.
Benito meneou a cabeça e disse:
- As pessoas mudam e ela mudou. Isso acontece com todos nós. Foi sincera, não o enganou. Deve ser uma boa moça.
- Pelo menos falou a verdade. Mas jogou um balde de água fria no meu entusiasmo. Durante todo o tempo que estive fora, sonhei com o dia em que voltaria e realizaria nossos projetos. Foi uma decepção horrível. Tive vontade de cometer uma loucura!
- Quer saber? Você não amava essa moça de verdade. O que você teve foi apenas uma crise de orgulho ferido!
Carlos ficou calado durante alguns segundos. Depois disse:
- Será?
- Claro. Não é fácil ser rejeitado, trocado por outro. Mas estou certo de que um dia você vai perceber que foi melhor assim, que a vida cuidou da sua felicidade melhor do que você mesmo.
Carlos riu e respondeu:
- Você é a primeira pessoa que fala bem da vida. Pelo que sei, este mundo é um vale de lágrimas. A própria religião prega isso. Olhando todo o sofrimento que há no mundo, a violência, as doenças, a morte, a maldade, não dá para ver a vida como uma coisa boa.
- Basta olhar em volta para saber que você está iludido. Diz isso para mascarar a verdade.
Benito olhou firme nos olhos de Carlos e respondeu:
- Quem está enganado é você e todos os que não sabem nada sobre os mistérios da vida. E sabe por quê? Porque ela é tão sábia que só os revela para quem já tem condições de entender sua linguagem. A maioria das pessoas vive apenas com o que parece, teme ir mais fundo, levantar a ponta do véu. As religiões preferem conservar o mistério para dominar as massas.
- Estou vendo que você não é religioso.
- Não sou mesmo. Depois daquelas experiências que lhe contei, passei a acreditar na espiritualidade. Mário tem me ensinado muito.
Carlos queria fazer-lhe algumas perguntas, mas Lúcia aproximou-se com uma bandeja, dizendo:
- Vocês aceitam mais café?
Os dois aceitaram, ela serviu e, enquanto eles tomavam, ela continuou:
- Vocês gostariam de um pouco de música, ou preferem conversar?
Foi Benito quem respondeu:
- Certamente! - e, voltando-se para Carlos, disse: - Você gosta de música?
- Muito!
- Então venha comigo. Você vai gostar!
Carlos o acompanhou a outra sala muito bonita, mobiliada com classe, onde havia um piano e um violino. Benito indicou uma poltrona para que Carlos se acomodasse. Lúcia sentou-se ao piano e Marta segurou o violino, enquanto Gina permanecia ao seu lado.
- O que gostariam de ouvir? - indagou Lúcia.
- Fica a seu critério - respondeu Carlos.
- Mostre um pouco da nossa música - disse Benito. - Vamos ver o que podemos fazer.
Ela começou a tocar uma antiga canção italiana. Marta acompanhava com o violino e logo Gina começou a cantar. Carlos sentiu muita emoção. Parecia que já tinha vivido aquela cena. Gina cantava com a alma, e ele parecia hipnotizado. Não conseguia desviar os olhos dela, estava fascinado. Depois da primeira canção, Lúcia tocou algumas músicas em voga na Europa. Quando parou, Carlos não disse nada, e as três o olhavam admiradas.
- Você ficou calado. Acho que não gostou das músicas que apresentamos - disse Lúcia.
Carlos procurou controlar a emoção e respondeu sorrindo:
- Há muito tempo não assistia a um espetáculo tão bom! Desculpe, mas fiquei em estado de choque. Foi maravilhoso! Vocês são artistas, e muito boas!
Benito acrescentou:
- Bem vi a sua cara de surpresa! Você não esperava que elas fossem assim tão boas.
- Não ligue para o que ele diz. Como sempre, exagera! - comentou Gina sorrindo.
Ela se mantivera discreta o tempo todo, falando apenas o indispensável, mas, assim que começara a cantar, seu rosto e sua postura foram se modificando. Ao dizer aquelas palavras, rosto expressivo e corado, olhos verdes brilhando, estava encantadora. Carlos teve vontade de abraçá-la e beijar seus lábios carnudos. A muito custo se conteve:
- Não é verdade. Você canta como uma deusa. Sua voz é maravilhosa! - depois, percebendo que os três olhavam-no maliciosos, tentou dissimular o que sentia e continuou: Foi um espetáculo maravilhoso! Dona Lúcia toca divinamente e Marta tem alma de artista.
Continuaram conversando um pouco mais, até que Carlos levantou-se, olhou o relógio e disse:
- Preciso ir. É tarde. Estou abusando da vossa hospitalidade.
- Não diga isso. Sua visita nos encantou. Fez-me recordar os saraus que fazíamos antes da guerra - comentou Lúcia com olhos brilhantes de emoção.
- Eu perdi a noção do tempo. Nunca esquecerei esta noite. Fez-me sentir que a vida pode ser muito melhor do que tem sido.
- Tem certeza de que quer mesmo ir embora? - indagou Gina.
- Não quero abusar. Pretendo voltar a vê-los mais vezes.
- Quanto tempo pretende ficar em Milão? - indagou Lúcia.
- Não sei ainda. Vai depender dos negócios. Mas adorei a cidade e vou procurar ficar o máximo que puder.
- Esta foi uma noite muito agradável e precisa ser comemorada - tornou Benito. - Antes de levá-lo de volta, vou abrir uma garrafa de vinho e vamos brindar ao futuro. Sinto que nossa amizade vem de outros tempos, talvez de outras vidas!
Carlos olhou-o surpreendido. Será que Benito estava sentindo o mesmo que ele? Animou-se a dizer:
- Enquanto elas tocavam, tive a sensação de já ter vivido aquela cena antes. Como pode ser isso?
Benito olhou-o nos olhos e respondeu:
- Nós acreditamos que já vivemos outras vidas antes dessa.
- Será? Seja como for, o que nos acontece é muito estranho. Nós dois nos conhecemos recentemente, e sua família conheci hoje. Mas, ao entrar aqui, tive a sensação de estar reencontrando velhos conhecidos.
- Eu tenho essa sensação desde que o conheci. Não tenho nenhuma dúvida. Por esse motivo vou abrir o vinho. Acho que devemos celebrar este nosso encontro.
Voltaram para a outra sala. Benito abriu o vinho, encheu as taças, ofereceu uma a cada um, depois, erguendo a sua taça, disse:
- Que a alegria desta noite se reproduza em nossas vidas e nossa amizade seja eterna!
Eles tocaram os copos, tomaram alguns goles. Carlos colocou a taça sobre a mesa:
- Eu gostaria de conversar sobre este assunto, entender um pouco mais. Mas fica para outro dia. Vocês devem estar cansados, não quero abusar.
Carlos não lhes deu tempo de responder, estendeu a mão para Lúcia e continuou:
- Obrigado, senhora, pelo carinho. Há muito eu não tinha momentos tão bons.
Ele beijou a mão dela, que sorriu:
- Enquanto estiver em Milão, você está intimado a vir jantar conosco todas as noites e, depois, vocês que são jovens podem sair, passear. As meninas terão o maior prazer em levá-lo a conhecer nossa cidade.
O rosto de Carlos iluminou-se. Estar ao lado de Gina era tudo o que ele mais queria. Estava ansioso para descobrir se ela também sonhava com ele. Benito interveio:
- Faça isso mesmo. Mesmo que eu tenha algum compromisso, elas lhe farão companhia.
Ao apertar a mão de Marta, Carlos tornou:
- Vai ser um prazer sair com vocês.
Ao segurar a mão de Gina, Carlos estremeceu e, a custo, controlou a vontade que sentiu de abraçá-la. Fitou seus olhos verdes e seu coração disparou. Notou que ela estremeceu e seu rosto enrubesceu. Sem desviar os olhos dos dela, disse emocionado:
- Até amanhã. Pode estar certa de que estarei aqui.
- Estaremos esperando - respondeu ela.
Benito interveio:
- Vamos, vou levá-lo ao hotel.
- Não se incomode, Benito. Posso ir de táxi.
- Não custa nada levá-lo. A esta hora você não vai conseguir táxi nenhum. Vamos embora.
Eles saíram e, durante o trajeto, conversaram animadamente sobre os lugares que Carlos deveria conhecer. Quando entrou em seu quarto no hotel, Carlos deixou-se cair em uma poltrona, pensando no encontro daquela noite. Embora os encontros com Gina em sonhos fossem muito fortes e fizessem com que ele passasse dias só pensando nela, nunca imaginara que aquela mulher existisse na vida real. As indagações surgiam e Carlos procurava hipóteses, sem chegar a conclusão alguma. Parecia impossível, mas havia acontecido. De repente, lembrou-se que, no último sonho, ela lhe dissera: "Não estou em Paris, vivo na Itália, não se lembra?" O que ela lhe dissera no sonho era verdade. Ela vivia na Itália. Como não pensara nisso antes? Mexido, emocionado e curioso, Carlos deitou-se. A recordação dos sonhos e dos acontecimentos da noite não o deixava relaxar e dormir. Rolava na cama, pensando. O dia estava clareando quando, por fim, cansado, conseguiu adormecer. Passava das onze quando Carlos acordou no dia seguinte. Levantou-se apressado, tomou um banho, sentiu fome. Vestiu-se e desceu. O café do hotel já tinha encerrado e então ele saiu. Encontrou uma lanchonete, onde pediu um sanduíche e um café, e sentou-se para comer. Os acontecimentos da noite anterior lhe vieram à mente e Carlos tentou expulsá-los. Lembrou-se que Nicolai havia lhe indicado alguns endereços para visitar. Fizera muitas recomendações e era preciso traçar um roteiro de trabalho. Na véspera, Benito lhe falara sobre outras possibilidades e ele precisava checar. Depois do café, voltou ao quarto munido de um mapa da cidade, sentou-se, programou as três primeiras visitas, apanhou a pasta com o catálogo e saiu. Visitou duas lojas. Na primeira, foi recebido pelo gerente, que lhe pareceu interessado e prometeu ligar depois que falasse com o dono. Na segunda, depois de esperar mais de uma hora, porquanto o dono estava almoçando, foi atendido pela secretária, que assim que soube o que ele desejava, informou que seu chefe estava em uma reunião e disse que lhe telefonaria caso houvesse interesse. Carlos caminhou pelo centro comercial da cidade, admirou as lojas famosas, as vitrines, os produtos expostos com bom gosto e classe, a elegância das pessoas que passavam, vestidas com apuro. Ao passar por uma confeitaria, decidiu entrar para comer alguma coisa. Como tomara café tarde e não almoçara, estava com fome, mas ainda era muito cedo para jantar. As mesas estavam cheias e o burburinho alegre das pessoas preenchia o ar. Carlos olhou em volta: não havia nenhuma mesa disponível. Voltou-se para a saída, quando alguém tocou seu braço dizendo:
- Carlos! Que bom vê-lo!
Era Marta, sorrindo. Ela continuou:
- Você ia embora?
- Sim, ia procurar outro lugar. Que prazer encontrá-la!
- Estamos sentadas ali no canto, tomando sorvete. Vi quando você entrou. Venha sentar-se conosco.
Carlos acompanhou-a até a mesa onde Gina, diante de uma taça de sorvete, os esperava. Depois de cumprimentá-la, Carlos sentou-se satisfeito. Assim como elas recomendaram, pediu uma taça de sorvete e, enquanto esperava, comentou:
- Foi um prazer muito grande encontrá-las. A noite de ontem foi mágica para mim, maravilhosa. Ainda estou encantado.
Gina fixou os olhos nos dele quando disse:
- Eu senti algo diferente. Havia mesmo uma magia no ar fazendo-me sentir saudades sem saber de quê. Tive a impressão de estar sonhando!
Carlos esforçou-se para controlar a emoção e respondeu:
- Você costuma sonhar com coisas boas?
Gina suspirou, fechou os olhos, depois disse:
- Os sonhos são parte da vida e nos ajudam a passar o tempo. O que seria de nós sem eles?
- O que você sentiria se um dia esses sonhos se tornassem realidade?
- Bem que eu gostaria, mas acho difícil, se não impossível. No sonho nós podemos tudo, realizamos nossos desejos. No dia a dia, precisamos controlar as emoções, seguir as regras, entrar no papel social.
- Pois eu acho que a realidade é melhor do que o sonho - interveio Marta. - Não sou sonhadora como você, prefiro manter os pés no chão. E você Carlos, o que pensa?
- Tento transformar os sonhos bons em realidade. Esse é o caminho.
A garçonete aproximou-se, colocou a taça de sorvete e um copo de água gelada diante de Carlos, que agradeceu. Gina o olhou séria e tornou:
- Se eu pudesse vencer as barreiras, faria isso mesmo.
Eles ficaram se olhando em silêncio e Marta sorriu maliciosa:
- Gina, sempre sonhadora! Vive sonhando com um desconhecido e jura que um dia ele vai aparecer para buscá-la! A época dos contos de fada já passou. Ela tem recusado sistematicamente todos os pretendentes. Se continuar assim, ficará para titia.
Gina corou e respondeu:
- Você não acredita, mas eu tenho certeza do que estou fazendo.
Carlos completou:
- Eu era como você, Marta, não acreditava que meu sonho se tornasse realidade, mas hoje sei que estava errado. Neste mundo tudo é possível!
- O que o fez mudar de ideia? - perguntou Marta.
- Fatos que julgava impossíveis e aconteceram. Eu sonhava sempre com uma pessoa que não conhecia e trocava com ela juras de amor. Até que um dia a encontrei e descobri que ela existe, é uma pessoa real.
Gina empalideceu. Colocou a mão sobre o braço dele, dizendo séria:
- Esse caso está acontecendo comigo! Como pode ser?
Carlos segurou a mão dela e disse emocionado:
- Gina, era com você que eu sonhava. Ao vê-la, ontem, eu a reconheci e me emocionei, pensei que fosse perder os sentidos. Nunca imaginei que um dia a encontraria! Precisamos conversar, tentar esclarecer o que nos aconteceu. Vamos para algum lugar calmo e lhe contarei tudo.
Gina estava trêmula e Marta, olhando-os surpreendida, considerou:
- Vocês precisam conversar mesmo. Por que não vão até a praça? Eu ficarei aqui, tomarei meu sorvete e pagarei a conta. Depois irei encontrá-los.
Carlos segurou a mão de Gina e eles caminharam em silêncio até a praça que ficava ali perto. Procuraram um banco em um lugar sossegado e sentaram-se. Olharam-se nos olhos e Carlos a abraçou, beijando-a com paixão. Ela correspondeu. Depois, ela se afastou um pouco e disse:
- Carlos, o que está acontecendo conosco? Nós nos conhecemos ontem e eu sinto que esperei por você todos esses anos. Estou assustada.
- Eu estou feliz! Você não?
Ela fixou-o e seus olhos brilharam quando disse:
- Sim. Tanta felicidade me assusta. Não dá para entender! Não tem lógica.
Carlos abraçou-a de novo e beijou-a com amor.
- O que importa é que estamos juntos! Sinto que a conheço, estou emocionado, só sei que é você que eu quero!
Beijaram-se várias vezes, depois ficaram abraçados em silêncio, sentindo o coração bater forte. De vez em quando, Carlos acariciava o rosto dela e a beijava com amor. Algum tempo depois, Marta aproximou-se e, vendo-os abraçados, não se conteve:
- Vocês se entenderam! Conseguiram descobrir o que está acontecendo? Até agora não consigo acreditar.
- É como um milagre, não dá para explicar - tornou Carlos. - O que sentimos é muito forte.
Marta balançou a cabeça hesitante:
- Calma. Será que não estão se deixando levar por um impulso momentâneo? Vocês dois sonhavam com encontros amorosos, mas pode ser apenas uma coincidência, a manifestação de um desejo, uma ilusão. Não quer dizer que vocês de fato se amem e sejam os personagens desses sonhos.
Foi Gina quem respondeu:
- Não foi coincidência. Estou certa de que em algum lugar em alguma época da qual não consigo me lembrar, nós estivemos juntos como agora. O sentimento é muito forte.
- É melhor ter calma. Vocês dois podem estar iludidos. Você sempre foi romântica.
- Como gostaria que fosse assim, está fantasiando.
Gina sacudiu a cabeça negativamente:
- Você não entende. Não pode sentir o que estamos sentindo.
Marta sentou-se ao lado deles e comentou:
- Cuidado, Gina. Carlos está aqui de passagem. Logo irá embora e você não pode se iludir dessa forma.
Carlos apertou a mão dela, que detinha entre as suas, e disse:
- Ainda não pensei no futuro. Só sei que não desejo mais me separar dela.
Marta balançou a cabeça preocupada. O que Benito e sua mãe diriam quando soubessem? Carlos era estrangeiro e eles não o conheciam bem, nem sabiam quais eram seus valores, suas crenças. Levantou-se dizendo:
- É tarde, Gina. Temos de ir embora. Mamãe já deve estar preocupada.
- É verdade. Por mim gostaria de ficar aqui a noite toda, mas temos de ir.
Gina afastou-se dele e levantou-se. Carlos a acompanhou:
- Eu também ficaria aqui a noite inteira. Mas entendo. Gostaria de acompanhá-las, de conversar com dona Lúcia e Benito. Contar-lhes tudo.
Gina colocou a mão no braço dele, dizendo:
- Eu adoraria. Mas é melhor você não ir. Não vamos nos precipitar. Eu mesma quero contar à mamãe e fazer com que ela entenda o que sentimos. Preciso prepará-la primeiro.
Carlos concordou. Foram caminhando abraçados, rosto radiante, coração batendo forte, até o lugar onde elas se despediram tomaram um ônibus. Carlos voltou ao hotel pensativo, emocionado. As emoções misturavam-se e ele não conseguia recuperar a calma. Sentou na cama tentando relaxar. Aquela situação inusitada era inquietante. Ao mesmo tempo que sentia por Gina um sentimento muito forte de amor, uma sensação de medo o inquietava, como se fosse acontecer algo que impedisse de ficar juntos. Passou a mão pelos cabelos, tentando afastar os pensamentos desagradáveis. Ambos eram livres e não havia nenhum impedimento que pudesse separá-los. A família de Gina tinha classe. Viviam bem, mas não eram ricos. No momento, a sua situação financeira não era muito favorável, mas confiava que, com o tempo, realizaria seus projetos e tornaria rico o bastante para poder pensar em casamento. No dia seguinte, teria uma boa conversa com dona Lúcia e Benito e pediria Gina em namoro. Queria que soubessem que amavam e desejavam se casar. O fato de terem de esperar algum tempo Para o casamento seria uma oportunidade para que a família o conhecesse melhor. Eles o haviam recebido com carinho, o que, por certo, facilitaria a aprovação do pedido. Tendo resolvido isso, sentou-se diante da mesa disposto a programar seu trabalho para o dia seguinte. Naquele momento, Gina estava sentada na sala conversando com a mãe sobre o assunto. Ela relatou os sonhos amorosos que tivera com um desconhecido e que lhe provocaram fortes emoções que permaneciam durante os dias subsequentes. Lúcia ouvia admirada. Gina nunca lhe contara nada. Olhava para a filha curiosa, querendo descobrir aonde ela queria chegar. Gina continuou:
- No sonho eu o conhecia e o amava muito, mas quando acordava lembrava que, na verdade, nunca tínhamos nos encontrado. Cheguei a pensar que esse sonho fosse uma fantasia da minha cabeça e que esse homem não existisse. Mas ele existe de verdade e nós nos encontramos.
Lúcia levantou-se admirada:
- O que disse? Tem certeza?
- Tenho. Ao encontrá-lo, não o reconheci de imediato. No sonho, ele estava um pouco diferente, com roupas antigas, e os cabelos eram mais claros. Apesar disso, senti que o conhecia de algum lugar assim que o vi. Porém, hoje nos encontramos por acaso, e ele me confidenciou que tinha os mesmos sonhos que eu sem nunca pensar que eu pudesse existir mesmo. Tanto que, ao me ver pela primeira vez, foi tanta a emoção que ele quase desmaiou.
Lúcia sentou-se novamente, olhando-a desconfiada:
- Por acaso você está falando de Carlos?
- Estou. Ele tinha os mesmos sonhos que eu.
- Como eram esses sonhos?
- Nós trocávamos beijos e carinhos apaixonados, dizendo que queríamos ficar juntos para sempre.
Lúcia passou a mão pelos cabelos pensativa. Esses sonhos seriam fruto de uma fantasia ou estaria acontecendo alguma coisa que ultrapassava as barreiras do mundo físico? Respirou fundo e perguntou:
- Que conclusão vocês tiraram disso?
- Que queremos ficar juntos. Carlos queria vir aqui conversar com você e Benito e pedir permissão para namorarmos.
Lúcia ficou pensativa durante alguns segundos, depois disse:
- Por mais estranho que esse caso pareça, tenho vontade de ouvir o que Carlos tem a nos dizer. Ele pode vir conversar.
Gina levantou-se e beijou efusivamente o rosto da mãe:
- Obrigada, mãe, por entender nosso momento.
- Tenha calma. Vamos analisar tudo isso e descobrir se esse amor tão especial existe mesmo e se não é fruto de uma ilusão ou de uma coincidência.
Gina suspirou e respondeu com voz firme:
- Desta vez ninguém nem nada vai nos separar!
Os olhos dela brilhavam e Lúcia indagou:
- Por que está dizendo isso?
Gina deu de ombros:
- Não sei. Apenas senti que agora é pra valer.
Lúcia a olhou séria. As palavras dela a intrigaram. Gina às vezes dizia coisas inesperadas e, quando isso ocorria, sempre tinha a ver com algum acontecimento futuro. Será que esse amor seria mesmo verdade? Era o que ela tentaria descobrir, e sabia o que fazer para isso. Na manhã seguinte, Lúcia se levantou cedo, arrumou-se e saiu. Tomou um táxi e parou diante de um prédio de apartamentos. Subiu ao segundo andar, parou diante de uma porta e tocou a campainha. Uma jovem abriu e, ao vê-la, cumprimentou-a com alegria e convidou a entrar.
- Venha, dona Lúcia, mamãe está na saleta.
- Juliana, se ela está trabalhando, não quero interromper. Posso esperar.
- Não. Ela está separando alguns papéis.
Ela bateu ligeiramente na porta, abriu e Lúcia entrou. Giovana era uma mulher alta, encorpada, cabelos curtos, olhos grandes e sorriso alegre. Ao ver Lúcia, abraçou-a com carinho:
- Que prazer em vê-la! Como vai?
- Bem, mas estou precisando conversar com você.
- Sente-se, vamos conversar. Em que posso ajudar?
- Aconteceu uma coisa incomum. Preciso saber se tem fundamento.
- Pode falar.
- O caso é com Gina. Você sabe. Desde pequena ela sempre foi sensível, sonhadora, e você sempre me disse que tivesse muito cuidado com ela.
- O que aconteceu?
Em poucas palavras, Lúcia relatou os fatos e finalizou:
- Ela está levando isso a sério. Benito conheceu esse moço recentemente e nós, há apenas dois dias. Não sabemos nada sobre ele. Não sei o que fazer. Preciso de ajuda.
- Apesar de ser um caso incomum, sinto que há alguma coisa. Vamos ver.
Giovana abriu a gaveta da mesa, apanhou uma caixa e uma toalha vermelha, estendeu sobre a mesa, abriu a caixa, apanhou um baralho e disse:
- Como é o nome dele?
- Carlos.
- Vamos ver o que as cartas dizem. Corte três vezes com a mão esquerda.
Lúcia obedeceu, enquanto Giovana, de olhos fechados, se concentrava. Depois, ela começou lentamente a dispor as cartas sobre a mesa. Não parecia a mesma pessoa de momentos antes. Seus olhos estavam brilhantes e ela começou a falar:
- Esse caso começou há muito tempo atrás.
Naquele instante, ela colocou o maço de cartas sobre a mesa e continuou:
- Foi na Espanha que tudo aconteceu. Ela era nobre, filha de um rico fidalgo. Ainda muito jovem, o pai a forçou a se casar com um homem mais velho para juntar as fortunas. Mas ela nunca aceitou o casamento. Carlos a conheceu e se apaixonou perdidamente. Apesar de saber que ela era casada, tudo fez para conquistá-la.
Giovana, olhos perdidos no tempo, sequer olhava as cartas sobre a mesa:
- Carlos pertencia a uma família de nome. Seu pai fora ministro do rei e sua mãe era aparentada com a família real. Eles tinham muito orgulho de sua casta e se comprometeram a casar Carlos com a filha de um rico senhor, mas ele recusou. Fizeram de tudo, até ameaçaram deserdá-lo, mas ele não cedeu e saiu de casa.
Giovana fez ligeira pausa. Suspirou fundo e prosseguiu:
- Movido pela paixão, Carlos tudo fez para conquistar Gina, que, carente de amor, acabou se tornando sua amante. Durante algum tempo, entregaram-se à forte paixão que os dominava. Carlos não se conformava em dividi-la com o marido. Louco de ciúmes, fazia de tudo para que ela concordasse em fugir com ele. Mas ela se recusava por causa de um filho pequenino que muito amava.
Giovana remexeu-se na cadeira, passou a mão nos cabelos, depois disse:
- É só o que posso dizer por agora.
Lúcia ouvia emocionada, olhos úmidos, sentindo o coração bater forte, como se houvesse participado daquela história, e pediu:
- Por favor, Giovana, continue. Sinto que também vivi essa história. Estou emocionada.
- Sinto muito, minha querida, mas não tenho como. Meu guia espiritual se manifesta só quando ele quer e não posso fazer nada. Mas você já teve a sua resposta: o amor deles não é uma fantasia, existe de fato e remonta a outras vidas. É só o que posso dizer.
- Eu voltarei outro dia. Espero que ele volte e você possa me dizer alguma coisa mais.
- Venha quando quiser, mas não posso prometer nada. Contudo, se ele vier e me revelar mais alguma coisa, eu lhe direi.
- Obrigada, minha querida. Você tem um dom maravilhoso. Enquanto você falava, parecia que eu estava vendo as cenas. Onde será que eu estava naquele tempo?
- Às vezes é melhor ignorar. A vida só age para ajudar a melhorar e só revela o que é preciso.
Durante o trajeto de volta à casa, Lúcia foi pensando no que poderia acontecer dali para frente. Fosse o que fosse, ela rezaria muito para que Gina desta vez pudesse ser feliz. Na noite seguinte, quando Carlos chegou à casa de Lúcia, encontrou a família reunida na sala à sua espera. Ao voltar da casa de Giovana, Lúcia colocara Benito a par dos acontecimentos. Ele não se surpreendeu. Depois de ouvi-la atentamente, disse:
- Eu sabia que meu encontro com Carlos não tinha sido por acaso. Quando nos encontramos pela primeira vez, tive a sensação de conhecê-lo de algum lugar.
- Vai ver você também fez parte dessa história.
- Pode ser. Mas enquanto você falava sobre as revelações de Giovana, senti muito medo.
- De quê?
- Não posso precisar. É uma sensação de que uma grande tragédia está prestes a nos acontecer.
Lúcia ficou pensativa por alguns segundos, depois disse:
- Pode ser um reflexo do seu passado. Se você teve ligação com os fatos daquele tempo, eles ainda estão em seu inconsciente.
- É... pode ser. Acho que vou falar com Giovana. Talvez ela possa nos esclarecer.
- O importante é que não se trata de uma ilusão. Portanto, é melhor olharmos tudo com bom senso. Analisar a situação como é hoje. Seja lá o que tenha acontecido anteriormente, hoje a vida está nos reunindo para o melhor.
- É verdade. A vida só faz o melhor. Vamos ver o que Carlos tem a dizer.
Gina conduziu Carlos até a sala e, depois dos cumprimentos, ele foi direto ao assunto:
- Vocês já tomaram conhecimento da situação. Eu e Gina nos entendemos, confidenciamos nossos sentimentos, reconhecemos que são profundos, verdadeiros. Embora tenhamos nos encontrado há tão pouco tempo, não nos resta nenhuma dúvida quanto ao amor que nos une. Queremos ficar juntos para sempre e lhes pedimos aprovação e apoio.
Lúcia respondeu séria:
- Eu acredito no que está dizendo, mas penso que precisamos agir com bom senso. Vocês não se conhecem bem. Nós não nos recordamos do passado com clareza. Pode ser que vocês tenham se amado em outras vidas, mas esse tempo passou. Não dá nem para saber como foi a relação que tiveram. Não vamos nos precipitar. É preciso agir com calma.
- Mamãe está certa - comentou Benito. - Vocês precisam se conhecer melhor. Só o tempo vai mostrar o que é melhor a fazer.
- Entendo. Sei que teremos de esperar algum tempo porque no momento não tenho muita coisa para oferecer. Vocês sabem que estou recomeçando minha vida. Mas pretendo trabalhar muito, conquistar uma situação financeira boa para dar a Gina uma vida igual ou melhor do que a que ela tem agora.
Carlos segurava a mão de Gina e, olhando os olhos brilhantes dos dois, Lúcia disse comovida:
- Está certo, vocês têm a minha permissão para se conhecerem melhor.
Benito concordou e Marta, a pedido da mãe, buscou um vinho para comemorar. Ele abriu a garrafa, serviu o vinho e levantou a taça dizendo:
- Espero que as raízes deste amor dêem frutos de alegria e felicidade.
Todos beberam e depois Marta perguntou:
- O que você pretende fazer? Vai vir morar aqui na Itália ou quer ir embora para o Brasil?
Os três o olharam com certa preocupação, mas Carlos sorriu e respondeu:
- Ainda não pensei nisso. Vai depender de como os meus negócios vão se desenvolver. Mas desde já afirmo que meu maior desejo é contribuir para que tenhamos uma vida boa, alegre e muito feliz. Não farei nada que possa trazer-lhes tristeza. Podem confiar.
- Vamos torcer para que possamos ficar todos juntos - disse Marta.
Aquela foi uma noite feliz. Carlos não se lembrava de ter tido momentos tão bons antes. A proximidade de Gina o emocionava e o apoio da família dela o encorajava. Sentia-se forte como nunca, e dentro do seu coração desabrochava a certeza de que naquele amor encontraria a felicidade. Ao deixar a casa de Gina, Carlos sentia-se de bem com a vida. Tinha certeza de que o pesadelo dos últimos tempos havia acabado. Entusiasmado, fazia planos para o futuro. Deitado em sua cama no hotel, imaginava o que faria para concretizar os seus sonhos. O amor de Gina era tudo que mais queria. Naquele momento, a lembrança de Isabel estava distante e ele nem se recordava mais do amor sofrido que julgara sentir por ela. Depois que Carlos deixou a casa de Lúcia, Marta e Gina foram para o quarto. Benito ficou um pouco mais para conversar com a mãe:
- Amanhã à tarde vou falar com Giovana. Talvez ela possa me esclarecer. Quando penso no casamento de Gina e Carlos, sinto certo mal-estar e tenho de lutar contra o medo.
- Faça isso. Vou ligar para ela e marcar uma hora. Iremos juntos. Pode ser que o guia espiritual dela tenha lhe dado maiores informações sobre o que aconteceu no passado.
Na manhã seguinte, Lúcia falou com Giovana. Combinaram de estar lá no fim da tarde. Às cinco horas em ponto, os dois tocaram a campainha da casa dela. Juliana abriu e os convidou a entrar. Giovana estava na sala lendo e, assim que os viu, levantou-se, abraçando-os com carinho:
- Eu sabia que viriam.
- Você descobriu mais alguma coisa?
- Sim. Vamos até a minha sala.
Quando já estavam sentados à sua frente, diante da mesa, ela continuou:
- Esta noite aconteceu algo inesperado. Quando me deitei, adormeci logo, saí do corpo e vi o espírito de José à minha espera.
- Quem é José? - indagou Benito.
- Meu guia espiritual. Ele levou-me a um parque muito lindo, onde havia um banco em que nos sentamos. Eu me sentia leve, feliz e comentei:
- Estamos no céu! Que maravilha! Gostaria de ficar aqui para sempre.
- Ainda não é sua hora. Você tem aprendido muito com a sua mediunidade, mas pode progredir bem mais. Precisamos conversar - disse-me José.
- Pode falar, estou ouvindo.
- Guarde bem o que vou dizer. É sobre o caso de Carlos e Gina. Como já lhe disse, os pais de Carlos, contrariados por ele ter recusado se casar com a moça que eles queriam, deserdaram-no. Mas ele tinha algumas propriedades e não se importou. Só tinha olhos para Gina e, a cada dia mais, insistia para que ela fugisse com ele para longe. Durante as noites, ele rondava a casa dela angustiado, louco de ciúmes ao imaginá-la nos braços do marido.
Giovana, vendo que os dois esperavam ansiosos, disse:
- José fez uma pausa e eu pedi que continuasse. Ele olhou-me sério e disse: "Não sei o que mais aconteceu. Só sei que houve uma tragédia. O marido de Gina foi encontrado morto. Houve um escândalo e a família dela vendeu as propriedades e se mudou para outra cidade, levando Gina e seu filho para longe. Carlos não pôde mais encontrá-la. Só sei que, depois da morte, Carlos procurou Gina e conseguiu encontrá-la, mas não ficaram juntos como queriam. Ambos precisavam melhorar suas condições espirituais para que pudessem um dia viver lado a lado."
Giovana calou-se e Benito disse emocionado:
- Sinto que fizemos parte dessa história. Às vezes, olhava para Gina e sentia um aperto no peito sem saber por quê. Quando eu soube que eles se encontravam em sonhos e se amavam, senti muito medo. Tenho a sensação de ter participado de alguma forma. José não lhe falou sobre nós?
- Não. Quando vocês estavam no astral, antes de reencarnarem juntos na mesma família, é provável que tenham tomado conhecimento de tudo. Mas agora não dá para saber mais. Do que vocês têm medo?
- É uma sensação desagradável, como se eu soubesse que uma tragédia fosse acontecer, acompanhada de um sentimento de culpa - informou Benito.
- Seja o que for, o melhor é você não dar força a esses pensamentos. Mesmo que vocês tenham contribuído para aquela tragédia, tudo passou. Vocês amadureceram, entenderam-se e hoje estão vivendo um tempo muito diferente, com imensas possibilidades de sucesso. Deixem o passado para trás. Ele não vai voltar. Vocês só têm o momento presente para viver, escolher suas atitudes, fazer o melhor e desfrutar de uma vida mais feliz.
- Bem que eu gostaria de ficar só no presente - tornou Lúcia. - Mas, quando brotam esses sentimentos inesperados de medo e preocupação e não sei de onde eles vêm, tenho dificuldade para conservar a paz.
- Sei o que quer dizer. Mas vale a pena reagir, fazer um esforço para não dar importância a tudo que for negativo. O medo nos paralisa, limita, alimenta ilusões, fazendo-nos sofrer com coisas que nunca acontecerão. Ele é o reflexo de situações difíceis vividas em outras vidas, cujas marcas ainda conservamos em nosso inconsciente. Mas isso não significa que essas situações vão acontecer novamente. Pense: quantas vezes você teve medo de coisas que nunca aconteceram?
- Tem razão. Com relação a Gina, sinto insegurança, medo de que ela seja infeliz.
- Procure aceitar as coisas com naturalidade. Estou certa de que, conhecendo melhor o rapaz, vocês se sentirão mais confiantes. O que eles pensam em fazer?
Foi Benito quem respondeu:
- Querem se casar. Carlos serviu na guerra, foi prisioneiro só recomeçou a trabalhar agora, mas está se esforçando e promete oferecer a Gina uma vida boa.
- Podem confiar. Estou certa de que vocês vão se dar muito bem.
- Na verdade, simpatizo com ele - reconheceu Lúcia.
- Eu também - ajuntou Benito.
- Vamos dar as mãos e fazer uma prece para pedir ajuda espiritual.
Eles obedeceram e ela continuou:
- Fechem os olhos, imaginem que estamos sentados em um jardim florido e que uma luz muito branca desce do alto sobre nossas cabeças. Respirem devagar, relaxem. Nós somos pessoas protegidas pelas forças divinas e Deus é nosso provedor. Ele é a fonte de todos os nossos suprimentos e deseja nos dar o melhor.
Giovana fez ligeira pausa e continuou:
- Agora, imaginem que estão escrevendo uma carta relatando todos os seus medos e dúvidas. Assinem, joguem luz sobre ela e digam: "Estou entregando esse assunto nas mãos de Deus." Essa é uma boa maneira de aliviar o coração e receber a inspiração divina. Agradecemos por tudo que recebemos sobre esse caso.
Giovana largou as mãos e perguntou:
- Como estão se sentindo?
- Melhor. Senti alívio e bem-estar - informou Lúcia. - Senti-me leve, flutuando. Uma brisa suave e agradável me rodeou trazendo grande bem-estar - comentou Benito.
- A bondade divina nos oferece luz, paz, inspiração. Só precisamos abrir o coração para receber.
- Eu gostaria de conservar essas energias - tornou Lúcia.
- Sempre que pensamentos negativos a incomodarem, reaja, não se impressione nem dê importância. Troque-os por coisas positivas e acredite que elas se materializarão.
- Nunca pensei em escrever uma carta para Deus - comentou Benito.
- Quando você escreve uma carta para Deus pedindo ajuda para seus problemas, formaliza uma atitude, reconhece que Deus é a fonte de todos os suprimentos. Ao entregar a Ele coisas que você não sabe como resolver, está dando uma demonstração de confiança e fé. Depois, evite voltar a preocupar-se com o assunto, porque, se o fizer, tirará a força do seu pedido. Confie. Se ficar firme, mudanças significativas podem começar a acontecer logo, trazendo respostas às suas indagações.
Benito pensou um pouco e respondeu:
- Gostaria de aprender um pouco mais sobre essas energias.
- Posso emprestar-lhe alguns livros que analisam esse assunto. Mas, para descobrir como a vida funciona, é preciso experimentar, observar como as coisas acontecem, analisar suas crenças e questioná-las a fim de descobrir até que ponto são verdadeiras. Para obter bom resultado, é preciso deixar de lado os preconceitos e buscar a verdade onde quer que ela esteja.
- De algum tempo para cá, estou mais sensível. Durante a noite, sonho que estou fora do corpo, encontro pessoas que me são desconhecidas, mas que naquele momento me parecem amigas. Há uma mulher que segura no meu braço e deslizamos juntos pelo ar, sobre as casas, cidades.
- Como você se sente nesses momentos?
- Muito bem. Entro em um estado de serenidade, alegria e disposição. Essas emoções são tão fortes que permanecem vivas durante dias.
- Essa mulher não lhe disse o nome?
- Não sei. Quando estamos juntos, estou consciente, mas, ao acordar, quero recordar o que falamos, porém não consigo.
- Sempre que dormimos, nosso espírito sai do corpo com a finalidade de repor energias. A maneira como ele reage durante essa experiência depende do nível espiritual que possui. A sensação agradável que você tem demonstra que seu espírito já conquistou um nível bom de conhecimento.
Lúcia, que ouvia atentamente a conversa dos dois, interveio:
- Já eu sempre sonho que estou diante de uma plateia, conversando e tocando piano.
Giovana sorriu e respondeu:
- Você tem alma de artista, utiliza a música para abrir a sensibilidade das pessoas, depois aproveita para dar a sua aula.
- Aula? Eu apenas passo algumas experiências que vivi. Mas sempre que tenho esses sonhos, sinto-me muito bem. Tenho a sensação de que sou muito querida e acordo muito bem-disposta. O lugar me parece familiar, quase sempre o mesmo, mas as pessoas são diferentes. É tudo tão real. Sei que esse lugar existe. Mas onde será?
- É muito bom ter amigos para trocarmos experiências enriquecedoras como as nossas. A mediunidade nos abriu a porta da espiritualidade e nos fez descobrir que somos eternos e que, apesar de estarmos mergulhados nos limites do mundo material, nosso espírito é livre e pode viajar pelo mundo espiritual. Além de abraçar amigos e ouvir conselhos dos espíritos de luz, ainda temos a chance de contar nossas experiências para aqueles que estão esperando o momento de nascer neste mundo. Podemos nos considerar pessoas abençoadas.
Aquela palavra emocionada de Giovana comoveu os dois. Eles se levantaram e a abraçaram com carinho. Quando a emoção serenou, Giovana disse sorrindo:
- Agora vamos à copa tomar um bom café. Juliana fez um bolo delicioso. Tenho certeza de que vão gostar.
Na copa, Juliana os recebeu com alegria e a conversa fluiu agradável. Juliana tinha se matriculado na universidade em um curso de biologia e estava tendo as primeiras aulas. Bem-humorada, contava com graça e humor suas primeiras experiências com os colegas, provocando o riso de todos. Uma hora depois, quando Benito e Lúcia se despediram, sentiam-se serenos e confiantes. Toda a angústia de Benito havia passado. Durante o trajeto, foram conversando e Lúcia comentou satisfeita:
- Foi ótimo termos vindo. Giovana é uma mulher maravilhosa e Juliana é adorável.
- Tem razão, ela é lúcida, esclarecida e tem nos auxiliado a vida inteira. Quanto a Juliana, penso que escolheu a carreira errada. Deveria estudar psicologia. Ela é observadora e tem um senso de humor invejável.
- Pensando no que soubemos sobre o passado, talvez não seja tão simples resolver os problemas que ficaram para trás. Apesar de esquecermos o que passou, há o risco de as mágoas e ressentimentos ainda estarem em nosso inconsciente e dificultarem o entendimento entre nós.
- Até que ponto estamos envolvidos naqueles acontecimentos?
- Giovana disse que o tempo passou, que todos nós mudamos e hoje as coisas estão diferentes. Acho razoável esquecermos esse passado e nos esforçarmos para viver melhor agora. Afinal, de concreto mesmo só temos o momento presente. O passado acabou, não dá para voltarmos atrás, e o futuro vai depender do que escolhemos hoje.
- Concordo. Estou bem agora e não quero ter aquelas sensações ruins novamente.
- Vamos mudar de assunto para mandar embora aquelas energias.
Benito assentiu e passaram a falar de coisas mais agradáveis. Ao chegarem em casa, encontraram Marta, Gina e Carlos conversando na sala. Depois dos cumprimentos, Marta disse:
- Vocês demoraram! Aonde foram?
- Conversar com Giovana. E vocês, o que fizeram esta tarde? - perguntou Lúcia.
- Eu estudei violino - informou Marta.
- Eu coloquei meu quarto em ordem. Depois que Carlos chegou, falamos sobre como gostaríamos que nossa vida fosse no futuro - disse Gina.
Lúcia considerou:
- Vocês devem estar com fome. Vou preparar um lanche. Ficará pronto em alguns minutos.
Pouco depois, sentados ao redor da mesa e saboreando as apetitosas guloseimas que Lúcia servira, continuaram conversando, cada um falando sobre o que pensavam da vida, seus sonhos e o que fariam para conquistar a felicidade. O ambiente estava agradável e todos demonstravam-se relaxados, à vontade. Carlos sentia-se muito feliz ali, no meio deles. Parecia-lhe que havia encontrado seu verdadeiro lugar. Tudo de ruim que havia passado durante a guerra, a frustração de seu amor com Isabel e a falta de apoio de sua família, que o fazia sentir-se um estranho entre eles, não mais o incomodavam. Por ele, ficaria ali para sempre. A tarde estava quente e Isabel desceu as escadas apressada. Vendo-a chegar, Laura perguntou:
- Aonde você vai com tanta pressa?
- Gilberto deve estar chegando e estou atrasada. Vamos visitar uma casa que ele deseja comprar.
- Vocês não tinham combinado que ficariam no apartamento dele nos primeiros tempos?
- Ele acha o apartamento pequeno. Prefere uma casa maior.
- Falta pouco tempo para o casamento. Vocês estão ocupados com os preparativos. O melhor é deixar para depois.
- Quase cinco meses é pouco tempo mesmo. Mas os preparativos estão em andamento e sob controle. Não há muito mais a fazer. Ele gostou muito dessa casa, estou ansiosa para vê-la.
A campainha tocou e Isabel foi abrir. Gilberto entrou, beijou-a com carinho e cumprimentou Laura, que disse sorrindo:
- Fiz um suco de laranja, venham tomar um copo.
- Obrigado, mas fica para depois. O corretor já está à nossa espera e estamos atrasados. Na volta, conversaremos.
Eles saíram conversando animadamente. Ao chegar na casa, Gilberto disse:
- Eu gostei desta casa. O bairro é novo e a casa é recém-construída. É um pouco distante do centro, mas é espaçosa e bonita.
- Você está entusiasmado! E o preço?
- Está dentro de minhas posses. Se você gostar, vou fechar o negócio.
O corretor já os esperava. A casa era bonita, isolada dos dois lados e rodeada de jardim. Tinha garagem, três quartos, duas salas e demais dependências, tudo muito elegante. Isabel ficou encantada e Gilberto fechou o negócio. A casa já estava pronta e a chave seria disponibilizada assim que o negócio fosse ultimado. Os dois saíram de lá felizes e imaginando como gostariam de decorá-la. Voltaram para a casa de Laura, que ficou alegre com o entusiasmo deles.
- Ainda tem aquela laranjada que nos ofereceu? - indagou Gilberto.
- Vou fazer uma bem gostosa rapidinho.
Ela deixou a sala e eles continuaram trocando ideias sobre a decoração da casa. Tomaram a laranjada e a conversa esticou-se até depois do jantar, quando Sônia se juntou a eles e quis saber tudo. Passava das onze quando Gilberto chegou ao apartamento. Estava cansado, mas satisfeito. A compra da casa levaria quase todo o dinheiro que juntara, e a decoração teria de ser feita gradativamente, o que levaria certo tempo, uma vez que ele preferia comprar peças de qualidade. Estava se preparando para dormir quando o telefone tocou. Era Nivaldo:
- Desculpe ligar a esta hora. Tentei falar com você antes mas ninguém atendeu.
- Cheguei agora. Sua voz está diferente, aconteceu alguma coisa?
- Aconteceu o que nós temíamos. Papai gastou muito mais do que poderia e a situação é grave.
- O que ele fez? Explique melhor.
- Gostaríamos que viesse até aqui. Sei que é difícil e que você deve estar muito ocupado com os preparativos para o casamento, mas mamãe não está bem e precisamos de você.
- Ela está doente?
- Está muito deprimida, revoltada. Receio que fique pior.
- Está bem. Vou dar um jeito no hospital e irei amanhã mesmo.
- Ela só chora e não consegue falar no assunto. Preciso de ajuda.
- Irei o mais rápido que puder. Aguente firme.
Gilberto desligou e sentou-se na cama preocupado. Se dependesse dele, Glória há muito já teria acabado com aquele casamento. Não entendia por que ela insistia naquilo. Deitou-se e teve dificuldade para dormir. Quando conseguiu, teve sonhos confusos, onde se via pressionado e com medo. Acordou muito cedo na manhã seguinte, com o corpo dolorido. Tomou um banho, vestiu-se e preparou uma roupa para a viagem. Depois, foi ao hospital e pediu a um colega que o substituísse. Com tudo resolvido, foi à casa de Isabel. Laura o conduziu à copa, onde ela tomava café. Vendo-o chegar, admirou-se:
- Gilberto! Aconteceu alguma coisa?
Em poucas palavras, ele falou-lhe sobre o telefonema e a sua ida a Pouso Alegre, e finalizou:
- Estou preocupado com mamãe.
- Gostaria de ir com você.
- Não é preciso, você tem de trabalhar. Chegando lá, vou saber o que está acontecendo de fato e ligarei informando. Não pretendo me demorar.
Ele a beijou no rosto em despedida. Laura, que ouvira a conversa, aproximou-se:
- Seja o que for que estiver acontecendo, não se deixe envolver pelo que parece e procure conservar a serenidade. Nós vamos orar e pedir a Deus que o acompanhe e inspire. Se precisar de alguma ajuda mais direta, ligue e iremos até lá ajudá-lo.
- Obrigado, dona Laura. Mas espero que não seja preciso.
Ele se foi e Isabel sentou-se pensativa. Laura pediu:
- Venha, filha. Vamos orar e pedir a Deus que os ajude. Estou sentindo que vão precisar.
Elas deram as mãos, fecharam os olhos e Laura fez sentida prece em favor de Glória e sua família. Quando terminou, agradeceu a Deus pela ajuda.
- Senti que fomos ouvidas - comentou Isabel. - O temor desapareceu.
- A união com Deus fortalece e acalma. Ao pensarmos neles, vamos abençoá-los e imaginar que só acontecerá o melhor para todos os envolvidos. Deus está cuidando e você pode ir trabalhar em paz. Não se preocupe nem fique imaginando nada de ruim para não sobrecarregar ainda mais o problema deles.
- Farei o possível, mamãe. Você está certa. Deus cuida de tudo melhor do que nós.
Eram Mais de duas da tarde quando Gilberto entrou na casa dos pais em Pouso Alegre. Nivaldo o recebeu na varanda e, depois do abraço afetuoso, ele perguntou:
- E então, como está mamãe?
- Está no quarto desde ontem de manhã, que foi quando chegamos e ela tomou conhecimento do problema. É melhor ir vê-la.
- Antes preciso saber o que aconteceu.
- Vamos conversar no escritório.
- Papai está em casa?
- Não. Está sumido há mais de uma semana.
Sentaram-se no escritório e Nivaldo continuou:
- Anteontem, demos em pagamento um cheque de valor alto. Mais tarde, recebemos um telefonema do banco avisando que todo o dinheiro de reserva aplicado em nossa conta havia sido sacado e que na conta corrente não havia saldo para descontar o cheque. Assustada, mamãe conversou com o gerente, que era autorizado para usar o dinheiro aplicado sempre que precisasse, e ficou sabendo que papai havia retirado todo o valor aplicado há três dias.
- Ele não lhes falou nada sobre isso?
- Tentamos falar com ele, mas Dete contou que ele havia viajado e ela não sabia para onde nem quando voltaria. Até agora ele não deu notícias. Quando chegamos aqui ontem de manhã, descobri que Alda também viajou. Imaginamos que tenha ido com ele.
Gilberto passou a mão pelos cabelos nervoso:
- Papai perdeu o juízo! Quanto dinheiro ele levou?
- Tudo que juntamos durante os últimos três anos lá na fazenda. O pior é que ficamos sem condições para manter nossos negócios daqui para frente. Não sei o que fazer. Talvez tenhamos de vender a fazenda.
Gilberto respirou fundo. Lembrou-se das palavras de Laura, tentou se acalmar e disse:
- Não vamos entrar em desespero. Precisamos conservar a serenidade e encontrar a melhor solução. No momento, é mais urgente cuidar da mamãe.
Eles foram até o quarto, entraram e aproximaram-se da cama onde Glória estava deitada. Vendo-os entrar, ela começou a chorar e Gilberto abraçou-a com carinho:
- Mãe, reaja. Não se deixe abater. Sua saúde é mais importante do que todo o resto.
- Aconteceu o que eu temia. De nada adiantou continuar aqui para defender nosso patrimônio. Perdemos tudo!
- O mal está consumado e agora vamos ter que cuidar do estrago e tentar salvar o que restou. Sua saúde e bem-estar são mais importantes para nós agora.
- Isso mesmo, mãe - interveio Nivaldo -, precisamos de você. Nossa felicidade não está nas coisas materiais, que são transitórias, mas em estarmos juntos e tocar nossa vida pra frente.
- Teremos de vender a fazenda que amamos tanto e onde você fez um trabalho maravilhoso! O que será de nós agora?
Nivaldo ficou sério durante alguns segundos, depois levantou o queixo da mãe dizendo:
- Olhe nos meus olhos e ouça o que tenho a lhe dizer: o trabalho na fazenda era bom e nos ajudava a suportar uma situação dolorosa que nos desagradava, mas não éramos felizes. Você vivia deprimida e eu sofria assistindo impotente à sua infelicidade. Estive pensando muito sobre o que nos aconteceu. Cheguei à conclusão de que essa mudança, embora nos assuste e desagrade, vai nos dar a chance de desfrutarmos de uma vida mais feliz.
Glória fixou-o admirada e Gilberto, comovido, observou:
- É verdade. Agora você está livre daquele peso. O tempo vai passar, você vai entender que foi melhor assim e aos poucos poderá retomar o prazer de viver. Quando eu era criança, você era uma mulher alegre, de bem com a vida, muito diferente do que é hoje.
- Depois de tantos anos trabalhando e me sacrificando para a nossa família criar um patrimônio, dói muito perceber que ele evaporou dessa forma. Alberto vai pagar caro por isso.
- Mãe, uma maldade não justifica outra. Se papai errou, não vamos cometer o mesmo erro e nos tornar iguais a ele. Se desejamos ter uma vida melhor, não vamos julgá-lo e muito menos condená-lo - tornou Nivaldo.
- Você é muito bom e não merecia o que ele nos fez!
Nivaldo retrucou:
- Procure ver as coisas de uma forma melhor. Trabalhamos muito, é verdade, mas não era sacrifício, pois gostávamos do que fazíamos. Além disso, tivemos chance de aprender muito com ele. Mãe, todas as coisas têm prazo de validade. Nada dura para sempre. É hora de mudar, aprender outras coisas. Não se deixe levar pelo orgulho. Você tem motivo para estar indignada, mas não se deixe levar pelo orgulho. Reconheça que papai é como é e não há nada que possamos fazer para mudar isso. Vamos deixar que ele siga o caminho que escolheu e, daqui para frente, cuidaremos da nossa vida.
Glória respirou fundo:
- É difícil aceitar isso.
- Anos atrás, diante do que papai fez, sugeri a separação. Não se pode esperar de uma pessoa o que ela não tem para dar. Procure aceitar o inevitável, esqueça o que passou. Você tem nosso apoio e estamos juntos. Acalme seu coração - tornou Gilberto.
- Estamos sem dinheiro, temos dívidas. Como vamos pagar os fornecedores?
- Deixe comigo. Estive pensando e a situação não é tão ruim como parece. O importante é você se cuidar. - Nivaldo quis tranquilizá-la.
- Nivaldo está certo.
Gilberto segurou o pulso de Glória durante alguns segundos, depois disse:
- Você está muito agitada. Precisa descansar.
Sentou-se, prescreveu uma receita e pediu para Dete ir comprar. Depois, acomodou-a na cama, apanhou uma cadeira, sentou-se do lado e ficou segurando a mão dela. De vez em quando, Glória estremecia e recomeçava a chorar. Gilberto apertava ligeiramente a mão que segurava e ela tentava se controlar. Depois que ela tomou o remédio, Nivaldo perguntou sobre os preparativos para o casamento. Gilberto levou a conversa de forma leve e agradável. Glória ouviu com interesse, ficou mais calma e acabou adormecendo. Os dois irmãos olharam-se aliviados e Gilberto comentou:
- Ela vai dormir algumas horas e acordar melhor. Vamos sair para conversar.
Os dois foram para o escritório do pai e Nivaldo esclareceu:
- O cofre está aberto. Ele levou tudo.
- Tinha muito dinheiro?
- Não sei. Ele costumava deixar em casa sempre uma boa quantia.
- Quero saber de tudo.
- Nós estávamos na fazenda. Eu fiz um cheque de valor alto para pagar um fornecedor e o banco não aceitou por falta de fundos. Pensamos que fosse um engano, pois tínhamos saldo suficiente na conta corrente para cobrir aquele valor. O gerente contou que, há uma semana, papai havia retirado todo o dinheiro, inclusive o que estava aplicado. Imediatamente viemos para cá. Dete contou que uma semana atrás papai viajara, sem dizer para onde, levando só as roupas mais novas. Sem querer acreditar, fui até o banco e o gerente mostrou-me os comprovantes. Foi isso.
- Eu sabia que um dia ele aprontaria alguma, mas não esperava que fosse tão cruel.
- Tem mais. Fui ao clube e soube que Alda tinha mesmo ido embora com ele.
- Espero que tenham ido de vez, que nunca mais cruzem nosso caminho. Mamãe precisa viver em paz. E como ficaram os negócios?
- Ainda não tive tempo de fazer um estudo mais apurado. Pelo que sei, talvez tenhamos mesmo de vender a fazenda. Sem capital não teremos como pagar os fornecedores e equilibrar as contas.
Gilberto pensou um pouco, depois disse:
- Vocês amam a fazenda. Fizeram um excelente trabalho que deu bons frutos. Mas se não der para conservá-la, poderão morar em São Paulo. Ajudarei no que puder.
- Vou avaliar todas as possibilidades. Papai foi instrumento dessa crise, mas sei que, se não precisássemos passar por esta experiência, Deus nos teria poupado. Se Ele não fez isso, deve haver uma boa razão. Preciso sentir o que a vida quer nos ensinar com esse desafio, para podermos enfrentá-lo com sucesso.
Os olhos de Gilberto marejaram quando ele respondeu:
- Sua atitude me comove. Estou certo de que você encontrará o melhor caminho. Ontem fechei negócio com a casa. Se soubesse o que estava acontecendo, teria esperado. Fiquei quase sem dinheiro. Talvez possa desistir do negócio.
- Não precisa fazer isso. Tanto eu como mamãe temos algum dinheiro em nossa conta pessoal que nos permitirá viver bem até resolvermos as dificuldades. O que precisamos agora é de uma avaliação dos nossos bens, saber se vamos poder dispor deles. De todo nosso patrimônio, só a fazenda que mamãe herdou antes do casamento está em nome dela.
- Não sei se poderão vendê-la sem a assinatura de papai. Eles são casados em comunhão de bens.
- O melhor será convencer mamãe a tratar de legalizar a separação.
- Ela pode não aceitar.
- Nós teremos de convencê-la a entrar na justiça, alegar abandono de lar e pedir a separação. É a melhor solução. Além de regularizar a situação de fato, ela terá meios para sobreviver. Eu posso perfeitamente cuidar da minha vida, da mesma forma que você vem fazendo. O difícil será ela aceitar entrar na justiça. Nenhuma mulher gosta de tornar-se desquitada.
- Esse é um preconceito detestável, mas ninguém é obrigado a tolerar uma união que não está sendo satisfatória. Todos temos o direito de cuidar do nosso bem-estar e viver em paz. Um dia a sociedade terá de reconhecer isso.
- Tem razão.
- Até quando você poderá ficar aqui?
- Deixei um amigo atendendo os pacientes no hospital, mas não poderei ficar muito tempo.
- Nesse caso, seria bom que fôssemos conversar com o doutor Lentini para tirar todas as dúvidas legais.
- É um bom advogado?
- Não o conheço pessoalmente, mas tenho ouvido boas referências dele. Não podemos procurar o doutor Eurico.
- De forma alguma. Aliás, eu nunca confiei nele.
Nivaldo sorriu e comentou:
- É sinal de que sua intuição é boa. Ele não é confiável mesmo, mas papai sempre o preferiu para cuidar dos seus negócios. Se não estiver muito cansado, poderemos ir vê-lo agora. Ganharíamos tempo.
- Podemos ir sim. Mamãe vai dormir mais ou menos umas duas horas. Pediremos a Dete que cuide dela. Enquanto você liga e marca a entrevista, vou subir e tomar um banho rápido.
Pouco tempo depois, os dois irmãos entraram na sala do advogado, que se levantou para cumprimentá-los. Aparentava uns quarenta anos, muito elegante, cabelos claros, fisionomia calma e os recebeu cortesmente. Sentado em frente à mesa dele junto a Gilberto, Nivaldo discorreu rapidamente sobre os acontecimentos e finalizou:
- Diante desses fatos, nós pensamos que, formalizando a separação e dividindo os bens, minha mãe poderá refazer sua vida. Viemos consultá-lo para nos informar sobre como lidar com esse caso de forma legal.
- Vocês estão certos. Antes precisam saber se não há a possibilidade de eles voltarem a viver juntos. Os fatos são recentes, não sabem onde ele está. E se, daqui a alguns dias, ele voltar para casa?
Os dois se entreolharam admirados. Nivaldo considerou:
- Conhecendo meu pai como conheço, não creio que ele faça isso. Se fosse apenas uma escapada, ele não teria levado todo o dinheiro do banco, sabendo que tínhamos compromissos de pagamentos. O que desejamos é saber como resolver os problemas sem ele estar presente.
- Vocês poderão entrar na justiça alegando abandono de lar, e o juiz certamente vai mandar fazer um edital e estipular um tempo. Depois que o prazo terminar, se ele não aparecer, tudo poderá ser resolvido à revelia.
- É um alívio saber dessa possibilidade, comentou Gilberto.
- Mamãe está muito abalada, deprimida. Gilberto é médico, deu-lhe um calmante e ela conseguiu dormir. Ainda não conversamos com ela sobre a separação legal.
- Ela pode não aceitar - lembrou o advogado.
- É uma hipótese - tornou Nivaldo -, mas penso que lograremos convencê-la. Há anos eles viviam separados dentro de casa, mas ela nunca quis se separar definitivamente. Acreditava que, se ela o deixasse, ele acabaria com todo o patrimônio da família. Vivia infeliz e muitas vezes nós sugerimos que o deixasse, mas ela achava injusto nos privar dos bens de família. Agora terá de conformar-se.
- Infelizmente, muitas mulheres suportam essa situação, sacrificando a própria felicidade e acreditando assim evitar o que temem, mas a verdade é que, alimentando um problema, acabam atraindo exatamente o que desejavam evitar.
O advogado explicava olhando firme nos olhos dos dois, o que os fez sentir que ele falava com conhecimento. Notando que os dois o olhavam pensativos e em silêncio, continuou:
- As atitudes das pessoas revelam como elas vêem a vida. Ao nos interessarmos por alguém, é bom prestar atenção à forma como essa pessoa pensa e avaliar se nos convém manter um relacionamento. É ilusão pensar que mais tarde ela possa mudar. Essa forma de pensar sempre custa muito caro. As pessoas só mudam quando elas querem.
- Está certo, doutor - respondeu Nivaldo satisfeito.
- Vamos conversar com mamãe e, se ela concordar em abrir a ação, gostaria que fosse nosso advogado - disse Gilberto.
- Eu também - tornou Nivaldo. - Quanto deveremos pagar pela consulta?
Doutor Lentini sorriu e respondeu:
- Interesso-me pela criação de gado e há muito acompanho suas pesquisas. Admiro suas ideias. Quando dias melhores vierem, gostaria de conversar contigo sobre o assunto. Aceitarei ser o advogado de sua família, mas não vou lhe cobrar pela consulta. Foi uma honra conhecê-lo. Independentemente de qualquer coisa, podem contar comigo.
Os dois perceberam que haviam encontrado um amigo. Comoveram-se e despediram-se, prometendo voltar assim que tivessem uma resposta. Durante o trajeto de volta, eles se sentiram mais confiantes e calmos. A tempestade amainara, e estavam convictos de que tudo terminaria bem. Na tarde do dia seguinte, quando Isabel chegou em casa após o trabalho, Laura avisou que Gilberto havia ligado.
- Ele estava bem? Contou como estão as coisas?
- Queria falar com você. Vai ligar mais tarde.
- Que pena! Estou ansiosa por notícias. O ônibus demorou demais e me atrasei. Ele não disse quando vai voltar?
- Não. Disse que fez boa viagem e que ligaria mais tarde. Só isso.
- Você notou se ele estava nervoso?
- Não notei nada de anormal. Conversamos com naturalidade. Procure dominar a ansiedade. Em uma situação como essa, o que ajuda é imaginar sempre o melhor.
- Tem razão.
Isabel foi para o quarto, trocou de roupa, lavou as mãos e desceu exatamente na hora em que o telefone tocou. Ela atendeu prontamente:
- Gilberto? Eu estava ansiosa esperando você ligar. Como estão as coisas?
- Sob controle. Não liguei ontem à noite porque ainda não havíamos decidido o que fazer e eu não sabia quando poderia voltar pra casa. Se tudo der certo, amanhã à tarde estarei aí.
- Que ótimo! Como está sua mãe?
- Deprimida, chorosa, muito nervosa. Eu e Nivaldo decidimos tratar da separação legal, consultamos um advogado que nos orientou a tomar esse caminho, que é o melhor. O difícil foi convencer mamãe a entrar na justiça e pedir o desquite. O advogado nos auxiliou a convencê-la. Amanhã cedo vou providenciar uma procuração minha, para que ela possa assinar por mim sempre que precisar, e depois poderei ir embora.
- E Nivaldo, como está? Vai mesmo precisar vender a fazenda?
- Não sabemos ainda. Ele primeiro precisa estudar os detalhes, mas está disposto a fazer o que for necessário para que mamãe possa passar por essa fase da melhor forma possível.
- Não esperava outra atitude dele. Mande um abraço para ele e para dona Glória. Diga que estamos rezando para que tudo dê certo. Nós nos colocamos à disposição para ajudar no que for preciso.
Os dois conversaram mais alguns minutos e, depois que desligou o telefone, Isabel colocou Laura a par dos acontecimentos. Depois de ouvir, ela comentou:
- A melhor coisa que poderia acontecer é Glória oficializar a separação. Desligar-se desse marido é uma libertação. Sinto que daqui para frente ela vai viver mais feliz.
- Por que será que ela não queria se separar legalmente? Será que apesar de tudo ainda gosta dele?
- Não. Há muito esse amor acabou. Acontece que nenhuma mulher gosta de ser chamada de desquitada. Nossa sociedade é muito preconceituosa. Quando o marido da Leninha a deixou e ela se desquitou, passou por situações desagradáveis. Os casais amigos se afastaram.
- Por quê?
- As esposas temiam que ela desse em cima dos maridos e um deles passou a assediá-la, mas felizmente ela soube sair da situação com dignidade. Três anos depois, conheceu o Renato e casaram-se no exterior.
- Eles vivem muito bem. Ela foi corajosa.
- Fez as coisas do jeito dela. Não se importou com o que os outros pensavam, agiu com o coração.
- Ainda bem que dona Glória concordou. Assim, ela ficará livre para fazer da vida o que quiser. Com o tempo talvez possa jogar fora aquela tristeza que, de vez em quando, transparece em seus olhos. Será que vão precisar vender a fazenda?
- Sei que tanto ela como Nivaldo gostam muito da fazenda, mas eu gostaria que eles viessem morar em São Paulo. Ficariam mais próximos de todos nós. Depois, continuando lá, será mais difícil Glória esquecer os momentos desagradáveis que viveu. É hora de mudança, de virar a página e mudar o cenário.
Isabel sorriu e respondeu:
- É verdade! Uma vida nova requer cenários novos, mais alegres, novas amizades, novos projetos. Vou torcer para que eles se mudem para cá!
Em Pouso Alegre, Glória, em companhia dos dois filhos, comparecia ao escritório do doutor Lentini. Sentados diante do advogado, Gilberto leu e assinou a procuração para a mãe. Nivaldo entregou ao advogado os documentos que ele havia pedido e considerou:
- Faltam as escrituras das propriedades. Costumavam ficar guardadas na parte baixa do cofre, mas desapareceram. Imagino que papai as tenha levado, inclusive o formal de partilha onde mamãe figura como herdeira da fazenda.
- Nesse caso, teremos que pedir uma cópia no cartório. Façam isso hoje mesmo - disse o advogado.
- Eu quero acabar com esse assunto o quanto antes - tornou Glória com voz firme.
- Irei hoje mesmo - respondeu Nivaldo.
Quando eles deixaram o escritório do advogado, observando o rosto contraído de Glória, Gilberto disse:
- Mãe, você tem pressa de resolver este assunto. Infelizmente, isso pode demorar. Se papai estivesse aqui, tudo se resolveria mais depressa.
- Ele não teve coragem de nos enfrentar. Sempre fez tudo na dissimulação. É próprio do seu caráter. A notícia já se espalhou, todos devem estar comentando o escândalo. É doloroso e humilhante. Assim que puder, vou voltar para a fazenda e ficarei lá. Quando isso acabar, pretendo varrer esse tempo da minha lembrança.
- Você não tem do que se envergonhar - interveio Nivaldo. Não se deixe levar pelo que os outros dizem. A maldade não merece atenção.
Nivaldo deixou a mãe e o irmão em casa e saiu para o cartório a fim de providenciar a segunda via dos documentos. Glória ia subir para o quarto, mas Gilberto segurou seu braço, dizendo:
- Venha sentar-se um pouco na sala, vamos conversar.
- Estou cansada, meu corpo todo dói. Você não imagina o que me custou ir a esse advogado. Vou me deitar.
- Serei rápido. Venha.
Sentaram-se lado a lado no sofá. Gilberto segurou a mão dela com carinho e disse:
- Mãe, não acho uma boa ideia você ficar na fazenda neste momento.
- Aqui será pior. A cidade é pequena, somos muito conhecidos.
- O melhor será você ficar um tempo em São Paulo comigo. Lá ninguém a incomodará. Além da minha companhia, a amizade de Isabel e de dona Laura a ajudarão a passar por isso tudo de uma forma mais leve.
Glória balançou a cabeça negativamente:
- Não posso deixar Nivaldo sozinho para resolver tudo. Ainda não sabemos toda a extensão do problema.
- Você precisa poupar sua saúde. Nivaldo tem habilidade para resolver tudo. Além disso, ele pode ligar para você sempre que quiser.
- Ainda assim, não quero deixá-lo.
- Você está precisando espairecer. Vá comigo. Fique pelo menos dois ou três dias, pois isso lhe fará bem. Poderá voltar quando quiser. Eu mesmo a trarei de volta.
Glória baixou a cabeça pensativa. Duas lágrimas surgiram e ela levantou-se rapidamente, pegou a bolsa que deixara na mesinha, tirou um lenço, enxugou os olhos e sentou-se novamente de cabeça baixa. Gilberto levantou o queixo dela, dizendo:
- Mãe, enfrente a verdade com coragem. Assuma o que aconteceu e não se envergonhe. Quanto mais depressa o fizer, mais rápido as pessoas esquecerão.
Glória o olhou firmemente e respondeu:
- Tem razão. Obrigada pelo convite, mas no momento não posso mesmo viajar. Quando as coisas estiverem mais claras, ficarei alguns dias com vocês. Você pretende ir embora hoje?
- Assim que Nivaldo voltar. Além do trabalho no hospital, há as providências para o casamento. Temos pouco mais de um mês para arrumar tudo.
- Você comprou uma casa. É um bom começo.
- É, mas agora teremos de mobiliá-la devagar, e não vai dar para comprarmos tudo.
Enquanto falava sobre os projetos que fizera com Isabel, o rosto de Gilberto iluminou-se. O entusiasmo dele fez Glória esquecer por alguns momentos o seu drama e sentir-se mais calma. Quando Nivaldo chegou, os dois ainda estavam na sala conversando. Mais tarde, Gilberto despediu-se, após recomendar que a mãe continuasse tomando o remédio que ele lhe indicara e que o mantivessem informado. Depois que ele se foi, Nivaldo sentou-se ao lado da mãe:
- A conversa com Gilberto lhe fez bem. Você melhorou.
- Conversamos sobre o casamento dele. Está cheio de projetos, muito feliz com a compra da casa. Queria que eu ficasse alguns dias em São Paulo, mas eu não quero ausentar-me agora. Há coisas para resolver, decisões a tomar. Iremos para o casamento.
- Certamente.
- Gostaria de voltar para a fazenda hoje mesmo.
- Infelizmente não será possível. Teremos de ficar aqui até que o doutor Lentini tenha em mãos as informações e os documentos que ele pediu.
- Acha que vai demorar?
- Espero que não. Para programar o que fazer, teremos que analisar os livros de administração da fazenda, mas eles estão lá. Para ver com o que poderemos contar e programar os próximos passos, teremos de estar lá o quanto antes.
- Se pudéssemos vender esta casa, tudo estaria resolvido. Pagaríamos os fornecedores e teríamos como continuar com a fazenda.
- Não dá para vender a casa sem a assinatura de papai. Mas, mesmo que ele apareça, não sei se vai querer vendê-la. Ele sempre gostou muito dela.
- Pois eu a venderia de bom grado. Não fui feliz aqui.
Nivaldo colocou a mão sobre o braço dela, fixou-a nos olhos e disse sério:
- Nós gostamos da fazenda, mas talvez seja melhor vendê-la e vivermos em outro lugar. Ficar pode tornar difícil esquecer o que passou. Na fazenda, embora você se entusiasme com o trabalho, nunca deixou de sentir-se triste.
- Você está enganado, eu fui feliz na fazenda.
- Era o que você queria demonstrar, mas, muitas vezes, quando eu me aproximava, sentia sua energia de tristeza.
Glória ficou silenciosa durante alguns segundos, depois disse:
- Sinto que mudar de lugar não vai adiantar, porque essa dor está dentro de mim. Para onde eu for, irá comigo.
- É verdade. Mas se você for para um lugar diferente, terá mais condições de reagir, interessar-se por outros assuntos, abrir sua mente para outras possibilidades.
Glória meneou a cabeça:
- Não creio. Só quero viver em paz os anos que me restam. Desejo que vocês dois consigam o que eu não consegui. Ter um casamento e uma família felizes e, claro, uma vida boa.
- Eu acreditava que papai fosse culpado pela sua constante depressão. Quando se recusava a deixá-lo, imaginava que permanecia aqui apenas na tentativa de evitar que ele acabasse com o nosso patrimônio. Mas agora percebo que é você quem está se destruindo, julgando-se incapaz de construir uma vida melhor.
Glória olhou-o surpreendida. Ele continuou:
- Percebo que você tem se colocado na cômoda posição de vítima durante todos esses anos, como uma criança mimada, para encobrir sua falta de confiança em si mesma. Imaginei que, quando a hora da liberdade soasse, você quebraria os grilhões do passado e surgiria renovada, linda, livre para escolher novos caminhos, como um botão que se abre para a vida e se transforma em uma flor maravilhosa.
Nivaldo falava com suavidade, olhos semicerrados, voz um tanto modificada. Lágrimas corriam pelas faces de Glória, que não se atrevia a interrompê-lo. Ele continuou:
- Acorde, Glória! É hora de largar as ilusões e aceitar a realidade. Você é um espírito eterno criado à semelhança de Deus, poderoso e lindo, e precisa enxergar a beleza da vida e a grandeza da oportunidade que está tendo de viver neste mundo. Você tem um projeto divino para a sua vida e precisa executá-lo. A natureza trabalha em favor da sua evolução, mas respeita suas escolhas. Quero que pense nisso: você pode escolher continuar nessa postura infeliz, mas, se reagir e colocar sua força interior na conquista de uma vida melhor, receberá todo o apoio do universo.
Glória olhava fixamente para Nivaldo, sentia um calor agradável, uma energia diferente percorrer seu corpo. Nivaldo continuou:
- Agora, deite-se no sofá.
Glória obedeceu. Ele colocou a mão sobre a testa dela dizendo:
- Você agora vai descansar um pouco. Quando acordar, vai se sentir melhor. Mas esse alívio será temporário. Você vai se lembrar de tudo que conversamos e decidir como vai viver daqui para frente. A decisão é sua. Fique com Deus.
Nivaldo respirou fundo, abriu os olhos e viu que Glória estava dormindo. Sentou-se na poltrona ao lado e fez uma prece agradecendo a ajuda de Norma, um espírito que ele se habituara a ver desde criança. Era uma mulher de meia-idade cujos olhos vivos e magnéticos o encantavam. Sempre que se sentia triste ou preocupado com algo, ela aparecia, dava-lhe conselhos e ele ficava bem. Ela quem lhe levara o espírito que o auxiliou a desenvolver as experiências genéticas tão bem-sucedidas na fazenda. Sempre discreto, nunca falara com ninguém sobre essas experiências. Ele as aceitou com naturalidade, respeito e gratidão, e preferia guardá-las só para si. Apesar dos problemas que enfrentavam, ele confiava na ajuda espiritual e não temia o futuro. Sentia-se forte e determinado a enfrentar os desafios e seguir em frente em busca de uma vida melhor. Mesmo estando a maior parte do tempo distante do pai, ele sentia que a situação familiar estava se tornando mais tensa a cada dia. Esforçava-se para apoiar a mãe, procurando fazê-la esquecer um pouco os problemas familiares e despertando nela o interesse em suas pesquisas, pedindo sua opinião, fazendo com que descobrisse outros interesses e percebesse que a vida ainda tinha muitas coisas boas a oferecer. Mas Glória estava resistente e, apesar de todo o bem que Nivaldo tentava lhe proporcionar, ela continuava obcecada pela traição do marido, sem querer separar-se. Pela primeira vez, Nivaldo tomou consciência de que, recusando-se a deixar o marido e colocando-se no lugar de vítima, o que Glória pretendia mesmo era vingar-se dele. Talvez ela mesma ignorasse isso, mas, ao suportar a traição e ser vista como uma esposa digna, dedicada, que continuava ao lado do marido por amor à família, ela o estava condenando. As virtudes de Glória tornavam ainda mais graves os deslizes de Alberto. Ela era a mártir, ele, o algoz. Era o sentimento de raiva que fazia Glória viver esse papel. Glória nunca expressara sua raiva, o que não era natural na situação em que se encontrava, mas o sentimento continuava lá, influenciando suas atitudes. Ela não era vítima, como queria fazer crer, ela estava castigando o marido durante todo o tempo. Naquele instante, Nivaldo compreendeu que, enquanto ela não entendesse aquilo, continuaria presa, sofrendo com a traição do marido o resto da vida. O que poderia fazer para ajudá-la? O melhor era pedir inspiração divina. Antes de orar, sentiu que o espírito de Norma estava ao seu lado e esperou. Ela aproximou-se e colocou a mão na testa dele dizendo:
- Agora você entendeu e poderá agir com mais eficiência. Não se preocupe. Confie em Deus.
- Sinto que a relação entre nós e papai já acabou e não tem volta. Mas sei que, enquanto ela não entender a verdade, continuará presa a ele, alimentando a infelicidade. Eu quero fazer alguma coisa, acabar com esse sofrimento. Meu maior desejo é que ela esqueça esse tempo e possa viver mais feliz.
- Eu também gostaria de poder tornar feliz todos os que sofrem. Mas isso não depende de nós. Cada um tem seu próprio processo de seguir adiante e não temos como apressá-los. Vamos confiar na vida, que sabe melhor do que nós conduzir as pessoas para onde devem ir. A conquista da felicidade é de responsabilidade pessoal e intransferível. Vamos confiar no futuro. Sei que você continuará apoiando-a, como sempre, e nós, seus amigos espirituais, faremos o possível para auxiliá-los.
Ela fez uma pausa. Nivaldo sentiu que uma energia suave e agradável o envolvia, e o ambiente tornou-se claro e leve. Sentindo grande bem-estar, suspirou satisfeito. Norma continuou:
- Apesar do que conversamos, consideramos o caso de Glória resolvido. Devo dizer-lhe que é hora de começar a realizar os projetos pessoais que você trouxe para esta jornada.
- Você tem mencionado isso. Refere-se às experiências genéticas na fazenda? Vamos conseguir continuar?
- Há sempre vários caminhos para seguir. Nós não podemos interferir em suas escolhas. Por esse motivo, não posso revelar nada agora. Você está esquecido, mas saberá na hora certa. Agora, preciso ir. Deus o abençoe.
Ela desapareceu e Nivaldo abriu os olhos, ainda sentindo a energia agradável que o envolvia. Naquele momento, Glória acordou e fixou-o, como se quisesse situar-se. Depois disse:
- Eu dormi sem querer. Você me deu algum sedativo?
Nivaldo sorriu e respondeu:
- Não, mãe. Eu só orei. Como se sente?
- Aliviada. Fazia tempo que eu não conseguia dormir desse jeito. Acho que você tem uma parte com Deus. Sua reza sempre me faz bem.
- Você pode fazer o mesmo. A oração nos liga aos espíritos de luz, traz paz, bem-estar.
- Às vezes eu tento, mas não consigo o mesmo efeito que você.
- Você pode, acredite. Estou com fome. Vamos comer alguma coisa?
Os dois foram à procura de Dete na copa:
- Você esqueceu do jantar? - perguntou Glória.
- Não. Quando fui chamá-los, estavam dormindo e eu resolvi esperar. Está tudo pronto, vou esquentar rapidinho.
Enquanto os dois lavavam as mãos, ela esquentou a comida e, em poucos minutos, ambos comiam com apetite. Carlos deixou o aeroporto com sua bagagem e saiu à procura de um táxi. Durante o trajeto de volta para casa, sentia-se alegre, satisfeito por poder contar suas vitórias. Durante os quatro meses que estivera ausente, sua vida havia mudado radicalmente. Conseguira realizar bons negócios, estava ganhando dinheiro. Benito o apresentara a algumas joalherias, levando seu mostruário, mas não conseguiu realizar nenhum negócio. Eles queriam novidades, mas Nicolai não queria inovar. Vendo que Carlos estava preocupado, Benito sugeriu:
- Por que você mesmo não cria alguma jóia diferente?
A princípio, Carlos não deu ouvidos, mas Gina e Marta insistiram para que ele o fizesse. Para estimulá-lo, as duas desenharam algumas peças, e ele, mais para agradá-las, fez o mesmo. Todos se entusiasmaram com o resultado e sugeriram que Carlos as mostrasse aos compradores. Carlos gostou das peças, mas não se entusiasmou. Todavia, para não decepcioná-las, resolveu mostrar aos compradores, que, para sua surpresa, adoraram e desejaram comprá-las. Carlos combinou de voltar com os preços para fechar o negócio. Era provável que Nicolai não aceitasse esse pedido, uma vez que não queria inovar. O que fazer, então? Benito conhecia dois ourives e levou Carlos para conhecer o trabalho deles, pois sabia que poderiam aceitar as encomendas. Os dois eram muito bons, fizeram uma parceria e assim começara um novo e promissor negócio. Carlos e as duas moças desenhavam os modelos, mandavam fazer e vendiam. Carlos havia proposto o negócio para Nicolai, mas, como já esperava, ele não aceitou. Não queria aventurar-se a lançar jóia e que fugissem do que considerava clássico. Durante quase dois meses de trabalho, eles descobriram que estavam no rumo certo. Os quatro abriram uma firma em sociedade e os resultados foram além do esperado. Entusiasmados, Carlos E Gina marcaram a data do casamento. Decidido a casar-se e morar na Itália definitivamente, Carlos regressou ao Brasil para conversar com a família e com Nicolai formalizando sua decisão. Estava feliz. Sentia-se mais ligado à família de Gina do que à sua. Com eles podia conversar sobre arte, música, beleza, entre outros tantos assuntos que lhe davam prazer, o que não acontecia quando estava ao lado dos seus. Além disso, seu inesperado encontro com Gina apagara a opressão que a rejeição de Isabel lhe causara. Benito costumava dizer: "A vida tem sabedoria e sempre faz tudo certo". Se, ao voltar da guerra, Isabel estivesse à sua espera teria se casado com ela. O que aconteceria quando Gina aparecesse em sua vida depois do casamento? Teria ficado em uma situação desagradável. Sabia que não conseguiria resistir ao que sentia por Gina, que se entregaria à paixão e faria Isabel sofrer. Conversara com Lúcia, abrira seu coração falando sobre sua desilusão amorosa e sobre como se identificara com ela E toda sua família, a ponto de sentir-se mais feliz ao lado deles do que com seus próprios familiares. Ao que ela lhe dissera:
- Nosso encontro não foi obra do acaso. Nós não fazemos amizade com facilidade. Com você foi diferente. Você entrou em nossa casa e em nosso coração como se sempre estivesse lá. Estou certa de que nossa amizade vem de outras vidas.
Eles falavam sobre vida após a morte, reencarnação e comunicação com aqueles que partiram com naturalidade, o que fez Carlos lembrar-se de Adriano e começar a despertar para a espiritualidade. Uma noite, convidaram-no para ir a uma reunião na casa de Giovana. Carlos preferia não ir, mas Lúcia lhe pediu com tanto empenho que os acompanhasse que ele aceitou. Aquela foi para ele uma noite inesquecível. Giovana os recebeu com carinho e conduziu-os diretamente para outra sala, onde seria realizada a reunião. Além da família de Lúcia e de Giovana, ali estavam sua filha Juliana e um casal a que Carlos foi apresentado.
- Vamos nos sentar, que é hora de começar.
Acomodaram-se todos ao redor da mesa, onde havia alguns livros, papéis, lápis. Sobre um console, um vaso com flores frescas, a bandeja com uma jarra de água e alguns copos. A sala estava iluminada por uma parca luz vermelha e, no som, tocava uma música suave. Giovana começou a falar:
- Queremos agradecer a Deus por todas as bênçãos que temos recebido e saudar os amigos espirituais que estão aqui, dispostos a nos auxiliar a encontrar o caminho da luz. Envolvidos pelas energias do mundo material, muitas vezes não nos lembramos que somos espíritos eternos estagiando temporariamente aqui, e deixamos de realizar os projetos de progresso que viemos buscar. As lições que temos recebido dos amigos espirituais nos fazem recordar o mundo espiritual e nos têm auxiliado muito. Estamos prontos para ouvir as lições desta noite com carinho e gratidão.
Todos silenciaram e a música continuou vibrando no ar. De repente, Carlos sentiu-se angustiado, teve vontade de levantar-se, mas controlou-se. Sentada à sua frente, uma das mulheres remexeu-se na cadeira, respirou fundo e disse:
- Carlos, finalmente podemos conversar!
Carlos estremeceu, sentindo arrepios lhe percorrerem o corpo. O medo o paralisou. Ela continuou:
- Sou eu, Adriano, não se lembra? Hoje pude vir para falar com você. Durante muito tempo o procurei, mas você se assustava quando me via. Eu estava desesperado sem saber aonde ir, como curar as feridas que me incomodavam. As enfermeiras queriam levar-me, mas eu estava com muito medo. Uma noite, eu estava em um lugar muito triste, ouvindo o gemido dos feridos e o matraquear das metralhadoras; sem saber onde me esconder, atirei-me no chão e pedi a Deus que me tirasse daquele lugar. Então, vi-me transportado para um campo e, quando olhei em volta, vi Anete, linda, estendendo a mão.
Ele se calou e, no silêncio que se fez, além da música, ouvia-se apenas a respiração comovida das pessoas e os soluços de Carlos, que não conseguia conter a emoção. Ele continuou:
- Estou aqui para agradecer tudo que fez por mim no momento mais triste da minha vida e dizer-lhe que, apesar de ter pedido que você procurasse Anete, isso não seria possível porque ela também já havia deixado a Terra. O hospital de campanha em que ela trabalhava foi atingido por uma bomba. Hoje ela vive em uma comunidade e eu em outra. Mas estou me esforçando para melhorar e, dentro de pouco tempo, poderei viver lá ao lado dela. Anete me visita sempre e estamos felizes. Você foi meu amigo e companheiro e rezo para que seja muito feliz e viva em paz.
Ela se calou e Giovana tomou a palavra:
- Queremos agradecer aos amigos espirituais pela ajuda que recebemos. Mais uma vez, eles nos trouxeram provas de que somos eternos e de que a morte do corpo de carne é apenas o desgaste de uma máquina inteligente e perfeita, criada pela divina fonte para nos dar condições de viver na Terra e enriquecer nosso espírito. Agradecemos a Deus e encerramos nossa reunião.
Juliana acendeu a luz. Gina segurava a mão de Carlos, que se esforçava para controlar as emoções. Recordando-se daquela noite, Carlos sentiu-se comovido. A certeza da imortalidade brotou em seu coração, abrindo as portas da eternidade e dando um sentido mais amplo à sua vida. Comparecia todas as semanas às reuniões na casa de Giovana. Auxiliado por ela, Carlos dedicou-se aos estudos da vida e da morte, mudando radicalmente sua forma de pensar. Na casa de Lúcia, onde todos compartilhavam dessas ideias, foi se sentindo cada vez mais à vontade, integrado. Lá, as conversas eram sempre elevadas, e o ambiente de respeito e carinho em que se relacionavam o inspirou a tornar-se mais otimista e a sentir mais prazer de viver. O táxi parou em frente à casa de seus pais e Carlos olhou em volta satisfeito. Desceu, dispensou o táxi, tocou a campainha. Albertina abriu e, vendo o filho, seu rosto iluminou-se:
- Carlos! Você veio! - exclamou ela, abraçando-o emocionada.
Quando se acalmou, distanciou-se um pouco e o olhou embevecida:
- Como você está lindo, elegante!
- Estou muito bem, mãe. E vocês, como vão?
- Vivendo. Como sempre. Aqui tudo continua igual. Nada acontece.
Carlos colocou a mala para dentro e Albertina fechou a porta, fixando-o curiosa. Não se conteve:
- O que você fez, meu filho? Parece outra pessoa!
Ele riu bem-humorado.
- Estou muito bem mesmo.
- Quando você ligou dizendo que vinha, quase não acreditei. Estava morrendo de saudades. Arrumei seu quarto.
- E papai e Inês, como vão?
- Como sempre. Estão trabalhando. Logo estarão de volta. Você deve estar cansado da viagem. Talvez queira descansar.
- Estou bem. Mas vamos levar as bagagens para o quarto.
Os dois subiram. Carlos abriu uma das malas, tirou alguns pacotes e entregou à mãe, dizendo:
- São para você. Espero que goste!
- Não precisava! Sua presença para mim é o bastante!
Carlos colocou as duas mãos sobre os ombros dela, olhou firme em seus olhos e respondeu:
- Precisava, sim. Você sempre cuidou de mim com muito carinho, merece muito mais do que essas coisas.
Os olhos de Albertina encheram-se de lágrimas e ele a abraçou sorrindo:
- É bom se acostumar porque, de hoje em diante, tenho a intenção de dar-lhe muito mais.
A emoção impediu que ela respondesse e Carlos continuou:
- Vamos descer e você vai me fazer um café, daqueles que só você sabe fazer!
Os olhos dela brilharam quando respondeu:
- Está dizendo isso só para me agradar! Imagine as coisas boas que você experimentou na Europa! Depois que você viajou, comprei dois livros e tenho lido sobre os países que você visitou. Fiquei curiosa, com vontade de conhecer a França, a Itália. Pelo que eu li, nem parece que passaram por aquela guerra tão cruel.
- Não sabia que você tinha interesse por esses países.
- Eu queria ter ideia do lugar onde você estava. Vi como tinham ficado alguns dos lugares depois da guerra, tudo destruído pelos bombardeios. Fiquei surpresa com a rápida reconstrução e com o progresso!
- Um dia terei o prazer de mostrar-lhe todos esses lugares.
Os olhos de Albertina o fixaram com admiração:
- Eu?! Acha isso possível?
- Claro. Agora, você vai fazer um café e vamos nos sentar. Precisamos conversar.
- Não precisa ser agora. Você deve estar cansado. Descanse, conversaremos mais tarde.
- Não, mãe. É melhor agora. Essa conversa eu prefiro ter com você antes que papai e Inês cheguem. É um assunto só nosso.
Ela aceitou. Pouco depois, estavam sentados lado a lado no sofá, saboreando um café com bolo que ela fizera para esperá-lo. Tomaram o café, Carlos colocou a xícara na bandeja e segurou a mão dela com carinho, dizendo:
- A história que vou lhe contar deverá ficar só entre nós. Vou abrir meu coração porque sei que vai entender.
Albertina olhou-o séria e respondeu:
- Está bem. Pode falar.
Carlos começou falando sobre seu sofrimento com a rejeição de Isabel, seu desejo de vingar-se, de provar a ela que era capaz de vencer na vida e de reconquistá-la. Depois falou sobre a morte de Adriano, sobre seus sonhos apaixonados com uma mulher, sua amizade com Benito e a surpresa de encontrar a mulher que via naqueles sonhos, Gina. Contou sobre seu trabalho e sua associação de negócio com Benito e as irmãs, sobre Giovana e a crença na eternidade do espírito. Por fim, revelou a decisão de se casar e ir morar na Itália. Albertina ouviu tudo com atenção, sentindo cada emoção do filho querido, que continuava segurando sua mão. Quando ele se calou, olhos brilhantes de emoção, ela o abraçou com força e em silêncio. Tinha receio de falar e quebrar aqueles momentos tão mágicos que estavam vivendo. Ficaram assim durante alguns segundos, depois Carlos disse:
- Obrigado por ter me ouvido. Sinto que fui entendido. Eu sabia que você ficaria feliz em ver-me tão bem.
Albertina suspirou e respondeu:
- Tem razão. Você tem todo o direito de procurar sua felicidade. Fico feliz por saber que você conseguiu aceitar as mudanças que a vida lhe reservou e entendeu que foi melhor assim. Eu esperava que você tivesse vindo para ficar, mas, por outro lado, já gosto de Gina e de toda essa família que o recebeu com amor, como a um filho.
- Não fique triste por eu decidir morar longe. Virei visitá-los sempre e desejo que toda a família compareça ao meu casamento. Acredite que nossos laços de amor continuarão existindo para sempre. Vocês me deram a oportunidade de nascer de novo na Terra. Tenho com nossa família uma dívida de gratidão que nunca poderei pagar. Gostaria que soubessem disso.
- Eu sei, meu filho. Apesar da descrença de seu pai e de Inês, eu sempre acreditei que a vida continua. Às vezes, quando aqui em casa as coisas não estão bem, sem ninguém saber, eu vou a um centro espírita rezar, pedir ajuda. E ela sempre vem.
- Seria bom que levasse papai também.
- Ele diz que não acredita em nada. Se eu falar, pode me proibir de ir.
- Deixe comigo. Sei como fazer. Vou procurar um lugar bom para levá-los.
- Seria bom mesmo que eles fossem. No centro, eles só falam no bem, dão bons conselhos, ajudam todo mundo. Se Inês fosse, talvez deixasse de ser tão implicante, de pensar mal dos outros. Ela sempre pensa no pior.
- É por isso que a vida dela não vai para frente. Quem dá forças ao que é negativo atrai o mal para a sua vida.
- É o que eu penso. Se ao menos ela conseguisse ser mais otimista...
- Vamos ver o que posso fazer.
- Quanto tempo pretende ficar aqui?
- Não sei ao certo, mas não posso me demorar por causa dos negócios. Assim que resolver o que preciso, irei embora. Agora vou subir, tomar um banho.
- E eu vou preparar o jantar. Logo mais eles estarão aqui, e seu pai, como sempre, não gosta de esperar.
Albertina foi para cozinha pensativa. Apesar de sentir-se triste por Carlos ir morar fora do país, tudo que ele lhe contara a fizera entender que as coisas tinham sido conduzidas para o lugar certo. Deus ouvira suas preces. Durante os cinco anos em que ele estivera ausente, ela rezara todas as noites pedindo a Deus que o protegesse. A volta dele são e salvo a fez sentir que suas orações tinham sido ouvidas. E, quando Carlos se revoltou pela rejeição de Isabel, planejando vingar-se, ela teve medo de que ele cumprisse o que dissera. Foi ao centro espírita pedir ajuda a Sônia, uma médium que sempre a confortara com mensagens de seus guias espirituais. Eles lhe pediam para confiar na sabedoria da vida, que sempre faz tudo certo. Ela confiara, e agora tinha a prova de que eles estavam certos. Carlos estava destinado a reencontrar-se com o grande amor de outras vidas. Estava escrito que, desta vez, eles seriam felizes. Lembrou-se de uma frase que o guia espiritual de Sônia lhe dissera:
"Acalme seu coração e confie na bondade divina. Pense que seu filho está no bem e essa fase é temporária. Ajude-nos mentalizando luz sobre ele."
Desde esse dia, Albertina se esforçara para melhorar o seu padrão de pensamentos. Quando surgiam em sua mente pensamentos ruins, sensação de medo, ela lembrava-se dessas palavras e pegava um retrato de Carlos ainda adolescente, em que ele estava sorrindo alegre, e então rezava, imaginando que do alto caíam raios de luz sobre ele. Inês apareceu na cozinha perguntando:
- Então, mãe, Carlos já chegou?
- Já. Ficamos conversando até há pouco, e agora ele foi tomar um banho.
Inês aproximou-se:
- Como ele está? Contou as novidades?
- Contou. Está muito bem.
- O que foi que ele disse?
- Ele mesmo vai contar.
- Só quero ver a cara dele quando souber que Isabel se casa dentro de uma semana.
- Não seja maldosa.
- A verdade tem de ser dita. Ele dizia que ganharia muito dinheiro e a reconquistaria. Nada disso aconteceu. Ela vai mesmo casar com aquele médico. Compraram casa, está tudo pronto. Carlos já perdeu essa.
Albertina mordeu os lábios e não respondeu. De que adiantaria?
- Vou subir e me lavar. O jantar vai demorar? Papai deve estar para chegar e ele não gosta de esperar.
- Está quase pronto. Vá se lavar e volte logo para pôr a mesa. Comprei umas flores, quero que tudo fique bem bonito.
- Ele sempre foi seu preferido. Você dá mais atenção a ele, que sempre vive fora, enquanto eu, que estou sempre a ajudando, fico em segundo plano.
Albertina riu e respondeu:
- Deixe de ser criança. Onde já se viu?
Inês não esperava essa resposta e, irritada, subiu para se lavar. Quando ela desceu pouco depois e foi arrumar a mesa, viu que a mãe separara a toalha que usava para as visitas, a melhor louça e os copos de cristal. Pouco depois, Albertina foi verificar a arrumação e, diante do olhar sério de Inês, mudou algumas coisas. Naquele instante, Antônio entrou, pendurou o chapéu e foi ter com elas, perguntando:
- Carlos já chegou?
- Estou aqui, pai. Como vai?
- Bem - respondeu Antônio.
Carlos descera sem ser notado e todos os olhares foram voltados para ele, que estava muito elegante em uma calça de flanela cinza e uma camisa de seda bege. Abraçou o pai e a irmã, que o olhavam admirados. Depois, apanhou dois pacotes que deixara sobre uma cadeira, entregando-os a eles.
- Espero que gostem. É a última moda na Itália.
Ambos abriram os presentes. Para Inês, uma blusa de lã cor verde-escuro e, para o pai, uma carteira e um cinto de couro legítimo. O olhar admirado de ambos passeava dos presentes finos a Carlos, que parecia ter se tornado um estranho. Ambos agradeceram com certa cerimônia, o que fez Albertina sorrir, antegozando a surpresa deles ao escutar o que Carlos tinha para contar. Carlos notou certo constrangimento deles e procurou deixá-los à vontade. Durante o jantar especial que Albertina fizera com capricho, ele falou sobre os países que visitara, seus costumes, suas belezas e o progresso que havia por toda parte. De vez em quando, eles se animavam a fazer uma pergunta ou outra, que Carlos respondia com desenvoltura. Depois da sobremesa, foram conversar na sala. Assim que se sentaram, Inês não perdeu tempo:
- Você está muito bem. Não sei se foi bom ter vindo agora ao Brasil.
- Por quê?
- Porque Isabel vai se casar dentro de alguns dias.
O semblante de Carlos continuou impassível quando respondeu:
- Nesse caso foi bom eu ter voltado. Terei o maior prazer em desejar-lhe felicidades. Quero que ela seja muito feliz.
Inês abriu a boca e fechou-a novamente, não sabendo o que dizer. A bomba que guardara durante tanto tempo para explodir diante do irmão não surtira nenhum efeito. Antônio também não sabia o que dizer. Somente Albertina sorria satisfeita.
- Como vão os negócios? - indagou Antônio.
Carlos falou por alto de suas vendas e da empresa que formara com um amigo italiano.
- Continuamos trabalhando com jóias. Tem dado bons resultados, tanto que vim despedir-me de vocês. Pretendo morar em Milão.
- Como assim? - exclamou Inês assustada.
- Tem certeza de que vai dar certo? - comentou Antônio.
- Tenho. Está indo bem, e o progresso do comércio de lá, com artigos de classe, beleza e lojas de luxo, é muito grande. Milão tem sido a cidade da moda. É o lugar aonde os turistas ricos vão para fazer compras. Os italianos são muito caprichosos, exigentes com qualidade. Estou certo de que vamos ganhar muito dinheiro.
Antônio não sabia o que dizer. A surpresa o emudecia. Ele nunca imaginara que Carlos conseguiria ser o que dizia. No fundo, ainda duvidava que aquilo fosse mesmo verdade. Mas a surpresa maior ainda estava por vir. Foi quando Carlos disse:
- Dentro de alguns meses, vou me casar com Gina, uma das irmãs de Benito. Esse é o motivo de eu querer morar lá.
Dessa vez, eles perderam a vontade de conversar. Enquanto Carlos falava dos encantos de Gina, dos momentos de arte que desfrutava com a família, eles foram se sentindo cansados e, pouco tempo depois, Antônio decidiu ir dormir. Inês, a pretexto de ter de se levantar cedo no dia seguinte, também se recolheu. Carlos e Albertina ainda ficaram alguns minutos desfrutando do prazer daqueles momentos. Depois, ele a ajudou a fechar a casa e também foram dormir. No fim da tarde, Isabel entrou em casa carregando alguns pacotes. Vendo-a entrar, Laura perguntou:
- Comprou tudo?
- Sim. Não falta mais nada.
Colocou os pacotes sobre a poltrona e continuou:
- Estou cansada, mas acabei. Acho que vou subir, descansar um pouco até a hora do jantar.
- Vá mesmo. Precisa se poupar. Uma noiva tem de estar radiante no dia do casamento.
Isabel sorriu e comentou:
- Quando penso que está chegando a hora, sinto um friozinho percorrer meu corpo. Laura sorriu e respondeu:
- É natural. Sua vida vai mudar. Acalme-se, vai dar tudo certo.
- Eu sei. Gilberto é o homem da minha vida. Vamos ser muito felizes. Vou subir. Me chame quando o jantar estiver pronto.
Isabel foi para o quarto e estendeu-se na cama pensando nos detalhes da arrumação que faria na casa no dia seguinte. O telefone tocou e ela atendeu:
- Alô?
- Como vai, Isabel?
Ao ouvir a voz de Carlos, ela estremeceu. Apanhada de surpresa, ficou calada durante alguns segundos. Carlos continuou:
- Sou eu o Carlos. Cheguei ontem e gostaria de conversar com você.
Isabel respirou fundo e respondeu:
- Vou bem, Carlos. Estou surpresa por ter me ligado.
- Eu gostaria de ir até sua casa agora, conversar.
- Não vai ser possível! Tenho um compromisso logo mais.
- Eu sei que deve estar muito atarefada com os arranjos para o seu casamento, mas gostaria muito que me atendesse. Não vou tomar muito do seu tempo.
- Acho melhor não. Afinal, não temos mais nada para dizer. Nosso caso acabou.
- É que pretendo ir embora dentro de alguns dias e gostaria de esclarecer algumas coisas.
Ela ficou calada durante alguns segundos. Seu coração batia forte. Temia que ele tivesse voltado para atrapalhar seu casamento. Carlos insistiu:
- Vou me mudar para a Itália definitivamente. Em nome de nossa santa amizade, peço que me conceda a oportunidade de uma última conversa.
Isabel pensou um pouco e concordou. Seria melhor mesmo conversar e saber o que ele pretendia, assim evitaria uma surpresa desagradável na hora do casamento. Assim que desligou o telefone, desceu e contou a Laura a novidade.
- Estou com medo, mãe! O que será que ele quer? Por que reapareceu logo agora, quase no dia do meu casamento?
Laura, preocupada, segurou a mão da filha, tentando não deixar transparecer seus receios:
- Ele não vai fazer nada! Se está se mudando para outro país, é porque já aceitou a separação. É melhor mesmo recebê-lo e ouvir o que ele tem para dizer. Você está pálida, vá se arrumar um pouco. Acalme-se, vamos recebê-lo com naturalidade.
Isabel obedeceu. Pouco depois, Carlos, segurando uma caixa com um arranjo de rosas naturais, tocou a campainha. Laura atendeu.
- Entre, Carlos. Quanto tempo!
Ele entrou, segurou a mão que ela lhe estendia, levando-a aos lábios com delicadeza, e entregou-lhe a caixa dizendo:
- Sempre jovem e bela! Estas rosas são para a senhora.
Laura não escondia a surpresa. Em nada ele fazia lembrar o Carlos que ela vira na última visita. Tinha tomado corpo, estava sorridente, bonito, elegante. Olhando-o, ela sentiu desvanecer todo o receio.
- Obrigada, meu filho! São lindas! Venha, vamos nos sentar e conversar. Isabel já vai descer.
Acomodaram-se na sala e Laura perguntou se ele estivera mesmo na Europa. Carlos, muito à vontade, falou dos países que visitara e do progresso que havia por toda parte. Isabel logo desceu e, antes de entrar na sala, ouviu um pouco da conversa deles. Percebendo o tom natural e alegre, respirou fundo e entrou. Carlos levantou-se e, sorrindo, estendeu a mão, perguntando:
- Está tudo bem com você?
- Está. Você parece muito bem - respondeu ela, apertando a mão que ele lhe estendia. - Mas sente-se, fique à vontade.
Ele se sentou, olhou-a nos olhos e disse:
- Quando liguei, notei que você não gostou de me ouvir e não queria que eu viesse.
Ela fez pequeno gesto querendo negar mas ele continuou:
- Eu entendo suas razões. Quando regressei, depois de tantos anos, e descobri que você não queria mais continuar comigo, eu não quis aceitar. Fiquei muito revoltado. Cheguei a fazer ameaças.
Carlos fez uma pausa, mas vendo que elas o ouviam em silêncio, continuou:
- Hoje sei por que agi assim. Durante todo o tempo em que estive fora, sofrendo o horror da guerra, prisioneiro, longe de todos, passando necessidades, sem saber se um dia poderia regressar, eu me sentia lesado. Essa guerra tinha me tirado os melhores anos da juventude, os sonhos de felicidade que idealizei. Visualizei como recompensa de todo aquele sofrimento a realização do sonho de amor que havíamos construído juntos. Joguei o peso de minhas frustrações sobre você, colocando-a como um prêmio que eu merecia. Eis porque não consegui aceitar que você havia mudado e estava apaixonada por outro.
Ele se calou enquanto as duas, olhos úmidos, tentavam controlar a emoção.
- Deve ter sido muito difícil para você! - tornou Laura.
- Foi. Mas, por outro lado, esse fato me empurrou para frente. Meu orgulho foi ferido e, naqueles dias turbulentos, jurei a mim mesmo que subiria na vida, ganharia muito dinheiro e provaria para você, Isabel, que eu poderia ser melhor do que o homem pelo qual fui trocado. Ganhei força, aproveitei o conhecimento que adquiri na Europa. Conheci Nicolai, dono de uma fábrica de jóias, e, como aprendi russo, pude conversar com ele nessa língua, o que me fez ganhar sua confiança.
Carlos falava com entusiasmo, olhos brilhantes, e as duas começaram a interessar-se pelo que ele dizia. Falou de suas experiências, da amizade com Benito e sua família, do amor que nasceu entre ele e Gina, sem mencionar os sonhos que tivera com ela, mas anunciando a sociedade nos negócios e o seu casamento por vir. E finalizou:
- Meu relacionamento com essa família mudou radicalmente minha vida. Eles são espiritualistas e me provaram que a vida é muito mais do que parece. Entendi que somos eternos, e esse conhecimento fez com que eu passasse a ver a vida de uma forma melhor. Escolhi casar e morar em Milão. Hoje sou outra pessoa. Quero começar a nova vida de maneira ordenada e produtiva, sem deixar nada para trás. Falei com minha família, e estou aqui para dizer que guardo do passado que vivemos juntos apenas momentos bons de carinho e amizade, e os conservarei para sempre. Gostaria que vocês, ao se recordarem de mim, fizessem isso de um jeito bom. Era isso que tinha para lhes dizer.
Carlos levantou-se e Laura o abraçou comovida:
- Estou feliz por descobrir que você evoluiu, tornou-se íntegro, sereno, sabe o que quer. Suas palavras estarão para sempre na minha lembrança. Parabéns.
Isabel, olhos úmidos, aproximou-se, abraçou-o e beijou levemente na face:
- Agora reconheço o homem pelo qual me apaixonei na juventude. Você é forte, soube transformar uma frustração em alavanca para o progresso. Hoje você me deu uma grande lição. Estou certa de que será muito feliz com a mulher que escolheu.
- Eu também desejo a você toda a felicidade deste mundo e muito mais. Agora já posso ir.
- Não antes de fazermos um brinde ao casamento dos dois - Laura disse contente.
Eles riram alegres, e Laura deixou a sala. Pouco depois, voltou trazendo uma bandeja com cálices e uma garrafa de vinho do porto. Serviu-os e levantou o cálice, dizendo:
- Que a luz e o amor estejam sempre presentes nas vidas de Carlos, Gina, Isabel e Gilberto.
Eles brindaram, conversaram mais um pouco e Carlos despediu-se. Sentia-se alegre, aliviado, de alma lavada. Depois que ele se foi, Laura olhou a filha e comentou:
- Que alívio! Como é bom sentir que podemos vencer nossos desafios e viver em paz.
- Parece que tirei um enorme peso do coração. Apesar de estar certa do que eu queria e de saber que estava fazendo a coisa certa, ao pensar em Carlos me vinha uma desagradável sensação de culpa. Agora isso acabou.
- Venha, filha. Vamos orar e agradecer a Deus por mais essa dádiva.
Sentaram-se no sofá, deram-se as mãos e Laura fez sentida oração de agradecimento. Naquela noite, quando Gilberto chegou, sentou-se na sala junto a Isabel, e, de mãos dadas, ela lhe contou sobre a inesperada visita de Carlos, finalizando:
- Quando ele ligou, fiquei temerosa. Mas foi bom tê-lo ouvido. Você não imagina como estou me sentindo aliviada.
- Você foi verdadeira. Agiu de acordo com seus sentimentos. Fez o que deveria ter feito. Já o orgulho ferido fez com que ele reagisse, colocasse toda a sua força a favor de subir na vida e acabou encontrando um caminho melhor e mais apropriado às suas necessidades.
- Carlos sempre foi um bom rapaz, mas não convivia bem com o pai e a irmã por serem muito críticos e olharem sempre o lado ruim de tudo. Ele se deu bem com a família da moça com quem vai se casar. São pessoas cultas, educadas, sensíveis à arte, mais condizentes com o temperamento dele. Está se mudando para Itália definitivamente.
- Ele está certo. Nem sempre os laços de família são afins. Viver ao lado de pessoas sensíveis, de sentimentos elevados, é muito bom. Na minha família, a falta de afinidade tem sido a causa de muito sofrimento. Minha mãe, que era uma mulher cheia de vida, alegre e de bem com a vida acabou se tornando fechada, triste e deprimida por esse motivo.
Laura, que ouvia calada, interveio:
- É difícil conviver com alguém que pensa muito diferente de nós. Mas o pior é que, em vez de reagir, libertar-se da situação emocionalmente, quase sempre mergulhamos mais nela.
- A senhora está dizendo isso porque minha mãe, apesar de tudo que aconteceu, não reage?
Laura pensou um pouco e respondeu:
- Tenho pensado muito nela. Apesar do que aconteceu, ela permanece lá tentando por todos os meios conservar a casa, a fazenda sem fazer nada esperando que algo aconteça e mude os fatos.
Gilberto baixou a cabeça pensativo, depois disse:
- Infelizmente é verdade. Parece até que ela se compraz em punir-se pelo que ele lhe fez. Não consigo entender. Tenho insistido para que ela venha viver aqui, renove as amizades, toque a vida pra frente. Mas ela se recusa e, com isso, faz com que Nivaldo também permaneça preso àquela situação.
- Não vamos perder a esperança. A vida tem seus caminhos. De uma hora para outra, tudo pode mudar. Você quer que eles venham para cá, mas nós ignoramos o que poderá ser melhor para eles agora. Deus pode estar querendo outra coisa. Eu confio na sabedoria da vida, que sempre faz o melhor.
- Ontem falei com Nivaldo. Até agora não há nenhuma notícia de papai. O pior é que, sem ele, estão de mãos atadas, não podem vender nenhuma propriedade. Nivaldo está negociando um empréstimo no banco para pagar fornecedores e custear as despesas da fazenda, mas fica difícil sem a assinatura de papai.
- Como estão vivendo? - indagou Isabel.
De algumas economias pessoais, mas elas são insuficientes para o que precisariam. Não sei o que vai acontecer. Se os credores pressionarem, poderão penhorar algum imóvel, o que será ainda pior. Laura pensou um pouco, depois disse:
- Estão vivendo um momento difícil. Mas, quando não podemos fazer nada, o melhor é pedir inspiração divina. Deus é nosso provedor e tudo pode. Vamos nos unir na fé, colocar essa situação nas mãos Dele e pedir que inspire cada um dos envolvidos a fazer o que for melhor neste momento.
Eles uniram as mãos e Laura fez uma prece emocionada, pedindo a Deus que abençoasse Alberto e toda a sua família, derramando sobre eles energias de serenidade e paz, e inspirando cada um a fazer a parte que lhe competia na solução efetiva para libertação dos problemas. Enquanto ela falava, uma energia suave os envolveu e aos poucos eles foram se sentindo melhor. Gilberto relaxou, a angústia que o oprimia desapareceu e sentiu-se mais calmo. Quando ela se calou, ele disse:
- Obrigado, dona Laura. Estou me sentindo muito melhor.
- Depois de colocar essa situação nas mãos de Deus, é preciso confiar. Não vamos mais nos preocupar com ela. Dentro de três dias, vocês vão se casar. Pensem no futuro, nos projetos de felicidade que fizeram. Aproveitem a lua de mel, desfrutem toda a alegria de serem jovens e estar vivendo momentos de amor. É hora de usufruir da felicidade.
Gilberto, sentado ao lado de Isabel no sofá, passou o braço sobre o ombro dela e a beijou na face com amor.
- Tem razão. Esse momento é único e vamos desfrutá-lo em toda sua plenitude.
O ambiente se tornara agradável e eles continuaram conversando com prazer. Carlos deixou a casa de Isabel de alma lavada. Ter conseguido expressar seus sentimentos dava-lhe uma sensação gostosa de realização, e ter vencido seus desafios lhe conferia certo poder e confiança no futuro. Acreditava-se capaz de assumir a própria vida e levar adiante seus projetos de felicidade e progresso. Sabia que havia feito a escolha certa, e esse sentimento proporcionava-lhe grande bem-estar. Mas, ao mesmo tempo, reconhecia que a ajuda espiritual que recebera, oferecendo-lhe provas da espiritualidade e da eternidade do espírito, abrira sua consciência e o fizera reavaliar seus valores éticos, esforçando-se para ser uma pessoa melhor. No caminho, parou em uma mercearia e comprou uma garrafa de vinho e guloseimas para um lanche. Chegou em casa e colocou os pacotes sobre a mesa da sala de jantar. Despertou a curiosidade do pai, que, sentado, lia o jornal e reclamava por ter de esperar alguns minutos para comer. Ele largou o jornal e aproximou-se perguntando:
- Quanta coisa! O que aconteceu, ganhou na loteria?
Carlos riu e respondeu:
- Nada disso. Estou alegre e tive vontade de comemorar. Olhe, este vinho italiano é maravilhoso! Você precisa experimentar. Vai ver que delícia!
Inês havia se aproximado e comentou, enquanto olhava admirada:
- Não precisava. Já vamos servir o jantar!
Carlos foi à cristaleira, apanhou alguns copos e entregou-os a Inês, dizendo:
- Passe uma água neles.
De má vontade, ela obedeceu. Enquanto isso, Carlos abriu os pacotes, arrumou os frios, os pães e as demais iguarias de maneira bonita. Foi à cozinha e disse à mãe:
- Desligue o fogo e venha. Vamos comer primeiro o antepasto, como se faz na Itália, depois jantaremos.
Albertina, que já havia desligado o fogo e ia colocar a comida nas travessas, parou, olhando-o admirada. Carlos puxou-a pela mão até a sala, serviu o vinho e propôs:
- Vamos nos sentar e comer com prazer.
Depois, Carlos levantou o copo e continuou:
- Que nossa vida seja cada vez melhor, mais próspera e feliz!
Notando a timidez dos três, continuou:
- Na vida é preciso acreditar nas coisas boas para que elas venham nos abençoar. Como é que vamos progredir se não acreditamos que merecemos o melhor? Deus é um pai rico que nos deu a vida, e tudo que precisamos é desejar a nossa felicidade. Mas cada um precisa fazer a sua parte, acreditar, esforçar-se para fazer o melhor, abrir o coração para receber tudo que Ele quer nos dar.
Carlos levantou seu copo dizendo:
- Agora, vamos brindar! O que vocês gostariam de receber da vida? Cada um pense no que quer brindar.
Carlos fechou os olhos, esperou alguns instantes e depois disse:
- Que os nossos desejos sejam realizados.
Tocou os copos de todos que, de olhos brilhantes, observavam-no admirados.
- Agora, bom apetite.
Eles começaram a comer, saboreando coisas a que não estavam habituados, enquanto Carlos contava que, na Itália, o momento de comer era sempre o mais importante acontecimento do dia. Albertina, orgulhosa pela sabedoria do filho, sorria embevecida. Inês olhava o irmão com admiração e respeito, e o pai, depois do copo de vinho, tinha o semblante distendido, um sorriso satisfeito, enquanto Carlos o fazia experimentar coisas que ele nunca provara. Claro que quase tudo do jantar que Albertina fizera sobrou mas, em compensação, o ambiente familiar nunca havia ficado tão alegre e descontraído.
- Agora eu entendo por que você decidiu morar na Itália! Lá a vida é muito melhor do que aqui - tornou Antônio.
- Você está enganado. Lá a vida não é melhor do que aqui. A diferença é que lá a sociedade é mais velha do que a nossa, e o povo, mais instruído. Depois, o país é muito menor e é mais fácil de administrar. Nosso país é maravilhoso e um dia ainda será tão importante como o deles. Estou certo de que este nosso Brasil ainda será um dos mais importantes países do mundo!
Antônio balançou a cabeça negativamente:
- Não acredito! O povo aqui é atrasado, não respeita nada. No escritório, um quer arrasar o outro. Não dá para conviver. É preciso sempre ficar alerta para não ser lesado.
- Pai, tudo isso é falta de conhecimento. É ignorância. As pessoas não sabem ainda que, para viver bem, é preciso agir no bem. A educação é fundamental para que aprendam a conviver bem, a respeitar os outros para serem respeitados.
Inês interveio:
- Papai tem razão. No escritório, eu também estou sempre na defensiva. A inveja anda rondando e, se eu não ficar atenta, acabo me dando mal. Não tenho amizades, não confio em ninguém.
- Pensando assim, você está sendo maldosa, julgando as pessoas de maneira preconceituosa. Aliás, você costuma ver sempre o lado pior das pessoas - disse Carlos.
- Estou me protegendo.
- Não. Você está atraindo a maldade dos outros. Aposto que não é muito bem-vista pelos colegas.
Ela deu de ombros:
- Eu não preciso deles. Não me importo com isso.
Carlos meneou a cabeça:
- Você está se privando de um dos maiores prazeres da vida: a amizade. Todos nós desejamos ser queridos, apoiados, bem-vistos. Não acredito que você não se ressinta disso. É de nossa natureza querer ser elogiados, amados. O espírito quer brilhar, ser feliz, ser respeitado.
Os olhos de Inês encheram-se de lágrimas e ela não respondeu. Carlos olhou-a firme e continuou:
- Você não precisa de nada disso. Não dá para saber o que se passa dentro de cada um. Pare de julgar os outros. Pense em você, perceba o que precisa fazer para viver bem, progredir, ser feliz.
- Não creio que neste mundo perverso alguém consiga viver bem.
- Você está sendo pretensiosa, criticando Deus.
Inês arregalou os olhos irritada e protestou:
- Eu não disse isso. Estou falando das pessoas.
- Você está dizendo que Deus fez tudo errado, criou pessoas ruins.
Apanhada de surpresa, Inês não soube o que responder. Carlos continuou:
- Isso não é verdade. Claro que viver nem sempre é fácil, porque nós ainda temos muito que aprender para nos tornarmos pessoas evoluídas. Fomos criados simples e ignorantes, e a Terra é uma escola onde, a cada dia, somos desafiados a mudar para melhor se quisermos viver bem. Enquanto você continuar insatisfeita, criticando as pessoas, reclamando, esquecida de que pode escolher coisa melhor, permanecerá do jeito que está.
Inês, olhos úmidos, levantou-se nervosa:
- Por que está dizendo isso? Acha que sou preguiçosa, que não tenho me esforçado? Que não consigo prosperar porque não quero?
Carlos levantou-se e abraçou-a, dizendo:
- Acalme-se. Não a estou criticando. Só quero que preste atenção em sua maneira equivocada de ver a vida. Claro que você quer ser feliz e merece conquistar tudo que deseja. Só que não está sabendo encontrar o caminho. Venha.
Carlos fez com que ela se sentasse novamente e se acomodou ao lado dela, segurando sua mão com carinho. Antes que ele continuasse, ela suspirou e começou a chorar convulsivamente. Os pais fizeram menção de intervir, mas Carlos sinalizou que não o fizessem. Albertina levantou-se, chamou o marido e ambos deixaram a sala. Carlos esperou que ela se acalmasse. Quando Inês, envergonhada, enxugou os olhos com o guardanapo, Carlos perguntou:
- Sente-se melhor?
- Não sei o que deu em mim. Não costumo chorar por qualquer coisa.
- Não se envergonhe. Chorar alivia a tensão.
- Mas você disse que eu estou errada. Só que eu não sei ser diferente.
- É que você só olha o que acontece em volta e não presta atenção no que acontece dentro de você. Você se apoia no que os outros dizem ou fazem, em vez de apoiar-se naquilo que está dentro do seu coração. Responda: o que você sente que lhe proporcionaria felicidade?
Inês pensou um pouco e recomeçou a chorar. Carlos a abraçou, acariciou seus cabelos com carinho, depois disse:
- Sinto que você, da mesma maneira que critica tudo e todos, é ainda mais dura em relação a si mesma. Vive se julgando menos, não crê na própria capacidade. Está vivendo em um círculo vicioso e se bate constantemente por não conseguir o que gostaria, assim como não consegue progredir porque não acredita que seja capaz.
Inês fixou-o pensativa e perguntou:
- Estou fazendo isso mesmo?
- Está. Se você deixasse os outros de lado, cuidasse de usar toda a sua capacidade e acreditasse que pode, tudo seria diferente.
- Será?
- Você está escolhendo o pior. Como quer que o bem aconteça? Para ter o melhor é preciso escolher o melhor e acreditar que merece. Você trabalha há anos, mas o faz por obrigação, como se fosse um sacrifício. Não estuda mais, não tenta obter mais conhecimento, não procura sua vocação, não tenta fazer o que gosta. Assim, está perdendo o grande prazer da realização profissional, de fazer algo bem feito, de sentir a própria capacidade. Como quer melhorar se não faz nada para isso?
- Você está me culpando por eu não progredir no trabalho?
- Não. Nem você deve culpar-se. Você tem se deixado levar sem refletir, sem pôr atenção no que realmente importa. Só quero que você acorde, procure se conhecer melhor, saiba o que quer, faça projetos e procure executá-los. Por que você parou de estudar?
- As pessoas riam de mim quando eu errava ou não sabia a matéria.
- Entendo. O orgulho falou mais alto e você desistiu.
- Não foi por orgulho. Papai achou que eu não era boa para estudar por ser mulher. Logo casaria, como todas as moças, e não precisaria mais trabalhar.
Carlos balançou a cabeça negativamente e, percebendo que os pais espiavam curiosos e inquietos, ele disse:
- O mundo mudou, Inês. Hoje as pessoas pensam diferente. Vou ficar aqui mais alguns dias e quero voltar a conversar com você, falar das minhas experiências, contar o que tenho aprendido. É hora de você descobrir que a vida é muito melhor do que pensa e que você pode ser muito mais feliz.
Carlos segurou a mão dela e continuou:
- Eu tenho aprendido o valor da oração. Feche os olhos e vamos pedir a Deus que nos inspire e ensine a encontrar o caminho da felicidade.
Ela obedeceu. Carlos fez sentida prece, pedindo que Deus abençoasse a família. Depois, passou a falar sobre coisas triviais. Mas, nos dias que se sucederam, ele notou que tanto o pai quanto a irmã haviam mudado o modo de tratá-lo. Ficaram mais respeitosos, querendo mostrar seu lado melhor, o que fez Carlos sentir que estava atingindo seus objetivos. Isabel acordou e saiu da cama apressada. Faltavam apenas dois dias para o seu casamento e havia ainda muitas coisas a fazer. Sobre o baú, encostado aos pés da cama, a mala estava aberta desde a véspera, e ela havia separado algumas coisas que não queria esquecer de levar. Fazia uma semana que estava de férias na empresa, mas com as arrumações da casa, que já estava quase completamente mobiliada, a preparação da festa e as compras de última hora, o tempo passara rápido. Tomou um banho, arrumou-se e desceu para o café. Laura já estava na cozinha atarefada, preparando alguns pratos especiais para a noite. Glória e Nivaldo deveriam chegar durante o dia e ficariam para o jantar. Ao ver Isabel se aproximar, Laura convidou:
- Sente-se, Isabel. Estava esperando você para me fazer companhia no café. Estou me sentindo carente.
Isabel admirou-se:
- Por quê? Aconteceu alguma coisa?
Laura a fitou séria e respondeu:
- Você vai nos deixar. Já estou sentindo saudades.
Isabel sorriu:
- Está brincando, dizendo isso só para que eu lhe diga a mesma coisa.
Laura abraçou-a com carinho:
- Sei que está feliz e vai embora de casa com um sorriso nos lábios, mas não consigo evitar essa sensação de vazio só de pensar que não estará mais aqui todas as manhãs, nem tomará o café comigo como sempre fizemos.
Isabel depositou um sonoro beijo na face dela e respondeu:
- É a vida. Eu também sentirei falta, mas não vou abrir mão de nada. Mesmo casada, sempre que puder estarei aqui para fazermos nossas preces, para conversarmos. Muitas coisas vão mudar em minha vida, mas você será sempre minha confidente, amiga, em cujos braços buscarei o apoio e o conforto que sempre me deu.
- Eu sei, filha. A afinidade que nos une é eterna. - Quero que você me prometa: sempre que precisar de mim ou sentir saudades, não hesitará em me chamar.
- Virei correndo.
Laura depositou sonoro beijo na testa da filha e tornou:
- Eu sei. Agora vamos tomar o nosso café antes que esfrie. Hoje o dia será cheio.
Isabel concordou. Enquanto comiam, ela perguntou:
- Será que dona Glória está bem?
- Parece que sim, apesar de as coisas ainda não estarem resolvidas.
- É. Nivaldo continua tentando pagar o que deve e manter a fazenda, seu Alberto continua desaparecido. Segundo Gilberto, Nivaldo conversou com os credores, renegociou as dívidas, vendeu parte do gado, mas ainda não conseguiu pagar tudo.
- Estou rezando para que ele consiga. É esforçado, inteligente, trabalhador. O que eu mais admiro nele, além da fibra, é a ética com que está lidando com tudo isso.
- De fato. A dedicação dele com a mãe e a maneira como ele age são dignas de louvor. O que me preocupa é dona Glória. Quando a gente liga, ela não se queixa, diz que está tudo indo bem, mas eu sinto que, no fundo, ela continua sofrendo muito.
- Faço votos de que eles possam ficar alguns dias aqui depois do casamento. Gostaria de poder fazer algo por eles.
- Eu também.
- Vamos continuar orando, mandando vibrações de luz tanto para eles como para Alberto. É tudo o que podemos fazer no momento.
- Eu não sinto vontade de rezar por ele. Quero mais que ele saia para sempre das nossas vidas. Assim, com o tempo, dona Glória talvez possa recuperar um pouco de paz.
- Ela mergulhou tão fundo no caso! Se Alberto nunca mais voltar, será que ela conseguirá libertar-se dele?
- Só o tempo pode nos dar essa resposta. Agora vou subir, separar as roupas para colocar na mala. Gilberto ficou de passar aqui mais tarde para irmos até a nossa casa. Ele quer que eu veja algumas coisas.
Ela subiu enquanto Laura voltou à cozinha para ajudar Berta com os preparativos. Naquele mesmo dia, na fazenda, Glória levantou muito cedo. Acordou Nivaldo, desceu para o café. Estava um dia lindo, ensolarado. Olhou o céu azul, sentiu o perfume das flores do jardim e aspirou o ar puro da manhã, procurando serenar o coração. Na véspera, Nivaldo desejara ir dormir na cidade para seguir viagem no dia seguinte, mas Glória preferiu sair da fazenda direto para São Paulo. Desde que Alberto sumira, ela ficava na casa de Pouso Alegre apenas o tempo necessário para tomar providências legais, e logo voltava para a fazenda. Não queria ir à cidade. Inclusive, quando Nivaldo precisava conversar com os credores ou tomar alguma providência, ela não o acompanhava. Quando ele retornava, Glória não perguntava se tivera alguma notícia do pai, mas lançava-lhe um olhar indagador. Nivaldo dizia apenas que não tinha novidades e ela entendia que Alberto ainda não havia aparecido. Nivaldo insistira para levá-la à cidade a fim de fazer compras e se preparar para o casamento. Como ela não quis, ele mesmo foi e comprou para os dois tudo que achou necessário para a viagem. Levou a melhor modista da cidade até a fazenda com tudo que ela achou necessário para preparar um vestido à altura do momento. Ele havia sugerido que fossem a São Paulo alguns dias antes e comprassem tudo, mas Glória não aceitou. Dizia que não precisava de nada, que tinha roupas de festa que quase não usara. Em vão, Nivaldo tentava entusiasmá-la, mas ela continuava desanimada, triste. Uma noite, tentou convencê-la inutilmente a se arrumar, não se conteve:
- Parece que você não está feliz com o casamento de Gilberto! Não tem se interessado em se arrumar para ir a essa festa.
Ela tentou se explicar:
- Não é isso! O que eu mais quero neste mundo é que eles sejam felizes e nunca passem por nada que eu passei!
- Percebo que você está se tornando mais cruel e irresponsável do que papai!
Glória abriu os olhos assustada:
- Por que está me ofendendo dessa forma? O que foi que eu fiz?
- Você está se penalizando e se maltratando em vez de reagir, virar a página, aproveitar o lado bom das coisas que a vida lhe oferece. Está fechada em si mesma, está sendo egoísta. Não se lembra que papai é um homem sem caráter, incapaz de um comportamento equilibrado, mas você tem a nós todos, que amamos e fazemos tudo para que seja feliz. Gilberto é um médico dedicado, trabalhador. Eu tenho procurado apoiá-la em tudo, assumindo minhas responsabilidades. A Nice tem sido uma moça ajuizada e estudiosa, logo estará formada, já mora sozinha no Rio e sabe se comportar. Nós três somos pessoas de bem, respeitadas, estamos fazendo o melhor que podemos. Mas você não valoriza nada disso. Só vê o que é ruim!
Nivaldo se calou e Glória, que se esforçava para conter o pranto, cedeu às lágrimas, que desceram pelo seu rosto em profusão.
- Desse jeito você vai ficar doente - tornou ele. - Você vê a vida de forma equivocada e não faz nada para mudar.
Glória tentou justificar-se:
- Você está sendo injusto. Como pode dizer que sou egoísta depois de uma vida inteira dedicada à família? Eu era muito ingênua, não tenho culpa de ter me casado com um homem sem caráter.
- Apesar de tudo que viveu, você não aprendeu nada. Continua vivendo de ilusão.
- Bem que eu gostaria de continuar tendo ilusões, pois elas nos fazem viver melhor. Saber a verdade destruiu todas elas! Hoje eu não espero mais nada da vida! Você não vê que tudo para mim acabou? Não entende meu sofrimento e ainda fica contra mim? Quer me abandonar também?
Nivaldo a olhou penalizado. Sentou-se ao lado dela no sofá. Glória, cabeça baixa, tentava conter o pranto. Delicadamente, levantou o queixo dela e disse:
- Mãe, olhe pra mim.
Vendo que ela o fixava, ele continuou:
- Eu a quero muito bem e jamais a abandonarei. O que me incomoda é notar que você, apesar de tudo, continua muito distante da realidade. Perdeu algumas ilusões, mas entrou em outras tão dolorosas quanto as anteriores.
- Por que insiste em dizer isso? Eu perdi a juventude, meus sonhos de felicidade foram destruídos e estou velha demais para recomeçar.
- Isso é mentira! Você é uma mulher inteligente, bonita, querida por todos nós. Não é essa menina mimada, frágil, que se faz de fraca. Na fazenda, diante dos nossos desafios, você sempre se mostrou mais forte do que eu. Quando quer, é criativa, ousada, alcança seus objetivos. Eu quero provar que você pode sim reagir, assumir sua liberdade, sua responsabilidade diante da vida, Pode cuidar de si mesma, reencontrar o prazer de viver! É assim que nós, seus filhos, a vemos de fato.
Glória levantou a cabeça, ergueu os ombros, assumiu uma postura melhor. Nivaldo continuou:
- Há muito você percebeu que papai não iria mudar. Cada pessoa só dá o que tem e papai só poderia ser o que ele é. Mas seu orgulho não permitiu que se separasse dele. Mesmo depois de ter sido abandonada, você relutou muito em aceitar o desquite. Mãe, acorde! Você se libertou de um peso imenso e ficou livre para construir uma vida melhor. Por que insiste em se penalizar? De hoje em diante, você pode escolher ser o que quiser. O poder de escolha está em suas mãos! Todos nós estamos torcendo para que você volte a ser quem realmente é.
Nivaldo falava com entusiasmo e os olhos de Glória brilharam por alguns segundos, mas logo ela suspirou triste:
- Bem que eu gostaria de ser essa mulher forte e poder esquecer o que passou, corresponder ao que vocês esperam de mim. Mas está difícil.
- Então, feche os olhos e vamos pedir ajuda espiritual. Deus é nosso provedor.
Segurando a mão dela, Nivaldo fez sentida prece, pedindo a Deus que a abençoasse em seu novo caminho, que mostrasse a grandeza da vida, suas belezas e sua inteligência, transformando erros em experiências, desafios em fortalecimento, ignorância em sabedoria, e que ela pudesse enxergar as coisas como realmente são. E finalizou:
- Eu sei que, quando ela enxergar a verdade, poderá se libertar do passado, assumir toda a grandeza do seu espírito, conquistar muito mais do que um dia sonhou. Agradeço todo o auxílio que estamos recebendo e peço que nos abençoe e nos proteja em nossa caminhada.
Glória suspirou, abriu os olhos e disse admirada:
- Você começou a rezar, mas não sei o que aconteceu. Eu ouvia sua voz, mas não conseguia entender o que estava dizendo. Tive a sensação de estar flutuando e parecia estar em outro lugar.
- Como era esse lugar?
- Uma sala onde o ar era azul, como pode ser? Eu nunca tinha visto nada assim. Como foi isso?
- Seu espírito saiu do corpo e foi levado a um lugar para receber tratamento. Como está se sentindo?
- Aliviada. Parece que tiraram um peso enorme do meu peito. Estou até respirando melhor. Há muito tempo não me sentia assim!
- Você recebeu ajuda espiritual. Para conservá-la, precisa prestar atenção nos seus pensamentos e evitar entrar em sintonia com tudo que for negativo.
- Não sei como fazer isso! Os pensamentos ruins aparecem do nada!
- Sempre que surgir um pensamento ruim, não lhe dê importância e pense em alguma coisa boa. Tudo a que você dá importância passa a fazer parte de seu mundo interior. Quanto mais otimista você for, mais coisas boas atrairá para a sua vida.
- Vou tentar.
- Tentar não basta. Terá de insistir, porque esses pensamentos negativos que tem cultivado há tanto tempo já devem estar gravados em seu subconsciente, atuando automaticamente. Sempre que tiver um pensamento ruim e substituí-lo por um bom, não reforçará mais o antigo, que perderá a força e acabará por desaparecer.
Depois da conversa daquela noite, Glória começou a mudar. Estava mais calma, mostrava mais interesse pelas coisas. Sempre que ela se arrumava melhor, Nivaldo a elogiava. Satisfeito, percebeu que ela estava mais motivada com o casamento do filho e a viagem a São Paulo. Na véspera da viagem, Nice ligou entusiasmada, falando sobre as compras que fizera para ir ao casamento do irmão e avisando que, no dia seguinte, estaria em São Paulo para encontrá-los. Na manhã seguinte, Glória acordou Nivaldo às quatro horas para viajarem e, meia hora depois, já estavam na estrada. Um dia antes, ela arrumara tudo com interesse e disposição. Durante a viagem, estava falante, ora mostrando-se um pouco insegura com relação a suas roupas, ora curiosa para conhecer a casa que Gilberto comprara. Nivaldo ouvia tudo satisfeito e respondia com prazer. Quando entraram no apartamento, Glória notou que fizera bem em contratar Lídia. Ela os esperava solícita e caprichara na arrumação. Desde o começo, mostrara-se muito eficiente. Nivaldo encarregara Gilberto de fazer tudo que fosse preciso para deixar o apartamento em ordem e pediu que caprichasse na decoração para agradar a mãe. Tanto ele como o irmão queriam que ela passasse algum tempo em São Paulo para descansar e refazer-se. Glória comentou admirada:
- Como está lindo! Quem fez tudo isso?
- O doutor Gilberto - respondeu Lídia. - A senhora precisava ver o entusiasmo dele! Ah! E sua nora ajudou muito. Os dois têm bom gosto.
- Têm mesmo! Adorei a cor da sala. Mas essas lindas flores foi você quem colocou.
- Foi, mas quem trouxe foi dona Laura com Isabel.
Voltando-se para Nivaldo, que a observava alegre, Glória tornou:
- Você não me contou que estavam reformando o apartamento.
- Queríamos fazer uma surpresa. Ficou lindo!
- Também gostei. Nós precisamos sair logo, fazer compras para o almoço. Nice vai chegar, não podemos demorar. Faço questão que nos encontre quando chegar.
Nivaldo pensou um pouco, depois disse:
- É melhor esperá-la para irmos juntos às compras. Do jeito que ela gosta de sair, vai adorar rever a cidade. Almoçaremos em um bom restaurante e, depois, faremos nossas compras com calma.
- Melhor assim.
- Vou ligar para Gilberto e avisar que chegamos.
Pouco depois, Gilberto apareceu e eles o cobriram de perguntas. Queriam saber todas as novidades sobre o casamento, mas ele respondeu:
- Prefiro que vejam tudo de perto. Vou levá-los até a nossa casa. Nós arrumamos tudo com muito carinho.
Uma sombra de tristeza passou pelo rosto de Glória quando disse:
- Um dos meus projetos para o futuro era dar uma bela casa para cada um dos meus filhos quando se casassem. Você é o primeiro e, infelizmente, não tive como realizar esse sonho.
Gilberto abraçou a mãe, beijando-a delicadamente na face:
- Você nos deu a vida, nos rodeou de cuidados, amor e carinho. Com palavras e exemplos, nos ensinou os valores éticos que nos tornaram pessoas de bem. Hoje tenho uma boa profissão, sou respeitado, vivo com dignidade e estou certo de que posso dar à família que vou formar uma vida confortável. Você tem feito um excelente trabalho como mãe. Sou grato por isso.
Glória o abraçou comovida e Nivaldo juntou-se a eles no mesmo abraço. Ela ia responder, mas o som da campainha fez com que ela dissesse com alegria:
- Deve ser a Nice!
Eles correram para a entrada e Nice deixou a mala no chão para abraçá-los. Depois, afastou-se um pouco e disse:
- Deixe-me vê-los! Estava morrendo de saudades!
- Eu também - tornou Glória. - Você está mais magra! Acho que não está se alimentando bem!
Nice sacudiu a cabeça negativamente:
- Eu estou muito bem! No fim do ano, quando passei as férias na fazenda, engordei tanto que precisei fazer regime para voltar ao normal!
- Você está ótima. Sempre foi bonita, mas mudou nesses quase dois anos em que não nos vimos, ganhou mais atitude - comentou Gilberto.
Nice ria satisfeita. Era alta, de corpo bem-feito, morena clara, grandes olhos vivos e expressivos. Os cabelos curtos ligeiramente ondulados e castanho-claros lhe conferiam certo ar de menina. Ela sabia que chamava a atenção, mas, apesar disso, era espontânea e simples, o que lhe dava um encanto especial. Todos na família a adoravam. O pai nutria por ela um amor diferenciado. Fazia-lhe todas as vontades e sentia-se orgulhoso sempre que podia desfilar com ela pela cidade. Enquanto Lídia tomava conta da bagagem, eles foram conversar na sala. Falaram sobre o casamento e Glória os lembrou de que precisariam sair para almoçar e fazer as compras. Enquanto Nice foi trocar de roupa, Glória e Lídia foram cuidar da lista de compras, e Gilberto, a sós com Nivaldo, perguntou:
- Nice perguntou de papai e vocês desviaram o assunto. Ainda não lhe contaram o que ele fez?
- Mamãe não quis preocupá-la. Nice nunca soube de nada. Mamãe sempre encobriu para não decepcioná-la. Além disso, ela saiu de casa muito cedo, ficou internada no colégio das freiras em Belo Horizonte desde os doze anos. Quando se formou, foi fazer faculdade no Rio de Janeiro. Só ficava em casa nas férias, nunca notou nada.
- Agora vocês terão de contar a verdade. Não vai ser fácil.
- Não temos outra alternativa. Hoje, ela é adulta, terá mais entendimento para lidar com essa situação.
- Ela estranhou papai não estar aqui. Logo vai voltar ao assunto.
- Talvez seja melhor eu mesmo conversar com ela. Receio que mamãe ainda não esteja pronta para falar sobre isso.
- Notei que ela está melhor, mais animada.
- Tenho tentado mostrar-lhe outros lados da situação, procurado encorajá-la a reagir e a perceber que a separação foi o melhor a ser feito no caso dela.
- Você conseguiu. Ela está muito melhor. Eu preciso ir agora, mas no fim da tarde, antes de irmos jantar em casa de dona Laura, passarei por aqui e os levarei para conhecer minha nova casa. Faço questão de irmos lá, ainda que seja rapidamente.
- Está bem. Todos estamos morrendo de curiosidade.
Gilberto lhes indicou o caminho de um bom restaurante, despediu-se e saiu. Pouco depois, os outros três também saíram para almoçar. Ao regressarem das compras, enquanto Glória e Lídia arrumavam os armários e programavam o que fariam no dia seguinte, Nice pediu a Nivaldo que fosse até o quarto dela para conversar. Assim que se sentaram na beira da cama, ela foi direto ao assunto:
- O que está acontecendo? Por que papai não os acompanhou nesta viagem?
- Ele não virá. Aconteceram coisas desagradáveis, eu queria contar, mas mamãe quis poupá-la e não permitiu.
- Há tempos eu sentia que havia alguma coisa no ar. Papai nunca estava em casa quando eu telefonava. Quando eu perguntava por ele, mamãe respondia com evasivas. Não sou mais criança e você vai me contar tudo direitinho.
- Nossos pais se separaram e estão se desquitando.
Nice se levantou assustada:
- Eles não tinham muita afinidade, mas não esperava que chegassem a tanto...
- Na verdade, papai apaixonou-se por outra com a qual teve um filho que já é adolescente.
Nice sentou-se novamente, fixando-o séria:
- Então a ligação é antiga!
- É. Infelizmente, essa mulher não é confiável. Papai está muito apaixonado, faz tudo que ela quer. Perdeu o decoro e, nos últimos tempos, circulava com ela por toda a cidade.
- Por que mamãe demorou tanto para se separar? Por que deixou chegar a esse ponto?
- Ela temia que, com a separação, ele fosse viver com ela e juntos depredassem todo o patrimônio da família.
- Será? Não creio que papai chegue a isso!
- Essa mulher é ambiciosa, nunca escondeu sua cupidez.
- Mamãe não deveria ter contemporizado. O melhor teria sido enfrentar tudo e separar-se.
- Ela temia o preconceito, não queria se desquitar.
Nice meneou a cabeça:
- Ela já estava separada, o melhor seria assumir esse papel.
- Você tem razão. Suportar toda a humilhação foi terrível para ela, que vivia mais na fazenda do que na cidade. Mas o pior ainda estava por vir.
Enquanto Nice o olhava séria, Nivaldo em poucas palavras contou que o pai desaparecera levando todo o dinheiro e ninguém sabia onde ele se encontrava. E finalizou:
- Entramos na justiça, mamãe pediu o desquite e estamos tomando conta dos negócios, que ficaram à revelia. Ela queria vender a casa da cidade, mas sem a assinatura dele é impossível.
Nice passou a mão pelos cabelos, pensativa, depois disse:
- Vocês deveriam ter me contado. Eu teria ido para casa ajudar.
- Não queríamos prejudicá-la. Você está no fim do curso, precisa se formar. Depois, a situação estava consumada e você não poderia ter feito nada.
- Mamãe deve ter sofrido muito! Sempre colocou a família em primeiro lugar, deve ter sido difícil aceitar o que ele fez.
- Foi mesmo. Ficou deprimida, teve a saúde abalada, mas Gilberto cuidou dela. Conversamos muito e, aos poucos, ela foi aceitando a situação.
- Estou chocada. Tenho a sensação de que você está falando de outra pessoa, não de nosso pai.
- Seria bom que ele aparecesse porque nossa situação é difícil. Ficamos sem dinheiro para pagar os fornecedores da fazenda, pois o que estamos recebendo não é suficiente. Já que não podemos vender nenhuma propriedade, tivemos que dispor de algumas vacas para as despesas urgentes. Acionamos a justiça, mas o oficial de justiça não tem como entregar-lhe a intimação.
Nice pensou um pouco, depois disse:
- Seria bom investigar, contratar um detetive.
- Eu pensei nisso, mas nós não temos nenhuma pista, seria inútil.
- Pois eu acho que devemos tentar. Ele poderá pesquisar empresas de viagem, passagens, aeroportos, hotéis. Temos de fazer alguma coisa. Não podemos ficar de braços cruzados.
Nivaldo passou a mão pelos cabelos pensativo. Depois, respondeu:
- Vamos deixar passar o casamento, depois conversaremos com mamãe e veremos o que ela diz.
Nice ia responder, mas Glória apareceu na porta dizendo:
- Laura ligou para nos cumprimentar e confirmar o jantar desta noite. Está marcado para as oito horas.
- Gilberto quer nos levar para conhecer a casa dele antes de irmos ao jantar - lembrou Nivaldo.
- Ele ficou de passar aqui às sete - tornou Glória.
- Temos algum tempo, mãe. Sente-se vamos conversar.
Ao entrar no quarto, Glória notou que trocavam confidências e sentiu que falavam sobre Alberto. Apesar de saber que seria inevitável falar com a filha sobre a separação, ela gostaria de adiar ainda mais aquele momento tão desagradável. Mas Nivaldo não lhe deu tempo para encontrar uma desculpa. Segurou a mão dela e a fez sentar-se na poltrona ao lado da cama:
- Nice já sabe de tudo. Está de acordo com todas as providências que tomamos.
Ela tentou controlar a emoção, mas seus olhos encheram-se de lágrimas. Nice aproximou-se e lhe depositou um beijo na face dizendo:
- Mãe, chega de sofrer por um homem que não soube valorizar a família que tem. Por que não me contou antes? Só lamento que tenha demorado tanto tempo para libertar-se de um casamento que já acabou há muitos anos.
- Você sempre foi muito ligada a seu pai e eu não queria decepcioná-la.
- Conhecer a verdade é melhor do que viver na ilusão. Sei que, apesar do que aconteceu, ele continua a gostar de mim. Ele é meu pai e me deu a vida, tratou-me com carinho. E, eu, apesar de lamentar que ele tenha feito o que fez, sinto que sempre terá um lugar em meu coração.
Glória a abraçou emocionada:
- Sua nobre atitude me deixa aliviada.
- Mas, mesmo pensando assim, não vou deixar que continue agindo como um irresponsável. Nós vamos fazer de tudo para encontrá-lo e chamá-lo à razão. Ele nos deve respeito e precisa saber disso.
- Eu preferiria que ele nunca mais voltasse - disse Glória.
- Pois eu só vou sossegar quando puder encará-lo como sua filha e dizer-lhe o que penso. Ele não era obrigado a viver com a família. Bastava dizer que queria se separar e teríamos compreendido. Mas fugir como um bandido, levar todo o dinheiro sem se preocupar com a situação de vocês é no mínimo uma leviandade.
- Você tem razão. Ele precisa aparecer, assumir suas responsabilidades e regularizar toda essa situação. Ele pode viver como quiser, mas nos deve o mínimo de respeito. Depois do casamento, contrataremos um detetive - tornou Nivaldo.
Glória, depois de pensar durante alguns segundos, disse:
- Talvez não seja preciso. Vamos esperar um pouco mais!
- Não, mãe. O mal está feito e não podemos deixar passar. Ele foi egoísta, não titubeou em nos deixar na maior dificuldade. Portanto, nós precisamos ir atrás do que é nosso. Não é justo que ele desbarate nosso patrimônio, sendo que vocês dois sempre trabalharam muito para construí-lo e mantê-lo. Amanhã mesmo vamos procurar um bom detetive.
- Nós não conhecemos nenhum! Além disso, eu não gostaria de colocar um estranho a par das nossas intimidades - objetou Glória.
- Estamos precisando de ajuda e não podemos ser preconceituosos. Vamos pesquisar. Estou certa de que poderemos conseguir alguém discreto e honesto para nos assessorar. É uma questão de honra para mim.
Glória, meio a contragosto, teve que concordar, e Nice tentou minimizar a preocupação:
- Agora, vamos esquecer esse assunto e pensar no casamento. Vamos nos arrumar e ver a casa de Gilberto. Estou ansiosa para conhecer Isabel.
O rosto de Glória iluminou-se:
- Você vai gostar. Ela é adorável.
- Vocês não têm muito tempo. Dentro de meia hora Gilberto estará aqui.
Glória foi para o quarto e Nivaldo para a sala. Sentou-se em uma poltrona e fechou os olhos, tentando serenar o Coração. A atitude digna de Nice a fez sentir-se mais confiante. Mostrou-lhe que não poderia omitir-se, deveria defender o que era direito e justo. Tal como a mãe, ele preferiria que o pai nunca mais aparecesse, gostaria de não ter de enfrentá-lo em uma questão judicial, pois os direitos de sua família seriam expostos publicamente. Ele temia que Glória sofresse ainda mais. Contudo, o que Nice dissera ecoara dentro de seu espírito. Quando seus pais se casaram, não possuíam bens. Glória tinha sido a companheira fiel e trabalhara durante muitos anos para ajudar a construir aquele patrimônio. Naquele momento, competia a ele, como filho, cuidar para preservar a parte que pertencia a ela para que pudesse manter-se com conforto e dignidade. Ele elevou o pensamento, orou pedindo inspiração divina e sentiu que uma aragem agradável o envolveu. Adormeceu. Viu-se entrando em uma sala clara, onde uma mulher de meia-idade o esperava. Uma onda de alegria inundou seu coração. Emocionado, arrojou-se aos pés dela e beijou-lhe a mão com carinho:
- Finalmente a encontrei! Que saudade!
Ela o fez levantar-se e sentar-se ao seu lado no sofá. Afagou-lhe os cabelos, dizendo:
- Eu nunca deixei de estar ao seu lado, conforme prometi.
- Preciso de ajuda. Não sei como lidar com os acontecimentos!
- Você sabe, sim. Os desafios só surgem em nosso caminho quando já temos como enfrentá-los e vencê-los. A vida não joga para perder. Acalme seu coração e confie. Tudo tem solução.
- Estou indeciso... Minha mãe é contra enfrentar meu pai na justiça. Contratar um detetive e insistir para que ele apareça vai fazer com que ela sofra ainda mais.
- No fundo você sabe que essa é a melhor atitude. Enfrentar a verdade pode doer, frustrar, mas liberta e fortalece. Depois de tanto tempo, é chegada a oportunidade para que os assuntos mal resolvidos de outras vidas, que mantinham ela e Alberto ligados, sejam solucionados. É o momento da libertação. Eles precisam seguir por novos caminhos.
- Apesar de tudo que ele fez, ela nunca quis separar-se dele.
- A vida os uniu para que pudessem resolver suas diferenças através do entendimento. Ela fez sua parte, ele, porém, não resistiu às tentações e cedeu à fascinação que Alda exercia sobre ele.
- O que acontecerá agora? Ela conseguirá seguir adiante sem ele?
- Tem tudo para isso.
- E ele?
- Colherá os resultados de suas escolhas. Mas é bom lembrar que a vida é amorosa e saberá auxiliá-lo mais uma vez para que aprenda a viver melhor. Lembre-se que defender aquilo que nos pertence por direito divino é o melhor caminho. Faça isso de acordo com os sentimentos éticos de justiça que você já possui. Não se deixe envolver pelo orgulho, nem por qualquer sentimento negativo. Não julgue ninguém. Lembre-se que cada um age acreditando que está fazendo o melhor para si, e não com a intenção de magoar as pessoas.
- Apesar do que fez, ele me deu a oportunidade de nascer na Terra. Sei o quanto isso vale e sou muito grato.
- Conheço seu senso de justiça, sua pureza de sentimentos. Aja de acordo com o que sente e tudo ficará bem. Agora, tem que voltar. Confie e dê o melhor de você. Eu sempre estarei ao seu lado.
Ela se levantou, abraçou-o e beijou-o levemente na testa. Nivaldo suspirou fundo e acordou com uma sensação agradável de leveza e prazer. Olhou à sua volta querendo situar-se. Logo viu Nice se aproximando e dizendo:
- Você ainda não se arrumou! Dentro de alguns minutos Gilberto estará aqui.
- Só vou lavar o rosto e nada mais.
A visita da família à casa de Gilberto fez com que eles esquecessem um pouco das preocupações de momentos antes. A casa, embora não tivesse tudo que eles desejavam ainda, era bonita e confortável. Enquanto a percorriam, Gilberto ia explicando como ficaria quando completassem a decoração. Depois, durante o trajeto até a casa de Laura para o jantar, eles comentavam com entusiasmo sobre a casa, o casamento, a lua de mel de duas semanas em Buenos Aires. Quando chegaram, Laura e Isabel os receberam com carinho. Apresentaram Nice, que ficou encantada com tudo que viu. Sônia e Diva juntaram-se ao grupo e a conversa fluiu animada, principalmente entre Nivaldo e Diva, que queria saber como andavam as coisas na fazenda, mas sem mencionar Alberto e os fatos desagradáveis. Falou mais sobre as pesquisas dele e seu trabalho, lembrando a beleza do lugar e os momentos bons que vivera ao lado deles. A conversa com Diva e o entusiasmo da moça fizeram com que Nivaldo esquecesse suas preocupações, recuperasse o ânimo que sempre sentira com suas descobertas e seu trabalho. O jantar decorreu muito agradável e todos se sentiam muito à vontade. Quando terminou, enquanto Laura conversava com Glória na outra sala e Gilberto e Isabel, abraçados, conversavam sobre a viagem com Sônia, Nice juntou-se a Nivaldo e Diva, vivamente interessada nas pesquisas do irmão, das quais não sabia quase nada. Embora Glória tivesse lhe contado alguma coisa, ela não imaginava que fossem tão interessantes. Quis se inteirar de todos os detalhes e, quando ele terminou, ela comentou:
- Logo vou voltar para casa e você vai me mostrar isto de perto.
- As pesquisas dele e o modo como ele vê a vida mudaram minha cabeça. Confesso que, depois do que conversamos, passei a olhar as coisas de outra forma. Eu também gostaria muito de estagiar na fazenda para aprender mais - tornou Diva com entusiasmo.
Ao que Nivaldo respondeu:
- Você pode ir quando quiser. Teremos muito prazer em tê-la conosco.
- Não diga isso, porque eu posso aceitar e ficar por lá alguns meses!
- Faça isso! Estou certo de que teremos muito a aprender juntos.
Diva pensou um pouco, olhou-o nos olhos e disse:
- Seria muito bom! Nos últimos tempos tenho refletido, não estou satisfeita com o que tenho feito. Formei-me em biologia, mas, no laboratório, o trabalho é limitado, não há perspectiva de progresso. Você me abriu as portas para algo maior e eu quero mais. Depois que voltei, tenho estado insatisfeita. A vida é muito mais do que eu sei sobre ela.
Sem desviar os olhos, Nivaldo respondeu com voz firme:
- Você tem em suas mãos o poder de mudar, basta querer. Por que não larga tudo aqui e vai conosco para a fazenda?
Os olhos dela brilharam quando respondeu:
- Seria maravilhoso!
- Então faça! Nós ainda ficaremos aqui alguns dias. Resolva o que for preciso e volte conosco.
- Sei que vocês estão lutando contra algumas dificuldades. Talvez o momento não seja oportuno para ir. Não quero incomodar...
Nivaldo balançou a cabeça negativamente e disse:
- Ao contrário. Sua presença nos dará mais força para passar por essas turbulências. Mamãe vai adorar.
Diva sorriu e tornou:
- Vou pensar e, depois do casamento, voltarei ao assunto.
Nice interveio:
- Vá mesmo. Se você sente que isso é bom, faça. Eu só faço coisas que me deixam bem.
- Eu não quero ser inconveniente.
Nice abanou a cabeça, sorriu e respondeu:
- Se você fosse inconveniente, Nivaldo não a teria convidado e insistido. Ele, assim como eu, só faz o que quer. Neste momento, minha vontade era ir para casa, ficar com os meus, apoiá-los em tudo. Mas eles não querem que eu deixe os estudos. Reconheço que têm razão, mas, assim que me formar, voltarei para casa definitivamente.
Nivaldo abraçou a irmã, beijou-a delicadamente na testa e disse:
- Nós não queremos mais ficar longe de você. Terá que nos suportar pelo resto de sua vida. Mesmo que um dia apareça um galante rapaz que a leve embora de novo, faremos tudo para tê-la sempre por perto.
A conversa estava agradável mas Glória os chamou, alegando que todos precisavam descansar:
- É tarde. Temos de nos preparar para as emoções de amanhã. Isabel deve acordar cedo.
- Não sei se vou conseguir dormir! - disse Isabel.
- Pense que você vai realizar seu sonho de amor e durma como um anjo - disse Diva sorrindo.
- Relaxe para ficar ainda mais bonita! - disse Nice, abraçando-a: - Você conquistou o melhor marido do mundo!
Gilberto interveio:
- Eu é que estou me casando com a mulher mais linda do mundo!
Todos riram e, em seguida, despediram-se. Depois que as visitas se foram, Laura abraçou Isabel comovida:
- Estou certa de que vocês serão muito felizes! Agora, deite-se e relaxe. Não esqueça de agradecer a Deus por essa felicidade.
De volta ao apartamento, Nice falava entusiasmada com Nivaldo sobre a futura cunhada e sua família:
- Gilberto fez uma boa escolha. Eu não me engano com as pessoas. Gostei de Isabel.
- Eu tenho a mesma opinião - acrescentou Nivaldo. - Ela é inteligente, simples e sincera. Eles serão felizes.
Nice o olhou maliciosa e perguntou:
- O que me diz de Diva?
- É bonita, agradável, inteligente.
- Só isso?
- O que mais poderia ser? Não estou entendendo sua pergunta.
- Tive a sensação de que vocês têm uma química muito boa. Não há nada entre vocês?
- Você está imaginando coisas. Somos apenas bons amigos, nada mais.
Nice sorriu levemente e respondeu:
- Não foi isso que eu vi no brilho dos olhos dela quando se dirigia a você.
- você está exagerando. O que uma moça linda, culta e da cidade poderia querer com um caipira como eu, preocupado com as dívidas de uma fazenda que eu nem sei se poderei manter?
Ela atou séria:
- Pode dizer o que quiser, mas tem alguma coisa no ar entre vocês. O tempo vai dizer.
Ele deu de ombros e não respondeu. O assunto morreu e eles foram cada um para o seu quarto preparar-se para dormir, ambos imersos em seus pensamentos íntimos. O dia seguinte amanheceu nublado e chovia durante a manhã, mas o sol apareceu à tarde para clarear o céu. O casamento estava marcado para as oito da noite. Meia hora antes, os convidados já lotavam o salão do clube onde a cerimônia civil e a festa seriam realizadas. Em um canto, uma mesa preparada para a cerimônia civil, no outro, um conjunto musical tocando músicas suaves e, ao redor, as mesas preparadas para o jantar. As flores em profusão formavam arranjos coloridos que espargiam delicado perfume e davam ao ambiente um ar alegre e agradável. A beleza do lugar, a elegância dos convidados, o bom gosto da decoração e as músicas em voga, bem executadas, proporcionavam momentos de prazer e bem-estar. Foi nesse clima que, ao som da marcha nupcial, Laura entrou no salão conduzindo Isabel pela mão, enquanto Gilberto e os demais familiares esperavam perto do juiz. Isabel pensava que, na ausência do pai, falecido há tantos anos, Laura era quem deveria entregá-la ao futuro marido. Enquanto ambas caminhavam lentamente pelo salão, olhos brilhantes de emoção, os convidados, surpreendidos pelo inusitado da cerimônia, emocionaram-se. Gilberto as recebeu diante do juiz, beijou a mão de Laura comovido e, com o olhar apaixonado, segurou a mão de Isabel, que entregou o buquê de rosas cor-de-rosa para a mãe segurar. Em seguida, o casal se posicionou diante da mesa do juiz para a cerimônia. Enquanto o juiz oficiava, uma música suave envolvia o ambiente em doce romantismo. Depois que os noivos assinaram o livro, Laura tomou a palavra e pediu a todos que a acompanhassem em uma prece em favor do casal. Com voz suave e embargada pela emoção, pediu a proteção divina para o casal e as bênçãos para a nova família que se formava. Finalizou agradecendo a Deus por todas as bênçãos que estavam recebendo. Quando ela se calou, as pessoas aproximaram-se para cumprimentá-los e, em seguida, foram se acomodando nas mesas. O coquetel começou a ser servido em um ambiente descontraído e alegre. Em meio à festa, depois do jantar, Nivaldo sentou-se ao lado de Laura e expressou seu contentamento, elogiando a beleza do lugar, a cerimônia simples e sua comovedora prece. Em dado momento, olhou-a nos olhos e disse sério:
- Tenho um recado para a senhora de alguém muito especial, que não pode fazê-lo pessoalmente. Sei que vai entender.
Os olhos de Laura brilharam e ela respondeu:
- Será de quem estou pensando?
- É de um homem alto, cabelos castanhos, olhos escuros, porte elegante, muito emocionado. Pediu que lhe dissesse que adorou vê-la substituindo-o no que ele gostaria de fazer, mas não pôde.
Os olhos de Laura encheram-se de lágrimas quando respondeu:
- Ele ficou o tempo todo ao meu lado. Estava muito elegante e bonito como sempre foi. Obrigada por me dizer isso.
- Eu sabia que a senhora entenderia.
- É bom saber que você tem essa sensibilidade. Descreveu Orlando perfeitamente.
- Há anos convivo com amigos espirituais que têm me auxiliado bastante em todos os momentos. Às vezes, diante de certos desafios do dia a dia, eu me sinto incapaz, impotente. Então, eles comparecem e me apóiam, renovam minha confiança. Assim, eu tenho coragem para enfrentar o que for preciso.
- Acontece comigo. A presença e o carinho de Orlando, sempre que estou preocupada, têm me sustentado. Agradeço a Deus por ter permitido que ele me continue me dando esse apoio.
Observando que Glória conversava com Diva na mesa ao lado, continuou:
- Sei que vocês pretendem voltar logo para a fazenda. Notei que a viagem fez bem para Glória; ela está mais alegre. Por que não ficam um pouco mais?
- Eu não posso. Tenho assuntos urgentes a resolver, mas mamãe poderia ficar. O problema é que ela acha que precisa me ajudar e quer ir comigo.
- Nesse caso, vou insistir para que ela fique. Nós gostaríamos muito de tê-la conosco. Além disso, já estou sentindo falta de Isabel, e ela me faria companhia.
Nivaldo sorriu e considerou:
- Seu argumento é forte. Pode tentar, mas não sei se logrará convencê-la.
- Ela e Diva se dão muito bem. Diva é uma pessoa sensível, alegre, ótima companhia. Falarei com Glória. Ela tem que ficar.
- Seria bom mesmo. Estamos enfrentando problemas na fazenda e ainda não temos uma boa solução. Seria melhor que ela ficasse. Além disso, lá será mais difícil esquecer certos fatos.
Laura colocou a mão sobre a dele, querendo confortá-lo:
- Continuam sem notícias dele?
- Sim. Não temos a mínima ideia de onde possa estar. Os amigos espirituais me pedem para fazer o melhor que puder e confiar na vida, que sempre faz o melhor.
- Em nossas orações, temos pedido ajuda aos espíritos para esse caso. Eles responderam a mesma coisa. Orlando costuma dizer que as pessoas são livres para escolher o próprio caminho, e, ao fazê-lo, programam os resultados que terão de colher quando chegar a hora. Aconselhou-nos a mandar energias de luz para todos os envolvidos. E isso é tudo o que podemos fazer.
Nivaldo ficou pensativo durante alguns segundos, depois disse:
- Tem razão.
Glória se aproximou deles com Diva, que pediu a Nivaldo:
- Convença sua mãe a não voltar logo para a fazenda. Estou pedindo a Nivaldo que nos ajude a convencê-la a ficar - disse Laura.
- É verdade, mãe. Seria bom você ficar um pouco mais. Elas estão insistindo e acho que lhe fará muito bem. Mesmo porque na fazenda as coisas vão devagar.
- Obrigada pelo convite. Eu o aceitaria de bom grado em outra oportunidade. Mas não ficaria em paz aqui, imaginando o que poderia acontecer de uma hora para outra.
- Se tivermos alguma novidade, você será a primeira a saber. Eu prometo.
Glória meneou a cabeça, sorriu levemente e respondeu:
- Vamos ver. Vou pensar.
De longe, Isabel fez um sinal para Laura, que se levantou, dizendo baixinho:
- Os noivos vão sair discretamente. Vou ver se tudo está em ordem.
- Precisa de alguma coisa? - indagou Nivaldo.
- Fiquem aqui para que ninguém perceba. Está tudo combinado.
- Queria despedir-me deles - pediu Glória.
Laura sorriu com ar de cumplicidade e informou:
- Eles vão para o hotel e, amanhã cedo, poderemos ir ao aeroporto nos despedir.
Ela saiu discretamente e, alguns minutos depois, voltou satisfeita.
- Eles já foram. Está tudo bem.
- Nesse caso, vamos aproveitar a festa - disse Diva. E, segurando o braço de Nivaldo, pediu: - Vamos dançar?
Ele a olhou surpreso e ela continuou:
- Vai me dizer que não sabe dançar
- Eu sabia na minha época de estudante, mas agora não sei se conseguiria.
- Vamos tentar - disse ela. Eu adoro esta música!
Começaram a rodopiar pelo salão ao som de um bolero, quando Sônia comentou:
- Eles fazem um belo par. Você não acha, mamãe?
- Nivaldo é uma pessoa muito especial.
Em poucas palavras, ela contou o recado de Orlando que ele lhe passara momentos antes. Sônia sorriu e tornou:
- Diva sente-se bem ao lado dele. Desde que ela voltou da fazenda, seus olhos brilham quando fala nele.
- Ele tem todas as qualidades. A mulher que conseguir conquistá-lo será muito feliz.
Elas ficaram observando os dois, que, depois do bolero, dançaram por mais de uma hora sem parar. Quando voltaram à mesa, estavam corados, olhos brilhantes de prazer, e Sônia comentou:
- Para quem não sabia dançar, você surpreendeu!
Nivaldo sorriu:
- Eu havia me esquecido de como dançar faz bem!
- Você dança muito bem - disse Diva.
- Você é leve, maleável, fácil de conduzir. Dançar com você não foi difícil.
Então, Laura e Glória se juntaram a alguns convidados, e Sônia foi dançar. Diva e Nivaldo continuaram na mesa conversando. Em certo momento, Nivaldo lembrou:
- Você disse que não está satisfeita com seu trabalho. Se as circunstâncias fossem outras, eu insistiria para que você fosse trabalhar conosco na fazenda.
- Seria maravilhoso, eu adoraria. Por que você acha que não deve insistir? O que o impede?
Nivaldo hesitou um pouco, mas disse enfim:
- Sua ajuda seria preciosa, mas nós estamos atravessando um momento difícil. Não acho justo que deixe um emprego com todas as garantias para se arriscar em um projeto difícil que eu ainda não sei se dará certo.
Diva fixou-o séria e respondeu:
- Eu gosto de mudar e ousar para conquistar o que quero. Sua maneira de ver a vida e de fazer o melhor bate com a minha. Depois que voltei da fazenda, senti que eu estava trabalhando no laboratório sem prazer, apenas por não ter algo melhor. Seja sincero: se acha mesmo que posso ser útil na fazenda, estou pronta para largar tudo aqui e ir com vocês.
- Você seria mesmo capaz de fazer isso?
- Eu gostaria muito de ir. Sinto que lá está minha vocação.
- Antes de aceitar, precisamos ter uma conversa. Vamos até o jardim.
Eles deixaram o salão e se sentaram em um banco no jardim. A noite estava fresca, e o céu, limpo e estrelado. Ao redor deles, canteiros floridos espargiam suave perfume no ar e podia-se ouvir o som de um sax em surdina vindo do salão. Em silêncio, Diva esperou que ele falasse. Nivaldo contou tudo que estava acontecendo, sem omitir nenhum detalhe. E finalizou:
- Estou lhe contando isso porque não é justo que você se envolva em uma situação tão incerta.
Diva pousou a mão no braço dele e respondeu:
- Você se engana. Este é o melhor momento para que eu vá. Estou certa de que terei chance de aprender muito e, ao mesmo tempo, apoiar uma causa que acho muito válida. Aconteça o que acontecer, estaremos juntos, e a união faz a força.
Nivaldo segurou a mão dela e a beijou com carinho.
- Ficaremos aqui mais dois dias. Pense com carinho e decida se é isso mesmo o que quer. Antes de irmos embora, você me dirá o que decidiu.
Diva sorriu:
- Eu já decidi. Mas seja feito como quiser. Eu já estou até pensando em como tomar as providências para resolver tudo aqui e ficar livre para ir. Agora vamos voltar ao casamento; já devem ter notado nossa ausência.
Ao entrarem no salão, notaram que havia ainda muitos casais dançando. Nivaldo, sem dizer nada, abraçou Diva e eles recomeçaram a dançar. Glória, apesar de cansada, ao notar que Nivaldo estava dançando e se divertindo, resolveu esperar um pouco mais antes de ir embora. Porém, ele notou o cansaço da mãe e a convidou para irem embora. Como Nice, que começara a dançar logo no início da festa, queria ficar mais um pouco, Glória concordou. Eram quatro horas da manhã quando todos se despediram. Ao chegar em casa com Sônia, Laura sentia-se feliz, pois tudo saíra melhor do que imaginara. Enquanto Sônia, exausta, preparava-se para dormir, Laura, em seu quarto, diante do retrato de Orlando, agradeceu a ele pelo apoio. Depois de beijar o retrato com amor, agradeceu a Deus por tudo que havia recebido de bom na vida. Glória chegou ao apartamento e foi logo dormir. Nice tirou os sapatos e disse a Nivaldo:
- Adorei o casamento, a festa, tudo.
- Você se divertiu muito. Fez muito sucesso. Quem era o rapaz que dançou o tempo todo com você?
- É médico, amigo de Gilberto, trabalham juntos no hospital. Chama-se Márcio.
- É forte, elegante!
- Charmoso, tem um sorriso lindo!
- Pena que ele mora aqui e você no Rio. Isso poderia dar um namoro!
- Ele me disse que vai tirar férias no próximo mês e vai para o Rio.
- Você não deixou ninguém lá?
- Nada que valha a pena.
- Hum... Parece que esse Márcio tem alguma chance.
Nice sorriu maliciosa e respondeu:
- Ele é atraente, mas eu não sei se irá mesmo me ver no Rio. Agora, me diga: você está interessado em Diva?
- Ela é muito especial, mas é apenas uma amiga.
- Amiga? Eu bem vi como vocês dançaram até de rosto colado. Confesse que ela o atrai.
- Confesso que ela é atraente, mas entre nós nunca pintou nada de mais.
- Eu não esperava que essa festa fosse tão boa. Estou cansada, mas tão inspirada que não sei se vou conseguir dormir.
- Pois eu estou cansado. Vou tomar um banho rápido e me deitar. Você vai ao aeroporto amanhã no fim da tarde?
- Vou. Quero abraçar os dois e agradecer Isabel pela linda festa que nos proporcionou.
- Faça isso. Durma com os anjos.
- Você também.
Nivaldo a beijou na face e foi se deitar. Nice, depois de tomar um copo de água, também foi para o quarto preparar-se para dormir. Carlos verificou se todos os documentos estavam em ordem para viajar e colocou-os na maleta de mão. Olhou a mala aberta, checando se levava tudo de que precisava. Inês entrou no quarto, dizendo:
- A que horas você vai?
- Sairei daqui dentro de quinze minutos.
- Está abandonando sua família. Você tem certeza do que está fazendo?
- Tenho. Não distorça as coisas. Só vou morar em outro lugar, não estou abandonando ninguém.
- Está sim. Vai viver do outro lado do mundo.
Carlos sorriu bem-humorado:
- Deixe de ser dramática. Manteremos contato, voltarei de vez em quando e vocês irão nos visitar.
Ela se calou e ficou observando-o enquanto fechava a mala e a colocava perto da porta. De repente, ela disse:
- Isabel se casou ontem. Você não precisava ir embora por causa disso.
Carlos olhou-a sério, cenho franzido, e respondeu:
- Sei disso e espero que eles sejam muito felizes. E você, deixe de se incomodar com Isabel. É uma moça muito especial, que tem tudo para viver bem.
- Mamãe ainda chora pelos cantos, isso você finge que não vê.
Carlos suspirou desanimado:
- Em certos momentos não dá para conversar com você. Pensei que tivesse melhorado um pouco. Eu me entendi muito bem com mamãe, portanto, trate de não ficar do lado dela falando o que não deve.
- Você faz o estrago e quer que eu corrija. Ela vai chorar mesmo.
- Eu fiquei cinco anos desaparecido e ela superou bem.
- Vivendo lá com essa gente de quem você gosta, vai se esquecer de nós.
Carlos colocou as mãos nos ombros dela, olhou-a nos olhos:
- Pare com isso, Inês! Cada um tem um caminho na vida. Eu estou assumindo o meu. Trate de encontrar o seu e fazer a parte que lhe compete. Eu estou indo, mas estarei sempre presente porque gosto de vocês.
Os olhos dela estavam cheios de lágrimas. Ele a beijou na testa e continuou:
- Você vai ver que ainda teremos muitos momentos felizes juntos. Anote isso. Agora, tenho de ir.
Quando ele desceu as escadas, carregando a mala, Albertina o abraçou emocionada e indagou:
- Está na hora de ir?
- Está. Mas toda semana vou telefonar para saber como estão as coisas.
- Estarei esperando.
Antônio se aproximou:
- Já arrumou tudo, verificou se não falta nada?
- Já, pai. Dentro de alguns minutos o táxi deverá chegar.
- Nunca pensei que você fosse viver tão longe! - comentou ele com certa preocupação.
- Com a aviação, o mundo ficou pequeno. Bastam algumas horas para estarmos juntos de novo.
- Eu é que não subo numa máquina daquelas!
Carlos riu gostosamente e respondeu:
- Vai subir sim e vai gostar. É uma viagem maravilhosa. Para o meu casamento, quero todos vocês lá comigo. Vou mandar as passagens para nós três. Você terá de ir. Não vá fazer feio!
Antônio riu meio encabulado e Albertina tornou:
- Eu vou! Não tenho medo. Estou curiosa para ver a cidade lá de cima.
- Isso mesmo, mãe. Você vai, e ficará muito bonita. Lá, as pessoas se vestem bem. Vou mandar dinheiro e quero que comprem roupas muito elegantes. Vocês precisam conhecer uma vida melhor.
A campainha tocou e Carlos disse:
- Deve ser o táxi, preciso ir.
Carlos abriu a porta e entregou a bagagem ao motorista, enquanto os três esperavam na calçada. Abraçou um a um com carinho, beijou a mãe, prometeu ligar sempre e entrou no táxi. Enquanto o carro se afastava, ele abanava a mão em despedida. Depois, acomodou-se gostosamente antegozando o momento de abraçar Gina novamente. Sentia-se feliz e tinha fé no futuro. Quando o avião pousou em Milão, Carlos saiu o mais rápido que pôde. Assim que desembaraçou a bagagem e seguiu para o desembarque, olhou ansioso ao seu redor. Viu Gina, que caminhava em sua direção e abria os braços. Carlos abraçou-a com força e beijou-a apaixonadamente, enquanto as pessoas observavam sorridentes. Ao lado, Marta sorria contente, com os olhos úmidos, esperando a vez de abraçar o futuro cunhado. Conversando alegres, eles foram ao apartamento de Carlos para deixar a mala. Depois, seguiram para a casa de Lúcia, que, junto de Benito, esperava por eles. Ela havia preparado um saboroso café da manhã e, depois dos abraços e das boas-vindas, sentaram-se para comer. Enquanto Carlos queria saber tudo que acontecera em sua ausência, eles contavam e faziam perguntas sobre a viagem ao Brasil. Gina queria saber como a família dele reagira aos planos que tinham para o futuro.
- Minha mãe é compreensiva. No começo, ficou triste ao saber que moraríamos aqui, mas aceitou bem ao perceber minha felicidade. Meu pai estranhou um pouco e minha irmã, que costuma ver sempre o lado ruim das coisas, ficou enciumada, mas eu os fiz ver que gosto da minha família e estarei sempre em contato. A ideia de irmos visitá-los e eles virem até aqui os confortou. Quero que eles venham assistir ao nosso casamento.
- Fez bem. Eu imagino como ficaria se você preferisse levar Gina para morar no Brasil. Posso entender como eles estão se sentindo.
- É a vida - filosofou Benito. - Os filhos deixam os pais para se casar e formar uma nova família. Quando chega a hora, os filhos deles fazem o mesmo e os pais precisam aceitar.
- Você deve estar cansado - comentou Lúcia, olhando para Carlos. - Quer se deitar um pouco no quarto de Benito?
- Estou bem. Não é preciso.
Durante a manhã, enquanto Lúcia se envolvia com os afazeres domésticos, os três irmãos levaram Carlos à sala que lhes servia de ateliê. Benito havia recebido novas encomendas e os negócios iam muito bem. As duas irmãs haviam desenhado algumas peças novas e esperavam ansiosas que Carlos as aprovasse. Ele olhou os desenhos com atenção e sugeriu algumas alterações, que elas imediatamente atenderam. Depois, Benito considerou que haviam ficado muito melhor. Os três trabalhavam muito bem juntos, mas era Benito quem dava a aprovação final. Ele não desenhava, mas sabia dizer o que agradaria. Duas semanas depois, Benito apresentou as novas peças aos clientes e recebeu muitas encomendas. Para entregá-las mais rápido, contrataram dois bons ourives com exclusividade para fazer a montagem das jóias. As peças agradaram tanto que eles começaram a ficar conhecidos, respeitados no meio. As encomendas aumentaram e o dinheiro começou a entrar rapidamente. Com a empresa crescendo, todo o dinheiro era investido em materiais. Os quatro retiravam apenas o suficiente para suas despesas pessoais. Carlos e Gina desejavam se casar logo, mas resolveram esperar mais um pouco. Durante todo o tempo que esteve na Europa, Carlos continuou trabalhando para Nicolai. De vez em quando ia a Paris, onde, além de vender as peças costumeiras de Nicolai, conseguiu colocar também algumas das que produziam. Uma tarde, Nicolai telefonou e mostrou interesse em conhecer as jóias que eles fabricavam. Soubera que La Belle as havia comprado e pediu que lhe mandasse um catálogo. Depois de vê-lo, ligou para Carlos dizendo que gostaria de ser o representante de suas jóias no Brasil. Carlos se reuniu com os companheiros para estudarem as possibilidades e resolveram aceitar, começando com pequenas quantidades. Sabendo disso, os dois ourives que trabalhavam com eles quiseram entrar no negócio. Eles tinham bom capital, amealhado em anos de trabalho, e desejavam juntar-se a eles. Depois de estudar muito bem, aceitaram. A empresa cresceu, progrediu e fez dinheiro. Seis meses depois, Gina e Carlos tiraram a licença civil e marcaram o casamento para dali a duas semanas. Alugaram uma casa e não tiveram dificuldade em mobiliá-la com conforto. Tudo para eles era felicidade. No Brasil, dois dias depois do casamento de Isabel, Nivaldo e Glória voltaram para a fazenda em Pouso Alegre. Diva havia aceitado o convite de ir com eles, mas iria na semana seguinte, pois precisava de tempo para deixar o emprego e resolver alguns compromissos pendentes. Nivaldo foi claro, explicou detalhadamente como estavam os negócios na fazenda e pediu:
- Pense bem se vale a pena arriscar deixar seu emprego para trabalhar em um lugar que não sabemos se vai continuar. Nem sei quanto vou poder lhe pagar.
- Não se preocupe com isso. Vou fazer o que gosto. Sei que vou aprender mais e isso não tem preço. Além disso, sinto uma vontade muito grande de auxiliá-los a vencer essa luta. Estou certa de que nós vamos vencer! Um projeto tão bom e bonito não pode acabar. Só espero ser útil!
- Sua presença levantando nosso astral é maravilhosa, mas eu sei que você fará muito mais. Tem competência e dedicação. Não sei como agradecer tanta dedicação.
- Não agradeça. Eu vou disposta a aprender o que puder. Será uma troca.
Diva prometera telefonar um dia antes de sua viagem para saber se eles já estavam na fazenda, pois Nivaldo tinha ainda alguns compromissos na cidade. No mesmo dia em que Glória viajou com Nivaldo, Nice voltou ao Rio de Janeiro. Assim que chegou à cidade, tratou de procurar um detetive particular. Não recorreu aos anúncios de jornal, mas a um professor de sua faculdade em quem confiava e que considerava muito competente e ético. Foi vê-lo, colocou-o a par da situação e pediu-lhe que indicasse alguém capacitado. Ele a ouviu atentamente, indicou uma pessoa e orientou-a sobre como deveria contratá-lo. Três dias depois, ela foi procurá-lo no centro da cidade. Seu escritório ficava em um prédio antigo e ela subiu as escadas de madeira até o primeiro andar, buscando a sala 95. Ao lado da porta, havia uma placa dourada onde se lia "Germano Oliveira - Advogado". Nice hesitou. Ela procurava um detetive, e não um advogado. Através do postigo de vidro, ela viu a luz acesa e tocou a campainha. A porta abriu e um rapaz alto, louro, de olhos vivos e sorriso fácil surgiu.
- Meu nome é Anice Souza Mendes. O professor Adilson me deu o seu endereço, disse que trabalha como detetive. É isso mesmo?
- Sim. Entre, por favor.
A sala era mobiliada com sobriedade e bom gosto. Ele indicou uma poltrona diante da escrivaninha e Nice se sentou.
- Em que posso ajudá-la?
Ela expôs todo o caso em detalhes, e então finalizou:
- Nós precisamos encontrar meu pai. Enquanto ele não aparecer, não poderemos regularizar os negócios da nossa família. Você tem como fazer isso?
- Posso tentar. Preciso ir ao local, conversar com seus familiares, pesquisar na cidade, investigar.
- Quero saber quanto ficaria e a forma de pagamento que o senhor aceita. No momento, não estamos em condições de adiantar dinheiro, porque ele levou o que tínhamos disponível. Mas temos algumas propriedades.
Depois de pensar um pouco, ele disse:
- Há as despesas da viagem até Pouso alegre. Como eu prefiro ir de carro, seria apenas o combustível e a hospedagem. Em razão da situação, se conseguirem suprir essas necessidades, os honorários poderão ser pagos depois que a tarefa estiver completa.
- Você se importaria de ficar hospedado na casa da família? Tanto a casa como a fazenda são muito confortáveis e garanto que a comida é muito boa.
Ele sorriu e respondeu:
- Adoro comida mineira! Faz-me lembrar de minha avó, que deixou muitas saudades.
- Nós temos urgência. Quando você pode começar?
- Dentro de três dias estarei livre e poderei viajar.
- Vou telefonar para o meu irmão hoje mesmo para dizer que o contratei e que estará lá dentro de três dias. Darei o nome dele e os telefones da casa e da fazenda a você. Ele deve estar em um dos dois lugares. É melhor ligar à noite para me dar tempo de avisá-lo.
Tudo combinado, Nice despediu-se satisfeita. Foi para casa pensando em falar com Nivaldo imediatamente. Ela morava em um quarto que alugara em uma casa de família no bairro do Leme. Quando foi para o Rio de Janeiro estudar, morou durante dois anos em uma república, mas se cansou da desordem e dos problemas de convivência. Temperamento calmo e amante da ordem, resolveu se mudar. Teve a felicidade de encontrar uma família muito boa e se adaptou bem, tornando-se amiga de todos. Assim que chegou, telefonou para Nivaldo e contou a novidade.
- Você não perdeu tempo - comentou ele satisfeito. Diga-lhe que estarei esperando.
Assim que ele desligou, Glória aproximou-se do filho, perguntando:
- Quem ligou?
- Nice. Ela contratou um detetive. Dentro de três dias estará aqui.
Glória franziu o cenho, preocupada:
- Não sei se devemos aceitar. Não gosto da ideia de contar nossos problemas a um estranho.
- Trata-se de um profissional que nos foi indicado pelo professor Adilson. Nice teve o bom senso de pedir a orientação dele. Foi rápida e eficiente.
- Essas coisas custam caro, não temos como pagar.
- Do jeito que ela o contratou, não vai custar muito. Vamos hospedá-lo e financiar apenas o combustível do carro e talvez outras pequenas despesas. Os honorários serão pagos depois de o caso ser resolvido.
- Nesse caso, teremos de voltar à cidade.
- Diva vai chegar depois de amanhã. Eu teria mesmo de ir para esperá-la. Mas você pode ficar.
- Eu vou com você. Quero conhecer esse detetive.
- Faça como quiser. Eu conheço o professor Adilson, sei que ele nunca nos indicaria alguém em quem não confiasse. Esse detetive deve ser boa pessoa.
Glória deu de ombros. Ela não concordava com a ideia de ir atrás de Alberto, embora reconhecesse que a maioria dos problemas estariam resolvidos se ele reaparecesse. Diva chegou a Pouso Alegre dois dias depois, muito alegre e bem-disposta. Contou que Gilberto e Isabel haviam regressado da lua de mel, estavam encantados com os arranjos da casa, com os presentes e visivelmente felizes, enfatizando:
- Os dois pareciam duas crianças, tamanho o entusiasmo com que falavam sobre a nova vida.
Enquanto Nivaldo ouvia satisfeito, Glória comentou:
- Espero que essa felicidade dure. No começo, tudo é ilusão. Mas a vida não é fácil assim.
- Eles se amam muito. Foram feitos um para o outro. Entendem-se perfeitamente. Nunca brigaram - disse Diva.
- Têm afinidade. Isso é que faz um bom relacionamento - disse Nivaldo, sorrindo.
Glória não disse nada, ficou pensativa. Ela e Alberto eram muito diferentes. Enquanto ela era caseira e apreciava a vida em família, ele preferia a vida social, a política, o encontro com os amigos. Mas o que ela não gostava mesmo era perceber que ele não selecionava as amizades, fazia vista grossa para a falta de caráter de alguns, convivendo prazerosamente com eles na intimidade. Na tarde do dia seguinte, conforme o combinado, o detetive chegou. Glória e Diva haviam saído para dar uma volta e Nivaldo o recebeu no escritório. Mesmo sem Nivaldo ter pedido, Germano fez questão de entregar-lhe alguns documentos, dizendo:
- Meu nome é Germano Oliveira. Aqui estão meus dados e algumas referências. Queira verificar, por favor.
- Não é preciso. A indicação do professor Adilson é mais do que suficiente.
- O senhor está me abrindo as portas de sua casa, eu prefiro que me conheça um pouco mais. Verifique, por favor.
Nivaldo abriu o envelope, tirou uma pasta que continha vários documentos. Folheou-os e depois disse:
- Posso fazer-lhe uma pergunta?
- Quantas quiser.
- Sendo tão qualificado profissionalmente, por que decidiu ser um simples investigador?
- Problemas de família. Meu pai foi caluniado e assassinado. Eu sabia que ele era inocente, então, larguei tudo que havia conquistado profissionalmente e fui investigar o caso. Queria provar sua inocência.
- E conseguiu?
- Sim. Não só provei a inocência dele como coloquei os assassinos na cadeia, onde estão até hoje. Desde então, dediquei-me a essa atividade. Sinto muito prazer em ajudar as pessoas que, como eu, sentem-se impotentes diante da maldade alheia.
Nivaldo estendeu a mão dizendo:
- Sinto-me honrado em conhecê-lo e contar com sua ajuda. Sinta-se em casa. Como pode nos ajudar?
- Inicialmente, conte-me tudo que lembrar sobre seu pai e o relacionamento dele com vocês.
Uma hora depois, quando Glória chegou com Diva, os dois continuavam conversando no escritório. Glória não quis interromper e foi à cozinha ver como andava o jantar. Dete informou que em meia hora o jantar estaria pronto, então Glória e Diva sentaram-se na sala para esperar que os dois terminassem a conversa no escritório. Pouco depois, os dois apareceram na sala e Nivaldo as apresentou, dizendo:
- Estas são minha mãe e Diva, uma amiga que mora e trabalha conosco e com quem não temos segredos.
Glória lhe deu as boas-vindas e lhe apertou a mão. Depois, Nivaldo explicou:
- Conforme combinamos, o doutor Germano vai ficar alguns dias conosco. Começará a investigar na cidade e eu preciso ficar aqui um pouco mais.
- Mas precisamos ir para a fazenda com urgência. Não podemos ficar...
- Eu sei. Amanhã bem cedo levarei vocês duas para lá e voltarei. Ele precisa de mim aqui.
- Dona Glória, antes de ir, gostaria de conversar com a senhora - disse Germano.
- É necessário? Nivaldo já deve ter lhe contado tudo.
- Tanto ele como sua filha já me falaram sobre o caso. Mas quero ouvir sua versão dos fatos ainda hoje, já que vão viajar amanhã cedo.
Glória suspirou. Ela não gostava de falar sobre o marido nem sobre o que ele fizera. Nivaldo notou a sua contrariedade e colocou a mão sobre o braço dela dizendo:
- Mãe, faça um esforço. Seu depoimento é muito importante. Tenha paciência!
- Para mim, é o mais importante. Sua participação é extremamente valiosa para esclarecer os fatos - disse Germano.
- Apesar de vivermos na mesma casa há anos, estávamos separados. Só conversávamos o indispensável - Glória começou.
- Ainda assim, quero ouvi-la. Prometo não abusar e tomar o mínimo possível de seu tempo. Podemos conversar agora?
Glória pensou um pouco e respondeu:
- O jantar está pronto. Depois da refeição, estarei à sua disposição.
Germano concordou e, alguns minutos depois, todos se acomodaram à mesa para jantar.
Depois do jantar, Glória e o detetive foram para o escritório. Sentados um diante do outro, Germano perguntou:
- A senhora se casou por amor?
Apanhada de surpresa, ela corou. Olhou-o assustada e não respondeu. Ele repetiu a pergunta lentamente e acrescentou:
- Responda, por favor.
Glória o olhou com raiva:
- Por que pergunta isso? O senhor foi contratado para descobrir onde Alberto está e não para conhecer meus sentimentos.
- Por que é tão difícil para a senhora responder a essa pergunta?
- Porque o meu casamento foi um fracasso e eu não gosto de falar sobre isso.
- Quando casou, a senhora esperava mais. Devo concluir que o amava muito.
- Eu não disse isso! Eu o odeio! Depois do que ele fez, depois de me humilhar diante desta cidade inteira e desfilar por toda parte com aquela mulher, ainda teve um filho com ela, que deverá tirar uma parte do patrimônio dos meus filhos.
Os olhos dela brilharam rancorosos, e Germano continuou:
- Mas, apesar de tudo, a senhora ainda não conseguiu acabar com o amor que sente por ele!
O rosto de Glória coloriu-se de intenso rubor e ela o olhou aflita:
- O senhor quer me irritar! Aonde quer chegar com isso? Não é verdade! Ele só merece desprezo. Nenhuma mulher de bem continuaria a amá-lo depois do que ele fez. Eu o odeio!
Germano olhou em volta e viu uma moringa sobre a mesa, com alguns copos em uma bandeja. Encheu um deles de água e ofereceu a ela, dizendo:
- Procure se acalmar. A senhora é uma mulher forte, mas não precisa controlar tanto a manifestação dos seus sentimentos. Está coberta de razão, tem o direito de expressar o seu inconformismo. Mas sufocar a raiva, não querer ver as coisas como são, deve estar lhe fazendo muito mal. É melhor enfrentar a verdade.
Glória franziu o cenho e o olhou séria:
- Como assim? Eu estou vendo a verdade, os fatos estão claros. Bem que eu gostaria que fossem diferentes.
- A senhora está vivendo uma situação desagradável e está olhando para ela superficialmente, não como ela realmente é.
- Não estou entendendo o que quer dizer.
- Para entender o comportamento de Alberto, precisaria conhecer o que aconteceu com os sentimentos dele para que agisse dessa forma. Diga-me como é o temperamento dele. Ele sempre foi mulherengo, desde o início? Não respeitou os filhos, a família? Nos primeiros anos de casamento, ele foi diferente?
Glória olhou-o pensativa e, por seus olhos, passou um brilho diferente quando ela disse:
- No começo, ele era melhor. Mas nós sempre fomos muito diferentes.
- Em quê?
- Eu sempre fui do lar, mas ele gostava de festas, de política, vivia rodeado de amigos, ia ao clube. Eu me dediquei aos nossos filhos, nunca deixei a babá cuidar deles sozinha.
- Além disso, ele fazia alguma coisa de que a senhora não gostava?
- Tinha amigos de caráter duvidoso. Trazia-os em casa e houve até dois deles que me assediaram. Eu os odiava.
- Conversou com ele sobre isso?
- Tentamos, mas ele não me ouviu. Claro que não falei que me assediavam. Ele tem temperamento forte, podia ser violento, eu tive medo.
- Quando eu encontrá-lo, o que deseja que seja feito?
- Quero que ele aceite vender esta casa e deixe o dinheiro conosco para que possamos manter a fazenda. Se for possível, não quero vê-lo nunca mais.
Germano disse com voz suave:
- Será feito como a senhora quer. Obrigado por ter me atendido. Assim que abrirmos aquela porta, tudo que dissemos será esquecido. Só me lembrarei daquilo que a senhora deseja que seja feito.
Glória saiu em silêncio e foi direto para o quarto. Em seguida, ele pediu para falar com Dete. Ela entrou nervosa. Germano pediu que se sentasse em frente à mesa. Ela obedeceu e foi logo dizendo:
- O senhor quer me interrogar, mas eu não sei de nada. Nunca me meti na vida dos patrões.
Germano olhou-a sério e permaneceu alguns segundos em silêncio. Depois sorriu e disse:
- Sei. Dona Glória me parece uma pessoa muito boa. Você gosta de trabalhar aqui?
Dete sorriu:
- É a melhor pessoa do mundo. Não merecia ser tão infeliz.
- Mas me disseram que o senhor Alberto sempre foi um bom patrão. Isso é verdade?
Dete o olhou surpreendida:
- Quem disse isso? Ele nunca se incomodou com ninguém. Só sabia reclamar, dar ordens.
- Você trabalha aqui há alguns anos, parece gostar.
- Eu gosto muito. É que ele nunca se meteu com os serviços da casa. Dona Glória é quem cuida de tudo, dá as ordens. Se dependesse dele, há muito eu teria ido embora.
- Dona Glória está muito magoada com o que ele fez. Quero que me conte tudo o que sabe sobre o caso dele com outra mulher.
Era a frase que ela esperava para dar sua versão dos fatos. Disse que sabia de tudo desde o início e que nunca contou nada, mas Glória descobriu logo, separou-se do marido e eles passaram a viver em quartos separados, conversando somente o necessário. Glória era excelente dona de casa, uma mártir que suportava a situação com dignidade, e Alberto precisava sofrer para pagar pelo que tinha feito. E finalizou:
- Ele desprezou a família e eu espero que ele receba a lição que merece. Onde o senhor acha que eles podem estar?
- Ainda não sei. E você, onde acha que estão?
Dete pensou um pouco, depois disse:
- Ele adorava o clube, gostava de jogar cartas. Às vezes perdia dinheiro. Dona Glória e Nivaldo brigavam com ele. Acho que ele deve ter ido para um lugar onde tenha todas essas coisas. Ele pegou todo o dinheiro, deve estar podendo.
- Obrigado, Dete.
Depois que ela saiu, Germano chamou Nivaldo e apenas perguntou:
- Seu pai gostava de jogar?
- Gostava. Quando se excedia, nós conversávamos e ele se esforçava para manter o controle.
Germano avisou que, na manhã seguinte, iniciaria a investigação na cidade. Nivaldo deu algumas informações sobre os amigos do pai e seus hábitos, e ele tomou nota de tudo. Os demais já haviam se recolhido e Nivaldo se despediu dele, dizendo:
- Amanhã vou levar mamãe e Diva para a fazenda. Sairemos ao amanhecer, mas à tarde estarei de volta. Se precisar de alguma coisa, pode ligar para a fazenda. Quantos dias acha que precisa ficar na cidade?
- Não sei. Pretendo ficar o mínimo possível. Se for necessário me demorar um pouco mais, talvez você não precise acompanhar as investigações de perto.
- Farei o que for preciso. Quero resolver o caso o quanto antes.
- Eu também. Bem, vamos fazer o seguinte: você deve ter muito que fazer na fazenda, então não precisa voltar hoje. À noite, conversaremos. Você só deverá vir se for preciso.
- Está bem. Aguardarei notícias suas.
Na manhã seguinte, ainda estava escuro quando Glória, Nivaldo e Diva se reuniram na copa para o café. Dete servia a mesa, e Glória a informou que Germano ficaria na casa. Recomendou que cuidasse muito bem dele, não deixasse faltar nada. Depois, despediram-se, acomodaram-se no carro e partiram. O dia estava começando a clarear, e Diva respirava com prazer o ar puro que entrava pela janela entreaberta:
- Vai ser um dia lindo! Olhe o céu cor-de-rosa, que beleza! Na cidade não prestamos atenção a essas coisas.
- Estou contente por voltar à fazenda - tornou Glória -, ver como estão os bezerros que nasceram na semana passada. Pena que você tenha que voltar ainda hoje.
- Talvez eu não precise. Germano vai começar as investigações e vai telefonar à noite. Só voltarei se for necessário.
- Isso é bom, meu filho, porque temos muito serviço que só pode ser feito com sua orientação.
Na fazenda, Nivaldo levou Diva para conhecer as mudanças que ele fizera. As pesquisas haviam sido suspensas por falta de dinheiro, mas, apesar disso, Nivaldo estava confiante que seria por pouco tempo. A presença de Germano lhe dera ânimo. Sentia que contratara a pessoa certa. Se Alberto aparecesse, tudo se resolveria: aquela situação desagradável acabaria e ele poderia recomeçar. Tudo seria diferente. Alberto seguiria seu caminho e, com o tempo, Glória esqueceria suas mágoas e retomaria a alegria de viver.
- Eu poderei retomar algumas experiências, se você quiser - Diva se ofereceu.
- Infelizmente, como não pude dar continuidade, elas se perderam. Será preciso recomeçar do zero. Eram as mais importantes. Mas ainda não é o momento de retomá-las. Estamos empenhados em equilibrar as despesas e fazer o possível para vender nossos subprodutos.
- Estou aqui para trabalhar. Farei o que for preciso. - Mamãe está muito deprimida. Tenho tentado deixá-la mais alegre e você é a pessoa mais indicada para me auxiliar nisso.
- Ela não parece tão deprimida. Está muito melhor do que eu imaginava. Faz planos para a fazenda, tem projetos de melhoria. Pessoa deprimida não quer fazer nada.
- Ela tem planos, sim, mas eles são alimentados pela força da raiva. Temo que, quando meu pai aparecer e ela tiver de encarar os fatos e tomar decisões, ela se dê conta da realidade e, então, será pior.
Diva pensou um pouco, depois disse:
- A raiva a está motivando a superar as dificuldades. E a verdade pode fazer sofrer, mas cura. Ela verá que ele deu apenas o que podia dar. Os dois eram muito diferentes, nunca seriam felizes juntos. Reconhecerá a própria ilusão e a mágoa irá embora. Ela vai reagir e tentar recuperar o tempo perdido. É isso que eu sinto.
Nivaldo colocou a mão no braço de Diva, olhou-a pensativo, depois sorriu:
- Obrigado por ter me puxado a orelha. Eu estava precisando. Você está certa. A verdade liberta. Não sei o que está por vir. Meus amigos espirituais que sempre me inspiram, quando se trata de outras pessoas, no meu caso, apenas dizem para que eu seja otimista, espere o melhor, persista no bem. Eu estava alimentando o medo, mas é preciso confiar. Na verdade eu sei que a vida só faz o melhor.
- Isso mesmo. Juntos vamos vencer e tudo dará certo!
Nivaldo sorriu e beijou a face de Diva delicadamente:
- Obrigado, parceira. Vamos pra frente!
Ela corou, sorriu emocionada, e eles passaram o resto do dia trabalhando com entusiasmo e alegria. Eram sete horas da noite quando Germano ligou:
- Tenho novidades! Encontrei um motorista de táxi que os levou até São Paulo, sei em que hotel se hospedaram. Como seu pai disse ao motorista que voltaria em seguida para casa, liguei para o hotel e pedi para falar com a Alda, mas disseram que eles havia viajado. Ele disse que voltaria, mas não voltou. Ele mentiu para evitar que o motorista comentasse sobre a viagem.
- O que pensa fazer agora?
- Amanhã bem cedo viajarei para São Paulo. Quero investigar as agências de viagens e todas as outras possibilidades. Assim que souber de algo, darei notícias.
- Está bem. Chegando lá, você pode procurar meu irmão, Gilberto. Ele pode ajudá-lo no que precisar. Anote o telefone dele. Glória e Diva estavam ao lado de Nivaldo e, assim que ele desligou, a mãe perguntou:
- O que ele descobriu?
- O motorista que os levou até São Paulo e o hotel em que se hospedaram. Ligou para lá, pediu para falar com Alda, mas soube que tinham ido embora. Amanhã, Germano irá para São Paulo investigar. Se descobrir algo mais, ligará.
- Eles deixaram os carros em casa e nós não pensamos em ir conversar com os motoristas de táxi - tornou Glória pensativa.
- Seria inútil. Todos eles nos conhecem e não nos diriam nada. Mas com Germano foi diferente, ele sabe como fazer essa abordagem.
- Estou começando a pensar que ele pode encontrá-los.
Na tarde do dia seguinte, Germano ligou novamente informando que os três haviam viajado para Montevidéu, no Uruguai. À noite, Gilberto telefonou para avisar que viajaria com Germano para lá. Tinham esperança de encontrar Alberto e trazê-lo de volta. Durante os quatro dias que se seguiram, eles esperaram ansiosos por notícias. Quando o telefone tocou naquela tarde, Nivaldo correu para atender. Era Dete:
- Estou ligando porque chegou um telegrama. Vocês vêm para ver o que é?
- Abra e leia o que diz.
Pouco depois, ela leu:
- "Nós o encontramos e tudo está resolvido. Estaremos em Pouso Alegre depois de amanhã. Abraços, Gilberto."
- Está bem. Amanhã, depois do almoço, iremos para aí.
Glória e Diva já estavam ao lado dele quando desligou, e sua mãe perguntou:
- Quem era?
- Dete. Gilberto mandou um telegrama avisando que encontrou o papai e que tudo está resolvido. Estarão em Pouso Alegre depois de amanhã.
Glória deixou-se cair em uma cadeira, dizendo:
- Você vai voltar para a cidade amanhã, mas eu não vou. Não quero me encontrar com aquele safado.
- Você deve ir. Mesmo que seja difícil, precisa enfrentar. Sua presença é indispensável para resolvermos tudo.
- Ele disse que tudo está resolvido. Não vão precisar de mim.
- Vamos sim. Podemos precisar de sua assinatura. Amanhã, depois do almoço, iremos para a cidade.
Conforme Nivaldo planejara, voltaram para Pouso Alegre na tarde seguinte. Dete entregou o telegrama e ele notou que Glória ficou inquieta. À noite, depois do jantar, ela se dirigia para o seu quarto, mas Nivaldo pediu:
- Venha, mãe, sente-se aqui do meu lado, vamos conversar.
Assim ela fez, e ele continuou:
- Você está inquieta, nervosa, parece preocupada. Não há motivo. Gilberto disse que tudo está resolvido. Pense que dentro de alguns dias estaremos livres das preocupações, saldaremos as dívidas, poderemos trabalhar e viver em paz. Isso é motivo de alegria.
- Eu não queria vê-lo nunca mais.
Nivaldo segurou a mão dela e disse com suavidade:
- Feche os olhos. Vamos agradecer a Deus por papai ter sido encontrado.
Nivaldo fez comovida prece de agradecimento e pediu auxílio e discernimento para resolverem a situação da melhor forma possível, de modo que todos os envolvidos ficassem em paz. Pediu também que abrisse o entendimento de cada um para que pudessem se lembrar que todos têm pontos fracos e podem errar, mesmo querendo fazer o melhor. Terminou pedindo que o perdão pudesse surgir para varrer o passado e abrir as portas para um novo caminho de alegria e luz para toda a família. Então, ele se calou. Fez-se silêncio e ninguém teve coragem de quebrá-lo. O ambiente estava leve e agradável. Glória suspirou e murmurou:
- Obrigada, meu filho. Sua oração tirou toda a angústia que estava me atormentando desde ontem.
- A ligação com Deus tem imenso poder. Você deve recorrer a ela sempre que precisar.
- Eu não tenho esse poder. É a sua oração que me faz bem.
- Você tem o mesmo poder. Por que não experimenta?
- Eu não saberia...
- É fácil. Basta entrar na intimidade do seu coração, conversar com Deus, falar o que sente, quais seus projetos para o futuro, o que precisaria para ser feliz. Ele é nosso provedor, pode tudo e sempre vai nos dar o que for melhor para o nosso bem-estar. Se não for o que pedimos, sempre será o que precisamos.
Continuaram conversando sobre vida e espiritualidade. Apesar das expectativas sobre o que aconteceria no dia seguinte, Glória teve uma noite de sono como há tempos não tinha. No fim da tarde do dia seguinte, Gilberto e Germano chegaram. Depois dos cumprimentos, quando todos estavam reunidos na sala, Nivaldo perguntou:
- Papai não veio? Você disse que tudo estava resolvido!
- E está. Ele não quis vir, mas concordou em abrir mão desta casa, da sua participação na fazenda e até do apartamento que vocês têm em São Paulo. Passou em cartório uma procuração com plenos poderes para mim, encarregou-me de resolver tudo por aqui. Foi isso. Só temos de planejar o que faremos para colocar tudo em ordem. Germano poderá nos auxiliar com a documentação. Foi ele quem redigiu a procuração.
- Podem contar comigo para o que precisarem - Germano disse.
- À noite, depois do jantar, poderemos ir ao escritório e programar as providências. Eu trouxe todos os livros da fazenda. Temos de fazer um levantamento e decidir o que faremos - Nivaldo concluiu.
Depois do jantar, enquanto Glória e Diva conversavam na sala, os dois irmãos se reuniram com Germano no escritório. Nivaldo queria saber todos os detalhes da viagem. Germano relatou como conseguiu o endereço da casa que Alberto alugara em Montevidéu, onde vivia com Alda e o filho. Ele ficou um tanto assustado ao vê-los, mas Gilberto não o criticou, apenas falou das dificuldades da família, pedindo-lhe que fosse ao Brasil para colocar tudo em ordem. Alberto disse que estava feliz com a nova vida e que nunca mais voltaria ao Brasil. Cedeu todos os direitos das propriedades e sugeriu que desse uma procuração para que ele resolvesse tudo.
- Ele estava bem mesmo? - indagou Nivaldo.
Foi Germano quem respondeu:
- Estava. Não quis voltar porque se estabeleceu. Quando ele saiu daqui, já havia feito sociedade com um hotel cassino de lá. Soube que todas as noites ele vai para lá com a mulher.
- Ele está levando a vida que sempre quis - comentou Gilberto.
- A mamãe precisa saber disso - Nivaldo disse.
- Você acha? - tornou Gilberto.
- Ela precisa encarar a verdade, reagir e cuidar melhor da própria vida.
Gilberto meneou a cabeça pensativo. Temia que ela se revoltasse mais ainda. Olhou firme para o irmão e perguntou:
- Você acha mesmo isso?
- Acho. Ele está feliz, realizando o que sempre quis. Quando ela descobrir isso, vai lamentar o tempo que perdeu ao lado dele e querer conquistar uma vida melhor.
Estudando a situação e auxiliados por Germano, planejaram as primeiras providências que deveriam tomar para resolver definitivamente todos os problemas. O tempo passou. Carlos, Gina, o pequeno Luigi, filho do casal, Lúcia e Benito desembarcavam no aeroporto internacional de São Paulo. Haviam decorrido cinco anos desde os últimos acontecimentos. Marta se casara, mas o marido não pudera acompanhá-la naquele momento. Por ocasião do casamento de Carlos e Gina, toda a sua família comparecera. Ele mesmo financiara a viagem e mandara dinheiro para as despesas pessoais. Em uma tarde de outono, Carlos e Gina se casaram diante de um juiz de paz, reunindo um grupo de amigos e convidados. O belo salão repleto de flores, a música suave e as luzes enchiam o ambiente de beleza e alegria. A cerimônia foi breve, mas a prece de Lúcia pedindo a Deus pela felicidade dos noivos foi emocionante. Quando ela se calou, os olhos de muitos estavam úmidos e brilhantes. Albertina, Antônio e Inês, muito emocionados, permaneciam calados, surpreendidos por aquele ambiente de classe e beleza a que eles não estavam habituados, deslumbrados com o sucesso de Carlos. Nunca haviam de fato acreditado que ele fosse capaz de progredir tanto. A empresa, fundada com Gina e sua família, havia crescido muito. Tornaram-se famosos pelo belo design de seus produtos, que caíra no gosto das mulheres. Haviam chegado a Milão uma semana antes do casamento do filho e, apesar de ocupados com os preparativos, Carlos e Benito lhes proporcionaram muitos passeios. Depois do casamento, Carlos preparara um roteiro para que eles viajassem pelo país durante as duas semanas que ainda ficariam por lá. Aos poucos, os três foram rompendo a timidez, a dificuldade com o idioma e, impressionados com a gentileza e o carinho com que eram tratados, mostravam-se atenciosos, educados e gentis. Carlos sentia-se feliz ao notar o esforço que os três faziam para serem agradáveis. Tudo em que ele sempre acreditou estava se realizando. Ele sabia que o exemplo era a melhor forma de ensinar e disciplinar as pessoas. Carlos havia comprado uma casa não muito distante da de Lúcia, onde foi morar com Gina. Dois anos depois, Luigi nasceu e coroou a felicidade de toda a família. A cada dia estavam mais apaixonados e, muitas vezes, pensando no passado, Carlos se perguntava o que teria sido feito de Isabel, se estava feliz com o marido. Apesar de continuar mantendo negócios com Nicolai, nunca mais voltara ao Brasil. Continuava mantendo estreito contato com a família, mas os negócios cresciam e ele ia protelando a prometida visita aos seus. Finalmente, quando soube que Inês iria se casar, decidiu que não podiam faltar e marcou a viagem para dois dias antes do casamento. Assim que saíram no saguão do aeroporto, depois de desembarcarem as malas, Carlos viu Albertina e Inês acenando, e Antônio os aguardava mais atrás. Depois dos abraços e das boas-vindas, só tinham olhos para Luigi, encantados. Albertina queria levá-los para a sua casa e preparar um almoço, mas Carlos preferiu ir direto ao hotel para que comessem no restaurante. Durante o almoço, Inês falou com entusiasmo sobre o casamento, e seus olhos brilhavam alegres. Carlos notou que ela estava mais expansiva, havia perdido aquele ar maldoso que tanto o incomodava. Quando chegou o momento de eles irem embora, Carlos a abraçou e disse satisfeito:
- O amor lhe fez muito bem. Você mudou, ficou mais bonita, alegre.
Inês sorriu e respondeu:
- Aquela estadia em Milão abriu muito a minha cabeça! Aprendi que a vida pode ser muito melhor quando a gente olha as coisas com otimismo, mas o que funcionou mesmo foi ver que você tinha razão. É preciso acreditar, buscar o que queremos com disposição e fazer por merecer. Eu adorei os desenhos das jóias de vocês e lembrei que, na escola, o que eu mais gostava de fazer era desenhar.
- Foi por isso que você começou a desenhar moda? Gostei dos desenhos que me enviou.
- Aqueles eram os primeiros. Eu fiz um curso de modelagem feminina e adorei. Agora estou fazendo o que gosto.
- Você me escreveu que está trabalhando para gente importante, em um grande ateliê.
Inês sorriu, seus olhos brilhavam maliciosos quando respondeu:
- É verdade. Mas agora estou lá como sócia. Acabo de comprar algumas cotas, espero prosperar ainda mais.
Albertina, que os olhava emocionada, aproximou-se dizendo:
- Não foi só ela que mudou depois daquela viagem. Eu e Antônio também mudamos muito. Nós começamos a estudar italiano. Queremos voltar à Itália e conversar direito com todos. Antônio tomou gosto, voltou a estudar e este ano entrou na faculdade de direito. As aulas começam daqui a quinze dias.
Carlos comentou admirado:
- Papai sempre quis ser advogado!
Antônio olhou-o sério e tornou:
- É isso mesmo. Certa vez cheguei a prestar vestibular, mas acabei desistindo.
Verificando o quanto eles haviam mudado para melhor, Carlos sentia-se realizado. Sabia que seu esforço e persistência fora a chama que acendera neles a vontade de progredir. Luigi, então, adormeceu. Gina o levou para o quarto e Inês a acompanhou. Lúcia também foi descansar enquanto Benito e Antônio foram dar uma volta para admirar o jardim. Carlos aproveitou para conversar com a mãe sobre o futuro cunhado:
- O que você acha do Júlio? Ele e Inês se dão bem?
Albertina sorriu:
- Muito bem! Júlio não é de falar muito, mas quando fala sabe o que diz. É um pouco mais velho do que Inês, mas ao lado dele ela parece outra pessoa. É muito culto e ela o admira muito. Formou-se médico há dez anos e tem uma clínica bem estruturada. O que mais admiro nele é o bom humor; por mais que as coisas estejam difíceis, ele sempre consegue ver o lado bom.
- Estou ansioso para conhecê-lo.
- Você vai gostar dele. Já viajou muito, como você. Fala bem inglês e italiano.
- Desejo que sejam felizes.
- Eu também.
Inês aproximou-se do irmão e da mãe, lembrando-os de seus compromissos. Então, eles se despediram. Carlos prometeu ir até a casa deles para conhecer o futuro cunhado, mas todos estavam cansados e a visita ficaria para o dia seguinte. No dia seguinte, chegaram à casa deles no fim da tarde e foram apresentados a Júlio. Carlos fixou-o curioso. Ele sustentou o olhar e estendeu a mão, dizendo:
- Você é o famoso Carlos! Estava ansioso por conhecê-lo. Nesta família só se fala de você!
- Eu digo a mesma coisa.
Carlos continuou fixando-o, depois continuou:
- Nós já nos conhecemos de algum lugar?
Júlio olhou-o atento por alguns segundos e respondeu:
- Não, acho que não.
Inês se aproximou dos dois para mostrar ao noivo um presente que havia chegado, e Carlos desviou a atenção. Algum tempo depois, Júlio foi embora para encontrar-se com os amigos. Eles fariam uma despedida de solteiro. Pouco depois, Inês chamou o irmão:
- Venha comigo, quero lhe mostrar algumas coisas.
Ela levou-o até o quarto e fechou a porta, olhando-o séria.
- O que foi? Você parece misteriosa - disse Carlos.
- Precisamos conversar. Não sei como você vai reagir.
- Fale! O que foi?
- Antes me diga: você esqueceu mesmo a Isabel?
- Claro. Meu amor por Gina é mais forte do que tudo. Nós estamos muito bem. Por que pergunta?
Inês sentou-se na cama, suspirou e disse:
- Porque o Júlio foi colega de classe do Gilberto, o marido de Isabel. São muito amigos e trabalham juntos. Ele escolheu os dois para padrinhos de casamento.
Carlos sentou-se, também a olhando surpreso. Antes que dissesse alguma coisa, ela continuou:
- Eu contei ao Júlio toda a sua história com ela, e lhe pedi para mudar de ideia. Mas ele respondeu que vocês estavam casados, felizes e não iriam se importar. Eles serão nossos padrinhos.
Carlos passou a mão nos cabelos, depois deu de ombros e respondeu:
- Júlio tem razão. O que houve entre nós acabou. Não se preocupe com isso.
- Mamãe estava nervosa, papai também. Não sabíamos como você reagiria.
Carlos sorriu e havia um brilho orgulhoso em seus olhos quando disse:
- Quando estive aqui antes do meu casamento, fui à casa de Isabel e nos entendemos. Tudo ficou muito bem. Não há motivo para vocês se preocuparem.
- Ainda bem. Sabe de uma coisa? Eu estava enganada com relação à Isabel. Eu e Júlio já fomos algumas vezes jantar na casa dela e fui muito bem recebida. O doutor Gilberto é muito educado e eles vivem bem.
- Fico feliz em saber. Desejo que você seja tão feliz quanto nós.
- Eu serei, Carlos. Estou certa disso.
Gina estava muito animada com os preparativos para o casamento, porque Inês lhe dissera que pretendia que a cerimônia fosse igual à que ela e Carlos haviam feito. Comentou alegre com o marido:
- Ela até pediu à mamãe para fazer a prece depois que o juiz terminar a cerimônia.
- E ela aceitou?
- Claro! Ficou muito emocionada! Disse que vai falar bem devagar para que todos possam entender suas palavras.
- Inês soube escolher. Quando dona Lúcia está orando, o ambiente se eleva.
Naquela noite, deitaram-se e Gina logo adormeceu. Mas Carlos se lembrou do que sentira ao conhecer Júlio. Ele era-lhe familiar e, ao mesmo tempo, despertava nele uma reação de defesa, como se algum perigo o ameaçasse. Examinando os fatos, esses sentimentos não tinham razão de existir. Então, fez uma oração, pediu aos espíritos de luz que o inspirassem e que auxiliassem Inês a ser feliz com Júlio. Assim que adormeceu, Carlos se viu ao lado de um homem cujo rosto era de certa forma familiar. Ele se aproximou, segurou Carlos pelo braço e disse:
- Venha, precisamos conversar.
No mesmo instante, eles começaram a deslizar sobre a cidade adormecida, enquanto Carlos sentia uma alegria imensa invadir seu peito, dilatando-o. Ele olhava as luzes da cidade brilhando lá embaixo e sentia-se livre, forte, feliz. Pararam diante de um prédio alto, rodeado de jardins floridos, cujo perfume ele aspirou com prazer.
- Chegamos. Vamos entrar.
A porta abriu e eles entraram no hall. Seguiram por um corredor e chegaram a uma porta que se abriu. Admirado, Carlos se viu diante de uma senhora de meia-idade cujo rosto suave o encantou. Ela abraçou-o dizendo:
- Deus o abençoe!
Emocionado, Carlos segurou a mão dela e beijou-a reverente. Ela conduziu-o até o sofá, sentou-se e o puxou para que se sentasse perto dela. Carlos olhava emocionado, com medo de falar e quebrar o encanto daquele momento. Ela continuou:
- Há muitos anos você saiu daqui disposto a vencer muitos dos problemas que o atormentavam. E hoje você retorna, já tendo vencido quase tudo. Este é o momento decisivo em que será testado pela vida.
- De fato, passei por problemas terríveis, mas agora estou muito feliz.
- Para que consiga manter o que conquistou, vai precisar enfrentar uma situação antiga para saber se libertou-se dela em definitivo.
Ela ergueu a mão e colocou-a sobre a cabeça de Carlos. Começou a orar pedindo a Deus que o fortalecesse. Carlos sentiu que um calor agradável o envolveu, deixando-o inebriado numa onda de alegria e prazer. Ela o beijou delicadamente na testa e disse:
- É hora de ir. Fique com Deus.
A porta abriu e seu companheiro entrou, segurou seu braço e disse:
- Vamos.
Eles deslizaram de volta e, pouco depois, Carlos se viu no quarto do hotel, tendo a sensação de que caía sobre o seu corpo adormecido. Abriu os olhos, ainda sentindo a leveza de momentos antes. Acomodou-se gostosamente na cama macia e adormeceu. Pouco depois, viu-se em um salão de um casarão antigo, onde havia uma festa e todos dançavam, mas ele sentia-se angustiado e nervoso. Seu olhar inquieto pousou sobre um casal. Estavam sentados um ao lado do outro e ele estremeceu. De repente, foi como se um véu se rasgasse diante dos seus olhos, e ele se lembrou: ela era Gina, a mulher que ele amava, e ele era Júlio, o noivo de Inês. Os dois estavam juntos. O passado voltou com força total e ele recordou todos os acontecimentos. Assustado, acordou e sentou-se na cama. Faltava-lhe o ar. Levantou, tomou um copo de água, depois se sentou na poltrona, tentando se acalmar. Agora ele sabia por que sentira certo medo ao conhecer Júlio. Recordar-se do passado era ir para um tempo que ele desejava esquecer. Lembrou-se das palavras que aquela senhora lhe dissera momentos antes e tentou se acalmar. Ele precisava enfrentar o passado. Não podia fracassar agora, depois de tudo que sofrera. Precisava rever os fatos e sentir se poderia encarar o futuro, convivendo com Júlio em sua família. Na encarnação anterior, quando viu Gina pela primeira vez, Carlos apaixonou-se perdidamente. Mas ela era casada com um homem da alta sociedade, um pouco mais velho do que ela. Carlos notou que, ao vê-lo, ela não ficou indiferente, o que fez com que sua paixão se acendesse ainda mais. Começou a assediá-la de várias formas, houve um primeiro encontro e tornaram-se amantes. Mas a paixão de Carlos aumentava a cada dia e ele quase morria de angústia imaginando-a nos braços do marido. Louco de paixão e ciúme, forjou um plano para tirar o marido indesejado do caminho. Em uma noite escura em que Júlio regressava à sua casa, Carlos, escondido entre as árvores do jardim do casarão, apontou a arma e atirou. Júlio caiu diante do portão e Carlos fugiu sem ser visto. O crime nunca foi desvendado. Ao rever aquela cena, Carlos sentiu uma dor violenta no corpo e suou muito. Seus pensamentos se misturaram e, sentindo-se culpado, viu novamente Adriano ensangüentado à sua frente, morto. Carlos passou a mão nos cabelos, apanhou um lenço e enxugou o suor que lhe cobria o rosto. Respirou fundo, tentando recuperar a calma. Apesar de o crime nunca ter sido descoberto enquanto esteve no mundo, nunca pôde ser feliz com Gina. Depois da morte de Júlio, os pais de Gina venderam todos os bens do falecido e mudaram-se do país. Durante anos, Carlos a procurou inutilmente. Sua vida se tornou um inferno. Quando dormia, o espírito de Júlio não lhe dava sossego, até que, acometido de uma moléstia de difícil cura, acabou seus dias precocemente. Chegou ao astral fraco, deprimido, sem vontade de lutar para melhorar. Vendo que continuava vivo, quis procurar Gina. Foi informado de que ela também já havia voltado para o astral, mas estava em uma colônia espiritual distante, para onde ele só poderia ir quando já estivesse melhor. A vontade de encontrá-la fez com que ele se esforçasse para melhorar. Dedicou-se, trabalhou, estudou, aprendeu, entendeu que a violência não resolve. Ao encontrar-se de novo com Gina, falou do imenso amor que sentia e soube que ela sentia a mesma coisa. Queriam ficar juntos para sempre. Sabiam que tinham errado muito e desejavam pedir perdão a Júlio. Ao encontrá-lo, descobriram que ele também havia mudado. A princípio, ficara revoltado por ter sido traído e morto por Carlos. Enquanto os dois estavam na Terra, Júlio os perseguira como podia. Mas depois cansou-se de tudo e quis cuidar de si mesmo. Ele também havia cometido muitos erros e, por isso, tornara-se vulnerável. Desejou esquecer e tentar viver melhor, ser mais otimista. Procurou estudar e, na comunidade onde vivia, conheceu Inês, uma artista que o encantou. Desejaram ficar juntos. Carlos, então, lembrou-se da reunião preparatória para a nova encarnação deles, na qual, diante dos mentores espirituais, programaram ficar juntos. Carlos passou a mão sobre a testa como se limpasse da mente as lembranças ruins. Pensou em Isabel e lembrou-se de que, quando iniciara seu tratamento espiritual no astral, ela fora uma dedicada enfermeira que o auxiliara a recuperar a alegria de viver. Ao lembrar-se disso, Carlos sorriu alegre. Ela era uma mulher maravilhosa que muito o ajudara, mas o processo de evolução de cada um era diferente. Pelas frestas da cortina, Carlos viu que o dia estava amanhecendo e então sorriu. Era o dia de casamento de Inês e Júlio. Ele agora sabia que ele e Gina, Inês e Júlio, dali para frente, poderiam desfrutar em paz de muitos anos de felicidade. Afinal, a vida sempre sabe o que faz. Isabel virava-se em frente ao espelho, observando o vestido e sorrindo satisfeita. Alegre, colocou os brincos de brilhantes, que haviam sido presente de Gilberto. Estava pronta. Laura surgiu na porta do quarto, entrou e não se conteve:
- Você está linda! Nem parece que deu à luz há tão pouco tempo.
- Não faz tão pouco assim. Linda já completou oito meses.
Laura pensou um pouco, depois disse:
- Soube que Carlos chegou com toda a família da esposa. Será que ele já sabe que vocês serão padrinhos do noivo?
Isabel deu de ombros.
- Não sei. Inês já deve ter lhe contado que Júlio é muito amigo de Gilberto.
- Como será que ele reagiu?
- Espero que bem. Afinal, o tempo passou, ele casou com a paixão de sua vida, tem um filho, ganhou fama, dinheiro. Deve e estar feliz.
- É. Orlando me disse que eles já se amavam em vidas passadas. E você, como está se sentindo em relação a isso?
- Muito bem. Afinal, nossa relação acabou bem, está tudo certo. Gilberto queria que dona Glória viesse para o casamento, mas ela preferiu ficar na fazenda.
- Ela mudou muito nos últimos tempos.
- Foi a influência de Diva. Depois que ela e Nivaldo se casaram, Glória mudou, remoçou, ficou mais alegre.
- Mas a felicidade dela desabrochou depois que Renato nasceu. Você viu como ela estava feliz quando ele completou um ano?
- É verdade. Nunca mais falou no Alberto. Tem até acompanhado Nivaldo e Diva quando vão dançar no clube! Ontem, quando eles chegaram, contaram que, atualmente, Glória tem muitos amigos na cidade, participa de algumas festas do clube e até dança com os amigos. Parece outra pessoa.
- Ainda bem. Eles nunca comentaram, mas será que têm tido notícias de Alberto?
- Nunca mais falaram nada. Gilberto não gosta do assunto e nunca comenta nada.
Nesse momento, Gilberto entrou e se aproximou da esposa, dizendo:
- Está na hora de irmos!
- Vou ficar com Linda - Laura disse.
- Vou com você. Quero dar um beijo nela antes de sair. Apesar de a pequena Linda estar com uma babá, Laura ficaria em casa enquanto os dois estivessem ausentes.
Pouco depois, Gilberto e Isabel chegaram ao salão onde se realizaria o casamento. Muitos convidados já estavam no local e Gilberto uniu-se aos colegas, alguns com as esposas e já conhecidos de Isabel. O clube elegante onde a cerimônia se realizaria estava muito bem decorado, e a beleza do lugar era enriquecida pela elegância das mulheres, assim como as luzes bem dosadas e o perfume das flores. Havia uma atmosfera agradável, preenchida pelo som de um grupo musical que embalava os convidados com músicas de reconhecido sucesso. Isabel, ao lado do marido, estava perto da porta quando Carlos chegou com Gina. Viram-se um diante do outro. Ele sorriu e estendeu a mão:
- Isabel! Que bom encontrá-la!
Ela corou um pouco e apertou a mão que ele lhe estendia:
- É um prazer vê-lo. Este é Gilberto, meu marido.
Os dois apertaram as mãos e Carlos apresentou Gina, assim como Lúcia e Benito, que vinham mais atrás. Depois do primeiro momento, Isabel sentiu-se muito à vontade. Gina era muito bonita e ela entendeu a paixão que ele sentia por ela. Gilberto, disfarçadamente, observou Carlos com curiosidade, mas pouco depois ambos ficaram à vontade. Benito conseguiu reunir o grupo com seu habitual bom humor e, em poucos minutos, todos pareciam velhos conhecidos. Albertina chegou pouco depois, avisando que a noiva entraria com o pai. Todos se postaram ao lado da mesa, onde o juiz já os esperava. De um lado, Albertina, Carlos e Gina, Benito e Lúcia. Do outro lado, os pais e a irmã de Júlio, Isabel e Gilberto. A marcha nupcial começou e Inês entrou segurando o braço de Antônio, que se esforçava para segurar as lágrimas. Inês estava radiante. Os olhos brilhantes, o rosto corado de emoção, os lábios entreabertos em um sorriso que a tornavam mais bonita, e as pessoas olhavam com prazer e admiração. Antônio entregou-a a Júlio e postou-se ao lado de Albertina. O Juiz falou um pouco sobre a vida conjugal, depois oficiou a cerimônia com as clássicas perguntas e, por fim, todos assinaram o livro. Estavam casados. Nesse momento, Lúcia tomou a palavra, pronunciando uma prece emocionada. Falava lentamente, expressando tudo o que sentia. As pessoas entenderam e rezaram, pedindo a Deus pela felicidade do casal. Enquanto os noivos recebiam os cumprimentos, a música continuava tocando e os garçons começaram a servir os convidados. Em um canto do salão, duas pessoas que ninguém podia ver estavam emocionadas e felizes. Orlando estava ao lado de uma jovem senhora. Depois de alguns momentos, ela lhe disse:
- É hora de ir.
- Eu gostaria de ficar mais um pouco.
- Agora é preciso ir. Você sabe que eles encontraram o melhor caminho e, daqui para frente, saberão se conduzir muito bem. É hora de você começar a pensar em si e nos seus projetos para o futuro.
- Tem razão. Vamos embora.
Ele segurou no braço dela e ambos se elevaram. Saíram do prédio e seguiram adiante. A noite era fria, mas estrelada, e Orlando, erguendo os olhos para o alto, disse contente:
- Agradeço a Deus pela bênção da vida! Ela é maravilhosa! Estou feliz por poder conhecer essa realidade e continuar seguindo em frente, sem medo.
Ela sorriu e completou:
- Eu também confio porque sei que a vida sempre sabe o que faz!
Então, eles ouviram uma música suave ecoando no ar à volta deles, enquanto uma alegria muito grande lhes banhava o coração. Aceitar o que não se pode mudar revela sabedoria. Confie na vida. Ela sempre sabe o que é melhor pra você.



1


O PASSADO NÃO IMPORTA
ELISA MASSELLI


PRÓLOGO

Um carro corria veloz pela estrada.
- Não corra muito. Gosto de apreciar a paisagem...
- Realmente, essas montanhas são lindas!
- Também acho. Adoro passar o fim de semana na fazenda. Seu avô, embora com mais de oitenta anos, ainda está lúcido. O que achou daquela história que nos contou sobre o fato de o avô dele ter nascido em um acampamento cigano e de a mãe dele ser negra e de haver se matado?
- Não sei, mas não é só ele quem conta. Meus primos também ouviram essa mesma história dos pais deles. Vai ver, foi verdade mesmo!
- Não sei se foi verdade, mas é uma linda história. E este colar que ele me deu hoje! É lindo. Disse que a avó dele ganhou da tal cigana. Como era mesmo o nome dela?
- Acho que Zara... um bonito nome...
- Já sabe. Este colar não pode ser vendido, tem de permanecer na família para sempre.
- Sei disso. Espere! Pare o carro! Quando puder, dê marcha à ré!
- O que aconteceu?
- Olhe lá atrás aquele casal. Parece que está em dificuldades! Acho que a moça desmaiou.
- Está bem, doutora! A senhora manda.
Assim que pôde, ele deu marcha à ré. Parou o carro perto de um moço alto e bonito, mas com ar triste e sofrido. Estava com uma criança no colo e tentava reanimar a esposa.
- O que está acontecendo?
- Ela está muito cansada e fraca! Desmaiou.
Ela tirou a criança dos braços da moça que estava desmaiada. Enquanto seu marido a reanimava, o rapaz pedia:
- Por favor, senhor, me ajude. Estamos tentando chegar à cidade para levar nosso menino ao hospital, mas ela não vai agüentar...
- Luana, pegue minha maleta...
- Pois não...
Luana entregou a maleta para o marido, que abriu o cobertor onde o menino estava enrolado. Viram uma criança deformada, com as perninhas tortas e precisando de ajuda. Luana, ao ver aquela criança, sentiu um misto de horror e ternura. A moça acordou. Era loira de olhos azuis:
- Onde está meu filho? Oh! Meu Deus! O que fiz de tão errado nesta vida para sofrer tanto? Não agüento mais... Prefiro morrer!
Luana olhou para a moça, que chorava desesperadamente. Aqueles olhos se encontravam. Aqueles olhos se conheciam. Uma sentiu muita ternura... muito amor pela outra.
- Seu filho está aqui... não se preocupe mais. Agora, ele está comigo... você também ficará. Não vai precisar morrer! Sua vida mudará ao nosso lado. Felipe, o que acha?
- Somos médicos. Temos um hospital na capital. Rodolfo, meu irmão, cuida exatamente de doenças como a de seu filho. Vamos levá-los e cuidar dele.
- Não temos dinheiro. Nem sequer um emprego...
- O hospital é grande. Precisamos de funcionários. Ficarão morando e trabalhando lá. Assim, ajudarão a cuidar de seu filho e de outros que precisam.
- Muito obrigado, doutor! O senhor caiu do céu. Deus vai abençoar toda essa bondade!
- Já me abençoou. Deu-me um corpo perfeito e a mulher que amo. Não preciso de mais nada. Não é, meu amor?
- De mais nada. Só de ajudar este menino! Vamos embora!
A moça olhou para o céu, agradecendo a Deus em pensamento. Depois, perguntou:
- Estão sentindo esse perfume de rosas?
Os outros tentaram sentir o perfume, mas não conseguiram.
- Não estou sentindo! E vocês?
Balançaram a cabeça, dizendo que não... Não sentiam, mas, se pudessem, veriam que pétalas de rosas caíam sobre eles, jogadas por amigos do céu que estavam torcendo e festejando aquele reencontro.

O REENCONTRO

Felipe, ao examinar a criança, percebeu que não estava bem, mas não quis preocupar os pais mais do que já estavam. Encarou Luana de modo significativo. Ela entendeu e, com os olhos, pediu que fosse rápido. Ele, então, acelerou o carro para que pudessem chegar ao hospital o mais rápido possível. Ele dirigia, quando, de repente, ouviu um grito:
- Meu filho está morrendo!
Ele olhou pelo retrovisor e viu que a moça, enquanto gritava, sacudia a criança, que estava pálida. Luana também ficou desesperada:
- Pare o carro, Felipe! Pare o carro!
Felipe notou que na estrada não havia acostamento e que estavam próximos a uma curva. Assim que a passaram, pôde perceber que havia uma reta. Mesmo arriscando-se, ele parou o carro em um canto da estrada, que não era muito movimentada. Rapidamente, ele e Luana abriram as portas do carro e desceram. Felipe abriu a porta traseira, com a mão fez um sinal para a mãe, pedindo que saísse. Ela obedeceu imediatamente. Felipe tirou o menino do colo da mãe e colocou-o sobre o banco traseiro. Começou a fazer massagem em seu peitinho e respiração boca a boca. Enquanto isso, Luana abriu a maleta e, de dentro dela, tirou uma seringa e uma ampola. Colocou o conteúdo da ampola na seringa e aplicou no menino que, após alguns segundos, começou a chorar. Entreolharam-se e sorriram. Felipe devolveu o menino para a mãe e disse:
- Agora ele está bem. Mesmo assim, precisamos chegar logo ao hospital. Ele precisa de atendimento. Meu irmão Rodolfo fará isso.
A moça, ao mesmo tempo em que chorava, ria também. Com o menino no colo e, após beijá-lo, emocionada, disse:
- Obrigada, doutor. Ainda bem que os encontramos, foi Deus quem os mandou.
Ele sorriu e, instintivamente, olhou para o pai que, pálido, continuava no mesmo lugar, com os olhos parados, parecendo que ia desmaiar. Percebendo a situação, Luana, que havia dado a volta para guardar a seringa, pegou-o pela camisa e começou a sacudi-lo e a chamá-lo:
- Moço! Moço!
Poucos segundos depois, ele respirou fundo e, parecendo voltar de outro lugar, olhou para a mulher. Vendo que o menino estava bem, começou a chorar e a gritar:
- Luísa! Não suporto mais isso! Até quando vai continuar?
Ela, vendo o estado dele, estranhou:
- O que está acontecendo, Tobias. Nunca vi você dessa maneira.
Ele, chorando, saiu do carro e abraçou-a, dizendo:
- Perdão, perdão, mas sabe que, sempre que isso acontece, fico muito assustado... penso que ele vai morrer...
Em seguida, pegou o menino de seu colo e o beijou carinhosamente. Luana e Felipe acompanharam toda a cena. Ela disse:
- Fique calmo, pois, um dia, como todos nós, ele vai morrer, mas não será hoje. Agora está bem.
Tobias sorriu. Maria Luísa, rindo, disse:
- Não me conformo, como que um homem desse tamanho pode ser tão medroso!
Tobias também riu. Felipe, parecendo ofendido, disse:
- Espere aí! Não é bem assim, o homem não é diferente da mulher! Também temos sentimentos!
- E você mais do que todos, não é, meu amor...
- Não brinque, Luana! Este momento foi muito difícil, ele teve razão de ficar assustado. Até eu, que sou médico, me assustei!
- Tem razão, Felipe, agora, vamos embora?
Entraram no carro. Enquanto Felipe dirigia, Luana disse:
- Foi sorte estarmos com a maleta de emergência, Felipe, se não fosse isso, receio que o pior teria acontecido.
- Tem razão, Luana. Ainda bem que, quando vamos à fazenda, sempre a levamos, caso o vovô precise. Sabe que ele não está bem...
- Não se preocupe, Felipe. Ele ainda vai durar muito tempo... sabe que as pessoas doentes são as que duram mais. Se não fosse a artrite que o impede de andar com segurança, estaria muito bem, sem nada sentir. Sua cabeça está boa como sempre.
Felipe começou a rir:
- Tem razão. Ele vive, somente, para nos contar a história da família. Quer que conheçamos todos os nossos antepassados, diz que eles foram muito importantes.
- Chame-o pelo interfone e peça para que vá me encontrar na emergência.
A moça sorriu e atendeu aos pedidos de Luana. Ela, voltando-se para os pais do menino, disse:
- Coitado, mal sabe ele que nós não estamos interessados, muito menos nossos filhos. O passado não importa. Estamos vivendo no presente e este, sim, importa.
- Sim, Luana, mas não nos custa dar atenção a ele, quando nos conta suas histórias.
- Deixamos o vovô bem. Ele está aos cuidados da Severina, sabe como é dedicada. Trata-o como se fosse uma criança. Por isso, não precisamos nos preocupar, pois, se acontecer alguma coisa, ela nos comunicará. Agora, precisamos nos preocupar com esse menino. Levá-lo para o hospital.
Após algumas horas de viagem, finalmente, chegaram a uma rua arborizada, com poucas casas. As que existiam ali eram enormes. O menino dormia. Seus pais, admirados, olhavam tudo. Nunca haviam estado na cidade, muito menos em uma rua como aquela. Felipe entrou por um portão grande e seguiram por uma alameda. Estacionou o carro em frente a uma porta e disse:
- Luana, entre com eles. Leve o menino para a emergência, ele precisa de cuidados. Aproveite e veja se Rodolfo está aí. Enquanto isso, vou estacionar o carro e irei em seguida até vocês.
Luana, sabendo da gravidade da situação, disse:
- Está bem, vamos fazer isso.
Olhou para a moça que estava com o menino, que ainda dormia, no colo. Ela parecia tranqüila e confiante. Luana disse:
- Venha, vamos cuidar do seu filho. Não precisa se preocupar, ele está um pouco desidratado por causa da febre, mas logo ficará bem. Pode ter certeza de que seu filho está em boas mãos, eu diria até que nas melhores.
A moça sorriu e, abraçando o filho com carinho, todos entraram rapidamente. Assim que chegaram até o balcão onde estava uma recepcionista, Luana disse, tentando esconder o seu nervosismo:
- Por favor, chame uma enfermeira e leve este menino para a sala de emergência.
- Pois não, doutora.
- O Rodolfo está trabalhando hoje?
- Está sim.
- Chame-o pelo interfone e peça para que vá me encontrar na emergência.
A moça sorriu e atendeu aos pedidos de Luana. Ela, voltando-se para os pais do menino, disse:
- Vou me encontrar com o meu cunhado, ele é neurocirurgião e vai examinar o menino. Esperem aqui, por favor. Voltarei em seguida.
Eles sorriram e, confiantes, acenando com a cabeça, disseram que sim. Luana se afastou.
Estava chegando à sala de emergência, quando encontrou Rodolfo que vinha apressado. Ao vê-la, perguntou:
- O que está fazendo aqui, Luana? Pensei que estivessem na fazenda e que só voltariam amanhã...
- Tem razão, Rodolfo, mas embora não tenha entendido a razão, de repente, senti uma vontade enorme de voltar.
- Também não entendo, aquele lugar é maravilhoso. Só não vou lá mais vezes, por falta de tempo. Disse que não entendeu e agora entende?
- Sim, acredito que foi para socorrer um casal e sua criança doente. Se não estivéssemos lá, naquela hora, a criança teria morrido.
- Acredita que foi por isso que quis voltar?
- Tenho quase certeza, pois jamais teríamos vindo embora se não houvesse um motivo maior. Sabe como é difícil tirarmos um fim de semana de folga.
- Está certa. Estou há muito tempo tentando. Talvez tenha razão: estar lá naquele momento pode ter sido obra de Deus.
Luana deu uma gargalhada e perguntou:
- Falando em Deus, Rodolfo? Você? Parece que Marília está conseguindo virar sua cabeça! Temos conversado muito. Portanto, acho que, se não for coincidência, tudo o que ela fala só pode ser coisa de Deus mesmo. Fui chamado na emergência, não sei para que, todos sabem que não atendo emergência.
- Fui eu quem pediu que o chamasse.
- Você? Para quê?
- Quero que examine uma criança que está muito mal.
- Onde ela está?
- Na sala de emergência.
- Então, já deve estar sendo atendida. Por que precisa de mim?
- Assim que a vir, entenderá.
- Está bem, vamos rápido.
Chegaram à sala, entraram. Luana aproximou-se de um médico que atendia o menino e perguntou:
- Como ele está, Caio?
- Está muito fraco e desidratado, já pedi que fosse colocado no soro.
- Obrigada.
Rodolfo aproximou-se, olhou o menino que estava com os olhos fechados e sem roupas, deitado sobre a mesa. Quando se aproximou, percebeu que ele sofria de paralisia cerebral. Olhou para Luana e perguntou:
- Qual é a idade dele, Luana?
- Não sei, encontramos os pais na estrada e não perguntei.
- Preciso saber.
O menino abriu os olhos e olhou para ele. Rodolfo, ao olhar nos olhos do menino, sentiu um arrepio percorrer seu corpo e empalideceu. Luana percebeu e perguntou, aflita.
- Que aconteceu, Rodolfo? Está sentindo alguma coisa?
- Não sei, de repente me senti mal.
- Foi depois que olhou para o menino, não foi?
- Sim, mas não entendo. Sabe que me dedico a cuidar de doenças cerebrais há muito tempo. Nada mais me surpreende, mas, ao olhar para os olhos desse menino, senti algo que não sei explicar.
- Entendo o que está querendo dizer, também tive essa mesma sensação quando o vi na estrada.
- Estranho. Por que será que isso aconteceu?
- Não sei, mas acha que pode fazer alguma coisa por ele?
- Você sabe que, em casos como esse, pouco pode se feito, Luana. Onde estão os pais?
- Na sala de espera.
- Vamos até lá, preciso saber a idade dele.
Caio disse:
- Por enquanto, ele vai ficar em observação. Vamos ver como reage aos medicamentos.
Enquanto isso, Felipe estacionava o carro. Estava saindo, quando viu Danilo, seu filho, que também estacionava o carro e que, ao vê-lo, perguntou:
- Papai! O que está fazendo aqui? Não estava na fazenda?
- Olá, meu filho. Sim, estávamos na fazenda, mas sua mãe, de repente, quis porque quis vir embora. Sabe como ela é, quando quer uma coisa, ninguém faz com que mude de ideia.
- Ela não quis continuar na fazenda?
- Não, de repente disse que precisava vir embora. Só me restou obedecer.
- Como sempre, não é, papai? - perguntou, rindo com ironia e fazendo uma careta.
Felipe sorriu e respondeu:
- Sim, como sempre. Você sabe que ela manda em mim... - disse, também rindo, com ironia.
- Sei sim, mas ela sabe como mandar. Felipe deu uma gargalhada, dizendo:
- Você sabe que ela é a mulher da minha vida!
- É mesmo. Como também sei que o senhor é o homem da vida dela. Formam o casal perfeito.
- Tem razão, acredito que, como dizem os antigos, nosso casamento foi talhado no céu.
- Isso é difícil de acontecer, não é?
Felipe, abraçando o filho, disse:
- Tem razão, meu filho, acho que nascemos um para o outro, mas, o que está fazendo aqui? Sei que detesta hospitais!
- Detesto mesmo, mas esta noite não consegui dormir bem. Senti muita dor no estômago. Assim que acordei, fui para a Faculdade, mas a dor continuou, resolvi vir até aqui para me consultar.
- Ainda está doendo?
- Sim, é uma dor constante.
- O que você comeu ontem?
- Nada diferente. Comi o que todos lá em casa comeram.
- Vamos entrar e o examinarei.
Entraram. Foram avisados pela recepcionista de que Luana e Rodolfo ainda estavam na emergência. Foram para lá. Quando Felipe passou pelos pais do menino, sorriu e, calado, continuou andando. Danilo não estava bem, por isso não notou o olhar do pai. Assim que chegaram e se aproximaram, ele olhou para o menino que estava sendo medicado. O menino, parecendo sentir sua presença, também olhou. Os olhos se encontraram. Duas lágrimas correram pelo rosto do menino. Danilo aproximou-se mais e perguntou:
- Quem é essa criança, mamãe?
- Não sei, nós encontramos seus pais na estrada. Estavam precisando de ajuda e os trouxemos até aqui.
Danilo, com carinho, passou a mão pela cabeça e pelo rosto do menino e disse:
- Ele é tão bonito. Não sei o que está acontecendo, mas estou sentindo profunda ternura por ele. Vai ficar bem, tio Rodolfo?
- Estamos fazendo o possível para que isso aconteça.
O menino, assim que olhou para Danilo, pensou: Rosa Maria, Rodolfo e você Felipe, meu neto, estão juntos e aqui! Quanta saudade...
- Estão, sim, meu velho...
- Matilde! Você também está aqui?
- Sim, estou ao seu lado desde que renasceu, mas só agora você pôde me ver.
- Estou muito feliz em ver todos reunidos, só não entendo o porquê...
- Voltaram para colocar algumas coisas no lugar. Rosa Maria e Felipe não precisariam ter voltado, mas escolheram fazer isso para ajudar aqueles que ficaram para trás.
- A mim?
- Não só a você, mas a Jerusa e Marcela também. Sabe o que elas fizeram?
- Sei, sim. Assim como está acontecendo comigo, elas terão outra chance?
- Todos sempre têm, mas nem sempre aproveitam...
- Por que estou com este corpo, Matilde? Por que tenho de depender de outras pessoas?
- Você não lembra ainda, mas, aos poucos, irá lembrar. Quando estava para renascer, pediu um corpo fraco a fim de que dependesse de outras pessoas para sobreviver.
- Por que pedi isso?
- Porque, quando tinha um corpo perfeito, usou do poder e da maldade para destruir muitas vidas.
- Estou começando a lembrar. Fui mesmo um canalha...
- Infelizmente, meu velho, mas Deus, que é um Pai amoroso, perdoa sempre e nos dá, a cada momento, a chance de repararmos o mal que fizemos. Você está tendo essa chance.
- Como posso reparar alguma coisa em um corpo como este?
- Com o tempo descobrirá.
- Reconheci Rosa Maria, Rodolfo e Felipe. Quem são as pessoas que estão cuidando de mim, até agora?
- Essas pessoas de quem está falando são Maria Luísa e Tobias. Eles concordaram, também, em recebê-lo como filho. Embora ela tenha passado muito tempo no vale, ainda tem sobre si o suicídio e o assassinato e precisa resgatar os dois. Ele, assim como acontece com Rosa Maria e Rodolfo, não precisaria ter voltado, mas insistiu. Não quis deixar Maria Luísa sozinha. Sabe que ele nunca a abandonou nem mesmo quando ela estava no vale.
- Ele a ama de verdade. Mas você sabe que ela não teve culpa, o culpado fui eu...
- Sim, você ajudou, mas ela, já há muitas encarnações, não tem conseguido fugir do apelo para o suicídio e sempre termina se matando. Nesta, terá outra chance.
- E você, por que está aqui? Também fiz com que sofresse muito...
- Fui sua esposa e, assim como acontece com Tobias em relação a Maria Luísa, também estive sempre ao seu lado, mesmo não renascendo, como está acontecendo agora.
- Embora não tenha renascido, está aqui?
- Sim e ficarei até que possa acompanhá-lo, vitorioso, de volta para casa.
- Com este corpo, que mal poderei fazer?
- Poderá colocar à prova o amor entre Maria Luísa e Tobias.
- Por que está dizendo isso? Não acabou de dizer que eles sempre se amaram?
- Disse, é verdade, mas, muitas vezes, quando renascidos, os espíritos se esquecem dos planos feitos e, na hora em que seus desejos não são realizados, fogem dos compromissos assumidos.
- O que está querendo dizer?
- Que, muitas vezes, homens, ao terem filhos com o corpo que você tem agora, não suportam e se afastam, ou melhor, fogem da responsabilidade e a mulher toma para si o encargo de criar seu filho, sozinha. E quase sempre consegue.
- Está dizendo que Tobias pode nos abandonar?
- Não só ele, como Maria Luísa também.
- Tomara que isso não aconteça...
- Tomara, meu velho,tomara..
- Será que, desta vez, vou conseguir?
- Esperamos que sim. Tudo está se encaminhando muito bem.
- Por quanto tempo vou permanecer neste corpo?
- Pelo tempo que for necessário.
- Está bem, sei que, depois de tudo o que fiz, preciso me resignar...
- É isso mesmo, meu velho... é isso mesmo..
O quarto todo se iluminou. Matilde e o menino olharam em direção à luz. Pai Joaquim surgiu e, sorrindo, disse:
- Tão tudo juntu di novu... que Deus bençoe ocêis.
- Vai ficar ao nosso lado?
- Não vai sê perciso, Sinhá. Ocêis tão bem e sei qui dessa veiz, com a judá de Jesuis, Nosso Sinhô, o sinhô vai consegui... vim aqui só pra dizê isso. Perciso ir embora. Tenho otras coisa pra fazê, mais, se percisa, eu vorto. Jesuis bençoe ocêis.
Sorrindo, desapareceu. Danilo, alheio ao que estava acontecendo, enternecido e passando a mão sobre a cabeça do menino, disse:
- Mamãe, tio Rodolfo, cuidem bem dele, sei que precisa e merece.
- Como sabe, Danilo? Você não o conhece...
- Tem razão, não o conheço e nem sei o motivo, mas quero muito que ele fique bem.
- Estamos tentando, Danilo. Sabe que não precisava nos pedir isso. Sempre fazemos o possível para ajudar nossos pacientes, seja quem for.
- Desculpem, mas sinto tanta ternura por ele...
Rodolfo e Luana, admirados, olharam-se, mas ficaram calados. Danilo continuou olhando para o menino. Luana e Rodolfo não estavam entendendo aquela reação tão diferente da que eles tiveram. Eles, assim que olharam para os olhos do menino, sentiram um certo mal-estar. Danilo, ao contrário, se enterneceu. Como poderia ser? Qual seria a explicação? Ficaram ali por mais um tempo, depois saíram. Não podiam imaginar, mas, assim que saíram, o menino, com lágrimas a cair de seus olhos, disse:
- Felipe, meu neto, ainda gosta de mim, Matilde...
- Sim, Carlos, ele ainda gosta, apesar de tudo o que você fez. Além do mais, sabe que ele não foi seu neto...
- Sei, mas prefiro esquecer o que fiz e só me lembrar dos bons momentos que passei ao lado dele.
Ela, sorrindo, disse:
- Está bem, faça isso...
Chegaram à recepção. Luana foi ao encontro dos pais do menino que continuavam ali. Assim que a viram se aproximando, levantaram-se. Luana disse:
- Ele está sendo atendido, embora sua situação seja grave. Temos esperança de que poderá ficar bem.
- A senhora acha, mesmo, que ele vai ficar bem?
- Esperamos que sim. Este é o meu cunhado, Rodolfo, ele é especialista em doenças como a do seu filho e fará tudo o que estiver ao seu alcance, não é, Rodolfo?
Rodolfo aproximou-se, pegou a mão que a moça lhe oferecia. Assim que ela tocou em sua mãe e levantou os olhos, ele estremeceu, sentiu um frio correr por sua espinha e um desejo imenso de abraçar aquela desconhecida. Não entendia o que estava acontecendo, mas estava feliz por estar diante dela. Emocionado, disse:
- A senhora pode ficar tranqüila, vamos fazer tudo o que for possível para que seu filho fique bem.
Ela também sentiu o mesmo que ele e, olhando firme em seus olhos, disse:
- Acredito nisso, o senhor me parece ser, além de competente, um bom homem.
Rodolfo apertou sua mão e, um pouco constrangido por não entender o que estava acontecendo, disse:
- Obrigado, mas agora preciso voltar para os meus pacientes. Espero que tudo caminhe como desejamos.
Saiu apressado. Luana acompanhou aquela cena e percebeu que alguma coisa havia acontecido. Pensou: Parece que ele, assim como eu, ficou feliz em ver essa moça, mas por quê? Não a conhecemos... Felipe e Danilo nada perceberam. Felipe disse:
- Danilo, vamos até o meu consultório e tentar descobrir o motivo desta sua dor de estômago.
- Dor de estômago, Danilo? Não sabia que estava doente.
- Passei muito mal durante a noite, mas, agora, a dor sumiu, mamãe. Estou bem. A dor passou.
- Mesmo assim, eu disse-lhe que vamos fazer alguns exames. Precisamos descobrir de onde surgiu essa dor que lhe causou tanto desconforto.
- Não acho que seja preciso, papai. A dor, assim como veio, foi embora.
- Seu pai tem razão, Danilo. Faça os exames que ele julgar necessário. Nenhuma dor surge do nada.
- Está bem, mamãe, quem mandou eu nascer em uma família com tantos médicos... - disse, rindo e debochando.
- Que você, infelizmente, não quis ser.
- A senhora sabe que tentei, mas não consegui. Não nasci para ser médico. Não suporto ver sangue. Prefiro ser advogado.
- Já discutimos sobre isso e, embora não tenhamos ficado felizes com sua decisão, a aceitamos. Agora, preciso ir para casa. As malas ainda estão no carro. À noite, conversaremos.
Estava saindo, quando olhou para o casal que a encarava. Bateu com a mão na testa e disse:
- Desculpe, esqueci que vocês não têm onde ficar.
- É verdade, doutora, não conhecemos ninguém aqui na Capital e não temos dinheiro.
- Sim, vocês disseram isso. Vamos para minha casa e arranjaremos um lugar para que fiquem bem.
Danilo e Felipe, assustados, olharam para ela, que, sorrindo, disse:
- Temos uma casa nos fundos. Ela foi feita para que os empregados morassem nela, mas todos eles são casados e moram em suas casas. Ela está vazia e poderão ficar ali, até que seu filho receba alta.
- Não podemos aceitar, só se a senhora nos arranjar um emprego.
- Sabem que não têm para onde ir, mas, está bem, o que você sabe fazer? - perguntou, olhando para o rapaz.
- Não sei fazer muita coisa, sempre trabalhei na roça.
- E você? - perguntou para a moça, que respondeu:
- Antes do meu menino nascer, só trabalhei como doméstica.
- Então, está resolvido o nosso problema.
Felipe e Danilo, ainda surpresos e confusos, continuavam olhando e acompanhando a conversa. Sabiam que Luana tinha aquela tendência de ajudar as pessoas, só queriam saber qual seria a solução encontrada por ela. Ficaram calados, somente esperando. Ela, sorrindo, disse:
- Felipe, o nosso jardim está precisando de uma limpeza e as flores precisam ser replantadas, não é mesmo?
Felipe, tomado de surpresa, mas entendendo qual era a vontade dela, respondeu:
- Tem razão, também notei.
- Está vendo como para tudo há solução? Vocês vão lá para casa. Você, como é mesmo o seu nome?
- Tobias, doutora.
- Tobias, você tem carta de motorista?
- Tenho, e é profissional.
- Ótimo, você, além de cuidar do jardim, poderá ser o motorista da casa. O nosso se aposentou.
- Vi que o doutor e seu filho têm carro. Para que precisa de um motorista?
- Jerusa, minha filha, não gosta de dirigir e nunca quis um carro. Tínhamos um motorista que trabalhou muito tempo em casa. Há dois meses ele se aposentou e ficamos sem motorista. Muitos já ficaram em experiência, mas Jerusa não gostou de nenhum deles. Quem sabe ela goste de você. Além do mais, somos muito ocupados e não temos tempo de fazer as compras da casa. Você ficará à disposição da Alda, da é quem faz as compras. Nas horas de folga, poderá cuidar do nosso jardim.
- Está bem, senhora. Vou me esforçar para que fique satisfeita com o meu trabalho.
Luana sorriu e, olhando para a moça, perguntou:
- Como é o seu nome?
- Luísa.
- Sabe passar roupa? Não se esqueça de que todos lá em casa, menos Danilo, usam roupas brancas.
- Sei passar, sim, senhora.
- Pronto, está tudo resolvido. Vocês ficarão em casa o tempo que for necessário. Depois que o menino receber alta do hospital, veremos o que fazer.
- Obrigada, doutora... não sabemos como agradecer...
- Não precisam agradecer, basta que trabalhem direito. Agora, podemos ir embora, estou cansada da viagem.
Felipe e Danilo beijaram seu rosto e ela, acompanhada por Tobias e Luísa, saíram.

UMA NOVA VIDA

Tobias sentou ao lado de Luana que dirigia o carro. Luísa sentou-se no banco traseiro. Pelo retrovisor, Luana, de vez em quando, olhava para ela e pensava: Por que será que tive tanta vontade de ajudar a esses dois? Assim que os vi, senti um carinho muito grande. Parece até que já nos conhecemos, mas isso é Impossível... não estou entendendo... parece que o mesmo aconteceu com Rodolfo. Ele também teve uma reação muito estranha ao ver a moça. Mais tarde vou conversar com ele e saber se minhas suspeitas são verdadeiras. Assim que chegou em frente a casa, parou o carro, dizendo:
- Tobias, por favor, pode me ajudar com as malas?
- Sim, senhora.
Ela desceu, abriu o porta-malas e ele retirou todas. Entraram em casa. Alda, uma das empregadas, os recebeu com um sorriso e surpresa:
- A senhora já chegou? Pensei que só viesse amanhã.
- Essa era a ideia, mas senti vontade de voltar antes. Está tudo bem aqui em casa?
- Sim. A Jerusa veio almoçar com uma amiga e foi para a faculdade.
- Uma amiga? Que amiga?
- Não a conheço, mas, pelo que ouvi, parece que a moça veio do interior para estudar aqui.
- Estranho. Jerusa aparecer com uma amiga...
- Por que está dizendo isso, senhora?
- Você a conhece melhor do que eu, Alda, sabe como é difícil ela fazer amizade. Parece que tem medo de tudo. Já tentei conversar, mas não consegui. Ela é muito fechada, calada, desconfiada e diferente de Danilo, que fala até demais.
- Tem razão, senhora. Realmente, é muito fechada. Também não entendo por que é assim. Tem uma casa e uma família maravilhosa e tudo o que quer.
- Também não entendo, depois vou conversar com Jerusa e descobrir quem é essa amiga.
- Ela estava muito nervosa.
- Por quê?
- Disse que a senhora precisa contratar um motorista, pois está cansada de ir para a Faculdade e voltar de lá, de táxi.
- Depois que o Sebastião se aposentou, já tentei contratar alguns, mas ela não aceitou nenhum, também não entendo por que ela não quer tirar carta de motorista. Se ela fizesse isso, teria o seu próprio carro!
- Já falei com ela sobre isso, mas diz que não gosta de dirigir, que tem medo.
- Medo do quê, Alda? Não entendo esse medo...
- Também não entendo, senhora, mas ela é assim. Vamos fazer o que, não é?
- Tem razão. É difícil entender a Jerusa.
- Senhora, Danilo disse que estava com dor de estômago e foi para o hospital.
- Sei disso, nós o encontramos lá.
- Ele está bem?
- Não sei, Felipe o está consultando, mas não deve ser grave. Alda, este casal vai ficar aqui em casa. Prepare a casa dos fundos.
Alda, que já havia notado a presença dos dois, estava curiosa, mas não quis perguntar. Luana continuou:
- Só depois que você falou em almoço foi que me lembrei de que não comemos durante a viagem. Vocês, assim como eu, devem estar com fome, não estão?
Tobias olhou para Luísa, que respondeu:
- Estamos sim, mas não precisa se preocupar, estamos acostumados a ficar sem comer.
- Vocês podem estar, mas eu não. Alda, tem almoço?
- Pensei que a senhora não viesse e pedi para Carlita preparar pouca comida, só restou um pouco.
- Acha que dá para nós três?
- Receio que não, senhora, mas posso preparar num instante.
- Prepare somente um lanche e arrume a mesa na sala de refeições. Vamos comer ali.
Luísa olhou para Tobias e disse:
- Senhora, preferimos que não...
- Não o quê? Não querem comer? Não estão com fome?
- Estamos, mas...
- Mas o quê? Já sei, não querem comer na sala de refeições, não é? Luísa sorriu. Luana continuou:
- Preferem comer na cozinha?
Luísa voltou a sorrir.
- Está bem. Alda, prepare os três lugares na mesa da cozinha. Também adoro comer ali, só como na sala de refeições por causa do Felipe.
Alda sorriu. Ela sabia que Luana não estava dizendo a verdade, mas conhecia desde pequena e entendia perfeitamente o que estava querendo fazer: ajudar aquele casal.
- Está bem, senhora, vou pedir para a Carlita preparar o lanche. E depois os levarei até a casa dos fundos para que a conheçam.
- Faça isso. Enquanto os encaminha para a casa dos fundos, vou trocar esta roupa.
Começou a se afastar, mas voltou-se:
- Quando os encontramos, não vi malas. Vocês não trouxeram roupas?
- Não, senhora. O menino começou a passar mal e saímos correndo, nem pensamos em pegar roupas.
- Venham comigo!
Luísa ficou parada sem saber o que fazer. Luana pegou em sua mão e a puxou, fazendo com que a acompanhasse. Tobias ficou parado, só olhando. Do meio da escada, Luana se voltou e disse:
- Você também, Tobias. Venha!
Ele, sem jeito, continuou parado. Ela gritou:
- Venha! Não pode continuar com essas roupas que está usando. Vou pegar alguma coisa do Felipe para que possa usar. Vocês têm o mesmo corpo. As roupas dele vão servir muito bem em você.
Luísa, vendo que ele estava nervoso e com vergonha, disse:
- Venha, Tobias.
Ele, devagar, as acompanhou. Luana abriu uma porta e fez com que entrassem na sua frente. Dentro do quarto, abriu um guarda-roupas e começou a tirar e a jogar sobre a cama saias, blusas e vestidos. Luísa e Tobias, com os olhos, acompanhavam seus movimentos. Depois de tirar alguns, Luana disse:
- Pode levar tudo com você.
- Para mim?
- Sim, para você.
- Mas são lindos! Não pode fazer isso, senhora...
- Eu não uso essas roupas. Sabe que todos aqui somos médicos, somente Danilo, para nossa tristeza, resolveu ser advogado. Com exceção dele, todos usamos, na maior parte do tempo, roupas brancas. Pode ficar com elas.
Luísa pegou as roupas. Seus olhos começaram a brilhar de uma maneira que Tobias nunca havia visto. Enquanto ela colocava as roupas na frente do corpo e se olhava em um espelho que havia no guarda-roupas, Luana pensou: Engraçado, parece que já vi esta cena... como pode ser? Por que gostei tanto desses dois assim que os vi? Luísa, com um dos vestidos na frente do corpo, ficou com os olhos parados, perdidos no tempo. Depois de alguns segundos, olhou para Luana e disse:
- Não sei, senhora, mas parece que já vivi algo parecido com isto.
- Que está querendo dizer?
- Não sei como explicar, mas sinto que já nos encontramos em uma situação como esta...
- Também sinto isso, mas, como sabe, é impossível. Acabamos de nos conhecer.
- Tem razão, devo ter sonhado ou desejado haver conhecido a senhora, que é um anjo que Deus colocou nas nossas vidas.
Luana sorriu, abriu a porta de um outro guarda-roupa e tirou algumas calças e camisas, dizendo:
- Estas roupas podem ficar para você, Tobias.
- Não pode, senhora. Seu marido vai ficar brabo...
- Não vai, não. Ele já não as usa há muito tempo. Pode pegar.
Depois, abriu algumas gavetas e tirou roupas íntimas dela e de Felipe e deu a eles que, sem saber o que falar, ficaram calados, embora os olhos brilhassem de felicidade. Luísa foi dobrando as roupas e colocando sobre a cama. Quando estava tudo dobrado, Luana disse:
- Agora já podemos ir, a Alda vai providenciar toalhas. Vamos descer?
Com as roupas nas mãos, Luísa e Tobias a acompanharam. Assim que se aproximaram de Alda, Luana perguntou:
- O lanche está pronto, Alda?
- Ainda não, senhora. A Carlita precisa de mais alguns minutos.
- Está bem. Enquanto isso, acompanhe Luísa e Tobias e mostre-lhe onde vão ficar. Não se esqueça de providenciar tudo o que precisarem, eles vão ficar algum tempo morando aqui.
Luísa e Tobias, embora não entendessem o que estava acontecendo, em pensamento, agradeciam a Deus por haver colocado aquela mulher em suas vidas. Saíram acompanhando Alda que lhes mostrou a casa onde iriam ficar. A casa, embora pequena, era confortável. Tinha apenas um quarto e um banheiro. Assim que Alda os acomodou e providenciou roupas de cama e toalhas, saiu, deixando-os sozinhos. Luísa olhava tudo e seus olhos brilhavam de contentamento. Subiu na cama e começou a pular e a dizer:
- É macia, Tobias! Nunca dormimos em uma cama como esta!
Tobias permaneceu calado, só que, dessa vez, sorriu. Estava pulando, feliz, e não percebeu Luana que, da porta, ria da felicidade dela. Assim que a viu, Luísa desceu da cama e, sem graça, disse:
- Desculpe, doutora, mas nunca tivemos uma cama como esta. Estou muito feliz...
- Não se preocupe, só vim ver se gostaram, da acomodação.
- Nossa, doutora! Nem sabemos como agradecer.
- Não precisa agradecer, a casa estava vazia mesmo. Podem ficar o tempo que quiserem.
Luana disse aquilo com sinceridade e, outra vez, achou já ter visto aquela cena. Sorrindo, afastou-se.
Assim que ela foi embora, Luísa olhou para Tobias e, abraçando-se a ele, perguntou:
- Tobias, o que acha de tudo o que está acontecendo?
- Não sei, só sei que ela e o marido foram dois anjos que Deus colocou no nosso caminho.
- Será que foi Deus mesmo?
- Claro que sim, Luísa. Você não viu como eles apareceram do nada naquela estrada?
- Do nada, não. Eles estavam voltando de uma viagem.
- Sei disso, mas quantos carros passaram por nós e não pararam? Qualquer um que passasse poderia ver que estávamos com problema, mas só eles viram e pararam. Foi Deus, mesmo!
- Tem razão...
- Tem uma coisa que não consigo tirar da cabeça.
- O quê?
- Quando ela abriu o guarda-roupa e me mostrou toda aquela roupa, dizendo que eu podia escolher a que quisesse, não sei, mas senti que já tinha vivido aquela cena, Tobias...
- Que cena?
- De ver um guarda-roupa cheio de vestidos. E nós duas estarmos juntas.
- Não pode ser, Luísa, só se for em sonhos. A gente só a conheceu agora.
- Tem razão, mas foi o que senti, por isso disse que achava estranho.
Tobias ficou com o olhar distante. Luísa perguntou:
- No que está pensando, Tobias?
- Na minha tia Isaura.
- Na tia Isaura, por quê?
- Ela tem aquela religião que você sabe.
- Sim, ela diz que fala com os mortos, mas sabe que nunca acreditei nisso.
- Eu também não, mas agora, estou pensando. Ela me disse, uma porção de vezes, que a gente nasce e renasce muitas vezes, nunca acreditei e sempre achei que fosse uma bobagem, mas depois do que você me disse, estou pensando, será que você e a doutora não viveram juntas em outra vida?
- Está louco, Tobias? Acredita mesmo nessas coisas?
- Não sei. Eu não queria lhe contar, também, assim que vi a doutora, achei que já a conhecia e que era nossa amiga...
- Será, Tobias? Será que essa coisa de nascer de novo existe mesmo?
- Não sei, Luísa, mas essa seria a única explicação para isso que estamos sentindo. Ela está nos recebendo como se fôssemos da família.
- Não só ela, mas toda a família. Você viu o cunhado dela, como é mesmo o nome dele?
- Acho que é Rodolfo. Não sei muito bem, eu estava muito nervoso e assustado com tudo o que estava acontecendo.
- É Rodolfo mesmo. Ele me olhou de uma maneira.
- Que maneira, Luísa?
- Não sei explicar, mas foi muito estranho.
- Estranho como?
- Não sei, estranho.
Ela olhou para o marido e viu que ele estava preocupado, deu uma gargalhada e disse:
- Não é dessa maneira que está pensando, Tobias. Ele me olhou como um irmão, como alguém que não se via há muito tempo.
- Não estou pensando nada...
- Está sim. Eu o conheço muito bem. Não pode ver um homem me olhando que já pensa uma porção de bobagem.
- Não pensei Luísa! - disse nervoso.
Ela deu outra gargalhada, olhou bem para ele e, levantando-se da cama, o abraçou.
- Sei que você morre de ciúmes, só não entendo por quê. Sabe que, desde que éramos crianças e vivíamos na fazenda, só tive olhos para você, para mais ninguém. Gosto muito de você, Tobias.
- Sei disso, também gosto muito de você. Só que...
- Só que... - ela disse imitando o tom de voz dele.
- Você é tão bonita e eu sou tão feio.
- Feio? Coisa nenhuma! Você é o homem mais bonito que conheço e, mesmo que não fosse, é o homem que escolhi para meu marido e de quem gosto muito!
- Está falando a verdade?
- Claro que estou. Gosto muito de você, Tobias, e isso acontece desde quando a gente brincava de esconde com as outras crianças. Você lembra?
- Claro que lembro. Éramos ainda uns pirralhos e nos escondíamos no mato só para ficar pegando um na mão do outro.
Com os olhos saudosos, Luísa começou a rir.
- Naquele tempo, a gente nem imaginava tudo o que ia passar na vida...
- É verdade, mas, mesmo depois de tudo, estou feliz por estar casado com você, Luísa. Acho que a gente foi feito um para o outro.
Ela se abraçou mais forte a ele e começou a chorar.
- Por que está chorando, Luísa?
- Por que o nosso menino teve de nascer doente, Tobias? Eu não entendo...
- Também não entendo, mas não importa o porquê. O que importa é que ele nasceu e a gente gosta muito dele, não gosta?
- Claro que sim e ainda tenho esperança de que um dia ele vai ficar bom.
- Ele vai ficar bom, Luísa! Você não ouviu o que a doutora disse? Ele só está muito fraco, mas vai ficar bom!
- Não estou falando de hoje, do ataque que teve, estou falando de ficar bom mesmo, poder andar e me chamar de mãe...
- Isso você sabe que não vai acontecer. Quando ele nasceu, o médico disse que ele teve um problema, não sei muito bem o que aconteceu, parece que faltou oxigênio e ele ficou desse jeito e para essa doença não tem cura.
- Não posso aceitar isso, Tobias! Por que isso foi acontecer com a gente? Por que o nosso menino tinha de nascer assim? Por que a gente foi escolhido? Não é justo!
- Sei como se sente, Luísa. Também penso muito a esse respeito. Quando vejo as crianças brincando, rindo e correndo, fico triste porque sei que isso nunca vai acontecer com o nosso menino. Ele vai ficar para o resto da sua vida assim, sem fazer nada e nem sei se conhece a gente.
- Ele conhece, Tobias! Claro que conhece!
- Ele sabe que a gente cuida dele, só isso, Luísa. Acho que todo pai só quer ver os filhos crescerem, se tornarem adultos, se casarem e terem suas famílias. Isso nunca vai acontecer com ele e isso me apavora.
- Apavora por quê, Tobias?
- Já pensou se a gente morrer? Quem vai cuidar dele?
Luísa ficou pensativa. De seus olhos, lágrimas começaram a correr.
- Nunca havia pensado a esse respeito, Tobias... nunca imaginei que gente poderia morrer. Agora estou com medo, se isso acontecer o que vai ser dele? Quem vai cuidar?
Vendo o desespero dela, ele tentou consertar:
- A gente não vai morrer Luísa. Não temos doença alguma e ainda somos jovens. A gente vai conseguir criar o nosso menino. Sei que vai.
- Criar para quê, Tobias? Ele vai ser sempre assim, sempre vai depender de alguém... não sei o que pensar. Nem sei se quero que ele sobreviva. Será que não seria melhor que ele morresse?
- Não fale assim, Luísa! Ele é nosso filho! Não importa como tenha nascido, o que importa é que é nosso filho e eu o amo de coração!
- Também o amo, Tobias, mas sabemos que nossa vida não vai ser fácil. A gente não tem dinheiro para dar um bom tratamento para ele e, mesmo que tivesse, não adiantaria. Ele vai ser sempre assim...
- Também já pensei muito a esse respeito, mas não adianta pensar.
Ele está vivo e vai continuar assim e, enquanto a gente puder, ele vai receber todos os cuidados. Deve ter algum motivo que a gente não conhece para ele ter nascido assim e ser nosso.
- Que motivo, Tobias? Por que ele nasceu assim? Por que foi ser nosso filho? Por que logo a gente?
- Não sei o motivo, Luísa. Só sei que ele está aqui e que a gente vai cuidar dele.
Luísa, com as mãos, secou as lágrimas que corriam por seu rosto e disse:
- Você tem razão, Tobias. Nada pode ser feito, além de cuidarmos dele. Talvez, algum dia, a gente descubra o porquê de ele ter nascido nosso filho.
- Isso mesmo, é assim que a gente tem de pensar, do contrário vamos ficar loucos. Agora, acho melhor a gente ir para a casa da doutora. Eu não quis falar, mas estou morrendo de fome.
Ela sorriu e, abraçando-o, disse:
- Eu também saí cedo de casa e nem tomamos café.
Saíram e caminharam em direção à cozinha da casa de Luana.

CONVERSANDO SOBRE O PAÍS

Enquanto isso, no hospital, Felipe terminou de examinar o filho e disse:
- Aparentemente, está tudo bem, talvez a dor tenha sido provocada pelo fato de você haver comido algo que não lhe fez bem, mas, mesmo assim, acho prudente você fazer uma endoscopia para que possamos ver como está esse estômago.
- Endoscopia? Aquele cano que é enfiado pela garganta? Nem pensar, doutor!
Felipe sorriu:
- Você é mesmo um covarde, Danilo! É um exame como outro qualquer. É feito rapidamente e não vai doer. Deixe de ser criança!
- Não vai mesmo, eu não vou fazer!
- Está bem, vou lhe receitar um remédio, mas se a dor voltar vai fazer, sim, é sempre bom se prevenir. Um diagnóstico feito no começo de uma doença é a melhor coisa que pode acontecer.
- Também não entendi o motivo dessa dor que senti. Acho que era saudade que estava sentindo do senhor e queria vir até o hospital.
- Se fosse saudade, não precisaria vir até aqui. Sabia que eu e sua mãe estávamos viajando e que iríamos para casa, só estamos aqui porque encontramos aquele casal com a criança que passava mal.
- Que menino lindo, não, papai?
- Você achou?
- Sim, por que está me fazendo essa pergunta?
- Porque, na maioria das vezes, as pessoas desviam o olhar de uma criança como aquela ou, ao contrário, a encaram com curiosidade.
- Por que isso acontece, papai?
- Por que ela é diferente das outras.
- Por que existem crianças que nascem assim como ele?
- Os motivos são muitos. Pode faltar oxigenação ao nascer, o que prejudica algumas áreas do cérebro. Pode, também, haver, problemas sanguíneos por parte dos pais.
- Não tem cura?
- Ainda não.
- Será que elas pensam ou reconhecem as pessoas?
- Sim, pensam e reconhecem as pessoas, só não conseguem se comunicar. Em alguns casos, dependendo de onde o cérebro foi atingido, conseguem ter uma vida quase normal.
- Esse menino pode ter uma vida normal?
- Infelizmente, não. Ele será dependente por toda a vida.
- Que pena... ainda não entendo por que Deus permite que isso aconteça...
- Também não sei responder. Estou estranhando...
- Estranhando o quê, papai?
- Parece que você gostou muito desse menino, não foi?
- Sim, não sei como explicar, mas assim que olhei em seus olhos, tive a impressão de conhecê-lo.
- Sabe que isso é impossível. Nunca o viu antes. Seus pais moram no interior, perto da fazenda, e você não vai lá faz muito tempo.
- Tem razão, mas eu tive essa sensação assim que o vi. Como isso pode acontecer?
- Outra resposta que não sei dar.
- Como, não? O senhor não é aquele que sabe tudo? - Danilo perguntou, rindo e fazendo aquela careta que todos conheciam.
- Espere aí! Nunca disse que sabia tudo!
- Nem precisa dizer, sempre teve respostas para tudo e quando não tem, faz como está fazendo agora, diz que não sabe.
- Está vendo? Como pode dizer que me considero o sabedor de tudo?
- Falei isso só para irritá-lo. Gosto de vê-lo nervoso, papai.
- Você gosta, mesmo, é de brincar, especialmente comigo. Os culpados somos nós, eu e sua mãe, que lhe damos toda essa liberdade.
- Acho muito bom que seja assim. Quando digo a meus amigos que conversamos e brincamos, eles não acreditam. Dizem que não conseguem conversar com os pais e muito menos com as mães. A educação deles é muito rígida.
- Sei que acha bom, Danilo, conheço essa educação e gostaria que meu pai tivesse sido igual a mim, mas não era. Sempre foi muito rígido, bastava um olhar para eu e Rodolfo entendermos o que ele queria e ficarmos calados.
- E, sua mãe?
- Ela era diferente dele. Gostava de falar e estava sempre disposta ouvir, mesmo assim, não era sobre qualquer assunto que podíamos conversar. Além disso, não fazia nada sem consultar meu pai. Era dependente dele em tudo.
- Não, mamãe é diferente. Ela gosta de ouvir e está sempre pronta para ajudar, mas, se for preciso tomar uma decisão, toma sem demora e, se erramos, nos faz pensar no assunto. Sei que, se precisar, ela daria a vida por mim e por Jerusa. Ela é quem fala pouco. Parece sempre desconfiada. Por que ela é assim, papai?
- Também não entendo. Jerusa é assim desde pequena. Sempre foi de falar pouco e também gostava de ficar em um canto, quieta. Não brincava com crianças da sua idade. Como sabe, não tem amigas até hoje. Passa a maior parte do tempo no seu quarto.
- Sabe que sinto pena dela.
- Por quê?
- Uma pessoa assim só pode ser infeliz, papai. Guardar tudo só para si e não confiar em ninguém.
- Concordo com você. Nunca entendi o motivo de sua irmã ser assim, mas o que se pode fazer. Desde muito cedo, aprendi que precisamos aceitar as pessoas como são. Talvez a vida faça com que ela mude, mas, mesmo que não mude, nunca deixará de ser sua irmã e nossa filha. Eu e sua mãe, pode ter certeza, amamos os dois da mesma maneira. Claro que, com você, o nosso diálogo é mais fácil, mas isso não significa que a amamos menos. Tenho a certeza de que você também a ama.
- Claro que sim, papai. Embora, algumas vezes, ela torne isso muito difícil.
Felipe começou a rir. Danilo não entendeu e perguntou:
- Do que está rindo, papai?
- De nada, meu filho. Não entendo como começamos a falar da sua dor de estômago e terminamos falando de sua irmã.
Danilo também riu.
- Tem razão, papai. Também não sei. A não ser o fato de que gostaria que ela fosse diferente. Mas, diante do que disse, não há como mudarmos alguém. Só mesmo a própria vida.
- É isso que devemos fazer. Continuar amando-a e aceitá-la como é.
Voltando a sua dor de estômago, sabe que existem estudos que dizem que o estômago reflete o estado emocional da pessoa?
- É mesmo?
- Sim, você está tendo algum problema, Danilo?
- Não chega a ser um problema, mas tem algo me incomodando.
- Posso saber o que é?
- É na Faculdade.
- Na Faculdade? Está tendo algum problema com os estudos? Se for preciso, podemos contratar um professor particular para ajudá-lo.
- Não se trata disso, papai. Sabe que amo Direito, talvez por isso não encontre muita dificuldade.
- O que é então?
- Estamos vivendo em uma tensão permanente.
- Por quê?
- Devido às perseguições políticas, nunca se sabe quem é amigo ou não.
- Parece que está muito grave mesmo, não é?
- Muitos de meus amigos estão presos ou exilados. O regime militar está sendo muito duro com aqueles que não estão a seu favor. Dizem que as pessoas estão sendo torturadas. No princípio, não sabíamos como elas eram encontradas e presas. Agora, sabemos que os militares colocaram espiões disfarçados como estudantes. Por isso, a desconfiança é total.
- Sabe que nunca gostei de me envolver em política. Nasci para cuidar da saúde das pessoas. Desde que eu tenha condições de atendê-las, não tenho, nem quero me preocupar.
- Alguns não pensam assim e acham que o melhor caminho é a resistência, a luta armada.
Felipe, assustado, perguntou:
- Você está envolvido em algum movimento de resistência, de luta armada, Danilo?
- Não, papai. Eu acredito na lei, por isso estou estudando Direito, pois sem a lei nunca haverá uma sociedade livre. Não acredito que a democracia possa ser conseguida através das armas, como muitos propõem. Embora saiba que, através das armas, ela possa nos ser tirada.
- Também penso assim, filho. A violência só gera violência. Embora para mim, a ditadura não cause problema algum. Apesar de não poder falar contra, tenho meu trabalho e condições de exercê-lo bem. O querer falar, discutir e lutar, faz parte da mentalidade dos advogados, não dos médicos. Estes precisam apenas preocupar-se com seus doentes.
- Muitos não pensam assim e acreditam que a Ditadura nos faz muito mal.
- Sabe o que não aceito?
- Não.
- Que jovens, assim como você, sejam envolvidos por adultos experientes e mandados para frente de batalha.
- Não estou entendendo.
- Adultos descontentes, sem coragem de enfrentar suas próprias lutas, envolvem jovens estudantes, mas na hora da luta, propriamente dita, eles não se apresentam, apenas ficam organizando. São os jovens que lutam e, por esse motivo, são obrigados a se esconder, fugir e, conseqüentemente, largar seus estudos. Assim, deixam de ajudar a Pátria da maneira correta. Você não está vendo quantos de seus amigos estão indo presos e obrigados a deixar o país sem saber se um dia poderão Voltar?
- Sim, conheço muito e todos são estudantes brilhantes.
- Está vendo o que vai acontecer com eles, se nunca mais puderem voltar para o país, para seus pais? Onde estarão os adultos que os envolveram quando eles e seus pais choraram de saudade e preocupação, pois perderam seus filhos por uma luta inglória?
- Por que diz que a luta é inglória, papai?
- Porque essa Ditadura que está aí só vai terminar no dia em que desejarem aqueles que a promoveram, Danilo.
- Não estou entendendo...
- Estou dizendo que, no dia em que os militares quiserem, a Ditadura terminará e o país voltará para as mãos dos civis.
- Acredita mesmo nisso, papai?
- Sim, não só acredito como tenho certeza. A história nos conta.
- Muitos não pensam assim. Dizem que, se o povo quiser e se unir, eles serão obrigados a se afastar.
- Isso é ilusão, o povo só conseguirá se unir, quando eles permitirem. Antes disso, nada poderá fazer.
- Será, papai?
- Sim, pode esperar para ver, Danilo.
- Às vezes, penso que o senhor tem razão.
- Por que está dizendo isso, Danilo?
- Parece que o povo não está se dando conta do que está acontecendo. Parece que a ditadura não atinge a população.
- Você tinha só treze anos e não lembra, mas, no princípio, diante de tanto desmando e corrupção da maioria dos deputados e senadores, o povo ficou feliz pelos militares terem tomado o poder. A felicidade foi tanta que, quando houve a campanha "Ouro para o Brasil", muitos tiraram até a aliança do dedo para doar. A campanha teve uma repercussão enorme, todos queriam ajudar o Brasil. Depois, no Governo Militar, foi criado o Banco Nacional de Habitação e muitos conseguiram sua casa própria. Além disso, construíram hospitais e escolas. Com todo esse desenvolvimento, não faltou trabalho e isso é tudo do que o povo precisa. Trabalho...
- Acha que o povo não se importa de não poder falar, reivindicar?
- Um homem que se levanta às cinco ou seis horas da manhã, após trabalhar o dia inteiro, quando chega a casa só quer relaxar, assistir à televisão, por isso não se importa com quem o está governando. O homem comum acha que não tem o que falar, só quer ter comida, moradia, saúde e escola para os filhos. Além do mais, acredita que nada possa fazer contra os poderosos. Eu mesmo, após passar longas horas aqui no hospital vendo muita dor e sofrimento, quando chego a casa só quero descansar e esquecer tudo o que vi. Não tenho ânimo algum para me revoltar.
- O senhor deve ter razão. Acredito que é isso mesmo o que acontece com o homem comum. Mas, mesmo assim, a liberdade é importante e, para que isso aconteça, é necessário que haja eleições e o povo possa escolher quem quer que o governe.
- Sim, esse é um sonho e seria ideal se...
- Se o quê, papai?
- Os estudantes são os únicos que podem brigar e se entregar a essa luta. A maioria deles tem os pais que pagam seus estudos e não precisam se preocupar com casa e comida. Eles têm e precisam ter o ideal de liberdade, de democracia. Não se esqueça de que a maioria do povo brasileiro tem pouca instrução e que aqueles que votam são os mesmos que levantam de madrugada para ir trabalhar e voltam à noite, cansados. Não sabem e não estão interessados em saber a quantas anda a política e os políticos. Na hora de votar, votam em alguém por ouvir dizer ou por receber alguma compensação e aqueles que se candidatam, na maioria das vezes o fazem pensando exclusivamente no seu próprio bem. Sem educação acadêmica, pouco se conhece e se pode exigir... Infelizmente, a maioria dos políticos brasileiros não tem esse perfil.
- Para o senhor não existe político bom?
- Claro que existe, mas é uma minoria que, sozinha, nada poderá fazer.
- Foi por isso que o senhor disse que, no princípio, o povo ficou feliz. Parece que os militares se preocuparam mesmo com o Brasil. O que acha que aconteceu para que mudassem, se tornassem violentos e provocassem toda essa repressão?
- O poder, meu filho... o poder... ele cega as pessoas, não importando a que classe pertençam.
- O poder?
- Sim, as pessoas fazem de tudo para exercer o poder sobre as outras. Quer saber de uma coisa, acho que todo político é contra a democracia.
Danilo riu e perguntou curioso:
- Por que está dizendo isso, papai?
- Todo homem, quando atinge um cargo político, começa a perceber a mudança que ocorre em sua vida. É sempre bem recebido em qualquer lugar em que se apresenta. As pessoas o bajulam, fazendo com que se sinta especial. Essa situação o envaidece, o que faz com que tema perdê-la. Com a democracia, existe a alternância de poder e isso o assusta. Ele teme perder o lugar que conquistou. Com as ditaduras, esse perigo é afastado e ele pode continuar no poder por um tempo bem mais longo que a democracia permitiria.
Danilo ficou olhando para o pai. Ele não imaginava que o pai pensasse daquela maneira. Disse:
- O senhor parece conhecer muito bem os problemas. Por que não se envolve na luta?
- Como já lhe disse, nasci para ajudar as pessoas na sua doença, nasci para salvar vidas. Deixo a política para os advogados. - disse isso, rindo e passando, com carinho, a mão pelos cabelos do filho.
- Uma coisa está me preocupando, Danilo.
- O quê, papai?
- Você disse que não está envolvido em qualquer movimento de resistência, por que está tão preocupado com os espiões que diz existirem na faculdade?
- Não estou envolvido, mas o Júlio está, temo por ele. Sabe que é meu amigo.
- Ele não é filho de um coronel da marinha?
- Sim. Desde pequeno, quis seguir a carreira do pai, mas foi impedido.
- Impedido por quê?
- O pai lhe disse que a vida de um militar não é fácil, precisa mudar constantemente e sua família o acompanha. Isso faz com que seus filhos não tenham tempo para se acostumarem a uma nova escola nem mantenham amizades, o que julga prejudicial para a formação das crianças. Por isso, deseja que o Júlio tenha uma profissão diferente da dele. Quer que ele seja advogado.
- Pensando assim, ele até que tem razão. O Júlio aceitou sem discutir?
- O pai, por ser militar, exerce em sua casa uma posição de comando e hierarquia. Júlio não teve como discutir.
- Ele não gosta de estudar Direito?
- Até que gosta, mas, da marinha, gosta muito mais. Desde pequeno, sonhou em ser marinheiro. Quem sabe ele ainda poderá ser. Só não entendo uma coisa. Se ele gosta tanto da vida militar, por que está envolvido em um movimento de resistência contra os militares?
- Também lhe fiz essa pergunta e me admirei com sua resposta.
- O que ele respondeu?
- Disse que, por admirar as forças armadas e os militares, não pode aceitar no que eles se transformaram. Disse que os militares têm uma boa formação acadêmica e sua maior missão é defender o Brasil e seu povo de qualquer ataque, por isso, nunca poderiam tornar o Brasil uma ditadura. Ele não é revoltado contra as forças armadas, mas, sim, contra alguns militares que as transformaram em ditadores e, segundo alguns, torturadores.
- Conheço o Júlio por muito tempo e sei que é um bom rapaz. Agora, você me diz que está lutando por algo em que acredita. Embora não acredite na sua luta, respeito-o por sua determinação.
- Nisso o senhor tem razão. Ele luta por aquilo em que acredita, é um bom rapaz e amigo leal. Quando estamos conversando, tenho a impressão de que o conheço há muito tempo, porém, sei que isso é impossível, só nos conhecemos há dois anos, quando entramos na Faculdade.
- Admiro aqueles que se envolvem em uma luta por um ideal. Embora, através da história do nosso país, possamos perceber que a nossa democracia, desde a República, sempre foi ameaçada e, por diversas vezes, foi vencida. Continuando a estudar a história do Brasil, notamos que sempre que a democracia foi abalada, houve homens que lutaram para que ela fosse restabelecida, assim como está fazendo o seu amigo Júlio e outros. Porém, quando isso aconteceu, vários daqueles que lutaram a seu favor começaram a fazer parte do mundo político e mudaram de atitude radicalmente. Em pouco tempo, estavam fazendo as mesmas coisas que aqueles contra os quais lutaram.
- O senhor está dizendo que a história sempre se repete?
- Sim, todo homem que chega ao poder, em qualquer mandato, logo começa a fazer parte do sistema, pois, se assim não fizer, não será aceito perante os demais e sofrerá com isso. Há, ainda, aqueles que se deixam envaidecer pelos privilégios que o poder propicia. O poder, infelizmente, corrompe, meu filho.
- Todos os políticos se deixam corromper?
- Graças a Deus, não. Existe uma minoria que continua tentando seguir seus ideais e o desejo de que o Brasil deixe de fazer parte do terceiro mundo e se torne a potência que poderia ser, se não houvesse tanto roubo, tanta corrupção.
- Tenho certeza de que, se um dia, o Júlio chegar ao poder, será um desses.
- Se for assim, tomara que chegue. O Brasil precisa de bons políticos.
- Por ele estar tão decidido é que sinto medo. Ele está muito envolvido e agora, com tantos espiões, temo que poderá ser preso e torturado e, se isso acontecer, sinto que nada poderei fazer.
- Não se preocupe, Danilo, se isso acontecer, seu pai é um coronel, tem muitos contatos e fará com que ele seja libertado.
- O senhor acredita nisso?
- Sim, por isso, não fique preocupado. Agora, preciso ir para casa. Hoje, não devia estar trabalhando. Estou cansado da viagem. Vamos?
- Gostaria de, antes de ir embora, ver como aquele menino está.
- Você se interessou mesmo por ele, não é, Danilo?
- Não consigo entender o motivo, mas sinto muito carinho por ele. Vou até lá, papai, depois irei para casa.
- Vou com você, depois iremos para casa. Sua mãe levou o carro e eu estou a pé. Amanhã, retornarei ao trabalho. Hoje, só quero chegar a casa, relaxar e descansar sem me preocupar com política, políticos ou com quem está me governando - disse isso rindo e debochando.
Danilo também riu. Saíram do consultório e foram para o quarto do menino que só haviam conhecido naquele dia, mas por quem, mesmo sem entender o motivo, Danilo sentia tanto carinho.

A HISTÓRIA DE LUÍSA E TOBIAS

Luísa e Tobias entraram pela porta dos fundos, na cozinha, no exato momento em que Luana entrava pela porta do corredor. Assim que os viu, sorriu, dizendo:
- Parece que agora estão bem.
- Estamos sim, senhora. Olhe como as roupas que nos deu ficaram boas. Parece que foram feitas para nós.
- Ficaram, sim, mas, sentem-se, vamos comer. Não sei vocês, mas eu estou morrendo de fome.
Luísa sentou-se, Tobias esperou que Luana se sentasse e, em seguida, fez o mesmo. Sobre a mesa, havia pão, frios, frutas e suco, além de café com leite. Para eles, que estavam desde o dia anterior sem comer, aquilo representava o manjar dos deuses, mas esperaram até que Luana começasse a comer. Ela, com um pedaço de pão na mão, disse:
- Podem começar a comer e fiquem à vontade. Tudo isso, a Alda preparou só para nós, não é, Alda?
- É sim, senhora. Fiz o melhor possível...
- Está ótimo. Não está? - perguntou olhando para eles.
Luísa, também com um pedaço de pão na mão, sorriu e respondeu:
- Sim, está ótimo! Não imaginam a fome que estávamos sentindo e, para ser sincera, jamais vimos uma mesa como esta, com tanta coisa, não é, Tobias?
Tobias continuou calado, apenas concordou com a cabeça.
- Não me diga isso? São muito pobres?
- Sim, mas isso, antes de nosso filho nascer, nunca nos incomodou.
- Por que incomodou depois que ele nasceu?
- Porque se tivéssemos dinheiro, poderíamos ter lhe dado uma melhor alimentação e tratamento e, quem sabe, conseguíssemos curá-lo.
Luana ficou olhando para aquele casal que comia com tanta vontade, pensou: Coitados, são tão jovens... e não sabem que, mesmo que tivessem dinheiro, nunca conseguiriam curar o filho. Poderia lhes dizer, mas para que tirar suas ilusões, não vale a pena. Depois de pensar, disse:
- Agora, seus problemas terminaram. Estão aqui em casa e, aqui, nada de mal lhes acontecerá. O menino está nas mãos de Rodolfo. Sei que tudo o que ele puder fazer, fará.
- A senhora acha que ele vai ficar bom? Que vai ser uma criança igual às outras?
Aquela pergunta incomodou Luana, pois não sabia o que responder. Se mentisse, criaria, neles, uma ilusão. Se dissesse a verdade, lhe causaria uma tristeza sem fim. Sabendo que precisaria dar alguma resposta, disse:
- Não posso lhe responder, Luísa. Só posso lhe dizer que Rodolfo é muito bom e que fará o melhor.
- Está bem, doutora, e obrigada por tudo o que tem feito por nós, pessoas que não conhece. Sabe que isso é difícil de acontecer, as pessoas confiarem nas outras, dessa maneira.
- Não me pergunte por que, mas gostei de vocês assim que os vi e achei que deveria ajudá-los. Sei que são pessoas boas, apenas precisando de ajuda e, eu, graças a Deus, posso ajudar. Não haverá problema algum se quiserem continuar morando aqui, mesmo quando o menino ficar bom. Aqui, vocês terão trabalho, casa e comida. Também todo o tempo de que precisarem para ajeitar suas vidas. Mas, se quiserem, podem ir embora a qualquer momento.
- Não vamos senhora! Só se a senhora quiser! Nunca nos sentimos tão seguros e felizes, além de o nosso filho estar sendo tratado. O que mais a gente poderia querer, não é, Tobias?
- É sim... obrigado, doutora.
Continuou comendo, só que com os olhos perdidos. Luísa percebeu:
- No que está pensando, Tobias?
- Em nada, Luísa...
- Claro que está, conheço você...
- Está bem, estou pensando em uma coisa que a tia Isaura me disse.
- O que ela disse?
- Que a gente nunca está sozinho e, que, na hora da necessidade, Deus sempre nos manda uma ajuda. Hoje, pela manhã, quando a senhora encontrou e ajudou a gente, doutora, eu estava desesperado. O menino estava daquele jeito que a senhora viu. Eu não tinha um centavo. Quando ele começou a passar mal, pedi ajuda a Deus, peguei a Luísa e saímos para a estrada. Ela também estava nervosa e desesperada. Tanto que até desmaiou. A senhora viu, não viu? Se minha tia Isaura tivesse aqui, ia dizer que foi Deus quem colocou a senhora e o seu marido, naquela estrada e naquela hora. Ela diz que Deus usa algumas pessoas para ajudar outras.
Luana ouviu e, olhando para ele, disse:
- Quando fomos para a fazenda, pretendíamos voltar só amanhã. Não sei se sabem, mas, para médicos, é muito difícil sobrar tempo para tirar férias. Fomos até a fazenda, para visitar o avô do meu marido que está com mais de oitenta anos. A fazenda é maravilhosa, se pudesse, eu ficaria lá pelo resto da minha vida. Por isso, não entendi a vontade imensa de, naquele momento, vir embora. Depois de ouvir o que você disse, Tobias, penso que, talvez, sua tia tenha razão. Será que foi Deus quem me usou para ajudar vocês?
- Acho que foi, doutora... acho que a senhora foi um anjo enviado por Deus...
Luana deu uma gargalhada:
- Anjo? Eu?
- Sim, a senhora e seu marido. Ele parece ser, assim como a senhora, uma pessoa de bem.
- Ele é mesmo! É o melhor homem do mundo. Somos muito felizes.
- O seu filho, aquele que estava no hospital, também parece ser um bom moço.
- Tem também a Jerusa. Ela é minha filha e bem diferente do irmão, mas é uma ótima moça. Estudiosa e bem educada. Sabe, Luísa, vocês estão em uma família onde todos são bons, mas, como em toda família sempre existe algum problema. Ninguém é perfeito, temos as nossas diferenças, porém procuramos superá-las. E vocês, como se conheceram?
- Quando eu tinha seis anos, minha mãe morreu. Eu não conheci meu pai, foi ela quem sempre me criou. Ela trabalhava de empregada doméstica na casa do Senhor Rafael, tio do Tobias.
- Então vocês se conhecem desde crianças?
- Não senhora. O Tobias morava em outra cidade com os pais. O pai dele é irmão do senhor Rafael. Quando o Tobias completou dezesseis anos e eu quatorze, o pai dele mandou que ele viesse morar com o tio para poder estudar. Foi aí que a gente se conheceu e, escondido, começamos a namorar.
- Percebi que são muito jovens. Foi por isso que tiveram de namorar escondido?
- Foi, o senhor Rafael disse que éramos muito crianças e proibiu, mas nada adiantou a proibição, assim que nós nos vimos, tanto eu como ele sentimos que era amor verdadeiro.
- Amor verdadeiro aos quatorze anos? - perguntou, rindo.
- Sim, o nosso amor é verdadeiro. Não é, Tobias?
Ele sorriu e com a cabeça disse que sim.Luana olhou para Alda que estava servindo a mesa e que sorria. Ela sabia por que Alda sorria e, também sorrindo, disse:
- Sei o que está pensando, Alda.
- Sabe senhora?
- Sei.
Olhou para Luísa e Tobias e disse:
- Quando conheci o Felipe, ele tinha dezoito anos e eu dezesseis. Como aconteceu com vocês, assim que nos vimos, sabíamos que o nosso amor era verdadeiro. Nossas famílias, ao contrário das de vocês, embora achassem que éramos crianças, não proibiram o nosso namoro. Quando nos casamos, eu estava esperando o Danilo e só tinha dezessete anos. Estávamos na faculdade de medicina e eles nos ajudaram durante todo o tempo em que estivemos estudando. Assim que nos formamos, fomos trabalhar no hospital da família de Felipe e estamos lá até hoje. Existe, sim, Luísa, o amor verdadeiro e acredito que vocês se amam de verdade.
- A gente se ama, sim, doutora.
- O que aconteceu depois que o senhor Rafael proibiu?
- Quando eu descobri que estava grávida, o Tobias foi conversar com o tio, mas ele não quis saber dos nossos motivos e queria que eu tirasse a criança e que Tobias voltasse para a casa do pai. Não podíamos aceitar aquilo! Eu não queria tirar a minha criança e o Tobias não queria ir embora. Depois de pensar muito, resolvemos que a única solução era fugir. Foi o que fizemos.
- Vocês fugiram?
- Sim.
- Foram para onde?
- Fomos para uma cidade vizinha. O Tobias arrumou emprego em uma fazenda e eu, enquanto minha barriga não ficou grande, trabalhei na casa grande como empregada, mas, quando a dona da casa percebeu que eu estava esperando criança, me mandou embora e o Tobias ficou trabalhando sozinho.
- Quando o menino nasceu vocês moravam na fazenda?
- Sim. Uma parteira me ajudou, mas quando ela percebeu que ele estava demorando muito para nascer, conversou com o dono da fazenda e ele me levou para o hospital. O médico disse que, como ele demorou a nascer, teve um problema no cérebro e ficou daquele jeito que a senhora viu.
Luana acompanhava o que ela dizia e sentiu um aperto no coração. Disse:
- Talvez tenha sido esse o motivo, mas poderiam ser muitos outros. Estou pensando em como vive a maioria do povo brasileiro. Sei que só penso, mas não tenho ideia do que seja a pobreza. Embora soubesse que existem pessoas pobres, como vocês, nunca as havia conhecido. Nasci em uma família com recursos e nunca senti falta de coisa alguma. Por isso, só posso imaginar o que seja viver nessa pobreza que você está descrevendo.
- É muito difícil, mas, apesar de o nosso menino haver nascido assim, gostamos muito dele e acreditamos que, com fé em Deus, ele ainda vai ficar bom e me chamar de mãe. É o que mais desejo. Você também gosta muito dele, não é, Tobias?
- Gosto de você, Luísa...
Luana percebeu que alguma coisa existia ali, mas não pôde precisar o quê. Sabia que, infelizmente, o menino dificilmente poderia fazer o que Luísa queria, pois, pelo pouco que havia visto, percebeu que o cérebro dele havia sido muito comprometido, mas se calou e pensou: São tão jovens e já têm tantos problemas... como a vida é estranha. Enquanto eu tive tudo e meus filhos também, existem muitas pessoas tão pobres como eles.
- Vocês nunca mais voltaram para a casa do senhor Rafael?
- Não...
- Por que não, Luísa?
- Ficamos com medo. Quando o menino nasceu e descobrimos que ele tinha esse problema, ficamos assustados e pensamos em voltar, mas a gente sabia que o tio não ia aceitar. Ele não queria que a criança nascesse e ia querer muito menos agora, doente assim...
- Entendo e foram para onde?
- Continuamos na fazenda. O Tobias continuou trabalhando, eu não pude mais, precisava cuidar do menino. Foi muito difícil, o salário do Tobias era muito pequeno. Depois de pagar o aluguel da casa e a despesa que fazíamos na venda da fazenda, não sobrava quase nada. Por isso, quando a senhora pegou a gente na estrada, o Tobias disse que não tinha nem um centavo. Vendo meu menino morrendo e sabendo que não tínhamos dinheiro para socorrê-lo,desesperei-me e desmaiei.
- Agora estou entendendo. A vida de vocês, até aqui, foi muito dura, mas, daqui para frente, tudo vai melhorar e vocês ficarão bem. O menino está no hospital e sendo bem cuidado. Vocês estão aqui e ficarão enquanto quiserem.
- Obrigada, doutora. Só mesmo Deus poderá lhe pagar todo o bem que está nos fazendo.
- Conhecendo a vida de vocês, acredito que Deus me pagou por antecedência. Sempre tive uma vida boa. Nasci em uma casa em que, além de ter dinheiro, tinha, também muito amor e carinho. Sempre fui muito feliz e tive tudo o que desejei, além de um marido e filhos maravilhosos. Depois do que ouvi de vocês, só me resta agradecer a Deus pela vida que me deu.
- A senhora merece...
Luana, pensativa, sorriu. Luísa, terminando de comer, perguntou:
- Doutora, será que podemos voltar para o hospital e ver como nosso menino está?
- Acredito não ser necessário. Quando saímos de lá, Rodolfo estava cuidando dele. Hoje, nós estamos cansados. Vou telefonar, falar com Rodolfo e saber como o menino está. Se ele achar necessário, se o menino estiver correndo algum risco, iremos até lá. Porém se ele estiver bem e sedado, vamos deixar para amanhã. Não precisam ficar preocupados. Ele está sendo muito bem tratado.
- Nunca ficamos longe dele...
- Mas ele nunca teve um tratamento como está tendo agora. A presença de vocês não vai adiantar e vocês, justamente por terem estado ao lado dele, precisam ter um tempo de descanso, precisam ficar um tempo sozinhos. Descansem hoje e, amanhã, quando eu for para o hospital, irão comigo. Está bem assim?
- A senhora vai telefonar?
- Vou sim, agora mesmo.
Luana levantou-se e foi até um telefone que estava preso na parede. Assim que atenderam do outro lado, pediu para falar com Rodolfo. Ele atendeu imediatamente:
- Rodolfo, sou eu, a Luana. Como o menino está?
- Sob medicação, mas parece bem. Precisamos esperar a medicação fazer efeito para vermos o resultado.
- Acha necessário os pais irem até aí?
- Não, não é preciso. Nada poderão fazer aqui, a não ser ficarem cansados. Se acontecer alguma coisa preocupante, eu lhe telefono e você providencia a vinda deles para cá.
- Obrigada, Rodolfo. Vou tranqüilizar os pais. Eles estão aflitos.
- Entendo, mas diga-lhes que, por enquanto, não há motivo para isso.
Ela conversou com ele por alguns minutos e desligou. Voltou-se para Tobias e Luísa e disse:
- Como havia previsto, o menino está sedado e sendo medicado, Rodolfo disse que, se vocês quiserem, podem ir até lá, mas, assim como eu, não acha necessário. Se o quadro se alterar, ele avisará imediatamente.
- A senhora acha mesmo que a gente não precisa ir?
- Acho. Agora, voltem para o quarto e procurem descansar. Quando ele voltar para casa, o trabalho recomeçará. E sei que não é fácil cuidar de uma criança como a sua, Luísa.
- Eu não me importo, doutora. Sou feliz por ele ter nascido.
- Sei disso, mas precisam descansar e eu vou fazer o mesmo. Vou me deitar um pouco e tentar dormir. Fiquem em paz. Amanhã será outro dia.
Luísa olhou para Tobias que balançou os ombros. Ela disse:
- A doutora tem razão, Tobias. A gente não tem o que fazer no hospital e estamos mesmo muito cansados.
Sorriram, levantaram-se e se despediram de Luana que, com os olhos, os acompanhou. Enquanto eles saíam da cozinha, ela pensou: Tão jovens e com tantos problemas. Por que será que alguns, como eu, têm tanto, e outros, como eles, nada têm...

IDÉIAS CONFLITANTES

No hospital, Danilo e Felipe foram até a emergência, onde o menino estava em observação. Assim que entraram, viram Rodolfo ao lado dele. Aproximaram-se. Rodolfo percebeu quando chegaram. Sorriu, perguntando:
- Ainda está por aqui, Felipe? Pensei que já tivesse ido embora.
- Estamos indo, mas Danilo quis vir ver como o menino está.
- Está reagindo bem à medicação. Acredito que logo estará bem. Por que todo esse interesse, Danilo?
- Não sei tio, mas estou preocupado com ele. Ele é tão pequeno... Não entendo como uma criança pode nascer assim, dessa maneira...
- Assim como ele existem muitas crianças com paralisia cerebral.
- Por que isso acontece, tio?
- Os motivos científicos são muitos.
- O que quer dizer com motivos científicos? Existem outros?
- Não sei se existem outros, só entendo dos científicos, mas Marília tem outros pensamentos.
- Que pensamentos?
- Ela está estudando uma doutrina a qual diz que todos renascemos e que estamos pagando por tudo o que fizemos em encarnações passadas.
- Como é isso, tio? - Danilo perguntou, assustado.
- Não sei muito bem, mas, segundo ela, nascemos e renascemos muitas vezes e, a cada renascimento, vamos nos lapidando até chegarmos à perfeição. Ela diz que estamos vivendo, hoje, a vida que escolhemos ontem e que durante a nossa vida reencontramos amigos e inimigos de outros tempos.
- Como é? - Danilo perguntou, intrigado.
- Ela diz que precisamos nos encontrar com amigos e inimigos para perdoarmos e sermos perdoados. Só assim, poderemos seguir para o aperfeiçoamento.
- O senhor acredita nisso, tio?
- Até hoje, não e nunca me preocupei...
- O que está querendo dizer com até hoje?
- Quando me vi diante desse menino, senti um mal-estar terrível e tive vontade de sair de perto dele. Só não o fiz por ser médico e saber que ele precisava ser atendido. Porém, quando vi sua mãe, senti um carinho enorme por ela e tive de me controlar para não abraçá-la. Parece que a conhecia há muito tempo. Isso me levou a pensar no que Marília disse. Será que já conhecia esse menino e sua mãe? Por tudo o que senti e, se formos pensar sobre o que Marília diz, ele deve ter sido meu inimigo e ela, alguém que amei muito.
- Será, tio?
- Não sei se isso pode realmente acontecer, mas que foi estranho, foi...
- Também tive essa mesma impressão, só que foi ao contrário. Assim que vi o menino, senti por ele muito carinho, poderia dizer que até saudade.
Felipe, que estava calado ao lado deles, começou a rir e disse:
- Vocês dois estão voando! Voltem para a Terra!
Rodolfo e Danilo também riram. Rodolfo perguntou:
- O que está fazendo aqui, Danilo? A esta hora não deveria estar na Faculdade?
- Deveria, tio, mas tive uma dor muito forte de estômago e vim até o hospital para ver qual foi o motivo.
- Já o examinou, Felipe?
- Sim, e pedi que faça alguns exames, mas ele se recusa.
- Por que está se recusando, Danilo?
- Não acho que seja necessário. Agora, depois da conversa que tivemos, acho que essa dor foi só um motivo para que eu viesse aqui para rever o meu amigo. - disse, passando com carinho a mão sobre a cabeça do menino, que, sem que imaginassem, começou a chorar e a dizer:
- Está vendo, Matilde, ele não me esqueceu...
- Estou sim, Carlos... o amor dele sempre foi muito grande por você...
- Por que não posso abraçá-lo, Matilde? Estou morrendo de saudade...
- Sabe que está vivendo a vida que escolheu. Quando retornou e viu que, por ter tanto poder, fez muita maldade, pediu para renascer assim, pois, com esse corpo, não poderia fazer mal algum, mas, ao contrário, seria dependente de outras pessoas. Porém Deus nosso Pai tornou a colocar em sua vida todos eles. Deus é muito bom, não é, Carlos?
- É sim, Matilde... é sim... mas eu gostaria de poder abraçar o meu menino, assim como Maria Luísa, minha filha amada e a quem fiz tanto mal.
- Não pode se esquecer do mal que fez para a Rosa Maria, Jerusa, Tobias e Rodolfo.
- Todos eles estão aqui ao meu lado, Matilde. Eles querem se vingar?
- Não, ao contrário. Todos escolheram renascer e ajudá-lo na sua caminhada. São espíritos amigos. Embora não entendamos, o amor e o perdão são os sentimentos mais fortes e maiores que existem. Todos estão aqui, esperando que, dessa vez, você consiga se libertar do orgulho e do desejo de poder.
- Na situação em que estou, nada posso fazer de bem ou de mal... não sei para que renasci...
- Qualquer vida, não importa a situação, sempre tem um motivo. Você, depois da experiência de viver em um corpo assim, se, um dia, renascer novamente com dinheiro e poder, saberá usá-los para o bem, para ajudar e não para oprimir as pessoas. O seu espírito está caminhando, Carlos...Está caminhando...
- Tem razão, Matilde. Estou aprendendo muito sobre poder e dinheiro.
Alheios a essa conversa, Felipe, Danilo e Rodolfo saíram do quarto. Enquanto caminhavam, Rodolfo perguntou:
- Está tendo algum problema, Danilo?
- Por que está perguntando isso, tio?
- Não sei, mas essa sua dor de estômago está estranha. Dizem que o estômago reflete a parte emocional.
- Está falando como médico? - Danilo perguntou, rindo.
- Não, estou perguntando como seu tio.
- Ele está com problemas na faculdade.
- Na faculdade? Está com problemas para entender as matérias?
- Não, tio, o problema é outro.
- Que problema?
- Política, tio.
- Política? O que está acontecendo?
- O senhor sabe como está a repressão. Alguns estudantes estão se rebelando com o governo militar e planejando alguma forma de enfrentá-lo e isso está nos causando muitos problemas. Descobrimos que existem espiões e que eles entregam os alunos que participam, como eles dizem, dessa conspiração. Dizem que os subversivos devem ser presos e torturados para que digam os nomes de todos.
- Você está participando de algum movimento?
- Não, tio.
- Mas deveria! Todas as conquistas do povo brasileiro começaram pela revolta dos estudantes! Principalmente os que estudam Direito!
- Eu, por estudar Direito, acredito que só poderemos vencer essa ditadura através das leis.
- Que leis, Danilo? Se os estudantes de outros tempos tivessem pensado assim, a escravidão não teria terminado e o Brasil ainda seria um império. É preciso que haja luta de um povo para que possa ser livre e democrático.
- Não ligue para o que seu tio está dizendo, Danilo. Ele sempre foi um anarquista. Não importa qual seja o governo que está no poder, sempre será contra.
- Não é isso, Danilo! Apenas, sempre achei que o povo deve ser livre, deve poder falar, reclamar e exigir os seus direitos.
- Também acho, tio, porém, insisto que não é através de luta armada que isso poderá ser conquistado, mas, sim, pelas leis. Para isso, vou ser um advogado e lutar com as armas certas.
- Deve lutar junto dos seus companheiros e não ser um covarde e se esconder.
- Pare com essa conversa, Rodolfo! Deixe meu filho estudar e, assim, lutar com as armas certas! Você falou em escravidão e República, dizendo que foram conquistadas através das lutas, quando, na verdade, não foi assim que aconteceu.
- Como não foi assim, Felipe?
- A escravidão só terminou quando a Inglaterra resolveu transformar os escravos em consumidores. A república foi decidida por duas ou três pessoas. O povo pouco teve a ver com esses movimentos. Agora mesmo, se prestar atenção, verá que quase todos os países da América do Sul estão vivendo sob ditaduras militares. Já se perguntou por que isso acontece?
- Não, o que acontece nos outros países não me importa. Só quero que o Brasil seja um país livre, democrático e que haja justiça social.
- Pois deveria se importar. Todas essas ditaduras foram patricionadas pelos Estados Unidos. Estão com medo de que as idéias comunistas da Rússia se espalhem pela América do Sul e Central. Essa ditadura que estamos vivendo só terminará no dia em que os militares decidirem que está na hora de entregar o poder aos civis. Antes disso, não!
- Você não sabe o que está dizendo, Felipe! Com a força do povo, tudo pode ser mudado! Não podemos nos conformar com essa situação que estamos vivendo!
- O povo tem pouco a ver com as decisões dos políticos poderosos! Cada homem e cada mulher estão preocupados em como pagar as contas e criar os filhos! Enquanto os militares não resolverem entregar o poder, se o povo tentar algum ato de rebeldia ou simplesmente se reunir para discutir a respeito, vai acontecer o que está acontecendo, prisões e torturas. Você não se lembra das histórias que nosso pai contou? Daquilo que aconteceu na ditadura Vargas, quando tantos jovens e adultos foram torturados e outros tantos mortos? Para quê, Rodolfo? Hoje, estamos em ditadura novamente?
- Se todos pensarem assim, o Brasil nunca será um país democrático, Felipe!
- Será, sim, meu irmão. Quando interessar aos Estados Unidos.
- Você é muito radical, Felipe!
- Pode ser que seja, mas não quero meu filho envolvido em nada disso. Quero que termine sua Faculdade e, já que não quis ser médico, que seja um bom advogado.
- Não se preocupe, papai. Penso como o senhor e não vou me envolver em movimento algum.
Felipe olhou para o filho, passou a mão por seus cabelos e, sorrindo, disse:
- Ainda bem, Danilo. Não sei o que faria se soubesse que você está preso e sendo torturado. Por que você não entra em um desses movimentos, Rodolfo?
- Por que já estou velho e tenho mulher. Além disso, tenho responsabilidades aqui no hospital.
- Está vendo, Danilo? E assim que os adultos agem. Falam, falam, mas não arriscam sua estabilidade. Por isso, fico contente em ver que você não está se deixando enganar. Quer lutar com as armas certas.
- Já disse para não se preocupar, papai. Não faço nem pretendo fazer parte de movimento algum. O que quero mesmo é estudar.
Rodolfo acompanhou o gesto do irmão e o que ele disse, também sorriu, dizendo:
- Agora que já terminamos a nossa discussão patriótica, vamos mudar de assunto. Como está a fazenda e o vovô, Felipe?
- O vovô está bem. Passou o tempo todo nos contando aquelas histórias mirabolantes da família, de sua avó e sua mãe negra, sem se esquecer dos ciganos.
Rodolfo começou a rir.
- Ele sempre nos contou essas histórias. Disse que faz isso para não nos esquecermos de que, antes de nós, houve muita história e pessoas maravilhosas que lutaram pela família.
- Se tudo o que ele contou for verdade, realmente foram pessoas maravilhosas e lutadoras, Rodolfo.
- Sim, teve até um que lutou contra a escravatura e a favor da República. Parece-me que foi o pai dele, nosso bisavô.
- Sim, foi ele mesmo. Vovô sempre nos contou a história de que seu pai lutou pela libertação dos escravos e pela República.
- Não vamos reiniciar esse assunto, Rodolfo.
- Por quê, Felipe? Está com medo de que, se seu filho conhecer a história da família, decida-se a também lutar por alguma coisa?
- Não, Rodolfo. Sei que ele não vai se deixar influenciar por essas bobagens.
- Pois eu continuo achando que não é bobagem e se eu fosse mais novo, não estaria fugindo da luta.
- Acho que você errou de profissão, deveria ser político. - Felipe disse, rindo e debochando.
Danilo, percebendo que a discussão ia reiniciar, falou:
- Não conheço essas histórias da família. Por que nunca me contou, papai?
- Sempre achei que meu avô exagerasse muito quando contava. Além do mais, do que nos adianta conhecer a história da família? Eles viveram no seu tempo. Hoje, tudo é diferente, as lutas são outras.
- Tem razão, meu irmão, embora o tempo e as lutas sejam outras, os motivos são sempre os mesmos. A liberdade!
- Não vamos voltar a esse assunto, Rodolfo. Será que não percebeu que Danilo, graças a Deus, não está interessado nessa luta inglória e que eu não tenho interesse algum em discutir sobre esse assunto, porque, embora exista uma Ditadura, ela nunca me atingiu, ao contrário, desde que se instalou, tenho tido a oportunidade de atender muito bem aos meus pacientes e, para mim, é isso o que importa.
- Por favor, parem com essa discussão que não levará a lugar algum. Estou mais interessado em conhecer a história da nossa família.
- Quem conhece bem essa história é a sua mãe. Ela fica ouvindo o meu avô por horas e se encanta com tudo o que ele conta. Dessa vez, ele lhe deu um colar que disse ter pertencido a uma cigana que deu para a avó dele, no dia do seu casamento. Disse que esse colar tem passado de geração a geração e, como ele não teve uma filha, resolveu dar para sua mãe. Ele diz que sua avó, quando veio de Portugal, era muito jovem, mas não me pergunte mais, porque não sei.
- Também nunca dei muita atenção para as histórias que ele conta, Danilo. Sabe como é, todo velho gosta de viver no passado.
- Pois eu não sou velho e gostaria de conhecer essas histórias. Gostaria de saber como foram os meus antepassados, o que fizeram, o que pensaram. A primeira coisa que queria saber é qual é o nome do vovô?
- Está dizendo bisavô, não é? Por que insiste em chamá-lo de avô? Sabe que ele é meu avô e seu bisavô.
- Sei disso, mas dá muito trabalho falar bisavô. É bem mais fácil chamá-lo de vovô, o senhor não acha?
- Você é mesmo muito folgado, Danilo!
Danilo sorriu e perguntou:
- Não sou folgado, papai, só não gosto de perder tempo. Se é mais fácil chamá-lo de vovô, por que fazer diferente? Mas ainda não me respondeu, qual é o nome do vovô?
- Não sabe o nome do meu avô?
- Não, o senhor nunca disse. Sempre o chama de vovô.
Rodolfo começou a rir.
- Do que está rindo, Rodolfo?
- Do seu filho não ter a mínima idéia de como é o nome do nosso avô.
- Não entendo por que está rindo, tio...
- Se você adivinhar o nome dele, lhe dou um doce. Danilo olhou para o pai e, também rindo, disse:
- Não vai me dizer que o nome dele é Felipe, papai!
- Por que, não gosta desse nome?
- Claro que gosto, ele é muito bonito, mas são muitos Felipes na nossa família... não sei o nome do meu bisavô, mas sei que o nome do meu avô, seu pai, era Felipe e o seu também. Qual foi o primeiro Felipe da família?
- Pelo que sei, foi o pai do seu bisavô, aquele que, segundo ele, nasceu no acampamento cigano. De lá para cá, todos os homens que nasceram na nossa família receberam esse nome.
- Sendo assim, por que o meu nome não é Felipe?
- Por que cansei e resolvi quebrar a tradição, além do mais, sua mãe pediu que eu lhe desse o nome de Danilo. Por que, não gosta do seu nome?
- Gosto, claro que gosto, só fiquei curioso.
- Ainda bem. Não sei por que está rindo, Rodolfo. Quantos Rodolfos existiram na nossa família?
- Pelo que sei, só um, o nosso bisavô.
- Talvez porque o meu Felipe foi mais importante que seu Rodolfo!
Quem riu agora e mostrou a língua fazendo uma careta foi Felipe. Danilo ficou com o olhar perdido no horizonte. Felipe perguntou:
- No que está pensando, Danilo?
- No passado e em como devem ter sido essas pessoas de quem estamos falando. Gostaria muito de conhecer toda a história...
- Tenho uma ótima idéia para resolver esse problema.
- Que idéia, papai?
- Rodolfo, você não me perguntou como está a fazenda? Como não poderia deixar de ser, está um pouco abandonada. Todos da família resolveram ser médicos e não temos tempo para cuidar dela. Você poderia transferir sua Faculdade para lá e ir morar na fazenda. Ela não fica milito distante da cidade e da Faculdade. Assim, poderá conhecer toda a história e cuidar dela.
- Está louco, papai? Eu odeio mato! Posso passar alguns dias lá, mas morar, nunca!
Rodolfo e Felipe riram do desespero de Danilo.
- Está bem, Danilo, foi só uma idéia. Só pensei nisso porque você não quis ser médico e por isso tem todo o tempo que nós não temos.
- O senhor nunca vai me perdoar por eu ter decidido ser advogado, não é, papai?
- Nada disso, sei que nem todas as pessoas conseguem exercer uma profissão que está sempre envolvida com dor e sofrimento. Acho que os médicos são pessoas escolhidas.
Rodolfo riu e, debochando, perguntou:
- Somos escolhidos, Felipe?
- Claro que sim, titio. Preciso concordar com meu pai. Eu jamais suportaria ver alguém gemendo de dor ou com sangue espalhado pelo corpo. Sei que desmaiaria na hora.
Felipe e Rodolfo olharam-se e riram. Felipe disse:
- Não se preocupe com isso, meu filho. O mundo, assim como precisa de médicos, precisa de advogados, também.
- Tive outra idéia, Felipe.
- Qual?
- Já que ninguém quer cuidar da fazenda, poderíamos vendê-la.
- Já pensei a esse respeito, mas sabe que, enquanto o vovô viver, isso não poderá ser feito. Ele nunca quis sair dali. A casa continua como sempre foi. Nunca quis trocar os móveis e a cor da pintura dos quartos.
- Ainda existem móveis daquele tempo?
- Sim, Danilo. Todos os móveis foram trazidos de Portugal e feitos com madeira de lei e, se forem bem cuidados, nunca se estragarão. O vovô dá muita importância ao passado e, por isso, pode não cuidar da plantação, mas da casa, cuida muito bem.
- Sendo assim, acho que, enquanto ele estiver vivo, não deve ser vendida mesmo.
- Você tem razão, Felipe. Vamos pensar nesse assunto mais tarde.
- É isso mesmo que vamos fazer. Agora, precisamos ir embora. Além de estar cansado da viagem, também estou com muita fome.
- Vamos, sim, papai. Também estou com fome.
- Isso é um bom sinal, mostra que a sua dor de estômago foi algo passageiro.
- Já tinha até me esquecido dela. Antes de irmos, posso ir dar uma última olhada no menino?
Rodolfo e Felipe olharam-se. Não entendiam todo aquele interesse, mas, mesmo assim, Rodolfo, respondeu:
- Podemos, sim, Danilo. Ficamos conversando aqui e nem percebi o tempo passar. Está na hora de eu ver se os medicamentos estão tendo resultado. Vamos.
Juntos, entraram no quarto onde o menino estava. Danilo aproximou-se, passou a mão no cabelo dele, dizendo:
- Fique bom logo, viu? Você é um lutador, sei que vai sair dessa.
Felipe e Rodolfo voltaram a se olhar e sorriram. O menino, sem que Rodolfo entendesse, deixou que uma lágrima corresse por seu rosto. Danilo sorriu, olhou para o pai:
- Agora podemos ir, papai. Parece que ele está bem.
- Pode ir tranqüilo, Danilo. Parece que ele está reagindo bem à medicação, mas, se acontecer alguma alteração, eu telefono. Está bem assim?
- Está ótimo, tio. Estou muito preocupado com ele.
Felipe pegou no braço do filho e, juntos, foram para o estacionamento.Assim que saíram, o menino, com lágrimas, disse:
- Esse menino é um anjo mesmo, Matilde...
- É sim e ele gosta muito de você, Carlos.
- Nem imagina o mal que fiz para sua mãe.
- Tem razão, ela nunca quis que ele soubesse. Ele, depois que morreu, tomou conhecimento. Mesmo assim, nunca deixou de gostar de você. Isso é um amor verdadeiro.
- É sim, Matilde... é sim... tomara que ele seja feliz nesta vida que escolheu, porque, na anterior sofreu muito. Perdeu a esposa logo no começo do casamento e nunca mais quis se casar. Viveu para o filho e as lembranças de Divina.
- Eles são espíritos amigos e vão continuar por muito tempo na mesma caminhada, um ajudando ao outro.
- Assim como estou, pouco posso fazer. Gostaria de ser normal para poder reparar todo o mal que fiz.
- Você é normal, só está vivendo a vida que escolheu e que achou que seria melhor para o seu aprendizado. Mesmo estando paralisado e dependente, seu espírito está alerta a tudo o que acontece e pode vibrar amor para todos eles que estão se reencontrando e poderão resgatar Maria Luísa, Jerusa e Marcela que ficaram pelo caminho.
- Eu só vou ficar assistindo, sem nada poder fazer?
- Na hora certa, vai ajudar. Agora, procure dormir. Seu corpo é muito fraco e precisa de cuidados.
- Está bem, Matilde, e obrigado por ficar ao meu lado.
Matilde sorriu, passou a mão sobre a cabeça do menino que fechou os olhos. Quem o via, não podia imaginar que, por sua pequena cabeça, tantos pensamentos passavam, tanta vida havia.

MÚSICA CONHECIDA

Assim que Luísa e Tobias saíram da cozinha, Luana foi para o seu quarto. Queria se deitar e descansar. Foi isso que aconteceu, logo depois, adormeceu e sonhou que estava tocando piano e, que ao seu lado, Luísa sorria. A música era linda. Sentia, também, um perfume de rosas, estava feliz. Por trás de Luísa, que a observava, surgiu a imagem de um homem, cujo rosto não podia ver, mas isso fez com que se assustasse e acordasse. Deu um pulo, sentou-se na cama e ficou pensando: Que sonho louco foi esse? Que lugar era aquele e o que Luísa estaria fazendo no meu sonho?Levantou-se e, enquanto se arrumava, pensava no sonho e na música que não saía de sua cabeça. Desceu e foi até a cozinha, onde não havia ninguém. Tomou um pouco de água e foi para a sala. Assim que entrou, olhou para o piano que estava em um canto. Sorriu e pensou: Há quanto tempo não sento nesse piano e não toco? A música do meu sonho era linda! Tenho a certeza de que nunca a ouvi antes. Que bobagem estou pensando? Claro que devo tê-la ouvido em algum lugar. Vou me sentar e tentar tocá-la. Sentou-se ao piano e começou a tocar aquela música. O som invadiu toda a casa. Estava inebriada tocando, pensando: Estávamos felizes eu e Luísa. Parecia que nos conhecíamos muito bem. Como isso pode ser? Quem era aquele homem que me causou tanto medo? Estava assim, distraída, e não percebeu que a porta da sala se abriu e, por ela, entraram duas moças que ficaram paradas ouvindo. Quando Luana terminou de tocar, uma das moças perguntou:
- Que música linda é essa, mamãe?
- Olá, Jerusa, nem percebi que havia entrado. Não sei que música é essa. Sonhei que a estava tocando e, como ela não saía da minha cabeça, resolvi tocar. Ela é realmente linda, não é?
- É sim, mamãe, mas tenho a impressão de já tê-la ouvido.
- Também estou com essa impressão, mas não consigo saber de onde. Ela não me parece atual.
Enquanto falava, olhava para a moça que estava ao lado de Jerusa. Percebendo o interesse da mãe, Jerusa disse:
- Esta é Diva, ela está há pouco tempo estudando lá na Faculdade.
Luana levantou-se e caminhou em direção à moça. Estendeu a mão e, sorrindo, disse:
- Olá, Diva. Estou feliz por estar em minha casa, muito mais por ter sido trazida por Jerusa.
A moça sorriu e, apertando a mão que Luana estendia, perguntou:
- Por que está dizendo isso, senhora?
- Você é a primeira amiga que ela traz aqui em casa. Nunca imaginei que ela tivesse uma amiga.
- Que é isso, mamãe, está me deixando sem graça...
- Não é essa a minha intenção e fico feliz por ter uma amiga. Sabe o quanto já temos discutido a esse respeito. Você é jovem e linda. Precisa sair de casa, passear e nada melhor que uma amiga para que isso aconteça.
- Agora seu desejo vai ser realizado. Diva chegou há pouco. Ela não conhece ninguém e mora em uma pensão. Sua família está toda no Nordeste. Fui encarregada de mostrar-lhe a Faculdade e de apresentá-la aos alunos. Sem perceber, descobrimos que temos muito em comum e ficamos amigas.
- Sabe como isso me deixa feliz. Seja bem-vinda, Diva.
Diva sorriu e disse:
- Obrigada, senhora. Sua filha é uma excelente moça e muito inteligente. Estou feliz por tê-la conhecido. A música que a senhora estava tocando é realmente muito linda... não sei por que, mas também tive a impressão de já tê-la ouvido. É estranho, não é? Levando-se em conta que, como a senhora disse, ela não parece ser atual. Quem será que a compôs?
- Ela é linda mesmo e também tive a impressão de já conhecê-la, só não posso lhe dizer quem a compôs, pois só a ouvi no meu sonho.
- Isso é estranho, mas ela é linda. Poderia tocar novamente?
Luana olhou para Jerusa que, assim como a amiga, sorria.
- Está bem, preciso confessar que também estou com vontade de tocar.
Sentou-se ao piano e as moças em um dos sofás. Começou a tocar e sentiu que estava em outro lugar, em outro tempo. Novamente a música invadiu o ambiente. Sentiram um perfume de rosas. Estranharam, mas logo viram que se tratava de Alda, que entrava na sala trazendo um vaso com rosas e o colocou sobre uma mesinha de canto. Quando terminou de tocar, Luana se levantou e sentou-se ao lado da filha, que disse:
- Mamãe, como lhe disse, Diva não conhece ninguém e está morando em uma pensão. A senhora sabe que essa situação não é confortável, por isso gostaria que, se a senhora e o papai concordarem, ela venha morar aqui em casa.
Luana assustou-se com aquele pedido. Olhou para Diva e depois para a filha. Estava feliz por ver que, finalmente, Jerusa estava bem e deixara para trás aquele olhar de tristeza e desconfiança que sempre tivera. Disse:
- Por mim não haverá problema algum. Sabe que temos vários quartos vagos, mas precisamos consultar seu pai e seu irmão e, se eles se opuserem, poderá ficar o tempo que desejar, Diva.
- Obrigada, senhora. Prometo que, se ficar, não lhes darei trabalho algum.
- Não se preocupe com isso, pois, só de ver minha filha feliz e descontraída, sua presença já é bem-vinda.
Jerusa sorriu, pois sabia que tudo o que a mãe queria, tanto o pai como o irmão acatavam. Pegando a mão de Diva, levantou-se, dizendo:
- Venha, Diva, vamos nos preparar para o jantar. Daqui a pouco, meu irmão e meu pai deverão chegar. Você vai conhecer os homens mais bonitos que já viu na vida!
Diva sorriu e, levantando-se, disse:
- Dona Luana, sua filha é a maior fã do pai e do irmão. Devo confessar que estou ansiosa para conhecê-los.
- Ela é assim mesmo, mas garanto que você não vai se decepcionar. Eles, além de lindos, são pessoas maravilhosas. Tenho a certeza de que gostará de ambos.
Elas saíram, Luana continuou sentada, pensando no sonho e na música. Começou a tocar novamente. Estava assim, quando a porta se abriu. Felipe aproximou-se e, abaixando-se, beijou sua testa. O mesmo fez Danilo. Luana, sorrindo, disse:
- Meus dois homens lindos chegaram.
Eles riram e sentaram-se. Ela perguntou:
- O que aconteceu com Danilo, Felipe? Qual foi o motivo da dor de estômago?
- Aparentemente não existe motivo, preciso fazer alguns exames, mas ele se recusa.
- Recusa-se, por quê, Danilo?
- Já pensou, mamãe, ele quer enfiar aqueles canos dentro de mim? Não quero!
- Sei que é desconfortável, mas, se for necessário, terá de fazer. Sabe que o começo da cura de qualquer doença é o diagnóstico precoce.
- Estou bem, mamãe, e já disse ao papai que, se a dor voltar, farei os exames.
- Assim espero. Acredito que não se trate de algo mais grave, deve ter sido algo que comeu. Como está o menino, Felipe?
- Rodolfo está cuidando dele. Disse que é preciso esperar o resultado dos medicamentos que estão sendo aplicados. Por enquanto, continua em observação.
- Os pais estão aqui e muito ansiosos para ter noticias dele.
- Como eles estão se sentindo aqui em casa?
- Um pouco constrangidos, mas, com o tempo, se acostumarão.
- Dissemos a eles que poderiam morar e trabalhar no hospital. Acha que eles preferiam que fosse assim, Luana?
- Não sei. Na hora em que estávamos conversando, imaginei que seria melhor morarem aqui, pois poderiam dar mais atenção ao menino quando obtivesse alta. Quando isso acontecer, voltarei a conversar com eles e saber o que preferem.
- Aquele menino é lindo...merece o melhor tratamento e conforto que poderemos lhe dar.
- Você ficou muito impressionado com ele, não é, Danilo?
- É, sim, mamãe. Não sei explicar o motivo, mas, assim que o vi, meu coração bateu forte. Parece que o conheço, só não posso imaginar de onde pode ser.
- Assim que o vi, senti o mesmo. Não só por ele, mas por sua mãe também. Acabei de ter um sonho em que estava sentada em um piano tocando uma linda música, ela ouvia e sorria. O sonho foi tão real que a música não saía da minha cabeça, mesmo depois de acordada. Vim até aqui e a toquei de uma maneira como se a conhecesse muito bem.
- Isso é muito estranho, não é, mamãe? É essa que estava tocando quando entramos? É linda e também me parece que já a ouvi em algum lugar, mas não sei precisar onde. Toque mais um pouco para ver se lembro.
Luana, que ainda estava sentada ao piano, sorriu e começou a tocar. Depois de algum tempo, Danilo começou a cantarolar. Quando Luana terminou, ele disse, eufórico:
- Agora tenho certeza de que conheço essa música, mamãe! Já a ouvi, não sei quando ou onde, mas já a ouvi, sim! É muito estranho, pois esse ritmo não é atual. Parece que é de muito tempo atrás.
Felipe, que permanecia calado enquanto eles conversavam, levantou-se dizendo:
- Talvez aquilo que Rodolfo disse tenha algum fundamento.
- O que ele disse, Felipe?
- Que já vivemos em outro tempo. Que existe reencarnação.
- Ora, Felipe, isso é coisa da Marília e daquela religião que está seguindo. Como cientistas, acha que podemos acreditar nisso?
- A ciência não explica tudo, Luana.
- Tem razão, mas isso de se ter vivido em outros tempos é uma loucura.
- Não sei, mas estou estranhando isso que está acontecendo, Luana. Você, Rodolfo e Danilo, ao verem o menino e seus pais, sentiram que já os conheciam. Será que não se conheceram em outros tempos?
- Isso é loucura, Felipe! Não pode se esquecer que, logo depois de que Rodolfo e Marília se casaram, ela começou a dizer que ouvia e via coisas. Com o tempo, deve tê-lo influenciado.
- Sim, Luana, mas você também não pode se esquecer de que Rodolfo fez todos os exames e constatou que, fisicamente, ela estava bem. Até hoje ele não tem explicação científica para aquilo que acontece com ela.
- Nisso você tem razão, mas deve haver outra explicação.
- Rodolfo é muito reservado. Faz algum tempo que não converso com ele a esse respeito. Hoje, talvez sem pensar, ele comentou. Não sabemos como ela está.
- Conversei com ela há alguns dias, Felipe. Ela disse que está bem e que as vozes e aparições sumiram, mas que está aprendendo a lidar com isso.
- Aprendendo, como?
- Estudando essa Doutrina. Disse que está encontrando respostas para tudo e que as vozes e visões só voltarão quando estiver preparada.
- Ela vai poder controlar, Luana?
- Ela disse que sim.
- Se isso acontecer, teremos a confirmação de que não é louca. Que pode, sim, haver coisas que não entendemos, mas de que não podemos descrer.
- Tem razão, Felipe... tem razão...
Enquanto eles conversavam, Luísa e Tobias também ouviram a música. Ela saiu da casa e ficou parada. Sentiu um arrepio correr por seu corpo e uma vontade imensa de chorar e, quase sem perceber, lágrimas correram por seu rosto. Tobias se aproximou e perguntou:
- Por que está chorando, Luísa? O que aconteceu?
Ela, abraçando-o, respondeu:
- Não sei, senti uma tristeza e saudade muito grande.
- Tristeza, por quê? Saudade do quê?
- Não sei explicar, mas assim que ouvi a música que está sendo tocada, senti que a conhecia e me deu vontade de chorar...
- Isso é muito estranho, pois também parece que já a ouvi e também não sei dizer onde ou quando.
- Quem será que está tocando, Tobias?
- Não sei, só sei que está vindo da casa, deve ser dona Luana ou sua filha, porque o doutor e o rapaz acabaram de chegar. Eu estava aqui fora e vi quando chegaram. A música só parou quando eles entraram...
- Deve ser a dona Luana, mesmo. Essa música é linda, Tobias...

A HORA DO ENCONTRO

Luana, Felipe e Danilo conversaram por mais um tempo, depois, Danilo disse:
- Está quase na hora do jantar. Vou tomar um banho e voltarei em seguida.
- Boa ideia, Danilo. Vou fazer o mesmo e fiquem bem bonitos, temos visita para o jantar.
Os dois olharam para ela. Felipe perguntou:
- Visitas? Quem?
- Alem de Luísa e Tobias, uma amiga de Jerusa.
- Amiga! Da Jerusa? Nunca soube que ela tivesse uma amiga...
- Nem eu! Quem é ela, mamãe?
- Uma moça que chegou do Nordeste e que está estudando na mesma faculdade. Gostei muito dela. Parece ser uma boa moça e deve ser, pois conseguiu se aproximar de Jerusa e sabemos que isso é muito difícil.
- Por que a Jerusa é assim, mamãe, tão diferente de todos nós?
- Não sei Danilo, foi criada da mesma maneira que você, mas tem um temperamento completamente diferente. Enquanto você é alegre, expansivo, ela está sempre triste e parece não conseguir confiar em ninguém. Desconfia de tudo e de todos. Confesso que muitas vezes me fiz essa mesma pergunta. Realmente, não dá para entender o seu comportamento. Mas, hoje, me pareceu feliz. Essa moça conseguiu aquilo que nunca consegui, fazer Jerusa sorrir.
- Ela é estranha mesmo, mas também é minha filha muito amada.
- Por todos nós, Felipe. Também a amamos, só ela é que não se dá conta disso. Por isso fiquei feliz ao ver que, finalmente, arrumou uma amiga. Espero que essa amizade faça com que mude de comportamento.
- Também espero. Bem, vou subir e me preparar para conhecer essa amiga.
- Também vou. Vamos, Danilo, estou curioso...
- Eu também, papai...
Subiram a escada, Luana foi até a cozinha para ver como estava o preparo do jantar e voltou no exato momento em que Jerusa e Diva retornavam. Percebeu o olhar feliz da filha. Perguntou:
- Estão prontas para o jantar?
- Sim, mamãe, estamos com fome e, depois do jantar, precisamos estudar, pois, na semana que vem, teremos provas semestrais. Papai e Danilo chegaram?
- Sim, estão se preparando para o jantar. Enquanto o jantar não fica pronto, venham, sentem-se aqui.
Assim que se sentaram, o telefone tocou e Luana atendeu:
- Alô!
- Oi, Luana, sou eu, Rodolfo.
- Rodolfo! Aconteceu alguma coisa com o menino?
- Não, ele está reagindo muito bem à medicação. Acabei de vê-lo. Só telefonei para dizer que estou indo para casa e que está tudo bem e, se ele continuar assim, amanhã, poderá ter alta. Pode tranqüilizar os pais.
- Farei isso, obrigada, Rodolfo. Eles devem estar ansiosos. Boa-noite e dê um abraço em Marília.
- Darei, boa-noite.
Luana desligou o telefone. Jerusa, que prestou atenção à conversa, perguntou:
- De que criança a senhora estava falando, mamãe?
- Não tive tempo de lhe contar, mas quando estávamos voltando da fazenda, encontramos um casal com um menino que passava muito mal e o levamos para o hospital, Rodolfo está tratando dele. E acabou de dizer que está bem. Quer ir comigo contar para os pais?
- Onde eles estão?
- Como são pobres e nunca estiveram em uma cidade grande, pedi que viessem ficar na casa dos fundos, até que o menino fique melhor.
- A senhora trouxe-os aqui para casa? Como pôde fazer isso, mamãe?
- Isso o quê, Jerusa?
- Trazer para nossa casa pessoas que não conhece. E se forem bandidos?
- O que é isso, Jerusa? São uns pobres coitados com uma criança doente! Não entendo como pode ser assim!
- Assim como, mamãe?
- Tão fria e sem coração. Nada faz com que se emocione ou que acredite bondade alheia. São pessoas que precisam de ajuda e, nós, graças a Deus, temos condições de ajudar.
- A senhora é muito confiante, acredita que só exista o bem, quando na realidade, não é bem assim. Existe muita maldade, mamãe.
- Você é quem, não sei o motivo, vê maldade em tudo e todos.
- A senhora é que é muito confiante e não vê o que acontece por ai! Acredita em todos e sabe que nunca terá uma recompensa de pessoas pobres como essas!
- Já discutimos muitas vezes a esse respeito. Não ajudo as pessoas esperando recompensas ou pagamento. Ajudo-as, simplesmente porque quero, posso e tenho condições e, se depois de o menino estar bem, eles não me disserem muito obrigada, não me preocuparei. O importante é que o menino fique bem e seus pais, também. Eles apareceram, do nada, no nosso caminho, não poderíamos deixar de ajudá-los. Não posso lhe dizer que gostei do menino, na verdade, assim que o vi, não gostei, mas isso também não tem importância. O importante é que ele e os pais estão sob minha responsabilidade e ficarão enquanto desejarem. O depois, será o depois...
- A senhora não existe, mesmo, mamãe. Não posso aceitar que seja assim. Que não tenha maldade e não veja maldade em ninguém.
- Pois eu, às vezes, fico preocupada por você ser como é.
- Por quê?
- Existe um ditado que é assim: quem usa acusa...
- Não estou entendendo o que quer dizer, mamãe.
- Quero dizer que esse ditado diz que aquele que acusa deve ser capaz de fazer o mesmo. Você, sem os conhecer, acusa-os de coisas e maldades inimagináveis. Será que seria capaz de fazer essas mesmas maldades e coisas?
- Não sou maldosa, mamãe, só previdente. Jamais traria para minha casa pessoas desconhecidas, encontradas no meio da estrada.
- Sabe que nunca entraremos em acordo. Recuso-me a aceitar que todas as pessoas sejam ruins. Claro que existem, mas a maioria, não, são boas e estão cuidando de suas vidas. Estou indo até lá para lhes contar o que Rodolfo disse. Quer ir também?
- Não, obrigada. Não tenho interesse algum em conhecer esse tipo de gente.
- Sinto muito, mas vai ter de conhecer.
- Por que está dizendo isso?
- Sabe que, na casa dos fundos, não tem cozinha, por isso, terão de comer aqui.
- Aqui em casa?
- Sim, aqui em casa e na nossa mesa.
- A senhora está louca, mamãe? Não os conhece nem sabe se eles sabem se comportar à mesa!
- Não, Jerusa, estou apenas fazendo aquilo em que acredito e só não comerão em nossa mesa se não quiserem. Você está tendo preconceito por serem pobres, quando deveria, ao contrário, agradecer tudo o que tem e tentar dividir com aqueles que têm menos.
- Não tenho culpa de ter nascido em uma casa com tanta riqueza! Não vou me culpar por isso!
- Não deve se culpar, mas não precisa desmerecer aqueles que não têm. Isso, sim, é errado! Agora, vamos parar com essa conversa. Está quase na hora do jantar e você, parece que esqueceu, mas tem visita.
Só naquele momento, Jerusa se lembrou de Diva que, em silêncio, acompanhou toda conversa. Envergonhada, disse:
- Desculpe, Diva, mas, se for morar aqui em casa, vai se acostumar com essas discussões. Eu e minha família temos muitos pontos de vista diferentes. Às vezes, chego a pensar que nasci em casa errada. - disse isso rindo e passando a mão pelo cabelo da mãe. Diva, constrangida, apenas sorriu.
Luana também riu e saiu. Atravessou o quintal e foi para a casa dos fundos, conversar com Luísa e Tobias. Quando se aproximou, encontrou-os do lado de fora, perguntou:
- Tudo bem com vocês?
- Sim, doutora, só estamos preocupados com o nosso menino.
- É por isso mesmo que estou aqui, Luísa. Rodolfo telefonou e disse que ele está respondendo bem à medicação e que, se continuar assim, amanhã receberá alta e poderá vir para casa.
- Que bom, doutora! Estávamos muito preocupados. Ele nasceu fraquinho, mas nunca ficou tão mal como desta vez.
- Parece que não precisam se preocupar. Tenho um outro assunto para tratar com vocês.
- Que assunto?
- Quando os encontramos, dissemos que poderiam morar e trabalhar no hospital, mas, agora, acho que seja melhor continuarem aqui, pois, assim poderão cuidar melhor do menino. Preciso saber se concordam?
- A senhora foi um anjo que caiu em nossa vida, por isso, faremos o que achar melhor. Só não podemos ficar aqui se não formos necessários. Precisamos trabalhar para pagar tudo o que está fazendo.
- Sendo assim, Luísa, vocês podem continuar aqui. Já lhes disse que preciso de alguém para cuidar das minhas roupas e do meu jardim. Ficando aqui, uniremos o útil ao agradável. Ficarão bem e o menino também.
- Obrigada, doutora... desculpe, mas preciso lhe fazer uma pergunta.
- Pode fazer. Do que se trata?
- Quem estava tocando aquela música no piano?
- Eu, por quê?
- Como é o nome dela?
- Não sei, apenas toquei.
- Ela é linda e posso até jurar que já a ouvi antes, só não sei quando ou onde...
- O mesmo aconteceu lá em casa. Também ficamos intrigados, mas não podemos deixar de dizer que, realmente, ela é linda. Agora, podemos ir jantar. A família vai estar toda lá e poderão conhecer a todos.
- Desculpe doutora, mas não podemos jantar ao lado da sua família...
- Por quê?
- A senhora sabe que somos simples e que não sabemos nos comportar a mesa, por isso, se não se incomodar, gostaríamos de comer aqui ou na cozinha.
Luana sorriu. Entendendo a situação deles, disse:
- Está bem, se acharem ser melhor assim, podem comer na cozinha. Então, vamos? O dia foi muito agitado e estou com fome.
Sorriu. Eles a acompanharam. Ela, para evitar constrangimento por parte deles, entrou pela cozinha. Disse:
- Alda, eles vão jantar aqui com vocês.
Alda olhou para eles, sorriu e disse:
- Tudo bem, senhora. Assim que terminar de servir a mesa, jantaremos aqui.
Felipe já havia descido e conversava com Jerusa e Diva. Luana entrou e foi recebida com um sorriso:
- Olá, Luana, estava conversando com as meninas. Jerusa me contou da sua preocupação em relação aos país do menino. Eu estava lhe dizendo que não precisa se preocupar, porque eles parecem ser pessoas de bem e só se preocupam com o filho. Portanto, ela pode ficar tranqüila.
Luana sorriu:
- Espero que tenha conseguido convencê-la, pois tentei e não consegui.
- Não sei o que acontece com vocês duas, nunca conseguem chegar a um acordo.
- Qual é o problema agora, papai?
Voltaram-se e olharam para Danilo que acabava de descer a escada e chegava à sala.
- Aquilo de sempre, Danilo. Sua mãe e sua irmã não conseguem ter a mesma opinião sobre qualquer assunto. Nem parecem mãe e filha.
Danilo, rindo, se aproximou e olhou para Diva que, paralisada, também olhava para ele. Jerusa apressou-se e disse:
- Diva, este e meu irmão, Danilo, não sei como consegue, mas sempre está de acordo com tudo o que mamãe diz.
Danilo estendeu a mão e, sorrindo, disse:
- Muito prazer, senhorita. Não ligue para o que Jerusa diz, ela, sim, está sempre em desacordo e faz um campo de batalha por qualquer motivo.
As mãos se tocaram, os olhares se encontraram e uma corrente elétrica percorreu o corpo dos dois. Diva, emocionada e com a voz embargada, disse:
- Muito prazer...
Ficaram se olhando por alguns instantes, quando Alda entrou, dizendo:
- O jantar está pronto e a mesa está servida, senhora.
- Obrigada, Alda, estamos indo.
Olhou para os outros e continuou:
- Podemos ir? Estou com muita fome e acho que todos vocês também.
Levantaram-se e a acompanharam.

REVENDO CONCEITOS

Rodolfo também chegou a casa e, como sempre, estava cansado. Médico dedicado, adorava sua profissão e entregava-se a ela de corpo e alma. Assim que entrou, foi recebido por Ivete, a empregada da casa:
- Boa noite, doutor.
- Boa noite, Ivete, tudo bem aqui em casa?
- Está tudo bem.
- Marília está bem?
- Está sim, só que não está em casa.
- Onde está?
- O senhor se esqueceu que hoje é dia de ela ir à Casa Espírita? Foi a tarde, deve estar chegando.
- Tem razão, esqueci completamente. Enquanto ela não chega, vou pura a biblioteca, avise-me assim que ela chegar.
- Pode deixar doutor, assim que ela chegar, eu o aviso. Pode ler tranqüilo.
Rodolfo sorriu e foi para a biblioteca, lugar onde sempre gostava de estar. Possuía muitos livros. Quase todos tratavam do cérebro humano. Olhou na estante, procurou e encontrou o que queria. Tinha fome do saber. Sentou-se e começou a ler. Era um livro recém-publicado. Desejava muito conseguir curar todas as doenças que partiam dele. Naquele dia, em especial, queria ler mais sobre paralisia infantil e tentar novamente, embora soubesse que não conseguiria, encontrar cura para aquela doença. O menino o havia impressionado muito. Não entendia o motivo, mas não havia gostado dele. Pensou: Já tratei de muitas crianças com paralisia cerebral, mas nunca senti, por nenhuma delas, o que senti hoje ao ver aquele menino. Que sensação foi aquela? Tudo o que aconteceu hoje é estranho. Por que não gostei daquele menino indefeso e, ao contrário, senti tanto carinho por sua mãe? Que sentimento foi aquele? Por que senti tanta vontade de abraçá-la como se já a conhecesse e da qual eu sentia tanta saudade? Será que Marília tem razão? Será que existem, mesmo, outras vidas? Não sei, mas estou sendo tentado a acreditar que sim, pois, se não existir, não haverá explicação para aquilo que aconteceu hoje. Porém, como posso acreditar nisso? Estudei medicina, conheço o corpo humano e, muito mais, o cérebro, embora precise admitir que pouco se conhece sobre ele. Depois do que aconteceu hoje, entretanto, estou muito confuso... será que Marília tem razão? Será que existe, mesmo, reencarnação? Voltou os olhos para o livro e continuou a ler. Teve de voltar algumas páginas, pois não havia se concentrado o suficiente. Mas, como da outra vez, seu pensamento estava distante das palavras escritas no livro. Relembrou o dia em que conheceu Marília. Eu estava no quinto ano e já me preparava para fazer residência, quando ela se matriculou na Faculdade em que eu estudava. Filha de um diplomata, morara nos últimos anos no México, onde freqüentou a faculdade de Medicina. Quando seu pai teve de voltar para o Brasil, trouxe seu histórico que foi reconhecido e conseguiu uma vaga na Faculdade. Ela estava no quarto ano. Lembro como se fosse hoje. As aulas daquele dia haviam terminado. Eu estava saindo, quando vi Raul acompanhado de uma moça. Ao se aproximar, ele disse:
- Rodolfo, há quanto tempo não nos encontramos? Ia lhe telefonar, pois preciso conversar com você.
- Olá, Raul. Tem razão, faz muito tempo, mas por que não me telefonou? Quer conversar sobre o quê?
- Todos os dias, penso em telefonar, mas sabe como é, sempre deixo para depois e acabo esquecendo. Estou precisando de um livro e, como você já o usou no ano passado, queria pedir emprestado.
- Não vejo problema algum. Tenho todos. Basta me dizer o nome e eu o trarei ou, se preferir, vá lá em casa para pegar.
- Acho melhor ir à sua casa, pois estudamos em horários diferentes e é difícil nos encontrarmos.
- Vá quando quiser, se eu não estiver em casa, alguém estará e poderá resolver o seu problema. Não vai me apresentar a sua amiga?
- Claro que vou! Desculpe-me, Rodolfo. Esta é a Marília e acabou de se matricular na Faculdade.
- Muito prazer, Marília. Seja bem-vinda.
- Obrigada, estou aqui há poucos dias e já estou me sentindo muito bem. Assim que a vi, embora já houvesse namorado muito, sem maiores conseqüências senti que ela era a mulher da minha vida. Pensando nisso, falei:
- Raul, estou indo para casa, não quer ir agora? Além de pegar o livro, poderá almoçar também. Sei que mora sozinho e deve sentir muita saudade da comida de casa.
- Para ser educado, poderia agradecer e dizer que não, mas, tem razão, morar sozinho não é fácil, e sinto, sim, saudade da comida de casa.
- Tudo bem, podemos ir. Quer ir também, Marília?
Ela pensou um pouco, depois, disse:
- Posso, só preciso telefonar lá para casa e avisar que vou demorar.
Telefonou e fomos para minha casa. A família de Raul era do interior e, por isso, ele morava em um dos apartamentos da faculdade. De vez em quando, almoçava ou jantava em casa. Minha mãe gostava muito dele, pois era um rapaz simples e alegre. Estava sempre contando uma piada, o que nos fazia dar boas gargalhadas. Daquele dia em diante, começamos a nos encontrar mais vezes. Raul namorava, já fazia muito tempo. Nora, que também estudava na faculdade e freqüentava o terceiro ano. Felipe namorava Luana, por isso, saíamos sempre juntos. Quando me formei, fiz residência clínica, mas não sabia que especialidade seguir. Marília se formou um ano depois e quis ser obstetra. Depois de formados, nos casamos e fomos felizes durante três anos.Rodolfo levantou-se, andou até a estante e colocou o livro de volta. Sabia que não tinha condições de continuar lendo. Voltou a se sentar e a pensar:Embora eu quisesse ter um filho, Marília dizia não ser à hora, pois desejava terminar sua especialidade e ter seu próprio consultório. Acatei seu desejo e tudo corria bem. Depois, devido a sua doença, nunca se sentiu com capacidade de ter, criar e educar uma criança. Mesmo sem filhos, éramos felizes, até aquela madrugada. Estávamos dormindo, quando Marília acordou, assustada, sentou-se na cama e, olhando para a parede em frente a cama, começou a gritar e a dizer:
- Quem é você? O que quer de mim?
Também acordei e também me assustei por ver a expressão de medo e desespero em seu rosto. Comecei a perguntar:
- O que está acontecendo, Marília? O que está vendo?
Ela, parecendo não me ouvir, continuou gritando:
- É mentira! Minha mãe está bem e não tem doença alguma!
- Marília! Fique calma! Diga o que está acontecendo e com quem está conversando!
Por mais alguns minutos, ela continuou conversando com alguém que eu, embora olhasse para o mesmo ponto que ela, não via. Desesperado e sem saber o que fazer, coloquei-me na sua frente para que ela não conseguisse ver o que havia na parede e comecei a sacudi-la e a dizer:
- Marília, acorde, você está dormindo!
Mesmo estando na sua frente, ela continuou, por alguns minutos, a dizer.
- É mentira! Minha mãe está bem e não vai morrer!
Desesperado e sem saber o que fazer, abracei-me a ela e fiquei assim por um bom tempo. Em seguida, ela, parecendo voltar de longe, deitou-se e adormeceu. Depois de constatar que ela dormia, levantei-me e fui para o banheiro. Lavei o rosto e, olhando para o espelho, pensei: o que foi que aconteceu? O que ela estava vendo? Com uma toalha sequei o rosto, pensando: Não preciso me preocupar, ela, embora estivesse com os olhos abertos, estava dormindo e sonhando. Voltei para a cama e, abraçando-me a ela, adormeci. Pela manhã, quando acordou, ela, lembrando-se do que havia acontecido, assustada, perguntou:
- Quem era aquele homem que estava no nosso quarto, Rodolfo?
- Não sei, pois, embora estivesse olhando para o mesmo ponto que você, não vi ninguém. Foi só um sonho ruim...
- Tomara que sim...
- Por que está dizendo isso?
- Ele disse coisas horríveis! Disse para eu ficar preparada, pois minha mãe vai morrer...
- Isso é bobagem, sua mãe está muito bem. Fique calma, foi mesmo um sonho. Rodolfo ajeitou-se na poltrona. Estava emocionado ao relembrar aquele dia. Não entendia, mas não deixava de pensar: Levantamos e fomos tomar café. Enquanto tomava café, Marília continuava distante, perguntei:
- Porque está tão distante, Marília?
- Como já lhe disse, eu vi aquele homem, Rodolfo, e ele me disse aquela coisa horrível... que minha mãe vai morrer...
- Como também já lhe disse, é bobagem, sua mãe está bem e, um dia, vai morrer,mas não vai ser hoje. Pare de se preocupar...
- Tomara que você esteja com a razão, mas estou preocupada. Assim que terminar de tomar o café, vou telefonar para minha mãe e saber se ela está bem mesmo.
- Faça isso, mas, agora, vamos tomar café, tranqüilos.
Foi o que fizemos. Não havíamos, contudo, terminado de tomar o café, quando o telefone tocou. Ivete, que estava na cozinha, atendeu. Logo em entrou na sala e, preocupada, disse:
- Doutor, a dona Sueli está no telefone e quer falar com o senhor.
Fiquei admirado, pois Sueli é irmã de Marília. Perguntei:
- Comigo, tem certeza?
- Tenho. Ela parece muito aflita.
Preocupado, olhei para Marília que, também assustada e chorando, se levantou e, antes que eu me levantasse, correu, pegou o telefone e perguntou:
- O que aconteceu com a mamãe, Sueli?
Também corri para o telefone e abraçando-me a ela, tentei ouvir o que Sueli dizia. Marília, após ouvir a irmã, entregou-me o telefone e, chorando mais ainda, disse:
- Eu sabia... eu sabia...
Ainda abraçado a Marília, perguntei:
- Alô, Sueli. O que aconteceu?
Ela também chorando, respondeu:
- A mamãe morreu esta madrugada, Rodolfo...
- Como morreu? Ela estava sentindo alguma coisa? Estava doente?
- Não, não estava doente, ao menos não sabíamos. Ela nunca nos falou a respeito. Papai disse que só percebeu pela manhã, ao tentar acordá-la.
- Morreu do quê?
- Não sabemos, o Milton acha que ela teve um enfarte...
- Na sua casa? O Milton já telefonou para a polícia? Eles devem vir buscá-la para que seja feita a autópsia. O papai nos telefonou assim que a descobriu e viemos correndo. Vocês vão vir para cá?
- Claro que sim, agora mesmo!
Desliguei o telefone. Ivete, enquanto eu falava com Sueli, levou Marilda de volta à cadeira em que estava sentada e ajudou-a a se sentar. Fui até ela e, abraçando-a, disse:
- Precisamos ir até lá, Marília.
- Eu lhe disse, Rodolfo... aquele homem me avisou... Fiquei sem saber o que fazer ou falar, pois havia presenciado tudo o que acontecera naquela madrugada. Sem muita certeza, eu disse:
- Foi apenas uma coincidência, Marília...
- Não foi, Rodolfo... aquele homem me avisou... você acompanhou tudo...
- Não sei o que aconteceu, mas não posso acreditar nisso que está dizendo. Continuo achando que foi só coincidência...
Abraçando-a, fiz com que se levantasse e nos encaminhamos para o quarto. Ela continuava chorando. Eu estava muito assustado com tudo o que havia acontecido. Fomos para o enterro. Durante todo o tempo, Marília permaneceu calada e com os olhos perdidos no espaço. Desesperado por vê-la assim, disse-lhe:
- Não pode ficar assim, Marília. Como médica sabe que, assim como o nascimento, a morte também existe.
Ela não me olhou nem falou comigo. Daquele dia em diante, mudou completamente. Estava sempre distante. Ficava quase o tempo todo deitada e olhando para um ponto qualquer. Conversava com alguém que só ela via. Chorava e ria. Sentia medo e, às vezes, parecia estar em paz. Preocupado, levei-a ao consultório do Nelson, um amigo nosso que é psiquiatra. Após examiná-la, chamando-me à parte, disse:
- Ela está tendo ataque psicótico. Com medicamentos, ficará bem.
- Vai demorar muito tempo?
- Não, se tomar as doses certas e cumprir os horários, em breve estará bem.
Voltamos para casa, mas, antes, passamos em uma farmácia e comprei os medicamentos. Expliquei a ela o que Nelson havia dito. Para minha surpresa, ela, calmamente, disse:
- Não vou tomar, Rodolfo! Aquele homem que apareceu ontem disse que, se eu começar a tomar remédios, vou perder o meu controle totalmente e não terá mais volta. Vou ficar louca!
Nervoso, eu disse:
- Você não está bem, mesmo, Marília! Claro que vai tomar os remédios. Você é inteligente, uma médica, como pode se deixar levar por essas crendices? Não consigo acreditar que esteja agindo assim.
- Também não entendo o que está acontecendo, mas sei que não se trata de crendice! Você pode não acreditar, mas eu vi e ouvi, Rodolfo! Tudo o que ele disse aconteceu! Minha mãe, apesar de estar bem, morreu da maneira como ele disse! Você estava lá, acompanhou tudo!
- Não vamos mais falar sobre isso. Você não é criança, sabe que os remédios são necessários!
- Não vou tomar! Agora mesmo ele está dizendo que não posso tomar. Disse que em breve estarei bem, sem medicamentos que só me tornarão dependente e tirarão de mim a faculdade de discernir entre o que é certo e errado.
Vendo que ela não mudaria de opinião, modifiquei meu tom de voz e disse:
- Está bem. Já que é assim que deseja, por um tempo, não precisa tomar os remédios, mas se a sua atitude continuar igual, se ficar pelos cantos conversando com alguém que só você vê, chorando e rindo, não haverá alternativa. Terá de tomar. Está bem assim?
Ela, beijando-me, disse:
- Está bem, não se preocupe, Logo tudo isso vai passar.
- Como sabe?
- Ele acabou de me dizer.
- Está bem, vamos tentar. Sabe que a amo e que não quero que nada de mal lhe aconteça. Por isso, estou tentando encontrar uma cura para isso que está acontecendo para que nossa vida volte a ser como antes.
- Sei disso... também amo você, mas não se preocupe, tudo vai ficar bem.
Quando chegamos a casa, fomos para o quarto. Ela deitou-se e ficou com os olhos presos na mesma parede da noite anterior. Embora não dissesse, sabia que estava conversando com aquele homem. Ao constatar isso, dei-lhe um beijo e saí do quarto. Fui para a cozinha, onde Ivete estava conversando e ajudando a cozinheira. Entrei e disse:
- Ivete, Marília não está bem e precisa tomar remédios, só que se recusa. Fingi que aceitei sua decisão, por isso vou lhe dar os remédios e horários em que devem ser administrados. Para que ela não desconfie, coloque no leite ou suco.
- Está bem, doutor, vou fazer isso, mas ela não está bem, mesmo. Estou preocupada...
- Eu também, faça da maneira como lhe disse e tudo ficará bem.
- Vou fazer...
Voltei para o quarto. Marília continuava na mesma posição. Deitei-me ao seu lado e fiquei em silêncio. Na hora do almoço, Ivete fez um suco de uva que sabia que, ao contrário de mim, Marília gostava muito. Ao ver o suco, e entendendo a intenção de Ivete, fingi estar nervoso e perguntei:
- Ivete, que suco é esse?
- De uva, doutor...
- Sabe que não gosto desse suco!
- Desculpe, eu esqueci, mas já vou preparar um de laranja. A dona Marília gosta deste.
- Está bem, traga o meu suco. A Marília que tome esse. Não entendo como alguém pode gostar de suco de uva!
Ivete saiu e, logo depois, voltou com uma jarra de suco de laranja. Coloquei em meu copo, estava começando a tomar, quando Marília disse:
- Não vou tomar este suco.
- Por que não?
- O homem está dizendo que não é para eu tomar, que você colocou os remédios nele. Ivete, vou tomar o suco de laranja.
Antes que disséssemos alguma coisa, ela continuou:
- Ivete, por favor, pegue outro copo.
- Você precisa tomar os remédios, Marília!
- Já lhe disse que não vou tomar. Disse-lhe também que logo ficarei bem.
Diante de sua recusa, concordei e fiquei pensando em uma maneira de fazer com que fosse medicada. Chamei Ivete e lhe disse:
- Ivete, precisamos fazer com que ela tome os medicamentos. Pense em algo.
- Está bem, doutor, vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance.
Daquele dia em diante, Marília mudou de atitude, dizendo que não via nem ouvia nada mais. Acreditei e, por um bom tempo, parecia que as coisas haviam voltado ao normal. Ela voltou a ser da maneira como sempre fora. Conversava, ria e estava sempre de bom humor. Pensei que a paz havia voltado para casa, por isso desisti de lhe dar os remédios. Tudo corria bem. Uma tarde, estava no hospital, trabalhando, quando comecei a sentir uma dor de cabeça muito forte. Resolvi voltar para casa. Assim que cheguei, Ivete me informou que Marília estava dormindo. Fui até o quarto e abri aporta bem devagar para não acordá-la. Entrei e parei. Ela sem perceber a minha presença, dizia:
- Ele não vai aceitar, acho melhor continuarmos assim como estamos.
Ficou calada por mais alguns instantes, depois disse:
- Eu entendo tudo o que está me dizendo, mas devemos convir que, para alguém como Rodolfo, isso é inacreditável...
Silêncio novamente. Ela levantou-se e foi até onde eu estava. Ao me ver ali, estático e quase sem cor, começou a rir e perguntou:
- Está me espionando, Rodolfo?
Envergonhado, como se fosse uma criança pega fazendo uma travessura, respondi:
- Entrei devagar para não incomodá-la, não sabia que estava com visitas.
- Não estou com visitas, termine de entrar e venha para a cama.
Entrei e constatei que ela estava sozinha. Nervoso, perguntei:
- Ainda continua conversando com aquele homem que ninguém vê, Marília?
Ela, para minha surpresa, calma, respondeu:
- Sim. Converso com ele, várias vezes por dia.
- Você está louca!
Ela começou a rir e respondeu:
- Não estou louca, Rodolfo, só conhecendo outro tipo de vida desconhecida pela maioria das pessoas...
- Que tipo de vida?
- Aquela que existe depois da morte...
- Que asneira está dizendo? Que vida existe depois da morte? Está louca mesmo! De onde tirou essas ideias?
- Quando você me levou ao psiquiatra, também aceitei que não estava bem e que aquilo que sentia era um sintoma de loucura. Fiquei deprimida por algum tempo, mas o homem que me visita sempre disse para eu não me preocupar, que eu era médium e que tinha uma missão muito importante. A princípio, não aceitei, mas, depois de muito conversar, ele pediu que eu entrasse em contato com a Marta. Lembra-se dela?
- Claro que sim, aquela que, segundo o que dizem, segue a Doutrina dos Espíritos e que sempre me pareceu meio fora da realidade?
Marília riu gostosamente. Tanto que fiquei admirado, pois, em uma situação como aquela, deveria, ao menos, ter ficado nervosa por ter sido descoberta.
- Ela não é louca, Rodolfo, apenas estudou e aprendeu a lidar com os mortos...
- Mortos? Você, assim como eu, sabe que o corpo, com a morte, se desfaz e nada sobra. Esse negócio de alma ou espírito foram inventados para que os poderosos pudessem controlar os mais fracos. Depois da morte, nada mais existe, Marília!
- Enquanto estudei, também pensei assim, mas, hoje, não penso mais. Existe uma vida depois da morte.
- Que vida?
- Igual a esta que temos aqui...
- Não consigo entender nem aceitar!
- Sei que é difícil para você, mas, se tiver boa vontade, poderei lhe explicar. Aprendi muito com a Marta e com o Euclides.
- Quem é Euclides?
- O homem que começou a conversar comigo.
- Começou? Por que, tem mais algum?
Ela, parecendo dizer a coisa mais normal do mundo, rindo, respondeu:
- Sim, muitos...
- Está louca, mesmo!
- Não estou louca. Seguindo os conselhos da Marta e de Euclides, comecei a ler e a entender o que estava acontecendo comigo. Sou médium e posso ver e falar com os espíritos. Com isso, poderei ajudar não só a pessoas, como aos mortos também. A pessoa, quando morre, muitas vezes fica perdida, sem encontrar o caminho. Com a minha ajuda, poderá ser encaminhada.
- Não sei o que dizer. Você, embora fale como louca, está muito bem. Não sei o que anda lendo, mas, se lhe fizer bem, continue.
- Tenho alguns livros e acho que seria bom que lesse sem preconceito.
- Não tenho interesse. Só quero que se sinta bem. Volto a repetir, se isso lhe faz bem, continue.
- Venha, deite-se ao meu lado. Vamos conversar.
- Não, não estou bem, vou sair um pouco e pensar no que fazer.
- Está bem. Assim que tiver decidido alguma coisa, venha conversar comigo.
Embora ela tivesse dito o que estava acontecendo, nervoso e ofendido, por ela ter me escondido o que estava acontecendo, sai do quarto e fui para o jardim. Sentei-me em um dos bancos e fiquei pensando: Ela parece normal, mas está completamente louca e eu não sei o que fazer para ajudá-la. Fiquei sentado sob uma árvore. A tarde estava agradável, havia uma brisa fresca. Continuei a pensar: Estou há tanto tempo formado e exercendo atendimento clinico, por que, até agora, não me decidi que especialidade fazer? Agora, acho que encontrei. Para ajudar Marília, preciso entender o que está se passando com ela. A melhor maneira de fazer isso é aprender tudo sobre o cérebro. Vou fazer especialização em psiquiatria. Preciso entender o cérebro humano e assim descobrir o tipo de doença que a está acometendo. Foi o que fiz. No dia seguinte, logo pela manhã fui até a faculdade e me informei de quando começaria a nova turma e me matriculei. Estudei com afinco, mas, por mais que pesquisasse, não conseguia descobrir qual era o problema de Marília. Porém, para minha surpresa, me apaixonei pelo estudo do cérebro e resolvi me especializar em neurologia. Precisava entender não só o psique, mas também o interior do cérebro. Marília, sabendo que eu não gostava daquela Doutrina, nunca mais falou sobre ela. Fingia que estava bem e eu fingia que acreditava. Com o tempo, vendo que ela estava bem mesmo, aceitei que lesse para mim e que freqüentasse uma casa espírita. Ela falava sobre a vida pós-morte, encarnação e reencarnação. Mesmo assim, eu não dava muita atenção, pois, como cientista, não podia aceitar. Sabia que ela tinha um problema cerebral e que era questão de tempo para eu descobrir. Mas, depois de hoje, diante do que senti ao ver aquela moça, o desejo de dar-lhe um abraço saudoso e, por aquele menino, um ódio inexplicável, só me resta perguntar: será que existe mesmo encarnação e reencarnação? Será que já conheci aquela moça?Preciso confessar que estou em dúvida. Preciso ler os livros e conversar com Marília... Olhou para o relógio de pulso, levantou-se, saiu da biblioteca e seguiu por um longo corredor. Entrou na sala no exato momento em que Marília também entrava. Ao vê-lo, disse, sorrindo:
- Olá, Rodolfo! Desculpe-me pelo atraso, mas, por um motivo especial, a reunião se estendeu.
Aproximaram-se e beijaram-se, de leve, nos lábios. Curioso, ele perguntou:
- Que motivo foi esse, posso saber?
- Claro que pode. Vamos nos sentar e eu lhe contarei.
Sentaram-se em um dos sofás da sala. Ela disse:
- Como sempre, estávamos em reunião. Às segundas-feiras, temos desenvolvimento mediúnico, onde os médiuns pintam belas telas, compõem músicas e recebem mensagens através da palavra falada e escrita. Como você sabe, eu recebo mensagens através da escrita. Já estou até escrevendo um livro.
- Sei que está escrevendo um livro, mas sei também que, até agora, não quis que eu lesse uma palavra sequer.
- Vou lhe mostrar no dia em que acreditar que não sou eu quem o está escrevendo.
- Por que está dizendo isso?
- Sei que não acredita que um espírito possa envolver as vidas das pessoas e que se eu lhe mostrar o meu livro, vai dizer que é obra minha e não de um espírito, quando, na realidade, tenho certeza de que não é assim e que quem me envia através da intuição é o Euclides.
- Você me conhece muito bem. Se eu acreditar no que está dizendo, vou ter de acreditar que todos os livros escritos são obras dos espíritos.
Ela sorriu e, piscando um olho, disse:
- Por que não?
- Porque nem todos os escritores são espíritas...
- Porém, todos são filhos do mesmo Deus, Rodolfo e, portanto, todos têm suas energias, seus amigos e inimigos espirituais. Já lhe disse algumas vezes que, para Deus, não existe religião. Todas elas não passam de denominações criadas pelos homens. Deus é o criador de tudo e de todos. As denominações religiosas e as fronteiras entre países também foram criadas pelos homens. Para Deus, nosso criador, somos, todos, Seus filhos amados e todos, sem exceção, estamos caminhando para a perfeição. Por isso, acredito que não só os livros, mas as músicas, as pinturas e todas as invenções que, aparentemente, pertencem aos seus criadores, não passam de inspiração Divina para que nossa vida, aqui na Terra, seja sempre melhor e que, através delas, possamos viver em paz.
- Se tivesse me dito essas coisas em outros tempos, Marília, eu não acreditaria, mas, hoje, é diferente. Estou levado a crer que pode até ser verdade...
Ela, admirada, pois nunca pensou ouvir isso ou qualquer coisa parecida, perguntou:
- Por que está dizendo isso, Rodolfo?
- Hoje aconteceram coisas muito estranhas...
- O que aconteceu?
Ele lhe contou de como se sentiu desde que viu o menino e sua mãe. Terminou, dizendo:
- Não sei Marília, mas, durante o dia, fiquei pensando em tudo o que você tem falado e cheguei a acreditar que existe, mesmo, reencarnação...
- Existe, sim, Rodolfo! Pois, se não existir, não teremos respostas para muitas coisas que acontecem no mundo!
- Se realmente existir, o que significa aquela vontade de abraçar aquela moça? Será que já a conheci antes?
Ela, rindo, e com um ar de preocupação, perguntou:
- Pode ter certeza que sim, Rodolfo, por tudo o que está me dizendo, chego até a ficar preocupada. Será que ela é um amor antigo?
- Não, Marília! A vontade de abraçá-la não era a de um homem para com uma mulher, mas, sim, a de um amigo, diria até que a de um irmão...
- Você deve se sentir um privilegiado, pois a encontrou aqui na Terra e pode confirmar. Posso lhe garantir que isso acontece com poucas pessoas. Podemos ter a sensação de ter conhecido alguém, mas nunca a certeza. Você pode ter a certeza disso.
- Como posso confirmar?
Ela, sorrindo, abriu a bolsa e dela tirou um papel que entregou a ele, dizendo:
- Eu lhe disse que a reunião atrasou, só não disse o motivo. Estávamos terminando a reunião, senti uma vontade imensa de escrever. Voltei a pegar o papel e o lápis que já havia guardado e escrevi isso. Não entendi, mas, depois de tudo o que me contou, resolvi mostrá-lo para você.
Rodolfo, desconfiado, pegou o papel e começou a ler:

Sinhazinha Rita,

Tenho uma mensagem pra lhe dá. Leva ela pro sinhozinho Rodofo i avisa qui à sinhazinha cabô de chegâ. A sinhazinha, irmã dele, vortô pra ele incuntrá. Agora ele vai pode Judá cum carinho e amô. Qui ela vai percisá. Tão tudos junto de novo. Pra judá aqueles que no caminho ficô. Deus bençoe a todos Por aceitá a missão. Com muito amo. O mais importanti di tudo, não podi si esqucê, não qui é di dá o perdão di todo coração. Quem tá iscrevendo essas coisas pro sinhozinho é o Pai Juaquim, que nunca dexô eli suzinho.

Rodolfo, emocionado, terminou de ler e olhou para Marília, perguntando:
- O que significa isto, Marília?
- Não sei Rodolfo, apenas escrevi o que me foi intuído. Confesso como já lhe disse, que também não entendi e não ia mostrar para você, mas, diante de tudo o que me contou, resolvi mostrar.
- É muito estranho, mas, se for verdade, aquela moça foi minha irmã, Marília?
- Não sei Rodolfo, mas tudo leva a crer que sim.
- Isso explicaria, também, o carinho que Danilo sentiu pelo menino...
- Talvez.... precisamos conversar com a Luana e o Danilo...
- Acha que será bom? Sabe que eles não acreditam em nada disso, Rodolfo.
- Sei disso, mas, embora não tenhamos conversado a esse respeito, posso garantir que Luana também sentiu alguma coisa em relação à moça!
- Acredita mesmo, Rodolfo? Será que ela também fez parte do seu passado?
- Agora, neste momento, não sei se acredito ou não, mas estou curioso e preciso obter respostas.
- Também estou curiosa. Mas, agora, está na hora de jantarmos. Depois do jantar, você telefona para Luana e conversa com ela. Está bem assim?
- Tem razão, com tudo o que aconteceu, até esqueci que estava com fome, mas, agora, ela voltou com toda força. Vamos jantar, depois conversaremos com a Luana.
Levantaram-se e foram em direção à sala de refeições, onde a mesa já estava colocada. Sentaram-se.

DESENTENDIMENTOS

Na casa de Luana, terminaram de jantar e voltaram para a sala de estar. Sentaram-se. Danilo e Diva tentaram disfarçar, mas, quando um não estava olhando, o outro olhava. Algumas vezes, os olhos se encontraram e sentiram-se constrangidos. Mesmo assim, tentaram conversar com os outros. Felipe, sem perceber o que estava acontecendo, disse:
- Bem, Diva, você pode se considerar uma privilegiada.
- Por que o senhor está dizendo isso?
- É a primeira amiga que Jerusa traz para que conheçamos. Não sei se sabe, mas ela sempre foi muito sozinha e calada. Nunca confiou em alguém o suficiente para considerá-lo amigo. Nós sempre achamos e dissemos a ela que, diferente de todos nós, é anti-social.
- Talvez tenha sido esse o motivo para nos darmos bem, pois também sou considerada por minha família dessa maneira. É, preciso controlar, tenho dificuldade em fazer amizades. Sou muito reservada.
Disse isso, olhando para Danilo, que sorriu. Jerusa, demonstrando nervosismo, disse:
- Não se trata de ser anti-social, não suporto as conversas fúteis das moças de minha idade. Só pensam em namoros e rapazes!
- Ora, minha filha. Elas estão certas, vivem sua idade. É natural que os jovens sintam atração pelo sexo oposto.
- Entendo isso, mamãe, mas não pode ser o único objetivo da vida.
- O jovem pode e deve viver sua idade no tempo certo, pois o tempo fará com que encontre o seu caminho, mas, se você pensa assim, só nos resta aceitar. Sei que, mesmo sendo criados da mesma maneira, os filhos são diferentes. Acho que o instinto e as tendências fazem parte de cada um. Agora, parece que você encontrou uma amiga e isso é muito importante e, ao mesmo tempo, fico preocupada.
- Preocupada com o quê, mamãe?
- Por nunca ter tido uma amiga, me preocupa que você se entregue a essa amizade com muito ardor, que espere muito dela e possa, por isso, ser machucada.
- Por que está dizendo isso, senhora? Acha que não sou boa companhia para sua filha? - Diva, ofendida, perguntou:
- Não, acho que você será uma ótima companhia. O que me preocupa é Jerusa pensar que, por ser sua amiga, você não tenha defeito algum, quando, na realidade, não existe ninguém perfeito. O que me preocupa é ela esperar demais.
- Não sou perfeita, tenho meus erros e minhas qualidades, mas posso lhe garantir que minhas qualidades são maiores.
- Não duvido disso, só quero alertar Jerusa para o fato de sonhar demais e dever aceitar a todos como são, não importa se ricos, pobres, cultos ou não. Ela tem muito preconceito, você já pôde notar. Desconfia de todos e se deixa levar pelas aparências. Isso, quase sempre, causa dor.
- Ora, mamãe, sei qual é o motivo disso que está dizendo.
- Não existe motivo algum, só me preocupo com você e não quero que sofra. O preconceito e a solidão só trazem tristeza e sofrimento.
- Eu não sofro nem me sinto só, mamãe! Sou até muito feliz. Só não tenho paciência para conversas fúteis.
- Está bem, Jerusa, não vamos discutir mais.
- A senhora está dizendo tudo isso, porque eu disse que não deveria ter trazido para casa essas pessoas que encontrou na estrada e que não sabe quem são.
- Em parte, é isso mesmo, você não os conhece e já está sendo injusta. São pessoas simples, sim, mas de boa índole.
- Como pode saber, mamãe? Acabou de conhecê-los!
- Não os conheço, mas sei sentir e sinto que são pessoas boas.
- Já que é assim, quero conhecer essas pessoas e ver se tenho o mesmo sentimento.
Sem que pudesse ser impedida, Jerusa levantou-se e caminhou em direção à cozinha. Luana, preocupada, também se levantou e foi atrás. Jerusa entrou na cozinha, olhou para Luísa que estava sentada comendo e de frente para ela e, fingindo calma, disse:
- Boa noite, estou aqui para conhecer as pessoas que minha mãe trouxe para casa.
Luísa levantou-se, o mesmo fez Tobias que estava sentado de costas para a porta por onde ela entrou e ficou, agora, sim, de frente. Jerusa olhou para Luísa e sorriu, dizendo:
- Muito prazer, parece que conquistaram toda a minha família.
- Obrigada, senhorita, a sua família é muito boa...
- Sei que é, por isso, sujeita a ser enganada.
Luana que chegara logo atrás, disse com a voz grave e demonstrando descontentamento:
- Jerusa, quero lhe apresentar os nossos convidados.
Jerusa, fingindo não perceber que mãe estava lá, voltou-se para ela, olhou em seus olhos e não pôde dizer palavra alguma. Tobias, que havia notado o tom ríspido como ela falava, encarou-a. Jerusa olhou para ele por alguns instantes e depois, sem nada dizer, saiu da cozinha e, calada, foi para seu quarto. Luana, constrangida, disse:
- Desculpem minha filha, ela é assim mesmo, desconfia de tudo e de todos, mas, quando a conhecerem melhor, verão que é uma ótima pessoa.
- Não precisa se desculpar, doutora. Entendemos a atitude dela.
Afinal, somos estranhos e a senhora nos trouxe para sua casa. É natural que ela desconfie.
- Tem razão, mas ela vai entender. É uma boa moça...
Luísa sorriu. Tobias ficou intrigado, mas se calou. Luana voltou para a sala, onde todos continuavam conversando, menos Jerusa. Disse nervosa:
- Felipe, sua filha não está bem! Ela precisa de um tratamento!
- Não sei por que você está tão nervosa, Luana. Ela sempre foi assim. Sempre se isolou, parece que sente alguma culpa.
- Culpa do quê, Felipe?
- Como vou saber, ela só diz que sente culpa, mas, também diz que não sabe o motivo.
- Até entendo, mas isso não lhe dá o direito de ser indelicada! Você precisa conversar com ela!
- Vou conversar, mas não vai ser hoje. Ela precisa ficar só e pensar em tudo o que fez e na sua vida.
- Acalme-se, mamãe. A senhora está nervosa à-toa. Sabe que ela sempre age assim, para, logo em seguida, se arrepender e pedir desculpa.
Diva, também constrangida por aquela situação, olhando para todos e, principalmente para Danilo, disse:
- Preciso conversar com ela e, se permitirem, vou até o seu quarto.
- Claro que pode ir, Diva, e desculpe-nos por essa situação desagradável.
- Se vai morar aqui conosco, precisa ir se acostumando. Jerusa faz questão de sempre provocar uma crise.
- Não fale assim, Danilo! Ela é sua irmã!
- É minha irmã, sim, mamãe, mas não é por isso que não sei os defeitos que tem... - disse, rindo.
Diva levantou-se e foi para o quarto de Jerusa. Bateu, devagar, à porta e entrou. Jerusa estava deitada e chorando. Diva se aproximou e perguntou:
- Por que está assim, Jerusa?
Jerusa, que estava com o rosto virado para o outro lado, voltou-se e respondeu:
- Não sei, Diva! Não consigo me enquadrar nesta família! Parece que não faço parte dela! Parece que sou uma estranha! Ninguém gosta de mim!
- Não fale assim, Jerusa, isso não é verdade. Sua família gosta muito de você e está preocupada. Sua mãe disse que você precisa de ajuda, de um tratamento. Quem sabe, alguém possa ajudá-la a entender o que está acontecendo.
- Você também está achando que preciso de um tratamento psiquiátrico? Também acha que sou louca?
- Não! Não disse isso. Acho que precisa conversar mais e dizer o que está sentindo. Não entendo sua reação, estava bem e, de repente, se descontrolou. Quando foi para a cozinha, estava bem, o que aconteceu lá?
- Estava bem, mesmo, só queria afrontar minha mãe.
- Por quê, Jerusa? Sua mãe me pareceu ser uma pessoa muito boa.
- Esse é o problema! Ela é muito boa e está sempre tentando ajudar as pessoas! Você mesma viu que ela, sem pensar nas conseqüências, trouxe para nossa casa aquelas pessoas que conheceu na estrada. Nem sabe de quem se trata. E se forem bandidos?
- Existem pessoas que são assim, Jerusa. Cada um é da maneira que é e ninguém fará que mudem. Aprendi com minha mãe que devemos aceitar a todos da maneira como são.
- Nisso está certa, então, por que não me aceitam como sou?
- Eu aceito, mas até agora não entendi qual foi o motivo de ter ficado tão descontrolada.
- Não sei lhe responder, Diva. Entrei na cozinha para conhecer as pessoas. Quando vi a moça, senti um ódio incontrolável, mas, quando olhei para o rosto do marido, estremeci, senti muita ternura, uma vontade imensa de abraçá-lo, beijá-lo e de pedir-lhe perdão.
- Perdão, por quê, do quê, Jerusa?
- Não sei dizer, mas senti um enorme sentimento de culpa. Assim que o vi, fiquei paralisada e não pude dizer uma palavra sequer. Não sei o que estava acontecendo e me desesperei.
- Também não consigo entender... o que será que isso significa, Jerusa?
- Não sei... não sei...
- Não entendemos, mas deve existir uma resposta. Sempre existe...
- Não sei, Diva, mas, às vezes, chego a pensar que tia Marília, que todos consideram louca, é quem está com a razão...
- Quem é tia Marília?
- A esposa do meu tio Rodolfo. Ele é irmão do meu pai.
- Por que ela é considerada louca?
- Ela diz que vê os mortos e fala com eles.
- Como?
- É isso mesmo, Diva. Diz que existe vida após a morte e que nascemos e renascemos muitas vezes.
- Você acredita nisso?
- Até agora, não, porém, estou sendo levada a creditar.
- Por que está dizendo isso, Jerusa?
- Porque, se realmente existir reencarnação, eu teria respostas para tudo o que está acontecendo e o que estou sentindo.
- Não estou entendendo...
- Segundo ela, nascemos e renascemos muitas vezes em lugares e situações diferentes. Isso explicaria a culpa que sinto, não sei do quê. O ódio qui senti por aquela moça e a ternura que tive para com seu marido.
- Isso é muito louco, Jerusa!
- Também sempre achei isso, mas, hoje, não sinto mais. A reencarnação explicaria por que me sinto tão diferente de todos aqui em casa. Ela, enfim, explicaria tudo...
- Sendo assim, por que não telefona para sua tia e conversa com ela?
- Não sei... ela foi sempre tão discriminada, que, talvez, não queira falar a respeito. Meu tio não fala e a família também não. Ela é muito reservada e nos visita muito pouco.
- Nada entendo sobre isso e devo confessar que nunca me preocupei muito com essa história de religião. Acredito que só o trabalho constrói e faz com que as pessoas possam viver com dignidade, mas, diante disso que disse, gostaria de conhecer melhor, pois também tenho alguns questionamentos que, talvez, só a reencarnação possa responder.
- Estou pensando muito nisso...
- Ainda é cedo, Jerusa, telefone para sua tia. Quem sabe ela esteja disposta a conversar a respeito.
- Acha que devo fazer isso?
- Por que, não? Para tudo, na vida, existem só duas respostas. Sim ou não. Portanto, ela pode dizer que aceita ou não conversar com você. Se disser sim, ótimo. Marque um encontre e converse, tire todas as suas dúvidas. Se disser não, procure em outros lugares. Deve existir literatura que fale a esse respeito.
Jerusa ficou olhando para Diva por alguns instantes, depois, disse:
- É isso que vou fazer. Vou telefonar agora mesmo.
Pegou o telefone e discou o número da casa de Rodolfo. Ele atendeu e se admirou:
- Jerusa! O que aconteceu?
- Nada de grave, tio. Eu queria falar com a tia Marília. Ela está aí e pode me atender?
- Está e acredito que possa atendê-la, mas do que se trata?
- De um assunto muito sério. Preciso conversar com ela.
- Está bem. Vou passar o telefone para ela.
Intrigado, entregou o telefone para Marília, que também, curiosa, atendeu:
- O que aconteceu, Jerusa? Por que está telefonando a esta hora?
- Desculpe o horário, tia, mas preciso falar, urgente, com a senhora!
- Você está muito nervosa. O que aconteceu?
- Preciso conversar com a senhora sobre reencarnação.
- O quê?
- É isso mesmo, tia. Estou com algumas dúvidas e acredito que só a senhora poderá me ajudar!
- Fique tranqüila. Eu e o Rodolfo conversamos e decidimos que, assim que terminássemos o jantar, ele ia telefonar para seus pais. Precisamos mostrar-lhes algo e conversar a respeito. Assim que desligar o telefone, ele vai telefonar e iremos até aí. Está bem assim?
- Está, tia. Não sei de qual assunto irão tratar, mas, seja qual for, antes de ir embora, preciso muito falar com a senhora.
- Estamos telefonando e indo.
- Obrigada, tia. Estarei esperando.
Desligou o telefone e disse para Diva:
- Eles pretendiam mesmo vir aqui em casa conversar com meus pais, Diva.
- Sobre o quê?
- Ela não disse, mas deve ser um assunto muito grave para virem a noite.
- Vamos esperar e, depois que conversarem, traga sua tia aqui para o quarto e converse com ela. Sinto que, depois dessa conversa, tudo vai ser esclarecido e você se sentirá melhor.
- Assim espero... assim espero...
No mesmo instante, Felipe conversava com Rodolfo pelo telefone:
- Precisamos conversar com você, Felipe, principalmente com Luana e Danilo.
- Do que se trata, Rodolfo? Está me parecendo nervoso. Estou preocupado...
- Não estou nervoso, só precisamos conversar e esclarecer algumas coisas e não pode ser por telefone. Podemos ir até aí?
- Podem, claro que podem. Nem precisava ter telefonado. Marília também vem?
- Sim. Trata-se de um assunto que só ela poderá esclarecer.
- Estaremos esperando.
Desligou o telefone e, atônito, olhou para Luana e Danilo que também o olhavam. Luana perguntou:
- O que aconteceu, Felipe?
- Não sei. Rodolfo disse que Marília precisa conversar conosco.
- Marília? Conversar conosco? Sobre o quê?
- Não sei. Ele não disse.
Luana, balançando os ombros, disse:
- Só nos resta esperar para ver do que se trata. Deve ser um assunto muito sério para Marília vir aqui.
Foi o que fizeram. Esperaram.

RECONHECIMENTO

No dia seguinte, Luana e Felipe tomavam café, quando Jerusa e Diva entraram apressadas:
- Bom dia, mamãe, papai.
- Bom dia, Jerusa, bom dia, Diva. Sentem-se.
Diva e Jerusa sentaram-se, Luana disse: Hoje não precisa chamar o táxi, Jerusa.
- Por que não, mamãe?
- O Tobias, aquele rapaz que eu trouxe aqui para casa, é motorista e vai levá-las para a faculdade. Já deve estar esperando, portanto, apressem-se.
- Ele é motorista?
- Sim, mostrou-me a carteira de motorista. Ele vai estar à disposição de você e da Alda. Vai ficar no lugar do senhor João.
- Será que vai dar certo, mamãe? Ele conhece a cidade?
- Não sei se vai dar certo, ele não conhece a cidade, mas você ensinará o caminho para que ele possa chegar à faculdade e a Alda, o caminho que precisar. Sabe que temos necessidade de um motorista. Já que ele está aqui, vamos experimentar.
- Não sei, não...
- Não sabe o quê, Jerusa?
- Não sei se ele tem competência para exercer esse cargo.
- Para isso, existe um tempo de experiência. Vamos tentar e, depois, veremos.
- Está bem, a senhora tem razão. Vamos, Diva. Estamos atrasadas e ainda teremos de ensinar o caminho. - disse, contrariada.
- Teremos, não, Jerusa! Você terá, pois eu também não conheço o caminho.
Jerusa sorriu e disse:
- Tem razão, eu sou a responsável pela nossa chegada à Faculdade. Onde está o Danilo?
- Ele saiu agora pouco. Não tem medo de dirigir... - Luana disse com ironia na voz.
- A senhora não se conforma com esse meu medo, não é mamãe?
- Não me conformo mesmo e não entendo como uma pessoa pode não gostar de dirigir!
- Eu não gosto, sabe que tenho medo.
- Você tem medo e desconfia de tudo e de todos! Como pode ser isso?
- Não sei... Sinto-me culpada, não sei bem do quê...
- Acho que deveria procurar ajuda.
- Sabe que já fiz isso, mas ainda não encontrei o motivo...
- Está bem. Não precisa ficar aflita. Termine de tomar seu café e vá para a faculdade.
Terminaram de tomar o café, despediram-se e saíram. Como Luana havia dito Tobias, vestido com um terno preto, camisa branca e um quepe, também preto, estava postado junto ao carro que havia terminado de lavar. Jerusa se aproximou, dizendo:
- Bom dia!
- Bom dia, senhoritas...
Abriu a porta de trás do carro para que entrassem. Elas, em silêncio, entraram e sentaram-se. Tobias abriu a porta do motorista, entrou e colocou o carro em movimento. Assim que chegou à esquina, ele, um pouco constrangido, disse:
- Senhorita, sua mãe lhe disse que eu não conheço o caminho. Nunca dirigi em uma cidade grande.
- Sim, não se preocupe, eu ensinarei. Pode virar à esquerda.
Ele obedeceu. Enquanto dirigia, pelo retrovisor olhava para Jerusa que fingia não ver. Ele, constrangido, voltava os olhos para a estrada e pensava: Essa moça não gosta de mim. O que vai acontecer se ela reclamar qualquer coisa para a doutora? Ela foi tão boa, está cuidando do nosso filho e nos deu um teto. Tomara que eu consiga fazer com que essa moça me aceite. Preciso conseguir isso... Jerusa, embora fingisse que não estava percebendo, sentia seu olhar e, por mais que quisesse, não podia desviar o seu. Também pensava: Eu posso até jurar que já vi esses olhos em algum lugar. Onde terá sido? Eles dizem que nunca moraram aqui na cidade... será que foi de outra encarnação? Se tia Marília estivesse aqui, provavelmente diria que sim...
Após alguns minutos por aquela via, Jerusa disse:
- Na próxima, entre novamente à direita. Estamos perto.
- Sim, senhorita.
Ele dirigia com atenção, fazendo esforço para decorar o caminho. Diva, ao perceber o silêncio que havia se instalado, disse:
- Esta cidade é realmente muito bonita Jerusa! Embora soubesse que era grande, nunca imaginei que fosse tanto.
- Realmente, é grande e bonita. Está vendo só uma pequena parte dela. Terá oportunidade de ver e se encantar muito mais.
Finalmente para Tobias, chegaram à porta da faculdade. Ele desceu, abriu a porta de um lado, depois do outro para que elas descessem. Jerusa foi à primeira. Desceu e começou a caminhar, sem nada dizer. Diva também desceu, mas, diferente dela, sorriu, dizendo:
- Obrigada, Tobias, por ter nos trazido. Ele, também sorrindo, disse:
- Obrigado, senhorita. Na hora da saída, estarei aqui.
Elas entraram pelo portão da faculdade, ele voltou para o carro, entrou, colocou-o novamente em movimento e saiu. Jerusa, enquanto entrava na Faculdade, também pensava: Estou começando a acreditar que aquilo que tia Marília disse é verdade... tenho certeza de que conheço esse moço e sua mulher, mas de onde? Não pode ser de agora, pois eles nunca moraram aqui e nem eu no interior... por que sinto esse carinho por ele e muito ódio por ela? Depois de tudo o que a tia disse e se for verdade, só pode ter sido em outra encarnação. O que terá acontecido? Como gostaria de saber... Diva, que caminhava ao lado de Jerusa, percebendo que ela estava pensativa, perguntou:
- No que está pensando, Jerusa?
- Naquilo que a tia Marília disse. O que achou de tudo aquilo, Diva?
Diva, rindo, respondeu:
- Sua casa é muito movimentada, Jerusa. Confesso que estou confusa. Sou filha única, não tenho um irmão para brigar, meu pai, você sabe, é militar, o que o torna um tanto seco. Minha mãe nunca trabalhou fora, também não conversa muito. Está sempre envolvida com seus compromissos sociais.
Jerusa também riu, dizendo:
- Tem razão, em casa conversamos muito e sobre todos os assuntos. Eu e meu irmão sempre encontramos um motivo para discutir, mas meus pais interferem e a paz volta. Estou muito preocupada com aquilo que tia Marília disse. Será que houve mesmo uma encarnação anterior? Será que tivemos outra vida? Será que, nesta encarnação, conhecemos pessoas com quem convivemos antes?
- Por que está perguntando isso, Jerusa?
- Por que estou muito confusa. Sinto que conheço Tobias e sua mulher. Sinto por ele um carinho inexplicável e, por ela, um ódio incontrolável. Só mesmo a reencarnação poderia responder.
- Isso é fácil de entender, Jerusa! - Diva disse com ironia na voz e fazendo uma careta.
- Por que está dizendo isso, Diva?
- Ele é muito bonito! Um pedaço de homem, e ela, é sua esposa...
Jerusa olhou para a amiga e, sorrindo, disse:
- Tem razão, ele é muito bonito e ela muito feia...
- O que é isso, Jerusa? Não a conheço, será que é feia mesmo, ou está dizendo isso por ciúmes?
- Quando a conhecer, verá que tenho razão. Ela é feia mesmo!
Diva riu e, depois, com o rosto sério, disse:
- Ontem à noite, quando fomos dormir, também fiquei pensando naquilo que sua tia disse...
- O que pensou?
- Assim como você sentiu quando viu aquele casal, também, quando vi sua mãe e seu irmão e, depois, quando seu tio chegou, senti o mesmo, tive a impressão de já os conhecer. O estranho é que, por seu irmão e sua mãe, senti um carinho especial, como você disse, parecia que os conhecia. Já com seu tio foi diferente. Senti que, assim como eu, ele também evitou o meu olhar. Acho que também não gostou de mim.
- Será que já vivemos todos juntos em outra encarnação, Diva?
- Não sei, mas o que me faz pensar sobre essa teoria é por que não senti o mesmo com você nem com seu pai. Quando conheci você, gostei logo, mas não tive esse pressentimento de tê-la conhecido antes. O mesmo aconteceu com seu pai. Acho que, se houver mesmo reencarnação, nunca vivemos juntos.
- Será que vivemos em épocas diferentes, Diva?
- Não sei Jerusa... Não sei...
- Tem razão, não dá para adivinhar. Bem, agora vamos para a sala de aula?
- Vamos, sim. Estamos atrasadas!
Entraram na sala de aula. Tobias chegou a casa. Estacionou o carro e, quando estava descendo, Luana se aproximou, perguntando:
- Está tudo bem, Tobias?
- Sim, doutora.
- Minha filha foi rude com você?
- Não, doutora. Foi até gentil. Ela me ensinou o caminho até a faculdade.
- Como foi a sua volta?
- Tive alguma dificuldade, mas perguntei aqui e ali e, graças a Deus, consegui chegar.
- Acha que não terá problemas para voltar e apanhá-las na hora da volta?
- Acho que não, prestei muita atenção, mas, se a senhora permitir, quero ir bem antes, pois, se me perder, terei tempo para chegar na hora.
Luana sorriu:
- Pode sim, não se preocupe com o tempo que perder procurando o caminho. Entendo que, por nunca ter dirigido em uma cidade grande como esta, terá alguma dificuldade.
- Obrigado, doutora. Prometo que não vai demorar muito para que eu aprenda bem o caminho.
- Tobias, seria melhor se fosse comigo para conhecer o caminho até o hospital, assim, você e Luísa poderão visitar o menino e, talvez, buscá-lo à tarde, caso esteja de alta.
- Parece que a senhora ouviu meu pensamento. Estava pensando como ia fazer para ver o Carlinhos. Luísa está muito preocupada. Ela nunca ficou tanto tempo longe dele.
Ela sorriu e, enquanto se dirigia para o seu carro, ele correu para abrir a porta para que ela entrasse. Ela disse:
- Agora, podemos ir para o hospital.
- Doutora, será que poderei ver o meu menino?
- Claro que sim, Tobias! Vai ser a primeira coisa que vamos fazer! Depois que o vir, volte para casa e fique à disposição da Alda. Na hora do almoço, vá buscar as meninas na Faculdade. Depois de ver o menino, vou conversar com Rodolfo e telefonarei para lhes dizer quando poderão buscá-lo. Pode ficar tranqüilo...
- Obrigada mais uma vez, doutora...
Ela sorriu, sem nada dizer. Ele entrou no carro, ligou o motor e saiu. Assim que chegaram ao hospital, desceram. Luana, seguindo na frente, conduziu Tobias até o quarto do menino. Ele parecia dormir, mas, na realidade, em pensamento, conversava com Matilde.
- Matilde, sempre que vejo o carinho com que o Tobias me olha, fico pensando em como pude fazer aquilo com ele e com a Rosa Maria...
- Aqueles eram outros tempos. Você, por ter dinheiro achava que tinha todo o poder e que, por isso, era o dono do mundo e de todos.
Achava que poderia comandar o destino de todos. Muita coisa aconteceu depois daquele dia. Hoje, você sabe que não é assim, que somente Deus, nosso criador, é que pode fazer isso.
- Tem razão. Eu era mesmo muito ruim. Ele, como meu pai, gosta, mesmo, de mim. Será que se ele conhecesse o passado, agiria da mesma maneira?
- Tobias é um espírito iluminado. Renasceu para ficar ao lado de Maria Luísa e ao seu. Ele fará tudo para protegê-los. Você também continua ao meu lado.
- Não só ao seu como ao de Maria Luísa também. Como eu poderia seguir deixando vocês pelo caminho?
- Ficará sempre ao nosso lado?
- Sim, estamos há muito tempo juntos na caminhada.
- Eu não mereço tanto sacrifício...
- Você, assim como todo mundo, nada sabe. Só quem sabe é Deus.
- Do que vale esta minha encarnação se não sirvo para nada? Estou aqui, preso neste corpo sem nada poder fazer... Qual é a minha utilidade, a não ser trazer sofrimento e preocupação para Tobias e Maria Luisa?
- Nenhuma encarnação é inútil. Seu espírito está dando valor para tudo o que teve um dia e desprezou. Foi prepotente e, por isso, fez também muita maldade. Hoje, preso dentro desse corpo, entendeu que Deus é Pai e nos dá sempre novas chances de redenção. Não pode se esquecer, nunca, de que, quem quis nascer assim foi você.
- Sinto que está falando a verdade, mas, quem está sofrendo, também, é Maria Luísa e Tobias. Eles, com certeza, prefeririam ter um filho perfeito.
- Às vezes, acho que eles não gostam de mim de verdade e queriam que eu morresse para ficarem em paz.
- Está enganado, Carlos. Você, como acontece com muitos, tinha o poder nas mãos e o poder corrompe. Muitos espíritos, diante dele, já sucumbiram e sofreram por isso. Quanto ao que pensam Maria Luísa e Tobias, não deve se preocupar. Eles, antes de renascerem, escolheram e quiseram que fosse assim. Perdoaram, de verdade, você. Maria Luísa o matou e depois se matou, embora tenha entendido e se arrependido, precisava resgatar o que fez. Tobias, como sempre a amou, quis vir junto para viver ao seu lado e ajudá-la. Por enquanto está tudo bem, mas coisas ruins talvez possam acontecer. Jerusa, a escrava que o ajudou naquela maldade, hoje é Jerusa, filha de Luana e está sendo testada mais uma vez. Assim que viu o Tobias, todo aquele amor que sentiu voltou com muita força. Para que possa resgatar o mal que fez, precisa evitar que esse amor faça com que ela cometa o mesmo mal que cometeu em outros tempos. Ela, sendo filha de Deus, está tendo uma nova chance. Vamos esperar para ver se ela aproveita.
- Você acha que ela vai conseguir Matilde?
- Não sei, mas espero de coração, que sim.
Tobias, sem imaginar o que eles conversavam, olhando com carinho para o filho e passando a mão por sua cabeça, disse:
- Parece que ele está bem, não é, doutora?
- Sim, está dormindo e respirando bem. Vou conversar com Rodolfo e, depois, telefonarei para casa e aviso vocês.
- Obrigado, doutora. Nem sei como agradecer por tanta bondade.
- Não tem o que agradecer. Só estou fazendo o que qualquer pessoa faria na mesma situação. Agora, pode ir embora e espere o meu telefonema. Preciso começar o meu trabalho.
- Está bem, doutora, e mais uma vez obrigado.
Saíram do quarto. Luana acompanhou Tobias até a saída do hospital. Ele, sorrindo, se despediu e caminhou em direção ao carro. Luana foi ao encontro de Rodolfo.Tobias teve dificuldade, mas conseguiu chegar a casa. Luísa, assim que ouviu o barulho do carro, saiu da casa e, ansiosa, correu para junto dele. Ele, vendo a ansiedade dela, disse:
- Está tudo bem, Luísa. A moça me tratou muito bem. Só tive dificuldade para voltar, pois não conhecia o caminho, mas consegui chegar e não vou me perder mais. Fui com a doutora até o hospital e vi o Carlinhos.
- Como ele está?
- Parece que está bem. A doutora disse que vai conversar com o doutor Rodolfo e, depois, vai telefonar para dizer se a gente vai visitar ou trazer o nosso menino de volta.
- É o que mais quero trazer o meu menino para casa, Tobias...
Ele sorriu e, abraçados, entraram em casa.

CONVERSA ELEVADA

Luana foi em busca de Rodolfo. Ele estava em um dos quartos, examinando um paciente. Ela se aproximou e ficou observando-o. Ele viu quando ela entrou, sorriu. Depois de terminar de examinar o paciente e preencher sua ficha, saíram. Ele perguntou:
- Tudo bem com você, Luana?
- Sim. Você já viu o menino? Estive lá e parece que está muito bem.
- Estou indo agora para lá, quer me acompanhar?
- Gostaria muito.
- Então, vamos?
Foram para o quarto onde o menino estava. Assim que entraram, aproximaram-se da cama e olharam para ele que ainda parecia dormir. Ao seu lado, ainda estava Matilde que, ao vê-los, sorriu. O menino, parecendo sentir a presença dos dois, abriu os olhos que brilharam. Rodolfo, com a ajuda de Luana, o examinou. Quando terminou, disse:
- A crise passou, ele está bem. Acredito que, hoje à tarde, poderei lhe dar alta e ele poderá voltar para junto dos pais.
- Que bom Rodolfo! Eles ficarão contentes.
- Tenho certeza que sim, mas...
- Mas o quê, Rodolfo?
- Nada, deixe para lá...
- Mas o quê, Rodolfo? Ela repetiu, preocupada.
- Ele, entendendo a preocupação dela, disse:
- Vamos sair. Iremos até a lanchonete, tomaremos um café e conversaremos.
- Está bem. Precisamos mesmo conversar. Tenho algumas dúvidas e só você poderá me esclarecer.
Foram até a lanchonete, sentaram-se e pediram café. Enquanto o café não vinha, Luana disse:
- Estive pensando muito em tudo o que você e a Marília disseram. Será verdade tudo aquilo?
- Também tive muita resistência para acreditar, mas, hoje, já não tenho mais.
- Por quê?
- Vi a melhora de Marília, quando começou a entender o que lhe acontecia. Depois, ligando fatos.
- Que fatos?
- Quando conheci você, no dia em que Felipe a levou para que nossa família a conhecesse.
- Como?
- Em casa, estávamos ansiosos para conhecê-la. Ele falava muito a seu respeito. Assim que a vi, tive a sensação de já tê-la visto em algum lugar e senti um carinho imenso, uma vontade de abraçá-la, como aconteceu quando vi a mãe do menino. Na época, não dei muita importância, mas, depois de tudo o que Marília me disse, comecei há relembrar aquele dia.
- É sobre isso que quero conversar. Estive também me relembrando daquele tempo e senti a mesma sensação quando conheci sua família e, principalmente, você. Ao vê-lo, também tive essa mesma impressão. Também senti vontade de abraçá-lo e, durante muito tempo, me culpei por isso. Julgava estar traindo Felipe, embora soubesse que o meu sentimento para com ele era diferente do que tinha por você. Eu o amava e queria com ele me casar. Você era um amor diferente, como se fosse meu irmão.
- Foi exatamente o que senti por você, mas não parou por aí. Quando Danilo nasceu, tive a mesma impressão. Ao segurá-lo no colo, senti-me como se fosse seu pai, ao contrário do que ocorreu quando Jerusa nasceu...
- O que aconteceu?
- Não quero dizer, tenho medo de magoar você...
- Magoar, por quê? Conte-me o que aconteceu.
- Quer mesmo saber?
- Claro que sim. Já lhe disse que estou revendo o meu passado e tenho algumas dúvidas.
- Está bem. Quando peguei Jerusa no colo, diferente do que aconteceu com Danilo, senti um arrepio por todo o corpo e uma vontade imensa de derrubá-la no chão, para que morresse. Sinto muito, Luana...
Luana olhou em seus olhos e, sem nada dizer, ficou pensando. Rodolfo também olhou para ela e ficou esperando sua reação. Depois de alguns segundos, seus olhos encheram-se de lágrimas. Ele, desesperado, falou:
- Eu disse que ia magoá-la, por isso nunca comentei com você nem com ninguém! Foi uma sensação que, com o passar do tempo, desapareceu. Hoje, gosto muito dela! É minha sobrinha!
- Não foi pelo que você me contou que estou triste e chorando...
- Por que, então, Luana?
- Porque senti o mesmo e nunca me perdoei...
- Sentiu o quê?
- O mesmo que você. Assim que peguei Jerusa em meu colo, senti um ódio inexplicável e vontade que ela morresse. Nos primeiros dias, não conseguia cuidar dela. Não entendia e sofria por isso. Antes de ela nascer, eu estava feliz e ansiosa para ver seu rostinho e quando estava com ela nos braços, pela primeira vez, senti essa rejeição. Sofri muito naquele tempo, mas não comentei com ninguém, nem mesmo com Felipe. Eu não entendia o que estava acontecendo, como poderia esperar que outros entendessem? Depois, como aconteceu com você, o tempo foi passando e acredito que o amor de mãe foi maior e até havia me esquecido de que tudo aquilo havia acontecido. Tenho problemas com Jerusa, pensamos de modo diferente e muitas vezes brigamos por coisas sem sentido, mas, hoje, amo-a e só quero o seu bem e farei o possível e o impossível para evitar que sofra!
- Ninguém duvida do seu amor, Luana! Você é uma ótima mãe e seus filhos são maravilhosos!
- Como já falei Rodolfo, nunca disse isso a ninguém nem mesmo ao Felipe...
- Fique tranqüila, Luana, não comentarei com ninguém, muito menos com ele.
- Sei disso. Foi justamente em tudo isso que fiquei pensando desde ontem, quando estiveram lá em casa. Depois do que me contou e aceitando a teoria de Marília, se realmente existe reencarnação e já tivemos outras vidas, será possível que Jerusa tenha sido nossa inimiga, tenha nos feito algum mal?
- Aceitando essa teoria, Jerusa pode ter sido, sim, nossa inimiga e Danilo alguém há quem muito amamos.
- Se ela foi nossa inimiga, como pode ter nascido na nossa família, na minha casa e ser minha filha?
- De acordo com o que Marília diz, essa é uma forma de demonstrar o grande amor que Deus sente por todos nós. Segundo ela, Ele nos dá todas as oportunidades para que nos reconciliemos com nossos inimigos. Existe melhor lugar do que a família para que haja essa reconciliação? Isso está provado com o que aconteceu conosco. No seu caso, você mesma disse, e eu também posso dizer que, com o tempo, toda aquela rejeição ficou para trás e o que sobrou foi o seu amor de mãe e o meu de tio.
- Tem razão... O que vamos fazer daqui para frente?
- Por que está perguntando isso, Luana?
- Com todas essas teorias, não sabemos quem é nosso amigo ou inimigo. Como poderemos conviver com as pessoas?
- Da mesma maneira que convivemos até hoje. Jerusa continua sendo sua filha e minha sobrinha. Esse casal que chegou até nós, se realmente foram pessoas a quem amamos, devemos prestar atenção e ajudá-los em tudo o que for preciso, o que, mesmo antes de termos esta conversa, já estamos fazendo. Eu estou cuidando do filho deles, outro provável inimigo, e você os recebeu em sua casa. Vamos esperar e ver como as coisas caminharão. Há outra coisa que está me preocupando.
- O quê, Rodolfo?
- Marília me disse que, quando morremos e retornamos ao plano espiritual, nos são mostrados os acertos e enganos praticados. Pelos acertos, receberemos parabéns e quantos aos enganos, teremos novas oportunidades para os repararmos. Mas, para isso, é necessário que renasçamos novamente e passemos pelos mesmos momentos que nos conduziram a eles.
- Não estou entendendo, Rodolfo?
- É simples, Luana. Para que uma etapa seja vencida e nosso espírito esteja livre para caminhar, as mesmas situações se repetirão e teremos de ultrapassá-las.
- Está dizendo que, se um dia fizemos mal a alguém ou fomos vítimas, poderemos passar pelas mesmas situações e tudo se repetir?
- Passaremos pela mesma situação, mas, necessariamente, não terão de se repetir os mesmos resultados. Poderemos agir de maneira diferente e conseguiremos, assim, a nossa redenção. Poderemos assim também continuar a nossa caminhada para a Luz.
- Tudo isso é muito confuso...
- Não é, Luana, pois, se, um dia, cometemos um mal para alguma pessoa, essa situação se repetirá, mas dessa vez, poderemos, através do nosso livre-arbítrio, não repetir os mesmos enganos.
- Então, se, realmente, Jerusa foi nossa inimiga e nos causou algum mal, tudo poderá se repetir? Ela poderá voltar a cometer o mesmo mal?
- Ela terá de passar por tudo novamente. É a oportunidade que a encarnação lhe proporciona, mas, por pertencer a nossa família, através dos laços de amor e do sangue o caminho poderá ser outro. Queira Deus que aja diferente.
- Pelo que ela terá de passar, Rodolfo?
- Não sei, mas, seja o que for, estaremos ao seu lado, ajudando-a em todos os momentos.
- E se fomos nós quem lhe fizemos mal?
- Acontecerá da mesma maneira. Tendo ela nascido na nossa família, teremos a oportunidade, como já fizemos, de recebê-la com carinho ou, como acontece em algumas famílias, às pessoas ficam brigando durante uma vida inteira. Cabe a cada um escolher o caminho que deseja seguir. O que precisamos entender é que, para o nosso bem, o melhor caminho a seguir é o do perdão, pois, só assim, poderemos caminhar em direção à Luz.
- O que podemos fazer para que nada de mal aconteça com a nossa família, Rodolfo?
- Nada podemos fazer, a não ser esperar que tudo continue como está.
Em nossa família, apesar de alguns pequenos contratempos, tudo está caminhando bem. Jerusa, se é que um dia foi nossa inimiga, hoje não é mais. O mesmo acontece conosco, se um dia fomos seus inimigos, hoje não somos mais. Segundo o que Marília diz, em toda família existem amigos e inimigos. Os amigos promovem a paz e nos ajudam. Os inimigos, mostrando os nossos defeitos, nos ajudam a reparar os nossos erros. No nosso caso, vamos esperar Luana, é o que podemos fazer. Não adianta ficarmos ansiosos ou preocupados nem querer descobrir o que se passou ou quem são nossos amigos ou inimigos, pois talvez nada aconteça e tudo continue como está. No momento em que algo acontecer, se acontecer, estamos preparados para fazer o possível para que o amor e a paz prevaleçam nunca nos esquecendo de que fomos nós que escolhemos em que família nascer e com quais pessoas isso aconteceria e que, nós mesmos, escolhemos nossos pais e nossos irmãos.
- Tem razão... Vamos esperar...
- O que estão conversando?
Voltaram-se, foi Felipe quem fez essa pergunta. Luana, sorrindo, respondeu:
- Estamos tomando café e conversando sobre a situação do menino e outras coisas.
- Como ele está Rodolfo?
- A crise passou Felipe, e hoje à tarde, pretendo lhe dar alta. Ele poderá ir para casa e ser cuidado por seus pais.
- Essa notícia é muito boa. Quais eram os outros assuntos?
- Estávamos falando sobre tudo o que Marília disse.
Felipe sentou-se ao lado deles e também pediu um café. Perguntou:
- Sobre reencarnação, Rodolfo?
- Sim. Estávamos dizendo dos sentimentos que ambos temos em relação a esse casal que vocês recolheram na estrada.
- Não estou entendendo, que sentimentos?
- De carinho para com os dois, principalmente pela moça.
- Estão achando que já conheceram aquela moça?
- Seguindo a teoria de Marília, sim. Tanto eu quanto Luana tivemos essa sensação.
- Nada entendo a esse respeito. Também gostei dos dois, mas isso não quer dizer que acredito que já tenhamos nos conhecido e convivido em outros tempos, em outra encarnação.
- Era exatamente sobre isso que estávamos conversando, Felipe.
- A esta hora da manhã, esse assunto é muito elevado. - disse rindo.
- Luana e Rodolfo também riram. Ela disse:
- Tem razão, Felipe. Eu e Rodolfo ficamos conversando e nos esquecemos da vida. Tenho pacientes esperando por mim, no consultório.
- Eu também preciso continuar minha ronda!
- Acho que vim estragar a prosa...
- Não, tem razão, esse assunto é muito elevado para esta hora da manhã. Vamos voltar ao trabalho.
- Terminaram de tomar o café e voltaram aos seus afazeres.
- Luana, antes de começar o seu trabalho, telefonou para casa. Quem atendeu foi Alda.
- Alda, diga para a Luísa que o menino está bem e que Rodolfo, mais tarde, vai me dizer se ele vai ter alta. Se isso acontecer, peça ao Tobias que, depois do almoço, assim que deixar Jerusa e Diva na faculdade venha me buscar, assim, juntos, levaremos o menino para casa.
- Está bem, senhora. Farei isso.
Luana desligou o telefone e foi atender aos seus pacientes.

EM BUSCA DA LEI

Naquele momento, Danilo também chegava à Faculdade. Estacionou o carro, desceu e viu vários grupos de estudantes que conversavam. Em um desses grupos, viu Júlio, que falava e gesticulava, demonstrando muito nervosismo. Aproximou-se, perguntando:
- O que aconteceu, Júlio, por quer todo este tumulto?
- Ainda não soube o que aconteceu, Danilo?
- Não, acabei de chegar.
- Agora pouco, quatro agentes federais pegaram Ricardo e alguns dos nossos colegas, colocaram-nos no carro e foram embora!
- Foram para onde?
- Não sabemos, eles nada falaram, apenas os colocaram no carro.
Tentamos perguntar, mas não nos deram atenção!
- O que pretendem fazer, Júlio?
- Estamos nos organizando para discutirmos e tomarmos alguma atitude.
- Acho que o melhor a fazer é conversarmos com algum juiz e pedirmos que interfira! Temos muitos professores que são juízes!
- Do que vai adiantar Danilo? Talvez até consigamos libertar esses nossos colegas, mas e os outros que estão presos há mais tempo e aqueles que foram obrigados a deixar o Brasil? Precisamos, sim, lutar contra essa ditadura! Isso é o que precisamos fazer!
- Não acredito em luta armada, Júlio, já lhe disse que acredito na lei e que só poderemos voltar a ter um país livre através dela!
- Que lei, Danilo? Em uma ditadura, não existe lei! A única solução será lutarmos com armas para que nosso país volte a ser livre! Precisamos nos organizar!
- Para isso não conte comigo. Agora mesmo vou procurar o nosso professor de Direito Civil, ele é juiz e poderá nos ajudar!
- Faça o que quiser e achar certo, eu vou continuar aqui conversando com os outros que não são covardes!
- Não sou covarde! Só tenho bom senso, pois, se formos presos também, do que adiantará Júlio? Vamos ser advogados e, aí sim, teremos como lutar!
- Do que adiantará sermos advogados em um país sem lei, Danilo? O melhor que temos a fazer é nos juntarmos aos nossos companheiros que estão escondidos na selva, preparando as guerrilhas, só assim haverá uma chance de vencermos essa ditadura e de nosso país voltar a ser livre e democrático!
- Desculpe, mas não posso aceitar essa sua teoria. Ainda continuo pensando que só a lei é o caminho!
- Já lhe disse que faça o que quiser!
Virou-se de costas para Danilo e continuou conversando com os outros. Danilo, sem alternativa, entrou e foi procurar o professor. Encontrou-o em sua sala. Bateu à porta, pediu licença e entrou. Por ser um bom aluno, todos os professores gostavam dele, principalmente o Juiz Leônidas.
- Pode entrar Danilo, mas o que quer tão cedo?
- Desculpe-me por importuná-lo tão cedo, mas preciso conversar com o senhor.
- Não tem problema algum, do que se trata?
- O senhor não está sabendo o que aconteceu quando os alunos estavam chegando?
- Não, cheguei muito cedo, estou preparando minha aula, mas o que aconteceu?
- Quatro agentes federais levaram alguns de nossos colegas e ninguém sabe para onde.
O Juiz coçou a cabeça num sinal claro de preocupação. Perguntou:
- Disseram alguma coisa? Sabem para onde os levaram?
- Não, professor, esse é o problema. Estamos muito preocupados, pois sabemos o que fazem com aqueles que consideram inimigos.
- Como estão os alunos?
- O senhor pode imaginar, estão alvoroçados.
- O que pretendem fazer?
- Estão discutindo e imaginando que atitude tomar. Alguns estão pensando em ir para a floresta e se unir com grupos de guerrilha para enfrentar o governo.
O professor, preocupado, balançou a cabeça, dizendo que não.
- E você, o que pensa Danilo?
- Não acredito que essa seja uma boa solução. Acredito que só conseguiremos voltar à democracia através da lei, pois se todos aderirem à violência, só atrairá mais violência.
O professor, que estava sentado, com ar preocupado, levantou-se, ficou andando de um lado para outro e em seu rosto podia-se perceber uma enorme tristeza. Voltou-se para Danilo, dizendo:
- Estamos vivendo tempos difíceis, Danilo, mas é preciso ter calma e não cometer desatinos. Você tem razão. A luta armada, neste momento, não vai acabar com a ditadura e só vai trazer muita tristeza e sofrimento para muitas famílias e muitos jovens morrerão ou serão torturados. Precisamos ter paciência e encontrar uma solução de paz. Estou dizendo isso, porque passei pela ditadura Vargas e vi muita coisa que aconteceu. Naquele tempo, eu era jovem assim como você, freqüentava a Faculdade de Direito e assim como vocês estão fazendo hoje, lutamos muito para que ela terminasse. Ao lado de outros colegas, fui preso, não sofri tortura, mas muitos dos meus amigos sofreram e outros morreram. Quando a ditadura terminou, o ditador foi eleito democraticamente e tudo o que fez foi esquecido. Hoje, depois de tanto tempo, estamos vivendo tudo novamente, para tristeza de muitos, mais ainda daqueles que foram presos, torturados. Muitos dos que um dia lutaram contra aquele governo, depois, para ficarem junto ao poder, se uniram a ele. Os brasileiros, desde o descobrimento do Brasil, tiveram de lutar por sua democracia. Muitos lutaram e morreram para que o país deixasse de ser colônia de Portugal, depois contra a escravatura e pela República. Agora, estamos vivendo um novo momento de dor. Em memória daqueles que lutaram e morreram, mesmo antes de a República ser proclamada, devemos encontrar um caminho para que, depois que essa ditadura termine, e ela terminará nunca mais o Brasil volte a ser dominado por outra igual. Mas para que isso aconteça é necessário que nosso povo tenha uma educação de qualidade e possa escolher seus representantes sem se deixar enganar. Vou dar alguns telefonemas e tentar descobrir para onde foram levados e tentar ajudar de alguma maneira. Volte para junto dos outros, peça-lhes que tenham calma e que esperem, pois logo mais terei uma resposta.
- Está bem, professor, farei isso.
O professor, tristemente, sorriu. Danilo saiu da sala e foi para junto de seus colegas. A confusão ainda continuava. Aproximou-se do grupo em que Júlio falava muito e gesticulava e disse:
- Júlio, estive conversando com o professor Leônidas.
- Por que foi perder tempo? Sabe que ele está de acordo com a ditadura!
- Não diga isso, Júlio! Ele não está a favor da ditadura, mas contra qualquer tipo de luta que possa levar à prisão e ao sofrimento. Assim como eu, acredita que só através da lei podemos vencer!
- Você é um sonhador, Danilo! Não vê que não temos leis neste país?
- Não vou discutir mais com você a esse respeito. O professor pediu para que tenhamos calma, ele vai dar alguns telefonemas, tentar descobrir para onde levaram nossos colegas e ver o que pode ser feito. Confio nele e sei que tudo o que puder ser feito, ele fará.
- Você é mesmo um sonhador... - disse com ironia na voz. Fazendo um gesto de desprezo, voltou-se para os outros colegas que discutiam e que, assim como ele, não acreditavam nas leis e queriam lutar de peito aberto.
Danilo, sentindo que não era bem-vindo naquele grupo, afastou-se e entrou na sala de aula. Encontrou outros alunos que, como ele, acreditavam nas leis e que estavam lendo o Código Civil e a Constituição, procurando uma maneira de ajudar os colegas. Pegou um dos livros e com atenção fez o mesmo.

ATRAINDO COMPANHIAS

Naquele mesmo instante, embora tentasse acompanhar as aulas, o pensamento de Jerusa não se desviava do rosto de Tobias. Estava assustada, pois, apesar de já haver tido alguns namoros de pouca duração, nunca havia se interessado, realmente, por alguém. Enquanto pensava nele e, principalmente, em seus olhos, seu corpo estremecia e sentia uma enorme vontade de estar ao seu lado, de abraçá-lo e de beijá-lo. Durante um intervalo, nervosa, pensava: Sei que não posso pensar nele da maneira como estou pensando. Ele, além de ser casado, é de uma classe social totalmente diferente da minha. Não tem instrução nem sabe falar direito, mas, por que não consigo esquecê-lo: Por que não paro de pensar nele e na sua mulher? Por que sinto tanto amor por ele e ódio por ela? Por que sinto tanta vontade de vê-la morta? Será que tia Marília tem razão? Será que já nos conhecemos antes? O que preciso fazer para que esses pensamentos se afastem?Olhou à sua frente e viu Diva que se aproximava e que perguntou:
- Você está diferente, Jerusa. No que está pensando?
- Em nada. Estou encontrando dificuldade em biologia.
- Não precisa ficar preocupada com isso, eu me dou muito bem em biologia e posso ajudá-la.
- Obrigada, Diva. Acho que vou precisar.
- Agora, já que esse problema está resolvido, não quer me contar o verdadeiro motivo de sua preocupação. Desabafar sempre faz bem. Posso lhe garantir que, depois de conversar, se sentirá muito melhor.
Jerusa, desconsertada, olhou para Diva e perguntou:
- Por que está dizendo isso?
- Desde ontem à noite, quando saiu da sala para conversar com o casal que seus pais recolheram na estrada, você está diferente. Que aconteceu, Jerusa?
- Nada aconteceu Diva! Você está vendo coisas onde nada existe.
- Não estou não, quando você saiu, estava tão transtornada que sua mãe, percebendo, foi atrás, acredito que para evitar que você ofendesse o casal. O que aconteceu para que voltasse diferente? O que encontrou lá?
- Já lhe disse que assim que os vi, senti que já os conhecia!
- Não precisa ficar nervosa, Jerusa. Estamos apenas conversando.
- Você não está conversando, está querendo respostas que não sei quais são!
- Está bem, Jerusa, não vou insistir. Sinto que este momento é só seu e que só você poderá encontrar suas respostas, mas, se precisar desabafar, não se esqueça de que estou sempre disposta a ouvi-la e ajudá-la no que for possível.
- Desculpe-me, Diva, mas estou mesmo desorientada. Assim que vi o Tobias, senti que o amo desesperadamente e quero que ele fique comigo para sempre...
Diva começou a rir e perguntou:
- Como pode dizer isso, Jerusa? Acabou de conhecê-lo!
- Não sei, por isso estou tão confusa! Sinto que faria qualquer coisa para ficar ao lado dele para sempre!
- Como ficar ao lado dele? Ele é casado, tem um filho!
- Sei disso, mas não posso controlar esse sentimento!
- Não sei, não, minha amiga, acho que você está confusa. E seguindo um caminho perigoso.
Jerusa, tentando sorrir, disse:
- Tem razão, não estou bem. Deve ter sido uma primeira impressão. Está na hora de voltarmos para a sala de aulas.
Diva sorriu e, com a cabeça, concordou. Entraram na sala de aula. Jerusa tentou prestar atenção a todas as aulas seguintes, mas foi inútil. A imagem de Tobias não saía de sua cabeça. Finalmente, terminou a última aula da manhã. Assim que chegaram à rua, Tobias estava ao lado do carro. Quando as viu, sorriu. Aquele sorriso fez com que o coração de Jerusa batesse mais forte. Com passos firmes, ela caminhou até ele que, prontamente abriu a porta para que elas entrassem. Depois, ele também entrou e colocou o carro em movimento. Estava dirigindo há alguns minutos. O silêncio era profundo. Diva, percebendo que Jerusa não queria conversar, ficou calada por alguns minutos. Depois, não suportando aquela situação, perguntou:
- Teve alguma dificuldade para voltar a casa e chegar até aqui?
- Tive um pouco para voltar para a casa, mas, agora, já aprendi o caminho e não tive dificuldade alguma.
- Que bom! Sabia que você aprenderia com facilidade. Dona Luana disse que seu menino está no hospital. Como ele está?
- A doutora telefonou e disse que ele saiu da crise e que, provavelmente, voltará hoje para casa. Ela mesmo o trará.
- Que bom, fico contente.
- Obrigado, senhorita. Também estou contente. Aquele menino é tudo em nossa vida...
Diva olhou para Jerusa que, com o rosto virado para fora, fingia olhar a paisagem e não prestar atenção à conversa. Diva continuou:
- Você e sua mulher se dão bem?
- Sim, a gente se gosta muito, eu faço qualquer coisa para a gente ser feliz e já passamos por momentos muito difíceis, mas, agora, parece que tudo vai melhorar. A doutora Luana e o doutor Felipe foram anjos que Deus mandou para ajudar a gente...
- Parece que foram mesmo...
Jerusa, ao ouvir aquilo, sentiu o corpo todo estremecer e, tomada de muito ódio, pensou: Como pode gostar dela dessa maneira! Está mentindo! Eu quero você e vou tê-lo a qualquer custo! Não me importo com o que tenha de fazer! Nem que tenha de matá-la? Aconteça o que acontecer, ficarei com você! No mesmo instante em que terminou de pensar, vultos negros a envolveram totalmente. Um deles, rindo muito, dizia:
- É isso mesmo que tem de fazer, ele é só seu! Precisa lutar por ele!
Quem é ela para ficar com esse homem que é seu? Se precisar matá-la, faça isso!
Jerusa, parecendo ouvir a voz, pensou: Quem é ela para ficar com ele? Farei tudo o que for possível para que ele fique ao meu lado e não me importam as conseqüências! Mesmo pensando assim, nada disse e continuou olhando pela janela do carro. Diva, percebendo que a amiga não queria conversar, também se calou. Chegaram a casa. Tobias estacionou o carro em frente à grande porta da sala, desceu e abriu primeiro a porta do lado em que Jerusa estava sentada. Esta, antes de descer, olhou bem fundo em seus olhos, o que fez com que ele estremecesse. Um pouco confuso com aquele olhar, ele deu a volta e abriu a porta para que Diva descesse. Enquanto descia,
Diva disse:
- Obrigada, Tobias.
Ele sorriu. Jerusa, sem nada dizer, entrou em casa. Diva percebeu a atitude da amiga, ficou preocupada e também entrou. Tobias foi ao encontro de Luísa, que o esperava ansiosa.
- Como foi, Tobias, ela conversou com você?
- Não, estava calada. Estou com medo, Luísa, acho que ela não vai deixar a gente continuar aqui.
- Será, Tobias?
- Acho que sim, Luísa...
- O que a gente vai fazer?
- Não sei, vamos esperar e ver o que acontece. A doutora disse que se o Carlinhos estiver bem, vai trazê-lo, hoje, quando voltar do hospital.
- Estamos tão bem aqui, não é? Pela primeira vez, não sei por que, estou me sentindo protegida.
- Sinto o mesmo que você. Vamos confiar na vontade de Deus, Ele vai proteger a gente.
- Está certo, agora, vamos almoçar, porque daqui a pouco vai ter que levar as moças de volta para a Faculdade.
- Tem razão, estou com fome.
Enquanto caminhavam em direção à cozinha, Luísa disse:
- Estou nervosa e ansiosa para que o Carlinhos volte, foi a primeira vez que ficamos longe dele. Ainda bem que ele está melhor, pode voltar a ficar ao lado da gente, não é, Tobias?
- É sim. Também estou. Eu disse para aquela moça que está morando aqui que ele é a razão da nossa vida.
Luísa sorriu e, com carinho na voz, disse:
- Tem razão... ele é tudo para nós. Não sei o que seria da nossa vida se ele não existisse.
Entraram na cozinha, Alda estava junto ao fogão, abrindo as panelas e olhando para a comida que a cozinheira havia preparado. Ao vê-los entrando, disse:
- Esta comida parece que está muito boa. Luísa, as moças chegaram, subiram e devem descer em seguida, você pode me ajudar a levar tudo isto aqui para a mesa?
- Claro que sim.
- Depois que elas almoçarem, já que hoje ninguém mais vem, poderemos almoçar aqui, todos juntos.
- Sim, senhora.
Assim dizendo, pegou uma travessa de salada e levou para a sala, voltou e pegou outra travessa com arroz. Alda pegou os demais pratos e, em poucos instantes, estava tudo arrumado. Luísa tomou certa distância e ficou olhando para a mesa, pensando: Nunca, em minha vida, vi uma mesa como esta, com pratos e travessas tão lindas... muito menos tanta comida... Seus pensamentos foram interrompidos, quando viu, entrando pela porta, Jerusa e Diva. Sorriu. Diva correspondeu ao seu sorriso, mas Jerusa lançou-lhe um olhar de ódio, que fez com que seu corpo todo estremecesse. Não entendeu o que estava acontecendo, mas, naquele momento, percebeu que Jerusa a odiava com muita intensidade. Jerusa e Diva sentaram-se, Luísa foi para a cozinha e disse:
- Alda, as moças estão sentadas à mesa. Preciso ficar lá?
- Não é necessário. Elas mesmas se servirão. Pode preparar o prato do seu marido e o seu.
Alda saiu e foi para a sala de refeições. Jerusa e Diva, realmente, estavam se servindo. Alda perguntou:
- Jerusa, estão precisando de mais alguma coisa?
- Não, Alda, pode ir almoçar e obrigada.
Tobias, que estava lá, e viu quando Luísa entrou na cozinha, percebeu que ela não estava bem. Ela pegou dois pratos no armário e caminhou em direção ao fogão, onde estava a comida. Preocupado, perguntou:
- O que aconteceu, Luísa?
Ela, que estava terminando de colocar a comida no prato, olhou para ele, respondeu:
- Nada, Tobias... nada aconteceu. Vamos almoçar.
Sentaram-se e começaram a comer. Alda entrou em seguida, pegou seu prato, colocou a comida e sentou-se ao lado deles. Jerusa, assim que viu Luísa, e enquanto comia, lembrou-se do que Tobias havia dito e pensou: Odeio essa mulher! Preciso pensar em uma maneira de tirá-la do meu caminho! Amo esse homem e sei que ficarei com ele! Não me importo o que tenha de fazer para que isso aconteça. Jerusa e Diva terminaram de comer e foram para seus quartos. Diva, ainda preocupada com Jerusa, enquanto trocava de roupa, pensava: Jerusa está mesmo alucinada por Tobias. Estou com medo do que possa fazer. Como pode acontecer uma coisa como essa? Ela, assim que o viu, descobriu que gostava dele... o que estou pensando? O mesmo aconteceu comigo quando vi Danilo. Parece que o conheço há muito tempo. Será que existe mesmo essa coisa de reencarnação? Será que algum dia nós convivemos? Não sei se estou enganada, mas sinto que Danilo sentiu o mesmo por mim, porém, preciso me comportar, afinal, sou uma hóspede... Desceram em seguida, precisavam voltar para o período da tarde. Quando saíram, viram Tobias que estava ao lado do carro. Aproximaram-se, ele abriu as portas e elas entraram. Ele, depois, entrou, ligou o carro e saiu. Desta vez, durante o caminho, Jerusa olhava Tobias pelo retrovisor, ele, como das outras vezes, pensando que ela continuaria como antes, também olhou e seus olhos se encontraram por alguns segundos. Ele estremeceu e voltou a olhar para frente. Jerusa, ao perceber que ele havia ficado constrangido, sorriu e pensou: Você também está sentindo algo por mim, não é? Não se preocupe meu amor, nada poderá nos separar, só precisamos dar um jeito na sua mulher. Os vultos que haviam se cercado dela riram e um deles disse:
- É isso mesmo, ele gosta muito de você! Somente aquela mulher é que está atrapalhando. Você precisa pensar em uma maneira de tirá-la do caminho!
Ao ouvir aquilo em pensamento, Jerusa sorriu. Tobias, enquanto dirigia, também pensava: Não sei o que essa moça quer comigo. Por que me odeia tanto? Logo agora que parecia que a nossa vida ia melhorar... eu e a Luísa temos trabalho e nosso filho está sendo cuidado. A doutora Luana, sem nos conhecer, nos ajudou e, nós, também sem sabermos o porquê, nos sentimos protegidos. Por que isso acontece? Por que a vida é assim? Diva, por várias vezes, tentou conversar, mas Jerusa estava distraída, pensando e só respondia suas perguntas. Para consolo de Tobias, o trajeto era curto, logo chegaram e desceram do carro. Assim que elas se afastaram, respirou fundo e iniciou o caminho de volta. A tarde passou. Luana, antes de voltar para casa, foi falar com Rodolfo:
- Rodolfo, daqui à uma hora, irei embora e quero saber como está o menino.
- Acabei de passar pelo quarto. Ele está bem e, se quiser, pode levá-lo para casa.
- Que bom! Os pais ficarão felizes!
- Ele só precisa de cuidados e sei que os terá. Vou lhe passar uma receita para que ele continue medicado e, com boa alimentação e carinho, ficará melhor ainda.
- Fico contente em ouvir isso. Vou telefonar para o pai e pedir que venha nos buscar. Enquanto ele não chega, pedirei à enfermeira que o prepare para que possamos levá-lo.
- Espere um pouco, vou lhe dar a receita. Depois de dar a receita, disse:
- Cuide bem dele, Luana.
Luana sorriu e se afastou. Telefonou para casa, depois, foi para o quarto, pediu à enfermeira que preparasse o menino. Algum tempo depois, Tobias, ansioso, chegava ao hospital e foi ao encontro de Luana, que o recebeu com um sorriso:
- Ele está bem Tobias, só precisa ser medicado e tratado com carinho.
- Isso ele vai ter, doutora.
- Sei disso. Vamos até o quarto. Ele já deve estar pronto.
Foram para o quarto e, realmente, ele estava pronto. Luana pegou-o no colo e saíram em direção ao estacionamento. Quando chegaram a casa, Luísa estava passando roupa. Ao ouvir o barulho do carro chegando, saiu da casa e correu. Assim que chegou junto ao carro, pegou o menino que estava no banco de trás e no colo de Luana. Abraçou-o e beijou-o com carinho. Luana sorriu ao ver a felicidade daquela moça que, há poucos dias, era uma desconhecida. Desceu do carro e disse:
- Ele está bem. Só precisa de cuidados. Estes são os remédios que precisa tomar.
- Obrigada, doutora! A senhora é, mesmo, um anjo que Deus mandou para ajudar a gente...
Luana riu:
- Eu, anjo? Não, sou igual a qualquer pessoa, tenho meus momentos de anjo e de diabo também.
O menino, ao ouvir aquilo, em pensamento disse:
- Ela é um anjo mesmo, não é, Matilde?
- É sim e nem imagina. Nasceu, sem precisar, somente para ajudar Jerusa e Maria Luísa.
Luísa, com o menino no colo, entrou na casa dos fundos. Luana entrou em casa, encontrou Alda que estava na sala. Perguntou:
- Como está o menino, senhora?
- Está bem, só precisa de boa alimentação e de carinho.
- Isso ele vai ter. Agora, me dê licença, estou ansiosa para conhecer esse menino. Vou até lá.
- Parece que esse menino vai ter muito carinho, mesmo! - Luana disse, rindo.
Alda, também rindo, caminhou em direção ao quarto, onde Luísa estava com o menino. Jerusa, que estava em seu quarto, assim que ouviu o barulho do carro, foi para a janela e viu Luísa e Tobias se abraçando e a felicidade que sentiam. Com ódio, pensou: Essa felicidade não vai durar muito! Eu odeio essa mulher e ele vai ficar comigo, queira ou não! Os vultos, que havia atraído para seu lado, riram. Aquele que sempre conversava com ela, disse:
- É isso mesmo! Na vida passada, ela o matou e você, ao ver que tinha ajudado, ficou louca! Nesta, precisa se vingar! Eles não podem ficar juntos! Eles não podem continuar nessa felicidade toda! Ele ainda não sabe, mas gosta muito de você! Imagine se ele vai trocar você por essa lambisgóia e esse filho doente! Na vida passada, você era escrava e ela, a sinhazinha, hoje, tudo mudou, ela é pobre e você rica e poderosa! Quem você acha que ele vai escolher? Como se houvesse pensado e sem saber que a voz era quem falava, Jerusa, com ódio, pensou: Sei que ele gosta de mim! Imagine se não vai preferir ficar comigo, que sou rica, bonita e posso lhe dar tudo com o que sonhar. Na hora de escolher entre mim, essa lambisgóia e esse filho doente, claro que ele vai me escolher! Mas, se ele não quiser, não importa o que terei de fazer para que isso aconteça! Farei! Nervosa, saiu da janela e deitou-se. Pensava em uma maneira de ter Tobias para si, quando ouviu uma batida à porta.
- Entre.
A porta se abriu e por ela entrou Diva, que perguntou preocupada:
- O que está acontecendo com você, Jerusa?
- Nada. Não sei por que está perguntando isso.
- Está diferente, Jerusa... quando a conheci, embora não fosse muito risonha, sempre conversou com naturalidade. Hoje, vive quieta, parece que está sempre preocupada e pensando. É por causa do Tobias?
Jerusa olhou para ela e respondeu:
- Não sei o que está acontecendo. Assim que o vi, senti como se já o conhecesse. Nunca havia sentido isso por homem algum. Acho que estou apaixonada... não consigo tirá-lo do meu pensamento...
- Não pode ser Jerusa! Ele é casado e gosta muito da mulher e do filho...
- Sei disso, Diva, mas não posso evitar! Quero esse homem e vou tê-lo, nem que para isso tenha de cometer uma loucura!
Ao dizer isso, levantou-se e começou a andar pelo quarto. Diva acompanhou seus passos e, preocupada, disse:
- Precisa mudar esses pensamentos, pois, se continuar assim, poderá sofrer muito! Você é uma moça bonita, inteligente e pertence a uma família muito boa. Pode ter o homem que quiser...
- Você diz que pertenço a uma família muito boa, eu acrescento, com dinheiro, e você sabe que o dinheiro compra tudo.
- O que está querendo dizer com isso, Jerusa?
- Já que o dinheiro compra tudo, vou comprar esse homem!
- Não está raciocinando com clareza, Jerusa! Não pode comprar um homem que é apaixonado pela mulher e pelo filho! Esqueça-se dele!
- Nunca! Não vou me esquecer dele! Farei o possível e o impossível para que isso não aconteça!
- Sabe que, se fizer isso, sua família não a apoiará.
- Não me importo com o que minha família ou alguém pense! Quero esse homem e vou tê-lo!
Diva, sentindo-se impotente e sem argumentos, disse:
- Está bem, faça o que quiser, mas posso lhe adiantar que causará e sentirá muito sofrimento.
- Não se preocupe Diva, estou pensando em algo que só causará sofrimento a quem merecer. Vou ficar com ele e serei feliz para sempre!
- Está bem, sendo assim, nada mais tenho para falar. Vou me preparar para o jantar.
Jerusa ficou calada, parecendo não ouvir o que a amiga havia dito. Diva saiu do quarto. Jerusa voltou para a janela, olhou para a casa onde Tobias e Luísa estavam. Com raiva, disse:
- Você vai ser meu!
Luísa e Tobias, alheios ao que Jerusa pensava, entraram com o menino no quarto e colocaram-no em um berço improvisado com cadeiras e cobertores. Luana havia dito que no dia seguinte providenciaria um berço. Luísa, olhando para o menino, disse:
- Parece que ele está bem mesmo, não é, Tobias?
- Parece, sim. Agora, não sei por que, sinto-me protegido. Sinto que se a moça quiser, nossa vida vai mudar e, finalmente, poderemos ser felizes.
- Tenho essa mesma sensação, Tobias. Acho que daqui para frente seremos felizes. Estava na hora, não é? A gente tem lutado tanto...
Ouviram o barulho do carro de Felipe.
- O doutor chegou Tobias, preciso ir ajudar na preparação do jantar e da mesa.
- Vá e não se preocupe, ficarei tomando conta dele.
Após beijar o menino e Tobias, saiu e foi em direção à casa de Luana. O jantar estava sendo preparado. Ajudou Carlita e, em poucos minutos, estava tudo pronto. Auxiliou Alda na preparação da mesa. A primeira a chegar foi Luana que, ao ver a mesa colocada, perguntou:
- Parece que está tudo pronto. O que preparou para o jantar, Alda?
- Não sei por que a senhora insiste em perguntar, sabe que nunca conto e que gosto de fazer surpresa...
Luana sorriu e sentou-se à mesa. Alguns minutos depois, chegaram Jerusa e Diva, que também se
sentaram. O último foi Felipe que, ao vê-las sentadas, perguntou:
- Onde está o Danilo?
Quem respondeu foi Alda:
- Ele telefonou, avisando que ia demorar, pois tinha uma reunião do diretório na faculdade.
Ao ouvir aquilo, Luana disse preocupada:
- Não gosto quando ele participa dessas reuniões. Sei que discutirão sobre política. Hoje em dia, participar de qualquer tipo de reunião é muito perigoso. Só quero que ele termine seus estudos e não deve se preocupar com a política.
- Já disse isso a ele, mas acha que vai conseguir fazer com que seus colegas mudem de idéia a respeito de como vencer a ditadura.
- Sabemos que isso é muito difícil, Felipe, será uma luta impossível.
Tenho medo de que, assim como tantos outros, ele seja preso e obrigado a abandonar a faculdade.
- Na faculdade onde estudo, também, existem estudantes que estão na mesma situação e estão determinados a vencer a ditadura.
- Esses jovens não devem se envolver, Diva. Nada conseguirão. Precisam se formar e, assim, sim, lutar com as armas certas.
- O senhor tem razão em pensar assim, mas a lei só é valida para um país onde elas sejam cumpridas e no Brasil, no momento, isso não acontece. A lei que predomina é a da força e do desatino. As pessoas foram divididas entre aquelas que apóiam o governo e aquelas que não o aceitam. As que apóiam estão bem e protegidas, as que não apóiam são presas, torturadas até mortas. Muitas desapareceram e ainda vão desaparecer sem deixarem rastros e suas famílias nunca mais saberão delas.
- Meu Deus! Está vendo, Felipe, o motivo por que não quero que Danilo se envolva nesse tipo de coisa? Já imaginou o que aconteceria se ele sumisse? Não, isso não pode acontecer.
- Não se preocupe com isso, Luana. Conversei com Danilo e ele não está interessado nesse tipo de luta. Ele quer sim, que a ditadura termine e que a democracia volte, mas acha que isso só será conseguido, embora você não acredite Diva, através das leis.
Diva ficou calada, apenas sorriu tristemente. Jerusa, sentada, não prestava atenção à conversa. Seus olhos estavam presos em Luísa com tanto ódio que ela, sem saber o que fazer, tentava não olhar para ela e rezava para que o jantar terminasse logo e pudesse voltar para junto de Tobias e do filho. Enquanto tentava comer, Jerusa pensava: Preciso encontrar uma maneira de tirar você do meu caminho. Depois de alguns minutos, disse:
- Mamãe, amanhã não vou à faculdade.
- Por quê?
- Preciso ir à biblioteca, tenho um trabalho para fazer e vou pesquisar.
Luana estranhou:
- Você também, Diva?
Diva, sem imaginar o que Jerusa queria, olhou para ela que disse:
- Não, ela não pertence ao mesmo grupo de estudos que eu.
- Sendo assim, está bem. A que horas você vai?
- Às dez.
- Peça ao Tobias que a leve.
- Está bem, mamãe, farei isso.
Olhou para Luísa e, com ar vitorioso, disse:
- Por favor, diga ao seu marido que deve estar pronto às dez horas.
Luísa, sentindo um frio correr por sua espinha, disse:
- Está bem, senhorita.
Jerusa sorriu e voltou a comer.

FIM DE TRANQÜILIDADE

Luana, embora houvesse se deitado às dez horas, só conseguiu dormir quando ouviu o barulho do carro de Danilo estacionando. A madrugada ia alta. Todos dormiam, quando alguém tocou a campainha com muita força e começou a chamar, parecendo muito nervoso. Luana e Felipe assustaram-se, olharam para o relógio e viram que eram três horas e quinze minutos. Felipe, preocupado, levantou-se e perguntou:
- Quem será a esta hora, Luana?
Ela, também se levantando, respondeu:
- Não sei, mas parece alguém muito aflito.
- Não posso imaginar quem seja. Danilo está em casa?
- Está, ouvi quando chegou.
- Vamos descer e ver de quem se trata e o que está acontecendo.
Desceram, quando chegaram junto à porta, Felipe perguntou:
- Quem é?
Do outro lado, uma voz desesperada respondeu:
- Doutor Felipe, sou o Júlio, amigo do Danilo!
- São mais das três horas da madrugada. Ele está dormindo!
- Sei disso, mas é importante e urgente!
- Pode me dizer do que se trata?
- Só posso falar com ele, mas posso lhe garantir que é urgente!
Percebendo que algo de muito grave estava acontecendo, Felipe olhou para Luana, que, intrigada, olhava-o também. Ele, entendendo sua ansiedade, disse:
- Vamos ver do que se trata.
Abriram a porta e viram Júlio que, realmente, estava muito nervoso.
- Entre, Júlio, mas o que aconteceu?
Júlio entrou, ia começar a falar, quando viu, no alto da escada, Diva e Jerusa que, também, ouvindo o barulho, acordaram, assustaram-se e desceram para ver do que se tratava. Assim que Júlio viu Diva, perguntou intrigado:
- Diva o que está fazendo aqui?
Ela, terminando de descer a escada, respondeu:
- Estou, por um tempo, morando aqui...
- Não estou entendendo, por que está morando aqui?
Antes que ela respondesse, Felipe, também intrigado com aquela situação, perguntou:
- Vocês se conhecem?
Ela, desconsertada, respondeu:
- Sim, antes de vir para cá, eu fazia parte de um grupo de resistência. Assim que cheguei aqui e comecei a freqüentar a faculdade, conheci o Júlio, mas, por estar sendo procurada, não participei do seu grupo.
- Que grupo? Que resistência?
- Resistência armada contra a Ditadura.
- O quê? Você faz parte de um grupo armado?
- Não mais, senhor. Fazia parte de um grupo na minha cidade. Estava me preparando para partir e me juntar a outros que estão se unindo para um ataque, mas o meu grupo foi denunciado e descoberto, tivemos de fugir e nos esconder.
- O quê? Envolver-se em uma coisa como essa é loucura!
- Desculpe senhor, mas tive de me envolver na luta contra a Ditadura. E me envolverei em qualquer tipo de luta contra os direitos civis e contra qualquer tipo de preconceito e discriminação. Não posso admitir que uma pessoa seja condenada por aquilo que pensa ou por sua raça, credo ou classe social.
- Não sabe o que está dizendo! Lutar contra a Ditadura é uma luta inglória! Vocês não conseguirão vencer e só poderão ser torturados e mortos!
- Sei disso, mas é algo mais forte do que eu. Às vezes, sinto que já sofri qualquer falta de liberdade e de preconceito e não consigo me controlar!
- Aceito que queira tudo isso! Aceito que tenha escolhido lutar dessa maneira, mas, por que escolheu a minha casa?
- Lá no meu Estado, eu estudava e alguns alunos se uniram e criaram uma estratégia de luta, mas fomos denunciados e precisamos nos esconder do Serviço Nacional de Inteligência.
- Do SNI? Por quê?
- Eu e meu grupo, quando descobrimos que havíamos sido denunciados, antes que fôssemos presos e torturados, saímos do nosso Estado e, com um nome diferente conseguido por um juiz amigo do meu pai, cheguei aqui e me matriculei na faculdade. Conheci Jerusa. Gostei dela assim que a vi e, sabendo que sua família estava acima de qualquer suspeita, pedi a ela que me abrigasse. Conheci o grupo do Júlio, que é um dos líderes, e tomei conhecimento da sua luta ao lado de alguns estudantes de Direito. Mas, por ser procurada, nunca participei de reunião alguma.
Jerusa, ao ouvir aquilo, assustada, disse:
- Eu não sabia papai... ela nunca me contou...
- Desculpe Jerusa, mas eu não podia contar. Fiquei com medo de que, se contasse não me aceitariam.
Luana, ao ouvir aquilo, chorando e assustada, perguntou:
- Como pôde colocar a nossa família em risco dessa maneira, Diva?
Antes que Diva respondesse, Danilo, que também acordou com o barulho, chegou à sala no exato momento em que Luana fazia a pergunta. Admirando-se ao ver Júlio, perguntou:
- Júlio, o que está fazendo aqui há esta hora? O que aconteceu?
- Precisamos fugir Danilo!
- Fugir, por quê?
- Alguém nos denunciou e a Polícia está indo a todas as casas para prender todos aqueles que ela julga fazer parte da Resistência e que estão se preparando para a guerrilha.
- Eu não pertenço a grupo algum, muito menos à guerrilha!
- Sei disso, mas a pessoa que nos denunciou disse que você está sempre conversando comigo e, por isso, também faz parte do nosso grupo!
- Isso não é verdade, Júlio! Sabe que quero, sim, vencer a Ditadura, mas através da lei!
- Sabemos disso, Danilo, mas até que prove essa verdade, não quero nem imaginar o que terá de passar! Precisamos fugir, pois, se formos presos, além de sermos torturados, nunca mais poderemos estudar e você não poderá aplicar essa sua lei que, sabe muito bem, neste momento, no Brasil não existe.
Felipe, demonstrando uma calma que, no fundo, não estava sentindo, disse:
- Ele tem razão, Danilo, vocês não podem continuar aqui. Precisam fugir até que eu encontre uma maneira de provar que você nunca esteve envolvido em subversão.
- Fugir para onde, papai?
- Não sei, precisamos pensar com calma, deve existir um lugar para onde possam ir.
Luana, antevendo tudo o que estava para acontecer e que, até aí, chorava, parou de fazê-lo e disse:
- Seu pai tem razão, Danilo! Não entendo o porquê de tudo isso estar acontecendo em nossa família, mas precisamos encontrar uma solução. Não podem continuar aqui e o único lugar que me ocorre é a fazenda. Devem ir para a fazenda e esperar. Assim que encontrarmos uma solução, iremos buscar vocês.
- Eu também, dona Luana?
- Claro que sim, Diva. Nunca quisemos nos envolver com a Ditadura, somos médicos e nos dedicamos a salvar vidas, mas já que fomos envolvidos, precisamos encontrar uma maneira de lutar contra toda essa loucura! Não sei por que, mas ao ouvir você falar em lutar contra preconceito e falta de liberdade, senti que já passei por isso e que preciso lutar!
- Está louca, Luana?
- Não, Felipe, não estou louca, só acredito nas liberdades, sejam quais forem!
- Estou desconhecendo você, Luana!
- Está bem, Felipe, mas agora não é hora para isso. As crianças precisam fugir!
- Só fui para a fazenda quando era criança, não sei como chegar até lá!
- Subam, tirem o pijama, peguem algumas roupas. Enquanto isso farei um mapa que devem seguir para encontrar a fazenda. Precisam se apressar!
- Está bem, papai! Vamos Diva, precisamos nos preparar.
- Também vou subir com você, Diva e, enquanto pega suas roupas, precisa me contar como tudo isso aconteceu.
- Está bem, Jerusa, preciso mesmo lhe contar tudo e pedir que me perdoe.
- Agora não é hora para isso, vamos?
Enquanto eles subiam e Felipe fazia o mapa, Luana disse:
- Não entendo Júlio, como pode ser contra a Ditadura se seu pai é militar?
- Por isso mesmo, dona Luana! Quando fizeram a Ditadura, até acreditei que, diante de tanta corrupção, era o melhor a ser feito, mas pensei que seria por pouco tempo, só até que houvesse novas eleições, mas não foi isso o que aconteceu. Os militares tomaram o poder e não querem largar nunca mais nem que para isso seja preciso tirar do caminho todos aqueles que se opõem a eles. O Brasil não merece isso, dona Luana!
- Nisso você tem razão. O povo tem o direito de ser livre e de expressar sua opinião, sem medo! Desde o descobrimento do Brasil, muitos têm lutado e morrido pela sua liberdade. Para que a tivéssemos, franceses, holandeses e até portugueses foram expulsos. Tiradentes foi morto. Finalmente, no dia sete de setembro a Independência foi proclamada, depois, veio à luta contra a Escravatura e, finalmente a República. Não podemos deixar de honrar a todos os que morreram. Vocês têm razão, precisamos lutar!
Felipe, que a tudo ouvia, levantou os olhos do papel onde estava fazendo o mapa e, assustado, disse:
- O que está dizendo, Luana? Você não pode pensar, nem por um minuto, em uma loucura como essa!
- Sei que é loucura, mas muitos outros pensaram assim e morreram por isso!
- Os outros não eram minha mulher e filho!
- Como pode ter certeza disso?
- Não estou entendendo o que está querendo dizer?
- Não sei por que está tão surpreso, pois, se a teoria de Marília estiver certa e já tivermos vivido outras vidas, quem pode garantir que não lutamos em todas ou algumas dessas lutas? Quem sabe se não lutamos a favor da República e contra a escravidão?
- Está louca, mesmo! Você e Marília!
Luana, apesar do momento, não pôde deixar que um sorriso surgisse em seu rosto. Danilo desceu com uma maleta. Assim que chegou à sala, Felipe lhe deu o papel no qual havia feito o mapa e perguntou:
- Júlio, você veio com o seu carro?
- Não senhor, vim de táxi.
- Ótimo, enquanto eu fazia o mapa, pensei que não acho seguro que viajem de carro, pois, se estavam sendo seguidos, devem conhecer os carros de vocês.
- Se não formos de carro, como vamos fazer, papai?
- Vocês devem ir de trem.
- De trem?
Diva, que vinha descendo a escada ao lado de Jerusa, perguntou parecendo nervosa.
- De trem? Não podemos ir de trem...
O tom de voz dela fez com que todos a olhassem.
- Qual é o problema, Diva?
- Não posso andar de trem, dona Luana...
- Não pode, por quê?
- Não sei. Uma vez, quando criança, meus pais fizeram uma viagem de trem e eu me senti muito mal. Tive taquicardia e quase desmaiei. Meus pais foram obrigados a descer na estação seguinte e fizemos o resto da viagem de ônibus.
- Estranho isso...
- Também acho, mas não sei o que fazer a respeito.
- Estamos em uma situação muito difícil, precisamos tomar logo uma decisão. Acredito que o melhor meio de transporte seria o trem, pois, além de sempre haver muitas pessoas na estação, será mais difícil procurarem por vocês, o que não acontecerá na rodoviária. Entretanto, vocês devem decidir.
- O senhor está certo, papai. Diva, você vai precisar superar esse seu trauma. Precisamos fugir.
- Está bem. Entendo a situação e isso aconteceu quando eu era muito pequena, deve ter passado.
Ele sorriu, transmitindo-lhe segurança. Depois, voltou-se para o pai, perguntando:
- Qual é o seu plano, papai?
- Vocês precisam sair daqui rapidamente. Deixem o carro em uma rua qualquer, depois, de táxi, vão até a estação, verifiquem o horário do trem. Se for demorar, instalem-se em um hotel até a hora. Tomem o trem e, quando chegarem à cidade, tomem outro táxi para irem até a fazenda. Fiquem lá e esperem até que eu possa verificar o que está acontecendo realmente.
- Está bem, papai.
- Vocês têm algum dinheiro, Júlio?
- Não tenho muito...
- Você tem algum, Luana?
- Tenho um pouco e já está aqui comigo.
- Também tenho doutor. Quando saí da minha cidade, meu pai me deu.
- Também tenho um pouco, papai. - disse Jerusa.
- Vamos juntar todo o dinheiro que temos. Depois, encontrarei uma maneira de mandar mais. Sabem que, por um bom tempo, talvez sejamos vigiados.
Luana, chorando, disse:
- Neste fim de semana, quando estivemos na fazenda, deixei dinheiro com o vovô e deve dar por algum tempo.
Juntaram o dinheiro que tinham e deram a Danilo. Luana, abraçando-se ao filho e ainda chorando, disse:
- Vá com Deus, meu filho.
- Fique calma, mamãe. Encontrarei uma maneira de mandar notícias.
Rapidamente, abraçaram-se e saíram. Luana, chorando, abraçou-se a Felipe e a Jerusa, que também chorava.
- Agora, vamos voltar para os nossos quartos e, se a polícia chegar, fiquem caladas, deixe que eu converso com eles.
- Está certo, Felipe. Vamos, Jerusa.
Apagaram as luzes da casa e subiram a escada. Assim que chegaram ao quarto, ainda com as luzes apagadas, deitaram-se. Luana, abraçada em Felipe e, ainda chorando, disse:
- Por que tudo isso está acontecendo, Felipe?
- Não sei, mas precisamos ficar calmos e, se a polícia chegar, temos de fingir nada saber.
- Está bem, mas sabe que será difícil...
- Sei que será, mas é tudo o que podemos fazer para não sermos presos também.
- Presos?! - Luana disse, levantando-se e sentando-se na cama.
- Nunca demos muita importância para tudo o que estava acontecendo no país, mas muita coisa está sendo feita por aí. Vivemos em uma Ditadura, Luana, e qualquer que seja o matiz das ditaduras, elas sempre são cruéis.
- Acha que Danilo está em perigo?
- Não só ele, como todos nós.
- Todos nós, por quê?
- Somos sua família e, só por esse motivo, julgarão que fazemos parte da subversão.
- Como isso pode estar acontecendo conosco, com Danilo, Felipe? Ele nunca quis se envolver em política, muito menos nós...
- Não quis Luana, mas foi envolvido, agora, até que prove o contrário, não sabemos por tudo o que teremos de passar.
- Estou assustada, Felipe. Embora não tenha dado muita atenção, tenho ouvido sobre o que é feito com os presos políticos. Dizem que eles são torturados e até mortos...
- Também estou assustado, também tenho ouvido coisas e também
nunca quis me envolver, Luana, mas agora, parece que não há outra maneira. Precisamos ser fortes. Não queríamos, mas já que nos obrigaram, precisamos lutar.
- Lutar como, Felipe?
- Não sei, precisamos esperar as coisas acontecerem, só aí pensaremos no que fazer.
- Estou com muito medo, Felipe...
- Eu também, mas precisamos ficar calmos.
Luana voltou a se deitar, abraçou-se em Felipe e, juntos, ficaram esperando.

TRUCULÊNCIA

Luísa e Tobias também acordaram com a chegada de Júlio e ficaram atentos. Viram quando Danilo e os outros saíram de carro. Ela, preocupada, perguntou:
- O que será que está acontecendo, Tobias?
- Não sei, mas parece que é algo muito grave. O rapaz parecia muito nervoso.
- Deve ser grave mesmo, Tobias, para eles saírem a esta hora da madrugada.
- Não saberemos o que está acontecendo até amanhã. Vamos tentar dormir.
Luísa sentou-se na cama e olhou para o menino, tranqüilo, no berço improvisado com cadeiras. A criança parecia dormir, mas, na realidade, conversava com Matilde que não o abandonava por um instante sequer. Perguntou:
- O que está acontecendo, Matilde?
- Nada, não se preocupe. E só a vida colocando as coisas em seus lugares.
- O que está querendo dizer?
- Que a vida trabalha sempre para o melhor, mesmo quando parece que está tudo dando errado.
- Ainda não estou entendendo...
- Felipe e Divina estão voltando para casa. Lá, eles vão ter a oportunidade de continuar de onde pararam.
- Ela morreu antes da hora?
- Não, ninguém morre antes da hora. Embora estivesse programado, não precisava ser, podia ser mudado. Jerusa, que ajudou a fazer aquela maldade com Rosa Maria e Tobias, morreu sentindo-se culpada. Hoje, ela, como Jerusa e filha de Rosa Maria, está tendo a oportunidade para consertar o que fez.
- Ela vai conseguir?
- Não sei. As coisas e oportunidades sempre se repetem até que a pessoa consiga superar. Precisamos e desejamos ver se ela vai saber aproveitar. O mesmo vai acontecer com Marcela, que planejou e matou Divina. Ela vai ter a oportunidade de fazer ou não o que fez no passado.
- Onde ela está Matilde?
- Lá na fazenda, junto com a Severina.
- A Severina está lá?
- Está sim, pois, assim como os outros, veio ajudar aqueles que ficaram pelo caminho. Vamos esperar que, desta vez, todos consigam.
- Tudo vai se repetir?
- Não da mesma maneira, mas bem parecido.
- A Marcela vai matar a Divina outra vez?
- Não sei, espero que não.
- O que vai acontecer com Maria Luísa e Tobias aqui tão perto da Jerusa?
- Ela também vai ter a oportunidade de superar suas dificuldades e elevar seu espírito.
Luísa, sem imaginar o que seu filho e Matilde conversavam, beijou o menino no rosto e voltou a se deitar. Menos de quinze minutos depois de Danilo, Diva e Júlio terem ido embora, Felipe e Luana ouviram o toque da campainha e fortes batidas na porta. Felipe esperou um pouco, depois, levantou-se e foi para a janela. Abriu e olhou para baixo. Viu um carro preto na rua em frente à casa. Do alto, perguntou:
- O que está acontecendo?
Um dos homens, olhando para cima, respondeu:
- Precisamos conversar com o senhor. Pode, por favor, descer e abrir a porta?
O tom de sua voz causava medo. Luana, que continuava deitada, começou a tremer. Felipe, antes de sair da janela, disse:
- Esperem um momento, estou descendo.
Olhou para Luana:
- Você deve descer comigo e fazer de conta que não sabe onde Danilo está, deve até chorar desesperada quando eles disserem que estão a sua procura.
- Não precisarei fazer esforço algum para chorar.
- Seus olhos estão vermelhos, antes de descer, lave o rosto. Eles não podem desconfiar de que sabíamos de alguma coisa.
- Está bem, farei o melhor de mim.
Colocaram um roupão sobre a roupa de dormir e desceram. Felipe abriu a porta e encontrou dois homens muito sérios. Um deles perguntou com a voz firme e ríspida:
- Onde está o seu filho?
- Dormindo, por quê? - Felipe respondeu, demonstrando uma tranqüilidade que não estava sentindo.
- Tem certeza de que ele está dormindo?
- Claro que está?
- Pode chamá-lo, por favor?
- Posso, mas, antes, preciso saber do que se trata.
- O senhor saberá assim que conversarmos com ele.
Felipe, enquanto conversava com o homem, olhou para fora, viu mais dois que estavam a alguns metros da porta de entrada e outros dois junto ao carro. Respondeu:
- Os senhores não querem entrar?
- Não, só queremos conversar com seu filho! - falou, com a voz mais ríspida ainda.
Felipe olhou para Luana e subiu a escada. Voltou depois de algum tempo, olhou para Luana e demonstrando surpresa, disse:
- Ele não está dormindo, Luana!
- Como não está? Ouvi quando seu carro chegou e estacionou na garagem!
- Não sei o que aconteceu, mas ele não está no quarto.
O homem olhou para os outros que estavam mais perto e, demonstrando muita raiva e nervosismo, disse:
- Vão até a garagem! O senhor vai acompanhá-los?
Felipe voltou a olhar para Luana. Disse:
- Claro que sim, pois, assim como os senhores, também estou preocupado e preciso saber o que está acontecendo.
Enquanto o homem continuava diante da porta, os outros três acompanharam Felipe até a garagem. Ele abriu a porta e, novamente demonstrando surpresa, disse:
- O carro dele não está aqui!
O homem, agora furioso, perguntou:
- O senhor tem certeza de que não sabe onde ele está?
- Tenho! Pensei que estivesse dormindo.
Voltaram para junto daquele que ficou ao lado de Luana. Um deles disse:
- O carro do rapaz não está na garagem.
- Como não está? Ouvi quando ele chegou!
- A senhora ouviu quando ele chegou, mas não quando tornou a sair! Isto é, se estiver dizendo a verdade!
Felipe, demonstrando nervosismo, disse:
- Espere aí, o senhor está nos chamando de mentirosos?
- Se isso fosse verdade, não seria a primeira vez que os pais tentariam esconder os filhos. Isso acontece muito!
- Esconder do quê e por quê?
- Seu filho é subversivo!
- Meu filho? O senhor está enganado! Ele estuda Direito e acredita nas leis! Recusa-se a participar de qualquer ato que não seja movido por elas! Pode perguntar para os seus colegas!
- Que, assim como o senhor, mentiriam por ele! Deixe-nos entrar!
- Não entendo muito de leis, mas sei que não pode entrar em minha casa sem um mandato!O senhor tem um?
- Não, não tenho, mas se diz que seu filho não é subversivo, qual é o problema de olharmos em seu quarto?
- Não tem problema, mas se entrar em minha casa sem um mandato, estará agindo contra os meus direitos legais.
- Já está nos fazendo perder muito tempo! Saía da frente, por favor!
Vendo a expressão de ódio no rosto do homem, Felipe abraçou Luana e se afastou da porta. Os homens entraram e aquele que falou o tempo todo, perguntou:
- Onde é o quarto do seu filho?
Ainda abraçado em Luana, Felipe respondeu:
- Lá no alto, queira nos acompanhar.
Abraçados, Felipe e Luana subiram a escada e foram acompanhados por três homens. Um deles continuou junto à porta. Assim que chegaram diante da porta do quarto de Danilo, Felipe abriu-a e se afastou para que os homens entrassem. Eles entraram e, em poucos minutos, o quarto estava totalmente revirado. Olharam em todos os lugares, bateram nas paredes para ver se não havia paredes falsas, nada encontraram, a não ser alguns livros. O homem que falava, após olhar para os títulos dos livros, nervoso, disse:
- Não lhe falei que seu filho é subversivo?
- Por que está dizendo isso?
- Olhe os livros que encontramos em seu quarto! Todos falam sobre Democracia, Ditadura Vargas e em alguns países da América Latina! Este outro é de um famoso escritor comunista! Diante disto, como pode continuar afirmando que ele não é subversivo?
- Ele estuda Direito e precisa ler todos esses livros!
- Quem disse isso?
- Claro que precisa ler! Ele precisa aprender tudo o que se refere à evolução humana e suas formas de governo!
- Isso, em outros tempos, seria aceitável, mas, agora, não! Todos os subversivos são interessados nesse tipo de leitura!
- Meu filho não é subversivo!
- Se não é, onde está agora?
- Não sei onde está, mas tenho certeza de que ele acredita nas leis e, apesar do momento pelo qual o Brasil está passando, não participaria de movimento algum que não estivesse dentro da lei!
- Esta noite, foram presos alguns estudantes que estavam reunidos tramando contra o governo Federal, alguns fugiram e tivemos uma denúncia de que, entre eles, estava o seu filho!
- Não pode ser! Isso não é verdade!
- É verdade e, por mais que queira disfarçar, sei que sabe disso! Onde está o seu filho? - o homem perguntou, gritando.
- Não acredito no que está dizendo e não sei onde está o meu filho!
Ele é jovem, talvez esteja com uma namorada! Não sei, só sei que, a qualquer momento, ele voltará e esclarecerá tudo isso!
- Que moça séria estaria com um homem a esta hora da noite?
- Não sei, mas pode estar com alguém! Vou repetir, ele não é subversivo! Ele acredita nas leis!
- Embora não acredite no que está dizendo, espero que tenha razão! Além do mais, não importa o que diga, pois nós o encontraremos esteja onde estiver! Muitos fugiram e foram encontrados!
Felipe se calou, não sabia mais o que dizer. Por um bom tempo, conseguiu retardar aqueles homens. Tempo suficiente para que Danilo e os outros chegassem à estação de trem. O homem fez sinal para os outros, saíram e foram acompanhados por Felipe e Luana. Parou e perguntou:
- De quem é aquele quarto?
- De minha filha, mas ela está dormindo.
- Será que está ou fugiu ao lado do irmão?
- Ela está dormindo.
Antes que Felipe ou Luana tivesse tempo para avisar Jerusa, o homem abriu com força a porta. Ela que fingia dormir, assustada sentou-se na cama. O homem, olhando com ódio, perguntou:
- Onde está o seu irmão?
- Deve estar dormindo em seu quarto...
- Deveria, mas não está!
- Como não está? Não entendo o que o senhor está dizendo...
- Não importa, depois de olharmos o seu quarto e, se ele não estiver aqui, poderá voltar a dormir.
Olharam todo o quarto. Não encontrando Danilo, saíram novamente para o longo corredor.
- De quem são esses quartos?
- De visitas. Estão vazios. - respondeu Felipe.
- Sem nada dizer, entraram e revistaram todos os quartos.
Quando viram que estavam realmente vazios, saíram de volta ao corredor e desceram a escada. Jerusa, tremendo muito e assustada, assim que eles saíram do seu quarto, vestiu um roupão e ficou ao lado dos pais. Eles desceram a escada e não pararam, caminharam imediatamente para a porta de saída, no que foram acompanhados por Felipe, Luana e Jerusa... Quando chegaram ao jardim, o homem olhou para a casa onde Luísa e Tobias estavam. Perguntou:
- Quem mora naquela casa?
- Nosso motorista, a esposa e o filho deles. Voltou a olhar para os homens:
- Vamos até lá!
Ao ouvir aquilo, Luana, muito nervosa, disse, também gritando:
- Não podem fazer isso!
- Não posso, por quê?
- Eles devem estar dormindo e têm uma criança muito doente, esteve internada no hospital até hoje.
- A senhora deve ter um motivo para não querer que revistemos a casa.
- Já disse ao senhor que eles nada têm a ver com isso e que têm uma criança doente!
- Não acredito no que está dizendo e, se não se importar, vamos verificar se está dizendo a verdade.
Antes que Luana ou Felipe dissesse alguma coisa, caminharam em direção à casa e, assim que chegaram, um deles bateu com muita força e os outros se colocaram em posição de tiro com as armas nas mãos. Tobias e Luísa, ao ouvirem aquelas batidas, nervosos, levantaram-se. Quando abriram a porta, assustaram-se ao ver aqueles homens armados. Tobias olhou para os homens e, antes que dissesse qualquer coisa, o homem afastou-o com força e, depois, fez o mesmo com Luísa que, assustada, começou a chorar e olhou para Luana que, com a mão, fez sinal para que ficasse calma. Os homens entraram no pequeno quarto, olharam embaixo da cama e dentro do guarda-roupa. Perceberam que naquele espaço não havia como um homem se esconder.O menino, com o barulho das batidas, acordou e começou a chorar. Os homens olharam para ele e, ao verem que se tratava de uma criança deficiente, não se importaram e saíram do quarto. Luísa, assim que eles saíram, correu para o menino, pegou-o no colo e começou a embalá-lo. Os homens, acompanhados por Luana, Felipe e Jerusa, se afastaram e caminharam em direção aos carros. Antes de sair, aquele que foi o único que sempre falou, disse:
- O carro não está aqui, isso significa que ele ou eles fugiram de carro. Vamos dar um alerta para a Polícia Rodoviária. Tenho certeza de que serão presos.
Luana, num último apelo, disse:
- O senhor está enganado, meu filho não é um subversivo!
O homem, fingindo não entender, se afastou juntamente com os outros. Saíram, entraram no carro e foram embora. Luana respirou fundo e caminhou em direção à casa de Luísa. A porta ainda estava aberta. Bateu de leve. Luísa estava com o menino no colo e ainda chorando. Luana disse:
- Espero que estejam bem. Desculpem, mas eles vieram aqui contra nossa vontade.
- Não tem problema, senhora. Claro que nos assustamos, mas agora está tudo bem. O que está acontecendo?
- Eles estão acusando meu filho de ser subversivo.
- O que é um subversivo?
- Todo aquele que é contra o Governo Federal.
- Seu filho é contra o Governo?
- É, mas não é subversivo. Ele acredita nas leis.
- É contra, por quê? Parece que este governo fez muita coisa para o povo...
- Tem razão, mas tirou as liberdades individuais.
- O que é isso?
- O que você acabou de ver. Se alguém discordar do que fazem, agem da maneira como agiram aqui, prendem, torturam e até matam.
Luísa olhou para Tobias que, assim como ela, estivera o tempo todo preocupado com sua situação e em como cuidar do filho doente. Por isso, nunca se preocupara com a política ou com o Governo. Sem saber o que dizer, ficou calado. Luana, ao perceber que eles estavam bem, disse:
- Agora, parece que tudo ficará bem, vamos nos deitar e tentar dormir.
Caminhou em direção a sua casa. Jerusa, antes de acompanhar os pais, olhou com muito carinho para Tobias, olhar que foi notado por Luísa. Dentro da casa, o menino estava assustado:
- O que está acontecendo, Matilde?
- Nada que não estivesse previsto.
- Quem são aqueles homens?
- Fazem parte da polícia do governo. Estão aqui para prender Danilo.
- Por quê?
- Ele e quase todos desta casa são espíritos guerreiros que se dedicaram sempre a lutar contra aqueles que oprimem o povo. Você não se lembra do que eles fizeram contra a escravidão e para que a República fosse proclamada?
- Embora na época eu estivesse doente, lembro muito bem.
- A República foi proclamada, a escravidão terminou, mas a luta pela liberdade ainda continua e eles também continuam lutando em favor dela.
- O que vai acontecer com eles, principalmente com o meu Felipinho?
- Não sei, precisamos acompanhar os acontecimentos. Mas, sabendo que eles estão sob a proteção espiritual, precisamos acreditar que conseguirão sobreviver a tudo isso.
- Espero que sim...
- Todos esperamos agora você precisa dormir. Sua mãe e seu pai estão muito preocupados.
- Está bem...
Com um sorriso, o menino adormeceu. Ao verem que o menino parecia dormir tranqüilo, Luísa disse:
- Parece que ele está bem. Fiquei com medo que se assustasse.
- Ele se assustou, Luísa, você não viu como chorou?
- Tem razão, mas agora parece que está bem. Vamos nos deitar e tentar dormir.
- Vamos, sim. Às dez horas, vou ter de levar a moça à biblioteca.
- Não gosto da maneira como ela olha para você...
- Por quê? Que maneira?
- Não sei explicar, mas não gosto.
- Ora, não se preocupe. Você está exagerando. Ela me olha da mesma maneira que olha para você e a todos os empregados da casa.
- Não sei, não... ela olha diferente para você.
- Diferente, como?
- Não sei explicar, acho que ela gosta de você.
- Está maluca? Ela não gosta de mim! Ao contrário, deixa sempre bem clara a diferença que existe entre nós.
- Não sei não...
- Mesmo que isso fosse verdade, o que não é não faria diferença alguma. Gosto de você desde sempre e do nosso filho também.
- Preciso continuar acreditando nisso, pois ela, além de ser rica, é também uma moça muito bonita. Já lhe disse várias vezes que, se um dia me trair, eu mato você! Sabe disso!
Tobias, rindo, abraçou-a:
- Você não é capaz de matar uma mosca... e, além do mais, também é muito bonita e a única que me interessa. Agora, vamos dormir.
Deitaram-se. Ela aconchegou-se nos braços dele, adormeceram.

A FUGA

Enquanto tudo aquilo acontecia na casa de Luana, Danilo e os outros, como o planejado por Felipe, deixaram o carro em uma rua distante da estação ferroviária. Caminharam por algumas quadras, tomaram um táxi que os levou até a estação. Durante o caminho, para não levantarem suspeitas, conversaram sobre assuntos normais de estudantes. O motorista do táxi nem por um minuto desconfiou de que se tratava de fugitivos. Tomaram cuidado, pois não o conheciam e, em, tempos de ditadura, não se podia confiar em ninguém nem mesmo naquele que se dizia amigo. Para disfarçar, desceram do táxi algumas quadras antes de chegarem a estação e caminharam até ela. Logo que entraram, foram até o guichê e, para sorte deles, o trem sairia às seis horas da manhã. Faltava pouco mais de uma hora. Ao tomarem conhecimento daquilo, compraram as passagens e foram para a plataforma. Caminharam displicentes, falando e rindo muito. Quem os visse, jamais imaginaria quem eram e o que estavam fazendo ali. Assim que chegaram, Diva começou a sentir-se mal. A cor de seu rosto desapareceu, começou a suar e a tremer. Segurou-se no braço de Danilo que estava mais perto. Ele, ao perceber que ela não estava bem, perguntou assustado:
- O que está acontecendo, Diva?
- Como sempre acontece quando estou em uma estação de trem, estou muito nervosa e sentindo-me muito fraca. Tenho medo de desmaiar.
Júlio, também assustado, disse:
- Vamos nos sentar. Você deve estar precisando comer alguma coisa. Danilo fique com ela, vou providenciar um lanche para todos nós.
- Faça isso, Júlio. Também estou com fome.
Júlio afastou-se. Danilo, abraçando Diva, perguntou:
- O que acha que está acontecendo com você, Diva?
- Você nos alertou sobre seu problema com trens, mas nunca pensei que fosse tão grave assim. Infelizmente, terá de suportar. Não há outra maneira. Não temos outro lugar aonde ir nem outro meio de transporte. Fique tranqüila, estou aqui ao seu lado.
- Tem razão, sei disso. Achei que já houvesse passado, mas como estamos vendo, não passou... estou me sentindo muito mal... não sei se vou conseguir fazer esta viagem...
- Precisa tentar! Sabe como é importante, pois, se formos presos, não podemos nem imaginar o que nos acontecerá!
- Tem razão, vou tentar me controlar, mas, está sendo muito difícil. Pode me abraçar?
- Claro que sim. Tente se acalmar. Logo mais, Júlio vai trazer o lanche. Tomara que, comendo, sinta-se melhor.
- Preciso ficar melhor. O momento pelo qual estamos passando exige isso.
Ele abraçou-a e fez com que colocasse a cabeça em seu ombro. Ela aconchegou-se, fechando os olhos, evitando, assim, olhar para os trilhos e, aos poucos, foi sentindo-se melhor. Júlio retornou com três lanches e três copos com leite e café. Tomaram o lanche e sentiram-se melhor. Mesmo assim, após comerem, Diva continuou abraçada em Danilo, que, sem perceber, acariciava seus longos cabelos. Diva disse:
- Parece que faz um século que estamos aqui, não é?
- Tem razão Diva. Talvez seja a vontade que estamos de entrar logo nesse trem e ir embora. Sinto que, dentro dele, estaremos seguros.
- Será que fomos seguidos, Júlio?
- Acredito que não. Saímos de sua casa antes de eles chegarem. Neste momento, se já não estiverem lá, estão para chegar. Tomara que seus pais consigam disfarçar e enganá-los.
Danilo começou a rir:
- Não se preocupe com isso, Júlio. Está assim porque não conhece a dona Luana. Meu pai é mais tranqüilo, mas, mesmo assim, eles saberão enganá-los.
- Tem razão, sua mãe sempre me pareceu uma mulher determinada.
- É sim, tanto que tenho certeza de que encontrará uma maneira de nos ajudar.
- Que maneira poderia ser essa?
- Não sei, mas ela encontrará.
- Esperamos que sim.
A todo o momento, olhavam para o relógio suspenso, mas parecia que ele não se movia. Diva, ainda evitando olhar para os trilhos, continuou com a cabeça deitada no ombro de Danilo que de vez em quando acariciava seu rosto. Júlio acompanhava aquele gesto, mas permaneceu calado, estava muito preocupado e com medo de tudo o que estava acontecendo. Em dado momento, disse:
- Danilo, sinto por tudo o que está passando. Eu e Diva temos motivo para fugir, pois, realmente, participamos de reuniões e podemos ser chamados de subversivos, mas você, não... sempre se recusou a participar de qualquer ato que julgasse ilícito e nunca deixou de confiar nas leis.
- Tem razão, Júlio, mas, já que estou envolvido, só nos resta ficar juntos.
- Por quanto tempo, Danilo?
- Não sei Diva, pelo tempo que for necessário.
Ela, embora estivesse sentindo-se melhor, ainda tremia um pouco, Júlio, olhando para ela e vendo seu estado, perguntou:
- Por que será que você fica assim sempre que está em uma estação de trem, Diva?
- Não sei, mas, desde que aconteceu aquilo comigo, quando era pequena, sempre evitei chegar perto de uma estação e de um trem.
- Deve ter alguma explicação, acho que deveria procurar ajuda.
Danilo começou a rir. Júlio e Diva não entenderam. Ele perguntou:
- Do que está rindo, Danilo?
- Estou me lembrando daquilo que minha tia disse, Diva. Diva, relembrando-se do que Marília havia dito, também riu e perguntou:
- Acredita mesmo naquilo que ela disse Danilo?
- No momento em que ela falava, não, mas, diante do que está acontecendo com você, desse medo inexplicável, chego a pensar que pode ser verdade que poder haver reencarnação.
- Reencarnação? Do que estão falando? - Júlio perguntou, quase gritando.
Danilo, olhando para ele e ainda rindo, respondeu:
- Minha tia veio com essa conversa, confesso que, a princípio, não acreditei, mas, diante do que está acontecendo com Diva, pode ser verdade. Do contrário, qual seria o motivo de ela sentir-se assim em uma estação de trem?
- Não sei qual é o motivo, mas garanto que não se trata de reencarnação. Isso não existe, Danilo!
- Pode ser que não exista, mas se existir? Poderíamos imaginar que Diva possa ter morrido em uma estação de trem e por ele, ou que algo de muito grave tenha acontecido. Só isso responderia a esta situação.
- Sabe que pode ter razão, Danilo? Se aquilo que sua tia disse for verdade, teríamos a resposta. Será que foi isso que aconteceu? Será que fui atropelada e morta por um trem, ou teria acontecido algo muito grave?
- Não sei... não sei...
- Vocês estão loucos mesmo...
Danilo e Diva riram. Ela se aconchegou mais a ele, que, sorrindo, acariciou seu rosto. Finalmente o trem chegou. Eles entraram. Sentaram-se e, ansiosos, esperaram que ele partisse. Só assim teriam certeza de que estariam fora de perigo. Lentamente, após o apito, o trem começou a andar e a se afastar da estação. Os três respiravam fundo, aliviados.

CONVERSANDO COM RODOLFO

Depois que os homens foram embora, Luana se deitou, tentou dormir, mas não conseguiu. Pensava: Será que eles conseguiram pegar o trem? Eu fiquei apavorada quando ouvi Júlio dizer que a polícia estava vindo para prender Danilo. Fiquei muito mais, depois de conhecer aqueles homens. Eles são frios e cruéis, se os prender, não imagino o que poderão fazer. Preciso encontrar uma maneira de esclarecer esse engano. Mas o que posso fazer? Não conheço ninguém que possa me ajudar. Durante todo esse tempo da Ditadura, nunca me preocupei com política, somente em cuidar dos meus pacientes. Meu Deus preciso de uma luz, de um caminho para seguir. Queira Deus que eles, neste momento, estejam dentro do trem. Lá na fazenda, estarão protegidos. Naquele mesmo instante, Alda chegou e estranhou ao ver que ninguém havia se levantado. O que será que aconteceu? Por que ninguém se levantou? Desde que trabalho nesta casa, isso nunca aconteceu. Não sei o que fazer. Será que devo subir para saber o que aconteceu? Não, o melhor a fazer é pedir a Carlita que prepare o café e esperar que eles se levantem. Foi até a cozinha. Carlita estava junto ao fogão preparando o café. Ao vê-la entrar, perguntou aflita:
- O que aconteceu nesta casa, dona Alda? Por que ninguém acordou ainda?
- Não sei Carlita. Vamos terminar de preparar o café e esperar. Em algum momento, um deles acordará e saberemos.
Prepararam o café. Esperaram, mas, apesar de ter se passado mais de uma hora, a casa continuava em silêncio. Preocupada, saiu para o jardim e viu Tobias que lavava o carro. Aproximou-se:
- Bom dia, Tobias.
- Bom dia, dona Alda.
- Tobias, estou preocupada, os patrões e os meninos ainda não acordaram. Eles já perderam a hora para o trabalho e os meninos a da escola. Nunca vi isso acontecer.
- Não precisa ficar preocupada, esta noite aconteceu muita coisa e eles devem estar dormindo. Luísa também ainda está dormindo. O menino ficou muito assustado, chorou muito e demorou para dormir.
Luísa também estava muito assustada e não quis acordá-la. Sei que a doutora entenderá.
- O que aconteceu, Tobias?
Ele, sem saber se podia comentar, respondeu:
- Acho melhor a senhora esperar os patrões acordarem, eles poderão contar.
Ela, percebendo que ele não queria comentar o que havia acontecido e muito curiosa, insistiu:
- O que foi que aconteceu, Tobias? Você está me deixando preocupada!
- Desculpe senhora, mas não posso comentar, são coisas de família.
Ela, nervosa e curiosa, ia voltando para a casa, quando, olhando para a garagem que estava com a porta aberta, viu que o carro de Danilo não estava ali. Mais preocupada ainda, perguntou:
- Tobias, onde está o carro do Danilo?
- O senhor Danilo saiu com o carro de madrugada.
- De madrugada, por quê?
- Desculpe, mas não posso dizer. Logo mais os patrões vão acordar e a senhora poderá perguntar.
Percebendo que ele não ia dizer nada, ela se afastou e caminhou em direção da casa. Entrou. Carlita, assim como ela, também estava preocupada. Conversavam, quando Luísa entrou. Assim que a viram, Alda perguntou:
- Luísa, sabe alguma coisa sobre o que aconteceu esta noite?
- Por que está perguntando? A senhora parece tão preocupada, dona Alda?
- Ninguém se levantou até agora e você mesma só chegou agora. O que aconteceu, Luísa? Perguntei ao Tobias, mas ele não quis me contar. Estou muito nervosa!
Luísa, vendo o desespero delas, disse:
- Não sei se devia. Talvez Tobias fique bravo comigo, mas a senhora está muito aflita. Vou contar.
Em poucos minutos, contou o que havia acontecido. Alda e Carlita ficaram apavoradas. Alda disse:
- Isso não podia ter acontecido com Danilo, ele é um bom moço, só quer estudar e ser um bom advogado.
- Embora não o conheça há muito tempo, também penso assim. Luísa falou visivelmente preocupada.
- O que vamos fazer dona Alda?
- Nada podemos fazer Carlita, a não ser esperar e pedir a Deus que tudo seja esclarecido.
O telefone tocou, Alda atendeu:
- Alô. Alda, bom dia, sou eu, o Rodolfo.
- Bom dia, doutor Rodolfo. Que bom que telefonou.
- Por quê? O que está acontecendo?
- Aconteceu muita coisa e até agora ninguém acordou. Estou preocupada, são quase dez horas...
- Foi por isso mesmo que telefonei. Estou preocupado, pois nem Felipe nem Luana vieram para o hospital. Eles têm pacientes para atender. O que aconteceu?
- Não sei direito. Parece que a polícia veio para prender o Danilo.
- O quê? A polícia veio prender o Danilo? Por quê?
- Não sei doutor. A moça, mãe do menino, também não sabe muito.
Ela não entendeu o que aconteceu e só contou o que entendeu.
- Faça-me um favor. Vá até o quarto de Felipe e acorde-o, estou muito preocupado.
- Farei isso, mas o senhor não acha melhor esperarmos mais um pouco?
- Não precisa Alda, estou acordado. Com quem está falando ao telefone?
Alda voltou-se e viu Felipe aproximando-se. Passando o telefone para ele, respondeu:
- É o doutor Rodolfo. Ele está preocupado.
- Está bem, Alda, obrigado, falarei com ele. Pegou o telefone, Alda se afastou.
- Alô, Rodolfo.
- O que aconteceu, Felipe?
- Muita coisa, mas não podemos falar por telefone. Luana está terminando de se vestir. Iremos para aí e lhe contaremos tudo o que aconteceu esta noite.
- O que foi que aconteceu, Felipe? - perguntou nervoso e gritando.
- Não posso lhe dizer por telefone, Rodolfo. Tenha um pouco de paciência, já estamos chegando.
- Está bem. Estou aguardando vocês e direi aos pacientes que tiveram um problema e que irão se atrasar.
- Faça isso, por favor, e obrigado.
- Quem era ao telefone, Felipe?
Quem perguntava era Luana que acabava de descer a escada e se aproximou de Felipe.
- Rodolfo está preocupado por não termos ido ao hospital.
- O que disse a ele?
- Nada, Luana, apenas que depois lhe contaremos tudo o que aconteceu.
- Melhor assim, não sabemos se nosso telefone está grampeado.
- Foi por isso que me limitei a dizer o estritamente necessário.
- Agora, vamos para o hospital. Precisamos manter a nossa rotina. Tomara que os meninos tenham conseguido pegar o trem e já estejam viajando.
- Devem estar Luana. O meu plano vai dar certo. O problema é que não teremos como saber até que consigam nos mandar notícias ou consigamos enviar alguém até lá.
- Preciso conversar com Alda. Por sua expressão, percebi que está preocupada e não entendeu o que aconteceu.
- Faça isso, vou terminar de me arrumar e iremos para o hospital.
Luana foi para a cozinha, Felipe voltou para a escada. Estava subindo, quando encontrou Jerusa, que descia apressada.
- Bom dia, papai. Estou atrasada. Preciso ir para a biblioteca.
- Bom dia, filha. Não se esqueça de que não deve comentar com ninguém o que se passou esta noite. Precisamos ser discretos.
- Fique tranqüilo, não comentarei com ninguém.
Desceu correndo e foi para a sala de refeições. Apressada, pegou um copo, colocou suco, tomou rapidamente e saiu. Luana, na cozinha, conversava com Alda:
- Sei que está preocupada, Alda, mas não precisa ficar, está indo bem.
- Como tudo bem, senhora? A Luísa me contou o que aconteceu. Foi algo muito grave. O carro do Danilo nem ele estão em casa. O que aconteceu, senhora? Para onde ele foi? Diva foi com ele também, por quê?
- Diva foi com ele, assim como o Júlio. Eles estão bem, assim espero, e para o seu bem, é melhor que não saiba o que aconteceu. Continue sua rotina como se nada tivesse acontecido. Precisamos manter a calma. Disso depende o bem estar deles.
- Está bem, senhora. Já que está tão calma, o que aconteceu não deve ser grave mesmo.
Luana sorriu:
- Preciso lhe pedir uma coisa.
- O que, senhora?
- Não comente com ninguém o acontecido e se alguém vier procurar pelo Danilo, diga que ele foi viajar. Somente isso.
- Está bem. A senhora e o doutor vão tomar café?
- Não, vamos terminar de nos aprontar e iremos para o hospital. Lá, comeremos alguma coisa.
Alda, embora preocupada, mas vendo no rosto de Luana total tranqüilidade, sorriu. Luana saiu da cozinha e foi para seu quarto terminar de se arrumar. Embora, para não alarmar os empregados da casa, demonstrara tranqüilidade e despreocupação, seu coração estava apertado. Temia pelo filho, principalmente por saber que ele nunca quis se envolver em lutas contra a Ditadura, mas vencê-la através das leis. Porém, sabia que, naquele momento, nada mais poderia ser feito. Só desejava que ele chegasse bem à fazenda, pois, embora não soubesse a razão, sentia que ali ele estaria protegido. Depois de terminarem de se arrumar, saíram e chegaram ao hospital. Rodolfo os esperava ansioso. Sabia que algo de grave havia acontecido, mas não podia precisar o quê. Assim que eles se aproximaram, ele, aflito, perguntou:
- O que aconteceu, Felipe? Por que não quis me dizer ao telefone?
- Não precisa ficar aflito dessa maneira, Rodolfo. Agora está tudo bem, ao menos por um tempo.
- Pelo amor de Deus, me conte o que está acontecendo, Felipe!
- Não tivemos tempo para tomar o café da manhã, vamos para a lanchonete e lá conversaremos.
Foram para a lanchonete, sentaram-se e pediram café e um lanche. Enquanto o lanche estava sendo preparado, Felipe começou a contar tudo o que havia acontecido. Terminou, dizendo:
- Como pode ver, agora está tudo sob controle. Eles estão indo para a fazenda e, enquanto ficarem lá, não correrão perigo.
Rodolfo não tinha tanta certeza. Disse:
- Como pode ter certeza de que eles chegarão à fazenda?
- Se tivessem sido presos, já saberíamos. A polícia teria nos avisado.
- Em que país você pensa que está vivendo, Felipe?
- Não estou entendendo.
- Pelo que está dizendo, pode-se ver que não entende o que está acontecendo no Brasil, Felipe! Este país está sem leis! A polícia prende e faz o que quer sem dar satisfação a ninguém! Pessoas desaparecem sem que famílias sejam avisadas e muitas não estão voltando para casa. Precisamos encontrar uma maneira de saber se eles estão bem, mesmo! Hoje mesmo, vou para a fazenda!
- Não pode fazer isso, Rodolfo!
- Por que não, Luana?
- A polícia deve estar seguindo os nossos passos. Se algum de nós for até a fazenda, com certeza nos seguirão e os três serão presos!
- Ela tem razão, Rodolfo. Precisamos pensar em um meio para termos notícias, mas não podemos nos precipitar. Precisamos acreditar que eles estão bem.
- Isso que está acontecendo com Danilo não é justo! Embora eu tenha tentado convencê-lo do contrário, pois acho que esse governo deve ser derrubado, ele, não! Nunca quis participar de movimento algum para derrubar o governo!
- Nós sabemos disso, Rodolfo, mas parece que a polícia não está interessada em saber a verdade. Ele foi denunciado e isso basta para ela. Por isso, precisamos tomar cuidado!
- Tem razão, Felipe, estou muito nervoso e, por isso, não estou raciocinando direito. Vamos encontrar uma solução.
- Isso mesmo, meu irmão. Agora, precisamos acreditar que estão bem e que encontrarão uma maneira de nos contatar. Vamos trabalhar, temos pacientes nos esperando.
Tomaram o café que a garçonete já havia servido e foram para seus consultórios.

HORA DE ESCOLHA

Enquanto Luana conversava com Alda, Jerusa saiu da casa e viu Tobias que terminava de lavar o carro. Aproximou-se:
- Bom dia, Tobias, está pronto para me levar à biblioteca?
- Sim, senhorita. Bom dia.
Encaminhou-se para abrir a porta de trás para que ela entrasse. Antes de colocar a mão na maçaneta, ela disse:
- Não vou atrás, Tobias. Quero ir na frente com você?
- Na frente, senhorita?
- Sim, na frente. Não gosto de viajar atrás, meus pais me obrigam, porém hoje eles estão preocupados com o meu irmão e não perceberão.
Ele, sem entender o que estava acontecendo ou quais eram as intenções dela, ficou parado. Ela, alterando a voz, disse:
- Vamos, Tobias, abra a porta!
Ele, como se voltasse a si, deu a volta, abriu a porta da frente, por onde ela entrou e sentou-se. Ele, pelo outro lado, entrou no carro, ligou, acelerou e foram embora. Da porta da casa, Luísa acompanhou toda a cena. No carro, enquanto dirigia, Tobias lembrou-se do que Luísa havia dito. Estava nervoso, mas fazia o possível para demonstrar calma. Jerusa percebeu e, divertindo-se, perguntou:
- O dia está lindo, não é, Tobias?
- Está sim, senhorita...
- Quando estivermos a sós, não precisa me chamar de senhorita. Pode me chamar de Jerusa.
- Desculpe senhorita, não entendi.
- Entendeu muito bem, eu disse que pode me chamar de Jerusa.
- Não posso senhorita, sou seu empregado.
- Isso precisa ficar claro quando estivermos ao lado de outras pessoas, mas, quando sozinhos, não há necessidade.
Ao mesmo tempo em que dizia isso, ela colocou sua mão na perna dele, que, embora quisesse afastá-la, não podia, pois estava com o pé no acelerador. Ela, sorrindo por dentro, começou a acariciar sua perna. Ele, desesperado, disse:
- Por favor, não faça isso, senhorita. Além de ser seu empregado, sou casado e amo a minha esposa e meu filho.
- Não quero me casar com você, somente ficar algum tempo ao seu lado. Assim que o vi, senti que o conhecia há muito tempo e que queria ser sua. Tentei afastar o pensamento, mas não consegui. Sinto que algo mais forte nos une.
Ele, encostando o carro no meio-fio, disse, assustado:
- Está louca!
- Estou, sim, por você!
- Não pode ser!
- Claro que pode. Agora mesmo, poderemos ir para um hotel e ninguém ficaria sabendo. A nossa felicidade só depende de você. Vamos para um hotel?
- Não! A senhorita disse que ia para a biblioteca!
- Eu menti... queria ficar sozinha com você...
- Não pode ser senhorita. Já lhe disse que tenho mulher e um filho e amo aos dois...
- Como pode amar um filho como o seu? Doente e que nunca será nada na vida? E aquela mulherzinha sem graça?
- Embora sabendo que meu filho não tem futuro como qualquer outra criança, eu o amo e a minha mulher também, jamais os trairia!
- Vamos deixar de conversa e, agora, iremos para um hotel.
- Não, senhorita, desculpe, mas não posso.
- Claro que pode!
- Não, senhorita, por favor...
- Não venha com essa conversa! Como pode negar que assim que me viu se interessou e só não demonstrou por medo! Sei que gosta de mim.
- Não, amo minha mulher e estou agradecido aos seus pais por nos terem acolhido e ajudado. Jamais poderia trair a confiança deles...
- Pois não me importo com aquilo que pensa ou deseja fazer! Quero você e conseguirei ter de uma maneira ou de outra! Vamos!
- Por favor, senhorita, não faça isso...
- Está bem, pode não ser hoje, mas será em outro dia qualquer. Você ainda será meu! Vamos para a biblioteca! - ela disse isso, irritada e gritando.
Nervoso, ele tornou a ligar o carro e saíram. Jerusa, embora não entendesse o que estava acontecendo e por que sentia amor e desejo por aquele desconhecido, seguiu em silêncio. Ele, desesperado por aquilo que estava acontecendo, enquanto dirigia, pensava: Essa moça está completamente louca! Meu Deus acho que vamos ser obrigados a ir embora. Logo agora que na nossa vida estava tudo bem. Para onde poderemos ir? Luísa tinha razão, ela, antes de mim, percebeu as intenções dessa moça. O que vou fazer? Jerusa também seguiu em silêncio, mas pensava: O que está acontecendo comigo? Como posso estar agindo assim? Ele não passa de um serviçal! Como pude me apaixonar dessa maneira? Quero esse homem e, para tê-lo, farei o que for preciso! O que for preciso! Nervoso, Tobias dirigiu o carro. Sabia que, embora naquele momento, ele e Luísa estivessem vivendo tranqüilos, tudo estava para terminar. Precisava tomar uma atitude, mas qual? Parou o carro em frente à biblioteca, estava descendo para abrir a porta, quando Jerusa, nervosa, disse:
- Não precisa abrir a porta, não sou aleijada!
Ele ficou em silêncio, entendia que aquele momento era difícil. Ela desceu, ele voltou a ligar o carro e a sair. Tobias dirigia de volta a casa. Estava nervoso, pois sentia que toda aquela segurança em que se encontravam poderia terminar. Sabia que não seria fácil deixar de atender aos apelos de Jerusa. Pensava: Ela é muito bonita e envolvente. Sinto que, se não formos embora, não resistirei à tentação. Não! Não posso nem pensar nisso! Amo Luísa e jamais poderei trair esse amor. Assim que estacionou o carro em frente a casa, desceu e foi para o quarto, onde Luísa passava roupas. Para que ela pudesse cuidar do menino, Alda levou a tábua de passar para lá. Assim que o viu entrar, ela percebeu que ele não estava bem, perguntou:
- O que aconteceu, Tobias? Você está nervoso.
Ele, sem coragem de dizer o que estava acontecendo, respondeu:
- Nada está acontecendo, Luísa! Não sei por que está perguntando isso!
- Por que está gritando comigo? Só lhe fiz uma pergunta.
- Desculpe, mas não estou bem. Desde que me levantei, estou com muita dor de cabeça.
- Dor de cabeça? Você nunca teve dor alguma...
- Também não estou entendendo, por nunca ter sentindo dor alguma, sei que ela vai passar. Vou perguntar a dona Alda se vai precisar do meu trabalho, se não precisar, vou me deitar e tentar dormir um pouco.
- Deve fazer isso. Deite-se que eu vou falar com ela. Explicarei sobre sua dor, ela vai entender. Nunca, em nossa vida, estivemos em uma situação de segurança como esta, não é Tobias? Agora, estamos protegidos. A doutora parece gostar muito da gente. Estranho isso, não acha?
- Estranho, por quê?
- Ela nunca nos viu e, mesmo assim, nos trouxe para sua casa e está nos dando toda assistência, não só a nós, mas ao nosso menino também. Tenho medo de que tudo isso acabe.
Ao ouvir aquilo, ele estremeceu. Lembrou-se da situação em que estava, mas ficou calado. Precisava esperar para ver o que ia acontecer daquele dia para frente. Luísa viu quando Jerusa sentou no banco da frente do carro. Ficou preocupada, pois sabia que ela, além de ser bonita, tinha dinheiro, o que poderia levar Tobias a pensar muito, caso ela se interessasse por ele. Ao vê-lo voltar daquela maneira, sua desconfiança aumentou. Enquanto se dirigia para casa, onde pretendia conversar com Alda, pensava: O que será que aconteceu? Por que ele está tão nervoso? Será que ela lhe disse alguma coisa? Será que ela o ofendeu? Ele está estranho. Apesar de tudo o que já passamos, nunca o vi dessa maneira. Parece que está descontrolado... Entrou em casa. Alda estava na sala, mostrando para a empregada como deveria limpá-la. Luísa se aproximou:
- Dona Alda, preciso conversar com a senhora.
- Pois não, Luísa, o que aconteceu?
- Meu marido está com muita dor de cabeça, pediu que eu viesse até aqui para saber se a senhora vai precisar dele.
- Não, hoje, não pretendo sair. Diga a ele que pode tomar um comprimido e descansar. Quando os doutores chegarem e, se essa dor não passar, é melhor que converse com um deles.
- Obrigada, dona Alda, vou conversar com ele.
Estava saindo quando ouviu o telefone tocar. Alda atendeu. Ouviu alguma coisa do outro lado da linha e desligou o telefone. Voltou-se para Luísa e disse:
- Infelizmente, seu marido vai ter de esperar para tomar o comprimido. Jerusa acabou de telefonar e pediu que ele fosse buscá-la na biblioteca.
Luísa não gostou, mas sabia que nada poderia fazer, pois seu marido era o motorista da casa e precisava cumprir seu dever. Disse:
- Está bem, vou falar com ele. Obrigada, dona Alda.
Saiu da casa e, enquanto voltava para seu quarto, pensou: Alguma coisa está acontecendo, nunca vi o Tobias tão preocupado... não entendo, logo agora que estamos tão bem nesta casa. Temos trabalho e tratamento para o nosso filho, o que mais alguém poderia querer? Entrou em casa. Encontrou Tobias que, sentado na cama, olhava para o menino que dormia tranqüilo. Perguntou:
- O que está fazendo, Tobias?
- Olhando para o nosso filho e agradecendo a Deus por termos encontrado esta casa, onde ele está tendo toda assistência.
- Agradeço a Deus todos os dias. Ele nos enviou esses anjos e só podemos agradecer, mesmo.
- Também acho e, por isso, farei qualquer sacrifício para que tudo continue assim. Nada posso fazer que coloque nossa estabilidade em risco.
- Por que está dizendo isso, Tobias? Estamos seguros, protegidos e em paz, aqui nesta casa. Não precisa se preocupar, a doutora não vai nos abandonar. Estamos bem, Tobias...
- Sei disso, mas temo que alguma coisa possa acontecer para que essa paz termine.
- Nada vai acontecer. Conversei com dona Alda, ela disse que, depois que for buscar a moça na biblioteca, poderá tomar o comprimido e descansar. Estranho.
- O que é estranho?
- Você acabou de deixá-la na biblioteca, se sabia que seria por tão pouco tempo, poderia ter ficado e esperado. Essa moça é estranha...
- Não sei se é estranha, só sei que é a patroa, ela manda, eu faço! Ela percebeu que ele não estava normal. Perguntou:
- O que está acontecendo, Tobias? Por que está tão nervoso. Ele gritou:
- Quantas vezes vou ter de lhe dizer que nada está acontecendo! Será que não pode me deixar em paz? Vou buscar a moça, depois, vou tomar um comprimido, descansar e essa dor vai passar.
Percebendo que Tobias estava descontrolado, Luísa se calou. Ele se levantou, pegou seu boné de motorista, aproximou-se de Luísa, deu-lhe um beijo na testa e saiu. Ela ficou olhando-o se afastar e, por conhecer seu marido muito bem, sabia que alguma coisa estava acontecendo, mas não podia precisar o quê. Tobias estacionou o carro em frente à biblioteca. Embora tentasse disfarçar, estava preocupado e pensava: O que vou fazer? Logo agora que tudo parecia estar tão bem... o que essa moça viu em mim para que ficasse dessa maneira? Meu Deus, por favor, me ajude. Amo minha mulher e meu filho, não quero cometer uma traição... o que vou fazer se ela continuar insistindo? Estava pensando, quando viu Jerusa se aproximando. Saiu do carro, abriu a porta traseira para que ela entrasse, mas ela, ao se aproximar, fechou a porta, abriu a da frente e entrou. Tobias deu a volta, entrou, sentou-se e ligou o carro. Estava saindo quando Jerusa, colocando a mão em sua perna, fez com que parasse. Olhou bem nos olhos dele e perguntou:
- Por que você não quer aceitar o meu amor? Ele é verdadeiro. Sinto que, se você quiser, poderemos ser felizes...
Ele, nervoso e sem saber o que responder, permaneceu calado. Ela continuou:
- Sabe que, ao meu lado, poderá ter tudo com o que sonhou e até muito mais.
Nervoso e tremendo, ele respondeu:
- A senhorita está enganada. Não pode gostar de um homem como eu. Por saber a minha situação, está apenas querendo se divertir. Além do mais, já lhe disse que amo minha mulher e meu filho, não quero e não posso cometer uma traição.
- O que sua mulher tem que eu não tenho? Ela é bonita? Também sou! Ela tem dinheiro para lhe dar tudo do que precisar? Não! Eu tenho e posso fazê-lo muito feliz!
- Apesar da pobreza em que sempre vivemos, somos felizes.
- Como podem ser felizes sem dinheiro e com um filho sem futuro como o seu? Sabe que aquela criança é um estorvo! Ele nunca vai ter uma vida normal, será sempre um peso na sua vida! Pense bem no que está fazendo! Estou lhe dando uma oportunidade que muitos queriam ter!
- Não fale assim do meu filho! Eu o amo da maneira como é! Sei que, se tiver condições de freqüentar uma escola especializada, poderá ser útil para a sociedade!
- Está tentando enganar a quem? Mesmo que tivesse dinheiro para matricular seu filho em uma escola especializada, na situação dele, não adiantaria, sabe que, para sempre, ele ficará preso a uma cama!
Ele sabia que o que ela falava era verdade. Seu menino nunca poderia ter uma vida normal como outra criança qualquer. Em seus olhos, lágrimas se formaram. Ela percebeu. Abraçou-o e começou a beijar seu rosto, procurando seus lábios. Ele tentou se afastar, mas foi impossível. O contato daqueles lábios e o perfume que ela exalava fizeram com que seu corpo reagisse. Ela percebeu e continuou com as carícias. Depois de algum tempo em que ele se deixou levar, reagiu com violência e afastou-a.
- Deixe-me em paz! Por favor!
Antes que ela tivesse qualquer reação, ligou o carro e saiu em disparada. Ela, feliz por sua reação, por um tempo, seguiu em silêncio. Depois, ainda acariciando sua perna, disse:
- Não precisa ficar nervoso, Tobias. Sei que, assim como eu gosto de você, está gostando de mim também. Ninguém precisará saber. Podemos nos encontrar escondido.
- Não posso fazer isso! Amo a minha mulher e não quero enganá-la!
- Ela não precisa saber... sei que teremos momentos felizes...
- Por favor, senhorita, não faça isso... é uma moça muito bonita, tem dinheiro e poderá ter o homem que quiser, por favor, me esqueça...
- Como posso esquecê-lo? Acredita que eu queria que esse amor acontecesse? Acredita que não sei quem sou e quem você é? Claro que sei de tudo isso, mas não consigo controlar esse desejo que estou sentindo.
- Por favor, senhorita. Seus pais confiaram em mim, deram abrigo para mim e minha família. Jamais poderia enganá-los dessa maneira.
- Já lhe disse que ninguém precisará saber.
- Eu saberei e nunca mais poderei olhar nos olhos da Luísa. Ela me ama e confia em mim...
- Vocês estão vivendo bem?
- Sim, depois de muito tempo, estamos nos sentindo seguros e protegidos. Por favor, senhorita, não faça com que tudo isso acabe.
- Você acabou de dizer que meus pais confiam em você, o que acha que fariam se eu lhes dissesse que você tentou me agarrar no carro?
- Não fiz isso, senhorita!
- Não fez, mas se eu disser que fez, tenho certeza de que acreditarão na minha palavra mais do que na sua... - disse com ironia na voz e rindo com o canto da boca.
Ele, desesperado e sem saber o que fazer, ficou calado. Ela, percebendo que estava ganhando terreno, disse:
- Tenho uma amiga que ficou órfã. Seus pais morreram em um acidente de carro. Eles deixaram como herança vários imóveis, entre eles muitos apartamentos. Ela reservou um deles para que servissem de encontros para si e para suas colegas. Sei que, se conversar com ela, nos emprestará o apartamento, poderemos nos encontrar lá e ninguém precisará saber.
- Não posso fazer isso, senhorita... trairia não só a minha mulher como aos seus pais também. Eles não merecem isso...
- Já que está tão preocupado com meus pais, se não fizer o que quero, hoje mesmo direi a eles que tentou me agarrar e vocês estarão no olho da rua! Pense bem!
- Não faça isso, senhorita, por favor...
Ela, ao ouvir aquilo, ficou mais nervosa do que já estava. Disse, gritando:
- Claro que farei! Está em suas mãos e pare de me chamar de senhorita. Meu nome é Jerusa! Entendeu Jerusa!
Ele percebeu que não havia mais argumentos e que precisava tomar uma decisão. Aceitar o que ela lhe propunha ou pegar Luísa e o menino e sair daquela casa, onde havia encontrado tanto carinho. Sem saber o que fazer, permaneceu calado. Em casa, Tobias estacionou o carro e, antes de descer, Jerusa, disse:
- Lembre-se do que lhe disse! Agora, vamos almoçar, depois do almoço, ao invés de irmos para a faculdade, iremos para o apartamento da minha amiga! Entendeu? Espero que sim, pois, se não aceitar a minha proposta, hoje mesmo sairá desta casa!
Ele, em silêncio, desceu do carro e ia abrir a porta para que ela descesse, mas antes que chegasse, ela abriu a porta e, furiosa, desceu. Luísa que, ao ouvir o barulho do carro, saiu para esperar Tobias, viu aquela cena e ficou intrigada: O que será que está acontecendo? Por que ela está no banco da frente? Por que está tão nervosa e ele também? Está acontecendo alguma coisa, mas o quê? Tobias se aproximou. Ela percebeu que ele estava nervoso, foi beijá-lo como sempre fazia, mas ele afastou o rosto e entrou em casa. Foi até o quarto, onde o menino parecia dormir sossegado. Nervoso, sentou-se na cama e, olhando para o menino, começou a chorar. O menino abriu os olhos e o viu chorando. Olhou para o lado. Matilde continuava ali. Curioso, perguntou:
- O que aconteceu, Matilde? Por que ele está chorando?
- Na vida tudo sempre se repete. Jerusa está de volta e querendo novamente o amor de Tobias, mas, como da outra vez, agora também não vai ser correspondida. Esperemos que, tanto ela como Maria Luísa consigam superar o erro de outros tempos. Só assim, poderão seguir adiante.
- Por que tudo tem que se repetir Matilde?
- Para que o espírito possa vencer suas fraquezas. Jerusa sofreu muito com aquilo que fez, mas, mesmo assim, precisa passar por tudo novamente e superar. Só assim, seu espírito estará livre para prosseguir no caminho da evolução. O mesmo está acontecendo com Maria Luísa. Ela vai ter a oportunidade de cometer o mesmo erro da vida passada, mas terá também a oportunidade de exercer o perdão, ficar livre e poder continuar.
- Será que elas vão conseguir?
- Não sei, esperamos que sim. Embora estejam sendo intuídas por bons amigos espirituais, nem sempre são ouvidos.
- Quando não são ouvidos, o que acontece?
- Seguirão nesta vida até o último instante e, depois, em outra encarnação, terão outra oportunidade.
- As oportunidades nunca terminam?
- Não, Deus é um Pai amoroso e nos dá todo o tempo de que precisamos para resgatarmos os nossos erros e encontrarmos o nosso caminho.
Luísa, preocupada, também entrou no quarto e, ao ver Tobias chorando, perguntou:
- Por que está chorando, Tobias? O que aconteceu?
Ele, sem responder, olhou para ela, levantou-se, abraçou-a com muito força e disse:
- Não posso lhe contar, só precisa saber que, aconteça o que acontecer, eu amo muito você e nosso filho e, se eu fizer alguma coisa que possa lhe parecer errado, saiba que fiz porque não havia outra saída.
- Está me assustando, Tobias, o que aconteceu? O que vai precisar fazer que possa parecer errado? O que pode acontecer, logo agora que tudo está dando tão certo e que temos toda segurança do mundo?
- Não se preocupe essa segurança não estará em perigo. Sei que precisamos continuar aqui, pois, além de termos trabalho e tratamento para o nosso menino, não temos para onde ir. Não se preocupe, está tudo bem. Agora, preciso almoçar. Depois do almoço, tenho de levar a moça para a faculdade.
- Essa sua preocupação tem a ver com ela?
Ele, admirado, respondeu:
- Claro que não! De onde tirou essa idéia?
- Não sei, estou estranhando sua atitude e a dela sentada ao seu lado no carro, quando deveria ir no banco de trás. Afinal, ela é a patroa.
- Ela não gosta de viajar atrás, é somente isso, nada mais! Não pode se esquecer de que sou só o motorista, mas quem dá as ordens são os patrões. Ela gosta de ir no banco da frente, o que posso fazer?
- Está bem, sei que me ama, por isso não fico preocupada. Além do mais...
Ela parou de falar, ele nervoso e preocupado, perguntou:
- Além do quê, Luísa? O que está querendo dizer?
- Nada, Tobias, nada...
- Nada, não! Você quis dizer alguma coisa, preciso saber o que é!
- Tobias, você está gritando comigo? Nunca fez isso!
Ele percebeu que havia gritado. Tentando demonstrar uma calma que não sentia, abraçou-a, dizendo:
- Estou mesmo muito nervoso, mas não sei qual é o motivo. Fique calma que logo tudo isso vai passar.
- Está bem, vou até a casa pegar o seu prato. Sei que não gosta de comer lá na cozinha.
Ele sorriu e, abraçando-a, disse:
- Viu por que eu amo você? Estamos há tanto tempo juntos que você me conhece mais do que eu mesmo.
Ela também sorriu e saiu.

O PAPEL DA DITADURA

Luana fez sua ronda e atendeu suas pacientes. Embora procurasse reagir calmamente, estava nervosa e impaciente por não saber o que havia acontecido com Danilo. Será que eles conseguirão chegar à fazenda? E se estiverem presos e sendo torturados? Preciso saber, mas como? Tenho quase certeza de que estamos sendo vigiados. Pensou por algum tempo, depois se lembrou de Horácio, um amigo de Danilo, filho de uma sua amiga. Telefonou. Assim que uma voz de mulher atendeu do outro lado, ela disse:
- Bom dia, Selma, preciso conversar com Horácio, ele está em casa?
- Não, Luana, está na faculdade.
- É mesmo, estou tão aflita que esqueci.
- O que está acontecendo?
Luana, antes de responder, pensou um pouco e respondeu:
- Nada, só preciso conversar com ele a respeito de Danilo. Estou preocupada com ele.
- Por que, Luana? Ele sempre me pareceu um bom moço...
- Ele é, mas estou preocupada, outro dia lhe conto. Até mais.
Desligou o telefone. Selma, sem entender o que estava acontecendo, ficou esperando a volta do filho. Luana, assim que desligou o telefone, agoniada e sem saber o que fazer, foi conversar com Felipe, que também havia terminado de fazer sua ronda. Entrou em seu consultório, dizendo:
- Felipe, estou desesperada sem saber o que aconteceu. Será que eles conseguirão chegar à fazenda?
- Fique calma. Devem estar viajando. Sabe que só chegarão quase a noitinha.
- Também quero acreditar nisso, mas e se não chegaram? E se estiverem presos, sendo torturados?
- Também estou preocupado, mas sabe que nada podemos fazer.
Provavelmente, estamos sendo vigiados e se formos até a fazenda, com certeza seremos seguidos e eles serão presos mesmo. Precisamos esperar alguns dias e pensar em uma maneira de nos comunicarmos com a fazenda.
- Não vou agüentar esperar, Felipe... só de pensar que eles podem estar sendo torturados e até mortos...
- Nem pense nisso, Luana! Fazendo assim está me deixando mais nervoso do que já estou! - disse apreensivo.
- Felipe... o pai do Júlio não é militar? Será que ele sabe o que aconteceu com o filho?
- Sei que é militar, mas não o conhecemos. O que está pensando, Luana?
- Em ir falar com ele. Sendo militar, terá facilidade em descobrir se eles estão presos.
- Não sei, não... Danilo não nos disse que ele e o filho estão brigados.
Talvez nem se interesse em saber do paradeiro do filho.
- Preciso tentar Felipe... não posso continuar nessa agonia...
- Sabe o endereço dele?
- Não, mas acho que o Horácio sabe. Vou até a faculdade tentar encontrá-lo.
- Não pode ir sozinha, vou também.
- Não, não podemos ficar ausentes do hospital. Um de nós já é o suficiente. Irei e, se conseguir o endereço, telefono para você.
- Está bem, faça isso.
Naquele mesmo instante, Luana tirou o jaleco com o qual estava vestida e, beijando Felipe no rosto, saiu. Assim que chegou à Faculdade, foi para a secretaria. Perguntou:
- Estou procurando por Horácio Silva Jardim. Preciso conversar urgente, com ele.
- Ele está em aula e não pode ser perturbado.
- Sei disso, mas trata-se de um assunto muito urgente.
- Sinto muito, mas se eu entrar na sala de aula, não atrapalharei só a ele, mas aos outros alunos também.
- Por favor, senhora, é muito urgente. Caso de vida ou morte...
- Luana disse, quase chorando.
A mulher olhou no relógio e respondeu:
- Está quase na hora de terminar a última aula e ele estará saindo. Vou lhe dizer qual é a sala em que ele está e a senhora poderá ficar no corredor esperando.
- Muito obrigada, senhora. Não pode imaginar o favor que me está fazendo.
- Não tem de quê. A senhora deve ir por este corredor, virar no fim dele e seguir em frente. A sala dele é a última. Pode ficar esperando ali.
- Mais uma vez, obrigada.
Com passos firmes, Luana seguiu a indicação da mulher e chegou em frente à sala. Encostou-se na parede e ficou esperando. Alguns minutos depois, viu que os alunos começaram a sair. Como eram muitos, ficou olhando com atenção, mas nem precisaria, pois eles também estranharam a presença daquela mulher no corredor e todos, ao passarem por ela, olhavam. Não demorou muito para que Horácio a visse. Aproximou-se, perguntando:
- Dona Luana, o que está fazendo aqui? A sala do Danilo é no outro corredor.
- Estou esperando por você, precisamos conversar.
Os outros alunos, assim que viram Horácio parar, continuaram andando. Horácio, aflito, perguntou:
- Está bem, pode falar, aconteceu alguma coisa com o Danilo?
- Aconteceu, sim, mas não quero falar a respeito, preciso saber se você tem o endereço ou telefone do pai do Júlio.
- Do pai do Júlio, para quê?
- Não posso lhe contar, mas, por favor, preciso de sua ajuda.
- Está bem, não sei o nome da rua, mas fica aqui perto, posso acompanhá-la.
- Obrigada, Horácio. Não pode imaginar o bem que está fazendo a mim a ao Danilo...
- Não precisa agradecer, o Danilo é meu amigo. Para a senhora estar tão preocupada e querendo ir à casa do Júlio, posso adivinhar o que aconteceu. Fiquei sabendo que, ontem, aqui na faculdade, muitos dos nossos colegas foram presos. Danilo e Júlio também?
- Sim, mas, por favor, não comente com ninguém.
- O que a senhora está pretendendo ao ir à casa do Júlio?
- O pai dele é militar, talvez possa me dizer onde eles estão.
- A senhora pode ir, mas acredito que esteja perdendo tempo, pois o pai e ele estão rompidos.
- Sei disso, mas, mesmo assim, quero tentar.
- Está bem, vamos.
Saíram e, em poucos minutos, Luana parou o carro em frente a uma casa pintada de azul e com um enorme jardim na frente. Horácio disse:
- É aqui. Tem certeza de que quer mesmo falar com o pai do Júlio?
- Quero sim. Só não sei se ele está em casa.
- Está sim. Esse carro preto que está no jardim é dele. A senhora tem certeza de que quer falar com ele?
- Tenho, não existe alternativa.
- Está bem, mas vou embora. Ele não gosta de mim. Acha que fui eu quem desviou seu filho.
Mesmo muito nervosa Luana não pôde deixar de rir e dizer:
- É mais fácil jogar a culpa nos outros. Os filhos, para os pais, sempre serão inocentes.
Horácio também riu e disse:
- Tem razão, a senhora está aqui porque acredita que Danilo seja inocente, não é?
- Nisso você está certo, mas tenho a certeza de que ele nunca esteve envolvido em subversão.
- A senhora está certa. Assim como eu, Danilo nunca quis se envolver. Acreditamos que a ditadura só será vencida através das leis e não importa o tempo que demore, um dia, ela terminará.
- Esperamos que sim. Nunca me preocupei com ela, pois não me atingia, mas agora, é diferente. Ela bateu à minha porta e desejo ardentemente que termine e que volte a haver democracia no Brasil.
- Esse também é o meu desejo e o de muitos.
- Obrigada, Horácio, por ter me trazido até aqui. Agora, pode ir embora. Não quero que a família de Júlio me veja ao seu lado, poderia complicar sua vida.
- Tem razão. Até mais e espero que tenha sorte.
- Obrigada mais uma vez.
Horácio se afastou. Luana, receosa, tocou a campainha. Uma senhora abriu a porta e se aproximou.
- Pois, não.
- Bom dia, senhora. Meu nome é Luana e sou mãe do Danilo, colega e amigo do Júlio. Preciso conversar com o pai dele.
- Sou a mãe do Júlio. A senhora sabe se aconteceu alguma coisa com ele? Estou preocupada, ontem, não voltou para casa.
- É justamente sobre isso que quero conversar com seu marido.
- Ele não quer saber do filho... diz que foi traído por ele. Eu sofro muito por isso...
- Também estou sofrendo. Meu filho foi envolvido em algo que não tem culpa. Por favor, deixe-me falar com o seu marido.
- Pode tentar, se quiser, mas acho que não vai adiantar. Ele não quer saber do filho.
- Por favor...
- Está bem, mas quero lhe pedir desculpas antecipadas pela maneira com que ele possa tratá-la.
- Não se preocupe com isso. Meu filho está em perigo e farei tudo o que estiver ao meu alcance para ajudá-lo.
- Queria ter essa mesma força, mas não tenho. Meu marido controla a todos nesta casa.
Luana sorriu ao ver aquela mulher tão frágil. Disse:
- A senhora tem força, só não a encontrou ainda. Fique calma, depois de conversar com seu marido, conversarei com a senhora.
A senhora sorriu e abriu o portão. Luana entrou. Já na sala, notou que os móveis eram escuros, o que tornava o ambiente sombrio. A senhora pediu que ela esperasse e entrou por uma porta. Minutos depois, voltou:
- Pode entrar, ele concordou em atendê-la.
- Obrigada.
Luana, receosa, entrou pela porta por onde a mulher havia saído. Assim que entrou, percebeu que se tratava de um escritório. Atrás de uma mesa, estava sentado um senhor de aparência rígida, que ao vê-la entrar, levantou-se e estendeu a mão que ela apertou, tentando sorrir e dizendo:
- Bom dia, senhor. Desculpe meu atrevimento, meu nome é Luana, sou mãe de Danilo, amigo do seu filho Júlio.
Enquanto apertava sua mão, ele disse:
- Sente-se, por favor, mas devo-lhe adiantar que nenhum assunto referente a meu filho me diz respeito.
Ela, sentando-se e não se deixando abater por sua frieza, falou:
- Mas eu tenho muita preocupação em relação ao meu filho.
- O que deseja de mim?
Luana contou o que havia acontecido lógico que omitindo a fuga e a provável ida deles para a fazenda. Enquanto ela falava, o homem ouviu em silêncio. Quando ela terminou, ele disse:
- Ainda não entendi o que a senhora está pretendendo.
- Preciso saber se eles foram presos, onde estão e o que posso fazer para libertá-los.
- Não sei se foram presos, mas espero que sim e que meu filho tenha um bom corretivo para deixar de ser subversivo! - ele disse visivelmente nervoso.
- Embora não entenda o que acontece entre o senhor e seu filho, estou aqui para ajudar o meu.
O homem, ainda com o rosto crispado, olhando bem em seus olhos, disse:
- Se ele está sendo procurado, deve pertencer a algum grupo subversivo.
- O senhor está enganado. Ele nunca quis pertencer a grupo algum.
- Ele, como a senhora disse, é amigo do meu filho, portanto deve também estar fazendo Direito, não é?
- Sim.
- Os estudantes de Direito são os mais atuantes e aqueles que querem lutar contra a Ditadura. Como pode me fazer crer que seu filho não é um subversivo?
- Embora meu filho não faça parte de grupo algum de resistência, pois ele acredita nas leis, quer vencer a Ditadura, sim, mas através delas. Acredito que o jovem tem o direito de lutar pelo bem do país.
- Bem do país? O que acha que estamos fazendo?
- Desculpe senhor, mas não sei como responder. Minha família toda, com exceção do meu filho, é formada por médicos e nos dedicamos a salvar vidas, nunca nos preocupamos com política.
- Pois deviam. Se soubessem o que acontecia no Brasil antes da revolução, veriam que ele estava dominado pela corrupção e pelos desmandos. Com a revolução, não, ao contrário, temos um projeto para o país. Estamos construindo estradas para unir o Norte e o Nordeste ao resto do país. Estamos construindo hidroelétricas que trarão a soberania em energia. A senhora sabe quantos analfabetos existem no Brasil?
- Não.
- Pois são muitos, milhares. Pessoas que não tiveram a oportunidade de ter em suas mãos uma cartilha, muito menos um professor. Pensando nisso, instituímos o Mobral e, agora, em centenas de salas espalhadas por todo o país, estão dando a oportunidade para que essas pessoas possam aprender a ler. A senhora sabe quantos tiveram de abandonar os estudos por vários motivos?
- Não.
- São milhares. Por isso, criamos o Madureza, que permite às pessoas retornarem aos estudos e se formarem. Estamos criando centenas de escolas e hospitais. Como pode ver, a Revolução está fazendo tudo isso e vai fazer muito mais: na reforma agrária dando terras e trabalho para os agricultores; moradias que estão sendo compradas por um sistema de habitação. O mais importante: ninguém poderá dizer, jamais, que houve ou há corrupção ou desvio do bem público, pois o militar tem formação cívica e moral. Ele sabe que o roubo não deve constar de seu dicionário. A senhora talvez não se lembre, mas, quando tomamos o poder, a inflação estava galopante e o Presidente se aproximava cada vez mais, dos comunistas. Se não tivéssemos tido aquela atitude, o Brasil seria uma Ditadura, sim, mas comunista e aí sim, a senhora saberia o que é repressão. Como pode ver, estamos no caminho certo para colocar o Brasil, com toda sua grandeza, no caminho adequado.
- Porém, não temos liberdade.
- A senhora viu alguém do povo reclamando? Claro que não! Hoje eles têm trabalho, escola e bom atendimento na saúde e comida em sua mesa! O povo está feliz! Somente estão descontentes aqueles que querem transformar este país em uma ditadura comunista! Eles, sim, são bandidos! Assaltam bancos, cometem seqüestros, matam nossos soldados e atiram bombas em nossos quartéis! São bandidos, denominando-se de salvadores da pátria. Salvadores somos nós e não se preocupe, pois, na hora certa, devolveremos o país aos civis. Tomara que eles não coloquem a perder tudo o que conquistamos!
- Nunca parei para pensar a esse respeito, pois, como já lhe disse, me preocupo em salvar vidas, mas, diante de tudo o que disse, vou começar a prestar atenção. Porém, não estou aqui para discutir política, estou aqui por causa dos nossos filhos. Preciso saber se estão bem. Não posso acreditar que o senhor não se preocupa com o Júlio! Ele é seu filho!
- Quando criança, ele dizia que, ao crescer, seria marinheiro. Para mim, aquilo era motivo de orgulho, pois assim como sua família é composta por médicos, a minha sempre foi formada por militares. Por esse motivo, sempre que podia eu o levava comigo. Ele ficava encantado dentro de um navio. Depois, quando cresceu e chegou a hora de ir para a marinha, negou-se e disse-me que queria ser advogado para poder me derrotar e à Revolução. O que a senhora queria que eu fizesse? Ele, assim como todos os outros subversivos, se transformou em um bandido! Não posso nem quero aceitar. Hoje, por causa da sua mãe, ele continua morando na minha casa, comendo da minha comida e freqüentando a Faculdade, apoiado por mim. Porém é só isso! Não quero chamá-lo de filho nem quero que me chame de pai!
- Preciso ajudar o meu filho! Por isso, imploro-lhe que me ajude a descobrir onde ele está e como posso ajudá-lo! Por favor...
- Já que a senhora me garante que seu filho não faz parte de grupo algum, vou tentar descobrir. Espere um momento, por favor.
Voltou-se para um telefone que estava sobre a mesa e perguntou:
- Como é o nome do seu filho e da moça que está com eles?
- Danilo de Albuquerque e Souza. Sei que o nome da moça é Diva, mas não sei o seu sobrenome.
- Assim será difícil encontrá-la, caso esteja presa, mas tentarei saber se seu filho está preso em alguma dependência do SNI.
Discou um número, depois outro e assim fez por seis vezes perguntando por Danilo, Júlio e Diva. Depois que terminou de falar, sob os olhos atentos de Luana, desligou o telefone e disse:
- Eles não estão em lugar algum, posso lhe garantir que eles não foram presos. Por enquanto, a senhora pode ficar tranqüila.
Luana respirou fundo. Em seu semblante, ele pôde notar que ela estava em paz. Sabia que eles deveriam estar a caminho da fazenda.
- Obrigada, senhor. Não pode imaginar como essa notícia me deixa feliz.
- A senhora sabe de algum lugar onde eles possam estar?
- Não, senhor, mas deve convir que, mesmo que soubesse, eu não diria. Estamos falando dos nossos filhos.
- A senhora tem razão, mas devo lhe dizer que, se não estão presos, estão escondidos em algum lugar e que continuarão sendo procurados. Não importa onde se encontram, serão achados.
- De coração, espero que isso não aconteça.
Ela levantou-se, estendeu a mão e se despediu. Ele, antes de ela sair, disse:
- Espero que a senhora pense mais a respeito da Ditadura e perceba que ela só está fazendo bem para o Brasil e para o povo brasileiro.
- Pensarei senhor, pode ter certeza disso e, quando encontrar o meu filho e o seu, farei com que pensem também.
- Está no caminho certo, minha senhora.
- Obrigada, mais uma vez.
Dizendo isso, ela se voltou e saiu do escritório. Assim que saiu, encontrou a mãe de Júlio que, aflita, estava com os olhos vermelhos de chorar. Chegou perto dela, abraçou-a para se despedir e disse baixinho em seu ouvido:
- Não precisa chorar nem se preocupar, seu filho e o meu estão bem e protegidos.
A senhora, também com a voz baixa, disse, sorrindo:
- Obrigada por ter vindo a minha casa.
Afastaram-se e, tranqüila, Luana saiu daquela casa, claro que diferente daquela que havia entrado. O discurso do pai de Júlio fez com que pensasse um pouco mais a respeito do que era bom para o Brasil. Já na rua, pensou: Embora esteja feliz por saber que Danilo e os amigos não estejam presos, pois não acredito que o pai do Júlio tenha mentido, estou muito nervosa e sem condições de trabalhar. Acho melhor ir até o hospital contar ao Felipe e ao Rodolfo tudo o que conversei com ele e tranqüilizá-los. Depois, irei para casa. Quem sabe tenha alguma notícia, embora eles tenham sido instruídos para que não telefonassem. A mãe de Júlio continuou parada, olhando em direção à Luana que se afastava altiva e com passos fortes. Depois de algum tempo, entrou na sala do marido e, com a voz firme, perguntou:
- Alberto, onde está o nosso filho?
Ele, prepotente, olhou para ela e também perguntou:
- Está falando do seu filho?
- Não, do nosso! O que aconteceu com ele? Onde está?
- Não sei nem me interessa. Ele deixou de me preocupar quando resolveu ser um traidor.
- Você precisa me dizer! Se não fizer isso, vou até a um seu superior!
Ele, espantado com a reação da mulher, perguntou:
- O que está dizendo?
- Isso mesmo que ouviu! Estou cansada de ser tratada por você como alguém que não existe, como um móvel a mais nesta casa! Sou sua mulher e quero ser tratada como tal! Quero saber onde está o meu filho!
Estava nervosa e gritava. Ele percebeu.
- Você está pensando o que da vida? Como se atreve a falar dessa maneira comigo?
- Cansei de ser dominada por você! Não sou um de seus soldados! Sou sua mulher! Quero saber o que aconteceu com o nosso filho!
- Já lhe disse que não me interessa a vida daquele traidor, daquele subversivo! Eu o preparei para que entrasse na Marinha, pois esse era o seu desejo desde pequeno! Quando chegou a hora, ao invés de seguir o seu caminho, resolveu lutar contra aquilo que desejo e protejo! O bem para o Brasil!
- Bem para o Brasil! Como você e seus companheiros são prepotentes!
- Por que está dizendo isso?
- Acham realmente que estão fazendo o bem para o Brasil? Calando a imprensa e afastando, prendendo e torturando todos os que se opõem àquilo em que acreditam? Isso é o bem do Brasil? Onde o povo é amordaçado e vive em constante medo? Você diz que Júlio é traidor, subversivo? Ele não é isso! Foram vocês que traíram a Pátria! Foi você quem traiu seu filho que, por não aceitar no que vocês transformaram o Brasil, se afastou do seu sonho de vida! Não vai ser marinheiro por sua culpa!
- Você não sabe o que está dizendo! Está nervosa! Como isso aconteceu?
- Depois que vi aquela mulher sair daqui, altiva e feliz por saber que seu filho não está nas garras de torturadores, pensei: o que estou fazendo pelo meu filho, pelo Brasil? Por que aceitar tudo o que você diz e me obriga a aceitar? Por que continuar sendo um utensílio nesta casa? Não, não quero mais! Vou descobrir o que aconteceu com o meu filho e lutar por ele!
- Você está muito nervosa, não sabe o que está dizendo. Acho melhor sair desta sala.
- Tem razão, estou nervosa e vou sair não só desta sala, mas desta casa também! Vou ser uma mulher de verdade! Depois de tantos anos de escravidão, vou ser livre!
- Já pensou para onde vai? Pensa em viver como?
- Não pensei, mas sei que encontrarei uma solução! Só não quero mais continuar vivendo ao seu lado da maneira como vivi até hoje!
Para espanto dele, ela saiu, com a cabeça alta e pisando firme. Ele sentou-se, abismado, por não reconhecer aquela mulher com a qual havia vivido durante tanto tempo. Abriu um livro e começou a ler. Assim que chegou ao hospital, Luana foi falar com Felipe, que, como ela havia imaginado, realmente, estava muito preocupado. Antes de conversarem, foram em busca de Rodolfo que estava em um dos quartos, atendendo a um paciente. Eles entraram, Felipe fez um sinal com a mão, que Rodolfo entendeu e, também fazendo um sinal, pediu que esperassem. Logo depois, ele saiu e foram para a lanchonete, pois lá seria seguro para conversarem. Sentaram-se, pediram um refrigerante. Luana contou tudo o que havia conversado com o pai de Júlio e tudo o que ele havia dito a respeito da Ditadura. Terminou, dizendo:
- Ouvi com atenção e parece que, em algumas coisas, ele tem razão. O Brasil melhorou muito depois que os militares tomaram o poder.
- Como pode pensar isso, Luana? Esse homem faz parte daqueles que estão no poder e que tiraram a liberdade do povo!
- Sei disso, Rodolfo, e disse a ele, mas, mesmo assim, não podemos negar que muito do que ele disse é verdade. O Brasil está em pleno crescimento. Escolas, hospitais e casas populares estão sendo feitos. Estradas no Nordeste para a integração também.
- Tudo isso, sem liberdade, não tem valor algum!
- Ele disse que militar não tem dom para governar e que, quando chegar a hora, eles devolverão o Brasil para as mãos dos civis e espera que eles não coloquem tudo a perder novamente.
- Duvido que isso, um dia, aconteça! Jamais voltaremos a ser livres!
- Ora, Rodolfo, você acha que um pai de família que tem emprego, hospitais e seus filhos em escolas está preocupado em poder falar? Ele não está nem aí! O povo, em sua maioria, não está preocupado com política ou políticos, só quer o bem-estar de sua família.
- Infelizmente você tem razão, Felipe. O povo só quer tranqüilidade para viver.
- Isso mesmo, Rodolfo. Como a maioria do povo, o importante para nós é que Danilo não está preso e, como você ganhou a confiança do pai do Júlio, Luana, se algo acontecer, ele nos avisará e ajudará.
- Quanto a isso, não resta dúvida, acho que consegui convencê-lo de que Danilo nunca quis fazer parte de grupo algum para derrubar a Ditadura. Ele quer, sim, que ela termine, mas que lutará, valendo-se das leis.
- É só isso que nos interessa. O resto vamos deixar para os políticos.
- É só com isso que você se preocupa, Felipe?
- É, Rodolfo, e também de poder dar um bom atendimento aos meus pacientes. O resto é só resto, pois, se eu não trabalhar, político algum colocará comida na minha mesa e de todas as pessoas.
- Você sempre foi assim, completamente alienado!
- E você, muito radical.
- Esperem aí, vocês dois, não é hora de brigarem, o mais importante é que Danilo deve estar viajando e, logo, chegará à fazenda e, se isso acontecer, tudo ficará bem. Lá, ninguém pensará em procurá-los.
- Você acha isso, mas como poderemos ter certeza?
- Receio que isso não será possível. Quando saí da casa do pai do Júlio, vi um carro preto que me seguiu até aqui. Nossos telefones devem estar com escutas. Precisamos esperar o tempo passar. Sei que Danilo encontrará uma maneira de nos avisar.
- Tomara que eles cheguem, realmente, à fazenda e bem. Nós também precisamos encontrar uma maneira de obter notícias sem despertar suspeitas.
- Tem razão, Felipe. Agora vou para casa. Estou muito nervosa e preocupada, sem condições de trabalhar.
- Faça isso, Luana, se algum dos seus pacientes precisar, eu e Rodolfo atenderemos. Vá tranqüila.
Luana sorriu, deu um beijo de leve nos lábios de Felipe e outro no rosto de Rodolfo. Saiu.

FIM DE MISSÃO

Tobias, em casa, tentava almoçar, mas não conseguia. Estava nervoso e pensava: O que vou fazer? Se eu não aceitar o capricho dessa moça, tudo o que temos aqui será perdido. Para onde vou levar Luísa e o menino? Meu Deus do céu, por que não conseguimos ter um pouco de felicidade? Logo agora que tudo caminhava tão bem. Ela disse que hoje à tarde vai me levar àquele apartamento. Por que isso tudo está acontecendo? Luísa, que estava dando comida ao menino, prestava atenção nele e também pensava: O que será que está acontecendo com ele? Está assim desde que chegou... será que tem a ver com aquela moça? Por que ela sentou ao lado dele ao invés de no banco de trás, que é o correto? Não estou gostando disso, não estou mesmo!
- Tobias, por que está tão nervoso?
- Não estou nervoso, Luísa!
- Claro que está. Conheço você o suficiente para saber que está com problemas, por que não me conta? Nunca tivemos segredos.
- Não tenho o que contar muito menos um segredo! Está vendo coisas que não existem!
- Está bem, mas não se esqueça do quanto gosto de você e que, por isso, pode sempre confiar em mim.
Ele largou o prato que tinha nas mãos e o colocou sobre uma pequena mesa. Disse:
- Não tenho segredo algum, mas só lhe peço uma coisa, você é quem nunca pode se esquecer aconteça o que acontecer, de que gosto muito de você e do nosso filho.
- Está me assustando, Tobias! Agora tenho certeza de que alguma coisa está acontecendo. Está assim por causa da Jerusa? Está gostando dela?
- De onde tirou essa idéia?
- Não sei, vi quando chegaram e ela estava sentada ao seu lado. Isso não é normal, Tobias!
- Não comece a imaginar coisas. Está vendo fantasmas onde não existe!
Ao lado deles, sem que imaginassem, estava Matilde que sorria e disse:
- Chegou a hora, meus filhos. Principalmente para você, Tobias, sabe que não precisava voltar e só fez isso por causa do seu amor por Maria Luísa e para ajudar Jerusa. Sabe que elas, sim, têm o que resgatar, mas você, não. Por isso, não precisa se preocupar estou aqui e vou ficar ao seu lado enquanto precisar. Tudo o que estava programado começou a acontecer. Tanto Maria Luísa como Jerusa terão de passar pelas mesmas coisas de antes, mas terão, também, a oportunidade de não repetirem os mesmos erros. Vamos pedir a Deus que, desta vez, elas consigam.
Tobias não sabia que ela estava ali, mas, sem entender o porquê, sentiu uma paz imensa, tão grande que de seus olhos lágrimas rolaram. Ele, rapidamente, com as mãos, enxugou-as. Luísa, que continuava dando comida para o menino, não percebeu. Ela, assim que o menino terminou de comer, trocou sua fralda e colocou-o para dormir. O menino, que acompanhava tudo o que acontecia, perguntou:
- O que vai acontecer, Matilde? Ele está sofrendo muito. Tudo o que sofreu não foi o suficiente? Isso não está certo! Eu, sim, merecia sofrer todas as dores do mundo, mas ele, não!
- Não sei o que vai acontecer, só sei que elas estão tendo outra chance. Tobias sofreu muito, não precisaria ter renascido, mas, como Maria Luísa precisava, ele quis ficar ao lado dela. A sua missão aqui na Terra terminou, só falta mais uma coisa. Está na hora de voltar para casa.
- Já? Minha missão terminou? Qual foi a minha missão se não saí do berço, se estou sem condições de me mexer, muito menos de ajudar!
- Você veio para unir todos para que, assim, pudessem seguir o planejado. Agora, já estão juntos, só tem mais uma coisa para fazer.
- O quê? Não pode me contar?
- Por enquanto, não. Agora tente dormir, seu corpinho é muito fraco e precisa de descanso.
O menino fechou os olhos e adormeceu. Luísa pegou os pratos onde ela e Tobias haviam comido, pois não gostavam de comer com os demais empregados da casa, e saiu com eles para levá-los à cozinha, onde ela os lavaria junto com a louça do almoço. Assim que entrou na cozinha, encontrou Jerusa que estava ali, conversando com Alda. Em silêncio, foi para junto da pia e começou a lavar a louça. Jerusa, olhando-a de cima abaixo, disse:
- Como está aquele seu filho doente?
Luísa sentiu que o sangue subiu todo em seu rosto. Nunca pensou que algum dia poderia sentir tanto ódio. Ficou com vontade de dar um tapa na boca que havia dito aquilo, mas se conteve, pois, embora Jerusa fosse daquela maneira, o resto da família sempre a tratou muito bem. Vendo que Luísa não respondia e que ela estava nervosa, Jerusa continuou:
- Por que está nervosa? Seu filho não é só doente, é uma criança feia e asquerosa! Imagino o que você sente sendo obrigada a cuidar daquele monstrinho todos os dias e o desejo que tem para que ele morra! Acho que reza todos os dias para que isso aconteça logo!
Luísa, com muito ódio, levantou a cabeça, olhou bem dentro dos olhos de Jerusa e disse:
- Está muito enganada, amo meu filho e rezo, sim, todos os dias, mas para agradecer por ele ter nascido! Sou agradecida a Deus, mais do que muitas pessoas que, embora tenham tudo, não dão valor e gostam de fazer as pessoas sofrerem.
Terminou de falar e, furiosa, saiu da casa. Jerusa, não querendo entender o que Luísa disse, sorriu, pensando: Hoje mesmo seu marido vai ser meu! Luísa, tremendo muito e com raiva, saiu dali. Alda, que acompanhou aquela cena, não conseguia acreditar no que tinha ouvindo. Também furiosa, perguntou:
- Por que você é assim, Jerusa?
- Assim como?
- Malvada tão diferente do resto da sua família.
- Não sou malvada nem diferente, só falo o que penso você sabe que crianças como aquela são olhadas com curiosidade, desdém, asco e até medo. Pode notar que, quando as pessoas vêm crianças como ela, de tanto asco, viram o rosto para o outro lado! Eu sinto isso, só não sei fingir como a maioria das pessoas fazem!
- Talvez as pessoas virem o rosto para não constranger os pais ou por serem preconceituosas.
- Constranger, por quê? Preconceito? E horrível olhar uma criança como essa! Você acha que ela não pensa assim também? Já imaginou cuidar de um monstrinho como aquele, sabendo que nunca vai andar, falar ou ao menos sorrir! Isso é castigo! Eles não dizem que amam seus filhos? Pois, então, se isso for verdade, não deveriam ficar constrangidos. Além do mais, não gosto dessa mulher, quero que sofra!
- Como pode dizer isso, Jerusa? Ela é uma coitada, não tem nada nessa vida, só o filho e o marido que parece gostar muito dela. Como ela disse você tem tudo e não está dando valor. Deus pode castigá-la.
- Ora, Alda, não me venha com essa conversa, pois, se nasci rica, não tenho culpa. Sou feliz assim e não quero que mude e não vai mudar. Azar o dela de ter nascido pobre. Agora vou me arrumar, está na hora de voltar para a faculdade.
Saiu da cozinha. Alda ficou olhando e, desanimada, balançou a cabeça. Luísa, muito nervosa, estava atravessando o quintal para chegar ao seu quarto, quando viu Luana que estacionava o carro. Tentou entrar rápido em casa, não queria que ela a visse naquele estado. Luana, percebendo que alguma coisa estava acontecendo, chamou:
- Luísa, espere, preciso falar com você.
Sem alternativa, Luísa parou e Luana, aproximando-se, perguntou:
- O que aconteceu, Luísa? Parece que está muito nervosa.
Luísa respirou fundo e tentou se acalmar, não queria que Luana soubesse o que havia acontecido, voltou-se para ela, quando ouviram Tobias que gritava, desesperado:
- Luísa! Venha cá! Corra!
Luana e Luísa se assustaram com o desespero dele e correram para ver do que se tratava. Ele, nervoso, não conseguia falar. Olhava e apontava para o quarto. Luana foi a primeira a entrar no quarto. Olhou para o menino e, mesmo sem examinar, percebeu que ele estava morto. Não entendeu o que havia acontecido, pois achava que ele estava bem. Desesperada, gritou:
- Não pode ser! Estava bem! O que aconteceu? O que você fez Luísa?
Assustada e chorando, Luísa respondeu:
- O que faço sempre. Dei-lhe comida, troquei-o e coloquei-o para dormir, depois, fui para sua casa ajudar na preparação do almoço. Quando saí daqui, ele estava dormindo...
Luana olhou para Tobias que, assim como elas, estava assustado e não entendia o que havia acontecido. Antes que Luana perguntasse, ele disse:
- Quando a Luísa saiu como faltava quase uma hora para eu sair com sua filha para levá-la a faculdade, eu me deitei. Estava deitado, ouvi uma espécie de grunhido, como se ele estivesse se engasgando, me levantei e ele deu um suspiro fundo e parou de respirar. Desesperado, corri para chamar Luísa.
Luísa e Tobias, abraçados, choravam sem parar. Luana, incrédula, examinou o menino e não encontrou motivo para o óbito. Foi para casa e telefonou primeiro, para Felipe, depois para Rodolfo que, assim como ela, demorou a acreditar, pois, quando liberou o menino para ir para casa, sabia que ele estava bem. Disse:
- Estou indo para aí, Luana, depois traremos o corpo para cá e faremos uma autópsia para descobrirmos o que aconteceu.
- Está bem, Rodolfo, estarei esperando.
Rodolfo chegou com uma ambulância. Entrou, examinou o menino e disse:
- Luana, vamos levá-lo para o hospital e, depois que fizermos a autópsia, comunicarei às autoridades. Não entendo como isso foi acontecer. Sei que algumas crianças que nascem assim não têm muito tempo de vida, mas a crise dele havia passado. Preciso saber o que aconteceu.
- Está bem, vou com você. Também estou confusa.
Rodolfo enrolou o menino num cobertor-e, olhando para Luísa e Tobias, disse:
- Sinto muito pelo filho de vocês, não entendo o que aconteceu, mas vou descobrir. Agora, preciso levá-lo.
Ele e Luana saíram. Luísa e Tobias continuaram abraçados e chorando. Enquanto isso, Matilde sorria e olhava para duas entidades, que também sorriam. Uma delas levava o espírito adormecido do menino. Matilde disse:
- Obrigado por terem vindo, sei que, ao lado de vocês, ele estará bem. Seu tempo aqui na Terra terminou, o dos outros ainda não. Preciso continuar aqui para tentar ajudar nas escolhas que irão fazer.
Aquela que estava com o menino no colo sorriu e disse:
- Fique em paz, minha irmã. Ele, agora, está bem. Vamos levá-lo em segurança e desejamos que consiga terminar sua missão. Adeus.
Acenando, desapareceram. Matilde pensou: O seu trabalho terminou, o meu está apenas começando, queira Deus que eu consiga intuir bem e ajudar aos outros.
Jerusa estava em seu quarto terminando de se arrumar para aquela tarde que, para ela, seria uma tarde de vitória. Não ouviu quando Tobias gritou nem percebeu quando Luana entrou em casa para telefonar, mas, ao ver a ambulância, se assustou e desceu correndo para saber do que se tratava. Assim que chegou à sala, encontrou Alda, que demonstrava em seu rosto uma grande dor. Assustada, perguntou:
- O que essa ambulância está fazendo aí em frente, Alda?
Alda, com muita raiva, respondeu:
- O seu desejo foi realizado!
- Que desejo? Do que está falando?
- O menino morreu!
- O quê?
- Sim, o menino morreu Jerusa, não era o que você queria?
- Não fale bobagem, claro que eu falei aquilo só por falar. Não tinha problema algum com o menino, só com a mãe. Embora não possa negar que não gosto de olhar para crianças iguais a ele, não queria que morresse. Queria, somente, fazer a mãe sofrer.
- Não entendo por que está agindo assim, Jerusa! O que essa moça lhe fez?
- Ela nasceu Alda! Somente isso, nasceu!
Saiu da casa e foi até o quarto de Luísa que, assim que a viu, perguntou com muito ódio:
- O que está fazendo aqui?
Luana estranhou a atitude de Luísa. Perguntou:
- O que aconteceu entre vocês duas, por que ela está falando assim com você, Jerusa?
- Não sei mamãe, essa mulher é louca! Só vim ver o pobre menino que morreu e dar minhas condolências e ela me recebe assim.
Luísa não conseguia acreditar em tanta desfaçatez e fingimento. Respondeu:
- Nada, senhora, nada aconteceu...
Embora o rosto de Jerusa demonstrasse tristeza, por dentro ela estava feliz, pois teria menos um com que se preocupar. Ficou ali por mais um pouco de tempo e seu coração batia de ódio ao ver com que carinho Tobias abraçava Luísa. Quando o menino foi colocado na ambulância e Luana estava entrando no carro, Jerusa disse:
- Tobias, está na hora de irmos embora.
Ele estremeceu, mas, antes de dizer alguma coisa, Luana, que ouviu o que a filha dissera, voltou-se para junto dela e perguntou:
- O que você disse Jerusa?
- Que está na hora do Tobias me levar para a faculdade.
- Está louca? Acha que ele está em condições de sair agora e dirigir um carro? Não está vendo que o filho dele acabou de morrer?
- Ele é o nosso motorista e preciso ir para a faculdade.
- Tenha dó, Jerusa, vá de táxi ou de ônibus! Escolha!
Jerusa, sem ter o que fazer, virou as costas e, com muita raiva, entrou em casa. Tobias respirou profundo, aliviado e, em pensamento, agradeceu a Luana por, mesmo sem saber, tê-lo livrado de uma situação embaraçosa. Pai Joaquim, que estava ao lado deles, sorriu. Luana entrou no carro e saiu. Quando passou pela esquina, notou um carro preto parado. Passou devagar, olhou e viu dois homens. Acelerou e foi embora.

TOMANDO PROVIDÊNCIA

Eram um pouco mais das seis horas, quando Luana chegou e foi falar com Luísa e Tobias. Assim que chegou à porta do quarto, percebeu que Luísa estava deitada com o olhar perdido em um ponto qualquer. Tobias, sentado em uma cadeira, estava com os olhos vermelhos de tanto chorar. Ela bateu de leve. Luísa continuou da mesma maneira, Tobias veio ao seu encontro:
- Tobias, a autópsia foi feita e a morte foi de causa natural. Não entendemos o que aconteceu. Ele parecia bem. O enterro vai ser amanhã cedo. Felipe está providenciando os documentos. Luísa, você está bem?
Embora Luana falasse com Luísa, ela continuou da mesma maneira, sem mover um músculo do rosto. Tobias, constrangido, disse:
- Desculpe doutora, mas ela está assim desde que o menino foi embora. Não se conforma com o que aconteceu. Estou preocupado, nunca a vi assim...
- Não precisa se desculpar entendo o que vocês estão passando, mas o tempo fará com que tudo volte ao normal. Quando puder, diga a ela para arrumar roupinhas para que sejam levadas ao hospital.
- Está bem, doutora, vou falar.
Luana se afastou. Entrou em casa. Tudo parecia normal. A casa estava arrumada e, da cozinha, podia sentir o aroma da comida sendo preparada. Foi para o seu quarto. Tobias, assim que Luana saiu, deitou-se ao lado de Luísa e disse:
- Luísa, você ouviu o que a doutora disse. Precisa arrumar as roupinhas para levar ao hospital. Nosso menino se foi e precisa ser enterrado bem bonito...
Luísa continuou da mesma maneira, calada. Ele se desesperou:
- Luísa, por favor, não fique assim! Não tivemos culpa, chegou a hora dele, é a vontade de Deus. Precisamos ver o que vai acontecer com a nossa vida. Não podemos continuar aqui, temos de ir embora.
Ela continuou da mesma maneira. Ele saiu, foi até o carro e começou a lavá-lo.Jerusa, frustrada por seu plano não ter dado certo, não foi à faculdade e ficou a tarde toda em seu quarto, planejando o que fazer para poder ficar com Tobias. Estava na janela e viu quando a mãe chegou. Estava com ódio e não lhe perdoava por ter impedido que Tobias a levasse para a faculdade. Ainda na janela, viu quando Tobias foi para o carro. Saiu do quarto e foi ao encontro dele. Aproximou-se e, com a voz macia, disse:
- Desculpe pelo que fiz hoje. Eu não entendi o que aconteceu.
Ele ficou calado. Ela continuou:
- Não pode negar que o que aconteceu nos pegou a todos de surpresa. Demorei um pouco para assimilar. Ainda bem que minha mãe me fez voltar à realidade.
Ele sabia que ela não estava dizendo a verdade, mas, por educação, disse:
- Está tudo bem e obrigado pela preocupação.
- Por alguns dias, não precisa me levar à Faculdade, vou de táxi. Depois que tudo isso passar, voltaremos a conversar.
Ele, entendendo o recado, calado, voltou-se e entrou em casa. Ela também entendeu o recado e, com ódio, pensou: Pode fazer o que quiser, mas não vou desistir. Quero você e vou ter! Hoje você se livrou por causa da morte do monstrinho, mas tenha a certeza de que não escapará. Vou ter você de qualquer maneira!
Luana estava em seu quarto, quando o telefone tocou. Atendeu:
- Alô.
- Alô, Luana, sou eu, Marília. Rodolfo me contou o que aconteceu. Estou telefonando para saber como você está.
- Pode imaginar Marília. Estou sem chão. Meu filho, acusado de algo que não fez, está desaparecido e sendo procurado pela polícia. Esse menino morre sem explicação. Como tudo pode mudar tão de repente? Há poucos dias, estava tudo bem e vivíamos em paz. Agora, vem tudo de uma vez... não sei o que pensar nem o que imaginar.
- Fique calma, Luana. Sei que é difícil de entender o que está preocupada. Às vezes, acontecem coisas que não entendemos, mas, logo à frente, veremos que não foram tão graves assim e que ocorreram para o nosso bem.
- Como pode dizer isso, Marília? Meu filho está desaparecido! Não sei onde está! Como isso pode ser para o meu bem?
- Sei que é difícil de entender, mas a vida, quando está fora do rumo, precisa voltar e ela mesma se encarrega de que isso aconteça.
- Fora do rumo? Está dizendo que nossa vida estava fora do rumo? Não estava fora do rumo! Estava tudo bem! Agora, sim, está fora do rumo! Estou me sentindo impotente e sem saber o que fazer! Estou de mãos atadas, Marília?
- Eu não havia lhe dito que se tivéssemos de saber as respostas a vida se encarregaria de nos levar até elas? Talvez, tudo o que aconteceu foi, exatamente, para que isso acontecesse. Ele está sendo obrigado a seguir um caminho que não esperava nem queria, não é? Quem sabe tudo isso que está acontecendo não será para nos levar ao passado?
- Não entendo como pode ser assim, Marília? Meu filho está com o futuro comprometido e você vem me dizer que é para o seu bem e o nosso! Não dá para entender!
- Sei que é difícil, só estou dizendo isso, para que fique calma, porque, no final, tudo dá sempre certo.
- Queria ser como você, mas não consigo... estou perdida sem saber o que fazer...
- Pois, então, não faça nada, apenas confie em Deus. Ele é nosso Pai e sabe o que faz. Já que nada pode fazer, deixe que Ele faça.
- Não sei se consigo acreditar em um Deus que nos traz tanta tristeza e desespero! Será que Ele realmente existe? Chego a duvidar. Como médica, acredito na ciência e ela coloca esse Deus em dúvida.
- A ciência explica quase tudo, Luana, mas deixa de explicar muita coisa. Entretanto, agora, não é hora de falarmos sobre isso, deixemos para outro momento. Entendo o que está passando. Não se preocupe logo mais tudo voltará ao normal, talvez não como antes, algumas coisas poderão ser mudadas, mas tudo ficará bem e cada um terá a oportunidade de encontrar o seu caminho.
- Não sei como pode ser assim, Marília. Logo você que passou por tantas coisas. Foi chamada de louca e muitos a evitaram, inclusive eu.
- Foi difícil até que eu entendesse o que acontecia comigo. Depois que isso se deu, não tive mais problema algum. Estou bem e feliz por ser quem sou. Gosto de você e entendo o seu afastamento. Eu mesma, na ocasião, se pudesse teria me afastado de mim. - disse rindo.
- Você é maravilhosa, Marília. Obrigada por ter telefonado. Conseguiu que eu risse, mesmo passando por um momento tão difícil.
- A vida é assim mesmo. Em um momento, estamos bem e, em outro, tudo muda e nos sentimos sozinhos e impotentes, mas é assim que vamos crescendo, evoluindo. Fique em paz, Luana, e dê tempo ao tempo. Logo, tudo estará bem e você voltará a sorrir novamente.
- Quero muito acreditar no que está dizendo, mas confesso que está sendo difícil. Obrigada por ter telefonado. Essa conversa me fez muito bem.
Marília se despediu e Luana desligou o telefone. Marília tem uma fé que nunca tive e acho que nunca terei. Essa Doutrina que ela segue parece ser boa, ao menos me trouxe tranqüilidade. Queria tanto que tudo o que ela disse fosse verdade. Vou procurar saber mais. Estava distraída, pensando, e não viu Felipe entrar no quarto. Ele se aproximou e, beijando-a, perguntou:
- Como você está?
- Pode imaginar. Desesperada por não saber o que aconteceu com Danilo. Será que ele está bem? Será que chegou à fazenda?
- Ele deve estar bem e, se não chegou, deve estar chegando. O pai do Júlio não disse que se fossem presos ele nos avisaria?
- Disse, mas não sei se posso confiar nele, pois se não se importa com o próprio filho, acha que vai se importar com o nosso? Acha mesmo que ele nos avisará?
- Talvez não, mas o que mais podemos fazer?
- Você está parecendo a Marília.
- Por que está dizendo isso?
- Ela acabou de telefonar.
- O que ela disse?
Luana contou e terminou dizendo:
- Ela disse para eu não fazer nada, para deixar nas mãos de Deus! Como se isso fosse possível! Como posso deixar nas mãos de alguém em quem não acredito a vida do meu filho?
- Sei que é difícil, mas ela tem razão, não temos o que fazer, a não ser esperar notícias do Danilo. Um de nós encontrará uma maneira para que isso aconteça. Agora, venha cá e me abrace.
Ela aconchegou-se em seus braços e disse:
- Você é o amor da minha vida...
- Sei disso e você é o meu. Acho que nosso casamento foi planejado no céu.
- Será, Felipe?
- Por que não? Se acreditarmos na teoria da Marília, por que não? De acordo com o que ela disse e, se acreditarmos, acho que sempre estivemos juntos e continuaremos por toda a eternidade. Um amor igual ao nosso é difícil de ser encontrado, Luana.
Ela, beijando seu rosto e cabelos, disse:
- Tem razão. Amo você de todo o meu coração e não imagino minha vida sem estar ao seu lado.
Ele abraçou-a e lhe deu um beijo amoroso. Depois, levantou-se e disse:
- Os documentos para o enterro do menino estão prontos. Amanhã cedo, levaremos os pais até o hospital e os acompanharemos até o cemitério.
- Coitados, estão arrasados. Não esperavam.
- É fácil entender o que estão sentindo, mas, como diz a Marília, tudo vai passar e eles, sim, depois, verão que foi melhor e que a vida deles sem o menino será melhor.
- O que está dizendo, Felipe! É filho deles!
- Sim, era filho deles, mas não pode se esquecer de que era doente e que nunca seria independente. Precisaria sempre de alguém que cuidasse dele, inclusive a mãe. Ela nunca poderia trabalhar e tentar ter uma vida melhor.
- Os pais não se importavam com isso! Eles amavam o menino!
- Não duvido disso, mas imagine a preocupação que temos com nossos filhos, mesmo sabendo que se faltarmos, eles continuarão a vida sem problema alguma. Agora, com eles, não. Deviam ter sempre a preocupação de que, caso acontecesse alguma coisa com eles, quem cuidaria do menino?
- Pensando assim, você tem razão, mas duvido que eles quisessem que o menino morresse.
- Claro que não, Luana, eles não queriam, mas foi melhor.
- Tenho muita pena deles, são tão jovens e já sofreram tanto... por que será que algumas pessoas têm a vida tão difícil?
- Não sei Luana, talvez a Marília tenha uma resposta. Ela tem resposta para tudo...
Luana riu:
- Tem razão, ela tem resposta para tudo.
- Agora, vamos jantar e tentar descansar. Amanhã será outro dia e esperamos que seja melhor.
- Você é o melhor marido do mundo!
- E você, a melhor mulher! Vamos descer?
Desceram, a mesa estava colocada. Com tristeza, Luana notou que faltava um prato. Olhou para Felipe que também havia notado a falta do prato e sentaram-se.

CHEGANDO AO DESTINO

Assim que o trem saiu da estação, Diva ficou bem e aquele pavor que sentia de trem desapareceu. Durante a viagem, foram conversando e tentando adivinhar o que aconteceria dali para frente. Sabiam que iam para um lugar distante e que seria difícil serem achados, mas, mesmo assim, temiam pelo futuro. Embora nunca houvessem sido presos, sabiam o que acontecia quando isso se dava. A viagem demorou muito. Estavam cansados quando chegaram à estação em que deveriam descer. Já eram quase seis horas da tarde. Assim que o trem parou, levantaram-se, desceram e caminharam em direção a um táxi que estava parado. Danilo perguntou:
- O senhor poderia nos levar até a fazenda Maria Luísa? O homem olhou os três de cima abaixo, depois, respondeu:
- Posso levar, sim, senhor, só que vai custar caro...
- Caro, quanto?
- Vinte mil...
- Vinte mil? É muito dinheiro!
- Não é, não, moço! A fazenda Maria Luísa fica muito longe daqui e a estrada é muito ruim...
Danilo que só havia ido à fazenda quando era criança e, por isso, não conhecia a distância, disse:
- Está bem. Pode nos levar, pagaremos o combinado.
Entraram no táxi e o motorista colocou o carro em movimento. Realmente, ele tinha razão, a estrada era horrível. Ainda parecia ser da época do Império. O tempo, ali, parecia haver parado. O progresso não chegara. Após alguns minutos na estrada, Danilo disse:
- Parece que estamos vivendo na era da escravidão...
- Tem razão, Danilo... e parece que já estive aqui...
- Não pode ser Diva, você nasceu no Nordeste e nunca esteve por aqui...
- Sei disso, mas tenho essa impressão... começo a acreditar em tudo o que sua tia disse Danilo, acho que já estive neste lugar...
- Sabe que estou tendo essa mesma impressão...
Júlio, ao ouvir os dois, ficou calado, pois, embora não quisesse admitir, estava sentindo o mesmo que eles. Quando chegaram à fazenda, já estava escurecendo. O motorista parou o táxi, dizendo:
- É aqui, podem descer.
Olharam para a placa sobre o grande portão de madeira, onde estava escrito: Fazenda Maria Luísa. Desceram, Danilo pagou ao motorista, que se afastou. Assim que o táxi se afastou, Danilo, embora não se lembrasse de muita coisa, sabia que havia uma corda. Esta deveria ser puxada para que, na casa-grande da fazenda, fosse ouvido um sino avisando que alguém estava na porteira. Procurou e encontrou a corda, puxou e puderam ouvir ao longe o sino, tocando. Poucos minutos depois, um homem, montado em um cavalo, se aproximou, perguntando:
- O que desejam?
- Meu nome é Danilo e sou bisneto do senhor Felipe. Estamos aqui para vê-lo.
O homem desceu do cavalo e abriu a porteira. Eles entraram. Em silêncio, o homem, conduzindo o cavalo e andando a pé, acompanhou-os. Assim que se aproximaram da casa-grande, puderam ver um senhor idoso que os olhava curioso. Enquanto caminhavam, iam olhando em volta. Por estar escuro, pouco puderam ver, mas sentiam que já haviam passado por aquele caminho. Aproximaram-se. O senhor esperou que subissem a escada. Assim que fizeram isso, Danilo disse:
- Vovô, sou eu, Danilo, filho de Luana e Felipe e esses são meus amigos, Júlio e Diva. Precisamos ficar por algum tempo aqui com o senhor, pode ser?
- Danilo? Claro que sei quem é! Podem entrar meus filhos, devem estar cansados!
- Estamos, sim, a viagem foi longa. Viemos de trem.
- De trem, por quê?
- É uma longa história e, para o seu bem, é melhor não saber.
- Está bem. Hoje está tarde, vocês precisam comer e, depois dormir. Amanhã, conversaremos e me contarão tudo.
Entraram na sala. Uma senhora negra entrou por uma das portas. Ao vê-los, admirada, ficou olhando. O senhor disse:
- Severina, este é Danilo, filho da Luana e do Felipe. Esses são seus amigos. Eles precisam ficar algum tempo aqui na fazenda.
A senhora sorriu, dizendo:
- Sejam bem-vindos, gosto muito de seus pais, principalmente da sua mãe.
- Ela também já falou a seu respeito e também gosta muito da senhora.
A senhora sorriu. O senhor disse:
- Agora vamos deixar de conversa. Severina providencie um jantar para eles. São jovens e devem estar com fome. Também depois de uma viagem tão longa, não é mesmo?
Eles sorriram, ela, também sorrindo, voltou pela mesma porta por onde havia entrado. O senhor perguntou:
- Sabem por quanto tempo vão ficar aqui?
- Não, vovô, ainda não sabemos, mas não queremos dar trabalho e, se houver algum problema, basta dizer e iremos embora.
- Não é isso, ao contrário, estou feliz com a presença de vocês. Como sabem, moro aqui sozinho e fico feliz quando tenho visitas. Faz muito tempo que você não vem aqui, não é, Danilo? Não gosta da vida no campo?
Danilo, constrangido, respondeu:
- Não se trata disso, vovô, é que nasci e fui criado na cidade e não conheço o campo.
- Não sabe o que está perdendo. Agora, vai ter a oportunidade de saber o que é viver no campo e sei que vai gostar. Infelizmente, no momento está escuro e não poderão ver o lugar privilegiado em que esta fazenda se encontra, mas, amanhã, poderão ver e sentir.
Todos riram. Alguns minutos depois, Severina voltou e disse:
- O jantar está servido. Desculpe se não é muita coisa, mas não estava esperando visita.
- Não se preocupe senhora. Minha mãe sempre fala muito bem da comida aqui na fazenda.
Levantaram-se e acompanharam Severina até a sala de refeições, que estava servida com arroz, feijão, macarrão e frango assado. Comida típica mineira. Sentaram-se e comeram com muita vontade. Após o jantar, sentaram-se nas mesmas cadeiras onde Dom Carlos e sua família sentaram-se há muito tempo. O bisavô, que era filho de Felipinho e Divina, nunca se afastou da fazenda e, durante todo aquele tempo, fez questão de que a casa continuasse igual e sempre cuidou muito bem de todos os móveis, que, por serem de boa qualidade, não sentiram o tempo passar. Conversaram por algum tempo, mas o senhor, ao ver que eles estavam realmente cansados, disse:
- Agora está na hora de irmos dormir. Amanhã, conversaremos mais.
Severina os acompanhou aos quartos que havia preparado para eles. Assim que entraram em seus quartos, admiraram-se pela arrumação e pelo estilo dos móveis. Como estavam muito cansados, deitaram-se e logo adormeceram.

A CONFISSÃO

Na manhã seguinte, após uma noite mal dormida, Luana acordou e seu primeiro pensamento foi para Danilo: Meu Deus, será que eles conseguiram chegar à fazenda? Se isso aconteceu, eles estão bem, mas como fazer para se ter certeza? Levantou-se, sabia que aquele dia também seria difícil. O menino seria enterrado. Após o que Felipe disse a respeito da morte dele, ela pensou: Sei que os pais, com certeza, não pensam a mesma coisa. Eles amavam aquela criança. Eu pude constatar isso. Estão sofrendo e eu, mesmo sem saber o porquê, também estou. Tanta coisa aconteceu em tão poucos dias. Tudo estava tão bem, como pôde mudar tão de repente? Olhou para o lado e viu Felipe que dormia tranqüilo. Sorriu, pensando: Ele, apesar de tudo, continua o mesmo, acreditando que no final tudo dará certo. Recusa-se a se desesperar e tem sempre uma maneira de me acalmar. Obrigada, meu Deus, por ter colocado esse homem maravilhoso na minha vida. Eu o amo e se acreditasse naquilo que Marília disse, acho que o amo há muito tempo, em todas as encarnações passadas e em todas as que estão por vir. Levantou-se e foi para o banheiro. Precisava tomar banho e se preparar para aquele dia. Quando saiu do banheiro, Felipe estava acordado e sorriu:
- Bom dia, Luana. Não vou perguntar, porque sei que não dormiu bem.
- Você me conhece como ninguém.
- Só podia ser assim. Amo-a com todo o meu coração e agradeço a Deus por tê-la colocado em minha vida.
Ela começou a rir.
- Por que está rindo, Luana?
- Porque foi exatamente o que pensei assim que acordei e olhei para você. Agradeci a Deus por tê-lo colocado no meu caminho.
- Venha cá, deite-se ao meu lado.
- Não temos tempo, Felipe. Sabe que o nosso dia não será fácil. Precisamos acompanhar os pais para enterrar o menino. Além do mais, estou preocupada com Danilo.
- Sei que temos muito que fazer e que está preocupada com Danilo. Quanto ao tempo, alguns minutos não farão diferença e Danilo deve estar muito bem na fazenda. Venha...
- O menino morreu Felipe...
- Morreu, mas o que é a morte, Luana? Não faz parte da vida? Todos não morrem um dia?
- Sim, mas a morte é sempre muito triste...
- Em algumas ocasiões, ela é bem-vinda. No caso desse menino, mesmo. A morte foi, para ele, o fim de uma existência triste e sofrida, não só para ele como para os pais também.
- Lá vem você com essa conversa outra vez. Não posso acreditar que os pais estejam felizes.
- Não estou dizendo que estejam felizes. Claro que não. Neste momento, devem estar sofrendo muito, mas, com o tempo, verão que foi melhor, pois poderão dar o rumo que quiserem para a vida e não terão mais a preocupação de não saber o que seria do filho, caso um ou os dois morressem.
- Será que eles tinham essa preocupação, Felipe?
- Claro que sim, Luana. Embora nossas crianças tivessem a saúde perfeita, não temíamos o mesmo?
- Sim, realmente, tínhamos essa preocupação.
- Está vendo como eu tenho razão? Todos os pais, em um momento qualquer da vida, têm essa preocupação. Os filhos, mesmo depois de crescidos, continuam sendo as nossas crianças, e sempre tememos por eles e procuramos protegê-los. No caso desse menino, a situação era pior ainda.
- Não sei... acho que você tem razão, mas é difícil aceitar. Falando em preocupação, como estará o Danilo, Felipe?
- Está bem e feliz na fazenda, ouvindo as histórias do vovô.
- Será, Felipe?
- Sim, pois, se não fosse assim, já saberíamos. O pai do Júlio não lhe disse que a avisaria, caso eles fossem presos?
- Disse, mas será que estava dizendo a verdade? Ele me pareceu tão frio e distante. Tem certeza de que o que está fazendo é o certo, o melhor para o Brasil e para o povo.
- Claro que os militares acham que estão no caminho certo e estariam se não tirassem a liberdade de as pessoas falarem o que sentissem vontade.
- Você mesmo não disse que o povo não está preocupado com a política e que só pensa no seu bem-estar?
- Disse e é verdade, mas, mesmo assim, a Ditadura faz mal não só ao povo, mas, principalmente, ao país onde ela se instala. O país fica atrasado, não consegue acompanhar a evolução dos outros e, no final, mesmo sem perceber, quem sofre é o povo. Quanto ao pai do Júlio, só podemos esperar e desejar que ele, caso aconteça algo, se comunique, pois nada mais temos a fazer. Venha, deite-se, vamos nos amar.
Ela se deitou e, apesar de tudo o que estava acontecendo, amaram-se, selando aquele amor eterno. Levantaram-se e desceram. Encontraram Jerusa que tomava café. Ao vê-los, perguntou:
- Mamãe, terei de ir de táxi para a faculdade?
Luana admirou-se com aquela pergunta. Nervosa, respondeu:
- Claro que sim, Jerusa, estamos saindo para enterrar o menino! Você imagina que o pai deixaria de enterrar o filho para acompanhar você à faculdade?
- Ele, apesar de ser pai do menino, é nosso empregado!
- Faça-me o favor, Jerusa! Cale-se e deixe de pensar só em você! Se quiser, vá para a faculdade, se não quiser, vá se deitar! Mas, por favor, não nos cause mais problemas do que aqueles que já temos!
Jerusa admirou-se por ver a reação da mãe. Ela fora sempre muito tolerante e quase nunca perdia o controle. Preocupada e temerosa, calou-se, terminou de tomar o café, pegou o telefone, chamou o táxi. Tobias, após pegar café na cozinha, foi para seu quarto. Luísa, como aconteceu desde que soube da morte do filho, continuava com os olhos parados em um ponto qualquer. Ele lhe entregou o café, dizendo:
- Tome o café, Luísa. Precisa se levantar. A doutora e doutor, daqui a pouco, estarão aqui para que possamos enterrar o nosso menino.
Ela continuou com os olhos parados. Apenas disse:
- Eu não vou.
- Como não vai? Precisa ir.
- Não preciso e não vou!
- Não pode fazer isso, Luísa! Ele é nosso filho!
- Não vou, ele morreu e eu quero morrer também...
- O que está dizendo, Luísa?
Tobias se voltou e viu que Luana estava à porta e fazia a pergunta.
- Ela disse que não vai ao enterro e quer morrer, doutora! Não sei o que fazer.
Luana entrou no quarto e, com a voz firme, perguntou:
- Por que quer morrer, Luísa?
- Meu filho morreu e eu fui a culpada...
- Como foi a culpada? Sou testemunha de que cuidou muito bem dele!
- Não, não cuidei, deixei que morresse...
- Não deixou, não tinha o que fazer! Ele morreu porque chegou a hora.
- Não, sua filha tinha razão no que falou...
- Minha filha? O que ela tem a ver com isso e com essa sua atitude? O que ela falou?
- Ela disse que eu queria que meu filho morresse porque ele era um monstrinho!
- Ela disse isso, por quê?
- Não importa o porquê, era verdade...
- Como verdade?
Luísa começou a chorar em desespero, tanto que não conseguia responder. Luana, lembrando-se do que Felipe havia dito, disse:
- Minha filha é muito criança e não sabe o que diz. Sei que amava seu filho, eu mesma constatei!
- Eu amava, mas queria que morresse! Ficava pensando o que poderia acontecer com ele se eu e o Tobias morrêssemos. Se ele fosse uma criança normal, bonitinha como as outras, não haveria problema, alguém continuaria criando-o, mas, não, ele era realmente um monstrinho e ninguém ia querer criar um monstrinho. Além do mais, dava muito trabalho e atrapalhava a nossa vida! Muitas vezes, eu quis que ele morresse e agora que isso aconteceu, não consigo me perdoar, não mereço continuar vivendo! Sou uma assassina!
- Não fale assim, não se cobre uma postura que não é verdadeira. Você não é superior a ninguém, é apenas humana e como todo ser humano tem suas qualidades e fraquezas. Ninguém é perfeito, Luísa. Hoje mesmo estive conversando com meu marido e ele pensa exatamente igual a você. Ter um filho como o seu não é fácil. Todos nós, como você disse, queremos crianças lindas e saudáveis, mas o seu nasceu assim, o que poderia fazer? Cuidar dele e amá-lo como fez. Pare de chorar e levante-se, vamos enterrá-lo e entregá-lo a Deus. Ele sabe que, a sua maneira, você amou seu filho. Vamos, levante-se.
- Não posso, não posso olhá-lo...
- Pode, sim, ele é seu filho e você cuidou dele da maneira que sabia e podia. Não tem do que se arrepender nem se condenar. Fez a sua parte.
Tobias ouvia o que Luana dizia, com a cabeça, concordava. Disse:
- A doutora tem razão, Luísa, somos apenas humanos e, se lhe fizer bem, muitas vezes tive esse mesmo pensamento e desejei que ele morresse, mas, assim como a doutora disse, nunca me senti culpado, apenas achava que, para o bem dele e o nosso isso seria a melhor coisa que poderia acontecer. Muitas vezes me perguntei por que nosso filho tinha de nascer assim, por que fomos os escolhidos e nunca obtive respostas. Perdão, meu amor, por ter pensado isso, mas pensei... e não foi uma só vez, mas muitas. Naquele dia em que a doutora e o doutor nos encontraram, ao vê-la tão desesperada e sem condições de continuar vivendo, desejei, com todas as minha forças e pensei, até, Deus me perdoe, em matá-lo sem que você visse. O que me impediu foi o aparecimento da doutora e do doutor.
Até Luana ficou espantada com aquela confissão, mas sabendo que Luísa precisava de ajuda, disse:
- Está vendo, Luísa? Ninguém é perfeito. Você, Tobias, não precisa se culpar por ter pensado assim, se chegamos na hora certa, foi para impedi-lo de se tornar um assassino, mas tenho a certeza de que, mesmo que isso não tivesse acontecido, não teria feito o que pensava fazer. Jamais teria coragem de matar seu filho. Ele, embora fosse daquela maneira, era seu filho e sei que o amava. Não temos respostas definitivas para sabermos o porquê de muitas crianças nascerem com defeitos congênitos. Embora a ciência tente explicações, posso lhe dizer que nunca as aceitei completamente. Como você disse, por que alguns pais são os escolhidos? Seu filho está morto e vocês cumpriram seu dever. Estiveram ao lado dele enquanto foi necessário, agora, após enterrá-lo, poderão decidir o que querem fazer com suas vidas. A missão de vocês está comprida. Luísa, chorando, olhou para Tobias que também chorava. Levantou-se, abraçaram-se e choraram juntos. Luana, olhando aquela cena e sabendo o quanto se amavam, começou a chorar também. Não viram Felipe que se aproximou e pôde ouvir o que Tobias havia contado. Com um nó na garganta, disse:
- Luana, está na hora. Precisamos ir.
Luana voltou-se e, ainda chorando, abraçou-se a ele, dizendo:
- Você tinha razão, meu amor... tinha razão.
Ele abraçou-a com carinho:
- Está bem, vamos cumprir a nossa obrigação. O menino está nos esperando para ser enterrado.
- Desculpe doutora, por tudo o que fiz. Vou me arrumar e enterrar o meu filho. Deus sabe o que faz.
- É assim que precisa falar Luísa. Vamos enterrar o seu filho e, com ele, uma fase da sua vida. Agora, poderá escolher que caminho seguir.
Luísa vestiu-se e foram para o hospital. Assim que chegaram, encontraram Rodolfo que, penalizado, disse para Luísa e Tobias:
- Sinto muito, mas não conseguimos evitar que ele morresse.
Tobias, com o rosto triste, disse:
- Sabemos disso, doutor, e só podemos agradecê-lo por toda dedicação.
Rodolfo olhou para Luísa, não entendeu, mas sentiu uma vontade imensa de abraçá-la com carinho como se fosse seu pai ou seu irmão. Sem perceber, abriu os braços para ela, que se aconchegou, chorando. Ele, também chorando, abraçou-a e, beijando sua testa, disse:
- Não fique triste, sua vida está começando agora.
Pai Joaquim que a tudo assistia, rindo, disse:
- Bendita seja a reencarnação, Matilde, que dá oportunidade de amigos e inimigos se reencontrarem e poderem redimir-se. Obrigado, meu Deus.
Após ficarem algum tempo abraçados, constrangidos, Rodolfo e Luísa separaram-se. Saíram dali, pegaram o corpo do menino e foram enterrá-lo.

PRIMEIRO CONTATO COM O PASSADO

Na fazenda, Danilo abriu os olhos e demorou um pouco para se lembrar de onde estava. Olhou para a janela e, através das frestas, pôde ver que o dia estava claro. Levantou-se e saiu do quarto. Entrou na sala onde não havia ninguém. Foi para a varanda e lá, sim, estava o avô, sentado na velha poltrona. Aproximou-se:
- Bom dia, vovô.
- Bom dia, meu bisneto. Dormiu bem?
- Dormi muito bem. Preciso lhe pedir duas coisas.
- O quê? Pode pedir e, se puder, eu atendo.
- Primeiro, posso me sentar ao seu lado?
- Claro que pode, mas não seria melhor tomar café primeiro?
Ele sorriu e disse:
- Tem razão, estou com muita fome. A outra coisa que quero lhe pedir é poder chamá-lo de vovô, pois bisavô é muito comprido.
O velho senhor riu.
- Claro que pode! Também acho que bisneto é muito comprido!
- Obrigado, vovô. Agora, vou tomar café, estou, mesmo, com muita fome!
- Sabia disso, vá até a sala de refeições, a Marcela e a Serafina já colocaram a mesa. Serafina acordou bem cedo e fez alguns bolos. Coma à vontade, depois, volte para cá e conversaremos.
Antes de sair, Danilo olhou em direção do morro onde estavam as cruzes. Curioso, perguntou:
- O que são aquelas cruzes naquele morro?
- Nossos mortos estão enterrados ali.
- Nossos mortos?
- Sim, aqueles que vieram antes de nós, que abriram nosso caminho.
- O senhor conheceu aqueles que estão enterrados lá?
- Alguns pessoalmente, outros só de ouvir falar.
- Poderia contar a nossa história?
- Claro que sim, o que mais um velho pode fazer a não ser se recordar do passado. Tome seu café, depois volte e, se quiser lhe contarei tudo.
Danilo olhou para o horizonte e se deparou com uma montanha maravilhosa com um matiz de verde nunca visto antes. Disse:
- Vovô, este lugar é lindo. Como eu pude me esquecer de toda essa beleza?
- Quando você vinha aqui, era criança e não estava preocupado com as belezas naturais, só queria brincar e aqui tem muito espaço para isso.
- Tem razão, só mesmo depois de adulto é que damos valor à natureza. Parece que, aqui, o tempo não passou. Parece que estamos vivendo no Império. Até mesmo a estradinha pela qual o táxi nos trouxe faz parte de um passado distante.
- É verdade, aqui parece que o passado não passou e que todos aqueles que viveram nesse lugar continuam vagando por aí.
- Vagando? O senhor acha que estão vagando?
- Alguns talvez, outros devem ter renascido e estão enfrentando a nova vida.
- Renascido?
- Sim, renascido. Creio até que você e seus amigos são alguns deles e fazem parte do passado desta fazenda.
- O senhor acredita em reencarnação?
- Sim. Quando minha esposa morreu e meu filho, seu avô foi para a Capital, eu não quis ir, pois não queria ficar longe de tudo isto que amo muito. Mesmo amando tudo aqui, eu me sentia sozinho. A Serafina freqüenta, lá na cidade, duas vezes por semana, uma casa onde ela dizia receber espíritos. Vendo que eu estava triste, ela me deu alguns livros para ler. Comecei a ler e, aos poucos, fui entendendo e aceitando tudo o que eles diziam. Comecei a acreditar em reencarnação. Sempre que vocês vinham aqui, quando crianças, eu ficava olhando, tentando encontrar em cada um de vocês um traço de semelhança com aqueles que se foram.
- Encontrou alguém com esses traços?
- Até ontem à noite, não.
- Ontem à noite, por quê?
- Quando você chegou e me olhou de frente, pareceu-me ver o meu pai.
- Seu pai?
- Sim, quando você era criança, nunca notei, mas agora, depois de adulto, você é a fotografia dele.
- Acredita que eu possa ter sido o seu pai?
- Por que não?
- É difícil se acreditar em uma coisa como essa.
- Difícil, por quê?
- Como eu posso ter sido seu pai e hoje seu bisneto? Isso não faz sentido...
- Por que não?
- Seria estranho, não acha?
- Sim, tem razão, seria estranho, mas não impossível, pois, se realmente existir reencarnação, seria natural.
- Pensando por esse lado, pode ser verdade. Essa conversa é nova para mim, ainda não tive tempo de avaliar. Tia Marília, esposa do tio Rodolfo, falou alguma coisa a respeito, mas confesso que não dei muita atenção. Talvez, agora, aqui com toda essa tranqüilidade, eu comece a pensar melhor a respeito.
- Depois de tudo o que aprendi, acredito que a vinda de vocês para cá deve ter um sentido.
- Fomos obrigados a vir, vovô.
- Por isso mesmo é que estou dizendo que a vinda de vocês deve ter algum propósito.
- Acha que eu, Diva e Júlio já vivemos juntos em outros tempos?
- Por que não? A reencarnação é para que encontremos amigos e inimigos. Com os amigos, seguimos, com os inimigos, teremos a oportunidade de nos perdoarmos mutuamente e, assim, também poder seguir em frente. Como pode perceber tudo é possível.
- Pode ser... não conheço a história da família. O senhor conhece?
- Sim, minha avó, Rosa Maria, e meu pai me contaram. Minha avó dizia que eu deveria contar a história para aqueles que nasceriam depois.
- O senhor fez isso?
- Tentei, mas foi impossível.
- Por quê?
- Os tempos mudaram e cada um começou a se preocupar com seus próprios problemas e não tiveram tempo de parar para ouvir histórias.
- Eu, agora, terei todo o tempo do mundo.
- Esperei muito tempo por este dia. Sabia que ele chegaria.
- Sabia vovô?
- Sim, pois não teria sentido eu ter vivido tanto tempo, ouvido tudo o que minha e avó e meu pai me contaram, se não tivesse para quem contar.
- O senhor lembra-se de tudo?
- Sim. Embora tenha passado muito tempo e eu já estou velho, tenho certeza de que não me esqueci de nenhum detalhe.
- Agora entendo por que disse que nossa vinda para cá tem um propósito, embora precise lhe dizer que nunca tive essa intenção. Nasci na cidade e me acostumei com seu barulho. Quando meus pais me convidavam para vir aqui, eu sempre tinha outro compromisso. Na realidade, nunca senti vontade. Gosto do mar. Só vim, mesmo, obrigado e, agora, só posso agradecer, aqui, é realmente um céu na Terra.
- Foi isso mesmo que quis dizer. Não importa o motivo, a vida nos conduz sempre para o nosso caminho. Quando conhecer a história da família, posso lhe garantir que vai ficar impressionado e, se realmente foi meu pai, vai se sentir muito feliz e orgulhoso. Ele foi um grande homem. - disse rindo.
- Estou curioso, mas, agora, estou também com muita fome. Vou entrar e tomar café.
Entrou na sala. Estava indo para a cozinha, quando viu Diva que entrava nela. Disse, sorrindo:
- Bom dia, Diva, dormiu bem?
- Sim, como não dormia há muito tempo. O silêncio aqui é maravilhoso! Estava precisando mesmo de paz e aqui encontrei.
- Tem razão, também dormi muito e também estou em paz. Nem parece que temos tanto problemas, não é?
- É verdade, por isso, enquanto estivermos aqui, vamos tentar aproveitar toda essa beleza.
- Isso mesmo, vamos aproveitar Diva, mas, agora, estou indo tomar café, quer me acompanhar?
- Sim, o Júlio já se levantou Felipe?
- Ainda não. Acabei de me levantar e estava conversando com meu avô. Ele é uma figura. Tem uma conversa deliciosa. Sinto que poderei ficar o dia inteiro conversando com ele. Conversa sobre vários assuntos e gosta muito da fazenda.
- Ontem, quando chegamos, eu estava muito cansada e não tive muito tempo para conversar com ele, mas percebi esse amor do qual está falando. Ele me pareceu uma pessoa muito boa.
- É, sim e, apesar da idade, está lúcido. Depois do café, vou conversar mais um pouco com ele. Ele está lá fora, não quer cumprimentá-lo?
- Quero, sim.
Saíram da sala e foram para a varanda. O avô, assim que os viu, sorriu.
- Acordou minha filha?
- Sim e, antes que me pergunte, posso lhe garantir que não consigo me lembrar da última noite em que dormi tão bem como esta.
- Isso aconteceu porque você está no interior. Aqui, como dizem, dormimos com as galinhas e acordamos com o galo e o sono é sempre tranqüilo.
Ela riu e disse:
- Tem razão, o silêncio é delicioso para se dormir. Ontem, não lhe agradeci por nos ter recebido em sua casa. Muito obrigada.
- Não tem o que agradecer, eu só não morri até agora, porque estava esperando por vocês.
- O senhor sabia que nós viríamos?
- Sabia, não, esperava.
- Como esperava? Não conhece a mim nem ao Júlio.
- E muito pouco o Danilo, meu bisneto, mas sabia que viriam, pois qual seria o motivo de eu viver tanto?
- Confesso que não estou entendendo.
- Sei disso, mas agora não é hora para isso, está na hora de tomarem café.
- Não posso mentir, estou com fome.
- Pois vá, garanto que vai gostar. Serafina caprichou.
- Obrigada.
Júlio também chegou à varanda.
- Bom dia para todos.
- Bom dia, parece que, assim como eu e a Diva, você também dormiu muito.
- Dormi, sim, e fazia muito tempo que isso não acontecia, Danilo.
- Estamos indo tomar café, não está com fome?
- E como! Parece que faz um mês que eu não como.
Danilo deu um beijo na testa do avô, entraram e foram para a sala de refeições. Assim que entraram na sala de refeições, viram a mesa colocada com pães, doces e bolos. Sentaram-se e começaram a comer. Logo em seguida, Severina entrou e, ao vê-los, perguntou:
- Bom dia, não sabia que já estavam aqui. Vou mandar vir o café.
Disse para a Marcela que não o colocasse antes para que não esfriasse.
- Bom dia, Severina, eu ia avisar, mas ao ver esta mesa, não consegui ir até a cozinha. Tem coisas maravilhosas aqui! Severina sorriu:
- Eu levantei bem cedo para preparar tudo isso.
- Só podemos lhe agradecer por tanta consideração. - disse Danilo.
- Quase nunca vem ninguém aqui. Fiquei muito feliz quando chegaram.
- Embora não pensasse que fosse assim, estou feliz por estar aqui e creio que meus amigos também.
Olhou para os dois que sorriram e acenaram com a cabeça, concordando com ele.
- Seu avô também está contente. Ele se sente muito só, a família vem muito pouco aqui. Seus pais são os que mais vêm.
- Parece que ele gosta muito de conversar.
Ela voltou a rir.
- Tem razão, o que ele mais gosta é de contar a história da família.
- Já percebi isso, ele parece ter muito orgulho da família e do passado. Tem motivos para isso?
- Sim, todos os que viveram antes foram lutadores. Lutaram contra o preconceito e as injustiças. Tiveram escravos, mas os respeitaram. Viveram momentos de felicidade e de muita tristeza.
- O que fizeram? O que aconteceu?
- Seu avô vai lhe contar, com certeza. Não quero deixar que ele perca essa oportunidade. Agora, vou pegar o café.
Severina saiu e, poucos minutos depois, voltou acompanhada de uma moça muito bonita, mulata, com os cabelos longos e cacheados. Seus olhos, embora não fossem azuis nem verdes, eram claros. Danilo, ao vê-la, se admirou com tanta beleza. Severina disse:
- Esta é a Marcela, trabalha aqui em casa.
Danilo, ainda espantado, disse:
- Bom dia, Marcela. Você é uma moça muito bonita.
Ela também sorriu, mas ficou calada. Colocou o bule de café e a leiteira sobre a mesa e saiu. Eles colocaram café com leite na xícara e começaram a comer. Severina saiu e foi ao encontro do avô que continuava na varanda.
- O senhor está feliz, não está?
- Estou sim. A casa está cheia como era quando as crianças eram pequenas. Você notou alguma coisa no meu bisneto, Severina.
- O quê, senhor?
- Ele é a fotografia do meu pai.
- O senhor acha?
- Você não se lembra de quando lhe mostrei aquela fotografia do meu pai?
- Lembro-me de que o senhor me mostrou, mas não do rosto que está na fotografia.
- Depois vou pegar e mostrarei a você e a eles também. O Danilo é igualzinho ao meu pai. A única diferença é o nome.
- Quando pegar me mostre novamente. Quero ver essa semelhança.
- Semelhança, não! É igualzinho!
Ela sorriu e sentou-se ao lado dele. Minutos depois, eles terminaram de tomar o café e se dirigiram à varanda. Danilo, muito feliz, disse:
- Seus doces e bolo são maravilhosos, Severina! Comi muito!
- Nós também! A Diva não parou de comer um só minuto! - disse Júlio, rindo.
Ela corou, Danilo falou:
- Não precisa ficar com vergonha, Diva. Quem poderia desprezar uma mesa como aquela.
Ela sorriu. Severina, demonstrando felicidade nos olhos, disse:
- Que bom que gostaram. Sei que gostarão muito mais do almoço. Marcela cozinha muito bem. Eu só sei fazer doces. A comida fica por conta dela.
- Estou curioso para que a hora do almoço chegue.
Danilo olhou outra vez em direção ao morro e perguntou.
- Como poderemos ir até o morro das cruzes, vovô, parece ser longe para se ir a pé?
- Aqui na fazenda nenhum lugar é longe. Todos andam a pé, mas, se quiserem, podem ir de charrete ou no Trovador.
- Quem é Trovador?
- Um cavalo negro, forte e imponente que também faz parte da história da família.
- Por que está dizendo isso?
- Meus avós tinham um cavalo chamado Trovador. Antes de morrer, deixou um potrinho que cresceu e teve outro Trovador. Assim foi até aqui. Todos eles tiveram sempre o mesmo nome.
- Gostaria de conhecer esse cavalo, mas não posso montá-lo, vovô.
- Por que não, Danilo?
- Nunca aprendi a cavalgar e só vejo cavalos no cinema ou na televisão.
- Agora vai ter a oportunidade de aprender. Sei que, depois que aprender, nunca mais vai querer andar de carro.
- Será, vovô? - Danilo perguntou, rindo.
O avô também riu. Danilo voltou a olhar para o morro e perguntou:
- Por que existem tantas cruzes lá no morro? Naquele tempo não havia cemitério?
- Havia na cidade, mas os meios de locomoção eram precários, por isso os fazendeiros enterravam seus mortos na própria fazenda.
- Todos foram enterrados aqui?
- Sim, todos, até os escravos.
- Havia escravos aqui na fazenda?
- Sim, muitos. Algumas famílias que ainda moram aqui são descendentes deles. Você ainda vai conhecer toda a história. Minha mãe foi a única que morreu no Rio de Janeiro. Os outros morreram aqui mesmo.
- Sua mãe morreu no Rio de Janeiro?
- Sim, e foi trazida para cá, mas agora não é hora para isso.
Olhou para Júlio e Diva, que acompanhavam a conversa e perguntou:
- Algum de vocês sabe andar a cavalo?
Os dois, com a cabeça, disseram que não. Ele sorriu e disse:
- Sendo assim, acho que terão de ir mesmo, na charrete.
- Receio que sim, vovô, mas não faz mal, outra hora, aprenderemos a andar a cavalo. Quero conhecer esse Trovador. Vamos aproveitar para ir olhando a fazenda. Ontem, quando chegamos, estava escuro e não deu para apreciar as belezas daqui.
- Façam isso. A charrete está em frente ao estábulo. Sigam por esse caminho e chegarão lá. Trovador também está, poderão vê-lo.
Desceram os degraus e caminharam em direção ao estábulo. Marcela, depois que serviu o café, entrou na cozinha. Estava tremendo e seu coração batia acelerado. Enquanto lavava a louça do café, pensava: O que é isso que estou sentindo? Por que fiquei tão nervosa quando vi aquele moço? Ele é lindo. Acho que estou apaixonada... Estava tão distraída pensando que não viu quando Severina entrou e perguntou:
- Está tudo bem, Marcela?
Ela se voltou e respondeu:
- Sim, está tudo bem. Por que está perguntando isso?
- Você está parecendo distraída. Está pensando naquelas bobagens que sempre fala? Que não pertence a este lugar, que vai ser rica porque já foi um dia? Que merece se vestir com roupas bonitas e morar em uma mansão?
- No momento, não estou pensando isso, mas sabe que tenho certeza de que já fui rica. A senhora é a única pessoa que não pode duvidar disso! - disse nervosa.
- Por que está dizendo isso?
- Não é a senhora que vive falando em reencarnação? Se for verdade, eu posso ter sido rica em outra vida. Já lhe contei várias vezes os sonhos que tenho. Vejo-me com um vestido lindo, dançando em um salão muito iluminado e decorado com flores.
- Já me contou, sim. Pode também ter sido rica, branca e bonita, mas se isso for verdade, para ter nascido negra e na situação em que nasceu, deve ter feito muito mal a algum negro ou negra. Deve ter feito muita maldade, Marcela.
- Por que está dizendo isso?
- De acordo com o que aprendi, somos nos quem escolhemos como renasceremos. Você nasceu negra.
- Não sou negra! Sou mulata!
- Está bem, nasceu mulata e pobre, aqui nesta fazenda. Embora isso tenha acontecido, nunca aceitou essa situação.
- Como posso aceitar viver nesta vida de pobreza e com esta cor? Queria ser branca, linda, desfilar pelos salões com lindos vestidos.
- Isso que disse já nos mostra que, em outra vida, deve sim ter sido branca, rica e bonita. Diz também que deve ter usado essas qualidades para prejudicar uma ou mais pessoas. Deve ter usado sua posição para cometer algum crime. Escolheu nascer assim, para sentir na pele o que fez outros sentirem.
- Não consigo aceitar que tenha escolhido esta vida! Não posso ter feito isso!
- Mas fez. Todos nós, antes de renascer, escolhemos a vida que julgamos ser melhor para a nossa evolução. Depois, muitas vezes, quando isso acontece, não aceitamos e culpamos a Deus por nossos infortúnios. É exatamente isso que aconteceu com você. Um dia escolheu e hoje não aceita.
- É por isso que não consigo aceitar a sua religião. Jamais teria escolhido esta vida!
- Não precisa aceitar apenas viva sua vida da maneira como ela é e procure ser feliz.
- Como posso ser feliz vivendo nesta miséria?
- Depende de como vai aceitar a vida, pois ela está aí e não adianta ficar sofrendo. Ao contrário, deve lutar para melhorar através do estudo e da vontade de vencer. Ficar reclamando do jeito que está fazendo não vai adiantar e não vai mudar.
- Acha que não quero mudar?
- Sei que quer, mas sei, também, que nada faz para que isso aconteça. Fica o tempo todo pelos cantos, reclamando, sem se interessar em estudar e ter uma profissão e, assim, conseguir uma vida melhor.
- Acha que vou perder meu tempo estudando? Quero me casar com um homem rico!
- É isso que toda mulher quer, mas nem sempre acontece.
- Pois, comigo, vai acontecer! Você vai ver Severina! Vou ser rica e ter tudo com o que sempre sonhei! Severina riu e saiu da cozinha.

A CAMINHO DO MORRO DAS CRUZES

Danilo e os amigos saíram e seguiram pelo caminho que o bisavô havia lhes mostrado. Estavam encantados com a beleza do lugar. Olharam no horizonte e viram as montanhas com um matiz de verde que pintor algum seria capaz de reproduzir. Passaram por várias casas dos empregados da fazenda. Estavam nos mesmos lugares, só que, agora, não eram mais de madeira. Foram reformadas e trocadas por alvenaria. Chegaram ao estábulo. A charrete estava em frente. Aproximaram-se e um senhor negro, sorridente, disse:
- Bom dia, moços, estão bem?
- Estamos, sim, bom dia. Sou Danilo, bisneto do senhor Felipe. Queríamos ir até o morro das cruzes com a charrete. Qual é o seu nome?
- Celestino. Nasci aqui nesta fazenda.
- Muito prazer, Celestino.
O homem sorriu e disse:
- Espere um pouco, vou atrelar o cavalo.
- Qual, o Trovador?
- Não, ele é só para montaria.
- Onde está? Estou curioso para conhecê-lo. Pelo que meu bisavô disse, os antepassados dele também fazem parte da história da família.
- É verdade, moço. Todos os que vieram antes dele deixaram um potrinho. Este aqui já tem um.
- Então a fazenda já tem dois herdeiros?
- Tem sim. O moço quer ver o Trovador?
- Quero.
- Olhe lá no pasto, ele está correndo.
Olharam para o pasto e viram um cavalo imponente, lindo, que corria. Todos ficaram encantados com o porte dele.
- Como eu gostaria de saber cavalgar.
- O moço não sabe?
- Não, nasci na cidade.
- Se o moço quiser, eu posso ensinar.
- O senhor faria isso?
- É só o moço querer.
- Quero, sim, mas agora vamos até o morro das cruzes.
O homem atrelou a charrete e ficou olhando para eles, que ficaram parados. Um olhou para o outro. O homem entendeu e perguntou:
- Ninguém sabe dirigir a charrete?
- Infelizmente, não. Poderia nos ensinar?
- Claro que sim, não é difícil.
Com paciência, ele deu as instruções. Danilo ficou encarregado de dirigir a charrete. Subiram e seguiram as instruções do homem para que pudessem chegar ao morro. A estrada que seguiram era estreita, mas a charrete seguiu sem problema. Em dado momento, o cavalo que puxava a charrete parou. Eles estranharam. Danilo fez tudo o que Celestino havia ensinado, mas não teve jeito, o cavalo não saía do lugar. Desceram da charrete. Enquanto Danilo tentava fazer o cavalo andar, Diva andou alguns passos e percebeu que logo abaixo de onde estavam tinha um riacho. Eufórica, disse:
- Olhem, lá embaixo tem um rio!
Os outros, ao ouvi-la, ficaram curiosos e foram ao seu encontro. Júlio, ao ver o riacho, disse:
- Isso não é um rio, Diva, é um riacho!
- Será que tem peixe?
- Só saberemos se formos até lá.
- Mas e as cruzes, Danilo?
- Não sabemos por quanto tempo teremos de ficar aqui, iremos outra hora até o morro das cruzes. Agora, quero ver de perto o riacho.
Concordaram e desceram o morro, chegando ao riacho. Ficaram encantados com a água, muito limpa, que corria mansa. Diva gritou:
- Tem peixe, sim!
Eles também viram pequenos peixes que nadavam despreocupados.
- Vou conversar com o Celestino, ele deve ter varas. Depois, poderemos vir até aqui e pescar. Tenho certeza de que Severina não vai se importar de preparar para que possamos comer.
Sentaram-se à margem do rio e colocaram os pés dentro da água. Danilo perguntou:
- O que estão achando da vida no campo?
Diva suspirou fundo e respondeu:
- Tudo aqui respira tranqüilidade e saudade.
- Saudade, Diva? Do quê?
- Não sei Júlio. Parece que aqui o tempo não passou. É tudo tão diferente e, ao mesmo tempo, parece tão conhecido. Olhando para este pequeno rio, sinto que já estive aqui e que já me banhei nas suas águas.
- De onde tirou essa idéia?
- Não sei explicar, apenas sinto.
Júlio levantou-se e começou a caminhar na margem. De repente, parou e disse:
- Sabem o que estou com vontade de fazer?
- Não, o quê?
- Fazer barquinhos de papel e colocá-los aqui na água.
Danilo começou a rir:
- O que é isso, Júlio, voltou a ser criança?
- Não sei Danilo, mas não seria legal ver os barquinhos deslizando na água?
- Não adianta negar, você está triste por não ter entrado na marinha, pois sabe que o seu maior desejo é ser marinheiro.
- Não posso negar, mas me recuso a pertencer às Forças Armadas enquanto continuarem com essa Ditadura sem propósito.
- Está bem, depois voltaremos com jornais e faremos barquinhos. Sabe que também estou com vontade de fazer isso? Podemos até apostar corridas, o que acha?
- Acho legal, mas garanto que vou ganhar Danilo!
- Isso, vamos ver!
Estavam conversando descontraídos, quem os visse, não imaginariam o que estava acontecendo e por que estavam lá. De onde estavam, podiam ver o morro. Danilo olhou para o alto e disse:
- Estive conversando com meu avô, ele disse que aquelas cruzes pertencem aos meus antepassados. Disse também que vai me contar a história.
- Você tem curiosidade, Danilo?
- Nunca tive, mas agora tenho. Só de pensar que pessoas viveram aqui antes de mim e tiveram suas histórias.
- A história da família é importante, mas o mais importante é sabermos por quanto tempo teremos de ficar aqui. Será que não seremos encontrados?
- Acho difícil alguém nos encontrar aqui, mas tem razão, Júlio, não podemos ficar por muito tempo, precisamos assistir às aulas.
- Que aulas, Danilo?
- Não estou entendendo você, Júlio! Não podemos ficar afastados por muito tempo das aulas.
- Nunca mais vai voltar à Faculdade, Danilo.
- Como não?
- Você ainda não entendeu o que se passou, não é, Danilo? Hoje, você é procurado e, se tentar voltar para a Faculdade, será preso. Ao ouvir aquilo, Danilo se desesperou:
- Isso não pode estar acontecendo comigo! Nunca quis fazer parte de grupo algum! Quero continuar meus estudos, quero ser advogado!
- Sei disso, mas até provar, terá de ficar escondido aqui ou em qualquer outro lugar.
- O que está acontecendo com você não é justo, Danilo. Eu e o Júlio escolhemos o nosso caminho, mas você, não...
- Não vou ficar aqui sem nada fazer! Preciso voltar e provar que não tenho nada a ver com tudo isso!
- Se quiser, pode voltar, mas garanto que ninguém da Ditadura vai querer saber das suas verdades. Assim que o encontrarem, será preso e nada do que disser será ouvido.
- Isso não pode estar acontecendo, não pode!
- Danilo, lembra-se do que seu bisavô disse?
- O quê, Diva?
- Ele não disse que estava esperando a nossa chegada?
- Sim, mas o que tem a ver com o que estamos falando?
- Se o que ele disse é verdade, deve existir uma razão para estarmos aqui e tudo o que aconteceu foi somente para que viéssemos.
- Meu avô está velho e vive do passado. Quero conhecer a história da minha família, mas isso não quer dizer que vou ficar aqui, parado, sem nada fazer!
- Se levarmos em conta o que sua tia e ele disseram e se já tivemos outra vida, não poderíamos arriscar e dizer que já vivemos aqui?
- Pelo amor de Deus, Diva! Não venha com essa conversa! Estou preocupado demais para ficar pensando nessas bobagens! Preciso voltar, não só à Faculdade, mas a minha vida também! Não quero me preocupar com vidas passadas, se é que realmente existem, preciso me preocupar com o aqui e o agora que, da maneira como está, não pode continuar! Preciso viver o presente, não o passado!
- Tem razão, Danilo, mas, por enquanto, não temos o que fazer. Por isso, sugiro que aproveitemos as nossas férias. Não vale a pena desperdiçar um lugar bonito como este com discussões.
Danilo, que estava muito nervoso, olhou para Júlio e rindo, disse:
- Você é mesmo um palhaço.
- Palhaço, por quê?
- Para você, parece que nada está acontecendo. Está encarando toda essa situação como se fosse normal! Não está normal, Júlio! Estamos perdendo a nossa vida!
- Está bem, mas o que pode fazer a respeito?
Danilo pensou um pouco e disse:
- Nada... não temos o que fazer...
- Está vendo. Eu e meu pai, apesar de agora termos nossas diferenças, quando eu era criança, conversávamos muito. Ele sempre me dizia que uma das estratégias militares é: quando a situação está difícil ou nos encontrarmos perdidos em uma floresta ou na vida, devemos parar e ficar esperando, pois a solução, de um momento para outro, surgirá. Portanto, vamos voltar ao nosso plano original, também estou curioso para ver as cruzes de perto. Tudo isso é tão diferente, jamais imaginei que existisse um lugar onde as pessoas foram enterradas em suas próprias terras.
- Tem razão, Júlio, vamos até o morro.
Voltaram para o alto, subiram na charrete e seguiram em direção ao morro. Danilo e os amigos, finalmente, chegaram ao alto do morro. Desceram da charrete e se aproximaram das cruzes. Embora a fazenda estivesse um tanto abandonada, as cruzes estavam pintadas de azul, com os nomes em branco. Danilo olhou e disse:
- Parece que o meu avô não se preocupa com a fazenda, mas com as cruzes, sim.
- É mesmo. Elas foram pintadas há pouco tempo.
- É isso que estou querendo dizer, Diva.
Começaram a olhar uma por uma. Júlio parou diante da cruz em que estava escrito o nome Manequinho. Sem entender por que, seu corpo estremeceu. Ficou olhando por um tempo, depois, disse:
- Esse túmulo é pequeno, deve ser de criança.
Os outros olharam e confirmaram. Júlio continuou:
- Quem terá sido esta criança?
- Não sei, mas o bisavô disse que vai nos contar.
Olharam todos os nomes e cada um ficou imaginando como seriam as pessoas que estavam enterradas lá. Diva, ao olhar para o túmulo de Divina, estremeceu, sentiu um arrepio correr por todo o seu corpo. Assustada, disse:
- Nossa, estou toda arrepiada! Por que será?
- Está impressionada por ver tantos túmulos em lugar que não é costumeiro. Todos fazem parte da minha família, viveram antes de nós e tiveram suas histórias. Estou curioso para saber.
- Eles viveram no século passado, não foi, Danilo?
- Nunca me interessei em saber da história deles, mas o que sei foi meu pai quem contou. Meu tataravô veio de Portugal com a mulher, um filho, uma filha e uma amiga da família. Construiu esta fazenda e mandou vir móveis e decoração da Europa. Como eles terão sido? Olhe este aqui é de Rosa Maria, meu bisavô disse que foi sua avó e, que junto com os outros, sempre lutou contra o preconceito e as injustiças. Estou arrependido por nunca ter me interessado por essa história.
- Agora terá todo o tempo do mundo para conhecer a história de sua família.
- Tem razão, Diva. Jamais imaginei que isso pudesse acontecer. Tinha tantos planos e, agora, de um momento para outro, tudo terminou. Não sei por quanto tempo teremos de ficar aqui, sem que eu possa terminar meus estudos e continuar com os meus planos. Por que isso tinha de acontecer? Por que eu tive de ser envolvido em algo que nunca quis?
- Não sei, mas lembra-se do que sua tia disse Danilo? Não será coisa de reencarnação?
- Lá vem você com essa conversa outra vez, Diva?
- Por que é tão incrédulo Júlio? Você não ouviu o que ela disse e da maneira como falou, se tivesse ouvido, pensaria diferente, ou ao menos pensaria sobre o assunto. Ela foi muito convincente.
- Não consigo entender o que está acontecendo. Com tantos problemas, você vem com essas idéias malucas!
- Podem ser malucas, mas, como não temos o que fazer, por que não pensarmos a respeito do espírito e da vida eterna?
- Estou estranhando você, Diva. Sabe muito bem que essa história de religião não passa da esperteza de alguns que, com ela, dominam e oprimem um povo. Toda e qualquer religião não passa de enganação! Uma maneira de enganar os pobres com um céu depois da morte, para que eles não lutem pelo presente! A religião domina aqueles que menos deveriam deixar-se dominar!
- Não precisa ficar nervoso, Júlio! Ela está só conversando.
- Essa conversa burguesa me deixa nervoso! Com tudo o que está acontecendo, com o Brasil sendo dominado pela direita, como você, Diva, pode desviar o pensamento e ficar dando bola para esse tipo de conversa?
- Pois eu acho que essa conversa de esquerda e direita é que não nos leva a nada! Olhe onde estamos por acreditar em uma luta inglória!
- Inglória, por quê?
- Com muita luta, talvez, eu disse talvez, consigamos vencer a Ditadura e trazer a democracia de volta. Quem nos garante que, assim como aconteceu no passado, aqueles que vierem depois de nós não se deixarão dominar pela ganância, pelo poder e queiram promover outra Ditadura?
- Está louca, Diva! Acha que qualquer um dos nossos companheiros seria capaz de cometer uma traição como essa?
- Não sei o porquê desse espanto. Sabe que já aconteceu. Quando terminou a Ditadura Vargas, muitos daqueles que lutaram contra ela aproximaram-se dos poderosos, tomaram parte de corrupção, desviaram o dinheiro público e fizeram de tudo para continuar no poder.
- Não aceito uma coisa como essa, Diva! Você sabe quantos de nossos amigos têm sido presos! Não acredito que outros poderiam querer o mal para o Brasil!
- Eu acredito, por isso, estou repensando o que fiz até aqui. Por causa dessa luta, estou longe da minha família, não vou poder terminar meus estudos. Não sei se valeu a pena, Júlio...
- Prefere ser dominada por uma religião qualquer?
- Você disse que a religião é pregada por alguns que querem dominar o povo, o que me diz dos governantes, sejam de esquerda ou de direita, o que eles fazem? Dominam o povo e cada um procura ter sempre mais dinheiro e poder, não é mesmo?
- Existem aqueles que pensam, realmente, no bem-estar do povo.
- Pode ser, mas não me deixo mais iludir, Júlio. Quero que tudo isso termine para que eu possa retomar minha vida, sem me preocupar com quem está governando o país. Só quero ser feliz...
- Viemos aqui para ver as cruzes. Este lugar é sagrado, aqui estão enterradas pessoas que foram meus antepassados. Não deveríamos discutir aqui. Este lugar é de paz. Vamos embora?
- Sim, tem razão, Danilo. Este não é o lugar nem a hora. Vamos embora.
- Vamos. Estou preocupado. Precisamos pensar em uma maneira de avisar aos meus pais que chegamos e estamos bem.
- Como vamos fazer isso?
- Não sei, mas precisamos descobrir uma maneira.
Tornaram a subir na charrete e foram para a casa grande. Enquanto a charrete andava, eles iam olhando tudo. Ao passarem pela lavoura, Danilo viu como estava abandonada e poucas eram as casas ocupadas por trabalhadores. A maioria estava abandonada. Ao passarem pelo galpão onde funcionou a escola, Júlio disse:
- Pare Danilo, vamos descer.
Danilo estranhou aquele pedido, mas parou a charrete. Desceram. Júlio foi o primeiro a entrar. Ficou olhando para todos os lados, depois disse:
- Que coisa estranha, parece que já estive neste lugar...
Danilo e Diva ficaram espantados. Júlio estava transfigurado. Branco como papel teve de se encostar em uma parede para não cair.
- O que está acontecendo, Júlio?
- Não sei, estou tonto.
- Deve ser fome, vamos para casa, o almoço deve estar pronto.
- Deve ser isso... Diva...
Voltaram para a charrete e foram em direção a casa. Júlio seguiu calado. Ele não entendia aquela sensação que teve. Podia jurar que já estivera naquela escola, mas isso seria impossível. Realmente, quando estavam se aproximando, sentiram um cheiro muito bom de comida. Apressaram-se. O bisavô continuava sentado na varanda e os recebeu com um sorriso:
- Demoraram. Conheceram alguns lugares da fazenda?
- Sim, vovô. Apesar de faltar muito ainda. Ela é imensa!
- É sim e já produziu muito café.
- Notei que há várias casas de empregados. Existiam muitos?
- Sim, muitos, só que não eram empregados e, sim, escravos. A plantação de café era enorme e precisava de muitos braços.
- Por que está tudo tão abandonado?
- Depois que meu pai morreu, fiquei aqui na fazenda. Conheci a Eulália, filha de um fazendeiro vizinho, nos casamos. Éramos muito jovens. Eu tinha dezoito anos e ela dezesseis, fomos muito felizes. Tivemos dois filhos. Cresceram e foram para a cidade. A idéia era que estudassem e voltassem para cá. Mas isso não aconteceu, deixaram-se seduzir pelo conforto da cidade e continuaram lá. No princípio, vinham sempre, mas com o tempo as visitas foram rareando. Eulália também morreu muito cedo, com quarenta e cinco anos, depois, meus filhos também morreram. Mesmo assim, continuei aqui. Veio a crise do café e perdi tudo o que havia plantado. Só não precisei vender a fazenda, porque a nossa fortuna era antiga e tinha dinheiro guardado. Esta fazenda é a minha vida. Enquanto eu conseguia montar o Trovador, corria tudo por aí e cuidava, mas depois, com a idade, foi ficando muito difícil e, hoje, embora minha cabeça esteja boa e sei o que falo meu corpo e, principalmente minha pernas, não acompanham o meu pensamento. Só saio desta casa algumas vezes e sempre na charrete. Depois vieram seus pais, e agora, você é o único descendente homem que leva o nosso nome. Sei que, dificilmente, virá a cuidar de tudo por aqui. Sei que meus netos estão esperando que eu morra para venderem a minha fazenda. Só posso agradecer por terem permitido que eu vivesse aqui. Quando penso nisso, fico triste por saber que ela vai mudar de dono, que deixará de pertencer a nossa família. Danilo lembrou-se da conversa que tivera com Rodolfo e Felipe. Sabia que intenção do pai e do tio era de vender a fazenda, assim que o bisavô morresse, mas mentiu:
- Não, vovô, ela será sempre nossa, nem que, para isso, tenhamos de contratar um bom capataz.
O velho sorriu.
- Obrigado por tentar me confortar, mas o tempo passa, a vida e os costumes mudam. Depois que eu morrer não terá mais importância. Vou morar em outra fazenda lá no céu. Só posso agradecer por terem me deixado aqui até o fim. Agora está na hora de almoçar. Vocês são jovens, devem estar com fome.
Danilo, intimamente, agradeceu o bisavô por haver mudado de assunto.
- Estamos, sim, e o cheiro está muito bom.
- Entrem, a Severina vai servir vocês. Desculpem, mas eu já almocei.
Sabe como é velho tem de se alimentar na hora certa.
- Não se preocupe com isso, vovô. Nós nos distraímos lá no morro e, depois, no galpão que serviu de escola.
- Sim, era uma escola, minha avó não se conformava com o fato de os escravos não saberem ler e mandou construir a escola. Nela, todos aprenderam a ler inclusive o meu pai e o Manequinho, seu amiguinho escravo, que está enterrado lá no morro.
- Seu pai tinha um amigo escravo?
- Sim e eram muito amigos. Sempre que meu pai me falava sobre ele, seus olhos enchiam-se de lágrimas.
Júlio, calado, prestava atenção na conversa que Danilo estava tendo com o bisavô e pensava: O que está acontecendo comigo? Que sensação foi aquela que senti. Por que ao ouvir o que ele está contando me parece tão conhecida? Sem que percebesse o que Júlio pensava, o velho disse:
- Agora, entrem. A comida está muito boa. Depois, conversaremos mais.
Entraram. A mesa estava colocada com pratos de porcelana fina. Eles se admiraram. Diva pegou um dos pratos na mão e disse, entusiasmada:
- Estes pratos são lindos! Parece que são muito antigos!
- São, sim, vieram de Portugal. Faz muito tempo. Foram usados muito pouco, pois isso só acontecia em grandes festas ou comemorações. Depois eram embalados e guardados.
- Está dizendo que são do tempo do Império, quando meus antepassados viveram aqui, Severina?
- Sim, a avó do senhor Felipe foi para Portugal visitar sua família e trouxe. Ia ser usado no seu casamento.
- Ia? Por que ela não se casou?
- Essa é uma longa história, mais tarde seu bisavô deve lhe contar. Agora está na hora de comerem.
Eles, desconfiando que nada mais seria dito, foram lavar as mãos e sentaram-se à mesa. Ficaram esperando que a comida fosse servida. Severina saiu e voltou logo depois acompanhada por Marcela, que trazia uma travessa com frango assado. Colocou sobre a mesa e saiu, sob os olhos espantados de todos. Não era para menos. Marcela estava linda. Com um vestido amarelo, diferente do que usava pela manhã, os cabelos presos por um laço de fita, também amarelo e os lábios pintados em tom levemente vermelho. Parecia uma pintura. Danilo ficou olhando sem saber o que dizer. Ela, percebendo o seu olhar de admiração, sorriu e saiu andando altiva e sensual. Voltou várias vezes trazendo o restante da comida. Sempre olhava para Danilo e sorria.Diva estranhou a reação de Danilo, mas se calou. Júlio, ainda preocupado com o que tinha sentido na escola, não percebeu. Terminaram de almoçar e foram para a varanda. O bisavô, pensando no passado, olhava para o horizonte. Danilo se aproximou e sentou-se ao seu lado:
- O senhor tinha razão, a comida estava maravilhosa. Obrigado, vovô.
- Não lhe disse? Não existe comida igual à preparada no campo.
Aqui os alimentos são puros.
- Severina disse que os pratos onde comemos só são usados em ocasiões especiais. A nossa vinda aqui é uma ocasião especial?
- Claro que sim! Esperei muito por este dia!
- O senhor, realmente, sabia que um dia nós viríamos?
- Sim, por isso não morri até agora. Esta fazenda é nossa, Danilo, não pode passar para mãos estranhas.
- Já lhe disse que ela não vai ser vendida nunca! Não se preocupe, vovô.
- Agora, acredito nisso. Você está aqui e vai cuidar dela. A fazenda Maria Luísa voltará a ser esplendorosa como um dia foi.
- Espere aí, vovô, meu lugar é na cidade, vou ser um advogado! Nunca me imaginei sendo um fazendeiro. Só estou aqui por um motivo muito forte que ainda não lhe contei, mas espero que seja por pouco tempo. Preciso retomar a minha vida.
- Nosso espírito sabe o que necessita para evoluir. Por isso, embora muitas vezes não entendamos a vida nos leva por caminhos nunca pensados. Portanto, não importa qual seja o motivo que nos conduz ao nosso caminho. Apesar de não acreditar nem aceitar, seu lugar é aqui. Esta fazenda é sua por direito e deve mantê-la. Eu sempre soube disso, desde o dia em que você nasceu.
- Minha não, vovô! Ela pertence à família!
- Sim, mas você é quem vai fazer com que ela volte a brilhar. Ela é sua.
- Não, vovô! Não posso! Não era para eu estar aqui! Só estou porque aconteceu algo que me obrigou a fugir, mas minha vida não é aqui! Estou passando por um momento muito difícil!
- Está fugindo de quem?
- Da polícia.
- O que fez, matou, roubou?
- Não, vovô, não se trata disso, o problema é político. Estou sendo acusado de ser subversivo.
- Você é?
- Não! Estudo Direito! Quero ser advogado, para assim, sim, lutar contra essa Ditadura que tanto mal faz!
- Sendo assim, não se preocupe. Já vivi muito, nesse tempo todo, muitos governantes passaram pelo Brasil. Alguns bons, outros ruins que quiseram e transformaram o Brasil em Ditadura. Os governantes passaram. Porém, o Brasil, apesar deles, continua caminhando e nada impedirá que o desenvolvimento chegue. A Ditadura também passará e outros virão. Esperemos que sejam melhores e que não se deixem envolver nem por ganância nem por poder.
- Não imaginei que o senhor entendesse de política.
- Além de entender, em outros tempos, desejei participar, mas, ao ver como o mundo político é não aceitei, me afastei e só acompanhei pelo noticiário.
- Mesmo assim, vovô, não entendo por que isso aconteceu. Nunca acreditei em guerrilha, ou qualquer outra luta que não fosse através da lei!
- Como já havia dito, não importa o motivo, você, agora, está no caminho certo.
- Caminho certo? Como pode dizer isso, vovô? Posso ser preso a qualquer momento!
- Não se preocupe, não será preso.
- Como pode dizer isso?
- Eu sei. Sempre que nos acontece algo ruim, pensamos ser o fim do mundo e que não há um caminho a seguir, mas, na realidade, isso não é verdade. O caminho sempre surgirá e, na maioria das vezes, é o verdadeiro para o bem do nosso espírito. Tudo está sempre certo. Nada acontece que não tenha sido programado...
Severina, que ouvia a conversa e vendo o olhar atônito de Danilo, disse:
- Não fique preocupado, meu filho. Ele, depois que passou a ler os livros da Doutrina que estudo, começou a acreditar em reencarnação e acha que você é a reencarnação do pai dele. Por isso, disse que estava esperando por você e que a fazenda lhe pertence. Isso é coisa de velho.
- Velho não, Severina! Sabe que estou dizendo a verdade. Pegue a fotografia do meu pai e verão que ele é o retrato vivo dele.
- Está bem, mas vai ficar para outra hora, agora, o senhor precisa se deitar. São ordens médicas. Logo mais o doutor Francisco vai estar aqui e se souber que não seguiu o que ele disse, vai ficar muito brabo.
- Tem razão, só estava esperando os meninos almoçarem. Agora, se me derem licença, vou dormir por algumas horas.
Levantou-se e, amparado por Severina, foi para o seu quarto. Eles ficaram sentados na varanda por algum tempo, depois Danilo disse:
- Não vamos ficar sentados aqui como se fôssemos o vovô. Por que não vamos pescar?
Foram até Celestino que lhes deu varas, iscas e os acompanhou. Sentaram-se à margem e, seguindo instruções de Celestino, jogaram as iscas e ficaram esperando pelos peixes. A água corria mansa e límpida. Em dado momento, Danilo disse:
- Vendo esta água correr assim tão devagar, tenho vontade de fazer uma coisa.
- O quê, Danilo?
- Aquilo que você falou Júlio! Fazer barquinhos de jornal e colocá-los na água. Eu fazia isso na piscina lá de casa.
- Que boa idéia, Danilo! Também, quando criança, gostava muito de colocar os barquinhos na piscina, mas lá não tinha graça, porque a água é parada. Aqui vai ser melhor e podemos apostar corrida! O que acha!
- Vamos fazer isso. Hoje, à noite, faremos uma porção de barquinhos e, amanhã, vamos apostar corrida. Garanto que vou ganhar!
- Fique esperando, Danilo! Fique esperando!
- Estão parecendo duas crianças! - Diva disse, rindo.
- Por que não? Já que estamos presos aqui, vamos aproveitar o que de bom existe.
- Tem razão, Danilo. Vamos aproveitar e eu vou ganhar a corrida!
Ficaram lá a tarde toda. Pescaram alguns peixes e, felizes, voltaram para casa. A idéia era pedir a Severina que fritasse os peixes para que eles pudessem comer.Quando chegaram a casa, estavam descontraídos e felizes. Danilo contou ao avô e à Severina sobre a bela tarde que haviam passado e da idéia de fazerem os barquinhos de jornal. O avô olhou para Severina e sorriu.
- Não lhe disse que ele é o meu pai?
Severina ficou calada, mas pensativa.
- Por que está dizendo isso, vovô?
- Brincar com barquinhos de jornal era o brinquedo preferido do meu pai. Muitas vezes, eu e ele apostamos corrida. Ele brincava com as crianças escravas da fazenda, inclusive com Manequinho.
- Todas as crianças gostam de fazer barquinhos de jornal. Isso não quer dizer que eu seja a reencarnação do seu pai.
- Acho bom pararem com essa conversa. Está na hora de prepararmos o jantar. Danilo é melhor você me dar esses peixes para que eu possa fritá-los.
Danilo deu os peixes a Severina que entrou na casa.

A descoberta

Danilo, Júlio, Diva e o avô terminavam de comer os peixes que haviam sido pescados. Apesar de tudo o que acontecia, estavam tranqüilos. Após o jantar, foram para a varanda. Os jovens sentaram-se nos degraus da escada e o bisavô em sua poltrona. A lua estava na fase crescente, o que tornava a noite clara e com muitas estrelas. Tantas que Diva se admirou:
- Nunca vi tantas estrelas em minha vida nem imaginei que houvesse tantas!
- Tem razão, Diva, também nunca havia visto. Essa é a desvantagem de se ter nascido na cidade.
Júlio, desde a visita ao galpão, estava pensativo e quase não conversava. Danilo percebeu:
- O que você tem Júlio?
- Nada, por que está perguntando?
- Você está estranho, muito calado e não é assim.
- Só estou pensando em algumas coisas.
- Já sei, está preocupado com a nossa situação, mas acho que não precisa se preocupar, só quem sabe que estamos aqui são os meus pais e eles não contarão a ninguém. Enquanto estivermos aqui, estaremos seguros.
- Quanto a isso não estou preocupado. E outra coisa...
- Pode nos contar?
- Agora não. Outra hora conversaremos. Preciso pensar...
Calaram-se e continuaram apreciando aquele belo espetáculo da Natureza. Alguns minutos depois, começaram a ouvir uma linda melodia tocada em um violino. Todos se admiraram, Danilo perguntou:
- De onde vem essa música, vovô?
- São os ciganos.
- Ciganos? Aqui na fazenda?
- Sim, eles também fazem parte da história da família. Chegaram hoje à tarde, quando estavam pescando. Podem se preparar para participarem de uma linda festa.
- Os ciganos fazem parte da nossa história?
- Sim, meu pai nasceu em um acampamento cigano e minha avó ficou muito amiga deles. Dali para frente, eles sempre aparecem por aqui e, quase sempre, neste mês. Naquele tempo, faziam festas grandiosas onde todos se misturavam ciganos e negros. Comiam, bebiam e dançavam por vários dias. Até hoje, todas as noites, comem, dançam e tocam ao redor da fogueira, fazem essas festas. O bom mesmo é a grande festa que sempre fazem quando chegam. Por isso, deixo alguns leitões e uma novilha para que sejam assados em uma espécie de forquilha, presos por um ferro, sobre uma fogueira. Vocês vão adorar a festa. Garanto que nunca viram igual.
- Está nos deixando ansiosos e curiosos, não, é?
- Tem razão, Danilo. Estou ansiosa para conhecer os ciganos. Sempre ouvi falar deles, mas nunca conversei ou ao menos estive perto de algum.
- E você, Júlio, não está curioso?
Júlio, que não prestava atenção à conversa, perguntou:
- Sobre o que estão falando?
- Sobre os ciganos, não está curioso para conhecê-los?
- Estou...
Danilo olhou para Diva, que também não estava entendendo o que estava se passando. Perguntou:
- Seu pai nasceu em um acampamento cigano? Como foi essa história, vovô?
- Não sei muito bem o que aconteceu. Só sei que a mãe do meu pai, minha avó, não sei por qual motivo, foi parar em um acampamento cigano, onde ele nasceu. Está quase na hora de eu me deitar. Outro dia conversaremos sobre isso.
Voltaram a se calar e a ouvir a bela melodia. Depois de algum tempo, Danilo perguntou:
- Será que podemos ir até o acampamento? Nunca estivemos em um e não temos a menor idéia de como seja.
- Claro que podem. Eles ficarão felizes. São muito alegres e amigos.
- Tem certeza de que quer ir até lá, Danilo? Sempre ouvi coisas horríveis sobre ciganos, dizem que eles mentem e roubam as pessoas, e também as crianças.
O avô, ao ouvir aquilo que Diva dizia, deu uma estrondosa gargalhada.
- Tudo isso é mentira, Diva! Puro preconceito. Embora não podemos negar que, como em toda sociedade, existem os bons e os maus. Entretanto, a maioria deles são pessoas maravilhosas. Vocês poderão constatar. Sei que muitos, também, como aconteceu com meus filhos, se deixaram envolver pela modernidade, mas estes que estão aqui não. Continuam como eram naquele tempo e seguem suas tradições. Recusam-se a mudar. Sei que se encantarão, não só com as danças e músicas, como também com eles. Podem ir. Tenho a certeza de que gostarão. Basta seguir o som do violino e chegarão lá.
- Então, vamos?
Júlio, ainda preocupado, respondeu:
- Eu não vou, Danilo, estou cansado.
- Cansado do que, Júlio?
- Não sei, acho que de nada fazer.
Começaram a rir. Danilo perguntou:
- Como alguém pode ficar cansado de nada fazer?
- Não sei, estou com vontade de me deitar.
- Está bem. Nós iremos, não é Diva?
- Sim. Estou muito curiosa.
- Eu vou acompanhar Júlio, também está na hora de me deitar.
Ajudado por Severina, o bisavô, entrou em casa. Júlio seguiu atrás. Danilo e Diva começaram a caminhar em direção à música. Marcela, que havia terminado de lavar a louça, viu quando eles saíram caminhando. Pensou: Será que eles estão namorando? Acho que não, parece que são só amigos. Mas se estiverem namorando, preciso tirar essa mulher do meu caminho. Ele é a única maneira que tenho para sair deste lugar e viver onde mereço! Sem que ninguém percebesse, ela foi atrás deles. Continuaram caminhando, ouvindo a música. Diva disse:
- Sabe Danilo, estou tão tranqüila aqui. Há momentos em que chego a pensar que ficaria nesta fazenda para o resto da minha vida.
- Aqui?
- Sim. Nunca pensei que pudesse me sentir tão bem. Apesar de tudo o que estamos passando, estou feliz e tranqüila. Há muito tempo, não me sentia assim.
- E a sua luta, como fica?
- Estive pensando nisso também. Não sei se valeu a pena eu ter lutado, me envolvido em algo que não terá fim.
- O que está dizendo? Está arrependida de ter participado na luta?
- Acho que você tem razão quando diz que não adianta querer ganhar através das armas ou de mortes, que a luta deve ser através das leis.
Depois de tudo o que fiz, estou sendo procurada e, se for encontrada, poderei ser torturada e até perder a minha vida a troco do quê? O Brasil sempre foi dominado pela corrupção. O que nos leva a crer que, se o governo for outro, não acontecerá a mesma coisa? Será que vale a pena eu perder minha vida? Minha juventude?
- E eu, como acha que estou me sentindo? Nunca acreditei em luta armada e fui envolvido, poderei, também, ser torturado e até morto por algo que nunca fiz e em que não acredito. Mas acho que não temos com o que nos preocupar, aqui ninguém nos encontrará. Enquanto estivermos na fazenda, estaremos protegidos. Agora, vamos esquecer tudo isso e aproveitar este tempo de paz e só nos preocuparmos quando chegar a hora.
- Tem razão. Vamos aproveitar esta paz que existe aqui.
Chegaram ao acampamento. Como o bisavô havia dito, realmente havia uma fogueira e os ciganos estavam em volta dela, tomando algo que parecia ser sopa. Aproximaram-se. Um homem que tocava o violino, ao vê-los, parou de tocar e se aproximou:
- Boa noite. Vieram nos visitar?
- Sim, meu nome é Danilo, sou bisneto do senhor Felipe e ele disse que poderíamos vir, pois seríamos bem recebidos. Esta é Diva, minha amiga.
- Muito prazer! Meu nome é Sergei!
- Estou feliz que estejam aqui. Meu avô nos disse que a sua família fez parte da história da família. Conhece a história?
- Sim, ela foi passada de geração a geração. Sempre nos foi dito que, enquanto esta fazenda pertencesse a sua família, deveríamos vir aqui, nem que fosse uma vez por ano. Sentem-se aqui ao redor da fogueira e tomem uma sopa conosco.
- Vamos nos sentar, mas terminamos de jantar. Comeremos na festa que meu bisavô disse que farão. Ele disse que gostam muito de festas.
- Sim, ele tem razão, gostamos de festas.
- Viemos atraídos pela música que estava tocando.
- Ela também faz parte da história e também foi passada por gerações.
Meu bisavô, que também se chamava Sergei, foi quem a compôs. Dizem que foi para uma moça que, embora morasse aqui na fazenda, viveu muito tempo com eles e eram muito amigos.
- Não conheço a história, mas gostaria de conhecer.
- Não faltará ocasião. Agora, preciso voltar ao meu violino. Podem apreciar.
Uma moça se aproximou. Sergei disse:
- Esta é Zara, minha esposa. Aquela que está junto a fogueira é Samara, minha filha.
- Muito prazer, senhora. Desculpe meu atrevimento, mas é uma mulher muito bonita.
- Obrigada e desculpo seu atrevimento. - disse, rindo. Agora, vamos ouvir a música do Sergei e dançar.
Olhou para Diva e perguntou:
- Você sabe dançar?
- Não! Nunca dancei, não tive tempo para aprender. Estive envolvida em outras coisas.
- Que pena, perdeu muito nessa vida. Agora vai nos ver dançar e sei que aprenderá e, antes de irmos embora, estará dançando como uma cigana.
- Não acredito nisso!
- Pois pode acreditar! Basta deixar que a música a envolva e dançará sem perceber.
Sergei apresentou todos os ciganos e recomeçou a tocar. Logo, estavam dançando. As mulheres trajavam vestidos longos e coloridos; os homens, calças apertadas, com uma fita que saía da cintura e caía pelo corpo. Sem perceber, Danilo e Diva começaram a balançar o corpo ao som da música. Marcela, sem que fosse vista, escondida, acompanhava tudo. Uma das ciganas, chamada Zoraide, puxou Diva pela mão e começou a ensiná-la a dançar. A princípio, ela não conseguiu e só dava alguns passos trêmulos, mas, aos poucos, foi deixando se envolver e começou a dançar. Danilo acompanhava a dança e ficou encantado. O sorriso de Diva fez com que seu coração começasse a bater com mais força. Após a dança, tomaram um chá oferecido por Sergei. Depois, despediram-se e voltaram para casa. Caminhavam conversando sobre os ciganos. Diva disse:
- Nunca me imaginei dançando, ainda mais em uma situação como esta Danilo. Desde os meus quinze anos, comecei a me rebelar contra a Ditadura e, praticamente, não vivi a minha adolescência.
- Estou tendo a impressão de que você está arrependida do que fez.
- Não sei se estou arrependida, mas, com certeza, estou pensando muito a respeito. Sinto que agora seja tarde, pois, se for presa, não conseguirei convencer os outros de que mudei de opinião.
- O jovem é fácil de ser envolvido.
- Você não foi Danilo. Sei que também recebeu convites.
- Realmente aconteceu, mas nunca me deixei envolver. Sempre achei inútil essa luta praticada por você e seus companheiros. Não é assim que vamos conseguir trazer de volta a democracia.
Caminhavam por aquela pequena estrada de terra. A lua estava alta e sua luz iluminava o caminho. Em determinado momento, distraída, Diva pisou em um buraco, torceu o pé e quase caiu. Danilo, instintivamente, segurou-a. Constrangida, segurou-se nele. Abraçados, ela levantou a cabeça, ia começar a rir, mas quando os olhos se encontraram, houve um momento mágico e, sem que percebessem, começaram a se beijar. Quando se soltaram, olharam-se estupefatos.
Danilo perguntou:
- O que aconteceu aqui, Diva?
- Não sei, foi um impulso de momento.
- Acredita que foi só isso?
- Não sei o que dizer Danilo. Somente que estou feliz por ter acontecido.
- Por mais que não entenda, não posso dizer o contrário. Também estou feliz. Desde a primeira vez que a vi lá em casa, percebi que algo diferente estava acontecendo. Quando ia me deitar, mesmo durante o dia, não conseguia me esquecer dos seus olhos, do seu sorriso. Depois, quando vínhamos para cá, no trem, sabendo o medo que sentia, para protegê-la, permanecemos muito tempo abraçados. Esse sentimento ficou mais forte. Acho que estou apaixonado por você.
- Está dizendo a verdade, Danilo?
- Sim, por que está duvidando, Diva?
- Não estou duvidando, somente não acredito que realmente está acontecendo. Também, assim que o vi, fiquei encantada, mas nunca pensei que o mesmo acontecesse com você.
- Está dizendo que também gosta de mim?
- Sim e muito... mas...
- Mas, o quê, Diva?
- Não podemos pensar no futuro...
- Por que não?
- Embora estejamos vivendo neste paraíso, esqueceu-se de que estamos sendo procurados e que a qualquer momento poderemos ser presos...
- Não esqueci, mas, neste momento, estou muito feliz para pensar nisso. Disse que estamos vivendo neste paraíso, vamos aproveitar e deixar as preocupações para quando chegar a hora.
Abraçaram-se e beijaram-se novamente, só que, desta vez, com vontade e amor. Depois, seguiram caminhando pela pequena estrada, olhando o céu, a lua e aquela imensidão de estrelas. Ouviram, ainda, a música que Sergei continuava a tocar. Marcela, tomada de ódio e, ainda escondida, viu tudo e pensou: Eles estão namorando, sim! Isso não pode acontecer! Preciso tirar essa mulher do meu caminho! Ele é a única maneira que tenho de sair daqui e ocupar, neste mundo, o lugar que mereço! Não posso permitir que ela me atrapalhe! Danilo e Diva, felizes por terem, finalmente, assumido o amor que sentiam e alheios ao que pensava Marcela, chegaram a casa e, após mais um beijo, foram para seus quartos dormir. Severina, que estava na janela de seu quarto ouvindo a melodia tocada no violino por Sergei, viu quando eles chegaram abraçados. Sorriu e pensou: Sabia que esses dois se gostavam... tomara que sejam felizes... Antes de terminar de pensar, viu que Marcela se esgueirava e os seguia. Preocupada, pensou: O que essa menina está fazendo? Por que está seguindo-os? Sei que boa coisa ela não está pensando. Preciso conversar com ela... Preocupada, foi para sua cama e deitou-se. Percebeu que seu quarto se enchia de luz. Sorriu, pois sabia de quem se tratava. Em poucos instantes, pai Joaquim apareceu e, sorrindo, disse:
- Boa noite, Severina. Está tudo bem com você?
- Está, pai. Ao que devo a sua visita?
- Estava com saudades. - disse rindo.
- Também estava, pois fazia muito tempo que o senhor não vinha me visitar.
- Estou com muito trabalho. Faço parte de uma equipe de cura. Tirei um tempinho para ir ver o sinhô, a Maria Luísa e o Tobias. Aproveitei para dar uma passadinha por aqui e visitar você.
- Como eles estão?
- O sinhô terminou sua missão e voltou para casa, a Luísa e o Tobias estão passando por um momento muito difícil.
- É fácil de entender... perderam o filho...
- Sim, como é difícil a morte ser encarada de outra maneira, não é, Severina? O dia em que todos aprenderem que a morte é somente um até logo e que um dia todos voltarão a se encontrar, o sofrimento será tão menor, não é?
- Tem razão, pai, mas isso ainda vai demorar muito para acontecer.
Para a maioria das pessoas, a morte é um fim. Mas não foi para me dizer isso que veio até aqui. O que está acontecendo, pai Joaquim?
- Você me conhece muito bem, não é, Severina?
- Sim, há quanto tempo estamos juntos na mesma jornada?
- Não sei Severina, perdi as contas. Só sei que ainda temos um longo caminho a percorrer.
Ela riu e disse:
- Sei disso, ainda restam alguns do nosso grupo para resgatarmos...
- É por isso mesmo que estou aqui.
- O que está acontecendo?
- Está chegando a hora de passarem pelas mesmas provas de sempre. Jerusa quer porque quer Tobias para ela. Como sempre, não é?
- Sim, pai, e a Marcela também, acabei de vê-la seguindo Danilo e Diva quando voltavam abraçados do acampamento dos ciganos. Acho que ela está tramando alguma coisa...
- Como disse, está chegando a hora.
- O que podemos fazer para impedir que tudo se repita pai?
- Sabe que não podemos fazer quase nada a não ser tentar conversar com elas.
- Quando vi a Marcela seguindo os dois, resolvi que amanhã vou conversar com ela. Não sei se vai adiantar, mas vou tentar.
- Faça isso, Severina. Precisamos tentar tudo o que estiver ao nosso alcance. Enquanto fizer isso, voltarei para junto da Luísa e do Tobias. A Matilde está ao lado deles, mas estão precisando de muita ajuda. Por isso, ficarei ao lado deles, até que tudo termine. Queira Deus que consigamos evitar que um mal maior aconteça e que tanto Jerusa como Marcela percam mais uma encarnação.
- Vamos tentar, pai Joaquim, vamos tentar...
Ele sorriu mais uma vez e desapareceu.

PLANO PERFEITO

Danilo se deitou. Estava feliz por ter assumido seu amor por Diva. Aos poucos e pensando nela, adormeceu. A madrugada ia alta, quando, ao se voltar, sentiu que alguém estava deitado ao seu lado. Julgando que fosse Diva, voltou-se, um pouco adormecido e com os olhos fechados, abraçou aquele corpo que se aconchegou a ele. Beijaram-se com ardor. Ao abrir os olhos, viu que quem estava ali era Marcela. Levantou-se, nervoso:
- O que está fazendo aqui, Marcela?
Ela retirou o lençol que a cobria e, mostrando o corpo nu, disse, com ternura na voz:
- Estou aqui porque amo você e quero ser sua.
- Está maluca? Saía daqui agora!
- Não vou sair, sei que, embora disfarçado, também me notou... acha que não percebi a maneira como me olhou?
- Claro que a olhei! Você, além de ser muito bonita, se insinuou, mas isso não quer dizer que esteja interessado em você. Amo outra!
- Não quero saber disso! Você é meu e será para sempre!
Danilo se assustou com a expressão do rosto dela. Disse:
- Não sabe o que está dizendo. Está confundindo as coisas, é ainda uma criança. Pensa que está apaixonada, mas na realidade não está. Outros homens aparecerão na sua vida e você rirá deste tempo. Vá embora, durma, que tudo isso passará. Farei de conta que nada aconteceu. Gosto da Diva e pretendo me casar com ela. Para que isso aconteça, só falta resolvermos alguns problemas pelos quais estamos passando no momento, mas sei que tudo passará e poderemos ser felizes. Vista-se e saía Marcela, vá dormir, esqueça-se do que se passou aqui, prometo que também esquecerei.
- Não quero outro homem, quero você! Será que não entende isso?
- Não entendo e não quero entender, só quero que se vista e saia do meu quarto! - ele disse nervoso e fazendo um esforço tremendo para não gritar, pois não queria que ninguém da casa, muito menos Diva, a visse ali.
Ela continuou deitada, fazendo gestos insinuantes. Ele, tomado de muita raiva, levantou-a, pegou o vestido que estava sobre a cama, jogou-o sobre ela e empurrou-a para a porta. Precisou usar de muita força, mas, finalmente, conseguiu. Assim que conseguiu colocá-la para fora, fechou a porta e respirou fundo.
- Nossa, o que foi isso que aconteceu aqui? Essa moça está completamente louca!
Ela, do lado de fora, nua e tremendo de ódio, colocou o vestido e pensou: Você vai me pagar por isso! Pode não ficar comigo, mas também não ficará com ela nem que para isso seja preciso que eu a mate! Em silêncio, foi para casa. Na manhã seguinte, Severina estava na cozinha, quando Marcela entrou para ajudá-la a preparar o café. Assim que a viu, Severina percebeu que ela estava com os olhos vermelhos. Perguntou:
- O que aconteceu, Marcela, esteve chorando?
Ela, procurando disfarçar, olhando para outro lado, respondeu:
- Não, ontem, um inseto entrou no meu olho e eu esfreguei e ficou assim.
- Está bem, Marcela. Você mudou o pensamento em relação ao Danilo?
- Não estou entendendo o que está querendo dizer, Severina.
- Não se faça de boba, menina! Sei que está interessada nele!
- Se sabe, por que está perguntando?
- Para que tire essa idéia de sua cabeça. Ele gosta da Diva. Vi quando voltavam abraçados do acampamento e vi você também. O que estava fazendo seguindo-os? O que pretendia?
- Não viu coisa alguma, deve ter sonhado Severina!
- Tomara que eu esteja sonhando. Sabe que eles se gostam e que, quando isso acontece, ninguém consegue separar duas almas.
- Você é que pensa! Ele vai se casar comigo e me levar embora deste lugar! Pode ter certeza disso, Severina!
- Não vai, não, Marcela. Ele pertence a outro mundo. Além do mais, cuidado com o que está pretendendo fazer. Já lhe disse muitas vezes que tudo o que fizermos de bem ou de mal sempre tem volta na mesma proporção. Deixe que a vida se encarregue do seu destino, não queira tomá-lo em suas mãos.
- Não me venha com essa conversa! Sei o que pensa e não me importo com aquilo que poderá me acontecer depois de morrer, quero viver o aqui e o agora! Quero ser feliz e minha felicidade está nas mãos do Danilo!
- Ele não quer você, Marcela, ele quer a Diva!
- Não me importo, eu o quero e para mim, basta! Vou ficar com ele nem que, para isso, tenha de cometer um crime!
- O que está dizendo?
- Isso que ouviu, mas vou repetir! Vou ficar com ele nem que para isso tenha de cometer um crime, mas vou tirar essa mulher do meu caminho!
- Não pense assim, Marcela! Não tem esse direito!
- Claro que tenho esse direito, não pertenço a este lugar e se o que diz for verdade, já fui muito rica e pertenci a um mundo diferente deste! Quero voltar para ele! Quero voltar a usar lindos vestidos e dançar em grandes salões! Sei que já fiz isso e quero fazer novamente!
- Pense bem no que vai fazer Marcela. Deus sempre nos dá novas chances para repararmos erros praticados. Talvez, neste momento, ele esteja lhe dando uma nova chance. Aproveite, não perca, novamente, uma encarnação.
- Não venha com essas besteiras, Severina! Não quero viver em outra encarnação, quero viver e ser feliz nesta!
Diva acordou e estava feliz. Olhou para o relógio que marcava seis horas e dez minutos. Ainda na cama, pensou: É muito cedo, mas estou feliz... gostei dele assim que o vi, mas não pensei que fosse correspondida... pena que não podemos pensar no futuro. Por que fui me envolver em algo tão perigoso e em um sonho de liberdade tão difícil de ser alcançado? O que será que vai nos acontecer? Será que não seremos, mesmo, encontrados aqui? Levantou-se, saiu e foi para a cozinha. Encontrou Severina que, ao lado de Marcela, preparava o café. Entrou, dizendo:
- Bom dia.
Elas se voltaram e, sorrindo, Severina respondeu:
- Bom dia. Dormiu bem?
- Sim, estou muito feliz!
- Isso é muito bom. Existe algum motivo especial para isso? Diva sorriu:
- Tem sim, descobri o amor... Agora foi a vez de Severina sorrir:
- Isso é muito bom, o amor é a coisa mais importante da vida.
Marcela, que ouvia a conversa, embora estivesse com muita raiva, com a voz macia, disse:
- Também acho e estou feliz por você.
- Obrigada, Marcela.
Severina sabia que ela mentia, mas ficou calada. Marcela, tentando disfarçar seu ódio, perguntou:
- Conheceram os ciganos?
- Sim, eles são adoráveis, Marcela.
- Tem razão, estão sempre felizes.
- É mesmo, Severina. Por serem livres, não se preocupam com o governo. Eles próprios se governam.
- É isso mesmo, Diva, é um povo livre. Eles falaram da festa?
- Sim e parece que estão muito animados.
- Pode ter certeza que sim. Eles gostam de festas e, aqui, são feitas com muita alegria.
- Apesar de estar feliz, estou preocupada, Severina.
- Preocupada com o quê, Diva?
- Amanhã, vai ter a festa dos ciganos, gostaria de ter um vestido bonito, mas com a pressa que saímos, não trouxe nenhum.
Ao ouvir aquilo, Marcela pensou rápido em algo e disse:
- Não precisa se preocupar com isso, Diva. Tenho muitos vestidos, mas, se preferir, poderemos ir até a cidade para comprar um tecido. À tarde, eu costurarei um para você.
- Você costura?
- Sim, e muito bem, não é, Severina?
- É verdade, Diva. Ela costura todas as suas roupas, as minhas e as das mulheres dos empregados da fazenda. Tem mãos de fada.
Marcela sorriu.
- Posso lhe fazer um vestido do tecido e do modelo que quiser.
- Acha que consegue aprontar para a festa?
- Sim, se sairmos agora cedo para comprarmos o tecido, amanhã a tarde estará pronto.
Diva pensou por um tempo e disse:
- Não vai dar...
- Não vai dar por que, Diva?
- Trouxemos pouco dinheiro e não posso gastar com o tecido.
- Não se preocupe com isso, Diva. Dona Luana tem uma conta com senhor Salomão. Pode ir até lá, compre o tecido, depois, quando ela vier, ela paga.
- Ela faz compras aqui?
- Sim e autorizou o senhor Salomão para que nos vendesse tudo do que precisássemos. Ele vende e não se preocupa com o tempo que ela vai demorar para voltar. Claro que não compramos à toa, mas o dia de hoje é especial. Sei que ela não vai ficar brava.
- Será, Severina? Não conheço muito bem a dona Luana.
- Por isso é que está preocupada. Pode ir com a Marcela, compre o tecido que quiser e não se preocupe.
Os olhos de Diva brilharam. Queria ficar muito bonita, naquela noite, para Danilo.
- Está bem, vou com você, Marcela. Não será melhor esperarmos o Danilo se levantar, assim ele pode nos acompanhar.
- Não, Diva, se fizermos isso, vai demorar muito. Não se preocupe, conduzo a charrete como ninguém, não é Severina?
Severina, preocupada com a conversa que havia tido com pai Joaquim e com Marcela, respondeu:
- Sei que conduz, sim, mas, como a Diva disse, acho melhor esperarem o Danilo se levantar. Ele poderá acompanhá-las. Se fizerem isso, ficarei mais tranqüila.
- Não tem com o que se preocupar, Severina. Se formos agora, voltaremos antes do almoço e terei tempo de costurar o vestido. Sei que vai ficar lindo, Diva!
- Está bem, assim que terminar de tomar o café, iremos.
Diva sentou-se, tomou rapidamente o café, subiram na charrete e foram. Ela, alegre por ter um vestido novo para a festa; Marcela, imaginando como faria para tirar aquela mulher da sua vida. Severina viu-as desaparecer no fim da pequena estrada, preocupada com o tom de amizade de Marcela, que sabia ser mentira. Essa menina não está pensando coisa boa, não está não... Chegaram à cidade e foram para a loja do senhor Salomão que, assim que as viu, abriu um sorriso:
- Marcela, há quanto tempo você não vem aqui! Está precisando de alguma coisa?
- Sim. Os ciganos chegaram e, como sempre, vai ter a festa deles. A minha amiga precisa de um tecido para fazer um vestido.
- Pode escolher o tecido que quiser moça. Aqui tem para todos os gostos.
Diva sorriu e voltou-se para uma prateleira, onde havia tecidos de várias cores e qualidade. Queria um estampado para que Marcela lhe fizesse uma saia bem rodada, igual à das ciganas. Olhou, olhou e escolheu um bem colorido com a cor azul sobressaindo, depois, escolheu outro em um azul mais claro para que fosse feita também uma blusa igual à que as ciganas usavam. Ficou feliz com sua escolha. Perguntou:
- Marcela, acha que vai ficar bom?
- Claro que vai, o azul fica bem para a cor da sua pele. Vamos levar senhor Salomão.
- Pode levar quanto quiser, vou marcar aqui na caderneta e, quando a dona Luana vier, ela paga, não é?
Pegaram os tecidos e saíram da loja. Quando estavam na rua, enquanto caminhavam em direção à charrete que havia ficado do outro lado da rua, Marcela pensou: Aqui é o lugar ideal para que aconteça um acidente, mas como? Precisa ser de uma maneira que não reste dúvida alguma e que eu não seja responsabilizada. Pensou, pensou e disse:
- Diva, antes de irmos embora, vamos até a estação de trem. Lá há um bar que vende doces maravilhosos!
- Não estou com fome, Marcela. Estou ansiosa para chegarmos a casa a fim de que você faça o meu vestido.
- Também não estou com fome, só com vontade de comer um doce. Vamos, alguns minutos não farão diferença!
Caminharam em direção à estação de trem. Caminhando, Marcela continuou pensando: Não tenho certeza, mas acho que há esta hora passam vários trens levando mercadorias para a Capital, se isso acontecer eu, sem que ninguém veja, empurro-a. Ela morre e ninguém ficará sabendo que fui eu. Quando me perguntarem, direi que não sei o que aconteceu. Claro que preciso ficar desesperada e chorar sem parar. Tudo vai dar certo, sei que, depois de algum tempo, Danilo vai me querer e me levará embora deste lugar que odeio! Chegaram à estação e Marcela ficou preocupada, pois havia várias pessoas. Umas com malas, outras sentadas, parecendo esperar alguém. Caminharam até o bar. Entraram e ela pediu um dos vários doces que estavam expostos. Diva fez o mesmo. Sentaram-se e começaram a comer. Marcela comia bem devagar. Perguntou ao garçom:
- Passa algum trem neste horário?
- Sim, vários. Está para chegar um que vem da Capital. Esse pára aqui, outros passam direto.
Diva, não imaginando o porquê daquela pergunta, comia com gosto o seu doce. Marcela sorriu, agradecendo, e pensou: Quando o trem que não pára passar eu darei um jeito de empurrá-la. Continuaram comendo. Marcela comeu um e pediu outro. Levantou-se e, comendo, foi até a plataforma e olhou para verificar se vinha algum trem. Ao longe viu um que se aproximava. Voltou para o bar e perguntou:
- Esse trem que está chegando vai parar aqui?
- Vai, sim, é de passageiros. Logo em seguida, assim que este partir vem o outro, só que esse não vai parar. Ele vai direto para a Capital, pois só carrega café para descarregar lá.
Diva, que continuava comendo, não entendia, mas também não estava preocupada com os trens que chegavam ou passavam, apenas apreciava o doce. O trem parou. Algumas pessoas desceram, outras entraram. Marcela acompanhava os passos de todas. Após algum tempo, o trem foi embora e as pessoas, após cumprimentarem os que chegaram, foram se afastando. Em poucos minutos, a estação estava vazia. Marcela sorriu: Quando o próximo trem estiver se aproximando, preciso encontrar uma maneira de atraí-la para cá e ficará fácil empurrá-la. Como a estação está vazia, ninguém perceberá. Só preciso ficar ao lado do bar para que o garçom não veja. Quando ela cair, começarei a gritar e direi que ela se jogou. Ninguém vai desconfiar... Viu ao longe o trem se aproximando. Ainda parada junto à plataforma, chamou:
- Diva, venha ver o trem chegando, olhe como é grande e como está rápido!
Diva, sem imaginar qual era a sua intenção, disse:
- Não posso ir até aí, Marcela, sinto muito medo de trens e de estações. Foi muito difícil chegar até aqui de trem...
- Mas chegou bem, não foi? Viu que não há problema algum. Esse trem que está se aproximando é diferente de todos que já viu. É moderno, acabou de ser comprado...
- Não sei... tenho medo...
- Deixe disso! Não tem perigo algum! Você mesma disse que viajou várias horas e que foi tudo bem. Precisa se livrar desse medo...
Diva, querendo se livrar do medo que sentia, levantou-se do banco em que estava sentada e aproximou-se. O trem estava chegando rapidamente e Marcela se preparava para colocar em prática o seu plano.

FINALMENTE, NOTÍCIAS

Naquele mesmo instante, Luana estava no hospital. Apesar de muito nervosa e de não ter conseguido dormir bem, resolveu que não poderia deixar de trabalhar, mas percebeu que não conseguiria. Foi até o consultório de Felipe e lhe disse:
- Felipe, não estou em condições de trabalhar, não consigo parar de pensar em Danilo e, por isso, não posso me concentrar no trabalho.
- Está bem, vá para casa. Muita coisa tem acontecido em tão pouco tempo. Não se preocupe se houver alguma emergência, eu lhe telefono. Tente se acalmar e acreditar que eles estão bem. Devem estar na fazenda, aproveitando toda aquela beleza.
- Tomara que isso seja verdade. Preciso ter alguma notícia, Felipe. Não posso continuar assim, nessa incerteza...
- Sabe que eles não devem e nem podem se comunicar. Precisamos ter paciência e esperar.
- Não entendo como você pode ser assim. Ficar tão tranqüilo, quando não sabemos o que aconteceu com nosso filho...
- Nada mais podemos fazer Luana. Ele e muito menos nós queríamos estar nesta situação, mas já que fomos envolvidos, precisamos ter paciência e esperar que tudo se esclareça e que nossa vida volte a ser como era antes de toda essa loucura. O importante é saber que nos amamos e que estamos juntos.
Ela sorriu, abraçou-o e disse:
- Você é mesmo um homem maravilhoso, por isso amo-o tanto...
Ele também a abraçou e beijou com carinho.Chegou a casa e foi falar com Tobias e Luísa.
- Agora que tudo passou vocês podem descansar alguns dias. Sei que estão precisando disso. Depois, conversaremos. Agora, estou nervosa e preocupada, vou tentar me acalmar.
- Não, doutora, não quero descansar, pois sei que não vou conseguir, prefiro trabalhar e ocupar o meu tempo para não ficar pensando.
- Tem certeza disso, Luísa?
- Tenho e acho que o Tobias também. O que acha Tobias?
- Você tem razão, Luísa, quanto mais tempo ficarmos sem ter o que fazer, pior será.
- Está bem, se é assim que querem não me oporei. Voltem ao trabalho.
Sorriu e entrou em casa. Luísa e Tobias fizeram o mesmo. Entraram no pequeno quarto e, chorando, abraçaram-se. Tobias, lembrando-se de Jerusa e de sua obsessão, perguntou:
- O que vamos fazer agora, Luísa?
- Continuarmos aqui e trabalharmos na casa da doutora enquanto ela quiser.
- Preferia que fôssemos embora.
- Embora para onde, Tobias? Estamos muito bem aqui. Pela primeira vez, estou me sentindo segura.
- Não sei Luísa, queria ir para um lugar bem longe daqui...
- Por que esse desejo? Não estou entendendo. Estamos bem...
Ele, sabendo que não poderia contar o verdadeiro motivo, respondeu:
- Enquanto vivermos aqui, não conseguiremos esquecer nosso menino. Vai ser um sofrimento constante. Vamos embora. Podemos voltar para a nossa cidade.
- Não importa o lugar em que estivermos nunca conseguiremos esquecer o nosso menino. Ele seguirá para sempre no nosso pensamento. Quer voltar para nossa cidade e vai fazer o que lá, Tobias? Aqui, temos salário e moradia. Sem despesa alguma, podemos guardar dinheiro para, um dia, comprarmos a nossa casa.
Sem mais argumentos, Tobias disse:
- Está bem, só quero que, aconteça o que acontecer, nunca esqueça que eu a amo muito e que você é a única mulher em minha vida.
- Não entendo por que está dizendo isso, sei que me ama, assim como também amo você. Agora, vamos ao trabalho. Vou ajudar a fazer o almoço e você vai preparar o carro para levar a moça para a Faculdade. Coitada, teve de ir de táxi. Como ela está tratando você, Tobias. Melhorou?
Novamente, ele sentiu vontade de lhe contar o que estava acontecendo, mas não teve coragem. Temia que ela interpretasse mal e julgasse que ele estivesse mentindo. Disse:
- Está me tratando bem. Agora, vou tirar o carro da garagem.
Saíram. Ela entrou na casa e ele foi para a garagem tirar o carro. Precisava lavá-lo. Meia hora depois, um táxi parou em frente a casa e dele desceu Jerusa. Assim que entrou, viu Tobias junto ao carro, terminando de secá-lo. Aproximou-se, dizendo:
- Está tudo bem com você, Tobias?
- Está senhorita.
- Hoje, após o almoço, ainda terei de ir para a faculdade de táxi, não é?
- Não, senhorita, Luísa achou melhor voltarmos ao trabalho. Quando quiser, estarei a seu dispor.
Ela sorriu e, com ironia na voz, disse:
- Isso é ótimo. Já estava com saudade da sua companhia...
Ele estremeceu, sabia o significado daquelas palavras, mas não tinha o que fazer somente evitar ao máximo a sua aproximação. Jerusa entrou em casa e ele continuou secando o carro. Após o almoço, Luana, que continuava ansiosa e preocupada, foi para o seu quarto. Há dias não dormia bem. Embora seu corpo estivesse cansado, sua mente não conseguia parar de pensar em Danilo e na sua possível prisão. Apesar de saber que não conseguiria dormir, deitou-se. O telefone tocou, mas ela não atendeu, não queria conversar com ninguém, só queria saber se o filho estava bem. Alda atendeu o telefone e, alguns minutos depois, bateu de leve à porta do quarto de Luana.
- Entre.
Alda abriu a porta e, com a voz baixa, disse:
- Desculpe por incomodá-la, senhora, mas um homem está no telefone e disse que precisa falar com a senhora, urgente.
- Um homem? Que homem?
- Não sei, ele não quis dar o nome. O coração de Luana começou a disparar:
- Meu Deus, será a polícia? Será que querem me avisar que Danilo está preso?
Pegou o telefone e, com a voz trêmula, disse:
- Alô!
- Alô, doutora Luana?
- Sim, quem é o senhor?
- Coronel Alberto. Preciso falar urgente com a senhora.
- O que aconteceu? Meu filho está preso?
- Não, por isso estou lhe telefonando. Um dos nossos agentes infiltrados na Faculdade confirmou-me o que a senhora havia me dito. Seu filho nunca participou de grupo algum de resistência. Ele é um bom estudante e sempre diz que quer nos vencer através das leis.
- Foi o que lhe disse.
- Porém eu precisava ter certeza. Pode dizer a ele que já pode voltar para não perder mais dias de aulas. Tudo, agora, está bem.
- E o Júlio?
- Infelizmente, nada poderei fazer por ele. Está muito envolvido. Ele e a moça que está com eles. Assim que forem encontrados, serão presos.
- Ele é seu filho! Pertence a sua família!
- Sim, é meu filho, mas também um subversivo. Ele escolheu o caminho que queria seguir, nada poderei fazer.
- É um jovem idealista como todos nós já fomos. Acredita que pode mudar não só o Brasil como o mundo inteiro! Com o tempo, quando tiver sua família, verá que não pode mudar o mundo, pois ele é composto de seres humanos que são distintos. Alguns são bons, outros se deixam levar pela ganância não só por dinheiro, como também pelo poder.
- A senhora pode ter razão, mas, no momento, faço parte do sistema e nada posso fazer. Além disso, preciso dar exemplo aos meus comandados. Não aceito que meu filho seja ou pense diferente do que é certo.
- Certo para o senhor, mas para ele e outros tantos, o que os senhores fazem é errado. Estão lhes tirando a liberdade de pensamento e de escolha.
- Não vamos discutir isso, agora. Seu filho foi envolvido e está sendo prejudicado. Faça com que volte e continue seus estudos e, depois, que lute com as armas em que acredita as leis, sem guerrilhas ou violência.
- Foram os senhores que provocaram a violência quando tiraram da população os seus direitos.
- Por favor, doutora, não vamos discutir sobre isso. O Brasil está caminhando bem, a população está tendo uma vida como nunca teve. Deve se importar somente com o seu filho.
- Vai mesmo mandar prender o seu filho?
- Esse não é um problema seu. Seu único problema deve ser o bem-estar do seu filho. Sabe onde eles estão?
- Não sei e isso está me matando...
- Sei que a senhora sabe. Não precisa se preocupar, seu filho não será preso.
- Mas o seu, sim. Se a liberdade dele depender de mim, nunca será preso. Por isso, não sei, mas, mesmo que soubesse onde eles estão não lhe diria. Como posso ter certeza de que não está mentindo, querendo que eu tente me comunicar com eles somente para prendê-los?
- Se eu quisesse que seu filho fosse preso, já estaria, sei que eles estão na fazenda da sua família.
Ela estremeceu.
- O que está dizendo?
- Que sei onde estão. Ninguém fica escondido da nossa inteligência. Por isso, não faça mais com que seu filho perca tempo e aulas. Ele pode voltar. Quanto ao Júlio, é diferente, ele sempre esteve envolvido e será preso.
Antes que Luana pudesse dizer qualquer coisa, ele desligou o telefone. Ela, ainda com o telefone na mão, pensou: Como um homem pode pensar dessa maneira? Como pode permitir que seu próprio filho seja preso, torturado e, talvez, até morto? Preciso telefonar para o Felipe e o Rodolfo. Não, acho melhor ir até o hospital e hoje mesmo partirmos para a fazenda! É isso mesmo que vou fazer!
Levantou-se, entrou no banheiro para tomar um banho. Desceu, ia sair, mas Alda parou na sua frente, dizendo:
- A senhora não vai sair sem almoçar. Já está há alguns dias sem se alimentar e isso não é bom. Ninguém, melhor do que a senhora, sabe disso.
- Tem razão, mas não estou com fome. Estou preocupada com Danilo.
- Sei disso, mas se ficar fraca e doente, não poderá ajudá-lo. Coma nem que seja só um pouco.
- Está bem. Vou tentar.
Sentou-se e foi servida por Luísa. Assim que terminou, apressada saiu. Jerusa também desceu e almoçou. Enquanto Luísa lavava a louça do almoço, Tobias pensava no que faria se Jerusa voltasse a lhe fazer aquelas propostas. Enquanto ela não chegava, ele pensava: Se ela insistir, vou ter de contar toda a verdade para Luísa, só assim ela vai concordar em irmos embora. Não quero fazer isso, mas sinto que serei obrigado. Tomara que Luísa entenda e acredite em mim. Poucos minutos depois, Jerusa saiu da casa e foi ao encontro dele. Assim que a viu se aproximando, ele abriu a porta traseira do carro, mas ela, sorrindo, fez com que fechasse, entrou na da frente e sentou-se ao lado dele. Ele, tremendo, ligou o carro e saíram. Quando chegaram a dois quarteirões da casa, ela disse:
- Pare o carro, Tobias.
- Não podemos senhorita, estamos atrasados...
- Pare o carro, precisamos conversar!
- Não temos o que conversar, só preciso levar a senhorita até a faculdade...
- Eu disse para parar o carro! - ela gritou.
Vendo que não havia alternativa, ele parou o carro. Ela voltou-se para ele e disse:
- Sabe quais são as minhas intenções com você. Desde que o vi, senti que você é o homem da minha vida e que vou ficar com você custe o que custar...
- Sabe que não pode ser eu sou casado e amo a minha mulher...
- Não quero me casar com você e, mesmo que quisesse, não poderia ser minha família nunca consentiria além de você ser casado, somos de classes diferentes.
- Está vendo como não pode ser...
- Não precisamos nos casar, basta nos encontrarmos e você ser meu e eu ser sua. Ninguém precisa saber.
- A senhorita não sabe o que está dizendo. É uma moça direita, como pode pensar e falar assim?
Sem que ele esperasse, ela abraçou-o e beijou-o com loucura. Ele tentou desviar o rosto, mas ela não permitiu. Depois de beijá-lo, ela disse:
- Agora preciso ir para a faculdade, tenho prova. Daqui a duas horas, vá me pegar e iremos para o apartamento da minha amiga.
Ele ficou calado.

MOMENTO DECISIVO

Na fazenda, quase uma hora depois de Marcela e Diva saírem, Danilo acordou, ao mesmo tempo em que estava feliz por ter encontrado Diva, estava preocupado com Marcela e sua atitude. Sabia que uma mulher apaixonada e rejeitada era perigosa. Levantou-se, olhou no espelho e sorriu, pensando: Não vou me preocupar com isso, ela não passa de uma menina. O importante é que estou feliz e só espero poder sair dessa confusão em que me colocaram para poder retomar minha vida, me casar com Diva e ser feliz para o resto da minha vida. Assim que tomarmos o café e se o Júlio quiser, iremos até o acampamento cigano, eles são maravilhosos. Estava saindo do quarto, quando encontrou Júlio, que também saía do seu:
- Bom dia, Júlio? Está melhor?
- Eu não estava doente, Danilo, só preocupado.
- Preocupado com o quê?
- Com tudo o que nos está acontecendo, pois não sabemos se não seremos encontrados aqui. Ele mentiu, pois não queria que o amigo soubesse que o motivo real de sua preocupação era o que sentiu no galpão.
Chegaram à sala de refeições. Danilo estranhou que a mesa estivesse servida somente para duas pessoas. Severina não estava lá. Ele, preocupado, foi para a varanda onde seu bisavô cochilava. Vendo que Diva não estava lá conversando com o avô, foi para a cozinha procurar por Severina. Júlio, sem entender o que estava acontecendo com o amigo, calado, acompanhava seus passos. Realmente, Severina estava junto ao fogão de lenha, completamente aceso. Danilo se aproximou, dizendo:
- Bom dia, Severina.
- Bom dia, está tudo bem com você?
- Sim, só um pouco preocupado, a Diva já se levantou?
- Já faz algum tempo. Ela e a Marcela foram até a cidade. A Diva queria um vestido para a festa dos ciganos. Como Marcela costura muito bem, foram comprar o tecido.
Danilo lembrou-se da noite anterior e, ainda mais preocupado, perguntou:
- Como elas foram?
- Na charrete. A Marcela conduz muito bem. Desesperado, ele disse:
- Preciso ir ao encontro delas!
- Por que, Danilo? - ela perguntou assustada.
- Não sei, mas preciso ir ao encontro delas!
- Não tem como ir, Danilo, elas foram na charrete e não temos outra condução.
- Severina, não me diga isso! Preciso ir!
- Só se for no Trovador, mas disse que nunca montou um cavalo.
- Nunca montei, mas preciso aprender, tenho de ir o mais rápido possível!
- Então, vá falar com o Celestino. Ele o ensinará, só não sei se o suficiente para que possa ir até a cidade.
- E isso mesmo que vou fazer! Preciso ir rápido!
Saiu da cozinha, foi para a varanda e desceu a escada rapidamente. Correu em direção ao estábulo. Com o barulho dos seus passos, o avô, que cochilava, acordou e, assustado, perguntou para Severina que, ao lado de Júlio, perplexo, acompanhara Danilo:
- O que aconteceu com ele, Severina?
- Não sei, disse que precisa ir até a cidade encontrar Diva e Marcela que foram logo cedo.
- Sei que foram eu estava aqui. Mas por que tanta pressa e por que ele precisa ir?
- Não sei, ele não disse.
Danilo chegou ao estábulo. Celestino estava escovando um dos cavalos. Ao vê-lo daquela maneira, assustado, perguntou:
- O que aconteceu, moço? Parece que está muito apressado.
- Estou, sim, preciso ir até a cidade e só restou o Trovador.
- O moço não disse que nunca montou?
- Disse, mas agora preciso aprender, é muito urgente!
- Está bem, vou pegar o Trovador e colocar a sela. Depois, vou tentar ensinar o moço, não sei se vai conseguir, embora ele seja um cavalo muito manso.
Entrou e, poucos minutos depois, voltou trazendo Trovador. Com paciência, ensinou como Danilo deveria fazer. Terminou dizendo:
- Acho que o moço vai conseguir. Converse com ele. Pode não acreditar, mas ele entende.
Danilo, passando a mão na cabeça do cavalo, disse:
- Trovador, preciso da sua ajuda. Permita que eu monte em você e me leve o mais rápido que puder. Tudo depende de você. Tomara que já não seja tarde.
Trovador, parecendo entender o que ele dizia, relinchou.
- Está vendo, moço, ele entendeu. Pode montar e vá com Deus.
Danilo montou no cavalo que, após uns primeiros ensaios, saiu galopando. Passou pela varanda onde estavam Severina, Júlio e o avô. Acenou com a mão e seguiu. Na estação, o trem se aproximava, Marcela estava ao lado de Diva que tremia muito. Com a voz calma, ela disse:
- Não fique assim, Diva. Não há perigo algum. Deixe que eu a abrace, assim, se sentirá melhor. Depois que o trem passar, verá que não havia motivo algum para ter medo. Precisa se livrar desse medo. Isso é psicológico...
- Será que vou conseguir me livrar, Marcela? Confesso que não entendo o porquê disso e, realmente, quero ficar livre, ser como todas as outras pessoas...
- Vai ficar bem, pode ter certeza disso que estou dizendo. Deixe-me abraçá-la.
Colocou o braço nas costas de Diva e esperou o trem se aproximar. Sabia que ele não ia parar, por isso deveria ser rápida. O trem estava chegando, ela ia empurrar Diva, quando ouviu:
- É você mesma Marcela?
Ela se voltou e viu um rapaz que sorria e que tinha feito a pergunta. Ficou parada sem saber o que responder. Ele insistiu:
- É você, mesma, Marcela?
- Samuel? Você está aqui?
- Não sei por que a surpresa, não lhe disse que ia embora estudar, mas que voltaria para buscá-la?
- Disse, mas não pensei que estivesse dizendo a verdade... nunca mais me escreveu ou mandou notícias...
- Pois estava dizendo a verdade e só não escrevi porque tive muito que estudar e não me sobrou tempo. Além do mais, sabia que você estaria aqui quando eu voltasse. Estou aqui e vim buscá-la para que possamos nos casar e ir morar na Capital.
- Está mesmo dizendo a verdade?
- Claro que estou. Qual seria o motivo de estar aqui? Quando desci do trem, com aquela confusão de pessoas entrando e saindo, passei por você, mas não a vi. Depois, já lá fora, foi como se alguém me dissesse que estava aqui, voltei para ver e não é que você está mesmo? O que está fazendo aqui? Vai viajar?
Marcela olhou os últimos vagões que passavam, rapidamente. Respondeu:
- Não, eu e a minha amiga viemos comer doce no bar do Zezão.
- Os doces dele são conhecidos, mas, vamos, preciso ir até a fazenda conversar com seus pais, isto é, se você ainda me quiser. Comprei a nossa casa, ela é imensa, sei que vamos ser felizes.
Ela, abismada com tudo aquilo e sem saber o que dizer, olhou para Diva que, feliz, acompanhava a conversa. Sentiu um aperto no coração e só naquele momento pôde avaliar o que pretendia fazer. Começou a chorar e abraçando-a, disse:
- Perdão, Diva... perdão... perdão, meu Deus...
Diva, sem saber o verdadeiro motivo daquelas lágrimas, abraçou-a com carinho e disse:
- Não chore. Por que está pedindo perdão, Marcela? A felicidade sempre chega. Espero que seja muito feliz ao lado do Samuel. Ele parece ser um bom moço e já provou que gosta realmente de você. De hoje em diante, sei que será feliz.
- Isso mesmo, não chore, pois se já teve motivo, hoje não tem mais. Só preciso agradecer por ter tido aquele impulso de voltar aqui e encontrar você.
Pai Joaquim, que a tudo acompanhava, sorriu.
- Como vocês vieram da fazenda?
- De charrete.
- Será que podemos voltar nela, assim não perderei tempo e falarei logo com os seus pais.
- Podemos, sim, só que terá de ir atrás, não seria justo uma de nós ir ali.
Ele riu e, com felicidade na voz, disse:
- Claro que vou atrás, as damas sempre têm preferência.
Já do lado de fora da estação, viram Danilo que chegava no cavalo que corria muito. Admirada, Diva perguntou:
- Aquele não é o Danilo no cavalo preto?
Marcela viu e, entendendo todo o desespero dele, respondeu:
- E ele, sim, não pode ficar um minuto longe de você, Diva.
Diva sorriu. Ele se aproximou e, descendo do cavalo, correu para ela. Abraçou-a, perguntando:
- Você está bem?
- Estou, mas por que a preocupação?
Ele olhou para Marcela que sorrindo, disse:
- Ela está bem, Danilo. Essa atitude dele, Diva, demonstra o quanto ele gosta de você.
Voltando a cabeça para Samuel, continuou:
- Este é o Samuel, meu antigo namorado que foi embora e voltou para nos casarmos.
- Você sabia que ele viria, Marcela? Veio aqui na estação para encontrá-lo?
- Não, foi coisa do destino, Danilo, mas estou feliz que tenha vindo, pois sua presença evitou que eu cometesse uma loucura.
Sorriu e piscou um olho. Danilo entendeu a mensagem, abraçou Diva e disse:
- Não sei o que seria de mim se algo tivesse acontecido com você...
- Por que está dizendo isso? Nada aconteceu nem acontecerá, só viemos comprar um tecido para que a Marcela costure um vestido bem bonito para eu ir à festa dos ciganos.
- Os ciganos estão aqui?
- Sim, Samuel, chegaram ontem e já estão preparando a festa. Você conhece muito bem as festas dos ciganos, não é?
- Sim e como. Foi em uma delas que nos apaixonamos e que descobri que você era a mulher da minha vida.
Chegaram perto de onde estava a charrete e de onde Danilo havia deixado Trovador. Ele disse:
- Diva, aprendi a montar, não quer voltar sentada ao meu lado?
- Não sei, nunca montei um cavalo, não será perigoso?
- Não, não é. O Trovador é manso e obedece aos comandos. Venha, sei que vai gostar.
Ele ajudou-a a montar. Ela, embora receosa, mas confiando nele, montou. Seguiram viagem. Ele envolveu-a com carinho e proteção. Ela sentiu-se a mulher mais feliz do mundo. Na charrete, seguiram Samuel e Marcela que também estava feliz por ter sido impedida pelo destino de cometer um ato do qual se arrependeria pelo resto da vida.

ENCONTRO INESPERADO

Júlio não entendeu o porquê de Danilo estar nervoso daquela maneira. Assim que o amigo se afastou, despediu-se do bisavô e saiu andando pela fazenda. Estava preocupado com a sensação que teve, quando passou pelo galpão. Andava olhando tudo à sua volta. Quanto mais andava, mais tinha a sensação de já ter estado ali naquele lugar. Não pode ser. Nunca estive em uma fazenda, muito menos aqui. Sendo assim, o que é isso que estou sentindo? Por que parece que já conheço tudo? Chegou ao galpão, entrou. Imaginou que ele estivesse com muitas crianças. Seu corpo estremeceu e se arrepiou. Não resta dúvida, conheço este lugar, já estive aqui. Não sei qual é a explicação, mas não posso mais negar. Saiu dali, olhou para o morro com as cruzes e continuou andando. Chegou ao ponto de onde poderia descer até o riacho. Do alto, viu uma moça que estava com os pés dentro da água. Ficou olhando por alguns minutos e resolveu:
- Vou descer e ver quem é essa moça.
Desceu. Ela estava de costas e não viu quando ele se aproximou:
- Bom dia.
Ela, assustada, se voltou e ao vê-lo, disse:
- Bom dia. Quem é você?
- Meu nome é Júlio. Sou amigo da família e estou passando férias aqui na fazenda. E você, quem é?
- Meu nome é Samara. Sou cigana e estamos visitando a fazenda como fazemos todos os anos.
- Cigana?
- Sim, não percebeu por minhas roupas?
- Desculpe, mas não notei. Posso me sentar ao seu lado?
- Claro que sim. Sempre que voltamos a esta fazenda, gosto de vir até aqui e ficar apreciando esta água límpida que corre tranqüila e os pequenos peixes que deslizam por ela. Aproveito, também, para molhar os pés. Não sei você, mas eu estou com calor.
- Está calor, sim e ainda é cedo. Imagine como vai ficar mais tarde.
Ele tirou os sapatos, levantou a barra da calça, sentou-se e também colocou os pés dentro da água. Teve uma sensação agradável. Sorriu, dizendo:
- Tem razão, esta água está bem fresca. Nunca estive ao lado de uma cigana, nada conheço a respeito. Vivem, realmente, andando sem destino?
Ela sorriu e respondeu:
- Sim. Nossa casa é o mundo. Vivemos assim desde sempre.
- Essa vida não é muito triste e sacrificada?
- Não. Somos livres. Não temos governo, portanto, não temos a quem obedecer.
- Se não têm governo e não obedecem, como conseguem viver sem lei?
- Temos nossas próprias leis, todos as conhecem e as seguem.
- Não existe um líder?
- Sim. Temos um rei. O nosso chama-se Sergei, é meu pai. Ele nos orienta em todos os momentos.
- Acho interessante o que está me dizendo. Jamais imaginei uma sociedade assim. Embora saiba que isso só é possível em comunidades pequenas como a de vocês. Em uma sociedade complexa como a nossa, isso seria impossível.
- Por quê? Cada um não conhece seus deveres e direitos?
- Deveriam conhecer, mas, infelizmente, isso não acontece. As obrigações são muitas e os direitos, poucos. Existe muita desigualdade.
- Pois, entre nós, não. Somos todos iguais. Seguimos nossas leis e somos felizes assim.
- Sabe que você é muito bonita?
Ela corou:
- Obrigada. Está sendo gentil.
- Não! Você, realmente, é muito bonita! Talvez não acredite, mas, muito cedo, me envolvi com alguns problemas e nunca tive tempo para olhar uma moça da maneira como estou olhando você.
- Não sei se posso acreditar nisso que está dizendo.
- Pode acreditar.
- Tem namorado, é casada?
- Vá com calma! Não, não tenho namorado nem sou casada, mas sou cigana.
- E o que tem isso? Não tenho preconceitos.
- Ainda bem que não é preconceituoso. Meu povo já sofreu muito com a discriminação e ainda sofre. As pessoas não nos conhecem e inventam muitas coisas que, na realidade, nunca existiram.
- Confesso que o pouco que conheço não é muito bom.
- Sei disso. Já ouviu dizer que os ciganos roubam as pessoas e até crianças. - ela deu uma gargalhada e mostrou seus dentes lindos.
- Do que está rindo?
- Do que as pessoas pensam. Não roubamos muito menos crianças. Vivemos nossas vidas em paz. Cantamos e dançamos muito. Hoje à noite, teremos uma festa linda. Verá como somos felizes e conseguimos fazer feliz todo aquele que estiver ao nosso lado.
- De onde surgiram esses boatos?
- As ciganas lêem as mãos ou as cartas e cobram por isso. Muitos inventam que elas roubam, mas é mentira. Elas cobram pela curiosidade, somente isso.
- Interessante. Gostaria de passar um tempo com vocês para conhecer seus costumes.
- Isso é impossível.
- Por quê?
- Uma das nossas leis é não nos misturarmos com os gajis.
- O que é isso?
- Vocês. Todos os que não são ciganos.
- E se uma cigana se apaixonar por um gaji, o que acontece?
- Nada acontece. Precisam se afastar.
- Nunca houve um que ficou entre vocês?
- Na nossa tribo, não, e acho que seria muito difícil. Embora existam tribos que vivem em sociedade, nós somos conservadores. Vivemos da maneira como sempre foi.
- Gostaria de conhecer a história de vocês.
- Não há muito que conhecer. Vivemos em uma sociedade, dentro das nossas leis e, assim, somos felizes.
- Pois eu não estou feliz com a sociedade em que vivemos. Existe falta de democracia. Não podemos falar nem a imprensa. Os estudantes estão revoltados e tentam derrubar o governo que transformou este país em uma Ditadura.
- Você também luta contra isso?
- Sim, por isso estou aqui. Estamos fugindo da polícia, pois fomos denunciados.
- Acredita que vão conseguir vencer?
- Não sei, mas se não tentarmos, não saberemos.
- Admiro aqueles que se dedicam a um bem maior, mas acho essa luta inglória.
- Pode ser, mas agora não há mais volta. Preciso ir até o fim. Sei que, um dia, o Brasil voltará a ser um país democrático, onde as pessoas, livremente, poderão escolher seus governantes.
- Quem lhe garante que estes não serão iguais ou piores dos que os que aí estão?
- Não posso, sequer, admitir uma idéia como essa! Estamos lutando e, se um dia, chegarmos ao poder, será diferente. Pensaremos só no bem-estar do povo brasileiro.
- Espero que esteja certo e que não tenha perdido sua liberdade e até a vida a troco de nada.
Júlio, calado, ficou com o olhar perdido na água que corria mansamente. Samara começou a rir. Ele, sem entender, perguntou:
- Por que está rindo?
- Acabamos de nos conhecer e já contamos a nossa vida. Não acha isso estranho?
Ele também riu.
- Tem razão. Mas, embora só tenhamos nos conhecido agora, parece que a conheço há muito tempo.
- Tenho esse mesmo sentimento.
- Acredita em amor à primeira vista, Samara?
Ela ficou olhando sem responder. Ele insistiu:
- Acredita em amor à primeira vista?
- Não sei... nunca pensei a respeito...
- Pois eu, embora também nunca tenha pensado a respeito, estou acreditando que pode ser verdade.
- Por que está dizendo isso?
- Não me leve a mal, mas estou sentindo por você algo que nunca senti. Acho que estou apaixonado.
Ela voltou a rir.
- Não posso negar que também estou impressionada com você, mas isso que disse, mesmo que fosse verdade, jamais poderia acontecer.
- Por quê?
- Como lhe disse, sou cigana e nunca poderia me apaixonar por alguém que não fosse cigano.
- Isso não é justo! Se gostar de alguém, não poderá se casar?
- Não e não me importo...
- Estou lutando pela liberdade e você não se importa?
- Até agora, não, Júlio.
- Não entendi... o que está querendo dizer?
- Nada... nem sei por que disse isso...
Juntos, foram colocar as mãos na água. Sem que quisessem, as mãos se tocaram e os olhos se encontraram. Ela, constrangida, começou a se levantar, mas sem que esperasse, ele a segurou pela mão puxou-a para si e deu-lhe um beijo. A princípio ela quis se afastar, mas, aos poucos, se entregou àquele beijo e àquele amor. Depois que se afastaram, saiu correndo e subiu o morro. Ele ficou olhando-a se afastar. Já no alto, Samara não conseguia parar de correr. Lágrimas corriam por seu rosto. Isso não poderia ter acontecido... jamais poderemos ficar juntos... Júlio voltou a se sentar e a olhar a água que corria mansamente. Sem perceber, seu olhar voltou-se para o morro das cruzes. O que está acontecendo aqui? Por que tive de vir para cá e conhecer essa moça que sinto ser a mulher da minha vida e a qual nunca terei. Levantou-se e começou a subir o morro. Samara chegou ao acampamento e correu para sua tenda. Zara, sua mãe, viu quando ela chegou e percebeu que não estava bem. Esperou algum tempo, depois foi até a tenda. Assim que entrou, percebeu que a filha estava chorando. Estranhou, pois nunca havia visto aquilo. Perguntou:
- Que aconteceu, Samara, por que está chorando?
- Nada aconteceu. Só estou triste.
- Triste, por quê?
- Não sei... por nada, mãe... por nada...
- Como nada? Pela manhã, quando saiu para ir até o rio, estava bem. O que aconteceu para que voltasse assim?
- Já disse que nada aconteceu!
- Algo deve ter acontecido. Pensei que confiasse na sua mãe.
- Eu confio mãe, só estou confusa...
- Confusa, por quê? O que aconteceu?
- Por que não posso escolher o homem com quem desejo me casar?
- O quê? Por que está perguntando isso? Conhece as nossas leis.
- Conheço, mas não acho justo. Se eu me apaixonar por um homem que não seja cigano, precisarei me afastar dele e ser infeliz para o resto da minha vida?
- Conheceu algum homem?
- Não!
- Como não? Quando saiu estava bem, agora, volta chorando e com essas perguntas estranhas...
- Não se preocupe mãe. Logo vou ficar bem.
- Não, preciso saber o que aconteceu. Você conheceu um homem e está apaixonada?
- Está bem, sei que não vai sossegar enquanto eu não lhe contar o que aconteceu. Conheci um moço. Conversamos muito. Sinto que gosto dele e que queria ficar ao seu lado para sempre.
- O que está dizendo? Acabou de conhecer um rapaz e acha que está apaixonada? Isso não pode ser por dois motivos. Primeiro ninguém se apaixona assim, de repente. Segundo, se ele não for cigano, não pode nem pensar. Sabe que isso nunca será possível.
- Sei disso que está dizendo, por isso estou confusa e com vontade de chorar. Não entendo como isso pôde acontecer.
- Ainda bem que entende. Tire isso de sua cabeça. Logo mais iremos embora e você se esquecerá de tudo isso.
- Sei que isso vai acontecer. Fique tranqüila, mãe.
- Está bem. Pense bem em tudo o que está acontecendo. Como disse, está confusa e questionando a nossa vida, mas sei que vai encontrar o seu caminho. É cigana e, sendo assim, sujeita às leis. Pense bem nisso. Não nos obrigue a afastá-la. Sabe que, se isso acontecer, embora eu sofra muito, terei de aceitar. Sou cigana...
- Não se preocupe. Sei quem sou. Isto tudo vai passar. Não entendo como teve de acontecer. Por que fui encontrar aquele moço?
- Também não entendo, mas espero que não cometa uma loucura.
- Não se preocupe mãe. Tudo isso vai passar.
Zara beijou a filha e saiu dizendo:
- Espero que passe... espero que passe...
Saiu dali e foi conversar com Sergei, seu marido e rei da tribo. Samara ficou deitada, lembrando-se de Júlio e do beijo. Júlio, andando devagar, voltou para a casa grande da fazenda. Chegou no exato momento em que Danilo e Diva chegavam, montados em Trovador.

SITUAÇÃO QUE SE REPETE

Na casa de Luana, Luísa lavava a louça do almoço Alda se aproximou:
- Luísa, quero fazer um bolo para o jantar, mas olhei na dispensa e não tem farinha. Será que não dá para você ir até a padaria e comprar?
- Claro que vou, só preciso terminar de lavar a louça.
- Pode deixar para quando voltar. Se eu não fizer o bolo agora, não ficará pronto para a noite.
- Está bem, estou indo.
Tirou o avental e saiu da casa. Estava caminhando, pensando no seu menino que fora embora e que a deixara sozinha, quando viu o carro da família parado. Estranhou, aproximou-se e, estarrecida, viu Tobias beijando Jerusa. O sangue de todo o seu corpo subiu para a cabeça. Ficou parada por algum tempo. Depois, saiu correndo feito louca. Chorava sem parar. Por sua cabeça passavam pensamentos desencontrados: Como ele pôde fazer uma coisa como essa? Nosso filho acabou de ser enterrado! Vou matá-lo e a ela também, depois me matarei, não tenho mais nada nesta vida! Estava desorientada. Corria sem parar. Seu único pensamento era de ódio e desespero. Embora tenha visto, não consigo acreditar que ele tenha me enganado dessa maneira! Também ela é uma moça muito bonita e tem dinheiro! Eu, quem sou? Uma bronca, assim como ele! Deve estar completamente louco! Mas nunca vou aceitar essa traição! Já passamos tantas coisas juntos, como ele pôde esquecer e se deixar envolver por ela? E ela, o que pode querer com um homem como ele? Vou matar os dois e, depois, me matarei, é a única coisa que posso fazer! Continuou correndo. Luana pegou as escovas de dente e saiu do banheiro. Apressada, desceu a escada e foi para a cozinha falar com Alda. Assim que entrou, notou que Luísa não estava ali. Perguntou:
- Alda, onde está a Luísa?
- Foi até a padaria, preciso de farinha para fazer um bolo.
- Se for para o jantar, não se preocupe, pois estamos indo viajar.
- Viajar?
- Sim, mas voltaremos o mais tardar, depois de amanhã. Cuide de tudo e não deixe que Jerusa fique sem se alimentar, sabe como ela gosta de comer besteiras.
- Não se preocupe senhora. Cuidarei de tudo. Vou acompanhá-la até o carro.
- Não precisa. Sei que cuidará de tudo. Até a volta.
- Até a volta, senhora. Vá tranqüila.
Luana saiu, foi até o carro, abriu o porta-malas e colocou a maleta dentro dele. Entrou no carro, acelerou e saiu. Estava dirigindo tranqüila, quando viu Luísa que corria e parecia chorar. Parou o carro e perguntou:
- Por que está correndo assim, Luísa, e chorando? Luísa se assustou ao vê-la ali. Respondeu:
- Minha vida terminou! Só quero morrer!
- Por que está dizendo isso, o que aconteceu?
- Desculpe doutora, mas, agora, não tenho como conversar... preciso ir para casa e resolver o que vou fazer!
Assim dizendo, continuou correndo. Luana ficou sem saber o que fazer. Olhou para frente e viu o carro que Tobias dirigia. Estranhou. Voltou a acelerar o seu carro e foi até lá. Assim que se aproximou, viu Jerusa abraçada a ele. Levou um choque e, por alguns minutos, ficou parada, apenas olhando. Percebeu que ele se esquivava, mas que Jerusa insistia. Desceu do carro e, tomada de raiva, bateu no vidro do carro que estava fechado. Jerusa e Tobias se assustaram. Ela, assim que viu a mãe, afastou-se e começou a gritar:
- Ele está tentando me agarrar, mamãe não tive culpa! Ele não me dá sossego!
- Não faça isso, moça, a senhorita sabe que tentei evitar ao máximo! A senhorita não me deu opção. - Tobias disse, apavorado.
- Foi por isso que encontrei Luísa chorando e correndo desesperada!
- A Luísa nos viu?
- Sim, Tobias, mas aqui não é lugar para conversarmos, vamos para casa!
Luana, tremendo de raiva e decepção, fez com que Jerusa descesse do carro e entrasse no seu. Depois de ela ter entrado aos trancos, Luana também entrou, manobrou e foi para casa. Tobias, desesperado, fez o mesmo. Jerusa, fingindo estar desesperada, chorava e dizia:
- Não tive culpa, mamãe, foi ele que me atacou! Eu disse que a senhora não deveria ter trazido desconhecidos para a nossa casa! Está vendo o que aconteceu? Trouxe para nossa casa um bandido!
- Cale-se, Jerusa! Eu vi que era você quem estava sobre Tobias que queria se afastar, mas você não deixava. Como pôde fazer isso? Logo agora que estamos tão preocupados com seu irmão!
- A senhora sempre esteve preocupada só com o Danilo! Nunca teve tempo para mim!
- O que está dizendo? Tenho a mesma preocupação com os dois! Nunca fiz diferença alguma. Você, sim, foi quem sempre se comportou de uma maneira que me afastava!
- Eu sou assim por sua causa!
- Não venha querer se defender me atacando, pois tenho consciência de que sempre tentei ser uma boa mãe. Dei a vocês a educação que sabia! Não poderia dar além! Você sempre foi assim, distante, reservada, mas não sabia que tinha tão mau caráter. Posso até adivinhar as artimanhas que usou para convencer e intimidar esse rapaz!
- A senhora está vendo como age comigo? Por que não acredita quando digo que foi ele quem me atacou?
- Porque eu vi a cena! Vi que você estava sobre ele! Agora, precisamos voltar para casa e fazer com que Luísa acredite nele.
Jerusa, que tentava disfarçar o que sentia e procurava dizer que havia sido atacada, ao ouvir a mãe dizer aquilo, esqueceu-se do que pretendia e gritou:
- Não vou fazer isso, mamãe! Eu quero aquele homem, será que a senhora não entende que estou apaixonada? Eu quero ficar com ele!
- Você não sabe o que está dizendo! Ele é casado, ama a esposa e os dois já sofreram muito. Não entendo o que você quer da vida! Sempre teve tudo, dinheiro, posição e uma boa casa para morar! Sempre teve o amor tanto meu como do seu pai! O que você quer mais? Destruir duas vidas! Sinto muito, minha filha, mas não vou permitir! Você é jovem, está enganada e terá muito tempo para encontrar alguém que a ame e que ame também e será feliz, mas não com esse homem.
- Está dizendo isso porque ele é pobre! Tem preconceito!
- Não seja tola! O problema não é ele ser pobre, o problema é que ele ama a esposa! O problema é que acabou de perder o filho! O problema é que sempre tiveram uma vida difícil, mas, mesmo assim, estão juntos e, se depender de mim, ficarão para sempre!
Chegaram a casa. Luana entrou primeiro, Tobias logo atrás. Ele estava constrangido e apavorado, pois não sabia o que ia acontecer. Amava Luísa, sempre a amara, temia que aquele mal-entendido fizesse com que ela não o quisesse mais. Luana voltou-se para ele e disse:
- Entre conosco, Tobias. Precisamos conversar com Luísa. Ela precisa saber o que aconteceu realmente.
- Juro que não tive culpa doutora, mas a Luísa não vai acreditar!
- Sei disso, não se preocupe, conversarei com ela e acertarei essa situação provocada pela irresponsável da minha filha.
Luísa, que havia chegado antes, foi até a cozinha. Nem Alda nem Carlita estavam ali. Viu sobre a pia uma faca grande, pegou-a e foi para seu quarto. No caminho, pensava: Ele não sabe que o vi, assim que chegar, com esta faca, vou matá-lo e depois me matarei! Não tenho motivo algum para continuar vivendo! Perdi meu filho e, agora, o homem que sempre amei... Entrou no quarto e ficou esperando. Luana, Tobias e Jerusa entraram em casa. Vendo que não havia ninguém na sala, foram para a cozinha, mas lá também Alda e Carlita não estavam. Tobias, desesperado, perguntou:
- Para onde ela foi doutora?
- Não sei, deve estar em seu quarto, vamos até lá. Jerusa vá para o seu quarto depois conversaremos!
Jerusa, conhecendo sua mãe e sabendo como ela era justa, obedeceu. Sabia que havia perdido e que Tobias nunca seria dela. Chorava muito. Alda, que descia a escada, ao ver Jerusa em casa e chorando, preocupada, perguntou:
- O que aconteceu, Jerusa? Estava lá no alto e vi quando sua mãe voltou, estranhei, pois ela me disse que ia viajar. E você, por que não foi para a Faculdade?
Jerusa não respondeu. Chorando, terminou de subir a escada e entrou no seu quarto. Da janela, podia ver o quarto de Luísa e de Tobias. Por detrás da cortina, ficou olhando. Luana e Tobias entraram no quarto. Luísa estava encostada em uma parede, com as mãos para trás. Da maneira como estava nem Luana nem Tobias podiam ver a faca que estava em sua mão. Luísa não chorava mais, mas seus olhos estavam com um brilho estranho que chamou a atenção de Luana. Luísa, assim que viu Tobias, correu em sua direção com a faca em punho, gritando:
- Vou matar você e depois me matar! Você me enganou, traiu!
Luana, que estava desconfiada daquele olhar, colocou-se à frente de Tobias e só não levou uma facada, porque Luísa, vendo o gesto dela, parou com a faca no alto. Luana segurou sua mão e disse:
- Dê-me essa faca, Luísa, não é assim que resolvemos as coisas. Precisamos conversar.
Além de não largar a faca, Luísa disse muito nervosa:
- Não tenho o que conversar doutora! Minha vida está destruída e não tenho motivo para continuar vivendo! Meu filho morreu e o homem que sempre amei me traiu.
- Eu não traí você, Luísa! Amo-a e sabe disso... - ele disse, com lágrimas nos olhos.
- Não queira mentir, vi com meus próprios olhos você beijando a moça!
- Ele não a estava beijando, Luísa. Ela era quem o estava beijando. Ele tentava impedir.
- Como a senhora sabe disso?
- Porque, diferente de você, me aproximei e pude ver tudo o que estava acontecendo. Minha filha pensa que está apaixonada por ele, mas ela não passa de uma criança.
- Foi por isso que pedi a você para irmos embora, você lembra? Ela me ameaçou. Disse que, se eu não me rendesse aos seus caprichos, diria a seus pais que eu a havia importunado e eles, com razão, nos mandariam embora. Nosso menino precisava de atendimento médico e não tínhamos para onde ir. Mesmo assim, eu quis ir embora, mas você não aceitou o meu pedido. Faz dias que ela vem tentando e só não me levou a um apartamento ontem porque nosso filho morreu. Mesmo sofrendo muito por sua perda, agradeci a Deus, pois sua morte me salvou. Não pensei que, depois disso, ela continuaria insistindo, mas, hoje, fez com que eu parasse o carro e voltou com sua proposta. Quando viu que recusei, me abraçou e beijou, deve ter sido nesse momento que você nos viu. Eu já havia decidido que hoje mesmo iríamos embora, não sabia para onde, mas precisa fazer isso. Como você nos viu tudo foi atropelado, e se você acreditar no que estou dizendo, vamos pegar nossas coisas e iremos para algum lugar.
Luana, estarrecida, ouvia o que Tobias dizia. Não conseguia acreditar que sua filha poderia ter tanta maldade. Aproveitar-se da situação dele para exigir um amor que não tinha. Tentou manter a calma:
- Como vê Luísa, seu marido gosta de você e não teve culpa do que minha filha fez. Ele tem razão, vocês não podem continuar aqui, pois, apesar de saber que Jerusa errou, ela é minha filha e, talvez, em algum ponto eu tenha errado na sua educação. Preciso descobrir no que foi. Luísa entregou a faca para Luana, aproximou-se de Tobias e abraçaram-se. Chorando, ela disse:
- Bem que desconfiei de que alguma coisa não estava indo bem, porque você, de repente, começou a ficar nervoso e a insistir para irmos embora.
Voltando-se para Luana, disse:
- Obrigada, doutora, por ter impedido que eu cometesse uma loucura. Só posso agradecer à senhora, ao doutor Felipe e ao doutor Rodolfo, que tanto nos ajudaram. Como a senhora disse, precisamos ir embora. Entendo sua situação, somos apenas pessoas que a senhora recolheu em uma estrada, mas ela é sua filha e está precisando de ajuda, muito mais do que nós. Vou pegar nossas coisas e iremos embora.
- Para onde vão?
- Não sei, mas encontraremos um caminho. Acreditamos em Deus e sabemos que Ele nunca nos abandona e sempre manda um de seus anjos para cuidar dos seus filhos, assim como mandou a senhora naquele dia. Sua missão terminou. Fez o que pôde para nos ajudar e salvar o nosso filho, agora, precisamos continuar nossas vidas.
Luana ouvia tanta sabedoria na voz daquela moça simples. Percebeu que, apesar de tudo, ela não sentia raiva de Jerusa. Pensou um pouco e disse:
- Tobias, você não disse que sempre foi agricultor?
- Disse e é a única coisa que sei fazer.
- Pois bem, quando tudo aconteceu, eu estava indo me encontrar com Felipe para irmos à fazenda. Agora, vou lhe telefonar e contar o que aconteceu. Se quiserem, podem nos acompanhar e poderão ficar morando lá. O lugar é agradável, sei que vão gostar. Luísa voltou a chorar:
- A senhora faria isso? Nos daria emprego e um lugar para morar?
- Por que não? Vocês são pessoas de bem e merecem ajuda.
Luísa e Tobias se olharam e tornaram a se abraçar. Ela, chorando, disse:
- Viu, Tobias, Deus sempre manda um anjo para ajudar seus filhos. Sabia que Ele não nos deixaria desamparados. Vamos aceitar, sim, doutora e prometemos trabalhar muito.
- Só precisarão trabalhar o necessário, lembrem-se de que não são escravos.
Luana disse isso, sorrindo e feliz. Outra vez sentiu vontade de abraçar Luísa, como uma irmã que não via há muito tempo, mas se conteve.
- Está bem, preparem suas coisas. Vou telefonar, depois, iremos para o hospital.
- Doutora, por favor, não conte a ele o que aconteceu com sua filha. Sei que vai ficar muito triste.
- Não se preocupe Luísa. Com minha filha, conversarei mais tarde.
Dizendo isso, voltou a sorrir e saiu em direção a casa. Luísa não sabia, mas, naquele momento, havia resgatado seu crime cometido no passado. Teve a oportunidade de voltar a cometer o mesmo crime, mas, com a ajuda de Luana, se conteve e perdoou à Jerusa. Pai Joaquim, feliz, jogou luzes brancas sobre eles. Luana entrou em casa, telefonou para Felipe e lhe contou o que o pai de Júlio havia dito. Combinaram que ela passaria pelo hospital para que seguissem viagem. Assim que terminou de falar com Felipe, desligou o telefone e foi para o quarto de Jerusa que, deitada em sua cama, chorava. Luana aproximou-se e disse:
- Não sei o que passou por sua cabeça, Jerusa, mas quase provocou uma desgraça. Por muito pouco, Luísa não mata o marido e se mata também.
Jerusa, chorando muito, disse:
- Também não tenho explicação para o que aconteceu... assim que vi Tobias, me apaixonei e não pensei em mais nada, somente em tê-lo. Por que isso aconteceu, mamãe?
- Também não tenho explicação, só sei que, para ter esse homem, usou dos mais terríveis argumentos. Como pôde intimidá-lo, dizendo que se ele não fizesse o que queria, mentiria, dizendo que havia sido atacada por ele?
- Não sei mamãe, não sei como pude fazer aquilo... estava completamente louca...
- Sei que deveria ficar brava e lhe dar um castigo, porem entendo. É jovem e não pensou no que estava fazendo, mas espero que isso lhe sirva de lição. Ainda terá muitos amores e decepções, mas a vida é assim mesmo. Numa próxima vez, pense nas conseqüências dos seus atos, não só em relação ao amor como em tudo na vida. Lembre-se de que sempre colhemos o que plantamos. Estou brava, é claro, mas também muito feliz para que o meu dia seja estragado. Eu e seu pai estamos indo para a fazenda buscar Danilo. O pai do Júlio telefonou e disse que está tudo bem, que Danilo nunca fez parte de grupo algum.
- Posso ir também, mamãe?
- Infelizmente, não. Com a sua atitude, Luísa e Tobias não poderão continuar aqui. Estou levando-os para que morem e trabalhem na fazenda. Fazendo isso, evito futuros problemas.
- Só posso dizer que estou arrependida do que fiz e que vou até lá contar a Luísa que a culpa foi toda minha, que ele é inocente.
- Não será preciso, ela já sabe e entre eles está tudo bem. Agora, você, minha filha, precisa pensar bem no que fez para que, de uma próxima vez, não use o dinheiro nem sua posição para intimidar outras pessoas, seja em que situação for.
- Está bem, mamãe, e obrigada por ser tão compreensiva. Desculpe por aquelas coisas horríveis que eu disse. A senhora sempre foi uma ótima mãe.
Luana sorriu, abraçou a filha:
- Não sei se fui uma ótima mãe, mas sei que fui aquela que sabia ser e que só quis que você e seu irmão tivessem uma vida tranqüila e fossem felizes. Também, não sou compreensiva, somente já tive sua idade... agora preciso ir, seu pai está me esperando. Quando Danilo voltar, poderá abraçá-lo.
- Só posso agradecer a Deus por ter uma mãe como a senhora.
Abraçaram-se. Luana deu um beijo na testa da filha e saiu do quarto. Novamente, Pai Joaquim sorriu e jogou luzes brancas sobre elas. Felipe, como não podia deixar de ser, ficou feliz e contou para Rodolfo que, imediatamente, telefonou para Marília e lhe contou tudo. Quando terminou de falar, ela disse:
- Não havia lhe dito que Deus não abandona seus filhos, que não precisava se preocupar porque no fim tudo daria certo?
- Disse, mas confesso que não tinha muita certeza. Senti muito medo por Danilo.
- Pois, a partir de agora, tenha sempre isso em mente.
- Estive pensando, estou com vontade de ir até a fazenda abraçar o meu sobrinho e meu avô.
- Por que não faz isso?
- Tenho muito trabalho no hospital.
- Você sempre trabalhou muito. Há quanto tempo não tira férias?
- Faz muito tempo...
- Pois então, converse com o Jorge. Com certeza ele o substituirá por alguns dias.
- Tem razão, vou fazer isso. Prepare nossas malas e venha para cá. Iremos junto com Felipe e Luana. Afinal, será só por um fim de semana. Você me acompanha?
- Claro que sim, também quero abraçar Danilo!
- Está bem, pode ir preparando nossas malas, vamos tirar um fim de semana de férias.
Luana saiu do quarto de Jerusa e foi ao encontro de Tobias e Luísa que já a esperavam. Estavam cada um com uma mala. Assim que ela chegou, Luísa disse:
- Desculpe doutora, mas tive de pedir para dona Alda que nos emprestasse essas malas para colocarmos as roupas que a senhora nos deu. Não tínhamos onde as levar.
- Não tem problema algum. Vamos embora. Saindo agora, chegaremos à fazenda à noite e vocês começarão uma nova vida, agora, com toda segurança. Poderão ter outros filhos e ser felizes.
- Obrigada, doutora, a senhora é mesmo um anjo que Deus colocou em nossas vidas.
- Anjo, eu? Não sou anjo, estou muito longe disso. Não sei explicar o motivo, mas gostei de vocês assim que os vi. Talvez, Marília, a minha cunhada, tenha uma explicação para isso. Agora vamos embora. Do contrário, chegaremos muito tarde.
- Já nos despedimos da dona Alda e da Carlita e agradecemos todo o bem que fizeram por nós.
- Agiu corretamente. Agora vamos embora.

VISITA INDESEJÁVEL

Quando chegaram à fazenda, eram nove horas da noite. Assim que os carros pararam em frente à porteira, ouviram uma música tocada em um violino. Luana estremeceu e o mesmo aconteceu com Luísa, que disse:
- Doutora, essa não é a música que a senhora estava tocando na sua casa naquele dia?
- Sim, é ela mesma. Como pode ser? Nunca a ouvi...
- Não sei, só sei que é muito bonita!
- Tem razão, vamos entrar e ver quem está tocando.
Felipe e Tobias desceram do carro e abriram a porteira. Os carros entraram. Ainda ouvindo a música, aproximaram-se do pátio em frente à casa grande, onde os escravos eram torturados. Viram que uma fogueira muito grande estava acesa e sobre ela um pedaço de carne assava como se fosse um espeto. Estacionaram os carros e, admirados, notaram que havia muitas pessoas. Enquanto algumas comiam, outras dançavam ao som da música tocada por Sergei. Quando chegaram mais perto, viram Danilo e Diva que dançavam com os rostos colados e bem juntos. Em outro lado, Júlio também dançava com Samara, mas da maneira como os ciganos, distantes. Ela, naquele momento, esqueceu-se de que era cigana e só queria se entregar àquele amor. Júlio vibrava de felicidade, por estar sentindo algo que não conhecia. Quem via como brilhavam seus olhos percebia, imediatamente, que estavam apaixonados. Zara, à distância, olhava a filha e pensava: Ela vai sofrer muito. Por que isso teve de acontecer? Sergei não vai permitir que ela se una a esse gaji. Sergei, envolvido pela música, não notou. Rodolfo, admirado, perguntou:
- Felipe, o que está acontecendo aqui?
- Parece ser uma festa cigana.
- Ciganos? Aqui na fazenda?
- Parece que sim, Rodolfo. Vamos nos aproximar. Olhe lá, o vovô está sentado na varanda e parece muito feliz.
Realmente, o avô estava feliz e ficou mais ainda quando os viu chegando. Aproximaram-se e o beijaram.
- Estou feliz que tenham vindo logo hoje.
- O que está acontecendo aqui, vovô? Que festa é essa?
- São os ciganos que estão nos visitando.
- Ciganos vovô?
- Sim, esses ciganos são descendentes dos primeiros que aqui chegaram e sempre voltam. Com a sua chegada, trazem música, alegria e felicidade.
- Nunca soube dessa história de ciganos amigos da família.
- Eu sabia, vovô me contou e até me deu um colar lindo. Disse que foi presente de uma cigana para sua avó.
- Vocês, Felipe e Rodolfo, nada sabem a respeito da história da nossa família. Mas, se quiserem isso poderá ser consertado. Se quiserem, contarei tudo o que sei. Tudo que meu pai e minha avó me contaram, ou melhor, desde a construção desta fazenda, mas não será hoje, porque é dia de festa.
A música parou. Danilo, Júlio e Diva olharam para a varanda e os viram ali. Correram. Danilo foi o primeiro a chegar.
- Mamãe, papai, o que estão fazendo aqui?
Luana abraçou o filho e respondeu:
- Estamos aqui para levá-lo de volta para casa.
- Levar-me de volta? Como pode ser? Não sabem que estou sendo procurado?
- Não está mais... está livre, meu filho, e poderá retomar sua vida, estudar e ser o melhor advogado que este país já teve!
- Livre? Como pode ser?
Luana contou a conversa que teve com o pai de Júlio e o resultado dela. Terminou, dizendo:
- Sinto muito, Júlio, mas, quanto a você, seu pai está inflexível. Ele diz que você merece ser preso, pois traiu tudo em que ele sempre acreditou. Por isso, acho melhor que saia daqui e vá para outro lugar. Embora acredite que, por mais longe que for, ele o achará. Sabe que está aqui e poderá chegar a qualquer momento. Sobre você, Diva, ele nada disse, mas acredito que deva ir embora também.
- Ela não pode ir embora, mamãe!
- Por que não?
- Estamos apaixonados e pretendo me casar com ela.
- Casar?!
- Sim, mamãe, essa é a minha intenção.
- Você nem terminou seus estudos...
- O casamento não me impedirá de continuar estudando, mas, hoje, não é dia para falarmos sobre isso, é dia de festa e a música voltou a tocar! Vamos dançar Diva!
Abraçados, afastaram-se e recomeçaram a dançar. Luana, abismada, olhou para Felipe que sorriu:
- Nosso filho já é um homem, Luana.
- Ele é muito novo, Felipe!
- Que idade tínhamos quando nos casamos?
Ela pensou um pouco, depois sorriu:
- Tem razão, vamos aproveitar essa música maravilhosa e dançar também?
- Ótima idéia, vamos!
- Vamos também, Marília?
- Claro Rodolfo! Adoro dançar!
Logo, todos estavam dançando, felizes. Dançaram, comeram e beberam uma bebida preparada pelos ciganos. Depois, cansados, voltaram para junto do avô. O avô fez um sinal para Zara que se aproximou.
- Zara, estes são Felipe e Luana, pais de Danilo, e estes são Rodolfo e Marília, tios de Danilo. Felipe e Rodolfo são meus netos. Estou admirado com a visita deles. Esta é Zara, esposa do rei dos ciganos, aquele que está tocando violino.
Zara sorriu, estendeu a mão.
- Muito prazer, espero que gostem da festa e aproveitem.
- Aproveitaremos, pode ter certeza, mas, antes, que bebida deliciosa é essa que estamos tomando?
- Nós mesmos a preparamos.
- Como?
- Colocamos milho dentro de uma garrafa com água, depois a enterramos por uma semana. Desenterramos, coamos e temos essa bebida deliciosa.
- Deliciosa, mesmo! Vovô, o senhor não me disse que a cigana que deu o colar para sua avó se chamava Zara?
- Sim, esse era o nome dela. O colar pertencia a sua filha que morreu muito cedo. Como ela gostava muito da minha avó e a considerava como filha, deu-lhe o colar com a recomendação de que nunca deveria se desfazer dele.
- Ainda está na família? Que bom.
- Sim, está comigo e não darei a ninguém. Talvez, quando ficar mais velha, o dê para minha filha ou minha nora.
- Ouvi falar nesse colar. Gostaria muito de vê-lo. Poderia me mostrar, Luana?
- Claro que sim. Pena que não está aqui comigo. Mas vou trazer em outra oportunidade.
- Infelizmente, vamos ficar só um mês. Talvez não dê tempo para voltar. Acredito que ficará para uma próxima vez.
- Eu voltarei na próxima semana e trarei o colar, não é Felipe? Podemos voltar?
Felipe olhou para Luana. Conhecia a mulher. Sabia que quando ela pedia algo, sempre queria receber uma resposta positiva. Respondeu:
- Talvez eu não possa voltar. Sabe que temos muito trabalho no hospital, mas, se quiser, pode voltar com Marília. Você se opõe Rodolfo?
- Claro que não! Até acho bom que Marília saia de casa. Você quer vir, Marília?
- Quero! Embora ainda não tenha conhecido a fazenda, por ser noite, estou adorando!
O avô, feliz e rindo, disse:
- Que bom! Acho que, por um bom tempo, não vou ficar sozinho. Agora, aproveitem a festa, vão dançar!
Obedeceram e foram dançar. Danilo e Diva continuavam dançando com o rosto colado. Júlio e Samara, como os ciganos. Estavam rindo, felizes, quando viram aquele carro preto, tão conhecido, parando junto aos de Felipe e de Rodolfo. Dele desceu o pai de Júlio e mais dois soldados. Todos tremeram principalmente Júlio e Diva. Sabiam que seriam presos. A música parou e todos ficaram olhando para o coronel que se aproximou do meio da roda, impedindo que Júlio ou Diva fugissem. Luana, embora assustada, colocou-se na frente dele e disse:
- O senhor não vai levar seu filho nem minha futura nora!
- Sua nora, uma subversiva?
- Pode ter sido, mas agora não será mais! Vai se casar com meu filho e me dará muitos netos, por isso estou dizendo que o senhor não a levará!
Júlio, calado, ficou olhando para o pai. Conhecia aquele rosto, sabia o que ele era capaz de fazer por aquilo em que acreditava. O pai, ignorando Luana, olhou para o filho e perguntou:
- Está tudo bem com você?
- Até agora, estava. O senhor vai me levar?
- O que acha que vim fazer aqui?
- Levar-nos, mas para quê? Em nome dessa Ditadura ridícula, sejamos presos e torturados? Entretanto, devo lhe dizer que, façam o que fizerem, não mudaremos de idéia. Um dia, tudo isso vai terminar e voltaremos a ser um país livre, com democracia, onde todos poderão falar o que tiverem vontade!
- Você é mesmo atrevido, não é?
- Sou seu filho! Queria que eu fosse como? O senhor acredita na sua luta e eu na minha!
- Fique sabendo que essa ridícula Ditadura, como você diz, só terminará no dia em que quisermos. Nesse dia, entregaremos o país aos civis e talvez você se decepcione. Só chegamos até aqui, por culpa daqueles que se acharam donos do país e se deixaram envolver pela corrupção, roubando o dinheiro público. Todavia, não estou aqui para isso. Não quero discutir política. Vim para ver você. Conversei com essa senhora e ela me fez ver muitas coisas. Você é meu filho e eu, embora possa não parecer, o amo muito e quero que seja feliz. Entendi que, como pai, eu o decepcionei, mas, daqui para frente, tentarei mudar e dar a você e a sua mãe o amor, carinho e respeito que merecem e, embora não esteja acostumado, vou procurar respeitar suas opiniões. Só não posso garantir que não será preso, pois, se isso acontecer, nada poderei fazer... por isso, não pode continuar aqui. Precisa ir para outro lugar. Quanto à política, continue lutando por aquilo em que acredita e eu farei o mesmo. Agora, venha cá...
Abriu os braços, Júlio, sem conseguir disfarçar a emoção, abraçou-se ao pai e aqueles dois homens tão lutadores, choraram como criança. Júlio não acreditou que aquilo estava acontecendo. A última vez em que seu pai o havia abraçado, ele deveria ter dez anos. Daí para frente, sempre manteve uma distância significativa. Tudo piorou, quando seu pai descobriu que ele não queria mais ser marinheiro, por discordar do que as forças armadas fizeram com o país. Depois do abraço, separaram-se, olhou para Luana, que sorriu. Voltou a olhar para o pai:
- Não tenho para onde ir, papai, pois sei que não há como fugir. Em qualquer lugar serei achado. A prova é que o senhor me encontrou aqui, tão distante.
Sergei, que acompanhava a conversa e ao ver o olhar de desespero de Samara e de Zara, disse:
- Desculpem-me pela interrupção, mas, se você quiser, Júlio pode nos acompanhar. Tenho certeza de que ao nosso lado estará seguro.
O pai de Júlio, admirado, perguntou:
- Faria isso pelo meu filho?
- Sim, em nome da grande amizade que existe há muito tempo em nossas famílias. Ele não é cigano, mas, segundo sei, o primeiro Felipe desta família, embora também não o fosse, se tornou um. Será um prazer ter você ao nosso lado, Júlio.
Júlio não conseguia acreditar que aquele homem que estava ali fosse o pai que conhecia até então. Olhou para Luana e disse:
- Só mesmo a senhora poderia fazer com que meu pai mudasse. Nem mesmo minha mãe conseguiu. O que falou para ele?
- Somente o quanto eu amava meu filho e que ele deveria amar o seu.
O Coronel sorriu:
- Falando em sua mãe, olhe quem está ali.
Voltaram-se para onde ele apontava e a mãe de Júlio, chorando, se aproximava. Abriu os braços e ele se aconchegou a ela num abraço saudoso e feliz.
- Meu filho, que bom que esteja bem. Eu estava tão preocupada... não sabia por onde você andava. Minha paz só voltou quando a doutora Luana foi em casa e me disse que você estava bem. Depois que ela saiu, tentei conversar com seu pai, mas como ele sempre fez, não permitiu que eu me intrometesse em política. Fui obrigada a sair de casa.
- A senhora saiu de casa?
- Sim. Depois de ver a altivez com que a doutora Luana defendia o filho, não restou outra solução.
- Foi isso mesmo que aconteceu. Ela saiu de casa, o que me fez pensar em toda a minha vida. Em como tenho sido intransigente com vocês dois. Nunca permiti que se expressassem que dessem opinião. Como a doutora disse, além de Coronel, sou seu pai. Por isso, estou aqui.
- Isso não tem mais importância, Coronel. O importante é que, agora, está tudo bem e você poderá continuar livre, Júlio. Desejo que seja muito feliz. Quanto a minha futura nora, o que o senhor pretende fazer com ela?
- A senhora não perde tempo, não é?
- Claro que não, assim como está protegendo seu filho, preciso proteger o meu.
- A senhora não disse que ela lhe dará muitos netos?
- Sim. Assim sendo, não terá mais tempo de tentar destruir o nosso governo. O meu único desejo é que sejam felizes e que realmente tenham muitos filhos.
Luana, para o espanto dele, não se conteve. Abraçou-o fortemente e beijou seu rosto. Felipe e os outros que a conheciam sabiam que só ela seria capaz de mudar o pensamento de um homem como aquele. Sorriram. Sergei voltou a tocar aquela música tão conhecida. A mãe de Júlio pegou o marido pela mão e o conduziu para o meio do pátio. Começaram a dançar em volta da fogueira. Isso aconteceu com todos os ciganos e trabalhadores da fazenda que, felizes, rodopiavam, como se estivessem em um grande salão. Dançaram, comeram e beberam a noite toda. Luísa e Tobias também dançavam. Ela disse:
- Tobias, quando cheguei aqui neste pátio, senti um arrepio de horror, não entendi o motivo. Nunca estive aqui.
- Estranho, também senti o mesmo. Meu coração chegou a doer, Luísa.
- Não entendi o que aconteceu, mas, agora, estamos bem. Sinto que aqui, seremos felizes. Esta fazenda é maravilhosa. Não entendo, mas me sinto como se, finalmente, tivesse voltado para casa.
- Estranho... estou tendo essa mesma impressão... será que já vivemos aqui, Luísa?
- Não sei Tobias, mas estou me lembrando muito daquilo de que sua tia fala...
- Reencarnação?
- Sim, só ela explicaria isso que estamos sentindo.
Tobias ficou pensando. Luana se aproximou:
- Então, como estão se sentindo?
- Muito bem, doutora. Eu e o Tobias estávamos falando exatamente isso. Estamos nos sentindo tão bem que parece que voltamos para casa.
- Que bom que se sintam assim. Espero que, daqui para frente, sejam felizes. São muito jovens e já sofreram tanto.
- Só não sabemos no que vamos trabalhar.
- Não se preocupem. Aqui terão tudo do que precisam para ser felizes.
Agora é noite e não dá para ver nada, a não ser esse céu maravilhoso com todas essas estrelas. Além do mais, vamos aproveitar a festa e dançar. Vamos?
Sorrindo, eles a acompanharam. Ela pegou Felipe pela mão e saíram rodopiando. Marcela e Samuel também dançavam felizes. O dia estava clareando quando, cansados, foram se acomodando. Os mais velhos ficaram com os quartos. Os mais novos deitaram-se em redes penduradas na varanda.

CONHECENDO A HISTÓRIA

No dia seguinte, estavam todos cansados. O Coronel queria ir embora, mas foi convencido por Luana a ficar ali por mais dois dias. Ele concordou e, ao lado da mulher, do filho e de Samara, foi conhecer a fazenda. Os casais foram se formando e também passeavam por ali. Foram até o riacho. Felipe e Júlio fizeram barquinhos de jornal, colocaram-nos na água e corriam, acompanhando-os. Estavam felizes. A paz havia voltado não só à casa de Luana, como à de Júlio também. Após o almoço, o avô foi se deitar. Quando se levantou, encontrou Luana e Marília, sentadas nas cadeiras da varanda, conversando. Sentou-se ao lado delas. Luana, olhando para as montanhas, disse:
- Por mais que eu olhe tudo aqui, não me canso. Este lugar é maravilhoso e pensar que sempre pertenceu a nossa família. Quanta história deve ter acontecido aqui.
- Tem razão, minha filha. Muita história aconteceu.
- Vai nos contar vovô?
- Somente o que sei.
- Conte vovô, estou curiosa.
O avô respirou fundo e começou a contar:
- Meu bisavô, que era um português rico e poderoso, veio para o Brasil. Trouxe, com ele, sua esposa, Matilde, seus filhos, Maria Luísa e Rodolfo, e Rosa Maria, uma amiga de Maria Luísa que ficou órfã, por causa de uma febre que atingiu toda a vila onde moravam. Minha avó dizia que muitas pessoas morreram. Como naquele tempo o café era muito valorizado, ele construiu esta fazenda e comprou muitos escravos. Minha avó, Rosa Maria, casou-se com Rodolfo, meu avô. Não sei qual foi o motivo, porque nunca me contaram, minha avó foi parar em um acampamento cigano, onde meu pai nasceu. Quando voltaram para a fazenda, ele estava com dez anos. Meu avô, Rodolfo, e meu pai, Felipe, eram atuantes. Meu avô, mesmo antes da abolição, libertou seus escravos. Lutaram muito contra os outros fazendeiros para que a abolição fosse proclamada. Depois, fizeram o mesmo pela República. Lutaram, também, contra toda e qualquer injustiça. Acreditando no que diz Severina, acho que são aqueles espíritos lutadores pelo bem e pela justiça e que sempre voltam. Minha avó dizia que via um espírito que sempre aparecia nos momentos difíceis ou de felicidade. O nome dele era Felipe. Foi por causa dele que ela deu o nome para o meu pai que, depois, o deu a mim.
- Essa é a história dos Felipes da nossa família?
- Sim. Como os Rodolfos existem por causa do meu avô.
- Que interessante. Nunca imaginei que havia acontecido assim.
- Quando Danilo me disse que estava fugindo da polícia por lutar contra a Ditadura, vi meu pai falando. Naquele momento, tive a certeza de que ele é a reencarnação dele.
- Será?
- Tenho certeza, Danilo é o retrato vivo do meu pai.
O avô continuou:
- Meu pai se apaixonou por uma negra, disseram que era linda. Meu pai nunca soube o que aconteceu realmente. Não sabia se ela tinha sido jogada na linha do trem, por escravocratas, quando ele se aproximava, ou se havia se jogado. Não a conheci, mas minha avó me criou com todo carinho e amor. Meu pai amava esta fazenda e pediu que eu nunca me desfizesse dela. Prometi e cumpri. Agora que estou velho e que o mundo mudou tanto, não sei o que vocês farão. Gostaria muito que continuassem com ela, mas sei também que, por morarem longe e terem suas vidas, isso se tornará inviável. Enfim... cumpri minha parte...
Luana, que conhecia as intenções de Felipe e Rodolfo, mentiu:
- Não se preocupe com isso, a fazenda não será vendida, continuará na nossa família.
- Espero que esteja dizendo a verdade. Mas, se não for possível, não se preocupe, minha filha. Aprendi que não somos donos de nada. Tudo o que conseguimos, durante a nossa vida, é um empréstimo de Deus. Quando retornamos para a casa do nosso Pai, tudo fica aqui. Marília, percebendo que ele estava emocionado, para mudar de assunto, disse:
- Que linda história, Luana. Nem parece que aconteceu mesmo.
- Mas aconteceu, sim. Sabe de uma coisa, Marília, enquanto vovô contava, parecia já conhecer essa história. Segundo a sua doutrina, se Danilo foi seu pai, quem acha que eu poderei ter sido, vovô?
- Não posso afirmar, mas desde que a conheci, achei que fosse a reencarnação da minha avó, Rosa Maria. Foi por isso que lhe dei o colar que era dela.
- Será, vovô?
- Não sei, mas, de qualquer maneira, quem fomos ontem não importa o que importa é quem somos e você, tendo ou não sido Rosa Maria, hoje é uma grande mulher e eu sou muito feliz por ter se casado com o meu neto. Ele é um bom rapaz, merecia uma mulher como você.
- Obrigada. Eu é que me sinto honrada por poder pertencer a uma família como esta.
O avô voltou-se para Marília:
- Estou feliz por você também pertencer a nossa família, Marília.
- Também sou feliz por esse motivo.
- Preciso me penitenciar por, durante tanto tempo, ter duvidado e ficado tão distante de você, Marília. Perdão...
- Não tenho o que perdoar Luana. Gosto de você. Só não estou gostando de uma coisa.
- Do quê?
- Se você foi Rosa Maria, será que foi casada com o meu Rodolfo?
- Agora quem não sabe responder sou eu, mas, se fui não se esqueça de que eu ficava sonhando e vendo Felipe a todo instante, mesmo que não estivesse vivo. Como o vovô disse, o que passou não importa o que importa é o momento e estou muito feliz. Meu filho está feliz, minha filha, embora com alguns problemas, também encontrará o seu caminho. Tenho Felipe a quem amo com devoção e vocês como amigos. Que mais posso querer? Mas, vovô, será que todos fizemos parte da história da família?
- Tenho quase certeza que sim, pois aprendi que, durante a vida, sempre nos encontramos com amigos e inimigos para que possamos juntos, continuar a nossa jornada.
- Que bom seria se isso fosse verdade.
- Quem pode dizer que não é, Luana?
- Tem razão, ninguém pode afirmar com certeza que a reencarnação não existe e, se ela existir, que bom que eu tenha sido Rosa Maria, gostei muito dela.
Danilo, Felipe e Rodolfo conversavam sentados em um banco no pátio. Assim que os viu conversando na varanda, aproximaram-se. Danilo disse:
- Que bom que estão aqui. Mamãe estive conversando com papai e tomei uma decisão.
- Qual? Já sei, quer se casar amanhã!
- Não, mamãe Será no mês que vem, mas não é sobre isso que quero falar.
- Sobre o quê, então?
- Sobre uma conversa que tive com papai e o tio Rodolfo. Um dia, eles disseram que o único que poderia cuidar da fazenda seria eu. Naquele dia, fiquei nervoso e disse que não queria, mas, hoje, mudei de idéia. Quero ficar aqui, cuidar de tudo, voltar a plantar café e ver esta fazenda exuberante como já foi um dia.
- Estou feliz por isso, mas e os seus estudos?
- Na cidade, tem uma Faculdade de Direito. Basta eu trazer o meu carro e fazer a minha transferência, continuarei estudando e cuidando da fazenda também.
O avô, que acompanhava a conversa, disse, rindo:
- Eu sabia que a minha fazenda não ia morrer! Sabia que meu pai voltaria para cuidar dela!
Eles, ao ouvirem o que ele disse, pensaram ser por causa da velhice. Marília, olhando para Luana, sorriu. Samuel conversou com os pais de Marcela e resolveram que se casariam dali a um mês. Combinaram com Danilo e Diva que o casamento seria no mesmo dia. Sergei chamou Júlio. Perguntou:
- Deseja mesmo seguir ao nosso lado?
- Sim.
- Quero lhe avisar que nossa vida, apesar de parecer fácil, não é.
- Isso não me importa. Além do mais, amo Samara e quero me casar com ela.
- Sabe que isso é impossível. Você não é cigano.
- Mas posso me tornar. Farei qualquer coisa que me pedir para ficar ao lado dela. Sergei olhou para Samara e Zara que, aflitas, também olhavam para ele. Disse:
- Sei que minha filha também gosta de você. Embora não seja o normal, você seguirá conosco e, se depois de um ano, ainda quiser ser um cigano e eu achar que pode, voltaremos a conversar.
- Tenho certeza de que o senhor me aceitará.
Olhou para Samara e sorriu. Ela, entendendo o recado, sorriu também. Depois que os dois dias passaram, todos voltaram para casa e para seus afazeres. Danilo ficou triste ao saber que o menino de quem tanto havia gostado falecera, mas, ao mesmo tempo, sabia que ele não teria muitas oportunidades na vida. Tobias foi contratado como capataz e começou o plantio do café. Com a ida de Marcela para a Capital, Luísa ficou no seu lugar, ajudando Severina a cuidar da casa. O avô estava feliz, pois sabia que sua fazenda ia renascer.

EPÍLOGO

Assim que chegou a casa, Luana foi até o quarto de Jerusa que estava deitada em sua cama. Aproximou-se:
- Como você está Jerusa?
- Triste, mamãe, muito triste... eu gosto mesmo dele...
- Entendo o que está passando. Você é jovem, portanto, sonhadora. Como todo ser humano, sempre escolhe o caminho mais difícil e quer aquilo que lhe é considerado impossível. Com o tempo, tudo isso passará. Vai se apaixonar muitas vezes até encontrar aquele que será seu companheiro. Até lá, continue estudando, se preparando para a vida. Agora, vou lhe contar o que aconteceu na fazenda. Contou tudo. Terminou, dizendo:
- Danilo vai se casar com Diva daqui a um mês. A festa vai ser na fazenda.
- Não diga mamãe! Quando trouxe Diva aqui para casa, jamais poderia imaginar que terminaria assim.
- Estive conversando muito com Marília e com o vovô que seguem a mesma doutrina. Segundo eles, nada do que acontece em nossa vida é por acaso. Está tudo programado. Só nos resta seguir ou não a estrada que se abre diante de nós.
- Acredita nisso, mamãe?
- Estou começando a acreditar. Não foi só você ter encontrado Diva, mas Danilo ter que fugir para a fazenda e conhecê-la, se apaixonar e querer tomar conta dela. Quando ele teve de fugir, fiquei desesperada, não imaginava que havia sido para o melhor.
- Tem razão...
- Agora, vamos nos preparar para o casamento. Quero uma festa linda!
- Vamos, mamãe. A senhora me convenceu de que preciso continuar minha vida. Desejo, sinceramente, que Tobias e Luísa sejam felizes.
Luana sorriu. Beijou a filha e saiu do quarto. Obrigada, meu Deus, por ter feito Jerusa entender. Os dias passaram. O mês passou. O dia do casamento chegou. Todos foram para a fazenda. A festa, preparada por Severina e a mãe de Marcela, foi linda. Os ciganos continuaram ali. Só iriam embora depois do casamento. Em um altar improvisado no pátio da casa grande, Danilo e Diva se casaram. A festa, como não poderia deixar de ser, foi linda. Houve muita música, tocada por Sergei, dança e comida. Luana estava feliz. Mais feliz ficou quando viu Júlio abraçado ao pai, conversando e rindo alegremente. Sua mãe olhou para Luana, que os observava e disse baixinho:
- Obrigada.
Luana sorriu. Olhou para o morro das cruzes e também disse baixinho:
- Obrigada a todos vocês que vieram antes de nós.
Serafina também estava feliz por ver a fazenda viva novamente. Sentiu uma vontade imensa de ir até o seu quarto. Assim que entrou, viu o quarto se iluminar. Sabia que pai Joaquim a estava visitando. Sorriu, e ficou olhando para a luz. Logo ele, sorrindo, e Matilde apareceram:
- Tudo bem com você, Serafina?
- Sim, véio. Agora parece que está tudo em paz.
- Sim, Severina, o passado ficou para trás. Marcela, Jerusa e a sinhazinha Maria Luísa foram resgatadas pelo amor dos amigos. Estão felizes, cada uma cumprindo sua missão e caminhando para a Luz. Só podemos agradecer a Deus por toda essa felicidade. O menino Danilo e a menina Diva, embora tenham sido impedidos, finalmente estão juntos e poderão seguir caminhando um ao lado do outro.
- Agora, podemos ir embora, Matilde. Nosso trabalho aqui terminou. Você trabalhou muito bem.
- Nada fiz além de acompanhar os meus queridos. Também estou feliz por eles. Apesar do passado, estão todos bem. Tomara que não se desviem do caminho.
- Tomara. Neste instante, estão vivendo um momento mágico e, por isso, o passado não importa. O que importa é o futuro e a caminhada de cada um. Até uma próxima vez, Severina.
- Até, véio, que sua luz aumente sempre mais.
Pai Joaquim sorriu, pegou na mão de Matilde e desapareceram. Severina deitou-se na cama e disse baixinho:
- Que Deus os acompanhe.



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