sexta-feira, 7 de outubro de 2011 By: Fred

<> livros-loureiro <> anexo: Vargas Llosa - Os cadernos de Dom Rigoberto

Título: OS CADERNOS DE DOM RIGOBERTO
Autor: MARIO VARGAS LLOSA
Gênero: romance
Título original: Los cuadernos de dom Rigoberto
Tradução: Joana Angélica d'Avila Melo
Editora: Objetiva
Ano da publicação: 2009
Digitalização e correção: José Martins (maio de 2010)
Estado da obra: corrigida
Numeração de páginas: cabeçalho
Número total de páginas: 245.


OS CADERNOS DE DOM RIGOBERTO

MARIO VARGAS LLOSA


Digitalizado e corrigido por J. Martins em Maio de 2010.
Numeração no cabeçalho, 295 páginas.

(c) Morgana Vargas Llosa (foto)


ORELHAS:
Jornalista, dramaturgo, ensaísta e crítico literário, Mario Vargas Llosa
é um dos mais importantes escritores da atualidade. Nascido em Arequipa,
no Peru, em 1936, viveu em Paris na década de 1960 e lecionou em
diversas universidades norte-americanas e européias ao longo dos anos.
Numa incursão ao mundo da política, candidatou-se à presidência do Peru
em 1990, perdendo a eleição para Alberto Fujimori. Autor de uma extensa
obra literária, foi vencedor dos prestigiosos prêmios Cervantes,
Príncipe de Astúrias, PEN/Nabokov e Grinzane Cavour, O autor divide seu
tempo atualmente entre Londres, Paris, Madri e Lima. Dele, a Alfaguara
publicou A cidade e os cachorros, Pantaleão e as visitadoras, Tia julia
e o escrevinhador, A guerra do fim do mundo, Elogio da madrasta e
Travessuras da menina má.

"Dom Rigoberto é um dos
personagens cômicos mais bem-delineados e mais renovadores de Vargas
Llosa." - The New York Times Book Review

Os cadernos de dom Rigoberto é um livro
arrebatador sobre a arte de amar, em suas formas mais variadas e
profundas. Lançado originalmente em 1997, tornou-se um sucesso mundial.
Nele, Vargas Llosa retoma os personagens de seu romance Elogio da
madrasta, de 1988, para narrar uma nova história de paixões e intrigas.
Dom Rigoberto é um homem que leva uma vida dupla. De dia, comporta-se
como um senhor respeitável e de hábitos metódicos. À noite, aproveita as
madrugadas insones para registrar fantasias amorosas em seus cadernos.
Neles, sua ex-mulher, a voluptuosa Lucrecia, ocupa sempre o espaço da
personagem principal. Na vida real, entretanto, dom Rigoberto e dona
Lucrecia estão há tempos sem se encontrar. Desde que descobriu que ela e
Fonchito - filho de seu primeiro casamento - mantinham um tórrido caso
amoroso, ele viu-se obrigado a expulsá-la de casa. Mas Rigoberto não
sabe que foi o filho quem seduziu a madrasta, num plano maquiavélico
para afastá-la de suas vidas. Agora, o destino de Lucrecia e dom
Rigoberto está prestes a mudar. Fonchito, misteriosamente, põe em
operação um plano para voltar a unir o casal. Mesmo sem descobrir o que
o menino pretende, Lucrecia se deixa levar por essa nova artimanha que a
colocará, mais uma vez, em contato com o que mais desejou.

(c) Mario Vargas Llosa, 1997

Todos os direitos desta edição reservados à Editora Objetiva Ltda.
Rua Cosme Velho, 103 Rio de Janeiro - RJ - Cep: 22241-090
Tel: (21) 2199-7824-
Fax: (21) 2199-7825
www.objetiva.com.br

Título original
Los cuadernos de dom Rigoberto

Capa Raul Fernandes
Imagem de capa Barnaby Hall/Getty Images

Ilustrações Egon Schiele
Preparação de originais Elisabeth Xavier de Araújo
Revisão Tamara Sender Rodrigo Rosa Héllen Corrêa

Editoração eletrônica Abreu's System Ltda.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE
LIVROS, RJ V426c Vargas Llosa, Mario

Os cadernos de dom Rigoberto / Mario Vargas Llosa ; tradução Joana
Angélica d'Avila Melo. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2009.

Tradução de: Los cuadernos de don Rigoberto

295p. ISBN 978-85-60281-83-1
1. Romance peruano. I. Melo, Joana Angélica d'Avila II. título. 09-2786.
CDD: 868. 99353 CDU: 821.134.2(85)-3

O homem, um deus quando sonha, e apenas um mendigo quando pensa.

HÖLDERLIN, Hipérion

Não posso manter um registro de minha vida por minhas ações; o acaso as
situou demasiado baixo: mantenho-o por minhas fantasias.

MONTAIGNE

I. O RETORNO DE FONCHITO

Chamaram à porta, dona Lucrecia foi abrir e viu emoldurada no vão, sobre
o fundo das árvores retorcidas e grisalhas do Olivar de San Isidro, a
cabeça de cachos dourados e os olhos azuis de Fonchito. Tudo começou a
girar. - Estava com muita saudade, madrasta - entoou a voz que ela
recordava tão bem. - Continua aborrecida comigo? Vim pedir perdão. Me
perdoa? - Você, você? - Agarrada à maçaneta, dona Lucrecia buscava apoio
na parede. - Não tem vergonha de se apresentar aqui? - Escapuli da
academia - insistiu o menino, mostrando seu caderno de desenho e seus
lápis de cor. - Estava com muita saudade, sério. Por que você ficou tão
pálida? - Meu Deus, meu Deus - cambaleou dona Lucrecia, deixando-se cair
no banco imitação de colonial, contíguo à porta. Cobria os olhos, branca
como um papel. - Não morra! - gritou o menino, assustado. E dona
Lucrecia, sentindo-se desfalecer, viu a figurinha infantil transpor o
umbral, fechar a porta, cair de joelhos aos seus pés, pegar suas mãos e
massageá-las, com expressão aturdida: "Não morra, não desmaie, por
favor." Fez um esforço para se dominar e recuperar o controle. Respirou
fundo, antes de falar. E o fez devagar, sentindo que a qualquer momento
sua voz se embargaria: - Não foi nada, já estou bem. Ver você aqui era a
última coisa que eu esperava. Como se atreve? Não tem remorso? Sempre de
joelhos, Fonchito tentava lhe beijar a mão. - Diga que me perdoa,
madrasta - implorou. - Diga, diga. A casa não é mais a mesma desde que
você foi embora. Vim espiá-la um monte de vezes, na saída da aula.
Queria tocar, mas não me atrevia. Nunca vai me perdoar?
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- Nunca - respondeu ela, com firmeza. - Nunca perdoarei o que você fez,
malvado. Mas, contradizendo as próprias palavras, seus grandes olhos
escuros reconheciam com curiosidade e certa complacência, talvez até com
ternura, a encaracolada desordem daquela cabeleira, as veiazinhas azuis
do pescoço, as bordas das orelhas assomando entre as mechas louras, o
corpinho gracioso, embutido no paletó azul e na calça cinza do uniforme.
Suas narinas aspiravam aquele odor adolescente de partidas de futebol,
de caramelos frutados e sorvetes d'Onofrio, e seus ouvidos reconheciam
aqueles guinchos agudos e as mudanças de voz, que ressoavam também na
sua memória. As mãos de dona Lucrecia se resignaram aos molhados beijos
de passarinho daquela boquinha: - Gosto muito de você, madrasta - disse
Fonchito, fazendo beicinho. - E, mesmo que você não acredite, o papai
também. Nisto apareceu Justiniana, ágil silhueta cor de canela envolta
em um avental florido, lenço na cabeça e espanador na mão. Ficou
petrificada no corredor que levava à cozinha. - Menino Alfonso -
murmurou, incrédula. - Fonchito! Não posso acreditar! - Imagine,
imagine! - exclamou dona Lucrecia, empenhada em mostrar uma indignação
superior à que sentia. - Atreve-se a vir a esta casa. Depois de arruinar
minha vida, de dar aquela punhalada em Rigoberto. Pedindo que eu o
perdoe, derramando lágrimas de crocodilo. Já viu desfaçatez igual,
Justiniana? Mas nem sequer agora arrebatou a Fonchito os afilados dedos
que ele, estremecido pelos soluços, continuava beijando. - O senhor tem
de ir embora, menino Alfonso - disse a empregada, tão confusa que, sem
perceber, mudou o tratamento habitual: - Você não vê como deixou a
patroa amofinada? Saia, vá, Fonchito. - Eu vou se ela disser que me
perdoa - rogou o menino, entre suspiros, a cara nas mãos de dona
Lucrecia. - Nem sequer me cumprimenta e já começa me insultando,
Justita? O que eu lhe fiz? Pois se eu também gosto muito de você, se
chorei a noite inteira no dia em que você foi embora lá de casa!
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- Cale a boca, mentiroso, não acredito nem um tiquinho. - Justiniana
alisava os cabelos de dona Lucrecia. - Trago um lencinho com álcool,
patroa? - Prefiro um copo d'água. Não se preocupe, já estou melhor. Ver
este melequento aqui me transtornou toda. E por fim, sem brusquidão,
retirou suas mãos das de Fonchito. O menino continuava aos seus pés, já
sem chorar, contendo a duras penas novos beicinhos. Tinha os olhos
vermelhos e as lágrimas lhe haviam marcado sulcos nas bochechas. Um fio
de saliva pendia de sua boca. Através da neblina que lhe velava os
olhos, dona Lucrecia espiou o nariz de linhas finas, os lábios bem
desenhados, o queixinho altivo e sua covinha, os dentes tão brancos.
Teve vontade de esbofetear, de agadanhar aquela carinha de Menino
Jesus. Hipócrita! Judas! E até de mordê-lo no pescoço e de lhe chupar o
sangue, como um vampiro. - Seu pai sabe que você veio aqui? - Que idéia,
madrasta - respondeu no ato o menino, em um tonzinho confidencial. -
Sabe lá o que ele me faria? Nunca fala de você, mas eu sei muito bem que
tem saudade. Não pensa em outra coisa, dia e noite, juro. Vim escondido,
escapuli da academia. Vou três vezes por semana, depois do colégio. Quer
que eu lhe mostre meus desenhos? Diga que me perdoa, madrasta. - Não
diga, e mande esse garoto embora, patroa. - Justiniana retornava com um
copo d'água; dona Lucrecia bebeu vários goles. - Não se deixe enrolar
por essa cara bonita. Ele é Lúcifer em pessoa, a senhora sabe. Vai lhe
fazer outra maldade, pior do que a primeira. - Não diga isso, Justita. -
Fonchito pareceu prestes a cair de novo no choro. -Juro que estou
arrependido, madrasta. Não me dei conta do que fazia, por todos os
santos. Não quis que acontecesse nada. Eu ia querer que você saísse lá
de casa? Que eu e o papai ficássemos sozinhos? - Eu não saí de casa -
repreendeu-o dona Lucrecia, entre dentes. - Rigoberto me expulsou como
se eu fosse uma puta. Por culpa sua! - Não diga nome feio, madrasta. - O
menino ergueu as mãos, escandalizado. - Não diga, não lhe fica bem.
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Apesar da dor e da raiva, dona Lucrecia esteve a ponto de sorrir. Não
lhe ficava bem dizer palavrões! Garotinho perspicaz, sensível?
Justiniana tinha razão: uma víbora com cara de anjo, um Belzebu. O
menino teve uma explosão de júbilo: - Está rindo, madrasta? Então, me
perdoou? Diga que sim, diga, madrasta. Batia palmas, e em seus olhos
azuis a tristeza se dissipara e relampeava uma luzinha selvagem. Dona
Lucrecia notou que nos dedos dele havia manchas de tinta, e se
emocionou a contragosto. Iria desmaiar de novo? Que coisa. Viu-se no
espelho da entrada: havia composto sua expressão, um leve rubor lhe
coloria as faces, seu peito agitado subia e descia. Em um movimento
maquinal, fechou o decote do robe. Como podia Fonchito ser tão
descarado, tão cínico, tão retorcido, sendo tão criança? Justiniana lia
seus pensamentos. Olhava para ela como se dissesse: "Não seja fraca,
patroa, não vá perdoar este moleque. Não seja tão boba!" Disfarçando seu
embaraço, dona Lucrecia bebeu mais uns golinhos de água; estava fria e
lhe fez bem. O menino se apressou a pegar a mão dela que estava livre e
a beijá-la de novo, loquaz: - Obrigado, madrasta. Você é muito boa, eu
já sabia, por isso me atrevi a tocar. Quero lhe mostrar meus desenhos. E
conversar sobre Egon Schiele, a vida e as pinturas dele. Contar o que
vou ser quando crescer, e mil coisas. Já adivinhou? Pintor, madrasta! É
o que eu quero ser. Justiniana balançava a cabeça, alarmada. Lá fora,
motores e buzinas aturdiam o entardecer de San Isidro. Através das
cortininhas fixadas às vidraças da sala de jantar, dona Lucrecia
divisava os ramos desnudos e os troncos nodosos das oliveiras, uma
presença que se tornara amiga. Já chegava de debilidades, era hora de
reagir. - Bom, Fonchito - disse, com uma severidade que seu coração já
não lhe exigia. - Agora, faça o que estou pedindo. Vá embora, por favor.
- Sim, madrasta. - O menino saltou de pé. - O que você mandar. Sempre
vou fazer sua vontade, sempre vou lhe obedecer em tudo. Você vai ver só
como vou me comportar bem.
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Tinha a voz e a expressão de quem se livrou de um peso e fez as pazes
com a própria consciência. Uma mecha de ouro lhe varria a testa, e seus
olhos faiscavam de alegria. Dona Lucrecia o viu meter a mão no bolso
traseiro, puxar um lenço, assoar o nariz; e, depois, recolher do chão a
mochila, a pasta de desenhos e o estojo de lápis. Com tudo isso às
costas, ele recuou sorridente até a porta, sem tirar os olhos de dona
Lucrecia e Justiniana. - Assim que puder, fujo de novo para vir
visitá-la, madrasta - trinou, já do umbral. - E você também, Justita,
claro. Quando a porta da rua se fechou, as duas permaneceram imóveis e
sem falar. Dali a pouco, dobraram ao longe os sinos da Virgen del Pilar.
Um cachorro latiu. - É incrível - murmurou dona Lucrecia. - Ele ter tido
a audácia de se apresentar nesta casa. - Incrível é sua bondade -
retrucou a empregada, indignada. - Já o perdoou, não foi? Depois da
tramóia que ele lhe preparou para armar aquela sua briga com o patrão.
A senhora vai direto para o céu, patroa! - Nem sequer é certo que tenha
sido uma tramóia, que aquela cabecinha tenha planejado o que aconteceu.
Ia andando para o banheiro, falando sozinha, mas ouviu que Justiniana a
corrigia: - Claro que ele planejou tudo. Fonchito é capaz das piores
coisas, a senhora ainda não se deu conta? "Pode ser", pensou dona
Lucrecia. Mas era um menino, um menino. Não era? Sim, pelo menos disso
não havia dúvida. No banheiro, molhou a testa com água fria e se
examinou ao espelho. A perturbação lhe afilara o nariz, que palpitava
ansioso, e umas olheiras azuladas rodeavam seus olhos. Pela boca
entreaberta, via a pontinha da lixa em que se transformara sua língua.
Recordou as lagartixas e os iguanas de Piúra; tinham sempre a língua
ressecada, igual à dela agora. O aparecimento de Fonchito em sua casa a
levara a se sentir petrificada e antiga como essas reminiscências
pré-históricas dos desertos do Norte. Sem pensar, em um ato mecânico,
desatou o cinto e, ajudando-se com um movimento dos ombros, livrou-se
do robe; a seda deslizou pelo seu corpo até o chão, em uma carícia
sibilante. Achatado e redondo, o tecido lhe cobria o peito dos pés,
como uma flor gigante.
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Sem que ela soubesse o que fazia nem o que ia fazer, respirando ansiosa,
seus pés transpuseram a fronteira de roupa que os circundava e a levaram
ao bidê, onde se sentou, depois de baixar a calcinha de renda. O que
estava fazendo? O que ia fazer, Lucrecia? Não sorria. Tentava inspirar
e expelir o ar com mais calma, enquanto suas mãos, independentes,
abriam as torneiras, a quente, a fria, e as mediam, misturavam,
graduavam, subiam ou baixavam o repuxo morno, ardente, frio, fresco,
débil, impetuoso, saltitante. A parte inferior do seu corpo se
adiantava, retrocedia, inclinava-se à direita, à esquerda, até encontrar
a posição devida. Aí. Um estremecimento percorreu sua espinha dorsal.
"Talvez ele nem percebesse, talvez fizesse aquilo sem motivo", repetiu a
si mesma, compadecida daquele menino a quem tanto maldissera nos
últimos seis meses. Talvez ele não fosse mau, talvez não. Travesso,
malicioso, metido, irresponsável, mil coisas mais. Malvado, porém, não.
"Talvez não." Os pensamentos rebentavam em sua cabeça como as borbulhas
de uma panela fervente. Recordou o dia em que conhecera Rigoberto, o
viúvo de grandes orelhas budistas e nariz desavergonhado com quem se
casaria pouco depois; a primeira vez em que vira seu enteado, querubim
vestido de marinheirinho - conjunto azul, botões dourados, gorrinho com
âncora -; as coisas que fora descobrindo e aprendendo, a vida
inesperada, imaginativa, noturna, intensa, na casinha de Barranco que
Rigoberto mandara construir para iniciarem nela sua vida juntos; as
brigas entre o arquiteto e seu marido balizando a edificação daquele que
seria seu lar. Tantas coisas tinham acontecido! As imagens iam e
vinham, se diluíam, se alteravam, se entremeavam, se sucediam, e era
como se a carícia líquida do ágil repuxo lhe chegasse à alma.

INSTRUÇÕES PARA O ARQUITETO

Nosso mal-entendido é de caráter conceitual. O senhor
fez este bonito desenho de minha casa e de minha biblioteca partindo da
suposição - muito difundida, lamentavelmente - de que em um lar o
importante são as pessoas, em vez dos objetos. Não o critico por fazer
seu esse critério, indispensável para um homem de sua profissão que não
se resigne a prescindir dos clientes.
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Mas minha concepção de meu Futuro lar é a oposta. A saber nesse pequeno
espaço construído que chamarei de meu mundo e que meus caprichos
governarão, a prioridade básica caberá aos meus livros, quadros e
gravuras; nós, as pessoas, seremos cidadãos de segunda. São esses quatro
milhares de volumes e a centena de telas e estampas que devem
constituir a razão primordial do desenho que lhe encomendei. O senhor
subordinará a comodidade, a segurança e a conveniência dos humanos às
daqueles objetos. É imprescindível o detalhe da lareira, que deve poder
transformar-se em forno crematório de livros e gravuras excedentes, a
meu critério. Por isso, ela terá de situar-se bem perto das estantes e
ao alcance do meu assento, pois eu gosto de bancar o inquisidor de
calamidades literárias e artísticas sentado, e não de pé. Explico-me.
Os quatro mil volumes e as cem gravuras que possuo são números
inflexíveis. Nunca terei mais, para evitar a superabundância e a
desordem, mas nunca serão os mesmos, pois irão se renovando sem cessar,
até minha morte. Isso significa que, para cada livro que acrescento à
minha biblioteca, elimino outro, e cada imagem - litografia, madeira,
xilografia, desenho, ponta-seca, mixografia, óleo, aquarela etc. - que
se incorpora à minha coleção desloca a menos favorecida entre as demais.
Não lhe escondo que escolher a vítima é árduo e, às vezes, lancinante,
um dilema hamletiano que me angustia durante dias, semanas, e que depois
meus pesadelos reconstroem. No início, eu doava a bibliotecas e museus
públicos os livros e gravuras sacrificados. Agora os queimo, daí a
importância da lareira. Optei por essa fórmula drástica, que elimina o
desassossego de ter de escolher uma vítima com a espinhosa sensação de
estar cometendo um sacrilégio cultural, uma transgressão ética, no dia,
ou melhor, na noite em que, tendo decidido substituir por um formoso
Szyszlo inspirado no mar de Paracas uma reprodução da multicolorida lata
de sopa Campbell's de Andy Warhol, compreendi que era uma estupidez
infligir a outros olhos uma obra que eu passara a considerar indigna dos
meus. Então, joguei-a no fogo. Ao ver aquela cartolina virar torresmo,
experimentei um vago remorso, admito. Agora, isso já não me acontece.
Enviei às chamas dezenas de poetas românticos e indigenistas, assim como
outros tantos artistas plásticos conceituais, abstratos, informalistas,
paisagistas, retratistas e sacros, para conservar o numerus clausus
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de minha biblioteca e pinacoteca, sem dor, e até mesmo com a estimulante
sensação de estar exercendo a crítica literária e de arte como deveria
ser feita: de maneira radical, irreversível e combustível. Acrescento,
para encerrar este aparte, que tal passatempo me diverte, mas não
funciona em absoluto como afrodisíaco, e por isso o tenho como limitado
e menor, meramente espiritual, sem repercussões sobre o corpo. Confio em
que o senhor não tome o que acaba de ler - a preponderância que concedo
a quadros e livros sobre bípedes de carne e osso - por tirada de humor
ou pose de cínico. Não é isso, mas sim uma convicção arraigada,
conseqüência de experiências difíceis, mas, também, muito prazerosas.
Não me foi fácil chegar a uma postura que contradizia velhas tradições -
vamos chamá-las humanísticas, com um sorriso nos lábios - de filosofias
e religiões antropocêntricas, para as quais é inconcebível que o ser
humano real, estrutura de carne e ossos perecíveis, seja considerado
menos digno de interesse e de respeito do que o inventado, o que aparece
(se lhe for mais cômodo, digamos refletido) nas imagens da arte e na
literatura. Poupo-o dos detalhes desta história e o transfiro à
conclusão a que cheguei e que agora proclamo sem rubor. O mundo de
velhacos semoventes do qual o senhor e eu fazemos parte não é o que me
interessa, o que me dá prazer e sofrimento, mas sim essa miríade de
seres animados pela imaginação, pelos desejos e pela destreza artística,
presentes nesses quadros, livros e nessas gravuras que consegui reunir
com paciência e amor de muitos anos. A casa que vou construir em
Barranco, aquela que o senhor deverá desenhar refazendo o projeto do
princípio ao fim, é para eles, mais do que para mim ou para minha
novíssima esposa, ou meu filhinho. A trindade formada pela minha
família, digo-o sem blasfêmia, está a serviço desses objetos e o senhor
também deverá estar, quando, depois de ler estas linhas, se debruçar
sobre a prancheta a fim de retificar aquilo que fez tão mal. O que acabo
de escrever é uma verdade literal, e não uma enigmática metáfora.
Construo esta casa para padecer e me divertir com eles, por eles e para
eles. Faça um esforço por me imitar durante o limitado período em que
trabalhará para mim. Agora, desenhe.
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A NOITE DOS GATOS

Fiel ao encontro marcado, Lucrecia entrou com as sombras, falando de
gatos. Ela mesma parecia uma linda gata angorá sob o rumoroso arminho
que lhe chegava aos pés e dissimulava seus movimentos. Estava nua dentro
de seu invólucro prateado? - Gatos, você disse? - Gatinhos, mais
exatamente - miou ela, dando uns passos resolutos ao redor de dom
Rigoberto, que pensou em um hastado adentrando a arena e medindo o
toureiro. - Nenens, filhotes, bichaninhos. Uma dúzia, talvez mais.
Rebolavam sobre a colcha de veludo vermelho. Encolhiam e esticavam as
patinhas sob o cone de luz crua que, poeira de estrelas, partia do forro
invisível e caía sobre o leito. Um cheiro de almíscar banhava a
atmosfera, e a música barroca, de bruscos diapasões, vinha do mesmo
canto de onde saiu a voz dominante e seca: - Tire a roupa. - De jeito
nenhum - protestou dona Lucrecia. - Eu aí, com esses bichos? Nem morta,
tenho ódio deles. - Queria que você fizesse amor com ele no meio dos
gatinhos? - Dom Rigoberto não perdia uma só das evoluções de dona
Lucrecia pelo tapete macio. Seu coração começava a despertar e a noite
barranquina, a sair da névoa e a viver. - Imagine - murmurou ela,
detendo-se um segundo e retomando seu passeio circular. -- Queria me ver
nua no meio daqueles gatos. Com o nojo que me dão! Fico toda arrepiada
só de me lembrar. Dom Rigoberto começou a perceber as silhuetas felinas,
e seus ouvidos a escutar os débeis miados da miúda gataria. Secretadas
pelas sombras, elas iam assomando, corporificando-se, e na colcha
incendiada, sob a chuva de luz, os brilhos, os reflexos, as pardas
contorções o deixaram tonto. Intuiu que no limite daquelas extremidades
movediças se insinuavam, aquosas, curvas, recém-saídas, as garrinhas. -
Venha, venha cá - ordenou o homem lá do canto, suavemente. Ao mesmo
tempo, deve ter aumentado o volume, porque clavicórdios e violinos
cresceram, golpeando seus ouvidos. Pergolesi!, reconheceu dom Rigoberto.
Entendeu a escolha da sonata;
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o século XVIII não era somente o do disfarce e da confusão de sexos; era
também, por excelência, o dos gatos. E afinal Veneza não tinha sido,
desde sempre, uma república gateira? - Você já estava nua? -
Escutando-se, compreendeu que a ansiedade se apoderava rapidamente do
seu corpo. - Ainda não. Ele me despiu, como sempre. Por que você
pergunta, se já sabe que é disso que ele mais gosta? - E você também? -
interrompeu-a, meloso. Dona Lucrecia riu, com uma risadinha forçada. - É
sempre cômodo ter um criado de quarto - sussurrou, inventando-se um
risonho recato. - Embora, desta vez, fosse diferente. - Pelos gatinhos?
- E por quem mais? Me deixavam nervosíssima. Virei uma pilha de nervos,
Rigoberto. No entanto, havia obedecido à ordem do amante escondido no
canto. De pé ao lado dele, dócil, curiosa e ansiosa, esperava, sem
esquecer por um segundo o punhado de felinos que se exibiam, embolados,
dengosos, entre revoluteios e lambidas, no obsceno círculo amarelo que
os aprisionava no centro da colcha flamejante. Quando ela sentiu as
duas mãos em seus tornozelos, descendo-lhe até os pés e descalçando-os,
seus seios se tensionaram como dois arcos. Os mamilos endureceram.
Meticuloso, o homem agora lhe tirava as meias, beijando sem pressa, com
minúcia, cada pedacinho de pele descoberta. Murmurava coisas que dona
Lucrecia, no princípio, havia entendido como palavras ternas ou
vulgares ditadas pela excitação. - Mas não, não era uma declaração de
amor, não eram as porcarias que às vezes ocorrem a ele - riu-se de novo,
com a mesma risadinha incrédula, detendo-se ao alcance das mãos de dom
Rigoberto. Este não procurou tocá-la. - O quê, então? - balbuciou,
lutando contra a resistência de sua língua. - Explicações, toda uma
conferência felina - voltou ela a rir, entre gritinhos sufocados. -
Sabia que o mel é a coisa que os bichanos mais apreciam no mundo? E que
eles têm no traseiro uma bolsa da qual se extrai um perfume? Dom
Rigoberto farejou a noite com suas narinas dilatadas.
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- É esse u seu cheiro? Não é almíscar, então? - É algália. Perfume de
gato, Estou impregnada. Isso o incomoda? A história lhe escapava,
deixava-o extraviado, ele acreditava estar dentro e se via fora. Não
sabia o que pensar. - E levou os frascos de mel para quê? - perguntou,
temendo um jogo, uma brincadeira, que viessem subtrair formalidade
àquela cerimônia. - Para untar você - disse o homem, parando de
beijá-la. Continuou a despi-la; havia terminado com as meias, o casaco,
a blusa. Agora, desabotoava sua saia. - Eu o trouxe da Grécia, de
abelhas do monte Himeto. O mel de que fala Aristóteles. Guardei-o para
você, pensando nesta noite. "Ele a ama", pensou dom Rigoberto, enciumado
e enternecido. - De jeito nenhum - protestou dona Lucrecia. - Não e não.
Porcaria não é comigo. Falava sem autoridade, com as defesas abaladas
pela contagiosa vontade do amante, no tom de quem se sabe vencida. Seu
corpo havia começado a distraí-la dos guinchos da cama, a vibrar, a
concentrá-la, à medida que o homem a livrava das últimas peças e,
prostrado aos seus pés, continuava a acariciá-la. Ela o deixava agir,
procurando abandonar-se ao prazer assim provocado. Os lábios e mãos
dele espalhavam chamas por onde passavam. Os gatinhos continuavam ali,
pardos e verdosos, letárgicos ou animados, franzindo a colcha. Miavam,
brincando. Pergolesi havia amainado, era uma brisa longínqua, um desmaio
sonoro. - Untar seu corpo com mel de abelhas do monte Himeto? - repetiu
dom Rigoberto, escandindo cada palavra. - Para os gatos me lamberem, já
pensou? Com o asco que essas coisas me provocam, com minha alergia a
gatos, com o nojo que me dá ser lambuzada com algo pegajoso ("Nunca
mascou um chicletes", pensou dom Rigoberto, agradecido), mesmo que seja
a ponta de um dedo. Já pensou? - Era um grande sacrifício, você só o
fazia porque... - Porque amo você - interrompeu-o dona Lucrecia. - E
você também me ama, não é? "Com toda a alma", pensou dom Rigoberto.
Tinha os olhos fechados. Havia alcançado, enfim, o estado de lucidez
plena que buscava.
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Podia se orientar sem dificuldade naquele Labirinto de sombras densas.
Muito claramente, com uma pontinha de inveja, percebia a destreza do
homem que, sem se apressar nem perder o controle dos dedos,
desembaraçava Lucrecia da anágua, do sutiã, da calcinha, enquanto seus
lábios lhe beijavam com delicadeza a carne acetinada, sentindo a
granulação - causada por frio, incerteza, apreensão, asco ou desejo? -
que a enervava e as cálidas exalações que, ao apelo das carícias,
escapavam dessas formas pressentidas. Quando sentiu na língua, nos
dentes e no paladar do amante a crespa mata de pêlos e o aroma picante
dos seus sumos lhe subiu ao cérebro, começou a tremer. Ele teria
começado a untá-la? Sim. Com uma pequena brocha de pintor? Não. Com um
pano? Não. Com suas próprias mãos? Sim. Ou melhor, com cada um dos seus
dedos compridos e ossudos e a sabedoria de um massagista. Espargiam
sobre a pele a substância cristalina - o odor açucarado subia pelas
narinas de dom Rigoberto, deixando-o enjoado - e verificavam a
consistência de coxas, ombros e seios, beliscavam aqueles quadris,
percorriam aquelas nádegas, submergiam naquelas profundezas franzidas,
separando-as. A música de Pergolesi voltava, caprichosa. Ressoava,
abafando os quietos protestos de dona Lucrecia e a excitação dos
gatinhos, que farejavam o mel e, adivinhando o que ia acontecer, haviam
começado a brincar e a guinchar. Corriam pela colcha, as fauces abertas,
impacientes. - Melhor dizendo, famintos - corrigiu-o dona Lucrecia. -
Você já estava excitada? - ofegou dom Rigoberto. - Ele estava nu? Também
espalhava mel pelo corpo? - Também, também, também - salmodiou dona
Lucrecia. - Me untou, se untou, me fez untar suas costas, onde sua mão
não chegava. Muito excitantes esses joguinhos, sem dúvida. Nem ele é um
pedaço de madeira nem você gostaria que eu fosse, não é? - Claro que não
- confirmou dom Rigoberto. - Meu amor. - Nos beijamos, nos tocamos, nos
acariciamos, evidentemente - detalhou sua esposa. Havia retomado a
caminhada circular e os ouvidos de dom Rigoberto percebiam o roçagar do
arminho a cada passo. Estava inflamada, recordando ?
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- Quero dizer, sem nos mover do canto. Um bom tempo. Até que ele me
carregou, e assim, toda melada, me levou para a cama. A visão era tão
nítida, e a definição da imagem, tão explícita, que dom Rigoberto temeu:
"Posso ficar cego." Como aqueles hippies que nos anos psicodélicos,
estimulados pelas sinestesias do ácido lisérgico, desafiavam o sol da
Califórnia até que os raios lhes carbonizavam a retina e os condenavam a
ver a vida com o ouvido, o tato e a imaginação. Ali estavam, azeitados,
porejantes de mel e humores, helênicos em sua nudez, e postura,
avançando em direção à algaravia felina. Ele era um lanceiro medieval
armado para a batalha e ela uma ninfa do bosque, uma sabina raptada.
Movia os áureos pés e protestava "não quero, não gosto", mas seus braços
enlaçavam amorosamente o pescoço do seu raptor, sua língua pugnava por
lhe invadir a boca e, com fruição, sorvia-lhe a saliva. "Espere,
espere", pediu dom Rigoberto. Documente, dona Lucrecia se deteve e foi
como se desaparecesse naquelas sombras cúmplices, enquanto à memória do
seu marido voltava a lânguida jovem de Balthus (Nu avec chat) que,
sentada em uma cadeira, a cabeça voluptuosamente jogada para trás, uma
perna esticada, outra encolhida, o calcanharzinho na beira do assento,
alonga o braço para acariciar um gato deitado no alto de uma cômoda e
que, com os olhos semicerrados, aguarda calmamente seu prazer.
Remexendo, rebuscando, também recordou haver visto, sem prestar muita
atenção, seria no livro do animalista holandês Midas Dekkers?, a Rosalba
de Botero (1968), óleo no qual, agachado em uma cama nupcial, um
pequeno felino negro se apresta a compartilhar lençóis e colchão com a
exuberante prostituta de crespa cabeleira que termina seu cigarro, e
alguma madeira de Félix Valloton (Languor, c. 1896?) em que uma jovem
de nádegas espevitadas, entre almofadões floridos e um edredom
geométrico, coça o erógeno pescoço de um gato em pé. Afora essas
incertas aproximações, no arsenal de sua memória nenhuma imagem
coincidia com aquilo. Sentia-se infantilmente intrigado. A excitação
havia refluído, sem desaparecer; assomava no horizonte de seu corpo
como um desses sóis frios do outono europeu, a época preferida de suas
viagens. - E depois? - perguntou, voltando à realidade do sonho
interrompido. O homem depositara Lucrecia sob o cone de luz e,
desprendendo-se com firmeza daqueles braços que queriam atalhá-lo,

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sem atender às suas súplicas, dera um passo para trás. Como dom
Rigoberto, contemplava-a também da escuridão. O espetáculo era insólito
e, passado o desconcerto inicial, incomparavelmente belo. Depois de se
afastarem, assustados, para lhe abrir espaço e observá-la, agachados,
indecisos, sempre alertas - centelhas verdes, amarelas, bigodinhos
retesados -, farejando-a, os bichinhos se lançaram ao assalto daquela
doce presa. Escalavam, assediavam, ocupavam o corpo lambuzado,
guinchando de felicidade. Sua gritaria abafou os protestos
entrecortados, os apagados meios-risos e exclamações de dona Lucrecia.
Braços cruzados sobre o rosto para proteger a boca, os olhos e o nariz
das afanosas lambidas, ela estava à mercê deles. Os olhos de dom
Rigoberto acompanhavam as irisadas criaturas ávidas, deslizavam com elas
pelos seios e quadris de dona Lucrecia, resvalavam em seus joelhos,
aderiam aos cotovelos, ascendiam por suas coxas e, como aquelas
linguinhas, também se regalavam com a doçura líquida empoçada na lua
bojuda que o ventre dela parecia. O brilho do mel condimentado pela
saliva dos gatos dava às formas brancas uma aparência semilíquida, e os
miúdos sobressaltos que as correrias e reviravoltas dos animaizinhos
provocavam nela tinham algo da branda mobilidade dos corpos na água.
Dona Lucrecia flutuava, era um baixel vivo singrando águas invisíveis.
"Como é bonita!", pensou. Seu corpo de seios duros e quadris generosos,
de nádegas e coxas bem-definidas, ficava naquele limite que ele
admirava acima de todas as coisas em uma silhueta feminina: a abundância
que sugere, esquivando-a, a indesejável obesidade. - Abra as pernas, meu
amor - pediu o homem sem rosto. - Abra, abra - suplicou dom Rigoberto. -
São pequenininhos, não mordem, não lhe farão nada - insistiu o homem. -
Você já estava gozando? - perguntou dom Rigoberto. - Não, não -
respondeu dona Lucrecia, que havia recomeçado o hipnotizante passeio. O
rumor do arminho ressuscitou as suspeitas dele: ela estaria nua, embaixo
do casaco? Sim, estava. - As cócegas me deixavam louca. Mas acabara
consentindo, e dois ou três felinos se precipitaram ansiosamente para
lamber o dorso oculto de suas coxas, as gotinhas de mel que cintilavam
nos sedosos e negros pelos do monte de vênus.

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O coro das lambidas pareceu a dom Rigoberto uma música celestial.
Pergolesí retornava, agora sem força, com suavidade, gemendo baixinho. O
sólido corpo besuntado estava quieto, em profundo repouso. Mas dona
Lucrecia não dormia, pois aos ouvidos de dom Rigoberto chegava a
discreta modorra que, sem que ela o percebesse, escapava de suas
profundezas. - Seu nojo tinha passado? - inquiriu. - Claro que não -
retrucou ela. E, depois de uma pausa, com humor: - Mas já não me
importava tanto. Riu e, desta vez, com o riso aberto que reservava para
ele nas noites de intimidade compartilhada, de fantasia sem freio, que
os fazia ditosos. Dom Rigoberto a desejou com todas as bocas do seu
corpo. - Tire o casaco - implorou. - Venha, venha para os meus braços,
minha rainha, minha deusa. Mas foi distraído pelo espetáculo que nesse
preciso instante se havia duplicado. O homem invisível já não o era. Em
silêncio, seu longo corpo oleoso se infiltrou na imagem. Agora, também
ele estava ali. Deitando-se na colcha vermelha, estreitava-se a dona
Lucrecia. A gritaria dos gatos espremidos entre os amantes, lutando
para escapar, exorbitados, fauces abertas, línguas pendentes, feriu os
tímpanos de dom Rigoberto. Mesmo tapando os ouvidos, ele continuou a
escutá-la. E, apesar de fechar os olhos, viu o homem encarapitado sobre
dona Lucrecia. Parecia afundar naqueles robustos quadris brancos que o
recebiam com regozijo. Ele a beijava com a mesma avidez com que os
gatinhos a tinham lambido e se movia sobre ela, com ela, aprisionado por
seus braços. As mãos de dona Lucrecia lhe oprimiam o dorso, e as
pernas, levantadas, caíam sobre as dele, enquanto os altivos pés
pousavam sobre as panturrilhas, o lugar que excitava dom Rigoberto. Este
suspirou, contendo a duras penas a necessidade de chorar que o
esmagava. Conseguiu ver que dona Lucrecia deslizava em direção à porta.
- Você volta amanhã? - perguntou, ansioso. - E no dia seguinte, e no
outro - respondeu a muda silhueta que se perdia. - Por acaso eu fui
embora? Os gatinhos, recuperados da surpresa, voltavam à carga e
acabavam com as últimas gotas de mel, indiferentes à batalha do casal.

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O FETICHISMO DOS NOMES

Tenho o fetichismo dos nomes e o teu me empolga e me enlouquece.
Rigoberto! É viril, é elegante, é brônzeo, é italiano. Quando o
pronuncio, em voz baixa, de mim para mim, uma cobrinha me percorre as
costas e se me gelam os calcanhares rosados que Deus me deu (ou se
preferires, descrente, a Natureza). Rigoberto! Risonha cascata de águas
transparentes. Rigoberto! Amarela alegria de pintassilgo celebrando o
sol. Onde estiveres, estou eu. Quietinha e apaixonada, bem ali. Assinas
uma letra de câmbio, uma conta a pagar, com teu nome tetrassílabo ? Eu
sou o pontinho em cima do i, o rabinho do g e o chifrinho do t. A
manchinha de tinta que fica no teu polegar. Te alivias do calor com um
copinho de água mineral? Eu, a bolhinha que te refresca o paladar e o
cubinho de gelo que arrepia tua linguinha de víbora. Eu, Rigoberto, sou
o cordão dos teus sapatos e a pastilha de extrato de ameixa que tomas a
cada noite contra a constipação. Como sei esse detalhe de tua vida
gastrenterológica? Quem ama sabe, e tem por sabedoria tudo o que
concerne ao seu amor, sacralizando o detalhe mais trivial dessa pessoa.
Diante de teu retrato, eu me persigno e rezo. Para conhecer tua vida
tenho teu nome, a numerologia dos cabalistas e as artes divinatórias de
Nostradamus. Quem sou? Alguém que te ama como a espuma à onda e a
nuvem ao rosicler. Procura, procura e encontra-me, amado. Tua, tua, tua
A fetichista dos nomes

II. AS COISINHAS DE EGON SCHIELE

- Por que Egon Schiele lhe interessa tanto? - perguntou dona Lucrecia. -
Me dá pena que morresse tão jovem e que o metessem na cadeia - respondeu
Fonchito. - Tem uns quadros lindíssimos. Fico horas olhando para eles,
nos livros do papai. E você? Não gosta, madrasta? - Não os recordo
muito bem. Exceto as posturas. Uns corpos forçados, desconjuntados, não?
- E eu gosto de Schiele também porque, porque... - interrompeu-a o
menino, como se fosse revelar um segredo. - Não me atrevo a lhe dizer,
madrasta. - Você sabe muito bem dizer as coisas quando quer, não banque
o tolinho. - Porque sinto que me pareço com ele. Que vou ter uma vida
trágica, como a dele. Dona Lucrecia deu uma risada. Mas uma inquietação
a invadiu. De onde este menino tirava semelhante coisa? Alfonsito
continuava olhando-a, muito sério. Um tempinho depois, fez um esforço e
lhe sorriu. Estava sentado no chão da sala de jantar, com as pernas
cruzadas; conservava o paletó azul e a gravata cinza do uniforme, mas
havia tirado o bonezinho com viseira, que jazia ao seu lado, entre a
mochila, a pasta e a caixa de lápis da academia. Nisso, Justiniana
entrou com a bandeja do chá. Fonchito a recebeu alvoroçado. - Chancays
tostados com manteiga e geleia - aplaudiu, subitamente livre da
preocupação. - O que eu mais adoro no mundo. Você se lembrou, Justita! *
Pãozinho doce e fofo, espécie de sonho, típico do distrito homônimo. (N.
da T.)

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- Não fiz para você, fiz para a patroa - mentiu Justiniana, fingindo
severidade. - Para você, nem farelo. Ia servindo o chá e dispondo as
xícaras na mesinha da sala. No Olivar, uns garotos jogavam futebol, e
através das cortininhas avistavam-se suas ardorosas silhuetas; ali
dentro, em surdina, chegavam palavrões, chutes retumbantes e gritos de
triunfo. Dali a pouco, escureceria. - Não vai me perdoar nunca, Justita?
- entristeceu-se o menino. - Aprenda com minha madrasta; ela esqueceu o
que houve e agora nos damos tão bem como antes. "Como antes, não",
pensou dona Lucrecia. Uma onda quente a lambia desde o peito dos pés até
a ponta dos cabelos. Disfarçou, bebendo golinhos de chá. - Deve ser
porque a patroa é muito boa e eu, muito má - zombava Justiniana. -
Então, somos parecidos, Justita. Porque, em sua opinião, eu sou muito
mau, não? - Você me ganha de goleada - despediu-se a empregada, sumindo
no corredor da cozinha. Dona Lucrecia e o menino permaneceram em
silêncio, enquanto comiam os paezinhos e tomavam o chá. - Justita me
odeia da boca para fora - afirmou Fonchito, quando terminou de mastigar.
- No fundo, penso que também me perdoou. Não acha, madrasta? - Talvez
não. Ela não se deixa tapear por suas maneiras de menino bonzinho. Não
quer me ver passar de novo pelo que passei. Porque, embora não goste de
recordar isso, eu sofri muito por sua culpa, Fonchito. - E por acaso eu
não sei, madrasta? - empalideceu o menino. - Por isso, vou fazer tudo,
tudo, para reparar o mal que lhe causei. Estaria falando sério? Ou
representando uma farsa, utilizando esse vocabulário de velho precoce?
Impossível averiguar, naquela carinha em que olhos, boca, nariz,
pômulos, orelhas e até a desordem dos cabelos pareciam a obra de um
esteta perfeccionista. Era bonito como um arcanjo, um deusinho pagão. O
pior, o pior, pensava dona Lucrecia, era que ele parecia a encarnação
da pureza, um modelo de inocência e virtude. "A mesma auréola de limpeza
que havia em Modesto",

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disse a si mesma, recordando o engenheiro afeiçoado às canções bregas
que lhe fizera a corte antes de ela se casar com Rigoberto, e a quem
havia desdenhado, talvez por não saber apreciar suficientemente sua
correção e sua bondade. Ou, quem sabe, teria rechaçado o pobre Pluto,
como o chamavam, precisamente porque ele era bom? Por serem aqueles
fundos turvos, nos quais Rigoberto mergulhava, o que atraía seu coração?
Com ele, não havia vacilado um segundo. No bonachão do Pluto, a
expressão limpa refletia sua alma; neste diabinho do Alfonso, era uma
estratégia de sedução, um canto daquelas sereias que chamam dos abismos.
- Você gosta muito de Justita, madrasta:" - Sim, muito. Para mim, ela é
mais do que uma empregada. Não sei o que teria feito sem Justiniana
todos estes meses, enquanto me acostumava outra vez a viver sozinha.
Foi uma amiga, uma aliada. Assim a considero. Não tenho os preconceitos
estúpidos da gente de Lima com as domésticas. Quase contou a Fonchito o
caso da respeitabilíssima dona Felícia de Gallagher, a qual se gabava em
seus chás-canastra de ter proibido seu motorista, robusto negro de
uniforme azul-marinho, de beber água durante o trabalho para que não
tivesse vontade de urinar e precisasse estacionar o carro em busca de um
banheiro, deixando a patroa sozinha naquelas ruas cheias de ladrões.
Mas não o fez, pressentindo que uma alusão, mesmo indireta, a uma função
orgânica diante do menino seria como revolver as águas mefíticas de um
pântano. - Posso lhe servir mais chá? Os chancays estão uma delícia-
adulou-a Fonchito. - Quando posso escapulir da academia e venho, me
sinto feliz, madrasta. - Você não deve perder tantas tardes. Se
realmente quer ser pintor, essas aulas lhe serão muito úteis. Por que,
quando lhe falava como a um menino, o que ele realmente era, via-se
dominada pela sensação de pisar em falso, de mentir? Mas, se o tratasse
como a um homenzinho, tinha idêntica aflição, o mesmo sentimento de
falsidade. - Acha Justiniana bonita, madrasta? - Acho, sim. Ela tem um
tipo muito peruano, com sua pele cor de canela e sua carinha espevitada.
Deve ter partido alguns corações por aí.

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- Alguma vez o papai lhe disse que achava Justiniana bonita? - Não, não
creio que ele tenha dito. Mas por que tantas perguntas? - Por nada. Mas
você é mais linda do que Justita e do que todas, madrasta! - exclamou o
menino. Porém, assustado, desculpou-se de imediato. - Fiz mal em lhe
dizer isso? Você não vai se aborrecer, não é? A senhora Lucrecia
tentava evitar que o filho de Rigoberto notasse seu sufoco. Lúcifer
estaria voltando a fazer das suas? Ela deveria pegá-lo por uma orelha e
expulsá-lo, ordenando-lhe que não voltasse? Mas Fonchito já parecia ter
esquecido o que acabava de dizer e remexia na pasta em busca de alguma
coisa. Finalmente, encontrou. - Veja, madrasta - estendeu-lhe o pequeno
recorte. - Schiele, quando pequeno. Não sou parecido? Dona Lucrecia
examinou o mirrado adolescente de cabelos curtos e feições delicadas,
apertado em um traje escuro do início do século, com uma rosa na lapela,
e a quem a camisa de colarinho duro e a gravata-borboleta pareciam
estrangular. - Nem um pouco - disse. - Você não se parece nada com ele.
- Essas que estão ao lado são suas irmãs. Gertrude e Melanie. A menor, a
loura, é a famosa Gerti. - Por que famosa? - perguntou dona Lucrecia,
incomodada. Sabia muito bem que estava entrando em um campo minado. -
Como por quê? - surpreendeu-se a carinha rubicunda; as mãos fizeram um
trejeito teatral. - Não sabia? Ela foi a modelo dos nus mais conhecidos
dele. - Ah, é? - O desconforto de dona Lucrecia se acentuou. - Pelo que
vejo, você conhece muito bem a vida de Egon Schiele. - Li tudo o que
existe a respeito na biblioteca do papai. Mulheres aos montes posaram
nuas para ele. Garotas de colégio, mulheres da rua, sua amante Wally. E
também sua esposa Edith e sua cunhada Adele. - Bem, bem - dona Lucrecia
consultou seu relógio. - Está ficando tarde para você, Fonchito.

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- Também não sabia que ele fez. Edith e Adele posarem juntas? -
prosseguiu o menino, entusiasmado, como se não a tivesse escutado. - E,
quando vivia com Wally" na aldeiazinha de Krumau, mesma coisa. Nua,
junto com meninas do colégio. Por isso se armou um escândalo. - Não é de
estranhar, se eram meninas de colégio - comentou a senhora Lucrecia. -
Mas veja, está escurecendo, é melhor ir embora. Se Rigoberto ligar para
a academia, vai descobrir que você mata aula. - Mas esse escândalo foi
uma injustiça - continuou o menino, tomado de grande excitação. -
Schiele era um artista, precisava se inspirar. Não pintou obras-primas?
Que maldade havia nisso de fazê-las se despir? - Vou levar estas xícaras
para a cozinha. - A senhora Lucrecia se levantou. - Me ajude com os
pratos e a cestinha, Fonchito. O menino se apressou a recolher com as
mãos as migalhas de chancay espalhadas pela mesa de centro. Seguiu a
madrasta, docemente. Mas a senhora Lucrecia não havia conseguido
desviá-lo do assunto. - Bom, é verdade que, com algumas das que posaram
nuas, ele também fez umas coisinhas - ia dizendo Fonchito, enquanto
percorriam o corredor. - Por exemplo, fez com sua cunhada Adele. Mas,
com sua irmã Gerti, não faria, não é, madrasta? Nas mãos da senhora
Lucrecia as xícaras haviam começado a balançar. O malandrinho tinha o
endemoniado costume de, como quem não quer nada, levar sempre a conversa
para temas escabrosos. - Claro que não fez - retrucou ela, sentindo que
sua língua se enrolava. - Evidentemente não, que idéia. Tinham entrado
na pequena cozinha, de ladrilhos que pareciam espelhos. Também as
paredes reluziam. Justiniana os observou, intrigada. Uma borboletinha
revoluteava em seus olhos, animando seu rosto moreno. - Com Gerti,
talvez não, mas com a cunhada, sim - insistiu o menino. - A própria
Adele confessou, quando Egon Schiele já tinha morrido. Os livros contam
isso, madrasta. Ou seja, ele fez coisinhas com as duas irmãs. Vai ver
que era daí que lhe vinha a inspiração.

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- Quem era esse safado? - perguntou a empregada. Sua expressão era
vivíssima. Ela recebia xícaras e pratos e colocava-os embaixo da
torneira aberta; depois, afundava-os na pia, cheia até a borda de água
espumosa e azulada. O cheiro de detergente impregnava a cozinha. - Egon
Schiele - sussurrou dona Lucrecia. - Um pintor austríaco. - Morreu aos
vinte e oito anos, Justita - especificou o menino. - Certamente, de
tanto fazer coisinhas. - Justiniana falava e enxaguava pratos e xícaras,
secando-os depois com um pano de losangos coloridos. - Portanto,
comporte-se, Foncho, cuidado para não lhe acontecer o mesmo. - Não
morreu de fazer coisinhas, mas de gripe espanhola - replicou o menino,
impermeável ao humor. - Sua esposa também, três dias antes dele. O que é
gripe espanhola, madrasta? - Uma gripe maligna, imagino. Deve ter
chegado a Viena vinda da Espanha, seguramente. Bom, agora vá embora,
está tarde. - Já sei por que você quer ser pintor, seu bandido -
interveio Justiniana, irreprimível. - Porque, pelo visto, os pintores
têm um vidão com suas modelos. - Não faça esses gracejos - repreendeu-a
dona Lucrecia. - Ele é um menino. - Bem metidinho, patroa - replicou a
outra, abrindo a boca de par em par e mostrando seus dentes
branquíssimos. - Antes de pintá-las, brincava com elas - retomou
Fonchito o fio de seu pensamento, sem prestar atenção ao diálogo entre
patroa e empregada. - Fazia com que elas posassem de maneiras
diferentes, experimentando. Vestidas, peladas, meio vestidas. O que mais
lhe agradava era que trocassem as meias. Coloridas, verdes, pretas, de
todas as cores. E que se jogassem no chão. Juntas, separadas, emboladas.
Que fingissem estar brigando. Ficava horas olhando para elas. Brincava
com as duas irmãs como se fossem suas bonecas. Até que lhe vinha a
inspiração. Então as pintava. - Que brincadeirinha... - provocou-o
Justiniana. - Como aquela de ir tirando as peças de roupa, mas para
adultos.

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- Ponto final! Chega! - Dona Lucrecia elevou tanto a voz que Fonchito e
Justiniana ficaram boquiabertos. Ela moderou o tom: - Não quero que seu
pai comece a lhe fazer perguntas. Você tem de ir embora. - Está certo,
madrasta- tartamudeou o menino. Estava branco de susto e dona Lucrecia
se arrependeu de haver gritado. Mas não podia permitir que ele
continuasse falando das intimidades de Egon Schiele com aquele fogo
todo, seu coração lhe dizia que havia ali uma armadilha, um risco que
era indispensável evitar. Que bicho havia picado Justiniana, para
atiçá-lo daquele jeito? O menino saiu da cozinha. Ela o escutou
recolhendo a mochila, a pasta e os lápis na sala de jantar. Quando
voltou, havia ajeitado a gravata, enfiado o boné e abotoado o paletó.
Plantado no umbral, fitando-a nos olhos, perguntou com naturalidade: -
Posso lhe dar um beijo de despedida, madrasta? O coração de dona
Lucrecia, que havia começado a serenar, acelerou-se de novo; o que mais
a perturbou, porém, foi o sorrisinho de Justiniana. O que devia fazer?
Era ridículo se negar. Assentiu, inclinando a cabeça. Um instante
depois, sentiu na face um biquinho de passarinho. - E em você, também
posso, Justita? - Cuidado para não ser na boca - gargalhou a moça. Desta
vez o menino festejou o gracejo, soltando uma risada, enquanto se
esticava para beijar Justiniana na face. Era uma bobagem, claro, mas a
senhora Lucrecia não se atrevia a fitar a empregada nos olhos nem
conseguia repreendê-la por se exceder com piadas de mau gosto. - Vou
matar você - disse por fim, meio de brincadeira, meio a sério, quando
sentiu a porta da rua se fechar. - Enlouqueceu, para fazer essas
gracinhas com Fonchito? - É que esse menino tem não sei o quê -
desculpou-se Justiniana, encolhendo os ombros. - Faz a gente encher a
cabeça de pecados. - Seja lá o que for - disse dona Lucrecia -, com ele
o melhor é não botar lenha na fogueira. - Fogueira é o que a senhora tem
na cara, patroa - retrucou Justiniana, com sua desenvoltura habitual. -
Mas não se preocupe, essa cor lhe fica ótima.

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CLOROFILA E BOSTA

Sinto ter de decepcioná-lo. Suas apaixonadas arengas em favor da
preservação da Natureza e do meio ambiente não me comovem. Nasci, vivi e
morrerei na cidade (na feia cidade de Lima, se for o caso de buscar
agravantes), e afastar-me da urbe, mesmo que por um fim de semana, é uma
servidão à qual me submeto às vezes por obrigação familiar ou razão de
trabalho, mas sempre de má vontade. Não me inclua entre esses mesocratas
cuja aspiração mais acalentada é comprar uma casinha em uma praia do
Sul para ali passar verões e fins de semana em obscena promiscuidade com
a areia, a água salgada e as barrigas cervejeiras de outros mesocratas
idênticos a eles. Esse espetáculo domingueiro de famílias
confraternizando em um exibicionismo bien-pensant à beira-mar é para mim
um dos mais deprimentes entre os oferecidos, no ignóbil escalão do
gregário, por este país pré-individualista. Constato que, para pessoas
como o senhor, uma paisagem enfeitada com vacas pastando em meio a
olorosas ervas, ou cabritas fariscando algarobeiras, alvoroça-lhes o
coração e leva-as a experimentar o êxtase do jovenzinho que pela
primeira vez contempla uma mulher nua. No que me concerne, o destino
natural do touro macho é a arena - em outras palavras, viver para
enfrentar a capa, a muleta, a garrocha, a bandarilha e o estoque - , e
as estúpidas bovinas eu só gostaria de vê-las esquartejadas e assadas
na grelha, temperadas com especiarias ardentes e sangrando diante de
mim, rodeadas por batatas crocantes e saladas frescas, e as cabritas,
trituradas, desfiadas, fritas ou curtidas, segundo as receitas do seco
nortista, um dos meus favoritos entre os pratos que a brutal gastronomia
crioula oferece. Sei que ofendo suas crenças mais caras, pois não ignoro
que o senhor e os seus - outra conspiração coletivista! - estão
convencidos, ou prestes a estar, de que os animais têm direitos e, quem
sabe, alma, todos eles, sem excluir o mosquito palúdico, a hiena
carniceira, a sibilante cobra e a piranha voraz. Eu confesso
paladinamente que para mim os animais têm um interesse comestível,
decorativo e talvez esportivo (embora deva esclarecer-lhe que o amor aos
cavalos me produz tanto desagrado quanto o vegetarianismo, e que
considero os ginetes de testículos

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ananicados pela fricção da montaria como um tipo particularmente lúgubre
do castrado humano). Embora respeite, à distância, os que lhes atribuem
funcionalidade erótica, a mim, pessoalmente, não me seduz, (ou melhor,
faz-me farejar maus odores e presumir variadas incomodidades físicas) a
idéia de copular com uma galinha, uma pata, uma macaca, uma égua ou
qualquer variante animal com orifícios, e abrigo a enervante suspeita de
que quem se gratifica com tais ginásticas são, no íntimo - não o tome
como algo pessoal -, ecologistas em estado selvagem, conservacionistas
que se ignoram, muito capazes, no futuro, de ir enturmar-se com
Brigitte Bardot (que, de resto, também amei quando jovem) para atuar em
prol da sobrevivência das focas. Embora, vez. por outra, tenha tido
fantasias inquietantes com a imagem de uma formosa mulher nua
balançando em um leito salpicado de bichanos, saber que nos Estados
Unidos há sessenta e três milhões de gatos e cinqüenta e quatro milhões
de cães domésticos me alarma mais do que o enxame de armas atômicas
armazenadas em meia dúzia de países da ex-União Soviética. Se assim
penso desses quadrúpedes e passarolos, o senhor já pode imaginar os
humores que em mim despertam seus espessos bosques, sussurrantes
árvores, deleitosas frondes, rios cantores, desfiladeiros profundos,
cumes cristalinos, similares e anexos. Todas essas matérias-primas têm
para mim sentido e justificação se passarem pelo crivo da civilização
urbana, isto é, se forem manufaturadas e transmutadas - não me importa
que digamos "irrealizadas", mas preferiria a desprestigiada fórmula
"humanizadas" - pelo livro, o quadro, o cinema ou a televisão.
Entendamo-nos: eu daria minha vida (algo que não deve ser tomado ao pé
da letra, pois é um dizer obviamente hiperbólico) para salvar os álamos
que empinam sua alta copa no Polifemo e as amendoeiras que encanecem as
Soledades de Góngora, os salgueiros-chorões das éclogas de Garcilaso ou
os girassóis e trigais que destilam seu mel áureo nos Van Gogh, mas não
derramaria uma lágrima em louvor dos pinheirais devastados pelos
incêndios da estação estival e não me tremeria a mão ao assinar o
decreto de anistia era favor dos incendiários que carbonizam bosques
andinos, siberianos ou alpinos. A Natureza não passada pela arte ou
pela literatura, a Natureza ao natural, cheia de moscas, pernilongos,
lama, ratazanas e baratas, é incompatível

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com prazeres refinados, como a higiene corporal e a elegância
indumentária. Para ser breve, resumirei meu pensamento - minhas fobias,
em todo caso -- explicando-lhe que, se isso que o senhor chama de "peste
urbana" avançasse incontrolável e engolisse todas as pradarias do
mundo, e o globo terrestre se recobrisse de uma erupção de arranha-céus,
pontes metálicas, ruas asfaltadas, lagos e parques artificiais, praças
cimentadas e estacionamentos subterrâneos, e o planeta inteiro se
encasquetasse de concreto armado e vigas de aço e fosse uma só cidade
esférica e interminável (repleta, isto sim, de livrarias, galerias,
bibliotecas, restaurantes, museus e cafés), o subscritor, homo urbanus
até a consumação dos seus ossos, aprovaria a medida. Pelas razões
supracitadas, não contribuirei com um só centavo para os fundos da
Associação Clorofila e Bosta que o senhor preside, e farei tudo o que
estiver ao meu alcance (muito pouco, tranquilize-se) para que seus fins
não se cumpram e que sua bucólica filosofia seja atropelada por este
objeto emblemático da cultura que o senhor odeia e eu venero: o
caminhão.

O SONHO DE PLUTO

Na solidão de seu escritório, espertado pelo frio amanhecer, dom
Rigoberto se repetiu de memória a frase de Borges com a qual acabava de
topar: "Do adultério costumam participar a ternura e a abnegação."
Poucas páginas depois da citação borgiana, a carta apareceu diante dele,
indene aos anos corrosivos: Querida Lucrecia: Ao Ler estas linhas você
terá a surpresa de sua vida e, quem sabe, me desprezará. Mas não
importa. Mesmo que houvesse uma só possibilidade de que você aceitasse
minha proposta, contra um milhão de que a recusasse, eu mergulharia
fundo. Resumirei o que exigiria horas de conversa, acompanhada de
inflexões de voz e gesticulações persuasivas. Desde que (depois do
bilhete azul que você me deu) deixei o Peru, trabalhei nos Estados
Unidos, com bastante sucesso. Em dez anos cheguei a gerente e sócio
minoritário desta fábrica de condutores elétricos,

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bem implantada no estado de Massachusetts. Como engenheiro e empresário,
consegui abrir caminho nesta minha segunda pátria, já que há quatro anos
sou cidadão americano. Pois bem, saiba, que acabo de renunciar a essa
gerência e estou vendendo minhas ações na fábrica, pelo que espero obter
um lucro de seiscentos mil dólares ou, com sorte, um pouco mais. Faço
isso porque me ofereceram a reitoria do TIM (Technotogical Institute of
Mississippi), o college onde estudei e com o qual sempre mantive
contato. Um terço do estudantado é agora, hispanic (latino-americano).
Meu salário será a metade do que ganho aqui. Não importa.. Dedicar-me à
formação desses jovens das duas Américas que construirão o século XXI é
algo que me empolga.. Sempre sonhei entregar minha vida à Universidade e
é o que faria se tivesse ficado no Peru, isto é, se você tivesse se
casado comigo. "A que vem tudo isso?", você deve estar se perguntando.
"Por que Modesto ressuscita, depois de dez anos, para me contar
semelhante história?"Já chego lá, queridíssima Lucrecia. Decidi gastar
em uma semana de férias, entre minha partida de Boston e minha chegada a
Oxford, Mississippi, cem mil dos seiscentos mil dólares poupados.
Férias, diga-se de passagem, eu nunca tirei nem tirarei no futuro,
porque, como você certamente se lembra, o que sempre me agradou foi
trabalhar. Meu lob continua sendo meu melhor lazer. Mas, se meus planos
saírem como espero, essa semana será algo fora do comum. Não as
convencionais férias de cruzeiro no Caribe ou praias com coqueiros e
surfistas no Havaí. Algo muito pessoal e irrepetível: a. materialização
de um sonho antigo. É aí que você entra na história, pela porta
principal. Bem sei que está casada com um honrado cavalheiro limenho,
viúvo e gerente de uma companhia de seguros, Eu também estou, com uma
gringuinha de Boston, médica de profissão, e sou feliz, na modesta
medida em que o matrimônio permite sê-lo. Não lhe proponho que você se
divorcie e mude de vida, nada disso. Somente que compartilhe comigo
essa semana ideal, acariciada em minha mente ao longo de muitos anos, e
que agora as circunstâncias me permitem tornar realidade. Você não se
arrependerá de viver comigo esses sete dias de ilusão e se lembrará
deles com saudade pelo resto de sua vida. Isso eu lhe prometo. Nosso
encontro será no sábado 17 no aeroporto Kennedy, em Nova York, você
procedente de Lima no vôo da Lufthansa, e eu de Boston.

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Uma limusine nos levará à suíte do Plaza Hotel, já reservada, inclusive
com a indicação das flores que devem perfumá-la. Você terá tempo para
descansar, ir ao cabeleireiro, tomar uma sauna ou fazer compras na
Quinta Avenida, literalmente aos seus pés. Nessa noite temos lugares no
Metropolitan para ver a Tosca de Puccini, com Luciano Pavarotti no
papel de Mario Cavaradossi e a Orquestra Sinfônica do Metropolitan
regida pelo maestro Edouardo Muller. jantaremos em Le Cirque, onde,
com sorte, você poderá ficar pertinho de Mick Jagger, Henry Kissinger ou
Sharon Stone. Terminaremos a noitada no bulício do Regine's. O Concorde
rumo a Paris sai no domingo ao meio-dia, não será necessário madrugar.
Como o vôo dura só três horas e meia - inadvertidas, acredito, graças às
delícias do almoço assinado por Paul Bocuse - , chegaremos à Cidade-Luz
ainda de dia. Assim que nos instalarmos no Ritz (vista garantida para a
Place Vendôme), haverá tempo para um passeio pelas pontes do Sena,
aproveitando as tépidas noites do início do outono, as melhores segundo
os entendidos, desde que não chova. (Fracassei em meus esforços por
averiguar as perspectivas de precipitação pluvial parisiense nesse
domingo e nessa segunda-feira, pois a NASA, vale dizer, a ciência
meteorológica, só prevê os caprichos do céu com quatro dias de
antecedência.) Nunca estive em Paris e espero que você também não, de
modo que, nessa caminhada vespertina do Ritz até Saint- Germain,
descobriremos juntos aquilo que, pelo visto, é um itinerário
surpreendente. Na margem esquerda (o Mir aflores parisiense, digamos
assim) nos aguardam o inconcluso Réquiem de Mozart, na abadia de
Saint-Germain-des-Prés, e um jantar Chez Lipp, brasserie alsaciana onde é
obrigatório o chucrute (não sei o que é, mas, se não tiver alho, vou
gostar). Imaginei que, terminado o jantar, você vai querer descansar
para empreender, fresquinha, a intensa jornada da segunda-feira, de
modo que nessa noite não sobrecarregam o programa discoteca, bar, boate
nem inferninho. Na manhã seguinte passaremos pelo Louvre para apresentar
nossos respeitos à Gioconda e almoçaremos rapidamente em La Closerie
des Lilás ou em La Coupole (reverenciados restaurantes esnobes de
Montparnasse) . À tarde tomaremos um banho de vanguarda no Centre
Pompidou e daremos uma olhada no Marais, famoso por seus palácios do
século XVIII e seus veados contemporâneos. Tomaremos um chá em La
Marquise de Sévigné, na Place de La Madeleine,

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antes de recuperarmos as forças com uma ducha no hotel. O programa da
noite é francamente frívolo: aperitivo no bar do Ritz, jantar no cenário
modernista do Maxim's e fim de festa na catedral do strip-tease: o Crazy
Horse Saloon, que estreia sua nova revista "Que calor!". (Os ingressos
estão adquiridos, as mesas reservadas, e maîtres e porteiros subornados
para garantir os melhores lugares, mesas e atendimento.) Uma limusine,
menos espetacular porém mais refinada que a de Nova York, com chofer e
guia, nos levará na manhã da terça-feira a Versalhes, para conhecer o
palácio e os jardins do Rei Sól. Comeremos algo típico (bife com
batatas fritas, temo) em um bistrô do caminho, e, antes da Ópera Otelo,
de Verdi, com Plácido Domingo, claro), você terá tempo para compras no
Faubourg Saint-Honoré, vizinho do hotel. Faremos um simulacro de jantar,
por razões meramente visuais e sociológicas, no próprio Ritz, onde -
especialistas dixit - a suntuosidade do ambiente e o refinamento do
serviço compensam a falta de imaginação do cardápio. O verdadeiro jantar
nós teremos depois da ópera, em La Tour d'Argent, de cujas janelas nos
despediremos das torres de Notre-Dame e das luzes das pontes refletidas
nas águas fugidias do Sena. O Orient-Express para Veneza sai na
quarta-feira ao meio-dia, da Gare Saint-Lazare. Viajando e descansando,
passaremos nele esse dia e a noite seguinte, mas, segundo os que
protagonizaram tal aventura ferroviária, percorrer nesses camarotes
belle époque a geografia de França, Alemanha, Áustria, Suíça e Itália é
relaxante e preliminar, excita sem fatigar, entusiasma sem enlouquecer
e diverte até por razões de arqueologia, em virtude do gosto com que foi
ressuscitada a elegância dos camarotes, toaletes, bares e restaurantes
desse mítico trem, cenário de tantos romances e filmes do entreguerras.
Levarei comigo o romance de Agatha Christie Assassinato no Expresso do
Oriente, em versões inglesa e espanhola, caso lhe apeteça dar uma olhada
nos cenários da ação. Segundo o prospecto, para o jantar aux chandelles
dessa noite, a etiqueta e os longos decotes são obrigatórios. A suíte
do Hotel Cipriani, na ilha da Giudecca, tem vista para o Grande Canal,
a Praça de São Marcos e as bizantinas e elaboradas torres de sua igreja.
Contratei uma gôndola, assim como o guia que a agência considera o mais
preparado (e o único amável) da cidade lacustre, para que na manhã e na
tarde da quinta-feira

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ele nus familiarize com igrejas, praças, conventos, pontes e museus, com
um curto intervalo ao meio-dia, para beliscarmos alguma coisa - uma
pizza, por exemplo - rodeados de pombos e turistas, no terraço do
Florian. Tomaremos o aperitivo - uma beberagem inevitável chamada
Bellini - no Hotel Danieli e jantaremos no Harry's Bar,
imortalizado por um péssimo romance de Hemingway. Na sexta-feira
continuaremos a maratona com uma visita à praia do Lido e uma excursão a
Murano, onde ainda se modela o vidro a sopros humanos (técnica que
resgata a tradição e robustece os pulmões dos nativos). Haverá tempo
para comprar suvenires e dar uma olhada furtiva em uma villa de
Palladio. A noite, concerto na ilhota de San Giorgio - I Musici Veneti -
com peças dedicadas a barrocos venezianos, claro: Vivaldi, Cimarosa e
Albinoni. O jantar será no terraço do Danieli, divisando, se a noite
for sem nuvens, como "manto de vagalumes" (estou resumindo os guias), os
faróis de Veneza. Se o corpo o permitir, querida Lucre, nos
despediremos da cidade e do Velho Continente rodeados de modernidade,
na discoteca Il Gatto Nero, que atrai velhos, maduros e jovens
aficionados do jazz (eu nunca fui e você tampouco, mas um dos requisitos
dessa semana ideal é fazer o que nunca fizemos, submetidos às servidões
do mundãnismo). Na manhã seguinte - sétimo dia, a palavra fim já no
horizonte - será preciso madrugar. O avião rumo a Paris sai às dez, a
tempo de alcançar o Concorde para Nova York. Sobre o Atlântico,
cotejaremos as imagens e sensações armazenadas na memória afim de
escolher as mais dignas de perdurar. Vamos nos despedir no Kennedy
Airport (seu vôo para Lima e o meu para Boston são quase simultâneos)
para, certamente, não nos vermos mais. Duvido que nossos destinos
voltem a se cruzar. Eu não retornarei ao Peru e não creio que você
apareça algum dia no perdido rincão do Deep South, que, a partir de
outubro, poderá se vangloriar de ter o único reitor hispanic deste país
(os dois mil e quinhentos restantes são gringos, africanos ou
asiáticos). Você vem? Sua passagem está à espera na agência limenha da
Lufthansa. Não precisa me responder. De qualquer modo, no sábado 17 eu
estarei no lugar do encontro. Sua presença ou ausência será a resposta.
Se você não vier, cumprirei o programado, sozinho, fantasiando que você
está comigo, tornando real esse capricho com o qual me consolei nestes
anos, pensando em uma mulher que,

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apesar do passa-fora que mudou minha existência, continuará sendo sempre
o coração da minha memória. Preciso esclarecer que este é um convite a
que você me honre com sua companhia, e que não implica outra obrigação
afora a de me acompanhar? De nenhum modo lhe peço que, nesses dias da
viagem - não sei de qual eufemismo me valer para dizer isto -,
compartilhe meu leito. Queridíssima Lucrecia: só aspiro a que você
compartilhe meu sonho. As suítes reservadas em Nova York, Paris e
Veneza têm quartos separados com chaves e ferrolhos, aos quais, se seus
escrúpulos exigirem, posso acrescentar punhais, machados, revólveres e
até guarda-costas. Mas você sabe que nada disso será necessário e que,
nessa semana, o bom Modesto, o manso Pluto, como me apelidavam no
bairro, será tão respeitoso com você como anos atrás, em Lima, quando
tentava convencê-la a se casar comigo e mal me atrevia a tocar sua mão
no escurinho dos cinemas. Até o aeroporto Kennedy ou até nunca, Lucre,
Modesto (Pluto) Dom Rigoberto se sentiu atacado pela febre e pela
tremedeíra da terça. O que Lucrecia responderia? Rechaçaria, indignada,
a carta daquele ressuscitado? Sucumbiria à frívola tentação? Na
madrugada leitosa, pareceu-lhe que seus cadernos esperavam o desenlace
com a mesma impaciência de seu espírito atormentado.

IMPERATIVOS DO SEDENTO VIAJANTE

Esta é uma ordem do teu escravo, amada. Diante do espelho, sobre uma
cama ou sofá engalanado com sedas da índia pintadas à mão ou batique
indonésio de olhos circulares, te reclinarás de costas, despida, e teus
longos cabelos negros soltarás. Levantarás a perna esquerda recolhida
até formar um ângulo. Apoiarás a cabeça em teu ombro direito,
entreabrirás os lábios e, amassando com a destra uma ponta do lençol,
baixarás as pálpebras, simulando dormir. Fantasiarás que um rio amarelo
de asas de borboleta e estrelas em pó desce do céu sobre ti e te fende.

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Quem és? A Dânae de Gustav Klimt, naturalmente. Não importa quem o
inspirou para pintar esse óleo (1907-1908), o mestre te antecipou, te
adivinhou, te viu, tal como virias ao mundo e serias, do outro lado do
oceano, meio século depois. Acreditava recriar com seus pincéis uma
dama da mitologia helênica e eras tu que ele precriava, beleza futura,
esposa amante, madrasta sensual. Só tu, entre todas as mulheres, como
nessa fantasia plástica, reúnes a pulcra perfeição do anjo, sua
inocência e sua pureza, a um corpo atrevidamente terreno. Hoje,
prescindo da firmeza de teus seios e da beligerância de teus quadris
para prestar uma homenagem exclusiva à consistência de tuas coxas,
templo de colunas onde eu quisera ser atado e açoitado por me comportar
mal. Tu inteira celebras meus sentidos. Pele de veludo, saliva de aloé,
delicada dama de cotovelos e joelhos incorruptíveis, desperta, olha-te
no espelho, diz a ti mesma: "Sou reverenciada e admirada como nenhuma
outra, sou lembrada com saudade e desejada como as miragens líquidas dos
desertos pelo sedento viajante." Lucrecia-Dânae, Dânae-Lucrecia. Esta é
uma súplica do teu amo, escrava.

A SEMANA IDEAL

- Minha secretária ligou para a Lufthansa e, de fato, sua passagem está
lá, paga - disse dom Rigoberto. - Ida e volta. Na primeira classe, é
claro. - Fiz bem em lhe mostrar esta carta, amor? - exclamou dona
Lucrecia, assustadíssima. - Você não se aborreceu, não é? Como
prometemos não esconder nada um do outro, achei que devia lhe mostrar.
- Fez muito bem, minha rainha - disse dom Rigoberto, beijando a mão da
esposa. - Quero que você vá. - Quer que eu vá? - Dona Lucrecia sorriu,
fez uma expressão grave e voltou a sorrir. - Sério? - Imploro - insistiu
ele, os lábios nos dedos de sua mulher. - A não ser que a idéia não lhe
agrade.

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Mas por que não agradaria? Embora seja um programa de novo-rico e um
tanto vulgar, está elaborado com espírito brincalhão e uma ironia
incomum entre engenheiros. Você vai se divertir, meu amor. - Não sei o
que dizer, Rigoberto - balbuciou dona Lucrecia, lutando contra o rubor.
- É uma generosidade da sua parte, mas... - É por motivos egoístas que
eu lhe peço que aceite - esclareceu seu marido. - Você sabe, em minha
filosofia o egoísmo é uma virtude. Sua viagem será uma grande
experiência para mim. Pelos olhos e pela expressão de dom Rigoberto,
dona Lucrecia soube que ele falava sério. Fez, portanto, a viagem, e no
oitavo dia retornou a Lima. No aeroporto foi esperada pelo marido e por
Fonchito, este com um buquê de flores envoltas em papel celofane e um
cartão: "Bem-vinda à terrinha, madrasta." Receberam-na com muitas
demonstrações de carinho e dom Rigoberto, para ajudá-la a ocultar sua
perturbação, cobriu-a de perguntas sobre o tempo, as alfândegas, os
horários alterados, o jet lag e o cansaço, evitando toda alusão ao
assunto nevrálgico. Rumo a Barranco, deu-lhe precisa conta do trabalho,
do colégio de Fonchito, dos desjejuns, almoços e jantares, durante a
ausência dela. A casa brilhava com ordem e limpeza exageradas.
Justiniana havia mandado lavar as cortininhas e renovar o adubo do
jardim, tarefas que só eram realizadas no fim do mês. Dona Lucrecia
passou a tarde abrindo malas, conversando com os empregados sobre
assuntos práticos e atendendo a telefonemas de amigas e familiares que
queriam saber como tinha sido sua viagem de compras natalinas a Miami
(a versão oficial de sua escapadela). Não houve o menor mal-estar no
ambiente quando tirou os presentes para o marido, o enteado e
Justiniana. Dom Rigoberto aprovou as gravatas francesas, as camisas
italianas e o pulôver nova-iorquino, e em Fonchito assentaram como luvas
os jeans, a jaqueta de couro e o conjunto esportivo. Justiniana soltou
uma exclamação de entusiasmo ao experimentar, sobre o avental, o vestido
amarelo-patinho que lhe coube. Depois do jantar, dom Rigoberto se
fechou no banheiro e demorou menos do que habitualmente com suas
abluções. De volta, encontrou o dormitório em uma penumbra rasgada por
um talho de luz indireta que só iluminava as duas gravuras de
Utamaro:
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acoplamentos incompatíveis mas ortodoxos de um só casal, ele
dotado de uma verga em saca-rolhas e ela de um sexo liliputiano, entre
quimonos inflados como nuvens de tormenta, lanternas de papel, esteiras,
mesinhas com a porcelana do chá e, ao longe, pontes sobre um rio
sinuoso. Dona Lucrecia estava embaixo dos lençóis, não despida,
comprovou, ao deslizar para junto dela, mas com uma nova camisola -
adquirida e usada durante a viagem? - que deixava às mãos dele a
liberdade necessária para alcançar seus caminhos íntimos. Ela se
ajeitou de lado e ele pôde lhe passar o braço embaixo dos ombros e
senti-la dos pés à cabeça. Beijou-a sem sufocá-la, com muita ternura,
nos olhos, nas faces, demorando-se até chegar à boca. - Não me conte
nada que não queira - mentiu-lhe no ouvido, com uma coqueteria infantil
que atiçava sua impaciência, enquanto seus lábios lhe percorriam a curva
da orelha. - Como achar melhor. Ou, se preferir, nada. - Vou contar tudo
- cochichou dona Lucrecia, buscando-lhe a boca. - Não foi para isso que
você me mandou? - Também - assentiu dom Rigoberto, beijando-a no
pescoço, nos cabelos, na testa, insistindo no nariz, nas faces e no
queixo. - Você se divertiu? Correu tudo bem? - Correu bem ou correu mal,
vai depender do que acontecer agora entre nós dois - disse a senhora
Lucrecia de um só fôlego, e dom Rigoberto sentiu que, por um segundo,
sua mulher ficava tensa. - Me diverti, sim. Desfrutei, sim. Mas tive
medo o tempo todo. - De que eu me aborrecesse? - Dom Rigoberto beijava
agora os seios firmes, milímetro a milímetro, e a ponta de sua língua
brincava com os mamilos, sentindo como se endureciam. - De que eu lhe
fizesse uma cena de ciúme ? - De que você sofresse - sussurrou dona
Lucrecia, abraçando-o. "Começa a transpirar", comprovou dom Rigoberto.
Sentia-se feliz acariciando aquele corpo a cada instante mais ativo e
precisou recorrer à lucidez para controlar a vertigem que ameaçava
dominá-lo. No ouvido de sua mulher, murmurou que a amava, mais, muito
mais do que antes da viagem. Ela começou a falar, com intervalos,
buscando as palavras - silêncios que eram álibis para sua confusão,

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mas, pouco a pouco, estimulada pelas carícias e pelas amorosas
interrupções, foi ganhando confiança. Por fim, dom Rigoberto percebeu
que ela havia recuperado a desenvoltura e relatava tomando uma fingida
distância daquilo que contava. Aderida ao corpo dele, apoiava a cabeça
no seu ombro. As mãos respectivas se moviam de vez. em quando, para
tomar posse ou averiguar a existência de um membro, músculo ou pedaço de
pele do parceiro. - Ele havia mudado muito? Tinha se agringalhado na
maneira de vestir e de falar, pois continuamente deixava escaparem
expressões em inglês. Mas, mesmo grisalho e mais gordo, mantinha aquela
cara de Pluto, comprida e tristonha, a timidez e as inibições da
juventude. - Deve ter visto você chegar como que caída do céu. - Ficou
tão pálido! Parecia que ia desmaiar. Me esperava com um buquê de flores
maior do que ele. A limusine era uma daquelas prateadas, dos gângsteres
de filme. Com bar, televisão, som estéreo e, agüente esta, assentos em
pele de leopardo. - Pobres ecologistas - entusiasmou-se dom Rigoberto. -
Sei que é uma cafonice - desculpou-se Modesto, enquanto o chofer, afegão
altíssimo uniformizado de grená, arrumava a bagagem no porta-malas. -
Mas era a mais cara. - É capaz de zombar de si mesmo - sentenciou dom
Rigoberto. - Simpático. - Na viagem até o Plaza, me elogiou umas duas
vezes, corado até as orelhas - prosseguiu dona Lucrecia. - Que eu
continuava muito bem, que estava ainda mais bonita do que quando ele
quis se casar comigo. - E está - interrompeu dom Rigoberto, bebendo-lhe
o alento. - Cada dia mais, cada hora mais. - Nem uma só palavra de mau
gosto, nem uma só insinuação chocante - disse ela. - Me agradeceu tanto
por eu ter ido que me senti como a boa samaritana da Bíblia. - Sabe o
que ele ia pensando, enquanto lhe fazia esses galanteios? - O quê? -
dona Lucrecia enroscou uma perna nas do seu marido. - Se a veria nua
nessa mesma tarde, no Plaza, ou se teria de esperar até a noite, ou até
Paris - ilustrou-a dom Rigoberto.

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- Não me viu nua nem nessa tarde nem nessa noite. A não ser que tenha me
espiado pela fechadura, enquanto eu tomava banho e me vestia para o
Metropolitan. Aquilo de quartos separados era verdade. O meu tinha vista
para o Central Park. - Mas, pelo menos, deve ter segurado sua mão na
ópera, no restaurante - queixou-se ele, decepcionado. - Com a ajudinha
do champanhe, certamente dançou de rosto colado com você no Regine's. E
beijou seu pescoço, a orelhinha. Nada disso. Não tentara segurar a mão
dela nem beijá-la naquela longa noite durante a qual, no entanto, não
economizara os floreios verbais, sempre a uma respeitosa distância.
Mostrara-se simpático, na verdade, zombando da própria inexperiência
("Morro de vergonha, Lucre, mas, em seis anos de casado, não enganei
minha mulher nem uma só vez"), e confessando que aquela era a primeira
vez na vida em que assistia a uma representação de ópera ou botava os
pés em Le Cirque e no Régine's. - A única coisa que sei é que devo pedir
champanhe Dom Pérignon, cheirar a taça de vinho com nariz de alérgico e
pedir pratos escritos em francês. Olhava-a com gratidão incomensurável,
canina. - Para falar a verdade, eu vim de vaidosa, Modesto. Além da
curiosidade, é claro. Será possível que nesses dez anos, sem nos vermos,
sem saber nada um do outro, você tenha continuado apaixonado por mim? -
Apaixonado não é a palavra certa - esclareceu ele. - Apaixonado eu estou
é por Dorothy, a gringuinha com quem me casei, que é muito compreensiva
e me deixa cantar na cama. - Para ele, você era algo mais sutil -
explicou dom Rigoberto. - A irrealidade, a ilusão, a mulher de sua
memória e seus desejos. Eu quero amá-la assim, como ele. Espere,
espere. Despojou-a da camisola minúscula e voltou a acomodá-la de modo a
que as peles de ambos tivessem mais pontos de contato. Refreando seu
desejo, pediu-lhe que continuasse. - Retornamos ao hotel assim que me
veio o primeiro bocejo. Me deu boa-noite longe do meu quarto. Que eu
sonhasse com os anjinhos. Comportou-se tão bem, foi tão cavalheiro, que
na manhã seguinte eu lhe fiz uma pequena coqueteria. Ela se apresentara
para tomar o desjejum, no aposento intermediário entre os dormitórios,
descalça e com um robe de verão,

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muito curto, que deixava a descoberto suas pernas e coxas. Modesto a
esperava barbeado, banhado e vestido. Sua boca se abriu de par em par. -
Dormiu bem? - articulou, de queixo caído, ajudando-a a se sentar diante
dos sucos de frutas, das torradas e geléias do desjejum. - Posso lhe
dizer que você está linda? - Alto lá - atalhou dom Rigoberto. - Deixe
que eu me ajoelhe e beije as pernas que deslumbraram o cachorro Pluto.
Rumo ao aeroporto e, depois, no Concorde da Air France, enquanto
almoçavam, Modesto voltou a adotar a atitude de atenta adoração do
primeiro dia. Recordou a Lucrecia, sem melodrama, como havia decidido
renunciar à faculdade de engenharia, quando se convenceu de que ela não
se casaria com ele, e partir para Boston, entregue à própria sorte. O
difícil começo naquela cidade de invernos frios e vitorianas mansões
grená, onde demorou três meses para conseguir seu primeiro trabalho
estável. Partiu o coração, mas não o lamentava. Havia obtido a
indispensável segurança, uma esposa com quem se entendia e, agora que ia
iniciar outra etapa voltando à universidade, algo de que sempre sentira
falta, estava concretizando uma fantasia, o jogo adulto no qual se
refugiara durante todos aqueles anos: a semana ideal, brincando de ser
rico, em Nova York, Paris e Veneza, com Lucre. Já podia morrer
tranqüilo. - Você vai mesmo gastar a quarta parte de sua poupança nesta
viagem? - Eu gastaria os trezentos mil que me cabem, pois os outros são
de Dorothy - assentiu ele, fitando-a nos olhos. - Não pela semana toda.
Só por ter podido ver você, na hora do desjejum, com essas pernas,
esses braços e ombros à vista. A coisa mais linda do mundo, Lucre. -
Imagine o que ele diria, se além disso tivesse visto seus peitos e o
rabinho - beijou-a dom Rigoberto. - Eu amo você, amo. - Nesse momento,
decidi que, em Paris, ele veria o resto. - Dona Lucrecia meio que
escapou dos beijos do marido. - Decidi quando o piloto anunciou que
havíamos rompido a barreira do som. - Era o mínimo que você podia fazer
por um senhor tão correto - aprovou dom Rigoberto.

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Mal se instalaram em seus respectivos dormitórios - a vista, das janelas
de Lucrecia, abrangia a escura coluna da Place Vendòme perdendo-se nas
alturas e as rutilantes vitrines das joalherias próximas -, saíram para
caminhar. Modesto havia memorizado a trajetória e calculado o tempo.
Percorreram as Tulherias, atravessaram o Sena e desceram até
Saint-Germain pelos cais da margem esquerda. Chegaram à abadia meia hora
antes do concerto. Era uma tarde pálida e morna de um outono que já
matizara os castanheiros e, de vez em quando, o engenheiro se detinha,
guia e mapa nas mãos, para dar a Lucrecia uma indicação histórica,
urbanística, arquitetônica ou estética. Nas desconfortáveis cadeirinhas
da igreja lotada para o concerto, precisaram se sentar muito juntos.
Lucrecia desfrutou da lúgubre magnificência do Réquiem de Mozart.
Depois, instalados em uma mesinha do primeiro piso da Lipp, felicitou
Modesto: - Não posso acreditar que esta seja sua primeira viagem a
Paris. Você conhece ruas, monumentos e endereços como se morasse aqui. -
Me preparei para esta viagem como para um exame de fim de curso, Lucre.
Consultei livros, mapas, agências, interroguei viajantes. Eu não
coleciono selos, nem crio cães, nem jogo golfe. Há anos, meu único hobby
é preparar esta semana. - Eu sempre estive nela? - Mais um passo no
caminho das coqueterias - observou dom Rigoberto. - Sempre você e só
você - ruborizou-se Pluto. - Nova York, Paris, Veneza, as óperas, os
restaurantes e o resto eram o setting. O importante, o central, você e
eu, sozinhos no cenário. Retornaram ao Ritz de táxi, fatigados e
ligeiramente tocados pela taça de champanhe, o vinho de Bourgogne e o
conhaque com que haviam esperado, acompanhado e digerido o chucrute. Ao
se darem boa-noite, de pé na saleta que separava os dormitórios, sem o
menor titubeio dona Lucrecia anunciou a Modesto: - Você está tão
bem-comportado que eu também quero jogar. Vou lhe dar um presente. - Ah,
é? - atrapalhou-se Pluto. - Qual, Lucre? - Meu corpo inteiro -
cantarolou ela. - Quando eu chamar, entre. Para olhar, e só.

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Não ouviu o que Modesto respondia, mas teve certeza de que, na penumbra
do recinto, enquanto sua cara emudecida assentia, ele ttansbordava de
felicidade. Sem saber como faria aquilo, despiu-se, pendurou a roupa e,
no banheiro, soltou os cabelos ("Do jeito que eu gosto, meu amor?"
"Igualzinho, Rigoberto"). Voltou ao quarto, apagou todas as luzes,
exceto a de cabeceira, e moveu a lâmpada a fim de que a luz, atenuada
por uma cúpula de cetim, iluminasse os lençóis que a camareira havia
disposto para a noite. Deitou-se de costas, curvou-se ligeiramente, em
uma postura lânguida, desinibida, e acomodou a cabeça no travesseiro. -
Quando quiser. "Fechou os olhos para não o ver entrar", pensou dom
Rigoberto, enternecido com esse detalhe pudico. Na tonalidade azulada,
via muito nitidamente, sob a perspectiva da silhueta dubitativa e
ansiante do engenheiro que acabava de transpor o umbral, o corpo de
formas que, sem chegar a excessos rubensianos, emulavam as abundâncias
virginais de Murillo, estendido de costas, um joelho adiantado, cobrindo
o púbis, o outro oferecendo-se, as salientes curvas dos quadris
estabilizando o volume de carne dourada no centro da cama. Embora o
tivesse contemplado, estudado, acariciado e desfrutado tantas vezes, com
esses olhos alheios viu-o pela primeira vez. Durante um bom tempo - a
respiração alterada, o falo ereto -, admirou-o. Lendo seus pensamentos e
sem que uma palavra rompesse o silêncio, dona Lucrecia de vez em quando
se movia em câmera lenta, com o abandono de quem se crê a salvo de
miradas indiscretas, e mostrava ao respeitoso Modesto, plantado a dois
passos da cama, seus flancos e seu dorso, seu traseiro e seus seios, as
axilas depiladas e o bosquezinho do púbis. Por fim, foi abrindo as
pernas, revelando o interior das coxas e a meia-lua do sexo. "Na
postura da modelo anônima de Lorigine du monde, de Gustave Courbet
(1866)", buscou e encontrou dom Rigoberto, transido de emoção ao
comprovar que a louçania do ventre, a robustez das coxas e o monte de
Vênus de sua mulher coincidiam milimetricamente com a decapitada mulher
daquele óleo, príncipe de sua pinacoteca privada. Então, a eternidade
se evaporou: - Estou com sono e creio que você também, Pluto. É hora de
dormir.

46

- Boa noite - respondeu de imediato aquela voz, no auge da ventura ou da
agonia. Modesto recuou, tropeçando; segundos depois, a porta se fechou..
- Foi capaz de se conter, não se jogou em cima de você como uma fera
faminta - exclamou dom Rigoberto, encantado. - Você o manejava com o
dedo mindinho. - Eu não conseguia acreditar - riu-se Lucrecia. - Mas
essa docilidade dele também era parte do jogo. Na manhã seguinte, um
mensageiro lhe trouxe à cama um buquê de rosas com um cartão: "Olhos que
vêem, coração que sente, memória que recorda e um cão de desenho animado
que lhe agradece com toda a alma." - Eu desejo você demais -
desculpou-se dom Rigoberto, tapando-lhe a boca com a mão. - Preciso
fazer amor. - Imagine, então, a noitezinha que o pobre Pluto deve ter
passado. - O pobre? - refletiu dom Rigoberto, depois do amor, enquanto
convalesciam, fatigados e ditosos. - Pobre por quê? - O homem mais feliz
do mundo, Lucre - afirmou Modesto, nessa noite, entre duas sessões de
striptease, no aperto do Crazy Horse Saloon, rodeados de japoneses e
alemães, depois de beberem a garrafa de champanhe. - Nem mesmo o trem
elétrico que Papai Noel me trouxe quando fiz dez anos se compara com o
seu presente. Durante o dia, enquanto percorriam o Louvre, almoçavam em
La Closerie des Lilás, visitavam o Centre Pompidou ou se perdiam nas
ruelas restauradas do Marais, ele não fez a menor alusão à noite
anterior. Continuava agindo como companheiro de viagem informado,
devotado e serviçal. - Com cada coisa que você me conta, eu penso melhor
dele - comentou dom Rigoberto. - O mesmo me acontecia - reconheceu dona
Lucrecia. - Por isso, nesse dia, dei mais um passinho, para premiá-lo.
No Maxims, ele sentiu meu joelho no seu durante todo o jantar. E,
quando dançamos, meus peitos. E, no Crazy Horse, minhas pernas. - Que
sorte ele tem! - exclamou dom Rigoberto. - Ir conhecendo você como numa
novela, por episódios, pedacinho a pedacinho.

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O gato e o rato, em suma. Um jogo que não deixava de ser perigoso. -
Não, se a gente joga com cavalheiros como você - coqueteou dona
Lucrecia. - Estou contente por ter aceitado seu convite, Pluto. Tinham
voltado ao Ritz, alegres e sonolentos. Na saleta da suíte, despediam-se.
- Espere, Modesto - improvisou ela, pestanejando. - Surpresa, surpresa.
Feche os olhinhos. Pluto obedeceu no ato, transformado pela expectativa.
Dona Lucrecia se aproximou, grudou-se a ele e o beijou, primeiro
superficialmente, notando que ele demorava em responder à boca que lhe
roçava os lábios, e em replicar logo às solicitações de sua língua.
Quando ele o fez, ela sentiu que nesse beijo o engenheiro ia lhe
entregando seu velho amor, sua adoração, sua fantasia, sua saúde e (se é
que a tinha) sua alma. Quando ele enlaçou sua cintura, com cautela,
disposto a soltá-la ao menor rechaço, dona Lucrecia lhe permitiu que a
abraçasse. - Posso abrir os olhos? - Pode. "E então ele a fitou, não com
a mirada fria do perfeito libertino, de Sade", pensou dom Rigoberto,
"mas com o puro, fervente e apaixonado olhar do místico no momento da
ascensão e da visão". - Estava muito excitado? - deixou escapar, e se
arrependeu. - Que pergunta boba. Desculpe, Lucrecia. - Embora estivesse,
não tentou me reter. À primeira indicação, afastou-se. - Você devia ter
ido para a cama com ele nessa noite - admoestou-a dom Rigoberto. -
Estava abusando. Ou, talvez, não. Talvez tenha feito o que devia. Sim,
sim, claro. O lento, o formal, o ritual, o teatral, isso é o erótico.
Era uma espera sábia. A precipitação, ao contrário, nos aproxima do
animal. Sabia que o burro, o macaco, o porco e o coelho ejaculam em doze
segundos, no máximo? - Mas o sapo pode copular quarenta dias e quarenta
noites, sem parar. Li isso em um livro de Jean Rostand: Da mosca ao
homem. - Que inveja - admirou-se dom Rigoberto. - Você é cheia de
sabedoria, Lucrecia.

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- São as palavras de Modesto - desconcertou-o sua mulher, fazendo-o
retroceder a um Orient-Express que perfurava a noite européia, rumo a
Veneza. - No dia seguinte, em nosso camarote belle époque. Era o que
dizia também o buquê que a esperava no Hotel Cipriani, na ensolarada
Giudecca: "Para Lucrecia, bela na vida e sábia no amor." - Espere,
espere - devolveu-a aos trilhos dom Rigoberto. - Compartilharam esse
camarote, no trem? - Um com duas camas. Eu no alto e ele embaixo. - Ou
seja, vocês... - Tivemos de nos despir um acima do outro, literalmente -
completou ela. - Nos vimos em trajes menores, embora na penumbra, pois
apaguei todas as luzes, exceto a de cabeceira. - Trajes menores é um
conceito geral e abstrato - abespinhou-se dom Rigoberto. - Quero
detalhes. Dona Lucrecia os deu. Na hora de se despir - o anacrônico
Orient-Express cruzava uns bosques alemães ou austríacos e, de vez em
quando, uma aldeia -, Modesto lhe perguntou se queria que ele saísse.
"Não é preciso, nesta penumbra parecemos sombras", respondeu dona
Lucrecia. O engenheiro se sentou no leito inferior, encolhendo-se o
máximo possível para lhe deixar mais espaço. Ela se despiu sem forçar
seus movimentos nem estilizá-los, girando no lugar ao se despojar de
cada peça: o vestido, a anágua, o sutiã, as meias, a calcinha. O
resplendor da luz de cabeceira, uma luminariazinha em forma de cogumelo
com desenhos lanceolados, acariciou seu pescoço, ombro, seios, ventre,
nádegas, coxas, joelhos, pés. Erguendo os braços, ela passou pela cabeça
uma camisola de seda chinesa, com dragões. - Vou me sentar com as pernas
penduradas, enquanto escovo os cabelos - informou, fazendo o que dizia.
- Pode beijá-las, se lhe der vontade. Até os joelhos. Era o suplício de
Tântalo? Era o jardim das delícias? Dom Rigoberto havia deslizado para o
pé da cama, e, adivinhando-o, dona Lucrecia se sentou na borda para que,
como Pluto no Orient-Express, seu marido lhe beijasse o peito dos pés,
aspirasse a fragrância de cremes e colônias que lhe refrescavam os
tornozelos, mordiscasse os dedos dos seus pés e lambesse os tépidos
vãos que os separavam.

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- Eu amo e admiro você - disse dom Rigoberto. - Eu amo e admiro você -
disse Pluto. - E, agora, dormir - ordenou dona Lucrecia. Chegaram a
Veneza em uma manhã impressionista, sol poderoso e céu azul-marinho, e,
enquanto a lancha os levava ao Cipriani entre crespas ondinhas, Modesto,
Michelin na mão, deu a Lucrecia explicações sumárias sobre os palácios
e igrejas do Grande Canal. - Estou com ciúme, meu amor - interrompeu-a
dom Rigoberto. - Se for a sério, a gente apaga tudo, coração - propôs
dona Lucrecia. - De maneira nenhuma - recuou ele. - Os valentes morrem
de botas, como John Wayne. Da sacada do Cipriani, acima das árvores do
jardim, divisavam-se, de fato, as torres de São Marcos e os palácios da
margem. Saíram, com a gôndola e o guia que os esperavam. Foi uma
vertigem de canais e pontes, águas verdosas e bandos de gaivotas que
levantavam vôo à sua passagem, e escuras igrejas nas quais era preciso
forçar a vista para perceber os atributos das divindades e santidades
ali penduradas. Viram Tizianos e Veroneses, Bellinis e dei Piombos, os
cavalos de São Marcos, os mosaicos da catedral, e deram raquíticos
grãozinhos de milho aos gordos pombos da praça. Ao meio-dia, tiraram a
inevitável fotografia em uma mesa do Florian, enquanto degustavam a
pizzetta de praxe. À tarde, continuaram o percurso, ouvindo nomes, datas
e histórias que mal escutavam, entretidos pela arrulhante voz do guia da
agência. Às sete e meia, banhados e trocados, tomaram o Bellini no
salão de arcos mouriscos e almofadas árabes do Danieli, e, à hora exata
- nove -, estavam no Harry's Bar. Ali, viram chegar à mesa contígua
(parecia parte do programa) a divina Catherine Deneuve. Pluto disse o
que devia dizer: "Acho você mais bonita, Lucre." - E depois? -
apressou-a dom Rigoberto. Antes de tomar o vaporzinho para a Giudecca,
deram um passeio, dona Lucrecia de braço dado com Modesto, por ruelas
semidesertas. Chegaram ao hotel já depois da meia-noite. Dona Lucrecia
bocejava. - E depois? - impacientou-se dom Rigoberto.

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- Quando estou assim tão esgotada pelo passeio e as coisas bonitas que
vi, não consigo pregar o olho - lamentou-se dona Lucrecia. - Felizmente,
tenho um remédio que nunca falha. - Qual? - perguntou Modesto. - Que
remédio? - ecoou dom Rigoberto. - Uma jacuzzi, alternando a água fria e
a quente - explicou dona Lucrecia, dirigindo-se para sua alcova. Antes
de desaparecer lá dentro, apontou ao engenheiro o banheiro enorme e
luminoso, de ladrilhos brancos e paredes azulejadas. - Você me encheria
a jacuzzi, enquanto eu visto o roupão? Dom Rigoberto se remexeu no lugar
com a ansiedade de um insone: e depois? Ela foi até seu quarto,
despiu-se sem pressa, dobrando a roupa peça por peça, como se dispusesse
da eternidade. Envolta em um roupão felpudo e uma toalhinha como
turbante, retornou. A banheira circular crepitava com os espasmos da
jacuzzi. - Joguei uns sais - sondou Modesto, timidamente. - Fiz bem ou
mal? - Está perfeita - disse ela, experimentando a água com a ponta do
pé. Deixou cair o roupão de felpo amarelo aos seus pés e, mantendo a
toalha que servia de turbante, entrou e se deitou na jacuzzi. Apoiou a
cabeça em um travesseirinho que o engenheiro se apressou a lhe
estender. Suspirou, agradecida. - Devo fazer algo mais? - dom Rigoberto
ouviu Modesto perguntar, com um fio de voz. - Ir embora? Ficar? - Está
uma delícia, que delícia estas massagens de água fresquinha. - Dona
Lucrecia estirava pernas e braços, deleitando-se. - Daqui a pouco,
acrescento a mais quente. E depois, para a cama, novinha em folha. -
Você o cozinhava em fogo brando - aprovou dom Rigoberto, com um rugido.
- Fique, se quiser, Pluto - disse ela por fim, com a expressão
concentrada de quem está desfrutando infinitamente as carícias da água
indo e vindo pelo seu corpo. - A banheira é enorme, tem lugar de sobra.
Por que não toma banho comigo? Os ouvidos de dom Rigoberto registraram o
estranho grasnido de mocho? uivo de lobo? pio de pássaro? que respondeu
ao convite de sua mulher. E, segundos depois,

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ele viu o engenheiro nu, submergindo na banheira. O corpo dele, à beira
dos cinqüenta, de obesidade freada a tempo pelos aerobics e o
jogging
praticados até o limiar do infarto, mantinha-se a milímetros do de sua
mulher. - O que mais posso fazer? - ouviu-o perguntar, e sentiu que sua
admiração por ele crescia ao ritmo do seu ciúme. - Não quero fazer nada
que você não queira. Não tomarei nenhuma iniciativa. Tome você, todas.
Neste momento, sou o ser mais feliz e o mais desgraçado da Criação,
Lucre. - Pode me tocar - sussurrou ela, sem abrir os olhos, em ritmo de
bolero. - Me acariciar, me beijar, o corpo, o rosto. Os cabelos, não,
porque, se se molharem, amanhã você vai se envergonhar do meu penteado,
Pluto. Não vê que, em seu programa, você não deixou nem um tempinho
vago para o cabeleireiro? - Eu também sou o homem mais feliz do mundo -
murmurou dom Rigoberto. - E o mais desgraçado. Dona Lucrecia abriu os
olhos: - Não fique assim tão assustado. Não podemos permanecer muito
tempo na água. Para vê-los melhor, dom Rigoberto entrecerrou as
pálpebras. Ouvia o monótono chapinhar da jacuzzi e sentia as cócegas,
os golpes da água, a chuva de gotinhas que salpicava os ladrilhos, e
via Pluto, extremando as precauções para não se mostrar rude, enquanto
se dedicava àquele corpo macio que se deixava levar, tocar, acariciar,
facilitando com seus movimentos o acesso das mãos e dos lábios dele a
todos os cantinhos, mas sem responder a carícias nem a beijos, em estado
de passivo deleite. Sentia a febre queimando a pele do engenheiro. -
Não vai beijá-lo, Lucrecia? Não vai abraçá-lo, nem sequer uma vez? -
Ainda não - retrucou sua mulher. - Eu também tinha meu programa, muito
bem estudado. Afinal, ele não estava feliz? - Nunca o estive tanto -
disse Modesto, a cabeça emergindo do fundo da banheira, entre as pernas
de Lucrecia, antes de mergulhar de novo. - Queria cantar aos gritos,
Lucre. - Ele diz exatamente tudo o que eu sinto - interveio dom
Rigoberto, permitindo-se um gracejo: - Não havia perigo de uma
pneumonia, com esses esforços talassoeróticos?

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Riu, e na mesma hora se arrependeu, recordando que o humor e o prazer se
repeliam como água e óleo. "Perdão por lhe cortar a palavra",
desculpou-se. Mas era tarde. Dona Lucrecia havia começado a bocejar de
tal maneira que o atarefado engenheiro, fazendo das tripas coração,
ficou quieto. De joelhos, todo pingando, os cabelos em coroa de frade,
simulava resignação. - Você já está com sono, Lucre. - Me bateu o
cansaço do dia inteiro. Não agüento mais. Com um salto ligeiro, saiu da
banheira, embrulhando-se no roupão. Da porta do seu quarto, deu
boa-noite com uma frase que fez pular o coração do seu marido: - Amanhã
será outro dia, Pluto. - O último, Lucre. - E, também, a última noite -
frisou ela, jogando-lhe um beijo. Começaram a manhã do sábado com meia
hora de atraso, mas a recuperaram na visita a Murano, onde, sob um calor
infernal, artesãos em camisetas de presidiário sopravam o vidro segundo
o costume tradicional e torneavam objetos decorativos ou de uso
doméstico. O engenheiro insistiu em que Lucrecia, que resistia a fazer
mais compras, aceitasse três bichinhos transparentes: um esquilo, uma
cegonha e um hipopótamo. De volta a Veneza, o guia os ilustrou sobre
duas villas de Palladio. Em vez de almoçar, tomaram chá com biscoitos
no Quadri, desfrutando um sangrento crepúsculo que fazia flamejarem
telhados, pontes, águas e campanários, e chegaram a San Giorgio, para o
concerto barroco, a tempo de percorrer a ilhota e contemplar a laguna e
a cidade sob perspectivas diferentes. - O último dia é sempre triste -
comentou dona Lucrecia. - Isto terminará amanhã, para sempre. - Estavam
de mãos dadas? - quis saber dom Rigoberto. - Também estivemos durante
todo o concerto - confessou sua mulher. - O engenheiro caiu na
choradeira? - Estava abatido. Me apertava a mão e seus olhinhos
brilhavam.

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"De gratidão e de esperança", pensou dom Rigoberto. O diminutivo
"olhinhos repercutiu em suas terminações nervosas. Decidiu que, a partir
desse momento, calaria. Enquanto dona Lucrecia e Pluto jantavam no
Danieli, contemplando as luzes de Veneza, respeitou a melancolia deles,
não interrompeu seu diálogo convencional, e sofreu estoicamente ao
perceber, no decorrer do jantar, que agora não apenas Modesto
multiplicava as atenções. Lucrecia lhe oferecia torradinhas depois de
untá-las com manteiga, dava-lhe para provar em seu próprio garfo bocados
dos seus rigatoni e, comprazida, relaxava sua mão quando ele a levava à
boca para ali pousar os lábios, uma vez. na palma, outra no dorso, outra
nos dedos e em cada uma das unhas. Com o coração apertado e uma
incipiente ereção, dom Rigoberto esperava aquilo que de todo modo teria
de ocorrer. E, de fato, mal entraram na suíte do Cipriani, dona Lucrecia
pegou Modesto pelo braço, fez com que ele a enlaçasse, aproximou os
lábios e, boca contra boca, língua contra língua, murmurou: - Como
despedida, passaremos a noite juntos. Serei com você tão complacente,
tão terna, tão amorosa como só fui com meu marido. - Você disse isso? -
engoliu estricnina e mel dom Rigoberto. - Fiz mal? - alarmou-se sua
mulher. - Devia ter mentido para ele? - Fez bem - latiu dom Rigoberto. -
Meu amor. Em um estado ambíguo, no qual a excitação desmentia o ciúme e
ambos se retroalimentavam, viu-os despir-se, admirou a desenvoltura com
que sua esposa o fazia e curtiu a bisonhice daquele ditoso mortal
embaraçado pela felicidade que, nessa última noite, recompensava sua
timidez e sua obediência. Ela ia ser sua, ele ia amá-la: as mãos não
acertavam em desabotoar a camisa, travava-se o fecho da calça, ele
tropeçou ao tirar os sapatos, e quando, exorbitado, ia encarapitar-se
sobre a cama em penumbra, onde o esperava, em lânguida postura - "A maja
desnuda de Goya", pensou dom Rigoberto, "só que com as coxas mais
abertas" -, aquele corpo magnífico, bateu o tornozelo na borda do leito
e gritou "Aiaiai". Dom Rigoberto se divertiu ao escutar a hilaridade
que o acidente provocou em Lucrecia. Modesto ria também, ajoelhado na
cama: "A emoção, Lucre, a emoção."

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As brasas do seu prazer se apagaram, quando, sufocado o riso, ele viu
sua mulher abandonar a indiferença de estátua com que no dia anterior
bavia recebido as carícias do engenheiro e tomar a iniciativa.
Abraçava-o, obrigava-o a deitar-se junto dela, sobre ela, embaixo dela,
enredava suas pernas nas dele, buscava-lhe a boca, metia a língua ali, e
- "ai, ai", rebelou-se dom Rigoberto - agachava-se com amorosa
disposição, pescava entre seus afilados dedos o sobressaltado membro e
depois de passá-lo no flanco e na testa levava-o aos lábios e o beijava
antes de fazê-lo desaparecer em sua boca. Então, a plenos pulmões,
ricochetean-do na cama fofa, o engenheiro começou a cantar - a rugir, a
uivar - Torna a. Surriento. - Começou a cantar Torna a Surriento! -
endireitou-se violentamente dom Rigoberto. - Nesse instante? - Isto
mesmo - Dona Lucrecia voltou a soltar uma gargalhada, a conter-se e a
pedir perdão. - Você me deixa pasma, Pluto. Canta porque está gostando
ou porque não está? - Canto para gostar - explicou ele, trêmulo e
carmesim, entre fífias e arpejos. - Quer que eu pare? - Quero que
continue, Lucre - implorou Modesto, eufórico. - Ria, não importa. Para
que minha felicidade seja completa, eu canto. Tampe os ouvidos se isso a
distrai ou a faz rir. Mas, pelo que você mais ama, não pare. - E
continuou cantando? - exclamou, ébrio, louco de satisfação, dom
Rigoberto. - Sem parar um segundo - afirmou dona Lucrecia, entre
espasmos. - Enquanto eu o beijava, me sentava em cima dele e ele em cima
de mim, enquanto fazíamos o amor ortodoxo e o heterodoxo. Cantava, tinha
de cantar. Porque, se não cantasse, fiasco. - Sempre Torna a Surriento!
- regozijou-se dom Rigoberto, no doce prazer da vingança. - Qualquer
canção da minha juventude - trauteou o engenheiro, saltando, com toda a
força dos seus pulmões, da Itália ao México. - Voy a cantarles un
corrido muy mentadooo...' * "Vou cantar-lhes um corrido muito
famosooo...". E o primeiro verso da canção Juan Charrasqueado ("Juan
Navalhado", "Juan da Cicatriz no Rosto"), mencionada adiante. (N. da T.)

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- Um pot-pourri de cafonices dos anos cinqüenta - especificou dona
Lucrecia. - O sole mio, Caminito, Juan Charrasqueado. Allá en el rancho
grande, e até Madrid, de Agustín Lara. Ai, que engraçado! - E, sem essas
pieguices musicais, fiasco? - pedia confirmação dom Rigoberto, hóspede
do sétimo céu. - E o melhor da noite, meu amor. - O melhor você ainda
não ouviu, o melhor foi o final, o máximo do ridículo - Limpava as
lágrimas dona Lucrecia. - Os vizinhos começaram a bater nas paredes,
ligaram da recepção, que baixássemos a tevê, o toca-discos, ninguém
conseguia dormir no hotel. - Ou seja, nem você nem ele devem ter chegado
a... - insinuou dom Rigoberto, com débil esperança. - Eu, duas vezes -
devolveu-o à realidade dona Lucrecia. - E ele, pelo menos uma, tenho
certeza. Quando estava bem colocado para a segunda, armou-se o alvoroço
e sua inspiração sumiu. Tudo acabou em risos. Que noitezinha... Tipo
"Acredite se quiser". - Agora, você já sabe meu segredo também - disse
Modesto, depois que, acalmados os vizinhos e a recepção, extintas as
risadas, aplacados os ímpetos, os dois passaram a conversar, envoltos
nos brancos roupões de banho do Cipriani. - Você se importa se não
falarmos disto? Como deve imaginar, me dá vergonha... Enfim, quero lhe
dizer, mais uma vez, que nunca esquecerei esta semaninha, Lucre. - Eu
também não, Pluto. Vou recordá-la sempre. E não só pelo concerto, juro.
Dormiram como marmotas, com a consciência do dever cumprido, e chegaram
ao embarcadouro a tempo de tomar o vaporzinho para o aeroporto. A
Alitália também se esmerou e saíram sem atraso, de modo que alcançaram
o Concorde de Paris para Nova York. Ali se despediram, conscientes de
que não voltariam a se ver. - Me diga que foi uma semana horrível, que
você a odiou - gemeu, pressuroso, dom Rigoberto, segurando sua mulher
pela cintura e encarapitando-a sobre ele. - Não, não, Lucrecia?

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- Por que você não experimenta cantar alguma coisa, aos berros? -
sugeriu ela, com a voz aveludada dos melhores encontros noturnos. - Algo
meloso, amor. La flor de la canela., Fumando espero, Brasil, terra do
meu coração. Só para a gente ver o que acontece, Rigoberto.

III. O JOGO DOS QUADROS

- Que engraçado, madrasta - disse Fonchito. - Suas meias verde-escuras
são iguaizinhas às de uma modelo de Egon Schiele. A senhora Lucrecia
olhou as grossas meias de lã que agasalhavam suas pernas até acima dos
joelhos. - São ótimas para a umidade de Lima - disse, apalpando-as. -
Graças a elas, mantenho os pés quentinhos. - Nu reclinado com meias
verdes - recordou o menino. - Um dos quadros mais famosos dele. Quer
ver? - Bom, pode mostrar. Enquanto Fonchito se apressava a abrir sua
mochila, que, como sempre, havia atirado no tapete da sala de jantar, a
senhora Lucrecia sentiu o difuso desassossego que o menino costumava
lhe transmitir com aqueles rompantes que sempre pareciam ocultar, sob
uma aparência inofensiva, algum perigo. - Que coincidência, madrasta -
dizia Fonchito, folheando o livro de reproduções de Schiele que acabava
de tirar da mochila. - Eu me pareço com ele e você se parece com suas
modelos. Em muitas coisas. - Em quê, por exemplo? - Nessas meias verdes,
pretas ou marrons que usa. E também na manta quadriculada de sua cama. -
Caramba, que observador. - E, por último, na majestade - acrescentou
Fonchito, sem levantar a vista, concentrado na busca do Nu redinado com
meias verdes. Dona Lucrecia não soube se devia rir ou caçoar. Ele se
dava conta do rebuscado galanteio, ou este lhe saíra por acaso? - O
papai não dizia que você tem uma grande majestade? Que, faça o que
fizer, nada em você é vulgar? Eu só entendi o que isso queria dizer
graças a Schiele. As modelos dele levantam as saias, mostram tudo, se
apresentam em posturas estranhíssimas,

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mas nunca parecem vulgares. Sempre, umas rainhas. Por quê? Porque têm
majestade. Como você, madrasta. Confusa, lisonjeada, irritada, alarmada,
dona Lucrecia queria e não queria botar um ponto final nessa explicação.
Mais uma vez, sentia-se insegura. - Você diz cada coisa, Fonchito... -
Achei! - exclamou o menino, estendendo-lhe o livro. - Vê o que eu digo?
Não é uma pose que, em qualquer outra, pareceria feia? Mas nela, não,
madrasta. Pois então? Ter majestade é isso. - Deixe ver. - A senhora
Lucrecia pegou o livro e, depois de examinar um bom tempo o Nu redinado
com meias verdes, assentiu: - Certo, a cor é a mesma destas que estou
usando. - Não o acha lindo? - Sim, é muito bonito. - Fechou o livro e o
devolveu com presteza. De novo, agoniou-a a idéia de que perdia a
iniciativa, de que o menino começava a derrotá-la. Mas que batalha era
aquela? Encontrou os olhos de Alfonso: brilhavam com uma luzinha
equívoca, e em sua cara marota se esboçava um sorriso. - Posso lhe pedir
um favor enorme? O maior do mundo? Você faria? "Vai pedir que eu tire a
roupa", imaginou ela, aterrorizada. "Dou-lhe um tabefe e não o vejo
mais." Odiou Fonchito e se odiou. - Que favor? - murmurou, tentando
evitar que seu sorriso fosse macabro. - Fique como esta senhora do Nu
redinado com meias verdes - entoou a vozinha melíflua. - Só um tempinho,
madrasta! - Como assim? - Claro que sem se despir - tranquilizou-a o
menino, movendo olhos, mãos, empinando o nariz. - Nesta pose. Morro de
vontade. Me faria este grande, grande favor? Não seja má, madrasta. -
Não se faça tanto de rogada, a senhora sabe de sobra que vai gostar -
disse Justiniana, aparecendo e exibindo seu excelente humor de cada dia.
- Amanhã é o aniversário de Fonchito, então que seja o presente dele.

59

- Bravo, Justita! - bateu palmas o menino. - Nós dois juntos vamos
convencê-la. Me dá esse presente, madrasta? Mas os sapatos, tem que
tirar, sim. - Confesse que quer ver os pés da patroa porque sabe que são
muito bonitos - atiçou-o Justiniana, mais temerária do que em outras
tardes, enquanto dispunha na mesinha a Coca-Cola e o copo de água
mineral que lhe haviam pedido. - Ela tem tudo bonito - afirmou o menino,
com candura. - Vamos, madrasta, não tenha vergonha da gente. Se quiser,
para não se sentir mal, depois Justita e eu podemos brincar de imitar
outro quadro de Egon Schiele. Sem saber o que replicar, que gracejo
fazer, como simular um aborrecimento que não sentia, a senhora Lucrecia
se viu, de repente, sorrindo, assentindo, murmurando "Será seu presente
de aniversário, seu caprichosinho", descalçando-se, inclinando-se e
estendendo-se no comprido sofá. Procurou imitar a reprodução que
Fonchito havia exibido e lhe apontava, como um diretor teatral
instruindo a estrela do espetáculo. Na presença de Justiniana, sentia-se
protegida, ainda que agora tivesse dado nesta louca a veneta de ficar
do lado de Fonchito. Ao mesmo tempo, o fato de ela estar ali, como
testemunha, acrescentava certo tempero à insólita situação. Tentou
levar na chacota o que fazia, "E assim?" "Não, o ombro mais para cima, o
pescoço como galinhinha, a cabeça bem retinha", enquanto se apoiava nos
cotovelos, alongava uma perna e flexionava a outra, decalcando a pose
da modelo. Os olhos de Justiniana e de Fonchito passavam dela à estampa,
da estampa a ela, sorridentes os da moça, profundamente concentrados os
do menino. "Este é o jogo mais sério do mundo", ocorreu a dona Lucrecia.
- Está igualzinha, patroa. - Ainda não - cortou Fonchito. - Precisa
subir mais o joelho, madrasta. Eu ajudo. Antes que ela tivesse tempo de
negar a permissão, o menino entregou o livro a Justiniana, aproximou-se
do sofá e colocou-lhe as duas mãos embaixo do joelho, onde terminava a
meia verde-escura e despontava a coxa. Com suavidade, atento à
reprodução, ergueu-lhe a perna e a moveu. O contato dos delgados
dedinhos em sua curva desnuda perturbou dona Lucrecia. A metade
inferior do seu corpo começou a tremer.

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Sentia uma palpitação, uma vertigem, algo avassalador que a fazia sofrer
e gozar. E, nisto, descobriu o olhar de Justiniana. As pupilas acesas
daquela carinha morena eram loquazes. "Ela sabe como eu estou", pensou,
envergonhada. O grito do menino veio salvá-la: - Agora sim, madrasta!
Não está exata, Justita? Fique assim um segundinho, por favor. Do
tapete, sentado com as pernas cruzadas como um oriental, ele a fitava
arrebatado, a boca entreaberta, os olhos um par de luas cheias, em
êxtase. A senhora Lucrecia deixou passarem cinco, dez., quinze
segundos, quietinha, contagiada pela solenidade com que o menino
encarava o jogo. Algo acontecia. A suspensão do tempo? O pressentimento
do absoluto? O segredo da perfeição artística? Assaltou-a uma suspeita:
"É igualzinho a Rigoberto. Herdou sua fantasia tortuosa, suas manias,
seu poder de sedução. Mas, por sorte, não sua cara de barnabé, nem suas
orelhas de Dumbo, nem seu nariz de cenoura." Custou-lhe trabalho romper
o sortilégio: - Acabou. Agora é a vez de vocês. A desilusão se apoderou
do arcanjo. Mas, de imediato, ele reagiu: - Tem razão. Já chega. - Mãos
à obra - instigou-os dona Lucrecia. - Que quadro vão representar? Eu
escolho. Me dê o livro, Justiniana. - Aí só tem dois quadros para
Justita e para mim - preveniu Fonchito. - Mãe e filho e o Nu de homem e
mulher reclinados, pés com cabeça. Os outros são homens sozinhos,
mulheres sozinhas ou casais de mulheres. O que você preferir, madrasta.
- Eta, sabe-tudo! - exclamou Justiniana, estupefata. Dona Lucrecia
inspecionou as imagens e, de fato, as mencionadas por Alfonsito eram as
únicas imitáveis. Descartou a última: que verossimilhança podia ter um
menino imberbe fingindo ser aquele barbudo ruivo, identificado pelo
autor do livro como o artista Félix Albrecht Harta, que a observava, da
foto do óleo, com expressão boba, indiferente ao nu sem rosto, de meias
vermelhas, a rastejar como serpente amorosa sob sua perna flexionada?
Em Mãe e filho havia pelo menos uma desproporção de idade semelhante à
de Alfonso e Justiniana.

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- Danada de pose, a desta mamãe e deste filhinho - fingiu se alarmar a
empregada. - Suponho que você não vai me pedir para tirar o vestido, seu
sem-vergonha. - Pelo menos, ponha umas meias pretas - retrucou o menino,
sem brincar. - Eu só vou tirar os sapatos e a camisa. Não havia maldade
em sua voz, nem sombra de malícia. Dona Lucrecia aguçava o ouvido,
perscrutava com desconfiança u carinha precoce: não, nem sombra. Era um
ator consumado. Ou um menino puro e ela uma idiota, uma velha
assanhada? O que Justiniana tinha? Na convivência de tantos anos, não
recordava tê-la visto tão agitada. - Que meias pretas eu vou calçar? Por
acaso tenho alguma? - Minha madrasta lhe empresta. Em vez de interromper
a brincadeira, como a razão aconselhava, dona Lucrecia se ouviu dizer:
"Claro." Foi ao seu quarto e voltou com as meias pretas de lã que usava
nas noites mais frias. O menino estava despindo a camisa. Era delgado,
harmonioso, entre branco e dourado. Dona Lucrecia viu-lhe o torso, os
braços esbeltos, os ombros de ossinhos salientes, e recordou. Tudo
aquilo havia acontecido, então? Justiniana tinha parado de rir e evitava
olhá-la. Talvez também estivesse em brasas. - Calce, Justita -
apressou-a o menino. - Quer que eu ajude? - Não, muito obrigada. Também
a moça havia perdido a naturalidade e a confiança que raramente a
abandonavam. Com dedos atrapalhados, calçou as meias torcidas. Enquanto
as alisava e puxava, dobrava-se, tentando ocultar as pernas. Ficou
cabisbaixa, no tapete, junto ao menino, movendo as mãos à toa. - Vamos
começar - disse Alfonso. - Você de bruços, a cabeça sobre os braços,
cruxados como um travesseiro. Eu tenho que me grudar à sua direita. Os
joelhos em sua perna, minha cabeça no seu flanco. Só que, como sou
maior que o do quadro, chego ao seu ombro. Estamos um pouco parecidos,
madrasta? Com o livro na mão, tomada por um escrúpulo de perfeição, dona
Lucrecia se inclinou sobre eles. A mãozinha esquerda devia aparecer
abaixo do ombro direito de Justiniana, a carinha mais para cá.

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"Apoie a mão esquerda nas costas dela, Foncho, descansando ali. Sim,
agora se parecem bastante." Sentou-se no sofá e os contemplou, sem
vê-los, absorta em seus pensamentos, assombrada com o que se passava.
Fconchito era Rigoberto. Revisto e ampliado. Ampliado e revisto.
Sentiu-se ausente, mudada. Eles permaneciam quietos, brincando com toda
a seriedade. Ninguém sorria. O olho único que a postura deixava a
Justiniana já não refulgia com picardia, empoçara-se nele uma modorra
lânguida. Estaria excitada, também? Sim, sim, igual a ela, mais que ela.
Só Fonchito - os olhos fechados para se assemelhar mais com o menino
sem rosto de Schiele - parecia jogar o jogo sem reservas nem exageros. A
atmosfera estava adensada, os ruídos do Olivar extintos, o tempo
escoado, e a casinha, San Isidro, o mundo, evaporados. - Temos tempo
para mais um - disse Fonchito afinal, levantando-se. -Agora, vocês duas.
O que acham? Só pode ser, vire a página, madrasta, este, exatamente.
Duas jovens jazendo entrelaçadas, pés com cabeça. Não saia daí,
Justita. Apenas vire-se de frente, e só. Deite-se ao lado, madrasta, com
as costas sobre Justita. A mão assim, embaixo dos quadris dela. Você é
a do vestido amarelo, Justita. Imite-a. Este braço fica aqui, e o
direito, passe embaixo das pernas da minha madrasta. Quanto a você,
madrasta, dobre-se um pouquinho, para seu joelho tocar o ombro dela.
Justita, levante esta mão, coloque na perna da minha madrasta, abra os
dedos. Assim, assim. Perfeito! Elas calavam e obedeciam, dobrando-se,
desdobrando-se, torcendo-se, alongando ou encolhendo pernas, braços,
pescoços. Dóceis? Encantadas? Enfeitiçadas? "Derrotadas", admitiu dona
Lucrecia. Sua cabeça repousava sobre as coxas da moça e sua mão direita
a segurava pela cintura. De vez em quando a pressionava, para sentir a
umidade e a calidez que emanavam dela; e, respondendo a essa pressão,
em sua coxa direita os dedos de Justiniana também afundavam e faziam-na
sentir que a outra a sentia. Estava viva. Claro que estava; esse odor
intenso, denso, perturbador, que ela aspirava, de onde podia vir, senão
do corpo de Justiniana? Ou viria dela mesma? Como haviam chegado a tais
extremos? O que teria acontecido para que, sem perceber - ou percebendo
-, este menininho as induzisse a esta brincadeira? Agora, isso já não
lhe importava.

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Sentia-se muito a gosto dentro do quadro. Consigo mesma, com seu corpo,
com Justiniana, com a circunstância que vivia. Ouviu Fonchito se
afastar: - Que pena, preciso ir. Estava tão bonito... Mas, vocês,
continuem brincando. Obrigado pelo presente, madrasta. Dona Lucrecia o
sentiu abrir a porta, depois fechá-la. Ele havia partido, deixando-as
sozinhas, deitadas, entrelaçadas, abandonadas, perdidas em uma fantasia
do seu pintor favorito.

A REBELIÃO DOS CLITÓRIS

Entendo, madame, que a variante feminista representada pela senhora
declarou a guerra dos sexos, e que a filosofia de seu movimento se apoia
na convicção segundo a qual o clitóris é moral, física, cultural e
eroticamente superior ao pênis, e os ovários, de mais nobre
idiossincrasia do que os testículos. Admito que suas teses são
defensáveis. Não pretendo opor-lhes a menor objeção. Minhas simpatias
pelo feminismo são profundas, embora subordinadas ao meu amor pela
liberdade individual e pelos direitos humanos, o que as enquadra dentro
de limites que devo esclarecer, a fim de que minhas próximas afirmações
tenham sentido. Generalizando, e para começar pelo mais óbvio,
afirmarei que sou pela eliminação de todo obstáculo legal a que a mulher
tenha acesso às mesmas responsabilidades do varão e a favor do combate
intelectual e moral contra os preconceitos em que se apoia a limitação
dos direitos das mulheres, dentro dos quais, apresso-me a acrescentar,
parece-me o mais importante, assim como no que concerne aos varões, não
o direito ao trabalho, à educação, à saúde etc., mas o direito ao
prazer, ponto em que, tenho certeza, surge nossa primeira discrepância.
Mas a principal e, temo, irreversível, aquela que cava um abismo
intransponível entre a senhora e eu - ou, para nos movermos no domínio
da neutralidade científica, entre meu falo e sua vagina -, baseia-se em
que, sob meu ponto de vista, o feminismo é uma categoria conceitual
coletivista, isto é, um sofisma, pois pretende encerrar, dentro de um
conceito genérico homogêneo, uma vasta coletividade de individualidades
heterogêneas, nas quais diferenças e disparidades são pelo menos tão
importantes

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(seguramente mais) quanto o denominador comum clitorídeo e ovárico.
Quero dizer, sem a menor pirueta cínica, que estar dotado de falo ou de
clitóris (artefatos de fronteira duvidosa, como lhe provarei a seguir)
me parece menos importante, para diferenciar um ser de outro, do que
todo o resto dos atributos (vícios, virtudes ou taras) específicos de
cada indivíduo. Esquecer isso levou as ideologias a criarem formas de
opressão igualadora geralmente piores do que aqueles despotismos contra
os quais pretendiam se insurgir. Temo que o feminismo, na variante que a
senhora patrocina, vá por esse caminho no caso de triunfarem suas teses,
o que, sob o ponto de vista da condição da mulher, significaria
simplesmente, em linguagem coloquial, trocar seis por meia dúzia. Estas
são, para mim, considerações de princípio moral e estético que a senhora
não tem por que compartilhar. Felizmente, tenho também a ciência do meu
lado. Poderá comprová-lo se der uma olhada, por exemplo, nos trabalhos
da professora de genética e ciência médica da Universidade de Brown,
doutora Anne Fausto-Sterling, a qual, há vários anos, se esganiça para
demonstrar, ante a multidão idiotizada pelas convenções e pelos mitos, e
cega diante da verdade, que os sexos humanos não são os dois que fomos
induzidos a crer - feminino e masculino -, mas pelo menos cinco, ou
talvez mais. Embora, por razões fonéticas, tenha objeções aos nomes
escolhidos pela doutora Fausto-Sterling (herms, merms e ferms) para as
três variedades intermediárias entre o masculino e o feminino detectadas
pela biologia, pela genética e pela sexologia, saúdo as pesquisas dela
e as de cientistas afins, como poderosos aliados daqueles que, tal qual
este covarde escriba, acreditam que a divisão maniqueísta da humanidade
em homens e mulheres é uma ilusão coletivista, cumulada de conspirações
contra a soberania individual - donde, contra a liberdade -, e uma
falsidade científica entronizada pelo tradicional empenho dos Estados,
das religiões e dos sistemas legais em manter esse sistema dualista, em
oposição a uma Natureza que o desmente a cada passo. A imaginação da
libérrima mitologia helênica sabia disso muito bem, quando patenteou
aquela feitura combinada de Hermes e Afrodite, o Hermafrodita
adolescente, que, ao enamorar-se de uma ninfa, fundiu seu corpo com o
dela,

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tornando-se desde então homem-mulher ou mulher-homem (cada uma dessas
fórmulas, a doutora Fausto-Sterling dixit, representa um matiz distinto
de coligação, em um só indivíduo, de gônadas, hormônios, composição de
cromossomos, e, por isso mesmo, origina sexos diferentes dos que
conhecemos por homem e mulher, a saber, os cacofônicos e confusos
herms, merms eferms). O importante é saber que isso não é mitologia, mas
realidade retumbante, pois, antes e depois do Hermafrodita grego,
nasceram esses seres intermediários (nem varões nem fêmeas na concepção
usual do termo), condenados, por estupidez, ignorância, fanatismo e
preconceitos, a viver sob disfarce, ou, se fossem descobertos, a ser
queimados, enforcados, exorcizados como engendrações do demônio, e, na
era moderna, a ser "normalizados" desde o berço mediante a cirurgia e a
manipulação genética por parte de uma ciência a serviço dessa falaz
nomenclatura que só aceita o masculino e o feminino e lança fora da
normalidade, aos infernos da anomalia, da monstruosidade ou da
extravagância física, esses delicados heróis intersexuais - toda a minha
simpatia está com eles - dotados de testículos e ovários, clitóris como
pênis ou pênis como clitóris, uretras e vaginas, e que, às vezes,
disparam espermatozóides e ao mesmo tempo menstruam. Para seu
conhecimento, esses casos raros não são tão raros assim; o doutor John
Money, da Universidade de Johns Hopkins, estima que os intersexuais
constituam quatro por cento dos hominídeos que nascem (some e verá que,
sozinhos, eles povoariam um continente). A existência dessa populosa
humanidade cientificamente estabelecida (sobre a qual me inteirei lendo
esses trabalhos que, para mim, têm interesse sobretudo erótico), à
margem da normalidade e por cuja liberação, reconhecimento e aceitação
luto também à minha fútil maneira (quero dizer, do meu solitário
cantinho de libertário hedonista, amante da arte e dos prazeres do
corpo, encarcerado no anódino ganha-pão de gerente de uma companhia de
seguros), fulmina os que, como a senhora, se empenham em separar a
humanidade em compartimentos estanques em razão do sexo: falos aqui,
clitóris do outro lado, vaginas à direita, escrotos à esquerda. Esse
esquematismo gregário não corresponde à verdade. Também no que se
refere ao sexo, nós humanos representamos um leque de variantes,
famílias, exceções, originalidades e matizes.

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Para apreender a realidade última e intransferível do humano, neste
domínio, como em todos os outros, há que renunciar ao rebanho, à visão
tumultuária, e recolher-se ao individual. Resumindo, direi à senhora que
todo movimento que pretenda transcender (ou relegar a segundo plano) o
combate pela soberania individual, antepondo-lhe os interesses de um
coletivo - classe, raça, gênero, nação, sexo, etnia, igreja, vício ou
profissão -, parece-me uma conspiração para enredar ainda mais a
maltratada liberdade humana. Essa liberdade só alcança seu pleno
sentido na esfera do indivíduo, pátria cálida e indivisível que
encarnamos, a senhora com seu clitóris beligerante e eu com meu falo
encoberto (conservo o prepúcio e também o conserva meu filhinho Alfonso,
e sou contra a circuncisão religiosa dos recém-nascidos - não a
escolhida por seres com uso da razão - pelos mesmos motivos com que
condeno a ablação do clitóris e dos lábios superiores vaginais praticada
por muitos islamitas africanos), e deveríamos defendê-la, antes de
tudo, contra a pretensão dos que quiseram nos dissolver nesses
conglomerados amorfos e castradores, manipulados pelos famintos de
poder. Tudo parece indicar que a senhora e suas seguidoras fazem parte
desse rebanho e, portanto, é meu dever participar-lhe meu antagonismo e
minha hostilidade através desta carta, que, ademais, tampouco penso em
colocar no correio. Para suprimir um pouco a seriedade funérea de minha
missiva e terminá-la com um sorriso, animo-me a relatar-lhe o caso do
pragmático andrógino Emma (eu deveria, talvez, dizer andrógina?),
relatado pelo urologista Hugh H. Young (igualmente da Johns Hopkins) que
o/a tratou. Emma foi educada como menina, apesar de ter um clitóris do
tamanho de um pênis, e uma vagina hospitaleira, o que lhe permitia
celebrar intercâmbios sexuais com mulheres e homens. Em solteira,
teve-os sobretudo com moças, atuando como homem. Depois, casou-se com
um varão e fez amor como mulher, sem que, contudo, esse papel a
deleitasse tanto quanto o outro; por isso, teve amantes mulheres, as
quais perfurava alegremente com seu virilizado clitóris. Consultado por
ela, o doutor Young explicou-lhe que seria muito fácil submetê-la a uma
intervenção cirúrgica e transformá-la só em homem, já que essa parecia
ser sua preferência. A resposta de Emma vale bibliotecas sobre a
estreiteza do universo humano:

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"O senhor teria de me tirar a vagina, não, doutor? Não creio que me
convenha, pois ela me dá de-comer. Se me operar, eu teria de me separar
do meu marido e procurar trabalho. Diante disso, prefiro continuar como
estou." Quem cita a história é a doutora Anne Fausto-Sterling em Myths
of Gender: Biológica! Theories about Women and Men, livro que lhe
recomendo. Boa sorte e boas trepadas, amiga.

CARRASPANA E CARAMBOLA

No sossego da noite barranquina, dom Rigoberto se endireitou na cama com
a ligeireza de uma serpente convocada pelo encantador. Ali estava dona
Lucrecia, belíssima em seu decotado vestido preto de tule, ombros e
braços nus, sorridente, atendendo à dúzia de convidados. Dava ordens ao
mordomo que servia as bebidas e a Justiniana, que, de uniforme azul com
avental branco engomado, passava as bandejas de tira-gostos - fatias de
aipim com molho huancaíno, palitinhos de queijo, casquinhas à
parmegiana, azeitonas recheadas - com desenvoltura de dona de casa.
Mas o coração de dom Rigoberto deu um salto: o que lutava para ocupar
toda a cena em sua lembrança indireta daquele evento (ele tinha sido o
grande ausente da festa, que conhecia através de Lucrecia e de sua
própria imaginação) era a voz estrambótica de Fito Cebolla. Já bêbado?
A caminho de ficar, pois os uísques se sucediam em suas mãos como contas
de rosário nas de uma devota. - Se você precisava viajar - aninhou-se em
seus braços dona Lucrecia -, devíamos ter cancelado o coquetel. Eu lhe
disse isso. - Por quê? - perguntou dom Rigoberto, ajustando seu corpo ao
da esposa. -Aconteceu algo? - Muitas coisas - riu-se dona Lucrecia, a
boca contra o peito dele. - Não vou lhe contar. Nem pense nisso. -
Alguém se comportou mal? - animou-se dom Rigoberto. - Fito Cebolla
passou dos limites, por exemplo? - E quem mais? - concedeu sua mulher. -
Ele, claro.

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"Fito, Fito Cebolla", pensou. Gostava dele ou o odiava? Não era fácil
saber, pois Fito lhe despertava um daqueles sentimentos difusos e
contraditórios que eram sua especialidade. Tinha-o conhecido quando, em
uma reunião de diretoria, decidiram nomeá-lo relações -públicas da
companhia. Fito mantinha amigos em toda parte e, embora tivesse entrado
em franca decadência e enveredado pela compulsão alcoólica mais babosa,
sabia fazer bem o que sua ribombante nomeação sugeria: relacionar-se e
aparecer em público. - Que barbaridade ele fez? - perguntou, ansioso. -
Comigo, me passar a mão - respondeu dona Lucrecia, encabulada,
esquivando-se e reaproximando-se do marido. - Com Justiniana, por pouco
não a estuprou. Dom Rigoberto conhecia de ouvido a reputação de Fito e
teve certeza de que o detestaria, mal o visse aparecer no trabalho para
tomar posse da função. Que outra coisa podia ser ele, além de um
canalha inapresentável, um sujeito de vida balizada por atividades
esportivas - seu nome se associava, nas vagas lembranças de dom
Rigoberto, ao surfe, ao tênis, ao golfe, a desfiles de moda ou
concursos de beleza nos quais costumava ser jurado, e às páginas
frívolas, nas quais freqüentemente irrompiam sua dentadura carniceira e
sua pele bronzeada pelas praias do planeta, metido em trajes a rigor,
esportivo, havaiano, noturno, vespertino, matinal ou crepuscular, uma
taça na mão e emoldurado por mulheres lindíssimas. Imaginava-o de uma
imbecilidade integral, em sua variante alta sociedade limenha. Teve uma
surpresa enorme ao descobrir que Fito Cebolla, sendo exatamente tudo o
que se podia esperar dele - frívolo, cafetão de luxo, cínico, penetra,
parasita, ex- desportista e ex-rei dos coquetéis - , era também um
original, um imprevisível e, até que o porre o derrubasse, uma figura
divertidíssima. Tinha lido umas coisas algum dia e tirava proveito
dessas leituras, citando Fernando Casós - "No Peru é admirável o que não
acontece" - e, entre gargalhadas repreensivas, Paul Groussac: "Florença
é a cidade-artista, Liverpool a cidade-mercadora e Lima a
cidade-mulher." (Para comprovar estatisticamente sua assertiva, andava
com uma caderneta na qual ia anotando as mulheres feias e as bonitas com
quem cruzava em seu caminho.) Pouco depois de se conhecerem, enquanto
tomavam um traguinho com dois colegas do trabalho

69

no Club de la Union, tinham feito uma aposta entre os quatro para ver
quem pronunciava a frase mais pedante. A de Fito Cebolla ("Sempre que
passo por Port Douglas, na Austrália, traço uma bisteca de crocodilo e
como uma aborígine") ganhou por unanimidade. Na solidão escura, dom
Rigoberto foi tomado por um arroubo de ciúme que alterou seu pulso. Sua
fantasia trabalhava como uma datilógrafa. Ali estava outra vez dona
Lucrecia. Esplêndida, ombros luzidios e braços roçagantes, equilibrada
sobre os altíssimos saltos-agulha e as torneadas pernas depiladas,
conversava com os convidados, explicando, casal por casal, a urgente
partida de Rigoberto para o Rio de Janeiro, naquela tarde, por assuntos
da companhia. - E o que nos importa? - gracejou, galante, Fito Cebolla,
beijando a mão da dona da casa depois de ter feito o mesmo em sua face.
- O que poderia ser melhor? Era flácido, apesar das proezas esportivas
da juventude, alto, bamboleante, olhos de batráquio e uma boca movediça
que ensopava de luxúriaas palavras que emitia. Evidentemente, havia se
apresentado no coquetel sem sua mulher: já sabia que dom Rigoberto
sobrevoava as selvas amazônicas? Tinha dilapidado as modestas fortunas
das três primeiras esposas legítimas, das quais fora se divorciando à
medida que as espremia passeando-as pelos melhores balneários do vasto
mundo. Chegada a hora do repouso, resignava-se à sua quarta e, sem
dúvida, última consorte, cujo reduzido patrimônio lhe assegurava, já não
luxos nem excessos de cunho turístico, indumentário ou culinário, mas
apenas uma boa casa em La Planície, uma bem-servida despensa e escocês
suficiente para cevar a cirrose até o fim dos seus dias, desde que não
passasse dos setenta. Ela era frágil, miúda, elegante e como que
pasmada de admiração retrospectiva pelo Adônis que Fito Cebolla havia
sido outrora. Agora, era um intumescido sessentão e seguia pela vida
armado de um caderninho e um binóculo com os quais, em suas andanças
pelo centro e na luz. vermelha dos semáforos quando dirigia seu
antiquado Cadillac cor de borra de vinho, via e anotava, além da
estatística geral (feias ou bonitas), uma mais especializada: os bumbuns
empinados, os peitos encabritados, as pernas mais torneadas, os
pescoços de cisne, as bocas mais sensuais

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e os olhos mais feiticeiros que o tráfego Lhe apresentava. Sua pesquisa,
rigorosa e arbitrária a mais não poder, dedicava às vezes um dia, e até
uma semana, a uma parte das anatomias femininas transeuntes, com um
método não muito diferente daquele que dom Rigoberto estabelecia para o
asseio dos seus órgãos: segunda, traseiros; terça, seios; quarta,
pernas; quinta, braços; sexta, pescoços; sábado, bocas, e domingo,
olhos. A média das qualificações, de zero a vinte, era tirada a cada fim
de mês. Desde que Fito Cebolla lhe permitira folhear suas estatísticas,
dom Rigoberto havia começado a pressentir, no insondável oceano dos
caprichos e manias, uma inquietante semelhança com ele e a admitir uma
incontível simpatia por um espécime capaz de reivindicar suas
extravagâncias com tanta insolência. (Não era o seu caso, pois as suas
eram dissimuladas e matrimoniais.) Em certo sentido, mesmo descontando
sua covardia e sua timidez, das quais Fito Cebolla carecia, intuiu que
ele era seu igual. Fechando os olhos - em vão, porque as sombras do
dormitório eram totais - e acalentado pelo vizinho rumor do mar ao pé da
escarpa, dom Rigoberto divisou a mão com pelos nos nós dos dedos,
decorada com aliança de casamento e anel de ouro no mindinho,
aboletando-se à traição no traseiro de sua mulher. Um queixume animal
que teria podido despertar Fonchito rasgou sua garganta: "Filho da
puta!". - Não foi assim - disse dona Lucrecia, esfregando-se contra ele.
- Conversávamos em um grupo de três ou quatro, entre os quais Fito, já
com muitos uísques entornados. Justiniana passou a bandeja e então ele,
sem mais nem menos, começou a galanteá-la. - Que servente mais bonita! -
exclamou, olhos injetados, lábios babando um fiozinho de saliva, voz
engrolada. - Pedaço de mau caminho, essa cabrocha. Que corpinho! -
Servente é uma palavra feia, depreciativa e um pouco racista - reagiu
dona Lucrecia. - Justiniana é uma empregada, Fito. Como você. Rigoberto,
Alfonsito e eu gostamos muito dela. - Empregada, braço direito, amiga,
protegida ou lá o que seja, não falei para ofender - continuou Fito
Cebolla, seguindo com os olhos, imantado, a jovem que se afastava. -
Bem que eu queria ter em casa uma caboclinha assim.

71

E, nesse momento, dona Lucrecia sentiu, inequívoca, poderosa,
ligeiramente úmida e quente, uma mão masculina na parte inferior de sua
nádega esquerda, no sensível lugar onde esta descia em pronunciada curva
ao encontro da coxa. Por alguns segundos, não atinou com reagir,
retirá-la, afastar-se nem se aborrecer. Ele se aproveitara do viçoso
cróton junto ao qual conversavam para executar a operação sem que os
outros notassem. Dom Rigoberto distraiu-se com uma expressão francesa:
La main baladeuse. Como se traduziria? A mão peregrina? A mão
transumante? A mão ambulante? A mão resvaladiça? A mão passageira? Sem
resolver o dilema lingüístico, indignou-se de novo. Um impávido Fito
olhava Lucrecia com um sorriso sugestivo, enquanto seus dedos começavam
a se mover, plissando o tule do vestido. Dona Lucrecia se afastou com
brusquidão. - Tonta de raiva, fui tomar um copo d'água na copa -
explicou a dom Rigoberto. - O que a senhora tem, patroa? - perguntou
Justiniana. - Aquele nojento me botou a mão aqui. Não sei como não lhe
dei um tapa. - Devia dar, quebrar um cachepô na cabeça dele, meter-lhe
as unhas, botá-lo para fora da casa - enfureceu-se dom Rigoberto. - Eu
dei, quebrei, arranhei e o botei para fora. - Dona Lucrecia roçou seu
nariz esquimó no do marido. - Mas só depois. Antes, aconteceram coisas.
"A noite é longa", pensou dom Rigoberto. Tinha passado a se interessar
por Fito Cebolla como um entomologista por um inseto raríssimo, de
coleção. Invejava essa crassa humanidade que exibia impudicamente os
próprios tiques e fantasias, tudo aquilo que, segundo um cânone moral
que não era o seu, as pessoas chamavam de vícios, taras, degenerações.
Por excesso de egoísmo, sem saber, o imbecil do Fito Cebolla havia
conquistado mais liberdade do que ele, que sabia tudo mas era um
hipócrita, e, ainda por cima, um securitário ("Como o foram Kafka e o
poeta Wallace Stevens", desculpou-se ante si mesmo, em vão). Divertido,
dom Rigoberto recordou aquela conversa no bar do César's, registrada em
seus cadernos, na qual Fito Cebolla lhe confessara que a maior excitação
de sua vida não fora

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provocada pelo corpo escultural de alguma de suas incontáveis amantes,
nem pelas dançarinas do Folies Bergère de Paris, mas por um episódio na
austera Luisiana, na casta Universidade de Baton Rouge, onde seu iludido
pai o matriculara na esperança de que ele se graduasse como químico
industrial. Ali, no para-peito do seu dormitory, em uma tarde
primaveril, coubera-lhe assistir ao mais formidável agarrão sexual desde
que os dinossauros fornicavam. - De duas aranhas? - As narinas de dom
Rigoberto se abriram e continuaram, palpitando, ferozes. Suas orelhonas
de Dumbo adejavam também, superexcitadas. - Deste tamanho - imitou a
cena Fito Cebolla, elevando, encolhendo os dez dedos e aproximando -os
com obscenidade. - Viram-se, desejaram-se e avançaram uma para a outra,
dispostas a se amar ou a morrer. Melhor dizendo: a se amar até morrer.
Quando uma saltou sobre a outra, houve um estremecimento de terremoto. A
janela, o dormitory, tudo se encheu de odor seminal. - Como você sabe
que elas estavam copulando? - espetou-o dom Rigoberto. - Por que não
brigando? - Estavam brigando e fornicando ao mesmo tempo, como deve ser,
como deveria ser sempre - sacudiu-se no assento Fito Cebolla; suas mãos
tinham se entrecruzado e os dez dedos se esfregavam com estalidos
ósseos. - Sodomizavam uma à outra com todas as suas patas, todos os seus
anéis, pelos e olhos, com tudo o que tinham no corpo. Nunca vi seres
tão felizes. Nunca vi nada tão excitante, juro pela minha santa mãe que
está no céu, Rigo. A excitação resultante do coito aracnídeo havia
resistido, segundo ele, a uma ejaculação aérea e a várias duchas de água
fria. Ao cabo de quatro décadas e uma infinidade de aventuras, a
memória das peludas bestiolas atracadas sob o inclemente céu azul de
Baton Rouge vinha às vezes perturbá-lo, e mesmo agora, quando a idade
lhe aconselhava moderação, aquela remota imagem, ao emergir de repente
em sua consciência, deixava-o mais empoleirado do que o faria uma
talagada de ioimbina. - Conte o que fazia no Folies Bergère, Fito -
pediu Tetê Barriga, sabendo perfeitamente do risco a que se expunha. -
Embora seja mentira, é tão engraçado!

73

- Isso foi dar corda nele, botar a mão no fogo - observou a senhora
Lucrecia, retardando a narrativa. - Mas Tetê adora se chamuscar. Fito
Cebolla se remexeu no assento onde jazia semiderrubado pelo uísque: -
Mentira, nada! Foi o único trabalho agradável da minha vida. Embora me
tratassem tão mal quanto seu marido me trata no emprego, Lucre. Venha,
sente-se aqui, fique conosco. Tinha os olhos vidrados e a voz rouca. Os
convidados começavam a olhar os relógios. Dona Lucrecia, fazendo das
tripas coração, foi se sentar junto dos Barriga. Fito Cebolla passou a
evocar aquele verão. Havia ficado encrencado em Paris, sem um centavo, e
graças a uma amiga conseguira um emprego de biqueiro no "histórico
teatro da rue Richer". - Biqueiro, de bico do peito, e não no sentido
de quem come pouco - explicou, mostrando uma libidinosa pontinha de
língua avermelhada e entrefechando os olhos dissolutos como que para
ver melhor o que via ("e o que ele via era o meu decote, amor". A
solidão de dom Rigoberto começava a povoar-se e a enfebrecer). - Embora
eu fosse o último dos ajudantes e o que menos ganhava, de mim dependia
o sucesso do show. Uma responsabilidade do caralho! - Qual, qual? -
urgíu-o Tetê Barriga. - Deixar as coristas com os mamilos tesos, pouco
antes de entrarem em cena. Para isso, em seu caminho dos bastidores,
dispunha de um balde de gelo. As moças, engalanadas com penachos,
adornos de flores, penteados exóticos, longas pestanas, unhas postiças,
malhas invisíveis e caudas de pavão, bundas e peitos ao leu,
inclinavam-se diante de Fito Cebolla, que esfregava um cubinho de gelo
em cada mamilo e na corola circundante. Então, dando um gritinho, elas
saltavam para o palco, os peitos como espadas. - Funciona, funciona? -
insistia Tetê Barriga, dando uma olhada nos próprios seios caídos,
enquanto seu marido bocejava. - Esfregando gelo, eles ficam...? -
Tesos, duros, retos, empinados, airosos, erguidos, soberbos, eriçados,
encolerizados - prodigalizava Fito Cebolla seus conhecimentos em matéria
de sinônimos. - Permanecem assim quinze minutos, cronometrados.

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"Sim, funciona", repetiu-se dom Rigoberto. Pelas persianas se insinuava
um raiozinho pálido. Outro amanhecer longe de Lucrecia. Já seria hora de
despertar Fonchito para o colégio? Ainda não. Mas ela não estava aqui?
Comno quando haviam verificado nos seus formosos seios a receita do
Folies Bergère. Ele havia visto aqueles escuros mamilos se aprumarem
nas aréolas douradas e se oferecerem, frios e duros como pedras, aos
seus lábios. Aquela verificação tinha custado a Lucrecia um resfriado,
que ainda por cima o contagiara. - Onde é o banheiro? - perguntou Fito
Cebolla. - Para lavar minhas mãos, não façam mau juízo. Lucrecia o
conduziu até o corredor, guardando uma distância prudente. Temia sentir
de novo, a qualquer momento, aquela ventosa manual. - Gostei da sua
caboclinha, sério - ia balbuciando Fito, aos tropeções. - Sou
democrático, que venham negras, brancas ou amarelas, se forem bem
gostosas. Me dá a moça de presente? Ou, se preferir, me ceda. Posso lhe
pagar uma boa grana. - O banheiro é aqui - conteve-o dona Lucrecia. -
Lave também a língua, Fito. - Seus desejos são ordens - babou ele, e,
antes de que ela pudesse se afastar, a maldita mão foi diretamente aos
seus peitos. Fito a retirou de imediato e entrou no banheiro: - Perdão,
perdão, errei de porta. Dona Lucrecia voltou à sala. Os convidados
começavam a sair. Ela tremia de raiva. Desta vez, iria expulsá-lo da
casa. Trocava as últimas banalidades e se despedia das pessoas no
jardim. "E o cúmulo, é o cúmulo." Os minutos passavam e Fito Cebolla não
aparecia. - Você quer dizer que ele tinha ido embora? - Foi o que eu
imaginei. Que, ao sair do banheiro, ele teria escapulido, discretamente,
pela porta de serviço. Mas não, não. O maldito ficou. Foram-se as
visitas, o garçom contratado, e, depois de ajudarem Justiniana a
recolher copos e pratos, fechar janelas, apagar as luzes do jardim e
ligar o alarme, o mordomo e a cozinheira deram boa-noite a Lucrecia e
se retiraram para seus afastados dormitórios, em um pavilhão à parte,
atrás da piscina.

75

Justiniana, que dormia no segundo andar, junto ao escritório de dom
Rigoberto, estava na cozinha, botando a louça na lavadora. - Fito
Cebolla ficou dentro, escondido? - No quartinho da sauna, talvez, ou
entre as plantas do jardim. Esperando que os outros se fossem, que a
cozinheira e o mordomo se deitassem, para se meter na cozinha. Como um
ladrão! Dona Lucrecia estava em um sofá da sala, cansada, ainda não
recuperada do mau momento. O delinqüente do Fito Cebolla não voltaria a
pôr os pés naquela casa. Perguntava-se se contaria a Rigoberto o
ocorrido, quando soou o grito. Vinha da cozinha. Ela se levantou e
correu. Na porta da alva copa - as paredes azulejadas cintilando sob a
luz farmacêutica - , o espetáculo a. paralisou. Dom Rigoberto pestanejou
várias vezes antes de fixar avista no raiozinho pálido da persiana que
anunciava o dia. Via-os: Justiniana, caída de costas na mesa de pinho à
qual havia sido arrastada, forcejando com mãos e pernas contra a fofa
corpulência que a esmagava e a beijocava, gargarejando uns ruídos que
eram, que só podiam ser grosserias. No umbral, desfigurada, exorbitada,
dona Lucrecia. Sua paralisia não durou muito. Ali estava ela - o
coração de dom Rigoberto bateu impetuoso, cheio de admiração pela beleza
delacroixiana dessa fúria que agarrava a primeira coisa que encontrava,
o rolo de amassar, e arremetia contra Fito Cebolla, insultando-o.
"Abusado, maldito, imundo, crápula." Golpeava-o sem misericórdia, onde
caísse o rolo, nas costas, no pescoço gorducho, na cabeça de frade, nas
nádegas, até obrigá-lo a soltar sua presa para se defender. Dom
Rigoberto podia ouvir as bordoadas que espancavam ossos e músculos do
interrompido estuprador, o qual, finalmente, vencido pela surra e pelo
pileque que estorvava seus movimentos, girou, as mãos voltadas para sua
agressora, cambaleou, escorregou e se estatelou no chão como uma
gelatina. - Bata, bata você também, vingue-se - gritava dona Lucrecia,
descendo o incansável rolo de amassar sobre o vulto de sujo terno azul
que, tentando se levantar, erguia os braços para amortecer os golpes. -
Justiniana arrebentou o tamborete na cabeça dele? - perguntou o
regozijado dom Rigoberto.

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Espatifou-o, e voaram cavacos até o teto. Ergueu-o com as duas mãos e o
descarregou em cima de Fito com todo o peso do seu corpo. Dom Rigoberto
viu a silhueta espigada, o uniforme azul, o avental branco,
empinando-se para desfechar o bólido. O estentóreo "Aiiii!" do
escarrapachado Fito Cebolla lhe sacudiu os tímpanos. (Mas não os da
cozinheira, nem os do mordomo, nem os de Fonchito?) Fito cobria a cara,
em suas mãos havia manchas de sangue. Ficou desmaiado alguns segundos.
Voltou a si, talvez, com os gritos das duas mulheres, que continuavam a
insultá-lo: "Degenerado, bêbado, abusado, veado." - Como é doce a
vingança - riu-se dona Lucrecia. - Abrimos a porta dos fundos e ele
escapuliu, se arrastando. De quatro patas, juro a você. Choramingando:
"Ai, minha cabecinha, ai, está quebrada." Nisto, o alarme disparou.
Que susto! Mas nem assim Fonchito, o mordomo ou a cozinheira acordaram.
Era verossímil? Não. Mas muito conveniente, isto sim, pensou dom
Rigoberto. - Não sei como o desligamos, entramos de volta, fechamos a
porta e ligamos de novo o alarme - ria-se dona Lucrecia, desbragada. -
Até que, pouco a pouco, fomos nos acalmando. Então, ela pôde se dar
conta do que aquele bruto havia feito à pobre Justiniana. Tinha lhe
destroçado a roupa. A moça, ainda aterrorizada, caiu no choro.
Pobrezinha. Se dona Lucrecia tivesse subido antes para o dormitório,
não ouviria seu grito, já que nem o mordomo nem a cozinheira e nem o
menino tinham ouvido nada. O canalha a estupraria tranqüilamente.
Consolou-a, abraçou-a: "Já passou, ele já foi, não chore." Contra o seu,
o corpo da moça - parecia mais jovenzinha assim, tão próxima - tremia
dos pés à cabeça. Sentia o coração dela e via seus esforços para conter
os soluços. - Me deu uma pena... - sussurrou dona Lucrecia. - Além de
lhe destruir o uniforme, tinha batido nela. - Teve o que merecia -
gesticulou dom Rigoberto. - Foi embora humilhado e sangrando. Muito
benfeito! "Veja só como ele deixou você, o desgraçado." Dona Lucrecia
afastou Justiniana. Examinou seu uniforme em frangalhos, acariciou-a no
rosto, agora sem vestígios do bom humor exuberante que a moça sempre
exibia; grossas lágrimas lhe corriam pelas faces, um ríctus lhe crispava
os lábios. Seu olhar tinha se apagado.

77

- Aconteceu alguma coisa nessa hora? - insinuou, com muita discrição,
dom Rigoberto. - Ainda não - retrucou, igualmente discreta, dona
Lucrecia. - Pelo menos, não me dei conta. Não se dava conta. Achava que
aquele desassossego, nervosismo, exaltação, eram obra do susto e, sem
dúvida, também o eram; sentia-se transbordada por um sentimento de
carinho e compaixão, ansiosa por fazer algo, qualquer coisa, para tirar
Justiniana do estado em que a via. Pegou-a pela mão, levou-a até a
escada: "Venha tirar esta roupa, é melhor chamar um médico." Ao sair da
cozinha, apagou a luz do térreo. Subiram às escuras, de mãos dadas,
degrau por degrau, a escadinha em caracol para o escritório e o quarto.
No meio da escada, a senhora Lucrecia passou o outro braço pela cintura
da moça. "Que susto você teve." "Achei que ia morrer, mas já está
passando." Não era verdade: sua mão estreitava a da patroa e seus dentes
chacoalhavam, como que de frio. Segurando-se uma à outra pelas mãos e
pela cintura, contornaram as estantes carregadas de livros de arte e,
no dormitório, receberam-nas, descortinados através do janelão, as luzes
de Miraflores, os faróis do calçadão litorâneo e as cristas brancas das
ondas avançando em direção ao penhasco. Dona Lucrecia acendeu a
luminária de pé, que clareou a ampla chaise longue grená com pés de
falcão e a mesinha com revistas, as porcelanas chinesas, as almofadas e
os pufes espalhados sobre o tapete. A ampla cama, os criados-mudos, as
paredes consteladas de gravuras persas, tântricas e japonesas
continuaram na penumbra. Dona Lucrecia foi até o quarto de vestir e
estendeu um robe a Justiniana, que permanecia de pé, cobrindo-se com os
braços, meio paralisada. - Esta roupa tem que ser jogada no lixo,
queimada. Sim, é melhor queimá-la, como faz Rigoberto com os livros e
gravuras de que já não gosta. Ponha isto, vou ver o que posso lhe dar.
No banheiro, enquanto molhava uma toalhinha com água-de-colônia, viu-se
no espelho ("Belíssima", premiou-a dom Rigoberto). Também havia levado
um susto e tanto. Estava pálida e com olheiras; a maquilagem havia
escorrido e, sem que ela se desse conta, o fecho ecler de seu vestido
tinha se rompido.

78

- Eu também sou uma ferida de guerra, Justiniana - disse através da
porta. - Por culpa do asqueroso do Fito, minha roupa se rasgou. Vou
vestir um robe. Venha, aqui tem mais luz. Quando Justiniana entrou no
banheiro, dona Lucrecia, que estava se livrando do vestido pelos pés -
não usava sutiã, só uma calcinha triangular de seda preta - , viu-a no
espelho da pia e, repetida, no da banheira. Embrulhada no robe branco
que a cobria até as coxas, a jovem parecia mais delgada e mais morena.
Como não tinha cinto, segurava o robe com as mãos. Dona Lucrecia
despendurou seu quimono chinês - "o de seda vermelha, com dois dragões
amarelos nas costas, unidos pelas caudas", exigiu dom Rigoberto - ,
vestiu-o e a chamou: - Chegue um pouco mais perto. Tem algum ferimento?
- Não, acho que não, duas coisinhas de nada. - Justiniana estendeu uma
perna por entre as dobras do robe. - Estas manchas roxas, de me debater
contra a mesa. Dona Lucrecia se inclinou, apoiou uma das mãos na coxa
lisinha e delicadamente friccionou a pele violácea com a toalhinha
embebida em água-de -colônia. - Não é nada, vai sumir logo. E a outra?
No ombro e parte do antebraço. Abrindo o robe, Justiniana lhe mostrou a
contusão que começava a inchar. Dona Lucrecia notou que a moça tampouco
usava sutiã. Tinha o seio dela muito próximo de seus olhos. Via a ponta
do mamilo. Era um seio jovem e miúdo, bem desenhado, com uma tênue
granulação na aréola. - Isto está mais feio - murmurou. - E aqui, dói?
- Um pouquinho - disse Justiniana, sem retirar o braço que dona Lucrecia
esfregava com cuidado, agora mais atenta à sua própria perturbação do
que ao hematoma da empregada. - Ou seja - insistiu, implorou dom
Rigoberto - , aí aconteceu algo. - Aí, sim - concedeu desta vez sua
mulher. - Não sei o quê, mas algo. Estávamos muito juntas, de robe. Eu
nunca tinha tido essas intimidades com ela. Ou talvez sim, resolvendo
assuntos de cozinha. Ou lá pelo que fosse. De repente, eu já não era eu.
E ardia dos pés à cabeça. - E ela?

79

- Não sei, quem sabe? Acho que não - complicou-se dona Lucrecia. - Tudo
havia mudado, isto sim. Percebe, Rigoberto? Depois de semelhante susto.
E imagine o que estava me acontecendo. - Essa é a vida - murmurou dom
Rigoberto, em voz alta, ouvindo suas palavras ressoarem na solidão do
dormitório já iluminado pelo dia. - Esse é o amplo, o imprevisível, o
maravilhoso, o terrível mundo do desejo. Minha mulherzinha, que perto a
tenho, agora que você está tão longe! - Sabe de uma coisa? - disse dona
Lucrecia a Justiniana. - Para aplacar as emoções da noite, o que nós
duas necessitamos é de um drinque. - Para não ter pesadelos com aquele
mão-boba - riu a empregada, seguindo-a até o quarto. Sua expressão tinha
se animado. - É mesmo, acho que só me embebedando vou me livrar de
sonhar com ele esta noite. - Vamos nos embebedar, então. - Dona Lucrecia
se dirigiu até o barzinho do escritório. - Quer um uísque? Você gosta de
uísque? - O que for, o que a senhora tomar. Deixe, deixe, eu trago. -
Fique aqui - atalhou dona Lucrecia, já do escritório. - Esta noite,
sirvo eu. Riu, e a moça a imitou, divertida. No bar, sentindo que não
controlava suas mãos e sem querer pensar, dona Lucrecia encheu dois
copos grandes com muito uísque, um jatinho de água mineral e dois cubos
de gelo. Voltou, esgueirando-se como um felino entre os almofadões
espalhados pelo chão. Justiniana se reclinara no espaldar da chaise
longue, sem subir as pernas. Fez menção de se levantar. - Fique aí mesmo
- voltou a atalhar a patroa. - Chegue para lá, cabemos as duas. A moça
hesitou, pela primeira vez desconcertada; mas se recompôs de imediato.
Tirou os sapatos, subiu as pernas e escorregou para junto da janela a
fim de lhe abrir espaço. Dona Lucrecia se acomodou ao seu lado. Ajeitou
as almofadas embaixo da cabeça. Cabiam, mas seus corpos se roçavam.
Ombros, braços, pernas e quadris se pressentiam e, por momentos, se
tocavam.

80

- A que vamos brindar? - disse dona Lucrecia. - À surra naquele animal?
- A cadeirada que eu dei - respondeu Justiniana, recuperando seu humor.
- Com a raiva que eu tinha, poderia ter matado aquele sujeito, estou lhe
dizendo. Será que quebrei a cabeça dele? Bebeu mais um gole e caiu na
risada. Dona Lucrecia começou a rir também, com uma risadinha meio
histérica. "Quebrou, sim, e eu, com o rolo de amassar, quebrei outras
coisas nele." Passaram assim um bom tempo, como duas amigas que
compartilham uma confidência jovial e algo escabrosa, estremecidas pelas
gargalhadas. "Eu lhe garanto que Fito Cebolla tem mais manchas roxas do
que você, Justiniana", "E que pretextos ele vai dar agora à mulher, para
esses galos e ferimentos?", "Que foi assaltado e chutado por ladrões."
Em um contraponto de chacotas, acabaram os copos de uísque.
Acalmaram-se. Pouco a pouco, recuperaram o fôlego. - Vou servir mais
dois - disse dona Lucrecia. - Eu vou, deixe, juro que sei preparar. -
Bom, vá lá, enquanto isso eu ponho música. Mas, em vez de se levantar da
chaise longue para que a moça passasse, a senhora Lucrecia segurou-a
pela cintura com as duas mãos e ajudou-a a deslizar por cima dela, sem
retê-la mas demorando-a, em um movimento que, por um instante, manteve
os corpos das duas - a patroa embaixo, a empregada em cima - enlaçados.
Na semipenumbra, enquanto sentia o rosto de Justiniana sobre o seu - a
respiração da jovem lhe esquentava o rosto e lhe entrava pela boca -,
dona Lucrecia viu assomar nos olhos dela um brilho alarmado. - E, nessa
hora, você notou o quê? - pressionou-a um embargado dom Rigoberto,
sentindo dona Lucrecia se mover em seus braços com a preguiça animal em
que o corpo dela soçobrava quando faziam amor. - Não se escandalizou;
só se assustou um pouquinho, talvez. Embora não por muito tempo - disse
ela, meio sufocada. - Por eu ter tomado essas liberdades, fazendo-a
passar por cima de mim segurando-a pela cintura. Talvez tenha percebido.
Não sei, eu não sabia nada, não me importava nada. Eu voava. Mas disto,
sim, me dei conta: ela não se aborreceu.

81

Via aquilo com graça, com a malícia que põe em tudo. Fito tinha razão,
ela é atraente. E meio nua, mais ainda. Seu corpo café-com-leite,
contrastando com a brancura da seda... - Eu daria um ano de vida para
vê-las nesse momento. - E dom Rigoberto encontrou a referência que
buscava havia tempo: Preguiça e luxúria ou O sonho, de Gustave Courbet.
- Mas não está nos vendo? - brincou dona Lucrecia. Com total nitidez,
apesar de que, à diferença de seu diúrno dormitório, aquele era noturno,
e essa parte do aposento estava em penumbra, fora do alcance da
luminária de pé. A atmosfera se adensara. Aquele perfume penetrante,
que entontecia, intoxicou dom Rigoberto. Suas narinas o aspiravam,
expeliam, reabsorviam. Ao fundo, ouvia-se o rumor do mar e, no
escritório, Justiniana preparando os drinques. Meio oculta pela planta
de folhas lanceoladas, dona Lucrecia se estirou e, como que se
espreguiçando, acionou o toca-discos; uma música de harpas paraguaias
com um coro guarani flutuou no aposento, enquanto dona Lucrecia voltava
à sua postura na chaise longue e, com as pálpebras cerradas, esperava
Justiniana com uma intensidade que dom Rigoberto farejou e escutou. O
quimono chinês deixava ver sua coxa branca e seus braços nus. Os cabelos
estavam desalinhados e os olhos espreitavam por trás das pestanas
sedosas. "Uma jaguatirica tocaiando sua presa", pensou dom Rigoberto.
Justiniana, quando apareceu com os dois copos nas mãos, vinha risonha,
movendo-se com desenvoltura, já acostumada a essa cumplicidade, a não
guardar com sua patroa a devida distância. - Gosta desta música
paraguaia? Não sei como se chama - murmurou dona Lucrecia. - Muito, é
bonita, mas não dá para dançar, não? - comentou Justiniana, sentando-se
na beira da chaise longue e estendendo-lhe o copo. -Assim está bom, ou
precisa de mais água? Não se atrevia a passar por cima de dona
Lucrecia, que se chegou para o canto antes ocupado pela moça. Animou-a
com um gesto a se instalar no seu lugar. Justiniana fez isso e, ao se
reclinar junto dela, seu robe escorregou, deixando sua perna direita
também descoberta, a milímetros da perna desnuda da patroa. - Tintim,
Justiniana - disse esta, batendo o copo no dela. - Tintim, patroa.

82

Beberam. Assim que afastaram os copos, dona Lucrecia gracejou: - Quanto
não daria Fito Cebolla para nos ter as duas como estamos agora! Riu, e
Justiniana também riu. O riso de ambas cresceu, decresceu. A moça se
atreveu a fazer também um gracejo: - Se ao menos ele fosse jovem e
bonitão... Mas, com semelhante sapo e ainda por cima bêbado, quem ia
deixar? - Pelo menos, tem bom gosto. - A mão livre de dona Lucrecia
remexeu os cabelos de JustLniana. - Verdade, você é muito bonita. Não é
de estranhar que leve os homens a fazer loucuras. Só Fito? Você deve
ter causado estragos, por aí. Sempre lhe alisando os cabelos, aproximou
a perna até tocar a de Justiniana. Esta não afastou a sua. Ficou quieta,
meio sorriso fixado no rosto. Depois de alguns segundos, a senhora
Lucrecia, com um baque no coração, notou que o pé de Justiniana se
adiantava devagarinho até fazer contato com o dela. Uns dedos tímidos se
moviam sobre os seus, num imperceptível arranhão. - Gosto muito de você,
Justita - disse, chamando-a pela primeira vez como Fonchito fazia. -
Percebi esta noite. Quando vi o que aquele balofo estava lhe fazendo.
Senti uma raiva...! Como se você fosse minha irmã. - Eu também gosto
muito da senhora, patroa - murmurou Justiniana, encostando-se um pouco
mais, de modo que agora, além de pés e coxas, tocavam-se os quadris,
braços e ombros. - Fico sem graça de dizer, mas a invejo tanto... Por
ser como é, por ser tão elegante. A melhor que já conheci. - Me permite
que a beije? - A senhora Lucrecia inclinou a cabeça até roçar a de
Justiniana. Os cabelos das duas se misturaram. Ela via os olhos
profundos da moça, muito abertos, observando-a sem pestanejar, sem
medo, embora com alguma ansiedade. - Posso lhe dar um beijo? Podemos?
Como amigas? Sentiu-se incomodada, arrependida, durante os segundos -
dois, três, dez? - que Justiniana levou para responder. E a alma lhe
voltou ao corpo - seu coração batia tão depressa que ela mal respirava
- quando, finalmente, a carinha que via embaixo da sua assentiu e se
adiantou, oferecendo-lhe os lábios.

83

Enquanto se beijavam, com ímpeto, enredando as línguas, separando-se e
juntando-se, seus corpos se entrelaçando, dom Rigoberto levitava.
Estava orgulhoso de sua esposa? Claro. Mais apaixonado por ela do que
nunca? Naturalmente. Voltou a vê-las e ouvi-las. - Preciso lhe dizer uma
coisa, patroa - escutou Justiniana sussurrar no ouvido de Lucrecia. - Há
muito, eu tenho um sonho. Ele se repete, me vem até quando estou
acordada. Era de noite, fazia frio. O patrão estava viajando. A senhora
tinha medo dos ladrões e me pediu que viesse lhe fazer companhia. Eu
queria dormir nesta poltrona e a senhora "não, não, venha para cá,
venha". E me fazia deitar ao seu lado. Sonhando isso, sonhando, digo ou
não digo?, eu ficava toda molhada. Que vergonha! - Vamos fazer esse
sonho. - A senhora Lucrecia se levantou, levando atrás de si Justiniana.
- Vamos dormir juntas, mas na cama, é mais macia do que a chaise longue.
Venha, Justita. Antes de entrarem embaixo dos lençóis, despiram os
robes, que ficaram ao pé do leito de casal, coberto por uma colcha. Às
harpas, seguira-se uma valsa de outros tempos, com uns violinos cujos
compassos sintonizavam com suas carícias. O que importava se elas haviam
apagado a luz enquanto brincavam e se amavam, ocultas embaixo dos
lençóis, e a atarefada colcha se encrespava, se enrugava e bamboleava?
Dom Rigoberto não perdia um detalhe dos seus gestos esboçados e das
arremetidas; enredava-se e desenredava-se com elas, estava junto da mão
que envolvia um seio, em cada dedo que roçava uma nádega, nos lábios
que, depois de várias escaramuças, por fim se atreviam a afundar
naquela sombra escondida, buscando a cratera do prazer, a cavidade
morna, a boca latejante, o musculozinho vibrátil. Via tudo, sentia tudo,
ouvia tudo. Suas narinas se embriagavam com o perfume daquelas peles e
seus lábios sorviam os sumos que manavam do gracioso casal. - Ela nunca
havia feito isso? - E eu também não - confirmou dona Lucrecia. - Nenhuma
das duas, nunca. Um par de novatas. Aprendemos ali mesmo. Gozei,
gozamos. Não senti a menor falta de você nessa noite, meu amor. Não se
importa que eu lhe diga?

84

- Gosto que você diga - abraçou-a seu esposo. - E ela, não se
constrangeu depois? Em absoluto. Havia mostrado uma naturalidade e uma
discrição que impressionaram dona Lucrecia. Exceto pela manhã seguinte,
quando chegaram os buquês de flores (o da patroa dizia: "Do meio de
suas bandagens, Fito Cebolla agradece de todo o coração a merecida lição
que recebeu de sua querida e admirada amiga Lucrecia", e o da
empregada: "Fito Cebolla saúda e pede respeitosas desculpas à Flor de
Canela") que elas mostraram uma à outra, o assunto não voltou a ser
mencionado. A relação não mudou, nem as maneiras, nem o tratamento,
para quem as observava de fora. é verdade que, de vez em quando, dona
Lucrecia tinha pequenas delicadezas com Justiniana, presenteando-lhe
uns sapatos novos, um vestido, ou levando-a de companhia em suas saídas,
mas isso, embora provocasse ciúmes no mordomo e na cozinheira, não
surpreendia ninguém, pois todos na casa, do chofer a Fonchito e dom
Rigoberto, tinham notado havia tempo que, com sua vivacidade e seus
mimos, Justiniana tinha a patroa no bolso.

AMOR ÀS ORELHAS VOADORAS

Olhos para ver, nariz para cheirar, dedos para tocar e orelhas como
cornucópias para serem esfregadas com as gemas, assim como a gente passa
a mão na corcovinha da corcunda ou na barriguinha do Buda - que trazem
sorte -, e, depois, lambidas e beijadas. Gosto de ti, Rigoberto, de ti e
de ti, mas, acima de todas as tuas outras coisas, gosto de tuas orelhas
voadoras. Quisera poder me ajoelhar e espiar esses buraquinhos que
limpas a cada manhã (meu mindinho me contou) com um cotonete e de onde
arrancas os pelinhos com uma pinça - pelinho ai por pelinho ai junto do
espelho ai - nos dias em que lhes cabe a purificação. O que eu veria
por esses fundos oquinhos? Um precipício. E, assim, descobriria teus
segredos. Qual, por exemplo? Que, sem saber, já me amas, Rigoberto.
Veria alguma outra coisa? Dois elefantinhos com suas trombinhas
levantadas. Dumbo, Dumbinho, como te amo!

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O que seria do azul, se todos gostassem do amarelo? Tu, para mim, embora
alguns digam que com teu nariz e tuas orelhas ganharias o concurso O
Homem-Elefante do Peru, és o ser mais atraente, o mais bonito que já
existiu. Vejamos, Rigoberto, adivinha, se me dessem a escolha entre ti e
Robert Redford, quem seria o eleito do meu coração? Sim, meu
orelhãozinho, sim, narigãozinho, sim, meu Pinoquinho: tu, tu. O que mais
eu veria, se me debruçasse para espiar por teus abismos auditivos? Um
campo de trevos, todos de quatro folhas. E ramos de rosas cujas pétalas
têm retratada, em sua pelugem branca, uma carinha amorosa. Qual? A
minha. Quem sou, Rigoberto? Quem é a andinista que te ama e te idolatra,
e algum dia não longínquo escalará tuas orelhas como outros escalam o
Himalaia ou o Huascarán? Tua, tua, tua, A louquinha de tuas orelhas

IV. FONCHITO EM LÁGRIMAS

Fonchito se mostrara cabisbaixo e pálido desde que havia chegado à casa
de San Isidro, e dona Lucrecia estava certa de que suas olheiras e seu
olhar fugidio tinham algo a ver com Egon Schiele, tema infalível de cada
tarde. Ele mal abriu a boca enquanto tomavam o chá e, pela primeira vez
naquelas semanas, esqueceu-se de elogiar os chancays tostados de
Justiniana. Notas baixas no colégio? Rigoberto descobrira que ele
faltava à academia para vir visitá-la? Encerrado em um mutismo
tristonho, mordia os nós dos dedos. Em algum momento havia murmurado
algo terrível sobre Adolf e Marie, pais ou parentes do seu reverenciado
pintor. - Quando algo rói a gente por dentro, o melhor é compartilhar -
ofereceu-se dona Lucrecia. - Não confia em mim? Me conte o que você tem,
talvez eu possa ajudá-lo. O menino a fitou nos olhos, sobressaltado.
Pestanejava e parecia prestes a cair no choro. Suas têmporas latejavam e
dona Lucrecia divisou as veiazinhas azuis do seu pescoço. - É que...
estive pensando - disse ele, por fim. Desviou a vista e se calou,
arrependido do que ia dizer. - Em quê, Fonchito? Vamos, me conte. Por
que esse casal o preocupa tanto? Quem são Adolf e Marie? - Os pais de
Egon Schiele - disse o menino, como se falasse de um colega de classe. -
Mas não é o senhor Adolf que me preocupa, e sim o papai. - Rigoberto? -
Não quero que acabe como ele. - A carinha se ensombreceu ainda mais e a
mão fez um gesto estranho, como que afugentando um fantasma. - Me dá
medo e não sei o que fazer. Não queria preocupá-la. Você ainda ama o
papai, não é, madrasta? - Claro que sim - assentiu ela, desconcertada. -
Você me deixa boiando, Fonchito. O que Rigoberto tem a ver

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com o pai de um pintor que morreu do outro lado do mundo, meio século
atrás ? No princípio, parecera-lhe divertido, muito próprio dele, esse
jogo inusitado, deslumbrar-se com as telas e a vida de Egon Schiele,
estudá-las, apreendê-las, identificar-se com o pintor até acreditar, ou
dizer acreditar, que era Egon Schiele redivivo e que morreria também,
após uma carreira fulgurante, de maneira trágica, aos vinte e oito anos.
Mas esse jogo começava a se turvar. - O destino do pai dele está se
repetindo também no meu - balbuciou Fonchito, engolindo em seco. - Não
quero que o papai fique louco e sifilítico como o senhor Adolf,
madrasta. - Mas que bobagem - ela tentou acalmá-lo. - Vamos e venhamos,
a vida não se herda nem se repete. De onde lhe ocorreu um disparate
destes? Incapaz de se conter, o menino contraiu o rosto em um beicinho e
começou a chorar, com soluços que faziam estremecer sua figura mirrada.
A senhora Lucrecia pulou da poltrona, sentou-se junto dele no tapete da
sala de jantar, abraçou-o, beijou-o nos cabelos e na testa, secou-lhe as
lágrimas com seu lencinho, assoou-lhe o nariz. Fonchito se apertou
contra ela. Fundos suspiros levantavam seu peito e dona Lucrecia sentia
o coração dele aos saltos. - Calma, já passou, não chore, que
despropósito, isso não tem pé nem cabeça. - Alisava-lhe os cabelos,
beijava-os. - Rigoberto é o homem mais saudável e de cabeça mais
equilibrada que já se viu. O pai de Egon Schiele era sifilítico e morreu
louco? Com a curiosidade espicaçada pelas contínuas alusões de Fonchito,
dona Lucrecia tinha procurado algo sobre Schiele na livraria La Casa
Verde, a dois passos de sua residência, mas não encontrou nenhuma
monografia, só mesmo uma história do expressionismo que dedicava a ele
apenas parte de um capítulo. Não recordava que o texto mencionasse em
algum momento sua família. O menino assentiu, a boca crispada e os olhos
semicerrados. De vez em quando, um calafrio o percorria. Mas foi
sossegando e, sem se afastar dela, encolhido, parecendo feliz por estar
protegido pelos braços de dona Lucrecia, começou a falar. Ela não
conhecia a história do senhor Adolf Schiele? Não, não a conhecia;

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não conseguira encontrar uma biografia desse pintor. Fonchito, ao
contrário, tinha lido várias na biblioteca do pai e consultado a
enciclopédia. Uma história terrível, madrasta. Diziam que, sem o que
aconteceu ao senhor Adolf Schiele e à senhora Marie Soukup, não se
podia entender Egon. Porque essa história escondia o segredo de sua
pintura. - Bem, bem. - Dona Lucrecia tentou despersonalizar o assunto. -
E qual é, afinal, o segredo de sua pintura? - A sífilis do pai -
retrucou o menino, sem vacilar. - A loucura do pobre senhor Adolf
Schiele. Mordendo o lábio, dona Lucrecia conteve o riso, para não ferir
o menino. Pareceu-lhe estar ouvindo o doutor Rubio, um psicanalista
conhecido de dom Rigoberto, muito popular entre suas amigas desde que,
citando o exemplo de Wilhelm Reich, passara a se despir durante as
sessões para melhor interpretar os sonhos de suas pacientes, e que
costumava soltar coisas do gênero nos coquetéis, com a mesma convicção.
- Mas, Fonchito - disse, soprando-lhe a testa, brilhante de suor -, por
acaso você sabe o que é sífilis? - Uma doença venérea, que vem de Vênus,
uma deusa que não sei quem foi - confessou o menino, com sinceridade
desarmante. - Não encontrei no dicionário. Mas sei onde o senhor Adolf
se contagiou. Quer que eu conte como foi? - Desde que você se acalme. E
que não volte a se atormentar com fantasias descabeladas. Nem você é
Egon Schiele nem Rigoberto tem nada a ver com esse cavalheiro, seu
bobão. O menino não prometeu nada, mas tampouco replicou. Ficou um
tempinho em silêncio, aninhado nos braços protetores, a cabeça no ombro
da madrasta. Quando começou a contar, fez isso com o luxo de datas e
detalhes de uma testemunha daquilo que contava. Ou protagonista, pois
passava a emoção de quem viveu a coisa na própria pele. Como se, em vez
de nascer em Lima no final do século XX, fosse Egon Schiele, um rapazola
da última geração de súditos austro-húngaros, a que veria desaparecerem
na hecatombe da Primeira Guerra Mundial a chamada Belle Époque e o
império, aquela sociedade rutilante, cosmopolita, literária, musical e
plástica que Rigoberto amava tanto e sobre a qual dera a dona Lucrecia
tão pacientes aulas, nos primeiros anos de casados. (Agora, Fonchito
continuava dando-as.)

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A época de Mahler, Schoenberg, Freud, Klimt, Schiele. No sobressaltado
relato, descontando-se anacronismos e puerilidades, uma história foi se
perfilando. Uma aldeia chamada Tulln, às margens do Danúbio, nos
arredores de Viena (a 25 quilômetros, dizia Fonchito), e o casamento,
naqueles últimos anos do século, entre o funcionário das ferrovias
imperiais Adolf Eugen Schiele, protestante, de origem alemã, 26 anos
recém-completados, e a adolescente católica de origem tcheca, de 17,
Marie Soukup. Uma união arriscada, contra a corrente, dada a oposição
da família da noiva. ("A sua se opôs a que você se casasse com o papai?"
"Pelo contrário, ficaram encantados com Rigoberto.") Essa época era
puritana e cheia de preconceitos, não, madrasta? Sim, sem dúvida, por
quê? Porque Marie Soukup não sabia nada da vida; não tinham lhe ensinado
nem como se faziam os bebês, a pobrezinha achava que eles eram trazidos
de Paris pelas cegonhas. (A madrasta não seria igualmente inocente
quando se casou? Não, dona Lucrecia já sabia tudo o que precisava
saber.) Tão inocente era Marie que sequer se deu conta de ter
engravidado e achou que seu mal-estar era culpa das maçãs, que adorava.
Mas isso era adiantar a história. Convinha retroceder à viagem de
núpcias. Ali tinha começado tudo. - O que aconteceu nessa lua de mel? -
Nada - disse o menino, endireitando-se para assoar o nariz. Tinha os
olhos inchados, mas a palidez desaparecera. Estava envolvido de corpo e
alma no relato. - Marie teve medo. Nos três primeiros dias, não deixou
que o senhor Adolf a tocasse. O casamento não se consumou. Do que você
está rindo, madrasta? - De ouvi-lo falar como um velho, sendo o
pedacinho de homem que ainda é. Não se aborreça, a história me interessa
muito. Bom, nos três primeiros dias de casados, Adolf e Marie, nada de
nada. - Não é para rir - condoeu-se Fonchito. - É mais para chorar. A
lua de mel foi em Trieste. Para recordar essa viagem dos pais, Egon
Schiele e Gerti, sua irmãzinha predileta, fizeram uma viagem idêntica,
em 1906. Em Trieste, durante a frustrada lua de mel, começou a tragédia.
Porque, como sua esposa não se deixava tocar - chorava, esperneava,
arranhava-o, fazia um grande escândalo

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cada vez que ele se aproximava para beijá-la -, o senhor Adolf ia para a
rua. Para onde? Consolar-se com mulheres da vida. E, em um desses
lugares, Vênus o contagiou com a sífilis. Essa enfermidade começou a
matá-lo aos poucos, desde então. Fez com que ele enlouquecesse e
desgraçou toda a família. A partir daí, caiu uma maldição sobre os
Schiele. Adolf, sem saber, contagiou sua esposa, quando pôde afinal
consumar o matrimônio, no quarto dia. Por isso, Marie abortou nas três
primeiras gravidezes; por isso, morreu Elvira, a filhinha que viveu
apenas dez aninhos. E, por isso, Egon foi tão fragilzinho e propenso a
doenças. Tanto que, em sua infância, achavam que ele morreria, pois
vivia consultando médicos. Dona Lucrecia acabou por vê-lo: uma criança
solitária, mexendo com trenzinhos de brinquedo, desenhando, desenhando o
tempo todo, em seus cadernos de colégio, nas margens da Bíblia, e até em
papéis que catava no lixo. - Como vê, você não se parece com ele em
nada. Segundo Rigoberto, foi a criança mais saudável do mundo. E gostava
de brincar com aviões, não com trens. Fonchito resistia a gracejar. - Me
deixa terminar a história, ou está entediada? Não a entediava, mas sim a
entretinha; porém, mais que as peripécias e os finisseculares
personagens austro-húngaros, a paixão com que Fonchito os evocava:
vibrando, movendo olhos e mãos, com inflexões melodramáticas. O terrível
dessa doença era que vinha devagarinho e à traição; e que desonrava suas
vítimas. Foi essa a razão pela qual o senhor Adolf nunca admitiu que a
padecia. Quando seus parentes o aconselhavam a procurar o médico,
protestava: "Estou mais são do que qualquer um." Estava nada. A razão
havia começado a lhe falhar. Egon gostava dele, davam-se muito bem,
sofria quando ele piorava. O senhor Adolf se punha a jogar baralho como
se seus amigos tivessem vindo, mas estava sozinho. Distribuía as cartas,
conversava com eles, oferecia-lhes cigarros, e à mesa da casa de Tulln
não havia ninguém. Marie, Mélanie e Gerti queriam fazê-lo ver a
realidade, "Mas, papai, não há com quem falar, com quem jogar, não
percebe?". Egon as desmentia: "Não é verdade, pai, não lhes dê ouvidos,
estão aqui o chefe da guarda, o diretor dos correios, o mestre-escola.
Seus amigos estão com você, pai. Eu também os vejo, como você." Não
queria aceitar que seu pai tinha visões.

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De repente, o senhor Adolf envergava seu uniforme de gala, boné de
viseira brilhante, botas reluzentes, e ia se plantar na plataforma, em
posição de sentido. "O que está fazendo aqui, pai?" "Vou receber o
Imperador e a Imperatriz, filho." Já estava louco. Não pôde continuar
trabalhando na ferrovia, teve de se aposentar. De vergonha, os Schiele
se mudaram de Tulln para um lugar onde ninguém os conhecia:
Klosterneuburg. Era alemão significa "A aldeia nova do convento". O
senhor Adolf piorou, já não sabia falar. Passava os dias no quarto, sem
abrir a boca. Viu? Viu? Subitamente, uma agitação angustiosa se apoderou
de Fonchito: - Igualzinho ao papai, pois então - explodiu, com um
guincho desafinado. - Ele também volta do trabalho e não quer falar com
ninguém. Nem comigo. Até nos sábados e domingos, a mesma coisa: trancado
no escritório, o dia inteiro. Quando puxo conversa, "Sim", "Não", "Bom".
Não sai disso. Teria sífilis? Estaria enlouquecendo? Talvez tivesse
contraído a doença pela mesma razão que o senhor Adolf. Porque ficou
sozinho, quando a senhora Lucrecia o deixou. Foi a alguma casa suspeita
e Vênus o contagiou. Não queria que o papai morresse, madrasta! Caiu no
choro de novo, desta vez sem ruído, para dentro, cobrindo o rosto, e
acalmá-lo deu mais trabalho a dona Lucrecia do que antes. Ela o
consolou, que delírios absurdos, acarinhou-o, Rigoberto não tinha
nenhuma enfermidade, ninou-o, estava mais lúcido do que ela e Fonchito,
sentindo as lágrimas daquela cabeça rubicunda molharem o peitilho do seu
vestido. Depois de muitos mimos, conseguiu serená-lo. Rigoberto gostava
de se trancar com suas gravuras, com seus livros, com seus cadernos,
para ler, ouvir música, escrever suas citações e reflexões. Por acaso
Fonchito não o conhecia? Ele não tinha sido sempre assim? - Não, nem
sempre - negou o menino, com firmeza. - Antes, me contava as vidas dos
pintores, me explicava os quadros, me ensinava coisas. E me lia algo de
seus cadernos. Com você, ele ria, saía, era normal. Desde que você foi
embora, mudou. Ficou triste. Agora, nem sequer se interessa pelas notas
que eu tiro; assina minha caderneta sem olhar. A única coisa que lhe
importa é seu escritório. Só quer se trancar ali, horas e horas. Vai
ficar louco, como o senhor Adolf. Quem sabe até já ficou.

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O menino havia jogado os braços ao pescoço da madrasta e reclinava a
cabeça no seu ombro. No Olivar, ouviam-se gritinhos e correrias de
crianças, como todas as tardes, quando, à saída dos colégios, os
estudantes da vizinhança afluíam ao parque vindos das incontáveis
esquinas para fumar um cigarro às escondidas dos pais, bater bola e
namorar as meninas do bairro. Por que Fonchito nunca fazia essas coisas?
- Você ainda gosta do papai, madrasta? - A pergunta voltava carregada de
apreensão, como se da resposta dependesse uma vida ou uma morte. - Eu já
lhe disse, Fonchito. Nunca deixei de gostar dele. Por que isso, agora? -
Ele está assim porque tem saudade. Porque ama você, madrasta, e não se
conforma com que você não more mais conosco. - As coisas aconteceram
como aconteceram - dona Lucrecia lutava contra um mal-estar crescente. -
Não está pensando em se casar outra vez, está, madrasta? - insinuou
timidamente o menino. - É a última coisa que eu faria na vida, me casar
de novo. Nunca de núncaras. Além disso, Rigoberto e eu nem estamos
divorciados, só separados. - Então, podem fazer as pazes! - exclamou
Fonchito, com alívio: - Quem briga pode fazer as pazes. Eu brigo e fico
de bem todos os dias, com colegas do colégio. Você voltaria para nossa
casa, e Justita também. Seria tudo como antes. "E curaríamos o
papaizinho da loucura", pensou dona Lucrecia. Estava irritada. Tinha
parado de achar graça nas fantasias de Fonchito. Cólera surda, amargura,
rancor a invadiam, à medida que sua memória desempoeirava as más
lembranças. Segurou o menino pelos ombros e o afastou um pouco de si.
Observou-o, cara a cara, indignada com que aqueles olhinhos azuis,
inchados e vermelhos, resistissem com tanta limpidez à sua mirada
carregada de reprimendas. Seria possível que ele fosse tão cínico? Ainda
não havia nem chegado à adolescência. De que jeito podia falar da
ruptura entre ela e Rigoberto como de algo alheio, como se não tivesse
sido ele a causa do acontecido? Não tinha armado, afinal, para que
Rigoberto descobrisse todo o enredo? O rostinho arrasado pelas lágrimas,
os traços desenhados a pincel,

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os lábios rosados, as pestanas recurvadas, o queixínho firme
encaravam-na com inocência virginal. - Você sabe melhor do que ninguém
o que aconteceu - disse a senhora Lucrecia, entre dentes, tentando
evitar que sua indignação transbordasse em uma explosão. - Sabe muito
bem por que eu e ele nos separamos. Não me venha bancar o menino
bonzinho, afligido por essa separação. Você teve tanta culpa quanto eu,
talvez até mais do que eu. - Por isso mesmo, madrasta - cortou-lhe a
palavra Fonchito. - Eu fiz vocês brigarem, e por isso me cabe a
reconciliação. Mas você tem que me ajudar. Vai fazer isso, não é? Diga
que sim, madrasta. Dona Lucrecia não sabia o que responder; queria
esbofeteá-lo e beijá-lo. Sentia as faces acaloradas. Para culminar, o
sem-vergonha do Fonchito, em nova mudança brusca de ânimo, agora parecia
contente. Subitamente, soltou uma gargalhada. - Você corou - disse,
jogando-lhe outra vez os braços ao pescoço. - Então, a resposta é sim.
Gosto muito de você, madrasta! - Primeiro lágrimas, e agora riso - disse
Justiniana, aparecendo no corredor. - Pode-se saber o que está
acontecendo aqui? - Temos uma grande notícia - acolheu-a o menino. -
Vamos contar a ela, madrasta? - Não é Rigoberto, mas você, quem está de
parafuso frouxo - disse dona Lucrecia, dissimulando o sufoco. - Vai ver
que Vênus também me contagiou com sífilis - gracejou Fonchito, virando
os olhos. E, no mesmo tom, à empregada: - O papai e a madrasta vão fazer
as pazes, Justita! O que acha da novidade?

DIATRIBE CONTRA O DESPORTISTA

Constato que o senhor surfa nas ondas encrespadas do Pacífico durante o
verão, no inverno desliza de esqui nas pistas chilenas de Portillo e nas
argentinas de Bariloche (já que os Andes peruanos não permitem essas
veadagens), transpira todas as manhãs no ginásio fazendo aeróbica, ou
correndo em pistas de atletismo,

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ou em parques e ruas, metido num macacão térmico que lhe franze o cu e a
barriga tal como os corpetes de antanho asfixiavam nossas avós, e não
perde uma partida da seleção nacional, nem o clássico Alianza Lima
versus Universitário de Deportes, nem campeonato de boxe pelo título
sul-americano, latino-americano, norte-americano, europeu ou mundial,
ocasiões em que, pregado diante da tela do televisor e amenizando o
espetáculo com goles de cerveja, cuba-libre ou uísque on the rocks, se
esganiça, se congestiona, uiva, gesticula ou se deprime com as vitórias
ou derrotas dos seus ídolos, como cabe ao torcedor de carteirinha.
Razões de sobra, cavalheiro, para que eu confirme minhas piores
suspeitas sobre o mundo em que vivemos e considere o senhor um
descerebrado, um cretino, um subnormal. (Uso o primeiro e o terceiro
termos como metáforas; o do meio, em sentido literal.) Sim,
efetivamente, em seu atrofiado intelecto fez-se a luz: considero a
prática dos esportes em geral e o culto à prática de esportes em
particular formas extremas da imbecilidade, que aproximam o ser humano
do carneiro, dos gansos e da formiga, três instâncias agravadas do
gregarismo animal. Acalme suas ânsias de praticante de luta livre por me
triturar e escute, falaremos dos gregos e do hipócrita mens sana in
corpore sano daqui a pouco. Antes, devo dizer-lhe que os únicos esportes
que eu libero do pelourinho são os de mesa (excluído o pingue-pongue) e
os de cama (incluída, claro, a masturbação). Quanto aos outros, a
cultura contemporânea os transformou em obstáculos para o
desenvolvimento do espírito, da sensibilidade e da imaginação (e,
portanto, do prazer). Mas, sobretudo, da consciência e da liberdade
individual. Nada contribuiu tanto nestes tempos, mais ainda do que as
ideologias e religiões, para promover o desprezível homem-massa, esse
robô de reflexos condicionados, e para a ressurreição da cultura do
primata de tatuagem e tapa-sexo, emboscado atrás da fachada da
modernidade, quanto a divinização dos exercícios e jogos físicos operada
pela sociedade dos nossos dias. Agora, podemos falar dos gregos, para
que o senhor não me encha mais o saco com Platão e Aristóteles. Mas,
previno-o, o espetáculo dos efebos atenienses lambuzando-se com
unguentos no Gymnasium antes de medir sua destreza física,

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ou lançando o disco e o dardo sob o puríssimo azul do céu grego, não
virá ajudá-lo, e sim afundá-lo ainda mais na ignomínia, prezado bobalhão
de músculos endurecidos às custas de seu caudal de testosterona e do
desabamento do seu QI. Somente os chutes do futebol ou os socos do boxe,
ou ainda as rodas autistas do ciclismo, e a prematura demência senil
(além do definhamento sexual, da incontinência e da impotência) que eles
costumam provocar, explicam a pretensão de estabelecer uma linha de
continuidade entre os entunicados fedros de Platão untando-se com
resinas, depois de suas sensuais e filosóficas demonstrações físicas, e
as hordas ébrias que rugem nas arquibancadas dos estádios modernos
(antes de incendiá-las) por ocasião das partidas de futebol
contemporâneas, nas quais vinte e dois palhaços desindividualizados por
uniformes de cores espalhafatosas, agitando-se no retângulo de grama
atrás de uma bola, servem de pretexto para exibicionismos de
irracionalidade coletiva. O esporte, na época de Platão, era um meio,
não um fim, como voltou a ser nestes tempos municipalizados da vida.
Servia para enriquecer o prazer dos humanos (o masculino, pois as
mulheres não o praticavam), estimulando-o e prolongando-o com a
representação de um corpo formoso, tenso, esguio, proporcionado e
harmonioso, e incitando-o com a calistenia pré-erótica de uns
movimentos, posturas, roçadelas, exibições corporais, exercícios,
danças, toques, que inflamavam os desejos até catapultar participantes e
espectadores ao acoplamento. Que esses desejos fossem eminentemente
homossexuais não acrescenta nem suprime uma só vírgula à minha
argumentação, como tampouco que, no domínio do sexo, o subscritor seja
tediosamente ortodoxo e só ame as mulheres - de resto, uma única mulher
-, totalmente inapetente para a pederastia ativa ou passiva. Entenda-me,
não tenho nenhuma objeção ao que fazem os gays. Celebro que estejam bem
e os apoio em suas campanhas contra as leis que os discriminam. Não
posso acompanhá-los mais além, por uma questão prática. Nada relativo ao
quevedesco "olho do cu" me diverte. A Natureza, ou Deus, se existe e
perde seu tempo com essas coisas, fez desse secreto anilho o orifício
mais sensível de todos os que me perfuram. O supositório o fere e a
cânula do clister o ensangüenta (uma vez me foi introduzida, em período
de constipação pertinaz, e foi terrível),

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de modo que a idéia de existirem bípedes que se entretêm com alojar ali
um cilindro viril me produz uma apavorada admiração. Tenho certeza de
que, no meu caso, além dos gritos, eu experimentaria um verdadeiro
cataclismo psicossomático com a inserção, no delicado conduto em pauta,
de uma verga viva, mesmo sendo esta de pigmeu. O único soco que dei na
minha vida recebeu-o um médico que, sem prevenir-me e sob o pretexto de
averiguar se eu tinha apendicite, tentou sobre minha pessoa uma tortura
camuflada pela etiqueta científica de "toque rétál". Apesar disso, sou
teoricamente favorável a que os seres humanos façam amor pelo direito ou
pelo avesso, sozinhos ou em duplas ou em promíscuos contubérnios
coletivos (eca!), a que homens copulem com homens, mulheres com mulheres
e ambos com patos, cachorros, melancias, bananeiras ou melões, em suma,
sou teoricamente favorável a todas as asquerosidades imagináveis, se
praticadas de comum acordo e em busca do prazer, não da reprodução,
acidente do sexo ao qual convém resignar-se como a um mal menor, mas que
de nenhuma maneira se deve santificar como justificação da festa carnal
(esta imbecilidade da Igreja me exaspera tanto quanto uma partida de
basquete). Voltando à vaca-fria, comove-me aquela imagem dos velhotes
helênicos, sábios filósofos, augustos legisladores, aguerridos generais
ou sumos sacerdotes indo aos ginásios para desintumescer sua libido com
a visão dos jovens lançadores de disco, lutadores, maratonistas ou
arremessadores de dardos. Esse gênero de esporte, alcoviteiro do desejo,
eu o indulto e não vacilaria em praticá-lo, se minha saúde, minha idade,
meu senso do ridículo e minha disponibilidade de tempo o permitissem. Há
outro caso, mais remoto ainda para nosso âmbito cultural (não sei por
que incluo o senhor nesta confraria, já que, à força de chutes e
cabeçadas futebolísticas, suores ciclísticos ou rasteiras de carateca,
excluiu-se dela), no qual o esporte tem também certa desculpa. Quando,
praticando-o, o ser humano transcende sua condição animal, aflora o
sagrado e se eleva a um plano de intensa espiritualidade. Se fizer
questão de que usemos a arriscada palavra "mística", que seja.
Obviamente, esses casos, já muito raros, dos quais é exótica
reminiscência o sacrificado lutador de sumô japonês, cevado desde
criancinha com uma feroz sopa vegetariana que o elefantiza e o condena a
morrer com o coração arrebentado antes dos quarenta,

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e a passar a vida tentando não ser expulso por outra montanha de carne
como ele para fora do pequeno circulo mágico onde está confinada sua
vida, são inassimiláveis aos desses ídolos de pacotilha que a sociedade
pós-industrial denomina "mártires do esporte". Onde está o heroísmo em
virar canjica ao volante de um bólido com motores que fazem o trabalho
em vez do homem, ou em retroceder de ser pensante a débi] mental, com
miolos e testículos encolhidos pela prática de atalhar ou fazer gols por
empreitada, para que multidões insanas se dessexualizem com ejaculações
de egolatria coletivista a cada tento marcado? As atividades e aptidões
físicas chamadas esportes não aproximam o homem atual do sagrado e do
religioso, afastam-no do espírito e o embrutecem, saciando seus
instintos mais ignóbeis: a vocação tribal, o machismo, a vontade de
domínio, a dissolução do eu individual no amorfo gregário. Não conheço
mentira mais abjeta do que a expressão com que se aliciam as crianças:
"Mente sã em corpo são." Quem disse que uma mente sã é um ideal
desejável? "Sã" quer dizer, neste caso, tola, convencional, sem
imaginação e sem malícia, arrebanhada pelos estereótipos da moral
estabelecida e da religião oficial. Mente "sã", isso? Mente
conformista, de beata, de tabelião, de securitário, de coroinha, de
virgem e de escoteiro. Isso não é saúde, é tara. Uma vida mental rica e
própria exige curiosidade, malícia, fantasia e desejos insatisfeitos,
isto é, uma mente "suja", maus pensamentos, floração de imagens
proibidas, apetites que induzam a explorar o desconhecido e a renovar o
conhecido, desacatos sistemáticos às idéias herdadas, aos conhecimentos
manipulados e aos valores em voga. Dito isso, tampouco é certo que a
prática dos esportes em nossa época crie mentes sãs no sentido banal do
termo. Ocorre o contrário, e, melhor do que ninguém, disso sabes tu,
que, para vencer os cem metros rasos do domingo, colocarias arsênico e
cianureto na sopa do teu competidor e tragarias todos os estupefacientes
vegetais, químicos ou mágicos que te garantissem a vitória, e
corromperias os árbitros ou os chantagearias, urdirias conspirações
médicas ou legais que desqualificassem teus adversários, e que vives
neurotizado pela fixação na vitória, no recorde, na medalha, no pódio,
algo que fez de ti, desportista profissional, uma besta midiática, um
antissocial, um neurótico,

99

um histérico, um psicopata, no polo oposto desse ser sociável, generoso,
altruísta, "são", a quem pretende aludir o imbecil que ainda se atreve a
empregar a expressão "espírito esportivo" no sentido de nobre atleta
cheio de virtudes civis, quando o que se acaçapa atrás dela é um
assassino em potencial disposto a exterminar árbitros, a transformar em
torresmo os fanáticos da outra equipe, a devastar os estádios e cidades
que os albergam e a provocar o apocalíptico final, sem sequer o elevado
propósito artístico que presidiu o incêndio de Roma pelo poeta Nero, mas
só para que seu clube empunhe uma taça de falsa prata ou para ver seus
onze ídolos encarapitados em um pódio, flamantes de ridículo em seus
calções e camisetas listradas, as mãos no peito e os olhos encandeados,
entoando um hino nacional!

OS IRMÃOS CORSOS

Na tarde modorrenta daquele domingo de inverno, em seu escritório diante
do céu nublado e do mar opaco, dom Rigoberto folheou ansiosamente seus
cadernos em busca de idéias que atiçassem sua imaginação. A primeira
com que topou, Sex is too good to share with anyone else, do poeta
Philip Larkin, recordou-lhe muitas versões plásticas do jovem Narciso,
deleitando-se com sua imagem refletida na água do poço, e o hermafrodita
adormecido do Louvre. Mas, inexplicavelmente, o deprimiu. Havia topado
outras vezes com essa filosofia que depositava exclusivamente sobre seus
ombros a responsabilidade do seu prazer. Seria correta? Teria sido algum
dia? Na verdade, mesmo em seus momentos mais puros, sua solidão tinha
sido um desdobramento, um encontro ao qual Lucrecia nunca faltara. Um
débil despertar do ânimo fez renascer a esperança: ela tampouco
faltaria desta vez. A tese de Larkin convinha, como anel ao dedo, ao
santo (outra página do caderno) de quem Lytton Strachey falava em
Eminent Victoriam, São Cuthbert, o qual desconfiava tanto das mulheres
que, quando conversava com elas, inclusive com a futura Santa Ebba,
passava "em oração as seguintes horas de sombra, submergido em água até
o pescoço". Quantos resfriados e pneumonias por uma fé que condenava o
crente ao larkiniano prazer solitário!

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Passou como sobre brasas por uma página em que Azorín recordava que
"capricho vem de cabra". Fascinada, deteve-se na descrição, feita pelo
diplomata ALfonso de la Serna, da Sinfonia dos adeuses de Haydn, "na
qual cada músico, quando acaba sua partitura, apaga a vela que ilumina
seu atril e se vai, até que resta só um violino, tocando sua solitária
melodia final". Não era uma coincidência? Não casava de maneira
misteriosa, como que se dobrando a uma ordem secreta, o violino
monologante de Haydn com o egoísta prazenteiro, Philip Larkin, para quem
o sexo era importante demais para ser compartilhado? Ele, contudo,
embora situasse o sexo no mais alto posto, sempre o compartilhara, mesmo
em seu período de mais ácida solidão: este. A memória lhe trouxe à
mente, sem rima nem razão, o ator Douglas Fairbanks, duplicado numa
película que inquietara sua infância: Os irmãos corsos. Claro, nunca
havia compartilhado o sexo com ninguém de maneira tão essencial quanto
com Lucrecia. Tinha-o compartilhado também, quando criança, adolescente
e adulto, com seu próprio irmão corso, Narciso?, com quem sempre se
entendera, embora fossem tão diferentes em espírito. Mas esses jogos e
brincadeiras picantes, tramados e desfrutados pelos irmãos, não
correspondiam ao sentido irônico em que o poeta-bibliotecário utilizava
o verbo compartilhar. Folheando, folheando, caiu em O mercador de
Veneza,: The man that hath no music in himself / Nor is not moved with
concord of sweet sounds, / Is fit for treasons, stratagems, and spoils.
(Ato V, cena I) "O homem que não traz música em si mesmo / Nem se
emociona com o encadeamento de doces sons / E propenso à intriga, à
fraude e à traição", traduziu livremente. Narciso não trazia em si
nenhuma música, era fechado de corpo e alma aos feitiços de Melpômene,
incapaz de distinguir a Sinfonia dos adeuses de Haydn do Mambo número 5
de Pérez Prado. Teria razão Shakespeare, quando legislava que essa
surdez para a mais abstrata das artes fazia dele um potencial enredador,
trapaceiro e fraudulento bípede? Bom, talvez fosse verdade.

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O simpático Narciso não tinha sido um modelo de virtudes cívicas,
privadas ou teologais, e chegara à idade provecta jactando-se, como o
bispo Haroldo (de quem era a citação? A referência havia sido devorada
pela sibilina umidade limenha ou pela sofreguidão de uma traça), em seu
leito de morte, de ter praticado todos os vícios capitais tão
assiduamente quanto seu pulso latejava e os sinos do seu bispado
repicavam. Se não fosse de tal disposição moral, jamais teria ousado
propor, naquela noite, ao seu irmão corso - dom Rigoberto sentiu que em
seu foro íntimo despertava aquela música shakespeariana que ele, sim,
acreditava trazer consigo -, o temerário intercâmbio. Ante seus olhos
desenharam-se, sentadas uma junto à outra, naquela salinha monumento ao
kitsch e blasfema provocação às sociedades protetoras de animais,
eriçada de tigres, búfalos, ursos, rinocerontes e cervos embalsamados
da casa de La Planície, Lucrecia e Ilse, a loura esposa de Narciso, na
noite da aventura. O Bardo tinha razão: a surdez para a música era
sintoma (causa, quem sabe?) de vileza da alma. Não, isso não podia ser
generalizado; porque, assim, seria preciso concluir que Jorge Luis
Borges e André Breton, por sua insensibilidade musical, foram Judas e
Caim, quando era sabido que ambos haviam sido, para escritores,
boníssimas pessoas. Seu irmão Narciso não era um demônio; aventureiro, e
só. Dotado de uma endiabrada habilidade para tirar de sua vocação
transumante e de sua curiosidade pelo proibido, o secreto e o exótico,
um grande partido crematístico. Mas, como era mitômano, não era fácil
distinguir entre verdade e fantasia nas peripécias com que ele costumava
manter enfeitiçado seu auditório, na hora (sinistra) do jantar de gala,
da festa de casamento ou do coquetel, cenários de suas grandes
performances narrativas. Por exemplo, dom Rigoberto nunca acreditara de
todo que ele tivesse amealhado boa parte de sua fortuna contrabandeando,
para os países prósperos da Ásia, chifres de rinoceronte, testículos de
tigre e pênis de morsas e focas (os dois primeiros procedentes da
África, os dois últimos do Alasca, da Groenlândia e do Canadá). Esses
revestimentos eram pagos a preço de ouro em lugares como Tailândia, Hong
Kong, Taiwan, Coréia, Cingapura, Japão, Malásia e até na China
comunista, pois os conhecedores os tinham por poderosos afrodisíacos e
remédios infalíveis contra a impotência. Justamente, naquela noite,

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enquanto os irmãos corsos e as duas cunhadas, Ilse e Lucrecia, tomavam o
aperitivo, antes do jantar, naquele restaurante da Costa Verde, Narciso
os entretivera contando uma disparatada história de afrodisíacos da
qual tinha sido herói e vítima, na Arábia Saudita, onde jurava -
detalhes geográficos e irreteníveis nomes árabes cheios de jotas como
comprovação - ter estado prestes a ser decapitado na praça pública de
Riad, quando se descobrira que ele contrabandeava uma maleta de
comprimidos de Captagon (penicilina hidroclorídrica) para manter a
potência sexual do luxurioso xeque Abdelaziz Abu Amid, a quem as quatro
esposas legítimas e as oitenta e duas concubinas do seu harém mantinham
um tanto fatigado. O xeque lhe pagava em ouro o carregamento de
anfetaminas. - E a yobimbina?. - perguntou Ilse, interrompendo a
narrativa do marido, justamente no momento em que ele comparecia ante um
tribunal de enturbantados ulemás. - Produz mesmo esse efeito que dizem,
em todas as pessoas? Sem perda de tempo, seu bem-apessoado irmão - sem
um pingo de inveja, dom Rigoberto rememorou como, após terem sido
indiferenciáveis quando crianças e jovens, a idade adulta os fora
distinguindo, e, agora, as orelhas de Narciso pareciam normais se
comparadas com os espetaculares abanos que o adornavam, e o nariz se
mostrava reto e modesto quando cotejado com o saca-rolhas ou tromba de
tamanduá com que ele olfateava a vida - lançou-se a uma erudita arenga
sobre a ioimbina (chamada yobimbina no Peru por causa da preguiçosa
tendência fonética dos nativos, a quem o agá aspirado de yobimbina- dava
mais trabalho bucal do que um bê). O discurso de Narciso durou o
aperitivo - pisco sour para os cavalheiros, vinho branco gelado para as
damas -, o arroz com mariscos e as panquecas com manjar-branco do
jantar, e teve, no que a ele concernia, o efeito de uma comichante
ansiedade pré-sexual. Nesse momento, caprichos do acaso, o caderno lhe
deparou a indicação shakespeariana de que as pedras turquesas mudam de
cor para alertar quem as usa sobre um perigo iminente (O mercador de
Veneza, outra vez). Narciso falava sério, sabia ou inventava essa
ciência, com a intenção de criar o ambiente psicológico e a amoralidade
propícios à sugestão que faria mais tarde? Não lhe perguntara isso nem o
faria, pois, a esta altura, o que importava?

103

Dom Rigoberto começou a rir, e a grisalha da tarde amainou. O Monsieur
'leste, de Valéry, jactava-se ao pé dessa página: "A estupidez não
combina comigo" (La bêtise n'est pas mon fort). Sorte dele; dom
Rigoberto, na companhia de seguros, já havia passado um quarto de século
rodeado, submergido, asfixiado pela estupidez, até transformar-se em um
especialista. Seria Narciso um mero imbecil? Mais um, naquele
protoplasma limenho autodenominado gente decente? Sim. O que não o
impedia de ser ameno, quando a isso se propunha. Nessa noite, por
exemplo. Ali estava o grande maçante, rosto bem rasurado e tez bronzeada
pelo ócio, explicando o alcalóide de um arbusto, "iobimbina", também
chamado ioimbina, de ilustre progênie na tradição herborista e na
medicina natural. Aumentava a vasodilatação e estimulava os gânglios
que controlam o tecido erétil, e inibia a serotonina, cujo excesso
bloqueia o apetite sexual. Sua cálida voz de sedutor veterano e seus
ademanes combinavam com o blazer azul, a camisa cinza e o lencinho de
seda escuro, de bolinhas brancas, enrolado no pescoço. Sua exposição,
intercalada de sorrisos, mantinha-se no astuto limite entre a
informação e a insinuação, a anedota e a fantasia, a sabedoria e a
trivialidade, a diversão e a excitação. Dom Rigoberto percebeu, de
repente, que os olhos verde-marinho de Ilse e os escuros topázios de
Lucrecia cintilavam. Teria, seu sabichão irmão corso, perturbado as
senhoras? A julgar pelos risinhos delas, por seus chistes e perguntas,
seu cruzar e descruzar de pernas, pela alegria com que esvaziavam os
copos de vinho chileno Concha y Toro, tinha, sim. Por que as duas não
experimentariam o mesmo deslize de ânimo que ele? Narciso já teria, a
essa altura da noite, seu plano armado? Com certeza, decretou dom
Rigoberto. Por isso, destramente, não lhes dava respiro nem permitia que
a conversa se afastasse do maquiavélico rumo traçado por ele. Da
ioimbina passou a descrever ofugu japonês, fluido testicular de um
peixinho que, além de ser um tônico seminal poderosíssimo, pode produzir
uma morte atroz, por envenenamento - assim perecem a cada ano centenas
de libidinosos japoneses -, e a referir o suor frio com que o provou,
naquela noite irisada de Kyoto, das mãos de uma gueixa em quimono
volátil, sem saber se ao término daqueles bocados anódinos o esperavam

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os estertores e o rigor mortis ou cem explosões de prazer (foi a segunda
hipótese, reduzida em um zero). Ilse, Loura escultural, ex-aeromoça da
Lufthansa, acrioulada valquíria, aplaudia seu marido sem ciúme
retrospectivo. Foi ela quem propôs (cúmplice, talvez?), depois da
farinhenta sobremesa, que terminassem a noite tomando um drinque em
sua casa de La Planicie. Dom Rigoberto disse "boa idéia", sem avaliar a
proposta, contagiado pelo entusiasmo visual com que Lucrecia a acolheu.
Meia hora depois, viram-se instalados nas confortáveis poltronas do
pavoroso salão kitsch de Narciso e Ilse - cafonice peruana e ordem
prussiana -, rodeados de bichos dissecados que observavam, impávidos,
com gelados olhos de vidro, os quatro bebendo uísque, banhados por uma
luz indireta, ouvindo melodias de Nat King Cole e Frank Sinatra e
contemplando, pela vidraça que dava para o jardim, os azulejos da
piscina iluminada. Narciso continuava exibindo sua cultura afrodisíaca
com a facilidade com que o Gran Richardi - dom Rigoberto suspirou,
recordando o circo da infância - puxava lencinhos de sua cartola.
Mesclando onisciência e exotismo, assegurou que no sul da Itália cada
varão consumia uma tonelada de manjericão ao longo da vida, pois a
tradição assegura que dessa erva aromática depende, além do bom sabor
dos talharins, o tamanho do pênis, e que na índia vendia-se nos
mercados um unguento - ele o presenteava aos amigos que completavam
cinqüenta anos - à base de alho e remela de macaco que, esfregado no
lugar cabível, provocava ereções em série, como espirros de alérgico.
Assoberbando-os, ponderou as virtudes das ostras, do aipo, do coreano
ginseng, da salsaparrilha, do alcaçuz, do pólen, das trufas e do caviar,
levando dom Rigoberto a suspeitar, depois de escutá-lo por mais de três
horas, que provavelmente todos os produtos animais e vegetais do mundo
estavam concebidos para favorecer esse entrevero dos corpos chamado amor
físico, cópula, pecado, ao qual os humanos (ele não se excluía)
concediam tanta importância. Nesse momento, Narciso o afastou das damas,
tomando-o pelo braço, sob o pretexto de lhe mostrar a última peça de sua
coleção de bengalas (que outra coisa poderia colecionar, além de feras
embalsamadas, essa besta priápica, esse falo ambulante, senão
bengalas?). O pisco sour, o vinho e o conhaque haviam obtido seu efeito.

105

Em vez de caminhar, dom Rigoberto navegou até o escritório de Narciso,
em cujas estantes, claro, montavam guarda, não abertos, os encadernados
volumes da Encyclopedia Britannica, as Tradiciones peruanas de Ricardo
Palma e a História da civilização do casal Durant, além de um romance
de bolso de Stephen King. De chofre, baixando a voz, Narciso lhe
perguntou ao ouvido se ele recordava aquelas longínquas picardias com as
moças, na platéia do cinema Leuro. Quais? Mas, antes que seu irmão
respondesse, lembrou-se. Os troca-trocas! O advogado da companhia iria
defini-los: usurpação de identidade. Aproveitando a semelhança e
reforçando-a com idênticos trajes e penteados, faziam-se passar um pelo
outro. Assim, beijavam e acariciavam - "tirar sarro", dizia-se então - a
namorada alheia, enquanto durava o filme. - Que tempos, irmão - sorriu
dom Rigoberto, entregue à nostalgia. - Você achava que elas não se davam
conta e nos confundiam - recordou Narciso. - Nunca o convenci de que
topavam, sim, porque o joguinho as divertia. - Não, não se davam conta -
afirmou Rigoberto. - Nunca deixariam. A moral da época não o permitia.
Lucerito e Chinchilla? Tão formaizinhas, tão de missa e comunhão,
nunca! Iriam nos denunciar aos seus pais. - Você tem um conceito
excessivamente angelical das mulheres - admoestou-o Narciso. - E o que
lhe parece. A questão é que eu sou discreto, e não como você. Mas cada
minuto que não dedico às obrigações que me dão de comer, eu o invisto no
prazer. (Nesse momento, o caderno lhe presenteou uma citação propícia,
de Borges: "O dever de todas as coisas é ser uma felicidade; se não
forem uma felicidade, são inúteis ou prejudiciais." A dom Rigoberto
ocorreu uma anotação machista: "E se, em vez de coisas, puséssemos
mulheres, como ficaríamos?") - Vida só existe uma, irmão. Você não terá
uma segunda oportunidade. - Depois dessas matinês, íamos à zona em
Huatica, ao quarteirão das francesas - devaneou dom Rigoberto. - Tempos
sem aids, de inofensivos piolhos-das-virilhas e uma ou outra simpática
gonorréia.
106
- Não acabaram. Continuam presentes - afirmou Narciso. - Nós não
morremos nem vamos morrer. É uma decisão irrevogável. Seus olhos
chamejavam, sua voz era pastosa. Dom Rigoberto compreendeu que nada do
que ouvia era improvisado; que, por trás dessas astutas evocações, havia
uma conspiração. - Quer me dizer o que está tramando? - perguntou,
curioso. - Você sabe de sobra, irmãozinho corso - disse o lobo feroz,
aproximando a boca da orelha adejante de dom Rigoberto. E, sem mais
delongas, formulou sua proposta: - O troca-troca. Mais uma vez. Hoje
mesmo, agora mesmo, aqui mesmo. Ilse não lhe agrada? Lucre, a mim,
muitíssimo. Como com Lucerito e Chinchilla. Por acaso poderia haver
ciúme, entre nós dois? Vamos rejuvenescer, irmão! Na solidão dominical,
o coração de dom Rigoberto se acelerou. De surpresa, de emoção, de
curiosidade, de excitação? E, como naquela noite, ele sentiu a urgência
de matar Narciso. - Já estamos velhos e somos muito diferentes para que
nossas mulheres nos confundam - articulou, bêbado e atordoado. - Não é
necessário que nos confundam - retrucou Narciso, muito seguro de si. -
São mulheres modernas, não precisam de pretextos. Eu cuido de tudo,
malandro. "Nunca de núncaras eu vou brincar de troca-troca na minha
idade", pensou dom Rigoberto, sem abrir a boca. A assomante carraspana
de pouco antes se dissipara. Caramba! Narciso, sim, é que era resoluto.
Já o agarrava pelo braço e o trazia rapidamente de volta ao salão das
feras empalhadas, onde, em cordialíssima fofocagem, Ilse e Lucrecia
despedaçavam uma amiga comum a quem um recente lifting deixara com os
olhos abertos até a eternidade (ou, pelo menos, até a cova ou a
cremação). E já estava anunciando que chegara o momento de abrir um
Dom Pérignon reserva especial, guardado para ocasiões extraordinárias.
Minutos depois, ouviam o estouro espumante e já brindavam os quatro com
essa pálida ambrosia. As bolhas que lhe desciam pelo esôfago
precipitavam no espírito de dom Rigoberto uma associação com o tema que
havia monopolizado seu irmão corso por toda a noite:

107

Narciso teria incrementado o alegre champanhe que bebiam com um daqueles
inumeráveis afrodisíacos dos quais se dizia contrabandista e perito?
Porque os risos e a desenvoltura de Lucrecia e Ilse aumentavam,
propiciando audácias, e ele mesmo, que cinco minutos antes se sentia
paralisado, confuso, assustado e revoltado com a proposta - contudo, não
se atrevera a rechaçá-la -, agora a encarava com menos indignação, como
uma daquelas irresistíveis tentações que o incitavam, em sua juventude
católica, a cometer os pecadilhos que, depois, descrevia contrito na
penumbra do confessionário. Entre nuvenzinhas de fumaça - era seu irmão
corso quem fumava? -, viu, cruzadas, entre os feros colmilhos de um
felino amazônico e destacando-se sobre o tapete tigrado da
sala-zoológico-funerária, as longas, brancas e depiladas pernas de sua
cunhada. A excitação se manifestou com uma discreta comichão na boca do
ventre. Via-lhe também os joelhos, redondos e acetinados, daqueles que a
galanteria francesa chamava de polis, anunciando umas profundidades
maciças, sem dúvida úmidas, sob aquela saia plissada de cor
castanho-avermelhada. O desejo o percorreu de alto a baixo. Assombrado
consigo mesmo, pensou: "Afinal, por que não?" Narciso havia tirado
Lucrecia para dançar e, enlaçados, os dois começavam a menear-se,
devagarinho, junto à parede artilhada com galhaduras de cervos e
cabeças de ursos. O ciúme acudiu para temperar com um sabor agridoce
(não para substituir nem destruir) seus maus pensamentos. Sem vacilar,
ele se inclinou, pegou e retirou a taça que Ilse segurava, e atraiu-a:
"Quer ser meu par, cunhadinha?" Seu irmão, é claro, havia posto uma
sucessão de boleros que induziam a dançar agarradinho. Sentiu
umapontada no coração quando, por entre os cabelos da valquíria, notou
que seu irmão corso e Lucrecia evoluíam face contra face. Ele lhe
envolvia a cintura e ela, o pescoço dele. Desde quando, essas
confianças? Em dez anos de casamento, não recordava nada parecido. Sim,
o maléfico do Narciso devia ter incrementado as bebidas. Enquanto se
perdia em conjeturas, com o braço direito fora aproximando do seu o
corpo da cunhada. Esta não resistia. Quando sentiu em suas coxas o roçar
das dela e os ventres se tocaram, dom Rigoberto disse a si mesmo, não
sem inquietude, que já nada nem ninguém poderia evitar a ereção que lhe
vinha.

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E veio, de fato, no mesmo momento em que sentiu na sua a bochecha de
Ilse. O fim da música lhe provocou o efeito do gongo em uma impiedosa
luta de boxe. "Obrigado, belíssima Brunegilda", disse, beijando a mão da
cunhada. E, tropeçando em cabeças carniceiras recheadas de estuque ou
papier mâché, avançou até onde estavam se desenlaçando - com repulsa,
com inapetência? - Lucrecia e Narciso. Tomou nos braços sua mulher,
murmurando, ácido: "Me concede esta dança, esposa?" Levou-a até o canto
mais escuro da sala. Viu pelo rabo do olho que Narciso e Ilse também se
enlaçavam e que, em um movimento harmonizado, começavam a se beijar.
Estreitando com força o corpo suspeitamente lânguido de sua mulher,
percebeu que sua ereção renascia; agora, ele se grudava sem melindres a
essa forma conhecida. Lábios contra lábios, sussurrou: - Sabe o que
Narciso me propôs? - Posso imaginar - retrucou Lucrecia, com urna
naturalidade que desconcertou dom Rigoberto, ainda mais porque em
seguida ela usou um verbo que nenhum dos dois havia jamais proferido na
intimidade conjugal: - Que você trepe com Ilse, enquanto ele trepa comigo
? Teve ímperos de machucá-la; mas, em vez disso, beijou-a, assaltado por
uma daquelas apaixonadas efusões às quais costumava se render.
Dilacerado, sentindo que podia começar a chorar, sussurrou que a amava,
que a desejava, que nunca poderia agradecer a felicidade que lhe devia.
"Sim, sim, eu amo você", disse em voz alta. "Com todos os meus sonhos,
Lucrecia." A grisalha do domingo barranquino se atenuou, a solidão do
escritório se amorteceu. Dom Rigoberto notou que uma lágrima se
desprendera de sua face e manchara uma citação oporruníssima do
valeryano (valeriana e Valéry, que casamento feliz!) Monsieur Teste, que
assim definia sua própria relação com o amor: Tout cê qui m'était
facile m'était inãifférent et presque ennemi. Antes que a tristeza se
apoderasse dele e o cálido sentimento de um instante atrás naufragasse
de todo na corrosiva melancolia, fez um esforço e, entrecerrando os
olhos, forçando sua atenção, voltou àquela sala das feras, àquela noite
adensada pela fumaça - quem fumava era Narciso, Ilse? -, às perigosas
misturas, ao champanhe, ao conhaque, ao uísque,

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à música ao relaxado clima que os envolvia, já não divididos em dois
casais estáveis, precisos, como no início da noite, antes de irem jantar
no restaurante da Costa Verde, mas embaralhados, casais precários que
se desfaziam e refaziam com uma ligeireza que correspondia àquela
atmosfera amorfa, cambiante como figura de caleidoscópio. Tinham
apagado a luz? Fazia tempo. Narciso, quem mais? A sala das feras mortas
estava tenuemente iluminada pela luz da piscina, que deixava divisar
apenas sombras, silhuetas, contornos sem identidade. Seu irmão corso
preparava bem as emboscadas. Corpo e espírito de dom Rigoberto haviam
acabado por dissociar-se; enquanto este divagava, tentando averiguar se
chegaria às últimas conseqüências no jogo proposto por Narciso, aquele
já jogava com desembaraço, emancipado de escrúpulos. A quem acariciava
agora, enquanto, simulando dançar, permanecia mexendo-se no lugar, com a
vaga sensação de que a música silenciava e se renovava a cada momento?
Lucrecia ou Ilse? Não queria saber. Que sensação prazerosa, esta forma
feminina soldada a ele, cujos peitos sentia deliciosamente através da
camisa, e este pescoço terso que seus lábios mordiscavam devagarinho,
avançando para uma orelha cuja cavidade o ápice de sua língua explorou
com avidez. Não, este ossinho ou cartilagem não era de Lucrecia.
Levantou a cabeça e tentou perfurar a semi-escuridão do canto onde
recordava ter visto, um momento antes, Narciso dançando. - Faz tempo que
subiram. - A voz de Ilse ressoou em seu ouvido imprecisa e aborrecida.
Ele até pôde detectar um tom zombeteiro. - Para onde? - perguntou
estupidamente, envergonhando-se na mesma hora de sua estupidez. - Para
onde você acha? - retrucou Ilse, com um risinho malvado e um humor
alemão. - Ver a lua? Fazer xixi? Para onde você imagina, cunhadinho? -
Em Lima nunca se vê a lua - balbuciou dom Rigoberto, soltando Ilse e
afastando-se. - E o sol, apenas no verão. Por causa da maldita neblina.
- Faz muito tempo que Narciso deseja Lucre - disse Ilse, devolvendo-o ao
cavalete dos suplícios, sem lhe dar respiro; falava como se o assunto
não fosse com ela. - Não me diga que não percebeu, você não é tão lerdo
assim.

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A embriaguez se dissipou, e também a excitação. Ele começou a
transpirar. Mudo, atoleimado, perguntava-se como era possível que
Lucrecia tivesse consentido com tanta facilidade na maquinação do seu
irmão corso, quando, outra vez, a insidiosa vozinha de Ilse o sacudiu: -
Isso lhe dá um pouquinho de ciúme, Rigo? - Bem, sim - reconheceu. E, com
mais franqueza: - Na realidade, muito ciúme. - A mim também dava, no
começo - disse ela, como uma banalidade a mais, na hora do bridge. - Mas
você se acostuma, e é como se visse chover. - Bem, bem - disse ele,
desconcertado. - Ou seja, você e Narciso brincam muito de troca-troca? -
A cada três meses - retrucou Ilse, com precisão prussiana. - Não é muito.
Narciso diz que essas aventuras, para não perderem a graça, devem ser
feitas de quando em quando. Sempre com gente selecionada. Diz que, se
forem trivializadas, já não há diversão. "Ele já deve tê-la despido",
pensou dom Rigoberto. "Talvez já a tenha nos braços." Lucrecia estaria
beijando e acariciando seu irmão corso com a mesma concupiscência que
este demonstrava? Dom Rigoberto tremia como um possesso da
dança-de-são-guido quando recebeu, como descarga elétrica, uma nova
pergunta de Ilse: - Gostaria de ver os dois? Para lhe falar, ela havia
aproximado o rosto. Os louros e compridos cabelos de sua cunhada
metiam-se em sua boca e nos olhos. - Sério? - murmurou, atônito. -
Gostaria? - insistiu ela, roçando-lhe a orelha com os lábios. - Sim, sim
- assentiu, sentindo-se desossado e evaporado. Ilse o tomou pela mão
direita. "Devagarinho, caladinho", instruía. Levou-o flutuando até a
escada de volutas de ferro que conduzia aos dormitórios. Estava escura,
assim como o corredor central, embora até este chegasse a luz dos
refletores do jardim. O carpete absorvia suas pisadas; avançavam nas
pontas dos pés. Dom Rigoberto sentia seu coração acelerado. O que o
esperava?

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O que ia ver? Sua cunhada se deteve e lhe deu outra ordem ao ouvido,
"Tire os sapatos", ao mesmo tempo em que se inclinava para se descalçar.
Dom Rigoberto obedeceu. Sentiu-se ridículo, como um ladrão, sem sapatos
e de meias, naquele corredor sombrio, conduzido pela mão como se fosse
Fonchito. "Não faça ruído, arruinaria tudo", disse ela, baixinho. Ele
assentiu, como um autômato. Ilse avançou um pouco mais, abriu uma porta e
o fez adiantar-se. Estavam no dormitório, separados do leito por uma
meia-parede de tijolos, que, por seus interstícios em forma de losango,
deixava ver a cama; era larguíssima e teatral. Na luz cônica que descia
de uma lâmpada embutida no forro, dom Rigoberto viu seu irmão corso e
Lucrecia, fundidos, movendo-se compassada mente. Chegou até ele o suave
e dialogante ofegar dos dois. - Pode se sentar - indicou Ilse. - Aqui, na
poltrona. Ele se deixou levar. Retrocedeu um passo e deixou-se cair
junto à cunhada no que devia ser um comprido sofá cheio de almofadas,
instalado de tal modo que a pessoa ali sentada não perdesse um só
detalhe do espetáculo. O que significava aquilo? Dom Rigoberto deixou
escapar um risinho: "Meu irmão corso é mais rococó do que eu imaginei."
Sua boca estava seca. Pela superposição precisa e pelo encaixe perfeito,
aquele casal parecia ter feito amor a vida inteira. Os corpos nunca se
desajustavam; em cada nova postura, a perna, o cotovelo, o ombro, o
quadril coincidiam ainda melhor e, a todo momento, cada um parecia
exprimir mais reconditamente seu prazer do outro. Ali estavam as belas
formas cheias, a ondulada cabeleira cor de azeviche de sua amada, as
empinadas nádegas que lembravam um galhardo promontório desafiando o
assalto de um mar bravio. "Não", disse a si mesmo. Assemelhavam-se mais
ao esplêndido traseiro da belíssima fotografia La prière, de Man Ray
(1930). Buscou em seus cadernos e, em poucos minutos, contemplava a
imagem. Sentiu um aperto no coração, ao recordar as vezes em que
Lucrecia havia posado assim para ele na intimidade noturna, sentada
sobre os calcanhares, as duas mãos sustentando as semi-esferas das
nádegas. A comparação também não destoava da outra imagem de Man Ray que
o caderno lhe ofereceu, contígua à anterior, pois o dorso musical de
Kiki de Montparnasse (1925)

112

era, nem mais nem menos, o que Lucrecia mostrava nesse momento, ao
inclinar-se e retorcer-se. As inflexões profundas dos seus quadris o
deixaram suspenso, ausente, por alguns segundos. Mas os braços peludos
que cercavam esse corpo, as pernas que mortificaram essas coxas e as
afastavam não eram as suas, nem tampouco a cara - ele não conseguia
distinguir as feições de Narciso - que, agora, percorria o dorso de
Lucrecia, perscrutando-o milímetro a milímetro, a boca entreaberta,
indecisa sobre onde pousar, o que beijar. Pela aturdida cabeça de dom
Rigoberto passou a imagem do casal de trapezistas do circo "As águias
humanas", que voavam e se encontravam no ar - executavam seu número sem
rede - depois de fazerem acrobacias a dez metros do solo. Igualmente
destros, perfeitos, adequados um ao outro, eram Lucrecia e Narciso.
Invadiu-o um sentimento tripartido (admiração, inveja e ciúme), e
lágrimas sentimentais lhe rolaram de novo pelas faces. Notou que a mão
de Ilse explorava profissionalmente sua braguilha. - Puxa, nada excita
você - ouviu-a sentenciar, sem baixar a voz. Dom Rigoberto percebeu um
movimento de surpresa, lá na cama. Eles tinham ouvido, sem dúvida; já
não poderiam continuar fingindo que não se sabiam espiados. Ficaram
imóveis; o perfil de dona Lucrecia virou-se para a meia-parede vazada
que os resguardava, mas Narciso voltou a beijá-la e a envolvê-la na luta
amorosa. - Desculpe, Ilse - sussurrou. - Estou frustrando você, que pena.
É que eu... como direi?, eu sou monógamo. Só posso fazer amor com minha
mulher. - Claro que é - riu Ilse, com afeto, e tão alto que, agora sim,
lá, na luz, a cara despenteada de dona Lucrecia escapou ao abraço do
irmão corso e dom Rigoberto viu os olhos dela muito abertos,
dirigindo-se assustados para onde se encontravam ele e Ilse. - Igual ao
seu irmãozinho corso, pois então. Narciso só gosta de fazer amor
comigo. Mas precisa de petiscos, aperitivos, preliminares. Ele não é tão
simples como você. Ela riu de novo e dom Rigoberto sentiu-a se afastar,
fazendo nos ralos cabelos dele um daqueles carinhos que as professoras
concedem às crianças que se portam bem. Não acreditava nos próprios
olhos: em que momento Ilse se despira?

113

Ali estavam suas roupas sobre o sofá, e ali, ela, ginasta, nua dos pés à
cabeça, rendendo a penumbra em direção à cama, tal como suas remotas
ancestrais, as valquírias, fendiam os bosques, com cascos bipartidos, à
caça do urso, do tigre e do homem. Nesse preciso instante, Narciso se
separou de Lucrecia, deslizou para o centro a fim de deixar um espaço -
seu rosto denotava um contentamento indescritível - e abriu os braços
para receber Ilse, com um rugido bestial de aprovação. E ali se
encontrava agora a desdenhada, a retraída Lucrecia, encolhendo-se no
outro extremo da cama, com plena consciência de que, a partir desse
momento, estava sobrando, e olhando à direita e à esquerda, em busca de
alguém que lhe explicasse o que devia fazer. Dom Rigoberto sentiu pena.
Sem dizer palavra, chamou-a. Viu-a levantar-se da cama nas pontas dos
pés, a fim de não perturbar os alegres esposos; buscar no chão suas
roupas; cobrir-se mais ou menos e avançar até onde o marido a esperava,
de braços abertos. Depois se aninhou no peito dele, palpitante. -
Entendeu alguma coisa, Rigoberto? - ouviu-a dizer. - Só que amo você -
respondeu ele, acolhendo-a. - Nunca a vi tão bela. Venha, venha. - Eta,
irmãozinhos corsos! - ouviu a valquíria rir, lá longe, sobre um fundo de
bufídos selvagens de javali e trombetas wagnerianas.

HARPIA LEONINA E ALADA

Onde estás? No Salão dos Grotescos do Museu Austríaco de Arte
Barroca, no Baixo Belvedere de Viena. O que fazes aí? Estudas
cuidadosamente uma das criaturas fêmeas de Jonas Drentwett que dão
fantasia e glória a essas paredes. Qual delas? A que alonga o altíssimo
pescoço a fim de descobrir melhor o peito e mostrar a belíssima,
pungente teta de botão vermelho, que todos os seres animados viriam
experimentar se não o tivesses reservado. Para quem? Para teu enamorado
à distância, o reconstrutor de tua identidade, o pintor que te desfaz e
te refaz ao seu capricho, teu desperto sonhador.

114

O que deves fazer? Aprender essa criatura de memória e emulá-la na
discrição do teu dormitório, à espera da noite em que virei. Não te
desalentes por saber que não tens cauda, nem garras de ave de rapina,
nem hábito de andar em quatro patas. Se deveras me amas, terás cauda,
garras, em quatro patas andarás e, pouco a pouco, mercê da constância e
firmeza que as façanhas do amor exigem, deixarás de ser Lucrecia, a do
Olivar, e serás a Lucrecia Mitológica, Lucrecia a Harpia Leonina e
Alada, a Lucrecia que chegou ao meu coração e ao meu desejo vinda dos
mitos e lendas da Grécia (com uma escala nos afrescos romanos, de onde
Jonas Drentwett te copiou). Já estás semelhante a ela? Garupa retraída,
peito alteado, cabeça erguida? Sentes já que assoma a cauda felina e que
te crescem asas lanceoladas, cor de arrebol? O que ainda te falta, o
diadema para a fronte, o colar de topázio, a faixa de ouro e pedras
preciosas onde descansará teu tenro busto, estes, como prenda de
adoração e reverência, receberás de quem te ama acima de todas as
coisas reais ou inexistentes. O caprichoso das harpias.

115

V. FONCHITO E AS MENINAS

A senhora Lucrecia enxugou mais uma vez os olhos risonhos, ganhando
tempo. Não se atrevia a perguntar a Fonchito se era verdade o que Tetê
Barriga lhe contara. Por duas vezes esteve prestes a fazê-lo, mas nas
duas se acovardou. - De que está rindo assim, madrasta? - quis saber o
menino, intrigado. Porque, desde que ele chegara à casinha do Olivar de
San Isidro, a senhora Lucrecia não fazia outra coisa além de soltar
aquelas gargalhadas intempestivas, comendo-o com os olhos. - De uma
coisa que uma amiga me contou - ruborizou-se dona Lucrecia. - Morro de
vergonha de lhe perguntar. Mas, também, de vontade de saber se é
verdade. - Alguma fofoca sobre o papai, certamente. - Vou lhe dizer,
embora seja bastante vulgar - decidiu a senhora Lucrecia. - Minha
curiosidade é mais forte do que minha boa educação. Segundo Tetê, cujo
marido estivera presente na tal ocasião e havia relatado o fato entre
divertido e furioso, era uma reunião daquelas que a cada dois ou três
meses acontecia no escritório doméstico de dom Rigoberto. Homens
sozinhos, cinco ou seis amigos de juventude, colegas de colégio,
universidade ou bairro, mantinham esses encontros por simples rotina,
já sem entusiasmo, mas não se atreviam a quebrar o rito, talvez pelo
supersticioso temor de que, se alguém faltasse ao compromisso, o azar
viesse a cair sobre o desertor ou todo o grupo. E continuavam se vendo,
embora, sem dúvida, também eles, assim como Rigoberto, já não achassem
graça nessa reunião bimestral ou trimestral, em que bebiam conhaque,
comiam empadinhas de queijo e passavam em revista os mortos e a
atualidade política. Dona Lucrecia recordava que, depois, dom Rigoberto
sentia dor de cabeça, de tanto tédio, e precisava tomar umas gotinhas de
valeriana.

116

A coisa havia acontecido no último encontro, na semana anterior. Os
amigos - cinquentões ou sessentões, alguns no limiar da aposentadoria
- viram chegar Fonchíto, os claros cabelos alvoroçados. Os grandes olhos
azuis do menino se surpreenderam por vê-los ali. A desordem do uniforme
do colégio acrescentava um toque de liberdade à sua bela pessoinha. Os
cavalheiros lhe sorriram, boa tarde Fonchito, como está grande, como
cresceu. - Não vai cumprimentar? - admoestou-o dom Rigoberto,
pigarreando. - Sim, claro - respondeu a voz cristalina do menino. - Mas,
painho, por favor, que seus amigos, se me fizerem carinhos, não façam no
meu popô. A senhora Lucrecia explodiu na quinta gargalhada da tarde. -
Você disse essa barbaridade a eles, Fonchito? - É que, com o pretexto de
me fazer carinhos, sempre estão me tocando nesse lugar - retrucou ele,
encolhendo os ombros, sem dar maior importância ao assunto. - Não gosto
que me toquem assim nem de brincadeira, depois me dá comichão. E, quando
me vem qualquer prurido, eu me coço até tirar pedaço. - Então era
verdade, você disse mesmo. - A senhora Lucrecia passava do riso ao
assombro e, de novo, ao riso. - Claro, Tetê não podia inventar uma coisa
dessas. E Rigoberto? Como reagiu? - Me fulminou com os olhos e me
mandou fazer os deveres no meu quarto - disse Fonchito. - Depois,
quando eles foram embora, me deu a maior bronca. E me tirou a semanada
do domingo. - Esses velhos mãos-bobas! - explodiu a senhora Lucrecia,
subitamente indignada. - Que falta de vergonha! Se eu os tivesse visto
alguma vez, botava todos no olho da rua. E seu pai ficou naquela calma
toda, quando soube? Mas, antes, jure, era verdade? Tocavam seu bumbum?
Não é uma dessas coisas retorcidas que você inventa? - Claro que me
tocavam. Aqui - mostrou o menino, dando uma palmada nas nádegas. -
Igualzinho aos padres do colégio. Por quê, madrasta? O que eu tenho no
popô que todos querem passar a mão nele?

117

A senhora Lucrecia o perscrutava, tentando adivinhar se ele não estava
mentindo. - Se for verdade, são uns sem-vergonhas, uns abusados -
exclamou por Fim, ainda duvidando. - No colégio também? E você não
contou a Rigoberto, para ele fazer um escândalo? O menino exibiu uma
expressão seráfica: - Não quero dar mais preocupações ao papai. E agora
que ele anda tão triste, menos ainda. Dona Lucrecia baixou a cabeça,
confusa. Esse garotinho era um mestre em dizer coisas que a
desnorteavam. Bom, se era verdade, ben feito, aqueles safados tinham
passado um vexame. O marido de Tetê Barriga havia contado que ele e seus
amigos ficaram sem graça, sem se atreverem a encarar Rigoberto, por um
bom tempo. Depois, embora encabulados, fizeram piadinhas. Já chegava
desse assunto, em todo caso. Dona Lucrecia passou a outra coisa.
Perguntou a Fonchito como ia ele no colégio, se não se prejudicava na
academia saindo antes de terminarem as aulas, se havia ido ao cinema, ao
futebol, a alguma festa. Mas Justiniana, que entrou trazendo o chá com
pãezinhos, voltou ao tema. Tinha ouvido tudo e começou a opinar, de
língua solta. Estava segura de que o menino mentia: "Não acredite,
patroa. Foi outra diabrura deste bandido, para aqueles senhores ficarem
com cara de tacho na frente de dom Rigoberto. A senhora não o conhece?"
"Se seus chancays não estivessem tão gostosos, eu ia me aborrecer com
você, Justita." Dona Lucrecia sentiu que havia cometido uma imprudência;
deixando-se vencer pela curiosidade mórbida - com Fonchito, nunca se
sabia -, talvez tivesse despertado a fera. De fato, quando Justiniana
recolhia xícaras e pratos, a pergunta caiu sobre ela como uma estocada:
- Por que será que as pessoas mais velhas gostam tanto de crianças,
madrasta? Justiniana escapuliu fazendo com a garganta ou o estômago um
ruído que só podia ser um riso censurado. Dona Lucrecia buscou os olhos
de Fonchito. Investigou-os com calma, em busca de uma centelha de
maldade, de intenções escusas. Não. Só mesmo a luminosidade de um céu
diáfano. - Todo mundo gosta de crianças - disse, hipócrita. - É normal
alguém se enternecer com elas. São pequeninas, frágeis, às vezes muito
lindas.

118

Sentiu-se estúpida, impaciente por escapar aos olhões quietos e
límpidos, pousados nela. - Egon Schiele gostava muito - disse Fonchito,
assentindo. - Em Viena, no início do século, havia muitas meninas
abandonadas, vivendo nas ruas. Pediam esmola nas igrejas, nos cafés. -
Como em Lima - disse ela, sem saber o que dizia. Outra vez era invadida
pela sensação de ser uma mosquinha atraída, apesar dos seus esforços,
para as fauces da aranha. - E ele ia ao Parque Schönbrunn, onde havia
montes de meninas. Levava-as para o ateliê. Dava comida e dinheiro a
elas - prosseguiu Fonchito, inexorável. - O senhor Paris von Güterlash,
um amigo que Schiele pintou, daqui a pouco lhe mostro o retrato, diz que
sempre encontrava lá duas ou três meninas de rua. Ficavam ali, por
vontade própria. Dormiam ou brincavam, enquanto Schiele pintava. Você
acha que havia algum mal nisso? - Se ele dava comida a elas e as
ajudava, que mal haveria? - Mas é que as mandava tirar a roupa e as
pintava fazendo poses - acrescentou o menino. Dona Lucrecia pensou: "Já
não tenho escapatória." Era ruim que Egon Schiele fizesse isso? - Bem,
acho que não - engoliu em seco a madrasta. - Um artista precisa de
modelos. Por que vamos botar malícia em tudo? Degas não gostava de
pintar as ratinhas, as pequenas bailarinas da Ópera de Paris? Bom, Egon
Schiele também se inspirava nas meninas. Mas, então, por que o
encarceraram, sob a acusação de ter seqüestrado uma menor? Por que o
condenaram à prisão por difundir pinturas imorais? Por que o obrigaram
a queimar um desenho sob o pretexto de que as crianças viam coisas
escabrosas no ateliê? - Não sei por quê - acalmou-o ela, ao ver que o
menino ia ficando alterado. - Eu não sei nada de Schiele, Fonchito. Você
é quem sabe tudo a respeito. Os artistas são pessoas complicadas, seu
pai pode explicar. Não têm que ser uns santos. Não se deve idealizá-los
nem satanizá-los. O importante são as obras, e não as vidas. O que
ficou de Schiele é como ele pintou essas meninas, e não o que fazia com
elas no ateliê.

119

- Mandava que calçassem aquelas meias coloridas de que gostava tanto -
rematou Fonchito. - Que se deitassem no sofá ou no chão. Sozinhas ou em
duplas. Então, subia em uma escada para olhá-las de cima. Encarapitado
ali, no alto, fazia um esboço, em uns cadernos que foram publicados. O
papai tem o livro. Mas em alemão. Só pude ver os desenhos, mas não ler.
- Encarapitado em uma escada? Era assim que as pintava? Aí está você,
Lucrecia, enrolada na teia de aranha. Ele sempre conseguia, aquele
pirralho. Agora, ela já não tentava afastá-lo do assunto; seguia-o,
aprisionada. A pura verdade, madrasta. Schiele dizia que seu sonho era
ser uma ave de rapina. Pintar o mundo a partir de cima, vê-lo como um
condor ou um abutre o veria. E, pensando bem, era a pura verdade. Iria
demonstrá-lo agora mesmo. Saltou para remexer na pasta da academia e, um
momento depois, acocorava-se aos seus pés - ela estava no sofá, como
sempre, e ele no chão -, passando as páginas de um novo e volumoso livro
de reproduções de Egon Schiele, que apoiou sobre os joelhos da madrasta.
Sabia realmente todas essas coisas sobre o pintor? Quantas eram certas?
E por que lhe viera essa mania por Schiele? Coisas que ouvia de
Rigoberto? Seria esse pintor a última obsessão do seu ex-marido? Em
todo caso, não faltava razão ao menino. Estas moças deitadas, estes
amantes enlaçados, estas cidades fantasmais, sem pessoas, animais ou
carros, de casas amontoadas e como que congeladas às margens de rios
desertos, pareciam divisados do alto, por uma ave rampante, que planava
sobre tudo aquilo com um olhar envolvente e impiedoso. Sim, a
perspectiva de uma ave de rapina. A carinha de anjo lhe sorriu: "Eu não
disse, madrasta?" Ela assentiu, desagradada. Por trás de seus traços de
querubim, de sua inocência de quadro milagreiro, Fonchito aninhava uma
inteligência sutil, precocemente amadurecida, uma psicologia tão
arrevesada quanto a de Rigoberto. E, nesse momento, dona Lucrecia tomou
consciência daquilo que a página exibia. Incendiou-se como uma tocha. O
menino havia deixado o livro aberto em uma aquarela de tons vermelhos e
espaços creme, com uma franja malva, à qual só agora ela prestava
atenção: o próprio artista de espigada silhueta, sentado, e, entre suas
pernas abertas, uma moça, despida e de costas,

120

sustentando no alto, como o mastro "de uma bandeira, a gigantesca
extremidade viril dele. - Este casal também foi pintado de cima -
alertou-a a voz cristalina. - Mas como terá feito o esboço? Da escada,
não podia, porque quem está sentado no chão é ele mesmo. Você percebe,
não, madrasta? - Percebo que é um autorretrato muito obsceno - disse
dona Lucrecia. - É melhor continuar passando as páginas, Foncho. - Pois
eu o acho triste - discordou o menino, com muita convicção. - Veja a
cara de Schiele. Está caída, como se ele não agüentasse mais a dor que
sente. Parece que vai chorar. Tinha apenas vinte e um anos, madrasta.
Por que será, em sua opinião, que ele intitulou este quadro A hóstia
vermelha! - Melhor não averiguar, seu sabidinho - começou a se aborrecer
a senhora Lucrecia. - É esse o nome? Então, além de obsceno, é
sacrílego. Vire a página, senão eu a rasgo. - Mas, madrasta -
recriminou-a Fonchito -, você não vai ser como aquele juiz que condenou
Egon Schiele a destruir um quadro. Não pode ser tão injusta nem tão
preconceituosa. Sua indignação parecia genuína. As pupilas brilhavam, as
finas aletas do nariz vibravam e até as orelhas se adelgaçavam. Dona
Lucrecia lamentou o que acabava de dizer. - Bom, tem razão, com a
pintura, com a arte, é preciso ser mais indulgente. - Esfregou as mãos,
nervosa. - É que você me tira do sério, Fonchito. Nunca sei se faz o
que faz, e diz o que diz, de maneira espontânea ou com segundas
intenções. Nunca sei se estou com um menino ou com um velho vicioso e
pervertido, escondido atrás de uma carinha de Menino Jesus. O garoto a
fitava desconcertado; a surpresa parecia lhe brotar lá do fundo.
Pestanejava, sem compreender. Seria ela que, com sua desconfiança,
estava escandalizando esta criança? Claro que não. Mas, ao ver os olhos
agora marejados de Fonchito, sentiu-se culpada. - Nem sei o que estou
dizendo - murmurou. - Esqueça, eu não disse nada. Venha cá, me dê um
beijo, vamos fazer as pazes. Ele se levantou e lhe jogou os braços ao
pescoço. Dona Lucrecia sentiu, palpitando, a frágil estrutura, os
ossinhos,

121

o corpinho na fronteira da adolescência, essa idade em que os meninos
ainda se confundem com as meninas. - Não se aborreça comigo, madrasta -
ouviu-o dizer, no seu ouvido. - Me corrija se eu fizer algo errado, me
aconselhe. Quero ser como você quer que eu seja. Mas não se aborreça. -
Tudo bem, já passou - disse ela. - Vamos esquecer. Fonchito a mantinha
encarcerada pelo pescoço com seus bracinhos, e lhe falava tão baixo e
devagar que ela não entendeu o que ele dizia. Mas registrou com todos os
seus nervos a pontinha da língua do menino quando, como um delicado
estilete, esta entrou na cavidade de sua orelha e a umedeceu. Resistiu
ao impulso de afastá-lo. Um momento depois, sentiu que os lábios
fininhos percorriam o lóbulo, com beijos espaçados, miúdos. Agora, sim,
afastou-o com suavidade - por todo o corpo lhe corriam cobrinhas - e
deu com aquela cara travessa. - Eu lhe fiz cosquinha? - Fonchito parecia
se vangloriar de uma proeza. - Você está tremendo todinha. Sentiu um
choque elétrico, madrasta? Dona Lucrecia não soube o que dizer. Sorriu
para ele, forçada. - Já ia me esquecendo de contar - tirou-a Fonchito do
apuro, retornando ao seu lugar costumeiro, ao pé do sofá. - Comecei a
fazer aquele trabalho com o papai. - Que trabalho? - As pazes entre
vocês, ora - explicou ele, gesticulando. - Sabe o que fiz? Disse que
tinha visto você saindo da Virgen del Pilar, elegantíssima, de braços
com um senhor. Que pareciam um casalzinho em lua de mel. - E por que
mentiu desse jeito? - Para provocar ciúme nele. E consegui. Ficou
nervosíssimo, madrasta] Riu, com uma risada que proclamava uma
esplêndida alegria de viver. Seu papai tinha ficado pálido, de olhos
esbugalhados, embora, no princípio, não comentasse nada. Mas estava
roído de curiosidade e morrendo de vontade de saber mais. Remexia-se
todo. Para lhe facilitar a coisa, Fonchito abriu fogo:

122

- Acha que minha madrasta pretende se casar de novo, painho? Dom
Rigoberto fez uma expressão azeda, uma cara despencada, cavalar, antes
de responder: - Não sei. É a ela que você devia perguntar. - E, depois
de uma vacilação, tentando parecer natural: - Sei lá. Esse senhor lhe
pareceu mais que um amigo? - Bem, não sei - teria hesitado Fonchito,
movendo a cabeça como um cuco de relógio. - Estavam de braço dado. O
homem olhava para ela como nos filmes. E ela também lhe lançava umas
olhadinhas muito coquetes. - Vou matar você, seu bandido, seu mentiroso.
- A senhora Lucrecia atirou em Fonchito uma das almofadas, que ele
recebeu na cabeça com grande assombro. - Você é um farsante. Não disse
nada a Rigoberto, está caçoando de mim, bem ao seu jeito. - Juro pelo
que há de mais sagrado, madrasta - ria-se o menino, às gargalhadas,
beijando os dedos em cruz. - É o pior cínico que já conheci - disparou
ela outra almofada, rindo também. - Imagine como será quando crescer.
Deus proteja a pobre inocente que se apaixonar por você. Fonchito ficou
sério, em uma daquelas bruscas mudanças de humor que desconcertavam dona
Lucrecia. Tinha cruzado os braços sobre o peito e, sentado como um Buda,
examinava-a com certo medo. - Está de brincadeira, não é, madrasta? Ou
realmente acha que eu sou mau? Ela estendeu a mão e lhe acariciou os
cabelos. - Não, mau, não - disse. - Você é imprevisível. Metido a
esperto e com imaginação demais, isto sim. - Quero que vocês fiquem de
bem - interrompeu Fonchito, com gesto enérgico. - Por isso inventei essa
história para o papai. Já tenho um plano. - Como sou eu a interessada,
pelo menos deixe que eu lhe dê minha aprovação. - É que... - Fonchito
retorceu as mãos. - Ainda me falta completar o plano. Confie em mim,
madrasta. Preciso saber umas coisas sobre vocês dois. Por exemplo, como
se conheceram. E como foi que se casaram.

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Uma cascata de imagens melancólicas atualizou na memória de dona
Lucrecia aquele dia - onze anos já - em que, durante uma tumultuada e
tediosa festa para comemorar as bodas de prata de uns tios, havia sido
apresentada àquele senhor de caraça lúgubre, grandes orelhas e nariz
beligerante, a caminho da calvície. Um cinquentão sobre o qual uma
amíga alcoviteira, empenhada em casar todo mundo, deu as informações:
"Viúvo recente, um filho, gerente da Seguradora La Perricholi, meio
esquisitão mas de família decente e com grana." No princípio, ela só
reteve de Rigoberto o aspecto funéreo, sua atitude arredia, o quanto era
feio. Mas, desde essa mesma noite, algo a atraiu naquele homem sem
encantos físicos, algo que ela adivinhou de complicado e misterioso na
vida dele. E, desde menina, dona Lucrecia sentira fascinação por
debruçar-se sobre os abismos do alto dos penhascos, por equilibrar-se na
balaustrada das pontes. Essa atração se confirmou quando ela aceitou
tomar um chá com ele na Tiendecita Blanca, assistir em sua companhia a
um concerto da Filarmônica no Colégio Santa Ursula e, sobretudo, quando
entrou em sua casa pela primeira vez. Rigoberto lhe mostrou suas
gravuras, seus livros de arte e os cadernos onde estavam seus segredos,
e lhe explicou como renovava sua coleção, penalizando com as chamas os
livros e imagens que ia substituindo. Ficara impressionada ouvindo-o,
observando a correção com que a tratava, a formalidade maníaca com que
se comportava. Para assombro da família e das amigas ("O que você está
esperando para se casar, Lucre? Um príncipe encantado? Não pode ficar
rejeitando todos os seus admiradores!"), aceitou imediatamente, quando
Rigoberto lhe propôs casamento ("Sem sequer ter me dado um beijo").
Nunca se arrependera. Nem um só dia, nem um só minuto. Havia sido
divertido, excitante, maravilhoso, ir descobrindo o mundo de manias,
rituais e fantasias do marido, compartilhá-lo com ele, ir construindo ao
seu lado aquela vida reservada, ao longo de dez anos. Até a absurda,
louca, estúpida história com o enteado, à qual se deixara arrastar. Com
um fedelho que agora nem parecia se lembrar do acontecido. Logo ela,
logo ela! A que todos achavam tão judiciosa, tão precavida, tão
organizada, a que sempre havia calculado todos os passos com tanta
sensatez. Como pudera ter uma aventura com um garotinho de colégio? Seu
próprio enteado! Rigoberto até que

124

se portara de maneira muito decente, evitando o escândalo,
limitando-se a pedir a separação e dando o apoio econômico que agora
lhe permitia morar sozinha. Outro iria matá-la, expulsá-la com uma
mão na frente e outra atrás, sem um centavo, exibi-la no pelourinho
social como corruptora de menores. Que bobagem, pensar que Rigoberto e
ek podiam se reconciliar. Ele continuaria mortalmente ofendido pelo que
acontecera; jamais a perdoaria. Dona Lucrecia sentiu os bracinhos se
enroscarem outra vez no seu pescoço. - Por que você ficou triste? -
consolou-a Fonchito. - Fiz algo errado? - De repente me lembrei de umas
coisas, e, como sou uma sentimental... Já passou. - Quando a vi ficando
assim, me deu um susto! O menino voltou a beijá-la na orelha, com os
mesmos beijinhos diminutos, e a rematar os carinhos umedecendo-lhe outra
vez o pavilhão da orelha com a ponta da língua. Dona Lucrecia se sentia
tão deprimida que nem sequer teve ânimo para afastá-lo. Dali a pouco,
ouviu que ele dizia, em tom diferente: - Você também, madrasta? - Eu
também o quê? - Está me tocando o popô, ora, igual aos amigos do papai e
aos padres do colégio. Caramba, por que todo mundo agora cismou de
passar a mão no meu bumbum?

CARTA AO ROTARIANO

Sei que você se ofendeu,
amigo, com minha negativa de aderir ao Rotary Club, instituição da qual
é dirigente e promotor. E desconfio que ficou receoso, nada convencido
de que minha recusa a ser rotariano de nenhum modo significa que eu vá
me inscrever no Clube dos Leões ou no recém-surgido Kiwanis do Peru,
associações com as quais a sua compete implacavelmente para levar a
palma da beneficência pública, do espírito cívico, da solidariedade
humana, da assistência social e coisas do gênero. Tranquilize-se: não
pertenço nem pertencerei a nenhum desses clubes ou associações, nem a
nada parecido (os Escoteiros, os Ex-alunos Jesuítas, a Maçonaria, o Opus
Dei etc.).

125

Minha hostilidade ao gênero associativo é tão radical que até desisti de
ser membro du Touring Automóvel Clube, sem falar dessas supostas
agremiações sociais que medem a categoria étnica e o patrimônio
econômico dos limenhos. Desde meus anos já longínquos de militância na
Ação Católica, e por causa dela - pois foi essa a experiência que me
abriu os olhos sobre a ilusão de toda utopia social e me catapultou à
defesa do hedonismo e do indivíduo -, contraí uma repugnância moral,
psicológica e ideológica contra toda forma de servidão gregária, a tal
ponto que - falo sério - até a fila do cinema me dá a sensação de estar
sendo atropelado e diminuído em minha liberdade (às vezes, não tenho
outro remédio a não ser entrar nela, claro), retrocedido à condição de
homem-massa. A única concessão que recordo haver feito deveu-se a uma
ameaça de sobrepeso (sou um convencido, como Cyril Connoly, de que "a
obesidade é uma doença mental") que me levou a matricular-me em uma
academia, onde um tarzan desprovido de miolos nos fazia transpirar,
quinze idiotas, por uma hora diária, ao compasso dos seus rugidos,
exercitando contrações simiescas a que ele chamava aerobics. O suplício
ginástico veio confirmar todos os meus preconceitos contra o
homem-rebanho. Permita-me, a propósito, transcrever-lhe uma das citações
que abarrotam meus cadernos, pois sintetiza maravilhosamente o que
penso. O autor é um asturiano vira-mundo acantonado na Guatemala,
Francisco Pérez de Antón: "Um rebanho, como se sabe, compõe-se de gente
desprovida da palavra e com esfíncter mais ou menos débil. É fato
comprovado, ademais, que, em tempos de confusão, o rebanho prefere a
servidão à desordem. Donde, os que atuam como cabras não têm líderes,
mas uns sem-vergonhas. E algo dessa espécie deve ter-nos contagiado,
visto que no rebanho humano é muito comum aquele dirigente capaz de
conduzir as massas à beira do penhasco e, uma vez ali, fazê-las saltar
para a água. Isto, se não lhe ocorrer assolar uma civilização, o que é
algo também bastante freqüente." Você dirá que é paranóia isso de
divisar, por trás de benignos varões que se reúnem para almoçar uma vez
por semana e discutir em que novo distrito devem levantar aquelas
esteias de calcário com a placa de metal "O Rotary Club lhes dá as
boas-vindas", cuja construção eles pagam em cotas-partes, uma ominosa
depreciação, na escala humana, de indivíduo soberano a indivíduo-massa.

126

Talvez eu esteja exagerando. Mas não posso descuidar-me. Como o mundo
avança, aceleradamente para a desindividualização completa, para a
extinção desse acidente histórico, o reinado do indivíduo livre e
soberano, que uma série de acasos e circunstâncias havia possibilitado
(para um número reduzido de pessoas, é claro, e em um número ainda
mais reduzido de países], estou mobilizado para o combate, com meus
cinco sentidos e durante as vinte e quatro horas do dia, a fim de
retardar o máximo que puder, no que a mim concerne, essa derrota
existencial. A batalha é de vida ou morte e totalizadora; tudo e todos
participam dela. Essas associações de profissionais pançudos,
executivos e burocratas de alto nível, que, uma vez por semana,
comparecem para consumir um cardápio regimentar (composto por uma batata
recheada, uma bistequinha com arroz e umas panquecas com manjar-branco,
tudo isso irrigado com um vinhozinho tinto Tacama Reserva Especial?),
constituem uma batalha ganha a favor da robotização definitiva e do
obscurantismo, um avanço da planificação, da organização, da
obrigatoriedade, da rotina, da coletivização, e um encolhimento ainda
maior da espontaneidade, da inspiração, da criatividade e da
originalidade, que só são concebíveis na esfera do indivíduo. Pelo que
leu até aqui, você receia que, sob minha aparência incolor de burguês
cinquentão, esteja emboscado um hirsuto anti-social meio anarquista?
Bingo! Acertou, meu chapa. (Fiz um gracejo e me dei mal: a palavrinha
chapa já me sugere a inevitável palmada no ombro que a acompanha e a
asquerosa visão de dois varões embarrigados de cerveja e de imoderada
ingestão de petiscos, coletivizando-se, formando uma sociedade,
renunciando aos seus fantasmas endovenosos e ao seu cu.) É verdade: sou
um antissocial na medida das minhas forças, que por desgraça são
fraquíssimas, e resisto à gregarização em tudo aquilo que não ameaça
minha sobrevivência nem meus excelentes níveis de vida. Tal como você
está lendo. Ser individualista é ser egoísta (Ayn Rand, The virtue of
selftshness), mas não imbecil. De resto, a imbecilidade me parece
respeitável se for genética, herdada, não resultante de uma escolha, de
uma deliberada tomada de posição. Temo que ser rotariano, assim como
leão, kiwani, maçom, escoteiro ou opus, seja (desculpe-me) uma
acovardada aposta a favor da estupidez.


127

Convém lhe explicar esse insulto: assim o atenuo e, na próxima vez em
que os negócios de nossas seguradoras nos reunirem, você não me
arrebentará com um soco (ou com um chute na canela, agressão mais
apropriada para pessoas da nossa idade). Não sei de que maneira mais
justa posso definir a institucionalização das virtudes e dos bons
sentimentos representada por essas associações, a não ser como uma
abdicação da responsabilidade pessoal e uma maneira barata de adquirir
boa consciência "social" (uso essa palavra entre aspas para sublinhar o
desagrado que ela me causa). Em termos práticos, o que você e seus
colegas fazem não contribui, ao meu juízo, para reduzir o mal (ou, se
preferir, para aumentar o bem) em nenhum sentido apreciável. Os
principais beneficiários dessa generosidade coletivizada são vocês
mesmos, começando por seus estômagos, deglutidores desses cardápios
semanais, e suas mentes porcas, que, nessas noitadas de confraternização
(horroroso conceito!), arrotam de prazer intercambiando mexericos,
piadas grosseiras e difamando impiedosamente o ausente. Não sou contra
esses entretenimentos nem, em princípio, contra nada que produza
prazer; sou contra a hipocrisia de não reivindicar esse direito às
claras, de buscar o prazer dissimulando-o sob o álibi profilático da
ação cívica. Não foi você mesmo quem me disse, com olhos de sátiro e
dando-me um piparote pornográfico, que outra vantagem de ser rotariano
era que a instituição fornecia um pretexto semanal de primeira ordem
para estar longe de casa sem alarmar a mulher? Aqui, acrescento outra
objeção. É por regulamento ou simplesmente por costume que não há
mulheres em suas fileiras? Nos almoços que você me infligiu, nunca vi
uma saia. Tenho certeza de que nem todos vocês são veados, única razão
tibiamente aceitável para justificar o pantalonismo rotariano (leão,
kiwani, escoteiro etc.). Esta é minha tese: ser rotariano é um pretexto
para passar bons momentos masculinos, a salvo da vigilância, servidão
ou formalidade impostas, segundo vocês, pela coabitação com a mulher.
Isso me parece tão anticivilizado quanto a paranóia das recalcitrantes
feministas que declararam a guerra dos sexos. Minha filosofia é que, nos
casos inevitáveis de resignação ao gregarismo - escolas, empregos,
diversões -, a mistura de gêneros (e de raças, línguas, costumes e
crenças) constitui uma maneira de amenizar a cretinização que o
corriolismo implica

128

e de introduzir nas relações humanas um elemento picante, malicioso
(maus pensamentos, dos quais sou resoluto praticante), algo que, no
meu ponto de vista., eleva essas relações estética e moralmente. Não
lhe digo que ambas as coisas são, para mim, uma só porque você não
entenderia. Toda atividade humana que não contribua, ainda que da
maneira mais indireta, para a ebulição testicular e ovárica, para o
encontro de espermatozoides e óvulos, é desprezível. Por exemplo, a
venda de apólices de seguros à qual você e eu nos dedicamos há trinta
anos, ou os almoços misóginos dos rotarianos. Assim é tudo o que
distrai do objetivo verdadeiramente essencial da vida humana, que
consiste, a meu juízo, na satisfação dos desejos. Não vejo para qual
outra coisa podemos estar aqui, girando como lentos piões no gratuito
universo. A pessoa pode vender seguros, como você e eu fizemos - e com
bastante sucesso, pois alcançamos posições invejáveis em nossas
respectivas companhias -, porque é preciso comer, vestir-se, abrigar-se
sob um teto e alcançar rendas que permitam ter e aplacar desejos. Não há
nenhuma outra razão válida para vender apólices de seguros, nem
tampouco para construir represas, castrar gatos ou ser taquígrafo. Até
já o escuto: e se, à diferença de você, desequilibrado Rigoberto, um
homem se realiza e tem prazer vendendo apólices de seguros contra
incêndios, roubos ou enfermidades? E se, comparecendo a almoços
rotarianos e contribuindo com esmolas pecuniárias para levantar cartazes
nas estradas com o lema "Devagar se vai ao longe", ele materializa seus
mais ardentes desejos e é feliz, nem mais nem menos que você quando
folheia sua coleção de gravuras e livros impróprios para senhoritas ou
quando se entrega a essas punhetas mentais que são os solilóquios dos
seus cadernos? Cada um não tem direito aos seus desejos? Sim, é verdade.
Porém, se os desejos (a palavra mais bela do dicionário) mais
acalentados por um ser humano consistem em vender seguros e afiliar-se
ao Rotary Club (ou afins), esse bípede é um cretino. Caso de noventa por
cento da humanidade, concordo. Vejo que você começa a compreender,
securitário. Vai se benzer por tão pouco? Seu sinal da cruz me insta a
passar a outro assunto, que é o mesmo. Que papel a religião ocupa nesta
diatribe? Ela também recebe as bofetadas deste renegado da Ação
Católica, ex-leitor febril de santo Agostinho,

129

cardeal Newmann, são João da Cruz e Jean Guitton? Sim e não. Se alguma
coisa eu sou nessa matéria, sou agnóstico. Desconfiado do ateu e do
descrente, a favor de que as pessoas creiam e pratiquem uma fé, pois,
de outro modo, não teriam vida espiritual alguma e o selvagismo se
multiplicaria. A cultura - a arte, a filosofia, todas as atividades
intelectuais e artísticas laicas - não substitui o vazio espiritual que
resulta da morte de Deus, do eclipse da vida transcendente, exceto em
uma reduzidíssima minoria (da qual faço parte). Esse vazio torna as
pessoas mais destruidoras e bestiais do que normalmente o são. Ao mesmo
tempo que sou a favor da fé, as religiões em geral me incitam a tapar o
nariz, porque todas elas implicam o rebanhismo processionário e a
abdicação da independência espiritual. Todas elas restringem a liberdade
humana e pretendem enredar os desejos. Reconheço que, sob o ponto de
vista estético, as religiões - a católica talvez mais que qualquer
outra, com suas formosas catedrais, seus ritos, liturgias, atavios,
representações, iconografias, músicas - costumam ser soberbas fontes de
prazer que deleitam o olhar, a sensibilidade, atiçam a imaginação e nos
incendeiam com maus pensamentos. Em todas, porém, sempre se emboscam um
censor, um comissário, um fanático, as grelhas e tenazes da inquisição.
Também é certo que, sem suas proibições, seus pecados, suas fulminações
morais, os desejos - o sexual, sobretudo - não teriam alcançado o
refinamento que tiveram em certas épocas. Pois, e isto não é teoria,
mas prática, graças a uma modesta pesquisa pessoal de limitado
horizonte, afirmo que se faz muito melhor o amor nos países religiosos
do que nos secularizados (melhor na Irlanda do que na Inglaterra, na
Polônia do que na Dinamarca), e nos católicos do que nos protestantes
(na Espanha ou na Itália melhor do que na Alemanha ou na Suécia), e que
são mil vezes mais imaginativas, audazes e delicadas as mulheres que
passaram por colégios de freiras do que as que estudaram em colégios
laicos (Roger Vailland teorizou a respeito em Le regarafroid). Lucrecia
não seria a Lucrecia que me cumulou de uma inestimável felicidade,
noite e dia (mas, sobretudo, à noite), ao longo de dez anos, se sua
infância e juventude não tivessem estado a cargo das rigorosíssimas
freiras do Sagrado Coração, entre cujos ensinamentos figurava o de que,
para uma menina, sentar-se com os joelhos abertos era pecado. Essas
sacrificadas escravas do Senhor,

130

com suas exacerbadas suscetibilidade e casuística em matéria amorosa,
foram formando, ao longo da história, verdadeiras dinastias de
Messalinas. Benditas sejam! E então? Em que ficamos? Eu não sei em que
ficará você, caro colega (para usar outra expressão vomitável). Eu fico
em minha contradição, que é também, afinal, uma fonte de prazer para um
espírito dissidente e inclassificável como o meu. Contra a
institucionalização dos sentimentos e da fé, mas a favor dos sentimentos
e da fé. A margem das igrejas, mas curioso e invejoso delas, e
diligente aproveitador do que possam emprestar-me para enriquecer o
mundo dos meus fantasmas. Ressalto que sou um indisfarçado admirador
daqueles príncipes da Igreja que foram capazes de conciliar no mais alto
grau a púrpura e o esperma. Consulto meus cadernos e encontro, como
exemplo, aquele cardeal sobre quem o virtuoso Azorín escreveu: "Cético
refinado, ria sozinho da farsa em que se movia sua pessoa, e
assombrava-se às vezes com que não se acabasse a estupidez humana que
mantinha com seu dinheiro aquela estupenda comédia." Não é, quase, um
medalhão do famoso cardeal de Bernis, embaixador setecentista da França
na Itália, que compartilhou em Veneza duas freiras lésbicas com Giacomo
Casanova (vide suas Memórias) e, em Roma, recebeu o marquês de Sade sem
saber de quem se tratava, quando este, fugitivo da França por seus
excessos libertinos, percorria a Itália emboscado sob a falsa identidade
de conde de Mazan? Mas já vejo que você boceja, porque esses nomes com
que o bombardeei - Ayn Rand, Vailland, Azorín, Casanova, Sade, Bernis -
soam aos seus ouvidos como ruídos incompreensíveis, de modo que me
interrompo e coloco ponto final nesta missiva (que, tranquilize-se,
tampouco enviarei). Muitos almoços e placas, rotariano.

O ODOR DAS VIÚVAS

Na noite úmida, sobressaltada pela agitação do mar, dom
Rigoberto acordou de repente, banhado em suor: as incontáveis ratazanas
do templo de Karniji, convocadas pelas alegres campainhas dos brâmanes,
acudiam ao repasto vespertino.

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Os enormes tachos, as travessas de metal, os cochos de madeira tinham
sido enchidos com pedacinhos de carne ou com o leitoso xarope, seu
manjar preferido. De todos os buracos das paredes de mármore, perfurados
para elas e equipados com punhados de palha para seu conforto pelos
piedosos monges, milhares de roedores cinzentos saíam, ávidos, de seus
ninhos. Atropelando-se, uns por cima dos outros, precipitavam-se para os
recipientes. Mergulhavam neles para lamber a calda, mordiscar os pedaços
de carne, e, os mais requintados, para arrancar, com seus brancos
incisivos, bocadinhos de calos e durezas dos pés desnudos. Os sacerdotes
deixavam agir os animais, lisonjeados por contribuir com essas sobras
de sua pele para o prazer das ratazanas, encarnações de homens e
mulheres desaparecidos. O templo havia sido construído para elas, fazia
quinhentos anos, nesse rincão nortista do Rajastão hindu, em homenagem a
Lakhan, filho da deusa Karniki, bem-apessoado mancebo que se
transformara numa ratazana gorda. Desde então, atrás da imponente
construção de portas prateadas, pisos marmóreos, paredes e cúpulas
majestosas, o espetáculo acontecia duas vezes ao dia. Ali estava agora
o brâmane-chefe, Chotu-Dan, oculto sob as dezenas de animais cinzentos
que subiam aos seus ombros, braços, pernas, costas, rumo ao grande
cocho de calda à beira do qual ele estava sentado. Mas o que revolvia o
estômago de dom Rigoberto e o deixava prestes a vomitar era o odor.
Denso, envolvente, mais penetrante do que a bosta da besta de carga, o
bafo do monturo ou a carniça putrefata, o fedor dessa multidão parda
estava agora dentro dele. Percorria o avesso de seu corpo e suas veias,
a transpiração de suas glândulas, empoçava-se nos resquícios de suas
carruagens e no tutano dos seus ossos. Seu corpo se transformara no
templo de Karniji. "Estou impregnado de odor de ratazanas", assustou-se.
Saltou da cama de pijama, sem colocar o roupão, só os chinelos, e correu
ao seu escritório, para ver se folheando algum livro, perscrutando uma
gravura, ouvindo música ou garatujando seus cadernos, outras imagens
vinham exorcizar as sobreviventes do pesadelo. Teve sorte. No primeiro
caderno que abriu, uma citação científica explicava a variedade de
mosquitos cuja característica mais saliente é perceber o odor de suas
fêmeas a distâncias incríveis.

132

"Sou um deles", pensou, dilatando as narinas e farejando. "Posso agora
mesmo, se a Isso me dispuser, sentir o cheiro de Lucrecia adormecida no
Olivar de San Isidro, e diferenciar nitidamente as secreções de seu
couro cabeludo, de suas axilas e de seu púbis." Mas topou com outro odor
- benigno, literário, prazeroso, fantasioso -, que começou a dissipar,
como faz à neblina noturna o vento do amanhecer, os fedores da rataria
do sonho. Um odor santo, teológico, elegantíssimo, exalado pela
Introdução à vida devota, de Francisco de Sales, na tradução espanhola
de Quevedo: "Las lámparas que tienen el olio aromático despiden de si un
mas suave olor cuando les apagan la luz. Así, las viudas, cuyo amor
ha sido puro en su casamiento, derramam un precioso y aromático olor de
virtud de castidad, cuando su luz, esto es, su marido, es apagada por
la muerte,"' Esse aroma de viúvas castas, impalpável melancolia de seus
corpos condenados ao solilóquio físico, exalação nostálgica de seus
desejos insatisfeitos, inquietou-o. As aletas do seu nariz latejaram
afanosamente, tentando reconstituir, detectar, extrair do ambiente algum
rastro da presença dele. A mera idéia desse odor de viúva deixou-o em
suspenso. Evaporou os restos do pesadelo, tirou-lhe o sono, devolveu ao
seu espírito uma confiança saudável. E o levou a pensar - por quê? -
naquelas damas a flutuarem entre rios de estrelas, de Klimt, mulheres
olorosas, de faces travessas - ali estavam Goldfish, fêmea-peixinho
colorido, e Dânae, simulando dormir e exibindo com simplicidade uma
curvilínea bunda de violão. Nenhum artista soubera pintar o odor
feminino como o bizantino vienense; suas mulheres aéreas e vergadas
sempre lhe haviam entrado na memória, simultaneamente, pelos olhos e
pelo nariz. (A propósito, não seria hora de inquietar-se com o
desmesurado interesse que o outro vienense, Egon Schiele, despertava em
Fonchito? Talvez, mas não neste momento.) O corpo de Lucrecia exalava
esse santo odor salesiano desde que estavam separados? Se assim fosse,
ela ainda o amava. * "As lamparinas que contêm o óleo aromático
desprendem um odor mais suave quando lhes apagam a chama. De igual modo
as viúvas, cujo amor foi puro no casamento, exalam um precioso e
aromático odor de virtude de castidade, quando sua chama, isto é, seu
marido, é apagada pela morte." (N. da T.)

133

Pois esse odor, segundo são Francisco de Sales, testemunhava uma
fidelidade amorosa que transcendia o túmulo. Então, ela não o tinha
substituído. Sim, continuava "viúva". Os rumores, inconfidências,
acusações que chegavam até ele - incluído o mexerico de Fonchito - sobre
os recentes amantes de Lucrecia eram calúnias. Seu coração se
regozijou, enquanto ele fariscava encarniçadamente o entorno. Estava
ali? Tinha-o detectado? Era o odor de Lucrecia? Não. Era o da noite, da
umidade, dos livros, dos óleos, das madeiras, das telas e dos couros do
seu escritório. Tentou resgatar do passado e do vazio, fechando os
olhos, os odores noturnos que aspirara naqueles dez anos, aromas que
tanto o tinham feito gozar, perfumes que o haviam defendido contra a
pestilência e a feiúra reinantes. A depressão se apoderou dele. Vieram
consolá-lo uns versos de Neruda, quando virou uma página desse mesmo
caderno: E para ver-te urinar, na escuridão, no fundo da casa, como se
vertesses um mel delgado, trêmulo, argênteo, obstinado, quantas vezes eu
daria este coro de sombras que possuo, e o ruído de espadas inúteis que
se ouve em minha alma... Não era extraordinário que o poema desses
versos se chamasse Tango do viúvo? Sem transição, divisou Lucrecia,
sentada no vaso sanitário, e escutou o alegre chapinhar de seu pipi no
fundo do recipiente, que o recebia cascateando agradecido. Claro que,
silencioso, agachado no canto, absorto, misticamente concentrado,
escutando e cheirando, ali estava também o feliz beneficiário daquela
emissão, daquele concerto líquido: Manuel das Próteses! Mas nisto
apareceu Gulliver, salvando a imperatriz de Lilliput de seu palácio em
chamas com uma espumosa mijada. Dom Rigoberto pensou em Jonathan Swift,
que viveu obsedado com o contraste entre a beleza do corpo e as
horríveis funções corporais. O caderno recordava como, em seu mais
famoso poema, um amante explica por que decidiu abandonar a amada, com
estes versos: Nor wonder how I lost my wits; Oh! Célia, Célia, Célia
shits.

134

"Que idiota.", sentenciou. Lucrecia também em vez de degradá-la,
realçava-a aos olhos e às narinas dele. Por alguns segundos, com o
primeiro sorriso da noite desenhado no rosto, aspirou com a memória, os
vapores remanescentes da passagem de sua ex-mulher pelo banheiro. Ainda
que, agora, ali se intrometesse o sexólogo Havelock Ellis, cuja mais
recôndita felicidade era, segundo o caderno, escutar sua amada verter,
Tendo proclamado em sua correspondência que o dia mais feliz de sua vida
havia sido aquele em que sua complacente mulher, protegida pelas rodadas
saias vitorianas que a enroupavam, urinou para ele entre inadvertidos
transeuntes, irreverentemente, aos pés do almirante Nelson, observada
pelos monumentais leões de pedra de Trafalgar Square. Manuel, porém, não
tinha sido um poeta como Neruda, nem um moralista como Swift, nem um
sexólogo como Ellis. Apenas um castrado. Ou, melhor dizendo, um eunuco?
Diferença abismal, entre esses dois negados para a fecundação. Um ainda
tinha falo e ereção, ao passo que o outro havia perdido o adminículo e a
função reprodutora, e exibia um púbis liso, curvo e feminil. O que era
Manuel? Eunuco. Como pudera Lucrecia conceder-lhe aquilo? Generosidade,
curiosidade, compaixão? Ou vício e morbidez? Ou todas essas coisas
combinadas? Ela o conhecera antes do célebre acidente, quando Manuel
ganhava campeonatos motociclísticos empacotado em um capacete rutilante
e um macacão sintético, encarapitado sobre um eqüino mecânico de tubos,
guidom e rodas, de nome sempre japonês (Honda, Kawasaki, Suzuki ou
Yamaha), catapultando-se campos afora com ruído de peido ensurdecedor -
chamavam aquilo de motocross -, embora também costumasse participar de
tropelias como Trail e Enduro, prova, esta última, de suspeitas
reminiscências albigenses -, a duzentos ou trezentos quilômetros por
hora. Sobrevoando valas, escalando cerros, desmanchando arcais e
saltando rochedos ou abismos, Manuel ganhava trofe'us e aparecia
retratado nos jornais destampando garrafas de champanhe e acompanhado de
modelos que beijocavam suas bochechas. Até que, em uma dessas exibições
de acrisolada estupidez, voou pelos ares, depois de galgar como bólido
uma colina enganosa, atrás da qual o esperava, não um sedante tobogã de
amortecedoras areias, como ele, incauto, acreditava, mas um precipício
espetado de rochas.

135

Precipitou-se ali, gritando um palavrão arcaico - Cachaporra! -, quando
voava montado em seu corcel de metal rumo às profundezas, a cujo fundo,
segundos depois, chegou sonoramente, em um estrondo de ossos e ferros
que se trituravam, se rompiam e se estilhaçavam. Milagre! Sua cabeça
ficou intacta; seus dentes, completos; sua visão e sua audição, sem
dano algum; o uso de suas extremidades, apenas ressentido por causa dos
ossos quebrados e dos músculos rasgados e sovados. Compensatoriamente,
o passivo se concentrou em sua genitália, que monopolizou as avarias.
Porcas, cravos e ponteiras perfuraram seus testículos, apesar do
elástico suspensor que os guarnecia, transformando-os em uma substância
híbrida, entre o mingau e a ratatouille, ao mesmo tempo em que o pecíolo
de sua virilidade era cerceado na raiz por algum material cortante, que
talvez - ironias da vida - não fosse proveniente da moto dos seus amores
e triunfos. O que o castrou, então? O grande crucifixo de pontas
aguçadas que ele usava para convocar a proteção divina, quando
perpetrava suas proezas motociclísticas. Os competentes cirurgiões de
Miami lhe soldaram os ossos, esticaram o que se havia encolhido e
encolheram o que se havia esticado, cerziram o rasgado e lhe
construíram, dissimulando-a com pedaços de carne arrancados dos
glúteos, uma genitália artificial. O negócio andava sempre teso, mas era
pura fachada, uma armação de pele sobre uma prótese de plástico. "Muita
massa e pouco recheio, ou, para ser matemático, recheio nenhum",
alfinetou dom Rigoberto. Só lhe servia para urinar, mas nem sequer
segundo a vontade, e sim a cada vez que ele tomava algum líquido, e,
como não tinha o menor controle para evitar que esse constante
escorrimento ensopasse seus fundilhos, o pobre Manuel trazia pendurada,
a modo de capuz ou acessório, uma bolsinha de plástico que recolhia suas
águas. Salvo essa inconveniência, o eunuco levava uma vida muito normal
e - cada doido com sua mania - ainda subjugada às motocicletas. - Vai
visitá-lo outra vez? - perguntou dom Rigoberto, meio apoquentado. - Ele
me convidou para tomar o chá e, você sabe, é um bom amigo, de quem tenho
muita pena - explicou dona Lucrecia. - Mas, se isso incomoda você, não
vou. - Vá, vá - desculpou-se ele. - Depois me conte.

136

Tinham se conhecido ainda crianças. Moravam no mesmo bairro e haviam
sido namorados nos tempos do colégio, quando namorar consistia em
passear de mãos dadas aos domingos, depois da missa das onze, no Parque
Central de Miraflores, e no Palquinho Salazar, após uma matinê sincopada
de beijos e alguma bolinagem tímida e gentil na platéia. Chegaram até a
ser noivos, na época em que Manuel cometia suas façanhas rodantes, saía
retratado nas páginas esportivas e as meninas bonitas morriam de amores
por ele. Seu borboletear sentimental fartou Lucrecia, que rompeu o
noivado. Não se viram mais, até o acidente. Ela foi visitá-lo no
hospital, Levando-lhe uma caixa de chocolates Cadbury. Reataram uma
relação, agora só amistosa - assim acreditara dom Rigoberto, até
descobrir a pura e simples verdade -, que continuou depois do casamento
de dona Lucrecia. Dom Rigoberto o divisara vez por outra, por trás das
vitrinas de seu florescente negócio de compra e venda de motos
importadas dos Estados Unidos e do Japão (às hieroglíficas marcas
nipônicas, Manuel havia acrescentado as americanas Harley-Davidson e
Tryumph, além da alemã BMW), à margem da via expressa, quase chegando à
Javier Prado. Não voltou a participar de campeonatos como corredor, mas,
com óbvio sadomasoquismo, continuou vinculado ao esporte como promotor
e patrocinador desses massacres e carnificinas vicárias. Dom Rigoberto
o via aparecer nos noticiários de televisão baixando uma ridícula
bandeira quadriculada, com ar de estar dando o arranque à Primeira
Guerra Mundial, nas linhas de partida ou de chegada das corridas, ou
entregando uma taça banhada em falsa prata ao vencedor. Esse
deslocamento de participante a auspiciador de eventos aplacava -
segundo Lucrecia - a viciosa atração do castrado pelas aparatosas
motocicletas. E o resto? A outra ausência? Também a aplacava um pouco?
Nas periódicas tardes em que costumavam conversar, tomando chá com
pasteizinhos, Manuel mantinha uma notável discrição sobre o assunto,
que Lucrecia, evidentemente, não cometia a imprudência de mencionar. As
conversas dos dois eram triviais, reminiscências de uma infância
miraflorina e uma juventude sanisidrina, dos antigos vizinhos de bairro
que se casavam, descasavam, recasavam, adoeciam, geravam e às vezes
morriam,

137

entremeadas por comentários de atualidade sobre o último filme, o último
disco, o baile da moda, o casamento ou a falência catastrófica, a estafa
recém-descoberta ou o último escândalo de drogas, chifres ou aids. Até
que um dia - as mãos de dom Rigoberto passavam às pressas as folhas do
caderno, em busca de uma anotação que correspondesse à seqüência de
imagens já claramente em movimento em sua mente - dona Lucrecia
descobrira seu segredo. Tinha-o descoberto, de fato? Ou Manuel dera um
jeito para que ela pensasse assim, quando, na verdade, não fazia mais do
que meter o pé na armadilha que ele mantinha preparada? O fato é que um
dia, tomando o chá na casa dele em La Planicie, rodeados de eucaliptos
e loureiros, Manuel levou Lucrecia à sua alcova. O pretexto? Mostrar-lhe
uma fotografia de uma partida de vôlei no Colégio San Antônio, muitos
anos antes. Ali, ela tivera a grande surpresa. Uma estante inteira de
livros dedicados ao arrepiante assunto da castração e dos eunucos! Uma
biblioteca especializada! Em todas as línguas e, sobretudo, naquelas não
compreendidas por Manuel, que dominava unicamente o espanhol em sua
variante peruana ou, mais precisamente, miraflorino-sanisidrina. E uma
coleção de discos e CDs com aproximações ou simulações da voz dos
castrati! - Virou um especialista no tema - contou ela a dom Rigoberto,
excitadíssima com a descoberta. - Por razões óbvias - deduziu ele. Teria
sido parte da estratégia de Manuel? A cabeçorra de dom Rigoberto
assentiu, no pequeno círculo do quebra-luz. Naturalmente. Para criar uma
intimidade escabrosa, uma cumplicidade no proibido que lhe permitisse,
depois, implorar o temerário favor. Ele havia confessado - simulando
acanhamento, com vacilações de tímido?, também - que, desde a brutal
cirurgia, o tema fora ficando obsessivo, até se tornar a preocupação
central de sua existência. Transformara-se em um grande conhecedor,
capaz de discorrer horas sobre o assunto, abordando-o em seus aspectos
históricos, religiosos, físicos, clínicos, psicanalíticos. (O
ex-motociclista teria ouvido falar do vienense do diva? Antes, não;
depois, sim, e até havia lido alguma coisa dele, embora sem entender uma
palavra.) Em conversas nas quais os dois mergulhavam em um
companheirismo cada vez mais íntimo, no curso dessas reuniões
aparentemente inocentes na hora do chá,

138

Manuel explicou a Lucrecia a diferença entre o eunuco, variante
principalmente sarracena praticada desde a Idade Média nos guardiães dos
haréns, os quais a ablação impiedosa de falo e testículos tornava
castos, e o castrado, versão ocidental, católica, apostólica e romana,
que consistia em despojar somente das bolas - deixando o resto em seu
lugar - a vítima da operação, a quem não se queria privar da cópula
mas, simplesmente, impedir a transformação da voz de menino, a qual, no
início da adolescência, baixa uma oitava. Manuel contou a Lucrecia a
historieta, que ambos haviam festejado, do castrato Cortona, que
escreveu ao pontífice Inocêncio XI pedindo permissão para se casar. Sua
santidade, que não tinha nada de inocente, escreveu de punho e letra, à
margem da solicitação: "Pois que o castrem melhor." ("Esses é que eram
papas", alegrou-se dom Rigoberto.) Ele, ele mesmo, Manuel, o ás das
motos" em seus convites para tomar chá e posando de homem moderno que
criticava a Igreja, havia explicado a Lucrecia que a castração sem
ânimo belicoso, com objetivos artísticos, começou a ser praticada na
Itália no século XVII, por causa da proibição eclesiástica de que
houvesse vozes femininas nas cerimônias religiosas. Essa censura criou
a necessidade do híbrido, o varão de voz efeminada ("voz caprina" ou
"falsete", "entre vibrante e tremulante", explicava no caderno o expert
Carlos Gómez Amat), algo possível de fabricar, mediante uma cirurgia que
Manuel descreveu e documentou, entre xícaras de chá e alfajores. Havia
a maneira primitiva, submergir os meninos de boa voz em água gelada,
para controlar a hemorragia, e triturar-lhes os bagos com pedras de
amassar ("Ui! ui!", gritou dom Rigoberto, esquecido das ratazanas e
divertindo-se à grande), e a sofisticada. A saber: o cirurgião-barbeiro
anestesiava o garoto com láudano, abria-lhe a virilha com sua navalha
recém-amolada e tirava dali as tenras alfaias. Que efeitos produzia a
operação nos meninos cantores que sobreviviam? Obesidade, alargamento
torácico e uma poderosa voz aguda, assim como um sostenido inusual;
alguns castrati, como Farinelli, emitiam árias por mais de um minuto sem
respirar. Na sossegada escuridão do escritório, rumor marinho ao fundo,
dom Rigoberto chegou a ouvir, mais entretido e curioso do que
satisfeito, a vibração daquelas cordas vocais que se prolongava
indefinidamente, em um agudo finíssimo,

139

como uma longa ferida na noite barranquina. Agora, sim, sentiu o cheiro
de Lucrecia, "Manuel das Próteses, envenenado pela morte", pensou pouco
depois, contente com seu achado. Mas, imediatamente, recordou que estava
citando. Envenenado pela morte? Enquanto suas mãos procuravam no
caderno, sua memória reconstituía a fumacenta e apertada peña criolla
para onde Lucrecia o arrastara naquela noite insólita. Havia sido uma
de suas poucas e memoráveis imersões no mundo noturno da diversão, no
estranho país ao qual ele vendia apólices de seguros,
administrativamente o seu, contra o qual construíra este enclave e
sobre o qual, à força de discretos mas monumentais esforços, conseguira
saber muito pouco. Ali estavam os versos da valsa Desdén: Desdeñoso,
semejante a los dioses y o seguiré luchando por mi suerte sin escuchar
las espantadas vocês de los envenenados por la muerte. Sem o violão, o
cajón e a sincopada voz do cantor, perdia-se algo da audácia lúgubre e
narcisista do bardo compositor. Porém, mesmo sem a música,
preservavam-se a genial vulgaridade e a misteriosa filosofia. Quem
havia composto essa valsa crioula "clássica", como a qualificara
Lucrecia quando procurou saber? E soube: o autor era chiclayano e se
chamava Miguel Paz. Dom Rigoberto imaginou um caboclinho arisco e
notívago, de cachecol no pescoço e violão no ombro, que fazia serenatas
e amanhecia nos antros do folclore entre cavacos e vômitos, a garganta
rasgada de tanto cantar a noite inteira. Em todo caso, excelente. Nem
Vallejo nem Neruda combinados haviam produzido nada comparável a esses
versos, que, ademais, eram dançáveis. * Literalmente, "roda crioula",
"grupo crioulo", nome que se dá, no Peru, aos locais noturnos onde se
fazem apresentações de música típica. Adiante: "Desdenhoso, semelhante
aos deuses, / seguirei lutando por minha sorte, / sem escutar as
assustadas vozes / dos envenenados pela morte." O cajón, mencionado a
seguir, é um instrumento de percussão, hoje tipicamente peruano mas de
origem africana, constituído de uma caixa de madeira. (N. da T.)

140

Sobreveio-lhe uma risadinha e ele voltou a capturar Manuel das Próteses,
que estava lhe escapando. Tinha sido depois de muitas conversas
vespertinas regadas a chá, depois de entornar sobre dona Lucrecia sua
enciclopédica informação sobre eunucos turcos e egípcios e castrati
napolitanos e romanos, que o ex-motociclista ("Manuel das Próteses, Pipi
Perpétuo, o úmido, o Gotejante, o do Capuz, o Bolso Líquido", improvisou
dom Rigoberto, com um humor que melhorava a cada segundo) dera o grande
passo. - E qual foi sua reação, quando ele Lhe contou isso? Acabavam de
ver, na Televisão do quarto, Sedução da carne, um belo melodrama
stendhaliano de Visconti, e dom Rigoberto mantinha a esposa sobre seus
joelhos, ela de camisola e ele de pijama. - Piquei embasbacada -
respondeu dona Lucrecia. - Você acha possível? - Se ele lhe contou
torcendo as mãos e chorando, deve ser. Por que mentiria? - Claro, não
havia nenhuma razão - ronronou ela, toda enrodilhada. - Se você
continuar me beijando assim no pescoço, eu grito. O que não entendo é
por que ele me contaria isso. - Era o primeiro passo. - A boca de dom
Rigoberto foi escalando o morno pescoço até chegar à orelha, que também
beijou. - O seguinte será pedir que você o deixe vê-la ou, pelo menos,
ouvi-la. - Contou porque lhe fez bem compartilhar seu segredo - tratou
de afastá-lo dona Lucrecia, e o pulso de seu marido se destrambelhou. -
Sabendo que eu sei, ele deve ter se sentido menos só. - Quer apostar
como, no próximo chá, ele vai lhe fazer essa proposta? - Dom Rigoberto
insistia em beijar devagarinho a orelha dela. - Eu iria embora da casa
dele batendo a porta - remexeu-se em seus braços dona Lucrecia,
decidindo beijá-lo também. - E não voltaria mais. Não fizera nenhuma
dessas coisas. Manuel das Próteses tinha pedido com tanta humildade
servil e pranto de vítima, com tantas desculpas e atenuantes, que ela
não teve coragem (nem vontade?) de se ofender.

141

Por acaso havia respondido: "Não esqueça que eu sou uma senhora decente
e casada"? Não. Ou: "Você está abusando da nossa amizade e destruindo o
bom conceito em que eu o tinha"? Tampouco. Limitara-se a tranqüilizar
Manuel, que, pálido, envergonhado, implorava que ela não o interpretasse
mal, não se aborrecesse, não o privasse de sua amizade tão querida. Uma
operação de alta estratégia e bem-sucedida, pois, apiedada com tanto
psicodrama, Lucrecia voltou a tomar chá com ele - dom Rigoberto sentiu
agulhas de acupunturista nas têmporas - e acabou por satisfazê-lo. O
envenenado pela morte ouviu aquela música argêntea e foi embriagado
pelo líquido arpejo. Só ouvindo? Não teria sido, também, vendo? - Juro
que não - protestou dona Lucrecia, abrigando-se contra o marido e
falando com o peito dele. - No escuro mais absoluto. Foi minha condição.
E ele a cumpriu. Não viu nada. Ouviu. Na mesma posição, tinham
assistido a um vídeo de Carmina Burana na Ópera de Berlim, dirigida por
Seiki Ozawa, com os coros de Pequim. - E possível - replicou dom
Rigoberto, a imaginação atiçada pelos vibrantes latins dos coros
(haveria castrati entre aqueles coristas de olhos rasgados?). - Mas,
também, pode ser que Manuel tenha desenvolvido sua visão de maneira
extraordinária. E que, mesmo você não o vendo, ele, sim, tenha visto
você. - Se formos entrar em conjeturas, tudo é possível - discutiu
ainda, embora sem muita convicção, dona Lucrecia. - Mas, se ele viu, foi
muito pouco, nada. O odor estava ali e não havia dúvida possível:
corporal, íntimo, ligeiramente marinho e com reminiscências frutais.
Fechando os olhos, dom Rigoberto o aspirou com avidez, as narinas muito
abertas. "Estou cheirando a alma de Lucrecia", pensou, enternecido. O
alegre chape-chape do jorro no vaso não dominava aquele aroma,
limitava-se a matizar com um toque fisiológico o que era uma exalação
de recônditos humores glandulares, transpirações cartilaginosas,
secreções de músculos, que se adensavam e se confundiam em um eflúvio
espesso, valente, doméstico. Isso lembrou a dom Rigoberto os momentos
mais remotos de sua meninice - um mundo de fraldas e talcos,

142

vômitos e excrementos, colônias e esponjas embebidas em água morninha,
uma teta pródiga - e as noites enlaçadas com Lucrecia. Ah, sim,
compreendia muito bem o motociclista, amputado. Mas não era
indispensável ser rival de FarineLli nem ter passado pelo trâmite da
prótese para assimilar essa cultura, converter-se a essa religião, e,
como o envenenado Manuel, como o viúvo de Netuda, como tantos anônimos
extraordinários do ouvido, do olfato, da fantasia (pensou no
primeiro-ministro da índia, o nonagenário Rarji Desai, que lia seus
discursos com pausas para beber golinhos do seu próprio pipi: "ah, se
tivesse sido o de sua esposa!"), sentir-se transportado ao céu, ao ver
e ouvir o ente querido, agachado ou sentado, interpretando essa
cerimônia, aparentemente anódina, funcional, de esvaziar uma bexiga,
sublimada em espetáculo, em dança amorosa, em prolegômeno ou
pós-escrito (para o decapitado Manuel, sucedâneo) do ato do amor. Dom
Rigoberto sentiu seus olhos se encherem de lágrimas. Redescobriu o
tenso silêncio da noite barranquina e a solidão em que se achava, entre
gravuras e livros autistas. - Lucrecia querida, pelo que você mais ama -
rogou, implorou, beijando os cabelos soltos de sua amada. - Urine para
mim também. - Primeiro, preciso, comprovar que, fechando portas e
janelas, o banheiro fique totalmente às escuras - disse dona Lucrecia,
com pragmatismo de executor testamentário. - Quando chegar o momento,
eu o chamo. Você vai entrar sem ruído, para não me interromper. E se
sentar no cantinho. Não se moverá nem dirá palavra. A essa altura, os
quatro copos d'água começarão a fazer efeito. Nenhuma exclamação, nenhum
suspiro, nem o mínimo movimento, Manuel. Do contrário, eu vou embora e
não boto mais os pés nesta casa. Pode ficar no seu cantinho enquanto eu
me enxugo e ajeito o vestido. Na hora de sair, aproxime-se,
arrastando-se, e, em agradecimento, beije meus pés. Ele tinha feito
isso? Seguramente. Devia ter se arrastado até ela pelo piso ladrilhado e
aproximado a boca dos seus sapatos com gratidão canina. Depois, devia
ter lavado mãos e rosto e, com os olhos molhados, ido ao encontro de
Lucrecia na sala, dizendo-lhe, untuoso, que lhe faltavam as palavras, o
que ela havia feito por ele, a incomensurável felicidade.

143

E, cobrindo-a de louvores, contado que, na realidade, era assim desde
criança, e não só desde seu salto no precipício. O acidente lhe
permitira assumir como sua única fonte de prazer aquilo que, antes, lhe
produzia uma vergonha tão grande que ele o escondia dos outros e de si
mesmo. Tudo havia começado em sua primeira infância, quando dormia no
quarto da irmãzinha e a babá se levantava à meia-noite para verter os
líquidos. Não se dava o trabalho de fechar a porta; ele ouvia claríssimo
o jorrinho sussurrante, cristalino, saltitante, que o acalentava e o
fazia sentir-se um anjinho no céu. Era a mais bela, mais musical, mais
terna recordação de sua meninice. Ela o compreendia, não? A magnífica
Lucrecia compreendia tudo. Nada a espantava na labiríntica meada dos
caprichos humanos. Manuel o sabia; por isso a admirava, e por isso se
atrevera a pedir. Sem a tragédia motociclista, nunca o teria feito.
Porque, até o vôo da moto em direção ao abismo rochoso, sua vida tinha
sido, no que se refere ao amor e ao sexo, um pesadelo. O que deveras o
acendia era algo que ele nunca ousara pedir às moças decentes;
limitava-se a negociar com prostitutas. E, mesmo pagando, quantas
humilhações tinha suportado, risadas, zombarias, olhadelas depreciativas
ou irônicas que o coibiam e o faziam sentir-se um lixo. Essa era a razão
pela qual havia rompido com tantas namoradas. A todas faltou lhe dar
esse prêmio extraordinário que dona Lucrecia acabava de lhe conceder: o
jorrinho de xixi. Uma gargalhada comiserativa sacudiu dom Rigoberto.
Pobre infeliz! Quem teria imaginado, entre as esculturais belezas que
saíam, riam e se envolviam com o astro esportivo, que o luminar do
motocross, o ginete de aço, não queria acariciá-las, despi-las,
beijá-las nem penetrá-las: apenas ouvi-las no mictório! E a nobre, a
magnânima Lucrecia havia mijado para o danificado Manuel! Essa micção
ficaria gravada em sua memória como as gestas heróicas nos livros de
história, como os milagres nas biografias de santos. Lucrecia querida!
Lucrecia condescendente com as debilidades humanas! Lucrecia, nome
romano que significava afortunada! Lucrecia? As mãos de dom Rigoberto
passavam rapidamente as páginas do caderno, e a referência não demorou a
aparecer: "Lucrecia, dama romana, célebre por sua formosura e sua
virtude. Foi violada por Sexto Tarquínio,

144

filho do rei tarquínio, o Soberbo. Depois de contar o ultraje ao pai e
ao esposo e de incitá-los a vingá-la, matou-se na presença deles,
cravando no peito um punhal. O suicídio de Lucrecia desencadeou a
expulsão dos Reis de Roma e a instauração da República, no ano 509 antes
de Cristo. A figura de Lucrecia se transformou em símbolo do pudor, da
honestidade e, sobretudo, da esposa honesta." "É ela, é ela", pensou dom
Rigoberto. Sua mulher podia provocar cataclismos históricos e
perenizar-se como símbolo. Da esposa honesta? Entendendo-se a
honestidade em um sentido não cristão, claro. Que esposa compartilharia
com tanta devoção as fabulações do marido, como havia feito ela?
Nenhuma. E a história com Fonchito? Bom, melhor contornar essas areias
movediças. Afinal, tudo não havia permanecido em família? Ela faria o
mesmo que a matrona romana, ao ser violada por Sexto Tarquínio? Um gelo
atravessou o coração de dom Rigoberto. Com uma careta de susto, ele se
esforçou por afastar a imagem de Lucrecia estendida no solo com o
coração atravessado por um punhal. Para conjurá-la, retrocedeu ao
motociclista deslumbrado pela destilação das bexigas fêmeas. Só fêmeas?
Ou também machos? O espetáculo de um cavalheiro esguichante o soerguia
por igual? - Nunca - revelou Manuel de imediato, em tom tão sincero que
dona Lucrecia acreditou. Bom, tampouco era certo que sua vida tivesse
sido só um pesadelo por culpa dessa necessidade (como chamá-la, para não
dizer vício?). Colorindo o desértico panorama de insatisfações e
frustrações, tinha havido momentos balsâmicos, efervescentes, surgidos
quase sempre por acaso, modestas compensações à sua angústia. Por
exemplo, aquela lavadeira cujo rosto Manuel recordava com o mesmo afeto
com que a gente recorda aquelas tias, avós ou madrinhas mais ligadas à
calidez da infância. Vinha lavar a roupa, duas vezes por semana. Devia
sofrer de cistite porque, a cada momento, corria do tanque ou da tábua
de engomar ao banheiro de serviço, junto à copa. E ali estava o menino
Manuel, sempre alerta, encarapitado no desvão, a cara amassada contra o
solo, aguçando o ouvido. Vinha o concerto, a cascata rumorosa e farta,
uma verdadeira inundação. Essa mulher era uma bexiga futebolística, uma
represa viva, dados o ímpeto,

145

a abundância, a freqüência e a sonoridade de suas micções. Uma vez dona
Lucrecia viu dilatarem-se gulosamente as pupilas do motociclista da
prótese - , Manuel a tinha visto. Sim, visto. Bom, não inteira. Em um
ato de audácia, içou-se pela treliça do jardim até a claraboia do
banheirinho de serviço e, por uns gloriosos segundos, sustentando-se no
ar, divisou a mata de cabelos, os ombros, as pernas com meias de lã e os
sapatos sem salto, da mulher sentada no vaso, desaguando-se com
buliçosa indiferença. Ai, que alegria! Tinha havido, também, aquela
americana, loura, bronzeada, ligeiramente varonil, sempre de botas e
chapéu de caubói, que veio participar de La Vuelta de los Andes. Era
uma motociclista tão ousada que quase venceu a competição. Manuel,
porém, não recordava tanto sua destreza com a máquina (Harley-Davidson,
claro) quanto suas maneiras desenvoltas, sua ausência de melindres, que
lhe permitia, nas etapas, compartilhar os quartos de dormir com os
pilotos e tomar banho diante deles se não houvesse mais de um banheiro,
e até entrar no toalete e fazer suas necessidades sem se incomodar
quando, no mesmo cubículo, separados por um tabique, havia vários
motociclistas. Que tempos! Manuel vivera uma crepitação crônica, uma
prolongada ereção do órgão desaparecido, escutando os desafogos líquidos
da emancipada Sandy Canal, que transformaram aquela competição, para
ele, em festa interminável. Mas nem a lavadeira nem Sandy nem nenhuma
das experiências casuais ou mercenárias de sua mitologia podiam ser
comparadas com essa de agora, superlativa graça, maná liqüefeito, com
que dona Lucrecia o fizera sentir-se um deus. Dom Rigoberto sorriu,
satisfeito. Não havia nenhuma ratazana pelas cercanias. O templo de
Karniji, seus brâmanes, exércitos de rocdores e tachos de calda estavam
além dos oceanos, continentes e selvas. Ele, aqui, sozinho, na noite que
terminava, em seu refúgio de gravuras e cadernos. Havia indícios de
amanhecer no horizonte. Hoje também estaria bocejando no trabalho.
Cheirava a alguma coisa? O odor de viúva se havia dissipado. Ouvia
alguma coisa? As ondas, e, perdido entre elas, o chapinhar de uma dama
fazendo xixi. "Eu" - pensou, sorridente "sou um homem que lava as mãos
não depois, mas antes de urinar."
146

MENU DIMINUTIVO

Sei que gostas de comida pouquinha e simplesinha, mas gostosinha, e
estou preparadinha para te agradar também na mesinha. De manhã cedinho
irei ao mercado e comprarei o leitinho mais fresquinho, o pãozinho bem
quentinho e a laranjinha mais coradinha. E te despertarei com a
bandejinha do desjejum, uma florzinha cheirosa, e uma beijoquinha. "Aqui
estão teu suquinho sem carocinho, tua torradinha com geleia de
moranguinho e teu café com Leite sem açuquinha, patrãozinho." Para
teu almocinho, só uma saladinha e um iogurtinho, como gostas. Lavarei
as alfacinhas até que brilhem e cortarei os tomatinhos com arte, me
inspirando nos quadrinhos de tua biblioteca. O molhinho da salada será
com azeitinho, vinagrinho, gotinhas da minha salivinha e, em vez de
sal, minhas lagriminhas. No jantarzinho, a cada dia uma de tuas
preferências (tenho cardapinhos para um aninho, sem repetir nem uma
vezinha). Batatinha com charquinho, papinha de feijão, guisadinho de
peru, bolo de batatinha com franguinho, dobradinha, sequinho de
lombinho ou carneirinho, bistequinha à chorrillana, cevichinho de
corvina, camarãozinho ensopado ou à limenha, arrozinho com patinho,
arrozinho recheado de forninho, filezinho com pirãozinho de arroz e
feijãozinho, pimentãozinho recheado, galinhita desfiada com
parmesãozinho. Tudo com alguma pimentinha e muitos outros temperinhos.
E, claro, teu copinho de vinhinho tinto ou uma cervejinha bem geladinha,
a escolher. Mas é melhor eu parar por aqui, para não te dar fominha.
Como sobremesa, gogó da vovozinha, suspirinho à limenha, panquequinha de
mel, crepinho com chocolatinho, sonhinho recheado, barriguinha de
freira, maçapãozinho, rosquinha, pudinzinho de queijo com canelinha,
caramelinho de coco, torrãozinho de dona Pepa, creminho de milho roxo
com frutinhas secas, pasteizinhos de figo com requeijãozinho. Me aceitas
como tua cozinheirinha? Sou limpinha, tomo um banhozinho ao menos duas
vezes por dia. Não masco chicletinho, nem fumo cigarrinho, nem tenho
pelinhos nas axilas, minhas mãozinhas e meus pezinhos são tão perfeitos
como minhas tetinhas e meu bumbum. Trabalharei todas as horas que

147

for preciso para manter bem contentinhos teu paladar e tua
barriguinha. Se preciso, também te vestirei, desvestirei, ensaboarei,
barbearei, cortarei tuas unhinhas e te Limparei quando fizeres o número
dois. Na horinha de nanar, te envolverei com meu corpinho para que na
caminha não sintas friozinho. Além de fazer tuas comidinhas, serei tua
camareirinha, teu aquecedorzinho, teu aparelhinho de barba, tua
tesourinha e teu papelzinho higiênico. Me aceitas, patrãozinho? Tuinha,
tuinha, tuinha, A cozinheirinha sem joanetes

VI. A CARTA ANÔNIMA

Em vez de aborrecida como na noite anterior, quando fora se deitar
levando no punho o papel amassado, a senhora Lucrecia despertou de bom
humor e satisfeita. Tinha uma sensação levemente voluptuosa. Estendeu a
mão e pegou a carta rabiscada em letras de imprensa, em um papel
granulado azul-pálido, agradável ao tato. "Diante do espelho, sobre uma
cama ou um sofá...". Dispunha de uma cama, mas não de sedas indianas nem
de batique indonésio; portanto, não cumpriria essa exigência do amo sem
rosto. O outro pedido, isto sim, podia satisfazê-lo: deitar-se de
costas, nua, cabelos soltos, encolher a perna, alojar a cabeça no
joelho, pensar que era a Dânae de Klimt (embora não acreditasse) e
simular que dormia. E, claro, podia se ver no espelho dizendo-se: "Sou
objeto de gozo e admiração, de sonho e de amor." Com um sorrisinho
divertido e olhos cujo brilho de vagalume se repetia no espelho do
toucador, afastou os lençóis e brincou de seguir as instruções. Mas,
como só via a metade de seu corpo, não soube se conseguira imitar com
alguma verossimilhança a postura do quadro de Klimt que o
correspondente-fantasma lhe enviara, numa tosca reprodução de
cartão-postal. Quando fazia o desjejum, conversando distraidamente com
Justiniana, e depois, embaixo do chuveiro e enquanto se vestia, sopesou
mais uma vez as razões para dar um nome e um rosto ao autor da carta.
Dom Rigoberto? Fonchito? E se fosse algo tramado por ambos? Que absurdo!
Não, não tinha pé nem cabeça. A lógica a inclinava a pensar em
Rigoberto. Um modo de fazê-la saber que, apesar do ocorrido e da
separação, ele a mantinha sempre presente em seus delírios. Um modo de
sondar a possibilidade de reconciliação. Não. Aquilo tinha sido duro
demais para ele. Rigoberto nunca seria capaz de fazer as pazes com a
mulher que o enganara com o filho dele, e em sua casa.

150

Aquele vermezinho rançoso, o amor-próprio, o impedia. Então, se a carta
anônima não tinha sido enviada pelo ex-marido, o autor era Fonchito.
O menino não tinha a mesma fascinação do pai pela pintura? O mesmo bom
ou mau costume de entremear a vida dos quadros com a verdadeira? Sim,
tinha sido ele. Além do mais, o próprio Fonchito se delatara, aludindo
a Klint. Ela o faria saber que sabia disso e o deixaria envergonhado.
Nessa mesma tarde. As horas de espera foram longuíssimas para dona
Lucrecia. Sentada na sala de jantar, eJa olhava o relógio, temerosa de
que, precisamente hoje, Fonchito não aparecesse. "Meu Deus, patroa, até
parece que a senhora está esperando a primeira visita de um namorado",
brincou Justiniana. Ela corou, em vez de rir. Assim que ele apareceu,
com sua bela carinha e o delicado corpinho metido nas bagunçadas peças
do uniforme de colégio, jogou a mochila sobre o tapete e a cumprimentou
beijando-a na face, dona Lucrecia fez esta advertência: - Você e eu
precisamos conversar sobre uma coisa muito feia, mocinho. Viu a
expressão intrigada e os olhos azuis que se arregalavam, inquietos. Ele
tinha se sentado diante dela, com as pernas cruzadas. Dona Lucrecia
notou que um dos cadarços dos seus sapatos estava desatado. - Sobre o
quê, madrasta? - Uma coisa muito feia - repetiu, mostrando-lhe a carta e
o postal. - A mais covarde e suja que existe: mandar cartas anônimas. O
menino não empalideceu, nem enrubesceu, nem piscou. Continuou olhando-a,
curioso, sem o menor desconcerto. Ela lhe estendeu a carta e o postal e
não lhe tirou os olhos de cima, enquanto Fonchito, muito sério, uma
pontinha da língua aparecendo entre os dentes, lia a correspondência
anônima, como que soletrando. Seus olhinhos espertos voltavam sobre as
linhas, várias vezes. - Tem duas palavras que não entendo - disse por
fim, banhando-a com sua mirada transparente. - Helena e batique. Uma
moça na academia se chama Helena. Mas, aqui, o nome aparece em outro
sentido, não? E nunca ouvi falar de batique. O que significam, madrasta?

151

- Não se faça de idiota - irritou-se dona Lucrecia. - Por que me
escreveu isto? Achou que eu não ia perceber que era você? Sentiu-se meio
incomodada pelo desconcerto, agora sim muito explícito, de Fonchito,
que, depois de balançar a cabeça duas vezes, perplexo, voltou a examinar
a carta anônima e a lê-la, movendo os lábios em silêncio. E ficou
totalmente surpresa quando viu que o menino, ao levantar a cabeça,
sorria de orelha a orelha. Com alegria transbordante, ele ergueu os
braços, saltou sobre ela e abraçou-a, soltando um gritinho de triunfo: -
Ganhamos, madrasta! Não percebeu? - O que eu devia perceber, seu
geniozinho? - perguntou ela, afastando-o. - Mas, madrasta - Fonchito a
encarava com ternura, compadecido -, nosso plano, pois então. Está dando
certo. Eu não disse que devíamos deixá-lo enciumado? Alegre-se, estamos
indo muito bem. Você não quer fazer as pazes com o papai? - Não tenho
nenhuma certeza de que esta carta seja de Rigoberto - hesitou dona
Lucrecia. - Desconfio mais é de você, sua mosca-morta. Calou-se, porque
o menino ria, olhando-a com a benevolência carinhosa que um pobre de
espírito merece. - Sabia que Klimt foi o mestre de Egon Schiele? -
exclamou ele de repente, antecipando uma pergunta que ela trazia nos
lábios. - Schiele o admirava e o pintou no leito de morte. Um carvão
muito bonito, Agonia, de 1912. Nesse mesmo ano, pintou também Os
eremitas, em que ele e Klimt aparecem com hábitos de monges. - Tenho
certeza de que foi você quem escreveu isto, seu velhote sabe-tudo -
aborreceu-se de novo dona Lucrecia. Sentia-se dividida por conjecturas
contraditórias e irritada pela cara despreocupada de Fonchito, que
falava com tanta segurança. - Mas, madrasta, em vez de fazer mau juízo,
você devia se alegrar. Esta cartinha quem lhe mandou foi o papai, para
lhe mostrar que já a perdoou e quer fazer as pazes. Como é que você não
percebe? - Bobagem. É uma carta anônima insolente e meio calhorda, só
isso.

152

- Não seja tão injusta! - protestou o menino, veemente. - Ele a compara
com um quadro de Klimt, diz que, quando o artista pintou essa moça,
estava adivinhando como você seria. Onde está a calhordice? É um elogio
muito bonito. Uma maneira que o papai procurou para estabelecer o
contato. Você vai responder? - Não posso responder, não me consta que
tenha sido ele. - Agora, dona Lucrecia duvidava menos, Queria realmente
se reconciliar? - Viu? Deixá-lo enciumado funcionou às mil maravilhas -
repetiu o menino, feliz. - Desde que eu disse que vi você de braço dado
com um senhor, ele está imaginando coisas. Ficou tão assustado que lhe
escreveu esta carta. Não sou bom detetive, madrasta? Dona Lucrecia
cruzou os braços, pensativa. Nunca levara a sério a idéia de fazer as
pazes com Rigoberto. Tinha dado corda em Fonchito só para passar o
tempo. De repente, pela primeira vez, a reconciliação não lhe parecia
uma remota quimera, mas algo que podia acontecer. Era o que desejava?
Voltar para a casa de Barranco, recomeçar a vida de antes? - Quem mais,
além do papai, podia compará-la com uma pintura de Klimt? - insistiu o
menino. - Não vê? Ele está lhe recordando os joguinhos com quadros que
vocês dois faziam à noite. A senhora Lucrecia sentiu que o ar lhe
faltava. - Do que você está falando? - balbuciou, sem forças para
desmenti-lo. - Mas, madrasta - respondeu o menino, gesticulando. -
Daqueles jogos, ora. Quando ele dizia: hoje você é Cleópatra, hoje
Vênus, hoje Afrodite. E você imitava as pinturas para agradá-lo. - Mas,
mas... - No auge do vexame, dona Lucrecia não conseguia se encolerizar e
sentia que tudo o que dizia acabava por delatá-la ainda mais. - De onde
saiu isso? Você tem uma imaginação muito retorcida e muito, muito... -
Você mesma me contou - liquidou-a o menino. - Que cabeça a sua,
madrasta. Já esqueceu? Dona Lucrecia ficou muda. Ela mesma havia
contado? Investigou sua memória, em vão. Não se lembrava de haver tocado

153

nesse assunto com Fonchito, nem sequer da maneira mais indireta. Nunca,
jamais, claro que não. Mas e então? Rigoberto teria feito confidências
ao filho? Impossível. Rigoberto não falava com ninguém de suas fantasias
e desejos. Nem com ela, durante o dia. Essa havia sido uma regra
respeitada ao longo dos dez anos de casamento: nunca aludir durante o
dia, nem de brincadeira nem a sério, ao que eles diziam e faziam à
noite, no segredo da alcova. Para não trivializar o amor e conservar-lhe
a aura mágica, sagrada, dizia Rigoberto. Dona Lucrecia recordou os
primeiros tempos de casada, quando começava a descobrir o outro lado da
vida do seu marido, aquela conversa sobre o livro de Johan Huizinga,
Homo ludens, um dos primeiros que ele lhe havia implorado que lesse,
assegurando que na idéia da vida como jogo e do espaço sagrado estava a
chave da felicidade futura dos dois. "O espaço sagrado acabou sendo a
cama", pensou. Tinham sido felizes com aquelas brincadeiras noturnas,
que, no princípio, apenas a intrigavam mas que aos poucos a tinham
conquistado, apimentando sua vida - suas noites - com ficções sempre
renovadas. Até a loucura com aquele pirralho. - Quem ri sozinho de suas
maldades se lembra. - A voz jovial de Justiniana, que trazia a bandeja
do chá, tirou-a de suas divagações. - Oi, Fonchito. - O papai escreveu
uma carta à madrasta e logo, logo, eles vão se reconciliar. Tal como eu
lhe disse, Justita. Fez meus chancays? - Bem tostadinhos, com manteiga e
geleia de morango. - Justiniana se voltou para dona Lucrecia,
arregalando os olhos. - Vai fazer as pazes com o patrão? Quer dizer que
vamos nos mudar de volta para Barranco? - Bobagem - disse a senhora
Lucrecia. - Não conhece este moleque? - Veremos se é bobagem - protestou
Fonchito, atacando os pãezinhos enquanto dona Lucrecia lhe servia o chá.
- Quer apostar? O que você me dá, se fizer as pazes com o papai? - Um
beliscão - disse a senhora Lucrecia, abrandada. - E você, o que me dá se
perder? - Um beijo - riu o menino, piscando-lhe o olho. Justiniana
soltou uma gargalhada.

154

- É melhor eu ir saindo, para deixar sozinhos os dois pombinhos. - Cale
a boca, sua maluca - repreendeu- a dona Lucrecia, quando a moça já não
podia ouvi-la. Tomaram o chá em silêncio. Dona Lucrecia continuava
impregnada de reminiscências de sua vida com Rigoberto, pesarosa
pelo que acontecera. Aquela ruptura não tinha remédio. Havia sido muito
séria, não permitia retorno. Seria possível retomar a vida a três,
juntos de novo na mesma casa? Nesse momento, ocorreu-lhe que Jesus
Cristo, aos doze anos, havia assombrado os doutores do templo discutindo
com eles, de igual para igual, sobre matérias teológicas. Sim, mas
Fonchito não era um meni-no-prodígio como Jesus Cristo. Era-o como
Lúcifer, o Príncipe das Trevas. Não fora ela, mas ele, ele, o suposto
menino, quem tivera a culpa de toda aquela história. - Sabe em que outra
coisa eu me pareço com Egon Schiele, madrasta? - perguntou Fonchito,
arrancando-a de seu devaneio. - É que eu e ele somos esquizofrênicos.
Ela não pôde conter uma gargalhada. Mas interrompeu o riso de repente,
porque, como em outras vezes, intuiu que por baixo do que parecia uma
criancice podia se esconder algo tenebroso. - E por acaso você sabe o
que é um esquizofrênico? É quando, sendo só uma pessoa, você se acha
duas ou mais, e diferentes. - Fonchito recitava uma lição, exagerando. -
O papai me explicou ontem à noite. - Bom, então você poderia ser -
murmurou dona Lucrecia. - Porque, em você, há um velho e um menino. Um
anjinho e um demônio. O que isso tem a ver com Egon Schiele? De novo,
Fonchito distendeu a cara em um sorriso satisfeito. E, depois de
murmurar um rápido "Espere aí, madrasta", remexeu a mochila em busca do
indefectível livro de reproduções. Ou melhor, os livros, pois a senhora
Lucrecia se lembrava de ter visto pelo menos três. Ele andava sempre com
um na mochila? Estava passando do limite, com sua mania de se
identificar em tudo e a toda hora com esse pintor. Se ela tivesse
comunicação com Rigoberto, sugeriria que ele o levasse a um psicólogo.
Mas, no ato, riu de si mesma. Que idéia descabida, dar conselhos ao
ex-marido sobre a educação do pirralho

155

que causara a ruptura do casamento. Estava virando uma idiota,
ultimamente. - Veja, madrasta. O que acha? Dona Lucrecia pegou o livro
na página que Fonchito lhe apontava e o folheou por um bom tempo,
tentando concentrar-se naquelas imagens quentes, contrastadas, naquelas
figuras masculinas que se exibiam diante dela, em duplas ou em trios,
olhando-a com impavidez, vestidas, metidas em túnicas, nuas, seminuas e,
vez por outra, tapando o sexo ou mostrando-o, ereto e enorme, com total
impudor. - Bem, são autorretratos - disse por fim, só para dizer alguma
coisa. - Uns bons, outros nem tanto. - Ele pintou mais de cem -
ilustrou-a o menino. - Depois de Rembrandt, Schiele foi o pintor que
mais retratou a si mesmo. - Isso não quer dizer que fosse
esquizofrênico. No máximo, um Narciso. Você também é isso, Fonchito? -
Você não prestou atenção direito. - O menino abriu outra página, e mais
outra, instruindo-a, enquanto apontava: - Não percebeu? Ele se duplica e
até se triplica. Este, por exemplo. Os videntes de si mesmos, de 1911.
Quem são essas figuras? Ele mesmo, repetido. E Profetas (Autorretrato
duplo), de 1911. Olhe bem. É ele mesmo, nu e vestido. Autorretrato
triplo, de 1913. Ele, três vezes. E mais três aí, à direita, em tamanho
pequeno. Via-se assim, como se existissem vários Egon Schiele dentro
dele. Isso não é ser esquizofrênico? Como Fonchito se atropelava ao
falar e seus olhos relampeavam, dona Lucrecia tentou acalmá-lo. - Bom,
talvez tivesse tendência à esquizofrenia, como muitos artistas -
admitiu. - Os pintores, os poetas, os músicos. Eles têm muitas coisas
dentro, tantas que, às vezes, não cabem numa pessoa só. Mas você é o
menino mais normal do mundo. - Não me fale como se eu fosse um tarado,
madrasta - aborreceu-se Alfonso. - Eu sou como ele era e você sabe muito
bem, porque acaba de me dizer. Um velho e um menino. Um anjinho e um
demônio. Ou seja, esquizofrênico. Ela lhe acariciou os cabelos. As
alvoroçadas e suaves mechas louras deslizaram entre seus dedos e dona
Lucrecia resistiu à tentação de tomá-lo nos braços, sentá-lo no colo e
acalentá-lo.

156

- Você tem saudade de sua mãe? -deixou escapar. Mas logo tentou se
recompor: - Quero dizer, pensa muito nela? - Quase nunca - disse
Fonchito, muito tranqüilo. - Mal me Lembro do rosto dela, só mesmo pelas
fotos. Eu tenho saudade é de você, madrasta. Por isso, quero que faça
as pazes com o papai de uma vez por todas. - Não vai ser tão fácil. Não
percebe? Existem feridas difíceis de cicatrizar. O que aconteceu com
Rigoberto é uma delas. Ele se sentiu muito ofendido, e com toda a
razão. Eu cometi uma loucura que não tem desculpa. Não sei, nunca
saberei o que me aconteceu. Quanto mais penso, mais inacreditável me
parece. Como se não tivesse sido eu, como se outra tivesse agido dentro
de mim, me suplantando. - Então, você também é um pouco esquizofrênica,
madrasta - riu o menino, fazendo outra vez a expressão de tê-la apanhado
em falta. - Um pouco, não. Bastante - assentiu ela. - Mas vamos parar
de falar de coisas tristes. Me conte algo a seu respeito. Ou do seu pai.
- Ele também sente saudade de você. - Fonchito fez uma expressão séria,
quase solene. - Por isso lhe escreveu esta carta. A ferida já fechou e
ele quer fazer as pazes. Dona Lucrecia não teve disposição para
discutir. Agora, sentia-se vencida pela melancolia e um pouco triste. -
Como está Rigoberto? Levando sua vida de sempre? - Do trabalho para casa
e de casa para o trabalho, todo santo dia - assentiu Fonchito. - Metido
no escritório, ouvindo música, contemplando suas gravuras. Mas isso é
um pretexto. Ele não se tranca ali para ler, ver pinturas ou escutar
discos. É para pensar em você. - Como é que você sabe? - Porque ele lhe
fala - afirmou o menino, baixando a voz e dando uma olhada para o
interior da casa, a fim de verificar se Justiniana não estava por perto.
- Eu ouvi. Me aproximo devagarinho e grudo a orelha na porta. Nunca
falha. Ele está falando sozinho. E diz seu nome a toda hora. Juro. - Não
acredito, seu mentiroso. - Você sabe que eu não inventaria uma coisa
dessas, madrasta. Está vendo o que lhe digo? Ele quer que você volte.

157

Falava com tanta segurança que era difícil não se sentir arrastada para
o mundo dele, tão sedutor e tão falso, de inocência, bondade e maldade,
pureza e sujeira, espontaneidade e cálculo. "Desde que essa história
aconteceu, nunca mais me senti angustiada por não ter tido um filho",
pensou dona Lucrecia. Teve a impressão de entender por quê. Agachado,
com o livro de reproduções aberto aos seus pés, o menino a
esquadrinhava. - Sabe de uma coisa, Fonchito? - disse ela, quase sem
refletir. - Gosto muito de você. - Eu também, de você, madrasta. - Não
me interrompa. E, como lhe tenho afeto, sinto pena por você não ser como
os outros meninos. Sendo tão precoce, perde algo que só se vive nessa
sua fase. A coisa mais maravilhosa que pode acontecer a uma pessoa é
ter a sua idade. E você está desperdiçando isso. - Não entendo, madrasta
- disse Fonchito, impaciente. - Como assim, se agora mesmo você disse
que eu sou o menino mais normal do mundo? Fiz algo errado? - Não, não -
respondeu ela, tranquilizando-o. - Quero dizer: eu gostaria de vê-lo
jogar futebol, ir ao estádio, sair com os companheiros de bairro e de
colégio. Ter amigos de sua idade. Organizar festas, dançar, namorar as
coleguinhas. Não tem vontade de fazer nada disso? Fonchito deu de
ombros, desdenhoso. - Que coisas mais sem graça... - murmurou, sem dar
importância ao que ouvia. - Eu jogo futebol no recreio, e pronto. Às
vezes saio com os vizinhos de bairro. Mas me chateio com as besteiras
de que eles gostam. E as meninas são mais tolas ainda. Acha que eu
poderia lhes falar de Egon Schiele? Quando estou com meus amigos,
parece que perco meu tempo. Com você, não, eu ganho. Prefiro mil vezes
ficar conversando aqui do que fumando com os garotos no calçadão de
Barranco. E para quê preciso das meninas, se tenho você, madrasta? Dona
Lucrecia não soube o que dizer. O sorriso que esboçou não podia ser mais
falso. Tinha certeza de que Fonchito estava consciente do embaraço que
ela sentia. Com sua carinha estendida para diante, os traços alterados
pela euforia, os olhos devorando-a com uma luz varonil, ele parecia
querer se lançar para beijá-la na boca. E, nesse momento, notou,
aliviada,
158
a silhueta de Justiniana. Mas logo percebeu que seu alívio não duraria
muito: ao ver o pequeno envelope branco nas mãos da empregada,
adivinhou, - Meteram isto aqui por "baixo da porta, patroa. - Aposto que
é outra carta anônima do papai - aplaudiu Fonchíto.

EXALTAÇÃO E DEFESA DAS FOBIAS

Deste afastado cantinho do planeta, amigo Peter Simplon - se é que esse
é seu sobrenome e não foi maldosamente alterado por algum ofídio do
serpentário jornalístico, para evocar "simplório" e caricaturá-lo ainda
mais -, faço-lhe chegar minha solidariedade, acompanhada de admiração.
Desde esta manhã, quando, rumo ao trabalho, ouvi no noticiário da Rádio
América que um tribunal de Syracusa, estado de Nova York, condenou o
senhor a três meses de prisão por ter-se encarapitado várias vezes no
telhado de sua vizinha, a fim de espiá-la quando ela tomava banho,
contei os minutos para, terminada a jornada, voltar à minha casa e
rabiscar-lhe estas linhas. Apresso-me a lhe dizer que estes efusivos
sentimentos para com sua pessoa explodiram em meu peito (não é metáfora,
tive a sensação de que uma granada de amizade estourava entre minhas
costelas), não quando conheci a sentença, mas ao inteirar-me de sua
resposta ao juiz (resposta que o desgraçado considerou um agravante):
"Fiz isso porque a atração daquelas matas aveludadas nas axilas da minha
vizinha me era irresistível." (Ao ler esta parte da notícia, o locutor,
uma cascavel, fez uma melíflua voz de troça, para deixar claro aos seus
ouvintes que era ainda mais imbecil do que sua profissão nos obriga a
supor.) Amigo fetichista: eu nunca estive em Syracusa, cidade da qual
nada sei, exceto que no inverno é assolada por tempestades de neve e por
um frio polar, mas algo especial essa terra deve ter em suas entranhas
para procriar alguém de sua sensibilidade e sua fantasia, sem falar da
coragem que o senhor demonstrou, afrontando o descrédito e, imagino,
seu ganha-pão e a zombaria de amigos e conhecidos, em defesa de sua
pequena excentricidade (digo pequena para significar inofensiva,
benigna,

159

muito salutar e benéfica, claro está, pois o senhor e eu sabemos que não
há mania ou fobia que careça de grandeza, já que elas constituem a
originalidade de um ser humano, a melhor expressão de sua soberania).
Dito isso, sinto-me obrigado, para evitar mal-entendidos, a fazê-lo
saber que aquilo que, para o senhor, é manjar, para mim é xepa, e que,
no riquíssimo universo dos desejos e dos sonhos, essas florações de
velos nas axilas femininas, cuja visão (e, suponho, cujos sabor, toque e
odor) o enche de felicidade, a mim me desmoralizam, me enojam e me
reduzem à inapetência sexual. (A contemplação de A mulher barbuda de
Ribera me produziu uma impotência de três semanas.) Por isso, minha
amada Lucrecia sempre se arranjou para que em suas tépidas axilas nunca
assomasse sequer a premonição de um velo e sua pele parecesse sempre,
aos meus olhos, à minha língua e aos meus lábios, a lisa bundinha de um
querubim. Em matéria de velo feminino, somente o púbico me é deleitoso,
desde que esteja bem tosquiado e não se exceda em densos tufos,
maranhas ou mechas laníferas que dificultem o ato do amor e tornem o
cunnilingus um empreendimento com risco de asfixia e engasgo. Com o fito
de emulá-lo em matéria de confissão da intimidade, acrescento que não só
as axilas enegrecidas de velo (pelo é uma palavra que envilece a
realidade, adicionando-lhe uma matéria seborreica e casposa) me
provocam esse terror antissexual, só comparável ao produzido em mim
pelo repulsivo espetáculo de uma mulher que masca chicletes ou exibe
buço, ou pelo de um bípede de qualquer sexo que futuca a dentadura em
busca de excrescências com esse ignóbil objeto denominado palito, ou rói
as unhas, ou chupa, aos olhos e à vista do mundo, sem escrúpulos nem
vergonha, uma manga, uma laranja, um maracujá, um pêssego, uvas,
mandarinas, ou qualquer fruta dotada dessas durezas horríveis cuja
simples menção (não digo visão) me deixa arrepiado e infecta minha alma
de furores e urgências homicidas: gomos, fibras, caroços, cascas,
folhelos ou películas. Em nada exagero, companheiro no orgulho de nossos
fantasmas, se lhe digo que jamais consigo observar alguém comendo uma
fruta e tirando da boca ou cuspindo excrescências incomestíveis sem me
sentir invadido por náuseas e até desejos de que o culpado morra. Por
outro lado, sempre considerei qualquer comensal

160

que levanta o cotovelo simultâneamente à mão, na hora de levar o garfo à
boca, um canibal. Assim somos, não nos envergonhamos, e nada admiro
tanto quanto que alguém seja capaz de ir para a prisão e de expor-se à
infâmia em razão de suas manias. Eu não sou desses. Organizei minha
vida secretamente e em família, pelo que não chego à estatura moral que
o senhor alcançou em público. Em meu caso, tudo é levado a cabo na
discrição e no recato, sem ânimo missionário nem exibicionista, de
maneira sinuosa, para não provocar ao meu redor, entre as pessoas com
quem sou obrigado a conviver por motivos de trabalho, de parentesco ou
de servidão social, as ironias e a hostilidade. Se o senhor está
pensando que há em mim muita covardia - sobretudo, em comparação com
sua desenvoltura para apresentar-se ao mundo tal como é -, acertou em
cheio. Agora, sou menos covarde do que quando jovem em relação às minhas
fobias e manias - não me agrada nenhum desses termos, consideradas sua
carga pejorativa e suas associações a psicólogos ou divas
psicanalíticos, mas como chamá-las sem apequená-las: excentricidades?,
desejos privados? Por enquanto, digamos que a última expressão é a menos
ruim. Naquele tempo, eu era muito católico, militante e depois
dirigente da Ação Católica, influenciado por pensadores como Jacques
Maritain; isto é, um cultor de utopias sociais, convencido de que,
mediante um enérgico apostolado inspirado na palavra evangélica, era
possível arrebatar ao espírito do mal - nós o chamávamos pecado - o
domínio da história humana, e construir uma sociedade homogênea,
alicerçada nos valores do espírito. Para tornar realidade a República
Cristã, essa utopia espiritual coletivista, trabalhei nos melhores anos
de minha juventude, resistindo, com zelo de convertido, aos brutais
desmentidos que nos eram infligidos, a mim e aos meus companheiros, por
uma realidade humana avessa aos desvarios que são todos os empenhos
orientados para arquitetar, de maneira coerente e igualitária, esse
vórtice de especificidades incompatíveis que é o conglomerado humano.
Foi durante aqueles anos, amigo Peter Simplon, de Syracusa, que
descobri, de início com certa simpatia, depois com rubor e vergonha, as
manias que me diferenciavam dos demais e faziam de mim um espécime.
(Foi necessário sucederem-se vários anos e incontáveis experiências para
que eu chegasse a compreender que todos os

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seres humanos somos casos à parte e que isso nos torna criativos e dá
sentido à nossa liberdade.) Quanta estranheza eu sentia ao notar que me
bastava ver alguém, conquanto até então me fosse um bom amigo,
descascando uma laranja com as mãos e metendo na boca os pedaços de
polpa, sem importar-se com que os repelentes fiapos dos gomos lhe
pendessem dos lábios, e cuspindo à direita e à esquerda os
esbranquiçados caroços incomestíveis, para que a simpatia se tornasse
invencível desagrado e que pouco depois, a qualquer pretexto, eu
rompesse aquela amizade. Meu confessor, o padre Dorante, um bonachão
inaciano da velha escola, encarava sem inquietude meus alarmes e
escrúpulos, considerando que essas "pequenas manias" eram pecadilhos
veniais, caprichos inevitáveis em todo filho de família abastada,
excessivamente mimado pelos pais. "Por que você seria um fenômeno,
Rigoberto?", ria ele. "Exceto por suas orelhas monumentais e seu nariz
de tamanduá, nunca se viu ninguém mais normal do que você. Portanto,
quando vir alguém comer fruta com bagos ou caroços, olhe para o outro
lado e durma em paz." Eu, porém, não dormia em paz, mas sobressaltado e
inquieto. Sobretudo depois de haver rompido, mediante um pretexto
fútil, com Otília, a Otília das tranças, dos patins e do narizinho
arrebitado, por quem estava muito apaixonado e a quem tanto assediei
para que me desse bola. Por que briguei com ela? Que crime cometeu a
linda Otília, em seu uniforme branco do Colégio Villa Maria? Comer uvas
diante de mim. Metia na boca uma por uma, com manifestações de deleite,
virando os olhos e suspirando para zombar mais ao seu gosto de minhas
caretas de horror - pois eu a fizera partícipe de minha fobia. Abria a
boca e completava a asquerosidade tirando com as mãos os repulsivos
caroços e os imundos folhelos, que lançava no jardim de sua casa - ali
estávamos, sentados na grade - com expressão de desafio. Eu a detestei!
Eu a odiei! Meu longo amor se derreteu como bola de sorvete exposta ao
sol, e, durante muitos dias, desejei-lhe atropelamentos de carro,
trancos de ondas revoltas e escarlatina. "Isso não é pecado, rapaz",
acreditava tranquilizar-me o padre Dorante. "Isso é loucura furiosa.
Você não precisa de um confessor, mas de um médico de doidos." Mas,
amigo e rival de Syracusa, tudo isso me levava a sentir-me um anormal.
Essa idéia me angustiava então, pois,

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como tantos hominídeos ainda
- a maioria, temo -, eu não associava a idéia de ser diferente a uma
reivindicação de minha independência, mas só à sanção social que
sempre recai sobre a ovelha negra do rebanho. Ser um empestado, a
exceção à norma, parecia-me a pior das calamidades. Até descobrir que,
nisso das manias, nem todas eram fobias; algumas eram, também,
misteriosas fontes de gozo, Os joelhos e os cotovelos das moças, por
exemplo. Meus companheiros gostavam de olhos bonitos, de corpo espigado
ou cheinho, de cintura fina, e os mais audazes, de bundinha empinada ou
de pernas curvilíneas. Só a mim ocorria privilegiar essas junturas
ósseas, que, agora confesso sem rubor na intimidade tumular de meus
cadernos, valiam mais do que todo o resto dos atributos físicos de uma
moça. Isso eu lhe digo e afirmo. Uns joelhos bem alcochoados, sem
protuberâncias, curvos, acetinados, e uns cotovelos polidos, não
sulcados, não amotinados, lisos, suaves ao toque, dotados da qualidade
esponjosa do bolinho, deixam-me desassossegado e encabritado. Sou feliz
vendo-os e tocando-os; beijando-os, ascendo ao sétimo céu. O senhor não
terá oportunidade de fazê-lo, mas, se solicitasse o testemunho de
Lucrecia, minha amada lhe diria as muitas horas que passei - tantas
quantas, em criança, ao pé do crucifixo - contemplando, em extasiada
prece, a perfeição de seus geométricos joelhos e de seus gentis
cotovelos de lisura sem par, beijando-os, mordiscando-os como um
cachorrinho brincalhão faz com seu osso, mergulhado na embriaguez, até
que se me adormecia a língua ou que uma cãibra labial me devolvia à
pedestre realidade. Querida Lucrecia! Entre todas as graças que a
enfeitam, nenhuma eu agradeço tanto quanto sua compreensão de minhas
debilidades, sua sabedoria em ajudar-me a aplacar minhas fantasias. Foi
em razão dessa mania que me vi obrigado a um exame de consciência. Ao
perceber o que mais me atraía nas moças - joelhos e cotovelos -, um
companheiro de Ação Católica, que me conhecia muito bem, preveniu-me de
que algo ia mal dentro de mim. Era um adepto da psicologia, o que piorou
as coisas, pois, ortodoxo, queria que as condutas e motivações humanas
sintonizassem com a moral e os ensinamentos da Igreja. Falou de desvios
e pronunciou as palavras fetichismo e fetichista. Agora, elas me
parecem duas das mais aceitáveis do dicionário

163

(isso é o que somos, o senhor, eu e todos os seres sensíveis), mas,
naquela época, soaram-me como sinônimos de depravação, de vício nefando.
O senhor e eu sabemos, amigo siracuso, que o fetichismo não é o "culto
dos fetiches" como diz mesquinhamente o dicionário da Academia, mas sim
uma forma privilegiada de expressão da particularidade humana, uma via
de que o homem e a mulher dispõem para traçar seu espaço, marcar sua
diferença em relação aos outros, exercitar sua imaginação e seu
espírito anti-rrebanho, ser livres. Eu gostaria de contar-lhe, sentados
os dois em alguma casinha de campo nos arredores de sua cidade, que
imagino cheia de lagos, pinheirais e colinas branqueadas pela neve,
bebendo um copo de uísque e ouvindo a lenha crepitar na lareira, como a
descoberta do papel central do fetichismo na vida do indivíduo foi
decisiva em meu desencanto com as utopias sociais - a idéia de que era
possível, coletivamente, construir a felicidade, o bem, ou encarnar
qualquer valor ético ou estético -, em minha passagem da fé ao
agnosticismo, e na convicção que agora me anima, segundo a qual, já que
o homem e a mulher não podem viver sem utopias, a única maneira
realista de materializá-las é transferi-las do social para o individual.
Um coletivo não pode organizar-se para alcançar nenhuma forma de
perfeição sem destruir a liberdade de muitos, sem levar de roldão as
belas diferenças individuais em nome dos pavorosos denominadores comuns.
Em contraposição, o indivíduo solitário pode - em função de seus
apetites, manias, fetichismos, fobias ou gostos - erigir-se um mundo
próprio que se aproxime (ou chegue a encarná-lo, como acontece aos
santos e aos campeões olímpicos) desse ideal supremo no qual o vivido e
o desejado coincidem. Naturalmente, em alguns casos privilegiados, uma
coincidência feliz - aquela entre o espermatozoide e o óvulo, que produz
a fecundação, por exemplo - permite que duas pessoas realizem
complementarmente seu sonho. É o caso (acabo de lê-lo na biografia
escrita pela compreensiva viúva) do jornalista, comediógrafo, crítico,
animador e frívolo profissional Kenneth Tynan, masoquista encoberto a
quem o acaso fez conhecer uma jovem que casualmente era sádica, também
envergonhada, o que Lhes permitiu ser felizes, duas ou três vezes por
semana, em um porão de Kensington, ele recebendo chicotadas e ela
ministrando-as,

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em um jogo equimosado que os transportava aos céus. Respeito, mas não
pratico, esses jogos que têm como corolário o mercurocromo e a. arnica.
Já que enveredei pelas historietas - neste domínio, elas existem em
proporções oceânicas -, não resisto a relatar-lhe a fantasia que incita
até à dança-de-são-guido a libido de Cachito Arnilla, um ás na verbosa
profissão de vender seguros, e que consiste - ele me fez a confissão
durante um desses abomináveis coquetéis de festas cívicas ou natalinas
aos quais não posso furtar-me a comparecer - em ver uma mulher despida
mas calçada com sapatos de salto-agulha, fumando e jogando bilhar. Essa
imagem, que ele acredita haver visto quando criança em alguma revista,
esteve associada às suas primeiras ereções e, desde então, tem sido o
norte de sua vida sexual. Simpático Cachito! Quando se casou, com uma
espevitada moreninha da contabilidade, capaz, tenho certeza, de
secundá-lo, cometi a traquinagem de oferecer-lhe, em nome da companhia
de seguros La Perricholi - sou seu gerente - um jogo de bilhar
regulamentar, que um caminhão de mudanças descarregou em sua casa no dia
das núpcias. A todos, o presente pareceu disparatado; mas, pelo olhar
de Cachito e pela salivinha antecipatória com que me agradeceu, eu soube
que havia acertado em cheio. Caríssimo amigo de Syracusa, amante das
escovas axilares: a exaltação das manias e fobias não pode ser
ilimitada. Convém reconhecer-lhe restrições sem as quais iriam
desatar-se o crime e o retorno à bestialidade selvática. Porém, no
domínio privado que é o destes fantasmas, tudo deve ser permitido entre
adultos que consentem no jogo e nas regras do jogo, para sua mútua
diversão. Que, a mim, muitos desses jogos produzam uma repugnância
desmesurada (por exemplo, as pastilhinhas de provocar traques às quais
era tão afeiçoado o século galante francês e, em particular, o marquês
de Sade, que, não contente em maltratar as mulheres, exigia-lhes que o
entontecessem com descargas artilheiras de ventosidades) é tão certo
quanto que, nesse universo, todas as diferenças merecem consideração e
respeito, pois nada representa melhor a complexidade inapreensível da
pessoa humana. Estaria o senhor infringindo os direitos humanos e a
liberdade de sua hirsuta vizinha ao escalar-lhe o telhado

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para prestar admirativa homenagem aos carrapichos de suas axilas? Sem
dúvida. Mereceria ser punido em nome da coexistência social? Ai, ai,
claro que sim. Mas, disso, o senhor sabia e mesmo assim se arriscou,
disposto a pagar o preço por espiar as axilas cabeludas da vizinhança.
Eu já disse que não posso imitá-lo nesses extremos heróicos. Meu senso
do ridículo e meu desprezo pelo heroísmo são demasiado grandes, sem
falar de minha canhestrice física, para que eu me atreva a escalar um
telhado alheio, a fim de divisar, em um corpo sem véus, os joelhos mais
redondos e os cotovelos mais esféricos da espécie feminina. Minha
covardia natural, que talvez não passe de enfermiço instinto de
legalidade, induz-me a encontrar para meus fetichismos, manias e fobias
um nicho propício, dentro do que é comumente conhecido como lícito.
Isso me priva de um suculento tesouro de lubricidades? Sem dúvida. Mas o
que tenho é bastante, desde que eu consiga tirar dele o proveito devido,
algo que me esforço por fazer. Que os três meses lhe sejam leves e que
suas noites atrás das grades sejam aliviadas por sonhos com bosques de
velos, avenidas de pelos sedosos, negros, louros, ruivos, entre os
quais o senhor galopa, nada, corre, frenético de felicidade. Adeus,
congênere.

A CALCINHA DA PROFESSORA

Dom Rigoberto abriu os olhos: ali,
derramada entre o terceiro e o quarto degraus da escada, azulínea,
brilhante, debruada de renda, provocadora e poética, estava a calcinha
da professora. Tremeu como um possesso. Não dormia, embora estivesse
havia bom tempo às escuras, na cama, ouvindo o murmúrio do mar,
submergido em escorregadiças fantasias. Até que, de repente, aquele
telefone voltara a tocar, naquela noite, arrancando-o violentamente ao
sonho. - Alô, alô? - Rigoberto? É você? Reconheceu a voz do velho
professor, embora este falasse muito baixinho, tapando o fone com a mão
para abafar o som. Onde estavam? Em uma cidade universitária de renome.
De que país? Dos Estados Unidos. Em qual estado? O da Virgínia.

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Qual universidade? A estadual, a bela. universidade de estilo neoclássico,
de brancas colunatas, desenhada por Thomas Jefferson. - É o senhor,
professor? - Sim, sou eu, Rigoberto, Mas fale baixo. Peço desculpas por
acordá-lo, - Não se preocupe, professor, Como foi seu jantar com a
professora Lucrecia? Já terminou? A voz do venerável jurista e filósofo
Nepomuceno Riga se quebrou em hieroglífico tartamudeio. Rigoberto
compreendeu que algo sério acontecia ao seu antigo mestre de filosofia
do direito na Universidade Católica de Lima, o qual viera assistir a um
simpósio na Universidade da Virgínia, onde ele fazia sua pós-graduação
(em legislação e seguros) e onde tivera oportunidade de servir-lhe de
cicerone e de motorista: levara-o a Monticello, para visitar a
casa-museu de Jefferson, e aos monumentos históricos da batalha de
Manassas. - É que, Rigoberto, perdoe meu abuso, mas você é a única
pessoa, aqui, com quem tenho certa intimidade. Como foi meu aluno, eu
conheço sua família, e nestes dias me fez tantas gentilezas... - Não
faça cerimônia, dom Nepomuceno - animou-o o jovem Rigoberto. - Aconteceu
alguma coisa? Dom Rigoberto se sentou na cama, sacudido por uma
risadinha tendenciosa. Pareceu-lhe que a qualquer momento a porta do
banheiro se abriria e, desenhada no umbral, surgiria a silhueta de dona
Lucrecia, surpreendendo-o com uma daquelas primorosas e imaginativas
calcinhas, pretas, brancas, com bordados, orifícios, fios de seda,
pespontadas ou lisas, que mal envolviam, apenas para ressaltá-lo, seu
empinado monte de Vênus, e por cujas bordas assomavam para tentá-lo -
indóceis, coquetes - alguns pelinhos do púbis. Era uma calcinha como
essas, a que jazia insolitamente, qual um desses objetos provocadores
dos quadros surrealistas do catalão Joan Ponç ou do romeno Victor
Brauner, na escada por onde teria de subir ao seu dormitório essa boa
alma, esse espírito inocente, dom Nepomuceno Riga, que em suas aulas
memoráveis, as únicas dignas de recordação por parte de dom Rigoberto
nos seus sete anos de áridos estudos jurídicos, costumava apagar o
quadro com a própria gravata.

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- É que eu não sei o que fazer, Rigoberto. Estou em apuros. Apesar da
minha idade, não tenho a menor experiência nessas lides. - Que lides,
professor? Fale, não se envergonhe. Por que, em vez de alojá-lo no
Holiday Inn ou no Hilton, como os outros participantes do simpósio,
tinham instalado dom Nepomuceno na casa da professora de direito
internacional, curso II? Uma deferência ao prestígio dele, sem dúvida.
Ou teria sido porque os unia uma amizade surgida quando se encontravam
por acaso nas faculdades de direito do vasto mundo, em congressos,
conferências, mesas-redondas, e também, talvez, por haverem engendrado a
quatro mãos uma erudita comunicação, abundante de latinórios e
publicada com profusão de notas e uma sufocante bibliografia em uma
revista especializada de Buenos Aires, Tübingen ou Helsinque? O fato é
que o ilustre dom Nepomuceno, em vez de hospedar-se no impessoal cubo
com janelas do Holiday Inn, passava as noites na confortável casinha,
entre rústica e moderna, da professora Lucrecia, que Rigoberto conhecia
muito bem, porque neste semestre fazia com ela o seminário de direito
internacional, curso II, e várias vezes batera àquela porta, para levar
seus papéis ou devolver os densos tratados que a mestra lhe emprestava
amavelmente. Dom Rigoberto fechou os olhos e ficou todo arrepiado, ao
divisar, mais uma vez, os quadris musicais da bem-proporcionada e
marcial figura da jurista quando se afastava. - O senhor está bem,
professor? - Sim, sim, Rigoberto. Na realidade, trata-se de uma tolice.
Você vai rir de mim. Mas, repito, não tenho nenhuma experiência. Estou
perplexo e abobalhado, rapaz. Nem precisava dizer; sua voz tremia como
se ele fosse ficar mudo, e as palavras lhe saíam a fórceps. Devia estar
suando gelo. Ousaria contar o que lhe havia acontecido? - Bom, preste
atenção. Agora há pouco, ao voltarmos daquele coquetel que fizeram em
nossa homenagem, a doutora Lucrecia preparou aqui, em sua casa, uma
ceiazinha. Só para nós dois, uma fineza de sua parte. Um jantar muito
simpático, durante o qual tomamos uma garrafinha de vinho. Eu não estou
habituado ao álcool, de modo que, possivelmente, toda a minha confusão
vem desses vapores que me subiram à cabeça.

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Um vinhozinho da
Califórnia, creio. Bom, embora meio forte, - Deixe de tantos
rodeios, professor, e diga o que aconteceu, - Espere, espere. Imagine
que, depois dessa ceia e dessa garrafinha, a. doutora ainda insistiu, em
que bebêssemos uma taça de conhaque. Não pude me negar, claro, por
educação. Mas vi estrelas, rapaz. Aquilo era fogo líquido. Comecei a
tossir e até pensei que podia ficar cego. Em vez disso, me aconteceu
algo ridículo. Caí adormecido, meu filho. Sim, sim, ali, na poltrona,
na salinha que também é biblioteca. E quando acordei, não sei quanto
tempo depois, dez, quinze minutos, a doutora não estava. Certamente se
retirou para dormir, pensei. Então me dispus a fazer o mesmo. Quando,
quando, imagine que ao subir a escada, catapum!, despenquei de bruços
em cima... você não sabe de quê. Uma calcinha! Bem no meu caminho, isto
mesmo. Não ria, rapaz, porque, embora a coisa seja engraçada, estou
transtornadíssimo. Não sei o que fazer, já lhe disse. - Mas é claro
que eu não estou rindo, dom Nepomuceno. Não acha que essa peça íntima,
nesse lugar, seja pura casualidade? - Que casualidade, que nada, rapaz.
Posso não ter experiência, mas ainda não fiquei gagá. A doutora a deixou
na escada ex professo, para que eu topasse com ela. Embaixo deste teto
não há outra pessoa, afora a dona da casa e eu. Ela colocou a calcinha
ali. - Mas então, professor, está lhe acontecendo o melhor que pode
acontecer a um hóspede. O senhor recebeu um convite de sua anfitriã. É
claríssimo. A voz do professor se quebrou três vezes antes de ele
articular algo inteligível. - Acha mesmo, Rigoberto? Bom, foi o que eu
imaginei, quando consegui pensar, depois de semelhante surpresa. Parece
um convite, não é? Não pode ser casual, esta casinha é a ordem
personificada, como a doutora. A peça foi colocada ali intencionalmente.
Além disso, a maneira como foi disposta na escada não é casual, porque
a exibe e a realça, juro a você. - Foi colocada ali com perfídia, se me
permite uma brincadeirinha, dom Nepomuceno.

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- Sim, também estou rindo por dentro, Rigoberto. No meio da minha
perplexidade, quero dizer. Por isso, preciso do seu conselho. O que eu
deveria fazer? Nunca sonhei me ver em semelhante circunstância. - O que
o senhor tem de fazer está claríssimo, professor. Não gosta da doutora
Lucrecia? Ela é uma mulher muito atraente; eu acho, e meus colegas
também. É a catedrática mais bonita da Virgínia. - Sem dúvida, quem
poderia negar? É uma dama muito bela. - Então, não perca tempo. Vá e
bata à porta do quarto. Não vê que ela está à sua espera? Vá logo, antes
que ela adormeça. - Posso me permitir isso? Bater à porta dela, sem mais
nem menos? - Onde o senhor está agora? - E onde poderia ser? Aqui, na
salinha, ao pé da escada. Por que você acha que eu estou falando tão
baixinho? Vou e bato com os nós dos dedos? Sem mais aquela? - Não perca
um minuto. Ela lhe deixou um sinal, o senhor não pode se fazer de
desentendido. Principalmente, se ela o agrada. Porque a doutora o
agrada, não, professor? - Claro que sim. E o que devo fazer, sim, você
tem razão. Mas me sinto meio coibido. Obrigado, rapaz. Não preciso lhe
recomendar a máxima discrição, certo? Por mim e, sobretudo, pela
reputação da doutora. - Serei um túmulo, professor. Não hesite mais.
Suba essa escada, recolha a calcinha e leve para ela. Bata à porta e
comece fazendo um gracejo sobre a surpresa que encontrou em seu
caminho. Tudo sairá às mil maravilhas, o senhor verá. Esta noite ficará
para sempre na sua lembrança, dom Nepomuceno. Antes de ouvir o clique do
fone encerrando a conversa, dom Rigoberto chegou a perceber um ruído
estomacal, uma angustiada eructação que o provecto jurista não pôde
reprimir. Como devia estar nervoso e sôfrego, no escuro daquela salinha
cheia de livros de direito, na pujante noite primaveril virginiana,
dividido entre a ilusão dessa aventura - a primeira, em uma vida de
coitos matrimonais e reprodutores? - e sua covardia mascarada por trás
do rigor de princípios éticos,

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convicções religiosas e preconceitos sociais! Qual das forças que
batalhavam em seu espírito venceria: o desejo ou o medo? Quase sem se
dar conta, submergido naquela imagem já totêmica, a calcinha abandonada
na escada da professora, dom Rigoberto saiu da cama e se transferiu para
o escritório, sem acender a luz. Seu corpo evitava os obstáculos - o
banquinho, a escultura núbia, as almofadas, o televisor - com uma
desenvoltura adquirida por uma prática assídua, pois, desde a partida
de sua mulher, não havia noite em que a vigília não o impelisse a se
levantar ainda no escuro, para buscar entre os papéis e garatujas de
sua escrivaninha um bálsamo para a saudade e a solidão. Com a cabeça
ainda obsedada pela silhueta do venerável jurista arremessado pelas
circunstâncias (encarnadas em uma perfumada e voluptuosa calcinha de
mulher atravessada em seu caminho entre dois degraus de uma escada
jurisprudente) a uma incerteza hamletiana, mas já sentado ante a
comprida mesa de madeira do escritório e folheando seus cadernos, dom
Rigoberto deu um salto quando o cone dourado do quebra-luz lhe revelou
o provérbio alemão que encabeçava essa página: Wer die Wahl hat, hat die
Qual ("Quem tem escolha tem tormento"). Extraordinário! Esse provérbio,
copiado sabe Deus de onde, não retratava o estado de ânimo do pobre e
ditoso dom Nepomuceno Riga, tentado pela abundante catedrática, a
doutoral Lucrecia? Suas mãos, que passavam aleatoriamente as folhas de
outro caderno, para ver se pela segunda vez o acaso acertava ou
estabelecia uma relação entre o encontrado e o sonhado que servisse de
combustível à sua fantasia, detiveram-se de repente ("como as do crupiê
que lança a bolinha sobre a roleta em movimento") e ele se debruçou,
ávido. Uma reflexão sobre O diário de Edith, de Patrícia Highsmith,
rabiscava a página. Dom Rigoberto levantou a cabeça, desconcertado.
Ouviu as enfurecidas ondas do mar, ao pé da escarpa. Patrícia Highsmith?
Não se interessava nem um pouco por essa romancista de tediosos crimes,
cometidos pelo apático e imotivado Mr. Ripley. Sempre respondera com
bocejos (comparáveis aos que o popular Livro tibetano dos vivos e dos
mortos lhe havia produzido) à moda dessa criminalista que (filmes de
Alfred Hitchcock de permeio), alguns anos antes, havia empolgado a
centena de leitores que constituíam o público limenho. O que fazia essa
escrevinhadora

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para cinéfilos intrometida em seus cadernos? Ele nem sequer recordava
quando e por que havia escrito aquele comentário sobre O diário de
Edith, livro de que tampouco se lembrava: "Excelente romance, para saber
que a ficção é uma fuga para o imaginário que retifica a vida. As
frustrações familiares, políticas e pessoais de Edith não são gratuitas;
enraízam-se naquela realidade que mais a faz sofrer: seu filho Cliffie.
Em vez de projetar-se no diário tal como é - um jovem frouxo e
fracassado, que não foi admitido na universidade e que não sabe
trabalhar -, Cliffie, nas páginas que sua mãe escreve, desdobra-se do
original e aparece vivendo a vida que Edith desejava para ele:
jornalista de destaque, casado com uma moça de boa família, com filhos,
um bom emprego, rebento que enche sua progenitora de satisfação. "Mas a
ficção é só um remédio momentâneo, pois, embora sirva de consolo a Edith
e a distraia dos reveses, vai inibindo-a na luta pela vida, isolando-a
em um mundo mental. As relações com seus amigos se debilitam e se
esgarçam; ela perde seu trabalho e termina desamparada. Embora sua morte
seja um exagero, do ponto de vista simbólico é coerente; Edith passa,
fisicamente, ao lugar para onde já se mudara em vida: a irrealidade. "O
romance é construído com simplicidade enganosa, sob a qual se perfilam
um contexto dramático, de luta sem quartel entre as irmãs inimigas, a
realidade e o desejo, e as intransponíveis distâncias que as separam,
exceto no recinto milagroso do espírito humano." Dom Rigoberto sentiu
que seus dentes castanholavam e que suas mãos transpiravam. Agora
recordava esse romance passageiro e o porquê de sua reflexão. Terminaria
como Edith, deslizando em direção à ruína por abusar da fantasia? Mas,
apesar disso, mesmo sob essa lúgubre hipótese, a calcinha, fragrante
rosa, continuava no coração de sua consciência. O que estaria
acontecendo com dom Nepomuceno? Quais eram seus movimentos, seus
dilemas, depois da conversa telefônica com o jovem Rigoberto? Teria
seguido o conselho do aluno? Havia começado a subir a escada nas pontas
dos pés, em relativa escuridão, na qual distinguia as prateleiras de
livros e as quinas dos móveis. No segundo degrau, parou, inclinou-se,
agarrou o precioso objeto - de seda? de algodão?

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- com os dedos dormentes, levou-o au rosto e o farejou, como um
animalzinho averiguando se esse objeto desconhecido é comestível.
Entrefechando os olhos, beijou-o, sentindo um começo de vertigem
que o fez cambalear e segurar-se ao corrimão. Estava decidido: faria
aquilo. Continuou subindo a escada, com a calcinha na mão, sempre na
ponta dos pés, temendo ser surpreendido, ou como se o ruído - os degraus
estalaram levemente - pudesse quebrar o feitiço. Seu coração batia, tão
forte que pela mente lhe passou a idéia de como seria inoportuno, além
de estúpido, cair fulminado por um ataque cardíaco neste preciso
momento, Não, não era uma síncope; o que atropelava daquele modo o
sangue em suas veias eram a curiosidade e a sensação (inédita em sua
vida) de estar degustando um fruto proibido, Havia chegado ao corredor,
estava diante da porta da jurista. Apertou a mandíbu-la com as duas
mãos, porque esse grotesco estralejar dos dentes causaria péssima
impressão em sua anfitriã. Armando-se de coragem ("fazendo das tripas
coração", murmurou dom Rigoberto, que suava em bicas e tremia
igualmente), bateu com os nós dos dedos, muito de leve. A porta, só
encostada, abriu-se com um rangido hospitaleiro. O que o venerável
mestre de filosofia do direito viu daquele limiar acarpetado mudou suas
idéias sobre o mundo, o homem - seguramente, também o direito - e
arrancou a dom Rigoberto um gemido de prazer desesperado. Uma luz ouro
e azul-anil (Van Gogh? Botticelli? Algum expressionista tipo Emil
Nolde?), que uma lua redonda e amarela enviava do estrelado céu da
Virgínia, caía em cheio, disposta por um exigente cenógrafo ou destro
iluminador, sobre a cama, com a única intenção de ressaltar o corpo nu
da doutora. Quem imaginaria que aquelas severas roupas que ela exibia do
alto de sua cátedra, aqueles tailleurs com que expunha seus argumentos
e moções nos congressos, aquelas capas de chuva com que costumava
envolver-se nos invernos, ocultavam formas que Praxíteles e Renoir
disputariam entre si, o primeiro pela harmonia e o segundo, pela
modelagem carnuda? Estava de bruços, a cabeça apoiada sobre os braços
cruzados, de modo que a postura a alongava, mas o que imantou o olhar do
aturdido dom Nepomuceno não foram seus ombros, nem seus mórbidos braços
("mórbidos, no sentido italiano", especificou dom Rigoberto, que não
tinha nenhuma atração pelo macabro,

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mais pelo lânguido e macio), nem seu dorso ondulado. Nem sequer as amplas e
leitosas coxas ou os pezinhos de plantas tosadas. Eram, isto sim, essas
esferas maciças que com alegre impudor se empinavam e sobressaíam como
os cumes de uma montanha bicéfala ("Aqueles vértices das cordilheiras
enrascadas por nuvenzinhas nas gravuras japonesas do período Meiji",
associou, satisfeito, dom Rigoberto). Mas também Rubens, Ticiano,
Courbet e Ingres, Urculo e mais meia dúzia de mestres forjadores de
traseiros femininos pareciam ter confabulado para dar realidade,
consistência, abundância e, ao mesmo tempo, delicadeza, suavidade,
espírito e vibração sensual a esse traseiro cuja brancura fosforescia
na penumbra. Incapaz de se conter, sem saber a que fazia, o deslumbrado
("corrompido para sempre?") dom Nepomuceno deu dois passos e, ao chegar
junto à cama, caiu de joelhos. As idosas madeiras do piso emitiram um
queixume. - Desculpe, doutora, mas encontrei na escada uma coisa que lhe
pertence - balbuciou, sentindo que lhe corriam rios de saliva pelas
comissuras dos lábios. Falava tão baixinho que nem ele mesmo se ouvia,
ou talvez movesse os lábios sem emitir som algum. Nem sua voz nem sua
presença haviam despertado a jurista. Ela respirava sossegada,
simetricamente, em inocente sono. Mas essa postura, o fato de estar nua,
de ter deixado apenas encostada a porta da alcova, de ter soltado os
cabelos - pretos, lisos, compridos - que agora lhe varriam os ombros e
o dorso, contrastando seu azulado negror com a brancura da pele, tudo
isso podia ser inocente? "Não, não", sentenciou dom Rigoberto. "Não,
não", ecoou o transido professor, passeando o olhar por essa superfície
ondulante que, nos flancos, afundava e subia como um bravio mar de
carne feminina, exaltada pela claridade da lua ("ou melhor, pela oleosa
luz em penumbra dos corpos de Ticiano", retificou dom Rigoberto), a
poucos centímetros de sua face embasbacada: "Não é inocente, nada o é.
Estou aqui porque ela quis e tramou isso." No entanto, dessa conclusão
teórica não extraía forças suficientes para fazer o que os instintos
ressurgidos lhe exigiam ardentemente: passar a ponta dos dedos sobre a
pele acetinada, pousar seus lábios matrimoniais sobre essas colinas e
profundezas que ele antecipava mornas, olorosas, e de um sabor em que o
doce e o salgado coexistiam sem se misturar. Mas, petrificado pela
felicidade,

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não conseguia fazer nada, exceto olhar, olhar. Depois de ir e vir
muitas vezes da cabeça aos pés desse milagre, de percorrê-lo
repetidamente, seus olhos se imobilizaram, como o requintado conhecedor
de vinhos que não precisa continuar degustando, pois identificou o non
plus ultra da adega, no espetáculo que o esférico traseiro por si só
constituía. Destacava-se do resto do corpo como um imperador ante seus
vassalos, Zeus ante os pequenos deuses do Olimpo. ("Feliz aliança entre
o oitocentista Courbet e o moderno Urculo", enobreceu-o com referências
dom Rigoberto.) O nobre mestre, exorbitado, observava e adorava em
silêncio esse prodígio. O que dizia a si mesmo? Repetia uma máxima de
Keats ("Beauty is truth, truth is beauty""). O que pensava? "Com que
então, essas coisas existem. Não só nos maus pensamentos, na arte ou
nas fantasias dos poetas; também na vida real. Com que então, uma bunda
assim é possível na realidade de carne e osso, nas mulheres que povoam
o mundo dos vivos." Já teria ejaculado? Estaria prestes a manchar sua
cueca? Ainda não, embora, ali, no baixo-ventre, o jurista percebesse
alvissareiros sintomas, um despertar, uma lagarta espreguiçante,
recém-saída do sono. Pensava algo mais? Isto: "E nada menos que entre as
pernas e o torso de minha antiga e respeitada colega, desta boa amiga
com quem tanto me correspondi sobre abstrusas matérias
fílosófico-jurídicas, ético-legais, histórico-metodológicas?" Como era
possível que nunca, até essa noite, em nenhum dos fóruns, conferências,
simpósios, seminários, em que haviam coincidido, conversado, discutido,
trocado idéias, ele sequer tivesse desconfiado que, sob aqueles trajes
sóbrios, casacos felpudos, capas forradas, impermeáveis cor de formiga,
se escondia tamanho esplendor? Quem teria podido imaginar que aquela
mente tão lúcida, aquela inteligência justiniana, aquela enciclopédia
jurídica, possuía também um corpo tão deslumbrante em sua organização e
magnificência? Imaginou por um instante - viu, talvez? - que,
indiferentes à sua presença, livres em seu mórfico abandono, as quietas
montanhas de carne soltavam um alegre, abafado ventinho que rebentou
diante de suas narinas, enchendo-as de um aroma acre. Isso não o fez
rir, não o incomodou ("Tampouco o excitou", pensou dom Rigoberto).
Sentiu-se reconhecido, como se, de algum modo e por uma razão intricada
e difícil de explicar ("como as teorias de Kelsen,

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que ele nos explicava
tão bem", comparou), esse punzinho fosse uma espécie de aquiescência
que esse soberbo corpo lhe participava, exibindo diante dele sua
intimidade tão íntima, os gases inúteis expelidos por uma serpe
intestinal de cavidades que imaginou róseas, úmidas, limpas de escórias,
tão delicadas e modelares como as nádegas emancipadas que apareciam a
milímetros de seu nariz. E então, apavorado, soube que dona Lucrecia
estava desperta, pois, ainda que ela não tivesse se mexido, escutou-a: -
O senhor aqui, professor? Não parecia aborrecida, e muito menos
assustada. Era sua voz,, sem dúvida, mas cheia de uma calidez
suplementar. Havia nela algo demorado, insinuante, uma sensualidade
musical. Em seu embaraço, o jurista conseguiu se perguntar como era
possível que, nesta noite, sua velha colega experimentasse tantas
transformações mágicas. - Desculpe, desculpe, doutora. Não interprete
mal minha presença aqui, eu lhe suplico. Posso explicar. - O jantar lhe
caiu mal ?-tranquilizou-o ela. Falava sem a mínima alteração. - Um
copinho d'água com bicarbonato? Tinha voltado ligeiramente a cabeça e,
com a face abandonada sobre o braço como sobre um travesseiro, seus
grandes olhos o observavam, brilhando entre as madeixas negras de sua
cabeleira. - Encontrei na escada uma coisa que lhe pertence, doutora, e
vim trazê-la - murmurou o professor. Continuava ajoelhado e, agora,
percebia uma dor vivíssima nos ossos dos joelhos. - Bati, mas a senhora
não respondeu. E, como a porta estava só encostada, me atrevi a entrar.
Não queria acordá-la. Rogo-lhe que não me leve a mal. Ela moveu a
cabeça, assentindo, desculpando-o, displicente, compadecida do
atordoamento dele. - Por que está chorando, meu bom amigo? O que houve?
Sem defesas contra essa afetuosa deferência, a acariciante cadência
dessas palavras, o carinho desse olhar que cintilava no escuro, dom
Nepomuceno desabou. O que até então haviam sido apenas mudas e grossas
lágrimas descendo por suas faces transformou-se em soluços ressoantes,
suspiros rasgados,

176

cascatas de babas e mucos que ele tentava conter
com as duas mãos - em sua desordem mental, não encontrava o lenço, nem
o bolso onde estava o lenço - enquanto se espraiava, afogado, nesta
confissão: - Ai, Lucrecia, Lucrecia., me perdoe, não posso me conter.
Não veja nisto uma ofensa, é totalmente o contrário. Eu nunca havia
imaginado nada assim, tão formoso, quero dizer, tão perfeito como seu
corpo. A senhora sabe o quanto a respeito e admiro. Intelectual,
acadêmica, juridicamente. Mas esta noite, isto, vê-la assim, é a melhor
coisa que já me aconteceu na vida. Juro, Lucrecia. Por este instante,
eu jogaria no lixo todos os meus títulos, os doutorados honoris causa
com que me honraram, as condecorações, os diplomas. ("Se não tivesse a
idade que tenho, eu queimaria todos os meus livros e iria me sentar como
um mendigo à porta de tua casa" - leu dom Rigoberto, em seu caderno,
esses versos do poeta Enrique Pena. - "Sim, minha criança., ouve bem:
como um mendigo, a porta de tua casa" Nunca senti uma felicidade tão
grande, Lucrecia. Tê-la visto assim, sem roupa, como Ulisses viu
Nausícaa, é o prêmio máximo, uma glória que não creio merecer. Isso me
emocionou, me trespassou. Estou chorando de tão comovido, de tão
agradecido que lhe estou. Não me despreze, Lucrecia. Em vez de
desafogá-lo, o discurso fora comovendo o professor ainda mais, e agora
os soluços o engasgavam. Ele apoiou a cabeça na beira da cama e
continuou chorando, sempre ajoelhado, suspirando, sentindo-se triste e
alegre, aflito e ditoso. "Me perdoe, me perdoe", balbuciava. Até que,
segundos ou horas depois - seu corpo se eriçou como o de um gato -,
sentiu a mão de Lucrecia em sua cabeça. Os dedos dela revolveram seus
cabelos grisalhos, consolando-o, acompanhando-o. A voz também veio
aliviar com uma carícia fresca a chaga viva de sua alma: - Acalme-se,
Rigoberto. Não chore mais, meu amor, minha alma. Pronto, já passou, nada
mudou. Você não fez o que queria? Entrou, me viu, aproximou-se, chorou,
eu o perdoei. E então? Vou me aborrecer com você por causa disso?
Enxugue as lágrimas, assoe o nariz, durma. Nana, neném, nana, neném. O
mar batia lá embaixo, contra os penhascos de Barranco e Miraflores, e a
espessa camada de nuvens não deixava ver as estrelas nem a lua no céu de
Lima. Mas a noite estava acabando. A qualquer momento, amanheceria. Um
dia a menos. Um dia a mais.
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PROIBIÇÕES À BELEZA

Nunca verás um quadro de Andy Warhol nem de Frida Kahlo, nem aplaudirás
um discurso político, nem deixarás que se rache a pele dos teus
cotovelos e joelhos, nem que se endureçam as plantas dos teus pés. Nunca
escutarás uma composição de Luigi Nono nem uma canção de protesto de
Mercedes Sosa nem verás um filme de Oliver Stone nem comerás diretamente
das folhas da alcachofra. Nunca arranharás os joelhos nem cortarás os
cabelos nem terás espinhas, cáries, conjuntivite nem (muito menos)
hemorroidas. Nunca andarás descalça sobre o asfalto, a pedra, o
cascalho, a laje, o encerado, a calamina, a ardósia e o metal, nem te
ajoelharás em uma superfície que não ceda como a migalha do chancay
(antes de ser tostado). Nunca usarás em teu vocabulário as palavras
telúrico, miscigenado, conscientizar, visualizar, estatalista, caroços,
folhe-los ou societal. Nunca possuirás um hamster nem farás gargarejos
nem terás perucas nem jogarás bridge nem usarás chapéu, boina ou
rodilha. Nunca armazenarás gases nem dirás palavrões nem dançarás
rock-n'-roll. Nunca morrerás.

VII. O POLEGAR DE EGON SCHIELE

- Todas asmoças de Egon Schiele são franzinas e ossudas, e me parecem muito
bonitas - disse Fonchito. - Já você é cheinha, e no entanto também me
parece muito bonita. Como explicar essa contradição, madrasta? - Está
me chamando de gorda? - reagiu dona Lucrecia, lívida. Tinha estado
distraída, ouvindo a voz do menino como um ruído de fundo, concentrada
nas cartas anônimas - sete, em menos de dez dias - e na que escrevera a
Rigoberto na noite anterior e que agora trazia no bolso do robe. Só
recordava que Fonchito havia começado a falar e falar, de Egon Schiele
como sempre, até que aquilo de "cheinha" a deixara de orelha em pé. -
Gorda, não. Eu disse cheinha, madrasta. - Fonchito se desculpava,
gesticulando. - A culpa por eu ser assim é do seu pai - queixou-se ela,
examinando-se. - Eu era magrinha quando nos casamos. Mas Rigoberto meteu
na cabeça que a moda filiforme destrói o corpo feminino, que a grande
tradição da beleza é a ubérrima. Era isto mesmo que ele dizia: "a forma
ubérrima". Para agradá-lo, engordei. E não voltei a emagrecer. - Mas
você está ótima assim, juro, madrasta - continuava Fonchito a se
desculpar. - Eu disse aquilo das magrinhas de Egon Schiele porque não
lhe parece estranho que me agradem, e você também, sendo pelo menos o
dobro delas? Não, não podia ser ele o autor das cartas anônimas. Porque
estas elogiavam seu corpo, e em uma, inclusive, intitulada "Brasão do
corpo da amada", cada um dos seus membros - cabeça, ombros, cintura,
seios, ventre, coxas, pernas, tornozelos, pés - vinha acompanhado de uma
referência a um poema ou a um quadro emblemático. O invisível enamorado
de suas formas ubérrimas só podia ser Rigoberto.

180

("Esse homem está
é gamado pela senhora", proclamou Justiniana, depois de ler o Brasão.
"Puxa, como ele conhece seu corpo! Tem que ser dom Rigoberto. De
onde Fonchito ia tirar essas palavras, por mais sabidinho que seja?
Embora ele também conheça a senhora todinha, não?") - Por que você fica
calada o tempo todo, sem falar comigo, me olhando como se não me visse?
Você hoje está muito esquisita, madrasta. - É por causa dessa
correspondência anônima. Não consigo tirar isso da cabeça, Fonchito.
Assim como você tem sua obsessão por Egon Schiele, eu agora tenho a
minha por essas malditas cartas. Passo o dia esperando por elas, lendo
e recapitulando cada uma. - Mas, madrasta, malditas por quê? Por acaso
a insultam ou dizem coisas feias? - Porque vêm sem assinatura. E porque,
às vezes, parecem ter sido mandadas por um fantasma, e não pelo seu pai.
- Você sabe muito bem que são dele. Tudo está dando muito certo,
madrasta. Não se atormente. Logo, logo, vocês vão ficar de bem, não
tenha dúvida. A reconciliação de dona Lucrecia e dom Rigoberto se
transformara na segunda obsessão de Fonchito. O menino falava disso com
tanta segurança que a madrasta já não tinha forças para contestá-lo e
dizer que tudo não passava de pura fantasia do fantasiador empedernido
que ele se tornara. Teria feito bem ao lhe mostrar as cartas anônimas?
Algumas eram tão ousadas nas referências à sua intimidade que, depois de
lê-las, ela se prometia: "Esta, não, esta eu não mostro." E sempre
acabava por fazê-lo, espiando a reação dele, para ver se algum gesto o
traía. Mas nada. A cada vez, o menino reagia com a mesma atitude,
surpresa e excitada, e chegava à mesma conclusão: era seu pai, era
outra prova de que este já não guardava rancor. Notou-o agora também
ausente, distante da sala de jantar e do bosque do Olivar, absorto em
alguma lembrança. Examinava as próprias mãos, aproximando-as muito dos
olhos, juntando-as e alongando-as, abrindo os dedos, escondendo o
polegar, cruzando-as e descruzando-as, em estranhas poses, como as de
quem projeta silhuetas na parede com a sombra das mãos. Mas Fonchito não
estava tentando fabricar sombras chinesas na tarde primaveril;

181

perscrutava seus dedos como um entomologista examina sob a lupa uma
espécie desconhecida. - Pode-se saber o que você está fazendo? Ele não
se alterou e continuou com seus trejeitos, ao mesmo tempo em que
respondia com outra pergunta: - Acha que eu tenho mãos deformadas,
madrasta? O que este diabinho ia inventar hoje? - Não sei, deixe ver -
disse ela, bancando o médico especialista. - Coloque-as aqui. Fonchito
não estava brincando. Muito sério, levantou-se, aproximou-se e apoiou as
duas mãos sobre as palmas que ela lhe oferecia. Ao contato dessa
suavidade lisa e da delicadeza dos ossinhos desses dedos, dona Lucrecia
sentiu um estremecimento. Ele tinha mãos frágeis, dedinhos afilados,
unhas ligeiramente cor-de-rosa, aparadas com esmero. Mas nas gemas
havia manchinhas de tinta ou de carvão. Ela fingiu submetê-las a um
exame clínico, enquanto as acariciava. - Não têm nada de deformadas -
concluiu. - Embora um pouquinho de água e sabão não lhes fizesse mal. -
Que pena - disse o menino, sem vestígio de humor, retirando suas mãos
das de dona Lucrecia. - Porque, então, nisso eu não me pareço nada com
ele. "Pronto. Vai começar de novo." O jogo de todas as tardes. -
Explique-se melhor. Fonchito se apressou a fazê-lo. Ela não tinha notado
que as mãos eram a mania de Egon Schiele? As dele e também as das moças
e rapazes que pintava. Se não tinha, que notasse agora. Em segundos,
dona Lucrecia recebeu em seus joelhos o livro de reproduções. Via a
repulsa que Egon Schiele sempre tivera ao polegar? - Ao polegar? - riu
dona Lucrecia. - Preste atenção nos retratos. O de Arthur Roessler, por
exemplo - insistiu o menino, com paixão. - Ou este: Duplo retrato: o
inspetor-geral Heinrich Benesch e seu filho Otto; o de Enrich Lederer;
e seus autorretratos. Ele só mostra quatro dedos. Sempre faz desaparecer
o polegar. Por que seria? Por que o ocultava? Porque o polegar é o
dedo mais feio da mão? Porque gostava dos números pares

182

e achava que
os ímpares davam azar? Tinha o polegar desfigurado e se envergonhava
dele? Algum problema ele tinha com as mãos, pois, do contrário, por que
se deixava fotografar escondendo-as nos bolsos, ou fazendo com elas
umas poses tão ridículas, torcendo os dedos como uma bruxa, metendo-as
na frente da câmera ou coiocando-as acima da cabeça, como se quisesse
que lhe escapassem, voando? As mãos dele mesmo, as dos homens, as das
moças. A madrasta não tinha percebido? Essas meninas nuas, de corpo
tão bem formadinho, não era incompreensível que tivessem esses dedos
masculinos, de juntas ossudas e grosseiras? Por exemplo, nesta gravura
de 1910, Moça nua de cabelos negros, de pé, não destoavam essas mãos de
machona, com unhas quadradas, idênticas às que Egon pintava em seus
autorretratos? E ele não tinha feito isso também com quase todas as
mulheres que pintou? Por exemplo, o Nu, de pé, de 1913. Fonchito
respirou fundo: - Ou seja, era um Narciso, como você disse. Pintava
sempre suas próprias mãos, mesmo quando o personagem do quadro era
outro, homem ou mulher. - Foi você quem descobriu isso? Ou terá lido em
algum lugar? - Dona Lucrecia estava desconcertada. Folheava o livro, e
as imagens davam razão a Fonchito. - Qualquer pessoa que observe muito
os quadros dele vai notar. - O menino encolheu os ombros, sem dar
importância ao assunto. - O papai não diz que um artista, se não for
temático, não chega a ser genial ? Por isso, eu sempre presto atenção às
manias dos pintores refletidas em seus quadros. Egon Schiele tinha três:
uma, botar as mesmas mãos desproporcionadas em todas as suas figuras,
suprimindo delas o polegar; duas, as mulheres e os homens mostrarem suas
coisinhas, levantando a saia ou abrindo as pernas; e três, retratar a
si mesmo, colocando as mãos em posturas forçadas, que chamam a atenção.
- Bom, bom, se você queria me deixar embasbacada, conseguiu. Sabe de uma
coisa, Fonchito? Você, sim, é que é um grande temático. Se a teoria do
seu pai estiver certa, você já tem um dos requisitos para ser genial. -
Só me falta pintar os quadros - riu ele, sentando-se de novo. Voltou a
examinar as próprias mãos, mexendo-as, exibindo-as e imitando as poses
extravagantes dos quadros e fotos de Schiele.

183

Dona Lucrecia, divertida, observava aquela pantomima. E, de
repente, decidiu: "Vou ler minha carta para ele, vamos ver o que diz."
Além disso, lendo-a em voz alta, saberia se o que havia escrito estava
bom e decidiria se convinha enviá-la a Rigoberto ou rasgá-la. Mas,
quando ia começar, acovardou-se e preferiu dizer: - Me preocupa isso de
você só pensar em Schiele, dia e noite. - O menino parou de brincar com
as mãos. - Falo com todo o carinho que lhe tenho. No começo, me parecia
bonito que você gostasse tanto de suas pinturas, que se identificasse
tanto com ele. Mas, de tanto querer se parecer com ele em tudo, está
deixando de ser você mesmo. - É que eu sou ele, madrasta. Embora você me
leve na brincadeira, é isto mesmo. Sinto que sou ele. Sorriu, para
tranqüilizá-la. "Espere um instantinho", murmurou. Levantou-se, pegou o
livro de reproduções, folheou-o e o colocou de volta, aberto, sobre os
joelhos dela. Dona Lucrecia viu uma lâmina em cores: sobre um fundo
ocre, estendia-se uma mulher sinuosa metida numa fantasia carnavalesca,
com fileiras de listras verdes, vermelhas, amarelas e negras, dispostas
em ziguezague. Trazia os cabelos ocultos sob uma rodilha aturbantada,
estava descalça, exprimia uma tristeza lânguida nos grandes olhos
escuros e tinha as mãos erguidas acima da cabeça, como se fosse tocar
castanholas. - Quando vi este quadro, percebi - ouviu Fonchito dizer,
com total seriedade. - Que eu era ele. Ela tentou rir, mas não
conseguiu. O que esse menininho pretendia? Assustá-la? "Brinca comigo
como um gatinho com uma ratazana grande", pensou. - Ah, é? E o que lhe
revelou, neste quadro, que você é Egon Schiele reencarnado? - Você não
se deu conta, madrasta - riu Fonchito. - Olhe de novo, pedacinho por
pedacinho. E verá que, embora Schiele o tenha pintado em Viena, em 1914,
em seu ateliê, nesta mulher aparece o Peru. Repetido cinco vezes. A
senhora Lucrecia voltou a examinar a imagem. De cima para baixo. De
baixo para cima. Por fim, reparou que, no colorido vestido de palhaço da
modelo descalça, havia cinco Figurinhas minúsculas, na altura dos
braços, no flanco direito,

184

sobre a perna e na roda da saia.
Aproximou o livro dos olhos e observou-as com calma, Era mesmo!
Pareciam indiazinhas, mestiças. Estavam vestidas como as camponesas de
Cusco. - E o que elas são, indiazinhas dos Andes - disse Fonchito,
lendo-lhe o pensamento. - Viu? O Peru está presente nos quadros de Egon
Schiele. Foi por isso que percebi. Para mim, foi uma mensagem.
Continuou falando, gabando-se dessa prodigiosa informação sobre a vida e
a obra do pintor que dava a dona Lucrecia a impressão de onisciência e a
suspeita de uma conspiração, de uma emboscada febril. Aquiio tinha
explicação, madrasta. A senhora do retrato se chamava Frederike Maria
Beer. Era a única pessoa retratada pelos dois maiores pintores da Viena
do seu tempo: Egon e Klimt. Filha de um senhor muito rico, proprietário
de cabarés, tinha sido uma grande dama; ajudava os artistas e lhes
arrumava compradores. Pouco antes de ser pintada por Schiele, havia
feito uma viagem à Bolívia e ao Peru, e daqui tinha levado essas
indiazinhas de pano, que certamente comprou em alguma feira de Cusco ou
de La Paz. E Egon Schiele teve a idéia de pintá-las no vestido da dama.
Ou seja, não havia nenhum milagre na presença de cinco mestiças nesse
quadro. Mas, mas... - Mas o quê? - animou-o dona Lucrecia, absorvida
pelo relato de Fonchito, esperando uma grande revelação. - Mas nada -
acrescentou o menino, com um gesto de cansaço. - Essas indiazinhas foram
colocadas aí para que eu as encontrasse algum dia. Cinco peruaninhas em
um quadro de Schiele. Não percebe? - Elas falaram com você? Disseram
que você as pintou, oitenta anos atrás? Que você é um reencarnado? -
Bom, se é para brincar, prefiro conversar sobre outra coisa, madrasta. -
Não me agrada ouvi-lo dizer bobagens - respondeu ela. - Nem que pense
bobagens, nem que acredite em bobagens. Você é você e Egon Schiele era
Egon Schiele. Você vive aqui, em Lima, e ele viveu em Viena no início
do século. A reencarnação não existe. Portanto, pare de dizer
disparates, se não quiser que eu me aborreça. De acordo? O menino
assentiu, de má vontade, com uma carinha compungida. Mas não se atreveu
a replicar,

185

porque ela havia falado com uma severidade incomum. Dona Lucrecia tratou
de fazer as pazes. - Quero ler para você uma coisa que escrevi -
murmurou, tirando do bolso o rascunho da carta. - Respondeu ao papai? -
alegrou-se Fonchito, sentando-se no chão e avançando a cabeça. Sim,
ontem à noite. Ainda não sabia se a enviaria. Não agüentava mais. Sete,
eram muitas cartas anônimas. E o autor era Rigoberto. Quem mais podia
ser? Que outro poderia lhe falar dessa maneira tão familiar e exaltada?
Quem a conheceria tão detalhadamente? Havia decidido acabar com esse
teatro. O que Fonchito achava? - Leia de uma vez, madrasta -
impacientou-se o menino. Tinha os olhos brilhantes e seu rostinho
delatava uma enorme curiosidade; e também um pouco de, um pouco de,
dona Lucrecia buscava a palavra, de regozijo malicioso; e até de
maldade. Pigarreando antes de começar, e sem erguer os olhos até o
final, ela leu: Meu querido, Resisti à tentação de te escrever desde que
soube seres tu o autor dessas missivas ardentes que, há duas semanas,
vêm enchendo esta casa de chamas, de alegria, de saudade e de
esperança, e meu coração e minhas entranhas, do doce fogo que abrasa sem
queimar, o do amor e do desejo unidos em casamento feliz. Por que
assinarias umas cartas que só poderiam ter saído de tuas mãos? Quem me
estudou, me formou, me inventou, como fizeste? Quem podia falar dos
pontinhos vermelhos das minhas axilas, das rosadas nervuras das
cavidades ocultas entre os dedos dos meus pés, desta "franzida boquinha
rodeada por uma minicircunferência de alegres ruguinhas de carne viva,
entre azulada e plúmbea, à qual se chega escalando as lisas e marmóreas
colunas de tuas pernas"? Só tu, meu amor. Desde as primeiras linhas da
primeira carta, eu soube que eras tu. Por isso, antes de terminar a
leitura, obedeci às tuas instruções. Despi-me e posei para ti, diante
do espelho, imitando a Dânae de Klimt. !•' recomecei, como em tantas
noites de que tenho saudade em minha atual solidão, a voar contigo por
aqueles reinos da fantasia que exploramos juntos, ao longo daqueles
anos compartilhados

186

que agora são, para mim, uma fonte de consolo e de vida. na qual volto a beber com
a memória, fará suportar a rotina e o vazio que vieram substituir aquilo
que, ao teu lado, foi aventura e plenitude. Na medida de minhas
forças, segui ao pé da letra as exigências - não, as sugestões e os
pedidos - de tuas sete cartas. Eu me vesti e me despi, me disfarcei e
me mascarei, me deitei, me dobrei, me desdobrei e me agachei, encarnando
- com meu corpo e minha alma, - todos os teus caprichos, pois existiria
prazer maior, para mim, do que te satisfazer? Para ti e por ti, fui
Messalina e Leda, Madalena e Salomé, Diana com seu arco e suas flechas,
a Maja Desnuda, a Casta Susana surpreendida pelos velhos luxuriosos e,
no banho turco, a odalisca de Ingres. Fiz amor com Marte, Nabucodonosor,
Sardanapalo, Napoleão, cisnes, sátiros, escravos e escravas, emergido
mar como uma sereia, aplaquei e aticei os amores de Ulisses. Fui uma
marquesinha de Watteau, uma ninfa de Ticiano, uma Virgem de Murillo, uma
Madona de Piero della Francesca, uma gueixa de Fujita e uma rameira
de Toulouse-Lautrec. Deu trabalho equilibrar-me nas pontas dos pés como
a bailarina de Degas e, acredita, para não te decepcionar, até tentei
me transformar, à custa de cãibras, naquilo que denominas o voluptuoso
cubo cubista de Juan Gris. Jogar de novo contigo, embora a distância, me
fez bem e me fez mal. Senti, de novo, que era tua e tu eras meu. Quando
o jogo terminava, minha solidão aumentava e eu me entristecia ainda
mais. Está perdido, para sempre, o perdido? Desde que recebi a primeira
carta, vivi esperando a seguinte, devorada pelas dúvidas, tentando
adivinhar tuas intenções. Querias que eu te respondesse?, me
perguntava. Ou o fato de enviá-las sem assinatura indica que não queres
entabular um diálogo, mas só que eu escute teu monólogo? Esta noite,
porém, depois de ter sido, docilmente, a laboriosa senhora burguesa de
Vermeer, decidi te responder. Do fundo obscuro de minha pessoa, no qual
só tu mergulhaste, algo me ordenou pegar caneta e papel. Fiz bem? Não
terei infringido aquela lei não escrita que proíbe a figura de um
retrato sair do quadro para falar com seu pintor? Tu, meu amado, sabes a
resposta. Diz-me qual é. - Caramba, que carta - disse Fonchito. Seu
entusiasmo parecia muito sincero. - Madrasta, você ama muito o papai!

187

Estava ruborizado e radiante, e dona Lucrecia o notou também - pela
primeira vez - até confuso. - Nunca deixei de amá-lo. Nem mesmo quando
aconteceu o que aconteceu. Fonchito exibiu de imediato a mirada branca,
amnésica, que esvaziava seus olhos sempre que dona Lucrecia aludia de
algum modo àquela aventura. Ela notou, porém, que o rubor desaparecia
das faces do menino, substituído por uma palidez nacarada. - Porque,
embora preferíssemos, você e eu, que isso não tivesse existido, e embora
nunca falemos do assunto, o que aconteceu, aconteceu. Não pode ser
apagado - disse dona Lucrecia, buscando-lhe os olhos. - E, embora me
encare como se não soubesse do que estou falando, você se lembra de tudo
tanto quanto eu. E certamente o lamenta tanto quanto eu, ou até mais.
Não pôde continuar. Fonchito havia recomeçado a olhar as próprias mãos,
enquanto as movia, imitando os trejeitos dos personagens de Egon
Schiele: estendidas e paralelas à altura do seu ombro, com o polegar
oculto e como que truncado, ou sobre sua cabeça, adiantadas como se ele
acabasse de arremessar uma lança. Dona Lucrecia acabou caindo na
risada: - Você não é um diabinho, mas um palhaço - exclamou. - Devia se
dedicar ao teatro, de preferência. O menino riu também, distendido,
fazendo caretas e sempre brincando com as mãos. E, sem abandonar as
macaquices, surpreendeu dona Lucrecia com este comentário: - Foi de
propósito que você escreveu essa carta em estilo piegas? Também acha,
como o papai, que a pieguice é inseparável do amor? - Escrevi imitando o
estilo de seu pai - disse dona Lucrecia. - Exagerando, procurando ser
solene, rebuscada e dramática. Ele gosta assim. Acha que ficou muito
melosa? - Ele vai adorar - assegurou Fonchito, assentindo várias vezes.
- Vai ler e reler sua carta muitas vezes, trancado no escritório. Você
não vai assiná-la, não é, madrasta? Na verdade, ela não tinha pensado
nisso. - Eu deveria mandá-la anônima? - Claro, madrasta - afirmou o
menino, enfático. - Tem que entrar no jogo dele, ora.

188

Talvez tivesse razão. Se Rigoberto enviava as dele sem assinatura, por
que ela assinaria a sua? - Você sabe das coisas, garoto - murmurou. -
Sim, é uma boa idéia. Vou mandar sem assinar. Afinal, ele saberá muito
bem quem a escreveu. Fonchito fez um gesto de aplauso. Tinha ficado de
pé e se preparava para sair. Hoje não tinha havido chancays tostados,
porque Justiniana estava de folga. Como sempre, recolheu o livro de
reproduções e o guardou na mochila, abotoou a camisa cinza e ajeitou a
gravatinha do uniforme, observado por uma Lucrecia que se divertia em
vê-lo repetir a cada tarde os mesmos gestos, ao chegar e ao partir. Mas
desta vez, à diferença de outras em que se limitava a dizer "Tchau,
madrasta", ele se sentou ao lado dela na poltrona, muito perto. - Queria
lhe perguntar uma coisa antes de ir. Só que tenho um pouco de vergonha.
Fazia a vozinha fina, doce e tímida que usava quando queria despertar a
benevolência ou a piedade da madrasta. E sempre obtinha uma ou outra,
embora a suspeita de que tudo aquilo era pura farsa nunca abandonasse
dona Lucrecia. - Você não tem vergonha de nada, portanto não me venha
com histórias nem se faça de inocente - disse ela, desmentindo a dureza
de suas palavras com a carícia que fazia, puxando-lhe a orelha. -
Pergunte, vamos. O menino virou-se de lado e jogou-lhe os braços ao
pescoço. Afundou a carinha em seu ombro. - Se eu olhar para você, não me
atrevo - sussurrou, baixando a voz até transformá-la em um murmúrio
quase inaudível. - A boquinha franzida, rodeada de ruguinhas, de que
você fala em sua carta, não é esta, não é, madrasta? Dona Lucrecia
sentiu que a face colada à sua se movia, que dois lábios delgados
desciam pelo seu rosto e aderiam aos seus. Frios no princípio, logo se
animaram. Sentiu que faziam pressão e a beijavam. Fechou os olhos e
abriu a boca: uma cobrinha úmida a visitou, passeou por suas gengivas,
seu palato, e enrodilhou-se em sua língua. Ficou ausente por um
instante, cega, transformada em sensação, aniquilada, feliz, sem fazer
nada nem pensar em nada. Mas, quando levantou os braços para estreitar
Fonchito, o menino, em uma daquelas súbitas mudanças de humor que eram

189

seu traço distintivo, soltou-se e se afastou. Agora, estava se
distanciando, dando-lhe adeus. Exibia uma expressão muito natural. - Se
quiser, passe a limpo sua carta anônima e coloque em um envelope - disse
ele, já da porta. - Amanhã você me entrega e eu a coloco na caixa de
correspondência lá de casa, sem que o papai veja. Tchau, madrasta.

NEM CABALLITO DE TOTORA
NEM TOURINHO DE PUCARÁ

Sei que o espetáculo da
bandeira ondulando ao vento lhe produz palpitações, assim como a música
e as palavras do hino nacional lhe provocam as cócegas nas veias, a
retração e o eriçamento de pelos a que dão o nome de emoção. À palavra
pátria (que gente do seu tipo escreve sempre com maiúscula), vossa
senhoria não associa os versos irreverentes do jovem Pablo Neruda
Pátria, palavra triste, como termômetro ou elevador nem a mortífera
sentença do doutor Johnson (Patriotism is the last refuge of a
scoundrel), mas cargas heróicas de cavalaria, espadas incrustadas em
peitos de uniformes inimigos, toques de clarim, disparos e estampidos
que não são os das garrafas de champanhe. Vossa Senhoria pertence,
segundo todas as aparências, ao conglomerado de machos e fêmeas que
olham com respeito essas estátuas de próceres com que são adornadas as
praças públicas e deploram que os pombos caguem nelas, e é capaz de
madrugar e esperar horas para não perder um bom lugar no Campo de Marte
durante o desfile dos soldados nos dias de efemérides, espetáculo que
lhe suscita apreciações nas quais crepitam as palavras marcial,
patriótico e viril. Meu senhor, minha senhora: em sua pessoa existe,
emboscada, uma fera raivosa que constitui um perigo para a humanidade.
Vossa senhoria é o lastro vivo que a civilização arrasta desde os tempos
do canibal tatuado, perfurado e de estojo fálico,

190

do feiticeiro pré-racional que sapateava para atrair a chuva e ingeria o coração do
adversário a fim de roubar-lhe a força. Na verdade, por trás de suas
arengas e bandeiras em exaltação a este pedacinho de geografia salpicado
de balizas e demarcações arbitrárias, onde vossa senhoria
vê personificada uma forma superior da história e da metafísica social, não
há outra coisa senão o astuto aggiornamento do antiquíssimo medo
primitivo de emancipar-se da tribo, de deixar de ser massa, parte, para
transformar-se em indivíduo; nostalgia daquele antecessor para quem o
mundo começava e terminava dentro dos limites do conhecido, a clareira
do bosque, a caverna escura, o planalto elevado, o pequenino enclave
onde o compartilhamento da língua, da magia, da confusão, dos usos, e
sobretudo da ignorância e dos temores do grupo, dava-lhe coragem e o
fazia sentir-se protegido contra o trovão, o raio, a fera e as outras
tribos do planeta. Embora, desde aqueles tempos remotos, hajam
transcorrido séculos e sua ilustre pessoa se creia, porque enverga
paletó e gravata ou veste saia-tubo e faz liftings em Miami, muito
superior ao ancestral protegido por tapa-sexo feito com casca de árvore
e enfeitado com botoques pendurados no lábio e no nariz, vossa senhoria
é ele, e ele é vossa senhoria. O cordão umbilical que os enlaça através
dos séculos chama-se pavor ao desconhecido, ódio ao diferente, rechaço à
aventura, pânico à liberdade e à responsabilidade de inventar-se a cada
dia, vocação de servidão à rotina, ao gregarismo, recusa a
descoletivizar-se para não ter de enfrentar o desafio cotidiano que é a
soberania individual. Naqueles tempos, o indefeso comedor de carne
humana, mergulhado em uma ignorância metafísica e física ante o que
acontecia ao seu redor, tinha certa justificação para negar-se a ser
independente, criativo e livre; mas hoje, quando já se sabe tudo o que
convém saber e mais alguma coisa, não existe razão válida para
empenhar-se em ser escravo e irracional. Este juízo talvez venha a
parecer-lhe severo, extremado, diante daquilo que, para vossa senhoria,
não é senão um virtuoso e idealista sentimento de solidariedade e amor
ao torrão natal e às recordações ("a terra e os mortos", segundo o
antropoide francês Maurice Barres), à moldura de referências ambientais
e culturais sem a qual um ser humano se sente vazio. Asseguro-lhe que
essa é uma das faces da moeda patriótica; a outra, o reverso da
exaltação do próprio, é o denigrescimento do alheio,

191

a vontade de humilhar e derrotar os demais, os que são diferentes de
vossa senhoria porque têm outra cor de pele, outra língua, outro deus e
até outra indumentária e outra dieta. O patriotismo, que, na realidade,
parece uma forma benevolente do nacionalismo - pois a "pátria" parece
ser mais antiga, congênita e respeitável do que a "nação", ridícula
engenhoca político-administrativa manufaturada por estadistas ávidos de
poder e intelectuais em busca de um amo, isto é, de mecenas, isto é, de
tetas prebendeiras a sugar -, é um perigoso mas efetivo álibi para as
guerras que dizimaram o planeta não sei quantas vezes, para as pulsões
despóticas que consagraram o domínio do forte sobre o fraco, e uma
cortina de fumaça igualitarista cujas nuvens deletérias indiferenciam os
seres humanos e os clonam, impondo-lhes, como essencial e irremediável,
o mais acidental dos denominadores comuns: o lugar de nascimento. Por
trás do patriotismo e do nacionalismo flameja sempre a maligna ficção
coletivista da identidade, arame farpado ontológico que pretende
aglutinar, em fraternidade irremível e inconfundível, os "peruanos", os
"espanhóis", os "franceses", os "chineses" etc. Vossa senhoria e eu
sabemos que essas categorias são outras tantas mentiras abjetas, que
lançam um manto de esquecimento sobre diversidades e incompatibilidades
múltiplas e pretendem abolir séculos de história para fazer a
civilização recuar àqueles bárbaros tempos anteriores à criação da
individualidade, isto é, da racionalidade e da liberdade: três coisas
inseparáveis, saiba disso. Por tal razão, quando alguém diz, ao meu
redor, "o chinês", "o negro", "os peruanos", "os franceses", "as
mulheres" ou qualquer expressão equivalente, com a pretensão de definir
um ser humano por seu pertencimento a uma coletividade de qualquer
ordem, o que não passa de uma circunstância secundária, tenho ímpetos de
sacar o revólver e - pum, pum! - atirar. (Trata-se aqui, é óbvio, de uma
figura poética; nunca tive uma arma de fogo nas mãos nem a terei, e
tampouco efetuei outros disparos afora os seminais, que, estes sim,
reivindico com orgulho patriótico.) Meu individualismo não me leva,
claro está, a fazer o elogio do solilóquio sexual como a mais perfeita
forma do prazer; neste campo, inclino-me aos diálogos a dois ou, no
máximo, a três, e, evidentemente, declaro-me encarniçado inimigo da
promíscua partouze, vulgarmente chamada suruba, que é,

192

no espaço da cama e da fornicação, o equivalente do coletivismo político e
social. A menos que o monólogo sexual seja praticado em companhia. -
caso no qual passa a ser um barroquíssimo diálogo -, como se ilustra na
pequena aquarela com nanquim de Picasso (1902-1903), que vossa senhoria
pode admirar no Museu Picasso de Barcelona, na qual o sr. D. Ángel
Fernández de Soto, vestido e fumando cachimbo, e sua distinta esposa,
nua mas de meias e sapatos, bebendo uma taça de champanhe e sentada nos
joelhos do cônjuge, masturbam-se reciprocamente, quadro que, diga-se de
passagem, sem querer ofender ninguém (e menos ainda Picasso), considero
superior a Guernica e às Demotselles d'Avignon, (Se Lhe parecer que esta
carta começa a dar mostras de incoerência, lembre-se do Monsieur Teste,
de Valéry: "A incoerência de um discurso depende de quem o escuta. O
espírito me parece concebido de um modo tal que o impede de ser
incoerente para si mesmo.") Quer saber de onde vem toda a hepática
descarga antipatriótica desta carta? De uma arenga do presidente da
República, resumida esta manhã pela imprensa, segundo a qual,
inaugurando a Feira de Artesanato, ele afirmou que nós peruanos temos a
obrigação patriótica de admirar o trabalho dos anônimos artesãos que, há
séculos, modelaram os huacos de Chavín, urdiram e pintaram os tecidos
de Paracas, entremearam os mantos de penas de Nasça e esculpiram os
queros cusquenhos, ou o dos contemporâneos confeccionadores de
retábulos ayacuchanos, tourinhos de Pucará, meninos Manuelitos, tapetes
de San Pedro de Cajas, caballitos de totora do lago Titicaca e
espelhinhos de Cajamarca, porque - cito o primeiro mandatário - "o
artesanato é a arte popular por antonomásia, a exposição suprema da
criatividade e da destreza artística de um povo, um dos grandes
símbolos e manifestações da Pátria, e cada um dos seus objetos não exibe
a * Ouguacos, recipientes de argila encontrados nasguacas, sepulturas
indígenas, nos quais se depositavam comida ou objetos de valor. Adiante:
queros, vasos coloridos de madeira usados pelos incas em suas
cerimônias; Manuelitos, imagens do Menino Jesus vestido à maneira
indígena; caballitos (cavalinhos), canoas feitas desde os tempos
pré-incaicos com feixes de totora, espécie de junco. (N. da T.)

193

assinatura individual do seu artesão forjador porque todos eles trazem a
assinatura da coletividade, da nacionalidade". Se vossa senhoria é homem
ou mulher de bom gosto - ou seja, amante da precisão -, terá sorrido
ante esta diarréia artesano-patriótica de nosso chefe de Estado. No que
a mim concerne, além de parecer-me, como a vossa senhoria, oca e
empolada, ela me iluminou. Agora já sei por que detesto todos os
artesanatos do mundo em geral, e o de "meu país" (uso a expressão para
que possamos entender-nos) em particular. Agora já sei por que em minha
casa jamais entrou nem entrará um huaco peruano, e tampouco uma máscara
veneziana, uma matriochka russa, uma bonequinha holandesa de tranças e
tamancos, um toureirinho de madeira, uma ciganinha dançando flamenco,
um boneco articulado indonésio, um samurai de brinquedo, um retábulo
ayacuchano ou um diablo boliviano, assim como nenhuma figura ou objeto
de barro, madeira, porcelana, pedra, tecido ou miolo de pão
manufaturado em série, genérica e anonimamente, que usurpe, ainda que
seja com a hipócrita modéstia de autointitular-se arte popular, a
natureza do objeto artístico, algo que é privilégio absoluto da esfera
privada, expressão de acérrima individualidade e, portanto, refutação e
rechaço do abstrato e do genérico, de tudo o que, direta ou
indiretamente, aspire a justificar-se em nome de uma pretensa estirpe
"social". Não existe arte impessoal, senhor ou senhora patriota (e não
venha me falar, por favor, das catedrais góticas). O artesanato é uma
manifestação primitiva, amorfa e fetal daquilo que algum dia - quando
particulares indivíduos desagregados do todo começarem a imprimir um
selo pessoal a esses objetos, nos quais expressarão uma intimidade
intransferível - poderá talvez ascender à categoria artística. Que ele
se destaque, prospere e reine em uma "nação" não deveria orgulhar
ninguém, muito menos os pretensos patriotas. Porque a prosperidade do
artesanato - essa manifestação do genérico - é sinal de atraso ou
regressão, vontade inconsciente de não avançar nesse torvelinho
demolidor de fronteiras, de costumes pitorescos, de cor local, de
diferenças provincianas e espírito paroquial, que é a civilização. Sei,
senhora patriota, senhor patriota, que vossa senhoria odeia, se não a
palavra, o conteúdo dessa palavra demolidora. É um direito seu. Também
é meu direito amá-la e defendê-la contra ventos e marés,

194

mesmo sabendo
que o combate é difícil e que posso descobrir-me -- os indícios são
muitos - no campo dos derrotados. Não importa. Essa é a única forma
de heroísmo que nos é permitida, a nós os inimigos do heroísmo
obrigatório: morrer assinando com nome e sobrenome próprios, ter uma
morte pessoal. Saiba de uma vez por todas e horrorize-se: a única pátria
que eu reverencio é a cama pisada por minha esposa, Lucrecia [Que tua
luz, alta senhora, / Vença esta cega e triste noite minha, frei Luís de
León dixit), e seu corpo soberbo, a única bandeira ou insígnia pátria
capaz de arrastar-me aos mais temerários combates; e o único hino que
me comove até o choro convulso são os ruídos que essa carne amada emite,
sua voz, seu riso, seu pranto, seus suspiros e, claro (tampe os ouvidos
e o nariz), seus soluços, arrotos, peidos e espirros. Posso ou não posso
ser considerado um verdadeiro patriota, à minha maneira'.

MALDITO ONETTI! BENDITO ONETTI!

Dom Rigoberto acordou chorando (isso lhe
acontecia com bastante freqüência ultimamente). Tinha já passado do sono
à vigília; sua consciência reconhecia nas sombras os objetos de seu
dormitório; seus ouvidos, o monótono mar; suas narinas e os poros do seu
corpo, a umidade corrosiva. Mas a imagem horrível continuava ali,
sobrenadando em sua imaginação, saída de algum esconderijo remoto,
angustiando-o como alguns minutos antes, na inconsciência do pesadelo.
"Pare de chorar, idiota." Mas as lágrimas corriam por suas faces e ele
soluçava, tomado de pavor. E se fosse telepatia? Se tivesse recebido uma
mensagem? Se, de fato, ontem, esta tarde, vermezinho no coração da
maçã, tivessem descoberto no seio dela o volume anunciador da catástrofe
e Lucrecia tivesse imediatamente pensado nele, confiado nele, recorrido
a ele para compartilhar seu pesar, seu desalento? Havia sido um chamado
in extremis. O dia da operação estava decidido. "Ainda temos tempo",
sentenciou o doutor, "desde que extirpermos este seio, talvez os dois
seios, de imediato. Posso quase, quase, botar a mão no fogo: ainda não
houve metástase. Se operarmos dentro de poucas horas, ela se salvará."
O miserável tinha começado a amolar o bisturi, com brilhos de prazer
sádico nos olhos. Então, nesse instante, Lucrecia pensou nele,

195

desejou ardentemente falar com ele, contar-lhe, ser escutada, consolada,
acompanhada por ele. "Meu Deus, irei me arrastar aos pés dela como um
verme e lhe pedir perdão", estremeceu dom Rigoberto. A imagem de
Lucrecia, deitada em uma mesa cirúrgica, submetida a essa monstruosa
mutilação, provocou-lhe uma nova vergastada de angústia. Fechando os
olhos, prendendo a respiração, recordou os peitos firmes de sua amada,
robustos, idênticos, as aréolas escuras e a pele granulada, os bicos
que, arrulhados e umedecidos por seus lábios, se eriçavam com
galhardia, desafiantes, na hora do amor. Quantos minutos, horas, havia
passado contemplando, sopesando, beijando, lambendo, acariciando aqueles
seios, brincando com eles, imaginando-se transformado em cidadão de
Liliput que escalava essas colinas cor de rosa em busca do alto torreão
do cume, ou em recém-nascido que, mal saído do claustro materno,
mamando dali a branca seiva da vida, recebia deles suas primeiras lições
de prazer? Recordou como costumava, certos domingos, sentar-se no
banquinho de madeira para contemplar Lucrecia na banheira, emoldurada de
espuma. Ela envolvia a cabeça em uma toalha, à maneira de turbante, e
prosseguia sua toalete, muito conscienciosa, de vez em quando
concedendo-lhe um sorriso benevolente, enquanto esfregava o corpo com as
grandes esponjas amarelas embebidas em água espumosa, passando-as pelos
ombros, pelas costas ou pelas belas pernas que, para isso, tirava por
alguns segundos das profundezas cremosas. Nesses momentos, o que mais
imantava a atenção, o fervor religioso de dom Rigoberto, eram os seios.
Assomavam à flor d'água, sua taça branca e seus mamilos azulados
brilhando entre as bolhas de espuma, e de vez em quando, para adular e
premiar o marido ("carícia distraída que a dona faz no dócil cão
estendido aos seus pés", pensou ele, mais calmo), Lucrecia segurava-os
e, sob o pretexto de ensaboá-los e enxaguá-los um pouco mais,
acariciava-os com a esponja. Eram lindos, eram perfeitos. Tinham a
redondez, a consistência e a temperatura ideais para satisfazer os
desejos de um deus luxurioso. "Agora, me passe a toalha, seja meu
camareiro", dizia ela, levantando-se, enquanto se enxaguava com a ducha
de mão. "Se você se comportar bem, talvez, eu lhe permita secar minhas
costas." Seus peitos estavam ali, luzindo na escuridão do quarto e
como que iluminando a solidão dele.

196

seria possível que o iníquo câncer
se encarniçasse contra essas criaturas que enalteciam a condição
feminina, que justificavam a divinização trovadoresca da mulher, o
culto mariano? Dom Rigoberto sentiu que ao desespero de um momento
antes se seguia a cólera, um sentimento selvagem de rebeldia contra a
doença. E, então, recordou. "Maldito Onetti!" Começou a rir às
gargalhadas. "Maldito romance! Maldita Santa Maria! Maldita Gertrudis!"
(Era este o nome da personagem? Gertrudis? Sim, este.) Daí lhe viera o
pesadelo, nada de telepatia. Continuava rindo, liberado, superexcitado,
feliz. Decidiu, por uns momentos, acreditar em Deus (em algum de seus
cadernos havia transcrito a frase de Quevedo em O gatuno: "Ele era
desses que crêem em Deus por cortesia") para poder agradecer a alguém
que os amados seios de Lucrecia estivessem intactos, indenes ante as
armadilhas do câncer, e que esse pesadelo tivesse sido apenas a
reminiscência daquele romance cujo terrível início o sobressaltara de
horror, nos primeiros meses de seu casamento com Lucrecia,
inoculando-lhe a apreensão de que, um dia, os deliciosos, doces seios
de sua nova esposa pudessem ser vítimas de uma afronta cirúrgica (a
frase compareceu à memória dele com sua obscena eufonia: "Ablação de
mama") semelhante à que era descrita, ou melhor, inventada, nas
primeiras páginas, por Brausen, o narrador desse romance inquietante do
maldito Onetti. "Obrigado, meu Deus, por isso não ser verdade, por
estarem inteiras as tetas dela", rezou. E, sem calçar os chinelos nem
vestir o roupão, foi às escuras, tropeçando, rever os cadernos em seu
escritório. Tinha certeza de haver deixado testemunho dessa leitura
perturbadora, que, por quê?, havia aflorado esta noite de seu
subconsciente para lhe arruinar o sono. O maldito Onetti! Uruguaio?
Argentino? Rio-platense, em todo caso. Que mau momento o fizera passar!
Curioso percurso, o da memória, curvas caprichosas, ziguezagues
barrocos, hiatos incompreensíveis. Por que, agora, esta noite, essa
ficção reaparecia em sua consciência, após dez anos em que provavelmente
nem um só dia, nem uma só vez, ele tinha pensado nela? A luz dourada do
abajur, projetada sobre a escrivaninha, revia apressadamente a pilha de
cadernos que, calculou, correspondia à época em que havia lido A vida
breve. Ao mesmo tempo,

197

continuava vendo, cada vez mais nítidos, níveos, eretos, cálidos, na
cama noturna, na banheira matutina, assomando entre as dobras da
camisola ou do robe de seda ou pela abertura do decote, os seios de
Lucrecia. E voltava, retornava à lembrança da tremenda impressão causada
pela imagem inicial, pela história contada em A vida breve, com
crescente lucidez, como se aquela leitura fosse fresca, recentíssima.
Por que A vida breve*. Por que esta noite? Finalmente, encontrou. No
alto da página e sublinhado: A vida breve. E, a seguir: "Soberba
arquitetura, delicadíssima e astuta construção: uma prosa e uma técnica
muito superiores aos seus pobres personagens e histórias anódinas." Não
era uma frase muito entusiástica. Por que, então, essa comoção ao
recordá-la? Só porque seu subconsciente havia associado aquele seio da
Gertrudis do romance, amputado pelo bisturi, com os saudosos seios de
Lucrecia? Tinha claríssima a cena inicial, a imagem que o chocara
novamente. O medíocre empregadinho de uma agência publicitária de Buenos
Aires, Juan Maria Brausen, narrador da história, tortura-se em seu
sórdido apartamento com a idéia da mutilação de mama a que foi submetida
na véspera ou esta manhã sua mulher, Gertrudis, enquanto ouve, do outro
lado do tabique, a tagarelagem estúpida de uma nova vizinha, uma ex-ou
ainda puta, Queca, e vagamente imagina um argumento de filme, que seu
amigo e chefe Júlio Stein lhe pediu. Ali estavam as transcrições
assustadoras: "... pensei na tarefa de olhar sem repulsa a nova cicatriz
que Gertrudis iria ter no peito, redonda e complicada, com nervuras de
um vermelho ou um rosa que o tempo talvez viesse a transformar em uma
confusão pálida, da cor da outra, fina e sem relevo, ágil como uma
assinatura, que Gertrudis trazia no ventre e que eu havia reconhecido
tantas vezes com a ponta da língua". E esta, ainda mais dilacerante, em
que Brausen, agarrando o touro pelos chifres, antecipa a única maneira
real que lhe permitiria convencer sua mulher de que aquela mama cerceada
não importava: "Porque a única prova convincente, a única fonte que lhe
proporcionará felicidade e confiança, .será erguer e baixar em plena
luz, sobre o peito mutilado, um rosto transfigurado pela luxúria,
beijar e enlouquecer-me ali." "Quem escreve frases assim, que dez anos
depois continuam arrepiando o leitor, enchendo seu corpo de
estalactites, é um criador", pensou dom Rigoberto.

198

Imaginou-se nu com sua
mulher, na cama, contemplando a cicatriz quase invisível no Lugar
onde havia imperado aquela taça de carne tépida, aquela curvatura.
sedosa, beijando-a com avidez exagerada, aparentando uma excitação,
um frenesi que ele não sentia nem voltaria a sentir, e reconheceu em
seus cabelos a mão - agradecida, compadecida? - de sua amada, fazendo-o
saber que já bastava. Não era necessário fingir. Por que eles, que
haviam vivido em cada noite a verdade de seus desejos e seus sonhos até
a medula, iriam mentir agora, dizendo-se que não importava, quando ambos
sabiam que importava muitíssimo, que aquele seio ausente continuaria
gravitando sobre todas as noites restantes? Maldito Onetti! - Você teria
a maior surpresa de sua vida - riu dona Lucrecia, fazendo um trinado de
cantora de ópera que se prepara para entrar em cena. - Como eu, quando
ela me contou. E, mais ainda, quando os vi. A maior surpresa de sua
vida! - Os peitos soberbos da embaixadora da Argélia? - surpreendeu-se
dom Rigoberto. - Reconstituídos? - Da embaixatriz, a esposa do
embaixador da Argélia - especificou dona Lucrecia. - Não se faça de
bobo, você sabe muito bem de quem se trata. Ficou olhando para eles a
noite inteira, durante o jantar na embaixada da França. - É verdade,
eram lindíssimos - admitiu dom Rigoberto, enrubescendo. E, ao mesmo
tempo em que acariciava, beijava e olhava com devoção os seios de dona
Lucrecia, matizou seu entusiasmo com um galanteio: - Mas não tanto
quanto os seus. - Ora, não me importa - disse ela, despenteando-o. - São
melhores do que os meus, o que posso fazer? Menores, porém mais
perfeitos. E mais duros. - Mais duros? - Dom Rigoberto havia começado a
engolir saliva. - Só se você a tivesse visto nua. Ou se tocasse neles.
Houve um silêncio auspicioso, que, no entanto, coexistia com o estrondo
das ondas quebrando na escarpa, lá embaixo, ao pé do escritório. - Eu a
vi nua e os toquei - soletrou sua mulher, demorando-se nas palavras. -
Você não se importa, não é? Mas a questão não é essa, é que são
reconstituídos. De verdade.

199

Agora, dom Rigoberto recordou que as mulheres de A vida breve - Queca,
Gertrudis, Elena Sala - usavam cintas de seda por cima da calcinha, para
afinar a cintura e manter a silhueta. De que data seria aquele romance
de Onetti? Já nenhuma mulher usava cintas. Ele nunca tinha visto
Lucrecia com uma cinta de seda. E tampouco vestida de pirata, nem de
freira, nem de joqueta, nem de palhaço, nem de borboleta, nem de flor.
Mas de cigana, sim, com lenço na cabeça, grandes argolas nas orelhas,
blusa de babados, uma saia de ampla roda e muitas cores, e, no pescoço e
nos braços, colares e pulseiras de miçangas. Recordou que estava
sozinho, na madrugada úmida de Barranco, separado de Lucrecia havia
cerca de um ano, e o atroz pessimismo romanesco de Juan Maria Brausen o
impregnou. Sentiu, também, o que lia no caderno: "a certeza inolvidável
de que não há em nenhum lugar uma mulher, um amigo, uma casa, um livro,
nem sequer um vício, que possam me fazer feliz". Era essa solidão
atroz, e não a cena do peito canceroso de Gertrudis, que havia
desenterrado de seu subconsciente aquele romance; ele estava agora
mergulhado em uma solidão tão ácida e um pessimismo tão negro quanto os
de Brausen. - Reconstruídos, como assim? - atreveu-se a perguntar, após
um longo parêntese de desconcerto. - Ela teve câncer e os seios foram
removidos - informou dona Lucrecia, com brutalidade cirúrgica. - Depois,
aos poucos, foram sendo reconstruídos, na Clínica Mayo de Nova York.
Seis intervenções. Já pensou? Uma. Duas. Três. Quatro. Cinco. Seis. Ao
longo de três anos. Mas ficaram mais perfeitos do que antes. Os médicos
até refizeram os mamilos, com ruguinhas e tudo. Idênticos. Posso
afirmar, porque os vi. Porque os toquei. Você não se importa, não é, meu
amor? - Evidente que não - apressou-se a responder dom Rigoberto. Mas
sua urgência o traiu, assim como a mudança de coloratura, as
ressonâncias e implicações de sua voz. - Pode me dizer quando? Onde? -
Quando os vi? - atalhou-o dona Lucrecia, com sabedoria profissional. -
Onde os toquei? - Sim, sim - implorou ele, já sem cerimônia. - Se você
quiser. É só o que achar que pode me contar, é claro.

200

"É claro!", saltou dom Rigoberto. Agora entendia, O que havia provocado
a súbita ressurreição, o regresso de Zorro, Tarzan ou d'Artagnan, dez
anos depois, não tinha sido aquele peito emblemático nem o negror
essência.! do narrador de A vida breve, e sim a astuta maneira que Juan
Maria Brausen tinha encontrado para se salvar. Claro! Bendito Onetti!
Sorriu, aliviado, quase contente. A Lembrança não havia aparecido para
derrubá-lo, mas para ajudá-lo ou, como afirmava Brausen ao qualificar
sua imaginação febril, para salvá-lo. Não era o que dizia, quando se
transpunha da Buenos Aires real para a Santa Maria inventada, travestido
de médico corrupto, Díaz Grey, que por dinheiro injetava morfina na
misteriosa Elena Sala? Não dizia que essa transposição, essa mutação,
essa elucubração, esse recurso ao fictício o salvava. Aqui estava,
anotado no caderno: "Uma caixa chinesa. Na ficção de Onetti, seu
personagem inventado, Brausen, inventa uma ficção na qual há um médico
calcado nele, Díaz Grey, e uma mulher calcada em Gertrudis (embora ainda
com os seios no lugar), Elena Sala, e essa ficção é mais do que o
argumento de filme que Júlio Stein lhe pediu: é sua maneira de
defender-se da realidade confrontando-lhe o sonho, de aniquilar a
horrível verdade da vida com a bela mentira da ficção." Estava feliz e
exaltado por sua descoberta. Sentia-se Brausen, sentia-se redimido, a
salvo, quando o preocupou outra citação de seu caderno, embaixo das de A
vida breve. Era um verso de If, o poema de Kipling: If you can dream -
and not make dreams your master Uma advertência oportuna. Continuava
dono dos seus sonhos, ou já era governado por eles, de tanto abusar
desse recurso após sua separação de Lucrecia? - Ficamos amigas desde
aquele jantar na embaixada francesa - contava sua mulher. - Ela me
convidou para tomar um banho de vapor em sua casa. Um costume bastante
difundido nos países árabes, parece. Os banhos de vapor. Não são a mesma
coisa que a sauna, que é banho seco. Eles mandaram construir um hamman
no fundo do jardim, na residência de Orrantia.

201

Dom Rigoberto continuava folheando, abobalhado, as páginas de seu
caderno, mas não estava totalmente ali; já se via, também, naquele
cerrado jardim de trombetas-cheirosas, espirradeiras brancas e
cor-de-rosa e um intenso perfume da madressilva enredada nas colunas
que sustentavam o telhado de um terraço. Deslumbrado, espiava as duas
mulheres - Lucrecia, com um florido vestido primaveril e umas sandálias
que deixavam descobertos seus alvos pés, e a embaixatriz da Argélia em
uma túnica de seda de cores delicadas, que a manhã luminosa irisava -
avançarem em meio a touceiras de gerânios vermelhos, crótons verdes e
amarelos e uma grama cuidadosamente aparada, em direção à construção de
madeira semiencoberta pelos ramos frondosos de um fícus. "O hammam, o
banho de vapor", disse a si mesmo, sentindo o próprio coração. Via as
duas mulheres de costas e admirava a semelhança de suas formas, as
largas e desenvoltas nádegas movendo-se compassadamente, os dorsos
elegantes, a curva dos quadris desenhando pregas em seus vestidos. Iam
de braço dado, amigas cordialíssimas, levando toalhas nas mãos. "Estou
ali, me salvando, e estou no meu escritório", pensou, "como Juan Maria
Brausen em seu cubículo de Buenos Aires, desdobrando-se no cafetão
Arce, que explora a vizinha Queca, e que por sua vez se salva
desdobrando-se no doutor Díaz Grey, da inexistente Santa Maria". Mas
distraiu-se das duas mulheres porque, ao virar uma página do caderno,
topou com outra citação extraída de A vida breve: "A senhora nomeou
plenipotenciários os seus peitos." "Esta é a noite dos peitos",
enterneceu-se. "Seremos, Brausen e eu, apenas dois esquizofrênicos?" Mas
isso não lhe importava nem um pouco. Havia fechado os olhos e via as
duas amigas se despirem sem melindres, com desenvoltura, como se
tivessem celebrado muitas vezes esse ritual, na pequena ante-sala
revestida de madeira do hammam. Penduravam as roupas em ganchos e se
envolviam nas amplas toalhas, conversando animadamente sobre algo que
dom Rigoberto não entendia nem queria entender. Agora, empurrando uma
portinha de madeira sem fechadura, passavam ao pequeno compartimemto
saturado de nuvenzinhas de vapor. Ele sentiu no rosto uma lufada de
calor úmido que lhe molhava o pijama e se grudava ao seu corpo no dorso,
no peito e nas pernas. O vapor lhe entrava pelas narinas,

202

pela boca, pelos olhos, com um perfume semelhante ao pinho, ao
sândalo, à menta. Tremia., com medo de que as amigas o descobrissem.
Elas, porém, não lhe prestavam a menor atenção, como se ele não
estivesse ali ou fosse invisível. - Não pense que usaram nada
artificial, silicone ou alguma dessas porcarias - esclareceu dona
Lucrecia. - Nada disso. Reconstruíram os seios com pele e carne do
próprio corpo dela. Tirando um pedacinho de barriga, outro de nádega,
outro de coxa. Sem deixar a menor marca de nada. Ficou excelente,
excelente, juro a você. Era verdade, ele agora comprovava. Elas haviam
tirado as toalhas e se sentado muito juntas por falta de espaço, em um
estrado de ripas de madeira encostado à parede. Dom Rigoberto
contemplou os dois corpos despidos através dos movimentos ondulantes
das nuvenzinhas quentes de vapor. Era melhor do que O banho turco de
Ingres, pois, nesse quadro, o amontoado de nus desconcentrava a atenção
- "a maldição coletivista", praguejou -, ao passo que, aqui, sua
percepção podia se focalizar, abranger com um olhar as duas amigas,
perscrutá-las sem perder o menor dos seus gestos, possuí-las em uma
visão integral. Além disso, em O banho turco, os corpos estavam secos,
e aqui, em poucos segundos, dona Lucrecia e a embaixatriz já mostravam
suas peles cobertas de gotinhas brilhantes de transpiração. "Como são
bonitas!", pensou, emocionado. "Juntas, mais ainda, como se a beleza de
uma potencializasse a da outra." - Não deixaram nem sombra de cicatriz -
insistia dona Lucrecia. - Nem no ventre, nem na nádega nem na coxa. E
muito menos nos peitos que fabricaram. Incrível, amor. Dom Rigoberto
acreditava de pés juntos. Como não, se estava vendo essas duas
perfeições tão de perto que, se estendesse a mão, conseguiria tocá-las?
("Ai, ai", conformou-se). O corpo de sua mulher era mais branco e o da
embaixatriz, mais moreno, como que crescido e formado ao ar livre; a
cabeleira de Lucrecia, lisa e negra, e a de sua amiga, crespa e
arruivada, mas, apesar dessas diferenças, as duas se pareciam em seu
desprezo à moda contemporânea da magreza e ao estilo esguio, em sua
suntuosidade renascentista, em sua esplêndida abundância de tetas,
coxas, nádegas e braços, nessas magníficas redondezas que - não
precisava acariciá-las para saber - eram firmes, duras e rijas,

203

comprimidas como se fossem modeladas por invisíveis corseletes, cintas,
ligas, sutiãs. "O modelo clássico, a grande tradição", celebrou. -
Sofreu muito com tanta operação, com tanta convalescença - apiedava-se
dona Lucrecia. - Mas foi ajudada por seu coquetismo, sua vontade de não
se deixar vencer, de derrotar a Natureza, de continuar bonita. E, por
fim, ganhou a guerra. Não acha que ela é linda? - Você também é - orou
dom Rigoberto. As duas tinham ficado agitadas pelo calor e pela
transpiração. Respiravam fortemente, com lentos e profundos movimentos
que erguiam e baixavam seus seios como ondulações do mar. Dom Rigoberto
estava em transe. O que se diziam? Por que haviam surgido esses brilhos
maliciosos nos dois pares de olhos? Aguçou os ouvidos e escutou. - Não
consigo acreditar - dizia dona Lucrecia, olhando os peitos da
embaixatriz e exagerando seu assombro. - Qualquer um ficaria louco. Não
poderiam ser mais naturais! - é o que diz meu marido - riu a
embaixatriz, com malícia, empinando um pouco o torso a fim de exibir
mais os seios. Falava fazendo um biquinho, com sotaque francês, mas
seus jotas guturais e erres eram árabes. ("O pai nasceu em Orã e jogou
futebol com Albert Camus", decidiu dom Rigoberto.) - Garante que eles
ficaram melhores do que antes, que agora gosta mais deles. Não pense
que as operações os deixaram insensíveis. De jeito nenhum. Riu de novo,
simulando rubor, e dona Lucrecia riu também, dando-lhe na coxa uma leve
palmadinha que sobressaltou dom Rigoberto. - Espero que você não leve a
mal nem fique pensando coisas - disse, um momento depois. - Eu poderia
tocá-los? Você se importaria? Morro de vontade de saber se, ao toque,
são tão autênticos quanto parecem. Devo estar parecendo uma louca por
lhe pedir isso. Mas você se importaria? - Claro que não, Lucrecia -
respondeu a embaixatriz, com familiaridade. Seu trejeito se havia
acentuado e agora ela sorria com uma boca aberta de par em par, exibindo
com legítimo orgulho seus dentes branquíssimos. - Você toca os meus, e
eu os seus. Vamos comparar. Não há nada errado em que duas amigas se
acariciem.

204

- É verdade, é verdade! - exclamou dona Lucrecia, entusiasmada. E deu
uma olhadela de soslaio na direção de dom Rigoberto. ("Desde o começo
ela soube que eu estava aqui", suspirou ele.) - Não sei quanto ao seu
marido, mas o meu adora isso. Vamos brincar, vamos brincar. Tinham
começado a se tocar, de início com muita prudência e timidez; depois,
com mais atrevimento; agora, já se acariciavam os mamilos, sem
dissimulação. Haviam se aproximado aos poucos. Abraçavam-se, as duas
cabeleiras se confundiam. Dom Rigoberto mal as divisava. As gotas de
suor - ou, quem sabe, as lágrimas - irritavam de tal modo suas pupilas
que ele precisava piscar sem descanso e fechar os olhos. "Estou feliz,
estou entristecido", pensava, consciente da incongruência. Seria
possível? Por que não? Era como estar em Buenos Aires e em Santa Maria,
ou neste amanhecer, sozinho, rodeado de cadernos e gravuras no
escritório desolado, e naquele jardim primaveril, entre nuvens de
vapor, suando em bicas. - Começou como uma brincadeira - explicou-lhe
dona Lucrecia. - Para passar o tempo, enquanto eliminávamos as toxinas.
Imediatamente, pensei em você. Se você aprovaria. Se isso o excitaria.
Se o incomodaria. Se você me faria uma cena quando eu lhe contasse. Ele,
fiel à promessa de dedicar toda a noite a homenagear os seios
plenipotenciários de sua mulher, havia se ajoelhado no chão, entre as
pernas separadas de Lucrecia, sentada na beira da cama. Com amorosa
solicitude, sustentava cada um dos seios dela em uma mão, exagerando os
cuidados, como se eles fossem de frágil cristal e pudessem se quebrar.
Beijava-os com a flor dos lábios, milímetro a milímetro, cultivador
consciencioso que não deixa nenhuma elevação do terreno sem lavrar. - Ou
seja, me deu vontade de tocá-la para saber se, ao tato, seus peitos não
pareceriam postiços. E ela fez o mesmo por cortesia, para não ficar
quieta, como uma lesma. Mas, claro, era brincar com fogo. - Claro -
assentiu dom Rigoberto, incansável em sua busca da simetria, saltando,
equitativo, de um seio a outro. - Por que vocês foram se excitando? Por
que, de tocá-los, passaram a beijá-los? A chupá-los?

205

Arrependeu-se no ato. Tinha violado aquele rigoroso código que
estabelecia a incompatibilidade entre o prazer e o uso de palavras
vulgares, sobretudo verbos (chupar, mamar), que feriam mortalmente
qualquer ilusão. - Eu não disse chupá-los - desculpou-se, tentando
retroagir ao passado e corrigi-lo. - Fiquemos com beijá-los. Qual das
duas começou? Você, minha vida? Ouviu a suavíssima voz de Lucrecia, mas
não conseguiu vê-la, porque ela se desvanecia muito depressa, como o
bafejo no espelho, quando este é esfregado ou recebe uma lufada de ar
fresco: "Sim, eu, não foi o que você me mandou fazer, o que você
queria?" "Não", pensou dom Rigoberto. "O que eu quero é tê-la aqui, em
carne e osso, e não como fantasma. Porque eu amo você." A tristeza
havia caído sobre ele como um aguaceiro, cujas trombas d'água impetuosas
levaram de roldão o jardim, aquela residência, o aroma de sândalo, de
pinho, de menta e de madressilva, o banho de vapor e as duas amigas
carinhosas. Também o calor molhado de um momento antes e seu sonho. O
frio da madrugada lhe trespassava os ossos. O isócrono mar golpeava com
fúria os penhascos. E então recordou que, no romance - maldito Onetti!
bendito Onetti! -, a Queca e a Gorda se beijavam e se acariciavam às
escondidas de Brausen, do falso Arce, e que a puta, ou ex-puta, a
vizinha, a Queca, aquela que matavam, achava que seu apartamento estava
cheio de monstros, de gnomos, de endríagos, invisíveis bestiolas
metafísicas que vinham persegui-la. "A Queca e a Gorda", pensou,
"Lucrecia e a embaixatriz". Esquizofrênico, igual a Brausen. Nem os
fantasmas o salvavam mais, antes o sepultavam a cada dia em uma solidão
mais profunda, deixando seu escritório semeado de alimárias ferozes,
como o apartamento da Queca. Deveria incendiar esta casa? Com ele e
Fonchito dentro? No caderno, lampejou um sonho erótico de Juan Maria
Brausen ("tirado de uns quadros de Paul Delvaux que Onetti não podia
conhecer quando escreveu A vida breve, porque o surrealista belga nem
sequer os tinha pintado", dizia uma notinha entre parênteses):
"Abandono-me contra o espaldar da cadeira, contra o ombro da moça, e
imagino estar afastando-me de uma pequena cidade formada por casas de
encontros; de uma aldeia secivia onde casais despidos deambulam por
jardinzinhos, pavimentos musgosos,

206

protegendo-se os rostos com as
mãos abertas quando se acendem luzes, quando deparam, com criados
pederastas...". Acabaria como Brausen" Já seria Brausen? Um medíocre
frustrado que fracassou como idealista católico, reformador social
evangélico e também, a seguir, como irredento libertário individualista
e agnóstico hedonista, como fabricante de enclaves privados de alta
fantasia e bom gosto artístico, que vê tudo desmoronar ao seu redor, a
mulher a quem ama, o filho que procriou, os sonhos que desejou
incrustar na realidade, e que declina a cada dia, a cada noite, por trás
da repelente máscara de gerente de uma próspera companhia de seguros,
transformado naquele "desesperado puro" de que falava o romance de
Onetti, em um arremedo do masoquista pessimista de A vida breve.
Brausen, pelo menos, no final se arranjava para escapar de Buenos
Aires, e, tomando trens, automóveis, barcos ou ônibus, conseguia chegar
a Santa Maria, a colônia rio-platense de sua invenção. Dom Rigoberto
ainda estava suficientemente lúcido para saber que não podia se
contrabandear para as ficções, saltar dentro do sonho. Ainda não era
Brausen. Havia tempo para reagir, fazer algo. Mas o quê, o quê?

BRINCADEIRAS INVISÍVEIS

Entro em tua casa pela chaminé da lareira,
embora não seja Papai Noel. Vou flutuando até teu dormitório e,
grudadinha ao teu rosto, imito o zumbido do mosquito. Entre sonhos,
começas a dar tapas na escuridão contra um pobre pernilonguinho que não
existe. Quando me canso de brincar de mosquito, descubro teus pés e
sopro uma corrente de ar frio que te enregela os ossos. Começas a
tremer, te encolhes, puxas o cobertor, bates os dentes, te escondes sob
o travesseiro e até te vêm uns espirros que não são os de tua alergia.
Então, me transformo em um calorzinho piurano, amazônico, que te
encharca de suor dos pés à cabeça. Pareces um franguinho molhado,
chutando os lençóis para o chão, arrancando o paletó e a calça do
pijama. Até que ficas peladinho, suando, suando e arquejando como um
fole.

207

Depois, me transformo em uma pena e te faço cosquinhas, na planta dos
pés, na orelha, nas axilas. Ih-ih!, ah-ah!, oh-oh!, ris sem despertar,
fazendo caretas desesperadas e movendo-te, à direita, à esquerda, para
que desapareçam as cãibrazinhas da gargalhada. Até que, por fim,
acordas, assustado, sem me ver, mas sentindo que alguém ronda por ali no
escuro. Quando te levantas e vais ao teu escritório, para te distraíres
com tuas gravuras, apronto armadilhas pelo caminho. Removo cadeiras,
enfeites e mesas dos seus lugares, para que tropeces e grites
"Aiaiaiiü", esfregando as canelas. Às vezes te escondo o roupão, os
chinelos. Às vezes, derramo o copo d'água que colocas no criado-mudo
para bebê-lo ao acordar. Como te aborreces, quando abres os olhos e
tateias procurando-o, e descobres que ele está no meio de uma poça, no
chão! Assim nos divertimos com nossos amores, nós outras. Tua, tua, tua,
A fantasminha apaixonada

VIII. FERA NO ESPELHO

"Esta noite eu fui",
deixou escapar dona Lucrecia. Antes de se dar conta do que havia falado,
escutou Fonchito: "Para onde, madrasta?" Enrubesceu até a raiz dos
cabelos, roída pela vergonha. - Não consegui pregar olho, foi o que eu
quis dizer - mentiu, porque fazia tempo que não tinha um sono tão
profundo, embora, isto sim, agitado pelas turbulências do desejo e
pelos fantasmas do amor. - De tão cansada, nem sei mais o que digo. O
menino voltara a se concentrar naquela página do livro sobre o pintor
dos seus amores, na qual se via uma fotografia de Egon Schiele
olhando-se no grande espelho de seu ateliê. A imagem o reproduzia de
corpo inteiro, mãos nos bolsos, os curtos cabelos despenteados, a
esbelta silhueta juvenil embutida em uma camisa branca de colarinho
postiço, de gravata mas sem paletó, e as mãos, claro, escondidas nos
bolsos de uma calça que parecia arregaçada para atravessar um rio. Desde
que chegara, Fonchito não tinha feito mais do que falar daquele
espelho, tentando várias vezes entabular conversa sobre a tal foto; mas
dona Lucrecia, absorta em seus pensamentos, ainda invadida pela
exaltação confusa, pelas dúvidas e esperanças em que o surpreendente
desenvolvimento de sua correspondência anônima a mantinha mergulhada
desde a véspera, não lhe havia prestado atenção. Olhou a cabeça de
cachinhos dourados de Fonchito e divisou seu perfil, o sisudo escrutínio
a que ele submetia a foto, como se quisesse arrancar dali algum
segredo. "Não se deu conta, não entendeu." Embora, com ele, nunca se
soubesse. Talvez tivesse entendido muito bem mas dissimulasse, para não
aumentar o embaraço dela. Ou, para o menino, "ir" não queria dizer a
mesma coisa? Recordou que, tempos atrás, ela e Rigoberto tinham tido uma
daquelas conversas escabrosas que o código secreto que governava

210

suas vidas só permitia à noite e na cama nas preliminares, durante o
amor ou depois dele. Seu marido havia lhe assegurado que a nova
geração já não dizia "ir", mas "chegar", o que ilustrava, também no
delicado território venusiano, a influência do inglês, pois os gringos
e as gringas, quando faziam amor, "chegavam" (to come), e não iam, como
os latinos, a nenhum lugar. Fosse como fosse, dona Lucrecia tinha ido,
chegado ou terminado (este era o verbo que ela e dom Rigoberto haviam
adotado nos dez anos de casamento, depois de combinar que jamais se
refeririam a esse belo final do corpo-a-corpo erótico pelo grosseiro e
clínico "orgasmo" e menos ainda pela pluviosa e agressiva "ejaculação")
na noite anterior, gozando intensamente, com um prazer extremado, quase
doloroso - acordara banhada em suor, os dentes se entrechocando, as
mãos e os pés convulsos -, sonhando que havia comparecido ao misterioso
encontro da carta anônima, cumprindo todas as extravagantes instruções,
e por fim, depois de deslocamentos rocambolescos pelas ruas escuras do
centro e pelos subúrbios de Lima, tinha sido - com os olhos vendados,
evidentemente - introduzida em uma casa cujo odor ela reconheceu,
levada por uma escada até um segundo andar - desde o primeiro momento,
teve certeza de que se tratava da casa de Barranco -, despida e
derrubada em uma cama que ela identificou igualmente como a sua de
sempre, até que se sentiu envolvida, abraçada, invadida e preenchida
por um corpo que, claro, era o de Rigoberto. Tinham terminado - ido ou
chegado - juntos, algo que não lhes acontecia com freqüência. Ambos
haviam achado isso um bom sinal, um feliz augúrio para a nova etapa que
se abria depois da abracadabrante reconciliação. Então, acordou, úmida,
lânguida, confusa, e precisou lutar um bom tempo para aceitar que
aquela felicidade intensa havia sido apenas um sonho. - Schiele ganhou
de sua mãe esse espelho. - A voz de Fonchito a devolveu à sua casa, à
grisalha de San Isidro, aos gritos dos garotos que batiam bola no
Olivar; o menino tinha o rosto voltado para ela. - Pediu muitas e
muitas vezes que ela o presenteasse. Alguns dizem que ele o roubou. Que
morria de vontade de tê-lo, até que, um dia, foi à casa da mãe e o
levou escondido. E que ela se resignou e acabou deixando-o no ateliê.
Foi o primeiro que ele teve, e o conservou sempre,

211

se mudou com esse espelho para todos os seus ateliês, até sua morte. -
Por que esse espelho é tão importante? - Dona Lucrecia fez um esforço
para se interessar. - Ele era um Narciso, disso já sabemos. Essa foto o
mostra como tal. Contemplando-se, enamorado de si mesmo, fazendo cara
de vítima. Para que o mundo o amasse e o admirasse, tanto quanto ele se
amava e se admirava. Fonchito deu uma gargalhada. - Que imaginação,
madrasta! - exclamou. - Por isso é que eu gosto das nossas conversas;
você tem umas idéias, como eu. De tudo, tira uma história. Somos
parecidos, não é? Com você, eu não me entedio nunca. - E eu tampouco,
em sua companhia - disse ela, jogando-lhe um beijo. -Já lhe dei minha
opinião, agora me dê a sua. Por que o espelho lhe interessa tanto? - Eu
sonho com ele - confessou Fonchito. E, com um sorrisinho mefistotélico,
acrescentou: - Para Egon, era importantíssimo. Como você acha que ele
pintou sua centena de autorretratos? Graças a esse espelho, que também
lhe serviu para pintar suas modelos, refletidas. Não era um capricho.
Era que, era que... Fez uma careta, buscando, mas dona Lucrecia
adivinhou que não eram palavras o que faltava a ele, mas uma idéia ainda
imprecisa, inconcreta, ainda em gestação naquela cabecinha precoce. A
paixão do menino por esse pintor, agora ela estava segura, era
patológica. Mas, por isso mesmo, talvez pudesse também determinar para
Fonchito um futuro excepcional, de criador excêntrico, de artista
extravagante. Se comparecesse ao encontro e fizesse as pazes com
Rigoberto, comentaria isso. "Você gosta da idéia de ter um filho genial
e neurótico?" E lhe perguntaria se não havia um risco para a saúde
psíquica do menino no fato de ele se identificar a tal ponto com um
pintor de inclinações tão retorcidas como Egon Schiele. Mas, então,
Rigoberto responderia: "Como assim? Você tem visto Fonchito? Enquanto
estávamos separados? Enquanto eu lhe escrevia cartas de amor,
esquecendo o acontecido, perdoando o acontecido, você o recebia às
escondidas? O menininho que você corrompeu, levando-o para sua cama?"
"Meu Deus, meu Deus, virei uma idiota completa",

212

pensou dona Lucrecia.
Se Fosse àquele encontro, a única coisa que não podia fazer
era mencionar uma só vez o nome de Alfonso. - Oi, Justita - disse o
menino cumprimentando a empregada, que entrava na sala de jantar
vestida com esmero, avental engomado, com a bandeja do chá e os
indefectíveis chancays tostados com manteiga e geleia. - Não vá embora,
quero lhe mostrar uma coisa, O que você vê aqui? - E o que poderia ser,
além das porcarias de que você gosta Tanto? - Justiniana pousou os olhos
irrequietos sobre o livro por um bom tempo. - Um descarado que deita e
rola, vendo duas moças peladas, de meias e chapéu, se exibindo para ele.
- É o que parece, certo? - exclamou Fonchito, com ar de triunfo.
Estendeu o livro a dona Lucrecia para que ela examinasse a reprodução em
página inteira. - Mas não são duas modelos, é uma só. Por que a gente
vê duas, uma de frente e outra de costas? Por causa do espelho!
Entendeu, madrasta? O título explica tudo. Schiele desenhando uma
modelo nua diante do espelho (1910, Graphische Sammlung Albertina,
Viena), leu dona Lucrecia. Enquanto examinava a imagem, intrigada por
algo que ela não sabia o que era, exceto que não estava propriamente no
quadro, uma presença, ou antes uma ausência, mal ouvia Fonchito, já
tomado por aquele estado de excitação progressiva em que sempre entrava
ao falar de Schiele. O menino explicava a Justiniana que o espelho "está
onde nós estamos, nós que vemos o quadro". E que a modelo vista de
frente não era a de carne e osso, mas a imagem do espelho, ao passo que
eram reais, e não reflexos, o pintor e a mesma modelo vista de costas.
O que significava que Egon Schiele havia começado a pintar Moa estando
ela de costas para o espelho, mas depois, atraído pela parte dela que
ele não via diretamente, e sim projetada, decidiu pintá-la também
assim. Com isso, graças ao espelho, pintou duas Moas que, na verdade,
eram uma: a Moa completa, a Moa com suas duas metades, uma Moa que
ninguém poderia olhar na realidade porque "nós só vemos o que temos à
nossa frente, e não a parte de trás dessa frente". Compreendia por que
esse espelho era tão importante para Egon Schiele? - A senhora não acha
que ele está com um parafuso frouxo, patroa? - exagerou Justiniana,
tocando a têmpora.

213

- Há muito tempo - assentiu dona Lucrecia. Depois, virando-se para
Fonchito, encadeou: - Quem era essa Moa? Uma taitiana. Chegou a Viena e
foi morar com um pintor, que era também mímico e louco: Erwin Dominik
Ilse. O menino se apressou a passar as páginas e a mostrar a dona
Lucrecia e Justiniana várias reproduções da taitiana Moa, dançando,
envolta em túnicas multicores por cujas dobras assomavam seus miúdos
seios de mamilos em riste e, como duas aranhas escondidas sob seus
braços, os tufinhos das axilas. Dançava nos cabarés, era musa de poetas
e pintores e, além de posar para Egon, também tinha sido sua amante. -
Isso eu adivinhei desde o princípio - comentou Justiniana. - O bandido
sempre se deitava com suas modelos depois de pintá-las, já sabemos. - Às
vezes, antes, e às vezes, enquanto as pintava - assegurou Fonchito,
tranqüilo, aprovando. - Mas não com todas. Em sua agenda de 1918, seu
último ano, aparecem 117 visitas de modelos ao seu ateliê. Ele podia se
deitar com tantas, em tão pouco tempo? - Só se ficou tuberculoso -
galhofou Justiniana. - Morreu dos pulmões? - Morreu de gripe espanhola,
aos 28 anos - informou Fonchito. - E é assim que eu vou morrer também,
caso você não saiba. - Não diga isso nem brincando, que dá azar -
repreendeu-o a empregada. - Mas aqui há uma coisa que não bate -
interrompeu-os dona Lucrecia. Tinha arrancado ao menino o livro de
reproduções e voltava a examinar, com atenção, aquele desenho sobre
fundo sépia, de linhas precisas e delgadas, do pintor com a modelo
duplicada ("ou melhor, cindida?") pelo espelho, e no qual, aos olhos
concentrados, quase hostis, de Schiele, parecia responder o melancólico,
sedoso e cintilante olhar de Moa, dançarina de cílios azulados. Dona
Lucrecia se inquietava com algo que acabava de identificar. Ah, sim, o
chapéu entrevisto de costas. Exceto por esse detalhe, em todo o resto
as duas partes da delicada, requebrante e sensual silhueta da
taitiana, com pelos como aranhas no púbis e embaixo dos braços,
coincidiam à perfeição; uma vez percebida a presença do espelho,

214

reconheciam-se as duas metades da mesma pessoa nas duas figuras que o
artista observava. No chapéu, porém, não. A de costas tinha na cabeça
um objeto que, sob essa perspectiva, não parecia um chapéu, mas algo
incerto, inquietante, uma espécie de capuz, e até, até, uma cabeça de
fera. Isto, uma espécie de tigre. Nada, em todo caso, que se parecesse
com o coquete chapéuzinho feminino, gracioso, que enfeitava a carinha
de Moa vista de frente. - Que curioso - insistiu a madrasta. - Visto de
costas, este chapéu se transforma em uma máscara. A cabeça de uma fera.
- Como aquela que o papai pede que você coloque diante do espelho,
madrasta? O sorriso de dona Lucrecia se congelou. De repente, ela
compreendeu a razão do difuso mal-estar que a invadira desde que o
menino lhe havia mostrado Schiele desenhando uma modelo nua diante do
espelho. - O que a senhora tem, patroa? - preocupou-se Justiniana. -
Está branca, branca! - Então, é você - balbuciou ela, olhando incrédula
para Fonchito. - As cartas anônimas quem me manda é você, pedaço de
farsante. Era ele, claro que sim. Aquilo constava da penúltima ou
antepenúltima carta. Não era necessário ir buscá-la, a frase revivia com
todos os pontos e vírgulas em sua memória: "Te despirás diante do
espelho, conservando as meias, e esconderás tua formosa cabeça sob a
máscara de uma fera bravia, de preferência uma tigresa ou uma leoa.
Quebrarás o quadril direito, flexionarás a perna esquerda, apoiarás tua
mão no quadril oposto, na pose mais provocante. Eu estarei olhando,
sentadinho em minha cadeira, com a reverência habitual." Não era o que
ela estava vendo? O maldito fedelho brincava com ela a seu gosto! Pegou
o livro de reproduções e, cega de raiva, lançou-o contra Fonchito. O
menino não conseguiu se esquivar. Recebeu o livro em plena cara, com um
grito, ao qual se seguiu outro, da assustada Justiniana. Com o
impacto, ele caiu de costas sobre o tapete, com as mãos no rosto, e
ficou olhando para a madrasta, exorbitado. Dona Lucrecia não pensou que
havia agido mal, deixando-se vencer pela cólera. Esta a dominava demais
para que ela se arrependesse.

215

Enquanto a empregada ajudava Fonchito a se levantar, continuou gritando,
fora de si: - Mentiroso, hipócrita, mosca-morta! Acha que tem o direito
de brincar assim comigo, sendo eu uma velha e você um melequento que
ainda não saiu das fraldas? - O que você tem, o que eu lhe fiz? -
balbuciava Fonchito, tentando se safar dos braços de Justita. - Calma,
patroa, a senhora machucou o menino, veja, ele está sangrando pelo nariz
- dizia Justiniana. - E você, fique quieto, Foncho, me deixe ver. - O
que você me fez?! Como assim, seu fingido? - vociferava dona Lucrecia,
ainda mais furiosa. - Acha pouco? Me escrever cartas anônimas? Inventar
a palhaçada de que eram do seu pai? - Mas eu não lhe mandei nenhuma
carta anônima - protestava o menino, enquanto a empregada, de joelhos,
limpava-lhe o sangue do nariz com um guardanapo de papel. "Não se mexa,
não se mexa, assim vai se manchar todo." - Seu maldito espelho o
delatou, seu maldito Egon Schiele - gritou ainda dona Lucrecia. - Você
se achava muito esperto, hem? Mas não é, seu paspalhão. Como sabe que
ele me pedia isso, que eu botasse uma máscara de fera? - Foi você quem
me contou, madrasta - começou a tartamudear Fonchito, mas calou-se ao
ver que dona Lucrecia ficava de pé. Protegeu o rosto com as duas mãos,
como se ela fosse estapeá-lo. - Eu nunca lhe falei dessa máscara,
mentiroso - explodiu a madrasta, iracunda. - Vou buscar a carta, vou ler
para você. E você vai engoli-la e me pedir perdão. Nunca mais eu o
deixo botar os pés nesta casa. Ouviu? Nunca mais. Indignadíssima, passou
como um furacão diante de Justiniana e Fonchito. Mas, antes de ir até a
penteadeira onde guardava as cartas anônimas, entrou no banheiro para
jogar água fria no rosto e esfregar as têmporas com água-de-colônia. Não
conseguia se acalmar. Este moleque, este moleque. Brincando com ela, o
gatinho com uma ratazana grande. Mandando-lhe cartas atrevidas e
rebuscadas para fazê-la acreditar que eram de Rigoberto, alimentando
nela a esperança de uma reconciliação. O que ele queria? Que intriga
tramava? Por que essa farsa?
216
Divertir-se,
divertir-se dispondo das emoções dela, de sua vida? Fonchito era
perverso, sádico. Tinha prazer em iludí-la e vê-la desmoronar depois,
desapontada. Voltou ao seu quarto, sem se acalmar totalmente, e não
precisou procurar muito na gaveta da penteadeira para encontrar a carta.
Era a sétima anônima. Ali estava, mais ou menos como em sua lembrança,
a frase que a deixara com a pulga atrás da orelha: "... esconderás tua
formosa cabeça sob a máscara de uma fera bravia, de preferência a
tigresa no cio do Rubén Darío de Azul..., ou uma leoa sudanesa.
Quebrarás o quadril..." etc. etc. A taitiana Moa no desenho de Schiele,
nem mais nem menos. O enredeiro precoce, o intrigantezinho. Tivera a
desfaçatez de lhe fazer todo um teatro com o espelho de Schiele e até de
lhe mostrar o quadro que o havia delatado. Ela não lamentava ter jogado
o livro em cima dele, mesmo lhe tirando sangue do nariz. Muito benfeito!
Não tinha destroçado sua vida, esse pequeno demônio? Porque não tinha
sido ela a corruptora, embora a diferença de idade a condenasse; tinha
sido ele, ele mesmo, o corruptor. Com seus poucos aninhos, com sua
carinha de querubim, era um Mefistófeles, Lúcifer em pessoa. Mas,
agora, isso tinha acabado. Ela o faria engolir esta carta anônima, sim,
e o expulsaria da casa. Para ele não voltar nunca mais, não se
intrometer em sua vida nunca mais. Mas, na sala de jantar, só encontrou
Justiniana. Esta, compungida, lhe mostrou o guardanapo de papel com
manchinhas de sangue. - Foi embora chorando, patroa. Não pela pancada
no nariz, mas porque a senhora, quando o agrediu, rasgou o livro desse
pintor que ele tanto ama. Ficou muito magoado, isso ficou. - Não me
diga que agora está com pena do coitadinho! - A senhora Lucrecia
despencou na poltrona, exausta. - Não percebe o que esse menino me fez?
Foi ele, ele mesmo, quem me mandou as cartas anônimas. - Ele me
garantiu que não, patroa. Jurou pelo que há de mais sagrado, disse que é
o patrão quem está mandando. - Mentira. - Dona Lucrecia sentia um
cansaço de séculos. Iria desmaiar? Que vontade de ir para a cama, de
dormir uma semana seguida! - Ele mesmo se entregou, com aquela conversa
mole sobre a máscara e o espelho.

217

Justiniana se aproximou e lhe falou quase em segredo. - A senhora tem
certeza de que não leu essa carta para ele? De que não contou a história
da máscara? Fonchito é um serelepe, de tão sabido, patroa. Acha que ele
ia se deixar apanhar tão facilmente? - Eu nunca li essa carta para ele,
nunca lhe falei da máscara - afirmou dona Lucrecia. Mas, no mesmo
instante, duvidou. Não o teria feito mesmo? Ontem, anteontem? Andava com
a cabeça muito atrapalhada nesses dias; desde aquela cascata de cartas
anônimas, vivia perdida em um bosque de conjecturas, divagações,
suspeitas, fantasias. Não era possível, afinal? Que ela houvesse
contado, mencionado, até lido para ele, a estranha instrução de que
posasse nua, com meias e uma máscara de fera, diante de um espelho? Se
tivesse falado isso, então havia cometido uma grande injustiça,
insultando-o e golpeando-o. - Estou farta dessa história toda -
murmurou, fazendo esforços para conter as lágrimas. - Farta, Justita,
farta. Pode ser que eu tenha contado e depois esquecido. Não sei mais
onde tenho a cabeça. Talvez. Eu queria ir embora desta cidade, deste
país. Para um lugar onde ninguém me conheça. Longe de Rigoberto e de
Fonchito. Por culpa dessa dupla, caí em um poço e nunca mais poderei
sair ao ar livre. - Não fique triste, patroa. -Justiniana lhe pôs a mão
no ombro, acariciou-lhe a testa. - Não se amargure. E também não se
preocupe. Existe uma maneira facílima de saber se quem lhe escreve
essas besteiras é Fonchito ou dom Rigoberto. Dona Lucrecia ergueu a
vista. Os olhos da empregada faiscavam. - Claro, patroa, pois então -
continuava ela, falando com as mãos, os olhos, os lábios, os dentes. -
Ele não marca o tal encontro, na última? Isto mesmo. Vá aonde ele diz,
faça o que ele pede. - E você acha que eu vou fazer essas palhaçadas de
dramalhão mexicano? - fingiu se escandalizar dona Lucrecia. - Porque,
assim, saberá quem é o autor das cartas - concluiu Justiniana. - Eu vou
junto, se a senhora quiser, para não se sentir só. E também porque estou
morrendo de curiosidade, patroa. O filhinho ou o painho? Qual será?

218

Riu, com o descaramento e a graça habituais, e duna Lucrecia acabou
sorrindo também. Afinal, talvez esta maluca tivesse razão. Se
comparecesse ao indecoroso encontro, tiraria a dúvida de uma vez por
todas. - Ele não se apresentará, vai me deixar chupando dedo mais uma
vez - argumentou, sem muita força, sabendo intimamente que já estava
decidida. Iria, faria todas as palhaçadas que o painho ou o filhinho
lhe pedia. Continuaria entrando no jogo ao qual, querendo ou não, ela
também vinha aderindo havia muito tempo. - Quer que eu lhe prepare um
banhinho de água morna, com sais, para passar a raiva? - Justiniana
estava animadíssima. Dona Lucrecia aceitou. Que droga, agora sua
sensação era a de ter se precipitado, de ter cometido uma tremenda
injustiça contra o pobre Fonchito.

CARTA AO LEITOR DE PLAYBOY OU TRATADO
MÍNIMO DE ESTÉTICA

Sendo o erotismo a humanização inteligente e sensível
do amor físico, e a pornografia, seu barateamento e sua degradação, eu
acuso o senhor, leitor de Playboy ou de Penthouse, freqüentador de
antros que exibem filmes porno-hard e de sex shops onde se adquirem
vibradores elétricos, consoladores de borracha e camisinhas com cristas
de galo ou mitras arcebispais, de contribuir para o veloz retrocesso, à
mera cópula animal, do mais eficaz atributo concedido ao homem e à
mulher para se assemelharem aos deuses (os pagãos, é claro, que não
eram castos nem cheios de melindres em questões sexuais como aquele que
sabemos). O senhor comete abertamente um crime, a cada mês, por
renunciar a exercer sua própria imaginação, atiçada pelo fogo de seus
desejos, por ceder à medíocre tara de permitir que suas pulsões mais
sutis, as do apetite carnal, sejam embridadas por produtos manufaturados
à maneira de clones, que, aparentando satisfazer as urgências sexuais,
na verdade as subjugam, aguando-as, serializando-as e constringindo-as
dentro de caricaturas

219

que vulgarizam o sexo, despojam-no de originalidade, de mistério e de
beleza, para transformá-lo em mascarada, quando não em ignóbil afronta
ao bom gosto. Para que perceba com quem está lidando, talvez, o senhor
apreenda melhor meu pensamento ao saber que (monógamo como sou, embora
benevolente com o adultério) tenho por fontes mais apetecíveis de
cobiças eróticas a defunta e respeitabilíssima estadista de Israel dona
Golda Meir ou a austera senhora Margaret Thatcher do Reino Unido, de
quem nunca se moveu um só fio de cabelo enquanto foi primeira-ministra,
do que qualquer uma dessas bonecas canforadas, de tetas infladas pelo
silicone, púbis cardados e tingidos que parecem intercambiáveis, uma
mesma impostura multiplicada por uma fôrma única, as quais, para que o
ridículo complemente a estupidez, aparecem nessa inimiga de Eros que é
a Playboy, em página desdobrável e com orelhas e rabo de pelúcia,
ostentando o cetro de "A coelhinha do mês". Meu ódio à Playboy, à
Penthouse e congêneres não é gratuito. Esse espécime de revista é um
símbolo do acanalhamento do sexo, do desaparecimento dos belos tabus que
costumavam rodeá-lo e graças aos quais o espírito humano podia
rebelar-se, exercendo a liberdade individual, afirmando a personalidade
singular de cada um, e o indivíduo soberano criar-se pouco a pouco na
elaboração, secreta e discreta, de rituais, condutas, imagens, cultos,
fantasias e cerimônias que, enobrecendo eticamente e conferindo
categoria estética ao ato do amor, desanimalizaram-no progressivamente
até transformá-lo em ato criativo. Um ato graças ao qual, na reservada
intimidade das alcovas, um homem e uma mulher (cito a fórmula ortodoxa,
mas, claro, poderia tratar-se de um cavalheiro e uma palmípede, de duas
mulheres, de dois ou três homens, e de todas as combinações imagináveis
sempre que o elenco não ultrapasse o trio ou, concessão máxima, os dois
pares) podiam, por algumas horas, emular Homero, Fídias, Botticelli ou
Beethoven. Sei que o senhor não me entende, mas não importa; se me
entendesse, não seria tão imbecil a ponto de sincronizar suas ereções e
seus orgasmos com o relógio (de ouro maciço e à prova d'água,
seguramente?) de um sujeito chamado Hugh Heffner. O problema é mais
estético do que ético, filosófico, sexual, psicológico ou político,
embora, para mim, desnecessário dizer,

220

essa separação não seja aceitável, porque tudo o que importa é, a curto
ou a longo prazo, estética. A pornografia despoja o erotismo do conteúdo
artístico, privilegia o orgânico sobre o espiritual e o mental, como se
o desejo e o prazer tivessem por protagonistas falos e vulvas e esses
adminículos não fossem meros servos dos fantasmas que governam nossas
almas, e segrega o amor físico do resto das experiências humanas. O
erotismo, ao contrário, integra-o com tudo o que somos e temos.
Enquanto, para o senhor, pornógrafo, a única coisa que conta na hora de
fazer amor é, como para um cão, um macaco ou um cavalo, ejacular,
Lucrecia e eu, inveje-nos, fazemos amor também tomando o desjejum,
vestindo-nos, ouvindo Mahler, conversando com amigos e contemplando as
nuvens ou o mar. Quando digo estético, talvez o senhor possa pensar - se
é que a pornografia e o pensamento são compatíveis - que, por esse
atalho, caio na armadilha do gregário e que, como os valores geralmente
são compartilhados, nesse domínio eu sou menos eu e um pouco mais eles,
isto é, uma parte da tribo. Reconheço que o perigo existe; mas o
combato sem trégua, dia e noite, defendendo minha independência contra
ventos e marés mediante o uso constante de minha liberdade. Aprenda, ou
pelo menos julgue, por esta pequena amostra de meu tratado de estética
particular (que espero não compartilhar com muita gente e que é
flexível, desfaz-se e se refaz como a argila nas mãos de um destro
ceramista). Tudo o que brilha é feio. Há cidades brilhantes, como Viena,
Buenos Aires e Paris; escritores brilhantes, como Umberto Eco, Carlos
Fuentes, Milan Kundera e John Updike, e pintores brilhantes, como Andy
Warhol, Matta e Tàpies. Embora tudo isso cintile, para mim é
prescindível. Sem exceção, todos os arquitetos modernos são brilhantes,
pelo que a arquitetura marginalizou-se da arte e tornou-se um ramo da
publicidade e das relações públicas; portanto, é conveniente descartar
todos eles em bloco e recorrer unicamente a pedreiros, a mestres de
obras e à inspiração dos profanos. Não existem músicos brilhantes,
embora compositores como Maurice Ravel e Erik Satie tenham lutado por
sê-lo e quase o conseguiram. O cinema, tão divertido quanto o judô ou a
luta livre, é pós-artístico e não merece ser incluído em considerações
sobre estética, apesar de algumas anomalias ocidentais

221

(esta noite eu salvaria Visconti, Orson Welles, Bunuel, Berlanga e John
Ford) e uma japonesa (Kurosawa). Toda pessoa que escreve "nuclear-se",
"colocação", "conscientizar", "visualizar", "societal" e sobretudo
"telúrico" é um filho (ou filha) da puta. Também o são os que usam
palito em público, infligindo ao próximo esse repelente espetáculo que
enfeia as paisagens. Igualmente, esses asquerosos que tiram o miolo do
pão, amassam-no e o deixam sobre a mesa, transformado em bolinhas. Não
me pergunte por que os autores dessas barbaridades são uns filhos (ou
filhas) da puta; só a inspiração intui e assimila tais conhecimentos;
eles são infusos, não podem ser aprendidos. A mesma norma vale,
evidentemente, para o mortal de qualquer sexo que, pretendendo
castelhanizar as bebidas, escreve güisqui, yinyerel ou jaibol.* Estes
últimos, estas últimas, deveriam inclusive morrer, pois suspeito que
suas vidas são supérfluas. A obrigação de um filme e de um livro é
entreter-me. Se, vendo-o ou lendo-o, eu me distraio, cabeceio ou
adormeço, eles faltaram ao seu dever e são um mau livro, um mau filme.
Exemplos conspícuos: O homem sem qualidades, de Musil, e todos os filmes
desses embustes chamados Oliver Stone ou Quentin Tarantino. No que se
refere à pintura e à escultura, meu critério de avaliação artística é
muito simples: tudo o que eu poderia fazer em matéria pictórica ou
escultural é uma merda. Só se qualificam, portanto, os artistas cujas
obras estão fora do alcance de minha mediocridade criativa, aqueles que
eu não poderia reproduzir. Esse critério me permitiu determinar, ao
primeiro golpe de vista, que toda a obra de "artistas" como Andy Warhol
ou Frida Kahlo é uma embromação, e, ao contrário, que até o mais
elementar desenho de Georg Grosz, de Chillida ou de Balthus é genial.
Além dessa regra geral, a obrigação de um quadro também é a de me
excitar (expressão que não me agrada, mas uso-a porque a alegoria
crioula "deixar-me em ponto de bala" me agrada ainda menos, já que
introduz um elemento risível em algo que é seriíssimo). Se me agrada,
mas me deixa frio, sem a imaginação invadida por desejos
teatral-copulatórios e sem aquelas rumorosas cócegas nos testículos que
precedem as ternas ereções, * Por whisky, gingerale e bighball. (N. da
T.)

222

é um quadro sem interesse, mesmo que se trace da Mona Lisa., do Homem
com a mão no peito, de Guernica ou da Ronda noturna. Assim, o senhor
ficará surpreso ao saber que de Goya, outro monstro sagrado, só me
aprazem os sapatinhos de fivelas douradas, saltos em ponta e adornos de
cetim, acompanhados por meias brancas de renda, com os quais em seus
óleos ele calçava suas marquesas, e que nos quadros de Renoir eu só olho
com benevolência (prazer, às vezes) os rosados traseiros de suas
camponesas e evito o resto do corpo, sobretudo aquelas carinhas
embonecadas e os olhos de vagalume, que antecipam - vade retro! - as
coelhinhas da Playboy. De Courbet, interessam-me as lésbicas e aquele
gigantesco traseiro que fez ruborizar-se a suscetível imperatriz
Eugênia. A obrigação da música para comigo é mergulhar-me em uma
vertigem de puras sensações, que me faça esquecer a parte mais tediosa
de mim mesmo, a civil e municipal, que me livre de preocupações, me
isole em um enclave sem contato com a sórdida realidade circundante, e,
desse modo, me permita pensar com clareza nas fantasias (geralmente
eróticas, e sempre com minha esposa no papel estelar) que me tornam
suportável a existência. Ergo, se a música se faz excessivamente
presente e, porque começa a me agradar em demasia ou porque faz muito
ruído, me distrai de meus próprios pensamentos, reclama minha atenção e
a consegue - citarei sucintamente Gardel, Pérez Prado, Mahler, todos os
merengues e quatro quintos das óperas -, é música ruim e fica banida do
meu escritório. Esse princípio, claro está, faz-me gostar de Wagner,
apesar das trombetas e das molestas trompas, e respeitar Schoenberg.
Espero que esses rápidos exemplos, os quais, evidentemente, não aspiro a
que o senhor compartilhe comigo (e desejo menos ainda), ilustrem-no
sobre o que quero dizer quando afirmo que o erotismo é um jogo (na alta
acepção que o grande Johan Huizinga dava à palavra) privado, do qual só
o eu, os fantasmas e os jogadores podem participar, e cujo êxito
depende de seu caráter secreto, impermeável à curiosidade pública, pois
desta última só podem derivar-se sua regulamentação e sua manipulação
desnaturalizadora por agentes infensos ao folguedo erótico. Embora me
repugnem as peludas axilas femininas, respeito o amateur que persuade
seu companheiro ou sua companheira

223

a regá-las e cultivá-las para folgazar nelas com lábios e dentes, até
chegar ao êxtase com uivos em dó maior. Mas não posso, em absoluto, ter
o mesmo respeito, e sim comiseração, pelo pobre idiota que bastardeia
esse seu capricho fantasmático adquirindo - por exemplo, nas lojas de
artefatos pornô com os quais a ex-aviadora Beate Uhse semeou a Alemanha
- aquelas cerradas matas de axilas e púbis artificiais (de "pelo
natural", vangloriam-se as mais careiras) que ali são vendidas sob
diferentes formatos, tamanhos, sabores e cores. A legalização e o
reconhecimento público do erotismo o municipalizam, cancelam e
acanalham, tornando-o pornografia, triste ocupação que defino como
erotismo para pobres de bolso e de espírito. A pornografia é passiva e
coletivista; o erotismo, criador e individual, mesmo quando exercido a
dois ou a três (repito-lhe que sou contrário a elevar o número de
participantes, a fim de que essas funções não percam seu cunho de festas
individualistas, exercícios de soberania, e não se manchem com a
aparência de comícios, esportes ou circos). Por isso, merecem-me
gargalhadas de hiena os argumentos do poeta beatnik Allen Ginsberg
(veja-se sua entrevista a Allen Young em Cônsules de Sodoma) em defesa
dos acoplamentos coletivos na escuridão das piscinas, com a conversa
fiada de que essa promiscuidade é democrática e justiceira, pois,
graças à treva igualitária, permite que a feia e a bonita, a magra e a
gorda, a jovem e a velha tenham as mesmas oportunidades de prazer. Que
raciocínio absurdo, de comissário construtivista! A democracia só tem a
ver com a dimensão civil da pessoa, ao passo que o amor - o desejo e o
prazer - pertence, como a religião, ao âmbito privado, no qual importam
sobretudo as diferenças, e não as coincidências com os demais. O sexo
não pode ser democrático; ele é elitista e aristocrático, e uma certa
dose de despotismo (reciprocamente pactuado) costuma ser-lhe
indispensável. Os ajuntamentos coletivos em banhos às escuras, que o
poeta beatnik recomenda como modelos eróticos, parecem-se demais com os
acasalamentos de potros e éguas nos pastos ou com os pisões
indiscriminados de galos em galinhas nos alvoroçados poleiros, para
serem confundidos com essa bela criação de ficções animadas, de
fantasias carnais, de que participam por igual o corpo e o espírito, a
imaginação e os hormônios, a sublimidade e a abjeção da condição humana,

224

que é o erotismo para este modesto epicurista e anarquista escondido no
corpo cidadão de um securitário de bens. O sexo praticado à maneira da
Playboy (volto e voltarei a esse tema até que minha morte ou a sua me
impeça de fazê-lo) elimina dois ingredientes essenciais a Eros, em
minha opinião: o risco e o pudor. Entendamo-nos. O aterrorizado
homenzinho que, no ônibus, vencendo sua vergonha e seu medo, abre a capa
e, por quatro segundos, oferece o espetáculo de sua verga em riste à
despreocupada matrona levada pelo destino a viajar diante dele é um
impudico temerário. Faz o que faz com pleno conhecimento de que o preço
de seu capricho fugaz, pode ser uma surra, um linchamento, o calabouço e
um escândalo que divulgaria ante a opinião pública um segredo, que ele
de preferência levaria para o túmulo, e o condenaria à condição de
réprobo, psicopata e perigo social. Mas arrisca-se a isso porque o
prazer que esse mínimo exibicionismo lhe produz é inseparável do medo e
da transgressão desse pudor. Que distância sideral - a distância que
existe entre o erotismo e a pornografia, precisamente -, a que o separa
do executivo borrifado com colônias francesas e de pulso algemado por um
Rolex (que outro poderia ser?), que, em um bar da moda americanizado por
um fundo musical de blues, abre o último número da Playboy, exibe-se com
ele e o exibe, convencido de que está exibindo sua verga diante do
mundo, mostrando-se homem mundano, sem preconceitos, moderno, folgazão,
in! Pobre imbecil! Nem desconfia que aquilo que exibe é o emblema de sua
servidão ao lugar-comum, à publicidade, à moda desindividualizadora, o
sinal da abdicação de sua liberdade, de sua renúncia a emancipar-se,
graças aos seus fantasmas pessoais, da escravidão atávica da
serialização. Por isso, eu acuso o senhor, a notória revista e afins,
assim como todos os que a lêem - ou simplesmente a folheiam - e, com
esse miserável sustento pré-fabricado, alimentam - quero dizer, matam -
sua libido, de serem a ponta-de-lança dessa grande operação
dessacralizadora e banalizadora do sexo em que se manifesta a barbárie
contemporânea. A civilização esconde e sutiliza o sexo para melhor
aproveitá-lo, rodeando-o de rituais e códigos que o enriquecem até
limites insuspeitados para o homem e a mulher pré-eróticos,
copuladores, engendradores de rebentos. Depois de termos percorrido um
longuíssimo caminho,

225

de certo modo, a progressiva depuração do jogo erótico foi a espinha
dorsal, retornamos, por insólita via - a sociedade permissiva, a cultura
tolerante -, ao ponto de partida ancestral: fazer amor voltou a ser uma
ginástica corporal e semipública, exercitada a esmo, ao compasso de
estímulos fabricados, não pelo inconsciente e pela alma, mas pelos
analistas do mercado, estímulos tão estúpidos quanto aquela falsa vagina
de vaca que se costuma passar nos estábulos diante dos focinhos dos
touros, a fim de fazê-los ejacular e de poder, desse modo, armazenar o
sêmen utilizado na inseminação artificial. Vá, compre e leia sua mais
recente Playboy, suicida vivo, e coloque mais um grãozinho de areia na
criação desse mundo de eunucos e eunucas ejaculantes, do qual terão
desaparecido a imaginação e os fantasmas secretos como pilares do amor.
Eu, de minha parte, vou agora mesmo fazer amor com a rainha de Sabá e
com Cleópatra, juntas, em uma representação cujo roteiro não pretendo
compartilhar com ninguém e, menos do que com ninguém, com o senhor.

UM PEZINHO

"São quatro da madrugada, Lucrecia querida", pensou dom
Rigoberto. Como quase todos os dias, havia acordado na turva umidade do
amanhecer para celebrar o rito que repetia cacofonicamente desde que
dona Lucrecia fora morar no Olivar de San Isidro: sonhar acordado, criar
e recriar sua mulher por invocação daqueles cadernos onde hibernavam
seus fantasmas. "E onde, desde o dia em que te conheci, tu és rainha e
senhora." Contudo, à diferença de outras madrugadas desoladas ou
ardentes, hoje não lhe bastava imaginá-la e desejá-la, conversar com sua
ausência, amá-la com a própria fantasia e com o próprio coração, de
onde ela nunca se havia afastado; hoje, precisava de um contato mais
material, mais certo, mais tangível. "Hoje, eu poderia me suicidar",
pensou, sem angústia. E se lhe escrevesse? E se finalmente respondesse
às suas apimentadas cartas anônimas? A caneta lhe caiu das mãos, assim
que ele a pegou. Não conseguiria, e, em todo caso, tampouco poderia lhe
enviar a carta.

226

No primeiro caderno que abriu, uma frase oportimíssima saltou e o
mordeu: "Meus ferozes despertares ao amanhecer têm sempre como ânimo,
meu. amor, uma imagem tua, real ou inventada, que inflama meu desejo,
enlouquece minha saudade, deixa-me em suspenso e me arrasta a esta
escrivaninha para me defender contra o aniquilamento, amparando-me no
antídoto de meus cadernos, gravuras e livros. Somente isso me cura."
Certo. Mas, hoje, o remédio costumeiro não teria o efeito benéfico de
outras madrugadas. Sentia-se confuso e atormentado. Tinha sido
despertado por uma mescla de sensações nas quais se embaralhavam uma
rebeldia generosa, semelhante àquela que o levara aos dezoito anos para
a Ação Católica e enchera seu espírito com impulsos missionários,
renovadores do mundo pela arma dos Evangelhos, a enternecedora nostalgia
de um pezinho de mulher asiática entrevisto de passagem, por cima do
ombro de um pedestre detido ao seu lado durante alguns segundos pelo
sinal vermelho em uma rua do centro, e o retorno à sua memória de um
jornalista francês sem méritos do século XVIII chamado Nicolas Edme
Restif de la Bretonne, de quem possuía em sua biblioteca um só livro -
iria procurá-lo e encontrá-lo antes do início da manhã -, uma primeira
edição comprada fazia muitos anos em um antiquário de Paris e que lhe
custara os olhos da cara. "Que mistura!" Em aparência, nada disso tinha
a ver diretamente com Lucrecia. Por que, então, essa urgência de
comunicar a ela, de lhe referir de viva voz, com riqueza de detalhes,
toda a efervescência de sua mente? "Minto, meu amor", pensou. "Claro que
tem a ver contigo." Tudo o que ele fazia, inclusive as estúpidas
operações gerenciais que de segunda a sexta-feira o manietavam oito
horas em uma companhia de seguros do centro de Lima, tinha profundamente
a ver com Lucrecia e com mais ninguém. Mas, sobretudo, e de maneira
ainda mais escravizada, suas noites e as exaltações, ficções e paixões
que as povoavam eram dedicadas a ela com fidelidade cavalheiresca. Ali
estava a prova, íntima, incontestável, dolorosíssima, em cada página
dos cadernos que ele agora folheava. Por que havia pensado em rebeldias?
Em vez disso, o que momentos antes o despertara tinham sido,
multiplicadas, a indignação, a consternação que sentira na manhã
anterior ao ler no jornal a notícia,

227

que Lucrecia também devia ter lido, e que ele passou a transcrever, com
letra hesitante, na primeira página em branco que encontrou: Wellington
(Reuters). Uma professora da Nova Zelândia, de 24 anos, recebeu de um
juiz desta cidade a pena de quatro anos de prisão por violação sexual,
depois de ser comprovado que ela mantinha relações carnais com um
menino de dez anos, amigo e colega de colégio de seu filho. Segundo
esclareceu o juiz, a sentença era a mesma que ele imporia a um homem
que tivesse estuprado uma. menina dessa idade. "Meu amor, Lucrecia
queridíssima, não vejas nisto nem a sombra de uma reprovação ao que
aconteceu conosco", pensou. "Nem uma alusão de mau gosto, nada que possa
parecer um rancor retrospectivo e mesquinho." Não. Ela devia ver
exatamente o contrário. Porque, quando as poucas linhas desse telegrama
se delinearam sob seus olhos, naquela manhã, enquanto ele sorvia os
primeiros goles do amargo café do desjejum (não porque o tomasse sem
açúcar, mas porque Lucrecia não estava ao seu lado para trocarem
comentários sobre as notícias do jornal), dom Rigoberto não experimentou
angústia nem dor, e muito menos gratidão e entusiasmo pela decisão do
juiz. Sentiu antes uma solidariedade impetuosa, sobressaltada, de
adolescente de passeata, por essa pobre mestra neozelandesa tão
brutalmente castigada por ter revelado as delícias do céu maometano (em
seu entender, o mais carnal dos que são oferecidos no mercado das
religiões) a esse menino afortunado. "Sim, sim, amadíssima Lucrecia."
Ele não posava, não mentia, não exagerava. Durante todo o dia, havia
carregado a mesma indignação da manhã pela estupidez desse juiz, mal
influenciado pelo mecanicismo simétrico de certas doutrinas feministas.
Podia-se colocar no mesmo plano o estupro, por um homem adulto, de uma
menina impúbere de dez anos, crime punível, e a descoberta,
intermediada por uma senhora de vinte e quatro, da felicidade corporal e
dos milagres do sexo por parte de um garoto de dez, já capaz de tímidos
endurecimentos e discretas transpirações seminais? Se, no primeiro caso,
a presunção de violência do infrator contra a vítima era obrigatória (a
menina,

228

mesmo que tivesse suficiente uso da razão para dar seu consentimento,
seria vítima de uma agressão física contra seu hímen), no segundo isso
era simplesmente inconcebível, pois, se tinha havido cópula, esta só
poderia acontecer, por parte do menino, com aquiescência e entusiasmo,
sem os quais o ato carnal não se teria consumado. Dom Rigoberto pegou a
caneta e escreveu, com raiva febril: "Embora eu odeie as utopias e as
saiba cataclísmicas para a vida humana, acaricio, agora, esta: que
todos os meninos da cidade sejam desvirginados ao completarem dez anos
por senhoras casadas trintonas, de preferência tias, mestras ou
madrinhas." Respirou, algo aliviado. Durante o dia inteiro fora
atormentado pela sorte dessa professora de Wellington e se compadecera
do escárnio público a que ela certamente havia sido exposta, das
humilhações e zombarias que ela sofreria, além de perder seu emprego e
de se ver tratada como corruptora de menores, como degenerada, por essa
imundície cacográfica, eletrônica e agora digital, a imprensa, a
chamada mídia. Não estava mentindo a si mesmo nem perpetrando uma farsa
masoquista. "Não, Lucrecia querida, juro que não." No decorrer do dia e
da noite, o rosto dessa professora, encarnado no de sua ex-mulher, tinha
lhe aparecido muitas vezes. E agora, agora, ele sentia a necessidade
imperiosa de fazê-la saber ("de te fazer saber, meu amor") de seu
arrependimento e sua vergonha. Por ter sido tão insensível, tão obtuso,
tão desumano e tão cruel quanto aquele magistrado de Wellington, cidade
que ele só pisaria para cobrir de fragrantes rosas vermelhas os pés
daquela admirada e admirável professora que pagava por sua
generosidade, por sua grandeza, trancada entre filicidas, ladras,
vigaristas e punguistas (anglófilas e maoris). Como seriam os pés dessa
professora neozelandesa? "Se eu botasse a mão em uma fotografia dessa
moça, não hesitaria em lhe acender velas e lhe queimar incenso", pensou.
Esperou e desejou que fossem tão belos e delicados quanto os de dona
Lucrecia e quanto o que ele tinha visto, ao meio-dia, no papel acetinado
de uma página da revista Time, por sobre o ombro de um pedestre, detido
por um sinal na esquina de La Colmena, quando se encaminhava para o
salão Miguel Grau, do Club Nacional, onde tinha encontro marcado com um
desses imbecis engravatados que marcam encontros no Club Nacional

229

e dos quais viviam os imbecis cujo ganha-pão eram os seguros de bens
móveis e imóveis, como ele. Foi uma visão de poucos segundos, mas tão
iluminadora e rutilante, tão convulsiva e frontal como devia ter sido,
para aquela jovem da Galiléia, a do alado Gabriel anunciando-lhe a nova
que iria trazer à humanidade tantas desavenças. Era um só pezinho de
perfil, de calcanhar semicircular e gracioso peito, erguido
orgulhosamente sobre uma planta de finíssimo contorno, que culminava em
uns dedinhos desenhados com primor, um pé feminino não enfeiado por
calos, durezas, bolhas ou joanetes horrendos, no qual nada parecia
destoar nem limitar a perfeição do todo e da parte, um pezinho
levantado e, aparentemente, surpreendido pelo atento fotógrafo momentos
antes de pousar sobre um tapete fofo. Por que asiático? Talvez porque o
anúncio que ele adornava era de uma companhia aérea dessa região do
mundo - Singapure Airlines - ou, quem sabe, porque dom Rigoberto, em sua
circunscrita experiência, acreditava poder afirmar que as mulheres da
Ásia tinham os pés mais bonitos do planeta. Comoveu-se, recordando as
vezes em que, beijando-as, tinha chamado de "patinhas Filipinas",
"calcanhares malaios" ou "arqueaduras japonesas" as deleitáveis
extremidades de sua amada. O fato era que o dia inteiro, junto com sua
fúria pela desventura dessa nova amiga, a mestra de Wellington, o
pezinho feminino do anúncio da Time havia perturbado sua consciência e,
mais tarde, desassossegado seu sono, desenterrando, do fundo de sua
memória, nada menos que a lembrança de Cinderela, uma história que ao
lhe ser contada, na infância, precisamente no detalhe do emblemático
sapatinho que só o miúdo pezinho da heroína podia calçar, tinha
despertado suas primeiras fantasias eróticas ("umidades com meia
ereção, se for preciso dar especificações técnicas", disse em voz alta,
no primeiro impulso de bom humor dessa madrugada). Teria comentado
alguma vez, com Lucrecia, sua tese de que a amável Cinderela sem dúvida
contribuiu, mais do que todo o infecto bando de pornografia antierótica
do século XX, para criar legiões de varões fetichistas? Não se
lembrava. Uma lacuna em sua relação matrimonial que seria preciso
preencher, algum dia. Seu estado havia melhorado bastante desde que ele
despertara, exasperado e saudoso,

230

morto de cólera, de solidão, de pesar. Desde alguns segundos antes, até
se autorizava - era sua maneira de não sucumbir ao desespero de cada dia
- certas fantasias que tinham a ver, hoje, não com os olhos, nem com os
cabelos, nem com os seios, coxas ou quadris de Lucrecia, mas
exclusivamente com os pés de sua amada. Tinha já ao seu lado - fora
difícil encontrá-la na prateleira onde estava metida - aquela edição
princeps, em três tomos, do romance de Nicolas Edme Restif de la
Bretonne (anotara de punho e letra em uma ficha: 1734-1806), o único das
dezenas e dezenas que esse incontinente polígrafo havia cacografado:
Le pied de Franchette ou l'orpheline française. Histoire intéressante et
morale (Paris, Humblot Quillau, 1769, 2 partes em 3 volumes,
160-148-192 p.). Pensou: "Agora, eu o folheio. Agora, tu apareces,
Lucrecia, descalça ou calçada, em cada capítulo, página, palavra." Só
havia uma coisa nesse escrevinhador inflacionário, Restif de la
Bretonne, que merecia sua simpatia e o fazia associá-lo, nesta madrugada
garoenta, a Lucrecia, ao passo que outras mil (bem, talvez um pouco
menos) o tornavam esquecível, transitório e até antipático. Alguma vez
tinha falado dele com ela? Esse nome surgira alguma vez em suas
noturnas festas conjugais? Dom Rigoberto não se lembrava. "Mas, ainda
que seja tarde, caríssima, eu o apresento a ti, ofereço-o e o coloco aos
teus pés (impossível dizer melhor)." O bonachão do Nicolas Edme nascera
e vivera em uma época de grandes convulsões, o século XVIII francês, mas
provavelmente não tinha percebido que o mundo inteiro se desfazia e se
refazia ao seu redor em razão dos vaivéns revolucionários, obsedado como
estava com sua própria revolução, não a da sociedade, a econômica, a do
regime político - "as que em geral têm boa fama" -, mas a que lhe
concernia pessoalmente: a do desejo carnal. Isso o tornava simpático,
isso levara dom Rigoberto a comprar a edição princeps de Le pied de
Franchette, romance de coincidências assombrosas e iniquidades cômicas,
enredos absurdos e diálogos estúpidos, que qualquer crítico literário
estimável ou leitor de bom gosto acharia execrável, mas que, para dom
Rigoberto, tinha o alto mérito de exaltar até extremos deicidas o
direito do ser humano a se insurgir contra o estabelecido em razão de
seus desejos, de mudar o mundo valendo-se da fantasia, ainda que pelo
efêmero período de uma leitura ou de um sonho.

231

Releu em voz alta o
que havia anotado no caderno sobre Restif, depois de ter lido Le pied de
Franchette: "Não creio que este provinciano, filho de camponeses,
autodidata apesar de ter passado por um seminário jansenista, que
ensinou a si mesmo línguas e doutrinas, todas mal, e que ganhou a vida
como tipógrafo e fabricante de livros (nos dois sentidos da expressão,
pois os escrevia e os manufaturava, embora fizesse a segunda coisa com
mais arte do que a primeira), tenha jamais suspeitado da importância
transcendental que seus escritos viriam a ter (importância simbólica e
moral, não estética), quando, entre suas explorações incessantes pelos
bairros operários e artesãos de Paris, que o fascinavam, ou pela França
aldeã e rural que ele documentou como sociólogo, roubando tempo aos seus
enredos amorosos - adúlteros, incestuosos ou mercenários, mas sempre
ortodoxos, pois o homossexualismo lhe produzia um horror carmelita -,
escrevia-os às pressas, guiando-se, horror dos horrores, pela
inspiração, sem corrigi-los, em uma prosa que lhe saía frondosa e
vulgar, carreadora de todos os detritos da língua francesa, confusa,
repetitiva, labiríntica, convencional, rasa, desobrigada de idéias,
insensível e, em uma palavra que a define melhor do que qualquer outra:
subdesenvolvida." Por que, afinal, depois de tão severo veredicto,
perdia este amanhecer rememorando uma imperfeição estética, um cacógrafo
chucro que, para culminar, chegara a exercer o feio ofício de
alcaguete? O caderno era pródigo em dados sobre ele. Havia produzido
cerca de duzentos livros, todos literariamente ilegíveis. Por que,
então, empenhar-se em aproximá-lo de dona Lucrecia, sua antípoda, a
perfeição em forma de mulher? Porque, respondeu dom Rigoberto a si
mesmo, ninguém como este silvestre intelectual poderia compreender sua
emoção do meio-dia ao perceber fugazmente, no anúncio de uma revista,
aquele pexinho alado de moça asiática, que esta noite lhe trouxera a
recordação, o desejo dos pés de rainha de Lucrecia. Não, ninguém como
Restif, aficionado, conhecedor supremo desse culto que a abominável raça
de psicólogos e psicanalistas preferia chamar de fetichismo, poderia
entendê-lo, acompanhá-lo e assessorá-lo nesta homenagem e ação de graças
àqueles adorados pés. "Obrigado, minha Lucrecia" - rezou, piedosamente
-, "pelas horas de prazer que eu devo a eles, desde aquela vez em que os
descobri,

232

na praia de Pucusana, e os beijei, sob a água e as
ondas". Transido, dom Rigoberto voltou a sentir os ágeis dedinhos
salobros movendo-se na gruta de sua boca e os engulhos causados péla
água marinha engolida. Sim, essa era a predileção do senhor Nicolas Edme
Restif de la Bretonne: o pé feminino. E, por extensão e simpatia., como
diria um alquimista, aquilo que os abriga e circunda: a meia, o sapato,
a sandália, a botina. Com a espontaneidade e a inocência daquilo que
era, um rústico transmigrado para a cidade, ele praticou e proclamou
sua predileção por essa delicada extremidade e seus invólucros sem o
menor rubor, e, com o fanatismo dos convertidos, substituiu em seus
incomensuráveis escritos o mundo real por um fictício, tão monótono,
previsível, caótico e estúpido como aquele, só que, no amontado de sua
prosa ruim, em sua singularidade monotemática, o que ali brilhava, se
destacava e desencadeava as paixões dos homens não eram os graciosos
rostos das damas, as cabeleiras em cascata, as gráceis cinturas, os
pescoços alvos e lisos ou os bustos arrogantes, mas, sempre e
exclusivamente, a beleza dos pés. (Se o amigo Restif ainda existisse,
pensou, ele o levaria à casinha de Lucrecia no Olivar, com o
consentimento desta, claro, e, ocultando-lhe o resto do corpo da amada,
iria lhe mostrar os pés dela, encerrados em preciosas botinas estilo
vovó, e até lhe permitiria que a descalçasse. Como reagiria aquele
ancestral? Caindo em êxtase? Tremendo, uivando? Precipitando-se, sabujo
feliz, língua de fora, narinas dilatadas, para aspirar, para lamber o
manjar?) Não era respeitável, embora escrevesse tão mal, quem assim
prestava vassalagem ao prazer e defendia seu fantasma com tanta
convicção e coerência? Não era o bom Restif, apesar de sua prosa
indigesta, "um dos nossos"? Claro que sim. Por isso se lhe apresentara
esta noite durante o sono, atraído por aquele furtivo pezinho birmanês
ou cingapurense, para lhe fazer companhia nesta madrugada. Um brusco
desalento mortificou dom Rigoberto. O frio penetrou seus ossos. Como
queria, neste instante, que Lucrecia soubesse de todo o arrependimento
e da dor que o atormentavam, pela estupidez ou pela incompreensão
cabeçuda que o tinham impelido a agir com ela, um ano antes, como
acabava de fazer, na ultramarina Wellington, o ignóbil juiz que
condenara a quatro anos de cárcere essa professora,

233

essa amiga ("Outra das nossas"), porque ela levara aquela ditosa
criatura, aquele Fonchito neozelandês, a entrever - não, habitar - o
céu! "Em vez de sofrer e de te censurar por isso, eu deveria ter te
agradecido, adorável babá." E o fazia agora, nesta madrugada de ondas
ruidosas e espumantes e de chuvinha fina e corrosiva, secundado pelo
serviçal Restif, cujo romancezinho, deliciosamente intitulado Le pied de
Franchette e estupidamente subtitulado ou l'orphéline française.
Histoire interessante et morale (afinal, havia razão, sim, para
qualificá-la de moral), ele mantinha sobre os joelhos e acariciava com
as duas mãos, como um parzinho de lindos pés. Keats, quando escreveu
Beauty is truth, truth is beauty (a citação reaparecia incessantemente
em cada caderno que ele abria), estaria pensando nos pés de dona
Lucrecia? Sim, embora o infeliz não o soubesse. E Restif de la
Bretonne, quando escreveu e imprimiu (com a mesma velocidade, sem
dúvida) Le pied de Franchette, aos trinta e cinco anos, também o fizera
sob a inspiração, vinda do futuro, de uma mulher que chegaria ao mundo
cerca de dois séculos mais tarde, em um bárbaro rincão da América
chamada (a sério?) Latina. Graças às anotações do caderno, dom Rigoberto
ia recordando o enredo do romancezinho. Convencional e previsível a mais
não poder, escrito com os pés (não, isso ele não devia pensar nem
dizer), o fato de seu verdadeiro protagonista não ser a bela órfã
adolescente, Franchette Florangis, mas sim os pezinhos enlouquecedores
de Franchette Florangis, valorizava-o e o singularizava, dotando-o de
vivências e da capacidade persuasiva próprias de uma obra de arte. Eram
inimagináveis os transtornos que os nacarados pezinhos de Franchette
causavam, as paixões que acendiam ao redor. Deixavam a tal ponto
inflamado o Monsieur Apatéon, tutor da jovem, que se deleitava
comprando-lhes primorosos calçados e aproveitava qualquer pretexto para
acariciá-los, que o velhote chegava a tentar violar sua pupila, filha de
um amigo caríssimo. Transformavam o pintor Dolsans, um bom rapaz que se
encantava com eles assim que os via, metidos em sapatinhos verdes e
ornados de uma flor dourada, em louco despeitado, cheio de projetos
criminosos que o levariam a perder a vida. Outro aficionado, o rico e
afortunado jovem Lussanville, antes de ter em seus braços e em sua boca
a bela mocinha dos seus sonhos,

234

comprazia-se com um dos
sapatinhos dela, que havia roubado. Todo usuário de calça que os via -
financistas, mercadores, renasças, marqueses, plebeus - sucumbia a tal
feitiço, atingido por uma flecha de amor carnal e disposto a qualquer
coisa para possuí-los. Por isso, o narrador afirmava com justiça a
frase que dom Rigoberto havia transcrito: "Le joli pied les rendait tous
criminels." Sim, sim, aquelas patinhas transformavam todos em
criminosos. Chinelas, sandálias, botinas, sapatinhos da bela Franchette,
objetos mágicos, circulavam pela história, irradiando-a com uma
ofuscante luz seminal. Embora os estúpidos falassem de perversão, ele e,
claro, Lucrecia podiam compreender Restif, celebrar que este tivesse
tido a audácia e o impudor de exibir ante os demais seu direito a ser
diferente, a refazer o mundo à sua imagem e semelhança. Não haviam feito
o mesmo, ele e Lucrecia, a cada noite, por dez anos? Não tinham
desarrumado e rearrumado a vida em função de seus desejos? Voltariam a
fazê-lo, algum dia? Ou tudo isso permaneceria confinado na recordação,
nas imagens que a memória coleciona como tesouros para não sucumbir à
desesperança do real, do que existe na verdade? Nesta noite-madrugada,
dom Rigoberto se sentia como um dos varões alucinados pelo pé de
Franchette. Vivia vazio, substituindo a ausência de Lucrecia, a cada
noite, a cada amanhecer, por fantasmas que não bastavam para
consolá-lo. Haveria alguma solução? Seria tarde demais para voltar atrás
e corrigir o erro? Uma Corte Suprema, um Tribunal Constitucional, na
Nova Zelândia, não poderiam rever a sentença do obtuso magistrado de
Wellington e absolver a professora? Um governante neozelandês sem
preconceitos não poderia anistiá-la, e até condecorá-la como heroína
civil por sua comprovada abnegação diante da infância? Ele mesmo não
poderia ir à casinha do Olivar de San Isidro para dizer a Lucrecia que
a estúpida justiça humana se equivocara e a condenara sem ter direito a
isso, e devolver-lhe a honra e a liberdade para... para? Para quê?
Vacilou, mas seguiu adiante, como pôde. Seria isso uma utopia? Uma
utopia como as que o fetichista Restif de la Bretonne também fantasiou?
Na verdade, não, porque as de dom Rigoberto, quando ele às vezes se
abandonava a elas, levado pela doçura inerte da divagação, eram utopias
privadas,

235

incapazes de se intrometer no livre-arbítrio dos outros. Por acaso essas
utopias não eram lícitas, muito diferentes das coletivas, inimigas
acérrimas da liberdade, que sempre traziam consigo a semente de um
cataclismo? Esse havia sido o lado fraco e perigoso de Nicolas Edme,
também; uma doença de época à qual ele sucumbiu, como boa parte de seus
contemporâneos. Porque o apetite de utopias sociais, o grande legado do
século das Luzes, junto com novos horizontes e audazes reivindicações do
direito ao prazer, havia produzido os apocalipses históricos. Dom
Rigoberto não recordava nada disso; seus cadernos, sim. Ali estavam os
dados acusatórios e as fulminações implacáveis. No delicado apreciador
de pezinhos e calçados femininos que foi Restif- "Que Deus o abençoe por
isso, se existir" - havia também um pensador perigoso, um messiânico
(um cretino, se se tratasse de qualificá-lo com crueldade, ou um
iludido, se fosse preferível indultá-lo), um reformador de instituições,
um redentor de deficiências sociais, que, entre as montanhas de papel
que garatujou, dedicou vários montes e colinas a construir essas
prisões, as utopias públicas, para regulamentar a prostituição e impor
a felicidade às putas (o horrendo empenho aparecia em um livro de
atraente e enganoso título, Le fornographe), para aperfeiçoar o
funcionamento dos teatros e os costumes dos atores (Le mimographe),
para organizar a vida das mulheres, atribuindo-lhes obrigações e
fixando-lhes limites, a fim de haver harmonia entre os sexos (o
temerário monstrengo também trazia um título que parecia augurar
prazeres - Les gynographes - mas, na verdade, propunha cepos e grilhões
para a liberdade). Muito mais ambiciosa e ameaçadora havia sido,
seguramente, sua pretensão de regulamentar - na verdade, sufocar - as
condutas (L'andrographe) do gênero humano e de introduzir uma
legalidade intrusa e transfixante, agressora da intimidade, que
extinguiria a livre iniciativa e a livre disposição dos desejos por
parte dos humanos: Le thesmographe. Diante desses excessos
intervencionistas, de Torquemada laico, podia-se considerar uma
malvadeza infantil o fato de Restif ter levado seu frenesi
regulamentarista ao ponto de propor uma reforma total da ortografia (Le
glossographe). Ele havia reunido essas utopias em um livro chamado Idées
singulières (1794),

236

e sem dúvida o eram, mas na acepção
sinistra e criminosa da noção de singularidade. A sentença estampada no
caderno era inapelável e dom Rigoberto a aprovou: "Não há dúvida: se
este diligente impressor, documentaLista e refinado amador de
terminais femininos tivesse chegado a dispor de poder político, teria
transformado a França, e talvez a Europa, em um campo de concentração
muito bem disciplinado, no qual uma malha fina de proibições e
obrigações volatilizaria até o último pingo de liberdade. Por sorte, ele
foi demasiadamente egoísta para cobiçar o poder, concentrado como
estava no empreendimento de reconstruir, pela ficção, a realidade
humana, recompondo-a segundo sua conveniência, de tal modo que, nela,
como em Le pied de Franchette, o valor supremo, a maior aspiração do
bípede masculino, não fosse a realização de ações heróicas de conquista
militar, nem a obtenção da santidade, nem a descoberta dos segredos da
matéria e da vida, mas sim o deleitável, o delicioso pezinho feminino,
saboroso como a ambrosia que alimentava os deuses do Olimpo." E como
aquele vislumbrado por dom Rigoberto no anúncio da Time, que lhe
recordara os de Lucrecia e que o mantinha aqui, surpreendido pelas
primeiras luzes da manhã, enviando à sua amada esta garrafa que
lançaria ao mar, buscando-a, sabendo muito bem que a mensagem não lhe
chegaria, pois como podia lhe chegar o que não existia, o que estava
forjado com o evanescente pincel de seus sonhos? Dom Rigoberto acabava
de se fazer essa desesperada pergunta, com os olhos fechados, quando, ao
murmurarem seus lábios o amoroso vocativo "Ah, Lucrecia!", seu braço
esquerdo derrubou no chão um dos cadernos. Recolheu-o e olhou de relance
a página aberta com a queda. Deu um salto: o acaso tinha detalhes
maravilhosos, como ele e sua mulher haviam tido oportunidade de
comprovar, amiúde, em seus devaneios. Com que se deparou? Com duas
anotações, de muitos anos antes. A primeira, uma descartável menção a
uma anônima gravurinha finissecular, na qual Mercúrio ordenava à ninfa
Calipso que libertasse Ulisses - de quem ela se enamorara e a quem
mantinha prisioneiro em sua ilha - e o deixasse prosseguir sua viagem
rumo a Penélope. E a segunda, que maravilha, uma apaixonada reflexão
sobre: "O delicado fetichismo de Johannes Vermeer, que, em Diana e suas
companheiras,

237

presta uma plástica homenagem a esse membro desdenhado do corpo
feminino, mostrando uma ninfa entregue à amorosa tarefa de lavar -
melhor dizendo, acariciar -, com uma esponja, o pé de Diana, enquanto
outra ninfa, em doce abandono, acaricia o seu próprio. Tudo é sutil e
carnal, de uma delicada sensualidade, dissimulada pela perfeição das
formas e pela suavíssima bruma que banha a cena, dotando as figuras
dessa qualidade irreal e mágica que tens, Lucrecia, a cada noite em
carne e osso, e também teu fantasma, quando visitas meus sonhos." Como
isso era certo, atual, vigente! E se respondesse às suas cartas
anônimas? E se de fato lhe escrevesse? E se fosse bater à sua porta,
nesta mesma tarde, assim que a roda d'água de sua servidão securitária
e gerencial desse a última volta? E se, ao vê-la, caísse imediatamente
de joelhos e se humilhasse para beijar o solo que ela pisava,
pedindo-lhe perdão, chamando-a, até fazê-la rir, de "Minha babá
querida", "Minha professora neozelandesa", "Minha Franchette", "Minha
Diana"? Ela riria? E se lançaria em seus braços, oferecendo-lhe os
lábios, fazendo-o sentir seu corpo, e o faria saber que tudo ficava para
trás, que os dois podiam começar de novo a construir, sozinhos, sua
utopia secreta?

ENFEITE DE TIGRESA

Contigo tenho amores havaianos em que
bailas para mim ao som do ukelele em noites de lua cheia, com guizos nos
quadris e nos tornozelos, imitando Dorothy Lamour. E amores astecas, em
que te sacrifico a deuses acobreados e ávidos, serpentinos e
emplumados, no alto de uma pirâmide de pedras ferruginosas, em torno da
qual pulula a selva impenetrável. Amores esquimós, em frios iglus
iluminados por tochas de gordura de baleia, e noruegueses, em que nos
amamos engatados sobre o esqui, despencando-nos a cem quilômetros por
hora pelas encostas de uma montanha branca juncada de totens com
inscrições túnicas. Meu carinho desta noite, amada, é modernista,
carniceiro e africano.

238

Te despirás diante do espelho, conservando as meias negras e as
ligas vermelhas, e esconderás tua formosa cabeça sob a máscara de uma
fera bravia, de preferência a tigresa no cio do Rubén Darío de Azul...
ou uma leoa sudanesa. Quebrarás o quadril direito, flexionarás a perna
esquerda, apoiarás tua mão no quadril oposto, na pose mais selvagem e
provocante. Sentadinho em minha cadeira, amarrado ao espaldar, estarei
te olhando e te adorando, com meu servilismo costumeiro. Sem mover uma
só pestana, sem gritar eu estarei, enquanto me cravas nos olhos tuas
garras e teus brancos colmilhos rasgam minha garganta e devoras minha
carne e sacias tua sede com meu sangue enamorado. Agora estou dentro de
ti, agora também sou tu, amada estufada de mim.

IX. O ENCONTRO DO SHERATON

- Para me atrever, para criar coragem, tomei dois uísques puros
- disse dona Lucrecia. - Antes de começar a me disfarçar, quero dizer. -
Deve ter ficado no maior pileque, patroa - comentou Justiniana,
divertida. - Do jeito que a senhora tem cabeça fraca para bebida... -
Você estava aí, sua descarada - repreendeu-a dona Lucrecia. -
Excitadíssima com o que podia acontecer. Servindo os drinques, me
ajudando a colocar o disfarce e rindo às gargalhadas, enquanto eu me
transformava numa daquelas. - Uma sujeitinha daquelas - ecoou a
empregada, retocando-lhe o ruge. "Esta é a pior loucura que já fiz na
vida", pensou dona Lucrecia. "Pior do que a história com Fonchito, pior
do que me casar com o maluco do Rigoberto. Se eu a fizer, vou me
arrepender até meu último dia." Mas ia fazê-la. Ficou ótima na peruca
ruiva - havia experimentado esse adereço na loja onde fizera a encomenda
-, cuja alta e barroca orografia de cachos e mechas parecia flamejar.
Mal se reconheceu nessa figura incandescente, de cílios postiços
recurvados, argolas tropicais nas orelhas, toda sarapintada, lábios de
um vermelhão aceso, acentuado pelos sinaizinhos e olheiras azuis de
verdadeira mulher fatal, estilo filme mexicano dos anos cinqüenta. -
Caramba, caramba, ninguém diria que é a senhora! - examinou-a
Justiniana, assombrada, tapando a boca. - Não sei com quem se parece,
patroa. - Com uma sujeitinha daquelas, ora bolas - afirmou dona
Lucrecia. O uísque já fizera seu efeito. As vacilações de momentos atrás
tinham se evaporado e agora, intrigada, divertida, ela observava sua
transformação no espelho do quarto.

240

Justiniana, progressivamente maravilhada, ia Lhe estendendo as peças
dispostas sobre a cama: a minissaia tão justa que dificultava a
respiração; as longas meias pretas, presas por ligas vermelhas com
adornos dourados; a blusa extravagante, que exibia os seios até a ponta
do mamilo. Ajudou-a, também, a calçar os sapatos prateados, de
salto-agulha. Tomando distância, depois de passá-la em revista de cima
para baixo e de baixo para cima, exclamou de novo, estupefata: - Não é a
senhora, patroa, é outra, outra. Vai sair assim mesmo? - Claro -
assentiu dona Lucrecia. - Se eu não aparecer até amanhã, avise à
polícia. E, sem mais delongas, pediu um táxi na estação da Virgen del
Pilar e ordenou ao chofer, com autoridade: "Hotel Sheraton". Anteontem,
ontem e esta manhã, enquanto se arrumava, tinha tido dúvidas. Dissera a
si mesma que não iria, não se prestaria a semelhante palhaçada, ao que
seguramente era uma brincadeira cruel; mas, já no táxi, sentiu-se muito
segura e decidida a viver a aventura até o final. Acontecesse o que
acontecesse. Olhou o relógio. As instruções diziam entre onze e meia e
meia-noite, e ainda eram onze. Chegaria adiantada. Serena, longe de si
mesma graças ao álcool, perguntou-se, enquanto o táxi avançava rumo ao
centro pela via expressa semideserta, o que faria se alguém a
reconhecesse no Sheraton, apesar do disfarce. Negaria a evidência,
esganiçando a voz, fazendo a entonação amaneirada e melosa daquelas
sujeitinhas: "Lucrecia? Eu me chamo Aída. Somos parecidas? Talvez alguma
parente distante." Mentiria com total desfaçatez. Seu medo se evaporara
totalmente. "Você está encantada de bancar a puta, por uma noite",
pensou, satisfeita consigo mesma. Percebeu que o chofer do táxi erguia a
vista a cada momento para espiá-la pelo retrovisor. Antes de entrar no
Sheraton, colocou os óculos escuros com armação de madrepérola em forma
de tridente, que havia comprado nessa mesma tarde em uma lojinha da rua
La Paz. Tinha escolhido esses pelo engraçado mau gosto e porque, dado o
tamanho, pareciam uma meia-máscara. Atravessou o lobby em passos
rápidos, rumo ao bar, temendo que um dos porteiros uniformizados, que a
encaravam acintosamente, viesse perguntar quem era ela, o que procurava,
ou então expulsá-la

241

sem perguntas, por causa de sua aparência escandalosa. Mas ninguém se
aproximou. Subiu a escada até o bar, sem pressa. A penumbra lhe devolveu
a segurança, que ela quase perdera sob as fortes luzes da entrada,
aquele salão sobre o qual se elevava o opressivo arranha-céu retangular
e carcerário do hotel, com seus muitos andares, paredes, passadiços,
balaustradas e dormitórios. Na meia-luz, entre nuvenzinhas de fumaça,
notou que poucas mesas estavam ocupadas. Tocavam uma música italiana,
com um cantor pré-histórico - Domenico Modugno - que lhe recordou um
longínquo filme com Claudia Cardinale e Vittorio Gassman. Silhuetas
imprecisas se delineavam no balcão, contra o fundo azul-amarelado de
taças e fileiras de garrafas. De uma mesa subiam as vozes estridentes de
um início de bebedeira. De novo animada, confiante em suas forças para
enfrentar qualquer imprevisto, atravessou o local e tomou posse de um
dos altos banquinhos do balcão. O espelho à sua frente lhe mostrou um
espantalho que, em vez de repulsa ou riso, provocou-lhe ternura. Sua
surpresa não teve limites quando ela ouviu o barman, um mestiço de
cabelos gomalinados e espetados, metido em um colete grande demais e com
uma gravatinha-borboleta que parecia enforcá-lo, tratá-la com
grosseria, dispensando o "senhora": - Você aí, ou consome ou se manda.
Quase fez um escândalo, mas refletiu melhor e, gratificada, disse a si
mesma que essa insolência comprovava o sucesso de seu disfarce. E,
estreando sua nova voz, dengosa e açucarada, pediu: - Um 12 anos com
gelo, por favor. O homem a encarou, hesitante, avaliando se devia
levá-la a sério. Optou por murmurar: "Com gelo, certo", já se afastando.
Ela pensou que o disfarce teria sido completo se incluísse uma piteira
comprida. Então, pediria cigarros mentolados Kool, extralongos, e
fumaria soltando argolas vaporosas para o alto, em direção ao forro de
estrelinhas que lhe piscavam. O barman trouxe o uísque com a conta, e
ela tampouco protestou por essa demonstração de desconfiança; pagou, sem
deixar gorjeta. Mal havia tomado o primeiro gole, e alguém se sentou ao
seu lado. Teve um leve estremecimento. O jogo começava a ficar sério.

242

Mas não, não se tratava de um homem, e sim de uma mulher, bastante
jovem, de calça comprida e uma polo escura de gola alta, sem mangas.
Tinha os cabelos soltos, lisos, e o rosto fresco exibia o arzinho
canalha das mocinhas de Egon Schiele. - Oi. - A vozinha miraflorina lhe
soou familiar. - A gente se conhece, não é? - Creio que não - respondeu
dona Lucrecia. - Eu achei, desculpe - disse a outra. - Tenho uma memória
péssima, confesso. Você vem muito por aqui? - De vez em quando - hesitou
dona Lucrecia. Conhecia aquela moça? - O Sheraton não é mais tão seguro
como antes - lamentou-se a jovem. Acendeu um cigarro e soltou uma
baforada, que demorou a se desfazer. - Eu soube que, na sexta-feira,
deram uma incerta aqui. Dona Lucrecia se imaginou empurrada aos trancos
para dentro do camburão, levada à polícia e fichada como meretriz. - Ou
consome ou cai fora - disse o barman à recém-chegada, ameaçando-a com o
dedo em riste. - Vá à merda, seu cholo fedorento - retrucou a jovem, sem
sequer se voltar para olhá-lo. - Grossa como sempre, hein, Adelita? -
sorriu o bar-man, mostrando uma dentadura que, dona Lucrecia teve
certeza, verdejava de sarro. - Tudo bem, fique, sinta-se em casa. Você
é o meu fraco e sabe disso, então abusa. Nesse momento, dona Lucrecia a
reconheceu. Adelita, claro! A filha de Estherzita! Ora, ora, nada menos
que a filha da santarrona da Esther. - A filha de dona Estherzita? -
gargalhou Justiniana, dobrando-se ao meio. - Adelita? A menina Adelita?
A filha da madrinha de Fonchito? Batalhando fregueses no Sheraton? Não
consigo engolir essa, patroa. Nem com Coca-Cola nem com champanhe eu
engulo. - Ela mesma, e você nem sabe como - assegurou dona Lucrecia. -
Toda assanhada, falando palavrão, à vontade como peixe n'água, ali no
bar. Parecia a piranha mais experiente de Lima. - E ela? Não reconheceu
a senhora?

243

- Não, felizmente. Mas você ainda não ouviu nada. Estávamos ali,
conversando, quando, não sei de onde, o sujeito nos caiu em cima. Pelo
jeito, Adelita o conhecia. Era alto, forte, meio gordo, meio bêbado, em
suma, meio tudo o que é preciso para se sentir valente e mandão. De
terno e gravata brilhante, com losangos e ziguezagues, respirava como
um fole. Devia ser cinquentão. Instalou-se entre as duas, abraçando-as,
e, como faria com duas amigas da vida inteira, disse, à maneira de
saudação: - Querem vir à minha suíte? Tenho um goró finíssimo e
something for the nose. E mais uma chuva de dólares para as meninas que
fazem tudo certinho. Dona Lucrecia sentiu uma vertigem. O bafo do homem
ia direto em sua cara. Ele estava tão perto que, com um pequeno
movimento, poderia beijá-la. - Está sozinho, gato? - perguntou a moça,
com coqueteria. - E eu vou querer mais alguém para quê? - respondeu o
sujeito, chupando os lábios e apalpando o bolso onde devia guardar a
carteira. - Cem verdinhas por cabeça, OK? Pago adiantado. - Se você não
tiver dólar de dez ou de cinqüenta, prefiro em soles - disse Adelita, de
imediato. - Os de cem são sempre falsos. - OK, OK, tenho de cinqüenta -
prometeu o homem. - Vamos andando, garotas. - Estou esperando alguém -
desculpou-se dona Lucrecia. - Lamento. - Ele não pode esperar? -
impacientou-se o homem. - Não, realmente não. - Se você quiser, subimos
nós dois - interveio Adelita, pendurando-se ao braço dele. - Vou tratar
você muito bem, gato. Mas o homem a repeliu, decepcionado: - Só você,
não. Esta noite eu estou me dando um prêmio. Meus burricos ganharam três
corridas e a dupla. Posso contar? Vou realizar um capricho que está me
deixando excitado, há dias. Digo qual? - Olhou as duas alternadamente,
muito sério, afrouxando o colarinho, e emendou com ansiedade, sem
esperar aprovação: - Empalar uma enquanto chupo a outra.

244

Vendo as duas pelo espelho, se tocando e se beijando, sentadinhas no
trono. E esse trono vou ser eu, "O espelho de Egon Schiele", pensou a
senhora Lucrecia. Sentia-se menos incomodada pela vulgaridade do homem
do que pelo brilho desalmado das pupilas dele, enquanto descrevia seu
capricho. - Você vai ficar zarolho de ver tanta coisa ao mesmo tempo,
gato - riu Adelita, dando-lhe um soco de brincadeira. - É a minha
fantasia. Graças aos burricos, esta noite vou realizá-la - disse o
homem, com orgulho, à maneira de despedida. - Uma pena esse seu
compromisso, palhacinha, porque, apesar dessa papagaiada toda, gostei
de você. Tchauzinho, bonecas. Quando ele se perdeu entre as mesas - o
bar tinha mais gente do que antes, a fumaça estava mais densa, o rumor
das conversas se multiplicara, e a música dos alto-falantes era agora
um merengue de Juan Luis Guerra -, Adelita se aproximou de dona
Lucrecia, pesarosa: - é verdade, o seu encontro? Com esse panaca, ia ser
moleza. Aquela história dos cavalos é mentira. Ele é traficante, todo
mundo sabe. E funciona a cem por hora. Ejaculação precoce, dizem. Tão
rápido, tão rápido, que muitas vezes nem consegue começar. Ia ser uma
mão na roda. Dona Lucrecia tentou esboçar um sorriso de entendida, que
não lhe saiu. Como uma filha de Esther podia dizer semelhantes coisas?
Aquela senhora tão posuda, tão rica, tão presumida, tão elegante, tão
católica. Estherzita, a madrinha de Fonchito. A moça continuava com seus
comentários desenvoltos, que mantinham boquiaberta dona Lucrecia: -
Tremendo vacilo, a gente perder esta oportunidade de faturar cem dólares
em meia hora, em quinze minutos - queixava-se. - Subir com você para
trabalharmos nesse pata-choca ia ser bacana. Ia ser o máximo, e
rapidinho. Você eu não sei, mas, comigo, o que me incomoda são os
casais. O maridão olhando, enquanto você esquenta a mulherzinha dele.
Odeio isso, gata! Porque a babaca sempre morre de vergonha. Fica cheia
de frescuras, solta umas risadinhas sonsas, tem que beber um trago, e
tome de siririca. Puxa vida, até me dá engulho. Principalmente quando
elas começam a chorar e se arrepender. Tenho vontade de matar, digo a
você. E aí o tempo vai passando, meia hora, uma hora,

245

com essas
retardadas, um pé no saco. Querem, não querem, e fazem você perder um
monte de grana. Não tenho mais paciência, gata. Nunca lhe aconteceu? -
Imagine! - sentiu-se obrigada a dizer dona Lucrecia, forcejando para que
cada sílaba aceitasse sair de sua boca. - Algumas vezes. - Se bem que
pior ainda são os dois amigos, os cupinchas, unha e carne, sabe como? -
suspirou Adelita. Sua voz; mudou e dona Lucrecia pensou que devia ter
acontecido a ela algo terrível, com sádicos, loucos ou monstros. - Como
se sentem machos quando estão em dupla! E começam a pedir tudo quanto é
sacanagem. A cornetinha, o sanduichinho, o nenenzinho. Por que não vai
pedir à mamãezinha, querido? Não sei você, gata, mas, comigo, o
nenenzinho, nem a pau. Não gosto. Me dá nojo. E também dói. Não faço
nem por duzentos dólares. E você? - Eu também não - articulou dona
Lucrecia. - Nojo e dor, igual a você. Nenenzinho, nem por duzentos, nem
por mil. - Bem, por mil, quem sabe? - riu a moça. - Viu? A gente se
parece. Bom, chegou seu parceiro, eu acho. Vamos ver se, na próxima, a
gente faz o trabalho no idiota dos burricos. Tchau, divirta-se. Adelita
se afastou, deixando seu lugar para a delgada silhueta que se
aproximava. Na claridade medíocre do recinto, dona Lucrecia viu que ele
era jovem, meio louro, feições ameninadas, e uma vaga semelhança com
quem? Com Fonchito! Um Fonchito com dez anos a mais, de olhar
endurecido, corpo mais alto e afilado. Estava vestido em um elegante
terno azul e trazia no bolso do paletó um lencinho rosa, a mesma cor da
gravata. - O inventor da palavra individualismo foi Alexis de
Tocqueville - disse ele, a modo de saudação, com uma vozinha estridente.
- Certo ou errado? - Certo. - Dona Lucrecia começou a suar frio: o que
aconteceria agora? Decidida a ir até o final, acrescentou: - Eu sou
Aldonza, a andaluza de Roma." Puta, estreleira e alcofeira, às suas
ordens. * Alusão à obra do espanhol Francisco Delicado Retrato de la
lozana andaluza (1528), não muito conhecida, mas considerada precursora
do romance picaresco. (N. da T.)

246


- A única palavra que eu entendo é puta - comentou Justiniana,
tonta com o que ouvia. - E a senhora falava sério? Não ficou com vontade
de rir? Desculpe interromper, patroa. - Siga-me - disse o
recém-chegado, sem um pingo de humor. Movia-se como um robô, Dona
Lucrecia desceu do banquinho e adivinhou o olhar mal-intencionado do
barman ao vê-la partir. Seguiu o jovem louro, que avançava depressa
entre as mesas lotadas, fendendo a atmosfera enfumaçada, rumo à saída
do bar. Depois, atravessou o corredor em direção aos elevadores. Dona
Lucrecia o viu apertar o botão do 24°. Sentiu seu coração saltar e seu
ventre se contrair, com a velocidade da subida. Uma porta se abriu,
assim que saíram para o corredor. Estavam no vestíbulo de uma suíte
enorme: através do janelão envidraçado, estendia-se aos seus pés um mar
de luzes, com manchas escuras e bancos de neblina. - Pode tirar a peruca
e a roupa no banheiro. - O rapaz lhe apontou um aposento, ao lado da
saleta. Mas dona Lucrecia não conseguiu dar um passo, fascinada por
aquela face juvenil, de olhar de aço e cabelos alvoroçados na testa -
achara que eram louros, mas eram castanho-claros, puxando para o escuro
-, modelados pelo cone de luz. Como era possível? Parecia ele, em
pessoa. - Como assim, Egon Schiele? - atalhou-a Justiniana. - O pintor
que enlouquece Fonchito? O malandro que pintava suas modelos fazendo
sacanagem? - Por que você acha que eu fiquei pasmada? Ele mesmo. - Sei
que somos parecidos - explicou o rapaz, no mesmo tom sério, funcional e
desumanizado com que se dirigira a ela desde o primeiro momento. - É por
isso que você está tão desconcertada? Bom, eu me pareço com ele. E daí?
Ou você está achando que sou Egon Schiele ressuscitado? Não é tão boba
assim, não? - É que a semelhança me deixou muda - reconheceu dona
Lucrecia, examinando-o. - Não é só o rosto. Também o corpo alongado,
raquítico. As mãos, tão grandes. E a maneira como você brinca com seus
dedos, escondendo o polegar. Igualzinho, idêntico a todas as fotos de
Egon Schiele. Como é possível?

247

- Não vamos perder tempo - disse o rapaz, com frieza e um gesto de
tédio. - Tire essa peruca asquerosa, esses brincos e colares horríveis.
Espero você no quarto. Venha nua. Seu rosto tinha algo de desafiador e
vulnerável. Ele parecia, pensou dona Lucrecia, um garotinho malcriado e
genial, a quem, apesar de todas as suas travessuras e insolências,
audácias e temeridades, a mãe fazia muita falta. Estava pensando em Egon
Schiele ou em Fonchito? Dona Lucrecia não teve dúvidas de que o rapaz
prefigurava o que o filho de Rigoberto viria a ser dentro de alguns
anos. "A partir deste momento, começa o mais difícil", disse a si mesma.
Tinha certeza de que o rapaz parecido com Fonchito e Egon Schiele havia
fechado a porta com duas voltas na chave, e de que, mesmo que quisesse,
já não poderia escapar da suíte. Seria obrigada a permanecer ali o resto
da noite. Junto com o medo que se apoderara dela, a curiosidade a
devorava, e até uma pontinha de excitação. Entregar-se a esse esbelto
jovem de expressão fria e algo cruel seria como fazer amor com um
Fonchito-jovem-quase-
homem, ou com um Rigoberto remoçado e embelezado, um
Rigoberto-jovem-quase-menino. A comparação a fez sorrir. O espelho do
banheiro lhe mostrou sua expressão relaxada, quase alegre. Teve
trabalho para tirar a roupa. Sentia as mãos dormentes, como se as
tivesse exposto à neve. Sem a absurda peruca, livre da minissaia que a
espremia, respirou. Manteve a calcinha e o minúsculo sutiã de renda
preta, e, antes de sair, soltou e ajeitou os cabelos - tinha-os prendido
numa redinha -, detendo-se um instante à porta. Outra vez, o pânico.
"Posso até não sair viva daqui." Mas nem sequer esse temor fez com que
se arrependesse de ter vindo e de estar interpretando esta farsa
extravagante, para agradar a Rigoberto (ou a Fonchito?). Ao entrar no
vestíbulo, comprovou que o rapaz havia apagado todas as luzes do quarto,
exceto a de um abajur, em um cantinho afastado. Pelo enorme janelão, lá
embaixo cintilavam milhares de vagalumes de um céu invertido. Lima
parecia disfarçada de cidade grande; a escuridão apagava seus andrajos,
sua imundície e até seu mau cheiro. Uma música suave, de harpas,
trinados, violinos, banhava a penumbra. Enquanto avançava, sempre
apreensiva, rumo à porta que o rapaz lhe apontara, sentiu uma nova onda
de excitação, crispando-lhe os bicos dos seios ("O que tanto agrada a
Rigoberto").

248

Deslizou silenciosamente pelo carpete. Bateu com os nós
dos dedos. A porta estava encostada e se abriu, sem um rangido. - E
estavam ali, os de antes? - exclamou Justiniana, mais incrédula
ainda. - E agora, como vai ser? Os dois de antes? Adelita, a filha da
senhora Esther? - E o sujeito dos cavalos, o traficante ou lá o que
fosse - confirmou dona Lucrecia. - Sim, ali. Os dois. Na cama. - E
pelados, claro - gargalhou Justiniana, levando uma mão à boca e
revirando os olhos com descaramento. - Esperando pela senhora. O quarto
parecia maior do que o habitual em um hotel, até mesmo em uma suíte de
luxo, mas dona Lucrecia não pôde perceber exatamente suas dimensões,
porque só estava acesa a lâmpada de um dos criados-mudos, e sua luz
circular, avermelhada pela grande cúpula cor de vinho, só clareava por
inteiro o casal deitado e entrelaçado sobre a betuminosa colcha, com
manchas amarelo-escuras, que cobria a cama de casal. O resto do aposento
estava na penumbra. - Entre, amorzinho - acolheu-a o homem, agitando a
mão, sem parar de beijocar Adelita, sobre a qual estava meio montado. -
Tome um drinque. Tem champanhe em cima da mesa. E pó, nessa tabaqueira
de prata. A surpresa de encontrar Adelita e o homem dos cavalos ali não
a fez esquecer o jovem magro de boca cruel. Ele tinha desaparecido?
Espiava, oculto na sombra? - Oi, gata - a cara travessa de Adelita
surgiu por sobre o ombro do sujeito. - Que bom que você se livrou do tal
encontro. Venha, venha logo. Não sente frio? Aqui está quentinho. O
medo desapareceu por completo. Ela foi até a mesa e se serviu uma taça
de champanhe de uma garrafa metida em um balde de gelo. E se cheirasse
uma carreirinha, também? Enquanto bebia, em pequenos goles, na
penumbra, pensou: "É magia ou bruxaria. Milagre, não pode ser." O homem
era mais gordo do que parecia vestido; seu corpo, branquelo e com
sinais, tinha rolos de banha na barriga, nádegas sem pelos e pernas
muito curtas, com tufinhos de pelos escuros. Adelita, ao contrário, era
ainda mais magra do que ela havia acreditado; um corpo alongado,
moreninho, uma cintura muito fina em que se destacavam os ossinhos dos
quadris. Deixava-se beijar e abraçar e também abraçava o traficante
turfista,

249

mas, embora seus gestos simulassem entusiasmo, dona Lucrecia notou que
ela não o beijava, e até evitava sua boca. - Venha, venha, quase não
agüento mais - implorou o homem, de repente, com veemência. - Meu
capricho, meu capricho. É agora ou nunca, meninas! Embora a excitação de
um momento atrás tivesse desaparecido, substituída por um certo nojo,
dona Lucrecia obedeceu, depois de terminar a taça. Ao se dirigir para a
cama, viu de novo pelo janelão, lá embaixo, e também acima, nas
montanhas onde começava a longínqua cordilheira, o arquipélago de luzes.
Sentou-se em um canto da cama, sem medo, embora confusa e cada vez mais
nauseada. Uma mão a segurou pelo braço, puxou-a e a obrigou a se deitar
embaixo de um corpo pequeno e fofo. Ela relaxou, deixou-se levar,
aniquilada, desmoralizada, decepcionada. Repetia para si mesma, como um
autômato: "Não vá chorar, Lucrecia, não vá chorar." O homem enlaçou-a
com o braço esquerdo e Adelita com o direito. Sua cabeça girava de uma
para outra, beijando-as no pescoço, nas orelhas, e buscando-lhes a boca.
Dona Lucrecia via muito próxima a cara de Adelita, despenteada,
congestionada, e, nos olhos, um sinal de cumplicidade, zombeteiro e
cínico, animando-a. Os lábios e dentes do homem se apertaram contra os
seus, forçando-a a abrir a boca. A língua dele entrou nela, como uma
serpente. - Você, eu quero empalar - ouviu-o implorar, enquanto a
mordiscava e lhe acariciava os seios. - Monte, monte em mim. Rápido, que
já estou indo. Vendo que ela hesitava, Adelita ajudou-a a subir nele e
também se agachou, passando uma das pernas sobre o homem e ajeitando-se
a fim de que ele tivesse a boca ao alcance do seu sexo depilado, no
qual dona Lucrecia mal percebeu uma fina linha de pilosidade. Então,
sentiu como se levasse uma chifrada. Aquela coisinha miúda, meio
brocha, que segundos antes se esfregava em suas pernas, teria crescido
tanto ao entrar nela? Agora era um esporão, um aríete que a levantava,
perfurava e feria com força cataclísmica. - Beijem-se, beijem-se -
gemia o sujeito dos burricos. - Não estou vendo vocês muito bem, que
merda! Faltou um espelho!

250

Molhada de suor da cabeça aos pés, tonta,
dolorida, sem abrir os olhos, dona Lucrecia estendeu os braços e buscou
o rosto de Adelita, mas, quando encontrou os finos lábios da moça, esta,
mesmo apertando-os contra os dela, manteve-os fechados. Não os abriu
quando ela os pressionou com a língua. Nisto, por entre os cílios e as
gotinhas de suor que lhe pingavam da testa, viu o jovem desaparecido de
olhos acerados, lá em cima, perto do teto, equilibrando-se no alto de
uma escada. Semioculto pelo que parecia um biombo laqueado, com
caracteres chineses, as orelhinhas meio levantadas, os olhos
incendiados, a boquinha cruel franzida, o rapaz a desenhava, desenhava
os três, furiosamente, com um carvão comprido, em uma cartolina
branquíssima. De fato, parecia uma ave de rapina, agachado no alto da
escada em tesoura, observando-os, medindo-os, retocando-os com traços
longos, enérgicos, e com aqueles olhos ferozes, vivíssimos, que
saltavam da cartolina para a cama, da cama para a cartolina, sem prestar
atenção a mais nada, indiferentes às luzes de Lima, esparramadas ao pé
da janela, e à sua própria verga, que abrira caminho para fora da calça,
fazendo saltarem os botões, e se estirava e crescia como um balão que
vai se enchendo de ar. Ofídio voador, agora se balançava acima dela,
contemplando-a com seu olho de grande ciclope. Ela não se surpreendeu
nem se importou. Cavalgava, satisfeita, ébria, agradecida, entorpecida,
pensando ora em Fonchito, ora em Rigoberto. - Por que você continua
saltitando, não vê que eu já fui? - choramingou o homem dos cavalos. Na
semiescuridão, sua cara parecia de cinza. Ele fazia biquinhos de menino
malcriado. - Maldito azar, isto sempre me acontece. Quando está ficando
bom, eu já fui. Não consigo segurar. Não tem jeito, não tem. Procurei um
especialista, ele me receitou banhos de lama. Uma merda. Aquilo me dava
dor de estômago e vômitos. Massagens. Outra merda. Fui a um curandeiro
da Victoria e ele me meteu em uma tina com ervas, cheirando a cocô. De
que me serviu? De nada. Agora, termino até mais rápido do que antes. Por
que essa sorte infeliz, maldita seja? Soltou um gemido e soluçou. - Não
chore, cara, por acaso você não realizou seu capricho? - consolou-o
Adelita, voltando a passar a perna por cima da cabeça do chorão e
deitando-se ao lado dele.

251

Pelo jeito, nenhum dos dois via Egon Schiele, ou seu duplo,
equilibrando-se um metro acima, no alto da escada, e ajudando-se a não
cair, a manter o centro de gravidade, graças àquela imensa verga que
balançava suavemente sobre a cama, exibindo na escassa luz suas
delicadas dobras rosadas e as alegres veiazinhas da face posterior. E,
sem dúvida, tampouco o escutavam. Dona Lucrecia, sim, e muito
claramente. Esganiçado e beligerante, ele repetia entre os dentes, como
um mantra: "Sou o mais tímido dos tímidos. Sou divino." - Descanse,
gata, o que está fazendo aí? A função já terminou - disse Adelita, com
carinho. - Não as deixe ir, dê uma surra nelas. Não as deixe ir. Bata,
bata com força nas duas! Era Fonchito, naturalmente. Não, não o pintor
concentrado em sua tarefa de esboçá-los. Era o menino, seu enteado, o
filho de Rigoberto. Estava ali, ele também? Sim. Onde? Em alguma parte,
secretado pelas sombras do quarto das maravilhas. Quieta, encolhida,
desexcitada, aterrorizada, cobrindo os seios com as mãos, dona Lucrecia
olhou à direita, procurou à esquerda. E por fim os encontrou, refletidos
em um grande espelho no qual também se viu, repetida como uma modelo de
Egon Schiele. A meia-luz não os dissolvia; antes, dava ao pai e ao
filho, sentados um junto ao outro - aquele, observando-os com
benevolência afetuosa, e este, superexcitado, a carinha angelical
congestionada de tanto gritar, "Bata nelas, bata nelas" -, em uma
poltrona que parecia um camarote encarapitado acima do proscênio da
cama. - Ou seja, também apareceram o patrão e Fonchito? - comentou
Justiniana, em tom desenxabido e francamente decepcionado. - Isso é que
não dá para acreditar. - Bem sentadinhos, os dois, e nos olhando -
assentiu dona Lucrecia. - Rigoberto, muito formal, compreensivo e
tolerante. E o menininho, de rédea solta, fazendo as diabruras de
costume. - Não sei a senhora, patroa - disse Justiniana de repente,
cortando de chofre o relato e levantando-se -, mas eu preciso agora
mesmo de uma ducha com água bem fria. Para não passar outra noite sem
dormir, no maior sufoco. Essas conversas com a senhora, eu adoro. Mas me
deixam meio abestalhada e carregada de eletricidade. Se não acredita,
bote a mão aqui. Vai tomar um choque!

252

A BABA DA LESMA

Embora eu saiba
de sobra que o senhor é um mal necessário, sem o qual a vida em
comunidade não seria vivível, devo dizer-lhe que sua pessoa representa
tudo o que detesto, na sociedade e em mim mesmo. Pois há pelo menos um
quarto de século, de segunda a sexta-feira e das oito da manhã às seis
da tarde, com algumas atividades ancilares (coquetéis, seminários,
inaugurações, congressos), às quais me é impossível subtrair-me sem
ameaçar minha sobrevivência, tenho sido também uma espécie de
burocrata, ainda que não trabalhe no setor público, e sim no privado.
Mas, assim como o senhor e por sua culpa, minha energia, meu tempo e meu
talento (tive algum) foram em grande parte engolidos, nesses vinte e
cinco anos, pelos trâmites, gestões, requerimentos, instâncias e
procedimentos inventados pelo senhor para justificar o salário que
recebe e a escrivaninha diante da qual engorda suas nádegas, deixando-me
apenas umas migalhas de liberdade para tomar iniciativas e levar a cabo
um trabalho que mereça chamar-se criativo. Sei que os seguros (meu ramo
profissional) e a criatividade encontram-se tão afastados quanto os
planetas Saturno e Plutão no universo sideral, mas essa distância não
seria tão vertiginosa se o senhor, hidra regulamentarista, lagarta
tramitadora, rei do papel timbrado, não a tivesse tornado abissal.
Porque, mesmo no árido deserto das seguradoras e resseguradoras, a
imaginação do ser humano poderia expandir-se e dali extrair estímulo
intelectual e até prazer, se o senhor, encarcerado nessa densa malha de
regulações asfixiantes - destinadas a dar caráter de necessidade à obesa
burocracia que inchou até estourar as repartições públicas e criou uma
miríade de pretextos e justificativas para suas chantagens, seus
subornos, tráficos e roubos -, não tivesse transformado a tarefa de uma
companhia de seguros em uma embrutecedora rotina, semelhante àquelas
complicadas e diligentes máquinas de Jean Tinguely, as quais, movendo
correntes, polias, trilhos, pás, colheres e êmbolos, acabam parindo uma
bolinha de pingue-pongue. (Sei que ignora quem é Tinguely e tampouco lhe
convém descobrir; mas tenho certeza de que, se o acaso colocasse em seu
caminho as obras desse escultor, um dos poucos artistas contemporâneos
que me entendem, o senhor já teria tomado todas as precauções para não
compreender,

253

banalizando-os, os sarcasmos ferozes que elas disparam.) Se eu lhe
contar que entrei nesta companhia recém-formado em direito, com um posto
insignificante no departamento jurídico, e que nestes cinco lustros
escalei a hierarquia até ocupar a gerência, ser membro da diretoria e
dono de um bom pacote de ações da empresa, o senhor me dirá que, em tais
condições, não tenho de que me queixar e peco por ingratidão. Afinal,
não vivo bem? Não faço parte do microscópico fragmento da sociedade
peruana que tem casa própria, automóvel, a possibilidade de viajar de
férias, uma ou duas vezes por ano, para a Europa ou os Estados Unidos,
de desfrutar de certos confortos e de uma segurança impensáveis e
inacessíveis para quatro quintos dos nossos compatriotas? Tudo isso é
verdade. Também o é que, graças a esse sucesso profissional (assim o
chamam os senhores, não?), consegui encher meu escritório de livros,
gravuras e quadros, que me amuralham contra a estupidez e a vulgaridade
reinantes (ou seja, contra tudo o que o senhor representa), e criar um
enclave de liberdade e fantasia onde a cada dia, ou melhor, a cada
noite, pude desintoxicar-me da espessa crosta de convencionalismos
embrutecedores, rotinas desprezíveis, atividades castradoras e
gregarizadas que o senhor fabrica e das quais se nutre, e viver, viver
de verdade, ser eu mesmo, abrindo aos anjos e demônios que me habitam
as portas gradeadas atrás das quais - por culpa sua, só sua - são
obrigados a esconder-se no resto do dia. O senhor me dirá, também: "Se
odeia tanto os horários de trabalho, as cartas e as apólices, os
relatórios legais e os protocolos, as reclamações, as autorizações e os
pareceres, por que não teve a coragem de jogar fora tudo isso e viver a
vida verdadeira, a de sua fantasia e seus desejos, não só à noite, mas
também de manhã, ao meio-dia e à tarde? Por que cedeu mais da metade de
sua vida ao animal burocrático que, junto com seus anjos e demônios,
também o escraviza?" A pergunta é pertinente - muitas vezes formulei-a
para mim mesmo -, mas também o é minha resposta: "Porque o mundo de
fantasia, de prazer, de desejos em liberdade, minha única pátria
querida, não sobreviveria indene à escassez, à estreiteza, às angústias
econômicas, ao peso das dívidas e à pobreza. Os sonhos e os desejos são
incomestíveis.

254

Minha existência se empobreceria, transformando-se em caricatura de si.
mesma." Não sou um herói, não sou um. grande artista, careço de gênio,
de modo que não me consolaria a esperança de uma "obra" que talvez
sobrevivesse a mim. Minha aspiração e minhas aptidões não vão além de
saber diferenciar - nisso sou superior ao senhor, cujo senso ético e
estético de discriminação, por sua condição adventícia, reduziu-se a
nada-, dentro do emaranhado de possibilidades que me rodeiam, o que amo
e o que detesto, o que embeleza minha vida e o que a enfeia e lambuza
de estupidez, o que me exalta e o que me deprime, o que me faz gozar e o
que me faz sofrer. Para estar simplesmente em condições de discernir
constantemente entre essas opções contraditórias, preciso da
tranqüilidade econômica que me é proporcionada por esta atividade
profissional maculada pela cultura do trâmite, este miasma deletério que
o senhor gera como a lesma expele a baba e que passou a ser o ar
respirado pelo mundo inteiro. As fantasias e os desejos - pelo menos,
os meus - requerem, para manifestar-se, um mínimo de tranqüilidade e
segurança. Do contrário, enfraqueceriam e morreriam. Se quiser deduzir
daí que meus anjos e demônios são inabalavelmente burgueses, digo-lhe
que é a mais estrita verdade. Mencionei antes a palavra parasita e o
senhor deve ter-se perguntado se eu, sendo um advogado que há vinte e
cinco anos aplica a ciência jurídica - o mais nutritivo alimento da
burocracia e a primeira engendradora de burocratas - à especialidade dos
seguros, tenho o direito de usá-la depreciativamente contra quem quer
que seja. Sim, tenho, mas só porque também a emprego contra mim mesmo,
contra minha metade burocrática. De fato, e para cúmulo dos males, o
parasitismo legal foi minha primeira especialização, a chave que me
abriu as portas de La Perricholi - sim, este é o ridículo nome que
acrioula a companhia - e me obteve as primeiras promoções. Como não
viria a ser o mais engenhoso enredador ou destrinçador de argumentos
jurídicos, aquele que descobriu, desde sua primeira aula de direito, que
a chamada legalidade é, em grande medida, uma selva intricada onde os
técnicos em tramas, intrigas, formalismos e casuísmos sempre farão bom
negócio? Que essa profissão não tem nada a ver com a verdade e a
justiça, mas, exclusivamente, com sofísmas e imbróglios impossíveis de
desemaranhar?

255

É verdade, trata-se de uma atividade essencialmente parasitária, que
levei a cabo com a devida eficiência para chegar até o topo, mas sem
nunca me enganar, consciente de ser um furúnculo que se nutre da falta
de defesa, da vulnerabilidade e da impotência dos outros. À diferença do
senhor, eu não pretendo ser um "pilar da sociedade" (inútil remetê-lo
ao quadro homônimo de Georges Grosz: o senhor não conhece esse artista
ou, pior ainda, só o conhece pelas esplêndidas bundas expressionistas
que ele pintou, e não pelas letais caricaturas dos colegas do senhor na
Alemanha de Weimar): sei o que sou e o que faço, e desprezo essa parte
de mim mesmo tanto quanto a desprezo em sua pessoa, ou até mais. Meu
sucesso como advogado derivou desta constatação - de que o direito é uma
técnica amoral, vantajosa para o cínico que a domina melhor - e de
minha descoberta, igualmente precoce, de que em nosso país (em todos os
países?) o sistema legal é uma teia de aranha de contradições, na qual,
a cada lei ou disposição com força de lei, é possível opor outra ou
outras que a retificam e anulam. Por isso, aqui estamos todos sempre
violando alguma lei e delinquindo de algum modo contra a ordem (na
realidade, o caos) legal. Graças a esse dédalo, o senhor se subdivide,
se multiplica, se reproduz e se reengendra, vertiginosamente. E graças
a isso vivemos nós, os advogados, e alguns - mea culpa - prosperamos.
Pois bem, embora minha vida tenha sido um suplício de Tântalo, uma luta
diária e moral entre o lastro burocrático de minha existência e os anjos
e demônios secretos de meu ser, o senhor não me venceu. Sempre consegui
manter, ante aquilo que fazia de segunda a sexta e de oito às seis da
tarde, a ironia suficiente para desprezar esse ofício e desprezar-me
por exercê-lo, de modo que as horas restantes puderam me desagravar e me
redimir, me compensar e me humanizar (o que, no meu caso, sempre
significa separar-me do rebanho ou da manada). Imagino a comichão que o
percorre, essa curiosidade biliosa com que o senhor se pergunta: "E o
que faz nessas noites a ponto de imunizar-se contra mim, o que o salva
de ser o que eu sou?" Quer saber? Agora que estou sozinho - separado de
minha mulher, quero dizer -, leio, contemplo minhas gravuras, releio e
alimento meus cadernos com cartas como esta, mas, sobretudo, fantasio,
sonho, construo uma realidade melhor, depurada de todas as escórias e
excrescências - o senhor e sua baba - que tornam a existência sinistra

256

e sórdida o bastante para. induzir-nos a desejar uma diferente. (Falo no
plural e me arrependo; não se repetirá.) Nessa outra realidade, o senhor
não existe. Só existem a mulher qje amo e amarei sempre - a ausente
Lucrecia -, meu filho Alfonso e alguns figurantes móveis e transitórios,
que aparecem como fogos-fátuos, pelo tempo de me serem úteis. Só quando
estou nesse mundo, nessa companhia, é que existo, pois gozo e sou feliz.
Isto posto, essas migalhas de felicidade não seriam possíveis sem a
imensa frustração, o árido tédio e a acabrunhante rotina de minha vida
real. Em outras palavras, sem uma vida' desumanizada pelo senhor e sem
aquilo que o senhor tece e destece contra mim, a partir de todas as
engrenagens do poder que detém. Entende, agora, por que o chamei, no
princípio, de um mal necessário. O senhor, o mais perfeito exemplo do
estereótipo e do lugar-comum, acreditava que eu o qualifiquei assim por
pensar que uma sociedade deve funcionar, dispor de uma ordem, de uma
legalidade, de serviços, de uma autoridade, para não naufragar na
balbúrdia. E achava que esse regulador, esse nó górdio, esse mecanismo
salvador e organizador do formigueiro, era o senhor, o necessário. Não,
horrível amigo. Sem o senhor, a sociedade funcionaria bem melhor do que
agora. Mas, sem sua presença aqui, emputecendo, envenenando e limitando
a liberdade humana, esta não seria tão apreciada por mim, nem minha
imaginação voaria tão alto, nem meus desejos seriam tão pujantes, pois
tudo isso nasce como rebeldia contra o senhor, como reação de um ser
livre e sensível contra aquele que é a negação da sensibilidade e do
livre-arbítrio. Assim, veja só por onde, através de que meandros,
conclui-se que, sem o senhor, eu seria menos livre e sensível, meus
desejos, mais pedestres e minha vida, mais oca. Sei que tampouco
entenderá isso, mas não importa, porque sobre esta carta jamais pousarão
seus intumescidos olhos de batráquio. Eu o amaldiçôo e lhe agradeço,
burocrata.

O SONHO É VIDA

Banhado em suor, ainda sem sair totalmente da
delgada fronteira em que o sonho e a vigília se misturavam,

257

dom Rigoberto continuou a ver Rosaura, vestida de paletó e gravata,
cumprir suas instruções: ela se aproximou do balcão e se inclinou sobre
os ombros nus da vistosa mulata que estivera procurando atraí-lo desde
que os vira entrar nessa boate de transas. Estavam na Cidade do México,
não? Sim, depois de uma semana em Acapulco, fazendo uma escala em seu
retorno a Lima, ao término dessas curtas férias. Dom Rigoberto tivera o
capricho de disfarçar dona Lucrecia de homem e ir com ela, vestida
assim, a um cabaré de putas. Rosaura-Lucrecia cochichou algo com a moça,
entre sorrisos - dom Rigoberto viu-a apertar com autoridade o braço nu
da mulata, que a fitava com olhos espertos e maliciosos -, e finalmente
a tirou para dançar. Estavam tocando um mambo de Pérez Prado, claro -
El ruletero -, e, na pista estreita, fumacenta, lotada, de sombras
fendidas em rajadas por um refletor colorido, dom Rigoberto aprovou:
Rosaura-Lucrecia interpretava muito bem seu papel. Não parecia uma
impostora naquelas roupas masculinas, nem diferente com o corte de
cabelo à la garçonne, nem embaraçada ao conduzir sua parceira nos
momentos em que, cansadas de fazer firulas, as duas se enlaçavam. Em
crescente estado febril, dom Rigoberto, cheio de admiração e gratidão
por sua mulher, tinha de se arriscar a um torcicolo para não as perder
de vista, em meio a tantas cabeças e ombros interpostos. Quando a
orquestra, desafinada mas contida, passou do mambo ao bolero - Dos
almas, que lhe recordou Leo Marini -, ele sentiu que os deuses o
acompanhavam. Viu que Rosaura, interpretando seu desejo secreto,
estreitava de imediato a mulata, passando-lhe os dois braços pela
cintura e obrigando-a apoiar os dela sobre seus ombros. Embora, na
meia-luz, não pudesse enxergar com muita precisão, teve certeza de que
sua mulherzinha adorada, o falso varão, havia começado a beijar e
mordiscar de leve o pescoço da mulata, esfregando-se contra o ventre e
os seios desta como um verdadeiro cavaleiro esporeado pela excitação. Já
estava desperto, sem a menor dúvida, mas, apesar de ter todos os seus
sentidos em alerta, percebeu que a mulata e Lucrecia-Rosaura continuavam
ali, em meio àquela noturna humanidade prostibular, naquele local
estridente e truculento, de mulheres sarapintadas como periquitos, de
ancas tropicais, e uma clientela masculina de sujeitos bochechudos,

258

bigodes escorridos e olhares drogados: dispostos a sacar as
pistolas e se matarem mutuamente ao menor descuido? "Por esta excursão
aos bas-fonds da noite mexicana, Rosaura e eu podemos perder a vida",
pensou, com um calafrio feliz. E viu antecipadamente os títulos da
imprensa marrom: "Duplo assassinato: homem de negócios e sua esposa
travestida degolados em casa de encontros mexicana", "O anzol foi uma
mulata", "Destruídos pelo vício", "México: casal da sociedade limenha é
degolado em zona de meretrício", "Brancos depravados pagam com sangue
seus excessos". Regurgitou uma risadinha, como um arroto: "Se nos
mataram, o que importa o escândalo aos nossos vermes?" Voltou ao local
em questão, onde continuavam dançando a mulata e Rosaura, o falso homem.
Agora, para sua alegria, as duas se manuseavam descaradamente e também
se beijavam na boca. Mas como? As profissionais não se recusavam a
oferecer os lábios aos seus clientes? Sim, mas por acaso havia obstáculo
que Rosaura-Lucrecia não pudesse vencer? Como conseguira que a mulatona
abrisse a bocarra de grossos lábios rubros e recebesse a visita sutil de
sua língua serpentina? Teria lhe oferecido dinheiro? Teria conseguido
excitá-la? Não importava como, o importante era que sua língua doce e
branda, quase líquida, estava ali, na boca da mulata, ensalivando-a e
absorvendo a saliva - que ele imaginou espessa e olorosa - daquela
mulher exuberante. E, então, foi distraído pela pergunta: por que
Rosaura? Rosaura era também um nome de mulher. Se a questão era
camuflá-la por completo, como ele havia feito, cobrindo o corpo dela
com roupas de homem, seria preferível chamá-la Carlos, Juan, Pedro,
Nicanor. Por que Rosaura? Quase inconscientemente, dom Rigoberto se
levantara da cama, enfiara roupão e chinelos e se transferira para seu
escritório. Não precisava consultar o relógio para saber que logo
surgiriam nas trevas, como que saindo do mar, as luzinhas do amanhecer.
Conhecia alguma Rosaura de carne e osso? Buscou e foi categórico:
nenhuma. Era, portanto, uma Rosaura imaginária, essa que, em seu sonho,
viera se superpor a Lucrecia e se fundir com ela, esta noite, saída da
página esquecida de um romance ou de algum desenho, óleo, gravura, que
ele tampouco recordou. Em todo caso, o nome postiço continuava ali,
colado a Lucrecia, assim como aquele traje masculino comprado nessa
mesma tarde em uma loja da Zona Rosa,

259

entre risos e cochichos, depois que ele perguntou a Lucrecia se ela
concordaria em materializar sua fantasia e ela - "como sempre, como
sempre" - disse sim. Agora, Rosaura era um nome tão real como esse
casalzinho que, de braço dado - a mulata e Lucrecia eram quase da mesma
altura -, havia parado de dançar e se aproximava da mesa. Levantou-se
para recebê-las e, cerimonioso, estendeu a mão à mulata. - Oi, oi, muito
prazer, sente-se. - Estou morrendo de sede - disse a mulata, abanando-se
com as duas mãos. - Vamos pedir alguma coisa? - O que você quiser,
amorzinho - respondeu na mesma hora Rosaura-Lucrecia, acariciando-lhe o
queixo e acenando para um garçom. - Peça, pode pedir. - Uma garrafa de
champanhe - ordenou a mulata, com um sorriso de triunfo. - Você se chama
mesmo Rigoberto? Ou é seu nome de guerra? - É como eu me chamo.
Nomezinho esquisito, não? - Esquisitíssimo - assentiu a mulata,
fitando-o como se em vez de olhos tivesse dois tições chamejantes na
cara redonda. - Bom, pelo menos é original. Você também é bastante
original, verdade. Sabe de uma coisa? Eu nunca vi orelhas nem nariz como
os seus. Nossa Senhora, são enormes! Posso tocá-los? Deixa? O pedido da
mulata - alta, ondulante, olhos incandescentes, pescoço longo, ombros
fortes e uma pele reluzente que se destacava no vestido amarelo-canário
de amplo decote - deixou dom Rigoberto mudo, sem ânimo até para
responder com um gracejo ao que parecia um pedido muito sério.
Lucrecia-Rosaura veio socorrê-lo: - Ainda não, amorzinho - disse à
mulata, beliscando-lhe a orelha. - Quando estivermos sozinhos, no
quarto, você o tocará onde quiser. - Vamos ficar os três sozinhos em um
quarto? - riu a mulata, virando os olhos de sedosos cílios postiços. -
Obrigada por me informar. E o que eu vou fazer sozinha com vocês, meus
anjinhos? Não gosto de números ímpares. Sinto muito. Posso chamar uma
amiga, e assim seremos dois casais. Eu sozinha com dois, nem morta. Mas,
quando o garçom trouxe a garrafa do que ele chamava champanhe mas não
passava de um espumante adocicado

260

com reminiscências de terebintina e cânfora, a mulata, (chamava-se
Estrella, disse) pareceu se animar com a idéia de passar o resto da
noite com aquela dupla desigual e fez gracejos, deu risadas e distribuiu
amáveis tapinhas entre dom Rigoberto e Rosaura-Lucrecia. De vez em
quando, como quem repete um estribilho, voltava a mencionar
zombeteiramente "as orelhas e o nariz do moço", olhando-os com uma
fascinação impregnada de misteriosa cobiça. - Com orelhas assim,
certamente se pode escutar mais do que as pessoas normais - dizia. - E,
com um nariz desses, cheirar o que o comum dos homens não cheira.
"Provavelmente", pensou dom Rigoberto. E se fosse verdade? Se ele,
graças à magnificência desses órgãos, ouvisse e farejasse melhor do que
seus congêneres? Não lhe agradava o viés cômico que a história ia
tomando - seu desejo, avivado momento antes, decaía, e ele não conseguia
reanimá-lo, pois, por culpa das brincadeiras de Estrella, sua atenção
se afastava de Lucrecia-Rosaura e da mulata para se concentrar em seus
desproporcionais apêndices auditivo e nasal. Tentou queimar etapas,
passando por alto a negociação com Estrella que durou o tempo daquela
garrafa de suposto champanhe, os trâmites para que a mulata saísse da
boate - teve de pagar cinqüenta dólares por uma ficha -, o táxi
apertado e sacolejante, o registro no hediondo motel - delito lindo,
dizia na fachada o letreiro luminoso em vermelho e azul - e a
negociação com o recepcionista vesgo, que cutucava o nariz, para que os
deixasse ocupar um só quarto. Aplacar os temores do rapaz de que a
polícia desse uma incerta e multasse o estabelecimento por alugar um
dormitório a um trio custou a dom Rigoberto outros cinqüenta dólares. No
exato momento em que transpuseram a soleira e, sob a luz fraca da única
lâmpada, apareceu a cama de casal coberta com uma colcha azulada e junto
da qual havia um lavatório, uma bacia com água, uma toalha, um rolo de
papel higiênico e um penico desbeiçado - o vesgo acabava de sair,
entregando-lhes a chave e fechando a porta atrás de si -, dom Rigoberto
recordou: Claro! Rosaura! Estrella! Aliviado, deu um tapa na testa.
Naturalmente! Esses nomes vinham daquela apresentação madrilenha de A
vida é sonho, de Calderón de la Barca. E mais uma vez sentiu brotar no
fundo do coração, como um jato de água clara,

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um terno sentimento de gratidão por essas profundezas da memória
das quais inesgotavelmente estavam fluindo surpresas, imagens,
fantasmas, sugestões, para dar corpo, cenário e enredo aos sonhos com
que ele se defendia da solidão, da ausência de Lucrecia. - Vamos nos
despir, Estrella - dizia Rosaura, levantando-se, sentando-se. - Você
terá a grande surpresa de sua vida, portanto prepare-se. - Só tiro a
roupa se, antes, tocar o nariz e as orelhas do seu amigo - retrucou
Estrella, agora muito séria. - Não sei por quê, mas a vontade de
tocá-los está me comendo viva. Desta vez, dom Rigoberto não se
encolerizou, e até se sentiu lisonjeado. Tratava-se de uma função a que
dona Lucrecia e ele haviam assistido em um teatro de Madri, em sua
primeira viagem à Europa, com poucos meses de casados, uma montagem tão
antiquada de A vida é sonho que até risos escancarados se ouviram na
escuridão da platéia, durante a peça. O ator magricela e espigado que
encarnava o príncipe Segismundo era tão ruim, tinha uma voz tão
empolada e parecia tão esmagado pelo papel, que o espectador - "bom,
este espectador", matizou dom Rigoberto - se sentia inclinado à
benevolência para com o cruel e supersticioso pai dele, o rei Basílio,
por tê-lo mantido acorrentado durante toda a infância e juventude, como
animal feroz, naquela torre solitária, temeroso de que se cumprissem
com esse filho, se subisse ao trono, os cataclismos que os astros e sua
ciência matemática haviam previsto. Tudo tinha sido pobre, pavoroso e
desajeitado naquela função. E, no entanto, dom Rigoberto recordou muito
claramente que o aparecimento da jovem Rosaura, vestida de homem, na
primeira cena, e, mais tarde, com espada à cintura, pronta para entrar
em batalha, ocupara sua alma. Agora, sim, estava certo de haver sido
visitado desde então, várias vezes, pela tentação de um dia ver
Lucrecia ataviada com botas, chapéu emplumado, casaca de guerreiro, na
hora do amor. A vida é sonho! Embora aquela apresentação tivesse sido
horrível, seu diretor, execrável, e os atores, piores ainda, aquela
atrizinha havia não só perdurado em sua memória, como inflamado muitas
vezes seus sentidos. Além disso, algo na obra o intrigara, porque - a
lembrança era inequívoca - o induziu a lê-la, algum tempo depois.

262

Deviam ter restado algumas anotações sobre essa leitura. Engatinhando
pelo tapete do escritório, dom Rigoberto consultou e descartou um
caderno atrás do outro. Este não, este não. Tinha de ser este. Este era
o ano. - Já estou nua, benzinho - disse a mulata Estrella. - Me deixe
pegar de uma vez nas suas orelhas e no nariz.. Não se faça de rogado.
Não me faça sofrer, não seja malvado. Não vê que estou morrendo de
vontade? Me dê esse gosto, amorzinho, e farei você feliz. Tinha um
corpo cheio e abundante, bem formado, embora um tanto flácido no ventre,
seios esplêndidos, só um pouquinho caídos, e, nos quadris, rolinhos
renascentistas. Nem sequer parecia perceber que Rosaura-Lucrecia, que
também acabava de se despir e de se deitar na cama, não era um homem,
mas uma bela mulher de contornos delineados. A mulata só tinha olhos
para ele, ou melhor, para suas orelhas e seu nariz, que, agora - dom
Rigoberto tinha se sentado na beira da cama para lhe facilitar a
operação -, acariciava com avidez, com fúria. Seus dedos ardentes
massageavam, apertavam e beliscavam com desespero as orelhas dele,
primeiro, e depois o nariz. Ele fechou os olhos, angustiado, porque
adivinhou que esses dedos em seu nariz não demorariam a lhe provocar um
daqueles acessos de alergia que não se detinham antes de - luxuriosa
cifra - sessenta e nove espirros. Aquela aventura mexicana, inspirada em
Calderón de la Barca, terminaria em uma grotesca sessão de descontrole
nasal. Sim, ali estava - dom Rigoberto aproximou o caderno da luz do
abajur: uma página de citações e anotações, feitas à medida que ele ia
lendo, sob o título: A vida é sonho (1638). As duas primeiras citações,
tiradas de monólogos de Segismundo, provocaram-lhe o efeito de duas
chicotadas: "Nada me parece justo / em sendo contra meu gosto." E a
outra: "E sei que sou / um composto de homem e fera" Haveria uma relação
de causa e efeito entre as duas citações que transcrevera naquela
ocasião? Ele mesmo seria um composto de homem e fera, porque nada que
fosse contra seu gosto lhe parecia justo? Talvez. Mas, quando lera essa
obra, depois daquela viagem, não era o homem velho, cansado, solitário
e abatido, a buscar desesperadamente refúgio nas fantasias para não
enlouquecer ou suicidar-se, em que se transformara;

263

era um cinquentão afortunado, exuberante de vida, que, nos braços de sua
segunda e esplendorosa mulher, estava descobrindo que a felicidade
existia, que era possível construir, junto à amada, uma cidadela
singular, amuralhada contra a estupidez, a feiúra, a mediocridade e a
rotina daquela onde passava o resto do dia. Por que havia sentido a
necessidade de tomar essas notas ao ler uma obra que, naquela época, não
tinha nada a ver com sua situação pessoal? Ou tinha? - Eu, com um homem
armado de orelhas e nariz assim, perderia a cabeça e me transformaria em
sua escrava - exclamou a mulata, parando para respirar. - Faria todos
os seus caprichos. Varreria o chão com minha língua, para ele. Estava
sentada sobre os calcanhares e tinha a cara congestionada, suarenta,
como se a tivesse mantido inclinada sobre uma sopa em ebulição. Toda ela
parecia vibrar. Falava passando gulosamente a língua pelos lábios
úmidos com os quais acabava de beijocar, mordiscar e lamber
interminavelmente os órgãos auditivos e olfativos de dom Rigoberto.
Este, aproveitando a pausa, tomou ar e, puxando seu lenço, enxugou as
orelhas. Depois, fazendo muito ruído, assoou o nariz. - Este homem é
meu, e só o empresto a você por esta noite - disse Rosaura-Lucrecia, com
firmeza. - Mas você é o proprietário destas maravilhas? - perguntou
Estrella, sem dar a mínima importância ao diálogo. Suas mãos se
apoderaram do rosto já alarmado de dom Rigoberto e sua grossa boca
avançou de novo, resoluta, em direção às suas presas. - Você nem sequer
percebeu? Eu não sou homem, sou uma mulher - protestou Rosaura-Lucrecia,
exasperada. - Pelo menos, olhe para mim. Mas a mulata a desdenhou, com
um leve movimento de ombros, e prosseguiu fogosamente sua tarefa. Tinha
dentro da bocarra quente a orelha esquerda de dom Rigoberto, e este,
incapaz de se conter, soltou uma gargalhada histérica. Na verdade,
estava muito nervoso. Pressentia que, a qualquer momento, Estrella
passaria do amor ao ódio e lhe arrancaria a orelha com uma dentada.
"Desorelhado, Lucrecia já não me amará", entristeceu-se. Deu um suspiro
profundo, cavernoso, tétrico, semelhante àqueles que o príncipe
Segismundo, barbudo e acorrentado, dava em sua torre secreta,

264

enquanto perguntava aus céus, com gritos desatinados, que delito havia
cometido contra vós por ter nascido. "Essa pergunta é estúpida", disse a
si mesmo dom Rigoberto. Sempre havia desprezado o esporte sul-americano
da auto-compaixão e, sob tal ponto de vista, o principe choraminguento
de CaLderón de la Barca (um jesuíta, ainda por cima), que se apresentava
ao público gemendo "Ai mísero de mim, ai infeliz", não tinha nada para
atraí-lo nem para fazê-lo se identificar com ele. Por que então, no
sonho, seus fantasmas haviam estruturado essa história tomando de
empréstimo os nomes de Rosaura e de Estrella, assim como o disfarce
masculino daquela personagem de A vida é sonho? Talvez porque sua vida se
transformara em puro sonho, desde a partida de Lucrecia. Por acaso
vivia aquelas horas sombrias, opacas, que passava no trabalho discutindo
balanços, apólices, resseguros, avaliações, investimentos? O único
recanto de vida só lhe era trazido pela noite, quando adormecia e em
sua consciência a porta dos sonhos se abria, como devia também acontecer
a Segismundo em sua desolada torre de pedra, naquele bosque distante.
Ele também havia descoberto ali que a vida verdadeira, a rica, a
esplêndida vida que se submetia e se amoldava aos seus caprichos, era a
vida de mentira, aquela que sua mente e seus desejos secretavam -
desperto ou adormecido -, para arrancá-lo da cela e fazê-lo escapar à
asfixiante monotonia de seu confinamento. Afinal, o inesperado sonho
não era gratuito: havia um parentesco, uma afinidade entre os dois
miseráveis sonhadores. Dom Rigoberto recordou um chiste em diminutivos
que, de tão bobo, fizera Lucrecia e ele rirem como duas crianças: "Um
elefantinho se aproximou da margem de um laguinho para beber agüinha e
um crocodilinho o mordeu e lhe arrancou a trombinha. Choramingando, o
elefantinho de nariz chatinho protestava: 'Seu engraçadinho de
merdinha'." - Solte meu nariz e eu lhe dou o que você quiser - implorou,
aterrorizado, com voz fanhosa, tipo Cantinflas, porque os dentinhos
carniceiros de Estrella lhe obturavam a respiração. - O dinheiro que
você pedir. Me solte, por favor! - Cale a boca, que eu estou gozando -
balbuciou a mulata, soltando o nariz de dom Rigoberto por um segundo e
voltando a capturá-lo com sua dupla fileira de dentes vorazes.

265

Hipogrifo violento, ela gozava e voava como o vento, estremecendo-se
toda, enquanto dom Rigoberto, invadido pelo pânico, via pelo rabinho do
olho que Rosaura-Lucrecia, aflita, desconcertada, meio soerguida na
cama, havia segurado a mulata pela cintura e tentava afastá-la com
suavidade, sem forçar, sem dúvida temendo que, se a puxasse, Estrella,
em represália, arrancasse com os dentes o nariz do seu esposo. Assim
ficaram um bom tempo, dóceis, enganchados, enquanto a mulata se
encabritava e gemia, lambendo desenfreada o apêndice nasal de dom
Rigoberto e este, em meio a névoas angustiosas, recordava o monstro de
Bacon, Cabeça de homem, óleo apavorante que durante muito tempo o
deixara obsedado, agora sabia por quê: assim o deixariam as fauces de
Estrella, depois da mordida. O que o aterrorizava não era sua face
mutilada, mas uma pergunta: Lucrecia continuaria amando um marido
desorelhado e desnarigado? Ou o abandonaria? Dom Rigoberto leu em seu
caderno este fragmento: o que foi isso que à minha fantasia ocorreu
quando eu dormia e me trouxe até aqui? Segismundo o recitava ao
despertar do sonho artificial em que (mediante uma mistura de ópio,
dormideira e meimendro) fora submergido pelo rei Basílio e pelo velho
Clotaldo, os quais lhe montavam uma farsa ignóbil, trasladando-o de sua
torre-prisão até a corte, para fazê-lo reinar por um breve lapso,
fazendo-o também crer que essa transição era igualmente um sonho. "O
que aconteceu à sua fantasia enquanto você dormia, pobre príncipe",
pensou, "é que o adormeceram e o mataram com drogas. Devolveram-no por
um tempinho à sua verdadeira condição, fazendo-o acreditar que sonhava.
Então, você tomou as liberdades que a pessoa toma quando goza da
impunidade dos sonhos. Deu rédea solta aos seus desejos, arremessou um
homem do balcão, quase matou o velho Clotaldo e o próprio rei Basílio.
Assim, eles tiveram o pretexto necessário - você era violento, era
irascível, era indigno - para devolvê-lo às correntes e à solidão de sua
prisão." Apesar disso, invejou Segismundo.

266

Também ele, como o
desditoso príncipe condenado pela matemática e pelas estréias a viver
sonhando para não morrer de confinamento e solidão, era aquilo que havia
anotado no caderno: "um esqueleto vivo", "um animado morto". Mas, à
diferença daquele príncipe, nenhum rei Basílio, nenhum nobre Clotaldo
viriam tirá-lo de seu abandono e de sua solidão, para, depois de
adormecê-lo com ópio, dormideira e meimendro, despertá-lo nos braços de
Lucrecia. "Lucrecia, minha Lucrecia", suspirou, percebendo que estava
chorando. Como se tornara chorão neste último ano! Esttella também
lacrimejava, mas de alegria e felicidade. Após o estertor final, durante
o qual dom Rigoberto sentiu uma sacudidela simultânea em todos os feixes
de nervos de seu corpo, abriu a boca, soltou o nariz dele e se deixou
cair de costas sobre a cama forrada de azul, com uma desarmante e beata
exclamação: "Gozei que foi uma delícia, Virgem santa!" E, agradecida,
benzeu-se sem o menor ânimo sacrílego. - Você pode ter achado uma
delícia, certo, mas me deixou sem nariz e sem orelhas, sua delinqüente -
reclamou dom Rigoberto. Tinha absoluta certeza de que as carícias de
Estrella haviam deixado sua cara igual à daquele personagem vegetal de
Arcimboldo que exibia como nariz uma tuberosa cenoura. Com um crescente
sentimento de humilhação, notou, por entre os dedos com os quais
esfregava seu nariz machucado, que Rosaura-Lucrecia, sem um pingo de
compaixão nem preocupação por ele, fitava a mulata (que se
espreguiçava, aplacada, sobre a cama) com curiosidade, um sorrisinho
comprazido flutuando no rosto. - E é disso que você gosta nos homens,
Estrella? - perguntou ela. A mulata assentiu. - A única coisa de que eu
gosto - especificou, suspirando e soltando um bafejo denso, vegetal. - O
resto, podem botar onde o sol não ilumina. Geralmente eu me contenho e
escondo isso, por causa do que vão dizer. Mas, esta noite, me soltei.
Porque nunca vi umas orelhas e um nariz como os do seu homem. Vocês me
deixaram confiante, franguinha. Examinou Lucrecia de alto a baixo com
olhar de conhecedora e pareceu aprová-la. Estendeu uma das mãos,
colocou o indicador no mamilo esquerdo de Rosaura-Lucrecia

267

- don Rigoberto acreditou ver que o botãozinho fendido de sua mulher se
endurecia - e disse, com uma risadinha: - Descobri que você é mulher
quando estávamos dançando, na boate. Senti seus peitinhos e me dei conta
de que você não sabia conduzir sua parceira. Fui eu que a conduzi, e
não o contrário. - Pois dissimulou muito bem, eu achei que havia
enganado você - felicitou-a dona Lucrecia. Sempre esfregando o nariz
acariciado e as orelhas ressentidas, dom Rigoberto sentiu uma nova onda
de admiração por sua mulher. Como ela podia ser versátil e adaptável!
Era a primeira vez em sua vida que Lucrecia fazia coisas assim -
vestir-se de homem, ir a um reles cabaré de putas em um país
estrangeiro, meter-se em um hotel vagabundo com uma dessas sujeitinhas
-, e, no entanto, não denotava o menor incômodo, desassossego ou
aborrecimento. Ali estava, conversando descontraída com a mulata
otorrinolaringologista,

como se fosse igual a ela, dos mesmos ambiente e profissão. Pareciam
duas boas colegas, trocando experiências durante um momento de folga em
sua atarefada jornada. E como era bela, como lhe parecia desejável!
Para saborear esse espetáculo de sua mulher nua junto de Estrella, nesse
tosco enxergão de colcha azulada, na meia-luz oleosa, dom Rigoberto
fechou os olhos. Ela estava reclinada de lado, o rosto apoiado na mão
esquerda, em um abandono que realçava a deliciosa espontaneidade de sua
postura. Sua pele parecia muito mais branca nessa luz pobre, seus
cabelos curtos, muito mais negros, e o tufinho do púbis, azulado de tão
retinto. Enquanto, apaixonadamente, acompanhava os suaves meandros das
coxas e do dorso de sua amada, e lhe escalava as nádegas, os seios e os
ombros, dom Rigoberto foi esquecendo suas orelhas doloridas, seu nariz
maltratado, e também Estrella, o hotelzinho ordinário onde se haviam
refugiado e a Cidade do México: o corpo de Lucrecia foi colonizando sua
consciência, deslocando, eliminando qualquer outra imagem, consideração
ou preocupação. Nem Rosaura-Lucrecia nem Estrella pareciam notar - ou,
talvez, não dessem importância ao fato - que ele, maquinalmente, fora
tirando a gravata, o paletó, a camisa, os sapatos, as meias, a calça e
a cueca, lançando cada peça ao avariado chão de linóleo esverdeado.

268

Não lhe prestaram atenção nem sequer quando, de joelhos ao pé da
cama, ele começou a acariciar com as mãos e a beijar respeitosamente as
pernas de sua mulher. Continuaram absorvidas em suas confidências e
fofocas, indiferentes, como se não o vissem, como se o fantasma fosse
ele. "E sou", refletiu, abrindo os olhos. A excitação continuava ali,
golpeando-lhe as pernas, já sem muita convicção, como um badalo
enferrujado que golpeia o velho sino desafinado pelo tempo e pela
rotina de uma igrejinha sem paroquianos, sem a menor alegria nem
decisão. E, então, a memória lhe devolveu o profundo desagrado - o gosto
ruim na boca, na verdade - deixado nele pelo final cortesão, abjetamente
servil ao princípio de autoridade e à imoral razão de Estado, daquela
obra de Calderón de la Barca, quando, ao soldado que iniciou contra o
rei Basílio a rebelião graças à qual o príncipe Segismundo consegue
ocupar o trono da Polônia, o novo rei, mal-agradecido e canalha, impõe a
pena de apodrecer pelo resto da vida na torre onde ele mesmo padecera,
sob o argumento - o caderno reproduzia os versos pavorosos - "do
traidor não ha necessidade / sendo a traição passada". "Filosofia
horrenda, moral repugnante", refletiu, esquecendo transitoriamente sua
bela mulher despida, a quem, no entanto, continuava a acariciar de
maneira maquinal. "Por ser conveniente defender acima de tudo a
obediência à autoridade constituída, condenar o princípio e a própria
idéia de rebeldia contra o rei, o príncipe perdoa Basílio e Clotaldo,
seus opressores e torturadores, e castiga o valente soldado anônimo que
insuflou a tropa contra o injusto monarca, tirou Segismundo de sua
masmorra e o colocou no trono. Que nojo!" Por acaso uma obra
envenenada por essa doutrina desumana, inimiga da liberdade, merecia
ocupar e alimentar seus sonhos, preencher seus desejos? No entanto,
tinha de existir alguma razão para que, nessa noite, seus fantasmas
tomassem posse tão completa e exclusiva de seu sonho. Voltou a examinar
os cadernos, em busca de uma explicação. O velho Clotaldo chamava a
pistola de "serpente de metal", e a disfarçada Rosaura se perguntava "se
a vista não padece enganos / criados pela fantasia, / à medrosa luz que
ainda tem o dia". Dom Rigoberto olhou na direção do mar. Ao longe, na
linha do horizonte, uma medrosa luz anunciava o novo dia,

269

aquela luz que, a cada manhã, destruía violentamente seu pequeno mundo
de ilusão e sombras onde ele era feliz (feliz? Não: onde era apenas um
pouco menos desditoso) e o devolvia à rotina carcerária de cinco dias
por semana (chuveiro, desjejum, trabalho, almoço, trabalho, jantar), em
que mal lhe restava uma brecha para filtrar suas invenções. Havia uns
versinhos anotados, com uma indicação à margem que dizia "Lucrecia" e
uma setinha assinalando-os: "... mesclando,/ aos trajes custosos de
Diana, os arneses / de Palas". A caçadora e a guerreira, confundidas em
sua amada Lucrecia. Por que não? Mas, evidentemente, não era isso o que
havia incrustado a história do príncipe Segismundo no fundo de seu
subconsciente, nem o que a tinha atualizado em suas fantasias desta
noite. O quê, então? "Não é possível que caibam / em um sonho tantas
coisas", assombrava-se o príncipe. "Você é um idiota", replicou-lhe dom
Rigoberto. "Em um único sonho cabe toda a vida." Emocionou-se com a
resposta de Segismundo, ao ser transferido, sob o efeito da droga, de
seu cárcere ao palácio, quando lhe perguntavam o que mais o
impressionara ao retornar ao mundo: "Nada me fez enlevado /pois tudo eu
tinha antecipado; mas se para admirar-me houvesse porventura / algo no
mundo, seria a formosura / da mulher" "E isso sem nunca ter visto
Lucrecia", pensou. Ele a via agora, esplêndida, sobrenatural, derramada
naquela colcha azul, ronronando delicadamente com as cócegas que seu
amoroso marido lhe fazia ao beijá-la nas axilas. A amável Estrella havia
se levantado, cedendo a dom Rigoberto o lugar que ocupava na cama junto
de Rosaura-Lucrecia, e fora se sentar no canto onde dom Rigoberto
estava antes, quando ela se afanava com as orelhas e o nariz dele.
Mantinha-se discreta e imóvel, sem querer distraí-los nem
interrompê-los, e os observava com curiosidade simpática, enquanto os
dois se abraçavam, se entrelaçavam e começavam a se amar. O que é a
vida? Um frenesi. O que é a vida? Uma ilusão, uma sombra, uma ficção, e
o maior bem é bisonho; pois toda a vida é um sonho, e os sonhos, sonhos
são.

270

"Mentira", disse ele em voz alta, golpeando a mesa do escritório. A vida
não era um sonho, os sonhos eram uma mentira débil, um embuste fugaz que
só servia para escapar transitoriamente das frustrações e da solidão, e
para melhor apreciar, com amargura mais dolorosa, como era bela e
substancial a vida verdadeira, aquela em que se comia, se tocava e se
bebia, tão superior e plena quando comparada ao simulacro que,
conjurados, os desejos e a fantasia mimetizavam. Abatido pela angústia
- já era dia, a luz do amanhecer revelava as escarpas cinzentas, o mar
plúmbeo, as nuvens pançudas, a mureta arruinada e o calçamento leproso
-, agarrou-se ao corpo nu de Lucrecia-Rosaura, com desespero, para
aproveitar esses últimos segundos, em busca de um prazer impossível, com
o pressentimento grotesco de que a qualquer momento, talvez no do
êxtase, sentiria aterrissarem sobre suas orelhas as súbitas mãos da
mulata.

A VÍBORA E A LAMPREIA

Pensando em ti, li A perfeita casada, de
frei Luís de León, e entendi por que, dada a idéia de matrimônio que
pregava, aquele refinado poeta preferiu, ao leito nupcial, a
abstinência e os hábitos agostinianos. Contudo, nessas páginas de boa
prosa, e exuberantes de comicidade involuntária, encontrei esta citação
do bem-aventurado São Basílio que se encaixa como uma luva, adivinha em
que mão marfínea de mulher excepcional, esposa modelo e amante
saudosíssima?: A víbora, animal ferocíssimo entre as serpentes, vai
diligente casar-se com a lampreia marinha; ao chegar, silva, como se
avisasse que está ali, para desta maneira atraí-la do mar e fazê-la.
abraçar-se maritalmente com ela. A lampreia obedece, e junta-se sem medo
à peçonhenta fera. O que digo com isto ? O quê? Que, por mais áspero e
de mais feras condições que o marido seja, é necessário que a mulher o
suporte, e em nenhuma ocasião consinta em romper apaz. Oh! Ele é um
verdugo?Mas é teu marido! É um bêbado? Mas o laço matrimonial fê-lo um
contigo. Um áspero, um desaprazível! Mas já membro teu, e membro o mais
principal.

271

E, para que o marido ouça o que também lhe convém: a víbora então, por
respeito ao ajuntamento que faz, aparta de si sua peçonha, e tu não
deixarás a crueza desumana de teu natural, por honra do matrimônio?
Isto é de Basílio. Frei Luis de León, A perfeita casada, cap. III.
Abraça-te maritalmente com esta víbora, lampreia amadíssima.

EPÍLOGO

UMA FAMÍLIA FELIZ

- Afinal, esse piquenique não foi tão desastroso assim -
disse dom Rigoberto, com um sorriso amplo. - Serviu para aprendermos uma
lição: em casa, fica-se melhor do que em qualquer lugar. E, sobretudo,
melhor do que no campo. Dona Lucrecia e Fonchito celebraram o
comentário, e até Justiniana, que nesse momento trazia os sanduíches de
frango, abacate, ovo e tomate a que ficara reduzido o almoço por culpa
do piquenique frustrado, também começou a rir. - Agora sei o que
significa pensar positivo, maridinho - felicitou-o dona Lucrecia. - E
ter atitudes construtivas diante da adversidade. - Fazer do limão uma
limonada - reforçou Fonchito. - Isto mesmo, papai! - É que, hoje, nada
nem ninguém pode ofuscar minha felicidade - assentiu dom Rigoberto,
dando uma olhada nos sanduíches. - Não digo um piquenique miserável. Nem
mesmo uma bomba atômica me afetaria. Bem, saúde! Bebeu um gole de
cerveja fria com visível satisfação e deu uma mordida no sanduíche de
frango. O sol de Chaclacayo lhe queimara a testa, a cara e os braços,
avermelhados pela insolação. De fato, mostrava-se muito contente,
desfrutando do almoço improvisado. Dele tinha vindo a idéia, na noite
anterior, de um piquenique em Chaclacayo, nesse domingo, para fugir da
neblina e da umidade de Lima e desfrutar do bom tempo em contato com a
natureza, à beira do rio e em família. Dona Lucrecia estranhou bastante
essa proposta, pois recordava o santo horror que o universo campestre
sempre despertara em seu marido, mas aceitou de bom grado. Não estavam
estreando uma segunda lua de mel? Estreariam, também, novos hábitos.
Partiram de manhã, na hora prevista - nove -, equipados com uma boa
provisão de bebidas e um almoço completo,

276

preparado pela cozinheira,
que incluía alfajores com manjar-liranço, a soliri-mi1-sa
preferida de dom Rigoberto. A primeira coisa que deu errado foi a
rodovia do centro, lotada a tal ponto que o avanço era lentíssimo, e
isso quando avançavam, entre caminhões, ônibus e todo tipo de veículos
desconjuntados que, além de engarrafar a estrada e de paralisar o
tráfego por longos intervalos, soltavam pelo escapamento aberto uma
fumaça enegrecida e um fedor de gasolina queimada que estonteavam.
Chegaram a Chaclacayo depois do meio-dia, exaustos e congestionados.
Encontrar um lugar adequado, junto ao rio, revelou-se mais árduo do que
haviam imaginado. Antes de tomar o atalho que os aproximaria da margem
do Rímac - que nessa altura não era como em Lima, parecia um rio de
verdade, largo, cheio de água, decorado de espuma e ondínhas saltitantes
nos pontos onde batia contra as pedras e rochedos -, tiveram de dar
voltas e mais voltas que sempre os devolviam à maldita estrada. Quando,
graças à ajuda de um morador compassivo, descobriram um desvio que os
levou até a margem, em vez de melhorar, as coisas pioraram. Nesse lugar,
o Rímac servia de lixão à vizinhança (assim como de mijadouro e
cagatório), a qual havia lançado ali todos os refugos imagináveis -
desde papéis, latas e garrafas vazias, até restos de comida, excrementos
e animais mortos -, de modo que, além da vista deprimente, uma
insuportável hediondez maculava a área. Nuvens de moscas agressivas os
obrigaram a tapar as bocas com as mãos. Nada disso parecia combinar com
a bucólica expedição esperada por dom Rigoberto. Este, no entanto,
armado de uma paciência indestrutível e de um otimismo de cruzado que
maravilhavam sua mulher e seu filho, persuadiu a família a não se
deixar abalar pelas casuais circunstâncias. Continuaram procurando.
Quando, um bom tempo depois, pareceu que chegavam a um lugar mais
hospitaleiro - ou seja, desprovido de fedores mefíticos e de monturo -,
o espaço já estava tomado por incontáveis grupos familiares que, alguns
embaixo de barracas de praia, comiam talharins lambuzados com um molho
avermelhado e escutavam música tropical, a todo o volume, em rádios e
toca-fitas portáteis. O erro que cometeram nessa hora foi de exclusiva
responsabilidade de dom Rigoberto,

277

embora inspirado no mais legítimo dos desejos: em busca de um mínimo de
privacidade, afastar-se um pouco da multidão de comedores de massa, para
os quais, pelo visto, era inconcebível sair da cidade por algumas horas
sem levar consigo esse produto urbano por antonomásia que é o ruído. Dom
Rigoberto acreditou ter encontrado a solução. Como um escoteiro, propôs
que, tirando os sapatos e arregaçando a calça, atravessassem um trecho
de rio em direção ao que parecia uma minúscula ilha de areia, cascalho e
esboços de mato, a qual, miraculosamente, não estava ocupada pela
numerosa coletividade domingueira. Assim fizeram. Ou melhor, começaram a
fazer, carregando as sacolas de comida e bebida preparadas pela
cozinheira para a excursão campestre. A poucos metros da idílica ilhota,
dom Rigoberto escorregou em uma forma cartilaginosa. Caiu sentado nas
frescas águas do rio Rímac, o que, em si, não teria importância,
considerando-se o calor que fazia e o tanto que ele suava, se, junto com
sua pessoa, não tivesse também naufragado a cesta do piquenique, a
qual, para acrescentar um toque de comicidade ao acidente, antes de ir
repousar no leito do rio esparramou-se toda, espalhando à direita e à
esquerda das turbulentas águas, que já os arrastavam em direção a Lima e
ao oceano Pacífico, o picante ceviche, o arroz com pato e os alfajores
com manjar-branco, assim como a primorosa toalha e os guardanapos
quadriculadinhos em vermelho e branco que dona Lucrecia havia escolhido
para o piquenique. - Podem rir, sem problema, não precisam se segurar,
eu não vou me aborrecer - dizia dom Rigoberto à esposa e ao filho, os
quais, ajudando-o a se levantar, faziam umas caretas grotescas e
tentavam sofrear as gargalhadas. As pessoas da margem também riam, ao
vê-lo encharcado dos pés à cabeça. Disposto ao heroísmo (pela primeira
vez em sua vida?), dom Rigoberto sugeriu perseverar e ficar, alegando
que o sol de Chaclacayo o secaria em três tempos. Dona Lucrecia foi
taxativa. De jeito nenhum, ele podia pegar uma pneumonia, tinham de
retornar a Lima. E o fizeram, derrotados, embora sem ceder ao desespero.
E rindo carinhosamente do pobre dom Rigoberto, que havia tirado a calça
e dirigia de cueca. Chegaram à casa de Barranco por volta das cinco da
tarde. Enquanto dom Rigoberto tomava banho e trocava de roupa, dona
Lucrecia, ajudada por Justiniana, que acabava de voltar de sua folga
semanal

278

- o mordomo e a cozinheira só retornariam à noite -, preparou os
sanduíches de frango com abacate, tomate e ovo desse tardio e acidentado
almoço. - Desde que fez as pazes com minha madrasta, você ficou muito
bom, papai.. Dom Rigoberto afastou a boca do sanduíche meio comido.
Pensou um pouco. - Está falando sério ? - Muito sério - replicou o
menino, virando-se para dona Lucrecia. - Não é verdade, madrasta? Faz
dois dias que ele não resmunga nem se queixa de nada, está de bom humor
e dizendo coisas bonitas o tempo todo. Isso não é ser bom? - Só estamos
reconciliados há dois dias - riu dona Lucrecia. Mas, ficando séria e
fitando seu marido com ternura, acrescentou: - Na realidade, ele sempre
foi boníssimo. Você demorou um pouco a perceber, Fonchito. - Não sei se
me agrada que me chamem de bom. - reagiu finalmente dom Rigoberto,
adotando uma expressão desconfiada. - Todas as pessoas boas que conheci
eram um pouco imbecis. Como se tivessem ficado boas por falta de
imaginação e de apetites. Espero que, por me sentir contente, eu não
esteja me tornando mais imbecil do que sou. - Não há perigo. - A
senhora Lucrecia aproximou o rosto do de seu marido e o beijou na testa.
- Você é tudo no mundo, menos isso. Estava muito bonita, com as faces
arrebatadas pelo sol de Chaclacayo, ombros e braços nus, naquele leve
vestido florido, de percal, que lhe dava uma aparência fresca e
saudável. "Como está bonita, rejuvenescida", pensou dom Rigoberto,
deleitando-se com o espigado pescoço de sua mulher e com a graciosa
curva de uma das orelhas, na qual se enrascava uma mecha solta dos
cabelos, presos na nuca por uma fita amarela, a mesma das sapatilhas do
passeio. Onze anos tinham se passado e ela estava mais jovem e atraente
do que no dia em que ele a conhecera. E onde se refletiam mais essa
saúde e essa beleza física que desafiavam a cronologia? "Nos olhos",
respondeu a si mesmo. Esses olhos que mudavam de cor, de um
castanho-claro a um verde-escuro, a um suave negro. Agora, pareciam
muito claros sob os longos cílios escuros, e animados por uma luz
alegre, quase cintilante.

279

Sem perceber a contemplação de que era objeto, sua mulher dava conta com
apetite do segundo sanduíche de abacate com tomate e ovo, e de vez em
quando bebia uns golinhos de cerveja fria que deixavam úmidos os seus
lábios. Era a felicidade, esta sensação que o embargava? Esta admiração,
esta gratidão, este desejo que sentia por Lucrecia? Sim. Com todas as
suas forças, dom Rigoberto desejou que voassem as horas que faltavam
para o anoitecer. Mais uma vez, estariam sozinhos e ele teria nos braços
sua adorável mulherzinha, finalmente aqui, em carne e osso. - A única
coisa em que às vezes não me sinto tão parecido com Egon Schiele é que
ele gostava muito do campo e eu, nada - disse Fonchito, prosseguindo em
voz alta uma reflexão iniciada em silêncio havia tempo. - Nisso, puxei
a você, papai. Também não gosto nem um pouco de ficar admirando árvores
e vaquinhas. - Por isso o piquenique deu com os burros n'água
--filosofou dom Rigoberto. - Uma vingança da natureza contra dois
inimigos. O que você disse mesmo de Egon Schiele? - Que a única coisa em
que não me pareço com ele é nessa coisa do campo, ele gostava e eu não -
explicou Fonchito. - Pagou caro por seu amor à natureza. Chegou a ser
preso e passou um mês na cadeia, onde quase enlouqueceu. Se tivesse
ficado em Viena, isso nunca teria acontecido. - Como você está bem
informado sobre a vida de Egon Schiele, Fonchito! - surpreendeu-se dom
Rigoberto. - Você nem imagina quanto - interrompeu dona Lucrecia. - Sabe
de cor tudo o que ele fez, disse, escreveu, tudo o que lhe aconteceu em
seus vinte e oito anos de vida. Conhece todos os quadros, desenhos e
gravuras, com títulos e datas. E até se acredita um Egon Schiele
reencarnado. Eu chego a me assustar, juro. Dom Rigoberto não riu.
Limitou-se a assentir, como que ponderando essa informação com o maior
cuidado, mas, na verdade, dissimulando o súbito aparecimento em sua
mente de uma minhoquinha, uma estúpida curiosidade, essa mãe de todos os
vícios. Como Lucrecia havia tomado conhecimento de que Fonchito sabia
tantas coisas sobre Egon Schiele? "Schiele!", pensou. "Variante
extraviada do expressionismo, a quem Oscar Kokoschka chamava, com toda a
justiça, de pornógrafo."

280

Descobriu-se possuído por um ódio visceral, ácido, bilioso, contra Egon
Schiele. Bendita a gripe espanhola que o Levou! De onde Lucrecia sabia
que Fonchito se acreditava aquele rabiscador abortado pelos últimos
vagidos do império austro- húngaro, sobre o qual, também em boa hora, o
alçapão se fechara? O pior era que, inconsciente de estar afundando nas
águas pútridas da autodelação, dona Lucrecia continuava a torturá-lo: -
Estou contente por tocarmos neste assunto, Rigoberto. Faz tempo que eu
queria lhe falar disso, até pensei em lhe escrever. Ando muito
preocupada com a mania deste menino por esse pintor. Sim, Fonchito. Por
que não conversamos, os três? Quem melhor do que seu pai para lhe dar
conselhos? Eu já lhe disse várias vezes. Não é que me pareça ruim essa
sua paixão por Egon Schiele. Mas você está ficando obsessivo. Não se
importa se nós três trocarmos umas idéias, não é? - Acho que o papai não
está se sentindo bem, madrasta - limitou-se Fonchito a dizer, com uma
candura que dom Rigoberto entendeu como uma afronta suplementar. - Meu
Deus, como você está pálido. Viu? Eu avisei, aquela encharcada no rio
lhe fez mal. - Não é nada, não é nada - disse dom Rigoberto, com uma
vozinha difusa, para tranqüilizar sua mulher. - Um pedaço grande demais,
e engasguei. Um ossinho, acho. Pronto, já engoli. Estou bem, não se
preocupe. - Mas está todo trêmulo - alarmou-se dona Lucrecia, tocando a
testa dele. - Você se resfriou, claro. Um chazinho de capim-limão e duas
aspirinas, agora mesmo. Vou preparar. Não, não proteste. E depois,
cama, sem chiar. Nem sequer a palavra cama reanimou um pouco dom
Rigoberto, que, em poucos minutos, havia passado da alegria e do
entusiasmo vitais a um desânimo confuso. Viu que dona Lucrecia se
afastava às pressas rumo à cozinha. Como o olhar transparente de
Fonchito o incomodava, disse, para quebrar o silêncio: - Schiele esteve
preso por ter ido ao campo? - Por ter ido ao campo, não, que idéia -
respondeu seu filho, com uma risada. - Foi acusado de imoralidade e
sedução. Em uma aldeiazinha chamada Neulengbach. Isso nunca teria
acontecido se ele ficasse em Viena.

281

- Ah, é? Me conte - convidou dom Rigoberto, consciente de que tentava
ganhar tempo, embora não soubesse para quê. Em vez do glorioso e
ensolarado esplendor dos últimos dois dias, seu estado de espírito,
neste momento, era uma calamidade com aguaceiros, raios e trovões.
Apelando para um recurso que havia funcionado outras vezes, tentou se
acalmar enumerando mentalmente figuras mitológicas. Ciclopes, sereias,
lestrigões, lotófagos, circes, calipsos. Aí ficou. Tinha acontecido na
primavera de 1912; no mês de abril, exatamente, explicava o menino com
loquacidade. Egon e sua amante Wally (um apelido, ela se chamava Valeria
Neuzil) estavam em pleno campo, em uma casinha alugada, nos arredores
dessa aldeia difícil de pronunciar. Neulengbach. Egon costumava pintar
ao ar livre, aproveitando o tempo bom. E, uma tarde, apareceu por ali
uma mocinha, procurando conversa. Conversaram e não aconteceu nada. A
garota voltou várias vezes. Até que, em uma noite de temporal, chegou
ensopada e anunciou a Wally e Egon que havia fugido da casa dos pais.
Eles tentaram convencê-la, você fez mal, volte para casa, e ela, não,
não, me deixem pelo menos passar a noite com vocês. Concordaram. A
garota dormiu com Wally; Egon Schiele, em outro quarto. No dia
seguinte... mas o retorno de dona Lucrecia, trazendo uma infusão
fumegante de capim-limão e duas aspirinas, interrompeu a narração de
Fonchito, que, aliás, dom Rigoberto mal escutava. - Beba todinho, assim,
bem quente - mimou-o dona Lucrecia. - Com as duas aspirinas. E depois,
cama, para nanar. Não quero que você se resfrie, meu velhinho. Dom
Rigoberto sentiu - suas grandes narinas aspiravam a fragrância
jardineira do capim-limão - que os lábios de sua esposa pousavam alguns
segundos sobre os ralos cabelos de seu crânio. - Estou contando a ele a
prisão de Egon, madrasta - esclareceu Fonchito. - Já lhe contei tantas
vezes que você não vai agüentar ouvir de novo. - Não, não, tudo bem,
continue - animou-o ela. - Mas é verdade, já sei tudo de cor. - Quando
você contou esta história à sua madrasta? - deixou escapar entre os
dentes dom Rigoberto, enquanto soprava o chá de capim-limão,

282

- Se ela só está aqui em casa há dois dias, e eu a monopolizei o tempo
todo? - Quando ia visitá-la na casinha do Olivar - retrucou o menino,
com. sua cristalina franqueza habitual. - Ela não lhe contou? Dom
Rigoberto sentiu que o ar da sala de jantar se eletrizava. Para não ter
de falar nem de olhar para sua esposa, tomou um gole heróico do ardente
capim-limão, que lhe queimou a garganta e o esòfago. O inferno se
instalou em suas entranhas. - Ainda não tive tempo - ouviu dona Lucrecia
murmurar. Olhou-a e - ai, ai! - ela estava lívida. - Mas é claro que ia
contar. Por acaso essas visitas tinham algo de errado? - O que iriam
ter de errado? - disse dom Rigoberto, engolindo outro sorvo do inferno
líquido e perfumado. - Acho muito bom que você tenha ido ver sua
madrasta para lhe dar notícias minhas, Fonchito. E essa história de
Schiele e sua amante? Você parou no meio, e eu quero saber como
termina. - Posso continuar? - alegrou-se o menino. Dom Rigoberto sentia
sua garganta como uma verdadeira chaga e adivinhava que sua esposa, muda
e petrificada ao seu lado, tinha o coração saindo pela boca. Igual a
ele. Bom, então... No dia seguinte, Egon e Wally levaram a garota, de
trem, para Viena, onde a avó dela morava. A garota havia prometido que
ficaria lá, com essa senhora. Mas, na cidade, se arrependeu e acabou
passando a noite com Wally, em um hotel. Egon e sua amante, na manhã
seguinte, retornaram com a mocinha a Neulengbach, onde ela permaneceu
mais dois dias. No terceiro, apareceu o pai. Enfrentou Egon do lado de
fora, onde ele estava pintando. Muito alterado, o pai da mocinha avisou
que havia denunciado o pintor à polícia, acusando-o de sedução, porque
sua filha era menor. Enquanto Schiele tentava acalmá-lo, explicando que
não tinha acontecido nada, dentro da casa, a garota, ao descobrir o
pai, pegou uma tesoura e tentou cortar os pulsos. Mas Wally, Egon e o
pai conseguiram impedi-la e ajudá-la. Ela e o pai conversaram e fizeram
as pazes. Partiram juntos, e Wally e Egon acharam que estava tudo
resolvido. Mas claro que não foi assim. Poucos dias depois, a polícia
apareceu para prendê-lo.

283

Escutavam seu relato? Aparentemente, sim, pois tanto dom Rigoberto como
dona Lucrecia estavam imóveis e pareciam ter perdido não só os
movimentos, mas também a respiração. Tinham os olhos cravados no menino,
e ao longo da história, feita sem vacilações, com pausas e ênfases de
bom narrador, nenhum dos dois sequer pestanejou. Mas e a palidez que
exibiam? E as miradas concentradas e absortas? Estariam tão comovidos
assim por aquele antigo episódio com aquele pintor longínquo? Essas eram
as perguntas que dom Rigoberto acreditava ler nos grandes olhos vivazes
de Fonchito, que agora examinavam um e outro, com calma, como que
esperando um comentário. O menino estaria rindo deles? Rindo dele? Dom
Rigoberto fitou os olhos claros e translúcidos de seu filho, procurando
o brilho malévolo, a piscadela ou inflexão de luminosidade que
delatasse o maquiavelismo, a estratégia, a dubiedade. Não descobriu
nada: só mesmo a mirada sã, límpida, pulcra, de uma consciência
inocente. - Continuo, ou você já se cansou, papai? Dom Rigoberto negou
com a cabeça e, fazendo um grande esforço - sua garganta estava seca e
áspera como uma lixa -, murmurou: "E o que aconteceu com ele na prisão?"
Tinha sido mantido vinte e quatro dias atrás das grades, acusado de
sedução e imoralidade. Sedução, pelo episódio da garota, e imoralidade,
por uns quadros e desenhos de nus que a polícia encontrou na casa. Como
ficou demonstrado que ele não tinha tocado na mocinha, foi absolvido da
primeira acusação. Mas não da de imoralidade. O juiz considerou que,
como a casa era visitada por menores, garotas e garotos que podiam ter
visto os nus, Schiele merecia um castigo. Qual? Queimar o mais imoral
dos seus desenhos. Na prisão, sofreu o indizível. Nos autorretratos que
pintou em seu calabouço, aparecia muito magro, barbado, olhos fundos,
expressão cadavérica. Manteve nesse período um diário no qual escreveu
("Espere, espere, eu sei a frase de cor"): "Eu, que sou, por natureza,
um dos seres mais livres, vejo-me atado por uma lei que não é a das
massas." Pintou treze aquarelas, e isso o salvou de enlouquecer ou de se
matar: o catre, a porta, a janela e uma luminosa maçã, uma das que Wally
lhe levava diariamente. A cada manhã, ela se plantava em um ponto
estratégico, nos arredores da prisão, e Egon podia vê-la através das
barras de sua cela.

284

Porque Wally o amava muito e se comportou maravilhosamente com ele,
nesse mês terrível, dando-lhe todo o seu apoio. Egon, ao contrário, não
devia amá-la tanto assim. Ele a pintava, é verdade; usava-a como modelo,
é verdade; mas não fazia isso só com ela, fazia com muitas outras,
sobretudo com aquelas menininhas que recolhia nas ruas e mantinha por
perto, meio despidas, enquanto as pintava em todas as poses imagináveis,
encarapitado em sua escada. As menininhas e os menininhos eram sua
obsessão. Morria de amores por eles e, bom, parece que não só para
pintá-los, mas também que os amava de verdade, no bom e no mau sentidos
da palavra. Era o que diziam seus biógrafos. Que, junto com sua
condição de artista, ele era também um pouco pervertido, pois tinha
predileção por meninos e meninas... - Bem, bem, acho que me resfriei um
pouco, de fato - interrompeu dom Rigoberto, levantando-se tão
bruscamente que derrubou no chão o guardanapo que mantinha sobre as
pernas. - É melhor seguir seu conselho, Lucrecia, vou me deitar. Não
quero pegar uma daquelas gripes cavalares que me atacam. Falou sem
encarar sua mulher, só seu filho, o qual, quando o viu de pé, se calou
e adotou uma expressão alarmada, como se estivesse ansioso por ajudar.
Dom Rigoberto tampouco olhou para Lucrecia ao passar ao seu lado rumo à
escada, apesar da curiosidade que o devorava por saber se ela ainda
estava lívida, ou antes rubra, de indignação, de surpresa, de
incerteza, de desassossego, perguntando-se, como ele, se aquilo que o
menino havia dito e feito obedecia a uma maquinação ou era obra do acaso
intrigante, rocambolesco, frustrante e mesquinho, inimigo da
felicidade. Percebeu que arrastava os pés, como um ancião decrépito, e
se empertigou. Subiu os degraus em um ritmo vivo, como que para
demonstrar (a quem?) que ainda era um homem enérgico e em plena forma.
Depois de tirar apenas os sapatos, deitou-se de costas na cama e fechou
os olhos. Seu corpo ardia, febril. Viu uma sinfonia de pontos azuis na
escuridão de suas pálpebras e teve a impressão de ouvir o beligerante
zumbido das vespas que havia escutado naquela manhã, durante o
piquenique frustrado. Pouco depois, como que sob o efeito de um forte
sonífero, caiu no sono. Ou desmaiou? Sonhou que estava com caxumba

285

e que Fonchito o advertia, com voz de adulto e ares de especialista:
"Cuidado, papai! Trata-se de um vírus filtrável e, se descer até os
bagos, eles vão virar duas bolas de tênis, e será preciso arrancá-los.
Como os dentes do siso, do juízo, mas o final!" Despertou ofegante,
banhado em suor - dona Lucrecia lhe jogara em cima uma coberta -, e
notou que a noite havia caído. Estava escuro, o céu não tinha estrelas,
a neblina apagava as luzes do calçadão de Miraflores. A porta do
banheiro se abriu e, no meio do jorro de luz que entrou no quarto
penumbroso, apareceu dona Lucrecia, de robe, pronta para se deitar. -
Ele é um monstro? - perguntou-lhe dom Rigoberto, angustiado. - Será que
se dá conta do que faz, do que diz? Faz conscientemente o que faz,
medindo as conseqüências? Ou será que não? Que é simplesmente um menino
travesso, cujas travessuras resultam monstruosas, sem que ele queira?
Sua mulher se deixou cair no pé da cama. - Eu me pergunto isso todos os
dias, muitas vezes por dia - disse, muito abatida, suspirando. - Creio
que nem ele sabe. Você está melhor? Dormiu umas duas horas. Fiz uma
limonada bem quente, está aí na garrafa térmica. Quer um copinho? A
propósito, escute. Eu nunca pensei em lhe esconder que Fonchito ia me
visitar no Olivar. Mas fui deixando passar, nesses dois dias tão
atarefados. - Claro - atrapalhou-se dom Rigoberto, gesticulando. - Não
vamos falar disso, por favor. Ficou de pé e, murmurando "É a primeira
vez que adormeço fora de hora", foi até seu quarto de vestir. Despiu-se;
de roupão e chinelos, trancou-se no banheiro para as minuciosas
abluções que costumava fazer antes de dormir. Sentia-se acabrunhado,
confuso, com um zumbido na cabeça que parecia pressagiar uma gripe
forte. Abriu a torneira de água quente da banheira e espalhou por cima
meio frasco de sais. Enquanto a banheira se enchia, passou fio dental,
escovou os dentes e, com uma pinça fina, depurou suas orelhas dos
pelinhos recentes. Havia quanto tempo abandonara o costume de dedicar um
dia da semana, além do banho cotidiano, à higiene especial de cada um
dos seus órgãos? Desde que se separara de Lucrecia. Um ano, mais ou
menos. Restabeleceria aquela saudável rotina semanal: segunda, orelhas;
terça, nariz; quarta, pés; quinta, mãos; sexta, boca e dentes.

286

Et cetera. Submerso na banheira, sentiu-se menos desanimado. Tentou
adivinhar se Lucrecia já se metera embaixo dos lençóis, que camisola
ela estava usando?, estaria nua?, e conseguiu que por alguns momentos a
presença agourenta se eclipsasse de sua cabeça: a casinha do Olivar de
San Isidro, uma figurinha infantil de pé junto à porta, um dedinho
tocando a campainha. De uma vez por todas, devia tornar uma decisão
quanto ao menino. Mas qual? Todas pareciam ineptas ou impossíveis.
Depois de sair da banheira e de se enxugar, friccionou-se com
água-de-colônia da loja Floris, de Londres, de onde um colega e amigo do
Lloyd's lhe fazia remessas periódicas de sabonetes, cremes de barbear,
desodorantes, talcos e perfumes. Vestiu um pijama de seda limpo e deixou
o roupão pendurado no quarto de vestir. Dona Lucrecia já estava na cama.
Tinha apagado as luzes do dormitório, exceto a de sua mesa de cabeceira.
Lá fora, o mar batia violentamente contra os rochedos de Barranco e o
vento soltava lamentos lúgubres. Ele sentia seu coração latejar com
força, enquanto deslizava sob os lençóis, junto à esposa. Um suave aroma
de ervas frescas, de flores úmidas de orvalho, de primavera,
penetrou-lhe as narinas e lhe chegou até o cérebro. Quase levitando, de
tão tenso que estava, podia perceber, a milímetros de sua perna
esquerda, a coxa de sua mulher. Na luz escassa e indireta, viu que
Lucrecia usava uma camisola de seda cor-de-rosa, presa nos ombros por
duas alcinhas finas, com uma orla de renda pela qual ele divisava os
seios dela. Suspirou, transformado. O desejo, impetuoso, liberador,
agora preenchia seu corpo, transbordava pelos seus poros. Sentia-se
tonto e embriagado pelo perfume de sua mulher. Nisso, adivinhando-o,
Lucrecia estendeu a mão, apagou a luz do abajur e, no mesmo movimento,
virou-se para ele e o abraçou. Dom Rigoberto deixou escapar um gemido
ao sentir o corpo de sua mulher, que ele abraçou ansioso e apertou,
estreitando-o com braços e pernas. Ao mesmo tempo, beijava-a no pescoço,
nos cabelos, murmurando palavras de amor. Mas, quando havia começado a
se despir e a despojá-la da camisola, dona Lucrecia deslizou em seu
ouvido uma frase que lhe provocou o efeito de uma ducha gelada: - Ele
foi me ver há seis meses. Apareceu uma tarde, de repente, na casinha do
Olivar. E, desde então, me visitou sem parar,

287

ao sair do colégio, escapulindo da academia de pintura. Três e até
quatro vezes por semana. Tomava o chá comigo, ficava uma hora, duas. Não
sei por que não lhe contei ontem, anteontem. Eu ia contar. Juro que ia.
- Eu lhe suplico, Lucrecia - implorou dom Rigoberto. - Não tem que me
contar nada. Peço pelo que lhe for mais caro. Eu amo você. - Quero
contar. Agora, agora. Continuava abraçada ao marido, e, quando ele lhe
buscou a boca, abriu-a e o beijou também, avidamente. Ajudou-o a tirar o
pijama e a despi-la da camisola. Mas depois, enquanto dom Rigoberto a
acariciava com as mãos e lhe passava os lábios pelos cabelos, as
orelhas, o rosto e o pescoço, continuou falando: - Não me deitei com
ele. - Não quero saber nada, meu amor. Temos que falar disso, logo
agora? - Sim, agora. Não me deitei com ele, mas, espere. Não por mérito
meu. Por culpa dele. Se Fonchito tivesse pedido, se tivesse feito a
menor insinuação, eu me deitaria com ele. E com mil amores, Rigoberto.
Muitas tardes me senti doente, por não ter feito isso. Você não vai me
odiar? Preciso lhe dizer a verdade. - Eu não vou odiá-la nunca. Eu amo
você. Minha vida, minha mulherzinha. Ela, porém, voltou a atalhá-lo, com
outra confissão: __A verdade é que, se Fonchito não sair desta casa, se
continuar morando conosco, isso vai acontecer de novo. Lamento,
Rigoberto. É melhor que você saiba. Não tenho defesas contra esse
menino. Não quero que aconteça, não quero fazer você sofrer, como da
outra vez. Sei que você sofreu, meu amor. Mas vou lhe mentir para quê?
Ele tem poderes, tem alguma coisa, sei lá. Se ele meter isso na cabeça
outra vez, eu vou repetir. Não vou conseguir impedi-lo. Mesmo que
destrua o casamento, desta vez para sempre. Lamento, lamento, mas é a
verdade, Rigoberto. A crua verdade. Dona Lucrecia havia começado a
chorar. Ele sentiu se eclipsarem os últimos resíduos de excitação que
lhe restavam. Abraçou-a, consternado:

288

- Tudo o que você está me dizendo, eu sei de sobra - murmurou,
acalmando-a. - O que posso fazer? Afinal, não é meu filho? Para onde vou
mandá-lo? Para ficar com quem? Ele ainda é muito menino. Acha que não
pensei muito nisso? Quando ele for maior, claro. Mas que, pelo menos,
termine o colégio. Não diz que quer ser pintor? Pois muito bem. Que vá
estudar belas-artes. Nos Estados Unidos. Na Europa. Que vá para Viena.
Não gosta tanto do expressionísmo? Que vá para a academia onde Schiele
estudou, para a cidade onde Schiele viveu e morreu. Mas como posso
tirá-lo de casa agora, na idade em que ele está? Dona Lucrecia se
apertou a ele, entrelaçou suas pernas com as dele, procurou apoiar seus
pés sobre os do marido. - Não quero que você o tire de casa - sussurrou.
- Sei muito bem que é um menino. Nunca pude adivinhar se sabe o quanto é
perigoso, as catástrofes que pode provocar, com aquela beleza que tem,
com aquela inteligência manhosa, meio terrível. Só lhe digo isto porque
é verdade: com ele, sempre viveremos em perigo, Rigoberto. Se você não
quiser que tudo aconteça de novo, me vigie, me espreite, fique no meu
pé. Não quero me deitar nunca mais com ninguém, só com você, meu
maridinho querido. Eu o amo tanto, Rigoberto! Você não sabe a falta que
me fez, a saudade que senti. - Eu sei, eu sei, meu amor. Dom Rigoberto
afastou-a um pouco, deitou-a de costas e se colocou em cima dela. Dona
Lucrecia também parecia tomada pelo desejo - já não havia lágrimas em
sua face, seu corpo estava aquecido e sua respiração, agitada - e, mal
o sentiu em cima, abriu as pernas e se deixou penetrar. Dom Rigoberto a
beijou, longa e profundamente, com os olhos fechados, imerso em uma
entrega total, feliz de novo. Perfeitamente encaixados um no outro,
tocando-se e roçando-se dos pés à cabeça, contagiando-se seus suores,
mexiam-se devagar, compassada mente, prolongando o prazer. - Na verdade,
você se deitou com muitas pessoas, este ano todo - disse ele. - Ah, é? -
ronronou ela, como se falasse pelo ventre, a partir de alguma glândula
secreta. - Quantas? Quem? Onde? - Um amante zoológico, que a deitava com
gatos. - "Que nojo, que nojo", protestou ela, debilmente.

289

- Um amor de juventude, um cientista que a levou a Paris e a Veneza e
que gozava cantando... - Os detalhes - ofegou dona Lucrecia, falando com
dificuldade. - Todos, até os menorzinhos. O que eu fiz, o que comi, o
que me fizeram. - O babaca do Fito Cebolla quase estuprou você e também
Justiniana. Você a salvou da fúria libidinosa dele. E acabou fazendo
amor com ela, nesta mesma cama. - Com Justiniana? Nesta mesma cama? -
Dona Lucrecia soltou uma risadinha. - Veja como são as coisas. Porque,
por culpa de Fonchito, eu quase fiz amor com Justiniana, uma tarde, no
Olivar. Foi a única vez que meu corpo o enganou, Rigoberto. Minha
imaginação, ao contrário, um monte de vezes. Como você comigo. - Minha
imaginação não a enganou nunca. Mas me conte, me conte - pediu o marido,
acelerando os movimentos, o bamboleio. - Eu depois, você primeiro. Com
quem mais? Como, onde? - Com um irmão gêmeo que inventei, um irmão
corso, em uma orgia. Com um motociclista castrado. Você foi uma
professora de direito, na Virgínia, e corrompeu um santo jurista. Fez
amor com a embaixatriz da Argélia, tomando um banho de vapor. Seus pés
enlouqueceram um fetichista francês do século dezoito. Na véspera de
nossa reconciliação, estivemos em um prostíbulo da Cidade do México,
com uma mulata que me arrancou uma orelha com uma dentada. - Não me faça
rir, seu bobo, não agora - protestou dona Lucrecia. - Eu o mato, mato
mesmo, se você me cortar. - Eu também estou quase lá. Vamos juntos,
amor. Momentos depois, já sossegados, ele de costas, ela ani nhada ao
seu lado e com a cabeça em seu ombro, retomaram a conversa. Lá fora,
junto com o ruído do mar, rompiam a noite os possantes miados de gatos
brigando ou no cio e, espaçados, buzinas e rugidos de motores. - Sou o
homem mais feliz do mundo - disse dom Rigoberto. Ela se esfregou contra
ele, comportada. - Vai durar? Vamos fazê-la durar, esta felicidade?

290

- Não pode durar - disse ele, suavemente. - Toda felicidade é fugaz.
Uma exceção, um contraste. Mas temos que reavivá-la, de tempos em
tempos, não permitir que se apague. Soprando, soprando a chamazinha. -
Começo a exercitar meus pulmões desde já - exclamou dona Lucrecia. - Vão
ficar como foles. E, quando ela ameaçar se apagar, eu solto uma ventania
que a levante, que a infle. Fffffuuu! Fffffuuu! Permaneceram em
silêncio, abraçados. Pela quietude de sua mulher, dom Rigoberto achou
que ela havia adormecido. Mas não: tinha os olhos abertos. - Eu sempre
soube que íamos nos reconciliar - disse, ao ouvido dela. - Queria,
buscava isso, há meses. Mas não sabia por onde começar. Então, começaram
a me chegar suas cartas. Você adivinhou meu pensamento, meu amor. E
melhor do que eu. O corpo de sua mulher se endureceu. Mas,
imediatamente, relaxou de novo. - Uma idéia genial, essa das cartas -
continuou ele. - As anônimas, quero dizer. Uma carambola barroca, um
estratagema brilhante. Inventar que eu lhe mandava cartas anônimas para
ter um pretexto e, assim, poder me escrever. Você sempre vai me
surpreender, Lucrecia. Achei que a conhecia, mas não. Eu nunca
imaginaria sua cabecinha maquinando essas carambolas, essas artimanhas.
Que bom resultado eles deram, hem? Em boa hora, para mim. Houve outro
longo silêncio, durante o qual dom Rigoberto contou os batimentos do
coração de sua mulher, que faziam contraponto e às vezes se misturavam
aos seus. - Eu gostaria que fizéssemos uma viagem - divagou, pouco
depois, sentindo que o sono começava a vencê-lo. - Para algum lugar bem
distante, totalmente exótico. Onde não conhecêssemos ninguém e ninguém
nos conhecesse. Por exemplo, a Islândia. Talvez, no fim do ano. Posso
tirar uma semana, dez dias. Você gostaria? - Eu preferiria ir a Viena -
disse ela, com uma língua um pouco travada, pelo sono?, pela preguiça em
que o amor sempre a deixava?. - Ver a obra de Egon Schiele, visitar os
lugares onde ele trabalhou. Ao longo dos últimos meses,

291

não fiz coisa a não ser ouvir falar da vida dele, de seus quadros e
desenhos.
Acabei espicaçada pela curiosidade. Você não se surpreende com a fascinação de
Fonchito por esse pintor? Que eu saiba, Schiele nunca lhe agradou
muito. De onde ele puxou isso, então? Dom Rigoberto deu de ombros. Não
fazia a menor idéia sobre a origem da fixação de seu filho. - Bom, então
iremos a Viena em dezembro - disse. - Para ver os Schieles e escutar
Mozart. De quem eu jamais gostei, é verdade; mas agora, quem sabe, posso
começar a gostar. Se você gosta, eu também vou gostar. Não sei de onde
pode ter nascido esse entusiasmo de Fonchito. Você está dormindo? E eu
aqui sem deixar, puxando conversa. Boa noite, amor. Ela murmurou "boa
noite". Fez meia-volta e grudou o dorso ao peito do marido, que também
se virara de lado e flexionara as pernas, para que ela ficasse como que
sentada em seus joelhos. Assim tinham dormido, nos dez anos anteriores à
separação. E assim faziam, também, desde a antevéspera. Dom Rigoberto
passou um braço sobre o ombro de Lucrecia e deixou a mão descansar em
um dos seios dela, enquanto a envolvia pela cintura com a outra. Os
gatos pararam de brigar ou de se amar na vizinhança. Os últimos sons de
buzinas ou roncos de motores haviam desaparecido fazia um bom tempo.
Tépido e aquecido pela proximidade dessas formas amadas, coladas às
suas, dom Rigoberto tinha a sensação de navegar, de deslizar, movido por
uma afável inércia, em águas tranqüilas e delgadas, ou, talvez, pelo
espaço sideral, despovoado, rumo às gélidas estrelas. Quantos dias,
horas, ainda duraria, sem se quebrantar, esta sensação de plenitude, de
calma harmoniosa, de sintonia com a vida? Como em resposta à sua muda
interrogação, escutou dona Lucrecia: - Quantas cartas anônimas minhas
você recebeu, Rigoberto? - Dez - respondeu ele, com um sobressalto. -
Achei que você estava dormindo. Por que pergunta? - Eu também recebi dez
suas - replicou ela, sem se mover. - Isso se chama amor à simetria,
suponho. Agora foi ele quem se enrijeceu.

292

- Dez cartas anônimas minhas? Eu nunca lhe escrevi nenhuma, Nem
anônimas nem assinadas. - Eu sei - disse ela, suspirando fundo. - Você é
aquele que não sabe. Aquele que anda na lua. Está entendendo? Eu também
não lhe enviei nada anônimo. Mandei só uma carta. Mas aposto que essa.,
a única autêntica, nunca lhe chegou. Passaram dois, três, cinco
segundos, sem falar nem se mexer. Embora só se ouvisse o ruído do mar,
dom Rigoberto teve a sensação de que a noite se enchera de gatos
enfurecidos e gatas no cio. - Você não está brincando, não? - murmurou
por fim, sabendo muito bem que dona Lucrecia havia falado sério. Ela não
respondeu. Permaneceu tão quieta e silenciosa quanto ele, mais um bom
tempo. Como tinha durado pouco, como tinha sido curta, aquela
acabrunhante felicidade! Ali estava, de novo, cruel e dura, Rigoberto,
a vida real. - Se você perdeu o sono, como eu - propôs, afinal -, talvez
pudéssemos, assim como outros contam carneirinhos para conseguir
adormecer, tentar esclarecer tudo. Melhor agora, de uma vez. Se você
achar que sim, se quiser. Porque, se preferir que a gente esqueça, a
gente esquece. E não se fala mais dessas cartas anônimas. - Você sabe
muito bem que nunca poderemos esquecê-las, Rigoberto - afirmou sua
esposa, com uma pontinha de cansaço. - Então, façamos de uma vez o que
você e eu bem sabemos que vamos acabar fazendo, de todo modo. - Vamos,
então - disse ele, levantando-se. - Vamos lê-las. O tempo havia esfriado
e, antes de passarem ao escritório, os dois vestiram os roupões. Dona
Lucrecia levou consigo a garrafa térmica com a limonada quente para o
suposto resfriado do marido. Antes de mostrarem um ao outro as
respectivas cartas, tomaram uns golinhos de limonada morna, do mesmo
copo. Dom Rigoberto mantinha as dele guardadas no último de seus
cadernos, ainda com páginas sem anotações nem acréscimos; dona Lucrecia
deixara as dela em uma bolsa de mão, atadas com uma fitinha lilás.
Comprovaram que os envelopes eram idênticos, e o papel também; uns
envelopes e papéis desses que se vendem por qualquer tostão nas lojinhas
dos chineses.

293

Mas a letra era diferente. E, claro, a carta de dona
Lucrecia, a única verdadeira, não estava entre as outras. - É a minha
letra - murmurou dom Rigoberto, superando o que ele acreditava ser o
limite de sua capacidade de assombro, e assombrando-se ainda um
pouquinho mais. Tinha relido a primeira carta com muito cuidado, quase
sem atentar para o que ela dizia, concentrando-se somente na caligrafia.
- Bom, é verdade, minha letra é a mais convencional que existe.
Qualquer um pode imitá-la. - Sobretudo um jovenzinho afeiçoado à
pintura, um menino-artista - concluiu dona Lucrecia, brandindo as cartas
supostamente escritas por ela, depois de folheá-las. - Mas esta, ao
contrário, não é a minha letra. Por isso ele não entregou a única carta
que lhe escrevi. Para você não a comparar com estas e descobrir a
fraude. - É um pouco parecida - corrigiu-a dom Rigoberto, que havia
lançado mão de uma lupa e examinava a carta, como um filatelista observa
um selo raro. - Seja como for, é uma letra redonda, muito desenhada.
Uma letra de mulher que estudou em colégio de freiras, provavelmente no
Sophianum. - E você não conhecia minha letra? - Não, não conhecia -
admitiu ele. Era a terceira surpresa, nesta noite de grandes surpresas.
- Agora constato que não. Que eu me lembre, você nunca me escreveu uma
carta. - E estas aí, também não fui eu que escrevi. Depois, durante uma
boa meia hora, ficaram em silêncio, lendo suas respectivas cartas, ou
melhor, cada um percorrendo a outra metade desconhecida dessa
correspondência. Tinham se sentado juntos, no grande sofá de couro, com
almofadas, embaixo da alta luminária de pé cuja cúpula tinha desenhos
de uma tribo australiana. O amplo círculo de luz abrangia os dois. De
vez em quando, bebiam golinhos de limonada morna. De vez em quando, um
dos dois soltava um risinho, mas o outro não se voltava para perguntar
nada; de vez em quando, a expressão de um se alterava, por pasmo, cólera
ou por uma debilidade sentimental, ternura, indulgência, vaga tristeza.
Terminaram a leitura ao mesmo tempo. Olharam-se de esguelha, exaustos,
perplexos, indecisos. Por onde começar?

294

- Ele andou fuxicando por aqui - disse afinal dom Rigoberto, apontando
sua escrivaninha, suas estantes. - Remexeu, Leu minhas coisas. A coisa
mais sagrada, mais secreta que eu tenho, estes cadernos. Que nem sequer
você conhece. Minhas supostas cartas para você, na verdade, são minhas.
Embora eu não as tenha escrito. Porque, tenho certeza, todas as frases,
ele as transcreveu de meus cadernos. Fazendo uma salada russa.
Misturando pensamentos, citações, gracejos, jogos, reflexões próprias e
alheias. - Foi por isso que esses jogos, essas ordens me pareceram vir
de você - disse dona Lucrecia. - Em contraposição, estas cartas, não sei
como você pôde achar que eram minhas. - Eu estava louco para saber de
você, para receber algum sinal seu - desculpou-se dom Rigoberto. - Os
náufragos se agarram ao que lhes aparecer na frente, sem pensar. - Mas e
essas frases melosas, essas cafonices? Não parecem mais as coisas de
Corín Tellado? - São de Corín Tellado, algumas - disse dom Rigoberto,
recordando, associando. - Semanas atrás, começaram a aparecer pela casa
os romancinhos dela. Achei que pertenciam à empregada, à cozinheira.
Agora sei de quem eram e para que serviam. - Vou matar esse menininho -
exclamou dona Lucrecia. - Corín Tellado! Juro que mato esse menino. -
Está rindo? - espantou-se ele. - Acha engraçado? Devemos festejá-lo,
premiá-lo? Agora ela riu para valer, mais demoradamente, com mais
franqueza do que antes. - Na verdade, não sei o que achar, Rigoberto.
Certamente, não é para rir. É para chorar? Para se aborrecer? Bom, então
vamos nos aborrecer, se é isso o que devemos fazer. E o que você fará
amanhã com ele? Repreendê-lo? Castigá-lo? Dom Rigoberto encolheu os
ombros. Tinha vontade de rir também. E se sentia estúpido. - Eu nunca o
castiguei, e muito menos lhe dei algum tapa que fosse, não saberia como
fazer isso - confessou, meio encabulado. - É por isso que ele deu no que
deu. O fato é não sei o que fazer com Fonchito. Desconfio que, não
importa o que eu faça, ele sempre vai ganhar.

295

- Bom, neste caso, nós também ganhamos alguma coisa. - Dona Lucrecia se
encostou ao marido, que lhe passou o braço pelos ombros. - Fizemos as
pazes, não? Você nunca se atreveria a me telefonar, a me convidar para
tomar chá na Tiendecita Blanca, sem essas cartas anônimas prévias. Não
é? E eu tampouco teria ido ao encontro se não as tivesse recebido.
Certamente, não. Essas cartas prepararam o caminho. Não podemos nos
queixar; ele nos ajudou, nos reconciliou. Você não se arrepende por
termos feito as pazes, não é, Rigoberto? Ele acabou rindo também.
Esfregou o nariz contra a cabeça de sua mulher, sentindo que os cabelos
dela lhe faziam cócegas nos olhos. - Não, disso eu nunca vou me
arrepender - disse. - Bem, depois de tantas emoções, ganhamos o direito
ao sono. Está tudo muito bem, mas amanhã eu preciso ir trabalhar,
mulher. Retornaram ao quarto no escuro, de mãos dadas. Ela ainda se
atreveu a fazer uma brincadeirinha: - Vamos levar Fonchito a Viena, em
dezembro? Era brincadeira mesmo? Dom Rigoberto afastou de imediato o mau
pensamento, proclamando em voz alta: - Apesar de tudo, formamos uma
família feliz, não é, Lucrecia?

Londres, 19 de outubro de 1996

Senhor, dai-me força para mudar o que pode ser mudado...

Resignação para aceitar o que não pode ser mudado...

E sabedoria para distinguir uma coisa da outra.

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