segunda-feira, 24 de março de 2014 By: Fred

{clube-do-e-livro} Corações Sem Destino - Eliana Machado Coelho (Schellida)

CORAÇÕES SEM DESTINO
Psicografia de
ELIANA MACHADO COELHO
Pelo Espírito
SCHELLIDA


RUBENS, HUMBERTO E LÍVIA, DEPOIS DE CUIDADOSO
PLANEJAMENTO DO PLANO ESPIRITUAL, REENCARNAM E
SE REENCONTRAM PARA RESGATAREM OS DESAFETOS DO
PASSADO

Em uma vida passada, Rubens apaixona-se por Lívia, noiva de seu
irmão Humberto. Mesmo tendo uma vida desequilibrada pelo jogo,
pela bebida e pela promiscuidade, Rubens alimenta o sonho de ter
Lívia em seus braços. Movido pela paixão incontrolável e pela
inveja, decide matar seu irmão, empurrando-o sob as rodas de um
trem. Porém, o crime jamais foi descoberto.

Anos depois, na espiritualidade, o próprio Humberto irá se empenhar
para socorrer o irmão nas zonas inferiores e um novo
planejamento reencarnatório é elaborado para Humberto, Rubens e
Lívia. Mas, desta vez, é Humberto que não suportará ver Lívia ao
lado de Rubens. Além disso, outros dissabores, na nova encarnação,
aborrecem-no: o alcoolismo do pai e seu namoro com Irene, que o
engana de todas as formas, só para ficar com ele.

Humberto, sentindo-se derrotado e inútil diante de tanto desgosto,
e inconformado com o que vive, é acometido por transtornos


psicológicos, deixando-se abater e caindo em profunda depressão.
Contudo, contando com ajuda espiritual e apoio psicológico, o
próprio Humberto entende que é ele mesmo o único capaz de
libertar-se da depressão e da obsessão em que se encontra.

Mais uma vez, o espírito Schellida, com psicografia de Eliana
Machado Coelho, traz atualíssimos ensinamentos em Corações sem
Destino. Um romance que aborda temas como depressão, síndrome
do pânico e distúrbio de ansiedade. Mostra-nos a importância de
nos vigiarmos para que nossos sentimentos mais íntimos não se
transformem em fonte de desequilíbrio e doença. Afinal, o
verdadeiro amor liberta, traz alegria e paz ao coração.


Eliana Machado Coelho nasceu em São Paulo, capital, em 9 de
outubro. Desde pequena, Eliana esteve em contato com o
Espiritismo. Ainda menina, sempre via a presença de uma linda
moça, delicada, sorriso doce e muito amorosa. Era o espírito
Schellida, que já trabalhava para fortalecer uma sólida parceria com
Eliana Machado Coelho, prenunciando as tarefas espirituais que


ambas deveriam desenvolver conforme o planejamento da
espiritualidade.
Amparada por pais amorosos, avós, mais tarde pelo marido e filha,
Eliana foi estudando a Doutrina Espírita e realizando muitos treinos
de psicografia sob a orientação de sua mentora até que, em 1997,
surge o primeiro livro, uma bela obra do espírito Schellida. A tarefa
começava a tomar forma e hoje a dupla Schellida e Eliana Machado
Coelho encontra-se mais afinada do que nunca.


Trabalhos à parte, as curiosidades sobre Schellida e Eliana são
inevitáveis. Duas delas são: quem é Schellida e de onde surgiu esse
nome? A médium responde esclarecendo que esse nome vem de
uma história vivida entre elas e, por ética, deixará a revelação dos
fatos por conta da própria mentora, já que Schellida avisou que
escreverá um livro contando parte de sua vida terrena e sua ligação
amorosa com Eliana. Por essa estreita ligação com Eliana é que
Schellida afirmou, certa vez, que se tivesse que escrever livros
utilizando-se de outro médium, ela assinaria um nome diferente a
fim de preservar a idoneidade do tarefeiro sem fazê-lo passar por
questionamentos constrangedores que colocassem em dúvida o
próprio trabalho. Segundo Schellida, o que sempre deve prevalecer
é o conteúdo moral e os ensinamentos transmitidos em cada livro.
Schellida mais uma vez reafirma que a tarefa é extensa e há um
longo caminho a ser trilhado por ela e Eliana, que continuarão
sempre juntas trazendo importantes orientações sobre o verdadeiro
amor no plano espiritual, as conseqüências concretas da Lei de Ação
e Reação, a necessidade da harmonização e, sobretudo, a conquista
da felicidade para cada um de nós, pois o bem sempre vence onde
existe a fé.



CORAÇÕES SEM DESTINO
Psicografia de
ELIANA MACHADO COELHO
Pelo Espírito
SCHELLIDA


ÍNDICE

No plano espiritual

1. Planejamento reencarnatório
2. Retornando para casa
3. Contrariado com o alcoolismo
4. Traição sem remorso
5. Confiando em um amigo
6. Revelando sentimentos
7. A gravidez de Irene
8. A firmeza de Lívia
10. Fugindo da felicidade
11. Conseqüência de uma traição
12. Vítima de si mesmo
13. Gotas de alívio
14. Orientações saudáveis
15. A palavra pode ser um remédio ou um veneno
16. O retorno de Rubens
17. As palavras dão ânimo
18. Conversando com doutor Edison
19. Viver um dia de cada vez

20. O reencontro com Irene
21. A insegurança de Lívia
22. Conhecendo Flávio
23. Nova maneira de viver
1
NO PLANO ESPIRITUAL


Lívia havia acabado de deixar o grandioso edifício da biblioteca e,
experimentando um sentimento de alegria indefinível, caminhava
em direção à bela alameda principal quando ouviu o seu nome.
Virando-se, avistou Humberto exibindo largo sorriso.
Acelerando os passos em sua direção, ele a abraçou, com expressiva
alegria, demonstrando saudade. Afagando-lhe o rosto, com carinho,
beijou-a e disse em seguida:
—Como estou feliz em vê-la!
—Eu também! Demorou tanto na crosta terrena dessa vez!


— Acabei de chegar. Fui até o Ministério do Auxílio, mas o Diogo
não estava. Resolvi alguns assuntos por lá, depois fui até em casa e
minha irmã disse que você estava aqui.
Agora foi Lívia que o abraçou demoradamente e beijou-lhe a face
com extrema ternura. Em seguida, Humberto sobrepôs o braço em
seus ombros e passaram a caminhar vagarosamente pela calçada
ladeada de graciosa cerquinha branca que separava um lindo
gramado verde, com belos canteiros floridos entre as árvores de
magnífica beleza.

Ela, tal qual delicada estudante, segurava um livro apertado ao
peito e sustentava agradável sorriso enquanto o ouvia com atenção.
Diante da breve pausa, perguntou:
—Como estão os amigos e parentes encarnados?
—Alguns com dificuldades para se manterem fiéis aos propósitos
reencarnatórios. Outros se esforçam para reagir às tentações, vencer
os obstáculos ou desafios. Para isso se lembram e se religam ao
Criador através das preces. Porém, quando estabilizados e com a
vida mais calma, esquecem-se de Deus, dos ensinamentos de Jesus e
acabam ligando-se novamente a mentes de espíritos doentes e
desequilibrados pelas práticas, hábitos viciosos e, principalmente,
pelos pensamentos infelizes.
—Eles não atendem às inspirações elevadas dos espíritos bons, não
é?
—Mentores, amigos e tarefeiros espirituais de nível superior, em
atividades específicas no campo de orientar através de inspirações,
não os abandonam, mas nem sempre são ouvidos. Os encarnados
não dão atenção aos pensamentos sutis, simples e benéficos que lhes
chegam. Como sabe, alguns freqüentam uma boa casa espírita.
Outros são assíduos católicos e isso é positivo para eles, pois a
religiosidade e o período diário que dedicam às preces é o mesmo
para a administração de fluidos benéficos que os livram de
impregnações indesejáveis. No entanto, de tempo em tempo,
quando a vida fica mais calma, sem dificuldades, eles se esquecem
das preces diárias, deixam de freqüentar uma boa casa de oração e
acabam atendendo a força mental inferior, ligando-se à vasta rede
de entidades maléficas que querem se vingar, levá-los a amarguras,
angústia ou vampirizá-los.

—Eu sei como é isso, Humberto. Para muitos encarnados é difícil
repelir ou se desligar das tentações que os levarão ao fracasso em
todos os sentidos, pois essas tentações vêm disfarçadas de alegria,
prazeres, comodidades ou diversões.


—E, eu sei — argumentou de modo triste. — Peço a Deus que me
dê forças para que, na próxima encarnação, eu consiga vencer os
meus desafios, com fé e amor, seguindo os ensinamentos de Jesus.
—Ah! E como está o senhor Leopoldo? — ela perguntou
alegremente.
—Correu tudo bem no reencarne de meu pai! Ele foi recebido com
muita alegria.
—Seu ex-pai! — brincou, sorrindo.
—E! Mas, uma vez pai, sempre pai. Eu não consigo chamá-lo de
senhor Leopoldo — riu. Depois comentou: — Eu o acompanhei em
tudo. Foi bem emocionante. Todos estavam felizes por ser um
menino e...
Humberto continuou contando os detalhes com expressão satisfeita
enquanto caminhavam a passos lentos até a casa onde residiam
naquela colônia.

***

No aconchego do lar, após conversarem atualizando algumas
novidades, Humberto apreciava um chá revigorante quando Lívia o
olhou de modo sério e avisou:

— Preciso conversar com você.
Ele sentiu-se invadido por algo muito estranho. Um pressentimento
ruim pareceu amargurá-lo ao mesmo tempo em que seu peito
apertava.


— O que aconteceu? — perguntou calmo.
—Eu estive pensando e... Bem, diante da dificuldade de todos
aqueles que amamos... Para auxiliá-los, acredito ser melhor eu
reencarnar.
—Não... — murmurou como um lamento. — Não, meu amor, isso
não é o melhor a fazer agora.
— Humberto, já falamos sobre isso antes e eu esperava que
entendesse. Não consigo mais ficar tranqüila aqui sabendo das

perturbações dos nossos queridos em outros sítios espirituais. A
Irene, por exemplo, necessita retornar à vida terrena, e eu poderia
recebê-la, como também poderia receber a Neide, de quem você
gosta tanto.
—Como assim?!
—Eu poderia recebê-las como filhas.


— Lívia... — Uma angústia o invadiu detendo-lhe as palavras.
Passados alguns segundos, ele se forçou e prosseguiu: — Meu bem,
nós temos planos! Temos uma história interrompida que pode ser
linda e produtiva mesmo na Terra. Você sabe que eu não tenho
planos para reencarnar agora. Não me sinto tão preparado. Já
falamos sobre isso.
Olhando-o de modo singular, ela murmurou sem trégua:
— Você fica. Eu vou.
Aquela sugestão chegou como um choque. Amargurado,
argumentou sussurrando:
— Não planejei isso. Não vou suportar vê-la longe e...
—Eu tenho que harmonizar a minha consciência e posso aproveitar
para ajudar a Irene, principalmente.
—Quem falou que ela quer, de verdade, ser ajudada? Pense! A Irene
já perdeu várias oportunidades de elevação que não deram certo,
principalmente por culpa de sua luxúria, de sua vaidade e orgulho
que a fazem manipular situações por causa de seus caprichos.
—Não é só por isso. Preciso ser mais forte, mais independente e...
—Lívia, não tenho qualquer dificuldade para reencarnar, mas não
gostaria que fosse agora. — Olhando-a firme, quis saber: — Quem
pediu ou sugeriu tal idéia a você foi a Irene?
—Não... Quer dizer... Eu fui visitá-la e... Ela não pediu diretamente.
Nós conversávamos e a idéia surgiu. — Aproximando-se, afagou-
lhe a face fazendo-o virar para que a encarasse: — Humberto, a
Irene foi uma filha querida e uma amiga de séculos. Durante todo o
seu tempo na espiritualidade, ela estuda e se empenha para
trabalhar os seus vícios morais, não ser arrogante, vaidosa,



imponente... Ela vai conseguir. Eu posso ajudá-la. — Breve pausa e
perguntou: — Você tem alguma mágoa ou ressentimento dela por
causa do passado?
—Não. Não tenho ressentimento, mas não quero me envolver em
qualquer assunto que diga respeito à Irene e acredito que você não
precise se sacrificar tanto. Tudo pode ser diferente. É muito amor,
mas também muita renúncia de sua parte, você a conhece. —
Repentinamente, ele questionou: — Lívia, se eu devo ficar, com
quem pretende se unir para recebê-la?

—Com o Rubens — respondeu temerosa. — Você sabe que tenho
muito a harmonizar e existiram situações do passado que nos
envolveram e que...
Humberto sentiu-se mal. Levantando-se, caminhou vagarosamente
pela sala enquanto Lívia o acompanhava com o olhar. Ele esfregou

o rosto com as mãos e apoiou-as, em seguida, em uma mesa. Olhou
para o alto e rogou baixinho:
—Senhor, dê-me forças!
—Humberto! — exclamou, levantando-se rápido. Abra-çando-o
pelas costas, Lívia apertou-o contra o peito e pediu: — Por favor,
não fique assim!
Virando-se, ele segurou delicadamente os seus braços e a olhou
firme ao indagar:
—Como quer que eu me sinta?! — Sem obter respostas, prosseguiu
angustiado: — O Rubens se debate em sofrimento no Umbral há
cerca de meio século. Você bem sabe o quanto eu venho tentando
ajudar o meu irmão por todos esses anos. Ele nunca ouviu os meus
bons conselhos quando encarnado e agora não é diferente. Das raras
vezes em que tive êxito em inspirá-lo, só consegui fazer com que
sentisse um grande arrependimento pela forma como ele viveu,
pela vida promíscua, pela bebida, pelo jogo, por minha morte... O
Rubens não tem paz na consciência por ter me tirado a vida terrena
sem que alguém, nunca, tivesse desconfiado. Com isso, ele

interrompeu a ordem de um grande planejamento reencarnatório,
impedindo, inclusive, a nossa união. Estávamos noivos, lembra?
—Como eu poderia esquecer?
—Foi para ficar com você que ele me matou. Meu irmão acreditou
que o tempo a levaria para os braços dele.


—Mas não foi isso o que aconteceu. Eu errei. Sei que errei quando
percebi os olhares conquistadores do seu irmão e simplesmente
sorri em vez de reprová-lo. Foi uma forma de incentivo ao Rubens.
Já me puni muito por isso. Você sabe!
—Sim, eu sei. Calma. Não fique assim — pediu ao vê-la nervosa. —
Ele estava desequilibrado e sua atitude alimentou suas idéias e a
fascinação por você.
—Humberto, eu sei que errei. Não entendo por que não o repreendi
na época. Na verdade, eu era vaidosa, gostava de ser admirada e
pensei que fosse, por parte dele, uma atração passageira pela minha
beleza e meu modo de ser. Tenho certa responsabilidade pelo que
ele fez a você e preciso harmonizar isso. Minha consciência cobra.
—Mas não precisa ser dessa forma, Lívia. Veja, meu desencarne foi
difícil. Eu era jovem, repleto de energia e com muitos planos. Graças
a Deus e a minha conduta de vida fiquei poucas horas em estado de
perturbação. Socorrido com presteza no plano espiritual, muito bem
cuidado por amigos que, inclusive, eu ignorava ter, me equilibrei
rapidamente. Ao entender que ele me matou, eu não quis saber o
motivo. Fiquei confuso, lamentei muito e aceitei as novas condições.
Apesar da dor, da imensa dor da nossa brusca separação, apesar de
todo o meu amor por você, eu procurei entender, pois tive
esperança de um futuro melhor na próxima encarnação. Para não
me abalar, fiquei anos sem informações do lar terreno e de você.
Somente com a chegada de minha mãe no plano espiritual, eu tive
notícias suas. Soube o motivo pelo qual ele me matou e fui visitar a
crosta terrena, acompanhando e me inteirando de tudo.



Não foi fácil, Lívia. O Rubens alterou tanto o nosso destino que
você, pela dor de me perder, por saudade, ficou debilitada
emocionalmente e, apesar de sua luta para resistir a tamanho
sofrimento, sua dor abalou o seu físico e você adoeceu. Ficou
vulnerável e a tuberculose foi mais forte, fazendo-a desencarnar
ainda muito jovem e em meus braços, na espiritualidade... Pois eu,
espírito, acompanhei cada segundo de seu último ano na Terra. —
Breve pausa e falou sentido. — Não era para ser assim.
—Eu sei. Foi você quem providenciou todo o socorro e sustentação
para eu ser bem acolhida na espiritualidade, Humberto.
—Não! Foi você quem teve merecimento. Sabe, precisei colocar à
prova toda minha resignação diante de tudo. Tem idéia do que é
isso?! Foi necessário eu me conformar com tudo o que aconteceu e
eu não sei se, verdadeiramente, consegui perdoar ao meu irmão.
Tínhamos um planejamento reencar-natório lindo! Uma tarefa
promissora que ajudaria muitos! Eu queria viver ao seu lado! —
Alguns segundos e prosseguiu: — Foi minha fé, foi por acreditar na
justiça Divina que continuei em equilíbrio e aguardando o momento
de retornarmos a reencarnar para cumprirmos o que planejamos.
Agora, mais de cem anos aqui na espiritualidade, nós estudamos,
nos equilibramos, trabalhamos com uma finalidade, com um
objetivo que não é esse que me propõe. Lívia, não me peça, agora,
para abrir mão da minha harmonia, pois eu não vou conseguir ficar
tranqüilo aqui, sabendo que você está encarnada com o propósito
de se unir ao meu irmão. Além do que, não se sabe se ele sairá das
condições em que se encontra com brevidade.

—Nós chegamos a comentar sobre a possibilidade de Rubens
renascer como nosso filho. Você mesmo sugeriu isso para amá-lo
incondicionalmente.
—Nessa possibilidade estaríamos juntos. Um fortalecendo o outro
para amá-lo, ampará-lo e ensiná-lo. Mas pelo que vejo você quer ir
sozinha para ficar à mercê dele, que é dependente de tantos vícios e
imperfeições com inúmeros defeitos morais. Ora, Lívia, não posso


me conformar com essa idéia! Casar-se com o Rubens e receber a
Irene como filha, a Neide... Quem mais você deseja unir nesse
planejamento?! O Luís?! A Cleide?! — Ela não respondeu. — Você
está se deixando levar pela sugestão da Irene!
—Não! Estou atendendo ao meu coração. E pensei também no Luís
e na Cleide. Por que não?
—Ora, por favor! — exclamou em tom moderado, mas contrariado.
—Humberto, o Rubens ao tirar a sua vida terrena, roubou-nos a
felicidade no mundo. Por todos esses anos ele se tortura por isso
experimentando um sofrimento sem igual. É agredido por outros
espíritos ignorantes que o acusam de assassino! Ele revê
mentalmente o instante do desencarne do próprio irmão como se
fosse ele que estivesse no seu lugar naquele momento. Lentamente
ele vê e sente o impacto do trem para o qual ele te empurrou. Sente
como se fosse dele o corpo a ser esfacelado, triturado! Coisa que
você não experimentou!
—Não porque eu não sou assassino! O que você queria?!
—Que você entendesse a minha decisão. Estou entrando com o
pedido para isso.


—Então você já decidiu, Lívia? Não está comentando comigo a sua
idéia? — perguntou perplexo, mas sem se alterar.
—Humberto!... — falou implorando sua compreensão e indo ao
encontro dele.
—Espere — sussurrou, ao espalmar a mão, pedindo que parasse. —
Espere um pouco. Eu não estou bem. Esse assunto está me abalando
e... Bem, eu preciso sair. Não é bom continuarmos com essa
conversa. Depois falamos a respeito disso.
Ele afagou a face de Lívia, olhou-a por alguns segundos e a puxou
para um abraço. Em seguida, beijou-lhe a testa demoradamente e,
ao se afastar, disse baixinho:
—Lembre-se de uma coisa: eu te amo muito.
—Eu também te amo — murmurou.



Virando-se, ele se foi. Lívia, por sua vez, ficou inquieta e
angustiada. Retirando-se para seu quarto, deitou-se na cama e
chorou muito.

***

Após horas de caminhada, cujo tempo foi usado para profunda
reflexão, Humberto propositadamente deteve-se diante de
charmosa residência na qual a frente era embelezada por um jardim
colorido e gracioso pelas flores harmoniosas.
Entrando na casa, logo foi recebido por sua mãe que sorriu ao vê-lo.

— Filho! Pensava em você! — Abraçaram-se e a senhora de cabelos
grisalhos, com um coque preso na nuca, conduziu-o,
vagarosamente, para que se sentasse. — Que notícias me traz,
Humberto?! Não o vejo desde que foi para a crosta acompanhar o
nascimento de seu pai! Sorrindo ele avisou:

— Sua bisneta Sara está bem. Recebeu com imensa felicidade o filho
que nasceu.
— Seu pai! Meu querido Leopoldo!
—Por que a senhora não quis acompanhar o retorno dele, mãe?
Teve permissão.
—Em pensar a que ele se propôs para não ter tanta cobrança na
consciência que o deixava desesperado! Ah, não! Já é muita emoção
acompanhar tudo a distância. Tenho pensado muito a respeito.
Preciso me preparar bastante, pois, cerca de três anos, será a minha
vez de retornar para, daí a alguns anos, me encontrar com ele.
—Poucos anos antes de desencarnar, por conseqüência do meu
repentino desencarne na última experiência terrena, o pai se
entregou ao vício do álcool e não o venceu, antecipando o seu
retorno ao plano espiritual pelas deficiências causadas em seu
organismo pela bebida. Quando se desencarna levam-se junto os
vícios, os efeitos que eles causam e muito sofrimento, sendo
necessária a experiência de vencê-los e encarar os seus resultados.

O silêncio reinou absoluto por longos minutos e, observando-o
melhor, a senhora perguntou bondosa:

— Humberto, o que você tem filho?
—Alguns pensamentos inquietantes. Não quero incomodá-la com
isso, mãe.
—E quando foi que você me incomodou?! Deve ser algo bem
importante para deixá-lo assim. Eu o conheço, Humberto.
Dando trégua ao silêncio, em minutos, ele lhe contou tudo o que o
amargurava, pois confiava nos conselhos da senhora Aurora.
—Eu entendo, filho — murmurou preocupada. — Mas não fique
desgostoso. Pensamentos ansiosos e nervosos emanam substâncias
fluídicas venenosas que não farão bem a você nem a ninguém. Eu
bem sei disso. Como padeci com a angústia que eu mesma criei pela
falta de fé. Não se deixe abater. Ninguém está livre.
—Mãe — falou, olhando-a nos olhos —, antes de retornar à colônia,
eu estive no Umbral e vi o Rubens. Tentei alcançar o seu nível de
consciência, mas ele está aterrorizado e revoltado com o que vive. É
bem possível que ele não creia em Deus como deveria. O meu irmão
experimenta muita rebeldia, mesmo com tamanha dificuldade.
Então, o seu reencarne pode ser compulsório, sem muito tempo
para aprender no plano espiritual. Isso pode resultar uma pessoa
difícil, tempestuosa, agitada e... Mãe, ele não será um bom
companheiro.
—Você diz isso baseado na maioria dos casos que vê. Porém, pode
ser diferente com ele.
—Mãe, lembre-se de todos os vícios e defeitos morais que ele tem.
O Rubens não será um bom companheiro para ninguém, muito
menos para a Lívia.
A senhora Aurora puxou sua cadeira para mais perto do rapaz, que
se debruçou na mesa, e afagou-lhe os cabelos com generosidade
materna. Alguns minutos se passaram e ela se manifestou
novamente:


— Humberto, meu filho! Levante essa cabeça! Não se desequilibre!

Ele se ergueu e pôs-se a fitá-la com olhos brilhantes.
—O que eu posso fazer, mãe? Ficar feliz com isso?!
—Foi você quem me ensinou a respeitar e aceitar a opinião de
alguém. Disse que nós temos o livre-arbítrio, mas é Deus quem
dirige o nosso destino.
—Estou contrariado, mãe.
—Nunca o vi assim, filho, e não estou gostando. Onde está a sua fé?
Onde está o seu respeito à opinião alheia? Por que não respeita e
aceita o desejo da Lívia?
—É diferente!
—Não, não é! — falou firme. Tocando-lhe o ombro para fazê-lo
encará-la, dona Aurora argumentou: — Quando eu vivi na Terra, na
última encarnação, e experimentei a provação de perder o meu filho
mais novo num suposto acidente, pensei que eu fosse enlouquecer.
Na verdade, morri em vida. Senti sua falta de uma forma
impressionante. Pensava ouvir os barulhos que fazia dentro de casa
e acreditava que era você. Sentia o seu cheiro nas roupas, o seu
perfume, preparava o seu prato... Como é difícil perder um filho!
Você estava noivo. Seu pai o ajudou a comprar uma boa casa e tinha
muitos planos. De repente, a notícia de sua morte: atropelado por
um trem. O seu irmão, o Rubens, não imagina como eu sofri. Ainda
mais quando ele sugeriu que você se suicidou. Oh, meu filho!... —
Lamentou com lágrimas nos olhos. — Como fiquei desesperada!
Quanta dor! Vivi uma angústia e um desgosto pelo resto de meus
dias terrenos. Não atendi aos conselhos recebidos. Não procurei ser
ativa. Entreguei-me à tristeza e ao desespero. Nada amenizava a
minha dor. Fui egoísta demais. Só pensava na minha dor e não me
importava nem com o seu pai, que se entregou à bebida porque
sofria também. Neguei-me até para os seus irmãos e me tornei um
fardo para eles que se cansaram da minha depressão. Eu só queria
ter você de volta. Cinco anos após o seu desencane, eu vim para a
pátria espiritual. Permaneci em um estado semelhante ao de um
sono profundo, por mais de um mês e fui assistida por nossos


amigos. Ao reencontrá-lo, quanta felicidade! Meu filho querido
estava bem! Estava lindo como sempre! Foi então que eu soube que

o seu irmão o havia matado. — Breve pausa e continuou: —
Humberto, você me acompanhou e me socorreu por causa das
minhas vibrações desesperadas que geravam fluidos pesarosos. Por
isso precisei permanecer, por mais de um ano, em pavilhões
hospitalares. Você e minha mãe, sua avó, me sustentaram o ânimo e
me fizeram reconhecer que o desespero de nada serviria a não ser
para o meu desequilíbrio, para a minha inutilidade e o risco de eu
me atrair para grande sofrimento no Umbral. O meu egoísmo foi o
que me atirou na depressão e me deixou inútil diante da dor. Eu sei
que precisarei reparar isso. O tempo foi passando e eu me recuperei.
Aprendi muito e me tornei operante. Depois, novamente, fiquei
abalada pelo seu pai, por ele vivenciar longa e dolorosa perturbação
no Umbral e tudo por conta de seu vício no álcool, que lhe roubou a
saúde física, encurtando os seus dias terrenos. Porém a culpa maior
foi minha por não estar ao lado dele, por não ouvi-lo e por não
dividirmos a mesma dor. As condições deprimidas, das quais não
me esforcei para sair, tiveram um grande peso para o seu pai. Ele
não agüentou e começou beber daquele jeito. Por isso eu preciso
ajudá-lo e acompanhá-lo na próxima encarnação.
—Foram suas insistentes vibrações e visitas ao meu pai que o
fizeram sair de região de tamanha dor e o levaram a ser socorrido
na colônia onde ele se recompôs, se equilibrou, se recuperou e
aprendeu. O seu amor e a sua vigília impulsionaram forças ao meu
pai e o fizeram reagir e orar.
—Mas o mesmo não aconteceu ao seu irmão. Quando encarnado,
meu pobre Rubens tirou a sua vida, tentou convencer Lívia a um
romance com ele e só deixou a pobre moça em paz quando soube de
sua grave doença. Depois ele se casou, traiu a Neide com várias
mulheres, infestou-se de energias doentias e, espiritualmente,
nojosas, que vivem encrostadas em seu corpo espiritual até hoje.
Colaborou para o nascimento de cinco filhos. Três com a própria


esposa. Os outros dois, pobrezinhos, tiveram uma vida ingrata por
culpa do Rubens. Além disso, ele é responsável, indiretamente, por
cinco abortos, e esse é um crime muito grave, cujas mães mataram o
próprio filho por saberem ou desconfiarem que ele, um homem
casado, não lhes daria assistência.
—O Luís e a Cleide foram os filhos concebidos fora do casamento.
Estou sabendo — disse Humberto.
—Sim. A Cleide, muito meiga e dócil, aceitou a vida infeliz
proposta pelo pai que a abandonou à sorte ingrata do mundo.
Ainda mocinha, na ocasião da morte de sua mãezinha, procurou
pelo Rubens, mas ele não a reconheceu nem a apoiou, deixando-a à
mercê de um mundo cruel. Quanto ao Luís, filho do Rubens ainda
com outra mulher, nunca perdoou ao pai pelo abandono, pela vida
desgraçada. Eles vão precisar ter contato em algumas encarnações,
mas não poderão ser muito próximos. — Alguns instantes de
silêncio e continuou:

— Humberto, meu filho, você foi capaz de entender e aceitar o seu
irmão, mesmo não estando de acordo com o que ele fez, vem
mostrando o seu amor através de tanta assistência e tentativa de
socorro ao Rubens. Agora, não consegue respeitar o desejo da Lívia!
— Não sei se amo o meu irmão como deveria, mãe. Para comprovar
isso, só o tendo muito próximo quando reencarnado sob a bênção
do esquecimento. A verdade é que eu tenho muito medo disso.
Com o esquecimento, será que eu posso ir contra todos os meus
princípios e desejar o seu mal? Sabe o que isso significaria? Temo
não suportar essa provação. — Sem ouvir qualquer resposta,
prosseguiu: — Quanto à Lívia... Bem, com ela é muito diferente. Até
onde sei, eu e a Lívia sempre fomos almas afins. Nós nos
completamos. Em muitas oportunidades de vida terrena, nós nos
unimos como um casal, tivemos filhos... Temos uma história!
Viemos nos ajudando na caminhada evolutiva. Eu a amo muito! De
todo o meu coração! De todo eu, espírito! Amo-a muito! E como se
ela fosse metade do meu ser! Veja, se, por determinada razão evo

lutiva ou de harmonização, precisasse se unir a outro, é lógico que
eu aceitaria, entenderia e a ajudaria, como já aconteceu. Mas não sei
se é o caso, pois esse outro é o Rubens. — Alguns instantes e
comentou: — Vivemos um sentimento puro, uma vida salutar e
temos planos elevados com os quais auxiliaremos muitos! No
entanto, agora, ela quer se unir a ele e receber criaturas conhecidas e
amigas dentro da nossa compreensão evolutiva, mas não deles e
com as quais a Lívia não tem débitos ou obrigações.

— Num passado remoto a Irene já foi filha da Lívia.
—Sim, mãe, eu sei. Mas...
—Acho que sei por que a Lívia quer fazer isso.
—Por quê? Explique-me, por favor!
—Aqui, no plano espiritual, sabemos que não é tão difícil, quanto
na vida terrena, trabalharmos algo que nos faça declinar. Quando
vocês estavam noivos e de casamento marcado, a Lívia, que sempre
foi muito bonita e elegante, precisava se sentir mais confiante, mais
segura, por isso aceitava os olhares, os elogios e os cortejos do
Rubens. Ela não sabia que, com essa atitude, incentivava-o a uma
postura e comportamento errado. Por causa disso, ele teve
esperança de conquistar a noiva do irmão. A Lívia deveria tê-lo
colocado em seu devido lugar, adverti-lo e não ter se calado e
trocado olhares e sorrisos. Esse comportamento alimentou o
desequilíbrio do Rubens que decidiu matá-lo para ficar com ela. Ele
tinha muita inveja de você e ninguém sabia disso.
Quando estamos encarnados, filho, acreditamos que nossos
pensamentos, bem como as coisas mais sigilosas que fazemos,
nunca serão descobertos por alguém. Quanto engano! Ao chegar ao
plano espiritual, Lívia deparou-se com você que sabia exatamente
de tudo. Apesar de amá-lo, de adorá-lo, ela admitiu e, de certa
forma, aceitou os cortejos do futuro cunhado, pensando que jamais
seria descoberta, que seria algo inocente e sem conseqüências.
Estava enganada. Isso a atormenta desde quando você desencarnou.
Desde aquela época, o seu inconsciente a culpava e foi por isso que


adoeceu. Agora essa situação do passado a tortura a ponto de
querer reparar, porque os seus atos custaram a interrupção de suas
vidas terrenas.

—Era bem possível que o Rubens tentasse algo contra mim mesmo
sem o incentivo de Lívia, pois trazia sentimentos do passado e era
isso que ele precisava harmonizar e não o fez.
—Sim. Eu sei. Em tempos remotos, também por inveja de você, o
Rubens fez de sua vida um inferno. Roubou-lhe a esposa e lhe tirou
a paz. Nessa época, você era casado com a Irene, que não resistiu às
más tendências e o traiu, o abandonou jovem e com os dois
filhinhos pequenos, o Flávio e a Neide, os netos que eu não quis te
ajudar a cuidar naquela época, porque eu não fiz gosto ao seu
casamento com a Irene.
—Vivi uma experiência extremamente difícil e infeliz. Quantas
vezes pensei em acabar com tudo. Nossa!...
—Só não o fez porque a Lívia, em espírito, esteve com você dia e
noite. Ininterruptamente sustentou-o com todo o seu amor, dando-
lhe forças para resistir a tão dura provação.
—A possibilidade de ver Lívia vivendo ao lado do Rubens me
atormenta.
—Não deixe que isso aconteça, Humberto. Sabe qual será o
resultado.
—Estou pensando em ir falar com o Sérgio ou com o Diogo. Eles
sempre foram meus amigos e vão saber como me aconselhar.
—Faça isso, filho — incentivou animada.
Alguns segundos e Humberto ofereceu leve sorriso, segurou as
mãos dela entre as suas e as beijou agradecido.
—Obrigado, mãe. Como é valoroso ter quem nos ouça, oriente e
estimule ao que é certo.
—Conte comigo, filho. Faço tudo por você!

— Obrigado. — Levantando-se, decidiu: — Agora preciso ir.
Após abraçá-la, com ternura, beijou-a e se foi.

***


Retornando à sua casa, Humberto recolheu-se a um pequeno
aposento cujas paredes eram literalmente forradas de livros.
Acomodando-se atrás da escrivaninha de aparência antiga, que,
além dos objetos necessários ao estudo, era decorada por gracioso
vaso com flores, apoiou os cotovelos, sustentou a fronte com as
mãos e permaneceu ali, quieto e em prece, por longo tempo.
Suave batida à porta o chamou ao momento presente. Erguendo o
rosto, ajeitou-se e permitiu:
—Entre!
—Com licença, meu irmão? — pediu uma mulher aparentando
meia idade. Cabelos levemente grisalhos emolduravam
agradavelmente seu rosto simpático e sorridente.
Seu nome era Júlia. Havia sido filha de dona Aurora e irmã de
Humberto, na última encarnação. Esboçando generoso sorriso, ele
pediu:

— Entre, Júlia! Por favor, minha irmã! Eu queria mesmo conversar
com você.
Delicadamente ela fechou a porta, garantindo privacidade. Puxou
uma cadeira, sentou-se frente a ele e perguntou:
— Não vai fazer a refeição conosco?
—Não — respondeu com simplicidade. Em seguida, considerou em
tom brando para ensiná-la: — Creio que já deve saber sobre a
decisão de Lívia e, como não poderia ser diferente, estou abalado. E,
aqui, não se senta à mesa aquele cujas ondas vibratórias produzem
fluidos pesarosos, o que é verdadeiro veneno se misturado aos
fluidos salutares das substâncias alimentares. Isso nos intoxica.
—Nesta colônia, sei da existência de residentes que, por não
precisarem, se isentam, quase por completo, das substâncias
alimentares, mas nunca totalmente e jamais das nutrições
espirituais! — sorriu. — Aprendi também que os tarefeiros do
Ministério do Auxílio não podem, sobremaneira, dispensar a



nutrição de concentrados fluídicos apresentados como caldos, frutas
e sucos. E você, Humberto, como considerável prestador de serviço
no Auxílio, despende imensa quantidade de energia e necessita
repô-las.
—O amor é o verdadeiro alimento do espírito! — sorriu generoso.
—Sem dúvida! Contudo você possui um perispírito e esse corpo
espiritual precisa de forças compatíveis a esse plano. Se não deve se
unir aos demais para se alimentar, permita-me trazer a sua refeição
aqui.
Sustentando sorriso agradável, ele disse:
—O conhecimento está deixando-a mais esperta, Júlia! Tempos atrás
você não era assim!
—Humberto — falou com doçura —, você chegou há pouco de
tarefa árdua. Alimente-se, para não esgotar as energias, ou eu vou
contar para a nossa mãe.
Ele riu gostoso e respondeu:

—Depois. — Com expressiva preocupação, que tentava disfarçar, o
irmão comentou após alguns minutos: — A Lívia deve ter
comentado contigo sobre a decisão dela.
—Sim, comentou.
—Júlia, estou inquieto, apreensivo, preocupado e com um mau
pressentimento. Não estou me sentindo bem.
—Estou surpresa por vê-lo falar assim. Sempre o admirei por sua
força interior, seu bom ânimo, sua fé nos momentos mais instáveis,
sua convicção no bem e nos pensamentos positivos. Você sempre foi
capaz de compreender as pessoas.
—Sempre, não. Eu não atiro a primeira pedra. Somente quem nunca
errou pode fazê-lo e eu, minha irmã, tive incontáveis experiências
terrenas nas quais cometi vários erros e precisei harmonizar cada
um deles. Não estou julgando a Lívia. E que meus planos eram
outros no que diz respeito a ajudar o Rubens.
O caso é o seguinte: aqui, na espiritualidade, quando olhamos para

o número de erros que cometemos, ficamos tristes e nos

arrependemos. Depois queremos corrigir tudo de uma vez e nos
achamos capacitados para superar todos os desafios. No entanto,
quando encarnados, vacilamos e não somos tão fortes para
suportarmos as provações. Acredito que esse é o caso de Lívia.

— Humberto, eu sei o quanto a atividade mental do encarnado
muda quando os seus propósitos são dominados pela falta de
perdão, pelos vícios morais e não pelos desejos evolutivos. Todos
nós somos vítimas e herdeiros de nós mesmos. Sempre pedimos a
Deus que nos alivie das dores em vez de rogarmos por força para
vencermos os desafios. Quando estamos bem situados nas
atividades terrenas, não nos lembramos de agradecer ao Pai, muito
menos de ajudar um irmão. Quase ninguém observa e entende a
santificante bênção da oportunidade terrena. O normal é ouvirmos
somente súplicas e reclamações a respeito das provações vividas. Eu
falo isso por mim, principalmente. — Breve pausa e contou: —
Quando encarnada, época em que fomos irmãos, fui vaidosa ao
extremo. Só pensava em ver e ressaltar a beleza física, disputar
tarefas empresariais mais apropriadas ao espírito masculino e dava
pouca importância para o próximo mais próximo. Sabe, senti sua
falta quando desencarnou no suposto acidente de atropelamento de
trem. Contudo eu não ofereci aos nossos pais a atenção que deveria
e de que eles precisavam, principalmente para a nossa mãe, tão
desesperada, tão aflita e inconsolável. Ao ficar intimamente
insatisfeita por causa das reclamações dolorosas de nossa mãezinha,
por causa da exibição de sua dor de forma angustiosa, eu
demonstrava o meu pobre egoísmo, minha baixeza espiritual e
minha pouca evolução moral quando não compreendia, quando
achava que a mãe não pensava nos outros filhos vivos. Eu sabia
sorrir, ser atenciosa, compreender e consolar somente os conhecidos
e amigos fora de casa. Não queria entender ou admitir que minha
caridade deveria ser com os mais próximos, pois esses são os que
nos fazem renovar e aprender. São para com esses que temos
débitos urgentes ou eles não estariam tão próximos. Somente hoje

eu vejo que vivi uma vida egoísta e sem propósitos, sempre fugindo
das responsabilidades morais. Casei-me. Tive uma vida abastada e
não deixei faltar qualquer provisão material para minha mãe.
Porém, eu mesma, nunca estava presente. Não fui diferente com os
meus filhos, que sempre deixei sob os cuidados dos melhores
empregados. Não tratei bem nem o meu marido. Depois do
falecimento de nossa mãe, gozei o resto da juventude e a chegada
da maturidade com falsa alegria até meu marido acreditar que
precisava ter ao lado uma mulher tão esperta e bela quanto eu havia
sido. Aos poucos fiquei limitada ao lar. Os filhos também foram me
esquecendo e eu não tinha qualquer atribuição que me satisfizesse.
Doenças foram me consumindo. Os melhores médicos e
enfermeiros foram pagos para ficarem ao meu lado, mas pouco eu
via meu marido e meus filhos. Todo aquele tempo presa ao leito me
fez refletir muito. Eu não desejo isso a ninguém. Quanto
arrependimento quando se está sobre uma cama sofrendo! Eu
desejava mudar tudo, mas não podia. Desencarnei. Permaneci
longos anos em estado de perturbação. Esse Umbral da consciência
é tão terrível que somente as preces ensinadas por nossa mãe me
aliviavam a mente e eu encontrava a fé. A fé de sair daquelas
condições. Depois de tanto orar, eu entrei em uma faixa vibratória
onde consegui ver você, que muito ficou ao meu lado, utilizando as
preces que a nossa mãezinha nos ensinou para me fazer elevar os
pensamentos. — Lágrimas rolaram na face de Júlia e sua voz
embargou ao dizer: — Eu que nunca havia feito uma oração
verdadeiramente sentida por você, nem em vida nem após a sua
partida. O que fiz a você foram preces decoradas, palavras repetidas
sem a menor atenção, sem sentimento. Você me trouxe para essa
colônia e para junto de nossa mãe. Depois de me recuperar, em
pavilhões hospitalares e regeneradores, trouxe-me para a sua casa,
sob os seus cuidados, os de nossa mãe e a atenção carinhosa de
Lívia.


Eu estava triste, arrependida por tudo o que não fiz, pela
oportunidade de vida desperdiçada. Mesmo assim, recebi, por
misericórdia, atenção e tratamento que não merecia. Equilibrei-me,
estudei, aprendi e, até onde sei, nem você nem a Lívia precisariam
me dar assistência, porém o fazem com amor e há tanto tempo!
—Você era um espírito um tanto rebelde e que não dava atenção aos
chamados do Alto. Precisou vivenciar a dor e o sofrimento para
começar a aprender. Por vê-la disposta e verdadeiramente animada
a reparar o que fez de errado, decidimos lhe oferecer a
oportunidade do convívio para que aprendesse mais rápido.
—E por acaso, Humberto, não será essa oportunidade de convívio,
para que aprenda mais rápido, que a Lívia quer dar ao Rubens?
Ele a fitou de modo indefinido, mas sem dizer nada. Em seguida,
fugiu-lhe ao olhar.
Júlia sorriu generosa. Levantou-se e avisou:

— Vou buscar a sua refeição.
2
PLANEJAMENTO REENCARNATÓRIO


No dia seguinte, Humberto aguardava pacientemente pelo amigo
de longas eras.
O gabinete de Diogo era invadido por luminosidade caridosa,
levemente colorida e recortada alegremente pelos vitrais
triangulares. As janelas largas, em forma de arco, deixavam suave
brisa perfumada penetrar no recinto, ao mesmo tempo que a vista
de graciosas trepadeiras floridas meneavam nas laterais.


Repentinamente a porta foi aberta e ouviu-se a voz contente do
amigo sorridente:
—Querido Humberto! Como está?! — perguntou, abraçando-o e
beijando-lhe o rosto ao estapear suas costas.


— Bem, Diogo! E você?
— Ótimo! Soube que chegou ontem. Eu não estava aqui por causa
de tarefas urgentes nos pavilhões hospitalares, justamente na
Enfermaria dos Perturbados.
— Problemas sérios?! — preocupou-se Humberto.
— Agora tudo está sob controle. Você nos fez falta, hein! — sorriu.
— Quando retomar a chefia, de acordo com as condições dos
internos, aconselho aliviar as medidas disciplinares rígidas que o
Sérgio tomou com meu total apoio.
—O que aconteceu?
—Os recolhidos na Enfermaria dos Perturbados, por causa dos
vícios terrenos não superados, se amotinaram com exigências
absurdas e abomináveis às vibrações desta colónia. O nosso velho
conhecido Adamastor, cujos vícios de violência, de agressividade e
referente ao sexo não vence, mesmo à custa de longo tratamento
espiritual, liderou os demais e, juntos, chegaram a agredir
enfermeiros e tarefeiros do pavilhão. Fui chamado. Diante das
circunstâncias, apoiei as medidas drásticas que o Sérgio
determinou. Toda alimentação e qualquer tipo de recomposição
fluídica foi suspensa. A enfermaria foi fechada. Ninguém saiu ou
entrou lá por oito longos dias. Os internos se transformaram em
verdadeiros loucos, mas enfraqueceram. Ao vê-los sem forças,
adentramos e isolamos Adamastor, como também os mais ligados
diretamente a ele. Os demais, amedrontados, ficaram mais
respeitosos e foram separados de acordo com o grau de risco que
representam aos trabalhadores.
—Assim que eu reassumir a chefia, vou solicitar o vigor de métodos
de espiritualização desses enfermos. Vejo essa necessidade há
algum tempo e já deveria ter investido em medidas a respeito. Os


assistentes técnicos dessa enfermaria solicitaram o planejamento
reencarnatório de Adamastor pelo fato desse irmão não se regenerar
e causar excessivo desgaste a todos nós.
—Como amigo, aconselho o planejamento reencarnatório de muitos
outros ali, não só de Adamastor. Esses espíritos rebeldes e teimosos
dificilmente se regeneram aqui. Eles causam problemas terríveis e
atrapalham, inclusive, a recomposição dos demais. Estão aqui
porque, quando apresentam o desejo de melhorar, necessitam ser
acolhidos para tratamento e outra colônia, com menos estrutura,
não consegue suprir suas necessidades. Somente uma colônia com o
porte da nossa pode fazê-lo.
—Esse motim só reforça minha decisão a respeito do planejamento
reencarnatório. — Olhando-o, esboçou suave sorriso no semblante
preocupado e solicitou: — Precisarei do seu apoio, Diogo.
—Conte comigo! Tenho idéias novas para trabalhos de
reajustamento que já apresentei à Governadoria. Eles devem chegar
para a sua apreciação na próxima semana.

— Ótimo!
—Mas me conta, Humberto, como foi a excursão terrena? Quais as
novidades?
—Acompanhei de perto o nascimento de meu pai, recebido com
imensa alegria. — Ele sorriu ao lembrar: — Em pensar que Sara
recebe o bisavô como filho e ignora isso... — Após segundos,
continuou: — De resto, sem grandes novidades. Os encarnados
continuam teimosos, vaidosos, orgulhosos e não admitem isso.
Como sabe, eles querem materializar o espírito e não espiritualizar a
matéria. Com isso, desequilibram-se, agridem o corpo físico e
encurtam a encarnação.
—E triste ver o ser humano desejando viver mais, desejando viver
bem, ser saudável e ao mesmo tempo não se importando nem
admitindo que desencarna antecipadamente quando fuma, bebe,
come sem necessidade, se droga, se irrita, sente raiva, fica

contrariado e outras coisas mais. Quando faz isso, a pessoa está se

matando, se suicidando aos poucos.
E não me venha dizer, hoje, que isso é suicídio inconsciente, não!
Todo mundo já sabe que comer demais mata, fumar mata, ingerir
bebida alcoólica mata, usar droga mata, ficar irritado, com raiva,
contrariado... mata! De alguma forma a criatura humana destrói
células ou neurônios quando foge ou excede o ritmo natural da
vida, seja esse ritmo de um processo físico ou emocional.
—Na Enfermaria dos Perturbados — lembrou Humberto —
encontramos centenas e centenas de casos assim. Aliás, todos ali se
excederam nos vícios. Irritar-se é um vício, a raiva é outro. Muitos
ainda não admitem isso. Tenho medo de, quando encarnado, me
deixar levar pela contrariedade que gera irritação e raiva.
—Sentir raiva ou sentir irritação é o mesmo que beber um copo de
veneno e esperar que o outro morra!
Humberto riu e ambos foram interrompidos por batidas à porta. Ao
olharem...
—Sérgio1, meu amigo! — exclamou Humberto com expressiva
satisfação. Eles se abraçaram demoradamente e, ao se afastarem,
Humberto perguntou: — Como estão as coisas?! Foi difícil ficar no
meu lugar?!
—Foi bem tranqüilo! — brincou, rindo. — O Diogo te contou o que
aconteceu?
_ Estávamos falando sobre isso. Creio que os internos daquela
enfermaria, ao perceberem a minha ausência, resolveram se rebelar

— acreditando que encontrariam facilida¬de na segurança e mais
regalias.
— Chefiei esse departamento somente na sua ausência, Humberto, e
por curto período, mas observei que alguns irmãos ali, talvez, sejam
incompatíveis até para o nível desta colônia.
1 N.A.E. O nome dos personagens do plano espiritual não será trocado quando estiverem
no plano físico para facilitar o reconhecimento deles pelo leitor.


Quando eu assumi essa enfermaria, Sérgio, eles já se encontravam

—lá. Na esperança de se regenerarem, foram mantidos a pedidos
especiais de parentes chegados. Contudo eles não se recuperaram e
insistem mentalmente nos vícios. Eu estava justamente falando ao
Diogo sobre os aconselhamentos que recebi de técnicos e assistentes
com funções específicas, nessa enfermaria, a respeito do reencarne
de Adamastor.
—Eu aconselho o planejamento reencarnatório de muitos outros ali,
não só dele — disse Diogo.
—Não quer me auxiliar nisso, Sérgio? — pediu Humberto.
—Como não?! Gosto muito de funções relacionadas ao
planejamento reencarnatório, setor onde trabalho com imensa
satisfação desde quando me afastei das tarefas de socorrista no Vale
dos Suicidas.
—Eu soube que não está mais na admirável equipe de socorro no
vale. Por que solicitou afastamento?
—Estou planejando o meu reencarne, por isso quero ficar mais
presente na colônia, para aperfeiçoamento e estudo.
—Sério?! Vai reencarnar?! Você me avisou sobre isso, mas eu não
sabia que seria tão rápido!
—Em alguns anos, espero. Talvez uns vinte! — tornou Sérgio. —
Acredito que é a oportunidade ideal tanto para mim quanto para a
Débora, que deve me acompanhar.

—Qual o tipo de tarefa pretende abraçar na vida terrena? Psicólogo,
como comentou?
—A princípio, não — respondeu Sérgio. — Eu preciso ocupar uma
posição de equilíbrio sentindo o que é ser superior e ao mesmo
tempo subalterno. Experimentar a pressão ostensiva de muita
disciplina. Além disso, pelo fato de eu ter desertado do Exército
Imperial, quando fiz parte dele, na próxima encarnação, devo
exercer função relacionada à segurança pública, provavelmente,
policial militar. Após o período necessário, nessa função, devo
abraçar a minha paixão e me voltar para a área psicológica. Sabe


como é, quando a consciência cobra, só se tem paz corrigindo as
faltas do passado. Quero ampliar os conhecimentos na área
psicológica e desenvolver auxílio nos mais diversos
comportamentos da mente. Minha intenção, no desenvolvimento
intelectual, é, na espiritualidade, trabalhar com irmãos que não
entendem o uso da psique ou dos pensamentos e utilizam a energia
de criações mentais destrutivas, através da força do pensamento,
sem saber.
Nesse instante, Diogo os interrompeu:
—Peço licença, mas tenho horário marcado para uma reunião na
Governadoria. Gostaria muito que os amigos continuassem o
assunto.
—Diogo, não vamos incomodar se prosseguirmos com a conversa
aqui em sua sala? Eu gostaria muito de conversar com o Sérgio, pois
esse assunto está me interessando.
—Fiquem à vontade! Por favor!
Dizendo isso, Diogo se retirou e Humberto mencionou:

— Sérgio, preciso falar com você sobre algo que me incomoda.
Percebo que você é a criatura ideal, não só por ser um grande
amigo, mas pelas experiências que tem. Sua orientação é muito
importante para mim.
Sérgio sorriu e ficou bem à vontade, acomodado em um sofá,
enquanto Humberto ocupava uma cadeira frente a ele.
—Além da Débora, quando estiver encarnado, quem mais estará
perto de você? — perguntou Humberto.
—O Tiago será meu irmão! — informou alegre. Mas logo Sérgio
fechou o sorriso e comentou: — A Lúcia será minha irmã e...
— A Lúcia?! — questionou Humberto, surpreso.
—É. Quem sabe, como minha irmã, ela se torne menos rebelde, mais
compreensiva.
—A Lúcia é uma criatura bem difícil e se compara à Irene. — Breve
instante e se alegrou: — Faz tempo que não vejo o Tiago! Como ele
está?!

—Ótimo! Como sempre! Ninguém derruba o seu alto astral! O
Tiago está em excursão terrena, visitando nossos pais. Não sei como
não se encontraram.
—Por acaso o seu pai não será o senhor Edison, será? — sorriu.
—Biologicamente, não. Ele já está encarnado, como sabe. Vamos nos
encontrar, pois ele faz questão de me ajudar, me dar a sustentação e
a orientação que não pôde oferecer, em uma vida passada, como
pai. Eu o considero muito, você sabe! Para mim, ele é um pai
espiritual!
—Imagino! Também gosto muito dele. E quanto ao seu mentor
espiritual?
—Ah! — sorriu. — Não poderia deixar de ser o querido Wilson!
Como eu o respeito, o amo! Nossa! Ele é a criatura que fará tudo por
mim. Peço a Deus para eu ter fé, bom ânimo e pensamentos
elevados para sempre ser digno de estar em sintonia com o Wilson.
—Sérgio, eu o admiro e o considero muito. Eu o amo a ponto de
dizer que, se eu estivesse encarnado, gostaria que você fosse o meu
mentor! Sei que a minha particularidade deverá ser resolvida por
mim. Entretanto, você sabe o quanto é valioso o bom conselho
vindo de irmão amigo como você, o Diogo... É que eu estou
precisando de uma luz na consciência para não me desequilibrar.
Para mim, o assunto é sério.
—O que está acontecendo? — perguntou o amigo preocupado.
—A Lívia se sente incomodada. A consciência lhe cobra pelo
comportamento inadequado no passado e ela quer reencarnar. Em
princípio os seus planos são unir-se ao Rubens.
—Ao Rubens?! — surpreendeu-se, por conhecer toda a história.

— Exatamente. É o seguinte...
Em alguns minutos, Humberto contou ao amigo os planos de Lívia
e tudo o que o incomodava nos planos da companheira.
Ao final, o silêncio imperou por minutos e Sérgio quis
saber:
—Você tem algum tempo livre agora?

—Sim, tenho.
Então vamos até o Ministério da Reencarnação, pois eu tive uma
idéia. Lá, munido de equipamento em que posso lhe mostrar
melhor as suposições, você poderá entender muito bem algumas
sugestões. Vamos?

— Claro! Vamos, sim! — animou-se.
Uma energia salutar envolveu Humberto que ficou bem disposto e
ansioso pelo fato do amigo ter alternativas melhores para lhe
sugerir.
Após horas reunido com Sérgio, Humberto estava pensativo, porém
mais sereno.
— O que você acha? — perguntou Sérgio.
—Precisamos conversar com a Lívia. Quero a opinião dela. Contudo
já posso afirmar que temo ficar tão perto de Rubens, vendo-o tão
ligado à Lívia desse jeito.
—Veja, Humberto, nós só planejamos de uma forma visando a que
tudo siga um curso harmonioso. Entretanto, encarnado e com o
poder do livre-arbítrio, nós podemos mudar tudo e alterar o curso
de nossas vidas e da vida dos outros. Aqueles que nos acompanham
na encarnação terrena podem nos ajudar ou prejudicar. Além do
que, são somente planos reencarnatórios superficiais. Lógico que
nós nos aplicaremos por anos para ajustarmos toda essa situação.
— Eu gostaria muito que você me ajudasse nesses detalhes, Sérgio.
Confio no seu bom senso.
—Eu prometo que vou te ajudar. Não só aqui, mas também no
plano físico. Ficaremos bem próximos.
—Será o meu mentor encarnado se eu vacilar? — perguntou sério.
—Serei. Eu prometo. — Os amigos sorriram. Trocaram rápido
abraço e Sérgio propôs: — Vamos contar para a Lívia?
— Lógico! Vamos até em casa agora!
Sem demora eles seguiram para a casa de Humberto.
***


Após longa conversa e explicações sobre propostas e possibilidades,
Lívia perguntou:
—O planejamento reencarnatório é feito com muitos anos de
antecedência. Mas entendi que esses planos são para breve. Daqui
uns vinte ou vinte e cinco anos! E os nossos pais?
—O senhor Leopoldo está encarnado. Sei que não foi planejado que
ele e dona Aurora recebessem Humberto e Rubens como filhos.
Duvido muito que a dona Aurora se negue a ser mãe dos dois e
quanto ao senhor Leopoldo, com o decorrer dos anos, poderá ser
trazido até aqui no estado de sono e questionado a respeito. Pelos
desejos evolutivos, certamente irá concordar.
—Não será arriscado o Humberto e o Rubens serem irmãos depois
de tudo?
—Isso seria ideal! O Humberto seria testado no seu perdão ao irmão
e possessividade quanto a você, Lívia. Pelo que entendi e senti, até
agora, o Humberto precisa trabalhar a questão de admitir você
perto do Rubens. Para você, Lívia...
—Sérgio, o importante para mim seria ter um pai severo e exigente.
Fui muito mimada, dependente. Vivi verdadeiramente como uma
dondoca e recebi tudo nas mãos. Isso me impediu de ser forte, de
ter opinião e de crescer. Seria muito importante para a minha
evolução se eu precisasse lutar pelo meu ideal, por minhas
conquistas e ter um pai que exigisse de mim uma boa conduta. Os
problemas e as dificuldades vão fazer com que minha mente não
seja preenchida com futilidades. Além disso, por me sentir tão
culpada por tudo que provoquei ao Humberto, eu quero estar
pronta para auxiliá-lo, orientá-lo e ampará-lo no que for preciso.
—O bom para você é não receber muito apoio familiar. Isso a fará
crescer, ser mais forte, evoluir... Não se ligar à Irene com laços
consanguíneos, seria o melhor. — Fitando-a firme, reforçou a
explicação: — Veja, essas são só suposições e bem superficiais. Um
planejamento reencarnatório é algo para ser muito bem estudado e
estruturado. Todos os envolvidos, como nesse caso, precisarão


chegar a um acordo, um consentimento para se harmonizarem,
aliviarem as consciências e evoluírem. Esse é o objetivo!
—Quando estamos encarnados, Sérgio, tudo fica diferente.
Pensamos e agimos diferente. Eu estava conversando isso com a
Débora ontem, lá na biblioteca — justificou-se Lívia. — Por isso eu
preciso de um pai severo e de uma mãe que não me apóie. Será
difícil, mas compreendo e aceito para eu não me desviar dos meus
ideais. No meu caso, eu não posso e não quero me deixar iludir pela
beleza física, material e me inclinar para a vaidade, para o orgulho.
Sérgio ofereceu suave sorriso e explicou:
—O que é belo, o que é bonito deve ser agradável aos sentidos e não
ser um instrumento de vaidade, arrogância ou inveja. Acho que a
beleza física deve ser interessante, no seu caso, você precisará saber
lidar com ela. O Rubens deverá se atrair por você e, novamente,
essa atração será pela beleza exterior.
—E difícil aprender a nos equilibrarmos com a beleza. É uma prova
tão difícil quanto a da fortuna! Podemos nos tornar vaidosos,
orgulhosos, arrogantes e imponentes.


— Exatamente! A vaidade e o orgulho andam de braços dados
enquanto a arrogância corre atrás dos dois. Não dá para ter um sem
ter o outro. Encarnado, sob o véu do esquecimento, o nosso
inconsciente se revela sutilmente e é por isso que atraímos para nós
o que precisamos para nos corrigirmos. Se você atraiu para si uma
pessoa agressiva, que não te respeita nem te ama, é porque está
faltando amor e carinho de você para com você mesma. Esse é só
um exemplo. Enquanto você não se amar, não se respeitar, não
procurar o melhor, os caminhos não vão se abrir para que encontre
e se ligue a pessoas melhores.
Aproveitando a breve pausa, Humberto questionou:
—E quanto ao Rubens? Será que conseguiremos tirá-lo daquela
condição?
—Temos alguns anos pela frente e, enquanto eu não reencarnar,
vou ajudá-lo no que for preciso para tirá-lo desse estado de

consciência, o Umbral. Sei que podemos contar com a colaboração
do Tiago, especialista nesse assunto. Será muito importante e
proveitoso o Rubens desejar reencarnar para reparar os erros. E
mais importante ainda é se restabelecer o quanto antes para
entender o que aconteceu a ele, por que aconteceu e também
aprender e se preparar para a harmonização que precisa fazer.
—Quando socorrido, talvez, ele não tenha condições de vir para
esta colónia, mas já sei onde poderá ser recebido — disse Humberto
mais animado.
—Ótimo! O sofrimento dele, nesse estado de perturbação, foi
imenso. Acredito que, quando se libertar desse estado, o mínimo de
tempo de terapia espiritual já o ajudará a se recompor e equilibrar a
mente, pois, pelo que conheço, o Rubens é inteligente e podemos
tirar proveito benéfico disso. — Sérgio silenciou por alguns
instantes observando o casal se entreolhar com expectativa e
preocupação. Logo comentou: — Pensem bem e falem com os
envolvidos. Depois será preciso vocês requererem, junto ao
Ministério da Reencarnação, o pedido e a justificativa para o
reencarne de ambos a fim de que tudo se dê no tempo certo.
—E o pedido para a reencarnação dos demais? Alguns não estão
nessa colônia.
—Veja, Lívia, cada colônia espiritual possui o seu sistema de
organização. Aqui nós temos um ministério especializado somente
em planejamento reencarnatório. No caso dos demais, a colônia
onde estão é o Ministério do Auxílio que cuida disso no setor de
planejamento reencarnatório. Eles deverão fazer a solicitação por lá
e, logo que o pedido de vocês for aceito, entraremos em contato com
a colônia onde eles estão para justificar a necessidade de os unirmos

o máximo possível para esse reencarne. Existe uma movimentação
enorme para um trabalho como esse. Porém, se isso é o que vai
aliviar as consciências, se esses reencarnes contribuirão para a
evolução e a elevação de muitos, sem dúvida, as governadorias irão
aprovar e tudo será feito a tempo — explicou Sérgio.

—Minha consciência me cobra muito. Sinto-me abalada. Às vezes,
quase doente por causa das recordações dos meus deslizes infantis e
de tudo o que fiz indiretamente ao Humberto. Eu acabei com um
planejamento reencarnatório. Destruí nossos sonhos e provoquei
muito sofrimento a todos. Eu amava o Humberto e jamais poderia
imaginar que aquilo que eu estava permitindo ao Rubens o
incentivava a um plano macabro para eliminar o irmão. Como errei.
Não sei como o Humberto me perdoa pelo que fiz.
—Errar todos nós erramos. E Deus é tão bom e justo que nos deixa
corrigir. Quanto a te perdoar, eu não te perdôo, Lívia, não tenho o
que te perdoar. Eu só compreendo, pois já agi assim e até pior. O
que sinto por você é muito forte, muito intenso, por isso estarei ao
seu lado. Vamos neutralizar todo esse peso de nossas consciências,
aprender a entender e a perdoar de verdade. Não será fácil. Por
outro lado, vou me empenhar para uma harmonização com a Irene.
Serei testado no limite das minhas forças e você também. Serei
testado para compreender e aceitar o meu irmão ao seu lado.
—Sinto medo. Podemos mudar de idéia quando encarnados pelo
véu do esquecimento — tornou ela.
—Não mudamos de idéia quando o que sentimos é verdadeiro e o
que estamos fazendo é muito necessário — afirmou Sérgio. — E
preciso que pensem muito. Reflitam bastante sobre a união na
Terra. Cada um de vocês será testado em sua fidelidade. A vaidade,

o ciúme, o orgulho e a inveja são vícios morais que o Rubens e a
Irene não vencem à custa de experiências simples. Pelo que sei e os
conheço até agora, eles são capazes de prejudicar alguém só para
serem os melhores, os vitoriosos. Devemos questionar, entretanto,
se esse período de sofrimento no Umbral serviu para o Rubens ser
humilde ou não. No que diz respeito ao livre-arbítrio, tudo pode
acontecer quando alguém não vence os vícios morais. Os atos que
cometemos e os vícios que adquirimos como o ciúme, a gula, o
alcoolismo, o tabagismo entre outros são vícios frutos da vaidade,
do orgulho, da inveja... A criatura normalmente não se domina até

perder completamente o controle de si mesma e, junto com esses
desequilíbrios, não só prejudica a própria existência como também a
vida daquele ou daqueles que estão mais próximos.

— Esse é o problema, Sérgio. Eu confio em mim, na Lívia, mas
tenho motivos para não crer no cumprimento das promessas e
propostas que os demais vão fazer, principalmente o Rubens e a
Irene. Todos os envolvidos que mencionamos, aqui, nessa
possibilidade de planejamento, vão concordar com o reencarne, sem
dúvida! Você, melhor do que eu, sabe como é! Milhares de criaturas
imploram, desesperadamente, por uma oportunidade de reencarnar
para não continuarem sentindo imensa perturbação, o desequilíbrio
e a inenarrável dor na consciência, que é viva, é real, sem ilusões e
que não se esquece por um só segundo, aqui, no plano espiritual.
Essas criaturas querem se livrar dessas aflições e das angústias
perturbadoras causadas pelas cobranças dos erros do passado.
Acreditam poder suportar qualquer dor e sofrimento na vida
terrena, que são bem mais suaves do que as tempestuosas impressões
pelos débitos impregnados no perispírito, na mente. Ao
voltarmos do plano físico endividados, aqui, a aflição é intensa,
enlouquecedora e o arrependimento é desesperador. E por isso que
muitos encarnados têm medo da morte. Assim que retornamos para
a pátria espiritual, o arrependimento tardio de quase nada adianta,
a não ser para mostrar um pouco de evolução adquirida, exibindo o
reconhecimento dos nossos erros e a conscientização de saber que
será preciso corrigi-los. Porém, quando arrependido e desesperado,
o espírito implora por uma oportunidade de corrigir o seus erros.
Mas, encarnado, não dá a menor atenção aos chamados de
reparação. A vaidade, o orgulho e a ambição o dominam e, ao
conhecerem, a lei de causa e efeito, que é a necessidade de terem de
harmonizar o que desarmonizaram, ele pensa: "Ah! Não deu para
eu corrigir nessa vida, vou deixar para corrigir na próxima!" Irresponsável!
Não pensa que, com essa atitude, tiram de outra
criatura a oportunidade nessa experiência terrena e prejudica muita

gente. Não leva em consideração o empenho e a dedicação de
inúmeros amigos encarnados e desencarnados que se esforçaram
para ajudá-lo. Encarnada, a pessoa não tem respeito por todo árduo
e dificultoso planejamento reencarnatório e põe tudo a perder.
Quando não, ainda culpa o próximo pelos seus erros, pela sua
incompetência.

— Isso é verdade! — concordou Sérgio. — A pessoa não imagina o
quanto ela implora para viver a vida que vive com todos os
desafios, dificuldades e limitações humanas. Ignora como insistiu
experimentar a experiência terrena tal qual como vive, pois, só após
harmonizar os seus débitos, passará a ter paz espiritual. No entanto,
desperdiça a oportunidade, o tempo. Utiliza erroneamente os
atributos que lhe foram confiados e acaba adquirindo mais débitos e
muito sofrimento consciencial.
Um silêncio profundo dominou o recinto até Humberto concluir:
— Por isso devemos orar muito e nos conscientizarmos do que
realmente queremos e somos capazes. Orar para que, quando
encarnado, não nos desviemos do que será de ótimo proveito para a
nossa evolução, pois, muitas vezes, o acontecimento ruim é o
remédio para o nosso mal. É o que nos faz crescer.
—Com certeza! — concordou o amigo. — Bem... Já é tarde e eu
preciso ir. A Débora está me esperando. Pensem muito a respeito de
tudo o que conversamos e lembrem-se de todas as possibilidades.
Depois me procurem. Vão lá a minha casa para conversarmos. Se
tudo der certo, como supomos aqui, continuaremos com a nossa boa
e velha amizade quando reencarnarmos — riu. — Será muito bom!
Sempre nos demos muito bem!
—Sem dúvida, Sérgio! Vamos orar para que saibamos a melhor
decisão a tomar, depois conversaremos. Muito obrigado pela sua
atenção e ajuda! — disse Humberto, grato.
— Fiquem com Deus!
Os amigos se despediram e Sérgio se foi. Aquela noite foi longa
para Humberto e Lívia, que conversaram muito a respeito de tudo.

***


O tempo foi passando. Com os anos, Rubens foi socorrido e levado
para uma colônia adequada ao seu estado consciencial. O
arrependimento corria-lhe à mente perturbada e sofrida.
Em uma das vezes em que foi visitá-lo, em um pavilhão hospitalar,
Humberto dizia piedoso:

— Tudo já passou, Rubens. Não fique assim.
— Você não faz idéia do que vivi, nem de como vivo agora. É
horrível ver e sentir o sofrimento que eu te provoquei.
Minha mente ficou confusa. Nem acredito que fiquei todos esses
anos naquele vale sombrio. Eu não sabia quando era dia ou noite.
Sentia fome, frio, desespero... Desejei morrer, mas isso não se pode.
Descobri que a morte não existe.


— Nunca me viu ou ouviu quando me aproximava de você?
—Não. Nunca. Eu pensava em você e um arrependimento terrível
me torturava. Foi pouco antes de eu ser trazido para cá que intensa
fé tomou conta de mim e comecei a rezar diferente. Algo forte
enchia o meu peito de esperança e de vontade e eu comecei a orar
como nunca tinha feito antes. Senti-me tonto, aliviado e uma coisa
leve envolveu o meu corpo... Daí eu te vi. Vi os outros. O
sofrimento, a dor e todo o peso do horror vivido diminuíram, mas
ainda tenho crises que me assombram. A consciência me dói. Por
favor, Humberto, não pense que estou me queixando, só estou
comentando. Sei que sofri por minha culpa, por minha leviandade...
—Foram muitos anos em estado de perturbação terrível, Rubens.
Mas, agora, vai se recompor.
—Estou tão arrependido por tudo... Arrependido por ter vivido
como vivi...
—Sempre há um jeito de se corrigir o erro.
—Eu me iludi. Fui arrogante, orgulhoso, prepotente... Sempre tive
inveja de você. Quando você e a Lívia estavam juntos, eu... — o
choro o interrompeu.

—Não se torture, meu irmão!
—Você tinha tudo, Humberto! Sempre teve! E merecia! Mas eu...
Em vez de conquistar e batalhar pelo que eu queria, achei que seria
mais fácil tirar de você. Acreditei que, se você não estivesse no meu
caminho, eu poderia ficar com a sua noiva. Afinal, ela correspondia,
com sorrisos enigmáticos, aos meus olhares, aos meus elogios e...
Bem, eu pensei que se não estivesse no meu caminho eu ficaria com
ela, com a casa que o pai te ajudou a conseguir e... — novamente
chorou. — Após te matar, vivi dias amargos. A Lívia não me quis e
ficou doente. Depois que ela morreu fugi para a bebida... Casei e fui
leviano, traidor, agressivo... Fiz tanta coisa errada!...
—Tudo tem como ser corrigido.
—Será?! Será que esse sofrimento tem fim?!


— Acredita que Deus te criou para vê-lo errar e deixá-lo sofrer
eternamente? Se assim fosse, você não estaria aqui, arrependido. Sei
que está sofrendo, mas sente-se mais aliviado. — O irmão ficou
pensativo e Humberto prosseguiu: — Bem, vamos falar de coisas
boas! A mãe virá visitá-lo amanhã! — sorriu.
—Mas...
—E a Lívia também.
—Humberto! Não sei como recebê-las! Estou com vergonha de tudo
o que fiz! Meu Deus! Olha o meu estado!
—Esse é um momento que não pode ser mais adiado, Rubens. A
mãe está prestes a reencarnar e deseja muito vê-lo. A Lívia também
tem seus arrependimentos e quer se desculpar. Além disso, agora
que está mais consciente, preciso te contar e ao mesmo tempo te
fazer uma proposta, pois falta somente você para concordar com
tudo.
— Uma proposta?!
— Você se sente mesmo arrependido e quer corrigir os seus erros?
—Sim! Claro que sim! — expressou-se emocionado.
—Então eu proponho a parar de pensar nos erros do passado e
planejar o futuro.


—Como assim?! — perguntou curioso.
—Veja, Rubens, o único meio de aliviar a consciência é corrigindo
os erros. E o único jeito de corrigir os erros é reencarnando.
—Se eu pudesse... Se eu tivesse a chance de reparar o passado... Oh!
Meu Deus! Quero viver de novo e fazer tudo certo! Se eu tiver essa
oportunidade!...
—Todos teremos. Só que isso não é assim de imediato. Tudo é
muito bem planejado. Sabe, a nossa mãe vai reencarnar em breve.
Não estava em seu planejamento reencarnatório nos receber, mas
aceitou fazê-lo, apesar de toda dificuldade que enfrentará por conta
de nossos desafios, provas e expiações. Ficou feliz e até propõe a
receber a Neide como filha, uma vez que foi a neta que ela não
aceitou no passado.
—Tudo está certo, então?! Vou reencarnar para corrigir os meus
erros e me livrar dessa angústia, desse desespero que sinto?!
—Calma. Reencarnar, você vai, mas não é algo tão simples como
parece. Precisa se recuperar, sair deste hospital, se dispor a
aprender para se equilibrar e se dispor a fazer tudo corretamente.
Não basta apenas reencarnar para não ter mais a angústia e o
desespero. Se quando estiver encarnado, você não fizer o que é
certo, ao retornar para a pátria espiritual, suas dores na consciência
voltarão com a mesma intensidade e, às vezes, piores por ter
perdido a oportunidade.

Rubens pareceu ganhar vida. Imediatamente seus olhos brilharam.

— Puxa! Como eu quero ser diferente! Farei de tudo para me livrar
desses pesadelos que me consomem! Deixar de sentir os reflexos do
que fiz a você, do que fiz de errado quando encarnado, mesmo que
seja para passar por um sofrimento parecido, será um grande alívio.
Os dois continuaram conversando por longo tempo e Humberto
explicou qual era o planejado e o irmão ainda ressaltou:
—Humberto, fique tranqüilo, eu juro! Eu prometo que serei um
bom companheiro para Lívia enquanto Deus me permitir ficar
encarnado! Serei fiel, digno, responsável, gentil! Acredite!

—Eu vou procurar acreditar, mas isso depende de você, meu irmão.
Como era de se esperar, Rubens oferecia toda a atenção às palavras
de Humberto. Encontrava-se ansioso e arrependido o suficiente
para ter essa oportunidade de se livrar de todo o sofrimento e dor
causados por seus erros, por sua vida sem fé e, principalmente, sem
amor ao próximo.

***

A tarde, o sol estava quase se apagando para o dia que morria.
Rubens escutava o ruído rápido e confuso da corredeira, cujos
borrifos cintilantes bailavam cristalinos pelos últimos raios de sol.
Achegava-se sentado sobre uma pedra e com os pés descalços na
relva verdinha salpicada de flores. Trazia os pensamentos
carregados de idéias e planos para o futuro enquanto olhava as
águas correndo e espumando.
De repente algo lhe chamou a atenção. A aproximação serena, no
caminhar suave de dona Aurora o fez se virar, ale-grando-se ao
murmurar:

— Mãe! A senhora aqui?!
—Vim te visitar, filho. Como está? — perguntou, beijan-do-lhe a
face de traços sofridos.
—Estou bem, mãe. Não tanto como eu gostaria, mas muito melhor
do que já estive.
O rosto belo e agradável da gentil senhora ofereceu-lhe suave
sorriso e ela comentou:
—Sinto-me feliz por sua recuperação tão rápida. Espero que os
estudos e a dedicação às tarefas simples iluminem sua mente e
aliviem o seu coração além de servirem como exemplo e
aprendizagem.
—Mãe, até hoje, não te pedi desculpas por tudo que a fiz sofrer —
lágrimas correram em sua face. — Por favor, me perdoe por tudo.

—Na verdade, filho, o que eu quero é que você se harmonize, se
corrija. A sua paz, o seu bem-estar me deixam feliz e satisfeita.
—Estou me esforçando para não errar de novo. Sabendo que serei
irmão do Humberto, eu não posso falhar. Ele é uma criatura que eu
prejudiquei muito e tudo por inveja, ciúme e tantos outros vícios
morais. Por outro lado, vejo que a Lívia sofre até hoje por minha
causa. Não levei em conta que ela tinha um compromisso com o
meu irmão. Por isso, nessa oportunidade de ficar ao lado de Lívia,
quero tratá-la com amor, respeito, fidelidade. Quero corrigir todos
os meus erros. Sei que será difícil para o Humberto nos ver juntos
e... tenho medo por ele, que se sentirá abalado. Será difícil ele vê-la
com outro, ou melhor, comigo. Mãe, se o meu irmão se deixar
dominar pelo ódio, pela raiva, pela contrariedade... poderá desejar
me matar e, fazendo isso, perderá toda uma vida!
—Ele será testado no limite de suas forças. Precisará vencer o ciúme
e entender o amor incondicional, concedendo o perdão. Eu confio
em seu irmão. Ele é uma criatura elevada. O que mais me preocupa
é você e a Irene. Juntos, por puro vício no prazer, temo que vocês
prejudiquem o Humberto e a Lívia.
—Não, mãe! Nunca mais! Sofri o suficiente para não deixar mais os
prazeres mundanos me dominarem. Experimentei tanta dor e
desespero que vou ser fiel ao meu irmão, a minha companheira.
Roguei tanto para ter uma oportunidade de aliviar minhas dores
que não vou desperdiçar.
—Peço a Deus que você aproveite mesmo essa chance, filho, para
que não sofra mais!
—Eu tenho muito que agradecer à senhora por me aceitar como
filho novamente, mesmo sabendo de tudo o que terá de
experimentar por minha causa. Sei que vai sofrer muito por mim, e
até pelo Humberto, quando as provas e expiações começarem.
—Não era para eu ter filhos nessa experiência de vida e isso me
magoaria muito. Quando recebi a proposta de tê-los novamente,
fiquei muito feliz. Experimentarei uma grande dor, mas saberei que


foi para ajudá-lo na evolução. Ao mesmo tempo, terei a
oportunidade de receber aqueles a quem, um dia, neguei ajuda,
Neide e Flávio, que foram meus netos, filhos de Humberto e Irene,
quando ela o abandonou para fugir com você. Humberto passou
todos os tipos de privações e necessidades, além dos flagelos da
alma. E eu virei as costas para o meu filho e os meus netos
acreditando que não eram problema meu. Realmente não eram, mas
passaram a ser quando eu tive condições e não ajudei, não amparei.
Tudo o que estava acontecendo na vida do Humberto, somado à
minha falta de amparo, quase o levou a cometer uma loucura com
ele e com os filhos. Agora eu vou corrigir tudo isso, apesar da dor.
Naquele momento, o céu tornava-se levemente escurecido e as
nuvens, entremeadas de cores, desmanchavam no horizonte. O sol
desapareceu completamente e um azul firme e denso descia,
deixando as primeiras estrelas cintilarem.
Dona Aurora olhou o firmamento por alguns segundos enquanto o
silêncio reinou. Rubens, agora em pé a sua frente, conservava olhar
vivo com expectativa de que ela dissesse mais alguma coisa.

— Vim aqui me despedir de você, filho. Vou me recolher para
reencarnar em poucos dias. — Envolvendo-o em demorado abraço,
a senhora beijou-lhe o rosto a medida que lágrimas banhavam suas
faces. Ao se afastar, ela afagou-lhe carinhosamente o rosto e ainda
pediu: — Rogue por fé, para você crer em Deus, para que,
encarnado, ouça as inspirações de seu mentor amigo e confie nos
planos de Deus. Esse propósito reencarnatório é para que você
vença a inveja, o orgulho, a arrogância e tantas outras mazelas. E
certo que todos nós precisaremos e iremos nos propor a vencer os
nossos vícios. Não fique preocupado ou pensando no que os outros
têm para corrigir. Preocupe-se com o que você precisa fazer para se
melhorar.
— Obrigado, mãe — disse com lágrimas correndo na face.
— Deus o abençoe, Rubens. Eu te amo, filho. Começava, ali, a
concretização do planejamento reencar

natório de todos.
Na espiritualidade, muitas promessas de melhoria íntima foram
feitas. O desejo de não sofrer mais pelas faltas cometidas era
intenso. Porém, o livre-arbítrio de cada um poderia mudar muito o
destino de todos.

3
RETORNANDO PARA CASA


Naquela tarde de verão, o sol escaldante não oferecia trégua. Apesar
disso, dona Aurora se empenhava, na cozinha, para fazer o bolo
predileto de seu filho Humberto, que estava para chegar.
A empresa em que o rapaz trabalhava o havia mandado para a filial
do Nordeste e por isso ele ficou meses longe da família.
—Mãe, como se não bastasse o calor horrível que está fazendo, a
senhora ainda fica com esse forno ligado!!! O inferno é mais
fresquinho do que aqui! — reclamou Neide, filha mais nova de
dona Aurora.
—Não estou com o forno ligado, não senhora! Já desliguei faz
tempo! Tô fazendo um bolo gelado pro seu irmão! Ele adora! Daqui
a pouco o Humberto tá aí! Tomara que dê tempo de gelar!
—Ah! Só porque o Humberto chega hoje, a gente precisa morrer de
calor?!

— Deixa de coisa, menina! Liga o ventilador pra mim! Neide foi
pegar o aparelho. Após ligá-lo, ouviu o barulho do portão e gritou
alegre:
— O Humberto chegou!!!

Dona Aurora tirou o avental, às pressas, e correu para recebê-lo. Só
que Neide passou sua frente e se jogou nos braços do irmão,
beijando-o.
Em seguida, o filho abraçou-se à mãe, que demonstrava sua
saudade em forma de carinho e lágrimas.
Humberto era um rapaz alto, com um corpo bem apropriado à sua
altura. Olhos verdes, grandes, brilhantes e expressivos. Cabelos
lisos e aloirados. Muito bonito. Comunicativo, amável e atencioso.
Gostava de ser prestativo e sempre presente.


— Ora, mãe! Não chora! — pedia sorrindo e trazendo os olhos
umedecidos pela emoção.
— Como você está magro!!! Abatido!!!
—O que é isso, mãe?! Não estou não! — riu. Depois perguntou: —
Como estão todos?
—O Rubens está de namorada nova! — anunciou Neide,
empolgada. — Ele foi lá na casa dela!
—Que legal! Estou sabendo. Mas falando em namorada... E a Irene?
Cadê a minha namorada?! — brincou.
—Ela ligou, filho! Disse que, onde estava, o trânsito ficou terrível e
por isso iria demorar.
—Ótimo! Preciso de um banho urgente! — disse. Puxando as malas
em direção ao seu quarto, perguntou: — E o pai?
—Já chegou do serviço, mas... saiu — avisou dona Aurora,
entristecida.
— Já sei! O pai foi para o bar! — concluiu Humberto.
— Talvez, filho. Mas conta, por que não quis que a gente fosse te
buscar no aeroporto?
— Não, mãe! Não quis dar trabalho. O vôo atrasou. Além disso, o
serviço de táxi é prático e ótimo.
Indo atrás de Humberto, Neide reclamava:
— Eu também não entendi essa sua decisão! O Rubens ou o pai
poderia ter ido te buscar.

Colocando a mala sobre a cama, Humberto a abriu, tirou um pacote
e a interrompeu dizendo:
—Veja! Eu trouxe isso para você!
—Ai! Que blusa linda!!! — exclamou Neide ao abrir o embrulho.
—E essa é para a senhora, mãe!
—Puxa, filho! Não precisava se preocupar!...
—Nossa! Aqui está tão calor quanto lá! — reclamou ele.
—Isso é porque você não foi até a cozinha! — avisou a irmã. — A
mãe ficou com o forno ligado até agora!
—Oba!!! Booooolo!!! Hoje vou comer o meu bolo predileto!!! E
sozinho!!! — exclamou Humberto, rindo e esfregando as mãos ao
adivinhar o que sua mãe havia preparado.
—E o seu bolo mesmo, filho! Agora vai tomar um banho pra você
comer alguma coisa! Você deve estar com fome e cansado!
—Cansado eu estou, mesmo! Não vi a hora de chegar aqui em casa.
O rapaz, bem humorado, pegou uma muda de roupa, a toalha e foi
para o banheiro.
Algum tempo depois, ele chegava à sala, perguntando:
—Mãe! Cadê os meus chinelos?!
—Estão aqui! — respondeu a senhora.


— E eu também!!! — disse Irene sorrindo ao ir abraçá-lo. _ Que
saudade meu amor!
Correspondendo ao carinho, ele a beijou com ternura, e depois
falou:
—Puxa! Como é bom te ver!
—E lá?! Espero que não precise mais voltar!
—Acho que não. Na segunda-feira vou à empresa e retomo meu
lugar. Esses últimos dez meses foram bem cansativos. Durante a
semana, enquanto eu trabalhava, tudo bem, mas quando chegava o
final de semana... Era um tédio! Não tem coisa pior do que ficar
longe de casa, da família...
—Nesse tempo todo você só veio pra cá cinco vezes!!!
—Você contou?!

—Lógico! Eu estava louca de saudade!
—Eu também. Nem acredito que estou em casa, para
ficar!


— Pensei que chegaria aqui antes de você, mas peguei um trânsito!
— E a loja de roupa no novo shopping? Está dando
certo?
—Ah!!! Não poderia ser melhor! As vendas estão ótimas! Puxa!
Agora tenho três lojas! E estou pensando em abrir mais uma! — riu
satisfeita. — Sinto-me tão realizada!
—Estou feliz por você, meu bem. É bom que se ocupe com algo que
goste — sorriu ele.
— Adoro o que faço!
— Trouxe uma coisa para você! Vou pegar! — avisou, levantando-se
e indo até o quarto. Sem demora, retornou, dizendo: — Espero que
goste!
Irene abriu o embrulho e admirou:
—Ai! Que linda! Quando vi a blusa da sua irmã e da sua mãe
pensei: se ele não trouxe uma pra mim, vai ver! — riu.
—Eu não iria tratar diferente as três mulheres da minha vida! —
disse, abraçando-a com carinho.
Nesse momento, insatisfeita com o comentário, Irene fechou o
sorriso sem que ele percebesse.
Logo a atenção se voltou para o senhor Leopoldo, que acabava de
chegar.
—Aaaah! Eu sabia que você tinha chegado! — exclamou o senhor
com voz grogue, pois havia bebido.
—Oi, pai! Tudo bem? — perguntou Humberto, nada. animado, indo
à sua direção para abraçá-lo.
Seu pai era um homem vencido pela bebida. Marcado pelo
alcoolismo. Havia perdido o respeito dos amigos e familiares
devido às situações difíceis e aos dramas que provocava.



—Está tudo bem, Humberto! Não ............ não podia tá diferente! —
respondeu. Mas, ao dar o próximo passo, tropeçou no próprio pé, e
foi amparado pelo filho.
—Calma, pai. Vai devagar — falou o filho, segurando-o firme. — É
melhor o senhor se deitar — aconselhou entristecido.
O homem estava tão embriagado que não sabia o que responder.
Ele não conseguia pensar direito e Humberto o levou para o quarto.
Ao retornar, trocou olhar com Irene e foi direto para a cozinha
avisar sua mãe.
Dona Aurora respirou fundo e, sentindo forte amargura, foi até o
quarto para cuidar do marido.
De volta para a sala, Humberto reclamou:


—Parece que isso não vai mudar nunca. Estou cansado de ver o
meu pai assim.
—Ele havia parado de beber.
—Ele sempre pára de beber, Irene, por uma semana, um mês...
depois volta. Não tem opinião. Não é firme nas decisões.
Vendo-o chateado, ela propôs:
—Quer sair?! Dar uma volta? Meu carro está aí fora! — sorriu.
—Primeiro vou comer aquele bolo gelado que só a minha mãe sabe
fazer! — riu de um modo travesso e foi para a cozinha, dizendo: —
Depois vamos dar uma volta, sim. Mas eu quero voltar cedo. Estou
tão cansado e gostaria de dormir até!...
Irene não gostou dos modos alegres de Humberto, que era bem
caseiro, mas nada disse e só o acompanhou.


***

Bem mais tarde, Humberto estava deitado em sua cama quando o
irmão chegou.
Rubens o cumprimentou com um sorriso e perguntou:
—Como estão as coisas?



—Bem! Tudo tranqüilo! — respondeu, indo abraçá-lo. Depois se
deitou novamente e ainda falou: — Eu não via a hora de voltar pra
casa.

— O queridinho da mamãe não fica longe de casa, não é?! O irmão
fechou o sorriso e perguntou em um tom chateado:
— Por que você sempre me chama de queridinho da mamãe? Não
me sinto bem com isso.
—Por que você é! A mãe não fala em outra coisa, há uma semana, a
não ser na sua volta. Até a Lívia percebeu!
—Lívia?! E o nome da sua nova namorada?
—E. E uma garota muito legal. Vai conhecer. Ela já te conhece de
tanto a mãe falar em você.
—Não se importa em trazê-la aqui, por causa do pai?
—No começo fiquei com receio, mas depois...
—Hoje mesmo o pai chegou daquele jeito.
—Agora, todo dia ele tá assim! — disse Rubens.
Com jeito moderado, um tanto constrangido, Humberto
aconselhou:
—Toma cuidado, meu irmão. Vê se não faz como o pai.
—Por que me diz isso?! — perguntou, quase irritado.
—É que eu vejo que você gosta de beber um pouco. Sei que não
tenho nada com isso, mas falo para o seu bem. De repente, sem que
perceba, pode começar a aumentar as doses, a freqüência com que
bebe... É bom se prevenir enquanto é cedo.
—Qual é, Humberto?! Eu sei me cuidar!
—Tudo bem. Já entendi. — Virando-se, falou: — Boa noite!


— Olha, cara, pode deixar que eu me cuido, tá?!
O outro não disse nada. Rubens apagou a luz e saiu do quarto.
***
Mais de uma semana havia se passado.


Era sexta-feira de manhã quando a campainha tocou, insistente, na
casa de dona Aurora. Humberto levantou, entorpecido pelo sono, e
foi ver quem era.
Ao ir até o portão, deparou-se com uma moça bonita, estatura baixa,
pele alva e bem tratada, cabelos castanho-escuros, longos e lisos,
que escondiam seus belos olhos castanhos expressivos, vermelhos
de tanto chorar.
—Pois não?! — desconfiado e estranhando a cena, ele perguntou
com a voz rouca pelo sono.
—Por favor... A dona Aurora está? — quis saber a moça educada
com voz doce e embargada.
—Eu não sei... Perdoe-me... Quem é você? — perguntou em tom
brando.


— Sou a Lívia, namorada do Rubens.
— Ah!... Sim! — sorriu. — Um minuto! Vou pegar a chave para
abrir o portão. — Em instantes ele voltou e a fez entrar. Logo se
apresentou: — O meu nome é Humberto. Sou irmão do Rubens.
A moça apertou sua mão e desatou a chorar. Sem saber como agir,
ele disse:
— Venha! Entre! — Já na sala, ele a fez sentar e solicitou que
aguardasse. Imediatamente foi até o quarto de sua irmã e não
encontrou ninguém. Procurou alguém pelo resto da casa, e nada.
Voltando à cozinha, pegou um copo com água, foi até a sala e o
entregou à moça, pedindo: — Tome, Lívia. Vai se sentir melhor.
Com as mãos trêmulas, ela pegou o copo e tomou alguns goles,
vagarosamente, depois falou:
— Desculpe-me. Eu não sabia o que fazer nem para onde ir.
Decidi vir pra cá.
—É que não tem mais ninguém em casa. Eu tirei quinze dias de
férias, por isso estou aqui hoje. Acordei agora e não sei onde minha
mãe está. Os meus irmãos e o meu pai já devem ter saído para
trabalhar e... O que te aconteceu? Será que posso ajudar?


—Cheguei ao serviço hoje e fui demitida — contou, sentida,
controlando as emoções.
Sem saber o que fazer, Humberto falou com brandura:
—Sinto muito. Mas não fique assim. Você arrumará outro emprego
em breve.
—Talvez. O mais difícil será enfrentar o meu pai. Ele não vai
entender. Minha mãe também... — deteve as palavras.
—Desculpe-me, Lívia, eu não a conheço nem a seus pais, mas, hoje
em dia, não se pode ser tão radical, tão duro. Foi um acontecimento
independente da sua vontade.
—Sim, eu sei. Mas é que você não conhece o meu pai. Esse emprego
era muito importante para mim. Pago meus estudos e...
Algumas lágrimas rolaram em seu rosto triste e, ao vê-la chateada,
ele comentou:
—Olha, de repente isso foi bom. Pode encontrar coisa melhor.
Quem sabe?! Você tem um currículo?!
—Tenho.
—O Rubens ou eu mesmo podemos entregá-lo para a empresa onde
trabalhamos e para conhecidos, quem sabe!
—Obrigada, Humberto. Estou tão confusa, agora, mas vou cuidar
disso. Não sei como vou para casa com essa notícia.
—Não sei a que horas minha mãe vai chegar. Nem sei aonde ela foi.


— Consultando o relógio, comentou: — São quase onze horas. Se
quiser, pode esperá-la. Se não... Eu estou com o carro da Irene,
minha namorada, e... Se esperar eu tomar um banho e me arrumar,
posso te levar para casa.
—Não. Não precisa. Acho que vou indo.
—Não será incômodo nenhum! E só um minuto! Nesse instante,
dona Aurora chegou e logo ficou ciente
de tudo o que aconteceu.
Humberto, por sua vez, sentiu-se aliviado, pois ela, imediatamente,
confortou a moça dando-lhe toda a atenção.

Mais tarde, a pedido de sua mãe, o rapaz foi levá-la para casa. Antes
de Lívia descer do carro, ele pediu:
—Dê-me um currículo seu! Vou ver o que posso fazer para te
ajudar.
—Obrigada, Humberto. Assim que eu atualizá-lo te entrego.
Desculpe-me por tudo.
—Não tem porque se desculpar.
—Obrigada mais uma vez. Tchau — sorriu agradecida.
—Tchau.
Ele permaneceu olhando-a entrar em casa.
De imediato, seus pensamentos ficaram confusos. Reparou o jeito
dócil, sua beleza generosa que se tornava encantadora com seu
modo recatado e delicado de ser.
Sentiu-se tocado, como se já a conhecesse de algum lugar. Havia
simpatizado com a moça mesmo tendo conversado tão pouco com
ela. Foi uma atração inexplicável. Sua voz suave e seu sorriso
agradável foram marcantes. Algo de que ele não iria se esquecer.
Humberto respirou fundo, sacudiu a cabeça afugentando os
pensamentos, ligou o carro e partiu.


Era noite quando o telefone tocou na casa de dona Aurora, e o filho
atendeu:
—Pronto!
—Rubens?! Sou eu, Lívia!
—Não! Aqui é o Humberto!
—Desculpe-me, Humberto. É que sua voz é tão parecida com a dele.
—E verdade. Todos se confundem. E aí, Lívia?! Tudo bem?! Você
está mais calma?!
—Um pouco mais calma, porém muito preocupada. O Rubens está?
—Não. Ainda não chegou.
—Tudo bem. Quando ele chegar, diga que eu liguei.
—Digo sim — Lembrando-se a tempo, ele perguntou: — Ah! Não se
esquece de me trazer um currículo!



—Lógico que não. Estou atualizando-o e, assim que estiver pronto,

o primeiro será seu. Obrigada por sua atenção. Nem nos
conhecemos direito e você tentando me ajudar!
—Gostaria que alguém fizesse isso por mim, caso eu estivesse em
uma situação como a sua. Fique tranqüila. Vou fazer o que puder!
— Onde você trabalha, Humberto?
—Em uma indústria farmacêutica. Estou de férias no momento,
mas, ao retornar, na semana que vem, verei como posso te ajudar.
Só que a empresa fica longe do bairro onde moramos.
—Tudo bem. Distância não é problema. Preciso do emprego.
Desculpe minha curiosidade, você faz o quê?
_ Um dos diretores. Trabalho na área financeira. Lívia ficou
surpresa, não pensava que ele ocupasse um cargo tão considerável,
porém disfarçou ao perguntar: _ Viaja sempre a serviço?
—Não. Foi a primeira vez e espero que seja a última — riu ao falar
em tom de brincadeira. — A empresa abriu uma filial no Ceará e o
gerente de lá se demitiu. A filial é nova e tinha muitas coisas
pendentes em vários departamentos. Então uma reunião me elegeu
para ir ficar lá por uns três meses, a princípio. Só para o tempo de
contratação e treinamento de uma nova gerência e estabilização
financeira. Admitimos um gerente novo, mas, depois de três meses,
sabe como é... Ele ficou folgado e precisou ser demitido. Foi
necessária a contratação de outro e mais um período de
treinamento. Resultou que precisei ficar dez meses por lá.
—Nossa!
—Diga uma coisa, você estuda o quê?
—Estou no quarto semestre de Ciências Contábeis. Detestaria
trancar a matrícula por estar desempregada. Foi algo tão repentino.
Trabalhei por seis anos nesse banco. Foi o meu primeiro emprego.
Eu me sentia tão segura, tão confiante... Até agora não me
conformo!
—E aí na sua casa? Como ficou o clima com os seus
pais?



— Ai, Humberto... Que barra! E que você não conhece o meu pai.
Minha mãe não pára de falar, me tortura o tempo todo. O meu pai
soube agora há pouco e quase me bateu.
— Quase bateu?! Mas por quê?! — perguntou incrédulo.
— É que ele é muito rigoroso. Aquele tipo de pessoa rude.
—Não tenho nada com isso, mas estamos no século XXI! Ele tem
que entender.
—Eu sei, você sabe, mas ele não pensa assim. O que eu posso fazer?
—Desculpe, não quis me intrometer. Tudo bem... Vai dar tudo
certo! Em breve terá um emprego novo e melhor!
—Tomara. Obrigada por tudo por enquanto. Quando o Rubens
chegar, diga que eu liguei, por favor. O celular dele deve estar
desligado.
— Pode deixar! Digo sim.
Os dois se despediram. Humberto, após desligar o telefone, ficou
pensativo e até inquieto com a situação de Lívia. Repentinamente,
ele se pegou preocupado e querendo, demasiadamente, ajudar uma
pessoa que mal conhecia. Aliás, gostaria de fazer algo por ela antes
de seu irmão.
Não demorou e o telefone tocou novamente. Era Irene.
— Oi, meu amor! Tudo bem?
—Nossa, Humberto! O telefone só dava ocupado! Eu não conseguia
ligar! — reclamou antes mesmo de cumprimentá-lo, deixando-o
sem jeito.
—Não fiquei muito tempo ao telefone. A Lívia ligou procurando
pelo meu irmão. Por que você não ligou no meu celular?
—Só dá caixa postal! Se o deixasse ligado!... — exclamou aborrecida.
— Ah... Esqueci — respondeu, consultando o aparelho.
_ O que a Lívia queria? Ela nem te conhece direito para bater papo.
— Ela esteve aqui hoje. — Humberto contou o acontecido e
explicou: — E agora há pouco ela ligou para falar com o Rubens.
—Sei... Tá bom, então. Amanhã eu te ligo.

—Não vai precisar do carro?

— Não. A Cleide me deu carona até em casa. Amanhã conversamos.
Vou tomar um remédio e vou dormir. Estou com uma dor de cabeça
terrível.
—É por isso que está mal humorada?
—Deixa de ser exigente.
— Amanhã nos vemos. Te amo, tá — falou em tom romântico.
— Eu também.
Assim que se despediram, Irene, que estava deitada na cama de um
quarto de motel, virou-se para o lado e avisou:
— Rubens, a Lívia foi demitida.
— Sério?! — Antes de ela confirmar, ele suspirou fundo e reclamou:
— Que droga! — Em seguida, perguntou: — E se o Humberto ligar
para sua casa?
— Não vai ligar, eu o conheço.
Rubens sorriu, fez-lhe um carinho e a beijou.
Rubens e Irene traiam Lívia e Humberto e suas próprias
consciências não cumprindo suas promessas, não aproveitando a
oportunidade que tinham para se harmonizarem e fazerem o que
era correto.
Antes que terminassem suas férias, Humberto telefonou para a
empresa onde trabalhava e não foi difícil encontrar uma colocação
para Lívia no Departamento de Contabilidade.
Ele havia comprado um carro novo quando retornou ao trabalho e
ofereceu carona para a moça, comprometendo-se a pegá-la em casa
bem cedo.
Conforme combinado, pontualmente, Lívia o aguardava no portão.
Estava radiante e ansiosa para iniciar.
Ao ver o veículo parar em frente à sua residência, sorridente, entrou
e cumprimentou-o:


— Bom dia, Humberto! Tudo bem?!
Dando-lhe um beijo no rosto, ele falou alegremente:
— Bom dia! Tudo bem! E você?

— Estou ótima! Um pouco nervosa, devo admitir.
— Isso é normal — considerou sorrindo. Durante o trajeto, eles
conversavam e ela perguntou:
— Tenho uma dúvida, Humberto. Como devo te chamar lá na
empresa? Senhor Humberto? Doutor Humberto? Porque notei que a
Miriam, do Recursos Humanos, e a Júlia, sua secretária, te chamam
de senhor... de doutor...
Meio sem jeito, ele comentou:
— É um pouco complicado... Veja, não é por mim... Até porque não
gosto de ser tratado de senhor. Afinal, não sou senhor de nada. Se
eu tenho alguma coisa, é só para tomar conta — riu. — Porém a
empresa preserva termos de tratamento respeitoso e conservador.
Então, quando estivermos a sós quero que seja minha futura
cunhada e me chame só de Humberto. Se outro funcionário vir...
tudo bem! Mas perto de outro diretor ou mesmo gerente, faça como
a Júlia: haja conforme a situação. Ela não me chama de senhor
quando não tem alguém por perto.
—Entendo. Pode deixar, não se preocupe. — Alguns segundos e
admitiu: — Ainda tenho muito que te agradecer por essa ajuda, pela
confiança em mim. Mal nos conhecemos.
—Há quanto tempo você e o Rubens estão namorando?
—Há dez meses!
—Então, assim que eu viajei vocês se conheceram?!
—Não. Nós nos conhecemos há cerca de dois anos. Eu trabalhava
no banco e ele teve um problema com a entrega dos talões de
cheques. Chegou nervoso e bem irritado lá na agência. Fui atendê-lo
e... Nossa! O caso estava bem enrolado! — riu. — Daí eu resolvi
tudo. Depois ele levou uma caixa de bombons para mim como uma
forma de agradecer e pedir desculpas por ter sido um tanto mal
educado. Depois ele começou a ir ao banco toda semana. Insistiu
para que saíssemos para um lanche e daí tudo foi acontecendo.
Tanto que o Rubens insistiu que começamos a namorar há dez

meses. — Breve pausa e perguntou: — E você e a Irene? Soube que
estão juntos há bastante tempo.
—Três anos.
—Ela me disse que vocês ficarão noivos.
—Sim, é verdade. íamos ficar noivos no aniversário dela, mas eu
estava viajando a serviço e acreditamos que não ia ser legal. Agora
que eu voltei, estamos pensando em outra data e ela quer para
breve.
—É engraçado, eu simpatizo tanto com a Irene. Parece que nos
conhecemos há séculos! — sorriu Lívia.
—Ela também gosta de você. Vai ver se conhecem de outras
encarnações — riu gostoso.


—Você acredita em reencarnação?
—Eu acredito. O Espiritismo é uma filosofia que faz sentido para
mim.
—Freqüenta alguma casa espírita, algum centro?
—Atualmente, não freqüento como deveria. Sou espírita. Fui
expositor nos cursos. Fiz muitas palestras. Adoro isso!
—Por que parou?
—Pelas necessidades no serviço. Desde que fui promovido a diretor,
não tive mais tempo. Depois com a viagem... Mas vou voltar a fazer
tudo novamente. E você? Acredita no Espiritismo?
—Acredito. Gosto muito do assunto. Já li vários livros, mas nunca
fiz curso na casa espírita. Adoro os romances! Já fui a um centro
várias vezes, mas não freqüento como gostaria. Os meus pais me
matariam.
—Eles são muito rigorosos, não é?!
—Sim, são. Muito!
—O que o seu pai faz?
—Ele é feirante. Meu pai sempre achou que eu deveria ajudá-lo na
feira como o meu irmão faz. Mas eu detesto feira! Entende? E um
serviço muito duro. Então resolvi estudar. O que causou a maior
contrariedade no meu pai. Por sorte e por ter um tio que tinha um



conhecido que trabalhava no banco, eu consegui o emprego assim
que fiz dezoito anos.
—Então você tem vinte e quatro!
—Como sabe? Ah! Viu o meu currículo!
—Não só isso. Outro dia você disse que foi o seu primeiro emprego
e trabalha há seis anos.
—Que boa memória, hein!


—Tenho mesmo! — falou envaidecido e sorridente.
—É por querer a minha ajuda na feira que o meu pai exige que eu
trabalhe e tenha um salário maior do que normalmente eu teria com
ele. Se eu ficar sem trabalhar, devo ajudá-lo na banca e eu não
quero, pois ficará difícil eu arrumar outro emprego.
—Entendo.
O casal conversou longamente até chegarem ao trabalho, se
separaram apesar de estarem no mesmo setor.


***
Naquele mesmo dia, no final da tarde, Humberto chamou Lívia até
a sua sala e explicava:
—Após terminar os cálculos, você os transmite para as planilhas
que serão repassadas para os fornecedores das matérias-primas.
—Entendi.
Jogando-se para trás sentado em sua cadeira, perguntou
descontraído:
—Como é? Está mais tranqüila agora? Parecia tão nervosa hoje
cedo.
—Ah! Eu estava nervosa sim! Agora estou melhor. O pessoal é
bacana e bem paciente para me ensinar o serviço.
—A respeito de qualquer dúvida, fale com o Ademir, o seu
encarregado. Ele vai te ajudar. Não passe dificuldade.
—Tudo bem.


—Entrei nessa empresa como encarregado desta sessão. Eu tinha o


cargo do Ademir — sorriu de modo saudoso.
—Puxa! Que legal! — Alguns segundos e argumentou: —
Humberto, caso eu não esteja fazendo algo certo, por favor, me
avise. Chame a minha atenção. Não quero ser protegida só pelo fato
de ter sido apresentada por você.
—Pode deixar — falou sorrindo. — Você não será poupada! —
brincou.
—Obrigada, Humberto! Nossa! Eu não esperava arrumar um
trabalho tão rápido, muito menos em uma empresa tão grande, tão
estruturada! Um salário tão bom! Acho que não mereço tanto! — riu
com doçura e meio sem jeito.
—Pare com isso, Lívia — sorriu, encabulado.
—Obrigada mesmo!
—Não por isso. Acredito na sua capacidade.
—Então vou voltar pro setor. Tenho algumas coisas que quero
terminar hoje. Tchau!
—Até mais! — despediu-se ele.
Humberto observou-a atentamente sair de sua sala. Começou a
sorrir admirando o jeito agradável de Lívia. Para ele, a moça
possuía uma personalidade cativante, carismática. Sempre educada
e amável. Era inteligente e sabia se comportar.
Deixando os pensamentos vagarem, enquanto experimentava leve
balanço em sua cadeira confortável, ele se perguntou:
"Como será que a Lívia tolera o Rubens? Ela é tão simpática,
amável... Por ser tão esperta, não deveria estar com um cara como
ele. Sem dúvida que o idiota do meu irmão não reconhece as
qualidades que ela tem. Ela é tão bonita, delicada... Seu sorriso e...
Droga!" repreendeu-se em pensamento. "O que estou fazendo?! Não
é a primeira vez que fico pensando essas coisas!"
Contrariado com o rumo de suas idéias, de imediato, sobressaltou-
se. Esfregou o rosto com as mãos e, em seguida, alinhou os cabelos,
suspirando fundo.



Imediatamente procurou ocupar-se, desviando sua mente daquele
assunto, mas estava difícil. Humberto começou a se irritar consigo
mesmo ao admitir que passou a admirar a namorada de seu irmão.
Algo, naquela moça, parecia enfeitiçá-lo. Por um instante começou a
se arrepender por ter trazido Lívia para trabalhar tão perto dele.
Ao mesmo tempo, chegando à sua mesa, Lívia acomodou-se na
cadeira e, observando o que precisava ser feito, pensou:
"Tomara que eu termine isso logo pra mostrar minha eficiência.
Afinal...". Mudando os pensamentos, imaginava: "Não sei como
agradecer ao Humberto. Ele é tão bacana! Me ajudou tanto! Ele
parece... Sei lá! Mais legal do que o Rubens. E não fuma! Ah!... Mas

o Rubens vai parar de fumar. Ainda vou conseguir isso. O
Humberto é tão responsável, atencioso... Ele nem precisava se
preocupar comigo, mesmo assim me chamou lá na sala dele e ainda
quis saber se eu estava nervosa. A Irene tem sorte! Ela bem que
poderia tratá-lo melhor... ser mais atenciosa... Hoje em dia é difícil
um cara assim".
Mesmo divagando os pensamentos, Lívia dedicou-se ao trabalho
não percebendo que sua admiração por Humberto crescia a cada
momento.
O véu do esquecimento não era tão forte quanto o amor verdadeiro.
***

Os dias foram passando e certa noite, chegando perto de sua
residência, Humberto viu sua mãe parada em frente ao portão de
uma vizinha conversando.
Ao vê-lo, dona Aurora sinalizou para o filho ir até onde ela estava e
assim ele o fez.
Descendo do carro, o rapaz cumprimentou:


— Boa noite! Tudo bem?
— Oi, Humberto! — cumprimentou a moça que segurava firme no
braço de dona Aurora e trazia no rosto sinal de choro.

— Oi, mãe! — disse em seguida.
—Oi, filho! — Sem demora, avisou: — Filho a cachorrinha que a
Débora tem saiu pra rua e não estamos achando. O Sérgio ainda não
chegou e não sabemos mais o que fazer.
—Fica tranqüila, Débora. Posso ajudar a procurá-la, mas eu não a
conheço direito. Quer dar uma volta de carro pelo quarteirão para
ver se a encontramos?
—Eu quero sim. Você me ajuda? — perguntou com voz embargada.
—Mas é claro! Venha! — Observando que Débora estava grávida e
aparentemente nervosa, ele perguntou: — Você está bem?
— Estou. Só quero encontrar a Princesa.
Muito paciente, o rapaz ajudou-a a entrar no carro e perguntou a
sua mãe em seguida:
— A senhora vem, mãe?
— Não. Eu fico aqui. De repente a cachorrinha pode voltar.
Após percorrerem os quarteirões do bairro onde moravam, Débora
começou a chorar. Preocupado, ele perguntou:
—Quer ir embora?
—Não sei... Não estamos encontrando.
Ao olhar no portão de uma casa, próximo a um degrau na calçada,
ele mostrou:


— Veja aquele cachorrinho ali!
— É a Princesa! — exclamou, estampando no rosto um sorriso
imediato.
Humberto parou o carro e juntos desceram, indo para perto do
animalzinho.
Débora se abaixou, pegou a cachorrinha, que estava muito
assustada, e lhe fez um carinho, apertando-a junto a si.
— Pronto! Encontramos a Princesa! — disse ele satisfeito.
— Obrigada, Humberto! Muito obrigada! — expressou-se
imensamente emocionada. — Não sei como te agradecer.
Imediatamente eles retornaram para a casa onde dona Aurora
esperava junto ao portão.

Ao ver o rapaz estacionar o carro, ela perguntou indo em direção à
porta:

— E então, filho? Encontraram?!
— Encontramos! — afirmou sorrindo. Ajudando Débora a descer do
carro, ele segurou a Princesa no colo, depois a devolveu e inquiriu:
— Tudo bem, Débora?
—Tudo.
—Não é o que parece — tornou ele.
— Quer que entremos com você, menina? — indagou dona Aurora.
— Você não parece bem!
Ela nada respondeu e o rapaz a conduziu para que entrasse.
Já na sala de estar, Débora sentou-se no sofá. Estava pálida e quieta.
Passou a mão pelo rosto frio, abaixando levemente a cabeça,
parecendo envergonhada.
Dona Aurora foi até a cozinha, pegou um copo com água enquanto
Humberto pedia:
—Respire fundo, Débora. Abra os olhos. — Ela obedeceu e ele quis
saber: — Quer ir ao médico? Eu posso levá-la!
—Não — murmurou. Procurando se manter firme, avisou: — O
Sérgio deve chegar daqui a pouco...
—Não estou gostando disso. É melhor ir a um pronto socorro.
—Tome, filha — pediu a senhora. — Bebe um pouco de água com
açúcar que você vai melhorar.
Novamente ela obedeceu. Passados alguns minutos, comentou:


— Estou me sentindo melhor. Não se preocupem. Enquanto
aguardavam, dona Aurora contou ao filho:
—Eu saí na rua pra por o lixo e vi que ela estava andando e olhando
de um lado pro outro procurando alguma coisa. Então vim até aqui
e ela contou que, enquanto punha o lixo, a cachorrinha saiu sem que
ela visse. Depois que entrou, fechou o portão e só depois de muito
tempo deu falta dela.
—Quando a gente se apega nesses bichinhos, eles se tornam parte
da família — comentou Humberto amável.

— É verdade... — concordou Débora com voz fraca.
—De quantos meses você está? — questionou ele.
—Vinte semanas, ou seja, cinco meses — respondeu sorrindo.
O barulho vindo do portão da garagem, anunciava a chegada de
Sérgio. Sem demora, ele entrou e se surpreendeu com a presença de
todos.
Educado e gentil, cumprimentou com expectativa ao sorrir:
—Boa noite!
—Boa noite! — respondeu dona Aurora, estendendo-lhe a mão.
—Olá, Sérgio! Tudo bem? — perguntou Humberto fazendo o
mesmo.
—Tudo! Comigo tudo bem! — Desconfiado, sorriu. Ao mesmo
tempo em que se aproximou de Débora, beijou-a, afagou-lhe o
rosto, perguntando: — Tudo bem por aqui?
—Agora está. Não se preocupe — disse dona Aurora que,
rapidamente, contou toda a história.
—Você está bem? — indagou o marido, afagando-a.
—Estou sim — disse Débora encabulada. — Foi só um susto. Ai,
gente... Desculpa! Estou tão envergonhada! — riu sem jeito.
—Não se preocupe, Débora. Isso acontece. Se precisar da gente,
filha, pode chamar! — ofereceu dona Aurora. — Aliás, acho que
vocês não têm parentes aqui perto, não é?
—É verdade! O mais próximo daqui é o meu irmão, Tiago. Apesar
de perto, por causa do trânsito, demora uns trinta minutos daqui até
a casa dele.
—Por causa do seu estado, não é bom ela ficar muito tempo

sozinha, Sérgio — aconselhou Humberto. — Nunca se sabe. Quer
ficar com o número do nosso telefone?
—Quero sim! Deixe-me anotar — disse ele, indo pegar um bloco de
anotações. Retornando, tomou nota do número que Humberto falou
e também passou o seu, dizendo: — Aqui está o número daqui de


casa, do meu celular e também da clínica onde trabalho. Nunca se
sabe...
—Vou ficar de olho nela, Sérgio. Pode deixar — avisou a senhora
que, com jeito maternal, afagava os cabelos finos e aloirados de
Débora.
—Toda ajuda é bem vinda. Principalmente agora. Estou estudando
à noite. Faço Mestrado e fico bem preocupado, pois ela passa o dia
sozinha e parte da noite também desde que deixou de trabalhar por
recomendação médica.
—Não se preocupe, Sérgio. Vou ficar atenta! Qualquer coisa, pode
me chamar, viu? Eu venho rapidinho! — tornou a senhora bem
prestativa.
—Isso mesmo. Não se envergonhem. Vizinho é para essas coisas! —
Olhando para sua mãe, Humberto convidou: — Vamos? Eles
precisam descansar.
—Ah, sim! Claro! Então, tchau!
A senhora, amavelmente, beijou Débora que ainda parecia
envergonhada.
Todos se despediram e eles se foram.
Ao se verem a sós, Sérgio tornou a perguntar:
—Tudo bem, mesmo Débora? A nenê está bem?
—Estamos ótimas. Foi só um susto. — Abraçando-o com carinho,
escondendo o rosto em seu peito, ela riu ao dizer:


— Ai! Que vergonha, Sérgio! E tudo por causa da safada da
Princesa! Se eu pegar essa danada na rua!...
— Não vai fazer nada, tenho certeza! Te conheço! — disse rindo,
abraçando-a com carinho e beijando-a em seguida. Momento em
que a cachorrinha entrou na sala bem alegre e fazendo festa para ser
percebida por eles.

4


CONTRARIANDO O ALCOOLISMO


Um pouco mais tarde, enquanto jantava, Humberto conversava com
sua mãe:
—Fiquei com dó da Débora. Ela parecia bem nervosa. Pensei que
fosse precisar levá-la para o hospital.
—Algumas mulheres grávidas ficam bem sensíveis. Foi só um mal
estar. Ela é um amor de menina! Sempre tão educada!


— Ela parou de trabalhar, né?
—Parou. Só o Sérgio trabalha. Você sabe. Ele é psicólogo. Esse moço
é tão esforçado! Foi da polícia! Primeiro alugou aquela casa.
Reformou tudinho. Depois comprou. Não sei muito da vida deles.
Só sei que são casados há menos de um ano. São gente boa! Admiro
o jeitinho dos dois juntos. Você tem que ver.
—Já reparei. É um casal muito tranqüilo. — Humberto sorriu ao
dizer: — Ela está uma grávida linda! O Sérgio deve estar todo
empolgado com o primeiro filho. Eu estaria! Adoro crianças! —
Com um sorriso enigmático e olhar perdido, perguntou, parecendo
sonhar: — Será que quando eu me casar vou me dar bem assim?
—Está pensando em se casar logo, não é, Humberto?
—Estamos namorando já faz tempo. Eu gosto da Irene, nós nos
damos bem. Devo esperar mais o quê?
—Será que ela é a mulher ideal pra você, filho?
—Como vou saber antes de me casar? As vezes fico inseguro, vem
uma dúvida... não sei do quê... Já estou com vinte e nove anos, bem
estabilizado financeiramente. Perdi muito tempo me estruturando
nesse sentido. — Alguns segundos de silêncio e perguntou: —
Parece que a senhora não simpatiza muito com ela, não é, mãe?
—Não tenho nada contra a Irene!
—Mas também não tem nada a favor!
—Eu não disse isso, Humberto!



—Eu sei. Outro dia eu estava observando e percebi que a senhora
parece se dar melhor com a Lívia do que com a Irene.
—A Irene é extrovertida, agitada... Não pára quieta! Enquanto a
Lívia é mais amorosa, atenciosa, caseira... São duas pessoas bem
diferentes.
—Sabe, acho que a Lívia não merece o Rubens. Quando
conversamos, percebo que ela é uma pessoa tão centrada, segura,
fiel... — riu. — Enquanto ele... um irresponsável!
—Não fale assim do seu irmão! Ele gosta de festa, de balada...
—Não é só disso que ele gosta, mãe. O Rubens não assume
qualquer responsabilidade. Não está nem aí pra nada. Fuma, bebe,
sai com a mulherada... Só está naquele emprego porque eu arrumei,
se não... Outro dia eu chamei a atenção dele por ter chegado de
manhã e bêbado que só vendo! Nem sei como conseguiu vir
dirigindo pra casa! Quer que eu acredite que, naquele estado, ele
saiu com alguma mulher e se preveniu de alguma forma? E quanto
à Lívia? Ele não a respeita?
—Essa fase passa.
—Sem dúvida que passa. Mas será que não vai deixar
conseqüências graves?! Será que ele não vai se contaminar com
alguma doença?! Engravidar alguém? E depois de casado, vai
continuar do mesmo jeito? A Lívia não o viu bêbado ainda! Ela não
imagina que, depois de deixá-la em casa, ele cai na farra! Essa moça
não merece esse cara!
—Seu irmão vai mudar. Isso é a idade.
—Que idade, o quê, mãe! O Rubens tem vinte e seis anos! É bem
grandinho! A senhora fala como se ele tivesse dezoito! Ele vai ficar
como o pai. Coitada da Lívia se não abrir os olhos!
Naquele momento a porta foi aberta e o senhor Leopoldo entrou.
Novamente o pai de Humberto trazia os olhos injetados, o rosto
vermelho e os movimentos trôpegos, inseguros. Ao falar
lentamente, exalava forte odor de bebida alcoólica.


Imediatamente Humberto empurrou o seu prato de refeição,
esfregou o rosto e segurou a fronte com as mãos, apoiando os
cotovelos à mesa.
Instante em que o homem começou a falar coisas sem sentido, sem
razão de ser e de modo cada vez mais agressivo.
—Cadê minha comida?! O prato era ......... era pra tá pronto!!! O que
você ficou fazendo?!!
—É melhor você tomar um banho primeiro, Leopoldo — pediu
dona Aurora paciente. — Vem, eu te ajudo.
—Ajuda o quê?! Por quê?! Você pensa que eu não me agüento?!
Quem você pensa que é?!


— Venha, homem. Toma um banho frio, depois você come e —
disse ela segurando-o pelo braço, tentando conduzi-lo.
Com modos rudes o senhor Leopoldo gritou:
—Banho frio por quê?! Quero comer é agora!!! Eu decido se vou
tomar banho ou não!!! Por que eu vou tomar banho frio?!!
—Por que você tá que não se agüenta. Não vê que bebeu demais?!
Olha como está de fogo?!


— Cale a boca!!! Tô de fogo coisa nenhuma!!! Você, cale essa boca!!!
Quem você pensa que é?ü Você não passa de uma...
O senhor Leopoldo começou a proferir frases ofensivas e agressivas.
Mesmo com a fala mole e expressões sem sentido, ele insultava
dona Aurora tomando postura física de quem iria agredi-la
fisicamente. E tentou.
Nesse momento, Humberto não teve opção e interferiu.
Uma briga iniciou-se e durou até o pai gastar toda a sua energia e
cair vencido pela embriaguez.
Depois de deixá-lo no quarto, com a ajuda do filho, dona Aurora
reparou o corte que sangrava no supercílio de Humberto, resultado
da agressão do pai, que o feriu com o prato que lhe atirou.
— Humberto, vem cá! Você está machucado, filho! Quando a mãe ia
tocar sua face, ele pediu:
— Deixa, mãe! Por favor, deixa!

— Mas filho...
— Eu estou cansado disso, mãe! Não vejo a hora de me casar e
sair daqui!
Acompanhando-o até o quarto, entrou em seguida e perguntou
firme:
—É por isso que vai se casar, Humberto?! Vai se casar só para sair
dessa casa?!
—Não é sobre isso que estou falando. Não suporto mais essa
situação. Não sei como a senhora agüenta!
Com os olhos umedecidos pelas lágrimas, dona Aurora respondeu:
—E o que você queria que eu fizesse? Acha que o correto é eu
abandonar o seu pai?!
—Talvez fosse, mãe! Isso seria bom para ele tomar vergonha e ter
mais responsabilidade! — falou, sentindo raiva.
—Humberto, eu e o seu pai estamos casados há trinta e sete anos!
—Desde quando me conheço como gente, eu o vejo chegando em
casa embriagado, agredindo a senhora e nos espancando quando
éramos pequenos! Depois que crescemos, não pode continuar nos
batendo, mas ainda a agride se não estivermos por perto! Como
pode tolerar isso, mãe?! Como a senhora agüenta?!
—Ele é meu marido! Você não entende?!
—Entender o quê?!
—Vou deixar o seu pai e fazer o quê da minha vida?! Não tenho
mais vinte anos! — disse, começando a chorar.
—Mas tem uma vida! E, quando se tem vida, devemos fazer o
melhor e o possível para nos sentirmos bem!
—E o que será desse homem?! O que será do seu pai, Humberto?!
Você conseguiria viver tranqüilo, viver bem mesmo sabendo que o
seu pai está jogado na rua, na sarjeta?! Sim, porque é isso o que vai
acontecer se a gente deixar essa casa! A solidão vai fazer miséria
com a cabeça dele, pois todo homem que bebe tem a mente fraca. Se
ele tivesse abandonado o lar, seria diferente. Mas não é esse o caso,
meu filho. Você e seus irmãos podem ir embora, mas eu não vou


deixar o meu marido porque eu não viveria bem por causa disso.
Não teria tranqüilidade ou paz se soubesse que ele vive na miséria
por falta do meu apoio, mesmo que esse apoio não adiante muita
coisa agora! Fico admirada por uma pessoa como você, com o seu
entendimento me dizer uma coisa dessa! — Com lágrimas correndo
no rosto sofrido, porém olhando firme para o filho, falou: — Eu
ainda tenho esperança de que o Leopoldo pare de beber. Deus é
grande!
Em seguida, virou-se e o deixou sozinho no quarto.
Humberto ficou remoendo os próprios pensamentos. Estava
contrariado e arrependido do conselho de separação que deu para
sua mãe, afinal, isso era contra os seus princípios morais. As
lembranças mais vivas que guardava de seu pai eram dos
momentos em que o homem se apresentava embriagado. Sempre se
envergonhou dos vizinhos e amigos por causa das situações
constrangedoras em que seu pai se apresentava alterado, brigando
ou com a fala trôpega pela bebida alcoólica que o deixava
extremamente mal humorado, sem controle, ou sem domínio de si
mesmo. Sem mencionar os momentos de brigas, discussões ou
agressões promovidas pelo álcool.
Aborrecido consigo mesmo, balançou a cabeça negativamente, num
gesto enfadado e decidiu ir até o banheiro para lavar o rosto.
No caminho, o telefone tocou e ele decidiu atender:


Era uma tarde de sábado, quando Sérgio chegou à cozinha e avisou
a esposa:
—Fui à garagem agora e o carro está com o pneu furado.
—Você vai trocar?
—Vou, mas não com o nosso macaco.
—Por quê?
—O macaco é novinho! Nunca foi usado, mas está emperrado! Não
funciona! Acredita?! — riu.
—Ainda bem que estamos em casa! Já pensou se tivéssemos saído?
—Foi o que eu pensei.



—E agora?
—Acho que terei de incomodar o vizinho. Será que o Humberto ou


o Rubens estão em casa?
—Não sei. Quer que eu veja?
—Não, fique aí! Eu vou lá!
Passados alguns minutos, Humberto, bem disposto, estava na
garagem da casa de Sérgio, ajudando na troca do pneu enquanto
conversavam.
—Veja só! E se eu estivesse em uma auto-estrada?
—Ainda bem que aconteceu aqui e nesse horário. Já pensou se é
noite e a Débora precisa ir para o hospital?
—Nem brinca! — Sérgio riu e falou: — Eu iria ter de pegar o carro
de alguém!
Ao ver o pneu trocado, Humberto ofereceu-se, animado:
— Vamos lá no borracheiro arrumar! O meu carro está na rua!
_ Não é preciso, Humberto. Você já me ajudou muito.
— Não estou fazendo nada mesmo! Vamos lá! Diante da insistência,
Sérgio concordou. No caminho, e enquanto o pneu era consertado,
eles
conversavam sobre vários assuntos até Humberto comentar:
—Eu admiro muito você e a Débora. Vocês dois formam um casal
tão bonito pela calma que apresentam, pela união. Outro dia lá em
casa, minha mãe e eu comentávamos isso. Daqui a pouco vou me
casar e gostaria de saber o segredo dessa harmonia. Gosto muito da
Irene, nós nos damos bem. Mesmo assim, às vezes, sou invadido
por uma insegurança... Temo haver alguma incompatibilidade que
só se revele mais tarde.
—Nem toda incompatibilidade é prejudicial ou um problema em
uma relação. Quando um casal não se dá bem ou quando um deles
quer, definitivamente, se afastar do outro, começa-se a criar
situações ou procurar-se incompatibilidades em pequenos
acontecimentos e costumes que poderiam ser considerados
corriqueiros, normais e sem importância.

—Tipo, deixar os chinelos fora do lugar.
—Isso! — Sérgio sorriu e confessou: — Esse é um exemplo ótimo.
Na minha casa, eu costumo esquecer os chinelos fora do lugar. Sou
muito organizado com tudo, mas deixo os benditos chinelos jogados
num canto ou outro ou no meio da sala. É lógico que a Débora não
gosta disso, mas esse não é um grande problema entre nós. Não é
motivo de briga ou irritação para ela que sempre os recolhe e os
coloca no lugar certo. Isso não e um motivo de transtorno para nós.
Se bem que, nos últimos tempos, estou menos folgado por causa do
estado dela. Outro exemplo é... — pensou e comentou: — Eu gosto
de tomate na salada de alface e ela sempre esquece. Eu poderia
reclamar e questionar agressivo ou insatisfeito, mas não. Sempre
pergunto, com jeito educado, ou faço uma brincadeira. Quando ela
está ocupada e diz para eu ir pegar, eu vou. Pego o fruto, lavo, corto
e acabou. Não fazemos dessa situação um problema.
—Mas esse tipo de postura é das duas partes. Ela poderia ser
agressiva e responder mal.
—Sim, poderia. Por isso, desde o início da nossa relação, um não
deixa que o outro se altere sem, com muita calma, dizer que não é
preciso falar daquele jeito. Quando uma pessoa perde a serenidade,
é agressiva com gestos ou palavras, muitas vezes ela não está
insatisfeita com o que aconteceu naquele exato momento. Na
maioria das vezes, ela está insatisfeita consigo mesma ou por outro
motivo completamente diferente daquele ocorrido naquela hora.
Quando estamos em paz conosco, não nos alteramos e quando fazemos
o que é correto, vivemos em harmonia.
—Tenho receio de que a Irene se torne aquele tipo de mulher que se
irrita à toa, que quer conseguir tudo no grito, viva momentos
explosivos.
—Qualquer pessoa grita quando quer ser ouvida. E o que é o grito?

— Sem esperar por uma resposta, disse: — O grito é um meio de
comunicação entre aqueles que estão longe. Uma pessoa grita

porque ela está distante. Se não existe muito espaço físico entre ela e
a outra, então existe o espaço emocional, sentimental.

— Nossa! Isso é profundo.
— Isso é fato, meu amigo! — disse Sérgio sorrindo, ao ver o outro
reflexivo.
Ao chegarem à casa de Sérgio, Débora saía ao portão
acompanhando Lívia, que foi logo explicando:
—Cheguei há cerca de uma hora!
—Eu vi que ninguém a atendia no portão de sua casa e avisei que
você saiu com o Sérgio, mas voltariam logo e pedi para ela esperar
aqui — completou Débora.
Humberto beijou o rosto de Lívia enquanto Sérgio limitou-se ao
aperto de mão. Em seguida, Humberto comentou:
—O Rubens saiu logo cedo e não chegou até agora. A Neide foi à
casa de um amigo e meus pais foram ao casamento do filho de um
conhecido.
—Pensei que o Rubens estivesse aí. Não consegui falar com ele. Ele
vive com o celular desligado!
—Quando não, esquece o aparelho em casa — tornou
ele.
Ao pensar que não ficaria bem permanecer na casa sozinha com
Humberto enquanto esperasse pelo namorado, Lívia avisou um
tanto constrangida:
—Então eu vou indo. Mais tarde eu ligo para o Rubens e a gente se
encontra.
—Vou te levar!
Rapidamente Débora e Sérgio se entreolharam, entendendo a
situação, e ela propôs:
—De jeito nenhum! Vamos entrar e tomar um café ou um suco, pois
está muito calor.
—Não. Vou levar a Lívia até sua casa.



—Fará essa desfeita conosco, Humberto?! — Sérgio sorriu ao
brincar. — Quando eu precisar novamente de ajuda, vou recorrer a
outro vizinho. Não te procuro mais.

— Depois dessa ameaça, teremos de aceitar o convite! — tornou o
outro.
Eles entraram e se acomodaram na sala conversand longa e
prazerosamente.
Em algum momento da conversa, Humberto comentou:
—Gostei muito do que ouvi do Sérgio, hoje, referente ao grito.
Disse-me ele que, mesmo estando perto, a pessoa grit porque está
longe da outra emocionalmente.
—Bem profundo! — concordou Lívia. — Eu nunca havia pensado
nisso dessa forma.
—É uma distância sentimental, com certeza, mas essa máxima
filosófica pertence a Ghandi — explicou Sérgio.
—Hoje eu estava comentando com o Sérgio sobre uma pessoa —
Humberto sorriu de modo engraçado e provocativo olhando para
Débora e Lívia ao continuar — quer dizer... eu estava falando sobre
a mulher que muda sua personalidade depois do casamento. Muitas
se alteram e vivem irritadas, nervosas e passam a gritar. Observei
isso principalmente onde trabalho.
—Foi a coisa mais injusta que eu ouvi hoje, Humberto! — reclamou
Lívia com um tom engraçado na voz enquanto sorria intrigada.
—Estou comentando somente o que eu observo. Não quero
generalizar, mas... — Ele embaraçou-se e recorreu ao amigo: —
Sérgio, o que você acha?
—Todas as pessoas, independente do sexo, mudam o
comportamento conforme aumenta a sua responsabilidade.
Algumas podem tomar para si excessos de tarefas e criar preocupações
que não conseguem suportar. Por isso o menor desafio
ou um problema insignificante se torna um transtorno, algo
insuportável. Então, sob a pressão que ela mesma criou, a pessoa se
irrita, fica nervosa, grita.

—Será que entendi bem? É a própria pessoa quem se pressiona?
Não é alguém ou uma situação que faz isso? — perguntou Lívia.
—Em absoluto! — tornou Sérgio. — Pense comigo: eu posso, por
algum motivo, ser exigente com você, fazer ameaças ou até fazer o
maior terrorismo na sua vida para conseguir algo, mas quem se
magoa, fica triste, se irrita, se desespera e se pressiona para obter o
resultado é você mesma. A única criatura capaz de tirar a própria
paz somos nós. Quando alguém diz não ter paz, eu digo que é
porque essa pessoa não vem fazendo, na vida, o que é certo, a
começar pela falta de fé em Deus e depois em si mesma.
—Nossa, Sérgio! O que é isso?! — admirou-se Humberto sorrindo.

— Só algumas horas com você e já aprendi tanto!
—Não é a toa que ele é psicólogo! — ressaltou Lívia. — Esse
assunto vai me fazer refletir muito.
—Estou vendo que as orientações de um psicólogo não são
importantes somente para aqueles que passam por problemas —
tornou Humberto.
—Lógico que não! — afirmou Sérgio. — O trabalho de psicologia
pode ser aplicado em qualquer pessoa e em qualquer fase da vida a
fim de que ela progrida, seja melhor do que ja é. Você sabia que os
atletas de muitos países têm acompanhamento psicológico?
—Por isso eles têm o maior número de medalhas! Já ouvi falar!


disse Humberto.
—Sem dúvida que esse é um dos motivos. Quando alguém tem
controle emocional, domínio sobre si, sempre realiza o melhor no
que faz. Infelizmente, a grande maioria pensa em procurar um
profissional, nessa área, só quando tem algum problema. Eu me
atrevo a dizer que a saúde emocional, mental é até mais importante
do que a saúde física Quando se está bem emocionalmente, todo o
seu corpo entra em um ritmo saudável e de paz.
—Vendo por esse lado, você tem toda razão. O correto é irmos ao
dentista e ao médico antes que um problema apareça, pois, caso


haja algum comprometimento, será mais fácil de cuidar no início,
antes de uma manifestação aguda — disse Humberto.
—Prevenir! Isso é o mais importante. Todo e qualquer problema,
nessa área, tem grande chance de evoluir — tornou o amigo.
—O que você me diz do alcoolismo, Sérgio? — quis saber
Humberto.
—O alcoolismo não é um problema moral como se acreditou por
muitos anos. O alcoolismo é uma doença, cientificamente estudada.
E incurável e fatal para aquele que não parar de beber.
—Incurável?! — perguntou Lívia. — Mas e se a pessoa parar de
beber?
—Se a pessoa parar de beber, ela venceu o alcoolismo, mas continua
sendo alcoólatra, pois nunca mais deverá ingerir ou experimentar
qualquer coisa que contenha álcool, inclusive medicamentos. O que
muitos ignoram é que o alcoolismo é uma doença progressiva. A
vítima bebe uma vez e tende a beber cada vez mais. Para vencer
essa doença, é necessário parar definitivamente de ingerir álcool.
—Sérgio, o meu pai é alcoólatra — disse Humberto. — É difícil não
ver a pessoa alcoolista como sendo um safado. Quando sóbrio, o
meu pai é uma excelente pessoa, trabalhador Eu acredito que ele
bebe porque não tem opinião.
—Não é bem assim, Humberto. Após a embriaguez, quando sóbrio,


o alcoólatra é invadido por um grande sentimento destrutivo de
desgosto, arrependimento, solidão, desespero. Ele vê que sua vida
está sendo destruída lentamente e a promessa, a de não beber mais,
não foi cumprida. A afetação e a ruína familiar, social são vistas e
sentidas por ele, que começa a se sentir um marginal por conta das
críticas, das agressões verbais ou silenciosas, por conta da solidão.
Ele sabe ou imagina que surgirão os problemas ou conseqüências
psicológicas mais severas, dificuldades no trabalho,
comprometimento da saúde, doenças físicas, mentais e até a loucura
e a morte prematura. Por isso tudo ele sofre muito.

—Eu chego a questionar esse sofrimento. Se houvesse um
sofrimento tão intenso assim, ele deixaria de beber.
—Por pensar dessa forma, é que você precisa conhecer mais sobre o
assunto, Humberto. Já leu ou se informou a respeito?
—Não. O conhecimento que tenho é a prática. Para ser sincero, não
é fácil aceitar e entender o alcoolismo como doença.
—Mas ele é. E uma doença que pode e deve ser tratada. É comum
não considerarem o alcoólatra um doente pelo fato de entenderem
como doente somente a pessoa enferma, acamada, indisposta,
inapta, com dores, etc. A respeito do doente, sentimos piedade. Em
vez de piedade, normalmente, sentimos aversão, repúdio ou raiva
do alcoólatra. Isso acontece porque a maioria das pessoas tem, à
disposição, a bebida alcoólica e bebe se quiser, quando quiser e o
quanto quiser. Muitas vezes até recusa firmemente. Assim sendo,
essas pessoas têm o contato com a bebida e o domínio sobre si
mesmas. Sabem recusar e dizer quando basta. Então elas acreditam
que todos têm ou devam ter o mesmo controle. Só que não é bem
assim. Aliás, o próprio alcoólatra pensa dessa forma e por isso acaba
se achando um fraco, um incompetente, um zero à esquerda. Por
essa razão ele não procura ajuda.
—Desculpe-me Sérgio, eu não entendi por que ele não procura
ajuda — quis saber Lívia.
—É assim: se sou alcoólatra, não tenho controle sobre mim diante
da bebida, mas quando vejo que as outras pessoas têm esse
controle, eu me acho um fraco. Penso que largar de beber depende
só e unicamente de mim. Daí que, fico dizendo a mim mesmo que
vou me controlar, não vou beber mais e não preciso de ajuda, pois
se os outros têm controle diante do álcool, eu também vou ter. Só
que sem ajuda, sem tratamento não vou conseguir porque o
alcoolismo é uma doença.
—O maior número de alcoólatras se encontra nas classes média e
baixa, não é? — perguntou ela novamente.


—É um engano pensar assim. Se houvesse um meio de se medir, a
porcentagem seria praticamente a mesma. O alcoolismo existe em
todas as classes sociais, independente da etnia, do grau de
escolaridade, da religião ou da política do país.

Existem fatores que favorecem o consumo de bebida alcoólica e que
nem imaginamos.

— Como quais? — perguntou Humberto.
—Em países como o nosso, o governo arrecada um valor
impressionante através dos impostos cobrados nas vendas de
bebidas. Assim sendo, você acredita que exista algum empenho, por
parte do governo, em restringir ou acabar com as propagandas ou
venda de bebida? Lógico que não! Há também fatores culturais
onde dizem, em determinados círculos, que "homem pra ser homem
tem que beber!". Outro é o hábito de se ingerir álcool antes das
refeições, porque é final de semana, sexta-feira, está frio, calor!...
—O que sei dizer é que o alcoolismo não traz problema só para
aquele que bebe. Ele colabora para danos sérios na família e com
grande repercussão na sociedade. Haja vista quantos acidentes, de
todos os gêneros, acontecem com envolvimento de alcoolistas ou
alcoólatras, como queira. Quantas mortes e crimes ocorrem também
por causa do álcool. Sem mencionar a irritação que essas pessoas
provocam em toda a família tirando o equilíbrio, a harmonia,
roubam-nos a paz, provocam decepções por causa dos
compromissos não cumpridos, do comportamento inadequado, da
aparência decadente, da falta de sucesso no trabalho, insegurança
financeira, falta de higiene quando embriagado, agressões físicas e
verbais... Sempre tive vergonha do meu pai. Nunca levei amigos em
casa. Quando eu sabia que haveria uma festa à qual meu pai iria, eu
ficava longe. Sabe... — Pensou por alguns segundos e depois revelou
em tom firme: — Eu nunca bebi. Não sei qual é o gosto do
álcool, de uma bebida colocada em um copo. Poucas vezes comi um
bombom que continha licor. Eu sempre vi um efeito muito
devastador em torno do álcool. Minha mãe e nós, os filhos, sempre

nos sentimos infelizes e impotentes diante de meu pai embriagado,
além de nos sentirmos como a razão de ele beber.

— Veja, Humberto, pelo fato do alcoolismo ser uma doença, a
vítima dele, sem orientação sobre o que acontece com ela, projeta na
família, no trabalho ou em alguma outra situação a razão de sua
falta de controle com a bebida. A culpa não é dela, que é um doente,
muito menos da família. O alcoólatra quer proteger o seu eu o seu
ego, o que é natural. Quando o alcoólatra transfere para a família a
culpa por ele beber, para que os outros se sintam culpados, com
remorso e assim experimentem medo ou receio dele e não vão
dialogar a respeito do assunto. Quando se trata de um filho, os pais
acreditam que não o educaram bem, que falharam com ele de
alguma forma e se sentem constrangidos ou coagidos de algum jeito
e também não vão conversar com ele sobre o assunto. O que acaba
acontecendo é que ninguém exige uma mudança no
comportamento do alcoólatra. Ninguém procura orientação para
poder ajudá-lo e todos se acomodam.
Humberto sorriu ao perguntar:
— Está me chamando de acomodado? O outro riu a admitir:
— De certa forma, estou sim. Você mesmo me disse que não leu
nem se informou a respeito. Disse que o seu conhecimento era a
prática. Nesse caso, meu amigo, a prática não ensina muito além do
sofrimento.
_ É verdade! — riu concordando. — Você tem razão. Aprendi muito
hoje e vou procurar me informar a respeito.


— Vou te arrumar um livro muito bom sobre esse assunto.
— Ótimo! Aceito com o maior prazer.
Nesse instante a campainha tocou, Débora saiu para atender e
retornou para a sala na companhia de Tiago, Rita e seus dois filhos
gêmeos.
Ao serem apresentados, Tiago comentou:
— Acho que te conheço de algum lugar, Humberto!
— De outra vida, quem sabe! — brincou ele, alegre e simpático.

Eles riram e continuaram conversando sobre outros assuntos bem
proveitosos.
Os gêmeos atraíam toda a atenção por causa das gracinhas que
faziam, coisas típicas da idade.
Vez e outra Humberto telefonava para sua casa a fim de verificar se
alguém havia chegado. Porém, em seu íntimo, desejava ficar ali em
meio a companhias agradáveis.
As horas foram passando, a noite chegou e todos permaneceram
juntos se divertindo na residência de Sérgio e Débora.

5
TRAIÇÃO SEM REMORSO


Era noite. Rubens se viu a passos rápidos por uma rua onde a
iluminação frágil refletia as poças d'água existentes. Fugia de algo
que o amedrontava. Sentia-se perdido, desesperado enquanto era
perseguido por uma criatura, com risos sarcásticos e voz rouca, que
gritava o seu nome.
Ao ouvir uma gargalhada estrondosa, Rubens estremeceu e acordou
num sobressalto, sentando-se rapidamente na cama.

— Nossa! O que foi isso, Rubens?! — perguntou Irene ao seu lado,
acordando assustada com sua inquietação.
Ele não disse nada. Sua respiração estava alterada e seu rosto ficou
gotejado de um suor frio.
Imediatamente acendeu um cigarro e, após algumas tragadas,
levantou-se, caminhou pelo quarto e verificou já ser bem tarde.
Irene acompanhava-o com o olhar, curiosa para saber o que havia
acontecido.

—O que foi? Teve algum sonho?
—Um pesadelo — respondeu ele. Em seguida, observou: — Já é
noite! Você viu?!


— É mesmo! Pegamos no sono! — riu. — O que vou dizer ao
Humberto?
— O de sempre. Ele nunca te questiona nada, não é mesmo?!
_ É verdade. Ao contrário da Lívia que está ficando espertinha,
hein!
— Mas eu já estou dando um jeito nela. Acredite.
— Espero que sim. Não quero que ela levante qualquer suspeita
sobre nós.
— Relaxa! — disse aproximando-se e beijando-a. Após corresponder
ao carinho, Irene avisou:
— Vou tomar um banho. Precisamos ir.
Ela se levantou e foi para o banheiro enquanto Rubens terminava de
fumar o cigarro.
Ao saírem do motel, Irene comentou:
— Vamos passar no shopping para eu pegar o meu carro. Mas antes
subiremos até a loja para perguntar à Cleide se o Humberto me
procurou.
Aos vinte e sete anos, Irene era uma mulher habituada a vestir-se na
última moda. Tinha um bom gosto natural. Muito elegante, por ter
um corpo bem feito, sentia-se segura e confiante de sua beleza,
trazendo um leve sorriso que iluminava seu rosto de pele morena
clara. Alta. Cabelos castanhos, lisos e bem curtinhos que lhe davam
um toque bem jovial. Firme e objetiva, possuía personalidade
marcante e idéias próprias.
A passos firmes ao lado de Rubens, ela caminhava pelos corredores
do shopping como se desfilasse. Sempre com expressão alegre,
gargalhava, gostosamente, vez e outra por algo engraçado que
conversavam.

Adentrando em uma de suas lojas de requintada decoração,
imediatamente procuraram Cleide, que os beijou e comentou como
se sussurrasse:
—Vocês dois são loucos! O que estão fazendo juntos aqui?!
Irene trocou olhares com Rubens e riu com prazer antes de falar:


— Quem deveria estar preocupada aqui era eu! Não acha?! — Em
seguida, perguntou: — Alguma novidade?
—O Humberto telefonou duas vezes!
—O que você disse?
— Que você tinha ido à administração do shopping resolver uma
questão da metragem do aluguel de uma das lojas. — Logo
reclamou: — Ai, Irene! Eu não sei mais que desculpa eu vou dar!
Você ainda vai me pôr em uma fria!
— Fique tranqüila, Cleide!
Por sua vez e sem se constranger, Rubens sorriu ao decidir:
— Bem, estou indo! Nós nos vemos mais tarde — dizendo isso,
segurou o braço de Irene, dando-lhe um beijo no rosto pegando
levemente no canto da boca.
De imediato, ela lembrou:
— Ah! Espere! — Indo atrás de um balcão, abaixou-se e apanhou
um volume, dizendo: — Chegaram mercadorias novas e esta blusa é
a cara da Lívia! Leve e dê para ela.
— E digo o quê?
— Diga que gostaria de lhe fazer um mimo e por isso passou aqui e
eu o ajudei a escolher. Diga também que é um meio de se sentir
menos culpado pelas horas que fica ausente.
Colocando a blusa em uma embalagem, entregou-a para ele, que
comentou:
_ Ótima idéia! Obrigado!
Beijando-a mais uma vez, ele se despediu e se foi. Cleide estava
boquiaberta com a cena, porém esperou o outro estar fora de vistas
para exclamar:



—Irene! Você perdeu o juízo?!!! Ele é irmão do Humberto!!! Onde
isso vai parar?!!
—Na cama, onde termina todas às vezes! — gargalhou.
—Eu não acredito no que estou vendo!!! Sou sua amiga, Irene, mas
isso não é certo! Se vocês dois se gostam tanto, por que não termina
com o Humberto e fica com o Rubens?!
—Não posso, Cleide! Eu já te disse, amiga! Eu e o Rubens sentimos
uma atração muito forte um pelo outro... Não sei explicar direito. É
como se nós nos realizássemos pelo gostinho do perigo. Se ele
terminar com a Lívia e eu com o Humberto, acho que não haverá
mais graça.
—Você está praticamente noiva! O Humberto fala em casamento! O
que vai fazer depois de casada?!
—Não parei para pensar nisso. Ficar com o Rubens é experimentar
um sentimento de viver perigosamente. E algo muito forte e que me
satisfaz. Eu e o Rubens nos damos muito bem por isso.

—Irene, pense bem. Com o tempo, se o Humberto quiser um filho...
—Eu não quero filhos! Fico apavorada com essa idéia de estar...
—Por quê?!!! — quase gritou a outra. — Você acha que está?!!!

— Não estou nada!!! Pare com isso!!! Se eu estiver, eu tiro!!! Pode ter
certeza!!! — falou irritada, demonstrando-se
nervosa.
—Irene, está atrasado?!
—Uns dias.
—Você falou com o Humberto?
—Ficou louca?!!! Se isso aconteceu, ninguém vai saber!
— Irene, pelo amor de Deus, não faça uma besteira dessa! Isso é
pecado! Se estiver, fale com o Humberto! — Breve pausa e
perguntou: — Vocês conversam sobre a idéia de ter um filho?!
—O Humberto adora crianças, mas eu não! Ele sempre vive às
voltas com a idéia de que, quando tiver um filho, será desse ou

daquele jeito. Porém, da minha boca, ele nunca ouviu nada.
Também nunca me perguntou — falou de modo duro.
—E se ele quiser filhos? — tornou Cleide.
—Sei lá! Não quero pensar nisso — falou irritada.


— Deveria. — Após alguns minutos, argumentou: — Sabe, não
estou me sentindo bem por estar envolvida nesse assunto. Preciso
mentir, ficar inventar histórias e... Por favor, amiga! Pare com isso!
— Cleide, você é minha amiga ou não?!
A outra olhou de um modo indefinido. Percebia-se contrariada e
com o coração apertado por encobrir as mentiras da outra.
Temendo que Cleide contasse algo, Irene fez-se chorosa e pediu
com modos tristes, como se implorasse:
— Preciso de um tempo. Vou dar um jeito nessa situação. Eu
prometo.
Apesar de insatisfeita, a amiga ofereceu meio sorriso e pareceu se
conformar.
Nesse instante, uma das vendedoras se aproximou e a conversa foi
interrompida.


***

Humberto saía do banho, sem camisa, secando os cabelos com uma
toalha. Não tirava dos pensamentos a lembrança das informações
preciosas da conversa que teve com Sérgio. Rindo sozinho, rendia-
se à idéia de conhecer, de alguma forma ou de algum lugar, os
amigos com quem passou uma tarde e princípio de noite.
Só poderia ser de outra vida. As conversas, as brincadeiras entre os
grandes ensinamentos o faziam experimentar um sentimento de
alegria indefinida, como se tivesse matado a saudade de amigos que
há muito tempo não via.
Observou que Lívia ficou muito à vontade também. Queria ter
ficado na casa de Sérgio, pois foram horas muito agradáveis.


Recordando novamente da namorada de seu irmão, Humberto
sorriu ao lembrar de seu sorriso agradável, sua voz gostosa de ser
ouvida. Não esquecia o seu rosto expressivo, o seu riso cristalino,
que figurava uma beleza sem igual em seus lábios carnudos e bem
delineados. Chamou-lhe a atenção ver o seu jeito delicado de
colocar o cabelo, vez e outra, atrás da orelha, deixando a face alva
mais à mostra.
Lívia o atraía imensamente. Ao pensar nisso, sentiu como que uma
pontada lancinante no peito enquanto um tremor correu-lhe o
corpo.


Fechando o sorriso, sacudiu a cabeça e respirou fundi para
afugentar os pensamentos.
Mas as recordações eram teimosas, insistentes.
Não demorou e imagens belas e agradáveis da m invadiam
lentamente sua mente, apesar de lutar contra isso Desejava estar
com Lívia, sentia-se bem ao seu lado. Percebeu que, a cada dia, uma
ansiedade extrema o dominava todas as manhãs antes de ir pegá-la
para levá-la ao serviço.
No carro, mesmo sem ela estar presente, podia perceber o seu
perfume suave, delicado feito sua presença, e ele adorava isso.
Sentado em sua cama, sentiu o coração bater descompassado ao
pensar que, talvez, estivesse apaixonado pela namorada de seu
irmão. Isso não deveria acontecer.
Nesse instante seu rosto ficou sério e a testa franzida. Precisava
lutar contra essas idéias.
Repentinamente a porta foi aberta e Rubens entrou.
Humberto olhou para o irmão e encarou-o de modo sério. Sentindo-
se culpado, refletiu:
"Não é possível eu me apaixonar por sua namorada. Isso é horrível!
Mas vai mudar! Ah, vai!".
—E aí?! Tudo bem, Humberto?!
—Tudo! — respondeu rápido.
—Você está esquisito. Parece que viu um fantasma.



—Não... Eu só estava pensando onde a Irene se meteu? Não consigo
encontrá-la.
—O trabalho nos rouba todo o tempo. Tem dia que fica difícil
conciliarmos as coisas.


_ É, eu sei. Mas ela poderia me ligar. O seu celular sempre está
desligado. Não está na loja... Puxa! Que falta de consideração!
Caramba!


— Só posso defender a Irene, pois hoje também tive um dia cheio!
Você sabe, quase não trabalho aos sábados, no entanto, nos últimos
tempos, um caminhão quebra e todas as mercadorias precisam
passar de um veículo para o outro. E quem é o prejudicado? O
gerente de distribuição, lógico! Se você soubesse o trabalho que dá
essa transferência de mercadorias, a lista de inventário e tudo
mais... Trabalhar com logística não é fácil! Depois a Lívia reclama
que eu nunca estou na minha sala, meu celular só dá caixa postal...
Mas é que no depósito ou em outros lugares da empresa o aparelho
não pega. Além disso, eu detesto telefone. As pessoas só ligam para
cobrar alguma coisa, pressionar ou trazer mais problemas! —
reclamou.
Humberto riu ao concordar:
—Sabe que você tem razão! Geralmente um telefonema acontece
com essa finalidade mesmo.
—Então, meu caro, vê se não pressiona a Irene. Ela deve ter
problemas suficientes para não te ligar.
Suaves batidas à porta entreaberta, e Rubens permitiu:
—Entra!
—Olá, Rubens! Oi, meu amor! — disse Irene sorrindo ao entrar no
quarto. Indo à direção de Humberto, beijou-lhe a boca rapidamente
e falou: — Imagino o quanto está chateado com o meu sumiço. Mas
você nem imagina que dia eu tive!
—Eu tinha planos para hoje e...

—Ah, meu amor! — falou com mimos. — Se eu pudesse, teria vindo


mais cedo!
Levantando-se, indo até o armário e pegando uma camisa, disse,
sério, ao vestir:
—Esse negócio de você ir às lojas aos sábados não me agrada. Vocês
têm encarregadas que podem decidir tudo. Afinal, é só um dia!
—Mas não é simples! É o dia de maior movimento. Eu não fico à toa
na loja. Vamos esquecer esse assunto e espairecer.
Humberto parecia insatisfeito. Ajeitou os cabelos, pegou seus
documentos e disse ao irmão:


— Até mais!
Irene seguiu atrás de Humberto e, após ele sair, certifi-cando-se de
que não seria vista, virou-se, jogou um beijo para Rubens, acenou
um tchauzinho e saiu em seguida.
***
Na segunda-feira, ao irem para o trabalho, Humberto e Lívia
estavam bem animados. A conversa era sobre assuntos alegres, que
giravam em torno de Sérgio e Débora.
—Como eles são bacanas! Adorei a Débora. Parece que a conheço
há séculos! — disse Lívia. — Ontem mesmo, eu e o Rubens
estávamos no shopping e eu vi uma loja de roupinhas de criança e...
Ah! Não resisti! Comprei um vestidinho rosa que é a coisinha mais
linda!
—Que legal! Eu tenho certa dificuldade para comprar presentes.
Nunca sei o que dar nem o tamanho. Sou bem diferente do meu
irmão nesse ponto.

_ Devo admitir que o Rubens tem bom gosto. Sábado mesmo, ele
me deu uma blusinha linda. Se bem que... — Lívia silenciou.
Curioso, não suportando a pausa, questionou:

— Se bem quê?...

— Nós estamos discutindo muito e, no sábado, não foi diferente —
falou chateada. — Quanto ao motivo, bem... É sempre o mesmo.
Nos últimos finais de semana ele está sempre ocupado com
trabalhos extras lá na empresa. Durante a semana, eu estudo. Não
nos vemos. No sábado ou domingo, ele sempre é requisitado. Fui só
conversar com ele a respeito e... — Breve pausa e comentou: — Eu
sei que é bem desagradável eu ficar reclamando para você sobre
isso, pois é seu irmão, mas...

— Conversou com ele?
— Sem dúvida. Mas acabamos discutindo, e ele se altera e... — Ela
respirou fundo e contou: — O Rubens não está agindo certo.
Alguma coisa está errada e eu não estou gostando disso. Sabe que
toda vez que apronta alguma, ele me dá um presente?
Humberto riu e comentou:
—Eu comecei a implicar com a Irene por causa do tempo que se
dedica àquela loja, e ela age da mesma forma. Sempre me dá um
presente.
—Ele passou lá no shopping, no sábado, e foi ela quem o ajudou a
comprar a blusa que ele me deu.
— Mas agora vocês dois estão bem? — quis saber.
— Estamos meio estremecidos. O clima não está muito bom entre
nós. Eu não sei... Eu... -ela silenciou.
Humberto corroia-se inquieto por mais detalhes. Gostaria de saber
mais sobre ela, sobre seus sentimentos a respeito de Rubens. Mas
como perguntar sobre isso? Se ela terminasse o romance com seu
irmão, ele teria coragem de fazer o mesmo com Irene? E se estivesse
enganado a respeito de seus sentimentos? Havia muita afinidade
entre ele e Lívia, mas o que fazer com isso? Aos poucos, percebia
que a sua paixão era uma realidade.
Aproveitando uma das paradas no trânsito congestionado, ele
virou-se e percebeu uma grande tristeza vagando no olhar perdido
da moça.



Num impulso impensado, Humberto levou a mão ao rosto de Lívia,
afagou-o, deslizou o carinho para sua nuca e para os cabelos,
escorregando os fios por entre seus dedos.
Surpresa, ela o olhou oferecendo leve sorriso, ficando na
expectativa. Ele, sem saber como explicar tal reação, constrangido,
disfarçou o nervosismo da voz e falou:


— Não fique triste. Esses altos e baixos acontecem em todo
relacionamento.
Ouvindo aquelas palavras ela ofereceu, novamente, um sorriso doce
e singelo, confessando:
— Tem muita coisa acontecendo. Não é só isso que me deixa
angustiada.
Silenciou. Um temor fez estremecer sua alma ao experimentar um
aperto no coração. Séria e sem perceber, prendeu a respiração ao
olhar longamente para Humberto, que desviou os olhos dela para
prestar atenção no trânsito.
Lívia tinha bom senso. Seria incapaz de revelar ao futuro cunhado
os seus sentimentos. Estava apaixonada por ele
certamente, as suas discussões com Rubens davam-se pelo fato de
ela querer que ele fosse exatamente como o irmão.
Humberto era sensato, não fumava, não bebia e ela o admirava em
tudo. Eram incrivelmente parecidos, porém só na aparência física.
Agora, não sabia como olhar para Humberto novamente. Temia que
seu olhar a denunciasse. Como apreciou aquele toque, aquele
carinho. Jamais sentiu em todas as carícias e beijos trocados com
Rubens o que experimentou naquele instante.
Alguns minutos, e ele não resistiu, perguntando:
—Quer falar sobre as outras coisas que estão acontecendo? De
repente, se for algo lá no serviço que eu possa te ajudar...
—Não. Lá no serviço está tudo ótimo. Você já me ajuda demais. —
Para dissimular e não falar sobre o seu compromisso com Rubens,
comentou: — Tem coisas acontecendo lá em casa que me deixam
muito chateada.



—É o seu pai?
—Ele e o meu irmão são pessoas bem difíceis.
—É a bebida também, não é?
—E. Eles não se embriagam tanto quanto o senhor Leopoldo, mas...
Ai, desculpe por falar dessa forma. É que, para você saber, eu
precisava comparar e...
—Tudo bem. O álcool é um inferno!
—E quem bebe é o demônio! Achei bem interessante ver o
alcoólatra por outro ângulo e saber um pouco sobre o alcoolismo do
ponto de vista de alguém como o Sérgio. Entretanto é tão difícil
conviver e saber como agir quando estamos envolvidos nessa
situação no dia-a-dia. — Em seguida, contou: — O meu pai implica
muito comigo e o meu irmão não é diferente O Luís e o Rubens não
se dão bem. Ele vive dizendo que o Ru. bens me engana e tem
outra... Ai! Nossa! Não agüento o meu irmão! Duas semanas atrás,
ele teimou em afirmar que viu o Rubens no carro com outra mulher.
Garante que era ele.
—Você acreditou?!
—Para ser sincera, não sei dizer. O Luís não mente. Ele é terrível,
mas não mente. Quanto ao Rubens... Bem, disse que estava
trabalhando naquele dia. Estou insegura. Não sei como agir. Nós
brigamos feio por causa disso e ele...
Diante do silêncio, Humberto não disse nada. Não sabia o que falar.
Acreditava que seu irmão não era digno de confiança e, certamente,
traía a namorada com outras mulheres, mas não diria nada. Não
poderia.
Ao estacionar o carro na empresa, como sempre, ele exclamou:


— Chegamos!
Descendo do carro, ela riu graciosamente ao comentar:
—Reparou que você sempre fala isso?!
—Isso o quê?
—"Chegamos!"

Ele achou graça e, lado a lado, caminharam até o setor onde
trabalhavam.

***

O tempo foi correndo.
Era sábado e Humberto, como em outros dias daquela semana,
sentia-se sem ânimo. Mil coisas passavam por seus pensamentos.
Deixava-se dominar por lembranças de todos os momentos perto da
namorada de seu irmão e não sabia mais o que fazer. Gostava de
Irene, porém por Lívia nutria um sentimento jamais experimentado.
Ao vê-la, queria correr ao seu encontro como um adolescente.
Desejava envolvê-la em seus braços, beijá-la com paixão e depois
gritar o seu nome por tamanha alegria. Mas não podia.
Precisava calar no peito aquele amor proibido.
O que fazer?
Ele havia percebido que o namoro com Rubens não ia muito bem.
Ela não comentou nada, entretanto notava que, a cada dia, era como
se Lívia quisesse se distanciar de seu irmão, porém algo a impedia
ou não tinha coragem. Talvez gostasse mesmo dele. Contudo não
era mais a mesma. Parecia triste, inquieta, mas ele não poderia fazer
nada a não ser aguardar.
Estava largado sobre a cama e sem a mínima vontade de se levantar,
quando Neide bateu à porta e Humberto permitiu:
—Entra!
—Oi! Tudo bem?!
Remexendo-se um pouco, ele deu um suspiro ao dizer:
—Tudo. Que horas são? — indagou, procurando pelo relógio.


—Dez horas — respondeu a jovem ao se aproximar e se sentar na
cama do irmão. Em seguida, perguntou: — Humberto, a Lívia vem
hoje aqui?
—Não sei. Por quê?



—É que vocês trabalham juntos e, de repente, ela comentou alguma
coisa. Notei que a Lívia está deixando de vir aqui em casa, não liga
mais... — Em seguida, quis saber: — Você e a Irene vão sair?
—Talvez. Não sei dizer. — Alguns instantes e reclamou-— Depois
que ela inaugurou a terceira loja naquele shopping novo, não tem
tempo para mais nada. Aos sábados, principalmente, corre de uma
loja para outra, de um shopping para outro. Por que você quer
saber?
—Eu queria fazer um programa do tipo: sairmos nós cinco juntos!
—Nós cinco?! Quem?! — interessou-se o irmão.
—Eu, você, a Lívia, o Rubens e a Irene!
—Pode ser. Mas por que isso, assim, de repente? Além do que você
vai com a gente e vai sobrar?
—Quem sabe eu arrumo uma companhia! — exclamou rindo. — A
Lívia poderia chamar o irmão dela! — gargalhou.
Humberto achou engraçado o jeito da irmã, porém não gostou da
idéia.
Sentando-se na cama, ficou ao lado de Neide. Passou as mãos
lentamente pelo rosto, alinhou os cabelos e procurou orientar:
—Neide, não seria difícil promover um encontro desse, mas tenho
certeza que não vai ser uma coisa legal pra você. O Luís é um cara
implicante, bebe, fuma... Se você vai investir num cara, deve
procurar um com qualidades melhores. Se ficar com o cara errado,
só vai perder tempo e ser infeliz. Depois, quando quiser terminar,
será difícil. Vai sofrer e não terá coragem de acabar com tudo.
—Ai, seu bobo! Você parece um pai me aconselhando! Estou
falando no Luís por falar. Terminei com o Dudu. Estou sozinha.
Tenho dezenove anos e sei decidir muito bem o que é melhor para
mim!
Eu tenho vinte e nove e ainda não sei o que é melhor para mim. Mas
aonde você quer chegar? Quer sair conosco, por quê?
—Pra ver se te animo um pouco. Você está tão pra baixo nos
últimos dias. Depois que voltou do Ceará, está muito estranho.


Parece insatisfeito com o seu namoro. Anda desanimado com o
noivado. Você está infeliz, Humberto!
—De onde tirou essa idéia? Se estou quieto ou pareço insatisfeito,
são por outros motivos.
—Não minta pra mim! Você não sabe mentir! Pode se abrir comigo!
Não vou contar nada pra ninguém. Tá escrito na sua cara que tem
algo errado.
Levantando-se rápido, caminhou alguns passos e, parecendo
contrariado, respondeu perguntando:


— De onde tirou essa idéia?! O que é isso?! Ficou louca?!
— Te conheço muito bem e até acho que sei o motivo de estar assim.
O irmão franziu o semblante, sentindo-se gelar. O que Neide queria
dizer exatamente?
—Espere! Que conversa é essa?!
—Então você não nega?!
—Não nego o quê?! Do que você está falando?!
—Você está apaixonado por outra, Humberto. Não tente negar.
—Pare! Você vem até aqui tirando o meu sossego! Diz que quer sair
e...

Interrompendo-o, Neide falou, parecendo atacar:
—Você gosta de outra!
—Gosto da Irene e vou me casar com ela! Se você não tem nada pra
fazer, não fique me perturbando! Que droga!
—Eu sei por que está negando. Sei de quem se trata.
—Você ficou louca mesmo! O que te deu, Neide?! Simplesmente
você acordou hoje e decidiu me infernizar?! — falou irritado.
—Humberto, é sério! Eu te adoro! Quero que seja feliz e ao lado de
alguém que ame de verdade e corresponda ao seu amor. — O irmão
a olhava de um modo indefinido, preocupado e, após breve pausa,
ela revelou: — Serei bem direta: sei que está gostando da Lívia.
Imediatamente ele reagiu:



—Pare com isso, Neide! Essa é uma afirmação muito grave! Se mais
alguém escuta uma coisa dessa, vou me complicar muito!
—Então negue! — Levantando-se, encarou-o ao desfechar: —
Negue que não ama a Lívia! Porém faça um esforço ainda maior
para tirar da sua cara aquele olhar apaixonado quando a vê!
Dizendo isso, Neide tentou sair do quarto, mas o irmão a impediu.
Segurando-a firme pelo braço, olhando-a nos olhos inquiriu:
—Cuidado com o que está falando! — exclamou com a voz baixa
entre os dentes cerrados. — Poderá me comprometer e fazer uma
desgraça na minha vida!
—Solta o meu braço! Você está me machucando! — Pediu firme e
enfrentando-o. Ao se ver livre, falou com seriedade ao encará-lo: —
Cuidado você! Não está vendo que está escrito na sua cara que está
apaixonado?! O Rubens é louco por ela, não percebeu?! É melhor
você dar um jeito nessa situação antes que ele desconfie. A Lívia
não merece um cara como o Rubens e acho que a Irene não merece
um cara como você! — Humberto, muito surpreso, não sabia o que
fazer. Ficou calado, fugiu-lhe ao olhar e a irmã comentou: — Eu
gosto muito da Lívia, ela é um amor. Conversamos muito. Batemos
longos papos e foi então que comecei a reparar uma coisa: ela fala
mais em você do que no namorado.
Humberto ficou paralisado. Seus olhos verdes e bem expressivos
brilhavam enquanto prendia a respiração sem perceber. Alguns
segundos e considerou, tentando disfarçar:
—De certo isso aconteceu porque a Lívia trabalha comigo e não tem
muitos outros assuntos. Eu a levo para o serviço. Nós nos vemos
todos os dias. Eu só a admiro, mais nada. Não tire conclusões
precipitadas. Isso é perigoso. Você não tem motivos para acreditar
que tenho qualquer outro sentimento por ela. Gosto da Lívia. Ela é
bacana e só! Entendeu?!
—Não quer admitir, não admita! Eu creio que falta coragem pra
vocês dois. Se ela terminasse com o Rubens e desse um tempo...


—Pare com isso, Neide!!! — falou firme, bem enérgico. — Você bem
lembrou que o Rubens é louco por ela!!! Quanto a mim, eu gosto da
Irene! Vou ficar noivo e tenho planos de me casar. Vou até comprar
um apartamento!
—Estou com pena de você, Humberto! Sempre fui sua amiga. Não
sei por que não se abre comigo. Mas o assunto é delicado, eu
entendo. Só te dou um conselho: Cuidado! Você nao está
conseguindo disfarçar o que sente por ela.

Dizendo isso, Neide saiu do quarto deixando o irmão preocupado,
pensando em como resolver aquela situação.

***

Algumas horas depois, Irene e Lívia conversavam na sala da casa de
dona Aurora.
—Esta blusa é da nova coleção de outono e chegaram outros
modelos lindos! — dizia Irene, exibindo a roupa que usava.
—Realmente é muito bonita!
—Vou guardar algumas para você dar uma olhada sem
compromisso. Tenho certeza que vai adorar!
—Estou precisando mesmo dar uma renovada no meu guarda-
roupa. Separe algumas para eu ver. No próximo sábado, vou lá na
loja.
Humberto chegou. Ao vê-las animadas, ofereceu leve sorriso, olhou
para Irene e chamou:


— Vamos?
Levantando-se, ela concordou:
—Vamos, sim.
—Iremos todos! Não é?! — exclamou Neide sorridente, chegando à
sala.
—Vamos todos para onde?! — questionou o irmão, demonstrando
insatisfação, pois sabia do que se tratava.

—Falei com você sobre sairmos juntos, não lembra?! Depois falei
pro Rubens e ele topou! Conseguiu até reservar uma mesa pra onde
vamos! Você sabe, ele é cheio de contatos!

— Aonde iremos? — quis saber Lívia com simplicidade.
_ Em um bar com música ao vivo! Um lugar bem animado! -avisou
Neide sorridente.


— Ótimo! Faz tempo que eu não danço! — disse Irene. _ Por mim,
tudo bem — concordou Lívia. Humberto ficou sério, com o
semblante contraído, mas
não disse nada até o irmão chegar animado e chamando decidido:
— Está todo mundo pronto?! — perguntou Rubens.
— Sim. Vamos — concordou Humberto insatisfeito.
***

Bem mais tarde, sentados à mesa de uma casa noturna bem
conhecida, estavam Humberto e Lívia, enquanto Rubens e Irene
dançavam juntos e Neide dançava com um grupo de amigos.
—Você está tão sério, Humberto. Está preocupado? — perguntou
Lívia.
—Estou um pouco indisposto, só isso — sorriu para dissimular.


—Não quis dançar. Está quieto e não bebeu nem o


suco.
—Está estranhando por eu não beber nada que tenha álcool, não é?
—Como eu queria que o Rubens fosse assim... Mas não adianta falar
e, às vezes, eu... -calou-se.
No entanto, ele quis saber:
—As vezes o quê?


—Estou cansada — suspirou fundo. — Ele é...
—Apesar de sermos irmão, sou bem diferente dele.



Lívia o encarou e seus olhos se fixaram por longos minutos. Sentiam
seus corações baterem fortes e descompassados O silêncio reinou
absoluto. Depois de longo tempo em que, sem palavras, pareciam
confessar o amor que sentiam, Lívia não suportou e fugiu-lhe o
olhar.
Neide, animada e sorridente, chegou à mesa um tanto ofegante.
Pegando o copo do irmão, ingeriu um gole de suco e depois sugeriu
alegremente:
—Por que não vão dançar?! A pista está ótima! O Rubens e a Irene
estão bem animados! Vão dançar, vocês dois!
—Por mim tudo bem, mas o Humberto está indisposto —
respondeu Lívia.
Encarando o irmão, Neide falou:


— Não está sendo nada simpático da sua parte! A. Lívia quer
dançar e você vai fazer essa desfeita?! Vai, Humberto! Aproveita
que começaram as músicas lentas! Se anime um pouco! — Sorrindo
de modo a provocá-lo, insistiu: — Vai logo! Dançar vai te fazer bem!
Vai por mim!
Ele ficou sem jeito. Deu meio sorriso forçado e, ao se L vantar,
estendeu a mão à Lívia, chamando-a:
— Vem. Vamos lá!
Ao se unirem para dançar, ele a envolveu com delicadeza,
embalando-a conforme a música. Vez e outra, devido às voltas que
davam, viam Irene e Rubens dançando da mesma forma.
Conversavam muito, parecendo bem alegres. Ao passo que
Humberto e Lívia permaneciam em total silêncio.
Devido a uma música mais romântica, com uma letra muito
expressiva e envolvente, ele a apertou contra si encostando o seu
rosto ao dela enquanto afagava as suas costas.
De olhos fechados, podia sentir o seu perfume gostoso e maciez de
seus cabelos, à medida que ela experimentava o toque de seu rosto
suave pela barba bem escanhoada.



Ficaram assim por longo tempo, esquecendo-se de quem eram e dos
limites que os separavam.
Deixando-se dominar por um sentimento que invadia sua alma,
Lívia recostou-se em seu peito escondendo o rosto, abraçou-o com
força por longo tempo e correspondeu aos carinhos, afagando-o.
Humberto não resistiu e beijou-lhe a cabeça com delicadeza,
roçando o seu rosto em seus cabelos no mesmo instante em que a
acariciava com amor.
Algum tempo e ela espalmou a mão em seu peito. Parou de dançar,
olhou-o assustada e, ofegante, sussurrou com voz trêmula:
—Meu Deus! O que estamos fazendo?! Humberto!
—Calma! — murmurou, parecendo tenso. — Não faça cena.
Ninguém reparou em nós e... Foi inevitável, Lívia. Eu... —
Tomando-a novamente, conduziu-a para dançar e falou procurando
disfarçar o nervosismo: — Desculpe-me. Pelo amor de Deus, me
perdoa! — Percebendo-a trêmula e quase chorando, aconselhou: —
Não podemos parar e retornar à mesa com você assim. O Rubens e
a Irene acabaram de ir para lá e estão sentados.


—O que fizemos?! — perguntou com a voz fraca, ainda sob o efeito
do choque.


—Não fizemos nada! Precisamos conversar, Lívia.
—Não temos o que conversar. Você está praticamente noivo e vai se
casar.


—Mas não estou casado!
—Pare, Humberto!
—Agora não é um bom momento, mas precisamos conversar.
—Quero sentar. Não estou bem.
—Espere. Agüenta firme. Se os conheço, eles não vão ficar parados
por muito tempo.
Eles silenciaram e continuaram assim por mais alguns instantes.
Ao ver Irene e o irmão levantarem novamente, Humberto a
conduziu até a mesa, fazendo-a sentar-se.



Acomodando-se, observando-a cabisbaixa e fugindo-lhe ao olhar,
não disse nada. Estava insatisfeito com a situação e não sabia o que
fazer.
Agora tinha certeza, e sua irmã estava com toda razão. Lívia sentia
algo por ele.
Alguns minutos se passaram e Irene retornou à mesa na companhia
de Rubens.
Rindo descontraidamente, ela pegou o braço de Humberto e o
puxou, pedindo para dançar.
Ele resolveu aceitar, afinal, ela não poderia percebê-lo diferente.
Rubens também tirou Lívia para dançar.
Humberto e Lívia sequer se olharam pelo resto da noite.
Era madrugada quando decidiram ir embora.
Enquanto Rubens animadamente, beijava o rosto de Irene e a
abraçava para se despedir, Humberto e Lívia se afastaram sem
qualquer cumprimento.


6
CONFIANDO EM UM AMIGO


Humberto precisou simular uma dor de cabeça como desculpa pelo
seu silêncio. Irene não contestou e, após deixá-la onde morava, ele
seguiu com Neide para sua casa.
Ao se ver sozinha com ele, a irmã não resistiu e comentou:
—Eu vi o que aconteceu. — Ele continuou quieto mesmo se
sentindo gelar e dominado por um torpor. Então ela continuou: —
Vocês se gostam. O que vão fazer?



—Pare com isso, Neide. Não vamos fazer nada.
—Eu estava quase ao lado de vocês e vi tudo. Se não há nada, por
que ela ficou daquele jeito? Por que reagiram daquela forma? — O
irmão nada respondeu e ela prosseguiu: — Você vai cometer um
erro se ficar noivo e ainda fazer a maior burrada se casando com a
Irene. Pense nisso!
Inesperadamente, Humberto parou o carro, virou-se para ela e falou
firme, quase aos gritos:

— E fazer o quê?! O que devo fazer, Neide?! O Rubens é
apaixonado por ela!!! Nunca o vi tão apegado em alguém! Qual foi a
outra namorada que ele levou em casa, hein?! Nenhuma! Aliás, se
você quer saber, ele está falando em noivado!!! E se não bastasse, o
Rubens quer fazer uma surpresa para a Lívia e lhe dar uma aliança
no dia do meu noivado!!! E o que eu posso fazer?!! Nunca senti isso
antes por alguém!!! Nunca fiquei tão inseguro!!! O que eu faço,
Neide?!! Vamos?!! Me diga!!! Gaguejando, assustada, ela murmurou
—Eu não sei o que dizer... eu...
—Então, pelo amor de Deus, pare de falar!!! Pare de me
pressionar!!! — Breve pausa e admitiu, mais calmo, porém enérgico:
— Estou apaixonado pela Lívia! Não é de hoje, não! Creio que foi
desde quando eu a vi pela primeira vez! Desde quando ela começou
trabalhar comigo! O que eu posso fazer?! — Depois de suspirar,
profundamente, falou de um modo mais brande mas parecendo
chateado: — Nas últimas semanas, vejo que o Rubens está diferente,
acho que se preocupa com ela e está mais responsável. Ele está
gostando mesmo dela. Veio até comentar comigo sobre ficarem
noivos e... Até falou em casamento.
—E você?!
—O que eu posso dizer, Neide?! Que amo a Lívia?! E o meu
compromisso com a Irene?! Vamos ficar noivos daqui a dois meses!
Ela está providenciando tudo! Hoje me falou que gostou de um
apartamento e que era para eu ir ver! Vamos nos casar!
—Vai se casar e ser infeliz, Humberto? — falou com piedade.

—O que eu posso fazer?! Chegar para o Rubens e dizer que gosto
da namorada dele?! Chegar para a Irene e pedir um tempo?!
—A Lívia gosta de você também! Percebe o quanto vocês dois serão
infelizes se não ficarem juntos?! Se não tentarem ficar juntos?! —
Diante do silêncio, ela continuou: — Vocês ficar juntos...
precisam conversar. Se se gostam mesmo... _ O que podemos
fazer?! Diga!
—Vão ter que enfrentar tudo e todos!!! Você nunca foi covarde,
Humberto!
—Não estou sendo covarde! Mas sinto como se estivesse traindo o
meu próprio irmão! Eu não posso fazer isso! — Alguns segundos e
continuou: — Suponhamos que eu e a Lívia fiquemos juntos. Como
vou olhar para o Rubens pelo resto da vida?! E a Irene? Ela gosta
muito de mim e... Estamos juntos há três anos!
—Como você vai olhar para você mesmo sabendo que gosta da sua
cunhada, mas está casado com outra?! E se daqui a algum tempo a
Lívia terminar com o Rubens?
—Eu não sei!!! Já pensei em tudo isso!!! — gritou. Mais brando,
explicou: — Estou confuso e indeciso. Preciso pensar, preciso de paz
e... Quero conversar com a Lívia. Agora, por favor, não fale mais
nesse assunto. Não me pressione. Pode ser?
Neide ofereceu leve sorriso, afagou-lhe o rosto com delicadeza e
desfechou:

— Desculpe por forçar a barra. Mas eu te conheço e nunca te vi
assim tão no limite, tão nervoso... Sei lá. Achei que precisava
conversar. É o seguinte: conta comigo, tá?! Eu te adoro! Faço tudo
por você!
Olhando-a nos olhos, ele sorriu levemente, afagou-lhe rapidamente
os cabelos como quem brinca e falou:
— Obrigado. Acho que foi bom ter falado sobre isso. Em seguida,
ligou o carro e se foram.

Mesmo chegando a sua casa de madrugada, Humberto não
conseguiu conciliar o sono.

***

Passava das dez horas da manhã quando Neide entroi no quarto
dos irmãos, onde somente Humberto estava deitado e quieto
parecendo aguardar por ela.

— E aí? Não dormiu? — perguntou ela.
— Não.
— Quer conversar? Sentando-se na cama, ele esfregou o rosto
lentamente.
Alinhou os cabelos, encarou-a e respondeu:
— Não quero falar sobre isso por enquanto. Principalmente aqui em
casa. Eu já te pedi isso.
A irmã acenou com a cabeça, concordando e falou:
— O Sérgio te procurou agora há pouco. A mãe avisou que você
estava dormindo.
Humberto se animou de imediato ao perguntar:
— Sabe o que ele queria?
— Não sei. Disse que não era nada importante e que conversaria
com você depois.
Levantando-se, o rapaz informou:
— Vou tomar um banho e ver se acabo com essa preguiça!
Ele barbeou-se, tomou um banho, vestiu-se e foi até a casa de
Sérgio, que insistiu para que entrasse.
— Não quero incomodar. Vim somente ver o que você queria
comigo.
_-Sente-se aí, vou pegar. — Não demorou e Sérgio retornou com
um volume nas mãos, dizendo: -Eu te procurei para emprestar esse
livro. Não deixei com sua mãe por não saber se você se incomodaria
ou não se alguém soubesse que está interessado no assunto. Veja,



este livro explica muito sobre alcoolismo. Tem linguagem fácil e
clara. Será bom saber mais a respeito.

— Obrigado, Sérgio! — Apreciando o volume entre as mãos,
Humberto comentou: — Você me ajudou muito naquele dia, com os
esclarecimentos que deu sobre alcoolismo. E lógico que já ouvi
muito a respeito, mas a forma como você explicou foi muito
interessante.
— Este livro vai te ajudar mais. Acredite.
— Ótimo! Vou ler sim. Depois te devolvo. Humberto ia se levantar
quando Sérgio perguntou:
— Como está indo? Tudo bem? Já marcaram o noivado?
— E... — respondeu confuso e desanimado. — Marcamos para
daqui a dois meses. A Irene está bem animada e, por ter mais
tempo, está cuidando do bufê e organizando tudo a seu gosto.
— Vão se casar logo?
Humberto o encarou, ficou bem sério e falou amargurado:
— Antes eu queria. Mas agora... Não sei mais. — Sérgio ficou em
silêncio, observando-o. Tentando disfarçar o nervoso, Humberto
prosseguiu: — Não nos conhecemos muito bem e você pode até
pensar que eu sou impulsivo, desequilibrado, mas, na verdade,
estou confuso e... Estou desesperado, Sérgio! — exclamou muito
apreensivo.
—Calma. Não vou pensar nada, pois não sei o que acontecendo. Se
quiser conversar, fique à vontade. Por você está assim?
—Eu não tenho amigo nem alguém com quem eu possa me abrir.
Tenho muitos colegas, conhecidos, mas alguém de confiança
mesmo, eu não tenho. Ontem conversei um pouco com a minha
irmã porque ela desconfiou do que está acontecendo e não tive
alternativa, ela me pressionou... Porém a Neide é minha irmã e...
muito novinha. Confio nela, mas... Preciso conversar a respeito
disso com alguém maduro, experiente, que não me julgue e saiba



entender. — Olhando-o firme, desabafou: — Nunca fiquei tão
desesperado como estou e não sei o que fazer.
—O que está acontecendo?
—Sabe a Lívia? — O outro acenou com a cabeça positivamente, e
Humberto contou: — Estou apaixonado por ela. — Alguns
segundos em que ficou esperando o outro se manifestar e
prosseguiu, pois o amigo não se expressou: — No começo pensei
que me atraí por ela por ser simpática, bonita, meiga... Foi uma
atração à primeira vista, entende? Depois a levei para trabalhar
comigo. Vamos todos os dias para o serviço. Trabalhamos juntos e...

— Sua voz embargou e, com um travo de amargura, forçou-se a
continuar: — Minha irmã percebeu que estou diferente e, de alguma
forma, desconfiou de tudo. Ontem nós saímos todos juntos. Na
danceteria acabei dançando com a Lívia e... — Ele contou o ocorrido
e por fim perguntou: — O que eu faço Sérgio?! Tenho vinte e nove
anos! Não sou nenhum adolescente, mas começo a agir como um!
Estou enlouquecendo! Não paro de pensar na Lívia, de me imaginar
ao lado dela! O que eu faço?!
_ Isso é você quem terá de decidir. Eu apenas posso tentar te ajudar.
_ Não tenho com quem conversar e só por me ouvir você já me
ajuda. Hoje cedo, quando levantei, eu estava decidido a procurá-la,
mas antes resolvi passar aqui para ver o que queria. Estou aflito! Ela
não merece o Rubens. Nessa madrugada mesmo, ele a levou
embora depois que saímos da danceteria, mas ele não chegou em
casa até agora. Onde acha que está se não com outra?


— E se o seu irmão estiver com ela? São namorados, não são?
Podem ter saído.
Imediatamente o outro reagiu, levantando-se:
— Não! Impossível! — Olhando para Sérgio, constrangeu-se da
reação inesperada e sentou, procurando se acalmar. — Desculpe.
Não sei o que me deu. Sabe, pensar nela e imaginar os dois juntos
faz com que eu perca o controle sobre mim! Não sei mais o que
fazer! O que você acha?

Sérgio suspirou fundo, pensou por alguns instantes, depois
explicou:
—Humberto, eu vou te falar como amigo e não como psicólogo, tá?
Não quero que confunda as coisas. — O outro ficou aguardando, e
ele prosseguiu bem calmo: — Eu sei o que é estar desesperado, não
ter com quem se abrir e não ver saída diante de uma situação tão
complexa. Eu sei exatamente o que é isso.
—Sabe mesmo?!
Olhando-o firme e sério, respondeu:


— Sei. Por isso, o que posso te aconselhar é: espera. Eu entendo que
é difícil, porém procure ficar mais calmo.
Somente mais tranqüilo poderá organizar as idéias e não agir
impulsivamente. Vejo que a situação é delicada e existem muitos
outros detalhes importantes que, eu sei, não teve tempo de me
contar.
—Eu sou um homem maduro, experiente, mas sintc como se tivesse
perdido a sanidade. Penso nela, e em toda essa situação, dia e noite.
Não tenho apetite nem ânimo para mais nada. Parece que vou
enlouquecer!
—Eu entendo. Você precisa por ordem naquilo que quer, como se
enumerasse as prioridades. O que quer fazer primeiro?
—Falar com a Lívia. O que você acha?!
—Se ela demonstrou carinho por você e em seguida teve medo do
que fez, é por que tem algum sentimento sim. Se somente você
sentisse algo por ela, seria diferente. No entanto, diante de tudo o
que aconteceu, realmente você e a Lívia precisam conversar.
—E se ela não me quiser?! Ou então disser que gosta de mim?!
Como fica o meu irmão?! Como vou olhar para ele?! Tem também a
Irene... Não consigo parar de pensar em tudo isso!
—O que tiver de acontecer, vai acontecer. Não fique planejando o
resultado de uma situação que não pode prever. Procure organizar


as suas idéias, a sua vida, mas organize o que você pode, pois
haverá coisas fora do seu controle. Depois você pensa nos outros.
—Você já esteve envolvido em situação tão difícil assim?
—Não igual a essa, mas com um grau de dificuldade semelhante. E
digo uma coisa: tudo terminou da forma como eu menos esperava.
Graças a Deus! — Nos olhos de Sérgio via-se


serenidade e um brilho indefinido quando se lembrou do assado e
contou: — Aconteceram algumas coisas e eu estava desesperado. Eu
fiz uma loucura e agi impensadamente quando me vi sem saída.
Não percebia o quanto eu estava sem fé e não confiei a Deus a
minha vida, o meu destino. Quando não se pode fazer nada, confia-
se no Pai! Como errei, Humberto! Como errei! Isso não faz muito
tempo e não há um dia sequer que não me lembro de como a falta
de fé me deixou insano, imprudente. Arrependo-me e me
envergonho. Por isso posso te aconselhar como amigo e até com um
grau de profissionalismo que me cabe. Temos de viver certas
experiências e não enlouquecer diante delas. Você me disse que era
espírita, então vou lembrá-lo de que nada acontece por acaso. Se
você vive isso, é por ter condições de superar essa situação.
—Às vezes sinto que não vou conseguir. Isso tudo está me afetando
até no trabalho. Até porque ela está lá o dia inteiro.
—Você vai conseguir. Um dia, assim como eu, vai olhar para tudo
isso e... pode não dar boas gargalhadas a respeito, mas ficará sereno
e verá o quanto todos os acontecimentos te amadureceram.
Humberto estava pensativo, parecendo mais calmo. Um barulho o
tirou da reflexão e as vozes de Débora e Rita invadiram o ambiente.


— Oi, Humberto! — cumprimentou Débora, beijando-o no rosto. –
Que surpresa!
Rita fez o mesmo e ele explicou:


— Vim aqui pegar um livro com o Sérgio. Já estou de saída!
— Não! Fique e almoce conosco! — convidou o amigo

— Não! De jeito nenhum. Preciso mesmo ir. Antes de se despedir,
Rita perguntou:
— E a Lívia está bem?
— Sim, está — respondeu ele.
—Vamos marcar um dia pra vocês irem lá em casa? — convidou
Rita. Sérgio e Débora se entreolharam, observando que a cunhada
havia se confundido, mas não tiveram como avisá-la, e ela ainda
falou: — Adorei a Lívia! Vocês dois formam um casal tão lindo! —
Sorriu ao perguntar: — Quando ficam noivos mesmo?!
—Bem... Não somos namorados e... — Humberto respondeu
vacilante, sentindo o rosto corar.
—Rita, ele vai ficar noivo da Irene. Você não a conhece. A Lívia é
namorada do irmão dele — avisou Débora.
O rosto de Rita avermelhou-se todo. Sorrindo sem graça, se
desculpou:
—Perdoe-me, por favor! Ai! Que vergonha! Mas eu poderia jurar
que... — Sem jeito, procurou corrigir a gafe: — Mesmo assim o
convite está feito! Você e sua noiva, a Lívia e o seu irmão podem ir
lá em casa. Será um prazer recebê-los.
—Claro. Obrigado — agradeceu Humberto com um sorriso
simpático.
Despedindo-se, ele se foi e Sérgio o acompanhou até o portão onde
avisou:
— Humberto, vá com calma e não fique constrangido em me
procurar, tá? Qualquer coisa estou aqui, e você tem o meu telefone.
Olha, eu sei o que é precisar conversar e não ter com quem. Conte
comigo!
— Obrigado, Sérgio. Foi muito bom desabafar um pouco e ouvir teu
conselho. Estou me sentindo melhor do que quando eu cheguei.
Naquele momento, o espírito Wilson, mentor de Sérgio, aproximou-
se e o envolveu, inspirando-o. Imediatamente, ele correspondeu aos
desejos de seu mentor e perguntou:
—Você não está indo ao centro, Humberto?

—Estou longe da casa espírita faz algum tempo. As exigências no
serviço me roubaram todo o tempo.
—Seria bom começar a freqüentar. Receber alguns passes e, talvez,
fazer um tratamento de assistência espiritual.
—Preciso pensar nisso, Sérgio.
—Não pense, cara! Vamos!
—Qual dia da semana vocês vão ao centro de que me falou?
—Na quinta-feira. Por causa do Mestrado que estou fazendo, fica
quase impossível eu ir outro dia.
—Acho que vou com vocês para conhecer esse centro. Posso?


—Claro! Será um prazer! Vamos te aguardar às sete e meia, na
quinta.
Humberto sorriu e concordou:


— Estarei aqui. — Num impulso, ele abraçou o amigo com força,
estapeando-lhe as costas. Depois sorriu e agradeceu: — Obrigado.
Você não sabe o que fez por mim.
Despediram-se e o amigo se foi.
Ao entrar, Sérgio pegou Rita pelos braços, chacoalhou, nu gostoso e
falou brincando:
—Você deu um fora que nem imagina! Foi trocar a noiva do rapaz!


— largou-a e, em seguida, abraçou-a de leve.
—Ai, Sérgio! Que furo! Eu poderia jurar que a Lívia era namorada
dele! Achei que eles formavam um casal tão bonitinho!
—É que ela veio aqui trazer uma roupinha para a nenê, lembra? A
Rita estava aqui e durante a conversa só falou no nome do
Humberto! — contou Débora. — Os gêmeos não deram sossego, e a
Rita não prestou atenção no que falamos.
Sérgio abraçou Débora pelas costas, beijou-lhe o rosto e, embalando-
a de um lado para outro, comentou rindo:
—Você sempre defendendo a nossa cunhada!
—Mas vem cá! Não conheço a outra moça nem falamos nela, e a
Lívia combina muito bem com o Humberto! Vocês não acham?!

—Fique quieta, Rita! — brincou Sérgio. — Você não tem idéia do
que está falando!
A conversa continuou alegre entre eles, mas Sérgio ficou pensativo.
Algo o preocupava a respeito de Humberto.
Por uma razão que desconhecia, naquele momento, gostava do
amigo e desejava ajudá-lo de alguma forma.


***

O resto do domingo foi um dia terrível para Humberto.
Inapetente, não quis almoçar apesar da insistência de sua mãe, que
até preparou algumas guloseimas ao gosto do filho. De nada
adiantou. O rapaz se recusava a comer.


Inquieto, decidiu ir até a casa de Irene sem avisá-la. Queria
conversar e analisar os seus sentimentos por ela.
Mas, ao chegar, para sua surpresa, ela não estava.
Irene não tinha pais vivos. Seus dois irmãos eram casados e
moravam em outro estado. Ela residia com uma tia viúva e seu
primo, em uma confortável residência, em um bairro longe da casa
de Humberto.
Ao entrar e conversar um pouco com dona Zélia, tia da moça,
Humberto disse que estava com dor de cabeça para justificar a sua
quietude. Ficou largado no sofá da sala, assistindo à televisão até
que adormeceu.
Era noite quando Irene chegou e se deparou com ele dormindo no
sofá. Dona Zélia logo contou cochichando:
—Ele não estava de conversa hoje.
—A senhora sabe por quê? — perguntou murmurando, curiosa e
preocupada.
—Falou que estava com dor de cabeça. Perguntei se queria algum
remédio, mas disse que não. Já tinha tomado. Não demorou e ele
dormiu.
—A que horas ele chegou?



—Ah! Acho que eram umas três e meia.
—A senhora disse onde eu estava?
—Não, né! Nem eu sabia! Só disse que você não estava, e ele não
perguntou.


Irene consultou o relógio verificando que passava das sete horas.


— Para ele não ficar chateado, vou dizer que cheguei aqui por volta
das quatro. Está bem?
— Irene! Olha o que você está fazendo! Onde ficou até agora?
—Dormi na casa da Cleide. Acordamos e ficamos conversando
sobre as lojas. Depois almoçamos e fiquei por lá. Não vi o tempo
passar. Se eu disser que estava resolvendo coisas da loja até agora, o
Humberto não vai gostar. Ultimamente ele anda reclamando e
dizendo que estou dando mais atenção ao meu trabalho do que a
ele.
—E não é verdade?!
—Não vai complicar as coisas entre nós. Por favor. Deixa o
Humberto dormindo. Vou tomar um banho e já volto.
Em seu quarto, Irene ligou para Rubens avisando do ocorrido e para
saber se ele tinha alguma novidade. Precisava ficar bem informada
e atuar de um jeito que ninguém desconfiasse. Ela estava
desconfiada, pois o namorado agia de modo estranho. Após ter sido
deixada em casa por Humberto, ela nem entrou. Ficou no aguardo
de Rubens que, deixou Lívia na residência dela, voltou para pegá-la
e saíram, conforme combinaram enquanto dançavam.
Eram quase oito da noite quando Humberto acordou e, por alguns
segundos, não reconheceu onde estava.
Irene se aproximou, beijou-o, afagou-lhe o rosto e disse sorrindo:
— Acorda, dorminhoco! Dormiu a tarde inteira. Já é noite!
Sentando-se no sofá, ele a olhou, ofereceu um sorriso e perguntou:
— Por que não me acordou?
— Estava num sono tão profundo... E a dor de cabeça, passou?

_ Passou um pouco. — Ela sentou-se ao seu lado e, após algum
tempo, ele perguntou: — Estou tão indisposto. Se importa se
ficarmos por aqui?
—Não, meu amor. Eu entendo.


—Onde você estava?
_ Na casa da Cleide. Queria ter combinado com você pra nós irmos
ver aquele apartamento que te falei. Eu adorei! Ele é lindo! Mas,
quando cheguei, minha tia disse que você tinha acabado de dormir
e estava com dor de cabeça. Fiquei com tanta pena de te acordar...
Mas não tem problema. Podemos fazer isso um outro dia.
Disse, beijando-o e lhe acariciando o rosto.


***

Como de costume, na manhã seguinte, Humberto foi até a casa de
Lívia pegá-la para irem trabalhar. Para sua surpresa, ela não o
esperava no portão como sempre fazia.
Estacionando o carro frente à residência, olhou para tentar ver
alguém e nada. Decidido, resolveu descer e tocar a campainha.
A porta foi aberta e uma senhora saiu sorrindo ao vê-lo:


— Bom dia, dona Diva! A Lívia já está pronta?
— Bom dia, Humberto! Mas que estranho! A minha filha saiu faz
uns quinze ou vinte minutos. Pensei que vocês já tivessem ido! —
Séria e já fora do portão, a mulher olhou de um lado e de outro da
rua e perguntou: — Mas cadê essa menina?!
Rapidamente, ele entendeu o que havia acontecido e comentou
dissimulando:

— Acho que ela pensou que eu não fosse trabalhar hoje pois tive
uma dor de cabeça muito forte.
— Mas ela deveria ter te ligado para confirmar!
— Talvez não quisesse incomodar por ser muito cedo Não se
preocupe. Onde é o ponto de ônibus mais perto?

—Descendo aqui, você vira à direita e logo vai ver.
—Obrigado! Até mais!
—Vai com Deus!
Apressadamente, Humberto entrou em seu carro e foi até o ponto
de ônibus, onde viu Lívia quase entrando em uma lotação.
Parando o veículo, saiu às pressas e, perto dela, segurou levemente
em seu braço dizendo:


— Espere! Venha comigo!
— Ai! Que susto! — exclamou, levando a mão ao peito. Afastando-a
da aglomeração que se fazia à porta da condução, ele pediu
calmamente:
— Vem comigo, por favor. — Vendo-a paralisada e sem reação, ele
aproveitou e a conduziu até o carro, fazendo-a entrar. Dando a
volta, sentou-se, olhou-a por alguns segundos, ligou o veículo e
saiu.
Depois de algum tempo, quebrando o silêncio, ele pegou o celular e
entregou a ela, pedindo:
— Ligue para a sua mãe e diga que eu a encontrei no ponto de
ônibus. Ela está preocupada.
Maquinalmente, Lívia atendeu ao pedido. Desligou o telefone e
segurou-o entre as mãos até chegarem ao serviço. Durante todo o
trajeto nada mais foi pronunciado.
Mo trabalho, Humberto tinha dificuldade para se concentrar, pois
se sentia profundamente abalado.
Como proceder naquela situação? O que dizer à Lívia? precisava ser
racional, mas não conseguia.
Apesar de aparentar-se firme e tranqüilo, estava inquieto, com mil
pensamentos em sua mente.
Era quase hora do almoço e ele não conseguia acalmar sua
ansiedade. Aliás, não fez nada naquela manhã.
Num impulso, pegou o telefone e ligou:



— Lívia, daria para vir até minha sala, por favor? Feito isso, ficou
ainda mais tenso enquanto aguardava. Como agir? Por onde
começar? E se ela não quisesse ouvi-lo? Poderia até pedir demissão!
Estava nervoso e bastante preocupado, apesar de não demonstrar.
Não demorou e Lívia adentrou a sua sala e não parecia tranqüila.
Diferente dele, ela demonstrava-se abalada e até trêmula.
Firme, disfarçando o que sentia, Humberto pediu, educadamente,
ao indicar com a mão:
—Sente-se. Fique à vontade, por favor. — Sem dizer nada, ela
obedeceu e ele perguntou: — O Ademir já te passou aquelas
despesas extras com serviços de manutenção?
—Sim. E já foram lançadas.
—Ótimo! Eu ia falar com o gerente sobre desenvolvermos um
sistema próprio da Contabilidade, de Contas a Pagar, para o
registro de informações complementares e outras atividades. O que
acha?
—É para você se manter informado sobre os custos operacionais?
—Também.
—Posso fazer um simulado. Então poderemos complementar com
alguns detalhes como: tipo de registros e informações que mais
deseja.
—Prepare alguma coisa nesse sentido. Depois vamos analisar.
Ela sentia o coração batendo rápido pelo nervosismo e, pouco à
vontade, demonstrava inquietação ao torcer as mãos e procurar
conter a respiração alterada. Sabia que ele a chamou ali por outro
motivo. Aquele tipo de pergunta, sugestão e trabalho não diziam
respeito às funções dele. Normalmente, seriam atividades próprias
de seu encarregado.
Humberto estava recostado na cadeira, trazendo o corpo largado
para trás. Ajeitou-se, colocou os cotovelos sobre a mesa, uniu as
mãos e perguntou ao encará-la firme:


— Tudo bem, Lívia?

Não havia como disfarçar a tensão. Num impulso, ela se pôs em pé
parecendo amedrontada, e avisou com a voz vacilante enquanto
caminhava, lentamente, em direção à porta:

— Se era só isso o que queria... Vou providenciar e... Humberto, no
entanto foi mais rápido. Levantou-se e foi
até a porta fechada, que segurou com a mão espalmada, ao perceber
que ela iria abri-la.
Lívia, que sempre pareceu controlada, ficou sem iniciativa.
Fugindo-lhe ao olhar, abaixou a cabeça, escondeu o rosto entre os
cabelos e perguntou quase sussurrando:
_ O que mais você quer?
Colocando-se frente a ela, Humberto avisou com voz pausada:
_ Precisamos conversar.
_ Não temos nada para conversar.
—Temos sim — ele afirmou em tom grave e baixo.
—O que aconteceu ontem foi um erro. Foi um engano. É melhor
esquecermos tudo e...
—E sofrermos?! — perguntou, interrompendo-a. — Não podemos
negar o que sentimos, Lívia.
Olhando-o firme, ela o encarou ao dizer:
—Você está praticamente noivo e vai se casar. Além disso, a Irene te
adora. E... Você conhece o seu irmão. Ele nos mata!
—De onde tirou essa idéia?!
—Foi o Rubens quem me disse isso. — Alguns instantes e contou:


— Você não sabe o que está acontecendo, Humberto! Não faz idéia!
— exclamou, demonstrando-se nervosa, mas sem se exaltar. — O
fato de me dar carona todos os dias já deixou o Rubens com ciúme
e... Eu propus vir de ônibus e metrô, mas ele não quer. Não queria
que você soubesse do ciúme doentio dele e... Não imagina como
brigou comigo por isso! Até já me agrediu! Sabia?!
—O quê?! — surpreendeu-se.

—Foi isso mesmo o que você ouviu! Ele quer que eu venha
trabalhar junto com você, mas me coage, constrange e até me agride
para eu jurar que não me interesso por você e você nao se interessa
por mim! Quer saber?! — perguntou quase em lágrimas. — Ele
falou que se desconfiar de alguma coisa, vai nos matar! — Perplexo,
Humberto não sabia o que dizer e ela pediu, parecendo implorar: —
Agora, me deixa sair para que a situação não piore, por favor!
—Não! — reagiu. — Precisamos conversar! Só que aqui não é o
lugar certo! Essa história não pode terminar assim. Eu não vou
deixar! Agora preciso saber de tudo! Entendeu?! Depois vamos
tomar uma decisão juntos!
—Não temos nada o que decidir!
—Ah! Temos sim! Agora, mais do que nunca, temos muito a fazer!
—Humberto, por favor...
—Você já fechou as notas na faculdade e pode faltar. Ao sairmos
daqui hoje, nós vamos conversar.
O coração de Lívia estava apertado e ela não sabia como reagir.
Achou-se dividida entre a vontade e o medo. Abaixando a cabeça,
constrangida, ela pediu:


— Preciso de um tempo. Vou pensar. Agora, por favor, eu tenho
que ir.
Humberto abriu-lhe a porta permitindo sua saída, mas não disse
nada. Estava incrédulo, inconformado. Não imaginava que seu
irmão seria capaz de tamanha covardia: agredir Lívia.
Um suor frio gotejou-lhe o rosto e ele se sentiu tonto, precisando
apoiar-se na parede para se equilibrar.
Aquilo tudo era um pesadelo. Não poderia ser verdade.
Angustiado, esperou aflito o dia passar.

7


REVELANDO SENTIMENTOS


O horário do expediente não havia se encerrado, mas o nervosismo
e a inquietude de Humberto o fizeram decidir ir embora. Após
arrumar suas coisas, pegou o telefone e chamou:
—Lívia, vamos?
—Mas...
Não a deixando terminar, interrompeu-a de imediato:


— Por favor, Lívia! Vamos agora!
— Está bem — murmurou. — Deixe-me só arrumar algumas coisas
aqui, certo?
— Eu te espero no carro. Por favor, não demore.
Ao desligar, foi para o estacionamento aguardá-la. Não demorou e
Lívia chegou.
Durante o trajeto, nenhuma palavra foi dita e, sem perguntar, ele
decidiu ir a um pub, que é um barzinho, um lugar elegante e
tranqüilo.
Acomodando-a em uma mesa, cuja poltrona a rodeava, tirou o
paletó, sentou-se a seu lado, afrouxou a gravata e dobrou os punhos
da camisa.
Com a chegada do garçom, pediram dois sucos e, logo que pôde,

comentou:
—Lívia, eu estou muito confuso com o que está aconte cendo.
Nunca senti isso antes. Depois que me disse que o meu irmão te
agrediu por minha causa, eu... Preciso saber exata mente o que está
acontecendo. Estou aflito, desesperado!...
—Eu não queria te contar — falou timidamente, abai xando o olhar.
Mesmo assim, criou forças e prosseguiu: — Eu e o Rubens
estávamos bem até você retornar da viagem e ar rumar um emprego
para mim. Assim que me ofereceu carona, conversei com ele que
achou ótimo e disse que seria melhor pois eu não teria de enfrentar


dificuldades com atrasos e condução lotada. Mas... com o passar dos
dias ele começou a m fazer perguntas estranhas.
Diante da pausa, Humberto quis saber:
—Que perguntas estranhas?
—Se você era mais agradável, mais educado do qu ele. Se eu
gostava da sua companhia e... Perguntava coisa demonstrando-se
cada vez mais inseguro e ciumento. A princípio, levei na
brincadeira. Achei que fosse passar, mas depois o assunto foi
ficando mais sério. Então, quando eu estava determinada a não ir
para o serviço junto com você, falei com ele e... — Lívia deteve as
palavras e abaixou o olhar.

— Ele o quê? — perguntou com voz grave e baixa. Tentando não se
emocionar, ela contou quase gaguejando:
— Eu nunca o vi daquele jeito. O Rubens havia bebido e... Ele me
segurou pelos braços, me chacoalhou e me deu um tapa... Me bateu
pela primeira vez! — Nesse momento, sua voz embargou e lágrimas
correram em sua face. Ela secou o rosto com as mãos e quase não
conseguia continuar. Humberto afagou-lhe o rosto e os cabelos, mas
Lívia, delicadamente, afastou-se do carinho. Depois de se recompor,
falou: -Fiquei assustada, com muito medo. No dia seguinte, ele me
pediu desculpas, me presenteou, disse que era apaixonado por mim
e estava com muito ciúme de você, pois ganha bem, sempre teve
êxito em tudo o que fazia... Disse ainda que a culpa de ter agido
daquela forma foi a bebida e... O Rubens falou tanta coisa...
demonstrava-se tão abalado e arrependido que decidi não terminar
com ele naquele dia. Eu estava indignada com o acontecido. Aquilo
era imperdoável! Prometi a mim mesma dar um tempo, talvez, uma
ou duas semanas e depois sim, terminaria tudo.
—Por que não me contou?!
—Eu me preocupava até com você, pelo fato de ter me arrumado
um emprego e me dar carona todos os dias. Afinal, fez isso por eu
ser namorada do seu irmão, não foi?

—Que absurdo! — falou inconformado. — Por que não terminou
com ele?!
Encarando-o com olhos tristes, Lívia contou-lhe com imensa dor em
seus sentimentos:


— Passado o tempo que te falei, tentei. Naquele dia, ele estava todo
amoroso, mas eu decidi que seria o fim. Então falei em dar um
tempo. O Rubens ficou transtornado, irreconhecível. Começou a
dizer que você era a razão de tudo e passamos a discutir. Ele me
bateu novamente e fez ameaças de todos os tipos. Disse que te
mataria se desconfiasse de você por qualquer motivo. E que nos
mataria se nos pegasse juntos. Fiquei desesperada e sem saber o que
fazer. Tentei ser firme, dizendo que ia terminar tudo entre nós e iria
contar pra todo mundo o que ele fez. Mas o Rubens estava
completamente fora de si Disse que me mataria se eu terminasse
com ele. Um choro a dominou.
Humberto estava incrédulo, confuso. Não conseguia organizar os
pensamentos. Perplexo e sem saber direito o que fazer, sentou-se
mais perto e a envolveu em um abraço.
Lívia escondeu o rosto em seu peito e chorou um pouco mais.
Após se refazer da forte emoção, ela sentou-se direito, mas não o
encarava. E ele não sabia como se comportar.
Não demorou muito e, tomando coragem, o rapaz perguntou
subitamente:
— Quando foi que percebeu que gostava de mim? Breve pausa e a
moça ergueu o olhar entristecido, admitindo com voz fraca:
—Quando o seu irmão começou a fazer as primeiras perguntas
sobre o que eu achava de você. Percebi que eu não conseguia tirá-lo
dos meus pensamentos e tive medo de dizer ao Rubens o que
realmente achava de você.
—Essa situação não pode continuar assim! Ele não pode te agredir!!!
—E o que eu posso fazer?!
—Tome uma atitude, Lívia! Ou, então, eu tomo!

—Não! Por favor, não faça nada! Eu te imploro! — pediu, voltando
a chorar. — Você não sabe como ele reage a isso. Estou desesperada
e tentando me afastar um pouco a cada dia!
—Eu vou falar com ele sim! — afirmou convicto.
—Pelo amor de Deus, Humberto! Não faça isso! Veja... —
Mostrando-lhe uma parte do pescoço, que sua blusa escondia, e


braço ela falou: — Ontem ele quase me estrangulou. Senti que
desmaiar e só então o Rubens parou de apertar minha garganta
Depois me segurou pelo braço e... Isso foi porque nós dois
dançamos. E ele não me viu te abraçar daquele jeito... ou então...
Humberto ficou nervoso e enfurecido diante de tudo, imaginando o
que havia acontecido.
Após esfregar o rosto num gesto aflitivo, passou as mãos pelos
cabelos e suspirou fundo.
Vendo uma lágrima rolar no rosto angelical de Lívia, ele não resistiu
e a envolveu num abraço, beijando-lhe a cabeça vez e outra
enquanto afagava-lhe as costas com carinho.
Ela estava confusa e com medo, por isso se deixou ficar em seus
braços, abraçando-o forte. Algum tempo depois, procurou forças
para se afastar do abraço, e ele, olhando-a firme, declarou-se,
sussurrando com voz grave:
—Eu te amo, Lívia! Você não pode imaginar como me sinto. Eu
adoro você!
—Não, Humberto! Não diga isso! — pediu com voz rouca e baixa.
—É verdade! Não posso negar! — afirmou com expressão
carinhosa. — Estou inconformado com tudo isso. Parece que...
nossas vidas estão trocadas e não sei o que fazer. Agora, minha
vontade é pegar o Rubens e quebrá-lo ao meio!
—Não! A situação ficará pior!
Segurando delicadamente em seu queixo e a olhando firme nos
olhos, pediu:



— Você precisa terminar com ele, Lívia! Isso tem que acabar! Não
vou suportar te ver maltratada! Não estou agüentando te ver ao
lado dele!
Com lágrimas brotando em seus olhos, confessou:
—Estou com muito medo dele! Você não imagina co é! Nunca me
senti assim e não sei o que fazer. Tenho medo que ele tome alguma
atitude passional!
—Você contou isso para alguém? Alguém sabe que ele te agride?
—Não. Só você.
—Precisa ir a uma delegacia dar queixa, pois...
—Não!!! Não vou de jeito nenhum!!!
—Somente isso vai detê-lo!
—Não, Humberto! Ele acaba comigo! O Rubens sempre diz que não
tem nada a perder e se eu não ficar com ele, não ficarei com mais
ninguém!
—Olha, aconteça o que acontecer, isso não pode continuar Você
precisa terminar com ele, assim como eu vou terminar tudo com a
Irene. Estou decidido, Lívia. — Delicada, ela o encaro tristonha e
sem nada comentar. Enternecido, Humberto se sentou mais perto,
colocou o braço em seus ombros, puxando-a carinhosamente para si
e disse: — Daremos um jeito nessa situação.
A moça estava profundamente triste e, sem reação, deixando-se
envolver.
Recostando o rosto em seu peito, ela permaneceu em silêncio como
se procurasse, no abraço reconfortante, um momento de paz.
Humberto, com todo o carinho, tocou-lhe o rosto, fazendo-a olhar
para ele e admirando-a por alguns segundos.
Não resistindo, ele aproximou-se com ternura para beijá-la nos
lábios, momento em que Lívia colocou a ponta dos dedos em sua
boca. Esquivando-se do beijo, sussurrou:


— Não, por favor. É o que desejo! É o que mais quero, porém não
posso! Isso não é certo.

Afastando-se do abraço, sentou-se direito, suspirou fundo e
silenciou sentindo seu coração batendo descompassado. Ele estava
envergonhado e mencionou:

— Desculpe-me, por favor. Séria, ela o encarou e disse:
—Humberto, não seja impulsivo. Não tome decisão precipitada. De
repente esse sentimento entre nós pode acabar e...
—O que precisa acabar é o seu namoro com o Rubens! Isso não
pode continuar!
—Porei um fim nisso. Não sei como, mas darei um jeito. Quero que
espere. Não termine com a Irene. Espere um pouco. Me dê um
tempo.
—Eu me resolvo com a Irene. Estou decidido. Quanto a te dar um
tempo... Não sei como vou agüentar... Mas se precisa disso, tudo
bem. — Em seguida, passou-lhe a mão, carinhosamente, pelo rosto
enquanto a olhava enternecido.
Paralisada, a jovem tentava resistir ao toque e, oferecendo meio
sorriso, pediu:
—Podemos ir?
—Sim, claro! — aceitou com voz branda, mas sentindo-se
contrariado, com o coração oprimido.
A caminho de casa, Humberto, gentil e afetuoso, solicitou com
brandura:
~ Por favor, eu gostaria que me contasse tudo que ocorresse. Preciso
saber, Lívia. Não estou em paz. -Ela nada disse, e o rapaz
perguntou: — Sua mãe ou alguém da sua família desconfia que o
Rubens a trata assim?


— Se alguém souber, vai contar para o meu pai e... Se ele souber, vai
me matar.
—Seu pai é agressivo também?
—Muito — murmurou constrangida. Humberto não se sentia bem.
Experimentava uma dor

no peito e os olhos ardendo pelos sentimentos reprimidos Não
podia acreditar no que acontecia. Estava aborrecido.
Ao parar o carro frente à casa da moça, eles se entreolharam com
carinho, até ela dizer:


— Obrigada. Amanhã estarei te esperando no horário de sempre.
— Estarei aqui — confirmou angustiado. Ela ia descendo do carro,
quando se virou, novamente
para o rapaz e contou:
— Eu pensei em pedir demissão, mas preciso do em prego e...
— Não faça isso! Eu não vou suportar! Extremamente triste, ela
nada argumentou, somente se despediu:
— Tchau. Até amanhã.
— Até...
Ao vê-la entrar em casa, amargurado, Humberto se foi.
***

Os primeiros dias, após a conversa que tiveram, estavam sendo bem

difíceis.
Apesar de estarem sempre juntos, Humberto e Lívia não tocaram
mais no assunto, a pedido dela. Eles mal conseguiam se encarar.
A quinta-feira chegou e, conforme o convite de Sérgio, Humberto
estava pronto para ir ao centro espírita. Na verdade ele desejava
conversar a respeito das últimas novidades com o amigo. Ignorava
que esse desejo vinha da influência de amigos espirituais os quais
insistiam para que tivesse orientação de uma pessoa equilibrada.
Chegando à casa espírita, Humberto conheceu os trabalhos lá
existentes, recebeu passes e se pôs a assistir à palestra.
Enquanto isso, no plano espiritual, nobre entidade zelava por seu
protegido. Era o espírito Nelson, mentor de Humberto que,
satisfeito, agradecia a Deus e a outros amigos espirituais a
oportunidade de estar ali com seu protegido.


—Nelson, agora será mais fácil dispensarmos os devidos cuidados a
Humberto através dos passes que ele se dispõe a receber. Energias
propícias às suas necessidades físicas e ao seu estado psíquico serão
ministradas através do médium passista para que se mantenha
equilibrado — comentou a nobre entidade Laryel, espírito amigo
que assessorava os demais.

—Obrigado — agradeceu o espírito Nelson. — Há muito venho
tentando influenciar meu querido Humberto a voltar a freqüentar,
assiduamente, uma casa de oração. Principalmente agora que sei o
quanto precisa de reposição fluídica compatível. Meus esforços não
foram suficientes e precisei da ajuda de companheiros que, por
meio do querido Sérgio, conseguiram trazer meu protegido até aqui.

— Sérgio nos ouve por estar em sintonia através da pre ce e em
equilíbrio. Além disso, prometeu ajudar Humberto quando o amigo
precisasse, na presente encarnação, e o fará — comentou o espírito
Wilson, mentor de Sérgio.
—Humberto precisará de forças. Somente assim poderá oferecer
sustentação a Lívia e se equilibrar. Meu principal trabalho para com
o meu pupilo começa agora e esta casa de oração servirá de abrigo e
local de refazimento para nós — tornou o espírito Nelson.
—Seria importante trazermos Lívia até aqui — considerou Wilson.
—Sua mentora, a nobre Alda, acompanha-a, hoje, bem de perto e
providencia isso — comentou novamente Nelson.
—Lívia começa a experimentar situações turbulentas
—comentou a nobre Laryel. — O digno companheiro Arlindo,
mentor de Rubens, contou-nos a respeito. Existem irmãos
espirituais sofredores que desejam, intensamente, prejudicar o
progresso de Rubens. Conseqüentemente, atacam assiduamente
Humberto e Lívia para que prejudiquem Rubens. Esses sofredores
interferem nos pensamentos desses encarnados mais próximos para
que se convençam de que eliminar Rubens é a forma de terem paz e
ficarem juntos. Querem que Humberto e Lívia, inconscientemente,

vinguem-se de Rubens usando seus sentimentos adormecidos do
passado.

— Tenho muita fé e haveremos de auxiliar esses nossos protegidos,
filhos queridos, com força, esperança e paz para que evoluam e
continuem seguindo o caminho de Deus.
Bondosa, com feição angelical e generosidade nas expressões, a
benfeitora Laryel propôs:
—Então vamos, Nelson. Precisamos prestar energias fluídicas aos
demais tarefeiros espirituais que se propõem a ajudar cada um de
nossos protegidos durante a palestra. Roguemos a Deus que, hoje,
nenhum encarnado quebre os laços de energias benéficas se
retirando do salão de palestra antes que ela termine, pois é nesse
período que verdadeiras cirurgias espirituais acontecem. É quando
se desligam os laços fluídicos com os espíritos enfermos ou
inferiores, retiram-se miasmas e se recompõe o corpo espiritual. O
salão de palestra da casa espírita, bem como o de toda casa de
oração, é especialmente preparado, na espiritualidade, nos dias de
palestras, por especialistas que se empenham em atender os ali
presentes. Quando o assistido se retira antecipadamente da palestra,
não esperando pelo final, ele se prejudica.
—Alguns pensam que basta somente receber o passe e ir embora.
Não sabem que o principal tratamento espiritual ocorre durante a
palestra. É como ouvi de um companheiro: o passe é só o curativo
para o machucado, mas é durante a palestra que a cirurgia é feita
para retirar a moléstia.
Um outro companheiro espiritual, que estava próximo, sorriu ao
dizer:


— Então, receber o passe e assistir à palestra, mas sair sem esperar o
encerramento, é o mesmo que se retirar da sala de operação com a
cirurgia aberta.
A nobre entidade Laryel olhou-o, sorriu e convidou:
— Vamos todos. Temos muito a fazer.

Ao saírem do centro espírita, Sérgio explicava a Humberto sobre

alguns trabalhos da casa.
Humberto se sentia mais leve, mais tranqüilo e parecia ter se
esquecido de seus problemas e dificuldades.
Aquele período que passou na casa espírita reavivou si fé,
transformando-o em alguém mais confiante e dono de si
Admirado, iluminou-se ao dizer:
—Gostei muito daqui. Acho que me encontrei. Vou passar a
freqüentar essa casa e, com o tempo, voltar aos trabalhos que
realizava antes.
—Que bom! Fico feliz em saber disso! — considerou Sérgio.
—Engraçado... eu conheci você quando se mudou, conversamos
algumas vezes, mas nunca nos aproximamos muito. Sabe, a
primeira vez que eu fui a sua casa senti uma coisa estranha, foi
como se o conhecesse de longa data. Tanto que, quando pediu
minha ajuda com aquele pneu, me senti tão satisfeito em poder
ajudar que você nem imagina! — riu. — Ao retornarmos, acabei
ficando tão à vontade conversando lá... Sinto uma afinidade muito
grande com vocês.
—Com certeza, somos amigos de longa data, pois eu e a Débora
sentimos o mesmo. Você viu?! Até o Tiago disse que te conhece de
algum lugar! — lembrou Sérgio.
—Sinto a mesma coisa em relação a ele. E a propósito, ele e a Rita
não vieram hoje?
—Os gêmeos contraíram uma virose e realmente ficou impossível
virem hoje. De certo estarão, aqui, na palestra de sábado. O meu
irmão e a Rita não ficam ausentes do centro de jeito nenhum. —
Débora havia parado para conversar com algumas amigas e se
demorava. O marido não queria apressá-la e perguntou: — Você
está com pressa, Humberto? A Débora está demorando.

Não! Deixe-a à vontade!


— Não tão à vontade! — riu. — Amanhã precisarei levantar bem
cedo e você também.
_ Você não tem aula hoje?
— Não. As terças e quintas-feiras, à noite, estou livre. _ Ao vê-lo
distraído, olhando ao redor, Sérgio não resistiu e perguntou: — E
você? Como está em relação à Lívia?
O amigo ofereceu meio sorriso. Gostou de ser questionado a
respeito. Queria falar sobre o assunto, mas temia parecer
inconveniente. Respirou e contou:
—Nós conversamos e... — Humberto relatou a Sérgio exatamente
tudo que havia acontecido. Por fim, concluiu: — Na terça, quando
íamos para o serviço, ela me pediu para não falarmos mais no
assunto até ela resolver o que precisa. Sérgio, eu não sei como agir
nem o que fazer. Ao mesmo tempo, estou desesperado. Os únicos
momentos de paz que encontrei desde que conversamos, foi aqui,
hoje. Você não imagina como me dói saber o que ela experimenta ao
lado do meu irmão! Como poderia ter idéia de que ele a agride?!
Fico aflito em pensar que estou amarrado! Não posso fazer nada!
Todas as alternativas em que penso poderão e trarão represálias.
Tenho medo de tomar alguma atitude da qual venha a me
arrepender depois. Nunca se sabe.
—E uma situação bem delicada. A meu ver, quem precisa tomar

uma atitude em relação ao Rubens é ela. Você só deverá apoiá-la.
—A Lívia está com muito medo dele, por isso creio que não vai
fazer nada. Eu notei que, nas últimas semanas, ela estava diferente,
não telefonava mais lá para casa procurando por ele, não fazia
comentários... Estava se distanciando, tentando se afastar dele,
querendo terminar.

— E a família dela? Os pais não a ajudariam?
—Jamais dariam qualquer apoio. O pai é um homem muito
ignorante, rígido em suas opiniões. Descobri que ele a agride
também. A mãe é uma mulher submissa e o irmão. Bem, esse se

parece com o pai. Ela não tem o amparo da família e é por essa
razão que não fará nada.
—Mas precisará reagir. Se não puser um basta nessa situação, o
quanto antes, tudo tenderá a piorar ainda mais. Você sabe. Eu, por
experiência, penso assim: se a pessoa não tomar determinada
atitude no momento certo, a vida indicará, obrigatoriamente, um
rumo para ela seguir e nem sempre o que for estabelecido será do
seu agrado.

— Em outras palavras, você quer dizer que...
— Se a Lívia continua se submetendo às exigências e aos maus
tratos do Rubens, certamente, a vida vai lhe impor situações piores
até ela arrumar uma maneira de se libertar de tudo. Analisando sob
a visão espiritual, eu arriscaria dizer que a Lívia, de alguma forma e
por algum motivo, se sente quase que na obrigação de permanecer
ao lado do seu irmão e se subjugar, se deixar dominar por ele. E
possível que, por razões desconhecidas, hoje, ela se sinta culpada
pelo Rubens ser como é, por agir como age e acredita que fará algo
terrível, como matar um de vocês dois ou os dois, caso ela se afaste
dele. Parece que ela precisa reparar ou acertar débitos do passado.
Mas não é assim que as coisas funcionam. Você deve ajudar e
amparar alguém ficando ao lado só até onde dá, no limite de seu
bem-estar, de sua harmonia. Quando a felicidade, a sua paz estão
comprometidas, tem que se pensar muito, principalmente, se o
envolvimento, as ligações afetivas e materiais não estão firmes. Eles
não estão casados, não têm filhos... Ela está vendo, com clareza, que
ele se mostra cada vez menos respeitoso e isso vai piorar com o
passar do tempo.
—Quando o Rubens está em casa, principalmente junto com ela,
vem se exibindo mudado, afetuoso, parece até mais responsável.
Veio falando em noivado e... Por quê?
—Para que, caso ela resolva contar sobre as agressões, ninguém
acredite. Isso ele faz de forma inconsciente. É auto-proteção.
—O que eu posso fazer, Sérgio? — pediu, parecendo suplicar.

—Orientá-la. Se ela não se sente segura com a família, se não
encontra apoio com os familiares, precisará encontrar aprovação no
que vai fazer. Essa aprovação é você quem vai dar, ficando ao lado
dela. A Lívia precisa se sentir amparada e forte para ganhar
liberdade.
Breve pausa e, após refletir um pouco, Humberto indagou:

—Será que devo terminar com a Irene ou esperar um pouco?
—Você deve se perguntar o seguinte: independente de ter ou não a
Lívia ao seu lado, eu quero continuar com esse compromisso com a
Irene ou não?
O outro o olhou surpreso, mesmo assim respondeu: Gosto da Irene,
mas... na verdade, preferiria estar livre de qualquer compromisso
com ela. Sinto certo medo e envergonhado de terminar tudo. São
mais de três anos juntos com planos de casamento e muitos
sonhos...

— E vai deixar esses sonhos se transformarem em p sadelos?! O que
será melhor para vocês dois? Não precisa me responder nada agora,
Humberto. Seria bom refletir bem sobre isso e se decidir. Veja, você
precisa separar as coisas. O seu compromisso e os seus sentimentos
com a Irene são uma coisa A situação referente ao problema da
Lívia é outra coisa.
Humberto deu meio sorriso e respondeu:
— Entendi.
A aproximação de Débora interrompeu o assunto e eles mudaram o
rumo da conversa.
Apesar de não ter resolvido os seus problemas, Humberto se sentia
bem melhor do que antes. A assistência espiritual recebida
revigorou-lhe o ânimo e a fé lhe trouxe um pouco de paz.

8


GRAVIDEZ DE IRENE


Os dias corriam rapidamente.
Humberto procurava uma maneira de romper o namoro com Irene.
Afinal, faltava pouco para a data do noivado.
O rapaz sabia o que queria, mas faltava-lhe coragem, pois Irene
sempre estava animada e às voltas com os preparativos para a festa,
mal lhe dava atenção.
Havia dias em que ele não dormia direito e se alimentava mal.
No serviço, não mantinha atenção necessária e precisava se esforçar
muito para não cometer erros por conta de preocupações
particulares.
Quando se achava com Lívia, limitava-se a perguntar se ela se
encontrava bem. Respeitando sua vontade, não questionava sobre
sua decisão a respeito de seu namoro com Rubens. Não queria
pressioná-la. Decidiu, primeiro, resolver sua situação com Irene e só
depois se empenhar em apoiar Lívia.
Naquela manhã chuvosa de domingo, Humberto passou as
primeiras horas sentado na mureta da área de sua casa Pensando
sobre ele e Irene. Daquele dia não poderia passar. Terminaria tudo
com ela.


O som do telefone tirou-o das reflexões. Mesmo assim não deu
importância, pois percebeu que Neide foi atendê-lo Não demorou
muito e a irmã foi chamá-lo:
—Humberto?! É pra você!
—Quem é?! — indagou, indo atender.
—É o Sérgio — tornou a irmã.
—Pronto! Sérgio?
—Oi, Humberto! Tudo bem?
—Tudo! E vocês?



— Estamos bem. Sabe, hoje é o aniversário da Débora e eu gostaria
de fazer uma surpresa. Então estou te convidando, e a quem mais
quiser trazer, para vir aqui em casa à tardinha. Não é nada especial.
Só meu irmão e um grupo de amigos como o João e a esposa, o
Nivaldo, o doutor Édison, dona Antónia... A Rita vai ligar para a
Lívia, mas não sei se ela vem.
—Puxa! Hoje?! — ficou pensativo.
—Se tiver outros planos, tudo bem! Não se preocupe.
—Eu não sabia que era aniversário dela... Não comprei nada. Ficarei
sem graça e...
—Ora! Não se preocupe com isso! Sua presença é mais importante!
— Obrigado! — riu. — Se é assim, eu irei. É à tardinha?
— É sim. Lá pelas cinco! Por ser domingo, não seria bom deixar
para muito tarde.
—Estarei aí!
—Estou te aguardando!
—Até mais!
Humberto viu seus planos abalados, porém não poderia fazer uma
desfeita aos amigos. Decidiu que iria à casa de Sérgio e depois nada
o impediria de, ao retornar, falar com a Irene.
No decorrer do dia, Irene telefonou dizendo que, devido ao
movimento inesperado de clientes nas lojas, iria para a casa dele
bem mais tarde.
De certa forma, Humberto ficou aliviado. Não queria levá-la à casa
de Sérgio.
Mais tarde, recebido com nítida alegria pelo amigo, sentiu-se
satisfeito.
Após cumprimentar Débora, beijando-a e abraçando-a com carinho,
avisou:
— Fico devendo o seu presente.
— Não se importe com isso. Venha! Fique à vontade! Depois que
cumprimentou os presentes, ele se surpreendeu quando viu Lívia
sentada ao lado de Tiago.

Humberto se aproximou deles, cumprimentou-os e Tiago pediu em
seguida:

— Sente-se aqui! Eu preciso socorrer a Rita com as crianças! Com
licença! — disse, saindo às pressas.
Acomodando-se ao lado da moça, ele sorriu e perguntou:
— E aí? Tudo bem?
O rosto de Lívia iluminou-se com um sorriso doce e ela respondeu:
—Tudo bem! E você?
—Levando a vida. — Alguns segundos e indagou: — E ° Rubens?


Não veio?


—Não. Ele foi chamado para atender uma emergência lá na
empresa.
—Sei...


—E a Irene? — tornou ela.
—As lojas abrem aos domingos e ela ligou dizendo que está com
muito movimento. — Breve pausa e comentou: — De certa forma,
isso foi bom. Primeiro porque eu não queria trazê-la aqui e
segundo, porque eu preciso esfriar minha cabeça um pouco. Vou
tomar uma decisão bem importante hoje.
—Qual? — perguntou curiosa, mas de modo simples.
—Vou terminar tudo com a Irene.


— Terminar?! — surpreendeu-se. Humberto a olhou nos olhos de
um modo diferente, sério e decidido.
— Sim, Lívia. Vou terminar tudo. Não posso continuar
comprometido com ela se desejo estar com outra pessoa. Isso não é
certo. Há um momento na vida em que é preciso ter coragem para
procurar a felicidade e é isso o que estou fazendo.
Abaixando a cabeça, entristecida, murmurou:
—Gostaria de poder fazer o mesmo.
—Por que não faz? — perguntou com entonação piedosa na voz.
—A situação é bem diferente.

—Você precisa reagir e deixar de ser submissa.
—E correr o risco de vê-lo cometer um crime passional?! Hoje em
dia, é comum abrirmos os jornais e lermos sobre crimes motivados
pela paixão. Tenho medo de ser mais um caso. Tenho motivos
suficientes para não me arriscar.
—E continuará sofrendo?! Até quando?!
—Qual alternativa eu tenho, Humberto?! — sussurrou, encarando-

o.
— Diga ao Rubens que me contou tudo. Eu estarei perto e aí você
diz que está tudo acabado. — Ela abaixou os belos olhos castanhos e
não respondeu. Diante de seu silêncio, ele propôs: — Iremos à
delegacia prestar queixa. Serei testemunha de ver as lesões no seu
pescoço e no braço.
Ao olhar as mãos de Lívia, percebeu-as trêmulas segurando um
copo de refrigerante.
A moça engoliu seco, suspirou fundo e murmurou, tentando
esconder o nervosismo:
—Humberto, eu estou apavorada e você não entende! O Rubens não
pode sonhar com o que estamos falando! Às vezes, tenho vontade
de sumir para fugir dessa situação. Tudo isso está me deixando
desesperada. Você não percebeu que não consigo mais me
concentrar direito nem no serviço e cometi erros infantis? Não estou
dormindo direito! Não paro de pensar em tudo isso! Não tenho paz!
— Alguns segundos e prosseguiu: — Não sei o que fazer e você,
quando me pressiona, faz com que me sinta pior.
—Não estou te pressionando. Estou procurando orientá-la. Veja, se
não tomar uma atitude as coisas vão piorar.
Ela não o encarava, escondendo o rosto entre os cabelos longos.
Após breve pausa, tomou fôlego e ameaçou:
— Vamos parar com esse assunto ou eu vou embora!
Humberto se deu por vencido e não disse mais nada a
respeito.

A aproximação de Sérgio, que lhes servia salgadinhos, interrompeu

o momento tenso e começaram a falar de coisas mais agradáveis e
corriqueiras.
***

Mais tarde, ao sair da casa de Sérgio, Humberto e Lívia
caminharam, lado a lado, em total silêncio até chegarem onde o
rapaz morava.
Após entrarem, Neide chamou a moça para ir até o seu quarto a fim
de conversarem, pois Rubens ainda não havia chegado.
Não demorou, Humberto pegou as chaves de seu carro e saiu.
Havia decidido não esperar por Irene em sua casa, pois o que tinha
para conversar deveria ser em outro lugar.
Chegando ao shopping, em uma das lojas onde a namorada deveria
ficar, ele não a encontrou.
Cleide, amiga e sócia de Irene, recebeu-o sem jeito. Tentando
disfarçar o nervosismo, não sabia o que falar.
Devido ao comportamento estranho da moça, Humberto ficou
desconfiado. Cleide parecia inquieta demais, principalmente
quando ele pediu para ligar para as outras lojas a fim de saber se
Irene estava lá.
—Ela não está nas outras lojas e o celular cai na caixa postal. Talvez
esteja vindo pra cá. Quem sabe?! — argumentou Cleide,
preocupada.
—É estranho. Estou tentando falar com ela desde quando saí de
casa — reclamou Humberto insatisfeito. Sério, quase sisudo, ainda
falou: — Nos últimos tempos a Irene vem agindo bem diferente.
Alguma coisa está acontecendo! Hoje ela me disse que havia uma
movimentação nas lojas e não estou vendo nada!

Cleide o fitava com olhos arregalados, aparentando muita
apreensão. Não sabia o que falar.


Em seu íntimo, ela acreditava que Humberto não merecia ser
enganado daquele jeito por Rubens e Irene. Desejava que ele
descobrisse a traição de alguma forma. Pensou até em lhe contar
tudo, mas não podia.
Nada satisfeito, o rapaz decidiu esperar e permaneceu ali, em
silêncio, andando de um lado para outro, vagarosamente.
Algum tempo depois e Irene chegou de braços dados com Rubens.
Caminhavam pelo corredor rente à vitrine por onde, de dentro da
loja, podiam ser vistos. Chamavam a atenção por rirem alto.
Pareciam bem alegres quando ela, segurando firme em seu braço,
acariciou-lhe o rosto por algo que foi dito, afagou-lhe o braço ao
mesmo tempo em que se reclinava em seu ombro de um jeito
carinhoso, continuando encostada nele.
Humberto parou e ficou aguardando que entrassem, mas Cleide,
apreensiva e nervosa, esfregando as mãos de um modo aflitivo,
dirigiu-se até a porta para recebê-los e anunciar o quanto antes:


— Nossa! Como você demorou! O Humberto está aqui, te
esperando já faz tempo!
Irene e Rubens sentiram-se gelar. Não demorou e ela foi à direção
do namorado, estampando largo sorriso no rosto.
Bem perto, segurou-lhe a face com um jeito carinhoso e o beijou
dizendo:
— Que bom vê-lo aqui! Estou morrendo de saudades! Humberto
ficou parado, concatenando as idéias e não
correspondeu ao beijo rápido.
Aproximando-se, tentando agir naturalmente, Rubens sorriu e
perguntou:


— E aí? Tudo bem?
Humberto percebeu que havia algo errado naquela situação.
O que Irene e Rubens faziam juntos? Por que estavam de braços
dados daquela forma? Por qual razão ela o acariciou daquele jeito?

Imediatamente sentiu-se esquentar. Franzindo o semblante, com
voz grave e moderada, demonstrando-se insatisfeito, questionou de
imediato:

— O que está acontecendo aqui?!
—Como assim?! — perguntou Irene, desfazendo o sorriso e
controlando seu nervosismo.
—O que o Rubens está fazendo aqui?! O que significa essa cena de
estarem de braços dados e com você recostada no ombro dele?!
—Ei, Humberto! O que você quer dizer com isso?! — indagou o
irmão com sorriso cínico para disfarçar.
—Nós nos encontramos no estacionamento e eu estava contando ao
seu irmão o que me aconteceu hoje — Irene explicou, tentando
pensar rapidamente em algo que justificasse o seu comportamento.
Observando que as vendedoras, bem como Cleide, olhavam atentas
para eles, Humberto, bastante nervoso, propôs firme, quase
exigindo:
— Vamos sair daqui! Precisamos conversar!
Saindo logo atrás dele, Irene acelerou os passos e Rubens os seguiu.
Haviam chegado ao estacionamento quando ela pediu aflita:
— Humberto, espere!
Ele se virou e, irritado, perguntou de imediato:
—O que significou aquilo que eu acabei de ver?!!
—Nada!!! Não estava acontecendo nada!!! — desesperou-se ela para
se justificar.
—Espere aí, Humberto! — pediu o irmão hipócrita, representando
sem escrúpulos. — Eu e a Irene nos encontramos aqui no
estacionamento. Fomos para a loja e ela me contava sobre a surpresa
que quer fazer para você no dia do noivado. Falávamos como iria
reagir, só isso!
Humberto sentia-se confuso, atordoado. Sua vontade era de agredir
o seu irmão, não só por aquele momento, mas por Lívia. Ele estava
muito nervoso e quase dominado por uma fúria, que não conseguia
controlar.

Nesse momento, na espiritualidade, seu mentor, Nelson, envolveu-

o de modo amável, pedindo-lhe:
— Calma. Calma, Humberto. Se reagir, perderá a razão e a
dignidade. O melhor é manter a calma.
Ao mesmo tempo, Irene começou a chorar e não parava de falar,
tentando explicar o ocorrido.
Suspirando fundo, de modo a entonar austeridade na voz,
Humberto determinou:
—Vá embora, Rubens! Podemos conversar depois!
—Não! Você não...
—Vá embora!!! — gritou firme, enfurecido.
—Rubens, por favor, vá — suplicou Irene chorando, de modo
humilde, parecendo implorar. — Eu converso com ele.
Após ver o irmão ir embora, voltou-se para ela e avisou:


— Bem, Irene, é o seguinte — falou sério, com voz grave,
demonstrando-se sob controle. — Há dias venho pensando muito
e... Não é só por percebê-la diferente, com um comportamento que
me incomoda, mas, principalmente, pelos meus sentimentos que
não são mais os mesmos. Eu vim aqui hoje para terminar tudo entre
nós. — Ela ficou paralisada, em choque. Diante do longo silêncio, o
rapaz continuou: — Vim aqui decidido a isso. Não foi só pela cena
desagradável e duvidosa que eu presenciei e... Em outras
circunstâncias, você me deveria satisfações, mas não é o caso.
Irene, com lágrimas correndo na face pálida, murmurou com voz
vacilante e mãos trêmulas:
— Humberto, você não pode fazer isso comigo. Eu te
amo...
— Não sinto por você o mesmo que antes. Não podemos continuar
juntos. Acabou.
Nesse instante, sentiu-se aliviado, tranqüilo. Parecia que um peso
havia saído de suas costas.

—Não! Não pode ser! Tudo está pronto para o nosso noivado!
Estamos começando a procurar apartamento! Não! Isso não é
verdade!
—É verdade, Irene. Talvez seja difícil aceitar, mas é a verdade.
Desculpe-me. Não tenho mais nada a dizer e... Bem, depois vemos o
que será preciso devolver e...


— Não podemos terminar! Olhando-a firme, falou calmo e
friamente:
— Não há nada que me impeça. Tudo acabou. Com o tempo você
aceitará a idéia. — Breve pausa e considerou: — A gente ainda vai
se encontrar, talvez, tenhamos alguma coisa para acertar, mas por
enquanto é isso. Agora não temos mais nada para conversar. Eu vou
indo. Tchau.
Irene havia parado de chorar. Estava séria e, num grito, chamou-o
ao vê-lo ir:
— Humberto, espera! — Ele se virou e, após ela se aproximar, disse:
— Ainda temos o que conversar. — Ele ficou parado, esperando, e a
moça prosseguiu: — Você não perguntou qual era a surpresa que eu
estava preparando para o dia do nosso noivado, mas eu vou te
contar assim mesmo. — Em seguida, falou: — Eu estava muito feliz
e não agüentei guardar esse segredo só para mim. Por isso eu contei
ao Rubens e pedi segredo, pois eu ia te contar só no dia do nosso
noivado, mas...
—E o que é? — perguntou calmo.
—Estou grávida.
Humberto sentiu-se mal. Não acreditava no que ouvia.
Imediatamente perguntou, pasmado, incrédulo:
— O que você disse?!
— Que estou esperando um filho seu — contou calma, encarando-o
firme. — Há mais de um mês eu soube, mas não quis te contar.
Preferi fazer surpresa e pensei que o dia do noivado seria ideal.
Então... Eu não cabia em mim de tanta felicidade e resolvi contar
para o Rubens. Por isso nos viu alegre, rindo... Falávamos da sua

reação, pois você adora crianças e sempre comentou sobre ter
filhos... Queríamos ver a sua cara, mas...
Humberto estava transtornado, não sabia o que fazer. Nunca
pensou que uma notícia como essa o faria tão infeliz.


— Não sei o que dizer... Não esperava por isso — falou,
expressando-se nervoso.
Aproximando-se, com lágrimas rolando em sua face, Irene segurou
em seu braço acariciando-o. Olhou-o como se implorasse sua
atenção e argumentou com voz doce:
— Isso é uma fase, Humberto. Vai passar. Nós nos amamos e... Esse
filho vai nos completar.
Atordoado, ele a afastou de si e pediu:
— Por favor, espere. Não estou me sentindo bem. Eu preciso ir.
Preciso pensar.
Dizendo isso, ele se virou e se foi.
Ao vê-lo entrar no carro, Irene ficou irritada. Voltou para a loja
onde encontrou Cleide fechando o estabelecimento.
—O que aconteceu?!! O que foi que ele falou?!! — perguntou a
amiga.
—Abra a porta!!! Preciso da minha bolsa!!! Preciso telefonar!!! —
quase gritou. Entrando as pressas, Irene pegou o telefone e ligou
para Rubens. Quando ele atendeu, ela falou afoita: — Escuta! Preste
bem atenção! O Humberto quis terminar comigo. Eu disse que nós
estávamos alegres e rindo porque te contei que estou grávida. Essa
era a surpresa que eu iria contar para ele no dia do noivado.
Entendeu?! Nós ríamos imaginando como seria a reação dele!
—E está?!!! Você está grávida?!!!
—Isso não importa! Mas se ele for falar com você, é o que vai
confirmar!
—Você está brincando!!!
—Não! Não estou! — avisou irritada. — Tudo estava marcado para
amanhã. Eu ia tirar amanhã. Mas precisei me valer dessa situação

para ele não terminar comigo. As coisas não poderiam ficar daquele
jeito.

— Irene, quem é o pai?! Você sabe?!
— Agora preciso desligar. A loja precisa ser fechada. Após desligar,
viu Cleide parada diante dela. A amiga
ficou perplexa, incrédula e perguntou:
—Por isso você não ia vir amanhã?! Meu Deus, Irene!!! Você ia fazer
um aborto?!!!
—Por favor, Cleide! Não me deixe mais nervosa! Não quero ficar
mais irritada! Agora, vamos!
Elas fecharam a loja e foram juntas para o estacionamento.
Enquanto dirigia, quase automaticamente, Irene, em lágrimas,
comentou:
—Eu não sabia o que fazer. Sempre me cuidei, tomei remédio! Que
inferno!!! — esmurrou o volante. — Não sei o que deu errado!!!
—Calma. Não fique assim. Ainda bem que não tirou. Poderia ficar
com remorso pelo resto da vida e...
—Ainda bem?!! — falou irônica. — Como você pode dizer isso?! Eu
não queria!!! Não quero!!! Mas não tive alternativa! O Humberto ia
terminar comigo!
Após alguns minutos, Cleide perguntou com delicadeza na
entonação da voz:
— Quando você me disse que estava atrasado, o Humberto
tinha acabado de chegar de viagem. Não daria tempo de você
engravidar dele. Vai contar ao Rubens que o filho é dele?
— Não!!! Ficou louca?!! — Secando o rosto com as mãos ao pode
saber. Eu não sei como vou fazer... Preciso dar um jeito para essa
criança nascer prematura ou o Humberto vai desconfiar.
—O Humberto não pode te acompanhar a nenhum exame, a
nenhum pré-natal. — Alguns instantes e perguntou: — Já pensou na
possibilidade de ele não querer casar com você?
—Se isso acontecer, eu tiro! Tiro mesmo! — respondeu amargurada,
rancorosa e com impiedade na voz.

A amiga sentiu-se mal ao ouvir aquilo. Não concordava com o que a
outra fazia, mas não sabia como agir.

***

Sentado na área da frente de sua casa, Rubens não conseguia
disfarçar seu nervosismo.
Lívia estava acomodada em uma poltrona de vime e permanecia
quieta e insatisfeita.
—O que você tem? — perguntou ele.
—Nada — argumentou de imediato. — E tarde. Amanhã tenho de
levantar cedo. Está na hora de eu ir. — Obser-vando-o melhor, quis
saber: — O que você tem, Rubens? Está tão inquieto.
—Estou pensando em algumas coisas do serviço. Estou nervoso. Eu,
pelo menos tenho um motivo para estar assim. E você? Faz algum
tempo que está diferente. Você não é mais a mesma. — Lívia se
levantou, apoiou-se na mureta da área e ficou olhando a rua sem
dizer nada. Aproximando-se repentinamente, Rubens pegou firme
em seu braço, apertando-o, ao inquirir com voz baixa entre os
dentes: — Estou falando com você! Não me dê as costas!


—Solta o meu braço! Está me machucando! — exigiu, fazendo um
movimento para que ele a soltasse.
—Por que está reagindo assim, hein?!
Lívia, mesmo amedrontada, suspirou fundo, encarou-o e, apesar da
voz estremecida, falou firme:
—Você não tem o direito de me tratar assim! Chega!
—O que aconteceu?! Ficou valente de repente! — exclamou com um
tom de ironia.
—Chega, Rubens! Já basta! Está na hora de acabar com isso! Não
agüento mais seus maus tratos! Não dá mais para continuarmos
juntos!



Nem Lívia acreditou em si mesma ao dizer aquilo. Enfurecido, ele
foi à sua direção. Agarrou-a pelos braços e a chacoalhou enquanto
perguntava:
—O que deu em você?!
—Me solta!!! — exigiu austera. — Você não vai mais me tratar
assim! Acabou! Chega! Está tudo terminado entre nós e...
Sem que a jovem esperasse, Rubens a agrediu fortemente, com um
tapa no rosto.
Ela quase caiu, mas ergueu o tronco, com a mão na face que
queimava, e gritou:


— Covarde!!!
Rubens, parecendo insano, caminhou até Lívia, segurou-a pelo
pescoço e começou a apertá-lo.
Na espiritualidade, seu mentor o envolvia com energias calmantes,
mas essas eram incompatíveis às que ele criava, por isso recebia de
companheiros inferiores fluidos mais pesados, pois eles tinham
mais influência sobre ele que, por índole, desejava agir de forma
contrária às promessas reencarnatórias feitas.
Lívia gritou.
Foi quando o senhor Leopoldo, mesmo sob o efeito do álcool,
chegou em seu socorro.
Agarrando o filho pela camisa e pelo braço, o homem quase não
tinha forças para separá-lo da jovem.
Neide chegou e também segurou Rubens, que parecia insano.
No meio da briga, Rubens empurrou o seu pai, que se
desequilibrou, caiu e bateu fortemente a cabeça no chão. Somente
assim o filho parou e se deu conta do que tinha acontecido.
O senhor Leopoldo desmaiou.
Dona Aurora se aproximou às pressas e junto com Neide foi
ampará-lo.
Aproveitando-se da confusão, Lívia se livrou do ataque correndo e
foi embora.



O senhor Leopoldo foi levado ao hospital por Rubens e precisou de
alguns pontos no ferimento, resultado da pancada.
O filho, para não se ver em complicações, mentiu durante o
atendimento hospitalar dizendo que o seu pai, embriagado,
escorregou sozinho e caiu.
Ao retornarem, encontraram com Humberto, preocupado, à espera
de notícias. Quando ele chegou, não havia ninguém em casa e o
celular de Neide apresentava-se fora de área.
O senhor Leopoldo estava em seu quarto descansando enquanto a
esposa foi até a casa de Débora cumprimentá-la pelo aniversário e
estava demorando.
Rubens tomava um banho e Humberto sabia de detalhes do
acontecido através da irmã:


—Então foi isso o que aconteceu! — contou Neide.
—E a Lívia?! — quis saber nervoso.
—Não sei. Quando o pai ficou desmaiado e a mãe chegou e
começou a gritar, ela sumiu. No lugar dela eu também teria ido
embora.
—Vou até a casa dela — avisou Humberto num impulso.
Rubens chegou à cozinha sem que percebessem e perguntou,
agressivamente, após ouvi-lo:


— Você vai até a casa de quem?!!! Encarando-o,
Humberto afirmou:
— Vou até a casa da Lívia saber como ela está. Por quê?!
— De que te interessa saber como ela está?! — perguntou
Rubens agressivo. — O que você tem a ver com isso?! O problema é
entre ela e eu!!!
— Você é um canalha!!! — gritou Humberto.
— E você?!! Quem você pensa que é para falar assim comigo?!!
Pensa que só por que ganha bem, tem um carrão, tem dinheiro até
para comprar apartamento à vista, vai dar uma de bom pra cima de
mim?!! Vai se meter com a sua vida!!!
— Safado!!!

Espíritos inferiores presentes, procuravam irritá-los e fazê-los reagir
um contra o outro.
Uma briga começou entre os irmãos, até Neide entrar no meio de
ambos e ser ferida por Humberto quando ele deu um forte
empurrão em Rubens. Depois se abaixou perto da irmã para ajudá-
la.

— Você me paga, cara!!! — gritou Rubens, enfurecido. — Isso não
vai ficar assim, não!!! — virou-se e saiu.
— Neide! Você está bem?! — preocupou-se Humberto. Um pouco
atordoada, ela murmurou:
— Estou. Tá tudo bem. Ajudando-a a se levantar, o irmão
acomodou-a em uma
cadeira e indagou novamente:
— Está machucada?
— Não. Não foi nada. — Após longos minutos. Neide refletiu e
virando-se para o irmão, perguntou bem séria: — Será que a Lívia
contou a ele que gosta de você e por isso brigaram? Ou então...
— Então, o quê?!
—Será que ela quis terminar com tudo? Pois ele estava insano,
irreconhecível!
—Será isso?! — disse pensativo. — Meu Deus! Por que tudo está
acontecendo desta forma?
Andando de um lado para o outro, Humberto não sabia o que fazer.
Pensamentos preocupantes e aflitivos o deixavam em desespero.
Além disso, a cena de Irene contando sobre a gravidez não lhe saia
da mente.
A voz macia de Neide o chamou à realidade quando ela o viu pegar
as chaves do carro:
—Não vá atrás da Lívia.
—Por quê?
— De certo o Rubens foi procurá-la. Vocês dois vão se encontrar lá e
isso não vai ser nada bom.
— O que eu faço?!

— Espera. Terá de vê-la amanhã de qualquer jeito. Aí, sim, você vai
saber o que aconteceu. Hoje, o melhor é ficar aqui em casa.
—Não sei se vou agüentar até amanhã, Neide. Você não tem idéia
do que está acontecendo...
—Quer me contar?
—Hoje à tarde, eu encontrei a Lívia no aniversário da Débora e... Eu
a incentivei a terminar com o Rubens porque eu iria acabar com o
meu compromisso com a Irene. Eu já estava decidido. Percebi que a
Lívia estava insegura. Ela tem muito medo do Rubens. Não é a
primeira vez que ele a agride.
—Como é?!
—Ele morre de ciúme dela e é violento, um verdadeiro covarde.
Essa é a verdade. Depois que falei com a Lívia, hoje, acredito que ela
se encorajou e foi falar com ele. — Alguns instantes de silêncio e
contou: — Eu estava decidido a terminar com a Irene e fui até a loja
procurar por ela. Esperei um bom tempo até ela aparecer de braços
dados com o Rubens. Eles gargalhavam... A cena era
comprometedora, mas não foi por isso que decidi terminar. Ao me
ver, eles reagiram de modo estranho. Discutimos. Falei o que
precisava e, quando me virei para ir embora, a Irene me avisou que
está grávida.
—Grávida?!!! — gritou Neide, parecendo assombrada.
—Quem está grávida, Humberto? — quis saber dona Aurora, que
acabava de chegar.
Humberto sentia-se derrotado.
Não encontrando solução para o que vivia, sentou-se à mesa,
respirou fundo, encarou sua mãe e contou-lhe todos os detalhes
sobre ele querer terminar o compromisso com a Irene e a gravidez.
Neide, que sabia boa parte do que acontecia, silenciou enquanto
dona Aurora ouvia atentamente.

—Então é isso, mãe — desfechou o filho. — Eu não sei o que fazer.


—Você é um homem responsável, Humberto. Eu tenho certeza
disso. Não será agora que deixará a Irene em situação difícil. —
Breve pausa e sentou-se frente a ele, pegou suas mãos, fitou-o bem
nos olhos e falou cautelosa: — Não quero que fuja das suas
obrigações, mas é preciso que você seja bem esperto, cuidadoso.
—Com o que, mãe?! Como assim?!
—A Irene é uma moça muito livre, liberal... Não tenho nada a dizer
contra ela. Mas... como você mesmo viu, ela tem um
comportamento diferente, que deixa dúvidas...
—Aonde a senhora quer chegar, mãe?
—Será que esse filho é seu? — perguntou sem trégua.
—Ora, mãe! Que absurdo!
Dona Aurora se calou. Aquela era uma acusação muito grave para
ser feita. Porém, a senhora já havia percebido, por parte de Irene,
uma conduta que deixava dúvida quanto à sua moral, sua índole.
Reparou que, quando Humberto viajou a trabalho, sua namorada se
comportava de forma muito liberal, abraçando e beijando Rubens,
enlaçando-o pelo braço quando brincava ou conversava.
Algumas vezes, surpreendeu-os sussurrando, conversando de
modo estranho, comprometedor. Contudo dona Aurora não poderia
afirmar nada. Temia a reação de Humberto e também não queria
magoá-lo ainda mais.
Tirando-a de pensamentos inquietantes, Humberto perguntou:


— O que eu faço, mãe?
— Tome um bom banho. Vou fazer um chá pra você tomar antes de
dormir. Reze e amanhã poderá pensar melhor. E... só mais uma
coisa: quando o seu irmão voltar, não converse com ele por hoje.
Deixe as coisas esfriarem um pouco.
Sem ânimo nem alternativa, Humberto aceitou fazer o proposto.

9


A FIRMESA DE LÍVIA


Rubens havia retornado para casa de madrugada. Apesar de vê-lo
chegar, Humberto fingiu dormir e nada conversaram.
Pela manhã, ao se levantar, Humberto viu o outro dormindo. Após
se arrumar, como de costume, foi-se sem sequer fazer o desjejum.
Antes do horário de costume ele estacionava seu carro em frente à
casa de Lívia.
Parecia muito apreensivo e extremamente ansioso para saber como
ela estava e o que havia acontecido.
Não demorou e dona Diva saiu da casa e foi até o portão atendê-lo.
Humberto desceu do carro, contornou-o e ficou frente à senhora
que, após cumprimentá-lo, avisou:
—Oh, filho! A Lívia não vai hoje. Ela não está muito bem. Mais
tarde ela disse que vai ao médico para pegar um atestado.
—Se ela não está bem e precisa de um médico, eu posso levá-la
agora. Posso vê-la?
A senhora ficou embaraçada, sem saber o que dizer e gaguejou:


—Mas... é que... Não vamos te dar mais trabalho.
—Não será trabalho algum, dona Diva! — afirmou ele que,
desconfiado da mentira, foi portão adentro comentando: — Eu
posso levá-la ao hospital do nosso convênio aqui perto. Essa hora
deve estar vazio e será bem rápido
Praticamente Humberto obrigou a senhora a entrar na casa junto
com ele. Já na sala a mulher pediu:


— Espere aqui, vou chamar a Lívia.
Após longos minutos a moça chegou à sala ainda vestida de pijama
e um robe. Cabisbaixa, escondia os olhos entre os cabelos
compridos.
Procurando observá-la melhor, Humberto se aproximou, inclinou-
se levemente e pôde ver que o seu rosto, antes belo e agradável,

estava terrivelmente transformado pelas pálpebras inchadas, bem
como considerável hematoma na maçã da face.
O rapaz sentiu-se golpeado e perguntou surpreso:
—O que aconteceu?!
—Sente-se. Vamos conversar — pediu a moça com a voz baixa,
trêmula e rouca.
—Quem fez isso?! O Rubens?! Desgraçado!!! Eu vou matar o meu
irmão!!! — enervou-se.


— Acalme-se, Humberto. Sente-se. Experimentando o rosto
queimar, demonstrando-se
nervoso e contrariado, ele aceitou o convite depois de vê-la
acomodar-se em uma poltrona.
Procurando aparentar calma, ela comentou:
— Você já deve saber o que o Rubens fez comigo lá na sua casa.
—Sim, eu sei. Sei o que a Neide me contou.
—Ontem, depois de algum tempo que cheguei aqui em casa, ele
veio me procurar. Fui conversar com ele lá no portão e depois, para
não chamar muito a atenção de quem passava na rua, fomos para a
garagem. Eu estava decidida a terminar tudo, não queria voltar.
Então ele começou a falar alto e a brigar comigo. — Breve pausa e
continuou: — Em determinado momento, ele começou a dizer
coisas... Disse que nunca me deixaria em paz. Fez ameaças de me
matar se eu não me casasse com ele e...
—O que você disse?
—Perguntei como ele queria que eu vivesse feliz ao lado dele sendo
como é? No meio de toda nossa discussão, eu não sabia que o meu
pai estava nos ouvindo. De repente ele apareceu do nada e
começamos todos a discutir... Meu pai me bateu, me deu um tapa
me chamando de sem vergonha... Disse que eu só lhe dava desgosto
e... — Lágrimas correram em sua face quando Humberto se
aproximou e afagou-lhe os cabelos, mas Lívia se afastou do carinho
e contou: — O meu pai começou a gritar, a brigar. O Rubens fez


insinuações, falou um monte de coisa... Agora o meu pai exigiu que
nos casemos.
—Espere! Não estamos no século XVIII! O seu pai não pode obrigá-
la a isso!
—E quem vai dizer isso para ele?! — Nova pausa e completou: —
Quando a discussão ficou mais branda, o Rubens disse que ia
providenciar tudo para nos casarmos. E o meu pai concordou.


Humberto olhou para dona Diva, em pé, junto à porta, sem dizer
nada. Mulher submissa, humilde e temerosa às
reações agressivas do marido, não tinha a iniciativa de se colocar ao
lado da filha para defendê-la ou orientá-la.
O rapaz não sabia o que dizer. Sua vontade era pegar Lívia, tirá-la
dali, levá-la para longe daquela situação e protegê-la a seu modo.
Mas não podia. Agora as suas preocupações se somavam à notícia
sobre a gravidez de Irene, que não lhe saía da cabeça.
Uma angústia tomou conta de seu ser quando perguntou:


— Lívia, em que eu posso te ajudar?
— Não sei se alguém pode me ajudar em algo. — Erguendo-lhe os
olhos tristes, ainda falou: — Estou sem ânimo. Não há nada que eu
possa fazer.
A saída de dona Diva da sala, deu liberdade para Humberto
propor:
—E se você saísse de sua casa e fosse morar sozinha? Eu te ajudo!
Você trabalha! Tem dinheiro para se sustentar e...
—Eu poderia fazer isso para me ver livre do meu pai, mas e o seu
irmão? Ele viria atrás de mim. Além disso, me vejo sem forças. Não
sei o que está acontecendo comigo.
—Lívia, tem algumas coisas que preciso te contar. —
Experimentando um sentimento amargo, olhando-a firme nos
olhos, revelou: — Eu estava disposto a terminar tudo com a Irene.
Ontem fui falar com ela e terminei tudo. Mas ela me contou...
contou... que está grávida.

A notícia caiu como um raio devastador capaz de destruir qualquer
último fio de esperança.
Ela sentiu-se mal. Um torpor dominou-a por longo tempo. Precisou
se esforçar para não cair num choro. Porém as lágrimas quentes que
deslizaram na sua face não foram possíveis deter.
Respirando fundo, passou as mãos pelo rosto e ergueu o corpo ao
falar encarando-o:
—Humberto, a partir de agora você tem outras obrigações.
Devemos nos afastar definitivamente e não ter qualquer sonho ou
esperança de ficarmos juntos. Você precisa me esquecer e eu devo
fazer o mesmo. Com a gravidez da Irene, tudo muda.
—Lívia, espere! Definitivamente eu não quero mais nada com a
Irene! Ela terá um filho meu e só! Não vou fugir as minhas
responsabilidades! Pagarei pensão e irei visitá-lo!
—E você acha que, como pai, as suas responsabilidades só se
resumem ao pagamento de pensão e meras visitas?! — perguntou,
firme. — Pelo amor de Deus, Humberto! Uma criança precisa de
acompanhamento, atenção, carinho, amor!

— E terá!
— Atenção, carinho e acompanhamento com horário marcado?!
Você acha que só isso basta?! As necessidades de uma criança
devem ser vistas de imediato, no momento em que está
acontecendo! Não é algo que pode ser deixado para depois. E as
noites de febre, de medo? E os momentos de ansiedade, tristeza?
Acha que são situações que poderão ser deixadas para depois?! Para
o dia da visita?! Um filho é a metade do seu ser! Estamos falando da
formação de um caráter! E a continuação da sua vida material e
espiritual aqui na Terra! Você não pode construir um bom caráter
somente com algumas míseras horas de visita. Fico admirada por
vê-lo pensar assim!
Humberto viu-se desarmado de palavras e com pensamentos
confusos. E ela continuou:


—Seria desleal e desumano abandonar um filho por não tê-lo
planejado. Eu acredito que, se você não o planejou aqui, hoje,
certamente em esferas espirituais o aceitou ou até implorou para
que ele viesse.
—Você acha que eu devo me obrigar a viver com a Irene por causa
desse filho?!
—Eu não acho nada!!! Acho que deveria ter pensado antes de se
deitar com ela!!! — exclamou nervosa. — Responda a você mesmo:
diante dessa gravidez, você se casaria ou não com ela, se eu não
existisse? — O silêncio foi absoluto e ela prosseguiu: — Acredito
que você tem bom caráter e integridade suficiente para não resumir
em um cheque e algumas horas o que tem a dar para o seu filho
todo mês, pois só isso é muito mesquinho. E mais uma coisa! —
Encarando-o nos olhos, desfechou: — Não serei eu a culpada pela
sua falta de atenção e de tempo para com essa criança. Estou com
dificuldades e sérios problemas, porém, nem se eu estivesse livre e
desimpedida, eu não ficaria com você. Seria desleal da minha parte,
pois seu dever e atenção, hoje, são para com o seu filho.
O rapaz não esperava tamanha firmeza em voz tão doce e frágil. Ele
estava confuso, desorientado.

— Agora... Por favor, eu preciso ficar sozinha. Humberto não disse
nada.
Simplesmente olhou para Lívia sem saber o que fazer. Sentia-se
envergonhado.
Cabisbaixo, caminhou em direção à porta e se foi sem se despedir.
***

Ao chegar à empresa, Humberto não conseguia prestar atenção em
nada. Seus pensamentos fervilhavam inquietos, enquanto uma
angústia doía-lhe profundamente na alma.
À tarde, começou a se sentir muito mal. Uma dor forte no peito o
derrotava e uma tontura não o deixava reagir.


Usando de suas últimas forças, ele pegou o telefone, chamou a
auxiliar administrativa até sua sala e perguntou:
—Júlia, sabe dizer se o doutor Cássio ainda está aí?
—Sim, está. Hoje ele fica até às cinco horas. — Perce-bendo-o
pálido, a secretária indagou preocupada: — Está se sentindo bem,
Humberto?!
Ele passou a mão pelo rosto frio, afrouxou a gravata, suspirou
fundo e, com a voz fraca, pediu:


— Júlia... Chame alguém pra me ajudar a ir até o ambulatório. Não
estou nada bem. Sinto dor no peito, tontura, dor de cabeça...
Dizendo isso Humberto debruçou-se sobre a mesa enquanto a
assistente saiu às pressas em busca de ajuda.
Algum tempo depois, Humberto se encontrava deitado em uma
maca no ambulatório da empresa, tendo ao seu lado, o médico que,
depois de lhe fazer muitas perguntas, concluiu:
— Sua pressão está normal, um pouco baixa, pode-se dizer... Mas
você falou que não se alimentou hoje. A medicação que tomou vai
aliviar a dor de cabeça. A tontura deve ser porque não comeu nada.
— Pensei que eu fosse enfartar. Senti uma coisa tão ruim!
—Pode ser estresse! Tem ficado muito nervoso ultimamente?
—Põe muito nervoso nisso, doutor!
—Tire umas férias! Procure relaxar! Isso passa. — Após pensar um
pouco, o médico decidiu: — Vou pedir uma série de exames e
encaminhá-lo ao cardiologista, só para registrarmos tudo e deixá-lo
tranqüilo. Eu tenho certeza que não é nada.
Humberto se sentou. Por um tempo, ficou quieto e de cabeça baixa.
Depois suspirou fundo, recompôs-se, desceu da maca, pegou as
guias médicas de encaminhamento e dos exames laboratoriais e
agradeceu:
—Obrigado, doutor!
—Não por isso! Qualquer coisa me procure.
Ao chegar à sua sala, sentia-se muito triste e decidiu ir embora.



***


Chegando à sua casa, não suportando tamanha preocupação,
chamou sua mãe.
Dona Aurora, sempre amorosa e prestativa, largou o que estava
fazendo e foi até o quarto do filho.
Humberto sentou-se em sua cama e ela na cama de Rubens, ficando
frente ao filho.
Com semblante abatido e um travo amargo na voz grave, ele falou:


— Mãe, hoje de manhã, eu fui até a casa da Lívia. Ela não foi
trabalhar. Estava extremamente abalada. O Rubens a procurou e...
— Do seu jeito, ele relatou o que o pai de Lívia e seu irmão
acertaram e desfechou: — Ela não quer se casar com o Rubens, mas
o pai exige o casamento.
— Humberto, eu sei que o caso da Lívia é sério e nos preocupa
muito, mas você e a Irene não estão com problemas mais sérios,
filho? Por que se importa tanto com a Lívia?
— Ora! Quem disse que estou me importando com ela?! Sem trégua
a senhora perguntou:
— Você sente algo pela namorada do seu irmão?
—Lógico que não! De onde a senhora tirou essa idéia?! — A mãe
nada disse, e o filho comentou: — A Lívia me contou que o Rubens
tem ciúme de mim com ela, como eu já disse, e estou preocupado,
eu...
—Hoje cedo, o seu irmão me contou que vai se casar e ainda disse
que queria vir morar aqui, a princípio, pois não quer alugar uma
casa. A idéia dele é juntar dinheiro e comprar uma.
Humberto sentiu-se gelar. Não esperava por isso.
— Mas!... O que a senhora disse?!
— O que eu posso dizer, filho?! Que não quero seu irmão aqui?!
Além do que, temos um cômodo e cozinha lá nos fundos que está
desocupado. Não posso negar isso ao meu filho.

O rosto de Humberto pareceu desfigurado, ficando com o olhar
perdido por algum tempo, enquanto deixava sua imaginação
formar idéias que o deixavam quase desesperado.
Não havia o que ele pudesse fazer. Achava que a vida lhe estava
sendo muito cruel.
Alguns minutos e dona Aurora indagou, preocupada:
—O que decidiu em relação à Irene?
—Ainda não decidi.
—Por que quis terminar com ela, Humberto?


—Meus sentimentos por ela mudaram. A Irene está bem diferente
de quando a conheci.
—Por que deixou que ela engravidasse, filho?! — perguntou
comovida.
—Ora, mãe! Por favor! — disse, levantando-se e caminhando pelo
quarto. Fez ligeira pausa e continuou: — Eu sei que tenho
responsabilidade para com a criança, não vou abandoná-la. Porém,
mãe, o que acaba comigo é a idéia de ter de me unir a alguém que
eu não quero mais! Não sei dizer o que é mais errado: eu, só por
causa desse filho, me casar com a Irene sem gostar dela, ou tentar
dar toda a assistência à criança e nos pouparmos de uma
convivência forçada, em que, provavelmente, haverá muita
incompatibilidade.
—Você gosta de outra moça, Humberto? — perguntou muito
desconfiada.
O verde dos olhos do rapaz reluziu feito uma jóia pelas lágrimas
que brotaram.
Fugindo-lhe ao olhar, com o coração batendo descompassado, não
teve coragem de negar.
—Gosto, sim. Estou muito interessado em outra pessoa. Mas, agora,
diante de tudo o que está acontecendo...
—E a Lívia? — tornou ela murmurando.


— É alguém lá do meu serviço — dissimulou ele. Dona Aurora era
astuciosa. Por causa daquela resposta,

entendeu que o filho dizia a verdade, porém só meia verdade.
Levantando-se, comentou:

— Eu não sei o que dizer. Seria fácil eu te aconselhar a terminar
tudo com a Irene e só dar provisões ao seu filho. Eu sei como é
difícil criar filho, mesmo casada, mas com pai ausente. Imagino que
sozinha seja pior. Não é só de dinheiro que uma criança precisa.
Inquieto, sem saber o que fazer e tendo o coração oprimido,
Humberto subitamente perguntou:
—Mãe, por que levantou a dúvida sobre esse filho não ser meu?
—Eu não tenho dúvida alguma! — respondeu quase assustada.
—Então por que me perguntou se eu tinha certeza disso ou não?
—Não sei por que falei isso, filho. Talvez... Sabe, eu venho
percebendo que você não estava levando esse namoro tão a sério.
Apesar do noivado marcado, não te vejo nada animado. Achei que
você estava meio distante dela... Principalmente por ter voltado de
viagem há pouco tempo... Desculpa. Foi um erro ter falado isso.
Talvez seja por não querer te ver tão triste ao lado dela. Sabe, a Irene
é muito extrovertida.
— A senhora acha que ela é fiel?
—Quem sou eu para dizer alguma coisa. De quanto tempo ela está?
—Não perguntei. Mas depois do comentário que a senhora fez,
comecei a ficar desconfiado. Sabe, mãe, não gostei de vê-la daquele
jeito com o Rubens. Senti alguma coisa no ar. A Cleide estava
extremamente nervosa e os dois se assustaram muito quando me
viram.
— Você tem alguma desconfiança da Irene?
— Tem algo estranho acontecendo. E uma coisa que sinto e não sei
explicar.
—Vou ser sincera, Humberto. Eu não gostaria de te ver casado com
ela. Talvez foi por isso que comecei a levantar suspeitas. Procure
saber o que está acontecendo e desvendar essa "coisa" estranha que
sente a respeito e que te causa essa desconfiança.



—Tenho uma decisão muito séria para tomar, mãe, e não sei o que
fazer.

***

Enquanto eles conversavam, na espiritualidade, Nelson, mentor de
Humberto, e Josias, mentor de dona Aurora, observavam seus
tutelados.
Preocupado com o seu protegido, o espírito Nelson comentou:
—A postura de Irene surpreendeu até a nós. E impressionante como
a criatura encarnada consegue desperdiçar uma oportunidade
reencarnatória para harmonização de seus erros do passado. Seus
pensamentos sempre andam às sombras da mentira e da vaidade.
—Era desnecessário que todos, principalmente Humberto,
passassem por tamanho tormento — considerou Josias. — Ela sabe
que o filho que espera é do Rubens, não de Humberto e não diz a
verdade.
—Nesta encarnação, ela deveria trabalhar em si a humildade e a
verdade. Se assim fosse, Irene não trairia Humberto e, pelo fato de
tê-lo abandonado em encarnação passada, deveria experimentar
somente a tristeza da separação nesta oportunidade. Depois que
Humberto terminasse com ela, certamente,

Rubens surgiria em sua vida e aí, após conceber o filho planejado
para esta reencarnação, ele a abandonaria também á fim de ela,
novamente, sofrer com a separação e, sozinha, cuidar de um dos
filhos que ela abandou no passado. Cuidaria da criança o tempo que
lhe coubesse.
—Este filho estava previsto, no planejamento reencar-natório, para
vir assim que Irene e Rubens se envolvessem. Ele aí está, mas ela
manipulou os fatos, provocando muitas alterações e sofrimentos.
—E verdade, caro Josias. Estou preocupado. Preciso encontrar um
jeito de Humberto conhecer a verdade. Somente influenciar a


querida Aurora a suspeitar de o filho não ser de Humberto, não foi

o suficiente.
— E quanto à Lívia?
— Ajudaremos a companheira Alda a sustentá-la. Lívia se livrará da
opressão autoritária de Rubens, que em nada se melhorou e não
cumpriu suas promessas. Para ele, esse comportamento só
acarretará solidão e dificuldades indizíveis. Humberto, por sua vez,
será testado, A situação mudou, por causa da mentira da Irene, e eu
temo por meu protegido, pois ele se colocará em grande perigo de
falir nesta reencarnação. Ele precisa se fortalecer e vencer muitos
desafios. Esperamos poder contar com Lívia para sustentá-lo. Que
Deus abençoe a todos.
***

Dona Aurora foi terminar o jantar, deixando Humberto a sós com


Neide, que acabava de chegar.
Percebendo o irmão amargurado, com semblante sofrido pelo novo
rumo dos acontecimentos, ela se achegou perto dele, afagou-lhe as
costas e perguntou com voz macia:
—Quer conversar?
—Estou cansado, Neide. Minha cabeça dói... Não consigo parar de
pensar e... É como se minhas idéias queimassem o meu cérebro.
—Tudo bem. — Não demorou e propôs: — Olha, eu peguei um
filme emprestado. Vamos jantar e assistir, tá? E uma comédia
romântica! Você vai gostar!
Forçando um sorriso, ele concordou para contentá-la:


— Pode ser. Agora vou tomar um banho.
***

Mais tarde, mesmo diante da televisão, Humberto não conseguia
assistir ao filme. Apenas havia se alimentado por insistência de sua


mãe. Ele trazia os pensamentos surrados pelas contrariedades e
conflitos íntimos. Quando o telefone tocou, sentiu-se gelar e um
mau pressentimento o dominou.
Ele sabia quem era e, após Neide atender, a confirmação veio.


— Humberto, é pra você!
Forçando-se a se levantar, ele engoliu seco, pegou o aparelho sem
fio das mãos da irmã e foi para o seu quarto.
—Pronto — atendeu com a voz fraca.
—Sou eu, a Irene.
—Fala.
—Estou preocupada com você. Esperei que me telefonasse...
Precisamos conversar.
—Eu sei — afirmou, deixando o silêncio imperar por alguns
segundos.
—Por favor, Humberto! Fala comigo!
—O que você quer que eu diga?
—Não sei! Mas diga alguma coisa!
—Irene, eu sei que precisamos conversar muito. Mas, hoje, eu não
estou me sentindo bem.
—Quer que eu vá até aí?
—Não — respondeu secamente.
—Quando podemos nos ver? Amanhã?
—Não. No sábado eu te procuro.
—Sábado?!


— Me dê um tempo, Irene! Preciso pensar! Contrariada, mas
tentando não pressioná-lo, ela concordou ao percebê-lo nervoso.
—Está bem. Eu te ligo no sábado.
—Não. Eu te ligo! Pode deixar! — afirmou ele convicto.
—Como quiser.
—Tchau — ele despediu-se com frieza.
—Eu te amo. Tchau.
Sem dizer mais nada, o rapaz desligou. Jogando-se em sua cama,
fechou os olhos na esperança de dormir e fugir daquele pesadelo.

10


FUGINDO DA FELICIDADE


Na manhã seguinte, lá estava Humberto, bastante nervoso, dentro
de seu carro e na frente da casa de Lívia.
Ao vê-la sair, sentiu uma gota de alívio, embora ainda estivesse
muito apreensivo.
Ela entrou no veículo, cumprimentando-o com extremo
constrangimento.


— Tudo bem com você? — ele quis saber.
— Tudo — respondeu com voz baixa e sem encará-lo. Além disso,
nada mais foi dito durante todo o longo trajeto até a empresa.
Após estacionar o automóvel e desligá-lo, ela comentou:
—Humberto, gostaria de te pedir um favor.
—Claro!
—Vamos esquecer tudo o que conversamos. Até por que não houve,
absolutamente, nada entre nós.
—Nada, a não ser um grande sentimento que está nos devastando.
Ora! Pelo amor de Deus, Lívia! Não podemos negar o que sentimos
um pelo outro!
—Podemos sim!
—E o que você vai fazer para me esquecer?! Me diz?!
—Vou me casar com o Rubens — avisou friamente.
—Você não o ama! Está com medo dele!
—Medo não! — reagiu. — Estou apavorada! Você não sabe!... Não
imagina o que é viver aterrorizada! É o que eu vivo! Nunca sei o
que faço! Nunca sei como agir por causa dele!
—Eu não acredito no que estou ouvindo!!!
—O seu irmão nos mata! Você não sabe como ele é de verdade! Ele
me venceu! — chorava, enquanto desabafava: — Maldito foi o dia
em que eu aceitei o convite dele para sairmos!!! O dia em que aceitei



namorá-lo!!! O seu irmão não é normal!!! Ele me ameaça, me agride
e depois age como se nada tivesse acontecido!!!
—Se ele faz isso agora, depois do casamento vai ser pior!


— Talvez não! Talvez se sinta mais seguro! — Além do mais... Não
estou suportando a pressão! Você não pode me ajudar! A sua vida
não está melhor do que a minha!
Ele suspirou fundo, recostou-se no banco, fechou os olhos e
murmurou:
—Já pensei em fazer uma loucura e...
—O quê?
—Matar o meu irmão — confessou no mesmo tom.
—Ficou louco?! Eu não esperava ouvir uma insanidade dessa de
você!
—Eu não sei o que fazer, Lívia!
—A princípio, vamos nos afastar — pediu mais calma.
—Não, por favor — falou, parecendo implorar. — Se fizermos isso,
vamos levantar desconfiança.
—Então siga a sua vida que eu sigo a minha, e não tocamos mais
nesse assunto. — Após pequena pausa, chamou-o: — Vamos entrar?
Não podemos ficar mais tempo aqui. — Depois lembrou: — Apesar
de eu não ir para a faculdade hoje, não vou voltar com você, pois o
Rubens vem me buscar.
—De moto?
—Não sei. Talvez.
Sem qualquer outro comentário, Humberto abaixou o olhar e ambos
desceram do carro e foram para o elevador.


***

Estava sendo bem difícil conciliar todos aqueles acontecimentos.
Os dias passavam, até que Humberto se encontrou com Sérgio no
centro espírita.



O amigo percebeu que ele se encontrava nervoso e quase não
prestava atenção na palestra. No final da sessão, observando
Humberto muito quieto, Sérgio se aproximou perguntando:
—E aí?! Como estão as coisas?
—Tem certeza de que quer saber?
—O que está acontecendo, Humberto? — perguntou, preocupado.
O amigo contou tudo o que havia acontecido e que lhe afligia.
—Grávida?! A Irene?! — exclamou Sérgio sussurrando pela
surpresa.
—E. Está — confirmou, desanimado. — Eu até passei mal por causa
disso. Precisei ir ao médico lá na empresa.


Senti algo tão estranho. Parecia que eu ia morrer. Agora, já estou
bem.


— E o que pretende fazer?
— Não posso abandonar um filho. Porém estou contrariado em ter
que me casar com ela. Eu não sei o que fazer. Sabe, não estou muito
bem. Até cheguei mais cedo, hoje, aqui no centro, para me propor a
um tratamento de assistência espiritual com passes. Ando tendo
idéias perturbadas e pensamentos confusos.
— Quer falar a respeito? Desabafar é bom. Lançando-lhe um olhar
transtornado, Humberto confessou, quase sussurrando:
— Ando pensando em matar meu irmão. — Sérgio continuou
tranqüilo, e ele explicou: — Não são só pensamentos. Não estou
falando de uma forma simbólica, não! Eu venho sentindo um
desejo, uma vontade que quase não consigo controlar.
— Você sabe o que é isso, não sabe?
— Sim. Com certeza é uma influência exterior, espiritual, que está
aproveitando as dificuldades e as circunstâncias para me levar ao
desequilíbrio e fazer com que eu cometa uma loucura. Com isso eu
acabo é com a minha vida. Você não imagina o que eu estou
sentindo. A idéia é fixa! É forte demais! Sabe, outro dia, eu estava lá
em casa e depois de um telefonema da Irene fiquei arrasado. Então
fiquei pensando e... O Rubens havia ido trabalhar de carro e a moto

estava na garagem e... Bem, eu entendo um pouquinho de mecânica
de moto. Entendo o suficiente para mexer no mecanismo e deixá-lo
pronto para um acidente. Cheguei a levantar, ir à garagem e pegar a
maldita moto e...


Diante da pausa, Sérgio questionou:
—Você mexeu em alguma coisa?
—Não. Precisei me esforçar muito para não fazer nada. Depois, no
outro dia, conversando com a Lívia, ela me contou que o Rubens
iria buscá-la no serviço e, talvez, de moto. Fiquei em choque.
Entendeu o que eu poderia ter feito?!
—Mas não fez nem vai fazer! — falou firme.
—Estou nervoso, Sérgio. Muito preocupado com a minha sanidade.
—As coisas estão acontecendo depressa demais para você, para o
seu ritmo. São acontecimentos não agradáveis. Nada saiu como
você queria. Faça a assistência espiritual. Não abandone o centro.
—E o que eu faço quando vier essa vontade insana de matar o meu
irmão?
—Sabe fazer meditação?
—Sei.
—Medite todos os dias, centralizando o pensamento em tudo o que
for bom, próspero e de Deus. Quando essas idéias surgirem, pegue


o Evangelho Segundo o Espiritismo e leia-o. Se não tiver o livro a
mão, ore! Ore mesmo! — enfatizou. — Entendeu?! A prece, a oração
é a única e a maior arma que temos contra qualquer força ou
pensamento negativo. Quando você tiver essa vontade, essas idéias
ou outras que são incompatíveis ao seu grau de evolução, perca
alguns minutos orando.
—Vou fazer isso.
A aproximação de Débora os interrompeu e o rosto de Humberto
desanuviou ao vê-la sorridente, desfilando com a avantajada e bela
barriga.

— Não olhem para mim desse jeito — brincou ela. — Hoje eu não
demorei!
— E como está a Laryel, Débora? — quis saber Humberto sorrindo.
— Bem sapeca! Fazendo a maior bagunça! — disse rindo. — Não sei
com quem ela está brincando o tempo todo. Só sei que o playground
está pequeno demais!
Eles riram e Humberto perguntou enquanto caminhavam para o
estacionamento:
— E quanto ao nome Laryel? É um nome muito bonito, porém
diferente. Eu nunca o ouvi antes. Quem escolheu esse nome?
— Foi o Sérgio! Até hoje eu não sei onde ele arrumou esse nome.
Quando eu disse que estava grávida, ele afirmou que seria uma
menina e que se chamaria Laryel!
— A verdade é que eu ouvi esse nome em um sonho, eu acho —
explicou Sérgio. — Não sei muito bem se eu estava dormindo ou
desdobrado, conversei com uma entidade linda! Não sei o que
falávamos, mas a conversa me fez muito bem, me deu forças e bom
ânimo. Então, pelo fato do nome ser bonito, em homenagem a essa
criatura maravilhosa e por ser o primeiro nome que surgiu à minha
cabeça, eu escolhi Laryel! A princípio, até pensei que essa entidade
estivesse reencarnando.
— Por esse sonho ter sido antes da gravidez, não acha que era,
realmente, a sua filha conversando com você antes da concepção? —
tornou o amigo.
— Por isso pensei que fosse ela, mas depois tive a certeza de que não
era. Essa entidade nobre, com quem sonhei, ainda está na
espiritualidade.
—Como tem certeza? — perguntou Débora.
—Porque sonhei com ela novamente depois que você ficou grávida.


— Sorrindo, tornou a dizer: — É um nome muito bonito e uma
homenagem a quem me ajudou muito.
Eles não podiam ver, mas, naquele momento, na espiritualidade,
seus mentores e outros amigos os acompanhavam.

A nobre entidade Laryel, sempre com indizível serenidade e amor,
aconselhou o companheiro:
—Querido Nelson, será preciso trabalho incansável e assídua
atenção de sua parte para com o seu protegido. Haverá uma força
mental cruel para influenciar Humberto contra o irmão. Isso já
começou e vai aumentar. O objetivo é trazer angústia e inúmeros
tormentos.
—Sérgio estará atento e pronto para ajudar o amigo conforme
prometeu — avisou Wilson. — Ele é muito sensível às nossas
inspirações. No entanto nem sempre está próximo de Humberto.
Será preciso muita vigilância.

***

Humberto acordou, porém ficou algum tempo deitado. Estava
tomado por um grande cansaço, mas, com convicção, pensava:
"Uma coisa agora está clara para mim: farei tudo o que eu preciso,
antes que cause mais danos às pessoas à minha volta. Não é pelo
fato da Lívia não querer nada comigo que eu vou deixar de pensar
nela. O que eu não posso fazer é trair o meu irmão. Não posso trair
a minha consciência. Prefiro sofrer por me afastar da Lívia, mesmo
gostando tanto dela, a ficar dias e noites pensando no que fiz contra

o Rubens. Se fosse para ela ficar comigo, eu a teria conhecido
primeiro. Como poderei viver bem comigo mesmo com o remorso
de tirá-la do meu irmão? E se ele fizer algo contra a Lívia como diz?
Como viverei com isso? Além de tudo, como é que vou abandonar
um filho e ser feliz? Nunca poderei ter paz na consciência sabendo
que renunciei um filho, que me foi confiado. Se eu soubesse de algo
sério ou grave no comportamento da Irene, seria diferente. Ela
precisará que eu esteja ao seu lado, precisará do meu apoio. Não é
justo que eu a abandone. Está decidido! Farei o que preciso fazer e
pronto! Vou procurar a Irene e resolver essa situação hoje".

***


Bem mais tarde, na casa da tia de Irene, Humberto sentou-se frente
à namorada como se estivesse curvado pelo peso de uma infinita e
profunda tristeza.
Forçando-se um meio sorriso, explicou:


— Eu demorei a te procurar porque precisei pensar muito.
Ultimamente, tudo ficou meio estranho entre nós e eu não sabia o
que fazer, por isso decidi me afastar de você.
— Acho que o nosso namoro caiu na rotina, Humberto.
— Pode ser isso. Na verdade, Irene, eu ainda não estou muito bem,
mas quero tentar novamente. Afinal, temos um filho a caminho e ele
pode nos dar ânimo e uma vida nova.
Sentando-se ao lado dele, ela o envolveu num abraço forte.
Recostando o rosto em seu peito, disse aliviada:
— Ah, Humberto! Como estou feliz! Meu amor, isso vai passar!
Você vai ver! E uma fase! Um momento ruim!
Abraçando-a com carinho, ele afagou-lhe os cabelos e beijou-lhe a
testa. Sentiu-se apiedado por vê-la tão feliz. Imaginou como a estava
magoando, principalmente, naquele estado tão sensível, por causa
de sua distância e falta de notícias.
Acariciando-lhe o rosto, ele sorriu levemente e avisou:
—Eu prefiro que não fiquemos noivos. O que você acha de
marcarmos a data do casamento logo?
—Acho ótimo!!! — quase gritou de alegria.
—Então, na segunda-feira, podemos providenciar isso. Tudo bem?
—Tudo! Estou tão feliz, meu amor! Te amo muito! — Beijaram-se
longamente e ela propôs: — Vamos contar para minha tia, para sua
família!... Vou ligar para os meus irmãos!
—Como quiser.
—Contou para a sua mãe?!
—Não. Eu queria conversar com você antes.
—Vamos até sua casa contar pra eles?

—Vamos. Vamos sim. — concordou, conformado com o seu
destino.
—Ah! Se amanhã vamos ao cartório marcar a data do nosso
casamento, vamos aproveitar para dar uma olhadinha naquele
apartamento de que te falei? Eu queria tanto que você visse! —
falava com voz mimada. — Tenho certeza que vai adorar!


—Tudo bem. Vamos, sim.
O tempo foi passando.
A notícia sobre o casamento de Humberto e Irene deixou alguns
surpresos e outros com grandes expectativas.
Ao saber, Lívia foi invadida por um frio cortante, como se não lhe
restasse mais esperança alguma de felicidade.
Ela e Humberto continuaram indo juntos para o serviço, pois
Rubens queria assim. Sentindo-se inseguro, disse a ela que, se não
fosse trabalhar junto com seu irmão, seria por haver algo entre os
dois e que confabulavam contra ele. No entanto, nem Humberto ou
Lívia tocavam no assunto.
Ele encontrou Lívia sozinha, na cozinha da casa de sua mãe, e,
somente depois de muito pensar, perguntou:
—Como estão as coisas?
—Caminhando.
—E você e o Rubens, como estão?
Seus olhos lacrimosos o encararam firme e, fazendo-se forte, contou:


— Não estou suportando ficar mais com ele. Preciso dar um jeito
ou...
—O que está acontecendo, além do que eu já sei?
—Brigamos muito. Não agüento ficar mais ao lado
dele.
Sentindo o coração apertado, queria abraçá-la, envolvê-la, mas não
podia e permaneceu sentado à mesa ao comentar:
— Lívia, talvez só eu possa te ajudar, se você quiser, lógico.
— O quê?

— Como diretor na empresa eu posso conseguir sua transferência
para a filial do Rio de Janeiro ou do Ceará. Não contaremos para
ninguém. Você simplesmente pega as suas coisas e vai embora. Será
o mesmo serviço, o mesmo salário que dará para os seus gastos.
Depois de instalada, se quiser avisar os seus pais, tudo bem. Pela
distância, o Rubens não vai poder fazer nada com você. Acabou.
— Mas... E você, Humberto?
—Não foi você mesma quem me alertou sobre as minhas
responsabilidades para com o meu filho? Vou me casar agora, Lívia!
Não posso fazer mais nada por você além disso!
—Não estou te pedindo nada! Não confunda as coisas. Eu quis
dizer que... — ela perdeu as palavras. Não sabia o que dizer. Sofria
ao pensar que Humberto iria se casar.
Sério, falando friamente, ele perguntou:
— O que você me diz da transferência?
—Eu aceito! E o que eu quero. Se puder fazer isso por mim, serei
eternamente grata. Mas que ninguém desconfie. Pode ser?
—Pode. Isso eu consigo — falou com gravidade no tom da voz. Os
seus olhos verdes expressavam uma tristeza sem fim enquanto se
nublavam pelas lágrimas que brotavam. Disfarçando a amargura,
ainda comentou: — Amanhã vou dar um telefonema e depois
conversaremos. Perdoe-me por não poder fazer mais nada por você
além disso.
—Você está fazendo muito. Nem imagina. Eu só quero que seja
muito feliz.
Subitamente a voz macia de Neide ecoou firme, assustando-os:
— Vocês estão cometendo a maior burrada de suas vidas!
—O que é isso, Neide?! Do que você está falando?! — perguntou
Humberto, parecendo bem irritado.
—De vocês dois! Como podem abrir mão da felicidade e do amor
por causa de criaturas tão mesquinhas como a Irene e o Rubens?!
—Neide, por favor, pare com isso! — pediu Lívia amedrontada.



—Só porque estou falando a verdade, vocês me mandam parar?!
Olhem pra vocês dois! Estão apaixonados! Lívia, o Rubens não te
merece! E quanto a você, Humberto, acredita que a Irene é tudo com
que sonhou? Tem certeza que é com ela que quer viver o resto da
sua vida?! Cai na real!
—Fique quieta, Neide! Pelo amor de Deus! Se alguém te escuta!... —
pediu Lívia, desesperada.
—Isso não pode ficar assim! — exclamava a irmã, inconformada.
Humberto aproximou-se e, frente a ela, ordenou bem severo:


— Cale a boca, Neide! Você ainda vai me arrumar uma grande
confusão com o que está dizendo! Pare!
Um murmurinho os fez ficar atentos.
Era a aproximação de Irene e dona Aurora que conversavam pelo
corredor, antes de chegarem à cozinha.
Ao ver Humberto, Irene abriu um sorriso. Aproximou-se, beijou-o e
anunciou:
— Oi, amor! Eu passei aqui só para pegar com você o cheque para
pagar o pintor. Combinamos que você daria um cheque seu, e o
pintor já está terminando o serviço. — Olhando para as outras,
contou: — Nosso apartamento está lindo!
Ainda bem que o proprietário anterior teve bom gosto com a
escolha dos armários planejados que deixou.
—Já está todo mobiliado? — perguntou Lívia com simplicidade,
tentando disfarçar o nervosismo de pouco antes.
—Sim, está. Só faltam as cortinas. Essa semana chegam os tapetes e
a mesa da sala de jantar. Ontem entregaram os sofás. O Humberto
nem viu ainda! Neste fim de semana vamos lá para vocês
conhecerem, combinado?
—Vamos sim, filha. Eu gosto de ver casa nova! — disse dona
Aurora. — Falta pouco tempo para o casamento, hein! Os convites
estão prontos?



—Os convites estão na gráfica ainda. Mas o grupo de convidados é
bem pequeno. — Virando-se para Humberto, Irene perguntou: —
Você queria chamar o Sérgio para ser seu padrinho. Falou com ele?

— Ainda não. Vou falar.
— Não demore! Convite de última hora não é bom. — Em seguida,
Irene avisou: — Já é tarde! Preciso ir. Faz o cheque pra mim,
Humberto!
Sem qualquer empolgação, ele foi até o quarto, e Irene o seguiu.
Quando o assunto era referente ao seu casamento com Irene,
Humberto precisava se esforçar muito para expressar leve sorriso.
Uma angústia o envolvia sempre que pensava em sua união com
ela. Contudo não poderia fazer mais nada, já estava resolvido.
11
CONSEQUÊNCIAS DE UMA TRAIÇÃO


Era sábado à tarde, quando Humberto, atendendo a um desejo
sincero, estava na casa de Sérgio convidando-o para ser seu
padrinho.
—Será uma cerimônia simples onde o juiz de paz celebrará o
casamento no próprio salão. Haverá cerca de sessenta convidados.
—Você me disse que a Irene é católica. Ela não quer se casar na
igreja?
—Sou eu que não quero casar na igreja. Se eu deixasse pela Irene, o
nosso casamento teria até carruagem puxada por cavalos brancos. Já
estou deixando que faça tudo o que quer no apartamento, que ela
decorou com o maior luxo, mas quanto à cerimônia... Não quero


nada extravagante. — Breve pausa, olhou para Sérgio e perguntou
com leve sorriso: — E aí? Vocês aceitam ser meus padrinhos?
—Lógico, cara! Sem dúvida! — afirmou o amigo, com largo sorriso.
—Fiquei muito feliz com o convite, Humberto. Nossa! Adorei saber
de sua consideração por nós! Mas tenho uma preocupação...


—Que preocupação, Débora?!
—Será que eu não estarei no hospital nessa data?
—Ah! Não brinca! — surpreendeu-se Humberto.


— Não tem problema! A Débora fica no hospital, e eu vou ser o seu
padrinho! — brincou Sérgio.
— Engraçadinho!!! — ela reclamou, brincando. Virando-se para a
esposa, Sérgio a abraçou, comentando:
—Acredito que dê para você ir sim. Só se ela resolver chegar antes.
— Voltando-se para o amigo, avisou: — Pode contar conosco!
Ficaremos felizes em sermos os seus padrinhos.
—Mas ficarei alerta. Caso a Laryel resolva chegar antes, já deixarei
outros de sobreaviso — sorriu de um jeito maroto.
—Quem? — quis saber Débora.
—O Tiago e a Rita!
—Eles vão gostar! — exclamou Sérgio.
—Tenho muitos conhecidos, mas amigos afins, pessoas que eu
considero mesmo, só tenho vocês.
—Ficamos contentes com isso. Também consideramos muito você
— disse Sérgio.
Débora se levantou, informando:
— Vou fazer um cafezinho para nós! Aproveitando-se de sua
ausência, o amigo perguntou:
— Tem certeza de que é isso o que quer, Humberto?
— Na verdade, eu não queria isso. Você sabe. Mas é o que eu devo
fazer. Não posso abandonar um filho. Se a Irene me desse motivo
para isso, seria diferente. Do contrário... Jamais eu teria
tranqüilidade. — Alguns segundos e comentou: — Eu e a Lívia não
temos nenhuma chance. Para ajudá-la, estou cuidando de sua

transferência para a filial do Rio de Janeiro. Assim ela ficará longe
do Rubens.
—E longe de você também.
—Isso será bom para nós dois.
—É verdade. Mas o que me preocupa é pensar por quanto tempo
você irá suportar ficar ao lado de alguém que não ama. Você terá de
ser bem forte.
—É isso o que peço a Deus. Muita força. Eu estava lendo no
evangelho sobre o dever e sei que preciso cumprir com o meu dever
moral.
—Vamos lembrar que o evangelho nos ensina que o dever é a lei da
vida, mas também diz que o dever é a obrigação moral, primeiro
para consigo mesmo e depois para com os outros. Sabe... Eu adoro a
Débora. Acho que se nós não estivéssemos juntos eu não ficaria com
mais ninguém. No seu caso, há um filho comprometendo qualquer
decisão que tome a respeito de ficar com a Lívia. Será que é justo
você sacrificar a sua vida íntima por ele?
—Esse filho me chama à responsabilidade. Se não fosse por ele, eu
não iria me casar com a Irene. De jeito nenhum.
—Não acha que mais tarde poderá se arrepender e se separar? Isso
não será pior para todos?
—Estou fazendo o que acho certo agora. Não consigo pensar no
futuro.
Sérgio não disse nada, mas lamentava tudo o que estava
acontecendo na vida de Humberto.
Encarnados, desconheciam a verdadeira e sincera amizade
espiritual de longos anos.

Sérgio queria ajudá-lo, porém não sabia como. Em seu íntimo estava
contrariado com tudo. Ele sentia que os acontecimentos não
deveriam ser naquela ordem. Nada poderia dizer para não deixar o
amigo ainda mais triste.
A campainha tocou estridente e logo se ouviu a voz de Rita com os
dois filhos e Tiago, que a ajudava.


O irmão de Sérgio, que tinha as chaves do portão, entrou avisando:
—Cheguei!!!
—Entra Tiago!!! — pediu Sérgio.
Já na sala, eles se cumprimentaram e Rita, sem rodeios, colocou
Daniel no colo de Humberto e exclamou sorridente:


— Segura esse que eu não agüento mais! — jogando-se no sofá,
ainda falou: — Meus braços estão em frangalhos! Quando não é um,
é o outro que quer colo!
Humberto brincava com o garotinho esperto e risonho ao
perguntar:
— Como vocês os conhecem? São idênticos! Largada no sofá, ela
explicou:
— Amarramos uma fitinha no braço do Rafael, veja — erguendo a
manguinha da blusa do menino, que estava no colo de Sérgio,
mostrou. — E usamos um caderno para anotar e controlar tudo o
que damos ou fazemos para eles. Mesmo assim, muitas vezes,
cheguei a dar de mamar para um duas vezes e só desconfiava
depois que o outro começava a gritar de fome e o que estava comigo
não queria mamar. E quanto a dar remédios e vitaminas!... Faço a
maior confusão! É uma loucura! Não sei se Deus me deu um
presente ou um castigo! — riu.
— Deus te ama tanto, Rita, que agora virão duas meninas! Você vai
ver! — disse Sérgio.
Jogando uma almofada nas costas do cunhado, Rita falou séria e
quase nervosa:
—Vira essa boca pra lá! — Levantando-se, foi para a cozinha
parecendo zangada.
—Oh, Sérgio! Não fala isso não! Ela fica uma fera e desconta em
mim! — reclamou Tiago, indo atrás da esposa.
Sérgio riu com gosto e comentou:
—É que os gêmeos ainda não têm um ano e Rita está desconfiada de
que está grávida de novo.

—Uaaaaaauh!!! — divertiu-se Humberto. — Até eu ficaria uma fera!

— brincou.
—Semana que vem ela vai ao médico para ter certeza. Vamos
aguardar — explicou o outro, ainda sob o efeito do riso.
***

Os dias foram passando
Irene, rapidamente, agilizava tudo para o casamento.
Os convites já haviam sido entregues e o apartamento decorado ao
seu gosto. Humberto estava mais calado a cada dia, mergulhado em
seus próprios pensamentos que não ousava dividir com alguém.
Algumas vezes em que levou Irene até a casa de Sérgio ou foram
juntos ao centro espírita, o amigo reparou que Humberto,
praticamente, não conversava.
Sempre quieto, parecia alheio a tudo a sua volta.


Lívia e Humberto não ousavam conversar mais sobre o assunto.
Limitavam-se, no máximo, a falar de sua transferência para o Rio de
Janeiro ou alguns assuntos de serviço.
Não poderiam deixar que Rubens desconfiasse de nada, por isso o
tratavam normalmente. Aliás, Humberto pouco conversava com o
seu irmão.
Faltava menos de uma semana para o casamento. Humberto havia
ganhado alguns presentes dos colegas de serviço. Não querendo
levar os pacotes para casa, decidiu ir até o seu apartamento e deixá-
los lá.
Já havia passado mais de uma hora do fim do expediente e se
surpreendeu ao ver Lívia esperando, no hall, o elevador:


— Ainda está aqui?
— Eu tinha que adiantar um serviço e... Como não tenho aula, pois
emendaram por causa do feriado amanhã, resolvi ficar até mais
tarde um pouquinho.
—O Rubens não vem te buscar?

—Não. Nem avisei que não vou à faculdade hoje.

— Posso te levar, mas preciso passar antes no apartamento para
deixar uns presentes lá. Quer uma carona?
— Aceito, sim! Vamos!
Estavam no prédio onde ficava o apartamento de Humberto. Lívia
desceu do carro propondo-se a ajudá-lo com os presentes.
Agradecido, aceitou.
No hall, a moça aguardou que ele abrisse a porta.
Ao entrarem, para estranheza dele, havia um abajur aceso na sala e
uma claridade vinda da suíte do casal, indicando alguém lá.
Olhando para Lívia, pediu com simplicidade:
— Venha. Coloque os pacotes ali, sobre a mesa, por favor —
mostrou. Em seguida, comentou falando baixo e cismado: — Tem
alguém aí. Será que é a Irene?
Sem demora, Humberto foi à direção da suíte. Lá, encontrou Irene e
Rubens deitados, juntos, em um momento bem íntimo.
Ao percebê-lo, Irene deu um grito e exclamou:


— Humberto!!! Ai, meu Deus!!!
Ele ficou em choque, incrédulo, parado à porta e sem conseguir se
mexer. Enquanto Lívia permanecia ao seu lado.
— Espere! Vamos conversar! — pediu Rubens espantado, cobrindo-
se.
Ao vê-los, Lívia levou a mão à boca abafando o grito e, em seguida,
o choro.
Não suportando, ela virou as costas e saiu correndo.
Atônito, completamente perplexo, Humberto pareceu ter
dificuldade em se mexer e respirar. Um torpor o dominou e se
sentiu tonto. Não ouvia mais nada do que era dito por eles.
Entorpecido, precisou usar toda a sua força interior para não dizer
nada nem reagir contra sua namorada e seu irmão. Hesitante, virou
as costas e saiu à procura de Lívia.
Sua visão estava turva e não escutava direito.

Chegando à garagem, ele encontrou Lívia, agachada e encostada à
porta do carro, chorando muito.
Humberto tremia. Com a respiração alterada, sentiu a tontura
dominá-lo e acreditou que não fosse suportar.
Fechando os olhos, pensou em Deus e pediu forças.


Em seguida, curvando-se, segurou no braço de Lívia, que se esvaía
num choro compulsivo, e a forçou se levantar.
A jovem o abraçou com força, escondendo o rosto.
Não demorou e ele pediu, ainda confuso e com voz vacilante:


— Entre no carro. Vamos sair daqui.
Humberto mal prestava atenção ao que fazia. No trânsito, dirigia
automaticamente.
Ele não sabia como agir. Não conseguia organizar as idéias.
Enquanto isso, lágrimas começaram a correr em seu rosto e um
sentimento doloroso de indignação o dominava. Não esquecia, por
um segundo, a cena que presenciou. Aquilo foi muito cruel.
Estava revoltado. Como alguém normal poderia ter a capacidade de
trair o próprio irmão daquele jeito?! No seu quarto, na sua cama...
Não acreditava no que havia acontecido.
Se, por acaso, Lívia não tivesse visto tudo, Humberto duvidaria da
própria sanidade.
Como alguém como a Irene, que o conhecia tanto tempo, pôde fazer
aquilo com ele?! Ela sabia, sentia que ele estava se casando
contrariado e por causa do filho que ela esperava. Por que o obrigou
a tanto, e em tão pouco tempo, para ficarem juntos, se não o
amava?! Nunca viu tanta hipocrisia, tanta mentira junta! Há quanto
tempo o traía?! Com quantos outros mais?... Sua mãe bem que falou
que Irene era muito liberal. Até levantou a dúvida sobre o filho não
ser dele.
Pensamentos mórbidos o dominavam.

Acreditava aquela ser a ocasião propícia para matar Rubens e Irene.
Deveria ter reagido! Seria a oportunidade de vingar-se da traição
dos dois. Vingar-se de tudo o que o irmão fez para Lívia.
Arrependia-se por não ter reagido contra eles. Seria a hora certa.
Nesse instante, espíritos sem instrução e que desejavam promover
toda espécie de mal e discórdia, rodeavam-no.
— Vamos! Mate os dois! Ainda dá tempo! Vai! Volta lá! —
insuflavam, ininterruptamente, os espíritos cruéis. — Não seja
covarde! Volta lá e acaba com os dois!
Humberto sentia-se confuso, desorientado e com muita raiva.
Subitamente parou o carro. Deu um soco forte no volante e
vociferou:


— Vou voltar lá!!! Vou acabar com aqueles dois!!!
— Não! Por favor, Humberto — pediu Lívia, em desespero.
Virando-se para ela, trazia no olhar um brilho estranho, ao mesmo
tempo que uma dor, uma mágoa o corroíam. Com voz grave e
rouca, murmurou entre os dentes:
— Vou sim! Vou matar aqueles dois!
— Não!!! — ela gritou determinada, segurando-lhe a mão que ia
ligar o carro novamente. E falou firme: — Humberto! Por favor, me
escuta! — Ele a encarou com olhos vidrados, e ela continuou: —
Você teve mais decência, mais dignidade em ter deixado os dois lá!
Não se iguale aos dois! Não seja tão baixo! O que fizer agora pode
se voltar contra você! Não perca a razão, o caráter!
— Eles não podiam fazer isso comigo!!! íamos nos casar no sábado!!!
Não acredito no que eu vi!!! — Ele tremia e suava frio. Estava
transtornado. Após alguns segundos, lembrou: — Eu não amo a
Irene, mas ia me casar pelo meu filho!!! Eu ia abrir mão de toda a
minha vida por isso e ela sabia!!! Desde quando os dois estão
juntos?!! Será que esse filho é meu?!!
Lívia, em lágrimas, abraçou-o, puxando-o para junto de si, e
Humberto debruçou-se em seu ombro, abafando o choro.

Ela não disse nada. Entendia o seu desespero. Sabia o quanto ele
estava sofrendo e, qualquer coisa que falasse, provocaria mais dor.
Longo tempo se passou e os dois continuavam em silêncio.
Abraçado ao volante, através dos vidros do carro, ele olhava para o
céu escuro coberto por longas nuvens carregadas por um vento
gelado. Ainda sentia faiscar no peito um ódio mortal, nascido da
indignação.
Ela experimentava um enfraquecimento, algo que esgotava suas
forças. Estava exausta e incrédula com o que acontecia.
Finalmente, Humberto a olhou e perguntou sério:
—O que você vai fazer?
—Não posso mais encarar o Rubens. Nunca mais quero vê-lo.
Depois disso... Eu o odeio tanto! Estou com nojo dele!
—A idéia de matá-lo não me sai da cabeça — falava de um modo
calmo, muito estranho, como se estivesse planejando algo. — Se eu
queria uma oportunidade para fazer isso... Esse é o momento.
—Pelo amor de Deus, Humberto! Pare com isso! Não fale assim!


—A lembrança dos dois juntos, na minha cama, não me sai da
cabeça e...
—É lógico! Acabou de acontecer! Eu também não esqueço!
—Estou sentindo algo muito estranho, Lívia. Não consigo me
controlar.
Ela virou-se para o rapaz, segurou com força suas mão geladas e
úmidas, e com fala firme olhou em seus olhos como se invadisse sua
alma e pediu:


— Ore! Por favor, ore! Faça a prece que Jesus nos ensinou.
Algo apertava o coração de Lívia como se fosse um mau presságio.
Ele recostou a cabeça no encosto do banco, fechou os olhos e orou
como ela pediu.
Lágrimas corriam pelos cantos de seus olhos cerrados, e uma
nuvem de dor pairava sobre o seu rosto pálido. Vez ou outra,
engolia a seco enquanto um soluço o estremecia.

Passados alguns minutos, suspirou fundo, abriu os olhos e esfregou

o rosto com as mãos.
Olhou para Lívia por vários segundos sem nada dizer. Ajeitou-se no
banco, ligou o carro e falou decidido:
—Vamos embora.
—Eu vou para a sua casa. Não quero que fique sozinho. Estou
preocupada com você.
Lívia temia que ele retornasse ao apartamento e fizesse algo contra
o irmão ou Irene. Queria acompanhá-lo para garantir que não
praticaria qualquer loucura.
Chegando próximo a sua residência, Humberto parou o veículo na
rua. Não tinha vontade de abrir a garagem, muito menos de entrar.
Não sabia se Rubens estaria em casa nem como iria reagir ao ver o
irmão.
Era bem tarde da noite. Sentia-se estranho, como se um cansaço o
dominasse.
Debruçado ao volante, não dava importância à voz de Lívia, que
pedia preocupada:


— Humberto, vamos entrar? Vamos conversar com sua mãe? Ela
saberá nos aconselhar. Não é bom ficarmos aqui.
A muito custo, ela o convenceu.
Dentro de casa, ele entrou com modos estranhos. Passou por sua
mãe e irmã andando firme, sem encará-las ou cumprimentá-las.
Dona Aurora e Neide não entenderam o que estava acontecendo.
Ele não costumava agir assim quando chegava a sua casa. Ao
contrário, Humberto era sempre alegre, beijava-as e as
cumprimentava sorridente.
O rapaz foi para o quarto que dividia com o irmão. Dona Aurora,
estranhando o jeito da moça e sua presença ali, perguntou:
— O que aconteceu, Lívia?!
Ela se sentou e começou a contar.
Mesmo sob o efeito do choro e dos soluços impertinentes, contou
tudo. No final, a senhora disse horrorizada:

— Meu Deus! Eu desconfiava disso! — murmurou assustada,
incrédula.
— Desconfiava e não me contou!!! — Humberto gritou e com voz
forte, pois havia chegado à porta e escutou sua mãe.
—Por que não me contou, mãe?!!
—Eu poderia estar enganada! E uma acusação muito grave! Calma,
meu filho!
—Como pode me pedir calma?!! Como acha que estou me
sentindo?!!
—Seja realista, Humberto! Foi ótimo isso ter acontecido! Você não
gostava mesmo da Irene e ia se casar por obrigação!
—opinou a irmã.
—Cale a boca, Neide!!! Fica quieta!!! Você não sabe o que está
dizendo!!! — gritou ele, incontrolado.
—Sei sim! Pode parecer o fim do mundo, mas ganhou a sua
liberdade! Aliás, vocês dois estão livres! — tornou a jovem
Lívia, sentada à mesa da cozinha, debruçou-se sobre os braços e
chorou em silêncio, inconformada.
Humberto, extremamente nervoso, não sabia o que fazer. Sentia-se
mal. Uma tontura o dominava. Precisou apoiar uma mão na parede
para se segurar, sem que alguém percebesse, e recostou a testa no
próprio braço.
Repentinamente, um barulho de moto anunciou a chegada de
Rubens.
Humberto ergueu a cabeça e apurou o olhar febril em direção à
porta. Seu belo rosto achava-se conturbado e sisudo, quase
irreconhecível.
A passos rápidos, apanhou uma faca grande de cozinha, que estava
sobre a pia, e saiu quase correndo, em direção da porta que dava
para um quintal, depois para a garagem.
Lívia, atenta e deduzindo o que poderia acontecer, bem ligeira, foi
atrás dele.


Ao chegar à garagem, Humberto encarou o irmão. Rubens estava
pálido e nervoso.
Ao ver a faca na mão do irmão, balbuciou:


— Espera aí, cara!!! Vamos conversar!!!
Com voz grave, baixa e rouca, o outro respondeu indo a sua
direção:
— Não tenho nada pra conversar. Desgraçado!!!
Lívia segurou-se no braço de Humberto, enquanto gritava:
— Some daqui, Rubens!!! Vá embora!!! Some!!! Pondo-se na frente
de Humberto, ela tentava segurá-lo.
Em vão.
Humberto estava completamente transtornado, irreconhecível e sob
grande influência espiritual inferior.
Empurrando Lívia contra a parede, ele foi à direção do irmão ao
mesmo tempo que Neide e sua mãe tentavam segurá-lo pela camisa.
Rubens ficou aterrorizado ao perceber que o outro se encontrava
decidido.
Rápido, o rapaz montou novamente a moto em que havia chegado,
manobrou o veículo e partiu às pressas.
Humberto sentiu-se muito mal. Teve a impressão de que iria
desmaiar. Atordoado, parou por alguns instantes, mas não ouvia o
que Lívia, sua mãe e sua irmã falavam.
Abrindo a mão, deixou que a faca caísse ao chão.
Tudo estava ficando muito confuso. Sua cabeça roçava.
Experimentava o rosto esfriar e as pernas amolecerem.
Sem se importar, automaticamente foi para o seu quarto e jogou-se
de bruços sobre a cama.
Não sabia dizer quem estava ali nem o que lhe diziam.
Mesmo deitado, achava-se tonto, exausto. Não conseguia organizar
suas idéias.
Fechando os olhos, largou o corpo e entregou-se a um
adormecimento, que não sabia dizer se era sono.



***


A claridade do céu passava por entre as frestas da janela, deixando

o quarto na penumbra.
Humberto abriu os olhos lentamente e virando-se reconheceu o
amigo Sérgio, sentado em uma cadeira ao seu lado.
Sentia o corpo dolorido. Era difícil se mexer. Forçando-se, sentou-se
na cama e verificou que dormiu com a mesma roupa que chegou.
Havia se esquecido do dia anterior. No momento seguinte, pensou
que havia tido um sonho ruim. Mas, vagarosamente, as lembranças
ressurgiam com intensidade e ele não podia negar o que tinha
acontecido.
— Tudo bem, Humberto? — perguntou Sérgio com tranqüilidade.
— Não sei... — balbuciou.
—Tome este chá — pediu ao lhe oferecer uma caneca com a bebida
fumegando. — Foi a Lívia quem preparou.
—Eu não quero. Obrigado — respondeu confuso, sem entender por
que o outro estava ali.
— Bebe um pouco, vai! — insistiu.
—Não... Estou enjoado e com a cabeça doendo. Não quero nada.
Obrigado. — Observando melhor o amigo, ele perguntou após
organizar um pouco os pensamentos: — Você soube o que
aconteceu?
—Eu soube pela Lívia e pela Neide — tornou Sérgio, sempre calmo.
—Não posso acreditar... Estou arrasado! Confuso!... — dizia ainda
atordoado. — Desculpe-me... Não precisavam ter te chamado até
aqui por causa disso. Você deveria estar no trabalho e...
—Hoje é feriado, esqueceu?
—Feriado?!... Hoje?!...
Percebendo que o amigo ainda não concatenava as idéias, Sérgio
decidiu conversar para atualizá-lo:
—Humberto, ontem o seu irmão...



—Pare! — pediu rápido e nervoso. — Não me fale nesse
desgraçado! Quero que ele morra! Se ele aparecer na minha frente,
eu o mato!
—Espere, Humberto. Ontem, depois que o Rubens saiu daqui, ele
sofreu um acidente de moto. — Observando-o perplexo, imóvel e
parecendo prender a respiração, Sérgio continuou: — O Rubens se
chocou contra a lateral de uma carreta em alta velocidade. O
impacto foi muito forte. Ele e a moto foram para baixo dessa carreta.
Após algum tempo, ordenando os pensamentos, e mesmo não
querendo considerar o que pudesse ter ocorrido, perguntou
murmurando:

— Como ele está?
Em tom calmo e triste o amigo revelou:
— O Rubens não sobreviveu.
Humberto ficou confuso. Abaixando a cabeça, levou as mãos ao
rosto esfregando-o vagarosamente, permanecendo cabisbaixo.
Mais uma vez ele não acreditava no que estava acontecendo.
Parecendo desorientado, indagou com voz trêmula:
— Onde está minha mãe?
— A sua mãe não se sentiu bem e a levaram para o hospital. Ela está
em observação e sob efeito de tranqüilizantes. A Neide está lá com
ela. O seu pai está junto com o Tiago cuidando de tudo para o
funeral do seu irmão. Os seus primos, tios e tias estão vindo para cá.
A Neide os avisou.
De repente, Humberto, como que gemendo, sussurrou:
— Ai, meu Deus! Sérgio me ajuda! — pediu com voz baixa e a
respiração ofegante. — Estou passando mal... Não sei o que está
acontecendo comigo...
Humberto foi levado ao hospital.
Sentia-se como se estivesse vivendo um pesadelo, mas com alguns
poucos momentos de lucidez.
A cena de ver Irene e Rubens juntos era incessante, imutável. A
vontade de matar o irmão vinha-lhe à cabeça constantemente. A

lembrança confusa de quando foi à sua direção com uma faca,
pronto para matá-lo, não o abandonava. Foi a última vez que o viu.
O arrependimento transformou-se em uma dor profunda,
desesperadora, cravada em seu peito de forma muito cruel,
impiedosa.

Acreditava que o seu desejo de matar Rubens tornou-se realidade
pelas energias despendidas através de seus pensamentos, de sua
vontade intensa.
Após passar horas em observação, o médico de plantão resolveu
interná-lo uma vez que nenhum medicamento o fazia melhorar.
Humberto dizia sentir tonturas, formigamento nas mãos e nos pés,
dor de cabeça. Apresentava contrações musculares e fortes
tremores.
No dia seguinte, ainda com os mesmos sintomas, negava-se a comer
e largava-se sob o leito hospitalar trazendo o olhar perdido e olhos
lacrimosos.
De vez em quando, era dominado por crises de choro intenso.
Só dormia sob o efeito de medicamento e, estando acordado, o
pouco que conversava era de forma incoerente. Parecia
desorientado.
Sérgio, muito preocupado com Humberto, foi à procura do doutor
Édison, médico psiquiatra e seu grande amigo. Foi também o seu
professor na universidade e seu atual sócio na clínica onde
trabalhava.

— Então foi isso, doutor Édison. O irmão pilotava uma moto e, não
se sabe como, entrou sob as rodas de uma carreta. O acidente foi
muito violento. O corpo do rapaz foi triturado. Ele teve morte
instantânea. Quanto ao Humberto, ele está internado há um dia e eu
sei que essa internação não lhe fará muito bem. Está sob o efeito de
medicação forte. De certa forma, sinto-me culpado, pois eu o levei
ao hospital.

—Você fez o que era preciso. O seu amigo não estava bem e
necessitava de socorro. Lembro-me dele no aniversário da Débora.
Conversamos um pouco e ele me pareceu um bom rapaz. —
Olhando para Sérgio de um jeito desconfiado, o médico amigo
perguntou, sorrindo: — E então, Sérgio? Em que eu posso ajudar? O
que quer que eu faça?
—Se não for pedir muito, doutor, eu gostaria que o senhor fosse vê-
lo, por favor. Acho que o Humberto não deveria ficar internado.
—Posso vê-lo sim. Mas sabe que não posso interferir na opinião do
médico que está tratando dele. Acredito também que esse tipo de
crise não o deixe internado por muito tempo. Para ele ficar lá, o
médico tem alguma suspeita.

***

Algumas horas depois, Sérgio estava no quarto do hospital e ao
lado de Humberto.
Seus olhos abriam e fechavam vagarosamente e ele parecia alheio a
tudo.
Chamando Sérgio para um canto, o doutor Édison explicou:
—Ele tomou uma medicação muito forte e hoje será impossível
receber alta. Provavelmente nem amanhã irá para casa. Veja, ele
passou por situações e conflitos que foram altamente estressantes.
Com certeza, é um distúrbio de estresse agudo. Dependerá dele, ou
seja, de sua estrutura emocional ficar bom o quanto antes ou não.
—Por que está sob efeito de medicamentos?


—Tremores fortes, violentos. Contrações involuntárias, o que não é
muito comum. Talvez devessem deixá-lo sem medicação por mais
tempo e... Além disso, ele reclama de forte dor de cabeça, intensa
dor no peito, desrealização e apresenta midríase.
—O que é midríase?
—Aumento dos diâmetros das pupilas. O médico está se
precavendo.



—Entendo — disse Sérgio. — Vai que o Humberto recebe alta e, de
repente, tem um infarto ou um acidente vascular encefálico!
—O jeito é aguardar. Ele está sendo bem atendido.

***

Alguns dias depois, Humberto recebeu alta e estava em sua casa.
Pouco falava. Quando lhe faziam perguntas, limitava-se a dizer: sim
ou não e havia momentos que nada respondia, deixando o olhar
triste perdido.
Preocupado com o amigo, Sérgio foi visitá-lo e Neide contou:
—Ele não se alimenta. Hoje, com muita dificuldade e depois de
muita insistência, tomou meia xícara de café com leite e nada mais.
Fica deitado o dia inteiro e, é só olhar para ele por algum tempo,
que podemos vê-lo chorar. Você vai ver! Não se barbeia! Não se
cuida!
—E sua mãe? Como ela está?


—Arrasada! Fica meio perdida. Chora... Acho que não entrou em
depressão ou não ficou pior porque tem de cuidar do Humberto. A
Débora tem vindo aqui e conversado bastante com a minha mãe.
Além de fazer companhia para ela, quando eu não estou aqui,
minha mãe se distrai com ela.
—Sua mãe e o Humberto conversam?
—Ela entra lá no quarto e fica horas falando, contando coisas
corriqueiras. Mas eu percebi que não conversam sobre o Rubens ou
a Irene. Nem ele diz nada.
—Posso vê-lo?


— Claro, Sérgio! Venha! Ao chegar à porta do quarto, Neide deu
poucas batidas
e enunciou:
— Visita para você!
Humberto pareceu fazer grande esforço para se sentar na cama
enquanto Sérgio, sorridente, adentrou falando:

— E aí? Tudo bem?!
— Como vai, Sérgio? — perguntou sem qualquer ânimo. Após
oferecer uma cadeira para o visitante se sentar
frente ao amigo, Neide pediu licença e saiu.
Acomodando-se, o amigo respondeu:
— Estou bem. E você?
— Não me sinto bem. Estou com uma sensação estranha e muito
ruim — Humberto sentia o corpo dolorido e um cansaço o
dominava. Não suportando, inclinou-se para o lado e deitou
novamente. De seus olhos fechados, lágrimas corriam pelos cantos.
—O médico prescreveu algum medicamento?
—Sim — murmurou. — Mas não está adiantando nada.
Minha cabeça está pesada, me sinto tonto, confuso. Não consigo
pensar direito. Não consigo me concentrar.
Sérgio olhou para o criado-mudo e viu a caixa aberta com a carteia
de comprimidos à mostra.
Curvando-se um pouco, pegou a medicação, olhou-a e depois a
colocou no lugar. Em seguida, virou-se para o amigo e aconselhou:


— Você precisa é sair deste quarto o quanto antes.
— Não consigo andar. Parece que vou desmaiar a qualquer
momento. Sinto uma fraqueza, e um frio percorre o meu corpo,
principalmente o meu rosto. Minhas pernas ficam fracas, como se
eu fosse cair. A sensação é de não ter mais o controle sobre mim.
O espírito Wilson, mentor de Sérgio, aproximou-se de seu
protegido, inspirando-o.
Num impulso Sérgio levantou-se, foi até a janela e a abriu. Virando-
se para Humberto, pediu firme:
—Vai! Levanta!
—O quê?
— Vou fazer com você o que eu gostaria de fazer com todos os
pacientes que me procuram nesse estado. Com eles eu não posso
fazer isso, só me limito a sugerir, aconselhar. Como você não é meu
paciente... Não vou passar vontade! — Pegando-o pelo braço, ele o

fez sentar e falou: — Vamos lá, levanta! Você precisa sair daqui o
quanto antes! Cama é lugar de dormir! Ficando aqui você só estará à
mercê de pensamentos negativos, alimentados por espíritos
inferiores.

— Estou tonto, posso cair — falou, desanimado.
— Acha que eu não consigo te segurar?! Olha o meu tamanho! —
sorriu, brincando. — Como você já está de agasalho, é só pôr um
tênis!
Humberto despendia grande força para fazer qualquer movimento.
O simples fato de pegar os calçados, para ele, era um grande
sacrifício.
Naquele momento em que decidiu agir, colocando o tênis, o espírito
Nelson, seu mentor, envolvia-o com grande fluxo de energia salutar
e, sem saber por que, Humberto obedecia ao amigo.
Com voz fraca, ele falou:
—Estou avisando, Sérgio. Não me sinto bem.
—Fique tranqüilo! Você está comigo!
Já na sala, com uma bandeja nas mãos, Neide os olhava assustada,
pois ia levar um café para eles. Sorrindo ao vê-la, Sérgio pediu:
—Você tem um pouco de leite para pôr nesse café? Seria bom o
Humberto tomar um café com leite antes de sair.
—Tenho sim! Mas... Vocês vão sair?!
—Vamos dar uma volta! — tornou o amigo.
—Um instante! — disse a jovem, que não demorou e retornou à sala
com uma xícara de café com leite. Olhando para o irmão, que havia
se sentado no sofá, Neide ofereceu: — Toma! Vai te fazer bem! Será
ótimo sair um pouquinho. Está um sábado lindo!
Humberto nada respondeu. Com enorme sacrifício, deu alguns
goles na bebida e logo colocou a xícara sobre a bandeja.
Sem deixá-lo se acomodar, o amigo convidou:


— Vamos logo! Está uma tarde linda! Será bom tomar um pouco de
sol.

Em seguida, saíram.
Enquanto andavam pelos quarteirões do bairro, Sérgio perguntou:
—Quando você retorna ao serviço?
—Na próxima terça-feira. Na segunda-feira, tenho consulta médica.
Não sei como vai ser.
—Por quê?
—Não tenho vontade de fazer nada. Tudo está sendo muito difícil.
Como vou trabalhar assim? Parece que não consigo pensar direito.
Como vou resolver situações lá na empresa?
—Diante da pressão que experimentou, do estresse que viveu e o
súbito falecimento de seu irmão, é de se esperar que esteja assim.
Mas veja, você está assim, você não é e não ficará desse jeito. Isso é
uma fase.
—Será?!
—Lógico!
—Eu gostaria de acreditar nisso. Mas o que sinto é tão intenso, é
algo tão ruim. Sinto-me incapacitado, inútil, culpado.
—Culpado pelo quê?
Humberto não respondeu. Mas, passado alguns minutos, pediu:
—Vamos voltar. Não estou me sentindo bem.
—Como quiser. Vamos sim.
Chegando a sua casa, Humberto foi direto para o seu quarto e
Sérgio o seguiu.
Ao vê-lo se sentar na cama, falou com voz firme:


—Reaja, Humberto! Não pense que a cama vai acabar com esse
estado! Ao contrário! Quanto mais você ficar aí, mais retarda a sua
melhora.
—Não consigo reagir.
—Consegue! Consegue sim! — Breve pausa e perguntou: — Você
disse que se sente culpado. Culpado de quê?!
—Você talvez não entenda porque nunca desejou morrer nem matar
alguém. Eu queria matar o Rubens antes de vê-lo com a Irene. Eu
sabia que o meu irmão não prestava, que saía com outras mulheres,



que traía a Lívia... só não sabia que traía a Lívia com a minha futura
esposa... Quando os vi lá, no apartamento, eu fiquei insano, louco.
Nunca senti tanto ódio de alguém e... — lágrimas copiosas corriam
em sua face e ele se calou.
—Qualquer ser humano normal sentiria ódio diante da mesma
situação.
—Mas ele morreu! Estou confuso! Desorientado!
—Reencarnamos com um compromisso, com vários propósitos,
com diversos planos. O desencarne do Rubens nada tem a ver com
os seus desejos de matá-lo. Ou você se acha tão poderoso assim?!
Acredita que é só desejar uma coisa e ela acontece?! Acredita que o
seu ódio ou a sua vontade de matá-lo contribuiu de alguma forma
para que ele morresse? Ora, Humberto! Seja sensato!
O outro secava o rosto com as mãos, procurando fugir-lhe o olhar.
Algum tempo e comentou:


— Eu não paro de lembrar a cena dos dois juntos... Estavam se
amando... — Breve pausa e continuou: — Fico pensando: desde
quando isso vinha acontecendo? Será que aquela criança é meu
filho? E se não for? Como saber? Eu ia terminar com a Irene, mas
por causa da gravidez resolvi me casar. Ela acabou com a minha
vida e...
Sérgio o deixou desabafar. Ao vê-lo mais calmo, parecendo exausto
e desanimado aconselhou:
—Levante. Tome um banho que vai se sentir melhor.
—É estranho, mas... Depois de conversar com você, eu já me sinto
um pouco melhor.
—Foi porque agiu. Tome uma atitude para sair desse estado.
Caminhar, falar, fazer qualquer coisa vai aliviar a tensão e é disso
que precisa. Volte a realizar as suas tarefas de antes! Retorne à casa
espírita! Você se afastou de lá, esqueceu? — O outro nada disse, e
ele reforçou: — Agora vai! Levante! Tome um banho e vá assistir à
televisão ou ler um livro. Não fique parado nem se entregue a
pensamentos decaídos. Eu sei que não é fácil, mas você pode e deve

fazer isso, Humberto. O tempo, a vida, o mundo não vão parar só
porque você está desse jeito. E é você quem precisará se tirar desse
estado, porque foi você quem se colocou nele de algum jeito.
—Eu?!
—Exatamente. Ninguém passa por uma situação de que não
precisa. Nesta ou em outra vida, você fez ou deixou de fazer algo
para hoje se colocar nessa condição. E digo mais, será nessa ou em
outra vida que você precisará agir para sair desse estado. — O
amigo ficou pensativo e nada disse. Sérgio não quis sobrecarregá-lo
com mais idéias. Acreditou que aquelas palavras eram suficientes
para sua reflexão. Logo decidiu: — Pense no que te falei. Agora
preciso ir. A Débora está sozinha e eu já fiquei fora por muito tempo
hoje.

— Obrigado por tudo. Senti-me melhor depois de sua visita.
—Não fique deitado, Humberto! Reaja!
—Pode deixar.
12
VÍTIMA DE SI MESMO


Os dias foram passando.
Humberto não seguiu as orientações prudentes do amigo. O quanto
podia ficava trancafiado em seu quarto, remoendo pensamentos
inúteis.
Esses pensamentos e sentimentos tristes e infelizes eram grandes
geradores de energias inferiores. Sem que pudesse ver, fluidos
pesarosos eram criados por ele mesmo. Tais substâncias espirituais


rodeavam-no, chamando a atenção de espíritos simpáticos àquele
estado psíquico, espiritual.
Não demorou e Humberto, sem querer e sem perceber, atraiu a
atenção de Adimar, um espírito sofredor, que se deixou escravizar
por estado emocional semelhante ao dele.

— Você sofre como eu... — lamentava o espírito Adimar,
achegando-se a Humberto. — Só você pode me entender. A vida
não tem significado nem objetivo. Tudo o que fazemos se torna um
fracasso. Eu fiz muita coisa errada quando tentei acertar, mas nada
deu certo. Fui traído. Ela não valia nada. Sou um incapacitado, um
inútil igual a você. Essa dor, esse cansaço nunca passa. A vida não
tem graça nenhuma.
Simultaneamente Humberto pensava:
"O que está acontecendo comigo? A minha vida acabou. Sou inútil.
O que vou fazer agora? Eu acabei com o meu irmão. Foi para fugir
de mim que ele morreu. Ele acabou comigo. Por causa da Irene
minha vida não tem sentido". No minuto seguinte, continuou: "Mas
ele não me respeitou. Ele e a Irene, juntos...".
Em seguida, as imagens da cena que presenciou, quando encontrou
Rubens e Irene no apartamento, vinham à sua mente de forme viva,
como se acontecessem naquele momento.
Até reações bioquímicas disparavam no corpo de Humberto,
provocando as mesmas sensações físicas como no instante em que
os flagrou juntos.
Nesse momento, ele se sentia muito mal. O seu rosto esfriava. Uma
sensação de desmaio o dominava como se fosse cair. Em meio a esse
conjunto de sensações começava a tremer e era vencido por uma
crise de choro.
O espírito Adimar, triste e infeliz, experimentou grande satisfação
por encontrar alguém tão compatível como Humberto.
Dependente, e deixando-se escravizar por outros espíritos também
inferiores, Adimar decidiu procurar um outro companheiro, na
espiritualidade, para contar a novidade.


Saindo à procura do espírito Natan, que não foi difícil encontrar,
avisou:
—Tem alguém que sofre como eu. A vida perdeu a graça para ele.
—Nosso chefe ficará muito feliz em saber disso. Já contou pra ele?


— perguntou Natan.
—Não. O caso é recente. Mas sou eu que vou ficar com essa vítima.
Fui eu quem encontrou o sujeito — afirmava com jeito melancólico
e um modo quase infantil.
—A gente recebe ordens! Cabe ao nosso chefe decidir. Mostra onde
ele está! — exigiu.
—Não. Você quer ficar com ele e fui eu que encontrei o cara. Só
conto pro chefe.
—Então vamos lá! O nosso comandante decide!
—Onde ele está? — quis saber Adimar.
—No lugar de sempre. Vamos!
Imediatamente, eles seguiram atravessando várias regiões sob o


domínio das sombras.

Era um vale infeliz onde grupos de espíritos hostis e
desequilibrados se defrontavam sem qualquer razão.
Mais adiante, alcançaram uma vila de ruas, vielas e alguns becos
sinistros. As estruturas eram de deploráveis moradias rodeadas
como que por esgotos correndo a céu aberto.
Havia vasta aglomeração de espíritos decadentes e sórdidos com
aparência horrenda, pois seus corpos espirituais refletiam as suas
viciações e revoltas.
Outros ainda, possuíam formas quase animalescas.
Todos, sem dúvida, cumpriam ali, sofrida penitência por sua
natureza rude e cruel quando encarnados.
A frente, a extensão do território mudava de aparência. Contrações
mais imponentes se erguiam, fazendo um contraste chocante com a
região deplorável e miserável que as rodeavam.


Adentrando naquele que parecia ser o edifício principal, Adimar e
Natan foram interpelados por um dos que ali estavam como
guardas do lugar.

Após dizerem com quem queriam falar, seguiram até o local
indicado.
Percorreram corredores e salões de aspecto desagradável e
iluminação bruxelenta de onde se ouviam gemidos, lamentos e
choros.
Adiante, chegaram a uma grande sala de atmosfera abafada, de
pouca claridade, mobília escura e pesada que lembravam tribunais
de séculos atrás.
O lugar estava lotado e não conseguiam entrar. Da porta ouvia-se
vozerio em meio a algo semelhante à música primitiva, cujos
tambores rufavam em ritmo alucinante e explosivo.
Sentinelas, rigorosamente uniformizadas, preservavam a segurança
do local. Um deles se adiantou frente a Natan e Adimar,
questionando a visita:

— O que querem?
— Viemos falar com o comandante de nossa equipe, o capitão
Adamastor.
Sem dizer nada, o guarda os deixou aguardando e, após minutos,
retornou acompanhado de um homem de aparência severa, com
vestimentas imponentes, parecendo as de guerreiro dos primeiros
séculos.
Diante de Natan e Adimar, ele questionou:
— O que querem?
— Tenho novidades, chefe — disse Adimar com expressão
melancólica. — Encontrei alguém que me é compatível. Posso ficar
com ele e me alimentar de suas energias? Assim vou me sentir
melhor e ficar refeito para outras tarefas. O senhor disse que eu teria
créditos se encontrasse alguém novo e significativo.

— Vamos sair daqui. Venham até a minha sala. Quero saber dessa
história direito — ordenou em tom cavernoso, medonho e com
modos rudes.
Enquanto percorriam corredores, podiam ouvir gemidos
desagradáveis, choros convulsivos e gritos atormentados de
criaturas aglomeradas e presas atrás de grades, em diversas celas.
Eram espíritos escravizados, ali, por força de atração, pois, quando
encarnados, viveram o erro moral e cometeram delitos dos mais
diversos. Caluniaram, criaram ambientes negativos com suas brigas
ou discussões sem propósito. Cultivaram o ódio, a raiva e o rancor.
Não perdoaram. Foram maliciosos, traíram, enganaram, iludiram
ou adulteraram, até em pensamento, tirando vantagem de alguma
forma. Alimentaram-se nos vícios dos assédios morais ou sexuais,
das fofocas e conversas sem fundamento sobre a vida alheia. Muitos
cultivaram a discórdia, o ciúme, a inveja. Outros, ainda, viveram os
vícios materiais, físicos. Abusaram do sexo, fumaram, drogaram-se
ou beberam destruindo células e neurônios perfeitos concedidos
pelo Pai como dadivosa bênção de saúde em um corpo físico
perfeito. Havia os que centralizaram os sentidos humanos nos vícios
do jogo, abusando das faculdades sagradas pela satisfação de elevar
o ego ou em função da ganância pessoal.
Todos vítimas de si mesmos, vítimas de suas paixões terrenas que
inferiorizaram suas almas.
Agora, no mundo real, eram obrigados a se defrontarem com as
deploráveis condições em que se colocaram.
Sem encontrar apoio ou amparo, como os que tiveram à disposição
quando encarnados, estavam aglomerados, mas sozinhos com suas
enfermidades. Muitos sofriam desequilíbrios mentais visíveis.
Outros viviam necessidades enlouque-cedoras no pântano de suas
consciências, arquivos mentais de cada um. Muitos sabiam de seus
erros. Suplicavam socorro e misericórdia.
A inquietação e o medo eram desesperadores.

Adiante, Adamastor entrou em uma sala e colocou-se atrás de uma
mesa espalmando as mãos ao indagar:
—Como aconteceu? Há quanto tempo a criatura infeliz é compatível
com você? Pois para não ter companhia espiritual, sendo como me
diz, só pode ser um caso novo!
—E um caso novo. E um rapaz. Parece que tinha conhecimento
espírita e tarefeiro na área. O cara tinha recursos, mas não era tão
bom para usar o que sabia a seu favor. Ele começou a gostar da
namorada do irmão. Parece que eles se conhecem de outras vidas.
Daí que ele tinha um compromisso com outra e queria terminar,
mas não pôde porque ela ficou grávida. Só que esse filho é do irmão
dele. O sujeito não sabia que o irmão tinha um caso com a
namorada dele até pegar os dois na cama. — Adamastor gargalhou
prazerosamente. Desferiu palavrões e riu de novo. Em seguida, fez
um gesto para que Adimar continuasse, e assim ele o fez. — Foi na
semana do casamento dele que pegou os dois juntos. Depois quis
matar o irmão, mas esse irmão fugiu de moto e morreu num
acidente. O cara ficou em choque, confuso e aí tudo ficou favorável
pra mim. Primeiro ele ficou triste, agora, está na depressão. A vida
dele não vale nada. Tudo deu errado. Está com ódio do irmão, mas
com peso na consciência.


—E quem você deixou lá para vigiar esse sujeito? — quis saber
Adamastor ainda sob o efeito do riso.
—Ah... Ninguém. Viemos aqui para falar com o senhor primeiro.
—Imbecis!!! — vociferou, irritado. — Como podem deixar uma
presa dessa sem acompanhamento de um dos nossos?!! — Depois
de esbravejar e protestar com alguns palavrões, exigiu saber: —
Onde está o desgraçado?!!
—Vamos, eu mostro — constrangeu-se Adimar.


***


Depois de refeito o caminho de volta, o espírito Adamastor, junto
com Adimar, Natan e outros quatro, que se portavam como
soldados fiéis, chegaram à casa de Humberto.
Havia algum tempo que não realizavam o culto do Evangelho no
Lar naquela residência e a energia protetora promovida por essa
prática, estava enfraquecida, quase não existia.
Além disso, havia os fluidos pesarosos trazidos e criados pelo
senhor Leopoldo, pai de Humberto, que cultivava o vício da bebida
alcoólica e era acompanhado por irmãos espirituais totalmente
desequilibrados, os quais continuavam dependentes, necessitados
das energias funestas produzidas pela bebe-ragem do homem.
Como se não bastasse, Humberto se enfraquecia mental e
espiritualmente quando oferecia atenção aos pensamentos decaídos,
sofridos e tristes que alimentava.
Não havia um campo magnético que protegesse, espiritualmente,
aquela residência e, mesmo a presença dos mentores ali, não
podiam socorrer os encarnados por eles estarem em outro nível de
elevação. Além disso, não se ajuda aquele que não deseja.
Nossos pensamentos, nossas práticas e nossa linguagem são
responsáveis pelas forças superiores que nos protegem.
Sem conseguir detectar as entidades mais elevadas, Adamastor e os
demais adentraram em cada ambiente à procura de sua vítima.
Chegando ao quarto, encontraram Humberto largado na cama,
entregue às torturas e dores de suas próprias reflexões.
Adamastor parou desconfiado, fitando o rapaz por algum tempo.
Humberto não tinha a mesma aparência de antes, mas o outro
sentiu que era alguém que conhecia.
Em absoluto silêncio, ele o rodeou conhecendo intimamente a sua
vida mental, sua organização psíquica.
Com os olhos esgazeados, como que assombrado ao reconhecer de
quem se tratava, o espírito Adamastor pôs-se firme frente a
Humberto e, após uma gargalhada estrondosa, sarcástica, falou em
tom irônico e cruel:


— Te encontrei, desgraçado!!! Como desejei te encontrar, seu infeliz!
E não precisei te procurar muito, não! Você se achava muito bom e
tinha o poder de me prender naquela colônia dizendo que era para
o meu bem, para a minha recuperação e evolução! Me deixou
trancafiado por décadas! Eu estava necessitado e enlouquecido! Os
meus vícios não eram da sua conta e eu quase fiquei louco naquela
Enfermaria dos Perturbados! Eu só queria ter liberdade e me aliviar
do que sentia, pouco importava pra você se eu precisava vampirizar
alguém infeliz ou não. — Com olhar colérico, apurado, prosseguiu
com jeito insensível: — Tanto fez que conseguiu que eu
reencarnasse fazendo eu acreditar que seria o melhor. Me
convenceu que os meus desejos sexuais foram abusivos e que minha
consciência pedia ajuste. Falou que depois desse ajuste eu seria uma
criatura melhor. Acreditando que me sentiria aliviado, até me
convenci em reencarnar, passando por experiências que você nem
imagina, seu infeliz! — Alguns minutos em que o observava, contou
enraivecido: — Vivi uma vida miserável em favelas e no meio do
crime. Sofri abusos desde menino. Não tive família. Fiz tráfico de
armas e drogas. Roubei, matei, estuprei e fui parar na prisão.
Machucado e ferido me usaram de tudo quanto era jeito. Dia e
noite! Foram anos de inferno! Depois que morri assassinado na
cadeia, fui socorrido por amigos que me esperavam, pois, para eles
eu tinha valor.
Você mentiu pra mim!!! Hoje a situação mudou!!! Eu estou no
comando!!! Sou uma autoridade agora, e você não tem mais poder
sobre mim!!!
Sou o capitão Adamastor!!! — Percebendo a fragilidade de
Humberto, ele avisou: — Tenho muitos como você! São
desequilibrados, desesperados, loucos, infelizes!!! Vou acabar com a
sua vida porque o que eu mais quero é encontrar você fraco, assim,
depois da sua morte!!!

Apesar de não ouvi-lo, Humberto sentia suas vibrações. Sem
entender o que estava acontecendo, começou a experimentar uma
sensação terrível.
O seu corpo estremecia ao mesmo tempo que pensamentos
confusos e tumultuados invadiam cruelmente suas idéias,
proporcionando um medo indeterminado.


Cerrando os olhos, afundou a cabeça no travesseiro, procurando
fugir daquelas sensações. Impossível!
Então se fechava na câmara escura da memória, sem buscar saída.
Assim passou a tarde.
Adamastor circunvagou o olhar tentando ver como estava a
espiritualidade daquela residência. Visualizando energias
negativas, produzidas pela presença de bebida alcoólica e irmãos
infelizes que permaneciam, ali, à espera do senhor Leopoldo, sentiu
um contentamento inebriante. Sabia que Humberto poderia ficar à
sua mercê se continuasse com aquele nível de pensamento e sem
reações que o impulsionassem a uma melhora.
Virando-se para um de seus subordinados, o espírito Adamastor
ordenou:


— Você vem comigo! Os outros ficam aqui tomando conta dele e da
casa. Ele é meu! Voltarei com reforço. Esse cara não pode escapar!
Continuem envolvendo esse infeliz com suas energias para que ele
esmoreça a cada segundo e não reaja! — Voltando-se para
Humberto, ainda falou: — É uma pena você não ter nenhum
desequilíbrio na área do sexo, do vício no álcool nem cigarro nem
outras drogas. Se tivesse... Ah!... teria muita afinidade comigo e eu
faria você conhecer o inferno por muitas e muitas reencarnações,
pela frente, pois eu o ajudaria a cometer tanta coisa... Mas antes,
seria escravizado e meu prisioneiro por séculos! Seu infeliz! Porém
ter você nesse estado, já é grande coisa. Aguarde! Vai ver o que eu
vou fazer com você!
Dizendo isso ele se retirou rapidamente.

***


Humberto sentia-se dominado por uma exaustão indescritível,
mesmo com o correr dos dias.
Desde os últimos acontecimentos tão severos e o início daquelas
sensações perturbadoras, ele esperava sentir, gradativamente, um
alívio para tudo o que experimentava, mas isso não acontecia.
Cerca de três semanas se passaram e quase nenhuma melhora.
Havia ido ao médico Clínico Geral que o encaminhou a um médico
Psiquiatra de quem não gostou. Depois passou por outro
especialista e, após longas conversas, em que contou tudo o que lhe
aconteceu, ele lhe prescreveu outro antidepressivo, aconselhou
caminhadas, ambientes alegres e procurar seguir uma vida normal.
Retornando ao trabalho, mal tinha energia para sequer
sorrir.
Os seus nervos e músculos da face pareciam permanecer sempre
contraídos, retesados.
A ascensorista o cumprimentou e sorriu ao abrir a porta do
elevador para o décimo andar e ele mal agradeceu.
Todos o olhavam com certa expectativa, pois, de alguma forma,
souberam de todo o ocorrido durante o velório de seu irmão. Os
conhecidos, que lá compareceram, notaram sua falta e questionaram
aos demais, que especularam sobre o assunto.
Dessa forma, Humberto imaginava o que estariam ou não pensando
e comentando a respeito dele. Isso causticava sua mente,
provocando-lhe imensurável sofrimento psíquico que se irradiava
para o físico.
Durante todos os dias em que permaneceu em casa, recusou receber
visitas e atender telefonemas dos colegas.
Somente Sérgio e Tiago o visitavam. E todas as vezes que Lívia foi
vê-lo, Humberto não a encarou, não disse absolutamente nada.


Ao retornar ao serviço, não foi à casa da jovem para pegá-la, como
sempre, e estremecia por saber que seria obrigado a encará-la na
empresa.
Chegando à sua sala, um sofrimento infinito o abatia. Uma confusão
mental não o deixava se concentrar em nada. Precisava de muito
esforço para ficar atento.
As horas foram passando. Por várias vezes, precisou debruçar-se
sobre a mesa de trabalho por não suportar a sensação doentia que o
dominava.
Sua assistente, como sempre fazia, havia deixado tudo preparado
para o seu dia começar.
O computador já ligado, mas com a tela vazia e uma imagem,
símbolo da empresa, rodopiando vagarosamente de um lado para
outro do monitor em silêncio. Formulários e requisições precisando
de sua assinatura estavam sobre a mesa. Contratos e relatórios, que
não foram lidos, a sua espera. Tudo por realizar.
Olhando para tudo, Humberto parecia não reconhecer o seu
trabalho. Não sabia o que fazer primeiro. Julgava-se incompetente,
totalmente inútil, um incapacitado.
Os espíritos que o seguiam, reforçavam os seus pensamentos
negativos e depressivos. Um deles dizia:

— Tudo é muito, muito difícil. Você nem sabe pra que está aqui!
Enquanto outro prosseguia:
— De que adianta se esforçar tanto? A vida é uma desgraça! Você
sempre foi bom, honesto, mas e agora? De que valeu sua
honestidade? Viu no que deu? Seu irmão tá morto por sua culpa! A
morte te espera. Você vai sofrer mais ainda, mais do que seu irmão
sofreu quando sentiu o corpo sendo triturado pelas rodas pesadas
daquela carreta em meio às ferragens da moto. Foi horrível!
Horrível! Horrível! O Rubens estava com medo! Medo! Medo!
Medo! Apavorado! Apavorado! Sem saber o que fazer!
Imediatamente, uma sensação desconhecida invadia Humberto.

Sentia o rosto esfriar e algo lhe doía no peito e no estômago.
Pensamentos terríveis, obscuros o assaltavam.
Começou a se lembrar de seu irmão, do desejo que teve de matá-lo.
Em seguida, ficou imaginando a cena de sua morte como se
estivesse acontecendo em câmera lenta. Como se pudesse perceber,
vagarosamente, a dor e o desespero de Rubens.
Uma aflição extrema o dominou, e ele se forçava a não chorar, mas
as lágrimas eram mais teimosas.


— Vamos! Vai! Se mata! O que está fazendo aí ainda?! — diziam-lhe
incessantemente os espíritos inferiores que o acompanhavam. —
Depois de tudo o que fez, só terá sossego na morte! Vamos!
Todas aquelas impressões incomuns lhe eram passadas com fluidos
pesarosos, terríveis.
De repente, ouviu ligeiras batidas e a porta de sua sala se abrindo.
Humberto se levantou rapidamente. Tentando disfarçar, começou a
olhar pela janela ao escutar sua auxiliar administrativa dizer:


— Com licença! — entrando, Júlia fez soar seu salto no piso ao ir até
sua mesa mostrando: — Aqui estão os relatórios de fechamento das
últimas semanas. Acredito que deva acompanhar o movimento,
pois, apesar de ter ficado ausente, deve saber de detalhes, porque o
doutor Osvaldo convocou uma reunião para amanhã à tarde.
Acredito que... — Observando-o com o olhar perdido, através da
vidraça, ela perguntou: — Tudo bem, Humberto?
Com uma voz estranhamente calma, ele respondeu sem encará-la:
—Estou me sentindo diferente. Confuso.
—Já é quase meio-dia — avisou Júlia, depois de passar as vistas
sobre a mesa.
—E o que tem isso?
—E que não leu os relatórios nem assinou os formulários. Preciso
da liberação para a compra dos materiais importados para antes do
almoço. Vejo que sua mesa está intacta.

Humberto se virou. Seu rosto belo e agradável que sempre
expressava quase um sorriso, mesmo quando sério, agora estava
congelado em uma fisionomia sofrida e triste.
Caminhando dois passos, chegou até a cadeira frente à sua mesa e
se acomodou.
Parecendo doente, sem ânimo nem energia, colocou o cotovelo
sobre a mesa e apoiou a testa na mão. Dominado por um mal-estar
terrível e pensamentos dolorosos, não conseguia reagir.
—Humberto, você quer ir ao ambulatório? O doutor Cássio está aí.
—Estou farto de médicos, Júlia. Os remédios não adiantam e, a cada
dia, sinto-me pior.
—O que você sente?
—Minha capacidade de concentração está reduzida. Não tenho
ânimo para nada. E como se a vida e as coisas à minha volta
tivessem perdido a cor, perdido o brilho. Nada tem graça. Estou
sensível a tudo que vejo e ouço. Todas as situações à minha volta
são desagradáveis e qualquer problema se potencializa, pois não me
sinto capacitado para resolvê-lo.
Júlia respirou fundo, puxou a cadeira em frente à mesa do diretor e
se sentou comentando:

— Humberto, eu estive no velório do seu irmão. Soube, através da
Neide, que você estava internado. Soube também o que ocorreu.
Aliás, eu acompanhei todos os últimos acontecimentos da sua vida.
E... Posso ser sincera, mesmo? — Ele se jogou para trás, largando-se
no encosto da cadeira, acenou positivamente com a cabeça e Júlia
continuou: — Você estava confuso, em conflito antes de marcar o
casamento. Chegou a comentar comigo que a Irene estava diferente
nos últimos tempos e a idéia do noivado o aborrecia. Quando
telefonava para ela, nas sextas-feiras, nunca a encontrava. Lembro
porque era eu quem fazia as ligações para você. Depois,
repentinamente, resolveu se casar com a Irene. Ao mesmo tempo,
eu observei você e a Lívia e... Comentou comigo que ela queria ser
transferida para o Rio porque queria terminar com o namorado... Vi

vocês dois conversando no carro e... Eu percebi algo, Humberto. —
Breve pausa e falou: — Desculpe-me comentar, mas eu não tive
como não perceber.
Ele estava calado. Sua fisionomia ostentava uma tristeza profunda e
infinita. Com extrema dificuldade, perguntou:


— Todos perceberam? Dava para qualquer um perceber?
— Não. Com certeza, não. Eu estava mais perto de vocês. Foi por
isso.
— Eu não tenho nada com a Lívia. Nunca tive.
—Eu acredito! E talvez seja por isso que esteja assim. O seu irmão e
a sua namorada te traíram descaradamente! Eles foram dois
safados!
—Pare com isso, Júlia — pediu, incomodado com o assunto.
—Talvez experimentando um pouco de raiva do seu irmão e da
Irene vai fazer você se sentir melhor!
—Nada me faz sentir melhor. Quando vou ao centro espírita, como
fiz semana passada, sinto uma pequena dose de alívio. Tenho um
pouco de fé e esperança de sair desse estado horrível, mas depois
tudo passa. Não dá para descrever exatamente o que sinto. São
sensações e sentimentos que nunca experimentei antes dessa forma.
Tudo é muito intenso. Minha mente fica confusa e meus
pensamentos são invadidos por um turbilhão de imagens, idéias ou
acontecimentos horríveis. Junto com isso, uma sensação de pânico,
um pavor terrível me domina. Começo a ter tremores e suor frio.
Tenho a impressão de que vou desmaiar, de que vou morrer. Uma
angústia imensa, junto a um pavor irracional, tomam conta de mim.
A noite, tudo se intensifica. Quando durmo, o sono é agitado ou
então é extremamente pesado. Mas não satisfaz. Tenho sonhos dos
quais não lembro detalhes e acordo com o coração aos saltos, dor no
peito, suando e tremendo. Há momento em que a dor na alma é tão
intensa que eu não suporto. Então preciso chorar sem até saber o
porquê. Chorar alivia um pouco.
— Isso é síndrome do pânico?

—Um médico disse que é síndrome do pânico. Outro diz que é
depressão. Teve outro, ainda, que disse que são as duas coisas. Há,
ainda, um que deu o nome de outro tipo de transtorno psicológico.
Em todo caso, fico apavorado em pensar que estou,
psicologicamente, desequilibrado.
—Grande número de pessoas que ficam emocionalmente abaladas
por acontecimentos desagradáveis ou estressantes experimentam
um estado psicológico parecido com esse seu.
—Eu preciso retomar a minha vida, Júlia. Mas me sinto fraco,
abalado, sensível a tudo e a todos. Não consigo nem organizar os
meus pensamentos. Quando falo, só quero reclamar do que sinto.
—Como está a Lívia? Tem conversado com ela?
—Não — respondeu secamente.
—Você não a trouxe hoje? — tornou a secretária.


— Não. Desde quando tudo aconteceu... — Humberto deteve
as palavras. Sua voz embargou pelos fortes sentimentos tristes e
indesejáveis. Os seus olhos, febrilmente brilhantes, empoçaram-se
com lágrimas que ele fez de tudo para disfarçar, esfregando o rosto
discretamente. Rápido, alinhou os cabelos, respirou fundo e ajeitou-
se na cadeira. Era como se tivesse, na alma, feridas difíceis de
fecharem. Esforçando-se para falar, pediu: — Júlia, esse assunto não
me faz bem. Não me vejo preparado para falar sobre isso.
—Não quero parecer inconveniente, mas precisa se preparar para
lidar com essa situação. A Lívia está aí! Vai se deparar com ela a
qualquer momento! A propósito, e a transferência dela para o Rio
de Janeiro? Como vai ficar?
—Não sei. Ela tem dificuldades com o pai e, talvez, ainda queira ir
para o Rio por causa disso.
—Vai precisar falar com ela a respeito, pois queria a transferência
por causa do Rubens, mas, agora...
—Júlia, você pode falar com ela a respeito disso? Cuide dessa
situação para mim, por favor.

—Tudo bem. Posso falar com ela sim. Mas, veja bem, até quando vai
fugir da Lívia?
Sentindo-se fraco, quase sussurrou:


— Não sei. Eu não estou conseguindo pensar. Pode resolver
isso para mim?
Levantando-se, avisou:
—Está certo! — E lembrando, perguntou: — E aquele seu amigo, o
psicólogo? Tem conversado com ele a respeito disso?
—Ele sabe o que está acontecendo. Na verdade, sou eu que estou
sem ânimo para fazer o que ele indicou. Caminhada, meditação,
relaxamento, leitura, ir ao centro ou sei lá mais o quê.
—Minha irmã esteve assim, como você, e foram exercícios,
caminhada, casa de orações e coisas assim que a fizeram melhorar.
Ela precisou levantar da cama sozinha, pois remédio algum a tirou
de lá.
—É o que todo mundo me diz. Mas não tenho disposição para sair.
Quanto aos exercícios de relaxamento, mentalização ou meditação...
quando faço acho que não têm efeito algum.
—Ora, Humberto, você sabe que os exercícios mentais de
relaxamento, reflexão, harmonização são práticas que produzem
resultados certeiros, mas não são como passes de mágica ou da
noite para o dia, principalmente, para com as pessoas que não têm o
hábito dessa prática.
—É, eu sei. Você tem razão — respondeu desanimado. — Em todo o
caso, não tenho conversado com ele. A filhinha dele nasceu e...
Falando nisso, preciso visitar a garotinha. Poderia providenciar um
presente para a nenê?
—Claro! Vou providenciar — avisou. Mas antes de sair, pediu: —
Humberto, por favor, assine a liberação para a compra dos materiais
e produtos químicos importados.
Após rapidamente assinar os papéis, ele perguntou:
—O que mais?

—Dê uma lida no fechamento das últimas semanas. O doutor
Osvaldo convocou uma reunião para amanhã e será melhor você
estar por dentro de tudo.
—Obrigado, Júlia.
Com olhos fixos nele, sentindo certa piedade, ela ainda
disse:
—Sei que o momento que está passando é bem turbulento. Se
precisar de mim, nem se for só para conversar, é só chamar.
—Certo. Obrigado — ele agradeceu, sentindo o rosto pesado,
contraído, sem conseguir sorrir.


Júlia o deixou sozinho novamente e, com isso, pensamentos
direcionados por espíritos inferiores que o acompanhavam o
desviavam da fé raciocinada, da esperança num futuro próprio e da
importância de determinadas experiências terrenas, próprias da
evolução humana.
Experiências essas que, apesar de dolorosas, servem para nos
corrigir e elevar.
Muitos daqueles que superam tais transtornos se tornam criaturas
melhores, com mais potencial e mais fortes do que antes.
Conseguem descobrir em si talentos que desconheciam e passam a
viver com mais harmonia, fé e paz.
Humberto vacilava em sua fé, apesar de todo o seu conhecimento.
Ele era simplesmente vítima de si mesmo.



13


GOTAS DE ALÍVIO


Em sua casa, Humberto não oferecia atenção a nada nem a
ninguém.
Uma onda de tristeza e gigantesca amargura o tragavam para uma
profunda depressão.
Era dominado por um desejo mórbido de se deixar largar sobre a
cama com as janelas fechadas e o mínimo de luz possível, vinda da
porta do quarto entreaberta.
Na espiritualidade, a cada dia tudo era mais desagradável. Espíritos
de aparência deplorável com vívida aflição, ansiedade e desespero
enchiam o ambiente. Alguns se prostravam ajoelhados ao lado dele,
atentos aos seus pensamentos e prontos para envolvê-lo, a todo o
momento, com energias inferiores, desagradáveis que certamente
acentuariam ainda mais o seu desequilíbrio.
Humberto se propunha a rezar, mas suas idéias se confundiam. Era
como se ele tivesse dois pensamentos ao mesmo tempo. O seu
mentor Nelson o envolvia, acompanhando-o em cada palavra na
oração. Porém, na primeira distração, ele desanimava entregando-se
às torturas emocionais que o castigavam, dificultando a sua união
com o Pai da Vida e impedindo

a recepção de energias novas, bênçãos que o iriam recompor física e
espiritualmente.
Adamastor acabava de chegar com um pequeno grupo que o
acompanhava como cães fiéis.
Trouxeram arrastados espíritos doentes, escravizados, inferiores e
incrivelmente sofredores, além de espíritos que perderam a forma
humana e possuíam uma aparência tal qual um verme gigante, de
cor parda acinzentada, que pareciam ser de matéria viscosa,
escorregadia, nojosa, conhecidos como ovóides.


Como se trovejasse, Adamastor ordenou: — Aqui estão as
ferramentas de que precisam para o trabalho com Humberto!
Primeiro será preciso que ele fique bem fragilizado, espezinhado,
torturado e ferido devagarzinho. O desespero nele irá se instalar.
Ele vai se render e se colocar à minha disposição. Fará tudo o que eu
quiser. — Apontando para alguns dos espíritos que havia trazido,
continuou: — Segundo, com esses doentes ligados a ele, a
vampirização será incessante. Assim que estiver bem abalado, esses
outros — apontou para os espíritos com formato ovóides —, devem
ser imantados a ele para promoverem total desordem psíquica, pois
é impossível equilibrar aquele que não deseja se equilibrar. E assim
que eu quero ver esse sujeito! Confuso, tonto, baratinado, sem
qualquer controle sobre si e dependente. Poderá vir ajuda dos
quintos dos infernos que ele não vai se erguer mais! Nunca mais!
Nesse momento, Humberto, largado sobre a cama, era impregnado
de energias espiritualmente nojosas, inferiores. Ele não reagia.
Inerte, inalava substâncias escuras que se irradiavam para o seu
peito, deixando-o espiritualmente opaco. Assim que os espíritos
extremamente doentes, deformados perispiritualmente, foram
encostados em Humberto, suas melhores energias começaram a ser
sugadas. Os espíritos, por intermédio de fios magnéticos
incrivelmente sutis, vampirizavam-no através de um processo
intenso e, cuidadosamente, ligado às costas, no peito e, em
particular, na medula e na cabeça.
A essa altura, Humberto se sentia mais exausto do que nunca. Uma
sensação desesperadora o dominava e ele enfraquecia, sem
qualquer ânimo para reagir contra aquelas mentes enfermiças.
Enquanto isso, Adamastor gargalhava prazerosamente, em vista ao
sucesso de seus procedimentos.

***


Bem mais tarde, dona Aurora chegou. Por sua sensibilidade, logo ao
entrar, sentiu a casa impregnada por uma atmosfera pesada e triste.
Sem entender o que acontecia, a senhora se deixou envolver por
uma angústia devastadora. Imediatamente a lembrança de Rubens
veio a sua mente.
Aquela seria a hora do filho chegar a sua casa. Lembrou-se de seus
costumes, de preparar-lhe alguma refeição e foi quando uma dor,
em forma de saudade, castigou-a incrivelmente.
Em pé, encostada em um canto da pia da cozinha, ela chorou
compulsivamente.
Um desespero a dominou ao recordar de como tudo aconteceu tão
rápido.


Seria Humberto o culpado por tudo o que aconteceu ao irmão?
Afinal, se ele não fosse com aquela faca atrás de Rubens, o irmão
não precisaria ter saído de casa naquela hora nem daquele jeito.
Por outro lado, pensava que ela mesma poderia ser a culpada, pois
havia desconfiado de algum romance entre Rubens e Irene, mas não
disse nada. Poderia tê-los repreendido. Talvez, se tivesse contado
ou sugerido a Humberto, sutilmente, o que suspeitava, seria tudo
diferente.
Não deveria ter deixado o seu filho marcar o casamento. É provável
que não se sentisse tão traído e a situação se resolvesse de outra
forma. Mas nada disso aconteceu e agora um de seus filhos estava
morto.
Uma dor infinitamente profunda cravou-lhe o peito impiedosamente.
Não havia nada que pudesse fazer. Então um
desespero a dominou em doloroso choro.
A chegada de Neide não a inibiu.
Amorosamente, a filha se aproximou. Envolveu-a com terno carinho
e perguntou piedosa, apesar de saber o que estava acontecendo.


— O que foi, mãe?
—Saudade, filha! Saudade! — explicou, sussurrando em tom
lamurioso entre os soluços. — Você não imagina como é a dor de

perder um filho! Ninguém deveria viver mais do que um filho! Eu
quero o meu filho de volta... — chorava copiosamente.
—Mãe, preste atenção — dizia a jovem entre as lágrimas —, eu
entendo o seu sofrimento. Porém, quanto mais a senhora se deixar
ficar nesse desespero maior será a sua dor.

A vida não acaba com a morte. O Rubens não morreu. Ele vive em
outro plano e recebe suas preces, suas bênçãos, seu amor e tudo o
que a senhora pensar, disser e lembrar em relação a ele. Eu sei que a
senhora é católica, vai todo domingo à igreja. Sei também que
acredita nos ensinamentos espíritas e por isso sabe que o Rubens
sente os seus pensamentos, recebe as suas preces. — A mãe não
dizia nada e Neide perguntou: — A senhora quer que ele sofra?
Murmurando de maneira lamentosa, dona Aurora respondeu:

— Não...
Afagando-lhe o rosto, Neide propôs:
— Então reaja, mãe. Sinta saudade, chore, mas não entre em
desespero. Continue sendo uma boa mãe.
— Tudo o que eu faço me faz lembrar do Rubens.
— Que bom, mãe! Isso significa que ele vive no seu coração! Quer
dizer que a senhora o ama e nunca vai esquecer-se dele! Tudo é
muito recente, somente o tempo e o amor vão aliviar essa dor. Pense
comigo: a senhora acha que o Rubens gostaria de ver a senhora
assim, tão angustiada, entregue a esse choro desesperador?
— Não...
— Então faça algo produtivo e bom. Assim ele irá receber melhor o
seu amor. A senhora vai transmitir a ele muita paz e luz. Então,
mesmo longe, ele ficará muito bem. O que mais precisamos agora é
cuidar do Humberto.
Enxugando as lágrimas com as mãos, esfregando o rosto, dona
Aurora comentou terrivelmente entristecida:
—Estou desesperada por causa do Humberto. Ele não está bem.



—Vamos cuidar dele, mãe. Se a senhora continuar desse jeito, o
Humberto vai se sentir pior e vai demorar para sair desse estado.
Respirando fundo, apesar de toda a dor, a mãe arrancou forças do
fundo da alma e afirmou:
—Seu irmão vai ficar bom. Vou cuidar dele. Deus é grande!
—Ele já chegou?
—Acho que sim. Vou ver.
Imediatamente, dona Aurora foi até o quarto de Humberto.
Chegando lá, ficou aterrorizada ao ver o filho sobre a
cama.
Ele estava deitado de lado, coberto com uma colcha. Podia se
perceber os tremores de um choro sufocado.
—Meu filho! O que foi?! — Ele não respondia e sufocava o rosto no
travesseiro. Puxando a coberta, ela quis ver sua face e tocando-a
com carinho, pediu amorosa, mesmo em lágrimas: — Humberto,
não faça isso, meu filho! Olhe para mim!
—Mãe... Me deixa, mãe... — respondeu com extrema dificuldade e
com a voz abafada.
—Levanta, Humberto! Você não trocou a roupa nem tomou banho.
O espírito Nelson, mentor do rapaz, aproximou-se da senhora e,
percebendo sua elevação moral, pois apesar de toda força espiritual
inferior que havia ali e da dor não se deixava abater como o filho,
envolveu-a com energias superiores e a intuiu. Momento em que a
mulher reagiu firme.
Arrancando a colcha em que Humberto, praticamente, embrulhava-
se, dona Aurora puxou-o pelo braço fazendo-o se sentar.
O rapaz permitia-se conduzir mecanicamente.


— Senta, menino! Respira fundo! — Estapeava-lhe o rosto de modo
fraco e bondoso, dizendo-lhe ao desabotoar sua camisa: — Vamos
tirar essa roupa. Vai tomar um banho e vai se sentir bem melhor!
Você vai ver! — falava com energia.
— Mãe, me deixa...

— Só depois de um banho e de um prato de sopa bem quentinha!
Eu fiz aquela sopa que você gosta e acabei de trazer pão fresquinho
— Abrindo o armário, pegou um agasalho e uma camiseta,
avisando: — Agora vai pro banheiro e toma um bom banho. —
Diante do desânimo do filho, ela falou firme, mas quase sorrindo: —
Se não for, Humberto, eu mesma vou fazer isso!
Ele respirou fundo e, como se precisasse despender imensurável
força física, ergueu os olhos, levantou-se e foi para o banheiro.
A sós, no quarto do filho, dona Aurora sentou-se em sua cama e
começou a orar.
Rezando baixinho, murmurava suavemente as palavras com
tamanha fé que, na espiritualidade, via-se uma luz acesa em seu
peito e, a cada momento de sua prece carregada de fé, esperança e
indescritível amor, a luz aumentava de intensidade.
— Maria, mãe santíssima! — rogava a senhora em lágrimas. —
Socorra o meu filho! A senhora, que é mãe, sabe entender o meu
sofrimento, a minha dor e também o meu amor. Envolva o meu
Humberto com o seu manto sagrado! Dai força, harmonia e paz ao
meu filho querido. Eu imploro, mãe santíssima, imploro! Em nome
de Jesus, seu filho amado! Faça com que o meu Humberto melhore
e se cure do que quer que seja que o esteja maltratando tanto. Ajuda
o meu filho, mãe do céu! A senhora sempre me socorreu! — pedia
com lágrimas correndo-lhe pela face e com fé inabalável.
Dona Aurora não pôde ver, mas, naquele instante, na espiritualidade,
fez-se uma claridade azulada de incrível beleza e uma
luzente entidade se fez presente.
De aspecto jovem e traços angelicais, exibia aparência translúcida,
sutil de uma beleza impressionante, parecendo ser formada de
substância luminosa flutuante. Transmitia bondade e amor no
quase sorriso doce.
A generosa benfeitora ponderou por segundos e considerou em tom
tranqüilo e tênue:

— Quem sou eu comparada à grandiosa entidade por quem clama?
Um espírito de tamanha elevação, como a que foi a mãe abençoada
de nosso Mestre Jesus, certamente a ouve e a socorre, sim, pois todo
coração de mãe possui a sublime essência do amor e da bondade.
Agradeço a Deus, se me permitir ajudar em nome daquela que
atingiu um dos graus mais elevados na escala dos valores morais
aqui na Terra.
A nobre entidade era Laryel, que se aproximou de dona Aurora,
ergueu a delicada e graciosa mão de onde essências luminescentes
irradiaram-se, envolvendo a senhora. Enquanto tarefeiros de sua
confiança recolhiam do mesmo fluido, utilizando-o para
magnetização do reservatório de água da casa.
Em seguida, a nobre benfeitora curvou-se envolvendo dona Aurora
em generoso e terno abraço e comentou bondosa:

— Muitas coisas acontecem por nossa invigilância. Mas, sem
dúvida, essas experiências servirão de aprendizado para a elevação
do homem de bem. Nosso querido Humberto tem missão a cumprir
ao lado de Sérgio, mas necessitará, antes, cultivar o amor
incondicional e o perdão verdadeiro. Conhecemos o seu passado
digno e suas nobres tarefas no campo do auxílio e do socorro. Ele
próprio desejou colocar-se em prova, na presente encarnação, caso
se desviasse da bondade e do amor. Esse querido filho do coração
precisará criar forças interiores para se superar e se libertar das
amarras da dúvida e da insegurança, voltando-se para a fé que
sempre cultivou. Estaremos ao seu lado amparando-o com gotas de
alívio, que ele deverá aproveitar. Serão momentos de trégua para
reflexões, elevação e ação. Conforme ele pediu no planejamento
reencarnatório, vamos fortalecê-lo à medida que se dispuser a agir,
elevar-se e buscar, no Pai Celeste, a sua força para recomeçar e dar
rumo ao seu coração sem destino.
Uma indizível serenidade tomou conta do coração de dona Aurora.
A mãe de Humberto parou de chorar, secou o rosto com as mãos e
murmurou:

— Obrigada, nossa senhora. Proteja o meu Humberto e socorra o
meu Rubens. Não deixe o meu filho que morreu sem socorro.
Proteja o Rubens, com as bênçãos de Deus, de todo mal.
A elevada Laryel ofereceu sorriso sutil e orientou:
— O querido Rubens será socorrido quando aceitar e entender a
condição do irmão e aprender a sentir o seu amor. No entanto,
como poderei negar o pedido de uma mãe sincera? — Bondosa,
afirmou: — Mãe, ele será assistido. — Olhando para os demais
companheiros espirituais que a auxiliavam, solicitou generosa: —
Quando o querido Rubens despertar, não permitam que seja
envolvido por perseguidores nem que se retire desta casa, pois aqui
será mais fácil socorrê-lo no momento em que estiver preparado. Se
sair daqui, os inimigos do passado poderão envolvê-lo e arrastá-lo
para um vale de grande sofrimento. Lamento não podermos levá-lo
para local apropriado e seguro. Colaborem para que ele receba
ajuda para se refazer um pouco e não experimentar os horrores do
estado em que ficou o seu corpo físico por conseqüência de seu
desencarne.
O banho, pelo contato da água corrente magnetizada em seu corpo,
aliviou Humberto de alguns miasmas e ele se sentiu um pouco
melhor.
Adamastor havia se retirado. Os espíritos que o prejudicavam não
entendiam o que havia acontecido, quando o viram mais refeito e
livre de alguns dos procedimentos espirituais inferiores. Eles não
identificaram a presença de Laryel e seus companheiros.
Perceberam somente que algo estranho ocorreu.
Contrariados, resolveram intensificar o que faziam, mas teriam de
começar tudo de novo.
Após o banho, Humberto foi para a cozinha e sentou-se à mesa.
Sua mãe serviu-lhe um prato com sopa quente e reconfortante que
ele, vagarosamente tomou. Também se serviu de pão e mais nada.
Aquela alimentação continha energias especiais. Eram fluidos
transmitidos por dona Aurora através de seu amor e carinho

dispensados durante o preparo dos ingredientes. Pensamentos
elevados, de satisfação, generosidade e ternura impregnam todo
alimento, como também o oposto acontece.
Ao terminar a refeição, Humberto nada comentou e por alguns
instantes sentiu-se muito melhor, mais refeito.
Pensou que talvez o seu mal estar fosse por má alimentação. Mas
não demorou e sua cabeça pareceu pesada novamente e precisou
ampará-la com as mãos apoiando os cotovelos na mesa.
Neide, que falava de um acontecimento de seu serviço, interrompeu

o assunto e contou:
—Fui visitar a nenê da Débora. Que coisinha mais linda! Você tem
que ver, Humberto! Eu ia comprar um presente, mas não tive
tempo. Então fui lá e fiquei devendo a lembrancinha — riu. — Você
deveria ir lá! Não é, mãe?!
—E verdade, filho. O Sérgio é seu amigo... Fui lá várias vezes e ele
sempre pergunta de você. Eu até peguei algumas roupas da nenê
para lavar, sabe! É que quero ajudar um pouco.
—A Débora não tem empregada, mãe? — perguntou Neide.
—Tem uma mulher lá ajudando desde quando ela teve a nenê. Mas
sabe como é... Roupinha de nenê novo precisa de cuidado, e essas
empregadas fazem tudo de qualquer jeito. — A senhora sorriu e
comentou: — Coitada da Débora, está toda atrapalhada! Acho que
nunca pegou um bebê no colo. Agora, sozinha pra cuidar da
menininha dá até dó. O Sérgio tem mais prática do que ela, mas ele
trabalha e estuda... Fica difícil.
— A Débora não tem mãe? — tornou Neide.
—Não — respondeu a mãe. — Os pais dela morreram... parece que
foi num acidente. A sogra não se manifesta pra ajudar e também
mora longe. A Rita é outra coitada, não pode ajudar porque tem os
gêmeos que dão o maior trabalho — sorriu. — Os meninos são uma
graça! A Rita está grávida de novo, sabia?
—A Débora me contou — disse Neide.


—Então, quando fui lá visitar e vi que não tinha ninguém ajudando,
resolvi dar uma mãozinha e ela não se importou. Ficou até muito
agradecida. — Breve pausa e dona Aurora comentou, sem prestar
atenção no que falava: — É bom eu fazer alguma coisa, me sentir
útil, fico ocupada e não penso...
Imediatamente ela se calou, mas o filho já tinha ouvido.
No mesmo instante Humberto se sentiu mal. Um torpor o deixou
tonto. Esfregou levemente o rosto e apoiou novamente a fronte nas
mãos.
Havia entendido que sua mãe queria se manter ocupada para não
pensar na morte de Rubens, na falta que ele fazia, nas lembranças
desagradáveis da discussão que tiveram quando descobriu a traição
e queria matar o seu irmão. Imaginou quanta angústia e dor deveria
ser, para ela, quando recordava de tudo aquilo e ele culpava-se.
Novamente, o efeito de sensações desagradáveis o dominava ao
sentir um peso nos ombros e nos braços ao mesmo tempo que suas
pernas esmoreciam.
Se estivesse em pé, talvez, caísse ou cambaleasse. Era como se fosse
desmaiar.

Não suportando a onda de pensamentos decaídos, debruçou o rosto
pálido, quase cadavérico, sobre os braços. Era como se estivesse
desfalecendo.
Na espiritualidade, tarefeiros do mal, frios e impiedosos, a serviço
de Adamastor, reconheceram as impressões aflitivas e dolorosas de
Humberto e, imediatamente, passaram a lhe aplicar como que
passes magnetizando-o de elementos intoxicantes como a sedá-lo
para que não reagisse. Essa magnetização interferia inclusive no
efeito dos medicamentos de prescrição médica que tomava, pois
conseguiam uma reação bioquímica no corpo do rapaz,
neutralizando sua finalidade.
Eram criaturas sombrias com aspecto forte e desagradável.


Seus gestos hostis manipulavam sobre Humberto substâncias
fluídicas espessas e escuras ampliando seu mal-estar e fazendo-o
entregar-se a tormentosas reflexões.
Era assombrosa a organização obsessiva!
Uma vez que Humberto não reagia à essa indisposição, deixando-se
entorpecer sob a magnetização deplorável, outros espíritos,
cuidadosamente, manipulavam energias espessas transformadas em
finíssimos fios pardos que começavam a ser ligados em seu cérebro
e na medula. Descendo, ampliavam-se por todo o sistema nervoso
central, passando pela região da garganta, na laringe, ramificando-
se para o coração e pulmões, entremeando pelo diafragma e indo
massificar-se em matéria fluídica mais densa atrás do estômago,
depois nos intestinos, descendo até os órgãos genitais.
Lentamente, todos os centros de forças, conhecidos como chacras,
eram controlados e impregnados.

Espíritos tão inferiorizados que perderam a formação perispiritual
humana, os ovóides, eram ligados na região da cabeça, nas costas,
no peito e na região gástrica. Eles sugavam, continuamente, as
energias do corpo de Humberto alimentando-se delas e o
enfraquecendo ainda mais.
Havia espíritos que ainda magnetizavam outras substâncias
fluídicas na região dos nervos óticos e auditivos para poderem
influenciá-lo mais através de sugestões, com fenômenos físicos ou
psíquicos produzidos por uma espécie de hipnotismo ampliando
nocivamente a sua sensibilidade.
Humberto sentia a mente doente, enfermiça. Não sabia o que era
nem tinha como explicar o que o atormentava.
Ao observá-lo pálido, Neide correu até ele, tocando-lhe os ombros, e
perguntou:

— O que você tem?
Erguendo os tristes olhos verdes afundados em lágrimas, com a
respiração fraca, sussurrou:

— Não sei... Estou me sentido muito mal. Dona Aurora se
aproximou e pediu implorando:
— Reage, meu filho! Respire fundo e abra os olhos. Vamos! Reage
contra isso, meu filho!
Humberto tentava, mas parecia sufocado, mergulhado em um mar
de angustiosas aflições.
— Será bom levá-lo ao médico? — perguntou Neide.
— Não... — murmurou o irmão sem forças. — Eu quero deitar.
Com a ajuda da irmã e de sua mãe, ele se levantou e foi para o
quarto entregando-se à tirania daquelas criaturas que o queriam
destruir.
Após isso, dona Aurora entrou para o seu quarto, apanhou uma
Bíblia, leu o salmo 91 e, em seguida, rogou com toda a sua força,
toda a sua fé pedindo proteção e amparo ao filho que sofria e
necessitava de proteção.
Novamente, por causa de sua prece fervorosa e sincera, espíritos
amigos conseguiram doar energias salutares a Humberto que,
apesar de toda a magnetização com fluidos inferiores, sentiu as
bênçãos renovadoras que o socorreram num sono menos agitado.
***

Na manhã seguinte, foi com muita dificuldade que Humberto se
levantou, barbeou-se e tomou banho.
Na cozinha, olhando a mesa posta para o desjejum, não sentia a
menor vontade de se alimentar. Mas forçado por dona Aurora, ele
tomou alguns goles de café com leite e comeu um pequeno biscoito.

— Filho, passe no médico hoje, quem sabe ele te dá um remédio
melhor.
— Vou ver... — respondeu baixinho.
— Humberto — tornou a mãe, com jeitinho, afagando-lhe o ombro
— você vai pegar a Lívia hoje?
— Não.

— Seria bom ela ir com você, filho. Eu não queria que dirigisse,
assim, desse jeito. Estou preocupada. E se, quando estiver dirigindo,
der o mesmo que te deu ontem aqui em casa?
— Vou ficar bem, mãe.
—Mas eu não! Não vou ficar tranqüila. Além do mais, a Lívia é uma
boa companhia e acho que, se vocês conversassem, você iria
melhorar. Quem sabe está precisando desabafar um pouco!
—Minha vontade é de ficar em casa deitado. Não tenho ânimo para
nada nem para conversar.
—Vai, filho! — pedia com jeitinho carinhoso. — Chame a Lívia pra
ir com você! Além do quê, ela precisa de carona. É tão difícil pegar
condução tão cedo! — Diante do silêncio, ela propôs animada: —
Quer que eu ligue pra ela dizendo que você vai passar lá?
O desejo do rapaz era dizer não. Contudo, aproveitando-se da
pouca energia salutar que o envolveu por causa das preces de sua
mãe na noite anterior, o espírito Nelson conseguiu intuí-lo a
titubear na resposta e ele disse:
—Não sei, mãe... Não quero falar com a Lívia.
—E eu não quero que você dirija desse jeito. Aliás, eu sei que o
remédio que você toma diz que não pode dirigir ou mexer com
máquinas pesadas. Eu li na bula! — Breve pausa e dona Aurora
falou de modo animado, quase faceiro: — Filho! Vou ligar pra ela
antes que saia de casa! Coitada, né? Pegar condução cheia é tão
ruim! Além do mais, ela me disse que trancou a matrícula na
faculdade e pode voltar com você.
Sem esperar que o filho dissesse algo, a senhora foi até o telefone e
ligou para Lívia. Retornando, avisou:

— Ela está te esperando! Vai, come só esse pedacinho de pão com
queijo minas, eu sei que gosta! — Ao vê-lo franzir o rosto, insistiu
carinhosa: — Vai filho! Só esse pedacinho e pronto!

Para agradar sua mãe, ele forçou-se a comer. Mas o pão parecia não
dissolver em sua boca ressequida e arranhar sua garganta. Isso
ocorria pelos miasmas espirituais entremeados nessa região.
Depois, com enorme esforço, levantou-se e foi acabar de se arrumar
para sair.
Ele estava confuso, não conseguia concatenar as idéias e, ao sair de
casa, rumou automaticamente para a casa de Lívia.
A moça o aguardava no portão quando ele chegou.
Assim que a viu na calçada, Humberto desceu do carro e a
cumprimentou a distância, perguntando em seguida:
—Você pode dirigir hoje?
—Posso sim. Por quê? Você não está bem?


— Não como deveria. — Dando a volta no veículo, o rapaz ocupou
o banco do passageiro enquanto Lívia sentava-se no lugar do
motorista.
Em seguida, ela perguntou:
— O que aconteceu?
— Ontem não me senti nada bem. Um outro médico trocou os
medicamentos que estou tomando e... Acho que é isso. São
remédios muito fortes. Na bula tem indicação para não dirigir nem
manusear máquinas até o paciente se sentir bem, e esse não é o meu
caso. Por me ver assim, minha mãe ficou preocupada e... Você sabe
como ela é. Desculpe-me por incomodar.
— Não é incomodo algum. Você sabe.
Os espíritos ignorantes e transviados que acompanhavam
Humberto impregnando-o com fluidos densos para desequilibrá-lo,
ameaçavam Lívia com gestos hostis, como se ela pudesse percebê-
los.
A intenção dos irmãos infelizes era de atrapalhar o rapaz com
algum tipo de alucinação, com a ajuda das impregnações
magnéticas feitas em seus nervos visuais e auditivos, para que,
dirigindo, Humberto provocasse um acidente, se possível grave, na
primeira oportunidade.



Entretanto Lívia não era afetada pelos obsessores em ação. Na
verdade, estava longe de percebê-los pelo seu padrão vibratório
superior. Alem disso, o espírito Alda, sua mentora, sem ser
percebida, envolvia-a em energias sublimes que a protegiam.
Essa união equilibrada entre Lívia e sua mentora acontecia pelo fato
da encarnada ligar-se a planos elevados através da prece sincera, da
fé inabalável e do amor incondicional.
Dessa forma, eles seguiram para a empresa onde trabalhavam.
No caminho, Lívia falou sobre o clima, o trânsito complicado e
outros assuntos supérfluos, e Humberto só ouvia.
Vez e outra, uma onda de sensações ruins o dominava. Sem que ela
percebesse, cerrando os olhos, ele não dizia nada.
Chegando à empresa, ela estacionou o carro e virou-se para o rapaz
perguntando ao vê-lo desanimado, silencioso e pálido:
—Tudo bem com você?
—Está.
—Humberto, já que de você eu não ouço nada, tomei a liberdade de
perguntar à Neide e a sua mãe o que está se passando.
—O que elas disseram? — perguntou com voz baixa e tom grave.


—Que você foi a vários médicos e disseram que está em depressão.
Receitaram medicamentos e psicoterapia, mas você só está tomando
os remédios.
—É isso mesmo.
—Você precisa reagir, Humberto! Não pode se entregar a esse
estado! Você não é assim! Quanto mais demorar para reagir será
pior!
—Reagir como? Não tenho o que fazer!
—Conversou com o Sérgio a respeito disso?
—Ele me indicou algumas coisas que nem sei dizer e... Falou para
eu ir fazer uma assistência espiritual no centro.
—E você não fez nem uma coisa nem outra?
—Não dá tempo. Não tem como. — Alguns segundos e perguntou:


— Você tem idéia do que sinto? — Sem esperar por uma resposta,

comentou: — E uma coisa que não dá nem para descrever! É uma
sensação e sentimentos horríveis! Nunca experimentei nada
parecido. Sinto uma dor no peito, uma angústia!... Não tenho
vontade de fazer nada. Aliás, a única vontade é a de ficar deitado e
quieto. Nada mais!
—Você precisa se forçar a fazer alguma coisa. Comece a resolver
pequenas situações. Force-se a assistir um filme no cinema, vá a um
teatro, ao centro espírita, à psicoterapia... Sei lá! Ocupe o seu tempo!
—Eu fui ao centro espírita semana passada e... Tudo, Lívia,
exatamente tudo a minha volta me deixa desgostoso, pois me faz
pensar ou lembrar de coisas melancólicas. Quando eu olho para
você, me sinto mal. Falo de mal-estar mesmo! Tenho a impressão de
que vou desmaiar. Depois vem uma sensação grande, mas tão
grande de tristeza que quero chorar

— Nesse instante, lágrimas brotaram em seus olhos, mas ele
disfarçou e as aparou rapidamente antes que caíssem. Entristecida,
ela perguntou, temerosa:
—Por que, quando me olha, fica triste?
—Não é uma tristeza comum. E algo aterrorizante. Eu me lembro
do meu irmão. Lembro do desejo de matá-lo, da nossa briga antes
de ele sair de casa... Fico imaginando como foi o acidente, o que ele
sentiu... Às vezes esses sentimentos se confundem e eu recordo de
como o encontrei com a outra lá no meu apartamento e sinto raiva,
pavor, dor... — Alguns instantes e comentou: — Em casa, quando
vejo minha mãe triste ou chorosa, é a mesma coisa... Uma dor
intensa me domina, meu rosto fica pesado, contraído. Sinto dor
mesmo! É como se eu tivesse os sintomas de uma gripe muito,
muito forte e todo o meu corpo não tivesse força alguma e pedisse
cama. No meio de tudo isso, a vida perde a importância, perde a
cor, o brilho, a graça. Nada faz sentido. Por que lutamos,
trabalhamos e depois morremos? Tudo é tão rápido, sem objetivo.
—Estou assombrada por ouvir isso de você — falou de modo
lamentoso. Aproveitando a primeira pausa, de modo enérgico,

continuou: — Pelo amor de Deus, Humberto! Onde está todo o seu
conhecimento?! Onde está a sua fé?!
Ele apoiou os cotovelos no painel do carro, segurou o rosto com as
mãos para que ela não visse as lágrimas que brotavam. Alguns
minutos e, refazendo-se um pouco, comentou:

— Eu não sei onde está tudo o que aprendi. Não consigo pensar. As
coisas não fazem sentido. A minha mente fica em branco e preto. Às
vezes não me concentro e não entendo o que estão me falando,
mesmo que sejam coisas simples.
—Humberto, preste atenção! Você passou por uma contrariedade
muito grande. Queria terminar tudo com a Irene, mas viu-se
obrigado a se casar. Estava magoado e até revoltado por saber tudo

o que acontecia entre mim e o Rubens. Foi por causa das agressões e
das ameaças do Rubens que eu não me separei dele. Você sabe.
Estava descontente por não podermos ficar juntos, apesar do forte
sentimento que tínhamos um pelo outro. Como se não bastasse,
faltando quatro dias para o seu casamento, você pegou a Irene com
o seu irmão, na cama do seu apartamento!
—Pare, Lívia! — pediu desesperado, ofegante.
—Eu estava com você, Humberto! Eu vi tudo! Os dois estavam lá, se
amando! — Mesmo o vendo se sentir mal, ela continuou: — Como
não sentir o que sentimos?! Como não ficar indignados, revoltados,
com raiva?! Como?! Como não ter vontade de matar o seu irmão e a
Irene?! Eu também senti isso! Eu fui agredida pelo Rubens! Ele me
ameaçava! Maltratava! Por causa dele minha vida tinha acabado!
Quantas vezes eu pensei, desejei que ele morresse para tudo isso
acabar?! Aceitei até a transferência que você me propôs para o Rio
de Janeiro! Eu precisava mudar toda a minha vida por causa
daquele crápula! Um cafajeste! Como acha que eu me senti?!
—Apesar de você ter vivido contrariada também e ainda ter
encontrado os dois juntos, não está como eu. Eu queria matar o
Rubens e essa idéia não foi só depois que eu os vi. Há tempos vinha
pensando nisso. Eu estava com ódio do meu irmão pela forma como

ele te tratava. Agora que ele está morto, me sinto culpado, com

remorso.
—Não foi você quem o matou! Acorda! Foi uma fatalidade! O
Rubens passou pelo que precisava! Nós não sabemos qual foi o
plano dele para essa reencarnação. Você acredita ou não nisso?!
—Não sei mais em que acredito. Só sei que não me reconheço.
Nunca senti isso antes.
—Desejar que tudo fosse diferente, eu também desejaria. Mas não
foi. Precisamos viver com isso. O que me conforta é o fato de que
nem você nem eu tê-lo matado. Porque vontade e motivo nós dois
tivemos para isso. Estou sendo realista. Não vou negar um
sentimento que eu tive. Mas, quando fiquei com raiva e
experimentei tamanho ódio, imediatamente, mudei os meus
pensamentos. Pedi perdão a Deus por tudo o que eu imaginava e
desejava ao Rubens. Orei. Peguei O Evangelho e li sobre Amar os
Inimigos. Depois refleti muito sobre o tema, pois o Rubens, apesar
de estar comigo, tornou-se um inimigo. Eu não sei por qual motivo,
qual razão do passado, estávamos juntos. A prece, a reflexão sobre
isso me trouxe um pouco de paz e eu procurava um meio pacífico
de me livrar dele. Com isso, senti que aquele veneno imenso que
teve origem com a raiva, com o ódio se anulava na minha mente e
no meu corpo.
Eu acho que não entrei em depressão como você, diante de todo
esse estresse que vivi, porque usei a prece, o amor, a compreensão, a
esperança e a fé nos desejos de Deus como remédio contra os
venenos do ódio, da raiva e da contrariedade. — Ele ficou em
silêncio, fitando-a com olhos tristes e fisionomia pesada, e Lívia
completou: — Você, hoje, está envenenado com as energias de todos
os sentimentos negativos que você mesmo criou, cultivou e
alimentou em si. Com exceção de

Deus e dos espíritos criados por Ele, nada mais é eterno. Então o
que você experimenta não vai durar para sempre. O remédio para o


que o aflige não está em um vidro ou em uma carteia que sai de um
laboratório farmacêutico. A sua dor é na alma. O remédio para você,
espírito, está na prece, no Evangelho, nos ensinamentos de Jesus.
—Eu penso que isso o que estou sentindo não vai passar nunca!
—Vai passar sim! Você vai vencer essa dor! Vai superar esses
sentimentos depressivos quando se libertar das energias ruins que
criou em si mesmo e se renovar com energias novas, salutares
criadas ou atraídas por você.

— Quero ser como antes.
— Você nunca mais poderá ser, agir e pensar como antes. Como era
antes te deixou como está agora. Você precisa e vai conseguir ser
mais forte, diferente de antes. Vai conseguir viver melhor a vida,
amando, respeitando, aproveitando a alegria dos bons momentos,
aprendendo com as dificuldades das tristezas sem se deixar
envolver por elas. Quando sentir raiva, ódio, parar e pensar: de que
adianta isso? Para que vai me servir tanta preocupação? Para que
vai me servir esse sentimento triste? Então vai se socorrer nas
reflexões do Evangelho e perceber que em vez de raiva e ódio, deve
compreender aquele que tenta provocar em você tais sentimentos e
que aquilo vai passar. Vai descobrir que sentir tristeza e não poder
fazer nada, faz parte da vida e que isso também vai passar. Você vai
poder se esforçar para fazer o melhor e se sentir bem com isso.
Deitar a cabeça no travesseiro e dizer: hoje eu dei o melhor de mim!
Não tive sentimentos ruins nem pensamentos negativos.
Então eu evolui! E se por acaso não conseguiu, imaginou ou fez
alguma besteira, pensar: hoje eu, ainda, não consegui, mas isso é por
enquanto! Amanhã será melhor!
—Eu sei tudo isso. Não me dê aulas! Mas, no momento, como estou
agora, é difícil agir assim.
—Então pense: eu vou conseguir! Sou um vencedor porque estou
vivo! Nasci para ser feliz. É isso o que Deus quer de você,
Humberto! O pensamento tem uma força poderosa e você sabe
disso!


Os espíritos Alda e Nelson envolviam Lívia para que falasse
daquela forma.
Uma energia vibratória em forma de luz azul cintilante espargia de
Lívia quando ela se expressava.
Os espíritos inferiores, ligados ao rapaz e os que o rodeavam,
ficaram extremamente revoltados e tentavam atacá-la de alguma
forma. Mas era impossível.
A união da moça com o Alto era de fé e esperança na vitória do
bem. Mesmo sem saber que era tão bem amparada por espíritos
superiores, Lívia encontrava-se confiante e em paz.
Depois daquela conversa, Humberto se sentiu melhor mesmo sem
entender a razão. Os fluidos salutares, que chegaram do Alto, para a
sustentação de Lívia também o envolveram em energias que lhe
serviram de alimento espiritual edificante. Com isso conseguiu
organizar melhor os pensamentos.

— Obrigado, Lívia — agradeceu verdadeiramente sincero. — Essa
conversa me clareou as idéias. Sinto-me mais animado.
—Por favor, Humberto, reaja! Não se deixe abater. Você sabe o que
pode acontecer conosco, espiritualmente falando, se ficarmos nesse
estado.
—Não sei o que pode acontecer.
—Como não?! — surpreendeu-se ela.
—Estou me esquecendo de algumas coisas. E como se desse um
branco na minha mente. Tenho alguns lapsos de memória como se
experimentasse uma espécie de amnésia momentânea para alguns
assuntos.
Inspirada pelos mentores espirituais, Lívia ficou preocupada e
perguntou:


— Esses esquecimentos estão acontecendo, principalmente, com
assuntos religiosos e do seu trabalho?
— É sim.
— Mas o que é ruim, depressivo, triste e pavoroso você lembra?
— Isso mesmo.

—Humberto, faça como o Sérgio te propôs! Volte ao centro espírita
e se proponha a uma assistência espiritual.
—Você parece que não tem idéia da imensa força, do incrível poder
que esse desânimo tem sobre e a minha mente.
—Deus tem mais poder do que isso o que sente! Peça ao Pai bom
ânimo e amparo para que tenha força de vontade de fazer o que for
preciso para sair desse estado!
—Eu peço para acordar de manhã e não me sentir mais assim, para
não ter mais nada disso. Mas não tenho resultado.
—Você quer, na verdade, um passe de mágica. Isso não vai
acontecer. Você se colocou nesse estado e isso não aconteceu do dia
pra noite. Então não será do dia para noite que vai sair dele.
Somente você é quem vai poder se tirar dessas condições.
—Eu não me coloquei nesse estado — comentou.
—Você se colocou nesse estado quando se irritou, ficou com raiva,
ódio, nervoso e experimentou tantos sentimentos negativos sem se
importar com mais nada. Você envenenou-se aos poucos. Você é
uma criatura de amor, paz e luz. Os sentimentos negativos
provocaram um choque com a energia elevada que tinha. Ao
mesmo tempo não procurou reverter os sentimentos ruins, os
pensamentos de raiva, o nervoso... Não teve paciência, amor, não
compreendeu, não procurou entender o outro através do que Jesus
nos ensinou. Não confiou em deixar para Deus cuidar das coisas e
das situações que o contrariavam. Tudo isso provocou um choque
energético em seu ser. Repare que você não está doente. Pode ser
que tenha ou apareça algum probleminha corriqueiro, mas doente
não está. Porém se sente doente como se estivesse gripado. O
choque que sofreu foi psíquico, espiritual de duas energias ou
fluidos incompatíveis, ou seja, a energia que tinha com a que criou.
O resultado dessa explosão é o que está experimentando agora, um
problema não físico, mas psíquico, espiritual. Isso só se cura com
sua própria força interior, agindo e atuando a seu próprio favor. Só
se cura com a paciência e a mudança de hábitos, trocando o


nervoso, a raiva, o ódio, a contrariedade por amor, esperança, paz,
harmonia. O desespero e o desânimo só vão piorar o seu quadro
psicológico, fazendo com que se sinta cada vez derrotado.
—O que eu faço com o que já passou? Com o que sinto e senti pelo
meu irmão? O que fiz a ele? Tenho que procurar a

Irene, encarar você e minha mãe sem pensar no Rubens. Isso tudo
me apavora.

— Resolva uma coisa de cada vez. Vai precisar fazer o melhor que
puder, mas vai ter que fazer. Não poderá ficar adiando. Terá de
agir. Haverá coisas ou situações que não poderá mudar. Então
confie em Deus. Tenha fé e esperança, porque Ele não vai te
desamparar desde que você faça a sua parte — Movida por seus
sentimentos mais profundos, Lívia falou enternecida: — Se aceitar,
estarei com você. Quero te ajudar.
Humberto não disse nada. Parou por alguns segundos somente
refletindo. Depois suspirou fundo, consultou o relógio e avisou:
— Estamos em cima da hora. Precisamos ir. — Olhando-a,
agradeceu: — Obrigado por tudo.
14
ORIENTAÇÕES SAUDÁVEIS


Depois de entrarem no luxuoso edifício, desceram do elevador no
décimo andar e, sem dizer nada, Lívia foi para o setor onde
trabalhava, enquanto Humberto dirigiu-se para sua sala.
No decorrer do dia, ela estava preocupada, pois já passava da uma
da tarde e Humberto não havia almoçado.


Inquieta, procurou pela secretária e, delicadamente, perguntou:
—E que não o vi indo almoçar e queria saber se ele te pediu para
trazer alguma refeição ou lanche.
—Não. Nada — respondeu Júlia. — Eu também estou preocupada.
O Humberto não me parece bem. Ele está tão diferente. —
Observando a inquietação que Lívia tentava disfarçar, ela quis
saber: — Desculpe-me intrometer, mas vocês conversaram?
—Um pouco.
—Desde quando tudo aconteceu vocês não tinham se falado, né?
—E... A situação é bem difícil, Júlia.
—Faço idéia! Meu Deus! O Humberto não merecia isso. Aliás,
nenhum de vocês dois! — Pensando um pouco, Júlia decidiu: —
Olha, Lívia, de repente você pode até perguntar o que eu tenho com
isso. Mas é o seguinte: eu trabalho com o Humberto há anos,
conheço-o bem e gosto muito dele.


— Do que você está falando?
— Que gosto muito dele e de você também. — Sorrindo, explicou:
— Quando chegou para trabalhar aqui, eu pensei que seria uma
chata, pois acreditei que fosse se valer da posição de cunhada do
diretor e, por causa disso, se tornaria aquele tipo de pessoa
desagradável, implicante, exigente, cheia de caprichos... — rindo,
considerou: — Mas me enganei. Ainda bem que me enganei! Você é
muito bacana.
Sorrindo encabulada, a outra respondeu:
— Obrigada. E gentileza sua.
— Não é gentileza não. E sinceridade — riu. — Sabe, quando eu
comecei a observar você e o Humberto juntos, vi que existia uma
química entre os dois.
—Júlia, eu... — tentou dizer ficando na defensiva.
—Calma! Eu até já comentei sobre isso para ele.
—Como assim?!

—Eu disse ao Humberto que vi um clima entre vocês. — Antes que
a outra dissesse alguma coisa, explicou: — Fique tranqüila.
Ninguém mais notou. Creio que eu percebi por conhecê-lo bem.
—A situação era complicada. Comecei a namorar o Rubens, mas,
quando conheci o Humberto...


— Agora estão livres — considerou Júlia.
— Mas impedidos por uma força maior, que vai além dos nossos
sentimentos.
— Lute por ele, Lívia!
—Lutar com quem?! Como?!
—Ficando ao lado dele e o incentivando. É uma forma de luta!
—Não sei muito bem o que fazer nem por onde começar!
—Comece por partes. — Pensou um pouco e perguntou: — Você vai
continuar querendo a transferência para o Rio?
—Agora não. Aliás, eu preciso conversar com ele a respeito disso.
—Pode deixar que eu cuido disso. — Alegrando-se, comentou: — É
ótimo saber que você vai ficar aqui. Isso já é um começo.
—Não sei se posso ter esperanças, Júlia. Não estou me sentindo
nada bem nessa situação. Hoje eu só aceitei vir junto com ele para o
serviço porque a dona Aurora insistiu muito. Sabe, às vezes,
quando olho para o Humberto, parece que vejo o Rubens. Eles são
muito parecidos fisicamente. Nossa! Quantas vezes me enganei com
a voz deles ao falarmos por telefone? — Breve pausa e continuou: —
Eu sei que, quando o Humberto me olha, se lembra do irmão. Ele
mesmo me disse isso. Como podemos ficar juntos, sentindo o que
sentimos, depois do que aconteceu?
—Tudo é muito recente, Lívia. O tempo vai curar toda essa dor.
Agora, o que não pode acontecer é o Humberto se aprofundar nesse
estado, e nisso você deve ajudar.
—Não sei se poderei ajudar muito. Tenho a impressão de que o
Humberto não quer me ver nem olhar para mim.



—Isso passa! — falou animada. — Agora, vá lá! Entre na sala dele e

o convide para almoçar!
—Eu?!! — surpreendeu-se.
—Sim! Você!
—Mas?!...
—Eu preciso sair para comer alguma coisa. Faça de conta que não
havia ninguém aqui. Bata à porta, entre e pergunte se ele já
almoçou. A resposta será não. Aí você se convida para fazer
companhia. Diz que está preocupada com ele e... Sei lá! Vá lá! Vai
dar certo! Vai por mim! — Dizendo isso, Júlia se levantou, pegou
sua bolsa e ainda desejou antes de sair: — Boa sorte!
Lívia ficou confusa e temerosa, sem saber o que fazer. Após respirar
fundo, passou as mãos pelos cabelos alinhando-os e foi até a porta
batendo com suavidade.

— Entre! — consentiu Humberto, surpreso ao vê-la. — Pensei que
fosse a Júlia. Entra. Sente, por favor.
Após alguns passos, acomodou-se na cadeira frente à mesa e
perguntou:
—Você ainda não foi almoçar, não é mesmo?
—Ainda não. Estou sem fome.
—Precisa se alimentar, Humberto. Estou sabendo que hoje tem
reunião e pelo visto será daquelas que terminará bem tarde! E
melhor forçar-se a se alimentar um pouco. De repente pode se sentir
mal e não vai saber distinguir se é físico ou psicológico. — Vendo-o
sem ânimo após algum tempo, ela convidou: — Ainda não almocei,
quer me fazer companhia?
O rapaz não tinha o menor estímulo. Com imenso sacrifício, moveu
energias interiores para se erguer, retirar o paletó que vestia a
cadeira e dizer:
— Vamos. Você tem razão. Preciso comer algo.

Lívia estampou meio sorriso. Levantou-se e o acompanhou. Em seu
íntimo estava satisfeita, mas sentiu que não deveria demonstrar o
seu contentamento.

***

Na espiritualidade, Nelson e Alda se uniam junto a outros amigos
em favor de seus protegidos, procurando um meio de auxiliá-los.
O espírito Célia, mentora de Júlia, em contato com esses espíritos
amigos, rapidamente entendeu a situação e propôs ajudar.
Mais tarde, envolvendo sua protegida, o espírito Célia a inspirou
com imenso amor e Júlia, imediatamente, decidiu.
Num impulso, pegou o telefone e ligou para Lívia, pedindo:


— Dá pra você vir até aqui?
— Eu já ia embora. Mais um minuto e não me pegaria mais na
empresa. — Sorrindo, avisou: — Já estou indo!
Não demorou muito e Lívia estava em frente a Júlia.
— E aí? Tudo bem?
—Tudo! A reunião que o doutor Osvaldo convocou com todos os
diretores não terminou até agora. O Humberto ainda está lá! Você
vai esperá-lo?
—Eu não ia. Como te falei, eu já estava indo embora. Não sei se
devo esperá-lo.
— Por que acha que não deveria ir embora com ele?
— É que... Sei lá! Nós almoçamos juntos e o Humberto quase não
disse nada. Em alguns momentos, ele apoiou o cotovelo na mesa,
segurou a cabeça com a mão e fechou os olhos. Parecia que estava se
sentindo mal.
— Vai ver estava. Mas foi melhor passar mal acompanhado do que
sozinho. Sabe, minha irmã, mais velha do que eu, ficou viúva e
entrou em depressão. O que ela descreveu era muito semelhante
com o que o Humberto diz. Ele parece que tem mais sintomas
físicos do que ela. Minha irmã se entregou a uma cama e foi

horrível! Ela não queria nem tomar banho. Não tinha médico ou
remédio que desse jeito. Eu entrei de férias e tinha marcado uma
viagem, havia feito um pacote e tudo mais, mas resolvi desistir, pois
fiquei chocada quando vi a Cláudia daquele jeito. Então eu passei a
ir todos os dias a sua casa, bem cedinho e, literalmente, puxava-a
pelo braço para tirá-la daquela cama. Depois a fazia tomar um
banho e, em seguida, nós saíamos para fazer uma caminhada.
Menina! — enfatizava. — Algumas vezes, a Cláudia chegou a se
sentar no chão e chorar em plena via por onde caminhávamos no
parque. Depois de uma semana, ela foi ficando melhor, pois reagia,
ou melhor, tinha forças para não deixar as crises de choro abatê-la,
pelo menos, durante o percurso. Depois de algum tempo, ela
começou a falar sobre o que sentia, contava coisas sobre ela e o
marido, falava da saudade, da dor, da ausência... Foi então que
percebi a sua melhora e comentei a respeito de ela fazer uma
psicoterapia. Sabe, Lívia, não existe remédio ou fórmula química
que faça com que nossos sentimentos mudem ou acabem. Esse tipo
de dor é na alma e a alma não recebe os efeitos dessas drogas. Nós
existimos além da matéria física e os nossos pensamentos,
sentimentos e sensações existem além do corpo físico. Se estamos
com um problema nessa área psicológica ou psíquica que se
relacionam com os nossos sentimentos, pensamentos, sensações,
emoções precisamos resolver esse problema dentro desse campo
psicológico e não físico.
—Eu sei! Falei isso para o Humberto!
—Se você sabe, ótimo! Você é o remédio, é a ferramenta para ajudá-
lo. Eu me senti muito bem quando dei um empurrãozinho para
minha irmã iniciar a jornada que, depois, ela seguiu sozinha.
—Hoje ela está bem?
—Está ótima! Fez terapia. Abandonou os antidepres-sivos que
pareciam fazer mais mal do que bem, pois com eles ela ficava meio
sem reação, travada, entende? Depois de algum tempo, ela parecia


outra pessoa! Não digo a ela, mas a Cláudia está melhor agora do
que quando o marido era vivo.
Lívia sorriu e comentou:
—Já ouvi falar que, quando a pessoa vence alguns transtornos
psicológicos desse tipo, acaba se tornando melhor do que antes.
—É verdade! Só que ela, normalmente, precisa de alguém para
puxá-la, no começo, como eu fiz com minha irmã. Depois, ela deve
caminhar sozinha.
—Seria bom o Humberto saber dessa história, principalmente, saber
que ela está bem, pois ele acha que não terá jeito nunca.
—Mas ele sabe! — confirmou Júlia. — Eu contei a ele na época, pois
precisei de dois dias de dispensa do serviço para acompanhá-la ao
médico. — Breve pausa e perguntou: — Já falou com ele sobre
psicoterapia?

— Já. Mas ele parece que está meio perdido e não faz nada.
—Fale outra vez. Insista! Você pode até tomar alguma iniciativa por
ele, como... — pensou —... caminhar, matricularem-se em uma
academia...
—Vou falar com ele, novamente, e ver o que posso fazer mais. —
Lembrando-se, pediu: — Por favor, você poderia arrumar um cartão
do psicoterapeuta que cuidou da sua irmã?
—Sim, claro! — animou-se Júlia. — Ele foi ótimo! Creio que o
Humberto vai gostar. É bom saber que, no início ou em alguma
etapa da terapia, a pessoa tem a impressão de não obter qualquer
resultado, de que as sessões não fazem sentido. Mas isso é um
grande engano. E que funciona da seguinte forma: se não temos
estrutura, hoje, para lidarmos com alguma situação ou, se algum
acontecimento, hoje, nos deixou desequilibrada, transtornada a
ponto de afetar as nossas atividades no dia-a-dia, é porque algo em
nós já não estava bom há algum tempo. Por causa da terapia, nós
não vamos arrumar a nossa vida de imediato. Nós vamos, sim,
arrumar, vagarosamente, o que sempre esteve errado em nós.
Vamos pensar diferente e ver muitas coisas de outra forma.

Situações que nos abalaram ou nos causaram transtornos e
desesperos serão vistas, por nós, de outra jeito. Vamos entender
melhor a vida, ter mais fé em Deus e em nós mesmas. Vamos
aprender a conviver com situações adversas sem nos deprimirmos,
sem nos desesperarmos e acharmos que tudo acabou, que o mundo
chegou ao fim ou que precisamos morrer para não sofrermos com
alguma coisa. Nas terapias, com bons profissionais, normalmente
descobrimos uma força interior que ignorávamos ter.


—Por que será que transtornos psicológicos como a depressão, a
síndrome do pânico, a crise de ansiedade acontecem?
—Você acredita na vida espiritual como o Humberto crê? — quis
saber Júlia.
—Acredito sim.
—Sabendo disso, posso explicar melhor a minha opinião. Eu creio
que esses transtornos acontecem na vida de alguém como um alerta.
E um dispositivo que avisa quando se está trilhando,
psicologicamente ou espiritualmente, o caminho errado. Não quero
dizer que todo o mundo que esteja errado vai passar por isso. Quero
dizer que, dependendo do grau de evolução da pessoa, quando ela
caminha para um lado errado, isso soa como um alarme.
—Mas esses transtornos emocionais, geralmente, ocorrem depois de
algum acontecimento sério, grave, traumático, principalmente,
perda de ente querido, perda de bens materiais, separações bruscas,
episódios como sequestros, reféns, acidentes, situações estressantes,
roubos, estupros e uma série de outras coisas.
—Sim, sem dúvida! Precisa-se de um acontecimento, um motivo
como fator disparador para esse transtorno se manifestar, dizendo:
_ olha, tudo o que você fez com você mesmo referente ao seu lado
psicológico, emocional ou espiritual não estava bem correto, viu?"


— Júlia explicou sorrindo. — Lívia, analise por que alguém que
passou por uma situação muito, mas muito mais estressante ou
experimentou a perda de entes queridos de forma bem cruel ou

catastrófica, não sofre um transtorno como outra pessoa em situação


quase semelhante?
_ A amiga não respondeu, e Júlia continuou: — Por exemplo, veja o
Humberto. Ele é espírita, com muito conhecimento, bem capacitado,
com uma vida financeira estruturada, mas e o seu lado emocional,
como estava?
—Mas a fé, como ele tinha, nos ensinamentos espíritas, deveria tê-lo
protegido de uma depressão como essa. E isso o que eu não
entendo.
—Será que a fé dele estava tão bem alicerçada como parecia? Será
que praticava os ensinamentos do evangelho como pregava?


— Eu creio que sim! — afirmou Lívia.
— Pense, Lívia. Será que ele amava o irmão de verdade? Ele seria
capaz de perdoar ao Rubens por tudo desta vida e de outra
também?
— Bem... — titubeou. — Não sei dizer.
— Sem dúvida que pode haver interferência espiritual inferior, mas,
quando uma pessoa não tem uma determinada tendência, o espírito
obsessor não pode fazer nada. Ele ficou com raiva, com ódio do
irmão nessa vida. Além disso, não sabemos qual era a ligação dos
dois em vidas passadas. Pelo que viveram juntos, nesta existência,
percebe-se que, apesar do Humberto ser a criatura maravilhosa que
é, ele ainda não conseguia amar o irmão de forma incondicional.
— Ele amava o irmão até eu aparecer!
— Amava à maneira dele! Talvez esse sentimento não fosse da
mesma forma como era para outra pessoa. Não era um amor
incondicional. Quando você surgiu na vida dos dois, o Humberto
passou a demonstrar sua insatisfação e intolerância para com o
Rubens ao descobrir quem o irmão era realmente.
Veja, insatisfação e intolerância eram sentimentos que estavam
adormecidos, esperando uma oportunidade para se manifestarem.
Essa oportunidade acabou acontecendo. De repente, o Humberto


viu em você o seu complemento, a sua alma gêmea, a pessoa com
quem ele queria passar o resto da vida. Percebeu que você gostava
dele e... O resto você sabe! — Alguns segundos e prosseguiu
explicando: — Ora, Lívia! O Humberto entrou em conflito com tudo

o que aconteceu! Ficou extremamente contrariado, revoltado,
indignado! Sentiu raiva e ódio com tamanha intensidade que não se
pode imaginar. O resultado foram os sentimentos e as sensações
que desaguaram no corpo e que denominam depressão, pânico,
ansiedade ou sei lá mais o quê!
Quando uma pessoa passa por uma experiência forte e tem
pensamentos e sentimentos extremamente intensos, contrários ao
que ela é, incompatíveis ao que ela acredita, opostos ao que deveria
sentir, ela surta! Entra em crise!
Só que o pior, o mais terrível nisso tudo são as companhias
espirituais que ela encontra nessa crise por causa de sua fragilidade.
—Realmente a pessoa fica muito frágil espiritualmente falando.
—Podemos comparar os transtornos como depressão, pânico,
ansiedade com a AIDS.
— Não entendi!
— Veja, é só uma comparação, tá? A AIDS é um vírus que nos leva a
deficiência imunológica, ou seja, nós ficamos com pouca defesa e
isso é progressivo. Ele propicia o desenvolvimento de graves
infecções oportunistas, compromete o sistema nervoso, os pulmões,
estômago, compromete o estado geral da pessoa com febre, diarréia,
perda de peso, cabelo, etc. Em outras palavras, ficamos frágeis,
certo?
— Certo.
— Só que o vírus da AIDS é algo físico, material. Os transtornos
emocionais como a depressão, a ansiedade e a síndrome do pânico
agem no espírito, na alma e fragilizam as nossas defesas psíquicas
ou psicológicas. Em outras palavras, ficamos vulneráveis a outros,
vamos dizer, "vírus" emocionais ou energias espirituais que vão nos
atacar e nos abalar. Espíritos doentes, zombeteiros, vingadores e

inferiores, de uma forma geral, certamente, vão se aproveitar desse
abalo, dessa fragilidade para bagunçar a nossa vida.
Assim o choque energético entre os fluidos que criamos com os
sentimentos negativos e a energia positiva que deveríamos
conservar é tão grande, tão intenso que causam algo como que
abalos, rachaduras, em nossa estrutura fluídica, ou melhor, em
nossa aura ou na energia do nosso corpo espiritual. Por isso a mente
fica confusa, começa a surgir uma sensibilidade emocional, um
medo não se sabe do quê, uma impressão de que algo terrível vai
acontecer. Observe que tudo começa em nível mental, espiritual.

— É isso o que o Humberto se queixa.
— Só que existem espíritos inferiores que vão se aproveitar desse
abalo, desse choque de energias, criadas por nós mesmos, para,
através das lesões espirituais, introduzirem os fluidos negativos e
inferiores ainda piores e mais terríveis do que imaginamos. Assim,
as sensações, os sentimentos, os pensamentos ficam insuportáveis.
Muitos enlouquecem e chegam a pratica do suicídio por não
agüentarem tamanha pressão.
Outros se entregam à cama, à clausura e ao desrespeito dos familiares
que não entendem e não aceitam sua condição frágil,
sensível, chorosa, desesperadora. Há, ainda, os que se deixam levar
por um descontrole total das emoções e, apesar de não serem
loucos, passam a aceitar e viver na condição dependente de um. E
como que infectados por essa espécie de vírus espiritual da
depressão, do pânico ou da ansiedade, começam a se contaminar
por outras emoções, sensações, pensamentos que,
consequentemente, podem, com o tempo, causar abalos físicos,
doenças que jamais teriam.
—A pessoa pode se curar desse estado depressivo, não pode? Eu
disse para ele que sim, mas tenho dúvida.
—Não só pode como deve! Sendo uma doença da alma ou do
espírito, a criatura humana deverá se curar disso, aqui ou no plano
espiritual, para continuar a viver em paz! Não pense que morrendo


a pessoa se livra da depressão, do pânico ou da ansiedade não! O
que existe no espírito não termina com a morte do corpo físico. O
quanto antes nos livrarmos de um incômodo desses, melhor! Ficar
deitado, embaixo das cobertas, trancado no quarto chorando,
sentindo medo, desespero e pena de si mesmo não vai tirar alguém
desse estado não! Pode ter certeza!

— O que se tem de fazer?
— A pessoa precisa agir e interagir novamente com a vida, com a
família, com a religião. Criar uma filosofia de vida, ter amigos
compatíveis e equilibrados, uma vida social saudável e encarar, aos
poucos, as situações de forma diferente do que fazia antes e,
principalmente, mudar as atitudes mentais.
Socada dentro de casa e na cama, as únicas companhias que terá são
as de espíritos inferiores com pensamentos e energias negativas
para castigá-la ainda mais. Você acha que um espírito superior ou o
seu anjo de guarda vai ficar, no quarto escuro, vendo você embaixo
das cobertas chorando?! Não mesmo!!! Um espírito elevado vai ali
para te dar um passe e só, pois ele tem coisas mais úteis para fazer!
Agora, se você, apesar da crise, da dor, do medo, do tremor, da
sensação de mal-estar se forçar à mudança de comportamento, se
propuser a uma atitude ou atividade saudável, sair de casa para
fazer algo útil, produtivo, sair para trabalhar ou para realizar algo
benéfico, procurando a sua melhora, pensando em seu bem-estar, é
lógico que vai se desligar dos espíritos inferiores e dar espaço aos
espíritos superiores que vão te ajudar a trocar os fluidos, mudar as
energias, curar as feridas espirituais. Sem dúvida, você vai rever e
mudar os maus hábitos, vai se livrar do vício dos maus
pensamentos e sentimentos. Pouco a pouco será uma pessoa com
mais fé em Deus, deixando o que não puder resolver aos cuidados
do Criador. Dando sempre o melhor de si, mas o melhor com
qualidade, com alegria, com amor.
—E o medo desse estado psicológico voltar a acontecer? O que fazer
se acontecer novamente?


—Diante das adversidades da vida, das gigantescas dificuldades, é
que nós nos colocamos à prova e nos testamos. O medo, o receio de
que isso aconteça outra vez vai desaparecer quando a pessoa vencer

o que a abala, tiver fé verdadeira em Deus e em si mesma, aí ela será
inabalável. Se, por acaso, o estado depressivo, o pânico ocorrerem
novamente é porque tem o dispositivo avisando que, ainda, está
trilhando psicologicamente o caminho errado e precisa corrigir algo
em si para mudar o comportamento mental, ou seja, precisa rever as
atitudes desde sua fala, às vezes, mansa demais, sem vontade, ou
agressiva demais e repleta de imposições, seus pensamentos
frenéticos, ansiosos, impacientes ou tranqüilos ao extremo,
despreocupados ou irresponsáveis, orgulhosos, vaidosos, raivosos,
odiosos, vingativos... Seus gestos agressivos, espaçosos que
incomodam os outros ou retraídos, submissos. A pessoa deve
descobrir o seu equilíbrio para viver em harmonia, pois todo
extremo é prejudicial a ela.
— As vezes eu não compreendo direito como isso foi acontecer com
o Humberto. Ele parecia uma pessoa tão preparada para a vida, tão
forte...
— Será que ele não foi submisso e manso demais e, quando criou
em si sentimentos negativos, não suportou o choque? — Breve
pausa e comentou: — Eu acredito que o Humberto precise mais de
terapia com um bom psicólogo e de um tratamento espiritual do
que de remédios. As vezes, penso que as medicações só tentam
anestesiar alguns sintomas e adiar a ação da pessoa. Em casos
assim, é a pessoa quem precisa reagir e agir. Ela não pode se
acomodar, ficar anestesiada. Veja, foi o Humberto quem criou tudo
isso para ele e, sem nos aprofundarmos muito em sua vida, sabemos
que ele tem um pai alcoólatra, não teve amigos na infância e na
adolescência por ter vergonha do pai. Além disso, deve ter
experimentado muitas incompatibilidades com o irmão, com a mãe
por ela dar, talvez, uma espécie de apoio ao marido sem conseguir
resolver o problema de alcoolismo. Então o Humberto se decidiu

por uma filosofia espírita que, baseada nos ensinamentos de Jesus,
prega amor, compreensão, fé e perdão. E aí? Será que ele amou e
compreendeu o pai? Perdoou ao irmão ou quis se vingar do
Rubens? Ele teve ou não fé verdadeira para esperar e confiar na
providência Divina para resolver a situação entre ele e a Irene? Ele e
você? Você e o Rubens?
—Ele ficou sob muita pressão, Júlia. E de se compreender que
alguém nessa situação surte!
—Você viveu poucas e boas junto do Rubens e também o viu com a
Irene. Por que não surtou? Você tinha mais estrutura do que ele?
Por quê?
—É provável que, de outra forma, eu tinha mais fé. Eu sentia que
algo iria acontecer e eu não ficaria com o Rubens. Isso fez com que
eu não me desesperasse.
—Você não se desesperou. E isso aí! O desespero rompe o nosso
laço com Deus. Bem que Jesus falou "não se preocupe com o dia de
amanhã, já basta a cada dia o seu mal. Buscai primeiro o reino de
Deus." "Reconcilia-te depressa com o teu adversário enquanto estás
no caminho com ele." Jesus disse isso combatendo a ansiedade, a
raiva, a contrariedade, o ódio, a falta de fé, que são os primeiros
sentimentos que te arrastam para a depressão.
Nesse instante, a aproximação de Humberto, que saia do hall dos
elevadores, interrompeu a conversa.
Ele estava sério, com o semblante preocupado e sisudo.
Aproximando-se, entregou à secretária algumas pastas, consultou o
relógio e comentou:

— Nossa! Já é essa hora! Júlia, amanhã conversamos sobre as
propostas feitas na reunião. Já é tarde e eu quero ir embora. —
Virando-se para Lívia, falou em tom abafado: — Ainda bem que
você me esperou. Não estou bem para dirigir. Espere um minuto. Só
vou pegar minha pasta.
Ao vê-lo entrar em sua sala, Júlia sorriu com bondade e propôs
baixinho:

— Vai! Conversa com ele! Sugira uma terapia. Fique ao lado dele.
Aos poucos, faça-o retomar as atividades saudáveis. Será difícil para
você, porém será bem mais ainda para ele. Talvez, por isso ele não a
queria ao lado. Não acho que é só por você lembrá-lo do irmão.
Pense: para ele que é homem, se expor nesse estado ao lado de
alguém, não é nada fácil. A todo menino, a todo adolescente e a
todo homem é ensinado a não chorar, a não derramar uma lágrima.
Não sei quem foi o idiota que inventou isso! — revoltou-se. — É um
absurdo! Chorar faz parte dos sentimentos humanos e faz bem para
o coração. Acredito que ele também foi ensinado assim. Por isso,
para expor sua sensibilidade, para chorar quando não suportar mais
a pressão depressiva, será difícil. Haja naturalmente quando esses
momentos acontecerem. Seja sua amiga antes de tudo. Vai
conseguir! Tenho certeza e estarei rezando por isso!
Lívia sorriu docemente e agradeceu:
—Obrigada. Você me ajudou muito. A história da sua irmã e o que
conversamos me deram algumas idéias.
—Minha irmã só tem a mim. Se eu não me dispusesse para ajudá-la,
seria mais difícil. Muitas vezes, Deus nos testa para ver se somos
instrumentos fiéis.
—Você não tem mãe nem família?
— Não. Ah... — sorriu melancólica. — Como eu gostaria de ter uma
mãezinha para me dar colo!... Infelizmente, ela já se foi. Não sei
explicar por que sou tão sozinha, mas me completo com tudo o que
faço. Sinto-me satisfeita.
Lívia sorriu com doçura.
Com a chegada de Humberto, eles se foram.

15


A PALAVRA PODE SER
UM REMÉDIO OU UM VENENO


A caminho de casa, sentando no banco do passageiro, Humberto
não dizia uma única palavra. Dirigindo, Lívia sintonizou o rádio em
uma estação com músicas tranqüilas e perguntou:
—O rádio te incomoda?
—Não. Pode deixar.
—Você está bem?
—Mais ou menos.
—Como foi a reunião? — Longos minutos de silêncio e ela insistiu:


— Tudo bem na reunião?
—Nem sei direito o que foi conversado e decidido. Minha vontade
era sumir dali.
—O que sentiu?
—Sinto-me fraco. Preciso de forças até para falar. Tudo o que ainda
consigo fazer é rezar. De resto...
—Vamos ao centro hoje?! — perguntou, parecendo animada.
—Não. Quero ficar em casa. Preciso dormir.
—E deixar que espíritos inferiores continuem te vampirizando? É
isso o que quer?!
—Estou em dúvida.
—Que dúvida?
—Será que indo ao centro espírita vou ficar melhor? Pensando um
pouco e, sem perceber a inspiração de sua
mentora, Lívia respondeu:
—Eu não sei se indo ao centro espírita você ficará melhor, mas
tenho certeza de que, ficando em casa, você vai ficar pior. Então, o
que prefere? — perguntou, quase oferecendo um sorriso.



—Estou muito abalado. Sinto um tremor. Queria dormir e acordar
como antes. O que sinto é horrível.
—Humberto, preste atenção, você concorda comigo que os
pensamentos e as sensações são energias puras?
—Concordo.
—Você teve raiva, ódio, sentiu e pensou tudo o que era ruim. Algo
oposto a tudo o que você é e em que acredita. O resultado é o que
vive hoje. Agora você está desorientado, perturbado. Sua energia
boa se esgotou. Precisa gastar essa energia ruim que sente e
absorver ou criar energia boa. Se ficar socado em casa, não vai
gastar nada, ao contrário. Seus pensamentos só vão se fixar em
coisas tristes e criar mais energias negativas. Você precisa ver gente
diferente, ter contado com coisas e situações novas e boas para sua
mente trabalhar com essas idéias saudáveis e gerar energias
positivas.
—De onde tirou essa idéia?
Sem saber que era inspirada, Lívia respondeu:

— Sei lá! O que importa?! Eu acho que é assim que funciona. Por
experiência própria, eu posso afirmar que, quando falo com pessoas
alegres, harmoniosas, que conversam sobre coisas boas e
produtivas, eu fico bem, me sinto feliz. Quando faço uma coisa boa,
os meus pensamentos são sobre idéias construtivas. Ao ver uma
cena agradável, fico contente. Então coisas, pessoas e situações boas
fazem bem à mente e ao corpo. Assim sendo, o oposto de tudo isso
faz um mal incrível.
O silêncio reinou por algum tempo. Depois ele respondeu:
— Estou sem ânimo para ir ao centro.
— Deve se forçar. Ir sem ânimo mesmo. Enquanto não se forçar
para fazer algo bom para sair desse estado, vai continuar nele. Sim,
porque o que sente é um estado, não é uma condição eterna, a não
ser que queira.
Estavam parados no engarrafamento, quando se entreolharam, e ele
afirmou com um travo de amargura na voz:

— Eu não quero ficar desse jeito.
— Então, apesar da dor, apesar da fraqueza que sente, reaja! Reaja,
agora, Humberto!
Ele olhou para cima, recostou a cabeça no encosto do banco do
carro, fechou os olhos e respirou fundo.
Em seguida, levou a mão ao rosto, esfregando-o e tentando,
disfarçadamente, enxugar as lágrimas que brotavam.
Porém, a intensidade da emoção era mais forte e, incli-nando-se,
Humberto se entregou ao choro que durou alguns minutos.
Lívia estava triste e com o coração partido. Sofria muito por vê-lo
daquele jeito.
Passado algum tempo, observando-o mais recomposto, ela pediu
com jeitinho meigo:
— Vamos ao centro hoje, vai?!
—Vamos deixar para outro dia?
—Olha, o choro é uma forma de gastar ou extravasar a energia
acumulada. No seu caso, a energia que dispensou agora é ruim. Por
isso se sente mais aliviado. Eu acredito que deveria ir ao centro para
repor o lugar dessa energia ruim com uma boa, antes que
pensamentos ou sentimentos negativos criem novas energias ruins
para ocuparem esse espaço.
—Tudo bem — ele decidiu. — Vamos.
Muito satisfeita, não conseguindo conter o sorriso, avisou:


— Acho que precisamos ir direto. Se passarmos em casa, não vai
dar tempo.
Forçando-se, Humberto concordou ir ao centro espírita.
Chegaram, exatamente, no início da palestra.
No final, após os passes, a aproximação de Débora com a pequena
filhinha, enroladinha em seus braços, chamou sua atenção.
—Oi, Humberto! Como vai?! — ela perguntou alegre.
—Tudo bem. E você?... A nenê?... — perguntou ele.

—Ah! Ela está ótima! — Olhando para a pequena Laryel, falou com
voz mimosa, docemente infantil: — Esse é o titio Humberto! Fala oi
pro titio!
Humberto sorriu. Afagando levemente o rostinho da pequenina,
comentou:
—Como você é linda! Que bênção! — ele se admirou.
—Realmente ela é uma bênção!
—E o Sérgio? Ele veio hoje?
—Veio sim. Eu entrei na fila dos passes primeiro, por causa da nenê,
mas tenho de esperá-lo. Ele ficou para trás.


—Hoje a Lívia veio comigo. Aliás, foi ela quem me forçou a vir.
—Onde ela está? — quis saber Débora.
—Foi à toalete.
Nesse instante, Sérgio se aproximou, abraçando-o com prazer.
—E aí, cara?! Anda sumido!
—Sumi um pouco. Olha, me desculpe por não ter ido visitá-los
desde o nascimento da Laryel. E que...
Vendo-o sem jeito, Sérgio o atalhou:
—Não se preocupe! Gostaríamos muito que fosse a nossa casa para
conversar um pouco, ajudar a segurar a Laryel na hora do
chororô!... — riu. — Ajuda é do que mais precisamos e não
recusamos.
—Prometo que irei lá, sim. Só preciso de um tempo.
—Sua mãe tem ido todos os dias — comentou Débora. — Nossa! Ela
tem me ajudado tanto! Se não fosse a dona Aurora, nem sei dizer o
que seria de mim em alguns momentos. Eu não entendo muito de
criança e precisei aprender correndo. Foi um sufoco! — riu.
—Minha mãe gosta muito de você e adora ajudar. Na verdade, creio
que é ela quem está sendo mais ajudada.
Nesse momento, Lívia chegou cumprimentando os amigos e logo se
encantando com a garotinha que dormia nos braços da mãe.
Aproveitando a conversa entre Lívia e sua esposa, Sérgio puxou
Humberto para o lado e perguntou:



— E aí? Como você está?
—Tem dia que é difícil. Às vezes... — um travo amargo o fez perder
as palavras.
—Você não pode ficar como está, Humberto! Isso é sério!
—Não sei o que fazer. Não sei por onde começar. Hoje, para vir até
aqui a Lívia precisou, praticamente, me obrigar.
—Se não viesse aqui, o que iria fazer? — O amigo não respondeu e
ele prosseguiu: — Iria pra casa cultivar mais pensamentos negativos
e depressivos.
—Foi o que a Lívia me falou. Porém vim até aqui e não adiantou
nada. Estou do mesmo jeito.
—Adiantou sim! Se está se sentindo do mesmo jeito, então você não
piorou! Isso é um progresso! Além do mais, pode parecer que não
adiantou nada hoje, mas, daqui a algum tempo, esse dia e os outros
que vier ao centro, vão fazer grande diferença porque fez algo por
você mesmo. Algo bom, saudável! Isso é reagir! — Percebendo que
não adiantaria falar muito, pois notou que o amigo não estava
pronto para assimilar muitas informações, Sérgio propôs: —
Continue fazendo dessa forma. Mesmo contra a vontade, apesar do
cansaço, da dor, do desespero que por ventura estiver sentindo,
deve se forçar a programas e companhias saudáveis, tranqüilos e
harmoniosos. Isso é agir e lhe fará muito bem.
—E... Vou fazer isso.
—Você está com acompanhamento médico ainda, né?
—Sim. Estou. Mas parece que os medicamentos não fazem efeito.
Porém, se fico sem eles, não sei se é pior.
—E acompanhamento psicológico? Sim, por que os remédios não
atuam na mente como as palavras. Você vai ver que a palavra, a
administração, a organização e o poder do pensamento positivo são
muito eficientes e poderosos com a psicoterapia, superando, em
muitos casos, qualquer remédio.
—Ainda não procurei um terapeuta.


—Sou suspeito em dizer algo a respeito, mas posso afirmar, com
certeza, que, com exceção dos psiquiatras, os demais médicos
entendem bem da parte física, anatômica e não da mente. Mente é
alma, é espírito e a medicina humana não atingiu essa área. Sabe,
até alguns psiquiatras deixam a desejar quando querem resolver um
problema como o seu somente com remédios. Alguns fazem isso
por falta de conhecimento, e outros por preguiça, pois não ganham

o bastante para resolver o problema conversando, que é o melhor
remédio em muitos casos como o seu. Temos de lembrar que a
palavra é remédio para a alma. — O outro não disse nada, e Sérgio
perguntou: — Você já conversou com alguém e, de repente, se
sentiu mal por causa de alguma coisa que essa pessoa disse e ficou
horas ou dias chateado por isso?
—Sim. Já.
—Da mesma forma você vai conversar com um psicólogo e ele vai
te ajudar a organizar suas idéias, sua vida e vai se sentir bem. Eu
digo que, nesse caso, a palavra funcionará como um remédio, como,
no outro caso, ela foi um veneno. É assim que funciona.
—O que você acha? Devo parar com a medicação?
—Eu não disse isso! Quero lembrar que somente os an-tidepressivos
não vão resolver o seu caso. Somente com a medicação isso o que
sente pode passar, mas é bem possível que volte a esse estado,
novamente, quando estiver diante de outro momento exigente ou
estressante no futuro.
—Não brinca!
—Preste atenção: tudo o que fizer agora vai te fortalecer. A religião
é muito importante, as amizades tranqüilas e sinceras também. Sabe
como é... precisa procurar companhias que não te tragam problemas
nem te envolvam em situações difíceis. Uma vida social
harmoniosa, uma psicoterapia, exercícios físicos e muitas outras
situações vão te ajudar, sem dúvida!
—Vendo-o pensativo, Sérgio estapeou-lhe o ombro e sugeriu:


—Olha, vá para casa. Pense no que conversamos. Descanse.
Amanhã ou depois me procura, certo?

— Certo. Vou fazer isso. Obrigado.
Juntando-se à Débora e Lívia, que estava com Laryel nos braços,
Sérgio virou-se para a esposa e a chamou:
—Vamos?!
—Vamos sim! Daqui a pouco estará na hora da Laryel mamar. —
Pegando a filha dos braços de Lívia, convidou: — Vão lá em casa no
sábado! Podemos comer uma pizza! O que acham?
—Eles não acham nada! — interferiu Sérgio sorridente.
—Está combinado! Vamos aguardar vocês dois no sábado!
Lívia olhou para Humberto que não disse nada e concordou:
—Eu topo! Vou sim! O que você acha, Humberto?
—E... Pode ser.
Após isso, despediram-se e todos se foram.


***

Na manhã seguinte, após observar o filho que não conseguia se


levantar, dona Aurora resolveu ligar para Lívia e contar:
—É que o Humberto não se levanta. Fui falar com ele e mal me
respondeu que não está se sentindo bem.
—Eu vou até aí, dona Aurora. Já estou saindo.
Após algum tempo, Lívia encontrava-se no quarto do rapaz junto
com a senhora.
—Vamos, Humberto, precisamos ir logo. Estamos em cima da hora!
O trânsito não está nada bom. Se demorar mais, ficará pior e
chegaremos atrasados.
—Eu não vou hoje — murmurou desanimado.
—Ah! Vai sim! — respondeu firme. Num impulso, a moça foi até a
janela do quarto, abriu as cortinas e as venezianas deixando a
luminosidade dos raios do sol entrar junto com um leve ar fresco e



frio. Intuída, reagiu veemente: — Na cama, é que você não vai ficar!

— Tirando-lhe as cobertas, ela o puxou pelo braço, fazendo-o se
sentar ao ordenar: — Vai! Levanta! Sua mãe precisa arrumar o
quarto e você tem que ir trabalhar. Se não vai para a empresa, então
vamos ao médico para saber o que é que você tem, porque doente
não está! Vamos! Levanta!
Esmorecido, ele se sentou, apoiou os cotovelos nos joelhos e
segurou a cabeça com as mãos. Puxando-o para que se levantasse,
Lívia exigiu novamente:
— Vai, Humberto! Vamos logo! Eu não quero perder a hora!
O rapaz se sentia muito mal. Experimentava uma sensação de
fraqueza e acreditava que pudesse desmaiar a qualquer momento.
— Vamos, meu filho, faça o que ela está dizendo — pediu dona
Aurora.
Ao mesmo tempo, Adamastor determinava:


— Fique aí! Você está cansado, destruído! Não tem forças para
nada, entendeu?! Nada!!! Não consegue pensar! Sua cabeça está
confusa! Está tonto! Se levantar, vai cair! Na cama, estará seguro!!!
Enquanto isso, espíritos incrivelmente inferiorizados, que estavam
ligados a Humberto, sugavam-lhe as energias fazendo-o se sentir
extremamente exausto.
Lívia o fez levantar à força, e pediu:
—Tome um banho rápido! Reaja, Humberto!
—Estou tonto. Acho que vou cair.
—Não vai cair, não! Respira fundo! Levante a cabeça! Abra os olhos
e vá pro banho!
O espírito Adamastor ria e gargalhava com a cena, zombando:
— Ora! Ora! Quem viu esse cretino, todo importante, chefiando
aquela Enfermaria dos Perturbados, não imaginava que ele ficaria
mais perturbado e frágil do que todo o mundo ali! Vai, infeliz! Por
que não reage agora?! Pensou que fosse fácil! Cadê a sua fé?! As
suas palavras bonitas?! Viu como é difícil ser um miserável, um
dependente que precisa de ajuda?! Só que você vai ficar pior! Ah!

Vai! Daqui a algum tempo, você vai ficar louco! A má alimentação
vai te deixar doente! Eu vou te ajudar a ficar doente!
A ação obsessiva, na espiritualidade, minimizava as forças físicas de
Humberto. Os pensamentos impostos por Adamastor provocavam
reações neuroquímicas que consistiam na alteração do seu humor,
rebaixando-o e causando todo aquele desânimo e estado depressivo.


Uma angústia o dominava provocando o que parecia um
sofrimento sem fim.
Sentindo-se abraçado por um medo pavoroso, tinha os pensamentos
confusos, imaginando que algo terrível fosse acontecer com ele a
qualquer momento.
Porém, apesar de sentir-se extremamente mal e cansado, forçou-se a
um banho e a se arrumar para ir trabalhar.
Observando-o, Lívia aconselhou:


— Vista um suéter. Hoje está frio.
—E quanto a você, sua infeliz, safada, cretina — ofendia o espírito
Adamastor sem que a jovem o percebesse —, não perde por esperar!
Vou acabar com você!!! Com você e com essa velha idiota!!! Com
todos que estão ajudando esse imbecil!!! Me aguardem!!!
—Filho, tome um pouco do capuccino que eu fiz. Sei que gosta.
Tome um pouco só para não ir trabalhar em jejum.
Para agradar sua mãe, Humberto forçou-se a tomar a bebida quente,
mas recusou-se a se sentar à mesa para comer algo.
Em seguida, pediu:
— Vamos embora logo.
***

No carro, durante o trajeto, Lívia percebeu-o com os olhos fechados
e aconselhou:

— Humberto, abra os olhos. Respire fundo e tente conversar um
pouco.
— Sobre o quê?

Ela sorriu e brincou:
—Que bom! Já estamos conversando sobre o que devemos
conversar! — riu.
—Chegando à empresa, eu vou passar no médico.
—Será que precisa mesmo de médico?
—O que acha que eu devo fazer? — perguntou com uma estranha
calma no tom de voz cansada. Trazia o olhar triste, pálpebras
pesadas e um peso no belo rosto abatido.
—Eu acho que você deveria fazer psicoterapia, academia... Procurar
desenvolver algum talento como pintura, escultura... Sei lá!
—Será que isso ajuda?
—Qualquer coisa que faça vai ajudá-lo! O que vai fazê-lo se sentir
pior é ficar parado. Ocupe sua mente! Dê ferramentas para suas
idéias criativas. Escreva um livro, pinte, faça tricô, trabalhos
artesanais com madeiras. Qualquer coisa, mas faça alguma coisa!
—Tenho sensações horríveis. Comecei a ter medo de que alguma
coisa iria sair da parede ou do armário do quarto. Era como se eu
visse e ouvisse algo aterrorizante e alguma coisa fosse acontecer
contra mim.
—Veja, você só sabe falar que passa mal. Só comenta coisas sobre as
sensações horríveis, sobre as tonturas e outros sintomas. Isso
acontece porque não tem algo novo e bom para dizer, para
conversar. O que precisa é trocar o foco.
—Mas é o que sinto! Parece que vou morrer! Fico apavorado! Isso é
absurdo porque eu nunca tive medo da morte, mas agora...

—Quando vierem pensamentos de doença, diga a si mesmo: eu sou
saudável! Eu tenho saúde! Ao pensar que algo vai acontecer, diga:
estou protegido e amparado por Jesus. Quando idéia de morte vier,
troque por idéias de vida, alegria e paz. Pense na imagem de um
mar lindo, de um campo florido, em montanhas vistas de uma
estrada bonita. Entendeu?! Mude os pensamentos, mesmo que no
começo você não acredite piamente na idéia positiva que está


pensando. Aos poucos e com o tempo, você vai se fortalecer e se
sentir mais confiante.
—Será?!
—O que tem a perder? Pior do que está, não fica!
—E se ficar? E se eu não melhorar? E se eu ficar desse jeito para
sempre?
—Onde está a sua fé? Ninguém nasceu para viver eternamente
triste e infeliz, só pensando coisa ruim! Não mesmo! Deus é bom e
justo! Ele vai te ajudar à medida que você se ajudar! Faça a sua
parte!
—Não sei como alguém como eu, com tudo em que eu acreditava,
foi chegar a um estado como esse?!
—Será que isso te aconteceu para se recuperar, vencer esse estado e
depois ajudar outras pessoas na mesma situação? Você será uma
prova viva de que esse tipo de transtorno passa e a vida pode ser
melhor, depois que se vence esse estado.
—Por que diz isso?
—Porque para vencer esse estado, a pessoa precisa reformar-se,
mudar-se intima e verdadeiramente. Eu conversei um pouco com a
Júlia e, pelo que ela me falou, cheguei à conclusão de que uma
pessoa entra em crise porque o seu inconsciente está gritando por
socorro, por não agüentar tantas pressões da vida. Pense,
Humberto, você não está assim só por causa da morte do Rubens ou
porque o pegou com a Irene. — Breve pausa em que pensou,
refletiu e depois comentou: — Deus me perdoe falar assim se eu
estiver errada, mas você deveria ter ficado feliz porque a máscara
da Irene caiu. Lamentar pelo fato do Rubens ter um fim trágico, é
aceitável, porém... Estamos livres, Humberto!
Esfregando o rosto com as mãos, ele pediu:

— Pare com isso Lívia....
—É a verdade! — Uma amargura quase embargou sua voz, mesmo
assim ela continuou: — Não podemos negar a realidade! Você não
estava feliz nem eu! No entanto, agora estamos livres!

—Não consigo me perdoar pelo que aconteceu com o meu irmão! —
Lágrimas correram por sua face, entretanto ele prosseguiu: — Eu
queria matá-lo! Queria acabar com a vida dele! Queria matar a
Irene! Contudo, depois que meu irmão estava morto... Estou
arrependido!

— Não foi você quem o matou!!!
—Mas eu queria fazer isso com as minhas próprias mãos! Desejei
isso tão intensamente que...
—Se acha que os seus desejos e pensamentos são tão fortes, são tão
poderosos a ponto de você acreditar que o Rubens morreu pelos
seus desejos, então, deseje se livrar dessa depressão! Caramba,
Humberto! Acorda para a vida!
— O que eu tenho de fazer?! Diga!
— Eu já disse!!! Comece resolvendo tudo o que está pendente!
Comece por você! Eu te ajudo!
Alguns segundos e ele a encarou de modo estranho, sentindo todo o
seu corpo estremecer. Depois abaixou a cabeça e murmurou:
—Você não sabe... Não imagina como está sendo difícil eu te ver,
Lívia. Você me faz lembrar do Rubens. Rapidamente, me recordo de
tudo o que aconteceu e me sinto mal. Uma série de sensações
começam e...
—Eu vou estar ao seu lado para que você lute e faça algo para se
recuperar. Acostume-se comigo, porque não vou te abandonar.
Estou determinada a tirá-lo desse estado porque, de alguma forma,
me sinto culpada e acho que te coloquei nessa situação. Não fuja,
esteja disposto a encarar a realidade, as dificuldades. Creio que, aos
poucos e à medida que for resolvendo tudo à sua volta, vai
melhorar. Se não percebeu, ainda tem muita coisa para resolver.
—O que eu tenho para resolver? — perguntou, parecendo
esquecido, confuso.
—Para começar... a Irene. Precisa saber se o filho que ela espera é
seu ou não. Tem o apartamento. O que vai fazer com ele? Sem falar
no seu serviço. Precisa tomar as rédeas de sua função lá na empresa.



Pelo que entendi, a Júlia é quem está te direcionando até para tomar
determinadas decisões que deveriam ser unicamente suas. Você
esteve e ainda está muito afastado da empresa. Até quando vai
correr para os médicos e justificar suas ausências? Pense bem,
perder o emprego, agora, por falta de reação, não seria uma coisa
inteligente.
—Não estou conseguindo organizar os meus pensamentos. As
vezes, não sei que decisão tomar. — Suspirando fundo, comentou:

— Meu Deus, eu não sei o que fazer!
—Sabe sim! Ah! Sabe! Eu estou te falando! Saia. Vá caminhar. Faça
academia. Procure um psicólogo. Resolva o que está pendente... E
você não faz nada! Ainda não fez nada! Ainda pergunta a Deus o
que deve fazer?! Ora, por favor! Deus não fala, mas sinaliza à sua
volta um monte de coisas para serem feitas. Apesar de todas as
sensações horríveis que sente, você deve acreditar que não vai
desmaiar nem morrer. Respire fundo e comece a fazer alguma coisa.
Pare de reclamar e aja!
—Estou confuso.
—Se proponha a resolver uma coisa de cada vez. Mesmo que seja
devagar, mesmo que demore, mas resolva você! Não deixe para os
outros. No serviço, por exemplo, em vez de perguntar para a Júlia
sobre quais documentos assinar e aprovar, pare, leia e releia, pense
e tome você a decisão. Depois, se estiver inseguro ainda, aí sim,
pergunte a ela, mas só depois de ter tomado a decisão. Não a mande
resolver situação alguma por você. Nada acontece por acaso. Deus
não coloca fardo pesado em ombros leves.
Ele não disse nada, porém ficou pensando a respeito. Ao estacionar


o carro, Lívia olhou e comentou:
— Parece que está melhor. A sua aparência mudou. — Sorrindo,
ainda disse: — Viu?! Foi melhor ter vindo para a empresa do que
ficar em casa, socado naquele quarto.
Eles não perceberam, entretanto, enquanto conversavam e
discutiam, espíritos elevados usaram Lívia para que servisse de

canal de energias salutares, cedidas da espiritualidade a Humberto,
a fim de que o rapaz se recompusesse e conseguisse organizar os
pensamentos para tomar a iniciativa de agir.

Sem qualquer outro comentário, eles desceram do carro e entraram
na empresa assumindo seus respectivos trabalhos.

***

Bem mais tarde, perto do final do expediente, Lívia procurou Júlia
que, alegremente, recebeu-a:

— E aí?! Tudo bem?! — perguntou a secretária.
—Na medida do possível, tudo. — Após alguns segundos,
perguntou: — Sabe me dizer se o Humberto vai embora agora?
—Creio que sim. Ah! Tome o cartão do psicólogo que ajudou minha
irmã. Ele é ótimo! O Humberto vai gostar! — Assim que a outra
pegou o cartão, Júlia comentou: — Hoje ele pareceu mais animado,
mais ativo.
—Talvez seja por causa da nossa conversa, hoje de manhã, no carro
a caminho do serviço.
—Ele não comentou nada, mas eu percebi que estava diferente.
—Em pensar que precisei arrancá-lo da cama! Nunca me imaginei
fazendo isso com alguém! Nem com o meu irmão!
—Por quê? Ele não queria vir trabalhar?
—Não. Não conseguia nem levantar.
—Eu vi que chegaram atrasados... Pensei que fosse por causa do
trânsito.
—Escute, Júlia, diga-me uma coisa: de onde tirou aquilo que me
disse ontem sobre esses tipos de transtornos como depressão,
pânico e ansiedade? Como sabe sobre o lado espiritual que pode
ajudar a abalar alguém nesse estado?
Olhando-a de modo significativo, Júlia pediu educada:
—Sente-se aí. — Após ver a outra se acomodar, contou-_ Eu sei que
você acredita em espiritualidade, pois me disse outro dia, mas...



Deixe-me perguntar uma coisa: você é espírita? Sabendo disso,
posse me explicar melhor.
—Seguidora ou praticante do Espiritismo como gostaria, não. A
verdade é que simpatizo muito com essa doutrina. Já li vários livros,
principalmente, O Evangelho Segundo o Espiritismo, O Livro dos
Espíritos, O Livro dos Médiuns, mas esse não terminei. Então tenho
um pouquinho de noção e conhecimento a respeito.
—Eu te pergunto isso para que fique mais fácil de explicar. — Com
fala mansa e meticulosa, contou: — E assim... Bem, eu sei que todos
somos médiuns em maior ou menor grau. Sempre percebi algo
diferente comigo. Quando minha irmã passava por aquela
movimentação toda em sua vida, eu comecei a orar muito. Pedia a
Deus eu poder ajudá-la de alguma forma. Algumas vezes por dia,
duas ou três, eu fechava os olhos, respirava tranquilamente,
relaxava todo o meu corpo e procurava esvaziar toda a minha
mente pensando só em paz, procurando ver ou imaginar a cor azul
em mim, por dentro e por fora, e todo o ambiente também. Foi
então que eu consegui um estado de relaxamento bem profundo.
Parecia que todo o meu corpo estava leve, gigante ou sem forma. Se
eu quisesse abrir os olhos e levantar, sem dúvida, eu poderia fazer
isso. Eu estava no controle da situação. Através de diversas técnicas
diferentes de relaxamento, muitos conseguem esse estado que
chamam de alfa.

Bem, nesse estado, eu comecei a mentalizar que eu estava bem,
confiante, segura, protegida por Deus e encontraria um jeito de
ajudar a minha irmã.
De repente, comecei a ter idéias de tirá-la da cama, fazer caminhada,
levá-la para um curso de pintura em tecido, pintura em tela, insistir
para que fizesse terapia... Enfim, passei a ter idéias para ajudá-la e
funcionou. Às vezes, quando eu me sentia um pouco cansada, sem
ânimo, eu fazia esse exercício de relaxamento. Mentalizava-me
animada, alegre, feliz, repleta de força e vontade, repleta de idéias e
isso acontecia.


Com o tempo, percebi que eu parecia conversar com alguém que me
dava, rapidamente, as respostas a tudo o que eu perguntava. Criei
uma espécie de ligação com um espírito que me orientava.
Acreditando ser um espírito feminino e tratar-se de minha mentora,
perguntei qual era o seu nome e me veio à mente: Célia.
A partir de então, senti que tínhamos uma ligação muito forte.
Algumas vezes, sinto-a me envolvendo, literalmente, como em um
abraço. Parece que sinto alguém me abraçando, mesmo, pelas
costas.
Então comecei a fazer perguntas à Célia e vinham respostas através
de idéias ou pensamentos, ou até através de outras pessoas.
Quando conversei com você, senti que a Célia, em pensamento,
queria que você soubesse sobre o que está acontecendo com ele e
como esse estado pode ser perigoso se espíritos inferiores puderem
controlar a situação.


— A Célia pediu que me dissesse isso?
—Eu não diria que foi um pedido. Digamos que houve a
oportunidade de conversarmos sobre isso e a Célia me fez entender
que eu precisava te falar a respeito. Então ela me inspirou.
—Puxa! Estou surpresa! — exclamou sob forte impressão. — É

que... Bem, eu acredito, sem dúvida, mas sempre vi isso só na teoria,
nos livros. Agora, assim... acontecendo comigo... Alguém dizendo
que um espírito mandou me avisar... E emocionante!
—Veja — falou com jeitinho —, ninguém mandou ou pediu
exatamente para te avisar. Foi você quem colocou essas palavras.
—É que eu não sei como me expressar direito — sorriu. Alguns
segundos e Lívia perguntou: — Diga-me uma coisa: você levou sua
irmã ao centro espírita?
—Levei. Bem, ela era católica, por isso a levei primeiro à igreja que
freqüentava, mas não estava bom para ela. Depois... Para te dizer a
verdade eu levei a Cláudia em terreiros de umbanda, igrejas
evangélicas, católica, filosofias orientais, centros espíritas e tudo
mais o que ela quis ir. A ajuda pode não vir exatamente da religião


ou da filosofia, mas sim da pessoa sentir que encontrou um lugar
que a complete interiormente. Um lugar que ela se sinta bem.
—Onde a Cláudia se sentiu bem?
—Depois de rodarmos por vários lugares, incluindo diversos
centros espíritas, ela começou a se sentir bem numa casa espírita
muito pequena. As reuniões eram e são feitas com um grupo que
não passa de quinze ou vinte pessoas! Ela iniciou outro tratamento
de assistência espiritual. Gostou. Sentiu-se bem e está lá até hoje.

— Você contou isso para o Humberto?
— Não. Ele não perguntou essa parte da história — riu. — Eu tenho
que me pôr no meu lugar.
Lívia sorriu de modo diferente, parecendo iluminar-se pelas boas
idéias que passou a ter. Recatada, pediu:
—Agradeça à Célia por mim. Que Deus continue iluminando vocês
duas.
—Obrigada. Que Ele continue te iluminando também. Mas não me
peça para agradecê-la, você já está fazendo isso.
Lívia ficou encabulada e se sentiu corar como se percebesse haver
outras criaturas ali, junto a elas, e não pudesse ver.
Num impulso, Lívia se levantou, contornou a mesa e, cur-vando-se,
abraçou Júlia demoradamente, com muito carinho.
Com olhos marejados, ambas trocaram um beijo no rosto sem
qualquer palavra.
Ao perceber um barulho na porta, indicando que Humberto saía de
sua sala, Lívia se recompôs, ficando na expectativa. Ao vê-la pronta
para ir embora, ele perguntou:
—Vamos?!
—Sim, vamos.
Despedindo-se de Júlia, eles se foram.

16


O RETORNO DE RUBENS


Sábado à tarde.
Humberto encontrava-se sentado no sofá, sob as cobertas, olhando
para a televisão sem prestar atenção no programa que passava.
Estava frio e dona Aurora havia levado uma caneca de chá para o
filho. Sentada em uma poltrona perto dele, puxou algum assunto do
qual ele mal opinou.
Vendo-o em silêncio, a senhora voltou para a cozinha, pois havia
deixado um bolo assando no forno.
Foi então que, adentrando ao recinto, chegou o espírito Rubens,
confuso, desorientado e bem machucado.


— Mãe! — chamou ao vê-la frente à pia.
Dona Aurora não pode ouvi-lo, mas sentiu um aperto no peito e
uma saudade em forma de dor, desatando a chorar.
— Mãe! Olha pra mim! — pedia o espírito Rubens atordoado. — Sei
que a senhora está assim porque já soube de mim e da Irene. Não é,
mãe?! O Humberto já contou tudo para a senhora. Só que contou do
jeito dele. Mas... Mãe -chorou sentido -, eu fui fugir dele e sofri um
acidente... Olha!... -A mulher não se virava em sua direção, e ele
contou chorando ao
implorar: — Eu me arrebentei com a moto, mãe! Veja, aqui!... —
Inconformado e sem entender a reação de sua mãe, suplicou em
lágrimas: — Mãe! Olha pra mim, mãe! Por favor! — Alguns
segundos e perguntou: — Por que a senhora está me tratando desse
jeito?! Por que não fala comigo?! Eu errei! Tá bom que eu errei, mas
me ajuda, mãe! Estou machucado. Sinto muita dor! Olha esses
ferimentos!...
O espírito Rubens apresentava uma aparência espiritual muito
machucada. Vários cortes, escoriações e até fraturas que o faziam ter
dor como se fosse em seu corpo físico.



Seu rosto e sua cabeça sangravam, na nuca, trazia um afundamento
do crânio, reflexos de seu acidente. Contudo, o seu corpo de carne
havia ficado em condições muito piores. Aparecia daquela forma
porque havia recebido ajuda de tarefeiros espirituais que, a pedido
da nobre entidade Laryel, haviam prometido auxiliá-lo a se
recompor e deixá-lo sob os domínios daquela residência para sua
proteção.
Ele andava com extrema dificuldade quando se aproximou de dona
Aurora. Encostou-se em suas costas, debruçou-se em seu ombro e
chorou:

— Mãe, me perdoa!... me perdoa e me ajude!... O que fiz não tava
certo, mas...
A senhora passou a chorar compulsivamente ao se lembrar do filho
Rubens como era. Experimentou uma sensação em que pareceu
sentir o seu perfume, ouvir a sua voz vivamente como se estivesse
em casa. Achou até que podia ouvir o seu barulho costumeiro.
Recordou-se de sua vaidade, de sempre querer suas camisas limpas
e bem passadas que ela deixava, caprichosamente, arrumadas no
armário do quarto como ele gostava. Lembrou de seu prato
predileto e de como Rubens ficava feliz quando ela o preparava de
surpresa.
Sem saber e sem perceber, dona Aurora foi cedendo energias ao
espírito Rubens, que começou a se sentir mais refeito e um tanto
sonolento.
Confuso, e acreditando que sua mãe agia daquela forma para puni-
lo pelo que ele havia feito contra o seu irmão, decidiu:
— Tudo bem. A senhora está certa. Vamos conversar amanhã.
Ainda com muita dificuldade, foi para o seu quarto.
Passando pela sala, olhou para Humberto que parecia hipnotizado
frente à televisão. Pensando que o irmão estivesse muito irritado
com ele e para não provocá-lo decidiu não dizer nada.
No quarto, deitou-se em sua cama e caiu numa espécie de sono
profundo.

Não demorou e Lívia chegou, parecendo animada.
Dona Aurora já havia se recomposto do choro, que tentava
disfarçar, e a recebeu com o carinho de sempre. Mas a moça
percebeu:


— A senhora estava chorando? — perguntou com jeitinho generoso.
— É a saudade, filha! Dói tanto!...
— Eu sei, dona Aurora. É difícil mesmo. Afastando-se
do abraço, a senhora pediu:
— Não conte ao Humberto. Não quero que meu filho fique triste
por saber que eu chorei. Não quero que ele tenha mais problemas e
preocupações.
—Fique tranqüila, não vou dizer nada. — Em seguida, ela
perguntou: — Ele está na sala?
—Está. Ficou o dia inteiro olhando pra televisão, mas parece que
não enxerga nada. Estou com tanta pena dele, Lívia. O meu filho
não precisava sofrer tanto.
—O Humberto vai ficar bom, dona Aurora. Confie em
Deus.
—Eu confio! Confio sim! — disse bem segura.
—Isso é muito bom. Agora vou lá falar com ele, se a senhora não se
importar.
—Lógico que não! Vai lá, meu bem, vai!
Lívia deu-lhe um beijo no rosto e foi para a sala. Lá encontrou o
rapaz, sentado e encolhido no sofá, coberto por uma manta.


— Oi! Tudo bem?
Erguendo o olhar, ele respondeu:
— Quase tudo. Tô levando.
Sem dar importância ao tom melancólico de sua voz, Lívia
perguntou:
—Hoje combinamos de ir lá à casa da Débora, esqueceu?
—Não. Só que não quero ir. Está frio e...

—Aaaaah! Não! — falou firme. — Depois fica perguntando a Deus o
que você deve ou precisa fazer para sair dessa crise, não é?! O que
você deve e precisa fazer para melhorar está aí, na sua cara, e não
faz! Por favor! Se não aproveitar as oportunidades, sabe o que vai
acontecer? — Sem aguardar por uma resposta, explicou: — As
pessoas vão desistir de você, de te ajudar e vão te esquecer! —
Firme, perguntou: — Foi procurar um psicólogo como
combinamos? — Sem esperar que ele respondesse, Lívia,
praticamente, atacou firme, porém educada-— Não! É lógico que
não! Vai ver nem olhou o cartão que te dei ontem! Foi, hoje cedo, lá
à academia que passamos em frente ontem à noite?!
—Olha, Lívia... — falou com grande esforço, parecendo precisar
reunir todas as suas forças. — Se veio aqui para me deixar pior,
pode...
—Ir embora? Foi isso o que pensou em dizer?! — Olhando-o de
modo enérgico, afirmou em tom baixo: — Eu não vou embora
mesmo! Nós vamos sair de qualquer jeito! Ou vamos à casa do
Sérgio ou... Sei lá! Vamos a um barzinho, a uma casa noturna,
restaurante... Faz tempo que não como pizza! — sorriu.

— Lívia, por favor...
Puxando a manta que o cobria, forçou-o:
— Vai, Humberto! Não vamos perder tempo. Você vai sair, hoje, de
qualquer jeito. Em casa não fica!
Dona Aurora, que acabava de chegar à sala, pediu:
— Vai, filho! Aproveite a boa companhia! Envolvido e inspirado
pelos espíritos inferiores que o
castigavam e aproveitando-se do estado em que se colocou,
Humberto reagiu:
—Que boa companhia?! Como quer que eu fique bem olhando para
ela e lembrando do meu irmão?! Como?!
—Não existe motivo para você pensar assim! — afirmou Lívia bem
segura. — Não fui eu ou você quem provocou tudo o que aconteceu
com ele! Eu tenho a consciência tranqüila! E você deveria ter

também! O que o colocou nesse estado triste, amargo, depressivo
não foi o resultado final do seu irmão, mas sim o que o Rubens fez a
você por um bom tempo. Ele e a Irene mantiveram um romance, um
relacionamento que só Deus sabe quanto tempo durou até você
descobrir. E se nós dois não os tivéssemos flagrado aquele dia, lá no
seu apartamento, é bem provável que eles continuassem se
envolvendo até depois que você se casasse com ela! O seu irmão não
te traiu somente com ela não. Ele deve tê-lo enganado, traído há
muito tempo, há séculos. Agora você está dando o direito de ele
roubar até a sua vida! Isso não é justo!

— Pare com isso, filha — pediu dona Aurora entristecida.
Humberto sentia-se envergonhado ao tentar disfarçar a emoção que
o dominava. Recostando-se no sofá, escondeu o rosto.
Sua mãe se retirou indo até a cozinha para pegar um copo de água
com açúcar para dar ao filho.
Vendo-o daquele jeito, Lívia tomou coragem e falou:
— Humberto, eu decidi uma coisa: por mais que você não me
queira, por mais que me odeie, vou fazer de tudo para te ajudar.
Sabe por quê? Porque eu gosto muito de você como nunca gostei de
alguém. Depois que estiver refeito, aí sim, vou embora se me pedir.
Ela ficou olhando-o por algum tempo sentindo a sua compaixão e o
seu amor aumentar junto com a certeza do que fazia.
Sem dizer nada, ele somente passou a mão pelos cabelos aloirados
num gesto impaciente. Tinha os pensamentos confusos. Era como se
a ouvisse, mas sem compreender o que Lívia dizia.
Percebendo-o sem ação, a moça se sentou ao seu lado e com nobreza
no gesto delicado acariciou-lhe, suavemente, o rosto com as costas
da mão e em tom suave na voz baixa, falou com carinho:


— sso vai passar, Humberto. Nada é eterno a não ser a vida. Deus
não te criou para viver assim!
Num gesto inesperado, ele se virou e a abraçou com força, chorando
escondido em seu ombro amigo.

Com a voz rouca e sufocada, murmurou de um jeito desesperado
enquanto a abraçava:
—Me ajude, Lívia! Eu quero sair desse estado! Pelo amor de Deus,
me ajude!
—Eu estarei ao seu lado sim, sempre! Porém quem precisa se ajudar
é você!
Afastando-se do abraço, após receber energias salutares, motivo que
desconhecia, Humberto se sentia um pouco melhor. De cabeça
baixa, desviando o olhar, comentou:
—Às vezes, acho que não vou ter forças, mas eu quero me
recuperar.
—A vontade é tudo! Queira, deseje e se force a fazer tudo o que for
possível para se recuperar. Eu posso estar ao seu lado, mas é você
quem precisa agir.
Dona Aurora só os observava de longe. Não quis interrompê-los.
Após alguns instantes, apesar de tudo o que sentia, ele respirou
fundo e decidiu:


— Vou me arrumar. Vamos até a casa do Sérgio.
Lívia iluminou-se com largo sorriso ao vê-lo se levantar e ir para o
quarto.
Na espiritualidade, Adamastor exibia-se furioso.
Em meio a energias de ódio e raiva que emanavam dele como ondas
magnéticas estranhas e medonhas, blasfemou e urrou feito um
bicho, depois gritou:
— Desgraçada!!! Quem é você para fazer isso com ele?!!
—berrou como se Lívia pudesse ouvi-lo. — Sua infeliz!!! Vou acabar
com você!!! Demorei tanto e despendi tanta força para deixar esse
desgraçado sem ânimo, fraco, sem vigor, para você, com uma
simples conversinha, animá-lo e lhe dar energias!!!
—Rodeando-a, xingou-a com os piores nomes. Ao tentar abraçá-la,
experimentou como que um choque que o impulsionou e o repeliu,
fazendo-o perder o equilíbrio.

Sem que pudesse ver, pois, apesar de ser na espiritualidade, estava
em um nível diferente, o espírito Alda e demais companheiros
cediam fluidos energéticos que fortaleciam Lívia, preservando-a.
Na noite anterior, bem como naquela manhã, Lívia tinha realizado,
com muita fé, o exercício de relaxamento ensinado por Júlia. E foi
num estado bem tranqüilo e com bastante confiança e amor que ela
rogou por uma luz azul cintilante vinda do alto e derramada sobre
ela como bênção santificante de paz. Assim, a jovem acreditou ter
proteção e força para se equilibrar e auxiliar Humberto no que fosse
possível. Acreditou e sentiu que, no momento preciso, ela saberia o
que fazer, o que falar e como agir em benefício de quem amava.
Rogou a Deus proteção, saúde, sabedoria, tranqüilidade e paz. E,
antecipadamente, agradeceu como se já tivesse recebido o seu
pedido, pois tinha toda a certeza de que isso ocorreria.

Dessa forma, sua mentora e os demais amigos espirituais
encontraram em Lívia energias compatíveis, criadas por ela, com as
quais eles puderam interagir e auxiliar com a proteção de que ela
precisava.
Apesar do susto, Adamastor estava revoltado, contrariado com o
que havia acontecido.
Após se trocar, Humberto chegou à sala e, provocado por
Adamastor, sentiu-se mal ao olhar para Lívia que o aguardava. Mas
criou forças e forçou-se a um sorriso, pedindo:
—Vamos?
—Claro! Vamos sim! — resolveu ela alegre.

***

Não demorou muito e o casal estava na casa de Sérgio e Débora,
que os receberam com muita satisfação.

— Desculpe-me por não ter vindo antes visitar a Laryel.
— Não se preocupe, Humberto! Eu entendo — disse Sérgio. -Vem
cá! Sente-se aqui!

Enquanto isso, Débora e Lívia foram para o quarto da pequena
Laryel, que reclamava atenção.
—Ah! Essa menina está danadinha! — Sentando na cama, Débora
brincou com voz mimosa ao pegar a garotinha no colo. -Ela só quer
colo! E mais colo!
—Toda criança é assim! — disse Lívia sorridente. — Adoro criança!


—Sabe, quando eu posso, eu a pego no colo sim. Mas tem hora que
preciso fazer alguma coisa e vejo que o seu chorinho e de manha,
então a deixo esperar um pouquinho.


—Posso pegá-la? — pediu Lívia.
—Claro! Sente-se aqui! — pediu, espalmando a mão na
cama.
Com Laryel nos braços, Lívia comentou:
—E tão gostoso segurar um nenezinho!
—A dona Aurora é quem diz isso. Ai, menina, você precisava ver o
ciúme da dona Antônia, uma amiga que tenho como se fosse minha
mãe, como a dona Aurora. E muito legal ver as duas juntas
querendo dar o melhor de si, como se estivessem competindo por
causa da Laryel.
—Quem é a dona Antônia?
—Uma criatura maravilhosa! É mãe do João, nosso amigo. Ela
estava aqui no meu aniversário, lembra? E a esposa do doutor
Edison!
—Ah! Sei! Lembrei.
—A dona Antônia e a dona Aurora são duas mães para mim.
—E sua mãe, Débora?
—Perdi meus pais num acidente. Tenho dois irmãos, mas não sei
por onde andam. Talvez estejam fora do Brasil. Nós nos afastamos e
não tenho notícias.
—Entendo — compreendeu Lívia.
—Não tenho uma família antiga da qual eu descenda. Mas Deus é
maravilhoso e me compensou de outra forma. Tenho a Rita, que é



uma irmã para mim. Nós nos damos muito bem. O Tiago então!...

— Rindo comentou: — Tenho até duas mães!
—É, eu sei. A dona Aurora é uma criatura boníssima. Sabe, é muito
bom ela vir aqui para te ajudar, com isso se distrai, se ocupa.
—Tenho muito dó dela por causa do que aconteceu. Nossa!... Nem
dá para se colocar no lugar dela. Principalmente pelo que aconteceu
entre os filhos.
—A situação é tão difícil, Débora. O Humberto desse jeito... Muitas
coisas estão pendentes e...
Olhando-a nos olhos, Débora argumentou:
—Você gosta muito dele, não é?
—Gosto, sim — murmurou. — Peço a Deus que me oriente e me dê
forças para poder ajudá-lo. Sabe, existem instantes em que me sinto
fraca, inútil... Não consigo esquecer o momento em que pegamos o
Rubens e a Irene juntos. É algo horrível! Fico imaginando como o
Humberto está se sentindo a respeito.
Tocando-lhe o ombro num gesto amigo e piedoso, com a voz
mansa, Débora afirmou:
—Não desanime. Tudo é muito recente. Você precisa ser forte.
—Eu sei — falou com lágrimas que quase rolaram de seus olhos. —
Quando eu olho para o Humberto, por um instante parece que vejo


o Rubens. A sua voz então...
—Ê como o Sérgio e o Tiago. Eles são muito parecidos.
—Às vezes, sinto uma coisa!... Tenho vontade de me afastar, de não
fazer mais nada...
—Não pense assim. Por mais que seja difícil, fique ao lado dele.
Tenha paciência e fé. Não se afaste dele enquanto você sentir que
existe amor. Às vezes quando desejamos fugir de uma situação,
estamos fugindo justamente do caminho que devemos seguir. Não
prefira o fácil. Não se iluda.
— É interessante você me dizer isso. Posso desabafar uma coisa?
—Claro!

—Eu ficava indignada, com muita raiva de tudo o que estava
acontecendo entre mim e o Rubens. Eu já te falei... as agressões, as
crises de ciúme, os maus tratos... Ficava imaginando uma manchete
de jornal anunciando um crime passional com o meu nome ou o do
Humberto! Era horrível! Acho que você não sabe nem imagina o
que é estar com alguém e sentir medo, pavor, pânico! — Débora
ofereceu um sorriso meio triste e nada disse. — Quando vi os dois,
no apartamento, fiquei transtornada, aturdida, confusa. Não
consegui nem pensar. No dia seguinte, tomei um susto enorme
quando soube que ele morreu! Mas... no fundo, eu senti um alívio
tão grande... Foi como se alguém tirasse um peso do meu peito.
Algo que me asfixiava. Não sei se é errado sentir isso, mas eu não
posso mentir. Logo depois, o Humberto ficou desse jeito...Senti um
desânimo. Pensei em largar tudo, não ir mais vê-lo... Algumas
semanas depois de tudo, o meu encarregado começou a se
aproximar de mim e... com a desculpa de perguntar como eu estava,
entende? Senti que ele me tratava de uma forma diferente. Ele era
atencioso e até, vamos dizer, carinhoso com gestos e palavras. Um
dia fomos almoçar juntos e ele pareceu muito gentil e cortês demais.
—Cuidado com isso, Lívia. Eu conheço muito bem homens assim
que se aproveitam de uma situação ou de sua sensibilidade para
entrarem em sua vida e destruí-la totalmente. A recuperação, se
houver, é muito difícil e dolorosa. — Breve pausa e perguntou: —
Você gosta desse cara? Sente alguma atração por ele?
—Não! De forma alguma! É que... Com o Humberto desse jeito
cheguei a pensar se não seria melhor eu dar um tempo, me sentir
livre de verdade e nao me prender a ele. Pensei em me dar uma
folga e sair, passear com gente alegre e... Sei lá!

— Se quiser dar um tempo a você mesma, faça isso sozinha.
— Eu gosto do Humberto! Isso não é estranho?
—Não. Isso é uma tentação. Você gosta de uma pessoa, mas não
quer enfrentar os problemas e as dificuldades ao lado dela. Na
verdade, quer tudo resolvido e só aproveitar as coisas boas.

—Desculpe-me, mas, falando dessa forma, está sendo tão dura!
—É para que não se iluda, Lívia! — Segurando sua mão, falou com
jeitinho: — Preste atenção, lembra-se da passagem evangélica da
porta larga e da porta estreita?


— Lembro.
— É isso o que está procurando: a porta larga. Se você conhece o
Humberto, sabe como ele é como pessoa. Conhece seu caráter, sua
dignidade, gosta dele, sabe que ele gosta de você, mas quer se dar
uma folga diante dos problemas que precisa enfrentar, quer fugir da
tarefa de ajudá-lo para, depois, juntos, começarem um
relacionamento bonito e sincero, você está querendo a porta larga.
Se está em dúvida, dê um tempo sozinha.
— Mas eu gosto dele e quero ajudá-lo!
— Então siga o seu coração com honestidade. Uma outra Pessoa,
agora, em sua vida, será mais um problema do que uma solução. Se
você gosta do Humberto, vai ter a companhia
outro só para um almoço, um café, uma noite na balada Para quê? Só
para aliviar a tensão? Pense bem, se começar não vai parar só aí
não! Uma situação dessa vai te machucar, vai ferir o Humberto.
—Você já teve a companhia de alguém gostando de outra pessoa?
—Já — respondeu de imediato. — Pensei como você: em ter
somente um amigo, alguém com quem eu pudesse desabafar, me
distrair. Foi a maior burrada que eu já fiz na minha vida. Você não
pode imaginar no que me envolvi. — Suspirando fundo, ainda
falou: — Se o momento é delicado, vá devagar. Pense, ore.
—Não sei por que essas idéias passam pela minha cabeça. Eu sei
que quero ficar com o Humberto.
—Talvez seja uma prova. Uma prova de fidelidade. Você está sendo
testada para se desviar do caminho com ele. Não dê atenção ao que
esse rapaz está tentando propor ou, então, você deve se afastar do
Humberto.
— Não! Eu gosto dele! Nossa! Como eu gosto!

— Então fique na sua e conte comigo. Se precisar, posso te ouvir. —
Rindo comentou: — Eu sei como é bom precisarmos de um ouvido
e de um ombro amigo com bons conselhos.
De repente, foram interrompidas pela voz de Sérgio que chamou:


— Débora! A Rita chegou!
— Estou indo! — Virando-se para Lívia, convidou: — Vamos lá
recebê-la? Ela deve estar com as crianças!
Levantando-se, Lívia perguntou:
—E aí? A Rita está grávida mesmo?
—Está! — riu gostoso. — E são gêmeos!
—Você está brincando?!
— Não! Eu não brincaria com algo assim! Ela quer matar o Sérgio!
Disse que foi praga dele! Só faltam ser duas meninas como ele falou!
— riu, divertindo-se.
***

Bem mais tarde, Lívia e Humberto já estavam de volta e dona
Aurora serviu-lhes chá para esquentar por causa do frio. Sentados
lado a lado, no sofá, a moça falou:
—Foi ótimo termos ido lá hoje! Não achou?
—É verdade. Senti-me bem melhor. Fazia um século que não me
sentia assim.
—Que bom! Fico feliz! — disse sorrindo com jeito simples. —
Nossa! Fiquei surpresa em saber que a Rita está esperando gêmeos
novamente.
—Você não sabia? Minha mãe me contou — sorriu.
—Não. Eu não sabia.
—A Rita é muito engraçada! Ela e o Tiago formam um casal
perfeito. As crianças são uma gracinha! Já pensou quando forem
quatro?!
—Estávamos lá, na cozinha, e a Rita contou que não tem família
alguma. Quando o irmão e um namorado que tinha morreram, ela



ficou desesperada. Achou que a vida tinha acabado. Depois
começou namorar o Tiago e ele sofreu o acidente em que quase
morreu. Ele se queimou todo e perdeu a perna do joelho para baixo.
—Ele me contou. Eu vi uma cicatriz de queimadura no braço dele e
perguntei o que tinha sido.

—A Rita estava grávida dos gêmeos quando isso aconteceu. Depois

o Tiago se recuperou, eles se casaram e hoje estão bem. Veja só!
Quem estava sozinha no mundo e achou que a vida estava acabada,
hoje tem uma família grande e que vai aumentar! — riu.
—Isso é muito legal de se ver!
—Humberto, o que você acha de irmos a um parque amanhã de
manhã?
—Não sei...
—Foi bom sairmos! Você parece ótimo!
—E, mas não...
—Não queira um milagre! — interrompeu-o. — Assuma e admita
que está melhor hoje do que ontem!
—Sim. E verdade — disse, forçando um sorriso. Logo lembrou: —
Eu conversei com o Sérgio. Ele me indicou um amigo para eu
experimentar fazer uma psicoterapia. Disse que esse colega é muito
bom.
—É o João?
—Não. Pelo fato de eu conhecer o João e, possivelmente, nós nos
aproximarmos por freqüentarmos a casa dele, não seria legal fazer
terapia com alguém conhecido.
—Por que não vai ao psicólogo que a Júlia indicou?
—Você viu o nome no cartão? — perguntou, sorrindo.
—Vi! O que tem?
—O cartão é do Sérgio! — riu. — Sérgio Barbosa!
—Está brincando?! — ela riu junto.
—Não. Quando mostrei, ele riu pra caramba — sorriu mais
descontraído.
—Eu li o nome, mas tem tanto Sérgio no mundo!

—Segunda-feira vou pedir para a Júlia agendar uma consulta para...
—Não peça para a Júlia algo que pode fazer! Pegue o telefone e
ligue! — disse com um leve sorriso e jeitinho delicado.
Ele também sorriu e aceitou:
—Você tem razão. Eu mesmo vou ligar. E... A propósito, conversei
muito com o Sérgio e também decidi que vou consultar o doutor
Édison, o psiquiatra. Quem sabe um outro médico...
—Será bom, sim. — Alguns segundos e decidiu: — Está tarde. Vou
indo!
—Quer que eu a leve? — perguntou, generoso.
—Não. Não é bom você dirigir enquanto tomar aqueles
medicamentos. Ele são bem fortes.
—Então pega o meu carro e amanhã vem com ele.
—Tudo bem! Isso eu aceito! Amanhã, bem cedo, estarei aqui para
irmos a um parque, fazermos uma caminhada e nos distrairmos um
pouco. — Levantando-se, curvou-se, beijou-lhe o rosto e disse: —
Tchau! Até amanhã!
—Até amanhã, Lívia! Obrigado! — sorriu satisfeito.
—Obrigada, você! — disse, pegando as chaves do carro sobre a
mesinha da sala. — Tchau!


17
AS PALAVRAS DÃO ÂNIMO


Apesar de o dia amanhecer com uma temperatura bem baixa, o
típico frio de inverno, o sol estava radiante e prometia um dia bem
gostoso para passear.


Lívia estava feliz, bem animada ao estacionar o carro de Humberto
frente à casa do rapaz.
Assim que entrou pela porta da sala, cumprimentou Neide, dona
Aurora e perguntou:


— E o Humberto?
—Ainda está deitado — informou a senhora extremamente abatida.
—Ele está péssimo, Lívia. O meu pai chegou embriagado ontem à
noite e isso foi o suficiente para ele ter nova crise — disse Neide. —
Sinceramente, eu estou assustada. Nunca vi o meu irmão assim.
Nesse instante, o espírito Rubens, com uma aparência espiritual
terrivelmente comprometida, feia, deformada, chegou à sala
impondo-se para Lívia.
— O que você quer com o meu irmão?!! E a mim quem deveria
procurar!!!
Lívia sentiu um aperto no peito. Entristeceu-se imediatamente ao
saber de Humberto, mas grande dose de sua amargura foi pela
vibração do espírito Rubens que a agredia.
Suspirando fundo, acreditou ter forças para agir e decidiu com jeito
manso e firme:


— Vou ao quarto falar com ele.
— O que você quer com o Humberto?!!! — exigia o espírito Rubens
sem ser notado. — Vai me ignorar também?!!! Vai me tratar como os
outros!!! Sua safada!!! Sem vergonha!!!
Parada à porta do quarto, Lívia sentiu todo o seu corpo arrepiar
após um calafrio percorrer sua alma.
Novamente, ela suspirou fundo, fechou os olhos por alguns
segundos e pediu em pensamento:
"Deus, nosso Pai! Por favor, me ajude".
Em seguida, entrou. Foi direto até a janela. Abrindo-a e fechou os
vidros para que só entrasse luz.
Largado sobre a cama e sob as cobertas, Humberto mal se mexeu
para ver quem era.

Parecendo bem humorada, Lívia forçou um sorriso e falou de um
jeito simpático, como se nada estivesse acontecendo.

— Bom dia! Está friozinho, mas o dia está lindo! — Sentando-se na
cama do rapaz, fez-lhe um carinho no rosto e pediu generosa: —
Vamos, levanta! Sei que é cedo, mas será bom sairmos logo para
aproveitarmos bem o dia! Sabia que ainda tem um pouco de
neblina?
Movendo-se um pouco, Humberto deixou-se ver. Seu rosto parecia
contraído, pesado, quase sisudo. Seus olhos vermelhos queimavam
pelo ardor do inchaço. Passando as mãos pelo rosto falou com a voz
rouca:
—Eu não vou. Não consigo...
—Sente-se um pouquinho — pediu a moça, com jeitinho delicado,
enquanto trazia no rosto suave e doce sorriso que expressava sem
perceber.
Com dificuldade, ele se ajeitou na cama e se sentou. Na
espiritualidade, Adamastor, vivazmente prestava atenção aos
menores detalhes e dizia:


— Você não vai conseguir animá-lo desta vez, sua infeliz! Não
imagina o que fiz com ele está noite! Eu venci esta parada! E quanto
a você, sua intrometida, eu já sei como vou te deixar desesperada,
aflita e pior do que ele! — gargalhou. Olhando para o espírito
Rubens, que não o via, reparou: — Esse desgraçado deve ter
acabado de morrer e ainda não se deu conta disso. Ele ainda pensa
que os encarnados podem ouvi-lo. Que estúpido!!! Idiota!!! — riu.
— Vou descobrir toda a ligação de vocês. Vou descobrir um jeito de
acabar com você e sua laia.
Sem percebê-lo, apesar de sentir-se um tanto sem forças, Lívia
falava com Humberto para animá-lo, mas ouvia:
—E que você não entende — ele explicava. — Parece que eu vejo o
mundo encoberto por uma névoa cinza, repleto de sombras ainda
mais escuras. Sinto uma coisa... Parece que não tenho forças, que

vou desmaiar... Sinto-me debilitado. Junto com isso, um medo, um
pavor...
—Do quê? — insistiu ela. — Do que você tem medo?
—Não sei. Às vezes, parece que vai acontecer algo comigo. — Breve
pausa e contou: — Ontem à noite, eu olhava para essa parede —
apontou —, era como se eu a visse se mover, se mexer como se
tivesse uma lama que escorria ao derreter lentamente. Parecia que
algo ia me atacar e... — Cobrindo o rosto com as mãos, confessou: —
Não sabe o quanto é difícil eu contar isso para você. Eu sei que é
algo absurdo! Algo que não existe! Mas é o que parece que vejo e
sinto muito forte. E medonho. Vai acontecer alguma coisa comigo.
—E se não acontecer, Humberto?
—Não sei.


— Olhe, eu tenho certeza de que não vai te acontecer nada. Talvez
essa espécie de ilusão que viu na parede pode ser efeito dos
remédios, não acha?
— Pensei nisso.
— Então faremos o seguinte — propôs animada —, vamos sair, nos
distrair com o que vamos ver, ouvir e fazer. Com isso vai deixar de
sentir o que sente porque terá outras coisas nos pensamentos, vai
até conversar sobre outros assuntos porque terá algo diferente sobre
o que falar.
— Parece que, o que sinto, nunca vai passar.
— Quando voltamos da casa do Sérgio, você se sentia muito
melhor. Estava diferente, animado. É só insistirmos em coisas
diferentes, alegres, boas e harmoniosas para ocupar o lugar desses
pensamentos estranhos que anda tendo. Então vai ver que isso vai
passar sim! Isso vai acabar! — falou firme.
— Quando?! — perguntou aflito.
— Não sei dizer. Depende de você. Ontem, por exemplo, não queria
sair, mas depois se sentiu bem, não foi?
— Mas durou tão pouco que nem lembro.

— Mesmo que pouco, esse momento de melhora existiu! Então ele
pode acontecer novamente e acontecer de novo e de novo até ser
permanente!
—Será?!
—Pense em Deus, Humberto! Se for preciso caia de joelhos! Vá ao
encontro do Pai a começar pela prece! Acredite! Principalmente,
acredite que Ele te ampara e Ele estará te amparando! Ore! Diga:
Pai! Dê-me forças! — Alguns segundos depois de vê-lo reflexivo,
insistiu: — Podemos encontrar Deus também na natureza, em baixo
de uma árvore, olhando para o céu... Vamos sair, vamos a um
parque andar descalços, respirar ar puro, sorrir diante da beleza de
uma flor... Depois agradecer a Deus por ver, por existir, pela
oportunidade de vida. Mesmo que tenhamos complicado um pouco
essa oportunidade, vamos fazer de tudo para arrumar e viver
melhor.
Ele ficou em silêncio. Alinhou os cabelos, esfregou o rosto e a
encarou com mais leveza no semblante, decidindo:


— Vou levantar e tomar um banho. Você me espera? Prontamente,
Lívia sorriu satisfeita. Ficando em pé, disse animada:
— Te espero lá fora! Não demore!
O espírito Rubens, revoltado com o que presenciava, despendia
força por sua ira e se sentia cada vez mais fraco.
Sua mente estava confusa enquanto experimentava extrema dor e
muita tontura.
Sem que pudesse ver, o seu mentor aplicava-lhe passes para
acalmá-lo.
Exaurido, sentou-se em sua cama e tombou ao deitar, deixando-se
abater por uma espécie de sono.
Enquanto isso, Adamastor, completamente insano, atacava os
companheiros, exigindo-lhes alguma ação para deter Humberto e
Lívia.

Em vão. As sábias palavras de carinho serviram como um
medicamento de alívio, consolo, esperança e bom ânimo.
Lívia não estava só. Espíritos amigos a amparavam, pois a jovem se
propôs a receber de Deus as bênção salutares e revigorantes que lhe
chegavam nos momentos tranqüilos de relaxamento quando
exercitava sua fé e esperança, cultivando pensamentos e
sentimentos positivos de luz, paz e amor.

***

As horas passaram.
A tarde havia chegado ao fim, apesar dos últimos raios de sol ainda
brilharem no horizonte alaranjado, um frio cortante vinha através
do vento.
Lívia e Humberto saíam do parque e iam para o veículo no
estacionamento.


— Nossa! Que frio! — ela exclamou, cruzando os braços ao encolher
os ombros.
—É mesmo. Onde está o seu agasalho?
—Quando chegamos, estava quente e eu o deixei no
carro.
Andavam lado a lado, e ele teve o impulso de abraçá-la para
protegê-la do frio, mas, por causa das energias e idéias que lhe
surgiam pelas companhias espirituais inferiores, deteve-se por se
sentir mal.
À medida que caminhavam, com jeito generoso e agradável no tom
de voz, ela comentou:
— Adorei o passeio. Há tempos não fazia uma caminhada pela mata
como hoje. Lembro-me de que eu era bem pequena, acho que tinha
uns sete anos, a última vez que fiz uma trilha como essa.
—Amanhã estaremos com dores nas pernas.

—Isso será ótimo! — brincou. — Veremos quais as regiões do corpo
que precisamos malhar um pouco. A propósito, vamos procurar
uma academia?
—E quando as suas aulas começarem?
—Eu irei à academia aos sábados!
—Durante a semana, podemos ver alguma coisa. Tem aquela que
passamos em frente. Quem sabe.
—Ótimo! Vou adorar!
Chegando ao carro, ele foi para o lado do passageiro, mas antes lhe
deu as chaves, dizendo:


— Toma. Você dirige. Dê a volta.
Lívia sorriu docemente ao pegá-las de sua mão. Por um instante,
ficaram parados um frente ao outro. A proximidade fez com que
seus corações batessem bem forte enquanto se olhavam firmemente.
O vento frio embaralhava os cabelos compridos de Lívia e, sem
pensar, Humberto levou a mão em seu rosto e tirou os fios teimosos
que cobriam sua face.
Olhando-a nos olhos, como se invadisse sua alma sentiu algo,
semelhante a uma doce alegria, que não sabia explicar.
Segurando o seu rosto com ambas as mãos, ele aproximou-se de
seus lábios com ternura e a beijou com imenso carinho, como
sempre quis.
O tempo pareceu parar no momento em que a tomou nos braços,
apertando-a junto de si e a beijou com todo o amor.
Depois, Lívia o abraçou forte e escondendo o rosto em seu peito,
murmurou baixinho:


— Eu não posso ficar sem você. Eu te adoro!
— Eu também te adoro, Lívia! — Segurando o seu rosto, fazendo-a
encarar os seus olhos, murmurou generoso: — Desculpe-me por
tudo o que está acontecendo. Eu vou melhorar! Eu te prometo!
— Sei que vai! Tenho certeza!
Beijando-a rapidamente nos lábios, ofereceu leve sorriso e pediu:
— Entre no carro. Está frio.

A jovem obedeceu. Deu a volta e entrou no veículo. Ao vê-lo
acomodado ao seu lado, perguntou:
—Você está bem?
—Melhor do que ontem! — sorriu.


— Fico feliz! Valeu a pena termos vindo. — Afagando-lhe o rosto,
ela se aproximou vagarosamente e, indo ao seu encontro, ele a
beijou com amor.
***

Já era noite e estava bem frio quando chegaram à casa de dona
Aurora, que foi recebê-los na garagem.
A senhora achava-se apreensiva e tentava disfarçar o nervosismo.
Olhando para o filho, percebeu-o melhor, até sorridente. Porém,
temerosa, precisou avisar:


— Humberto... Filho, eu achei melhor vir até aqui antes que vocês
dois entrassem e...
—O que foi, mãe? — o filho perguntou. Mesmo antes de saber do
que se tratava, Humberto deixou-se abater por um torpor, uma
tontura e sensação de desmaio que esfriou o seu rosto pálido.
—Filho... Se você não quiser, eu digo que não está bem e...
—Fala logo, dona Aurora! O suspense é pior! — pediu Lívia,
também aflita.
Sem trégua a senhora anunciou:


— A Irene está lá na sala. Disse que quer falar com o Humberto de
qualquer jeito.
O rapaz apoiou a mão na parede e debruçou a cabeça no braço.
Sentia-se dominado por um mal-estar intenso.
Lívia correu para perto dele e, afagando-lhe as costas, pediu:
—Levante a cabeça, Humberto. Respira fundo!
—Estou sem forças... Eu vou cair...
—Não vai, não! Abra os olhos e respire fundo.
—Meu Deus! Filho!... Eu devia ter mandado essa mulher embora.

Num impulso, irritada, Lívia tentou se conter, mas respondeu:
—Deveria ter mandado mesmo! Aliás, nem deveria tê-la recebido. A
senhora se esqueceu de tudo o que essa criatura fez?!
—Ai, filho, me desculpa!


— Calma, dona Aurora. O Humberto vai ficar bem. Abrindo a porta
do carro novamente, Lívia fez com que
se sentasse e pediu:
—Faça a respiração movimentando a barriga, como o Sérgio te
ensinou. Isso vai te acalmar.
—O que eu faço? — perguntou dona Aurora.
Lívia respirou fundo, parecendo enérgica e decidida, resolveu:


— Deixa que eu vou lá mandá-la embora. É melhor a senhora ficar
aqui com ele.
Entrando pela porta dos fundos, ela foi até a sala onde encontrou a
outra sentada no sofá olhando à televisão. Bem austera,
cumprimentou altiva:
—Olá, Irene!
—Lívia! Que surpresa! — espantou-se ao vê-la daquela forma,
quase arrogante.
—A surpresa é minha por você estar aqui.
—Eu não vim para discutir com você. Quero falar com o Humberto.
Escutei o barulho do carro dele chegando e...
Imediatamente, Lívia a interrompeu:
—Pode não ter vindo aqui para discutir comigo, mas é comigo com
quem vai falar. — Disfarçando o tremor que sentia, colocou os fios
de cabelos atrás das orelhas e a encarou firme ao falar: — Depois de
tudo o que você aprontou com essa família e, principalmente, com o
Humberto, não sei como tem coragem de vir até aqui. Mas... Em
todo o caso, fique sabendo que ele não está muito bem e não vai
recebê-la.
—Eu não aprontei nada! — reagiu.
—Não?!!! — perguntou em tom agressivo e irônico. — Quem estava
dormindo com o Rubens a menos de uma semana do casamento?!!!

Você não pensa nas conseqüências de tudo o que fez?!!! Conseguiu
jogar um irmão contra o outro, fez com que brigassem a ponto do
Rubens precisar fugir e com isso morrer num acidente de moto!!!
Você é a única culpada pela morte dele!!! Pelo sofrimento da dona
Aurora e do Humberto!!! E ainda diz que não aprontou nada!!!
—Olhe aqui!!! Se você pensa...
—Cale a boca, Irene!!! — vociferou. — A casa não é minha, mas me
sinto responsável, agora, pelo bem-estar dos que estão aqui, pois
eles estão atordoados. Por isso: fora daqui!!! Suma!!!
Lívia se viu dominada por uma força que desconhecia. A passos
rápidos, foi até a porta da sala, que dava para uma área, e dali para

o quintal e o portão da rua, abriu-a e ordenou novamente:
— Fora daqui!!!
Nesse instante, Neide, que estava entrando, levou um susto com a
porta aberta abruptamente e com o grito de Lívia.
Porém, de imediato, ao ver Irene em pé, parada, a irmã de
Humberto exigiu olhando para as duas:
—O que está acontecendo aqui?!!
—O Humberto estava bem. Passou um dia ótimo! Chegamos aqui e
essa infeliz aguardava para falar com ele. O seu irmão ficou mal na
hora! Não quer recebê-la e sua mãe está atordoada lá na garagem
com ele. Eu vim aqui e estou man-dando-a embora. E isso!
Neide sentiu-se esquentar.
Imediatamente, entrou. Pegou Irene pelo braço e a empurrou porta
afora enquanto a ofendia com palavreado baixo.
Após ver Irene sair pelo portão, Neide retornou e encontrou Lívia
sentada no sofá, curvada e com os cabelos cobrindo o rosto
escondido com as mãos.
—Você está bem? — preocupou-se Neide.
—Acho que estou. Fiquei nervosa, foi só isso.
—Cachorra! Desgraçada! — gritou a outra inconformada.



—Foi tão difícil tirá-lo daqui hoje cedo e fazê-lo melhorar! Quando
nós chegamos, ele era outra pessoa! Estava tão bem... Você tinha de
ver! — lamentou.
—Minha mãe não devia ter deixado essa infeliz entrar! Se eu
estivesse aqui!...
—A Irene pegou sua mãe de surpresa. A dona Aurora ficou sem
ação, pois não esperava, jamais, que ela tivesse coragem de vir aqui.

— Vendo Neide ainda nervosa e xingando, pediu: — Procure ficar
calma, tá? Vou lá na garagem trazer o Humberto e sua mãe. Será
bom que ele não te veja assim para não ficar mais nervoso.
—Vai lá!... Vou fazer um chá — decidiu, procurando parecer mais
tranqüila.
Não demorou para dona Aurora e o filho estarem na
sala.
Ele, abatido, tentava esconder os tremores. Sentou-se no sofá e
largou-se com os olhos fechados, enquanto sua mãe, ao seu lado,
afagava-lhe o braço.


Neide fez um sinal para que a mãe o deixasse com Lívia. Acreditava
que ela teria mais jeito de lidar com seu irmão.
Aproximando-se, Lívia lhe ofereceu uma caneca, dizendo:


— Tome um pouco de chá. Vai te fazer bem.
— Não quero — murmurou ele. Vendo-se a sós,
a moça falou:
—Humberto, você não pode se deixar abater por isso. Aliás, é uma
situação que terá de enfrentar. Vai precisar conversar com a Irene.
Afinal...
—Afinal, o quê? — perguntou após um tempo de silêncio.
O rosto de Lívia entristeceu ao lembrá-lo:


— Afinal de contas, existe a vida de uma criança envolvida em toda
essa trama. Acredito ser sobre isso que ela veio conversar.

Ele fechou os olhos e meneou vagarosamente a cabeça, negando a
situação:
—Não estou preparado para lidar com isso. Eu não quero.
—Mas terá de encarar a situação de um jeito ou de outro — falou
firme, chamando-o à realidade.
—E se for meu filho?
—Diante de tudo o que a Irene fez, você não precisa olhar na cara
dela. Porém terá obrigações para com a criança.
—Meu Deus... — murmurou extenuado. — Tudo isso contribui para
a minha destruição. Não sei se vou suportar.
Os ataques de espíritos inferiores o enfraqueciam a cada momento.
O espírito Rubens, ao lado de Lívia, demonstrava-se inconformado
e irritado com o que presenciava. Ficou extremamente revoltado ao
vê-la se aproximar de Humberto, afagar seu ombro, beijar-lhe o
rosto e levemente os lábios, ao dizer:


— Estarei ao seu lado. Tudo isso vai passar.
O espírito Rubens berrou e a ofendeu com palavras de baixo calão,
mas ela não pôde ouvi-lo.
— Por que estão fazendo isso comigo?!!! Querem me enlouquecer?!!!
— gritou desferindo socos que não sentiam.
Humberto fez um gesto simples ao encará-la. Forçou um sorriso
amargo e exibiu uma expressão no olhar que Lívia acreditou, por
um segundo, estar diante de Rubens.
Ela se surpreendeu. Tentou disfarçar, mas o rapaz percebeu e foi
levado a perguntar:
— O que foi?
—Nada. — Ainda abalada, respirou fundo, ajeitou os cabelos
torcendo-os e o jogando para trás das costas e, por fim, tentou
disfarçar, colocando animação ao propor: — Você precisa tomar um
banho, comer alguma coisa e descansar. Amanhã terá um dia cheio!
— sorriu:
—Você não imagina o quanto está sendo difícil, lá na empresa, não
deixar os outros perceberem o quadro da minha insanidade.

—Que insanidade, Humberto?! — protestou zangada. — Pare com
isso!
Levantando-se, ele decidiu:
—Vou tomar um banho e descansar um pouco.
—Eu preciso ir embora. Amanhã conversamos.
Indo até a cozinha, Lívia se despediu de dona Aurora e de Neide.


Acompanhando-a, ele pediu:


— Leve o carro. Amanhã você vem me pegar.
A moça ficou pensativa, porém, depois de Neide incentivá-la, junto
com a insistência de Humberto, ela aceitou.
Na garagem, antes de entrar no carro, Humberto se aproximou,
afagou-lhe o rosto com carinho e agradeceu:
—Obrigado por tudo. Eu seria incapaz de ter feito o que fiz hoje
sem você.
—Mas o que você fez hoje além de sair um pouco? — perguntou
sorrindo.
—É de sair um pouco que estou falando. Eu seria incapaz de fazer
isso sozinho. Obrigado.
Sorrindo docemente ela lhe fez um afago na face pálida e, com
generosidade na voz, falou baixinho:


— Foi ótimo te ver melhor.
Humberto a abraçou com força. Beijou-lhe a testa, o rosto e
procurou seus lábios, beijando-os com ternura. Em seguida, Lívia se
foi.
Retornando para dentro de casa, ele novamente se deixou abater
por sensações devastadoras vindas principalmente do espírito
Rubens que estava transtornado com o que presenciava e,
extremamente revoltado, atacava o irmão com toda a sua fúria, todo
o seu ódio.
Mesmo sem poder vê-lo, Humberto recebia suas vibrações.
E foi sob o efeito de sensações devastadoras que tomou um banho e
se deitou sem se alimentar.

***


Lívia não podia ver, mas seguiu para casa na companhia de dois
espíritos a mando de Adamastor.
Chegando, ela estacionou o carro de Humberto na garagem de
modo a não atrapalhar a entrada ou saída dos outros dois veículos
lá parados.
Ao entrar, deparou-se com seu pai exigente e sob o efeito de bebida
alcoólica.
Não foi difícil as companhias espirituais entenderem que o homem
era agressivo, rude e bem grosseiro com as palavras.
Mais fácil ainda foi envolvê-lo e induzi-lo à severa irritação contra a
filha.

— Onde você estava até essa hora?!!
— Fui até a casa da dona Aurora, pai. A mãe sabia que eu estava lá
— explicou, tentando não se exibir constrangida.
— Que carro é aquele lá fora?!!
—É do Humberto — respondeu enquanto bebia um copo com água.
—E o que você faz com ele?!! Por que razão esse rapaz te
emprestaria um carrão desse?!! — Sem esperar por uma resposta,
ele a segurou pelos braços, apertou e a sacudiu inquirindo com
modos estúpidos, falando com os dentes cerrados ao expressar sua
raiva: — Olha, aqui, menina!!! Se pensa que vai passar de mão em
mão e me fazer de trouxa, está muito enganada!!! Entendeu?!!!
— Pai, me solta... O senhor está me machucando.
— É pra machucar, mesmo!!! — empurrou-a com violência. — O
que você está fazendo com o carro do irmão do Rubens?!!!
— O Humberto não está bem de saúde — explicou, amedrontada.
— Desde que o irmão morreu, está abalado, tomando uma
medicação forte e o médico aconselhou para que não dirigisse. Nós
trabalhamos juntos, o senhor sabe. Ele sempre me deu carona.
Agora pediu para eu dirigir o carro para irmos para o serviço.

Então, para ele não se arriscar e vir até aqui, eu trouxe o seu carro e
vou pegá-lo em casa amanhã cedo. É só isso.
O homem, grandalhão e bem forte, fitava-a com olhar dardejante,
desconfiado, pronto para agredi-la novamente. Envolvido pelos
espíritos sob as ordens de Adamastor, ele se aproximou, segurou-a
pelos cabelos, torcendo-os ao dizer enquanto ele puxava firme e ela
segurava em sua mão:

— Veja lá o que você está fazendo!!! Se eu te pegar envolvida com
alguma coisa que eu não aprove, vai se ver comigo!!! Entendeu?!!!
— perguntou, empurrando-a com força de encontro a uma mesa.
Lívia segurou-se na mesa com ambas as mãos para não cair. Franziu
o rosto pelo que sentia, depois passou a mão pela nuca para tentar
aliviar a dor e murmurou para não irritá-lo:
— Fique tranqüilo, pai. Não tem nada demais. Só estou fazendo um
favor.
Nesse instante, seu irmão Luís chegou e, por escutar parte da
conversa, quis saber, piorando a situação ao indagar:
—E por que você veio para casa com esse carro ontem à noite?
—O quê?!!! — gritou o senhor Juvenal indo novamente em direção
da filha.
—Pare, pai! Por favor! — Pediu afastando-se e tentando se explicar
rápido. — E que... Ontem eu fui na casa de uma amiga que teve
nenê, a Débora. Ela mora perto da casa da dona Aurora e... Saindo
da casa da Débora, fui até lá. Fiquei conversando e... quando vi,
passei da hora. Para não depender da condução que demoraria
muito, o Humberto pediu que eu viesse com o seu carro. Hoje voltei
lá para levar o carro, mas ele tornou a pedir para eu ir buscá-lo
amanhã.
Violento, o homem já havia pegado em seu braço novamente,
apertando forte enquanto a escutava. Ao vê-la terminar, ele a
esbofeteou com a outra mão, gritando:
— Isso é pra você aprender a me contar as coisas direito!!!
—O senhor estava dormindo e não nos vimos hoje...

—Cale a boca!!! Fale quando eu mandar!!!
Ao se ver livre, Lívia levou a mão ao rosto sem saber o que fazer. Se
ficasse ali, a situação poderia piorar. Se fosse para o seu quarto,
certamente o seu pai brigaria outra vez.
Atordoada, ela esperou quieta, parada até ele ordenar:


— Vai para o seu quarto!!! Eu não quero te ver mais hoje!!!
Sem dizer nada, a moça obedeceu.
Ficou em sua cama e chorou no escuro até o pai e o irmão irem
dormir.
Somente, então, Lívia pôde ir para o banheiro e, chorando, tomou
um banho indo dormir em seguida.
18
CONVERSANDO COM O DOUTOR ÉDISON


O dia amanheceu frio e ainda havia um denso nevoeiro quando
Lívia estacionou o carro frente à casa de Humberto.
Ficou parada e sentada ao volante por algum tempo.
Sentia algo errado. Seu coração estava apertado, batendo forte e
descompassado. Isso a intuía um mau presságio.
Ao entrar e ser recebida por dona Aurora, que pediu para ela ir ao
quarto de Humberto, deparou-se com o rapaz sentado em sua cama,
padecendo sensações desagradáveis e depressivas.
Na noite anterior, devido às agressões sofridas por seu pai e o clima
tenso que experimentou ao se deitar, Lívia se deixou adormecer sob


o efeito de pensamentos tristes e amargos que a castigavam.
Sentindo-se amedrontada, entregou-se ao sono sem uma prece, sem

ligar-se a Deus rogando bênçãos protetoras e forças para suportar e
agir com sabedoria.
Por isso, durante o sono, foi abalada e vampirizada pelos espíritos
inferiores que a acompanharam e lhe incutiram idéias
desanimadoras, julgamentos confusos e duvidosos.
Ao acordar, para sair rápido de sua casa e não despertar seu pai, ela
não quis perder tempo em fazer uma prece. Vestindo-se depressa,
retirou-se o quanto antes.
por essa razão, naquele instante, estava esvaída de forças e, olhando
para Humberto, pensou:
"Outra vez... Até onde eu vou suportar?... Será que sou eu quem
deve fazer isso?"
Sem comentar sobre o seu desânimo, ela se aproximou. Foi beijá-lo,
mas ele se levantou, esquivou-se dando-lhe as costas ao dizer:


—Lívia, acho que foi um erro.
—O que foi um erro, Humberto? — perguntou com voz fraca.


— Nós dois... Por favor, olha...
— Pare! Não diga nada. Por favor, não diga nada — pediu firme e
sentida. Respirando fundo, falou parecendo exigir: — Vamos
trabalhar. Não quero pegar trânsito ruim.
Ele se virou, ergueu seus belos olhos verdes empossados em
lágrimas, e pediu:
— Desculpa... Não estou bem.
— Certo — afirmou com um nó na garganta e vontade de chorar.
Porém, firme, tornou a dizer: — Vamos logo. Não precisamos
conversar.
***

No caminho para o serviço, não falaram absolutamente nada.
Chegando à empresa, ela foi para sua seção, e ele para sua sala. Não
se viram mais.


Bem mais tarde, Júlia a procurou perguntando animada:

— E o fim de semana, como foi?!
— Vamos tomar um café? — pediu com tristeza no tom de voz.
— Foi para isso que vim aqui! — respondeu alegre. Logo em
seguida, enquanto tomavam café, Lívia contou
à amiga tudo o que havia acontecido.
— Como é difícil, Júlia! Eu não sei mais o que fazer.
—Lívia, é assim mesmo. A pessoa nesse estado fica sensível a
qualquer coisa. A muito custo ela melhora um pouco. Depois, por
qualquer coisinha, cai em depressão. Fica desorientada, sente-se
derrotada. Você vai precisar de muita paciência e bom ânimo.
Acredite, você está indo pelo caminho certo.
—Será?!
—Lógico! São após pequenos momentos de melhora que os grandes
vão acontecer. Só acho que você deveria ter um reforço espiritual.
—Como assim?!
—Deveriam ir ao centro espírita com mais freqüência. Fazer um
tratamento de assistência espiritual. Não só ele, mas você também.
— A outra ficou pensativa e Júlia perguntou: — Já pensou na
possibilidade do Rubens não ter sido socorrido? Ele pode estar
revoltado com seu estado na espiritualidade e também por ver
vocês dois tentando ficar juntos.
—Eu cheguei a pensar nisso.
—O Rubens teve uma morte violenta. Foi uma pessoa que não
procurou ter uma religiosidade. Só fez coisa errada e... Bem, não
preciso nem falar.
—Vou fazer um tratamento espiritual sim. Mal, não vai fazer.
Júlia olhou no relógio e se surpreendeu:


— Nossa! Está na hora!
A chegada de Ademir, encarregado de Lívia, interrompeu-as:
— Olá meninas!
—Oi, Ademir! Você está chegando, e nós saindo! — avisou Júlia.

—A Lívia fica! — sorriu gentilmente. — Preciso conversar com ela a
respeito de alguns fechamentos.
—Então... Até mais! — disse a amiga, indo embora rapidamente.
Vendo-se a sós com Lívia, ele sorriu de modo enigmático. Sentando-
se à sua frente, fitou-a por longo tempo, observando cada detalhe.
Ela ficou em silêncio. Seu belo rosto, de nobres traços estava
levemente escondido sob uma mecha larga dos fios longos de seus
cabelos compridos. Seus lindos lábios carnudos e bem torneados
estavam entreabertos quando, encabulada, sorriu docemente e
perguntou:

— O que foi?
— Estou te admirando. Só isso — respondeu, deixando-a ainda
mais constrangida e com rosto enrubescido.
— Você queria falar sobre o fechamento...
— Como você está? — interrompeu-a com generosidade imposta na
voz branda.
— Eu?!
—Sim... Sei o quanto está sendo difícil depois de tudo e queria saber
como você está.
—Estou bem. Na medida do possível.
—Nunca tocamos no assunto e se, talvez, eu for indelicado, por
favor, me avise. — Lívia ficou no aguardo, e Ademir perguntou: —
Você ainda está chocada com tudo o que descobriu e com a morte
dele, não é?
—Não é uma situação em que eu esteja confortável, entende?
—Quem não está muito bem é o Humberto, não é? Ouvi dizer que
ele está com depressão. Por isso parece tão estranho, sério... Nossa!
Estou impressionado. Ele sempre foi um cara tão alegre,
descontraído. Muito bacana mesmo!
—Você trabalha com ele há muito tempo?
—Quando entrei na empresa, ele foi o meu encarregado por três
meses. Logo foi promovido a gerente. Não ficou nem três anos no
cargo e foi convidado para ser diretor. Todo o mundo ficou



impressionado, pois é uma empresa antiga, multinacional e
conservadora. Como você pode notar, ele é o diretor mais novo que
temos aqui e muito bem conceituado pela presidência. Apesar da
carreira meteórica, o Humberto sempre nos tratou do mesmo jeito.
É o tipo de pessoa que faz contato, vem conversar, sai para almoçar
com a gente... Ri, adora brincadeira, piadas... De repente fica desse
jeito. Vê-lo assim é preocupante.
—Mas ele vai se recuperar. Tenho certeza.
Tocando em sua mão que rodeava a xícara de café, Ademir insistiu:

— E você, Lívia? Estou preocupado. Trancou a matrícula na
faculdade. Não fala em reabri-la ou em fazer outra coisa...
Não parece mais a mesma pessoa. Está sempre quieta, preocupada...
Acho que está precisando de um amigo, de companhia. Sabe, sair
um pouco vai te fazer bem.
Retirando a mão que ele acariciava, falou com jeito delicado para
não ofendê-lo:


— Eu não posso rir sem ter um motivo. — Embaraçada e um tanto
nervosa pela situação inesperada, decidiu: — E melhor voltarmos
para a seção.
Eles se levantaram.
Ademir se aproximou da jovem e, bem perto, ainda falou:
— Conte comigo. Quero te ajudar no que for preciso. Dizendo isso,
ele lhe fez um afago vagarosamente no
rosto e ela se esquivou bem séria, mas sem dizer nada.
De volta ao seu serviço, Lívia ficou pensativa e em dúvida.
Diante de tudo aquilo que estava acontecendo, o ideal não seria ela
sair, espairecer e procurar se divertir um pouco? Afinal, junto de
Humberto, só perdia tempo, ficando angustiada e resolvendo
problemas que não lhe diziam respeito. Além disso, tudo que
tentava fazer parecia não funcionar.
Poderia sair com Ademir sem compromisso, pois era livre. Nada a
obrigava a ficar ao lado de Humberto ou junto de sua família.

Pensamentos como esses a invadiam a todo o momento, colocando-
a em prova, testando sua fidelidade aos compromissos assumidos.
A decisão seria somente dela. O seu livre-arbítrio mostraria o seu
verdadeiro arrependimento e sua evolução por erros que acreditou
cometer no passado.


Os dias foram passando.
Humberto finalmente marcou uma consulta com o doutor Edison,
médico psiquiatra, amigo de Sérgio.
Após ouvi-lo atentamente, o senhor calmo, com fala mansa,
explicou1:


— Humberto, entre os transtornos de humor, existe um chamado
depressão. Há inúmeras pessoas que já experimentaram um estado
depressivo e nem sabem. Eu gosto de lembrar isso sempre! —
enfatizou. — Entre vários graus ou estágios de depressão, existe a
mais acentuada, que é quando a pessoa não consegue realizar as
suas atividades e precisa de auxílio profissional, médico. A
depressão não é o fim do mundo, mas é incômoda e extremamente
desgastante. O que é preciso, é a pessoa reagir e buscar em
atividades normais o prazer de viver. Veja bem, nós poderíamos
ficar aqui horas, dias, semanas falando a respeito disso sem
chegarmos a uma conclusão. Principalmente, porque eu não iria
somente analisar os fatores psíquicos ou psicológicos, hereditários
ou hormonais ou fisiológicos, mas também, e principalmente, os
fatores espirituais, o que daria uma discussão e um enredo enorme
para nossa conversa.
Existem vários fatores desencadeantes para os transtornos
depressivos, assim como existem outros transtornos de humor que
podem estar ligados à depressão ou levar à depressão, mas que, na
verdade, não é só depressão e pode confundir o quadro todo.

1 N.A.E. Os relatos apresentados ou comentados, nesta obra, não podem servir de
referências para diagnóstico. Somente um profissional bem qualificado na área
poderá fazê-lo.


— Como assim, doutor? — quis saber Humberto, atento.
— Por exemplo, existe a Síndrome da Fadiga Crônica. Algo
relativamente raro que dá uma fadiga inexplicável e prostra a
pessoa por, pelo menos, uns seis meses. As queixas são: prejuízo da
memória, sono não reparador, dor de cabeça, dor muscular e nas
articulações, dor de garganta etc. As condições clínicas da depressão
e da síndrome da fadiga crônica são quase idênticas. Veja, as
coincidências não param aí, não! Existe também o transtorno de
ansiedade, com sintomas muito semelhantes, mas que aparece de
forma mais comum, porém com muitas outras considerações.
Somente a depressão, acompanhada de sintomas físicos, não é algo
muito comum. Entretanto estudos demonstram grande associação
entre alguns transtornos de humor.
Você me descreveu sentir dores e tensões musculares. Dor no peito
como se fosse enfartar, palpitação, tremor, sensação de desmaio,
tontura, tensão mental, sensação de que algo horrível vai acontecer
e a impressão de que está ficando louco. Dificuldade de
concentração ou branco, sudorese, náuseas, inapetência, tonturas,
dificuldades para engolir, arrepios de frio e ondas de calor, aumento
de peristaltismo, que é a diarréia, insegurança, mal-estar indefinido,
vontade de chorar.
Especialistas defendem que a fadiga está mais associada a
depressão, enquanto que a dor, está associada à ansiedade, pois
provocam mais reações somáticas ou psicossomáticas.

Esse estado, ou condição psicológica, está relacionado a
acontecimento extremamente estressante, problemas, situações,
doenças que atuam como estressores, que é quando a pessoa fica
chocada e preocupada ao saber que tem uma doença grave e de
difícil tratamento, por exemplo.
Você me relata também um estado como que flutuante de medo ou
insegurança, como se algo fosse acontecer, mas nada está
acontecendo e não há motivo racional para isso. Não chega a ser
uma crise de pânico, um estado que não atinge o desespero da


fobia. E uma apreensão muito grande, muito tensa sem motivo
aparente, às vezes.
Em princípio, o pânico e a ansiedade parecem não fazer muito
sentido, mas estão extremamente ligados. Principalmente no seu
caso, por você ter experimentado um transtorno de estresse muito
grande, em minha opinião.
O distúrbio, ou a síndrome do pânico, é um tipo de transtorno de
ansiedade.
O ataque, ou a crise do pânico, ocorre sem nenhuma causa razoável,
porém sempre depois de algum transtorno de estresse traumático.
Geralmente, a crise de pânico se apresenta com sentimento de
insegurança total, medo de perder o controle, medo de morrer, dor
no peito, tontura, suor frio, dificuldade de respirar... O pior é que,
passada a crise, a pessoa fica apavorada de que, novamente, aquilo
possa acontecer e que aqueles sintomas horríveis persistam por dias
ou semanas depois do episódio original.

— Tudo o que o senhor falou tem a ver com o que eu sinto!
— Por isso é um desafio muito grande buscarmos uma definição,
diagnosticarmos precisamente e darmos a denominação exata de
um transtorno de humor, pois as condições gerais, que levam a
pessoa à primeira crise, são extremamente particulares, únicas,
diferentes.
Infelizmente — continuou o médico —, muitos profissionais da área
de saúde e pior, os que não são especialistas na área da saúde
mental, denominam todo e qualquer transtorno ou desequilíbrio
como sendo depressão. E falam de uma forma, como se isso fosse
algo fatal!
Observe um exemplo muito comum: um fator estressante levou
uma pessoa a uma crise de ansiedade. Vamos dizer que, em meio a
toda movimentação de sensações horríveis, sentimentos confusos e
diversos sintomas físicos, que nunca observou antes, ela fica
apavorada, lógico! Porque desconhece o que está acontecendo.

Junto com essa movimentação, que é a crise, ou depois, vem o
estado depressivo, infinitamente triste, e um terrível mal-estar.
—E aquela coisa indefinida, que não dá para explicar, tira nossas
forças, puxa-nos para baixo, dá uma vontade incontrolável de
deitar. Então, vêm os pensamentos decaídos e, para onde olhamos,
pensamos em dor, doença, morte, tristeza... Parece que nunca mais
vamos sair desse estado!
—Isso mesmo! Nesse caso que dei como exemplo, a pessoa não está
só com depressão. O seu estado depressivo tem uma causa, uma
origem, que é o transtorno de ansiedade. A ansiedade é culpada por
tudo! Ela, na verdade, não tem de tratar a depressão, o que essa
pessoa precisa é fazer um trabalho psicoterápico com a sua
ansiedade, trabalhar o que dispara a ansiedade que a leva para esse
estado ou para uma crise. Cuidando disso, automaticamente, a
depressão some! Tudo funciona mais ou menos da seguinte forma:
a pessoa fica apreensiva com algo que vai acontecer ou que, talvez,
aconteça. Depois ela passa a ter as sensações horríveis, por fim, vem
a depressão. A ordem é mais ou menos essa. Mas existem aqueles
que dizem que ela tem depressão. Dizer isso é inadequado.
Como eu disse, há os transtornos de humor e a depressão é um
deles. Sucedem inúmeros fatores que levam uma pessoa à
depressão, entre eles, os emocionais são os que se destacam.
Nos transtornos de humor, como a depressão, a síndrome da fadiga
crônica e o transtorno de ansiedade compartilham de uma mesma
fisiopatologia em termos psicológicos. Isso sugere que o quadro
clínico, e até mesmo a neuroquímica envolvida, são muito
semelhantes nesses transtornos.
E inadequado denominar depressão para toda e qualquer tristeza,
para todo e qualquer transtorno. Como também é inadequado
chegar para um paciente na primeira consulta e dizer: você tem
síndrome do pânico. Você tem depressão. Você tem ansiedade! Isso
não é certo. Conforme expliquei, não é fácil definirmos o que o


paciente tem de imediato. Quem faz isso ou é muito bom, ou pode
ser irresponsável!
Por outro lado, a farmacologia, as medicações podem ajudar a
aliviar alguns sintomas, mas é errado ficar só dependente de
remédios. Aliás, vamos lembrar que certo número de pessoas não se
dão bem com medicações antidepressivas, pois acabam sofrendo a
potencialização dos sintomas que já tinham, além da aparição de
outros.

Quase não se comenta que o número de suicídios é grande entre as
pessoas que usavam antidepressivos sem um rigoroso
acompanhamento de um médico psiquiatra junto com um
psicólogo. Esses remédios, sem dúvida, podem interferir na
capacidade de julgamento, pensamento e ação. Isso é relatado
inclusive em muitas bulas. Além disso, a pessoa não deve, de forma
alguma, fazer uso de bebida alcoólica. Não deve dirigir ou operar
máquinas até ter a certeza de que seu desempenho não tenha sido
afetado pelo medicamento — Riu de forma irônica e concluiu: —
Diga-me: como alguém que tenha a sua capacidade de julgamento
afetada pode afirmar que está apto a dirigir? Isso é um contra-senso!
—Espere, aí! Então existem pessoas que não se dão bem com
antidepressivos?
—Existem! Lógico que sim! Como há pessoas com intolerância a
determinados analgésicos, antibióticos e até alimentos naturais
como peixe, leite, glúten e outros, há pessoas intolerantes a
antidepressivos e as conseqüências podem ser bem sérias, muito
graves, pois se os sintomas não forem físicos, serão psíquicos,
psicológicos e não tão fáceis de serem percebidos. Por essa razão
elas devem ter um acompanhamento rigoroso quando fazem uso de
antidepressivo. Falo de um acompanhamento com médico
psiquiatra e um psicólogo. Infelizmente, hoje em dia, usar
antidepressivo virou moda! Acham que só ir ao médico e tomar
remédio é suficiente.


Lamentavelmente, os profissionais da área da saúde mental estão

e

banalizando o tratamento de alguns pacientes para toda e
qualquer queixa prescrevem antidepressivos. O número de pessoas
que usam essas drogas é muito, muito grande e, a meu ver,
desnecessário. Um comprimido não pode e não vai resolver um
desafio que deve ser tratado na alma, com a mudança de
comportamento e de pensamento de situações passadas e atuais.
Alguns remédios só vão deixar algumas pessoas apáticas, como um
zumbi, anestesiadas e sem reação. Isso não é cura, é só um
adiamento. Pense bem, quem disse que a depressão acaba quando a
criatura desencarna? Desencarnando, o espírito não terá o
antidepressivo para se anestesiar. Com isso, vai entrar em terrível
desespero, não só por estar viciado na droga que usou como
antidepressivo, quando estava encarnado, mas também por não ter
fortalecido o espírito, organizado a mente e se guarnecer,
psiquicamente, com meios eficientes.
A coisa mais comum é, quando chega um paciente e eu explico tudo
isso, vejo que o seu caso é natural, ele está deprimido pelo
falecimento de um ente querido e não prescrevo o uso de
antidepressivo, esse paciente sai daqui e procura outro médico, pois

o que ele quer é remédio. Com isso, só posso deduzir que ele quer
chamar a atenção, quer estar na moda!
Uma vez — contou o médico —, chegou aqui neste consultório, uma
moça com sua mãe, viúva. A senhora parecia hipnotizada, quase
não falava e mal reagia. A filha contou que havia mais de cinco
anos, a mãe estava daquele jeito. Desde a morte de seu filho caçula,
entrou em depressão. Ela e os irmãos a levaram ao médico e a mãe
já havia tomado diferentes antidepressivos com as mais variadas
dosagens. Apesar disso, ela chorava, desesperava-se muitas vezes e
nenhum lugar estava bom. A senhora só queria cama e tinha de ser
em seu quarto na penumbra e bem fechado. Dei várias
recomendações. A primeira delas foi caminhada e exercícios físicos
que aumentam a produção de químicas naturais do organismo, o

que melhoram o humor. Depois, terapia ocupacional como pintura,
croché, tricô feito em grupo, fora de casa. Psicoterapia com um
psicólogo bem capacitado, natação, yoga, salão de cabeleireira, que
agora tem nome mais bonito — riu gostosa ao dizer: — centro de
estética. Falei que deveria assistir à novela, ir para um baile, fazer
dança de salão, ir à igreja entre outras coisas. E ainda disse que, se
ela quisesse mesmo melhorar e sair desse estado, ela precisaria
desmamar dos remédios, ou seja, vagarosamente, diminuir as
dosagens até se livrar completamente do vício daquelas drogas,
porque aquela mulher estava viciada.
As pessoas se esquecem de que essas drogas viciam.
Foi um grande erro darem antidepressivos para aquela senhora por
causa de sua tristeza pela morte do filho. A mulher precisava era
chorar, viver o luto, ficar revoltada com todo mundo e até com
Deus, por que não?! Isso iria fazê-la gastar toda aquela energia
dolorosa que estava represada. Certamente, com o tempo, ela iria
fazer as pazes com Deus e a revolta acabaria. Ela não ficaria
deprimida para sempre, como ficou, por causa da dependência dos
remédios.
Sofrer é ruim, é horrível, mas faz parte da vida! O sofrimento passa,
assim como a alegria chega. Tudo em nossa vida vem e vai. Porém,
com todas as experiências que vivemos, sejam elas boas ou ruins,
nós nos fortalecemos, sem dúvida! Se fugirmos e nos anestesiarmos,
só estaremos adiando o encontro de nós com nós mesmos, ou seja,
não estamos encarando a vida, não estamos encarando quem somos
e não vamos reagir, melhorando-nos!

—Um dos médicos que consultei, e até trocou meus remédios, me
disse que eu tinha síndrome do pânico. Disse que isso poderia
passar ou eu me acostumaria a viver, normalmente, com isso.
—Estou chocado, Humberto. Em casos como o seu, ninguém, muito
menos um médico, pode afirmar que isso vai durar para sempre. É
um absurdo! Tão menos dizer que você tem uma coisa ou outra sem
antes acompanhar e estudar muito bem o seu caso. Somente depois


de um tempo de terapia, um bom profissional poderá afirmar um
diagnóstico. Você pode ter uma ou duas coisas. Por que não? Não
posso afirmar, agora, o que você tem. Eu acho, veja bem, eu acho! —
enfatizou. —... que você teve uma crise de ansiedade por estar
contrariado e com raiva por conta de seu casamento forçado e por
ver a moça de que gostava envolvida com seu irmão e também insatisfeita.
No meio desse processo ou crise, você teve um choque por
querer matar o seu irmão e ele veio a falecer. Entrou em depressão.
Algo mais disparou o pânico, talvez, muito provavelmente, algum
trauma ou repressão do passado. Mas isso é resolvido com
psicoterapia, não com remédio. A ansiedade é algo muito terrível e
as pessoas ignoram isso. A ansiedade é o disparador de muitos
transtornos. Ela faz com que o indivíduo aja sem pensar ou o faz se
remoer e pensar demais. E algo que tem tratamento somente com a
psicoterapia, remédio não resolve a ansiedade. A ansiedade é algo
terrível. Tanto que pesquisas mostram que pessoas com ansiedade
enfartam mais. A ansiedade o joga na depressão.
Não estou afirmando que você teve crise de ansiedade ou que tem
depressão ou pânico. Antes de um período de psicoterapia, em que
se investigue bem tudo o que lhe aconteceu, ninguém pode afirmar,
categoricamente, o seu estado.

— Talvez seja bem comum fazerem um diagnóstico precoce. Um
outro médico, antes desse, disse que eu tinha depressão e que,
talvez, nunca saísse desse estado. Falou que existiam muitos
remédios que eu poderia tomar pelo resto da vida e trocando,
esporadicamente, quando meu organismo se acostumasse com eles.
O doutor Édison balançou a cabeça negativamente, parecendo
inconformado. Depois, brandamente comentou:
—Humberto, no seu caso, posso afirmar: isso vai passar. Não se
desespere. Não se acomode. O que eu recomendei para aquela
senhora de quem falei não é nada impossível para ninguém e é o
que recomendo para você.

—Para algumas pessoas a psicoterapia é cara, doutor. Nem todos
podem fazer.
—Quem disse que não existem psicólogos à disposição
gratuitamente? Na Associação dos Psicólogos Espíritas, você pode
ter um excelente acompanhamento gratuito. Em algumas
universidades, no curso de Psicologia também. Eu sei que os
atendimentos são supervisionados e você não estará somente à
disposição de um aluno, não. O trabalho é bem sério! Mas, há
pessoas preguiçosas, que conseguem uma vaga para atendimento,
agendam um horário, mas não comparecem prejudicando a si
mesmas, o profissional que iria atendê-la e a vaga de outra pessoa
necessitada. Isso é terrível de se ver.
Não só psicoterapia pode ser gratuita, outras atividades também.
Muitas igrejas, centros sociais, clubes, casas espíritas oferecem
terapias ocupacionais com instrumentos musicais, coral, tricô,
pintura, artesanato e outras atividades. Salão de dança, você
encontra vários por aí, fazer caminhada é só pôr um tênis e sair
andando. Há muitas escolas de manicure, de cabeleireira que são
gratuitas ou com uma taxa pequena para se fazer as unhas, cabelos
e outras coisas. Tudo o que a pessoa se esforçar para encontrar, ela
encontrará de graça.
Isso tudo vai preenchendo a vida. Vai dar novas idéias, novos
pensamentos e voltará, pouco a pouco, o ânimo e o humor. A
criatura pode se revelar e se superar.
Mas, infelizmente, temos aquele tipo de pessoa que potencializa,
aumenta o seu problema para usá-lo como desculpa a fim de não
enfrentar a vida, de negligenciar a responsabilidade. Esse tipo de
pessoa, dificilmente, vai se recuperar porque para ela é mais fácil, é
muito cômodo e, inconscientemente, prazeroso dizer que tem
depressão, síndrome do pânico, ansiedade... e: "Olha — arremedou
—, eu sou muito sensível, não posso ficar contrariada, não posso me
estressar, não posso isso ou aquilo". Enquanto essa pessoa falar,


pensar e agir assim, realmente, ela não vai poder nada. Ela não vai
se recuperar.
Transtornos como esses são alertas espirituais ou psíquicos
sinalizando-o e dizendo: "olha, você precisa mudar os seus
pensamentos, sentimentos, palavras, ações, pois o seu nível
espiritual, psíquico não está bom. Você pode e vai ter de mudar,
hoje ou amanhã, porque não pode ficar assim eternamente, porque,
quando permanece assim inerte, você não evolui." Veja, terá de se
recuperar aqui ou na espiritualidade. A escolha é sua. Mas pense
bem. Aqui você conhece os meios e tem ajuda. Na espiritualidade,
não se sabe o que vai enfrentar.

—Tudo o que o senhor está me dizendo é muito importante. Tenho
até medo de pensar o que, espiritualmente, está acontecendo
comigo.
—Foi bom falar nisso, Humberto. Com muita experiência clínica
nessa área e como espírita, posso lhe dizer que os obsessores estão
fazendo a festa no plano espiritual à sua volta. E não é preciso ser
médium para dizer isso. Eles podem aproveitar esse abalo para
envolvê-lo com energias bem funestas, pensamentos e sentimentos
que potencializam mil vezes o que realmente esse estado é de fato.
—Imagino. — Pensando um pouco, o rapaz olhou firme para o
médico e falou convicto: — Apesar do abalo, eu quero e vou mudar
esse quadro. Não vou me permitir ficar nesse estado e, para isso,
quero ajuda e orientação.
—Ótimo! — riu o doutor, satisfeito.
—Doutor, andei com pensamentos confusos e idéias estranhas,
como a de... — envergonhou-se, mas contou: — matar meu irmão,
ainda querer matar a minha ex... pensamentos suicidas... Pode ser
efeitos dos medicamentos?
—Eu acredito que sim. Os medicamentos podem interferir na
capacidade de julgamento, pensamento e ação de uma pessoa,
provocando ou potencializando esses desejos, sim. Eu prescrevo
esses medicamentos com extrema moderação e por um período bem


curto conforme o caso, pois sei que nenhum remédio pode alcançar
a verdadeira origem desses sintomas — falou o médico com
franqueza. — Porém, nisso pode ter uma bela dose de obsessão, sem
dúvida. Vamos lembrar que você não sabe qual a ligação sua e de
seu irmão no passado. Sua ligação com sua ex... Será que seu irmão
não o matou em uma vida passada e você não lhe perdoou como
deveria e queria, inconscientemente, vingar-se dele nesta existência?
Talvez até por isso esse estado, essa crise veio para lhe cobrar uma
postura mais equilibrada de amor verdadeiro e perdão compatível
com a sua índole espiritual, a sua propensão natural de fé, amor e
perdão. Será que, com sua ex, não teve um relacionamento
turbulento também e?... — Após alguns segundos, considerou
arrependido do que havia falado: — Por favor, Humberto! São
somente suposições! É só o meu lado espiritualista falando. Pode ser
uma expressão do seu inconsciente que se manifestou por causa
desse transtorno e se potencializou com a medicação. Mas isso pode
e deve ser tratado. O correto não é você perguntar: por que eu tive
isso? O correto é se questionar: para que eu tive isso? Com certeza a
resposta virá. Descobrirá que teve isso para evoluir, crescer,
fortalecer-se e principalmente corrigir-se, desenvolver mais amor e
fé. Para sofrer a crise que sofreu foi porque as energias criadas em
você, por você mesmo, foram, incompatíveis ao amor e a fé que
aprendemos com Jesus. Deus é bom e justo e ninguém fica assim
eternamente. Vai precisar de muito empenho e determinação, mas
vai conseguir.
—Certo. Quero começar me livrando desses remédios! E também
começar a psicoterapia! — sorriu, animado.
—Foi a melhor notícia que eu tive hoje! Vamos lá! Vou ajudá-lo a
diminuir esses medicamentos até a isenção total! Não se pode,
repentinamente, parar de tomar esses remédios. Vou avisá-lo e,
provavelmente, o psicólogo também o alerte de que haverá
momentos em que você achará que não está adiantando nada. Vai
querer um remédio mágico ou vai querer a medicação de volta para


tirar toda e qualquer sensação que esteja sentindo. Alguns chamam
a esses momentos ou períodos de recaídas. Eles não têm muito a ver
com os remédios, mas sim com o estado emocional. Na verdade, são
adaptações psíquicas e fisiológicas, vamos dizer. O caminho é a sua
recuperação e uma nova pessoa, mais firme, mais sábia com
despertar das novas idéias. Aquilo tudo que aquela moça a...

— Lívia!
— Sim, a Lívia. Tudo o que ela aconselhou é verdade. Será muito
bom para você. Saia, dance, ande, tenha várias atividades
tranqüilas, prazerosas e tudo vai acontecer naturalmente. Mas não
dependa somente da companhia dela. Faça o que tiver de fazer
mesmo sozinho. Você me disse que era instrutor em cursos de
espiritismo e que fazia palestras também.
— Sim eu era.
— Não! Você ainda é! — sorriu. — Volte a essa atividade. Mesmo
se, no início, estiver inseguro. Volte aos poucos. Vai lhe fazer bem.
Após vê-lo fazer anotações, Humberto, curioso, perguntou:
—Doutor, a propósito, e a senhora que mencionou que sofreu
depressão por mais de cinco anos? Ela melhorou?
—Ficou ótima! Tornou-se outra pessoa! Uniu-se a um grupo da
terceira idade, começou a viajar, participar de passeios... — riu. — A
filha me encontrou um dia no centro e reclamou da mãe para mim.
Disse-me que a mãe se tornou um pé de valsa e tinha arrumado um
namorado. Por ser viúva, estava pensando em se casar novamente.
— E aí?!
— Ora! Virei para a moça e perguntei se ela queria sua mãe
trancada e deprimida dentro de casa como antes ou alegre e
extrovertida como ela estava? A moça sorriu, mas não respondeu.
Eu ainda falei: deixe sua mãe viver! Deixe-a ser feliz!
—E bom saber de casos assim. Infelizmente, as pessoas só
comentam assuntos catastróficos.
—Uma coisa de que gosto de alertar é para a pessoa não falar ou se
lembrar do nome do que ela tem.

— Como assim?!
— Tem gente que vive dizendo: eu tenho depressão! Com essa
afirmação, a sua mente fica presa nesse estado. Ela acredita e vive
tendo o que diz ter. Esquecer o nome: depressão, pânico, ansiedade
e se for preciso mencionar, dizer: eu tive depressão, tive pânico. Em
seguida afirmar: a cada dia estou melhor, mais segura e feliz. Essa é
uma tática ótima para impressionar o inconsciente e mudar de
atitude mental. Você sabe, como disse o grande sábio: o que você
pensa, você cria; o que você sente, você atrai; o que você acredita,
torna-se realidade! — Ao vê-lo pensativo, ainda orientou: — Vamos
falar em termos de energia. Devido às contrariedades da sua vida,
você criou sentimentos ruins que são energias negativas e todo o
seu corpo físico sofreu as conseqüências de um choque por causa
dos seus desejos e sentimentos que experimentaram grande conflito.
Assim sendo, você está carregado ou sobrecarregado de uma
energia muito negativa. O que precisa fazer é gastar, livrar-se dessa
energia ruim para que uma energia boa ocupe novamente esse
lugar. Você precisa suar, literalmente suar, transpirar. Isso ajuda
muito a se livrar, a gastar essa energia negativa. — Sorrindo,
continuou: — Depois disso, não fique parado. Procure ambientes,
terapias, ocupações ou trabalhos saudáveis como a leitura de um
bom livro, ir à casa espírita para palestras e passes ou outras
atividades salutares, pois será isso que irá ajudá-lo a repor de
energias saudáveis o "espaço" vago deixado pela energia ruim que
gastou. Além disso, leia o Evangelho Segundo o Espiritismo,
diariamente, antes de dormir. Leia um parágrafo e reflita. Ore
pedindo a Deus um sono tranqüilo, reconfortante, que possa repor
suas energias mais saudáveis. Peça proteção de seu anjo da guarda,
de amigos espirituais que atuem em nome de Jesus. Peça com muita
fé. Tudo isso, com certeza, vai ajudá-lo muito. Acredite.
O médico ficou conversando por mais algum tempo com Humberto,
fazendo-o sentir-se melhor, mais seguro e decidido a melhorar.

***


Era final de semana.
Lívia, sentada no sofá da casa de dona Aurora, ouvia atentamente
sobre o que Humberto contava a respeito da consulta com o doutor
Edison, o psiquiatra, e o doutor Fabiano, o psicólogo indicado por
Sérgio e que ele foi consultar.

— O que você achou? — perguntou ela.
— O Fabiano me passou muita confiança e me animou bastante,
reforçando que é possível eu sair desse estado e me fazendo
entender melhor o que sinto, pois eu nunca podia imaginar que
essas sensações ou sintomas pudessem existir, muito menos que
ocorreriam comigo.
—Eu venho te dizendo que isso vai passar! Mas não acredita! —
sorriu.
—Eu sei — sorriu junto. — Mas quando essa informação vem de um
profissional é diferente. — Após alguns segundos, comentou: —
Você deve estar cansada de me ver assim, só me queixando e
falando do que sinto, não é?
—Não é agradável ouvir queixas. Às vezes me sinto aflita, sem
saber o que fazer. Mas já percebi que você tem melhorado,
principalmente, nos últimos dias. Está reagindo, agindo...
—Obrigado por me ajudar, Lívia.
Sentada ao seu lado, ela afagou-lhe as costas com carinho ao
estampar suave e belo sorriso. Em seguida, propôs:
—Vamos sair e dar uma volta?
—Para onde?


— Não sei. Coloque um tênis! Vamos andar um pouco. Humberto
sorriu, levantou-se e concordou:
— Só um minuto, tá?
Dizendo isso, ele foi para o seu quarto. Sem que percebessem, na
espiritualidade, Rubens se demonstrava totalmente descontrolado.

— Desgraçados! Seus... — Depois de vários nomes indecorosos,
vociferava: — Vou acabar com vocês dois!!! Vou matar essa safada e
depois você!!! Como podem fazer isso na minha cara?!!!
Enquanto colocava o calçado, Humberto sentia-se mal.
Experimentava uma tontura que o enfraquecia ao mesmo tempo
que sentia o rosto frio e gotejado de suor.
Diante de sua demora, Lívia foi até o quarto e expiando perguntou:
— Posso entrar? — Ao vê-lo sentado, mas com a parte superior do
corpo deitado sobre a cama, quis saber: — O que foi, Humberto?
— É aquilo de novo... — murmurou. Mesmo percebendo-o trêmulo,
pediu:
— Sente-se direito. Respire fundo. Obedecendo, ele falou:
—Estão acontecendo algumas coisas meio diferentes comigo. É
horrível! Parece que vou morrer!
—Não vai! Não vai mesmo! É só uma crise. Abra os olhos e respire
fundo.
Apesar do pavor que o dominava, Humberto atendia aos seus
pedidos.
Lívia foi até a cozinha e trouxe um copo com água adoçada. Ao
segurá-lo, pediu em pensamento para amigos e benfeitores
espirituais depositassem fluidos balsâmicos que pudessem ajudá-lo
a se recompor mais rápido. Sem que ela visse, foi atendida
imediatamente pelos mentores que os acompanhavam.
Chegando ao quarto, solicitou simplesmente:
— Bebe um pouco. Vai te fazer bem.
Enquanto ele bebia lentamente a água fluidificada, ela afagou-lhe
sua cabeça e sua nuca sem perceber que lhe passava energias que o
auxiliariam a se recuperar mais depressa.
A equipe do espírito Adamastor, pouco antes, sugava energias de
Humberto, vampirizando-lhe os fluidos vitais e oferecendo-lhe uma
sensação de pânico muito maior do que a Própria morte.
Alguns outros inertes e sem saber o que estavam fazendo,
consumiam suas reservas de forças psíquicas, deixando-o

desorientado, confuso com a impressão de que sua mente enlouquecia
saturada de impulsos inferiores.
Lívia ajoelhou-se frente a ele e segurou suas mãos gélidas e suadas
entre as suas. Ignorando como proceder, fechou os olhos e começou
a orar.
Em seu socorro, do ponto mais alto, veio uma luz azulada e
cintilante que, generosamente, envolveu Lívia que passou a ter todo

o seu corpo aureolado. Sem perceber, ela transmitia fluidos
sublimes ao rapaz a sua frente.
Tais energias, lentamente, invadiam Humberto e provocavam
pequenas ondas de choques que se manifestavam como calafrios.
A energia em forma de luz, grandiosamente divina, chegava até os
espíritos inferiores ligados a Humberto e produziam nesses infelizes
reações como que intoxicantes.
Amedrontados, espíritos sob as ordens de Adamastor, começaram a
gritar por seu nome e, em fração de segundos, ele apareceu.
Percebendo o que acontecia, Adamastor, imediatamente, dirigiu-se
a Humberto, áspera e estrondorosamente, impondo:
— Você vai morrer!!! Está morrendo da pior forma, seu
desgraçado!!! Essa aí levou seu irmão à morte e agora vai levar
você!!! Sinta o horror da morte!!! Sinta que o inferno está chegando!!!
É onde eu te espero!!!
Humberto começava a se recuperar um pouco, mas, subitamente,
foi invadido por nova e gigantesca onda de mal-estar indefinido.
Interrompendo Lívia, que se concentrava em uma prece sentida e se
ligava ao alto, comentou:
—Parece que vou morrer... Que coisa horrível!
A fala do rapaz bastou para a moça abrir os olhos e prestar atenção
no que ele dizia.
Sob o olhar de revolta de Adamastor, ela se sentiu fraca e inútil
diante de tudo.



Mesmo na espiritualidade, em plano que não conseguia ser
percebido pelos demais, Nelson e Alda envolveram Lívia,
protegendo-a dos ataques do obsessor e seu grupo.
Sob a inspiração dos mentores, ela reagiu:
—Humberto! Levanta!
—Não posso. Vou cair!
—Não! Não vai! — falou firme, exigindo: — Levanta agora! Parece
que é essa cama, esse quarto que te deixam assim!
Ela o puxou e o fez ficar em pé.
Ao olhá-la, Humberto passava mal, lembrava-se de seu irmão, de
como ele desencarnou, de como deveria ter sofrido e muitos outros
pensamentos velozes e decaídos.
Exigente, mas muito educada e generosa, ela falou:


— Não é possível! Agora há pouco, lá na sala, você estava tão bem!
De repente, chega aqui no quarto e fica assim! Isso não é normal!
— Eu sei, mas não posso fazer nada!
— Ah! Pode sim! Vamos sair, venha! Daremos uma volta! Sem
conseguir concatenar as idéias, sentindo-se fraco e
indefeso, Humberto a acompanhou, mesmo sob as reclamações e
ameaças furiosas de Rubens, que ficou na casa.
Tempo depois, ao caminharem por uma avenida ladeada de
árvores, ela perguntou:
— Sente-se melhor?
— Um pouco.
—Foi uma crise. Você não vai morrer. Nada vai te acontecer.
—Crise do quê? — perguntou ele entristecido.
—Sei lá! O nome pouco importa. Vamos chamar de
crise.
—Estou me sentindo melhor. Mas muito estranho. Sinto um tremor
por dentro. Quando falo parece que não sou eu que estou falando.
Se dou risada é como se não fosse eu quem estivesse rindo. E
estranho, não é?
—Isso também vai passar!



—Você fala com tanta convicção, Lívia. Já viu alguém passar por
isso?
—Já ouvi falar. Pelo que te conheço, você tem força interior mais do
que suficiente para vencer esse estado. Um tratamento de
assistência espiritual seria muito bom. Você começou, mas não deu
continuidade.
—Será que tive essa crise por que o médico diminuiu um pouco a
dosagem dos remédios?
—Não creio.
—Por quê?
—Porque já teve outras crises com a medicação em alta. Eu acho
que precisa é mudar aquele quarto. Se me permitir, vou falar com a
Neide e pedir para ela e sua mãe mudarem sua cama de lugar,
tirarem dali a cama que foi do seu irmão, as roupas dele do
armário... Mudar tudo, entende? Deixar o quarto mais iluminado,
mais arejado... Quem sabe pintar com uma cor mais alegre?! Aquela
cor gelo é muito fria! — riu com gosto.

— Eu sempre quis um quarto azul! — admitiu.
—Azul seria perfeito! Poderíamos mudar as cortinas também!
—Tirar as cortinas beges e trocar por azuis?
—Não. Creio que tudo azul não ficaria bom. Mas cortinas brancas
cairiam bem! Além disso, com uma cama a menos, você poderia
mudar a mesa do computador e fazer uma bancada para que possa
escrever ou ler perto da janela! O que acha?
—É mesmo!
Assim, Lívia começou a desviar os pensamentos de Humberto do
que ele sentia, pois ele não tinha outro assunto para falar a não ser
sobre o seu estado. As sugestões sobre as mudanças o faziam tecer
planos e desenvolver idéias novas e produtivas.



19


VIVER UM DIA DE CADA VEZ


O tempo foi passando.
Um dia nublado. Uma luz pálida no céu repleto de nuvens cinza
anunciava mais um dia sem sol e um tanto frio.
Humberto conversava com Lívia a caminho do serviço e, em
determinado momento, ele comentou:
—Eu vou conversar com a Irene.
—Quando? — interessou-se ela bem surpresa.


— Não sei. Ainda não marquei. Andei conversando com o Fabiano
e ele considera que resolver toda pendência à minha volta vai
ajudar.
— Também concordo.
—Mas quando penso em falar com ela... Sinto-me muito abalado.
—A vida é ação e ação é energia — comentou Lívia. — Agindo para
enfrentar ou resolver o que for preciso à sua volta, você estará
criando energias novas e gastando ou se desfazendo das energias
velhas. Assim estará se renovando.
Muito à vontade, ele riu de um jeito gostoso e brincou:
— Você fez algum curso de psicologia nos últimos tempos?
A moça sorriu e ficou satisfeita ao vê-lo brincar naturalmente
Humberto parecia voltar à vida. Em seguida, ela respondeu:


— Não. Não fiz, mas seria um curso interessante. Ele simplesmente
sorriu e mudou de assunto.
— Amanhã vou comprar tinta para pintar o quarto. Você vai
ajudar?
—Ajudar a comprar a tinta ou a pintar?
—As duas coisas. Topa?!
—Com o maior prazer! — alegrou-se ela.
Eles continuaram conversando até chegarem à empresa.

Naquele dia, Humberto se sentia bem melhor. Não totalmente
recuperado, mas dos últimos tempos em que era mordazmente
acometido por terríveis crises psíquicas depressivas ou de pânicos
inexplicáveis, aquele era um dia bem tranqüilo.

***

Os amigos que trabalhavam na contabilidade da empresa,
combinaram de almoçarem juntos e Lívia fazia parte desse grupo.
Ao retornarem do restaurante, Ademir a segurou no hall do
elevador, impedindo-a de subir com os demais e pediu:

— Fique! Vamos aguardar o próximo.
Lívia aceitou com simplicidade e o rapaz perguntou:
— Está livre amanhã?
— Como assim? — tornou ela, querendo ganhar tempo para pensar
e entender a finalidade daquela pergunta.
— Poderíamos sair, tomar um chopinho, dançar... O que acha?
— Olha, Ademir... Ela não terminou e ele a interrompeu generoso e
educado:
-Lívia, já passou tempo suficiente desde a morte do Rubens. Você
não pode ficar só pensando nele. Afinal, é uma moça jovem, bonita,
cheia de vida e...
—Não é isso.
—Como não é isso?! Eu reparo muito bem no que faz e não a vejo
ligando para ninguém. Ninguém te liga ou te procura. Você está
muito sozinha, presa... Precisa viver um pouco e se soltar mais.
A mando de Adamastor, os espíritos infelizes, que acompanhavam
Lívia à espera de uma oportunidade, encontraram o momento de
agir.
Envolvendo-a com intensos fluidos inferiores, sugeriam-lhe
pensamentos e sentimentos enquanto Ademir falava.

—Vejo você chegando e indo embora com o Humberto. Sei que ele é
um cara legal e está precisando da sua ajuda, mas... Parece que ele
está te usando! É muito estranho vê-lo juntos. Digo isso porque não
estão envolvidos, certo?
—Eu e o Humberto não temos nada.
—Nem teria cabimento! Só porque o seu namorado morreu, você
não vai ficar com o irmão dele porque está sozinha, não é? Sei lá!
Pode parecer que quer trocar um pelo outro!
Aquela opinião mexeu com Lívia. Ela começou a questionar a
respeito de serem corretas ou não as suas intenções. Afinal, na
verdade, não queria estar comprometida com Rubens quando
conheceu Humberto. De certa forma, estaria trocando um pelo
outro.


Isso tudo lhe causou dúvidas e conflitos.
—O que me diz? Não parece isso? — perguntou Ademir,
despertando-a das reflexões.
—É... Não sei direito... — respondeu confusa, pois não havia
escutado direito o que o outro falou.
—Eu acho isso. Parece que você está sendo usada, perdendo o seu
tempo, a sua juventude, deixando de viver! Pense, Lívia! — Ficando
frente a ela, Ademir tirou-lhe a mecha de cabelo do rosto, enlaçou-a
atrás da orelha e, fazendo-lhe terno afago na face, convidou: —
Vamos sair amanhã?
Afastando-se um pouco, ela respondeu abaixando a cabeça:


— Amanhã... Eu não posso.
—Domingo? — insistiu, aproximando-se novamente enquanto
acariciava-lhe o braço.
—Eu não sei... — respondeu confusa, sob o efeito de energias de
espíritos inferiores que tentavam influenciá-la-
A certa distância, Humberto, que esperava o elevador dos
executivos, assistia à cena.
Resgatando as lembranças de ver Irene e Rubens juntos,
confundido-as com o momento presente, sentiu-se estranho, com

sensações que o desequilibravam. Pensou que Lívia o estava traindo
de alguma forma, apesar de não terem qualquer compromisso.
Imaginou que ela não deveria ser diferente da outra e o enganava
sim. Afinal, conversar tão próxima de Ademir, deixando-o tocar-lhe
os cabelos com um afago, não seria algo comum com quem não se
tivesse afinidade.
Humberto ficou muito confuso com o que via. Não conseguia
raciocinar direito. Os medicamentos que tomava interferiam,
cruelmente, em sua capacidade de julgamento e os espíritos
infelizes que o acompanhavam ininterruptamente, aproveitavam-se
dos efeitos colaterais dos remédios e como que preenchendo as
lacunas de seus pensamentos, imprimiam-lhe idéias mórbidas,
terríveis e comprometedoras.
Teve o impulso de ir até eles, mas desistiu com a chegada do
elevador.
Ao passar pela sala de sua secretária, Humberto mal a olhou e, sem
parar, pediu secamente:

— Júlia, venha até minha sala, por favor. Acomodando-se em sua
cadeira giratória confortável,
abriu uma gaveta onde pegou uma carteia de medicamento. Olhou-
a, destacou um comprimido e o tomou, engolindo-o a seco.
Vendo-a parada à sua frente, perguntou:
—A remessa da qual eu lhe falei hoje cedo, já foi encaminhada para
o Rio?
—Já. Foi exatamente a remessa solicitada. Não houve qualquer
alteração nos lotes.
— Ótimo.
A cena de Lívia e Ademir não lhe saía da cabeça. Naquele instante,
ele passou a imaginá-los juntos, igual quando pegou Irene e
Rubens.
Acreditava piamente que Lívia o enganava. Talvez se encontrasse às
escondidas com Ademir, que era um rapaz bonito, simpático e não
tinha problemas iguais aos dele.

Desde quando falou para Lívia que foi um erro terem começado um
envolvimento, ela se afastou. Não ofereceu chance para qualquer
intimidade. Não se demonstrou apaixonada.

Não deveria gostar dele como acreditava. Novamente estava sendo
enganado.

— Tudo bem, Humberto? — perguntou Júlia ao vê-lo em silêncio
por longo tempo.
Apoiando os cotovelos na mesa e amparando a cabeça nas mãos,
respondeu com voz abafada e estranha:
—Estou bem. Vai passar.
—Quer uma água?
Jogando-se para trás na cadeira, balançou-se ao olhá-la de um modo
incomum e comentou:
— Quero sumir, Júlia. Sumir!...
—Hoje você me pareceu tão bem. Eu o vi conversando e sorrindo de
um jeito tão espontâneo, natural... Ainda falei comigo mesma:
nossa! O Humberto está de volta! — sorriu.
—Eu me sinto oscilando... E como se eu vivesse em ondas altas e
baixas, vagando... Parece que mudo de personalidade. Tenho
dúvidas quanto aos meus sentimentos.
— Minha irmã reclamava de algo semelhante.
— Creio que estou incomodando todos à minha volta e... As vezes,
acho que as pessoas estão comigo por interesse ou obrigação. Vem
um desespero! Uma coisa!...
—Vai passar — ela afirmou em tom bondoso.
—Quando?! Quanto tempo isso dura?!
— Cada pessoa tem o seu tempo próprio, psicologicamente falando.
As defesas e os pontos fracos servem de fatores positivos ou
negativos, mas, sobretudo, a sua aceitação, o seu amor próprio vão
lhe ajudar.
— Como assim?
_ Tenha paciência com você mesmo, Humberto. Dê-se um tempo.
Diga a você mesmo que vai conseguir. Hoje, por exemplo, você

melhorou muito em relação aos outros dias. Se depois ficou triste,
diga: é por enquanto! Daqui a pouco estarei melhor novamente! Isso
é confiar e amar a si mesmo. — Alguns segundos, vendo-o em
silêncio, perguntou: — Você passou no médico novamente e ele
diminuiu a dosagem dos remédios?
—Ele mandou diminuir mas, porém... Não estou conseguindo.
Como ainda tenho alguns comprimidos a mais, nos momentos de
crise muito forte, eu acabo tomando.
—Deveria falar isso para o médico. Por que não conversa com ele?
O rapaz não respondeu e, querendo mudar de assunto, pediu:
—Por favor, ligue para a filial do Rio. Preciso conversar com o
Valdir.
—Certo. — Júlia entendeu que o assunto estava encerrado, mas
decidiu contar antes de sair: — Humberto, o doutor Osvaldo veio
me perguntar de você. Queria saber como estava.
—O que você respondeu? — quis saber, estranhando a atitude do
outro.
—Disse que você estava bem.
—Ele está reparando que eu não me apresento como antes. Não
opino tanto, não participo de forma tão dinâmica...
—Olha o que você está fazendo! Nem sabe se o homem está
pensando isso ou não e afirma, com convicção, idéias negativas a
seu respeito na suposta opinião dele.


— Devo admitir que não estou tão atuante quanto antes, Júlia!
Demoro a entender algo simples. Fico confuso diante de
determinadas pressões e...
Nesse instante, o doutor Osvaldo, vice-presidente da empresa,
entrou repentinamente na sala, pois a porta se encontrava
entreaberta.
—E aí, Humberto?! Já falou com o Valdir sobre as novas aquisições?
—Ainda não, doutor Osvaldo! Acabei de pedir à Júlia para fazer a
ligação.

Imediatamente, a secretária argumentou sensata e educada antes de
sair:

— Com licença, doutor Humberto, vou fazer a ligação agora.
— Isso! — exclamou o vice-presidente. Virando-se para Humberto,
pediu: — Coloque no viva-voz que eu quero conversar com ele
também. — Em seguida, comentou: — Li seus relatórios sobre a
análise financeira que fez e gostei muito. Ah! Já viu os rendimentos
das ações hoje?
O assunto continuou e foram realizar o que precisava. Isso distraiu
Humberto dos pensamentos conflitantes que teve anteriormente.
***

Naquela noite, retornando para casa ao lado de Lívia, ele não disse

nada.
Insatisfeita, embalada por pensamentos negativos impostos por
espíritos inferiores, ela acalentava silenciosas idéias de que
Humberto não queria se recuperar e ficaria eternamente daquele
jeito.
Enquanto ele, trazia a imaginação povoada com idéias de Lívia e
Ademir juntos, confundindo com as cenas que viu entre Irene e
Rubens. Isso lhe provocava impressões causticantes de profundo
desespero.
Um momento de fúria o dominou quando experimentou imensa
vontade de puxar o volante do carro, virando totalmente a direção
para aproveitar a velocidade e provocar um acidente.
Desejou vê-la morta. Desejou morrer junto.
Mas, por um instante, pensou que o acidente não seria grave o
suficiente para morrerem. Então, se conteve para não agir.
Ao chegar a casa, o espírito Rubens exibia-se furioso ao vê-los
juntos.
A pedido de Neide, Lívia entrou para ver as cores de tinta que ela
havia comprado sem avisar o irmão.


— Esse azul é para o quarto do Humberto. Esse lilás, quase rosa, é
para o meu quarto.
— São cores lindas! — admirou Lívia.
—Eu ia comprar as tintas amanhã — ele avisou, sentindo-se
insatisfeito com a iniciativa da irmã. Começou a pensar que sua
opinião não era mais importante para ninguém.
—Ganhamos tempo, Humberto! — lembrou Neide. — Amanhã
começamos cedo! — O irmão não disse mais nada. Ele foi para
dentro de casa, e ela comentou animada: — Eu estava pensando, se
o Humberto quiser, a parede do quarto dele onde vai ficar a mesa
do computador e a bancada, poderia ser pintada com esse lilás, o
que você acha, Lívia?
—Penso que ficaria bonito! Precisamos ver se ele gosta.
—Cale a boca, Neide!!! — gritava o espírito Rubens revoltado,
confuso e ainda sem entender o que acontecia com ele _ Você não
vai fazer nada!!! Aquele quarto é meu!!! Vai se ver comigo se mexer
lá, cretina!!!
Ele estava muito perturbado ainda. Não sabia dizer há quanto
tempo era ignorado pela família. Supunha que se tratava de dias,
menos de um mês. Extremamente desorientado, quando despendia
energias, revoltado com a atitude de todos, ficava fraco e
esmorecido. Entrava em um estado semelhante ao sono,
permanecendo assim por muitas horas ou dias. Ao despertar,
acreditava que o seu acidente de moto tivesse acontecido há
pouquíssimo tempo. Quando desejava sair de casa, sentia-se
abatido, sem forças e não conseguia. Chegou a pensar que tivesse
morrido, mas percebia-se vivo demais para aceitar essa suposição.
Afinal, ele tinha dor, sangrava, movia-se, falava. Apesar de
experimentar sensações estranhas, não considerava, sobremaneira,
que pudesse estar morto. Ao imaginar essa possibilidade, ficava
tonto, sem vigor, sem ânimo e não conseguia organizar os
pensamentos. Experimentava um grande vazio.
A jovem não o ouvia e comentou:


—Minha mãe concordou em se desfazer das coisas do Rubens.
Amanhã, um homem, lá do bazar beneficente da igreja, virá buscar
a cama e as roupas.
—Creio que será a melhor coisa que vão fazer, Neide. O quarto vai
ficar com um ar novo, mais agradável e diferente. ~ concordou
Lívia.
—Eu também acho. Aliás, isso já deveria ter sido feito.


— O que pensam em fazer comigo?!!! Eu ainda moro nesta casa!!! —
berrava o espírito Rubens sem ser percebido. Com isso perdia as
forças, enfraquecia e não entendia o que estavam falando.
Dona Aurora chegou à garagem e ao ver as moças conversando,
perguntou sorridente:
—Você vem amanhã ajudar esses dois a pintar os quartos?
—Venho sim! — respondeu bem-disposta.
No instante seguinte, o espírito Rubens se refazia um pouco, sentia-
se contrariado, entorpecido e, aproximando-se de sua mãe, exigiu
emotivo e chorando:


— O que está fazendo?!! Por que estão me ignorando e me tratando
desse jeito como se eu não existisse?!! Mãe! Parece que eu morri!!!
Por que está fazendo isso comigo?!! Eu preciso de socorro... Preciso
de um médico... Acho que vou desmaiar...
A senhora entristeceu imediatamente e, com lágrimas nos olhos,
comentou:
—A gente precisa de algumas mudanças para ver se o Humberto
melhora. Se isso é preciso para o meu filho se recuperar, então
vamos fazer.
—Vai ficar bonito, dona Aurora! — disse Lívia.
—Vai sim — afirmou a senhora com o coração partido.
***

No dia imediato, bem cedo, Humberto e Neide estavam com tudo
no jeito para pintar os quartos, quando Lívia chegou.


Animada, ela os ajudou em tudo o que precisavam. Eles brincaram,
cantaram ao som de músicas alegres e se divertiam com o trabalho.
Riam muito um do outro pelos rostos coloridos. Como se não
bastasse, Neide fez questão de desenhar no rosto do irmão e de
esborrifar tinta em Lívia, que ficou manchada. Mas não escapou de
ser pega pela amiga que também lambuzou seus braços, pernas e
rosto como deliciosa vingança.
A pintura das paredes, no plano físico, como que desintegrou
fluidos negativos existentes no plano espiritual.
Havia um véu pesado e invisível de condensação energética inferior
incrustada na parede que parecia absorver as irradiações
enfermiças, depressivas da mente de encarnados e desencarnados.
Certamente a limpeza dessas energias pesarosas beneficiaria os
usuários dos cômodos, não somente pela higienização espiritual,
mas também pela nova cor que emitia uma vibração
transformadora, pois espíritos mais elevados aproveitavam-se da
limpeza física, material para condensarem energias benéficas e
construtivas no ambiente mais luminoso, de vibração colorida, bem
tranqüila e edificante.
Isso incomodou imensamente o espírito Adamastor e seu grupo.
De tanto protestar, o espírito Rubens ficou exaurido de forças e,
como que entorpecido, caia em uma espécie de sono profundo, um
tanto perturbado.
No domingo à tarde tudo estava pronto.
O quarto de Humberto havia se transformado e adquirido um novo
ar. Achava-se mais limpo, bem claro. A cor nova ° fez ganhar beleza
e vida.


Neide também se beneficiava com a mudança, pois também
renovou o visual de onde dormia.
Lívia riu ao ver o seu rosto no espelho e, sentando-se no chão,
comentou alegre:


— Estamos cansados, mas valeu a pena!

—Nossa! Ficou tão diferente! Bonito! — disse Humberto, satisfeito
ao contemplar o ambiente.
—Amanhã, após colocar as cortinas novas, aí sim, você vai sentir a
diferença! — ressaltou ela.


— Humberto? — chamou Neide. — Telefone!
Ele se levantou e foi até a sala pegar o aparelho com sua irmã.
Depois de conversar um pouco, retornou até o quarto avisando:
— O Sérgio está nos chamando para irmos até a casa dele. O que
você acha?
— Primeiro preciso de um banho! — disse Lívia.
— Então vai logo! — pediu alegre. — Vou avisar que iremos!
***

Ao saírem para a casa do amigo, frente ao portão, Lívia parou e
olhou o horizonte onde o sol se punha com seus raios faiscantes,
tremeluzindo de dourado tudo o que atingia.
Seu belo rosto ficou iluminado e Humberto a observou inebriado,
sem dizer nada.
Extasiada com a bela visão, ela falou baixinho:


— Veja que lindo!
Ele acompanhou seu olhar e contemplou afirmando no mesmo tom:
— Lindo mesmo!
Por alguns instantes um alívio tocou suas almas, dando-lhes uma
sensação de profunda e agradável paz.
A moça sorriu docemente quando os seus olhos se encontraram, e
ele falou em tom amável:
— Obrigado por tudo, Lívia.
— Tenho certeza de que você faria o mesmo por mim. Ele sorriu e,
num impulso carinhoso, abraçou-a com força, agasalhando-a em
seu peito.
Sentia-se confuso, inseguro e sem saber o que fazer com aquele
sentimento nobre, de um amor sem limites.

Apertando-a junto a si, beijou-lhe a cabeça e depois o
rosto.
Lívia trazia o coração esperançoso, batendo descompassado.
Erguendo-lhe o rosto, encarou-o firme por algum tempo. Humberto
beijou-lhe novamente a face, acariciou-a com ternura e afastou-se do
abraço.
A jovem se sentiu frustrada. Uma decepção doía-lhe na alma e
acreditou ser usada de alguma forma. Ela não disse mais nada, e ele
pediu, sorrindo:
—Vamos?!
—Claro — aceitou sem empolgação.
Não demorou muito e estavam conversando animadamente na casa
de Sérgio, reparando o quanto Laryel havia crescido.
A menininha dormia tranquilamente um sono profundo em seu
quarto e, aproveitando-se disso, Débora chamou

Lívia até a cozinha enquanto Sérgio e Humberto dialogavam na
sala.

— E então, Humberto? Como está?
—Às vezes me sinto melhor, porém sempre tenho uma espécie de
recaída. Acho que a diminuição dos remédios não está me fazendo
bem.
—Não é a diminuição das doses dos medicamentos. Acho que você
está se reajustando novamente. Isso é normal.
—O medo de ter uma nova crise me deixa apavorado. Aliás, eu
tenho um medo que, apesar de saber que é insano, excessivo e
irracional, não consigo controlar. Meu pavor é de que isso me
aconteça no serviço, em alguma reunião, com executivos, com quem
possamos fechar alguma negociação... Entende?
—À medida que você for resolvendo determinadas situações
pendentes em sua vida, isso vai passar.
— Será?!

—Sem dúvida! Eu pude perceber que as suas crises ou o seu mal-
estar, as sensações horríveis que descreve, acontecem sempre
ligadas a algum evento e situações específicas.
—É bem provável, pois, de uma forma ou de outra, eu acabo
pensando no meu irmão, me sinto mal ao lembrar o que desejei
fazer com ele, ao imaginar o que ele sofreu e... Fico acreditando que
vou experimentar o mesmo de alguma forma. Não sei se te contei,
mas eu estava muito apavorado ao olhar para a parede do meu
quarto à noite. Era como uma alucinação, eu acho... Temia que a
parede se movesse, ficava em pânico esperando algum ruído ou
movimento. Sei que isso não é racional, mas era o que sentia. Mas,
depois que o meu quarto foi pintado, esses sintomas melhoraram
muito. Praticamente sumiram. Isso me animou bastante, pois, agora,
acredito que, assim como o medo de olhar para a parede sumiu,
esse pânico que tenho, quando lembro do meu irmão, também vai
sumir.

— É por isso que não se resolveu com a Lívia.
—Ela me faz lembrar do Rubens e... Sinto ciúme dela, mesmo sem
motivo e... Parece que vou enlouquecer em alguns momentos,
apesar da melhora que observei. — Breve pausa e comentou: —
Sérgio, preciso te confessar uma coisa. — O outro aguardou
paciente e ele revelou, temeroso: — Eu voltei a tomar a mesma dose
dos remédios, pois não me senti muito bem com a diminuição.
—Por quê? — perguntou com tranqüilidade, mas lamentando
profundamente em seu íntimo.
—Estou perdendo o controle, Sérgio. Na próxima sessão, eu vou
comentar com o Fabiano. É que... — Humberto sentia imensa
dificuldade para relatar o que precisava, mas a custo contou: — Eu
me sinto mal quando fico olhando muito para a Lívia. A princípio,
percebo que desperta em mim um sentimento muito forte por ela.
Quero que fique comigo, entende?
— Você gosta muito dela. Acho que isso está claro para você.

— Sim, mas me lembro muito do Rubens. Teve um dia que saímos;
nós nos envolvemos um pouco. Depois senti um arrependimento
horrível. Passei muito mal por isso e, no dia seguinte, pedi um
tempo.
— Ela aceitou?
— Eu disse que não era correto ficarmos juntos. Depois nao
conversamos mais a respeito. — Com olhar amedrontado e o
coração aos saltos, confessou: — Tenho experimentado idéias
estranhas. Falei com o doutor Edison a respeito disso...
— Que idéias estranhas?
— Desejo de matar a Lívia... — falou quase sussurrando e
envergonhado.
— Como assim? — perguntou Sérgio, parecendo calmo.
— Eu a vi conversando com o encarregado dela, o Ademir. Eu o
conheço bem e... Ele a rodeava de um jeito... Falava com muita
generosidade. Não sei o que dizia, mas a tocava no cabelo, no rosto
e acariciou o seu braço. Eu a vi se afastando, mas... Senti minha
cabeça esquentar. Passei mal. Depois vieram as idéias de matar os
dois, de ela estar me traindo com ele, igual à Irene fez e... Não parei
de pensar nisso. Quando cheguei à minha sala, pensei que eu fosse
enlouquecer. Se a Lívia tivesse ido, lá, àquela hora, não sei dizer o
que eu teria feito. Não estou suportando os pensamentos, as
sensações e por isso faz mais ou menos uma semana que voltei a
tomar a mesma dose de remédio de antes.
—Você fez uso de bebida alcoólica?
—Não, Sérgio. De forma alguma! Você sabe que não bebo!
— E depois? Ficou só nisso?
— Não. Nós voltávamos para casa no meu carro e, em determinado
trecho, estava em certa velocidade... quase noventa, talvez... Eu tive
uma vontade, um desejo quase incontrolável de puxar o volante e
provocar um acidente. Mas eu não queria só um acidente simples.
Eu desejava que morrêssemos nós dois.
— Entendo — falou reflexivo e com simplicidade.

— Será que você entende mesmo, Sérgio?! — perguntou
amargurado, sem ver saída para o que experimentava.
Encarando-o firme, Sérgio invadiu sua alma com olhar sério ao
afirmar:
— Eu sei, exatamente, o que você sente. Eu já te falei isso.
—Já passou por uma situação igual?
—A situação foi diferente. Mas os sentimentos de colocar um fim
em tudo... Esse foi o mesmo. Eu sei qual é à força desse desejo,
Humberto. Mas descobri que eu tinha um poder maior para lidar
com isso.
—Que poder é esse?
—O poder da fé! A fé em Deus. Fé em mim. Fé em acreditar que
amanhã será melhor. Não resolvi tudo da noite para o dia.
Simplesmente fui vivendo, um dia de cada vez. Resolvi o que podia
resolver e o que não podia deixava para Deus que, por fim, colocou
ordem na minha vida. Arrumou situações que eu não poderia. Com
o tempo tudo se resolveu.
—Estou com medo de ficar sozinho com a Lívia. Fico apavorado de
pensar que posso ter novamente aquela vontade. E eu sou um cara
racional, consciente. Mesmo assim, o desejo de fazer uma loucura
dessas é incontrolável.
—Eu sei. Acredito que esse desejo tenha grande incentivo de
obsessores, com certeza. Os espíritos inferiores, vingativos, podem
aproveitar aquele momento em que você tem os pensamentos
confusos e incentivá-lo a aumentar a dosagem dos remédios,
influenciá-lo a crer que não pode ficar sem medicamentos e depois
se aproveitarem do prejuízo que essas drogas trazem para a
capacidade de julgamento e o estimular a atos contra a própria vida
ou contra alguém. Só que você tem o controle da situação. Você é
forte o suficiente para lidar com isso. Veja, eu não digo que
tenhamos de lutar contra isso. O correto é lidar, trabalhar essa
sensação, essa vontade.
— Como?

—Conversar a respeito com alguém preparado para ouvi-lo é um
meio. E, também, quando sentir qualquer alteração negativa
referente a esse estado, você pensa e diz a você mesmo com
convicção: "já está passando. Deus me protege e me ampara". Logo
depois saia. Vá fazer alguma coisa que as sensações, os sentimentos
e até mesmo esse desejo horrível vai passar. — Sérgio não
comentou, mas ficou com medo de um ataque obsessivo, pois já
havia experimentado algo parecido. — Humberto, você está
fazendo o culto do Evangelho no Lar?
—Não, eu... — não soube explicar. — Não faço com a mesma
freqüência de antes.
—Então comece a fazer. Não só o culto do Evangelho no Lar com
dia e hora marcados. Leia, nem se for um trecho curto do
evangelho, toda noite antes de dormir. Aproveite o seu quarto novo
e o imagine cheio de luz. Peça as bênçãos de Deus. Acredite que está
protegido e seguro. Ore de coração.
—O doutor Edison me disse isso... Não sei por que me afastei tanto
do Pai. Eu não era assim.

— Ele está sempre à sua espera. Ore!
—Tenho medo de fazer alguma coisa contra mim ou contra a Lívia.
—Não vai fazer. Em todo caso, converse com o Fabiano sobre isso
durante a psicoterapia. Volte ao doutor Édison e fale sobre o
remédio. Em minha opinião, você não deveria ter aumentado a
dosagem por conta própria. Isso é perigoso.
—É... Acho que errei.
—Errou mesmo. Siga as recomendações.
—E quanto à Lívia? Às vezes sinto que está diferente. E se ela sair
com outro cara?
—Veja bem, Humberto, a Lívia está do seu lado o tempo todo.
Apesar de vocês não se envolverem, não terem qualquer
compromisso, ela está com você. Contudo é uma pessoa livre! Ela
tem direito de seguir com a vida, ter amizade, a companhia que
quiser e até um envolvimento com outro.

— Eu não vou agüentar, Sérgio!
— Ela está livre! Mesmo demonstrando que gosta muito de você,
não está envolvida ou compromissada, apenas o está ajudando, e
ajudando muito, diga-se de passagem! Você é quem vai ter de
decidir, meu amigo! Não sabemos por quanto tempo ela vai
suportar ficar assim ao seu lado. Se você gosta dela mesmo...
Humberto estremeceu, um frio e uma sensação angustiante
correram-lhe por todo o corpo. Observando Sérgio seriamente, com
seus expressivos olhos verdes, nunca desviando de seu rosto,
comentou:
— Não sei o que fazer. Estou em conflito. Eu a quero, mas não
posso...
— Não quero interferir no que o Fabiano te propôs, mas... Faça o
seguinte: organize o que precisa fazer. Coloque uma ordem e
resolva uma coisa de cada vez. Primeiro, é lógico, organize a sua
vida espiritual, religiosa. Isso vai estruturá-lo muito. Volte a
freqüentar o centro assiduamente. Envolva-se, novamente, com suas
tarefas dentro da doutrina espírita. Faça o culto do Evangelho no
Lar. Leia o evangelho toda noite. Ore diariamente. Faça os
exercícios de relaxamento, sentindo-se envolvido por uma luz azul,
mentalizando paz, calma, tranqüilidade, saúde e tudo o que for
bom. Com isso você vai se ligar ao Pai. Ele vai te ajudar. Peça
sabedoria, harmonia, organização das idéias e acredite que isso está
acontecendo. Nunca diga: Deus, estou confuso e quero organizar as
minhas idéias. Não, nunca! Diga: os meus pensamentos são
organizados. Tenho paz, harmonia, amor, saúde, etc... Entendeu?
Nunca pense ou imagine algo negativo para pedir algo positivo.
—E quando eu começar a pensar que está acontecendo algo
comigo? Que estou doente ou que vou morrer?
—Peça: Pai, dê-me forças! Eu sei que tenho saúde! Mas, se for
preciso ficar doente ou morrer, eu quero fazer isso com dignidade,
com Suas bênçãos, repleto de paz e amor. Em seguida, mentalize
saúde, alegria. Sinta-se alegre e a alegria virá.

Humberto sentiu-se desarmado de suposições negativas e queixas.
Sabia que tinha muito a fazer e, se quisesse melhorar, tudo
dependeria somente dele.
Apesar de sua elevação espiritual, do conhecimento adquirido, os
fluidos inferiores com que o envolveram o deixavam sem
lembranças e forças de como se socorrer. Mas os amigos que Deus
lhe confiou, ajudavam-no muito. Porém tudo deveria proceder dele.

20
O REENCONTRO COM IRENE


O tempo foi passando.
Munido de força de vontade, pois desejava se recuperar, Humberto
se superava vencendo tudo o que o abalava para realizar suas
propostas a fim de melhorar.
A semana iniciou com novidade.
Lívia retomaria as aulas e não poderia voltar para casa junto com
ele.
Isso até o ajudou a se organizar melhor.
Ao sair do serviço, agendou para cada dia uma atividade. Um dia
iria ao centro espírita para um tratamento de assistência espiritual.
No outro, a psicoterapia. Depois, novamente, ao centro espírita para
receber passes e acompanhar um curso que, apesar de já tê-lo
realizado, sentiu-se atraído em refazê-lo, não só para se reciclar, mas
também para se ligar e se reintegrar mais à doutrina espírita. Nos
demais dias, iria para a academia de ginástica, para natação °u para
casa.


Decidiu que seria persistente. Retornou a fazer o culto do
Evangelho no Lar e a orar, fervorosamente, como antes era de
costume.

Com o passar dos dias, no serviço, percebia-se mais disposto.
Ninguém diria que ainda sentia-se um pouco estremecido
psicologicamente.
As ocasiões em que se deprimia, a ponto de chorar, eram cada vez
mais raras. Porém elas ocorriam e, quando isso acontecia, ele
acreditava, no momento, que toda aquela sensação angustiosa não
iria mais passar e nunca mais seria o mesmo. No entanto, era
envolvido por amigos espirituais e, com o tempo, percebeu que o
mal-estar passava e sentia-se mais seguro.
Tudo ia bem até que, certo dia, viu Lívia sorrindo animadamente na
companhia de Ademir, enquanto tomavam café na lanchonete da
empresa.
Influenciado por espíritos inferiores, Humberto começou a dar
atenção aos pensamentos que o invadiam e passou a entender que
havia uma troca de olhares bastante comprometedora entre os dois.
Fazia tempo que não ouvia aquele riso gostoso e cristalino de Lívia,
que gesticulava graciosamente ao contar alguma coisa.
Por que ela não agia assim quando estava com ele?
O coração de Humberto acelerou as batidas à medida que ele
embebia os seus pensamentos com venenosas idéias influenciadas
por espíritos inferiores.
O ciúme parecia dominá-lo de forma doentia.
Aproximando-se deles, simulou um sorriso com o canto da boca ao
perguntar:

— Tudo bem?
— Olá, Humberto! Tudo bem? — perguntou Ademir, sorridente.
— Estão animados, hoje! — comentou Humberto com algo estranho
no semblante.

Lívia percebeu alguma coisa diferente em seu jeito e não ousou
responder nada, ficando mais recatada. Mas Ademir, contou:

— Estávamos falando das perguntas muito cretinas que ouvimos na
sala de aula! — riu. — É cada uma!
Olhando para ela, Humberto contemplou-a por alguns segundos.
Fixou-se em seus olhos castanhos e expressivos. Sorriu de modo
enigmático. Virou-se para Ademir, estapeou-lhe as costas com
suavidade e pediu:
— Continuem. Não quero atrapalhar.
Ao vê-lo a certa distância, Ademir perguntou:
— O que deu nele?! Está tão esquisito!
Lívia não disse nada, mas ficou muito preocupada. Algo a
perturbou.
***

Mais tarde, na sala de Humberto, Lívia o procurou perguntando:
—Tudo bem com você?
—Tudo — respondeu secamente.


— É que você me olhou de um modo estranho quando eu estava
conversando com o Ademir.
— Estranho?! — perguntou com expectativa.
— É... Você chegou e olhou estranho. Não disse nada com nada e foi
embora.
Humberto levantou. Sentia os pensamentos confusos. Respirou
fundo, foi a direção da janela e olhou para fora imaginando que
aquela seria uma altura ideal para se jogar com Lívia. Estavam no
décimo andar. Seria uma queda considerável.
Ela se aproximou, tocou-lhe o ombro com carinho e perguntou com
brandura:

— Tudo bem?

Os espíritos inferiores que o acompanhavam, tinham conhecimento
do histórico da outra encarnação de ambos e usavam idéias que
mexiam com os sentimentos dele, dizendo que Lívia, se não o traía
de fato, traía-o em pensamento. Provocando como que uma
confusão dos fatos, Humberto se lembrava de Rubens e Irene,
imaginando Lívia e Ademir, ou então lhe diziam que ela só estava
com ele por ser parecido com o seu irmão.

— Humberto! Tudo bem?! — a moça insistiu.
Ele se virou. Encarou-a firme e a segurou com leveza pelos braços,
quase os acariciando, sem dizer nada, sem qualquer expressão.
Pensava em como abrir aquelas janelas, uma verdadeira parede de
vidro, hermeticamente fechada por causa do ar condicionado.
Conseguiria abri-las, jogá-la e se atirar?
Lívia sorriu. Trazia os olhos brilhantes, cheios de vida e esperança
sem saber o que estava acontecendo.
Nesse instante, Júlia abriu a porta abruptamente e, reconhecendo
sua falha, falou ao vê-los:
— Desculpe-me. Volto depois. Saindo imediatamente, ela fechou a
porta.
Foi o suficiente para Humberto retornar à realidade.


— Meu Deus! — murmurou ele.
Afastando-se de Lívia, esfregou o rosto e alinhou os cabelos com as
mãos, sentando-se novamente.
— Você está bem? — tornou ela com tom generoso e doce na voz.
— Estou. São só aquelas ...........recaídas... Já está passando
—sorriu, disfarçando os pensamentos.
— Hoje eu não vou para a faculdade. Volto com você. Ainda
sob o efeito de forte influência inferior, respondeu
sem pensar:
— Não acha melhor pegar uma carona com o Ademir?
—O que está dizendo?! — ela reagiu. — Você me ofende falando
assim!

—Desculpe-me — considerou de imediato. Levantándose, foi até ela
e tentou acariciar seu ombro, mas a moça se esquivou. Afastou-se
indignada com o que ouviu. — Por favor, Lívia, me desculpe —
pediu verdadeiramente arrependido. Olhando-a com ternura, falou
de modo meigo e constrangido:
—Eu fiquei com ciúme quando vi vocês dois conversando e rindo.
Por favor, me perdoa.


— Ciúme?! Ciúme do Ademir?! Ora, Humberto! Pelo amor de Deus!
— sorriu contrariada.
— É verdade. Fiquei com ciúme sim. Fiquei com raiva
—confessou envergonhado. Oferecendo meio sorriso, aproximou-
se, afagou-lhe o rosto com carinho e, olhando-a de um modo como
se invadisse sua alma, explicou: — Você sabe o que sinto por você
e... Não gosto de te ver ao lado dele. Sinto ciúme. Gosto muito de
você, Lívia.
—Eu também — falou baixinho e sorriu.
—Por favor, desculpe — disse bem próximo, tocando-lhe o rosto
com as costas da mão e com a intenção de beijá-la.
—Claro — respondeu. Sentiu-se estremecer. Invadida por uma
sensação estranha, não sabia como agir e decidiu: — Agora tenho
que ir. Podemos conversar mais tarde, não é?
—Lógico — concordou sorrindo e se afastando para deixá-la passar.
Ela saiu sem dizer nada e Humberto percebeu-se atordoado e
desconcertado.
Voltando para a cadeira frente à sua mesa permaneceu pensativo.
Ele amava Lívia. Achava-se atraído por ela. Por que não envolvê-la
em seus braços como sempre quis? Até quando iria se deixar
perturbar por aqueles pensamentos sem sentido, sem razão? Isso o
impedia de ser feliz.
Precisava fazer algo a respeito. Talvez fosse a sua dúvida que o
tornava inseguro e confuso daquele jeito.
De repente começou a se decidir. Iria ficar com Lívia. Tinha certeza
de que a amava muito. Venceria os seus medos, a sua insegurança e


ficaria com ela. Resolveria tudo em sua vida, a começar por Irene. Já
havia adiado muito sua situação com ela. Iria enfrentá-la e talvez se
sentisse mais livre para se resolver com Lívia.
Naquele momento o telefone tocou. Era sua secretária, Júlia,
avisando que Irene estava aguardando na linha para falar com ele.
Humberto se surpreendeu. Não esperava por aquilo. Porém,
decidido a não fugir da situação, atendeu.


—Pronto!
—Humberto?
—Eu.
—É a Irene. — Ele ficou em silêncio, e ela continuou: — Sei que
ainda deve estar abalado com tudo, mas precisamos conversar.
—O que você quer? — estremeceu ao perguntar, mas ficou firme.
—Já se passou muito tempo... Daqui a pouco vou para o hospital e...
Precisamos conversar. — Ele não dizia nada e Irene insistiu com voz
melancólica: — Humberto?! Você está me ouvindo?
Sua mente abalada o deixava confuso. Mesmo assim, fez-se forte.
Sem que ela percebesse, respirou fundo e perguntou:
—Onde quer me encontrar?
—Pode ser na sua casa e...
—Não! — firme, decidiu de imediato antes de Irene terminar.
—Gostaria que não fosse em público. O assunto é delicado. Então...
Poderia ser no nosso apartamento? Nunca mais fomos lá e... Tem
algumas coisas minhas que eu quero pegar.
—Nosso apartamento, não! — reagiu rápido. — Aquele
apartamento é meu!
—Desculpe-me. Foi força de expressão — disse com voz mansa.
Um torpor o dominou. Sentia o coração batendo forte e
descompassado, parecendo sair pela boca. Mesmo assim, enfrentou
a situação.


— Pode ser lá sim. Quando? — perguntou secamente, sem alterar o
tom.

—Hoje? Pode ser hoje?
—Certo. Estarei lá. Até mais.
—Humberto?! — chamou-o a tempo.
—Fala.


— Ligue para a portaria e peça para me deixarem subir. Você deu
ordens para eu não entrar mais e estão seguindo à risca.
— Farei isso. Tchau.
Antes de Irene se despedir, ele já havia desligado o telefone.
Debruçando em sua mesa, Humberto perguntou em voz
alta:
— Deus! O que eu fiz para merecer isso?! — Sem obter respostas,
pediu: — Pai dê-me forças!
***

Enquanto Humberto falava com Irene ao telefone, Lívia já estava em
sua mesa e Ademir se aproximou com seu jeito sempre gentil, muito
educado.
—Já terminou aqueles lançamentos? — perguntou ele.
—Acabei de te passar!


— Obrigado. — Alguns segundos depois, puxou uma cadeira para
próximo da mesa da moça. Sentou-se e falando baixo, para garantir
a privacidade, pois os funcionários ao lado poderiam ouvir, ele
disse: — Está passando uma peça ótima no teatro e eu já adquiri
dois ingressos. Quer ir comigo?
Lívia suspirou fundo. Refletiu o quanto os seus sentimentos por
Humberto eram verdadeiros. Acreditou que deveria por um basta
em Ademir, que desejava algo além de amizade. O fato de tratá-lo
bem, talvez, deixasse-o com alguma esperança. Além do mais, o
próprio Humberto revelou sentir-se enciumado por causa dele.
Pensou em seu afeto por Humberto. Ela o amava e era com ele que
gostaria de ficar, por isso deveria ser fiel, não só a ele, mas fiel à
própria consciência.


Educada, respondeu com voz pausada e tom ameno:
—Ademir, obrigada. Mas não vou.
—Por quê? Tem algum compromisso?
—Não.
—Lívia, você está muito fechada! Não sai, não tem amigos...
—Isso não está me fazendo falta. Agradeço o seu convite, mas eu
não quero sair com você.
—Não tenho nada com isso, mas vai só servir de companhia para o
Humberto? Pelo que sei, vocês não têm nada, nem teria cabimento,
pois...
—Olha aqui, Ademir! Isso diz respeito somente a mim! E a minha
vida! Eu gostaria muito que você se limitasse a conversar comigo
sobre assuntos, estritamente, de serviço! Pode ser? — falou firme e
alto.


— Você está de caso com o Humberto?!
— Quer ir até a sala dele e perguntar?! Podemos fazer isso agora! —
disse firme, ficando em pé ao encará-lo.
O rapaz levantou-se e olhou-a de cima a baixo, mas não disse mais
nada. Virou e se foi.
Observando à sua volta, Lívia viu os outros colegas surpresos,
olhando-a, pois havia falado alto o suficiente para que eles
escutassem. Envergonhada pela cena, sentou-se novamente, puxou
a cadeira para mais perto da mesa e voltou a trabalhar.


***

O expediente havia terminado.
Júlia recolhia alguns documentos assinados por Humberto quando
um gerente saía da sala dele, e Lívia chegou com jeito desconfiado.
Havia decidido não contar a Humberto sobre Ademir. Não queria
deixá-lo com mais uma preocupação. Esperaria e, se o rapaz não
falasse mais nada, aquele assunto seria esquecido.



— Já vai embora? — perguntou Lívia após entrar, pois a porta
estava aberta.
— Vou — respondeu Humberto bem sério.
Júlia foi saindo sem dizer nada. Dando as costas ao chefe e, de
frente para Lívia, ela gesticulou com a boca, envergan-do-a para
baixo e chamando a atenção da outra para a sisudez de Humberto.
— Tudo bem? — indagou, a se ver a sós com ele.
— Está tudo bem, Lívia. Dentro dos meus pobres limites humanos,
está tudo bem. Não como eu desejaria, mas... -falou com expressão
enfadada, tentando não ser mal-educado. — Olha... Eu gostaria de
pedir uma coisa... Não me leve a mal, mas... Por favor, não pergunte
mais, com tanta freqüência, se eu estou bem. Às vezes estou, porém
um segundo depois, começo sentir alguma coisa, um tremor, uma
apreensão... Ou ao contrário. Essa pergunta me incomoda um
pouco.
— Tudo bem. Desculpe-me — falou constrangida. Depois
perguntou: — Posso ir embora com você?
Ele a encarou por algum tempo, ofereceu um largo sorriso e
respondeu gentil:
— Pode. Claro que pode. — Mas fechando o sorriso, avisou: — Só
que eu não vou direto para casa. Tudo bem?
—Tudo — sorriu. — Aonde vai?
—Você vai ver.
***

Durante o trajeto, Lívia percebeu que Humberto se dirigia para o
seu apartamento, mas não disse nada.
Certamente, aquele lugar não lhe trazia boas recordações e, se
precisava ir até lá, não queria estar sozinho.
Em silêncio, ele estacionou o carro na garagem do luxuoso edifício e
subiram de elevador até o décimo quinto andar.



Experimentando uma amargura nas lembranças que violentavam
seus pensamentos, revivendo a experiência torturante, ele pegou as
chaves, abriu a porta e, acendendo as luzes, pediu simplesmente:

— Entra. — Depois de alguns segundos, solicitou: — Desligue o
celular. Vou desligar o meu. Não quero que alguém nos incomode.
Lívia obedeceu, mas começou a se sentir insegura. Por que aquilo?
O que Humberto faria ali? Por que não quereria ser incomodado?
Não tendo respostas para essas perguntas, começou a observar.
O lugar estava intacto. Exatamente como o viram da última vez.
Ela, bem nervosa, com o coração aos saltos, conteve as emoções e
sem dizer nada foi para a grande sala de estar, atrás dele.
Sem dizer uma só palavra, Humberto agia estranha mente. Jogou as
chaves em cima da mesa provocando grande barulho. Passou as
vistas em volta e foi para os quartos examinando, um por um, até
chegar à suíte principal.
Lívia não o seguiu. Sentia um medo inexplicável. Sentando-se no
sofá, ficou aguardando-o.
Na suíte, ele olhou a cama ainda desarrumada, com travesseiros
jogados e lençóis revirados, suas lembranças passaram a ser vivas,
como se estivesse vendo Irene e Rubens novamente.
Humberto sentiu que perdeu as forças, uma sensação de desmaio o
dominava enquanto tremia e suava frio. Seu peito apertava forte
como nunca.
Segurando-se na parede, levou a mão no coração e deu um gemido
lento, curvando-se.
Atenta, Lívia ouviu e correu em seu socorro.


— Humberto! O que foi?!
Sem dizer nada, ele retornou para a sala ao seu lado e se sentou à
mesa da sala de jantar.
O rosto pálido e gelado exibia seu estado abalado, mas ele não dizia
nada.
Lívia não sabia o que fazer e propôs:

— Vamos embora, Humberto. Você não está bem e eu estou
preocupada.
Nesse instante a campainha tocou e o rapaz avisou parecendo
calmo:
—Abra a porta para mim, por favor. É a Irene.
—A Irene?!! — assombrou-se ela. — Você ficou louco?!! A Irene,
aqui?!!
—Abra a porta, Lívia, por favor — pediu novamente, num tom
fraco e estranho.
Mesmo sentindo as pernas enfraquecerem, ela foi até a porta de
entrada social e a abriu para a surpresa da outra, que se assustou:
—Lívia?! Você aqui?!
—Boa noite, Irene — cumprimentou cinicamente, disfarçando o seu
nervosismo.
— É... Boa noite! — retribuiu embaraçada ao entrar. Enquanto Lívia
fechava a porta, Irene caminhou pelo
pequeno hall e corredor chegando até a sala de jantar onde
Humberto a esperava.
O rapaz a olhava de um modo colérico. Dardos de rancor faiscavam
através de seus lindos olhos verdes.
Procurando manter sua classe, Irene o cumprimentou:
— Boa noite, Humberto.
Ele não respondeu e somente a olhou de cima a baixo.
Elegante, Irene estava com a barriga bem avolumada Para o seu
corpo magro e alto. Muito bela e imponente, não Perdeu a pose nem
a arrogância.
Sem pedir licença, puxou uma cadeira e se sentou frente a ele
colocando a bolsa que segurava no extremo da grande mesa.
Lívia chegou. Olhou-os embaraçada, não sabendo o que fazer.
Enquanto pensava, Irene pediu sem rodeios:
—Eu gostaria de conversar com você a sós, Humberto.
—Vou até o carro pegar...



—Você fica, Lívia! — exigiu ele, sem deixá-la terminar. — Não
tenho nada a esconder de você. Não tenho muito que conversar com
ela. Seremos breves e o assunto, talvez, a interesse também.
Uma nuvem de dor e revolta pesava no rosto de Humberto,
endurecendo-o à medida que permanecia sentado, imóvel.
Apesar de parecer firme, Lívia ficou constrangida, mas num
impulso resolveu:

— Estarei ali na sacada. Indo à direção às largas portas de vidro,
que davam para
a sacada, abriu-as sentindo o frio cortante e agressivo da noite bater
em seu rosto, esvoaçando seus cabelos. Fechando a por atrás de si,
percebeu que o vento minimizou. Ela poderia vê los e ser vista, mas
nada ouvia.
Sentindo-se mais à vontade, Irene retorceu as mãos ao
falar:
—Humberto, eu também sofri muito e ainda sofro com tudo o que
aconteceu e...
—Poupe-me disso, Irene! — disse firme. — Vamos direto ao que
interessa. O que você quer de mim?!
— Quero que seja mais humano. Ouça-me, por favor!
— Depois do que eu presenciei aqui, neste apartamento, você exige
que eu seja mais humano?! Ora! Por favor! Sou eu quem precisa
saber só de uma coisa!
— O quê?
—Você sabe dizer ou não se esse filho é meu ou do meu irmão?
—Humberto! O Rubens me enganou, me envolveu, me seduziu!
Nós viemos aqui para verificar a instalação do ar condicionado que
estava com defeito e o técnico tinha...
—Pare com isso!!! — exigiu num grito, levantando-se enfurecido.
Irene foi para perto dele e, em pranto, tornou a dizer:
— Naquela noite, ele me envolveu, me seduziu... Eu amo você! —
disse, abraçando-o pelas costas.



Abruptamente, Humberto esquivou-se do abraço. Afastou-se e
voltou para junto da mesa espalmando as mãos sobre ela para se
sustentar, pois se sentia muito mal.
—Acredite em mim!!! — pedia em pranto. — O seu irmão se
aproveitou da minha sensibilidade. Por estarmos sozinhos, ele...
—Cale a boca!!! Se ele foi um cafajeste, você foi pior!!! Foi uma
safada!!! Baixa!!! Eu bem que notei você agindo diferente! Tinha
reparado algo estranho entre os dois!... Havia muito contato entre
vocês. Depois, aquele dia quando fui te encontrar na loja sem que
me esperasse e vi os dois chegando de braços dados... rindo... Senti
algo muito estranho no ar! Eu deveria ter terminado tudo,
definitivamente, mas não!!! Fui um idiota e me deixei enganar!!! E
vocês?!!! Ah!!! Vocês dois devem ter se divertido às minhas custas!!!
Agora não venha me dizer que a culpa foi dele!!!
Humberto sentia-se fora de si. Seus nervos estavam extremamente
abalados. Trêmulo, experimentava os lábios dormentes e as mãos
formigando.

Da sacada Lívia começou a ouvir os seus gritos e olho para trás
algumas vezes, mas tornava a fitar as milhares d luzes da cidade
para se distrair e não ir até a sala se envolver. Acreditou que os dois
tinham muito para conversar.
Ela também estava muito nervosa. Sofria com o que acontecia.
Acreditava que Humberto não merecia viver tudo aquilo. Uma
aflição passou a tomar conta de seu ser, mas não poderia se
envolver.
Sem que ela esperasse, repentinamente a porta de vidro da sacada
foi aberta com violência. Quando Lívia se virou viu Humberto
agarrando Irene pelo pescoço com uma da mãos e com a outra a
empurrava pelo braço em direção ao guarda-corpo.

— Humberto!!! Pelo amor de Deus!!! — Lívia gritou em desespero,
correndo em sua direção e puxando-o pelo braço, praticamente,
pendurou-se nele.

A luta durou alguns minutos. Irene tentava se livrar e na primeira
oportunidade, gritou:

— Você vai matar o seu filho!!!
Foi quando ele parou, mas ainda segurava seu pescoço, olhando-a
de um modo muito estranho.
Lívia tirou as mãos de Humberto que quase esganavam Irene, e a
puxou para o lado.
Levando-a para a sala, viu-a em lágrimas e esperou que se
recompusesse um pouco.
— Você está bem? — perguntou Lívia, preocupada. Ainda tossindo,
e com a mão na garganta, Irene respondeu:
_ Ele me paga! Maldito!


— Irene, se você está bem, por favor, vá embora. Será melhor para
todos nós. O Humberto não me parece bem.
Assustada e em choque, Irene não disse nada. Pegou sua bolsa e se
foi.
Lívia voltou para a sacada onde Humberto trazia as mãos
segurando o corrimão do guarda-corpo e o olhar perdido ao longe.
Pegando em seu braço, ela pediu com brandura:
— Venha. Vamos entrar.
Lentamente, ele a olhou firme e sério. Sem qualquer expressão. Seu
semblante não era o mesmo. Lívia não o reconhecia, e um medo
apavorante percorreu-lhe o corpo em forma de arrepio e de mau
presságio.
Enérgica, ela exigiu:
— Humberto, entre agora!
—Eu deveria ter matado aquela desgraçada — falou, impostando
na voz grave um tom cruel. — Deveria tê-la jogado daqui de cima.
—Pare com isso!!! — Lívia gritou, chamando-o à realidade. — Quer
me deixar louca?!! Pense em Deus!!! Pense em você!!! No que vai
querer para o seu futuro!!!
Subitamente, ele pareceu acordar.

Apreensivo, experimentou uma sensação estranha e indefinida que
lhe roubou as forças.
Olhando para Lívia, viu-a em lágrimas. Ela havia se afastado.
Estava longe dele e perto da porta, aparentando ter medo de algo
que ele pudesse fazer.


Uma aflição, com misto de angústia, dominou-o e a moça,
percebendo o seu estado, agora frágil, aproximou-se e puxou-o pelo
braço para que entrasse.
Na sala, Humberto não chegou até o sofá. Deixou-se cair de joelhos
sobre o tapete grosso e macio, sentando-se em seguida.
Ainda apreensiva, Lívia ficou ao seu lado. Abraçou-o e chorou
também, mas se refez logo. Levantando-se, ela foi até a cozinha
onde começou a orar pedindo proteção, luz e paz. Nesse momento,
amigos espirituais os envolveram com bênçãos sublimes,
neutralizando a ação de espíritos inferiores e afastando-os.
Uma grande dor tomou conta dos sentimentos do rapaz, que
demorou muito para se recompor.
Sentado no chão, com o corpo largado e recostado no sofá, olhava
para o teto, quando Lívia se aproximou trazendo um copo com
água e oferecendo-o, com jeitinho:


— Toma. Vai te fazer bem.
Ele pegou o copo de suas mãos e bebeu lentamente, gole a gole, ao
mesmo tempo que desabafava com a voz amena:
— Eu ia fazer uma loucura.
—Mas não fez — falou com calma, sentindo-se anestesiada.
—Ela está grávida e eu não respeitei o seu estado — comentou
arrependido.
—Eu acho que ela está bem. Foi só um susto. Amanhã vou procurá-
la para saber como está.
Respirando fundo, ele se sentou direito, curvou-se e colocou o copo
sobre a mesinha central. Encarando a moça ao seu lado, pegou-lhe a
mão, colocou entre as suas e pediu sentido:

—Desculpe-me, por favor. Você ficou nervosa.
—Já passou — falou com voz meiga ao encará-lo. — Agora estou
bem — sorriu com bondade.
Ela, mais séria, fugiu-lhe do olhar, enquanto ele fitou-a por longos
minutos.
Aproximando-se, afagou-lhe o rosto com ternura, envolvendo-a
com um abraço.
Não demorou e a ajeitou em seus braços, segurando-a como quem
embala uma criança ao oferecer proteção e carinho.
Longos minutos se passaram e o silêncio absoluto deixou cada um
entregue aos seus próprios pensamentos.
Humberto a contemplava quando foi invadido por confortante
sensação de paz. De repente, deu-se conta de que aquele era o
momento tão esperado por ele.
Estavam sozinhos. Lívia ali, aninhada em seus braços, serena, com
olhos fechados e a face recostada em seu peito. Podia sentir sua
respiração fraca e compassada.
Carinhoso tocou suavemente com a ponta dos dedos em seu rosto,
contornando-o com ternura.
Como Lívia era bonita! Seus olhos castanhos fortes e bem
expressivos. Sobrancelhas bem delineadas e marcantes na pele alva
e macia. Seus lábios carnudos de lindos contornos pareciam com os
de uma pintura, projetados para serem atraentemente belos.
Aquele momento era exatamente tudo o que sempre desejou e
sonhou em seus pensamentos mais secretos. Não havia ninguém
com quem precisassem se preocupar. Afinal, estavam livres de
qualquer compromisso. Não tinham a quem dar satisfação.


Ele sempre a quis daquela forma, somente para si.
Aproximando seu rosto do dela, fechou os olhos roçando sua face
delicada com o toque de seus lábios, experimentando, com leves
beijos, a suavidade de sua pele.
Enquanto apreciava o seu perfume brando e gostoso, pensava o
quanto aquele instante era sublime, gratificante, especial.



Lívia se deixava ficar em seus braços. Abraçando-o pela cintura,
afagava-lhe as costas vez ou outra. Trazia os pensamentos confusos
e longe, carregados de dúvidas sobre ela, Humberto e aquele
momento.
Não sabia dizer se o que acontecia estava certo ou não.
Sentindo os seus carinhos, ela se ajeitou tentando se afastar, mas
Humberto, cuidadosamente, agasalhou-a nos braços, ajeitando-a
para si ao seu lado.
Seus corações batiam fortes e descompassados.
Tirando-lhe os cabelos do rosto, com gestos e carícias sutis, ele lhe
fazia constantes e delicados afagos invadindo sua alma com o olhar.
Com um abraço apertado, ela pôde ouvir sua respiração suave
quando ele sussurrou:


— Lívia... Eu te amo...
Dizendo isso, beijou-a apaixonadamente, como sempre quis.
***

As nuvens brancas, quase transparentes, desmanchavam-se no céu
enquanto as sombras da noite começavam a cair, dando lugar às
lindas cores cintilantes a leste onde o amanhecer se iniciava
lentamente.
Lívia experimentou um frio cortante na alma quando abriu os olhos
e se viu com um lado do rosto apoiado sobre o braço de Humberto,
que usava como se fosse travesseiro, ao mesmo tempo que o
abraçava pela cintura.
Ele dormia.
Estavam cobertos por um edredom que ele havia pegado, junto com
travesseiros, sem que ela visse, e os agasalhou.
Afagando-o enquanto o balançava vagarosamente, chamou-o
sussurrando, mas parecendo aflita:

— Humberto, acorda! Está amanhecendo!
Ele despertou sem lembrar de imediato onde estava.

Lívia, rapidamente se levantou do chão da sala e fugindo-lhe do
olhar começou a chorar sem que o rapaz percebesse.
Olhando à sua volta, ao se lembrar do que havia acontecido,
Humberto sorriu, experimentando um sentimento emocionante,
satisfeito. Com voz rouca, comentou em tom alegre:


— É!... Perdemos a hora! — Observando-a de costas, arrumando-se
com gestos rápidos, ele se levantou, foi para junto de Lívia e
perguntou carinhoso, abraçando-a pelas costas enquanto a beijava
no rosto: — Tudo bem? — Por não ouvir respostas, com delicadeza
virou-a para si e, curvándose levemente para vê-la melhor, quis
saber com generosidade imposta na voz: — O que foi, Lívia? Você
está bem?
Sem encará-lo, ela respondeu com voz macia, tentando esconder as
lágrimas:
— Não fui para casa... Meu pai vai me matar. Está amanhecendo...
Ele já deve ter levantado e viu que não cheguei...
— Calma. Não fique assim — disse, abraçando-a com ternura, ao lhe
afagar as costas, recostando sua cabeça em seu peito. — Se for
preciso, eu falo com ele.
— Vai falar o que, Humberto?! — perguntou com voz fraca e
sentida. — Vai dizer que dormimos juntos, aqui, no seu
apartamento?!
— Calma — pediu preocupado. — Vamos encontrar uma saída. Eu
não vou te deixar sozinha nessa situação.
Lívia se afastou do abraço.
Estava nervosa. Depois de ir ao banheiro e lavar o rosto, retornou
para a sala à procura de sua bolsa e pediu:
— Vamos, por favor. Encarando-a sério, perguntou:
—Vamos para onde? Quer ir para a sua casa ou para a minha?
—Eu não sei, Humberto — murmurou em lágrimas, tremendo de
medo e preocupação, pois conhecia bem seu pai.
Ele a abraçou, procurando confortá-la. Sentia-se culpado. Em
seguida, decidiu:

— Vamos para a minha casa. Será melhor e teremos um tempo para
pensarmos.
***

Ao chegarem, dona Aurora encontrava-se na cozinha e aguardava
aflita.
Após guardar o carro na garagem, ele entrou com a mão no ombro
de Lívia quando sua mãe perguntou em desespero:


— Filho! Onde vocês estavam?! Liguei pra vocês dois, mas os
celulares estavam desligados!!! O que aconteceu?!!
— Mãe, espera! — pediu firme. — Podemos conversar mais tarde e
então vou te explicar tudo! Agora, nós precisamos tomar um banho,
tomar café e ir trabalhar. Pode ser assim?
Lívia, sentindo-se extremamente envergonhada, não ousava erguer
o olhar nem dizer qualquer coisa. Preocupada, dona Aurora contou:
— A dona Diva ligou várias vezes, ontem à noite, aqui para casa e
hoje cedo. Quer dizer, de madrugada foi o senhor Juvenal quem
telefonou. Ele estava bastante nervoso.
Humberto sentiu-se arrependido por Lívia. Sabia que seu pai não
era nada compreensivo e iria reagir.
Vendo-a tentar esconder as lágrimas que corriam em seu rosto, ele
pediu afagando-lhe os cabelos:
— Lívia, você conhece a casa. Vá lá dentro, tome um banho e, se for
preciso, procure uma roupa no quarto da Neide.
Ela não disse nada e obedeceu.
Vendo-se a sós com o filho, a mãe perguntou firme:
— Humberto! O que aconteceu?! O que você fez com essa moça?!
Sentando-se à mesa, ele serviu-se de café e contou:
— Ontem à noite, a Irene quis que eu a encontrasse lá no
apartamento. — A mãe pareceu perder o fôlego. Puxando uma
cadeira, sentou-se à sua frente e aguardou que o filho continuasse, e

ele o fez: — Chamei a Lívia para ir até lá comigo e foi 0 que me
salvou.

— Como assim?!
—Eu não agüentei ouvir a Irene falar certas coisas tentar se
defender e... Entrei em desespero. Tive uma crise d ódio, raiva e
tentei matá-la.
—Humberto!!!
—É verdade, mãe! Eu tentei jogar a Irene do décimo quinto andar!!!
Foi a Lívia que me impediu. Depois que a Irene foi embora, eu
entrei em pânico. Tive uma crise muito forte e... A Lívia ficou muito
nervosa também. Chorou por causa da briga e... Acabamos por lá e
pegamos no sono.
—E por que ela está assim?!
—Preocupada com o pai, lógico! Ele é muito ignorante! A senhora
sabe!
—O que vocês vão dizer?
—Ainda não sei. Eu diria a verdade. Esperaria o senhor Juvenal
mandá-la embora de casa e a traria para morar aqui.
—Filho, isso não está certo! Pense bem!
—Então o que devo fazer, mãe?! — indagou nervoso.
—Leve-me para casa, agora! — pediu Lívia que retornou à cozinha.
—Você não... — ele tentou perguntar, mas foi interrompido.
—Por favor, Humberto. Leve-me para casa — repetiu, trazendo na
voz uma grande amargura.
—Tem certeza?
—Sim. Tenho. Preciso resolver isso o quanto antes — decidiu
mesmo sob o efeito de grande medo.
—O seu pai não está lá agora. Deve ter ido para a feira — tornou
ele.
_ Se eu o conheço, ele está me esperando. Caso não esteja, falo com

minha mãe.
_ Deixe-me tomar um banho. Conforme for, de lá vou



trabalhar.

21
A INSEGURANÇA DE LÍVIA


O caminho para a casa de Lívia parecia mais longo.
Enquanto dirigia, Humberto, vez e outra, afagava-lhe os cabelos e o
rosto.
Ao estacionar seu carro frente à casa, ele desceu e contornou o
veículo ao passo que ela já estava na calçada, frente ao portão.


— Eu vou entrar sozinha, Humberto. Você pode ir.
— De jeito nenhum! — reagiu decidido. — Foi por minha causa que
não dormiu em casa. Estou nessa com você, Lívia! O que você pensa
que eu sou?!
Eles se olharam firme por alguns minutos e não disseram nada.
Ambos achavam-se nervosos e com o coração aos saltos. Ao entrar,
a moça chamou por sua mãe, mas foi a imagem robusta e grosseira
de seu pai que surgiu na sala, exigindo:
—Onde é que você estava até agora?!!! — berrou o homem.
—Ela estava comigo! — avisou Humberto, sem trégua, enfrentando-
o e sem dar chance de Lívia responder.

—E quem você pensa que é, para vir na minha casa dizer isso,
assim, na minha cara?!!! — gritou inconformado.
—Se o senhor quiser ouvir, nós podemos conversar como pessoas
civilizadas, ou então...
—Ou então, o quê?!!!
—Ou então eu vou embora e a levo junto! Não vou me desgastar
com gente ignorante!
—Humberto! Por favor! — pediu Lívia em desespero, colocando-se
a sua frente. — Vá embora, eu me entendo com ele!
Violento, o senhor Juvenal agarrou a filha pelo braço e a puxou,
batendo-lhe no rosto com força. Humberto interferiu, iniciando uma
briga.
Dona Diva chegou e logo se pôs no meio. Foi quando o rapaz
conseguiu puxar Lívia e levá-la para fora.


— Não, por favor... — ela implorava chorando, enquanto chegavam
ao portão.
Segurando-a pelos braços, olhando-a firme nos olhos, ele
perguntou:
— Quer ficar?! Quer que ele te mate?! Quer que eu continue
brigando para te defender?! Sim! Porque eu não vou te deixar
sozinha! — Vendo-a chorar, abraçou-a com carinho e piedade,
falando em tom generoso: — Eu não sei o que fazer. Desculpe... Por
favor, venha comigo. Fique comigo Lívia.
Ela o abraçou com força e aceitou ser levada para o carro.
Retornando para sua casa, ele contou à sua mãe o que havia
acontecido e recomendou:
— Por favor, mãe, toma conta da Lívia. Ela vai ficar aqui. Eu preciso
ir trabalhar. Tenho uma reunião importante hoje.
Se puder, venho cedo e conversamos. Se aquele homem vier aqui,
não o deixe entrar! Certo, mãe?!


— Vai tranqüilo, Humberto. Eu cuido dela. Lívia entrou em
desespero e chorou muito.

No quarto de Neide, ficou deitada o dia inteiro. Não quis comer
nem conversar.
O que piorava seu estado era o espírito Rubens, que se revoltava
com a situação, xingava-a e a ofendia, passando-lhe vibrações
inferiores e depressivas.
Abalada, Lívia chorava aos ataques de Rubens, que não lhe oferecia
trégua. O que ele fazia, provocava-lhe pensamentos perturbados e
confusos, e ela arrependia-se tudo.
Bem mais tarde, diante da demora do filho que não chegava do
serviço, dona Aurora se sentou na cama ao lado da jovem e
ofereceu-lhe uma caneca de chá, pedindo:

— Senta direito, meu bem. Toma um pouquinho desse chá. É de
erva-cidreira.
Ela obedeceu, ajeitou-se na cama e agradeceu:
— Obrigada e.............desculpe-me por tudo.
—Ora, o que é isso?! Somos nós que pedimos desculpa por ter te
colocado nessa situação.
—Eu estou assustada, dona Aurora... Estou com tanto medo... —
lágrimas, que não conseguiu deter, correram por sua face pálida.
A senhora puxou-a com carinho, recostando sua cabeça em seu
peito, afagou-a maternalmente, dizendo:
— Tudo isso vai passar, menina. Não fique assim.
— Estou me sentindo tão mal, tão insegura... Após breve pausa, a
senhora perguntou:
—Lívia, me diz uma coisa, filha: a Irene chegou a dizer se o nenê
que ela espera é do Humberto?
—Disse sim. — Afastando-se, ela sentou direito e contou: — O
Humberto perdeu o controle. Segurou-a pelo pescoço e quase a
enforcou ao mesmo tempo que queria jogá-la lá de cima. Foi
quando a Irene gritou que ele iria matar o filho dele. Nesse
momento, ele parou e eu consegui tirá-la da sacada.
—Meu Deus! Será que ela está bem?!
—Eu iria procurá-la, hoje, mas... Amanhã eu vou.



—Diz mais uma coisa, se você quiser, claro... — falou a senhora com
jeitinho, acariciando-a ao tirar-lhe os cabelos do rosto. — Você e o
Humberto estão namorando?
Lívia ergueu o olhar triste, novamente empoçado em lágrimas, e
respondeu com voz chorosa:

— Eu não sei...
Puxando-a outra vez para si, dona Aurora pediu com carinho:
— Tudo bem! Tudo bem! Não fique assim. Vocês dois vão se
entender. Tenho certeza.
Um barulho na sala denunciou a presença de Humberto, que as
procurava. Dona Aurora se levantou e foi ao seu encontro.
Breve conversa com sua mãe e ele entrou no quarto da irmã.
Perto de Lívia, afagou-lhe o rosto, beijou rapidamente seus lábios e
sentou-se ao seu lado, perguntando:
—Como você está?
—Péssima... — falou sentida ao olhá-lo de um modo indefinido,
temeroso.


Ele passou o braço sobre os seus ombros e a puxou para junto de si
ao dizer:


— Não fique assim. Tudo vai dar certo.
—Você demorou tanto — falou com voz fraca. — Fiquei com medo
que fosse até minha casa falar com meu pai.
—Não. Acho melhor ele se acalmar primeiro. Eu fui até a clínica.
Depois de tudo o que aconteceu, precisava conversar com o
Fabiano. O que eu senti ontem não pode mais acontecer. Se eu
tivesse feito aquilo... Já estaria arrependido. Não quero assustá-la
como fiz ontem e não quero que tenha medo de mim. Eu vi medo
nos seus olhos quando se afastou de mim lá na sacada e...
—Falou com ele? Contou que quis jogar a Irene do décimo quinto
andar?
— Contei tudo. Inclusive sobre você.
Ela se afastou um pouco, olhou-o por algum tempo e indagou:

— Sobre mim?! E aí?
—Cheguei à conclusão de que preciso assumir meus sentimentos.
Apesar dos altos e baixos, das crises, que eu chamo de recaída, eu
preciso continuar vivendo e vivendo bem. Para isso acontecer, eu
preciso de você ao meu lado.
—Mas... Quando olha para mim, lembra do seu irmão. Como vai
vencer isso?
—O Fabiano é espírita e me fez lembrar uma coisa muito
importante. Algo que vou pôr em prática. Não se preocupe. Deixa
comigo.
Curiosa, ela perguntou:
— É sobre a Irene? Já sabe o que vai fazer?
—Não. Vou fazer uma coisa com o Rubens. Deixa comigo. Mas, ao
que se refere à Irene, bem... Ela falou de uma forma que deixou
entendido que nunca teve nada com o Rubens antes e depois
afirmou que o filho era meu. Estou contrariado, lógico. Não era isso


o que eu queria. Em todo caso... Vou assumir a criança. Só a criança.
— Alguns segundos, acariciou-lhe o rosto, sorriu e comentou: —
Agora, estou preocupado é com você!
—Vou ficar bem.
—Amanhã cedo nós iremos até sua casa para pegar as suas roupas,
suas coisas...
—Estou com medo, Humberto. Nunca me senti assim. Estou
preocupada... Eu... — deteve as palavras encarando-o de um modo
estranho, apreensivo, como se quisesse falar algo que não
conseguia.
—Não quer ir à sua casa?
—Na verdade, eu não quero — disse ela em tom triste.
—Então faça o seguinte: amanhã não vá trabalhar. Saia e compre
algumas roupas... O que sirva até ir buscar as suas na sua casa.
—Quero ver a Irene, saber como ela está. — Humberto não disse
nada e Lívia lembrou: — Ela está grávida, deve ter se assustado.
Pode ter ido à polícia.

—Faça como quiser, mas eu não quero vê-la nem falar com ela por
um bom tempo. Eu preciso desse tempo. Vou pôr em ordem muitas
coisas na minha vida, mas não me sinto preparado para lidar com
ela ainda. Outra coisa: se você falar com ela, avise que vou vender
aquele apartamento. Semana que vem terá permissão para subir e
tirar o que quiser. Depois disso, o apartamento estará à venda.


—Ela não tem direito a nada sobre a venda?
—Não. — Sentindo-se esgotado, com o tremor de sempre lhe
abalando e uma dor forte no peito, pediu com jeito amável: — Por
favor, eu não queria mais falar sobre isso. Vou tomar um banho,
depois vamos comer alguma coisa, tá? — sorriu amável.
—Tudo bem — concordou, forçando um sorriso.
Ele a beijou nos lábios, fez-lhe um afago e sorriu com ternura ao sair
do quarto.


***

No dia imediato, Lívia foi ao shopping comprar algumas roupas e
decidiu ir até a loja de Irene para saber como estava.
Recebida por Cleide, sócia e amiga da outra, Lívia ficou sabendo:


— A Irene não chegou ainda. Ela quase não está vindo à loja.
—Você sabe se ela está bem?
—Foi você quem a separou do Humberto, ontem no meio de briga,
não foi?
—É... Eles discutiram — dissimulou.
—Ela me ligou, disse que ficou apavorada! — contou Cleide. — Mas
passa bem. A Irene não se abala por muito tempo. Isso até me
assusta.
—O Humberto está muito perturbado ainda. Depois do que ela
aprontou...
—Coitado... Eu sempre fui contra o que a Irene fazia com vocês
dois. Ela e o Rubens não tinham consciência.

—Então o caso dos dois era antigo mesmo? — perguntou Lívia,
propositadamente, para ter certeza.
—Começou assim que você e o Rubens iniciaram o namoro!
Esperta, Lívia ficou atenta e fez outra pergunta astuciosa:
—Por isso é que ela nem sabe de quem é o filho, não é?


— Preste atenção! A criança está para nascer por esses dias e... Faça
as contas! Quando ela engravidou, o Humberto estava viajando a
serviço!
—Ela está completando nove meses?
—Claro! Daqui a duas semanas! Eu sei que nem parece. Ela não
engordou nada! Cuidou-se muito! Olha, Lívia, eu estou falando isso
porque nunca achei certo o Humberto passar pelo que está
passando. Eu soube que ele entrou em depressão. Ficou mal... E eu
não me senti bem com essa história. O irmão dele foi um safado! Eu
detestava o Rubens! — Alguns segundos e perguntou: — Por sorte
você estava lá e não deixou o Humberto fazer nenhuma besteira. Ele
iria acabar com a vida dele. Mas... O que você estava fazendo lá com
ele? Vocês estão namorando?
—Aquele apartamento lhe traz uma revolta imensa. Ele não queria
ficar sozinho lá com ela e me pediu para acompanhá-lo.
—Ah, bom! Pensei que vocês dois estavam juntos, entende?
Lívia sorriu e não disse nada, pedindo:
— Diga que eu estive aqui e preciso conversar com ela. E sobre o
apartamento. O Humberto quer vendê-lo. Peça para ela me ligar.
— Pode deixar.
Após falar o que precisava, Lívia se despediu e se foi.
** *

Ao chegar a casa, encontrou Neide em seu quarto e, depois de
mostrar o que havia comprado, contou sobre a possibilidade de o
filho ser de Rubens.


— O que você acha Neide? Devo contar para o Humberto agora, ou
espero o nenê nascer?
— Esperar para quê?! Conte o quanto antes!
— Não sei, Neide. Não quero que se abale. Acho melhor esperar.
Ele até aceitou a idéia de ser o pai, parece que está conformado com
isso. Se eu disser alguma coisa, ele vai ficar ansioso, com grande
expectativa e pode entrar em crise.
— É verdade. Pensando bem...
— Não! — decidiu Lívia. — Não vou contar não. Vou esperar a
criança nascer.
** *

Irene deu à luz um menino bonito e saudável a quem deu o nome
de Flávio.
Ao saber da notícia, Lívia procurou tranqüilizar Humberto
contando o que sabia.


— E só fazer as contas. Se o nenê nasceu de nove meses, não é seu
filho. Nem precisa fazer exame para comprovar a paternidade.
Ele se sentiu confuso e revoltado. Novamente, experimentou outra
crise forte, com as mesmas sensações estranhas e estado depressivo
muito intenso.
Atordoado pelo inevitável mal-estar, deixou Lívia sentada na sala e
foi para seu quarto.
Não suportando o que o abatia, deitou-se em sua cama e ficou
quieto.
Sem saber como ajudá-lo, Lívia o deixou sozinho, pois também
estava com muitas preocupações.
O senhor Leopoldo entrou em casa e, mais uma vez, estava
embriagado.
Trôpego, chegou à sala falando mole.
—Oi, menina! Você aqui de novo! — riu. — Eu gosto de você, viu!



—É, senhor Leopoldo. Eu preciso ficar aqui por enquanto — disse
de modo paciente, sem saber o que responder.
Em seu quarto, Humberto teve forte crise de choro por não suportar
a pressão.
Além de Adamastor, que o castigava, o espírito Rubens, ainda
perturbado, confuso e sem entender o que acontecia com ele,
também lhe imprimia impressões causticantes e cruéis.
Humberto sempre se sentiu culpado por seu desencarne, além de
arrependido pelo desejo de matá-lo e por ter sido a razão da sua
fuga de moto, levando-o para a morte.
Agora tudo havia piorado. Não estava bem pelo fato de saber que o
filho de Irene era de Rubens e agora o menino não teria pai por sua
culpa.
Lembrando-se da conversa com o psicólogo, que lhe sugeriu pedir
desculpas ao seu irmão no momento em que estivesse preparado,
ele arrancou forças da própria alma e reagiu.
Sentando-se na cama, começou a orar fervorosamente e rogar
amparo a Deus.
Apoiando os cotovelos nos joelhos e a cabeça nas mãos cruzadas à
frente do corpo, na altura do peito e, sem que o espírito Rubens
esperasse, Humberto pediu em voz baixa e comovente:

— Rubens, me perdoa! Meu irmão, me perdoa! Eu te amo... Sempre
te amei. Sempre quis o seu bem, mas, dentro dos meus pobres
limites humanos, eu não soube te entender. Eu sei que você não
agiu certo comigo nem com a Lívia, mas eu precisava te
compreender e acho que só agora consegui isso. Você não foi forte,
assim como eu... Eu desejei te matar, mas, na verdade, eu não queria
que morresse. Gostaria que estivesse aqui, vivo e ao meu lado —
chorou sentido. — Puxa, me desculpa, cara! Desde que morreu, eu
estou sofrendo. Se eu soubesse que iria fugir de mim e morrer
naquele acidente... — Longa pausa. — Sei que nada acontece por
acaso, Deus não falha... Provavelmente, você desencarnaria

de forma semelhante, num acidente, mas... não precisava ser para
fugir de mim. Estou desesperado e com remorso. — Lágrimas
copiosas corriam por seu rosto e, mesmo com voz embargada,
continuou: — Por favor, me perdoa! Estou experimentando a maior
amargura da minha vida. Eu gostaria de estar em seu lugar em vez
de sentir o que sinto. Eu prometo que vou cuidar do seu filho como
se fosse meu. Fique tranqüilo... eu vou cuidar dele.
Menos emocionado, continuou:

— Eu acredito que há espíritos superiores e iluminados para te
socorrer, é só você orar e desejar ajuda...
O espírito Rubens estava prostrado, de joelhos, frente ao irmão, que
não o percebia.
Quando Humberto começou a falar, imediatamente, Rubens passou
a ter visão de seu acidente e entender o seu desencarne. Logo em
seguida, começou a ver as imagens da encarnação passada.
Assistiu-se tentando compor um triângulo amoroso entre Lívia e
seu irmão. Conseguiu perceber o quanto o invejava, não só na atual
existência, mas na outra também.
Inconformado, desejando ter a jovem só para si, ele se observou
tramando a morte de Humberto e empurrando-o, subitamente, sob
as rodas de um trem, simulando um acidente e dizendo que o outro
escorregou. Viu-se mentindo, contando e relatando o fato, várias
vezes, fingindo desespero. Depois, como se sua crueldade não fosse
suficiente, Rubens supôs à sua mãe que o irmão havia se suicidado,
deixando-a ainda mais aflita e inconformada.
Ele pôde recordar seu sofrimento de muitos anos na espiritualidade,
tempo em que Humberto procurou socorrê-lo e ajudá-lo até
conseguir.
Nesse instante, o espírito Rubens entendeu a razão de seu
desencarne no acidente de moto. Compreendeu o porquê de ter
encontrado Lívia e a deixado livre para o irmão. Também percebeu
o amor que ambos sentiam e o motivo de serem tão afins como
eram.

Um arrependimento o dominava, por não ter cumprido as


promessas feitas no planejamento reencarnatório, chorava muito.
Humberto continuava conversando, imaginando-se frente ao irmão.
O que, na verdade, acontecia.
Dominado por um pranto compulsivo, o espírito Rubens estava
como que apoiado em Humberto e começou a acompanhá-lo na
concentração da prece do Pai Nosso.
Luzes cintilantes, que vinham do Alto, envolveram os irmãos de
forma sublime, fortalecendo-os e acalmando-os.
Humberto ligou-se ao Alto e a energia poderosa que se distribuiu
no ambiente, em forma de luz, irradiava-se de seu peito de forma
espetacular.
Sustentando-se firme, acreditando no amparo Divino, Humberto
cedeu fluidos salutares ao irmão que vagarosamente começou a
perceber entidades elevadas ao seu lado.
Olhando-as emocionado, Rubens murmurou:


— Em nome de Deus, me ajudem!
Com indescritível carinho, seu mentor Arlindo o envolveu com
elevada ternura e, com a ajuda dos espíritos Nelson e Alda, Rubens
foi adormecido e entregue ao socorro abençoado.
Alguns minutos e Humberto se sentiu aliviado das emoções fortes,
enquanto espíritos inferiores que o acompanhavam, estavam
atordoados.
Repentinamente, viram seus laços fluídicos de energias negativas se
rompendo, um a um, desligando-o das amarras que vampirizavam
suas forças vitais.
Adamastor, assustado, ficou inconformado e confuso com o sumiço
do espírito Rubens, desconfiando do que poderia ter acontecido a
ele.
Precavido, Adamastor se afastou de Humberto, obser-vando-o a
distância.

Esgotado, sentindo-se entorpecido, Humberto levantou, pegou uma
muda de roupa e foi tomar um banho.
Passando pela sala, Lívia o fitou sem dizer nada. Ele retribuiu o
olhar e observou-a, admirando a paciência da moça dando atenção
ao seu pai embriagado.
Na espiritualidade, a nobre entidade Laryel estava presente sem
poder ser vista se não por aqueles que a acompanhavam.
Olhando a sua volta, comentou com bondade:


— O amparo providencial às nossas dificuldades chega, mas
precisamos nos ajudar, iniciando pela organização e disciplina. O
Humberto começou a entender a mensagem dele para ele mesmo.
Agora está determinado a solucionar, de forma ordenada e
prudente, tudo o que estiver ao seu alcance. Com paciência, vai
aguardar o tempo resolver o que ele não puder. Apesar de todo o
seu conhecimento, nosso querido Humberto vacilou. Não se
protegeu quando deixou de se ligar ao Pai através da prece bendita.
Eram somente alguns minutos por dia, porém não teve tempo,
esquecendo-se até do Evangelho no Lar.
O espírito Nelson, mentor de Humberto, considerou:
— As pessoas sempre querem ajuda espiritual, mas não se dão ao
trabalho de realizar o culto do Evangelho no Lar, esquecendo-se de
quanto esse momento é abençoado! E a ocasião em que são
chegadas energias dos planos mais elevados, fluidos que resultam
como que alimento espiritual. Fonte de luz excelsa que ilumina e
higieniza cada parede, cada cantinho da casa tornando todos os
ambientes saudáveis e harmoniosos.
—Agora é questão de tempo — tornou a nobre Laryel. — Nosso
querido Humberto tem em mãos as ferramentas necessárias para se
equilibrar novamente e reerguer-se, elevando-se muito. Essas
ferramentas são: a fé, os pensamentos elevados, a confiança em
Deus e em si mesmo, a paciência e tudo o que resulta na paz
interior.


—Somente agora, meu protegido perdoou, verdadeiramente, ao
irmão por ter interrompido a sua experiência em outra encarnação e
lhe tirado a oportunidade de viver ao lado de Lívia. Antes dessa
experiência terrena, no plano espiritual, apesar de sua elevação,
entendimento, capacidade e de todo seu esforço para socorrer
Rubens no Umbral, Humberto ainda trazia um grau de
ressentimento do irmão.
—Por essa razão, nesta encarnação, o seu inconsciente revelou o
desejo de matá-lo — comentou o espírito Alda. — Seus conflitos e a
crise emocional junto aos ataques espirituais que sofreu, abriram
portas e o desejo de matar alguém que o contrariasse, surgiu
descontroladamente. Foi sua boa moral, sua boa conduta que o
fizeram ficar no controle da situação apesar de tamanho abalo e
desespero. Ao ser sincero, reconhecer o seu erro e pedir perdão,
Humberto conseguiu a harmonia, o alívio da consciência por
entender a pequenez do irmão.
—Muitas vezes precisamos declinar nas aflições e na angústia para
entender e perdoar. O Mestre Jesus nos ensinou a reconciliar
primeiro com o nosso irmão, e depois apresentar a mossa oferta a
Deus. Perdoar é amar incondicionalmente e aceitar viver ao lado
daquela pessoa ajudando-a, amparando-a e ensinando-a a evoluir

— completou Laryel. — Contudo, meus queridos, fiquemos atentos.
Os espíritos ignorantes, que ainda o acompanham, apesar de
surpresos com sua postura, vão tentar incomodá-lo de algum jeito.
***

Era final de semana.
Lívia foi até a casa de Débora avisar dona Aurora, que estava lá, que
sua irmã mais nova havia ligado do interior e em pouco tempo
telefonaria novamente.
A senhora retornou para sua casa, mas Lívia ficou brincando com a
pequena Laryel em seu colo.



— Nossa! Como ela cresceu, Débora!
— Você viu?! Já perdeu um monte de roupinha. As priminhas vão
ganhar tudo! — brincou sorridente.
—E a Rita, como está?
—Enorme! Aquela barriga não pára de crescer — riu.
—Faz tempo que não a vejo!
— O Sérgio foi danado! Ele acertou de novo! São duas meninas
mesmo!
— Uaaau! Quatro filhos! Que lindo, né?! Dois casais!
— Eu também acho lindo, mas quando penso no trabalho que uma
coisinha dessas dá!... — riu. — Falando nisso, a dona Aurora me
disse que o nenê da Irene nasceu!
—E verdade. O nome dele é Flávio.
—Já o visitou?
—Não.
—O que o Humberto diz?
—Tudo indica que o filho não é dele, mas está decidido a pedir
exame de paternidade. Não quer ficar com essa dúvida. Porém, não
disse nada sobre visitar o nenê.
—Como essa moça foi cruel, não é?! Montou uma trama tão
desumana! Em vez de dizer a verdade, fica aí com esse joguinho de
mentiras e enganações. Que absurdo! Estou com tanta pena do
Humberto. Ele parece gostar tanto de criança.
—Gosta sim.
—Toma! — disse entregando-lhe uma mamadeira. Dê um
pouquinho de água pra ela. — Enquanto Lívia servia a pequena
Laryel, Débora perguntou: — E vocês dois? Como estão?
—Ah!... — suspirou e sorriu, disfarçando a tristeza. — Estamos
indo. Sinto-me bastante constrangida por ter de ficar lá na casa dele.
Às vezes, me sinto tão insegura, Débora — falou em um tom
melancólico.
—Eu sei o que é isso.



—Sabe mesmo?! Por acaso já dependeu do Sérgio e ficou morando
por necessidade na casa dele?! — riu, duvidando. — Garanto que
não!
A amiga a encarou com seriedade e, fitando-a firme, d clarou:
—Já sim. A situação foi bem pior do que a sua. Se o Sérgio não me
acolhesse, eu viraria indigente, pois nem emprego eu tinha!
—Débora!... — admirou-se pasmada.
—Mas já passou! — sorriu, fugindo do assunto. — Com você é
diferente. A dona Aurora te conhece, te respeita, gosta muito de
você... Ela te elogia tanto! Disse que, se não fosse você, o filho dela
estaria trancafiado no quarto até hoje. Diz que não sabe onde você
arruma forças para ter tanta disposição a fim de ajudar o Humberto!

— Arrumo disposição no amor que sinto por ele. Enfrento tanta
dificuldade, tanto conflito por isso! Você nem imagina!
— E o seu pai? Já falou com ele novamente?
— Não! Nem pensar! Liguei para minha mãe e ela disse que o
meu pai ainda está uma fera. Bebe e briga todos os dias, reclamando
de mim. Ele diz que quer me matar.
— Esses sentimentos vão passar, Lívia. Vai ver.
— Sabe, Débora... Estou insegura por causa do Humberto.
— Por quê?
— Ele aparenta grande melhora. Parece que saiu daquele estado
depressivo. Mas tem hora que o vejo quieto, pensativo... Tenho
medo de que ele sofra uma recaída ou algo assim e desista de mim.
— O Humberto gosta de você! Ele não vai fazer isso! Lívia embalava
vagarosamente Laryel nos braços. Quando Débora viu a filha
dormindo, pediu:
— Deixe-me colocá-la no berço! Seus braços, talvez, estejam doendo!
— sorriu. — Ela está bem pesadinha!
Enquanto ajeitava a filhinha cuidadosamente no berço, a outra foi
atrás e contou:
—Teve um dia que saímos e nos beijamos. No dia seguinte, ele
estava arrependido. Achou que foi um erro.

—Mas depois voltaram. Eu os vi juntos, lá no centro, e reparei que
ele te tratava com tanto carinho! Ainda comentei isso com o Sérgio!

— É, eu sei — concordou com a respiração curta, aflita e torcendo as
mãos. — Mas e se ele se arrepender novamente e achar que foi um
erro?
Débora olhou para a amiga e ficou desconfiada. Pegando-a pela
mão, fez com que Lívia se sentasse no sofá, acomodando-se ao lado.
Olhando-a firme nos olhos expressivos, indagou:
—Aconteceu alguma coisa entre vocês dois, não é?
—Débora! Eu não sei o que faço! Estou desesperada! — confessou
inquieta, angustiada. — Eu não esperava! Foi no apartamento dele,
no dia em que ele quase matou a Irene! Foi por isso que não fui para
casa! — contou, inconformada.
—Calma, Lívia. O Humberto gosta muito de você. O que ele está
passando é uma fase. Se mesmo assim isso não te convence, comece
a pensar no pior e analise. Se não der certo com ele... Você é jovem,
muito bonita, tem um emprego...
—Mas, Débora, meu pai me mata!
—E quem vai contar para o seu pai que vocês ficaram juntos?!
Pense! — Breve pausa e perguntou: — Já conversou com o
Humberto a respeito disso?
—Não. Não quero ser mais um problema para ele que já está tão
sobrecarregado. Mas estou aflita. Não paro de pensar nisso!
—Você mesma reconhece que ele está sobrecarregado. E por isso
que ele fica quieto e pensativo.
—Desculpe por te incomodar com os meus problemas, mâs não
tenho com quem conversar e esse assunto está me sufocando.
—Você não me incomoda, Lívia! Fique tranqüila! — sorriu
generosa.
—Estou com medo. Acho que nos envolvemos muito cedo. Estou
muito preocupada com uma coisa...



O toque da campainha a interrompeu. Débora se levantou e, ao
olhar para ver quem era, anunciou alegre:

— É o Humberto!
Indo até o portão, ela o abriu, fazendo-o entrar.
—E o Sérgio? — perguntou o amigo animado.
—Ele foi ao mercado. Não deve demorar.
—É que o carro está na garagem, por isso pensei que estivesse —
tornou o rapaz.
—Ele foi com o Tiago, que passou aqui e também ia para lá.
Ao chegar à porta da sala, deparou-se com Lívia que abriu lindo
sorriso ao vê-lo e avisou:
—Eu já ia embora!
—Então vamos! O Sérgio não está. Eu queria falar com ele — sorriu.
—Ah, não! Fiquem comigo! — reclamou Débora.
—Venha você lá para casa! — chamou Humberto. — Minha mãe
vive aqui! — brincou. — Aliás, parece que ela abandonou todo o
resto da família por causa da filha e da netinha postiça! — riu. —
Quero ver o dia em que eu ou a Neide lhe der um neto! —
Recordando-se de que o filho de Irene, era neto de sua mãe, ele
fechou o sorriso e não disse mais nada.
Lívia abaixou o olhar sem saber o que dizer, enquanto Débora,
muito ágil, continuou brincando como se não tivesse lembrado de
nada.
—Olha, vocês podem arrumar outros netos para a dona Aurora,
mas a Laryel continuará sendo a mais velha! — Sorrindo, contou: —
Sabe que ela conhece até a voz da avó postiça?!
—Sério?! — admirou-se Lívia.
—É sim! Você tem que ver! Quando a dona Aurora chega
conversando, a danadinha fica procurando e rindo!
—Que gracinha! Qualquer hora eu quero ver isso! — disse
Humberto. Em seguida, perguntou: — E onde ela está?
—Dormindo!



—Então outra hora eu a vejo. — Decidindo, despediu-se: — Tchau,
Débora! Mais tarde eu ligo para o Sérgio. Vão lá em casa, tá? Minha
mãe vai gostar!
—Vamos ver! Se o Tiago e a Rita não vierem aqui, é bem capaz de
irmos sim!
—Estamos aguardando! — disse Lívia, beijando-a no rosto. —
Tchau.


***

Ao chegarem a casa, Humberto avisou satisfeito:

— O carro já está lavado e abastecido! Uma coisa a menos para
fazer!
Entristecida, Lívia comentou:
—Eu queria ligar para minha mãe. O que você acha?
—Seu pai deve estar em casa. Não seria um bom momento. Já falou
com ela essa semana. Espere mais alguns dias.
Vendo-a triste, Humberto se aproximou, abraçou-a pela cintura
embalando-a vagarosamente, de um lado para outro.
Trazendo leve sorriso no rosto, ele contemplou sua beleza por
alguns segundos. Reparou o quanto Lívia era doce, generosa, tudo o
que ele sempre quis encontrar em alguém.
Além disso, ela era sábia e inteligente. Qualidades a serem bem
consideradas.
Sorrindo com generosidade, enquanto deixava seus pensamentos
livres, decidiu perguntar ao vê-la quieta e séria demais:


— Você está bem?
—Estou preocupada com os meus pais, Humberto. Ele é rude e
minha mãe, talvez esteja sofrendo muito.
—E por isso mesmo que está assim? — questionou, impostando
ternura na voz, enquanto a segurava pela cintura com uma mão e
afagava-lhe o rosto com a outra, tirando-lhe os cabelos do belo
rosto.
Ela ergueu o olhar, ofereceu meio sorriso e respondeu:

— É que tem muita coisa acontecendo. Estou preocupada.
— Minha maior preocupação é ficar com você... — murmurou
carinhoso, beijando-lhe a face e os lábios.
Abraçando-a forte contra si, Humberto foi levando-a em direção de
seu quarto ao mesmo tempo em que a beijava e a afagava com
carinho.
Ao chegar próximo da porta, entendendo suas intenções, Lívia
pediu com jeitinho na voz baixa:
—Não... Por favor...
—Vem cá... — murmurou.
—Não... Sua mãe...
— Ela saiu. Não tem ninguém em casa — disse, abraçan-do-a firme.
Empurrando-o lentamente para se afastar do abraço, ela pediu
novamente, no mesmo tom, só que mais firme:
—Não, Humberto, por favor.
—Por quê? — perguntou mais sério, sem forçá-la a nada, mas
segurando-a pelo braço.
—Por respeito à sua mãe. Porque pode chegar alguém e eu não vou
me sentir bem — respondeu, afastando-se dele e fugindo-lhe do
olhar.
Tomado por uma sensação desagradável, ele perguntou bem direto:
—Não se sentiu bem quando ficamos juntos no meu apartamento,
Lívia? Não foi bom para você?
—Eu não disse isso, Humberto — respondeu constrangida.
—Por que está me rejeitando então?
—Eu não estou te rejeitando. Não confunda as coisas, por favor.
Para colocá-la à prova, propôs:
— Então vamos sair. Podemos ir para um lugar tranqüilo. Longe do
risco de alguém nos ver.
Ela andou alguns passos. Esfregou as mãos no rosto num gesto
nervoso e murmurou sentando-se no sofá:
— Meu Deus! Como posso fazer você entender? Humberto
acomodou-se do seu lado e, segurando seu

queixo, fez com que o encarasse. Olhando-a firme e com bondade,
pediu em tom generoso:

— Se me explicar, eu posso entender. Tente.
Com a voz sentida, enquanto lágrimas copiosas corriam-lhe pela
face, ela tentou justificar:
—Humberto eu não quero ser mais um problema para você. Por
favor, eu preciso de um tempo.
—Um tempo?!! — surpreendeu-se, decepcionado. — Como um
tempo?!!
—Não é um tempo longe de você. Não foi isso o que quis dizer —
Olhando-o firme, invadindo sua alma, explicou: — Quero ficar com
você! Eu te adoro! Mas não estou preparada para algo mais íntimo.
Não agora.


— Mas nós...
— Eu sei! — interrompeu-o, parecendo aflita. — Você me
envolveu... Foi uma surpresa! Eu não esperava e...
— Vai me dizer que se arrependeu?!
— Não! Não me arrependi! Não diga isso! Mas, por favor, me
entenda.
— Não estou conseguindo te entender, Lívia.
— Então me aceite, por favor — pediu, como se implorasse. — Eu
preciso que aceite o meu desejo agora. Estou muito preocupada.
Extremamente nervosa e... Humberto, eu não quero sair com você
por sair, entende? Não quero ser um objeto.
— Eu não te tratei como um objeto! — reagiu, confuso.
— Eu tenho certeza disso! Também não foi isso o que quis dizer... Só
te peço um tempinho, por favor. Se não consegue me entender, me
aceite.
— Tudo bem — concordou decepcionado e triste. Lívia o envolveu
em um forte abraço que ele correspondeu generoso.

Apesar de ter os pensamentos tumultuados, beijou-a com carinho,
escondendo o seu rosto em seus cabelos como se procurasse um
refúgio de paz.

22
CONHECENDO FLÁVIO


O domingo amanheceu com um sol radiante.
Humberto acordou, abriu a janela, e tornou a se deitar, cruzando os
braços atrás da cabeça e entrelaçando os dedos na nuca.
Encontrava-se pensativo e preocupado com Lívia, que parecia evitá-
lo.
O espírito Adamastor e seu grupo estavam presentes.


— Ela não te quer! — dizia ele. — Ela é pior do que a outra!
Essa aí é ardilosa feito uma cobra traiçoeira! Vai te dar um golpe!
Viu que você ganha bem, tem dinheiro, pra comprar um
apartamento daquele! E só mais uma interesseira. Toda mulher quer
ficar com você por interesse!
Observando a vibração de Humberto e percebendo que seus
pensamentos começavam a se inclinar para o que ele queria,
Adamastor virou-se para os seus subordinados, exigindo:
— Fiquem de olhos bem abertos. Na primeira oportunidade,
envolvam esse sujeito com as energias mais pesadas que puderem!
Vamos iniciar outra vez o que já fizemos antes e ele destruiu! Tenho
todo o tempo do mundo!
Ao perceber novamente os pensamentos decaídos, Humberto
praticamente saltou da cama, pegou o Evangelho Segundo o
Espiritismo e o abriu ao acaso. Leu e refletiu sobre o tema. Em



seguida, orou ligando-se ao Alto com fios tênues de uma luz
azulada, que o impregnou de fluidos salutares.
Ao terminar, apesar de ainda preocupado com Lívia, sentia-se mais
refeito e confiante.
Após um banho, foi para a cozinha onde encontrou todos reunidos.


— Bom dia! — cumprimentou sorridente.
— Oi, filho! Sente-se aqui! — pediu dona Aurora, apontando um
lugar à mesa.
Ele a beijou no rosto, beijou Lívia ao seu lado e se sentou.
Conversaram sobre vários assuntos até que Humberto olhou para o
seu pai, que fazia o desjejum em silêncio, e perguntou
repentinamente:
—Quer ir comigo ao centro espírita amanhã à noite?
—Eu?! Ora! Por que eu?! — surpreendeu-se, confuso.
—Por que o senhor nunca foi e talvez goste!
O senhor Leopoldo ficou sob o efeito de um choque. Ofereceu um
sorriso encabulado e tornou em tom tímido e alegre:
— Talvez eu vá. Vamos ver.
— Eu tenho um livro, é um romance espírita e talvez o senhor
queira ler para saber um pouco sobre o assunto ou para se distrair.
E um bom livro! Quer? — tornou o filho.
— Eu não gosto muito de ler — respondeu o homem.
— É um livro pequeno! Bem interessante. Conta uma história bem
legal! Quer ver? Quem sabe pega gosto pela leitura! — insistiu
Humberto descontraidamente.
— Depois você me empresta. Vamos ver. Humberto sorriu, sentindo
uma satisfação nunca experimentada ao conversar com seu pai.
Não sabia explicar o motivo. Seu pai nunca foi gentil e educado
antes, quando se falavam, porém, naquele momento, foi diferente.
Dona Aurora ficou surpresa e trocou olhares com a filha, que se
retirava da mesa.

O senhor Leopoldo também se levantou e, ao passar pelo filho,
estapeou-lhe as costas três vezes, parecendo em sinal de amizade,
mas não disse nada.
Alguns minutos depois, a sós com Lívia, decidiu perguntar ao vê-la
muito quieta:
—Você está bem?
—Estou sim.
—Vamos almoçar fora hoje? — convidou com largo sorriso e grande
esperança.
—Humberto, é um assunto desagradável, mas... O que você decidiu
realmente sobre a Irene?
Ele fechou o sorriso. Bem sério, encarou-a firme e avisou:
—Sobre a Irene, eu não tenho de decidir nada. Quanto ao Flávio,
como eu já te disse, vou pedir um exame de paternidade. Somente
assim, todos ficam tranqüilos.
—Você precisa ir falar com ela.
—Então, está estranha desse jeito por causa da Irene? Tem alguma
dúvida do menino ser meu filho ou não?
—Não. Acho que precisa ir falar com ela e isso me incomoda, mas
não é só por causa disso que estou preocupada. Porém, quero ajudá-
lo a resolver esse assunto.


—E o que esse assunto tem a ver com irmos almoçar fora? Afinal, eu
te fiz um convite e veio me falando da Irene — disse firme.
—É que pensei em irmos almoçar fora sim. Só que, mais tarde,
poderíamos passar na casa da Irene para falar com ela, ver o nenê...
Humberto apoiou os cotovelos sobre a mesa e esfregou as mãos no
rosto num gesto aflitivo.
Depois respirou fundo, tentando aliviar a tensão.
Sentiu-se apreensivo e aquele conhecido mal-estar chegou. Só que
mais leve, menos cruel que antes.
—Está certo! — respondeu sério e contrariado. — Você venceu!
Vamos almoçar e falar com ela. Como quiser.
—Ei?! Não é assim: eu venci! Isso precisa ser resolvido!



—Está certo! Só que eu vou almoçar nervoso e inquieto porque vou
pensar que, em poucas horas, terei de conversar com aquela
criatura! Entendeu?
—Desculpe-me. Então não vamos — falou, arrependida.
—Agora vamos sim! — resolveu. — Não quero adiar essa história
nem por mais um dia! — avisou firme, alterado, mas sem perder a
educação nem a compostura. — Não quero ver você emburrada por
causa disso. Chega!

***

Após o almoço, em que Humberto permaneceu sério e introvertido,
eles foram visitar Irene.
Ao chegarem, dona Zélia, tia da moça, recebeu-os sorridente, porém
com certa apreensão.


Na sala, convidou-os a se sentar enquanto a sobrinha não aparecia.
Humberto mantinha aparência serena. Procurava se acalmar por se
sentir confuso, com os pensamentos desorganizados.
Ao lado de Lívia, pegou sua mão, colocou entre as suas e, sem
perceber, mexia continuamente em um anel que havia em seu dedo.
Com jeito delicado e doçura na voz fraca, ela perguntou:
—Você está bem?
—Estou — respondeu no mesmo tom.
Não demorou e Irene chegou à sala, trazendo Flávio em seus braços.
Ao vê-la, eles se levantaram, cumprimentando-a a distância. De
imediato, Lívia se encantou ao ver de perto o bebê no colo da outra.
—Que coisinha linda! Olha só! — exclamou Lívia.
—Quer segurar? — perguntou a mãe.
—Claro! — sorriu satisfeita.
Com o pequenino nos braços, Lívia sorria constantemente ao
embalá-lo com carinho enquanto o mostrava para Humberto.
Ao olhar Flávio, ele também sorriu com ternura, não resistindo a
uma atração e simpatia inexplicáveis.



Curvando-se, beijou-o com carinho, afagando cuidadosamente no
rostinho.
Examinando suas mãos minúsculas, Humberto colocou seu dedo
para que o menininho segurasse. Com isso, sorriu novamente,
trocando olhares com Lívia e se esquecendo de Irene.


— Segure-o Humberto. Você tem jeito com criança — disse Irene
secamente, parecendo insensível.
Ele pegou Flávio dos braços de Lívia e se sentou. Começou a brincar
com o garotinho, que resmungava um pouco.
Observando-o bem, ele pôde perceber que os traços fisionômicos do
pequenino foram herdados de sua família.
Os cabelos bem clarinhos, quase brancos, a pele muito alva e rosada,
além do rostinho comprido e narizinho afinado.
—Ele é lindo, Irene. Parabéns! — cumprimentou Lívia.
—Obrigada — sorriu, mecanicamente.
Humberto brincou alegre com Flávio. Estava encantado, mas não
havia esquecido o motivo que o levou ali.
Após algum tempo, o clima era tenso.
Ninguém dizia nada. Não sabiam como começar.
Mais sério, ele entregou o menino nos braços de Lívia, novamente.
Encarou Irene e comentou:
— Gostaria que me desculpasse pela forma como a tratei na última
vez em que nos vimos. Eu não estava bem e fiquei transtornado.
Perdoe-me. Eu errei.
Irene se surpreendeu e sorriu levemente ao dizer:
— Fiquei muito assustada. Não esperava por aquilo.
— Bem... Naquele dia você acabou dizendo que o Flávio era meu
filho. Da forma como falou, descartou a possibilidade de ele ser
filho do meu irmão. — Ela o encarou firme e ele continuou: — Não
vou negligenciar um filho. Jamais eu me negaria a dar atenção, todo
o conforto e cuidado ao meu filho. Isso vai acontecer, sem dúvida,
se o Flávio for meu filho mesmo — desfechou com tranqüilidade,
aguardando-a se manifestar.

—Como assim?! O que quer dizer?! — perguntou Irene bem
surpresa.
—Eu quero um teste de paternidade — tornou sereno.
—Você está duvidando de mim, Humberto?!
—Entenda como quiser — respondeu, parecendo imperturbável. —
Esse é um direito que me assiste e eu exijo esse teste.
Irene demonstrou-se contrariada. Sem encará-los, levantando-se e
caminhou alguns passos negligentes pela sala.
Respirando fundo, virou-se para ele, quase furiosa, mas decidida
esclarecer. Expressava-se com amargura e raiva no tom de voz:


— Vou poupá-lo de tudo isso! Se quer saber, o filho é do Rubens!
Pronto!
Ele pendeu com a cabeça positivamente e comentou bem sereno:
—Eu já desconfiava.
—Por que diz isso?!! — perguntou de modo hostil. — Está me
chamando do quê?!!
—Eu não vim aqui para discutirmos. Pode falar baixo. Respeite o
seu filho.
—Por que quer dar uma de superior, Humberto?!! Para me
humilhar?!! É uma forma de me ofender?!!
Atraída pela voz alta e agressiva de Irene, dona Zélia chegou à sala,
assustada.
Humberto trocou olhares com Lívia e ambos se levantaram.
Tranqüila, a moça se aproximou da senhora e lhe entregou Flávio
nos braços, voltando para perto de Humberto, que Pegou sua mão e
informou:
—Já resolvi o que precisava. Sendo meu sobrinho, pode ter certeza
de que não vou deixar faltar nada, absolutamente nada, a ele.
Certamente, os meus pais vão querer visitá-lo. Espero que você não
crie nenhum empecilho. Leve em consideração que minha mãe não
tem mais o Rubens, e o Flávio vai significar muito para ela.
—Por que veio aqui, Humberto?!! — gritou, perdendo o controle. —
Para se exibir com ela?!! Eu quero que vocês morram!!!



Sem dizer nada, ele conduziu Lívia para que saíssem da casa.
Quando passavam pela porta, inspirada por espíritos inferiores,
Irene gritou para ofendê-lo:

— Você não foi homem para mim!!! Foi por isso que saí com seu
irmão!!! Você não foi capaz de me dar um filho!!!
Ele parou por um segundo, sentiu um travo amargo na garganta,
mas não disse nada.
Abaixou a cabeça, sobrepôs o braço nos ombros de Lívia e foi
embora.
***

Já no carro, a caminho de casa, ela comentou ao vê-lo calado:

— A Irene cometeu muitos erros e não está tranqüila com ela
mesma. Sabe o quanto errou. Toda a descoberta, toda a confusão
que provocou a abalou muito. Agora, depois que teve o nenê, deve
estar bem perturbada. Foi por isso que tentou te ofender.
Humberto não disse nada, e Lívia lhe fez um afago na nuca
enquanto ele dirigia.

***

Ao chegarem a casa, ele trazia os pensamentos carregados de
dúvidas e preocupações que, em sua grande maioria, eram impostas
pelas sugestões cruéis do espírito Adamastor.
Humberto, sentando à mesa da cozinha, tomando uma xícara de
café, continuava em silêncio.
Parecia que uma escuridão vazia pairava em sua mente deixando-o
sem saber o que fazer.
Temia experimentar novamente o horrível estado deprimido, que
conheceu tão bem.


Lívia chegou. Afagou carinhosamente suas costas, sentou-se ao seu
lado e, segurando-lhe o braço, inclinou-se, procurando por seus
olhos, ao indagar com voz e sorriso doces:

— Tudo bem?
Encarando-a com o semblante sério, respondeu com voz grave e
baixa:
— Tudo. Só estou tentando organizar as coisas na minha cabeça.
—Posso ajudar? — tornou em tom carinhoso.
—Você tentou, Lívia. Bem que você tentou.
— Como assim?! Não estou entendendo! — disse surpresa.
Quando Humberto ergueu o tronco, virou-se para ela e ia falar,
dona Aurora chegou à cozinha e, sem perceber que os interrompia,
perguntou ansiosa ao filho:
—Ah! Ainda bem que vocês chegaram! Foram lá?! Viram o Flávio?!
—Fomos sim, mãe — respondeu Humberto. Logo sorriu ao contar:
— Ele é uma gracinha! Tão bonitinho!
—Falaram com a Irene?! — tornou sem trégua, muito curiosa.
—Tentei conversar, mas, depois de um tempo, ela reagiu agressiva.
Acho que foi por ter me visto com a Lívia. Entendeu logo que
estamos namorando e teve uma crise de raiva. Não falei tudo que
precisava, mas...
—O que ela disse?! — insistiu a senhora.
Humberto ficou em silêncio. Não sabia qual seria o impacto daquela
notícia para sua mãe. Afinal, Flávio seria, para ela, a maior e melhor
herança e lembrança viva de seu filho. Além disso, não tinha a
menor idéia de como Irene reagiria dali por diante, com dona
Aurora e sua família. Talvez, uma forma de vingar-se dele era não
deixá-los ver ou visitar o filho de Rubens.
Na troca de olhar com Lívia, ele pareceu pedir para que ela contasse
e assim a moça fez com jeitinho próprio:
—Sabe, dona Aurora, quando o Humberto disse que iria pedir um
exame de paternidade, ao entender que isso seria desgastante,

inevitável e o resultado incontestável, a Irene decidiu nos poupar de
tudo e contou a verdade.
—O que ela disse?! — perguntou aflita, apesar de já saber o
resultado.
—Ela revelou que o filho é do Rubens mesmo. Nós já tínhamos
quase certeza disso, e ela confirmou.
A senhora virou-se de costas para ele, de frente para a pia e
começou a chorar.


Lívia se levantou e foi para junto dela. Afagando-lhe as costas,
pediu:


— Não fique assim, dona Aurora. — Para animá-la, comentou: — A
senhora vai conhecer o seu netinho e vai ver como ele é lindo! Uma
gracinha!
A mulher se virou e a abraçou com força, chorando em seu ombro.
Com um sentimento indefinido, Humberto se levantou e foi para o
seu quarto.
Não demorou muito e Lívia foi procurá-lo.
Ao vê-lo sentado na cadeira frente à bancada, mexendo em alguns
papéis, ela perguntou:
— O que foi? Você está estranho. — Ele não respondeu. Sentando-se
na cama do rapaz, experimentando um sentimento triste e amargo,
indagou novamente: — O que você ia me dizer lá na cozinha,
quando perguntei se poderia ajudá-lo e me disse que eu tentei? O
que tentei?
O rosto de Humberto estava sério. Não queria falar sobre o assunto
e respondeu:
— Tanta coisa aconteceu hoje, Lívia. A revelação da Irene, a reação
agressiva que ela teve por nos ver juntos ou coisa assim...
—Posso te fazer uma pergunta bem pessoal?
—Claro!
—Você ficou decepcionado pelo fato do Flávio não ser seu filho?

—Não! Lógico que não! Eu me sentiria péssimo se fosse. Seria um
filho que não planejei. Ele representaria a minha ligação com aquela
mulher.


—Entendo. Um filho não planejado pode criar situações
complicadas.
—Sem dúvida! Imagine-me ligado pelo resto da vida à Irene? Não
consigo falar com ela nem a respeito daquele maldito apartamento!
Imagine, então, tentando opinar na educação de uma criança!


—Parece que a idéia de um filho te apavora?
—Sem dúvida!
Neide entrou no quarto com a pequena Laryel no colo. Sorrindo
encantada, disse:
—Olha quem veio nos visitar!!! Fala oi, pro titio, fala! — dizia
divertindo-se ao levar a menininha até Humberto.
—Oi, coisinha linda!!! Cadê a nenê do tio?! — ele sorriu e brincou,
pegando-a no colo. Depois perguntou: — O Sérgio está aí?
—Está lá na sala junto com a Débora — confirmou Neide.
Lívia, sorrindo, levantou-se e começou a brincar com a garotinha,
quando Humberto a chamou animado:


— Vamos lá na sala para recebê-los!
***

Os dias foram passando rapidamente.
Era sábado e Lívia vivia às voltas com pensamentos sobre sua
situação com seus pais.
Logo cedo, pediu emprestado o carro de Humberto e recusando sua
companhia, foi até sua casa conversar com sua mãe, aproveitando-
se da ausência de seu pai e seu irmão.


A senhora, muito sofrida, queixou-se do marido grosseiro e
ignorante que a maltratava muito, principalmente agora pela
ausência da filha.



Sabendo que não lhe restava muito a fazer, Lívia pegou algumas
coisas que lhe pertenciam, principalmente seus livros da faculdade,
que estavam lhe fazendo falta, e foi embora, prometendo voltar
outro dia para vê-la.
A rude provação com um pai embrutecido fortaleceu-a sem que ela
soubesse. De menina mimada, em outros tempos, criou agora força,
coragem, responsabilidade e determinação para seguir e enfrentar a
vida sem ilusões nem dependência.
Lutava com aquela vaga sensação de algo estar errado entre ela e
Humberto. Apesar de juntos, havia momentos, quando o via quieto,
calado e imerso em seus próprios pensamentos sem dividir com
alguém, em que reinava uma esquisita e perturbadora emoção.
Seria ela a razão de suas preocupações?
Humberto estaria arrependido de estar com ela, que se tornou um
encargo?
Abatida, sentindo-se cansada e angustiada, sem saber que rumo dar
à sua vida, decidiu ir falar com Débora. Talvez a amiga lhe clareasse
a mente e aliviasse o seu coração.
Elas conversaram bastante aproveitando o tempo em que a pequena
Laryel dormia um sono profundo.


— Então é isso. Minha mãe está muito sofrida e eu não sei como
resolver essa situação com o meu pai. Por outro lado, estou me
sentindo muito mal por ter de ficar na casa da dona Aurora,
dependente e... Como se não bastasse, o Humberto está muito
calado. Na última semana, ele estava bem estranho. Não sei se foi o
fato do Flávio não ser filho dele...
— Mas ele disse que essa notícia foi um alívio! Acredite nele!
—Eu não sei o que fazer, Débora! Estou confusa... — chorou. Depois
desabafou: — Acho que errei quando fiquei com ele lá no
apartamento e dormimos juntos. O Humberto deve ter me
considerado fácil... uma... — chorou.
—Não! Não diga isso! Ele gosta muito de você, Lívia!
—Então por que está distante, quieto?

Débora pensou um pouco, organizou as idéias sobre tudo o que a
outra lhe contou e concluiu:
—Lívia, você me disse que pediu um tempo, porque achou que
tudo havia acontecido muito rápido entre vocês. Não queria que ele
tivesse pensamentos equivocados, acreditando que era uma garota
fácil ou coisa assim. Mas será que ele não está pensando que você
não o quer porque não se sentiu bem, não gostou dele ou de como
aconteceu?
—Ele não pensaria isso! — disse chorando.
—Por que não?! Analise. Você pediu um tempo. Disse que não
queria um relacionamento mais íntimo. Depois a outra gritou que
ele não era homem pra ela e que não foi capaz de lhe dar um filho!
Puxa vida! Isso vai mexer muito com a cabeça do cara! Não acha?!
Lívia ficou pensativa e um tanto inquieta. Preocupada, duvidou:
—Será?! O Humberto é um homem maduro, confiante. Sabe o que
quer e o que faz.
—Minha amiga! A respeito de sexo, todo o mundo, principalmente
no começo de um relacionamento, sempre tem muita insegurança!
—Mas ele foi um homem maravilhoso! Carinhoso e...
—Você disse isso pra ele?!
—Não... eu...
—Ah! O que disse é que queria um tempo! Queria distância! Lívia!
Acorda, amiga!!! Se ele está do seu lado é porque gosta de você. Mas
a cabeça do coitado deve estar um inferno! Além disso, está
envergonhado com o que sentiu quando a outra falou aquilo... Foi
muito baixo da parte dela!
—Débora! Você não faz idéia .......... do que eu estou vivendo! —
chorou.
—Converse com ele. Conte tudo! Exatamente tudo do jeito que
contou para mim! Você vai resolver essa situação toda e ainda dizer:
nossa! Como fui boba! Sofri à toa!
—Você não entende... — Refazendo-se um pouco, contou: —
Quando tudo aconteceu... Foi repentino! Eu não esperava! Do jeito



que o Humberto estava, eu não esperava nem por um beijo lá
naquele apartamento. Mas nós começamos a nos abraçar, depois ele
me beijou... Somente no dia seguinte eu fui parar e pensar em tudo

o que aconteceu.
—E não foi bom?
—Sim. Ele se revelou um homem maravilhoso, que eu não julgava
existir. Só que além de tudo o que fizemos ter sido ótimo, foi
irresponsável! — Chorou novamente ao contar: — No dia seguinte,
depois da briga com meu pai, eu estava lá na casa dele, no quarto da
Neide, entrei em pânico quando peguei o calendário na minha bolsa
e fiz as contas... Eu estava exatamente...
—No dia fértil?... — indagou a outra, tentando ajudar.
—É... — chorou. — Acredito que toda mulher sabe fazer essa conta
e...
—Você não toma remédio? — perguntou, mesmo sabendo a
resposta.
—Não... Eu não precisava tomar nada... Sou muito regulada,
conheço bem meu ciclo... Quando entendi o que tinha feito, quase
tive um troço! — chorou mais ainda. Secando as lágrimas com as
mãos, falou com a voz entrecortada e estremecida: — Estou
desesperada... Isso não sai da minha cabeça... O meu pai...
—Falou com o Humberto a respeito do seu ciclo?
—Não... O que ele diria? Além de fácil, sou irresponsável... Eu
deveria ter falado na hora! Deveria ter lembrado...
—Foi por isso que pediu um tempo pra ele?
—Foi... Mas eu não consegui falar... Tinha muita coisa acontecendo
e... E eu não queria ser mais um problema. Não queria que ele
tivesse outra crise... Apesar de toda a preocupação por causa da
Irene, ele vem se mostrando bem melhor a cada dia. Quando pensei
em contar... ele veio com aquela história de não sentir bem com um
filho que não planejou e...
A jovem não conseguiu mais falar e abaixou a cabeça, escondendo o
rosto entre os cabelos.



A amiga ficou triste por vê-la daquele jeito, porém perguntou com
jeitinho:

— Lívia, quando foi isso? — A outra chorava compulsivamente e
não conseguia responder. Mas ela insistiu: — Está atrasada?
A outra não respondeu e entrou em desespero.
Débora a puxou para um abraço, confortando-a em seu ombro para
vê-la mais calma.
Em meio ao choro comovente, Lívia desabafava com voz rouca e
abafada:
—Não foi irresponsabilidade minha... Eu não lembrei...
—Não foi sua culpa. Ele também foi responsável, oras!
—Eu sei... Mas o que ele vai pensar de mim?!...
—Você não planejou isso e...
Débora deteve as palavras quando ergueu o olhar e viu Sérgio e
Humberto parados à porta.
Lívia não os viu de imediato, pois escondia o rosto no ombro da
amiga, que não sabia o que fazer.
Humberto ficou imóvel, aflito por não entender o que acontecia e
Sérgio, mais preparado, indagou com jeito simples, tranqüilo e
amigo:


— Tudo bem, ou nós devemos voltar depois?
Ao ouvir sua voz, Lívia, ainda sob o efeito de soluços fortes, com
lágrimas correndo na face enrubescida e inchada pelo choro, ergueu
o olhar na direção deles.
Preocupado, Humberto imediatamente se aproximou, e Débora se
levantou oferecendo seu lugar para que ele se sentasse ao lado de
Lívia.
Com bondade, ela comentou:
—É melhor vocês conversarem. Acho que a Lívia tem muito a dizer.
—O que aconteceu para ela estar assim?! — perguntou assustado ao
vê-la daquele jeito.

— Olha, eu vou fazer um chá para ela se acalmar. Será melhor ficar
com ela, Humberto. Dê um tempinho pra ela ficar mais tranqüila e
contar tudo o que está acontecendo.
Dizendo isso, Débora fez um sinal sutil para seu marido, que a
seguiu até a cozinha.
Não demorou e a amiga retornou com um copo de água adoçada,
que ofereceu à outra, depois voltou para a cozinha, deixando-os a
sós.
Humberto, aparentando serenidade, aguardava aflito, acariciando o
rosto e os cabelos de Lívia, que parecia sem controle.
Até o copo com água tremia entre as mãos geladas da moça
enquanto o seu queixo batia e seu coração apertava cada vez mais.
Afagando-lhe as costas e o ombro, ele pediu generoso:
— Procure ficar calma, meu bem. Respira fundo. — Percebendo que
ela estava um pouco mais tranqüila, comentou:
— Eu nunca vi você perder o controle, Lívia. Já te vi nervosa, mas
nunca desse jeito. Sempre te achei uma pessoa muito segura, forte,
equilibrada e controlada. O que te deixou assim?!
— Novamente lágrimas compridas corriam em sua face e ele pediu,
parecendo calmo, quase sussurrando: — Por favor, me conta de
uma vez. Estou muito preocupado por te ver desse jeito. Foi o seu
pai? Você encontrou com ele?!
— Não... — murmurou com voz rouca.
—O que foi?
— Quando nós fomos lá ao seu apartamento... Ela contou
exatamente tudo.
Surpreso, ele perguntou falando baixinho e tentando conter a
emoção forte:
—Por que não me contou no dia seguinte?! Por que não falou
comigo assim que desconfiou?!
—Você iria dizer que sou fácil e... — chorava. — Além de fácil, sou
irresponsável e... Foi por isso que te pedi um tempo...



—Meu Deus! Lívia!... — exclamou, sussurrando. — Eu acreditando
que me rejeitava por outro motivo! Não gostou de mim, nem de
como aconteceu! Pensei... Você não sabe o que passou pela minha
cabeça! — Breve pausa e perguntou: — Quanto tempo faz isso? —
Ela não respondeu. Só chorava. Ele tornou apreensivo: — Você fez
algum exame? Algum teste de farmácia?
—Não... Mas está muito atrasada.
Humberto sentiu como se houvesse mergulhado em um lago
gelado. Ao mesmo tempo, foi invadido por um misto de
sentimentos fortes. Não sabia se chorava ou se sorria.
Lívia estava constrangida. Tentava deter o pranto comovente, mas
não conseguia.
Ele a puxou para si, abraçando-a com carinho e afagando seus
cabelos ao dizer:
—Calma. Não fique assim.
—Você não quer esse filho... — falou, sufocando a voz em seu peito.
—Eu?!!! De onde tirou essa idéia?!!! — exclamou, falando baixinho.
—Você disse... — murmurou.
—Eu nunca te disse isso!!! — tornou no mesmo tom e volume.
—Disse sim... — afirmou entre os soluços. — Disse que se sentiria
péssimo com um filho que não planejou.


Afastando-a de si, olhou-a bem nos olhos e falou sério e firme:
—Agora eu me lembro do que falei e de quando falei isso. Eu disse
que me sentiria péssimo se o Flávio fosse meu filho, pois não seria
um filho que planejei. Ele me faria ficar ligado à Irene. Eu falei sim.
Porém estava me referindo ao Flávio e a toda a situação com a Irene.
—Mas confirmou que a idéia de um filho te apavorava...
—Lívia, acorda! A idéia de ter um filho com ela me apavorava, sem
dúvida! — sussurrava. — Conhecendo-a, essa idéia apavora
qualquer homem! — Acariciando-lhe o rosto, disse com ternura,
bem baixinho: — Eu nunca diria isso de você ou de um filho nosso!
—Não planejamos Humberto.



—E daí?! — exclamou, murmurando alegre e sorrindo. — Não
planejamos, mas aconteceu! Ele ou ela será muito bem-vindo!
—Meu pai vai me matar! — sussurrou.
—Não vai não! — Sorrindo, abraçou-a e apertou-a contra si. —
Vamos resolver isso. — Quase rindo, contou: — Quando te vi desse
jeito, pensei que tivesse acontecido alguma coisa grave! Quase tive
uma coisa! — riu.
—E não é grave?!
—Lívia!... — riu. — Não diga um absurdo desses! Eu te amo! —
Segurando seu rosto com carinho, beijou-a nos lábios e depois
pediu: — Precisamos confirmar se está mesmo grávida. Você
precisa ir ao médico.
Enquanto conversavam na sala, Débora e Sérgio aguardavam na
cozinha.


Depois de contar ao marido o que estava acontecendo, eles ficaram
aguardando e Sérgio comentou:
—Hoje cedo, ele veio conversar comigo sobre o fato do pai ter ido
ao centro e gostado. Parece que o homem começou a se interessar
em se tratar do alcoolismo. Foi conversar com ele a respeito... Ainda
bem que o Humberto leu aquele livro que emprestei para ele.
—Que bom! Fiquei contente com a notícia!
—Sugeri que ele fizesse com que o pai participasse mais da vida
dele e da família para o senhor Leopoldo pegar aquele gostinho
bom de se envolver em tudo. Seria um estímulo e um incentivo para
um tratamento. O Humberto disse que o Fabiano já havia sugerido
isso e foi por isso que convidou o pai para ir ao centro. Mas eu
percebi que o Humberto estava angustiado. Ficamos conversando...
Fomos para a casa dele, pois queria me mostrar um DVD que
comprou... Foi aquela hora em que te avisei que iria lá!
—Sei.
—Então ele me contou sobre a Lívia parecer distante, não querer
nada com ele. Depois ainda teve as agressões verbais da Irene...
—Já sei! A cabeça do cara ficou um inferno!



—É! Ele se sentiu inseguro. Também não é por menos!
—Quando se está fora da situação, é bem mais fácil enxergar com
clareza o que está acontecendo de verdade.
—Isso é falta de diálogo. É preciso ser calmo, franco e esgotar
determinados assuntos entre um casal. Eu sempre gostei disso.


— Por isso que eu sempre gostei de você! — falou com jeitinho
mimado, levantando-se e beijando-o rapidamente.
Sérgio a segurou pela cintura, trouxe-a para perto de si e a puxou
para que o beijasse. Depois disse:
—Eu te amo!
—Eu também te amo!
Ele sorriu e Débora pegou a bandeja com as xícaras de chá e
perguntou:
—Será que é um bom momento para ir até lá?
—Acho que sim! Vamos arriscar!


23
NOVA MANEIRA DE VIVER


Ao retornarem para casa, dona Aurora estava apreensiva e os
recebeu com nítida preocupação:

— Nossa, Lívia! Você demorou tanto, filha!
— Ela estava na casa da Débora — disse Humberto. — Quando o
Sérgio ia embora, vi meu carro em frente da casa dele e fui até lá.
Lívia nada disse. Trazia o belo rosto sério e vermelho por ter
chorado muito.
Pegando algumas sacolas e bolsas, foi para o quarto da Neide.

— Ela está assim por causa do pai, não é? Devem ter discutido.
Coitada — acreditou a senhora com olhar piedoso.
Humberto se sentou à mesa da cozinha, serviu-se com café que
havia na garrafa e ficou em silêncio.
Enquanto bebericava a bebida quente, conservava o olhar perdido
em algum ponto sem perceber seu rosto iluminado por um sorriso
agradável e faceiro, como o de um menino que houvesse feito
alguma travessura.
A mãe ficou intrigada ao observá-lo daquele jeito. Nunca o viu
daquela forma. Parecia estar muito bem, mas resolveu perguntar:


— Humberto, o que foi?
Ele não ouviu nem lhe deu o mínimo de atenção.
O senhor Leopoldo, parado à pia bebendo água, assistia à cena.
Notou que o filho estava longe. Nem o viu chegar, por isso
comentou:
—Deve ter aprontado alguma. Lembro de ver essa cara quando ele
era moleque e fazia alguma arte!
—Filho, o que foi?! — insistiu dona Aurora. Sem obter respostas,
tocou-o no ombro ao chamar: — Humberto?!
Ele se sobressaltou, olhou para ela e abriu um largo e lindo sorriso
ao perguntar:
— O que foi mãe?!
—Eu que te pergunto, o que foi? Parece tão longe e rindo à toa!
—Estava só pensando — falou sem conseguir segurar o sorriso.
— Pensando em quê?
— Na próxima semana vou colocar o apartamento à venda,
definitivamente. Ligarei para a Irene avisando para o caso de querer
tirar alguma coisa que é dela e...
— Aquele apartamento está todo mobiliado. Tem muita coisa sua lá!
Até algumas roupas suas tinham sido levadas e...
— Eu não quero nada que tem lá! E, por favor, não vamos mais falar
nisso! — disse calmo. — Vou vendê-lo com tudo o que a Irene não
quiser. Depois... — sorriu novamente. — Acho que vou comprar

uma casa! Uma casa bem grande! Acho que será melhor do que
apartamento.
—Uma casa? — perguntou o senhor Leopoldo.
—É pai! Uma casa! Vou me casar! Quero ter filhos e...
—Casar, Humberto?! — exclamou a senhora.


— Por que não, mãe?! — Ele se levantou. Estampou um sorriso
lindo e triunfante que não conseguia conter e concluiu:
— Vou me casar com a Lívia! Estou muito feliz com isso! E... A
propósito! — disse antes de sair da cozinha. — Nós acreditamos que
o neto de vocês está a caminho! — virou as costas e foi para a sala.
Demorou alguns segundos para dona Aurora concatenar as idéias e
reagir. Num grito, foi atrás do filho:
—Humberto!!! Pelo amor de Deus!!! O que você fez com essa
menina?!!! — desesperou-se.
—Não fiz nada contra a vontade dela, mãe! Por favor! Não peça
para eu explicar! — respondeu em tom de brincadeira e caindo na
risada.
—Me respeita, Humberto!!! Veja como fala comigo!!! — Ele ria. Não
se importou em vê-la zangada. Logo a senhora advertiu: — O pai
dela vai matar vocês dois, filho!
—Ele não vai ficar sabendo — falou sorrindo e bem seguro. —
Vamos convidá-lo para o casamento. Depois contamos.
—Filho, isso não está certo!
—O que não está certo, mãe?! — perguntou mais sério.
— Eu sempre gostei da Lívia e ela de mim. O que pode nos impedir
de ficarmos juntos?! Eu tenho quase trinta anos! Sei o que quero da
vida! Chega de dúvidas e amarguras! Eu quero é viver! Viver bem!
Viver ao lado de quem amo!
— É isso mesmo, Humberto! — concordou o senhor Leopoldo. —
Construa uma vida! Tenha uma família como sempre quis! Você se
esforçou muito para chegar financeiramente aonde chegou.
Aproveite agora tudo o que conseguiu!



O rapaz sorriu e ficou admirado com o que ouviu de seu pai. Só
então se deu conta de que era sábado e até àquela hora ele não havia
bebido.
Indo até o filho, o pai estapeou-lhe as costas, mas Humberto o
puxou para um abraço e agradeceu:

— Obrigado pela força, pai!
Dona Aurora, ainda confusa, explicou:
—Filho, eu não sou contra você se casar com a Lívia. Gosto muito
dessa menina e quero que seja feliz ao lado dela. Você merece ser
feliz! Mas a forma como está fazendo tudo!... Eu fiquei surpresa e
assustada ao saber que ela está grávida. Vocês mal começaram a
namorar! Imagine o pai dela?! Você conhece o senhor Juvenal... Ele
é muito ignorante e vai reagir!
—Quando ele souber e pensar em reagir, nós estaremos casados,
certo? Ele não poderá fazer nada!
—Você deveria ter sido mais responsável, Humberto. Planejasse o
casamento, sim. Mas se prevenisse de uma gravidez! — falou séria,
deixando-o a sós com seu pai.
—Que droga! — reagiu. — Nunca pensei que a mãe fosse contra a
minha felicidade! — irritou-se.
—De quantos meses ela está? — quis saber o senhor Leopoldo.
—De pouco tempo, pai. Algumas semanas. Acho que... quatro
semanas.
—Uma criança na família é uma coisa muito boa.
Eles começaram a conversar enquanto dona Aurora foi até o quarto
de Neide.
Lívia, com lágrimas correndo pelo rosto, arrumava suas coisas em
uma parte do armário quando a senhora entrou.


— Você está bem? — perguntou a mulher, preocupando-se ao vê-la
daquela forma.
— Estou — respondeu constrangida.
— O Humberto nos contou — avisou calma e com simplicidade.

A jovem parou o que estava fazendo, sentou-se na cama e abaixou o
olhar, falando com um tom tímido na voz baixa:

— Desculpe-me, dona Aurora. Eu não sei o que dizer.
— Meu filho gosta muito de você, menina, e eu também. —
Sentando-se ao seu lado, passou a mão pelos seus cabelos e, ao vê-la
chorar, comentou: — Eu estou contente, Lívia. Muito surpresa, mas
contente! — sorriu. — Um neto é sempre bem-vindo! É uma bênção
para alguém na minha idade. Eu estava muito angustiada porque,
talvez, eu não possa ser a avó que eu desejaria para o Flávio. Acho
que a mãe do menino não vai deixar. Você sabe. Fui visitá-la e ela
tratou a mim e ao Leopoldo muito mal. De repente, quando menos
espero, Deus manda outro netinho através de você! — sorriu
generosa, acariciando-a. Lívia não continha o choro e os soluços
fortes. — Não fique assim desse jeito. Tudo vai dar certo! Conte
comigo!
— Estou preocupada com o meu pai...
—Eu sei. Eu também estou. Sou um pouco antiga. Penso que
deveriam ter casado... Mas, se Deus permitiu assim...
—Nunca tive tanto medo na minha vida! Conheço o meu pai... Ele...
— Vem cá! — sorriu e puxou-a para um abraço. — O melhor é ficar
calma agora. Pense no nenê!
A senhora ficou consolando-a enquanto, na sala, Neide estava
eufórica por saber da novidade.
—Jura, Humberto?!!!
—Não posso jurar! Mas tudo indica que sim! Ela tem quase certeza!
—Ai!!! Que legal!!! — gritou abraçando-o e beijando-o. Depois
brincou: — Você hein!...
—Pare com isso, Neide! — pediu, fingindo ficar sério.
—De quanto tempo você acha que ela está?
—Se estiver grávida, está, exatamente, de quatro semanas.
—Uaaaau! — O irmão riu e não disse nada, mas ela perguntou: —
Espere aí! Quanto tempo faz que estão namorando?!
—Neide, vamos mudar de assunto?!

—Caramba!!! — exclamou, rindo do irmão. — Depressão?! Sei!...
Você não perdeu tempo!
Humberto atirou uma almofada em sua direção, mas ela se
esquivou, avisando:


— Vou lá dentro conversar com ela direitinho!
***

O tempo foi passado. Para Lívia, a luta interior continuava.
Confirmada a gravidez, Humberto era simplesmente uma figura
simpática que sempre estava sorrindo.


Agindo conforme planejou, ligou para Irene e avisou sobre a venda
do apartamento, dizendo que ela poderia ir lá para tirar suas coisas.
Ela o agrediu com palavras, tentando ofendê-lo, mas Humberto
tinha motivos demais para não se deixar atingir.
Sem perder tempo, foi ao cartório com Lívia e marcaram a data do
casamento.
Decidiram por algo simples: uma cerimônia com juiz de paz e um
jantar para um grupo restrito de familiares para celebrar a união.
Caso não desse tempo de comprar e mobiliar a casa que queriam,
morariam com seus pais até solucionarem a situação, e isso seria em
pouco tempo.
Era bem cedo. Lívia, sozinha na cozinha, fazia o desjejum.
Seus olhos vermelhos derramavam lágrimas quentes que corriam
por sua face pálida, enquanto os seus pensamentos ruminavam o
fato de contar sobre o casamento para os seus pais.
Sentia uma terrível amargura invadir-lhe o íntimo como um mau
pressentimento anunciando uma catástrofe.
Experimentava uma sensação exausta pelas emoções sofridas
quando se surpreendeu com a presença de Humberto, que a
abraçou pelas costas e beijou-lhe os lábios. Sentando-se ao seu lado,
afagou-a e disse:
—Bom dia!



—Bom dia! — respondeu, fugindo ao seu olhar.
—Por que você está chorando? — perguntou calmo.
— Pensando nos meus pais e em como eles vão receber a notícia. —
Alguns minutos e falou: — Daqui a pouco vou lá conversar com
minha mãe, aproveitando que ele está na feira.


Vou sozinha. Não precisa ir comigo. Assim ficamos mais à vontade.


— Sabe — disse pegando-lhe a mão gelada e acariciando com
cuidado —, eu creio que é o momento de você parar de pensar
desse jeito em seus pais. Não que deva esquecê-los, mas entender
que, principalmente, o seu pai não quer fazer parte da sua vida.
Ela fitou os seus belos olhos verdes e falou sem chorar:
— Fico pensando em como ele vai reagir.
— Não interessa o que ele pensa. O importante agora somos nós! Se
pensar nele te deixa desse jeito, triste, pense em nosso filho! —
sorriu. — Pense em mim...
Ela retribuiu com sorriso doce e expressão delicada ao sussurrar:
— Humberto! Eu te amo! Sempre penso em você.
— Foi tão difícil ficarmos juntos, meu bem. Enfrentamos tantas
situações... Temos o direito de sermos felizes juntos! — Breve pausa
e considerou: — Fico vendo você chorar e, às vezes, bate uma
dúvida...
— Que dúvida?!
—Será que está triste por que está grávida? Será que não queria um
filho?
—Humberto! Eu não vou admitir que diga um absurdo desse! —
reagiu quase irritada.
Ele riu gostoso e brincou:
—Nossa! Fiquei com medo! Gostei de ver!
—Isso não é coisa que se diga! Não para mim!
— Desculpe-me — pediu generoso, beijando-lhe a mão. — Eu quis
brincar e mexer com você.
— Conseguiu! — falou brava, mas fazendo charme.

Ele acariciou-lhe o rosto, beliscou seu queixo com carinho e
perguntou:
—Tem certeza que quer ir sozinha na casa da sua mãe?
—Tenho.
—Posso ir com você.
—Não. Será melhor nós duas conversarmos sozinhas. Vou contar a
ela que vamos nos casar, para que avise o meu pai e também fale
sobre irmos lá outro dia para conversarmos com ele. Depois ela me
liga, dizendo como ele reagiu e... Conforme for, iremos lá juntos.
—Eu não gostaria que fosse sozinha lá, mas... se é assim que quer
fazer...
Lívia sorriu, levantou-se, curvou-se e o beijou nos lábios com todo o
carinho enquanto ele a envolvia num abraço terno.


***

Já passava da hora do almoço. Humberto estava nervoso e inquieto
pela falta de notícias de Lívia, que não atendia o celular.
Havia ligado para a casa de seus pais, mas também ninguém
atendia.
Imaginando o que poderia acontecer, caso o senhor Juvenal
chegasse e a encontrasse lá, Humberto sentia-se mal.
Sua mãe tentava acalmá-lo. Em vão.
Sem conseguir calar o desespero que o dominava, decidiu ir à casa
de Sérgio e pedir a ajuda do amigo.


Não tardou e estacionaram o carro frente à casa de dona Diva.
Humberto desceu rapidamente e foi até o portão. Após vê-lo tocar a
campainha várias vezes, Sérgio falou:
—Parece que não tem ninguém em casa.
—E agora? O que eu faço?
Uma vizinha que os viu frente ao portão, foi ao encontro de ambos e
comentou:


— Não tem ninguém em casa!

— Oi! Eu sou noivo da Lívia — apresentou-se dessa forma —, ela
veio visitar a mãe e... Não estou vendo o meu carro aqui! Sabe me
dizer alguma coisa?
A mulher o olhou desconfiada. Não sabia como falar. Por fim, disse:
— Chamaram o meu filho aqui para ele levar a Lívia pro hospital.
— Que hospital?! Por quê?! — perguntou Humberto aflito.
— Quando a Lívia chegou, o seu Juvenal estava em casa e ela não
sabia. Teve uma briga feia e depois ele saiu. Então a Diva veio
chamar meu filho pra levar a Lívia pro hospital porque ela não
estava bem.
Ao ver o amigo transtornado, praticamente em choque, Sérgio
despediu-se:
— Obrigado. A senhora nos ajudou muito. — Virándose para o
amigo pediu: — Entre no carro! Acho que sei para onde a levaram.
Tem um Pronto Socorro aqui perto.
Não demorou e chegaram ao hospital público. Viram dona Diva ao
lado da filha, que não havia sido atendida e aguardava sentada,
num banco frio, encostada no ombro da mãe.
Aflito, Humberto ficou assustado ao se aproximar. Sérgio assumiu o
controle da situação, decidindo:
— Vamos levá-la daqui! Pegue sua bolsa e os documentos.
Apesar de atordoado, o outro obedeceu. Rápido, Sérgio pegou Lívia
e a levou para o carro.
— Onde é o hospital do seu convênio que fica mais próximo? —
perguntou assim que entraram no carro.
— Eu mostro. Pegue aquela avenida! — indicou.
Lívia precisou ser socorrida às pressas. Levaram-na para um
hospital com condições e estrutura melhores.
Horas mais tarde, Humberto, seus pais e sua irmã ainda
aguardavam para saber de seu estado.
— Ainda bem que o Sérgio foi embora — disse Neide. — Está
demorando tanto! Ele disse para telefonar que ele vem nos buscar.

O irmão não disse nada. Levantando, começou a andar
vagarosamente de um lado para outro do grande corredor.
Algum tempo depois, o médico apareceu procurando por
Humberto. Conduzindo-o para uma sala, informou:

— Ela está bem machucada. Foi muito agredida. Teve uma
hemorragia. Chegou a perder os sentidos, mas já recobrou a
consciência. Porém inspira cuidados.
Aparentando-se controlado, Humberto avisou com voz pausada e
trêmula:
— Doutor, ela está grávida. E o nosso filho? Como está?
—Não sei lhe dizer isso agora. Precisamos aguardar. De quantas
semanas ela está, mesmo? — perguntou calmo, porém preocupado.
—Cinco semanas.
—É uma gravidez recente... A hemorragia não foi forte, mas foi
considerável e ainda não está totalmente controlada. O obstetra de
plantão foi chamado e já está descendo para examiná-la.
Humberto sentia-se derrotado. Não sabia o que dizer. Sentiu o rosto
esfriar. Pálido, tentando conter as emoções, o que não conseguiu,
perguntou com lágrimas correndo pelo rosto.
—Posso vê-la?
—Ela está bem machucada. Precisou de pontos nos cortes nas
diversas partes do corpo, por isso precisou de sedativos. Talvez não
consiga conversar ou reagir como você pensa.
—Só quero vê-la... — insistiu.
—Então vamos lá! Por causa de uma pancada na cabeça,
principalmente, ela precisará ficar em observação até amanhã. Será
melhor. Além disso... — explicava o médico enquanto caminhavam
para ver Lívia.


***

Na noite do dia seguinte, Lívia já estava na casa de dona Aurora e
sob os maternais e rigorosos cuidados da senhora.


— Eu pensei que ela fosse perder o nenê! — admirou-se Sérgio ao
conversar com Humberto longe dos demais.
—Eu também. Mas esse tem raça!!! — exclamou Humberto
sorrindo. — Ele disse: eu fico!!! Não quero voltar pro plano
espiritual, não!!! — riu.
—Ela vai precisar fazer muito repouso.
—Eu sei! O médico fez o maior sermão sobre isso. O que mais me
deixa indignado é o fato de ela não querer prestar queixa! Não
insisto para não contrariá-la. Não quero que fique nervosa,
principalmente, agora.
—Sabe, Humberto, às vezes não vale a pena. Você vai se indispor
com ela que, apesar de tudo, quer proteger o pai. Agora ela vai
continuar ao seu lado sem dar tanta importância à família antiga.
—Precisou acontecer isso pra ela ver que é necessário se desligar
deles! Que droga!
—Infelizmente precisou.
—Você viu o meu carro? — perguntou Humberto.
—Não. Por quê?!
—Fui buscá-lo, hoje cedo, na casa do rapaz que socorreu a Lívia e a
levou ao hospital. Chegando lá, vi que a lateral direita está
amassada!
—Sério?!
—O cara não soube explicar o que aconteceu e... Fazer o quê?! Eu
nem disse nada. Afinal, o rapaz só pegou o carro para ajudar.
—Por que não me chamou para ir lá com você?
—Não! Já te incomodamos muito!
—Então, vamos lá! — brincou Sérgio. — Vamos ver o que aquela
mulherada está falando!


—Sérgio, obrigado! Muito obrigado por tudo! Você está sendo mais
do que um irmão para mim!
—Ora! O que é isso?!



***


Certamente a vida de Humberto não se renovaria se ele não tivesse
agido.
Ficar somente temeroso frente às conseqüências daquilo que nos
abala, não é suficiente.
Apesar da dor, do medo, de todas as terríveis sensações, que
experimentou sob o efeito de seus transtornos, e a obsessão sofrida,
ele reagiu e agiu.
Tudo o que realizou em seu benefício surtiu efeito positivo.
Seria muito fácil, cômodo e improdutivo fazer-se de infeliz e
desvalido da sorte, atirando-se ao leito e passar a viver como uma
carga para a família e para a sociedade.
Lógico que precisou de um supremo esforço para dar os primeiros
passos em busca da libertação, mas isso o tornou muito mais forte e
mostrou sua capacidade de resistir, corajosamente, ao abatimento.
Seu abalo psicológico foi um chamado de retorno à falta do perdão
verdadeiro e amor incondicional a uma única criatura. Quanto mais
conhecemos, por nós mesmos, as dores ocultas, mais devemos nos
interessar pelo socorro aos outros como nos ensina o Evangelho.
Humberto havia se afastado de seus princípios, por isso perdeu a
paz, mas a encontrou novamente com as bênçãos de Deus, através
de sua fé e perseverança.


Amigos do plano espiritual somente o ampararam, sem interferir.
Foi com suas preces, com sua fé, que se ligou ao Pai, a fluidos
benéficos e salutares que o recompuseram a cada dia e a cada
oração.
A realização do Evangelho no Lar, que reiniciou sozinho, não só foi,
pouco a pouco, unindo a família, como higienizando todos os
ambientes do lar, enfraquecendo até neutralizar totalmente a ação
dos espíritos inferiores, que os castigavam impiedosamente.



Assim como também sua leitura diária do Evangelho junto com a

água fluidificada, alimentavam o espírito, recuperando-o e
suprindo-o das energias de que necessitava.
Mas tudo havia acabado.
Os obsessores não mais conseguiam estar perto dele por

incompatibilidade, pela sua energia psíquica, espiritual ter-se
intensificado pela forças recebidas do Pai da Vida, que a todos
socorre, quando solicitado com fé, por justos motivos de amor e
para a elevação.
Para com os obsessores, não foi necessária a ação de espíritos
superiores, pois Humberto mostrou sua superioridade aos seus
perseguidores.
Naturalmente, a vida o deixou conhecer toda a extensão de suas
forças e, com serenidade, conduziu-o a um novo início, a uma nova
maneira de viver: mais tranqüila, mais confiante. Ele foi fiel ao seu
propósito reencarna tório. Para se melhorar, ele pôs em prática tudo

o que aprendeu.
Fazia duas semanas que ele e Lívia haviam se mudado para a casa
que compraram.
Uma bela residência, arejada e iluminada. Como ele queria!
A gravidez estava bem adiantada e ela, como toda mãe,
preocupava-se com detalhes do enxoval.
—Lívia, e a licença maternidade? Já falou com o doutor Kleber?
—Ah, não! Eu estou bem! Estou ótima e, se for possível, quero
trabalhar até o último dia!
—Assim também não! — disse, acariciando-lhe a barriga.
Nesse instante, o telefone tocou:


— Te acordei, filho?! — perguntou a senhora quando Humberto
atendeu.
— Não, mãe! Faz tempo que acordamos!
—Se te acordei, desculpa, mas... Você está muito ocupado?
—Não. Por quê? — Notando um tom de preocupação na voz de
dona Aurora, ele quis saber: — Aconteceu alguma coisa?

—Filho, você pode vir até aqui?
—Algum problema?
—Não... E que... A Irene está aqui e queria conversar com todos nós
juntos e...
—Ah, não! Espere um pouco!... Isso não está acontecendo!!!


— É importante, Humberto, ou eu não te pediria isso. Ele pensou
por alguns minutos e resolveu:
— Tudo bem. Daqui a pouco estarei aí. Após desligar, sentiu-se
contrariado.
O que Irene queria?! Ele estava casado! Estava muito bem! Não
desejava qualquer dilema que incomodasse a sua felicidade.
Virando-se para Lívia, contou o que ouviu de sua mãe, e ela
decidiu:
— Vamos lá o quanto antes. Não imagino o que ela possa querer.
Sempre dificultou as visitas de sua mãe ao Flávio... Nunca levou o
menino na casa dos avós... Precisamos saber o que está acontecendo.
— É melhor você ficar, Lívia.
— Mas de jeito nenhum!!! Eu vou sim!!! Para não contrariá-la,
Humberto concordou.
***

Não demorou e estavam na sala da casa de dona Aurora.
Ao ver todos reunidos, com grande expectativa, para saberem do
que se tratava, Irene revelou:


— Vou ser bem direta. — Sem trégua anunciou: — Estou aqui para
ver se a dona Aurora quer ficar com o Flávio.
— Como assim?! — perguntou Neide.
— Ela é avó. O Flávio é filho do Rubens, como vocês sabem. Eu até
o registrei no nome do pai e todos concordaram. Agora,
naturalmente, a dona Aurora vai querer ficar com ele, porque é avó
de fato e de direito, uma vez que eu não vou poder mais tomar
conta dele.

—O que você quer dizer com isso?! — estranhou Humberto. —
Você está dando o Flávio para minha mãe?
—E o seguinte: Humberto. Há pouco tempo, eu descobri que estou
muito doente. E uma doença degenerativa. A princípio fiquei
revoltada... — contou com lágrimas nos olhos.


— E uma doença progressiva e sem retorno à normalidade. Em
pouco tempo, eu não terei condições de tomar conta do Flávio.
—Hoje a medicina está muito avançada e...
—Não para a doença de Huntington, Lívia. Ela provoca distúrbios
progressivos dos movimentos, espasmos e demência. Não vou dizer
que estou conformada, mas preciso organizar a vida a começar pelo
Flávio. — Breve pausa e contou:
— Peço desculpas, principalmente, ao Humberto, por ter que
lembrar disso, mas a verdade é que eu não queria ter filhos, nunca
quis. Eu iria tirar a criança quando soube que estava grávida.
Porém, quando o Humberto quis terminar comigo, eu pensei que o
único jeito de prendê-lo, seria dizer que eu esperava um filho dele
e... Bem, isso funcionou. O Rubens não soube dessa gravidez antes
do Humberto e não soube que era filho dele. Quero que saibam que
estava tudo agendado para o aborto no dia seguinte que eu precisei
contar e não o fiz por sua causa — confessou, fitando-o nos olhos. O
silêncio era absoluto. Com lágrimas a correr pela face, ela
continuou: — Reconheço que não sou uma boa mãe. Parece cruel
dizer isso, mas é a verdade. Agora é o momento decisivo e eu
preciso ser realista. Minha família não é muito unida... Moro com
minha tia que tem inúmeros problemas e, como se não bastasse,
somente ela pode cuidar de mim... Enfim, conversei com ela sobre o
Flávio e, apesar de gostar muito do menino, ela disse que o melhor,
para ele, era ficar sob os cuidados da avó. Todos vocês gostam
muito de criança... A dona Aurora já perdeu o filho e... de certa
forma eu fui culpada... Minha tia me aconselhou dizendo que deixar
o Flávio com vocês era o mínimo que eu poderia fazer. Ele é
saudável, bonito... — chorou.

O senhor Leopoldo se levantou. Foi em sua direção e pegou o
menino, que dormia em seus braços.
Agasalhando-o no peito, embalou-o com cuidado e se dirigiu para o
quarto sem dizer nada.
Irene secou as lágrimas com as mãos, permanecendo de cabeça
baixa ao abrir uma bolsa e dizer:


— Aqui estão os meus exames e até uma cópia de um dos laudos
para que fiquem com ele... — disse, colocando o papel sobre a mesa.
— Se quiserem, eu posso assinar algum documento dizendo que é
de minha vontade que o Flávio fique com a avó a partir de agora.
Observando que sua mãe estava petrificada, em choque e sem
reação, Humberto lembrou:
—Eu disse a você que todo e qualquer apoio que o Flávio
precisasse, eu iria dar. Temos um filho a caminho... Mas eu e a Lívia
vamos conversar e...
—Nem precisamos conversar — interrompeu Lívia firme. — Temos
condições de criar o Flávio como nosso filho e...
—De jeito nenhum!!! — reagiu dona Aurora, inesperadamente. —
Ele é meu neto!!! Pode ficar em paz, Irene, pois eu vou cuidar muito
bem dele. O Flávio será muito amado!
Irene chorou compulsivamente e Humberto a olhou com piedade,
mas não podia fazer nada.
Lívia se levantou e se sentou ao seu lado. Afagando-lhe o ombro e
as costas esperou a outra se refazer e comentar:
—Eu tinha certeza que vocês iriam aceitá-lo. Por essa razão, eu
trouxe tudo o que é dele. As coisas estão lá no meu carro. Eu ainda
preciso procurar um advogado e ver o que posso deixar para ele
como herança. Talvez não reste muita coisa, pois preciso pensar nos
gastos que terei com minha saúde. Não quero dar muito trabalho
para minha tia. Estou pensando em uma internação, se for
possível...
—Não diga isso, Irene. De repente pode não ser assim — disse Lívia
comovida.



—Preciso ser realista! Não posso me iludir! — Alguns minutos e
considerou: — Estou muito satisfeita por aceitarem ficar com ele
desde agora. Será bom. Ele é pequeno e vai se acostumar logo com
vocês.
—Como descobriu que estava doente? — perguntou Humberto em
tom impressionado.
—Comecei me sentir estranha. Um médico disse que era depressão
pós-parto. Alguns sintomas diferentes começaram aparecer. Eu
reparei que tinha alguns espasmos, movimentos involuntários em
várias partes do corpo, inclusive, repuxões no rosto, na boca...
Comecei a ter o que os médicos chamam de perda cognitiva, ainda
suave, que são os esquecimentos, pensamentos confusos, falta de
concentração... Eu queria falar uma coisa e falava outra. Então
foram solicitados vários exames, inclusive de ressonância, que
mostrou a atrofia do lobo frontal do cérebro, a princípio.
O médico se surpreendeu porque o meu quadro vem se acelerando,
rapidamente, diferente de outros históricos clínicos.

Geralmente, essa doença tem início após os trinta e cinco anos e
estou com vinte e oito. Ela tem um tempo de evolução, em média,
de quinze anos até a morte, mas o aumento dos meus sintomas vem
progredindo muito rápido. Os meus movimentos estão sem
harmonia, sem controle e mais abruptos a cada dia. Essa perda de
movimento vai comprometer todas as partes do corpo.
Com o tempo, posso desenvolver a doença de Parkinson. É certo
que vou perder a consciência e ficar debilitada mentalmente até a
demência e tantas outras reações que vão me deixar num leito,
impossibilitada.
Estou vendendo minha parte da sociedade das lojas que tenho.
Parte do dinheiro será gasto com as minhas necessidades e a outra,
quero deixar para o Flávio.

— Irene, preocupe-se com você. Ele estará muito bem amparado —
avisou Humberto, firme. — O que eu der ao meu filho, darei igual
para o Flávio.

Abrindo novamente a bolsa, entregou à Lívia comunicando:

— Essa é a ficha médica do Flávio. Peguei ontem no pediatra. Como
podem ver, ele é perfeito, tem ótima saúde... Se quiserem mantê-lo
no mesmo médico que já o conhece... Aqui está a certidão de
nascimento.
Após isso Irene se levantou.
A mulher alta e elegante, que sempre desfilou esbanjando nobreza e
alegria, agora parecia definhar.
Estava extremamente abatida. Nem suas roupas de alto custo lhe
davam aparência melhor.
Foi então que puderam reparar nas contorções, os espasmos aos
quais havia se referido.
_ Aonde você vai? — perguntou dona Aurora.
_ Vou embora. Meu primo está me esperando há muito tempo lá no
carro.
_ Ele deveria ter entrado! — reclamou a senhora.
-Eu queria conversar com vocês sozinha. — Breves instantes.
Todos se levantaram e ela pediu: — Poderia ir alguém comigo até o
carro pegar as coisas do Flávio?
_ Claro! -prontificou-se Humberto, ligeiro. Observan-do-a, sentiu-
se apiedado e até arrependido de ter desejado o seu mal. Percebeu
que Irene começava a sofrer as conseqüências de seus erros, de sua
vaidade e orgulho.
_ Irene! -chamou dona Aurora. -Quando você quiser ver o seu
filho... Pode ser até de madrugada, pode vir aqui ou telefone, que
nós o levamos até você.
_ Obrigada -falou com voz fraca, abaixando o olhar. Lívia estava
emocionada. Aproximando-se de Irene,
envolveu-a em um abraço forte e carinhoso. Irene a apertou firme e
começou a chorar.
Ficaram assim por algum tempo. Ao se afastarem, Lívia secou o
rosto com as mãos e disse:
_ Eu vou te visitar, se não se importar.



_ Pode ir. -Quando ia saindo, virou-se e ainda falou: — Lívia, talvez
não acredite, mas eu gosto muito de você. Não sei por quê, mas...
Desculpe por tudo, por dificultar a sua felicidade — chorou. —
Quero que seja muito feliz. Boa sorte.
Neide, com lágrimas nos olhos, abraçou-se à Lívia, comovida.


Irene não se despediu do filho. Após ela ir embora, todos estavam
sentados na sala e permaneciam em total silêncio até o senhor
Leopoldo chegar com o neto no colo.
Flávio brincava e sorria, muito esperto e alegre.
Dona Aurora, imediatamente, quis pegar o neto no colo, mas o
senhor Leopoldo reclamou querendo ficar com o menino.
_Olha lá! Já começou! — riu Neide. — O Felipe precisa nascer logo
para esses dois pararem de brigar! Vai dar certinho: um neto para
cada um!
_ Quem falou que vai se chamar Felipe? — perguntou Humberto,
sorridente.


— A Lívia!
— Dedo duro!!! Não era pra contar! — brincou descontraída.
***

Não passou muito tempo e Humberto, radiante, estava em sua casa
recebendo a visita de Sérgio e Débora pelo nascimento de Felipe.
—Cara! Faz três noites que eu não durmo! — ria ao contar.
—Criança pequena é assim mesmo! Elas são muito exigentes! Com

o tempo, isso passa — Sérgio riu e brincou: — Isso passa, mas
chegam outras preocupações.
—Apesar do trabalhão, eu agradeço muito a Deus por tudo! Nossa!
É tão gratificante ter paz! Sentir felicidade! — comentou Humberto.
—E eu não sei?! É importante descobrir que a felicidade não está
nas coisas, mas em nós. Acredito que, na frase, "a felicidade não é
deste mundo", refere-se ao mundo exterior. Na verdade, a felicidade
é do mundo interior, tem que ser na alma.



—E verdade. Depois de tudo o que aconteceu, eu aprendi a viver
melhor. Quando algo diferente, fora do normal acontece, eu
pergunto: para que isso serve para minha evolução? E não mais por
que isso aconteceu comigo?
—Você está usando as dificuldades como ferramentas para a
evolução.
—Precisei usar todo o meu conhecimento teórico, na prática, e a
duras penas. Um dia acordei com a seguinte frase: nossos
pensamentos, nossas práticas e nossa linguagem são responsáveis
pelas forças superiores que nos protegem. Precisamos ficar
vigilantes. Muita coisa mudou Sérgio. Graças a Deus!
—Falando em mudança... eu vi o seu pai. Nossa! Como ele está
bem!
—Quem diria! O meu pai!... Devagarzinho, ele foi gostando do
centro, se achegando mais à família... Depois que passou a
freqüentar os Alcoólicos Anônimos, como está mudado! Depois que
precisou, junto com minha mãe, tomar conta do Flávio, ele ficou
muito diferente, mais responsável e participativo.
—Quem provocou toda essa mudança foi você, Humberto. Ele,
talvez, bebesse pela doença, mas se sentia excluído da família.
Quando você começou a conversar com ele, tratá-lo com mais
atenção...

—Mas eu nunca o tratei mal!
—Também não o tratou bem! Acho que você se afastava de seu pai.
— Breve pausa em que deixou o outro refletir e continuou: —
Depois, acho que com as orientações do Fabiano, você deixou o seu
pai fazer parte da sua vida. Começou a se interessar por ele que, por
sua vez, gostou e quis retribuir. Por isso decidiu se tratar do
alcoolismo. Às vezes, a pessoa pensa que é o filho, ou o pai, ou o
marido, ou a mãe quem precisa de terapia, de orientação
psicológica, quando, na verdade, é ela, bem lúcida, quem precisa
dessa orientação para poder ajudar aquele familiar necessitado. É
como a gripe. Você não pode arrancar os vírus da gripe de seu


corpo, mas pode fortalecer e aumentar os anticorpos para combatê-
los.
—Será que eu precisei de toda aquela movimentação tenebrosa para
entender que precisava deixar meu pai participar da minha vida? —
perguntou Humberto, pensativo.
—Não exatamente. Mas para arrumar um comportamento seu, você
arrumou todos e o seu pai, de alguma forma, por algum motivo que
ignoramos, queria várias coisas, inclusive participar da sua vida,
algo que ele não fazia.
—Vai ver, eu neguei isso a ele no passado. — Após alguns
segundos, comentou: — Sabe, às vezes, tenho certo medo de
experimentar novamente aquele estado horrível. Até comentei isso
com o Fabiano.
—Toda aquela movimentação violenta e dolorosa que experimentou
mudou radicalmente o seu comportamento, talvez, acomodado. No
seu caso, com o conhecimento que tem, você havia deixado de
praticar a prece, o evangelho. Abandonou suas atividades e deveres
morais na casa espírita quando se afastou das exposições das
palestras e dos cursos. Abandonou muita coisa, e o mundo não
parou à sua volta, tudo continuou acontecendo e você ficando
desarmado para a vida. Precisou de um abalo muito grande para
voltar ao seu ritmo, aos seus deveres e isso teve de fazer sob duras
penas, apesar de todo sofrimento na alma. Então necessitou buscar
forças no Pai e em você para se equilibrar, agir e reagir. Para isso,
mudou toda a sua vida e a vida daqueles que estão à sua volta.
—Sacrifiquei muito a Lívia, porém ela ficou ao meu lado o tempo
todo.
—Não. Você não a sacrificou! Além de ser instrumento, ela
aproveitou a oportunidade e se mostrou determinada e forte ao te
impulsionar. Por outro lado, você aproveitou, mas não ficou
dependente dela e isso foi muito importante. Há uma frase no
evangelho mais ou menos assim: "quando um golpe é desferido
contra nós, ao lado dessa grande prova, Deus coloca sempre uma


consolação". Não foi por acaso que ela estava ao seu lado. Não foi
por acaso que te aconteceu isso. Mas você venceu! — sorriu. —
Assim como você, eu descobri isso na prática, meu amigo!
—Você surtou assim como eu? — perguntou Humberto curioso.
—Um dia te conto. A história é longa! — riu.
—Graças a Deus estou me sentido muito bem! Estou ótimo! Não
voltei a ser o mesmo, estou melhor! Nunca mais quero ver
antidepressivo na minha vida! — riu. — Trabalho em uma empresa
farmacêutica e sabe que até a negociação dos materiais dessas
medicações me dão arrepios! — riu.
—Pegou trauma! — riu junto.


A chegada da pequena Laryel os interrompeu, e Débora, que correu
atrás da filha, chamou:
—Vamos lá! A Lívia quer tirar umas fotos com as crianças! —
Virando-se para o marido, lembrou: — Depois nós precisamos ir,
Sérgio. Prometi à Rita que íamos passar lá na casa dela.
—E o Tiago, a Rita e os quatro, como estão? — quis saber
Humberto.
—Ótimos! A Rita está ficando maluca com quatro filhos pequenos,
mas eu consigo deixá-la mais nervosa quando digo que eles terão
mais dois filhos!
—Ai, Sérgio! Por que você a provoca tanto?! Coitada! — repreendeu
Débora.


— Adoro ver a Rita nervosa! Humberto riu.
Em seguida, tiraram as fotos que queriam e depois Sérgio e Débora
se foram.
Mais tarde, tudo estava muito quieto. Lívia amamentava Felipe e
Humberto, deitado ao seu lado, afagava-a.
— Escuta! — disse ele com jeito maroto.
— O quê?! — perguntou curiosa.
— O silêncio! Ele não está chorando!
— Por que está com a boca ocupada! — riu Lívia. — Após mamar,
ele vai dormir por... Talvez duas horas. Depois resmungar, querer

colo, chupeta... O senhor Felipe está muito manhoso! — brincou.
Virando-se para o marido, perguntou: — Por que você não
aproveita e dorme um pouco?

— Não... — sorriu. — Vou ficar com você. — Beijou-a, sorriu e falou:
— Te amo muito, Lívia.
— Eu também te amo.
Como peças de um quebra-cabeças, tudo na vida se encaixa no
devido lugar.
Humberto e Lívia formavam uma família equilibrada e próspera.
Seus corações agora tinham um destino: a felicidade.
FIM


Leia os romances de Schellida!
Emoção e ensinamento em cada página!
Psicografia de Eliana Machado Coelho




O BRILHO DA VERDADE

Samara viveu meio século no Umbral passando por experiências
terríveis. Esgotada, consegue elevar o pensamento a Deus e ser
recolhida por abnegados benfeitores, começando uma fase dc novos
aprendizados na espiritualidade. Depois de muito estudo, com
planos de trabalho abençoado na caridade e em obras assistenciais,
Samara acredita-se preparada para reencarnar.

UM DIÁRIO NO TEMPO

A ditadura militar não manchou apenas a História do Brasil. Ela
interferiu no destino de corações apaixonados.

DESPERTAR PARA A VIDA

Um acidente acontece e Márcia, uma moça bonita, inteligente e
decidida, passa a ser envolvida pelo espírito Jonas, um desafeto que
inicia um processo de obsessão contra ela.

O DIREITO DE SER FELIZ

Fernando e Regina apaixonam-se. Ele, de família rica, bem
posicionada. Ela, dc classe média, jovem sensível e espírita. Mas o
destino começa a pregar suas peças...

SEM REGRAS PARA AMAR

Gilda é uma mulher rica, casada com o empresário Adalberto.
Arrogante, prepotente e orgulhosa, sempre consegue o que quer
graças ao poder de sua posição social. Mas a vida dá muitas voltas.

UM MOTIVO PARA VIVER

O drama de Raquel começa aos nove anos, quando então passou a
sofrer os assédios de Ladislau, um homem sem escrúpulos, mas
dissimulado e gozando de boa reputação na cidade.


O RETORNO

Uma história de amor começa em 1888, na Inglaterra. Mas é no
Brasil atual que esse sentimento puro irá se concretizar para a
harmonização de todos aqueles que necessitam resgatar suas
dívidas.

FORÇA PARA RECOMEÇAR

Sérgio e Débora se conhecem a nasce um grande amor entre eles.
Mas encarnados e obsessores desaprovam essa união. Conseguirão
ficar juntos?

LIÇÕES QUE A VIDA OFERECE

Rafael é um jovem engenheiro e possui dois irmãos: Caio e Jorge.
Filhos do milionário Paulo, dono de uma grande construtora, e dc
dona Augusta, os três sofrem de um mesmo mal: a indiferença e o
descaso dos pais, apesar da riqueza c da vida abastada. Nesse clima
dc desamor e carência afetiva, cada um deles busca aventuras fora
de casa e, em diferentes momentos, envolvem-se com drogas,
festinhas, homossexualismo e até um seqüestro.


Este e-book representa uma contribuição para aqueles que
necessitam de obras digitais, como é o caso dos Deficientes Visuais e

como forma de acesso e divulgação para todos.


É vedado o uso deste arquivo para auferir direta ou indiretamente
benefícios financeiros.
Lembre-se de valorizar e reconhecer o trabalho do autor
adquirindo suas obras.







 Corações Sem Destino - Eliana Machado Coelho (Schellida)



   Digitalização:  M. Loureiro
   Livro de Rosana Bothmann


Sinopse:

Mais uma vez, o espírito Schellida, com psicografia de Eliana Machado Coelho, traz atualíssimos ensinamentos em Corações sem Destino. Um romance que aborda temas como depressão, síndrome do pânico e distúrbio de ansiedade. Mostra-nos a importância de nos vigiarmos para que nossos sentimentos mais íntimos não se transformem em fonte de deseqúilíbrio e doença. Afinal, o verdadeiro amor liberta, traz alegria e paz ao coração.

 

Amor e ilusão se misturam em Corações sem Destino. Rubens, Humberto e Lívia, depois de cuidadoso planejamento espiritual, reencarnam e se reencontram para resgatarem os desafetos do passado.




 



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‘TUDO QUE É BOM E ENGRADECE O HOMEM DEVE SER DIVULGADO!

PENSE NISSO! ASSIM CONSTRUIREMOS UM MUNDO MELHOR.”

JOSÉ IDEAL

‘ A MAIOR CARIDADE QUE SE PODE FAZER É A DIVULGAÇÃO DA DOUTRINA ESPÍRITA” EMMANUEL

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